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Doutorando:
Paulo Antonio de Menezes Pereira da Silveira
Orientador:
Prof. Dr. Helio Fervenza (PPG Artes Visuais/UFRGS)
Banca Examinadora:
Profa. Dra. Blanca Brites (PPG Artes Visuais/UFRGS)
Profa. Dra. Mônica Zielinsky (PPG Artes Visuais/UFRGS)
Profa. Dra. Regina Zilberman (Faculdades Porto-Alegrenses - FAPA)
Profa. Dra. Maria do Carmo de Freitas Veneroso (PPG Artes/UFMG)
As existências da narrativa
no livro de artista
Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor
no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais,
área de concentração
em História, Teoria e Crítica da Arte,
no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, 31 de janeiro de 2008
Paulo Silveira
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Para minhas filhas, Carolina e Mariana.
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Agradecimentos
A elaboração desta pesquisa contou com envolvimento constante do empe-
nho e do prazer de pesquisar, inclusive de terceiros. Reconheço com alegria que em
nenhum momento ela ficou sem colaboradores. O que houver de acertado nela, ou,
quem sabe, de novas dúvidas que ela possa ter gestado, se algo orgânico puder ser
percebido num ou noutro momento de leitura, isso será devido à atenção de algumas
pessoas e instituições.
Gostaria de agradecer a orientação do professor Helio Fervenza (PPG em
Artes Visuais/UFRGS), pela extremada dedicação com que conviveu com este esfor-
ço, um acompanhamento seguro, objetivo e minucioso. A atenção que disponibilizava
em cada leitura ofereceu tranqüilidade e ânimo, sobretudo me poupando, pela crítica,
mas também pela amizade, da intoxicação por excesso de pensamentos. Antes para a
pesquisa de mestrado e agora para a de doutorado, incluindo o companheirismo no
grupo de pesquisa Veículos da Arte, tenho por ele a mais profunda gratidão.
Para a professora Anne Moeglin-Delcroix (Université Paris I, Panthéon-
Sorbonne) agradeço não apenas o exercício de tutela durante a pesquisa de campo,
mas também sua atenção em ocasiões anteriores, como referência que é para todos
que estudam o livro de artista. Uma frase sua não saiu da minha cabeça: que se por
um lado a pesquisa iria se desenvolver num terreno difícil, já que sem bibliografia
organizada, por outro lado, e pela mesma razão, poderia vir a se tornar uma contribui-
ção séria. Faço força para isso.
Às componentes da banca de qualificação, professoras Blanca Brites, Mônica
Zielinsky (ambas do PPG Artes Visuais/UFRGS) e Regina Zilberman (Faculdades
Porto-Alegrenses, FAPA) gostaria de ressaltar a importância das sugestões dadas du-
rante o primeiro exame, mas sobretudo reconhecer a importância para esta pesquisa
de sua presença na avaliação final. À professora Maria do Carmo de Freitas Veneroso
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(PPG Artes/UFMG) agradeço a participação na banca final, emprestando seu saber e
sua vivência.
Sou grato, também, pela confiança e amizade dos integrantes do projeto Ci-
randa (e do seu livro resultante): Adriana Daccache, Andrea Paiva Nunes, Fabiana
Wielewicki, Glaucis de Morais, Helio Fervenza, Letícia B. Cardoso, Marcelo Tomazi,
Maria Ivone dos Santos, Maria Lucia Cattani, Mariana Silva da Silva, Maristela Salvatori,
Paula Krause, Paulo Gomes, Raquel Stolf, Sandra Rey e Solana Guangiroli. Dentre
esses amigos, saúdo especialmente Maria Ivone, pelos aportes ao campo da fotogra-
fia, além de, em alguns jantares junto com Helio e suas filhas Júlia e Marina, ter aviva-
do ainda mais minhas conjecturas sobre deslocamentos.
Durante o estágio em Paris foram visitadas muitas bibliotecas, principalmen-
te as que possuem acervos imprescindíveis à pesquisa. Destaco as coleções de livros
de artista da Bibliothèque Kandinsky, Centre Pompidou, e, notadamente, a Bibliothèque
National de France, sedes Tolbiac e Richelieu. Desta última, foi de essencial impor-
tância o apoio de Marie-Cécile Miessner, coordenadora do Département des Estam-
pes et de la Photographie, e de seus colegas.
Desde o início das atividades de investigação, desenvolvidas metodicamente
a partir de 2003, uma longa e prazerosa pesquisa de campo me fez estabelecer conta-
tos, visitar acervos, consultar profissionais, às vezes sem aviso prévio (quando a pres-
sa ou a oportunidade me levaram a cometer isso). A essas pessoas e instituições, obri-
gado. Entre outros: Elisabeth Galloy, Jeu de Paume, Coordination des expositions,
Paris; Leszek Brogowski, Département Arts plastiques, U.F.R. Arts, Lettres,
Communication, Université Rennes 2, Rennes; Maria Fusco, Book Works, Londres;
Martha Hellion, Cidade do México; Michael Snow, Toronto; Sarah Bodman, Faculty
of Art, Media and Design, University of West of England, Bristol; Sofia Santos, bi-
blioteca da Fundação de Serralves, Porto.
Muitíssimo obrigado ao grupo de amigos brasileiros, franceses e de outros
países que no convívio na Maison du Brésil e na Cité International Universitaire de
Paris compartilharam ansiedades, conhecimentos e alguns cálices de vinho. Tenho
saudades de tantos saberes e idiomas. Representando a todos, por seus ensinamentos
e troca de impressões, Marie-Andrée Grandguillaume e Uta Protz.
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Agradeço aos colegas da Editora da UFRGS pela paciência no convívio com
a divisão de meu tempo, de maneira especial à diretora, professora Jusamara Vieira
Souza, pelo apoio à pesquisa, e ao seu corpo de revisão, especialmente Rosangela de
Mello, a quem tanto atormentei com problemas que iam da gramática à literatura, e
Fernanda Kautzmann e Gabriela Carvalho Pinto, pela preciosa ajuda em algumas tra-
duções do italiano; do mesmo modo, à Vera Gliese, da Central de Produções da Fa-
culdade de Educação, pelo socorro no alemão em momentos estratégicos.
Devo também lembrar a dedicação e a responsabilidade da Pró-Reitoria de
Pós-Graduação da UFRGS – e de maneira especialíssima a Ana Lucia da Costa Gama
Nunes –, bem como do apoio recebido da CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamen-
to de Pessoal de Nível Superior, através da concessão da bolsa de estágio de douto-
rando no exterior. Ela tornou possível a indispensável pesquisa de campo e o estabe-
lecimento de alguns contatos da mais alta expressão.
Serei, também, eternamente devedor ao Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais da UFRGS e seu empenho constante no cumprimento de metas que são de
todos nós. Os seus integrantes, coordenação, professores, alunos e funcionários, são
objeto da minha admiração e devotada afeição.
E por fim, agradeço aos meus familiares e amigos pelo carinho e apoio em
todos os momentos desta pesquisa. Sem eles tudo seria muito mais difícil.
Obrigado a todos.
Resumo
Este estudo visa verificar o intervalo formativo entre o comparecimento e a
ausência das estratégias de narração nos livros de artista de edição e se e como a
narrativa visual é capaz de determinar sua bibliogênese.
Palavras-chave: arte contemporânea, livro de artista, narrativa visual, arte nar-
rativa, narrativa, narração.
Abstract
This research, As existências da narrativa no livro de artista (“The existences of
narrative in the artist’s book”), aims to verify the formative spectrum from attendance
to nonappearance of narration strategies into the published artist’s books and if and
how the visual narrative is able to determine its bibliogony.
Keywords: contemporary art, artist’s book, visual narrative, narrative art,
narrative, narration.
Em obediência a Portaria n° 013, de 15 de fevereiro de 2006, da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior, CAPES, esta tese tem seu conteúdo integralmente disponibilizado.
Em respeito aos detentores dos direitos de reprodução, as fotos estão em baixa resolução. Para
ver as ilustrações em sua integridade, consulte o volume original depositado em biblioteca.
This is a non-commercial postgraduate document. Only for academic purposes the Brazilian law
(CAPES, edict # 013, February 15, 2006) demands the retention of a copy (portable document format) from this
doctoral thesis for reading online on a main library website. In order to preserve rights this file features low
resolution photos. Permission for reproduction of images must be obtained from the copyright holders.
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Sumário
Apresentação / 9
1. Pressupostos de pesquisa em artes para o livro de artista e a narratividade / 12
Considerações metodológicas / 13
Contexto do problema / 16
Narrativa visual, seqüência, intermídia e outros conceitos / 21
Vidência, leitura e arte contemporânea / 40
2. A narrativa visual e a instauração da obra / 58
Percurso e obra: o que existe ou não existe para ser lido num livro de artista / 58
Percurso e assunto: as odisséias possíveis e a constituição de um gênero / 72
3. A narrativa visual e a ênfase plástica / 92
Bibliogênese e a gramática da narrativa visual / 93
Gênese da página visual: seqüencialidade e serialidade / 110
A retórica visual de página / 117
Fólios e páginas reunidas / 123
Páginas em catálogos e catálogos que são livros /126
Sobre outras mídias / 135
O livro, mesmo / 138
8
Os quadrinhos / 145
A narrativa e a imagem sistêmica / 149
Memorial da fatura / 169
O cinema de dedo / 175
Outras sugestões de temporalização / 181
A fotografia como sutura narrativa / 190
O livro como apoio ao artista personagem / 209
4. A narrativa visual e a ênfase textual / 222
A textualidade / 223
A palavra plástica / 227
Rumo à palavra plenipotenciária / 268
Narrativa artística e empreendimento editorial / 274
O equilíbrio narrativo entre imagem e palavra / 293
5. Considerações finais / 305
6. Referências / 310
9
Apresentação
As proposições apresentadas neste trabalho são uma decorrência de pes-
quisa anterior. Em 1999 tive oportunidade de apresentar minha dissertação de mes-
trado em História, Teoria e Crítica da Arte, discorrendo sobre a constituição da
categoria do livro de artista sob o ponto de vista do problema plástico da confor-
mação da obra, desde o aceite da tradição bibliomórfica até o esforço de negação
dessa tradição. Segundo a hipótese de origem, das satisfações e insatisfações artísti-
cas do espectro formal disponibilizado surgiria o livro de artista propriamente dito,
o livro-objeto, a escultura livro-referente, além de publicações, objetos ou ações
relacionados. Em determinado ponto da investigação fui seduzido pela ambigüida-
de de a arte conceitual (e suas variações) buscar (ou parecer buscar) certo grau de
abolição da fabulação, ao mesmo tempo em que alguns de seus produtos parecem
demonstrar inclinação comensal às possibilidades de sugestão temporal das expres-
sões da narrativa em escritos, na imagem estática ordenada ou na imagem em movi-
mento. Talvez, a partir dessa relação instaurassem procedimentos inéditos ou pelo
menos incomuns, instaurando vertentes particulares de narrativa visual. Na disser-
tação, cheguei a usar conceitos básicos de análise da obra literária, como os concei-
tos de narração, descrição e dissertação, em obras plásticas contemporâneas que
num primeiro exame pareciam evitar essas atitudes, mas que, ao contrário, enqua-
dravam-se instrumentalmente nelas. Porém, não havia espaço ou tempo, naquela
ocasião, para fazer uma prospecção justa, que apresentasse essas obras e seus artis-
tas. Concluída a dissertação, de uma coisa não havia dúvida: para meu contenta-
mento, o percurso estava longe do seu término.
Desta vez, agora com novo rumo, a pesquisa busca verificar a especialização
da presença da narrativa visual nas artes plásticas. Seu foco específico, seu objeto de
análise, é o livro de artista publicado. E, em decorrência das demonstrações das mani-
festações narrativas, as possíveis contradições semânticas nos livros estudados (não
10
necessariamente em oposição à forma) que importam à sua condição de obra de arte
ou de produto do mercado das artes visuais (poderíamos dizer uma obra “da” arte, se
tal é pertinente).
Dois eventos foram especialmente importantes para a decisão que levou ao
presente trabalho. O primeiro impulso teve origem na pesquisa anterior mencionada,
quando do meu envolvimento com a atenção requerida pelos livros de Vera Chaves
Barcellos (produzidos entre 1975 e 1980). Na época, entendi que eles narravam, des-
creviam ou dissertavam – todos essencialmente através do apelo visual, mesmo na
presença de eventuais textos. O segundo impulso foi definitivo na decisão de prosse-
guir a pesquisa. Deu-se durante visita a Documenta 11, em 2002, quando fiquei forte-
mente impressionado com a apresentação dos ensaios fotográficos de Allan Sekula.
Seus relatos confirmavam a idéia, para mim, de que a arte se movimenta sobre suas
linguagens num prosseguimento histórico arbóreo.
Esta pesquisa, como costuma acontecer, veio se constituindo pelo seu pró-
prio exercício de redação. Os parágrafos que seguem procuram apresentar algumas
diretrizes preliminares a um processo de acomodação de idéias estruturado principal-
mente através de sua verbalização. O início do trabalho introduz a pesquisa a partir de
seus pressupostos metodológicos e dos conceitos instrumentais a serem usados, os
mesmos que as artes visuais se encarregam de pôr em obra na evolução sempre cres-
cente de suas linguagens. Após a introdução, o desenvolvimento procura estudar três
circunstâncias de causa e efeito entre a arte e a narrativa: (1) as relações da narrativa
visual com a instauração da obra (e, em decorrência, de gênero), a partir do mote
“percurso”; (2) amostragem de casos da bibliogênese na arte, viabilizada pela presen-
ça de algum grau de narrativa visual, com estruturas em que o plástico prepondera
sobre o verbal; e (3) estudo de casos em que a ênfase na textualidade ou nos proces-
sos de escrita é dominante na gênese do livro visual artístico. Segue-se uma rápida
conclusão e as referências. Nelas são mencionadas quase exclusivamente as fontes
bibliográficas citadas, direta ou indiretamente. Salvo raras exceções, foram omitidas as
consultas na internet. Elas foram incontáveis, indispensáveis e presentes todo o tem-
po. Mesmo sendo valiosos acessórios aos trabalhos principais de pesquisa, do ponto
de vista documental essas consultas são geralmente episódicas, por isso sua omissão.
11
Por concisão, as Referências também omitem os livros de artista examinados. Entre-
tanto, quando apresentados, seus dados bibliogficos constarão no corpo do texto
ou nas legendas das ilustrações. Salvo quando informado do contrário, todas as fotos
foram obtidas por mim, exclusivamente para este trabalho.
Os ajustes metodológicos se deram aos poucos, acompanhando a busca por
um desejável amadurecimento da escrita, ao mesmo tempo em que se definia melhor
o entendimento das expressões da narrativa no objeto de estudo. Tornou-se especial-
mente satisfatória e gratificante a constatação de que novas dúvidas eram descobertas.
Isso desconcertava as certezas, impulsionando novas reflexões. Por isso, mesmo ten-
do concluído esta etapa, poderei perpetuar o prazer de pesquisar.
12
1. Pressupostos de pesquisa em artes para o
livro de artista e a narratividade
O livro de artista stricto sensu pode ser tanto uma obra complexa como singela
na sua produção formal. Mas sua fabricação será sempre finalizada com participação
intensa da razão, tendo estrutura amparada por algum grau ou tipo de desenvolvi-
mento narrativo. Modelarmente pode-se supor a existência de uma lógica narrativa
compósita, com ou sem a transcrição do verbo, mas sempre com um fundamento
plástico e visual assimilado não apenas de sua origem bibliomórfica, mas também de
outros meios e produtos culturais, além de sua circunstância artística. Na condição de
produto intermidial, reivindica a apreensão por um olhar crítico, amparado
conceitualmente no mundo da arte e com interesses ecumênicos das instâncias
tecnológicas e culturais. Um envolvimento tão intenso do processo no seu resultado
parece induzir à proposição: o livro de artista seria uma obra em que as expressões da
narrativa se apresentariam numa condição de múltipla existência, ou seja, de existên-
cia em planos além do esperado. Ou ainda, como indagação a ser investigada, as ex-
pressões da narrativa seriam variáveis ou constantes dessa categoria? Procurando a
resposta a essa pergunta, acreditamos poder vislumbrar indicações de certa onipresença
da narrativa, indícios possivelmente materializados em soluções convenientes, apro-
priadas ao universo plástico. Talvez pudessem mesmo ser encontrados sinais de res-
posta (ou reação) a estímulos socioculturais, quase como se as conformações da nar-
rativa no século XX possuíssem poder de imposição e inevitabilidade.
Parece possível (e razoável) que essa seja a categoria artística com imagem
estática que tenha a presença mais intensa do intervalo que vai dos primeiros sinais de
narratividade até a mais eloqüente narração (incluindo, portanto, o relato instantâneo,
pictórico, ou complementos em mídias digitais). Freqüentemente o livro de artista é
apresentado como um dos suportes por excelência de narrativas experimentais. Mas
isso deve ser testado com amparo no método. Um dos objetivos desta pesquisa é
13
experimentar sua proposição através de ações reflexivas dentro do universo da teoria,
da análise da obra e da crítica de arte. As ações são mais ou menos simultâneas e inter-
relacionadas. Porém, o objetivo básico deflagra o movimento da tese ao mesmo tem-
po em que deverá acompanhar seu desenvolvimento: investigar em que grau o uso da
narrativa (ou sua negação), somada à lógica de projeto inerente à obra de arte em
formato livro, foi participante de sua fundação como uma das vanguardas contempo-
râneas. Desse ponto de partida, pretende-se demonstrar a necessidade (ou possibili-
dade) de um olhar avaliativo construído a partir do repertório crítico disponível nas
artes plásticas, em cruzamento com os procedimentos de análise de obra utilizados
em outras manifestações culturais (literatura, cinema, teatro etc.), porém ressalvando
a identidade e prerrogativa do mundo visual.
Considerações metodológicas
Esta pesquisa trabalha com livros de artista recentes, todos ou quase todos
gráficos, que tenham tido tiragem (que sejam múltiplos). Não se pretendeu que fos-
sem estudados livros-objetos escultóricos ou esculturas narrativas, mesmo que tives-
sem o livro como muito mais que apenas o seu referente. Considera-se a conduta do
livro de artista (no sentido estrito do termo) como sendo mais vigorosa do que no
livro-objeto, no que diz respeito tanto ao desenvolvimento de linguagens artísticas
menos ortodoxas, como no uso seguro da tradição.
Muitos dos volumes em estudo são, ao menos na sua origem ou ideação,
obras raras. Outros nem tanto, felizmente. Puderam ser adquiridos em livrarias (mes-
mo que diferenciadas) ou galerias, ou consultados em bibliotecas (e no decorrer da
pesquisa, foram visitadas as pessoas ou instituições que foram necessárias). A singula-
ridade, aqui, é a confusão ou sobreposição de fontes, às vezes não ficando plenamen-
te claro se o material estudado é de referência plástica e poética, ou de referência
crítica, teórica e técnica. Se às vezes essa é uma característica confortável, outras vezes
pode se tornar um impasse sob um ponto de vista mais rigoroso. Tome-se como
exemplo Remote control: power, cultures, and the world of appearances, de Barbara Kruger,
14
1993. Como entenderíamos que tal livro seria enfocado a partir de sua singularidade,
ele não estaria nas referências. A menção a ele estaria no próprio texto, já que ele seria
o assunto (e, eventualmente, em legendas de ilustrações). Esse livro não foi usado
diretamente desta pesquisa, mas ele serve como exemplo do problema. Afinal, ele foi
exposto como livro de artista (Lauf e Phillpot, 1998), mas não era aceito universal-
mente em tal condição (Brad Freeman, em JAB 11, 1999, p.25). A discussão é bem
mais complexa do que aparenta, dizendo respeito ao lugar da artisticidade e o lugar a
qual ela pertence. Esse problema será reavivado várias vezes, como subproduto direto
do tema central.
As referências plásticas (obras para exame estético) são os livros de artista pu-
blicados a partir da década de 60 até o momento simultâneo à pesquisa, especialmente.
Pretendeu-se relativizar a importância dada ao renome do artista, já que foi dada impor-
tância maior à obra em si mesma. E constituem referências críticas básicas as reflexões
dos próprios artistas autores das obras, assim como alguns artigos publicados em catá-
logos de exposições e periódicos de arte. Foram revistos os artigos e livros já utilizados
na dissertação que precedeu esta pesquisa, mas desta vez apenas os referentes ao livro
de artista propriamente dito. Além desses trabalhos, foram procuradas as contribuições
mais recentes ao assunto, através de relatos de qualquer tipo.
Este estudo reconhece a tendência dos mercados culturais com menor pro-
dução intelectual impressa de associar a designação “livro de artista” com os livros
objetos (que não são de fato livros), com os objetos ou esculturas que apenas têm o
livro como referência temática, além de outras obras que não são publicações. Entre-
tanto, mesmo abarcando toda uma categoria, essa associação é dispersiva. Bastam-
nos duas definições, uma contendo a outra, conforme o boletim Art Documentation, da
Art Libraries Society of North America, edição de dezembro de 1982. Livro de artis-
ta é o “livro em que o artista é o autor”, e livro-obra é “obra de arte dependente da
estrutura de um livro” (Silveira, 2001, p. 47). Leva-se em conta, ainda, a presença da
“artisticidade”, considerada dentro da diversidade renovada do campo artístico como
identificada em Szeemann, 1969, Lippard, 1973, e os pesquisadores contemporâneos
citados nesta pesquisa. Em outras palavras, a categoria dos livros de artista inclui os
livros-objetos, os livros-obras e livros que são apenas livros, em todos os casos po-
15
dendo ser múltiplos ou únicos, sejam ou não reclamados como obras autônomas da
arte ou integrantes do corpus de uma expressão multimodal. Estudamos aqui os livros
de artista que são múltiplos, com especial atenção aos livros-obra, que são normal-
mente identificados como livros de artista por excelência e assim chamados, e talvez os
produtos mais importantes da categoria, ao nosso juízo. A prática tem demonstrado
que “livro de artista” tem sido usado de uma maneira mais substantiva, enquanto
“livro-obra” tende a ser usado de um modo mais adjetivo, como se o segundo termo
qualificasse o primeiro.
Através do exercício da crítica, esta pesquisa busca o desfrute e leitura quali-
ficados, entendendo a obra que é livro como diretamente ligada ao mundo e à vida. Por
outro lado, a função social do livro que é obra redefine o conceito de público em arte.
Parece possível que o uso das evoluções verbo-visuais constitua estratégia do artista
para sua inserção no mercado cultural. Poderá ser identificado e avaliado, a partir
desse prisma, o grau de interdependência entre as artes visuais contemporâneas e as
soluções estéticas dos livros de artista.
Pode-se entender a palavra “mercado” pelo seu senso comum: um lugar físi-
co ou abstrato (âmbito) onde se vendem, se compram ou se trocam mercadorias.
Enfim, onde se dá a oferta e a procura de bens e serviços. Esse conceito tem como
atores celulares as figuras dos produtores e dos consumidores.
A multiplicação da obra de arte (ou a multiplicação que gera ela mesma a
artisticidade da obra) envolve a noção de arte como empreendimento, ou, inversa-
mente, o empreendimento como ação artística. Essa estrutura projeta-se de um sis-
tema econômico, idealmente formado pela tríade “o que e quanto produzir”, “como
produzir” e “para quem produzir”
1
. Esses problemas econômicos centrais podem
ser identificados também nas decisões que envolvem a produção de um múltiplo
artístico.
1
Os conceitos mencionados são fundamentais nos estudos econômicos, facilmente encontráveis em livros
introdutórios ao assunto. Usou-se, aqui, de José Paschoal Rossetti, Introdução à Economia, 6.ed. São Paulo: Atlas,
1977, p. 175 a 179.
16
A caracterização do livro de artista como um espaço alternativo (Linker, 1980)
para a expressão artística ao mesmo tempo em que é um bem cultural implica o reco-
nhecimento da existência de um mercado simbólico com nichos ou segmentos sofis-
ticados onde perseveram os fluxos de mobilização de recursos e de produção de bens
e serviços, nesse caso de, em ou para a arte.
2
Contexto do problema
O desenvolvimento reflexivo desta pesquisa pretende percorrer aspectos que
envolvem a narração visual no livro de artista ao mesmo tempo em que a arte con-
temporânea, com suas objeções, estabelecia a contradição ou a coexistência divergen-
te de valores como a proximidade e o distanciamento do público. Os motes são nar-
ração e narrativa. Mas se essa é a direção determinada pelo projeto, o seu determinante
procede de um contexto maior, o ambiente em que estão inseridos o proponente
desta pesquisa e o meio cultural com o qual convive.
3
No decorrer da última centena de anos as certezas se dissiparam com a mes-
ma ansiedade (e às vezes alívio) com que a arte refez seus cenários e seus persona-
gens. A vida na cidade reaproximou a arte (toda a arte) da vida, quase que numa im-
posição. Mesmo que um certo esnobismo histórico tenha sido preservado (cristaliza-
do passo a passo a partir do renascimento), suas muitas faces – as dimensões utilitária,
decorativa, documental, comunicacional, ética, moral, intelectual etc. – foram e conti-
2
Para uma abordagem mais precisa sobre as bases sociais dos fluxos de uma cultura, ver Pierre Bourdieu, A
economia das trocas simbólicas, com organização de Sergio Miceli. São Paulo: Perspectiva, 1974. A cultura é uma
“estrutura estruturante”, com sistemas simbólicos de funcionalidade econômica e política (como lembrado na
introdução por Miceli, p. VIII e IX). Notar o aproveitamento de tabulações estatísticas na exposição de Bourdieu,
especialmente no artigo Reprodução cultural e reprodução social”, p. 295-336, onde existe a preocupação de
quantificar hábitos em números absolutos ou relativos, como a freqüência às galerias e museus, a leitura técnica
ou literária, a ida ao teatro etc.
3
A exposição destas motivações utiliza uma colagem de passagens de reflexões anteriores, algumas publicadas,
especialmente o artigo “A crítica e a avaliação do livro de artista”, para Ramona Revista de Artes Visuales, Buenos
Aires, n.35, outubro-novembro de 2003, p. 69-72.
17
nuam sendo redescobertas, reavaliadas, rediscutidas. A arte chega ao seu público por
todos os sentidos e em todos os momentos, através de manifestações puras, eventual-
mente, mas principalmente em suas aplicações na mídia e na indústria. No caso da
produção dita pura (imaginando que isso exista), as expressões ilustrativas da arte (pin-
tura e esculturas tradicionais, por exemplo) passaram a ser comparadas ou confronta-
das com expressões consideradas mais ativas (conscientemente construtoras ou
desenvolvedoras das linguagens artísticas contemporâneas). Aos plasmadores é
disponibilizado um mercado de limites inalcançáveis, tal a variedade de seus suportes
ou suas possibilidades. Esse mercado de bens e serviços (sejam concretos, sejam sim-
bólicos) está superpovoado por atores diversos e por suas múltiplas ações. E continu-
am brotando desse substrato rebentos que inicialmente parecem híbridos (ou mesti-
ços), mas que se confirmam como novos e ricos espécimes: a fotografia, a arte postal,
o vídeo, a poesia visual, a arte mecânica (cinética), o cinema experimental (o “quase
cinema”), a performance, a instalação, a arte digital, o livro de artista, as linguagens alter-
nativas. Todas, ou cada uma, dessas categorias como um todo ou como uma parte de
um outro todo. Tudo muito vívido.
Por ser contemporâneo, o livro de artista, objeto de nossa atenção, porta, em
maior ou menor grau, uma gama de informações verbo-visuais características, em-
prestadas do mercado cultural no qual está inserido hoje. Essas informações estão
amalgamadas, também em maior ou menor grau, com alguns princípios narrativos
inerentes ao livro comum (o volume e seu uso), ou inerentes ao seu discurso (o sedi-
mento não-concreto que o volume suporta).
Após admirar, num grande museu, um Concetto spaziale de Lucio Fontana, na
forma de livro e da década de 60, pensei, com desconforto, no número infinito de
especialistas e estudiosos disponíveis para comentá-lo. Fontana, por ser Fontana, tem
um exército crítico a seu favor (merecidamente, acrescento). Alguns meses depois,
para um pequeno texto, busquei na lembrança e nas gavetas algumas obras argentinas,
com formatos e custos variados. Eram trabalhos de artistas com diferentes graus de
inserção no mercado e empreendedores de produtos diferentes entre si, mas que se
incluíam, todos, na grande categoria do livro de artista. E me pergunto: que perfil de
crítico de arte essas obras exigem?
18
Exposição Ed Ruscha Photographe, Jeu de Paume, Paris, 31 de janeiro a 30 de abril de 2006.
19
Fica cada vez menos trabalhoso comentar as obras tradicionais expostas nas
grandes instituições. A oferta bibliogfica extraordinária e os muitos museus à dispo-
sição desobscenizam a obra de seus mistérios. Mas novos problemas de interpretação
são propostos a cada dia com o desenvolvimento de novas estratégias artísticas. Estamos
numa etapa onde as categorias da arte são descritas muito mais pela mídia onde atu-
am (o veículo de transporte da informação artística) do que por seu meio (a técnica
ou o material empregados na execução da obra). É mais uma razão para a necessidade
de acomodações constantes na estrutura de relações entre o estudioso, a obra estuda-
da e os mercados onde ambos estão inseridos. E é, também, mais uma razão para
aprender.
O que a observação do círculo cultural parece demonstrar é que os comenta-
dores da arte (críticos, ensaístas, estudiosos etc.) tendem a preferir a ordem plástica
em detrimento da ordem gráfica, ou vice-versa. Alguns preferem os livros-objetos
mais eloqüentes, apontando-os como mais artísticos que os outros. Na verdade, eles
tendem a ser mais freqüentes em exposições de mercados periféricos (como o Brasil,
por exemplo), não apenas como opção dos artistas, mas por escolha dos próprios
curadores. Isso acaba por, involuntariamente, revesti-los de um certo ranço reacioná-
rio. Parece um contra-senso, mas talvez não seja. Os livros-objetos atendem melhor
às exigências da estrutura estabelecida. Eles guardam valores burgueses já codificados
que interessam aos agenciadores de bens culturais. Porque é único e não-industrial,
seu preço de mercado é mais alto, resultando em comissões de venda mais interessan-
tes ao galerista. Além disso, existem paralelos mais claros entre o livro-objeto e as
técnicas artísticas históricas. Críticos e estudiosos vivem de discursos e é previsível
que se procurem facilidades.
O livro de artista propriamente dito, juntamente com suas variações, exige
que o comentador tenha consciência aguda da sua circunstância social, em cruzamen-
to com as mais irrequietas concepções do que seja uma obra ou uma ação artística.
Além disso, será preciso conhecer um pouco mais de outros produtos intermidiais,
além de fundamentos de desenho industrial, artes gráficas, encadernação artística e
computação. E entender a arte como um empreendimento afetivo, social e ocupacional.
É muito? Talvez. Ou nós estamos numa sociedade da informação, ou numa socieda-
20
de do conhecimento: essa é uma discussão que também exige a nossa participação
tanto prática como conceitual. E o comentarista deste novo mundo existe? Sim, so-
mos todos nós, que estudamos muito e também produzimos – e nos divertimos tan-
to! –, que viemos das universidades e das escolas, e que temos mente aberta e boa-
vontade suficientes para aceitar e apreender o maravilhoso polimorfismo da arte con-
temporânea.
Está, assim, colocado o problema. Toda obra “de arte” ou “da arte” (coisa
ou não-coisa que se instaura pelo consumo artístico, se é que isso faça alguma dife-
rença que importe) aceita um discurso de esclarecimento. Então, o que ver, como ver,
por que ver? Tenho a categoria do livro de artista como um dos mais vibrantes focos
de vida na arte. Não se trata de eleger quais de suas manifestações é ou não é melhor
ou mais interessante. Como já visto, certamente será mais fácil para um crítico con-
servador elaborar um discurso sobre as obras plásticas do que sobre as obras gráficas
(não a gravura tradicional, mas os múltiplos gráficos do século XX). Os modelos
estabelecidos facilitam o trabalho: quilômetros de prateleiras com material escrito so-
bre obras de arte históricas, mais ou menos convencionais, muitas vezes descritas a
partir de valores artesanais. Proporcionalmente, ainda pouco foi escrito das obras atu-
ais e das novas mídias e tecnologias. O que é, de fato, compreensível. Conhecer os
princípios do desenho, da gravura, da pintura ou da escultura tem sido uma grande,
fascinante e ininterrupta tarefa. Mas hoje, temos também que compreender os funda-
mentos da geração de imagens em outros meios.
O fazedor de livros de artista terá, portanto, que se contentar com a pouca
oferta de críticos para o seu trabalho. Especialmente se estiver em sociedades de-
pendentes. Deverá esperar que as instituições reflexivas (universidades, por exem-
plo) ampliem sua gordura conceitual e sejam ainda mais prolíficas. E deverá ele
mesmo, o artista, agir no seu ambiente, eletrizando-o, fazendo a informação circu-
lar, expandindo a comunhão entre arte e vida. Agir ao mesmo tempo com lucidez e
paixão. Como fizeram em tantos manifestos no passado, como também fizeram na
arte do século XX, sim, mas desta vez com ainda menos empirismo, mais precisão e
mais objetividade, com pulsão profissional e teórica, mais e mais armados pelo en-
sino e pela pesquisa. Se o público permanecer acreditando que a arte tem seu ápice
21
nas paredes luminosas do Museu d’Orsay, o artista estará condenado a se compor-
tar como uma caricatura.
Ao estudioso e ao crítico caberá dispor de seu olhar, desta vez miscigenado à
experiência emprestada de outros campos culturais. E buscar o que esses outros li-
vros têm para contar. Porque a arte também narra. Não se trata de contrapor o espe-
táculo à narração, mas, sim, ver com comprometimento essa parcela da criação.
Narrativa visual, seqüência, intermídia
e outros conceitos
Este é um relato orgânico. Muitos dos conceitos envolvidos terão, por isso,
seu momento adequado para virem à luz. Porém, algumas definições precisam ser
apresentadas imediatamente, sobretudo as que provêm de campos não plásticos, mes-
mo que sejam expostas de modo ligeiro.
Caso se aceite que toda obra se oferece a uma leitura (o que parece ser uma
opinião geral), se aceita, também, que todo tipo de arte tenha uma linguagem. Por
outro lado, se o ato de perceber a obra plástica pode (grosseiramente) oscilar do
contemplativo para o legível, a leitura e a linguagem não seriam mais plenas quanto
mais distantes da contemplatividade? Ou seja, essa aplicação da mente em reflexões
abstratas não seria um tipo de fuga da linguagem “legível” (com códigos claros,
convencionados etc.)? Tentaremos ver isso mais adiante, mas por enquanto é preciso
conjeturar que se é justo flexibilizar o conceito “leitura”, poder-se-ia, com razão, pro-
por a presença da narrativa em algum grau em toda obra de arte. Essa não é a preten-
são deste trabalho. Mas é pretensão verificar o caso específico da arte bibliomórfica,
especialmente aquela que se manifesta pela ação de publicação, para localizar as
gradações narrativas (ou algo que lhe equivalha), sejam inerentes à obra, sejam
aposições. Parece que a narração (o processo narrativo) ao menos está sempre ali,
mesmo que em grau zero, se tal grau existe. Seria preciso, portanto, que verificásse-
mos como se dá a aproximação à obra e se a leitura – ou que tipo de leitura – pode ser
aplicável ao nosso objeto.
22
Palavras como grupo, coleção, simultaneidade, série, seqüência, etc., são pala-
vras diretamente relacionadas com as soluções das narrativas visuais. Não deveriam
oferecer dificuldades, mas às vezes geram confusão quando traduzidas diretamente
de escritos muito ornamentados. Quando essas palavras aparecerem, não há razão
para alarme com a confusão de sentidos. O bom-senso e um dicionário médio resol-
vem a contento qualquer dúvida. Entretanto, alguns esclarecimentos prévios podem
ser dados.
Um grupo é uma reunião divisível de elementos, um conjunto de coisas que
formam algum tipo de totalidade: um grupo de teclas, como as do teclado do compu-
tador, ou o grupo de árvores que pode ser visto da janela. Pressupõe-se que exista
algum tipo de proximidade entre os elementos (espacial, formal, temática, de gênero,
etc.). Grupos existem naturalmente ou artificiosamente. Não precisam possuir estru-
tura, ou, no máximo, a de uma lista. Precisam apenas ter um princípio agregador (um
grupo de coisas vermelhas, por exemplo, ou mesmo um grupo de coisas que não têm
absolutamente nada a ver umas com as outras).
Uma coleção é a mesma coisa que um grupo, às vezes com uma “administra-
ção” mais enfática. Essa diferença, quando existe, tende a ser ligada à intencionalidade
ou ao arbítrio, ou seja, a expectativa de uma força ativa prévia ou em atuação, que
reúne o grupo ou decide pela sua existência, podendo ser um personagem que coleta
(seleciona, escolhe), que coleciona (preserva, guarda) ou exibe (expõe, publica). Tam-
bém é uma questão retórica: “Esta coleção é formada por um grupo de...
A simultaneidade (como num mosaico) é um conceito pictórico clássico para
a ordem espacial de ocorrências sem mecânica de temporalização. Seu momento é
interminável. Afirma um único tempo real (embora possa embutir muitos tempos
narrados) num único plano espacial e com coexistência visível de elementos. Nega a
seqüência porque se dá em tempo presente. Ocorre na pintura, no desenho, na foto-
grafia (considerados isoladamente).
Uma série é (1) uma expressão de ordem espacial ou temporal, (2) um con-
junto estruturado formalmente ou (3) uma divisão com fins classificatórios. É um
grupo de elementos em algum tipo de seqüência, um conjunto ou uma reunião de
coisas interligadas por algum tipo de ordem em que uma vem depois de outra, em
23
sucessão espacial (por exemplo, posicionamento) ou seqüência temporal. O termo
“série” geralmente presume contigüidade e continuidade (que não pressupõe inter-
rupção). Mas tanto se pode dizer “uma série interrompida”, como “um grupo de
duas séries”, ou “uma série composta de outras duas séries menores”, ou mesmo
“duas séries em seqüência”. Uma série poderá ser considerada como um intervalo de
uma seqüência. Em se falando de livros, uma série é um grupo ilimitado: tem um
primeiro, que “abre a série”, mas não se presume que ela esteja concluída. Um grupo
de livros limitado em número é uma “coleção”. Parece um conceito tolo, mas é habi-
tual em bibliologia, museologia, arquivologia, editoração, etc. Em certos textos sobre
fotografia, a palavra é usada indicando um conjunto, um grupo, uma coleção, um
acervo. Nesses casos, sugere uma ordem geralmente temática sem necessariamente
obrigar a uma ordem cronológica. Para o livro de artista, embora se possa dizer “pági-
nas em série”, “páginas duplas em série”, “figuras em série”, etc., em geral supõe-se
que a ligação de causa e efeito entre elementos seja mais fraca do que na seqüência, e
eventualmente mais espacial do que temporal. Muitos artistas não consideram impor-
tante a diferença de significados entre série e coleção, razão pela qual poderemos en-
contrar com facilidade o uso comum das duas palavras e seus sinônimos.
[...] contrapor a redução da narração à simplicidade estrutural da “linearidade”, à sim-
plicidade cultural da “anedota”, à simplicidade política da “queixa” [...] opor o mode-
lo da seqüência por aquele dominando as séries e os arquivos. (Allan Sekula, citado
em Dits, 2003, p. 89)
Uma seqüência é uma ordem espacial e temporal, às vezes predominante-
mente temporal. É uma série ordenada de forma que cada um de seus elementos
esteja em decorrência do precedente (anterior, antecedente, prévio, preparatório) e
em ligação de continuidade com o seguinte (posterior, consecutivo, subseqüente, con-
seqüente). Ao se falar em arte temporal (cinema, vídeo, etc.) ou temporalizada (certas
instalações, uma parcela dos livros de artista, etc.), prefere-se usar “seqüência” (neste
caso uma palavra mais adequada do que série). Todo livro visual é uma obra seqüencial,
ou seja, a apreensão do trabalho se dá pelo folhear (um “momento” por vez, como
no caso de um códice), desenrolar (com momentos interligados no mesmo plano
24
espacial, como no caso de um rolo), etc. O livro comporta os tempos passado, pre-
sente e futuro reais (não narrativos) no seu uso, em adição aos tempos da narração.
Além disso, a seqüência de exame, quando linear, poderá ser feita página à página
(página 1, depois a 2, depois a 3, etc.) ou em páginas duplas, de abertura em abertura
(página 1, depois as páginas 2 e 3 simultaneamente, depois as 4 e 5, etc.).
[...] naturalmente, várias fotografias podem formar uma seqüência (caso comum nas
revistas ilustradas); o significante de conotação, neste caso, não se encontra mais ao
vel de qualquer dos fragmentos da seqüência, mas ao nível (supra-segmental, diri-
am os lingüistas) do encadeamento. (Barthes, 1990, p. 19)
Tanto a série quanto a seqüência podem indicar sucessão, metamorfose, fu-
o, aparecimento, desaparecimento, deslocamento, etc., enfim, narratividade ou nar-
ração visual. Para tanto, são ferramentas não apenas sintáticas, mas também semânti-
cas. A ênfase na sucessão e na continuidade pode ser maior ou menor em qualquer
uma das duas, arbitrariamente, conforme um ou outro autor usa as palavras em sua
estratégia textual. Por isso recomenda-se que seja sempre considerado o uso sem afe-
tação, simples, contextualizado dessas designações, sobretudo levando em conta a pro-
cedência do autor (artes estáticas, do movimento, temporais, dramáticas, etc.). Esta
pesquisa não se estende em minúcias da percepção visual, embora a bibliografia sobre
o assunto tenha sido constantemente consultada, porém sem citações nas Referênci-
as. Caso se busque informações “instrumentais” sobre os conceitos citados, isso pode
ser procurado entre alguns autores citados, como em Arnheim (1989), Aumont (2006),
Leeuwen e Jewitt (orgs., 2006), Smith (2005), entre outros. Entretanto, ainda será mais
prático, como já dito, o uso do bom-senso e do dicionário.
O efetivo ponto de partida de um esforço de pesquisa sobre a narrativa visu-
al e suas operações num campo específico da arte compreende a palavra “narrativa” e
sua semelhante “narração”, a partir do entendimento consagrado pela lingüística, po-
rém entremeado com os estudos de percepção visual e composição artística. Ambas
as palavras comportam várias acepções. Entretanto, será escolhido um espectro redu-
zido de significados, com o propósito de instrumentalizar este trabalho. O propósito
é obter praticidade na aplicação das reflexões.
25
Narrativa é uma categoria universal de modo do discurso, formando a tríade
básica: modo narrativo, modo dramático e modo lírico (Reis e Lopes, 2000, p. 236,
270 e seguintes). O termo é facilmente entendido no campo literário como “a repre-
sentação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos, reais ou fictícios,
por meio da linguagem, e mais particularmente da linguagem escrita”, como critica-
mente alertado por Gérard Genette (1973, p. 255). A principal inconveniência dessa
definição seria a sua própria evidência, ou seja, mascarar aos nossos olhos “aquilo que
precisamente, no ser mesmo da narrativa, constitui problema e dificuldade, apagando
de certo modo as fronteiras do seu exercício, as condições de sua existência” (idem).
A narrativa não seria evidente, como muitas vezes parece. Sobretudo nas peças
bidimensionais estáticas das artes visuais, é mais provel que ela se imiscua delicada-
mente do que se declare a plenos pulmões (embora possa até mesmo se apresentar
com loquacidade exacerbada).
As teorias da narrativa se abrigam em três grupos, segundo Wallace Martin
(1987, p. 82), dependendo “se elas tratam a narrativa como uma seqüência de eventos,
um discurso produzido por um narrador, ou um artefato verbal que é organizado e
dotado com significado por seus leitores”. Podemos prever que, com adaptações, os
três grupos atenderiam a maior parte da produção de livros de artista.
O conceito de narrativa tende a estar prioritariamente associado ao relato
com palavras, sendo uma dimensão da língua. Gerald Prince é direto em seu peque-
no dicionário: ela é “o relato [recounting] (como produto e processo, objeto e ato,
estrutura e estruturação) de um ou mais eventos reais ou fictícios, comunicado por
um, dois ou vários (mais ou menos manifestos) narradores a um, dois ou vários
(mais ou menos manifestos) narratários” (Prince, 1989, p. 58). Ele exemplifica com
frases. “Mary é alta e Peter é baixo ou “todo homem é mortal; Sócrates é um ho-
mem; Sócrates é mortal” não formariam narrativas porque não representariam qual-
quer evento. Um evento é uma troca de estado manifestada no discurso por um
enunciado de processo. Pode ser uma ação ou ato (“Mary abriu a janela”) ou um
acontecimento (“a chuva começou a cair”) (idem, p. 28). A performance dramática
também não seria uma narrativa,que os eventos, mais que recontados, ocorrem
diretamente no palco. Por outro lado”, prossegue Prince, “mesmo textos possivel-
26
mente desinteressantes como ‘o homem abriu a porta’, ‘o peixinho-dourado mor-
reu’ e ‘o copo caiu no chão’ são narrativas, de acordo com essa definição” (idem, p.
58). Esses últimos exemplos são denominados narrativas mínimas porque repre-
sentam apenas um evento único (idem, p. 53).
Em artigo para o periódico Dits, edição temática “Le Récit”, 2003, Patrick
Roegiers propõe que se parta do mais básico de todos os entendimentos, o princípio
que diz que a narrativa conta em primeira pessoa fatos que realmente existiram. A
partir disso, pode-se passar às outras formas de narrativas, mais transversais, “que
religam a arte contemporânea ao passado, conjugam a história pessoal e geral, mistu-
ram cinema, literatura e artes plásticas” (p. 14). Roegiers não define como são essas
variações, mas elenca uma possibilidade de representantes e exemplos para um total
de oito expressões plásticas da narrativa.
Assim, (1) para a “narrativa da história” ele menciona um filme de Werner
Herzog e o caderno de viagens desenvolvido entre 1520 e 1521 por Albrecht Dürer
(considerado um dos primeiros do gênero); (2) para a “narrativa da figura”, cita as
variações de Francis Bacon sobre Van Gogh; (3) para a “narrativa da memória”, cita
Peter Greenaway, Georges Perec e Christian Boltanski; (4) para a “narrativa das lacu-
nas da memória”, menciona um achado arqueológico (um homem no Tirol italiano) e
uma marca numa tela de Vermeer que indicaria o uso de uma camera obscura; (5) para a
“narrativa da duração”, lembra Roman Opalka e suas telas com numeração sem fim;
(6) para a “narrativa do subconsciente”, chama Louise Bourgeois e Annette Messager;
(7) para a “narrativa da ficção”, Cindy Sherman e Sophie Calle; e, por fim, (8) para a
“narrativa da biografia”, chama atenção sobretudo para as mulheres, Sophie Calle,
Louise Bourgeois e Annette Messager, outra vez, Tracey Emin, Valerie Mrejen, John
Coplans, entre outros, incluindo ainda Francis Picabia, com sua frase “o que eu gosto
mais nos outros, sou eu” (Roegiers, “Le moi ou la destruction du monde”, Dits, n.2,
2003, p. 14-22).
Para ocorrências do ponto de vista da narrativa visual, o relato instantâ-
neo, mínimo ou mesmo em potencial pode ser bem ilustrado pela narratividade
pertinente à pintura e à fotografia quando se toma em consideração apenas uma
unidade de imagem. Jacques Aumont, a partir de colocações de Rudolf Arnheim
27
e de Nelson Goodman, ressalta a importância da ordem e da seqüência na narra-
tiva em imagens.
No que se refere à imagem, sobretudo imagem fixa, o critério mais determinante
será portanto o da narratividade: a imagem narra antes de tudo quando ordena
acontecimentos representados, quer essa representação seja feita no modo do ins-
tantâneo fotográfico, quer de modo mais fabricado e mais sintético [...]. (Aumont,
2006, p. 246.)
Existindo várias fotos ou um tríptico, políptico, etc., já se tem suficiente
evidência do relato. Da mesma forma, se o trabalho for prioritariamente verbo-
visual, mesmo que se eixo tenha matriz pictórica, a narratividade (ou a narração)
estará explicitada (como nas exposições Narrative Art, especialmente na Bélgica e
Alemanha, que sugeriam na segunda metade dos anos 70 a constituição de um
movimento freqüentemente autobiográfico, integradas por Jean Le Gac, Peter
Hutchinson, David Askevold, Didier Bay, William ou Bill Beckley, Robert Cumming
e Roger Welch). Em alguns casos a ordem narrativa seria configurada a partir das
“diferentes temporalidades que ela pode induzir e sob o ponto de vista ativo do
espectador”, porque a “temporalidade própria à imagem, ali onde seus elementos
em ação induzem movimento e tempo, é aumentada pelo ponto de vista do es-
pectador que efetua a síntese desses elementos e por conseqüência interpreta”
(Aupetitallot, 1997, p. 12-13).
Essa presença tipologicamente bem mais simples da narrativa poderá, por
esses motivos, ser apontada como “instantânea”, acompanhada de formas mais ela-
boradas como a “entrelaçada”, a “alegórica” e a “linear” (p. 22). Mesmo assim, pode-
rá apresentar configurações complexas, como no caso da alegoria, concernente com a
projeção espacial e temporal da estrutura em forma serial, então passando a represen-
tar “o epítome da contra-narrativa, porque congela a história, substituindo o princí-
pio da disjunção sintagmática pela combinação de narrativas (diegeses)”, conforme
Craig Owens (citado em Aupetitallot, 1997, p. 32). A complexidade aumentará ainda
mais conforme o tipo de combinação de narrativas que o artista tem em vista (para
hipertrofiar ou cindir). Diegese é a dimensão ficcional da narrativa, com seu tempo e
28
espaço próprios. Tempo diegético e espaço diegético existem no plano narrado, sen-
do freqüentemente combinados (ou denegados) com o tempo do espectador e o es-
paço da obra, em instalações por exemplo.
O habitual narrativo em apresentações pictóricas (de imagens fixas: pinturescas
ou fotográficas) é a regra de que o tempo é enunciado através da sucessão encadeada
de eventos visuais (aqui no papel de “conflitos”), numa progressão que traz algum
tipo de contribuição ou aditamento entre um elemento da série ou seqüência e seu
anterior (ou “interior”, pois poderá estar em abismo). Caberá ao destinatário das “ce-
nas” inanimadas, o vedor, reconstruir (ou construir à revelia do artista) a relação entre
partes seqüenciadas e buscar, se esse for o caso, o lugar do narrador e a identidade do
personagem ou do que lhes equivalham.
Poder-se-ia supor que incertezas sobre a narração não acometeriam os agen-
tes da cena animada. A cinematografia tornou-se o contador de histórias por excelên-
cia. Oferece imagem e som interligados a um esqueleto literário (às vezes uma fina
epiderme, às vezes toda uma musculatura). O cinema “de artista” ou “de arte” e a
videoarte desdobram seus questionamentos no mesmo substrato da intermídia onde
também o livro de artista se exercita, experimentando ou testando as possibilidades
narrativas da imagem fixa por sucessão serial ou seqüencial. É apropriado, penso, ou-
vir algumas indagações que poderíamos equivocadamente imaginar como de presen-
ça remota em artistas da imagem em movimento. Os segmentos de discussões a se-
guir são das transcrições de debates entre participantes para o seminário Who’s the
Storyteller?, ocorrido em 2003 nas academias de Helsinque, Estocolmo, Bergen e
Copenhague. Alunos, professores e artistas foram convidados para discutir a identi-
dade do narrador na produção escandinava de filme e vídeo. Sendo o evento organi-
zado pela KUNO, rede de escolas de arte nórdicas, isso garantiu o alargamento
conceitual para além dos comentários prévios ou posteriores às exibições.
F: [...] Eu realmente acho que a narração é uma estratégia para abrir o trabalho para o
blico. É uma maneira de dizer que eu estou trabalhando com certos problemas.
Estou contando uma história e quero alguém para escutar. Nós deveríamos conver-
sar sobre por que nós usamos histórias no nosso trabalho e como nós usamos essa
posição de contador de histórias em relação ao público.
29
D: [...]
E: [...]
D: Eu estou pensando sobre por que nós escolhemos a narração em vez de, por
exemplo, fazer arte abstrata? Isso oferece possibilidades para comunicar com os es-
pectadores [viewers] porque é uma linguagem comum, mesmo não sendo perfeita e
bastante limitada...
A: ...codificada culturalmente?
D: Não é tão ampla como nós com freqüência gostaríamos que fosse. Se quisermos
alcançar o lado de fora, precisamos ensinar ao público essas teorias sobre como ler
novos signos, ou senão apenas teremos um pequeno grupo de pessoas que estão
dentro desse certo discurso e podem ler os novos sinais. (Transcrito em Elfving,
Pennanen e Brotherus, 2005, p.24-25; as letras indicam intervenções anônimas, de
participantes não palestrantes)
Se as discussões não terminavam com consensos irretocáveis, por outro lado
muitas concordâncias se efetivavam nas dúvidas comuns. Justamente porque as certezas
não se estabelecem, a discussão sempre somará novas nuanças a velhos problemas.
B: Tempo é sempre narração? Eu acho isso um tipo de questão chave. Existem dife-
rentes significados para a palavra narração e pode ser aplicada a muitas coisas. Eu
acho que você pode fazer um filme sem uma aproximação narrativa. Narrativa tem a
ver com algum tipo de mudança. Se você apenas filma a mesma coisa de diferentes
ângulos, isso não é necessariamente um tipo narrativo de aproximação. Eu acho que
você pode fazer um filme, usar o tempo e continuar a não ter a narração como sua
ferramenta.
C: Então isso se torna uma questão de se o material ainda funciona como algum tipo
de uma narrativa ou gatilho de narrativas quando chega aos encontros efetivos dos
espectadores com a obra. O espectador, em todo caso, coloca ou extrai algum tipo de
narrativa? Nós podemos realmente encontrar alguma coisa sem pisar dentro de al-
gum tipo de história?
30
B: Foi dito que a pintura não é narrativa. Mas quando você a observa, você observa
uma coisa por vez. Seus olhos passeiam para lá e para cá e isso poderia ser chamado
de uma narrativa.
D: Sim, e esse ponto – que no final tudo pode ser lido como uma narrativa – é onde
você chega quando tem esse tipo de discussão. Eu acho que é bastante interessante
discutir qual á a sua aproximação a isso e como você define para você mesmo. (p.28)
Uma publicação de divulgação cultural, edição especial da revista Beaux Arts,
resume que o artista de hoje assume seu papel de contador de histórias: “Nos anos
90, os artistas pararam de ter medo da anedota, da narrativa” (Qu’est-ce que lart..., p.
20). Entre outros exemplos apresenta uma opinião da finlandesa Eija-Liisa Ahtila,
que segundo Jean-Max Colard é reconhecida como “a filha nórdica do Nouveau
Roman”(p. 66), trabalhando com filme e vídeo: “Parece-me às vezes que é mais duro
fazer uma obra sem narração – é desse desejo que se constitui uma história” (p. 64).
No seminário citado, Who’s the Storyteller?, os participantes, sobretudo os artistas
com fala mais amadurecida, pareciam estar cientes de que o uso de palavras numa
obra artística de qualquer tipo pode se transformar numa faca de dois gumes, não
importa se ao lado de imagens fixas ou em movimento. Eija-Liisa Ahtila, presente ao
evento, afirmou que reconhece e acha justificável que as escolas de cinema estimulem
os estudantes a fazer filmes básicos, sem suporte textual ou nem mesmo diálogos. Ela
entende que isso tenha como propósito estimular o aluno a construir narrativas usan-
do apenas os meios da imagem em movimento, o que seria importante para sua for-
mação. A primeira pergunta que lhe é feita vai direto ao ponto: “Você pode imaginar
uma narrativa sem texto? Porque em seus filmes tem sempre texto.”:
Sou fascinada pelo texto e eu sou uma artista visual. Suponho que isso é um tipo de
ponto de partida para mim. Eu amo as palavras e os mundos que elas criam e tento
os fazer existirem com a ajuda de imagens. [...] Por outro lado, eu acho que é real-
mente típico para a imagem em movimento que isso ligue tudo junto, é como uma
cola entre imagens e imediatamente você lê uma história ali. Às vezes isso pode ser
um problema. As imagens tornam-se subordinadas à história e as pessoas não reco-
nhecem o tipo de informação que as imagens carregam, elas mesmas. (p. 31-32)
31
Ahtila diz que o artista precisa estar ciente de que o corte nada mais faz do
que conduzir o espectador dentro da seqüência pretendida pelo realizador. Será tudo
uma experiência guiada, disso não há saída. Para contornar a linearidade do relato, sua
recomendação é de que o artista recorra ao uso de instalações, especialmente com
múltiplas telas: “Pode-se dizer que a presença de várias telas ajuda a contar histórias
de uma maneira não linear” (p. 34). Essas são concepções mais ou menos universais.
O mesmo foi expresso (e reiterado) por Vera Chaves Barcellos, a propósito do mate-
rial apresentado nas suas instalações (em Porto Alegre, 2007): “Não gosto de traba-
lhos extremamente abertos. Acho que, às vezes, você tem sim de conduzir a leitura”
(caderno Cultura, Zero Hora, 14/7/2007, p.6.). Porém, nós sabemos que a ordem de
leitura pode ser arbitrária, pode resultar de um perambular à espreita, como para Tate
Shaw, que revela raramente “ler” (aspas dele) livros visuais. Ele os agarra como se
fossem uma presa, mas os folheia descuidadamente, “como quando eu apanho revis-
tas enquanto espero para pagar minhas compras”.
Isso é leitura como espreita. O problema com a espreita, ou perambulação dissimula-
da, é que eu sou reativo passivamente, eu estou oculto. Eu não sei o que estou procu-
rando até que pegue uma exalação disso na brisa imprevisível da passagem de pági-
nas. É o movimento equivalente de interpolação – interromper um texto para alterar
ou até mesmo falsificar seu significado. Através de nosso movimento interpolativo
entre essas células de páginas duplas, estamos fazendo tempo afetivamente. (Shaw,
2006, p.32)
A narrativa pressupõe uma função de troca relativa. Ela exige a presença do
narrador e do ouvinte (ou do leitor, ou do vedor etc.). Deve ser lembrado, ainda, que
narrador e autor não são necessariamente considerados a mesma pessoa (porém, numa
obra com retórica visual artística, os papéis são facilmente sobrepostos). Essa função
de troca é uma ação comunicacional que pode ser chamada de “narração”.
Narração, entre outros sentidos, é o processo de enunciação narrativa. Como
tal, estaria presente e atuando em potências ainda mais elevadas em todos os meios de
informação modernos, não apenas por serem massivos, mas por terem clara a noção
de blico. Nesse sentido isso se aplica sem problemas também aos procedimentos
32
ilustrativos históricos, como o desenho, a pintura, a escultura e suas variações. O pres-
suposto é que se costuma colocar também a pintura como exemplo de discurso ou de
linguagem (ao lado do romance, do poema, do filme, de uma conversa etc.) Preserva-
ria a heterogeneidade semiológica dos discursos, admitindo cruzamentos de diversas
mensagens. Milton José Pinto, na introdução de Análise estrutural da narrativa (Barthes
et alii, 1973, p.13), conclui que a narrativa seria “um sistema conotativo transfrásico,
uma mitologia, entre as diversas que se podem misturar para formar um discurso”.
Não seria apenas um tipo de discurso, o que poderia ser uma idéia majoritária em
1966, ano da publicação original de L’Analyse structurale du récit.
Na obra citada, Greimas observa uma propensão geral dos discursos con-
temporâneos à narrativização. Refere-se à década de 1960, mas essa opinião parece
continuar válida. Acredito que essa propensão possa ser localizada também nos dis-
cursos compostos (verbo-visuais) e nos não-locucionais (visuais). O problema é saber
(1) em que grau de intensidade os substantivos “narrativa” e “narração” se aplicam às
obras de artes visuais, ou se (2) deveríamos propor o deslocamento do termo ou sua
adaptação para que ele dê conta de instâncias não-literárias. Ou ainda (3), se não seria
o caso de buscarmos outro termo identificador dessas estruturas enunciativas
seqüenciais que não conseguem prescindir do suporte participativamente ativo (o fo-
lhear atuante): algo além ou acima da narrativa ou da metanarrativa, possivelmente
uma supernarrativa. Se, resumidamente, narrativas são constructos verbais onde a rela-
ção entre palavras e o mundo é convencionado, seria correto alijá-la completamente
do pensamento visual, mesmo quando contemplativo?
Roland Barthes sugeriu que as línguas da narrativa e da linguagem articula-
da não são as mesmas, ainda que a linguagem freqüentemente sustente a narrativa.
Em suma, para ele “as unidades narrativas serão substancialmente independentes
das unidades lingüísticas” (Barthes, 1973, p. 29). Esse pensamento nos interessa já
que poderia ser adaptado ou moldado para o campo visual, mesmo quando o pro-
blema plástico se investe a si mesmo como personagem ou se dá em espetáculo, o
que Barthes define como “a importância, o volume, a raridade ou a força da ação
enunciada” (p. 33). Para ele, é o personagem que torna as pequenas ações narradas
inteligíveis, de maneira que “se pode bem dizer que não existe uma só narrativa do
33
mundo sem ‘personagens’, ou ao menos sem ‘agentes’” (p. 43).
4
A função da narra-
tiva seria, então, de constituição do espetáculo (p. 59), tornado compreensível por
um agente. Quanto à escritura, seu papel não seria o de “transmitir” a narrativa,
mas “mostrá-la” (Barthes, 1973, p. 52). Na obra visual o discurso também se identi-
ficaria com o ato que o produz.
Um outro conceito, abduzido e adaptado da teoria da informação, é o pró-
prio termo “informação”. Ele é aqui geralmente apresentado como todo sinal, ou
grupo de sinais (estímulos sensoriais ou dados intelectivos), estruturador da percep-
ção ou da compreensão, bem como o processo como um todo. A informação vai da
fonte ao receptor através de um canal físico (ondas, papel etc.), mecânico (máquinas,
dispositivos etc.), orgânico (dor, prazer etc.), social (padrões de comportamento, tra-
dições etc.) e outros. Porém é importante acrescentar que definições estabelecidas
também são consideradas. Assim, a informação deve ser considerada uma quantidade
mensurável que pode mesmo ser expressa em fórmulas matemáticas, e que caracteri-
za a comunicação. Segundo Abraham Moles, as mensagens (espacial ou temporal
5
)
“são medidas por uma quantidade de informação que é a originalidade”, que ele considera
como sendo a imprevisibilidade. E prossegue:
A informação é pois uma quantidade essencialmente diferente da significação e indepen-
dente desta. Uma mensagem de informação máxima pode parecer desprovida de sen-
tido, se o indivíduo não for suscetível de a decodificar para a reconduzir a uma forma
inteligível. De maneira geral, a inteligibilidade varia em sentido inverso da informa-
ção. (Moles, 1978, p. 86.)
Ainda segundo Moles, a informação semântica tem lógica universal, é
estruturada e enunciável, enquanto a informação estética é intraduzível, refere-se ao
4
Prince (1989, p. 67), baseado em Seymour Chatman, apresenta a “narrativa não-narrada” como aquela que
tem um narrador ausente, apresentando situações e eventos com uma quantidade de mediação narratorial
(exemplifica com o conto rápido Hills like white elephants, de Ernest Hemingway).
5
A movimentação no espaço é a transmissão e a conservação no tempo é o registro (Moles, 1978, p. 19).
Consultar, também, Décio Pignatari, Informação linguagem comunicação, 11ª edição. São Paulo: Cultrix, 1982.
34
repertório dos conhecimentos comuns ao transmissor e ao receptor. Nesses termos, a
obra pictórica de Picasso teria grande informação estética, mas informação semântica
fraca. Salvador Dali, ao contrário, teria informação estética fraca e grande informação
semântica (idem, p. 192 e 198).
Tome-se a afirmativa a propósito da narrativa literária feita por Todorov (em
Barthes et alii, 1973, p. 213): A história é uma abstração, pois ela é sempre percebida
e narrada por alguém, não existe ‘em si’”. De que história se fala? E se passássemos
para a documentação e exposição de informação visual fotográfica, por exemplo, que
abstrações poderiam ser constatadas? Onde estaria a ficção? E, finalmente, o que pode
a narrativa oferecer a um artista visual, folcloricamente um ser renitente e defensivo
(por causa da crítica) a conceitos como ilustração e narração? O fotógrafo Allan Sekula
admitiria ironicamente a função dos críticos como sendo a de uma “polícia do diverti-
mento” (citado por Renée Green em Bock, org., 2002, p. 235). Entrevistando Sekula a
propósito de seu projeto Fish Story (que registra imagens de movimentos portuários e
navios mercantes, e voltará a ser discutido em outro capítulo), o historiador Hal Foster
faz de sua própria pergunta uma possibilidade de resposta (a conversa ocorreu no Art
Museum of the University of California, Berkeley, em fevereiro de 1994).
Isso levanta uma questão crucial para seu trabalho, uma que outros críticos e artistas
nos encorajam, que é como representar condições que são de muitas maneiras não
acessíveis à representação. Como você vai do aqui-e-agora do trabalhador para a ex-
traordinariamente complexa circulação de capital? Que estratégia pictórica e/ou nar-
rativa pode alcançar esse sistema onde a maioria das vezes o que você tem são espaços
vazios, desconexões, não-positividades. Parte da sua estratégia é recair em histórias
[stories] ou na forma de histórias. Você invoca as palavras “conto”, “lição” e “histó-
ria” em seus títulos. Como essas velhas formas de narrativa dizem respeito a proble-
mas contemporâneos, geopolíticos? (Foster e Sekula, 2001, p. 14)
Sekula entende que o movimento da lição (ou aula) para a história (estória)
em seus títulos possa ser um deslocamento do modelo do didatismo teatral para um
modelo mais maroto de contar histórias. No prosseguimento de sua resposta isso fica
mais claro.
35
Segundo, insistir na completa variedade dos modos de narrativa é uma maneira de
contrariar a redução desprezadora [dismissive] da narrativa à simplicidade estrutural da
“linearidade”, à simplicidade cultural da “anedota” e à simplicidade política da “quei-
xa”. Essas múltiplas reduções são características da marginalização da narrativa pelas
artes visuais. A idéia de que lições e histórias são “velhas” formas de narrativa me
parece como indicativa dessa atitude. (Embora eu admita que exista algo anacrônico
num conto, que é porque eu gosto da incongruência do título Contos populares
aeroespaciais.) Por contraste, alguém lê romances ou assiste filmes com uma concep-
ção similarmente marginalizante de narrativa? (idem, p. 14-15)
Por fim, entramos aqui num último conceito: intermídia. Fala-se em narrati-
va, artes visuais, filmes, romances e evocam-se, em decorrência, outros espaços criati-
vos. Um livro fotográfico que é mais do que apenas um álbum e que reclama uma
funcionalidade outra, se coloca passiva ou ativamente num território diferenciado,
sobre o qual estão se construindo estas reflexões. Constatamos a presença de agentes
(ou atores) que geram e fazem circular bens simbólicos, por isso cabe lembrar do
lugar compartilhado por esse mercado. Trata-se do território disponibilizado pelos
novos gêneros de arte, a intermídia, espaço de trânsito interdisciplinar artístico, teóri-
co e comunicacional, constituído especialmente na segunda metade do século XX. O
termo “intermídia” foi apresentado pelo inglês Dick Higgins (1938-1998), integrante
do grupo ou movimento Fluxus. Designa os novos gêneros de arte que combinam
aspectos de categorias de arte antes separadas e de novas expressões que se apóiam na
eficácia dos meios de difusão da criatividade. Esse é o caso da poesia concreta e visu-
al, dos objetos e ações do Fluxus, dos happenings, da arte postal, da performance, das
instalações, da escultura tecnológica etc., além da maior parte da produção da arte
conceitual (Silveira, 2002, p. 81).
Higgins publicou o substantivo intermídia (em inglês, intermedia) pela primei-
ra vez em fevereiro de 1966
6
no primeiro número de boletim de sua editora, The
Something Else Newsletter, que apresentava artigo com esse nome. Sua editora tinha
6
Richard Kostelanetz (1993, p. 108, e 2001, p. 305) lembra que “somente mais tarde Higgins teve conhecimento
dos usos anteriores do epíteto por Samuel Taylor Coleridge”, poeta romântico e filósofo inglês (1772-1834).
36
Capa (ou página 1)
de The Something Else
Newsletter,
v.1, n.1, fevereiro
de 1966.
Dick Higgins,
diagrama
sobre a intermídia.
(Revista Umbrella,
v.20, n.3/4,
outubro de 1997, p.96)
37
sedes em Nova Iorque e Londres e publicou livros de Daniel Spoerri, John Cage,
Merce Cunningham, Robert Filliou, Allan Kaprow, Dieter Roth, Emmet Williams e
mesmo Marshall McLuhan, entre outros “intermidialistas pioneiros” (Frank, 1983, p.
85). Para Higgins, “um compositor é um homem morto a não ser que componha
para todas as mídias e para o seu mundo” (declarações em Ferreira e Cotrim, orgs.,
2006, p. 140).
Para Richard Kostelanetz (2001, p. 305), “assim como a colagem foi a grande
e fértil invenção estética interarte do início do século XX, a intermídia em suas várias
formas virá representar retrospectivamente o final do século”. O livro de artista stricto
sensu é uma obra tipicamente de arte contemporânea, inserido no contexto da inter-
mídia e, como tal, sujeito a incompreensões. Pode pedir, portanto, um olhar aparelha-
do. Kostelanetz (idem, p. 34) alerta (ou opina) que o uso da designação livro de artista
“mais propriamente que propriedades intrínsecas da arte, foi um dispositivo de
comercialização [marketing device], projetado para vender trabalhos para um público
respeitoso dos ‘artistas’”. O reconhecimento de um público com potências diferenci-
adas das do passado pode ser o motivo de seu dicionário de vanguardas apresentar o
verbete artists’ books, apesar do autor preferir book-art ou book-art books. Ele confessa:
Alguns de nós preferimos essa definição estética mais que a autobiográfica, sem su-
cesso até agora.
As noções desenvolvidas nesta pesquisa ajudam na investigação de como
se dá a narração num livro de artista, quais as relações entre ela, a leitura e a vidência,
e se contemplação e leitura são conceitos contraditórios. O problema da leitura e da
vidência é retomado mais adiante, mas já se pode mencioná-lo. Um livro-obra ágrafo,
sem texto algum, que seja em forma de sanfona e se dê em espetáculo, inteiro e de
uma vez só, ou cujas páginas fossem exatamente iguais, talvez pudesse ser um exem-
plo de livro inteiramente contemplativo, ou um possível grau zero da leitura e, por-
tanto, narrativa caso não se considere as instâncias exteriores a ele. Por exemplo,
no caso de um códice, Rodapé, de Paulo Bruscky, 2005, com apenas uma tarja prate-
ada na base (o rodapé) e outra mais fina no alto, em todas as páginas, sem palavras.
Por outro lado, há livros comuns, que apresentam textos “convencionais”, descri-
ções sobre a própria obra e considerações escritas com parágrafos e frases com
38
Wlademir Dias Pino. Numéricos. 1986.
68 páginas, 20 x 20cm.
Tiragem de 1.000 exemplares.
Paulo Bruscky. Rodapé. Recife, 2005.
25 folhas (50p.), 32,2 x 12,3 x 0,8cm.
8 exemplares numerados e assinados.
Série de livros Documento Areal.
Karin Lambrecht, Eu e você, 2001;
Maria Helena Bernardes, Vaga em campo de rejeito, 2003;
Helio Fervenza, O + é deserto, 2003;
Elaine Tedesco, Sobreposições imprecisas, 2003;
André Severo, Consciência errante, 2004.
39
sujeito, verbo e predicado que, mesmo assim, servem quase exclusivamente para
comercialização alternativa e para públicos específicos. Um teste pragmático seria
perguntar a opinião a um livreiro. É o que acontece com os volumes da série Docu-
mento Areal, publicada a partir de 2001, cada um de um artista, alguns com amplos
desenvolvimentos textuais.
Outros livros existem que poderiam ser entendidos como portadores de nar-
rativas não-vulgares e não-literárias, com compleição de jogo, desenvolvidas pelo es-
forço intelectual ou imaginativo do usuário. Em vez da leitura pronunciável, poderi-
am utilizar a dedução matemática. É o caso, entre outros, de Numéricos, de Wlademir
Dias Pino, 1986, com o desenvolvimento de um poema visual quase mínimo, herme-
ticamente apoiado em poucas palavras, com poucas letras cada, e com a sugestão da
necessidade de algum conhecimento de estatística e matemática para a compreensão
de sua potencialidade. Essas possibilidades estão aqui mencionadas apenas para
exemplificar três situações, entre tantas admissíveis: a de um volume que se porta
como sendo (ou parecendo ser) uma obra de arte contemplativa e, em tese, não-legí-
vel; um livro que se oferece exatamente como tal, portanto como suporte para desen-
volvimentos narrativos para a leitura; e uma publicação que se quer oferecida tanto
para contemplação simples como para novas perspectivas de imersão estética e
cognitiva.
As diferenças (às vezes sutis, às vezes nem tanto) entre as diferenciações
conceituais fazem que estas reflexões se iniciem sob o signo da imprecisão. Resta a
expectativa de que, adiante, o estado ativo do seu desenvolvimento escrito leve a uma
concepção de narrativa (ou seu equivalente) que contemple as manifestações publicadas
da arte contemporânea, integrando as especificidades dos livros de artista. Porém, o
mercado cultural vê com nitidez esse problema e é plenamente capaz de indicar ocor-
rências, classificá-las e, claro, julgá-las. Tome-se como demonstrativo dessa capacitação
taxonômica os livros selecionados para a exposição Guardare, Raccontare, Pensare,
Conservare, (olhar, contar, pensar, conservar) realizada em Mantova (Mântua), em
2004. A seção Raccontare foi dedicada à presença do relato (da narrativa visual, bem
entendido), sob a responsabilidade de Annalisa Rimmaudo.
40
Apesar dos princípios revolucionários que o livro de artista promulga para se
distinguir do livro clássico, sendo como é símbolo de uma instituição cultural
elitista, recusando os sistemas comunicativos lineares e favorecendo uma abertu-
ra a uma comunicação interdisciplinar, muitos artistas têm trabalhado sobre a
narratividade, introduzindo novos valores e sistemas expressivos. (Rimmaudo, em
Guardare..., 2004, p. 126.)
As obras representavam onze categorias funcionais, correspondendo a “ori-
entações de conteúdo e de forma”: (1) escrituras e pré-lingüagens, (2) biografias e
autobiografias, (3) diários, (4) narrações e notas de viagens, (5) histórias (relatos), (6)
romances (e novelas), (7) ficções, (8) histórias policiais, (9) histórias desenhadas, (10)
narrativas cinematogficas e (11) flip books (livros que encenam animação pelo folhe-
ar). Essas categorias pertenciam ainda a dois grupos, um ligado à esfera da realidade e
outro à da imaginação.
A narrativa expõe fatos verdadeiros, ou apresentados como tal, ou imaginários. Os
livros de artista se situam precisamente entre essas duas dimensões e apagam com
freqüência a linha de demarcação. (Rimmaudo, em Guardare..., 2004, p. 126.)
Ainda que nessas categorias e grupos possam existir sobreposições,
mimetismos, presenças metafóricas e inexatidões (e os curadores tinham plena ciên-
cia disso), esse elenco deu conta de uma grande quantidade de obras (e certamente foi
preciso abrir mão de muitas para que pudessem estar em outros eixos temáticos). A
narratividade, a narração, o desenvolvimento no tempo com o uso do espaço, eis
algumas das palavras de ordem que ecoam em bom som, ou às vezes em surdina,
nesse território.
Vidência, leitura e arte contemporânea
Durante conversa em sala de aula sobre alguns problemas metodológicos em
pesquisas que envolvam a formação de discursos críticos sobre a arte atual, especial-
mente no espaço movediço da intermídia, expus meu desconforto com a palavra “lei-
41
tura” para a construção de pensamentos que lidam com problemas onde a visualidade
é preponderante. Julgo essa uma inadequação do vocabulário (especialmente na lín-
gua portuguesa) para a designação de um estado de atividade sensorial e intelectiva
em que a visão, acompanhada de subsídios culturais, desfruta, aprecia, decifra (ou
não) a obra de arte contemporânea. Seu foco será o objeto mirado no momento (con-
siderado no todo físico ou como uma célula de um corpo mais complexo), ou será a
obra de arte em sua totalidade desmaterializada, com seções não vistas simultanea-
mente num dado espaço e num dado tempo. A tentativa de formar neologismos arbi-
trariamente resultou em termos bisonhos (um anedótico vedura, etc.), úteis apenas para
discussões transitórias. Teriam funcionalidade tais designações? Talvez, mas seria pre-
ciso testá-las, confrontar conceitos, tudo para provavelmente não chegar a lugar al-
gum. Em todo o caso, prosseguindo nas rotinas da metodologia, além da consulta
indefectível a glossários, o caminho poderia ser a leitura comparada de textos de per-
cepção visual (e de teoria da composição artística) com análises críticas da produção
de artistas atuantes nas últimas décadas.
A compreensão sempre inconclusa dos mecanismos da fruição da obra de
arte parece ter chegado ao presente revolvendo o substrato crítico dos últimos cento
e poucos anos, interditando o assentamento de certezas. Talvez não seja incorreto
creditar como uma felicidade o fato de tal problema nunca ter estado solucionado. O
século XXI trouxe consigo a reiteração das cisões entre a arte artesanal (pré-moderna
e, muitas vezes, moderna) e a intermidial (a parcela mais vigorosa da arte contempo-
rânea). O pensamento que expande formas, funções e significados da obra (e, por
extensão, da arte como um todo) é combatido por um contingente significativo de
comentadores (profissionais ou não), sugerindo um ressentimento recalcitrante com
o novo. Mas é difícil não reconhecer que o estabelecimento da autonomia das artes
visuais também se deve ao seu gradual fechamento às facilidades interpretativas. Isso
confirmaria a liberdade da arte ao mesmo tempo em que a pune?
O próprio olhar crítico parece ter perdido a ansiedade programática da pri-
meira metade do século XX. O impasse é enunciado sem temor: como destrinçar a
obra de hoje? Como contextualizar com o gosto isso que não está sendo compreendi-
do? A obra se apresenta difícil e os ensaios clássicos parecem não conseguir dar conta
42
das demandas. A arte contemporânea já tem cerca de meio século e mesmo assim
continua altamente desafiadora. As experiências conceituais, minimalistas,
performáticas, midiáticas, eletrônicas, etc., juntamente com a indústria do entreteni-
mento e a poderosa profissionalização das artes aplicadas ao projeto industrial, se
confirmaram como líderes intelectuais da visualidade plástica (artificial, em oposição
à natureza). Insiste-se na decifração do enigma e pretende-se uma postura analítica:
“ler” a obra. Trata-se de um exercício que se tornou muito conturbado pela presença
tanto passiva como ativa do documento, da palavra ou da elocução verbo-visual do
pensamento.
Arthur Danto alerta sobre os cuidados que se deve ter com os documentos,
primitivamente desprovidos de poder aurático, cada vez mais em proliferação (neces-
sária), já que “são, certamente, objetos, mas o consenso é de que são meros documen-
tos, e não obras de arte em si”, mas, ao mesmo tempo em que o curador independen-
te rumava à ascensão, a própria exposição, fundida à instalação, se colocaria como
“forma de expressão artística” (citado por Renée Green para Bock, org., 2002, p. 235;
original de Danto em Bookforum, verão de 2001, p.43). Os documentos (e sua exposi-
ção) são interfaces entre a arte, que pode prescindir da experiência da beleza, e a vida,
que não abre mão dela. Onde encontrar, então, os manuais para a decodificação de
documentos verdadeiros, portanto não artísticos, além dos produzidos como autoficção
pelos artistas, ou os caftinados, “artisticizados” pela economia artística?
Raros textos sobre percepção visual (a maioria do século passado) dão
atenção à produção verbo-visual. Quase se tem a impressão (certamente falsa)
que isso não existia. Entre as ocorrências interessantes, há o livro de Gyorgy Kepes,
Language of vision, 1944, cujos destaques são as ilustrações que contemplam poe-
mas visuais, cartazes, colagens, peças publicitárias, além dos exemplos tradicio-
nais, como desenho, gravura ou pintura. Mas não é na palavra que Kepes vê o
texto, mas sim na relação da imagem figurativa com a natureza, relação essa que
ele denomina “literária”.
Cada configuração visual encerra um texto significativo, suscita associações de coisas,
de acontecimentos; cria reações emocionais e conscientes. A imitação literária da na-
43
tureza ligada a um ponto fixo de observação havia matado a imagem como organis-
mo plástico. Era muito natural, portanto, que o significado associativo se identificas-
se com o conteúdo literário e, em conseqüência, o descartasse como desnecessário.
(Kepes, 1969, p. 273)
Essa foi uma alusão muitíssimo rápida e discreta sobre a textualidade,
nesse caso ligada à defesa de valores abstratos na composição, então em franca
divulgação. Com relação ao uso direto da palavra, há uma rápida menção aos
ideogramas de Guillaume Apolinaire e aos quadros-poemas de Joan Miro, que
integrariam “a significação verbal e as qualidades sensoriais dos elementos plásti-
cos”, provocando sensações profundas devidas “à intensidade sensorial dos valo-
res plásticos” e às associações produzidas pela base lingüística (idem, p. 284). De
fato, ainda é muito pouco, quase nada. Mas em outro trabalho clássico, de Rudolf
Arnheim, Art and visual perception, publicado dez anos após (1954), não há qual-
quer menção à textualidade, seja inferência literária (descritiva), seja a presença na
obra de texto de fato.
Nesse aspecto também é silencioso Ernst Gombrich em seu Art and illusion,
de 1959, mas não totalmente calado. De maneira indireta oferece elementos úteis
para respaldar outras conclusões, segundas e terceiras. Embora muito distante dos
preceitos contemporâneos, seu livro traz alguns exemplos tirados da arte gráfica
comercial e do desenho de imprensa, reduzindo o empuxo alienante típico em
parte dos ensaios do gênero, garantindo sua obrigatoriedade para quem pretende
fazer a “leitura de uma obra de arte. Entretanto, Arthur Danto ressalva que
Gombrich
[...] realmente explica porque a representação pictórica tem uma história, não porque
a arte tem uma história, que é o motivo pelo qual ele teve tal dificuldade em encaixar
Duchamp dentro de sua avaliação, já que, afinal, a Fonte não tem nada a ver com
feitura ou combinação. Tivesse ele não assumido o desprezo de seu colega Popper
por Hegel, poderia ter visto que tanto o conteúdo como os meios de apresentação
são eles mesmos conceitos históricos, embora a faculdade da mente, a qual respon-
dem, não seja a percepção, mas, uma vez mais, o “julgamento”. (Danto, 1997, p. 196)
44
A sugestão de Danto é que sejam considerados os subsídios além do
formalismo, recomendação válida mesmo que seu pensamento pareça às vezes um
pouco digressivo com relação à arte contemporânea:
Tenho um modelo diferente dos dois com que comecei este capítulo. É o modelo
dos significados incorporados. É um modelo que uso como crítico de arte em todo mo-
mento, tentando dizer o que um dado trabalho significa e como esse significado está
incorporado no objeto material que o carrega. O que tenho em mente é que o pensa-
mento é aquilo que a obra expressa em meios não-verbais. Nós devemos nos esfor-
çar para apreender o pensamento da obra, baseado no modo com que o trabalho é
organizado. (Danto, 2004, p.139)
A visão qualificada pode estar diretamente relacionada à aproximação entre
arte e conhecimento. Gombrich acreditava que essa união seria natural, oferecendo
como seu mais ilustre exemplo Leonardo da Vinci. Na procura de soluções para a
representação da natureza, Leonardo recorria para a informação de preceitos univer-
sais, fonte do conhecimento necessário para resolver problemas plásticos concretos.
O pensamento subsidiaria o olhar que abastece a criação. Gombrich ilustra com o
método para desenhar uma árvore, para o qual Leonardo ensinaria que um galho ao
se bifurcar passa a ter um diâmetro mais fino. Diria o artista que “se desenharmos um
rculo em torno da copa da árvore, as seções de cada ramificação devem dar, juntas,
a grossura do tronco” (Gombrich, 1986, p. 135). Gombrich não achava esse princípio
realmente muito bom, mas reconheceu sua importância como fórmula para todos os
artistas.
Cerca de cinco séculos depois, o diagrama da árvore de Leonardo,
redesenhado, ocuparia a capa do primeiro livro da pequena coleção italiana Disegnare
Colorare Costruire (de Nicola Zanichelli Editore, Bolonha), dirigida à iniciação
infanto-juvenil ao conhecimento teórico dos elementos da linguagem visual. O pri-
meiro exemplar foi incumbência de Bruno Munari, o coordenador da série, e era
intitulado Disegnare um albero, 1978 (em Portugal e no Brasil, Desenhar uma árvore,
Edições 70 e Martins Fontes, 1983). Um dos artistas importantes do século XX,
Munari mesclou sua formação entre os futuristas italianos com o persistente desejo
45
de fecundar a vida diária com as qualidades da arte, pura ou aplicada. Seus livros
artísticos, teóricos, didáticos, infantis – são antológicos pela simplicidade com que
se aproxima de estudantes de artes, comunicação visual ou projeto. No segundo
parágrafo de Desenhar uma árvore, a menção: “Um velho amigo meu da província,
um certo Leonardo, nascido numa aldeia perto de Florença – Vinci (código postal
50059) – era um homem muito curioso”.
Com leveza e o sempre presente humor suave, Munari faz seu livro se desen-
rolar quase que como num eco ao seu assunto. E alerta que as fórmulas para a com-
posição artística não devem ficar distantes da memória visual. Os conhecimentos de-
vem ser somados.
Vamos então desenhá-lo sabendo que é só um esquema e que será difícil encontrar
na natureza uma árvore com um desenho tão perfeito. Para crescer de uma manei-
ra tão precisa, uma árvore deveria nascer num lugar sem vento, com o sol fixo bem
no alto, com as chuvas sempre iguais, com o alimento que vem da terra sempre
constante. Nesse lugar não deveriam cair raios nem haver mudanças de temperatu-
ra; não haveria neve e gelo, e nem calor ou seca em excesso... (Munari, Desenhar uma
árvore, p. 8)
O entorno, a circunstância, o ambiente, os fatores que determinam os
desvios da simetria fazem, também, parte do substrato do encantamento da obra
de arte. Quem aceitaria, hoje, um rosto que tivesse as duas metades exatamente
Bruno Munari. Desenhar uma árvore. São Paulo: Martins Fontes, 1983. 88p. 20,9 x 14,6 x 0,8cm.
46
iguais? Esse seria apenas o erro mais medonho e primordial da representação da
face humana na infância da arte digital.
Desde os anos 60 e 70, no mundo da arte desmaterializada (e especialmen-
te em uma de suas manifestações inaugurais, o livro de artista), o meio (a mídia)
onde a nova arte circula está presente na obra, num esforço de combate à alienação
através do desvio para o documental (ou a cooptação do registro). Inicialmente
Desenhar uma árvore apresenta um aspecto limpo e despojado, com grafismos em
preto e detalhes discretos em verde. Mas nas últimas páginas abandona a pureza
gráfica (nesse caso, o uso exclusivo do desenho). Para contextualizar, através de
documentação, um desdobramento do conceito didático que está sendo apresenta-
do, apresenta duas fotos ilustrativas, mostrando uma grande árvore de papel recor-
tado sobre o solo de uma praça da cidade de Mântua, elaborada por crianças, pais e
professores. Um relato de atividade semelhante, porém em ambiente fechado, pode
ser verificado em seu livro Fantasia, 1977 (na 2
a
edição portuguesa, Editorial Pre-
sença, 1987, ver páginas 156 a 164).
Mas se em todo livro a regra é persistente (“cada ramo é sempre mais fino do
que o ramo que o precede”), com a sempre presente, mas irônica, ânsia de cientificidade,
ao final Munari relativiza:
Um antigo provérbio oriental diz que a perfeição é bonita, mas é estúpida: é preciso
conhecê-la, mas romper com ela. Agora que vocês já conseguem desenhar uma árvo-
re, não devem seguir ponto por ponto aquilo que lhes ensinei; se já estão familiariza-
dos com a regra, podem realmente desenhar as árvores que quiserem, completamen-
te diferentes das que viram neste livro.
Será que isso não confirma a permanência de preceitos artísticos históricos?
Provavelmente. Mas isso nunca foi negado (lembremos do “velho amigo Leonardo).
O que muda são os olhares envolvidos.
Desenhar uma árvore, assim como seu relacionado Desenhar o sol (edição italiana
de 1980, publicado em português em 1983), pode não ser considerado um livro artís-
tico por alguns críticos, dada a sua linguagem mais ou menos convencional, fato que
não constituirá problema para estas reflexões, nem para aqueles que aplaudem a con-
47
formação comercial num livro de artista. Em todo caso, ele é produto de um dos mais
prolíficos artistas nessa categoria. Carrega, mesmo que para crianças e jovens, as se-
mentes do exercício perceptivo que engloba uma visão habilitada, que inclui a leitura
convencional e a decodificação visual entre figura e fundo bi e tridimensionais, das
relações das formas umas com as outras e da carga de informações culturais potenci-
almente envolvidas, dentre muitos outros fatores.
Entretanto, falar em leitura convencional significa quase cometer um pleonasmo.
Caso não sejamos muito pródigos com o que seja a leitura, veremos que ela não dá
conta da obra de arte. Sem dúvida, “leitura de obras de arte” é mais que apenas uma útil
figura de linguagem (afinal, um trabalho visual tem um “texto”, uma instalação tem um
“texto”, etc.). Mas ficaria melhor falarmos de algo que sem questionamentos indicasse
compreensão, decifração, interpretação, decodificação, dedução etc. Leitura é, para essas
reflexões, a compreensão de sinais gráficos e caracteres mais ou menos ordenados, com
o propósito de reconhecimento de palavras ou seu equivalente. Grosseiramente falan-
do, seria algo como o negativo ou contraparte da escrita, e não a contraparte do dese-
nho. Acho clara e muito próxima da exatidão a descrição de José Morais, alertando
quanto ao equívoco de, em casos específicos, distender a definição.
Entretanto, é fácil perceber que essa definição ampla da leitura é ao mesmo tempo
falsa e perniciosa. O processo de interpretação dos sinais sensoriais constitui o que
se chama habitualmente “percepção”. Será que a percepção da fala e da música, a
percepção visual e táctil dos objetos, a percepção dos odores e dos sabores, e as
diferentes formas de percepção do próprio corpo fazem parte da leitura? Certamente
que não! (Morais, 1996, p. 111)
A escrita acompanha o trabalho contemporâneo tanto dentro dele como na
sua volta. muito para ser lido. Mas seria adequado falar-se em leitura da obra de
arte? Não para estas reflexões. Para pesquisa nos seguimentos intermidiais da arte
contemporânea (como sobre a categoria as publicações de artista, por exemplo),
defrontamo-nos com um problema fundamental e inevitável: a palavra “leitura”, no
sentido generoso que normalmente utilizamos, é deficiente de exatidão, sequer im-
portando se a produção estudada seja ou não verbo-visual.
48
Não importa, aqui, entender a leitura como uma designação que pudesse ser
substituída por todo um conjunto de outros vocábulos “que designam toda espécie
de consumo cultural”, como quer Pierre Bourdieu, em debate com Roger Chartier
(em Chartier, 1996, p. 231). Importa, sim, refletirmos sobre a exatidão maior ou me-
nor, às vezes inexatidão, das descrições do processo de vidência de obras de arte que,
em uma última conclusão bastante perversa (e por isso inexata), não são mais vulgar-
mente ilustrativas, decorativas ou artesanais.
O pensamento de Jacques Aumont é imprescindível para o entendimento
sobre a imagem no século XX, sobretudo porque ela é vinculada ao campo sim-
bólico, fazendo com que ela seja a mediadora entre o “espectador” e a realidade:
“o olhar é o que define a intencionalidade e a finalidade da visão” (Aumont, 2006,
p. 59). Nele a palavra “espectador” assume primazia na definição daquele que vê
porque esclarece o componente projetivo de seu olhar (“ao fazer intervir seu sa-
ber prévio, o espectador da imagem supre portanto o não-representado, as lacunas
da representação”, p. 88). Sem dúvida isso é decorrente de sua ligação estreita
com a fotografia e o cinema, e parece sugerir a influência de uma dimensão nar-
rativa em suas idéias. Sem dúvida “espectador” é uma ótima designação, que po-
demos usar, sobretudo quando reconhecemos uma dos atributos funcionais
escópicos do vedor.
O vedor exercita a vidência da obra que foi produzida, sendo obrigatória a
presença de ambos (vedor e obra) num mesmo local e tempo. Os exemplos são co-
nhecidos: um mosaico, um afresco, uma pintura... Esse padrão permanece em boa
parte das manifestações contemporâneas, como é o caso das instalações e dos vídeos,
entre outros processos. O modelo ocorre desde que se considere a obra de arte à
parte de suas manifestações companheiras ou acessórias. Em resumo, nesse caso o
blico teria a certeza de estar face à arte. Ou, em outras palavras, em presença dela: o
público pressente ou sabe que aquilo que está na sua frente é de fato a obra e que seu
juízo não incorre em equívoco.
O século XX trouxe a grande dilatação epistemológica da arte, trazendo, tam-
bém, novos modelos. Ao vidente, ser apenas vedor não basta mais. Entre ele e o
artista, existe mais do que a obra desacompanhada. Ou ainda, em possibilidade mais
49
aguda, a arte estaria de fato além do que apenas na obra, embora também nela e nela
exista. Nesse modelo, entre o vedor e o artista, a obra poderá estar intermediada por
uma obra de arte outra – segunda, terceira, etc. –, uma coisa outra ou, sobretudo, pelo
documento – discurso escrito, gfico, fotográfico, etc., ou suas combinações em
empreendimentos plurais. É fácil supor a instauração dos problemas da localização da
obra e de sua decifração.
O olhar contemporâneo, tanto dos artistas como do público (ou públicos, no
plural) é fundamentalmente diferente do olhar pré-moderno, guardando algumas con-
quistas do moderno. Trata-se de um olhar marcadamente investigativo, contaminado
por seu compromisso avaliativo. É rico já na sua formação e enriquecedor da obra, na
medida em que a institui como tal, fundando significados documentais ou os conce-
bendo como ficções. Ralf Rugoff, comentando trabalhos contemporâneos que re-
querem uma visão forense ou pericial de um público não mais meramente observa-
dor (o que é muito freqüente nas publicações de artistas), destaca a tentativa de re-
construção de ações e motivações mais ou menos ocultas do objeto de arte, existentes
ou não. Isso exigiria um olhar escrutinador que demandaria um exame atento e
exploratório (scanning). Sobre alguns aspectos de mostra com sua curadoria (Scene of
the Crime, 1997, em Los Angeles) ele comenta:
Os trabalhos de Ruscha, Nauman e Le Va que mencionei são claramente sobre
mais do que encontra o olho; nas palavras de Le Va, tal arte insiste que “conteúdo
é algo que não pode ser visto”. [...] Como já mencionado, ela requer que o observa-
dor [viewer] chegue a uma interpretação pelo exame de traços e marcas e os lendo
como vestígios. [...] Inextricavelmente ligada a uma história [history] não vista, esse
tipo de arte manifesta um relacionamento fraturado no tempo. Como uma peça de
evidência, sua aparência presente é assombrada por um passado indeterminado
que defrontamos na forma alienada de restos fossilizados e fragmentados. (Rugoff,
1977, p. 62)
Lembremos, nos valendo do conhecimento policial, que vestígio é o elemen-
to material que deve ser estudado para se tornar um indício. Mais adiante, Rugoff
localiza o olhar contemporâneo.
50
Ao considerar o desenvolvimento das estratégias forenses na arte de pós-guerra, ini-
ciamos por levantar uma transição da tradição do objeto discreto – a pintura emoldu-
rada ou a escultura sobre pedestal – para uma arte de indícios dispersos e ambíguos,
em que a informação parece ser continuamente apresentada, mas somos, todavia,
negados de toda história [story]. [...] Essa transição não é meramente o conto do lapso
de boa conduta de um gênio, o declínio no status da pintura e da escultura tradicionais
que tem freqüentemente sido confundido com sua morte. [...] A esse respeito essa
estética forma parte de uma mudança significativa na história do relacionamento en-
tre o observador e a obra de arte, e revela meridianos de influência não usualmente
reconhecidos. (Rugoff, 1997, p. 101)
Foi ressaltada, na citação, a diferenciação entre os vocábulos ingleses story e
history, que já levou escritores da língua portuguesa a empregar a palavra “estória”,
ficcional, em oposição à científica “história”. A recomendação de nossos dicionários
é pelo uso apenas de “história”, para todas as finalidades, contrariando nomes obriga-
tórios de nossas letras, como João Guimarães Rosa e sua afirmação muito repetida:
A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estó-
ria, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota.
7
Como antes mencionado, diferentemente do olhar “desinteressado”, o olhar
que examina também justapõe sobre a obra significados adicionais, “ficcionalizando”
a obra. Artistas e críticos sabem disso há muito tempo, e tal fato persiste em conside-
rações recentes, como a de Jean Fisher:
Na arte visual a ficção é o “véu” que, novamente, significa “nada” em si mesmo,
visto que, certamente, o que esconde é não mais que a própria ficcionalidade da arte.
Seu valor para o observador [perceiver] reside em seu poder para ativar e organizar o
movimento do desejo: em nosso desejo de saber o que há por trás disso, o pensa-
mento imaginativo e o conhecimento são engendrados. Por isso, o conhecimento
não é descoberto no objeto, mas no processo da procura, e a procura pode somente
7
João Guimarães Rosa, frase de abertura do prefácio de “Tutaméia: terceiras estórias”, obras reunidas em
Ficção completa, volume II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, página 519.
51
provir do sentimento que alguma coisa “perdida” deve ser recuperada. O que isso
poderia ser senão o sentido de uma unidade “perdida” do eu? (Fisher, 2003, p. 186).
Esse “eu”, esse “eu mesmo” e sua associação com um específico sentimento
ou angústia de que algo falta ou nos faz falta está manifesto na dúvida sobre o local
que a ficção ocuparia, se o espaço da perda (disponibilizado?) ou se o espaço da au-
sência (nunca ocupado?). Há um pouco dessas reflexões em textos de Jochen Gerz,
artista de muitos suportes. Mas mesmo que apenas indiciais, nos fazem pensar se a
ficção não seria uma espécie de adição da cultura que construímos.
A arte também é produtora de lembranças. Ela é fictícia e virtual, pois ela não pode
produzir tempo real, mas ela pode produzir o hoje através do olhar, como se fosse
já passado. [...] Como se hoje fosse ontem, ou seja, devia se passar amanhã. Essa
breve divergência do tempo é a lembrança, ou seja, uma pequena desordem e uma
estupefação. [...] Após e antes coincidem. É o desabamento do tempo real na fic-
ção. (Gerz, 1994, p.206)
E Gerz reivindica certa desorientação, desejável entre realidades impossíveis:
[...] livrar-me eu mesmo de minha liberdade, colocar a mim mesmo face ao meu limi-
te: meu limite é a ficção. A ficção se detém onde eu principio. Mas será que eu princi-
pio verdadeiramente, ou será que tudo é ficção? Não tenho nada contra a ficção,
tenho somente alguma coisa contra o fato de me fazer falta.
Os sucedâneos do olhar interessado são inevitáveis. São, sobretudo, os frutos
do trabalho crítico. O resultado esperado é o texto e sua leitura, o solo conhecido das
convenções gramaticais, sujeito, verbo e predicado a serviço da indefectível necessi-
dade de inteligibilidade. Fatalmente cairemos nos chavões de que toda tradução é uma
traição (em geral referente à literatura) ou de que toda interpretação implica um ato
de violência (aplicável especialmente na análise da obra plástica). Têm-se sugerido o
uso pelos estudiosos das ferramentas iconológicas como redutoras do caráter escor-
regadiço do objeto de estudo. Essa é a proposta, por exemplo, da crítica Doris von
Drathen, que propõe a retomada dos estudos de Aby Warburg, mas dessa vez para a
52
Jochen Gerz. Fuji-Yama-Series. Dudweiler [Alemanha]: AQ-Verlag, 1981. 52 p., 24 x 32cm.
53
compreensão da arte contemporânea em produção, contestando a compartimentali-
zação das categorias estéticas e a afirmação dos comentários normativos, buscando
no estudo do universo produtivo do artista o reencontro com o mais básico da condi-
ção artística: a imagem e seu impacto emocional. Em prefácio para livro de Drathen
(2004, p. 10), o historiador da arte Horst Bredekamp lembra que “o cerco iconológico
de uma obra de arte não encurta seu impacto ou poder, mas oferece uma defesa,
protegendo-a não apenas da intencionalidade e obstinação autoral, mas também da
insinuação servilmente afirmativa de uma interpretação”. Percorremos os artigos crí-
ticos de Drathen, focados mais na obra do que nas obras de cada artista, e confirmamos
a força da herança conceitual duchampiana e dos anos 60 como mais determinante
do que o legado moderno.
A décima sexta sentença sobre arte conceitual de Sol LeWitt afirma: “16.
Se palavras são usadas e elas provêm de idéias sobre arte, então elas são arte e não
literatura; números não são matemática”. Mas faz a própria ressalva mais adiante:
“35. Estas sentenças comentam sobre a arte, mas não são a arte” (Art-Language,
1969, p. 12-13). A arte conceitual é especialmente rica em produtos que fundam
caminhos sobre questões da linguagem. Os produtos e ações do período inclu-
em manifestações companheiras ou em paralelo, mais ou menos aparentadas,
como o minimalismo, a land art, a arte postal, as ações do Fluxus e outros repre-
sentantes, em maior ou menor grau, da desmaterialização da obra de arte, como
demonstrado por Lucy Lippard. O ato de publicar ganhou renovada importân-
cia para os artistas, naquele momento oferecendo espaço alternativo imediato
para a arte. A reprodutibilidade técnica era um território explorado insuficien-
temente até então.
Com tanto crescimento conceitual no intervalo dos 60 aos 80, a concepção
teórica do campo da intermídia passou a ser o lugar por excelência da especulação
teórico-prática. Para a caracterização do livro de artista, a disputa era entre o livro
manufaturado e o editado. Qual ficaria com o título? Além disso, qual o valor artís-
tico em oferecer legibilidade? Com a poesia visual, vinda da literatura, já estabelecida
em seus nichos internacionais, além de bem aceita no convívio das artes plásticas,
pensava-se também, e cada vez mais, nas possibilidades do circuito oposto, ou seja,
54
nas expressões verbais vindas da visualidade. Especulou-se, também a possibilidade
de ser usada a expressão “literatura visual” para definir a apreensão perceptiva en-
volvida no texto, ou para ajudar a construir um conhecimento a propósito das pu-
blicações verbo-visuais. Algumas definições eram abominadas.
As palavras familiares literacy [capacidade de ler e escrever; alfabetização] e numeracy
[habilidade com a matemática elementar] recentemente têm sido ligadas à palavra
oracy [habilidades cognitivas da fala, da escuta e da leitura oral], mas quando é para
descrever a habilidade de seeing [ver] (em oposição a looking [olhar]) sentimo-nos tra-
vados com a expressão “visual literacy [capacidade de ler imagens, alfabetização vi-
sual], que sugere antes a habilidade de reading [ler] uma imagem pictórica. Pode-se, é
claro, ver razões para a junção dessas duas palavras, mas a ausência de palavras como
“visuacy” [visuação?] ou “picturacy” [“figurização”? “visivisação”?], ou alguma idiotia
verbal similar, ainda parece significativa. A expressão visual literacy atesta a predomi-
nância da cultura visual pelo verbal. (No começo era...) (Phillpot, “Visual language,
visual literature, visual literacy”, em Kostelanetz, 1979, p. 179.)
Victor Burgin, como outros artistas ligados aos problemas conceituais, bus-
cou apontar os códigos retóricos disparados pela justaposição de elementos textuais e
gráficos com a fotografia ou entre fotografias adjacentes. Para ele (no artigo “Looking
at photographs”, 1977) é “quase tão inusual passar um dia sem ver uma fotografia
como é passar sem ver escritos”. Ele utiliza plenamente o artifício da aproximação ao
problema fotográfico através do vocabulário da lingüística: “mesmo uma fotografia
sem nenhum texto real nela ou a sua volta é atravessada pela linguagem quando é
‘lidapor um observador” (Stiles e Selz, 1996, p. 854). Ou ainda, “a inteligibilidade da
fotografia não é coisa simples; fotografias são textos inscritos em termos que podería-
mos chamar ‘discurso fotogfico’” (idem). E prossegue:
A estrutura de representação – ponto de vista e enquadramento [frame] – está intima-
mente implicada na reprodução de ideologia (a “disposição de ânimo” ou nossos
“pontos-de-vista”). Mais do que qualquer outro sistema textual, a fotografia se apre-
senta como “uma oferta que você não pode recusar”. As características do mecanis-
mo fotográfico posicionam o assunto de tal maneira que o objeto fotográfico serve
55
para ocultar a textualidade da própria fotografia – substituindo a receptividade passi-
va por leitura ativa (crítica). (Stiles e Selz, 1996, p. 856)
Discutindo a dualidade do legível e do invisível no conceitualismo, Anne
Moeglin-Delcroix (1997, p. 154) lembra das vantagens adicionais do livro, como o fato
de ele possuir o próprio espaço que ele é ou está, ao mesmo tempo em que as condições
de “leitura” (as aspas são dela) que oferece são as mais favoráveis para a duração que o
trabalho requer. A propósito de alguns trabalhos de Robert Barry, ela nota:
O olho que lê não é para Barry o olho desencarnado da theoria, é um olho que atende
e por ali se aproxima daquilo que está afastado. As palavras impressas são palavras
destinadas a quem as olha. Isso fazendo, as palavras se tornam uma ponte sensível,
não mais uma coalizão de signos abstratos, entre quem escreve e quem lê. [...] As
palavras não são, portanto, nem o objeto da obra, nem seu médium; elas são uma
voz, no sentido encarnado. (Moeglin-Delcroix, 1997, p. 166)
Moeglin-Delcroix destaca especialmente as publicações de Lawrence Weiner,
muitas com os seus statements, que estariam entre os trabalhos que melhor colocam a
questão do “idealismo solipsista” (referente ao conjunto de hábitos de um indivíduo
solitário) da arte conceitual. Com seus livros, Weiner corrigiria o caráter unilateral do
princípio “aprender a ler arte” para aprender a ver livros”: “‘Learn to read’ art é um
preceito que não deve fazer esquecer que a leitura da arte começa pela visão e conti-
nua, sem dúvida, com ela, e que o leitor é também um ‘espectador’” (idem, p. 182).
Lawrence Weiner. Wind & De Wilgen / Wind & The Willows.
Brussels: Yves Gevaert Uitgerver, 1996. 28p. 21 x 21 x 0,3cm.
56
Por fim, retomamos a pergunta: lemos ou não lemos obras de arte? Não,
para os propósitos aqui apresentados, não. Só lemos o que nela estiver escrito ou
registrado num código de sinais que represente ou resulte diretamente em palavras ou
seu equivalente. Então, que ação nós empreendemos envolvendo a visão não alienada
da obra, incluindo também os exercícios condicionados, como a leitura e a interpreta-
ção de sinalização, além do desfrute ou fruição de sua aparência? Prossigo na procura
de uma palavra com hierarquia superior à leitura, se é que isso realmente importe.
Mas o vocabulário é escasso. Acredito que vidência, em oposição à cegueira, possa ser
uma designação plausível, incluindo a percepção daquilo que está desmaterializado na
arte. A vidência é uma capacidade fisiológica essencial. Do ponto de vista erudito, a
palavra traz uma precisão extremamente desejável. Nesse caso, tem pouco a ver com
o uso mais popular do termo, que o usa como sinônimo para clarividência. Não seja-
mos ingênuos de confundir vidente com clarividente, o charlatão que faz o crédulo
acreditar que sua vida é uma narração pré-escrita em andamento e dela você apenas
um personagem. De um lado o fiel, de outro a astúcia do contador de histórias que
sabe que seu ganha-pão é mantido por ouvintes atentos. O futuro pode ser expectado
(com “x”), mas não espectado (com “s”). O futuro ainda não existe.
Talvez fosse preciso forjar um vocábulo provisório, enquanto não aparece
uma solução mais apropriada, um substantivo abstrato. Imaginei algumas bobagens,
aproveitando o radical de vedor e de vedoria, porque vedoria (uma bela palavra da língua
portuguesa, injustamente subutilizada), descreve a função fiscal do vedor (ou veador, ou
veedor), inspetor do Brasil colonial e imperial, e exprime uma observação qualificada,
um olhar profissional, uma visão instrumentalizada, uma fiscalização escrutinadora.
E, talvez a terminação -ura, o sufixo de leitura e escritura,como determinante de um
estado, qualidade ou modo de ser (a pintura, a fatura). O resultado seria bisonho. Mas
abandonei a idéia, já que com isso eu também estaria caindo na idiotia vocabular acu-
sada por Phillpot.
Assim (na procura de uma denominação apropriada), esse ato e seu resultado
(ou efeito) perceptivo e intelectual incluiriam a leitura como uma das habilidades (atri-
buições) funcionais da vidência. Vidência é a faculdade oposta à cegueira, na acepção
principal (e, em outra, que vê o que não é visível). Para que o olhar e a visão existam é
57
preciso que preexista a capacidade fisiológica de vidência. Faz parte de nossa
animalidade mais rudimentar e é quase imprescindível. Quem ou o que exercita a
vidência (se não for impedido por patologias) olha e vê. O vedor exercita a vidência,
logo ele olha e vê, assim como o espectador, mas também intui, infere, deduz. Embo-
ra localizar uma palavra unificadora pareça algo forçado e tardio, deve ser reconheci-
do que é disso de que se trata a visão ou observação ou mirada ativa, prospectiva ou
criativa, para a obra do nosso tempo, o agora. Porque acreditamos que o olhar que
visa à arte moderna, por mais aculturado que seja, será menos exigido se comparado
ao necessário para examinar a arte contemporânea.
Para fins do presente trabalho, salvo quando especificado de outra forma,
quem vê é “vedor”. A especialização operativa e o contexto definirão a precisão caso
a caso: poderá ser leitor, espectador, observador, examinador, escrutinador, etc. Ser
vedor é pré-requisito para poder ver, tanto quanto para poder ler.
58
2. A narrativa visual e a instauração da obra
O estabelecimento do moderno livro de artista dentro de uma nova categoria
da arte – que incluiu o livro-objeto e outras manifestações que utilizassem a confor-
mação bibliomórfica como referência ou assunto – deu-se num momento de flexão
das concepções teóricas do que seja um livro e do que possa ou não ser a própria arte.
Embora pareça tolice tentar precisar em que momentos essas flexões aconteceram,
pode-se, com convicção, localizar muitos pontos de contato entre esses corpos. As
ocorrências esporádicas do decorrer da primeira metade do século XX foram se mul-
tiplicando e se concentrando, até ter nos anos 1960 o sedimento apropriado para sua
efetiva multiplicação. Na década seguinte, a designação “livro de artista” como a en-
tendemos hoje surgiria primeiro em inglês (artist’s book) e imediatamente nos outros
idiomas, em versões literais, forçando o reposicionamento do equivalente francês livre
d’artiste, designação mais antiga e até então vaga, generalista e sem compromisso
programático, assumindo um ar coquete, sobretudo quando reaproveitada diretamen-
te em outros idiomas, como no inglês (“confusões das quais nós temos o deplorável
privilégio”, diz Moeglin-Delcroix, 2006, p. 98, nota 25, referindo-se à língua france-
sa). As afinidades e as oposições com o livro-objeto – um produto artístico de maior
agressividade formal, porém menos intelectualizado – criaram um campo unido pelas
suas próprias tensões, que teve nos anos 80 e 90 o seu período de reflexão crítica mais
amadurecida e a profissionalização de alguns canais de circulação.
Percurso e obra:
o que existe ou não existe para ser lido num livro de artista
Esta é uma palavra definidora de um propósito: circulação. O livro de artista,
no sentido restrito do termo, é um produto quase sempre múltiplo e que põe em ação
59
o gesto artístico de publicar. Como tal, não abre mão de atingir seu público onde ele
estiver. Ele agrega à arte o conceito de mídia. Mas isso não significa que se banalize.
Ao contrário, nos seus primeiros tempos a sua presença causava estranheza, tanto no
circuito das galerias e museus, quanto no mundo das livrarias e bibliotecas. A indaga-
ção proposta, mesmo tão simples, causava perplexidade: como ver essa arte? Ou ain-
da: o que há para ler nesse livro? Havia razão para a inquietude. Não se tratava mais
de apenas ler e ver, paralelamente, uma obra de colaboração, por exemplo, entre um
artista e um escritor. Tratava-se de algo novo, um pouco mais que ver ou ler, uma
possível oferta de novos mistérios, de novas reflexões.
Existe uma certa variedade de conformações possíveis para o livro de artis-
ta. Hoje há até mesmo os digitais. Contudo, um grande número obedece a alguns
padrões: formato pequeno; facilidade no manuseio;mero de páginas reduzido
(um catalogador ortodoxo não classificaria como livro um conjunto de poucas pá-
ginas); impressão industrial ou semi-industrial; distribuição comercial ou, pelo me-
nos, marginal; e identidade estética particular (uso apropriador de soluções dircursivas
antes estranhas aos problemas plásticos, simultaneamente ou não com a intrusão de
retóricas antes específicas apenas das artes visuais). Sublinhe-se o “às” e o “das”, já
que o deslocamento (o realocar) das linguagens, sem que o produto final abandone
o território artístico (ao contrário, o distenda), pode ser uma chave para aproxima-
ções críticas.
Se tivermos que selecionar uma única obra para representar todo um grupo
maior, neste pequeno exercício de análise, correremos o risco de, por vermos de tão
perto, infligirmos a nos mesmos a cegueira para a multiplicidade formal dentro da
categoria. Façamos, porém, um exame rápido, mas necessário, tomando o cuidado de
parar a tempo de poupar nossos olhos.
Para escolher apenas um livro, busco a opinião erudita. Quero dizer, aquela
obra que tenha atraído a atenção de um maior número de críticos e comentadores. A
amostra resultante poderá ter uma ou duas centenas de exemplares. Restrinjo mais:
aqueles que tiveram comentários prolongados, os que mereceram textos e ilustrações,
os com freqüência maior em grandes exposições, os mais imitados, os mais intrigan-
tes etc. Chega-se a dois artistas cotados entre os fundadores: o alemão Dieter Roth
60
(1930-1998) e o norte-americano Edward Ruscha (1937). Talvez Roth tenha sido mais
exuberante em sua produção, tanto na vitalidade criativa como na variedade formal,
ou mesmo no número de trabalhos. Qualitativamente falando, não creio que exista
possibilidade de comparação. Ambos são extraordinários, não existem dúvidas a esse
respeito. No entanto, optarei por Ruscha, tendo em vista a sua particular influência.
Edward, ou simplesmente Ed Ruscha, é normalmente apresentado como um
artista da Califórnia (pela adjetivação cool que isso acarreta, ou, possivelmente, tam-
bém, em oposição ao certo acento camp da arte pop nova-iorquina). Produziu cerca de
duas dezenas de livretos. Poucos, se comparado a Roth, mas que instauraram solu-
ções visuais seguidas por um sem-número de artistas. A esses trabalhos é atribuída a
designação conceitual “livro-obra”, do inglês bookwork, específica para uma obra de
arte fundada na estrutura gráfica do livro comum, sem pertencer conceitualmente ao
universo literário, mas apenas ao artístico. Para Riva Castleman (1994, p. 52), a nova
atitude de Ruscha estabeleceu um estilo, por ser muito mais uma nova atitude do que
uma nova forma de livro. Para o crítico Clive Phillpot (em Lyons, 1985/1993, p. 97),
Ruscha teria criado o paradigma de todo um grande grupo de livros de artistas a par-
tir do lançamento de Twentysix gasoline stations. Essa afirmação é repetida por Anne
Moeglin-Delcroix (1993, p. 14, e 1997, p. 25) e tem a concordância de Johanna Drucker,
embora Drucker acredite ser “contraprodutivo tentar fazer um único ponto de de-
marcação para uma história complexa”. Drucker lembra, como advertência, que
Twentysix... se tornou “um clichê em trabalhos críticos” (1995, p. 11). Prossigo, por
isso mesmo, rumo ao clichê, não pretendendo reinaugurá-lo, mas apenas reconhecen-
do-o em suas relações.
Twentysix gasoline stations é um livreto pequeno (brochura), impresso em ofsete,
com acabamento costurado e colado, no formato aproximado de 18 x 14cm e lomba-
da com cerca de 0,5cm. Possui 48 páginas não numeradas, mais a capa, em papel
gráfico comum. É todo em preto-e-branco, salvo a capa e a lombada, que têm o título
em vermelho. Na capa, o título está dividido em três linhas de igual tamanho (toda a
largura disponível), variando apenas o tamanho do corpo dos caracteres. No título,
Twentysyx está grafado como palavra única, sem hífen. O interior do volume apresenta
26 fotos, a maioria da largura de uma página, mas algumas ocupando duas. Cada foto
61
é acompanhada de uma pequena legen-
da com a marca da gasolina, o nome da
cidade onde estava o posto e o nome
do estado norte-americano correspon-
dente.
Apesar da data impressa ser
1962 (ano da concepção), a publicação
é de abril de 1963. Teve três edições. A
primeira totalizou 400 exemplares nume-
rados. Foi publicada pelo artista com a
marca “A National Excelsior Publi-
cation” e impressa por The Cunningham
Press, Alhambra, Califórnia. A segunda
impressão foi em 1967, com tiragem de
500 exemplares, e a terceira em 1969, com 3000 cópias. Essas duas últimas edições não
foram numeradas ou assinadas.
As fotos do interior são exclusivamente de postos de gasolina de beira de
estrada ou saídas de cidade. Os cenários são áridos, sem personagens. Os prédios,
de função específica, são solitários de história e de seres humanos. Carregam uma
aparência datada pelo seu tempo e marcada pelo seu lugar geográfico. A estrada é a
folclórica Rota 66, que vai de Los Angeles a Oklahoma City (hoje o trajeto é feito
pela Rota 40). Ruscha nasceu em Omaha, Nebraska, mas cresceu em Oklahoma até
os dezoito anos, quando se mudou em definitivo para Los Angeles, onde cursaria a
escola de artes. Cinco ou seis vezes por ano ele retornava para ver seus pais (e a
partir de 1959, apenas sua mãe, já que seu pai falecera). Numa dessas visitas ele teve
a idéia do livro. E tudo, conforme depoimento seu, a partir do título, Vinte e seis
postos de gasolina, que descreve exatamente o que está visualmente explícito no livro,
buscando impedir uma predisposição poética ou uma expectativa romântica quanto
ao conteúdo. As páginas parecem mostrar o que o título promete e nada mais. Ruscha
continuaria com o mesmo recurso na maior parte de seus livros seguintes, com
coleções de imagens da mesma natureza, geralmente retirados da vida urbana de
Edward Ruscha. Twentysix gasoline stations.
Alhambra (California): The Cunningham Press,
1969. 48p. 17,9 x 14 x 0,5cm., aproximadamente.
1
a
edição, 1963, 400 exemplares; 2
a
edição, 1967,
500 ex.; 3
a
edição (foto), 1969, 3.000 ex.
Bibliothèque National de France, Paris.
62
Los Angeles. Seria assim, por exemplo, em Various small fires: and milk (1964), Some
Los Angeles apartments (1965), Every building on the Sunset Strip (1966), Thirtyfour parking
lots: in Los Angeles (1967), Nine swimming pools: and a broken glass (1968), Babycakes: with
weights (1970), Real estate opportunities (1970), A few palm trees (1971), Records (1971) e
outros. Com freqüência esses livros terminam com séries de páginas brancas, às
vezes muitas, reticência visual que talvez sugira ou solicite uma continuidade ou
apenas ajude a constituir o volume, a dar-lhe corpo. Às vezes o livro tem o título na
capa e na lombada sem complemento, seja ou não esse complemento um subtítulo,
mas que aparece (ou prossegue) na página de rosto. Os dois pontos (:) aqui utiliza-
dos têm a finalidade de esclarecer isso.
A diagramação (composição artística dos elementos gráficos) é discretíssima,
circunspecta, rígida, sem movimento orgânico. O tempo das imagens parece estar
imobilizado perante o espaço da identidade geopolítica e sua dimensão imagética.
A imobilidade gráfica é tão surpreendente que nos paralisa na nossa inquietude.
Edward Ruscha. Twentysix gasoline stations. Alhambra (California): The Cunningham Press, 1969.
63
Tudo, o terreno e a estrada, os postos e sua finalidade, os letreiros, os luminosos,
alguns automóveis, tudo é uma superindicação da presença humana. Mesmo sem
vermos o homem diretamente, o sabemos como ocupante da paisagem ou como
seu interventor. Nessas edificações estranhas e no entorno monótono de cada um
apresenta-se, em pré-estréia, um certo silêncio hiper-realista, mesmo que aqui se-
jam fotos e não pinturas.
Alguns autores apontam pequenas contradições nos depoimentos do artista,
mas mesmo assim eles trazem informações importantes sobre a sua postura diante da
própria obra ou frente às novas relações que ela gerou. Em matéria para a revista
Artforum ele esclarece a obra um pouco mais, ao mesmo tempo em que nos oferece
novas dúvidas.
Quando eu estou planejando um livro, eu tenho uma fé cega no que estou fazendo.
Não estou querendo dizer que não tenha dúvidas, ou que eu não tenha cometido
erros. Nem estou realmente interessado nos livros como tal, mas estou interessado
em formas não usuais de publicações. O primeiro livro resultou de um jogo de
palavras. O título veio antes mesmo que eu pensasse sobre as imagens. Eu gosto da
palavragasolina” e eu gosto da qualidade específica de “vinte e seis”. Se você
olhar o livro, verá como a tipografia funciona bem – eu trabalhei tudo antes de
obter as fotografias. Não que eu tivesse uma mensagem importante sobre fotogra-
fias ou gasolina, ou alguma coisa como isso – eu apenas queria uma coisa coesa.
Além de tudo, as fotografias que eu uso não são “artísticas” [arty”] em nenhum
sentido da palavra. Eu acho que a fotografia está morta como arte [fine art]; seu
único lugar é o mundo comercial, para propósitos técnicos ou de informação. Eu
não quero dizer fotografia de cinema, mas fotografia de cena, isto é, edição limita-
da, individual, fotos processadas manuais. As minhas são simplesmente reprodu-
ções de fotos. Assim, ele não é um livro para abrigar uma coleção de fotografias
artísticas – elas são dados técnicos, como fotografia industrial. Para mim, elas são
nada menos que instantâneos. [...] Eu eliminei todo o texto de meus livros – quero
somente material neutro. Minhas fotos não são o que interessa, nem o assunto
importa. Elas são simplesmente uma coleção de “fatos”; meu livro é mais como
uma coleção de ready-mades. (Artforum v. 3, n.5, fevereiro de 1965, p. 24-25, transcri-
to em Stiles e Selz, 1996, p. 356-357.)
64
Embora surgido de dentro dos primeiros momentos da arte pop, Ruscha
particularizaria sua produção com um estilo intelectualizado que teria muita influ-
ência sobre algumas vertentes conceituais. Alguns comentadores (incluo-me nesse
grupo) crêem que os livros de Ruscha têm uma importância ainda superior a de
suas gravuras e pinturas. Richard Kostelanetz (1993, p. 189), por exemplo, destaca
que “apesar das meticulosas pinturas de palavras de Ruscha, normalmente em uma
forma modestamente expressiva, [...] suas verdadeiras inovações são os livros da
livro-arte.” Essa posição vem aumentando, mas não é de todo nova. Lucy Lippard
(1977, p. 40) foi uma das primeiras vozes a afirmar que os livretos de Ruscha cons-
tituíram um dos principais pontos de partida para a arte conceitual, movimento ou
tendência que teria como uma de suas contribuições mais vitais a validação do livro
como uma mídia legítima para as artes visuais. O próprio Ruscha reconheceu essa
relação de importância entre seus livros e quadros (Moeglin-Delcroix, 1997, p. 32),
os últimos não sendo, para ele, revolucionários. Mas apesar dessa importância, mui-
tas publicações sobre arte pop ou sobre o minimalismo preferem mostrar reprodu-
ções de gravuras ou de pinturas, atendendo, assim, a expectativas mais conservado-
ras. Em alguns ensaios, sequer é informado que a maior parte desta produção
consagradora foi realizada após Twentysix gasoline stations, e, em alguns casos, sobre o
seu legado. Seus livretos são trabalhos poderosos, com competência para ajudar a
arte a andar um pouquinho mais.
Para Renée Riese Hubert e Judd D. Hubert, Twentysix... é um livro fundador
que guarda traços da herança duchampiana.
[...] inaugura o “múltiplo” ilimitado, um gênero aparentemente destituído de pre-
tensões gráficas ou literárias. [...] implica que o que o livro realmente representa
pode importar menos do que ele recusa: arte estabelecida, literatura e tipografia.
Como tal, ele pode funcionar como um panfleto iconoclasta dirigido, ao menos em
parte, contra a defesa do consumidor. A esse respeito, Twentysix gasoline stations pode
guardar lealdade aos “ready-mades” de Marcel Duchamp, tão escandalosamente
assumindo o lugar de “arte original”. (Hubert e Hubert, 1999, p.7).
As menções a Duchamp não são apenas deduções. Ruscha teve de fato con-
65
tato com ele na segunda metade de 1963, durante uma retrospectiva de Duchamp no
Pasadena Art Museum. Anos mais tarde, em 1989, ele citaria essa relação.
O readymade foi mais ou menos um guia para mim, a idéia de chamar algo de obra de
arte. Não necessariamente que o artista tenha a liberdade de chamar qualquer coisa
que queira de arte. Havia outro lado que me intrigava – eu suponho que exista uma
extensão de um readymade na forma fotográfica. (...) A fotografia por si mesma não
quer dizer nada para mim; é o posto de gasolina que é a coisa importante. (Transcrito
em Engberg e Phillpot, 1999, v. 2, p. 63.)
Perto do encerramento de seu livro sobre o assunto (livros de artista), Hubert
e Hubert insistem nessa relação.
Como já sugerimos, ele tem muito em comum com os ready-mades de Duchamp, ago-
ra cuidadosamente abrigados em museus. [...] Como as realizações dos pintores pop,
os primeiros livros de artista de Ruscha devem seu valor e importância não a busca
da beleza, mas ao sentimento de que eles claramente marcam um ponto decisivo na
acelerada história da arte. [...] Seu sucesso entre os conhecedores dependeu inteira-
mente de uma memória culta capaz de criar uma multiplicidade de relacionamentos.
(Hubert e Hubert, 1999, p. 242)
É difícil, quase impossível para a arte sua libertação de alguma forma narrati-
va. Em algum grau a narração estará presente: dentro da obra, mesmo que com uma
qualidade apenas indicial, ou fora dela, no seu processo criativo. Ou além, nos discur-
sos que dela se fazem. O livro-obra se oportunizou a Ruscha como uma idéia sujeita
ao título. E a coesão do seu trabalho é evidente. Conseguiu, sem dúvida, provocar a
surpresa pretendida (premeditada). Ou, nas suas palavras, um tipo de “Hein?” (“a
kind of a Huh?”), criando uma obra então inclassificável numa primeira tentativa
(Phillpot, 1993, p. 6). Para o artista, os livros são “material visual”, o que é reconheci-
do como uma das características fundadoras deste tipo de obra, fundamento aponta-
do por pesquisadores desse campo, como Anne Moeglin-Delcroix, por exemplo.
É porque ali o conteúdo não é estranho ao continente. Se existe minimalismo em
Ruscha, ele não está no assunto de seus livros, nem na sua sobriedade estética, mas
66
na maneira que ele tem de trabalhar isso que minimamente define um livro: um con-
junto de páginas, a priori idênticas, reunidas em uma determinada ordem. (Moeglin-
Delcroix, 1993, p. 31 e 32)
Clive Phillpot apresenta Twentysix… como uma “narrativa pictórica inflexiva”
(1993, p. 7). Isso não oferece muitas dúvidas. As imagens parecem ser de paradas
quando se viaja no sentido do oeste para leste, ou seja, de Los Angeles para Oklahoma
City. Sairíamos da Califórnia, passando pelo Arizona, Novo México e Texas, até che-
gamos em Oklahoma. Poderíamos, por isso, supor algo como um percurso no mes-
mo sentido da leitura ocidental, da esquerda para a direita. Mas cinco fotos estariam
fora de seqüência, talvez devido às muitas alterações que o artista diz ter feito quando
da montagem na gráfica (imposição de páginas). Se houve um rigoroso sistema inicial
que impedisse qualquer presença de humor, como ele declarou em entrevista para a
revista Artforum (1965, v.3, n.5, p.25), ele parece ter sido abandonado em favor da
obra, talvez um não-mencionado e oculto padrão estético.
É claro que Ruscha não mantinha uma relação inocente com a arte. E sequer
poderia ser considerado um amador. Jovem talvez, mas com experiência das ferra-
mentas que dispunha. Para Jeff Wall, ele e sua série de livros são exemplos da mimese
de amadorismo que se pode encontrar dentre as produções do fotoconceitualismo,
exemplos que destroem o gênero dos “livros fotogficos”.
[Twentysix...] tira sua importância artística do fato que, no momento em que a “Route” e
a vida na estrada tinham já se tornado um clichê do amadorismo nas mãos dos epígonos
de Robert Frank, ele rejeita resolutamente toda representação desse tema, consideran-
do a rota como um sistema e uma economia que se refletem na estrutura ao mesmo
tempo das fotos que obteve e da publicação onde aparecem. Só um imbecil tiraria ex-
clusivamente fotos de postos de serviço, e a existência de um livro onde apenas figuram
essas fotos prova de algum modo que esse tipo de pessoa existe. Mas a pessoa, o zero
associal incapaz de entrar em relação com os outros é uma abstração, um fantasma
suscitado pela construção, a estrutura do produto presumido de sua mão. O anestético,
a orla ou a fronteira do artístico, emerge na construção desse produtor fantasma, que é
incapaz de evitar tornar visíveis as “marcas de indiferença” com as quais a modernidade
se exprime em e como uma “sociedade livre. (Wall, 2004, p. 308)
67
Assim como Wall, também Rosalind Krauss acusa a dimensão estratégica do
fotoconceitualismo que mimetiza a fotografia “brutalmente amadora”.
Uma reflexão desse modo sobre o próprio conceito da arte, que como Duchamp
tinha uma vez colocado pode ser visto como nada mais que a “impossibilité du
fer – seu trocadilho sobre a impossibilidade do fazer – os postos de gasolina in-
sossos ou os edifícios de apartamentos de Los Angeles, de Ruscha, ou as absoluta-
mente simples peças de duração [as Duration Pieces] de Huebler exploram o ponto
zero do estilo do amador para mover a fotografia para o centro da arte conceitual.
(Krauss, 1999, p. 295)
Em geral, cogita-se que o número 26 remeta à quantidade de letras do
alfabeto ocidental. Uma das boas descrições disso está em Engberg e Phillpot
(1999, v. 2, p. 60 e seguintes). Phillpot nota que caso se pegue um mapa da Rota
66 daquela época e se marque uma seqüência de postos atribuindo letras de A até
Z, tem-se um alfabeto sim, mas truncado. A seqüência será A, B, E, C, D, I, G, H,
J, K, L, F, M, N, O, P, Q, S, T, U, W, R, X, Y, Z e V. Pelo menos um dos cinco
deslocamentos de imagem pode ser explicado diretamente, mesmo que isso seja
imprudente. O 22º posto estaria movido para o final, mesmo sendo de um estado
já percorrido, por ser um posto de gasolina da marca Fina. Ruscha certamente
conheceria um pouco da sonoridade e etimologia de algumas palavras latinas, co-
muns numa cidade como Los Angeles. Além disso, ele esteve na Europa em 1961,
onde teria gostado muito dos bouquinistes, vendedores informais de livros de Paris.
Mas Ruscha diz que não. Diz que queria algo desajeitado no final, como uma
coda musical. Possivelmente a parte central do livro sofreu pequenas variações
para acomodar imagens conforme efeitos que ele queria obter ou evitar. Ou seja,
algum modo entre o ritmo e a arritmia, num trabalho que lhe tomou alguns me-
ses, lidando com cinqüenta a sessenta fotos finais. Portanto, houve indecisões e
houve escolhas. Em suas palavras: “Estou falando sobre fazer uma obra de arte,
não sobre outra coisa” (Ruscha, 2002, p. 65).
Outra hipótese sobre os mistérios (hoje crescentes) do livro foi defendida
com paixão por Dave Hickey, em Artforum de janeiro de 1997 (p. 61). O autor ressalta
68
Nesta página e nas seguintes:
Edward Ruscha, Twentysix gasoline stations,
Alhambra (California): The Cunningham
Press. 48 pág., aprox. 17,9 x 14 x 0,5cm.
Primeira edição: 1963, 400 exemplares.
Segunda edição: 1967, 500 exemplares.
Terceira edição: 1969, 3.000 exemplares.
Exemplar fotografado: 1969, acervo
da Bibliothèque National de France.
que ao terminar o livro com o posto da marca Fina, da cidade de Groom, Texas, ele
volta-se, de novo, para oeste, deixando de ser uma viagem apenas de ida, mas uma
jornada de ida e volta. Os postos, que em princípio nada mais são que pontos de
parada, poderiam ser um pouco mais que isso. Oferecer-se ia uma possibilidade mate-
69
70
71
mática. Treze tanques de combustível (naquela época) para ida e treze para volta. Con-
tando-se as páginas mais as capas, chega-se ao número 52. Ou seja, 26 folhas. E, mes-
mo ressaltando o risco que se corre quando se solta a imaginação em Ruscha, Hickey
arrisca uma possibilidade católica. Os postos, stations em inglês, seriam estações da
Paixão, quatorze estações menos a crucifixão: “treze estações de Los Angeles ao
Calvário da cidade de Ed em Oklahoma, e então treze estações de volta a Los Angeles,
recusando o sacrifício”.
Se a imaginação aqui parece excessiva, isso não é um problema. É um mérito
da obra. Esse e outros livros de Ruscha continuam inspiradores de muitos artistas.
mesmo quem faça paródia deles e de sua influência, como Jeffrey Brouws, que em
1992 publicou, nos Estados Unidos, o seu Twenty-six abandoned gasoline stations, ou Yann
Serandour, que em 2002 publicou, na França, Thirtysix fire stations, além de John O’Brian,
Bruce Nauman e outros. Quase todos são simulacros críticos e bem-humorados. Um
representativo grupo deles foi reunido na seção Ruscha Rivisitato, da grande exposi-
ção italiana Guardare, Raccontare, Pensare, Conservare, realizada pela Casa Del
Mantegna, em Mântua, 2004.
Na época de seu lançamento, a recepção do livro pelo público foi desigual.
O normal parece ter sido o descaso, a surpresa, o ultraje ou o riso. Ruscha gosta de
lembrar uma moça que comprou três exemplares, uma cópia para cada um de seus
três namorados, dizendo que seria um ótimo presente, já que eles já tinham de tudo
que se pudesse imaginar. Mas o artista ficou incomodado com uma recusa da Bibli-
oteca do Congresso, que não quis um exemplar para seu acervo. Ele foi devolvido
com uma carta (datada de 2 de outubro de 1963) onde se lia: “Estou, com isso,
devolvendo esta cópia de Twentysix gasoline stations, que a Biblioteca do Congresso
não deseja incluir nas suas coleções. Nós estamos, contudo, profundamente agrade-
cidos por sua atenciosa consideração pelos nossos interesses.” (Engberg e Phillpot,
v. 2, p. 128)
Movido pelo fato, Ruscha mandou publicar um pequeno anúncio de 12,7 x
5,7cm na revista Artforum de março de 1964, promovendo seu livro a partir dessa
recusa. O título do anúncio era “Rejeitado, 2 out. 1963, pela Biblioteca do Congresso,
Washington 25, D.C.. Embaixo, uma foto do livro seguro em sua mão, seguida de
72
mais texto: “cópias disponíveis por
3 dólares” e os endereços para pe-
didos em Los Angeles e em Nova
Iorque. Três dólares! O livreto não teve uma quarta edição. Comprado usado, um
exemplar (se tivermos paciência para procurar e sorte de encontrar um) chega a
alcançar um preço de algumas centenas de dólares. E perde-se, assim, a banalidade
pretendida.
Percurso e assunto:
as odisséias possíveis e a constituição de um gênero
De que epopéia – por definição um grande relato – um artista poderia parti-
cipar? Ou que narrativa épica ele poderia criar? Existiria espaço de heroísmo como
criador ou personagem a quem cabia apenas a crônica visual dos feitos de outros?
Provavelmente não. As aventuras em tom maior tenderam a passar longe de sua vida.
Discursos maiores, descritivos ou ficcionais, pela força do texto ou pela força da ima-
gem, são incomuns na história da arte. Mesmo para o pequeno relato, a confidência
íntima posta em obra (de qualquer categoria artística), o espaço foi se desdobrando
Edward Ruscha.
Anúncio de Twentysix gasoline stations
para a revista Artforum,
v.2, n.9, março de 1964.
12,7 x 5,5cm.
73
lentamente. Muita tinta foi gasta até que o artista ocupasse o papel de protagonista de
sua própria biografia. A partir do estabelecimento da imprensa, caso ambicionasse as
formas básicas de narração em terceira pessoa, reais ou ficcionais, a ele restava se
atrelar às soluções ilustrativas. Somente bem mais tarde – mas não tarde demais –
houve a disponibilidade de espaços de comunicação, mesmo que sobre suportes do-
minados pelo verbo. Mas ainda havia tempo para relatórios originais, e desta vez com
a participação do eu.
Ocorreram aqui e ali alguns episódios em que artistas tiveram a oportunida-
de de construção de exposições escritas ou pictóricas, seja pela representação mais ou
menos mimética dos períodos pré-moderno e moderno, seja pelo esforço experimen-
tal da arte contemporânea. No primeiro caso, podem ser apontados os chamados
artistas viajantes. De trabalho escassamente reconhecido pela crítica (parece que em
geral sua produção tem sido pouco valorizada como arte), a produção desses cronis-
tas visuais encontrou seu canal na publicação de álbuns de viagem. Num certo senti-
do, poder-se-ia dizer que eles fizeram um prólogo aos livros contemporâneos (leia-se
dos anos 60 para cá) que tinham a viagem ou o reconhecimento de territórios como
fato gerador do próprio livro (e que também ajudaram, mais tarde, num movimento
inverso, na reconsideração das experiências históricas). E nesse último percurso entre
o fato e o livro final, a própria transferência lúcida e intencional de dados. Em qual-
quer dos casos, alguém (o artista) transfere informação ordenada a outro que o lê, ou
que o vê, ou que o escuta (“informação” como definida por Moles, 1978).
Não trato, aqui, do diário de trabalho, que é geralmente privado e muito pes-
soal, mas que no fundo anseia ser “descoberto” (e que pode acabar, cedo ou tarde,
sendo publicado por algum editor como obra íntegra). Muitos são os diários nesta
condição elaborados durante, após ou por causa de deslocamentos, e alguns foram
mesmo intencionados para essa passagem, como Noa Noa, de Paul Gauguin, publica-
do em fac-símile em 1926. Interessa-nos o livro publicado e o artista que objetiva a
publicação, seja um contratado da Companhia das Índias, seja um experimentador da
land art.
O serviço prestado no passado pela arte (ou, mais especificamente, pela
representação visual) para a compreensão e divulgação do mundo fisiográfico e na-
74
tural é freqüentemente relembrado em escritos oriundos de comentaristas de diver-
sas procedências culturais, cientistas ou não. Mas sobretudo o seu caráter ilustrativo
ou funcional é destacado: a arte, aqui, é ofício, no seu sentido mais pragmático,
ainda que indícios da poética pessoal de seus autores possam ser percebidos. Isso é
especialmente explícito nas justificativas dos organizadores ou participantes das ex-
pedições científicas da idade moderna.
8
Nesses casos, a dimensão reprodutiva
(mimética) da arte precisaria se impor a outras qualidades. Para a ciência aplicada às
expedições, o artista viajante tinha de ser útil dentro da missão a cumprir. Não se
trata de descobrirmos as potencialidades estéticas da ilustração científica (pictórica,
gráfica ou fotográfica) ou a sua qualidade artesanal (do seu acabamento até sua ob-
jetividade como figura), nem tampouco em nos deter nos álbuns publicados após
as expedições. Interessa-nos identificar o deslocamento funcional da narrativa de
viagem operada no âmbito da expressão artística, especificamente nas suas dimen-
sões plástica e afetiva. Se em momentos anteriores as artes visuais não passavam de
tradutoras das constatações descritivas de naturalistas, produzindo ilustrações com-
panheiras do texto (ainda que insubstituíveis), no final do século XX, principalmen-
te, poderão ter encontrado a sua resignificação, propiciada pelos exercícios e pro-
postas da arte contemporânea.
Humboldt acreditava que o conhecimento ampliado da natureza desconheci-
da contribuiria para o incremento da qualidade artística, por exemplo, da pintura de
paisagem.
E entretanto, é forçoso reconhecer, o alargamento do horizonte, o conhecimento
de formas naturais maiores e mais nobres, o sentimento da vida voluptuosa e fe-
cunda que anima o mundo tropical oferecem essa dupla vantagem de prover a pin-
tura de paisagem dos materiais mais ricos, e de excitar mais ativamente a sensibili-
dade e a imaginação de artistas menos afortunadamente dotados. (Humboldt, 1999,
p. 419)
8
Ver, a esse respeito, a reflexão de Pablo Diener, “La estética classissista de Humboldt aplicada al arte de
viajeros”, em Amerística: la ciência del nuevo mundo, ano 2, n.3, segundo semestre de 1999, p.41-49.
75
Para Humboldt, esse artista muito especial precisaria ser habilitado na descri-
ção pormenorizada. O que ele nos descreverá deverá estar sedimentado (ou em sedi-
mentação) no conhecimento direto da natureza.
No país das palmeiras e dos fetos arbóreos, no lugar dos tristes liquens ou dos mus-
gos que, na direção das regiões glaciais, recobrem a casca das árvores, o Cymbidium e a
baunilha aromática pendem do tronco das anacardiáceas e das figueiras gigantescas.
A fresca verdura da Dracontium, e as folhas profundamente recortadas da Pothos con-
trastam com as flores brilhantes das orquídeas. As Bauhinia trepadeiras, as passifloras,
[...] (Humboldt, 1999, p. 421)
E conclui mais adiante:
É permitido ao artista dividir os grupos; sob seu pincel, o grande encantamento da
natureza se decompõe em traços mais simples e em páginas soltas, como as obras
escritas pelas mãos dos homens.
Os álbuns de viagem, publicados na Europa como a mais eficiente documen-
tação do sucesso da empreitada, e simultaneamente um catálogo variado da flora,
fauna e costumes exóticos (a serem explorados comercialmente), são uma fonte a
mais para o estudo do exercício artístico de fundamento acadêmico e classicista. Eles
têm merecido a atenção renovada de pesquisadores, desta vez num olhar recuperador
que os examina no sentido da periferia para o centro, do colonizado para o coloniza-
dor. Olhar, esse, que acaba se juntando ao do seu colonizador, porque passam a ser
olhares cruzados. Da Europa, o olhar experimentado na morte; dos novos continen-
tes, o olhar retroverso de quem se procura.
A sedução do sol – ouro, de um modo ou outro – não cessou nunca de fazer do
europeu um turista perpétuo, que vigia seu mundo cartográfico, mas não vai a lugar
nenhum. Preso entre o desejo de esquecer e a compulsão de lembrar, ele é condena-
do a retornar obsessivamente ao seu próprio cenário primordial da inocência perdi-
da. (Jean Fisher, 2003, p. 251; publicado originalmente em Review: 1492-1992, New
York, 1992.)
76
Relativamente pouca coisa inédita deve existir na natureza para ser narrada,
descrita ou dissertada pelas ferramentas dos artistas. Já se conhece o tomate, o milho
ou o chocolate. Um peru, uma lhama ou um pingüim não surpreenderia ninguém. E
qual recanto deste mundo não ficaria próximo do olhar dos satélites de sensoriamento
remoto? Mas como a propensão a contar para outro como foi uma experiência de
deslocamento parece ser uma das mais fortes propulsoras de produção artística, o
artista só terá autonomia para descrever viagens com trabalhos realmente pessoais
quando não mais houver a necessidade primeira de seu ofício de ilustrador.
De volta aos álbuns publicados, poderíamos perguntar se existe hoje uma
produção bibliomórfica que traga em si traços ou semelhanças de propósitos com os
álbuns dos artistas viajantes. Certamente não, no aspecto funcional. Afinal, os tempos
são outros. Mas quanto à relação do artista com a prospecção do mundo físico, geran-
do ao final uma publicação artisticamente procedente, mesmo que cientificamente
inútil, não há dúvidas quanto a generosidade do tempo presente. Os livros de artistas
propiciaram a instauração da posse total do códice, propriedade intelectual num sen-
tido pleno que incorpora leitura e visibilidade. Se o propósito for apenas registrar
uma viagem, a produção já será numericamente significativa. E se for a experimenta-
ção conceitual, então teremos um acervo vasto e de qualidade para ser examinado.
No quesito deslocamento em uma trajetória nacional, talvez o trabalho mais
incensado seja o pequeno livreto Twentysix gasoline stations, de Edward Ruscha, já co-
mentado, considerado uma das obras instauradoras da categoria. Misterioso e bri-
lhante, o trabalho mantém semi-oculta a história da sua concepção e elaboração, além
de ter passado a receber o aporte de interpretações de terceiros, em geral atribuindo-
lhe soluções narrativas. A visão silenciosa dos postos de gasolina dentro de cenários
(ou os constituindo) tipicamente estadunidenses, no gosto e no aspecto, sem a pre-
sença humana, colaborou no estabelecimento de uma estética do ordinário que nos é
imediatamente associada ao seu país.
A viagem pode se dar, também, apenas na ficção literária. E nesse caso a
récita será irremediavelmente pobre, se comparada ao imaginário das viagens mitoló-
gicas ou das viagens de descobrimento e prospecção. Aparentemente o mundo real
(ou natural) fornece dados intrincados em redes mais ricas do que a imaginação. Cons-
77
truir-se-á, então, resignadamente, uma estética do irrisório. Mas a comparação é injus-
ta. Livros ou álbuns elaborados por artistas com a narração ou descrição dos resulta-
dos de expedições, cenários raros ou de viagens intercontinentais estavam destinados
a não ter sucessores. Que recantos do planeta restaram? Pois justamente do pouco, do
pequeno e do precário surgiram livros muito especiais, amparados por uma arte que
se queria autônoma a ponto de com freqüência ser auto-referente. A arte conceitual
de modo geral (incluindo seus prolongamentos), certas lições (ou diversões) aprendi-
das do pensamento minimalista e os exercícios da land art (não apenas os grandiosos
esforços da vertente earthworks, mas também os exercícios de reconhecimento do por-
menor natural), dentre outras correntes, ofereceriam um substrato até então inespera-
do: a otimização do aproveitamento artístico do documento e do detalhe. Quanto ao
registro de ações, de deslocamentos geográficos ou do detalhamento da mínima por-
ção de ambiente natural ou urbano, o universo dos assuntos se multiplicou num re-
pertório amplo, ainda que com limites, mas com produção sem fim. Não há maiores
dificuldades em se trocar de continente em poucas horas, num mundo que está aces-
vel a todos que possam comprar as necessárias passagens. Então o que de ímpar
descrever? As opções, desta vez, se concentram no próprio país, na cidade, na casa,
no pátio, no jardim.
Excursões, por menores que sejam, substituem grandes viagens. Richard Long
resume: “Uma caminhada é apenas mais uma camada, uma marca, assentada sobre
milhares de outras camadas de história geográfica e humana sobre a superfície da
terra” (em Stiles e Selz, 1996, p. 565). A aventura do artista frente ao mundo natural
teve (talvez ainda tenha) seu ponto máximo na land art, momento em que a natureza e
a paisagem tiveram um retorno pleno ao mundo da arte, como material e assunto,
amparadas em fundamentos conceituais. Como muitas ações eram efêmeras, o uso da
fotografia para registrá-las se tornou uma constante. Além de fotos, eram usados cro-
quis, diagramas, tabelas estatísticas, memoriais descritivos e todo tipo de documentos.
Essa coleção de registros acabava principalmente nas paredes e vitrinas de museus e
galerias, em filmes e vídeos, e em publicações diversas.
Na edição do inverno de 1976/1977, a revista nova-iorquina Art-Rite (n.14)
dedicou todas as suas páginas aos livros de artistas. Após uma coletânea de conceitos
78
a esse respeito, sua seção “catálogo abriu com sugestões de trabalhos ligados à land
art inglesa, sob o título “British pastoral” (p. 16), que o autor (não creditado) classifica
como pós-conceitual. São citados Richard Long, Hamish Fulton, David Tremlett, Glen
Onwin, Howard Selina, Gilbert and George e Susan Hiller. Esta última é apontada,
por ser mulher, como uma raridade, desconhecida (então) mesmo na Grã-Bretanha;
mas ressalva: “Nós não sabemos nada do trabalho dela, mas não precisamos da sua
carreira para gostar do livro” (refere-se a Rough sea, 1976). Outros livros ligados à
natureza são citados em outras seções da revista, demonstrando o amplo espaço ocu-
pado por esse tipo de publicação.
Muitos trabalhos com coleções e sistemas seriais artificialmente forjados emu-
lavam um conhecimento enciclopédico de mundo, muitas vezes pervertendo a funci-
onalidade intelectual de seus modelos editoriais. A esses livros, Anne Moeglin-Delcroix
classificou como livros inventários (capítulo “Livres-inventaires”, Moeglin-Delcroix,
1985, p. 74). O grupo inclui levantamentos de toda ordem, mas dentro dos temas
naturais há também curiosas classificações de fauna ou flora, especialmente a última,
assemelhando-se a tratados de botânica. O que certamente não são, como nos lembra
Moeglin-Delcroix.
Esses livros são, portanto, livros de botânica? Numerosos indícios mostram que esse
não é o caso: elaboração cuidada da diagramação da página; preferência pela flora
banal achada sobre “lugares restritos” esquecidos (estacionamentos, jardins, lagos)
ou “limites” indeterminados (orlas de praias, de canteiros de obras); não-sistematicidade
de investigação; gosto evidente pelas litanias (visual ou sonora) dos nomes de plantas
em latim. (Moeglin-Delcroix, 1985, p. 76)
Dentro do critério da proximidade ou semelhança com a arte dos viajantes
(em que não apenas se registrava o que era observado, mas também o prazer ou a
dor da realização de um percurso), talvez a land art tenha mesmo proporcionado
resultados de lembrança mais imediata, se bem que às vezes possam parecer
anedóticos, dadas as diferenças de proporções e finalidades. Para a completude da
ação artística proposta, os registros precisavam ser editados em paralelo aos even-
tos ou imediatamente após. Em muitos casos, os livretos resultantes adquiriam va-
79
lor próprio, com autonomia suficiente para confirmarem seu estatuto de obra de
vanguarda. Destaque-se, aqui, os livros de Richard Long e de Hamish Fulton, am-
bos britânicos, com tomadas da natureza, descrição de caminhadas, coleções de ima-
gens de menires, plantas, pedras, cami-
nhos etc. A walk past standing stones, de
Long, 1980, e Ajawaan, de Fulton, 1987,
são ambos em sanfona, como os popula-
res livretos de cartões-postais. Também
em sanfona é Flower arrangement for Bruce
Nauman, de Dennis Oppenheim, publica-
Richard Long. A walk past standing stones. 1980.
80
do em Nova Iorque em 1970. Nele existe apenas uma única e longa foto em preto-
e-branco com um campo de flores quase brancas frente a um bosque. Mas a foto-
grafia não precisa, necessariamente, ser o suporte ilustrativo desse tipo de produ-
ção. A palavra sozinha, apenas a palavra, pode ocupar as páginas do livro. Isso evi-
dencia a sua condição conceitual. Em Ajawaan, de Fulton, colunas de palavras reco-
brem a paisagem lacustre que ocupa o fundo: wind, dusk, tree, bear, rain, moon, echo,
fish, rock etc. A obra não mistifica seu motivo. Na página de abertura há, numa única
linha, o enunciado que explica a grande imagem a seguir, obtida na região de
Saskatchewan, no Canadá, em data e condições explicitadas. Mas antes Fulton já
tinha publicado trabalhos inteiramente com palavras, sem qualquer imagem, como
Song of the skylark, 1982. Nele, sobre páginas branco-amareladas e em caracteres
sem variação tipográfica, apenas textos telegráficos, como nesta página:Afternoon
dusk / A two mile circular run / 13 december 1981 / Frozen tracks / A night of
snow and wind”. A imaginação do leitor completa a obra.
Dennis Oppenheim.
Flower arrangement
for Bruce Nauman.
New York: Multiples, 1970.
16,8 x 24,6cm.
Sanfona interna:
15,7 x 188,8cm.
81
Hamish Fulton. Ajawaan. Toronto: Art Metropole, 1987.
19 x 27,3cm, capa e 1 folha em sanfona, formando 5 páginas.Tiragem: 750.
82
Quanto a uma aproximação ritual com a paisagem, destaque-se, também, as
publicações que documentam ações performáticas. Embora exista um franco predo-
mínio de ações urbanas, a natureza teve seu quinhão de experimentos. Por exemplo,
de Allan Kaprow, a publicação Echo-logy, 1975. De poucas páginas, como geralmente
eram os impressos de Kaprow, mas com formato de programa de teatro, documenta
a performance realizada em Far Hills, Estados Unidos, em 3 e 4 de maio de 1975,
com fotos em preto-e-branco legendadas registrando as etapas da obra.
Alguns trabalhos realizados após o período áureo do conceitualismo parecem
estar aproveitando muito bem os grandes circuitos internacionais de distribuição, estan-
do cientes do que seja um empreendimento artístico. De grande tiragem e ampla
comercialização mundial está Litter only, 2000, de Alexandra Martini, artista e projetista
industrial com estúdio em Berlim. Integralmente
colorido, de capa dura e formato de bolso, ele se
constitui numa grande amostragem de fotografias
de lixeiras de rua (latas de lixo), obtidas em várias
Hamish Fulton. Song of the skylark.
[England]: Coracle Press; Waddington Galleries, 1982. 78p. 18 x 13,1cm.
Allan Kaprow. Echo-logy. New York: D’Arc Press, 1975.
12p. (8p. + capa) grampeadas. 30,5 x 22,8cm.
83
cidades do mundo, como Berlim, Tóquio, Oslo, Barcelona, Johannesburgo ou Rio de
Janeiro. Suas páginas são inteiramente não-literárias, cada uma inteiramente coberta por
uma foto, mas impõem a construção de um ritmo, ainda que essa cadência seja repetitiva
e pareça interminável. Termina por parecer com um flipbook, em que reconstruímos a
visão de Martini. Ele não transporta a narrativa tradicional, mítica, literária ou dramáti-
Allan Kaprow. Echo-logy. New York: D’Arc Press, 1975. 12p. grampeadas (8p.+capa). 30,5 x 22,8cm.
Alexandra Martini.
Litter only.
Köln: Könemann, 2000.
15,5 x 13 x 2,4cm.
84
ca, mas sim a narrativa próxima de zero, ritmada pelo folhear (o princípio mecânico ou
cinemático do livro), transformando o trabalho como um tipo muito particular de crô-
nica visual, característica da arte contemporânea e herdeira do experimentalismo dos
anos 60 e 70. O percurso é vívido e é o percurso duplo do livro, dentro dele, físico nele
(horizontal), e contado por ele, lembrado (vertical). O livro não serve ao leitor de narra-
tivas convencionais (literárias), porque pouco lhe importa perceber a sucessão de refle-
xões, decisões ou ações anteriores à impressão da obra. O vedor do livro de artista, por
outro lado, como todo vedor de arte, busca a vidência na obra final do processo de sua
elaboração. Ou seja, sua outra história, a história dela, obra.
A discussão da natureza versus cidade é a crítica do excesso de refugos e da
divisão do território com eles compartilhado. O recanto é valorizado. O nicho que habi-
to é o fragmento instaurado e consagrado pela minha ocupação, mesmo que na indistinção
crescente entre o espaço do campo e o da cidade. Mas ou menos por esse caminho se
move a proposta de Maria Helena Bernandes, Vaga em campo de rejeito, publicado em livro
em 2003, dentro de uma série maior (Documentos Areal). A ação aconteceu em Arroio
dos Ratos, município do sul do Brasil, constituindo-se basicamente da identificação de
um espaço triangular plano e vazio da cidade (uma “vaga” entre edificações, a estação
rodoviária e a câmara de vereadores) e a posterior apropriação de uma porção de terre-
no na periferia, numa área de depósito de refugos da exploração de carvão mineral, para
ali reproduzir a vaga original, com o auxílio da população. Nada ali tinha a afeição cultu-
ral das pessoas, o que não impediu a sua participação crescente, até com sugestões de
acabamento. O projeto se concretizaria com a publicação do livro descritivo do proces-
so, com textos e ilustrações, tratado como atividade colocada entre a excepcionalidade e
sua negação. A artista parecia desejar, assim, construir um vazio sobre outro, o inerte
sobre o inerte. A vida e a colaboração que sustentaram o empreendimento viabilizaram
o cumprimento da proposta. Quanto à apresentação gráfica, o livro resultante fica no
limite entre um livro-obra e apenas um livro. Por isso, alguns pesquisadores não o acei-
tariam como livro de artista, o que é uma divertida conseqüência de se apostar na vida
na fronteira. Mas pode-se dizer que dentro da classificação de Clive Phillpot (1982 e
1993), pela qual a categoria do livro de artista incorpora livros-objetos, livros-obras e
apenas livros, esse seria considerado do terceiro grupo.
85
A colocação em destaque de pormenores de áreas específicas, a aproximação
detalhada do muito pouco, atende às expectativas de época. A energia dessa concen-
tração de foco pode ser explicada pela potência do fragmento, como apontada critica-
mente por Omar Calabrese.
Concluindo: a suspensão da fragmentaridade bloqueia o caminho para o normal e
deixa intacto o excepcional: a autonomia do pormenor faz, pelo contrário, que se
torne hiperexcepcional o normal. O sistema estético que dele deriva é um sistema
eternamente em excitação. (Calabrese, 1988, p. 102)
Calabrese, nesse momento do texto, fazia a crítica aos excessos de publicação
de “não-livros” na Itália, e a elogiar a escrita fragmentar de Barthes, bem como a
ocupação do papel da poesia pelo fragmento. Ele aproxima poetas e artistas plásticos
pela busca da fragmentação para o reencontro de uma “paleta” de palavras e frases.
A propósito de artistas e fragmentos, pode ser lembrado o uso da serialização.
Para recompor uma seqüência com acontecimentos desenvolvidos em uma dada dura-
ção, podemos quebrá-la em um conjunto de fragmentos, nesse caso “tomadas”, selecio-
nar o que for mais importante e reordenar cronologicamente ou arbitrariamente para a
reconstrução do relato. Tome-se como exemplo a estruturação sobre a insistência nar-
rativa das fotos de uma mesma cabine telefônica em Nova Iorque no livro de Sophie
Calle e Paul Auster (ele autor dos textos), Gotham Handbook: New York, mode d’emploi,
publicado em 1998. Auster, que já havia utilizado Calle como personagem, oferece-se,
agora, como companheiro de criação, numa Nova Iorque que se assume como a perso-
nificação máxima do Novo Mundo. Trocamos os vales e as florestas pela grande cidade,
tanto quanto tentamos entender seu caráter ambiental. A longa caminhada, apesar de
tudo, permanece. Caminha-se por longas avenidas, caminha-se pela geografia dos quar-
teirões e suas etnias. O entrar e sair de estações de metrô determina o zoneamento dos
cenários. Também é baseado no andar o experimento de Mary Ellen Carroll, que mon-
tou uma câmera nas costas e percorreu a Broadway, em Nova Iorque, do rio Harlem até
Battery Park, fotografando sua caminhada em intervalos (talvez em cada cruzamento),
mantendo os acidentes visuais, como a trepidação (e o foco mantido no infinito). O
livro resultante, Without intent, 1996, é simples como um passeio no campo, mesmo que
86
Sophie Calle. Doubles-jeux. Arles: Actes Sud, 1998. Estojo com 7 livros:
De l’obéissance (64p.); Le rituel d’anniversaire (64p.); Les panoplies (48p.); A suivre... (152p.);
L’hôtel (176p.); Le carnet d’adresses (24p.); e Gotham Handbook (96p.), imagem acima.
Formato do estojo: 19,6 x 10,2 x 7,5cm. Formato de cada livro: 19 x 10cm.
Sophie Calle. Double Game. London: Violette Editions, 1999. 296p. 29,1 x 20,8 x 2,6cm.
87
inserido num repertório já nosso
conhecido.
Um outro importante
procedimento de aproximação às
viagens é o uso real ou metafóri-
co dos produtos culturais ou bu-
rocráticos que as representam.
Pode ser reconhecida uma verten-
te francamente cartográfica, no
sentido exato do termo, que usa
mapas ou mapeamentos; uma vertente colecionadora de suvenires, como guias, postais,
ingressos, embalagens etc.; uma vertente que se apropria dos símbolos operacionais dos
traslados: passagens, passaportes, certidões etc.; e outras, compósitas ou menos eviden-
tes. Passando-se do real ao virtual, a Internet vem servindo como espaço complementar
eficiente na elaboração de trabalhos de base textual. Entre muitas ocorrências, nela pode
ser encontrada uma proposta baseada em texto e com narração tradicional que usa o
máximo de canais à disposição. Num exercício de contraponto, Sonya Spry, australiana
radicada na Holanda, desenvolveu o projeto World Passport (ou Take One, They’re Free),
iniciado em 2001. A artista imprimiria seus passaportes contendo uma pequena ficção
Mary Ellen Carroll. Without intent.
New York: Presse Endémique, 1996.
12,6 x 17,5 x 1,3cm.
Sonya Spry.
World Passport.
[Arnheim]: www.worldpassport.tk, 2003.
8p. costuradas. 12,5 x 9,1.
Capas nas cores verde,
vermelho ou azul.
Abaixo, versão em português:
Passaporte do mundo, 2004.
88
em inglês, uma única cena sem imagens,
disponível também, em vários idiomas,
no sítio www.worldpassport.tk. Aos colabo-
radores das traduções seriam oferecidos
passaportes com o texto no novo idio-
ma. O sítio também comercializaria pro-
dutos para sua manutenção e explica as
razões da proposta, fruto das dificulda-
des de imigração acumuladas nas
andanças de Spry fora da Austrália (nos
Estados Unidos, Inglaterra, Ásia e
Holanda).
Com o uso de mapas ou cartas
existem muitas experiências. Mas há os
próprios mapas específicos para a cons-
tituição do processo artístico. Alguns têm
muito pouco de geográfico para ofere-
cer. No lugar disso, a simpática vontade
do redescobrimento do que já está aos
nossos pés. É assim o mapa (carta do-
brável) de Quartier 6: cinq parcours de choix
et de curiosités, 2003, de Jean François
Karst e Sébastien Vonier. Os tempos de
percursos sugeridos dos seus cinco cir-
cuitos duram entre vinte e cinco minutos e uma hora, através de um bairro da cidade de
Rennes, França. Os traçados coloridos no mapa indicam os rumos a serem seguidos.
No verso, pequenas fotos dos detalhes urbanos oferecidos para recuperação mnemônica.
Como o livro já comentado de Mary Ellen Carrol, também aqui se dá a inserção sem
receios, mas com leveza, num repertório já consagrado (mas difícil de esgotar).
Por fim, resta reconhecer que as soluções visuais através de sistemas artifici-
almente constituídos (e com graus narrativos variados) estão hoje definitivamente
Jean François Karst e Sébastien Vonier.
Quartier 6. Rennes: Le Grand Cordel, 2003.
Carta (mapa). Formato fechado: 10,5 x 22cm.
Formato aberto: 44 x 62cm.
89
estabelecidas no repertório artístico. O artista apresenta e classifica como o faziam
seus antecessores, mas propondo sua própria realidade cartográfica, taxonômica, to-
pográfica etc. Embora o vídeo tenha absorvido boa parte dos experimentos com des-
locamentos ou trajetórias, os formatos gráficos ainda guardam possibilidades especí-
ficas insuperáveis, como o sabor cosmopolita da arte postal, diretamente associada a
muitas manifestações do livro de artista. Patrocinado pela editora londrina Book Works
e pela galeria parisiense Yvon Lambert em 2000, Jonathan Monk distribuiu um convi-
te em sanfona (com registro de ISBN, portanto oficialmente uma publicação não pe-
riódica), dentro de envelope com o título Meeting #13, marcando o encontro entre
todos nós: A la Tour Eiffel, le 13 Octobre 2008 à midi”. Pode ser que nós consiga-
mos estar lá na hora pretendida, ou não. Talvez não tenhamos conseguido, caso a
leitura destas informações esteja sendo feita após a data marcada. Em todo caso, resta
a sensação sedutora de termos propriedade de um grau satisfatório de cosmopolitismo.
Os artistas viajantes dos séculos anteriores conheceram uma emoção intensa, porém
rala quanto ao volume e disparidade de informações se comparada à torrente cacofônica
e invasiva de estímulos da vida atual. Resumindo muito, estarmos nesse torvelinho é o
nosso normal, não mais a exceção. Entretanto, onde quer que vá, o artista contempo-
râneo dificilmente será mais um forasteiro.
Em 1835, em Paris, o germânico Johann Moritz Rugendas, artista viajante, pu-
blicava seu Voyage pittoresque au Brésil, livro de certa importância na construção imaginá-
ria de uma identidade nacional, ao mesmo tempo em que atendia os propósitos de seu
artista e autor. Cento e cinqüenta anos depois, na passagem de ano de 1985 para 1986,
seu compatriota Martin Kippenberger (1953-1997) conhecia o interior de uma prisão
do Rio de Janeiro. Tido como um dos enfants terribles do cenário artístico internacional,
viajante e boêmio, no dizer de Klaus Honnef (1992, p. 128) ele seria “um artista com
‘olhar mau’ e lança esse olhar sobre a realidade mais absurda do que por vezes a imagi-
nação artística pode conceber”. Na cadeia carioca, Kippenberger acreditou aprender
(ou imaginou) o código dos textos das camisetas dos detentos. Em 1986 ele publicaria,
em Colônia, seu pequeno populário de camisetas do presídio brasileiro, sob o título 241
Bildtitel zum Ausleihen (ou 241 títulos de quadros para empréstimo), subtitulado für Künstler
(para artistas). Os dizeres das camisetas estão transcritos em português (às vezes com
90
algumas incorreções), e o significado proposto, na linha seguinte, em alemão. A última
camiseta é a do posto de gasolina que ele comprou em Salvador, na Bahia, e batizou
com o nome de um criminoso de guerra nazista.
XIV
MASIOR BAHIA
Primeiro o dinheiro da bebida, e então o perdedor.
IX
HAWAII SURFING
Um preto rico é branco, um branco pobre é preto.
XX
FIORUCCI IN BRASIL
Tivesse eu 2 carros, não teria chegado tarde demais.
XXVII
OCEAN PACIFICAS
Quando os cabelos nascem na extremidade errada do corpo.
XXXVIII
SORE WEAR
Um pacote para três.
LIII
WIND + WAVE DESIGN
Madre Teresa faz apenas o seu serviço. US$ 1700, por 10 dias.
LXXII
QUESTION BRASIL
As papelarias no Rio também são boas (quentes).
CCXLI
(Posto de gasolina Martin Bormann 0055-248-0913)
91
Aqui não há mais a ima-
gem ilustrando o que foi visto, ou
o texto substituindo a imagem.
Aqui existe texto a propósito de
texto, como um vira-lata caçando
a própria cauda, inserido num
mercado predominantemente vi-
sual. É certamente uma maneira
pitoresca (talvez perversa) de
apresentar o país, a partir de um
ponto de vista intestino. Na
contracapa, o artista (ou outra
pessoa), de costas, veste uma ca-
misa com o texto: “Martin
Kippenberger - The Magical
Misery Tour - Brazil - December
15, 1985 - March 22, 1986”. Mui-
ta coisa mudou do Rio de
Rugendas para o Rio de
Kippenberger, para pior ou para
melhor. Mudou a paisagem, mu-
dou a segurança em desfrutá-la. Mudaram, também, os estilos e os canais para a des-
crever. E mudou, por fim, o grau de propriedade e independência do relato.
Martin Kippenberger.
241 Bildtitel zum Ausleihen: für Künstler.
Köln: Verlag der Buchhandlung, 1986.
Fotos por Ursula Böckler.
46 p., 18 x 10,9cm, 500 exemplares.
92
3. A narrativa visual e a ênfase plástica
O consumo das obras artísticas que se utilizam do livro como transportador
ou contentor de significados será sempre melhor legitimado se a publicação a ser
desfrutada for completamente visual. Essa é a condição que parece ser apreendida do
exame comparativo das obras classificadas como “livros-objetos”, “livros-obra” e “ape-
nas livros” (ou “livros literários”) nas considerações de Phillpot (1982 e 1993). Em-
bora todas essas apresentações sejam pertinentes aos livros de artista, como proposto
por ele e a larga maioria dos teóricos desse campo, especialmente entre artistas o
conflito conceitual continua mal resolvido (o que equivaleria dizer não resolvido). E
caso possa parecer surpreendente ao consumidor leigo que um livro não tenha textos
(afinal é o local onde ele mais espera encontrá-los), ao agente do mercado artístico
não parece haver discussão que essa ausência, quando percebida, ajuda a evidenciar
uma eventual qualidade “artística”, valor desejável tendo em vista a estrutura onde a
obra se encontra. É quase como se disséssemos que, nesse caso, nessa situação distin-
tiva (e eventualmente em outras circunstâncias da arte), o valor plástico possa ser
inversamente proporcional à presença de texto.
Por outro lado, é justamente com a diminuição do uso da palavra que o livro
de artista impõe sua vertente mais consistente de autonomia formal, redescobrindo a
página como campo perceptivo tanto da representação como da apresentação visual.
Pode-se (ou deve-se), por isso, buscar as recorrências formais, constituintes de uma
gramática aplicada (pressupostos de morfologia e sintaxe da linguagem visual) ou de
uma retórica que personalizem uma impertinência eloqüente na página própria ao
vocabulário artístico. Se a retórica, um conjunto de conotadores, é “a face significante
da ideologia”, como disse Barthes (1990, p. 40) introduzindo a retórica visual (“espe-
cífica na medida em que é submetida às imposições físicas da visão”), passa a ser
imperativa uma aproximação às soluções de uso pelos artistas das ferramentas para a
reprodutibilidade técnica. Torna-se oportuno o exame de uma seqüência relativamen-
93
te rápida de comentários gerais, mas obrigatórios na constatação de que a narrativa
visual tem seus mecanismos próprios, sobretudo dentro de um intervalo histórico
que comportaria (isso dito de uma forma muito simplificadora), a eloqüência conceitual
e pós-conceitual.
Bibliogênese e a gramática da narrativa visual
A produção brasileira de livros de artista (de edição) deveria estar entre a
principal amostragem deste estudo, mas infelizmente ela tem se mostrado tímida
(por falta de vocabulário, ou condições econômicas, ou medo dos riscos, seja o que
for). Coube-nos, por isso, propor um laboratório específico, uma demonstração
direcionada para análise, apoiada em experimentos prévios. A “ilustração” de pes-
quisas sobre desenvolvimentos de arte seqüencial para a página concretizou três
esforços artísticos de grupo, construídos sobre a associação de decisões coletivas.
O mais ambicioso desses projetos resultou no livro Ciranda: ensaios em narrativas visu-
ais. O título é uma palavra da língua portuguesa que designa uma dança popular dita
“de roda”, uma coreografia coletiva singela onde as pessoas dançam de mãos dadas.
Ciranda, apenas uma palavra, foi o nome de um esforço alternativo de produção
plástica que idealizava a publicação de um livro de artista inédito nas suas circuns-
tâncias. O projeto foi concebido e desenvolvido no Instituto de Artes da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul. Viabilizaria uma das propostas da tese de dou-
torado em História, Teoria e Crítica da Arte, que produziu estas reflexões sobre a
presença da narrativa no livro de artista. O objetivo imediato era a produção de um
protótipo com seqüências de páginas, partindo de oficina de extensão universitária
com participação de artistas vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais, PPGAV. A atividade provocaria o cruzamento das metodologias de pesqui-
sa em história, teoria e crítica da arte (mais amadurecidas e tradicionais) e em poéti-
cas visuais (ainda em estabelecimento).
É preciso voltar no tempo e buscar seu principal precedente. Em 2001, a
convite da Coordenação de Artes Plásticas do município, foi oferecida uma oficina
94
sobre livro de artista, simultaneamente teórica e prática, durante o XV Festival de
Arte Cidade de Porto Alegre. Propus a real edição de um livro ao custo mais baixo
possível, o que acabou gerando a obra Livro dos sete dias: exercício coletivo em preto e branco,
com título homônimo da atividade realizada. Os pressupostos de trabalho eram dois:
(1) a arte como empreendimento e (2) sete dias para preparar um livro. Os participan-
tes deveriam elaborar 16 páginas cada (uma quantidade padrão universal nos cader-
nos que compõem um volume), diretamente em material transparente (sacos plásti-
cos, papel vegetal, poliéster, acetato, etc.), substituindo artesanalmente os fotolitos na
gravação da chapa de impressão ofsete. O tema era livre. Desenho, pintura, eletrografia,
carimbos, impressão digital, enfim qualquer técnica seria aceita sobre transparências
de qualquer tipo, desde que usando um preto intenso. Discutiríamos todas as confi-
gurações de formato e acabamento.
Os fundamentos teóricos eram básicos: problemas conceituais, constitui-
ção do livro comum, características da impressão ofsete e sua eficácia, inserção no
meio artístico, etc. Na segunda-feira foi ministrada praticamente apenas teoria, se-
guida de pouquíssima prática. Na terça, um pouco menos de teoria e mais de ativi-
dade artesanal. E assim por diante, até a sexta-feira integralmente prática. Oficial-
mente o curso acabaria ali, mas foi dado aos participantes mais o fim de semana
para que concluíssem os trabalhos em seus ateliês. Na segunda-feira seguinte todo
o material foi reunido. Infelizmente a coordenação do evento não detinha poder
gerencial e financeiro para propiciar a impressão do livro. Ficamos sem patrocínio
institucional. O grupo então decidiu arcar com as despesas, cotizando exemplares.
Outras ajudas vieram. Uma importante gráfica local rodaria o livro, inclusive doan-
do o papel (simples, dito “marca d’água”, editorial e isento de impostos); uma bibli-
otecária familiarizada com projetos artísticos cederia a preparação da ficha
catalográfica; a Oficina do Papel, entidade apoiada pela municipalidade, ofereceria
os marcadores em papel artesanal; a Editora da UFRGS liberaria acesso a computa-
dor para a editoração das páginas adicionais; e pequenas cotas foram compradas
por outros interessados. Tudo resultou num pequeno sucesso. O lançamento no
Atelier Livre da Prefeitura foi acompanhado de pequena exposição das chapas de
impressão. E o livro, com capa e miolo em branco predominante, extremamente
95
Livro dos sete dias: exercício coletivo em preto e branco, 2001, oficina, exposição de matrizes e chapas de
impressão e o livro pronto (capa e páginas da apresentação, de Lucas Ribeiro e de Fabio Zimbres).
96
simples, mesmo mantendo os erros ou acidentes gráficos (uma proposição original
do curso), recebeu elogios de variadas procedências.
9
O outro trabalho que precisa ser mencionado foi contemporâneo da conclu-
são do Projeto Ciranda. Quase foi publicado antes. Trata-se do pequeno livreto Exer-
cícios de arte seqüencial para publicação: experimentos monocromáticos para livro de artista. Ele foi
um resultado complementar de uma oficina muito rápida, de apenas um dia, ministra-
da no IV Seminário de Artes Visuais, 2005, do Centro Universitário Feevale, em Novo
Hamburgo. A atividade se chamou “Arte seqüencial em livro de artista: exercício
monocromático para publicação”. O objetivo era a “preparação de um original para
publicação coletiva de baixo custo e de pequeno formato, em tempo limitado, a partir
de um tema proposto coletivamente, em preto e branco (com ou sem tons de cinza),
compreendendo alguns rudimentos práticos da função de empreendimento na arte
contemporânea” (a proposta permaneceu apresentada na página 178). A partir do
perfil dos participantes foi escolhido o tema “percurso”, em sentido temporal ou es-
pacial, ou ambos. A possibilidade de publicação, apresentada no início do encontro,
assustou: era objetivo adicional romper a deferência ao livro, uma publicação perma-
nente no tempo, um documento perene.
Os trabalhos foram executados livremente em qualquer tipo de papel. Cada
participante elaborou o número de páginas que julgava necessário para a expressão
das idéias. Quem teve dificuldades, entregou depois. A edição de imagem e a editoração
eletrônica seriam feitas pelo organizador, o responsável pela oficina. Apesar do inte-
resse das professoras que acompanhavam a oficina, também aqui a coordenação do
evento não propiciou a publicação. Ficou então decidido que a mim caberia solucio-
nar os problemas editoriais e de produção gráfica. A impressão teve apoios
10
impres-
cindíveis, com os custos restantes sendo divididos pelo grupo, proporcionalmente ao
9
O Livro dos sete dias teve como participantes: Alexandra Eckert, Ana Isabel Lovatto, Celina Cabrales, Edi Odete
Braucks, Fabio Zimbres, Káthia P. Retes, Léa Guarisse, Lucas Ribeiro, Luciana Fonseca, Mara Caruso, Márcia
de Souza Sottili, Margarete Dias, Maria Darmeli Araujo, Mariane Rotter e Marta Martins Costa.
10
Nos dois casos as fichas catalográficas foram cortesia da bibliotecária Mônica Ballejo Canto. Quanto à im-
pressão e acabamento, os livros tiveram o apoio das gráficas editoras Pallotti e Evangraf, de Porto Alegre.
97
Exercícios de arte seqüencial para publicação: experimentos monocromáticos para livro de artista, 2005,
oficina, sítio na internet para gerenciamento do trabalho e livro pronto
(capa e páginas de Lilian Helena Schneider, Danielle Garay e Larissa Madsen).
98
número de exemplares que cada participante gostaria de ter (podendo ou não revendê-
los). Houve alguma demora na pré-produção do livro, entrando em gfica no final de
dezembro para ser impresso no início do ano seguinte, 2006. Capa preta, brochura
costurada, formato de bolso, ágil, dos três livros é o que melhor cumpre a função de
cartão de visitas, sendo rapidamente postado para os interessados e usado como obje-
to de troca com outros pesquisadores e artistas. Assim como no Livro dos sete dias
anteriormente mencionado, aqui predominam seqüências narrativas mais ou menos
lineares, de maior ou menor compromisso com soluções já testadas na arte (narrativa
ilustrativa interna, leitura das marcas da fatura, etc.) ou nos veículos de comunicação
(elementos de fotonovela, cinema, quadrinhos, etc.).
11
O Projeto Ciranda foi um empreendimento bem mais longo e complexo. Sua
ideação começou no final de 2003. Fui movido pelo professor Helio Fervenza (meu
orientador nos cursos de mestrado e de doutorado) a realizar uma atividade paralela à
pós-graduação, que deveria enriquecer e compartilhar a pesquisa. Argumentei que uma
curadoria ou um curso seriam previsíveis, mas que iria considerar essas possibilidades.
Pesou nos meus pensamentos a admiração pela editora universitária Incertain Sens,
da Université Rennes 2, França, exclusiva para livros de artista (dirigida por Leszek
Brogowski), e a fundamentação teórica acumulada sobre o livro como espaço alterna-
tivo para as artes visuais (ver capítulos iniciais e bibliografia em Silveira, 2001). Dois
ou três meses mais tarde, tive confiança em propor a realização de uma oficina, po-
rém exclusiva para artistas pesquisadores. Discutimos o assunto, ficando decidido que
ela então seria parcialmente fechada: os participantes deveriam ser ligados à docência
ou à pós-graduação no Instituto de Artes, ou ex-alunos do programa.
A atividade teria caráter de laboratório e poderia oferecer subsídios indire-
tos (eventualmente diretos) para o desenvolvimento de minha tese, então em elabo-
ração, podendo confirmar ou refutar hipóteses. Seria esclarecido aos participantes
que se os resultados alcançassem excelência ou possuíssem relevância, o livro (na-
11
O livro Exercícios de arte seqüencial para publicação teve como participantes: Alexandra Eckert, Aline Fraga, Carla
Raquel Machado, Cecília Luiza Etzberger, Dadiane Schneider Junges, Danielle Garay, Juliana Chabrol de Souza,
Larissa Madsen, Lilian Helena Schneider, Rosana Krug e Virgínia Seidl Silva.
99
quele momento hipotético) poderia ser uma edição independente. Ou, melhor ain-
da, poderia ser apresentado para publicação pela Editora da UFRGS, submetendo-
se à aprovação do conselho editorial (que representa as diversas áreas de conheci-
mento na universidade). E o que cada um ofereceria? De minha parte, experiência
editorial e conhecimento dos procedimentos de publicação da produção intelectual
da universidade; os participantes, seu esforço criativo, acreditando no bom termo
da proposta; o PPG, instalações, equipamentos e divulgação; e o Instituto de Artes,
a oficialização do projeto como ação de extensão. E assim foi feito. Cadastrou-se o
evento e a secretaria do programa enviou convite eletrônico para toda a comunida-
de docente do Instituto de Artes e para os alunos e ex-alunos do mestrado e douto-
rado. A atividade teve início com encontros no Instituto e prosseguiu nos ateliês
individuais. Como os compromissos pessoais impossibilitavam encontros adicio-
nais, foi criado um sítio na internet, em linguagem simples, divulgada apenas entre
os participantes e abrigada no sítio da Universidade, para informar os padrões da
Projeto Ciranda, UFRGS. Sítio de controle do andamento pela internet, 2005.
100
obra, as decisões acadêmicas, o an-
damento, fazer todo o acompanha-
mento da paginação final, retoques,
alterações de seqüências, etc. Con-
cluído o boneco (maquete) do li-
vro, ele foi encaminhado oficial-
mente à Editora, para ser aprecia-
do pelo conselho. Recebeu aprova-
ção para publicação com uma úni-
ca sugestão, de que possuísse um
subtítulo que deixasse mais claro
seu conteúdo (uma bem-vinda recomendação, imediatamente seguida: Ensaios em
narrativas visuais). Após a aprovação, os trabalhos de editoração continuaram para a
obtenção dos arquivos finais em alta resolução. E como desfecho positivo, a coor-
denação do PPG propôs que participássemos da série Visualidade, então exclusiva
para obras coletivas teóricas organizadas por professores. As palavras a seguir ter-
minam a apresentação do livro (p.7, pelo organizador).
A publicação da obra resultante pela Editora da UFRGS ajuda a expandir uma pro-
dução intelectual que tem predomínio de reflexões textuais, incorporando ao seu ca-
tálogo de edições um produto acadêmico fundamentado sobre a resolução ou pro-
posição de problemas plásticos. Ao mesmo tempo, legitima e documenta a diversida-
de das expressões intelectuais na ação universitária. Disponível a diferentes públicos,
este volume unifica propósitos de extensão, pesquisa e pós-graduação da universida-
de, além de colocar em exercício os dois principais desenvolvimentos metodológicos
da pesquisa em artes (a área de concentração que contempla a história, teoria e crítica
da arte, e a voltada para as poéticas visuais).
[...] Coube a esse coletivo de artistas pesquisadores, racionalizar as relações de tempo
e espaço, sem se afastar do prazer ao desenvolver seqüências de páginas com a lógica
inerente ao pensamento visual, agregando ao empreendimento artístico a funcionali-
dade difusora do livro.
Ciranda: ensaios em narrativas visuais.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005.
16 x 21cm, 312p.
101
Ciranda: ensaios em narrativas visuais, 2005.
Detalhes de aberturas (acima: Maria Ivone dos Santos; em baixo: Maria Lucia Cattani).
102
Nesta página e nas seguintes, Ciranda: ensaios em narrativas visuais, 2005, paginação.
103
Ciranda: ensaios em narrativas visuais, 2005, paginação (continuação da página anterior).
104
Ciranda: ensaios em narrativas visuais, 2005, paginação (continuação da página anterior).
105
Ciranda: ensaios em narrativas visuais, 2005, paginação (continuação da página anterior).
106
Ciranda: ensaios em narrativas visuais, 2005, paginação (continuação da página anterior).
107
Incluindo todos os integrantes do grupo de pesquisa Veículos da Arte, cadas-
trado no CNPq, participaram do projeto Adriana Daccache, Andrea Paiva Nunes,
Fabiana Wielewicki, Glaucis de Morais, Helio Fervenza, Letícia B. Cardoso, Marcelo
Tomazi, Maria Ivone dos Santos, Maria Lucia Cattani, Mariana Silva da Silva, Maristela
Salvatori, Paula Krause, Paulo Gomes, Raquel Stolf, Sandra Rey e Solana Guangiroli.
O volume entrou em gráfica ao final de 2005, sendo oficialmente lançado na Pinaco-
teca Barão de Santo Ângelo em abril de 2006.
A primeira e mais marcante evidência que se depreende na análise do livro
Ciranda é o uso acanhado das palavras. Nesse aspecto ele é muito avarento: a palavra,
nele, é quase prescindível. Fazendo uma rápida quantificação (leitura comparada?) do
total de 312 páginas, de 288 efetivamente dedicadas aos desenvolvimentos individu-
ais, temos apenas um total de 58 páginas onde podemos encontrar palavras articula-
das entre si, não inseridas incidentalmente em fotografias. Quando ocorrem, apare-
cem em declarações ou textos muito rápidos. Mesmo assim, nove dessas páginas têm
apenas o título ou o nome do autor da seqüência. A leitura nele é, portanto, insipiente.
Mesmo assim ele não se furta à condição de ser um livro. Sua divisão, por exemplo,
discutida durante os primeiros encontros, é a de uma coletânea. Cada unidade seqüencial
de um mesmo artista se comporta efetivamente como capítulos ou como artigos, apre-
sentados na ordem alfabética de seus autores. As únicas intervenções foram de duas
páginas de Daccache e Fervenza, que interferem em Nunes (a seu pedido), e de
Fervenza, que optou pela intromissão de vírgulas dispostas entre as seqüências, unin-
do-as mais que as separando (numa grande frase visual?).
As soluções de estilo que se pode encontrar em Ciranda não constituem con-
traponto àquelas características formais dominantes descritas nas principais fontes
que categorizam os princípios estéticos instauradores ou recorrentes dos desenvolvi-
mentos sobre a página. Especialmente em Moeglin-Delcroix (1985 e 1997), em Drucker
(1995) e em grande parte dos catálogos de exposições podemos encontrar ocorrênci-
as identitárias que vão desde os indícios que ligam grupos mais ou menos reduzidos
de artistas (reaproveitamento de gravuras, por exemplo) aa constituição de verda-
deiros gêneros (por exemplo, livros de viagem). Nesses termos, Ciranda não nega sua
condição de microcosmo. A partir dele poderíamos mesmo tabular os eventos ou
108
escolhas em relação aos seus responsáveis. De imediato é possível constatar a fusão
do repertório pessoal com as características do “meio” e da “mídia”.
Examinemos, com brevidade, o repertório de Ciranda:
– nas páginas de Daccache, com imagens de santas e portões: ausência abso-
luta de texto, uso da cópia eletrostática, economia no repertório iconográfico,
introspecção, espiritualidade, arritmia, repetições (reapresentações ou reaparições de
temas), ênfase gráfica na conclusão;
– em Nunes, que oferece detalhes ou recortes de um elefante com ares de
marca comercial: ausência de texto (salvo o título), uso dominante de técnicas de edi-
ção de página, alto-contraste de viés publicitário, fragmentação e leitura dos recortes
da cena ou da unidade (ou do todo a partir dos detalhes) como em um puzzle, presen-
ça de personagem, início e conclusão enfáticos;
– Wielewicki, com um manual para bem fotografar em viagens: uso domi-
nante da fotografia, texto instrucional positivo (imperativo), registro de percurso geo-
gráfico, ordem explanatória (início, meio e fim), uso da informática (edição de ima-
gem e editoração de página);
– Morais, reproduzindo em fac-símile um livro infantil: ausência quase abso-
luta de texto, reprodução documental, reminiscências, memorabilia, hieratização do
banal, metalinguagem (livro dentro de livro, reprodução da reprodução), monotonia
compositiva (rigor), uso do computador;
– Cardoso, com fotos de um fio ou barbante movido pelas ondas que que-
bram na praia: ausência absoluta de texto, uso dominante da fotografia,
cinematografismo (plano de detalhe, ou close, e insinuação de movimento), registro de
alterações do experimento no tempo e espaço (sugestão de fotograma), lirismo, repe-
tições (reapresentações), monotonia compositiva (rigor);
– Tomazi, com um exercício sobre o tempo através do uso dos quadrinhos:
apropriação da iconografia comercial, uso construtivo da fotografia instrumental,
marcação do tempo e do deslocamento, cinematografismo, teatralidade, ordem
explanatória (início, meio e fim), presença de personagem, uso da informática;
– Santos, um percurso fotográfico às margens do poluído riacho Ipiranga
(oculto), em Porto Alegre: ausência absoluta de texto, uso dominante da fotografia,
109
cadência ou ritmo de movimento, cinematografismo (sugestão de fotograma), deslo-
camento cinético lateral (sugestão de traveling cinematográfico), registro de desloca-
mento espacial, naturalismo, monotonia compositiva (rigor formal);
– Cattani, com uma variação de seus exercícios de repetição do gesto de ca-
rimbar uma pequena forma: ausência absoluta de texto (exceto quanto ao título),
reaproveitamento de técnicas de gravura, deslocamento cinético lateral (sugestão de
traveling cinematográfico de animação), monotonia compositiva (rigor formal), pureza
de meios, valorização do branco da página, repetições (reenquadramentos), uso da
informática (edição de página);
– Silva, com fotos de si mesma, de suas pernas, sentada ou recostada: ausên-
cia de texto (exceto o título), uso dominante da fotografia, cadência ou ritmo de mo-
vimento, leitura dos recortes da cena ou da unidade (ou do todo a partir dos detalhes),
reconhecimento do corpo, presença de personagem;
– Salvatori, com o silêncio de armazéns portuários vazios: ausência absoluta
de texto, uso residual e explicativo da fotografia, reaproveitamento de técnicas de gra-
vura, cadência ou ritmo de movimento (playback), lirismo, leitura dos recortes da cena
ou da unidade (ou do todo a partir dos detalhes), repetições;
– Krause, documentando sua performance solo com cadeiras numa sala de resi-
dência rural: ausência absoluta de texto, uso dominante da fotografia, reconhecimen-
to do corpo, teatralidade, cinematografismo (plano contínuo), presença de persona-
gem, drama, uso da informática (edição de imagem);
– Gomes, reproduzindo capas de livros significativos de sua infância ou ju-
ventude: uso da palavra intermediada pela reprodução documental, reminiscências,
memorabilia, hieratização do banal, metalinguagem (livros reproduzidos em livro),
monotonia compositiva (rigor), repetições de procedimentos, uso da informática (edi-
ção de imagem);
– Stolf, através de fragmentos de sentido expressos em locuções textuais:
uso dominante das técnicas de composição de página, diálogo entre texto (predo-
minante) e imagem (quase como vinhetas), valorização do branco, ludismo de texto
ou leitura, contraste entre o gráfico e o digital, uso da informática (edição de ima-
gem e editoração);
110
Rey, reexame do uso da parceria entre imagem e poesia (aqui, um poema de
Carlos Drumond de Andrade): uso dominante de técnicas de composição de página,
diálogo texto poético e imagem (equivalentes), valorização do branco, lirismo, repeti-
ções, construção digital da página (edição de imagem e editoração);
– Guangiroli, com fotos de seus próprios passos sobre pisos diferentes): au-
sência absoluta de texto, uso dominante da fotografia, reconhecimento do corpo, rito,
deslocamento espacial, repetições, seqüencialidade;
– e, finalmente, em Fervenza, com o uso de vírgulas de diferentes famílias
tipográficas, intervindo entre as páginas de um artista e outro: ausência de texto, uso
exclusivo de um único sinal gráfico de pontuação (considerado plasticamente), valori-
zação do branco, silêncio, rito, repetições, variações do desenho da forma, interferên-
cia entre as etapas como integração do todo e do todo com o contexto maior em que
o livro se insere.
Apesar dos participantes desejarem uma relativa partilha espacial do volume,
permaneceu nele a percepção do conjunto. A integridade do trabalho é garantida pela
intenção de “cooperativa” e pela proposta em si mesma, consciente da sua associação
com a rede de vínculos externos (artísticos, acadêmicos, intelectuais, etc.). Pratica-
mente todos os trabalhos integrantes de Ciranda são sistêmicos, em maior ou menor
grau. Constituem amostragem oportuna para introduzirmos alguns aspectos constru-
tivos ou problemas plásticos pertinentes ao livro de artista, tais como a relação entre
página e volume, uma relação articulada nas estratégias ou sistemas de exposição (apre-
sentação) da matéria (forma e conteúdo).
Gênese da página visual: seqüencialidade e serialidade
A estrutura ou sistema dependente da seqüencialidade é um dos principais
definidores da narrativa visual, especialmente quando ágrafa. Diferentemente dos pro-
cessos literário, oral, etc., ela não tem a sua base no enredo locucional, mas sim na
deferência ao tempo articulado na vidência, na apreciação, no desfrute, no consumo
ou, enfim, na leitura da obra. As artes visuais narrativas, mesmo na forma de livro,
111
podem perfeitamente dispensar o uso da palavra. O retardo objetivamente construído
das subdivisões dos tempos envolvidos na apreciação das páginas passa a ser um dos
elementos mais importantes da particular dinâmica deste tipo de obra.
Podemos fazer a aproximação crítica à obra por duas vias principais: pelo
todo ou pela parte. O primeiro caminho parte do princípio de que o volume tem na
sua própria totalidade física a concepção teórica e histórica que o define. É especial-
mente útil para a análise de livros-objetos, de peças únicas e de edições marcadas pelo
formalismo ou que enfatizam grandes metáforas, bem como trabalhos apoiados em
construções anedóticas. O segundo caminho é o que enfatiza a importância e a
indivisibilidade da página. Ela seria a menor unidade possível constituinte do livro de
artista. Em outras palavras, seria adequado entender que os elementos de composição
internos na página são partes integrantes de uma célula de sentido. À página contem-
porânea caberia a condição e o status herdados tanto do códice comum e histórico
(instrumento de leitura) como do quadro pictórico ou do frame (momento e
enquadramento) fotográfico ou cinematográfico. O público é cortesmente solicitado
a lembrar desse princípio por Paul Zelevansky na introdução de seu The case for the
burial of ancestors, 1981, narrativa que propõe uma reescrita metafórica e verbo-visual
do livro do Gênesis.
Pedimos a você que aceite as bordas da página como você aceita o proscênio que
contém a peça. Ambos são lugares de ação, vasos de história e passagens de tempo
dentro do seu próprio passo cadenciado. É importante lembrar que podemos passar
livremente para dentro ou para fora do espaço porque a tela é porosa entre nós. O
proscênio não é apenas um arco e um portal, mas uma armação para nosso olhar.
A página visual está quase invariavelmente a serviço de uma seqüência. Em-
bora inerte e sem automatismo, como o filme e o vídeo, ela é também um espaço
temporalizado. Ou potencialmente temporalizado, já que espera passivamente pela
mecânica de nosso gesto. No momento em que é enxergada, ela é o presente. Está na
iminência de ser passado ou é o presságio do futuro. É evocadora da memória (a
nossa memória, a lembrança) da página que a precedeu e da expectativa daquela que a
seguirá. Como celebração (formalização) de uma memória per se também poderá estar
112
travestida como um arquivo. Será um fichário, uma gaveta, um escaninho de elemen-
tos que contam algo sobre algo ou sobre alguém a outro alguém. Em qualquer caso
ela – em códice, em bloco, em rolo – terá limites físicos para sua superfície e neles
deverá haver relações de força baseadas numa gramática tão antiga quanto é antiga a
arte. Ao olharmos a página e os elementos que a compõem (linhas, formas, etc.) reen-
contraremos vínculos de equilíbrio, não apenas internas, mas plurais, como nas rela-
ções com a página ao lado. Reconheceremos as formas e as configurações, atribuire-
mos significados e propósitos a elas. Identificaremos a sempre presente relação entre
figura e fundo e as tensões no jogo de espaços. Perceberemos a dinâmica de movi-
mentos sugeridos, o uso das áreas de impressão e das cores (quando houver). E, so-
bretudo, imergiremos no projeto expressivo que nos é proposto, munidos de todo
nosso conhecimento acumulado, de todas as nossas certezas e desconfianças, de nos-
sa bagagem intelectual, de nosso acervo mnemônico. Tudo isso ajudando a confirmar
os princípios particulares de eloqüência na percepção visual.
A palavra “página” por si só indica um estatuto espacial, um momento ou
uma condição. Lugar, tempo ou modo que a privilegiam como suporte à narração.
Porém, sozinha ela praticamente obedecerá aos princípios narrativos comuns às obras
pictóricas, portadoras do tempo ilustrado, mas raramente efetivas quanto à imposição
do tempo de contemplação. Na narrativa interna ao quadro, tem-se a sensação de
ausência de sobressaltos, ausência da proposição de novos tempos, de outras formas
de ludibriar, já que praticamente tudo está ali a nossa frente, para ser interpretado, é
certo, mas com o silêncio próprio dos monumentos.
Quanto ao desempenho como suporte, pouco nos concerne neste momento
(mas interessará mais adiante) a página tradicional, passiva. Nossa atenção é aqui vol-
tada para a que assegura uma função estética orgânica ao espaço gráfico. É a página
ativa e funcional, herdeira das vanguardas artísticas tipográficas do início do século
XX, da evolução da impressão litográfica rumo ao offset industrial, da associação
com as técnicas fotográficas e com a própria fotografia ela mesma, com o uso pleno e
confortável da informática e, simultaneamente a isso, admitamos, da visualidade dos
poetas e artistas prosseguidores do legado espacial de Mallarmé. Para Octavio Paz, o
espaço é agente de mutações e energia. No passado, ele “era o suporte [sustento]
113
natural do ritmo verbal e da música; sua representação visual era a página [...] Hoje o
espaço se move [...]. (1965, p.61). Paz sabia que a mudança afetava a página e a estru-
tura. Acreditava que a tipografia havia estereotipado a escritura, mas que ela estava
sendo transformada (e preservada?) pelos meios de comunicação, como “o jornalis-
mo, a publicidade, o cinema”. A página se converteria em uma extensão animada,
uma representação do espaço real, ao mesmo tempo em que evocaria “a tela do qua-
dro ou a folha do álbum de desenhos”. O espaço se transformaria em escritura, “com
brancos que representam o silêncio”, dizendo “algo que não dizem os signos” (p. 63).
E antes de tudo afirma que “a consciência da história revelou-se como consciência
trágica; o agora já não se projeta no futuro: é um sempre instantâneo”. Em decorrên-
cia disso, fala da poesia, já que “os gêneros próprios da sensibilidade histórica, hoje
feridos de morte, são a novela, o drama, a elegia, a comédia” (p. 31). E esclarece: “a
poesia nos entra pelos olhos, não pelas orelhas” (p. 58). A imagem poética (suscitada
pela palavra, não pela linha, nem pela cor) seria o personagem único de um teatro
onde o cenário é a página (ou “uma praça ou um terreno baldio”, p. 64) e a palavra dá
a unidade rítmica.
Com referência ao problema plástico tocado pelas relações entre os espaços
(tanto abstratos como concretos) da textualidade e da visualidade, é importante lem-
brar (como retomado em outro momento desta pesquisa) do artista Marcel
Broodthaers. Apesar de originalmente um poeta, Broodthaers, em Un coup de dés jamais
n’abolira le hasard, 1969, com a informação adicional (ou subtítulo) image, recorreu a
uma tradução da obra homônima de Mallarmé, 1896, não através de um análogo da
escrita ou de novas possibilidades textuais. Ao optar pela visualidade (e a geometria
mais simples) de substituir o texto por linhas (ou faixas) pretas, ele manteve a obra em
aberto, não buscou interpretá-la, mas sim mostrar quanto de riqueza ela oferece. Evi-
tou o texto, embora justamente este tenha favorecido a estruturação de quase toda
sua obra. Comentando as limitações evidentes dos experimentos de Raymond Queneau
e do grupo francês Oulipo (sigla para Ouvroir de Littérature Potentielle), e levando em
conta algumas considerações de Umberto Eco, Arlindo Machado (2001, p. 183) des-
taca certa pobreza desses esforços em comparação com algumas de suas próprias
origens, como O lance de dados e o Livre de Mallarmé.
114
Não é correto que o leitor deva estar condenado a simplesmente traçar um percurso
nas bifurcações da estrutura arborizada ou dar forma unitária a uma estrutura
permutatória e plural, de modo a torná-las “legíveis” na acepção convencional do
termo, assim como também não era correto, na época em que se discutia e praticava
a obra aberta ou incompleta, atribuir ao receptor a tarefa de preencher as lacunas estru-
turais da obra. [...] A leitura verdadeiramente rica é aquela que vê na incompletude ou
na pluralidade da obra uma abertura real: não tenta preenchê-la de articulações
episódicas, nem reduzir a sua multiplicidade discursiva a uma coerência imediata e
simplificadora.
Acreditando que grande parte das práticas do Oulipo “está mais para a acro-
bacia letrista do que para uma verdadeira inovação poética”, Machado, porque seu
assunto é a relação entre a poética e as novas tecnologias, defende “a vivência da
multiplicidade ideológica, capaz de nos dar como saber e prazer a experiência plena e
tridimensional da pluralidade de enfoques, como num retrato cubista” (p. 178 e 185)
Nos anos 1970, em artigo que se tornaria programático, Ulises Carrión res-
saltou – como o garoto que vê que o rei está nu – que, se no livro antigo “todas as
páginas são iguais”, “na nova arte cada página é diferente; cada página é criada como
um elemento individual de uma estrutura (o livro) em que tem uma função particular
a cumprir” (Carrión,1975, p. 34). Se por um lado se deixa levar pela sobreposição de
significados de “livro como objeto e conceito (“uma novela, de um escritor genial
ou de um autor infame, é um livro onde não acontece nada”), por outro faz notar os
valores espaço-temporais (“diferente das novelas, onde não acontece nada, nos livros
de poesia acontece às vezes algo, ainda que pouquíssimo”). Carrión, como lembra
Martha Hellion, utilizava de todas as maneiras as formas gramaticais e literárias, não
apenas em expressão escrita, mas também em soluções visuais e sonoras. Porém a
literatura não lhe teria sido suficiente.
O próprio Carrión fez referência mais tarde a “algo” que se passou em sua cabeça e que
provocou o abandono da literatura, da qual nunca mais quis escutar. De maneira repenti-
na começou a trabalhar de um modo que o remetia ao visual. Ainda não sonhava com
chamar-se artista, era um homem de letras e todos os seus vínculos eram ligados ao mun-
do literário. Foi então que iniciou o trabalho com cores, texturas formas e temporalidades.
115
Porém, incluía algumas palavras, mas sem significado e estruturas lingüísticas, ainda pen-
sando que fosse literatura. Ulises costumava dizer: “Eu comecei como literato, mas che-
gou um momento em que me dei conta de que esse âmbito estava pequeno e não podia
continuar escrevendo contos e relatos num sentido tradicional. Agora a linguagem segue
sendo minha matéria prima, mas não mais que isso”. (Hellion, coord., 2003, p. 16)
Carrión tinha confiança em suas idéias e sabia com total clareza qual seria a
participação da poesia naquele momento de instauração. Seriam as leis seqüenciais do
livro, sobrepujando as leis seqüenciais da linguagem, que imporiam a “nova arte de
fazer livros”.
A manifestação objetiva da linguagem pode considerar-se em um momento e espa-
ço isolados: é a página; ou em uma seqüência de espaços e momentos: é o livro.
(Carrión, 1975, p. 35)
Mesmo que estivéssemos voltados para modelos estabelecidos e caros à
cultura comum, a noção de poema não excluiria a companhia da narrativa (um poe-
ma épico o confirma). Mas nela essa presença é menos evidente, sobretudo porque
outros valores são muito apreciados (métrica, espiritualidade, etc.). Um fenômeno
semelhante ocorre com as artes plásticas, no que diz respeito aos trabalhos conside-
rados em fólio único (folha avulsa). Freqüentemente os exercícios em uma só pági-
na, principalmente quando publicados, são associados à poesia visual. Pode ser, pode
não ser. Isso acontece muito mais do que deveria. E é fácil compreender esse fenô-
meno. Embora a história artística da página seja antiga (os incunábulos, etc., até a
revolução industrial, as ordens construtivas, o projeto), a idéia de uma página con-
ter em si ou por si só uma expressão artística completamente ligada ao mundo da
arte – e por isso reivindicar a função e o estatuto de obra desvencilhada do artesa-
nato – é mesmo recente.
Provavelmente por causa dos fluxos e refluxos conceituais do assunto, tem
sido muito difícil de se apontar um divisor de águas histórico, um primeiro livro
que apresente a página como integrada de fato na dinâmica seqüencial de um volu-
me que de saída reivindique uma individualidade estética. Por exemplo – e este é
116
apenas um entre tantos, aqui escolhido por ser pouco lembrado –, Mirella Bentivoglio
afirmou que o primeiro livro seqüencial, ou seja, “o primeiro em que nenhuma
página pode ser separada do contexto, porque cada uma é um elemento essencial
do todo”, foi Contemplazioni (Contemplations), 1918 (com segunda edição em 1936),
do escultor italiano Arturo Martini. Com formato pequeno, o trabalho apresenta
linhas paralelas e pausas sugeridas por marcas geométricas. Não há texto, mas
Bentivoglio considera que ele transporta “uma escrita reinventada, sem nenhum
significado: escrita assemântica” (1993, p. 93; ver também Jentsch, 1992, p. 182). É
impresso em xilografia apenas em uma das faces de cada página. A tinta, gordurosa,
atravessa o papel e permite com clareza a visão no lado oposto, deixando perceber
certa inter-relação par e ímpar. A aparição cria um eco, ligando as páginas sucessi-
vas e sublinhando um fato fundamental: cada episódio visual pertence ao todo.”
No mesmo artigo, também acusa o pioneirismo de Parole in libertà futuriste: tattili-
termiche olfative, 1932, livro metálico de tiragem desconhecida, edição de Tullio
d’Albisola (litografia) e Filippo Tommaso Marinetti (poemas), um fruto importante
do futurismo italiano que materializava o ideal de unir indústria e arte. Bentivoglio
defende esse ser o primeiro livro-objeto de fato, “o primeiro na história da arte” (p.
95). Acreditando que o problema da diferenciação talvez só tenha sido enfatizado
na Itália (país sem dúvida dos mais atuantes nessa querela, mas nunca o único), ela
diz que “um livro de artista (como Contemplazioni) é um livro regular com um con-
teúdo irregular e o livro-objeto é um livro irregular”.
Para aceitarmos integralmente sua definição, de todo válida, será preciso acre-
ditar que por “conteúdo irregular” se entenda como um esforço de expressão, uma
figura de linguagem, já que o livro de Martini é perfeitamente ordenado por princípi-
os de composição visual e hierarquia gráfica, quase como o seriam os seus sobrinhos-
netos, os livros-poemas. E todos acabam compartilhando espaços de uma mesma
economia artística. O problema das reivindicações por trabalhos anteriores aos anos
60 ou 70 é que se pode cair num sem-fim de casos pertinentes, porém de distribuição
estatística muito ampla. Preferimos, aqui, ater-nos à época de formação e amadureci-
mento dos conceitos que determinaram o comprometimento de um grupo claro de
artistas e obras a um espectro de conformação e ação teoricamente concebido.
117
A retórica visual de página
A página artística (que se quer como obra) pode beber das técnicas da comu-
nicação social (e fez muito isso), mas procura bem preservar a articulação da informa-
ção semântica (mesmo quando essa não é significativa) e da informação estética, afi-
nal, ainda que elas estejam compartilhando o mesmo suporte, uma não tira o espaço
de existência da outra. O mistério, o encanto, a individualidade, e tantos outros valo-
res abstratos, serão preservados. Mas o imediatismo e a relativa concisão dos atribu-
tos estéticos, das evocações ou das conotações mais instantâneas dificilmente consti-
tuirão narrativas. Um desenvolvimento poderá ser evocado, mas dificilmente será de-
senvolvido. Será mais fácil isso acontecer se a página assumir sua função de
enquadramento de um momento em evolução (em marcha), o espaço de representa-
ção de um tempo, a condição de episódio.
Algumas afinidades com certos múltiplos gráficos comerciais podem ser de-
tectadas na estrutura de uma página una. Especialmente o cartaz, por sua história de
promiscuidade com a arte e a mensagem. Certas semelhanças podem ser inferidas a
partir de reflexões de Abraham Moles. Além de publicitário, o cartaz seria uma “obra
de arte múltipla”, inserida na vida urbana e instaurador do “problema de construir
um acontecimento artístico por uma distribuição espaço-temporal de elementos, de
natureza mais ou menos combinatória”. Precisaria ser considerado como uma “obra
de arte na cidade, na medida em que o termo ‘obra de arte’, já antiquado, deve ser
tomado como uma cômoda abreviatura de seqüência de situações estéticas” (1987, p.
232 a 234). É justificado acreditar que certas considerações de Moles podem perfei-
tamente ser repartidas entre similares gráficos. A página também é, muitas vezes, ar-
gumentadora, quer pela função (transporte de mensagem), quer pela escolha da mídia.
Nela, a atomização do argumento também pode ser funcional.
O cartaz é [...] muitas vezes argumentador, mas sabemos que o argumento é sempre
atomizado e que sua estrutura é essencialmente uma aglomeração e não uma cadeia
dedutiva. [...] É indispensável, no caso, uma argumentação de caráter lógico-dedutivo
composta de vários silogismos encadeados: porque a função de esquecimento é mui-
118
to forte nos sistemas complexos. Deparamos às vezes com um silogismo (2 elemen-
tos ligados por um “porque” ou um “logo”), mas nunca mais do que isso. (Moles,
1987, p. 197).
A retórica nasceu como arte, mas transformou-se em ciência “de convencer,
de argumentar, de seduzir”, sendo oral, quando ligada ao discurso (“e, no cartaz, ao
texto”), ou visual, inerente à imagem, lembra Moles (p. 210 e 211). Reavaliados, os seus
desenvolvimentos, freqüentemente ligados à oralidade efetiva ou metafórica, desaguari-
am na organização crescente dos estudos da retórica visual, que “mantém-se com fre-
qüência um tipo de guarda-tudo mal compreendido” (Martine Joly, 2005, p. 65). Essa
especificação da retórica considera o espaço como plano de seus sistemas, o que as
próprias belas-artes evidenciariam. Se a narrativa é oferecida num dispositivo de
enquadramento, então a questão a propósito do que a narrativa trata assume reais con-
seqüências para a posição do espectador face à obra, eventualmente forçado a confron-
tar instâncias de poder (curadoria, história da arte e outras narrativas explanatórias),
segundo Marguerite Helmers. Para a aplicação dos estudos visuais a partir da retórica,
Helmers solicita precauções com autores, mesmo os de séculos anteriores, como Gotthold
Lessing, que sustentaria a separação das artes, a pintura como uma arte da espacialidade
e a poesia como uma arte do tempo. A “narração anima as representações estáticas da
obra de arte”, afirma, ilustrando seu pensamento com o apelo inesgotável oferecido à
pesquisa pela Tapeçaria de Bayeux (século XI, com a conquista normanda da Inglaterra,
em 1066, e a derrota de Haroldo por Guilherme, o Conquistador). Cita, entre outros
autores, Suzanne Lewis, que reforçaria o grau de implicação do “leitor” em contar a
história na tapeçaria através da tradução de suas imagens seqüenciais. De acordo com
Helmers, Lewis, “empregando a teoria narrativa [...] estabelece a retórica como forma
de persuasão narrativa e visual baseada nas convenções de representação, tropos e dis-
cursos formalizados parablicos que, por sua vez, engendram reação e reflexão” (Hill
e Helmers, 2004, p.67, referindo-se ao estudo de Suzanne Lewis, The rhetoric of power in
the Bayeux tapestry, Cambridge, 1999). E, mais adiante, Helmers resume.
A narração anima as representações estáticas da obra de arte. [...] Uma leitura retóri-
ca, então, engaja o espacial e o temporal, contra, outra vez, Lessing, que isolava a
119
pintura como uma arte espacial e obras textuais como temporais. Se o espectador é
capaz de animar o espacial através do desdobramento da causa e efeito, antes e de-
pois, então o espectador está temporalmente promulgando uma narrativa. (Hill e
Helmers, 2004, p. 67 e 69)
São muitas as obras de arte capacitadas, ou “empoderadas”, desde a origem
para a prenhez sem-fim da eloqüência visual que abdica do meio “ótico” pelo “óptico”.
Prosseguimentos teóricos poderiam ser feitos não apenas a partir da Tapeçaria de Bayeux,
cuja seqüencialidade narrativa em um longuíssimo movimento lateral de 70 metros
dá-se ao público em espetáculo simultaneamente silencioso e eloqüente. Muitos ou-
tros mereceriam nossa atenção. Sem sairmos do ambiente igrejeiro, onde todos nós
somos personagens de uma grande narrativa, e permanecendo nos limites aprazíveis
da França, lembremos o também espetacular Retábulo de Isenheim, de Matthias
Grünewald, completado em 1515, em Colmar. O retábulo é majestoso. Abre-se
fenestralmente em seqüência pseudo-abissal, descascando-se em capítulos, mas não
num andamento em abismo auto-referencial como um conjunto de bonecas russas
(ou as garrafas de vinagre que tem no rótulo a imagem de uma garrafa de vinagre, que
tem no rótulo a imagem de uma garrafa de vinagre, etc., em junção de subordinação;
Groupe µ, 1992, p. 305). Sua retórica intrínseca é ampla, multiplicada pelo desvelo,
mas dentro do seu possível histórico, progressiva e adicionalmente semantizada pelo
próprio evento de seu desencaixotamento. Real e ficção confundidos, a relação da
representação com o real é arbitrária, porque o verdadeiro no seu relato é a crença.
A atenção que decifra o relato incrustado (a passagem de narratividade em
narração) se projeta paralelamente na tapeçaria, perpendicularmente no altar. Dessa
maneira, contornam pelo uso da multiplicação o princípio, nem sempre verdadeiro,
quanto à obra bidimensional simples, de que “a imagem única é imprópria para trans-
portar verdadeiramente a narração”, afirmação de Pierre Fresnault-Deruelle (1993, p.
189), salvo as exceções, quando a relação imagem-narração contorna a simples latência.
Porém, “a imagem, da qual o quadro clássico seria o modelo, oscilaria, portanto, entre
narração e narratividade” (p. 19). Narratividade não é narração, mas a “possibilidade
de narração”, o que já estaria presente em paisagens e naturezas-mortas do passado, e
se encontraria massivamente na pintura contemporânea de opção figurativa.
120
[...] em outras palavras: essa narratividade se afirma desde que a prática pictórica não
tenha julgado dever mandar embora, como vício redibitório, a virtude imagética dos
quadros de outrora, que fazia – também – desses ícones, ilustrações (é ilustração a
“colocação sob luz”, precisamente de um momento tornado fetiche por seu valor
metafórico e metonímico). (Fresnault-Deruelle, 1993, p. 186)
Independentemente dos séculos que se passaram, nos eventos pictóricos em
que é procurada a narração visual direta, com armadilhas montadas pelo desenrolar
seqüencial ou serial de cenas, as premissas não estão distantes dos procedimentos
contemporâneos associados à mídia. Imagens organizadas pelo homem possuem elo-
qüência e, portanto, retórica. Tudo, enfim, questões da linguagem.
A retórica se utilizará das figuras (de palavras ou de idéias). Quando visuais,
poderão ser sintáticas (a repetição, o exagero, a fusão, a metáfora, etc.) ou semânticas
(antinomia, comparação, exagero, substituição, etc.), além de pragmáticas (relações de
operação entre o criador e os enunciados da imagem e o seu vedor). É a mesma ordem
do processo de organização dos signos icônicos, ou seja, instâncias da montagem
(Pignatari, p. 87 e 88): sintática (montagem propriamente dita, com a parataxe e o
paramorfismo), semântica (colagem, ou “o ‘normal médio’ do universo icônico”) e prag-
mática (ou bricolagem, “uma projeção do “kitsch”). A retórica pressupõe uma finalidade
ao discurso: persuasão, motivação, conforto, deleite, etc. Nos momentos históricos mais
intensos de produção artística dirigida para a página, apesar de eventuais ativismos, o
fim era a arte, com um grau às vezes menor, às vezes maior de alienação.
Quanto às possibilidades de ação, o uso da página avulsa seguiu duas solu-
ções dominantes: a construção da obra pela montagem artesanal e a publicação como
projeto artístico. O primeiro caminho se dava pela reunião de contribuições individu-
ais para posterior reparte, como nas atividades vinculadas à arte postal. O padrão
experimental mais rústico era (ou é) um artista reunir um grupo expressivo de outros
artistas, para de cada um obter uma quantidade pré-determinada de conjuntos de pá-
ginas (se possível, plasticamente iguais ou semelhantes), equivalente ao número total
de participantes (por exemplo, 50 artistas fazem 50 páginas iguais cada um). Nesse
caso, o reparte se executava apenas entre pares. Caso o grupo tivesse maiores ambi-
ções (e geralmente tinham), as quantidades individuais eram aumentadas, proporcio-
121
nando um desejável excedente direcionado para circulação. As técnicas variavam de
acordo com as poéticas individuais e as possibilidades de multiplicação: fotocópias,
técnicas tradicionais de gravuras, colagens repetidas, etc. As “páginas” (em geral fo-
lhas avulsas) eram agrupadas em edições coletivas (cada peça sendo uma coletânea de
trabalhos de todos) para distribuição pelos correios ou comercialização. Esse sistema
ainda é executado, mas com uma eficácia de divulgação muito reduzida, quase residu-
al, embora possa ser útil para artistas jovens que buscam um modo não virtual (digi-
tal) de apresentação.
Examinando com cautela essa classe de trabalhos nota-se que a presença de
narrativas convencionais lineares (que propõem histórias ou que têm lógica associada
a desenvolvimentos literários) é muito rarefeita. A página única (ou folha avulsa) pa-
rece mostrar que em geral é insuficiente para conduzir desenvolvimentos complexos
que imponham uma variável de tempo ao seu vedor. O que pode ali ser encontrado
com certa facilidade são os esforços narrativos instantâneos, configurados como com-
posições encapsuladas comprometidas muito mais com as figuras de linguagem da
herança cultural verbal do que com as possibilidades denotativas e conotativas própri-
as da visualidade. Visto por esse ângulo, o problema da interligação entre a narrativa
mínima e o mínimo espaço “cenográfico” disponível faz pensar se existem possibili-
dades de algum tipo de análise comparada entre o lugar plástico e o lugar literário. A
circunstância plástica é bem mais complexa, é muito mais promíscua.
Podemos propor, se assim quisermos, que o mínimo proscênio seja uma pá-
gina branca, pequenina: estamos falando de área. Ou podemos propor como mínimo
o uso exclusivo de um único material (por exemplo, um lápis) durante um dado tem-
po mínimo (digamos, 30 segundos): agora falamos de capacitação (perícia qualifica-
da). Escolhida e estabelecida uma regra para a construção de um mínimo narrativo
visual – digamos a página, para fugirmos dos paradigmas artesanais –, e agora? Seria
possível, nesses termos lúdicos, estabelecer um paralelo com a literatura? Se as estru-
turas seqüenciais mais prolongadas podem ser parâmetro para o “normal”, a página
que se esgota em si mesma poderia ser o nosso modelo de mínimo relativo. Então
poderíamos tentar um confronto dessas soluções narrativas visuais encapsuladas com
os relatos bem-humorados dos microcontos literários. Peguemos como amostra o
122
seu representante talvez mais famoso, o microconto de Augusto Monterroso (1921-
2003), El dinosaurio, que se resolve em apenas sete palavras ou 45 caracteres (letras e
sinais, ou 51, incluindo os espaços): “Cuando despertó, el dinosaurio todavía estaba
allí. Ou: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.” Aqui estão o narrador, o
conflito (a situação conjuntural), o personagem (ele ou ela), o lugar onde se passa a
ação (a situação espacial: o leito? o quarto? a floresta?) e o tempo (o acordar). De fato,
para as artes visuais, construir representações narrativas com o mínimo de recursos
não constitui problema sério. As ilustrações o provam. As diferenças são as inerências
de cada competência.
Nas circunstâncias da visualidade, esses instantes ou momentos da narração
estão presentes em eventos semânticos que têm ligações mais ou menos diretas com
o texto e com as figuras do discurso. É o caso de maioria das ilustrações (imagens que
elucidam um texto presente, uma escritura, ou um “texto” que está apenas na mente).
Isso também ocorre em certas colagens (com imagens apenas ou com imagens e tex-
tos, com funções discursivas para as formas e os significados, às vezes para as técni-
cas) ou as elaborações verbo-visuais, camufladas com retóricas de outros meios (do
cartaz, da publicidade, do jornalismo, etc.). Entretanto, no dia-a-dia de ateliê às vezes
o esforço narrativo é mais forte. O artista não se contém, prossegue no verso da
folha, a procurar ansiosamente maior relevância temporal. Ou, se frente e verso não
forem suficientes, seu discurso precisará de tal desenvolvimento que ele se utilizará da
página em sanfona. Ou ainda, tangenciando a caricatura, oferecerá a pista “real” de
um fato (um pedaço de tecido, uma embalagem, um envelope, uma fotografia “verda-
deira”, um objeto achado); e se essa pista for um anexo com uma fita cassete, um
vídeo, um disquete, um disco de dados ou outro meio temporalizado qualquer, então
estará por parir toda uma nova corrente de elementos que o levará mais e mais distan-
te da página celular original.
Esse caminho do espaço de página, com autonomia tão bem aceita pela his-
tória, pode ser contestado e interpelado quanto à sua definição. Que fique claro: neste
lugar de reflexão, a questão diz respeito a problemas da arte e para a arte, já que essas
confusões ou imprecisões não existem no trabalho editorial. A pergunta é tão primá-
ria quanto permanente: a “unidade de obra” que tenho em minhas mãos, sob o meu
123
olhar, é uma página ou é uma folha avulsa? A resposta é tão fácil quanto honesta:
depende. Depende da função. Depende do grau de contigüidade em relação ao todo,
depende do ideal do projeto. Fisicamente falando, recorre-se à segurança da coisificação.
Por exemplo, fica fácil identificar a obra como um conjunto se os trabalhos estão
acondicionados num envelope ou pasta. Trata-se então de um álbum, o que não prevê
paginação. Mas se estão unidos por grampos, por espiral ou por outro meio formam
um tipo específico de álbum onde alguém determinou a ordem de entrada: numera-
das ou não, são páginas. Provavelmente sem seqüencialidade (o que não constitui pro-
blema verdadeiro), mas páginas. O discurso abstrato de compreensão da obra ficará
reservado para outras instâncias.
Fólios e páginas reunidas
A essa mencionada via pelos valores artesanais (ou semi-artesanais)
correspondeu um fluxo paralelo, bem mais interessante para a evolução da comunica-
ção artística. Era o uso da página realmente publicada, e como tal indiscutível,
indubitável. O artista elaborava um projeto que participaria de uma obra coletiva a ser
publicada (um livro ou um periódico). Essa “interferência” alcançou um significativo
índice de ocorrências, chegando a receber a designação em língua inglesa de page art. É
o núcleo espontâneo de esforços individuais ou coletivos que propunham a página
como espaço alternativo. Em certos casos essa solução de expressão chegou a reafir-
mar a identidade celular da página, como se essa fosse a menor unidade possível de
alocação espacial no sistema editorial. As ações colaborativas eram freqüentemente
paralelas ou intrusivas ao mercado simbólico. Na realidade a página não é indivisível.
Existem, por exemplo, os anúncios que emulam a publicidade ou classificados usados
com funções claras dentro de um processo (como em certos trabalhos de Dan Graham,
Joseph Kosuth, Paulo Bruscky, etc.). Mas conceitualmente não é de todo incorreto
supor o certo grau de integridade da página como medida para um hipotético ponto
zero de lugar intermidial, seja como cápsula de mensagem comunicacional, seja como
unidade de uma estrutura narrativa.
124
Há muitos exemplos de páginas impressas, com “artisticidade” (critérios
que atendem prioritariamente aos valores conservadores) mais ou menos evidente,
sendo obras autônomas, parte integrante de obras ou apenas documentos. Podem
ser facilmente lembrados certos manifestos, os projetos da arte postal e do movi-
mento Fluxus, assim como outros procedimentos mais ou menos marginais, hoje
amplamente reconhecidos pelo sistema. As contribuições para periódicos alternati-
vos se tornaram tão freqüentes entre os anos 70 e 80 que alguns passaram a se
oferecer como suporte bivalente para pequenos ensaios e crônicas e para interven-
ções gráficas. Algumas revistas comerciais, em números especiais, aceitaram ou pro-
puseram mesmo oferecer suas páginas integralmente aos artistas (como Studio
International, v.180, n.924, de julho e agosto de 1970, com Baldessari, Buren, Burgin,
Darboven, Huebler, Pistoletto e outros, ou Artforum, v.18, n.6, de fevereiro de 1980,
com Ruscha, etc.). Em empréstimo à designação “livro de artista” chegou a ser
estabelecida a qualificação “revista de artista” (artist’s ou artists’magazine, como em
Pindell, 1977, Phillpot, 1980, Chapell, 2003, e outros). A denominação categoriza
os periódicos em que os artistas são “centralmente responsáveis”, fazendo “arte
concebida especificamente para um contexto de revista e, portanto, arte que é per-
cebida apenas quando a própria revista está composta e impressa” (Phillpot, 1980,
p. 52). Embora análogas e compartilhando mercados, uma revista de artista é
conceitual e programaticamente diferente de uma revista de arte.
O circuito das publicações não periódicas também oferece espaço, mas fica
difícil caracterizar como intervenção a presença numa mídia formatada definitivamente.
As páginas que se querem altissonantes, ou pelo menos que pretendem afirmar a
individuação, quando em curtas seqüências encontram agenciamento em publicações
coletivas. Os volumes resultantes são muito parecidos com catálogos, ou são mesmo
catálogos. Esse pode ser o caso de Premonitor, 2003, integrado por 20 artistas
12
, incluí-
12
Participaram de Premonitor: Adriana Boff, Carlos Pasquetti, Elaine Tedesco, Elcio Rossini, Fabio Zimbres, Flávio
Gonçalves, Jorge Menna Barreto, Katia Prates, Lia Menna Barreto, Lucia Koch, Maria Lúcia Cattani, Mario Ramiro,
Mauro Fuke, Nick Rands, Renato Heuser, Richard John, Rochelle Costi, Telmo Lanes, Tiago Rivaldo e Vera Chaves
Barcellos. Edição independente, com financiamento do Fumproarte, Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre.
125
dos os organizadores por Katia Prates e
Mario Ramiro. A cada um coube um nú-
mero reduzido de páginas, o que é expli-
cado pelos editores no final do volume.
Ao serem convidados para o
projeto, foi proposta a cada ar-
tista a criação de um trabalho
para o espaço de quatro páginas
impressas em offset, a quatro co-
res, sem papéis, cortes ou cores
especiais. A única condição era
de que o livro não utilizasse
obras preexistentes e propicias-
se uma experiência específica
com características próprias de
formas narrativas e estratégias
de ocupação. (p. 95, original
formatado em versalete)
É provel que a palavra “ocu-
pação” aqui diga respeito ao uso do es-
paço (e talvez também às formas de tra-
balho), que no presente caso abriga os
contingentes “cor” e “narração”, seja a
melhor tradução do problema oferecido
ao comprometimento dos participantes.
As soluções de apropriação e uso dos
espaços de página são variadas, indo do
esforço pela (quase) absoluta privação à
narratividade (geralmente representada
pela superfície quase monocromática ou
o mínimo indício figurativo) até a crôni-
Premonitor, 2003.
Organizado por Katia Prates e Mario Ramiro.
De cima para baixo: capa e páginas
de Renato Heuser, Fabio Zimbres
e Vera Chaves Barcellos.
126
ca literária isolada em página própria (descrição de caminhada ou reprodução de diá-
logos). A sobreposição segura entre particularidades narrativas e a ocupação do espa-
ço gráfico nem sempre se dá com naturalidade. Ter duas páginas duplas em seqüência
(as quatro páginas consecutivas) significa oferecer simultaneamente a possibilidade
do quadro (o instante) de desfrute e leitura ser constituído de dois momentos, se cada
par for considerado um todo, ou de quatro, se a unidade de enquadramento for a
página simples. Ao mesmo tempo em que oferece os limites para começo e fim, a
proposta desafia o ocupante ao problema plástico singular da simultaneidade entre a
solenidade do quadro isolado e o dinamismo congelado no elo seqüencial. Sem dúvi-
da, quando a tarefa é dominada o livro cresce rumo ao engenho temporal. Mas nas
páginas em que isso não acontece com desenvoltura, ficamos com a impressão de o
artista preferir a oportunidade de oferecer a sua obra objetivamente como catálogo.
Essa característica atende uma solução de apresentação que parece marcar presença
(às vezes dominante) na grande maioria de publicações em grupo. Porém, se tal verifi-
cação não pode se assumir conclusiva, ao menos ela registra fortemente uma impres-
são recorrente.
Páginas em catálogos e catálogos que são livros
O fenômeno da troca, acúmulo, interposição ou esvaziamento de funções
entre catálogos de exposição e livros ou periódicos resultou em edições reconhecidas
como ímpares. São publicações que têm identidade associada à do livro de artista
como ele é entendido a partir dos anos 1970. Entre os trabalhos coletivos mais
marcantes, destaca-se o Xerox Book, nome com que ficou conhecido o catálogo publi-
cado em dezembro de 1968, concebido por Seth Siegelaub, galerista de Nova Iorque
então com 26 anos, juntamente com John W. Wendler, em tiragem de mil exemplares,
com a intenção ser simultaneamente a exposição, o documento e a obra. Foi precedi-
do de um ou outro catálogo mais ou menos assemelhado quanto ao aspecto barato
(em especial November 1968, de Douglas Huebler, também editado por Siegelaub). E
acabou por tornar-se um modelo de gerenciamento para boa parte dos livros coleti-
127
vos que viriam a seguir, além de um paradigma
para elaboração de narrativas visuais próximas
do mínimo.
Costuma-se apresentar o Xerox Book
como uma publicação sem título que acabou
sendo reconhecida pelo cognome. Mas se se-
guirmos o uso bibliográfico de reconhecer a
obrigatoriedade, em livros convencionais, de
o título aparecer na folha de rosto, esta então
informaria que o título seria, sem rodeios, a
lista dos nomes dos sete participantes: Carl Andre, Robert Barry, Douglas Huebler, Joseph
Kosuth, Sol LeWitt, Robert Morris, Lawrence Weiner, os nomes dispostos um abaixo do
outro, sem pontuação. A capa é branca, sem título. A única informação está no alto
da lombada, a lista de sobrenomes dos artistas. As dimensões do volume são prati-
camente as do formato carta, em 180 folhas não numeradas. Cada artista se ocupou
de um grupo de páginas para, em equipamento Xerox (segundo Castleman, 1994,
p.163), produzir seqüências de 25 fotocópias de acordo com suas poéticas de cria-
ção e tirando proveito das qualidades (p. ex., a reprodutibilidade imediata) e impre-
cisões da máquina (solarização, grãos de sujeiras, riscos e outras imperfeições). Ob-
tidos os originais dessa forma, a edição foi impressa em ofsete. Tal conclusão do
procedimento gráfico ainda é às vezes percebida com espanto, de certa forma como
se fosse aceitável fazê-lo integralmente em fotocópias, um absurdo que atenderia
aos amantes da aura tradicional e do trabalho em oficina. “[...] era o modo mais
rápido e mais fácil de fazer um livro e é por issso que ele foi fotocopiado e impres-
so [em ofsete]”, como Siegelaub esclarece. E prossegue, comentando o status ad-
quirido pelo Xerox Book a partir de sua participação em A Century of Artists Books,
exibição ocorrida no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque com curadoria de
Riva Castleman entre 1995 e 1995.
Eu projetei e realmente finalizei fisicamente a maioria dos livros publicados por mim
mesmo, o que eu realmente gostava e ainda gosto de fazer. Não tinha nada a ver com
Xerox Book, 1968,
ou Carl Andre, Robert Barry,
Douglas Huebler, Joseph Kosuth, Sol LeWitt,
Robert Morris, Lawrence Weiner.
128
design, talvez tivesse mais a ver com a idéia do efêmero. Pode-se dizer que esse pro-
cesso de co-modificação é também verdadeiro para a criação da maioria dos outros
objetos culturais; uma vez que a passagem do tempo os coloca dentro de um diferen-
te contexto histórico, social e econômico, eles se tornam algo mais e provavelmente
perdem muito da sua “raison d’être original e tomam os novos valores do período
para o qual foram transportados. (Siegelaub, entrevistado por Christophe Cherix, em
3rd ArtistBook International, 1996, p.11)
O livro consegue a união da geração minimalista, representada por Andre,
LeWitt e Morris, com os conceitualistas, Barry, Huebler, Kosuth e Weiner (como des-
tacado por Moeglin-Delcroix, 1996, p.108). Todos os trabalhos são sistêmicos, com
ou sem o uso de palavras.
A seqüência de Carl Andre se inicia com a cópia de um pequeno quadrado
(uma face de um cubo?). Na página seguinte, dois quadrados. Em seguida, três. E assim
por diante, mas sempre mantendo as posições anteriores. Robert Barry reproduz uma
retícula de pontos de impressão. Douglas Huebler se utiliza de declarações em inglês,
alemão e francês, colocadas nos cantos inferiores esquerdos, afirma um procedimento:
“uma folha de papel de 8 1/2 x 11 polegadas” (em página totalmente branca),um
ponto localizado no centro exato de uma folha de papel xerox de 8 1/2 x 11 polegadas”
(mais o ponto no centro da página), A e B representam pontos localizados 1.000.000.000
de milhas atrás do plano da figura” (mais os pontos A e B próximos ao centro da pági-
na),ABCD representam os pontos finais de 20 linhas de 1 polegada localizadas num
ângulo de 90 graus e horizontais ao plano da figura” (com as quatro linhas A, B, C e D,
de cinco pontos cada), etc. Joseph Kosuth usa apenas frases simples, centralizadas nas
páginas, sem figuras: “título do projeto”, “fotografia da máquina Xerox usada”,
“especificações da máquina Xerox”, “fotografia da máquina ofsete usada”, etc., a a
frase final, “fotografia do livro inteiro”. Sol LeWitt desenvolve suas combinações de
quadrados hachurados vertical, horizontal e obliquamente, em quatro grupos de quatro
quadrados por página (a última contém o diagrama geral da proposta). Robert Morris é
figurativo, explorando imagens repetidas de um planeta (a Terra?) solarizadas pela
eletrografia (não devemos esquecer a importância iconológica das imagens espaciais
durante os anos sessentas, praticamente inexistentes, por compreensível ignorância, na
129
Xerox Book, 1968, ou Carl Andre, Robert Barry, Douglas Huebler, Joseph Kosuth, Sol LeWitt,
Robert Morris, Lawrence Weiner. Rosto e páginas dos artistas participantes (na ordem do título).
Acervo da Bibliothèque Kandinsky, Centre Pompidou, Paris.
130
arte anterior). E, finalmente, Lawrence Weiner repete folhas quadriculadas em grade de
8 por 10 quadrados particionados em 8 por 8 subdivisões, com um statement, uma decla-
ração manuscrita ao pé da página: “uma remoção [ou um excerto] retangular de uma
folha quadriculada xerocada em proporção à dimensão global da folha”.
O Xerox Book está inextricavelmente ligado ao contexto da zona de união da
arte conceitual e do minimalismo. Também é verdade que ele não é um fruto de geração
espontânea, sendo um elo, talvez o mais importante, de uma corrente de catálogos au-
tônomos, obras libertas da função primeira, o algo a dizer e comprovar sobre algo que
acontece ou aconteceu. Desviados do seu estado e funções habituais, dos quais se espe-
rava fossem ordenados para inscrever e classificar, esses volumes têm agora um novo
“algo a dizer”, alguma coisa que é pertinente à obra. E certamente algo saudável. Na
entrevista já mencionada, Cherix provoca e Siegelaub tenta responder.
CC: Mas não existe um paradoxo em, por um lado, apresentar um grupo de artistas
conhecidos por serem difíceis de compreender, como exemplificado pela peça de
Robert Barry em seu catálogo July, August, September 1969, descrita como “Tudo no
inconsciente percebido pelos sentidos, mas não notado pela mente consciente du-
rante viagens para Baltimore, durante o verão de 1967”, e, por outro lado, desejar
alcançar um público não especialista? A frase de Barry é uma entidade lingüística
que exclui se próprio autor, conduzindo a um jogo sobre a impenetrabilidade da
realidade artística.
SS: [...] O que Robert Barry estava fazendo [...] não é mais difícil de entender do que
um Jackson Pollock. Talvez menos, já que isso pode ser compreendido mais direta-
mente. Mas é provavelmente mais difícil do que Renoir, por exemplo. Essa
impenetrabilidade pode ser aplicada para qualquer obra de arte séria, no tempo de
sua criação. Você pensa que pode se aproximar do sentido de um Pollock porque ele
está fisicamente ali. A incorporalidade do trabalho de Robert Barry é apenas outra
faceta da nossa experiência, mas é certamente tão real quanto a convenção da pintura
sobre tela. Isso é mais difícil só porque não combina com a cor do sofá? Não é ape-
nas questão de um público mais ou menos especialista, é também outro tipo de rela-
cionamento com um público, talvez um que questione a dicotomia artista ativo e
consumidor de arte passivo. (3rd ArtistBook International, 1996, p. 17)
131
Contribuições das mais ricas para a arte, as publicações de Siegelaub
escancararam possibilidades, a ponto de oferecer objetos de estudo insubstituíveis.
Categorias iam tomando configurações inéditas. O que são, realmente, os espaços
para arte? E o que são os espaços alternativos, e o que os artistas têm a dizer por
intermédio deles? Poderia ser perguntado, por que não, se um livreto com as fotos
dos pedregulhos encontrados durante uma caminhada constituiria um catálogo do
banal, um catálogo do especial ou outra coisa a mais ainda por ser definida. Os
exemplos de publicações coletivas do gênero são de fato abundantes, mas são os
trabalhos individuais os que têm maior possibilidade de convencimento pelo esfor-
ço despendido e de sedução através da dialética entre a integridade e a diafaneidade
de uma anima. A individualidade singular e solteira tem um fator de concentração
em obra que creio inegável. Sem dúvida é um catálogo o pequenino Edward Ruscha
(segundo a capa, sobre o caule de uma palmeira de seu livro A few palm trees) ou
(como está na página de rosto) Edward Ruscha (Ed-Werd Rew-Shay): young artist, de
1972. Se o que está no rosto é o título verdadeiro, é de se perguntar que curador
daria um título assim tão truncado. Claro, ele teve projeto gráfico de Ruscha (em
parceria com Edward A. Foster), que não deixaria passar em branco a oportunida-
de. O que está na página de rosto é uma reprodução de seu cartão de visitas, que
instrui o portador a desejável pronúncia de seu nome. E mais abaixo o esclareci-
mento: “Um livro acompanhando a exibição de impressos, desenhos e livros de
Edward Ruscha no Minneapolis Institute of Arts, 18 de abril a 28 de maio, 1972”.
Ao contrário dos catálogos habituais seu formato é diminuto, o que chamaríamos
de um simpático “tijolinho”, com 9,3 x 11,5cm
13
e 3,5cm de lombada (436 páginas).
A biografia (nas páginas 16 e 17, após página dupla de Ruscha com seus livros)
conta sua vida de forma descontraída e ligeira.
Nascido: 16 de dezembro, 1937, Omaha, Nebraska.
1942: Mudou para Oklahoma City, Oklahoma.
13
Essas são as dimensões do exemplar examinado. Lembro que dentro de uma mesma tiragem pode haver
ligeiras variações de corte. Por exemplo, em Engberg e Phillpot, 1999, o formato mencionado é 9,5 x 11,4cm.
132
8 de abril, 1945: Primeira Comunhão.
1950: Começou trabalho como entregador de jornais para o Daily Oklahoman.
Dezembro de 1953: Comprou o primeiro carro, um Ford 1950 preto.
1956: Graduou-se na Classen High School, Oklahoma City.
Agosto de 1956: Junto com Mason Williams viajou até Los Angeles no Ford 50.
1958: Vendeu o Ford 50.
1956-60: Freqüentou o Chouinard Art Institut intermitentemente.
1961: Viajou pela Europa. Começou a pintar.
1962: Concebeu Twentysix Gasoline Stations.
12 de dezembro de 1969: Parou de pintar.
29 de fevereiro de 1972: Começou a pintar.
Como catálogo de uma mostra específica, com datação específica, sua exati-
dão e método quase tocam a farsa. A documentação flerta com a ficção. Uma foto
Edward Ruscha ou Edward Ruscha (Ed-Werd Rew-Shay): young artist. Minneapolis Institute of Arts, 1972.
Acervo da Bibliothèque National de France, Paris.
133
sua na cama, dormindo entre duas mulheres (uma loira e uma morena, como con-
vém), informa através da legenda: “Ed Ruscha diz adeus aos prazeres de faculdade
(um anúncio da revista Artforum, 1965)”. As imagens mostradas a partir da página 21
incluem trabalhos não exibidos. E, além disso, mais do terço final do volume é consti-
tuído exclusivamente por páginas brancas (175 ao todo). Mas afinal de contas, como a
página de rosto já havia informado, esse é um livro acompanhando uma exposição.
Para Barbara Moore, Ruscha não apenas subverte a fórmula do catálogo “como o
coopta, produzindo um metacatálogo em que sua própria obra, a lista de trabalhos
em exposição, ilustrações e biografia são sujeitados à mesma categorização inexpressiva
das fotografias de objetos e paisagens que aparecem em seus livros de artista de publi-
cação independente” (The consistency of shadows, 2003, p. 3 do suplemento “The catalog:
from subversive strategy to marketing tool”). Em que prateleira de uma boa bibliote-
ca, então, deve-se colocá-lo? Para quem o procura e não o encontra junto com outros
catálogos, isso não deve ser razão para desânimo. Às vezes é possível encontrá-lo na
coleção de livros de artista. Ou o contrário.
Estar próximo do zero narrativo, ou do quase zero, será sempre difícil para
uma publicação visual, mesmo se ela emular ou substituir o catálogo. Poderíamos
ainda perguntar se as páginas brancas no catálogo mencionado de Ruscha, ou em
alguns de seus livros, podem ser consideradas como sendo a representação do nada,
do zero, do fim absoluto da narração de qualquer tipo. E as páginas dos livros de
Christian Boltanski, com freqüência integralmente recoberta pela impressão? Poderí-
amos perguntar, se a repetição de fotos de rosto (semblantes anônimos) ocupando
inteiramente todas as páginas sem qualquer espaço para texto ou explicações destrói a
narração como seria esperada em livros-que-acompanham-exposições. A propósito
da independência das edições de Boltanski, para quem “existe alguma relação entre o
livro e a exposição, o mesmo título, um arquivo real da exposição [...] mas o livro é
uma peça que pode existir sem a exposição”, AnneDorothee Böhme indaga ao artis-
ta:A menos que a exibição já possua um componente narrativo, seria difícil criar o
mesmo espírito, a coerência de um livro (The consistency of shadows, 2003, p. 3 da trans-
crição da entrevista). Boltanski concorda, já que para ele o livro é um modo de fazer
uma exposição e é um espaço de exibição durável. As funcionalidades envolvidas não
134
chegam a ser antagonistas, embora por princípio catálogo nenhum tenha como pro-
posta o zero narrativo. Catálogos enumeram, contando algo. Livros de artista com-
postos por páginas inteiramente brancas ou inteiramente recobertas existem muitos.
Catálogos “mesmo”, acho que nenhum.
É preciso ressaltar a caracterização do volume em relação à subversão funcio-
nal da tipicidade. Normalmente é percebida a função narrativa especializada nos catálo-
gos tradicionais como algo inerente ao seu propósito. Ele é um mediador da obra, com
identidade pertencente ao domínio paraoperal, da paraobra, conforme os critérios de
Michel Gauthier (inspirados na noção de “paratexto” proposta por Gerard Genette).
Por paraoperal é preciso entender tudo que, em torno, nas paragens da obra, concor-
re à recepção desta última – esta zona tampão, anfibológica, nem intra-operal, nem
extra-operal, entre a obra e a não-obra, que tem por tarefa assegurar, condicionar a
apresentação da primeira no seio da universal segunda” (“Dérives péripheriques”,
Les Cahiers du Musée National d’Art Moderne, 1996, p. 130).
Para Gauthier, no domínio paraoperal, que envolveria os elementos peri- e
epi-operais, o catálogo seria, mais especificamente, epioperal, “em razão de sua li-
berdade espacial em relação às obras às quais ele remete” (p. 131). Ele agregaria
particularidades como a permanência no tempo e a de ser um integrador paraoperal
de outros elementos paraoperais anteriores a ele (títulos, fotografias, informações,
etc.), algumas das razões de seu sucesso como mediador. E como produto
bibliomórfico, é também passível da subdivisão funcional entre texto e paratexto. A
riqueza de seus atributos são a garantia de que ele não seja subestimado como sim-
plesmente extra-operal. A sua polivalência foi justamente o que o teria colocado
num lugar de primeiro plano, atraente “às atenções subversivas dos titulares da fun-
ção operal(p. 133). Se haveria no século XX a aproximação (e a identificação cons-
tituinte) entre a obra e seu aparelho de intermediação (por exemplo, a apropriação
do espaço expositivo pelo artista, o confundindo com a obra), Gauthier observa
que também existem estratégias para a “conversão operal” do catálogo, que consi-
dera um fenômeno singular: ele de paraoperal ascende ao status de operal, se
integrado ao funcionamento da obra e se transforma em gerador da obra. Seus exem-
135
plos são o livro Royal Road Test, de Ed Ruscha, Mason Williams e Patrick Blackwell,
1967 (que não é geralmente tido como um catálogo, mas pode ser tratado não como
um “catálogo de obras, mas de detalhes de uma obra”), Countless Stones, de Richard
Long, 1983 (ambíguo quase do mesmo modo que o anterior) e, como terceira ocor-
rência, “incontornável”, os catálogos de Seth Siegelaub, que se colocam oficialmen-
te no lugar das obras que documentam, especialmente os dois primeiros da série,
November 1968 (de Douglas Huebler) e January 5-11, 1969 (de Robert Barry, Douglas
Huebler, Joseph Kosuth e Lawrence Weiner).
Sobre outras mídias
Uma diversão deve ser feita aqui, ainda a partir do campo do catálogo “mes-
mo”, mas que têm implicações em publicações autônomas. Trata-se de certas constatações
que passam a ser evidenciadas por novas formatações de transmissão do discurso. Peter
Weibel, em artigo sobre o catálogo digital, aponta valores específicos na mudança do
suporte livresco para a mídia digital, especificamente o disco compacto editado, o CD-
ROM. Parte do princípio de são majoritariamente dois os sistemas de informação perti-
nentes ao catálogo: os em forma de índice e os narrativos. O primeiro sistema inclui os
índices, o atlas e o léxico, e, como tal, não representaria por si só um saber. O segundo
repousa sobre “as ficções, as associações ilógicas, os desvios e as omissões, sobre a
incompletude e ausência de sistema”. Para Weibel, “essa maneira de proceder se chama
narração”, o que envolveria, também, o caráter de imprevisibilidade de sua progressão,
algo como uma expedição:A narração é, de fato, per se, uma viagem de descoberta na
qual o herói é um tipo de guia”. Na narração, a informação seria uma seleção e, como o
índice, ela seria um conceito estrutural, não se tratando “de uma estrutura mecânica e
morta: ela é, ao contrário, caótica e viável” (“Après Gutenberg: le CD-ROM entre index
et narration”, Les Cahiers..., 1996, p. 181). Weibel acusa o índice e a narração de serem
sistemas de informação contrários. O primeiro seria a base do CD-ROM produzido na
época, mas seu futuro deverá ser uma narração apoiada numa base de dados ramificados
em redes e postos em relação.
136
Se, portanto, a narração da era de Gutenberg, em razão de seu processo mecânico,
era determinada em função da realidade material que supõe a impressão de uma li-
nha, de uma página e de um livro, e definida por uma seqüência causal de eventos
onde o mundo parecia congelado em uma seqüência coagulada de letras, o livro ele-
trônico como é encarnado pelo CD-ROM representa uma espécie de degelo. Poderí-
amos consequentemente qualificar a forma de narração que dele resulta de
antinarração, no sentido de que ela torna possível de fato um encadeamento de infor-
mações não linear, não casual, não seqüencial, singular e fragmentário, assim como
sua arborescência. [...] O CD-ROM é, então, comparado à imagem tradicional da
narração, uma forma de antilivro e de antinarração. (Les Cahiers..., 1996, p. 183)
Observe-se que, para Weibel, como em outras reflexões sobre o mundo da
arte, a narração, no sentido mais estrito do termo, é um ponto de referência quase que
inevitável. Se para os catálogos de exposição ela tem uma performance muito mais
ligada às metodologias de exposição do assunto, no território específico do livro de
artista as narrativas têm atuação mais variada, tanto podendo ser nula (para os pa-
drões verbais) como explícita (quando sua presença é propositalmente invocada). Mas
essas considerações sobre o suporte digital nos parecem relevantes, já que em certa
medida as possibilidades do CD e do DVD também interessam ao produtor de livros.
Aos poucos vão surgindo notícias de utilização de mídias digitais, seja como anexo ou
como apêndice, seja como o próprio livro. Podem ser mencionados dois trabalhos
com a presença categórica do narrador (ou narradora) e que talvez por isso não abdi-
quem do livro como fetiche: Histoire de la FAGM: hypersensibilité H = grosse fatigue, de
Véronique Hubert, 2002, em que FAGM é a sigla para a personagem, a “mulher de
ronique Hubert, Histoire de la FAGM: hypersensibilité H = grosse fatigue, 2002
137
mãos grossas”, que conclui o histórico confessional de um problema médico com um
último capítulo em CD; e Le lit des amants, de Elina Saloranta, 2004, um rápido ciné-
roman finlandês, trilíngüe, construído com diálogos que tem como referência L’Amant
de la Chine du Nord, de Marguerite Duras, acompanhado de um DVD. Ambos são
derivações ou desdobramentos da prosa, sem qualquer proximidade aos discursos das
diferentes instâncias de catalogação
14
, oferecendo maior dramaticidade a valores nar-
rativos. Mas na maioria dos casos em que o CD tem autonomia identitária, as solu-
ções estéticas de desfrute propostas parecem mais próximas do jogo do que da narra-
ção. Por seu forte desempenho lúdico, a apresentação da obra em CD isolado tende à
relativa indefinição entre assumir-se como uma derivação do livro-objeto e, o que
parece mais provável, como uma obra de arte digital.
14
Poderiam ser acrescentados exemplos da poesia, que são em bom número, já que as mídias eletrônicas
oferecem a reprodução da voz. Mas um “catálogo” de poemas tende a possuir uma interface própria, a
antologia, que pertence predominantemente ao domínio literário, o que não afasta a permanência das
experiências afins à economia visual dos livros de artista. À parte volumes tradicionais, poderiam ser
mencionados, dentre nomes reconhecidos e novas expressões, Não poemas, livro de Augusto de Campos,
2003, que inclui CD com seus “clip-poemas” com som e movimento (quase exclusivamente imagem), e uma
edição atípica da revista JAB, Journal of Artists Books, número 19, 2003, com vocalizações do Atlanta Poets
Group, APG (exclusivamente som). Assim como esses, outros trabalhos semelhantes podem ser buscados
em livrarias especializadas em poesia alternativa e publicações artísticas.
Elina Saloranta, Le lit des amants, 2004.
138
O livro, mesmo
Em que ponto do caminho, afinal, entre a folha avulsa e o volume, começa
um livro? Para Éric Watier, basta uma dobra numa folha de papel. É assim um de seus
trabalhos, chamado Un livre, un pli, de 2003
15
. Ele é constituído simplesmente por uma
única folha de papel dobrada ao meio. No lado externo, com impressão chapada cin-
za, estão vazadas (letras brancas) as palavras “Un livre”, um livro. No lado interno,
todo branco, apenas a continuidade da idéia: “Un pli”, uma dobra, uma prega, uma
curvatura (e – por que não? – quase uma saudação, quase uma deferência). Sob o
ponto de vista objetivo do mundo gráfico comercial, o trabalho seria visto apenas
como um prospecto dobrável, um folder. É o mundo subjetivo da cultura que o inter-
preta como uma obra. Entre outros valores simbólicos, ele atende algumas das pre-
missas de Carrión quanto à seqüencialidade de páginas, que por si só é assegurada
pela relação de continuidade entre os enunciados verbais, mesmo que brevíssimos.
Mas objetivamente, aqui é a dobra que enuncia o livro. A mesma dobra que, por ser
única talvez o desqualificasse como tal aos olhos menos eruditos. Estes últimos diri-
am, equivocadamente: – O rei está nu!
Éric Watier, Un livre, un pli, 2003.
15
Exemplares sem créditos, sem informação de data ou origem, distribuídos no colóquio Livre d’Artiste: l’Esprit
de Réseau, na Université Rennes 2, França, 16 e 17 de maio de 2003. Utilizo os dados fornecidos em Guardare,
racontare, pensare, conservare, 2004, p. 211.
139
Em se falando da narrativa visual, a proximidade do mínimo é uma possibili-
dade encantadora. A ausência ou quase ausência do relato é talvez o ponto de maior
liberdade que uma obra de arte pode alcançar. Não que existam espaços imaculados.
Na alocação de um lugar “puro” pela arte sempre permanecerão pelos menos alguns
traços residuais de relações com o pensamento literário, já que a visualidade também
se explica pelo verbo (e vice-versa). No livro de artista, além disso, é bastante difícil
eliminar o componente cinético, que é fisicamente expresso pelo folhear. O silêncio
narrativo só se imporá em momentos muito raros, embora não de todo destituídos de
história ou de ficção, seja na superfície da página, seja nos discursos e relações que o
livro gera como parte da obra. Dentre os bons exemplos históricos de livros quase
inteiramente destituídos de processos narrativos estão os produzidos pelas correntes
minimalistas, conceitualistas, suas variações e os desenvolvimentos simultâneos ou
posteriores.
Os livros de Sol LeWitt são exemplos obrigatórios e inevitáveis. Que tipo de
relato, que história, que estória eles portam? Four basic kinds of lines & color, é um
livreto quadrado que integra um exercício com linhas pretas de 1969 e um com cores
de 1971. Tornou-se um clássico que faz parte de um grande grupo de exercícios sobre
vários suportes que o acompanhou por anos. Apresenta o que promete: quatro tipos
básicos de linhas (verticais, horizontais e oblíquas para a direita e para a esquerda e
suas combinações) nas cores subtrativas ciano (denominado “blue”), magenta (deno-
minado “red”), amarelo e preto, ocupando totalmente as páginas quadradas. No iní-
cio, como se fosse um mostruário, uma tábua de matérias ou um sumário, ou até
mesmo um prefácio visual, LeWitt apresenta-nos, em duas páginas lado a lado, o pro-
tocolo do livro, um conjunto de possibilidades pares e ímpares que serão mostradas
no decorrer da peça. Também Geometric figures & color, 1979, é exato e silencioso, em-
bora muito mais cromático. As páginas são preenchidas por uma cor básica e ocupa-
das cada uma com uma figura geométrica, conforme anunciado na página que con-
tém uma apresentação ou introdução formal ao trabalho, como um prólogo: “círculo,
quadrado, triângulo, retângulo, trapezóide e paralelogramo em vermelho, amarelo e
azul sobre vermelho, amarelo e azul”. No final, outro protocolo, como um índice sem
paginação, as miniaturas das 36 combinações. Obser ve-se que, além de outras
140
Sol LeWitt,
Geometric figures & color,
1979.
Sol LeWitt,
Four basic kinds of lines & color,
1971.
similitudes, ambos os livros se utilizam do recurso de ter como precedente uma fala
visual preliminar, um preâmbulo, um antelóquio.
A produção vinculada direta ou indiretamente ao minimalismo, ao
conceitualismo e aos experimentos óticos são fascinantes. Seus roteiros são suas his-
tórias, que se fazem apenas pelo próprio uso ou consumo. Elas, suas “histórias”, ofe-
141
recem o pôr-se nu da estrutura e da realização do trabalho, freqüentemente enaltecendo
a marcha evolucional do ritmo determinado pela imposição gfica, ao mesmo tempo
em que propõem a desintegração do nosso senso comum de narrativa. Salvo o fato
de o próprio volume ser constituído por intervalos vistos em seqüência (as páginas),
por si só definidor de uma ocorrência no tempo, muito pouco, ou quase nada, ou
talvez nada exista que se enquadre nas regras da narração.
Mas esses livros pretenderiam, de fato, nos “dizer algo? Faz sentido procu-
rar uma “mensagem” analógica neles, voltada para a possibilidade da existência em
nós de um sentido expectante implícito de narrativa? Que informação existe para ser
lida, por exemplo, em Comme il vous pliera, 2002 (data provável), de Daniel Buren?
Como leitura, temos apenas o texto da contracapa, que informa o princípio
compositivo: “Dobraduras e outras variações sobre listras de 87mm de largura. Co-
res: Pantone azul 300 U sobre branco. Pantone amarelo U sobre branco. Pantone
vermelho 185 U sobre branco. Pantone verde 3395 U sobre branco. É disso que se
compõe o volume, faixas (colunas) de cor verticais sobre fundo branco, da primeira
até a última página (curiosamente ele não informa a data de publicação, mas o código
de barras e o preço, 13,26 euros, não foram es-
quecidos na impressão da capa). Suas listras de
cores e a capa podem mudar, porque existe mais
de uma edição simultânea. Nella Arambasin
(1997, p. 244) lembra a afirmação de Rolf
Dittmar para o catálogo da Documenta 6, para
quem o impulso na produção em sua época (es-
creve em 1977) estaria vinculado a uma reação
“contra o consumo de informações” porque o
que expiraria no livro era sua capacidade de “dar
ao leitor uma escolha infinita de histórias pos-
síveis”. Se o livro passa a ser tratado ou maltra-
tado, acrescenta Arambasin, é porque “o artis-
ta experimenta de livrá-lo de sua instrumenta-
lização como veículo de informações: ele o leva
Daniel Buren,
Comme il vous pliera, 2002 (?).
142
em conta plasticamente para lhe restituir o poder infinito de se metamorfosear men-
talmente em múltiplas narrações”. Para ela, o que se guarda de uma narrativa “não é
uma história e ainda menos uma informação, mas uma imagem gravada pela experi-
ência de uma escuta longínqua” (p. 245).
Foram muitos os esforços de ocupação visual do território oferecido pelo livro,
sem dúvida desde sempre. Ele é isso, um dispositivo para se ver texto e imagem. O que
o final do século XIX e o decorrer do XX propiciaram foi um composto fértil que
incluía a eletrificação industrial, a evolução mecânica e química das técnicas de impres-
o, o estabelecimento de mercados livreiros amadurecidos e profissionais, o crescimen-
to da imprensa ilustrada, os avanços do ensino formal, o avanço universal da leitura, a
aceitação das brochuras de custo reduzido, a agilização dos processos de distribuição, os
estímulos à experimentação gráfica, a informatização dos processos produtivos...o
diversos os fatores e cada um deles contribui a seu tempo na visualidade de página. Liz
Kotz observa que nunca ela respondeu tão bem aos artistas do que a partir das parcerias
entre texto e imagem estabelecidas nos anos 60 e 70, consorciando um “emparelhar
perene que mais tarde voltou à tona em tanta arte ‘pós-moderna dos anos 80", uma
relação que havia continuado reprimida na fotografia modernista, salvo em trabalhos
com fotomontagens. Entretanto, continuava ignorada em esquemas teóricos que “pro-
curavam compreender o mundo ‘puramente visual’ das imagens como operando de
acordo com leis fundamentalmente diferentes daquelas governando o material lingüístico”
(Kotz, 2007, p. 217, que a seguir destaca as contribuições de Barthes e Eco na aplicação
de modelos quase lingüísticos na leitura de fotografia).
Os movimentos que vão às compras no campo conceitual (no sentido mais
amplo do termo, o que inclui generosamente as principais correntes ativas a partir
dos anos 50) possuem lógicas hipnotizantes, sedutoras justamente porque ora se es-
forçam em manter a narração à distância maior possível, ora se entregam a relatos
confessionais ou se banham em laudos periciais como se vivessem dramas forenses.
O silêncio narrativo às vezes parece estar prestes a ser obtido. Em alguns casos, por-
que o ruído é praticamente insignificante, e para fins de reflexão, considera-se que ele
foi alcançado. Muitos artistas conseguem, sem dúvida, se desembaraçar dos grilhões
mais evidentes da narrativa. Mas, sem, no entanto, conseguir viver sem a linguagem e
143
a palavra. Ao contrário. O discurso categorizador, a bula prescritiva, a legenda, o do-
cumento, enfim, todo o texto que alimenta e é alimentado pelo esforço do artista a
partir daí irá, de agora em diante, se manter companheiro “associado” da arte, como
uma rêmora, porém em evidência, apto a viver criticamente (se quiser e puder) em
relação às mitologias. A circunstância política e histórica garante o novo estatuto e
seus protocolos. O enunciado poderá ser brevíssimo, mas um palavrório interminável
o legitimará, acompanhará e sobreviverá a obra. Será o ajudante-de-ordens inseparável
da obra (e o contexto a definirá) nas suas inter-relações de rede (em que é participante
como uma das condições de contemporaneidade), mas já estará pré-estruturando boa
parte da ordem criadora, à retaguarda do método sistemático auto-imposto.
A criação e aplicação de um sistema (a sistematização ou metodização) é um
dos principais motores fundamentadores da obra de arte contemporânea. Ele é a cons-
tituição e a efetivação do método de organização intelectual de elementos perceptí-
veis (óticos, mecânicos, químicos etc.) ou abstratos (objetos do pensamento) solidári-
os à estruturação da coisa artística. Estrutura é a sua palavra-chave. Podem existir
zonas menores ou maiores de sobreposição entre a criação do sistema e a sua própria
execução (a primeira avançando ou reaparecendo sobre a segunda), refazendo ou blo-
queando tarefas, mas pode-se admitir que após a ideação dos preceitos, diretrizes ou
métodos sobrevém um regular pôr em prática: o exercício (trabalho) que será materi-
alizado, rematerializado, documentado, traduzido, ordenado, etc., em obra. É essa ação
a estruturadora da exposição gráfico-seqüencial que compõe a narrativa visual míni-
ma. Particular e eminentemente distante dos relatos convencionais (que se sustentam
na escrita e na elocução), o relato visual reivindica a particularidade inerente,
intransferível e inigualável do discurso plástico artístico, sobretudo o contemporâneo,
seja puro (intrínseco à economia da arte), seja aplicado (em outras atividades, mais ou
menos culturais). No caso do relato visual mínimo (ou minimalista), a presença da
narrativa convencional é muito próxima do nada, muito próxima do zero. Ficará mui-
to difícil de se estabelecer associações típicas. Daí, possivelmente, parte das dificulda-
des de “interpretação” por parte de quem está “chaveado” nos modelos elocutórios
do leitor ou do espectador, circunstância que está muito ligada à perenidade ou conti-
nuidade no tempo de valores aportados pela arte conceitual.
144
Assim, a queixa sem fim por parte dos críticos de orientação traducional que a obra
de arte não é mais inteiramente disponível para percepção sensual imediata – que nós
devemos ler a notação ou entender o conceito ou procedimentos compositivos para
apreciar uma obra – não é porque a obra agora é meramente uma idéia ou exercício
intelectual, mas porque a obra mesma implicitamente consiste de um plano e sua
realização, mesmo em projetos como pintura abstrata que explicitamente não admi-
tem essa lógica serial de produção. [...] A destituição programática da realização ma-
terial de uma obra por muitos artistas conceituais apenas inverte essa expectativa cul-
turalmente normativa de plenitude sensual. (Liz Kotz, p. 299, nota 26)
Na verdade, ser sistêmico parece uma prerrogativa herdeira do livro comum,
que o é praticamente desde o seu estabelecimento. O sistematismo é parte integrante
da construção bibliomórfica. Ele é historicamente amadurecido, os séculos provando
e aprovando seus métodos. Nele o uso combinado de palavras e figuras estabelece
“um relacionamento direto entre linguagem e imagem – uma ilustrando a outra – mais
freqüentemente a serviço de uma narrativa linear”, uma norma primeira, “imitada,
parodiada, alterada, minada e às vezes completamente reformada nos livros de artis-
tas” (Shelley Rice, em Lyons, 1993, p. 59). O livro passa a receber atenção como obje-
to da arte, com a atenção repartida entre a sua estrutura e o seu conteúdo. Robert
Morgan sugeriu (em artigo de 1984) que existiriam dois tipos básicos de sistemas
impulsionando os livros, o narrativo e o concreto.
Sistemas narrativos funcionam em relação a um tema que pode ser literário ou visual.
Eles tendem a se desdobrar seqüencialmente, mas não necessariamente em acordo a
uma lógica serial. Sistemas concretos, por outro lado, tendem à lógica abstrata e
serialidade. Sistemas concretos não contam história; mais exatamente, eles apresen-
tam um inter-relacionamento de elementos como projeto formal. A organização de
um sistema concreto é mais firmemente arregimentada; por isso, o livro lê-se mais
em termos de uma modulação explícita. Sistemas concretos são relativos a fatos lite-
rais; sistemas narrativos tendem às ilusões literárias. Um sistema concreto está conti-
do pela literalidade do que ele é; um sistema narrativo implica outros níveis de signifi-
cado por trás do que há. Sistemas narrativos não requerem linearidade; sistemas con-
cretos freqüentemente sim. (Morgan, em Lyons, 1993, p. 211)
145
Tal modelação é eficiente e ajuda a resolver os primeiros problemas de apro-
ximação à obra. Fica fácil identificar a proeminência sistêmica concreta em livros com
refrões geométricos e padrões de corte que mantém significados ligados ao volume
em si mesmo, ou o sistema narrativo em desenvolvimentos com inspiração
fotocinematográfica. Mas na prática é bastante improvel que um livro não fique
proposital ou acidentalmente indeciso num dualismo que, afinal, é redutor. E muito
disso se deve a inclusão franca e sempre freqüente da fotografia aplicada aos proces-
sos artísticos.
Os quadrinhos
A apropriação das ferramentas do universo dos quadrinhos talvez seja o exem-
plo mais eficiente para exemplificar o uso de um tipo de sistema entre muitos possí-
veis, aqui com a palavra (quase sempre) e a imagem (sempre), seja desenhada, seja
fotografada, mas na grande maioria das vezes construída sobre um roteiro que solici-
ta cenários e personagens sob enquadramentos cinematogficos. Para o livro de ar-
tista, esses elementos dos quadrinhos têm o mesmo propósito comunicativo que teri-
am em circuitos comerciais de entretenimento, exceto pelas circunstâncias do artista,
do público e da economia simbólica.
O contato do público com o artista ritualiza um protocolo tradicional que
segue o modelo clássico do encantamento frente à arte. Um balão onomatopaico de
história em quadrinhos registraria “Ohhhhh!”, a imagem sintética da folclorização
dessa relação, como nos quadrinhos da dupla anglo-americana Simon Grennan e
Christopher Sperandio, em seus projetos financiados por estabelecimentos culturais
ou museológicos. A presença na narrativa nas “HQ” é óbvia e não precisará ser
esclarecida nesta pesquisa. Mas a menção à presença de trabalhos como os de Grennan
e Sperandio precisa ser feita, em razão de sua reconhecida aprovação institucional.
Eles ignoram os habituais rótulos de precariedade de trabalho ou de mídia alternativa.
Deles é o álbum em quadrinhos Revenge and dish served cold, 1997, patrocinado pela
galeria inglesa Ikon (com segredos de vinganças contados por alguns amigos, em qua-
146
drinhos impressos em verde e vermelho fora de registro, acompanhados de um par
de óculos 3-D, para ver as histórias “com profundidade”). Ou The peasant and the devil
and other stories, 1998, produzido pelo Seattle Art Museum para acompanhar exposição
de Cindy Sherman, Allegories (com quatro contos populares recontados com dese-
nhos a partir de personagens de Sherman). Ou ainda Modern masters, 2002, publicado
pelo MoMA, Museum od Modern Art de Nova Iorque, e seu centro PS1, recontando
histórias de seus funcionários e visitantes. E também Soy Madrid, 2005, tablóides diári-
os publicados em fevereiro de 2005 pelo jornal El Mundo, incluindo cinco pôsteres
para o metrô da cidade. Arthur Danto, em After the end of art, em capítulo sobre arte
“extramuseológica” comenta o papel da obra em Grennan e Sperandio a partir de We
Got It!, “conseguimos!”, um confeito em bastão produzido para o Culture in Action,
Sculpture, Chicago, com ajuda do National Endowment for the Arts (1997, p. 180 a
189). Danto usa esse doce para exemplificar as novas apresentações (na arte contem-
porânea) da obra de arte “após o fim da arte”, que não pertence apenas a quem se
dirige, mas “que pertence a todos, como deveria, sendo arte” (p.189).
Para Paul Krainak (2007, p. 102-103), as melhores historietas da dupla “são
joyceanas, com excruciantes detalhes desconjuntadamente codificados e alterna-
damente sombrios e corriqueiros”, em que as células das narrativas teriam poder
Simon Grennan e
Christopher Sperandio,
The peasant and the devil
and other stories,
Seattle Art Museum, 1998
(para exposição
de Cindy Sherman)
Simon Grennan e
Christopher Sperandio,
The invisible city,
New York:
Public Art Fundation,
1999 (para metrô)
147
visual e força de persuasão em equilíbrio. Eles transporiam “o mesmo terreno mo-
vediço que está por baixo do mais notável da arte pós-conceitual”, principalmente
através de projetos colaborativos e obras públicas em que acabam por ilustrar o
relacionamento conflituoso “entre alta-cultura, públicos desservidos e mídia popu-
lar”. Fundem, assim, “uma plataforma popular para grandes temas, glamur e
escapismo” num foro mais privilegiado, dissolvendo “a pretensão de diferença en-
tre os desejos de uma classe e os valores de outra”.
Mais jovens na cena artística, Eyoum Nganguè e Faustin Titi, respectiva-
mente camaronês e marfinense, tiveram seus quadrinhos Une eternitè à Tanger, em
língua francesa, vertidos para o italiano, estando disponíveis para venda ao público
da Bienal de Veneza, a 52
a
Esposizione Internazionale d’Arte, em 2007. Os visitan-
tes nativos podiam, assim, ler a publicação sem dificuldade. Seria o suficiente? Não,
talvez esse fosse apenas um complemento, um regalo, porque aparentemente essa
Eyoum Nganguè e Faustin Titi, Une eternitè à Tanger, participação na Bienal de Veneza (52
a
Esposizione Internazionale d’Arte), e publicação Un’eternità a Tangeri, 2007, versão italiana.
148
não era a obra mesmo que a curadoria tinha intenção de mostrar. Lá estavam, num
dos espaços do Arsenale, os originais das páginas (as artes-finais), solenemente emol-
duradas e à altura dos olhos. A museotecnia, estando atenta a um público muito
amplo, não abriria mão de oferecer aos olhos o estatuto físico “original” da obra, o
risco do lápis, a marca da mão, o ponto mais perto do artesanato, os pré-requisitos
para a aura! Os visitantes podiam, assim, ver o “quadro”. A instituição estaria, por
causa do mercado, voluntariamente esquecida que obras do gênero se instauram
apenas depois de impressas? Ou seria preciso laminar e propor “em tomos”? Ou
são duas obras?
Voltando ao exame sob o ponto de vista técnico, confirmamos nessas e nou-
tras obras do grupo dos quadrinhos de exceção da arte, a presença (aparentemente
paradoxal) da no fundo bem-educada sem-cerimônia impregnada nos quadrinhos vul-
gares (as “novelas gráficas”, histórias em quadrinhos e fotonovelas). O aproveitamen-
to da codificação desse consagrado método narrativo parece ser sua principal fonte
de prazer. É uma forma consagrada de seqüência pictórica, uma composição hibridizada
das seqüências ilustrativas e do conto. Um elemento comum à inspiração nos quadri-
nhos gráficos e fotográficos é que, assim como o cinema não é realmente obrigado à
fala, os quadrinhos não são obrigados aos seus balões. O que não os libera totalmente
de nos seus roteiros seguir a lógica do relato escrito.
Aliás, existem seqüências de imagens fixas e narrativas (na história em quadrinhos, na
pintura) que até certo ponto podem ser comparadas à seqüência fílmica, pelo conteú-
do narrativo que veiculam. Mas as relações temporais entre imagens sucessivas são aí
evidentemente muito menos marcadas, não apenas porque cada imagem só inclui o
tempo de modo muito indireto e muito codificado, mas porque o dispositivo é bem
menos impositivo. Somente a seqüência fotográfica – em razão do poder da crença
ligado à arché fotográfica – pode, com menos vigor, comparar-se à seqüência fílmica.
(Aumont, 2006, p. 169.)
A arché mencionada acima é um termo usado por Jean-Marie Schaeffer, to-
mado em empréstimo por Aumont, significando “um saber sobre a gênese da ima-
gem”; a imagem sozinha, não existindo em modo temporal poderia, apesar disso,
149
“transmitir uma sensação de tempo” porque “o espectador nela coloca algo de seu
e acrescenta alguma coisa [a arché] à imagem” (Aumont, 2006, p. 163). [Arché: arqué,
o princípio da vida, a origem?]
A narrativa e a imagem sistêmica
As particularidades estruturais do livro fotográfico estão apresentadas em
outros momentos, em comentários distribuídos por todo o trabalho. Mas para ampli-
armos um pouco mais esses comentários sobre a dimensão narrativa das ocorrências
sistêmicas, é forçoso reconhecer a excelência da imagem, gráfica ou fotogfica, em
oferecer-se para essa função, principalmente quando a imagem colecionada tem pree-
minência. Coletar imagens para com elas elaborar um livro não parece pressupor, em
princípio, um subseqüente esforço pelo desfrute narrativo no plano da decodificação
do encadeamento semântico das imagens. Para que pelo menos uma sensação de pre-
sença do relato ocorra será preciso que se vivencie alguma alteração de estado ou
circunstância espectável no tempo fruído (não precisa ser necessariamente o tempo
narrado verbalmente) e/ou no espaço percebido (também não precisa ser necessaria-
mente o espaço narrado verbalmente). Deve ser sentido ou pressentido o processo
não apenas latente ou inerente, mas algo como uma evolução de algum tipo, mecâni-
ca, ótica, temática etc. Ou qualquer espécie de envolvimento do público que traga
embutido em si uma relação temporal. É o que basta para a constituição dos eventos
narrativos na circunscrição da visualidade.
Mesmo que a narração desenvolta possa não estar presente, pelo menos seu
estado de latência será pressentido (ou confirmado) se a imagem tiver função ilustrativa.
Isso é uma constatação quase tautológica. A narratividade incubada (não explícita no
“texto”, mas que brota a partir do imaginário de quem vê) parece estar mais
potencializada na fotografia do que nas imagens hapticamente elaboradas (desenho,
pintura). Isso pode ser vislumbrado nas conjecturas de Barthes. Talvez essa seja uma
das razões da forte ilação de drama em boa parte das obras de Christian Boltanski,
principalmente os livros e instalações com o uso de rostos, mesmo que sejamos igno-
150
rantes da procedência das fotos que vemos.
Como nelas o tempo está em suspenso, não
existe desfecho, não é pressentida a iminência
de algo. Mas isso não impede que a tensão
possa ser facilmente sentida: é a eminência
atávica em cada retrato sem nome que me
garante sua inclusão na história. Vem-me a
mente, entre outros, o volumoso Kaddish, de
1998, com mais de mil páginas inteiramente
tomadas por fotos, todas, absolutamente to-
das carregadas de um pranto em surdina,
como na oração judaica que lhe dá título, mas
aqui visual.
Passando do solene para o kitsch, do
fotográfico para o gfico e da Europa para
a América podemos percorrer a coleção de
clichês tipográficos apropriados por Martha
Hellion para elaborar Los heroes populares de la
mitologia urbana, 2003. Em formato quadrado
e com páginas unidas, ora à direita, ora à es-
querda, aos dois espirais metálicos colocados
nas laterais, o livro é impresso tipografica-
mente em papel áspero e com cores puras,
azul, roxo, laranja, em páginas ornadas por
estrelas amarelas. Trata-se da reunião de ima-
gens dos heróis locais da luta livre, simulacro de esporte e espetáculo popular ainda
muito apreciado no México. Predominam os desenhos, muito toscos e característicos,
típicos da economia de meios presente no materia promocional e em cartazes tipo-
gráficos com soluções de baixo custo. Também clichês reticulados (fotográficos) fo-
ram usados, mas os “à traço” são em maior número. Tal qual heróis, os heróis possí-
veis, os lutadores são apresentados arbitrariamente, reforçada sua excepcionalidade
Christian Boltanski, Kaddish, 1998.
151
pelos seus nomes impressivos: Blue
Panther, Aero Flash, El Solitario, Ulti-
mo Dragon, Mil Mascaras... E há mulhe-
res: Mujer Salvage, Lady Apache... E atra-
ções internacionais: Vampiro Canadien-
se... Mas também o orgulho nacional:
Principe Maya, Aguila Azteca... Poucos
têm um nome que soa possível: Americo
Rocca, Estela Molina, Martha Villalobos...
Na indumentária, a máscara é quase cons-
tante. Sem dúvida cada figura humana
apresentada é um personagem da mito-
logia urbana mexicana, constituindo uma
iconografia que deva estar em vias de vi-
rar folclore. Tudo é tão raso quanto co-
lorido, mas as informações estão dadas.
A máscara e o personagem interpretado
no ringue, o maniqueísmo dramático, os
ritos de apoio aos “heróis”. Hellion re-
conhece a força gfica dessa falta de re-
finamento e reivindica outros códigos de
interpretação para a linguagem visual e
gráfica “que convida a participar e apre-
ciar como espectadores esses rituais” (tex-
to de panfleto encartado na obra). Observe-se que embora exista uma profusão de
elementos narrativos extremamente vulgarizados e codificados (personagens heróis e
vilões, encenação de disputas com começo meio e fim, espetacularidade, ficção, mar-
cação temporal para início, progressão e desenlace do conflito), o livro de Hellion
jamais abandona a prerrogativa do objeto de arte de ser oficialmente antinarrativo.
Essa qualidade é paradoxalmente garantida justamente pela escolha de um sistema
matematicamente frouxo e antropologicamente comprometido. Seria logo a fisicalidade
Martha Hellion, Los heroes populares
de la mitologia urbana, 2003.
152
que inunda o livro o empecilho ao relato,
mesmo que o trabalho seja do início ao fim
ilustrativo? Existem, portanto, ilustrações e
ilustrações.
Para a construção de um sistema
bibliogênico baseado exclusivamente na ima-
gem, especialmente a fotográfica, e na auto-
imposição de um método, pode-se colecio-
nar imagens exatamente iguais (repetições),
ou com ligeiras diferenças temporais ou
cenográficas (seqüências), com semelhanças
temáticas ou formais (associações), ou com
uma infinidade de gradações de informalidade. São exatamente iguais as imagens de
Da capo, 1979, de Vera Chaves Barcellos, artista então especialmente afeita ao uso da
fotografia na construção de jogos entre a percepção e o entendimento do público.
No livro, simples e de formato alongado, o sistema construtivo é mínimo e rigoroso,
com duas fotos em preto e branco colocadas lado a lado, obtidas no metrô de uma
grande cidade (detalhe da estação e do interior de um carro), repetidas em cada pági-
na. Nada muda nas imagens. Mas aqui a movimentação do tempo será sublinhada
pela presença de legendas ao pé das páginas, mencionando os dias que passam. A
intromissão consentida dessas palavras constitui o ponto que, ao mesmo tempo em
que esclarece o motor do procedimento
expositivo, permite uma pequena brecha para
o relato. As jornadas serão sempre iguais nos
subterrâneos?
De Alfredo Jaar, A hundred times
Nguyen , tem 208 folhas, ou 104 páginas, in-
cluídas uma primeira folha de papel vegetal
e três no final com o histórico da obra, pro-
duzida em 1994 pelo Fotografiska Museet e
o Moderna Museet, Estocolmo. O trabalho
Vera Chaves Barcellos, Da capo, 1979.
Alfredo Jaar, A hundred times Nguyen.
Estocolmo: Fotografiska Museet/
Moderna Museet, 1994.
153
Alfredo Jaar,
A hundred times Nguyen.
Estocolmo:
Fotografiska Museet/
Moderna Museet, 1994.
Três aberturas em seqüência.
154
é uma brochura de formato grande (20 x 30cm), trazendo cem imagens coloridas de
página inteira, repetidas de cinco fotos originalmente obtidas em intervalos de cinco
segundos. O enquadramento é de um busto simples (cabeça e ombros) com fundo
absolutamente neutro ou inidentificável, a menina fotografada olhando diretamente
para a câmera. As diferenças entre as cinco fotos são mínimas. O volume chega a
parecer um grande flip book, uma conclusão que de imediato se mostra absolutamente
equivocada. Numa primeira examinada, parecem todas iguais. Mas a forte humanida-
de dos retratos impõe vitalidade e afeto. O rigor do sistema proposto e a fortíssima
integridade do volume acabam por afastar, pouco a pouco, qualquer possibilidade de
distanciamento. A ternura envolvida é delicada. Percebemos e queremos saber mais.
A narrativa se faz em armadilha posta nas páginas finais, num texto do artista que
esclarece a origem da obra. No outono de 1991, Jaar viajou a Hong Kong para verifi-
car as condições de vida nos centros de asilados do Vietnam aguardando repatriação.
Durante a visita ao Pillar Point Refugee Centre ele foi seguido por Nguyen Thi Thuy,
uma menina que não falava, provavelmente nascida no centro e de quem não conse-
guiu saber a idade. Ele pediu para fazer as fotos e ela aceitou. E a partir de um certo
momento ela passou andar com Jaar de mãos dadas de um lado para o outro até ele
deixar o local. O livro é dedicado a ela: “Das 1378 fotografias que tirei em Hong
Kong, as imagens de Nguyen são as que permaneceram na minha memória. Para sem-
pre.O volume é isso, uma passagem hierática de um estoicismo de fachada em dire-
ção ao tributo a uma lembrança vivida, um ícone pagão de memória.
São muitos os exemplos de “colecionadores de imagens livremente encontra-
das no dia-a-dia (tomadas exclusivamente ou apropriadas da mídia) ou de fotos produ-
zidas em ensaios. As publicações resultantes se assemelham a álbuns do banal, do antro-
pológico, do político, do sagrado, etc. Hans-Peter Feldman é sem dúvida um dos artistas
mais comprometidos na conversão de fotos de segunda mão ou originais em livros,
geralmente organizados por temas, com quantidades muito variáveis de imagens. Cole-
ciona, também, objetos. Seus trabalhos a partir do início dos anos 70 aparentam forte
impessoalidade, razão de parecer não contar nada (mesmo que toda fotografia seja po-
tencialmente uma incubadora de narrativa). Os títulos dizem, sem qualquer pretensão, o
conteúdo. Assim, 5 Bilder terá cinco imagens, 12 Bilder terá doze, 1 Bilder terá uma, etc.
155
Para Moeglin-Delcroix (1997, p. 205), “aí está quem revira a lógica benjaminiana da
perda da aura na reprodução: reproduzir a reprodução pode, sob certas condições, res-
tabelecer a aura ou antes a introduzir ali onde ela estava em princípio excluída. A mes-
ma forma continuaria a ser usada em trabalhos mais recentes, aproveitando ou não seus
projetos anteriores não executados. Em All the clothes of a woman, Alle Kleider einer Frau,
co-edição germano-canadense de 1999, são mostradas em fotos quadradas, preto-e-bran-
co, obtidas em 1974 (conforme informado na sobrecapa), duas por página (páginas ama-
relas, com diagramação idêntica), todas as peças de vestuário encontradas no guarda-
roupa de uma mulher. Apenas poderíamos com es-
forço de nossa imaginação, mas muito vagamente, re-
construir a personagem ausente. Mas o livro é de for-
mato discreto (11 x 19cm), as fotos são
informacionalmente pobres e as roupas mostradas não
têm poder para apontar uma individualidade. O sujei-
to permanece oculto.
Ao contrário, o sujeito é coletivo em Voyeur,
também uma pequena brochura em preto-e-branco
(1994, 1997 e terceira edição em 2006). As 256 pági-
nas da são uma coleção de cerca de 800 imagens de
segunda mão, apropriadas da mídia, de todos os ti-
pos: fotos jornalísticas e publicitárias, cenas dramáti-
cas, irônicas, cômicas. Muita gente, muita humanida-
de a ser depreendida do banal. A época das imagens
é imprecisa e a geografia é global. É o todo, o muito,
sem ordem aparente, chegando de todos os lados para
avivar a memória. Uma metralhadora de informações
disparadas sem controle (aparente). Não existe pro-
posição de seqüencialidade.
Entretanto, algo parece mudar em 100 Jahre,
2001, formato maior (20,7 x 27,4cm), capa dura, in-
teiramente em preto-e-branco. Aqui o sistema tem
Hans-Peter Feldman, Voyeur,
1994, 1997 e terceira edição
em 2006 (a da foto).
156
outra característica. Por mais metódico
que pareça, está contaminado por certo
envolvimento emocional. Em cada pá-
gina ímpar, uma foto mostrando uma
pessoa, parada e voltada para a câmera,
quase de corpo inteiro, em cenário espe-
fico. Sob cada foto está a identificação
do fotografado, nome e idade. A primeira
foto é de Felina, oito meses, sobre uma
colcha ou tapete; depois Jana, um ano,
num pátio ou praça; e Richard, dois anos,
sentado em um banco; e Franziska, três
anos, num balanço; Milan, quatro anos,
brincando na areia; e prossegue: cinco,
seis, sete, oito... 29, 30, 31... 57, 58, 59...
e 98, Elisabeth, 99, Ernst, e 100, Maria
Victoria. Todos, absolutamente todos,
com a dignidade estampada nas faces,
dos cabelos em desalinho aos cuidado-
samente penteados, o aumento progres-
sivo da atenção com a sobriedade, dos
cuidados com a postura e do uso de ócu-
los. O rigor da proposta não diminui, ao
contrário, alavanca a expectativa do finale:
é uma obra comovente, o que é quase
um pecado pelos padrões dos primeiros
livros de Feldmann. Temos em mãos um
método em crescendo, um exemplo crista-
Hans-Peter Feldman, 100 Jahre, 2001.
157
lino de narrativa visual, apoiada na fotografia e na legenda como ilustração de uma idéia,
bastante independente das formulas literárias.
Juntando alguns dos casos apresentados, nos quais o sistema construtivo se
utiliza do agrupamento de elementos com certa ordem, com algum grau de seme-
lhança, ou de alguma forma interrelacinados, o que temos na frente dos nossos olhos
parece ser o equivalente a uma enunciação mais ou menos ordenada de elementos, o
que pode ser considerado muito próximo, se não o mesmo, que uma enumeração,
uma das faces dos relatos. Para W. J. T. Mitchell (em ensaio sobre estruturas de repre-
sentação narrativa da escravidão) pode-se compreender “memória como escritório de
contabilidade” e “narração como enumeração”.
Precisamos estar cientes sobre a inteira panóplia de figuras que ligam narração a conta-
gem, recontagem, “prestar contas” [ou fazer um relato] (em francês, um conte), “contar”
[telling no original] ou “registrar [tallying] um total numérico, e a relação entre “histórias” e
“armazenagem [na língua inglesa; “stories” and “storage”]. Descrição em detalhe é muitas
vezes figurada como o local textual da maior fartura, uma cornucópia ilimitada, de rico
detalhe, reproduzida na retórica da “copiosidade”. (Mitchell, 1994, p. 195)
Para o acompanhamento de um desenvolvimento narrativo linear tradicional
somos constantemente treinados, desde a infância, como habilidade inerente a nossa
humanidade. Esse estado de prontidão e expectativa para o relato, acompanhado pela
espontânea e imediata atenção a ele, parece sugerir certa passividade de quem tem por
esse meio o contato com a mensagem (e a audição e a leitura simples podem ser
paradigmas plausíveis dessa relação em que alguém se aceita como o objeto de uma
impressão). Porém, na economia da cultura visual há casos, e são muitos, em que a
concepção gfica do volume que atende as necessidades da narrativa pela imagem (ou
pela forma) insere elementos lúdicos particulares, apropriando-se de retóricas e proces-
sos de origens específicas. No caso extremo dos livros-objetos, poderia ser mencionada
a inspiração nos brinquedos, nos baralhos, nas réguas de cálculo, nos jogos infanto-
juvenis de mesa, nas roletas, etc. Mas nas publicações mais discretas o caráter lúdico
também se manifesta, em intensidades variáveis. É geralmente rara a possibilidade do
usuário de uma publicação ser um verdadeiro e efetivo ator, agente ou personagem de
158
um exercício sistêmico proposto. É mais provável que isso ocorra em plano metafórico,
a peça em uso assumindo função de determinação de uma prática, como bula prescritiva
ou como roteiro. O mercado oferece bibliografia para isso, obras que transportam pre-
ceitos habitualmente comuns às apostilas didáticas, aos livros de receitas, aos manuais
de utilização, aos roteiros teatrais, aos storyboards, etc. Pode ser mais confortável “assis-
tir” em casa a uma performance já acontecida, onde o personagem é o outro. Mas nesses
casos um livro não é exatamente o documento original, mas seu processamento. Não
apenas o veicula como o utiliza, com vistas ao fato ou à ficção. Sobretudo poderá medi-
ar a documentação da obra, situação em que se posicionará como meio integrante de
um processo narrativo que já estava iniciado e concluído antes de sua publicação ou que
se efetivará após a relação abstrata estabelecida entre ele e seu usuário vedor ou leitor.
Na sua função documental o livro registra uma ação ocorrida, muitas vezes demons-
trando como foi o seu passo-a-passo, com método e distanciamento, ou com
dramaticidade, lirismo, humor, ou como farsa. O artista pode ou não estabelecer as
regras ou procedimentos a serem seguidos. E pode convidar “agora é a sua vez”, seja
para uma vivência de fato da experiência, seja idealmente, fantasiosamente. Por isso, em
muitos desses casos o documentário encontrará a ficção.
Veja-se em respeito ao que foi dito as publicações associadas a performances
e ações em geral. Allan Kaprow em Pose, 1970, oferece um envelope pardo conten-
do impressos avulsos de papel branco razoavelmente mais pesado, 20 x 27,4cm se-
melhantes a cartazetes (ou charts). São sete folhas com imagens fotográficas mos-
trando conhecidos ou o próprio artista, fazendo-se posar sentados numa cadeira. A
ação segue procedimentos levados a cabo pela cidade de Berkeley ou arredores em
22 e 23 de março de 1969, tendo como eventos o estar sentado em determinado
momento, fotografar a “pose”, deixar foto no local e prosseguir. O local pode ser
tolo (como numa calcada da rua ou num pátio de estacionamento) ou insólito (em
cima de um vagão de trem ou sobre os galhos uma árvore). Em Satisfaction, 1976,
formato equivalente, mas uma publicação grampeada, Kaprow propõe uma “ativi-
dade” baseada em quatro situações ou cenas em que dois homens e duas mulheres
representam ocorrências mínimas de relações humanas, como indagar, pedir aten-
ção ou solicitar atitudes.
159
Allan Kaprow, Pose, 1970
Allan Kaprow, Satisfaction, 1976.
160
C e D (com A e B) dizendo para A:
elogie B
(ou)
olhe para B
(ou)
conforte B
mostrar como
[...]
C e D, repetindo o pedido
ou escolhendo outro
A, respondendo
consentindo ou não
C e D, aceitando ou negando com a cabeça
até as opções estarem exauridas
(Allan Kaprow, Satisfaction, 1976, p. 6)
Os textos estão nas páginas da esquerda e fotos ilustrando as ações propostas
estão na da direita. No final há um artigo de Kapprow com duas páginas onde apre-
senta ou explica o trabalho, “um programa de lances estereotipados em que eles [as
quatro pessoas] podem receber e dar atenção”. Ele acredita que nossa necessidade de
certa quantidade de atenção constante determina que “um tipo de economia do reco-
nhecimento está envolvido, um tipo de comércio de trocas, usualmente com motivo
de lucro em que “gostaríamos (inconscientemente é claro) de obter mais do que
damos”. A publicação também informa que para a realização das performances propos-
tas foram utilizados quatro grupos de quatro pessoas em ambientes do seu dia-a-dia,
em Nova Iorque, abril de 1976.
Como acabamento gráfico de baixo custo, as soluções de apresentar um tra-
balho em folhas soltas ou com grampos a cavalo (grampos no vinco do caderno)
satisfazem os orçamentos menos ousados. Podem também servir aos propósitos
temáticos. Também o tamanho do volume pode variar muito, por causa da quantida-
de de fôlego envolvido na obra, por causa da estratégia de comunicação, ou – como
de praxe – devido às efetivas possibilidades financeiras. Artistas jovens e com pouco
dinheiro procurarão materializar suas poéticas conforme o que o próprio bolso e os
161
patrocínios permitirem (minguados, com freqüência). Já grandes nomes serão a
mesmo especialmente convidados aos grandes projetos editoriais. Pequeninos e de
poucas páginas são o colorido Irmãs, 2003, de Cinthia Marcelle e Marilá Dardot (so-
brenomes omitidos no trabalho), e o monocromático Para preencher um buraco, 2004, de
Mariana Silva da Silva, com projeto gráfico de Glaucis de Morais. No primeiro, as
artistas registram o ato de colocar sob um ipê-amarelo (árvore típica do Brasil, de
muito bonita e rápida floração) flores róseas de papel crepom, e sob um ipê-roxo
(variedade com floração rósea ou violácea), falsas flores amarelas, trocando, assim, ou
comungando, os cromatismos. Cada artista veste uma camiseta apropriadamente na
cor oposta às flores de papel que carregam em mochilas de plástico transparente.
Uma das páginas ainda instrui rapidamente, em quatro passos, como fazer flores de
ipê em papel. Também é muito simples a proposta original de 2002 para a execução
do segundo livreto. Este é em preto-e-branco, também apoiado em registros fotográ-
ficos. A artista realizou pequenas caminhadas por algumas ruas de sua cidade. Nos
seus trajetos localizou frestas, orifícios ou rachaduras que por qualquer motivo a in-
teressavam, geralmente em muros e paredes. Essas cavidades eram, então, preenchi-
das com tufos de algodão. As fotos são o antes e depois: buraco vazio, buraco cheio.
Como o primeiro livro, esse também nasceu de gestos simples e produções viáveis.
Cinthia Marcelle
e Marilá Dardot,
Irmãs, 2003.
Mariana Silva da Silva, Para preencher um buraco, 2004 (projeto gráfico de Glaucis de Morais).
162
Um exemplo de lado bem-
aquinhoado dessa situação é Then & now,
de Ruscha, 2005. Num volume horizon-
tal de grande formato (45 x 32,5cm, 152
páginas), com subtítulo “Ed Ruscha
Hollywood Boulevard 1973-2004”, é en-
cadernado e oferecido pela editora ale-
mã Steidl dentro de um cartucho
cartonado – a edição para o grande pú-
blico (existe uma edição para colecionadores, de luxo). A proposta é da ordem do
espetáculo: refazer um ensaio fotográfico realizado quase 31 anos antes, em 8 de
julho de 1973, desta vez em 5 de junho de 2004. O grupo envolvido no trabalho
sairia, em veículo, fotografando as fachadas do Hollywood Boulevard em toda sua
extensão de mais de 19 quilômetros, primeiro em rumo leste (na mão do trânsito,
ou o sentido ocidental de leitura) o lado norte da esquina com Sunset Plaza Drive
até a esquina da Hillhurst Avenue e, rumo oeste, fotografando o lado sul, da esqui-
na oposta, onde se une com West Sunset Boulevard., de volta até a Hillhurst.
Pelo menos durante cinco anos, até 1979, Ruscha teria tirado seqüências
fotográficas em preto-e-branco do Sunset Boulevard em movimento lateral, dentro
do possível contínuo, geralmente em manhãs de domingo (conforme conversa com
Trina Mitchum para o Los Angeles Institute of Contemporary Art Journal, republicada
em Ruscha, 2002, p. 85). Mas em entrevista dada para Siri Engberg em 1998
(publicada no ano seguinte em Art on Paper), informou ainda fazer fotos da via “a
cada, em média, dois ou três anos”, para algum uso futuro (p. 369). A câmera era
montada em tripé sobre uma picape que percorria o trajeto de ponta a ponta e
retornava (em 1973 foi usado uma bobina de filme contínuo 35mm com 10 metros
de comprimento). Em 2003 foi elaborada uma tomada digital do trajeto que servi-
ria de guião para a seqüência de 2004, esta novamente analógica, com equipamento
35mm como antes. A tomada original obteve 4.500 fotos e a última 13.000 fotos,
desta vez coloridas. Ambas as seqüências foram digitalizadas, formando as quatro
fitas panorâmicas.
Edward Ruscha, Then & now, 2005.
163
O diagrama de página é estruturado em quatro faixas paralelas das fotos ob-
tidas no trajeto e emendadas digitalmente umas às outras em fitas constantes de 4,8cm.
A primeira faixa fotográfica, do passado, é em preto-e-branco. A segunda, de 2004, é
colorida. Elas atravessam as páginas horizontalmente e prosseguem nas seguintes. São
sincronizadas espacialmente (se acima está um determinado segmento de rua, embai-
xo está o mesmo seguimento, fotografado agora). As outras duas faixas são equiva-
lentes às primeiras, porém de cabeça para baixo, colocando frente a frente os dois
lados da rua. Ou seja, para se ver o outro lado, é preciso virar o livro. Caso pudésse-
mos esticar uma dessas faixas inteiramente, teríamos uma foto em fita de mais de 60
metros de comprimento.
Como em projetos anteriores, temos um trecho de Los Angeles, uma amostra
de seus prédios baixos que conseguem, por causa da característica arquitetura insípida,
constituir uma identidade banalizada que veio a se tornar de relativamente fácil reco-
nhecimento. Ali estão suas palmeiras, quase os únicos sinais verticais de pontuação ur-
bana. No cinema chinês quase nada mudou, salvo a faixa etária do herói inglês, antes o
Edward Ruscha, Then & now, 2005.
164
James Bond de Live and let die, agora um dos Harry Potter. Uma grande rede internacional
de perfumarias construiu uma grande loja. O estabelecimento que vendia frango frito
continua por ali, mas agora com uma roupagem internacionalizada e enfrentando a con-
corrência de um peso-pesado dos hambúrgueres. Curiosamente alguns espaços estão
ainda mais vazios devido à instalação de novos estacionamentos. Passado tanto tempo, a
coincidência de, em frente a uma residência que se manteve inalterada, encontrarmos
um motor home outra vez estacionado em frente, mas desta vez um modelo maior. Para a
versão de 1973, além de conceber e planejar o projeto, Ruscha foi o fotógrafo. Na ver-
são de agora ele ainda assume a concepção e o planejamento, além do próprio projeto
gráfico do livro, mas não mais fotografa, tarefa que ficou a cargo de Hans Grunert.
Antes o veículo era dirigido por Paul Ruscha (irmão cinco anos mais novo), agora é por
Greg Heine; Paul passou a consultor do projeto. E somam-se Gary Regester (coordena-
ção de projeto), Jonas Wettre (documentação e edição digital), Gerhard Steidl (coorde-
nação de editoração) e Jessica Nesmith (estudos digitais preliminares). Este um dado
Edward Ruscha, Then & now, 2005. Detalhe.
165
importante, a ser discutido: por causa do foco necessário à produção da obra amparada
em muitas variáveis técnicas, o retorno da participação profissional organizada, como
nos ateliês de séculos atrás, mas desta vez creditada.
Como curiosidade mesquinha, vale informar que o exemplar do livro não era
vendido por um preço que se possa chamar de barato, mas justificado. Foi (ou ainda
é) comercializado a um valor mais ou menos acessível, tendo em vista sua alta quali-
dade gráfica, por 120 euros (e sua primeira edição já estava esgotada antes mesmo da
conclusão desta pesquisa). O projeto incluiu uma versão de luxo, uma edição especial
de dez cópias numeradas e assinadas, composta por um conjunto de 142 provas avul-
sas com impressão fotográfico-digital (C-print) de 70 x 100cm cada, armazenadas em
estojo de madeira feito a mão (75,8 x 104,5 x 8,6cm). O preço do exemplar está dis-
tante dos preceitos do início da carreira de Ruscha: 55 mil libras, 80 mil euros ou 109
mil dólares (informações obtidas do sítio da editora na internet, meados de 2007).
Também como curiosidade, seu antecessor Sunset Strip era vendido, na época de seu
lançamento, por 7,50 dólares. E o então responsável por sua resenha em Artforum
ironizava, mencionando o então considerado estranhíssimo Various small fires and milk,
1964: “Os participantes dessa aventura bizarra (esse pequeno grupo que ‘coleciona’
os livros) apesar disso aguardam a publicação de cada livro com um deleite que é tão
inexplicável quanto os próprios livros. Every building on the Sunset Strip é o mais elabo-
rado dos livros até agora. Algum dia por volta de 1984 Son of [O filho de ] Various
Small Fires provavelmente será um best-seller. (Artforum, 1967, v.5, n.7, p.66)
Se o livro pode ser interpretado como um exemplo bem-sucedido de “antes e
depois” no convívio com os custos e as dificuldades de execução de projetos, ele é de
fato mais que isso. Como o título sugere, ele é, sim, um então e agora, mas uma retoma-
da de proposta estética, mas repaginada pelas condições de excepcionalidade. Arte e
empreendimento, ambos confundidos na carreira de Ruscha, com Then & now os edito-
res ofereceram uma nova conclusão de projeto, a possibilidade de produção de um tra-
balho integral e autônomo. Um trabalho que, sem dúvida, oferece uma releitura, ou um
tipo enviesado de “reedição” que não substitui, mas convive com aquele que foi seu
honroso antepassado, o livro Every building on the Sunset Strip, 1966, como o título está no
rosto, ou apenas The Sunset Strip, como está na capa.. Essa “cabriola visual”, como ele
166
mesmo chama (Ruscha, 2002, p. 52),
foi reeditada em 1971 (precedida de
uma possível reimpressão em 1969,
segundo Engberg e Phillpot, 1999,
vol. 2, p. 124). A peça, quando fe-
chada, mede ao redor de 14,4cm de
largura por 18cm de altura e 0,6cm
de espessura, um tamanho discreto,
semelhante aos títulos anteriores de
Ruscha. É constituída de uma longa
tira em sanfona, em papel cuchê, formada por nove seguimentos colados, totalizando
uma única e muito longa página de aproximadamente 17,8cm de altura que, esticada,
alcança os 7,60 metros. Dobrada, ela é colada à extremidade esquerda da capa (branca,
com o título prateado The Sunset Strip) por um de seus lados e acondicionada em caixa
de cartão com revestimento prateado.
Edward Ruscha, Every building on the Sunset Strip, 1966.
Edward Ruscha, Every building on the Sunset Strip, 1966.
167
Edward Ruscha, Every building on the Sunset Strip, 1966.
Edward Ruscha, Every building on the Sunset Strip, 1966. Detalhe.
168
Detalhe da exposição Ed Ruscha Photographe, Jeu de Paume, Paris, 31 de janeiro a 30 de abril.
Na vitrine, Every building on the Sunset Strip, 1966; na parede, seguimento da arte-final do livro.
169
As fotos foram obtidas pelo processo já mencionado, seguindo uma rigorosa
seqüência, mas unidas por colagem em diversas artes-finais. Duas panorâmicas (faixas
de fotos) atravessam o livro de uma ponta à outra, uma abaixo da outra, frente a
frente (uma, portanto, de cabeça para baixo). Os cruzamentos com outras vias e a
numeração da rua estão registrados junto às imagens, abaixo delas. Naturalmente as
fotos nem sempre se ajustam de modo perfeito devido à decalagem entre uma toma-
da e outra. Assim, um automóvel pode estar passando numa foto, mas sua outra me-
tade, em outra, pode estar desaparecida (e essa é uma qualidade enriquecedora). As
fachadas desfilam em silêncio, como numa rua de faroeste: “O plano de uma frente
de loja numa cidade de faroeste é apenas papel e tudo atrás dele é apenas nada” (Ruscha,
2002, p. 43, antes citado em Art News, abril 1972). Na frente do número 8844 está
parte de um letreiro luminoso inacabado (ou ainda não desmanchado), com um soli-
tário “The”, um de tantos sinais visíveis que puxam o cenário para o presente (o que
encanta o artista, como ele comenta em vídeo que acompanhava a exposição itinerante
Ed Ruscha Photographer, 2005-2006).
Phillpot informa que The Sunset Strip atendeu uma ambição antiga de Ruscha,
como ele revela em uma entrevista publicada em 1976: quando garoto “eu entregava
jornais pedalando minha bicicleta junto com meu cachorro [...] sonhava em fazer um
modelo de todas as casas naquela rota, um modelo pequenino, mas detalhado, que eu
pudesse estudar como um arquiteto, debruçado sobre uma mesa e plotando uma ci-
dade” (Engberg e Phillpot, 1999, vol. 2, p. 67).
Memorial da fatura
É preciso notar que nos casos mencionados os processos envolvidos na sua
produção deixam-se adivinhar na própria obra, ou mesmo se oferecem diretamente aos
nossos olhos, transparecendo sua “artesanalidade” apesar dela ser um múltiplo industri-
al (ou semi-industrial). Isso ajuda a gerar sua própria história, a história de sua própria
situação, história que passa a acompanhá-la, como acompanharia uma peça única. Num
intervalo de tempo dilatado, que começa de poucas semanas a muitos anos antes da fase
170
editorial e provavelmente se completa pela colocação do livro em circulação, toda uma
reputação (aquilo que atribui o memorável) pode se desenvolver e se estabelecer. Exis-
tem exemplos tanto de prescrições quanto de descrições dos processos gficos, e al-
guns são clássicos. Veja-se a esse respeito, pelo lado de quem cria, 246 little clouds, de
Dieter Roth, comentado em outra parte deste trabalho, em que o artista deixa registradas
no próprio livro, como se fosse um posfácio, as etapas necessárias a serem seguidas
durante a imposição, a gravação de chapas e a impressão do trabalho.
Pelo ponto de vista do editor, note-se, por exemplo, a contribuição de Gerhard
Steidl para o catálogo The open book, um grupo de fotos documentando a pré-produ-
ção de Storylines, de Robert Frank, em Göttingen, Alemanha, setembro de 2004. Mes-
mo sendo uma estratégia mercadológica, tal relato tem pertinência por causa da
fisicalidade envolvida. Tal tipo de interesse pode ser desinteressadamente vinculado à
artisticidade do projeto, mas agrega um histórico à peça, um valor simbólico aprecia-
do por bibliófilos. Entre os não especialistas, poucos parecem se preocupar pela vida
prévia de um volume literário. Até pode ser que se interessem pelas dores que o escritou
viveu enquanto martelava no teclado, seus dilemas existenciais, etc. Mas pela fatura
gfico-empresarial de um romance (ou o equivalente), quase ninguém, apenas os pou-
cos curiosos. Para a arte do livro que se propõe a ser de artista, ao contrário, porque a
aura (a despeito de Benjamin) o acompanha e agrega valor, o histórico fabril poderá
se auto-solicitar, também, como espetáculo.
Sobre escolha de capa, que muitos consideram como um ponto nevrálgico,
veja-se o artigo “Cover story” (publicado em Fusco e Hunt, orgs., 2004, p. 19-31). O
caso não diz respeito a livros de artista, mas sim à edição independente em geral, aqui
representada por um periódico profissional que também circula em mercados alter-
nativos. O artigo traz a transcrição “severamente editada” de discussões para a esco-
lha da capa para a revista trimestral de arte e cultura Cabinet, edição de outono de
2003 e inverno 2004, distribuída nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, que já
estava atrasada. Os números eram temáticos: Childhood (infância), Property (proprieda-
de), Evil (mal). Esta seria Enemy (inimigo). A conversa na reunião dos cinco editores
passou por um imaginário que incluía uma cena de balé com soldadas chinesas, Hegel,
sombras, Taliban, propaganda da Segunda Guerra, racismo, etc. Tudo para tão racio-
171
nalmente quanto possível chegar a escolha final, uma capa que, segundo estatísticas
de comercialização do maior distribuidor da revista, teria sido a responsável direta
pela abrupta redução de exemplares vendidos. “Os números mostraram uma queda
de setenta e cinco por cento em vendas em bancas de jornais comparada à edição
anterior. De acordo com nosso distribuidor, a redução foi atribuída somente à capa
sombria e monocromática” (p. 28).
Pode-se ainda localizar uma mistura entre guia e relato de trabalhos nos ma-
nuais de Keith Smith, tratados pelo artista autor como fazendo parte de uma série
contínua voltada para as artes (e a arte) do livro. Como vade-mécuns para jovens
artistas, sua função é reconhecida. Ele planeja, escreve, projeta, editora e publica seus
livros, ocupando as tarefas de ponta a ponta. Os temas enfocados vão desde a aplica-
ção das técnicas de encadernação até comentários sobre a própria produção, tudo
sempre voltado para a construção do livro visual. No texto da contracapa de Text in
the book format, 1989, ele resume: “O compasso de andamento de um livro é a sincro-
nização ou sincopação do conteúdo com o folhear”. Sobre a ordenação funcional das
páginas e de seu conteúdo legível indica os processos básicos: encaminhamento dire-
to (“contexto é o meio de construir referência dirigida”) ou randômico (“associação
livre feita pelo leitor, como o relacionamento ou interação de uma parte do texto com
outra, ou além”); e referência contígua (conjuntiva, “encaminhamento direto feito de
uma unidade gramatical para a seguinte”) ou contingente (“movimento de uma pala-
vra, locução, sentença, parágrafo ou idéia particulares para outro que não é adjacen-
te”). Tudo isso implicando uma resposta daquele que vê ou lê: leitura randômica (“o
desvio escolhido pelo leitor”), exame visual (viewing) consecutivo (seguindo uma “rota
principal”) e não consecutivo (“a rota alternativa”), e variações, como a leitura inte-
gral não abreviada, por sobreposição, etc. (p. 61-84).
É possível que o manual de maior sucesso de Smith seja Structure of the visual
book, 1984, que parece estar nas prateleiras de todos que se iniciam nessa área, artistas
ou artesãos. Cresce com o tempo e a auto-revisão. Insiste que o ato de “contar histó-
rias” pode ser uma estrutura e “é uma forma de arte paralela ao formato do livro
(Smith, 2005, p. 347). Mas, mais de vinte anos depois da primeira edição, corrige seu
ímpeto inicial.
172
[...] O parágrafo acima é da primeira edição [...]. Eu ainda acredito que entender
um livro em branco [“blank book”, vazio] é chave para dominar a feitura de livros.
Mas a primeira metade da primeira sentença [“Qualquer um pode fazer um livro
vazio, mas eles podem compreendê-lo?”] é nonsense. Rara, sem dúvida muito rara,
a pessoa que pode fazer um livro vazio que seja uma obra de arte. (Smith, 2005,
p.398)
Smith prossegue, indicando como bons exemplos a obra de Gary Frost, Hedi
Kyle e outros.
Quando a paginação resultante é concretamente percebida como elemento
ativo, é possível não somente ler, mas perceber, pela ação de virar as páginas, a memó-
ria da invenção e pré-produção de forma e conteúdo. Essas informações podem se
evidenciar com sutileza (deixar-se pressentir pela imaginação ou por nossas próprias
deduções e a construção de modelos mentais) ou diretamente (anunciar-se claramen-
te, através de fotos, documentos ou metalinguagem), até mesmo com espalhafato (o
que é mais freqüente em livros únicos, escultóricos, metafóricos de si mesmos). “Olha
só o livro que eu me tornei” parecem dizer, por exemplo, os volumes com exercícios
figurativamente cinemáticos e cinematográficos.
foi mencionado, neste e em muitos trabalhos, que o componente cinema-
togfico é um fertilizante praticamente indefectível do ato de folhear como instru-
mento de construção da obra. O processo de narrar por meio de palavras e mesmo
por meio de imagens será substituído por acontecimentos gráficos visuais encadea-
dos. Narrativa visual é um sinônimo de exposição explanatória plástica, aqui uma apre-
sentação organizada em momentos estáticos mais ou menos seqüenciais, dentro de
um período de tempo sugerido ou induzido, mesmo que minimamente, pelas caracte-
rísticas inerentes à obra ou pelas estratégias retóricas do artista autor.
Basta um elemento inquieto (um ponto, uma linha, uma mancha) mais o ges-
to de folhear para a construção do efeito cinemático. Em La ascensión, do argentino
Jorge Macchi, 2005, publicado nos Estados Unidos, as linhas negras das pautas de um
caderno para música despregam-se dos pentagramas que compõem e elevam-se, pri-
meiro uma, depois outra, para unir-se, como se magnetizadas, na margem superior da
página. Em Tikkuja/Sticks, de Jussi Soininen, 1994, impresso em Helsinque, com pá-
173
ginas de papel branco, a partir de um ponto um pouco à direita e acima do centro da
página (de todas as páginas) parte uma curta linha preta para um lado, depois para
outro, e depois outro, mas sempre apenas uma. Na 19ª ocorrência passa a ser uma
linha quebrada em dois seguimentos, experimentando, também do mesmo ponto, as
diversas possibilidades de direção. A partir da 52ª, passam a ser três seguimentos. E
assim por diante até doze seções de linha. As figuras estão nas páginas da direita e nas
da esquerda estão os números correspondentes (1 a 176; total geral de páginas: 360).
Esses dois casos são simples, diretos, básicos: o ponto, a linha. O passo a
mais é a formação da trama, como no volume 3 da obra completa de Roth, Gesammelte
werke: band 3, ou Collected works, volume 3, de 1973, que reúne as versões anteriores dos
livros Bok 2a (que teve tiragem de apenas 35 cópias) e Bok 2b (com 100 exemplares),
respectivamente 1960 e 1961, ambos com páginas unidas por espiral, publicados em
Reykjavik. Todas as edições foram produzidas em tipografia e pelo menos o primeiro
foi impresso diretamente por Roth. Para a reedição, com tiragem de 1000 brochuras,
alguns ajustes foram necessários, como a redução das tramas do segundo livro, que
era pouco maior. Em Volume 3 (ou nos outros citados) um padrão de linhas pretas
Jorge Macchi, La ascensión, 2005.
Jussi Soininen, Tikkuja/Sticks, 1994.
174
Dieter Roth, Gesammelte werke: band 3 (ou Collected works, volume 3), 1973.
175
tracejadas ortogonalmente vai preenchendo um espaço quadrado na página (a man-
cha de impressão) em camadas que se acumulam progressivamente formando tramas
ou grelhas cada vez mais espessas e produzindo, assim, a ilusão de quase criar superfí-
cies. Trata-se de uma solução visual concreta, estreitamente vinculada à retórica visual
abstrata da op art. Um possível particular é a marca da ação do artista, que pode ser
adivinhado a girar papéis ou ramas tipogficas. O procedimento exige mobilidade
intrínseca ou extrínseca à produção gráfica, depositada no sujeito impressor. O volu-
me resultante, uma brochura de tamanho regular (como de resto todos os volumes da
coleção), é aparentemente comum. Porém, sutilmente ao nosso olhar e ao tato, o pa-
pel tem memorizada a marca do processo envolvido: a pressão da máquina, quase
uma tatuagem.
O cinema de dedo
Se o expediente da sugestão de animação gráfica é parte integrante de um
respeitável contingente de publicações, o que dizer então da animação “cinematográ-
fica” (entre aspas, claro) proposta pelos livretos conhecidos como flip books? Verbo
inglês, to flip é atirar para o ar ou virar rapidamente com um movimento ágil, brusco,
com uma sacudidela, com um piparote. Como uma panqueca, uma carta de baralho,
uma moeda, um acrobata. E to flip through ou to flip over é dar uma folheada ou olhadela
rápida nas páginas de um livro de uma revista, o que melhor demonstra o movimento
de manuseio envolvido. Os flip books também podem ser chamados de flick book, onde
to flick significa golpear de leve, esvoaçar, sacudir, bruxulear, mover-se rapidamente;
como gíria, é um filme de cinema. Em alemão é Daumenkino, cinema pelo dedo pole-
gar. É curiosidade antiga, que faz parte das primeiras experiências cinematográficas,
tendo sido patenteado na metade do século XIX, em uma de suas primeiras versões,
como kineograph. Os flip books são quase sempre pequenos como um maço de cigarros,
o usuário segura o exemplar com uma das mãos e com a outra usa o polegar para
reter as páginas, que serão curvadas em tensão para que se soltem e passem raptamente
sob nosso olhar. A ação permitirá, com o efeito cinemático e a continuidade óptica
176
(persistência retiniana), a emulação de um resultado “cinematográfico”. Em geral tem
apenas um conflito desenrolado numa única cena. Qualquer ampliação dessa premis-
sa envolverá um aumento significativo de páginas e uma dificuldade crescente no ma-
nuseio. Buscam a resolução da cena através do anedótico: uma cobra come a própria
cauda até desaparecer. Por serem peças simpáticas, pequeninas e baratas são fáceis de
encontrar em lojinhas de museus.
Por causa de suas soluções narrativas um tanto primárias, para fins artísticos
tendem a ser ou a parecer tolos. Os “folioscópios” (folioscopes), como Moeglin-Delcroix
os denomina, serão livros de artista se este, “dentre as possibilidades variadas ofertadas
pelo meio do livro, escolhe esta do livro animado como a mais apropriada ao seu
projeto” (“Auge und Hand”, em Dalmenkino, 2005, p. 156-166; traduções a partir do
artigo original em francês, cedido pela autora). Ela reforça a natureza seqüencial do
livro, como no Mirror box de Ulises Carrión, 1979, em que ele buscaria “estabelecer
um vínculo orgânico entre a seqüência material das páginas e a natureza temporal de
seu conteúdo narrativo”. Ressalta, contudo, que o aspecto de meio “ordinário” está
associado à instauração da categoria desde os anos 60, principalmente associado à
amplitude de distribuição. Destaca trabalhos de Gilbert & George (“Oh, the grand old
Duke of York”: Gilbert & George, the Sculptors, peça para exposição no Kunstmuseum
Luzern, 1972), Emmet Williams (Sweethearts, 1967), Jan Voss (200 virages serrés, 1988), e
alguns livros recentes, como de Jonathan Monk (Comic book, 1999) ou de Tacita Dean
(The green ray, 2003), e alguns outros, ressalvando que muitos artistas não seriam “par-
ticularmente conscientes da fisicalidade do livro e das condições concretas da leitu-
ra”, apesar da afinidade dos flip books com o filme, o vídeo, a seqüência fotogfica e a
performance. Oportunamente, Moeglin-Delcroix lembra os esforços de Maciunas para
que os artistas do seu grupo produzissem flip books (que para ele eram book events, ou
“eventos livros”) para as caixas Fluxus, por causa de sua condição lúdica. E finaliza
notando que em certos casos um leitor veloz no folhear poderia revelar flip books aci-
dentais ou involuntários, como Leggere, 1972, de Giovanni Anselmo.
Aos títulos precedentes pode-se ainda fazer um acréscimo, Real Lush, de Kevin
Osborn, 1981. É um livro de formato um pouco maior do que a média dos seus
congêneres. Cada página mede 9,5cm de altura por 14,0cm de largura, sendo encader-
177
nadas com uma lombada inclinada (formando com a capa um ângulo agudo e um
obtuso), mantida com dois pinos tipo parafuso, compondo um paralelepípedo com
duas faces oblíquas, visando facilitar o manuseio (o formato real resulta em 9,5 x 16,0
x 4,9cm). Mesmo assim o uso é um pouco dificultado pela união de mais de 300
fólios (ou acima de 600 páginas), fazendo dele um volume bastante grosso. A capa é
em cartão vermelho escuro com título impresso em metálico azul. As páginas iniciais
e finais são prateadas, com textos em magenta. No verso das folhas há o desenho de
uma ilha em curvas de nível, cujos traços aparecem ou desaparecem de folha para
folha. As páginas são coloridas, chegando a ter uma dúzia de impressões (Lyons, p.
128). Além das próprias qualidades, o flip book de Osborn está especialmente associa-
do ao estabelecimento conceitual da categoria. Ele foi tema de resenha de Clive Phillpot,
na época diretor da biblioteca do MoMA, para a revista Artforum de maio de 1982.
Seu artigo tornou-se capital por causa das explicações a propósito da constituição dos
livros de artista e seu campo, formado basicamente por livros-objetos, livros-obras ou
apenas livros, os dois primeiros pertencentes exclusivamente ao mundo da arte. O
diagrama de Phillpot reproduzido na revista, com dois círculos e um hexágono, aca-
bou se tornando um lugar-comum na bibliografia sobre o assunto.
O artista informa que Real lush é “uma novela visual de velocidade variável,
de repetição, relato, projeção e recordação” (Bury, 1995, p. 122). O todo é dividido
em seqüências narrativas menores. A “animação” funciona especialmente bem em
alguns grupos narrativos, como por exemplo, ao final, os corredores sobre o peixe,
com o ferro de passar. Certas imagens são recorrentes e “costuram” as cenas, unifi-
cando o ritmo total: a seqüência de luta romana em imagens pequeninas no canto
inferior direito de todas as páginas do miolo; ou as idas e vindas de figuras como os
corredores, a pistola, o peixe (imagem recortada, incluindo os dedos de quem o segu-
rava), uma gaivota (que retorna para encerrar o livro, saindo de cena). Também sur-
gem alguns fragmentos textuais, fazendo referências inconclusas a sensações ou vín-
culos afetivos. As imagens e as sobreimpressões são muitas e o ruído visual é crescen-
te no decorrer do trabalho.
As folhas inicial e final (que fazem as vezes de guardas) trazem reproduções
de páginas de um livro de 1499, Hypnerotomachia Poliphili, “batalha de amor em sonho
178
Kevin Osborn, Real Lush, 1981. Acervo da Bibliothèque Kandinsky, Centre Pompidou, Paris.
179
de Polífilo”, atribuído ao dominicano Francesco Colonna, impresso por Aldo Manuzio
(Aldus Manutius) em Veneza (textos em vários idiomas arcaicos, e com xilogravuras
do Mestre do Sonho de Polífilo), que narra a busca de Polífilo, em sonho, por sua
amada Polia, uma série de incidentes, seu encontro e o desaparecimento de Polia quando
Polífilo é acordado por um rouxinol. A imagem mostrada é de Polífilo sob uma árvo-
re a dormir. As seqüências de Osborn seriam, assim, nada mais que narrativas visuais
de representações oníricas; ou: seu livro, ciente de sua compleição e do seu
“enquadramento”, buscaria um laço com aquele que é considerado um divisor de
águas da história do livro e da harmonia de página, marco da transição entre Idade
Média e Renascimento. Ou talvez as duas coisas. Ao contrário, portanto, da média
nuclear e singela dessa forma específica de publicação, Real Lush chega a sugerir a
marca de um esforço algo rococó e rocambolesco, ajudando a anunciar o bookism ou
librismo dos anos 80, período com elevado grau de fetichismo relacionado à área. Pre-
serva-se porque preserva a abertura a interpretações.
É provel, apesar das exceções notáveis, que os flip books mais interessantes
sejam mesmo aqueles que atendem necessidades artísticas pares com a simplicidade
de suas qualidades: a cena rápida, um único evento narrativo, um único conflito. No
aspecto pragmático, que atenda à portabilidade, ao baixo custo de produção, ao baixo
preço de comercialização. E sobretudo que se identifique com a evidente banalidade
do meio. Por isso, entre nomes mais ou menos
formalistas, ainda têm melhores resultados os
que riem de si mesmo. Um livreto como os de
Gilbert & George servirá com adequação às
características performativas e aparentemente
vazias dos artistas, geralmente bem adaptadas
em material promocional de todos os tipos, es-
pecialmente gráficos. Um livreto como Somerset
House, 2002, se extinguirá rapidamente sem pra-
ticamente nada mostrar de importância. Os dois
apenas parecem esboçar uma conversa ou pe-
quenos gestos de cortesia. Não parece haver
Gilbert & George, Somerset House, 2002.
180
Gilbert & George, Somerset House, 2002.
181
contradição em gerar animação barata para
mostrar só isso. O pequenino flip book será um
agregador a mais da “cadeia de notoriedade” e
memorabilia mercadológica em permanente
construção, um “facilitador” artístico. Cumprirá
com brio uma função institucional inesperada-
mente de luxo.
Mesmo pequeninos e imediatos, ou
por causa disso, os “folioscópios” seguem em
circulação, oferecendo uma extensão à obra dos
artistas. Laercio Redondo e Birger Lipinski com
o nada infantil Final cut, 2004 (e no mesmo ano
premiado em competição internacional do gê-
nero em Stuttgart), que faz do usuário um per-
sonagem, através do perigo de se cortar nas laminas de barbear que o compõem (a
caixinha plástica que o embala avisa: “Flip this book at own risk”, alertando que o
risco ao folhear será de quem o manuseia). E Lucia Koch também se vale de um flip
book, este com seqüência fotográfica, como uma ferramenta a mais para demonstrar
sua instalação montada na II Bienal do Mercosul, em 1999 (a partir do movimento da
incidência da luz do poente através de filmes coloridos colocados numa janela de
antigo galpão do cais de Porto Alegre, infelizmente destruído por incêndio). O gabine-
te, com grande tiragem, foi encartado na edição de setembro de 2001 da revista Bravo
(dentro do seu projeto Inserções), para distribuição nacional em bancas de revistas.
Outras sugestões de temporalização
Apesar da explícita relação mecânica dos flip books com a percepção de
motilidade, seu problema é o tempo rápido em que expressão artística se esgota.
Como no cinema, a obra se constitui dentro de um intervalo de tempo (embora o
conjunto de relações exógenas criadas pela fisicalidade do volume seja um fato que
Lucia Koch, O gabinete, 2001.
182
parece incontestável). Para contemplação e leitura pro-
longadas, melhor será procurarmos trabalhos menos afo-
bados, mais serenos, com maior complexidade
compositiva, em que possamos virar as páginas no tem-
po que nos aprazer e assim, pondo um pouco de lado a
persistência da memória retiniana, buscar a memória in-
telectual e a reconstrução arbitrária do tempo narrado e
da emoção sintática. Em trabalhos “mais lentos” se pode
desfrutar melhor a semantização da seqüência visual e seu
aporte narrativo.
Os livros de Telfer Stokes e Helen Douglas de-
monstram bem essa qualidade. São em sua maior parte
obras mestras da impressão ofsete combinada com o uso
da fotografia, simples brochuras, mas com um elevado
cuidado de acabamento (as edições são executadas nas
oficinas próprias na Inglaterra, os mais antigos, ou na Es-
cócia, parte sob a marca Weproductions). Movimentamo-
nos com Chinese whispers, 1976, ora para os lados, ora en-
trando nas cenas, eventualmente lendo palavras que não
estão no plano superficial, mas dentro das fotos. A escala
varia, nos engana. Os objetos fotografados crescem e pa-
recem assumir seu tamanho real. A câmera fecha seu ân-
gulo sobre a palavra “bread” (pão), sobre uma lata de pão,
se aproxima em close e reenquadra apenas sobre a seção
“read” da palavra (ler).
Seqüências semelhantes já freqüentavam as obras
anteriores de Stokes, concebidas em exercício solo, como
Helen Douglas e Telfer Stokes, Chinese whispers.
London: Weproductions, 1976.
183
Telfer Stokes e Helen
Douglas, Real fiction: An
enquiry into the bookeresque.
Rochester: Visual Studies
Workshop Press, 1987.
Telfer Stokes,
Young masters and misses.
New York: The Museum
of Modern Art, 1984.
Helen Douglas
e Telfer Stokes, Loophole.
London: Weproductions,
1975.
184
Passage, 1972, Foolscrap, 1974, Spaces, 1974 (com maior senso de movimento do que
os anteriores) e Loophole, 1975 (onde a movimentação se torna ainda mais eloqüen-
te, metaforizando a máquina de costura que aparece nas páginas). Stokes e Douglas
ainda realizariam outros livros juntos: Clinkscale, 1977 (não convencional, destoan-
do com os demais, imita um acordeão); Back to back, 1980 (o primeiro a possuir
texto real, é verbo-visual, descreve uma excursão em terreno montanhoso); Real
fiction, 1987 (“ficção verdadeira”, com o subtítulo An enquiry into the bookeresque, ou,
numa tradução insuficiente, “uma averiguação (dentro) do livresco”, consciente e
reflexivo da própria criação e execução, é quase um meta-livro e seu assunto é ele
mesmo: a ficção é a sua verdade porque é inerente à verdade do livro real); Desire,
1989 (com profusão de cores, “sem uma narrativa única, sem seqüência evidente de
páginas, e sua densidade absoluta combate o próprio desejo do leitor de unificar o
campo complexo de atividade numa obra única”, segundo Drucker, 1995, p. 173);
Water on the border, 1994 (com uma montagem cinemática de efeitos com fotos de
superfície d’água, grafismos e poemas em chinês e escocês).
Alguns de seus livros usam do recurso de estabelecer um clímax gráfico pela
troca do movimento por certa lentidão. Nos seus desenvolvimentos, a complexidade
das narrativas visuais tende a um retorno ao silêncio, à enunciação do final. São ensai-
os “fotobibliogênicos”: exercícios que geram, pela fotografia e pela lógica dos proces-
sos fotomecânicos do ofsete, livros plena e narrativamente fotográficos. Stokes e
Douglas constituem uma dupla exemplar como modelo de artistas voltados preferen-
cialmente para a publicação, colocando o livro e sua edição como prioritários. Seu
corpo de obras é de extrema coerência estética.
Resta um último caso a ser comentado de obra com construção deliberada-
mente pautada pela construção cinemática ou da narração visual pelo registro do
movimento (sem nos esquecermos de uma diferença fenomenológica evidente: que
as imagens seqüenciais em película cinematográfica de fato se interligam
retinianamente em “fusão” umas às outras). Neste caso trata-se de obra com estru-
tura recto-verso, ou seja, a partir do encadeamento narrativo do conteúdo visual de
página ímpar (da direita) com a página par (da esquerda) seguinte (o que é mais
dificultoso e diferente da relação em spread, abertura de página dupla, onde são con-
185
sideradas as tensões narrativas lado a lado).
Livro fundamental para os estudos da catego-
ria, indefectível nos estudos tradicionais, Cover
to cover, foi publicado em 1975, pelo canaden-
se Michael Snow, um artista sempre envolvi-
do com o estudo dos processos criadores.
É um livro de porte médio, com 360
páginas e acabamento comum, totalmente visu-
al, fotográfico e em preto-e-branco. A capa o
ostenta título. Ele está na lombada. Nas capas,
fotos de uma porta. No verso das capas, o verso
da porta. Abrimos o livro e vemos a porta se
abrindo. Cada página virada, par ou ímpar, não
importa, é o prosseguimento de uma cena que
sempre ocupará toda a superfície (sem fólios).
Na primeira seqüência o artista entra na cena.
Aparecem também os dois fotógrafos que o aju-
dam na performance: ambos fotografam Snow,
cada um de um lado. A página da direita mostra
a fotografia obtida no momento mostrado na
página par seguinte. Ou seja, a seqüência narra-
tiva é linear, mas com instantâneos em uma forma adaptada de flashback. Mas isso não
vai muito além. Logo depois as fotos são diretamente tiradas das fotos das fotos. A
fotografia obtida será virada e introduzida numa máquina de escrever. Serão datilografados
os textos do livro para no que seria o rosto, porém já na altura da página 45: “Michael
Snow / COVER TO COVER / Keith Lock – Photography; Vince Sharo – Photography
and prints; The Press of Nova Scotia College of Art and Design, Halifax; with assistance
from the Canada Council; co-published by New York University Press, New York”
(tipicamente canadense, no outro extremo do livro os dados estão em francês). Conti-
nua na página ímpar seguinte com os dados bibliográficos (ISBN, brochura e capa dura,
para Canadá e Estados Unidos, impresso no Canadá).
Michael Snow, Cover to cover, 1975.
Bibliothèque National de France, Paris.
186
Após a seqüência da máquina de escrever, passa-se a cena do toca-discos; é
editada, porque a situação torna impossível dois fotógrafos trabalharem ao mesmo
tempo. Na cena seguinte, da janela (por dentro e por fora), volta-se ao recurso dos
dois fotógrafos. Mas a janela também é a foto da janela (e dá-se o mesmo com a mão
esquerda, e o mesmo com a cabeça de perfil). Snow passa ao exterior. Na caminhada
na rua os fotógrafos reaparecem.
Em outras seqüências as imagens são fotos de fotos, com destaque para as
páginas duplas centrais, onde pode-se “entrever” as páginas anteriores e posterio-
res. Nesta seqüência, Snow tira o carro da garagem, indo para a rua. É quando o
conjunto das fotos centrais começa a girar. Será necessário rodar o livro pouco a
pouco até o volume completar o giro e, então, passamos a folhear o livro “de vol-
ta”. Existe ainda uma seqüência de imagens com o automóvel “borrado” pelo des-
locamento (e talvez seja justamente um momento onde nós, os vedores – que estamos
libertos da leitura textual –, nós passaríamos arbitrariamente a nos apressar no fo-
lhear). Mais adiante, o artista chegará à galeria de arte que, entre as obras em expo-
sição, estará exibindo o próprio livro, acabada, sobre uma mesinha central. Este é o
último ingresso em abismo. Para Amy Taubin, Cover to Cover “existe dentro de si
mesmo, completo, antes de sua conclusão. A fotografia, que fragmenta o tempo da
realidade, não mais meramente condiciona ou se funde nela. Ela reverte a seqüência
para que a imagem agora preceda o objeto” (Taubin, “Doubled visions”, October,
n.4, 1977, republicada em Snow, 2002).
O trabalho é mais simples do que sua descrição sugere. Está diretamente
relacionado com o experimentalismo com cinema que acompanhava a carreira de
Snow, que estuda se eixo mais elementar, as relações entre tempo e movimento.
Seu filme Wavelength (comprimento de onda) é um clássico do cinema experimen-
tal (um zoom em ambiente interior, contínuo e prolongado até uma imagem na
parede). En Sur la longueur d’onde de Michael Snow: zoom arrière, documentário de
2002, ele afirma que o que mais lhe interessa é a dimensão bidimensional da foto-
grafia, e que seus trabalhos não são para serem reproduzidos em ilustrações, so-
bretudo porque a escala seria quase sempre concernente àquela da apresentação.
Snow valoriza o enquadramento como um aspecto essencial da seleção que se faz
187
Michael Snow, Cover to cover, 1975. Três seqüências.
188
Michael Snow, Cover to cover, 1975. Três seqüências.
189
no momento da tomada da imagem e acredita que os detalhes devem estar dispo-
níveis para serem descobertos. Seu livro existe na condição de ser resultado de
uma persona artística que na época de sua realização já tinha conhecimentos prévi-
os de cinema e, conseqüentemente, da concepção de seqüências reunidas em epi-
sódios narrativos.
Cover to cover, a instalação Two sides do every story (1974) e a série fotográfica Plus
tard (1977) costumam ser apontados como os trabalhos de Snow com mais evidencia-
da inseminação da narrativa cinematográfica. Mas seu livro é considerado por alguns
uma parturição tardia de alguns anos, uma obra em decalagem com seus pares. Para
Eric Cameron (1977, p. 23 e seguintes), “é possível que Cover to cover seja a melhor
equilibrada, a mais plena e a mais perfeitamente realizada das obras maiores de Michael
Snow”, em que a fotografia estabeleceria uma relação perfeita entre o formato do
livro e a realidade de seu conteúdo narrativo. Porém, Cameron acredita que ele deve-
ria ter sido feito antes, no final dos 60 ou bem no início dos 70, quando então poderia
ter desfrutado da companhia de fundadores da categoria, aos quais ele pertenceria.
Além disso, se tivesse sido criado antes poderia ter estado também lado a lado com
seus primeiros filmes (Wavelength, Back and forth e La région centrale foram realizados
entre 1967 e 1969, e seu projeto mais longo, Rameau’s Nephew” by Diderot (Thanx to
Dennis Young) by Wilma Schoen é de 1972 74), importantes engrenagens das vanguardas
cinematográficas. Talvez essa ressalva seja um álibi sem um réu, já que não existe uma
verdadeira ação de omissão.
Cameron acredita que o livro retifica alguns pontos de debilidade dos filmes
de Snow, características que só poderiam ser corrigidas pela troca do meio (sobretudo
o controle do tempo narrativo). Também entende como desconfortável o elo entre
sua publicação e o estatuto de ser vinculado à vida acadêmica. Tal elo, institucional e
por isso vigoroso, deveria ser considerado um elogio. E quanto ao seu tardio
posicionamento histórico na carreira de Snow, esse parece ser um dado de escassa
importância. O volume já tem seu lugar garantido no grupo de livros-obra que ofere-
ceu parâmetros e paradigmas ainda hoje seguidos, e eventualmente melhorados. É o
grupo de Ruscha, Roth, Broodthaers, LeWitt, Buren, Carrión, Higgins, Filliou, Huebler,
Kosuth, Munari, Weiner, Baldessari, Pino, Boltanski, Brecht, Finlay, Gerz, Long, Stokes,
190
Nannucci, Morellet, Feldmann, Darboven... Uma lista exuberante, de um grupo de
artistas polimodais que foi um sopro de ânimo para questões midiatizadas do discur-
so visual seqüenciado.
A fotografia como sutura narrativa
Ser ilustração significaria estar a cabresto da pura função narrativa? De al-
guma forma isso seria aviltante ao artista? Por muito tempo, “ilustração” foi um
vocábulo temido no circuito intelectual da arte. O receio em ser ilustrativo talvez
derivasse da ambigüidade dos valores envolvidos. Quanto haveria de mérito ou
demérito nisso? Independentemente da polêmica que a proposição possa gestar, é
forçoso dizer que à luz da força ao mesmo tempo invasiva e “transvaziva” da pro-
dução contemporânea, dificilmente uma obra bidimensional deixará de parecer ilus-
tração. Com o desenvolvimento da fotografia, o questionamento ficou mais com-
plexo. Mas com o avanço das vanguardas do início do século XX, primeiro, e, mais
tarde, com a agitação a partir do final dos anos 50, o problema se enriqueceu, ficou
mais rico, tornou-se atraente, ficou até mesmo desejável. Especificamente no terri-
tório do livro de artista esse assunto importa pouco (embora importe), possivel-
mente porque, nesse caso, todo o vigor produtivo se dá pela energia da troca entre
gostos, afetos e saberes interdisciplinares do território da intermídia, o espaço
polifônico da fotografia contemporânea, das publicações, da arte postal, da performance,
do happening, da poesia visual, da videoarte, etc. De tudo, enfim que é fecundado
pelo vizinho do lado. Não seria aceitável que nesse cenário uma mesquinharia
avaliativa impedisse a evolução dos conceitos. Ser ilustração, portanto, deixaria de
ser um qualificativo para ser apenas um designativo, embora persista em alguns cír-
culos o uso malicioso ou perverso do termo. O fato de uma foto ser ilustrativa não
exclui sua função artística e vice-versa. Ou, possuir função não autoriza a priori que
se deprecie obra alguma.
A palavra ilustração determina que alguma representação visual, de qualquer
tipo, assume a função de tornar mais compreensível ou inteligível, pela visualização,
191
um texto escrito, uma fala ou uma proposição ideológica que busque a comunica-
bilidade. Ser ilustração é principalmente uma condição funcional. Ela pode ter qual-
quer conformação: ser figurativa ou abstrata, ser plana ou tridimensional, ter ou não
ter cor, etc. Mas, sobretudo, deve ser ressaltado que ela tanto serve à documentação e
registro da realidade objetiva como à ficção. Ela tanto representa o mundo natural
como constrói mundos imaginários. Portanto, sua potência deve ser respeitada e com-
preendida. Considero exercícios obsedantes de ilustração, por exemplo, a Santa Ceia,
de Leonado Da Vinci, e a Porta do Inferno, de Auguste Rodin, entre outros. O mesmo
poderia ser dito da maior parte da produção fotográfica de Henri Cartier-Bresson,
mesmo em fotos não obtidas com fins profissionais. A demonstração de princípios
através da exemplificação organizada em livro de imagens é quase uma hipertrofia
ilustrativa de onde transborda o seu preceito funcional. É assim, e de modo antológico
e extraordinário, no seu livro The decisive moment: photographs by Henry Cartier-Bresson,
1952 (com bela capa por Henri Matisse). Não há por que desconfiar da função que
uma obra de arte tenha na sua gênese ou venha a ter.
Na edição do inverno de 1976 para 1977, a revista nova-iorquina Art-Rite,
em número inteiramente dedicado aos livros de artista, constatava: “Foi natural
para o mundo da arte, com sua história de negociante da imagem, devorar a foto-
grafia. Mais da metade (bem mais) dos livros de artistas usaram a fotografia, mes-
mo se num modo inovador, como escrava do conceito” (p.17, texto não credita-
do; used em itálico no original). A revista procurava esclarecer a dificuldade em
fazer um artigo recomendando livros de artista fotográficos, já que eles existiam
em praticamente todas as outras seções. Curiosamente, seria sobre as páginas das
publicações de artista que a imagem fotográfica, roubada dos profissionais de co-
municação e a serviço de artistas não necessariamente fotógrafos, encontraria a
transposição do mero emprego ilustrativo para novas dimensões funcionais,
constitutivas de uma obra outra. Ela aqui continuaria sendo ilustração, sim (por
que não?), e algo mais, figura ou fundo, detalhe que compõe parte do todo, ou
seção que estrutura o todo. E passaria, com explícita desfatez, a assumir a fun-
ção de agente da narrativa, antes quase exc
lusividade da palavra. A fotografia cons-
pira contra o propósito de anulação da narratividade, mesmo na arte conceitual e
192
nos seus pares mais ou menos desmaterializadores (minimalismo, land art etc.),
todas correntes ainda vivas e produtivas que se baseiam em projetos e ações com
base na linguagem (em texto, especialmente), no registro ilustrativo (pela fotogra-
fia e pela imagem em movimento de filme e vídeo) e nos próprios processos de
ação e criação. Em sua apresentação da arte moderna através dos seus materiais,
Florence de Mèredieu aponta (a partir de Roland Barthes) a fotografia como um
meio intermediário que serve “de espaço transicional entre a natureza (o real) e o
artificial (o mundo da arte e das imagens)” (Mèredieu, 1997, p. 268), tendo uma
função de elo entre esses pólos. Seria principalmente através dessa função que ela
revelaria suas dimensões. Poderia-se, por isso, entendê-la como realizando uma
sutura do mundo material com o mundo conceitual.
Para o bem ou para o mal, a vocação ilustrativa da fotografia é indesmentível,
pouco importando sua forma de apresentação. Isso parece querer tirá-la da parede e
puxá-la para a página. Uma rápida olhada nos principais eventos internacionais onde
a fotografia brilha, enfim, em sua soberania, confirma sua merecida respeitabilidade.
Nas Documentas X (sic) e 11 (sic), em 1997 e 2002, e nas 49ª e 50ª Bienais de Veneza,
em 2001 e 2003 (além das bienais de São Paulo do período equivalente), as represen-
tações com fotografias eram dominantes. Mas os comentadores aparentam ter difi-
culdade em dissociá-la do mundo bibliomórfico. Em artigos ou ensaios maiores, pa-
recem ter a propensão a sondar se o suporte escolhido seria o mais acertado para cada
situação, ou a simplesmente utilizar o livro como referência para escalas de apresenta-
ção. Para fotos de Lothar Baumgarten na Documenta X, 1997, obtidas entre índios
Yanomami na Venezuela em 1978 e 1979, comenta Paul Sztulman: “Para a Documen-
ta ele concebeu um arranjo dos seus arquivos nas paredes, tratadas como páginas
num livro, o que devolve as fotografias a sua legítima dimensão: aquela do álbum”
(Documenta X, 1997, p. 30). Sztulman também comenta a participação de Jean-Marc
Bustamante, este com a publicação do livro de viagem Amandes amères, 1997, com 38
fotos coloridas sem legendas, obtidas em Buenos Aires, Miami e Tel-Aviv, lidando
com “a dialética entre o registro documental e a composição pictórica”:Apesar de
cada imagem estar presa dentro do movimento do livro, ele também se apresenta
como uma totalidade, uma suspensão ou estase” (p.42-43).
193
Martin Bruch. Bruchlandungen.
Innsbruck: Haymon-Verlag, 2000.
340 p. 14,8 x 21cm.
Abaixo, uma livro aberto
e detalhe de uma página.
194
Os artistas expositores não parecem muito incomodados com isso, mas às
vezes as paredes se mostram inadequadas. A série de fotos do austríaco Martin Bruch,
mostrando suas próprias quedas causadas pela esclerose múltipla, resultou num livro
simples e marcante, chegando a ter realçado o humor possível em tal projeto e quase
se estabelecendo como uma tragicomédia. As mesmas fotografias, quando expostas
num espaço discreto da 49ª Bienal de Veneza, ganharam amargura e perderam a ri-
queza do contato pessoal e íntimo com seus vedores. O livro, Bruchlandungen (ou ape-
nas Landungen), 2000, talvez resulte mais apaixonante e eficaz que a mostra (ver mais
em Santos e Santos, 2004, p.153-155).
Sucesso maior como espetáculo talvez tenha tido Allan Sekula, na Documen-
ta 11, ao ocupar o amplo espaço a sua disposição para a montagem de seu projeto
Fish Story, 1990-1996. Na instalação, o livro era o assunto explícito. Foi apresentado
Martin Bruch, fotos após suas quedas, na 49ª Bienal de Veneza, 2001.
195
um total de 107 fotografias coloridas,
com formatos entre 63x80 e 63x146cm,
distribuídas por “capítulos” (incluindo
dois suplementares), acompanhadas de
painéis com textos e projeção de diapo-
sitivos (para o primeiro e nono capítu-
los). As imagens foram obtidas durante
sete anos em ambientes portuários e de
navegação em algumas partes do mun-
do marítimo mercante. Desde o princí-
pio seu projeto era de constituir simul-
taneamente exposição e livro, ambos in-
terligados e divididos em capítulos evo-
lutivos, buscando o relacionamento de
imagem com imagem, de imagem com
texto e de texto com texto.
A fotografia está sempre posi-
cionada num espaço flutuante
limitado pela literatura, pintura
e cinema. Essa zona intermedi-
ária não pode ser determinada
dentro de um estado de pureza
ontológica modernista, como mesmo Clemente Greenberg reconheceu quando men-
cionou o caráter “literário” da fotografia como seu traço distintivo. [...] Minha pri-
meira solução é organizar imagens seqüencialmente. A seqüência fotográfica é uma
alternativa ao modelo institucional dominante para organizar fotos num grupo
rearranjável: o modelo curatorial e burocrático do arquivo e das séries. As seqüências
podem de fato conter séries, podem mesmo ser organizadas a partir do
entrecruzamento dos elementos seriais, mas o oposto não é o caso. [...] A organiza-
ção seqüencial e a construção paralela de elementos textuais permitem que um traba-
lho fotográfico funcione como um romance ou filme, com um nível de unidade for-
mal mais alto e mais complexo. (Documenta 11, 2002, p. 582)
Allan Sekula. Imagens de “Middle Passage”,
capítulo de Fish Story, p. 63.
196
Em uma conversa anterior a Documenta, que teve com Hal Foster em 1994
(já comentada anteriormente), publicado pela revista do centro de arte contemporâ-
nea Witte de With, na Holanda, Sekula sustentou que para a arte fotográfica a opção
narrativa implicaria a oposição do modelo da seqüência ao modelo dominante na ca-
tegoria, que seria o da série e do arquivo.
Tenho constantemente sustentado que conjuntos “paraliterários” híbridos e comple-
xos de imagens e textos abrem novas possibilidades para a peça narrativa e ensaística,
permitindo, por exemplo, a possibilidade de citação e paráfrase dentro de um contex-
to maior. Essa é a diferença de uma estratégia insular e repetitiva de demonstrar ceti-
cismo sobre noções “modernistas” de autoria, ou distância supostamente crítica da
autoridade burocrática do arquivo. (Foster e Sekula, 2000, p. 15)
Para Sekula, a fotografia é uma arte de contar histórias por artistas de con-
fiança que as contam e que as escutam. Ou seja, como “uma arte baseada na interação
humana, tende a instrumentalizar a narração [storytelling]” (Foster e Sekula, 2000,
p. 17), ou ainda, como comentado anteriormente, a fotografia como “sempre posi-
cionada no interior de um campo de triangulação delimitado pela pintura, pela lite-
ratura e pelo cinema”. Ts, portanto, seriam os seus espaços: “a galeria de exposi-
ções, a sala de leitura e a sala de projeção” (de “Nadando em águas revoltas”, em
Bock, org., p. 277).
A arte contemporânea é inteligente e habilidosa ao lidar com as ferra-
mentas e possibilidades do território simbólico situado entre as diferentes formas
da narrativa, a tecnologia e o poder do projeto industrial (o design) de unir arte e
vida de fato (não apenas como especulação poética). Certamente existem suces-
sos e insucessos nessa relação, mas no cômputo geral preserva-se a prioridade na
elaboração de interfaces junto ao público. E cabe à fotografia a multifacetada fun-
ção de ser tanto tecido como célula de um sem-número de projetos, muitos deles
não primordialmente fotogficos. Atividade e passividade fotográficas seriam,
portanto, conceitos ambíguos, quando considerados dentro da realidade das pu-
blicações com qualidade de obra de arte. Artistas e críticos reconhecem essa
multiplicidade funcional.
197
Não tenho dúvida que os tipos de relações formadas pela conexão de fotografias
díspares numa formação singular e complexa em forma de livro, ou como qualquer
outra arte baseada no tempo, é uma das funções e características mais especiais do
meio fotográfico. (Alex Sweetman, em Lyons, 1993, p. 202)
Em grupo, sob certa ordenação, as imagens constituem páginas que vão da
contestação da seqüência narrativa até a sua obscenidade, a simulação cinemática.
Essa seria uma dimensão gráfica compositiva, na qual uma foto tem valor seme-
lhante a outros elementos plásticos, como desenhos ou grafismos. A seqüência vi-
sual por si só já estabelece um discurso, emulando o cinema ou a solução lingüística
da ordem sujeito, verbo e predicado. Cabe averiguar, também, em que medida o
conteúdo ilustrativo ou cênico da fotografia tem também o poder de narrar, mas
“para fora” do enquadramento, ou seja, como estrutura espectral do livro, quer seja
fantasmática ou documental.
Para a exposição Scene of the Crime, 1997, o curador Ralph Rugoff ele-
geu 39 artistas californianos que tinham ou tiveram sua obra construída sobre
uma estética pericial (forense) atrelada a um processo de reconstrução mental,
como se a obra de arte fosse uma evidência (prova ou indício). Peter Wollen, em
artigo para o catálogo destaca as três dimensões da mostra: fotografia pericial,
arquitetura deteriorada e banalização do melodrama. Entre essas dimensões per-
sistiria a tensão. Wollen lembra as observações de Rugoff, centradas na qualidade
de ato ritual do tipo de fotografias ali apresentadas. A fotografia pareceria trazer
a morte de volta à vida. Por congelar o tempo, ela anularia o limite “entre vida
(atividade) e morte (estase)”.
A qualidade ritual da fotografia forense é acrescida de um poder adicional pelas
características rituais da própria cena do crime. Cuidadosamente delimitada pela
fita da polícia, a cena do crime parece-nos como terreno consagrado. Detetives,
criminalistas e fotógrafos andam em volta como sacerdotes, cuidadosamente pre-
servando a pureza do local como se executassem seus austeros deveres litúrgicos,
fotografando, medindo, coletando. O olhar forense é um olhar celebrante. [...] Nesse
contexto, a câmera do fotógrafo não é apenas um instrumento de registro, mas um
198
objeto cerimonial oficiante, e a própria fotografia pode ser encarada como um tipo
de ícone ou relíquia. A fotografia forense, ao nos confrontar com a morte, coloca-
nos num reino que é radicalmente diferente das normas da vida diária, um reino
que evoca uma rede embaraçada de associações: transgressão, violação, aviltamen-
to, fatalidade. (Rugoff, 1997, p. 24-25)
Ralph Rugoff destaca que por vezes a imagem sugere a cena de um aciden-
te mortal ou o local de um crime planejado, tudo inserido na estética pericial típica
da contemporaneidade pós-guerras. A sensação gerada seria de suspeição, como se
o mostrado não fosse o que parecesse, já que possui realidade indicada como apa-
rente, oriunda mais de uma sensação de familiaridade do que de sua função docu-
mental. Esse excesso de realidade geraria ansiedade no observador pela desconfian-
ça de que ali exista mais do que o olho possa perceber (Rugoff, “More than meets
the eye”, em Rugoff, 1997, p. 92).
Tal caráter pericial da fotografia contemporânea estaria também associado
a narrativas derivadas do imaginário cultural popular, como, por exemplo, as histó-
rias de mistério e a obsessão por assassinos e assassinatos. Rugoff exemplifica com
o trabalho de Sophie Calle intitulado La filature ou The shadow, de 1981. Para o proje-
to, ela teria pedido a sua mãe que contratasse um detetive que a seguisse por Paris,
obtendo fotos sem que ela percebesse exatamente quando. A artista afirmaria que
um de seus propósitos era obter evidência fotográfica de sua existência. Para Rugoff,
aqui o “interesse da arte de estilo forense [ou pericial] tinha aparentemente evoluí-
do do registro de vestígios do processo artístico para a oferta de prova da verdadei-
ra identidade da artista” (p. 107, nota 48). O trabalho foi incluído em catálogo pro-
jetado por Calle, e por iniciativa do galerista Emmanuel Perrotin, o projeto seria
repetido em 2001 com o título Vingt ans aprés. Também foi reunido com outros dois
ensaios semelhantes, com textos e fotografias, no volume A suivre..., 1998, que faz
parte do conjunto Doubles-jeux, de sete livros, do qual é o quarto livro (na edição em
brochura de pequeno formato). O conjunto está relacionado com o romance
Leviathan, de Paul Auster, para o qual Calle inspirou a personagem Maria. Nos ou-
tros trabalhos de A suivre... ela mesma é a perseguidora, fotografando pessoas des-
conhecidas que segue nas ruas de Paris em 1978 e 1979, no primeiro caso, e, no
199
Sophie Calle. À direita: Doubles-jeux (versão francesa). Arles: Actes Sud, 1998.
Estojo com sete livros: De l’obéissance (64 p.); Le rituel d’anniversaire (64 p.); Les panoplies (48 p.);
A suivre... (152 p.); L’hôtel (176 p.); Le carnet d’adresses (24 p.); e Gotham Handbook (96 p.);
formato do estojo: 19,6 x 10,2 x 7,5cm; formato de cada livro: 19 x 10cm.
À esquerda: Double Game (versão inglesa). London: Violette Editions, 1999, 296 p., 29,1 x 20,8 x 2,6cm.
Abaixo, páginas de “The shadow” e “La filature”, respectivamente.
200
segundo, fotografando um homem que ela segue em Veneza em 1980. La filature é a
terceira parte do livro.
A exposição com curadoria de Rugoff parece ter conseguido abundância de
provas fotográficas, documentais e cenogficas. Mas em Scene of the Crime apenas
um livro participou, Royal road test, de Edward Ruscha, 1967. Trabalho seguro na sua
condição de cínico dossiê bibliomórfico, ele é apresentado como uma das obras mais
importantes em exibição. Não há dúvida disso. É suficientemente interessante para car-
regar consigo elementos do pop e do conceitual, numa construção mínima e bem-
humorada. Está muito bem posicionado na produção artística de Ruscha e certamente
também está muito bem assentado como um dos fundamentadores da mostra.
O projeto foi executado juntamente com o compositor Mason Williams e o
fotógrafo Patrick Blackwell no dia 21 de agosto de 1966, domingo. Foi o primeiro
trabalho de Ruscha com colaboração não simplesmente técnica, mas em co-autoria,
além de também ser o primeiro com condução francamente narrativa. Enquanto Ruscha
dirigia um automóvel Buick Le Sabre 1963 a 90 milhas (cerca de 143 quilômetros) por
hora já então célebre Rota 66 (a auto-estrada 91), em Nevada (estado norte-america-
no conhecido pelos muitos testes nucleares), Williams jogou pela janela do carro uma
máquina de escrever da marca Royal modelo X. Seriam exatamente 17h07min (a pre-
cisão é muito apreciada nesse tipo de ação
16
). Após o carro parar, Blackwell fotogra-
fou os pedaços da máquina espalhados na rodovia e no acostamento. Nesse experi-
mento de destruição, Ruscha expressaria o fim de alguns sistemas simbólicos, “espe-
cialmente, entre eles, a supremacia da linguagem como um meio de comunicação”
(Rugoff, 1997, p. 61).
Apropriadamente, o relatório de ensaio de Ruscha foi apresentado em um formato
imagem-texto veloz e carregado de informação, que reflete a ascensão da mídia base-
ada na imagem. As fotos em preto-e-branco em Royal Road Test vangloriam-se de
16
A propósito do gosto por dados numéricos ou estatísticos e sua relação com os afetos pessoais, ver o artigo
de Ruscha intitulado “The information man”, em The Los Angeles Institute of Contemporary Art Journal, número 6,
junho e julho de 1975, página 21. O LAICA funcionou de 1974 até 1987.
201
uma abundância de detalhes, valores
comprobatórios e “factualidade” crua, que um
simples relatório escrito nunca poderia ofere-
cer. Além disso, o trabalho de Ruscha tomou
a forma de um livro produzido em massa: não
um original precioso, ele era um objeto comum
circulando no mundo, uma coisa entre coisas,
despida da aura de raridade do objeto de arte.
(Rugoff, 1997, p. 62)
A publicação (com 24 x 16,5cm) tem capa
amarelada (papel manilha) e páginas com impressão
ofsete em preto-e-branco, unidas com espiral. São 36
fotos acompanhadas de legendas concisas do tipo
“Ilustração mostra a distância percorrida pelos destro-
ços” ou com duplos sentidos como “(Esquerda)
Edward Ruscha (esquerda) e Mason Williams (direita)
examinando o corpo principal da máquina de escre-
ver”, ou, numa tradução ainda mais grosseira, algo mais
ou menos como “Mão esquerda de Edward Ruscha
(esquerda) sendo examinada pela mão direita de Mason
Williams (direita) sobre o que restou da máquina de
escrever, certo?”. A mão apresenta o indício e pede a
nossa opinião (talvez um parecer formal) sobre a ocor-
rência. Em legendas como as citadas, podem ser lo-
calizados traços do estilo brincalhão de Ruscha, per-
ceptíveis no idioma original: “Edward Ruschas (left)
left hand being examined by Mason Williams’ (right)
right hand over what’s left of the typewriter, right?”
Left e right significam “esquerdo” e “direito”, ou “dei-
xado, abandonado, sobrado” e “correto, direito”. E
com as associações dos termos temos: left-hand, à es-
Edward Ruscha. Royal road test.
Los Angeles: 1967,
60p., 24 x 16,5 x 0,5cm.
Tiragens: 1
a
edição, 1.000;
2
a
edição, 1969, 1000;
3
a
edição (esta), 1971, 2.000;
4
a
edição: 1980, 1.500.
Bibliothèque National de France.
202
Edward Ruscha, Royal road test, 1967, detalhes.
203
querda; left-handed, canhoto, desajeitado; left-off, posto de lado, abandonado; leftover, sobra,
resto; over, sobra, excesso, sobre, acima; overhand, lançado com a mão erguida acima dos
ombros; right-hand, da mão direita, assistente; etc. Num olhar apressado, o livro pode
parecer se levar muito a sério. Mas um exame atento relativizará isso. No uso das legen-
das fica mais claro o espírito galhofeiro do artista. A propósito de um pequeno texto
que acompanha a obra, como uma epígrafe (“It was too directly bound to its own anguish
to be anything other than a cry of negation; carrying within itself, the seeds of its own
destruction.”), no qual é dito que a máquina teria estado “carregando dentro dela as
sementes de sua própria destruição”, Clive Phillpot especula: “Talvez o plano para o
evento tivesse sido datilografado na própria máquina, ou talvez do próprio livro pudes-
se também ser mencionado que tivesse registrado o triunfo da câmera sobre a máquina
de escrever” (em Engberg e Phillpot, 1999, v. 2, p. 68). Royal Road Test teve a primeira
edição de 1967 com 1000 exemplares (60 páginas), seguidas de reedições em 1969, 1971
e 1980, respectivamente com 1000, 2000 e 1500 exemplares (todas com mais quatro
páginas brancas em relação à tiragem original).
Os livros anteriores de Ruscha (Twentysix Gasoline Stations, 1963; Various Small
Fires, 1964; Every Building on the Sunset Strip, 1966; e Thirty Four Parking Lots, 1967) não
apresentavam sinais narrativos nas fotos isoladamente. Ou, ao menos, pretendiam uma
relativa negação da narrativa, pelo menos da convencional (a ação de contar uma histó-
ria). No entanto, é possível identificar outros níveis ordenados de enunciação e discurso,
pertinentes ao mundo visual, como a demonstração descritiva (interna nas imagens ou
na seqüência delas) ou a dissertação plástica (desenvolvida pelas relações internas no
livro-obra). Ambos os casos estruturam modalidades de ensaio com fundamentos dis-
tintos daqueles dos livros fotográficos tradicionais, que têm a lógica do álbum ou do
catálogo convencional. No caso de Ruscha, a obra final não é a foto, mas o livro que
delas se aproveita. Especialmente no caso de seus projetos “não-narrativos” isso fica
evidente. E o próprio autor reiterou isso ao comentar seus primeiros trabalhos, especial-
mente Twentysix gasoline stations, 1963 (veja citação na página 48-49).
Sua opinião foi repetida em outras oportunidades. Ele resumiria: “eu supo-
nho que exista uma extensão de um readymade na forma fotográfica” (transcrito em
Engberg e Phillpot, 1999, v 2, p. 63). Nesses livros não-narrativos de Ruscha, as fotos
204
do banal, do despercebido e do ordinário acabaram por portar sinais reestetizadores,
como acaba acontecendo na digestão institucional dos produtos da arte contemporâ-
nea. Vince Aletti, por exemplo, vê neles influências de Walker Evans (Roth, 2001, p.
182). E seu aspecto cool californiano (analítico) acabou sendo muito apreciado. Mas,
constata-se a eventual relocação simbólica dessa produção para fins pedagógicos, como
no uso ocasional como ilustração de fotos extraídas das páginas dos livretos de Ruscha
e reproduzidas em livros de arte. A obra original é esquecida em favor da reprodução
convencional, desfazendo sua verdade – a de ser um livro de artista –, podendo indu-
zir o leitor a colocar parte de sua arte na classificação artificial de “fotografia”. Veja-
se, como exemplo, a figura 37, página 46, de Arte conceitual, de Paul Wood (São Paulo:
Cosac & Naify, 2002; publicação original pela Tate Publishing, Londres). É apenas
reproduzida a foto que compõe a parte superior de duas páginas de Twentysix gasoline
stations, sem a visão total da abertura do livro (o spread), ainda que se perceba o vinco
junto à lombada original. A foto solitária ganha, assim, por outorga, a aura de obra de
arte autônoma, seqüestrada da obra verdadeira, o livro. Têm-se, aqui, uma mutilação.
Vale repetir as palavras de Ruscha:
O primeiro livro resultou de um jogo de palavras. O título veio antes mesmo que eu
pensasse sobre as imagens. Eu gosto da palavragasolina” e eu gosto da qualidade
específica de “vinte e seis”. Se você olhar o livro, verá como a tipografia funciona
bem – eu trabalhei tudo antes de obter as fotografias. (Artforum v. 3, n.5, fevereiro de
1965, p. 24-25, transcrito em Stiles e Selz, 1996, p. 356-357.)
Nos livros narrativos (e em suas fotos) podem ser encontradas outras dimen-
sões mundanas. Royal road test foi seu primeiro trabalho com assunto a se desenrolar
no tempo. Depois dele seriam publicados Business cards (1968), Crackers (1969) e Hard
light (1978). Nenhum dos quatro livros é individual, todos foram executados com co-
laboradores.
Business cards conta como Ruscha e Billy Al Bergston projetaram e trocaram
cartões de visitas entre si. Possui 32 páginas com leiaute mais dinâmico, com as ima-
gens (fotos ou croquis) sendo acompanhadas de manuscritos ou recados (notas). As
fotografias foram obtidas por Art Alanis.
205
Crackers também foi feito com Mason Williams, dessa vez em colaboração
mais estreita. É como um filme mudo transposto para livro, ou como uma fotonovela.
É maior que os trabalhos anteriores, tendo 240 páginas. Faz a ilustração do conto de
Williams “How to derive the maximum enjoyment from crackers”, de 1967 (impresso
na orelha da contracapa). Tornou-se o ponto de partida do filme Premium, feito por
Ruscha em 1970 (em 16mm, colorido, com 24 minutos); foi concluído em 1971, gra-
ças à bolsa da Fundação Guggenheim. O leiaute do livro é muito simples: as fotos, na
horizontal ou giradas em ângulo reto, ocupam sempre as páginas ímpares (da direita),
uma por página, sangrando em todos os lados. Os personagens às voltas com uma
cama coberta por verduras (alface?), um artista (Larry Bell), uma modelo (Léon Bing),
um mensageiro (estilista de moda Rudi Gernreich) e um motorista (Tommy Smothers),
e, ao final um banho de azeite de oliva ou outros acompanhamentos, foram fotogra-
fados por Edward Ruscha, Ken Price e Joe Goode.
O texto original de Williams recomenda que, para aproveitar plenamente
biscoitos crocantes, sejam seguidos certos passos. “Falando de homem para ho-
mem”, inicia o texto, e prossegue sugerindo que se escolha uma companhia femini-
na que se admire, “uma mulher bonita, elegante e acostumada à sofisticação, [...]
uma mulher difícil de se ter”, não dizendo para ela as intenções. Reservar um quar-
to de solteiro num hotel barato e uma suíte no mais caro da cidade, e conseguir um
carro luxuoso. Antes de encontrar a mulher, comprar alfaces, espinafre, tomates,
pepinos, aipos, azeitonas, cebolinha-verde etc. Comprar, também, molhos em ga-
lões: roquefort, francês, russo, de granja, bleu cheese, thosand island e vinagre e óleo.
Levar tudo para o quarto do hotel mais simples. Cobrir a cama com os vegetais,
fazendo uma salada com as mãos e, depois, cobrir com a coberta. Guardar os ga-
lões no closet. Vestir-se como um garçom requintado e buscar a acompanhante.
Levá-la para o hotel barato, fazendo mistério, mas sem levantar suspeitas, porém
mantendo sua curiosidade e prometendo uma surpresa. No quarto, tirar a coberta e
fazer a mulher deitar na cama, sobre a salada (mesmo que seja necessário ser duro
com ela). Despejar sobre ela cinco galões, estalar os dedos e exclamar o que está
faltando: – Crackers! Desculpar-se pelo esquecimento dos biscoitos e sair para
comprá-los, insistindo que a mulher o aguarde sem se mover dali. Sair, comprar
206
Edward Ruscha,
Crackers.
Hollywood:
Heavy Industry
Publications, 1969.
240 p., 15,1 x 22,2.
Algumas
páginas
em seqüência
não sucessiva.
Bibliothèque
National
de France.
207
biscoitinhos de aperitivo, ir para a suíte reservada no hotel melhor, despir-se e ir
para a cama saborear um a um os biscoitos.
“Crackers!” é a única palavra do livro, exclamada como uma interjeição, apa-
recendo no interior, numa página mais ou menos próxima do final. As imagens não
são exatamente cinemáticas porque a sincronia de ritmo entre elas não é fluída. Johanna
Drucker acredita que o livro funciona bem porque é uma história, “embora uma mui-
to misógina e idiota, em que a piada do livro se dá às custas de uma mulher sem
suspeitas” (Drucker, 1995, p. 267).
O último livro com fotos explicitamente narrativas de Ruscha foi Hard light,
feito em parceria com Lawrence Weiner, em tiragem total de 3.560 exemplares. Foi o
17º livro de artista de Ruscha e 24º de Weiner (informações do lançamento podem ser
encontradas em Umbrella, v.1, n.6, nov. 1978, p.146). Com 120 páginas e capa colorida,
praticamente sem textos, acompanha conver-
sas de três mulheres em diferentes cenários.
Embora a diagramação fosse diferenciada, as
fotos (num total de 65), individualmente, pare-
cem muito com o enquadramento dos quadri-
nhos das fotonovelas, ainda populares no final
dos anos 70, mas mantendo a sempre presente
sensação de ausência de ruídos. As fotos fo-
ram tiradas por Ruscha, Weiner e Susan Haller
(que também participa como “modelo”, junta-
mente com Shelley Chamberlain e Suzanne
Chandler). Embora pequeno, o livro é dividi-
do em nove capítulos. No oitavo está a única
frase, um (enunciado) de Weiner: “In the year
2000 all racecar driving will be taken over by
women.” Ou, aproximadamente: “No ano
2000, todos carros de corrida serão pilotados
por mulheres.” Os capítulos são constituídos
por seqüências fotográficas e espaços em bran-
Edward Ruscha e Lawrence Weiner,
Hard light, 1978.
208
co (às vezes páginas inteiras). No : duas mulheres passeiam e conversam numa marina,
cais ou balneário; 2º: as mulheres conversam numa cozinha; 3º: a conversa prossegue
e uma examina os olhos da outra com uma pequena lanterna; 4º: na cozinha (ou copa)
uma mulher está pensativa e chega a terceira mulher (em imagem sem nexo direto
com as anteriores); 5º: as duas conversam numa lanchonete; 6º: a conversa continua;
: as três estão reunidas na cozinha, conversando; 8º: na rua, elas visualizam algo,
possivelmente o letreiro, que está na página, mas não é parte da cena fotografada; e
9º: elas passeiam num pequeno carro compacto.
Considerando-se ou não como ilustrações dos livros, ou considerando-se ou
não como “paredes” da estrutura narrativa das obras, as fotos de Ruscha, a despeito
de precedentes argumentos iconoclastas ou desmistificadores, rumaram para a inver-
são de seu propósito original. Hoje são valiosas e o artista não parece se contrapor a
isso. Entre junho e setembro de 2004, o Whitney Museum, em Nova Iorque, organi-
zou dupla exposição de Ruscha, sendo uma de desenhos e outra de fotografias não-
publicadas (incluindo livros). A base da mostra é um significativo conjunto adquirido
pelo museu, com muitas fotos que estavam guardadas nas gavetas do artista. Dentro
de uma série de entrevistas com artistas sobre a não-linearidade, Doug Aitken conver-
sou com Ruscha, a propósito desse evento e de Hard Light e Royal Road Test. Ruscha
explica: “A palavra ‘narrativa’ é um termo tão amplo que eu não sei se o aplicaria. Mas
existe um pedal de arranque para alguma coisa que faz você pensar. A idéia era man-
ter isso como flutuante, como não sério, como possível. As colaborações sempre tive-
ram a atitude mais leve. Você acharia que isso pediria planejamento sério. De jeito
nenhum.” Para Aiken, “os livros são interessantes em como sugerem uma narrativa a
partir das cenas mais banais”. Para ele, as imagens agiriam como espelhos pelo ato
extremamente simples de isolar espaços. O trabalho ofereceria “uma narrativa dife-
rente para cada observador, porque o observador tem que projetar a sua própria in-
formação sobre ele, quase como numa tela vazia de cinema”. (Earth..., 2004)
A fotografia poderia se apresentar, por isso, como uma estratégica sutura nar-
rativa (entre muitas possíveis) de uma parte das publicações da arte conceitual ou de
movimentos assemelhados, todos esses, somados, resultando em boa parcela no que
chamamos de arte contemporânea. Ao se negar como mera ilustração, ou, ao contrá-
209
rio, ao se confirmar como tal, não importa, ela integra a página na construção de obra
de arte, sozinha ou com outros elementos, e materializa a ação ou o pensamento como
no passado fizeram o desenho e a modelagem. Em suma, a própria ordem narrativa
será o parâmetro para a objeção à narração. Caso não seja contada história alguma,
isso não desabilitará o princípio narrativo, que, em silêncio, estará em suspensão, mas
nunca extinto.
O livro como apoio ao artista personagem
Sobre artistas polimodais que também se valem de edições, talvez seja
preciso lembrar que alguns se afastam bastante dos pormenores editoriais, entre-
gando suas publicações para acabamento (e às vezes até mesmo o desenvolvi-
mento) para editoras estabelecidas ou escritórios de projeto gráfico. Não se trata
de afastamento ou fuga do conhecimento necessário para a pré-produção da obra,
que une o saber consolidado em séculos, o amadurecimento da fotomecânica de-
senvolvida no decorrer do século XX, e culminando com a quase onipresença da
informatização (especialmente na esfera da criação). O que passa a acontecer na
vida plástica de alguns artistas é que o próprio conceito de plasmação se altera,
juntamente com o comprometimento para com todas as etapas de oficina (e pare-
ce haver casos em que a própria noção romântica de ateliê ou estúdio se desvane-
ce). Torna-se humanamente impossível dar conta sozinho das exigências de gran-
des instituições para mostras que seriam melhor bem-vindas se garantissem certo
teor de espetacularidade. Ou mesmo num currículo mais discreto, de dar conta
do elenco de obras que passa a ser necessário para a constituição de um corpus
artístico com maior fôlego. Para o caso específico dos livros, essas são algumas
das razões para que o avanço da prestação de serviços de editoração (com partici-
pação criativa de alto nível) seja bem aceito na concretização de narrativas (docu-
mentais ou ficcionais), pela via editorial. São em número crescente os exemplos
em que a publicação é parte integrante do corpo total da obra (especialmente
como ação artística no intervalo entre o fator político e o promocional). Pode ser
210
que o livro seja apenas um componente facilitador do acesso à obra, seja uma
coleção de legendas. Pode ser também que ele deixe ao discurso pela imagem e
pela palavra um caminho livre de exuberância e eloqüência. Podem ser citados
dois nomes polimodais, a título de demonstração, Sophie Calle, já com muitos
livros indissociáveis de sua obra, e Pierre Huyghe, ainda com poucos, ambos as-
sumindo o papel de atores e personagens de si mesmos, ambos exímios constru-
tores de narrativas continuadas, mais “solitárias” em Calle, mais “compartilha-
das” em Huyghe, com relatos em andante de uma exposição para as seguintes.
De resto, a narrativa autobiográfica se presta seguidamente à invenção de si mesma.
A equivalência entre o autor, o narrador e a personagem principal leva consigo as
distorções disso que chamamos “autoficção”. Sophie Calle, por exemplo, organiza
verdadeiras atuações de si mesma se improvisando como detetive. (Annalisa
Rimmaudo, referindo-se a Suite vénitienne e L’Hôtel, em Guardare,..., 2004, p. 127 ou
131 ou 135.)
Sobre Calle já falamos anteriormente, mas é suficiente acrescentar que tem
como marca a unidade editorial de seus trabalhos, que transparece com clareza seu
domínio bem equilibrado da fotografia e da escrita. A maioria é publicada pela editora
francesa Actes Sud, de Arles, desde 1994, em livretos pequenos, quase invariavelmen-
te medindo 10 x 19cm, coloridos mas em papel simples, o que resulta em preços
muito acessíveis. Os volumes são comercializados avulsos ou em pequenas coleções.
O conjunto (estojo) mais conhecido é Doubles-jeux, 1998, que inclui sete livros: Livre
I, De l’obeissance; Livre II, Le rituel d’anniversaire; Livre III, Les panoplies; Livre IV,
A suivre...; Livre V, L’hôtel; Livre VI, Le carnet d’adresses; e Livre VII, Gotham
handbook. Em 1999 foi lançada a versão em língua inglesa, Double Game, pela editora
Violette, de Londres. Traz o mesmo material da edição francesa, porém repaginado
para o formato maior, 21 x 29cm, 296 páginas, encadernado com capa dura (e uma
larga fita vermelha para fechar o volume com um laço). Uma nova versão foi relançada
em 2007, desta vez na metade do tamanho, 14,2 x 19,6. Embora menor, é igual à
edição anterior e com as mesmas 296 páginas. Ou seja, tem tamanho e preço para
todos os bolsos, não compra quem não quiser!
211
Outro conjunto bastante apreciado é L’Absence, 2000, com três volumes:
Souvenirs de Berlin-Est; Fantômes; e Disparitions. Dos livros avulsos, a reedição Des histoires
vraies + dix (2002; primeira edição de 1994) traz seus seios na capa, fotografados por
Jean-Baptiste Mondino, que retornam nas paginas 50 e 51, sobre o parágrafo “Os
seios miraculosos”.
Adolescente, eu era plana. Para imitar minhas amigas, eu tinha comprado um sutiã do
qual eu não tirava evidentemente nenhuma vantagem. Minha mãe, que exibia orgu-
lhosamente um busto resplandecente, e que não perdia jamais a oportunidade de
fazer um gracejo, o tinha apelidado de sutiã-nada. Eu ainda a ouço. Durante os anos
seguintes, muito lentamente, meu peito ganhou relevo. Mas nada muito excitante. E
subitamente, em 1992 – a transformação se operou em seis meses –, ele se pôs a
crescer. Sozinho, sem tratamento nem intervenção exterior, miraculosamente. Eu juro.
Triunfante mas não verdadeiramente surpresa, eu atribuí a performance a vinte anos
de frustração, de avidez, de devaneios, de suspiros.
Em artigo sobre tipos de narrativa (apresentado no início destas reflexões),
Patrick Roegiers propõe um veredito sobre Calle.
Mistificadora fetichista, egocêntrica e infantil, coca-bichinhos, colecionadora de relí-
quias, mitômana narcisista, ninfômana da imagem fixa, biografando suas obsessões,
Sophie Calle mistura a realidade e a ficção e se torna ela mesma uma personagem
Sophie Calle, L’Absence.
Arles: Actes Sud, 2000.
Estojo com três livros:
Souvenirs de Berlin-Est,
Fantômes e Disparitions
(exemplar aberto).
212
romanesca nos dispositivos que ela organiza e dos quais ela sozinha domina as re-
gras. Bela Adormecida do Bosque, fugitiva da Condessa de Ségur, ela maltrata a vida
privada dos outros a partir das quais inventa aventuras autobiogficas. (Roegiers,
“Le moi ou la destruction du monde”, Dits, n.2, 2003, p. 22)
A participação dos livros de Calle em exposições de livros de artista se dá
com parcimônia. Não temos claro quais seriam as razões para isso. Poderiam ser
restrições ao projeto artístico de Calle. Talvez, mas não encontramos documentos
para essa hipótese. É improvável (mas não impossível) que exista certo clima
desabonador no fato de que seus livros sejam um tipo de bestsellers das prateleiras de
livrarias de museus (a aura da marginalização certamente não os acompanha). Pare-
ce ser mais provável que a “divisão de tarefas” na sua elaboração editorial não os
torne candidatos ideais aos salões. Em todo caso, esse problema merece ser revisto
e compreendido.
Deve-se insistir ainda outra vez na estratégia de Calle de atuação através da
fusão entre artista e personagem, acrescentando a dissolução quase integral da manu-
fatura, em favor da quase absoluta “fundacionalização” de sua persona artística. A
ocupação em glória do pavilhão francês da Bienal de Veneza, em 2007 (52
a
Esposizione
Internazionale d’Arte), foi motivo de nova discussão entre prós e contras dos seus
procedimentos artísticos, às vezes acusados de artificialismo ficcional e comercialismo
de imagem. Mas não seria a promoção pessoal até certo ponto inerente a um artista?
Como nela o ritual autobiográfico é o pressuposto do jogo narrativo estabelecido,
parece difícil tentar “fugir” de qualquer tipo de desnudamento.
O espaço de Calle era, como esperado, espetacularmente narrativo. Era visto
por alguns visitantes mais críticos como uma superprodução para cultos, informal-
mente acusada de afetação e distanciamento. Por outro lado, as salas, constantemente
lotadas, eram de um poder de envolvimento comprovel nos olhos do público, como
se simultaneamente confluíssem ali a inegável qualidade plástica de Calle e o eficiente
conhecimento acumulado (e amadurecido) de empreendimento artístico. Mas de fato
todas as ações constitutivas da obra pareciam ser terceirizadas a partir de um
deflagrador: a carta recebida pela artista, e que termina um relacionamento, e que será
213
reescrita, vertida, transliterada, codificada, etc., e apresentada ao público como confis-
o, ou expiação, ou redenção, etc., ou como apenas uma suíte de exercícios de discur-
sos plasticizados (uma taxidermia de um adeus poliglótico?). Some-se a essa narrativa
uma espécie de introdução à dor, o vídeo que registra sua mãe no leito a expirar,
momento de vida simultâneo ao convite de sua participação, exibido numa sala do
Pavilhão Itália.
Como usual, a montagem fez-se acompanhar da publicação de um catálo-
go, sempre com a mão de Calle, que raramente abdica de uma edição companheira
de sua obra. O livro ou catálogo Prenez soin de vous, na versão francesa, ou Take care
of yourself, na versão inglesa, foi configurado para ter vida continuada como obra
avulsa. O projeto visual, elegante, é o eixo artístico do trabalho. Sua comercialização
propõe a artista como autora. Parece mais fácil aceitá-la como curadora ou
organizadora, tal o elenco de profissionais envolvidos na publicação. Que de fato é
muito bonita, como sempre.
“O coeficiente crítico pode ser contrabalançado pelo ‘celebrativo’”, nos diz
Pierre Huyghe (Huyghe, pág.123). A inclusão do livro e do impresso na confirma-
ção do estatuto de artista contemporâneo acontece também com ele, também um
francês com grande trânsito internacional. Os recentes espaços de exposição por
ele construídos ou reconstruídos são como territórios de redescobrimento, parques
Sophie Calle, mostra Prenez soin de vous, Bienal de Veneza de 2007.
214
de interior, integrados à sociedade urbana, protegidos das intempéries, como são os
museus e galerias, e tendendo a oferecer um pacote de atrações ao espectador de
todas as idades. É especialmente notável o conjunto Celebration Park, para exibi-
ções no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris e na Tate Modern, de Londres:
som, luzes, cenografia, maquetes, “animatronics”, projeções e publicações, sem contar
o suporte de artigos promocionais oferecidos ao público pelas instituições por onde
passa. Tornam-se, ao mesmo tempo, paisagens de si mesmo e de sua circunstância:
“aqui, na cidade, estamos num lugar puramente inventado” (entrevista para Artpress,
2006, p. 28).
Em entrevista para Hans Ulrich Obrist (que considera a exposição Celebration
Park como uma “monografia muito singular”), Huyghe (que a acha “uma exposição
de exposições”) afirma que de trabalhar em retrospectivas é “retomar”. Produz o rea-
parecer das obras e o continuar a narrá-las (“de les raconter”).
[...] a repetição é um “statement” que coloca um ponto final na frase, enquanto
que a extensão consiste antes a colocar uma vírgula e a prolongar a narrativa.
Estamos na bifurcação, daí a palavra “roteiro” [scénario] tão freqüente. A narra-
ção não cabe dentro da história, mas ela tornou-se extra-diegética, ela está do
Pierre Huyghe, espaço das agendas na exposição Celebration Park,
Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris, 2006.
215
lado de fora da imagem, de fora da história, ela se situa a montante e a jusante de
sua produção. O que procuramos não é tanto alguma coisa que se resolve na
produção de uma forma determinada, mas que está suspensa em seu movimento.
A narração está na regra do jogo. (Huyghe, 2006, p. 121)
A exposição incluía o vídeo e as peças suplementares de A journey that wasn’t.
Em fevereiro de 2005 Huyghe partiu de Ushuaia, na Argentina, para a Antártida, na
busca da confirmação ou não de um rumor a propósito de uma nova espécie animal
(possivelmente um pingüim albino) vista nas novas praias descobertas pelo degelo em
uma ilha desconhecida. No navio foram, também, mais seis artistas e a tripulação de
dez membros. Teriam chegado a uma ilha não demarcada.
Sobre a presença do animatronic (o pingüim), que Obrist atribui “à vontade
de romper com a lógica da representação para privilegiar a da exposição”, Huyghe
esclarece:
Esse robô é a invenção. Quando o mundo era plano, ele era cheio de zonas de não-
saber de onde nasciam mitos e monstros. Não havia imagens, apenas narrativas, nar-
radores e narratários, alguém contava que tinha visto isto sem dúvida grande e verde,
Pierre Huyghe, espaço das agendas na exposição Celebration Park,
Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris, 2006.
216
a narrativa era contada a um terceiro e por fim nos reencontrávamos com uma sereia!
Em resumo, participávamos da produção dos mitos. (Huyghe, 2006, p. 125)
E prossegue, comentando os rumores anteriores à exposição sobre se a sua
expedição seria ou não exibida de alguma maneira.
O rumor é obscuro, semificcional e isso o torna interessante. Se, numa certa época,
nós imaginávamos esses monstros e essas histórias, hoje nós as produzimos atras
de George Lucas. É a Industrial Light and Magics que faz aparecer os monstros que
povoam o imaginário “mainstream”. Eles têm os direitos e circulam diferentemente.
São os protagonistas dos contos capitalistas, mas não os podemos narrar. O mundo
retornou a ser plano, mas a obscuridade não é mais a mesma.
Após o retorno, fez realizar uma apresentação de orquestra sinfônica no
Central Park, seguindo uma partitura a partir da topografia da ilha (composição
de Joshua Cody), e acompanhada de um espetáculo múltiplo. O registro do even-
to foi editado com as imagens trazidas da viagem, fascinantes, resultando num
curta-metragem quase hipnótico pelo cenário da praia congelada e inóspita e o
balão luminoso. No caso da ilha, num exemplo invertido, desta vez é o artista
viajante quem promoveu a expedição, que desta vez está inteiramente a serviço
de propósitos da arte.
No ponto de partida desse projeto, existe a vontade de produzir as condições de
aparição de uma narração, de inventar ficções depois de se conceder os meios reais
de ir verificar sua existência. (Entrevista para Artpress, 2006, p. 26)
As duas exposições (e acrescente-se outra ainda, pouco antes, Prologue,
proposta como sendo uma prévia) traziam elementos narrativos em profusão: o
próprio Huyghe como marionete, personagem de seu teatrinho (e vídeo), em que
narrou um encontro onírico com Le Corbusier no único prédio deste último nos
Estados Unidos, o centro de artes Carpenter em Harvard; a gigantesca e branca
porta dupla, de duas folhas giratórias e “flutuantes” que percorriam todo o espa-
ço expositivo principal; os luminosos com aforismos; ou os outros vídeos e insta-
217
Pierre Huyghe, espaço das agendas na exposição Celebration Park, Museu de Arte Moderna da Cidade
de Paris, 2006. Celebration Park Agenda (com concepção editorial de M/M, Paris, 500 exemplares.
218
lações conjugadas. E como quase tudo se interliga em Huyghe, algumas imagens
também circulam em outras obras (subprodutos derivados?), como em publica-
ções adicionais (além-catálogos), com concepção gráfica delegada a terceiros (o
que também pode ocorrer em diferentes peças em exposição). Na exposição de
Paris (mas não na de Londres), a edição e o tempo estavam “espessados” por uma
pilha cúbica de falsas agendas com páginas em branco (apenas uma podia ser
manuseada pelo público), formando um grande cubo dourado no centro da sala,
em cujas paredes estava a coleção de pôsteres com dias feriados propostos por
seus amigos (o conjunto de cartazes, por sua vez, era vendido na exposição de
Londres). Nas agendas, Celebration Park Agenda (com concepção editorial de M/
M, Paris, tiragem de 500 exemplares, 568 páginas), disponíveis para venda (afinal,
não eram lingotes de ouro, eram apenas múltiplos), as linhas que delimitam as
datas, separam períodos cada vez menores, separam horas, separam minutos, di-
latam um tempo impossível, demarcam um tempo hiperbólico para a celebração
como desejo interminável.
Nos 48 pôsteres, Huyghe efetiva a apresentação de seu projeto One year
celebration (uma espécie de eco do projeto Association des Temps Libérés, 1995,
agrupando os artistas de uma exposição em Dijon), complementando com a edi-
ção de um álbum coletivo
17
homônimo, totalmente textual. O volume (o número
1 até aquele momento) tem projeto gráfico de Louise Døssing, sendo composto
pela coleção de cartazes impressos em duas cores (textos em preto sobre fundo
branco na frente e amarelo chapado no verso), reduzidos seu tamanho de 120 x
17
Colaboraram do projeto e têm pôsteres no álbum One year celebration (Paris: Onestar Press, 2006): Robert
Filiou, Melissa Dubbin e Aaron S. Davidson, John Baldessari, Tatiana Bilbao e Julio Amezcua, Emily Mast
e Carly Busta, Pierre Joseph, Yona Friedman, Hu Fang, Shimabuku, François Roche, Marc Ganzglass,
Olafur Eliasson, Rirkrit Tiravanija, Jéremy Millar, Dominique Gonzalez-Foerster, Liam Gillick e Gabriel
Kuri, Claude Closky, Maurizio Nannucci, Frederic Tuten, Anri sala, Dan Graham, Koo Jeong-A, Doug
Aitken, Hans Ulrich Obrist, Lawrence Weiner, Julieta Aranda, Marine Hugonnier, Tacita Dean, Matthieu
Laurette, Melik Ohanian, Jérôme Bel, Pratchaya Phinthong, Boris Achour, Anton Vidokle, Catherine
Temerson e Israel Rosenfield, Piero Golia, Aleksandra Mir, Paul Elliman, Olivier Bardin, Enzo Mari,
Agnieszka Kurant, Joe Scanlan, Pash Buzari.
219
84cm para 42,2 x 29,6cm (aproximadamente), dobrados para formar páginas du-
plas (volume equivalente a 196 páginas) e unidos por cola, por isso destacáveis
(mas sem capa, apenas uma folha avulsa como colofão). Em cada pôster o artista
colaborador propõe o seu dia de festejos, acrescentando um pequeno arrazoado
para a escolha. A primeira celebração proposta é para o dia 17 de janeiro, o Ani-
versário da Arte” para Robert Filliou, em um pequeno texto de 1963, reeditado
depois em 1973 a propósito do evento “O aniversário da arte” (“Há um milhão e
dez anos ARTE era VIDA, daqui a um milhão e dez anos ela ainda o será. Feste-
jemos, portanto, o dia todo, sem ARTE, para celebrar esse início feliz e anunciar
esse final feliz.”), festejado em Aix-la-Chapelle (Robert Filliou, 2003, p. 23, 65-
66; texto originalmente escrito em inglês). O texto está reprisado em parte ao pé
do cartaz, em publicação póstuma.
A história da arte sussurrada
Tudo começou um 17 de janeiro, um milhão de anos atrás.
Um homem tomou uma esponja seca e a derrubou num balde cheio de água.
Quem era esse homem, não é importante.
Ele está morto, mas a arte está viva.
Eu quero dizer, vamos deixar os nomes fora disso.
Como eu estava dizendo, cerca de 10 horas, um 17 de janeiro,
um milhão de anos atrás,
um homem sentou-se sozinho ao lado de um curso de água corrente.
Ele pensou consigo mesmo:
Para onde os cursos d’água vão e por quê?
Ou seja por que eles correm.
Ou por que eles correm onde eles correm
esse tipo de coisa.
Pessoalmente, uma vez eu observei um padeiro no trabalho.
Depois um ferreiro e um sapateiro.
No trabalho
E percebi que o uso da água era essencial ao trabalho deles.
Mas talvez o que eu percebi não seja importante.
220
De qualquer modo o dia 17 terminará e será o 18
Depois o 19 depois o 20
O 21 o 22 o23 o 24 o 25 o 26 o 27
o 28 o 29 o 30 o
31
de janeiro
Assim o tempo passa.
Neste aniversário e/ou nos subseqüentes, nós esperamos ver:
- Férias escolares mundiais
- Feriados pagos
Para todos os trabalhadores ao redor do mundo
festividades e divertimentos espontâneos.
Outras celebrações são propostas. Para o dia 17 de fevereiro, John Baldessari
quer “O divórcio místico da arte e do dinheiro, mas não oferece explicações. No
dia 23 de março, Olafur Eliasson quer o “Dia da perda de tempo”, propondo exer-
cícios pela manhã, tarde, noite e horários de refeições, para celebrar “o colapso do
tempo estrutural como nós o conhecemos”. Em 27 de março, Rirkrit Tiravanija
quer “Celebrar o cordão de sapato”, (no seu aniversário exato de criação, que seria
em 1790), com as pessoas amarrando seus cordões uns nos outros para depois mar-
char em solidariedade. O 28 de julho deverá ser o “Dia da obsolescência” para Tacita
Dean, quando serão celebradas as coisas que estão em vias de desaparecer do uso
em nossa sociedade. E assim os cartazes prosseguem, até o 31 de dezembro, de
Enzo Mari: “O 31 de dezembro, segundo o calendário, não é uma festa, por isso é
justo celebrá-la”.
O que encontramos no momento expositivo de Calle, Huyghe e outros que
cenarizam suas próprias vidas parece ser projetos bem mais próprios ao estar ou ser
presente em obra do que o se colocar em ilustração. Não que existam conflitos
entre essas noções. Elas são companheiras, sobretudo quando não sabemos exata-
mente (e isso nos diverte e entretém) onde o tempo e o espaço diegéticos se con-
fundem nas realidades envolvidas. “Eu intensifico esse coeficiente de ficção que
221
está potencialmemte contido nessa situação” (entre-
vista para Artpress, 2006, p. 28). Assim, no caso de ar-
tistas que trabalham em autoficções polimodais, por
mais elaborado que possa ser o seu acabamento, o li-
vro poderá assumir uma função subordinada, mas nem
por isso será menos engajado à integralidade criativa
da obra ou do processo. Mesmo se o livro for conce-
bido por um corpo de editoração com autonomia cri-
ativa (mas sempre sob as expectativas e aprovação fi-
nal do artista), seu papel não será acessório, será ativo,
expressivo e respeitado se corretamente combinado
com os muitos meios disponíveis a quem tenha
capacitação artística para usá-los.
Pierre Huyghe, One year celebration: volume 1.
Paris: Onestarr Press, 2006.
Formato fechado: 21 x 29,7cm, tiragem: 600 exemplares.
222
4. A narrativa visual e a ênfase textual
O projeto alternativo de produção plástica Projeto Ciranda (e seu livro fi-
nal, Ciranda: ensaios em narrativas visuais, 2005, lançado em 2006, anteriormente men-
cionado nesta pesquisa, e a ela diretamente vinculado) foi inscrito em 2007 na pri-
meira edição de uma premiação municipal de artes plásticas em Porto Alegre, justa-
mente para a modalidade “projeto alternativo de artes plásticas”. Foi bem-vinda a
comunicação de que ele tinha sido selecionado para a etapa final de premiação. En-
tretanto, a comissão de seleção posicionou o livro resultante (a coisa despida de
suas circunstâncias, não a proposta artística), que é uma obra visual, para a catego-
ria “produção textual”. Essa pode ter sido uma decisão inadequada, possivelmente
decorrência do caráter debutante do evento. A classificação compartimentada em
modalidades foi conservadora (pintura, escultura, desenho etc.), mesmo assim com
ausências não esclarecidas (fotografia, por exemplo).
A dúvida provocada era sobre o que poderia ser, na concepção do evento,
os conceitos de “projeto”, “alternativo” e “artes plásticas”. A comissão certamente
desconsiderou as conjunturas prévias à sua publicação (a concepção, desenvolvi-
mento, operacionalização, execução, conclusão e reconhecimento do projeto, raro
ou talvez inédito no meio acadêmico brasileiro) e às evidências estéticas do livro
produzido (inteiramente construído com retórica visual adequada ao suporte, pos-
sui pouquíssimo texto). Na modalidade em que foi posicionado ele era um estranho
entre três livros “comuns”, de leitura, trabalhos teóricos ou historiográficos com-
petentes, tradicionais e realmente textuais. Portanto, para a etapa seguinte a segunda
comissão, a de premiação, não encontraria parâmetros de julgamento. Por ser um
livro e por ter alguns curtos discursos textuais, ele provavelmente não pôde ser ava-
liado adequadamente. Foi-lhe vetado ser julgado (aprovado ou não) pela constitui-
ção integral do projeto.
223
A textualidade
Como obra visual, o livro de artista é uma obra que não tem como função
primeira, nem constitucional, ser um veículo para leitura
18
textual. Ele não é, em prin-
cípio, necessariamente para ser lido. Portanto, sendo suporte ou veículo para expres-
sões concernentes ao mundo da arte, a presença de texto nele tanto pode ser uma
contribuição para o alargamento do território de vida e ação do artista, como pode
ser motivo de discordância conceitual quanto ao seu estatuto artístico. O problema,
além da requalificação da leitura, envolve sua plasticidade, como ressaltado por Nella
Arambasin.
De fato, na arte contemporânea “se o livro não se lê mais verdadeiramente, ele con-
tém apesar disso o tempo” [citando Laurence Pythoud, “Mais qu’est-ce donc qu’un
livre unique?”, L’Oeil, n.479, 1996, p. 60], e a presença visível desse tempo concilia à
leitura uma dimensão plástica. É plasticamente que se poderá, portanto, discernir o
processo de transformação da leitura, aproximação ou afastamento que faz dela um
ato ao mesmo tempo de posse e de renúncia, uma dominação estética que se preten-
de um engano sobre o sentido comum das palavras. (Arambasin, 1997, p. 243)
Arambasin concluirá seus pensamentos reconhecendo como fato o livro de
artista ser, já que é assumido como um fetiche, “um exemplo de obra de arte da era da
reprodutibilidade técnica”, em sua multiplicidade reinventando ou ressuscitando o
objeto pessoal, “salvando-o de um naufrágio coletivo” (p. 249).
Existe quem resista em aceitar certos tipos de livros de artista como sendo
também obras de arte, com a resistência mais notável na presença de exposições tex-
tuais. Isso é compreensível, primeiro porque a categoria é imprecisa, ampla e com
algumas insatisfações conceituais internas. Mas também por causa do ressentimento
18
Lembro que para reduzir as ambigüidades nestas reflexões, e muito especialmente neste capítulo, a palavra
leitura é principalmente usada no seu significado inequívoco, como a decifração de signos que representam a
linguagem oral (por exemplo, a leitura de um texto, de uma palavra, do código Morse, de grandezas numéricas,
labial, etc.). Tenta-se, quando necessário, deixar claro quando o uso se der em sentido amplo ou obliquo (por
exemplo, a leitura da obra de arte).
224
contínuo para com certas expressões contemporâneas, um rancor apoiado na defesa
intransigente das artes artesanais históricas e na repulsa à aceitação de obra e de traba-
lho como sinônimos, sobretudo quando a ocorrência do objeto (coisa material ou
mental) se dá em espaços híbridos, transdisciplinares ou midiatizados. Como pressu-
posto já apresentado no início desta pesquisa, os livros de artista stricto senso são, de
forma geral, obras de arte (e também da, para ou pela arte). E como tal, eles têm na
fundamentação pelos critérios da visualidade seu principal eixo identitário. Por isso,
parece presumível que, para um artista, um livro não tenha absolutamente nenhuma
palavra. Uma parte dominante dos livros-objetos é construída dessa forma, o que não
tem causado maiores embaraços aos seus eventuais críticos, já que valores tradicionais
da pintura e da escultura parecem ser considerados bem-vindos no desfrute desse
tipo de obra de arte (e não foram poucos os artistas que propuseram o livro em bran-
co como o livro ideal). A surpresa, por mínima que seja, fica reservada aos livros de
edição, muitos deles assumidamente “analfabetizados”. Afinal, é possível que seja mais
facilmente aceita a ausência da palavra num livro-objeto, principalmente quanto mais
plástico ele for, porque talvez essa inclinação ao naïf pictórico assegure ao olhar con-
servador uma maior “artisticidade” da obra.
Livros-objetos não são, habitualmente, para ler. E com freqüência esse é um
propósito programático do artista. São exemplos notáveis os “livros ilegíveis” e os
“pré-livros” de Bruno Munari. Os ilegíveis começaram a ser feitos pouco depois da
criação do M.A.C., o Movimento Arte Concreta, conjuntamente com Gillo Dorfles,
Atanasio Soldati e Gianni Monnet (em 1948). Os primeiros (títulos: Libro illeggibile,
mais o número de ordem) foram expostos em 1950, em Milão. Eram trabalhos total-
mente iliterados, freqüentemente usando campos de cor, texturas, alterações físicas da
página, etc. Foram realizados durante toda a sua vida (e um ou outro eventualmente
reeditado após sua morte), em exemplares únicos ou edições independentes ou co-
merciais, ou comissionados por instituições.
O objetivo dessa experimentação foi verificar se é possível utilizar como linguagem
visual o material com que se faz um livro (excluindo o texto). O problema, portanto,
é: o livro como objeto, independentemente das palavras impressas, pode comunicar
225
alguma coisa, em termos visuais e táteis? O quê? (Munari, 2002, p. 211; referindo-se à
edição holandesa de 1955, tiragem de 2000 exemplares)
Os pré-livros (I Prelibri, no plural) foram uma decorrência funcional dos ile-
gíveis. Também inteiramente visuais, exceto pela presença dos elementos de capa (tí-
tulo, Libro, e informações de autoria, editora e ano). São doze livrinhos de 10 x 10cm
de materiais diversos. Não têm palavras nem figuras complexas, apenas cor, textura e
elementos anexos. O Libro 1 é de cartão natural e páginas unidas por barbantes. O
Libro 9 tem capas e páginas de madeira muito fina. O Libro 11 é todo de plástico
transparente. O material varia: tem livrinho costurado, com espiral, com páginas de
papel, de tecido... O formato pequeno é em função do propósito declarado num livreto
suplementar (I prelibri): caber na mão de uma criança de cerca de três anos, período
em que ela está em fase de familiarização com o objeto, propícia a conhecê-lo como
“instrumento de cultura ou de jogo poético” (citado em Maffei, 2003, p. 154). Para
Bruno Munari, I prelibri, 1980, 2002, 2004 (na foto, 2
a
impressão; Mantova: Corraini, 2004).
Cada livro mede cerca de 10 x 10cm, encartados em estojo 28,2 x 39,4cm.
226
Munari, a partir de três anos uma criança se interessará por imagens que tenham sido
concebidas para ela, e, a seguir, por histórias gradualmente mais complexas: “Um bom
livro para crianças dos três aos nove anos deveria narrar uma história muito elementar
e incluir figuras inteiras, a cores, muito claras e precisas” (Munari, 1987, p. 71 e 74).
Dessa forma, parece justo supor que seus pré-livros realizam a possibilidade de
funcionalização que aos seus livros ilegíveis não interessava.
Segue-se o projeto da “mensagem” no interior [...], de forma que, seja qual for o lado
por onde inicie o livro, o conteúdo tenha um nexo lógico. Essas mensagens não de-
vem ser histórias literárias acabadas, como as fábulas, pois isso condiciona muito a
criança, de forma repetitiva e não criativa. Todos sabem que a criança gosta de ouvir
a mesma história várias vezes [...]. Assim destrói-se na criança a possibilidade de ter
um pensamento elástico, pronto a modificar-se segundo a experiência e o conheci-
mento. (Munari, 2002, p. 224-225)
Munari era prolífico, mas também prolixo. E muito. Concebeu ou escreveu
de tudo, de livros ilustrados a livros teóricos e didáticos. Publicou e fez publicar, e
parece ser um caso rarefeito de criador e artista com grande número de variações
livrescas na sua produção. Sabia bem que a presença maior ou menor de texto identi-
ficava territórios: “Esse livro [Nella notte buia, “na noite escura”, finalmente publicado
em 1952, narrativa ilustrada para crianças], recusado por diversos editores porque ‘não
tinha texto’, teve depois várias edições” (Munari, 2002, p. 219).
Muitos teóricos da arte apontam, às vezes com constrangimento, o fato de que
os livros-objetos, os livros escultóricos, as esculturas “livro-referentes”, os jogos e ape-
trechos bibliomórficos, tenderem ao afastamento cada vez maior do códice e seus vari-
antes e, com, isso sofrerem, em muitos casos, a mortificação de se tornar objetos
disfuncionais. A carência de funcionalismo não se daria propriamente no plano háptico
ou mecânico do uso da obra (a funcionalidade nem mesmo é um quesito artístico uni-
versal, embora faça parte direta ou metafórica de muitas obras). O distúrbio funcional
na realidade parece estar na perda ou abdicação da natureza pragmática do discurso
(num livro, o enunciado oral ou escrito está inserido numa situação de comunicação).
Por que usar os meios plásticos apenas para metaforizar o livro e a leitura?
227
Aqui no nosso problema específico, o enfraquecimento (e às vezes a morte)
do discurso narrativo em livros-objetos é quase uma norma. Existem exceções, sem
dúvida. Lenir de Miranda, por exemplo, que no seu ciclo de peças dentro do gosto
pictural, acrescenta aos seus livros únicos (ou às vezes com cópias) textos manuscri-
tos ou colagens com textos em caracteres compostos; esses textos não são primordi-
almente decorativos, mas efetivamente para serem lidos; são habitualmente vincula-
dos ao imaginário de James Joyce e podem trazer sua (dela) personagem Agnes Bloom,
literariamente construída, que vive e se relaciona dentro de sua cidade do sul do Bra-
sil. Poderiam ser citados outros exemplos de fuga da regra. Porém, a incapacidade ou
a inconformidade em produzir texto é quase norma nesse tipo de produção
bibliomórfica.
A palavra plástica
O fenômeno da agrafia teria dificuldade de se repetir num livro de edição,
que este não tenderia a se sentir culpado por estar mais bem integrado à sua época. A
palavra, nele, tem uma freqüência variável, desde o vocábulo mínimo, único ou ape-
nas seu fragmento, até a palavra plenipotenciária, ocupando toda a obra e superexpondo
(obcenizando, deixando ver o que não era para ser visto) as narrativas standard de
forma invasiva dentro do circuito das artes visuais. Redigida para o espaço da página,
lugar com alocação preestabelecida para a prosa e o verso, a narração se submeterá,
em graus de intensidade e de mutação variáveis, às regras das artes visuais, sobretudo
à busca do peso relativo como obra. É assim uma parte significativa das publicações
conceituais, por exemplo. Também são assim muitos livretos de produção marginal
(ou periférica), ou ainda uma boa parte dos livros-poema ou de poesia visual. Nesses
trabalhos, a quase ausência de narrações textuais mais complexas e sem subterfúgios
não impede que se suponha a sua presença em um plano paralelo (como pode acon-
tecer nos discursos apostos a uma obra de arte visual). Nesses casos é bem mais sim-
ples ser contemplativo, já que a palavra e sua conseqüência, a leitura, propiciariam
devaneios de outra ordem.
228
A contemplação exige reconhecimento mesmo da ausência. O que não é vis-
to precisa ser visto, porque o que não se vê pode ser o espaço positivo, pode ser a outra
parte do devaneio do texto (e sempre voltaremos à Mallarmé, a Carrión, a tantos
outros). O vazio e o silêncio coexistem com a escrita e com a fala. Dieter Roth, em
sua ortografia fonética defende o branco e sua função na seqüência do discurso. Em
alemão: “aine saite ler lasen / si bekomt genvg bedoitung fon andern saiten her vo
etvas stet” (Diether Roth, 2004, p. 128). Ou, na versão inglesa: “leev wun payj empti / it
reseevs enuf meening from otha payjes wair sumthing is ritten”. Em português isso
poderia ser lido mais ou menos como: “deixe uma página vazia / ela recebe significa-
do suficiente das outras páginas onde algo está escrito”.
“Escrita é linguagem visível”, resume Eugen Gomringer no início de uma
carta (para Kostelanetz, 1979, p. 153). Volto-me, portanto, à visão da letra, do
caractere celular, ou seja, do tipo e da tipografia (da tipologia). Tenho à minha fren-
te um desenho que pode ser descrito como sendo composto por duas circunferên-
cias afastadas uma da outra por uma distância equivalente à largura de uma delas.
No espaço entre elas está uma linha quebrada ao meio, com o vértice para baixo e
as extremidades para o alto, formando um ângulo de cerca de 30 graus. A descrição
precedente relata uma figura. Ou então eu poderia dizer que vejo a palavra “ovo.
Talvez, para ser exato, deveria dizer que “leio” a palavra “ovo. Mas por força da
minha formação artística, ou da destinação artística desses pensamentos, sim, “vejo”
a palavra “ovo. A partir daí, busco precisar as primeiras qualidades genéticas de
sua existência. Ela é manuscrita? Ela é impressa? Identifico se é grossa ou fina, se é
reta ou inclinada, se tem serifas ou não. Tento reconhecer a família tipográfica a
qual ela pertence e, a partir disso, se é romana, se é germânica, francesa, britânica,
gótica, renascentista, neoclássica... Posso discernir suas qualidades estilísticas, se ela
foi criada no ateliê veneziano de Aldus Manutius ou se foi institucionalizada pela
Escola de Belas-Artes de Glasgow. Mas não importa quão profundo ou
intelectualizado seja o reconhecimento prospectivo das determinantes estéticas de
uma palavra, a sua primeira, onipresente e incontornável função instrumental é a
leitura. De imediato e até ao cabo, a leitura (decodificação com ou sem locução) de
ovo” será quase inevitável (bastando que eu seja alfabetizado). A qualidade dessa
229
leitura trará consigo toda uma rede ou sistema de relações de significados afetivos,
plásticos, históricos, políticos, etc.
Será nas edições onde o artista está distante dos processos técnicos de
efetivação do projeto gráfico que encontraremos um ponto claro de discórdia, de
cisão, sobre o lugar da arte na obra bibliomórfica, tenha ou não tenha textos. Os
amantes da tatilidade e dos outros sentidos formam o grupo de frente da tradição, em
que a obra deve ser reconhecida como amalgamada no próprio suporte, deve ser pic-
tórica e artesanal, deve ser gravada, deve ser picassiana. Nesse caso, a reificação, que
excita mas às vezes interrompe a arte, poderá reduzir a receptividade às possibilidades
contemporâneas das narrativas visuais. Para outro grupo, o dos amantes da criatividade,
ao contrário, a materialidade explicitamente artesanal é prescindível e a obra pode
nascer da atitude, pode ser impressa, pode ser duchampiana. Valor maior será atrib-
do à dispersão ou decomposição da obra global em obras outras, parciais ou específi-
cas, que configurarão o corpus artístico de um indivíduo (ou um coletivo). Essa situa-
ção permite acesso significativo da arte à palavra funcional (que pode narrar, que
pode dissertar, descrever ou contar uma história).
São os livros do segundo grupo os que vivem mais intensamente a ambigüi-
dade de estar entre os frutos intermidiais da arte contemporânea e, por isso mesmo
ou apesar disso, eventualmente sofrerem a objeção por serem “coisas” artísticas com
identidade plástica. Sem sair de dentro do sistema das artes visuais, eles adaptam o
sistema literário “escritor, obra, leitor” para o artístico “artista, obra, vedor”, resultan-
do numa tríade compósita e dilatada, com perfis como “criador autor” e “vedor lei-
tor” em volta de um conceito bastante generoso de obra. Isso soa redundante, mas
desde o último terço do século XX tem trazido desconfortos taxonômicos aos aman-
tes da arte mais conservadores e puristas. Ao mesmo tempo, engendra convívio em
novos territórios de mercado, compartilhando com as atividades mais francamente
(ou necessariamente) narrativas questionamentos como a definição de autoria e a iden-
tidade da obra de arte. O livro de artista, seja ou não apenas visual, como todo livro,
impõe a valoração autoral. O modelo desse processo é preexistente e está no códice
comum, para leitura de escrita, que tende a abstrair-se em prol do autor, como lem-
brado por Regina Zilberman.
230
Nada mais conveniente, para a sociedade do livro, do que a aura de que se reveste a
figura do criador, aparentemente seu proprietário único. Permite ocultar a materiali-
dade do produto que o difunde, encobrindo ao mesmo tempo o sistema econômico
que o sustenta. (Zilberman, 2001, p. 112)
A materialidade não é encoberta num livro de artista, pelo menos não nor-
malmente, muito menos sua visualidade. Mas o que dizer de um livro totalmente
textual que se quer pertencente ao domínio das artes visuais? A passagem a esse
problema plástico não é imediata. É preciso antes perceber a palavra como célula e
o espaço por ela ocupado como um ambiente placentário. Note-se que, embora
menos freqüentes, tentativas continuam a existir de fazer prosa a partir da ocupa-
ção visual do território da página, como em certas propostas da editora inglesa Book
Works, especializada em livros de artista. Sua série New Writing foi concebida vi-
sando o cruzamento de fronteiras entre arte e literatura, produzindo “um nicho
distinto para escritos de artistas e de escritores com atitude questionadora com res-
peito à forma ou que são curiosos sobre as conexões que seus interesses podem ter
com a arte visual e seu público” (Rolo e Hunt, p. 33). Mas em geral os esforços são
oriundos das letras, nos quais o livro literário reivindica aprovação da estrutura vi-
sual de seu projeto textual. Ao prefaciar seu Minimal fictions, 1994, Richard
Kostelanetz, que transita no terreno da palavra no espaço (tanto da própria experi-
mentação como da crítica), desabafa seus anseios.
Dentro do reino da ficção, tenho produzido, entre outras escapadas, narrativas de
apenas uma ou duas palavras até um parágrafo, histórias cujo desenvolvimento vem
dos padrões visuais cambiantes de suas palavras, histórias compostas inteiramente
de fotografias sem legendas, histórias circulares que fluem de ponto a ponto, mas
perdem começos e finais precisos, seqüências de desenhos não representacionais
cuja metamorfose de imagem para imagem evoca narrativa e livros inteiros com-
postos de histórias de uma única sentença. Como um admirador da arte visual mí-
nima quase desde seu princípio, era talvez inevitável que eu eventualmente explo-
rasse na ficção a mesma estética de fazer mais com muito menos, criando peças
com palavras cujo conteúdo ostensivo seria tão franzino quanto possível, e ainda
assim sugestivo. (p. 5)
231
Kostelanetz sabe que suas ficções não permitem uma leitura da forma tradi-
cional, adaptada a maioria da ficção que conhece, “plenas de conteúdo ostensivo para
apenas um caráter sugestivo modesto”. Sugere que suas histórias sejam lidas cuidado-
sa e pacientemente, devendo “ser lidas como poemas são lidos”. Em Minimal fictions
suas histórias ocupam uma página cada, com palavras ou locuções assumindo dire-
ções variadas no espaço, parecendo muito com poesia visual (e possivelmente parte
dos leitores as classificariam assim). A exceção é “More or less”, a história que encer-
ra o livro, com cunho erótico explícito (o que chega a causar risos). É diagramada em
uma coluna única de percorre quinze páginas, entremeando seqüências de texto com
linhas formadas pela repetição de 35 sinais tipográficos. A primeira linha legível tem
uma única palavra, a segunda tem duas e assim sucessivamente até 64 termos, quando
passa a diminuir novamente até a unidade.
[...]
Sim, o, não, sim, não, sim, não, sim, sim, não, não, sim, sim, não, não, sim,
não, não, sim, não, sim, sim, não, não, sim, sim, sim.
               
                
Ela contemplou meu cabelo, sorriu, proclamou-me
o maior amante que já tinha conhecido, apesar de estarmos apenas começando e
de que sua experiência fosse incontestavelmente limitada.
Mais, mais,
mais, ela gritou [...] (Obra citada, p. 101)
Kostelanetz não abandona de forma alguma a premissa literária, afinal ele é de
fato um escritor. Mas defende seu direito de reivindicar a maleabilidade ativa do texto
narrativo, numa espécie de plastimodelismo da palavra. E sua obra tem sido freqüentadora
habitual das prateleiras de Printed Matter, Florence Loewy, Art Metropole, Boekie Woekie
e outras livrarias ou lojas de múltiplos e publicações de artistas.
Geralmente não se espera que o eventual texto de um livro de artista tenha
identidade literária. Embora esse não seja o caso, tanto a literatura tem o direito de
querer ver sua parcela de contribuição reconhecida onde quer que existam palavras or-
ganizadas, como a segmentação de mercado precisa saber onde distribuir essas publica-
ções. Indagando se os livros de artista seriam novas escrituras híbridas, o periódico lite-
232
rário Action Poétique entrevistou a livrei-
ra parisiense Florence Loewy (edição es-
pecial com dossiê organizado por
Véronique Vassiliou). Na conversa, lem-
bram Un coup de dés jamais n’abolira le
hasard (ou Um lance de dados jamais aboli-
rá o acaso), 1969, de Marcel Broodthaers,
um clássico ágrafo editado em papel
semitransparente como contrapartida
visual ao poema homônimo Un coup de
dés jamais n’abolira le hasard, 1896, de
Stéphane Mallarmé. Na sua obra Broodthaers substitui as palavras por retângulos pre-
tos de igual área de impressão (comprimento e altura), saudando o pensamento
diagramático em Mallarmé (que para ele é expressamente o fundador da arte contem-
porânea). Na capa existe apenas uma muito discreta menção ao conteúdo, bastante abaixo
do título. Onde habitualmente estaria registrado um gênero literário (conto, novela, po-
esia, etc.), está informado image (imagem), em maiúsculas, substituindo o poème (poema)
das edições originais da obra de Mallarmé. Essa informação é às vezes tratada como um
subtítulo que ajuda a distinguir uma obra da outra.
Eu que venho da literatura, completamente da literatura, na primeira olhada eu digo: isso é poesia.
Eu finjo pegar esse livro como se eu pegasse não importa que outro livro numa livraria. Pois essa é
sua destinação, a livraria (se trata de um livro). Assim, eu poderia tentar lhe apreender com ferra-
mentas da língua. De fazer uma descrição com as ferramentas da gramática, da métrica, etc. Coisas
me escapariam do interior porque, de toda evidência, essa não responde exatamente aos cânones da
poesia, mas é exatamente essa questão que Mallarmé propunha no começo do século. Mallar
revisto, aliás, por Broodthaers.
Sim, mas Broodthaers é sintomático da passagem do escrito para o visual. Em rela-
ção à Mallarmé, que é já muito interessado pela diagramação e pelo visual, Broodthaers
radicaliza fazendo suas tiras negras no lugar do texto e isso corresponde à sua passa-
gem pessoal da poesia às artes plásticas, já que ele, no princípio, era poeta e livreiro e,
portanto, é sua entrada, se eu posso dizer assim, no mundo da arte contemporânea.
Marcel Broodthaers,
Un coup de dés jamais n’abolira le hasard [: image], 1969.
Imagem cedida pelo Museum of Modern Art,
Nova Iorque, para Silveira, 2001, p. 150.
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Depois ele desenvolveu uma obra plástica. Broodthaers aboliu a língua para se deter
unicamente no visual e no espaço.
E a entrevistadora prossegue.
Eu li em O homem sem qualidades uma passagem onde Musil propõe que se escreva um poema
substituindo as palavras por traços. E no seu livro (de escritor), ele o diz e o faz: ele faz um poema
com traços no lugar das palavras. Esse extrato me indaga. Porque Broodthaers faz seu Lance de
dados em 1969 e Musil escreveu esse texto nos anos trintas. Mesmo se em Broodthaers se trate de
um passo...
É um percurso, em Broodthaers. [...] Nos exemplos que eu escolhi, não é fácil de
falar de uma relação texto/imagem. É muito freqüentemente o texto ou a imagem, e
quando existe texto são freqüentes as apropriações ou as citações do domínio literá-
rio justamente que interessam os artistas. (Action Poétique, 2001, p. 56-57; no original,
tipos itálicos para as perguntas)
Craig Dworkin, em seu estudo sobre as conformações da ilegibilidade, des-
taca que o livro de Broodthaers, além dos seus outros méritos plásticos, apesar de
ser ágrafo (ou talvez por causa disso) oferece interesse até mesmo para os leitores
da poesia de Mallarmé. Para Dworkin, Broodthaers, tornando ilegíveis as referênci-
as da linguagem, mas enfatizando sua dimensão espacial, possivelmente tenha pro-
duzido a mais famosa obra a evocar uma “estética de censura refrescantemente bo-
nita” (2003, p. 150).
As experiências relacionadas ou prévias à poesia concreta parecem reivin-
dicar o reconhecimento como abre-alas. São experiências que se escoravam em cons-
truções com origem na consistência diagramática da poesia e na instrumentação do
espaço físico sem o verbo (além de locução lúdica, etc.). Com origem marcadamente
literária, eram abertamente compartilhadas com os artistas visuais, oferecendo solo
criativo comum. Conhecemos especialmente bem o reconhecimento (às vezes a in-
disposição) à poesia concreta internacional (e à brasileira em particular), mas lem-
bremos também as vanguardas do início do século XX, as variações do construti-
vismo, o dadaísmo, etc. Será nas criações dos últimos cinqüenta anos que iremos
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confirmar a abdução sem cerimônia pela arte da palavra em prosa, da palavra ins-
trumental (que encaminha à narração), seja usada minimamente, seja verborrágica e
totalitária. O caso de Broodthaers é ainda mais importante e especialmente relevan-
te. Ele vai além do uso plástico banal (decorativo ou compositivo) da palavra, por-
que não é somente a sua função como suporte estético que o interessa. Ela precisa
ser usada ou revelada também em outras funções, sobretudo como transportadora
de mensagem, o que a sujeita para as artes visuais como ferramenta constitutiva das
suas ficções (museológicas, por exemplo). Ou, ao inverso, sujeita as artes visuais à
convivência renovada com a palavra. É um exemplo acabado de criação que recai
na heterogeneidade constitutiva da obra contemporânea, sem ser prisioneira sub-
missa de um meio (do medium). Instaura uma narrativa alternativa, construída em
muitas camadas de uma estrutura que ao distanciar-se do fetiche da artesanalidade,
deixou de ser simples ou meramente contemplativa. Esta nada mais é do que a es-
trutura composta da arte (ou da obra de arte) de hoje, imersa no “complexo” de sua
condição pós-moderna (Krauss, 1999, p. 45 a 51).
Onde quer que a palavra surja num trabalho artístico, explicita-se outra pos-
tura. Normas e códigos adicionais interferem no desfrute da obra. E a maioria des-
sas regras são para mãos limpas. A eloqüência (a retórica) apresenta-se para cumprir
seu papel, agora ao lado dos atores constitutivos do espaço compositivo visual. Mas
o mundo da arte não exige que nele a palavra cumpra a construção das mesmas
cadeias semânticas, por exemplo, da literatura. A frase verbo-visual é peculiar, pode
prescindir de ter um sujeito, um verbo ou um objeto “escritos” de forma clara. A
partir desse pressuposto, pode-se propor uma indagação primeira, sobre o que se-
ria, num livro de artista, uma frase apresentada minimamente. Ou talvez seja mais
produtivo identificarmos as possibilidades da palavra avulsa (aí incluída a letra) para
alguns tipos de discurso plástico onde a página não é obra inteira, mas uma célula
(um estudo complementar poderia ser feito para a chamada page art, onde a página
assume relevância final).
Começando pelo quase nada, quase nenhum texto, estabelecendo uma apro-
ximação ao que seja o mínimo, um primeiro exemplo pode ser o caso já estudado
de Twentysix gasoline stations, de Edward Ruscha, onde as palavras são legendas. Es-
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clarecem o quê (a identidade do posto de gasolina) e onde (a cidade e o estado
norte-americano de sua localização). São legendas porque é isso que precisam ser:
legendas. A função como tal é indiscutível, sendo uma decisão manifesta do artista.
É preciso mostrar os pontos percorridos e indicar que existe um caminho, seja ele
real ou ficcional. É preciso sugerir uma história. Esse enredo está bem próximo do
mínimo, um trajeto que poderia não ser adivinhado apenas pelas vinte e seis fotos, e
que se confirma como percurso pela exatidão das vinte e seis legendas (tomo a
liberdade de sugerir a noção de percurso como um trajeto romantizado). Diferente
de um livro com poesia concreta, por exemplo, em que a palavra é tanto meio como
fim sem que haja dúvida disso, em Twentysix gasoline stations a palavra não tem atribu-
tos estéticos significativos, mimetizando-se como um simples apêndice ao visual.
Um falso simples apêndice, já que é um complemento nobre que ativa a imagem.
Serve a uma proposta artística oferecendo-se em suas funções primeiras: enunciar,
denominar. Ruscha tem a necessidade programática de localizar os postos de servi-
ço. Caso imaginemos esse livro sem nenhuma das fotos, tendo apenas as legendas
posicionadas em páginas em branco, teríamos outra obra, claro, mas teríamos um
efeito narrativo bastante semelhante.
Um segundo exemplo, ainda de Ruscha (e também já comentado), Crackers,
de 1969. Aqui o mote se funcionaliza como interjeição, reconstruindo a fala direta-
mente ou o pensamento representado em fala. A presença numérica de palavras
encontrada na seqüência narrativa do livro é mínima, a unidade (porém, deve ser
lembrado que o pequeno conto “How to derive the maximum enjoyment from
crackers”, de Mason Williams, 1967, que serviu de inspiração a Crackers, está repro-
duzido na orelha da contracapa). A única palavra do corpo narrativo do livro é
apenas essa mesma, do título, “Crackers!”, como o súbito despertar de uma lem-
brança de algo que está faltando, o toque final (os biscoitos), em uso interjetivo.
Esse livro quase cem por cento visual é tão francamente narrativo que a sua única
palavra transcende a própria elocução. Ela parece ajudar a dissolver, a assentar a
narrativa visual em seu próprio suporte gráfico. Ela ajuda a tornar plana, ela “cha-
pa” a obra. Independentemente de existir uma versão filmada do trabalho, só aqui a
exclamação funciona como um determinante da bidimensionalidade, mais ou me-
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nos como numa fotonovela. Porém, não são exatamente regras de fotonovela que
estão sendo rigidamente seguidas, tampouco se trata de uma simples paródia. É um
jogo de cena com um enredo em que a palavra anuncia ou antecipa um clímax. E o
seu uso meio cafajeste é tão importante para sugerir misoginia, descaso, desforra,
seja o que for, quanto a situação mostrada na seqüência fotográfica. Nesse livro a
palavra se esvaziaria sem as imagens que a circundam, outra das diferenças dele
com as fotonovelas da época, que tinham além dos balões de fala, comentários adi-
cionais do narrador. Além disso, a unidade narrativa da fotonovela era o quadrinho,
com a fotografia ao seu serviço, enquanto aqui é a página inteira que desaparece a
serviço da cena. E as diferenças e as semelhanças estão relacionadas. O romantismo
risível (dirigido a um público predominantemente feminino e acrítico) na fotonovela
encontra seu outro lado na desfaçatez de Crackers. E se num o público é “cultural-
mente pouco exigente” (Reis e Lopes, 2000, p. 180), noutro ele é consumidor do
inusitado e exigente de novas experiências estéticas.
Uma única palavra é o mínimo contábil, mas o mínimo artístico pode ser
menor que um. A palavra pode esmaecer, pode se vaporizar, sumir gradualmente,
deixando de existir. Do ponto de vista lingüístico, ou a palavra é ou não é. Se um
conjunto de letras (ou uma letra apenas) não mais puder ser interpretado, quando não
for mais possível atribuí-lo um som ou um significado, quando não puder mais cons-
tituir um enunciado, enfim, quando não puder mais ser lido, então terá deixado de ser
uma palavra. Mas poderá, claro, ser uma coisa que foi uma palavra ou uma que ainda
virá a ser. Para essas conclusões será preciso ler seu entorno, porque o entorno deter-
minará a forma, ele indicará uma serialidade, sugerirá um sentido de direção, proporá
um ritmo, uma cadência. Michel Foucault, refletindo sobre Magritte e as telas com
“legendas” Ceci n’est pas une pipe, comenta a contribuição dos espaços em branco para
a leitura.
Sobre a página de um livro ilustrado, não se tem o hábito de prestar atenção a esse
pequeno espaço em branco que corre por cima das palavras e por cima dos dese-
nhos, que lhes serve de fronteira comum para incessantes passagens: pois é ali, sobre
esses poucos milímetros de alvura, sobre a calma areia da página, que se atam, entre
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as palavras e as formas, todas as relações de designação, de denominação, de descri-
ção, de classificação. (Foucault, 2002, p. 33)
Voltando aos dois Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, lembramos que
Broodthaers, fez desaparecer o texto (ou substituí-lo) sob retângulos pretos, obrigan-
do as palavras (legíveis, interpretáveis) a deixarem de existir. Em seu lugar está uma
miríade de pequenas tarjas negras que, determinadas pelo espaço em branco, indicam
que “foram” palavras. Ou que o desenho de uma palavra não é uma palavra, portanto,
como desenho, não precisa ser legível. Porque se for legível voltará à condição de
palavra. Ou, numa qualidade também interessante, será o desenho de uma palavra
que guarda, por semelhança funcional, sua legibilidade. E então todo desenho “legível
como uma palavra” é uma palavra?
Para que o texto se desenhe e todos os signos justapostos formem uma pomba, uma
flor ou um aguaceiro, é preciso que o olhar se mantenha acima de todo deciframento
possível; [...]; é preciso que o texto não diga nada a esse sujeito “olhante” que é voyeur
[sic], não leitor. Com efeito, desde que ele se põe a ler, a forma se dissipa; à volta da
palavra reconhecida, da frase compreendida, os outros grafismos levantam vôo, le-
vando com eles a plenitude visível da forma, deixando apenas o desenrolar linear,
sucessivo, do sentido [...]. (Foucault, 2002, p. 26)
O sabor suave dessas reflexões tem um tempero especial porque isso tudo
não acontece no domínio do múltiplo impresso, o lugar por excelência da palavra sob
projeto, usurpado naturalmente do antigo território da escrita caligfica. O pensa-
mento aparenta maior “limpeza” quando verificada no terreno das reflexões sobre
obras de arte pictórica de realização inteiramente artesanal, como é no caso de Foucault
(ver a continuidade das suas reflexões, especialmente nas páginas seguintes da obra
citada). Caso ele tivesse os olhos voltados para a realidade artística contemporânea
então em processo à sua volta, possivelmente seu pensamento se ramificaria sobre
problemas estéticos menos serenos. Aqui, agora, hoje, com o território da intermídia
definitivamente associado às artes visuais, o substrato comum à imagem e à lingua-
gem parece ser mais rico, mais “sujo”, no sentido de ser também criativamente mais
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fértil, a todo tempo inseminado ou contaminado pelo pensamento e seus discursos.
Somente na jurisdição da arte e do projeto a palavra pode existir simultaneamente ou
alternativamente como personagem plástica, reproduzida fotograficamente em suas
expressões cursivas e manuais, ou atualizada em sua glória maior, em seu estado
iconologicamente mais impositivo e modelar, a existência tipográfica, impressa.
Se, em essência, para a narrativa visual a palavra é desnecessária e, portanto,
dispensável, para a narrativa escrita e oral da maioria das linguagens ela passa a ser
uma unidade construtiva quase indispensável. O que nos é dito ou oferecido a ler faz
o nosso tempo passar enquanto nos propicia a recriação imaginativa de outros tem-
pos. Nisso tudo se percebe um sentido de dinamismo subjetivo, uma mobilidade in-
trínseca peculiar, onde os diversos tempos atuam como discos de embreagem que
transmitem, trocam ou limitam energias. A lógica da narrativa visual das publicações
de artista pode até ser semelhante à literária. Mas na sua decifração serão preponde-
rantes códigos particulares. Pode ser parecida com a lógica da narrativa visual cinema-
tográfica, com a qual também tem muitos processos em comum, mas também daqui
ela guarda distância. E assim por diante. Tudo porque ela dificilmente deixa de obede-
cer às normas e condições próprias dos seus suportes.
Apreciemos, então, a palavra física, grafada, desenhada, pintada ou eletroni-
camente editorada, como estas que foram escritas uma a uma e que estão sendo lidas
neste momento da mesma maneira, uma a uma. É esse enfoque que interessa primei-
ro aos artistas, especialmente quando conceitos estão envolvidos. No mundo visual,
repetimos, a presença da palavra, quando ocorre, tenta ser intensa e parece ser invasiva.
É sempre desafiador unir palavra e imagem num resultado plástico harmônico e con-
vincente. Subterfúgios gráficos e pictóricos passam a ser necessários para estabelecer
com sucesso as relações sempre presentes entre e figura e fundo. Soluções muito fre-
qüentes tendem a incluir conceitos caros à visualidade, como aparição e desaparição.
Tornar visível (ou seu inverso) é um pressuposto (ou uma prerrogativa) da arte. Refle-
tem-se nela as questões vitais: ser ou não ser.
O que narrar de seu, dentro de seu tempo, com os meios plásticos à sua
disposição? Diz Jean Le Gac, um artista narrador por excelência, e de muitos meios:
“Eu sou um pintor dos anos 70, e isso explica por que eu uso a escrita e a fotografia,
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mas não me sinto um escritor e muito menos um fotógrafo. (Citado por Sara Guindani,
em Maffei e Picciau, 2006, p. 29 ou 32.) Não será a pintura, em seu status tão elevado
entre as artes, o veículo por excelência para a narração visual na arte contemporânea,
embora seja ela a primeira grande legisladora dos princípios para a “leitura visual”
estanque. A narratividade nasceu com ela. Mas há limites e excessos, conforme
Fresnault-Deruelle (a propósito de certas telas surrealistas).
A única possibilidade de narração, isso que se poderia chamar a promessa de espe-
táculo, dito de outra forma esse suspense indefinidamente prolongado que permite
a todo esse canevás de índices fazer oscilar o tempo fora do tempo, ou seja, a
narratividade, é uma das vias que conduz a pintura a se aproximar de si. Do mesmo
modo que as imagens mais oníricas são as imagens realistas e não as imagens de
sonho muito abertamente desenhadas como tal, pode-se adiantar [...] que as ima-
gens que possuem a maior carga recitativa não são aquelas onde se desenrola a
princípio o espetáculo da ação. A imagem narrativa (que se quer assim) mata a
narratividade e com isso o enigma que tem por vocação esconder-se nela. (Fresnault-
Deruelle, 1993, p. 193)
A licença para ler ou não ler deverá ser pedida a quem? Para quem escreve
ou para quem vê? Problemas de lado a outro, talvez mais agudos nas proximidades
do campo literário. Para Dworkin, em princípio poemas não se extinguem. Sobre o
crescimento da dramaticidade e do grau de ilegibilidade provocado pelos efeitos
visuais (como a sobreimpressão) em textos, estuda o exemplo de um único poema,
de James Camp, repetidamente impresso em um livro de Rosmarie Waldrop, Camp
printing: “Falar da natureza “puramente visual” de tais textos, entretanto, ou isolar
sua leitura por classificá-los como arte “visual”, seria um equívoco – e não só por-
que a escrita é ela mesma (sempre) já uma arte visual” (Dworkin, 2003, p.72). Será?
Talvez, sob certas circunstâncias, sob certas aprovações. É o rumo da correção, da
rasura, da obliteração que o interessa. “Conforme um texto se movimenta ainda
mais em direção da completa ilegibilidade, a decrescente capacidade denotativa de
suas palavras ajuda a colocar em primeiro plano o potencial do próprio meio de
significar, indiferente a qualquer ‘conteúdo’ específico” (p. 73). Dworkin ilustra o
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desaparecimento da palavra e, em seu lugar, a evidenciação da condição de algo que
é, sem dúvida, um poema, com os “versos” compostos apenas por linhas de Man
Ray, Lautgedicht, 1924 (“poema sonoro”).
Sem acesso a uma única palavra, o vedor [viewer] imediatamente sabe algo do gênero
e objeto do poema (e estamos seguros de que é um poema); não é um haicai nem um
épico, por exemplo, e é provável que seja mais convencional do que experimental,
mais lírico que narrativo. [...] “Lautgedicht” se equilibra com duas estrofes mais lon-
gas no seu centro e então transmite um forte “sentimento de término” com a robus-
ta e limpa quadra final de versos tétradicos, em que as extensões das linhas, que vari-
aram em todo o poema, acomodam-se numa muito maior uniformidade. (p. 73-74)
Dworkin vê nos exemplos que cita mais do que formalismo, mas sem negar
sua existência, que a vislumbra “legível”. Não são sem propósito as citações de Roland
Barthes, “para a escrita ser manifesta na sua verdade (e não na sua instrumentalidade),
ela deve ser ilegível”, e Edmond Jabès, “leia o vazio” (p. 138).
A palavra não existe mais em Velázquez, 1996, de Waltercio Caldas (também
apresentado em alguns registros de exposições com o título O livro Velázquez). Trata-se
uma obra de formato grande e com papel de alta qualidade adequado à impressão a
cores. Tem capa dura e sobrecapa, com apresentação geral elegante e sofisticada, quali-
dade que o distancia da média dos livros de artista publicados nos anos 70 e 80. O
trabalho emula os livros “de luxo que são freqüentes na livrarias e, às vezes, nos jorna-
leiros. Chamados também de livros de mesa, essas obras são geralmente monográficas,
destinadas ao leitor que busca acesso à arte por
um caminho conforvel e de aparência
“confiável”. Como na época de sua publicação
ele foi distribuído na rede de livrarias conven-
cionais do Brasil, um país sem o hábito de se
deparar com artistas que trabalham com livros,
causou espanto e dúvidas. Tudo parece normal
num olhar mais rápido. Mas a capa está fora de
foco e todo o miolo também!
Waltercio Caldas, Velázquez.
São Paulo: Anônima, 1996.
241
Página após página, todo o livro Velázquez está desfocado. O texto não existe
mais, ao menos como material escrito. O que restou é a percepção borrada de sua
mancha de impressão. A palavra sumiu. O que resta para nos dizer o que são as ilus-
trações é a nossa lembrança. Ao contrário da palavra, que só é palavra enquanto pu-
der ser lida, a imagem continua como imagem mesmo que não haja mais foco algum.
Podemos, claro, reconhecer que quadro era esse ou aquele ali reproduzido. A ilustra-
ção restante guarda ainda seu poder de enunciação. Mas, nova surpresa, Caldas fez
desaparecer todas as figuras humanas de todos os quadros. Foram-se os heróis, fo-
ram-se os anões. Restaram os cavalos sem seus cavaleiros (mas o cão da Infanta tam-
bém se dissipou, junto com ela e seus adjuvantes). Mesmo o reflexo ao fundo está
vazio. Se reconstituídas em seu foco na nossa mente, as telas estariam desprovidas de
seus personagens. A imagem, mesmo muito desfocada, me permite ver o que lhe
falta. Mas as palavras findaram em definitivo. Nossa inteligência é incapaz de fazer as
palavras reaparecerem. Qual personagem então restou? Ficaram os livros, solitários
na sobrecapa, talvez a dizer que este mesmo é o personagem desta história: o próprio
livro. E Caldas é um bibliófilo apaixonado, conforme entrevista dada a Marília Andrés
Ribeiro.
Eu diria que os livros são objetos da família dos espelhos e dos relógios. De alguma
forma livros são máquinas constantes, seriadas, com continuidade e tempo próprios
e o folhear de suas páginas faz com que sejam “objetos de visitação”. Essas caracte-
rísticas, todas tridimensionais, sempre me atraíram neste objeto. E os livros, como os
espelhos, parecem ser sempre maiores por dentro do que por fora. Não é um desafio
tentar fazer alguma coisa maior por dentro que por fora? (Entrevista citada em Ribei-
ro, 2007, p. 189.)
Como em As meninas, tem-se também em Velázquez uma rede de olhares, mas
desta vez limitado por seu objeto, um livro parcialmente cego. Aparentando possuir a
inércia de um quadro, o livro disfarça sua condição formal, mantendo-a em suspen-
são até conseguirmos nos soltar da armadilha. Ele deve finalmente ser examinado
pela sua lógica seqüencial. Será justamente o virar de páginas que propiciará o desfilar
de uma trajetória artística das mais importantes para qualquer amante das artes, num
242
Waltercio Caldas, Velázquez. São Paulo: Anônima, 1996.
243
jogo de adivinhação para iniciados. Apresentada pelo ilevel e pelo lacunar, a exposi-
ção é visualmente dissertativa da trajetória de Diego Velázquez porque reúne poucas
condições de ser descritiva. Chega-nos precedida pela mitologia de sua obra e conti-
nua como uma rêmora do plano aurático, processada pela ótica reflexiva de Caldas. A
palavra em Velázquez então não existe mais, ao menos sob o ponto de vista destas
observações. Ela apenas existe no principal enunciado, o nome do artista que é o
assunto (nas aparições do título na sobrecapa, no falso-rosto e no rosto), além de no
nome do artista que é o autor (na contracapa), e, claro, no colofão. Somente nessas
funções oficiais ela pode ser lida. Existe principalmente para evocar o fantasmático, o
homem morto, o artista que é uma das entidades mais freqüentes em nossa formação,
ao mesmo tempo em que valida e autentica o livro-obra. Aqui, nesse momento, essa é
a sua materialização possível. E, no entanto, quanto barulho à nossa volta. Uma lada-
inha interminável. Quantas vozes em torno da obra. São discursos de uma lista sem
fim de pensadores, ladeada por outra, de artistas que nele se balizam. Faz lembrar
uma ironia de John Baldessari, “A melhor maneira de fazer arte”, parábola citada em
artigo para Artforum, que ilustra o por vezes perverso efeito do intercurso da ilustra-
ção com a arte.
Um jovem artista numa escola de artes costumava adorar as pinturas de Cézanne. Ele
observava e estudava todos os livros que pudesse encontrar sobre Cézanne e copiava
todas as reproduções da obra de Cézanne que encontrava nos livros.
Ele visitou um museu e pela primeira vez viu uma verdadeira pintura de Cézanne.
Ele a odiou. Não era como os Cézannes que ele tinha estudado nos livros. A partir
daquele momento, fez todas as suas pinturas nos tamanhos das pinturas reproduzi-
das nos livros e as pintou em preto e branco. Também pintou legendas e explicações
sobre as pinturas, como nos livros. Muitas vezes ele usava apenas as palavras.
E um dia ele compreendeu que pouquíssimas pessoas iam a galerias e museus de arte,
mas muitas pessoas examinavam livros e revistas tal como ele e recebiam pelo cor-
reio assim como ele fazia.
Moral: é difícil colocar uma pintura numa caixa de correio. (John Baldessari, Ingres,
and other parables, London, 1972, p. 11, citado em Phillpot, 1980, p. 54.)
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Poderia ser lembrado, também o trabalho de Endre Tót, Night visit to The
National Gallery, publicado por Beau Geste Press em 1974, um livreto horizontal que
abre como um bloco. Nele o artista oferece um catálogo de visita ao museu onde as
ilustrações das pinturas estão transformadas em silhuetas negras. Das telas, nada mais
há para ser visto, exceto seu formato geral delimitado pelas molduras. Mas para ler,
todas as permanecem em seus lugares, todas as legendas (título, artista, data, dimen-
sões, etc.) estão mantidas. O trabalho de Tót é, em certo sentido, um precursor mais
ou menos em negativo ao de Caldas. Sua estratégia comunicativa não é tão distante,
embora plasticamente o de Caldas seja mais complexo. Por tudo isso, por toda essa
polifonia de vozes consagradas, acumuladas durante os séculos, sobre o artista fez-se
o verbo, e ele, o verbo, invisível porque ilegível (porém sensível porque pressentível),
envolve Velázquez, que Paulo Sergio Duarte considera uma ação sobre o saber do
olhar contemporâneo.
Esse desejo [de olhar] capturado no meio condensado da cultura e da história, [...]
vagueia errante pelas suas páginas cruéis e incômodas. O vazio, aqui, materializa-se e
chega a “figurarnas imagens dos cenários abandonados e na desolação da luz fosca
que lhes restou. [...] O vazio atualiza a negatividade da arte diante do mundo das
imagens rebaixadas e banalizadas pela indústria e, isto o mais importante, realiza-se
paradoxalmente como positividade visível. (Duarte, p. 154 e 159.)
Até certo ponto essas considerações reforçam a visão habitual da obra de
Caldas a partir da intensidade de seus valores formais. E aqui num dado capital, o
vazio. Poderíamos mencionar, ainda, a sempre presença (no todo ou no detalhe)
dos dispositivos de índole reflexiva, voltado, reincidentemente há muitos anos, prin-
cipalmente para as reflexões sobre a identidade como artista em cruzamento com a
concepção cultural da percepção. Se esse mecanismo beneficiava-se de certo
mimetismo no seu livro Manual da ciência popular, 1982, talvez ele agora não fique
mais tão obscurecido pela sutileza. Mas ele parece permanecer, de acordo com os
jogos e regras que desde então “desconfiam de suas funções normativas, sorrindo
nos limites do útil, e que sabem que a arte não está pronta, que a arte ainda se faz”
(prefácio do Manual..., p. 5). O mecanismo está ativo através das proposições que
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Caldas oferece, como a de número 14, como foto de um dado dentro de um cubo
de gelo, numa imagem que “será sempre a do exato instante em que foi vista pela
primeira vez. Para Marília Andrés Ribeiro, “a proposição nos faz refletir sobre
questões referentes à intervenção inteligente do artista nos objetos cotidianos, à
significação do registro fotográfico nas manifestações de arte efêmera, à preserva-
ção da memória no contexto da arte contemporânea” (Ribeiro, 2007, p. 183). Po-
rém, poderia ser feita uma objeção, não ao livro como tal, mas ao livro como obra
autônoma: como manifestação de respeito à textualidade, o Manual termina com
um artigo teórico, de pesquisador convidado pelos editores, um artigo importante
de Paulo Venâncio Filho. É verdade que ele traz informações interessantes, sobre-
tudo úteis ao leitor (e ninguém questionaria isso), mas por outro lado o texto é
alienígena ao livro. Velázquez, ao contrário, mudo e sem qualquer dublagem, vai
mais fundo em sua tipicidade.
Como no Manual e em outros livros seus (a maioria objetos ou escultóricos),
o profundo conhecimento de percepção visual de Caldas está funcionalizado em
Velázquez, mas agora voltado para os instantes antes ou depois do zero. O zero não
representa o mínimo, o zero representa o nada. Próximo ao nada existe o quase
nada, o que quase deixa de ser, porém se mantém como um valor positivo. O míni-
mo é a unidade (uma laranja, um filho), ou zero vírgula alguma coisa (a menor fra-
ção que ainda guarda relação com o uno). Menos que o mínimo é o negativo: a
ausência. E a ausência só pode ser confirmada como elemento se for possível a
construção do vínculo com o ausentado. Percebe-se uma oposição de valores nes-
sas páginas. O desaparecimento das figuras humanas não impossibilita o reconheci-
mento (a identificação) do referente (a tela original). Dentro do cenário ilustrativo
farsesco onde as imagens dos quadros estão inseridas, o desaparecimento de uma
parte não impede que se adivinhe o todo. Permanece a nossa ciência das identida-
des. O invisível não é o que não vejo nas ilustrações. Mesmo que a invisibilidade
não negue a existência, as figuras simplesmente não estão mais onde deveriam estar
(a condição de ausência difere da condição de invisibilidade: eu não vejo o que real-
mente está ali). A desaparição pela ausência é dramática. Afinal, onde estão os “per-
sonagens”? Onde foram parar os coadjuvantes dessa iconografia onde o verdadeiro
246
ator principal estava em frente às telas, as pintando? Talvez o novo personagem
sejamos nós mesmos, trazidos de volta por Caldas a essa função pelas característi-
cas do livro que examinamos. Se ele não traz mais retrato algum, mas apenas indíci-
os mais do que evidentes de pinturas que foram alijadas de seus personagens, pelo
menos o volume faz sua auto-referência através da sobrecapa, ilustrada com um
detalhe de livros figurados em uma tela. Se “as obras” se esvaem, “a obra” de Diego
Velázquez permanece visível, tanto quanto nosso humor reverente.
Concluímos que o conjunto de manchas acinzentadas seja o resultado de
uma operação de desaparecimento normalmente efetuada pelo olhar intermediado
ou pelo olhar incapacitado, a perda de foco. O que sumiu, acreditamos ser o texto.
Porque sabemos que a página real é o seu espaço real, porque interpretamos o rit-
mo e a harmonia dos espaços em branco entre as manchas, porque reconhecemos
os valores e as relações diagramáticas com os elementos ilustrativos, etc. Não, não
há palavra alguma, portanto não existe texto: nada pode ser lido. Difícil de fazer
mais especulações a esse respeito. Se é que ali havia um texto, tanto poderia ser uma
reflexão crítica como poderia ser a lenda da mandioca, por que não? Apenas nosso
olhar impregnado pelo repertório, pelo drama e pela ficção recompõe em cada aber-
tura de páginas o instante de um enredo inexistente, supondo o desaparecimento
de uma resenha. Mas o enredo inexiste no plano mundano, prático e eficiente da
leitura. Sua existência está no rito de aproximação à obra de arte, investida ou
travestida aqui num produto de “esclarecimento” ou vulgarização intelectual, o li-
vro de arte. O esclarecimento não é um objetivo primariamente artístico, mesmo se
o suporte for comum à comunicação e difusão. Ao promover a desaparição do tex-
to, impossibilitando que o livro se torne instrumento de leitura, um facilitador, um
esclarecedor, Caldas devolve ao códice industrial e múltiplo um dos valores mais
caros, consagrados e atávicos da arte pictórica, a contemplação. E, por conseqüên-
cia, a aura. Essa operação não deixa de ter ligações conceituais com análises que
aproximam a pintura ao diagrama de uma página, como a já mencionada, de Foucault
sobre Magritte. A paginação, ela também, obedece ao gosto de ordenação dos espa-
ços, tanto quanto o caractere está sujeito ao seu desenho.
247
O texto que vinha invadindo a figura a fim de reconstituir o velho ideograma, ei-lo
que retomou seu lugar. Voltou para seu lugar natural – em baixo: lá onde serve de
suporte para a imagem, onde a nomeia, a explica, a decompõe, a insere na seqüên-
cia dos textos e nas páginas do livro. Torna a ser “legenda”. [...] Volta-se à página e
a seu velho princípio de distribuição. Mas apenas em aparência. Pois as palavras
que posso ler agora sob o desenho são, elas próprias, palavras desenhadas [...].
(Foucault, 2002, p. 24)
O livro Velázquez percorreu o país em diversas exposições oficiais, tendo sido
um forte candidato da sua categoria à plena aceitação. Não precisou dos espaços al-
ternativos, sendo normalmente distribuído em grandes livrarias. Além disso, fez o que
a tradição espera de uma obra de arte, percorrendo todo o país em diversas exposi-
ções coletivas oficiais. Apesar do reconhecimento artístico de Caldas, ele poderia ter
amargado a marginalidade comercial por causa da inexistência de texto para ler. En-
tretanto ele atendia e cumpria alguns princípios da leitura. Tome-se o modelo da cons-
trução do significado na mente a partir da criação de uma seqüência de imagens e
acontecimentos como explicado por Regina Zilberman.
Esse significado só pode ser construído na imaginação, depois de o leitor absorver
as diferentes perspectivas do texto, preencher os pontos de indeterminação, suma-
riar o conjunto e decidir-se entre iludir-se com a ficção e observá-la criticamente.
[...] Assim sendo, ao ler, o leitor experimenta uma situação desencadeada tão-so-
mente pela leitura: ele consegue ocupar-se com os pensamentos de outro.
(Zilberman, 2001, p. 52)
Observe-se que essas idéias sobre o desfrute de um livro em geral, suporte
para textos, são muito parecidas com concepções sobre o desfrute de um livro verbo-
visual. Compare-se com pensamento similar de Anne Moeglin-Delcroix, neste caso
voltado às narrativas visuais e ao livro de artista.
Ao leitor cabe costurar esses restos de histórias, orientar-se dentro dessas referências
cruzadas, de retornar às suas fontes múltiplas e de experimentar, por conta própria, a
natureza narrativa de toda interpretação. (Moeglin-Delcroix, 1995, p. 11)
248
Mas com a produção de Caldas é preciso atenção. Também nele, como em
muitos artistas, o uso do livro poderia estar mais distante da leitura mínima e guardan-
do independência apenas relativa do mercado de publicações narrativas (como no
Manual da ciência popular). Mesmo a narração podendo se investir de facilitadora na
relação entre artista e público, pode ser preferível (pelo mercado simbólico onde atua)
o foco na contemplação. É claro que o livro não o abandona, mantendo-se como
uma das vozes ativas do seu corpus artístico. Porém, se Caldas é amante dos livros, por
outro lado parece dedicar maior concentração a obras relacionadas com variáveis per-
tinentes à escultura, onde o discurso tende ao contemplativo.
Lembremos, ademais, que esses livros foram surgindo de modo esparso, no curso de
muitos anos – sem, portanto, caracterizarem uma especialidade “gráfica” do artista –
e que às vezes é mais fácil estabelecer seu parentesco com outros trabalhos, não-
livros, do que com eles mesmos. (Salzstein, p.6.)
Se no volume de Caldas um grau especial de legibilidade é satisfeito, sem que
a leitura textual exista de fato, nele temos indícios que nos fazem supor que possivel-
mente ali um texto que viveu no pretérito se desvaneceu, se dissipou (ou, pouco pro-
vel, está aparecendo). Num movimento oposto e mais freqüente a esse, em muitos
livros é possível encontrar o esforço em transformar escritura manual em objeto. Po-
demos encontrar a superexposição do autógrafo (o manuscrito) nos antigos livres de
peintre, na realidade caras produções do campo da gravura, mas também em muitas
publicações de baixo custo, muitas delas vinculadas ao advento da fotocópia e às faci-
lidades da impressão ofsete. Especialmente interessantes são os trabalhos contempo-
râneos que utilizam plenamente as possibilidades da produção e distribuição profissi-
onais. Em This goofy life of constant mourning, 2004, de Jim Dine, graças à técnica a pala-
vra passa a ser intermediada pela ação fotográfica, tornando-se elemento pericial, com
voz abafada, quase em surdina. O título quer dizer, em tradução livre, “essa vida pate-
ta de lamentação constante”. De saída, portanto, o trabalho se propõe uma postura
emotiva.
O livro é totalmente fotográfico e colorido. Dine “retrata” poemas curtos
e textos semelhantes, aparentemente avulsos, quase sempre manuscritos em peda-
249
ços de papel ou diretamente sobre o chão, nas
paredes ou sobre objetos, com pastel e/ou giz
e/ou carvão, às vezes pincel. Todas as pala-
vras encontradas no corpo do livro são assim,
fotografadas. Não há texto direto, não exis-
tem caracteres impressos, os vocábulos são
quase sempre legíveis, mas são figuras, parte
de um todo maior intermediado pela lente fo-
tográfica e pela edição digital de imagem. A capa (encadernação toda laranja), a
página de rosto (apenas com o título) e as três páginas finais (com dedicatória, cré-
ditos e colofão) são isentas de imagens figurativas de meio-tom. Os elementos nelas
são reproduções autográficas em alto-contraste (impressas em preto). A capa traz
na frente apenas o título, na lombada, o nome do artista autor, e na contracapa, o
editor (Steidl) e o ISBN. O volume é vendido acondicionado em estojo (caixa) de
papelão cinza, também com o título impresso em preto. As imagens do interior têm
alta qualidade de reprodução, porém há fotos com problemas de pixelização. Não
são casos grosseiros, são discretos, quem sabe revelando certa indiferença à exati-
o. Talvez tenham sido salvas em arquivos muito compactados ou com baixa reso-
lução original. Algumas estão levemente distorcidas, alargadas, outras podem estar
muito ampliadas, sacrificando um pouco sua definição e também expondo sua con-
dição digital (ao menos na etapa de edição de imagem). Mesmo assim, a aparência
geral é de requinte.
A sensação imediata é de que os manuscritos não parecem ser fotografados
com intenção de que a imagem resultante tenha uma função de fac-símile, mas sim de
que ela demonstre a palavra na condição de objet trouvé (por sinal uma condição
freqüentemente apontada por alguns, tanto para a fotografia em si mesma como para
o próprio livro de artista). O início do trabalho (as páginas logo após o rosto) é for-
mado por um par de fotos monocromáticas (monotonia artificiosa), obtidas à luz
exterior, de uma cerca onde está escrito o título. A partir daí as imagens são obtidas
no interior. Somente muitas páginas mais adiante uma nova cena de exterior aparece-
, um torso de Vênus rabiscado com muitos escritos com árvores ao fundo. Há colo-
Jim Dine,
This goofy life of constant mourning, 2004.
250
rido, muito verde, sente-se a presença do sol. Mas é apenas um momento. As páginas
seguintes retornam para o interior. A introspecção não tem pausa verdadeira.
Todas as fotos têm impressão sangrada, ultrapassam o corte das páginas (que
não são numeradas). Excluindo o rosto e as páginas finais de créditos, não se vê o
papel. As páginas não respiram. O predomínio é de fotos que ocupam páginas duplas,
o par de páginas lado a lado nas aberturas do livro (spreads). Muitas vezes não são
duplas mas, por semelhança acentuada, parecem ser. Eventualmente surgem páginas
(ou fotos) que se mostram integradas a curtas seqüências, repetindo um fragmento de
texto em novos enquadramentos mais ou menos amplos ou sugerindo curtos deslo-
camentos laterais de câmera. Embora a sensação geral seja de que todo o livro é to-
mado de textos, existem páginas sem palavra alguma, sequer uma sílaba. Esses mo-
mentos funcionam como pausas, como estações de relativo silêncio. A primeira des-
sas pausas é uma abertura com foto de página a página de um par de pés femininos
calçados, recobertos de tinta de um vermelho intenso. A segunda, um pouco adiante,
é uma página par (da direita) com um auto-retrato com câmera fotográfica. A terceira
(pouco depois da segunda) é uma cama de solteiro desfeita em página da esquerda
(mas será seguida por mais cinco fotos da cama, desta vez com textos nela e na pare-
de). Assim prossegue o trabalho, com grupos de páginas inseminadas por literariedade,
de tempos em tempos silenciadas com zonas de respiro, detalhes com crânios, com
bonecos de Pinóquio, com mãos ou braços, com corvo empalhado, com ferramentas
e utensílios (pua, broca), enfim, com as coisas que povoam a iconografia de Dine.
Talvez não fosse exagero ver na consciência da ação de folhear e no gosto da página
dupla, associados à superfície da página tratada como tela totalmente revestida pela
imagem, uma reaproximação ao tema dos portões e sua pictorialidade.
Dine fotografa: “yes, words are inaudible, no? / they are physical like my
love for the eraser”. Alguns trechos de texto são corrigidos, parcialmente obliterados,
mas de forma a deixar legíveis as palavras riscadas: “you ar
e/were a french maniac”
ou “you ar
e/become snow [...]”. Às vezes a abertura de páginas mostra apenas uma
palavra: dance (dança), sorrow (tristeza, pesar), kiss (beijo), mischief (dano, brincadeira
de mau gosto), dream (sonho). Às vezes, linhas completas: “bless my union”. Uma
seqüência pode ser interrompida por uma ou mais fotos. A página dupla “kiss”, por
251
exemplo, é seguida pela página dupla “my heart is under my sweetheart” (meu cora-
ção é de minha querida, minha namorada, está sob o domínio dela), que é seguida
pela página dupla com “me”. Sorrow é a palavra mais recorrente, tanto sozinha, como
em grupos. Às vezes as repetições estão distantes. A página com o detalhe “made
mischief riscado para que sobre ele esteja escrito “up amigo!aparece no começo
do livro, reaparece mais de sessenta páginas depois e retorna mais adiante, em ân-
gulo mais aberto, em página par sobre “our sorrow” ao lado de página com detalhe
do corvo.
Uma foto de superfícies ou objetos com texto poderá receber novos textos
sobrepostos, mas dificilmente algo que impossibilite completamente a leitura das ca-
madas. Ao contrário, isso enriquece os significados pela decalagem das escrituras. Numa
página dupla com fotos de tábuas apoiadas a uma parede, fragmentos de texto estão
no primeiro plano, nas tábuas, ou ao fundo, sobre a parede. Os textos dos objetos
fotografados se completam com textos manuscritos sobre o primeiríssimo plano, o
plano da própria foto revelada ou digitalmente impressa que deverá ser refotografada
ou redigitalizada desta vez para publicação. A leitura, aparentemente plana e horizon-
tal, ondula em abismo nas profundidades da imagem ou sobre os planos virtuais da
página para se recompor sob o comando empírico do olhar, restituindo-se no seu
lugar, o lugar nenhum da perspectiva geométrica. Vem se juntar a esse fluxo principal,
um poema visual onde as palavras estão em surdina sob uma nata reticulada de tinta
de impressão que inunda as páginas desse lirismo, digamos, simultaneamente pictóri-
co, gráfico e fotográfico (“fotoplástico”?). Todos esses movimentos, aliados às pági-
nas isentas de palavras e a eventuais fundos dominantes enegrecidos ou amarelados,
são elementos rítmicos, propiciando ondas na seqüencialidade. E é essa seqüencialidade
visual que oferece a sensação narrativa que nós estamos acostumados nesse tipo de
obra, desta vez aliada à plasticidade de propensão subjetiva.
Em muitas dessas fotografias Dine está falando com ele mesmo, tendo um solilóquio
com sua alma, sentindo a mortalidade, intensa tristeza e dilemas pessoais. É como
um livro-obra pessoal, mas que alcança todos nós de certa idade, e outros que são
mais jovens, que podem ver isso como uma introdução ao espírito criativo da maturi-
dade. (Umbrella, abril de 2004, p. 9, edição de Judith A. Hoffberg)
252
Jim Dine, This goofy life of constant mourning, 2004.
253
Página após página, embebidas de um lirismo algo melancólico que preser-
va algumas pitadas de certa graça pop, esse devaneio pode ser compreendido pela
percepção geral das relações entre formas, cores e significados, tanto quanto pela
leitura direta do que está escrito. Uma contribuição da grafologia seria útil, um exa-
me da caligrafia talvez nos oferecesse mais algumas informações espirituais do ar-
tista. Mas será que isso importaria? O detalhe pode ser deixado para depois. Afinal,
mesmo que Dine só tenha usado a fotografia desde 1996, sua carreira é bem conhe-
cida e a retórica pictórica dessa obra é eloqüente, antecipando a sensação do que
iremos ler já enquanto folheamos as páginas pela primeira vez. Reencontraremos a
inclinação expressionista que foi uma das responsáveis pelo apreço do artista à pin-
tura e pela manutenção de certo distanciamento aos modelos da pop art.
Dine escreve: “Always waiting for the spirit that eludes me”. Esquivar-se, en-
ganar, iludir, tudo isso é atávico à imagem. A fotografia é uma defesa, um disfarce a
mais, um véu. Esconde a palavra impressa, histórica, “verdadeira”, essa como é lida
agora, preto no branco, caractere por caractere. São as palavras cursivas, simultanea-
mente provas e testemunhas, os primeiros elementos a confirmar as evidências estéti-
cas da delicada passionalidade habitual em grande parcela da obra de Dine. O
acondicionador uterino dessas linhas é o volume, um corpo composto do consortismo
entre fotografia e livro. As palavras existem, grandes, falam muito, mas seu som tem
pouco volume. Dentro da bolha fotográfica que as preserva de nascerem plenamente
para a literariedade eles asseguram sua filiação plástica. Nós as vemos, nós as lemos,
mas onde realmente estão? Numa das páginas duplas, o artista informa: “appear or
not appear”. Aparecer ou não aparecer.
Se o livro de Caldas, apesar do assunto, vive a singular condição de ter es-
cassos parentes próximos com afinidade plástica direta, o livro de Dine tem muitos
companheiros formais ou temáticos. Fotografar manuscritos já pode ser considera-
do praticamente um gênero nessa área. Dentre esses trabalhos, um é ilustre
freqüentador de resenhas, incontornável para esta pesquisa. Trata-se de 246 little
clouds (246 pequenas nuvens), de Dieter Roth. Segundo a frase de introdução, trata-
se dea fictive report from countries far inside a Swiss who is living abroad inside
himself” (algo como “um relatório fictício de países longe no interior de um suíço
254
que vive no estrangeiro dentro de si mesmo”).
O livro foi publicado por Something Else
Press em 1968, tendo uma segunda edição por
Hansjörg Mayer em 1976. Na época da pri-
meira edição, Roth, que era alemão, se assina-
va Diter Rot. É um livro de formato médio,
comum, impresso em ofsete, com 136 pági-
nas sem fólios (não paginadas). Destaca-se
porque é inteiramente obtido da fotolitagem
direta dos originais com frases manuscritas
diretamente na arte-final, as “nuvens”. Acom-
panhando a maior parte das frases, Roth co-
lou, com fitas adesivas transparentes, peque-
nos pedaços de papel com desenhos muito
simples, fazendo às vezes de figuras. Na ima-
gem final obtida (a página impressa) ficam pre-
servados os reflexos da fita e as sombras e
rebarbas dos recortes, tudo seguindo as ins-
truções detalhadas para as operações de foto-
mecânica que podem ser encontradas repro-
duzidas no fim do livro. As páginas não são numeradas (não têm fólios). A seqüên-
cia se dá pela numeração das frases avulsas ou dos pequenos textos.
4. por que acordar de novo, e então acordar de novo, e então de novo, e de novo, e de
novo, e então de novo, e então acordar de novo? [Com desenho de ondulações repe-
tidas que diminuem em perspectiva.]
5. o que se passa na minha cabeça se passa na minha cabeça? [Dois pedaços de papel
sobrepostos, cada um com uma cabeça.]
6. dois tipos de verde, olha só! [Fragmento de papel com duas manchas riscadas.
Como o livro é preto-e-branco é impossível discernir cores.]
Dieter Roth, 246 little clouds.
Collected Works, Volume 17.
Stuttgart, London, Reykjavík:
Hansjörg Mayer, 1976. 180 páginas.
Acervo da Bibliothèque Kandinsky,
Centre Pompidou, Paris.
Dieter Roth, 246 little clouds.
New York: Something Else Press, 1968.
176 páginas. Na foto, exemplar sem
a sobrecapa (coleção particular).
255
35. e ele transformou-se num cadáver feminino [Imagem de corpo estendido com
sol entre as pernas.]
36. nervoso, nervoso [Desenho de possivelmente duas escotilhas por onde se entre-
vê duas letras “N” ou dois seguimentos de um “N”.)
37. diarréia, diarréia [Desenho de possivelmente duas escotilhas por onde se entre
as letras “D” e “I”.)
119. dentro de mim tão longe quanto fora de mim [Figura com ondas concêntricas
em forma humana.]
Cada página tem uma ou duas nuvens, liberando espaço para o desenho. Ex-
cepcionalmente podem existir três ou mais numa mesma página, principalmente se
não houver figuras ou quando as frases formam um grupo associado.
214. um nome é uma imagem aleijada? [Sem figura.]
215. uma imagem é um evento aleijado? [Sem figura.]
216. um evento é uma vida aleijada? [Sem figura.]
217. uma vida é um mundo aleijado? [Sem figura.]
Na introdução do livro, Emmett Williams apresenta a obra como uma histó-
ria de Natal. Para ele, mesmo nublado (ou nebuloso) esse é um trabalho alegre, lírico
e cheio de luz, mesmo que as pequenas nuvens estejam sempre presentes. Seu nasci-
mento é resultado direto do esforço de Williams em apresentar Roth para um público
maior, ou seja, anglofono. Esse seria seu primeiro livro não-visual em inglês. Na reali-
dade o volume é igualmente repartido entre texto e imagem, porque mesmo o texto é
tratado, até certo ponto, como imagem. O argumento de Williams, poderia ser, por
isso, questionado. Mas tem lógica: “Não-visual? Sim, não-visual. Os desenhos, sem o
que o livro é agora inconcebível, estão ali por causa de uma série de acidentes, alguns
alegres, alguns tristes” (página 9 de fato, mas numerada como página 3). Williams
considera o livro uma “comédia de erros”, lembrando a dificuldade de se recobrar do
choque dos primeiros contatos com a crua objetividade gráfica das obras de seu ami-
256
go: “Diter Rot tem uma mais alta consideração pela apresentação direta do que qual-
quer escritor que eu conheça” (p. 10, repetindo uma apresentação para outra obra do
mesmo artista, Mundunculum, considerado o seu livro de maior ambição filosófica).
246 little clouds teria sido escrito e concluído durante o final do ano de 1966 a
bordo de um cargueiro islandês que seguia para Nova Iorque como outro conjunto
de pequenas nuvens subseqüente a experimentos prévios semelhantes. Junto com ou-
tros trabalhos formaria a coletânea “Diter Rot Reader”. Mais tarde, em visita de Williams
a Roth em Reykjavik ambos decidiram alterar o projeto para um livro mais básico,
agregando a correspondência entre eles e outros escritos, cartas do Archiv Sohm,
mais uma introdução por Richard Hamilton. Passaria a se chamar Do you have another
bottle for tomorrow? (você, ou vocês, tem outra garrafa para amanhã?), transcrito de um
bilhete da pintora Dorothy Iannone, passado por debaixo da mesa durante uma noite
de intermináveis indecisões. Mais tarde, Dick Higgins tratou de demonstrar seus re-
ceios. Afinal, como editor, buscava equilibrar e operacionalizar propostas. Williams e
Roth desistiram do projeto, mas Higgins continuava querendo publicar um livro em
inglês. Meses depois, Williams compreendeu que simplesmente traduzir Roth não se-
ria a melhor solução, podendo isso mascarar seu pensamento. Melhor seria expandir
as pequenas nuvens, buscando um formato de livro com ilustrações (que seriam como
notas para os pensamentos). Ele então datilografou as nuvens em 246 cartões, en-
viando tudo para Roth. Apesar da boa idéia, Roth não ficou satisfeito, acabando por
produzir integralmente a última versão, manuscrita e cheia de vida, publicada pela
editora de Higgins.
Muito ainda existe para ser esclarecido dessa e de outras obras e de seu autor.
Não que nos tenham sido propostos enigmas, mas sim porque a pujança criativa de
Roth ainda está longe de esgotar seus comentaristas. Quanto às nuvens (clouds ou
Wolken), elas foram um recurso muito usado por Roth. São frases, curtas ou longas,
parágrafos, listas de compras ou pequenos versos registrados em pedaços de papel
para serem afixados nas paredes das salas de exposição. Também podem permanecer
nos seus cadernos ou serem usadas em trabalhos gráficos de qualquer natureza. A
inspiração surgiu do conto A little cloud, de James Joyce (em português, “Uma peque-
na nuvem”, integrante da coletânea de contos Dublinenses). Quanto ao seu nome, Rot”
257
Dieter Roth,
246 little clouds.
New York:
Something
Else Press,
1968.
A foto de baixo
demonstra
a eventual falta
de contraste
nesta edição.
258
Dieter Roth,
246 little clouds.
Collected Works,
Volume 17.
Stuttgart,
London,
Reykjavík:
Hansjörg Mayer,
1976.
Bibliothèque
Kandinsky,
Centre Pompidou,
Paris.
A foto de baixo
mostra a maior
uniformidade
da segunda edição.
259
significa, em alemão, “vermelho”, e, em islandês, “estado de inconsciência”, ou, se
escrito “ròt”, “pessoa má” ou “desordeiro” (Goldstein, em Dieter Roth, 1984, p. 13;
Ripplinger, em Dieter Roth:..., 2004, p. 128). Por sua vinculação de origem aos estilos
concretos e, segundo alguns, porque a simplificação é uma ferramenta da língua ale-
mã, acompanhando sua índole de extrema mobilidade, Karl-Dietrich Roth chegou a
se assinar Dieterich Roth, DITERROT, Diter Rot, dieter roth e, por fim, Dieter Roth,
a forma consagrada. Sua aproximação com o minimalismo, com o estilo concreto
suíço, com o movimento Fluxus e com o conceitualismo, por um lado, e com a
impulsividade das ações, a procura do contraste material e da degradação das substân-
cias orgânicas, por outro, fez dele um dos nomes mais importantes e influentes da
arte contemporânea. Além disso, apesar da aparente reclusão nos países em que vi-
veu, como se sempre tivesse sido um exilado, o seu círculo de amigos e admiradores
era notável, sendo um exemplo cabal do que se pode entender como um artista inte-
grado ao espírito de rede. Também um poeta de origem (como muitos de sua época),
era reconhecido como um mestre nas tecnologias gráficas e como um dos artistas que
estabeleceram o livro como suporte contemporâneo para a arte. Segundo Ira G. Wool,
colecionador para quem os livros de artista deveriam combinar características poéti-
cas, conceituais e visuais, essas seriam as marcas de Roth. E acrescenta: “Por isso não
é surpreendente que ele seja o pai, o filho e o espírito santo dos livros de artista con-
temporâneos” (citado por Goldstein).
A condição de Roth como “o pai, o filho e o espírito santo dos livros de
artista” é com freqüência relativizada (ver Silveira, 2001, p. 30 a 54), mas seu caráter
co-fundador ou renovador é inevel. Alguns de seus livros são obras-primas,
publicadas ou republicadas com elevado grau de atenção na coleção Gesammelte Werke,
ou Collected Works, desenvolvida entre 1969 e 1986, edição de Hansjörg Mayer. Ape-
sar da qualidade de acabamento e da significância artística dos livros editados por
Mayer e Roth, a coleção não está imune às eventuais críticas, às vezes relacionadas ao
seu estatuto gráfico.
A atenção impecável pelo detalhe, a precisão sistemática de Hansjörg Mayer na uni-
formidade e escala tipogfica e de reprodução, e a clinicamente detalhada cataloga-
260
ção de cada livro e representação gfica são enganosos em sua alusão aos produtos
verdadeiros. A aparente acessibilidade desses volumes limpos e bilíngües apenas so-
brevoa a superfície dessas obras, como se para embrulhar aqueles que lidam apenas
com ordem e aparência, antes que possam ocupar-se com substância e conceito. O
ente real não é uma âncora no tempo e não é um mapa da torre espiral de Roth. Por
causa de sua ordem aparente pré-condensada, a cronologia ganha precedência, rom-
pendo seqüências, estilos e séries. A consistência compulsiva na reprodução reduzida
é aplicada aao minúsculo livro daily mirror [sic]. Roth mostra-nos que não se pode
julgar seus livros por suas capas (ou mesmo a partir de uma alusão sobre o que há
dentro) ou por um cardápio de ingredientes. Esses catálogos puramente impressos
permanecem estáticos, contidos pela apresentação enganosa enquanto as edições são
dispersas e o orgânico morre. A espiral permanece em anarquia. (Goldstein, Dieter
Roth, 1984, p. 16.)
A espiral que a autora usa como metáfora é a forma de evolução de sua obra,
com a fusão do verbo, do gesto e da imagem com a licença autobiográfica e os expe-
rimentos tipográficos, semióticos e matéricos, soluções ainda consideradas exóticas
na época.
Sua obra contém sua cronologia, cada peça a fusão imprevisível de partes e fontes
aparentemente discrepantes, um espiral: Roth animando seus horrores, humores e
fantasias profundos para combinar dentro de sua indefinível Torre de Babel. (p. 9.)
Goldstein acha a incompatibilidade especialmente notável nos volumes 20,
40 e 38 da coleção, respectivamente Books and graphics (part 1): from 1947 until
1971; Books and graphics (part 2) and other stuff: from 1971 until 1979 (including
supplement to part 1); e Smaller works (part 3): published and unpublished material
1972-1980 (com os títulos também em alemão). Suas idéias têm fundamento, sobre-
tudo em face à impressionante produção plástica de Roth. Porém, reduzir esses livros
a apenas catálogos pode mascarar a dimensão de seu papel. De fato os três volumes
mencionados são catálogos, mas mesmo esses estão inseridos como seguimentos da
grande narrativa autobiogfica de Roth, um fio condutor de uma vida em que publi-
car era quase uma compulsão. A coleção de livros Collected Works foi um programa
261
Dieter Roth, 246 little clouds. Collected Works, Volume 17.
Stuttgart, London, Reykjavík: Hansjörg Mayer, 1976. 180 páginas.
Acervo da Bibliothèque Kandinsky, Centre Pompidou, Paris.
262
editorial e artístico notável, exuberante e sem similares, integralmente adequado e com-
prometido com a produtividade de Roth, cujo projeto artístico era indissociável da
produção gráfica, a decorrência natural da exploração da linguagem. Esses livros cons-
tituem um coletivo de episódios de uma carreira assentada sobre a viva originalidade e
a extrema coerência entre criatividade artística e concretização editorial. E o próprio
artista, ao fazer suas listas de livros publicados ou únicos, com a participação dos
acima mencionados, não incluía o que ele considerava catálogos de fato. E insistia em
incluir os embutidos feitos com papel de outras publicações maceradas, tratadas e
apresentadas como fiambres ou salsichas (Literaturwürste, cerca de cinqüenta). Pou-
cos artistas e pensadores do século XX sabiam com a plenitude emocional e o
envolvimento sensorial de Roth o que era de fato um livro, todo o grau de compro-
metimento envolvido na sua fabricação, toda a intensidade da entrega afetiva que o
precede e acompanha. Ou, como ele afirma na nuvem 21: “executar este livro como
uma tragédia”. Ou, mais adiante, nuvem 94, “um livro é um nó”.
Praticamente qualquer produto de Roth que tenha texto serviria exemplar-
mente para a demonstração dos diferentes usos da palavra, do seu intercurso com a
imagem, dos desenvolvimentos narrativos internos em cada obra ou externos a elas,
se considerarmos cada título como uma espécie de capítulo dentro de uma existên-
cia graficamente polifônica. É pela popularidade relativa que escolhemos a
exemplaridade de 246 little clouds. O volume oferece o desenvolvimento proposto,
ou seja, o desfilar das nuvens, numeradas, portanto dentro de uma ordem determi-
nada, construindo uma narrativa visual com instantes verbo-visuais, aberta e inde-
pendente, pertinente ao seu suporte e à expectativa das artes visuais. Não existe
aproximação ao que pode ser considerado como uma narrativa tradicional, salvo no
texto de apresentação, que conta como o trabalho intelectual e artístico foi feito.
Mas se considerarmos a progressão entre a apresentação (por Williams), o corpo
do livro e a conclusão (as últimas páginas), perceberemos que o livro, ele mesmo, se
transforma simultaneamente em personagem de sua própria aventura editorial e
episódio emocional da vida de seu autor.
A parte final do livro é uma seqüência de poucas páginas que reproduzem,
em imagens e notas atravessadas (para ser vistas girando o livro), a comunicação do
263
artista com a gráfica. Num texto também manuscrito e acompanhado de pequenos
desenhos ou diagramas, Roth (“Drakerstr. 7; 4, Düsseldorf-Oberkassel; W-Germany”)
dá as instruções de como os originais devem ser tratados durante a etapa de pré-
impressão (processo fotomecânico). São seis páginas que guardam o vigor do conhe-
cimento técnico diferenciado que fez de Roth um artista plenamente integrado ao
conhecimento de operações específicas, colocando-as em exposição de dentro do pro-
jeto artístico maior.
As pequenas nuvens deverão ser fotografadas – não como usualmente, sob vidro e ilumi-
nados de todas as direções –, mas
não sob vidro, de modo que os pedaços de papel, e
também qualquer relevo dentro dos quadros à lápis, possam ficar salientes e projetar suas
sombras, como as nuvens fazem. Colocam-se os originais sobre a mesa da prensa de
reprodução (ou fixa-se com pinos na mesa) e inicia-se com o primeiro, iluminando-o
exatamente a partir
da direita. Desse modo toda sombra cairá à esquerda. Isso significa: o
sol está chegando e é de manhã cedo. Então fixa-se as próximas nuvens (o número verde
no alto das artes-finais mostram a ordem [...] para operar). [...]
19
A cada vez se vira o papel em que as nuvens estão escritas ou coladas UM GRAU, de
modo que (por exemplo) se está iluminando o papel de cima quando chegamos à to-
mada da folha de número 80 aproximadamente. Quando a última página for fotografa-
da deveremos ter chegado à iluminação exatamente da esquerda.
Por favorfotografe em meio-tom, um tom superior ao conjunto da página. CAPTE
toda a sujeira, as manchas, os vincos, as sombras, as marcas de lápis, os reflexos (na fita
adesiva), E apanhe tudo isso nos fotolitos e
MANTENHA isso neles para impressão.
Então: NÃO RETOQUE os fotolitos! Mantenha todos os buracos acidentais, man-
chas, sujeira e rasgos nos fotolitos, e imprima-os também!
Mantenha o meio-tom sobre todas as páginas. NÃO CORRIJA, NÃO RETOQUE, bote
o fotolito sobre a chapa de impressão rápida e descuidadamente, e revele e imprima.
19
A encadernação apertada dos exemplares da primeira edição examinados não permite a leitura integral das
palavras junto ao vinco que forma o festo do livro (vinco do interior do caderno). Algumas palavras são mantidas
sublinhadas ou em maiúsculas como no original. Entretanto, na segunda edição a leitura é possível.
264
As solicitações de Roth prosseguem, redigidas enfaticamente e com o uso de
trechos sublinhados ou em maiúsculas (“TUDO DENTRO DOS RETÂNGULOS A
LÁPIS DEVE ENTRAR NO LIVRO”; “desculpe por escrever isso outra vez!”). São
acrescentadas ainda mais instruções, incluindo sobre a capa e sobrecapa, e endereço
para envio das provas e dos originais após o uso. Como essas instruções foram de fato
elaboradas após a conclusão dos originais, elas não se tratam de um making of, expedien-
te publicitário que viria a ser banalizado pela indústria cultural, especialmente a de entre-
tenimento. E quem se preocupava com o making of nos anos 60? As instruções também
não são uma simples achega ou um aditamento à obra, não se trata de um “puxadinho”
artístico. Elas assumem seu papel no conjunto total, no todo, marcando o tempo entre a
conclusão da etapa 1, as artes-finais, indicando o que se espera que aconteça na etapa 2,
fotolitagem e gravação de chapas, mas tudo existe efetivado apenas na etapa 3, o livro
impresso e seu consumo. A reprodução das instruções documenta o passado, indicando
o processo futuro que deverá constituir fisicamente o nosso momento presente de des-
frute e leitura, tornando a obra orgânica.
O vocabulário formal de Roth se modificara entre 1960 e 1963, se afastando
um pouco dos trabalhos construtivos e se aproximando muito e cada vez mais de
uma linguagem narrativa, biomórfica e psicomórfica, conduzindo à sua fase mais pro-
lífica, entre 1968 e 1973, como apontado por Felicitas Thun (Dieter Roth, 1998, p. 34).
Dieter Roth, 246 little clouds.
Páginas finais das duas edições,
mostrando as indicações para
impressão e acabamento,
manuscritas nos próprios
originais. A segunda edição
(“reconstruída”) tem uma
página a menos de instruções.
265
Ele se tornaria fortemente autobiográfico, ao mesmo tempo que intensamente
autocrítico. Stefan Ripplinger, em outra apresentação à produção bibliográfica de Roth,
ressalta a grande questão que não teria abandonado o artista em toda a sua vida: quem
ou o que é (ou era) Roth? Ele teria vivido um drama de orientação dentro do mundo
da linguagem, já demonstrado desde os seus primeiros trabalhos. Temas externos ao
seu mundo pessoal o teriam interessado raramente. Ele não sabia quem ele era.
Mas o dilema em que ele se encontrou não é simplesmente ambição agonizante. Ele
também vê a si mesmo firmemente paralisado no “buraco escuro mais escuro”, su-
cessivamente o do corpo, da família, do medo, da civilização, do desejo físico, da
Alemanha, Suíça, Islândia, casamento e, sobretudo, linguagem. (Dieter Roth: books +
multiples, 2004, p. 130.)
Se a obra de Roth é constantemente autobiogfica, especialmente a partir dos
anos 60 (no que concordam seus pesquisadores), ela não demonstra ter vulgaridade
emotiva ou testemunhar autocomiseração. A pieguice e afetação, insistentemente insi-
nuadas em diários e memorabilia, não existem em Roth. Ela é abandonada em favor de
certo distanciamento crítico ou refletivo, mas que não abre mão da intensidade. O ato
criador seqüestra todo o seu próprio mundo sensível o devolvendo à luz em fenômenos
de linguagem. “Meu olho é uma boca” é uma frase sua muito repetida. E suas nuvens
repetem suas idéias.
86. uma vez eu estava cantando, e desse modo pintei-me o mundo entre minhas ore-
lhas, eu ouvi o mundo ser uma figura e vi o mundo cantar, e o mundo disse: olhe como
eu canto, e escute se você pode me ver, d.! [Com desenho de boca entre orelhas.]
87. noutra vez, quando eu estava pintando, eu pintei azul sobre violeta, violeta sobre
vermelho, vermelho sobre laranja, laranja sobre amarelo, amarelo sobre verde, verde
sobre azul, e feito isso, agora posso dizer: uma vez, quando pintei, eu pintei azul
[...] 109. digerir com os olhos
[...] 118. microscópio como telescópio
266
[...] 160. a linguagem digere tudo completamente, não é preciso cagar
Ripplinger reitera que para Roth o ato de ver é representação (“seeing is
representation”, afirmação colhida no seu livro Mundunculum, 1967, p. 323) e isso cons-
tituiria a sua iconoclastia, no sentido de que para destruir imagens é necessário criar
novas imagens. Como para Roth linguagem é também imagem, tudo que ele vê é
compreendido como linguagem. Em entrevista ele explica.
A lâmpada diz para mim o tempo todo: você deve dizer que eu sou uma lâmpada.
Ou, que existe uma lâmpada. O manufator faz a lâmpada, por isso eu direi: “L â m p
a d a!” Correto? Estou exagerando, mas eu digo isso de fato com meus olhos. Eu
considero meus olhos também como um tipo de instrumento para escrita. Como
uma caneta. Estou constantemente escrevendo essas imagens, eu continuo a escrever
as imagens escritas desses supostos objetos pelo fato de olhar para eles. Eu escrevo a
lâmpada diretamente de onde ela está. [...] Eu sou um escravo, completamente escra-
vizado entre a humanidade. Nós somos escravos. (Citado em Dieter Roth, 2004, p.
139; espacejamento em “lâmpada” como no original.)
As nuvens foram elaboradas ocasionalmente, em intervalos, para uso em vá-
rios trabalhos, sendo o mais conhecido esse, o volume publicado originalmente por
Something Else Press. Nesse período de sua vida, Roth não escrevia com afinco. En-
tretanto, tinha sempre um caderno ou agenda ao seu alcance, pronto para receber o
que pudesse surgir, especialmente quando estimulado pela bebida (Dieter Roth, 2004,
p. 143, declaração transcrita na nota 88). Porém, a edição lançada por Higgins não
significou uma conclusão, o ponto final de um projeto. Em Roth, mesmo as publica-
ções eram sempre etapas e o material usado poderia ser reaproveitado ou processado
novamente para novos trabalhos. Com 246 little clouds não foi diferente, mas dessa vez
em reedição revista qualitativamente na direção do aprimoramento gfico e
tecnológico. O livro foi relançado em 1976 como o volume 17 dos Collected Works,
edição de Hansjörg Mayer. O formato original teve ligeira modificação de formato,
passando de 23,5 x 15,8 cm (edição de 1968) para 23 x 17 cm.
A qualidade da impressão ofsete em preto-e-branco da primeira edição é
aceitável, mas o resultado final é questionável, às vezes frustrante. O papel usado
267
no miolo parece que já era de coloração acinzentada (Frank, 1983, p. 29), uma esco-
lha pouco feliz já que se pretendia imprimir em meios-tons. O problema principal é
que em geral as páginas são escuras demais, faltando luminosidade e contraste, em
alguns momentos chegando a dificultar a leitura. O livro é uma obra brilhante e
ímpar porque preserva toda a originalidade de sua concepção, com coragem e ho-
nestidade. Mas a segunda edição é muito superior, é surpreendente. Simples e sem
falsa eloqüência ela é quase revolucionária ao atender as ambições formais do artis-
ta, comprovando a alta qualidade que o ofsete pode oferecer, desde que em boas
mãos. Roth era um grande conhecedor da técnica que usava. A impressão passou a
ser límpida, bem contrastada, com pretos bem definidos e luzes e sombras marcantes.
Percebe-se muito mais, agora, as marcas das artes finais, as sujeiras, os traços a lápis,
as rebarbas. Tal evolução gráfica duplica nessa outra edição o caráter de persona-
gem investido pela obra. Ficamos em dúvida se o personagem final é o objeto livro
ou se é a vida da idéia, duas vezes materializada. Juntas, as duas tiragens colocam
sob nossos olhos a confidência dos sucessos e insucessos dos procedimentos, a
história de uma decisão artística seguida por um esforço bem concluído de reden-
ção artesanal. É quase como se os valores talvez mais importantes (os volteios afetivos
e os aspectos intelectuais) ficassem subordinados pela história gerencial e técnica
do seu suporte final, do volume resultante.
É importante notar que Roth pertenceu a um grande e multifacetado grupo
de artistas que, a partir do término da Segunda Guerra, construiu toda uma vertente
da arte contemporânea (e junto com ele estão muitos dos artistas mencionados nesta
pesquisa). Se no seu começo essa vertente perdia espaço para o crescente
empoderamento do abstracionismo pictórico e seus subprodutos espaciais, sobretu-
do porque a pintura informal era interessante ao mercado crítico, hoje o gigantesco e
barulhento acervo produzido no espaço supra meios e entre mídias se impõe como
irreversível. E é possivelmente a confirmação do novo e atual estatuto da obra de arte
e do artista (confirmado especialmente nas apurações em Szeemann, 1969, e Lippard,
1973). Sem romper de fato seus laços históricos, sua mitologia e seus heróis, hoje a
obra de arte, desmaterializada ou rematerializada em constituição renovada e comple-
xa, não atende mais tolerantemente às definições do passado.
268
Rumo à palavra plenipotenciária
O caminho por via “livro mais ou menos comum” utilizado pelo artista para
canalização de suas idéias atravessa uma região de fronteira. É interessante para espe-
culação, sobretudo porque mesmo sendo potencialmente substrato para renovadas
controvérsias sobre o estatuto desse espaço, isso parece efetivamente incomodar mui-
to mais quem está diretamente envolvido. É o último limite, além do livro-obra, uma
zona imprecisa onde estão presentes publicações integralmente textuais ou com texto
e ilustrações, com formato e acabamento comerciais. Mas uma zona menos móvel,
ocupada pelos livros editados por critérios objetivos que subjugam o saber visual “per-
ceptivelmente narrativo”, submetendo-o ao saber visual vertido em “verbalmente nar-
rado”. Apesar disso, é curioso que um exame pouco atento seja já o suficiente para
mostrar que eles são distintos, apesar da compleição comercial. Curioso mas não sur-
preendente, em se tratando de sua procedência, um artista.
Com freqüência “esses livros” são textos teóricos ou didáticos, reflexões,
rememorações, relatórios, laudos, memoriais. A estrutura do volume, habitualmen-
te um códice, faz conviverem outras estruturas: a do texto, a da fotografia, a da
ilustração, etc. O livro com palavra e imagem traz um composto de mensagem de-
notada (o análogo fotográfico ou pictórico) e uma mensagem conotada (interposta
por códigos de leitura do texto). Isso parece fazer com que nele a narratividade seja
ubíqua, ao mesmo tempo em que o sopra de um lado para o outro de sua classifica-
ção. São obras de quê? Para quem? Sabemos que pelo menos são obras “da” arte.
Às vezes são bem mais que isso.
“Esses livros” têm precedentes ilustres nas expressões de misticismo de
Blake, nos ensinamentos de Klee e Kandinsy, nos escritos de Matisse, nas aulas
de Albers, nos diários de muitos, na correspondência de outros tantos. Mas o
impulso de artistas plásticos de escrever para publicar (e efetivamente publican-
do), ganha ímpeto renovador quando o hemisfério norte já pode rever a certa
distância o conjunto de manifestações das vanguardas artísticas modernas. O cres-
cimento em importância dos escritos de artistas parece ser subproduto da aten-
ção dada à exteriorização da reflexão teórica em primeira pessoa, “um novo ins-
269
trumento independente à gênese da obra, estabelecendo uma outra complexidade
entre a produção artística, a crítica, a teoria e a história da arte”, gerando textos
que “não mais visam estabelecer os princípios de um futuro utópico, mas focali-
zam os problemas correntes da própria produção”, conforme Glória Ferreira
(Ferreira e Cotrim, orgs., 2006, p. 10). Apesar de uma eventual inexperiência para
o texto (e que, com ressalvas, é reiterado por críticos e pesquisadores), deve ser
ressaltado que isso não é grave, de modo algum, tendo em vista a importância do
desnudamento para a compreensão do homem artista e o valor da contraposição
ao crítico, muitas vezes ignorante confesso das técnicas e procedimentos da fatu-
ra da obra. Do ponto de vista da efetivação de canais de transporte desse pensa-
mento, o meio impresso foi de longe o mais utilizado (embora ainda tenha sido
usada a gravação magnética em fita em rolo ou em cassete, a emissão radiofônica,
o registro cinematográfico, etc.). Especialmente quando em publicações (periódi-
cas ou não periódicas), havia a possibilidade da ocupação do espaço com a inter-
relação criativa entre texto e imagem (mas sempre sob condicionantes práticas).
A partir desse ponto, pode-se aceitar que a produção de escritos de artistas confi-
gurados numa estrutura plasmada (e sob o risco da afetação) os coloca com mais
intensidade sob as forças do julgamento estético. A retórica geral (e por decor-
rência a visual) passa a ser considerada, como em qualquer outro bem da cultural.
Vale a advertência de Marguerite Helmers:
Uma vez mais, ver não é realmente tão importante quanto eu quis fazer parecer nessa
discussão [sobre o enquadramento das artes a partir da retórica], pois tão logo se
ofereça a narrativa como o dispositivo de enquadramento du jour, ela é facilmente
analisada dentro da questão da autoridade: narrativa de quem? [...] Curadores tem
poder sobre a arte e o espectador. Historiadores e críticos, através de sua própria (e
deveria acrescentar válida) investigação, têm o poder de conformar os modos que
um texto é recebido. Nossas próprias explanações narrativas, as reflexões de artistas
recolhidas de cartas e diários, as notas explanatórias de museus, tudo engaja numa
luta entre palavra e imagem, entre a supremacia do texto como uma narrativa e os
efeitos do visual. Essa luta paragonal está certamente embutida no coração desse
nomeador disciplinar visual/retórica. (Hill e Helmers, 2004, p. 69)
270
A “evolução” formal dessas publicações foi suficiente para estabelecer
recorrências formais expressas na ênfase maior ou menor para um ou outro braço
dos binômios sensível-inteligível e plástico-verbal. Destaquem-se os extremos, as cor-
rentes conceituais, que preferem “ler” a letra, e, noutra extremidade, as correntes plás-
ticas, que preferem “ver ou “sentir”. Os princípios de confronto parecem ser basica-
mente os mesmos que já vimos para livros-obra e livros-objetos. E houve certamente
momentos de tensão e distensão. Ficou mais fácil (embora não menos polêmico em
seu tempo) a aceitação destes como coisas da arte, sob a garantia de serem próximos à
agrafia. Trabalhos como os de Ruscha, Roth, etc. acabaram sendo bem assimilados
pelo tempo. Mas esse processo ainda parece não ter acabado de todo. São revistos.
São consagrados. Ou passam a ter a sua fisicalidade relativizada em face a qualidades
mais abstratas. São reavaliados pela adequação ao meio, pela sua pertinência.
Se eu fui certamente excessiva (toda polêmica leva à simplificação) no modo de bran-
dir Ruscha como o único paradigma, continuo a pensar que os livros de artista dig-
nos de interesse são assim não porque eles sejam um novo artesanato artístico, tendo
a fabricação de um objeto “livro por fim, mas porque eles se integram a um projeto
artístico de conjunto onde o livro tem sua necessidade, num momento preciso, como
um meio de expressão mais adequado do que outro. O que, reconheçamos, não é,
talvez, o caso de Ruscha, em que a produção de livros, separada da sua pintura, tende
a se constituir numa atividade sui generis. (Comentário a propósito do artigo “Réponse
à Johanna Drucker”, publicado em JAB, Journal of Artists’ Books, n. 6, outono de 1996,
p. 12-13; Moeglin-Delcroix, 2006, p. 544)
Não é a toa que Twentysix... é paradigmático. Se o, digamos, conteúdo, passa a
sobrepujar a, também digamos, forma, então o problema que parece crescer pouco a
pouco é decidir se existe narrativa ou narratividade ali, ou se existe alguma outra coisa,
já que o nada é uma impossibilidade. Na opinião desta pesquisa (e assim ela foi deflagrada),
o narrador está ali, congelado no tempo (uma velha possibilidade pictórica), eternamen-
te oculto (uma especialidade frasal), eternamente em off (uma elocução do drama). Mui-
tos trabalhos são habitualmente apresentados como desprovidos de desenvolvimentos
narrativos, e de fato parecem ser assim. Mas bastaria um detalhe figurado, ou duas pági-
271
nas de cores diferentes, ou um caractere flutuando para se obter o mínimo, uma semen-
te. Um pequeno evento (atinente pelo menos à visualidade). O problema com relação
aos estudos sobre Twentysix..., um ícone dos que procuram ilustrações para a negação à
narração nos anos 60, é que nele ela se oferece, sim. Está no homem do oeste possível.
Está na paginação e está na descrição do percurso, quer pelas imagens, quer pelas legen-
das. Quanto ao narrador, bastaria aceitar que quem propõe a imposição de um livro
visual está fazendo executar a evolução de um relato. E mesmo quem obtém e mostra
uma foto está pelo menos descrevendo, redescrevendo, transcrevendo. Não se trata de
ubiqüidade da narrativa (isso talvez só exista em laboratório), mas de compreensão da
especificidade do relato visual. E no livro de Ruscha, com o qual começamos essa pes-
quisa, o narrador se revela (segundo acusam os relatos adicionados posteriormente), se
fazendo apresentar pela sua própria sombra invadindo uma das fotos, pelo menos.
A outra face da moeda foi o lado mais verbal, o lado dos escritos teóricos
(conceituais), com ou sem publicação. Quando com publicação, eram modestas nos pri-
meiros tempos, mas são profissionalizadas nos tempos atuais. As discussões eram mesmo
mais duráveis (intermináveis) contra as expressões ligadas ao conceitualismo, mesmo na
opinião de artistas. Antes circulavam em ambientes alternativos, pelo correio ou de mão
em mão. Hoje esses pensamentos são reeditados com freqüência e com capricho, poden-
do ser encontrados nas boas livrarias. Mas é preciso ter discernimento para evitar que a
textualidade anule tudo a sua volta. Jeff Wall oferece seu ponto de vista como artista da
imagem (embora escreva bastante) e pede cuidado com os excessos na arte conceitual.
Porém, a perda do sensual era um estado do qual convinha também fazer a experiência.
Substituir uma obra por um ensaio teórico que pudesse tomar seu lugar era o meio mais
direto de obtê-lo; essa foi a ação mais célebre do conceitualismo, um gesto de usurpação
da posição predominante de todos os organizadores intelectuais que controlavam e defi-
niam a Instituição da Arte. Mas, acima de tudo, era a proposição de negação final e defini-
tiva da arte como descrição [...] O conceitualismo lingüístico conduz a arte tão perto do
limite de sua auto-ultrapassagem, ou autodissolução, que pode ir deixando a seu público a
única tarefa de redescobrir as legitimações para as obras de arte [...]. (Wall, 2004, p.309)
E continua, reivindicando (ou cooptando) a fotografia para restabelecer a obra:
272
Mas, arrastando seu pesado fardo de descrição, a fotografia não podia seguir um
conceitualismo puro, ou lingüístico, aessa fronteira. Ela não pode procurar a expe-
riência de negação da experiência, mas deve continuar a procurar a experiência da
descrição, da imagem.” (p.309-310)
Com o enfado estético resultante dos excessos dos anos 80, o problema maior
parece ter passado a ser o que eleger como valioso para a crítica, dentre as publicações que
nada ou quase nada ofereciam para ser lido. Ao comentar, a partir das linhas gerais das
idéias de Deleuze e Lyotard, a presença de palavras, imagens e corpos nos livros de artista
do século XX, Sara Guindani percebe a perseverança das obras narrativas frente a sua
apontada “marginalização” no pensamento contemporâneo. Ela reconhece que em face
da “marginalização” da narrativa no pensamento contemporâneo, seria natural indagar-
mos “por que a arte do século passado parece, entretanto, insistentemente se inclinar exa-
tamente em direção a um quadro evidentemente ‘narrativo’ como o do livro. Particular-
mente aplicável ao livro-obra é a sua conclusão de que os artistas que se valem do livro
como forma pareceriam “recuperar, por meio da palavra, uma dimensão completamente
diferente, que parece ir não tanto na direção de uma banal recuperação da narrativa, mas
na sua ‘desconstrução’ interna” (p. 28). Ela se refere de forma especial aos trabalhos das
vanguardas ou seus herdeiros, comprometidos com a experimentação.
De fato, na maior parte dos livros de artista, a palavra é isolada, desmembrada e destacada
de seu suporte material. Sua transparência semântica, seu poder alusivo e transitivo são
negados para pregar-se à irredutibilidade da sua condição material, sonora e cromática.
A leitura é confrontada com sua dependente “condição de possibilidade”,
conforme Guindani, lembrando os livros iletrados e jocosos de Bruno Munari dos
anos 50, os Libri illeggibili, ou com Leggere, 1972, de Giovanni Anselmo, em que o
verbo italiano leggere (ler) cresce página a página até ultrapassá-la em seus limites e
sumir. Mas sabe que a tarefa não é fácil.
Levada ao extremo, a idéia de um texto que queira reter em si o olhar do leitor-espectador,
que não pretenda mais se referir a um mundo de metassignificados, acaba por colocar em
crise o próprio ato de ler. O incessante comércio praticado pela leitura, capaz de transfor-
273
Giovanni
Anselmo,
Leggere, 1972.
274
mar, sobretudo nas línguas alfabéticas, o particular concreto (o signo escrito) em universal
abstrato (o significado), encontra, na nova abordagem do texto, uma pausa. (Guindani,
“Fine del narrativo?”, em Maffei e Picciau, 2006, p. 28-29, em italiano.)
Na procura de definições para o carrossel de coisas ou fenômenos, algumas
tiveram boa acolhida, outros nem tanto. A denominação “livro de artista” (artist’s book,
livre d’artiste, libro de artista, libro d’artista, Künstlerbuch, etc.) banhou o mundo das artes
como uma onda, mas como determinação sofreu ajustes, não sem disputas entre teóri-
cos, entre artistas, e uns com os outros. Mas sem dúvida chegou para ficar. O vocábulo
“intermídia” foi se acercando devagar, mas é o que melhor define as “interseções entre
mídias, espaços que não representam a fusão, mas a relação complexa no ínterim de
posições” (Ferreira e Cotrim, 2006, p. 139-140), o que o diferencia fundamentalmente
de multimídia, uma solução de apresentação (a versão eletrônica da técnica mista). Ou-
tras designações, excessivamente limitadas por seu próprio balizamento literário, não
foram adiante, exceto, talvez, em leituras críticas. Próprias para uso em situações muito
específicas, elas são inadequadas no geral. É o caso de “literatura visual”, “alfabetização
visual” e outros termos assemelhados, que vão e voltam em digressões, eventualmente
considerados como sinal de “idiotia” (Phillpot, “Visual language, visual literature, visual
literacy”, em Kostelanetz, 1979, p. 179.).
O ato de ver (ou de ler, assistir, examinar) é uma transação posta a operar gra-
ças à permissão fisiológica, dentro de uma situação espacial, considerado num período
de tempo, avaliado num momento histórico e condicionado culturalmente. Excetuan-
do-se as patologias, ele é cognitivo, irrefreável e quase inevitável. O ato de escrever é
arbitrário, treinado, político, determinado.
Narrativa artística e empreendimento editorial
Chegados a este momento em que estamos, vemos a narração oriunda das
artes se assumir com desenvoltura em livros que são tão comuns quanto incomuns.
Ou seja, são comuns porque tendem à forma dos códices convencionais, com texto e
imagem ou apenas texto, impressos com técnicas automatizadas e eficientes, e por
275
fim disponibilizados para distribuição comercial. E
incomuns por causa da indefinição, em maior ou
menor grau, de seu “conteúdo” legível. A legibilidade
em si não é questionada, mas sim a proposição nar-
rativa do “produto”. Onde, em que prateleira de sua
loja o livreiro vai colocar esses relatos? Podem ser
(ou não ser) obras de ficção, depoimentos documen-
tais, etc., mas não são claros em seu “gênero literá-
rio” ou “tipicidade artística”. Vejamos um exemplo
editorial de extração pelos próprios artistas (mas não
totalmente independente porque usou de subsídios)..
O projeto Areal desenvolveu-se a partir de
uma proposta de André Severo e Maria Helena
Bernardes, em 2000, com o objetivo de “trazer a pú-
blico o ponto de vista do artista sobre seu próprio
trabalho, estendendo o exercício da autoria às etapas
de documentação e publicação”, conforme texto das
orelhas do primeiro volume. Todas as atividades
registradas eram espacialmente limitadas em sua condição geográfica, o sul do sul do
Brasil. Cinco foram lançados até o momento, todos integralmente narrativos. Todos
têm tamanho comercial (14 x 21cm o primeiro, 16 x 23cm os restantes) e acabamento
em brochura. O título de abertura da série Documento Areal foi Eu e você: Karin
Lambrecht, 2001, organizado pelos autores do projeto. Registra uma nova ação ritualística
de Lambrecht de marcar folhas de papel com sangue, vísceras de um carneiro, abati-
do na região rural próxima à cidade de Bagé, região próxima a fronteira entre Brasil e
Uruguai, marcada pela pecuária. Nesse caso o trabalho de campo foi realizado como
uma cena de comunhão, com a participação de um grupo de convidados. O livro traz
o relato fotográfico da obtenção dessas “impressões de sangue”, mais alguns teste-
munhos escritos ou recensões críticas pelos organizadores e os alemães Karin Stempel
(historiadora de arte) e Rolf Wicker (artista). Dos seres humanos, nas fotos só apare-
cem as mãos, manuseando vísceras (eventualmente pés). A única pessoa a aparecer de
Karin Lambrecht,
Eu e você, 2001;
Série Documento Areal, 1.
276
corpo inteiro e face discervel é o capataz da fazenda, fotografado por Lambrecht.
Suas maneiras objetivas, distantes de qualquer artificialismo, acabam por fazê-lo se
infiltrar no livro, à disposição para se firmar como personagem.
Tão sem afetação e normais como o trabalho de Denis foram as ações paralelas de
Karin, que acompanharam o decurso do abate como que à parte, sem detê-lo ou
perturbá-lo. Nada foi fingido ou encenado: Denis fez o trabalho dele, Karin o seu.
Não houve nada dessa sacralidade solene de performances artísticas, freqüentemente
tão desagradável. (Comentários de Wicker, p. 80.)
A artista não verbaliza seu pensamento por meio escrito, o que talvez faça
falta nessa situação editorial. O livro (esse tipo de livro) parece se ressentir um pouco
desse silêncio. As palavras de Lambrecht não aumentariam nem diminuiriam a dilui-
ção crítica proposta pela publicação, mas talvez a aproximassem um pouco mais do
leitor. Esse é um detalhe pequeno, compensado pela garantia do empreendimento
editorial, assumido por uma editora universitária (da Universidade de Santa Cruz do
Sul), o que é muito raro nos círculos acadêmicos brasileiros para esse tipo de obra.
A série assume plenamente seu viés autoral nos lançamentos seguintes. To-
dos foram publicados pela editora Escrituras, agora com patrocínio financeiro oficial
(Programa Petrobras Artes Visuais). Vaga em campo de rejeito, 2003, de Maria Helena
Bernardes, traz o relato da transposição para meio rural de um intervalo bidimensional
de rés-do-co, delimitado por duas construções urbanas. O local de partida foi um
trecho de piso vazio sem utilização ou ocupação efetiva (uma “vaga”) na cidade de
Arroio dos Ratos, Rio Grande do Sul. O local de chegada, que receberia a reconstru-
ção (ou emulação) da seção de piso, seria um antigo campo de descarte de sobras (ou
“rejeito”) da extração de carvão, minério ainda de importância econômica para o povo
daquela região. O campo citado é um típico depósito a céu aberto em que o entulho
da mineração é espalhado, resultando numa paisagem acinzentada. O texto é roman-
ceado, narrado em primeira pessoa e com a lembrança de diálogos.
Entre os dois prédios, o Camelô à frente e os passageiros sentados na mureta da
rodoviária à espera do ônibus, lá estava o triângulo bicudo, com um pouco de lixo
277
estacionado ali pelo vento. Dirigi-me ao gui-
chê da rodoviária para perguntar à vendedora:
- O que é isso?
- Isso o quê? – foi a réplica.
[...] Assim ficamos, por uns instantes, até que
eu especificasse o espaço entre a câmara, a ro-
doviária e o Camelô. Por fim comprrendendo
a pergunta, respondeu, com certo
estranhamento:
- Ah... isso aí? Isso aí é... uma sobra. (p. 25)
O volume traz o relato acompanhado de mui-
tas fotos que ilustram o andamento das tarefas, levan-
tamento e marcação de terreno, trabalho de homens e
de máquinas, desenvolvimento do canteiro de obras,
pequenos ajustes e finalização do projeto, tudo com o
auxílio da prefeitura e a crescente compreensão da
comunidade, não sem eventuais incidentes.
Mais tarde houve uma baixa. Alguém não se conformava com a calçada solta em
meio ao campo e saía esbravejando, deixando a pá de lado. A falta foi logo suprida:
“Não pensei que esse serviço fosse tão grande!”, dizia o Secretário de Obras, desem-
barcando da kombi e assumindo rapidamente o posto. (p. 65)
O terceiro lançamento da série foi O + é deserto, 2003, de Hélio Fervenza. Lê-
se “o mais é deserto”, mas o sinal de adição está inserido nas propostas de então, em
que o artista fazia inserir sinais gráficos (caracteres) em situações expositivas. É o
volume com maior envolvimento na composição dos espaços, com destaque para o
uso instrumental das páginas ou áreas em amarelo, distribuindo algumas palavras so-
bre o campo monocromático ou buscando realizar um eco entre pormenores de cor
(o amarelo) que estão no tempo e espaço da foto com a cor que está no tempo e
Maria Helena Bernardes,
Vaga em campo de rejeito, 2003;
Série Documento Areal, 2.
278
espaço do projeto gráfico. Reúne artigos que osci-
lam entre o relato de atividades a considerações pro-
fissionais. A descrição das etapas de criação voltada
para um dado espaço (como para a II Bienal do
Mercosul ou seus cartões de visita) documenta as
decisões tomadas.
No final das visitas [a galpões abandonados
no cais do porto], recolhi, então, vários
cadinhos e baldes utilizados em fundição,
roupas e acessórios em couro, como pernei-
ras, braçadeiras, luvas. Recolhi também ca-
pacetes e óculos de proteção, uma bóia me-
tálica, uma âncora e várias peças em ferro
de distintos tamanhos, enormes parafusos,
porcas, uma tampa de garrafa de oxigênio.
[...] Especificamente no que diz respeito aos
objetos escolhidos e colocados embrulhados
sobre a mesa-balcão, não poderíamos falar
exatamente de descontextualização física de
objetos, como um barco dentro de um museu [...] Eles permanecem (em sua per-
da) no mesmo lugar a que estavam destinados. (Extraído de “A função do ama-
nhã”, p. 26-27)
A índole reflexiva se apresenta subordinada à sua atividade docente. É
dominante a preocupação com as condições de inserção social do pensamento
artístico.
O que se esquece constantemente (e muitas vezes voluntariamente) é a história da
constituição do campo artístico, a história da constituição do saber desse campo e a
história das lutas por sua autonomia. Os textos e as iniciativas de artistas que para
isso apontavam (mas eram apenas uma parte dessa história) convidam, hoje em dia, a
constatar que sua prática efetiva é algo ainda a ser realizado. (De “A produção do
deserto”, p. 81)
Helio Fervenza,
O + é deserto, 2003;
Série Documento Areal, 3.
279
O quarto Documento Areal foi Sobreposições
imprecisas, de Elaine Tedesco, 2003. Oferece imagens
obtidas pela artista ao registrar sua pesquisa então
em andamento com projeções de diapositivos so-
bre “cenários” já existentes (geralmente
contrastantes com a artificialidade luminosa do pro-
cedimento). Os exercícios documentados no livro
foram realizados à noite em localidades do interior
e da região costeira do sul do Rio Grande do Sul:
Arambaré (lagunar), Mostardas (simultaneamente
marítima e lacustre), Rio Pardo (ribeirinha). Assim,
uma imagem fotográfica com dupla exposição pro-
duzirá uma projeção sobre uma fachada (ou uma
edificação equivalente que sirva de tela, de “ante-
paro”). Através das imagens projetadas, a luz
miscigenará num écran maciço e rústico novas tex-
turas, volumes ou espaços (e o resultado também
poderá ser fotografado). Apesar do grupo central
de fotos coloridas reproduzidas no livro obtidas pela artista e do esforço no projeto
gráfico, esse titulo repete um pouco o esvaziamento de autoria do início da série.
Aproxima-se dos propósitos de um catálogo, ao mesmo tempo em que se afasta da
individualidade autoral (e ele não é declarado como uma obra coletiva). Salvo as
imagens (que têm valor ilustrativo, mais que narrativo) e os comentários de convi-
dados (os reais tradutores do trabalho), resta-nos um único texto de Tedesco, com
breves reminiscências de infância (“a correria de pessoas em direção à praia para
acudir os passageiros de um dos ônibus que estava sendo tragado pelo mar”) ou
relatos curtos do processo de trabalho.
Já no domingo, solicitei ao padre que anunciasse, ao final da missa, que a projeção seria
feita no hotel. Enquanto a projeção acontecia, havia sempre dois grupos de pessoas –
os que assistiam do lado de dentro e os que assistiam do lado de fora. (p. 13)
Elaine Tedesco,
Sobreposições imprecisas, 2003;
Série Documento Areal, 4.
280
O quinto título é Consciência errante, de
André Severo, 2004. É o mais volumoso da série,
de longe o mais verborrágico. Embora tenha mui-
tas páginas inteiramente ocupadas com fotos (em
preto e branco), o livro é eminentemente literário e
sem qualquer traço de exercício tipográfico (ou será
que neste caso é esse mesmo o experimentalismo
gfico?). A diagramação é sóbria, tradicional,
direcionada para o conforto da leitura. Os quatro
ensaios que o compõem são imprecisas e loquazes
divagações sobre a errância como condição, como
predisposição, como princípio ao sensível ou ao in-
teligível.
Transigidos todos esses aspectos, o que parece,
especialmente, ainda se colocar em posição ver-
tical para uma aproximação definitiva do ideário
da multivagação, é que os maiores inimigos da
organização nômade de nossos pensamentos
parecem ser, tão-somente, as conjecturações
dogmáticas (que assim como seus adeptos – o sectarismo, o fanatismo e o formalismo
– são frutos de uma concepção falsa e estática das coisas). (p. 132)
Os textos são anteriores, contemporâneos ou posteriores ao projeto Migração,
integrante das atividades do Areal. Para seu desenvolvimento, Severo escavou o piso de
seu ateliê em Porto Alegre em doze pontos, colocando o solo obtido em doze sacos
(um total de cerca de 450 quilos; cf. p. 165, nota 19). Durante um ano de viagens pelo
interior do estado, especialmente a metade sul, eram feitos novos buracos, retiradas por-
ções do solo, preenchidos os buracos com solo do lugar anterior e assim sucessivamen-
te até o retorno ao ateliê. Os primeiros buracos, que aguardavam abertos todo esse
tempo, seriam finalmente preenchidos com o material obtido na escavação anterior dando
fim ao projeto. As fotos trazidas no livro mostram a execução dessa tarefa.
André Severo,
Consciência errante, 2004;
Série Documento Areal, 5.
281
Os livros Documento Areal são, portanto livros fisicamente comuns, mas
conceitualmente incomuns. Tratava-se de um projeto editorial único, inesperado para
o circuito artístico no qual se inscreveu, uma economia simbólica periférica que abri-
ga ao mesmo tempo defensores do conservadorismo e atores atualizados com as mais
recentes propostas. A ser conquistado, portanto, umblico leitor desejoso, mas ain-
da não acostumado aos relatos de artistas publicados sem mendicância. Mesmo que a
expressão escrita tenha num ou noutro título marcas da inexperiência, a série não
pede a comiseração de literatos. Seu mercado é o das artes visuais. A elocução verbal
de processos tem um lugar importante a ser ocupado.
É oportuno observar que esse tipo de edições tem retórica (geral ou visual)
sustentada por soluções mais ou menos consagradas pelo conhecimento acumulado
em editoração e comunicação visual. Esse parece ser o principal motivo de não ofere-
cerem maiores dificuldades para a análise formal de sua construção de páginas. A
bibliografia sobre o assunto é ampla e de qualidade, sobretudo aquela oriunda de
centros acadêmicos que aproximam arte, projeto e comunicação (sempre consciente
da participação geratriz dos princípios artísticos). Observe-se a esse respeito o méto-
do de trabalho de Martine Joly, objetivo e pragmático, apoiado por intenso suporte
teórico, que considera a retórica visual e a semiótica, seja para um quadro, seja para
uma página, identificando o grau de presença ou importância da mensagem plástica,
icônica e lingüística. Uma pequena demonstração de análise de uma página dupla de
revista (Joly, 2005, p. 78-100), com publicidade de uma marca de cigarros que tem
ressonância mesmo em assuntos da arte, é ponto de partida suficiente para dar conta
de princípios também presentes nos livros verbo-visuais, certamente nas edições con-
vencionais, mas até mesmo numa parcela dos livros-obra. Somado à leitura da mensa-
gem textual, um esquema de análise do composto verbo-visual poderá ser uma ferra-
menta incontornável para a tipificação dos procedimentos narrativos na página. So-
bretudo porque, como Joly acredita, “contar uma história numa só imagem é impos-
sível, mas que à imagem em seqüência (fixa ou animada) são dados os meios de cons-
truir a narração com suas relações temporais e causais” (p. 104).
Em outro continente, devemos admirar um outro exemplo editorial de pro-
dução narrativa apoiada na predominância do texto, mas agora ainda mais compro-
282
metido com a tradição do livro de artista – e desta vez oriundo de um empreendimen-
to profissional consolidado institucionalmente. Dentre as mais importantes editoras
de livros antes chamados como de vanguarda (já não mais tão vanguarda assim) está a
Book Works, de Londres. Foi criada em 1984, sob alguns arcos da rede ferroviária
em London Bridge, então estabelecida numa “tentativa de posicionar o livro em ter-
mos da prática da arte contemporânea e dar-lhe um contexto relevante” (Rolo e Hunt,
1999, p. 27). Seus primeiros formadores eram gravuristas, impressores e encadernadores
que discutiam muito sobre o que haveria de ser feito para não ficar presos numa uto-
pia. No princípio, além das atividades gficas (incluindo apoio a terceiros), realiza-
ram eventos e organizaram espaço para exibições contemporâneas. Mais tarde a gale-
ria foi fechada, Book Works foi para um endereço mais apropriado e passou a inte-
grar a atenção de financiadores importantes, como o Arts Council of England, o
London Arts Board, e outros, incluindo co-edições com galerias européias.
Entretanto, o que realmente nos deu forma através dos anos não é tanto um espírito
independente, mas mais propriamente colaborativo, que nos tem permitido produzir
alguns livros e outros projetos maravilhosos com artistas. De início, nos concentra-
mos nas exibições, instalações e eventos com foco no material impresso e texto no
trabalho dos artistas. Então compreendemos que comissionando artistas para fazer
um trabalho novo nós poderíamos estar mais estreitamente envolvidos com o pró-
prio processo criativo, assim como apresentar e distribuir os seus projetos. (Depoi-
mento de Jane Rolo em Fusco e Hunt, orgs., 2004, p. 182)
Alguns de seus fundadores continuam atuando, agora com novos parceiros,
responsáveis por funções como desenvolvimento de projetos, editoração, fotografia,
comercialização, distribuição. Seu catálogo inclui livros geralmente com preços aces-
síveis, com originalidade e qualidade. Trabalha ou trabalhou com artistas (ou autores)
como Tacita Dean, Mark Dion, Liam Gillick, Douglas Gordon, Susan Hiller, Thomas
Hirschhorn, Sharon Kivland, Joseph Kosuth, Jonathan Monk, Cornelia Parker, Adrian
Piper, David Shrigley, Fiona Tan, Sam Taylor-Wood entre outros. Alguns de seus títu-
los estão esgotados, infelizmente. Os livros publicados por Book Works são obras
sinceras, sem mistificações. São livros de artistas porque são livros, e porque seus au-
283
tores são artistas, mas aqui ele está absolvido da pena expiatória de ter que provar seu
pensamento plástico através de ataques ou deboches à forma do livro ou da produção
de objetos estranhos à leitura. “O ponto de partida para cada livro é o conteúdo”
(Rolo e Hunt, 1999, p. 30). Até existem alguns livros-objetos em catálogo, mas essa
não é a norma. O artista é livre para criar dentro do imaginário visual que lhe aprouver.
Porém, há alguns anos Book Works propôs um movimento ainda mais em reverso da
fisicalidade, rumo ao texto legível, uma ação aparentemente contrária aos princípios
das artes visuais. O objetivo da série The New Writing era a publicação de livros de
artista eminentemente textuais, mesmo com autores não artistas plásticos. Não se tra-
taria de uma nova onda de escritos conceituais ou concretos, mas narrativas perten-
centes ao agora. Defender causas ou não, era um problema que não importaria.
A série The New Writing desenvolveu-se de um desejo de publicar a obra que cruze
a fronteira entre arte e literatura, propiciando um nicho distinto para escritos de artis-
tas e de escritores com uma atitude questionadora em relação a forma ou que são
curiosos sobre as conexões que seus interesses podem ter com a arte visual e seu
público. (Rolo e Hunt, 1999, p. 33)
Entre os títulos de abertura da série estava Err, de David Shrigley, 1995 (na
sétima edição em 2006). Tem 96 páginas não paginadas (sem numeração), inteiramen-
te manuscritas com textos e ilustrações de sua própria autoria, com traços pretos em
alto-contraste (reprodução a traço). O assunto do livro oscila entre ele mesmo, o li-
vro, e coisa nenhuma. Shrigley não é o primeiro e certamente não será o último a
utilizar da metalinguagem. São incontáveis os
exercícios desse tipo em livros (e em boa parte
fastidiosos). Experimentos como esses têm um
tataravô em comum, o romance de Laurence
Sterne, The life and opinions of Tristram Shandy,
Gentleman (1760), que explorava a constituição
semântica do volume, sua tipografia, as quali-
dades materiais, a fisicalidade em relação ao
conteúdo narrativo (que tem a sua disposição
David Shrigley, Err.
London: Book Works, 1995.
New Writing Series.
284
texto e imagens), as diferenças entre contar uma história, escrever e ler.quem diga
que ele é pós-moderno avant la lettre. Com certeza faz par com o Lance de dados de
Mallarmé (aquele vindo da prosa, este da poesia) nas atenções de artistas e de pesqui-
sadores. Pavel chler vê propriedades em comum entre Tristram Shandy e os livros de
artista em geral, sobretudo a permanência da distinção mantida por Sterne entre his-
tória (story) e livro e a permanência de seu interior, do conteúdo.
Parece que a capacidade auto-reflexiva de suportar sua própria história e sua substân-
cia dentro de si mesmo, torna possível para o livro ser uma obra de arte (ou parte de
uma) enquanto conserva sua identidade como um livro e suas ligações com o mundo
exterior à arte (o mundo dos livros comuns). O livro na arte é sempre, também, um
“espaço” no qual as qualidades do livro, sua tradição, história, a continuidade do seu
desenvolvimento e todo seu simbolismo podem ser encontrados. Ou, em outras pa-
lavras, mesmo na arte livros são apenas livros. (Pavel Büchler, “Books as books”, em
Rolo e Hunt, orgs., 1996, p. 22)
Em Err a metalinguagem é grosseira, vulgar, ordinária, sem qualquer en-
canto especial. O que diferencia o trabalho de Shrigley é a feição jocosa, o enfoque
ora bem-humorado, ora o inverso, que finge não levar a sério a si mesmo ou a
próprio livro, além do estilo gráfico pessoal, já conhecido de seus admiradores, so-
bretudo por causa da significativa quantidade de livros publicados, encontráveis em
livrarias e lojas de museus.
Como não há tipografia (letras compostas), pode-se dizer que Err (errar, falhar,
mas também andar errando, vaguear) é um livro desenhado, pueril num certo sentido. A
sobrecapa traz textos manuscritos auto-referentes. Na primeira edição, sobre fundo ama-
relo, lia-se “This is the front cover of the book, the title is ‘Err’ (esta é a face frontal da
capa do livro, o título é “Err”). Em algumas edições (temos em mãos a quarta), a sobreca-
pa tem fundo azul forte, com textos em azul mais claro, título em rosa luminescente; sobre
um diagrama sobre como deveriam ser posicionados os textos nela, lê-se os elementos:
swearword”, “title”, “author”, “publisher”, “picture of the author”,words about author”,
etc. No interior, tudo é muito fragmentado, pequenos enunciados acompanhados de
vinhetas, com uma estética que lembra grafitagem ou pixação. O humor é variável.
285
Nota do autor. / Eu sou uma autoridade em sujeira e imundície. / Eu sou uma auto-
ridade em mal tempo. / Eu sou uma autoridade em acidentes maus. / Eu sou uma
autoridade em crianças aflitas. / Eu sou uma autoridade em vileza e crueldade. / De
fato eu sou uma autoridade em qualquer coisa cruel que você mencionar.
O livro inicia (após um frontispício que á apenas um monte de riscos
desencontrados como um balão de palavrões) com uma lista de queixas com relação a
erros da primeira edição, que vai de “1. Erros de impressão” até “6. Erros de um tipo
moral (muita maldade numa única página, etc.)”. Numa pagina ou noutra podem sur-
gir desenvolvimentos incompletos, como “histórias em progresso”.
O alto do prédio do outro lado da rua do nosso flat é um símbolo de nosso bairro.
Ele era grande e cheio de classe, mas agora está velho e coberto de merda de pássarinho.
Um dia desses eu estava tomando banho e achei que sentia cheiro de queimado. [...]
Eu não me dou bem com o Sr. Downstairs porque ele chamou a polícia na última vez
que tivemos ensaio da banda. Mais tarde eu me convenci que o cheiro de queimado
estava indo embora e eu saí. Quando [As palavras seguintes estão riscadas e ilegíveis,
o relato não se conclui.]
O prefácio é um dos momentos em que a sugestão de um propósito é posta
em pauta. É o ponto de vista do autor, em seis pequenos desenhos, cada um com sua
legenda.
Relâmpago em forma de garfo visto em negativo.
Pirâmide vista do ar.
O céu visto de dentro de um bueiro.
Fio de cabelo visto num microscópio.
Elefante visto no olho da mente de pessoas de tempos antigos que apenas haviam
ouvido falar sobre eles.
Os olhos dela vistos quando me vendo depois de eu estar fora por muito tempo sem
dizer onde eu estava.
286
O conteúdo é isso: garatujas, vinhetas, alguns mapas, niilismo, enfado, pilhé-
ria, brutalidade urbana, desassossego com regras. De tempos em tempos uma pausa
para desabafos: “Nós devemos esquecer o mal feito no passado?”
Um segundo exemplo da série New Writing, é o que poderíamos chamar
de um ensaio de prosa “científica” a partir de um exercício de cinema comparado.
Ott’s sneeze (ou “espirro de Ott”, 2002) é um trabalho conjunto do escritor ings
Lawrence Norfolk e do fotógrafo norte-americano Neal White. É uma brochura
David Shrigley, Err. London: Book Works, 1995. New Writing Series.
287
bem acabada, em papel forte, em preto e bran-
co, com capa e projeto gráfico com disposi-
ção rigorosa dos elementos. A idéia do expe-
rimento relatado deriva de um fato histórico.
Em 7 de janeiro de 1894 o que seria o primei-
ro dispositivo de captação de imagens em
movimento, o kinetograph, foi testado no estú-
dio de Thomas Edison, nos Estados Unidos,
por seu inventor W. K. L. Dickson, com o au-
xílio de seu assistente de laboratório Frederic
P. Ott. A imagem registrada foi um espirro de
Ott, então intitulado Registro de um espirro, um
filme composto de 45 quadros e pouco mais
de um segundo. Dois dias depois, o filme se-
ria depositado na Biblioteca do Congresso,
“tornando-se a primeira imagem em movi-
mento a ser registrada nos Estados Unidos da
América” (da introdução de Ott’s sneeze).
A introdução também esclarece que o
experimento foi sensação na época, porém um
comentário no Harper’s Weekly teria demonstra-
do simultaneamente fascínio e decepção. O pro-
blema seria, segundo o autor do artigo, que “a
minúcia nos escapa”, não haveria espirro algum
de fato registrado. Seria uma encenação? O pro-
blema é que a precariedade do equipamento e
a velocidade de um espirro seriam incompatí-
veis. As gotículas eram “tão rápidas, ou tão pequenas, ou tantas, o eixo do filme tão
lento ou a luz tão turva” que teriam iludido o equipamento. Por conta disso, Ott e seu
espirro passariam os próximos cem anos num “limbo representacional”. Até que a
presente experiência buscasse as imagens do que não pôde ser registrado.
Lawrence Norfolk e Neal White.
Ott’s sneeze. London: Book Works, 2002.
New Writing Series.
288
A documentação deixada por Dickson é considerada não confiável, mas
demonstraria ter idéia sobre o futuro quanto a possibilidade de realmente filmar
um espirro. Para filmar a reconstituição – que uma câmera moderna ainda não
seria capaz de registrar – Norfolk e White utilizaram um ambiente esterilizado,
equipamentos a laser, câmera digital ultra-rápida, computador e programas
anemométricos (para medição de movimento de partículas e velocidade do ven-
to). O objetivo era obter médias, não números exatos, o que seria impossível ten-
do em vista as variáveis.
O laser estava focado para uma lâmina de luz uns poucos centímetros em frente da
placa protetota. Adam [Whybrew, da Oxford Lasers] sincronizou a freqüência do
pulso de laser para coincidir com o padrão de captura da câmera, que estava ajustado
para 923 quadros por segundo numa resolução de 1024 x 512 pixels. (Do posfácio,
não paginado.)
No evento original teria sido usado rapé e pimenta preta. Dessa vez foi acres-
centado “pimenta branca, óleo Olbas [descongestionante nasal] poeira doméstica e o
mais fino conteúdo de um saco de aspirador de pó”. Não parece mesmo ser fácil
conseguir um espirro quando se quer um. Mas conseguiram, de Neal, “em 858 ima-
gens digitais com a duração de 871 milissegundos, às 17h57min”. O que o livro traz
são 45 quadros em equivalência sincrônica com o espirro de 1894.
O projeto gráfico é igual em praticamente todo o volume. É sóbrio, quase
minimalista. Na página da esquerda, no alto e em tipos pequenos, o título do livro;
mais abaixo, próximo do centro, a foto com o espirro de Neal; e, mais abaixo, quase
um rodapé, uma ilustração em gráfico mostrando a posição relativa da foto na linha
de tempo total do espirro, com a medida de tempo (começando em 3,250271ms, na
página par seguinte 21,668472ms, e assim por diante). Na página da direita, no canto
superior direito está um fotograma do espirro original de Ott e, mais abaixo, pouco
acima do centro de página, a menção do tempo e o texto propriamente dito do livro.
Tudo repleto de “cientificidade”.
t + 3,250271 milissegundos
289
A patologia do espirro está seguindo adiante. Pó e outros irritantes impelem a mucosa
nasal de Ott a liberar histaminas e leucotrienos e estimulam as terminações nervosas
no nariz, que coça, goteja e ativa um reflexo. A pressão do ar armazenado no tórax
pelo fechamento das cordas vocais é repentinamente liberada e ar pressurizado flui
de volta ao trato respiratório para expelir as partículas ofensivas no nariz, junto com
um grande número de gotículas mucosas e salivares. As primeiras duas a emergirem
têm 7 a 10 microns de diâmetro. Elas não são aparentes no fotograma corresponden-
te de Registro de um espirro.
Na etapa seguinte o texto prossegue e a “cientificidade” cresce.
t + 21,668472 milissegundos
A velocidade inicial do espirro de Ott é 47,83m/s ou 107mph. Em t + 21
milissegundos, o primeiro glóbulo grande emergiu, alongado e prestes a se dividir. A
difusão das gotículas médias (5 a 12 m
µ) está bem avançada e a primeira gotícula
menor (3 a 5 m
µ) vem em seguida. Semelhanças com a filmagem de grande altitude
tomada dos bombardeios incendiários de Bremen e Dresden na Segunda Guerra
Mundial, ou com a região do agrupamento G51V de estrelas agrupadas próximo de
HD 10697 na constelação de Peixes são acidentais. A proporção de gotículas plausi-
velmente correspondendo a bombas incendiárias ou estrelas (não mostradas) para
gotículas aparecendo no filme (mostrado) é de 78 para nada.
A descrição da experiência prosseguirá dentro dessa fórmula, em marcha
sincrônica ao tempo muito dilatado, como em grande câmera lenta. Eventualmente o
texto fluirá distante da lógica métrica, confundirá lembranças, como se estivesse ator-
doado e dispersivo.
t + 296,8580664 milissegundos
A parte alta do torso de um homem em princípios da meia idade, se cabelo repartido
para o lado, um grosso bigode: Ott. Ele veste um paletó, camisa e gravata. Sua mão
direita segura um lenço branco que ele leva ao seu nariz. [...] O espirro aparece. Isso
leva 108 anos. [...]
290
Às vezes o texto se torna hermeticamente matemático, às vezes evasivo, mes-
mo com números, parecendo desorientado de seu propósito estatístico.
t + 518,9599044
Porque f = F/D, e M = I/O = F/(O-F), a profundidade de campo também pode ser
calculada por: 2fd(M+1)/M
2
Na capa, a foto que nos parecia um tipo de constelação agora está mais clara.
É um detalhe da “dissolução de um superglóbulo” (com 28 m
µ!), em rotação sobre
seu eixo, contrária aos ponteiros do relógio. E o que era um elemento de comparação
ainda pode retornar a ser pura diversão: os 45 quadrinhos da seqüência histórica no
alto das páginas se oferecem ao leitor como em um flip book. Enfim, a narrativa escrita
não corre o risco de fazer a homenagem ao filme esvair-se, ao contrário, reforça a
história do cinema através da representação e notação do tempo.
Passamos ao terceiro exemplo da série, desta vez uma abordagem pela
História, com “h” maiúsculo. Ou melhor, de uma “História” entre aspas. A artis-
ta inglesa Emma Kay tem seu trabalho plástico centrado nas inter-relações entre
textualidade e memória. O seu livro Worldview, 1999, brochura, 232 páginas, é in-
teiramente textual, com parágrafos compostos com apenas um tipo de caractere
comum, sempre no mesmo corpo pequeno habitual para leitura, sem a presença
de títulos ou subtítulos e sem qualquer ilustração. Esse panorama mundial (world
view) é dessa maneira proposto através de um panorama pela palavra (word view).
Nele ela oferece seu relato pessoal de toda a história mundial, a partir da criação
do planeta Terra até os preparativos do que, ela acredita, seja o ingresso ao século
XXI (o réveillon de 1999 para 2000). Toda a História narrada é um exercício de
memória construído exatamente disso, sua memória, sem verificação de informa-
ções. Nenhuma consulta a livros de referência ou a qualquer tipo de fortuna críti-
ca foi realizada. As fontes são fluidas, imprecisas, fantasiosas: suas lembranças
originadas da vida escolar, de livros, jornais e revistas que leu, filmes que assistiu,
conversas, viagens, jogos de computador ou anúncios de publicidade. No final do
livro ainda dispomos de um índice, o que facilitará leitores intermitentes. Para
291
stone age (idade da pedra) vamos à página 12
e temos a sensação de ver uma imagem mi-
diatizada.
O ponto em que os macacos começa-
ram a moldar ferramentas é conhecido
como Idade da Pedra. Assim como usar
as ferramentas para obter comida, al-
guns macacos a usavam como armas,
para matar outros animais. Nos tempos
anteriores ao calendário, [...] o homem
pré-histórico atravessou diversos está-
gios de evolução, chamados Neandertal,
Neolítico e Cro-Magnon. O homem
primitivo descobriu fogo esfregando
dois gravetos e criando uma faísca.
Encontramos um bom número de “informações” sobre personalidades his-
tóricas, incluindo artísticas, como Leonardo, Mozart, Molière ou Frida Kahlo, assim
como Clark Gable ou Led Zepellin. Os temas podem incluir a Tapeçaria de Bayeux
(trazendo “a história toda do ponto de vista francês” em “40 metros de comprimen-
to”) ou Pelé (“um herói mundial e modelo para milhares”). O lado lúdico do trabalho
fica por conta da nossa curiosidade, que procura saber o que a artista escreveu sobre
o que nos é próximo, o que acaba por transformar seu livro numa improvel obra de
consulta. É difícil resistir a isso.
O Brasil não estava sob o aperto de um governo totalitário, mas era um país muito
pobre. As ruas de cortiços do Rio eram notoriamente dominadas pelo crime. Brasi-
leiros negros pobres sobreviviam nos morros por trás do Rio. Muitas crianças vivi-
am nas ruas porque seus pais não tinham recursos para mantê-los. Às vezes se
tornavam prostitutas ou se envolviam na atividade criminal, muitas vezes eram ba-
leados na hora, às vezes pela própria polícia, ou vendidos num tipo de moderna
escravidão. No final dos anos 1960 o governo brasileiro tentou elevar a imagem do
país no mundo. Jogadores brasileiros de futebol passaram a dominar o jogo mundi-
Emma Kay, Worldview.
London: Book Works, 1999.
New Writing Series.
292
al e a situação econômica estava melhorando. Uma porção da renda do Brasil deri-
vava de seu comércio madeireiro em conseqüência do que as matas pluviais eram
sistematicamente removidas para abrir caminho para a indústria, novas culturas e
desenvolvimento. Os preços do café estavam subindo. Tribos de índios eram re-
movidas de seu lugar. O centro administrativo do Brasil foi relocado para uma ci-
dade inteiramente nova, Brasília, construída a partir do nada. Brasília era uma cida-
de completamente modernista e não tinha qualquer edifício velho. Simbolizou a
esperança do Brasil pelo futuro. (p. 128-129)
Também a capa participa da brincadeira, com a única ilustração do livro, tra-
zendo a informação geogfica. No mapa-múndi desenhado por ela, a proporção
eurocêntrica dos países lembra o velho mapa dos surrealistas. Aqui ela traça uma Eu-
ropa com dimensões equivalentes às da África (mas talvez para poder escrever os
nomes dos países). A América do Sul parece continuar um lugar desconhecido. Os
países andinos, exceto o Chile, estão na costa leste, frente ao Oceano Atlântico. O
Brasil está a oeste, banhado pelo Pacífico e pelo Golfo do Panamá, porém se espreme
em diagonal, mantendo a extremidade sul como único ponto de contato com o Atlân-
tico (fazendo fronteira ao norte com Colômbia e Bolívia). O Paraguai foi parar junto
ao México e o seu lugar verdadeiro está ocupado pelo Peru. E já que o sul do globo
está ocupado por um continente, o pólo ártico também vira terra sólida, à semelhança
gráfica das representações alongadas da Antártida.
Tudo se trunca no texto confiante de Kay, que não parece estar preocupada
em rir de si mesma. Não é um texto que ofereça um caráter gaiato, que pretenda o
ridículo ou alguma forma extremada de riso. Seu humor é discreto, suave. Afinal, é de
nossa natureza montarmos conhecimento emoldurado por crenças, preconceitos, fan-
tasias ou conclusões arbitrárias. E o saldo cognitivo de Kay está a seu favor.
Livros como o de Kay ainda parecem desassossegar alguns amantes das ar-
tes. Ele de forma alguma poderia ser considerado verbo-visual. Ao contrário, ele é
todo verbal, não com a palavra plástica formando texto sensível, mas com texto inte-
ligível, exclusivamente para leitura. Será, então, que a artista mudou-se para a literatu-
ra? Até poderia ser. As Letras têm todo o direito de julgar o livro por seus paradigmas.
Nesse caso, essa seria uma obra literária. Sim, não, também ou nenhuma das respos-
293
tas? Certamente ela é uma obra do círculo das artes visuais, oriunda de um projeto das
artes visuais e realizada por uma artista visual. Portanto um trabalho de, da ou por
causa da arte. Ela seria então habitante de dois mundos, um ente com dupla cidada-
nia? Esta é a vantagem da obra de arte contemporânea: ela é traidora de seu histórico
visual, ela se oferece ao cheiro, ao gosto, às ondas de rádio, à leitura. A rainha é morta.
Salve a rainha!
O equilíbrio narrativo entre imagem e palavra
O mesmo caminho que acaba levando o esforço pela narração nas artes visu-
ais aos seus limites, às proximidades do colapso na pura textualidade, pode mantê-la
solidamente nesse patamar alcançado. Esse será um espaço de levitação ecumênica,
de coexistências, que se manterá pelo difícil equilíbrio nas zonas intervalares entre o
sensível e o inteligível, entre o plástico e o verbal, entre a racionalidade e o sentimen-
to, tudo organicamente efetivado graça à forma veicular do livro. Este é o lugar de um
último exemplo,visto anteriormente, mas que é retomado para que tenhamos ao
menos sua descrição. Trata-se do livro de Allan Sekula, Fish story, já apresentado, mas
a partir da participação sua na Documenta 11.
O projeto de Sekula durou vários anos e foi apresentado em diversas institui-
ções durante o seu andamento, em partes, até chegar, no todo, na Documenta. A
primeira exposição, como uma prestação de contas, ocorreu em 1990, no California
Museum of Photography, Riverside; seguiram-se a Galerie Perspektief, Rotterdam, a
Fotobienal de Vigo, Espanha, o Museum of Contemporary Art, Los Angeles, o Museet
for Fotokunst, Odense, Dinamarca, a Whitney Biennial, Nova Iorque, o New Museum
of Contemporary Art, Nova Iorque, o National Museum of Contemporary Art, Seul
e finalmente o University Art Museum, Berkeley, entre outras instituições. Após o
período expositivo (acompanhado da publicação de artigos e de palestras), Fish story,
acabou sendo concretizado em 1995, em publicação pela editora alemã Richter Verlag.
O livro foi lançado na companhia de exposições homônimas, com 105 fotos colori-
das e 26 painéis com textos, no centro de arte contemporânea Witte de With, em
294
Rotterdam, no Fotografiska Museet do Moderna Museet, em Estocolmo, no centro
Tramway, em Glasgow, e no Le Channel, Scène nationale e Musée des Beaux Arts et
de la Dentelle, em Calais. Portanto, o circuito que acompanhou o projeto antes, du-
rante e depois foi mais que suficiente pra corroborar algo que é bem mais do que uma
simples “estória de pescador”. Para Sekula, “a maioria das histórias do mar são alego-
rias da autoridade” (Fish story, p. 183).
Por que a atenção crescente em Sekula, despertada já antes do início desta
pesquisa? Em primeiro lugar, Sekula é um fotógrafo de méritos indiscutíveis, um ar-
tista com as lentes voltadas ao tempo geopolítico, acadêmico no bom sentido, partici-
pando do mercado de idéias e da vida universitária desde os anos 70 (curiosidade:
uma palestra sua é tema de uma das fotos do austríaco Rainer Ganahl, na 52
a
Bienal
de Veneza, 2007). Para Krauss (2002, p. 59, nota 27) “até hoje, os trabalhos de Allan
Sekula foram os únicos a encaminhar uma análise coerente da história da fotografia”,
defendendo-a de um enquadramento simplório, dependente de categorias já constitu-
ídas pela arte. Segundo, é referência não apenas artística, mas teórica, com freqüência
crescente nas pesquisas de universitários em manuais de metodologia da análise visual
(Leeuwen e Jewitt, orgs. 2006; Rose, 2001) e em antologias do pensamento artístico
(Alberro e Stimson, orgs., 2000). E terceiro (já que Sekula gosta do número três),
porque o projeto Fish story foi concebido para ser integrado em livro e só como livro
ele existe plenamente na nossa atenção, no gerúndio, narrando uma experiência quase
estranha à arte com autoridade e direito, um processo cognitivo tramado na eloqüên-
cia conjugada de suas fotos e seu texto. Em Sekula, o livro, a coisa formal, continua
sendo interdisciplinar. Mas mais interdisciplinar ainda é o seu pensamento, onde a
fotografia ajuda a dissertar.
O livro de Sekula tem formato grande (22,5 x 28,5), um número médio de
páginas (204), impressão colorida sobre papel cuchê (usual para esse tipo de obra), capa
dura e sobrecapa. O projeto gráfico (dele com Catherine Lorenz) é simples e direto,
dividido em dez subunidades (ou capítulos), que compões seis agrupamentos (ou mo-
mentos com semelhanças temáticas). A editoração privilegia de tal forma o equilíbrio
entre a legibilidade e o desfile de imagens (ilustrações?) que, pensamos, poderia ser um
álbum de mesa sobre marinha mercante, sobre os mares do mundo, sobre portos e
295
trabalhadores; poderia ser um volume tradicio-
nal do grupo Time-Life, de geografia, estudos
sociais, qualquer coisa do tipo. Dos três primei-
ros assuntos, sem dúvida ele trata: comércio
marinho, mar e portos e trabalhadores. De um
livro tradicional, tem a aparência imediata, mas
não se trata de uma tentativa de produzir algum
tipo de simulacro crítico ou de um álbum meta-
fórico. Também não pensaríamos nele, pelo
menos num primeiro momento, como um livro-
obra justamente porque a sua gramática visual,
afinal, não traz surpresas do gênero. É uma pu-
blicação que não parece querer ser confundida
com uma representação simbólica de algum ou-
tro livro em particular ou dos livros em geral,
ou sequer desafiar padrões superficiais. Sua for-
ma está no “conteúdo”.
Como livro de artista está situado no canto dos “apenas livros”. Será mes-
mo? É preciso examinar com atenção, é preciso ler. Precisaremos de vários dias, tal-
vez algumas semanas para o seu desfrute, porque o desfrute está em relação direta
com o tempo de leitura. Para acompanhar o fotógrafo será preciso ser leitor, porque
ele escreve. Mas faz ressalvas, como nos comentários a propósito de um trabalho
posterior, Titanic’s wake, ensaio também com comentários socioeconômicos, realizado
no México, no cais de filmagens do filme Titanic.
[...] eu posso ser um escritor, mas não sou um novelista, e não tenho nenhum
apetite nem aptidão particulares para a caracterização ficcional. [...] Uma chave
para essa possibilidade é o reconhecimento de que uma paisagem ou uma cidade
podem ser fotografadas e descritas verbalmente de formas que reconhecem apro-
priações prévias pela linguagem novelística, ou por formas culturais mais recen-
tes, como por exemplo as epopéias de Hollywood, formas essas cujas fontes de-
rivam do próprio realismo novelístico. Nesse sentido, o documentário deve ser,
Allan Sekula, Fish story.
Düsseldorf: Richter Verlag, 1995.
Formato 22,5 x 28,5cm, 204 páginas.
Tiragens: 3.000 exemplares brochuras
e 1.000 encadernados em capa dura.
296
também, uma prática letrada. (Sekula, de “Nadando em águas revoltas”, em Bock,
org., 2002, p. 269-270)
Em seu livro (e exposições) Fish story, Sekula escreve abundantemente, sem
que isso desloque a importância fundamental (e instrumental) das fotografias. O pa-
grafo a seguir é o primeiro do livro, do capítulo de abertura, homônimo ao título do
livro, precedida e depois seguida por séries de fotos.
1
Crescer num porto nos predispõe a manter estranhas idéias sobre matéria e pensa-
mento. Estou falando apenas comigo mesmo aqui, apesar de suspeitar que certa in-
sistência obstinada e pessimista sobre a primazia das forças materiais é parte de uma
cultura comum de residentes portuários. Esse materialismo cru está segurado pelo
desastre. Navios explodem, fazem água, afundam, colidem. Acidentes acontecem todo
dia. A gravidade é reconhecida como uma força. Em contraste, as companhias aéreas
encorajam a onipotência do pensamento. Essa é a razão porque o comissário de ae-
roportos da cidade de Los Angeles é mais bem pago que o comissário de portos. O
comissário do aeroporto tem que pensar muito severamente, dia e noite, para manter
todos os aviões no ar. (p. 12)
O próximo capítulo é “Loaves and fishes” (literalmente “pães e peixes, mas
de fato “vantagens pessoais”). A seguir um segmento de texto, a partir do primeiro
parágrafo.
Uma amiga alemã escreveu-me no início de janeiro de 1991, pouco antes da guerra
no Golfo Pérsico: “Você deveria tentar fotografar portos determinados, como Haifa
e Basra.” Seu discernimento que alguns portos são fulcros de história, as alavancas
muitas, e os resultados imprevisíveis estava escrito na taquigrafia abstrata de uma
intelectual. Mas ela compartilha a curiosidade materialista de pessoas que trabalham
em e entre portos, como os marinheiros dinamarqueses que descobriram que Israel
estava secretamente remetendo armas americanas para o Irã nos anos 80. [...]
Marinheiros e estivadores estão em posição de ver os padrões globais de intriga es-
condidos nos detalhes mundanos do comércio. Às vezes a evidência está de fato
297
estranhamente à mão: Armas para iraquianos no porão dianteiro. Armas para irania-
nos no porão da popa. Os estivadores espanhóis em Barcelona riem-se da ironia de
carregar fretes com destinos antagônicos. Por um momento a rede global de supri-
mentos está localizada comicamente, tão concentrada ilustrativamente quanto um bom
cartum político. Melhor abandonar o navio na doca. Mas minas lapa [minas de ade-
rência] são instrumentos de governos, não de trabalhadores. (p. 32)
Segue-se outra seqüência de fotos até o capítulo seguinte, “Dismal science:
part 1” (“ciência sombria”), que teve, também, vida textual e expositiva independen-
te. Inicia diretamente comentando a relação de Engels com as peculiaridades mercan-
tis da Inglaterra, tendo sempre o porto como eixo das reflexões.
Quando Friedrich Engels iniciou em 1844 a descrever em detalhes as condições de
vida e trabalho da classe trabalhadora inglesa, [...] Para Engels, o congestionamento
crescente do Tâmisa antecipou um movimento narrativo dentro das apertadas ruelas
dos bairros pobres de Londres. [...] (p. 42)
Sekula faz uma passagem para o cenário, relaciona o rio, o mar e a cidade
com seus trabalhadores e sua iconografia. Apresenta o sociopolítico e econômico atra-
vés de suas representações:
No final do século, Engels sabia que sua estratégia retórica anterior havia repousado
sobre um contraste estético e espacial que tinha perdido a validade, um contraste
entre o porto “pictórico” (malerische) e a cidade “feia”. [...] A cidade e o sistema
fabril atrás dela tinha devorado qualquer diferença – ou beleza – que o rio tinha para
oferecer. (p. 42)
Esse capítulo é ilustrado com algumas imagens em preto e branco: uma tela
de Joseph Turner, um pequeno mapa dos cortiços de Manchester, uma tela de Willem
van de Velde, o velho. Novamente, terminado o texto segue-se uma série de fotos.
As reflexões prosseguem mais ou menos nesse padrão. Eventualmente o de-
senvolvimento textual pode se referir diretamente a uma experiência embarcada. Às
vezes o relato transcreve avisos, notícias, aforismos. Discute o sistema de marinha
mercante no Atlântico Norte, o esforço econômico coreano, as crenças da elite e da
298
Allan Sekula, Fish story. Düsseldorf: Richter Verlag, 1995. Formato 22,5 x 28,5cm, 204 páginas.
Tiragens: 3.000 exemplares brochuras e 1.000 encadernados em capa dura.
299
classe operária norte-americanas em relação a asiáticos, as diferenças semânticas entre
o panorama e o detalhe (quase uma iconologia do espaço marítimo, com fotos docu-
mentais da marinha e da cultura popular). As circunstâncias da narrativa de Sekula,
como as de muitos de nós, têm seus álibis culturais tanto nos fatos político-econômi-
cos quanto nos “fatos” da ficção. A cenografia de seus ensaios é o mundo “real”, o
espaço pluridimensional expresso na ecologia do social e do simbólico. Esse mundo
real se põe disponível para a intelecção, por sua vez estruturada criticamente no juízo
(pela memória cultural “visível” e “legível”) da economia do homem branco ociden-
tal. Ambas, memória e economia, postas em cena pelos parâmetros da revolução in-
dustrial e suas ficções.
Para Júlio Verne, não existe lugar que não possa ser iluminado. O luar atravessa as
ondas e dá ao piso do oceano a luminosidade pálida de uma ruína romântica. Quan-
do o luar falha, a eletricidade chega lá. Mas os galeões naufragados no fundo de Vigo
Bay, a fonte secreta da misteriosa fortuna insurrecional do Capitão Nemo, nunca são
descritos no texto de Verne, apesar de estar retratados em duas das ilustrações da
primeira edição francesa de Vinte mil léguas submarinas. Dentro da narrativa escrita,
que em outras partes é repleta de tais cenas, não existe nenhum retrato subaquático,
nenhuma paisagem, nenhuma cidade na costa.
O tesouro submarino de Nemo permanece invisível e gelado na sua conexão com a
pilhagem histórica, com o processo que Marx chamou “acumulação primitiva”. Para
Verne, essa fração perdida de riqueza que veio abastecer com combustível a emer-
gência da moderna Europa é confiscada pela fábula mágica da herança: “Era para ele
e apenas para ele que a América tinha desistido de seus metais preciosos. Ele era o
herdeiro direto, sem ninguém com quem repartir esses tesouros arrancados dos incas
e da conquista de Ferdinand Cortez” [trecho de Vinte mil léguas submarinas]. (p. 141)
As imagens auxiliares, em preto e branco, são sempre ilustrativas, de tama-
nho menor, e sem a função de “texto” que têm as imagens principais. As fotos princi-
pais, como imagens capitais que realmente são, aparecem em função narrativa, descri-
tiva ou dissertativa, mas sem forçar estetização. Não são desestetizadas, porque falar
em desestetização é apenas um recurso de argumentação; ela é de fato um processo
300
que jamais se completa numa imagem percebi-
da por um ser humano. Além disso, uma olha-
da mais atenta, sobretudo no percurso dos de-
talhes, será suficiente para que elas desmintam
qualquer possibilidade de ser realmente modes-
tas. E quanto ao seu estatuto narrativo, não há
complementaridade. As fotografias de Sekula
são independentes dos textos principais, e vice-
versa. Ninguém ilustra ninguém, textos e fo-
tos. Todos trabalham por acumulação de senti-
dos, acumulação de reflexões, acumulação de
histórias, e sem jamais comprometer a unidade
do trabalho.
As fotos de Sekula são sozinhas nas
páginas, mas sem afetação, subordinadas à or-
dem editorial: são numeradas para poder ser
identificadas através de legendas à parte, e as
páginas são numeradas normalmente, com
rodapé corrente (título do livro à esquerda, -
tulo do capítulo à direita). Registram ocorrên-
cias, situações, indícios, pessoas, cenas
embarcadas, cenas portuárias, instantâneos e
detalhes para posterior lembrança. Às vezes
possuem uma seqüencialidade curta, rápida, de
apenas duas tomadas, uma após a outra, lado a
lado na abertura de páginas. Sempre que ne-
cessário, o texto recorrerá às já mencionadas
fotos de segunda geração ou domínio público
(imagens antigas, cenas de filmes, documentos,
detalhes de impressos). Porém, a marca visual
do volume são os grupos em ensaios originais.
Allan Sekula, Fish story, 1995.
Algumas composições de páginas
com fotos e texto.
301
Desde o princípio o projeto foi conce-
bido para se tornar simultaneamente
uma exposição e um livro, com “capí-
tulos” sendo apresentados como evo-
luíram. A seqüência final de capítulos,
e das imagens e textos dentro dos ca-
tulos, é virtualmente idêntica na exibi-
ção e no livro. [...] A relação espacial de
imagem para imagem, imagem para tex-
to e texto para texto necessariamente
toma uma forma diferente nas páginas
de um livro. Além disso, o livro permi-
te a inclusão de mais um texto, parale-
lo, e se torna o objeto um conjunto todo
diferente. (“A note for the work, Fish
story, p. 202.)
O texto paralelo referido são as partes
pós-textuais (esclarecimentos, agradecimentos,
créditos), incluindo um artigo de Benjamin H.
D. Buchloh. Em alguns livros de artista, às ve-
zes críticos são convidados a contribuir com
comentários auxiliares à decifração da obra, um
chamamento que é compreensível, mas na mai-
oria das vezes dispensável. Quando se “intro-
metem” no conjunto podem esfriar a relação
do vedor ou leitor com o livro. Sekula não cor-
re esse risco (ao menos não de todo) porque o
seu trabalho é formatado no que poderíamos
chamar de “condição convencional de
editoração”. É nesses termos que a resenha de
Buchloh assume a sua função de posfácio, ou
seja, com naturalidade.
Allan Sekula, Fish story, 1995.
Algumas composições de páginas
com texto com ou sem reproduções.
302
Buchloh parte de uma epígrafe emprestada de Alexander Rodchenko: “Pai-
sagens, cabeças e mulheres nuas são chamadas de fotografia artística, enquanto as
fotografia de eventos correntes são chamadas de fotografia de imprensa.” O pro-
blema, portanto, é anterior a Sekula, dizendo respeito à compreensão da interseção
de práticas culturais opostas: as relações, ou “as ameaças (e promessas)”, entre o
campo discursivo da fotografia e o campo discursivo da produção artística, permiti-
riam “nos dizer mais sobre um particular status histórico da cultura visual de uma
sociedade”.
O que é considerado “base” na produção de Sekula como um artista (em oposição às
suas atividades como um crítico e historiador da fotografia) é o fato de que seu traba-
lho reposiciona de forma programática precisamente aqueles temas e convenções
semióticas e textuais que foram desqualificados no modernismo por interdições exis-
tentes há muito: fotografia documental, narrativa histórica e, mais que tudo, um mo-
delo de significação que reconhece a complexa condição do signo que funciona si-
multaneamente como uma estrutura discursiva e como um constructo material deter-
minado por fatores históricos e ideológicos. (Buchloh, Allan Sekula: photography
between discourse and document”, em Fish story, p. 190)
Buchloh nota, a partir do desenvolvimento dessas características, a obra de
Sekula teria uma “aparente ‘ilegibilidade’ [...] dentro das práticas artísticas correntes”,
o que apontaria para “parâmetros de exclusão”, como, entre outros, a “(im)possibilidade
de uma iconografia do trabalho em uma sociedade auto-declarada pós-industrial e
pós-classe trabalhadora” (Fish story, p. 191). Outra característica do trabalho de Sekula
que viria se somar ao reposicionamento programático de temas seria sua insistência
num “realismo crítico” (e seu desafio semiótico).
Assim, é de fato difícil esclarecer qual das duas proibições contra a representação
(porque elas certamente não se originam dos mesmos interesses) é o assunto primá-
rio da sondagem crítica de Sekula: aquela da repressão modernista da narrativa e da
representação ou aquela da autocrítica marxista de seus fracassos passados em res-
suscitar as funções da representação e da narratividade histórica. (Fish story, p. 192)
303
Sob condições desfavoráveis quanto à legibilidade da obra, já que não se apoi-
ava na manutenção de um modelo pessoal, como era freqüente nos anos 60 e 70,
Sekula, prossegue Buchloh, constrói sua “retórica do fotográfico” com procedimen-
tos e resultados que seriam menos atrativos aos historiadores da arte, além de difíceis
para o público.
[...] seus relatos sobre a instabilidade do significado fotográfico continuamente osci-
lam entre uma concepção da fotografia como contextual (isso é, como uma ficção
determinada discursivamente e institucionalmente) e uma concepção de fotografia
como referencial (isso é, como um registro real de condições materiais complexas).
Michel Baudson pensa que o trabalho de Sekula se desenvolve a partir de um
conceito nômade de pesquisa documentária (o que não parece raro entre fotógrafos).
Seu trabalho freqüentemente se apresentaria como constituindo um campo de afini-
dade entre o documentário e a democracia. Essa pesquisa de afinidade teria justamen-
te alcançado um momento de culminância em Fish story. Na opinião de Baudson (e
não temos dúvida disso), essa teria se afirmado “como uma das obras maiores da
Documenta 11”.
É preciso respeitar a objetividade da fotografia, e é ali que para mim se acha o ponto
culminante do reencontro, na fotografia, entre uma sensibilidade modernista e uma
sensibilidade realista. Sendo a fotografia um meio modesto porque descritivo, ela su-
bentende as condições estéticas já presentes num mundo do qual ela nada mais faz
que descrever. (Sekula, citado por Baudson, “Allan Sekula: décrypteur oculaire”, em
Dits, n.2, 2003, p. 85)
Em Sekula, o olhar fotográfico pesquisaria mais a situação (as circunstâncias
socioeconômicas, condicionantes geopolíticos, etc.) do que o evento (o momento
pregnante, a precisão do instante), embora as duas dimensões possam coexistir. Po-
rém o interesse maior será mesmo para o plano representacional da situação sem
encenação, interligado ao aprofundamento do trabalho textual. Baudson acrescenta:
“O olhar incita à reflexão, a leitura se transforma em trabalho de visão e um e outro
propõe níveis iguais de percepções inter-relacionais” (p. 86).
304
Não deveria constituir surpresa, tendo em vista os ensaios que o precederam,
receber de Sekula um trabalho com eloqüências tão equilibradas. Eloqüências no plu-
ral, porque se trata de narrativa textual e visual, lado a lado, com elevado balanço de
forças entre prosa e fotografia. Esse uso, sim, faz das narrativas as ferramentas adul-
tas da “autoridade”. É o narrador quem conduz ao fabuloso ou dá o testemunho da
contravenção. Vendo-se e lendo-se um pouco a cada dia, como geralmente acontece
com livros comuns – e, após a possível ou provel sedução inicial do conjunto gráfi-
co, serão os múltiplos tempos e espaços do lado de cá e do lado de lá que nos enfeiti-
çam por último –, descobriremos com prazer que dentro de uma representação coti-
diana encontra-se uma apresentação monumental.
305
5. Considerações finais
No território das artes visuais ocupado pelos livros de artista, todas as rela-
ções narrativas parecem ser possíveis, tradicionais e lineares ou não. Como obras ori-
ginais do pensamento e do gosto artístico, esses livros se atribuem o direito de usar da
afirmação ou da negação da tradição conforme seu propósito. Para eles, será sobretu-
do através das possibilidades de uma especialização, a narrativa visual com lógicas
construtivas aprovadas pela arte, que encontrarão seu diferencial identitário. Não pa-
rece se tratar de uma renúncia absoluta ou definitiva à narrativa verbal. Afinal, ela
permanece sendo usada com vigor, além de ter seu lugar garantido universalmente. O
que as produções das artes plásticas sugerem acontecer é que os caminhos que bus-
cam o apagamento do level parecem descobrir no seu fim a permanência dela mes-
ma, ainda ali, a narrativa, incrustada na obra em sua forma sensível óptica, mesmo
que apenas residualmente.
Em contrapartida, a tentativa de manter a narração, até mesmo a narratividade
visual, à distância, ou, se possível, chegar a um aparentemente utópico índice zero de
relato, não parece deliberadamente gerar um ponto de cisão na obra. Quando muito
esse esforço ensaiaria uma leve disrupção, que não resistiria a um exame mais atento.
Os pressupostos de ordenação inerentes à constituição do livro publicado (de edição,
habitualmente um códice) são muito resistentes às tentativas de subversão. Quase se
poderia estabelecer uma equação na qual arte serial é igual à arte narrativa (essa é uma
verdade para a maioria dos trabalhos). Além disso, ruptura de que, exatamente? De
um passado? Que passado? O livro de artista ainda é jovem, portanto sem gerações
anteriores para contestar. Sobraria, se os artistas quisessem, a contestação ao livro
comum, literário, científico, etc, esses sim, centenários. Não existe motivo para isso,
pelo menos habitualmente não em quem cria para publicar, em geral zeloso do traba-
lho que faz e consciente da função de difusão que o empreendimento realiza. Toda-
via, se não chega à ruptura, o esforço optativo de contenção do relato pode conduzir
306
a alguns impasses plásticos, assuntos de foro íntimo à arte, exclusivamente (o que
tanto pode ser de interesse para renovação de linguagens como indutor se retrocesso,
dependendo do caso).
A decisão arbitrária de promoção do afastamento da visualidade poderá levar
a relatos apenas e plenamente verbais, o que também pode ser artisticamente interes-
sante. Escrever uma peça do pensamento sem desejar manifestamente que esse escri-
to saia da economia das artes, o que poderia parecer paradoxal, parece ser também
uma decisão muito saudável e enriquecedora do sistema como um todo. Esses pro-
cessos de fluxo e refluxo da alternativa pela narração e suas variações fazem crer que,
na jurisdição da intermídia, a narrativa própria às artes visuais seria ao mesmo tempo
um insumo (matéria-prima) e um refugo (um subproduto) da arte.
Se entendermos que uma certa narrativa tende a estar sempre presente nos
livros de artista em maior ou menor grau, ou que sua aparente ausência ofereça um
modelo determinante às avessas (uma anti-narrativa, uma não-narrativa), então pode-
remos supor a existência de uma força estruturante rumo ao relato. Chamaremos essa
força de imperativo narrativo, presente no exterior da obra de arte, em todas (nas
relações que nós e o contexto projetamos nela), ou no seu interior, na maioria das
obras (nas relações que ela projeta por suas “mensagens”). O primeiro caso poderia
ser explicado de forma melhor através de uma peça muito conhecida, mas que não
seja um livro.
Como muitos teóricos ou artistas, o autor desta pesquisa confessa sua inca-
pacidade em olhar a fonte de R. Mutt e aceitá-la seca e silenciosa, mas sim projetar o
acontecimento, fazer desenrolar o evento, vê-la com os olhos da fantasia, enfim fun-
cionando em profusão, devolvendo com vigor todo o líquido dourado que teria rece-
bido se não se tornasse um objeto da arte. Essa inclinação à construção de enredo
sobre a pissotière de Duchamp é um imperativo narrativo exógeno, uma propensão ao
ficcional, ao atributivo, ao socorro interpretativo. E que não pára aí. Além das proje-
ções pessoais do público, essa “fonte” traz com ela sua própria bagagem, que a acom-
panha onde for, o grupo de histórias agregadas que a cerca, histórias que envolvem
outros nomes famosos, instituições, costumes nacionais, idiomas, as tiras de Mutt e
Jeff, além do constante recontar de sua aventura em busca da aura. E com final feliz,
307
como sabemos, veja-se seu sucesso nos museus que a exibem (a obra se oferece em
múltiplo de oito cópias, a partir do protótipo histórico).
No livro de artista, esse imperativo também poderá ocorrer, e certamente
será ótimo, assumindo o caráter de um ou mais estratos narrativos adicionais. Como
se fossem camadas de uma atmosfera. Entretanto, nele outros níveis da narração
(ou da narratividade) preexistem à instauração dos atribuídos socialmente. Já for-
mam, por princípio, uma biosfera. Todo livro de artista é uma construção plástica,
seja oferecendo uma experiência visual minimamente sistêmica, seja portando um
assunto francamente relator, com verborragia e prolixidade. Por esse motivo, carre-
ga consigo o relato de sua própria instauração, desenvolvimento ou estado de exis-
tência, o que nada mais é do que uma das características da condição de uma obra
visual, como normalmente aceita pela arte. É inerente ao papel social do artista
fazer perceber sua capacitação demiúrgica. Esse é um dos principais identificadores
das artes plásticas, o elogio ao empenho construtivo e à competência técnica lado a
lado com o desfrute dos conteúdos do trabalho. Como buscamos também os con-
ceitos envolvidos, nosso procedimento como “leitores” será fazer a fragmentação e
a separação por constituintes ou categorias para análise. Ou seja, faremos a clivagem
crítica dos planos de entendimento. Este poderá ser um dos caminhos para encon-
trarmos onde possa se esconder a menor unidade narrativa do livro visual: conhe-
cer algumas de suas rotinas.
A estrutura de “demonstração” do livro de artista tem mecanismos habitu-
ais (como os têm a pintura, o cinema, etc.), processos em constante amadurecimen-
to temático e tecnológico. Um esclarecedor exemplo de rotina compositiva é o uso
genérico da montagem (justaposição, colagem, fotomontagem, infografia, etc.). Ela
é um instrumento narrativo consagrado pela arte, bem assentado no nosso imagi-
nário, e semântica e sintaticamente muito importante. Por si só a montagem consti-
tui uma das estruturas narrativas possíveis de ser encontradas num livro. Para decupar
seu “texto”, será preciso escrutinar suas camadas de leitura, gesto que por si só
coloca o artista como um narrador. Suas regras são as do discurso plástico, que
incluem estruturas estáticas e cinéticas. E ainda traz consigo um bônus: pode se
valer, se lhe aprouver, das ferramentas da prosa, do cinema ou de outros saberes
308
relacionados às expressões temporalizadas com a duração efetiva ou narrada. A nar-
rativa visual pressupõe demonstração no tempo.
Outra rotina importante é o uso da lacuna e oferecimento do mistério para
decifração. Esses dois elementos podem estar vinculados. Tendem a ser o fator de
choque para o público estranho ao meio. Para a arte, a lacuna não constitui impasse.
Ela é corriqueira, é um constante elemento da sintaxe visual (da arte, claro), não
oferecendo problemas verdadeiros. Nesses casos, geralmente não se pode dizer que
exista uma narrativa visual manifesta, por causa da falta de indícios, de evidências (a
evidência” é uma característica que propõe funcionalidade narrativa à obra). A
narratividade apoderá estar ali, oculta num nicho despercebido da nossa visão
imediata, por vezes incubada ou mesmo em letargia, ainda assim impondo
parâmetros. Será árduo descobri-la. Num livro em branco, o livro vazio, o zero, o
livro sem pistas, sem indícios, e por isso o mais pobre de todos em narrabilidade,
apenas poderemos lidar com seu contexto, e, mesmo assim, somente se ele nos for
informado. O artista nos diz: olhe isto. E é só isso. A obra se consome instanta-
neamente, se esgota sem a sedução.
Afinal de contas, pretenderiam todos os livros verbo-visuais examinados nos
“dizer” algo de fato simultaneamente inteligível e sensível? Faz sentido procurar uma
“mensagem” analógica neles, voltada para a possibilidade da existência em nós mes-
mos de um sentido expectante implícito de narrativa? A expectativa é uma conquista
construída. Ela é capaz de mudar a qualquer tempo, ser dirigida, ser interrompida, ser
inflamada, pode urgir. A expectativa pode estar estruturada em concomitância com
outras estruturas (de sistemas análogos ou antagônicos ao contar). A expectativa pode
ser invocada pelo apelo contido na intriga, ou mesmo na lacuna, uma intriga ou lacu-
na que podem ser abstratas, conceituais, metalingüísticas, propostas pelos elementos
de composição, com ou sem palavras evidentes.
O exame de uma amostragem composta por um número significativo de li-
vros de artista faz crer que o envolvimento do processo (seqüência operativa) no seu
próprio resultado é tão intenso que parece confirmar a proposição inicialmente enun-
ciada para a pesquisa. O livro de artista é uma obra em que as expressões da narrativa
se apresentam ou se disponibilizam em condição de superexistência, ou sobreexistência.
309
O prefixo do latim (super-), ou da preposição portuguesa dele oriunda (sobre-), deve ser
entendido aqui como “acima”, “por cima”, “além de” ou “mais do que”, não apenas
na idéia de superposição, mas também de existência em planos múltiplos, incluindo a
idéia de excesso. Não se trata de super- como em super-homem ou superpoderes, mas
como em superconjunção, supercontinente, superposição, super-realidade e supervi-
sionar. Ou sobre- em sobreeminência, sobrexposição, sobrenatural e sobrevivência.
A narrativa visual é uma especialização espaço-temporal da narração. É uma
espacialização do relato. Não importa a que origem pertença o evento narrado, se
pertinente apenas às questões da visualidade, ou se da história, do pensamento, dos
fenômenos naturais, dos episódios do afeto. A partir do seu processamento num livro
de artista ele pertence à sintaxe da ordem visual da bibliogênese na arte. Portanto,
além de sua temporalidade própria, o evento posto em obra estará sujeito não apenas
aos tempos, mas também aos modos e aos espaços como determinados pela arte. A
narrativa, nas formas razoáveis de sua experiência, por estar em suporte verbo-visual
e contexto artístico está sujeita à existência no plural, está habilitada à superexistência.
Todo artista tem seu idioma e, se tiver algo a dizer, será nele que contará a arte.
310
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