Download PDF
ads:
Maíra Cesarino Soares
RODA DE CAPOEIRA: RITO ESPETACULAR
Universidade Federal de Minas Gerais UFMG. Escola de Belas Artes
EBA
Mestrado em Artes
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Maíra Cesarino Soares
RODA DE CAPOEIRA: RITO ESPETACULAR
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Artes da Escola de Belas Artes
da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Artes.
Área de Concentração: Arte e Tecnologia da
Imagem
Orientador: Dr. Jalver Bethônico
Belo Horizonte
Escola de Belas Artes/UFMG
2010
ads:
Ao Grupo Bantus Capoeira
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar aos meus pais, Carlos e Christina, pelo incentivo, apoio e compreensão.
Ao orientador Prof. Jalver Bethônico, por acreditar, colaborar e orientar.
Aos meus irmãos Bruno e Gustavo, pela disponibilidade.
Ao meu Mestre Pintor, que me ensinou, ensina e ensinará.
Aos camaradas do Grupo Bantus Capoeira.
Ao camarada e fografo Leandro Couri, pelas fotografias presentes neste trabalho.
Ao artista plástico Carlos Wolney Soares, pelos desenhos feitos com carinho paterno para ilustrar
esta pesquisa.
À família ―Arande Gróvore‖.
Aos amigos que estão sempre por perto, me incentivando e inspirando.
Aos colegas de estudo, professores e ao Garrocho, pelas colaborações.
Ao escritor Jaime Gouvea pela colaboração na revisão do texto.
À CAPES pela bolsa que me possibilitou maior dedicação aos estudos nestes dois anos.
RESUMO
Esta dissertação toma como objeto a capoeira e sua potencialidade cênica. Com uma
aproximação do campo da etnocenologia, o estudo aborda a capoeira e analisa alguns de seus
aspectos. Além do referencial teórico consultado, esta pesquisa também se baseou na vivência em
rodas e aulas de capoeira do Grupo Bantus Capoeira (do qual do qual a autora é integrante
mais de dez anos), na observação por três semestres da disciplina de Capoeira Angola para alunos
de Teatro da UFMG e na participação em rodas de capoeira em Belo Horizonte (MG), Salvador
(BA) e Mar Grande (BA). O estudo buscou os próprios mestres de capoeira e alguns estudiosos
da área para apresentar a definição e um breve histórico do objeto. Os aspectos cênicos estudados
na capoeira foram o jogo, o ritual, o espetáculo, a performance e a improvisação. Para analisar o
ritual e o jogo da capoeira utilizou-se como referencial Terrin (2004) e Huizinga (2007). A roda
de capoeira foi estudada como um ritual e também como um espetáculo. Os elementos da
capoeira que compõem o jogo cênico, suas características espetaculares e performáticas e seus
comportamentos rituais foram analisados. Para isso, passou-se pelos conceitos de
espetacularidade, teatralidade propostos por Bião (1998, 2007a e 2007b) e performance
discutidos por Cohen (2002) e Schechnner (2003). A improvisaçãonica e seus princípios
apresentados por Johnstone (2000) e Muniz (2006a e 2006b) serviram de referência para o estudo
da improvisação no jogo da capoeira. Por fim, este estudo apresenta as possibilidades de
liberdade de expressão do corpo por meio da capoeira, usando como referencial o conceito de
alegria como aumento de potência.
Palavras-chave: Capoeira, ritual, espetáculo, jogo, improvisação, performance.
ABSTRACT
This dissertation takes capoeira and its scenic potentiality as the object of study. With an
approximation to the field of etnocenologia, this study has addressed the object capoeira and also
analyzed some of its aspects. Besides the theoretical reference used, this research has also been
based on the experience within capoeira rodas and lessons from Grupo Bantus Capoeira (the
author has been a member of this group for over ten years), the observation of the discipline
Capoeira Angola to UFMG Drama students during three semesters and the participation in
capoeira rodas in Belo Horizonte (MG), Salvador (BA) and Mar Grande (BA). This study has
also had the support of capoeira masters themselves, as well as some experts, to introduce the
definition and a brief historic/background of the object. The main scenic aspects taken into
account in capoeira were the game, the ritual, the spectacle, the performance and the
improvisation. In order to analyze the ritual and the game of capoeira, Terrin (2004) and
Huizinga (2007) have been used as a theoretical source. The capoeira roda has been studied as a
ritual and also as a spectacle. The capoeira elements which are part of the scenic game, their
spectacular and performing characteristics and their ritual behaviours have been analyzed. In
order to do that, the concepts of spectacularity, theatricality proposed by Bião (1998, 2007a e
2007b) and performance discussed by Cohen (2002) e Schechnner (2003) have been
considered. The scenic improvisation, as well as its principles presented by Johnstone (2000)
and Muniz (2006a e 2006b) were reference to the study of improvisation in the game of
capoeira. Finally, this study presents the possibilities regarding freedom of body expression
through capoeira, by using as a reference the concept of joy as a power enhancer.
Keywords: capoeira, ritual, spectacle, game, improvisation, performance.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Desenho 1 de Carlos Wolney, 2010. ......................................................................... 10
Figura 2 Desenho 2 de Carlos Wolney, 2010. ......................................................................... 17
Figura 3 Desenho 3 de Carlos Wolney, 2010. ......................................................................... 25
Figura 4 Desenho de Caribé (CARYBÉ, 1955, p.6) ................................................................ 28
Figura 5 À esquerda - roda em local aberto, na praça da Savassi em BH e, à direita - roda dentro
da academia do Grupo Bantus Capoeira. (Fotos: Leandro Couri, 2008 e 2009) .................. 34
Figura 6 - Roda de Capoeira Angola. Foto: Leandro Couri, 2008. ............................................. 34
Figura 7 - Desenho e texto de Cari (CARYBÉ, 1955, p.4) ..................................................... 36
Figura 8: Saudação ao ―pé do berimbau‖. Foto: Leandro Couri, 2005. ....................................... 37
Figura 9: Troca de corda. Foto: Leandro Couri, 2009. ............................................................... 41
Figura 10: Mestre Jaime de Mar Grande (BA) e Mestre Pintor (BH). Foto: Leandro Couri, 2005.
.......................................................................................................................................... 44
Figura 11: Mestre Pintor (BH) e Mestre João Pequeno (BA). Foto: Acervo Bantus Capoeira,
1997. ................................................................................................................................. 45
Figura 12: Desenho de Caribé (CARYBÉ, 1955, p.18) .............................................................. 45
Figura 13: Desenho de Caribé (CARYBÉ, 1955, p.23) .............................................................. 47
Figura 14: Cumprimento entre capoeiristas. Foto: Leandro Couri, 2008. ................................... 49
Figura 15: Jogo solto com plasticidade nos movimentos. Foto: Leandro Couri, 2008. ............... 52
Figura 16 Desenho 4 de Carlos Wolney, 2010. ....................................................................... 53
Figura 17: Roda de capoeira na Praça da Savassi, Belo Horizonte. Foto: Leandro Couri, 2005. . 56
Figura 18: Olhar atento do capoeirista. Foto: Leandro Couri, 2008. ........................................... 56
Figura 19: Roda de capoeira em Casa Branca (Brumadinho, MG). Foto: Maíra Cesarino, 2009. 60
Figura 20: Um capoeirista que salta, surpreende seu parceiro com um movimento inesperado.
Foto: Leandro Couri, 2008. ............................................................................................... 61
Figura 21 Desenho 5 de Carlos Wolney, 2010. ....................................................................... 68
Figura 22: Desenho de Caribé (CARYBÉ, 1955, p.25). ............................................................. 72
Figura 23: Salto mortal na roda de capoeira. Foto: Leandro Couri, 2008. .................................. 74
Figura 24: Olhar atento na roda, escuta aberta e pronto para rebote. Foto: Leandro Couri, 2008. 74
Figura 25 Desenho 6 de Carlos Wolney, 2010. ....................................................................... 79
Figura 26: Mestre Lua Rasta. Foto: Leandro Couri, 2008. ......................................................... 80
Figura 27: Roda de capoeira encontro alegre entre os capoeiristas. Foto: Leandro Couri, 1999.
.......................................................................................................................................... 82
Figura 28: Desenho de Caribé (CARYBÉ, 1955, p.11). ............................................................. 84
Figura 29: Mestre Pintor e berimbau. Foto: Leandro Couri, 2005. ............................................. 86
Figura 30: Improvisação na roda de capoeira. Foto: Leandro Couri, 2005. ................................ 87
Figura 31: Desenho de Caribé (CARYBÉ, 1955, p. 16). ............................................................ 89
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11
1 A CAPOEIRA E SUAS MANHAS ........................................................................................ 18
Mandinga e Malícia .............................................................................................................. 21
2. RITO E JOGO NA CAPOEIRA ............................................................................................ 26
2.1. Comportamentos rituais da roda de capoeira ................................................................... 31
2.1.1. A formação da roda ................................................................................................. 31
2.1.2. Jogo de capoeira ..................................................................................................... 42
2.1.3. Jogo de condutas ..................................................................................................... 48
3. RITO ESPETACULAR ........................................................................................................ 54
Performance na roda de capoeira .......................................................................................... 58
4. A IMPROVISAÇÃO NA RODA DA CAPOEIRA ............................................................... 69
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 80
5.1. A alegria na capoeira ...................................................................................................... 80
5.2. Conclusão ...................................................................................................................... 84
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 90
10
Figura 1 Desenho 1 de Carlos Wolney, 2010.
11
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, a capoeira é analisada sob os olhar das artes cênicas, por uma atriz,
pesquisadora e praticante de capoeira. A capoeira é uma prática cultural espetacular
1
que mistura
dança, jogo, brincadeira, música, ritual e luta. Alguns aspectos da capoeira são elementos
potentes das artes cênicas e serão estudados nesta pesquisa.
O estudo aproxima-se do eixo de investigação utilizado pela etnocenologia. De acordo
com Pavis (2003), a etnocenologia é o estudo das práticas e dos comportamentos humanos
espetaculares e organizados. Esse campo de estudo traz uma abordagem pluridisciplinar que
associa profissionais, pesquisadores e praticantes de uma prática espetacular. Para Khaznadar (in
Bião, 1998), a etnocenologia estuda, documenta e analisa expressões espetaculares dos povos que
são destinadas a um público. Tal público pode ser passivo (apenas observador) ou ativo
(praticante). Para ele, ―as formas espetaculares que entram no campo da etnocenologia o
aquelas que são próprias de um povo, que são a expressão particular de sua cultura, que não
pertencem ao sistema codificado do teatro tradicional.‖ (1998, p. 58). São práticas reconhecidas
ou adotadas pela sociedade à qual são destinadas, são patrimônios vivos da cultura e fazem parte
das suas expressões espetaculares.
Em 2008, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, registrou a
capoeira como Patrimônio Imaterial Brasileiro. O ocio dos mestres de capoeira foi registrado no
Livro de Saberes e a roda de capoeira no Livro de Formas de Expressão. A capoeira se enquadra
no campo de estudo da etnocenologia. Trata-se de uma manifestação popular criada no Brasil,
com elementos da cultura africana trazidos com os negros que vieram trabalhar como escravos. O
público da capoeira pode ser seus próprios praticantes como também quem a observa no caso
de uma roda de capoeira realizada em local blico. Pretende-se aqui, estudar a capoeira como
uma manifestação artística cênica, seja ela, ritual, espetáculo ou performance. Outros autores já
estudaram algumas aproximações entre a capoeira e as artes cênicas. Breda (1999) defende o uso
1
Para Patrice Pavis (2003), as práticas culturais compreendem ―a cultura popular, as cerimônias e os rituais, os
comportamentos cotidianos nas mais diversas circunstâncias, as artes dos espetáculos; elas não se limitam às artes da
cena‖ (2003p. 263).
12
da capoeira como instrumento de preparação corporal do ator nas escolas de teatro do Brasil na
sua dissertação de mestrado, Elementos de capoeira na preparação corporal do ator. Lima
(2002) elaborou uma dissertação e, mais tarde, um livro com o título Capoeira Angola como
treinamento do ator na Escola de Dança e Teatro da Universidade Federal da Bahia. Santana
(2003) propõe a utilização da capoeira como uma técnica a ser utilizada na dança em sua
dissertação Capoeira Angola e técnica da dança: análise de movimento e descrição de princípios
para treinamento técnico-corporal de dançarinos.
Alguns artigos e textos consultados para a realização desta pesquisa trazem aproximações
de estudos sobre a capoeira com a performance, com o ritual e com espetáculos. Passos (2008)
desenvolve pesquisa de doutorado sobre capoeira e performance no mundo globalizado, com uma
abordagem dos estudos da performance para o jogo da capoeira. Alves (2003) desenvolveu um
artigo pela Universidade Estadual de Campinas, SP, sobre a capoeira como um campo de saberes
ligado à sensibilidade, intitulado Uma conquista poética na dança contemporânea através da
capoeira. Valle (2008) escreveu o artigo Facetas: um diálogo corporal da bailarina com a
capoeira que investiga como aplicar a análise do movimento de Laban na capoeira e transformá-
la em dança. Simões (2008) apresenta um artigo analisando a performance ritual da roda de
capoeira na escola do mestre João Pequeno de Pastinha. Peled (2008) estuda os estado de
performance no jogo e dos jogadores na roda de capoeira em seu artigo Estados de performance
na capoeira. Maia (2007) e Ferracini (2007) analisam a roda de capoeira como um espetáculo na
cidade de Goiás, GO, no artigo O espetáculo na praça: a roda de capoeira angola. Abid (2004)
discute a ritualidade e a função do ritual da capoeira em sua tese de doutorado Capoeira angola:
cultura popular o jogo dos saberes na roda. Esses são apenas alguns exemplos de estudos que
abrangem o campo da capoeira em aproximação ao campo das artes cênicas.
Ao curso de Teatro da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desde o início de
2007 até o primeiro semestre de 2010, esteve ligado o Núcleo de Pesquisa da Capoeira Angola.
Esse grupo praticava capoeira angola, estimulava a troca de ideias entre os participantes e era
aberto à comunidade acadêmica que se interessasse em participar das aulas e discussões. No dia
cinco de dezembro de 2007, o grupo realizou uma mesa de debates sobre o tema ―A Capoeira
Angola e as Artes Cênicas‖. A professora Bia Braga, da UFMG, foi convidada especial do
evento. Ela discorreu sobre a sua experiência como assistente de direção do espetáculo ―Besouro
Cordão de Ouro‖, de João das Neves, em 2007. Para ela, o repertório de movimentos da capoeira
13
favoreceu o trabalho dos atores daquele elenco. Ela acredita que o ator pode fazer um rico
trabalho improvisando em cima do repertório de movimentos da capoeira. A professora define o
teatro e a capoeira como encontro.
Esteve presente também a esse debate o professor e diretor de teatro Luiz Carlos
Garrocho, que já desenvolveu trabalhos unindo a capoeira ao teatro. Ele foi responsável pela
inclusão de aulas de capoeira na escola de teatro do Centro de Formação Artística de Belo
Horizonte no período em que trabalhava naquela instituição. Para Garrocho, o ator tem que
―saber de corpo‖ e a capoeira o auxilia nesse conhecimento e nos exercícios de improvisação. Ele
a capoeira como um jogo de perguntas e respostas, uma conversa física. A capoeira, além de
dar uma base, um saber do corpo, é vista como uma linguagem (Informação verbal)
2
. Para o
diretor, a capoeira ensina o ator a ―ficar na escuta‖, em um ―plano de imanência‖.
Desde o segundo semestre de 2008 até o segundo semestre de 2009, no curso de
graduação em Teatro da UFMG, foi oferecida a disciplina eletiva Capoeira Angola para
formação do ator‖, ministrada pelo professor doutor Jalver Bethônico, orientador desta pesquisa.
Participei como aluna e monitora da disciplina no segundo semestre de 2008 e no primeiro
semestre de 2009. No segundo semestre de 2009, na disciplina de “Técnicas corporais I”,
também do curso de Teatro da UFMG, oferecida pela professora nica Ribeiro, apresentei um
módulo de capoeira para que os alunos de Teatro pudessem utilizar movimentos de capoeira
como repertório de criação cênica.
Como capoeirista desde 1998, integrante do Grupo Bantus Capoeira e atriz profissional,
venho percebendo que essas duas áreas têmrios elementos em comum. Comecei a tentar
aplicar essa combinação capoeira/teatro no meu próprio trabalho, levando para meus exercícios
teatrais elementos que adquiri com os treinos de capoeira como a noção sensorial do espaço, a
flexibilidade e a força física.
Existe uma aproximação entre os conceitos de práticas culturais, manifestações culturais e
performance. A capoeira pode ser estudada por meio de qualquer um deles. Cada um permite um
diferente vislumbre.
A partir da conceituação de performance proposta por Cohen (2002), podemos enquadrar
a roda de capoeira como uma expressão cênica performática. Onde os jogadores são os atuantes,
2
Depoimento obtido durante palestra realizada em 5/12/2007.
14
o texto está desenvolvido no jogo dos capoeiristas, na relação da música com os corpos e em
outros elementos presentes na roda, e o público está representado por quem está assistindo a
atividade. O espectador pode tornar-se atuante, entrando na roda e realizando um jogo. Ou pode
participar cantando ou tocando algum instrumento musical que componha a bateria. Outras
maneiras de se entender a performance são apontados por Schechner (2003). Uma parte deste
estudo analisa a capoeira como performance seguindo alguns conceitos indicados por Schechner,
como vida cotidiana e restauração do comportamento.
Esta pesquisa busca conhecer os aspectos espetaculares, ritualísticos e performáticos da
capoeira. Para isso, utilizou-se também como referência os conceitos apresentados por Veiga
(2008), que discute temas como ritual, espetáculo, performance e corpos em situação de risco
físico.
Alguns aspectos da capoeira podem ser aproximados da improvisação cênica. Este estudo
traz elementos de estudo da técnica da improvisação (Muniz, 2006a 2006b; Johnstone, 2000) que
são analisados e aplicados no estudo da roda de capoeira. As características lúdicas da capoeira,
como a mandinga, a aproxima do universo teatral. É possível fazer conexões entre jogo e
improvisação na roda de capoeira, pois a relação entre os capoeiristas é semelhante à conexão
estabelecida entre os atores nos momentos de improvisação nica. Ainda sobre a relação de
improviso na roda de capoeira, este estudo apresenta as possibilidades de liberdade de expressão
do corpo por meio da capoeira usando como referencial o conceito de alegria (Fuganti, 2007;
Lins, 2008; Noronha, 2008) como aumento de potência.
Este estudo também aponta elementos da capoeira que contribuam para a preparação do
ator. A capoeira trabalha e fortalece uma quantidade abrangente de músculos, deve-se usar o
corpo todo durante sua prática o que enriquece a preparação corporal do ator. A percepção
espacial é fortalecida, uma vez que, quando está jogando, o capoeirista deve estar atento à sua
movimentação, à do seu parceiro e aos outros integrantes que estão a observá-lo. A percepção
musical é ampliada porque o capoeirista deve ficar atento à música cantada e tocada. O jogador
de capoeira tem que lidar com diferentes situações, o que favorece sua capacidade de
improvisação. O capoeirista deve tocar instrumentos percussivos pandeiro, atabaque, berimbau,
agogô e reco-reco e saber cantar ao mesmo tempo, isso desenvolve noção tmica e
coordenação motora.
15
Por meio do estudo de campo foi realizada uma investigação empírica da capoeira. Esse
todo, segundo Gil (1999), por ser uma técnica descritiva do objeto em questão, permite a
ampliação do conhecimento da capoeira na dimensão qualitativa e, com isso, revela aspectos
ainda não percebidos e identificados na bibliografia consultada.
O trabalho do grupo de pesquisa em Capoeira Angola e alunos da disciplina Capoeira
Angola para formação do atorna Escola de Belas Artes da UFMG foram observados desde o
início do segundo semestre de 2008 até o fim de 2009. A participação e observação do trabalho
do grupo ―Bantus Capoeira‖, do Mestre Pintor, em Belo Horizonte, do qual sou integrante
mais de 10 anos, também contribui para a coleta de dados desta pesquisa.
Aqui,o objetivo principal é analisar a capoeira como manifestação cultural, ritual,
espetáculo, performance, jogo e improvisação cênica. Além disso, este estudo também visa
caracterizar elementos da capoeira que compõem um jogo cênico, estudar os elementos
espetaculares e performáticos da capoeira e apontar os comportamentos rituais dessa
manifestação cultural.
O primeiro capítulo da pesquisa apresenta o conceito de capoeira com um breve histórico.
Foram consultados pesquisadores, historiadores e capoeiristas que escreveram sobre o assunto
(Abreu, 1989; Capoeira, 2002, 1985, 1981; Cascudo, 1962; Pequeno, 2000; Rego, 1968; Santos,
1991 e Sodré, 2002). uma parte deste capítulo dedicada ao estudo de uma característica da
capoeira a mandinga. Esse conceito será também discutido ao longo da pesquisa, quando serão
apresentadas aproximações entre a capoeira e o universo cênico e rituastico.
No segundo capítulo, O Jogo e o Ritual na Capoeira, os conceitos de rito, ritual e jogo
são apresentados. Para falar de rito a referência maior foi baseada nas ideias de Terrin (2004) em
seu livro O Rito. Antropologia e fenomenologia da ritualidade. Para a definição de jogo, buscou-
se referencia em Homo Ludens de Huizinga (2007). Ainda nesse capítulo, é feita uma descrão
do jogo da capoeira com seus elementos considerados ritualísticos.
No terceiro capítulo, Rito espetacular, foi traçada uma diferença entre ritual e espetáculo.
Essa discussão é baseada nos conceitos apresentados por Veiga (2008) no livro Ritual, risco e
arte circense. Alguns conceitos sobre etnocenologia, espetacularidade, teatralidade e estado de
corpo também são abordados. Para tanto, foram consultados livros e textos sobre etnocenologia,
principalmente artigos escritos por Bião (1998, 2007a e 2007b). Passou-se também pelo conceito
16
de performance, para o que contribuíram os conceitos de performance em Cohen (2002),
Schechner (2003),Terrin (2004) e Veiga (2008).
O capítulo quatro Improvisação na roda de capoeira é baseado nos conceitos de
Johnstone (2000) em Impro: improvisación y el teatro. Outro material que foi usado como
referência foram as aulas da disciplina História, Teoria e Prática da Improvisação Teatral e o
artigo da professora Muniz (2006a e 2006b).
Nas Considerações finais foi desenvolvido um pequeno trecho sobre a liberdade dos
corpos na roda de capoeira com base em experiências pessoais e observação de rodas de capoeira
e a partir da leitura de Deleuze e Guatarri (1995a 1995b), Lins (2008), Noronha (2008) e de aulas
ministradas por Fuganti (2007). Na conclusão, as principais ideias de cada capítulo são
comentadas. Por fim, estão as referências bibliográficas consultadas.
17
Figura 2 Desenho 2 de Carlos Wolney, 2010.
18
1 A CAPOEIRA E SUAS MANHAS
Cascudo (1962) define a capoeira como um jogo esportivo nascido com os escravos negros
trazidos da África.
Capoeira Jogo atlético de origem negra, ou introduzido no Brasil pelos escravos bantos
de Angola [...]. Desde prinpios do séc. XIX foi reprimido pela polícia e possui devotos
e admiradores, de todas as classes [...]. O capoeira luta com adversários, exercitando-se
amigavelmente, ao som de cantigas e instrumentos de percussão, berimbau, ganzá,
pandeiro, marcando o aceleramento do jogo o ritmo dessa colaboração musical (1962,
p.181).
Os movimentos de capoeira o golpes e defesas que parecem passos de dança. A
movimentação básica do jogo se por meio da ginga, movimento contínuo e balançado em que
o jogador transfere o peso de uma perna para a outra passando pelo centro. O jogo é uma
sequência de movimentos fluidos, em que um propõe (ataca) e o outro responde (defende). A
movimentação também é enriquecida com acrobacias e molejo no corpo dos capoeiras
3
.
A palavra capoeira é polissêmica. dicionários que a definem como mato cortado, outros
dizem que é uma espécie de ave típica da região do pantanal; também é conhecida como cesto
usado para carregar aves. Rego cita a definão de Alberto Bessa para quem a capoeira é ―jogo de
os, pés e cabeça, praticado por vadios de baixa esfera (gatuno)‖ (BESSA apud REGO, 1968,
p.26).
Lima (2002) ressalta a multiplicidade de aspectos da capoeira. Para essa autora, a capoeira é
um conjunto de interlocuções não verbais e verbais, em que a brincadeira e o ritual se entremeiam
e enriquecem a forma final. A capoeira é um ―misto de brasilidade e africanidade, bailado e luta,
música e performance instrumental, teatralidade e realidade, grande capacidade de envolver e
atrair público e participante.(2002, p. 80).
A origem da capoeira é um tema incerto na nossa história. Grande parte das fontes
pesquisadas acredita na hipótese de que a capoeira seja brasileira, desenvolvida por escravos
africanos trazidos para o Brasil. Como muitos documentos que relatavam fatos históricos
3
O termo capoeira pode ser aplicado aos capoeiristas. Muitos praticantes de capoeira se dizem ―capoeiras‖, ou seja,
o praticante de capoeira é capoeira ou capoeirista.
19
relacionados à escravidão foram queimados pelo então Ministro da Fazenda, Rui Barbosa, em
1890, no governo de Deodoro da Fonseca, as fontes de pesquisa esgotam-se nos relatos falados e
transmitidos ao longo dos anos.
No caso da capoeira, tudo leva a crer que seja uma invenção dos africanos no Brasil,
desenvolvida por seus descendentes afro-brasileiros, tendo em vista uma série de fatores
em documentos escritos e sobretudo no convívio e diálogo constante com capoeiras
atuais e antigos que ainda vivem na Bahia, embora, em sua maioria, não pratiquem mais
capoeira devido à idade avançada . (REGO, 1968, p. 31).
Segundo pesquisa realizada por Rego, muitos dos escravos trazidos para o Brasil, vieram
de Angola. E, os negros de Angola eram ―imaginosos e férteis em recursos e manhas. Tinham
mania por festa, pelo reluzente e o ornamental.‖ (1968, p. 31).
Mestre João Pequeno, nascido em 1919, é o mestre de Capoeira Angola mais antigo e
vivo residente no Brasil e foi discípulo de Mestre Pastinha, Vicente Ferreira Pastinha (1889-
1981), um dos mestres mais importantes de Capoeira Angola. João Pequeno diz que seu mestre,
quando esteve na África, retornou com um quadro com a imagem de dois homens fazendo
movimentos similares aos da capoeira, mas tratava-se de uma dança passo da zebra.
Seu Pastinha me contava que se tornou com o nome da capoeira aqui no Brasil, porque
capoeira, aqui no Brasil é mato e o mato era onde eles iam treinar capoeira. Os negros
fugiam para o mato e lá treinavam capoeira e lutavam com os capitães do mato que eram
os vigias, eles olhavam o mato e procurava pegar os negros fugitivos e os negros se
defendiam com a luta da capoeira. (PEQUENO, 2000, p. 30).
4
Mestre João Pequeno conta que alguns africanos vieram para o Brasil sabendo jogar a
capoeira, mas o jogo não tinha esse nome. Ele conta que seu mestre, Pastinha, aprendeu capoeira
com um negro africano e que Besouro (1897-1924), outro importante capoeira, aprendera com
seus avós, também africanos. João Pequeno acredita que o nome veio do local onde eles
treinavam.
Naturalmente isso é um raciocínio que a gente faz, eles chamarem outros companheiros
para irem treinar no mato, vamos treinar na capoeira, o nome da luta ficou sendo este. O
sentido da dança foi transformado para a luta porque servia para eles se defenderem e os
4
Depoimento colhido por uma aluna do Mestre João Pequeno no livro organizado e transcrito por seu aluno, Luiz
Augusto Normanha Lima in PEQUENO, João. Mestre João Pequeno: uma vida de capoeira. São Paulo: Luiz
Augusto Normanha Lima, 2000.
20
que não conheciam a capoeira temiam os golpes desta dança e proibiam deles fazerem a
dança. (PEQUENO, 2000, p. 30).
Para Mestre Cobrinha Verde, Rafael Alves Fraa, (191? 1983), discípulo de Besouro, a
capoeira é brasileira. ―A capoeira angola é a luta do mundo constrda pelos africanos. Na África
nunca teve capoeira [...]. A capoeira foi praticada pelos africanos que vieram acorrentados pra
trabalharem nos engenhos. A capoeira nasceu dentro de Santo Amaro e Cachoeira, no Brasil.‖
Cobrinha Verde acredita que a capoeira se desenvolveu a partir de uma dança africana. Ele conta
que a dança batuque praticada pelos africanos tem vários elementos em comum com a capoeira
existente no Brasil. Na África eles usavam uma dança denominada de batuque. Essa dança,
batuque, tinha esporte como a capoeira tem. Dessa dança é que foi tirada a capoeira [...]. Então
foi estudando a curiosidade e aumentando os golpes.‖ (SANTOS, 1991, p. 20)
5
.
Mestre Cobrinha Verde tinha uma visão da capoeira como um jogo original por não
apresentar disputa, trata-se de um jogo em que não há vencedores e nem perdedores. O
capoeirista joga com o outro, e não contra o outro.
Castro (2008) faz um estudo em que levanta diversos mitos que explicariam o surgimento
da capoeira. Uma das hiteses que apresenta é a de que capoeira seria o lugar de ―mato-ralo
para onde os escravos fugiam para praticar essa luta. Outra versão é a de que a capoeira teve
origem nas áreas portuárias onde os escravos carregavam na cabeça grandes cestos chamados
capoeira. Nesses cestos, os escravos levavam galinhas ao mercado, lugar em que aconteciam
algumas lutas entre os escravos, que passou a ser chamada de capoeira. Outra variante para o
surgimento da capoeira, seria a partir da dança N‘Golo
6
―ritual de iniciação da África central
em que dois jovens disputam uma virgem dando pulos, coices e cabeçadas, movimentos que
aprenderam observando as zebras nas savanas.‖ (CASTRO, 2008, p. 37). Por fim, o autor define
essa luta como:
A capoeira, apesar de seus mitos fundadores, é um complexo que permanece como uma
memória do corpo, mantida pelos mestres, que transmitem o saber pela tradição oral. Na
roda, os cantos, toques e jogos são dimensões de uma forma de expressão de inegáveis
5
Histórias do Mestre Cobrinha Verde narradas por ele mesmo. SANTOS, Marcelino dos. Capoeira e Mandingas:
Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991.
6
Outra referência à dança N‘Golo como mito de surgimento da capoeira pode ser encontrada no artigo A dança da
zebra, Assunção e Mansa (2008). Nesse artigo, os autores destacam as semelhanças entre os desenhos e pinturas do
artista plástico Neves e Sousa feitos a partir de observação da dança N‘Golo na África e a capoeira brasileira.
21
raízes africanas que se configura como um importante bem cultural brasileiro.
(CASTRO, 2008, p. 38).
Hoje, duas modalidades de capoeira: Angola e Regional. Os maiores representantes
dessas correntes são Mestre Pastinha, Capoeira Angola e Mestre Bimba, Manoel dos Reis
Machado, (1900-1974) criador da Luta Regional Baiana.
Os toques das músicas da angola possuem, em geral, um andamento um pouco mais lento
que o dos toques do jogo da regional. A regional introduziu elementos de outras artes marciais na
luta da capoeira e criou uma dinâmica um pouco mais rápida nos golpes.
Esta pesquisa estuda a Capoeira como uma manifestação cultural, não tem como objetivo
descrever as características próprias desses dois estilos. Alinha-se como posicionamento de Rego,
que considera que a capoeira sofreu algumas modificações e não separa essas duas correntes.
A minha tese é a de que a capoeira foi inventada no Brasil, com uma série de golpes e
toques comuns a todos os que praticam e que os seus próprios inventores e descendentes,
preocupados com o seu aperfeiçoamento, modificaram-na com a introdução de novos
toques e golpes, transformando uns, extinguindo outros, associando a isso o fator tempo
que se incumbiu de arquivar no esquecimento muitos deles e também o desenvolvimento
social e econômico da comunidade onde se pratica a capoeira. (1968, p. 35).
As diferenças da capoeira fazem a sua riqueza. Para Nestor Capoeira, em seu livro Galo já
cantou (1985), diz que o bom capoeirista sabe fazer um jogo para cada toque de berimbau. Não
se prende às correntes.
É através desta diversificação, um tipo de jogo para cada toque de berimbau, que o
capoeirista tem a possibilidade de desenvolver aptidões diferentes. Num toque ele
desenvolverá mais a malícia, noutro desenvolverá mais a objetividade e rapidez, noutro
terá a oportunidade de transar mais a expressão corporal e o estilo. (1985, p. 52).
Mandinga e Malícia
“quem tem sangue quilombola não cai
finge que vai, mas não vai
22
risca seu nome no vento” (trecho de música de capoeira)
Um dos elementos de grande interesse desta pesquisa é a mandinga, ou malícia da
capoeira. Entende-se que a mandinga esteja relacionada com a qualidade cênica da presença do
capoeirista no jogo.
Sod(2002) diz que a capoeira é uma arte mandingueira do corpo, um jogo que une
passado, presente e futuro em seus movimentos. Quando um capoeirista realiza um movimento
inventado por um mestre antecessor a ele, ou quando canta uma música que faz referência ao
tempo dos negros escravos, ele está resgatando o passado e o trazendo para o momento presente.
O jogo se faz no aqui e agora presente e tem perspectiva de continuação, a roda acontece em
um momento efêmero, mas não esgota a capoeira, que tende a se repetir, a se manter vivo
naquela cultura onde ele é praticado.
Para Sodré (2002) a malícia é uma ―forma de resistência de escravos, forros e malandros,
decorre do ‗corpo mandingueiro‘, a corporalidade atravessada pelo simbolismo ambivalente dos
ritos holísticos, em que o sagrado, o lúdico e o guerreiro são fortemente imbricados.‖ (2002, p.
67). Para ele, o corpo encontra um outro tipo de totalidade no rito, produz-se uma integração
coletiva das energias. Assim, o corpo do capoeirista, por exemplo, torna-se sujeito e objeto do
rito. Sujeito, no sentido da soberania dos músculos, gestos e movimentos; objeto, no sentido da
entrega ao domínio do ritmo e da liturgia coletiva.‖ (2002, p. 86).
Pode-se analisar o jogo da capoeira como uma encenação. O jogador deve tentar
surpreender seu parceiro e a plateia, para que o jogo fique mais interessante. O mandingueiro é o
jogador que consegue tapear seu adversário, fazer um jogo que demonstre sua habilidade e
destreza, fazer um jogo manhoso, como dizem os capoeiristas.
Para Mata (2001), a mandinga, a picardia e a enganação fazem parte da essência da
própria mistura que caracteriza a definição da capoeira enquanto jogo, luta e dança.” (2001, p.
81). Faz, ainda, referência a uma definição de malícia dada por Frigeiro:
A habilidade de surpreender o adversário, de ‗fechar-se‘ e evitar ser apanhado de
surpresa pelo outro. O bom capoeirista sempre es ‗fechado‘ e sabe que a cada
movimento seu corresponderá um equivalente do adversário, exigindo que esteja
preparado até para os mais inesperados. [...] O angoleiro distrai seu rival, brinca com ele,
engana-o, mostrando-se desprotegido para ser atacado justamente onde deseja e assim,
lançar seu contra-ataque com mais eficiência. (FRIGEIRO apud MATA, 2001, p. 81).
23
jogos de capoeira em que os jogadores encenam ou simulam situações. Acontece, por
exemplo, de um capoeirista fingir que se machucou com um golpe de seu parceiro ou adversário
7
.
Assim, o jogador que supostamente feriu o outro se aproxima para ajudá-lo, quando, então, é
pego de surpresa pelo que simula o ferimento e este, dessa maneira, consegue colocar o jogo a
seu favor. casos em que os jogadores simulam portar navalhas para cortar seu parceiro. Breda
chama essa simulação de teatralidade:
A tradicional Capoeira Angola apresenta inúmeros elementos de teatralização.
Expressões faciais fingindo medo, raiva, prazer, alegria ou surpresa, gestos de mãos ou
pés distraindo a atenção do adversário ou tentando induzi-lo ao erro, mimetismos de
movimentos de animais, imitações, canções gestualizadas, manifestações de
religiosidade e até transes mediúnicos (verdadeiros ou simulados) são elementos
constitutivos do fascinante universo da Angola. (1999, p. 13).
Esse aspecto lúdico da capoeira também é observado por Mata (2001):
Entrar numa roda é incorporar um personagem, improvisar diante de uma platéia atenta à
picardia do espetáculo. O corpo relaxado balança de um lado para o outro, meio bêbado
e molenga, mas todos os sentidos estão atentos aos elementos que compõem a
apresentação. De repente, os músculos se retesam para um movimento mais brusco e
rápido, e o relaxamento lugar a uma atitude mais agressiva. Muda-se
instantaneamente de presa fácil a predador, sempre com um sorriso e ludicidade. (2001,
p.88).
Além desse significado lúdico e espetacular, Cascudo (1962) diz que mandinga significa
feitiço, despacho, mau-olhado. A mandinga na capoeira também toma uma conotação mais ligada
à malícia. Nestor Capoeira (1985) explica que a malícia ―é o que faz um capoeirista prever o que
o outro vai fazer e, por outro lado, enganá-lo fingindo que se vai fazer algo quando na verdade
está se armando uma arapuca.‖ (1985, p. 90).
Quando o capoeirista começa a jogar em um estado maior de alerta, sem demonstrar
preocupação, com o corpo leve, está começando a saber usar essa mandinga. O jogo é analisado
pelo jogador, toda a sua movimentação passa a ter um porquê. o há desgaste desnecessário. Ao
notar o jogo de um mestre com um aluno iniciante, percebemos que o mestre domina a situação
sem ao menos ter que se movimentar muito, enquanto o aluno ainda não se encontrou dentro do
jogo. Nestor Capoeira (1985) diz que este conhecimento vem para todos os capoeiristas, em
7
Usamos indistintamente os dois termos para designar o jogador que joga com o outro jogador.
24
maior ou menor grau, e explica que isso é uma consequência direta da prática do jogo. O que
enriquece esse saber, segundo ele, é o bom humor, saber jogar bem humorado, fazer um jogo
com um sorriso no rosto, não demonstrar preocupação e nem desespero se o inesperado
acontecer.
Muniz Sodré aponta a malandragem como um diferencial da capoeira em relação às lutas
orientais: a capoeira não tem que ter a ética rígida do samurai o bushido ligada a uma
sociedade altamente hierarquizada. Aqui as inversões de hierarquia é que são o cotidiano. A
malandragem, a figura do malandro, é uma coisa muito séria na compreensão da coisa
brasileira.” (SODRÉ apud CAPOEIRA, 1992, p.134).
Para João Pequeno, mandinga é o engano ou a tapeação. É quando no jogo, eu chamo o
outro para uma coisa, faço que vou fazer uma coisa e faço outra, então, o capoeirista precisa estar
sempre atento na roda de capoeira, porque a qualquer momento o outro pode tapear.
(PEQUENO, 2000, p.18).
25
Figura 3 Desenho 3 de Carlos Wolney, 2010.
26
2. RITO E JOGO NA CAPOEIRA
Para possibilitar uma via de análise do discurso da capoeira, é importante compreender o
conceito de ritual. Para isso, uma das referências consultadas foi Terrin (2004). Várias são as
possibilidades de compreensão do significado de rito. Inicialmente, o autor define rito como uma
ação realizada em determinado tempo e espaço. A ação ritual é diferente da ação da vida
ordinária, difere-se do comportamento comum. Para o autor, o ritual é a ideia geral da qual o rito
é uma estância específica. O ritual é uma abstração, a ideia do conceito de rito.
O autor diz que o rito tem duas faces correlacionadas. Tem um caráter expressivo, ligado
ao mundo místico de toda existência e, ao mesmo tempo, é concreto, vive na opacidade como
qualquer outro fato comunicativo social. O rito é um meio de comunicação. Para Terrin (2004),
todo discurso é uma forma de comportamento ritual e toda ação ritual é uma forma de linguagem
comunicativa que adquire um particular significado.
O rito tem função lúdico-expressiva, é o momento auto-expressivo daquele que participa e
vive o ritual em sua imediatez e espontaneidade, é uma dimensão expressiva do homem e da sua
realidade, explica-se a si mesmo porque explica a vida.
Entende-se rito como uma ação sagrada repetitiva, composta de uma ação/gesto e de um
mito ou palavra. A junção de uma gestualidade ou ação com o mito ou a palavra gera um ritual,
uma performance com elementos místicos e sagrados. O autor cita uma definição de Victor
Turner, em que o rito equivale ―a uma ação formal prescrita para ocasiões que vão além da rotina
quotidiana tecnológica, comportando uma referência a crenças em seres ou poderes sticos.
(TURNER apud TERRIN, 2004, p.28).
O rito pode ser visto como um elemento de estruturação e organização do mundo. O
homem é feito de ritualidade e age de acordo com esquemas, que o orientam e tornam-se suas
ações no mundo. Há ritos que se expressam de forma lúdico-simbólica, que mostram por meio de
gestos e sinais que há rios mundos possíveis e simbólicos no mundo.
Vários mundos possíveis são criados pelo rito. Segundo Geertz, o rito é uma conjunção
entre o mundo imaginado ou místico e o mundo vivido. O rito é o simbólico em ação e, como
tal, é também lúdico, o que permanece dentro e fora das funcionalidades e dos utilitarismos, não
27
por uma cumplicidade ou uma autocomplacência estética, mas porque, a partir do mundo, tende a
projetar-se para fora do mundo.‖ (GEERTZ apud TERRIN, 2004, p. 63).
Terrin explica que o rito é uma reação ao que o homem pensa da vida e do mundo; para
ele, o rito pensa através do corpo. Por meio do agir, o rito faz o mundo ser e estabelece para ele
um significado que não prescinde de coordenadas lógicas ou especulativas. O rito é entendido
pelo autor como a continuação do evento do mundo como eco recebido e reproposto pelo
homem através do seu corpo.‖ (2004, p.166).
Para Terrin, a finalidade do rito é intrínseca ao próprio rito. Ele destaca um problema que
afasta o observador da possibilidade de encontrar uma maneira de analisar o rito para e definir
sua função. Quem realiza um rito o o em perspectiva, mas o vive em plenitude, assim
como quem joga um jogo identifica-se como jogo, com suas regras, e se deixa simplesmente
transportar para um outro mundo.‖ (2004, p.179).
De acordo com Terrin, quem observa um rito, seja de dentro ou de fora, está numa
perspectiva limitada e parcial, o que impede a interpretação do rito, pois este constitui uma
vivência muito pessoal. Realizar um rito significa por em ação uma modalidade primária do
próprio ser do mundo. Não se é capaz de perceber adequadamente o próprio modo de ser ou o
próprio modo de comportar-se. O rito é um comportamento entendido como prolongamento da
própria atividade da pessoa e do grupo.(2004, p. 179).
Terrin dedica parte de seus estudos sobre rito para falar do jogo uma atividade livre, que
configura um recorte particular no tempo e no espaço, gera mundos especiais cercados de
mistério (2004).
Para discorrer sobre o jogo, a pesquisa valeu-se do livro de Huizinga (2007), que
apresenta o jogo como uma atividade que ultrapassa os limites físicos ou biológicos do homem. É
uma função que encerra um determinado sentido e implica a presença de um elemento não
material em sua essência. ―A realidade do jogo ultrapassa a esfera humana‖ (2007, p. 6).
O jogo é uma atividade intensa, que tem o poder de fascinação e a capacidade de excitar.
Para Huizinga, o jogo contém tensão, alegria e divertimento. Este último é que define a essência
do jogo.
O jogo da capoeira envolve seus participantes, é uma atividade alegre, festiva e é muito
comum ouvir dos Mestres que a capoeira deve ser jogada com sorriso no rosto. A roda é uma
atividade de lazer que garante o divertimento dos seus participantes.
28
Huizinga diz que, embora a beleza não seja atributo inseparável do jogo, ele tem a
tendência a assumir acentuados elementos estéticos. O autor indaga se então o jogo não poderia
ser incluído no donio da estética. Para ele, a vivacidade e a graça estão originalmente ligadas a
formas primitivas de jogo. ―Em suas formas mais complexas o jogo está saturado de ritmo e
harmonia, que são os mais nobres dons de percepção estética de que o homem dise. São
muitos, e bem íntimos, os laços que unem o jogo e a beleza.‖ (2007, p. 10)
A roda de capoeira possui sua própria estética que se aproxima das danças africanas,
possui elementos de luta e traços fortes da cultura brasileira como o gingado e o molejo dos
corpos, muito presente também no samba e que pode ser considerado até um diferencial do nosso
futebol. Sua beleza desperta olhares de diferentes classes sociais. Vários artistas plásticos como
Caribé, fotógrafos, por exemplo Pierre Verger, escritores como Jorge Amado, cineastas como
Nelson Pereira dos Santos com O Pagador de Promessas, poetas e compositores como Baden
Powell registram o tema da capoeira.
Figura 4 Desenho de Caribé (CARYBÉ, 1955, p.6)
Huizinga diz que o jogo é uma função da vida, não é passível de definição exata. Assim,
ele limita-se a descrever suas principais características.
29
A primeira característica apontada pelo autor (2007) é fato de o jogo ser livre, uma
atividade voluntária, ser ele próprio liberdade.
se torna uma atividade urgente na medida que o prazer por ele provocado o
transforma numa necessidade. É possível, em qualquer momento, adiar ou suspender o
jogo. Jamais é imposto pela necessidade física ou pelo dever moral, e nunca se constitui
uma tarefa, sendo sempre praticado em ―horas de ócio. Liga-se a não de obrigação e
dever apenas quando constitui uma função cultural reconhecida, como culto e no ritual.
(HUIZINGA, 2007, p. 11)
A segunda característica está relacionada ao faz de conta. O jogo não é vida real. Mesmo
nesse faz de conta, o jogo é capaz de absorver inteiramente o jogador a qualquer momento.
A terceira característica é que o jogo tem seu tempo e espaço definidos, se apresenta como
um intervalo na vida cotidiana. É uma atividade temporária, ―que tem finalidade autônoma e se
realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização‖ (2007, p. 12)
Enquanto o jogo está acontecendo tudo ―é movimento, mudança, alternância, sucessão,
associação, separação‖ (2007, p.12). O jogo apresenta a capacidade de repetição. Depois de ter
sido jogado, ele permanece ―como uma criação nova do espírito, um tesouro a ser conservado na
memória. É transmitido, torna-se tradição‖ (2007, p. 13).
O lugar onde se realiza o jogo é previamente delimitado. É um terreno sagrado em cujo
interior se respeitam determinadas regras. Huizinga afirma que todos os lugares onde acontecem
jogos são ―mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade
especial‖ (2007, p.13.).
De acordo com Terrin (2004), assim como o espaço especial do jogo, o rito acontece em
tempo diferente do habitual. O rito e também o jogo não duram indefinidamente, há uma
colocação no tempo. O rito pode ser repetido, mas tem seu tempo que deve ser respeitado. Esse
tempo é subtraído à normalidade, cria um evento, uma experiência. O rito, como o jogo, necessita
de lugares particulares, para que possa haver uma separação do espaço cotidiano, de uma
atividade normal. Esse espaço criado permite que a pessoa entre em outro mundo, com outro
contexto, o mundo possível do ritual.
8
O jogo cria uma ordem própria, específica e absoluta e essa é a sua quarta característica
apontada por Huizinga. O jogo estabelece uma ordem que não pode ser desobedecida, se isso
8
Mais adiante, neste capítulo, a delimitação do espaço e da duração da roda de capoeira serão explicados e descritos.
30
acontecer, o jogo é estragado. O autor associa essa afinidade entre ordem e jogo ao domínio da
estética. Ele ressalta que as palavras empregadas para designar os elementos do jogo são as
mesmas usadas para descrever as estruturas teatrais, plásticas e musicais: tensão, equilíbrio,
compensação, contraste, variação, solão, união, desunião. O jogo lança sobre nós um feitiço: é
‗cativante‘ e ‗fascinante‘‖ (2007, p.13).
O elemento tensão traz a incerteza ao jogo. Faz com que os jogadores se esforcem para
conseguir efetuar determinada tarefa. Huizinga diz que mesmo o jogo não pertencendo ao
domínio do bem o do mal, a tensão lhe confere um valor ético. As qualidades do jogador são
postas a prova, ―sua força e tenacidade, sua habilidade e coragem e, igualmente, suas capacidades
espirituais, sua ‗lealdade‘. Porque, apesar de seu ardente desejo de ganhar, deve sempre obedecer
às regras do jogo‖ (2007, p.14).
Terrin (2004) diz que o rito, assim como o jogo, é capaz de transgredir o real e criar um
mundo stico. Essa transposição stica do real acontece devido às regras do rito, que são a
ponte, deslocam a atenção para uma realidade que se realiza. As regras são a convenção,
possibilitam a existência do mundo provisório, têm uma função constitutiva. Se forem
transgredidas, esse mundo acaba. No caso do jogo, de acordo com Huizinga (2007), quem se
opõe às regras é o ―desmancha-prazer‖, é mais danoso ao jogo do que o trapaceiro. Quem
trapaceia finge que está no jogo, no ―círculo mágico‖, não constitui uma verdadeira ameaça à
ordem do ilurio.
Para Terrin, as regras do ritoo fixas, mas têm significados múltiplos. No jogo, há regras
que permitem uma variação indefinida das estratégias e dos movimentos, mas não tem
significado oculto.
9
Outra característica do jogo apontada por Huizinga (2007) é capacidade de os jogadores
formarem uma comunidade, que pode ou não vir a ser um clube. Os jogadores, após o fim de um
jogo têm a sensação de permanecerem juntos, mesmo estando separados.
Alguns ritos e jogos são acompanhados de uma mudança de estado de consciência. Terrin
(2004) afirma que a transformação da consciência raramente é um objeto do ritual. Ele faz uma
relação do estado alterado de consciência como conceito de fluxo, que está presente tanto no
ritual como no jogo. O autor cita Csikszentmihalyi, que define fluxo como estado em que a ação
9
As regras e comportamentos do jogo da capoeira serão analisados ainda neste capítulo, quando o ritual da roda será
descrito.
31
e a consciência se fundem. Quem age está consciente das suas ações, mas não da consciência da
mesma. A concentração de quem está jogando ou participando de um ritual está focada naquele
evento, que é um aspecto limitado da realidade; isso tem como efeito excluir a atenção de todas
as outras coisas, exceto da experiência central. Terrin também cita Turner ao dizer que o termo
fluxo denota a sensação hostica presente quando agimos num estado de envolvimento total‖
(TURNER apud TERRIN, 2004, p.185).
De acordo com Terrin (2004), o rito e o jogo podem levar a uma mudança e a uma
identificação da consciência, mas não é necessário que haja uma indução a um estado emocional
específico. O rito é nero performático e lúdico sem referências, é um evento, acontece tendo
como base o aqui e o agora. O autor não objetivos e nem finalidades particulares do ritual. A
concretude do rito está nele mesmo. O lúdico não é nem verdadeiro nem falso, é real. Huizinga
diz que o rito, ou ato ritual, representa um acontecimento cósmico. ―O ritual produz um efeito
que mais do que figurativamente mostrado, é realmente produzido na ação. Portanto, a função do
rito [...] leva a uma verdadeira participação no próprio ato sagrado.‖ (2007, p.18).
Para Huizinga (2007), a função do jogo pode ser definida por dois aspectos (que podem
também ser apontados na capoeira), uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma
coisa. Estas funções podem também, por vezes, confundir-se, de tal modo que o jogo passe a
‗representar‘ uma luta, ou, então se torne uma luta para melhor representação de alguma coisa.‖
(2007, p. 16-17).
2.1. Comportamentos rituais da roda de capoeira
Eu comparo a capoeira com o globo terrestre que você usa a terra como agricultor
trabalhando nela, você tira dela a alimentação, tudo o que você quiser.(Mestre João Pequeno,
2000, p.19).
2.1.1. A formação da roda
32
Torna-se importante, aqui, fazer uma breve exposição da estrutura de uma roda de
capoeira. Em seguida, usando como referência os conceitos de rito e de jogo apresentados
anteriormente, alguns aspectos rituasticos da roda de capoeira são comentados e é feita uma
descrição do jogo da capoeira. Terrin (2004) diz que existem três modelos de estudo que
possibilitam a definição do rito. 1- O modelo operativo e funcional, que é próprio do antropólogo:
trata-se de descobrir e registrar as funções e movimentos que em geral estão ocultos, o
imediatamente perceptíveis aos participantes do ritual. 2- O modelo consciente que estuda o ritual
tal como é descrito por aquele que dele participa e o vive pessoalmente. 3- O modelo formal
estuda as ações do ritual segundo as regras da comunicação, sem preocupação com o seu
conteúdo. A análise é feita pela autora, participante do ritual, praticante de capoeira e descrita a
partir de experiências pessoais e de leituras específicas sobre o assunto. Portanto, usa-se o
modelo consciente de definição do rito proposto por Terrin (2004).
A capoeira é uma manifestação popular cultural brasileira que reúne aspectos de luta,
jogo, dança, ritual, espetáculo, esporte e brincadeira. As regras que estabelecem o funcionamento
do comportamento ritual da capoeira variam de grupo/escola para grupo, de acordo com os
fundamentos criados ou reproduzidos pelos respectivos Mestres dessas escolas. Tais
fundamentos, também chamados pelos próprios capoeiristas de tradição, são transmitidos
oralmente de Mestre para aluno. Existem dois estilos de capoeira: Angola e Regional. Em cada
um desses estilos diferentes correntes que seguem determinados fundamentos ou tradições
criadas por Mestres que também seguiram ensinamentos de outros Mestres.
Sempre que houver refencia à capoeira, seja Angola ou Regional falarei com base nos
ensinamentos recebidos do Mestre Pintor, do grupo Bantus Capoeira, de Belo Horizonte.
Antes de caracterizar o ritual e o jogo da capoeira, um breve resumo das características do
jogo, explicadas por Huizinga (2007) será citado para ficar o mais claro possível as associações
da capoeira com jogo e ritual. O jogo pode ser considerado
Uma atividade livre, conscientemente tomada como ―não séria‖ e exterior à vida
habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total.
[...] praticada dentro dos limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa
ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-
se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de
disfarces ou outros semelhantes. (HUIZINGA, 2007, p.16)
33
O ritual da capoeira acontece em um espaço específico um círculo chamado pelos
praticantes de roda de capoeira. A dimensão da roda varia um pouco, mas, em geral, tem o raio
correspondente ao tamanho de um adulto com um dos braços aberto, estendido lateralmente, na
altura do ombro, paralelo ao chão.
O círculo é um símbolo de interação, a roda de capoeira proporciona total integração entre
seus participantes. De acordo com Jaffé (1964, p. 240), a forma redonda simboliza o self,
expressa a totalidade da psique em todos os seus aspectos, incluindo o relacionamento entre o
homem e a natureza.
A formação da roda é de grande importância para gerar e concentrar o fluxo de energia
dentro do rculo. Durante a execução do jogo, os jogadores são contaminados pelo entusiasmo
de quem canta, do coro, dos instrumentos e de quem os observa a jogar.
A roda pode acontecer em lugares fechados, como academias ou escolas, ou a céu aberto,
como praças e ruas. Os participantes da roda são os jogadores, os tocadores de instrumentos e o
coro formado por quem espera para jogar e pela plateia que assiste. Essas funções são
alternadas e um participante pode passar por mais de uma função. Os instrumentos musicais
presentes na roda de capoeira variam também de grupo para grupo. Em geral, os instrumentos são
berimbau, pandeiro, reco-reco, agogô e atabaque. Na capoeira, costuma-se chamar esse conjunto
de instrumentos de bateria ou orquestra.
34
Figura 5 À esquerda - roda em local aberto, na praça da Savassi em BH e, à direita - roda dentro da
academia do Grupo Bantus Capoeira. (Fotos: Leandro Couri, 2008 e 2009)
A estrutura da roda completa de Capoeira Angola é formada pela ―bateria‖, que se
posiciona assentada e é composta por três berimbaus um grave, chamado Gunga, um médio,
também conhecido como Roseira, e um agudo, chamado Viola , dois pandeiros, um reco-reco,
um agogô e um atabaque. As pessoas que não estão tocando os instrumentos ficam assentadas,
formando um círculo. A imagem a seguir mostra a formação de uma roda de Capoeira Angola
realizada pelo grupo Bantus Capoeira no Centro Cultural da UFMG, em Belo Horizonte.
Figura 6 - Roda de Capoeira Angola. Foto: Leandro Couri, 2008.
O instrumento que comanda a roda é o berimbau Gunga, e pode-se fazer uma analogia
comparando-o ao maestro de uma orquestra. Geralmente ele é tocado pelo Mestre, por um
professor ou por um aluno com mais experiência. Esse berimbau dita o andamento, guia a
pulsação da roda. Podem-se entender os toques de capoeira como ritmos, por exemplo, São Bento
Grande, São Bento Pequeno etc. O toque escolhido pelo tocador do Gunga define os tipos de
toque que serão executados pelos outros berimbaus e influencia ou até mesmo determina o estilo
de jogo dos capoeiristas: pode ser um jogo mais manhoso, ligeiro, com um jogador mais próximo
ou mais afastado do adversário. Os pandeiros, reco-reco, agogô e atabaque acompanham o
35
andamento proposto pelo Gunga, cada um com seu respectivo ritmo. A ordem de entrada dos
instrumentos é a seguinte: Gunga, Médio, Viola, pandeiros, cantador, reco-reco, agogô, coro e
atabaque.
36
Figura 7 - Desenho e texto de Caribé (CARYBÉ, 1955, p.4)
Outro elemento musical que come a roda é a cantiga, cantada por um ―cantador‖ e
respondida pelo coro. Todos os participantes da roda comem o coro. Existe a tradição de a
primeira música da roda ser cantada pelo Mestre, ou por quem está tocando o Gunga, ou por um
capoeirista que está se preparando para jogar. Tanto na abertura da roda como no seu
encerramento, o cantador grita Iê!, a expressão que invoca energia para a roda. A música de
abertura de uma roda de capoeira é uma ladainha. Na capoeira, a ladainha é uma música que
conta uma história, ou uma lenda, e pode também ser um canto usado como uma prece, com
caráter de devoção a algum santo ou invocar sua proteção. Existem outros tipos de músicas
cantadas durante uma roda, como chulas, quadras e corridos. Tais músicas não serão analisadas
em profundidade nesta pesquisa. Mas vale lembrar que as letras cantadas na roda fazem menção a
personagens importantes, ou a fatos marcantes que fazem parte da história da capoeira. As
cantigas também podem ser cantadas para dar um recado a um jogador, comentar alguma coisa
que esteja acontecendo no jogo, para saudar alguém, como despedida de algum jogador que
esteja de mudança etc. A música é um importante instrumento condutor de energia, ela é
mantenedora do ―fluxo‖ da roda, da pulsação do ritual.
Durante o canto da ladainha não jogo. Dois jogadores se posicionam agachados junto
ao pé‖ do Gunga, preparando-se para jogar e ouvindo o canto. Nesse momento, o atabaque ainda
o está sendo tocado, apenas os outros instrumentos. Todos prestam atenção à música. A
ladainha termina e logo o cantador puxa uma chula. O coro começa a responder ao cantar do
cantador e o atabaque inicia sua marcação. Após a chula, canta-se um corrido e então os
jogadores podem jogar. Quem está tocando o berimbau Gunga inclina um pouco o instrumento
para baixo, em direção ao centro da roda, num gesto que simboliza permissão para os dois
jogadores começarem a jogar. Geralmente, o primeiro movimento dos capoeiristas em jogo é
carregado de significados ocultos, uma saudação, um pedido de proteção, momento de
concentração. Os jogadores levam suas cabeças e os ao chão, em baixo do Gunga, e levantam
suas pernas, realizando um movimento que exige força e equilíbrio. A fotografia a seguir registra
Mestre Toninho Vargas (BH) e Mestre Jaime de Mar Grande (BA) realizando uma saudação ao
pé do berimbau‖.
37
Figura 8: Saudação ao “pé do berimbau”. Foto: Leandro Couri, 2005.
Esse momento de saudação e pedido de proteção pode ser comparado à classificação feita
por Terrin (2004) de ritos negativos. Para o autor, esses ritos são para a pessoa se empenhar em
manter-se distante de um elemento ou ser perigoso. Pode ser feito por meio de pedidos de
proteção e força que seria o rito apotropaico, ou com um pedido do afastamento do mal e das
forças negativas os ritos eliminatórios.
A seguir, encontram-se alguns exemplos dos tipos de músicas citados anteriormente:
Ladainha:
Iê!
Quando eu aqui cheguei,
a todos eu vim louvar.
Vim louvar a Deus primeiro
e os moradores deste lugar.
Agora eu tô cantando,
cantando como louvor.
Eu to louvando a Jesus Cristo,
oi quem nos abençoou.
Tô louvando e tô rogando
38
Tô louvando e tô rogando
ao Pai que nos criou
Abençoo esta cidade
com todos seus moradores
E na roda da capoeira
abençoo os jogadores
(Mestre João Pequeno)
Chula:
Iê viva meu Deus!.
Iê, viva meu Deus, camarada (coro)
Iê via meu mestre!
Iê, viva meu mestre, camarada (coro)
Iê quem me ensinou
Iê, quem me ensinou camarada (coro)
Iê a malandragem
Iê, a malandragem camarada (coro)
(domínio público)
Corridos:
A onça morreu o mato é meu, (coro)
O mato é meu, é meu, é meu
(domínio público)
Lemba ê, lembá (coro)
Lemba do barro vermelho
(domínio público)
Pomba voou, pomba voou (coro)
Pomba voou, gavião pegou
(domínio público)
39
Até agora foi mostrada a estrutura de uma roda de Capoeira Angola. Como a pesquisa não
estuda apenas essa modalidade, cabe aqui apontar algumas diferenças da formação de uma roda
de Capoeira Regional. Mas muitas características da roda de Regional se assemelham com as
descritas na Capoeira Angola.
Mestre Bimba, que fora aluno de Mestre Pastinha, criou a Luta Regional Baiana, um
formato de capoeira que era bem definido, com suas regras, golpes, sequência de movimentos e
metodologia de ensino. Nas rodas do Mestre Bimba havia apenas um berimbau e dois pandeiros.
Hoje, a capoeira apresenta várias adaptões. O que se conhece por Capoeira Regional é diferente
do estilo proposto por Bimba. Grande parte das rodas de Capoeira Regional é formada de
maneira particular, variando de grupo para grupo. A estrutura circular se mantém. Porém, a
bateria e os participantes da roda que não estão jogando permanecem em pé, formando o
contorno da roda. Os instrumentos são berimbaus (variam de um a três), pandeiro (normalmente
apenas um) e um atabaque. O coro, além responder ao cantador, bate palma no ritmo das batidas
da bateria.
A roda de Capoeira Regional também se inicia com o tocador do berimbau Gunga
chamando os outros instrumentos, que começam a tocar na sequência, acompanhando o ritmo
proposto pelo berimbau principal. Quando a bateria já está formada, o cantador puxa uma música
e o coro responde. Não existe ladainha na Regional. As músicas cantadas podem ser quadras
músicas compostas de estrofes de quatro versos e corridos. Dois jogadores se cumprimentam com
um aperto de mãos agachados ao ―pé‖ do berimbau e iniciam o jogo quando o Gunga fizer o sinal
autorizando, como na Angola.
Quadra:
Menino quem foi seu mestre
Meu mestre foi Salomão
Pulava cerca de vara
Sem encostar nem por a mão
Sou discípulo que aprendo
Sou mestre que dou lição
O segredo de São Cosme
Só quem sabe é Damião
Camarada...
40
(domínio público)
As escolas ou grupos de capoeira costumam realizar suas rodas em dias
preestabelecidos. Isso se repete mensalmente ou semanalmente. Há também algumas rodas
especiais que acontecem apenas uma vez por ano. Trata-se de eventos que se repetem, rituais.
Muitos capoeiristas conhecem os dias, locais e horas das rodas de capoeira de outros grupos. É
comum um capoeirista ir visitar e participar da roda de outros capoeiristas da cidade.
Tomar-senovamente como exemplo as rodas do Grupo Bantus Capoeira. Por mais de
15 anos, o grupo realizou uma roda de capoeira, sempre às sextas-feiras, às 12:30h, na praça da
Savassi, em Belo Horizonte. Uma vez por ano, na última semana de agosto, acontece um evento
maior, com rodas todos os dias e participação de Mestres convidados de outros estados
brasileiros. Esse evento acontece para a realização de ritos de passagem dos capoeiristas: o
batizado e a troca de cordas.
De acordo com Peirano (2003), ritos de passagem são ―aqueles momentos relativos à
mudança e à transição (de pessoas e grupos sociais) para novas etapas de vida e de status‖. (2003,
p. 22)
O batizado de capoeira é o momento em que o aluno iniciante da Capoeira Regional joga
pela primeira vez com um Mestre. No dia do batizado, o aluno entra na roda com o Mestre e
mostra o que ele tem aprendido durante as aulas de capoeira. Nesse evento, o aluno recebe o seu
nome de capoeira, um apelido, pelo qual será chamado pelo seu mestre e companheiros de
capoeira. Na Capoeira Angola, também existe um ritual em que o aluno iniciante joga pela
primeira vez com o Mestre, mas esse evento não é chamado de batizado.
Na Capoeira Regional os capoeiristas usam cordas, cordões ou cordéis amarrados na
cintura. Essas cordas indicam a graduação do aluno e sua posição hierárquica dentro do grupo
(aluno iniciante, aluno graduado, instrutor, aluno formado, professor, contra-mestre e mestre).
Geralmente, o evento de troca de cordas dos alunos acontece uma vez por ano. O aluno recebe
uma corda nova quando seu mestre acha que ele já está pronto para assumir outro papel
hierárquico dentro do grupo. Na cerimônia de troca de cordas, o aluno tem que jogar na roda com
os alunos mais graduados do que ele ou com mestres, mostrando sua evolução no jogo. Além de
jogar capoeira, o aluno que vai trocar de cordas também deve demonstrar sua habilidade para
tocar instrumentos e cantar durante a roda.
41
Nos rituais de batizado e de troca de cordas, o momento em que o Mestre entrega uma
corda ao aluno é especial: o Mestre realiza uma transmissão de força para seu discípulo e
demonstra confiança nele. Pode-se relacionar essa tradição da capoeira ao que Terrin (2004)
chama de Rito de Transmissão de força sagrada, que é quando, em uma comunidade, alguém
atribui certa força a certa pessoa. A imagem a seguir mostra Mestre Pintor (BH) entregando a
corda de professora à sua aluna Marmota (BH).
Figura 9: Troca de corda. Foto: Leandro Couri, 2009.
Em outras ocasiões especiais também acontecem rodas comemorativas como no caso de
aniversário de algum capoeirista ou na despedida de um membro do grupo. Quando é aniversário
de algum capoeirista, o aniversariante tem que jogar com todos os outros capoeiristas que estão
presentes na roda. Nesse momento, canta-se Parabéns pra você no ritmo da roda de capoeira.
Quando um membro do grupo está se despedindo, muitas vezes devido à mudança de cidade, é
comum que o grupo ao qual ele pertence faça uma roda de despedida para ele. Nesse evento, uma
música de despedida é cantada e todos os integrantes do grupo jogam capoeira com a pessoa que
está partindo.
42
Muitos grupos de capoeira festejam as datas de aniversário de nascimento e morte de
grandes mestres como Bimba e Pastinha com uma roda em homenagem a eles. Outras datas,
como o dia nacional da consciência negra, também são lembradas pelos capoeiristas.
Como já foi dito, cada mestre ou grupo estabelece sua concepção própria sobre suas rodas
particulares. Mas a maioria dos rituais da roda de capoeira Angola ou Regional termina com
corridos de despedida:
Adeus, adeus,
Já vou-me embora
Eu vou com Deus
E Nossa Senhora
(Domínio público)
Em alguns grupos de Capoeira, na hora do ―Adeus, adeus‖, a bateria se levanta e caminha
dando a volta na roda, seguida pelos outros participantes. No interior da roda, dois jogadores
fazem o jogo, que nesse momento é aberto para o jogo de compras. Normalmente, o ritmo sobe
na roda na hora da despedida, fica mais acelerado, os jogos são mais curtos e com golpes mais
rápidos. A despedida dura até que o berimbau Gunga encerre a bateria.
2.1.2. Jogo de capoeira
O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e
determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas
absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um
sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ―vida
quotidiana‖. (HUIZINGA, 2007, p. 33).
Dois capoeiristas jogam capoeira dentro da roda. Os jogadores se cumprimentam com um
aperto de mãos no início do jogo e com abraço no final. Ao longo da duração da roda, os pares de
jogadores vão sendo trocados. Pode acontecer de um jogador permanecer no jogo e um terceiro
entrar para jogar com ele, tirando o segundo jogador do jogo é o caso de uma ―compra‖ de
jogo. Geralmente, o jogo de compra é mais comum na Capoeira Regional, que apresenta jogos
com um tempo de duração menor do que os jogos da Angola.
43
O jogo é composto por sequencias livres de movimentos fluidos, muitas vezes circulares,
que são executados obedecendo ao ritmo tocado pelos instrumentos, com um gingado que se
assemelha a passos de dança. Esses movimentos são:
Golpes diretos (frontais) ou rodados (que giram em torno do próprio eixo)
realizados com os pés, mãos, cotovelos, joelhos e cabeça.
Defesas e esquivas reações de fuga aos golpes aplicados.
Contra-golpes respostas aos golpes com outros golpes, geralmente
desequilibrantes com o objetivo de levar o outro jogador ao chão, como, por
exemplo, rasteiras e tesouras.
Movimentos de deslocamento podem ser usados para se aproximar ou se afastar
do parceiro/adversário, ou para ocupar outro lugar dentro da roda, podem ser
feitos nos planos alto, médio e baixo, com os pés, mãos ou cabeça no chão
(exemplos desses movimentos são os rolês, aús e saltos),
Chamadas e ―volta ao mundo‖ momentos de suspensão ou ponto de virada do
jogo, que serão analisados mais adiante neste texto.
Saudações movimentos de cumprimentar o adversário no início, durante ou no
final do jogo e também servem para pedir proteção ao Mestre, ao berimbau, a
Deus ou outra entidade protetora.
Ginga movimento contínuo e balançado em que o jogador transfere o peso de
uma perna para a outra passando pelo centro e posicionando uma perna à frente e
a outra atrás, como se desenhasse um triângulo no chão com os pés.
Cada jogador pode executar esses movimentos de inúmeras maneiras e com indefinidas
possibilidades de variação, empregando o seu próprio estilo ao jogo. Cada grupo/escola de
capoeira tem o seu repertório de movimentos, muitos são comuns a outros grupos, e por isso é
possível fazer uma pré-classificação como se fez na descrão anterior. Os nomes dos
movimentos também sofrem algumas modificações entre as diferentes escolas.
A partir dos movimentos de capoeira, os jogadores podem criar sequencias de golpes,
esquivas ou outras movimentações. O jogo é um diálogo, os jogadores laçam perguntas e
respondem a elas. Não um jogador que vença o jogo. momentos em que um consegue
efetuar melhor um golpe, ou executar uma entrada, como uma rasteira.
44
A fotografia a seguir mostra dois jogadores durante um jogo de capoeira em uma roda de
rua. Mestre Jaime de Mar Grande (BA) faz um golpe chamado ―rabo-de-arraia‖ e Mestre Pintor
(BH) defende com uma ―negativa‖.
Figura 10: Mestre Jaime de Mar Grande (BA) e Mestre Pintor (BH). Foto: Leandro Couri, 2005.
Não existem recursos que quantifiquem objetivamente vencedores ou perdedores do jogo.
Na roda, sempre possibilidade de uma reversão das situações de fracasso ou de sucesso.
Gestos e movimentos como a chamada e a ―volta ao mundo‖ são situações que podem possibilitar
ao jogador uma oportunidade de virada de jogo. Na chamada, o capoeirista que propõe o
movimento desarticula, momentaneamente, a dinâmica de um determinado jogo, ele cria uma
pausa temporária que leva à construção de novas interações na retomada do jogo. Na ―volta ao
mundo‖, os capoeiristas interrompem o jogo, momentaneamente, e circulam a roda, um atrás do
outro, até que quem propuser a saída para a ―volta ao mundo‖ retome o jogo já preparado para
novas possibilidades de diálogos com o parceiro.
Na fotografia a seguir, Mestre Pintor, do grupo Bantus Capoeira (BH) faz uma chamada
de costas para Mestre João Pequeno (BA).
45
Figura 11: Mestre Pintor (BH) e Mestre João Pequeno (BA). Foto: Acervo Bantus Capoeira, 1997.
Capoeira que bom não cai
Mas se um dia ele cai, cai bem.‖ (Vinícius de Moraes e Baden Powell)
Um dos momentos mais esperados do jogo é a queda do capoeirista. O capoeira cai se
encostar alguma parte do corpo que não seja as mãos, os pés ou a cabeça no chão. Quem
consegue cair (sem por a bunda no chão) e se apoiar, não cai. É comum ouvir mestres
comentarem que o bom capoeirista termina um jogo sem se sujar, isto é, sem levar um tombo ou
uma ―pisada‖ do adversário.
Figura 12: Desenho de Caribé (CARYBÉ, 1955, p.18)
46
No desenho de Caribé, acima, vê-se um jogador de capoeira (o da direita, no plano baixo)
aplicando uma rasteira golpe desequilibrante que leva o parceiro à queda no outro jogador (à
esquerda, em pé, apoiado em apenas uma das pernas). Pode-se dizer, de maneira geral que o
objetivo do jogo da capoeira é desequilibrar o parceiro, mais por malícia do que por força sica.
A essência da luta sempre esteve no desnorteamento do adversário por meio da malícia e
na negaça. A estratégia do bom capoeira era tentar iludir o oponente com trejeitos de
mãos e pés, envolvendo-o como uma aranha na teia, até poder aplicar o golpe. No fundo,
uma arte de sedução e engano do olhar do outro, cuja tônica não se definia pela
pretensão a uma verdade identitária do corpo, mas pela falsidade, isto é, pela tapeação do
adversário. ―Capoeira é bicho ‗farso‘‖, resumiam os antigos (SODRÉ, 2002, p.48).
Ô Doralice não pegue não,
não me pegue, não me agarre, não me bote a mão” (trecho de música de capoeira,
domínio público)
Não se deve agarrar o adversário, não existem movimentos desse tipo na capoeira. Não é
educado que um jogador suje a roupa do outro com as mãos. Teve um tempo em que os jogadores
de capoeira usavam uma roupa ―alinhada‖, como terno claro, para jogar capoeira. Assim, criou-se
o respeito e o costume de o tocar a roupa do parceiro com a palma da mão, em muitos
movimentos de capoeira, o capoeirista leva suas mãos ao chão e fica com as palmas das mãos
sujas. Mestre João Pequeno, em uma oficina realizada em Belo Horizonte em 1998, ensinou que
os capoeiristas, ao se abraçarem como gesto de cortesia no final do jogo, o devem tocar as
costas do parceiro com a palma das mãos. Na hora desse cumprimento, devem-se usar as costas
das mãos.
o existe uniforme generalizado para se jogar capoeira, mas há um certo tipo de
indumentária ou cores das roupas usadas que caracterizam uma escola, ou que identificam o
capoeirista com o seu respectivo grupo ou mestre. O traje dos capoeiristas compõe o ritual da
capoeira, faz parte da sua tradição, que foi sendo criada ao longo de sua história. No início,
quando a capoeira era praticada pelos escravos das fazendas da Bahia, ou no porto do Rio de
Janeiro, os negros, muitas vezes, jogavam descalços, com as roupas que estavam vestindo. Mais
tarde, quando a capoeira ganha as praças e mercados das cidades, os capoeiristas comam a
jogar com as roupas que eram vestidas nas cidades, como ternos e sapatos.
47
Hoje, existe o costume dos Angoleiros jogarem capoeira de caa comprida, camisa ou
blusa de manga que não deixe os ombros à vista e presas para dentro da caa e calçados
o se deve jogar Capoeira Angola descalço. Em alguns grupos de capoeira angola, usam-se
calças e camisas brancas, como na escola do Mestre João Pequeno. Outras escolas usam as cores
amarelo e preto, em homenagem a Mestre Pastinha, que adotara as cores do seu time de futebol
como referência para serem usadas na roda da capoeira praticada em sua escola. também
grupos de Capoeira Angola que escolheram as cores azul e branco, vermelho e preto, preto e
branco, roupas coloridas etc.
Na Capoeira Regional, existe uma calça especial, chamada de abadá. Trata-se de uma
calça larga branca com uma corda amarrada na cintura. O sistema de cores de cordas (que indica
a graduação do capoeirista) e hierarquias na Regional varia de escola para escola. Além da calça
branca, o capoeirista pode usar outras calças de qualquer cor, geralmente largas. O tipo de camisa
a ser usada pelo praticante é livre e capoeiristas que gostam inclusive de jogar sem blusa.
Também não há normas quanto ao uso ou não de sapatos na Capoeira Regional, o praticante pode
escolher o que for melhor para ele e muitos gostam de praticar descalços.
Figura 13: Desenho de Caribé (CARYBÉ, 1955, p.23)
48
2.1.3. Jogo de condutas
O rculo da capoeira é o território reservado aos que entram no mundo criado pelo ritual
da roda. O jogo da capoeira é uma atividade livre e voluntária que envolve o jogador
temporariamente em local específico. O jogo traz elementos cativantes e tem uma estética que
associa aspectos de tensão, equilíbrio, contraste e variação. A tensão presente na roda é gerada
devido à incerteza do jogo. As qualidades do praticante são postas a prova a todo momento
durante o jogo.
Para Terrin (2004), o rito cria vários mundos possíveis. O ritual da roda de capoeira é um
mundo criado pelo rito da capoeira. Na capoeira, as regras podem ser entendidas como boas
maneiras de como se comportar em uma roda. Existe um digo de comportamento que
caracteriza a roda de capoeira como um ritual e suas tradições devem ser respeitadas. Os mestres
passam esses fundamentos ao aluno que realmente se interessar pela capoeira, que são
transmitidos oralmente e durante a prática da roda ou das aulas. Alguns aspectos ritualísticos
dessa conduta serão destacados aqui.
Existe uma hierarquia que sustenta a roda e sua formação. Os mestres e capoeiristas mais
experientes devem ser respeitados. Por exemplo: na Capoeira Angola, em um jogo onde o há
mestres jogando, normalmente, quem está tocando o berimbau Gunga determina o tempo de
duração do jogo, chamando, com um toque diferenciado no instrumento, os jogadores para
finalizarem o jogo. Quando um Mestre na roda, quem determina esse tempo é o próprio
Mestre. Não é educado interromper o jogo de um mestre. jogos em que o Mestre ou a pessoa
que está no Gunga escolhe quem vai jogar. Existem rodas em que os jogadores que querem jogar
se posicionam próximos do berimbau e rodas em que o posicionamento dos capoeiristas ao
logo da formação do rculo determina os próximos jogadores, sempre os das extremidades mais
próximas dos instrumentos.
Na Capoeira Regional há com mais frequência o jogo de compras. Neste caso, o tempo de
jogo é determinado por aquele que efetiva a compra para estabelecer um novo jogo. Quem
compra o jogo deve ter bom senso para não interromper um diálogo que mal começou, deve
esperar o momento certo de comprar o jogo. Para conhecer esse momento certo, o capoeirista
precisa de vivência em rodas. O Mestre não pode ensinar isso, o aluno é quem tem que aprender.
49
É sempre bom que o capoeirista que vai comprar o jogo tire quem está na roda mais tempo, a
o ser que tenha um Mestre jogando. Não se deve tirar um Mestre da roda, pois é ele quem
escolhe quando parar. também jogos que partem sempre do do berimbau‖, sem compras.
Neste caso, enquanto dois jogadores estão jogando, outros dois se posicionam agachados
próximos aos instrumentos, sem ficar na frente da bateria. A duração dos jogos é determinada, na
maioria das vezes, pelos próprios jogadores, mas quem está no Gunga também pode interferir
nesse tempo.
É sempre esperado que os jogadores se cumprimentem antes e depois do jogo no do
berimbau‖. Esse cumprimento é, na maioria das vezes, um aperto de mãos. Ao se posicionar para
o início do jogo, não se deve atravessar a roda passando na frente dos instrumentos, é bom que o
capoeirista, buscando se posicionar para o início de um jogo, contorne a roda e abaixe quando
estiver na frente da bateria. Quando termina o jogo, os jogadores retornam ao do berimbau
para se cumprimentarem e se posicionam no final da roda, do lado oposto de onde se encontram
os instrumentos.
Figura 14: Cumprimento entre capoeiristas. Foto: Leandro Couri, 2008.
50
Os capoeiristas revezam entre si as atividades realizadas na roda. Todos passam pela
função de tocar instrumentos, jogar capoeira, puxar o canto, responder o coro e bater palmas (este
último no caso da Capoeira Regional). No aprendizado da capoeira, o capoeirista aprende os
movimentos corporais, a tocar diferentes ritmos de capoeira nos instrumentos da roda e a cantar
as músicas de capoeira. A roda é o momento em que o capoeirista mostra o seu conhecimento
sobre capoeira, e em prática o que tem treinado, os movimentos, as músicas que aprendeu ou
até mesmo que coms para a roda e os toques nos instrumentos percussivos. Nas rodas de
Capoeira Angola é permitido trocar o tocador de um instrumento no intervalo entre um jogo e
outro. Tanto na capoeira Angola como na Regional deve-se evitar a troca de vários instrumentos
de uma vez. Por exemplo, se um capoeirista vai passar o berimbau para outro e já tem alguém
fazendo isso, ele deve esperar o novo tocador começar a tocar para então passar seu instrumento.
Cabe aqui lembrar que todas essas condutas que estão sendo apontadas servem como
referências, não são regras engessadas. Cada situação exige um comportamento e o capoeirista
deve estar atento para não fugir daquilo que os mestres chamam de fundamentos da capoeira. É
sempre bom que um capoeirista, quando visitar uma roda, observe o conjunto de comportamentos
dos participantes da mesma e, antes de entrar no jogo ou pegar um instrumento, peça licença e
permissão para o Mestre ou para quem estiver comandando a roda.
O jogo tem a capacidade de unir seus jogadores, cria comunidades que ―tendem a
tornarem-se permanentes, mesmo depois do jogo acabado.‖ (HUIZINGA, 2007, p.15). Essas
comunidades compartilham algo importante, conservam a magia do jogo para além de sua
duração.
Existe um forte sentimento de pertencer a um determinado grupo na capoeira. Os grupos
de capoeira têm suas marcas, que são amplamente divulgadas nas camisas de capoeira usadas
pelos seus praticantes ou por admiradores da capoeira. É comum encontrar, nas escolas de
capoeira, roupas à venda para serem compradas por alunos da escola, por turistas que querem
levar uma lembrança daquele grupo, por capoeiristas de outros grupos que visitam aquela escola
e outros interessados.
A sede dos grupos é muitas vezes ornamentada com instrumentos percussivos, fotografias
de mestres importantes, imagens sagradas (santos, orixás, cruz, velas etc.), bandeiras e quadros
que caracterizam sua comunidade. Muitos capoeiristas se identificam com os objetos e imagens
expostos na sua escola.
51
Muitos capoeiristas comem letras de música de capoeira em homenagem ao seu grupo
ou ao seu Mestre. Essas cantigas são cantadas nas rodas e aprendidas pelos outros membros do
grupo. Outro elemento comum nos grupos de capoeira que identificam aquela comunidade
específica é o cumprimento de mãos. Muitos grupos criam uma sequência de apertos de mãos
específicas e cada grupo tem a sua, que são praticadas todas as vezes que os capoeiristas daquele
grupo se encontram, se cumprimentam ou se despedem.
De acordo com Huizinga (2007), o jogo é um ambiente instável. A qualquer momento a
vida cotidiana pode reafirmar seus direitos, interrompendo o mundo o jogo. Isso pode acontecer
por uma quebra de regras do jogo, ou devido ao afrouxamento do espírito do jogo ou uma
desilusão. A capoeira não está livre desses desencantos. Podem acontecer acidentes que
interrompam o jogo. Uma pessoa pode machucar-se gravemente na roda. Dependendo da
situação, o Mestre ou quem está conduzindo a roda, interrompe a música e faz o ritual parar. Se
houver ferimento devido a um golpe efetuado com a intenção de ferir, o jogador que fez o golpe
será punido pelo Mestre ou pelo grupo. A punição, na capoeira, acontece muitas vezes quando o
Mestre chama a atenção o jogador para não ter determinado tipo de atitude. Há casos em que esse
jogador é retirado da roda e não tem o consentimento de voltar a jogar, ou deve esperar ser
chamado, para então poder jogar novamente.
O jogo da capoeira envolve risco. Há casos em que o jogador se machuca sem que o outro
tenha tido a intenção de machucá-lo ou o próprio jogador faz algum movimento em que se
desequilibra e cai. Se o ferimento for grave, a roda é interrompida para que o capoeirista seja
socorrido.
Em alguns grupos, a roda pode ser interrompida para que o Mestre um recado ou
recomende que os jogadores joguem mais tranquilos ou com mais entusiasmo. Logo depois do
recado dado, os instrumentos voltam a ser tocados e a roda continua.
Este capítulo mostrou a roda de capoeira como um ritual praticado por um grupo de
pessoas que trazem em seus corpos um repertório técnico corporal conquistado através de um
longo processo de socialização, em que códigos foram sendo gradualmente apreendidos por meio
de vivências. Esses digos são compartilhados pelos capoeiristas que conseguem identificar na
expressão dos gestos e movimentos a marca do pertencimento dos indivíduos a um determinado
grupo social (Capoeira Angola, Regional, um grupo específico ou ao estilo de determinado
mestre) e até mesmo a posição hierárquica do capoeirista dentro do seu grupo.
52
O ritmo e o rito dão vida e alma à capoeira‖ (SODRÉ, 2002, p.86). A roda de capoeira é
o momento em que o capoeirista põe em prática todo o seu conhecimento sobre capoeira, no jogo
e na bateria. Trata-se de um espaço de socialização em que a energia circula dentro da roda. O
envolvimento dos capoeiristas com a roda é tão grande que, muitas vezes, um capoeirista se
surpreende consigo mesmo ao realizar um movimento sem pensar ou programar, algo que
acontece na roda, devido ao entusiasmo do momento. A harmonia da música em sintonia com os
capoeiristas favorece a epifania dos corpos em movimento, trazendo beleza e ludicidade aos
movimentos precisos e atléticos de guerreiros e ao gingado com molejo do corpo solto de
malandros.
Figura 15: Jogo solto com plasticidade nos movimentos. Foto: Leandro Couri, 2008.
53
Figura 16 Desenho 4 de Carlos Wolney, 2010.
54
3. RITO ESPETACULAR
A capoeira é uma prática cultural espetacular que reúne aspectos de luta, jogo, dança, ritual,
espetáculo, performance, música, esporte e brincadeira. Este capítulo aponta elementos
rituasticos, espetaculares e performáticos dessa manifestação popular brasileira.
Bião (2007) propõe um léxico para a Etnocenologia que visa facilitar ou orientar alguns
estudos nessa área. A proposta de Bião (2007) parte da vontade de se conhecer o diferente e o
diverso. Passa pelo desafio de se compreender o discurso do entorno do novo objeto que se quer
conhecer. Para isso, ele sugere alguns termos no âmbito epistemológico dos objetos de pesquisa e
dos sujeitos pesquisadores e no âmbito metodológico. Esta pesquisa utiliza três conceitos do
âmbito epistemológico dos objetos. São eles teatralidade, espetacularidade e estados de corpo.
Teatralidade é definida por ele como ação e espaço organizados para o olhar, aplicada a
pequenas interações rotineiras. Essa definão pode ser usada em toda interação humana, porque
seus participantes organizam suas ações e se situam no espaço em função do olhar do outro. Em
todas as ações humanas, as pessoas envolvidas agem, simultaneamente, como atores e
espectadores da interação. A consciência reflexiva sobre a ação ou sobre a reação dos envolvidos
na interação pode existir de modo claro, difuso ou obscuro.
Para Pavis (2007), o que é teatral pode se referir aos aspectos espaciais, visuais, expressivos
de uma cena. Essa seria uma conceituação do senso comum, segundo o autor. Para ele, teatral
também seria o desdobramento visual da enunciação (personagem/ator) e de seus enunciados, a
artificialidade da representação‖ (PAVIS, 2007, p. 372). De acordo com Pavis, teatralidade está
relacionada à potencialidade visual.
Espetacularidade é o termo usado por Bião (2007) para designar aquilo que chama, atrai e
prende o olhar de quem observa ou participa das interações extraordinárias. Em algumas
interações humanas existe a organização de ações e de espaço em função de se atrair e prender a
atenção e o olhar das pessoas envolvidas. A distinção entre função do ator e do espectador é mais
clara do que na teatralidade. A consciência reflexiva sobre as ações também é mais visível e
clara.
Estados de corpo é a expressão usada por Bião (2007) para se referir à indissociabilidade
entre corpo e consciência. Ele a utiliza para se reportar às artes do espetáculo que se sustentam na
prática e exercício de alteração dos estados de corpo habituais do dia-a-dia. Trata-se de um estado
55
extracotidiano do corpo construído e mantido apenas temporariamente, com bases em práticas,
comportamentos e técnicas.
A capoeira pode ser vista como uma prática cultural com aspectos da teatralidade, da
espetacularidade e os corpos dos jogadores estão em estados de expressão alterados. A roda de
capoeira é uma interação extracotidiana organizada em um espaço e um tempo determinado. A
plasticidade dos corpos se movimentando, o desempenho dos jogadores, o diálogo corporal
estabelecido durante o jogo com perguntas e respostas , a organização circular da roda, o som
da música, o desempenho dos tocadores dos instrumentos e a presença de jogadores, cantador,
coro e instrumentos musicais juntos são elementos que chamam e podem prender a atenção e o
olhar de quem observa o evento. Esses são alguns elementos que caracterizam a espetacularidade
(BIÃO, 2007) da roda de capoeira. Na fotografia a seguir, pode-se notar que a roda, realizada em
local blico, conquista olhares de interessados que passam por aquele espaço e pelos próprios
participantes do evento.
56
Figura 17: Roda de capoeira na Praça da Savassi, Belo Horizonte. Foto: Leandro Couri, 2005.
Ao longo da duração da roda de capoeira, os participantes, sejam os tocadores, o cantador ou
os jogadores (funções que são alteradas constantemente), estão envolvidos naquele evento, seus
corpos estão funcionando em um estado diferente do modo como se comportam em suas
atividades comuns do cotidiano. Os jogadores precisam despertar um estado de alerta, pois
existem golpes no jogo que podem feri-lo se ele não for capaz de se desviar rapidamente. Além
desse estado de alerta, os capoeiristas precisam estar concentrados, pois alguns movimentos
como, por exemplo, uma bananeira (parada de mãos) exigem equilíbrio e força. A capoeira é uma
brincadeira, assim, os jogadores precisam brincar, soltar o corpo, se movimentar como se
estivessem dançando. Portanto, juntamente com a concentração e o estado de alerta, os
capoeiristas devem se divertir, gingar com molejo no corpo, fingindo estar despreparados para
uma luta quando, na verdade, estão muito bem preparados. Os jogadores devem estar com todos
os sentidos ativados para poder jogar, prestar atenção no jogo e no seu parceiro, ouvir a letra da
música que está sendo cantada, prestar atenção ao toque do berimbau e estar ciente da sua
ocupação no espaço para não atingir aos outros capoeiristas que estão em círculo formando a
roda. Estes são apenas alguns exemplos que exigem do capoeirista um ―Estado de corpo‖ alterado
(BIÃO, 2007).
Figura 18: Olhar atento do capoeirista. Foto: Leandro Couri, 2008.
57
Veiga (2008) apresenta os temas ritual, espetáculo, performance e corpos em situação de
risco físico. Para ele, o praticante do ritual e as alterações ocorridas nele são as razões da
existência de um evento ritualístico.
Quando um ritual é observado e descrito por um observador, ele se revela apenas
parcialmente. A experiência primordial do ritual permanece restrita a quem o pratica.
Diferentemente do ritual, o espetáculo tem no espectador o destinatário do evento. Assim, de
acordo com Veiga (2008), quando um espectador observa um ritual, este pode ser visto como se
fosse um espetáculo.
Veiga observa que a atividade do espectador altera a natureza daquilo que ele observa. Para
ele, quando uma forma de expressão realiza-se visando um blico, ela é um espetáculo. Mas,
quando uma performance visa o próprio praticante ou a própria comunidade que pratica a
atividade, trata-se de um ritual.
No caso do espetáculo, a presença do observador é essencial. O espetáculo é concebido para
ser visto.
A partir dessa concepção, pode-se entender a roda de capoeira como um ritual para seus
praticantes e espetáculo para quem a observa. Uma roda de capoeira pode acontecer em lugares
privados como escolas de capoeira e também em locais blicos, como em praças e ruas da
cidade. Em ambos os casos, a roda acontece independentemente da presença ou não de um
público espectador. Isso é um aspecto que a configura como evento rituastico.
A capoeira não visa ser assistida por um olhar de fora, mas em muitos casos, como em uma
roda de rua, ela se torna um espetáculo para quem a vê. Os próprios capoeiristas que comem o
coro podem ser considerados público, um público que participa cantando e torcendo para os
jogadores. Quem está de fora, apenas assistindo à roda, também pode aproximar-se, juntar-se ao
rculo e participar do coro.
O blico pode participar mais ativamente do que respondendo ao coro e torcendo pelos
jogadores. A roda de capoeira de rua muitas vezes é aberta à participação de quem se interessar.
Basta chegar, pedir licença ao Mestre ou a quem estiver comandando a roda e jogar ou tocar
algum instrumento.
―A essência da arte está no ritual, naquilo que ele tem de auto-expressivo, de auto-suficiente,
de não espetacular. Naquilo que o ritual possui de mais elementar; a alteração dos sentidos
cotidianos de seus participantes. (VEIGA, 2008, p. 66). Ele acredita que a origem da arte deve
58
estar nos processos sensoriais que ela produz nos artistas, não na obra acabada ou nos possíveis
efeitos que a obra tenha sobre o público.
A performance, quando visa a uma plateia, é um espetáculo expressivo; quando visa
essencialmente ao praticante, tende a ser auto-expressiva. Isso não quer dizer que um ritual não
possa ter espectadores, mas seu objetivo primeiro é envolver o praticante e produzir experiências
sensoriais não-cotidianas (VEIGA, 2008). Um espetáculo expressivo se realiza quando a
presença de um espectador. O ritual acontece independentemente da presença da plateia.
A roda da capoeira é uma manifestação única, que nunca se repete. Por isso, não é
impossível referir-se a ela como uma performance artística, além de ser um espaço de
sociabilidade que aproxima povos distantes, como mostra sua globalização. Nesse lugar
ritual os limites do corpo são testados, a sonoridade percussiva ressoa nos instrumentos,
os cânticos afirmam a poética do jogo, É também um local onde o mestre exerce seu
saber para uma platéia de discípulos e observadores. (CASTRO, 2008, p.38).
Performance na roda de capoeira
Para apresentar o tema da performance, esta pesquisa buscou os conceitos de dois autores
Cohen (2002) e Schechner (2003). A partir das referências escolhidas, foram apontadas possíveis
características performáticas da roda da capoeira.
Cohen (2002) apresenta o termo performance e discute alguns conceitos que envolvem essa
arte. Começa generalizando e definindo performance como uma expressão cênica e acrescenta
que também pode ser entendida como uma função do espaço e tempo. Ou seja, para alguma
expressão cênica se caracterizar como performance, ela deve estar acontecendo em um
determinado instante e em determinado local.
Cohen (2002) aplica o conceito de expressão cênica caracterizado no teatro como uma tríade
básica (atuante texto público) na formulação do termo performance. De acordo com o autor, o
atuante não precisa ser necessariamente um humano, pode ser um boneco, um animal ou até
mesmo um objeto. Ele propõe que a palavra texto deva ser entendida como um conjunto de
signos que podem ser verbais, imagéticos ou indiciais (como, por exemplo, sombras, luzes ou
fumaça). E o público, na performance, pode ser um espectador ou se tornar um participante.
59
A partir dessa conceituação de Cohen, podemos analisar a roda de capoeira como uma
expressão cênica que acontece em certo espaço e durante determinado tempo, onde os jogadores
são os atuantes, o texto está desenvolvido do jogo pelos capoeiristas, na relação da música com
os corpos e em outros elementos presentes na roda e o blico está representado por quem está
assistindo a atividade. O espectador pode tornar-se atuante, entrando na roda e realizando um
jogo. Ou pode participar cantando ou tocando algum instrumento musical que componha a roda.
A performance está relacionada com a arte viva (live art). É uma forma de ver arte em que
se procura uma aproximação direta com a vida, em que se estimula o espontâneo, o natural, em
detrimento do elaborado, do ensaiado.(2002, p.88). O artista passa a ser sujeito e objeto de sua
obra.
A linguagem da performance é uma experimentação sem expectativas com relação ao público
e sem compromisso com a mídia. Pode ser considerada como uma forma de teatro (cênico-
teatral), pois se trata de uma expressão cênica e dramática por mais plástico ou não intencional
que seja o modo pelo qual a performance é constituída, sempre algo estará sendo apresentado, ao
vivo, para um determinado público, com alguma ‗coisa‘ significando.(COHEN, 2002, p. 6).
Cohen diz que a performance não se estrutura numa forma aristotélica, com começo, meio,
fim e linha de narrativa. Diferentemente do teatro tradicional, o apoio da performance se em
uma interdisciplinaridade de linguagens.
O performer não representa personagem e também não atua em seu estado cotidiano.
Quando um performer está em cena, ele está compondo algo, ele está trabalhando sobre sua
‗máscara ritual‘ que é diferente de sua pessoa do dia-a-dia.(COHEN, 2002, p.58).
Em uma roda de capoeira, os capoeiristas procuram ser espontâneos e deixar seus corpos
livres para experimentações e improvisações que surjam na hora do jogo, sem preparo. Por mais
que não se preocupem com o resultado estético de seus jogos, os jogadores estão sendo
observados, ao vivo, pelos demais capoeiristas, isso constitui uma apresentação.
A capoeira reúne aspectos de diferentes linguagens como os corpos em movimentos que são
muitas vezes semelhantes a corpos que dançam. A presença de instrumentos percussivos e
cantigas cantadas ao vivo trazem o aspecto musical da roda. Os capoeiristas, assim como os
performers, quando realizam um jogo em uma roda, não representam personagens e também o
estão em seu estado cotidiano. Eles estão sendo vistos, seu estado está modificado, mesmo que
eles não o façam propositalmente.
60
Figura 19: Roda de capoeira em Casa Branca (Brumadinho, MG). Foto: Maíra Cesarino, 2009.
Na fotografia anterior, Mestre Ciro (BA) faz uma chamada para aluna do grupo Bantus
Capoeira. Os jogadores brincam, compõem um jogo e sabem que estão sendo observados.
O espetáculo de performance procura passar sensações por meios de signos, o se preocupa
em apresentar um discurso racional. É mais importante o como fazer do que o que fazer. É uma
linguagem que rompe com a representação e valoriza o instante, caracterizando-se como uma
situação de rito.
Na performance uma acentuação muito maior do instante presente, do momento
da ação [...]. Isso cria a caractestica de rito, com o público sendo não só mais
espectador, e sim, estando numa espécie de comunhão [...].
A característica de evento da performance [...] acentuam essa condição, dando ao
público uma característica de cumplicidade, de testemunha do que aconteceu. (COHEN,
2002, p. 97/98).
O imprevisto é algo sempre presente na performance, por mais que se tenha algo organizado
para ser apresentado, quase nunca se trata de um espetáculo fechado, pronto. A situação de
imprevisto para o espectador e para o performer proporciona a quebra da representação e a
aproximação com situações de vida que pressupõem o inesperado. (COHEN, 2002).
Cohen diz que o ator ou performer nunca está atuando. Para ele, o existe estado de
espontaneidade absoluta. Mesmo quando o ator está em situação autorreferente, ele está em um
estado de representação. Trata-se de uma situação paradoxal em que dois extremos se tocam: eu
o sou mais ‗eu‘ e ao mesmo tempo eu não ‗represento‖ (2002, p.96).
61
O atuante, na performance, é criador e intérprete da obra. O performer trabalha com suas
habilidades, suas idiossincrasias, desenvolve a criação de um repertório próprio. Isso configura a
marca, o estilo ou a linguagem própria do artista ou do grupo.
Na roda de capoeira, os capoeiristas estão ocupados em jogar capoeira, o foco deles está na
ação e o no que essa ão possa vir a significar, embora a roda seja um lugar repleto de
significados.
Imprevistos acontecem a todo o momento no jogo de capoeira, os jogadores tem seus
repertórios de movimentos, mas eles lidam com o inesperado a cada instante, não sabem o que
seus parceiros de jogo vão fazer, estão sempre improvisando. Cada capoeirista tem sua marca
própria, um estilo de jogo que o caracteriza. Os membros de um mesmo grupo de capoeira
conseguem identificar o estilo de cada jogador. Isso faz com que na roda, algumas vezes
jogadores consigam prever a ação de seus companheiros e jogar com mais variedades de contra-
ataques.
Figura 20: Um capoeirista que salta, surpreende seu parceiro com um movimento inesperado. Foto: Leandro
Couri, 2008.
Schechner (2003) discursa sobre diversas maneiras de se entender a performance, seja ela
artística, cotidiana ou ritualística. Para ele, a performance é ―um conceito que se refere a eventos
definidos e delimitados, marcados por contexto, convenção, uso e tradição.‖ (2003, p. 25). Mas,
62
ele explica que qualquer evento pode ser examinado como se fosse performance. Para isso, é
necessário investigar o que o evento faz, como ele interage e se relaciona com outros elementos.
O autor explica que fazer performance é um ato que pode ser entendido em relação a ser,
fazer, mostrar-se fazendo e explicar ações demonstradas. Schechner (2003) afirma que ser é
existência em si mesma. Fazer é a atividade de tudo que existe. Mostrar-se fazendo é performar e
explicar as ações demonstradas é o trabalho dos Estudos da Performance. É um esforço
reflexivo para compreender o mundo da performance e o mundo como performance.
Para Schechner (2003), performances artísticas, rituais ou cotidianas são feitas de
comportamentos restaurados. O autor esclarece que comportamento restaurado são os
comportamentos duplamente exercidos, ações que as pessoas treinam ou praticam rias vezes
para conseguirem desempenhar. No caso de uma performance teatral, por exemplo, os atores
ensaiam repetidas vezes suas ações, textos e marcações para realizá-las em suas atuações.
Schechner lembra que também as ações cotidianas são repetidas e treinadas diversas vezes ao
longo de nossa existência, fazem parte do nosso aprendizado. No caso de alguns rituais, como o
nosso objeto de estudo, os capoeiristas se preparam para o evento, treinam golpes, esquivas,
aprendem as músicas para que na hora do ritual a roda eles consigam improvisar suas ações a
partir daquilo que aprenderam antes.
De acordo com Schechner (2003), apesar de as performances serem feitas de pedaços de
comportamentos restaurados, cada uma é diferente das outras. Os comportamentos restaurados
podem ser recombinados em inúmeras variações.
Para Schechner (2003), performance ocorre apenas ação, interação e relação. O performer faz
alguma coisa, realiza uma ação.
O autor observa que a performance ocorre em oito tipos de situações, que podem ser distintas
ou concomitantes. São elas: na vida diária (cozinhando, socializando-se, vivendo), nas artes, nos
esportes e entretenimentos populares, nos negócios, na tecnologia, no sexo, nos rituais e na
brincadeira. (SCHECHNER, 2003)
Schechner (2003) diz que o observador sempre toma um objeto para estudo a partir de sua
própria origem cultural. Por isso, muitas vezes um objeto que é considerado arte em uma cultura,
em outra faz parte de objetos ritualísticos. Ele discute como a classificação arte é difícil de ser
definida e como pode ser complexo separar arte de ritual. Para ele, decidir o que é arte depende
do contexto, uso e convenções locais. O autor comenta que mesmo quando uma performance
63
possui forte dimensão estética, ela não é, necessariamente, arte. Ele exemplifica esse comentário
citando a beleza dos movimentos dos jogadores de basquete, tão belos quanto os de um bailarino.
Mas, o basquete é esporte e o ballet é arte. Schechner (2003) também comenta o desempenho de
alguns atletas que praticam esportes de áreas próximas das artes, como patinação e ginástica
artística. Nessas modalidades não um método quantitativo para determinar vencedores. O
autor explica que esses atletas estéticos são avaliados qualitativamente e que suas performances
se parecem com apresentações de dança.
Os temas abordados no parágrafo anterior podem ser utilizados para algumas reflexões no
estudo da capoeira e no desempenho dos capoeiristas. A plasticidade dos movimentos dos corpos
dos jogadores apresenta traços estéticos que podem ser avaliados por muitos como belos. Não se
quer enquadrar a capoeira como arte, mas, a música, o gingado dos corpos e interação dos
jogadores disparam efeitos estéticos. A capoeira apresenta aspectos esportivos, ritualísticos,
perforticos, festivos, brincantes, espetaculares e de luta.
Schechner (2003) explica que o teatro enfatiza a narração e a personificação. O esporte, a
competão. E o ritual, a participação e a comunicação com seres ou forças transcendentais. A
capoeira compartilha de tais características apontadas por Schechner para se referir ao teatro, ao
ritual e ao esporte. Durante o jogo da capoeira, os jogadores estabelecem um diálogo, narrado por
seus corpos em situação de improviso constante. Muitas vezes, também o cantador contribui para
a narração do que está acontecendo na roda por meio das letras das cantigas. Os golpes e defesas
realizados pelos jogadores caracterizam a luta e enfatizam o aspecto competidor que pode
acontecer durante alguns momentos da roda de capoeira. Vista como um ritual, a roda de capoeira
reúne seus praticantes em um evento afirmando o aspecto de comunidade entre eles. Durante a
roda, muitas vezes instala-se uma atmosfera sagrada, dentro do rculo. Muitos jogadores
costumam pedir proteção espiritual antes de realizar um jogo.
10
Performances são comportamentos marcados, emoldurados ou acentuados, separados do
simples viver ou comportamentos restaurados restaurados (SCHECHNER, 2003, p. 35). O
autor ressalta que todos os comportamentos são restaurados, consistem em recombinações de
partes de comportamentos previamente exercidos e podem ser marcados por convenções estéticas
10
Como no movimento de saudação realizado pelos jogadores agachados ao ―pé‖ do berimbau antes de dar início ao
jogo, como foi descrito no capítulo anterior.
64
como no caso do teatro, ou podem estar contidos nas ações codificadas, como as regras de um
jogo.
Schechner (2003) explica que qualquer ação pode ser performance desde que o contexto
hisrico-social, as convenções e a tradição a qualifiquem como tal. O autor esclarece que não
nada inerente a uma ação que a caracterize ou não como sendo uma performance. A prática
cultural de uma sociedade é que fará com que algumas coisas sejam vividas como performance e
outras não. ―Ser ou não ser performance independe do evento em si mesmo, mas do modo como
é recebido e localizado em um determinado universo.‖ (SCHECHNER, 2003, p.38).
Partindo da afirmação de Schechner (2003) de qualquer comportamento, evento, ação ou
coisa pode ser estudado como se fosse performance e analisado em termos de ação,
comportamento e exibição, pode-se considerar a roda de capoeira como uma performance. Os
jogadores, tocadores, cantadores e participantes estão realizando uma ação previamente
preparada. A roda é o momento dos jogadores recombinarem os comportamentos previamente
estudados e praticados durante os treinos. Em muitos casos há uma tradição de fazer a roda em tal
dia e em determinado local. Quando a roda acontece em um lugar blico, os capoeiristas estão
agindo e se mostrando para o público que transita naquela rua e para os demais participantes.
Quando a roda acontece em locais fechados, como em academias, os jogadores estão se
mostrando uns para os outros. Todas as ações são carregadas de significados. Cada jogador tem
uma maneira muito particular de realizar sua performance na roda.
Schechner (2003) aponta algumas funções da performance: entreter; fazer algo belo, marcar
ou mudar identidade; fazer ou estimular uma comunidade; curar; ensinar; persuadir ou
convencer; lidar com o sagrado e com o demoníaco.
O autor afirma que não hierarquia entre as funções apontadas, para algumas pessoas certas
funções serão mais importantes do que outras, dependendo também da situação. Muitas
performances exercem mais de uma função ao mesmo tempo e muito raramente uma
performance focaliza apenas uma.
A roda de capoeira apresenta diversas das fuões da performance mencionadas por
Schechner (2003). Uma roda tem a função de entreter e agradar seus praticantes e observadores.
A habilidade corporal dos jogadores, a plasticidade dos movimentos de capoeira e a música
produzida pelos instrumentos da roda podem proporcionar prazer estético para quem participa e
para quem assiste. A roda de capoeira é um lugar para se marcar a identidade do grupo e, no caso
65
de rodas especiais como as de batizado ou formatura de aluno, pode também mudar ou garantir a
identidade daquele membro. A reunião frequente de vários participantes na roda de capoeira
estabelece um sentimento de comunidade entre os participantes, que se sentem parte de um time.
Um mestre de capoeira pode aproveitar a situação da roda para ensinar determinados
comportamentos a seus alunos. Os capoeiristas presentes na roda aprendem muito quando
observam jogos realizados por outros jogadores e quando escutam músicas novas cantadas por
diferentes cantadores. Capoeira não é religião, mas está próxima do sagrado, muitos de seus
praticantes evocam entidades protetoras para que lhes protejam durante a roda.
Schechner reforça que performances são referentes a eventos definidos, delimitados, marcado
por contexto, convenção, uso e tradição. O autor explica que existem várias maneiras de se
entender uma performance. Ele sugere algumas questões que podem ser usadas para examiná-
las. ―Como um evento dispôs do espaço e se revelou ao longo do tempo? Que roupas e objetos
especiais foram utilizados? Que papéis foram interpretados e como estes diferem (se é que
diferem) daquilo que os performers realmente são? Como os eventos são controlados,
distribuídos, recebidos e avaliados?‖ (SCHECHNER, 2003, p.48).
No capítulo anterior, foi feita uma descrição da roda e do jogo da capoeira que respondem a
essas questões propostas por Schechner (2003) nos estudos da performance. Uma breve retomada
de algumas ideias será feita a seguir com o intuito de dialogar com as questões apresentadas pelo
autor. Uma roda de capoeira acontece em um determinado espaço e tem seu início e término
marcados por interferências sonoras do berimbau Gunga. A roda tem uma disposição espacial
circular e é formada por jogadores, coro, bateria de instrumentos percussivos e cantador. Muitos
capoeiristas que seguem o gênero Capoeira Regional vestem calça branca (abadá) com uma corda
que indica sua gradação e grau de hierarquia dentro de seu grupo. Em dias de eventos especiais
como batizados e rodas de festas, eles vestem também camisa branca. Os capoeiristas que
praticam a Capoeira Angola se vestem com calça e blusa que seguem as cores de suas respectivas
escolas. Os papeis assumidos pelos capoeiristas na roda correspondem ao grau de hierarquia que
eles possuem dentro de seus grupos. Mas, também existem os papeis que devem ser seguidos por
quem toca os instrumentos. Por exemplo, quem comanda a roda é o berimbau Gunga, isso
significa que quem estiver tocando este instrumento, mesmo que não seja um mestre, está
coordenando a roda naquele momento. Durante o jogo, os papéis exercidos são alternados
constantemente. Ora um jogador está comandando, ora ele está respondendo à proposta de seu
66
parceiro. Em determinados jogos, os capoeiristas que estão jogando são camaradas, mas, a
qualquer momento, podem transformar-se em adversários e logo depois podem brincar como
parceiros novamente. Na vida cotidiana, muitos capoeiristas mantêm o respeito pelos mestres e
professores de capoeira. As rodas de capoeira o programadas e controladas pelos mestres ou
capoeiristas anfitriões que convidam outros para participarem. No caso de acontecer algo
inesperado que vá contra os princípios do mestre que comanda a roda, ele pode retirar alguém da
roda ou pedir para que aquilo não se repita. A avaliação de uma roda de capoeira acontece
sensorialmente pelos capoeiristas presentes que sentem a energia do jogo, do canto e dos toques.
Quando uma roda está boa, os capoeiristas costumam dizer que a roda está com axé.
Esta pesquisa apresenta o tema performance porque a capoeira tem características expressivas
em comum com esse campo das artes cênicas, como algumas citadas acima. Mas traçar um
paralelo entre capoeira e performance ou apontar todas as possibilidades de compreensão deste
último termo não são o objetivo principal deste trabalho. Terrin (2004) faz um recorte de diversos
olhares de estudiosos que se dedicaram a estudar a performance. Esta pesquisa faz uso das ideias
indicadas por Terrin (2004) para aproximar esse conceito da capoeira. Terrin ressalta a
importância de se distinguir performance de comportamento. Fazendo refencia a outros
teóricos como L. Sullivan, ele esclarece que ―na performance existe uma qualidade do
conhecimento como algo que se constitui no nível simbólico e que, por isso, comporta alguma
coisa criativa, realizada, e também transcendente em relação ao curso ordinário dos eventos.
(TERRIN, 2004, p. 352). Para ele, a performance é uma ação comunicativa que precisa ser
reconhecida como tal. Trata-se de uma ação regulada por normas. Portanto, é também repetível.
O autor aponta algumas características da performance como a existência de um
deslocamento da consciência, que seria a própria consciência da performance. Esse movimento
de deslocamento da situação torna possível um momento de reflexão, de escutar a si próprio.
Outra característica da performance é a sua intensidade, que está relacionada ao termo fluxo.
Para Schechner, mencionando por Terrin (2004), o fluxo é concentração e a presença em
determinada realidade. A intensidade da performance está associada à imersão total no evento,
fazendo dele um momento de concentração de tempo, espaço, energia, som e movimento.
Outro elemento da performance é a interação entre performer e plateia: é um momento de
comunicação de troca de experiências. Para que seja possível essa troca, sem estranhamento entre
67
plateia e performer, é necessário que se estabeleça um contexto específico de execução da
performance.
A roda de capoeira, apesar se ser um evento frequente na vida dos capoeiristas, é sempre
carregada de uma intensidade que a difere da vida cotidiana e até mesmo dos treinos e aulas de
capoeira. No momento da roda, os capoeiristas concentram suas energias naquele evento. Durante
o jogo, o capoeirista está imerso no fluxo da roda. Mesmo concentrado em seu jogo, o capoeirista
está sempre se mostrando para uma plateia, mesmo que não seja esse seu objetivo na roda. Ele
está sempre sendo visto pelos outros membros da roda ou por quem estiver assistindo a essa
prática.
68
Figura 21 Desenho 5 de Carlos Wolney, 2010.
69
4. A IMPROVISAÇÃO NA RODA DA CAPOEIRA
O jogo da capoeira tem muitos aspectos que se assemelham aos da improvisação teatral.
Para apontar algumas dessas semelhanças, buscou-se refencia nos estudos desenvolvidos por
Muniz (2006a e 2006b) e Johnstone (2000). É na roda que os capoeiristas têm a oportunidade de
por em prática o seu repertório de movimentos e experimentar diálogos com o outro jogador,
estabelecer um jogo improvisado, que pode ser entendido como um texto, traçando um paralelo
com o teatro, construído na hora da atuação. Para Muniz, a improvisação cênica é a arte da
reorganização das ferramentas do ator, de sua bagagem e recursos, a partir de estruturas
dramatúrgicas conhecidas e estudadas que o permitem recriar, a cada apresentação, algo de novo
e surpreendente‖ (2006a, p.17).
Muniz (2006b) destaca os pontos fundamentais da improvisação propostos por Johnstone.
Esses pontos facilitam o desbloqueio da imaginação e propiciam o desenvolvimento de cenas
improvisadas. São eles: a escuta; o rebote; a oferta; a aceitação e o bloqueio; o jogo de status; a
criação e quebra de rotinas.
O ator-improvisador deve estar aberto e atento aos estímulos e dar-lhes a importância que
merecem. Escutar, de acordo com Muniz, é ―estar disponível às ofertas e aos estímulos
provenientes de nossos companheiros, do público, do espaço e de nós mesmos(2006b, p.13). A
autora explica que a escuta aos estímulos leva a associações, a reações. Na improvisação é
interessante que o tempo entre um estímulo e sua reação seja dinâmico. O ator deve procurar
fazer livres associações referentes ao estímulo escutado.
As reações aos estímulos são chamadas de rebote, segundo Muniz (2006b). Para ela, o
rebote pode acontecer de diversas maneiras. O mais importante é que o tempo de reação seja
breve. Não é bom que haja tempo para a vida. Deve-se valorizar a primeira reação, o primeiro
impulso. Duvidar entre possíveis rebotes é censurar a imaginação.
Muniz proe o esquema da situação ideal‖ de uma cena improvisada: A escuta gera um
rebote, que gera um desenvolvimento desse rebote, que gera escuta, que gera rebote, que gera um
desenvolvimento desse rebote e assim sucessivamente.
Na roda de capoeira, o jogador que está jogando deve estar atento aos estímulos que
chegam até ele e reagir imediatamente, sem vacilar na hora da resposta. Por exemplo, um jogador
70
realiza um golpe, o outro reage com uma esquiva a esse golpe e desenvolve essa ação
transformando a esquiva em um movimento que se transforma em um golpe, o outro jogador
reage a esse golpe com outro movimento. Assim, várias maneiras de se reagir a um estímulo
proposto por um capoeirista no jogo. Pode ser uma esquiva, um contra-ataque, uma saída com
outro golpe. Além dos estímulos vindos do parceiro de jogo, outras possibilidades de
estímulos na roda, como as letras das cantigas de capoeira que influenciam as atitudes no jogo e
também podem ser rebote de alguma ação realizada pelos jogadores. Por exemplo, o jogo pode
estar um pouco travado, sem escuta, e o cantador pode sugerir que os jogadores deem uma ―volta
ao mundo‖
11
cantando: O Iamandou dar/ Uma volta !...‖. Um exemplo de uma situação de
jogo que provoca um rebote no cantador é o caso de uma rasteira aplicada em um dos jogadores,
mas quem levou a rasteira não chega a cair totalmente, consegue se proteger levando as mãos ao
chão antes de cair sentado. O cantador, ao ver o acontecido, pode cantar: ―Escorregar não é cair, é
um jeito que o corpo dá...‖
Na improvisação, segundo Muniz (2006b), o ator deve aceitar os estímulos/oferta para
que a ação improvisada avance. Quando um improvisador nega uma oferta, a improvisação cai,
geralmente, em confronto entre duas propostas, fazendo com que o público perca o interesse pela
cena.
Na capoeira há constantes ofertas vindas dos dois jogadores. Para que o jogo se
desenvolva, é preciso aceitar a proposta do parceiro e jogar com ela, transformá-la e propor em
cima dessa oferta. Se um dos jogadores não deixa o jogo fluir, fica apenas bloqueando o jogo do
outro, esperando uma oportunidade para derrubá-lo, o jogo fica travado, e, consequentemente,
desinteressante para quem joga e para quem o vê. Diferentemente da improvisação cênica, a
capoeira não tem como objetivo ser uma apresentação para uma plateia, mas apresenta
características espetaculares. Portanto, é esperado que o jogo seja interessante para quem joga,
para quem toca, canta ou quem apenas assiste. Assim, um jogo fluido, com aceitação de
propostas prende mais o olhar e a atenção de todos os participantes da roda.
Outro ponto fundamental da improvisação é o jogo de status. ―As relações em cena se
definem pela flutuação do status entre os personagens‖ (MUNIZ, 2006b, p.13). A autora explica
11
―Volta ao mundo‖ é um momento do jogo em que os jogadores suspendem temporariamente a ação de golpes e
esquivas e circulam a roda caminhando e logo retomam o jogo.
71
que, de acordo com Johnstone (2000), na improvisação e na vida, a relação entre os personagens
se constrói à medida que cada um atua, estabelecendo um jogo flutuante de status. Um
personagem atua hora com status alto, hora com status baixo.
Os capoeiristas, durante um jogo, têm seu status alterado constantemente. Quase sempre,
o jogador tenta jogar com status alto, mas pode acontecer de, na tentativa de estar por cima o
tempo todo, ele acabar tendo seu status rebaixado. Por exemplo, se um jogador estrutura seu jogo
agressivamente, de maneira que só ele ataque, para os olhos de quem assiste ao jogo, esse jogador
está com status baixo, pois, de acordo com Johnstone, em muitos casos o observador tem empatia
por quem está sofrendo em uma relação e isso acaba por subir o status de quem está por baixo.
Para Johnstone (2000), saber jogar com status é uma questão de habilidade. As alterações
de status ocorrem o tempo todo. Quando um conflito, elas ficam mais latentes. No jogo
capoeira conflitos, isso faz com haja muita oscilação de status. Quem ataca pode estar com
status alto e cair de status rapidamente se o seu parceiro de jogo conseguir sair bem do ataque e
surpreendê-lo com um eficiente contra-ataque.
Johnstone (2000) explica que na cena os personagens podem desempenhar um status
oposto ao qual eles acham que estão desempenhando. Na capoeira isso também acontece.
Aparentemente, o jogador que se movimenta muito, faz muitos floreios, está com status alto.
Mas, pode ser o contrário. O gasto de energia desnecessário para executar o excesso de
movimentos pode caracterizar uma postura de status baixo. Muitos mestres de capoeira mais
antigos, com muita experiência e uma boa visão de jogo, se movimentam precisamente e apenas
o necessário, guardam sua energia para aplicá-la em um golpe realmente efetivo. Isso mostra sua
sabedoria e caracteriza seu status alto.
Muitas vezes, quem consegue visualizar a possibilidade de efetivar um golpe, mas tem a
destreza de parar ou segurar o golpe a poucos centímetros do parceiro, mostra ter mais donio
dos movimentos do que quem concretiza realmente o golpe. Nesse caso, o jogador que para o
golpe em vez de efetivá-lo, joga com status alto. Enquanto o que aplica realmente o golpe, nem
sempre está jogando com status alto, apesar de acreditar estar por cima.
De acordo com Johnstone (2000), quando um personagem de status muito alto é
destronado, todos sentem prazer. Na capoeira, quando um aluno iniciante consegue derrubar um
capoeirista experiente como um professor, contra-mestre ou mestre, todos que estão participando
72
da roda e conhecem a diferença de graduação entre os jogadores vibram com a queda do
experiente e com o sucesso do iniciante.
Johnstone (2000) explica que as pessoas têm um status preferido para jogar e se
aperfeiçoam nele. quem prefira jogar com status baixo e quem prefira o alto. Na roda de
capoeira isso também acontece. capoeiristas que preferem jogar no ataque, com uma postura
de comando, enquanto outros que preferem as esquivas, o corpo mais fechado, sem muita
exposição, sempre esperando o que vem do outro.
Algumas posturas ilustram bem o tipo de status em que se está jogando. Posições
arqueadas, muito protegidas, normalmente apontam um status baixo. posturas abertas e
alongadas são mais adotadas por quem está jogando com status alto.
Na roda de capoeira, essas posturas podem facilmente ter o status invertido, o jogador tem
que saber dominar bem o jogo para se manter no status desejado. Quem adota uma postura mais
aberta parece estar por cima, mas pode estar muito desprotegido, e deve estar atento para
possíveis ataques, pois está mais exposto. Os capoeiristas experientes se mostram desprotegidos,
quando na verdade estão bem preparados para responder a um golpe. Eles fingem estar distraídos,
mas estão atentos. os jogadores que ficam o tempo todo muito protegidos, com posturas mais
fechadas, podem ser mais difíceis de serem pegos em um ataque, pois nunca se expõem. Mas isso
pode travar o jogo impedindo a fluidez dos movimentos, fazendo com que o jogo fique
desinteressante. Isso abaixa seu status.
Figura 22: Desenho de Caribé (CARYBÉ, 1955, p.25).
73
O desenho anterior, de Caribé, mostra dois jogadores de capoeira realizando um
movimento de chamada
12
. O jogador que está de pé, à esquerda (1), foi quem chamou o outro (2),
que respondeu à chamada abaixado à altura da cintura do jogador 1. A ilustração sugere que o
jogador 1 esteja com status alto, devido à sua postura alongada, que indica uma posição de
superioridade em relação ao jogador 2.
Para Muniz (2006b), na improvisação cada ação estabelece uma rotina que deve ser
desenvolvida até que perca seu interesse para o público. Na capoeira o jogo se estabelece por
meio de movimentos que funcionam como perguntas e respostas. Se o jogo continua sempre na
mesma frequência, pode se tornar previsível e desinteressante para os jogadores e para o coro.
Assim, é bom que os jogadores introduzam elementos surpreendentes durante o jogo para
estabelecer uma quebra de rotina. No caso da Capoeira Regional, um salto mortal ou uma
acrobacia de difícil execução realizada no meio de um jogo de golpes pode surpreender o
parceiro e gerar um novo tipo de energia para o jogo. Na Capoeira Angola, uma chamada para o
passo a dois pode ser usada como uma proposição de um novo desenvolvimento do jogo. Em
ambos os estilos, o recurso de variação de ritmo em um ou mais movimentos pode também
causar esse estranhamento provocando quebra da rotina. O tocador do berimbau Gunga também
pode provocar uma quebra de rotina ao mudar o tipo de toque executado, convocando os
jogadores a mudarem o estilo de jogo ou o comportamento dentro da roda.
12
Chamada ou chamada para o passo a dois é um momento do jogo que pode ser realizado de diversas maneiras.
Assim como a ―volta ao mundo‖, é um momento de suspensão temporário de jogo. Funciona como um breve
intervalo que pode ter diversas funções como estudo de novas estratégias de jogo, pausa para que um dos jogadores
respire, retomada de forças para um jogador que tomou uma queda, interrupção de um possível rebote proveniente de
um ataque com sucesso e outros.
74
Figura 23: Salto mortal na roda de capoeira. Foto: Leandro Couri, 2008.
Na improvisação cênica, Muniz (2006b) afirma que o ator-improvisador deve ter grande
consciência do interesse de cada ação realizada em cena. Além disso, deve estar atento a cada
pequena reação do público. A autora assegura que a capacidade de percepção do público e
domínio do tempo de cada ação requer grande treinamento e experiência do ator-improvisador.
Figura 24: Olhar atento na roda, escuta aberta e pronto para rebote. Foto: Leandro Couri, 2008.
75
O capoeirista, diferentemente do ator, não tem o objetivo específico de se preocupar com
a reação do público, apesar de isso também interferir na sua performance na roda. Mas, quando
um jogo tem dinâmica, quebra de rotina, aceitação de propostas, fluidez dos movimentos,
espontaneidade nas reações e oscilação de status, o público e os próprios jogadores se interessam
pela roda. Quanto mais o capoeirista treina, melhor será o seu desempenho na roda. O
treinamento do capoeirista envolve o aprendizado da técnica dos movimentos do jogo como os
golpes, esquivas, floreios e deslocamentos. Cantar e aprender letras de músicas de capoeira
também é muito importante para o capoeirista propor músicas e até saber improvisar um corrido
se a situação do jogo abrir espaço para isso. Tocar instrumentos e conhecer os tipos de toque e
variações que cada um faz durante a roda também faz parte do treinamento dos capoeiristas.
Além do treinamento, quanto mais participação em rodas o capoeirista tiver, melhor ele vai
conseguir organizar seu repertório para executá-lo durante o jogo, ou quando estiver cantando ou
tocando.
O fracasso é sempre uma possibilidade na cena improvisada. Também na capoeira, o
fracasso está presente. Nem sempre o capoeirista consegue ter um bom desempenho no jogo.
situações no jogo em que o diálogo não acontece. Também roda em que as cantigas não
combinam com os jogos. Há casos de roda em que a bateria não consegue ter harmonia entre si e
nem com os jogadores. Portanto, o capoeirista deve estar sempre atento, tentar ativar a sua
capacidade de escuta para estar pronto para responder rapidamente aos estímulos que lhe são
oferecidos. Se isso ocorre, cresce a possibilidade de êxito em relação ao fracasso. ―A
improvisação é arte da escuta e da velocidade da reação‖, diz Muniz (2006b, p.14).
Cada roda é única. O que acontece em uma roda nunca se repetirá. Os capoeiristas têm
que aproveitar ao máximo as possibilidades de realizar uma boa improvisação durante aquele
momento especial que é a roda de capoeira um rito espetacular que depende do acaso da
situação e da astúcia, do treinamento, da técnica e da vontade dos capoeiristas.
O jogo da capoeira conjuga elementos de luta que exigem grande nível de concentração
com a descontração e espontaneidade de uma brincadeira. Para Lima:
Ela (capoeira) se constitui como um engenhoso complexo que comporta uma
multiplicidade de formas de modo harmonioso, provoca envolvimento e intensidade nas
relações, atua, portanto como um jogo. [...] Ela é um jogo que se constitui em um
complexo de interação de formas e elementos, como é o teatro em suas várias
circunstâncias (LIMA, 2002, p. 79).
76
Nestor Capoeira (1985) observa que a capoeira é lúdica como o teatro, sem perder seu
aspecto de luta. A técnica é importante, mas mais importante é a malícia, que vai permitir que o
jogador saiba usar a técnica.
Assim como o ator, o capoeirista necessita de um digo ou um conjunto de regras para
que consiga estabelecer um jogo. Mesmo sendo uma atividade de liberdade de sequência de
golpes e esquivas, o capoeirista precisa de regras para conseguir criar movimentos.
Como na improvisação teatral, o capoeirista procura ter objetivos para executar
determinado movimento, tenta utilizar bem sua energia e ser eficiente, pois, não sabe quanto
tempo o jogo vai durar. Breda (1999) observa que a capoeira é ―uma atividade na qual realiza-se
um simulacro, equivalente físico do processo de improvisação teatral(1999, p. 5).
O jogo de capoeira é uma sequência de imprevistos. A roda de capoeira exige que os
jogadores realizem uma improvisação de sequências de movimentos, sem perder a atenção para
tudo aquilo que está à sua volta, como o seu parceiro, os instrumentos e a música. Assim como na
improvisação o ator deve trabalhar a escuta, o capoeirista deve estar em estado de alerta. ―A
capacidade de improvisação, o inesperado e a constante relão que se estabelece no jogo exigem
do capoeirista uma permanente criatividade(MATA, 2001, p. 66).
A roda de capoeira é o lugar e o momento em que os capoeiristas em em prática o seu
repertório de movimentos. Na roda, cabe ao capoeirista demonstrar equilíbrio e reflexo, podendo
escolher entre um jogo mais duro ou simplesmente um floreado, em que exibe sua capacidade
criativa‖ (SODRÉ, 2002, p. 69).
A conexão entre os capoeiristas se por meio do jogo. Os jogadores utilizam seus
corpos, movimentando-se, realizando golpes e esquivas. Mas, ―capoeira não é mera disciplina
esportiva, e sim uma arte mandingueira do corpo em suma, um jogo em que passado, presente e
futuro podem por-se juntos num movimento ou num repente‖ (2002, p.87), explica Sodré. Para
ele, a capoeira ―é uma prática integrada de luta, dança, canto, toque e forma de pensar o mundo‖
(2002, p.22). Para esse autor, os fundamentos da capoeira são flexibilidade, velocidade do
impulso, ritmo corporal e malícia.
Arte-jogo, malícia é palavra chave. É a malícia que indica com precisão a capacidade do
capoeirista de superar a história do seu ego (a consciência dos hábitos adquiridos e
consolidados) e adotar, em questão de segundos, uma atitude nova. [...] Na capoeira,
77
tudo se passa sem esquemas nem planos preconcebidos. É o corpo soberano, solto em
seu movimento, entregue ao seu próprio ritmo, que encontra instintivamente o seu
caminho. Senhor do seu corpo, o capoeirista improvisa sempre e, como artista, cria.
(2002, p.22).
Durante o jogo, os capoeiristas procuram ser objetivos, realizar os golpes e movimentos
com eficiência e sempre manter a conexão com o parceiro. Jogar com o outro. Essas ideias
encontram ressonância nas artes cênicas como no trabalho desenvolvido por Grotowski (1976).
Esse encenador elaborou uma série de exercícios físicos que eram realizados por seus atores. Para
ele, o impulso de realizar o movimento é muito importante e deve vir, visivelmente, do corpo.
Grotowski alertava os atores de que eles nunca deveriam fazer nada que o se harmonizasse
com o seu impulso vital, nada de que eles não pudessem prestar contas. As ações dos atores
devem ser conscientes e dinâmicas, como resultados de impulsos definitivos. ―Todo o nosso
corpo deve se adaptar a cada movimento, por menor que seja o movimento‖ (GROTOWSKI,
1976, p. 147).
Depois de dominados os exercícios, os atores de Grotowski os combinavam na realização
de improvisações. A técnica dos exercícios deveria servir apenas como detalhe, na hora da
improvisação, nenhuma preparação era permitida. ―Somente a autenticidade é necessária,
absolutamente obrigatória. A improvisação deve ser inteiramente sem planificação anterior, caso
contrário toda a naturalidade será destruída‖ (1976, p.147).
Na capoeira, os alunos também treinam bastante os movimentos até conseguirem dominar
a execução. Quando estão jogando na roda, eles realizam uma sequência improvisada de golpes e
esquivas. Na hora da roda, os movimentos devem ser espontâneos, sem planejamento de
execução.
Grotowski (1976) dizia que não é possível ensinar algum método pré-fabricado na arte de
representação. Para ele, os todos levavam a estereótipos, então, ele sugeria que cada ator
buscasse suas limitações pessoais, seus obstáculos e as maneiras de superá-los. O teatro se
baseava nas relações segundo o diretor.
Eliminem de cada tipo de exercício qualquer movimento que seja puramente ginástico.
Se desejam fazer este tipo de coisa ginástica ou acrobacia façam sempre como uma
ação espontânea contada ao mundo exterior, a outras pessoas ou objetos. Algo os
estimula e vocês reagem: aí está o segredo. Estímulos, impulsos, reações. (1976, p. 172).
78
A relação proposta por Grotowski era sempre com o intuito de dirigir-se a alguém ou
alguma coisa. O ator deve dar-se, e não representar para si mesmo ou para o espectador. Sua
procura deve ser dirigida de dentro dele em direção ao exterior, mas não para o exterior.‖ (1976,
p.189).
Assim como o ator está sempre em relação a alguém ou alguma coisa, o capoeirista, na
roda, está jogando com alguém. Seus movimentos e reações são diante de seu adversário e diante
de todos os outros integrantes da roda.
Grotowski (1976) propunha que o ator deveria ir além de si mesmo, derrubar seus
bloqueios, usar o treinamento para ir além de seus limites. Na tentativa de fazer coisas
impossíveis, o ator libertaria o seu corpo para abrir o processo criativo. A criatividade, segundo
ele, nunca é confortável.
O capoeirista está sempre vencendo seus limites. A prática de alguns exercícios e golpes
que parecem difíceis vai sendo aprendida e dominada pelo corpo aos poucos. situações em
rodas que o jogador consegue executar movimentos com extrema espontaneidade ou apresenta
respostas aos golpes que ele jamais se imaginaria fazendo.
O jogo da capoeira angola se caracteriza por uma busca constante da criatividade e da
comunicação corporal com o outro jogador, o diálogo dos corpos, uma sintonia que faz o
jogo fluir. Os capoeiristas precisam ser leves, ter grande flexibilidade no corpo, gingar,
movimentar-se e perceber o outro, para, no momento oportuno, soltar seu golpe.
(MATA, 2001, p. 101).
O jogo, para Huizinga (2007), possui características lúdicas. Essas características são:
ordem, tensão, movimentos, mudança, solenidade, ritmo, entusiasmo‖ (2007, p. 21). Todos
esses elementos estão presentes no jogo da capoeira, que pode ser visto como diálogo corporal
em que os jogadores estão completamente envolvidos na atividade desempenhada, sabendo que
se trata de apenas de um jogo. A roda de capoeira é um lugar onde os corpos em jogo estão se
expressando. O jogo só se estabelece na relação.
79
Figura 25 Desenho 6 de Carlos Wolney, 2010.
80
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
5.1. A alegria na capoeira
Figura 26: Mestre Lua Rasta. Foto: Leandro Couri, 2008.
O jogo da capoeira reúne corpos em situação de liberdade. Os jogadores estão em
constante relação, em uma conversa física, um diálogo corporal e sensorial. O corpo no jogo é
pleno espírito e sico. Não há o que separe o pensamento da ação. O pensamento é aunomo e
infinito, o corpo é aunomo e infinito. infinitos modos de movimentos na extensão do corpo.
O jogador pensa em movimento, o próprio jogo cria corpo e pensamento. Enquanto acontece o
jogo, o capoeirista pensa com o corpo todo e com cada parte dele. Os golpes, esquivas e floreios
acontecem por impulsos inteligentes do corpo pleno. Não hierarquia da razão sobre o corpo e
nem do corpo físico sobre a mente. O jogador é o que ele pode. Mas ele o sabe o que ele pode.
Por isso, na roda, ele está em constante movimento, em situação de devir.
81
A liberdade do corpo se expressa na roda de capoeira. Preparar os instrumentos, reunir os
camaradas, formar o rculo e começar a tocar a música. O toque do berimbau Gunga chamando
os outros instrumentos, as variações do berimbau Viola, a marcação do atabaque, a batida do
pandeiro, o canto do puxador e a resposta do coro constituem uma composição sonora que traz
uma energia em vibração para a roda. Os jogadores se contaminam desta energia o axé e se
preparam para jogar. A é boa energia, alto astral. Na etimologia ioruba, Axé é compreendido
como energia vital, verdadeira presença de Deus nas forças e formas da natureza, assim como no
interior dos seres humanos (LIGIÉRO, 2006).
Jogar capoeira é uma maneira de experimentar a liberdade. A capoeira pode ser a
conquista da potência dos corpos em movimento em relação a outros corpos, ao espaço e à
música. O jogo da capoeira pode ser a ponte dos jogadores para eles alcançarem a ão. ão é
um estado de composição, de expressão. A expressão acontece no jogo da capoeira se os
capoeiristas se colocarem em movimento, se colocarem em devir. É necessário criar condições de
expressão, experimentação.
A relação entre dois jogadores pode ser vista como um encontro alegre de dois corpos em
variação e desenvolvimento de potência. São corpos ativos, em busca de aumento de potência.
Um jogador vai conseguir aumentar sua potência se o seu parceiro de jogo também for ativo. O
jogo da capoeira cresce quando ambos os jogadores são ativos. A capoeira é uma dança, um jogo,
uma brincadeira, um ritual e, sobretudo, uma luta. É no combate que os aspectos criativos são
revelados. Não há espaço para o ressentimento no jogo. Mesmo quando um capoeirista cai, ele
usa a queda para se fortalecer. O bom capoeirista o se deixa ser tomado pelo sentimento de
vingança nem de tristeza quando apanha ou quando ―se dá mal‖ na roda. Ele cresce e aprende que
maus encontros podem despertar forças para fa-lo reagir, aprende a transmutar os maus
encontros e não entrar no lugar do ressentimento. Ele mesmo pode ser ativo e modificar sua
própria potência. Ser alegre é uma condição necessária ao capoeirista.
Na vida, estamos sempre dentro de um dinamismo de forças, cada um de nós modifica o
mundo e é modificado por ele. A capoeira pode fazer com que o capoeirista consiga usar a alegria
da capoeira em sua vida em outros momentos além da roda. A capoeira pode despertar um estado
de percepção afinada das diversidades do mundo. A pessoa alegre sabe organizar bons encontros.
Nós estamos sujeitos a afetos. O afeto é a variação de potência, uma passagem de uma realidade
maior para uma menor ou de uma menor para uma maior. O aumento da nossa capacidade de
82
existir é a alegria, ou paixão alegre. Todos nós somos potências em ato. Potência é a capacidade
absoluta de acontecer, de produzir a si mesmo. É absolutamente inesgotável. A potência se
atualiza nos movimentos da mente e do corpo. (FUGANTI, 2007)
Figura 27: Roda de capoeira encontro alegre entre os capoeiristas. Foto: Leandro Couri, 1999.
O jogo ético da capoeira favorece a roda, o encontro, e não somente a um jogador. A roda
de capoeira oferece possibilidades de jogo ao jogador, não existem deveres, mas possibilidades.
Quem está jogando quer aumentar a sua potência e a do outro para que aconteça um bom
encontro com o aumento mútuo de potências. A capoeira é uma luta que se joga com o parceiro, e
o contra ele. Os jogadores se empenham para que o jogo seja um bom encontro. Não
perdedor no jogo de capoeira: os dois jogadores ganham.
A capoeira é uma atividade desenvolvida em grupo. O capoeirista se sente parte de uma
comunidade e quer que seu grupo cresça, seja forte. O mestre de capoeira é uma figura respeitada
dentro da comunidade. Existe uma hierarquia do mestre com relação aos discípulos. Ele detém o
conhecimento e o passa para os alunos. Sua maior satisfação está no fortalecimento de quem
aprende com ele. Seu objetivo é que, um dia, seus alunos o ultrapassem. O mestre ensina o que
ele sabe para o aluno e o incentiva a ir sempre em busca de mais conhecimento sobre capoeira.
Quanto mais fortes são os alunos, quanto mais eles sabem, mais forte será o grupo, a
83
comunidade. Todos os pertencentes ao grupo de capoeira vão experimentar as diferentes etapas
dos saberes. O mestre já foi iniciante, o aluno iniciante vai poder contribuir para a formação dos
futuros alunos, o aluno graduado quer que o novato aprenda mais para que eles possam
desenvolver bons jogos de capoeira. O mestre quer aumentar a potência de seus discípulos e
torná-los aliados.
A roda de capoeira é um lugar onde os corpos em jogo estão se expressando. Não
representação no jogo da capoeira quando o capoeirista está realmente entregue ao jogo, nada o
separa daquilo que ele pode. O jogo só se estabelece na relação.
“Nós, capoeiristas, temos alma grande
que cresce com alegria
há quem tenha alma pequena
que vive como as águas em agonia”.
Canto de ladainha - Mestre Pastinha
84
Figura 28: Desenho de Caribé (CARYBÉ, 1955, p.11).
5.2. Conclusão
Este trabalho teve o intuito de estudar alguns aspectos da Capoeira como potentes
elementos cênicos. Defendeu-se a ideia de que a capoeira é uma prática cultural que engloba
diversas modalidades como esporte, jogo, luta, dança, espetáculo, ritual, performance, folclore e
brincadeira. Dentre as características observadas na Capoeira, optou-se por destacar temas que
também atravessam o universo teatral. Esses temas são: ritual, jogo, espetáculo, performance e
improvisação.
A análise do objeto foi realizada a partir da observação de rodas e aulas de capoeira
realizadas em Minas Gerais e na Bahia e do conhecimento adquirido ao longo de mais uma
década de prática e pertencimento ao mundo da capoeiragem. Para compreender a capoeira, é
85
necessário experimentá-la corporalmente. Ao longo da pesquisa, na tentativa de descrever e
estudar o objeto, percebe-se que a capoeiragem guarda segredos e mistérios que são
inapreensíveis aos não iniciados na sua prática e até mesmo aos mestres mais antigos.
A capoeira é aqui apresentada como uma prática cultural brasileira com raízes africanas
que vem sofrendo algumas modificações e hoje é composta por diversos estilos e ritmos. Um
elemento instigante presente na capoeira que a torna enigmática até mesmo para quem a pratica é
a mandinga. Na tentativa de definir esse conceito, alguns mestres de capoeira dizem que
mandinga é o disfarce do capoeirista, que finge que vai, mas não vai é a capacidade de enganar
ou tapear seu companheiro de jogo. Nesse sentido, o conceito de mandinga está próximo ao de
malícia, astúcia e sagacidade. O termo mandinga também aparece como a proteção do capoeirista
fazer uma mandinga é como proteger o corpo com forças sagradas. Essa acepção estaria mais
próxima ao conceito de bruxaria. A partir dessas definições e da observação e conversa com
capoeiristas experientes, conclui-se que a mandinga é o ritual singular acionado por cada
capoeirista para buscar proteção e entrar em harmonia com a vibração do parceiro e da roda de
capoeira como um todo.
A prática da capoeira é um ritual que possui seus próprios códigos que envolvem ritmos,
movimentos, golpes, cantigas e jogo em um processo de invenção que tem início nos treinos e se
desenvolve na roda. O processo de aprendizagem da capoeira e a conquista da mandinga ocorrem
com práticas regulares, fundamentadas em regras, pressupondo persistência e continuidade.
Na roda de capoeira, cada jogador pode criar formas diversificadas de entrar e desenvolver o
jogo, inventando movimentos singulares e novas formas de expressão. O objetivo do jogo da capoeira
não é vencer, mas o ser vencido. O aprendizado da capoeira se continuamente no jogo. Por isso,
na roda, o que vale mais não é a força ou destreza corporal, mas o conhecimento adquirido com
experiência na capoeiragem, a capacidade de improvisação, o desprendimento e a malícia.
A roda de capoeira pode ser vista como uma manifestação cultural criada e realizada pelos
praticantes. Cada um contribui com suas habilidades e o coletivo de capoeiristas forma a roda,
que tem sua própria estética. A prática da roda de capoeira é um ritual e também se apresenta
como um espetáculo, no caso de rodas de rua, por exemplo, que apresentam alguns elementos
espetaculares, são eventos que tem o objetivo se serem vistos e prender o olhar de quem passa
por aquele local.
86
Assim como nas artes dos espetáculos, existe uma relação de público e atores na roda de
capoeira. Os jogadores são considerados os atuantes e quem observa a roda é público. Em alguns
casos, o mestre da roda convida as pessoas presentes para participarem e assistirem àquele evento
e, no fim da roda, ele se despede, anuncia quando será a próxima apresentação e agradece a
presença daquele público. Na fotografia abaixo, Mestre Pintor, do Grupo Bantus Capoeira (BH),
usa o berimbau, invertendo a posição da cabaça que funciona como amplificador do som para
agradecer aos participantes e à plateia da roda e fazer alguma comunicação. Essa prática é
também adotada por Mestre João Pequeno de Pastinha no fim das rodas em sua escola em
Salvador.
Figura 29: Mestre Pintor e berimbau. Foto: Leandro Couri, 2005.
A roda de capoeira produz um encantamento nos jogadores, que vivenciam uma espécie
de transe, gerado pelo ritmo e pelo canto. O jogo de capoeira é um momento onde seu corpo
torna-se performático e lhe revela dimensões desconhecidas, realizando movimentos e gestos
inesperados, únicos, imprevisíveis, impensáveis e espontâneos. A experiência da roda permite o
exercício de práticas corporal e mental diferenciadas do estado cotidiano. Os capoeiristas
alcançam esses estados alterados de corpo e de consciência à medida que se entregam ao jogo, ao
canto e à energia produzida naquele momento.
Alguns elementos da técnica da improvisação teatral foram utilizados para analisar o jogo
da capoeira. Os pontos fundamentais da improvisação (Johnstone, 2000) facilitam o desbloqueio
da imaginação e propiciam o desenvolvimento de cenas improvisadas. São eles: a escuta; o
87
rebote; a oferta; a aceitação e o bloqueio; o jogo de status; a criação e quebra de rotinas.
Destacou-se a presença desses pontos também na roda de capoeira. A partir da aproximação
desses dois universos, percebe-se que a prática da capoeira pode servir como recurso para o ator
treinar e desenvolver os elementos da improvisação.
Figura 30: Improvisação na roda de capoeira. Foto: Leandro Couri, 2005.
Na imagem acima, temos um exemplo de uma situação de improvisação. Mestre Jaime,
que está de pé, à esquerda, brinca com a ―plateia‖ comentando algo que se passou no jogo com o
outro jogador. Mestre Pintor está agachado, à direita. O comentário acontece por meio de uma
música cantada por ele e que pode ser respondida pelo outro jogador. A fotografia mostra como o
jogador atrai os observadores e os fazem participar da cena.
As características lúdicas da capoeira, como a mandinga e a brincadeira, a aproxima do
universo teatral. É possível fazer conexões entre jogo e improvisação na roda de capoeira, pois a
relação entre os capoeiristas é semelhante à conexão estabelecida entre os atores nos momentos
de improvisação cênica.
Esta pesquisa também apresentou as possibilidades de liberdade de expressão do corpo
por meio da capoeira usando como referencial o conceito de alegria como aumento de potência.
88
Na roda de capoeira há um equilíbrio de forças, as relações de poder são alternadas
constantemente. Cada capoeirista tem a oportunidade de se destacar, mostrar sua beleza, criar novas
formas de se expressar, atacar e escapar. Com a experiência desse equilíbrio de forças na roda, o
capoeirista desenvolve a capacidade de conhecer e de pertencer a si mesmo.
O corpo do capoeirista é seu arquivo de memórias. Durante o jogo, ao executar golpes,
esquivas e floreios, os capoeiristas acessam e expõem suas experiências, desejos, angústias e
histórias. O processo de escolha dos movimentos a serem destacados dentre tantos presentes no seu
repertório, exige do capoeirista um estado de atenção difusa, uma concentração descontraída, uma
prontidão brincante e, sobretudo, autoconhecimento.
A roda de capoeira é um momento extraordinário que cria e destrói hierarquias, constrói
identidade social e fortalece o sentimento de pertencimento à determinada comunidade. Esta pesquisa
percebe o ritual da roda de capoeira como uma força que gera um território lúdico, espetacular e
brincante para seus praticantes. A capoeira cria um mundo festivo, construído pela energia da
intensidade da vida.
Analisou-se aqui a potencialidade nica da capoeira. A partir das ideias e temas abordados
nesta pesquisa, lançam-se como propostas de futuros estudos a apropriação da capoeira como
elemento nico a ser trabalhado por atores e interessados e um estudo do corpo tendo a estética da
capoeira como referência. Para o desenvolvimento desses possíveis estudos, sugerem-se a análise e o
estudo dos movimentos da capoeira utilizando referencial teórico ligado às Artes Cênicas.
“Vamos embora ehê
Vamos embora camará
Pelo mundo afora ehê
Pelo mundo afora camará
Adeus, adeus
Boa viagem.”
89
Figura 31: Desenho de Caribé (CARYBÉ, 1955, p. 16).
90
REFERÊNCIAS
ABIB, Pedro Rodolpho Jungers. Capoeira Angola: cultura popular o jogo dos saberes. 2004,
172 f. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.
ABREU, Fred. Canjiquinha: alegria da capoeira. Salvador: A Rasteira, 1989.
ALVES, Flávio Soares. Uma conquista poética através da capoeira. In: MOTRIZ, Rio Claro.
V.9, n.3, p.175-180. UNICAMP, Set/dez, Campinas, 2003.
ASSUNÇÃO, Matthias Rohrig e MANSA, Mestre Cobrinha. A dança da zebra. Revista de
história da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. Ano 3, n. 30, p.14-21, março 2008.
BARBA, Eugênio e SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: Dicionário de Antropologia
teatral. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
BIÃO, Armindo. Um léxico para a etnocenologia: proposta preliminar. In: BIÃO, Armindo
(Org.) Anais do V Colóquio de Internacional de Etnocenologia. Salvador: GIPE-
CIT/PPGAC/UFBA (Fast Design), 2007a.
______ (org). Anais do V colóquio internacional de etnocenologia/ Universidade Federal da
Bahia, programa de Pós Graduação em Artes Cênicas. Salvador, Fast Design, 2007a.
______ (org). Artes do corpo e do espetáculo: questões de etnocenologia. Salvador: P&A
editora, 2007b.
BIÃO, Armindo; GREINER, Christine. (org). Etnocenologia, textos selecionados. São Paulo:
Annablume, 1998.
BRECHT, Bertold. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
BREDA, Marco Antonio Dornelles. Elementos da capoeira na preparação do ator. 1999. 61 f.
Dissertação (Mestrado em Teatro) - Universidade do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes.
CAPOEIRA, Nestor. Capoeira: os fundamentos da malícia. Rio de Janeiro: Record, 1992.
______. Galo já cantou. Rio de Janeiro: Arte Hoje, 1985.
______. O pequeno manual do jogador de capoeira. São Paulo: Ground, 1981.
CARYBÉ. Jogo da capoeira: desenhos de Caribé. Salvador: Livraria Progresso, 1955.
91
CASCUDO, Luiz mara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério da
educação e cultura, 1962.
CASTRO, Maurício Barros de. Na roda da capoeira. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2008.
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2002.
DELEUZE, G.; GUATARRI, F. Mil platôs capitalismo e esquizofrenia. vol. 1. RJ: 34, 1995a.
______ F. Mil platôs capitalismo e esquizofrenia. vol. 4. RJ: 34, 1995b.
FERRACINI, Rosember e MAIA, Carlos Eduardo. O espetáculo na praça: A roda de capoeira
angola. In: Espaço e Cultura. UERJ, Rio de Janeiro, n. 22, p. 32-42, jan/dez. 2007.
FUGANTI, Luiz. Aula sobre Espinosa no Galpão Cine Horto em 2/5/2007.
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Editora Atlas, 1999.
GROTOWSKI, Jersy. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1976.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva,
2007.
JAFFÉ, Aniela. O Símbolo como círculo. In: JUNG, Carl G. (org.). O Homem e seus símbolos.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.
JOHNSTONE, Keith. Impro: improvisación y El teatro. Santiago de Chile: Cuatro Ventos,
2000.
KHAZNADAR, Chérif. Contribuição para uma definição do conceito de etnocenologia. In:
BIÃO, Armindo; GREINER, Christine; (orgs.). Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo:
Annablume, 1999.
LIGIÉRO, Zeca. Iniciação ao candomblé. Rio de Janeiro: Nova Era, 2006.
LIMA, Evani Tavares. Capoeira Angola como treinamento para o ator. 2002, 202f.
Dissertação (Programa da s-graduação em Artes nicas) Universidade Federal da Bahia,
Escola de Daa e Escola de Teatro.
______. Capoeira Angola como treinamento do ator. Salvador: Fundação Pedro Calmon,
2008.
LINS, Daniel; FURTADO, Beatriz (org.). A alegria como força revolucionária ética e
estética da alegria. In: Rizomas. São Paulo: Hedra, 2008.
92
MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. São Paulo: Ática, 1994.
MATA, João da. A liberdade do corpo. Soma, capoeira angola e anarquismo. São Paulo:
Editora Imaginário, 2001.
MUNIZ, Mariana. O público não sabe o que vai ver. Os atores não sabem o que vão fazer. In: A
Chuteira: revista sobre palhaço e improvisação. Julho a setembro de 2006a. Ano 1. N 1.
______. Técnica de impro. In: A chuteira: revista sobre palhaço e improvisação. Outubro a
dezembro de 2006b. Ano 1, n 2.
NIETZSCHE, Friedrich, O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
NORONHA, Patcia Ayer de. Micropoticas da alegria na clínica coletiva na saúde mental
pública‖.Belo Horizonte, 2008.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2007.
PASSOS, João Luis Uchoa de Figueiredo. Capoeira e Performance no Mundo Globalizado.
Uma abordagem dos estudos da performance para o jogo da capoeira corpo, música e
experiência contemporânea. Projeto de tese de doutorado, USP, São Paulo, 2008.
PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003.
PELED, Yiftah. Interação Estados de performance na capoeira. Resumo pdf, UFSC/ Santa
Catarina. Vol. 2, n. 2, 2008.
PEQUENO, João, transcrito por LIMA, Luiz Augusto Normanha. Mestre João Pequeno: uma
vida de capoeira. São Paulo: Luiz Augusto Normanha Lima, 2000.
REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: Ensaio etnográfico. Salvador: Itapoã, 1968.
SANTANA, Sandra Regina de Oliveira. Capoeira Angola e técnica de dança: análise de
movimento e descrição de princípios para o treinamento técnico-corporal de dançarinos.
2003, 209 f. Dissertação ( mestrado) Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2003.
SANTOS, Marcelino dos. Capoeira e mandingas: Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos.
Salvador: A Rasteira, 1991.
SANTOS, Adailton. O estado pré-paradigmático da Etnocenologia. In: Cadernos do Gipe-
Cit, No. 1, Etnocenologia: A teorias e suas aplicações. PPGAC/UFBA, Salvador, 1998.
SCHCHNER, Richard. O que é performance. In: O Percevejo. Revista de teatro, crítica e
estética. Rio de Janeiro: UNIRIO; Ano 11, n 12, 2003, p. 25-50.
93
SIMÕES, Rosa Maria Araújo. A performance ritual da roda de capoeira angola. In:
Ministério das Relações Exteriores. Revista Textos do Brasil. Edição 14, 2008.
SODRÉ, Munis. Mestre Bimba: corpo de mandinga. Rio de Janeiro, 2002.
STALISLAVSKI, Constantin. A construção da personagem. Rio de Janeiro, 1970.
TERRIN, Aldo Natale. O Rito. Antropologia e fenomenologia da ritualidade. São Paulo:
Paulos, 2004.
VALLE, Flavia Pilla do. Facetas: Um diálogo corporal da bailarina com a capoeira. In:
Cadernos do Gipe-Cit, V.19, Estudos em movimentos II. Corpo, criação e análise. p.103-114.
PPGAC/UFBA, Salvador, 2008.
VEIGA, Guilherme. Ritual, risco e arte circense. O homem em situações-limites. Brasília:
Universidade de Brasília, 2008.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo