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a lira de Orfeu tocar em pianíssimo, outras vezes, soar com mais intensidade, como ocorre
com a arte dos trovadores.
A canção dos trovadores medievais e seus intérpretes
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, conforme Paul Zumthor,
pode ser melhor compreendida quando é tomada sob a perspectiva da obra plena,
“concretizada pelas circunstâncias de sua transmissão, pela presença simultânea, num tempo e
num lugar dados, dos participantes dessa ação”. Trata-se de um conceito de obra que “contém
e realiza o texto”, e que dá destaque à vocalidade, ou seja, ao uso da voz, parte concreta da
obra que através de “sua escuta nos faz tocar as coisas” (ZUMTHOR, 1993, p. 9, 10).
Por esses destaques, a poesia medieval, produzida entre os séculos X e XIV, parece ser
a que melhor explora e evidencia o (en)canto do verbo
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, numa unidade tal que, muitas vezes,
dizer e cantar não se distinguem, sendo aquele usado, geralmente, em contextos ligados a
determinado modo de oralização do texto poético, que toca o ouvido. Estamos falando da
poesia em vernáculo, disseminada pelos trovadores, menestréis e outros profissionais da voz,
os quais eram andarilhos e freqüentadores dos espaços cavalheirescos da Idade Média
européia, ligados, sobretudo aos valores profanos.
Entre esses ambientes, que se estendem do público ao privado, destacam-se as
cortes
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, os palácios, as praças dos mercados, os adros das igrejas e as feiras, considerados o
palco de socialização da arte e da cultura, num momento em que a voz constituía, muitas
vezes, o único meio de realização e publicização dos textos, fato que perdura além do século
XV.
Nesse período de, aproximadamente, meio milênio, a voz constituiu, através do uso
que os poetas ou seus intérpretes faziam dela, ora recitando, ora cantando o texto poético,
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Os trovadores (Sul da França) e os troveiros (Norte da França) eram poetas-músicos pertencentes à nobreza, os
quais criavam as cantigas para serem executadas, preferencialmente por seus intérpretes, os jograis e os
menestréis, no geral, ao som do alaúde ou da cítola. Acreditamos que, junto às cortes européias e a outros
ambientes nobres, os trovadores também interpretaram as suas composições. Já os menestréis e os jograis eram
músicos profissionais e itinerantes, da classe popular, divulgadores da arte trovadoresca, os quais, a contragosto
dos trovadores, também compunham, tocavam e cantavam as suas próprias canções poéticas. Cf.: Spina (2002).
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Utilizaremos verbo como sinônimo de “palavra-força”, no sentido em que utilizou Zumthor: palavra “que cria
o que ela diz” e que “tem seus portadores privilegiados: velhos, pregadores, chefes, santos e, de maneira pouco
diferente, os poetas; ela tem seus lugares privilegiados: a corte, o quarto das damas, a praça da cidade, a borda
dos poços, a encruzilhada da igreja” (1993, p.75).
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Conforme Zumthor, “várias cortes régias tiveram seus leitores e jograis contratados: os de Castela, de Aragão,
de Portugal, da França, da Inglaterra (...) reuniram multidões, em certos momentos dos séculos XII e XIII. A esse
propósito, falou-se de mecenato (ZUMTHOR, 1993, p. 63,64). Ainda segundo Zumthor, “as festas particulares –
banquetes, batizados e sobretudo casamentos – requeriam também, mais modestamente, a intervenção de
interpretes da poesia”( ZUMTHOR, 1993, p. 66).