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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
JAQUELÂNIA ARISTIDES PEREIRA
DE VERSOS (E) ACORDES:
O (EN)CANTO DO VERBO EM CECÍLIA MEIRELES
JOÃO PESSOA
2010
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1
JAQUELANIA ARISTIDES PEREIRA
DE VERSOS (E) ACORDES:
O (EN)CANTO DO VERBO EM CECÍLIA MEIRELES
Tese apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Letras, da Universidade
Federal da Paraíba, como requisito parcial
à obtenção do título de Doutor em
Literatura.
Orientador: Prof. Dr. José Helder Pinheiro
Alves.
JOÃO PESSOA - PARAÍBA
2010
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P436v Pereira, Jaquelânia Aristides
De versos (e) acordes: o (en)canto do verbo
em Cecília Meireles /Jaquelânia Aristides Pereira.
— João Pessoa, 2010.
349 p.
Orientador: Prof. Dr. José Helder Pinheiro
Alves
Tese (Doutorado em Literatura e Cultura)
Universidade Federal da Paraíba, Programa de
Pós-Graduação em Letras.
1. Poesia. 2. Cecília Meireles. 3. Música. 4.
Ensino. Programa de Pós-Graduação em Letras.
CDD: 800
3
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela vida.
Ao Prof. Dr. Hélder Pinheiro pela dedicação e carinho na orientação.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal da
Paraíba, na representação de sua coordenadora, Profa. Dra. Ana Cristina Lúcio
Marinho.
À Profa. Dra. Odalice de Castro e Silva, pela amizade e por acompanhar a
minha formação acadêmica e contribuir para o meu crescimento humano e
intelectual.
À secretária do PPGL, Roseane, por sua gentileza e préstimos no
atendimento.
A CAPES, pelo apoio à qualificação docente, através de convênio institucional
com a Universidade Estadual do Ceará.
Aos estudantes e gestores da Escola de Ensino Fundamental Santa
Terezinha que contribuíram para a realização das experiências “Poesia e música na
sala de aula” e “Cecília Meireles em canto”.
À minha família e aos amigos, pelo apoio e afeto constantes.
A Maria Valdênia da Silva, pela amizade e participação em vários momentos
de construção desta tese, especialmente, nas filmagens das experiências escolares,
na criação da arte gráfica da tese e do cd “Cecília Meireles em canto” e na revisão
do texto.
5
RESUMO
Esta tese é um estudo sobre as equivalências entre poesia e música a partir da obra poética de
Cecília Meireles, tendo como eixo os poemas de Ou isto ou aquilo, apreendidos em sua
relação com as musicalidades da infância, notadamente com os brinquedos cantados, sejam
como objeto de análise literária, sejam como corpus de leitura e de recriação musical nas duas
experiências de campo: “Poesia e música na sala de aula” e “Cecília Meireles em canto”,
realizadas numa escola pública de Fortaleza, com alunos do ao ano. Nestas experiências
em que trabalharmos a leitura do texto poético pelo prisma dos métodos criativo e recepcional
e pela perspectiva da poiesis e da vivência lúdica, e em que abrimos espaço para que as
crianças pudessem interagir musicalmente com os poemas, reforçamos os laços duradouros
entre poesia e música, evidenciando o encanto do verbo na poesia infantil ceciliana, ao
mesmo tempo em que contribuímos para a educação estética dessas crianças.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia - Música - Cecília Meireles
6
ABSTRACT
This work is a study on the equivalences between poetry and music from Cecília Meireles’
poetic work, taking as basis the poems from the book Ou isto ou aquilo, apprehended in its
relation with the musicalities of childhood, mainly with sung toys, like object of literary
analysis and as a corpus of reading and musical recreation in the following two field
experiments: "Poetry and music in the classroom" and "Cecilia Meireles in canto",
developed in a public school in Fortaleza, with students from 2nd to 5th grade. In those
experiments, we work the reading of poetry, through the point of view of the creative and
receptional methods, and also by the prospect of poiesis and ludical experience, allowing
children to interact musically with the poems, strengthening the relations between poetry
and music, emphasizing the verbal enchantment in Cecilia Meireles’ poetry, at the same
time we contributed to the aesthetic education of those children.
KEY WORDS: Poetry - Music - Cecília Meireles
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RÉSUMÉ
Cette thèse est une étude sur les ressemblences entre poésie et musique à partir de l'oeuvre
poétique de Cecília Meireles, ayant pour support les poèmes de livre Ou isto ou aquilo, dans
leurs relations avec les musicalitées de l'enfance, en particulier avec des jouets chantées,
soit comme objet du analyse littéraire, soit comme un corpus de lecture et de création de
musique dans deux expériences: «La poésie et la musique dans la salle de classe" et "Cecilia
Meireles enchantement", réalisées dans une école publique de Fortaleza, avec les élèves des
seconde et cinquième année. Dans ces expériences, nous travaillons la lecture du texte
poétique, par le prisme des méthodes créatif et de la recepcion et par la perspective de la
poiesis et de l'expérience ludique, et ouvrons de l'espace pour que les enfants puissent
interagir musicalement avec les poèmes, renforçons les lacets durables entre poésie et
musique, mettant en évidence l'enchantement du verbe dans la poésie infantile de Cecília
Meireles, en même temps nous contribuons à l'éducation esthétique de ces enfants.
MOTS-CLÉS: Poésie – Musique – Cecília Meireles
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 09
1 MÚSICA E POESIA: RELAÇÕES ANTIGAS 17
1.1 A canção poética 17
1.2 Os brinquedos poético-musicais da infância 31
2 A LÍRICA DE CECÍLIA MEIRELES E O RETORNO DA LIRA 45
2.1 Prelúdio: “retratos” de uma poeta-musicista 45
2.2 Instâncias de musicalidades 51
2.2.1 A música na canção poética 51
2.2.2 A canção poética na música 62
2.2.3 As musicalidades da infância em Ou isto ou aquilo. 68
2.2.3.1 A música de palavra e a música verbal 70
2.2.3.2 A música encantada 102
3 CECÍLIA MEIRELES ENTRE A LEITURA E O CANTO 115
3.1 Ideias norteadoras da pesquisa 115
3.2 O método criativo-recepcional 123
3.3 Ou isto ou aquilo: leitura, recriação musical e canto 133
3.3.1 Poesia e Música na sala de aula: primeira experiência 133
3.3.2 Cecília Meireles em canto: segunda experiência 189
CONCLUSÃO 222
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 229
ANEXOS 242
9
INTRODUÇÃO
Poesia e música têm uma longa história de afinidades que acompanha o tecer da
cultura e da humanidade. Entrecruzadas em seus sistemas semióticos, elas estiveram presentes
na formação das línguas, na constituição das figuras dos poetas mágico, lírico, trovador,
menestrel e dos poetas moderno e contemporâneo, atuando como jogo, na sua acepção mais
profunda, conforme Huizinga (2007), a qual envolve o sagrado, o divertimento, o social e o
individual, nas comunidades autóctones e nos espaços privados ou públicos das sociedades
desenvolvidas. Dos palácios às feiras, do teatro às calçadas das igrejas e das casas e em todos
os espaços/tempos em que houve o desejo de que a vida fosse tocada pelo encanto da lira de
Apolo e que o homem se dispôs a brincar com as palavras, música e poesia entrecruzaram-se,
reafirmando o princípio fundamental da poiesis de que “a vida é possível reinventada”,
como disse Cecília Meireles (1987, p. 196).
Implícita ou explicitamente, as duas artes sempre mantiveram um significativo
diálogo, aparecendo, ora, em primeiro plano, ora, mantendo uma relação paritária entre si ou
desempenhando um papel secundário no interior da arte-irmã. Trata-se de um procedimento
milenar que tem acompanhado a tessitura dos movimentos artísticos e dos estilos individuais,
e que continuará ressoando enquanto houver a comunidade humana, dados os fios ticos e
atemporais que enlaçam as duas artes e o desejo que habita o poeta de pôr na tapeçaria
humana o bordado linguístico e o canto, à semelhança do que se com a A dona
contrariada”, de Cecília Meireles, figura emblemática da própria escritora de Olhinhos de
gato, que, mesmo em circunstâncias adversas, seguia a bordar na tela a sua canção”
(MEIRELES, 1987, p. 179).
Bordar cantando foi um modo que os novos trovadores encontraram de carregar a sua
arte de afetos e de significações, e de sinalizar para o fato de que as duas musas de Apolo não
se desintegraram com as realidades sócio-culturais do mundo moderno, a partir do advento da
imprensa e da supremacia da leitura silenciosa sobre a leitura em voz alta, declamada e
cantada. A Poesia continua entrelaçada à Música, conservando, ainda hoje, na escritura,
diferentes “gradações da inscrição vocal(FERREIRA, 1993, p. 288), embora a partitura e os
índices de musicalidade não mais integrem, explicitamente, o espaço do texto poético, como
ocorreu com a canção poética cultivada até o trovadorismo português.
10
Contribui para a união duradoura entre Poesia e Música, o fato de ambas possuírem o
mesmo material básico, o som, e terem “o tempo virtual como aparição primária”,
trabalhando com “blocos sonoros em movimento, embora de diferente qualidade acústica”
(OLIVEIRA et al., 2003, p. 19), bem como compartilharem, entre si, certa terminologia, como
ritmo, altura, cadência, pausa, melodia, canção, melopéia, harmonia, refrão, lirismo etc, e
determinadas expressões, como “poesia musical”, “música verbal”, “orquestração de ideias”,
“melopoética”
1
, entre outras. Dessas categorias, a melopoética merece destaque, sobretudo
porque constitui uma disciplina que vem ganhando relevo nos dias atuais, entre os estudos
intersemióticos, surgindo no século XVI, na França, para selar as relações de reciprocidade
entre Literatura e Música.
O cerne da questão dos estudos intersemióticos e melopoéticos está na concepção
semiológica de que “todo objeto artístico constitui um texto, convidando a uma ‘leitura’, ou
seja, a uma interpretação vazada em linguagem verbal” (OLIVEIRA et al., 2003, p. 19), e na
ideia de que as artes, apesar de constituirem linguagens singulares, podem apresentar
parecenças estruturas entre si.
A pesquisa no campo da Melopoética destina-se, portanto, à investigação do modo
como certas obras artísticas conjugam literatura e música, como é o caso do lied, do drama
musical wagneriano, do poema sinfônico, entre outros, concentrando-se nas equivalências
estruturais entre Literatura e Música e/ou nos aspectos de musicalidade poética, apreendida no
uso da melopéia, da sinestesia, entre outros, sobretudo, nos domínios da poesia.
Interessante destacar que o trabalho com as homologias
2
entre literatura e música,
tanto na criação estética de músicos e poetas, como na recepção crítica de estudiosos da
melopoética, foi melhor explorado a partir do momento em que as duas artes se tornaram
independentes, embora ainda conservassem laços de afinidades. Isto se deu com as sociedades
modernas, a partir do advento da imprensa e do Renascimento, explicando, em parte, porque
determinados poetas e músicos, como Giavanni Bardi
3
(1534-1612), Paul Verlaine (1844 -
1896), Stéphane Mallarmé (1842-1898) Claude Debussy (1862-1918), T. S Eliot (1888-1965),
1
Termo que se constrói a partir do grego melos (canto) e poética. Atualmente, trata-se de uma disciplina do
campo da Semiótica e da Literatura comparada, que embasa o estudo da simbiose entre os sistemas literários e
musicais, cujos principais teóricos são os franceses Eugène Souriau e Steven Paul Scher. No Brasil, rio de
Andrade e José Miguel Wisnik podem ser considerados representantes da abordagem intersemiótica entre
Literatura e Música.
2
O uso de “homologias” deve-se à intenção da Pesquisa em destacar as correspondências gradacionais da
Música com a Poesia e não de estabelecer igualdades absolutas, como o termo poderia sugerir.
3
G. Bardi foi um dos poetas-músico da Camerata Fiorentina, defensores do teatro musical aos moldes gregos.
Para ele, a maior contribuição da música monódica na ópera seria “mover os afetos do público” em sintonia com
o texto (FUBINI, In: Chasin, 2004, p. xiv).
11
Ezra Pound (1885-1972), Mario de Andrade (1893-1945), Manuel Badeira (1886-1968) e
Cecília Meireles (1901-1964), entre outros que, no geral, tinham habilidades nas duas artes,
exploraram, sobremaneira, as possibilidades de interseção entre Literatura e Música.
Certamente, objetivaram ressarcir, às duas artes, algo que se perdeu com a autonomia de
ambas e com o predomínio da leitura silenciosa sobre a prática de dizer e cantar o poema,
comum até a Idade Média.
No caso de Cecília Meireles, a presença da música na poesia não é algo esporádico,
uma tendência de certa fase no seu ofício de escrever versos; constitui uma característica
constante que acompanha toda a sua obra poética e que sinaliza também para a sua grande
paixão pela música, evidenciada desde a infância, quando criava música para os brinquedos, e
juventude, quando ingressou no conservatório de música, estudando canto e violino.
A musicalidade da poesia de Cecília Meireles, ao mesmo tempo, não conhece
fronteiras geográficas, históricas e sociais; não tem pátria, aglutinando muitas heranças
recebidas e diversas possibilidades de recepção. Sua poesia musical dialoga com a lírica dos
gregos, com a canção dos trovadores, com a poesia dos simbolistas franceses, como Verlaine
e Marlarmé, com as canções indianas, com a modinha brasileira, com os brinquedos sonoros
da infância, sendo recriada tanto na canção de câmara como na canção popular.
O interesse em conjugar música e poesia também aponta para o legado que Cecília
recebeu na infância, especialmente, através da tradição oral; indica sua ligação com a poesia
dos trovadores, conhecida através dos portugueses, sua leitura das obras dos poetas
portugueses e a assimilação de seus modelos musicais de versificação, bem como sua leitura e
releitura da poesia dos indianos, sobretudo das canções de Tagore, as quais o povo indiano
cantava como canções populares. Ao mesmo tempo, reflete a afinidade ceciliana com a
estética do Simbolismo, como dissemos, voltada para o cultivo das aproximações entre
poesia e música e dos efeitos de musicalidade das palavras e dos versos e seu aspecto
transcendente, etc.
A música, na poesia de Cecília Meireles, demonstra também a sensibilidade da
escritora em conservar e explorar, no texto poético, a musicalidade da própria língua
portuguesa, como salienta João Gaspar Simões (1987, p. 54), especialmente, os modelos de
entoação, “o andamento fonético a pausa respiratória inerente à língua portuguesa”. No
entanto, é bom ressaltar que essa musicalidade poética não é a mesma da fala, uma vez que
faz parte de um projeto estético comprometido com o lúdico, com a beleza e com a
12
perpetuação da obra. A fala é apenas um referencial, para o desenvolvimento dos modelos de
dicção entoativa na poesia, como o é na canção popular (TATIT, 2002).
Alguns críticos literários, como Gaspar Simões e José Paulo Moreira da Fonseca,
admitem que a música na poesia de Cecília Meireles não é mero detalhe, é um dos atributos
fundamentais da composição, “graças ao ‘método’ mediante o qual é desenvolvido o meaning
do poema”, processo melhor cultivado “na poesia portuguesa que na brasileira, e fator
responsável, em grande parte, pela “extraordinária benquerença além-atlântico”, alcançada
pela poesia de Cecília Meireles (FONSECA, 1987, p.42).
Foi pensando na repercussão da música na poesia, seja através da musicalidade da
linguagem, das equivalências de formas e estruturas musicais no poema, seja mediante a
recriação musical do texto poético e sua importância na constituição da sensibilidade poética
do homem, que decidimos investigar as relações recíprocas entre poesia e música, na obra
poética de Cecília Meireles, notadamente no livro Ou isto ou aquilo (1964), e sugerir modos
de ler esses poemas em sala de aula, atentos às possibilidades musicais e a natureza lúdica dos
textos, como forma de despertar nas crianças a sensibilidade e o prazer pela leitura poética.
Entendemos que, ao se trabalhar a associação entre poesia e música na sala de aula,
podemos abrir caminhos, conforme Jorge Snyders, para “um acréscimo de significação e um
acréscimo de alegria” na escola (SNYDERS, 1992, p. 101), tendo em vista que a linguagem
especial da música toca o centro de nossa existência, atingindo a totalidade do nosso ser:
corpo, coração e espírito, semelhante à poesia, com suas possibilidades de propiciar a música
dos afetos, o jogo e o devaneio. A vivência com essas artes, de modo entrelaçadas, é,
portanto, deveras significativa para o aluno, evocando um prazer que “nenhuma das duas
linguagens, tomadas isoladamente, teriam podido evocar” (SNYDERS, 1992, p. 101).
Esta tese encontra-se dividida em três capítulos. No capítulo inicial, “Poesia e musica:
relações antigas”, buscamos salientar o entrelace poesia e música, cultivada do canto gico
das comunidades autóctones às formas poético-musicais das sociedades desenvolvidas, como
a canção poética. Nosso objetivo, com esta incursão rápida na história das duas artes, não é
dar conta, em um único trabalho, de mais de dois milênios de conhecimento sobre a poesia e a
música. Pretendemos ressaltar o fato de que as relações de reciprocidade entre literatura e
música não nasceram hoje nem ontem, com nossos poetas modernos e contemporâneos. A
origem dessas relações se situa “na madrugada das formas poéticas”, na acepção de
Segismundo Spina (2002), quando a música ajudava a traduzir o afeto do homem, sendo
13
também um instrumento de Mnemosyne a serviço da consolidação e perpetuação da poesia,
como o foi em outras épocas posteriores, especialmente nas sociedades orais ou
predominantemente orais. No âmbito brasileiro, a modinha e os brinquedos sonoros da cultura
oral são evocados, no intuito de salientar nossas heranças poético-musicais da tradição
européia, transmitidas, notadamente, pelos portugueses, e de evidenciar a importância dessas
artes para a formação da sensibilidade poético-musical do brasileiro.
Servem-nos de referencial teórico para entendermos as origens e os desdobramentos
das afinidades entre poesia e música, preferencialmente, as pesquisas de Segismundo Spina
(2002; 1996), quando se volta para as origens das formas poéticas e para a lírica trovadoresca;
o estudo de Paul Zumthor (1993), crítico que faz uma leitura aprofundada da poesia
trovadoresca, e o trabalho de Batista Siqueira (1979), entre outros autores que estudaram a
canção poética. Quanto ao entendimento dos brinquedos sonoros da infância, fundamentamo-
nos, principalmente, nos trabalhos de L. Câmara Cascudo (2006), autor que se debruça sobre
a poesia de tradição oral, e nos estudos de Glória Kirinus (1998), poeta e educadora que faz a
defesa das formas poéticas simples como bens imprescindíveis à formação da sensibilidade
poética na criança e ao cultivo da identidade mito-poética do homem.
No segundo capítulo, “A lírica de Cecília Meireles e o retorno da lira”, concentramo-
nos na figura lírica de Cecília Meireles como poeta-musicista que cultivou, sobretudo, a
canção poética e os brinquedos cantados. Inicialmente, numa espécie de prelúdio, buscamos
apresentar a escritora e seu perfil poético-musical através de dois possíveis “retratos”,
4
vislumbrados a partir de sua obra: a Cecília-menina, que teve uma intensa relação com a
música, com a poesia oral, com os brinquedos cantados e com a canção poética, e a Cecília
trovadora, sob os signos de Orfeu, de Sereia e de Penélope, que canta e (se) encanta e que
borda cantando. Num segundo momento, procuramos mostrar que o retorno da lira na poesia
de Cecília Meireles se realiza em três instâncias: primeiro, na realização da canção poética e
na migração do vocabulário básico da música e suas (re)significações para o espaço da
composição poética, sobretudo, nos livros Viagem e Vaga música; segundo, na recriação
musical dos poemas de Cecília Meireles, tanto no âmbito erudito quanto no popular, e
4
Usamos a palavra “retrato” em seu sentido de representação, incluindo nela as possibilidades de transfiguração
do real a partir da função da poiesis, no sentido aristotélico de recriação. Somos ncios de que os “retratos”
cecilianos, embora mantenham afinidades com a vida da escritora, entrevistos em cartas, crônicas e em suas
memórias ficcionais escritas em Olhinhos de Gato, entre outros, são construções poético-ficcionais das imagens
de personagens de si que ela elabora ao longo de sua produção poética. Na concepção de Bachelard (2006), essas
recriações das imagens de si são formas da escritora realizar seus devaneios poéticos, através de suas
lembranças, numa ambiguidade vida e obra, escrita do eu e literatura universal.
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terceiro, no cultivo das musicalidades da infância, através dos poemas de Ou isto ou aquilo.
Vale destacar que, no prelúdio e nas duas primeiras instâncias citadas, não temos o propósito
de analisar os poemas que servem para demonstrar o retorno da lira na poética de Cecília
Meireles. Pretendemos, tão somente, mostrar a intensa relação da escritora com a música, de
forma que esta antecede e motiva a criação poética, estando na vida e na arte de Cecília
Meireles. A análise literária, propriamente dita, é o foco do último momento do capítulo,
quando nos debruçamos sobre oito poemas de Ou isto ou aquilo.
Quanto ao embasamento teórico, o desenvolvimento do segundo capítulo efetua-se na
confluência da Estética de Hegel (1964), no momento em que o poeta e filósofo alemão
discorre sobre os elementos constituintes da poesia em sua relação com os componentes
fundamentais da música; das ideias de Ezra Pound (2003), em torno da melopéia, entendida
como o conjunto de procedimentos formais e estilísticos responsáveis pela musicalidade da
linguagem e suas correlações emocionais, e dos estudos de Alfredo Bosi (1997). Este autor,
imbuído de uma visão particularizada de melopoética, analisa alguns textos poéticos da nossa
literatura, evidenciando o seu caráter musical: o ritmo, seu andamento, sua dinâmica e seu uso
poético; a melodia, seus jogos de altura, suas curvas, seus tons e efeitos, bem como a pausa e
suas significações, concentrando-se na poesia moderna. Somam-se a esses estudos, as
pesquisas de Solange Ribeiro (2002; 2003), entre outros autores que analisam as
equivalências e afinidades entre a linguagem da literatura e a linguagem da música, e/ou que
estudam o caráter musical da poesia ceciliana.
No terceiro capítulo, intitulado “Cecília Meireles entre a leitura e o canto”,
objetivamos comprovar a viabilidade de se trabalhar, na escola, o entrelace poesia e música,
ressaltando a função da poiesis (JAUSS, 2002), como forma de promover a interação
texto/leitor. Para tanto, buscamos realizar duas experiências com os poemas da escritora
carioca, preferencialmente os de Ou isto ou aquilo, junto a alguns alunos do ao ano, do
ensino Fundamental I, da Escola Municipal Santa Teresinha, em Fortaleza, Ceará. Na
primeira experiência, efetuamos uma oficina de leitura poético-musical, a partir dos poemas
referidos, com uma turma de crianças do ano, enquanto, no segundo experimento, aberto
aos alunos do ao ano, formamos um grupo para cantar as canções feitas para os poemas
infantis de Cecília Meireles, pelas crianças e jovens do primeiro grupo, ao mesmo tempo em
que demos prosseguimento às atividades de leitura e musicalização dos poemas.
Servem de esteio à realização do terceiro capítulo, especialmente, os princípios
fundamentais dos métodos criativo e recepcional, elencados por Bordini e Aguiar (1988),
15
tomados não como uma norma, todavia como uma sugestão para se trabalhar a leitura
literária, e as ideias de Iser (1999), e Jauss (2002), com as quais os estudos de Bordini e
Aguiar entram em sintonia. De um modo geral, o método recepcional, embasado nos estudos
da Estética da recepção, constitui uma referência para nossa pesquisa, no que tange à sua
concepção de texto literário como objeto móvel e inacabado e ao papel que destina ao leitor,
enquanto coautor do texto e aquele que lhe atribui sentidos. No que se refere ao método
criativo, seu uso se justifica, especialmente, porque possibilita o trabalho criativo no âmbito
do ensino de artes, atuando como estímulo à interação sujeito/objeto e a auto-expressão,
provocando a aquisição de saberes de forma lúdica, a partir da valorização de múltiplas
possibilidades de interação que conjugam a intuição e a razão. A aplicação desses métodos
levou em consideração também a poética da composição, no sentido de que o texto poético
programa também a sua interpretação. Dito de outra forma, a composição é tecida em
consonância com uma intenção comunicativa que perpassa todos os estratos do poema. Logo,
a interpretação também brota do corpo do poema e não apenas do movimento subjetivo do
leitor e de suas experiências de leitura.
Buscamos com esta tese, “De versos e acordes: o (en)canto do verbo em Cecília
Meireles”, comprovar que os poemas infantis dessa escritora mantêm uma estreita relação
com a música, que excede a “música da linguagem”, isto é, a musicalidade das rimas, das
aliterações, do paralelismo, entre outras figuras rítmico-sonoras, e que é possível animar,
musicalmente, esses textos poéticos em sala de aula: ler atentamente o poema, percebendo seu
tom afetivo e sua estrutura rítmico-melódica e, em seguida, pensar modos de dizê-lo,
individual ou em grupo, usando o canto e a performance poética. Trata-se de experiências
lúdicas que procuram fazer as equivalências semânticas e emocionais de discursos diferentes,
irmanados pelo poder de sensibilização, respeitando a natureza das duas artes, numa
associação recíproca de sua expressividade sensorial e sonora, e de suas potencialidades de
comunicação, da qual as duas saem enriquecidas do encontro. A música é o atrativo para
seduzir o leitor para o texto poético enquanto este guarda os segredos de uma comunicação
especial com o leitor, e o resultado dessa união, semelhante ao poder da lira de Orfeu que,
uma vez jogada ao rio, continuou tocando por tempos sem fim, pode fazer diferença na
educação poética das crianças.
16
17
1 MÚSICA E POESIA: RELAÇÕES ANTIGAS
1.1 A Canção Poética
Literatura e música, ao longo da história das civilizações, teceram sempre laços de
afinidades entre si, numa interdependência enriquecedora do objeto estético. Trata-se de uma
relação milenar presente desde as formas poéticas primevas, como o canto mágico e os cantos
lúdicos das comunidades autóctones, passando pela poesia melódica greco-latina e pela
canção poética dos trovadores, quando poesia e música constituíam uma arte,
apresentando-se sob a forma de canção poética, até a canção popular dos dias atuais e a
canção erudita, gêneros que têm se construído, no geral, na conjunção entre texto poético e
música.
Todas as modalidades dessa poesia-canto nutrem-se dos elementos fundamentais da
música, especialmente o ritmo e a melodia, tomados não apenas em seu aspecto potencial
como acontece na fala e parte da poesia moderna escrita para ser lida em silêncio, entretanto,
em seu pleno desenvolvimento, atuando como fatores preponderantes na constituição do
próprio sistema literário e na perpetuação das obras poéticas.
Essa assertiva, que ressalta o poder da música junto à poesia, encontra respaldo tanto
no pensamento dos povos de cultura, extremamente desenvolvidas, como a greco-latina,
quanto no pensamento mágico dos autóctones e seu modo de representação do mundo. Numa
das lendas cantadas que circularam entre os negros superiores, os Bambaras e os Mandingas,
conforme cita Segismundo Spina (2002), a permanência da poesia está condicionada ao canto:
Tendo-se feito homem, o espírito das coisas se pôs a falar numa linguagem estranha,
cheia de imagens e flores. Não compreendido, e tomado por louco, foi lançado ao
mar. Um peixe o devorou; mas um pescador, tendo prendido o peixe e comido,
começou a falar por sua vez uma linguagem misteriosa. E o pescador foi apedrejado
enterrado profundamente. Lentamente o vento do deserto descobriu sua fossa, e,
num dia de simum, alguns restos do corpo caíram no ‘kous-kous’ de um caçador. E
imediatamente este se pôs a narrar em palavras místicas coisas desconhecidas. Foi
também exterminado; seu corpo, reduzido a tão fino como a poeira do deserto,
foi lançado no espaço. Um homem, cujo mister consistia em tirar de uma corda
estendida sobre uma cabaça harmonias divinas, respirou alguns destes grãos e logo,
como a corda que seus dedos faziam vibrar, começou a cantar, e o que saiu de seus
lábios foi tal, que todo o mundo se pôs a chorar e deixaram-no viver. Assim a
piedade deu nascimento ao griot, e é ela ainda que lhe permite existir (SPINA, 2002
p. 27).
18
Conforme sugere a lenda, a música entrelaçada à poesia garante a essa arte a
permanência junto aos homens, principalmente, porque no canto poético a música propicia o
desabrochar da linguagem dos afetos, “secundando a palavra para torná-la mais forte,
penetrável” (CHASIN, 2004, p. 57).
Não se trata, porém, de unilateralidade, de forma que somente a música enriquece a
poesia, como delimita a lenda dos Bambaras. A relação poesia/música no canto poético é de
reciprocidade: uma simbiose entre o estrato musical e o campo verbal, de forma que “o
sentido e a orgânica da música se dão pela e na palavra” e o sentido da poesia advém da carga
afetiva sugerida pela música que, por sua vez, “deve operar artisticamente na perspectiva de
aprofundar, explorar, revelar, intensificar, o afeto que a palavra guarda em si” (CHASIN,
2004, 57).
Desse entrelace, surge, portanto, uma arte de expressivo poder de persuasão e de
humanização, que não apenas assegura a permanência dos mágicos e contadores de histórias
nas comunidades arcaicas, como dos poetas mélicos, dos trovadores, e menestréis, entre
outros portadores do dizer poético nas sociedades desenvolvidas, que cultivaram, sobretudo, a
canção poética profana.
Nos domínios ainda dos povos autóctones, a poesia-canto não se restringe ao canto
mágico. Graças à tendência natural do ser humano à imitação e à criação, descobriram-se
outros modos de combinação entre palavra e música, ligados a interesses diversos. Assim,
paralelo à existência da poesia de caráter mágico-religioso, havia também os cantos lúdicos,
voltados para as circunstâncias do cotidiano, os quais apresentavam temáticas variadas,
notadamente referentes ao amor e a outros temas profanos. Entre eles, destacam-se, consoante
Spina (2002, p. 31), os cantos denominados Inga fuka, “das populações insulanas de Boeroe e
Babar, na Índia Oriental”, executados por moços e moças, em alternância de vozes,
semelhante aos cantares paralelísticos galego-portugueses.
Aqueles cantos indianos apresentavam uma estrutura aberta à competição, baseada
“num jogo de estrofes e contra-estrofes, golpes e contragolpes, perguntas e réplicas, desafios e
contestação” (SPINA, 2002, p. 31), que nos fazem lembrar os desafios poético-musicais de
nossos poetas populares, os repentistas.
19
Como canto lúdico, Segismundo Spina ressalta ainda os cantos de ofício ou de
trabalho, como “os himaios, que os escravos cantavam por ocasião da moenda; o aílinos,
canção dos tecelões, e o iulos, cantados pelos cortadores de lã”, nos primórdios da civilização
grega (SPINA, 2002, p. 41, 42). Alguns desses cantos foram cultivados também na Idade
Média, como as canções de tecer e as canções de trabalho. As primeiras canções eram
cantadas nas cortes pelas aias diante de suas damas ou princesas, ao som do saltério ou da
rabeca, e as segundas, geralmente exibiam melodias e ritmos que despertavam a alegria e a
dança, de acordo com a natureza do trabalho.
Acreditamos que estes e outros cantos espalharam-se como heranças pela história das
civilizações. Aqui no Brasil, por exemplo, além dos cantos das comunidades autóctones,
cultivamos outros tipos de canções. Entre essas, destacamos as cantigas de trabalho, entoadas,
sobretudo, na área rural, no cultivo da agricultura e da pecuária, encontradas também no
cotidiano dos engenhos e nas tarefas domésticas, e as cantigas para brincar, os acalantos e as
cantigas de carpir, entre outras.
Esses cantos, de um modo geral, deixaram a sua contribuição para a formação da arte
poética de todos os povos civilizados. De acordo com Segismundo Spina (2002, p. 103), no
que tange ao Ocidente, essa assertiva é verdadeira não apenas no que se refere à inter-relação
música/poesia, mas também no que concerne à estruturação de nossa lírica: deles herdamos,
por exemplo, os tipos básicos de nossas estrofes, o dístico, o terceto e a quadra, estruturas
que, no geral, eram escolhidas, entre os primevos, de acordo com os princípios da
numerologia gica. Através dessa perspectiva, se entende porque a canção utiliza,
predominantemente, a quadra como modelo estrófico, medida que guarda a harmonia do
mundo, conforme acreditam, ainda hoje, certas tribos norte-americanas, conforme destaca
Robert Lowie.
5
Esse canto-poesia das comunidades primevas, por sua vez, vai ser sistematizado e
ampliado nos domínios da Grécia e da Roma antigas, subsidiando o aparecimento da poesia
lírica, gênero que continua de mãos dadas com a música e com a dança
6
. É o caso da poesia
mélica (melódica), produzida no período arcaico (VII a. C.), conhecida também por canção,
5
Cf.:
SPINA, 2002, p. 103.
6
A dança também fazia parte da arte poética, desde o período primitivo à Idade Média. Esta era construída num
tripé: música, poesia e dança. Por questões de delimitação de nossa pesquisa, faremos referências apenas ao
binômio “poesia e música”, sempre que for possível.
20
poesia estrófica, ode ligeira ou poesia monódica (cantada a uma só voz). Através dessa poesia,
os poetas mélicos, geralmente, acompanhados pelo barbitos, (instrumento de sete cordas, que
tem forma similar à lira), cantavam, preferencialmente, o amor e os prazeres da vida.
Faz-se mister destacar que a musicalidade da lírica greco-romana
7
não se limitava ao
próprio texto, presente na estrutura rítmica dos metros e nas potencialidades musicais da
linguagem, no entanto, sua realização incluía o acompanhamento instrumental, numa
perspectiva interativa em relação à composição verbal, que por sua vez, não era mero
acessório da música, todavia uma forma de expressão musical, fundamentada no ritmo e nas
possibilidade melódicas da poesia/canto.
Consoante Hegel (1964, p. 359), na poesia mélica, “os metros são mais variados, mais
versáteis, as estrofes mais ricas e o acompanhamento musical torna-se mais completo, graças
à interferência da modulação”. Tudo isso, somado à diversidade musical da poesia coral
8
,
garante uma expressiva musicalidade à poesia.
Essa poesia mélica apresentava-se, no geral, dividida em estrofes, formadas por
agrupamentos de versos, pautados por um mesmo esquema rítmico, os quais convergiam para
a unidade de sentido da estrofe. De acordo com Spina (2002, p. 99), a estrofação é um dos
mecanismos formais que asseguram a melopéia dessa poesia lírica e que facilitam a execução
do poema como canto e como coreografia, constituindo um parâmetro formal necessário ao
contexto circular do canto, o qual exigia uma volta à frase musical. Em decorrência desse
movimento, o agrupamento de versos em torno de uma mesma ideia recebeu o nome de
estrofe, palavra oriunda do grego strophê, cujo significado se referia à ação de retornar
9
.
Pensamos que essa poesia mélica greco-latina, além de servir de base para a
constituição da arte poética do Ocidente, contém as nossas referências poético-musicais,
ressoando em diversas sociedades e em vários momentos históricos, algumas vezes, deixando
7
Consoante Grout e Palisca (2007, p. 28-33), do canto dessa poesia mélica poucos fragmentos textuais,
notadamente da poesia individual de Safo, produzida entre os séculos VII-VI a. C., e da poesia de Alceu (?630-
580?), ambos oriundos da aristocracia grega, e da poesia de Catulo (84-54 a. C.), entre outros poetas romanos.
Quanto às partituras, há referência a duas, um fragmento de um coro do Orestes, de Eurípedes, de III ou II a. C. e
um Epitácio de Seikilos, provavelmente, do século I d. C.
8
Alcmã foi um dos poeta-músicos que cultivaram a poesia coral. Este subordinou “suas combinações métricas e
estróficas não à sua fantasia, como às condições da melodia musical de que era também o compositor”. Entre
as suas inovações, destacamos a ampliação da estrofe, que passou a ser composta “de duas partes iguais e uma
terceira independente, estrutura que se tornou muito do gosto de seus sucessores” (SPINA, 2002, p. 115).
9
Entre nós, praticamente, se desconhece o sentido musical de estrofe advindo da poesia grega, embora tenhamos
a estrofe como elemento básico da estrutura do poema até os dias de hoje.
21
a lira de Orfeu tocar em pianíssimo, outras vezes, soar com mais intensidade, como ocorre
com a arte dos trovadores.
A canção dos trovadores medievais e seus intérpretes
10
, conforme Paul Zumthor,
pode ser melhor compreendida quando é tomada sob a perspectiva da obra plena,
“concretizada pelas circunstâncias de sua transmissão, pela presença simultânea, num tempo e
num lugar dados, dos participantes dessa ação”. Trata-se de um conceito de obra que “contém
e realiza o texto”, e que destaque à vocalidade, ou seja, ao uso da voz, parte concreta da
obra que através de “sua escuta nos faz tocar as coisas” (ZUMTHOR, 1993, p. 9, 10).
Por esses destaques, a poesia medieval, produzida entre os séculos X e XIV, parece ser
a que melhor explora e evidencia o (en)canto do verbo
11
, numa unidade tal que, muitas vezes,
dizer e cantar não se distinguem, sendo aquele usado, geralmente, em contextos ligados a
determinado modo de oralização do texto poético, que toca o ouvido. Estamos falando da
poesia em vernáculo, disseminada pelos trovadores, menestréis e outros profissionais da voz,
os quais eram andarilhos e freqüentadores dos espaços cavalheirescos da Idade Média
européia, ligados, sobretudo aos valores profanos.
Entre esses ambientes, que se estendem do público ao privado, destacam-se as
cortes
12
, os palácios, as praças dos mercados, os adros das igrejas e as feiras, considerados o
palco de socialização da arte e da cultura, num momento em que a voz constituía, muitas
vezes, o único meio de realização e publicização dos textos, fato que perdura além do século
XV.
Nesse período de, aproximadamente, meio milênio, a voz constituiu, através do uso
que os poetas ou seus intérpretes faziam dela, ora recitando, ora cantando o texto poético,
10
Os trovadores (Sul da França) e os troveiros (Norte da França) eram poetas-músicos pertencentes à nobreza, os
quais criavam as cantigas para serem executadas, preferencialmente por seus intérpretes, os jograis e os
menestréis, no geral, ao som do alaúde ou da cítola. Acreditamos que, junto às cortes européias e a outros
ambientes nobres, os trovadores também interpretaram as suas composições. Já os menestréis e os jograis eram
músicos profissionais e itinerantes, da classe popular, divulgadores da arte trovadoresca, os quais, a contragosto
dos trovadores, também compunham, tocavam e cantavam as suas próprias canções poéticas. Cf.: Spina (2002).
11
Utilizaremos verbo como sinônimo de “palavra-força”, no sentido em que utilizou Zumthor: palavra “que cria
o que ela diz” e que “tem seus portadores privilegiados: velhos, pregadores, chefes, santos e, de maneira pouco
diferente, os poetas; ela tem seus lugares privilegiados: a corte, o quarto das damas, a praça da cidade, a borda
dos poços, a encruzilhada da igreja” (1993, p.75).
12
Conforme Zumthor, “várias cortes régias tiveram seus leitores e jograis contratados: os de Castela, de Aragão,
de Portugal, da França, da Inglaterra (...) reuniram multidões, em certos momentos dos séculos XII e XIII. A esse
propósito, falou-se de mecenato (ZUMTHOR, 1993, p. 63,64). Ainda segundo Zumthor, “as festas particulares
banquetes, batizados e sobretudo casamentos requeriam também, mais modestamente, a intervenção de
interpretes da poesia”( ZUMTHOR, 1993, p. 66).
22
mediante a improvisação e/ou memorização, um instrumento de autoridade tamanha que,
muitas vezes, o texto, para o intérprete vocal (autor empírico), era apenas “uma oportunidade
do gesto vocal”, conforme destaca Zumthor (1993, p. 55).
Nesse sentido, a enunciação na literatura medieval parece-nos ser o ou mais
importante que o enunciado, uma vez que, diferentemente da leitura silenciosa ou mesmo da
simples leitura em voz alta do texto poético, a realização oral do texto poético pelos
profissionais da palavra, como os trovadores, menestréis e outros, colocava em movimento
outras linguagens, sobretudo a do corpo, incluindo, aí, a voz e os gestos, linguagens que
tinham implicações na recepção do texto pela plateia. Assim, quando o sujeito dizia ou
cantava um poema tendia a converter a sua linguagem simbólica em situações concretas,
despindo o signo de seu caráter arbitrário, a partir de uma leitura particularizada do texto.
Nessa perspectiva, o texto não era somente letras, palavras, era também mímica,
representação, objeto sensorial, enfim, ação de um corpo, performance.
Essa corporificação dos textos se manifestava, sobretudo, porque, na perfomance,
13
o
intérprete, em virtude da ausência do texto escrito, geralmente, tinha maior liberdade para
dizer o texto, de modo que sua realização oral constituía um espetáculo para os olhos e para
os ouvidos.
Os intérpretes da literatura medieval, jograis, recitadores e leitores itinerantes, além de
atuarem como principais difusores dessa arte, desempenharam, notadamente, a função lúdica
na sociedade de seu tempo: sua vocação era proporcionar “o prazer do ouvido” e o prazer do
espetáculo (ZUMTHOR, 1993, p. 57).
Esses portadores da voz poética, como os denominou Paul Zumthor, possuíam uma
extraordinária habilidade na arte do divertimento e uma maestria considerável na arte do dizer
poético e do canto, mostrando-se, muitas vezes, exímios instrumentistas, por força da
profissão, pois, o ofício de intérprete chegou a exigir deles “a capacidade de tocar nove
13
U
ma boa parte dos poucos exemplos descritivos de performances poéticas, que se pode ter conhecimento
hoje, se refere, consoante Zumthor (1993, p. 230), às experiências lítero-musicais realizadas entre a última
metade do século IX e o final do século XIII, como é o caso da “cena das núpcias de Flamenca, no romance de
mesmo nome, em meados do século XIII”. Neste episódio referência de que o evento se construía na
confluência entre “a explosão de verbos e gestos: um diz, o outro canta, um conta, o outro modula; se um
acompanha de um instrumento, o outro não – todos pelo prazer auditivo da nobre reunião”(Idem).
23
instrumentos diferentes
14
[vielas, rotas, harpas, fretels, liras, timbales, trompas...]”
(ZUMTHOR, 1993, p. 57).
O jogral e outros poetas por profissão promovem uma integração social através do
lúdico, ligando-se, sobretudo, às festividades da sociedade medieval: dos coroamentos reais
aos simples batizados, dos palácios às feiras e adros das igrejas. Além disso, desempenhavam
outras funções, servindo de instrumento moral, tanto junto ao cidadão comum, como aos
combatentes das guerras. Entre esses, através do canto (o cantus gestualis), veiculavam o
ideal de virtude e de valentia necessários aos heróis, funcionando também, junto à sociedade,
como instrumento ideológico do Estado, dadas às particularidades da recepção, pois,
geralmente, a performance do texto se erguia em contextos favoráveis a uma escuta atenta”,
como “as horas de folga e de repouso” do trabalhador, que, estando relaxado, melhor absorve
a mensagem. (ZUMTHOR, 1993, p.157)
No geral, o porta-voz da poesia ocupou na Europa, especialmente entre os séculos X e
XV, um espaço central, não apenas servindo para manter a coesão social, mas, especialmente
“sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e confirmando os mitos, revestida nisso de
uma autoridade particular” (ZUMTHOR, 1993, p. 67). No entanto, conforme lembra o
medievalista,
nada teria sido transmitido nem recebido (...) sem a contribuição sensorial própria da
voz e do corpo. O intérprete (mesmo que simples leitor público) é uma presença. É
em face de um auditório concreto, o “elocutor concreto” de que falam os
pragmatistas de hoje; é o “autor empírico” de um texto cujo autor implícito, no
instante presente, pouco importa, visto que a letra desse texto não é mais letras
apenas, é o jogo de um indivíduo particular, incomparável (ZUMTHOR, 1993, p.
71)
14
Em virtude das exigências para a função do intérprete, foram criadas algumas escolas voltadas para a
formação dos trovadores, a partir da última metade do século XII, em vários países da Europa, como a França, a
Itália, a Alemanha, a Escócia e a Irlanda. A escolarização dos jograis, todavia, não constituiu regra, havendo os
jograis leigos. A especialização parecia ser uma exigência apenas para a canção de gesta, modalidade de maior
prestígio entre a nobreza, sobretudo na França, país que, até o final do século XIV, possuía “um grupo distinto e
altamente respeitado de ‘jograis’ dedicados à execução das canções de gesta, entre as quais declamavam a
melopéia, acompanhando-se de viela ou da sanfona” (ZUMTHOR, 1993, p. 58)
24
Nesse jogo, em que entram em cena o texto verbal, a melodia do canto, os gestos, a
dança, as vestimentas e os objetos que cercam o intérprete, a obra literária ganha evidência
não como texto escrito, mas como objeto em performance, iluminado no instante de sua
execução. Ou seja, “ela se realiza nas especificidades da sua materialização em performance.
Nesse momento encantado da performance, todos os elementos se aglutinam numa
experiência única e talvez inefável, transcendendo a separação de seus componentes
individuais” (FINNEGAN, 2008, p. 24).
A canção, nessa perspectiva, é antes de tudo, um evento, um texto em acontecimento,
orientado pelo prazer, tanto na emissão, quanto na recepção; é um objeto especial de
comunicação poética, de interação, de sociabilidade, afetividade e saber; enfim é uma obra
plena, aquela que reúne todos os componentes possíveis de uma obra em ato: os elementos
audíveis e visíveis, “os meios corporais e físicos da comunicação”, ou seja, “o que é
poeticamente comunicado, aqui e agora texto [não verbal], sonoridades, ritmos e elementos
visuais (...), a totalidade dos fatores da performance”; o texto escrito, visto como seqüências
lingüísticas, e o poema, “texto [oral](e, se for o caso, a melodia) da obra, sem consideração
aos outros fatores da performance” (ZUMTHOR, 1993, p. 220).
Sem dúvidas, a realização plena da obra de arte literária pelos trovadores e seus
intérpretes foi algo fascinante na Idade Média européia, sobretudo, no século XIII, servindo,
notadamente como difusor do pensamento e da cultura daquele período, dos valores e dos
anseios humanos, como o faz a arte desde os primórdios das civilizações. Isto não implica em
dizer que ela se deu sempre de forma tranquila, pois apesar da função abrangente que a arte
dos trovadores alcançou na sociedade medieval, a atuação dos intérpretes nos espaços urbanos
dessa sociedade também inquietou, sobretudo, a igreja, que, embora, em certos momentos e
lugares da Inglaterra e da Espanha
15
(séculos XIII e XIV), tenha se rendido aos encantos do
dizer poético dos intérpretes, abrindo-lhes, inclusive, as portas dos palácios episcopais,
contraditoriamente, concebeu a arte dos profissionais da voz poética como concorrente ou
mesmo inimiga, já que podia desviar a atenção dos fiéis para o profano.
15
Conforme Paul Zumthor (1993, p. 64), exemplos de que poetas e cantores eram contratados para fazer a
publicidade de certas igrejas diante dos romeiros, especialmente na “região de Santiago de Compostela (e em
mais de uma dúzia de santuários locais)”. Além disso, a liturgia dramática, própria dos séculos X, XI, e XII,
exigiu frequentemente o domínio da técnica inerente ao dizer poético dos trovadores e a adoção da língua vulgar,
visando “operar com o populus christianus um contato frutuoso. (ZUMTHOR, 1993, p. 76, 77).
25
A arte dos jograis de boca, como eram chamados os cantores e recitadores, enfim, os
divulgadores da literatura trovadoresca, para diferenciá-los dos jograis instrumentistas que os
acompanhavam, inquietou também a burguesia, em seus primeiros passos ao poder, que a
como coisa inútil, o oposto do trabalho. Todavia, essa classe emergente também não consegue
parar a marcha dos artistas da palavra cantada que, nesse momento, ressoa por toda a Europa,
embora estivesse em desaceleração no século XIII, em decorrência do aumento dos textos
escritos em “circulação” e, no século XIV, com o advento da imprensa, a ampliação do
mercado livresco, a formação de bibliotecas abertas ao público estudantil e a atuação da
escolástica
16
. É o contato com o papel escrito, com o início da prática da leitura em silêncio,
que se impõe, no curso da performance dos trovadores, entre a voz, o canto e a poesia,
calando a voz alta.
Até quando e até que ponto o novo contexto de modernização das sociedades
ocidentais conseguirá emudecer a lira de Orfeu da arte poética dos trovadores e encerrar suas
influências?
Sabemos que a poesia vocalizada dos trovadores, espaço do idílico, do lócus amenus,
da Mimne, do encanto, da cortesia e da harmonia, entendida também como evocação à
primavera, à alba e aos cantos dos pássaros, ressoará na poesia de todos os tempos, inclusive
em seu caráter de poesia musical.
Entre nós, brasileiros, ela se faz presente tanto na poesia de nossos poetas
consagrados, sobretudo na produção poética do romantismo e modernismo, bem como na
poesia popular de um modo geral, especialmente no cordel e seus ciclos heróicos e, na
modinha.
Quanto às estruturas textuais, as canções dos troubadours (Sul da França) e dos
trouvères (Norte da França), no geral, apresentavam-se sob a escrita do trobar leu (trovar
simples) e do trovar clu e do trobar ric. No primeiro caso, temos o exemplo das canções da
Condessa Beatrice de Dia (...1180-1210...), entre outros poetas que produziram composições
simples, de fácil memorização, próximas das canções do folclore francês (GROUT e
PALISCA, 1997, p. 89), enquanto o modo de trovar hermético e/ou rebuscado do trovar clu e
do trobar ric foi cultivado, sobretudo por Macabru (...1129-1150), Raimbaut d’Aurenga
16
A
atuação da Escolástica no ensino, defendendo a prática da leitura silenciosa, e o emergente contexto de
industrialização europeu fizeram com que o uso da arte vocal se tornasse marginal, restrito às expressões da
cultura popular.
26
(1147-1173) e por outros trovadores que criaram formas poético-musicais complexas, como
as baladas dramáticas, cuja interpretação envolvia dois ou mais participantes (SPINA, 1996,
p. 54). Entre essas, havia as baladas que deveriam ser mimadas, isto é, expressas com a
linguagem corporal, enquanto outras se destinavam à interpretação coreográfica. Além disso,
quase todas as canções dramáticas apresentavam a estrutura do refrão, certamente, entoado
por um coro.
A pastourelle (pastorela) constitui um dos gêneros de canção mais cultivados,
especialmente no Norte da França. Trata-se de uma balada dramática, provavelmente de
origem popular, cuja temática gira em torno do motivo da corte de um cavalheiro da
aristocracia a uma pastora, que antes de ceder aos apelos daquele o escarnece. No geral,
estrutura-se na forma de diálogos (entre o cavalheiro e a pastora), os quais podiam ser
cantados e representados, ao mesmo tempo. O Jeu de Robin et de Marion, de Adam de La
Halle (...1237-1288...), é um dos mais importantes exemplos de teatro musical. Nesta peça, a
parte cantada por Marion é bastante pungente, diferenciando-se dos refrões cantados pelo
coro. Trata-se, conforme Grout e Palisca (1997, p. 86) de “um rondel monofônico com a
forma ABaabAB (cada letra designa aqui uma frase musical diferente, correspondendo as
maiúsculas às que são cantadas pelo coro e as minúsculas às cantadas pelo solista)”.
A repetição constitui um dos traços característicos das canções dos trovadores, quer de
frase ou grupo de frases iniciais dos poemas, repetidas ipsis litteris ou com variações,
procedimento que acontece, geralmente, antes dos cantores/poetas/instrumentistas seguirem
livremente.
É necessário destacar, porém, que esse traço recorrente nos textos das cantigas nem
sempre se confirma no âmbito da forma musical, consoante adverte Grout e Palisca, podendo
a melodia ser conduzida por outros caminhos diferentes daqueles do texto verbal. No entanto,
em termos de predominância, as recorrências textuais implicam em repetições melódicas
(
GROUT e PALISCA, 1997, p.89).
Da poesia dos trovadores que melhor evidencia o procedimento da repetição,
ressaltamos as cantigas de amigo e de amor da Península Ibérica, especialmente as galaico-
portuguesas, as quais apresentam fortes índices de musicalidade, conservados da canção
provençal. Nessas cantigas, a repetição se mostra, sobretudo, na estrutura do paralelismo
(notadamente o paralelismo formal) e do refrão, bem como na composição da melodia do
texto, que, geralmente, se fazia acompanhar por algum instrumento da época.
27
O refrão, conforme Saraiva e Lopes (s.d.), constitui um dos traços estruturais sugestivos
de musicalidade nas cantigas peninsulares:
O refrão sugere a existência de um coro. A disposição das estrofes aos pares e a
alternância das mesmas rimas ao longo de toda a composição deixam entrever que
se alternavam dois cantores ou dois grupos de cantores. A repetição à cada cabeça de
cada nova estrofe, do verso final de uma estrofe anterior é talvez o vestígio de um
primitivo processo de composição improvisada, que obriga um dos improvisadores a
repetir o último verso do outro, para o qual devia achar seqüência (leixa pren,
processo que ainda subsiste nas quadras do desafio). O facto, enfim, de, em virtude
deste sistema de repetições, a letra se reduzir a um número pequeno de versos
mostra-nos que ela se subordinava ao canto e ao ritmo da dança, e que a invenção
literária desempenhava, dentro deste conjunto, um papel relativamente secundário
(SARAIVA e LOPES, s.d., p. 58)
O Brasil recebeu muito da poética dos trovadores, não apenas no que concerne as suas
cantigas, como também a sua arte de contar e cantar dos lais
17
, sobretudo através de Maria de
França, que se notabilizou com os lais de amor, cantando as narrativas do fabulário celta e
bretão, acompanhada de sua harpa (COLASANTI, 2004, p. 43, 44).
Essa é a base da nossa da poesia de cordel, através da qual o nosso poeta popular narra
em versos contos de fadas, episódios da gesta carolíngia, que nos chegaram, possivelmente,
através de Portugal, e outros fatos ligados ao contexto histórico que lhe é pecualiar.
Essa constitui também as heranças de nossos brinquedos populares cantados, sendo
referência para a formação de poetas-músico do porte de João de Barro, que, no início do
século XX, foi a nossa Ananse
18
, especialmente, junto ao público infantil. Aquele poeta e
compositor carioca, guiado por Apolo e suas musas, derramou sobre nós, o conteúdo do pote
divino de Ananse, desta vez, duplamente encantado, pois se encontrava enfeitado de poesia e
de música, constituindo um dos tesouros mais valiosos de nossa infância.
Quando falamos de nossas heranças poéticas, incluímos a lírica portuguesa, uma vez
17
O lai foi uma das formas poéticas bastante cultivadas, sobretudo, na Provença. No geral, possuía um caráter
narrativo e não seguia a regularidade estrófica da canção,
apresentando um conteúdo variado, segundo a época
de sua evolução: daí a sua divisão em lais religiosos (os mais antigos), consagrados principalmente à Virgem; o
lai amoroso, que versa sobre o problema da natureza da Mimne (Amor)”, entre outros (SPINA, 1996, p. 78).
18
O mito de Ananse conta o seguinte: Ananse, uma aranha africana, subiu ao u, através de sua teia, a fim de
conseguir o pote sagrado que continha a ficção do mundo inteiro para contá-la ao povo de sua aldeia. Chegando
lá, o Criador apresentou-lhe alguns desafios, os quais foram vencidos, de forma que Ananse ganhou o pote
sagrado. Ao descer, a aranha se desequilibra, fazendo com que o pote despeje na cabeça das pessoas do mundo
todo o conteúdo. Esse mito está presente em Machado (1985).
28
que foi através de Portugal que recebemos a nossa parcela da cultura ocidental. Certamente, a
poesia provençal e sua musicalidade, frutos das influências das canções populares de outros
povos europeus, foram algumas das heranças mais marcantes para a formação da rica dos
portugueses e, por consequência, da nossa, sobretudo no tocante ao caráter mélico da
linguagem.
Dos povos da península ibérica, também ganhamos outros traços fundamentais da
nossa poesia, como é o caso da métrica da redondilha, “forma de verso mais espontânea de
toda a versificação peninsular. É o metro que corresponde à melodia natural das línguas
hispânicas (o português, o galego e o espanhol)” (SPINA, 1996 p. 100). Essa herança foi tão
decisiva que, segundo ainda Spina, nós “quase falamos em redondilhos de 7 sílabas. As
próprias crônicas medievais em prosa atestam a predileção pela estrutura em redondilho,
sobrevivência das gestas primitivas que se perderam” (SPINA, 1996 p. 100).
Junto com essa métrica, herdamos também a trova, espécie de forma poética também
chamada de quadra, presente na nossa lírica, do Brasil colônia aos dias atuais, passando pelas
modinhas, por toda a poesia popular e também pela poesia erudita de nossos bardos, espécies
de poesia musical, filha da arte de trovar dos poetas medievais.
A modinha brasileira constitui uma das composiçóes lítero-musicais que se destaca
por sua afinidade com a canção monódica
19
trovadoresca, sobretudo em seu caráter de canção
simples e romântica e pela poeticidade de seus versos, especialmente, a partir do século XIX,
quando nossos trovadores e bardos se dedicam a musicar poesias de escritores consagrados,
como Castro Alves, Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Laurindo Rabelo e Guimarães
Passos, entre outros.
A modinha também merece destaque no que tange ao papel de difusora da cultura
literária entre nós, promovendo também o divertimento do povo brasileiro, especialmente nos
séculos XVIII e XIX (SIQUEIRA, 1979, p. 92) nas ruas e nos salões burgueses.
É mister ressaltar que essa canção estrófica destinada ao canto, com acompanhamento
melódico e harmônico, de algum instrumento de corda (viola, violão, piano...), pautada, em
geral, no uso de tonalidades menores, não tem despertado interesse apenas de compositores
19
(SPINA, 1996 p. 100).
Cantada em uníssono, em uma só voz.
29
populares e eruditos
20
, de cancionistas e de intérpretes da música brasileira. Os nossos poetas,
de um modo geral, sempre nutriram predileção por esse gênero artístico, como é o caso de
Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes os quais tanto fizeram alusão ao
conteúdo amoroso e ultra-romântico das modinhas, como escreveram poemas que apresentam
uma explícita evocação à modinha, desde os títulos, como “Modinha”, de Vinícius de Moraes,
em parceria com Antônio Carlos Jobim, “Modinha”, de Manuel Bandeira, em parceria com
Jayme Ovalle e “Modinha”, de Cecília Meireles (1901-1964).
A escritora de Canções evoca, em “Modinha”, a unidade entre poesia e música no corpo
da canção poética:
Tuas palavras antigas
deixei-as todas, deixei-as,
junto com as minhas cantigas,
desenhadas nas areias.
Tantos sóis e tantas luas
brilharam sobre essas linhas,
das cantigas – que eram tuas –
das palavras – que eram minhas!
O mar, de língua sonora,
sabe o presente e o passado.
Canta o que é meu, vai-se embora:
que o resto é pouco e apagado. (p. 216)
É interessante notar como Cecília Meireles, na construção verbal de seu metapoema,
evoca o entrecruzamento texto/melodia do gênero modinha, de forma tão singular a sugerir o
desaparecimento das diferenças entre as duas faces da canção poética. Isso ocorre
paulatinamente e de forma simbólica que deságua num entrelace de objetos e de vozes,
desfazendo, na segunda estrofe, as diferenças entre os objetos que na primeira estrofe
pertenciam a um “eu” e a um ”tu”. Na primeira estrofe, ao eu poético pertencem as cantigas,
tomadas aqui como melodias
21
, enquanto as palavras antigas pertencem a uma segunda
20
Nesse âmbito, tivemos a modinha de salão, cultivada por músicos da estirpe de Carlos Gomes, do final do
século XVIII até a segunda metade do século seguinte. De acordo com José Ramos Tinhorão (1998), os músicos
brasileiros de escola se voltaram para a composição da modinha, estilizando-o, sobretudo, segundo a composição
operística, o que o fez transformar-se em canção camerística de salão. Logo, a modinha, como peça erudita,
alcançou grande voga nos nobres espaços culturais, principalmente nos teatros, sendo interpretada, sobretudo por
cantores líricos estrangeiros.
21
Conforme H. Autran Dourado, “na Idade Média, chamava-se cantiga uma melodia simples, monofônica
(DOURADO, 2004, p. 68).
30
pessoa; na segunda estrofe, invertem-se os papeis: o eu lírico tem a posse das palavras,
enquanto a segunda pessoa é dona das linhas melódicas. Nesse sentido, a leitura do poema de
Cecília sugere que a grandeza da modinha como gênero híbrido advém do entrelace texto e
melodia, procedimento que muitos de nossos trovadores souberam fazer, seja através de
parcerias entre poetas e músicos, seja através da condensação desses num criador, como
tem acontecido na história da nossa música popular, com Tom Jobim, Vinícius de Moraes,
João Gilberto, Chico Buarque, entre muitos outros.
Ao mesmo tempo, o poema de Cecília alude à antiguidade do gênero modinha, seja
através do adjetivo “antigas”, no primeiro verso da primeira estrofe, seja mediante a
construção frasal da segunda estrofe, sobretudo pela evocação dos sintagmas nominais “tantos
sóis e tantas luas”, indicadores quantitativos do tempo que nos remetem ao homem primitivo
que contava os dias pelo aparecimento desses astros celestes. Para finalizar sua modinha,
Cecília, traz O mar de língua sonora”, como representação de nossas heranças portuguesas,
sobretudo no tocante à nossa musicalidade.
Chamou a nossa atenção a antítese presente no poema, associada à “efemeridade
duradora” da modinha, uma vez que esta embora tenha sido “desenhada nas areias”, sintagma
sugestivo de instabilidade, resistiu ao transcorrer dos dias e dias, iluminados por “tantos sóis e
tantas luas”.
Quanto à diluição da fronteira entre “poesia escrita e poesia cantada”, aludida por
Cecília em sua “Modinha”, publicada em 1942, em Vaga música, nos remete ao pensamento
de Herencia (on line)
22
, quando, ao evocar as ideias de Wisnik (2004), afirma:
A partir do momento em que Vinícius de Moraes, poeta e lírico reconhecido desde a
década de 1930, migrou do livro para a canção, no final dos anos 50 e início dos 60,
a fronteira entre poesia escrita e poesia cantada foi devassada por gerações de
compositores e letristas leitores dos grandes poetas modernos, como Carlos
Drummond de Andrade, João Cabral, Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Cecília
Meireles
.
É de grande importância a contribuição de Vinícius de Moraes para o entrelace da
poesia com a canção, no entanto, não podemos esquecer o percurso trilhado por outros artistas
22
HERENCIA, Luiz José. As origens da canção brasileira. Disponível em:
<http://acervos.ims.uol.com.br/php/level.php?lang=pt&component=38&item=29>.
31
(poetas e compositores) desde o Brasil Colônia, especialmente aqueles que cultivaram as
nossas modinhas poéticas.
A modinha como gênero híbrido representa para nós a religação entre a lira e a lírica,
pondo em evidência também a nossa habilidade poético-musical, germinada a partir de
influências plurais que apontam para a trança de gente que somos. Ela é um dos retratos
culturais do Brasil, tecido por poetas e músicos de diversos estratos étnico-sociais: leigos e
intelectuais, pobres e ricos, brancos e pretos, que colocaram a nossa canção poética ao alcance
de muitos, nos salões, nas casas e nas ruas, ajudando a enriquecer a identidade poético-
musical do brasileiro, alimentada desde a infância.
1.2 Os Brinquedos Poético-musicais da Infância
Em dias mais tranqüilos, elas gostavam de suas
cantigas de roda, tinham um largo repertório, e
à tardinha e à noite brincavam pelos quintais e
pelas ruas, pelos jardins e pelas praças.
Tinham também jogos cantados e falados,
resíduos ou esboços de teatro, e com eles se
entretinham alegremente. Os brinquedos
simples, primitivos e eternos, fáceis de obter e
de conservar.
Cecília Meireles.
A música constitui um das artes fundamentais no desenvolvimento da sensibilidade
poética da humanidade, sobretudo, no âmbito da cultura lúdica
23
, estando presente em quase
todas as manifestações artísticas e nos acontecimentos do dia e da noite, praticamente. Não
muito longe no tempo, se é que não podemos dizer “ainda hoje”, quando poderíamos pensar
que era chegada a hora do descanso e do silêncio, havia a possibilidade feliz de ouvir alguém,
23
Conforme Brougère (2002, p. 26), a cultura lúdica compreende o conjunto de experiências lúdicas acumuladas
pela criança, na interação com o outro e com os objetos de sua cultura. Constitui-se dos esquemas de brincadeira
que a criança assimila ao brincar os jogos de imitação e os jogos de ficção, próprios da infância.
32
numa voz de aconchego, cantar “Meias de luz”,
24
ao menino que acordou no meio da noite:
“Nossa Senhora faz meias / a linha é feita de luz / o novelo é a lua cheia / as meias são pra
Jesus”. Difícil é não se embriagar com esse canto feito de poesia, não precisa nem ser criança
para dormir no seio da mãe sonora, na acepção de Glória Kirinus (1998).
Se fazia “sol com chuva, casamento da viúva”, se fazia “chuva com sol, casamento do
rouxinol”.
25
Tudo era motivo para trovas, para brincar de ser poeta e cantor.
Na experiência com as formas sonoras e os brinquedos poéticos da infância, na “roda
ruando” e com “a palavra luando”, conforme expressão de Glória Kirinus (1998),
desempenhávamos nosso inatismo poético, nossa predisposição à poesia, ao mágico, como
homo imaginarius e ludens, deixando-nos habitar nos sons, ritmos, movimentos, brincadeiras
e sonhos.
Na “Ciranda, cirandinha” em que se teciam cordão de amores, todos queriam entreter-
se e entretecer sua trança de afetos, de sorrisos, de vozes, de ritmos e gestos com os amigos:
“Ciranda, cirandinha/ Vamos todos cirandar/ Vamos dar a meia volta/ Volta e meia vamos
dar”. E rodando, desenhavam no chão um resistente anel que os unia além do tempo e do
espaço da brincadeira, diferentemente daquele anel que figura na letra da ciranda, que une os
amores efêmeros, nascidos da flecha de Eros: “O anel que tu me deste/ Era vidro e se
quebrou/ O amor que tu me tinhas,/ Era pouco e se acabou./ Por isso, dona Sofia/ entre dentro
dessa roda/ diga um verso bem bonito/ diga adeus e embora”. Ninguém ia embora e a
ciranda continuava a girar no carrossel da infância, debaixo de sol ou de lua, todos de mãos
dadas, a cantar versos rimados e melódicos, alegres pela brincadeira e orgulhosos por escutar
os colegas cantarem o seu nome. O escolhido, sentindo-se o artista da hora, podia recitar uma
trovinha
26
que lhe chegava à memória e que parecia puxada do coração, especialmente
quando se referia à mãe: “Mamãe é uma rosa/ Que papai colheu/ Eu sou o botãozinho/ Que a
roseira deu”. Eram tantas as opções de quadras
27
que se guardava de cor, que dificilmente
alguém repetia a trova dita. Desse modo, as próximas crianças destacadas podiam escolher,
entre muitas, essa: “Quem quiser saber meu nome,/ uma volta no jardim,/ Que o meu
24
Essa cantiga de ninar popular é recriada e interpretada por Bia Bedran no álbum Acalanto (2005). Trata-se de
uma composição cujo acompanhamento musical retoma parte da melodia da Ave Maria, de Gounod, sobreposta
ao Prelúdio n. 1, do 1º volume do Cravo Bem temperado de I. S. Bach.
25
As referências aos brinquedos cantados se pautarão principalmente no acervo de nossa memória, adquirido nas
vivências de nossa infância entre as décadas de 70 e 80, no sul do Ceará. Muitos desses brinquedos podem ser
conferidos em Brincadeiras cantadas, de Garcia e Marques, 1992, com as suas devidas variações, uma vez que
as autoras coletam as brincadeiras do sul do Brasil. Cf. também LINHARES (2005).
26
Essas trovas podiam ser recitadas ou cantadas.
27
Garcia e Marques (1992, p. 41- 45) trazem muitos exemplos de quadras que eram recitadas na roda grande.
33
nome está escrito/ Numa folha de jasmim”, ou quem sabe: “Laranjeirinha pequenininha,/
Carregadinha de flor./ Eu também sou pequenininha/ Carregadinha de amor”.
A roda cantada
28
continuava ad infinitum e, se cansados estavam de rodar no sentido
horário, passavam para o anti-horário e quem queria ficar tonto, logo tomava prumo de novo,
pois o momento de dizer a quadrinha era aproveitado para recompor as energias, servindo
ainda para reforçar os valores do grupo: “Sou pequenina/ Da perna grossa./Vestidinho curto/
Papai não gosta”. A regra da brincadeira constituía em dar a todos a chance de enunciar o seu
poema. Logo, quanto mais crianças brincando, mais quadrinhas populares entravam como
contas no rosário da ciranda.
No geral, os temas românticos tinham predileção entre os pequenos. Assim, poderiam
passar rapidinho da “Ciranda, cirandinha”, para “Viuvinha”: “Viuvinha da mata do além/ Ela
quer se casar/ Mas não acha com quem./ Não é com você/ Não é com ninguém/ É com a
pessoa/ Que quero mais bem”.
29
Querer bem era o que mais se conjugava naquela roda, onde
todos se irmanavam e tomavam parte no corpo da infância. Nesse ato de “amorização”, na
acepção de Ângela Linhares (2005), do grupo “Um canto em cada canto”,
30
o abraço era e é
um dos principais elementos que se conjuga(va) na roda grande. É a circunstância em que o
grupo era/é nutrido de amor. Em outras palavras:
É o momento especial do canto (...) em que tudo parece se vestir com todas as cores
do arco-íris, como disse uma criança (...), parece uma criança a cantar (...), a canção
não é nada mais que o desejo de fazer redes para pescar o amor. Um amor que é
como os peixes: tem de todo tipo mas é lindo e enche o mar da vida!
Também dizemos muito que é a oportunidade do toque (...) na amorização a gente
lava a alma e enche o coração de alegria... (LINHARES, 2005, p. 08).
Esses são alguns retalhos de memória do brasileiro, especialmente aquele que viveu
sua infância nas comunidades rurais, algumas décadas atrás, como é o nosso caso, ou nas
28
É chamada a brincadeira caracterizada “pela formação em círculo”, na qual as crianças, de mãos dadas,
deslocam-se em sentido horário ou anti-horário, entoando uma canção, em uníssono ou em diálogo, “que pode
conduzir a uma ação coreográfica” (GARCIA e MARQUES, 1992, p. 13).
29
A particularidade dessa brincadeira de roda é que uma criança é destacada para representar a Viuvinha e
colocada dentro da roda. Depois que o grupo canta a primeira estrofe, a Viuvinha, como numa parlenda de
escolha, canta a segunda estrofe, destacando uma criança para substituí-la.
30
“Um canto em cada canto”- faz parte da ACIC - Associação de Corais Infantis do Ceará, criada em 1996,
voltada para o trabalho de arte e de educação musical de crianças oriundas das classes populares do Estado do
Ceará, que conta com mais de trezentos grupos corais em exercício na capital e no interior. Seu trabalho se
pauta, especialmente, sobre as brincadeiras cantadas populares.
34
metrópoles em desenvolvimento no começo do século XX, tempo em que não havia televisão
e computador, por exemplo, como aconteceu com Cecília Meireles, Manuel Bandeira e outros
escritores e educadores evocados nesse trabalho. Cecília Meireles não apenas usufruiu desses
brinquedos sonoros como também os referendou em sua obra, especialmente em seus livros
infantis, como Criança Meu Amor (1923) e Ou isto ou aquilo (1964).
Houve um tempo em que se vivia sob a égide dos jogos cantados, cujo brinquedo não
era necessariamente o objeto, mas o movimento associado ao canto, muitos vindos de
Portugal, da França, da Espanha, outros oriundos dos negros ou dos índios. Vivia-se a hora
das histórias de Trancoso
31
, dos contos cantados, das parlendas, muitos em atuação ainda hoje
e conhecidos pelas crianças, sobretudo, através da mídia eletrônica. É o caso, por exemplo, do
pequeno drama musical, “Rosa juvenil”, divulgado por Xuxa, em seu DVD “Xuxa para
baixinho 7.”
Esses e outros brinquedos sonoros constituem um dos caminhos lúdicos viáveis de
iniciação da criança nos domínios da educação poética, podendo promover experiências
marcantes na vida do homem, caso contrário não seriam guardados nas cordas do coração,
recordados na vida adulta, juntamente com outras brincadeiras, como o fizeram Manuel
Bandeira
32
e Cecília Meireles
33
, entre outros.
Vale destacar também que as crianças não se divertiam apenas no carrossel das
cantigas de roda ou nos jogos rítmico-sonoros das parlendas, mas também naqueles
momentos que exigiam silêncio, nas horas em que o conto, entrelaçado à música, juntava
todos, adultos e crianças nas calçadas, à luz do luar ou à luz de lamparinas, notadamente os
contos de Trancoso e os clássicos infantis. Estes foram popularizados, entre nós, sobretudo
pelo trabalho de reescrita poético-musical de João de Barro, o Braguinha,
34
artista que tatuou
a nossa memória com o encanto das canções e com a melopéia da linguagem, na acepção de
Pound (1990), dos contos O gato de botas, O macaco e a velha, A história da baratinha,
31
Gonçalo Fernandes Trancoso foi um escritor português do século XVI, que teve a sua obra, Contos e histórias
de proveito e exemplo, popularizada no Brasil, sobretudo, através da oralidade. Com o transcurso do tempo, o
nome Trancoso, passou a ser usado, no nosso país, metonimicamente, designando ficção, causos, fatos de
invenção ou não-verdadeiros, em contraste com a “verdade” da História e da Ciência, por exemplo.
32
Cf. Itinerário de Pasárgada, (1957, pp. 9-10).
33
Cf. Olhinhos de gato (2003).
34
Compositor carioca, nascido em 1907, cujo nome verdadeiro é Carlos Alberto Ferreira Braga. É um dos
maiores nomes da música popular brasileira, com mais de 400 trabalhos de composição, dos quais se destacam:
“Carinhoso”, em parceria com Pixinguinha e diversas canções feitas para narrativas infantis. Morreu,
recentemente (final de 2006) com quase 100 anos de idade.
35
Chapeuzinho Vermelho, A Cigarra e a Formiga, A formiguinha e a neve
35
; Festa no Céu e O
Pequeno Polegar. Elza Fiuza e Candeia Jota Júnior também fizeram adaptações e melodias
para algumas narrativas infantis. Aquela trabalhou os contos João e Maria e O soldadinho de
chumbo, enquanto Candeia concentrou-se em Rapunzel. Comparadas ao sucesso de
Braguinha, podemos dizer que as versões daqueles dois artistas não se popularizaram tanto,
pelo menos aqui no Nordeste.
Braguinha, conhecido também como um dos compositores populares mais notáveis
do período de “ouro do carnaval carioca, nos anos 30”, embora não possuísse um
conhecimento teórico da linguagem musical, nem tocasse qualquer instrumento, é
considerado “um dos criadores da memória afetiva musical do povo [brasileiro]”. Foi além de
compositor, cantor, “produtor e roteirista de cinema,
36
destacando-se, especialmente, por sua
“capacidade de ir direto à alma do povo, de forma que suas canções, “de tão conhecidas,
parecem que não têm autoria, fazendo parte de um amplo repertório de memória de todo
brasileiro, como se fossem canções que sempre existiram”.
37
Acreditamos que a experiência de Braguinha com os filmes da Disney serviram de
motivação para que ele se dedicasse ao “projeto de histórias e canções para crianças no início
dos anos 40, época em que era o diretor artístico da gravadora Continental (CBS)”. Junto a
essa gravadora vieram à lume “os primeiros álbuns da coleção Disquinho [em vinil colorido],
com fábulas e contos em diálogos rimados e breves canções”, que tiveram uma extraordinária
aceitação junto ao público infantil, alcançando até o final dos anos setenta do século passado
“a cifra de 5 milhões de cópias vendidas”. Atualmente contamos com o relançamento de
alguns tulos da coleção em CD pela Warner/Continental, dos quais a maioria se encontra
esgotada.
38
35
Estas seis narrativas adaptadas por Braguinha têm sido publicadas na Coleção “Clássicos Infantis”, da Editora
Moderna; elas foram popularizadas também na forma em áudio, através da Coleção “Disquinho”, em 1960,
material relançado, em 2003, pelo patrocínio da indústria de cosméticos O Boticário.
36
Braguinha “também trabalhou na dublagem do filme Branca de Neve e os Sete Anões, de Walt Disney, o
primeiro desenho animado em longa metragem da história do cinema, em 1938. A cantora Dalva de Oliveira deu
voz à Branca de Neve e Carlos Galhardo ao príncipe. Depois vieram as versões brasileiras de Pinóquio (1940),
Dumbo (1941) e Bambi (1942)”. Cf.: <http://turmadamusica.com.br/tdm/modules/articles/article.php?id=74>.
37
Cf. o blog “Cantos e encantos”, onde há uma reportagem sobre Braguinha, retirada do Jornal Estado de São
Paulo, de 26 dezembro de 2006.
38
Cf.: <http://turmadamusica.com.br/tdm/modules/articles/article.php?id=74>.
36
No âmbito da literatura infantil, Braguinha não apenas criou canções para as
narrativas que adaptou como também fez composições para outras obras como Branca de
Neve e os sete anões, Alice no país das maravilhas, etc, todas com a qualidade do
inesquecível Chapeuzinho Vermelho que, na versão de Braguinha, parece constituir um dos
clássicos mais amados pelas crianças, desde a sua primeira edição, na cada de 1960, até
hoje, seja na versão oral, escrita, seja em áudio, do vinil ao cd.
O texto em si constitui uma canção, tamanha é a música das palavras
39
, na concepção
de Paul Scher (apud OLIVEIRA, p. 2002). Concorrem para isso a organização textual em
versos, no geral, em redondilha maior ou menor e a ocorrência de rimas toantes e consoantes
ao longo da narrativa, bem como a pontuação, especialmente, os pontos de exclamação e de
interrogação e, a intercalação/coesão entre as vozes do narrador e dos personagens, de forma a
não quebrar a música do texto. Vejamos a parte inicial do conto:
_ Chapeuzinho! Chapeuzinho!
era a mamãe a chamar.
_ Estou aqui, mamãezinha! –
respondeu a menina, ao chegar.
_ Vai à casa da vovó
entregar esta cestinha.
São doces, bolos e frutas.
A vovó está doente!
_ Vou correndo, mamãezinha.
Vovó vai ficar contente!
Pra proteger a menina,
a mãe disse, seriamente:
_ Mas olha aqui, minha filha,
vai pela estrada do rio!
O caminho da floresta
é muito longo, sombrio!
Os caçadores disseram
ontem às nossas vizinhas
que o lobo mau anda lá,
devorando as criancinhas!
_Não se assuste, mamãezinha,
seguirei o seu conselho!
_ Adeus, minha filha.
Vai, Chapeuzinho Vermelho!
(C. V.,1995, p. 3,4)
39
De acordo com Oliveira (2002, p. 48), o sintagma música de palavra“refere-se à prática literária de imitar a
qualidade acústica da musica por meio de recursos como onomatopéia, aliteração e assonância, próprios da
linguagem verbal”.
37
Além da melopéia da linguagem, cuidadosamente construída para agradar o ouvido,
certas composições musicais destinadas ao canto dos personagens centrais: a Chapeuzinho
Vermelho, o lobo e os caçadores. A menina, em dado momento da travessia pelo bosque, em
direção à casa da avó, canta sua canção, “Muito feliz com a vida, / com a cestinha na mão”:
Pela estrada fora eu vou bem sozinha
Levar esses doces para a vovozinha
Ela mora longe e o caminho é deserto
E o lobo mau passeia aqui por perto
Mas à tardinha, ao sol poente
Junto à mamãezinha dormirei contente.
Mal termina de cantar, depara-se com o vilão disfarçado que, depois de ludibriá-la e seguir
em direção à casa da avó da menina pelo caminho mais curto, inicia seu canto:
Eu sou o lobo mau, lobo mau, lobo mau
Eu pego as criancinhas pra fazer mingau
Hoje estou contente, vai haver festança
Tenho um bom petisco para encher a minha pança.
O último canto é reservado aos caçadores, os quais aceitam a participação especial da
Chapeuzinho Vermelho, no final da canção, no momento em que levam a menina para casa:
(Caçadores)
Nós somos os caçadores e nada nos amedronta
Damos mil tiros por dia, matamos feras sem conta
Varamos toda floresta, por mares e serranias
Caçamos onça pintada, pacas, tatus e cotias.
(Chapeuzinho)
O lobo mau já morreu, agora estamos em festa
Posso brincar com as crianças
E passear na floresta.
Além dos contos musicados e recontados por Braguinha, vale lembrar os contos
cantados, que se disseminaram entre nós, sobretudo, pela oralidade, como Capineiro de meu
pai, conhecido também como A menina do cabelo de capim; O menino e a coca e O cego ou
38
Xácara do Cego, obras cuja música não pode ser suprimida da narrativa.
Esses e outros contos, tecidos com os fios da música, se ligam à tradição dos
romances ou rimances medievais, transmitidos ao povo brasileiro pelos portugueses,
resistindo, consoante Cascudo (2006, p. 225), até princípios do culo XX, conservado, ainda
hoje, na memória mineira dos mais velhos.
Em terras brasileiras, ainda de acordo com Cascudo (2006, p. 227), alguns romances
migraram para outros gêneros: uns se converteram em brincadeira de roda, enquanto “outros
se transformaram em pequeninos autos”, como O Cego. “A Bela Infanta”, outro texto de
origem portuguesa, bastante conhecido no Brasil, servia de acalanto no interior do Rio Grande
do Norte, assegura Cascudo (2006, p. 229).
Chorava a Infanta, chorava,
lá dentro da camarinha.
Perguntou-lhe Rei seu Pai
_de que choras, filha minha?
_Eu não choro, senhor Pai
se chorasse razão tinha,
a todas vejo casadas,
só a mim vejo sozinha.
Procurei no meu reinado,
filha, quem te merecia,
só achei o conde Olário
este mulher e filho tinha
40
.
(...)
Trata-se de um longo romance cantado que termina com a impossibilidade de um
final feliz. Isso porque, para a realização do desejo e da carência da princesa, o conde teria
que matar a amada esposa, para, então, ficar livre e casar-se com a Infanta, problema que é
solucionado com a morte desta personagem, como uma espécie de castigo e enaltecimento da
boa moral: “_Morreu a Bela infanta/ pelo mal que cometia,/ descasar os bem casados,/ cousa
que Deus não queria” (CASCUDO, 2006, p 231). “A bela Infanta” foi uma das cantigas que
embalou a infância de Cecília Meireles, juntamente com diversas brincadeiras vivenciadas
com outras crianças, a avó, e a babá, como a escritora demonstra em Olhinhos de Gato (2003,
p.77).
40
O texto completo desse romance encontra-se em Cascudo (2006, p. 229 – 231).
39
Quanto ao aproveitamento das cantigas e brincadeiras infantis na literatura infantil
brasileira, vale lembrar um livro que foi lançado em 2003: Enquanto o sono não vem,
41
de
José Mauro Brant,
ator, cantor e contador de histórias. A obra reúne contos da tradição oral,
42
mesclados de músicas
43
do nosso cancioneiro popular e de brinquedos populares cantados,
que são contados de um modo bastante especial como se o autor trouxesse para o texto a voz
do contador de histórias, o narrador oral, e a voz do trovador medieval, plena de música.
Não podemos deixar de mencionar também o trabalho importante de Bia Bedran
44
,
artista atuante no sentido de dar prosseguimento ao projeto de nossos trovadores populares,
especialmente o de Braguinha, cantando e contando, em seus espetáculos visuais e sonoros
e/ou em seus CDs e DVs, vários contos, acalantos e brincadeiras cantadas, da oralidade, além
de textos de sua autoria. A ligação entre Bia Bedran e Braguinha é selada, notadamente, em
2008, através do evento “Histórias de um João de Barro”.
45
Trata-se de um musical
46
elaborado de forma especial por Nick Zarvos, a partir de um recorte da múltipla e vasta obra
de Braguinha, segundo ressalta Angela Tostes:
O espetáculo reúne sete contos considerados clássicos da literatura infanto-juvenil,
que foram musicados por Braguinha na década de 60 na série "Disquinho", da
extinta gravadora Continental. São eles: O gato de botas; Festa no céu; O macaco e a
velha; Os três porquinhos; Chapeuzinho vermelho; Os quatro heróis e A gata
borralheira. Com uma surpresa: o autor entremeou as histórias com canções de
Braguinha não ligadas ao universo infantil, entre elas Carinhoso; Balancê; Vai com
jeito; Cantores do rádio; Copacabana; Laura; Urubu malandro, Primavera no Rio,
41
O autor disponibiliza as partituras das canções no final do livro.
42
Os contos recontados por Brant são: "Canta, canta meu surrão", “As nove filhas”, “O rei cego e a cidade dos
Olhos D’água”, “A triste história de Eredegalba”, "A linguagem dos pássaros” e “João Jiló”.
43
Entre as músicas que acompanham as narrativas, estão os acalantos “Consolo” e “Encontrei Nossa Senhora” e
o brinquedo cantado “Lá na ponte da Vinhaça”, também conhecido por “Passa, passa, gavião”. contos que
podem ser inteiramente cantados, como é o caso de “As nove filhas” e “A triste história de Eredegalba”.
44
Bia Bedran , conforme reportagem de Angela Tostes, intitulada: “Ultimo final de semana da peça Histórias de
um João de barro”, tem produzido, ao longo de seus 35 anos de caminhada artística, uma obra admirável “que
reúne 10 CDs, cinco livros infantis, 25 espetáculos, programas de TV e uma dezena de prêmios”. Reportagem
disponível em: <http://www.amigasdapracinha.com.br/?page=ver_materia&cat=Ha%20ha%20ha&id=1175
>
.
Infelizmente, as composições lúdicas de Bia Bedran e de Braguinha passam ao largo do acervo recomendado
pelo Referencial curricular nacional para a Educação infantil/MEC. A esse respeito cf. Brincadeiras tradicionais
musicais: análise do repertório recomendado pelo Referencial curricular nacional para a Educação
infantil/MEC. Disponível em: < http://www.anped.org.br/reunioes/23/textos/0711t.PDF>.
45
Evento que se realizou recentemente, em março de 2008, no qual Bia Bedran celebra, no Teatro Villa Lobos,
no Rio de Janeiro, os 101 anos de nascimento do nosso inesquecível poeta e compositor Braguinha.
46
Cf. o Dvd Bia Bedran em História de um João de Barro: uma homenagem a Braguinha, gravado ao vivo do
espetáculo, referenciado por Angela Tostes.
40
Pastorinhas entre outras, num total de 38 músicas do compositor e seus parceiros
(TOSTES, 2008).
47
Conforme Bia Bedran, no musical em destaque, uma extraordinária coerência entre
as obras de Braguinha, conforme ainda demonstra a aludida reportagem:
As canções escolhidas estão surpreendentemente adequadas às histórias contadas.
Um exemplo é o conto “A gata
borralheira onde os músicos interpretam a
composição "Cadê Mimi" no momento em que o príncipe procura por sua amada; ou
quando o príncipe encontra finalmente a Cinderela e canta "Carinhoso". Assim,
lanço um olhar diferente sobre a narrativa, ao mesmo tempo em que as crianças
conhecem mais da obra de Braguinha e os adultos revivem músicas tão maravilhosas
do nosso querido João de Barro (TOSTES, 2008).
Os shows de Bia Bedran, independente do repertório, têm sido, no geral, um rico
manancial de cultura que se abre para o público de todas as idades, seja em ambientes
fechados, como nos auditórios, ou nas praças, modalidades que tivemos oportunidade de
experimentá-las na nossa cidade (Fortaleza). o eventos performáticos, nos quais tudo é
linguagem: texto verbal, melodia do canto, gestos, vestimentas e os objetos que cercam o
intérprete.
A obra fonográfica dessa artista encanta à primeira audição, especialmente, as
composições dos álbuns: Acalantos, Brinquedos cantados, Coletâneas de músicas infantis,
Bia canta e conta (v.1 e 2) e A caixa de música de Bia. Entre as músicas desses álbuns,
merece destaque “O Anel”, da Coletânea de músicas infantis, que é cantada por Julieta
Bedran, filha de Bia Bedran, cuja voz suave e branquinha
48
impressiona, fato que eleva a
beleza da composição. Vejamos o texto:
Perdi meu anel no mar
Não pude mais encontrar
E o mar me trouxe a concha
De presente pra me dar
47
Reportagem de Angela Toste, disponível em:
<http://www.amigasdapracinha.com.br/?page=ver_materia&cat=Ha%20ha%20ha&id=1175>.
48
“Voz pura, de meninos [e meninas] antes da puberdade” (DOURADO, 2004, p. 363).
41
Será que foi parar na goela da baleia
Ou será que foi parar no dedo da sereia
Ou quem sabe, o pescador
Pescou o anel e deu pro seu amor
Tirum tarudê, tirum tarudê
Tirum tarudê, tirum tarudê
Tirururu tirum, tiru tirum
tararararurê rarum
Outras canções, do álbum em referência, que sobressaem pela beleza melódica são
“Pedalinho” e “O trem”. Entre a produção de Bia Bedran, um fato é necessário destacar:
somente pela letra não podemos sentir a dimensão estética de suas canções de Bia Bedran
nem vivenciar a jocunditas, a alegria das sonoridades melodiosas”, na acepção de Paul
Zumthor (1993, p.168). É necessário ouvir suas composições e/ou ver a artista em ão
performática.
Entre os contos cantados, dos álbuns homônimos, “O macaquinhoé um dos mais
interessantes, por dois motivos: primeiro, pelo acompanhamento da sanfona que à música
um sabor nordestino e que traduz a irreverência da situação cantada: o pai quer dormir e a
toda hora o macaquinho inventa desculpas inconsistentes para dormir com o pai; e segundo,
pelo fato da letra evocar uma situação bastante atual e crítica: o ritmo da vida moderna tem
impedido que os pais brinquem com seus filhos, deixando-os carentes de infância e
afetividade.
A participação de Braguinha e de Bia Bedran no cenário cultural brasileiro, através de
sua inserção na indústria cultural e nas novas tecnologias, tem feito grande diferença, junto à
cultura lúdica da infância, nos últimos cinqüenta anos, alimentando a identidade poético-
musical do homem e fazendo permanecer certas manifestações da arte popular na nossa
sociedade de consumo, como alternativas para que as crianças do tempo das modernas
tecnologias, dos brinquedos eletrônicos, encontrem serenidade e acalanto no seu viver.
Se concedermos oportunidades às nossas crianças para que possam usufruir os bens
culturais da tradição, seria possível que, entre elas, algumas reinvindicassem o direito de
dizer: Quero ter a chance de recordar a poesia feito música das histórias de Braguinhas,
atravessar o bosque com a Chapeuzinho Vermelho, enfrentar a bruxa com João e Maria,
calçar a bota de sete guas e chegar a tempo na casa de Dom Ratão para impedir que ele se
afogue na panela de feijão, fazendo feliz a Dona Baratinha. Quero mais: ‘Quero a delícia de
42
poder sentir as coisas mais simples”, como disse Bandeira, em seu poema “Belo, belo”; quero
brincar com “As meninas” de Cecília, estudar música com “A bailarina”, e quem sabe,
aprender a fazer Leilão de jardim; na ciranda, quero entrar, rodar, cantar para depois dormir
feliz como o menino pescador ao ouvir a linda “Cantiga da babá”, de Cecília Meireles, na voz
da cantora portuguesa Lena D’Água”, interpretada no álbm Ou isto ou aquilo.
Seria incoerente pensar desse modo os desejos da criança de hoje? Acreditamos que
não, afinal, mudam-se os tempos, as coisas, mas a célula mito-poética do homem não muda.
A criança continua gostando de poesia, de ficção e dos brinquedos poéticos da tradição, basta
ter a oportunidade de vivenciá-los. Prova disso é que os espetáculos infantis de Bia Bedran
são sempre um sucesso de audiência e o seu “disco Brinquedos Cantados, com brincadeiras
antigas, vende que nem água”, como ressalta a própria artista, na entrevista concedida ao
jornal eletrônico “O Fluminense”
49
.
O reencontro com a poesia cantada do povo tem se tornado, nos últimos anos,
praticamente, uma regra para aqueles que trabalham com a produção cultural para a infância.
Parece que a sociedade brasileira tem despertado para a importância dos brinquedos cantados
tradicionais, como possibilidade de harmonizar a criança que vive agitada em meio a tantos
apelos audiovisuais da mídia eletrônica de massa, dos videogames, dos programas de
televisão e de cinema, das ofertas da internet, do bombardeio e da fragmentação da
informação, etc. Assim, tenta contrabalançar essa cultura e seus efeitos, voltando-se para as
formas culturais da tradição oral. Por essas razões, entendemos porque certos nomes da mídia
eletrônica têm se dedicado a essas formas simples, como é o caso das cantoras Eliana e Xuxa,
que lideram as estatísticas de vendas de CDs e DVDs dos brinquedos cantados no Brasil.
Obviamente a oferta desse tipo de canção infantil ainda é pequena, comparada à
movimentação de outros tipos de brinquedos infantis de massa, somados ainda aos produtos
destinados aos adultos que são consumidos pelas crianças, através da indústria fonográfica e
áudio-visual. Por isso, a possibilidade de encontrar pessoas indiferentes aos brinquedos
cantados infantis da tradição, hoje, é ainda maior que no contexto em que viveu Cecília
Meireles que, na crônica “Doce música da infância”, escrita na década de 1950, apresenta seu
estado de perplexidade diante do total desconhecimento das cantigas infantis por “um senhor
sério, um senhor de boa família, sisudo e paternal” (MEIRELES, 2001, v.5, p. 261); um
homem que ensinava, às crianças de uma determinada escola, as músicas infantis estrangeiras
49
Disponível em :
<http://www.ofluminense.com.br/noticias/71162.asp?pStrLink=63,348,0,71162&IndSeguro=0>
43
com as desculpas de não haver aqui no Brasil músicas para crianças. Ao refletir sobre o fato
em referência e tentar recuperar o seu diálogo com o homem, Cecília diz em sua crônica:
_Mas... o Sr. então não conhece a “Viuvinha”, que está sentada nos altos dos
rochedos...? (Não conhecia). Nem aquela “Nesta rua, nesta rua tem um bosque”? O
bosque da solidão habitado por um anjo que rouba o coração das meninas? (Não
conhecia. E até ficou meio perplexo.) Nem a “À mão direita tem uma roseira?
(Nada. E começou a impacientar-se.) nem “Lá no alto daquela montanha”? (Não,
não conhecia.) Nem “Mais uma boneca na roda entrou”? (também não.) Que horror!
Que infelicidade de vida, assim robusta e séria! (...) (MEIRELES, 2001, p. 261)
Em seguida, acrescenta:
E eu queria comunicar ao meu interlocutor a poesia dos brinquedos de roda, ao cair
da tarde, nas pracinhas de arrabalde, quando as crianças vão chegando com os
cabelos molhados e os joelhos limpos, depois do banho. Aquela hora deliciosa em
que as primeiras luzes tentam faiscar entre frondes, e a voz dos pássaros vai ficando
de uma saudade tão grande, e os homens voltam para casa cansados de trabalho mas
envolto num ar sobrenatural de sonho... (...).
De vez em quando penso nessa conversa. E lamento que as cantigas infantis vão
desaparecendo, não tanto por imposições da vida, pela invasão dos brinquedos
mecânicos, mas por falta de amor a essa poesia que vem de tão longe, que tem sido
o doce deleite de tantas gerações, e merecia ser preservada como herança infinita e
maravilhosa, que torna, enfim, o mundo mais belo (MEIRELES, 2001, p. 262, 263).
Possibilitar experiências significativas com essa poesia cantada é uma tarefa que se faz
brincando, especialmente quando se trata do brasileiro, povo herdeiro da alegria, da lírica
amorosa e de musicalidades diversas, afinal, como lembra Câmara Cascudo (2006, p. 37), “Os
nossos avós indígenas receberam os portugueses [exímios trovadores], em abril de 1500,
dançando e cantando”, sem falar nas nossas mães pretas, de voz mansa e prosódia ameigada
pelos timbres cheios de timidez e carinho, ensopados no leite da ternura humana”, com seus
cantos/contos/encantos (CASCUDO, 2006, p.165).
Retomando a epígrafe inicial, ressaltamos o fato de que os brinquedos da infância
propiciam experiências tão importantes na vida do homem que na fase adulta voltam como
lembranças felizes, inclusive para os poetas que sabem reconhecer o valor imensurável das
“pequenas” coisas que dão significados à vida, especialmente, aqueles brinquedos em que a
poesia do texto é animada pela magia da música, como os acalantos, as cantigas de roda e os
contos cantados, entre outros “brinquedos simples, primitivos e eternos, fáceis de obter e de
conservar” (MEIRELES, 2001, v. 5, p. 371).
44
Quando eu ainda não sabia ler, brincava
com livros, e imaginava-os cheios de vozes, contando o mundo. Sempre me foi
muito fácil compor cantigas para os brinquedos
(Cecília Meireles)
45
2 A LÍRICA DE CECÍLIA MEIRELES E O RETORNO DA LIRA
2.1 Prelúdio: “retratos” de uma poeta musicista
Cecília
Benevides de Carvalho Meireles (1901-1964) pode ser considerada uma das
mais importantes vozes líricas do século XX, compondo cantigas, modinhas e baladas, entre
outros gêneros híbridos que conjugam a poesia e a música. Além disso, fez referências à
música inúmeras vezes, de modo que esta arte constitui um dos motivos condutores de sua
obra poética.
Poeta de uma obra extensa e diversificada no tocante ao gênero textual, ao estilo e à
temática, artista plástica e musicista na área do violino e do canto, deixou soar sonoridades
variadas nos perfis múltiplos que nos legou, através de uma produção literária intensa, que se
estende além de quatro décadas.
Entre esses perfis, ressaltamos a Cecília-menina, ficcionalizada em Olhinhos de Gato
50
(1980), que se deixa encantar pelo mundo do faz-de-conta, pela sonoridade da natureza e pela
poesia musical das ruas, especialmente, as cantigas de roda, os pregões dos vendedores
ambulantes, as serenatas ao luar, entre outros gêneros. É a menina, que a três por quatro,
escutava, recitados ou cantados, de seus educadores informais, textos poéticos e ou musicais,
ligados, sobretudo, à tradição oral: orações poéticas, acalantos, modinhas, provérbios, trovas,
parlendas, entre outras manifestações culturais que embalaram os seus dias de menina com
uma energia misteriosa, irradiando para a vida e para a obra de Cecília mulher, mãe,
educadora, jornalista, poeta e cronista, alcançando também, como herança, à vida dos seus
leitores.
Paralelo às sonoridades populares, a menina de Olhinhos de gato também se encantava
com a magia das sonoridades do piano, instrumento que lhe servia de passaporte a “profundas
viagens”, ajudando-a a suportar os tempos difíceis de menina sozinha. Bastava ouvir alguém
tocar algumas notas no piano, ou simplesmente ver o instrumento, a menina entrava em
estado de devaneio:
50
O livro Olhinhos de Gato foi publicado em 1980. No período de 1938 a 1940, a obra foi publicada em treze
números da revista Ocidente, em Portugal
46
A porta está aberta, esperando-a. E perto do piano, duas moças altas e lindas,
paradas num degrau de madeira preta, arregaçam seus vestidos brancos (...).Como
ali era um reino encantado, a mocinha disse-lhe: “Feche os olhos!” E ela fechou.
Passaram-lhe um vidrinho frio pelo pescoço. E um imenso perfume encheu o quarto,
saiu pela varanda, pairou pela rua, partiu pelo mundo. E a menina ia levada dentro
dele, como as nuvens. As casas, as pessoas, eram densas, pesadas. Ela, não. Ela
voava por cima de tudo. Ia para onde o vento mandava. Nem se movia. Era o
próprio ar que a tomava ao colo e a transportava (MEIRELES, 2003, p.115).
E Olhinhos de Gato sonha, com os olhos fechados, cheios de luz cor-de-rosa. Sonha.
quanto tempo ela sonha com um piano grande como aquele, como o da casa de
Orelhinha Peluda! Um piano que tenha aquele misterioso cheiro de madeira, verniz,
metal e música... Um piano vibrante, desses que têm vida humana por dentro, que
respiram, falam, cantam, choram, quando se calca uma simples tecla... E que depois
conservam ainda uma espécie de suspiro esparso, uma espécie de arquejo de alegria
ou de mágoa, que paira em ondas pela sala toda (MEIRELES, 2003, p. 179).
Essa atribuição simbólica, concedida ao piano, pode ser interpretada do ponto de vista
da relação metonímica piano/música, no sentido de que a música propicia a leveza e o estado
de sonho no homem, e em alusão à ampla extensão sonora do instrumento (88 teclas) e sua
capacidade harmônica e expressiva: o piano “pode soar dez ou mais notas de uma vez só, e
assim permitir a execução de praticamente qualquer tipo de peça da música ocidental”. Além
disso, “pode ser tocado tanto de modo piano [suave] como forte, de acordo com o toque”,
produzindo “sua vasta gama expressiva” (SADIE, 1994, p. 720). Logo, como o sonho e a
fantasia, o piano praticamente não possui limites.
Em Olhinhos de gato, Cecília revela-se a menina que, diferente de “Edmundo, o
céptico”,
51
vive a magia da infância, como a garota do poema “Ar livre”, enfeitada de sol,
mesmo a despeito de ter vivenciado, desde cedo, experiências dolorosas, especialmente a
morte da mãe, superadas pelo cultivo da criança mágica, proporcionado pelo ambiente em que
vivera ao lado da avó, Dona Jacinta Garcia Benevides. Neste espaço familiar, Cecília menina
pôde enovelar-se com os fios de uma cultura plural: a cultura dos livros e o legado do povo,
recebido, sobretudo, por intermédio da babá Pedrina e de outras pessoas agregadas à família,
bem como das crianças vizinhas, as quais “lhe ensinaram as palavras e a música, e os
movimentos” de muitas brincadeiras cantadas (MEIRELES, 2003, p. 145), experiências que a
fizeram estocar tesouros para a maturidade.
Entre esses bens recebidos na infância, está o valor da leveza, conjugada na vida e na
obra poética, presente, especialmente, em poemas como “Ar livre”, de Retrato natural (1949):
51
Referimo-nos ao menino Edmundo, da crônica “Edmundo, o céptico”, (MEIRELES, 1962, p. 122),
personagem que “estava sempre em guarda contra os adultos” e acreditava somente naquilo que seus olhos
pudessem ver e a sua experiência pudesse comprovar, deixando de viver outras realidades do mundo do faz-de-
conta, entre outras coisas.
47
A menina translúcida passa.
Vê-se a luz do sol dentro dos seus dedos.
Brilha em sua narina o coral do dia.
Leva o arco-íris em cada fio do cabelo.
Em sua pele madrepérolas hesitantes
Pintam leves alvoradas de neblina.
Evaporam-lhes os vestidos, na paisagem.
É apenas o vento que vai levando seu corpo pelas alamedas.
A cada passo, uma flor, a cada movimento, um pássaro.
E quando pára na ponte, as águas todas vão correndo,
em verdes lágrimas para dentro dos seus olhos.
(MEIRELES, 2001, p. 600)
Notemos que todo o poema se constitui de palavras e sintagmas ligados à semântica da
leveza: “translúcida”, “flor”, “pássaro”, “arco-íris”, “fio do cabelo”, “madrepérolas”, “leves
alvoradas de neblina”, “É apenas o vento que vai levando seu corpo pelas alamedas”, etc.
A leveza do olhar poético ceciliano sobre a realidade articula-se, muitas vezes, ao tom
lúdico que a escritora adota na construção de muitos de seus poemas, notadamente os de Ou
isto ou aquilo (1964), livro infantil no qual os poemas são verdadeiros brinquedos sonoros,
que deixam entrever a Cecília menina e a poeta-tecelã de um lirismo profundo. Isto porque,
como poeta-pastora, ela soube arrebanhar as palavras, com sua flauta mágica, e apanhar a
beleza das coisas simples, aspirações inerentes às pessoas que foram tocadas pela beleza da
arte e da vida, como sugere a leitura de “Os carneirinhos”.
Nos poemas de Ou isto ou aquilo, notamos, muitas vezes, a escritora projetada no eu
da enunciação, trazendo para o espaço do texto poético retalhos ficcionalizados de sua
infância, como acontece especialmente com “Figurinhas II” e “O eco”, entre outros poemas.
Ao mesmo tempo, percebemos, nesse livro, a escritora da poesia-brinquedo, que prioriza o
jogo como procedimento fundamental à comunicação poética com as crianças e à iniciação
dessas nos mistérios da poesia, valorizando também a musicalidade das palavras, dos metros e
das formas simples, em consonância com os interesses e prazer do leitor infantil.
A Cecília de Ou isto ou aquilo, em consonância com a “menina da varanda,/ com
tantas asas nos braços/ e borboletas nas mãos”, para quem “Os sonhos são flores altas/ de
umas distantes montanhas/ que um dia se alcançarão” (2001, p. 1096), é a escritora que nutre
um otimismo fascinante pela arte, pela infância e pela vida, trabalhando poeticamente “o
desejo de existir”, como essência da poesia, conforme atribui Trevisan (1993, p. 47).
48
Essa filosofia resvala para toda a sua produção em verso e em prosa, alcançando até
mesmo a Cecília dos “retratos rasgados”, da dispersão e da efemeridade. É a poeta que, à
semelhança do eu-lírico de “Tempo viajado”, apanha seus pedaços e vai cantando (2001, p.
616).
Como Orfeu, que nem a morte o impediu de continuar cantando “para os Bem-
aventurados” que se voltam para os Campos Elíseos (GUIMARÃES, 1995, p. 239, 240),
Cecília Meireles é a escritora que soube cantar a sua “pena/ com uma palavra tão doce, /de
maneira tão serena,/ que até Deus pensou que fosse/ felicidade e não pena” (MEIRELES,
2001, p. 348), como acontece ao eu-lírico do poema “A doce canção”, de Vaga música
(1942).
É cantando como Orfeu e como sereia
52
que Cecília Meireles compõe o seu segundo
perfil. Neste, vemos a poeta que tem por destino cantar e encantar(se), cantar e morrer de
cantar como a cigarra, numa espécie de morte que não se liga, necessariamente, à ideia de
finitude, mas de transmutação, afinal, como disse Guimarães Rosa: “as pessoas não morrem
ficam encantadas”
53
.
Esse canto, no entanto, apresenta sentido com o receptor, isto é, se for escutado.
Caso contrário, a poeta sente-se como o eu-lírico de “Realejo”, do livro Viagem (1939),
quando este diz: “Minha vida bela,/minha vida bela,/nada mais adianta/se não há janela/para a
voz que canta...” (MEIRELES, 2001, p. 272), versos que nos fazem refletir sobre o espaço da
arte, especialmente da arte poética, na nossa sociedade, notadamente, no período em que
viveu Cecília, envolto de guerras e de ditadura.
Essa tonalidade menor de “Realejo” configura-se, no entanto, como uma nota de
passagem para a fase solar da escritora, uma vez que, em outro momento de sua produção
poética, ela expressa claramente, através do eu-lírico, que cantar é preciso, pois “Uma voz
seria raiz perfurando cegueiras” (MEIRELES, 2001, p. 419).
Cecília Meireles, sendo poeta e musicista, é também a nossa Penélope, a que “bordava
cantando”, num intricado de fios verbais e musicais. De sua tapeçaria poética, portanto,
nascem não apenas poemas, mas também canções, como acontece em “A dona contrariada”:
52
Sem desconsiderar a ambigüidade dos mitos, evocamo-los em sua vertente apolínea já que procuramos
mostrar a face menos evidenciada de Cecília Meireles: a poeta solar.
53
Frase proferida por Guimarães Rosa, no seu discurso de posse, na Academia Brasileira de Letras, em 1967.
Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm>
49
Ela estava ali sentada,
do lado que faz sol-posto,
com a cabeça curvada,
um véu de sombra no rosto.
Suas mãos indo e voltando
por sobre a tapeçaria,
paravam de vez em quando:
e, então, se acabava o dia.
Seu vestido era de linho,
cor da lua nas areias.
Em seus lábios cor de vinho
dormia a voz das sereias.
Ela bordava cantando.
E a sua canção dizia
a história que ia ficando
por sobre a tapeçaria.
Veio um pássaro da altura
e a sombra passou no pano,
como no mar da ventura
a vela do desengano.
Ela parou de cantar,
desfez a sombra com a mão,
depois, seguiu a bordar
na tela a sua canção.
Vieram os ventos do oceano,
roubadores de navios,
e desmancharam-lhe o pano,
remexendo-lhe nos fios.
Ela pôs as mãos por cima,
tudo compôs outra vez:
a canção pousou na rima,
e o bordado assim se fez.
Vieram as nuvens turvá-la.
Recomeçou de cantar.
No timbre da sua fala
havia um rumor de mar.
O sol dormia no fundo:
fez-se a voz, ele acordou.
Subiu para o alto do mundo.
E ela, cantando, bordou
(MEIRELES, 2001, p. 384).
“A Dona contrariada” constitui, a nosso ver, um dos mais belos “retratos” de Cecília
Meireles, tanto do ponto de vista do lirismo e das imagens evocadas, como da perspectiva da
inter-relação poesia e música na composição poética. Nele, a sua Penélope, à semelhança da
personagem de Odisséia, de Homero, faz a apologia à resistência, ao enfrentamento das
situações adversas com otimismo, serenidade e perspicácia, situação que encontra respaldo na
própria história de vida de Cecília, na sua atuação profissional e na sua produção estética.
50
Toda a caminhada de Cecília Meireles esteve pautada sob o signo da resistência, do crédito ao
poder da arte, da educação e das ações humanísticas.
Como poeta que borda cantando, Cecília aproximou-se também dos trovadores, numa
reiteração de formas, gêneros e temas da lírica medieval. Assim, em sintonia com a arte dos
trovadores, especialmente, dos portugueses
54
, Cecília Meireles compôs cantiga de amor, como
Amor em Leonoreta (1951), cantiga de amigo, como A amiga deixada”, do livro Vaga
música (1942), e “Cantar de vero amor” do livro Dispersos (1918-1964), e canção de gesta
como a Crônica trovada da cidade de Sam Sebastiam, (1965), entre outras composições.
A presença da lírica medieval portuguesa na obra de Cecília reflete um pouco seu
conhecimento da poesia medieval e suas relações com os portugueses, tanto no âmbito da vida
pessoal, quanto no campo da produção literária: revela também seus vínculos genealógicos e
afetivos com os lusitanos, uma vez que, além de descender de portugueses açorianos, como
lembra Oliveira (2007, p. 187, “casou-se com o artista plástico português Fernando Correia
Dias, ilustrador de vários periódicos e livros em Portugal e no Brasil”, e denota também a sua
afinidade com a cultura literária portuguesa que fruiu desde a infância e as suas ligações com
alguns tecelões dessa cultura, como Fernando Pessoa, João de Castro, Osório Carlos Queiroz,
Fernanda de Castro, José Osório, entre outros “intelectuais portugueses que foram seus
contemporâneos” e com quem Cecília Meireles se correspondeu por quase 30 anos. Alguns
desses nomes foram motivos de referências em sua obra poética, seja em dedicatória de livros,
como acontece com Viagem, no qual escreve: “A meus amigos portugueses”, seja em
dedicatória de poemas diversos, como é o caso dos 19 poemas de Vaga música, seja na
evocação à lírica medieval portuguesa (OLIVEIRA, 2007, p. 187-189).
54
A esse respeito, conferir MALEVAL (2002, p. 48-54).
51
2.2 Instâncias de musicalidades
2.2.1 A música da canção poética
Cecília está tão ligada à música que a sala de
concertos no Rio de Janeiro leva seu nome.
Vasco Mariz
A música é uma das artes mais referendadas na obra literária de Cecília Meireles,
aparecendo, sobretudo, nos livros Viagem e Vaga Música, obras nas quais a arte de Apolo
aparece, especialmente, nos títulos dos poemas, como em “Música”, “Serenata”, “Canção”,
“Cantiguinha”, “Guitarra”, “Pausa”, “Valsa”, “Realejo”, “Ritmo”, “Pequena canção da onda”,
“Canção da menina antiga”, “Embalo da canção”, “Pequena canção”, “Cançãozinha de ninar”,
“Serenata ao menino do hospital”, “Modinha”, “Madrigal da sombra”, “Canção para remar”,
“Chorinho”, “Canção dos três barcos”, entre outros.
Entre essas e outras referências musicais, a palavra canção se destaca na obra poética
ceciliana, constituindo ora uma espécie de metáfora do objeto estético ceciliano, ora uma
alusão à estreita ligação entre música e poesia, condensada no gênero canção, através dos
tempos, sobretudo, na Antiguidade clássica e no período medieval, chegando aos tempos
modernos, com à canção literária, cultivada entre poetas e músicos, tanto no âmbito popular
quanto no erudito.
No que concerne ao sentido literário do termo, ligado à canzone italiana
55
, poema de
forma fixa, cultivado por Dante e Petrarca e à canção romântica, de forma mais livre, Cecília
Meireles, juntamente com outros escritores do porte de Fernando Pessoa, também se dedicou
à reescrita da canção, em vários poemas, inclusive no livro Canções
56
, de 1956.
55
A canzone italiana é um poema do século XV, constituído “de um número variável de estrofes ou estâncias,
cada qual com um número de versos, oscilante entre sete e vinte. O que caracteriza a canção é o fecho do poema
que termina com uma estância menor, em que se encontra o resumo do conteúdo poemático, ou a dedicatória à
mulher amada (D’ONOFRIO, 2007, p. 239).
56
No livro Canções, Cecília Meireles usa tanto o modelo canônico da canção, oito versos por estrofes, como usa
outras formas, notadamente a quadra, medida utilizada na poesia de tradição oral e na cançoneta (canzonetta),
variante da canção italiana. A canzonetta constitui uma pequena canção poética, de “tom mais alegre”, destinada,
no geral, ao canto “com acompanhamento de piano ou orquestra”
(D’ONOFRIO, 2007, p. 239).
52
No entanto, as canções literárias de Cecília, apesar de fazerem parte de um contexto
em que o “poema escrito é feito principalmente para ser lido”, como já o foi a canção clássica,
e embora constituam poemas
que são lidos e ouvidos “como em sonho”
57
, à semelhança dos
poemas de Fernando Pessoa, na acepção da própria escritora (MEIRELES, 2005, p. 74),
elas
não perdem o caráter de poesia musical, conservando, sobretudo, a musicalidade das palavras,
dos versos, das frases, das estrofes, enfim, do poema, podendo também ser cantadas.
Em Viagem, a referência à canção, não raro, aparece associada à expressão poética,
numa evocação do estreitamento das relações entre poesia e música, como ocorreu, sobretudo,
na canção dos trovadores. Ao mesmo tempo, constitui um espaço no qual o eu-lírico projeta
suas buscas em torno de si mesmo, encontrando apenas imagens provisórias e evanescentes
que não se deixam fixar. “Motivo” é um dos poemas de Viagem, em que a canção é evocada
em unidade com a expressão poética e em que o eu-lírico se sente um ser volátil como o som:
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
_ não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.
(MEIRELES, 2001, p. 227)
58
.
Neste poema, Cecília também faz evocação à música como finalidade primeira da
poesia, afinando-se com o pensamento do poeta francês Paul Verlaine (1844-1896), quando
diz em sua “Art poétique”, inserida no livro Jadis et Naguère (1884): De la musique avant
57
Cecília remete aos poemas escritos que exigem “um tempo de reflexão sobre a sua linguagem” e propiciam
um estado de “êxtase necessário para a fruição da mensagem lírica”, como é o caso dos poemas de Fernando
Pessoa e os próprios textos poéticos da escritora de Canções (MEIRELES, 2005, p. 74).
58
Os grifos são nossos.
53
toute chose”. Essa consonância de ideias entre Cecília e Verlaine é reiterada, especialmente,
na composição “Serenata para Verlaine”, em que Cecília se dirige ao expoente da estética
simbolista na França, ofertando-lhe os elementos fundamentais de sua arte poética, entre os
quais a música se sobressai, ao dizer: “Trago-te o luar e as folhas secas/ e os violinos do
outono/ e as mãos azuis das águas frescas/ às varandas do sono” (MEIRELES, 2001, p. 1588).
Friedrich Schiller (1759-1805), poeta do romantismo alemão, por sua vez, defendia
o primado da música na composição poética: “Em princípio minha alma se impregna de uma
espécie de disposição musical; a idéia poética não vem senão depois” (Apud SPINA, 2002, p.
117)
Se, para Verlaine e Schiller, a música precede o fazer poético, para Cecília, ela está em
tudo, inclusive no seu cotidiano e na sua arte, orientando o seu destino de sereia, como aquela
que canta e (se) encanta, e vai além de desfazer-se em espumas na praia, pois, como Orfeu,
sua lira “Tem sangue eterno a asa ritmada”; logo perdurará.
Ao fazer alusão ao poder da música, o poema “Motivo” remete-nos também para
outros mitos que enaltecem o canto e que ligam a música ao mar, como o mito de Arion e de
Dionísio, filtrados pelo pensamento de Wisnik (1989, p. 66):
Arion, prisioneiro de marinheiros que querem atirá-lo às águas, pede para entoar o
seu próprio canto fúnebre, acompanhado da sua lira, e em seguida se lança por conta
própria ao oceano onde os golfinhos, delfins de Apolo, atraídos pela música, o
salvam; Dionísio, preso nas mesmas condições, transforma os piratas em golfinhos,
condenados para sempre a salvar os náufragos.
Em diversos poemas de Cecília, a música apresenta-se evocada também por seus
elementos estruturantes, seja de modo direto, seja pela metaforização daqueles. O vento,
elemento que representa a música no que tange à veiculação do som, à propagação das ondas
sonoras, e fenômeno que ajuda à realização do som nos instrumentos de sopro e na harpa
eólia
59
, na canção de Cecília se junta ao ritmo, um dos parâmetros fundamentais da música,
entendido também como o elemento através do qual o tempo (a duração) do som pode ser
mensurável. No poema “Motivo”, o vento e o ritmo aparecem representando o canto, a
expressão e a vida do próprio eu lírico, especialmente na segunda e na última estrofes.
Considerado por Octavio Paz (1982, p. 61), o elemento responsável pela unidade da
frase e da estrofe no poema, sobrepondo-se, muitas vezes, até mesmo ao “sentido ou direção
59
“instrumento antiqüíssimo da família da harpa cujas cordas são tangidas pela ação do vento” (DOURADO,
2004, p. 159)
54
significativa
60
”, o ritmo mostra-se fundamental à estética ceciliana, sendo destacado também
no poema “Discurso”, especialmente, nos versos: “E aqui estou, cantando./ Um poeta é
sempre irmão do vento e da água: / deixa seu ritmo por onde passa (2001, p. 229)
61
.
Segundo Carlos Secchin (2001, p. xxxvii), cantando, Cecília sente-se também
conectada ao divino, às forças cósmicas, ao “mundo das essências, de onde ela se sente
apartada”, ideia sugerida, sobretudo, no primeiro verso do poema: “E aqui estou, cantando”:
Quanta força, neste verso que abre o poema! Ao iniciá-lo com a conjunção e, Cecília
deixa pressuposto todo o sofrimento de não poder participar da outra esfera: “e no
entanto aqui estou”. A conjunção une os dois lados, embora um deles permaneça
oculto. O e o aqui. Esta é uma realidade insatisfatória e a poeta se rebela contra
ela, criando uma ponte com o lá. O fecho do verso é o gerúndio cantando. Ele vem
separado por vírgula, o que nos obriga a ler o verbo com mais vagar, operando uma
mudança de ritmo. Se a primeira parte do verso (“E aqui estou”) é uma abertura
abrupta e inesperada, a segunda se distingue – seja pela pausa introduzida pela
vírgula, seja pelo alongamento do verbo no gerúndio, seja pelo eco (can-tan-do)
por um ritmo mais moderado. A poeta se põe a cantar indefinidamente, pensando-se
como um ser que existe no e para o ritmo (SECCHIN, 2001, p. xxxvii).
A canção é, portanto, algo que identifica o sopro divino sobre a criatura, ao mesmo
tempo em que conecta a poeta ao transcendente, como assegura Chevalier:
O canto é o símbolo da palavra que une a potência criadora à sua criação, no
momento em que esta última reconhece sua dependência de criatura, exprimindo-a
na alegria, na adoração ou na imploração. É o sopro da criatura a responder ao sopro
criador (CHEVALIER, 2007, p. 176).
Cantando, Cecília “deixa seu ritmo por onde passa”, ritmo poético- musical, expressão
da sua vida com a qual nós leitores interagimos e movimentamos nossos ritmos íntimos,
nossos desejos, pensamentos, sonhos, etc.
60
Essa assertiva é facilmente comprovada no âmbito da criação da poesia popular, especialmente a poesia dos
cordelistas, cantadores e repentistas, quando, comumente, as “palavras surgem naturalmente do ritmo, como a
flor do caule”, na expressão de Octavio Paz (1982, p. 70).
61
Os grifos são nossos.
55
No poema “Ritmo”, de Vaga música, Cecília também faz apologia ao ritmo como vida
e movimento:
O ritmo em que gemo
doçuras e mágoas
é um dourado remo
por douradas águas.
Tudo, quando passo,
olha-me e suspira.
Será meu compasso
62
que tantos admira?
63
(MEIRELES, 2001, p. 328)
Neste poema, Cecília Meireles apresenta-nos um eu-lírico numa situação de alta
satisfação diante de sua vida e/ou de sua arte, que a palavra ritmo tanto pode ser uma
metonímia de vida, no sentido de que o ritmo está nas funções vitais do homem e dos animais:
no respirar, no movimento do sangue, nas batidas do coração, etc, como pode ser símbolo da
arte musical e poética, como um elemento de sustentação do som. Nestas duas perspectivas, o
poema pode apresentar consonância com a vida e a obra de Cecília Meireles. No que tange ao
sentimento de satisfação, podemos dizer que essa situação sugerida pelo poema remete aos
instantes de reconhecimento da escritora diante de sua obra e de sua aceitação pela crítica,
pelos escritores e pelos leitores, em sua época, sentimento raro em seus textos, pois, o que
predomina é a insatisfação diante da sua criação artística, é a busca incessante de uma
expressão perfeita. o sentimento de satisfação diante da vida pode se associar ao modo
como Cecília administrou o tempo de sua permanência no mundo dos homens, fazendo-o
render de tal maneira que ficamos perplexos diante da sua vasta produção literária e da sua
atuação como educadora, jornalista, pesquisadora, viajante, mãe, esposa e amiga. Para tanto, o
ritmo que admitiu para a sua produção intelectual e artística não foi o da valsa, mas do tango,
do samba e do frevo, ritmos intensos, com raras pausas, regidos por compassos múltiplos e
desdobráveis, como sugeriu Valdenia Silva (2008, p.16-36).
A partir desse prisma, podemos dizer que a vida de Cecília e o seu fazer poético foram
um “dourado remo/por douradas águas”, numa dominância do símbolo solar, que, através da
cor do ouro, sugere perfeição, iluminação, como representava a cor dourada para os indianos e
62
“Unidade métrica musical formada por grupos de tempos em porções iguais. Na partitura, delimita um trecho
compreendido entre duas barras verticais (barras de compasso). Pode ser binário (dois tempos), ternário (três),
quaternário (quatro)...” e pode ser classificado em simples ou composto. (DOURADO, 2004, p.88).
63
Os grifos são nossos.
56
outros orientais, por exemplo, ou indica, à luz do pensamento primitivo dos dogons e
bambaras, “a vibração original materializada do Espírito de Deus, palavra e água, verbo
fecundante”, “princípio original da construção cósmica, da solidez, da segurança humana e,
por extensão, o princípio da felicidade, como destaca Chevalier (2007, p. 669, 670).
Em “Medida da significação (I)”, do livro Viagem, Cecília alude a outro componente
da linguagem musical, a duração, elemento que quantifica o valor das notas e das pausas na
pauta musical:
Procurei-me nesta água da minha memória
que povoa todas as distâncias da vida
e, onde, como nos campos, se podia semear, talvez
tanta imagem capaz de ficar florido...
Procurei minha forma entre os aspectos das ondas,
para sentir, na noite, o aroma da minha duração.
Compreendo que, da fronte aos pés, sou de ausência absoluta:
desapareci como aquele – no entanto, árduo ritmo
que, sobre fingidos caminhos,
sustentou a minha passagem desejosa.
(...)
E aquilo que restaria eternamente
é tão da cor destas águas,
é tão do tamanho do tempo,
é tão edificado de silêncios
que, refletindo aqui,
permanece inefável.
(MEIRELES, 2001, p. 284)
64
Chamou-nos a atenção, no poema, a percepção que o eu-lírico tem de si, como um ser
entre os elementos mais evanescentes. Essa percepção o faz buscar a si mesmo em situações
de poucas instabilidades, isto é, nas águas da memória e na forma das ondas para sentir a
vibração de sua vida, como música feita não apenas de som, mas também de aroma, elemento
tão evanescente quanto o som. No entanto, essa música não se deixa apreender ou mensurar
em seus aspectos de ritmo e de duração, porque além de ser inteiramente silêncio, encontra-se
encantada. Essa é a sensação que habita o eu-lírico diante das imagens provisórias, reveladas
de si mesmo, nos instantes da procura.
64
Os grifos são nossos.
57
Diferentemente do poema “Ritmo”, que associa o fluido e o firme, de modo que o
remo coordena e reina sobre a fluidez das águas, em “Medida da significação”, subjaz apenas
a sensação de fluidez, conjugada ao sentimento de dispersão, ambos, presentificados,
sobretudo, nos termos “água”, “memória”, “ondas”, “aroma”, “fingidos caminhos”,
“passagem desejosa”, etc. É o que percebemos, sobretudo, quando o eu-lírico se sente
“ausência absoluta”, incolor como as águas, do “tamanho do tempo” e “edificado de
silêncios”, experiência que o eu-lírico confessa ser difícil exprimir através da palavra.
O tempo,
65
categoria que ajuda na organização matemática dos compassos, e o
silêncio, que na música é representado pela pausa
66
, como vimos, são evocados no poema
“Medida da significação”, aparecendo também na composição de “Motivo” anteriormente
destacada, através do adjetivo “mudo”: “E um dia sei que estarei mudo:/- mais nada”. Isto
porque, sendo o canto “o sopro da criatura a responder ao sopro do criador” (CHEVALLIER,
2007, p. 176), ao perecer o corpo que acolhia o sopro, aquele não pode mais funcionar como a
harpa eólia do divino, a não ser que este canto se encante nas palavras, como é o caso do
canto ceciliano.
O som, outro elemento básico da música, e sua altura (melodia)
67
aparecem,
notadamente, na linguagem do poema “Serenata”, no qual se encontram associados a outros
constituintes musicais, como a intensidade (volume) , o timbre
68
e a tonalidade:
69
Serenata
Repara na canção tardia
que timidamente se eleva,
num arrulho de fonte fria.
O orvalho treme sobre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.
65
Na música, o tempo pode ser entendido como pulsação, “unidade essencial de um compasso”, dividindo-se em
tempo forte e tempo fraco; como “andamento de determinada peça, do tipo tempo di valsa”, tempo di minuetto,
tempo di marcia (marcha), etc, e ainda como “duração de uma nota” (DOURADO, op. cit., p. 327).
66
Como as notas musicais, as pausas na partitura possuem durações precisas.
67
A altura de um som equivale a sua posição em relação à freqüência do diapasão (padrão): 440 Hz. Os sons
que soam com a freqüência em torno do diapasão são considerados sons médios, enquanto os sons que vibram
abaixo ou acima deste padrão são considerados graves ou agudos, respectivamente. Na conhecida frase “cai, cai
balão”, em Dó maior, temos os sons “sol, sol, fá, mi”, numa altura em decrescendo em relação ao diapasão.
68
Sonoridade específica de cada instrumento ou voz, resultante da dosagem das frequências e intensidades dos
harmônicos. Por exemplo, o timbre de um violino é diferente do timbre de uma viola, violão ou violoncelo; o
timbre de uma voz classificada como baixo é diferente da tenor, ou ainda, o timbre da voz de uma criança
pequena é bastante diferente do timbre da voz de um rapaz recém chegado à puberdade por exemplo.
69
Na música ocidental, a tonalidade refere-se “a relação entre as notas e acordes de uma peça com determinada
centralidade, chamada nica (DOURADO, 2004, p. 334), podendo ser reconhecida também como um conjunto
de alturas, chamado escala, da qual a tônica é a principal altura. No campo simbólico, conforme a teoria dos
afetos, as tonalidades maiores podem sugerir alegria, enquanto as menores podem expressar estados anímicos
intimistas e/ou tristes.
58
Repara na canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.
É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.
Repara na canção tardia
que por sobre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.
E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.
E o tempo suspira na altura
por eternidades serenas.
(MEIRELES, 2001, p. 234, 235)
O poema acima tem como objeto de discurso a serenata, modalidade de música vocal
bastante usada no Brasil, especialmente nos séculos XIX e XX, geralmente acompanhada
por violões e bandolins” e, na maioria das vezes, “cantada e executada ao ar livre sob a janela
da mulher amada” (DOURADO, 2004, p. 299). A ideia, antecipada através do título, é
confirmada nos primeiros versos do poema: “Repara na canção tardia/ que timidamente se
eleva, / num arrulho de fonte fria”. Como sabemos, as canções de serenata possuem um ritmo
lento, pungente e eram cantadas, no geral, tarde da noite, de forma dengosa, por um trovador
apaixonado, cuja voz baixa e meiga dizia palavras de amor, num tom triste, capaz de
convencer a amada da dor que o amor por ela lhe causa. Assim, descoberto o fio da meada, a
leitura de todo o poema adéqua-se a ele, confirmando o esquema de interpretação construído
para o texto.
Além da referência musical do título, outras, ao longo do poema: tempo (canção
tardia); intensidade ou altura (timidamente se eleva); timbre e/ou intensidade (arrulho de fonte
fria); som, timbre e vento (a voz que o vento abraça e leva); tom menor (flor de melancolia,
triste); ritmo e som (o movimento em que murmura, como o do coração no peito; melodia
(desenha a sua melodia); duração (o universo inteiro perdura); tempo, altura (E o tempo
suspira na altura); duração (por eternidades serenas).
Observamos que Cecília não se limita a trazer para as linhas da canção apenas um
conjunto de elementos musicais que tematiza o evento vocal da serenata, reservando espaço
para a reflexão sobre a função da poesia-canção no corpo de nossa sociedade, “mundo
desfeito”, que muito tem afastado o homem do estado poético, transformando, muitas vezes,
em autômato do sistema, fragmentado em seu ser total.
59
O papel da poesia/canção seria despertar no sujeito leitor/receptor o estado da
ananda
70
, na concepção de Octávio Paz (1982), aquele estado de espírito que o Grupo
Fernando Pessoa era capaz de despertar nos auditórios, com as leituras e performances de
poemas, conforme Cecília faz referência em sua crônica, “O grupo Fernando Pessoa”
(MEIRELES, 2005, p. 73, 74), experiência capaz de suspender o tempo real e levar os
receptores ao tempo mítico, ao estado poético, como sugerem os últimos versos de
“Serenata”: “E nessas letras tão pequenas/ o universo inteiro perdura. / E o tempo suspira na
altura/ por eternidades serenas”.
Outras vezes, são as notas musicais, como em “A bailarina”, ou outros elementos da
escrita musical e os instrumentos que são evocados, em composições que tematizam o sonho,
a vida e a arte e, que a música e a poesia aparecem submetidas à dinâmica da ascese, como
ocorre com um dos poemas sem título de Canções (1956). Localizada num espaço inferior e
confundida com os sonhos, a música, nesse poema, nasce pelo chamado do criador: “Ó noite,
negro piano, / os sonhos soam longe, / num teclado caído/ pelo fundo horizonte. / A música se
inclina/ o pensamento insone: / em que clave se inscreve/ o itinerário do homem?
(MEIRELES, 2001, p 1092).
Novamente, encontramos o piano associado ao sonho, em sua vasta extensão e suas
múltiplas combinações que se aproximam do sem limite. Esses recortes textuais, junto à obra
poética de Cecília Meireles, são apenas algumas notas diante da extensão musical de sua
lírica. No entanto, são indicativos da tese de que, para Cecília, a música não é um mero
componente ilustrativo, um floreio, um acessório, em seus versos e em sua prosa. A música é
uma espécie de “espinha dorsal” ou o próprio “nervo” dos versos, das frases, dos poemas,
sendo também “fonte de lirismo”, como o é nas canções feitas para o canto (SPINA, 2002, p.
128). É ainda a energia que gera os versos e dita as relações entre as partes, formando um
todo que é antes de tudo canção, sem deixar de ser poesia. A nosso ver, esse é um dos pontos
altos da estética ceciliana, especialmente porque, ao entrelaçar poesia e música, Cecília tem
fortalecido a ciranda dos griots, trovadores, menestréis, jograis e, com estes, tem assegurado
“a inquebrantável unidade dessas duas Musas primitivas, que transpiram as emoções mais sãs
e mais profundas da alma humana desde os alvores da civilização”, e que são ‘a imagem
vivente da indestrutível unidade do Homem’” (SPINA, 2002, p. 129).
70
Palavra que provem do sânscrito cujo significado remete ao sentimento ou estado de extase ou felicidade
suprema, usado no Hinduísmo monástico.
60
Corroborando ainda a união dessas duas musas na poética de Cecília Meireles, Ana
Maria Lisboa de Mello (1997) ressalta outro tipo de musicalidade ligada à harmonia do
universo, numa perspectiva em que a música é tomada como simbolização do divino e como
instrumento de harmonização cósmica e humana:
No Evangelho segundo São João, o vocábulo verbum, na frase ‘In principium erat
verbum’, tem sido traduzida por ‘palavra’, no caso, a palavra divina. Mas alguns
pesquisadores [como COTTE, 1990, p. 11] consideram que ‘som’, ou então, ‘canto’
é a melhor tradução para a expressão latina, uma vez que, nos tempos imemoriais, o
criador era concebido como um canto infinito e a criação como uma cristalização
desse canto.
Na Idade dia, supunha também que a música explicasse o funcionamento do
universo e aregulasse a saúde do corpo. Todas as coisas dependiam da harmonia,
da tranquilitas ordinis de Santo Agostinho. A palavra, vista como o fundamento do
conhecimento, e o número, considerado o princípio abstrato subjacente às leis
cósmicas, foram os dois alicerces do currículo medieval, que se desdobrava nas
seguintes disciplinas: de um lado, Retórica, Gramática e Dialética (trivium), do
outro, Aritmética, Geometria, Música e Astronomia (quadrivium). A Música é a
expressão do mero no tempo (...). O canto é a palavra regulada pelo número no
tempo, de forma que nele se reúnem os dois alicerces do conhecimento, antes
referidos” (MELLO, 1997, p. 77, 78).
Na lírica ceciliana, a evocação musical, muitas vezes, está associada ao caráter
espiritualista de sua obra, conforme defende a pesquisadora em referência:
Em muitos poemas, a autora alude a uma música sutil ‘música de seda’ voz de
um mundo transcendente, algumas vezes simbolizado pelo mar ou pela noite
cósmica, ou seja, toma por tema essa intuitiva e antiga concepção de que existe uma
música expressando o movimento do universo e reitera também a concepção que
Deus é som. Em outros, a musicalidade traduz os estados da alma de um eu lírico
que busca o seu equilíbrio, adotando por parâmetro a harmonia do universo
(MELLO, 1997, p. 80).
A estudiosa de Cecília refere-se aos poemas “Anunciação”, “Êxtase” e “Som”, do
livro Viagem; “Música”, “Embalo da canção”, “Canção do carreiro” e Canção excêntrica”,
de Vaga Música. No poema “Êxtase”, em particular, o eu poético, conforme Mello (2001, p.
11), “proclama que, ao empreender seu itinerário, se sente parte de uma totalidade”, como diz
no verso: “Nem é preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo”; percebe-se incluído “na
harmonia cósmica, presente que reúne em si a história de todos os outros – os que já se foram,
os antepassados, os de todos os lugares”.
61
As palavras do poema Cântico IV
71
sugerem esse tipo de musicalidade cósmica que
harmoniza o homem, numa visão holística da música e do ser humano:
Adormece o teu corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Quere ser a alma infinita de tudo.
Troca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a miséria de ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês, então, que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele és tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti?
(MEIRELES, 2001, p. 122, 123)
Essa visão holística do homem e do mundo, evocado no poema, apresenta afinidades
com a tradição do pensamento oriental, filtrada através das leituras e impressões que a poeta
experimentou em seus contatos com os indianos e sua cultura, bem como da profunda
admiração que nutriu em relação a dois grandes ícones da cultura indiana:
72
Rabindranath
Tagore (1861-1941), poeta, músico e líder espiritual dos indianos e, Mahatma Ghandi (1869-
1948), símbolo sócio-político e “o único sem revólveres, sem bolsos, sem mentira”
(MEIRELES, 2001, 1608). Esses dois nomes foram enaltecidos, por Cecília Meireles, em
crônicas, poemas e palestras.
Na poética de Cecília Meireles, as afinidades com as culturas orientais revelam-se,
sobretudo, em duas perspectivas: na “profunda consciência do caráter transitório da
existência”, cultivada pela escritora e na respectiva conjugação da filosofia “do desapego
espiritual como forma de alcançar a compreensão das profundezas da realidade e a eliminação
do sofrimento” (LOUNDO, 2007 p, 129), bem como “na saudade secular de infâncias,
71
O cântico é um gênero musical cantado, a partir de textos bíblicos, usado para fins religiosos. Cf.: Dicionário
Grove (SADIE, 1994, p. 164).
72
Numa entrevista a Pedro Bloch, Cecília afirma: “Na Índia foi onde me senti mais dentro de meu mundo
interior. As canções de Tagore, que tanta gente canta como folclore, tudo na Índia me uma sensação de
levitar. Note que não visitei ali nem templos nem faquires. Não é exótico. E o espírito, compreende?” (BLOCH,
1989, p.33).
62
ternuras, humanidade”
73
, nutrida em toda a sua obra (MEIRELES, 2001, p. 1018). Disso,
advém “o caráter positivo e antiniilista da lírica ceciliana, marcada pela diversidade de
motivos, (...), pela contemplação totalizante que a tudo abarca, pela cadência musical e
rítmica e pela extraordinária versatilidade da métrica” (LOUNDO, 2007, p. 133).
A presença da filosofia indiana na obra poética de Cecília manifesta-se também na
evocação “de um tempo fora do tempo”, um tempo encantador como o das melodias de
encantar as serpentes, evento que, no geral, transporta o ouvinte para tempos míticos, para
outras realidades fora do tempo real, como se, pela hipnose, suspendesse “a própria vida” real,
como defende Bosi (2007, p. 22) ao fazer menção ao poema “Som da Índia”.
Não é apenas a música dos encantadores de serpentes indianos que é capaz de
suspender o tempo real, a leitura/audição de textos poéticos, os concertos musicais, entre
outros eventos artísticos, possuem, no geral, este poder: tirar-nos “do chão por onde
rastejamos (...)/ E muito longe o nosso pensamento em serpentes se eleva/ na aérea música
azul que a flauta ondula” (MEIRELES, 2001, p. 976).
2.2.2 A canção poética na música
A importância que vemos nesse trabalho é
trazer de volta a poesia para o povo, na medida
em que, musicando poemas, popularizamos
efetivamente a poesia.
Wagner Cosse
A recorrência de um vocabulário específico da música, associada à predominância do
caráter mélico e da poeticidade da linguagem na lírica de Cecília Meireles são responsáveis
pelo notável interesse de recriação musical de seus poemas, seja por compositores brasileiros,
seja por musicistas portugueses.
73
Foi celebrando sua afinidade com Tagore que Cecília escreveu sua “Cançãozinha para Tagore”, onde diz:
“Àquele lado do tempo/ onde abre a rosa da aurora,/ chegaremos de mãos dadas, cantando canções de roda/ com
palavras encantadas (...).” (MEIRELES, 2001, p. 1023, 1024)
63
A esse respeito, destacamos o artigo “Cecília Meireles e a música”, escrito por Vasco
Mariz
74
, em 2002, na Revista Brasiliana, como tributo ao centenário de nascimento de Cecília
Meireles, no qual encontramos algumas informações importantes sobre a recriação musical de
sua lírica feita por compositores eruditos brasileiros, além de sinalizações, embora parcas, da
relação da poeta com a música, com músicos e musicólogos de nosso país, fato pouco
explorado na fortuna crítica de Cecília.
De acordo com Vasco Mariz (2002, p. 10), Cecília Meireles ocupa, no nosso
cancioneiro erudito, um dos lugares mais privilegiados no tocante ao número de textos
poéticos musicados, mantendo “com relativa folga o segundo lugar, logo atrás de Manuel
Bandeira, entre os poetas brasileiros mais frequentemente musicados por nossos
compositores”.
A preferência pelos textos desses dois escritores deve-se ao fato de que suas
composições poéticas possuem uma musicalidade implícita, impregnada na linguagem e no
ritmo do poema, de modo a atrair os compositores, especialmente, aqueles que atuam na
composição do lied
75
. Para esses compositores, o texto poético é, geralmente, o ponto de
partida para a criação da composição musical, interferindo também na condução rítmico-
melódica de toda a peça. Nesse processo de criação, a intuição desempenha função
fundamental, como ocorre na canção popular: “O compositor comenta o poema depois de sua
leitura atenta, após se sentir embebido pela emoção estética que se desprende daquela
pequena obra de arte. A melodia surge então como por encanto do próprio texto poético”
76
(MARIZ, 2002, p. 10).
Esse ponto de vista, por sua vez, não implica na ideia de que a melodia nasça
exclusivamente do texto, todavia da relação texto/leitor. A prova disso é que dois
compositores jamais criarão a mesma melodia, embora tenham como base o mesmo texto,
podendo ambos adotar procedimentos contrários na condução da melodia das frases.
Elegendo como parâmetro uma frase de um dado poema, um compositor “X” pode optar por
um movimento ascendente e pianíssimo, enquanto um compositor “Y” pode aplicar o
procedimento contrário: descendente e forte, sem conhecerem a composição particular de
cada um.
74
Vasco Mariz conheceu Cecília em meados dos anos 50, tornaram-se amigos e trocaram muitas cartas,
especialmente, entre os anos 1950 e 1960, textos que nos parecem ser inéditos e que foram presenteados pelo
musicólogo a sua neta Alexandra Maia, em 2001. Nelas, Cecília e Vasco falam, sobretudo, da estética musical e
da música brasileira. A esse respeito, conferir o artigo do musicólogo: “Cecília Meireles e a música”.
75
O lied é a canção de câmera, cultivada, sobretudo, no Romantismo musical europeu. Cf: Dourado, 2004, p.
184, 185.
76
Adotaremos essa perspectiva para a musicalização dos poemas de Cecília Meireles em sala de aula.
64
Junto à intuição, trabalha também a razão, fazendo as equivalências entre estruturas
poéticas e estruturas musicais.
Cecília, tendo consciência da musicalidade e do valor de sua obra poética, ressentia-se
com o fato de que seus poemas não eram muito musicados, especialmente porque certos bons
músicos, como Villa-Lobos, não tinham o ouvido poético. Sobre essa temática, Cecília
Meireles, numa correspondência destinada a Vasco Mariz, em 25/11/1959, desabafa:
Uma coisa que eu não compreendo é porque os músicos sempre dão preferência a
letras literariamente fracas
77
. Os poemas escolhidos nunca o os melhores. É como
se os músicos tivessem sensibilidade musical, mas não sensibilidade literária. O
Villa-Lobos disse-me um dia que a música não tinha nada com a letra. A palavra era
para apoiar a voz
78
. Engraçadíssimas aquelas teorias dele... (Apud MARIZ, 2002,
p. 11)
Embora tenhamos, nos dias atuais, mais de 90 textos cecilianos musicados para voz,
notadamente em canções eruditas, consideramos esse número pequeno, dada é a extensa
produção poética dessa escritora carioca.
Entre os poemas musicados para concertos, destacamos “Berceuse da onda”, canção
poética composta em 1928, destinada ao canto e piano ou canto e orquestra, cuja autoria
musical pertence a Oscar Lorenzo Fernandez, “um de nossos mais importantes compositores
de canções”, (MARIZ, 2002, p. 11); “Flor do meu coração”, de 1967, musicada por Camargo
Guarniere, grande lírico de nossa música; os poemas, “Retrato”, “Murmúrio”, Bem-te-vi”,
“Teu Nome” e “Se eu fosse apenas”, também receberam tratamento musical, desta vez,
através do trabalho de composição de Oswaldo Lacerda. Além disso, os poemas “Modinha”,
“Chorinho” e “Cantiga” foram musicados por Luis Cosme, compositor gaúcho que as recriou
conforme o ritmo de marchinhas e a quem se deve a célebre composição musical de
“Madrugada no Campo”, publicada na Argentina.
77
Cecília se referia, sobretudo, ao fato de Villa-Lobos ter composto Cantilena, da Bachiana Brasileira n. 5, a
partir de “um poema medíocre de Ruth Valadares Corrêa” (MARIZ, 2002, p. 10).
78
O pensamento de Villa-Lobos liga-se a uma vertente estética, no âmbito da composição musical, pautada na
independência das duas artes e na preponderância da linguagem musical sobre outras linguagens. Essa tendência
em torno da “prima pratica”, cultivada, sobretudo, no final da Renascença, foi constestada, no Barroco italiano,
concebido também como Renascênca italiana tardia, pelos ideais da “Camerata Fiorentina”, movimento artítico,
conduzido, notadamente, por poetas e músicos, os quais defendiam a supremacia do texto sobre a música na
constituição do nero ópera, em sintonia com os referenciais da tragédia grega e com a criação de uma poética
dos afetos. Cf.: Chasin (2004) e Águedo-Silva (2009, p. 29). No que tange a Cecília Meireles, entendemos que
sua fala e sua arte não outorgam o redicalismo dessas duas linhas estéticas, antes, sugerem o entrelace
harmonioso entre poesia e música.
65
Cecília inspirou ainda os compositores de vanguarda; entre eles, citamos Gilberto
Mendes e Ernst Mahle. Este último compôs belíssimas canções a partir de alguns poemas
cecilianos. São elas: Para uma cigarra (1966), Leilão de jardim (1971), Uma flor quebrada e
A chácara do Chico Bolacha;
Outros nomes de compositores que se voltaram para a recriação da lírica ceciliana
merecem destaque: Ronaldo Miranda, compositor contemporâneo que, para comemorar os
500 anos do Brasil, musicou a “Canção Antiga”; Almeida Prado, considerado por Vasco
Mariz, o melhor compositor da atualidade; Edmundo Villani-Cortes, agraciado com o prêmio
da APCA Associação Paulista de Críticos de Arte, pelo “Ciclo Cecília Meireles” e Edino
Krieger, o qual compôs uma peça para violão a partir da leitura do Romanceiro da
Inconfidência, além de recriar, em 1989, o Romance de Santa Cecília. Este poema musical foi
dividido em três movimentos ligados à vida, martírio e glória da santa, composto “para
narrador, soprano, coro infantil e orquestra sinfônica”, alcançando “notável êxito na sala
Cecília Meireles com a participação de sua filha Maria Fernanda como narradora” (MARIZ,
2002, p. 13).
Não podemos deixar de mencionar outros casos de parceria poético-musical
despertada pela obra de Cecília: Ricardo Tacuchian, por exemplo, recriou o “Canto do poeta”
numa composição de câmera para soprano, flauta, violino e piano, sendo também o
compositor responsável por uma das mais belas e sofisticadas leitura musical da obra infantil
Ou isto ou aquilo, da qual receberam melodia e arranjo os poemas “Pescaria”, “Colar de
Carolina”, “A moda da menina trombuda”, “O cavalinho branco” e “Jogo de bola”.
Em relação ao livro de poemas infantis, Ou isto ou aquilo,
79
ressaltamos a parceria
entre os portugueses Luís Pedro Fonseca e Lena d’Água. Esta cantora lançou, em Portugal, no
ano de 1992, o álbum Ou isto ou aquilo
80
, com doze poemas de Cecília Meireles, musicados
e arranjados por seu parceiro artístico, Luís Pedro Fonseca, em 1978, para compor o musical
infantil realizado por eles no mesmo ano. No geral, trata-se de um trabalho de grande
qualidade artística, especialmente junto aos poemas “Cantiga da Babá” e “Ou isto ou aquilo”,
resultando em composições que tornam mais evidentes a beleza poética e o conteúdo dos
versos de Cecília Meireles.
Há que destacar também o trabalho recente de composição musical de Fátima Guedes,
junto a alguns poemas do livro Cânticos (1927), de Cecília Meireles, que veio à público em
79
Utilizamos os poemas desse livro em nossa pesquisa de campo, descrita no terceiro capítulo desta tese.
80
Os poemas de Ou isto ou aquilo que compõem o álbum são: “Os carneirinhos
80
”, “Ou isto ou aquilo”, “O
sonho e a fronha”, “O cavalinho branco”, “A lua é do Raul”, “Rio na sombra”, “A flor da pimenta”, “Canção”,
“Canção de Dulce”, “Lua depois de chuva”, “Jardim da igreja” e “Cantiga da babá”.
66
2006, através do álbum Cânticos
81
,interpretado pelos cantores Thelmo Lins e Wagner Cosse,
com a participação especial de Fátima Guedes e Nana Caymmi e cujos arranjos e direção
musical são de Geraldo Vianna.
Para Thelmo Lins
82
(2006), este álbum foi uma oportunidade de socializar o
encantamento que os poemas de Cecília despertam nos leitores:
Na década de 80, logo após o seu lançamento, tomei contato com o livro “Cânticos”.
A leitura dos poemas delicados e ao mesmo tempo contundentes reforçou em mim a
admiração por Cecília Meireles, esta múltipla e talentosa mulher brasileira. O
encanto foi tamanho que, em 1989, como ator, levei os poemas para um recital
cênico, à luz de velas e ao som de cantos gregorianos. A vida me dá, agora, a
oportunidade de ver esses poemas musicados pela compositora Fátima Guedes, num
ritual de grande sensibilidade e emoção que divido com meu parceiro Wagner Cosse
e com músicos que transformaram o sonho em realidade. O encantamento é
distribuído como pérolas lançadas ao vento, na vontade de que estas palavras
toquem a alma de cada ouvinte, preenchendo suas carências e transformando-se em
novas carícias e estímulos. A nossa missão, como artistas, é a do caixeiro viajante
distribuindo sons, palavras e, principalmente, esperança a todos os corações.
Para Wagner Cosse
83
(2006), participar do Cd Cânticos foi um “encontro iluminado”,
com a obra de Cecília:
Cecília Meireles abriu as janelas de minha alma para a poesia, quando eu tinha
apenas sete anos e iniciava meu processo de alfabetização. Nunca mais esqueci
aquele impacto. Não sabia, àquela época, que as palavras poderiam soar tão belas e
produzir tamanha emoção. Ao longo dos anos, sua poesia foi criando raízes
profundas em meu ser, deixando-me sempre atônito e admirado ante à beleza e
contundência de sua palavra, e sua extraordinária sensibilidade. Agora, em mais um
encontro iluminado com a obra dessa grande mulher, sinto-me embriagado de
felicidade por poder levar, com o meu parceiro e amigo Thelmo Lins, os poemas do
livro “Cânticos” para o Cd, embalados pela música atemporal de Fátima Guedes.
Mais uma vez as palavras de Cecília marcam a ferro, fogo e paixão minh’alma
81
Trata-se de um projeto que se tornou possível graças ao patrocínio da Lei estadual de incentivo à cultura de
Minas Gerais e da Lei municipal de incentivo à cultura de Belo Horizonte, entre outros.
82
Thelmo Lins é um artista plural (cantor, ator, produtor cultural e escritor) que, em seus trabalhos, tem
mostrado grande predileção pelos textos poéticos. Além de Cecília, interpretou, juntamente com Wagner Cosse,
Carlos Drummond (poeta), no álbum Thelmo Lins canta Drummond, lançado em 2003. Os poemas do cd foram
“musicados especialmente para o trabalho por Milton Nascimento, Joyce, Francis Hime, Belchior, Sueli Costa,
Sérgio Santos, Tavinho Moura, Renato Motha, Ladston do Nascimento, JoMiguel Wisnik, Flávio Henrique e
Geraldinho Alvarenga. O disco traz a participação especial de Maria Bethânia e o texto de abertura de Affonso
Romano de Sant’Anna. Pedro Drummond, neto do poeta-maior, comentou a respeito do CD: ‘Você fez um ótimo
trabalho propiciando esta nova interpretação da poesia de Carlos. A presença de Maria Bethânia é emocionante e
você é responsável por toda essa emoção através das parcerias inspiradas. Música requintada, obviamente
elaborada com pureza de sentimento e bom gosto’”. Disponível em: <
http://www.thelmolins.com.br>.
83
Cf.:<http://www.thelmolins.com.br>.
67
desnuda. São palavras eternas desse ser divino que se renova e se multiplica
indefinidamente, espalhando sua arte e sabedoria por todos os corações. Por todos os
mundos.
Consideramos de grande qualidade
84
as composições musicais de todo o álbum
85
, tanto
no aspecto da melodia quanto no âmbito do acompanhamento, geralmente ao som do piano e
do violoncelo. Todavia, há que destacar o “Cântico XXIII”, cuja interpretação de Nana
Caymmi duplica o lirismo dos versos de Cecília.
A serenidade das vozes de Thelmo Lins e Wagner Cosse, nos momentos da recitação
poética, parece guiar-se pelas orientações da própria Cecília Meireles, uma vez que esta,
conforme salienta o poeta Ruy Afonso Machado, no artigo “Cecília, amiga” não apreciava
certas leituras que pudessem afetar a melodia do poema, como acontece com certas
declamações: “A verdade é que Cecília tinha horror à declamação tradicional: àquela
justamente que é conhecida pelo nome de declamação. E que nada tem a ver com a arte de
dizer versos. Que ela os dizia de um modo muito simples (MACHADO, 2007, p. 285, 286).
A recitação com arte, no entanto, Cecília Meireles muito admirava, como expôs na
crônica “O Grupo Fernando Pessoa”:
Que estes jovens se agrupassem para assim fazerem presente o Trovador partido,
que lhe acordassem a voz não é fácil dessas solidões ocultas, já seria motivo de
admiração; porque hoje é natural dos jovens esquecerem prontamente, e a tendência
dos tempos é a de serem não volúveis, mas também superficiais. Mas o que
assombra não é que venha esse Grupo a dizer em voz alta os poemas de Fernando
Pessoa: é que por toda parte se manifeste o interesse de ouvi-los, e que os auditórios
se detenham atentos, sensíveis à sua palavra, que nem sempre se imaginaria o
comunicável.
(...) Pois o Grupo Fernando Pessoa arriscou-se (...) a dizer em voz alta o que antes se
lia e se ouvia como em sonho. E o êxito dessa tentativa parece provar que,
paradoxalmente, a genialidade é simples e compreensível. Que uma espécie de
magia na genialidade, que abre, de repente, um clarão, diante de si, deixando que a
essa luz o espírito se revele. Nesse instante, a essa claridade, artista e auditório
participam de um conhecimento maravilhoso e profundo. Pode ser que depois a
“iluminação” desapareça, mas a Poesia terá cumprido uma de suas finalidades, nessa
instantânea, ainda que efêmera penetração (MEIRELES, 2005, p. 73, 74).
84
São peças que apresentam um modelo de dicção convincente, segundo acepção de Tatit (2002) e
potencializam os afetos dos poemas, apresentando arranjos bem elaborados
85
O álbum Cânticos intercala poemas musicados e poemas recitados, num total de vinte e nove composições.
Entre os poemas musicados, estão: “Dize”, peça que faz a abertura da coletânea e os Cânticos I, IV, VI, IX, XI,
XIII, XIV, XV, XIX, XXI, XXIII, XXIV e XXVI; ordem preenchida com os cânticos recitados.
68
Esses tipos de eventos poéticos que iluminam o espírito da plateia para receber a
poesia, juntamente com o trabalho de recriação poético-musical do poema por um número
cada vez mais crescente de compositores e intérpretes, especialmente brasileiros, têm
contribuído sobremaneira para “aumentar o público ouvinte [e leitor] de poesia”, como
destaca Thelmo Lins, na entrevista concedida ao suplemento literário Cultura MG, intitulado
“A música dos poetas”.
86
2.2.3 As musicalidades da infância em Ou isto ou aquilo
A tematização do universo infantil é
acompanhada de recursos formais
extremamente sedutores, em fanopéias (...);
seus versos são igualmente preciosos pela
utilização de elementos sonoros, que retomam
a origem primeira da Lírica, quando os poemas
eram feitos para serem cantados.
Hebe Lima.
O livro Ou isto ou aquilo (1964), composto de 56 poemas, agrupados em duas
partes
87
, constitui a mais importante obra ceciliana destinada às crianças. Com ela, Cecília
Meireles, juntamente com outros escritores, como Henriqueta Lisboa, Manuel Bandeira,
Vinícius de Moraes, Sidônio Muralha, Sérgio Capparelli e José Paulo Paes, ajuda a
consubstanciar uma poética infantil, consonante com os novos ideais de infância e de
educação, propugnados, notadamente, pelos escolanovistas
88
e com as primeiras
86
Disponível em: <http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/suplementoliterario/File/slmg-julho-07(1).pdf>
87
Na publicação inicial de Ou isto ou aquilo, em 1964, pela editora Giroflê, a obra continha apenas vinte
poemas, relativos à primeira parte do livro. Publicado postumamente, em 1969, pela Editora Melhoramentos,
com o título Poesia: Ou isto ou aquilo & inéditos, a obra passou a ter 56 poemas.
88
Os escolanovistas se voltam contra a ideia de que a criança é um ser sem linguagem e sem conhecimento ou
um adulto em miniatura, concebendo-a em seu desenvolvimento psicológico e modo especial de interagir com o
mundo, e sua capacidade de vivência criativa, especialmente nos domínios do mundo imaginário. Conforme
Silva (2008, p. 65), “Cecília adotou, como escolanovista que foi, sua concepção de infância a partir do
pensamento do filósofo americano John Dewey, o qual, na obra A Escola e a Sociedade (1899), amplia a
questão, afirmando que as necessidades psíquicas da criança devem ser entendidas a partir do que a criança é e
não do que ela será. Logo, a criança
como aluno, necessita ter sua individualidade preservada por cuidados e
educação especiais que respeitem o seu processo de desenvolvimento”.
69
manifestações da lírica infantil, ligadas aos brinquedos cantados. Trata-se de uma arte que, no
geral, tematiza o cotidiano da criança, envolto de brincadeiras e dos elementos da fauna e da
flora brasileira, situados, quase sempre, em circunstâncias permeadas de humor, numa
representação que não idealiza a infância como a etapa da vida, associada sempre à bondade e
à perfeição.
Nesse novo modo poético de falar à infância, o escritor, de um modo geral, não
assume posturas moralizantes, como era dominante no contexto brasileiro até a década de 60,
nem se rende a objetivos pedagógicos, didatizantes, que subjugam o estético. A poesia é,
antes de qualquer coisa, concebida como arte, “objeto que provoca emoções, prazer ou
diverte e, acima de tudo, modifica a consciência de mundo de seu leitor” e somente por
questões de destino, no sentido de dirigir-se a um público em formação, situado na idade de
melhor aprendizagem, a infância, ou quando é usada como “instrumento manipulado por uma
intenção educativa, ela se inscreve na área pedagógica”, conforme Nelly Novaes Coelho
(2000, p. 46).
No caso de Ou isto ou aquilo, o estético se tece, especialmente em diálogo com a
tradição literária ocidental, como acontece com toda a produção literária ceciliana, sobretudo,
através das formas e dos metros poéticos populares e eruditos, afinado com o diapasão do
experimentalismo e das inovações modernistas, centrados, notadamente, nos recursos da
melopéia e da fanopéia, os quais fazem a sua obra ser intensamente musical e plástica, e de
grande aceitação junto às crianças, numa identificação que se estende para além da
tematização da infância, de suas brincadeiras e de seu modo de percepção e interação com o
mundo.
A identificação da criança com a obra ceciliana efetua-se também pela forma poética,
uma vez que os poemas de Ou isto ou aquilo constituem brinquedos, jogos verbais que põem
em destaque o lado sonoro dos signos, numa perspectiva lúdica, que, muitas vezes, leva o
leitor “ao puro deleite de simplesmente incorporar-se, despreocupado, ao comboio de sons e
cores” (LIMA, 1998, p.28), como ocorre em “A avó do meninó”, “Jogo de bola”, “As duas
velhinhas”, “A bolha”, “Colar de Carolina”, “A folha na festa”, “Canção”, etc., e a interagir
com o humor, adotado no tratamento do tema, como sucede com os poemas “A Chácara do
Chico Bolacha”, e “A língua do Nhem”, entre outros.
A natureza lúdica da poesia de Cecília Meireles denota vínculos com a tradição,
encontrando respaldo, conforme Inês Cavalcanti (2007), na poesia circunstancial portuguesa,
70
cultivada em serões da corte e coligida no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516).
De caráter pragmático ou lúdico, essa poesia nutre-se do cotidiano, ligando-se às diversas
circunstâncias da vida, e, diferentemente, da poesia lírica e épica, não reivindica “para si o ser
profunda”. Antes, se define como jogo, essencialmente lúdico, no qual “se inserem
brincadeiras de todo tipo” (CAVALCANTI, 2007, p. 202).
O atributo de poesia profunda, por sua vez, é encontrado na outra face de Ou isto ou
aquilo, através de poemas líricos de expressiva beleza, celeiros dos desejos, das lembranças e
das ideias de um eu-lírico, ora inserido em circunstâncias do cotidiano, ora incluído nas
realidades do homem universal, abordando temáticas variadas que se coadunam com os temas
recorrentes em sua lírica geral, especialmente, ligados à transcendência, à plenificação e ou à
efemeridade. Entre esses poemas, destacamos: “O último andar”, “Figurinhas (II)”, “As duas
Velhinhas”, “Os carneirinhos”, “O menino azul” e “O vestido de Laura”.
Nesses poemas líricos e naqueles de natureza lúdica ressoam e entrecruzam-se vários
tipos de musicalidades, que vão ao encontro do gosto estético das crianças, especialmente, por
estar presentes nos brinquedos poéticos da infância. Por questões didáticas, classificamos
essas musicalidades em dois grupos: a música de palavra e/ou verbal
89
, e a música encantada,
profunda em beleza e emoção, e a partir delas, selecionamos alguns poemas de Ou isto ou
aquilo, para objeto de análise.
Com as análises dos poemas, objetivamos desvelar algumas significações que
guardam os poemas de Ou isto ou aquilo, apesar de alguns trabalhos significativos já terem
sido produzidos sobre eles, especialmente o de Glória Pondé (1982), Bordini (1991), Luis
Camargo (1998) e Glória Kirinus (1999).
2.2.3.1 A música de palavra e a música verbal
A música de palavra, categoria semiótica voltada para a qualidade acústica dos sons, é
um tipo de musicalidade presente, especialmente, nas formas poéticas simples, como as
parlendas, em que predomina a brincadeira com as potencialidades sonoras e rítmicas da
89
As categorias “música de palavra” e “música verbal” são abordadas por Solange Ribeiro (2002), a partir dos
estudos de Steven Paul Scher (1981).
71
linguagem. É a Lírica recorrendo “a Mnemosyne através da insistência do som, do ritmo e da
musicalidade”, como forma de se proteger do esquecimento (Lethe) (LIMA, 1998, p. 19).
No livro Ou isto ou aquilo, Cecília Meireles prioriza esse tipo de musicalidade, em
consonância com o que sugere Trevisan (1993, p. 44), quando diz que as crianças
compreendem a poesia como “uma espécie de palavras com música, ou músicas de palavra”,
através de seu caráter melopéico. Essa ideia encontra respaldo na Estética de Hegel (1964),
especialmente, no momento em que o poeta e filósofo alemão destaca o metro e a rima como
representantes do primeiro “halo sensível” da poesia, elementos considerados tão
fundamentais à arte poética a ponto de, em muitos casos, ter primazia sobre a “dicção
figurada” (HEGEL, 1964, p. 112).
Para Cecília Meireles esse tipo de musicalidade constrói a particular língua do eco,
conjugada na poesia e na fala da escritora, especialmente, no contato com sua neta
Fernanda
90
, com quem pôde dividir algumas alegrias da poesia e da infância:
A voz [da avó Cecília] tinha uma ressonância como tem a voz dos bons atores de
teatro. Ondulava as palavras e alongava os sentimentos. Ecoava pelo ar, brincava
com meus ouvidos. As palavras brincavam com outros sons semelhantes e os
sentidos mudavam. Por exemplo: concordas ou sem cordas? As rimas eram
freqüentes em nossas conversas e chegavam ao meu ouvido como uma conversa de
som de eco... Era preciso pensar rápido, quando se falava com a Vovó, porque cada
palavra subseqüente era semelhante, mas não era a anterior. Ela estava
comunicando algo, era preciso estar atenta, embora isso me fizesse rir, por ser
sempre assim, divertido. As brincadeiras incluíam uma graça muito delicada e
davam muito prazer (DIAS, 2002, p. 354).
Nos poemas de Cecília Meireles, o encanto produzido pelas “sonoridades melódicas
da rima” e pela “seqüência rítmica dos versos” não se tece de modo aleatório, todavia, está a
serviço dos “melhores sentimentos” e “representações mentais”, de modo a elevá-los,
entrando em sintonia com o que diz Hegel, ao destacar que, “de uma maneira geral, o
verdadeiro talento artístico move-se de encontro aos seus materiais sensíveis para os vencer,
90
Quando Cecília Meireles faleceu, Fernanda Correia Dias tinha quase oito anos. Alguns poemas de Ou isto ou
aquilo foram inspirados na própria vivência da neta, para quem Cecília dedicou o livro. Entre esses poemas estão
“A bailarina”, “O colar de Carolina” e “Ou isto ou aquilo”. Cf.: Dias (2002, p. 347-358).
72
como num elemento que, em vez de o travar ou oprimir, o eleva e ajuda” (HEGEL, 1964, p.
115).
Esses elementos sensíveis que transportam “tanto o poeta como o auditor a uma esfera
de serena beleza” e que devem ser tratados com atenção, como ocorrem com os elementos
sensíveis nas outras artes, é um expediente regulador, e a função do poeta consiste “em
introduzir a regularidade, em impor limites sensíveis às palavras, em dar contornos mais
firmes e, por assim dizer, um quadro sonoro às suas concepções e à sua estrutura e beleza
sensíveis” (HEGEL, 1964, p. 116).
Disto decorre que a rima e a métrica, antes de se pautar pelo princípio do
derramamento, são elementos de limitação e de harmonização do poema, na medida em que a
partir delas se inserem, no texto, as palavras eleitas, para uma dada situação comunicativa,
dentro de certo âmbito sonoro, complementando o sentido do verso, em sintonia com as
demais estruturas textuais e outros recursos estilísticos, sendo indicativo também de valor
estético, na medida em que nos faz entender que estamos nos domínios da poesia e não dos
gêneros prosaicos e cotidianos.
É mais uma vez Hegel que fundamenta essa ideia ao dizer que “a rima fornece
pensamentos, propicia a procura-em-volta nas representações, para elaborá-las” (apud
WERLE, 2005, p. 165-166), enquanto os metros, como o compasso na música, fornecem
modelos que delimitam a estrutura rítmica, em consonância com a natureza semântica do
poema, servindo, inclusive, para traduzir o seu “tom geral” e seu “sopro espiritual” (HEGEL,
1994, p. 117).
Além disso, como destaca Braulio Tavares, o uso da regularidade métrica, desde os
tempos primitivos, criando “um ritmo musical com a simples alternância de sílabas fortes e
sílabas fracas”, sem o apoio da melodia ou de instrumentos, “ajudou a criar nos poetas e nos
leitores um senso” de musicalidade rítmica (TAVARES, 2005, p. 50).
A regularidade sempre foi um dos atributos imprescindíveis à poesia, sendo
considerada um componente da própria arte, presente, especialmente, na poesia e na música.
Nesta arte, ela se realiza, notadamente, mediante o princípio do compasso, das cadências
harmônicas em torno da tônica da tonalidade
91
, etc, e na poesia, por diversos fatores similares,
91
A tônica constitui o primeiro grau ou o primeiro acorde da tonalidade, para o qual convergem os outros
acordes. Em Maior, por exemplo, o acorde de tônica é o próprio acorde de Maior: DÓ-MI-SOL. Além
dele, há outros seis graus: o II, o III, o IV, o V, o VI e o VII. Entre esses, os mais empregados são o I, o IV e o V,
73
entre eles, os rítmico-sonoros. Nos poemas de Ou isto ou aquilo, a regularidade se manifesta
em situações variadas, seja no movimento de retorno dos versos e das estrofes, na repetição de
palavras, sintagmas, versos e estrofes, seja na recorrência das rimas, no paralelismo estrutural
ou semântico e no emprego dos metros, todos em convergência para a musicalidade do
poema. Entre esses elementos de regularidade, a rima e a métrica são os mais evidentes em
todos os poemas, especialmente naqueles em que Cecília trabalhou com uma única
metrificação, como em “Os carneirinhos” e “O eco”, “As duas velhinhas”, poemas em
redondilha maior; “Canção de Dulce”, em redondilha menor, “A língua do nhem”, em
hexassílabo, e “Figurinhas (II)”, em decassílabo.
Os metros na poesia, segundo Hegel, também podem ser submetidos à lógica do
compasso musical, reforçando as afinidades entre música e poesia, artes que têm em comum
“a duração e a medida do tempo”. Enquanto o compasso na música é o apoio do som,
elemento evanescente, na poesia, esse apoio é conseguido pela dinâmica das métricas dos
versos, suas acentuações e cesuras, e na própria linguagem e suas “representações e
sentimentos que exprime”, sugerindo situações de abrandamento e aceleração, “marcha
contínua ou hesitante” (HEGEL, 1964, p. 123).
Já “a música verbal” diz respeito à interação entre literatura e música através da
evocação no texto literário de formas musicais, como destaca Ribeiro (2002, p.48). É o que
ocorre quando encontramos equivalências entre os poemas infantis de Cecília Meireles, os
acalantos e as brincadeiras de roda, entre outros brinquedos cantados. Esses textos poéticos
cecilianos se constroem na confluência entre a música verbal e a sica de palavra,
sintonizadas com as sugestões de sentido dos poemas. É o que objetivamos mostrar através
das análises de oito poemas de Ou isto ou aquilo.
“Passarinho no sapé”
O poema “Passarinho no sapé” apresenta bastante semelhança com as formas da
adivinha e da parlenda, na medida em que desafia o leitor na sua realização oral e constitui
uma brincadeira em torno do desenho da letra “P” e suas possibilidades de correlação com a
forma de alguns animais:
respectivamente, a nica, a subdominante e a dominante. No geral, numa composição musical
tonal,
inicia-se com a tônica, usam-se outros acordes, concluindo a música ou a frase com o retorno à tônica.
74
Passarinho no sapé
O P tem papo,
o P tem pé.
É o P que pia?
(Piu!)
Quem é?
O P não pia:
o P não é.
O P só tem papo
e pé.
Será o sapo?
O sapo não é.
(Piu!)
É o passarinho
que fez seu ninho
no sapé.
Pio com papo.
Pio com pé.
Piu-piu-piu:
Passarinho.
Passarinho
no sapé.
(MEIRELES, 2001, p. 1495)
92
O tom de brincadeira perpassa todo o poema: primeiro, através da sugestão visual da
letra “P”, cuja parte superior e protuberante mantém semelhança com um papo de passarinho
ou de qualquer outra ave e animal de papo, enquanto a parte inferior representa o pé; segundo,
pela relação metonímica, numa representação da parte pelo todo, entre a letra “P” e sua
referência a alguns contextos de uso, como em “sapo” e “passarinho”, signos linguísticos que
possuem o “P” e que mantêm associações com os animais representados, na medida em que
estes possuem papo.
Cogita-se, então, que a letra “P” guarda relação direta com o objeto representado.
Logo, se “O P tem papo, / o P tem pé”, possivelmente, é ele quem pia. Essa assertiva, porém,
é imediatamente negada nos versos seguintes: “O P não pia: / o P não é. / O P tem papo / e
pé”, sugerindo a ideia de que o “P” é apenas um desenho inanimado. Sendo assim, o enigma
92
Todas as citações dos poemas de Ou isto ou aquilo têm como referência a edição de 2001, da Poesia completa,
de modo que, nas próximas citações da obra, nos limitaremos a fazer menção à página.
75
mantém-se mais um pouco, fazendo progredir a brincadeira de perguntas e respostas: “Será o
sapo? / “O sapo não é. / (Piu!)”.
Finalmente, a incógnita é resolvida, quando o eu enunciativo, acabando, de uma vez
por todas, com qualquer possibilidade de manter a pergunta suspensa, revela: “É o passarinho/
que fez seu ninho/ no sapé”. Para o arremate do poema, entra em cena um novo jogo lúdico,
em torno das palavras centrais do texto, “pio”, “papo”, “pé”, “piu”, “passarinho”, “sapé”: “Pio
com papo./ Pio com pé. / Piu-piu-piu:/ Passarinho./ Passarinho / no sapé”.
Em termos de musicalidade, notamos que o poema apresenta rios expedientes, dos
quais destacamos, inicialmente, o paralelismo estrutural, evidente ao longo do poema. Este
recurso está presente no início dos versos, com a estrutura “O P tem papo” / “O P tem
papo” e “o P não é” / “O sapo não é”, manifestando-se também na repetição de formas
lexicais, como “(Piu!)” (2x), “pio” (2x), “pia” (2x), “papo” (3x), “sapo” (2x) “pé” (3x),
“Passarinho” (3x), “no sapé” (2x), garantindo o retorno da música do poema e sua fixação na
memória do leitor.
Em “Passarinho no sapé”, o paralelismo também se realiza, no âmbito da rima, através
do emprego de três sonoridades finais nos versos: a primeira, fazendo ressoar o fonema /ε/ das
palavras “pé”, “é” e “sapé, respectivamente, no segundo, quinto, sétimo, nono, décimo
primeiro, décimo quinto, décimo sétimo e vigésimo primeiro versos, com dez ocorrências; a
segunda, aproximando as palavras “sapo e papo”, e a terceira, mantendo o eco entre as formas
“passarinho” e “ninho”. Com exceção do último caso, que, por sua vez, possui pouca
evidência no poema, as rimas veiculam sonoridades abertas, compatíveis com o espírito
lúdico do texto.
As aliterações também contribuem para a riqueza da musicalidade do poema, através
das palavras que contêm /p/, som que aparece 31 vezes no texto. Com menos frequência que
esse fonema bilabial, aparece o sibilante /s/, dez vezes, em palavras como “sapo”, “será”,
“passarinho”, “fez”, “seu”, “sapé”, incluindo as repetições. A predominância do primeiro tipo,
além de estar em associação com os animais referenciados, “passarinho” e “sapo”, numa
relação metonímica, como dissemos, pode associar-se ao caráter de segmentação dos sons e a
tematização
93
do conteúdo, compatível com a natureza objetiva do discurso, tornando o ritmo
93
Na canção, a tematização se quando a composição investe no caráter segmental da linguagem, através da
subdivisão das figuras rítmicas, em consonância com a natureza do que é dito, ou seja, com a tematização de
algo que é exterior ao eu da enunciação, conforme Tatit (2002, p. 22). A essa categoria, voltaremos no terceiro
capítulo, quando analisamos alguns poemas de Ou isto ou aquilo, a luz da semiótica, aplicada à canção.
76
mais ágil. No poema, o eu da enunciação é apenas um narrador de algo que observa e conta
sem imbricações subjetivas, a partir de um discurso que se apresenta sob a modalidade do
fazer, da ação (TATIT, 2002, p. 22), conjugando mais a segmentação dos sons, que seu efeito
de continuidade. Daí, o caráter temático e o ritmo acelerado do poema, construído,
preferencialmente, a partir de unidades rítmicas de menor duração, como a de ½ e a de ¼ de
tempo, num compasso binário simples, por exemplo. De acordo com Glória Bordini (1991, p.
63), esse aspecto musical é recorrente nos poemas destinados às crianças pequenas, como
acontece com os brinquedos sonoros, sobretudo, as parlendas, que no geral, se estruturam a
partir de um ritmo acelerado, principalmente, o sincopado.
Todos esses recursos linguísticos produzem vários efeitos de eco no poema, para os
quais concorrem outros procedimentos formais, regidos pelo principio da economia
linguística. Entre eles, ressaltamos as variações mínimas de sons entre as palavras: “sapo” e
“sapé”; “sapo” e “papo”; “pia”, “pio” e “piu”, e a técnica do desencaixe, em que uma palavra
parece ter sido retirada de outra, como ocorre com “sapé” e “pé”, espécie de “rima coroada”
(D’ONOFRIO, 2007, p. 192), bastante empregada na poesia infantil de Cecília Meireles.
No que concerne à estrutura rítmica do poema, notamos que os versos se movimentam
a partir do compasso binário,
94
dividido em dois tempos ou duas pulsações, acomodado em
torno das acentuações das sílabas dos vários tipos de metros, os quais oscilam entre o
monossílabo e o pentassílabo, no geral, regulares entre si: os dois pentassílabos exibem a
cadência “di-DUM-di-di-DUM”, com acentuação na segunda e quarta sílabas; os oito
tetrassílabos possuem, preferencialmente, o ritmo “di-DUM-di-DUM”, acentuados na
primeira e quarta silabas; os sete trissílabos apresentam-se sob a estrutura rítmica “DUM-di-
DUM” ou “di-di-DUM”, com apoio acentual na primeira e ou terceira labas, etc. A mistura
e a reiteração dessas cadências, incluindo a estrutura dos dissílabos e dos monossílabos,
propiciam uma musicalidade particular ao poema, no âmbito do ritmo.
A realização das cadências rítmicas em “Passarinho no sapé” se acomoda bem ao
movimento do compasso binário
95
, como podemos perceber na representação que fizemos
para os cinco primeiros versos:
94
O nosso caminhar é regido pelo ritmo binário, na alternância entre uma pulsação mais forte, a primeira, e uma
mais fraca, a segunda: 1,2, 1,2, 1,2...
95
Segundo Macambira, “A cadência do verso português também é binária, não exatamente como o ritmo do
vocábulo, porém conforme a teoria musical, onde se denomina dois por quatro, em oposição ao compasso
ternário, isto é, ao compasso três por quatro” (MACAMBIRA, 1983, p. 13).
77
__ __ __ / __ __ __ __ /__
2 / 1 2 / 1
O P tem pa – p’o, P tem pé,
__ __ __ /__ __ __ __
2 / 1 2
Éo P que pia? x x
__ __ ___ / __ __ __
1 2 / 1
(Piu!) x Quem é? x x
96
A parte final, por sua vez, se movimenta do seguinte modo:
__ __ /__ __
2 / 1
Pio com pa- po.
__ __ / __
2 / 1
Pio com pé.
__ __ /__ __ __ __ /__ __
2 / 1 2 / 1
Piu-piu-piu: x Pa-ssa- ri - nho
__ __ __ __ __ __ /__
2 / 1
Pa- ssa- ri- nho no sa- pé.
97
Esse procedimento de distribuição rítmica das sílabas e dos versos no compasso era
comum entre os poetas antigos que batiam o ritmo dos versos, com o pé, marcando a sua
acentuação, como lembra Macambira (1983, p.15). Desse movimento de levantar e descer o
pé, advém a noção de arse, para a parte fraca/breve e tese para forte/longa e a concepção de
anacrusa ou anacruse para designar o ritmo em que a arse acontece antes da tese. É o que
ocorre em “Passarinho no sapé” e em outros poemas de Ou isto ou aquilo, que se estruturam a
partir do compasso binário e se iniciam no tempo fraco do compasso, isto é, as acentuações
dos versos ocorrem da segunda sílaba em diante, principalmente no verso inicial. Esses
fatores de musicalidade sinalizam para a herança popular na obra infantil ceciliana,
assimilada, especialmente, da estrutura das cantigas de roda, gênero que utiliza,
preferencialmente, essas modalidades rítmicas.
96
Nessa representação rítmica, a sílaba acentuada/forte do verso cai no primeiro tempo do compasso, o tempo
forte, enquanto as outras sílabas incidem sobre o tempo fraco, como se dá na composição musical; a ausência de
som, por sua vez, é simbolizada pelo “x”.
97
A pausa não ocorre em todos os finais dos versos, de modo que alguns deles formam um único bloco rítmico-
sonoro, entoado num só fôlego, como é o caso dos versos 1, 2 e 3.
78
Na execução oral do poema, seja recitado ou cantado, esses e outros elementos de
musicalidade podem funcionar como princípios orientadores do dizer, sugerindo situações de
andamento às sequências do poema, que vão do allegro ao moderato ou ao adágio, entre
outros, e realizações melódicas, captadas do modelo de entoação dos versos e de outros
segmentos.
Para tanto, o leitor precisa estar atento às sutilezas da organização rítmica e
entoacional do texto, observando, entre outras coisas, a melodia das frases, reveladas
especialmente pela intenção comunicativa de cada uma e do poema como um todo, e pela
pontuação, reconhecendo também “que sílabas devam merecer maior apoio do sopro vocal e
que labas devam rolar vibráteis e brandas pelo intervalo que separa os momentos fortes do
período (BOSI, 1997, p. 87).
No que tange ao poema “Passarinho no sapé”, ao observarmos a sua realização métrica
e o predomínio de dois tipos de cadências, “di-DUM-di-DUM” / “di-DUM-di-di-DUM” (10
x) e “DUM-di-DUM” / “di-di-DUM (7x), com acentuações, no primeiro caso, nas sílabas e
4ª, e no segundo, na e ou, simplesmente, na sílaba, elas nos sugerem a realização de
dois tipos de musicalidade rítmica que podem ser levadas em consideração na leitura oral do
poema: a primeira, referente ao primeiro tipo de acentuação, predominante no texto, do ao
15º verso, e a segunda, relativa à acentuação dos trissílabos, nos seis versos finais do poema.
Em outras palavras, o leitor pode efetuar andamentos diferentes para as duas partes do poema,
primeiramente um andamento lento, como o moderato, e, por último, um rápido, como o
allegro, sem esquecer as nuanças da entoação e de fazer a adequação entre esses tipos de
musicalidade, o sentido do texto e, conforme Bosi (2003, p. 468), as “modalidades afetivas da
expressão”, isto é, o tom o poema.
98
Se prestarmos atenção as três modalidades de entoação do poema, a primeira, referente
aos versos iniciais, equivalente à proposição do enigma, a segunda, situada entre os versos
que revelam o enigma, e a terceira, referente aos seis versos finais, que fazem o arremate
lúdico do poema, notamos que há três modelos de dicção diferenciados para cada parte, que
podem ser valorizados na realização oral do poema. A segunda parte, por exemplo, se destaca
da primeira, pelo seu caráter de deslumbramento e de descoberta do segredo, podendo ser dita
num rallentando; a última parte, pelo tom lúdico que aproxima o poema da parlenda, pode
98
Sabemos que nem sempre é fácil perceber esses elementos e fazer o enlace entre eles, tarefa que exige, no
geral, uma vivência mais demorada com o texto e, consequentemente, várias releituras. Além do mais, quando se
leva em conta, como lembra Pinheiro (2008, p. 24), o fato de que nossa tradição brasileira de leitura oral está
ligada ao “tom retórico-parnasiano”, “modelo declamatório, que reduz qualquer poema ao mesmo padrão de
leitura”.
79
ser realizada de forma rápida. Assim, teríamos não apenas duas, porém três propostas de
musicalidades para o poema.
Extrapolando essas três propostas, o leitor também poderia levar em consideração as
diferentes vozes sugeridas pela leitura do poema, como aconteceu com a interpretação do
poema e sua musicalização por algumas crianças da nossa experiência de campo
99
. Essas
vozes são a do narrador, a do passarinho e a do sapo. A voz do passarinho compreende os
versos limitados pelo parêntese, isto é, a onomatopéia (Piu!)”; a fala do sapo é a voz que
dialoga com o passarinho, mediante o verso “Quem é?”, e com o narrador, através da fala, “O
sapo não é”, enquanto a voz do narrador ficaria no limite entre as duas vozes.
Essas possibilidades de interpretação da musicalidade de “Passarinho no sapé” podem
ajudar, consoante Bosi (1997, p. 86), a tecer “a empatia entre o leitor e o texto”, dando
evidência ao poema como a festa da linguagem, numa primazia do lúdico e dos recursos de
musicalidade sobre as potencialidades de significância da linguagem, afinal, nesse poema,
tudo converge para a melopéia e para a fanopéia, costuradas com a linha do lúdico: esse foi o
modo ceciliano de carregar a linguagem ao máximo possível, conforme a acepção de Ezra
Pound (2003).
“A folha na festa”
A natureza lúdica e musical verificada em “Passarinho no sapé” encontra-se na
estrutura da maioria dos poemas de Ou isto ou aquilo, especialmente em “A folha na festa”,
texto, que tem por temática a festa da flor giesta, que é celebrada, no dia de maio, em
algumas cidades de Portugal e da França, e de outros países da Europa, em comemoração à
festa de Pentencostes, evento cristão, ou em celebração à primavera e à fertilidade agrícola,
como o fora nos tempos antigos. Nessa data, todas as ruas, casas, portas e janelas das
pequenas cidades se enfeitam com os ramos e flores da giesta
100
e o povo festeja com música
99
Esse poema foi musicado na experiência de leitura que realizamos com crianças do ao ano, numa escola
pública municipal de Fortaleza, experiência descrita e analisada na terceira parte desta tese. As crianças
ofereceram ao poema uma leitura cantada, em que a primeira parte é mais lenta e a segunda, mais ágil. Ambas
têm melodias diferentes, estruturadas a partir do compasso binário, numa cadência em anacruse. Vide anexo 3.
100
A giesta é uma flor nativa de Portugal, de uma planta arbustiva que mede “de 1 a 3 metros de altura, com
ramos abundantes, estriados e flexíveis”, cujas folhas produzidas “na base dos ramos” m vida curta, caindo
logo. Trata-se de uma flor solitária “com lice em forma de campânula, cinco pétalas, amarelas, de grande
80
a data. Em Luxemburgo, desde 1948, o amor dispensado à natureza e à vila onde moram, e a
paixão cultuada pela música fazem com que os moradores de Wiltz vistam a sua vila de giesta
amarela e de alegria, para festejar, com dança e música, o Penteconste.
101
Em alguns locais de
Portugal, essas celebrações também acontecem, ainda hoje, notadamente nos vilarejos e
aldeias do Minho, Douro, Açores e Trás-os-montes, entre outros. Esse fato histórico pode ter
servido de motivação para a escrita do poema “A folha na festa”, de Cecília Meireles:
A folha na festa
Esta flor
Não é da floresta.
Esta flor é da festa,
Esta é a flor da giesta.
É a festa da flor
E a flor está na festa.
(E esta folha?
Que folha é esta?)
Esta folha não é da floresta.
Esta folha não é da giesta.
Não é folha de flor.
Mas está na festa.
Na festa da flor
Na flor da giesta (p. 1503).
“A folha na festa”, diferentemente de muitos outros poemas do livro Ou isto ou aquilo,
se afasta do cotidiano das crianças brasileiras, na medida em que elege como temática a festa
da giesta, algo, praticamente, desconhecido na cultura brasileira, tanto no que tange à
especificidade da flor, nativa de Portugal e desconhecida entre nós, quanto em relação à festa
religiosa. No entanto, isso pouco importa, porque a comunicação que o poema trava com o
leitor infantil se faz pelas vias do lúdico, na festa dos sons, e isso a criança interage com
facilidade e prazer. Assim sendo, a despeito do conhecimento histórico e cultural que o poema
tamanho (...). No norte de Portugal, é tradição exibir um ramo de giesta no dia de Maio, alegadamente como
proteção contra o carrapato (identificado com o demónio ou com o mau-olhado). Por essa razão a planta é
também conhecida como maia”. Cf. <www. Cestas.flores.nom.br/flores/flor_giesta.htm>.
101
Cf.www.geenzefest.lu/fr/accueil/festa-da-giesta/
e <www.portugal_on-line.com/tradições
p
ortuguesas.../
festa_ das_maias_t471.htm_portugal> e
<
http://www.cm-mirandela.pt/index.php?oid=3810>
81
remete e que a criança desconhece, o texto é recebido por ela como uma brincadeira com a
rima e com outros elementos do estrato sonoro do poema, como o são os brinquedos sonoros
da tradição.
“A folha na festa” se constrói, praticamente, nas limitações da rima em “esta”, que
aparece em 11 dos 12 versos, totalizando 19 ocorrências, ora no início ou meio do verso, ora
no fim. Outros recursos de linguagem somam-se à rima, tecendo a música da festa da giesta,
dos quais ressaltamos a relação metonímica em flor/floresta, numa valorização da técnica do
encaixe/desencaixe entre as palavras; a repetição de palavras, como flor (6x), folha (5x), festa
(3x) floresta (2x), giesta (3x) e a repetição de estruturas paralelas, como “Esta flor / não é da
floresta”, “Esta folha não é da floresta” e “Esta folha não é da giesta”; “Esta flor é... /Esta é a
flor...” etc.
Ainda no campo sonoro, percebemos que predominam, no poema, os sons abertos e
semiabertos - /a/, /ã/, /ε/ e /o/-, aparecendo 63 vezes, em contraste com os sons fechados e
semifechados /ê/ /i/, /ô/, que têm 17 ocorrências. Isso contribui para uma sonoridade mais
aberta, compatível com o sentido festivo do poema.
No âmbito da métrica, o poema não possui, a priori, regularidade, uma vez que os
versos apresentam várias medidas, fato que faz variar bastante a musicalidade rítmica do
poema, cujo elemento de apoio se através do paralelismo estrutural, princípio regulador da
variação no texto, juntamente com a rima, que também é uma espécie de sonoridade paralela.
No entanto, ao observarmos a cadência rítmica dos versos, a partir da acentuação das sílabas,
notamos que prevalece a regularidade, embora, em alguns casos, nem sempre haja
compatibilidade entre a posição das sílabas acentuadas em metros de mesma medida. Os
trissílabos, por exemplo, apresentam a mesma acentuação, localizada na laba; os
pentassílabos, embora possuam pequenas variações acentuais, têm os acentos regulares na 2ª e
sílabas; os hexassílabos, exibem dois tipos de acentuação, ora na e 6ª, ora na e
sílabas, enquanto os eneassílabos são regulares, com acentuação na 3ª, 6ª e 9ª sílabas.
ainda, no poema, outros elementos de compatibilidade métrica, evidentes, quando
se compara os versos que organizam seus acentos em blocos de três pulsações, como é o caso
dos dois eneassílabos, que têm a mesma acentuação do trissílabo “di-di-DUM”, como se
aquele repetisse três vezes o trissílabo: “di-di-DUM-di-di-DUM-di-di-DUM”. Ocorrência
semelhante se dá em dois dos quatro hexassílabos, que repetem o trissílabo duas vezes: “di-di-
DUM-di-di-DUM”, numa dinâmica que evidencia o movimento cíclico do poema, reiterado
82
pelo paralelismo que perpassa todos os versos, ajudando a fixar a música do poema na
memória do leitor, especialmente, quando se trata de poemas destinados às crianças, cuja
interação com os textos é facilitada pela repetição de estruturas.
Muitas vezes, os fatores de musicalidade do poema são captados de forma intuitiva
pelo leitor infanto-juvenil, como aconteceu em nossa experiência de campo, quando
trabalhamos a leitura do poema “A folha na festa”. Nessa experiência, uma das crianças de 08
anos criou uma melodia alegre para esse poema, aproximada do estilo das cantigas de roda
102
,
numa dinâmica que mantém a variação rítmico-melódica, proposta pela diversidade dos
metros, conjugada ao paralelismo da melodia e da letra, num predomínio da repetição e do
movimento cíclico. Trata-se de uma canção
103
com duas partes, a primeira do verso ao 6º e
a segunda do ao 14º, que mantêm entre si o mesmo perfil rítmico e melódico, sendo a
segunda a repetição da primeira. Ambas possuem duas partes menores, formadas a partir de
modelos musicais diferenciados.
Acreditamos que a aproximação do poema com a cantiga de roda, feita pela criança,
tenha sido suscitada tanto pela experiência do leitor como pelo próprio corpo do poema: pela
reiteração de estruturas rítmicas e sonoras, presente na realização da métrica dos versos, num
ritmo alegre e sincopado, no uso do paralelismo formal e das rimas, aliados à simplicidade da
linguagem e sua sugestão performática, traços comuns a esse brinquedo cantado, intuídos no
momento da leitura do poema.
“A avó do meninó”.
O poema “A avó do meninó” também possui estreita ligação com os brinquedos
cantados da infância, especialmente, as parlendas. Trata-se de um poema-brincadeira em
torno da rima “ó”, voltado para a temática da solidão na velhice, em sua relação com a
infância e o brincar:
102
Ao considerarmos que o poema A folha na festa” é um objeto lúdico destinado às crianças e que referencia
um fato realizado na conjugação entre canto e dança, a festa da giesta, a celebração da primavera ou do
Pentencoste, sua aproximação com as cantigas de roda se torna ainda mais convidativa, uma vez que, através
deste brinquedo cantado, a criança celebra a vida e sua natureza lúdica, preferencialmente, com canto e
coreografia.
103
A partitura encontra-se no anexo 3 deste trabalho.
83
A avó do meninó
A avó
vive só.
Na casa da a
o galo liró
faz "cocorocó!"
A avó bate pão-de-ló
e anda um vento-t-o-tó
na cortina de filó.
A avó
vive só.
Mas se o neto meninó
mas se o neto Ricar
mas se o neto travessó
vai à casa da vovó,
os dois jogam dominó (p. 1490).
Neste poema, em que a brincadeira é signo de interação, companheirismo e alegria,
tendo caráter suspensivo para a solidão, a velhice e a infância são concebidas de forma
positiva. Para o neto, a casa da avó representa sabores gostosos, como o de pão-de-ló, e de
belezas naturais, como o canto do galo liró e as aventuras do vento-t-o-tó, os quais se inserem
na casa, como espaço lúdico em que, até mesmo aos idosos, é concedido o direito de brincar
sem recriminações. A infância, por sua vez, é vista como a idade mais representativa do homo
ludens, sendo fonte de alegria, alimento necessário à harmonização da vida em qualquer
idade.
Disso decorre o caráter alegre do poema, a despeito da temática ligada à solidão na
velhice, fato secundado pelo predomínio de imagens solares no poema, associadas à
brincadeira com a linguagem, à significação positiva da casa da avó ou à aproximação entre
avó e neto, através do jogo de dominó. Concorrem, para tanto, a predominância de sons
abertos, sobretudo, o fonema /ó/ das rimas do poema, e a ocorrência de sons fricativos e
sibilantes, notadamente, o /v/ (11x), /f/ (2x), /s/ (13x), /z/ (2x) entre outros sons que sugerem
leveza e movimento.
Essa possível motivação sonora nos signos do poema, no entanto, não se sustenta por
si só, sendo significativa a partir do momento em que se relaciona com outros elementos ou
com o conjunto do texto. Isso ocorre devido ao caráter de arbitrariedade da linguagem, em sua
relação signo/objeto, de modo que podemos falar apenas muma motivação parcial e num
semi-simbolismo fonético, suscetíveis ao contexto de uso. Apenas em alguns casos como o da
onomatopéia, a equivalência é perfeita.
84
Ao discutir esse assunto, Bosi salienta que os fonemas têm “algo de camaleão; o
máximo que se pode dizer desse réptil furta-cor é que prefere, muitas vezes, o verde, pois
verde é a cor mais constante das folhas em que vive” (BOSI, 1997, p. 51). Algo semelhante
ocorre no poema quando o escritor opta em explorar certas sugestões semânticas e/ou
sensoriais dos sons, compartilhadas com outros poetas, ao longo dos tempos. Em
contrapartida, o poeta também é livre para tecer outros jogos, priorizando outras nuanças
fonéticas, afinal, como lembra Bosi, do espírito inventivo do escritor, a partir do material
fonético que a língua oferece, podem-se erguer “contextos tão variados e tão estimulantes que
arrancam os fonemas de sua latência pré-semântica e os fazem vibrar de significação” (BOSI,
1997, p. 51).
No caso do poema “A avó do meninó”, Cecília Meireles explorou certa latência pré-
semântica dos sons abertos, fricativos, laterais e vibrantes, entre outros, em virtude de sua
dequação aos semas solares do poema, ao movimento e à brincadeira, referenciados pelo
texto, fato que ganhou evidência, no corpo do poema, graças ao contexto de uso, junto ao
caráter lúdico do poema, à realização do ritmo e das figuras melódicas, como a rima em /ó/, a
aliteração em /v/, /f/, /s/, entre outros expedientes que, consoante o mesmo Bosi (BOSI, 1997,
p. 51), podem remotivar a atuação do som no signo.
No âmbito da rima e do metro, ainda outros recursos que desencadeiam o efeito de
eco no poema “A avó do meninó”. Entre eles, destacamos a repetição de estruturas
invariáveis: “A avó vive só” (2x) e a reiteração de estruturas paralelas, nas sequências: “Mas
se o neto meninó”; “Mas se o neto Ricardó”; “Mas se o neto travessó”. Além disso, há
recorrência de palavras de mesmo sentido, com variações mínimas, como em “avó/vovó”
(2x), havendo também a repetição de sintagmas, como “casa da avóe “casa da vovó” (2x).
Tudo isso contribui para fazer reverberar a sonoridade e os sentidos do poema.
No poema em referência, Cecília Meireles adota os modelos rítmicos da redondilha
maior e da menor
104
, fato sugestivo de que o texto apresenta uma musicalidade específica para
cada metro, e, consequentemente, para cada parte. Estas musicalidades podem ser percebidas
com a leitura oral do poema: os primeiros cinco versos, juntamente com o nono e décimo, por
serem mais curtos, podem ser lidos de modo mais lento, em contraste com os demais versos,
104
Tendo em vista a regularidade métrica e musical do poema nos domínios da redondilha maior ou menor,
consideramos os dois versos iniciais (“A avó/vive só”) e sua repetição, na segunda estrofe, como sendo um único
verso. Contribuiu para tanto, a realização oral do poema, cuja musicalidade soa melhor sem a cesura entre os
referidos versos. Além disso, ao realizarmos a junção, confirmou-se a acentuação do pentassílabo na 2ª e
sílabas poéticas, comum aos outros versos dessa medida.
85
em redondilha maior, como sugere Macambira (1983, p. 59). Essa dinâmica proporciona uma
maior regularidade rítmica ao poema, fazendo com que as cinco sílabas poéticas de um verso
em redondilha menor, ditas de forma mais lenta, preencham o tempo de duração das sete
sílabas da redondilha maior. É o que podemos constatar numa organização binária (1-2-1-2...)
dos versos, em que se ressaltam as sílabas acentuadas, do tempo forte do compasso - o
primeiro tempo ou sua primeira metade -, em contraste com as sílabas fracas dos segundos
tempos e da segunda metade do primeiro, como ocorre na música.
A redondilha menor tem a seguinte realização rítmica:
_ _ /_ _ _ /_ _ _ / _ _ _ _ / _ _ _ /_ _ _ /_ _ _ / _ _ _ / __
2 / 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1
A a- vó vi- ve só. x Na ca- sa da a vó x o ga- lo li- ró x faz co- co- ro- có!
A primeira sequência em redondilha maior, localizada na primeira estrofe, por sua vez,
possui a possível representação rítmica:
__ __ /__ __ __ __ __ /__ __ __ __ __ __ __ / __ __ __ __ __ __ __ /__
2 / 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1
x A a- vó ba-te pão de ló e an-d’um ven- to t- o- tó na cor- ti- na de fi- ló.
Como podemos perceber, essa sequência, diferentemente dos versos em redondilha
menor da primeira sequência, cuja acentuação recai sobre a e o sílabas, não possui
semelhante regularidade, pois as sílabas acentuadas são ora a 2ª, a 5ª e a 7ª, ora a 1ª, a 3ª e a 7ª
ou a 3ª e a 7ª.
na segunda estrofe, que pode ser iniciada com um andamento mais lento, como a
primeira estrofe, acelerando em seguida, até o fim do poema, os versos em redondilha maior
apresentam um modelo musical mais regular que o primeiro grupo, destacado logo acima,
também com sete sílabas poéticas. Isto ocorre por causa do paralelismo de alguns versos e da
regularidade dos acentos de toda a segunda estrofe, nas sílabas e 7ª, fato que não acontece
com a sequência anterior. Em decorrência desses dois fatores de regularidade, presentes na
segunda estrofe, o ritmo ágil torna-se mais fácil de ser executado nessa sequência que no
outro grupo em comparação, como podemos constatar abaixo, com a última parte do poema:
86
__ __ /__ __ __ /__ __ __ __ __ __ __ /__ __ __ __ __ __ __ /__
2 / 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1
A a- vó vi- ve só. Mas seo ne- to me-ni- nó mas seo ne- to Ri-car- dó
__ __ __ __ __ __ /__ __ __ __ __ __ __ / __ __ __ __ __ __ __ /__
2 / 1 2 / 1 2 / 1
mas seo ne- to tra-ves- só vai à ca-sa da a- vó os dois jo- gam do-mi- nó.
O poema possui, então, três partes distintas: a primeira em redondilha menor, com
acentuação nas sílabas 2ª e 5ª; a segunda parte, em redondilha maior, com acentuação variável
nas sílabas 2ª, e 7ª; , 3ª, ou e 7ª, e a terceira, também em redondilha maior, com
acentuação regular nas sílabas e 7ª, fato que sugere, para cada parte, uma musicalidade
específica, como ocorreu na composição musical do poema, feita por uma criança participante
da pesquisa “Poesia e música em sala de aula”. Trata-se de uma música que apresenta três
sequências rítmico-melódicas equivalentes às três partes do poema, acima referidas: as duas
primeiras, em andamento próximo do moderatto e a terceira, em andamento allegro.
Acreditando, na esteira do pensamento de Hegel, que esses aspectos musicais são
também veículos de sentido no poema, ajudando a produzir o seu tom geral (HEGEL, 1964,
p. 117), entendemos que a atualização dos dois tipos de ritmo, rápido e lento, em “A avó do
meninó”, pode contribuir para dar evidencia as duas situações contrastantes do texto: a
solidão na velhice e a alegria da infância, esta sustentada também pelo tom festivo que veste a
linguagem, associada, quase sempre, ao signo da ação, atenuantes da solidão no poema. Ao
mesmo tempo, a particularidade rítmica do poema aproxima-o de um dos brinquedos sonoros
da infância, a parlenda, forma poética que, geralmente, conjuga essa dinâmica rítmica.
Há, no poema, “A avó do meninó”, outros elementos que convergem para a
significação do poema, entre eles estão os verbos, todos de ação (vive, faz, bate, anda, vai,
jogam), conjugados no presente do indicativo, ajudando a configurar a ideia de que a solidão
da avó é um estado de ser daquele momento, passível de ser modificado pelas vias do lúdico,
a partir da companhia do neto Ricardó, caracterizado de “travessó”, símbolo máximo da ação
na infância.
No poema, dois procedimentos linguísticos que reforçam o sentido de movimento e
o caráter lúdico do poema: primeiro, a alteração nas grafias das palavras “vento-t-o-tó”,
“meninó”, “Ricardó” e “travessó”, fato sugestivo de que nem mesmo as palavras são estáticas
em sua forma, ao participar do jogo lúdico do texto; segundo, a utilização da palavra dominó,
87
encerrando o poema. Pensamos que a inserção deste vocábulo, em “A avó do meninó”,
extrapola a função de eco, em relação às palavras “avó”, “só”, meninó”, “Ricardó”,
“travessó” e “vovó”. O dominó é chamado para ocupar o espaço do poema também por se
referir a uma brincadeira que promove momentos de interação social, necessários à
modificação das circunstâncias de isolamento da avó. Soma-se a isso o fato de o domiser
um jogo de regras, pautado pela combinação das pedras e pelo estudo do todo e das partes do
jogo, exigindo dos jogadores cooperação e concentração. Acreditamos que é também por esse
viés que o jogo do domi participa do contexto do poema, simbolizando o lúdico e as
possibilidades de harmonização entre os dois modos de ser dos personagens referenciados no
poema: a avó e o menino. Através do jogo, a avó pode sair de seu estado de monotonia e de
pouca ação, em ritmo lento, próprios da velhice solitária, e vivenciar momentos de ação e
interação que a aproximam do estado dinâmico e “travessó” do neto. Este, por sua vez, pode
refreiar seus impulsos de agitação e incorporar sugestões do ritmo interior vivido pela avó, em
seu estado de velhice, na medida em que o jogo exige concentração, reflexão e cálculo. Pelo
jogo, a avó também tem a possibilidade de entrar em sincronia com o modo de ser do menino,
seu estado “travessó”, que no jogo a rapidez de raciocínio é um dos quesitos fundamentais
para o sucesso dos participantes.
Por esse prisma de interpretação, o poema “A avó do meninó” também se revela como
jogo, no qual cabe ao leitor utilizar estratégias que o ajudem a perceber o que o poema diz e o
que ele pode significar ou, então, jogar intuitivamente, sem muitas preocupações com os
sentidos do jogo, alegrando-se, simplesmente, em participar do jogo do texto.
“Canção”
No livro Ou isto ou aquilo, Cecília dialoga com outras formas simples, explorando, em
grande escala, a música de palavra e a música verbal. É o que acontece, em especial, com
alguns poemas que guardam bastantes semelhanças com as cantigas de ninar, consideradas
por Cecília Meireles, “um dos motivos mais belos da ternura humana”, que palpitam num
“ritmo de amor, profundo e verdadeiro como o da criação (...), pousando-as no coração eterno
de todas as mães [e das crianças]” (MEIRELES, 2001, v.1, p. 89). Nestes poemas, as palavras,
os versos e as estrofes pedem para ser ditos com a prosódia do canto da mãe, em tom suave e
88
meigo “como se murmurassem à beira do berço de um filho: com a mesma poderosa emoção,
com o mesmo encantamento, com o mesmo fervor sem fim” (MEIRELES, 2001, v.1, p. 89),
como acontece nas cantigas de ninar de Gabriela Mistral, poeta chilena com quem Cecília
cultivou laços afetivos e estéticos (KIRINUS, 1999).
“Canção” é um desses poemas que pode ser tomado como cantiga de ninar. Trata-se
de um texto lírico e lúdico em que Cecília Meireles joga com a permuta dos fonemas,
construindo as palavras que compõem a isotopia
105
semântica do acalanto: berço, borco,
barco, braço, abraço etc.:
Canção
De borco
no barco.
(De bruços
no berço...)
O braço é o barco.
O barco é o berço.
Abarco e abraço
o berço
e o barco.
Com desembaraço
embarco
e desembarco.
De borco
no berço...
(De bruços
no barco...)
(p. 1507).
Nessa canção, a estrutura binária dos versos, mantida mesmo na leitura dos tercetos,
remete ao movimento de ida e vinda do ato de acalantar
106
a criança nos braços, num jogo
feliz em que o braço é berço e é barco, em associação ao movimento embalante desse objeto
nas águas, sendo também abraço, já que envolve o niño, acolhendo-o com afeto, som e
105
Termo usado por Greimas (1975) para demonstrar a interação entre as unidades linguísticas do discurso, seja
ela no campo do conteúdo ou da expressão.
106
A ideia de que o poema é uma canção para fazer dormir é reforçada pelas expressões isoladas entre parênteses
“(De bruços/ no berço...)” e “(De bruços/no barco...)”, respectivamente, no início e no final do poema, chamando
a atenção para o estado de sono representado no texto, situação que exige, sobretudo, suavidade na emissão do
enunciado, uma canção quase em sussurros.
89
movimento. Este fato ressalta, no poema, “a unidade entre a música das palavras e de sua
significação”, como lembra Staiger (1997, p. 51), ideia corroborada também pela recorrência
de versos curtos, expediente que remete ao caráter efêmero da viagem nesse barco de braços:
dura apenas algumas canções, enquanto o sono não chega, tempo suficiente para fazer com
que a criança sinta-se segura nos braços da “mãe sonora”, na expressão de Glória Kirinus
(1998).
A aproximação entre berço e barco, através do sema de viagem, no poema, encontra
respaldo na simbologia dos irlandeses, em que a barca é considerada “o símbolo e o meio de
passagem para o Outro-Mundo” (CHEVALIER, 2007, p. 121), como o é o berço, em relação
à condução, na criança, do estado de vigília ou pré-sono ao estado de sono e sonhos.
A associação entre o embalar infantil e o movimento de embarque e desembarque no
barco, concebido como berço, remete-nos também ao sono em seu sentido metafórico, ligado
à passagem da vida para a morte e da morte para a vida, como preconiza um dos mitos do
antigo Egito, em que se acreditava “que o defunto descia para as doze regiões do mundo
inferior numa barca sagrada”, passando e superando diversos perigos até ser desembarcado e
poder cantar: O laço esdesatado. Atirei por terra todo o mal que em mim. Ó Osíris
poderoso! Acabo de nascer!” (CHEVALIER, 2007, p. 121, 122)
O sono trazido pelo acalanto, no geral, não deixa de sugerir esse sentido de travessia e
de renovação, sobretudo, quando se considera o sono como alimento do corpo e do espírito,
indispensável à boa travessia do homo viator, em qualquer etapa da vida. Esse sentido de
travessia tranquila é reiterado, no poema “Canção”, pelos sintagmas “de bruço” e “de borco”,
em referência às posições que, conforme crença geral, trazem ao bebê um sono de qualidade,
longe de pesadelos, cólicas, etc.
107
Em “Canção”, Cecília Meireles trabalha a dimensão rítmica dos versos no compasso
binário, conjugando, notadamente, a acentuação das palavras à duração longa das sílabas
108
nos versos, de modo a conferir maior destaque a essas sílabas, numa regularidade que lembra
a própria estrutura do compasso binário e sua acentuação na primeira pulsação do movimento
107
Até recentemente, aqui no Brasil e em boa parte do mundo, sobretudo nos países desenvolvidos, acreditava-se
que a melhor posição para o bebê dormir era de bruços, ideia contestada, atualmente, por contribuir para a morte
súbita do bebê, sobretudo porque nessa posição dificulta-se a respiração e a criança pode morrer por asfixia. A
esse respeito consultar: <http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=898674>
108
Conforme Hegel (1964, p. 119), na versificação rítmica, são considerados sons de duração longa, as sílabas
com os ditongos: ai, eu, oi, etc, as consoantes colocadas entre as vogais, como em bruma, velhinha e as vogais de
“ressonância prolongada”, nas quais recaem o acento do verso e da palavra.
90
musical. Em outras palavras: no poema, o acento recai sobre as sílabas iniciais e longas dos
dissílabos, como em “borco” (1º verso), “barco” (2º verso), “bruços” (3º verso), “berço” (4º
verso); “braço” e “barco(5º verso), “barco” e “berço” (6º verso); sobre as segundas labas
nos vocábulos trissílabos, “Abarco” e “abraço” (7º verso), “embarco” (11º verso), e na
penúltima silaba dos polissílabos “desembaraço” e “desembarco” (10º e 12º versos).
Para percebermos a dinâmica do binário e da acentuação rítmica, no poema “Canção”,
as palavras monossilábicas, isto é, os determinantes, as conjunções e o verbo de ligação (de,
no, o, com, é, e), que precedem as palavras acentuadas nos versos e as sílabas que antecedem
o acento em “desembaraço” e “desembarco” soam como anacruse, som que acontece antes do
primeiro tempo forte do verso.
Considerando os sons iniciais dos versos como anacruse, notamos, em todos eles, a
acentuação no primeiro tempo do movimento e o relaxamento no segundo, formado pelas
sílabas pós-acento e as palavras monossilábicas que iniciam os versos seguintes. Para tanto,
os versos mais longos são percebidos como se fossem duplos, comportando o movimento
completo do binário, as duas pulsações, como é o caso do 5º, 6º, 7º e 10º versos.
Para uma demonstração mais precisa, tentamos a seguinte representação rítmica dos
versos iniciais do poema:
__ / __ __ __ / __ __ __ /__ __ __ /__ __ __ / __ __ __ /__ __
/ 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1 2
De bor-co no bar-co. (De bru-ços no ber-ço...) O bra-çoé o bar-co.
__ /__ __ __ /__ __ __ /__ __ __ /__ __ __ / __ __ __ /__ __
/ 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1 2
O bar-coé o ber-ço. A- bar-coe a- bra-ço o ber-çoe o bar-co.
__ /__ __ __ /__ __ __ /__ __ __ __ /__ __ __ / __ __ __ /__ __
/ 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1 2 / 1 2
Com de-sem-ba- ra- ço em- bar-coe de-sem- bar-co. De bor-co no ber-ço...
__ /__ __ __ / __ __
/ 1 2 / 1 2
(De bru-ços no bar-co...).
A utilização do metro em “Canção”, também se pauta pelo princípio da regularidade,
conjugada a partir de metros diferentes: o dissílabo, o trissílabo e o pentassílabo, com
predominância do primeiro, que aparece em 11 dos 16 versos.
Qual seria o efeito dessa variação?
Os versos menores estariam ligados a uma velocidade mais lenta, indicando que a
viagem está apenas começando, diferentemente dos versos mais longos os quais podem
sugerir mais velocidade à viagem. O retorno ao dissílabo indica uma redução da velocidade
91
para o desembarque. Em seguida, retoma-se à viagem e o resto do percurso fica por conta das
reticências que sugerem a continuidade do processo.
Um dos possíveis embaraços para esta sugestão semântica da metrificação se dá
quanto ao verso “com desembaraço”, situado no meio das sequências dissílabas, quando seria
mais previsível, para o sentido que defendemos, o uso de um verso dissílabo. Qual seria,
então, a razão do pentassílabo neste contexto?
Talvez o efeito do eco seja uma possível explicação para isso, no sentido de que a
força da rima no poema lança o poeta em busca de sonoridades afins que preencham um dado
espaço físico do poema que é, ao mesmo tempo, campo sonoro, rítmico, sintático e semântico,
em função de uma situação comunicativa específica, que se sustenta na inter-relação com os
outros instrumentos de textualidade do poema. Através dessa ótica, na sequência “com
desembaraço”, a regularidade rítmica pode ter sido sobrepujada pelas necessidades sonoras e
semânticas do poema.
A outra opção que nos levaria à sustentação de nossa hipótese em torno da métrica do
poema, associada aos movimentos de aceleração/desaceleração, estaria ligada não ao verso
10, entretanto, aos versos 8 e 9 e à função de destaque dada as duas palavras centrais do
poema e dos versos: “berço” e “barco”. Neste caso, a desaceleração sugerida pelos versos
dissílabos não seria ainda a preparação para o desembarque, seria o enfrentamento durante a
viagem, de uma situação específica que exigiu um rallentando, de modo a conferir destaque à
ideia de viagem como travessia humana em direção ao reino do sono, dos sonhos e do
desconhecido. Depois desse momento, a aceleração é recobrada no verso seguinte,
retrocedendo, em seguida, para preparar o movimento do desembarque.
O fundamental de tudo isso é que nessas duas possibilidades de interpretação do
poema não se perdeu de vista que os fatores de musicalidade constituem também elementos
de sentido.
O modelo de métrica musical que aplicamos aos poemas infantis de Cecília Meireles,
embora tenha nascido da estrutura imanente dos versos, em sua relação com o sentido e possa
encontrar “máximo êxito em relação ao verso cantável” (WELLEK, 1959, p. 204-206), como
ocorre com a maioria dos poemas de Cecília Meireles, é fruto de uma interpretação subjetiva
do poema, sendo, portanto, relativo, na medida em que o texto, semelhante a uma partitura,
não encontra unicidade nas interpretações. A duração e acentuação, assim como a entoação
num poema podem ser percebidas de formas diferentes por leitores distintos, como acontecem
com os sentidos do texto. No entanto, em meio à variação, sempre elementos da estrutura
92
do texto que orientam os leitores, numa mesma direção, embora percorram caminhos
diferentes.
Cantiga da babá”
“Cantiga da babá”, como sugere o próprio título do poema, também pode ser
concebido como um acalanto:
Cantiga da babá
Eu queria pentear o menino
como os anjinhos de caracóis.
Mas ele quer cortar o cabelo,
porque é pescador e precisa de anzóis.
Eu queria calçar o menino
com umas botinhas de cetim.
Mas ele diz que agora é sapinho
e mora nas águas do jardim.
Eu queria dar ao menino
umas asinhas de arame e algodão.
Mas ele diz que não pode ser anjo,
pois todos já sabem que ele é índio e leão.
(Este menino está sempre brincando,
dizendo-me coisas assim.
Mas eu bem sei que ele é um anjo escondido,
um anjo que troça de mim.)
(p. 1504).
Nesse poema, Cecília trabalha com construções inusitadas para justificar as escolhas
do menino e a sua recusa em não atender aos desejos da babá: não quer pentear os cabelos
“como os anjinhos de caracóis”, porque sendo pescador, precisa cortar os cachos para
convertê-los em anzóis; também não quer calçar botinhas de cetim, porque passou a ser
sapinho, morando nas águas dos jardins; não quer asas de anjo, porque “todos sabem que
ele é índio e leão”. Trata-se de justificativas bastante plausíveis que apontam para o nível de
argumentação poética que a criança consegue alcançar, desde pequena.
Este menino que troça da babá, com seu poder de imaginação e persuasão, lembra “O
menino poeta”, de Henriqueta Lisboa, que rouba uma estrela pelo prazer de depois prendê-
la com pregos de ouro à saia da lua e que, possivelmente, andará, nadando com os peixes,
93
“brincando com os anjos, na escola travesso”, e despertando a atenção do eu-lírico que quer
vê-lo de perto para ensinar-lhe “as bonitas cousas do céu e do mar” (LISBOA, 1984, p.6).
Semelhante ao poema de Henriqueta Lisboa, em “Cantiga da babá” reina a falta de
recriminação do adulto, relacionada à conduta da criança em querer valer os seus desejos. Ao
contrário, há a compreensão do espírito lúdico e poético do menino, especialmente, destacado
na estrofe final, colocada entre parênteses: “(Este menino está sempre brincando, / dizendo-
me coisas assim. / Mas eu bem sei que ele é um anjo escondido, / um anjo que troça de
mim)”.
Cecília Meireles trabalha, nesse poema, com uma concepção de criança bastante
humana, sem idealizações, apresentando o menino na confluência entre a astúcia e a
criatividade: o personagem é destacado, notadamente, em sua rebeldia, em não se deixar
submisso às vontades e ações do adulto e a certas condutas da educação informal, ocorridas
no lar, que o incomodam, como pentear os cabelos, calçar sapatos, entre outros. No entanto,
essa rebeldia, ao invés de desaguar em atos de desrespeito ou de violência contra o adulto, é
resolvida no nível da poiesis, pois a criança encontra saídas poéticas que a eximem de fazer o
que espera a babá, deixando-a satisfeita com o vel e beleza de suas construções linguísticas.
A esse respeito, Cecília Meireles, na crônica “Como as crianças pensam”, diz: “_Eu gosto de
ouvir as crianças conversando, porque elas são absolutamente como os poetas. Não conhecem
obstáculos a sua imaginação (MEIRELES, 2001, v.1, p. 195).
Em “Cantiga da babá”, o menino se comporta como um poeta, brincando com as
possibilidades de jogar com as palavras e com a sua interlocutora, que, por sua vez, entra no
jogo do faz-de-conta e aceita “as verdades” criadas pelo menino como brincadeiras que são,
como acontece, no geral, com a leitura do texto literário, em que o leitor é “apanhado em uma
duplicidade inexorável: está envolto em uma ilusão e, simultaneamente, está consciente de
que é uma ilusão” (ISER, 2002, p.116).
Além do caráter poético do pensamento infantil, o poema também se destaca pelo
modo como as noções de gênero são trabalhadas no poema: a babá, concebida como o adulto
que ajuda na educação da criança, não reafirma os valores dominantes e seus preconceitos em
relação à caracterização da figura masculina em nossa sociedade. Antes, coloca como
possibilidades, para o menino, situações de comportamento, no geral, oferecidas para as
meninas, como é o caso de ter cabelo crescido, no nível de produzir cachos, para poder ficar
parecido “com os anjinhos de caracóis”; cultuar a beleza, mediante o uso de botinhas de cetim
94
e de asinhas de anjo. Esse comportamento da babá, longe de desejar que o menino
experimente a condição de ser afeminado, desconstrói certos preconceitos que distanciam o
homem da mulher.
O menino, por sua vez, não recrimina o pensamento da babá, a partir de situações que
poderiam endossar a dicotomia dos gêneros, do tipo, “isso é coisa de menina e isso é coisa de
menino”. Ao contrário, cria situações, através da fantasia, para demonstrar o seu incômodo
com determinadas práticas culturais, ligadas a pentear o cabelo, calçar sapatos e enfeitar-se
com adereços, aproveitando o ensejo para evidenciar sua identificação com a natureza.
Essas possibilidades de significações tecidas pela leitura do poema encontram respaldo
também no uso das rimas, recurso sonoro que, no poema, traz, de forma implícita,
implicações semânticas entre os termos aproximados, fazendo valer o que preconiza Jakobson
(1995, p. 146, 147), ao dizer que, no poema, “a equivalência de som, projetada na sequência
como seu princípio constitutivo, implica inevitavelmente uma equivalência semântica, e em
qualquer nível linguístico”, numa relação de parecença ou dessemelhança.
Em “Cantiga da babá”, esse pressuposto jakobsoniano se efetua em quase todo o
poema, especialmente nos finais dos segundos e dos quartos versos das estrofes.
Inicialmente, evidenciamos a presença desse recurso entre os signos “caracóis” e
“anzóis”, termos aproximados mediante a forma ondulante dos objetos que representam.
A essa relação de sentido soma-se outra, pautada, desta vez, na oposição entre as
funções dos objetos aproximados, numa situação em que o objeto de enfeite, representado
pelos caracóis, perde espaço para o objeto de utilidade prática, simbolizado pelos anzóis. Isso
ocorre em virtude do segundo elemento comparado está ligado ao modo de vida mais rústico e
natural, ao passo que o primeiro se associa a certas convenções sociais de beleza. Logo, sendo
a criança mais próxima do homem primitivo, na medida em que ainda não foi totalmente
moldada pela cultura e suas convenções sociais, é natural que ela se identifique com o modo
de vida do pescador, simbolizado pelos anzóis.
Todas essas relações de parecença e dessemelhança de sentido destacadas são
sugeridas pelo enunciado da primeira estrofe do poema:
Eu queria pentear o menino
como os anjinhos de caracóis.
95
Mas ele quer cortar o cabelo,
porque é pescador e precisa de anzóis.
Os segundos termos em relação de equivalências sonora e semântica no poema são
“cetim” e “jardim”. Os dois signos se contrastam porque apontam, respectivamente, para os
valores das coisas em nossa sociedade, num contexto em que o “cetim” sugere a
representação do objeto de valor mercadológico e o “jardim”, a configuração do sem-valor,
nesse sentido, uma vez que é no jardim que estão os seres mais insignificantes, em sua
utilidade, conforme são concebidos pelas sociedades de consumo: é que estão o sapo, a
cigarra, a formiga, a borboleta, o besouro, o lagarto, o caracol, etc, seres, que embora não
possuam nenhum valor de mercado, são considerados, no geral, pela criança, como bens
valiosos, dignos de serem leiloados, como acontece em “Leilão de jardim”, poema do mesmo
livro.
Essa ideia, que aproxima “cetim” e “jardim”, encontra-se evocada na segunda estrofe
do poema:
Eu queria calçar o menino
com umas botinhas de cetim.
Mas ele diz que agora é sapinho
e mora nas águas do jardim.
As palavras “cetim” e “jardim” também podem ser ressaltadas em sua ligação com o
sema de beleza, especialmente se levarmos em consideração que o jardim é o espaço em que
vivem as rosas, sendo que estas são um de seus componentes fundamentais. A partir dessa
perspectiva, “cetim” se aproxima de “jardim” não de forma direta, mas por intermédio de um
dos elementos do jardim: a rosa. Por esse prisma, o menino prefere a beleza do jardim à
beleza do cetim, notadamente porque aquela se harmoniza com sua identificação com a
natureza.
as palavras algodão e leão, aproximadas pela sonoridade na terceira estrofe do
poema, apresentam dessemelhanças de sentido, na medida em que “algodão”, na condição de
artefato, na estrutura “asinhas de arame e algodão”, representa o elemento fora da natureza,
em oposição ao “leão”, símbolo do natural. Além disso, o caráter de fragilidade do algodão, in
natura, manteve-se no artefato, contrastando com a fortaleza do leão e, consequentemente,
ajudando na identificação da criança com o rei dos animais.
96
A identificação da criança com a natureza e seus elementos constituintes - a flora,
representada pelo jardim, a fauna, simbolizada por suas águas e a vida animal, referendada
pela identificação, no poema, com o sapo e o leão -, guarda importantes significações, ligadas
ao desejo de se alcançar uma vida autêntica, liberta das normas sociais que, muitas vezes,
aprisionam o homem, vida que propicia o sonho e o sentimento de felicidade primordial,
conforme ressalta Chombart de Lauwe (1991, p. 268- 293).
Isso acontece, notadamente, porque “no jardim as coisas têm seu verdadeiro sentido,
de paraíso inicial, de mundo sonhado” e quando esse espaço incorpora algum animal como
elemento de identificação com o infante, reforça “a representação da criança autêntica,
primitiva, próxima da natureza, diferente dos adultos, e misteriosa, ferida pela sociedade que
não a compreende e quer moldá-la sem levar em conta seus gostos, sua natureza própria” (DE
LAUWE, 1991, p. 287).
No caso de “Cantiga da babá”, percebemos que esses sentidos são atualizados, numa
evidenciação maior da poeticidade dos argumentos do menino, sua autenticidade e sua
identificação com a natureza, como instrumento de sabedoria e de verdade original, em
oposição aos preceitos transmitidos pelo mundo da cultura e dos adultos, nos quais ele se
encontra inserido e os quais procura burlar, através do pensamento mágico, fato não
recriminado pela babá que também conserva traços de sua criança autêntica. Assim, termina o
poema:
(Este menino está sempre brincando,
dizendo-me coisas assim.
Mas eu bem sei que ele é um anjo escondido,
um anjo que troça de mim.)
O que pode significar ser anjo escondido, além de sugerir a essência original da
criança, ser portador de uma verdade autêntica como os anjos celestiais? Não seria um anjo-
menino-poeta, pescador de palavras, de rimas e de sonhos; um sapinho-leão, escondido nas
águas primordiais da imaginação?
Ainda no plano da musicalidade, encontramos em “Cantiga da babá”, o recurso do
paralelismo estrutural. As três primeiras estrofes apresentam sequências semelhantes,
iniciandas com a estrutura “Eu queria, seguida de um verbo no infinitivo + ao/o menino”,
complemento verbal que sofre pequena variação, dependendo da concordância do verbo.
97
Assim temos, na primeira estrofe, “Eu queria pentear o menino”; na segunda, “Eu queria
calçar o menino” e na terceira, “Eu queria dar ao menino”.
O paralelismo alcança também o terceiro verso dessas três estrofes, com a reiteração
da estrutura, iniciada pela conjunção adversativa: “Mas ele quer” (1ª estrofe); “Mas ele diz
que” (2ª e terceira estrofes), introduzindo as saídas poéticas que a criança encontra para não se
render aos desejos da babá, no que tange a realizar certos procedimentos de beleza sobre o
menino, como calçá-lo com botinhas de cetim.
Essa estrutura, que marca a oposição entre as ideias e desejos dos dois personagens
centrais do texto, volta no segundo verso da quarta estrofe, desta vez, quando a babá
evidencia seu pensamento em torno daquilo que o menino diz nas três primeiras estrofes.
Assim, retornando à música das falas anteriores que reproduzem, de forma indireta, as
respostas do menino, ela anuncia: “Mas eu bem sei que
109
ele é um anjo escondido...”.
É interessante mencionar que “Cantiga da babá” não é o tipo de poema que tem a
palavra como unidade, numa linguagem condensada, como acontece com poucos poemas do
livro Ou isto ou aquilo, entre eles, “Rio na sombra” e “Canção”. Sua unidade é a mesma da
prosa, isto é, a frase, por isso, os elementos de musicalidade, neste caso, ficaram muito mais a
cargo das rimas e do paralelismo.
A métrica, por exemplo, é bastante variada, numa dinâmica em que os versos
apresentam várias medidas e diversas acentuações, numa proximidade com o ritmo da fala e
suas entoações múltiplas. Entre os versos do poema, apenas alguns grupos mantêm entre si a
mesma métrica com acentuação semelhante, como é o caso dos octossílabos (1º, 5º, 6º, 8º, 14º
e 16º verso), com acentuação nas sílabas , e 8ª; 2ª, e ou , e 8ª; dos eneassílabos
(2º, 3º, 7º e 10º versos), acentuados nas sílabas 4ª, 9ª ou 4ª, 6ª e 9ª; dos decassílabos (11º, 13º e
15º), cuja acentuação recai nas sílabas , e 10ª. Os outros versos (4º, e 12º) não
apresentam afinidades rítmicas, nem entre si, nem em relação aos primeiros tipos de versos
destacados anteriormente.
Da realização desses metros e seus modelos de acentuação, é possível perceber seis
tipos de musicalidade rítmica, três mais constantes, relativas aos octossílabos, aos
eneassílabos e aos decassílabos, e três avulsas, referentes aos versos 4º, 9º e 12º, resultantes da
109
Grifo nosso.
98
conjugação entre os ritmos da fala e os ritmos da poesia, com destaque para esses, sobretudo
pelo reforço da rima e do paralelismo.
Na realização oral do poema “Cantiga da babá”, o leitor poderia considerar o modelo
musical sugerido pelo paralelismo, que é um dos expedientes de musicalidade mais regulares
no texto, destacando dois perfis musicais, como ocorreu na musicalização do poema
110
: o
primeiro, referente às três primeiras estrofes, e o segundo, equivalente à última estrofe. Esta,
por sua vez, pode ser dita num tom de segredo, quase em sussurro.
Brincar com as sugestões musicais de “Cantiga da babá” é também uma das formas de
interagir com o caráter lúdico do texto, manifestado desde a referência ao comportamento
poético do menino, ao jogo com as possibilidades linguísticas e musicais da língua.
“A língua do nhem”
Inserido no conjunto dos poemas circunstanciais e lúdicos de Ou isto ou aquilo, que
realiza a música de palavra, ressaltamos ainda “A língua do nhem”, poema em que Cecília
Meireles fala da solidão na velhice, de forma leve e engraçada, sem desmerecer o tema, pois,
por trás das cortinas do riso, o texto deixa, ao leitor, a mensagem de que a solidão na terceira
idade é um fato e um problema social.
A língua do nhem
Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.
E estava sempre em casa
a boa velhinha,
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha
principiou também
a miar nessa língua
e se ela resmungava,
110
A composição, feita por uma dupla de meninas, da experiência “Cecília Meireles em canto”, nossa segunda
experiência de campo, apresentou uma estrutura AAAB, seguindo as aproximações musicais entre as estrofes,
sugeridas, sobretudo, pelo paralelismo formal. Vide anexo n. 3.
99
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha,
de cá, de lá, de além,
e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,
ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
(p. 1498).
Interessante como Cecília Meireles constrói o modo lúdico do poema, aliando sempre
o bom humor e o riso à natureza séria do tema. É a partir desse intercruzamento que ela nos
apresenta a história da velhinha, personagem que, apesar de aborrecida, resmungando,
sozinha, como anuncia a primeira estrofe, é concebida como símbolo da alegria, ganhando, de
imediato, a afeição dos leitores e/ou dos animais que, no poema, se aproximam da velhinha,
movidos por sentimentos que não se deixam revelar, claramente, ao leitor, prevalecendo a
dúvida, em torno de, pelo menos, duas possibilidades de interpretação de seus reais interesses
para com a velhinha: ou se sensibilizam com a solidão dessa personagem, passando a falar a
sua língua de resmungo, ou se divertem à custa do sofrimento da velha, deixando-a, de
qualquer forma feliz, na medida em que essa ação é concebida, por ela, como uma
possibilidade de preencher o vazio de sua vida.
Uma terceira opção, referente à aproximação animais/velhinha, ainda é possível de ser
cogitada e está ligada ao encanto da música entoada pela velha, abrindo espaço para se pensar
que a resolução da problemática da velha, no poema, está relacionada ao papel da música,
pois, sendo essa arte considerada a realização da linguagem universal, une a todos. Foi o que
aconteceu com o resmungo melódico da velha, repetido por todos os animais adjacentes de
sua residência.
100
A presença da música, no poema, não se restringe à frase melódica e onomatopaica,
“nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...”. Ela se manifesta também em várias instâncias da
textualidade do poema, principalmente, na realização métrica dos versos, os quais se
acomodam, no geral, às musicalidades do hexâmetro; nas sonoridades das rimas e no ritmo
binário, entre outros.
No caso da métrica, a distribuição heterogênea das sílabas átonas e das sílabas
acentuadas no hexassílabo, de diversas formas, resulta num modelo musical bastante
dinâmico, livrando o poema de uma possível monotonia, que a reiteração do metro
acontece em 31 dos 32 versos do poema, com acentuações variáveis entre as sílabas 2ª e 6ª;
e 6ª; 2ª, 4ª e 6ª ou 4ª e 6ª.
A aplicação de um ou outro modelo acentual nos versos, por sua vez, não ocorre
aleatoriamente, todavia, a partir de alguns princípios norteadores, sobretudo ligados à
progressão e/ou à resolução da música do poema. No primeiro caso, o emprego de um novo
modelo rítmico evita a repetição em demasia, fazendo a música progredir, enquanto no
segundo caso, faz a música encontrar o seu repouso.
Na primeira estrofe, a variação dos acentos, no quarto verso, traz o repouso à música
da estrofe, depois da repetição de um único modelo musical nos três versos iniciais:
VI (a)u Ma ve LHI nha
quean DA va(a) bor re CI Da
pois DA va(a) su a VI Da
p’ra Fa LAR com al GUÉM
Na terceira e outras estrofes, a variação dos acentos, nos e versos, se pauta pela
atualização dos princípios da progressão e do repouso:
o GA To que dor MI A
no CAN To da co ZI nha
es cu TAN doa ve LHI nha
prin ci PI OU tam BÉM
Em meio à variedade, sobrepõe-se, no entanto, a regularidade, no uso dos modelos
acentuais do hexâmetro, no poema, fato observado, sobretudo, no tipo de acentuação
empregada no primeiro e no último versos de cada estrofe, cujas sílabas acentuadas são, no
101
geral, as 2ª e 6ª e as 3ª e 6ª, respectivamente, enquanto os versos intermediários, o segundo e o
terceiro, são livres para usar esse ou outro tipo de acentuação, desde que não impeça de fazer
a música da estrofe andar. Esses aspectos se aplicam a todas as estrofes.
Em relação ao tipo de compasso, sugerido pela leitura rítmica do poema, notamos que
o modelo binário se adéqua bem à cadência dos versos:
__ /__ __ __ __ /__ __
/ 1 2 / 1
Ha-vi’- u- ma ve- Ihi-nha
__ __ / __ __ __ __ /__ __
2 / 1 2 / 1
x que an- da- va a- bo-rre- ci- da
__ __ /__ __ __ __ /__ __
2 / 1 2 / 1
x pois da- va su- a vi-da
__ __ /__ __ __ / __
2 / 1 2 / 1
p’ra fa- lar com al- guém.
Quanto às musicalidades melódicas do poema, muito contribuem o uso do refrão e o
emprego das rimas finais em “inha”, “ida”, “ia”, “ava” e “em”. Estas rimas fazem ressoar,
entre si, principalmente, os versos medianos de cada estrofe e os versos finais de uma estrofe
para outra. O refrão, por sua vez, se manifesta na fala da velhinha, “nhem-nhem-nhem-nhem-
nhem-nhem...”, espécie de estribilho onomatopaico, de valor interjeicional, ao molde dos
cantos primitivos, nos quais a melodia tinha prioridade sobre a letra Nestes cantos, o refrão
também atuava “como expediente de execução coreográfica” (SPINA, 2002, p. 50),
destacando-se do resto da canção, tanto pelos aspectos musicais como pelos procedimentos da
performance corporal, fatores que podem ser considerados na realização oral do poema
ceciliano.
A função primitiva do refrão em “A ngua do nhem” é reiterada pela realização
coletiva dessa estrutura musical, entoada pela velhinha e por todos os animais presentes no
texto, semelhante ao que ocorreu nos primórdios da civilização, quando o refrão, participando
da origem social do canto, se encontrava ligado “à execução coletiva das danças primitivas e
como tal às primeiras manifestações de solidariedade humana” (SPINA, 2002, p. 51). Essa
102
natureza social e popular do refrão é reforçada no poema pela organização dos versos em
quadra, considerada o modelo estrófico preferido pelo povo, até hoje.
Esse tipo de musicalidade melódica, em torno da realização do refrão e das rimas em
“A língua do nhem”, somada à musicalidade rítmica da metrificação e ao movimento binário
do compasso, sugerido pela acentuação silábica dos versos, funcionam como evidências da
estreita ligação entre poesia e música, cultuada ao longo dos tempos. Compactuando com esse
pensamento, Hegel ressalta:
As obras poéticas devem ser faladas, cantadas, recitadas e apresentadas por seres
vivos, tal como as obras musicais. Estamos certamente habituados a ler poemas
épicos, líricos e dramáticos, mas a poesia, pelo seu próprio conceito, é
essencialmente uma arte sonora (HEGEL, 1964, p. 155).
Por ser uma arte sonora, a poesia tem na realização oral do texto escrito uma
possibilidade de execução de suas musicalidades e sentidos, acordando o texto do silêncio da
página escrita.
2.2.3.2 A música encantada
Nos poemas líricos de Ou isto ou aquilo, envoltos de um lirismo profundo, Cecília
Meireles trabalha o “sentido encantado da vida”, de forma intensa, porque, segundo a própria
escritora, o estado poético da arte coaduna-se com os excessos de emoção que a forma
produz. “Não importa que a forma seja simples, sóbria, harmoniosa: dentro dela há um
transbordamento de emoção, de idéia ou gozo”, diz a escritora de Vaga música (MEIRELES,
2001, p. 37).
A música encantada habita, portanto, a lírica em sua condição de apreender e suscitar a
“música da linguagem”,
111
sendo percebida no momento em que o poema se concretiza na
111
Essa expressão não deve ser confundida com a música da linguagem ou a música de papel defendida por Paul
Scher (1981), para definir os recursos de musicalidade, como a aliteração, a assonância, a rima etc.
103
interação com o leitor, isto é, quando o poema deixa de ser caracteres impressos numa folha
em branco e texto escrito, e se transforma num evento poético que após consumado, “a
palavra desaparece e soa o tom da sensibilidade”, num deleite dos sentidos, como destacou
Herder
112
, poeta do romantismo alemão:
Estes tons, estes gestos, aqueles movimentos simples da melodia, essa mudança
súbita, essa voz a sussurrar, que mais sei eu? Entre crianças e na sensibilidade do
povo (...), atuam mil vezes mais que a própria verdade conseguiria atuar se sua voz
leve e melodiosa soasse dos céus. Estas palavras, este tom, o desenrolar desta
romança aterradora penetravam nossa alma, quando em nossa meninice os ouvíamos
pela primeira vez, sempre acompanhados por noções vagas de temor, de cerimônia,
susto, pavor ou alegria (...). Um sentimento misterioso nos domina (...); foi uma
força mágica do poeta, do recitador, tornar-nos crianças de novo. Não houve
reflexão nem pensamentos como base, apenas a lei da natureza: ‘O tom da
sensibilidade deve transportar a criatura em sintonia para o mesmo tom’ (HERDER,
1891, apud, STAIGER, 1997, p. 53).
Nesse tipo de poesia que nos restaura as crenças e os devaneios da infância, “os versos
ecoam em nós como vindos de nosso próprio íntimo” (STAIGER, 1997, p. 53), numa
participação de cumplicidade tamanha com o que lemos ou ouvimos que chegamos a nos
sentir o próprio autor do texto. Isso acontece porque essa poesia, recebida como música,
elimina o espaço entre autor/obra/leitor, como acontece, conforme Paul Valéry (1996, p. 75),
na recepção de certas músicas líricas, em que estamos na música ao mesmo tempo em que
esta permanece em nós. É a poesia que explora e propicia a linguagem dos afetos,
semelhantemente ao canto monofônico, na acepção dos filósofos renascentistas italianos,
especialmente, Girolamo Mei e Giovanni Batista Doni, canto que aprofunda, explora, revela,
intensifica, “o afeto que a palavra guarda em si”, num “enraizamento da esfera sonora em
terreno verbal” (CHASIN, 2004, p. 57).
Em Ou isto ou aquilo, no geral, este tipo de enraizamento, de modo que os poemas
carregam uma espécie de música profunda, erguida, muitas vezes, a partir da estética do
desejo,
113
especialmente ligada à arte, à cultura lúdica, ao sonho, como é o caso de O último
andar”, “O menino azul”, “Os carneirinhos” e “O cavalinho branco”, e às memórias da
112
Johann Gottfried Herder (1744 - 1803) foi um dos representantes do Sturm und Drang (tempestade e ímpeto),
movimento literário alemão voltado para a defesa da poesia espontânea, primitiva, simples, celeiro de emoções,
em contraposição à literatura racionalista praticada no Ancien Regime.
113
A “estética do desejo” está associada a determinadas temáticas, voltadas para as aspirações do eu lírico ou de
outras “personae” referenciadas no poema. Essas temáticas ligam-se a situações de desejos diversos, seja
relacionado a ser bailarina, possuir um burrinho falante, ser pastor, morar no último andar, etc.
104
infância, como acontece em “Figurinhas (II)”. Nesses poemas, a poiesis faz vibrar as cordas
do coração do eu-criador, consoante Emil Staiger (1997), na medida em que o coração é o
instrumento que acolhe a matéria poética da lírica, fazendo o poeta retornar ao coração, à
fonte, “entrelaçado amorosamente ao seu objeto”, como destaca Hebe Lima (1998, p. 19).
Nesse estado, o eu-leitor interage afetivamente com o poema e seus símbolos, com a
expressão do mundo subjetivo do eu-lírico e “suas circunstâncias de afeto, de abandono, de
alegria”, entre outras (LIMA, 1998, p.19).
“O último andar”
“O último andar” é um dos textos de Ou isto ou aquilo que se destaca pelo lirismo dos
versos e pela sugestão imagética que se inicia no tulo e vai se delineando ao longo do
poema, em torno da caracterização do último andar como espaço onírico e como objeto de
projeção do desejo de plenitude do eu-lírico, notadamente, em suas potencialidades de objeto-
símbolo que incorpora a semântica dos espaços sem limites, abrigando o sentimento de
cidadão do mundo do eu-enunciante:
O último andar
No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.
O último andar é muito longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.
Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar.
É lá que eu quero morar.
Quando faz lua no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.
Os passarinhos lá se escondem,
para ninguém os maltratar:
no último andar.
De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:
no último andar (p. 1481).
105
Em todo o poema, percebemos que o espaço do último andar está no ápice do desejo
do eu-enunciante, não apenas pela evocação de sua extensa altura ou por ser mbolo de
liberdade, porém porque nele se articulam vários elementos cultivados, em nossa cultura,
como veículos de beleza e de encanto. Estamos nos referindo às paisagens do firmamento e
do mar, que no poema, se revelam ao eu-lírico, da perspectiva do último andar. Isso é
suficiente para sustentar, reiteradamente, o último andar como o espaço do sonho, pelo
menos, de quem se identifica com os pássaros e se deleita com os espetáculos da natureza,
como o plenilúnio, as revoadas, o pôr-do sol, dourando o firmamento e casando céu e mar,
etc.
O desejo de habitar o espaço das alturas, apresentado, pouco a pouco, no poema, é
uma espécie de leitmotiv, a partir do qual o eu-lírico desenvolve seu raciocínio em torno da
defesa do último andar como o melhor espaço do mundo. Para tanto, o eu do poema inicia
com uma premissa, faz a sua argumentação, concluindo o pensamento, a partir de uma
perspectiva em que se inclui no discurso.
A ideia inicial apresentada ao leitor, nesse sentido, está no primeiro verso do poema,
“O último andar é mais bonito”, construção que tem como argumentação os seguintes versos:
“do último andar se o mar” (2º verso); “Todo o céu fica a noite inteira / sobre o último
andar” (7º e 8º) e “quando faz lua no terraço, fica todo o luar” (10º e 11º). Diante dessa
exposição de argumentos, o eu anunciante conclui: “É lá que eu quero morar”.
Como segunda tese do poema, temos o último andar como algo necessário, no sentido
de que propicia o devaneio: de lá, olha-se a realidade “como se fosse”, pelas lentes do faz-de-
conta, de modo que “tudo parece perto no ar” (verso 17); além disso, o último andar permite
uma visão panorâmica do mundo (verso 16), funcionando também como espaço de proteção,
afinal, “Os passarinhos lá se escondem/ para ninguém os maltratar”. Diante desse raciocínio,
o eu-lírico conclui, novamente, com o refrão, “É lá que eu quero morar”.
Esses argumentos, favoráveis à caracterização positiva do último andar, superam, por
sua vez, o único dado que poderia enfraquecer o desejo de se morar nesse lugar: o fato deste
se localizar muito longe e custar-se muito a chegar. A respeito desta ideia, o eu-lírico reitera:
“Mas é lá que eu quero morar”.
Para construir tais argumentos, Cecília Meireles faz “O último andar” dialogar com
outros textos de sua autoria, escritos para o público adulto, evidenciando aspectos de
intratextualidade em sua obra. É o que sucede quando o eu-lírico expõe o seu desejo de morar
no último andar, como espaço que lhe propicia o sentimento de cidadão do mundo, na medida
106
em que de “se avista o mundo inteiro” e “tudo parece perto no ar”, pensamento que dialoga
com o primeiro poema de Cânticos:
Não queiras ter pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o céu.
Não arranques pedaços do mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto,
Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
Te ponha em tudo,
Como um Deus.
(MEIRELES, 2001, p. 121)
Notamos também a ligação do poema “O último andar” com a crônica “A ilha do
Nanja”, quando Cecília Meireles caracteriza os espaços do último andar e da ilha, como
lugares ideais, propiciadores de proteção e de acolhida ao sentimento de comunhão com o
outro e com a natureza.
A respeito da ilha do nanja, Cecília diz:
Durante o Natal, na Ilha do Nanja, ninguém ofende o seu vizinho antes, todos se
saúdam com grande cortesia, e uns dizem e outros respondem no mesmo tom
celestial: "Boas Festas! Boas Festas!"
Ninguém pede nada. Mas todos dão qualquer coisa, uns mais, outros menos, porque
todos se sentem felizes, e a felicidade não é pedir nem receber: a felicidade é dar.
Pode-se dar uma flor, um pintinho, um caramujo, um peixe trata-se de uma ilha,
com praias e pescadores! uma cestinha de ovos, um queijo, um pote de mel (...).
mesmo quem um carneirinho, um pombo, um verso! Foi que me
ofereceram, certa vez, um raio de sol!
(...) As crianças brincam com pedrinhas, areia, formigas: o sabem que há pistolas,
armas nucleares (...), tudo é muito mais maravilhoso, em sua ingenuidade. Os
mortos m cantar com os vivos, nas grandes festas, porque Deus imortaliza, reúne,
e faz deste mundo e de todos os outros uma coisa (MEIRELES, 1982, p. 109,
110).
Esse pensamento perpassa todos os versos do poema, sobressaindo a ideia de espaço
idealizado, em contraposição à realidade dos “andares de baixo”, em que a liberdade e a
comunhão com o outro e com a natureza acontecem mais no nível do sonho do que da ação
concreta, prevalecendo, entre os homens, o sentimento de concorrência e de opressão. Para
fugir dessa realidade, Cecília criou a “Ilha do Nanja” e o “Último andar”, lançando neles o
desejo humano de superar as circunstâncias reais que o oprimem e o limitam, acordando, nos
leitores, a capacidade de sonhar, especialmente, com as pequenas alegrias, sejam aquelas que
107
estão presentes no cultivo do altruísmo, sejam aquelas que se realizam no recebimento de um
verso, de uma flor ou de “um raio de sol” ou ainda aquelas alcançadas quando nos dispomos a
assistir aos espetáculos da natureza, muitas vezes, ao alcance de nossas janelas, mesmo nos
“andares de baixo”, como sugere outra crônica ceciliana, intitulada “Arte de ser feliz”, texto
que também possui afinidade temática com o poema “O último andar. As relações de sentido
entre esses dois textos ocorrem, sobretudo, quando o eu-lírico do poema fala, na última
estrofe, da ilusão de ótica, propiciada pela visão que se tem a partir do último andar, de modo
que “Tudo parece perto no ar” e quando Cecília Meireles, no início da crônica, descreve a
sensação de felicidade provocada pela visão de um chalé:
Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé
brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo
branco. Ora, nos dias mpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça,
o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e
sentia-me completamente feliz (MEIRELES, 2005, p.20).
Nessa crônica, conforme ressalta Valdenia Silva (2008, p.105), Cecília Meireles abre
diversas janelas, das quais o eu-enunciativo do texto lança seu olhar, “como ato de
contemplação (...) e aprendizado”. No caso da primeira janela, referenciada acima, “Cecília
nos apresenta a imagem do mundo infantil, no qual o homo imaginarius se faz presente,
através dos jogos construídos pelo olhar lúdico e poético da criança”.
O poema “O último andar” e os outros textos cecilianos, submetidos à comparação,
aproximam-se também em sua natureza poética, fazendo ressoar, não apenas ideias, no
entanto aquela “música da linguagem” de que falou Herder (1891), ligada ao canto dos afetos.
No caso do poema “O último andar”, essa música da linguagem e dos afetos encontra
ressonância também na realização de alguns expedientes da “música de papel”, isto é, na
regularidade ritmo-sonora da estrofe e dos versos e no uso do refrão.
“O último andar” apresenta-se organizado a partir de uma estrofação regular em
tercetos, cujos versos polimétricos conservam, no geral, a acentuação silábica, ao molde dos
padrões métricos tradicionais: os primeiros versos das estrofes são octossílabos, com
acentuação nas sílabas e 8ª; os segundos versos variam entre o hexassílabo e o octossílabo,
com acentuação nas sílabas 3ª e (nos dois hexassílabos), e 4ª e (nos quatro octossílabos),
108
enquanto os terceiros versos das estrofes, concebidos como o refrão do poema (“É que eu
quero morar” / “Mas é que eu quero morar”), apresentam-se, preferencialmente, a partir da
medida do octossílabo, com acentuação nas sílabas 2ª, 5ª e 8ª ou 3ª, 5ª e 8ª.
Entre as várias possibilidades de realização dos polimétricos e suas acentuações,
algumas métricas ganham evidência por serem reiteradas ao longo do poema, ajudando a
definir o perfil musical do poema, como é o caso dos octossílabos, presentes em 15 dos 19
versos do poema. Os outros tipos métricos, juntamente com o caráter plural dos modelos de
acentuação nos octossílabos e outros tipos de versos, estão a favor da novidade e da variedade
rítmicas necessárias à musica do poema, no sentido de evitar a monotonia da repetição.
Essa sensação de novidade é percebida na primeira estrofe, em que, após a
repetição do octossílabo, acentuado na e sílabas, segue-se um novo octossílabo, cujas
acentuações acontecem nas sílabas 2ª, 5ª e 8ª. A demonstração rítmica dessa estrofe é:
N’úl ti m’an DAR é mais bo NI to
D’úl ti m’an DAR se o MAR
É que eu QUE ro mo RAR
Abstraídas as sílabas dos versos, temos a cadência:
di-di-di-DUM-di-di-di-DUM
di-di-di-DUM-di-di-di-DUM
di-DUM-di-di-DUM-di-di-DUM
A introdução de outra medida no poema também propicia o efeito de novidade. É o
caso do hexassílabo entre dois octossílabos, como se dá no 2º verso da quarta estrofe:
Quan do faz LU a no ter RA ço
fi ca TO d’o lu AR
É que eu QUE ro mo RAR
di-di-di-DUM-di-di-di-DUM
di-di-DUM-di-di-DUM
di-DUM-di-di-DUM-di-di-DUM
Esse aspecto é ainda mais evidente nas últimas sequências do poema, quando o último
verso, ao mesmo tempo em que reitera o objeto de referência do texto, evocado desde o título
109
e o verso inicial desse, traz também o repouso para o poema, semelhante ao que ocorre na
música, em que o uso da tônica da tonalidade, confirma o tom da música e faz a melodia
repousar:
De sea vis tao MUN d’in TEI ro
Tu do pa RE ce PER to NOAR
É que eu QUE ro mo RAR
n’úl ti m’an DAR
di-DUM-di-di-DUM-di-di-DUM
di-di-di-di-DUM-di-di-DUM
di-DUM-di-di-DUM-di-di-DUM
di-di-di-DUM
O refrão também contribui bastante para a música do poema, na medida em que ajuda
a manter a métrica predominante do poema e faz ressoar, entre as estrofes, o bloco rítmico-
sonoro, inerente ao verso que pertence. Além do mais, o refrão serve de desfecho às estrofes,
como acontecia no canto coral e nas execuções antifônicas, em duelos (SPINA, 2002, p. 51),
em que esta estrutura era cantada, conjuntamente pelos coros. Assim sendo, numa realização
oral do poema “O último andar”, seria interessante que esta estrutura verbal pudesse ser dita
ou cantada por várias vozes ao mesmo tempo.
Acrescente-se ainda o fato de o refrão servir de princípio disciplinador do poema
lírico, como o são outras estruturas fundadas na repetição, dando unidade ao texto,
especialmente, porque o livra “do perigo de derramar-se” em sua “música da linguagem”,
conforme salienta Staiger (1997, p. 51).
As rimas, como elemento sonoro de repetição, também colaboram para a musicalidade
do poema ceciliano, servindo, inclusive, como princípio regulador, como já salientamos em
outros momentos. Em Ou isto ou aquilo, elas são de um único tipo, em “ar”, e acontecem de
forma emparelhada, nos finais dos segundos e terceiros versos das estrofes, numa recorrência
de 13 vezes ao todo, número expandido, quando se considera a presença dessa mesma rima,
internamente, em todas as estrofes.
Seguindo o que defendem os estudiosos da poesia, ao ressaltar que os elementos de
musicalidade do poema são instrumentos de sentido, percebemos que a utilização da rima no
poema “O último andar” está intimamente em harmonia com o sentido do texto, pois, a
110
sonoridade aberta e brilhante do fonema vocálico /a/, consoante M. Câmara Jr (1978, p. 39),
pode apontar para o caráter solar do poema e para a amplidão dos espaços evocados no texto.
Em contrapartida, a invariabilidade sonora em todo o poema se coaduna com o modo firme e
repetitivo como o eu-lírico expõe o desejo de morar no último andar, numa demonstração de
certeza daquilo de que fala, ideia que encontra respaldo na repetição do refrão e do sintagma
“último andar”, ao longo do poema.
Tudo o que dissemos sobre o “O último andar” demonstra, apenas e parcialmente, a
habilidade de Cecília Meireles em aproximar as duas musas de Apolo e em conjugar a
musicalidade da forma à musicalidade dos afetos, numa valorização do objeto estético
oferecido às crianças.
“Figurinhas (II)”
Alguns poemas líricos de Ou isto ou aquilo se nutrem das lembranças afetivas do eu-
lírico, numa estreita relação com a vida real de Cecília Meireles, como é o caso de
“Figurinhas (II)”, poema em que reina uma espécie de música carregada de emoções, que
parece brotar do íntimo de quem a enuncia, transbordando, no momento da leitura, para outros
eus, os dos leitores ou dos ouvintes, numa identificação considerável entre obra e leitor.
Colabora para isso, o fato do poema está centrado na primeira pessoa do discurso, estrutura
em que o leitor “assume o ‘eu’ que se expressa”, de modo que sua voz “se confunde, por
um tempo” com a do eu lírico (JOUVE, 2002, p. 109). Nessa “interiorização do outro”, numa
mistura entre os ‘eus’ reais e os ‘eus’ artísticos, o leitor pode vivenciar uma gama de
sentimentos e situações, muitas vezes, impossíveis de acontecer com os ‘eus’ verdadeiros,
enrijecidos pelas experiências cotidianas:
Figurinhas (II)
Onde está meu quintal
amarelo e encarnado,
com meninos brincando
de chicote-queimado,
com cigarras nos troncos
e formigas no chão,
e muitas conchas brancas
dentro da minha mão?
E Júlia e Maria
111
e Amélia onde estão?
Onde está meu anel
e o banquinho quadrado
e o sabiá na mangueira
e o gato no telhado?
- e a moringa de barro,
e o cheiro do alvo pão?
E a tua voz, Pedrina,
sobre meu coração?
Em que altos balanços
se balançarão?...
(p. 1493)
Nesse poema, em que o eu-lírico revisita, através da lembrança, algumas sensações de
sua infância, sentidas na convergência do visual, do tátil, do olfato, da audição e do paladar,
os brinquedos da infância são colocados no mesmo patamar das relações afetivas e humanas e
das belezas naturais, associadas a alguns elementos da fauna e da flora que envolviam o
cotidiano do sujeito das lembranças, não se hierarquizando nem mesmo com os elementos que
simbolizam as necessidades básicas do homem, isto é, o pão e a água. Entre esses brinquedos,
alguns, de pouca evidência nos contextos urbanos atuais, ressaltamos as de cunho coletivo
como a brincadeira do chicote-queimado, do passa o anel, do banquinho quadrado, do
balanço, e as de natureza individual, como a atividade de brincar com conchas do mar, de se
divertir em ver os bichinhos da natureza e seus movimentos.
Entre as pessoas lembradas, junto às circunstâncias lúdicas do eu-lírico, ressaltamos a
referência à Pedrina
114
, como a voz adulta que lhe marcou, ao falar a linguagem do coração.
Essa referência no poema constitui um dado autobiográfico da escritora, de forma explícita,
pois Cecília Meireles não ficcionalizou nem mesmo o nome daquela que foi sua babá e com
quem vivenciou muitas experiências junto à cultura lúdica da infância e à tradição oral, fato
que ajuda a conferir, às memórias evocadas no texto, um tom confessional, como se tudo, de
fato, fizesse parte das vivências da infância da escritora.
No entanto, sabemos que na obra de Cecília Meireles, e, de um modo geral, na
literatura, a memória é sempre estetizada, como lembra Gilbert Duran:
a memória pertence de fato ao domínio do fantástico, dado que organiza
esteticamente a recordação. É nisso que reside a ‘aura’ estética que nimba a infância;
a infância é sempre e universalmente recordação da infância, é arquétipo do ser
114
Na crônica “Meus orientes” (MEIRELES, 1980), Cecília Meireles fala da contribuição de Pedrina na sua
formação cultural.
112
eufêmico, ignorante da morte, porque cada um de nós foi criança antes de ser
homem (DURAND, 1997, p. 402).
Em “Figurinha (II)”, a recordação da infância se tece na confluência entre o vivido e o
imaginado, entre a lembrança e o esquecimento, de modo que o texto tanto pode ser lido em
sua relação com a vida real da escritora, como em sua autonomia estética, representando
certas imagens inerentes à infância do eu-lírico, que na leitura, podem evocar as próprias
memórias do leitor, principalmente daqueles leitores mais velhos, que se distanciaram de
certos brinquedos da infância e de certos contatos afetivos.
A música pungente do poema se sustenta na combinação entre a natureza do conteúdo
evocado e às potencialidades musicais da forma, especialmente, mediante o expediente da
rima e do metro.
No primeiro caso, a utilização das rimas finais em “ado” (4x) e em “ão” (6x), nos
versos pares, harmoniza-se com o todo do poema, no que tange ao sentimento ambíguo que
envolve o discurso de memória, entrelaçado de alegria e dor, ao mesmo tempo. Neste
discurso, conforme Bosi “a construção da presença é uma alegria difícil porque fundada na
dor da ausência” (BOSI, 2003, p. 126). No poema “Figurinhas (II)”, as sensações de alegria e
de tristeza são sugeridas pelos dois tipos de rima: no primeiro caso, a presença da vogal clara
e tônica á” pode ser associada à alegria de se poder voltar ao tempo da infância, através da
memória, enquanto a nasal “ã” traz a nostalgia que envolve a lembrança de um fato
acontecido, numa lógica em que a memória, ao mesmo tempo em que reencontra o tempo
perdido, este lhe chega apenas como um tempo negado, (DURAND, 1997, p. 401, 402), uma
vez que o fato lembrado não poderá acontecer novamente.
A regularidade da métrica também funciona como índice de musicalidade no poema
“Figurinhas (II)”. O texto é organizado, predominantemente, em torno do hexassílabo, com
acentuações preferenciais nas sílabas 3ª e , exibindo uma estrutura de perguntas sem
respostas, terminando com o seguinte questionamento do eu-lírico: “Em que altos balanços se
balançarão” os seres e os objetos de minha infância? Através dessa imagem, a autora alude à
memória como um balanço: este, com seu movimento pendular, remete ao movimento da
memória, do lembrar como ato oscilatório em sua unidade com o esquecimento. Certamente
esses personagens do passado se encantaram, habitando agora os limites entre o sonho e a
lembrança do eu lírico.
Em “Figurinhas (ii)”, o movimento do balanço também evoca o ritual de passagem da
morte para a vida, como postulam os hindus, através dos Brahmanas “obras religiosas hindus
113
do período chamado bramânico”, nas quais o balanço, isto é, a retouça, é denominada de
“navio que conduz ao céu” (CHEVALIER, 2007, p. 115). Conforme a simbologia do
Samsara, os indianos acreditam ainda que ao balanço “estão suspensos todos os seres e todos
os mundos”, objeto que “não cessa jamais de balançar” (CHEVALIER, 2007, p. 115), sendo
considerado instrumento sagrado de “comunicações entre a terra e o céu” a ponto de, em
algumas regiões da Índia, seu uso ser restrito ao contexto religioso.
Como Cecília Meireles nutria grande admiração pela cultura indiana, acreditamos que
ela tenha atualizado no poema essa simbologia religiosa do balanço, como uma imagem capaz
de apontar para o entre-lugar em que habitam os seres e as coisas do passado, ao mesmo
tempo em que responde, de certo modo, às perguntas que foram se acumulando ao longo do
poema.
Além do balanço, as cores mencionadas no poema também mantêm unidade com o
sentido do texto, uma vez que os objetos ligados ao mundo da infância são caracterizados por
determinadas cores que podem representar esse mundo, notadamente, em seu aspecto de
pureza, promessa de vida e de riqueza. É o caso do branco, do amarelo e do encarnado: o
primeiro, em sua evocação da pureza original e inicio da vida diurna, como “o branco da
alvorada, quando a abóboda celeste reaparece, ainda vazia de cores”, apesar de fértil em
potencialidade de coloração (CHEVALIER, 2007, p. 142); o encarnado, também associado ao
princípio da vida, enquanto o amarelo simboliza a riqueza do universo infantil, suas
potencialidades de beleza e de felicidade plena, atributos que fazem os poetas cultuarem a
infância, reiteradamente, ao longo dos tempos, como destacou Durand (1997, p. 402).
Em “Figurinhas (II)”, Cecília pinta a infância com cores alegres, sem, no entanto,
deixar de revelá-la em seu estado de efemeridade, situação que o tom menor da música da
linguagem e dos afetos no poema.
Através desse tom menor, o eu-lírico canta suas lembranças infantis, seus momentos
de felicidade junto à cultura lúdica e às pessoas queridas, despertando no leitor sensações de
ternura e saudade como se o texto fosse a própria expressão de seus sentimentos e
experiências.
Esse é o tom de “As duas velhinhas”, de “O vestido de Laura”, de “Pescaria, entre
alguns outros poemas. Todavia, o que predomina em Ou isto ou aquilo são os tons maiores da
alegria e da brincadeira, como em “Passarinho no sapé”, “A avó do meninó”, “A bailarina”,
“O eco”, “A folha na festa”, “Jogo de bola”, “Leilão de jardim”, “A língua do nhem”, etc.
114
115
3 CECÍLIA MEIRELES EM CANTO: OU ISTO OU AQUILO ENTRE OS
MOVIMENTOS DE LEITURA E DE RECRIAÇÃO MUSICAL
3.1 Ideias Norteadoras da Pesquisa
Aproximar a educação da arte tem sido uma das principais preocupações de poeta-
educadores do porte de Cecília Meireles, ícone da cultura brasileira que permeou a sua
caminhada literária com projetos direcionados à educação estética, especialmente de crianças
e jovens, como lembra Maria Valdênia da Silva (2008). Cecília, reiteradamente
,
salientou, em
suas crônicas de educação, a necessidade de se conjugar poesia e educação, numa “assonância
completa, uma vez que ambas são a própria ansiedade de representar a vida: uma imaginando-
a, outra procurando cumpri-la, uma anunciando-a, outra fixando-a em realidade"
(MEIRELES, 2001, v. 4, p. 75).
A autora de Canções defende que os poetas, em geral, são as criaturas que
primeiramente pensam esse tipo de educação,
podendo ser considerados como educadores por
excelência, ideia corroborada por Glória Kirinus, quando reflete sobre a função social do
poeta, embora seu discurso encontre-se, em alguns momentos, eivado de certo idealismo,
sobretudo, no que se refere à separação do poeta dos interesses materialistas:
Pouco comprometidos com valores materiais, os poetas e/ou sábios são mais livres e
mais ousados em mobilizar o status quo da linguagem e da realidade. Muitos deles
são andarilhos do mundo e insaciáveis pesquisadores de geografias alheias. Eles
gostam de mergulhar nos mistérios da vida, nos segredos da natureza, na
complexidade humana e na mina dos livros. Tanto Cecília Meireles como Gabriela
Mistral e Rabindranath Tagore, todos, poetas educadores, são bons exemplos dessa
liberdade na linguagem e na vida e ao mesmo tempo numa preocupação com a
Educação. De uma ou de outra maneira eles se definem amigos dos ventos, das
águas e sentem a necessidade de invadir a sala de aula dessa felicidade, tão próxima
do jogo, que a criação poética permite e propicia
Um pouco vates, os poetas vaticinaram esperanças e revoluções; (...) um pouco
sacerdotes, muitos religaram a sua voz pessoal com o anseio religioso da
fraternidade universal. E, finalmente, um pouco crianças, eles já brincaram de faz de
conta fazendo arte num poema, num conto, em qualquer con-texto. Equilibrando
lucidez e distração, prepararam sonoridades, imagens e significados no pequeno
cosmos do recém-criado (KIRINUS, on line
115
).
115
KIRINUS, Glória. Quando os poetas pensam a educação. 2007. Disponível em:
<http://www.ideducacao.org.br/index.php?p=noticias&n=35>. Acesso: 18/10/2008.
116
Deixadas de lado as nuances românticas que perpassam a visão de Kirinus, podemos
perceber que suas ideias se coadunam com o pensamento de Roland Barthes, ao definir a
literatura, em sua Aula, como um modo de “trapacear com a língua”, num “logro magnífico
que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da
linguagem” (BARTHES, 1978, p. 16).
Nessa trapaça, em que o jogo com as palavras “é, ao mesmo tempo uma atividade sem
finalidade outra senão o próprio jogo (função estética) e uma tática de crítica e transformação
da ideologia congelada nas repetições linguageiras (função política utópica)”, como destaca
Perrone-Moisés (In: BARTHES, 1978, p. 83), a literatura “faz girar saberes”, sem fetichizá-
los”, pois “o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro” e se de uma maneira
encenada (BARTHES, 1978, p. 18 e 19), isto é, através do fingimento e da representação.
Por essas e outras razões, a educação não pode prescindir da função lúdica e social da
poesia, como postula Edgar Morin, especialmente, porque essa arte, em sua complexidade,
Revela que habitamos a Terra, não só prosaicamente – sujeitos à utilidade e à
funcionalidade – mas poeticamente destinados ao deslumbramento, ao amor, ao
êxtase. Pelo poder da linguagem, a poesia nos põe em comunicação com o mistério,
que está além do dizível. (MORIN, 2005, p.45).
Partilhando desse pensamento, Cecília Meireles diz, em uma de suas crônicas, escritas
em 1942: “É poesia que precisamos dar às crianças. Poesia natural, simples e profunda.
Radicação na vida. Visão da beleza do mundo. Amor à terra. O mais lhe virá por acréscimo”
(MEIRELES, 2001, p. 353 ,v.5).
Certamente, Cecília Meireles refere-se à poesia em seu sentido amplo, abrigando
desde o poema a outras criações e eventos humanos, poesia que, segundo Octavio Paz (1982,
p. 17), “se polariza, se congrega e se isola num produto humano: quadro, canção, tragédia”,
entre outros. Esta concepção, por sua vez, não permite que se confunda poesia e poema,
conforme o crítico mexicano:
O poético é poesia em estado amorfo; o poema é criação, poesia que se ergue. no
poema a poesia se recolhe e se revela plenamente (...). O poema não é uma forma
literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o homem. O poema é um
organismo verbal que contém, suscita ou emite poesia (PAZ, 1982, p. 17).
117
Nessa perspectiva, a recepção é de suma importância, pois, um texto se converterá
em poema, quando o leitor insufla a poesia que nele. Para que isso ocorra de fato, a
educação literária não pode ser “oferecida em migalhas”, na acepção do escolanovista francês,
Célestin Freinet (1991, p. 31), através de práticas que quase não se adivinha o sabor e o cheiro
dos textos e das experiências, dados são o processo de fragmentação do conhecimento e dos
textos, a superficialidade de suas abordagens e o utilitarismo que cerceia a educação, bem
como a falta de conexão entre os saberes escolares e a vida social do estudante (MALARD,
1985; SOARES, 1999), de modo a não considerar a ideia de que “a leitura do mundo precede
sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquela, como
destacou Paulo Freire (2005), numa conferência, proferida em 1981.
Pensar uma educação que procurasse reverter essas questões foi uma das preocupações
também de nossos escolanovistas, como Cecília Meireles, Anísio Teixeira e outros, os quais
se insurgem contra a escola tradicionalista, centrada, notadamente, no ensino enciclopédico e
no predomínio da cabeça bem cheia” sobre “a cabeça bem feita”, na acepção de Montaigne
(1533-1592), pensamento retomado, na atualidade, por Edgar Morin (2005).
Em consonância com esse pensamento, o poeta Carlos Drummond de Andrad, reflete
sobre essa questão, ao dizer que a escola brasileira, no geral, não tem promovido a educação
poética de nossas crianças, pois “enche o menino de matemática, de geografia... não repara
em seu ser poético, não o entende em sua capacidade de viver poeticamente o conhecimento e
o mundo” (DRUMMOND, 1974)
116
, fazendo com que a vivência literária e poética, no
sentido geral, não se concretize na escola.
Esse tipo de postura diante da construção do conhecimento na escola não contribui
para que os alunos usufruam o seu direito à arte e à literatura, tomadas como bens
fundamentais à humanização e ao enriquecimento do homem em todos os tempos, “bens
incompressíveis (...), que não podem ser negados a ninguém” (CANDIDO, 1989, p.111).
No âmbito da literatura, a resistência à fruição estética se deve, notadamente, à
escolarização inadequada dos saberes literários, de acordo com Magda Soares (1999, p. 17 -
43), num processo que transforma o texto literário em pretexto para se trabalhar conteúdos
gramaticais ou de outra natureza.
Quanto ao acesso à leitura do texto poético, um dos entraves principais, presentes nas
escolas, em geral, tem sido a falta de mediação entre o leitor e o texto, no caso o poema,
116
O texto está disponível em <http://www.ccsa.ufrn.br/5sel/v2/pdf/minicurso06_aeducacaodoserpoetico.pdf>.
118
conforme Ligia Averbuch (1991). Isso é constatado em todos os níveis da escolarização, da
educação básica à secundária, tornando aceitável a ideia de que, no contexto escolar, muitos
leitores realizam sozinhos “sua incursão pelo domínio da poesia” (AVERBUCH, 1991, p. 64).
A falta de mediação da leitura literária não é algo preponderante apenas no contexto
brasileiro, sendo, consoante Teresa Colomer, uma realidade também na educação de certos
países da Europa, como a Espanha:
no ensino secundário, é comum ante a dificuldade de guiar a leitura de obras
integrais, prefere-se a leitura de fragmentos e, muito frequentemente, mais do que
orientar a leitura dos alunos, é o professor quem interpreta, o que faz com que os
estudantes se instalem, muitas vezes, na passividade intelectual e tomem notas para
que, diante de um exame, comprovem nos textos as caracteristicas gerais
enumeradas ou se fixem em saber que devem admirar algumas obras determinadas.
(COLOMER, 2007, p. 182).
A educação estética, nesses moldes, não pode propiciar a formação integral do
homem, como advoga Morin (2004), principalmente satisfazer as suas aspirações por rosas
como “o pão do espírito”, conforme preconiza Freinet (1991, p. 104).
Ao refletir sobre essa temática, Cecília Meireles postula uma educação em que a arte
esteja presente, pois, conforme salienta a escritora,
Não sofrimento maior que o das criaturas que vivem sem beleza. Porque essas
realmente serão incapazes de resistir ao peso dos acontecimentos: falta-lhes aquele
dom de tudo transformar com a força criadora que retira do fundo das noites mais
trágicas a face ressuscitada de um novo amanhã (MEIRELES, 2001, v.1, p. 37).
Cecília fala não apenas como estudiosa do tema, entretanto como alguém que
vivenciou, desde criança, a beleza da arte e soube transfigurar certas circunstâncias de
sofrimento que perpassaram, sobretudo, os seus dias de infância, como demonstra em
Olhinhos de Gato.
Ainda reiterando a necessidade do belo, citamos outro momento da escrita reflexiva de
Cecília Meireles, quando aborda o tema “Vida e educação”, em uma de suas crônicas:
Precisamos de um ambiente de estímulos vários, onde todas as grandes aspirações
humanas se sintam acordar, e tenham o encantamento de si mesmas. Há nesse
narcisismo uma virtude extraordinária. O homem gosta de se ver belo. Por que não
se lhe há de proporcionar uma oportunidade para que se sinta assim? Por que há de o
mundo ter esse empenho de estar sempre diminuindo as criaturas, detendo-as,
119
afligindo-as, fazendo com que tenham de si mesmas uma impressão de fracasso e
incapacidade? (MEIRELES, 2001, v. 1, p. 48)
A apologia feita por Cecília Meireles à educação estética tem suas bases no
pensamento do filósofo alemão, Friederich Schiller, cujas cartas sobre A educação estética do
homem, escritas no século XVIII, indicam que “o caminho para o intelecto precisa ser aberto,
pelo coração” e não apenas pelo desenvolvimento das faculdades racionais (SCHILER, 2002,
p.47), conforme observou Maria Valdênia Silva (2008). Na atualidade, essa é uma assertiva
bastante propalada por diversos estudiosos da arte e da educação, como o faz Edgar Morin.
Promover esse ideal de educação implica também não esquecer um requisito básico: a
qualificação do professor, um dos principais agentes dessa mudança. No que tange aos
educadores que trabalham com a literatura e a formação do leitor, muito ainda precisa ser
feito, uma vez que a maioria, especialmente os que atuam nas séries iniciais, sente-se
despreparada para promover a vivência das crianças com o texto poético. Isto acontece porque
a formação acadêmica do professor, obtida, geralmente, na graduação em Pedagogia, não o
prepara de forma específica para trabalhar com a literatura infantil e, notadamente, com a
poesia, considerando, por exemplo, a ausência da disciplina Literatura infanto-juvenil nas
grades curriculares do curso. Assim, não apenas lhe faltam saberes inerentes aos gêneros
literários, quanto conhecimentos sobre métodos de aplicação desse texto literário, além de
pouco conhecer sobre a natureza poética da criança, de modo que, muitas vezes, “se perde o
prazer estético que o texto elaborado artisticamente pode oferecer porque o professor lhe
dispensa o mesmo tratamento que ao texto informativo e unívoco” (KIRINUS, 1998, p.
86). Desse modo, poucos ganhos trazem certas iniciativas de intervenção educativa do
governo federal, como o projeto “Literatura em minha casa”, se o professor não for um leitor
de poesia e se não souber fazer a mediação entre as crianças e os textos.
É imprescindível, portanto, que na formação do professor, especialmente o de
Literatura e o de artes e, no geral, o professor da educação infantil e do ensino fundamental I,
haja estímulo para que o profissional desenvolva a sua educação poética, para que, além de
conhecimentos, tenha “imaginação para sugerir” e saiba “ser poeta para inspirar”, como
salienta Cecília Meireles, na crônica “Qualidades do professor (I)” (MEIRELES, 2001, v. 1,
p. 147, 148). Nessa perspectiva, ser poeta não significa escrever poemas; implica ser sensível
à linguagem do texto poético, à brincadeira e ao devaneio que ele pode propiciar, enfim ser
um leitor do texto poético para poder formar leitores nesse âmbito.
120
A formação docente, pensada por Cecília, poderia ser gestada na própria escola,
investindo na formação do leitor, futuro professor, e fora da escola, nos espaços acadêmicos,
especialmente, através dos cursos de especialização e de extensão, bem como dos congressos
e eventos congêneres na área. Em nosso país, iniciativas
117
desse porte têm dado uma
expressiva contribuição para a formação do professor que atua com a leitura literária e com a
arte. que destacar ainda o fato de que muitos dos nossos cursos de graduação têm refeito
seus projetos pedagógicos e sua grade curricular, atentando, sobretudo para a formação
didática do professor, concentrando-se muito mais nas disciplinas pedagógicas, de forma a
preparar melhor o professor para a sala de aula.
Sabemos que é preciso ainda investir muito na formação do professor, pois a educação
da sensibilidade da criança, através da arte, na escola, de hoje, sobretudo no contexto
brasileiro, é permeada de desencanto, como ressalta Kirinus (1998):
Na fase escolar o jogo pára. A roda pára de ruar e as palavras, nos seus devidos
compartimentos e comportamentos viram tristes luas-minguantes que, ao longo da
vida escolar, terminam por adormecer. A palavra, antes domingueira, sonora, lúdica
e signo-ficante, morre durante a semana no canto do caderno, nas repetitivas e
incompreensíveis conjugações verbais (...)” que até mesmo “o verbo cantar perde o
encanto (KIRINUS, 1998, p. 58).
Alguns pesquisadores têm refletido sobre essa problemática, destacando algumas
sugestões, como é o caso de Ligia Averbuch. Para essa estudiosa do tema, certas condições
básicas são necessárias para que a vivência com a poesia volte a ser “domingueira”, na
expressão de Kirinus, e não sufoque o ser poético da criança: primeiramente, espera-se que o
117
Existem, em diversas Universidades brasileiras, vários, grupos de pesquisa voltados para as questões da
leitura literária e programas de Pós-Graduação em Literatura e ensino, como é o caso do Mestrado da UFCG -
Universidade Federal de Campina Grande. Vale ressaltar também o Curso de especialização em literatura e
formação de leitores, da FECLESC (Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central - da UECE
(Universidade Estadual do Ceará) em Quixadá - CE e cursos de extensão, como o “Lavra-palavra”, sugerido e
ministrado por Glória Kirinus, no Sul e Sudeste do país, pautado sobre os brinquedos sonoros da infância, no
intuito de promover o reencontro do professor com a poesia de sua infância, preparando-o para “receber, com
toda a atenção/emoção que merecem todos os poemas selecionados (...), com o mesmo encantamento e
admiração próprios de crianças e poetas”(KIRINUS, 1998, p. 92, 93). Além disso, os eventos na área, dos
quais destacamos: o COLE Congresso de Leitura do Brasil, realizado em Campinas, desde 1978; “O Jogo do
Livro”, promovido pelo Grupo de Pesquisa do Letramento Literário (GPELL), que integra as atividades do Ceale
(Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita), evento que acontece desde 1995, com periodicidade bienual, tendo
como objetivo promover reflexões sobre o letramento literário no Brasil e os diversos usos da literatura, dentro e
fora da escola; o ENLIJE (Encontro Nacional de Literatura Infanto-juvenil e Ensino) e o SELIMEL (Seminário
de Ensino de Língua Materna, Estrangeira e Literatura), da Universidade Federal de Campina Grande, em termos
de Nordeste.
121
professor tenha qualificação na área e seja sensível ao poético para (re)aproximar a criança da
poesia; segundo, a poesia necessita ser vivenciada, especialmente como objeto lúdico, dando
prioridade ao “exercício de dizer e ouvir poemas” (AVERBUCH, 1991, p. 69), espelhando-se
nas atividades ancestrais da humanidade e nas práticas culturais da infância que ocorrem,
especialmente, na fase
pré-escolar,
quando a poesia atua eminentemente como instrumento
lúdico, através das cantigas de ninar, das parlendas e das brincadeiras de roda, entre outros.
Essa concepção de poesia encontra respaldo nos estudos de Huizinga (2007), que
aproxima essa arte do jogo, com o qual divide os mesmos atributos:
É uma atividade que se processa dentro de certos limites temporais e espaciais,
segundo uma determinada ordem e um dado número de regras livremente aceitas, e
fora da esfera da necessidade ou da utilidade material. O ambiente em que ele se
desenrola é de arrebatamento e entusiasmo, e torna-se sagrado ou festivo de acordo
com a circunstância. A ação é acompanhada por um sentimento de exaltação e
tensão, e seguida por um estado de alegria e distensão.
Ora, dificilmente se poderia negar que estas qualidades também são próprias da
criação poética. A verdade é que esta definição de jogo que agora demos também
pode servir como definição da poesia. A ordenação rítmica ou simétrica da
linguagem, a acentuação eficaz da rima ou pela assonância, o disfarce deliberado do
sentido, a construção sutil e artificial das frases, tudo isto poderia consistir-se em
outras tantas manifestações do espírito lúdico. Não é de modo algum uma metáfora
chamar à poesia, como fez Paul Valéry, um jogo com as palavras e a linguagem: é a
pura e mais exata verdade.
Não é apenas exterior a afinidade existente entre a poesia e o jogo; ela também se
manifesta na própria estrutura da imaginação criadora. (HUIZINGA, 2007, p. 147)
Sendo assim, era de se esperar que o jogo e a poesia, como “manifestações do espírito
lúdico” no homem, fossem vivenciados também no espaço da escola, sobretudo na educação
infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. No entanto, como destaca Cademartori
Magalhães (1987), o ingresso da criança na escola se pauta pelo distanciamento do jogo e
“das necessidades da criança no sentido mais amplo” em favor do seu desenvolvimento
intelectual. Na escola,
O estudo é uma atividade consagrada pelos valores adultos, a decorrência é a
subtração das horas de jogo em benefício das atividades escolares, substituição que
provoca uma ruptura na experiência infantil.
(...) O retraimento do ludismo, sem o surgimento de uma atividade substituta,
instaura um desequilíbrio, porque o jogo é uma forma peculiar de exploração do
mundo pela fantasia que, restringida, cede lugar a uma forma de informação
intelectual sobre o mundo (MAGALHÃES, 1987, p. 28).
Isso acontece, especialmente, porque a educação, de um modo geral, tem se pautado,
segundo Porcher (1982), pela visão utilitarista e pragmática das sociedades racionalistas, que
122
concebem a arte e o jogo, em virtude de sua natureza lúdica, como atividades improdutivas e
não sérias (HENRIOT, 1989). Essa percepção, por sua vez, desconsidera que o brincar é
também um dos expedientes de outras atividades tidas como sérias, como os experimentos
científicos, as construções arquitetônicas, musicais, plásticas, etc. A esse respeito, Henriot
pergunta:
Porquoi refuser de considérer qu’une opération artisanale, artistique ou technique
comme d’inventer, de fabiquer, de construire peut s’accompagner et même se
trouver dans La dépendance directe d’une intention ludique? (...) Qui pourrait
soutenir que lês peintres, lês sculpteurs, les architectes, les musiciens, s
romanciers, lês poetes ne jouent em aucune manière alors qui’ils e´laborent leurs
oeuvres?
118
(HENRIOT, 1989, p. 173)
Sendo o lúdico algo imanente à poesia e ao comportamento da criança, como defendeu
Piaget (1978), seria interessante que a vivência com essa arte na escola, preservasse esse
expediente, incentivando os leitores a jogar com o texto, como defendera Iser (1992),
explorando tanto os aspectos da melopéia (musicalidade), quanto da fanopéia (imagens) e
logopéia (sentido)
119
, conforme a modalidade da poesia.
Uma das metodologias viáveis de aplicação da poesia, junto às crianças e jovens na
escola, é aquela em que os leitores são incitados a “valer-se do “corpo da poesia”, na acepção
de Armindo Trevisan (1993, p.47), isto é, seus sons e suas imagens, sem deixar de levar em
consideração as múltiplas significações do poema, quando for o caso.
Pensamos que a prática de lidar com o corpo do poema, através da exploração da
melopéia, ou seja, dos aspectos musicais do texto, sua riqueza sonora e rítmica, pode
funcionar como agente de sedução sobre os leitores, reaproximando-os da poesia, sobretudo a
criança, ser que “é extremamente sensível aos jogos verbais, aos ritmos diferenciados, às
cadências e às particularidades sonoras das palavras”, como ressalta Alverbuch (1991, p. 73).
É mister lembrar que a evidenciação dos aspectos musicais do poema se torna ainda
mais necessária quando se está trabalhando com determinados poemas que exploram bastante
a musicalidade da tradição oral, como é o caso dos poemas de Manuel Bandeira, Cecília
Meireles e Mário Quintana, entre muitos outros.
118
“Por que a recusa em considerar que uma operação artesanal, artística ou técnica, como inventar, fabricar,
construir pode se acompanhar ou mesmo se encontrar na dependência direta de uma intenção lúdica? (...) Quem
poderia afirmar que os pintores, os escultores, os arquitetos, os músicos, os romancistas, os poetas não brincam
de nenhuma maneira quando eles elaboram suas obras?” (Tradução nossa).
119
Ezra Pound (2003), em seu ABC da literatura, detém-se nessas três categorias poéticas ao estudar a poesia
inglesa.
123
Vale ressaltar ainda que a sugestão de trabalhar a leitura do poema, pondo em
evidência seu caráter musical, não implica em desconsiderar outros aspectos e outras
linguagens. No geral, na leitura do poema, podem ser exploradas todas as possibilidades de
inventividade das crianças e do professor, com incursões em atividades ligadas à linguagem
visual e às artes plásticas, em atividades rítmicas, lúdicas e dramáticas, criando uma atmosfera
de oficina poética, uma festa da linguagem. Em outras palavras, a poesia pode ser associada a
outras formas de dizer, a outras linguagens artísticas: à música, ao teatro, à linguagem visual,
à dança, etc. Isso vale para o público leitor de poesia, dos vários níveis de escolarização.
Quanto à música, os textos poéticos também podem ser explorados através de práticas
em que o dizer inclui o cantar, trazendo, de uma vez, à sala de aula a alegria da literatura e
a alegria da música, conforme acepção de George Snyders (2001; 1992). Essa constituiu a
questão central de nossa pesquisa que procurou averiguar a viabilidade de leituras musicais do
poema em sala de aula, por crianças e jovens, destacando não apenas o saber, mas,
principalmente, a leitura sabor, na esteira do pensamento indiano, conforme destaca Trevisan,
quando diz: “é imprescindível que os professores se persuadam de que a poesia deve ser
primeiramente objeto de uma fruição pessoal. Só posteriormente, objeto de uma apreensão
cultural” (TREVISAN, 1993, p. 51).
Esse é o pensamento da poeta e educadora Cecília Meireles, quando postula, para as
crianças, a leitura desinteressada, afinada com a gratuidade da beleza estética e seu poder de
humanização, mesmo que não exista a figura do professor, instigando ou dirigindo a
comunicação entre a criança e o texto, pois “certos símbolos entrevistos pelos grandes autores
são, também, verdades, com outra aparência; exemplos gerais, figurações da experiência do
mundo, que nos acompanham para sempre, como avisos, sugestões, ensinamentos”
(MEIRELES, 1979, p. 96).
3.2 O Método Criativo-recepcional e a Leitura de Poesia
O experimento que realizamos na Escola Santa Terezinha orientou-se pelos preceitos
dos métodos criativo e recepcional
120
, propostos por Bordini e Aguiar (1988), notadamente
quanto aos objetivos a que estes se propõem, como métodos que viabilizam a expressão e
120
Utilizamos os métodos apenas como “um lembrete” e não como uma norma, na acepção de Esteban (2003, p.
131), no sentido de que não seguimos a risca todas as sugestões do método, porém, aquelas que se adequaram a
nossa proposta investigativa.
124
apreensão de práticas de cunho artístico, a partir do texto literário, conjugado sob a
perspectiva de objeto de prazer e de provocação à aquisição de saberes. Essa foi a principal
meta atingida com a oficina “Poesia e música na sala de aula”, notabilizando o ensino da
literatura, mediante vivências criativas e interativas entre texto e leitor, nas quais os alunos
são vistos como “artistas” e agentes do conhecimento, e coautores do texto literário, objeto
móvel, passível de ser fruído de múltiplas formas.
É importante destacar que as experiências literárias, a partir do método criativo,
inserem-se nos domínios do jogo, em seu sentido amplo, exigindo, do professor, planejamento
para que se atinja o que Horácio sugeriu em sua Arte poética: deleite e conhecimento.
Trata-se de um método que possibilita, ao aluno, o trabalho com os dois pólos de sua
natureza cognitiva: a razão e a sensibilidade, numa relação de reciprocidade, ressaltando no
sujeito os seus insights e o seu espírito criativo, alicerçados nas suas potencialidades
singulares de sujeito e nos saberes da tradição, que contribuem, em parte, para orientar os
fluxos intuitivos. Disso resulta a criação de eventos comunicativos, que constituem a
concretização das potencialidades subjetivas, moldadas segundo os referenciais de uma dada
cultura:
O momento da visão intuitiva é um momento de inteira cognição que se faz
presente. Internalizamos de pronto, em um momento súbito, instantâneo mesmo,
todos os ângulos de relevância e de coerência de um fenômeno. Nesse momento,
aprendemos ordenamos reestruturamos interpretamos a um tempo só”
(OSTROWER, 1984, p. 68). “É o instante do insight, da intuição plena, que
mobiliza o sujeito em termos afetivos, intelectuais, inconscientes e conscientes (...).
Para a realização da forma que lhe vem à mente através do insight, é necessário
selecionar o material adequado e trabalhar sobre ele por meio de técnicas também
adequadas, que viabilizem a forma intuída. A interação do sujeito criador com o
material e as técnicas, porém, se instaura igualmente no nível intuitivo, pois é típico
do processo criativo o ensaio-e-erro, que se repete sobre o material até que o criador
sinta que a forma obtida é definitiva, isto é, não pode ser mais modificada porque
corresponde à intuição orientadora do processo inteiro (BORDINI e AGUIAR,
1988, p. 64, 65).
No tocante à composição musical do poema, o processo de ensaio-e-erro é de
fundamental importância para se atingir o resultado desejado, tendo em vista a beleza, a
comunicabilidade e a significância da criação artística.
Embora seja amplamente conhecida a predisposição do homem para a invenção e a
criatividade, não é inoportuno dizer que o professor necessita provocar a capacidade criativa
do aluno, pois o processo criativo, conforme destacam Bordini e Aguiar (1988, p. 64),
“depende de um incentivo que lhe é lançado por uma situação vivencial qualquer, a qual
125
movimenta a interioridade e instala nela um desequilíbrio, uma tensão psíquica”, levando o
sujeito a resolver o problema-desafio.
Quanto ao método recepcional, ele também se tornou fundamental na experiência de
leitura com os poemas de Cecília Meireles, porque, embasado nos pressupostos da Estética da
recepção, concebe o texto como um objeto inacabado, formatado e atualizado,
temporariamente, em cada ato de leitura, abrindo espaços para a atuação da criatividade do
leitor.
A experiência estética, vista pelo viés da Estética da recepção, consubstancia,
especialmente, a poíesis, conforme Jauss (2002, p.100-101), função fundamental à
identificação do leitor com o texto, voltada para o prazer do leitor a partir do sentimento de
co-autoria em relação à obra. A esse respeito, W. Iser (1999, p. 10) defende que “a leitura
se torna um prazer no momento em que nossa produtividade entra em jogo, ou seja, quando os
textos nos oferecem a possibilidade de exercer as nossas capacidades”. Esse foi um dos
cuidados que tivemos quando selecionamos os poemas de Cecília Meireles para compor o
corpus de nossa pesquisa, textos que apresentam um alto teor de musicalidade, destacando-se
também pela ludicidade que carregam.
Na experiência com poemas de Ou isto ou aquilo em sala de aula, a poíesis foi
concretizada, sobretudo, pelo viés da música, num movimento em que os leitores, estimulados
pelo mediador e pelo próprio texto, interagiam com a música implícita dos poemas, com seus
jogos lúdicos e com o tom que o conjunto do texto lhe sugeria, criando melodias que
traduziram a sua leitura dos textos, garantindo-lhes o direito de se sentirem co-autores dos
textos de Cecília Meireles.
Refletindo sobre a ideia de co-autoria, W. Iser (1999) compara o texto literário a uma
partitura interpretada por um executante de acordo com sua subjetividade e saberes. Sendo
uma partitura, o texto traz orientações que conduzem os leitores em suas interpretações
subjetivas e não os deixa à deriva, sem freios como se o objeto estético servisse apenas de
subterfúgio para a expressão de emoções ou ideias que pouco dizem sobre o texto e falam
muito mais do sujeito leitor. Ao mesmo tempo, semelhante a uma partitura, “não somos
capazes de apreender um texto num momento” (ISER, 1999, p. 11), pois ele não se revela
por inteiro diante de nossa percepção como outros objetos; ao contrário, “o texto apenas pode
ser apreendido como ‘objeto’ em fases consecutivas de leitura” (ISER, 1999, p. 12). Além
disso, diferente de outros objetos, não nos colocamos fora do objeto literário, no entanto, nos
126
movemos “por dentro do que devemos apreender” (ISER, 1999, p. 12), interpretando-o de
acordo com nosso modo peculiar de traduzir seus códigos, os quais apontam caminhos na
leitura, sem, no entanto, ter o controle absoluto sobre o leitor.
Na confluência dessas ideias, Cecília Meireles, através do eu-lírico do poema
“Herança”, ao falar da sua obra poética, pergunta sobre os efeitos e as experiências que os
leitores alcançarão na leitura de sua obra poética:
Eu vim de infinitos caminhos,
e os meus sonhos choveram lúcido pranto
pelo chão.
Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,
esta vida, que era tão viva, tão fecunda,
porque vinha de um coração?
E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,
do pranto que caiu dos meus olhos passados,
que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão?
(MEIRELES, 2001, p. 111)
Certamente, são muitas as contribuições que a obra de Cecília Meireles pode oferecer
aos leitores, sobretudo ao leitor habituado à obliquidade do discurso poético, atribuindo
significâncias múltiplas e bem fundamentadas aos textos lidos. Isso não equivale a dizer que
os leitores iniciantes, como as crianças, não possam interagir com os textos de Cecília,
apenas, acreditamos que eles não se movimentarão com tanta destreza em construir
suplementos de significações para certos textos, em virtude da sua própria história de leitura,
das suas experiências de mundo e da natureza oblíqua do discurso literário, entre outros. Se
essa assertiva fosse falsa, não haveria necessidade de que os textos poéticos destinados às
crianças apresentassem, predominantemente, uma linguagem simples, numa estrutura
descritiva e/ou narrativa lineares, numa primazia dos recursos lúdicos e de musicalidade sobre
a linguagem figurada, como ocorre, por exemplo, com os poemas de Ou isto ou aquilo.
Na interação com o texto literário, o leitor, além de enriquecer a si mesmo, também
pode enriquecer o texto e os escritores sabem disso. Nesse aspecto, vale ressaltar o que diz
Cecília Meireles a rio de Andrade, numa de suas correspondências, datada em 19 de
agosto de1942:
127
Mário, o que nós escrevemos passa a ser outra coisa, a cada pessoa que nos lê... E
eles gostam não é do que nós dissemos, mas do q. eles supõem encontrar, mesmo
quando não exista. Voainda não se viu interpretado pelos seus leitores, e, mais do
que isso, adorado na interpretação que lhe ofereciam? E não se sentiu compungido?
As criaturas sentem as nossas experiências através das suas experiências. Isso
sempre diminui muito a intensidade da criação. Quando nós sentimos a experiência
alheia através da nossa - como somos hiperlatísicos, doentes, loucos, “luas!”, poetas
transformamos aquilo em música, poesia, delírio, uma coisa maior que nós,
arrebatadora e durável. os da nossa espécie, a quem falta, porém, esse dom de
realizar, são capazes de receber o que realizamos, com força equivalente. Os outros
tornam a retirar parece-me da forma engrandecida que oferecemos o rudimento
interior que chegam a perceber. O mais é como uma auréola em redor percebem-
na, deslumbram-se, com ela, mas não transitam no que ela possa conter de beleza
também essencial, porque é o núcleo elementar da criação (sem correspondência
com as suas possibilidades de ser e de entender) que logo os absorve e põe em
contato com a obra (MEIRELES, 1996, p. 300, 301).
Cecília Meireles põe em destaque dois tipos de leitores: aqueles que, por falta de uma
educação da sensibilidade e pouca vivência com o texto poético, diminuem “muito a
intensidade da criação”, e aqueles que, semelhantes aos poetas, deixam-se envolver pelos
encantos do texto literário, fazem o verbo pegar delírio em suas vidas e na dos outros: são
“hiperlatísicos, doentes, loucos, ‘luas’, poetas”, enfim, na leitura, na oralização, na
dramatização, no canto, realizam, significativamente, o texto literário.
Além disso, a citação da correspondência entre Cecília e Mário aponta também para o
fato de que, na interação entre o leitor e a obra, aquele transforma, numa superação dialética,
o não-dito em dito, e as possibilidades de transformação, consoante Angela Rolla (2004, p.
129) “surgem tanto do texto como do repertório de disposição do leitor”. Por isso, Cecília
Meireles afirmou: os leitores “gostam não é do que nós dissemos, mas do q. eles supõem
encontrar”, ideia que aponta para o fato de que as recepções do texto são diversas e o
podem ser controladas.
No caso da interação do leitor com o texto poético e sua expressão através da música,
entendemos que a criança, no geral, tem mais facilidade nesse processo que o adulto, uma vez
que, no infante, a percepção intuitiva do mundo é mais forte e a disponibilidade em brincar
com as possibilidades rítmico-sonoras do objeto estético, no geral, lhe é mais familiar, que
criar sonoridades para o poema encontra afinidades com outros tipos de brincadeiras que ela
realiza no seu cotidiano. O adulto, por sua vez, ocupado e preocupado com o pragmatismo do
mundo e da vida, tem se afastado do brinquedo e do jogo, e, apenas, por um grande esforço,
ele pode livrar-se da teia que o mantém longe do seu ser imaginário e lúdico, como lembra
128
Cecília Meireles na crônica, “O convite para a vida” (MEIRELES, 2001, v.1, p. 209, 210),
texto em que convoca o adulto a participar novamente dos mistérios da infância.
No que concerne ao modo intuitivo de interagir com a música imanente do poema,
vale ressaltar o depoimento de uma de nossas cancionistas, Adriana Calcanhoto, ao participar
do evento Palavra cantada
121
, com o texto “A fábrica da canção”:
Eu lembro um poema de Waly, muito difícil, que eu musiquei: “A fábrica do
poema”, que ele leu para mim no telefone. Quando ele acabou de ler eu já sabia que
música seria aquela. Era a música da leitura dele, na verdade (CALCANHOTO,
2008, p. 45).
Quando questionada sobre o seu modo de compor, se este seguia o caminho “da
música em direção à palavra”, se constituía um processo intuitivo ou se fundamentava em
alguma metodologia específica de composição musical, Adriana Calcanhoto responde:
É totalmente intuitivo, porque eu não sei música;
122
e mesmo isso que eu percebo
num texto, mesmo que eu não esteja com o instrumento ainda, o que eu percebo das
possibilidades de música que aquele texto contém.
(...) Acho que uma espécie de desenho melódico, acento rítmico, da totalidade do
texto; depois eu vou trabalhando por partes (CALCANHOTO, 2008, p. 48 e 51).
Concordamos que o processo de composição musical também é intuitivo, todavia, não
totalmente, como expressara Adriana Calcanhoto, uma vez que, como admitira a própria
compositora, a tessitura musical segue o desenho rítmico-melódico do poema, ou seja, sua
música subentendida,
123
como sugerira Manuel Bandeira em Itinerário de Pasárgada (1957).
Nesse movimento de criação estética, há todo um trabalho de ajuste da música à semântica do
poema, à intenção comunicativa do texto. Quanto a essa temática, Felipe Abreu, o preparador
vocal da cantora e compositora, afirma:
121
II Encontro de Estudos da Palavra Cantada, realizado em 2006, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a
partir da parceria entre esta universidade, através do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, e a
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mediante o Programa de Pós-graduação em Música.
122
Interessante destacar, conforme Tatit (2002, p. 160), que não é fácil localizarmos, na história da canção
brasileira, bons músicos - alfabetizados em música - que tenham sido também bons cancionistas compositores.
Arranjadores, sim, inúmeros. Mas os grandes cancionistas - compositores não conhecem a teoria e anotação
musical”. Tom Jobim é um dos poucos compositores que pode ser considerado cancionista de altíssima
envergadura “apesar” de ter adquirido formação musical.
123
Bandeira se refere à capacidade da linguagem e da estrutura do poema sugerir efeitos musicais, como
ocorrem, por exemplo, nas variações fonéticas nas palavras Capiberibe e Capibaribe, no poema “Capibaribe”;
Teadoro e Teodora, em “Neologismo”, entre outros, e à imitação de formas musicais pelo poema. Cf. Bandeira
(1957, p. 42 e 43).
129
A Adriana, obviamente, chega com as canções dela, já com a intenção do que ela
quer fazer. A gente discute um pouco sobre algumas coisas em relação a essa
intenção, mas ela sabe bem o que quer. Você pode conversar, por exemplo, sobre
qual andamento talvez seja o melhor para aquela música. Que tempo é o melhor
tempo pra tornar aquela poesia mais viva? Ou sobre a instrumentação...
(...) Há também a questão do colorido (...). Há uma cor que aquela música vai
pedindo e a gente vai experimentando e discutindo até poder chegar àquela
tonalidade que seja mais condizente com o que a canção quer dizer
(CALCANHOTO, 2008, p. 48 e 50).
Além disso, a tessitura musical da canção exige, do compositor, um trabalho racional
em torno das possibilidades melódicas e harmônicas da composição, como defende Luiz Tatit
(2002, p.15-18), um dos estudiosos da canção, ao ressaltar que o fazer musical exige, além de
intuição, “técnica de conversão de idéias e emoções em substância fônica conduzida em
forma de melodia”, num movimento em que a expressão tem primazia sobre o conteúdo, pois,
ao contrário da “voz que fala”, que tem interesse “pelo que é dito”, “a
voz que canta”, se
interessa muito mais “pela maneira de dizer”. Nessa conversão, “as leis musicais (...) passam
a interagir com as leis lingüísticas. Aquelas fixam e ordenam todo o perfil melódico e ainda
estabelecem uma regularidade para o texto, metrificando seus acentos e aliterando sua
sonoridade” (TATIT, 2002, p. 15).
Na experiência de leitura com os textos de Cecília Meireles, a adequação da música ao
texto foi algo analisado posteriormente à criação para não tolher no aluno o seu movimento de
interação lúdica e intuitiva com os poemas. Isso ocorreu no segundo momento da experiência,
quando a criação passou pelo crivo dos criadores e do grupo, motivados pelas colocações do
professor. Depois disso, caso quisessem, os alunos recriavam o seu objeto musical.
Quanto à prioridade do aspecto lúdico na interação com os poemas e na motivação do
espírito criativo do aluno, encontramos respaldo no pensamento de Luís Tatit, quando este
afirma ser o lúdico um dos elementos imprescindíveis ao sucesso da criação:
O plano da expressão (o significante) das linguagens estéticas é também um espaço
lúdico e experimental onde o artista manobra algumas tentativas de arte sem se
preocupar com o resultado. É mais fácil acreditar, aliás, que este seja o ponto de
partida da maioria das obras bem-sucedidas (TATIT, 2002, p. 18).
Na criação das músicas para os poemas, os alunos atuaram também com o
experimentalismo, combinando alturas melódicas, ritmos, sons e pausas, sons longos e sons
130
curtos, enfim, as várias possibilidades musicais que o texto sugeria no momento da interação,
sem receio de não acertar, afinal sentiam que se tratava de um jogo lúdico em que o processo
era mais importante que o resultado.
De nossa parte, sabíamos que desse jogo despretensioso poderiam surgir obras de arte
significativas que, unidas aos poemas, lhes possibilitariam outras formas de comunicação,
pondo em destaque os afetos do texto e seu modo peculiar de dizer a realidade.
Ao transformar o texto escrito em canto, o aluno seria capaz de criar novos modos de
dizer o texto, que potencializasse a música do poema, como destaca Wisnik (1978), ao referir-
se ao poder da palavra cantada.
o canto potencia tudo aquilo que na linguagem (...), não as distinções abstratas
dos fonemas, mas a substância viva do som, força do corpo que respira. Perante a
voz da língua, a voz que canta é liberação: o recorte descontínuo das sucessivas
articulações cede vez ao continuum das durações, das intensidades, do jogo das
pulsações (WISNIK, Apud, TATIT, 2002, p. 15).
Nesse movimento em que o leitor acorda os caracteres silenciosos e imóveis do texto
escrito, pondo em evidência “a substância viva do som” ou reinventando musicalidades, o
texto musical também brota do corpo e com o corpo do leitor, sendo ao mesmo tempo, som,
movimento, respiração, jogo de alturas, pausas e gestos que se geram a partir de esquemas
musicais vivenciados. Logo, é comum que o leitor crie musicalidades para os poemas em
sintonia com os textos e com o repertório que tem estocado em sua memória.
Outro fator inerente à palavra cantada que atua como reforço da linguagem do poema
é a performance. Esta, conforme Ruth Finnegan (2008), envolve um conjunto de elementos
que se faz presente no momento de enunciação do texto, desde a ativação “da música, do
texto, do canto,” à expressão corporal, a dança, e “os objetos materiais reunidos por agentes
co-criadores em um evento imediato”. Trata-se de um “momento encantado” em que “todos
os elementos se aglutinam numa experiência única e talvez inefável, transcendendo a
separação de seus componentes individuais” e o caráter de efemeridade da atividade, uma vez
que, consumado o evento, a memória dos ouvintes se encarrega de sua perpetuação
(FINNEGAN, 2008
,
p. 24).
Esse pensamento tem respaldo nos estudos de Paul Zumthor (1993; 2007), autor que
atribui à performance o poder de assegurar a eficácia comunicativa ao texto poético, na
131
medida em que, através dela “uma mensagem poética é simultaneamente transmitida e
percebida, aqui e agora”, aproximando o locutor do autor, de tal forma que a linguagem
poética se ressalta também em sua função fática, “jogo de aproximação e de apelo, de
provocação do outro” (ZUMTHOR, 1993, p. 222):
Uma pessoa expõe-se nas palavras proferidas, nos versos que canta uma voz. Eu a
recebo, eu adiro a esse discurso, ao mesmo tempo presença e saber. A obra
performatizada é assim diálogo, mesmo se no mais das vezes um único participante
tem a palavra: diálogo sem dominante nem dominado, livre troca.
Eis por que o verbo poético exige o calor do contato; e os dons de sociabilidade, a
afetividade que se espalha, o talento de fazer rir ou de emocionar e a um certo
pitoresco pessoal foram parte de uma arte e firmaram mais de uma reputação (...).
Mas também porque o ouvinte-espectador é, de algum modo, co-autor da obra
(ZUMTHOR, 1993, p. 222):
Esse pensamento é compartilhado por Octavio Paz (1982, p. 30), quando ressalta que o
poema é apenas uma das possibilidades de ser poesia e “só se anima ao contacto de um leitor
ou de um ouvinte”, ou seja, na participação. Logo, está muito menos ligado a uma forma
literária do que ao conceito de obra plena, na concepção de Paul Zumthor, conjunção de todos
os elementos que envolvem a realização performática de um texto.
Nessa perspectiva, o poema necessita ser mais do que uma estrutura formal, um objeto
da retórica; precisa ser “tocado pela poesia” como pode acontecer também a outras obras de
arte (PAZ, 1982, p. 17), para poder “surpreender a beleza da vida, nas grandes linhas de
harmonia em que se equilibra todo o universo”
(
MEIRELES, 2001, v.4, p.23).
A fruição de certos objetos estéticos pode nos proporcionar, em determinado
momento, durante algumas horas, um estado de revelação, o estado poético, a “ananda” ou
“deleite com o Uno”, como ensinam os upanixades:
Em verdade, poucos são capazes de alcançar tal estado. Porém, todos nós, alguma
vez, nem que tenha sido por uma fração de segundo, vislumbramos algo semelhante.
Não é necessário ser um místico para roçar essa certeza. Todos fomos crianças.
Todos já amamos. O amor é um estado de reunião e participação aberto aos homens
(...).
(...) embora tenhamos esquecido aquelas palavras e até seu sabor e significado
tenham desaparecido, ainda guardamos viva a sensação de alguns minutos de tal
maneira plenos que se transformaram em tempo transbordado, maré alta que rompeu
os diques da sucessão temporal. Pois o poema é via de acesso ao tempo puro,
imersão nas águas originais da existência. A poesia não é nada senão tempo, ritmo
perpetuamente criador (PAZ, 1982, p. 29 - 31).
132
Este estado de êxtase pode ser vivenciado, por exemplo, quando assistimos a
determinados recitais de poesia, sobretudo aqueles que apresentam critério na seleção dos
poemas, que unem a voz que fala à voz que canta e à expressão do corpo e, que se apresentam
integrados a outras linguagens; quando fruímos algumas peças musicais de Bach, Beethoven e
outros clássicos, tocadas por uma orquestra sinfônica, um conjunto de câmara, um grupo de
flautas ou um quinteto de cordas, por exemplo; quando assistimos a um musical ou a um balé
bem ensaiado, com um cenário interessante ou ouvimos determinadas canções da música
popular brasileira, enfim, quando nos sentimos habitados por uma felicidade misteriosa, da
qual, por dias consecutivos, lembramos, saudosos e contentes.
É da perspectiva da performance e da união entre palavra falada e palavra cantada que
procuramos explorar a leitura de poemas em sala de aula, priorizando o contato criativo entre
texto e leitor, leitor e espectador, de forma a motivar o interesse pela leitura do texto poético
pelo viés do lúdico. Em outras palavras, buscamos transformar a leitura dos poemas em
eventos performáticos nos quais tudo é linguagem: o texto verbal, a melodia do canto, os
gestos, as vestimentas e os objetos que cercam o intérprete. Esses eventos foram oferecidos à
fruição de outros leitores, como sugere a aplicação do método criativo, defendido por Bordini
e Aguiar:
O processo criativo (...) não se esgota em si mesmo. Como a criação é sempre
comunicação, exige que o produto criado venha a público. Dois fatores determinam
esta situação. O primeiro diz respeito à necessidade imperiosa de compartilhar a
forma obtida com outras subjetividades, dividindo a satisfação de realizar um
trabalho e obter um produto convincente. O segundo se refere à interação com o
mundo que o criador estabelece ao responder aos estímulos desse que provocaram a
tensão inicial (BORDINI e AGUIAR, 1988, p. 65).
Para a culminância do método, socializamos as experiências, expondo, para o público
escolar, “os produtos criados, que passam do âmbito individual para o conhecimento e fruição
da sociedade”, num movimento em que o reconhecimento social gratifica o criador” e “o fruto
do seu esforço contribui para o enriquecimento cultural” (BORDINI e AGUIAR, 1988, p. 67).
Para avaliar os resultados de aplicação do método criativo, junto à leitura do poema
em sala de aula, fizemos, conforme sugerem as pesquisadoras em referência, o
acompanhamento dos trabalhos dos alunos em dois momentos, dando destaque à interação de
cada um com a experiência literária: primeiro, avaliamos o processo de criação, que
compreendeu os momentos de leitura silenciosa e oral, os insights e a recriação musical a
partir desses insights e depois avaliamos o resultado das criações, quanto à sua eficácia
133
expressiva”, isto é, como “forma que comunique sentido” (BORDINI e AGUIAR, 1988, p.
66).
3.3 Ou Isto ou Aquilo: Leitura, Recriação Musical e Canto
3.3.1 “Poesia e música na sala de aula”: primeira experiência
Contextualização da pesquisa
Como pesquisadores, inseridos no cotidiano da escola pública, estivemos certos de que
seríamos constantemente desafiados a flexibilizar os preceitos teóricos e metodológicos de
nossa pesquisa, nossos objetivos, nossas concepções e posturas diante do objeto pesquisado e
da clientela escolar, sujeitos singulares de tramas complexas, conforme Esteban (2003), na
busca de encontrar a melhor forma de intervir nas situações encontradas, as quais nos
deixaram, muitas vezes, inquietos, com a quase sensação de incapacidade, frustração,
corroborando a tese de que entre a teoria e a prática há um grande percurso a trilhar.
Ao mesmo tempo em que reafirmamos a validade do poder da arte, dos ideais de uma
educação poética e da aplicabilidade do método criativo ao ensino de literatura, tivemos que
considerar alguns obstáculos que se colocaram a nossa frente, no momento da prática com a
leitura de poemas em sala de aula. Referimo-nos, sobretudo, ao contexto particular da escola
que escolhemos para realizar a pesquisa, instituição pública municipal, que, semelhante a
outras escolas, mantidas pelos poderes municipal e estadual, funciona de modo bastante
precário. Nesse ambiente, os professores, frequentemente, sentem-se como um Minotauro,
muitas vezes, sem a contribuição de Ariadne, personagem que, mediante seu novelo de fio de
linho, orientou Teseu dentro do labirinto, ajudando-o a liquidar o inimigo (JULIEN, 2002, p.
254).
Boa parte dessas escolas encontra-se envolta de problemas de natureza diversa,
especialmente, relacionados ao espaço físico e ao comportamento dos alunos. Foi o que
pudemos constatar com a nossa experiência, realizada junto à Escola de Ensino Fundamental
Santa Terezinha, situada no bairro Conjunto Tupamirin, em Fortaleza, com uma turma de
série (5º ano), formada por 31 alunos, na faixa etária de 10 a 15 anos, estando, a maioria, entre
10 e 12 anos.
134
Através dessa pesquisa de intervenção, pudemos participar do cotidiano da escola, por
dez meses, entre setembro de 2008 a outubro de 2009, inicialmente, junto aos alunos da
série B, uma vez por semana, das 7h15 às 11h00 da manhã, mesmo turno de aula dos alunos,
e, posteriormente, com uma turma de crianças voluntárias, interessadas em cantar os poemas
de Cecília Meireles, aos sábados, das 8h00 às 11h00 da manhã.
As limitações do espaço físico constituíram um dos principais obstáculos à realização
de nossa experiência junto às crianças: a maioria das salas era pequena, quentes e escuras; a
biblioteca não dispunha de um espaço que pudesse acolher, confortavelmente, mais de quinze
crianças, sendo impraticável como espaço de formação de leitores, que não conseguia
abrigar a totalidade de alunos de uma turma, que, no geral, ultrapassa a casa dos trinta. Apesar
disso, era o único ambiente destinado às atividades extraclasses, sendo, portanto, muito
requisitado pelos projetos da escola; o espaço destinado ao recreio, por sua vez, era
circunscrito às medidas de um estreito corredor de cinco metros e meio de largura, limitado
em seus quatro cantos por três paredes e um portão. Era nesse local que as crianças colocavam
em ação seu ser lúdico, correndo para e para cá, parecendo uns bichinhos presos, numa
jaula, os quais se chocam entre si e nas paredes, em suas tentativas de voos e, de certo modo,
frustrados como Ícaro e suas asas feitas de cera. Ao término do recreio, esses alunos voltam
ofegantes as suas “tocas”, onde o calor torna-se ainda mais insuportável, dificultando a
criação de um espaço interior para o trabalho com a sensibilidade, a intuição e a criatividade.
Além desses aspectos estruturais da escola, podemos considerar também a própria
história de vida dos alunos, sobretudo os da primeira experiência, os quais estão, na maioria,
fora de faixa, moram em lugares precários e provêm de famílias pobres, vivendo, no geral,
sob condições psico-sociais caóticas que interferem na sua conduta escolar. Não raro, essas
crianças e adolescentes elegem a escola, como um palco para a exposição da cultura do
desrespeito, da indisciplina e da violência, transformando a sala de aula, muitas vezes, num
espaço de medo, de banalização da vida e dos valores humanísticos. Como despertar nesses
alunos o respeito à arte, quando, muitas vezes, não se respeita o humano?
Este cenário desarticulador acompanhou-nos, de modo mais contundente, nos dois
primeiros meses, com a experiência da oficina Poesia e música na sala de aula”, junto aos
alunos do quinto ano, sendo, amenizado no momento em que começamos a trabalhar, aos
sábados, a leitura e a musicalização dos textos de Cecília Meireles com os alunos do coral, os
135
quais estavam ali, de livre e espontânea vontade, para participar de uma experiência artística
particular: ler e cantar os poemas de Cecília Meireles.
Diante da realidade da primeira turma, a nossa pergunta mais angustiante foi: como
conseguir dos alunos o silêncio, a concentração e a disposição interior necessários para a
interação com o texto poético, se estes jovens pareciam habituados, na acepção de Cecília
Meireles (BLOCH, 1989, p. 34), “a viver zoologicamente a vida”, a frequentar os espaços “de
mil solicitações, sem armadura, sem objetivo, sem a necessária religiosidade”? Como
encontrar a ponta do fio de Ariadne?
Pensando na questão acima, fizemos alguns ajustes no decorrer da pesquisa,
preservando a ideia que tínhamos por definitiva: não queríamos selecionar, entre os alunos da
turma escolhida, aqueles que se interessassem pelo tema da pesquisa, pois essa alternativa
excluiria, certamente, os alunos mais excluídos sócio-culturalmente: possivelmente aqueles
que têm menos vivência com o texto literário e os mais indisciplinados. Para o pesquisador,
seria cômodo adotar esta postura, pois isso o ajudaria a eliminar, no início do trabalho,
alguns possíveis obstáculos à realização de sua pesquisa.
Optamos, outrossim, em dividir a turma
124
, trabalhando metade num horário X e
metade num horário Y, decisão que tornou o trabalho mais viável. Assim sendo, no terceiro
dia da pesquisa, demos prosseguimento ao trabalho com os alunos, divididos em duas turmas:
a turma A, com os alunos de 1 a 16, e a turma B, com os de 17 a 31, de acordo com a
inscrição de seus nomes no diário escolar. O primeiro grupo, das 7h15 às 9h00 e o segundo
das 9h15 às 11h00. Nessa nova formação do grupo, pudemos trabalhar concomitante com a
professora da turma, em espaços diferentes, de forma que, enquanto ela ficava com o segundo
grupo, trabalhando os conteúdos curriculares do 5º ano, nós desenvolvíamos a experiência de
leitura e recriação musical com o primeiro, alternando as turmas no outro momento da manhã.
Tínhamos, todavia, a consciência de que o ajuste aplicado à pesquisa, no que tange à
divisão da turma em dois grupos, não seria suficiente para trazer tranqüilidade à pesquisa,
pois, conforme Maria Teresa Esteban (2003), quando se tem o cotidiano da escola pública
124
Nos dois primeiros dias, ao trabalhar com a turma inteira, verificamos que os encontros não foram muito
proveitosos, especialmente pelo fato de a biblioteca, local escolhido por ser mais arejado e mais claro que a sala
de aula, ocupada pela turma, não dispor de um espaço físico suficiente para abrigar todos os alunos, de modo,
minimamente, confortável. Isso contribuiu para que alguns alunos se mostrassem inquietos, provocassem o
outro, disputassem o espaço do braço das cadeiras, não interagissem suficiente com os brinquedos cantados.
Nesse clima, foi difícil criar uma atmosfera lúdica e poética.
136
como espaço de pesquisa, é necessário ter ciência de que diversos desafios podem surgir,
prevalecendo sobre o pesquisador a sensação constante de estar à deriva.
Essa sensação de estar à deriva acompanhou-nos também na aplicação da metodologia
e dos objetivos planejados, uma vez que estes vão estar sempre em construção, produzidos,
“momento a momento, nas interações do sistema e suas circunstâncias” (ESTEBAN, 2003, p.
132), bem como na própria concepção do objeto de pesquisa, de modo que este, uma vez
inserido no cotidiano da escola pública, muitas vezes, torna-se passível de múltiplas perguntas
e poucas respostas, prevalecendo sobre o pesquisador a dúvida, mesmo estando amparado por
um sólido referencial teórico-epistemológico. Assim, constantemente, fizemos nossas as
palavras de Esteban:
o que são os dados? Como coletá-los, categorizá-los, interpretá-los, traduzí-los com
os instrumentos de que nos apropriamos, com os procedimentos que vamos
elaborando em diálogo com a teoria de que dispomos? Todas essas operações são
necessárias? Como nos aproximar desse contexto em que se insere nosso problema
de pesquisa e melhor compreendê-lo?
(ESTEBAN, 2003, p. 130).
Além do mais, na pesquisa do cotidiano, os sujeitos da experiência recusam ser
objetos, ou seja, os alunos não se deixam traduzir como objetos de pesquisa, movendo-se
segundo seus percursos subjetivos. No nosso exemplo, algumas vezes, os alunos ignoraram os
roteiros cuidadosamente fixados pela pesquisadora e as previsões que solidamente alicerçam
os projetos de pesquisa; desconsideraram os acordos pré-estabelecidos, não fazendo as
atividades propostas para casa, esquecendo o material em casa; outras vezes, dificultaram a
demonstração dos resultados das atividades, fazendo barulho e impedindo a captura do som,
exatamente nos momentos mais importantes da pesquisa, e, nos questionários de avaliação da
experiência, uma boa parte se limitou a dar respostas vagas, do tipo “é legal”, “porque sim”,
falando, em alguns casos, “de tudo menos daquilo que queremos saber” (ESTEBAN, 2003, p.
130). Para completar esse quadro de incerteza, a escola marcou, algumas vezes, outras
atividades para o dia em que os alunos deveriam estar conosco, ocupando o espaço e o tempo
reservados para a pesquisa com outras atividades.
A despeito desses obstáculos, a pesquisa no cotidiano apresenta muitas vantagens,
notadamente no que concerne à “reflexão e reelaboração metodológica”, voltadas para “a
busca de alternativas pedagógicas capazes de contribuir para o êxito escolar das crianças das
137
classes populares” (ESTEBAN, 2003). Além disso, os laços de amizades gerados entre o
pesquisador e as crianças motivam aquele para uma atuação mais significativa na escola, de
modo que o pesquisador toma o problema da escola como seu. Foi isso que aconteceu
conosco, notadamente, ao decidir ser professora do coral e de flauta doce das crianças,
atividades que nos deram a oportunidade de ler, com esse público, diversos poemas infantis
de Cecília Meireles, de incitar a criatividade dos participantes, no que tange à musicalização
dos poemas e à interpretação performática desses textos.
No que concerne à primeira experiência de pesquisa na Escola de Ensino Fundamental
Santa Teresinha, demos início às atividades da oficina “Poesia e música na sala de aula”, no
dia 30 de setembro de 2008, no espaço da biblioteca. Primeiramente, informamos sobre o
tema e objetivos da nossa oficina, explicando aos participantes que iríamos trabalhar, durante
dois meses, aproximadamente, com os poemas do livro Ou isto ou aquilo, de Cecília
Meireles, de forma lúdica, de modo que eles seriam incitados a brincar com os poemas, a criar
melodias que traduzissem as suas leituras desses textos. Destacamos que eles não iriam
preencher fichas de leitura nem iriam fazer prova ou quaisquer outras atividades avaliativas
que terminam atribuindo notas aos alunos. Falamos também da necessidade de registrar os
encontros através de equipamentos audiovisuais, visando à produção de um DVD com os
melhores momentos da produção artística dos alunos, ideia que deixou a turma bastante
animada para a experiência. Toda essa apresentação não excedeu os quinze minutos iniciais
do primeiro encontro.
No segundo dia da experiência, aplicamos, junto à turma, um questionário,
objetivando ter uma noção mais precisa do perfil de cada aluno, no que tange, sobretudo, à
idade, frequência e gosto de leitura. Conforme responderam ao questionário, os 27 alunos do
grupo, presentes no dia, tinham de 10 a 15 anos
125
. Quanto à leitura, uma parcela significativa
do grupo disse praticar a leitura como hábito diário ou semanal, com interesse predominante
pela leitura de poesia: dos 27 alunos, um pouco mais de um quarto (8 de 27) respondeu que
realizava suas leituras diariamente, 11, toda semana, enquanto os outros 8 disseram que liam
uma vez por mês; da totalidade dos alunos, 14 afirmaram gostar de ler poesia, e entre esses
quatorze, 6 gostam também de ler contos e 8 preferem ler romances e/ou revistas em
quadrinho; 12 gostam de ler os textos do livro didático; 5 gostam de ler jornais e revistas; e 4
afirmaram ler crônicas e/ou outros gêneros. Ao confrontar o questionário com a experiência
125
Dos alunos, 09 tinham 10 anos; 09 tinham 11; 5 tinham 12; 2 tinham 13 e 02 tinham 14 e 15 anos
respectivamente. Cf.: anexo 3.
138
com os poemas de Cecília Meireles, e ao conversar com a professora da turma e com algumas
mães, podemos perceber, no entanto, que alguns alunos não foram sinceros quanto às suas
respostas, sobretudo, no item gostar de ler.
Quanto aos poemas de Cecília Meireles, 12 alunos afirmaram conhecê-los, enquanto a
maioria disse que os desconhecia ou não se lembrava de tê-los lido. Isso nos faz entender que
os poemas de Cecília Meireles não eram muito familiares no contexto do ensino fundamental
da Escola Santa Terezinha, assertiva que se mostrou verdadeira, quando examinamos os livros
de Português da coleção “Porta aberta”, de autoria de Isabella Carpaneda e Angiolina
Bragança, adotada no ensino fundamental I, da escola, para o triênio 2007/2008/2009. Em
todos os quatro livros de Português desta coleção não sequer um poema ou qualquer outro
texto de Cecília Meireles e, de um modo geral, a poesia é um gênero ignorado pelos
organizadores destes livros, pois sua referência em toda a coleção se restringe a um fragmento
do poema “Nome da gente”, de Pedro Bandeira, alguns trechos de cantigas infantis da
tradição oral e um poema sem autoria, denominado “Pique-esconde”. Nota-se, então, um
desencontro entre a oferta da escola, por meio do livro didático de Português, e os interesses
de leitura das crianças, já que boa parte destacou o gosto pela poesia.
Em relação ao perfil sócio-econômico, os alunos apresentavam condições não
privilegiadas, pertencendo a famílias de baixa renda, com pouco acesso à escola, ao livro e, de
um modo geral, aos bens culturais da humanidade, como podemos perceber ao visitar as casas
de uma boa parte do grupo durante alguns dias da pesquisa.
Quando indagados sobre o que eles mais gostavam nas aulas de leitura, uma boa parte
confundiu a pergunta e dirigiu sua resposta para a nossa oficina, dizendo que gostava da
professora, da leitura de poemas, de forma oral e cantada, associada à gestualidade do corpo,
preferindo os poemas que fazem o leitor tropeçar, como os trava-línguas. Quanto aos gêneros
trabalhados na escola, a maioria da turma (19 de 27) respondeu que gostava de poesias e de
narrativas, notadamente quando lidas em grupo.
Perguntamos ainda sobre a frequência com que a turma visitava a biblioteca da escola,
considerada uma das instâncias de escolarização da literatura que podem atuar na formação de
leitores, como lembra Magda Soares (1999). Do total da turma, 05 afirmaram ter o hábito
diário de ir à biblioteca e 5 disseram que não frequentavam. A maioria dos alunos, 17, por sua
vez, esporadicamente costumava frequentar esse espaço que tinha a extensão de uma sala
de aula média, comportando, no máximo, 40 crianças. Esse local era dividido entre sala de
139
leitura e de informática, possuindo os seguintes objetos: 8 mesas, 40 cadeiras, dois
computadores e uma televisão com aparelho de DVD, na parte da frente e 8 estantes de livros,
na parte posterior e na lateral direita, onde se localizava também um armário de aço.
Durante os dois meses iniciais da pesquisa, realizada no interior da biblioteca,
pudemos notar o interesse dos alunos em conhecer os livros, manuseá-los e lê-los. No entanto,
ao conversar com um dos profissionais da biblioteca, este afirmou que a escola ainda estava
se organizando para permitir os empréstimos aos alunos, que no momento estavam restritos a
um dia da semana, a sexta-feira. Porém, ao consultar os alunos da turma, eles mostraram que
desconheciam a sistemática de funcionamento da biblioteca, concebendo-a muito mais como
um espaço destinado às consultas escolares.
Quanto ao material didático da oficina, confeccionamos nosso próprio material: um
caderno com a maioria dos poemas do livro Ou isto ou aquilo, impressos. Inicialmente,
pensamos em trabalhar com um dos volumes de poesia, da coleção “Literatura em minha
casa”, que traz alguns poemas infantis de Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Roseana
Murray, denominado Meus primeiros versos. No entanto, a escola não dispunha mais desse
livro e as crianças, por sua vez, não tinham recebido nenhuma das coleções mandadas pelo
governo federal às escolas públicas.
A antologia poética entregue, individualmente, aos alunos era constituída dos
seguintes poemas: “Ou isto ou aquilo”; “O último andar”; “O menino azul”, “O eco”; “A avó
do meninó”; “Figurinhas (II)”; “A lua é do Raul”, “A bailarina”; “As meninas”; “Canção”,
“Canção de Dulce”; “Os carneirinhos”; “Rio na sombra”, “Pescaria”; “A língua do nhem”;
“Moda da menina trombuda”; “Bolhas”; “A chácara do Chico Bolacha”; “As duas velhinhas”;
“Colar de Carolina”, “Pregão do vendedor de lima”, “O Cavalinho branco”, “Leilão de
jardim”, “A folha na festa”, “O vestido de Laura”, “Passarinho no sapé”, “Roda na rua”. Além
dos poemas do livro Ou isto ou aquilo, acrescentamos poemas de outros livros: “Vôo”, de
Dispersos; “Serenata ao menino do hospital”, de Vaga música e “Cantiguinha” e “Quadras”,
de Viagem. Trata-se de uma antologia organizada e confeccionada por nós, desde a digitação,
à impressão em papel normal, tamanho A4 e em papel 40 quilos, predominantemente
coloridos. Os textos recortados foram colados em um pequeno caderno brochura, 96 folhas,
ocupando sempre um dos lados do papel, de preferência o verso, de forma que a outra face da
folha era destinada à expressão dos alunos.
140
No que concerne à metodologia de leitura adotada, procuramos trabalhar os poemas de
Cecília de forma lúdica e prazerosa, tomando como lembrete o poema “Convite”, de Jo
Paulo Paes (1997), quando define o poema como um brinquedo que não se gasta.
Como jogo, o aluno tinha a liberdade também de não brincar e de escolher seu
brinquedo entre aqueles oferecidos na coletânea. No entanto, semelhante a um jogador, eles
tinham que levar em consideração algumas sugestões para o sucesso da brincadeira: primeiro,
ler o poema em silêncio, segundo, dizê-lo em voz alta, prestando atenção na musicalidade das
palavras, dos versos e das estrofes, bem como no tom do poema, ligado, conforme Alfredo
Bosi (2003, p. 468, 469) às “modalidades afetivas da expressão” (tom patético, irônico,
festivo, melancólico, introspectivo, contemplativo, idílico etc.).
Com essa perspectiva de leitura literária, acreditamos, ainda na esteira do pensamento
de Alfredo Bosi, que “Se o leitor conseguir dar, em voz alta, o tom justo ao poema, ele terá
feito uma boa interpretação, isto é, uma leitura ‘afinada’ com o espírito do texto” (BOSI,
2003, p. 469). É claro que, se tratando de crianças, muitas vezes, captar o tom afetivo do
poema pode ser difícil, como pode acontecer também com os adultos (PINHEIRO, 2008),
podendo o mediador oferecer exemplos para facilitar a percepção do mesmo, inclusive, a
partir do repertório dos próprios alunos, como fizemos diversas vezes. Isto, porém, é uma
habilidade que se desenvolve, paulatinamente, na experiência com os textos, e na audição de
leituras bem sincronizadas com os aspectos rítmico-sorono e semânticos dos textos,
sobretudo, os poéticos. Para tanto, o mediador precisa ser flexível para não exigir uma
performance vocal dos poemas que só os especialistas, principalmente os atores, podem
realizar, como é o caso de Paulo Autran, que recita, em cd, entre outras obras poéticas, os
poemas de Ou isto ou aquilo, gravados pela editora Luz da cidade (São Paulo). Trabalhos
desse porte podem servir de exemplos para a oralização dos poemas para o professor e para as
141
crianças. No nosso caso, a percepção do tom dos poemas de Cecília Meireles pelas crianças
não se restringiu à exposição do texto em voz alta, todavia, incluíu também o modo como elas
conduziam a melodia e o ritmo na musicalização desses textos.
Para captar e evidenciar o tom do poema, muito contribui a realização dos três tipos de
leitura anteriormente mencionados, a silenciosa, a oral e a leitura cantada, numa dinâmica em
que uma funciona como preparação para a outra e todas desempenham funções importantes
para a realização plena do poema, como objeto linguístico, dotado dos estratos sonoro,
morfossintático e semântico.
A leitura silenciosa ou visual, considerada por Bajard (1994) a única modalidade de
leitura, tendo em vista que as outras variedades são modos de comunicar a leitura, pode ser
concebida como a etapa inicial, a preparação para os outros tipos de leitura, sobretudo porque
ela “Não não inibe o leitor por questões lingüísticas [ou psicolinguisticas], como permite
ainda uma velocidade de leitura maior, podendo ele parar onde quiser e recuperar passagens já
lidas, o que a leitura oral de um texto não costuma permitir” (CAGLIARE, 1997, p. 156).
Com a leitura silenciosa, o leitor entra em contato com a temática do poema e seu modo de
organização textual. É o momento em que o aluno decifra os sons (significantes) e decodifica
a escrita (significados).
A leitura oral, por sua vez, põe em evidência os aspectos fonéticos ou musicais do
poema, notadamente, o ritmo e a entonação, elementos que auxiliam o entendimento dos
enunciados, como ocorrem num ato real de fala. Nesse tipo de leitura, o leitor recupera os
“elementos que a escrita não reproduz, não se preocupando apenas com o significado do que
lê. A própria compreensão dos significados de certo texto depende desses elementos
fonéticos” (CAGLIARE, 1997, p. 160).
Para a leitura de poemas que não são conhecidos pelos alunos é interessante realizar
esse tipo de leitura somente depois da leitura silenciosa, pois, na leitura oral, o leitor, “além de
levar em conta o que se deve fazer para dizer algo em termos de produção sonora da fala”
acompanha “um raciocínio sobre um pensamento exterior, expresso por outra pessoa, e que
ele ‘declama’ como se fosse um ator (CAGLIARE, 1997, p.161). Por isso, é necessário um
tempo específico para a preparação da leitura oral, especialmente, porque em determinadas
circunstâncias, “quem para os outros ouvirem ou diz de cor um texto escrito, precisa de
uma leitura expressiva, em que os elementos supra-segmentais e pragmáticos sejam realizados
142
interpretativamente e de forma a agradar os ouvintes” (CAGLIARE, 1997, p. 160 e 161). A
partir da leitura em voz alta, as crianças podiam se dedicar à musicalização dos poemas.
Como mediadora da experiência, na medida do possível, acompanhamos os processos
de leitura e de criação musical, dando sugestões relativas à execução musical das frases e das
estrofes, no sentido de evitar que o poema fosse dito ou cantado a partir de um único modelo
musical de frase ou de estrofe, fato bastante comum às produções musicais feitas pelos
alunos.
O processo de leitura como produção de sentido e o primeiro momento da criação
musical foram considerados uma atividade subjetiva do aluno. Nesse sentido, procuramos, no
geral, não interferir no modo como compreendiam os textos; não fizemos pergunta para saber
até que ponto eles estavam compreendendo o que liam, a não ser quando eles nos
perguntavam sobre o sentido de algumas palavras dos poemas. Isso aconteceu porque
partíamos do pressuposto de que se eles conseguiam interagir com os poemas, captar o seu
tom e criar uma musicalidade significativa para eles, era sinal de que estavam sintonizados
com os sentidos dos textos. Além do mais, os poemas de Ou isto ou aquilo parecem ser
bastante acessíveis à percepção de crianças de uma série (5º ano), pois estão pautados,
predominantemente, numa linguagem simples, nas brincadeiras com as possibilidades
semânticas dos sons nas palavras e na exploração da melopéia da linguagem, através da
metrificação, das rimas e outros recursos musicais.
Por isso, somente depois da socialização das criações de cada grupo - atividade que
propiciou alguns momentos de interação entre as partes e o todo da classe, na medida em que
a turma procurou enfeitar as composições com algum acompanhamento rítmico -, elegemos
alguns textos para conversarmos, um pouco, sobre as possíveis significâncias dos poemas e a
adequação texto-melodia. Foi o que fizemos com os poemas “Os carneirinhos” e “Ou isto ou
aquilo”. Nesses momentos, percebemos que os alunos, no geral, não se dispunham muito a
avaliar e interferir nas composições dos colegas, embora demonstrassem bastante interesses
nas discussões sobre os poemas. Isso pareceu-nos ser indicativo de que avaliar é uma
atividade racional que destoa da natureza lúdica do brinquedo, e a criança ou o jovem leitor,
semelhante ao menino de “Poeminha em língua de brincar”, de Manoel de Barros, pode sentir
“mais prazer com as palavras do que de pensar com elas”, e pode gostar “mais de floreios
[musicais] com as palavras do que de fazer idéias com elas” (BARROS, 2007, p. 4 e 5),
143
atitude totalmente compatível com o caráter lúdico da maioria dos poemas de Ou isto ou
aquilo.
Logo, ao perceber a falta de disposição em avaliar os trabalhos com o intuito de dar
sugestão de como melhorar as composições, nós, como mediadora, o fizemos, junto aos
pequenos grupos. No entanto, como apenas alguns alunos se dispuseram a recriar suas
composições, demos prosseguimento a essa atividade somente com o segundo grupo: a turma
do coral.
Descrição e análise da experiência
Primeiro encontro: dia 30 de setembro de 2008
Duração: 100 minutos
Iniciamos o experimento “Poesia e música na sala de aula” com a nossa apresentação e
a exposição do tema e dos objetivos da pesquisa. Em seguida, distribuímos, entre os
participantes, alguns textos da cultura lúdica da infância, especialmente, os que podem ser
classificados de brinquedos cantados: parlendas, cantigas de roda, acalantos, pequenos dramas
musicais, trovas, contos cantados e outros, para que os alunos fossem se familiarizando com
as relações de reciprocidade entre poesia e música.
Ao entregar os textos da antologia, sugerimos que os alunos fizessem, primeiro e
individualmente, uma leitura silenciosa dos mesmos e, se desejassem, cada um poderia
efetuar, em seguida, uma leitura em voz alta, podendo também cantar, caso conhecessem a(s)
melodia(s) do texto ou quisessem criar nova(s) melodias para os brinquedos sonoros que lhes
chegaram às mãos.
Em meio a algumas manifestações de indisciplina, muitos alunos fizeram a leitura oral
de seus poemas, alguns cantaram as melodias conhecidas e dois outros participantes fizeram o
trabalho de composição: um menino criou uma melodia para a trova popular: “O anel perde a
pedra”:
O anel perde a pedra,
O peixe, as escamas.
144
Eu estou perdendo tempo
Amando quem não me ama.
e uma menina fez uma nova música para o texto da tradição oral “Lá vem seu Juca-ca”:
Lá vem seu Juca-ca
Da perna torta-ta
Dançando a valsa-sa
Com a Maricota-ta
Lá vem seu Pedro-do
Da perna dura-ra
Dançando valsa-sa
Com a rapadura-ra.
Para finalizar o encontro, distribuímos o texto “O menino e a coca”, fizemos a leitura
oral e os alunos ajudaram a cantar as partes que tinham melodia, limitadas à primeira pessoa
verbal, no caso, a fala do menino. Nessa hora, os alunos interagiram bem com a atividade,
fizeram silêncio e concentraram-se mais do que no momento anterior, talvez, porque se
tratava de uma leitura coletiva do mesmo conto cantado, somada ao fato de que o conto,
sendo acumulativo, desafiava-os a memorizar as sequências, a jogar com o texto.
Desse encontro, ressaltamos a interação com os brinquedos cantados e a recriação
musical das duas trovas, fatos que consideramos muito interessantes para o desenvolvimento
da experiência, no sentido de servirem de aquecimento para o trabalho com os poemas de
Cecília Meireles. Além disso, o fato de os alunos, no primeiro dia, se disponibilizarem a
fazer uma leitura musical do texto poético, ao mesmo tempo em que demonstra a participação
e o envolvimento deles com o texto, especialmente ao vel da poiesis, segundo Jauss (2002),
serviu para endossar a nossa hipótese de que é possível ler o poema a partir da música que ele
pode suscitar, isto é, traduzir a compreensão que se faz do texto poético através da música que
se cria para ele, num destaque do método criativo na leitura literária, conforme Bordini e
Aguiar (1988).
Abaixo, transcrevemos alguns momentos da interação das crianças com os brinquedos
cantados
126
:
126
A descrição completa de toda a experiência consta no anexo n. 1 deste trabalho.
145
MEDIADORA: Alguém gostaria de fazer a leitura cantada de seu brinquedo
sonoro, ou seja, de seu texto, de acordo com a melodia que conhece? Como eu
disse, quem quiser também pode criar uma nova melodia para o poema.
(...)
ALUNO 20: O meu é esse (e canta):
O anel perde a pedra,
O peixe, as escamas.
Eu estou perdendo tempo
Amando quem não me ama.
MEDIADORA: Você inventou essa melodia, foi?
ALUNO 11 Foi.
ALUNA 1: Foi mermo? Legal!
ALUNO 11: Foi.
127
ALUNA 8: Gostei... É bonita (e começa a cantar).
MEDIADORA: Também achei. Legal, gente! Alguém mais?
ALUNA 27: Eu, tia (e canta “Lá vem seu Juca-ca”, com uma melodia diferente
daquela que conhecemos):
Lá vem seu Juca-ca
Da perna torta-ta
Dançando a valsa-sa
Com a maricota-ta
Lá vem seu Pedro-do
Da Perna dura-ra
Dançando valsa-sa
Com a rapadura-ra.
127
Não conhecíamos a melodia que a criança criou como também nenhuma outra relacionada a essa trova.
146
MEDIADORA: Você já conhecia essa melodia ou inventou?
ALUNA 27: Inventei, professora.
MEDIADORA: Muito bem, mais um caso de composição musical na sala. Vejam
só, dois colegas acabam de compor melodia... eles acabam de demonstrar sua
habilidade de compositor. Muito bom, não acham?(...).
(...)
MEDIADORA: Ótimo, gente, mas vamos continuar. Alguém mais pode ler o seu...?
ALUNA 17: Eu vou ler o meu.
MEDIADORA: Ótimo! (a aluna lê a parlenda “Nós somos quatro”):
Ce-cê-rê-rê-cê-
Nós somos quatro
Eu com essa
Eu com aquela
Nós por cima
Nós por baixo
Nós somos quatro.
MEDIADORA: Alguém sabe brincar essa parlenda?
ALUNA 22: Eu sei.
ALUNA 8: Eu também.
MEDIADORA: Que bom que alguns conhecem! Então... vamos mostrar como se
brinca?
ALUNO 7: Como se brinca?
MEDIADORA: É. Por favor, quatro pessoas aqui no meio da sala para demonstrar
a brincadeira? (apenas três alunos se prontificaram a realizar a atividade, de modo
que a mediadora teve que participar da brincadeira).
ALUNO 5: Olha, a tia sabe! (risos)
MEDIADORA: Legal, gente! E aí, quem mais?
ALUNA 28: Vou cantar o meu, tia:
São João dararão
Tem uma gaita-ra-rai-ta
Quando to-co-ro-ro-ca
Bate nela
147
Todos os anjos-ran-ran-jos
Tocam gaita-ra-rai-ta
Tocam tan-tan-ran-ran-to
Aqui na terra.
Lá no cen-tem-ren-ren-tro
Da aveni-di-ri-ri-da
Tem xaro-po-ro-ro-pe
Escorregou!
Agarrou-ro-ro-rou-se
Em meu vesti-di-ri-ri-do
Deu uma pre-re-re-re-ga
E se acabou!
(...)
MEDIADORA: Muito bem! Vocês conheciam esse texto cantado?
ALUNO 19: Hum-hum.
ALUNO 16: Eu nunca ouvi.
ALUNO 6: Eu conheço. Minha vó cantava.
ALUNA 3: Eu também conheço. É legal.
ALUNA 8: Eu também.
ALUNA 24: Fica legal com violão, né, professora.
ALUNO 25: É. Parece som de violão.
ALUNOS: É...!
Depois que as crianças fizeram a leitura oral ou cantaram seus textos, passamos para a
leitura do conto “O menino e a coca”. Como no momento anterior, percebemos uma boa
interação das crianças com a atividade. Elas ouviram a leitura do conto atentamente,
participando também da realização oral do mesmo através do canto do menino. Contribuiu
para tanto, o fato de o conto ter uma única melodia para todas as falas do menino e a
construção linguística ser acumulativa, de forma que os alunos logo decoraram a letra e a
música da canção do menino. Além disso, entendemos que a interação texto/criança tenha se
efetuado de forma satisfatória em virtude do caráter lúdico do conto, como ocorreu com os
outros textos lidos, recitados ou cantados pelos alunos, como foi o caso de “O trem”, de Bia
Bedran, “Pai Francisco”, “São João-da-ra-rão”, “Lá vem seu Juca-ca” e outros brinquedos
cantados.
Tendo em vista que a poesia de tradição oral é considerada um instrumento de
iniciação da criança nos domínios da linguagem poética, conforme salientam Glória Pondé
(1982) e Glória Bordini (1991) e que tem despertado interesse em públicos diversos, ao longo
148
dos anos, constituindo também uma arte mista, no sentido de conjugar a união entre poesia e
música, consideramos salutar a sua inclusão no processo de aquecimento da sensibilidade
poético-musical das crianças, no nosso experimento. Iniciar com essa poesia foi uma forma de
preparar a interação com os poemas infantis de Cecília Meireles, objeto da presente
experiência, na medida em que os textos dessa escritora harmonizam-se com as formas
simples dos brinquedos cantados, numa valorização do poema como objeto lúdico e estético,
celeiro de musicalidades.
Segundo encontro: dia 07 de outubro de 2008
Duração: 180 minutos
O segundo dia da pesquisa iniciou-se com a leitura e a exploração rítmico-sonora do
poema “Brincando de não me olhe”, de Elias José.
Primeiramente, os alunos fizeram a leitura silenciosa e em seguida realizaram a leitura
oral do poema, divididos em grupos. Experimentamos várias formas de dizer o poema: ora,
uma equipe dizia o primeiro verso e outro grupo respondia com o segundo verso, ora, um
grupo dizia uma estrofe e o outro grupo respondia do mesmo modo, com uma ou duas
estrofes também, sempre na forma do desafio. Em seguida, sugerimos que cada grupo
pensasse um modo de cantar aquele poema e, posteriormente, socializassem o resultado com o
grupão.
Inicialmente, os alunos escolheram a forma do rap falado para cantar o poema de Elias
José e, em seguida, motivados por nós, criaram outros modos de cantar aquele texto.
Sugerimos que eles completassem a música da estrofe de acordo com a melodia e o ritmo que
iniciamos, ao cantar o primeiro verso. Os alunos interagiram bem com essa atividade e
puderam experimentar várias musicalidades para aquele poema, que constitui uma brincadeira
com as rimas e com outros recursos de musicalidade.
Posterior a essas atividades, passamos a ouvir e a cantar alguns poemas de Vinícius de
Moraes: “Corujinha”, “São Francisco”, “A casa”, “O pato” e “O relógio”, inseridos no álbum
A arca de Noé, como forma de acalmar os alunos recém chegados do recreio.
149
No segundo momento do encontro, entregamos a coletânea de poemas de Cecília
Meireles e pedimos que cada dupla ou trio escolhesse um dos poemas para fazer a leitura
silenciosa, seguida da oral e depois criasse um modo de dizer o poema, que incluísse música.
Em outras palavras, os alunos iriam pensar, individual ou em grupo, modos de cantar o
poema, podendo utilizar o estilo musical que melhor se adequasse à leitura e ao tom do
poema, em seu sentido literário. Em seguida, iriam socializar a criação.
Entre os textos escolhidos, citamos: “Passarinho no sapé”; “Quadras; “O eco”; “Leilão
de jardim”, “Canção de Dulce” e “Pregão do vendedor de lima”. Foram ensaiadas, nesse
momento, algumas tentativas de composição, as quais gravamos para que, no encontro
seguinte, os alunos pudessem ouvi-las, avaliá-las de acordo com o conteúdo do poema, da
intenção comunicativa, do tom, etc, e chegar a uma forma mais acabada.
128
No geral, as tentativas de musicalização dos poemas de Cecília Meireles, nesse dia,
foram bastante tímidas, muito próximas do rap falado, de forma a não explorar as dicções
melódicas que alguns poemas podiam suscitar, traduzindo as suas vibrações afetivas em
canto, como aconteceu, posteriormente, com os poemas “A ngua do nhem”, por exemplo.
No entanto, consideramos válidas as experiências como exercício para futuras composições
com esses mesmos poemas ou com outros.
Desse encontro, achamos bastante proveitosa, no sentido de motivar a interação lúdica
dos alunos com os poemas e suas musicalidades, a vivência com o texto “Brincando de o
me olhe”, de Elias José:
MEDIADORA: Vamos começar nossa manhã com a leitura do poema “Brincando
de não me olhe”, de Elias José. Uma sugestão: primeiro, façam a leitura silenciosa
do poema e, depois, a leitura em voz alta, para sentirem a musicalidade do poema,
a música da linguagem. Depois disso, pensem, individual, em duplas ou em trio,
formas de dizer o poema, através de uma música criada para ele.
MEDIADORA: Comecem a ler, em silêncio, o poema “Brincando de não-me-olhe”.
(...)
MEDIADORA: Vamos ler em voz alta, agora?
ALUNOS: Vamos.
MEDIADORA: Pra dinamizar a leitura oral do poema, vamos dividir o poema em
perguntas e respostas, de modo que uma equipe fique com o primeiro verso de cada
128
No geral, os alunos não se dispuseram a refazer suas atividades de composição, fato que remete,
possivelmente, à falta da prática da reescrita das atividades, em sala de aula, sobretudo, as de redação.
150
estrofe e outra equipe responda com o segundo verso da mesma estrofe, como se
fosse um desafio, ok?
ALUNA 8: Como professora?
MEDIADORA: Assim, ó... uma equipe diz “Não me olhe de lado” e a outra
responde: “Que eu não sou melado”. Desse jeito, até o fim do poema, ok?
ALUNA 8: Á...! entendi!
MEDIADORA: O primeiro grupo, de Vinícius até Geovana, diz o primeiro verso de
cada estrofe e o segundo grupo, de Daneiva em diante, diz o resto. Vamos começar?
ALUNOS: Vamo.
GRUPO A: Não me olhe de lado
GRUPO B: Que eu não sou melado.
GRUPO A: Não me olhe de banda
GRUPO B Que eu não sou quitanda.
(...)
GRUPO A: Não me olhe no pé
GRUPO B: Que eu não sou chulé.
GRUPO A: Não me olhe de baixo
GRUPO B: Que eu não sou riacho.
GRUPO A: Não me olhe de cima
GRUPO B: Que acabou a rima.
(...)
MEDIADORA: Legal! Agora, vocês podem pensar um modo de cantar o poema.
Que tal, o primeiro grupo criar uma música para a primeira estrofe e o segundo
grupo criar uma melodia para a segunda? Assim, até o fim. Um grupo põe música
numa estrofe e o outro grupo põe música na outra, certo?
ALUNO 19: Certo, tia.
ALUNA 22: Legal.
MEDIADORA: Vamos começar? É no improviso, mesmo. Alguém do primeiro
grupo pode começar. Vamos lá? 1, 2, 3...
ALUNO 6: (canta em forma de rap):
Não me olhe de lado
Que eu não sou melado.
ALUNA 17 (responde também em forma de rap):
Não me olhe de banda
Que eu não sou quitanda.
151
MEDIADORA: Legal, gente... Vamos cantar o poema todo, desse jeito, todo mundo
junto? Vamos lá, 1,2,3...
Todos cantam, seguindo as entradas rítmicas da mediadora.
MEDIADORA: Será que pra colocar mais melodia na música? É que o rap
quase não tem melodia, tem mais ritmo. Ele está muito próximo da fala. Pensem
numa outra forma de cantar mais melódica, com mais sica. Pode ser qualquer
estrofe.
ALUNA 22: Tia, pode ser assim? (a menina canta a primeira estrofe de forma mais
melódica).
MEDIADORA: Legal! Pode sim!
(...)
MEDIADORA: que ninguém se disponibiliza a criar novas melodias para as
estrofes do poema, vamos fazer coletivamente, na forma de desafio, certo? Eu canto
um verso e vocês cantam o verso seguinte, combinando com a melodia e com o
ritmo que eu cantar, certo? Vamos começar com a melodia da Maria, vamos, lá?
1,2,3:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
152
ALUNA 8:
(...)
MEDIADORA:
ALUNO 27:
MEDIADORA:
ALUNO 25:
MEDIADORA:
TODOS:
MEDIADORA: Legal, gente! palmas, palmas...
(Os alunos batem palmas e parecem satisfeitos).
153
A criação musical compartilhada, em torno do poema “Brincando de não-me-olhe”,
foi um modo que encontramos para facilitar a realização da atividade, tarefa que foi
viabilizada também pela musicalidade intrínseca do poema, presente tanto na métrica da
redondilha menor, predominante no poema, e suas acentuações na e sílabas, como no
paralelismo estrutural e nas rimas dos versos. Podemos notar que esse tipo de musicalidade
textual exerce certo fascínio sobre o leitor, funcionado como um convite para a recriação
musical dos poemas, como aconteceu também, no dia anterior, com os poemas “O anel perde
a pedra” e “Lá vem seu Juca-ca-ca”.
Em relação à interação com os textos de Cecília Meireles, também consideramos
válida a experiência, pois, embora, os alunos não tenham apresentado ainda resultados
significativos das suas leituras musicais desses poemas, percebemos sua dedicação à leitura de
vários poemas da coletânea, mostrando interesse pelo material recebido. Além do mais,
consideramos o fato de termos trabalhado com os poemas de Cecília somente no segundo
momento da manhã, em virtude de termos passado a primeira parte do encontro, explorando a
interação com o poema de Elias José, como forma de aquecer o espírito lúdico e musical dos
alunos e prepará-los para a vivência musical com os poemas da escritora de Vaga música.
Terceiro encontro: dia 21 de outubro de 2008
Duração: 180 minutos
Nesse dia, demos prosseguimento aos trabalhos de leitura e recriação musical dos
poemas de Cecília Meireles, a partir da mesma metodologia utilizada na semana anterior:
primeiro, os alunos, em pequenos grupos, escolheram um dos poemas da antologia e, em
seguida, fizeram os três tipos de leitura a silenciosa, a oral e a leitura cantada, tirando
proveito das vantagens que cada uma pode propiciar ao leitor. Conforme Pinheiro (2002, p.
33-34), os dois primeiros tipos são fundamentais para a compreensão do poema, ao passo que
a leitura cantada, concebida como “outro modo de falar” esse texto (ELIOT, 1991, p. 45), é,
consoante Tatit (2002), uma possibilidade de traduzir a percepção do texto e suas
musicalidades, em canto, intensificando os afetos do poema, através da linguagem da música,
em sintonia com o projeto entonacional e o tom afetivo, revelados na leitura em voz alta.
154
O resultado dessa experiência com o poema foi socializado, junto à classe, numa
exposição do experimento de cada grupo. A exposição, apesar de motivada por nós, e bem
aceita pela maioria, não era obrigatória, ficando os alunos à vontade. A turma, por sua vez, ou
melhor, boa parte,
129
interagia bem com as apresentações dos colegas, participando de
diversas formas: alguns faziam silêncio, prestando atenção nas apresentações dos pequenos
grupos, outros batiam o ritmo com palmas ou percussão nas mesas, durante o evento e, no
geral, aplaudiam os colegas no final de cada demonstração.
Independente dos resultados das composições, compreendemos que a experiência de
leitura com os poemas de Cecília Meireles foi de grande valia para a formação desses
leitores, pois, tendo em vista que o ato de escolher implica conhecimento dos objetos,
percebemos que, antes de criar as melodias, os alunos leram diversos poemas da antologia, até
se definirem pelos textos que puseram música: “O eco”, “O último andar”, “Rio na sombra”,
“O colar de Carolina”, “As meninas”, “Quadras” e “Canção de Dulce”. Vale ressaltar que, o
mesmo texto podia ser escolhido por mais de um grupo, como aconteceu com “Rio na
sombra” e “Quadras”.
O fato de ser dada aos alunos a oportunidade de escolher o texto entre as rias
possibilidades ofertadas foi percebido por eles como algo positivo da experiência, incitando-
os a praticar mais e mais a leitura, como demonstraram muitos dos participantes ao fazer a
avaliação da experiência.
Após esse primeiro momento, apresentamos aos alunos a composição que criamos
individualmente para o poema “Leilão de jardim”, com o intuito de mostrar-lhes mais um
exemplo de recriação musical. Fizemos, primeiramente, a leitura oral do poema e, em
seguida, cantamos. Atentamente, os alunos ouviram-nos e alguns deles fizeram
acompanhamentos percussivos com palmas.
Para finalizar o encontro, convidamos os alunos a criar coletivamente uma música
para “Os carneirinhos”. Nessa atividade, para ganharmos tempo, iniciamos com a leitura oral
do texto, feita por nós, e, em seguida, improvisamos, coletivamente, uma música para o texto,
no estilo daquela que fizemos com o poema “Brincando de não me olhe”, de Elias José:
criávamos um verso e os alunos outro, sempre de forma alternada: mediadora-alunos.
129
Na turma, havia também aqueles que pouco participavam do processo de leitura e de recriação musical dos
poemas. Esses alunos falavam alto, xingavam os colegas e atrapalhavam também no momento da apresentação
das composições.
155
Repetimos a música umas três vezes, sempre acrescentando algo diferente. Os alunos
mostraram-se animados para o desafio e não tiveram dificuldade em completar a música para
o poema todas as vezes que cantamos. Além disso, muitos acompanharam a melodia,
improvisando percussões rítmicas, seja através de palmas, de estalos de língua, de batidas de
pés ou percursões nas mesas.
Desse encontro, consideramos significativas, as composições feitas, em dupla, em trio
ou em quarteto, para os poemas “O eco”, “O último andar”, “O colar de Carolina”, “As
meninas”, “Os carneirinhos” e “Rio na sombra”, no sentido de que produziram uma dicção
musical convincente
130
, conforme Tatit (2002), intensificando os afetos do poema. No geral, o
dia foi bastante produtivo, superando as experiências dos dias anteriores e a indisciplina de
alguns alunos. Entre os participantes, apenas uns três demonstraram dificuldade em criar
músicas para os poemas, sendo ajudados por colegas mais próximos, inclusive o de seu grupo,
enquanto outros, uma meia dúzia, aproximadamente, acostumados à indisciplina e a não
participar das atividades escolares, conforme relatou-nos a professora da turma, não
mostraram interesse em participar das atividades, embora fizessem questão de estar presentes
nos momentos da experiência.
Em relação àqueles que se disponibilizavam a participar das atividades, boa parte, em
poucos minutos, terminava as atividades de leitura e recriação musical do poema, passando a
ler outros textos da antologia, enquanto os colegas desenvolviam e concluíam seu processo de
leitura e criação musical, para apresentar ao grupão. No geral, tudo se dava de forma rápida,
de modo que realizávamos várias atividades numa mesma manhã. Concorriam para isso, a
questão de os poemas ser, predominantemente, de pequena ou média extensão e o fato de os
alunos estar aquecidos para a interação com os poemas de Cecília, tanto pelas leituras dos
textos da antologia, realizadas nesse dia e no encontro passado, como pela vivência com os
brinquedos cantados e com o poema de Elias José. Entre os participantes, a dificuldade mais
corrente se deu em relação às variações no perfil melódico das músicas, de forma que
prevalecia, em suas criações, um modelo musical para todas as estrofes.
Desse terceiro encontro, concentraremo-nos na descrição e comentários em torno da
leitura e criação musical coletiva do poema “Os carneirinhos”:
130
Na análise semiótica de “Figurinhas (II)”, apresentada junto à experiência do coral Cecília Meireles em
canto”, discorremos sobre esse termo e sua aplicação no gênero canção.
156
MEDIADORA: Para finalizar o encontro, vamos criar coletivamente uma música
para o poema “Os carneirinhos”. Primeiramente vou fazer a leitura oral, porque eu
já conheço o poema. Depois disso, vamos improvisar uma música para ele, certo?
(...)
MEDIADORA: Para criar a música, vamos fazer assim: eu invento uma melodia
para um verso e vocês inventam para o seguinte, sempre de forma alternada: eu-
vocês, eu vocês... até o fim, tudo bem?
Diante da proposta, os alunos mostraram-se animados para o desafio e começaram a
realizar a atividade juntamente com a mediadora e com o acompanhamento
percussivo feito por algumas crianças que batiam o ritmo nas mesas:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
157
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
158
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA: Quando for terminar a estrofe, vocês repetem “como carretéis de
lã...”, “como carretéis de lã...” (como sugeriu a Maria), ok? De novo, vamos lá?
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
159
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
160
MEDIADORA:
ALUNOS:
TODOS:
MEDIADORA: Ok, gente, muito bem. Agora eu quero aquelas meninas
cantando comigo, por enquanto, tá? (e aponta para as duas meninas que tinham
cantado, resolvendo a melodia com um tonema descendente).
MEDIADORA:
ALUNAS:
MEDIADORA: Ok, era isso que eu queria, ó... baixou... “como carretéis de lã”...
combina mais, não é?
ALUNOS (alguns dão sinal de concordância).
Depois disso, todos cantam novamente a música, enquanto alguns alunos
acompanham batendo o ritmo nas mesas e outros imitam os carneirinhos com a
onomatopéia “Bé-é-é...”, principalmente entre as estrofes. Esses acompanhamentos
se deram de forma espontânea, no momento da execução da música do poema.
MEDIADORA: Legal gente, palmas pra nós (...).
161
Nesse dia, tomamos o poema, como objeto lúdico, com o qual podíamos brincar com
as possibilidades de acrescentar-lhe ritmo e melodia, de forma intuitiva. Foi mais um
exercício que realizamos, voltado para a criação de uma dicção musical a partir dos insights
produzidos pela leitura do poema, no momento de sua realização oral, e da motivação que a
melodia inicial, criada por nós, exerceu sobre o seu complemento, produzido pelos alunos.
Nesse jogo, predominou o improviso, guiado por uma lógica interna, na medida em que os
segmentos melódicos, no geral, equivalentes a um verso, tinham que se harmonizar entre si, e
sugerir, em consonância com os enunciados dos versos, a ideia de frase ou semifrase
131
em
circunstâncias de desenvolvimento ou de conclusão. Esta se efetuou nos finais das estrofes,
enquanto as frases ou semifrases de natureza não conclusiva ocorreram nos versos iniciais das
estrofes.
Essa brincadeira gratuita, por sua vez, destacou o caráter alegre do poema, como se o
texto fosse uma celebração festiva do ofício de ser pastor no campo. Esse é um dos efeitos
provocados pelo ritmo alegre da música, que lembra os rituais primitivos e dançantes, em
homenagem à fertilidade da natureza, por exemplo. Essa é uma das possibilidades de leitura
de “Os carneirinhos”, a partir da música que criamos para ele.
Ao brincar com “Os carneirinhos”, propiciamos “suplementos” de leitura ao poema,
na acepção de Iser (2002, p. 109), produzidos desde a nossa leitura em voz alta do texto,
atividade que possibilitou leituras diversas aos alunos, feitas a partir da audição do poema, até
o momento em que transformamos, coletivamente, a nossa leitura em canto, numa
convergência de leituras que não apaga a leitura singular que cada um gerou para o poema.
131
A semifrase é uma unidade ritmo-melódica que se associa a outras estruturas musicais menores e/ou outras
semifrases, para formar a frase. A frase, segundo Schoenberg (1991, p. 29 e 30) é “constituída por algumas
ocorrências musicais unificadas, dotada de uma certa completude e bem adaptável à combinação com outras
unidades similares”. Em termos de extensão, a frase é considerada “uma unidade aproximada àquilo que se pode
cantar em um fôlego (...). O final de frase é, em geral, ritmicamente diferenciado, de modo a estabelecer uma
pontuação”, seja através da redução rítmica” e do “relaxamento melódico determinado por uma queda de
freqüência (...)”, seja pelo “uso de intervalos menores e de um menor mero de notas, ou por qualquer outra
forma adequada de diferenciação”. No caso da canção “Os carneirinhos”, a primeira frase comporta quatro
semifrases, equivalentes aos quatro primeiros segmentos (versos) da peça.
162
Quarto encontro: dia 28 de outubro de 2008
Duração: 180 minutos
Começamos a experiência, assistindo a um DVD, contendo o registro das atividades
132
do encontro anterior, para que os alunos pudessem apreciar alguns momentos de suas
experimentações com os poemas. Demonstrando curiosidade, os alunos assistiram à
filmagem, acompanhando, em alguns momentos, a execução de suas músicas, criadas para os
poemas, ouvindo-as e cantando-as novamente. Além disso, fizeram comentários do tipo:
“olha ali fulano,” “olha eu aí”, rindo em seguida, mostrando que estavam bastante à vontade
quando se viam nas gravações. No geral, os alunos estavam mais interessados em se ver na
tevê, prestar atenção se estavam bonitos ou feios, se tinham cantado bem ou ruim e rir de si e
dos colegas, do que em avaliar as experiências. Aliás, o vídeo não suscitou nenhum
comentário crítico acerca das vivências documentadas, talvez pela novidade da proposta de
musicalização ou pela falta de hábito em avaliar atividades, sendo tomado como uma
continuidade das atividades lúdicas. A exibição do vídeo durou uns vinte minutos, até o
momento em que todos os grupos fossem mostrados.
Depois desse momento, concentramo-nos nas atividades de leitura e recriação musical
de alguns poemas, entre os quais destacamos “A língua do nhem”, que foi musicado
coletivamente, a partir do estilo do rap, sugerido por uma das crianças. Essa atividade teve
uma duração de poucos minutos.
Compreendemos que a escolha do rap como o estilo musical utilizado em “A ngua
do nhem” se adequou ao texto de Cecília Meireles, especialmente, porque o poema contém
uma narrativa de crítica social (ao tematizar a solidão na velhice), que apresenta um discurso
ritmado e com rimas, a partir de uma linguagem bem prosaica. Nesse sentido, o poema “A
língua do nhem” dialoga com as principais características do rap (Rhythm and Poetry),
discurso rítmico com rimas, de pouco ou nenhum acompanhamento de instrumentos, no qual
a fala (o texto) é privilegiada em detrimento da linha melódica. Além disso, sabemos que o
rap, desde as suas origens,
133
apresenta um discurso voltado para o social.
132
Registramos tanto os momentos de leitura oral como os de leitura cantada.
133
O rap surgiu nos guetos da Jamaica, nos anos de 1960, com a finalidade de animar as festas de rua,
acompanhadas de sistemas de som em que as falas comentavam os problemas locais. Hoje, o rap é um produto
da cultura hip hop, com acentuada divulgação na Jamaica, nos Estados Unidos e também nas grandes cidades
brasileiras, notadamente em suas periferias.
163
Trabalhamos também, nesse dia, a leitura do poema “Os carneirinhos”, escolhido por
nós, enquanto mediadora da experiência, no intuito de explorar alguns aspectos da temática e
analisar a adequação texto/melodia, tendo, como parâmetro, a composição que criamos no dia
anterior. Para tanto, fizemos a leitura oral do poema, individualmente, e, em seguida, eles
fizeram uma segunda leitura, todos ao mesmo tempo, fazendo reverberar a musicalidade e os
sentidos do poema. Ler em voz alta e em grupo o texto foi uma oportunidade de adequar o
ritmo e a entonação da leitura individual com o ritmo e a entonação da leitura do grupo,
orientada pelos recursos de musicalidade do texto, dos quais se destaca a pontuação, e pelo
tom do poema, evidentes desde a leitura oral que, individualmente, realizamos.
Em seguida, cantamos novamente o poema, de acordo com a composição que nós
criamos, coletivamente, passando, de imediato, a fazer perguntas sobre a temática do poema e
algumas construções oblíquas, na acepção de Riffaterre (1989), ligadas às possíveis
significâncias de “carnerinhos”, “pastores” e “cantores” no poema. Fizemos um percurso, em
que lançamos diversas perguntas aos leitores, destacamos suas colocações, fazendo a síntese
de suas interpretações em torno do poema, de modo a gerar novas perguntas, até que o texto
se mostrasse para nós, como um todo coerente, como sugere Iser (1999, p. 11-13), a partir do
ângulo de interpretação que trilhamos. Este nos permitiu entender que o poema trata do desejo
de sermos bons e cuidar dos outros, bem como, atuar no mundo pelas vias do estético,
produzindo e usufruindo de experiências artísticas.
134
Dessa conversa sobre o poema,
destacamos alguns momentos:
(...)
MEDIADORA: Agora a gente vai falar um pouquinho sobre o poema, certo? Esse
poema fala de quê?
ALUNOS: Dos carneirinhos...
MEDIADORA: O que ele fala dos carneirinhos?
ALUNOS (alguns): Que quer ser pastores.
MEDIADORA: An? Eles querem ser pastores?
ALUNA 27: Todas as pessoas querem ser pastores pra cuidar dos carneirinhos...
MEDIADORA: An...! E como é?
134
A recepção na íntegra está disponível no anexo 1.
164
ALUNA 22: É, eles sempre queriam, eles queriam cuidar dos carneirinho, porque
eles... os carneirinhos eram enroladinho, como linha, né, como carretéis de lã... e
tocar numa flautinha, numa palhinha, por isso.
(...)
MEDIADORA: Ok, olha... o que mais o poema fala, hein, gente, o poema fala mais
de quê?
ALUNA 27: De ter coroa de flores também.
MEDIADORA: Quem são esses “todos” que querem ser pastores e cantores?
(...)
ALUNA 27: Nós sempre queremo ser pastores pra encontrar os carneirinho, de
manhãzinha, enroladinho como carretéis de lã.
(...)
ALUNA 27: Pra cuidar dos carneirinho.
(...)
ALUNO 16: Isso é romântico.
ALUNA 27: Porque cuidar dos carneirinhos (...) é como de fosse uma... uma arte.
(...)
MEDIADORA: Pra quê as pessoas querem coroas de flores?
ALUNA 22: Pra ficar mais bonito.
MEDIADORA: An...! pra ficar bonito... É isso mesmo, todos nós almejamos ser
bonitos, ser bonito em alguma coisa, seja no aspecto físico, seja no aspecto
psicológico, não é? No visual, nós almejamos ser bonitos, ser belos... Cuidar, certo?
Todos querem ser pastores pra cuidar... dos carneirinhos, então todos almejam o
quê? A gente pode dizer que ter coroas de flores é a mesma coisa de ser belo, não
é? E ser pastor pra cuidar dos carneirinhos é a mesma de... querer ser...?
(...)
ALUNO 30: Honrado.
MEDIADORA: Ser... o quê? Honrado, ter honra! Muito bem! O pastor tem a honra
dele, não é?
ALUNO 16: Ser perdoado.
MEDIADORA: Certo.
ALUNA 22: Ter fé.
MEDIADORA: Ter fé... e o que mais?
ALUNO X: Amor.
MEDIADORA: Amor! Ok, amor pelos carneirinhos, não é? E no final, olha... psiu!
Gente, a terceira estrofe diz assim:
165
Todos querem ser cantores
quando a Estrela da Manhã
brilha só, no céu sombrio,
e, pela margem do rio,
vão descendo os carneirinhos
como carretéis de lã...
MEDIADORA: Todos querem ser cantores... o que vocês dizem sobre isso...
ALUNO 16: Todos querem cantar.
ALUNA 22: Pra cantar pros carneirinhos.
(...)
MEDIADORA: Artista! Então as pessoas, além de beleza, além de bondade, elas
querem também ser artistas, e é o que vocês aqui estão pretendendo ser, né?
ALUNA 31: Não!
MEDIADORA: Não? Não querem ser artistas, aparecer na televisão?
ALUNO 22: Eu quero.
ALUNO 30: Não, tia, eu não quero não!
ALUNA 27: Eu quero.
ALUNO 30; Eu quero ser médico.
ALUNA 22: Eu quero, pra ser importante, artista, escrever coisas bonitas que nem
Cecília Meireles...
MEDIADORA: Interessante... Então, a gente pode dizer que nós queremos cuidar,
ser bons, queremos conviver com a beleza das coisas, como ver “os carneirinhos
enroladinhos”; ”ter coroas de flores”... e almejamos ser artistas, ser cantores?
ALUNA 22: Podemos. É tudo de bom.
(...)
Depois da conversa sobre Os carneirinhos”, indagamos se o poema transmitia um
sentimento de alegria ou de tristeza e a maioria dos alunos respondeu que o texto passava
alegria, porque, conforme ressaltou um dos alunos, “fala de coisas boas, de carneirinhos, de
flores, de canção...”.
Perguntamos, então, qual era o tom de nossa composição feita para “Os carneirinhos”,
isto é, a modalidade de afeto que a canção evocava, conforme Bosi (2003, p. 469), e eles
disseram, no geral, que ela era alegre, estando em conformidade com a letra:
166
MEDIADORA: Essa melodia que a gente criou foi uma melodia triste ou uma
melodia alegre?
ALUNA 27: Alegre.
MEDIADORA: E o poema sugere uma melodia alegre? Tem um tom alegre
também?
ALUNO 30: Alegre
(...)
ALUNO 30: Tristeza.
MEDIADORA: Tristeza?
ALUNO 16: Não, tia, emoção!
MEDIADORA: E onde é que está a tristeza do poema?
ALUNO 30: No poema todo.
ALUNA 27: Porque ele quer e não pode.
(...)
MEDIADORA: An... Ele quer e não pode, ele falando da possibilidade de ser
pastor...
ALUNA 22: Ele fala de alegria.
MEDIADORA: Olha, esperem ainda, agora prestem atenção: eu vou... vocês vão
tirar a dúvida com a leitura do poema, tá? Prestem atenção pra depois vocês
chegarem à conclusão sobre a tonalidade do poema, se é uma tonalidade triste ou
se é uma tonalidade alegre, festiva, vamos lá? (Faz a leitura do poema).
MEDIADORA: (...) Passa um sentimento de tristeza ou uma saudade...?
(...)
MEDIADORA: Então você (Dirigindo-se a um dos meninos) disse que era uma
melodia triste, não foi? Você acha que tem tristeza no poema?
(...)
ALUNO 30: Ah, professora... os dois.
MEDIADORA: Dá vontade de chorar, quando escuta?
ALUNO 30: Não, dá vontade de chorar não.
MEDIADORA: Dá vontade de que? De dançar?
ALUNO 30: Não de dançar não, dá vontade de ficar parado.
MEDIADORA: Ah?
ALUNO 30: vontade de ficar parado.
(...)
167
MEDIADORA: Ok, então vamos fazer o seguinte: que o João e outras pessoas
concordam que o poema, ele, vou usar a palavra pungente pra dizer assim... que ele,
ele é meio triste, né? Eu tô usando a palavra pungente pra dizer que toca fundo.
ALUNO 16: Romântico.
MEDIADORA: Romântico. Música romântica geralmente é mais, é mais, é... me
ajudem!
ALUNO 16: É mais emoção.
MEDIADORA: É mais emoção... e mais...
ALUNA 22: É mais legal.
ALUNA 27: Alegre é mais legal, bonita.
(...)
MEDIADORA: E a canção pra ser bonita tem que ser alegre?
ALUNOS: Tem
ALUNO 30: Não.
MEDIADORA: Vocês conhecem alguma canção triste e bonita?
ALUNA 22: “O anel”.
MEDIADORA: “O anel”, de Bia Bedran, que cantamos no nosso primeiro
encontro. Muito bem lembrado. Eu também acho linda essa composição.
ALUNA 22: O Anel fala de perder e isso é muito ruim, deixa a pessoa triste, mas a
música é bonita.
MEDIADORA: Tem razão. É uma perfeita combinação entre texto e melodia.
MEDIADORA: E no texto de “Os carnerinhos”?
ALUNA 27: Acho que combinou.
ALUNA 22. É, mais podia ser diferente, assim mais lenta, sei lá...
MEDIADORA: (...) Poderíamos criar uma melodia mais lenta que ressaltasse o
lirismo do poema, suas emoções, sua beleza, uma melodia que tocasse fundo quem a
ouvisse. Vamos tentar criar uma melodia mais pungente?
Diante dessa nossa última colocação, uma das alunas conseguiu criar, de imediato,
uma nova melodia para a primeira estrofe do poema, enquanto os outros participantes
acharam a atividade difícil, sobretudo, porque a primeira melodia já estava gravada na
memória recente deles.
ALUNA 22: Tia, já sei:
MEDIADORA: Ótimo. Como é? Cante, querida!
168
ALUNA 22: Todos querem ser pastores
quando encontram, de manhã,
os carneirinhos, enroladinhos
como carretéis de lã.
ALUNO 16: Fala, não é? Num cumeu arroz não é? Tá com fome, é?
ALUNA 22: Se eu tô com fome, tu vai me dá comida?
MEDIADORA: Olha... ok, ok!
A menina ensaia, com uma coleguinha, a melodia para a primeira estrofe do poema
e cantam-na para o grupão.
MEDIADORA: Tan-tan-tan-ram...tan-tan-tan-ram…tan-tan-tan-ram… tan-tan-tan.
existe isso? Não pode ser, não pode ser plágio o, botar uma melodia que
existe. Tem que ser nova. Entendeu? Muda esse pedacinho (relativo aos e
versos do poema).
135
ALUNO 16: (canta um trecho da melodia anterior):
MEDIADORA: Não, aí é a primeira melodia, tem que ser outra.
Levando em consideração que as crianças não estavam conseguindo criar uma melodia
diferente daquela que foi feita no encontro anterior, nem continuar a nova melodia, iniciada
por uma das alunas (a aluna 1), demos por encerrada a primeira parte da atividade e passamos
para a segunda, voltada para a recriação das músicas feitas na manhã do encontro anterior e
sua execução, acompanhada de violão, tocado por um dos colegas.
Nesse dia, o tempo fugiu de nosso controle e não pudemos analisar outras
composições, no que tange à relação letra-canção, como planejamos. Houve tempo apenas
135
Nesse momento, equivocamo-nos ao achar que a melodia já existia, fato que desvendamos num outro dia, ao
percebemos que ela lembrava, apenas, parte da melodia de “Eu sou pobre, pobre, pobre”.
169
para os alunos fazer a apresentação de suas composições, sem ajustes significativos, ao som
do violão de um principiante que ainda se enrolava nos acordes básicos do violão, coisa que
ignoramos, uma vez que a interação dos alunos com a atividade sobressaia os acordes tocados
fora de hora e executados de forma presa.
Desse momento, destacamos o exercício de ajuste feito em torno da canção de “Colar
de Carolina”:
MEDIADORA: Repitam. Eu vou tentar acompanhá-las pra ficar um pouquinho
mais alto. Vamos lá? (A dupla de alunas repete a canção).
MEDIADORA: De novo, de novo! Vocês estão errando (a letra), viu?
A dupla de alunas canta, mais uma vez, acompanhada pela professora:
MEDIADORA: Olhem, eu acharia melhor vocês baixarem aqui (no final da 1ª
estrofe):
A dupla canta novamente:
MEDIADORA: Aqui no final do poema também tem que baixar pra termina. De
novo, 1, 2, 3...
170
MEDIADORA: Muito bem!
Consideramos que o quarto encontro possibilitou uma conversa interessante a respeito
da primeira musicalização do poema “Os carneirinhos”, feita na semana anterior, bem como
suscitou a criação de outra versão melódica para o referido poema. Nesse dia, todo o grupo se
fixou na leitura de um mesmo poema, aspecto que propiciou a partilha e a interação entre os
participantes e o texto, não significando, necessariamente, a concordância de opiniões. Foi o
que percebemos na leitura coletiva de “Os carneirinhos” e na sua interpretação: alguns leitores
evidenciaram o tom alegre, outros, a tristeza e a emoção, emanados do poema. O importante é
que, aos poucos, os alunos se manifestaram e, mesmo aqueles que silenciaram, puderam ouvir
os colegas e, possivelmente, recriar ou confirmar seus suplementos de leitura em relação ao
texto.
Esse foi um dos momentos da experiência em que pudemos perceber a importância do
método dialógico para instigar a participação dos alunos em sala de aula, abrindo espaço para
que eles expressassem seu ponto de vista sobre os textos poético e musical, propiciando-lhes
o sentimento de sujeitos da aprendizagem, numa relação horizontal com o professor e com os
colegas, como sugere Freire (2003, p. 96), fato fundamental para que essas crianças se
sentissem motivadas também a criar suplementos musicais para os poemas.
Das falas dos alunos, chamou-nos a atenção a ideia de que o poema transmitia
emoção, aquela emoção romântica, como destacou o próprio aluno num outro momento da
recepção, emoção suscitada, sobretudo, pela imagem lírica dos carneirinhos e pelo desejo de
se vivenciar a beleza da vida e das coisas.
171
No texto literário, a emoção constitui uma das instâncias fundamentais da leitura, no
que tange à interação texto/leitor. Através dela, o leitor, engaja-se afetivamente com o que
está lendo (JOUVE, 2002, p. 21), projetando-se nas situações e personagens. A esse respeito
Marina Colasanti (2004), ao refletir sobre a literatura destinada aos jovens, escreve:
A emoção é minha medida para escrever contos de fadas. Se a história me abala, se
eu fico eufórica ou se tenho que sair para respirar um ar mais fundo, posso confiar
nela. (...) é a emoção, mais do que a história em si, que estabelece o diálogo com o
leitor, o entendimento pode passar por cima das palavras (COLASANTI, 2004, p.
96, 97).
O engajamento afetivo das crianças com o poema ceciliano foi imprescindível também
para o processo de musicalização deste texto, seja no âmbito do grupo ou da criação
individual.
Outra fala que merece comentário é a que destaca a ideia de que a leitura de “Os
carneirinhos” “vontade de ficar parado. Em se tratando de um enunciado proferido por
um menino em plena pré-adolescência e acostumado ao ritmo agitado das atividades próprias
desta fase da vida, achamos interessante a expressão e pensamos que as prováveis motivações
para seu uso possam ser creditadas ao movimento de reflexão e de introspecção que os
poemas líricos, de um modo geral, suscitam. Para percebê-los em sua plenitude, muitas vezes,
é fundamental várias leituras, num ambiente de silêncio, com algumas pausas para respirar e
para meditar sobre o que ele diz e significa, na acepção de Riffaterre (1989). “Os
carneirinhos” é um desses poemas.
Quinto encontro: dia 04 de novembro de 2008
Iniciamos o encontro, fazendo a leitura oral do poema “Ou isto ou aquilo”, de forma
desvinculada do papel, numa recitação do texto, para variar um pouco a metodologia de
leitura que adotamos, desde o primeiro encontro. Assim que terminamos a leitura, uma das
crianças, o aluno 20, de 10 anos, começou a cantar uma melodia que, imediatamente, chamou
nossa atenção pela beleza e elaboração. Não escondendo nosso entusiasmo diante da
criatividade do menino, pedimos para que ele cantasse novamente e fizemos a gravação em
172
áudio. Interessante destacar que a cada estrofe a criança criava, intuitivamente, uma nova
melodia, entrando em conformidade com a estrutura do poema, uma vez que, em todo o texto,
não havia repetição de versos ou estrofes. No entanto, como o poema é longo, após a quarta
estrofe, parece que o menino se cansou ou ficou mais nervoso - pois ele era bastante tímido e,
de certa forma, aquela era uma atividade de exposição -, e começou a relaxar a melodia, de
modo que terminou falando o resto do poema. Não podemos descartar também a
possibilidade, bastante viável, de que o menino tenha se sentido prejudicado em seu processo
de criação pelo fato de alguns colegas estar fazendo barulho, no momento. Procurando
contornar a situação, sugerimos que ele fosse para o corredor, fora da sala, e tentasse cantar e
gravar novamente. Nesse pequeno intervalo, o menino esqueceu a variação de sua melodia e
cantou as estrofes todas do mesmo jeito, de forma que consideramos a primeira versão mais
significativa para arranjarmos e cantarmos com as crianças, que a mesma se mostrou mais
variada e desenvolvida que a outra, apresentando quatro modelos musicais para as quatro
estrofes, ao invés de um, como ocorreu com o experimento, na segunda vez que o menino
cantou o poema, repetindo o primeiro modelo em todas as estrofes. Segue-se abaixo a
partitura, equivalente ao primeiro experimento:
173
Desse perfil musical, elaboramos o resto da canção, repetindo e combinando
certas estruturas musicais da primeira parte, criada pela criança, uma vez que ela não
se dispôs a realizar tal atividade, sugerida na manhã seguinte:
174
Nesse dia, depois de registrarmos, num gravador portátil, a composição feita pelo
menino, passamos a conversar um pouco sobre o poema, no intuito de variar um pouco a
metodologia que utilizamos na experiência com os poemas. Diferente do que se deu no quarto
encontro, também não pretendemos verificar a adequação texto/melodia; objetivamos apenas
conversar sobre o poema, atividade de interesse da turma, conforme percebemos na semana
anterior, para em seguida, voltarmos aos trabalhos de leitura e composição musical dos
poemas, foco de nosso trabalho:
MEDIADORA: De que fala o poema?
ALUNA 8: De escolha. Vivemo o tempo todo escolheno, professora. Hoje eu queria
ter ficado durmino, com essa chuvinha. Mas também não quiria perder aula.
ALUNA 22: Domingo, eu quiria ir pra casa de minha vó, mas era dia de ficar com
o meu pai, entende?
MEDIADORA: Entendo, sim. Então... vocês concordam “que não se pode estar ao
mesmo tempo nos dois lugares”, como fala o poema?
ALUNA 8: Nem sempre. Por exemplo, eu posso tá aqui e acolá ao mermo tempo.
MEDIADORA: Como assim?
ALUNA 8: Assim, ó..., o meu corpo aqui, certo, mas minha cabeça... pode
noutro canto, no mundo da lua... (risos).
MEDIADORA: Certo.
ALUNO 14: Eu posso com um no chão e o outro nos ares. Assim, ó... (e faz o
gesto, se sustentando num pé só).
ALUNO 6: No circo, eles faz assim. Eu vi, na televisão, um trapezista no ar apoiado
no chão com uma mão.
MEDIADORA: Legal!
ALUNO 1: Eu posso gastar o dinheiro e ainda ficar com ele... é comprar pouco
doce e o mais barato pra ter troco.
(...)
MEDIADORA: E estudar e brincar pode acontecer ao mesmo tempo?
(...)
ALUNA 17: Eu consigo, às vez. Quando a professora passa uma leitura pra casa...
se for uma história interessante, aí, eu me divirto. Acho que eu brinco de ser a
personagem. Se ela fica triste, eu também fico triste, se ela fica alegre, eu também
fico.
MEDIADORA: Interessante. E com os poemas de Cecília Meireles, vocês brincam,
enquanto lêem.
ALUNO 30: Eu brinco. Acho muito divertido, por exemplo, aquele do P
[“Passarinho no sapé”].
175
ALUNA 28: Eu acho as rimas divertida.
ALUNA 22: Eu acho “A avó do meninó”.
ALUNO 6: Eu brinco com os de tropeçar. É bem legal.
(...)
MEDIADORA: Hanran... falar em brincar, vamos brincar de fazer música para “O
Menino Azul”?
ALUNOS: Vamo.
ALUNO 7: Vamo não.
ALUNOS: (risos)
Notamos, nessas últimas falas dos alunos, várias concepções de leitura literária:
primeiro a leitura como jogo “de representação ou de simulacro”, fundamentada “na
identificação com uma figura imaginária”, conforme destaca (JOUVE, 2002, p.111). Desse
âmbito, “ler, de certa forma, é reencontrar as crenças e, portanto as sensações da infância”
(JOUVE, 2002, p.117), pois, graças à criança que nos habita, que persiste em nós, fazemos o
pacto da ficcionalidade, entramos no jogo lúdico do texto, participando das circunstâncias
emocionais dos personagens com os quais nos identificamos, amando, sorrindo, sofrendo e
chorando com e por ele; segundo, a leitura do poema como jogo linguístico, no qual a camada
ritmico-sonora se sobressai em relação à semântica do texto, como acontece nas brincadeiras
das parlendas entre outras; terceiro, a leitura como poiesis, na qual o leitor se sente co-autor
do texto, reinventando, para este, modos de ler e interpretar, advindo do prazer da leitura,
consoante Jauss (2002, p.100-101).
Importante destacar também das falas das crianças sobre “Ou isto e aquilo”, o modo
como elas demonstraram sua percepção do poema, utilizando a linguagem gestual, fato
comum entre as crianças que tendem a traduzir o seu pensamento mediante expressões
corporais, como forma mais fácil de comunicar o que pensam ou reforçar sua intenção
comunicativa. Ressaltamos ainda a maneira como elas levantaram questões interessantes,
especialmente, através dos enunciados em que veem fissuras na temática do poema, pensando
saídas para não aceitar passivamente a ideia de que não se pode “estar ao mesmo tempo nos
dois lugares”, ou se ter, de uma vez, isto e aquilo, numa perspectiva em que a escolha de
uma situação não elimina outras possibilidades. Para isso, embasaram seus argumentos com
exemplos de seu cotidiano:
176
MEDIADORA: Então vocês concordam “que não se pode estar ao mesmo tempo
nos dois lugares”, como fala o poema?
ALUNA 8: Nem sempre. Por exemplo, eu posso tá aqui e acolá ao mermo tempo.
MEDIADORA: Como assim?
ALUNA 8: Assim, ó..., o meu corpo aqui, certo, mas minha cabeça... pode
noutro canto, no mundo da lua... (risos).
ALUNO 1: Eu posso gastar o dinheiro e ainda ficar com ele... é comprar pouco
doce e o mais barato pra ter troco.
A ideia de que podemos estar ao mesmo tempo nos dois lugares encontra respaldo em
muitas circunstâncias da vida, como destacou a criança 1, podendo ser comprovada com o
sonho ou a própria leitura literária, em que a pessoa pode ocupar, num dado momento, não
apenas um certo espaço físico, do tempo mensurável, todavia, espaços imaginários, que se
vivencia como se fossem reais. Muitos textos, principalmente os ficcionais, têm essa
capacidade de nos transportar a mundos imaginários, fazendo-nos viver intensamente
situações tão reais quanto aquelas que vivemos na realidade, como destaca Marina Colasanti
(2004, p. 9- 24). Isso, porque o bom texto ficcional nos proporciona o “prazer de alta
voltagem que nos arrebata e nos atira, mãos e pés atados, nos porões de uma fragata rumo a
terras desconhecidas, das quais, tantas vezes, preferimos ignorar o nome” (COLASANTI,
2004, p. 9).
Além disso, o pensamento da criança em defender a simultaneidade na realização de
certas ações, em desacordo com o caráter disjuntivo do poema, quanto à abordagem da
temática, remete-nos ao próprio contexto em que vivemos, tempo da velocidade, da
cibercultura, da percepção globalizante, enfim, da conjunção entre isto e aquilo. Nos dias
atuais, é comum as pessoas fazerem várias coisas ao mesmo tempo, especialmente, no espaço
das tecnologias digitais de comunicação. Através da internet, por exemplo, os internautas
podem acessar vários sites, de forma concomitante e, mediante programas interativos, como
MSN, Yahoo Messenger, Skype, chats, entre outros, podem conversar, virtualmente e em
particular, com pessoas do mundo inteiro, de maneira simultânea, sem deixar de ouvir música,
falar ao telefone, comer, assistir tv e até mesmo “elaborar um texto ao mesmo tempo em que
conversam”, como lembra Almeida (2009, p. 5, on line), fato que “gera uma impressão de
177
alargamento do tempo, tornando a vivência da temporalidade mais flexível e a atividade
interacional mais dinâmica e atraente (ALMEIDA, 2009, p.7, on line).
136
No caso de nossas crianças, participantes da experiência, embora sejam pobres e não
possuam, em casa e na escola, os meios técnicos necessários à comunicação virtual, elas
fazem uso da internet,
137
com certa desenvoltura, através das lan-houses, casas de parentes ou
de amigos. São crianças que estão na faixa-etária daqueles que “melhor dominam um novo
aparato tecnológico e estão na ponta de um processo transformador que atinge, cada vez mais,
áreas da vida cotidiana” (AMARAL, p. 2003, 110).
Encerradas, provisoriamente, a conversa sobre o poema “Ou isto ou aquilo”, passamos
para a leitura de “O menino azul”. Depois de realizadas as leituras silenciosa e oral do poema,
reservamos uns quinze minutos para que os alunos fizessem a recriação musical do poema.
Em poucos instantes, uma dupla de meninas sinalizou que tinha realizado a tarefa. Ouvimo-la
cantar e consideramos significativo o seu insight em torno da leitura musical de “O menino
azul”. Imediatamente, pedimos que elas treinassem mais um pouco para, em seguida,
gravarmos:
138
136
<http://www.abciber.com.br/simposio2009/trabalhos/anais/pdf/artigos/2_entretenimento/eixo2_art39.pdf>.
137
Observamos esse fato quando nos reunimos em minha casa para ler e cantar os poemas de Cecília Meireles e
as crianças pediram para acessar, do meu computador, a internet, especialmente, o Orkut e o MSN. Até mesmo as
irmãs menores, que acompanhavam os participantes, como aconteceu com uma delas de cinco anos de idade e
que ainda não sabia ler, já apresentavam certa destreza com essa nova tecnologia.
138
A dupla refez apenas a penúltima estrofe, de modo que a última permaneceu falada. Das estrofes cantadas
fizemos pequenos ajustes para evitar a repetição exaustiva de certos blocos rítmico-musicais. As partituras de
todas as músicas estão disponíveis no anexo 3 deste trabalho.
178
Nesse dia, fizemos também o planejamento do cenário que utilizaríamos na
apresentação dos poemas musicados, “As meninas” e “Ou isto ou aquilo”, junto à comunidade
escolar. Desse momento, trascrevemos, abaixo, as falas referentes ao cenário sugerido para
“As meninas”:
MEDIADORA: Vamos planejar o cenário de nosso musical?
ALUNA 8: Musical?
179
MEDIADORA: É sim, vocês o lembram que eu falei que nós estamos criando
melodias para os poemas de Cecília Meireles, para apresentarmos em dezembro
pra toda a escola? Esqueceram foi?
ALUNO 6: Lembro, tia.
MEDIADORA: Pois é, então vamos pensar o cenário. Como é que a gente poderia
ilustrar, por exemplo, o poema “As meninas”?
Arabela
abria a janela.
Carolina
erguia a cortina.
E Maria
Olhava e sorria:
“Bom dia!”.
(...)
ALUNO 25: Nós podemos fazer a janela de isopor, tia.
ALUNO 9: E fazer a cortina de papel crepom...
MEDIADORA: Certo. Vai ficar interessante. Na próxima aula, vocês poderiam
trazer o material para fazer a janela e a cortina. Pode ser?
ALUNO 25: Eu trago o isopor.
ALUNA 9: Eu trago o crepom.
ALUNA 8: Eu posso ser Arabela, tia, trago minha maquiagem, um espelho, uma
escova e fico representando na hora.
MEDIADORA: Legal!
ALUNA 13: Eu posso ser Carolina. Trago uns livro e fico fingindo que lendo na
hora...
ALUNA 11: E eu... posso ser Maria,tia?
MEDIADORA: Pode sim. E o que faria a Maria?
ALUNA: Sorria e dizia bom dia (risos).
ALUNOS: (risos)
ALUNA 8: Ficamo as três na janela...
ALUNA 9: Melhor... uma de cada vez.
ALUNA 21: É mermo!
MEDIADORA: Certo. E o que mais?
ALUNA: Tá bom, tia, desse jeito.
MEDIADORA: É. Tá bom.
180
Percebemos que os alunos gostam bastante de atividades desse tipo, mostrando-se
disponíveis para colaborar na concretização das mesmas, seja emitindo ideias sobre a
realização do cenário, seja prontificando-se a representar os personagens evocados e/ou trazer
objetos que ajudem a compor as cenas nas quais desejam atuar. Até mesmo os alunos que
demonstraram pouco envolvimento nos momentos de leitura e de musicalização dos poemas
mostraram-se interessados em contribuir, da melhor forma possível, para a realização das
atividades, dentro das suas possibilidades financeiras e suas habilidades artísticas.
No geral, esse quinto encontro oportunizou-nos uma vivência mais abrangente com
alguns poemas, pautada em situações de compartilhamento da leitura literária e seus
desdobramentos em atividades de interpretação, recriação musical e sugestão de cenários.
Sexto encontro: dia 11 de novembro de 2008.
Duração: 180 minutos
Esse encontro foi dedicado à confecção, em grupo, de parte do cenário. Os alunos
construíram a janela de isopor com cortina de TNT, para o poema “As meninas”; picotaram
papel laminado para representar a chuva de “Ou isto ou aquilo” e ilustraram o poema “O
menino azul”, em cartazes. Além disso, as crianças, autoras da composição musical, feita para
o poema “O menino azul”; fizeram a recriação da penúltima estrofe da melodia:
181
Para finalizar o encontro, fizemos o reagendamento dos horários da oficina, de terça
(7h15 às 11h00) para o sábado (8h00 às 10h00), em decorrência de a biblioteca, espaço que
ocupávamos na realização da experiência, não se encontrar mais disponível, no primeiro
horário acordado entre nós e a direção da escola, uma vez que estava sendo ocupado por um
novo projeto da escola, denominado “Mais Educação”.
Sétimo encontro: dia 15 de novembro de 2008.
Duração: 100 minutos
Nesse dia, compareceram à oficina somente três alunos, em virtude das crianças, no
geral, não terem disponibilidade para frequentar a escola no novo horário agendado para os
últimos encontros - sábado pela manhã, das 8h00 às 11h00. Todavia, o encontro foi bastante
produtivo: no primeiro momento, as crianças criaram, em trio, melodias para os poemas A
chácara do Chico bolacha”; “A língua do nhen” e “As duas velhinhas”, e depois, na segunda
parte da manhã, dedicaram-se ao ensaio das melodias feitas pelas crianças e arranjadas,
pessoalmente por nós, para os poemas “O último andar” e “Ou isto Ou aquilo”.
Tendo em vista a impossibilidade de continuar o projeto no formato que iniciamos -
em decorrência do fato de que a maioria das crianças não podia, por motivos diversos e
pessoais, ir à escola aos sábados pela manhã - e tendo alguns resultados da experiência,
decidimos, com a aquiescência da direção da escola, finalizar essa parte da pesquisa e iniciar
uma nova modalidade de experiência com os alunos, aberta às crianças, da primeira à quarta
séries: o coral. Assim, tanto teríamos público para cantar as músicas, feitas para os poemas de
Cecília Meireles, tornando viável o nosso sarau lítero-musical, como poderíamos continuar a
ler e a criar melodias para outros poemas da escritora. Além disso, era mais uma oportunidade
de ler os poemas de Cecília Meireles.
De um modo geral, consideramos significativa a experiência de leitura e recriação
musical dos poemas de Cecília Meireles, durante os sete encontros, realizados junto à turma
do 5º ano A, da Escola de ensino fundamental Santa Terezinha, especialmente, quando
levamos em consideração que estávamos trabalhando com uma turma com sérios problemas
de comportamento e falta de interesse, sendo considerada, por muitos professores e alunos, a
182
pior turma da escola. Temos que considerar ainda dois fatores importantes, ligados ao
comportamento dessa turma: os alunos provêm de classes não-privilegiadas da população e
são, desde muito cedo, convocados a deixar o mundo da infância e assumir atribuições da vida
adulta, seja diante de atividades domésticas em suas próprias casas, seja em trabalhos, de
natureza diversa, fora de seus domicílios, fatos que, muitas vezes, deixam nas crianças um
sentimento de revolta e um “travo de melancolia, qualquer coisa de saudade de uma vida que
não tiveram”, como destaca Cecília Meireles na crônica “Crianças pobres”.
Paralela a essa realidade, destacamos a atuação precária de muitas de nossas escolas
públicas, no sentido de que elas têm pouco trabalhado a sensibilidade e a imaginação das
crianças e aberto espaço para a vivência com a arte e com a poesia, de modo que, muitas
vezes, se cria uma barreira na interação entre a criança e o texto literário, bem como no
desenvolvimento do espírito criativo, como lembra Vânia Resende (1997), ao refletir sobre
sua experiência numa turma de terceira série primária (4º ano), que tinha pouca vivência com
o seu ser imaginarius. Nessas condições, desenvolver a educação estética de crianças e jovens
não é tarefa cil e o professor precisa se “desdobrar para aquecer a afetividade e despertar as
reservas do imaginário” dos alunos (RESENDE, 1997, p. 25).
No caso de nossa experiência, trabalhamos na confluência desses dois problemas,
chegando ao fim da pesquisa com a sensação de que, independente do contexto das crianças,
elas continuam dóceis à arte, à poesia e permanecem criativas, quando são estimuladas.
No início da experiência, notamos, entre os alunos, certa dificuldade em recriar
musicalmente os textos, fato que foi se resolvendo a partir da familiaridade deles com os
poemas e da interação com os colegas, de modo que chegamos ao final da pesquisa com um
resultado que superou todas as nossas expectativas, em quantidade e qualidade: dos sete
encontros, nasceram 14 composições feitas para 12 poemas de Ou isto ou aquilo: “Ou isto ou
aquilo”; “O último andar”; “O menino azul”, “O eco”; “As meninas”; “Os carneirinhos”; “A
língua do nhem”; “A chácara do Chico Bolacha”; “As duas velhinhas”, “Colar de Carolina”,
“Canção de Dulce” e “Rio na sombra. Entre esses, os poemas “O eco” e “A ngua do nhem”,
ganharam duas versões, cada.
Compreendemos que o resultado positivo da experiência se deu, especialmente, pela
conjugação de três fatores: a persistência em continuar com a pesquisa, mesmo diante dos
vários obstáculos que enfrentamos; a qualidade estética, a ludicidade e a musicalidade dos
poemas de Cecília Meireles, e a forma descontraída e lúdica como trabalhamos esses textos
183
em sala de aula, valorizando o poema em si mesmo, como brinquedo e como objeto estético e
dando destaque à intuição, aos insights e à criatividade dos alunos.
Talvez o resultado pudesse ser ainda mais compensador se boa parte da turma não
fosse indisciplinada e não perdesse o melhor tempo que tem disponível, que é o tempo
precioso da infância - sem muitas preocupações e atribuições do mundo adulto -, com
brincadeiras de natureza violenta, com agressões físicas e verbais ao outro. A despeito desses
problemas, os alunos, incluindo os indisciplinados, puderam experimentar diversos sabores
dos poemas cecilianos, seja através de suas leituras, seja através dos momentos em que os
colegas e a mediadora fizeram a realização oral desses textos e trocaram ideias sobre eles.
Acreditamos também que os poemas continuarão dialogando com eles, nem que seja para
lembrá-los de que ler poemas é uma atividade em que, através da conjugação entre
brincadeira e emoção, pode-se cultivar o desejo de permanecer existindo, para poder usufruir
a beleza das coisas, da arte e da vida.
Além disso, essa experiência serviu de motivação para que continuássemos a vivência
com os poemas infantis de Cecília Meireles com outras crianças que se disponibilizaram a
participar do coral, lendo, cantando e encantando-se com os poemas de Cecília Meireles e
com as músicas que foram feitas para eles. Essas, por sua vez, no geral, potencializaram a
comunicação e a beleza dos textos poéticos, especialmente quando receberam arranjos que
procuraram valorizar a melodia e o texto.
Quanto a esse aspecto, vale lembrar um dado importante: como as crianças criaram de
forma intuitiva e são leigas em relação à linguagem da música e aos procedimentos formais da
composição musical, nós, como especialista na área, que temos formação em Música,
atuamos como parceira dessas crianças, convertendo o seu canto em partitura musical,
corrigindo alguns problemas de afinação em que a criança não conseguiu emitir um som
preciso, mudando, em alguns casos, a condução de frases melódicas, em simetria com as
frases dos poemas e seus possíveis significados, definindo a tonalidade, os acordes e os
elementos de repetição, etc., sem, no entanto, ignorar a base ritmo-melódica criada pelos
alunos.
No geral, a nossa interferência procurou evitar a monotonia das composições. Para
tanto, interferimos, notadamente, na condução das curvas melódicas das frases, buscando
trazer alguns elementos de variedade ao texto musical.
184
Pensamos que essas intervenções estão dentro dos limites do mediador/especialista,
como acontece, geralmente, no âmbito da música popular brasileira. Nessa, muitos
cancionistas, não detendo conhecimentos musicais, buscam especialistas para “traduzir
intelectualmente” as suas criações, estabelecendo conversões e corrigindo “soluções mal-
formadas”, sem, no entanto, “assumir o papel desses artistas ‘despreparados’ na fase da
criação” (TATIT, 2004, p. 72).
No nosso caso, como mediadora e arranjadora das composições, procuramos trabalhar
as criações intuitivas das crianças, no sentido de garantir eficácia e beleza às canções, de
modo que pudéssemos apresentar à comunidade escolar o melhor de Cecília Meireles em
canto.
Opinião dos alunos
De acordo com a ficha de avaliação em anexo, aplicada ao término das atividades da
oficina “Poesia e música na sala de aula”, no dia 25 de novembro de 2008, os alunos
consideraram a experiência significativa: dos 18 alunos presentes na sala que participaram da
pesquisa, 11 afirmaram ter gostado muito, 4 disseram que gostaram médio, 3 destacaram que
gostaram um pouco e somente 1 salientou que não gostou da experiência porque não se
interessou pela leitura.
Os que gostaram muito salientaram, sobretudo, o fato de os poemas de Cecília
Meireles ser lúdicos, “legais” e “muito interessantes”, e eles terem se divertido durante a
vivência com os textos e se interessado mais pela leitura de poemas:
ALUNO 5: porquê é muito legal e etc.
ALUNO 7: por que do mesmo jeito que da pra aprender da pra gostar de cantar,
ler
ALUNO 8: Por que eu mim divertia cantava e lia os poemas que eu fes (de C.M.)
ALUNO 14: Porque é muito educativo
ALUNO 17: Porquê é muito legal as músicas e poemas de Cecília Meireles
ALUNO 18: Gostei porque era muito bom para aprende
185
ALUNO 20: Gostei porque isso me féis interessar mais ainda do poema
ALUNO 21: Pela empolgação da professora pelos minutos de alegria e a energia
boa que nos trás.
ALUNO 22: Porquê, foi legal é muito interessante para as crianças
ALUNO 25: Porque é divertido
ALUNO 31: É muita divertido de ler tem muitas rimas
entre aqueles que gostaram de médio a pouco, eles atribuem isso muito mais a
fatores pessoais: não tiveram disposição interior para algumas atividades, gostaram apenas
dos momentos de leitura e não gostaram de cantar, etc:
ALUNO 1: Eu gostei de ler
ALUNO 4: Porque eu gosto de poesias, mas não gosto muito de poesias cantadas
ALUNO 10: Porque eu acho legal as coisas que ela escreve
ALUNO 28: Por que as veses não estava afim más é legal
ALUNO 29: Porque agumas desses asmusica são repetidas
ALUNO 30: Porque eu não gosto muito de cantar não
No geral, disseram que a experiência, ligada às atividades de ler e cantar os poemas,
foi “muito criativa”, “ótimo”, “boa”, “divertida”, “genial”, “legal”, “muito legal” e “muito
interessante”:
ALUNO 4: Muito criativo
ALUNO 5: Eu achei legal em ler poemas tão bonitos.
ALUNO 7: Legal
ALUNO 8: Legal
ALUNO 9: muito legal
ALUNO 10: eu acho legal, mas eu nunca tive coragem [de cantar].
ALUNO 17: Muito genial, o que eles fizeram foi uma coisa impressionante [a
criação das melodias].
ALUNO 20: Achei ótimo, muito bom de verdade, queria faser isso sempre.
186
ALUNO 21: muito bom, eu aprendir coisas novas, como o significado da palavra
amizade.
ALUNO 22: Achei interessante muito mesmo.
ALUNO 25: divertido.
ALUNO 28: Legal
ALUNO 29: boa e muito legal
ALUNO 30: Achei muito gostoso de ler poemas, gosto muito.
ALUNO 31: Bem legal.
Entre essas falas, duas delas merecem destaque: as falas dos alunos 10 e 20. A primeira
reflete tanto a timidez da criança diante da demonstração de suas criações musicais, o que não
significa que não tenha feito a sua leitura musical do poema, como aponta para o caráter
democrático da experiência com os poemas infantis de Cecília Meireles, no sentido de que o
aluno não era obrigado nem a ler nem a apresentar o resultado de suas leituras. Procuramos
deixar as crianças à vontade para participar das atividades, embora sempre demonstrássemos
empolgação perante o empenho e a criatividade delas diante do processo de musicalização dos
poemas. Quanto à colocação da criança 20, ao dizer que “queria faser isso sempre”,
demonstra o seu contentamento em ter participado da experiência. Trata-se de um menino
que, ao longo do experimento, mostrou-se interessado pelas atividades propostas, compondo,
rapidamente e de forma individual, músicas para dois textos: uma trova popular, intitulada “O
anel perde a pedra”, no primeiro dia e “Ou isto ou aquilo”, no quinto encontro, sem falar nas
criações em grupo e na sua participação no coral.
Quando indagamos aos alunos sobre o resultado da experiência e sua relação com o
interesse deles pela leitura, quase a totalidade dos participantes (16) respondeu que a oficina
influenciou positivamente seu gosto pela leitura. Apenas 2 dos 18 alunos que preencheram o
questionário disseram não saber avaliar.
Entre os argumentos usados para justificar a avaliação positiva da experiência, eles
salientaram o fato de a oficina ter propiciado a vivência com o texto poético e ter ajudado, de
um modo geral, “a melhorar a leitura”:
ALUNO 1: Porque eu consigo ler melor.
187
ALUNO 4: Melhorou a leitura por quê nós praticamos e melhorou.
ALUNO 5: Porque, lemdo eu vi que ler é muito legal.
ALUNO 7: Porque eu comecei a pegar a manha da leitura de poemas.
ALUNO 8: Eu gosto. Passei a gostar mais de ler.
ALUNO 10: Eu não sei eu continuo o mesmo.
ALUNO 14: Porque ler me ajuda a aprender mas.
ALUNO 17: Sim; Porque eles [os poemas] nos mostra coisas que rimam
interessante e legal.
ALUNO 18: Porque é legal
ALUNO 20: Porque eu gosto muito de cantar e ler.
ALUNO 21: Ela nós trás expiração e nós ajudou a ver como a leitura é boa de se
cantar ou ler.
ALUNO 22: Sim, porque ajuda-nos a se interessar mais para ler
ALUNO 25: Porque lá nós lermos muito.
ALUNO 28: Porque eu fiquei sabendo muito mais poemas.
ALUNO 29: Porque agente aprende ler muito.
ALUNO 30: Eu acho ajudo mais as pessoas da classe se interessar mais
ALUNO 31: Porque desenvolveu mais a nossa leitura e o nosso conhecimento.
Chamou-nos a atenção, não apenas o fato de a experiência ter proporcionado a prática
da leitura, como também a ideia de que serviu de aprendizagem aos segredos da leitura
poética, desfazendo o mito de que ler poemas é uma tarefa difícil e chata.
139
Os alunos
puderam perceber tanto a dimensão lúdica e sensorial dos poemas, quanto o lado
comunicativo desses textos, acessíveis à compreensão de qualquer leitor. Através dos vários
tipos de leitura realizados para um mesmo poema, puderam notar que, pouco a pouco, a
comunicação com o texto se processava e que podiam recriar os poemas, brincando,
traduzindo a sua compreensão do mesmo em melodias, ritmos e gestos. Puderam enfim,
perceber que “a poesia é para ser ouvida, vista, cantada, tocada e sentida profundamente pelo
corpo” (RESENDE, 1997, p. 130).
Perguntamos ainda aos alunos se eles gostariam que a experiência com os poemas de
Cecília continuasse na escola e eles foram unânimes em responder “sim”, com a justificativa
139
A esse respeito conferir a tese de Doutorado de Ivanda M. M. Silva (2005), pela UFPE.
188
de que traria, para eles e outros alunos, momentos de leitura, de poesia, de alegria, de
aprendizagem, sem falar na qualidade estética dos poemas de Cecília Meireles, traduzida nos
qualificadores: lindos, bons, interessantes, etc:
ALUNO 1: Sim, para melhorar cada vez mais a nossa leitura.
ALUNO 1: Sim, porque cada dia era mais legal.
ALUNO 1: Sim por que é legal pra leitura.
ALUNO 1: Sim, eu acho que sim, que você aprende mais.
ALUNO 1: Sim, gostaria muito.
ALUNO 1: Sim porque é muito bom ler os poemas de Cecília Meireles.
ALUNO 1: Sim, porque você aprende a ser educada
ALUNO 1: Sim, Pois é um ensino muito bom.
ALUNO 1: Sim porque não, ia me fazer feliz e os outros.
ALUNO 1: Sempre, porque eu gosto muito de poesia é muito bom.
ALUNO 1: Sim? Eu acho que seria mais uma oportunidade dos novatos se
enturmar e ver que não é tão ruim ler.
ALUNO 1: Sim, porque nós se interessamos muito pelas poesias.
ALUNO 1: Sim porque eu gosto.
ALUNO 1: Sim, porque é importante para quem gosta muito.
ALUNO 1: Sim por que agente aprende muitos poemas.
ALUNO 1: Porque é muito bom os poemas é bonito e lindo tem muita rima.
ALUNO 1: Sim, porque é muito bom para o conhecimento de nós.
Do exposto, ressaltamos também o fato de algumas falas, concebidas, notadamente,
como reflexo daquilo que os alunos vivenciam em sala de aula, encontrar-se arraigadas de
pragmatismo, no sentido de atribuir à literatura uma função pedagógica. Trata-se de um
pensamento que, ao reproduzir a ideia de que o valor da arte e das coisas está em sua utilidade
prática, ajuda a corroborar a desvalorização da arte no seio das sociedades modernas, espaços
em que se presencia a “dominação das mercadorias sobre os homens”, como destacou Adorno
(2003, p. 69), e a transformação da literatura, no contexto escolar, em pretexto para se
trabalhar conteúdos curriculares, como os gramaticais e os temas transversais, entre outros.
189
3.3.2 Cecília Meireles em canto: segunda experiência
Trabalhamos nesse momento da pesquisa, durante oito meses, de dezembro de 2008 a
maio de 2009 e, de setembro a outubro deste mesmo ano, com um grupo de crianças de 07 a
13 anos, bastante eclético quanto à escolaridade e ao nível de leitura: havia crianças recém
alfabetizadas, mesmo frequentando o terceiro e quarto anos; existiam aquelas que nem sequer
decodificavam os signos linguísticos, especialmente as do primeiro e segundo anos, e havia
outras com uma compreensão e fluência de leitura bastante desenvolvida, integrantes das
diversas séries do ensino fundamental I.
As dificuldades de leitura não foram problema, uma vez que o foco de nosso trabalho
estava em vivenciar os poemas, mediante as composições feitas para esses textos poéticos,
pelos alunos do quinto ano. Assim, no caso daquelas crianças que ainda não tinham sido
alfabetizadas, elas podiam assimilar a música e o texto através do ouvido, da oralidade, como
acontece, no geral, com a arte popular, sobretudo, nas comunidades não escolarizadas, e como
se deu com as canções dos trovadores, disseminadas ao longo dos séculos, em várias partes do
mundo.
Adotamos como metodologia, a leitura oral, precedida da leitura silenciosa. Aquela,
no geral, acontecia duas vezes: primeiro no grupo e, em seguida, era repetida por nós para que
fosse melhor evidenciada a musicalidade da linguagem, dos versos, e para que os alunos,
especialmente, aqueles em processo de alfabetização, pudessem se familiarizar com os textos.
Através da leitura oral compartilhada, esses alunos puderam realizar a leitura dos
poemas, confirmando a assertiva de Rildo Cosson (2006, p.27), ao dizer que a leitura oral, no
geral, se define como “um ato transitivo, posto que a voz se eleva para outros ouvidos”. Essa
idéia encontra respaldo também nas ideias de Cagliare ao destacar que a leitura oral pública
propicia a realização da leitura ouvida, numa dinâmica em que a leitura se realiza tanto da
perspectiva de quem lê, como do âmbito de quem escuta: “Ouvir uma leitura equivale a ler
com os olhos, a única diferença reside no canal pelo qual a leitura é conduzida do texto ao
cérebro” (CAGLIARE, 1997, p. 156).
Para a realização da leitura oral, procuramos pôr em prática algumas sugestões de
Rubem Alves (2005, p. 94), quando diz que “a arte de ler é exatamente igual à arte de tocar
piano ou qualquer instrumento”, ela exige habilidade a ser adquirida com a prática. E
190
acrescenta: O gostar começa pelo ouvir. É preciso ouvir o piano bem tocado” e o texto bem
lido, em consonância com a sua musicalidade, com as curvas melódicas das frases, com as
sugestões rítmicas dos versos e com o tom do poema, de modo que a audição de poemas é
“como ouvir música”: agrada ao ouvido.
Depois dos instantes dedicados à leitura, conversamos um pouco sobre os poemas, no
intuito de explorar e facilitar a percepção dos mesmos. Em seguida, passamos a cantá-los, por
partes, até chegarmos ao todo. Então, repetimos o texto musicado inteiro, várias vezes, à
capela
140
ou ao acompanhamento do teclado, do violão ou de instrumentos de percussão.
Iniciamos com os poemas “Figurinhas” e “A chácara do Chico Bolacha”.
Num segundo momento, depois da assimilação parcial ou total da letra e da melodia,
procuramos desenvolver a performance adequada a cada poema musicado, de acordo com as
sugestões do grupo.
Durante o período da experiência, o grupo se mostrou bastante rotativo, de modo que,
algumas vezes, contávamos com um número inferior a seis e outras vezes, superior a trinta ou
quarenta, dados que estavam sempre em consonância com a realidade do calendário escolar: a
pouca frequência se deu, sobretudo, no início,
141
especialmente,
por causa do recesso do final
de ano, da recuperação de notas e das férias escolares, enquanto a frequência máxima
aconteceu, notadamente, próximo às apresentações do coral.
Dos encontros com o grupo, elegemos alguns momentos
mais significativos para
descrição e apreciação.
A leitura
A leitura dos poemas constituiu o primeiro passo nas atividades do coral, pois
entendemos que cantar bem uma canção poética pressupõe uma familiarização com o seu
modo particular de recriar a realidade, através da linguagem e de suscitar emoções. É o que
lembra Sylvia Pinto (1985), quando aconselha os cantores, especialmente os que interpretam a
canção de câmera, que “estudem primeiro os versos, sintam as emoções que podem despertar,
140
Chama-se canto à capela aquele que se realiza sem acompanhamento instrumental.
141
Somente a partir de fevereiro, a escola fez a divulgação do coral em todas as salas do segundo ao quinto ano.
191
quer tristes ou alegres, sérias ou cômicas”, antes de experimentar o texto poético com
melodia. Esta metodologia traz vantagens fundamentais à arte de dizer através do canto:
Os cantores deveriam, antes de estudar a parte musical, ler e dizer bem os versos das
canções como se fossem declamá-los; isto lhe facilitaria o estudo da música e suas
dificuldades rítmicas e melódicas. O estudo dos poemas isolados beneficia o cantor
do ponto de vista artístico e intelectual, fazendo com que ele conheça as obras
poéticas
(PINTO, 1985, p. 72).
Considerando a nossa maior experiência de leitura em relação à vivência das crianças,
no geral, procuramos fazer a leitura em voz alta dos poemas, suscitando, nos ouvintes, certo
estado de embevecimento, demonstrado, muitas vezes, através dos semblantes das crianças ou
de algumas frases suspiradas do tipo: “Que texto lindo, professora!” Essas demonstrações
foram o bastante para termos a sensação de que estávamos contribuindo, de alguma forma,
para desenvolver o gosto pela leitura poética, em crianças que, em sua maioria, tinham pouca
vivência com a poesia, especialmente, com os poemas de Cecília Meireles.
Somente após esses momentos de leitura e fruição, passamos a experimentar outras
emoções advindas do texto musicado e cantado ou, antes disso, no caso dos poemas que ainda
não haviam sido musicados, a sugerir a recriação musical dos mesmos.
Conversa sobre os poemas
A leitura de alguns poemas foi permeada ora por comentários isolados, ora por conversas
prolongadas. Um dos comentários que nos chamou a atenção se deu no tocante à leitura de “O menino
azul”, quando, depois da leitura oral, um dos alunos perguntou: “Isso é um poema ou uma música?”
Este constitiuiu um das situações mais importantes da aplicação da Pesquisa, momento em que
a co-fusão das linguagens cria na percepção da criança um momento de hesitação, que instala a
conjugação das linguagens, arrastando consigo o efeito esperado e desejado: será música o que eu
ouço, mas é ainda e também poesia?
Logo, considerando de grande relevância a pergunta acima, procuramos saber por que ele a
tinha feito, aproveitando o ensejo para falarmos um pouco sobre Cecília Meireles e sua relação com a
música.
192
MEDIADORA: Eu achei ótima a pergunta. Porque você perguntou isso?
ALUNO 1: Num sei!
ALUNOS: (risos).
ALUNO 2: Fala, vai, fala.
MEDIADORA: E vocês, crianças, acham que “O menino azul” é um poema ou
uma música?
ALUNOS: Um poema
ALUNO 2: Um poema com música.
ALUNO 3: É mermo!
MEDIADORA: Por que é um poema com música?
ALUNO 3: O ritmo parece música.
ALUNOS: Parece.
MEDIADORA: Ótimo. O que mais?
ALUNO 4: A rima.
MEDIADORA: Ele é um poema e uma música, porque ele foi musicado pela
Maria e Joana, do 5º ano. É um poema que já virou música.
MEDIADORA: Muito bem. Vocês sabiam que Cecília Meireles foi uma poeta
musicista?
ALUNO 2: Como assim, professora?
MEDIADORA: Foi uma escritora de poesia que também estudou música. Ela
estudou canto e violino. Ela gostava tanto de música que fez sua poesia parecer com
música. Então os poemas dela têm muito de música. Ela trouxe a música pra dentro
do poema, a música da linguagem.
ALUNO 2: Ah, por isso...!
MEDIADORA: Vocês gostam quando um poema parece com música?
ALUNO 1: Eu gosto muito.
ALUNO 4: Eu também
ALUNO 1: E eu.
ALUNO 5: Fica mais divertido. Mais gostoso.
ALUNO 6: É mesmo.
ALUNO 3: Fica legal. A história do menino azul fica mais bonita assim.
MEDIADORA: Também acho. Parece uma música bem agradável como são os
outros poemas de Cecília Meireles.
193
A melopéia, de fato, é uma das características dos poemas cecilianos, especialmente,
dos infantis, coligidos na antologia Ou isto ou aquilo. No caso de “O menino azul”, as rimas
aparecem com regularidade, nos segundos e quintos versos de todas as cinco estrofes, fazendo
com que a musicalidade de uma estrofe ressoe nas outras, confirmando o modelo musical
empregado no poema. Além disso, apesar de “O menino azul” se estruturar a partir de ritmos
variados, com uma oscilação entre a redondilha menor e o octossílabo, notamos também o
princípio da regularidade operando no poema, uma vez que as estrofes possuem o mesmo
modelo rítmico entre si, com pequenas variações. A primeira estrofe apresenta, entre seus
versos, a medida poética “8-5-5-6-7”; a segunda, “8-5-5-6-5”; a terceira, “8-5-5-6-7”; a
quarta, “8-5-5-6-5”, e a quinta, “8-5-5-5-10”. Tudo isso tece a música intrínseca do poema.
Outra colocação que consideramos importante, feita pelo mesmo menino, foi em
relação ao poema “O último andar”, quando ele se identifica com os pássaros, uma das
imagens aludidas no poema. Assim que terminamos a leitura coletiva e oral do poema,
perguntamos: “Alguém gostaria de morar no último andar”. A maioria dos alunos respondeu
que sim e um deles falou: “Eu queria voar de cima”. Todos riram e acrescentamos: “mas
tem que ter asas pra isso, como os pássaros, senão se esborracha no chão, a não ser que voe
apenas na imaginação”.
Percebemos, através da colocação da criança, que o texto poderia ter suscitado naquele
leitor o desejo de liberdade, fato que encontra respaldo nas imagens e nas sensações que
envolvem o estar no último andar, local em que os pássaros se protegem e de onde se o
mundo inteiro, o mar, todo o céu e se tem todo o luar.
Em outro dia, quando lemos novamente o poema “O último andar”, com outra turma,
as apreciações do texto se deram de forma mais demorada.
ALUNA1: Eu Acho essa música mais bonita.
ALUNA 2: Também acho.
Aluna 3: Também acho.
MEDIADORA: Por que você acha a música de “O último andar” mais bonita?
ALUNA 1: Porque foi a primeira que eu aprendi, né?
ALUNA 3: É mais legal.
MEDIADORA: A letra ou a música?
ALUNOS: Tudo.
ALUNO 1: É que a música atrai mais, sabe! A melodia... É muita linda!
(...)
MEDIADORA: Para vocês, o que seria o último andar?
ALUNO 1: Um prédio, bem longe.
ALUNO 1: O céu.
194
ALUNO 2:A última fase da vida
ALUNA 2: Minha mãe morava na Beira Mar, num prédio bem alto.
(...)
ALUNA 3: A casa da imaginação.
MEDIADORA: Que legal! A casa da imaginação! Vamos cantar a casa da
imaginação?
ALUNOS: Vamos.
Duas falas dessa conversa sobre “O último andar” nos chamaram a atenção: primeiro,
a que destaca a música como instrumento de atração para a vivência com os poemas, e
segundo, a que interpreta o sintagma “o último andar” como “a casa da imaginação”.
Em relação à primeira colocação, podemos dizer que é antigo o conhecimento do
poder de sedução da sica sobre o homem, fato amplamente cantado em verso e em prosa,
da tradição oral à escrita, sendo representado, sobretudo, na civilização ocidental, pelo canto
da sereia. No caso da percepção da leitora de que as melodias estavam servindo de ímã,
atraindo as crianças para os poemas de Cecília Meireles, deu-nos a certeza de que musicar
poemas e oferecê-los para execução no ambiente escolar é uma das possibilidades de convite
à leitura poética. Foi o que sugeriu outra criança, também participante do coral, ao dizer, em
sua avaliação da experiência, que ao conhecer o poema “O último andar”, pelo canto de uma
das coleguinhas, sentiu, de imediato, o desejo de participar do grupo e vivenciar a alegria de
cantar aqueles poemas “tão lindos”, como qualificou a maioria dos alunos.
Quanto à segunda fala anteriormente destacada, que percebe o último andar como a
casa da imaginação, ela nos levou a entender o poema como metonímia do texto literário,
remetendo-nos à concepção de livro, pensada por Lygia Bojunga, como alimento da
imaginação: “Todo dia a minha imaginação comia, comia e comia; e de barriga assim toda
cheia, me levava pra morar no mundo inteiro: iglu, cabana, palácio, arranha-céu, era
escolher e pronto, o livro me dava” (BOJUNGA, 1998, p. 8).
Para enfeitar a casa da imaginação, Cecília Meireles convoca, em “O último andar”,
elementos da paisagem natural: o mar, o céu, o luar e os pássaros, tornando mais contundente,
no leitor, o desejo de, junto ao eu-lírico, morar nesse espaço de beleza.
Além de “O último andar”, há outros poemas, que foram lidos e cantados no coral, dos
quais colhemos dados da recepção: “A cantiga da babá” e “Cantiguinha”.
Em “A cantiga da babá”, os alunos, rapidamente, perceberam a relação do poema com
a cantiga de ninar:
195
MEDIADORA: De que fala o poema?
ALUNO 2: Cantiga da babá fala de uma babá que canta pro menino dormir.
ALUNO 1: Dorme neném a cuca vai pegar...
ALUNO 2: Dorme pivete senão vai apanhar...
ALUNOS: (risos)
MEDIADORA: O que vocês acharam do poema?
ALUNA 1: Interessante.
ALUNA 1: Bonito.
MEDIADORA: Por que você acha o poema interessante?
ALUNO 2: Porque fala de um anjo escondido que troça de mim.
MEDIADORA: Está escondido onde?
ALUNA 1: No coração da babá.
ALUNO 1: No coração do menino.
MEDIADORA: Quem é que troça,
142
que ri?
ALUNO 1: O menino.
ALUNO 2: E o anjo que está no menino.
MEDIADORA: A Neide disse que “Cantiga da babá é um poema bonito. Por que
Neide?
ALUNA 1: Porque fala de anjo, sapinhos, pescador... Tem rima. Tudo é bonito e
legal.
MEDIADORA: Quem é que fala no poema: “Eu queria pentear o menino...”?
ALUNA 2: É a babá.
ALUNO 2: A autora.
MEDIADORA: Quem? Cecília ou a babá?
ALUNO: As duas.
ALUNO 1: A babá.
MEDIADORA: Vou ler o poema mais uma vez.
(...)
MEDIADORA: O que vocês acham de o menino querer fazer anzóis dos cabelos?
ALUNO 2: É só pra enganar a babá. Não tem lógica.
142
Depois da leitura oral do poema, uma criança perguntou sobre o sentido da palavra “troçar” e esclarecemos
dizendo que ela significa brincar, rir, fazer hora com o outro.
196
MEDIADORA: Por quê?
ALUNO 2: Porque um fio de cabelo não aguenta um peixe.
MEDIADORA: E tudo tem que ter lógica?
ALUNO 2: Tem, senão ninguém acredita.
MEDIADORA: Certo. No poema, a babá diz que o menino está sempre brincando.
De que ele brinca?
ALUNO 1: No pensamento, na imaginação.
ALUNO 2: De inventar desculpas pra babá.
ALUNO 2: Acho que ele não quer nada de ser pescador, sapinho, índio e leão. É só
brincadeira pra zombar da cara da babá.
MEDIADORA: Por que o menino não pode ser anjo?
ALUNO 2: Porque anjo é igual a uma flor. o índio é guerreiro, forte que nem
cachorro, leão...
MEDIADORA: Vocês acham que a babá está pensando, falando ou cantando nessa
parte final do poema em que ela diz que o menino está sempre brincando?
ALUNO 1: Cantando a cantiga de ninar.
ALUNO 2: Acho que falando.
ALUNA 2: É cantando.
ALUNO: E como é a música que ela tá cantando?
ALUNOS: Não sei.
MEDIADORA: Vocês é que vão imaginar e criar essa música, agora. Vocês não
disseram que a cantiga da babá é uma cantiga de ninar? Então, criem uma melodia
para o poema que lembre uma canção pra fazer dormir as crianças.
143
Da recepção acima, algumas colocações merecem atenção: primeiro a que ressalta a
ideia contida na última estrofe de que o menino é “um anjo escondido (...) que troça” da babá.
Esta fala, espécie de síntese explicativa das estrofes anteriores, em que o eu-enunciante deixa
de contar aspectos de sua rotina de babá com o menino, ligados às tentativas de pentear,
calçar e arrumar a criança, para revelar a sua opinião sobre o comportamento daquele, foi
apontada por um dos leitores como a parte mais interessante do poema. Trata-se de um
enunciado que mostra, sem recriminação, o caráter humano de ser criança, na medida em que
143
Em alguns momentos do coral, abrimos espaço para que as crianças também criassem músicas para alguns
poemas. Começamos as atividades de criação musical, recriando a composição feita para o poema “O eco”. Dos
encontros com o coral surgiram composições para “Cantiga da babá”, “A folha na festa” e “Cantiguinha” entre
outras.
197
desconstrói o perfil de anjo e de criança como seres perfeitos, acima do bem e do mal,
adotando uma compreensão mais humana, passível de “desvios” de certos modelos de
comportamento. Assim, sendo anjo, sem deixar de ser moleque, irreverente e criativo, como a
Emília, de Monteiro Lobato, o personagem logo consegue a identificação do leitor.
A segunda fala que destacamos é relativa à compreensão dos argumentos usados pelo
menino como respostas às ações ou aos atos linguísticos da babá, como sendo subterfúgios
“pra enganar a babá”, pois “não têm lógica” externa: “um fio de cabelo não agüenta um
peixe”, sendo aceitável somente no plano da brincadeira e da imaginação.
Notamos, nessas colocações, a perspicácia do menino em fazer a distinção entre a
verossimilhança no jogo lúdico, na fantasia e a lógica dos fatos da realidade concreta, numa
demonstração de que ele sabe distinguir e transitar entre o mundo da fantasia e o real, sem
problemas. Em se tratando da resposta de um garoto de 13 anos, essa postura é bastante
previsível, uma vez que a criança saiu da fase mágica, prevalecendo, em sua percepção do
mundo, o sentido racional. Por isso, ele defende que os argumentos do menino no poema, em
não se render aos desejos da babá, são brincadeiras: “ele não quer nada de ser pescador,
sapinho, índio e leão. É só brincadeira pra zombar da cara da babá”.
Outro momento da recepção que consideramos interessante se refere ao enunciado em
que o leitor fala sobre a recusa do menino em ser anjo, porque “anjo é igual a uma flor”. Essa
colocação da criança corrobora a ideia, sugerida pelo poema, de que o menino não quer ser
frágil, se identificando, antes com o índio e o leão, símbolos da força e da resistência.
No que tange à presença da música no poema, além do fato das crianças perceberem
que o texto poderia ser cantado como acalanto, compreensão suscitada, notadamente, pelo
título do poema, numa ligação com a vivência cultural das crianças, destacamos o momento
em que uma delas mostra-se curiosa em saber “como é a música que ela [a babá] está
cantando”? A menina não se reportava à música de palavra, tão familiar ao seu gosto poético,
como as rimas, as aliterações, o paralelismo e o metro, entre outros, todavia, à música
propriamente dita. Esta, certamente, ainda estava para nascer e caberia a eles pensar modos de
cantar aquele poema, em sintonia com os modelos de cantiga de ninar, fazendo surgir rias
possibilidades de melodias para o poema, uma vez que, conforme Bordini e Aguiar (1988, p.
64), no processo de criação artística o objeto estético pode ser “intuído de modos diferentes
por sujeitos diferentes”. Foi o que aconteceu com diversos poemas de Cecília Meireles,
inclusive, com “Cantiga da babá”, os quais ganharam várias melodias.
198
No tocante à exploração das relações entre poesia e música no poema, consideramos
bastante produtivo o debate, com as crianças, sobre “Cantiguinha”, do livro Viagem
:
(...)
MEDIADORA: O que faz o poema parecer com uma música?
ALUNA 2: As rimas. Rima tudo.
MEDIADORA: Certo. Além da rima tem outra coisa que faz parecer mais com
música?
(...)
ALUNA 1: Essa parte aqui “te juro” era como se fosse um ... quando a gente faz
lá na igreja...
MEDIADORA: O refrão?
ALUNA 1: ... tem o coro, é o refrão.
(...)
MEDIADORA: Quando eu entreguei o texto pra vocês... vocês pensaram em quê ao
ler o título Cantiguinha?
(...)
ALUNA 2: Eu pensei numa música pra bebê, pra ninar.
(...)
ALUNA 3: Eu pensei assim... devagar.
(...)
ALUNA 3: É a letra, isso tudo é devagar. Eu percebi assim a letra né! Porque é
devagar.
ALUNA 2: Tia, assim pra nina!.
(...)
MEDIADORA: E quanto ao sentido do texto, o que vocês têm a dizer? O texto fala
sobre o quê?
ALUNA 4: Que os olhos dele era bonito verde, parecia um lago sei lá, uma coisa
assim. E os barquinho corria nas lágrima, saindo dos olhos dele (e faz o gesto,
imitando as águas em formas de ondas saindo dos olhos).
(...)
ALUNA 3: Então, se fosse o narrador falano, era tipo um narrador que tava
dizendo sua história: “Meus olhos...”.
ALUNA 4: Quando ele chora, aí, enche de água. Aí, ele bota os barquinhos nos
olhos, que legal!
199
(...)
ALUNA 2: Ele tava contando a infância dele.
MEDIADORA: Contando a infância, é? Hum... legal. Que mais ó... “Fiz
barquinhos de brinquedo,/ - te juro - / fui botando todos eles / naquele rio tão
puro”.
ALUNA 3: Nos olhos, nos olhos quando ele chora.
(...)
MEDIADORA: Veio vindo a ventania, /- te juro - / as águas mudam seu brilho, /
quando o tempo anda inseguro”.
(...)
ALUNA 2: É, é tristeza.
MEDIADORA: Quando as águas escurecem / - te juro - / todos os barcos se
perdem / entre o passado e o futuro.
ALUNA 1: Ó, aí, viu?
ALUNA 2: Triste.
MEDIADORA: E essa tristeza está na infância?
ALUNA 1: Não. Quando ele já era grande.
ALUNA 3: Ele tá se lembrando.
(...)
ALUNA 4: Ele teve esse pensamento quando ele era grande. Tia, eu sinto tanta
saudade quando eu era pequenininha, toda fofinha!
(...)
MEDIADORA: Como disse a Ana, uma parte do poema fala de alegria e a outra
fala de tristeza.
ALUNAS: É
ALUNA 1: Tia, ó, lê essa estrofe aqui...
MEDIADORA: “Quando as águas escurecem, / - te juro - / todos os barcos se
perdem, / entre o passado e o futuro”.
ALUNA 1: O futuro... Ele tá... ele escreveu o texto, mas ele tá no futuro, aqui, aqui
ó ...
ALUNA 4: Ele tá falano do passado e fez...
(...)
MEDIADORA: Vocês acham que a música que vocês criaram está combinando
com o texto? Ela disse direitinho o que o poema diz?
ALUNA 1: Eu acho que o que nós criamos disse...
200
ALUNA 2: É divagazinho, é porque, assim oh, se for rápido, assim do jeito delas,
assim não vai dá o dom da infância, entendeu? Duma alegria, e aqui no último
parágrafo tá falando de tristeza.
Na primeira parte da recepção do poema “Cantiguinha”, conforme se nota, a conversa
girou em torno da musicalidade do poema, num destaque às rimas, à forma do refrão e ao
ritmo moroso do poema, suscitado notadamente pelo sentimento de tristeza que perpassa o
texto, conforme defenderam algumas crianças. Entre esses elementos de musicalidade,
ressaltamos o refrão, pelo fato de ser a primeira vez que as crianças percebiam-no na
textualidade dos poemas cecilianos, concebendo-o como recurso musical, percepção esta que
se fez em alusão às práticas do cotidiano das crianças.
O refrão, componente poético herdado da música, como destacam Dourado (2004, p.
276) e Spina (2002, p. 49 - 69), aparece especialmente nas formas musicais simples como as
cantigas. Trata-se de uma estrutura padrão repetida diversas vezes, em coro ou uníssono, que
aponta para a execução social do canto, numa alternância entre o solista e o coro, prática
ainda hoje conservada na liturgia cristã, através das canções, como lembrou uma das crianças,
podendo ser encontrada também nas cantigas de roda, entre outras formas populares.
Fora os aspectos de musicalidade, o poema “Cantiguinha” também foi percebido como
poesia de fanopéia, ou seja, em sua capacidade de sugerir “imagens na imaginação visual” do
leitor (POUND, 2003, p. 11), e objeto de logopéia, carregado de sentidos.
A plasticidade do poema se fez notar, sobretudo, nas duas primeiras estrofes:
Meus olhos eram mesmo água,
- te juro -
mexendo um brilho vidrado,
verde-claro, verde-escuro.
Fiz barquinhos de brinquedo,
- te juro –
Fui botando todos eles
Naquele rio tão puro.
A leitura desses versos ergueu um painel bastante expressivo diante da imaginação
visual de algumas crianças, no qual os olhos verdes do eu-lírico convertem-se em dois rios
lacrimais em transbordamento, espaço enfeitado de barquinhos que correm, correm e se
esvaem no movimento das águas para além dos olhos. Foi o que pudemos compreender da
associação da fala de duas crianças: “os olhos dele era bonito verde, parecia um lago e os
201
barquinhos corriam nas lágrimas saindo dos olhos (e faz o gesto, imitando as águas em formas
de ondas saindo dos olhos)”; “Quando ele chora, aí, o lago fica cheio”, fica brilhando”; “Aí,
ele bota os barquinhos nos olhos”.
Essa imagem daria uma expressiva ilustração ao poema, caso tivéssemos sugerido esse
tipo de atividade às crianças. Antes, passamos a motivar a recepção no plano da logopéia do
poema.
Do estrato semântico, espaço em que se concentram, em geral, os sentidos do texto,
convém mencionar algumas incursões dos leitores, ligadas à percepção de que o eu-lírico
rememora fatos importantes de dois momentos de sua vida: a infância e a fase da maioridade,
impregnando o poema de sentimentos alegres, quando fala da infância, e de sentimentos
tristes, quando se reporta aos contratempos da vida adulta.
Essa compreensão do poema pelas crianças é bastante interessante, sobretudo quando
levamos em consideração que “Cantiguinha”, sendo um poema do livro Viagem, destinado, a
priori, aos leitores adultos, é um poema bastante complexo, exigindo uma maior interação
com o leitor, diferentemente dos poemas lúdicos de Ou isto ou aquilo, nos quais predomina a
brincadeira rítmico-sonora da linguagem sobre os sentidos do texto.
Da experiência com o poema, podemos ainda dizer que “Cantiguinha” propiciou
situações de identificação com o leitor, funcionando como espaço em que as crianças
lançaram suas experiências pessoais e seus sentimentos, em sintonia com os enunciados do
texto. A leitura realizou-se, portanto, como processo afetivo, numa dinâmica em que as
emoções suscitadas pelo texto motivaram a atividade de identificação dos leitores com o
texto, aspecto considerado por Jouve (2002, p 19) como essencial à leitura literária.
A recriação musical dos poemas
Na experiência do coral, as crianças também foram estimuladas a musicar os poemas
de Cecília com os quais trabalhamos que ainda não haviam sido musicados ou que não
apresentavam uma melodia bem resolvida,
144
em consonância com o texto poético. Desse
trabalho resultaram várias composições musicais feitas para os poemas “Figurinhas (II)”, O
144
Pode ser considerada melodia bem resolvida aquela que resolve bem suas tensões, agradando ao ouvido,
como o faz, no geral, a música harmônica.
202
eco”, “A avó do meninó”, “Canção”, A bailarina”, “A folha na festa”, “Serenata ao menino
do hospital”, “Cantiga da babá”, A lua é do Raul”, “Pescaria”, “Passarinho no sapé”,
“Cantiguinha” e “Vôo”. Algumas delas, como Figurinhas”, “A avó do meninó”, “A folha na
festa”, “Canção”, e
“Cantiga da babá”,
conservam o ritmo e a melodia das cantigas de rodas,
das parlendas e das cantigas de ninar, sem, no entanto, parodiar nenhuma delas. as outras
composições não lembram nenhum gênero da tradição oral. Ao contrário, apresentam um
modelo de musicalidade bastante atual, como é o exemplo da composição feita para “A
bailarina”, cujo estilo se aproxima muito do jazz.
No geral, tratam-se de composições que se afinam com o tom afetivo dos poemas e
com sua natureza temática. Dessas, ressaltamos “Figurinhas (II)”, para demonstrar como as
crianças criaram, intuitivamente, composições
bem resolvidas e coerentes com o espírito dos
textos. Para tanto, concentramo-nos na exposição e análise de duas categorias utilizadas na
análise semiótica da canção, segundo Tatit (2002): a “Passionalização” e a “Figurativização”,
voltadas para a criação de uma dicção convincente e para as equivalências entre os estados de
paixão que o texto evoca e as estruturas musicais que podem comunicar esses sentimentos. No
primeiro caso, alcançado pela continuidade melódica, realizada pela extensão da tessitura, dos
valores rítmicos, dos saltos intervalares e pela sugestão de um andamento lento, e no segundo,
pela conservação da naturalidade entoativa do texto, aderindo aos seus acentos, as suas
inflexões melódicas, de forma a transmitir “um sentimento de verdade enunciativa”,
145
na
acepção de Tatit (2002, p. 20).
Em relação à temática, “Figuirinhas (II)”, sendo um poema em que o eu-lírico
revisita, através da lembrança, certas vivências de sua infância, junto à cultura lúdica e a
algumas pessoas de sua relação afetiva,
mostra-se bastante favorável a uma representação
musical centrada na passionalização, aspecto confirmado, ao longo do poema, pelo modo
como a linguagem encontra-se organizada, comunicando as lembranças e os sentimentos do
eu-lírico diante de alguns fatos de seu passado, e pela forma como o leitor
146
fez as
equivalências entre o texto verbal e o texto musical.
A canção feita para “Figuirinhas (II)” apresenta duas partes, compostas, cada uma,
por vários segmentos. A primeira parte compreende os dez primeiros segmentos (versos) do
poema, enquanto a segunda é formada pelos dez últimos segmentos. Ambas mantêm entre si
145
A esse processo Tatit (2002) denomina figurativização.
146
Este poema foi musicado por uma criança de10 anos, participante da experiência “Poesia e música na sala de
aula”.
203
graus de afinidades, dos quais se ressalta, a priori, o paralelismo estrutural, presente no texto
verbal e mantido na composição musical. É o que acontece com os pares de segmentos 1, 2;
11,12, iniciados com a mesma estrutura verbal: “Onde está o meu...”. Estes segmentos
apresentam o mesmo desenho melódico, de modo que a segunda parte ou parte B” funciona
como a retomada do tema, exposto na primeira parte, ou parte “A”, servindo também de traço
divisório na canção:
1ª parte: segmentos 1 e 2 2ª parte: segmentos 11 e 12
sib meu meu
lá ta- quin en ta- a qua
lab
sol de-es a tal re car de-es a nel quin dra
solb
fá On ma lo-e nado, On ban nho do
mi a e-o
Associada ao desenho melódico, percebemos a manutenção do ritmo, a partir da
repetição das mesmas figuras rítmicas: a semínima e a colcheia, com pequenas modificações
que se dão em função da quantidade de sílabas dos versos: os versos 1, 11 e 12 possuem 6
sílabas, com acentuação nas sílabas 3 e 6; enquanto o verso 2 apresenta 7, com acentuação na
sílabas 3 e 7; Casos similares vão ocorrer ao longo da canção, embora a composição
apresente uma tendência à regularidade rítmica, em virtude da regularidade do texto poético.
Este, no geral, aparece estruturado em hexassílabo, com acentuação predominante entre as
sílabas e 6ª. As exceções resumem-se a duas ocorrências: um heptassílabo, primeiro verso,
e um pentassílabo último verso.
Em relação às possibilidades semânticas da melodia, notamos que esses segmentos
iniciais de ambas as partes da canção sugerem certo estado afetivo ligado à calma e à
contenção de emoções. Trata-se de sequências formadas de graus conjuntos
147
e alguns saltos
de terça, numa dinâmica que gera pequenas ondulações melódicas, especialmente pela
147
Os graus conjuntos são sons que se sucedem, num contexto de vizinhança de alturas, seja ascendente ou
descendente, tomando como parâmetro a sua inscrição no pentagrama. Nessa canção, os sons dos fragmentos
“fá-sol-lá-sol”; “si-lá-sol”; “mi-fá-sol-fa”; “lá-sol-fá” (segmentos 1 e 2) e “si-lá-sol-fá-mi-re-do” (segmento 4),
etc, estão em situação de graus conjuntos.
204
predominância dos primeiros intervalos, os graus conjuntos. Além disso, a tessitura melódica
não ultrapassa uma 5ª, cujos limites são as notas “mi” e “si”.
O estado de calmaria momentânea, rompido logo em seguida, é compatível com o
conteúdo do respectivo fragmento textual, em que o eu-lírico pergunta, sem muitos arroubos
de emoções, sobre o quintal e seus elementos lúdicos, habitantes da paisagem de sua infância.
Nos próximos segmentos, 3, 4; 13 e 14, a canção continuidade ao paralelismo,
mantendo o mesmo perfil melódico com duas variações: a primeira, referente à utilização dos
tonemas, descendente no segmento 4 e ascendente no segmento 14, e a segunda, localizada no
segmento 13. Este reitera o segmento 3, com alteração de dois sons: “fá-sol-lá-sol-si-sol-sol”/
“fá-sol-lá-lá-si-lá-sol”. Isto resulta numa considerável modificação no desenho melódico da
canção:
1ª parte: segmentos 3 e 4 2ª parte: segmentos 13 e 14
lhado?
si si
sib brin de sib man e
lá ni chi lá á na guei o te
lab lab
sol me nos cando co sol bi ra ga no
solb solb
fá Com te fá E-o sa to
mi quei mi
Mib Mib
ma
Dó do
A diferença dos intervalos melódicos na integração dos segmentos, em referência,
repercute, por sua vez, nas tensões físicas e sensoriais da melodia, de forma que a condição
descendente do segmento 4 e do seu tonema, com seus intervalos de menor (fá-mi) e
maior (mi-re-dó), a ampliação da tessitura em direção ao grave, do “si 3” ao “dó 3” e aumento
na duração de algumas notas em relação ao segmento 13, sugerem, pela primeira vez, uma
pungência maior, compatível com o grau de saudade evocado pelo texto, na medida em que o
eu-lírico se reporta a uma das circunstâncias de sua infância: a brincadeira de chicote-
queimado com os colegas. Esse fato, por sua vez, é carregado de emoções, sobretudo, porque
o eu da enunciação parece se incluir nas lembranças, como sendo um dos meninos.
205
no segmento 14, que comporta uma descrição linguistica de uma realidade
exterior observada pelo sujeito, ocorre uma pequena distensão dos intervalos em movimento
ascendente (2ª maior e menor), abrindo mais a melodia e preparando-a para a próxima
frase.
148
Segmento 4 Segmento 14
dó lhado?
si si
sib de sib e
lá chi lá o
lab lab
sol co sol ga no
solb solb
fá te to
mi quei
mi
Mib Mib
Ré ma
Réb Réb
Dó do
Em função da passionalização, a força tensiva da canção vai gradativamente se
desenvolvendo nas duas partes, seja através da valorização dos semitons, seja pela
continuidade rítmica,
149
seja pelos saltos melódicos e ampliação da tessitura. Tudo isto é
regido pelo princípio da economia musical, tornando a canção, veículo de um texto extenso,
uma obra acessível, especialmente, ao público infantil.
Entre esses segmentos, vale ressaltar as sequências 9 e 10, as quais apresentam novos
desenhos melódicos similares entre si, com saltos de quarta ascendente e quinta descendente,
e maior tensão passional. Esta, por sua vez, acontece, notadamente, quando o eu-enunciante
se refere a certas pessoas que ocuparam um lugar de destaque nas suas relações afetivas: Júlia,
Maria, Amélia e Pedrina:
148
A próxima frase da canção comporta os 4 segmentos iniciais da segunda parte: do segmento 11 ao14.
149
Toda a canção apresenta a continuidade rítmica como principio fundamental para a realização da
passionalização. Esta continuidade é evidente nos trechos da partitura, em que podemos notar figuras rítmicas
mais quadradas, inteiras, sobretudo as semínimas e colcheias:
206
Segmentos 9 e 10
Nos segmentos 17 e 18, a tensão passional, presente no poema e na canção, se constrói
por outro viés: pela condução descendente e comprimida da linha melódica (Sol a Dó, no 17º
segmento e a Dó, no 18º) e pelo uso do hífen, sinal que isola do resto do poema a parte
introduzida por ele (4ª estrofe). A utilização desse procedimento linguístico sugere que o
fragmento textual, em referência, pode ser entendido como um desabafo do eu-lírico, em
sussurro, diante da constatação de que nada mais existe de seu passado, exceto, suas
lembranças:
Segmentos 17 e 18
sol a
solb
fá tu voz,
mi Pe co
Mib
Ré E dri so meu ra
Réb
Dó na,
bre ção?
Todas essas ocorrências ligadas à passionalização vão preparando o caminho para que
esta se manifeste plenamente, encontrando seu ápice nos segmentos 19 e 20. Nesse momento,
percebemos que, em conformidade com as emoções suscitadas pelos últimos versos do
poema, a composição melódica apresenta uma tessitura estendida, de um Ré 3 a um Fá 4, com
saltos melódicos de quinta e de oitava:
tão?
lab
sol lia
solb
fá Jú e
mi Ma e es
Mib
Ré E ri A de
Réb
Dó a mélia-
on
207
Segmentos 19 e 20
rão rão
Mi
Mib
Ré se
Réb
dó lanços ba rão?...
si
sib lan Se
ça ba ça
lab
sol tos lan
solb
fá al ba rão? rão rão
mi que
Mib
Ré Em
Contribuem também para a elaboração dos efeitos emotivos da composição musical, o
emprego dos tonemas. Os tonemas ascendentes, além de assegurar o tom de pergunta e de incerteza,
enunciados pelo eu-lírico, estão voltados para a representação das tensões emotivas desse sujeito,
advindas das lembranças de suas relações afetivas com objetos e pessoas especiais que um dia
fizeram parte de seu cotidiano e, no momento da enunciação, não estão mais presentes. É o que
ocorre, especialmente, com os segmentos acima (19 e 20), quando o eu-enunciante diz: “Em que
altos balanços se balançarão?”, versos sugestivos de que as pessoas e as coisas lembradas jazem no
mundo dos mortos, uma vez que o balanço, conforme Chevalier (2007, p. 115), pode simbolizar o
instrumento de travessia dos mortos em direção aos céus.
Os tonemas descendentes, por sua vez, asseguram uma ideia de repouso ou conclusão
aos segmentos, amenizando o tom de interrogação que perpassa todo o poema. É o que
acontece, por exemplo, nos segmentos 3 e 4, em que as palavras “brincando” e “queimado”
constituem os tonemas dos dois segmentos:
Segmentos 3 e 4
sib brin de
lá ni chi
lab
sol me nos cando co
solb
fá Com te
mi quei
Mib
ma
Réb
do
208
Esse procedimento ocorre também nos segmentos 1, 2, 9, 11 e 12; 13, 17, 18 e 21;
numa ocorrência de 11 vezes, contrabalanceando o uso das inflexões interrogativas, que
somam 10 ao todo, presentes, especialmente, na segunda parte da canção. As inflexões
descendentes aparecem, sobretudo, nos finais das duas partes da canção e na finalização de
algumas duplas de segmentos, como o 1
o
e 2º; 3º e 4º, etc.
Em relação aos tonemas ascendentes, entendemos que a composição soube
conservar as principais inflexões interrogativas do poema, utilizando esse tipo de tonema,
sobretudo, nos segmentos que apresentam o ponto de interrogação, como é o caso das
sequências, 8, 10, 14, 16, 18 e 20:
Segmento 8
nha
Réb
mão?
si
sib min
da
lab
sol tro
solb
den
Segmento 10
Segmento 14
lhado?
si
sib e
o te
lab
sol ga no
solb
to
tão?
lab
sol
solb
mi e es
Mib
A de
Réb
mélia-on
209
Segmento 16
pão?
lab
sol cheiro
solb
o do-al
mi e vo
Mib
Réb
Segmento 18
mi co
Mib
so meu ra
Réb
bre ção?
Réb
Segmento e 20
se
Réb
ba rão?...
si
sib lan
ça
Como podemos perceber entre os segmentos destacados, o de número 18 foge à
regra, pois apesar de conter a marca interrogativa, não tem o tonema ascendente. A não
ocorrência dessa inflexão no final da frase e o uso do tonema descendente, no entanto, se
justificam porque poupa a ascendência para o término da canção (segmento 20), preparando o
caminho para que a pergunta seguinte adquira a expressão máxima, em sintonia com o
conteúdo afetivo dos versos: “Em que altos balanços/se balançarão?...”. Trata-se de uma
pergunta que serve de complemento a todas as outras perguntas da canção, daí a importância
de que ela tenha destaque no espaço da composição.
Entre as finalizações frasais ascendentes, destacamos a particularidade do tonema 8,
uma vez que este conjuga a ascendência e a descendência. Todavia, a forma levemente
descendente não compromete a tensão emotiva e o tom de pergunta do segmento,
210
notadamente, porque, na sequencia, estão em evidência a extensão da frequência em direção
ao agudo, fazendo com que a melodia alcance a tessitura de uma oitava, e o salto melódico de
ascendente, ambos a serviço da passionalização. Além disso, como se trata de uma
finalização de frase musical, a descida para a nota “Dó” se justifica, em virtude desta
constituir uma das notas do campo harmônico da tônica da melodia, fazendo com que a frase
resolva suas tensões harmônicas.
A resolução do todo, por sua vez, vai ocorrer com a sequência 21. Nesse momento, o
tonema descendente tem sua razão de ser atrelada à finalização do poema, servindo de
repouso e de resposta ao segmento 20, não em relação ao conteúdo da canção, uma vez que
essa estrutura se constitui da repetição do 20º verso do poema. O compromisso da última
sequência da canção é, portanto, com a frase melódica, no sentido de propiciar a sua resolução
tensiva e harmônica, trazendo repouso à canção, numa confirmação de sua tonalidade:
Maior:
Segmento 21
rão rão
Mi
Mib
Réb
si se
sib
ba ça
lab
sol lan
solb
rão rão rão
Entendemos que a conjugação de tonemas ascendentes e descendentes garante uma
notável mobilidade à canção, livrando-a de uma possível monotonia, caso fosse utilizado, em
exaustão, os tonemas ascendentes, peculiares às perguntas, que o texto se constitui de um
encadeamento de perguntas.
Junto à passionalização, ocorrem também, em toda a canção, manifestações de
figurativização, sejam através do caráter enumerativo do texto e pelo aspecto prosódico
150
, em
que a conservação dos acentos da fala, presentes no poema, sejam pela reiteração do
150
A canção mantém a acentuação das palavras do texto, conforme a pronúncia de nossa língua, e mantém os
acentos dos versos, notadamente, nas sílabas 3 e 6.
211
perfil ritmo-melódico e pela adequação dos tonemas, sejam através da presentificação dos
enunciados, que trazem o efeito de verdade enunciativa à canção. Entre as várias aparições
desse procedimento, destacamos as situações em que o texto institui o presente da enunciação
com maior força afetiva, especialmente, aquelas em que o eu-lírico se dirige a uma pessoa
do discurso, seja ela o próprio receptor da obra, seja algumas personagens do texto:
Segmentos 9 e 10
Segmentos 17 e 18
sol a
solb
tu voz,
mi Pe co
Mib
E dri so meu ra
Réb
na, bre ção?
Réb
Segmentos 19 e 20
rão rão
Mi
Mib
se
Réb
lanços ba rão?...
si
sib lan Se
ça ba ça
lab
sol tos lan
solb
al ba rão? rão rão
mi que
Mib
Ré Em
tão?
Láb
sol lia
solb
e
mi Ma e es
Mib
E ri A de
Réb
a mélia-on
212
No primeiro caso, percebemos que a pergunta feita à Pedrina, a segunda pessoa da
enunciação, evidente nos segmento 17 - e/ ou ao receptor do texto, os leitores do poema e da
canção -, se torna mais evidente por dois motivos: primeiro, porque tem o próprio advérbio
interrogativo, “onde”, finalizando o enunciado, juntamente com o verbo: “E Júlia, e Maria e
Amélia onde estão?”; segundo, porque essas pessoas que, possivelmente, fizeram parte das
relações afetivas do eu-lírico não estão mais presentes, causando-lhe profunda saudade.
O sentimento de verdade enunciativa do texto pode resvalar também para a vivência
do leitor/receptor, já que ele pode entender a pergunta tanto da perspectiva das relações
afetivas do eu-lírico, como de seu próprio contexto, como se a interrogação fosse feita para
ele, em relação as suas pessoas queridas já ausentes.
No segundo caso, nos segmentos 17 a 20, temos, novamente, um enunciado
interrogativo completo, processando-se no aqui-e-agora da enunciação: “E tua voz Pedrina,
sobre o meu coração, em que altos balanços se balaçarão?”. Desta vez, o modo como o
enuciado se constrói, claramente dirigido à Pedrina, leva-nos a entender que se trata de uma
situação ligada ao mundo psíquico do eu-enunciante, numa dinâmica em que Pedrina é
simbolizada pelo eu-lírico através de sua representação sensorial-afetiva: a voz sobre o
coração. Daí, a força que carrega o texto e a respectiva melodia do enunciado
Toda a canção traz o sentimento de verdade enunciativa, especialmente, porque ela é
construída de perguntas, do começo ao fim, que instauram o presente do que é dito e abrem
caminhos para a expressão dos estados de paixão que dominam a enunciação do texto verbal e
da música.
Essa é a análise geral da canção “Figurinhas (II)”. Todavia, considerando o arranjo da
melodia feita para coral infantil, destacamos alguns procedimentos que atenuam um pouco o
efeito da passionalização: primeiro, o andamento alegro e segundo, a caracterização lúdica da
terceira voz
151
.
Acreditamos que o andamento interfere no efeito psicológico de uma canção porque
atua na duração de seus sons. Essa foi a sensação quando ouvimos “Figurinhas (II) a partir de
dois andamentos distintos: o moderato e o alegro. No primeiro caso, percebemos melhor as
emoções do texto repercutidas na melodia, situação enfraquecida quando substituímos esse
andamento pelo alegro.
151
Vide anexo n.3
213
Tratando-se de uma canção para o público infantil, chegamos à conclusão de que a
peça deveria receber, de fato, o andamento allegro, uma vez que, desse modo, ela ficaria mais
próxima do espírito lúdico das crianças, dando evidência, não à saudade dos tempos da
infância e suas brincadeiras, todavia, às próprias brincadeiras e o cenário que as envolve: a
brincadeira do chicote-queimado, do anel, do banquinho quadrado, do balanço, etc. Este
último objeto, sendo um dos símbolos mais importantes do poema, ganhou destaque no final
da canção, numa performance que manteve o sentido lúdico do referente:
Sementos 19 e 20
rão rão thu thu
Mi ru Ru
Mib
ru ru
Réb
ru ru
si
sib Se ru ru
ba ça ru ru
lab
sol lan
ru ru
solb
rão? rão rão ru ru
Do exposto, podemos dizer que a aluna 22, ao expressar, através do canto sua leitura
de “Figurinhas (II)” e, ao brincar de ser compositora, intuitivamente, fez importantes
equivalências poético-musicais, sugerindo outro modo de dizer o poema em sintonia com os
afetos e os sentidos que o texto poético lhe propiciou.
214
O sarau
O sarau líteromusical constituiu outro momento importante na experiência com os
poemas de Cecília Meireles na escola, envolvendo um total de cinqüenta crianças
aproximadamente. Através dele, pudemos mostrar, à comunidade da escola Santa Terezinha,
o resultado de nosso trabalho de leitura e recriação musical dos poemas com as crianças, ao
mesmo tempo em que pudemos abrir espaço para que outras pessoas conhecessem os poemas
infantis cecilianos.
As apresentações artísticas realizaram-se em
três datas: a primeira, no dia 16 de maio
de 2009, como parte da comemoração do dia das mães; a segunda, no dia 27 do mesmo mês,
com uma apresentação para o público escolar do turno da tarde, e a terceira
152
, no dia 22 de
outubro do mesmo ano, no auditório central da Universidade Estadual do Ceará. Todas as
apresentações foram
acompanhadas de violão, bandolim e percussão.
Na primeira apresentação, cantamos somente duas canções “A bailarina” e “A língua
do nhem”. Na segunda, além dessas duas, cantamos outras cinco peças musicais criadas para
os poemas “Ou isto ou aquilo”, “O último andar”, Figurinhas II”, “A avó do menino”, A
chácara do Chico Bolacha” e “O eco”. Entre essas músicas, foram intercaladas leituras de três
poemas: “O menino azul”, “Os carneirinhos” e “Passarinho no sapé”. Para a terceira
apresentação, acrescentamos, ao repertório, a canção “A folha na festa” e outra versão de “A
bailarina”.
Em todos os três eventos, houve situações performáticas, envolvendo algumas crianças
e convidados, especialmente, na interpretação dos poemas: “A bailarina”, dançado por uma
menina de 07 anos e “A língua do nhem”, cuja velha foi representada por uma voluntária do
projeto, enquanto os animais foram simbolizados pelas crianças coralistas. Estas usaram
máscaras
equivalentes, no momento da execução musical do poema. Além desses, as canções
feitas para os poemas A folha na festa”, “Figurinhas (II)” e “A avó do meninó” foram
interpretados como brincadeira de roda, envolvendo todas as crianças.
152
Para esta apresentação, a escola liberou duas turmas do Ensino fundamental I, para assistirem ao evento.
215
Para compor o cenário da apresentação, criamos, em conjunto com alguns
colaboradores
153
do projeto, batas de TNT, enfeitadas de motivos musicais; um prédio, em
papelão e cartolina para simbolizar o último andar;
máscaras de animais diversos, feitos de
EVA, para “A língua do nhem” e dois cenários pintados em tecido, representando imagens
suscitadas pelos poemas “A bailarina”, “O último andar” e “Figurinhas (II)”, entre outros.
Providenciamos também um
cavalinho de madeira para ”O menino azul”, um balanço para
“Figurinhas (II)” e os figurinos para “A chácara do Chico bolacha” e
“A bailarina”. Não
envolvemos as crianças nesse processo, porque todo o tempo do coral estava voltado para a
preparação do repertório.
No geral, as crianças gostaram bastante de participar do evento e a platéia gostou de
assistir ao coral,
154
embora as condições acústicas da escola ficassem muito a desejar. O
sentimento que a plateia, alunos, professores, funcionários e mães, sugeriu, diante das
músicas, das leituras dos poemas e da performance assistida nos saraus, foi de satisfação e de
admiração. As crianças, sobretudo, as do segundo evento, acomodadas ao chão do pátio da
escola, ouviram atentamente as canções e as leituras dos textos, riram bastante com alguns
episódios propiciados pela representação dos poemas cantados, especialmente com “A língua
do nhem” e a atuação performática da pessoa que representou a velha, ao mesmo tempo em
que ajudaram na realização do coro da canção.
Vale ressaltar que da identificação das crianças com os textos e a forma como estavam
sendo apresentados, surgiu, entre elas, o desejo de participar do coral, experiência que
resultou no ingresso de novas crianças no grupo coral, fato visível na última apresentação do
grupo, na Universidade Estadual do Ceará.
153
Além da pessoa da comunidade que se dispôs a representar a velha do poema “A língua do nhem”, contamos
também com a colaboração de outras pessoas, que nos ajudaram na filmagem das duas experiências e dos saraus,
na confecção de parte do cenário, como foi o caso de duas funcionárias da escola que fizeram as máscaras dos
animais do poema “A língua do nhem”. Houve ainda as participações de uma mulher da comunidade, que
costurou as batas de TNT, do diretor da escola e dois músicos contratados por nós, que executaram o
acompanhamento musical das canções.
154
Ao analisarmos as respostas de um questionário de avaliação aplicado a cinco mães que assistiram à
apresentação do sarau, notamos que foi comum dizerem que gostaram bastante do evento: “foi linda fiquei
muito emocionada vendo a minha filha no palco”; “muito interessante”, “foi ótimo”, afirmaram quatro das cinco
mães que responderam ao questionário. A quinta mãe, por sua vez, não respondeu à questão, porque não havia
assistido ao sarau.
216
Avaliação da experiência “Cecília em canto”.
Quando indagamos se os participantes da experiência do coral tinham gostado de ler e
cantar os poemas de Cecília Meireles, a maioria respondeu afirmativamente, ressaltando que
seu gosto pela poesia estava associado ao caráter ludo-musical dos poemas e à beleza dos
textos e das composições musicais, mencionando ainda o fato de os poemas possibilitarem
vários saberes aos leitores:
ALUNA 1 (7 anos): Gostei muito por que é legal e os poemas são Engrasados e
Bonito
ALUNA 2 (7 anos): Gostei muito porque é legal e também ótimo
ALUNO 1 (10 anos): Gostei muito por que nos aprende a cantar sobre poemas
ALUNA 3 (11 anos): Gostei muito porque eu adoro participar das coisas e bem
agora que eu adoro poesia.
ALUNA 4 (11 anos): Gostei muito porque gostei muito de ler e cantar os poemas de
Cecília Meireles.
ALUNA 5 (10 anos): Gostei muito porquê achente aprende muitas coisa de Cecília
Meireles e que ela é muito legal.
ALUNA 6 (13 anos): Gostei muito por quê agente ceespressa mais nas músicas
ALUNA 7 (8 anos): Gostei muito porquê é muito legal ela só conta texto bonito.
ALUNA 8 (8 anos): Gostei muito porque os poemas que Cecília Meireles faz
aprende como ritmo de música.
ALUNO 2 (11 anos): Gostei muito por que eu gosto muito de ouvir poesias por
causa que minha música preferida e “ou isto ou aquilo”.
ALUNA 9 (11 anos): Gostei muito por que são musicas muito legal, diferente e
divertida.
ALUNA 10 (11 anos): Gostei muito por que tem muitas rimas engraçadas e eu
gostei.
ALUNA 11 (10 anos): Gostei muito por quê é muito bom e legal eu ter aprendido
muitas outras coisas sobre poema e textos.
ALUNA 12 (8 anos): Gostei muito porque todos os poemas são muitos legais e
muito bonitos.
ALUNA 13 (7 anos): Gostei muito porque é divertido ler e cantar poemas.
ALUNO 3 (10 anos): Gostei muito porquê eu acho eles muito interessantes e legais
e a musica
217
ALUNA 14 (8 anos): Gostei muito porque é muito bom fazer uma musica para
todos ouvirem e ver se está boa e eu inventar outras: eu gostei de cantar porque as
musicas é muito boa.
ALUNO 4 (12 anos): Gostei muito porque é legal botar melodia em poemas.
ALUNA 15 (11 anos): Gostei muito porque e muito bom para se alegrar e para
aprender mais sobre poesia
ALUNO 5 (12 anos): Gostei muito porque e bonito eu gosto de canta que e
divertido
ALUNA 16 (11 anos): Gostei muito por que e Muito interesante
Nota-se, entre as falas das crianças, uma recorrência bastante alta em dizer que
gostaram de ler e de cantar os poemas de Cecília Meireles porque esses textos e suas
respectivas músicas “são legais” e “divertidos”. Atribuímos esse tipo de apreciação ao caráter
lúdico, presente nos textos e potencializado nas composições musicais, pois, conforme lembra
Vânia Resende, à educação poética das crianças, os caminhos do lúdico são as melhores
possibilidades, uma vez que, na alma infantil, “a riqueza da potencialidade lúdica da poesia
encontra ressonância imediata” (RESENDE, 1997, p.131). No caso de Cecília, os recursos
musicais de seus poemas, as aliterações, as rimas, o paralelismo e a métrica, entre outros,
também contribuíram para a configuração do lúdico, num entrelace tão estreito entre poesia e
música que a leitura oral dos poemas soou “como ritmo de música”, na expressão de uma das
crianças.
Vale destacar também, entre as apreciações acima, o fato de um dos participantes do
coral dizer que através das músicas criadas para os poemas, as crianças podiam expressar
melhor a sua percepção desses textos. Esse pensamento endossa a ideia de que a leitura
musical de um poema pode desenvolver e intensificar os seus afetos, ajudando os leitores na
expressão dos sentidos sugeridos pelo texto ou por parte dele, conforme coloca Gandelman
(1984, p. 32).
Ressaltamos ainda, entre as falas das crianças, a ideia que relaciona o interesse dos
participantes pelas atividades do coral à beleza dos textos e das melodias. A esse respeito,
salientamos o pensamento de Friedrich Schiller (2002), quando, n’A educação estética do
homem, defende o pensamento de que o estético desperta, no fruidor, o sentimento de agrado
e de satisfação, necessários à harmonia e ao aprimoramento cultural do homem e do mundo.
218
É o instinto do belo que transforma a vida em instantes de alegria, manifestando-se
tanto na criação, no momento em que o sujeito opera, de modo singular e sem interesses
utilitários,
155
sobre a natureza ou sobre os elementos da cultura, como é o caso da linguagem,
quanto na fruição, em situações em que o belo emerge do evento artístico, na acepção de
Alfredo Bosi (2003, p. 463), espécie de conjugação que é mediada pelo sentimento de
liberdade entre forma, conteúdo e subjetividade do apreciador.
Conforme Cecília Meireles, “o gosto profundo da Beleza é também o sentido
encantado da vida” (MEIRELES, 2001, p. 37), almejado por todos os povos, seja nas
comunidades primitivas, seja nas grandes civilizações, como demonstra uma prece matinal
colhida por Lucie Delarue-Mardrus
156
entre os Peles-Vermelhas e mencionada por Cecília
Meireles na crônica “Beleza”. Nesse texto, Cecília Meireles diz: ”Desejo que a Beleza esteja
ao norte e ao sul, a leste e a oeste de mim, que a Beleza esteja acima de mim, que a Beleza
esteja abaixo de mim...” (MEIRELES, 2001, v. 1, p. 37). Esta é uma das riquezas que Cecília
desejou compartilhar com os leitores de sua poesia e de suas crônicas, deixando-nos, como
herança, imensuráveis objetos de beleza e inúmeros objetos de reflexão sobre a beleza e a
educação estética.
Quando se trata de crianças das classes populares, o acesso à beleza geralmente é
vetado em quase todas as direções, e a escola, muitas vezes, constitui o único espaço em que a
criança pobre pode usufruir do belo, através da arte, especialmente da literatura e da poesia,
bem como de outras formas artísticas e de outros eventos de beleza, os quais podem pôr em
movimento “as virtualidades sensórias” e as “possibilidades de felicidades sensíveis” da
criança, como ressalta Jean-Claude Fourquin (1982, p. 48), educador e pesquisador francês
que ao defender a educação estética de crianças e jovens na escola, adverte:
O educador que não faz tudo o que pode, agora, no plano da educação escolar que
é o plano mais geral e decisivo para exaltar e recriar essas virtualidades, que deixa
passar o momento oportuno, quer por indiferença, por cansaço ou por negligência,
contribui para manter a banalidade do mundo, a mediocridade do homem, a
insignificância da vida (FOURQUIN, 1982, p. 48).
155
Para Schiller, a bela arte não pode apresentar finalidades morais e de ensinamento, “pois nada é tão oposto ao
conceito de beleza quanto dar à mente uma determinada tendência” (SCHILLER, 2002, p. 112).
156
Lucie Delarue-Mardrus (1874-1945) foi uma escritora francesa, que também atuou na área do Jornalismo, do
Design, da Escultura e da História.
219
A esta consciência, a esta disposição necessária ao educador, defendida por Fourquin,
Edgar Morin chamou missão, tanto em Os sete saberes necessários à Educação do Futuro,
como em Educar na Era Planetária, situando-a como requesito fundamental ao bem estar
geral da humanidade e compromissos de todos que fazem a educação.
No contexto brasileiro, a educação poética nas escolas públicas, muitas vezes, é algo
que ainda passa ao largo, a começar pelas realidades de muitos livros didáticos de português,
os quais reservam pouco espaço para o texto poético e, quando o insere, as abordagens
propostas por eles não valorizam a natureza estética desse texto e a interação texto/leitor,
como lembra Pinheiro (2003, p. 62-74).
Quanto ao primeiro caso, ficamos perplexos ao constatarmos, junto à escola que
realizamos nossa experiência de leitura e musicalização dos poemas, que no livro didático de
língua portuguesa, adotado para o ensino fundamental I, a poesia é um gênero silenciado, fato
que contribui para a sustentação do seguinte círculo vicioso, junto às classes pobres: a criança
não poesia em casa, porque sua família não dispõe de condições financeiras e culturais
favoráveis e a escola, por sua vez, não chega a formar leitores de poesia, especialmente,
porque o livro didático praticamente não oferta esse gênero, entre outros fatores. Diante desse
quadro, restam as iniciativas individuais de alguns professores e colaboradores da escola para
suplantar esses e outros entraves e fazer da educação estética uma realidade possível.
Em relação ao coral na escola, entendemos que ele ajudou a (re)aproximar a criança do
texto poético na escola, contribuindo para a educação da sensibilidade e para a formação de
leitores. Foi o que pudemos constatar com a prática, junto às crianças, e com os depoimentos
colhidos da avaliação, quando a maioria respondeu que a experiência com o coral tinha
influenciado, positivamente, na sua história de leitura,
157
sobretudo por conta da beleza dos
poemas de Cecília Meireles e porque a prática com os textos tinha se dado de forma prazerosa
e divertida. Foi o que constatamos nas justificativas: “quando comecei a freqüentar o coral
comecei a gostar mais das poesias”; “deu vontade de ler outros livros”; eu fiquei lendo os
poemas das folhas e procurando outros poemas em livros”; “as poesias são muito bonitas e eu
passei a ler mais poesias; “eu lia quase todo dia”; “porque as leituras ficaram mais
interessantes”; “ler poesia é legal”; “faz bem para nossa vida e eu fico feliz”.
157
Essa assertiva se confirmou nos depoimentos de algumas mães, referentes à avaliação da experiência com o
coral: “ela ler de mais”; “em casa eles m lido e tocado muito”; “ela antes não lia muito, mais agora ela ler, e
principalmente as músicas”; “ela sempre lia muito em casa” e “[o coral] chamou a atenção dele pela leitura”.
220
Chamou-nos a atenção, entre as justificativas das crianças, o caráter diferencial, em
relação às outras respostas, dessa última fala e de outra colocação: “quando estou nervosa ou
assustada eu leio as folhas do coral”. Esse depoimento reitera a importância do belo, pndo em
evidência a função humanizadora da literatura, de modo que a leitura poética atua como
acolhida e instrumento de harmonização do homem, como destaca Candido (1989).
O sentimento de satisfação com a experiência do coral, conforme disseram, se deu
também em virtude de termos reservado espaço à criatividade, à expressão individual, à
participação dos alunos a partir das leituras dos poemas, como mostram os enunciados:
Gostei muito porque é muito bom fazer uma musica para todos ouvirem e ver se está
boa e eu inventar outras (...)
Porque a gente ceespressa mais nas musicas.
Porque é legal botar melodia em poemas.
Porque eu não sabia que o último andar era tão bom assim, e que você ou qualquer
criança pode pegar uma poesia e trasnforma em música.
As falas, em destaque, refletem, de certa forma, o alcance do método criativo,
defendido por Bordini e Aguiar, para o trabalho com a literatura na escola. Trata-se de um
método que dialoga com as “necessidades de expressão sempre individualizadas do aluno”,
valoriza a intuição e os insights na compreensão do objeto artístico, e estimula a sua
criatividade na produção de um novo evento artístico. Este é, antes de tudo, um objeto de
comunicação que se completa no encontro com outras subjetividades, quando o criador pode
compartilhar com outros “a satisfação de realizar um trabalho e obter um produto convincente
(BORDINI e AGUIAR, 1988, p. 65 e 66).
Para finalizar a avaliação da experiência “Cecília Meireles em canto”, os participantes
disseram que o coral os deixou mais felizes; interessados nas coisas, em ler, cantar e estudar;
os fez “gostar mais de poesia”, ser mais companheiros; “mais amigos e mais felizes” na
escola e em casa
158
, ajudando até mesmo a melhorar a saúde da família, como mencionou uma
das crianças ao se referir à depressão de seu irmão:
159
158
A esse respeito, vale destacar os desdobramentos do coral na família: algumas mães disseram ter aprendido,
com seus filhos, alguns dos poemas infantis de Cecília Meireles, especialmente, “O último andar”, “A avó do
meninó” A língua do nhem” e “A chácara do Chico Bolacha”, chegando á conclusão de que o coral foi uma
221
Meu irmão que tem depressão gostou muito das musicas e dos poemas e ele também
ficou mais feliz quando eu cantava ele também cantava.
Minha vida ficou muito mais legal e eu fiquei mais alegre.
O coral permitiu também que as crianças brincassem com os poemas, criassem
melodias, sem grandes dificuldades, afinal, como expressou uma das crianças, “qualquer
criança pode pegar uma poesia e transformar em música”. Tudo isso as fez entender que a
experiência do coral com os poemas de Cecília Meireles poderia se repetir na escola,
permitindo, aos alunos novatos e veteranos, novas vivências com o texto poético.
atividade significativa na vida da criança, especialmente porque, participando do coral, “As crianças não m
tempo para querer ficar na rua”, como ressaltou uma das mães.
159
Em relação ao comportamento dessa menina na família, sua mãe teceu o seguinte comentário: “ela passou a
ler mais e ela se sentiu mais alegre. No dia em que ela não ia, ela reclamava”.
222
CONCLUSÃO
Desde o Renascimento tardio italiano, poetas e músicos dedicaram-se ao projeto
estético de re-ligar poesia e música, promovendo ganhos significativos para as duas artes.
Cecília Meireles circula entre esses nomes, cultivando uma poesia com vários índices de
musicalidades, em diálogo com a tradição, notadamente, através de formas poético-musicais
que, ao longo da história, exerceram um papel fundamental na tessitura da sensibilidade
poética do homem: a canção poética e os brinquedos cantados.
A nossa tese “De versos e acordes: o encanto do verbo em Cecília Meireles” foi uma
oportunidade de investigar essa temática e estudar o modo como a música atua na
textualidade do poema ceciliano e como este suscita sugestões e efeitos musicais, numa
correlação, em especial, com os brinquedos cantados.
Inicialmente, fizemos um breve percurso na história da canção poética e dos
brinquedos cantados, evidenciando o entrelace poesia e música nessas formas artísticas, e, em
seguida, detivermo-nos na obra poética de Cecília Meireles e nas experiências de leitura e de
musicalização dos poemas de Ou isto ou aquilo.
Ao estudarmos a presença da música na obra de Cecília Meireles, procuramos não
repetir determinadas abordagens superficiais, feitas por boa parte da crítica, que ora limitam o
estudo da questão aos aspectos da “música de palavra”, isto é, à presença, no verso, de certos
recursos musicais, como a aliteração, a rima, o paralelismo, as onomatopéias, entre outros
elementos rítmico-sonoros, ora tecem considerações abstratas, nesse âmbito, dissociadas da
demonstração e/ou da análise dos poemas, de forma a tornar o tema um lugar comum.
Buscamos, outrossim, mostrar que o caráter musical dos poemas cecilianos é algo que
envolve todo o projeto estético de construção do poema, funcionando como expediente que
ajuda a promover a identificação do leitor com a obra poética, podendo ser, intuitivamente,
percebido e evidenciado na leitura e no dizer dos poemas em sala de aula.
O estudo minucioso da obra poética de Cecília Meireles abriu possibilidades para
entendermos que esta escritora tem a música e sua linguagem como instrumentos de
simbologia poética que ajudam a comunicar a sua percepção e seus sentimentos do mundo
sensível e inteligível, construindo, além disso, diversos modos de equivalências entre a poesia
e a música, especialmente ligadas às musicalidades da infância. Foi o que pudemos
223
demonstrar quando nos detivemos no retorno da lira na poesia de Cecília Meireles,
especialmente, no momento em que analisamos oito poemas de Ou isto ou aquilo, obra que
inaugurou, entre nós, um novo modo de tematizar a infância e falar às crianças, alcançando
bastante aceitação não apenas entre o público infanto-juvenil, em virtude do seu caráter de
poesia lúdica e lírica, tecida pela música da linguagem e dos afetos, mas também entre os
adultos que percebem a obra como um despertar para “um estado de nova infância”, na
acepção de Bachelard (2006), isto é, uma infância “que vai mais longe do que as lembranças
de nossa infância, como se o poeta nos fizesse continuar, concluir uma infância que ficou
inconclusa e que, no entanto, era nossa e que, sem dúvida, por diversas vezes temos sonhado”
(BACHELARD, 2006, p. 100).
Em termos de musicalidades, percebemos que os poemas de Ou isto ou aquilo
apresentam afinidades tanto com a “música de palavra” e/ou com a música verbal” das
parlendas, das cantigas de roda e dos acalantos, quanto com a música encantada das formas
líricas destinadas à infância. No primeiro caso, servem de exemplo, os poemas “Passarinho no
sapé”, “A avó do meninó”, “A folha na festa”, “Canção”, “Cantiga da babá” e “A língua do
nhem”, e no segundo, “Figurinhas (II)” e “O último andar”.
Para investigar a presença desses tipos de musicalidade nesses poemas, procuramos
caminhar do todo para as partes, iniciando com uma visão geral do objeto estético, a partir de
uma leitura intuitiva do texto, vinculada às musicalidades da infância, descendo, em seguida,
aos pormenores do estilo e da forma, com o propósito de confirmar a nossa hipótese de
leitura. Depois disso, voltamos a nossa visão intuitiva inicial, desta vez, fortalecida pelas
descobertas feitas no percurso das leituras.
Nesse processo de idas e vindas nas linhas e entrelinhas dos poemas de Ou isto ou
aquilo, confirmamos as equivalências dessa obra com a tradição poética dos brinquedos
cantados, numa aproximação com a experiência do leitor criança, tanto pelas equivalências
com as formas poético-musicais da infância, quanto pela tematização do cotidiano infantil e
suas brincadeiras, valorizando a percepção de mundo da criança e sua identificação com a
natureza, associada à concepção do poema como objeto estético e lúdico.
As descobertas realizadas a partir de nossa interação com os poemas infantis
cecilianos puderam ser confrontadas com a leitura desses textos por crianças e adolescentes de
07 a 15 anos, de uma escola pública de Fortaleza, tendo, como referencial, a aproximação
desses poemas com os brinquedos cantados. Foram duas
experiências de leitura com os
224
poemas infantis de Cecília Meireles na escola, realizadas sob o enfoque da poíesis, em que
procuramos valorizar a interação lúdica dos leitores com os textos, despertando naqueles o
prazer de se sentirem coautores dos poemas, como forma de (re)aproximar a criança do texto
poético. A primeira experiência concretizou-se através da oficina “Poesia e música na sala de
aula”, com uma turma do ano, composta por 31 alunos, utilizando, para tanto, um dos dias
de aula deles, a terça pela manhã, enquanto a segunda se construiu em torno do coral “Cecília
Meireles em canto”, o qual agregou alunos do 2º ao ano, interessados em ler, cantar e
musicar os poemas de Ou isto ou aquilo.
Nessas experiências, iluminadas pelas ideias gerais dos métodos recepcional e criativo,
sistematizados por Bordini e Aguiar (1988) e pela concepção de leitura e de texto
propugnadas pela Estética da recepção, especialmente, através de Iser (1999; 2002) e Jauss
(2002), os alunos foram motivados a ler e produzir suplementos de leitura para os poemas em
referência e, principalmente a criar músicas que traduzissem a sua percepção desses objetos
estéticos, numa sintonia com o tom afetivo e as estruturas de significação dos mesmos.
Acalentados pela ideia de que é possível desenvolver determinadas atividades com
poemas em sala de aula, capazes “de eternizar momentos singulares de nossa experiência”,
como acredita Helder Pinheiro (2005/2006, p. 35), procuramos, com os dois experimentos,
trabalhar a leitura do texto poético, associada a outras linguagens artísticas, especialmente à
linguagem da música, abrindo espaço para a atuação criativa dos alunos e para que o contato
com o texto poético pudesse se converter em experiências significativas que ajudassem a
desenvolver a sensibilidade poética tão necessária à educação que se deseja para os dias de
hoje.
Entendemos que esse objetivo foi alcançado, pois as duas experiências na
Escola de
ensino fundamental Santa Terezinha, ao conjugar a alegria da poesia à alegria da música na
escola, conforme Snyders (1992; 2001), propiciaram, aos participantes, expressivos
momentos de interação com o texto poético, valorizando os caminhos do lúdico, a liberdade
de expressão e a criatividade do leitor, como pressupostos fundamentais à formação do leitor
literário.
Esses momentos de vivência lúdica e interativa das crianças com os poemas infantis
cecilianos, além de contribuirem para a formação do leitor de poesia e para o conhecimento
de Cecília Meireles no âmbito da escola Santa Terezinha, resultaram na criação de diversos
suplementos musicais feitos, notadamente, para os poemas do livro Ou isto ou aquilo, em
sintonia com os tipos de musicalidade presentes nesses textos. No geral, trata-se de
composições musicais que potencializaram os afetos e os sentidos desses textos poéticos,
225
apresentando um modelo de dicção convincente, na acepção de Tatit (2002, p. 20),
consonante com a natureza lúdica e lírica dos poemas.
A partir dessas composições criadas para os poemas cecilianos, montamos três saraus
poéticos, os quais foram apresentados para os estudantes, professores e funcionários da escola
Santa Terezinha: os dois primeiros saraus ocorreram no pátio da escola e o último, no
auditório da Universidade Estadual do Ceará. Nesse último evento, pudemos expressar
melhor, através do uso de outras linguagens, o caráter lúdico dos poemas e os sentidos que
eles nos evocaram durante os vários meses de interação com esses textos, encerrando a nossa
pesquisa de campo, com o sentimento de satisfação diante do que conseguimos realizar em
torno da obra Ou isto ou aquilo, embora conscientes de que muitos aspectos da experiência
poderiam ser melhorados.
Vale destacar que o sentimento de gratificação pelo dever cumprido não se deu apenas
em relação aos saraus e às criações musicais feitas pelas crianças, efetuando-se também no
dia-a-dia com os participantes, quando percebíamos o entusiasmo desses diante da leitura dos
poemas e notávamos a sua disponibilidade em participar das atividades.
As duas experiências, especialmente a segunda, exigiram dos participantes muitos
encontros, dentro e fora da escola, de forma sistemática, no geral, de uma a três vezes por
semana, os quais lhes propiciaram variados momentos de leitura e releitura dos poemas, além
das horas dedicadas ao ensaio das canções, à atuação performática das crianças e à construção
do cenário. Cada novo encontro constituiu, para os participantes, mais uma oportunidade para
o corpo a corpo com os poemas e para a fruição estética, numa descoberta de novos sabores e
saberes dos textos cecilianos.
Essas experiências também exigiram, de nossa parte, esforço, dedicação e persistência,
sobretudo, quando consideramos as condições adversas que encontramos na escola,
especialmente em relação à infraestrutura e ao comportamento dos alunos da primeira turma.
A despeito disso, as duas experiências foram bastante significativas, tanto em relação aos
momentos de leitura, quanto às atividades de criação e de expressão musical, com algumas
vantagens da segunda sobre a primeira, em virtude da ocorrência de alguns fatores que
contribuíram para a singularização das turmas envolvidas nos experimentos. Entre esses
fatores, destacamos o fato de os alunos da segunda turma, diferente da primeira, participarem
da experiência, de forma espontânea, uma vez que esta não se vinculou a uma turma
específica. Ressaltamos também a questão do experimento “Cecília Meireles em canto” se
226
realizar aos sábados pela manhã, no pátio da escola, como uma atividade extraclasse,
favorecendo a percepção lúdica do experimento, e o fato de a segunda turma ter sido
constituída, em sua maioria, por crianças mais novas que, no geral, não apresentaram
problemas de comportamento. Ao contrário dessa turma, boa parte dos alunos do ano
envolveu-se em diversas situações de indisciplina, demonstrando também pouco interesse em
participar das atividades da experiência. Isso interferiu, negativamente, no processo de leitura
e criação musical dos poemas da primeira turma, deixando-nos inquietos, sobretudo, porque
percebíamos que não nhamos as condições básicas para a realização da leitura poética em
sala de aula, como o silêncio e a disposição interior dos alunos. Procurando, dia-a-dia, superar
essa realidade, sem obter grandes mudanças quanto a esses fatores, persistimos com a
experiência, junto a essa turma, durante sete semanas, porque notávamos que, em meio ao
barulho e/ou apatia de alguns colegas, havia alunos que conseguiam ler e criar nessas
condições, dando-nos a sensação de que a experiência estava atingindo seus objetivos, tanto
em relação à qualidade das criações musicais, feitas para os poemas “Ou isto ou aquilo”; “O
último andar”; “O menino azul”, “O eco”; “As meninas”; “Os carneirinhos”; “A chácara do
Chico Bolacha”; “Colar de Carolina”, entre outros, quanto em relação à vivência de leitura
que estávamos proporcionando aos alunos, como eles mesmos ressaltaram no momento em
que fizeram a avaliação da experiência, ao dizerem que, nos encontros, eles tinham praticado
bastante a leitura e tinham descoberto “a manha” da leitura do poema, passando a se interessar
mais por esse texto.
Apesar das dificuldades, a experiência com a primeira turma foi fundamental para a
realização do segundo experimento, servindo de estímulo para que nós continuássemos as
atividades de leitura e de expressão com os poemas infantis de Cecília Meireles com outras
crianças da escola que tiveram oportunidade não apenas de ler os poemas dessa escritora e
expressar a sua percepção desses textos, como também cantar as músicas que a primeira
turma havia feito para eles, sendo motivados também a musicar outros poemas dessa
escritora, especialmente, os de Ou isto ou aquilo, que, no geral, ainda não haviam sido
musicados na experiência anterior. Desses momentos de interação com os poemas de Cecília
na escola, prolongados por quase um ano, nasceram diversos suplementos musicais, feitos
pelas crianças, os quais gravamos, transcrevemos, arranjamos e cantamos com os
participantes do coral.
Entre os poemas musicados, ressaltamos: “Figurinhas (II)”, “O eco”, “A avó do
meninó”, “Canção”, “A bailarina”,
“A folha na festa”, “Serenata ao menino do hospital”,
227
“Cantiga da babá”, “A lua é do Raul”, “Pescaria”, “Passarinho no sapé”, “Cantiguinha” e
“Vôo”.
Para o alcance desses resultados, contribuíram muito a nossa experiência como
professora de literatura e o nosso interesse pela leitura do poema e pelo lúdico, bem como o
conhecimento de que esse texto poético, como outros, ganha sentidos na interação com o
leitor, principalmente, quando se respeita sua natureza de objeto lúdico e estético e não
transforma a sua leitura em pretexto para outras atividades, permitindo que os alunos se
encantem com o modo de revelar o mundo desses textos, se identifiquem com as situações
enunciadas por eles e interajam com sua musicalidade, suas imagens e suas possibilidades de
sentido, instrumentalizando-os ao seu modo.
Não podemos esquecer de mencionar também a importância da metodologia de leitura
que utilizamos a partir dos métodos criativo e recepcional, propostos por Bordini e Aguiar
(1988) e de algumas sugestões de leitura elencadas por Helder Pinheiro (2002), como fatores
fundamentais para a realização satisfatória da experiência. Vale ressaltar a ideia de que o
poema, sendo um texto com vários índices de musicalidade, não pode prescindir da leitura
oral, ou seja, de sua expressão em voz alta, momento em que é evidenciada a sua
musicalidade, sobretudo, as entonações das palavras e dos enunciados, ajudando a revelar os
sentidos do texto. Esse tipo de leitura é também uma oportunidade de socialização do texto
com outras pessoas, permitindo que outros leitores, inclusive aqueles que ainda não são
alfabetizados, possam fazer a sua leitura dos poemas, através da expressão oral do portador da
voz poética, como o fizeram os jograis de boca e como fizemos, notadamente, ao trabalhar o
coral com crianças que ainda não sabiam ler. Destacamos também o fato de termos definido,
antecipadamente, nosso material de leitura, termos traçado metas a alcançar, guiadas pelas
sugestões desses métodos e sua crença nas faculdades criativas dos alunos e na concepção de
texto e de leitor, como entidades dialógicas. A conjugação desses métodos no trabalho com a
leitura literária na escola levou os alunos a perceber o poema como objeto artístico a partir do
qual eles podiam interagir, de forma lúdica, criando-lhes suplementos de leitura através da
linguagem da música, numa valorização da percepção intuitiva dos leitores diante do texto e
das potencialidades criativas desses sujeitos, resultantes de suas experiências culturais.
Trabalhar a leitura da poesia sob a perspectiva da poiesis e dos métodos criativo e
recepcional foi, portanto, um modo de desencantar a lira da lírica ceciliana, evidenciando-a
em suas potencialidades de suscitar modos musicais de dizer o poema, tecidos por versos e
228
acordes e destacar o ensino da literatura através de vivências criativas, lúdicas e interativas,
que valorizem o leitor e o texto poético.
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242
ANEXOS
243
ANEXO 01 -
DESCRIÇÃO DA EXPERIÊNCIA “POESIA E MÚSICA NA SALA DE AULA”.
PRIMEIRO ENCONTRO
MEDIADORA: Bom dia, gente.
ALUNOS: Bom dia.
MEDIADORA: Meu nome é Jaquelânia, sou professora de literatura da UECE
Universidade Estadual do Ceará, e selecionei a turma de vocês para participar de uma
experiência com poesia e música.
MEDIADORA: Vocês gostariam de participar dessa experiência? Se vocês não quiserem,
posso selecionar outra turma.
ALUNO: A gente quer, professora
ALUNO: É mesmo.
ALUNA: Eu adoro poesia.
ALUNA: Eu também gosto.
ALUNO: Professora, eu também quero.
ALUNO: Eu também.
MEDIADORA: Certo. Muito bem. Então, ficarei com vocês até dezembro, todas as terças de
manhã. conversei com a professora de vocês e com o diretor da escola. Juntos, vamos ler
poemas, criar músicas, brincar.... Para iniciar, vou distribuir com vocês algumas
brincadeiras cantadas. Cada aluno vai receber um poema e em seguida vai fazer a leitura
silenciosa do texto e quem quiser pode cantar, caso conheça a música do poema ou caso
queira criar uma melodia nova.
ALUNO: Professora, o que é melodia?
MEDIADORA: É o que distingue uma música de um texto falado ou uma música de outra
música. É aquilo que, mesmo sem falar a letra da música, lembra a música (canta “Ciranda,
cirandinha” e “Atirei o pau no gato” e depois cantarola a melodia em “nan-nan-nan”).
Depois de alguns minutos e percebendo que eles haviam realizado a leitura silenciosa de
seus poemas, a mediadora perguntou:
MEDIADORA: Alguém gostaria de fazer a leitura cantada de seu brinquedo sonoro, ou
seja, de seu texto, de acordo com a melodia que conhece? Como eu disse, quem quiser
também pode criar uma nova melodia para o poema.
244
ALUNA 8: Professora, eu posso cantar o meu.
MEDIADORA: Pode. Vamos lá? (a aluna começa a cantar o seu brinquedo poético):
Cai, cai balão
Cai, cai balão
Aqui na minha mão
Não cai não
Não cai não
Cai na rua do sabão.
MEDIADORA: Muito bem. Mais alguém?
ALUNA 21: A gente, aqui, vamo
160
cantar “A linda rosa juvenil”, tia! (A equipe começa a
cantar e a turma toda acompanha):
A linda rosa juvenil, juvenil, juvenil.
A linda rosa juvenil, juvenil.
Vivia alegre em seu lar, em seu lar, em seu lar.
Vivia alegre em seu lar, em seu lar.
Um dia veio a bruxa má, muito má, muito má.
Um dia veio a bruxa má, muito má.
E adormeceu a rosa assim, bem assim, bem assim.
E adormeceu a rosa assim, bem assim.
O tempo passou a correr, a correr, a correr.
O tempo passou a correr, a correr.
E o mato cresceu ao redor, ao redor, ao redor.
E o mato cresceu ao redor, ao redor.
Um dia veio um belo rei, belo rei, belo rei.
Um dia veio um belo rei, belo rei.
E despertou a rosa assim, bem assim, bem assim.
E despertou a rosa assim, bem assim.
MEDIADORA: Ótimo. Vocês conheciam esse texto de onde?
ALUNA 8: A Xuxa canta.
ALUNA 22: É mermo!
ALUNA 9: Eu aprendi com minha tia, lá em casa.
MEDIADORA: Muito bem. E agora, quem vai cantar?
ALUNO 11: O meu é esse (e canta):
O anel perde a pedra,
O peixe, as escamas.
Eu estou perdendo tempo
Amando quem não me ama.
160
As falas foram transcritas sem alterações.
245
MEDIADORA: Você inventou essa melodia, foi?
ALUNO 11 Foi.
161
ALUNA 1: Foi mermo? Legal!
ALUNO 11: Foi.
ALUNA 8: Gostei... É bonita (e começa a cantar).
MEDIADORA: Também acho. Legal, gente! Alguém mais?
ALUNA 27: Eu, tia (e canta “Lá vem seu Juca-ca”, com uma melodia diferente daquela que
conhecemos):
Lá vem seu Juca-ca
Da perna torta-ta
Dançando a valsa-sa
Com a maricota-ta
Lá vem seu Pedro-do
Da Perna dura-ra
Dançando valsa-sa
Com a rapadura-ra.
MEDIADORA: Você já conhecia essa melodia ou inventou?
ALUNA 27: Inventei, professora.
MEDIADORA: Muito bem, mais um caso de composição musical na sala. Vejam só, dois
colegas acabam de compor melodia... eles acabam de demonstrar sua habilidade de
compositor. Muito bom, não acham?(...).
ALUNO 5: Só podia ser a Ruth!
ALUNO 7: É mermo.
MEDIADORA: Por quê?
ALUNO 7: Porque ela só quer ser poeta.
161
Não conhecíamos a melodia que a criança criou como também nenhuma outra feita para essa trova, no
entanto, não descartamos a possibilidades de que a criança tenha feito em adaptação de uma melodia conhecida
por ela, como é comum acontecer no âmbito popular.
246
ALUNA 22: E é mermo, até já ganhou o concurso da escola...Vocês tão é cum inveja!
MEDIADORA: Foi mesmo, Ruth? Que legal!
ALUNOS: Foi... Depois eu vô mostrar pra senhora meus poemas, viu?
MEDIADORA: Certo. Olha, mas não precisa ser poeta pra criar músicas para os poemas,
não. Qualquer um pode criar. Basta se disponibilizar, soltar a criatividade, se concentrar...
ALUNA 27: É mesmo. Todo mundo consegue, é ler e pensar um pouco que sai, num é,
professora?
MEDIADORA: É, gente... Vocês vão ter muito tempo pra se exercitar nessa habilidade, por
isso, vamos continuar com as leituras?
ALUNA 3: Professora, vou ler o meu, viu?:
Fui na lata de biscoito
Tirei um ficou dezoito
Ana bu, Ana bu,
quem saiu foi tu
Ana bela, Ana bela
Quem saiu foi ela.
MEDIADORA: Alguém sabe brincar essa parlenda de escolha?
ALUNO 5: O que tia?
MEDIADORA: Parlenda de escolha. É um poema usado para escolher alguém numa
brincadeira, num sorteio.
ALUNO 5: Eu sei. Num sabia é que o nome era assim, parlenda de escolha.
MEDIADORA: Como disse, a parlenda é uma poesia pra brincar. A de escolha serve pra
sortear alguém para iniciar a brincadeira ou pra ganhar alguma coisa. Mas existem outras
que são pra brincar mesmo. Espera ...hum!... Acho que vou escolher alguém pra dizer o
seu poema, usando uma parlenda de escolha:
U-ni-duni-tê
Salamê-men-guê
Sorvete colorê
O escolhido foi você.
ALUNO 6: O Rafael (risos)
ALUNO 19: Tá bom, eu leio... (o aluno escolhido faz a leitura de “O trem”, de Bia Bedran):
La vai o trem
Vai subendo pelo monte
La vai o trem
Vai subendo pelo monte
247
Ele vai por aí
Piuí, píui
Ele vai por aí
Piuí, píui
Café com pão
Bolacha não
Café com pão
Bolacha não
Chique, chique, choque choque
Bota lenha, põe carvão...
Chique, chique, choque choque
Bota lenha, põe carvão...
MEDIADORA: E como é esse poema cantado? Alguém conhece? (duas alunas começam a
cantar e a mediadora acompanha-as).
MEDIADORA: Vamos cantar de novo?
ALUNOS: Vamo.
MEDIADORA: que desta vez, eu gostaria que um grupo fizesse o apito, enquanto outro
grupo poderia ficar com a fala do narrador, pode ser?
ALUNA 21: Outro grupo pudia ficar com o barulho do trem, tia!
ALUNO 5: Que barulho?
ALUNA 21: “Chique, chique, choque choque...”
ALUNO 5: Á...! Legal!
ALUNO 6: É mesmo. A gente aqui faz o trem, num é, gente?
ALUNOS 3,5, 7: É...
ALUNA 25: Nossa equipe pudia ficar com o apito.
MEDIADORA: Certo. Então, os outros cantam a fala do narrador comigo, tá bom? Mas não
esqueçam das repetições, certo? (a mediadora canta uma vez fazendo a demonstração).
Vamos lá!... Preparados? Então, 1,2,3...
GRUPO A:
Lá vai o trem
Vai subendo pelo monte
La vai o trem
Vai subendo pelo monte
Ele vai por aí
GRUPO B: Piuí, píui
GRUPO A: Ele vai por aí
GRUPO B: Piuí, píui
GRUPO A:
Café com pão
Bolacha não
Café com pão
Bolacha não
248
GRUPO C: Chique, chique, choque choque
GRUPO A: Bota lenha, põe carvão...
GRUPO C: Chique, chique, choque choque
GRUPO A: Bota lenha, põe carvão...
GRUPO B: Piuí, píui...
MEDIADORA: Muito bom. Palmas pra nós, pessoal!
ALUNOS: (batem palmas e mostram-se alegres)
ALUNO 16: Legal! Vamos de novo?
MEDIADORA: (dirigindo-se para a turma) Vocês querem cantar mais uma vez?
ALUNOS: Queremo.
MEDIADORA: Então, tá, vamos lá (Todos cantam novamente, com a mesma dinâmica).
MEDIADORA: Ótimo, gente, mas vamos continuar. Alguém mais pode ler o seu...?
ALUNA 17: Eu vou ler o meu.
MEDIADORA: Ótimo! (a aluna lê a parlenda “Nós somos quatro”):
Ce-cê-rê-rê-cê-
Nós somos quatro
Eu com essa
Eu com aquela
Nós por cima
Nós por baixo
Nós somos quatro.
MEDIADORA: Alguém sabe brincar essa parlenda?
ALUNA 22: Eu sei.
ALUNA 8: Eu também.
MEDIADORA: Que bom que alguns conhecem! Então... vamos mostrar como se brinca?
ALUNO 7: Como se brinca?
MEDIADORA: É. Por favor, quatro pessoas aqui no meio da sala pra gente demonstrar a
brincadeira? (apenas três alunos se prontificaram a realizar a atividade, de modo que a
mediadora teve que participar da brincadeira).
ALUNO 5: Olha, a tia sabe! (risos)
MEDIADORA: Legal, gente! E aí, quem mais?
ALUNA 28: Vou cantar o meu, tia:
São João dararão
Tem uma gaita-ra-rai-ta
Quando to-co-ro-ro-ca
249
Bate nela
Todos os anjos-ran-ran-jos
Tocam gaita-ra-rai-ta
Tocam tan-tan-ran-ran-to
Aqui na terra.
Lá no cen-tem-ren-ren-tro
Da aveni-di-ri-ri-da
Tem xaro-po-ro-ro-pe
Escorregou!
Agarrou-ro-ro-rou-se
Em meu vesti-di-ri-ri-do
Deu uma pre-re-re-re-ga
E se acabou!
(...)
MEDIADORA: Muito bem! Vocês conheciam esse texto cantado?
ALUNO 19: Hum-hum.
ALUNO 16: Eu nunca ouvi.
ALUNO 6: Eu conheço. Minha vó cantava.
ALUNA 3: Eu também conheço. É legal.
ALUNA 8: Eu também.
ALUNA 24: Fica legal com violão, né, professora.
ALUNO 25: É. Parece som de violão.
ALUNOS: É...!
MEDIADORA: Um violão acompanhando fica legal, sim. Lembra mesmo o som do violão.
Falando em violão, tem uma brincadeira cantada que fala de violão. É “Pai Francisco”:
ALUNO 8: “Pai Francisco”?
MEDIADORA: É assim:
Pai Francisco entrou na ro-o-da
Tocando seu violão:
da-ra-ra-ra-rão, da-ra-ra-ra-rão
Lá se vem o delegado
E Pai Francisco entrou na prisão.
Quando ele vem
Se requebrando
Parece uma boneca
Se desmanchando.
Quando ele vem
Se requebrando
Parece uma boneca
Se desmanchando.
250
(Enquanto a mediadora canta e dança a música de Pai “São Francisco”, alguns alunos
acompanham o ritmo com o gingado do corpo, dançando, embora estivessem sentados).
ALUNOS: (batem palmas e sorriem).
MEDIADORA: Vocês já conheciam essa música?
ALUNA 9: Um pouco diferente. Assim, ó...:
Pai Francisco entrou na ro-o-da
Tocando seu violão:
ti-rin-din-din, ti-rin-din-din,
Lá se vem seu delegado
E Pai Francisco entrou na prisão.
Quando ele vem
Todo quebrado
Parece um boneco
desengonçado.
ALUNOS: (risos).
ALUNO 7: A tia dançando (risos). Legal!
ALUNA 27: É legal, essa brincadeira...! Eu num conhecia, não...! (risos)
ALUNA 13: Nem eu.
ALUNA 22: Pois, quando eu vou pro interior, eu brinco com minhas primas. É bem legal!
MEDIADORA: Legal! Eu também brinquei muito disso, quando era pequena também. Era a
nossa diversão. Ainda tem alguém que quer ler o seu poema?
ALUNOS (silêncio).
MEDIADORA: Então, vamos passar para uma outra atividade. Vou entregar para vocês um
conto cantado. Eu vou fazer a leitura da parte do narrador e vocês cantam comigo a canção
referente às falas do menino, ok?
MEDIADORA: Eu vou começar a leitura, quem quiser pode ler comigo também:
MEDIADORA (ler o texto):
Uma vez, um menino foi passear no mato e apanhou uma coca; chegando em casa,
deu-a de presente à avó, que a preparou e comeu.
Mais tarde, sentiu o menino fome e voltou para buscar a coca, cantando:
Minha vó, me dê minha coca
Coca que o mato me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca recoca que o mato me deu.
251
A avó, que já havia comido a coca, deu-lhe um pouco de angu. O menino ficou com
raiva, jogou o angu na parede e saiu. Mais tarde, arrependeu-se e voltou, cantando:
TODOS: Parede, me dê meu angu
Angu que minha vó me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca recoca que o mato me deu
162
.
A parede, o tendo mais o angu, deu-lhe um pedaço de sabão. O menino andou,
andou, encontrou uma lavadeira lavando roupa sem sabão e disse-lhe: Você
lavando roupa sem sabão, lavadeira? Tome este pra você.
Dias depois, vendo que a sua roupa estava suja, voltou para tomar o sabão,
cantando:
TODOS: Lavadeira, me dê meu sabão
Sabão que a parede me deu
Parede comeu meu angu
Angu que minha vó me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca recoca que o mato me deu.
A lavadeira havia gasto o sabão: deu-lhe então uma navalha. Adiante,
encontrando um cesteiro cortando o cipó com os dentes, disse-lhe: _você cortando o
cipó com os dentes?... Tome esta navalha. O cesteiro ficou muito contente e aceitou
a navalha.
No dia seguinte, sentindo o menino a barba grande, arrependeu-se de ter dado a
navalha (ele sempre se arrependia de dar as coisas) e voltou para buscá-la,
cantando:
TODOS: Cesteiro me dê minha navalha
Navalha que lavadeira me deu
Lavadeira gastou meu sabão
Sabão que parede me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca recoca que o mato me deu.
O cesteiro, tendo quebrado a navalha, deu-lhe, em paga um cesto. Recebeu o cesto e
saiu dizendo consigo: _Que é que eu vou fazer com este cesto?
162
A melodia transcrita servirá de base para as outras partes cantadas, as quais variam apenas o
texto.
252
No caminho, encontrando um padeiro fazendo pão e colocando-o no chão, deu-lhe o
cesto. Mais tarde, precisou do cesto e voltou para buscá-lo com a mesma cantiga:
TODOS: Padeiro me dê meu cesto
Cesto que o cesteiro me deu
O cesteiro quebrou minha navalha
Navalha que a lavadeira me deu
Lavadeira gastou meu sabão
Sabão que parede me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca recoca que o mato me deu.
O padeiro, que tinha vendido o pão com o cesto, deu-lhe um o. Saiu o menino
com o pão, e, depois de muito andar, não estando com fome, deu o pão a uma moça,
que encontrou tomando café puro. Depois, sentindo fome, voltou para pedir o pão à
moça e canta:
TODOS: Moça me dê meu pão
Pão que o padeiro me deu
O padeiro vendeu meu cesto
Cesto que cesteiro me deu
O cesteiro quebrou minha navalha
Navalha que a lavadeira me deu
Lavadeira gastou meu sabão
Sabão que parede me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca recoca que o mato me deu.
A moça havia comido o pão; não tendo outra coisa para lhe dar, deu-lhe uma viola.
O menino ficou contentíssimo; subiu com a viola numa árvore e se pôs a cantar:
TODOS: De uma coca fiz angu
De angu fiz sabão
De sabão fiz uma navalha
Duma navalha fiz um cesto
De um cesto fiz um pão
De um pão fiz uma viola
Dinguelingue que eu vou para Angola
163
.
163
Este conto é cantado por Bia Bedran, no CD Bia canta e conta, v. 1. A letra está disponível em:
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253
MEDIADORA: E aí, já conheciam esse conto?
ALUNOS: Não.
MEDIADORA: Eu também conheci esse texto um dia desses. E gostaram?
ALUNA 8: Eu gostei.
ALUNA 17: Eu também. Vou cantar pro meu irmão.
ALUNO 7: Achei bem legal!
ALUNA 21: Eu também, ó...!
ALUNO 6: Muito bom... divertido...
ALUNA 22: Vou contar pra minha irmã. Ela adora histórias...
ALUNO 16: (cantando) Dinguelingue que eu vou para Angola.
ALUNOS: (risos).
SEGUNDO ENCONTRO
MEDIADORA: Bom dia, gente!
ALUNOS: Bom dia!
MEDIADORA: Vamos começar nossa manhã com a leitura do poema “Brincando de não
me olhe”, de Elias José. Uma sugestão: façam primeiro a leitura silenciosa do poema ,e
depois, a leitura em voz alta, para sentirem a musicalidade do poema, a música da
linguagem. Depois disso, podem começar a pensar, individual, em duplas ou em trio, formas
de dizer o poema, através de uma música criada para ele.
MEDIADORA: Comecem a ler, em silêncio, o poema “Brincando de não-me-olhe”.
(...)
MEDIADORA: Vamos ler em voz alta, agora?
ALUNOS: Vamos
MEDIADORA: Pra dinamizar a leitura oral do poema, vamos dividir o poema em perguntas
e respostas, de modo que uma equipe fique com o primeiro verso de cada estrofe e outra
equipe responda com o segundo verso da mesma estrofe, como se fosse um desafio, ok?
ALUNA 8: Como professora?
MEDIADORA: Assim, ó... uma equipe diz “Não me olhe de lado” e a outra responde “Que
eu não sou melado”. Desse jeito, até o fim do poema, ok?
ALUNA 8: Ah..! entendi!
254
MEDIADORA: O primeiro grupo, de Vinícius até Geovana, diz o primeiro verso de cada
estrofe e o segundo grupo, de Daneiva em diante, diz o resto. Vamos começar?
ALUNOS: Vamo.
GRUPO A: Não me olhe de lado
GRUPO B: Que eu não sou melado.
GRUPO A: Não me olhe de banda
GRUPO B Que eu não sou quitanda.
GRUPO A: Não me olhe de frente
GRUPO B: Que eu não sou parente.
GRUPO A: Não me olhe de trás
GRUPO B: Que eu não sou satanás.
GRUPO A: Não me olhe no meio
GRUPO B: Que eu não sou recheio.
GRUPO A: Não me olhe pela janela
GRUPO B: Que eu não sou panela.
GRUPO A: Não me olhe da porta
GRUPO B: Que eu não sou torta.
GRUPO A: Não me olhe do portão
GRUPO B: Que eu não sou leitão.
GRUPO A: Não me olhe no olho
GRUPO B: Que eu não sou caolho.
GRUPO A: Não me olhe na mão
GRUPO B: Que eu não sou mamão.
GRUPO A: Não me olhe no joelho
GRUPO B: Que eu não sou espelho.
GRUPO A: Não me olhe no pé
GRUPO B: Que eu não sou chulé.
GRUPO A: Não me olhe de baixo
GRUPO B: Que eu não sou riacho.
GRUPO A: Não me olhe de cima
GRUPO B: Que acabou a rima.
MEDIADORA: Muito bem!
255
Depois disso, o exercício se repetiu com cada grupo dizendo uma estrofe, ao invés de um
verso.
(...)
MEDIADORA: Legal! Agora, vocês podem pensar um modo de cantar o poema. Que tal, o
primeiro grupo criar uma música para a primeira estrofe e o segundo grupo criar uma
melodia para a segunda? Assim, ao fim. Um grupo põe música numa estrofe e o outro
grupo põe música na outra, certo?
ALUNO 19: Certo, tia.
ALUNA 22: Legal.
MEDIADORA: Vamos começar? É no improviso, mesmo. Alguém do primeiro grupo pode
começar. Vamos lá? 1, 2, 3...
ALUNO 6: (canta em forma de rap): Não me olhe de lado / Que eu não sou melado.
ALUNA 17 (responde também em forma de rap): Não me olhe de banda / Que eu não sou
quitanda.
MEDIADORA: Legal, gente... Vamos cantar o poema todo, desse jeito, todo mundo junto?
Vamos lá, 1,2,3...
Todos cantam, seguindo as entradas rítmicas da mediadora.
MEDIADORA: Será que dá pra colocar mais melodia na música? É que o rap quase não tem
melodia, tem mais ritmo. Ele está muito próximo da fala. Pensem numa outra forma de
cantar mais melódica, com mais música. Pode ser qualquer estrofe.
ALUNA 22: Tia, pode ser assim? (a menina canta a primeira estrofe de forma mais
melódica).
MEDIADORA: Legal! Pode sim!
(...)
MEDIADORA: que ninguém se disponibiliza a criar novas melodias para as estrofes do
poema, vamos fazer coletivamente, na forma de desafio, certo? Eu canto um verso e vocês
cantam o verso seguinte, combinando com a melodia e com o ritmo que eu cantar, certo?
Vamos começar com a melodia da Ruth, vamos, lá? 1,2,3:
MEDIADORA:
256
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNA 8:
MEDIADORA:
ALUNO 31:
MEDIADORA:
ALUNA 21:
MEDIADORA:
ALUNO 20;
257
MEDIADORA:
ALUNA 8:
MEDIADORA:
ALUNO 6:
MEDIADORA:
ALUNO 4:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
258
ALUNO 27:
MEDIADORA:
ALUNO 25:
MEDIADORA:
TODOS:
MEDIADORA: Legal, gente! palmas, palmas...
(Os alunos batem palmas e parecem satisfeitos).
MEDIADORA: Agora... vou colocar um cd para gente ouvir. Acho que vocês conhecem.
Vamos ouvir um pouquinho, depois vocês podem cantar junto.
A mediadora coloca o cd “A arca de Noé”, de Vinícius de Moraes e Touquinho. Os alunos
escutam as músicas: “Corujinha” e “São Francisco”.
MEDIADORA: Conheciam essas músicas?
ALUNOS: (acenam que não).
MEDIADORA: Mas... “A casa”, vocês conhecem: “Era uma casa muito engraçada não
tinha teto/ não tinha nada” (Canta).
ALUNO: An-ran.
Aluno: Eu conheço.
Aluno: Eu também
MEDIADORA: Vou colocar “A casa” e outras músicas. Podem cantar, se quiserem.
259
Os alunos escutam além de “A casa”, “O pato” e o “Relógio”. Ficaram bem a vontade,
imitaram a fala do pato e acompanharam o movimento pendular do relógio, com o corpo em
movimento para a direita e para a esquerda, alguns marcaram o ritmo dessa música com
estalos de língua, batida de pés, etc.
MEDIADORA: Agora, vou entregar a vocês uma coletânea de poemas de Cecília Meireles
que eu preparei. Cada aluno vai ganhar um caderninho, contendo vários poemas da
escritora, com os quais iremos trabalhar nos nossos encontros. Entre um poema e outro
sempre um espaço em branco para que vocês possam ilustrar cada poema, se quiserem.
Podem desenhar, escrever... A segunda parte do caderno-livro será usado como portifólio, ou
seja, um diário em que vocês vão escrever sobre os poema, os nossos encontros...
ALUNO: São nossos, professora?
MEDIADORA: Sim, totalmente de vocês. No final do curso, vocês vão me entregar, mas eu
devolverei logo para vocês.
MEDIADORA: Gostaria, agora, que vocês escolhessem um dos poemas do caderno-livro e
criassem em dupla ou trio uma música para ele. Não esqueçam de fazer primeiro uma leitura
silenciosa do poema, depois disso, uma leitura em voz alta para sentir a música natural do
poema. Só depois é que podem pensar uma forma de cantar o texto, ok?
ALUNO: Professora, nós escolhemos esse.
MEDIADORA: Legal... O poema “O eco”. Agora, já sabem o que fazer, certo?
ALUNOS: Certo.
ALUNO: Professora, nossa equipe escolheu o “O eco” primeiro. Eles imitaram a gente.
MEDIADORA: Não tem problema. Com certeza, vocês vão criar uma música diferente.
ALUNO: Professora, nós vamos escolher outro poema, tá bom?
MEDIADORA: Tudo bem, fiquem à vontade.
MEDIADORA: E aí, essa equipe também já escolheu o poema?
ALUNO: Já. É esse aqui, “Passarinho no sapé”;
MEDIADORA: Ótimo poema. Mãos à obra.
MEDIADORA: E vocês aí, já escolheram?
ALUNO: Já. “Pregão do vendedor de lima”.
MEDIADORA: Legal. Continuem.
MEDIADORA: E vocês, já escolheram?
ALUNO: Esse aqui (e apontam para a trova: “A cantiguinha que eu cantava...)
MEDIADORA: Muito bom. Agora, continuem o trabalho.
ALUNO: Professora, nossa equipe escolheu “Leilão de jardim”.
260
MEDIADORA: Excelente. Continuem trabalhando.
MEDIADORA: E vocês?
ALUNO: “Canção de Dulce”.
MEDIADORA: Lindo poema.
ALUNO: Professora, nós escolhemos esse aqui: “O vento do mês de agosto/ leva as folhas
pelo chão...” e “Passarinho ambicioso...”. Pode ser dois?
MEDIADORA: Pode sim. Continuem.
ALUNO: Professora Jaquelânia, nós ficamos com “Os ramos passam de leve...”
MEDIADORA: Certo.
ALUNO: Nós escolhemos “Na canção que vai ficando/ já não vai ficando nada...”.
ALUNO: Professora, nós vamo escolher também esse outro: “Ao lado da minha casa...”
MEDIADORA: Ok.
Depois de escolher o poema, cada dupla realizou a leitura silenciosa e depois a leitura em voz
alta dos textos.
MEDIADORA: Agora, pensem alguma forma de cantar os poemas, ou seja, criem melodias
para os poemas, melodias que traduzam a leitura do poema, o sentimento passado por ele...
Comentários: quando percebemos que algumas equipes haviam criado as melodias para os
poemas, começamos a gravá-las
164
, passando de equipe em equipe. Pensamos que seria
interessante que eles pudessem ouvir as suas criações musicais para que as assimilassem
melhor e pudessem, na aula seguinte, ouvi-las, avaliá-las de acordo com o conteúdo do
poema, da intenção comunicativa, do tom, etc e chegar a uma forma mais acabada. Depois
desse momento, eles apresentaram para o grupão o resultado de suas leituras musicais dos
poemas, sendo aplaudidos sempre que terminavam de ler ou cantar. É bom destacar que três
equipes se limitaram a ler em voz alta os poemas Passarinho no sapé”; “Pregão do
vendedor de lima” e a quadra “Os ramos passam de leve...”, argumentando que não
conseguiram criar nenhuma música.
MEDIADORA: Agora, gostaria que vocês fizessem, como tarefa de casa, em dupla ou em
trio, a continuação da atividade de leitura dos poemas e de composição musical. Ou seja,
escolham outro poema para trabalhar em equipe, desta vez, como atividade de casa. A
metodologia deve ser a mesma usada em sala: leitura silenciosa, leitura em voz alta e, por
164
Usamos, nesses dois primeiros encontros, a tecnologia de reprodução sonora de um mini-gravador, cujo
resultado ficou um tanto comprometido, especialmente, pela indisciplina de alguns alunos, os quais faziam
barulho durante a vivência com os poemas, notadamente, nos momentos das apresentações sonoras dos poemas e
a captura do som.
261
último, a criação da música para o poema. Não esqueçam também de fazer as anotações na
segunda parte do caderno, falando sobre a experiência, uma espécie de memória do
encontro, certo?
MEDIADORA: Tchau, obrigada gente e até terça-feira.
TERCEIRO ENCONTRO
PRIMEIRA TURMA
MEDIADORA: Bom dia, pessoal.
ALUNOS: Bom dia.
MEDIADORA: Hoje vamos ter duas novidades: a primeira é que vocês vão ser filmados. A
professora Valdênia, que também é professora da UECE, a partir de hoje, vai nos
acompanhar, registrando os nossos encontros na sua câmera. Por isso, se comportem, para
fazer bonito. Vocês lembram que eu falei para vocês que nós iríamos fazer um DVD, com os
melhores momentos dos nossos encontros? Pois é... Vamos começar o registro hoje. Depois
vocês vão poder se ver, ouvir... Chique, não é?.
A segunda novidade é que vocês vão ganhar chocolate e um pequeno texto em homenagem ao
dia da criança. Saboreiem o doce e o texto
165
.
MEDIADORA: Dando prosseguimento às leituras dos poemas, gostaria de saber se fizeram
o que pedi no encontro passado. Quem foi que fez... Vocês se lembram? Eu o passei
atividade de casa para vocês? Pra vocês escreverem no caderninho de vocês, o que vocês
tinham achado do encontro... vocês fizeram isso?
ALUNO1: Tudo de bom, tia!
MEDIADORA: E eu passei também uma atividade de casa... eu pedi... quem que lembra o
que foi que eu pedi como atividade de casa?
ALUNO 5: Estudar um poema?
ALUNA 8: Estudar poesia!
165
Para a distribuição dos pequenos presentes, algumas parlendas de escolha foram cantadas, até que todos os
alunos fossem contemplados. Em seguida, espontaneamente, alguns fizeram a leitura oral de suas frases ou
versos.
262
MEDIADORA: Escolher um poema e colocar... e colocar o quê? O que vocês iam fazer com
o poema?
ALUNO 6: Decorar.
MEDIADORA: Decorar?
ALUNOS 12: Decorar o que, tia?
ALUNO 1: Decorar uma música?
MEDIADORA: Vocês iriam inventar uma música para o poema... podia ser em dupla...
Quem aqui lembrou de fazer a atividade de casa? Quem fez a atividade, hein, gente?
Ninguém fez?
ALUNO 7: Que atividade, tia?
MEDIADORA: Ler o poema em casa, podia ser em dupla, em trio, e colocar uma música
nesse poema...
ALUNO 2: (acena que sim).
MEDIADORA: O Antônio fez! Quem mais fez? Você fez também (aponta para outro aluno)?
Ele aqui óh... Ah, não fez. Só quem fez foi o Antônio, eu não acredito não! Só o André que fez!
Só o Antônio!
ALUNOS: Tava doente...
MEDIADORA: Olha, que vocês não fizeram, vocês vão ficar bem caladinhos ouvindo o
André, certo?
ALUNO 1: Certo, tia!
ANTÔNIO: Eu deixei em casa!
MEDIADORA: Oi? Vo deixou em casa? Então, que ninguém fez a atividade, vamos
fazer agora. Escolham o poema. Pode ser em dupla, tá certo?
ALUNO 16: Quádruplo...
Os alunos realizaram a leitura silenciosa dos poemas e depois fizeram a leitura oral dos textos
escolhidos: “Colar de Carolina”, “Moda da menina trombuda", algumas quadras de “Trovas”,
"O último andar", "Pregão do vendedor de lima", "Rio na sombra".
263
ALUNO 5: O que é colo, tia? (a criança referse-se ao poema “Colar de Carolina”).
MEDIADORA: Aqui óh, onde a gente bota o colar... colo é isso aqui óh. Ela bota um colar
aqui... É um colar que colore o colo de cal, e torna a menina corada... É um colar de
pedras... Façam uma leitura silenciosa agora.
ALUNO 6: Vamos ler o nosso, tia!
MEDIADORA: Ok! Vamos lá, 1,2,3...
ALUNOS 5 e 6:
É a moda
da menina muda
da menina trombuda
que muda de modos
e dá medo.
(A menina mimada!)
É a moda
da menina muda
que muda
de modos
e já não é trombuda.
(A menina amada!)
MEDIADORA: Ok, muito bem!
ALUNO 4: Nós, aqui, professora!
MEDIADORA: Certo. Podem começar
ALUNO 4 e 9: (lêem"Colar de Carolina"):
Com seu colar de coral,
Carolina
corre por entre as colunas
da colina.
O colar de Carolina
colore o colo de cal,
torna corada a menina.
E o sol, vendo aquela cor
do colar de Carolina,
põe coroas de coral
nas colunas da colina.
MEDIADORA: Muito bem!
264
MEDIADORA: (Dirigindo-se a um grupo) É leitura oral, não precisa cantar agora não,
viu? É só leitura falada, viu... falar o poema. Olha... O Antônio vai falar...
ALUNO 2 ( lê uma quadra de forma rápida e incompreensível):
Ao lado da minha casa
morre o sol e nasce o vento.
O vento me traz o seu nome,
leva o sol meu pensamento.
MEDIADORA: Como é, é assim é? Gente o poema é bem pequenininho e vocês ainda fazem
assim?
ALUNO 12: Tia, nós vamos ler a nossa poesia:
MEDIADORA: Ok!
ALUNOS 12 e 7: (leem também “Colar de Carolina”):
Com seu colar de coral,
Carolina
corre por entre as colunas
da colina.
O colar de Carolina
colore o colo de cal,
torna corada a menina.
E o sol, vendo aquela cor
do colar de Carolina,
põe coroas de coral
nas colunas da colina.
ALUNO 9: Igual ao nosso, professora!
MEDIADORA: Não tem problemas. Assim, teremos duas músicas para esse poema.
ALUNA 8: Tia, podemos ler agora?
MEDIADORA: Podem sim!
ALUNA 8 e 11: (leem em voz alta o poema, sendo acompanhadas ritmicamente por alguns
alunos que percutem suas mãos sobre as mesas):
265
No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.
O último andar é muito longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.
Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar
É lá que eu quero morar.
Quando faz lua no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.
Os passarinhos lá se escondem
para ninguém os maltratar:
no último andar.
De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:
no último andar.
MEDIADORA: Olha, muito bom! Alguém escolheu outro poema?
MENINOS 14 e 15: (começam a ler em voz alta):
Ao lado da minha casa
morre o sol e nasce o vento.
O vento me traz o seu nome,
leva o sol meu pensamento.
Na canção que vai ficando
já não vai ficando nada:
é menos do que o perfume
de uma rosa desfolhada.
MEDIADORA: Ah, não... vocês vão treinar mais um pouquinho, depois eu passo aqui de
novo (a leitura oral estava bastante embaraçada).
ALUNO 1: Tia, falta a gente!
MEDIADORA: Ah, é mesmo! Então, vamos lá 1, 2, 3...
ALUNOS 1 e 16:
Som
frio.
266
Rio
sombrio.
O longo som
do rio
frio.
O frio
bom
do longo rio.
Tão longe,
tão bom,
tão frio
o claro som
do rio
sombrio!
Depois desse momento, os alunos se exercitam na musicalização dos poemas. O grupo de
meninas que escolheu a poesia "O último andar" começa a ensaiar uma melodia para o
poema.
(...)
MEDIADORA: Olha, legal! Vocês vão treinar mais...
O mesmo grupo também ensaia uma melodia para a primeira estrofe do poema "Pregão do
vendedor de lima".
(...)
MEDIADORA: Muito bem! Mas... tu achas (se dirigindo a uma das meninas) que essa
melodia aqui (da 4ª estrofe) vai ser igual a essa outra (da 3ª estrofe)?
ALUNA: Acho que deve ser diferente.
MEDIADORA: Legal! Continuem.
MEDIADORA: Psiu! Gente?
Outra equipe começa a cantar uma quadra:
Na canção que vai ficando
já não vai ficando nada:
é menos do que o perfume
de uma rosa desfolhada.
267
MEDIADORA: Essa música foi a mesma... óh... essa música tá do mesmo jeito da
passada... Tentem outra.
Outra equipe canta, em forma de rap, o poema "Rio na sombra".
(...)
MEDIADORA: Ok! Muito bom!
Todas as equipes fazem um círculo para apresentarem ao grupão as suas poesias musicadas,
ritmadas pelas palmas de alguns alunos. Todos aplaudem as apresentações dos colegas.
MEDIADORA: Agora, anotem a tarefa de casa: em dupla ou em trio, escolher um poema,
fazer a leitura e depois criar uma musica em sintonia com o sentido e sentimento que o
poema transmite. Obrigada, gente e até terça-feira.
SEGUNDA TURMA:
MEDIADORA: Bom dia gente. Vamos continuar hoje usando a mesma metodologia de
leitura das aulas passadas. Falar nisso, vocês fizeram as duas atividades de casa:
escreveram na segunda metade do caderninho de poesia sobre a aula passada e criaram
música para um dos poemas de Cecília, inseridos na coletânea que receberam?
ALUNOS (em silêncio)
MEDIADORA: Acho que ninguém fez as atividades pedidas.
ALUNA: Foi, professora, esquecemos.
MEDIADORA: Então, vão fazer agora. Juntem-se em dupla, escolham um dos poemas e em
seguida não esqueçam de fazer os três tipos de leitura: primeiro, a leitura silenciosa,
segundo,a leitura em voz alta e terceiro, a leitura reflexiva, procurando compreender o
poema. Depois disso, é que vão criar uma melodia para o poema, que combine com o texto,
para ser apresentado ao grupão.
Os alunos se agrupam em duplas e começam a realizar a atividade proposta.
268
MEDIADORA: Ok, gente. Olha, é o seguinte, depois de escolher o poema, qual é a primeira
atividade que a gente faz, depois de escolher o poema? Qual é o primeiro passo?
ALUNA 27: É... ler o poema!
MEDIADORA: Ler o poema silenciosamente, né?
ALUNO 18: Depois explica...
MEDIADORA: Todo mundo já leu pelo menos uma vez o seu poema?
ALUNOS: Claro!
MEDIADORA: Ok, então, agora, vamos para a leitura em voz alta:
ALUNA 24: Professora, nós vamos ler o nosso (parte da “Quadra”):
MEDIADORA: Certo. Vamos lá.
ALUNAS 23 e 24 (leem):
O vento do mês de agosto
leva as folhas pelo chão;
só não toca no teu rosto
que está no meu coração.
MEDIADORA: Hum... Ok!
MEDIADORA: (Dirigindo-se a outra dupla) Vamos tentar? Vocês vão primeiro ler...
ALUNO 26: O nosso é “Rio na sombra” (a dupla, aluno 26 e 19 leem o poema):
Som
frio.
Rio
sombrio.
O longo som
do rio
frio.
O frio
bom
do longo rio.
Tão longe,
tão bom,
tão frio
o claro som
do rio
sombrio!
269
MEDIADORA: Leiam mais vezes em voz alta, vocês estão se desencontrando ainda. Treinem
mais a leitura em voz alta.
ALUNA 27: Professora, o nosso!
MEDIADORA: Tudo bem, leiam...
ALUNA 22 e 27:
Na canção que vai ficando
já não vai ficando nada:
é menos do que o perfume
de uma rosa desfolhada.
Ao lado da minha casa
morre o sol e nasce o vento.
O vento me traz o seu nome,
leva o sol meu pensamento.
MEDIADORA: Muito bem!
ALUNA 21: Podemos ler?
MEDIADORA: Pode, sim:
ALUNAS 17 e 21: (Leem “O menino azul”):
O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.
O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
— de tudo o que aparecer.
O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.
E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.
(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)
270
A dupla que escolheu o poema “Rio na sombra” lê novamente em voz alta:
MEDIADORA: Ok, treine mais um pouquinho.
ALUNO 25: Vou ler o meu (o aluno recita uma quadra escolhida sem a ajuda do caderninho
de poesia):
Passarinho ambicioso
fez nas nuvens o seu ninho.
Quando as nuvens forem chuva,
pobre de ti, passarinho.
MEDIADORA: Ok, gente, olha... Agora na terceira etapa vão fazer mais uma leitura
encenando o poema e botando música, certo? Vão botando música no poema.
Inicialmente, dois grupos demonstram suas criações musicais para os poemas “Rio na
sombra”, e parte da “Quadra”.
MEDIADORA: Muito bem! Gente, eu vou fazer a leitura de um poema e depois eu vou fazer
a música, certo? Ou seja, eu vou fazer a leitura falada, depois eu vou fazer a leitura cantada,
que é o que vocês devem fazer com os poemas de vocês. O poema é Leilão de Jardim:
Quem me compra um jardim
com flores?
borboletas de muitas
cores,
lavadeiras e passarinhos,
ovos verdes e azuis
nos ninhos?
Quem me compra este caracol?
Quem me compra um raio de sol?
Um lagarto entre o muro
e a hera,
Uma estátua da Primavera?
Quem me compra este formigueiro?
E este sapo, que é jardineiro?
E a cigarra e a sua
canção?
E o grilinho dentro
do chão?
(Este é o meu leilão!)
MEDIADORA: Esse aqui foi o poema falado, agora eu vou fazer o poema cantado. Escutem,
tá? Que não treinei, faz mais de dois anos que eu fiz essa música pra esse poema, eu tenho
que me lembrar, se vocês ficarem conversando eu vou esquecer!
ALUNA 27: A senhora que escreveu esse poema?
271
MEDIADORA: Não, esse poema é de Cecília Meireles, e há mais de dois anos que eu fiz uma
música para esse poema... Vocês não estão fazendo músicas para os poemas, eu também fiz
uma, brincando...!
A mediadora canta o poema e os alunos acompanham a música marcando-a com batidas na
mesa:
ALUNA 24: Fica legal com um violão!
MEDIADORA: Fica legal com um violão, não é?
MEDIADORA: Ok, gente... eu não treinei, se eu tivesse treinado tinha saído melhor...
Vamos... Agora vocês com seus poemas! Leiam mais uma vez, procurando entender o poema
e em seguida criem a música.
MEDIADORA: Agora, vocês vão apresentar as criações musicais. Quem começa?
ALUNO 26: Nós, aqui!
MEDIADORA: Certo. 1, 2, 3...
ALUNOS 26 e 29 (a dupla canta uma quadra sem a ajuda do caderninho de poesia):
A cantiga que eu cantava,
por ser cantada morreu.
Nunca hei de dizer o nome
Daquilo que há de ser meu.
MEDIADORA: Ok! O próximo...
ALUNA 22: Vamos canta o nosso:
MEDIADORA: Ótimo!
ALUNA 22 e 27 (cantam):
Na canção que vai ficando
já não vai ficando nada:
é menos do que o perfume
de uma rosa desfolhada.
Ao lado da minha casa
morre o sol e nasce o vento.
O vento me traz o seu nome,
leva o sol meu pensamento.
MEDIADORA: Muito bem! E vocês, aí, já estão prontos?
ALUNOS 18 e 30: Já (canta o poema “Rio na sombra”, em forma de rap):
272
Som
frio.
Rio
sombrio.
O longo som
do rio
frio.
O frio
bom
do longo rio.
Tão longe,
tão bom,
tão frio
o claro som
do rio
sombrio!
MEDIADORA: Ok... Vamos fazer silêncio. Agora não é vez de vocês não!
ALUNA 17: Tia, a gente pode cantar agora?
MEDIADORA: Claro, queridas, podem começar.
ALUNA 17 e 21 (cantam “Canção”):
De borco
No barco.
(De bruços
No berço…)
O braço é o barco.
O barco é o berço.
Abarco e abraço
O berço
E o barco.
Com desembaraço
Embarco
E desembarco.
De borco
No berço
(De bruços
No barco…)
MEDIADORA: Legal! Alguém mais?
ALUNO 20: Eu (canta baixinho o poema e várias vezes o poema “Rio na sombra”).
273
(...)
MEDIADORA: Você pode cantar um pouquinho mais alto?
ALUNO 20 (canta novamente o poema com a mesma intensidade).
MEDIADORA: Ok. Outro grupo, por favor!
ALUNO 25 (canta rapidamente uma quadra sem ajuda do caderninho de poesia):
Passarinho ambicioso
fez nas nuvens o seu ninho.
Quando as nuvens forem chuva,
pobre de ti, passarinho.
MEDIADORA: Ok! Muito bem! Quem Mais...?
ALUNAS 17 e 21: Nós, tia! (cantam “As meninas”, acompanhada pela marcação de alunos
batendo nas mesas):
Arabela
abria a janela.
Carolina
erguia a cortina
E Maria
olhava e sorria:
"Bom dia!"
Arabela
foi sempre a mais bela
Carolina
a mais sábia menina
E Maria
apenas sorria:
"Bom dia!"
Pensaremos em cada menina
que vivia naquela janela
uma que se chamva Arabela
outra que se chamou Carolina.
Mas a nossa profunda saudade
é Maria, Maria, Maria,
que dizia com voz de amizade:
"Bom dia!"
MEDIADORA: Muito bem!
274
ALUNA 31: Tia, o nosso aqui!
MEDIADORA: Sim, 1,2,3..
ALUNAS 28 e 31 ( e fazem a leitura cantada de “O eco):
O menino pergunta ao eco
onde é que ele se esconde.
Mas o eco só responde: “Onde? Onde?”
O menino também lhe pede:
“Eco, vem passear comigo!”
Mas não sabe se o eco é amigo
ou inimigo.
Pois só lhe ouve dizer:
“Migo.”
MEDIADORA: Legal!
Depois de realizada essa última etapa, fizeram a socialização
166
das leituras cantadas,
apresentando-se de dupla em dupla, sendo filmados sem constrangimento. Só um aluno
sentiu-se inibido diante da câmera e sua composição foi gravada apenas pelo gravador
portátil. Os resultados foram mais satisfatórios que os dos dias anteriores. Entre os poemas
escolhidos e musicados, destacamos: “Rio na sombra”, “O colar de Carolina”, “As meninas”
e as trovas.
MEDIADORA: Para finalizar o encontro, vamos criar coletivamente uma música para o
poema “Os carneirinhos”. Primeiramente vou fazer a leitura oral, porque eu conheço o
poema. Depois disso, vamos improvisar uma música para ele, certo?
Todos querem ser pastores
quando encontram, de manhã,
os carneirinhos,
enroladinhos
como carretéis de lã.
Todos querem ser pastores
e ter coroas de flores
e um cajadinho na mão
e tocar uma flautinha
166
Nos momentos de socialização das composições, o lúdico esteve sempre presente: a platéia buscava criar
modos de participação na brincadeira, especialmente, através do acompanhamento rítmico com o corpo: dança,
estalo de boca, percussão com palmas e pés, batidas nas mesas, etc.
275
e soprar numa palhinha
qualquer canção.
Todos querem ser cantores
quando a Estrela da Manhã
brilha só, no céu sombrio,
e, pela margem do rio,
vão descendo os carneirinhos
como carretéis de lã...
MEDIADORA: Para criar a música, vamos fazer assim: eu invento uma melodia para um
verso e vocês inventam para o seguinte, sempre de forma alternada: eu-vocês, eu vocês... até
o fim, tudo bem?
Diante da proposta, os alunos mostraram-se animados para o desafio e começaram a realizar a
atividade, juntamente com a mediadora e o acompanhamento percussivo feito por algumas
crianças que batiam o ritmo nas mesas:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
276
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
277
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA: Quando for terminar a estrofe, vocês repetem como carretéis de lã...”,
“como carretéis de lã...” (como sugeriu a Ruth), ok? De novo, vamos lá?
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
278
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
MEDIADORA:
279
ALUNOS:
MEDIADORA:
ALUNOS:
TODOS:
MEDIADORA: Ok, gente, muito bem. Agora eu quero só aquelas meninas cantando comigo,
por enquanto, tá? (e aponta para as duas meninas que tinham cantado, resolvendo a melodia
com um tonema descendente).
MEDIADORA:
ALUNAS 17 e 21:
MEDIADORA: Ok, era isso que eu queria, ó... baixou... como carretéis de lã”... combina
mais, não é?
280
ALUNOS (alguns dão sinal de concordância).
Depois disso, todos cantam novamente a música, enquanto alguns alunos acompanham
batendo o ritmo nas mesas e outros imitam os carneirinhos com a onomatopéia “Bé-é-é...”,
principalmente entre as estrofes. Esses acompanhamentos se deram de forma espontânea, no
momento da execução da música do poema.
MEDIADORA: Legal gente, palmas pra nós. Agora, vamos para as tarefas de casa, iguais às
da semana passada: primeiro, vão escrever na segunda parte do caderno-livro o que vocês
acharam da aula, tudo o que quiserem anotar que tenha relação com a aula; segundo, vão
escolher um poema, fazer as leituras e criar uma música para ele. Tchau gente e até terça.
QUARTO ENCONTRO
PRIMEIRA TURMA
MEDIADORA: Bom dia.
ALUNOS: Bom dia.
MEDIADORA: Hoje vamos começar a aula nos assistindo na TV. Vejam e reflitam sobre a
participação e o comportamento de vocês durante a aula passada (curiosos os alunos
assistem à filmagem, fazendo alguns comentários, do tipo “olhe ali fulano”, “olha eu” e
depois riem. No geral, prestaram muita atenção na gravação. Em seguida, depois que todos os
grupos fossem mostrado no momento de exposição de suas criações musicais, a experiência
de leitura dos poemas de Cecília Meireles iniciou-se).
MEDIADORA: Vamos dar prosseguimento à leitura dos poemas? Peguem o caderninho, se
juntem em dupla, escolham um poema e mãos à obra. Quando tiverem prontos pra leitura
oral me avisam que eu vou passar de grupo em grupo ouvindo.
Como nos dias anteriores, os alunos fizeram a atividade. Entre os poemas lidos e
musicalizados, destacamos “Rio na sombra”, Pregão do vendedor de lima”; “Colar de
Carolina”; “A língua do nhem”. A musicalização desse último foi feita em grupo em forma de
desafio:
PROFESSORA: Vamos fazer “A língua do nhem”, em forma de desafio, certo?
ALUNO 1: O que é desafio?
281
PROFESSORA: Desafio é vocês terem que completarem a música, bom? Alguém tem
como começar?
ALUNO 1: Não!
PROFESSORA: Quem começa essa música?
ALUNO 6: (começa a cantar em forma de rap).
PROFESSORA: Pronto, ele vai cantar em forma de rap (canta a primeira estrofe):
Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava sua vida
para falar com alguém.
MEDIADORA: Ok... Alguém completa?
ALUNOS (alguns cantam a segunda estrofe, também em forma de rap):
E estava sempre em casa
a boa velhinha
resmungando sozinha:
MEDIADORA e ALUNOS (cantam): nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
MEDIADORA: Ok, vamos de novo do começo, do começo: um, dois, três:
Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.
E estava sempre em casa
a boa velhinha,
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha
principiou também
a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha,
de cá, de lá, de além,
e todos aprenderam
a falar noite e dia
282
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,
ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
MEDIADORA: Legal, muito bom! Agora, escolham um poema do caderninho e trabalhem
em duplas, de preferência, certo? Se quiserem, podem melhorar também suas próprias
composições feitas nos encontros anteriores.
Nesse momento, notamos que os alunos leram diversos poemas da antologia, no entanto, não
sobrou tempo para que fizessem a expressão oral dos mesmos.
SEGUNDA TURMA
Depois que os alunos assistiram ao DVD, contendo o registro de alguns momentos da
experiência, à semelhança do que ocorreu com a primeira turma, passamos para a apreciação
do poema “Os carneirinhos”:
MEDIADORA: Legal, muito bom! Agora, vamos para a leitura e apreciação do poema “Os
carneirinhos”. Vamos analisar se a música de “Os carneirinhos” casou com a mensagem do
poema, tá?
ALUNA 27: Tia, vamos fazer o casamento?
PROFESSORA: É, pra gente fazer o casamento... Se não casou, a gente casa agora, não é?
ALUNOS: É...é...
PROFESSORA: Vamos ler em voz alta... ok, eu vou ler a primeira vez, depois vocês repetem
o poema em grupo, certo? Eu vou ler a primeira vez sozinha e vocês vão repetir a leitura
em grupo, quando eu terminar?
ALUNO 5: Cantano?
MEDIADORA: Não, a primeira é lendo, ainda.
(...)
283
MEDIADORA: Agora a gente vai falar um pouquinho sobre o poema, certo? Esse poema
fala de quê?
ALUNOS: Dos carneirinhos...
MEDIADORA: O que ele fala dos carneirinhos?
ALUNOS (alguns): Que quer ser pastores.
MEDIADORA: An? Eles querem ser pastores?
ALUNA 27: Todas as pessoas querem ser pastores pra cuidar dos carneirinhos...
MEDIADORA: An...! E como é?
ALUNA 22: É, eles sempre queriam, eles queriam cuidar dos carneirinho, porque eles... Os
carneirinhos eram enroladinho, como linha, né, como carretéis de lã... e tocar numa
flautinha, numa palhinha, por isso.
MEDIADORA: E eles queriam ser pastores por isso?
ALUNA 27: Por causa dos carneirinhos.
MEDIADORA: Ok, olha... O que mais o poema fala, hein, gente, o poema fala mais de quê?
ALUNA 27: De ter coroa de flores também.
MEDIADORA: Quem são esses “todos” que querem ser pastores e cantores?
ALUNO 16: Todos querem ser pastores como carretéis de lã... (canta).
MEDIADORA: Espere ainda, vamos ouvir. Diga amor...
ALUNO 14: (fala muito baixo)
MEDIADORA: Ó... ele falou que... queriam ter coroas de flores... e quem, quem seriam essas
pessoas que querem ser pastores?
ALUNA 27: Nós sempre queremo ser pastores pra encontrar os carneirinho, de manhãzinha,
enroladinho como carretéis de lã.
MEDIADORA: Mas, por quê nós queremos ser pastores?
ALUNO 16: É porque...
ALUNA 27: Pra cuidar dos carneirinho.
ALUNA 22: Pra cuidar dos carneirinho.
ALUNO X: É....
ALUNO X: Ser bom.
MEDIADORA: Sim... para cuidar dos carneirinhos! Será que é bom cuidar dos
carneirinhos?
ALUNOS: É, é...é...
ALUNA 22: É porque dá uma voltinha, uma palhinha, uma canção.
284
MEDIADORA: An...! E isso é bom, isso é bonito, é legal, como é que é?
ALUNO 30: Isso é legal.
ALUNO 5: Isso é bom.
ALUNO 16: Isso é romântico.
ALUNA 27: Porque cuidar dos carneirinhos (...) é como de fosse uma... uma arte.
MEDIADORA: E dizendo de uma outra forma? Por exemplo, aqui diz: todos querem ser
pastores... Se vocês fossem dizer de uma outra forma, com outras palavras, vocês diriam que
todos querem ser...
ALUNA 27: Cuidar de carneirinhos.
ALUNO: Ser bom.
ALUNO 16: Ser pastores.
MEDIADORA: Pra quê as pessoas querem coroas de flores?
ALUNA 22: Pra ficar mais bonito.
MEDIADORA: An...! Pra ficar bonito... É isso mesmo, todos nós almejamos ser bonitos, ser
bonito em alguma coisa, seja no aspecto físico, seja no aspecto psicológico, não é? No visual,
nós almejamos ser bonitos, ser belos... Cuidar, certo? Todos querem ser pastores pra
cuidar... dos carneirinhos, então todos almejam o quê? A gente pode dizer que ter coroas de
flores é a mesma coisa de ser belo, não é? E ser pastor pra cuidar dos carneirinhos é a
mesma de... Querer ser...?
ALUNO 16: Belo.
MEDIADORA: Belo é ter coroas de flores. E cuidar dos carneirinhos? É o quê? Ser...
ALUNO 30: Honrado.
MEDIADORA: Ser... o quê? Honrado, ter honra! Muito bem! O pastor tem a honra dele, não
é?
ALUNO 16: Ser perdoado.
MEDIADORA: Certo.
ALUNA 22: Ter fé.
MEDIADORA: Ter fé, o que mais?
ALUNO X: Amor.
MEDIADORA: Amor! Ok, amor pelos carneirinhos, não é? E no final, olha... psiu! Gente, a
terceira estrofe diz assim:
Todos querem ser cantores
quando a Estrela da Manhã
brilha só, no céu sombrio,
285
e, pela margem do rio,
vão descendo os carneirinhos
como carretéis de lã...
MEDIADORA: Todos querem ser cantores... o que vocês dizem sobre isso...
ALUNO 16: Todos querem cantar.
ALUNA 22: Pra cantar pros carneirinhos.
MEDIADORA: Certo. Todos querem ser cantores..., Cantor é o quê? O cantor é um...
ALUNA 22: Um cantor!
ALUNA 27: Um pastor!
ALUNA 22: Um pastor, não...(risos).
MEDIADORA: Certo. E o cantor é uma pessoa comum?
ALUNOS: É...
MEDIADORA: É? Ou é um artista?
ALUNOS: Um artista.
MEDIADORA: Artista! Então as pessoas, além de beleza, além de bondade, elas querem
também ser artistas, e é o que vocês aqui estão pretendendo ser, né?
ALUNA 31: Não!
MEDIADORA: Não? Não querem ser artistas, aparecer na televisão?
ALUNO 22: Eu quero.
ALUNO 30: Não, tia, eu não quero não!
ALUNA 27: Eu quero.
ALUNO 30; Eu quero ser médico.
ALUNA 22: Eu quero, pra ser importante, artista, escrever coisas bonitas que nem Cecília
Meireles...
MEDIADORA: Interessante... Então, a gente pode dizer que nós queremos cuidar, ser bons,
queremos conviver com a beleza das coisas, como ver “os carneirinhos enroladinhos”; ”ter
coroas de flores”... e almejamos ser artistas, ser cantores?
ALUNA 22: Podemos. É tudo de bom.
(...)
MEDIADORA: Essa melodia que a gente criou foi uma melodia triste ou uma melodia
alegre?
ALUNA 27: Alegre.
MEDIADORA: Alegre. E o poema sugere uma melodia alegre? Tem um tom alegre também?
ALUNO 30: Alegre
286
MEDIADORA: Por que você, Ruth...Ruth, por que você...disse que... o poema passa um
sentimento alegre?
ALUNA 27: (silêncio).
ALUNO 30: Não, tia.
MEDIADORA: Não? E ele passa o quê?
ALUNO 30: Tristeza.
MEDIADORA: Tristeza?
ALUNO 16: Não, tia, emoção!
MEDIADORA: E onde é que está a tristeza do poema?
ALUNO 30: No poema todo.
ALUNA 27: Porque ele quer e não pode.
ALUNA 22: É...Porque ele quer e não pode.
ALUNA (X): É.
MEDIADORA: An... Ele quer e não pode, ele está falando da possibilidade de ser pastor...
ALUNA 22: Ele fala de alegria.
MEDIADORA: Olha, espera ainda, agora prestem atenção: eu vou... Vocês vão tirar a
dúvida com a leitura do poema, tá? Prestem atenção pra depois vocês chegarem à conclusão
sobre a tonalidade do poema, se é uma tonalidade triste ou se é uma tonalidade alegre,
festiva, vamos lá? (Faz a leitura do poema).
MEDIADORA: (...) Passa um sentimento de tristeza ou uma saudade...?
ALUNA 16: Como Carretéis de lã...(canta).
MEDIADORA: Então você (Dirigindo-se a um dos meninos) disse que era uma melodia
triste, não foi? Você acha que tem tristeza no poema?
ALUNO: Foi ele não, foi ele ali, né? (aponta para outro colega)
MEDIADORA: Ah, foi o Vinícius. E aí, Vinícius?
ALUNO 30: Ah, professora... os dois.
MEDIADORA: Dá vontade de chorar, quando escuta?
ALUNO 30: Não, dá vontade de chorar não.
MEDIADORA: Dá vontade de que? De dançar?
ALUNO 30: Não de dançar não, dá vontade de ficar parado.
MEDIADORA: Ah?
ALUNO 30: Vontade de ficar parado.
MEDIADORA: De ficar parado?
ALUNO 16: Não, dá vontade de mexer os braços.
287
MEDIADORA: Ok, então vamos fazer o seguinte: já que o João e outras pessoas concordam
que o poema, ele, vou usar a palavra pungente pra dizer assim... que ele, ele é meio triste,
né? Eu tô usando a palavra pungente pra dizer que toca fundo.
ALUNO 16: Romântico.
MEDIADORA: Romântico. Música romântica geralmente é mais, é mais, é... me ajudem!
ALUNO 16: É mais emoção.
MEDIADORA: É mais emoção... e mais...
ALUNA 22: É mais legal.
ALUNA 27: Alegre é mais legal, bonita.
(...)
MEDIADORA: E a canção pra ser bonita tem que ser alegre?
ALUNOS: Tem
ALUNO 30: Não.
MEDIADORA: Vocês conhecem alguma canção triste e bonita?
ALUNA 22: “O anel”.
MEDIADORA: O anel”, de Bia Bedran, que cantamos no nosso primeiro encontro. Muito
bem lembrado. Eu também acho linda essa composição.
ALUNA 22: O Anel fala de perder e isso é muito ruim, deixa a pessoa triste, mas a música é
bonita.
MEDIADORA: Tem razão. É uma perfeita combinação entre texto e melodia.
MEDIADORA: E no texto de “Os carnerinhos”?
ALUNA 27: Acho que combinou.
ALUNA 22. É, mais podia ser diferente, assim mais lenta, sei lá.
MEDIADORA: (...) Poderíamos criar uma melodia mais lenta que ressaltasse o lirismo do
poema, suas emoções, sua beleza, uma melodia que tocasse fundo quem a ouvisse. Vamos
tentar criar uma melodia mais pungente?
(...)
ALUNA 22: Tia, já sei:
MEDIADORA: Ótimo. Como é? Cante, querida.
ALUNA 22: Todos querem ser pastores
quando encontram, de manhã,
os carneirinhos,
enroladinhos
como carretéis de lã.
288
ALUNO 16: Fala não é? Num cumeu arroz não é? Tá com fome, é?
ALUNA 22: Se eu tô com fome, tu vai me dá comida?
MEDIADORA: Olha... ok, ok!
A menina ensaia, com uma coleguinha, a melodia para a primeira estrofe do poema e cantam-
na para o grupão.
MEDIADORA: Tan-tan-tan-ram...tan-tan-tan-ram…tan-tan-tan-ram… tan-tan-tan. existe
isso? Não pode ser, não pode ser plágio não, botar uma melodia que existe. Tem que ser
nova. Entendeu? Muda esse pedacinho (relativo aos 1º e 2º versos do poema).
167
ALUNO 16: (canta um trecho da melodia anterior):
MEDIADORA: Não, é a primeira melodia, tem que ser outra. Mas valeu as tentativas. Até
o próximo encontro.
QUINTA AULA
PRIMEIRA TURMA
MEDIADORA: Bom dia.
ALUNOS: Bom dia.
MEDIADORA: Trouxeram os caderninhos de poemas? Hoje vamos trabalhar dois poemas
de Cecília Meireles: “O menino azul” e “Ou isto ou aquilo”. Primeiramente vou fazer a
leitura oral de cada poema e depois vocês podem criar as músicas para eles, uma música
para cada um, certo?
MEDIADORA: encontraram o poema? Então vamos a leitura. (a mediadora faz a leitura
em voz alta do poema “Ou isto ou aquilo” e, em seguida, pergunta:)
167
Nesse momento, equivocamo-nos ao achar que a melodia já existia, fato que desvendamos num
outro dia, ao percebemos que ela, apenas, lembrava a melodia de “Eu sou pobre, pobre, pobre”.
289
MEDIADORA: Acho que ouvi alguém cantar. Alguém fez uma melodia para o poema ou
pelo menos iniciou. Será que ouvi direito?
ALUNO 19: Tia, foi o Junior.
MEDIADORA: Muito bem, Junior. Você poderia me mostrar a sua criação?
JUNIOR: (balança a cabeça que sim e canta a primeira estrofe do poema).
MEDIADORA: Lindo! Lindo! Posso gravar?
JUNIOR: (Balança a cabeça que sim e canta o poema inteiro, de uma vez só.
MEDIADORA: Muito bom!
MEDIADORA: Agora, poderemos
conversar um pouco sobre o poema, certo? Primeiro, de que
fala o poema?
MEDIADORA: De que fala o poema?
ALUNA 8: De escolha. Vivemo o tempo todo escolheno, professora. Hoje eu queria ter
ficado durmino, com essa chuvinha... Mas também não quiria perder aula.
ALUNA 22: Domingo, eu quiria ir pra casa de minha vó, mas era dia de ficar com o meu
pai, entende?
MEDIADORA: Entendo, sim. Então... vocês concordam “que não se pode estar ao mesmo
tempo nos dois lugares”, como fala o poema?
ALUNA 8: Nem sempre. Por exemplo, eu posso tá aqui e acolá ao mermo tempo.
MEDIADORA: Como assim?
ALUNA 8: Assim, ó..., o meu corpo tá aqui, certo, mas minha cabeça... pode tá noutro canto,
no mundo da lua... (risos).
MEDIADORA: Certo.
ALUNO 14: Eu posso com um no chão e o outro nos ares. Assim, ó... (e faz o gesto, se
sustentando num pé só).
ALUNO 6: No circo, eles faz assim. Eu vi, na televisão, um trapezista no ar apoiado no chão
com uma mão.
MEDIADORA: Legal!
ALUNO 1: Eu posso gastar o dinheiro e ainda ficar com ele... é comprar pouco doce e o
mais barato pra ter troco.
MEDIADORA: Pode. E chuva com sol pode acontecer? (A mediadora começa a cantar as
quadras)
Chuva com sol,
chuva com sol,
é o casamento
do rouxinol.
290
Sol com chuva,
sol com chuva
é o casamento
da viúva.
MEDIADORA: Vocês conhecem essas quadras?
ALUNA 22: Cantada não, só falada.
ALUNO 1: É mermo.
MEDIADORA: E, aí, podemos ter chuva e sol ao mesmo tempo?
ALUNO 16: Pode. Já vi várias vez.
ALUNO 5: Eu também.
ALUNO 26: Eu também já vi, professora.
MEDIADORA: E estudar e brincar pode acontecer ao mesmo tempo?
ALUNA 22: Eu num consigo.
ALUNA 21: Eu também não.
ALUNA 22: A minha irmã estuda com a boneca dela. Minha mãe briga que só, pra ela
prestar atenção no dever.
ALUNA 17: Eu consigo, às vez. Quando a professora passa uma leitura pra casa... se for
uma história interessante, aí, eu me divirto. Acho que eu brinco de ser a personagem. Se ela
fica triste, eu também fico triste, se ela fica alegre, eu também fico.
MEDIADORA: Interessante. E com os poemas de Cecília Meireles, vocês brincam, enquanto
leem.
ALUNO 30: Eu brinco. Acho muito divertido, por exemplo, aquele do P [“Passarinho no
sapé”].
ALUNA 28: Eu acho as rimas divertida.
ALUNA 22: Eu acho “A avó do meninó”.
ALUNO 6: Eu brinco com os de tropeçar. É bem legal.
MEDIADORA: E nessa oficina, vocês estudam poesia, brincando?
ALUNOS: Sim.
ALUNA 8: A gente brinca quando lê e quando inventa as músicas, né?
MEDIADORA: Hanran... falar em brincar, vamos brincar de fazer música para “O Menino
Azul”?
ALUNOS: Vamo.
ALUNO 7: Vamo não.
ALUNOS: (risos)
291
MEDIADORA: Façam a leitura oral de
“O Menino Azul, tá certo?
(...)
ALUNA 8: Tia, eu posso ler?
MEDIADORA: Claro, minha querida!
ALUNA 8: Tá bom. Vou começar:
O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.
O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
— de tudo o que aparecer.
O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.
E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.
(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)
MEDIADORA: Muito bem. Agora, vou dar um tempinho pra vocês pensarem um modo de
cantar esse poema. vão pensando... (enquanto alguns alunos se concentram na releitura do
poema e na tentativa de musicar o poema, outros brincam, xingam-se...)
ALUNA 8: (...) Tia, a gente aqui criou uma música, vem ver!
MEDIADORA: Legal! Cantem!
(...)
MEDIADORA: Interessante. Treinem mais, daqui a pouco eu gravo.
(...)
MEDIADORA: Gente, vamos ouvir as meninas... elas criaram uma música para o poema “O
menino azul! (As meninas 8 e 11 cantam e, ao terminar, o grupo aplaude)
MEDIADORA: Obrigada, pessoal. Agora podem guardar o caderninho e aguardar o
intervalo.
292
Com a segunda turma, trabalhamos, no quinto encontro, em torno do planejamento do
cenário que utilizaríamos na apresentação do sarau “Cecília Meireles em canto”
168
, junto à
comunidade escolar. Escolhemos iniciar com os poemas “As meninas” e “Ou isto ou aquilo”,
musicados em encontros anteriores:
MEDIADORA: Bom dia.
ALUNOS: Bom dia.
MEDIADORA: Agora vamos planejar o cenário de nosso musical?
ALUNA 22: Musical?
MEDIADORA: É sim, vocês não lembram que eu falei que nós estamos criando melodias
para os poemas de Cecília Meireles, para apresentarmos em dezembro pra toda a escola?
Esqueceram foi?
ALUNO 26: Lembro, tia.
MEDIADORA: Pois é, então vamos pensar o cenário. Como é que a gente poderia ilustrar,
por exemplo, o poema “As meninas”:
Arabela
abria a janela.
Carolina
erguia a cortina.
E Maria
Olhava e sorria:
“Bom dia!”.
Arabela
foi sempre a mais bela.
Carolina,
a mais sábia menina.
E Maria
apenas sorria:
“Bom dia”.
(...)
ALUNO 25: Nós podemos fazer a janela de isopor, tia.
ALUNO 19: E fazer a cortina de papel crepom...
168
Nas três apresentações que fizemos, utilizamos apenas parte do que planejamos, por dois motivos: primeiro,
porque o poema “As meninas” não entrou na seleção que fizemos das composições a ser apresentadas, e,
segundo, porque outras idéias sobre “Ou isto ou aquilo” foram surgindo, no decorrer da experiência.
293
MEDIADORA: Certo. Vai ficar interessante. Na próxima aula, vocês poderiam trazer o
material para fazer a janela e a cortina. Pode ser?
ALUNO 25: Eu trago o isopor.
ALUNA 19: Eu trago o crepom.
ALUNA 28: Eu posso ser Arabela, tia, trago minha maquiagem, um espelho, uma escova e
fico representando na hora.
MEDIADORA: Legal!
ALUNA 23: Eu posso ser Carolina. Trago uns livro e fico fingindo que tô lendo na hora.
ALUNA 21: E eu... posso ser Maria,tia?
MEDIADORA: Pode sim. E o que faria a Maria?
ALUNA: Sorria e dizia bom dia (risos).
ALUNOS: (risos)
ALUNA 21: Ficamo as três na janela...
ALUNA 23: Melhor... uma de cada vez.
ALUNA 28: É mermo!
MEDIADORA: Certo. E o que mais?
ALUNA 17: Tá bom, tia, desse jeito.
MEDIADORA: É. bom. Então vamos pegar o poema “Ou isto ou aquilo” e também criar
um cenário para ele? Vamos pegar por estrofe. A primeira estrofe: “Ou se tem chuva e não
se tem sol, / ou se tem sol e não se tem chuva!”. O que é que a gente precisa para representar
a estrofe?
MEDIADORA: Como ninguém diz nada, eu pergunto: poderia ser papel picotado para gente
jogar na hora de dizer o verso?
ALUNOS: É... pudia.
MEDIADORA: Seria qualquer papel?
ALUNO 25: Um papel brilhoso... fica legal.
MEDIADORA: Prateado, tipo laminado?
ALUNO 26: É. Acho que fica legal.
MEDIADORA: Então, na próxima aula, vou trazer os papéis pra vocês picotarem e
prepararem a chuva.
MEDIADORA: E o sol, como a gente representaria?
ALUNO 29: Acendendo a luz.
MEDIADORA: (Olha para a lâmpada fluorescente do teto da biblioteca e pergunta): Vocês
acham que essa luz fria da lâmpada poderia ficar legal?
294
ALUNA 17: Não, tia. Num vai ser lá no pátio?
MEDIADORA: Vai.
ALUNA 17: Então, lá já é claro! É todo aberto.
MEDIADORA: É mesmo.
ALUNO 25: A gente pudia desenhar o sol, numa cartolina, tia.
ALUNO 29: Eu desenho.
ALUNO 25: Eu também.
MEDIADORA: Legal, na próxima aula, trago o material. Vamos continuar. A segunda
estrofe: “Ou se calça a luva e não se põe o anel, / ou se põe o anel e não se calça a luva!”.
ALUNO 30: Essa é muito fácil!
MEDIADORA: Por quê?
ALUNO 30: É só trazer luva e anel. Pode ser aquele anel de plástico que vem no doce!
ALUNO 25: Legal, eu tenho um monte.
MEDIADORA: A luva eu tenho.
ALUNA 22: Cada um de nós pudia usar, numa mão, a luva e na outra, o anel. Aí, a gente
mostra primeiro a luva e depois o anel.
MEDIDADORA: Meu Deus... Então vou ter que trazer uns quinze pares de luva?
ALUNOS: É.
MEDIADORA: Não tem problema, eu trago. Vamos para a outra estrofe: “Quem sobe nos
ares, não fica no chão, / quem fica no chão, não sobe nos ares”. O que poderíamos fazer?
ALUNOS: (pensativos)
MEDIADORA: O que vocês acham de construirmos um balanço?
ALUNA 31: Meu pai faz, tia é só levar um pedaço de madeira e uma corda.
MEDIADORA: Acho ótima idéia.
ALUNO 26: Fica legal!
ALUNO 18: É mermo!
ALUNA 21: Também acho.
MEDIADORA: Eu compro o material.
ALUNA 8: Vai ser quando tia, a apresentação?
MEDIADORA: Vou combinar a data com o diretor... Depois eu digo a vocês. Se não der pra
a gente se apresentar logo, pode ser no dia das mães.
ALUNA 17: No dias das mães... fica legal!
ALUNA: 27: É mermo.
ALUNA 21: Mas tá muito longe... Era bom logo.
295
MEDIADORA: Vou ver isso, hoje, com o diretor... E nos outros dois versos seguintes, “É
uma grande pena que não se possa/ estar ao mesmo tempo nos dois lugares!”, o que
faremos?
ALUNA 22: Pudia ser o balanço também, tia?
MEDIADORA: É podia, sim. A próxima sequência é: “Ou guardo o dinheiro e não compro o
doce, / ou compro o doce e gasto o dinheiro”.
ALUNO 18: A senhora pudia trazer os doces e no final dar pra gente!
ALUNOS: É...!
MEDIADORA: Combinado.
ALUNO 25: E o dinheiro, agente pudia trazer aquelas notinhas dos pacotes de doce. Eu
tenho um monte.
ALUNO 29: Pudia ser moeda de um real que é bem grandona, ai depois a tia pra gente
(risos).
ALUNO 30: É mermo (risos)
MEDIADORA: Vou pensar no caso. E para os versos: “Não sei se brinco, não sei se estudo,
/ se saio correndo ou fico tranqüilo”. Pensem como interpretar no palco!
ALUNA 22: Deixe eu ver...! Pode ser um livro e um brinquedo, tia?
MEDIADORA: O que vocês acham?
ALUNOS: Legal!
ALUNA 21: Fica interessante, tia.
MEDIADORA: Também acho. E quem se encarrega de trazer?
ALUNA 22: Eu trago, tia.
MEDIADORA: Ótimo, gente, depois a agente vê se falta alguma coisa.
SEXTO ENCONTRO
Essa aula foi dedicada à confecção, em grupo, de parte do cenário. Os alunos construíram a
janela de isopor com cortina de TNT, para o poema “As meninas”; picotaram papel laminado para
representar a chuva de “Ou isto ou aquilo” e ilustraram o poema “O menino azul”, em cartazes. Além
disso, as crianças, autoras da composição musical, feita para o poema “O menino azul”, fizeram a
recriação musical da penúltima estrofe da melodia.
296
SÉTIMO ENCONTRO
Trabalhamos, nesse dia, dois tipos de atividades: a primeira voltada para a leitura e a
musicalização dos poemas: “A chácara do Chico bolacha”; A língua do nhen” e a segunda, dedicada
ao ensaio das canções “O último andar” e “Ou isto Ou aquilo”, compostas anteriormente pelas
crianças e já arranjadas por nós.
MEDIADORA: Bom dia, crianças!
ALUNAS: Bom dia!
MEDIADORA: Cadê o resto da turma?
ALUNA 8: Só veio nós, tia! Acho que esqueceram.
ALUNA 22: Também acho. Tão dormindo (risos).
297
MEDIADORA: Não tem problemas. Vamos trabalhar, hoje, com um grupo... um trio. Peguem o
caderninho e escolham um poema. Leiam e criem uma música para ele, certo?
ALUNA 8: Um poema pra nós três, tia?
MEDIADORA: É. Mas, se quiserem, podem escolher mais de um também. Vou dar um tempo, depois,
quando tiverem criado a música, me chamem para eu gravar, tá bom?
ALUNA 22: Tá, tia.
As crianças ficaram à vontade, sentaram no chão, conversaram entre si sobre a escolha do poema e,
depois de realizadas as leituras silenciosa e oral de alguns poemas, decidiram sobre qual poema
musicar.
ALUNA 8: Tia, a gente vai criar uma música pra esse aqui, “A chácara do Chico Bolacha”.
MEDIADORA: Certo. Quando tiverem criado, deem sinal pra eu gravar, ok?
(...)
ALUNA 22: Tia, nós já criamos, vem ver se tá bom!
MEDIADORA: Cantem.
ALUNA: Vamos começar? 1, 2, 3... (Cantam a primeira estrofe):
Na chácara do Chico Bolacha
O que se procura
Nunca se acha!
ALUNA 8: O resto a gente tá pensando ainda.
MEDIADORA: Achei bem legal! Continuem!
Depois de uns cinco minutos, uma aluna sinaliza:
ALUNA 22: Pronto, tia, vem gravar.
ALUNA 8: Cada uma canta uma estrofe, tá?
ALUNAS 22 e 17: Tá.
MEDIADORA: Então, vamos lá, 1,2,3... gravando.
Na chácara do Chico Bolacha
O que se procura
Nunca se acha!
Quando chove muito,
O Chico brinca de Barco,
Porque a chácara vira charco.
Quando não chove nada,
298
Chico trabalha com a enxada
E logo se machuca
E fica de mão inchada.
Por isso, com o Chico Bolacha,
O que se procura
Nunca se acha.
Dizem que a chácara do Chico
Só tem mesmo chuchu
E um cachorrinho coxo
Que se chama caxambu.
Outras coisas, ninguém procure,
Porque não acha.
Coitado do Chico Bolacha!
MEDIADORA: Muito bem, legal!
ALUNA 22: Tia, nós vamos escolher outro poema, viu?
MEDIADORA: Ótimo. Quando criarem a música, é só dizer, que eu gravo.
(...)
ALUNA 17: Já, tia. Acho que ficou legal, vem ver!
ALUNA 22: Também acho (risos)
ALUNA 8: Vamos fazer assim... duas cantam a estrofe e a outra canta o nhem-nhem-nhem... Tá?
ALUNA 22: Tá.
ALUNA 8: 1, 2,3... (Todas cantam, conforme combinaram):
Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.
E estava sempre em casa
a boa velhinha,
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha
principiou também
a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
Depois veio o cachorro
299
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha,
de cá, de lá, de além,
e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,
ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
MEDIADORA: Que interessante, meninas!
ALUNA 8: A tia gostou?
MEDIADORA: Gostei muito.
ALUNA 8: A gente também (risos)
ALUNA 17: Foi. É Legal! Tia, a gente fez rapidinho, num foi?
MEDIADORA: Foi, sim. Vocês estão ficando bem criativas, viu! Assim, vocês vão musicar o
caderninho inteiro (risos).
ALUNA 8: É mermo (risos)
MEDIADORA: Agora, nós vamos ensaiar as músicas
“O último andar” e “Ou isto Ou aquilo”.
(...)
300
ANEXO 2 – DESCRIÇÃO DA EXPERIÊNCIA “CECÍLIA MEIRELES EM CANTO”
1 RECEPÇÃO DO POEMA “CANTIGUINHA”
MEDIADORA: Vamos trabalhar hoje com o poema “Cantiguinha. Olha, eu dei uma oficina
de poesia e música da sala da Maria. Então a gente tem uma metodologia de criar música para
o poema. Primeiro, a gente o poema em silêncio, na segunda vez, a gente em voz alta, e
na terceira vez a gente procura criar uma música para o poema. Vamos fazer uma leitura
silenciosa, agora?
(...)
Depois que as alunas fazem a leitura silenciosa do poema, realizam a leitura em voz alta:
Meus olhos eram mesmo água,
- te juro -
mexendo um brilho vidrado,
verde-claro, verde-escuro.
Fiz barquinhos de brinquedo,
- te juro –
Fui botando todos eles
Naquele rio tão puro.
........................
Veio vindo a ventania,
- te juro –
as águas mudam seu brilho,
quando o tempo anda inseguro.
Quando as águas escurecem,
- te juro –
todos os barcos se perdem,
entre o passado e o futuro.
São dois rios os meus olhos
- te juro –
Noite e dia correm, correm,
Mas não acho o que procuro.
MEDIADORA: Vocês acham esse poema parecido com música?
ALUNA 1: Eu acho.
ALUNA 2: Eu acho.
ALUNA 3: Eu acho.
MEDIADORA: O que faz o poema parecer com uma música?
ALUNA 2: As rimas. Rima tudo.
301
MEDIADORA: Certo. Além da rima tem outra coisa que faz parecer mais com música?
ALUNA 2: As palavras: “meus olhos...”, ai começa.
MEDIADORA: O que mais?
ALUNA 1: Essa parte aqui “te juro” era como se fosse um ... quando a gente faz na
igreja...
MEDIADORA: O refrão?
ALUNA 1: ... tem o coro, é o refrão.
ALUNA 2: É.
ALUNA 3: Não, mas só que o “te juro” tá atrapalhando um pouco.
MEDIADORA: Ele quebra o ritmo do poema, mas dá uma musicalidade diferente, não
acham?
ALUNOS(AS): É.
MEDIADORA: Agora vocês vão pensar modos de cantar, como é que cantariam esse poema,
se fosse botar música, ele é quase música, ele é bem musical, mas como fazer para que
essa música seja mais percebida?
Depois de uns quinze minutos, todos os grupos tinham musicalizado o poema e retomamos
a conversa sobre o poema.
MEDIADORA: Quando eu entreguei o texto para vocês... vocês pensaram em quê, ao ler o
título Cantiguinha?
ALUNA 2: Eu pensei numa coisa agitada.
ALUNA 3: Eu pensei numa melodia lenta
169
.
ALUNA 1: Nós também.
ALUNA 2: Eu pensei numa música pra bebê, pra ninar.
MEDIADORA: Para criança!
ALUNA 2: É.
MEDIADORA: Hum...!
ALUNA 3: Eu pensei assim... devagar.
ALUNA 3: É por causa já tá dizendo Cantiguinha, é a letra.
MEDIADORA: A letra?
ALUNA 3: É a letra, isso tudo é devagar. Eu percebi assim a letra né! Porque é devagar.
169
Três duplas criaram suas melodias para “Cantiguinha”, prevalecendo o ritmo lento nas
composições. Apenas uma dupla, optou por um ritmo mais rápido, que lembrava o gingado do
pagode.
302
ALUNA 2: Tia, assim pra ninar.
MEDIADORA: É... se for para ninar tem que ser devagar, não é? Se não desperta o bebê (e
canta o nana neném num ritmo e andamento rápidos). Assim não dá, não é?
ALUNA 3: Te juro... nan-nan...aí não pode, né? Tem que ser devagar mesmo, né?
MEDIADORA: E se for outro tipo de cantiguinha que não seja uma cantiga de ninar?
MEDIADORA: Poderia ser uma cantiga de roda?
ALUNAS: Podia...
ALUNA 1: É, tia!
ALUNA 3: Só que essa daqui é mais lenta.
MEDIADORA: E a cantiga de roda é mais rápida ou mais lenta?
ALUNA 3: Rápida.
ALUNA 4: Como a gente cantou.
ALUNA 3: Mas essa daqui é mais lenta.
MEDIADORA: A cantiga de roda é mais lenta ou rápida?
ALUNAS: Mais rápido.
MEDIADORA: É... a cantiga de roda é mais rápida.... Mas tem lenta também.
ALUNA 1: Eu já vi cantiga de roda mais lenta.
ALUNA: 4: De todo jeito, tia!
MEDIADORA: Por exemplo, “Terezinha de Jesus” (todos cantam) é lenta ou é rápido?
ALUNA 1: Lento.
MEDIADORA: Pois é uma cantiga de roda.
ALUNA 4: Mas aquela que tem do piu-piu-piu é bem rápido!
MEDIADORA: An?
ALUNA 1: Igual aquela: “Se essa rua” também é lenta (e começam a cantar e todos
acompanham).
ALUNA 2: Ei! Eu pensei em fazer essa música devagar.
MEDIADORA: E você fez rápido?
ALUNA 2: Não.
MEDIADORA: Pois é, tá bom.
ALUNA 3: Mas elas fizeram rápido.Ela combina mais devagar.
Mediadora: Mas, no geral, a cantiga de roda é rápida.
ALUNAS: É mesmo.
ALUNA 3: Mas essa música combina mais devagar.
303
MEDIADORA: E quanto ao sentido do texto, o que vocês têm a dizer? O texto fala sobre o
quê?
ALUNA 4: Que os olhos dele era bonito verde, parecia um lago sei lá, uma coisa assim. E os
barquinho corria nas lágrima, saindo dos olhos dele (e faz o gesto, imitando as águas em
formas de ondas saindo dos olhos).
MEDIADORA: O que mais? “Meus olhos eram mesmo água _ te juro_/mexendo um brilho
vidrado,/ verde-claro, verde-escuro”
ALUNA 3: Tia, não é tipo um poema?
MEDIADORA: É.
ALUNA 3: Então, se fosse o narrador falano, era tipo um narrador que tava dizendo sua
história: “Meus olhos...”.
ALUNA 4: Quando ele chora, aí, enche de água. , ele bota os barquinhos nos olhos, que
legal!
ALUNA 4: Quando, quando chora aí o olho fica assim verde, fica brilhando, fica como água.
ALUNA 3: Verde claro e verde escuro...
ALUNA 1: Quando ela não tiver chorano era verde claro, aí, ela chorou ficou verde
escuro.
ALUNA 2: Ele tava contando a infância dele.
MEDIADORA: Contando a infância, é? Hum... legal. Que mais ó... “Fiz barquinhos de
brinquedo,/ - te juro - / fui botando todos eles / naquele rio tão puro”.
ALUNA 3: Nos olhos, nos olhos quando ele chora.
MEDIADORA: É ele bota os barquinhos nos olhos. Fala sobre... como ela disse... sobre a
infância.
ALUNA 4: Bota o pensamento nos olhos.
MEDIADORA: Veio vindo a ventania, /- te juro - / as águas mudam seu brilho, / quando o
tempo anda inseguro”.
ALUNA 3: Como se fosse a alegria, a alegria é tipo a ventania, vem a alegria, ele pára
de chorar, aí muda seu brilho, aí ele fica sem brilho, que ele para de chorar.
ALUNA 2: Não, por exemplo, veio vindo a tristeza. O poema também fala de tristeza
MEDIADORA: Veio vindo a ventania, /- te juro - / as águas mudam seu brilho, / quando o
tempo anda inseguro”.
ALUNA 2: É, é tristeza.
MEDIADORA: Quando as águas escurecem / - te juro - / todos os barcos se perdem / entre o
passado e o futuro.
304
ALUNA 1: Ó, aí, viu?
ALUNA 2: Triste.
MEDIADORA: E essa tristeza está na infância?
ALUNA 1: Não. Quando ele já era grande.
ALUNA 3: Ele tá se lembrando.
ALUNA 2: Ele ficou emocionado, com saudade, chorando de saudade, de felicidade.
ALUNA 4: Ele teve esse pensamento quando ele era grande. Tia, eu sinto tanto saudade
quando eu era pequenininha, toda fofinha!
MEDIADORA: “São dois rios os meus olhos, / - te juro”.
ALUNA 3: Tia, é os dois rios, esse e esse (e aponta para os seus olhos).
MEDIADORA: É... “noite e dia correm, correm,/mas não acho o que procuro”.
ALUNA 3: Ele olha, olha...
ALUNA 4: Ele olha, vai passando as horas.
ALUNA 3: Ele olha, olha, olha e não acha.
ALUNA 4: E não acha o quer, o quer, se quer resolver uma coisa, não consegue ver,
resolver, tia.
ALUNA 1: Como se tivesse procurando uma coisa e não achasse.
ALUNA 4: Ele fala também que tava perdido, os pensamentos deles, vagando...
ALUNA 2: Ele tava no escuro, perdido.
ALUNA 4: Os olhos são dois rios. Ele procura, procura, mas não acha o que procura.
MEDIADORA: Como disse a Ana, uma parte do poema fala de alegria e a outra fala de
tristeza, é?
ALUNAS: É
ALUNA 1: Tia, ó, lê essa estrofe aqui!
MEDIADORA: “Quando as águas escurecem, / - te juro - / todos os barcos se perdem, /
entre o passado e o futuro”.
ALUNA 1: O futuro... Ele tá... ele escreveu o texto, mas ele tá no futuro, aqui, aqui ó ...
ALUNA 4: Ele tá falano do passado e fez...
ALUNA 1: Ele tá relembrano o passado.
ALUNA 5: Ele tá relembrano o passado...
ALUNA 3: Esse “te juro”, quer dizer é de verdade.
MEDIADORA: Vocês acham que a música que vocês criaram está combinando com o texto?
Ela disse direitinho o que o poema diz?
ALUNA 1: Eu acho que o que nós criamos disse...
305
ALUNA 2: É divagazinho, é porque, assim oh, se for rápido, assim do jeito delas, assim não
vai o dom da infância, entendeu? Duma alegria, e aqui no último parágrafo falando de
tristeza.
ALUNA 2: Não pra cantar do jeito que elas cantaram, porque no final do parágrafo
falando de tristeza, da tristeza da infância dele, entendeu?
ALUNA 4: Mas só que não tá nem tão rápido! Tá normal...
MEDIADORA: Certo, então vocês, vocês acham que uma parte do poema fala de alegria e a
outra parte fala de tristeza?
ALUNA 4: Ó... tia, ele contano uma coisa, foi ele sentino saudade, ficou
emocionado...
MEDIADORA: O que foi que você disse?
ALUNA 2: Que ele começou a contar... tipo assim começou a falar, né, historia dele,
ele ficou... ele ficou pensano como era bom, quando criança ele brincava, ele ria, ele
chorava, ele ficou emocionado e acabou chorando, chorando de, de ... mas não chorano, o
é porque eu não sou criança mais, chorando (risos) é, chorando de felicidade.
MEDIADORA: De saudade?
ALUNA 3: Tia, tia, aí por isso que os olhos dele ficaram igual uma água.
ALUNA 4: Pera aí, tipo assim se a gente tivesse ido pro uma ilha... pra uma ilha, eu me
perdesse lá, eu ficava tomando banho de água, chorando, eu chorando, eu chorando, eu
tomando banho nas minhas próximas, mas minhas própias...
MEDIADORA: Próprias lagrimas.
ALUNA 4: ... nas minhas próprias águas, lágrimas.
2 CONVERSA SOBRE A COMPOSIÇÃO FEITA PARA O POEMA “A AVÓ DO
MENINÓ”
MEDIADORA: Lisa, você criou ”A avó do menino” (A mediadora canta). Lembra? Por que
você escolheu essa melodia para o poema? Fale um pouco. Eu achei a composição muito
legal e muitas crianças também.
LISA: Eu queria falar... mas, não é um poema, tia?
MEDIADORA: É.
LISA: Eu queria falar sobre a rima.
MENINA: Foi ela quem fez?
306
MEDIADORA: a música. O texto é de Cecília Meireles.
LISA: Eu queria explorar mais a rima. A pessoa lê, o leitor, certo? E se a pessoa ouvisse o
cd, ele ia descobrir mais a rima em “ó”: a avó, menino, liró... tudo com “ó”.
MEDIADORA: Você acha que deu evidência a rima? Você não deu evidência ao ritmo
também? (e faz o ritmo em ta-ra-ra, ta-ra-ra, batendo palmas).
LISA: O ritmo também. Ele é rápido, acelerado.
MEDIADORA: Você tinha noção de que estava criando uma parlenda? Você achou parecida
com uma parlenda?
LISA: Como assim, uma parlenda?
ALUNA: Assim, oh! E começa a dizer uma parlenda “Cuca na panela, cuca na panela...”
MEDIADORA: A parlenda é uma música de brincar com as palavras, as mãos, o corpo.
Assim (e demonstra com as mãos).
LISA: Foi. Eu acho que eu tentei criar uma parlenda, uma música para brincar.
MEDIADORA: E você fez isso porque o texto de Cecília brinca com as rimas?
LISA: É.
MEDIADORA: Tem outra coisa que você gostaria de falar?
LISA: Além da melodia, das rimas, tem as personagens: a avó o Ricardó, que é o meninó...
MEDIADORA: Certo. Você gostou de ter feito a música para o poema?
LISA: Gostei. E ainda mais quando o grupo canta e brinca. Fica mais legal.
307
ANEXO 3 – MODELOS DE QUESTIONÁRIOS APLICADOS
308
QUESTIONÁRIO COM CRIANÇAS DA PESQUISA POESIA E MÚSICA EM SALA DE AULA
NOME:__________________________________________________
ANO___________ IDADE________
1 - Com que freqüência você realiza as suas leituras?
( ) todo dia ( ) toda semana ( ) algumas vezes no mês
2.O que você gosta de ler?
( ) livros didáticos ( ) revistas e jornais ( ) poesias ( ) contos ( ) crônicas ( ) romances
( ) revista em quadrinhos ( ) outros
3. Você frequenta a biblioteca da sua escola?
( ) sim ( ) não ( ) algumas vezes
4. O que você gosta mais nas aulas de leitura?
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
5. Você gostou de ler e cantar ou fazer música para os poemas de Cecília Meireles?
( ) gostei muito ( ) gostei médio ( ) gostei um pouco ( ) não gostei
Por quê?
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
6. Quais os poemas que você mais gostou? Por quê?
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
309
7. O que você achou da experiência metodológica de ler e cantar os poemas?
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
8. Você participou dos ensaios do coral?
( ) sempre ( )quase sempre ( )algumas vezes ( )não
Por que não participou?
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
9. Você participou do sarau poético?
( )sim ( )não
10. Você gostou de ter participado? Por quê?
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
11.Você acha que a experiência com os poemas de Cecília Meireles ajudou você a se interessar mais
pela leitura?
( )sim ( )não ( ) não sei
Por quê?
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
310
12.Você gostaria que essa experiência com os poemas de Cecília Meireles continuasse na escola? Por
quê?
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
13.Você gostou de assistir a apresentação poética “Cecília em música”? Comente.
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
OBRIGADA A TODOS.
311
QUESTIONÁRIO PARA AS CRIANÇAS DO CORAL “CECÍLIA MEIRELES EM CANTO”
NOME:__________________________________________________
ANO___________ IDADE________
1. Você gosta de ler?
( )muito ( )médio ( ) um pouco ( )nem um pouco
2. O que você gosta de ler
( )revista ( )jornal ( )narrativa ( )poesia ( ) outros
3. O que você acha da leitura de poesia em sala de aula?
__________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
4. Lembra de algum autor de poesia que você tenha lido? Quem?
____________________________________________________________________________
5. Antes de participar do coral “Cecília Meireles em canto”, você já tinha lido ou ouvido algum poema
de Cecília Meireles?
( )sim ( )não
6. Quais?
( )Ou isto ou aquilo ( )A bailarina ( ) O mosquito escreve
( )Na chácara do Chico bolacha ( )O último andar ( )O menino azul
( ) Jogo de bola ( ) A língua do nhem ( )O colar de Carolina ( ) outros
7. Onde você leu esses poemas?
( ) na escola ( ) em casa ( ) outros
312
8. Você gostou de ler e cantar os poemas de Cecília Meireles?
( ) gostei muito ( )gostei médio ( )gostei um pouco ( )não gostei
9. Por quê?
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
10. O que você achou mais interessante na leitura dos poemas:
( ) leitura em silêncio ( )leitura em voz alta ( )cantar o poema
11. Depois da experiência com a poesia de Cecília Meireles, você passou a gostar mais de ler poesia
ou outros textos? Por quê?
__________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
12. Quais os poemas de Cecília Meireles você gostou mais? Por quê?
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
_________________________________________________
13. Você gostaria que essa experiência com os poemas de Cecília Meireles continuasse na escola?
Por quê?
__________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
14. Você gostou de se apresentar no sarau? Cite os pontos positivos e negativos
__________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
15. A experiência com o coral mudou alguma coisa na sua vida, no seu dia-a-dia?
__________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
MUITO OBRIGADA!
313
QUESTIONÁRIO PARA AS MÃES DAS CRIANÇAS DO CORAL
NOME:________________________________________________________
ESCOLARIDADE:_________________________________ IDADE_______
1. Seu filho(a) gosta de ler?
( )muito ( )médio ( ) um pouco ( )nem um pouco
2. O que ele(a) gosta de ler?
( )revista ( )jornal ( )narrativa ( )poesia ( ) outros
3. Você acha que seu filho gostou de ler e cantar os poemas de Cecília Meireles?
( ) gostou muito ( )gostou médio ( )gostou um pouco ( )não gostou
( )não sei
Por que?
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
4.Você acha que a experiência com o coral “Cecília Meireles em canto”, ajudou seu filho(a) a se
interessar mais pela leitura?
( )sim ( )não
Por que?
__________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
314
5.Você aprendeu com seu filho alguns dos poemas de Cecília Meireles? Qual ou quais?
__________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
6.Você gostaria que essa experiência com os poemas de Cecília Meireles continuasse na escola? Por
quê?
__________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
7.Você gostou de assistir a apresentação poética no dia das mães?
__________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
8. A experiência com o coral mudou alguma coisa na vida do seu filho(a), no seu dia-a-dia?
__________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
MUITO OBRIGADA!
315
ANEXO 4 – PARTITURAS
316
317
318
319
320
321
322
323
324
325
326
327
328
329
330
331
332
333
334
335
336
337
338
339
340
341
342
343
344
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