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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA
TECIDO NA LÍNGUA DE SINAIS:
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S
Mestranda: Carla Damasceno de Morais
Orientadora: Profª Drª Tânia Regina Oliveira Ramos
Florianópolis, 2010.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE COMUNICAÇÂO E EXPRESSÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA
TECIDO NA LÍNGUA DE SINAIS:
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S
Dissertação apresentada por Carla Damasceno
de Morais ao Programa de Pós-Graduação em
Literatura da Universidade Federal de Santa
Catarina, sob orientação da professora
Dr.ª Tânia Regina Oliveira Ramos, como
requisito para a obtenção do grau de Mestre
em Literatura, área de concentração em Teoria
Literária.
Florianópolis, 2010
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i
SUMÁRIO
RESUMO........................................................................................................................
ABSTRACT....................................................................................................................
INTRODUÇÃO ............................................................................................................1
CAPÍTULO I
A ÁRVORE GENEALÓGICA DO CONTO COMO FORMA LITERÁRIA....................22
O MARAVILHOSO.....................................................................................................32
CAPÍTULO II
TECIDO NA LÍNGUA DE SINAIS:
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S..............................................54
CAPÍTULO III
A CONTADORA DE HISTÓRIAS NA ARTE EM MOVIMENTO, NO RECONTO, NA
RECRIAÇÃO E NA MEMÓRIA...................................................................................83
CAPÍTULO IV
LITERATURA E ESCRITA
DA ARTE EM MOVIMENTO....................................................................................104
CONSIDERAÇÕES .................................................................................................133
REFERÊNCIAS........................................................................................................142
ii
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais pelo incentivo desde o nascimento.
Ao Instituto Federal de Educação Tecnológica de Santa Catarina pela dispensa
integral das atividades bem como a estrutura concedida.
À Universidade Federal de Santa Catarina pela iniciativa do mestrado
interprogramas.
À orientadora Prof. Dra. Tânia Regina Oliveira Ramos, pela oportunidade, carinho e
orientação.
À banca examinadora: Profa. Dra. Mara Lúcia Masutti e Profa. Dra. Salma Ferraz.
Aos intérpretes de Língua Brasileira de Sinais: Jefferson Bruno Santana, Letícia
Regiane Silva Tobal e Tiago Coimbra.
Ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação de Surdos, um espaço de
compartilhamento, troca de experiências e incentivo à pesquisa.
À família que cuidou de tudo na minha ausência: Celeste, Chaluppe e Helton.
A Vidomar da Silva Filho, pela revisão gramatical.
iii
RESUMO
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S é o objeto desta pesquisa.
Trata-se de uma produção na ngua Brasileira de Sinais do Instituto Nacional de
Educação de Surdos. A pesquisa identifica a representação cultural a partir da
experiência visual presente em cada personagem. O nome das personagens na
Língua Portuguesa se diferencia do nome visual das personagens na Língua de
Sinais. No sentido de tornar mais clara a questão, recorre-se às configurações de
mãos, ao corpo, ao olhar, às expressões faciais e à escrita de sinais. A construção,
a partir dos parâmetros visuais, resultou no nome visual de cada personagem.
Identifica-se ainda que, na referida produção, as personagens desse reconto e
recriação não são surdos. Apresento a Língua de Sinais como celebração e vitória
do povo surdo, subalternizado mediante a tentativa de aniquilar tudo que estivesse
fora do projeto de dominação colonial e que não fosse condizente com uso de um
código uniforme, constituído por comodidade administrativa para governar um país
ou um império. Os sujeitos em foco são surdos, a contadora de histórias é surda e,
possivelmente, o/a espectador/a seja surdo/a. E todos transitam na fronteira entre a
língua portuguesa e a língua de sinais.
Palavras-chave: conto, reconto, língua de sinais, nome visual.
iv
ABSTRACT
The object of this research is S-N-O-W W-H-I-T-E A-N-D T-H-E S-E-V-E-N
D-W-A-R-F-S, a production of the National Institute of Deaf Education in Brazilian
Sign Language. The research identifies the cultural representation of the visual
experience present in each character. The names of the characters in Portuguese
are different from the visual names of the characters in Sign Language. In order to
clarify this issue, we use hand configurations, the body, the look, facial expressions
and sign writing. The construction, based on the visual parameters, results in the
visual name of each character. It is also identified in this production, that the
characters of this retelling and recreation are not deaf. I introduce Sign Language as
a celebration and victory of deaf people, undervalued by the attempt to annihilate
everything that was outside the project of colonial domination and that was not
consistent with the use of a uniform code, consisting of administrative convenience to
guide a country or an empire. The subjects in focus were deaf, the storyteller was
deaf, and possibly the members of the audience were deaf. And all were passing the
frontier between Portuguese and Sign Language.
Key Words: tale, retelling, Sign Language, visual name.
INTRODUÇÃO
Este trabalho, a partir de seu objeto B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S
S-E-T-E A-N-Õ-E-S
1
, investiga uma produção, na Língua Brasileira de Sinais –
LIBRAS, do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES)
2
, recontada por
sujeitos surdos.
No lugar onde nasci
3
, ouvíamos as lendas da Amazônia contadas no final da
tarde, geralmente por adultos. Atualmente percebo que se tratava de contadores de
histórias da comunidade que nos reuniam para brincar ao entardecer. Todos os dias,
além das narrativas, havia as cantigas de roda e brincadeiras que tornavam aquele
momento esperado por s com entusiasmo. Outro momento de minhas
recordações da infância são as preparações para as festas juninas e as fogueiras
montadas em frente às casas nos meses de junho/julho, apesar do calor.
As histórias da comunidade eram as lendas do guaraná, do boto, da Cobra
Grande, da vitória-régia. Crescemos aprendendo a respeitar a mata, a conviver com
seus mistérios e a pedir licença para a mãe-d’água antes de tomar banho no rio
Negro. Quando trafegávamos de barco ou canoa, rezávamos para que a cobra
grande não aparecesse, virasse a embarcação e morrêssemos afogados/as.
1
A apresentação das palavras em letra maiúscula e separadas por hífen significa que a narradora
realizou a soletração do alfabeto da LIBRAS. Quadros e Karnopp (2004, p. 88) consideram que a
soletração manual é uma representação da ortografia da ngua falada e escrita e envolve um
conjunto de configuração de mãos que corresponde à sequência das palavras escritas na língua
portuguesa. Esse assunto será abordado no capítulo II.
2
O INES foi criado em 1857. É um órgão federal vinculado ao Ministério da Educação. Em sua
missão institucional, consta a produção, o desenvolvimento e a divulgação de conhecimentos
científicos e tecnológicos na educação de surdos. Também assessora a Política Nacional de
Educação, na perspectiva de promover e assegurar o desenvolvimento global da pessoa surda,
sua plena socialização, o respeito às diferenças e o acesso a seus direitos. Considerada uma
instituição especializada na educação de surdos, promove uma educação bilíngue por meio da
língua brasileira de sinais e da língua portuguesa. Possui um colégio de aplicação com
aproximadamente seiscentos alunos surdos, do ensino fundamental ao ensino médio. Além
desses, possui um curso superior bilíngue de pedagogia e curso de LIBRAS para a comunidade.
Produz e publica material pedagógico e assessora escolas inclusivas que possuem alunos surdos
em classes regulares. (Informativo Técnico Científico Espaço, INES-RJ, n. 28. 2007).
3
Manaus, Amazonas.
2
As fronteiras entre o povo da “cidade” e o povo do “interior” de Manaus,
existiam. Vivíamos na cidade e, quando íamos visitar os parentes, dizíamos que
íamos para o interior. Com isso posso dizer que vivenciei o cruzamento de fronteiras
entre a diferença do povo da mata e a diferença do povo da cidade.
Na “cidade” contradições se apresentavam. Apesar de ouvirmos as lendas da
Amazônia, era inconveniente comentar sobre nossa ascendência. Apesar de o rio
nos oferecer inúmeras espécies de peixes, comê-los era motivo de embaraço. o
consigo localizar a partir de que momento, naquela época, passou a valer a ideia de
que comer carne vermelha era melhor. Na cidade havia a luz elétrica, os médicos,
os livros, a televisão, o telefone, as óperas no Teatro Amazonas, em cujo interior era
permitido transitar descalço.
No interior, a luz era de lampião e tínhamos as narrativas, as cantigas, os/as
curandeiros/as. A comunicação entre os sujeitos distantes ocorria por cartas ou
mensagens enviadas pelas navegações. Comíamos peixes pescados na hora. De
dia, íamos de um lugar próximo a outro de canoa. E quando isso ocorria à noite, a
iluminação da lua era suficiente. Assistíamos a apresentações de peças de teatro
dos habitantes daquele lugar em um local de chão batido, coberto com palha
trançada de folhas de palmeira.
A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel, Cinderela, Os Três
Porquinhos, Branca de Neve e os Sete Anões e tantas outras histórias infantis foram
por nós conhecidas por meio dos livros que meus pais me incentivavam a ler em voz
alta. Os livros infantis, acompanhados de um mini-vinil, eram arrumados em uma
estante à disposição para leitura. Não havia o dono do livro. Vivenciei, então, o
segundo cruzamento de fronteiras, ou seja, as lendas da Amazônia, com seus heróis
e heroínas de cabelos e olhos escuros, e os contos advindos da Europa, com seus
heróis e heroínas de cabelos claros e olhos azuis. No lugar das ocas, castelos; no
lugar do pescador, que geralmente retornava com uma história da Cobra Grande, o
caçador. No lugar da narrativa oral, a leitura.
De acordo com Stuart Hall (1997, p. 28) as fronteiras da regulação cultural e
normativa o ferramentas poderosas que deliberam sobre quem atua de modo
semelhante e de acordo com as normas e conceitos, e desencadeiam a estranheza
3
ao “outro”, diferente, fora das fronteiras do discurso e das regras. Os sistemas
classificatórios que regulam nossas condutas e delimitam cada cultura definem os
limites entre a semelhança e a diferença, entre o sagrado e o profano, entre o que é
ou não aceitável em relação ao comportamento, as roupas, os pronunciamentos, as
atitudes, o “normal” e o “anormal”, o “limpo” e o “sujo”.
Nesse sentido, o índio não podia se deslocar da aldeia para a cidade com
seu “jeito de ser índio”, nem se comunicar com sua língua. Suas ações pela
manutenção de sua terra eram noticiadas como selvagens. Vivenciei relatos de
viúvas que choravam, contando que o marido morreu na missão de civilizar índios
com açúcar e espelho. Tupã passou da condição de sagrado para profano. Comer
com garfo e faca era civilizado e comer com a mão ou com a colher passou a ser
considerado inaceitável.
Os povos subalternos, dentre eles o povo indígena e o povo surdo, possuem
em comum a subjugação ou subalternização dos saberes, a tentativa de
apagamento da língua, a representação como selvagem, como incapaz, e não são
bem-vindos em seu próprio território. Os conceitos de cultura e relação de poder são
complexos, dinâmicos e instáveis, principalmente quando se tem por princípio a
homogeneização de grupos sociais a partir do grupo dominante, que tenta
neutralizar a produção de sentidos de organismos que estão à margem. Dentre
outros povos, os indígenas e os surdos, foram subalternizados na língua e na
literatura.
Quando solicitei transferência do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) para o
Instituto Federal de Santa Catarina Campus de São José (IFSC-SJ)
4
, sete
4
O Instituto Federal de Santa Catarina é formado atualmente pelos campi Florianópolis, São José,
Jaraguá do Sul, Continente, Araranguá, Joinvile e Chapecó. Encontram-se em fase de
implantação os campi São Miguel do Oeste, Canoinhas, Criciúma, Gaspar, Lages, Itajaí, Palhoça
Bilíngue – Libras/Português e os núcleos avançados Xanxerê, Caçador, Urupema e Geraldo
Werninghaus. (Disponível em <www.ifsc.edu.br
> acesso em: 10 fev. 2010).
4
anos, não tinha a informação de que havia uma comunidade surda
5
nesse campus.
O contato com sujeitos surdos e com a Língua de Sinais e mais as leituras, as
capacitações, a experiência vivida na infância e as reflexões sobre os povos
subalternos e suas produções literárias podem ser considerados como motivação
para realizar a pesquisa.
O referencial teórico de Mignolo (2003, p. 44) permite a compreensão de
saberes subjugados, a partir de Foucault, e de saberes subalternos, a partir de
Darcy Ribeiro. Consideram-se os saberes subjugados como um sistema de
conhecimento que foi desqualificado como inadequado ou insuficientemente
elaborado, ou seja, os saberes nativos, situados abaixo do nível exigido de cognição
de cientificidade (FOUCAULT, 1976, citado por MIGNOLO, 2003).
Mignolo (2003) considera que Ribeiro, ao refletir a partir de suas próprias
condições geo-históricas e coloniais, contribui para a compreensão dos saberes
subalternos:
Do mesmo modo que a Europa levou várias técnicas e invenções aos povos
presos em sua rede de dominação [...] ela também os familiarizou com seu
equipamento de conceitos, preconceitos e idiossincrasias, referentes
simultaneamente à própria Europa e aos povos coloniais. Os colonizados,
privados de sua riqueza e do fruto de seus trabalhos sob a dominação
colonial, sofreram, ademais, a degradação de assumir como sua a imagem
que era um simples reflexo da cosmovisão européia, que considerava os
povos coloniais racialmente inferiores porque eram negros, ameríndios ou
mestizos”. Mesmo as camadas mais inteligentes dos povos não europeus,
acostumaram-se a enxergar-se e a suas comunidades como uma infra-
humanidade, cujo destino era ocupar uma posição subalterna pelo simples
5
Perlin e Miranda (2003, p. 224) consideram que, na comunidade surda, participam surdos/as,
filhos/as de surdos/as e simpatizantes. No IFSC-SJ, atualmente, trabalham no Núcleo de Estudos
e Pesquisas em Educação de Surdos, professores e professoras surdos/as e ouvintes e
intérpretes de LIBRAS/Português. O Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação de Surdos está
vinculado à Coordenadoria da Cultura Geral. Esse Núcleo foi institucionalizado em 1998, mas a
sua origem remonta a 1992, com a criação do “Projeto Experiencial sobre o Desenvolvimento
Cognitivo da Linguagem”. No período de 1998 a 2003, o NEPES era denominado de “Núcleo de
Educação Profissional de Surdos (NEPS)”. A partir de 2003, passou chamar-se Núcleo de Estudos
e Pesquisas em Educação de Surdos.
5
fato de que a sua era inferior à população européia. (RIBEIRO, 1968, p. 63,
citado por MIGNOLO, 2003, p. 46. grifos no original).
Sánchez (1990), com embasamento teórico de Moores (1978), Perelló (1978)
e Behares (1987) permite que se faça uma leitura introdutória sobre a história de
surdos/as. Os aportes teóricos dos Estudos Surdos permitirão a contextualização
com a literatura pautada na oralidade, passada de geração em geração, contada nas
“conversas ao do fogo no mundo inteiro, nas noites de inverno.” Nesse sentido,
não se poderá perder de vista que os contos se referem à oralidade, e arriscaria
dizer, na sua totalidade, concebidos para pessoas ouvintes. Então, a primeira
pergunta que vem à mente: Os surdos tiveram a oportunidade de participar dessas
conversas ao “pé do fogo”? Impulsionada pela emoção, diria que não. Mas a
pesquisa se sobrepõe ao impulso.
6
A partir do meu gesto de leitura
7
, Sánchez (1990, p. 31) contribui para a
compreensão de que surdos/as sempre existiram na humanidade e quem nascia
nessa “forma de estar no mundo”
8
não falava e se expressava por sinais. Não ouvir
era sinônimo de não falar. Essas pessoas foram denominadas de surdo-mudo ou
surda-muda e isso significava a incapacidade de apreender o mundo. Esse autor
revela que, em algumas passagens da Bíblia, o vocábulo kophoi era utilizado para
denominar pessoas surdas ou pessoas mudas. O Evangelho segundo São Marcos e
a passagem do milagre de Jesus Cristo outorgando ao surdo a audição e a fala
justificavam a crença de que uma pessoa surda-muda podia ouvir e falar somente
por intervenção divina.
Sánchez (1990, p. 31) com os aportes teóricos de Perelló (1978), indica
relatos que evidenciam as concepções sobre a falta de audição em um ser humano
na Antiguidade e na Idade Média. Aristóteles (384-322 a.C.), Galeno (131-201), Juan
6
As citações do parágrafo são empréstimos a Philip (1998, p. 8).
7
Esclareço que se trata da leitura de um livro em espanhol e se trata de um gesto de leitura, uma
vez que não posso afirmar que houve uma tradução nos moldes acadêmicos, tendo em vista meu
conhecimento básico de espanhol.
8
Becker (1991, p. 227), citado por Mignolo (2003, p. 311).
6
Huarte (século VIII), San Alberto Magno (1206-1208), assim como o Código
Justiniano (século VI d. C.) consideravam que as pessoas que nasciam mudas
também eram surdas. A fala atrelada à audição resultou no termo surdo-mudo.
As apreciações de Sánchez (1990) não permitem assegurar a impossibilidade
de conversação entre a pessoa surda e sua família ouvinte. A comunicação, para
esse autor, ocorria por um “código de sinais familiar” resumindo-se a objetos e a
circunstâncias imediatas. A comunicação por sinais não era considerada como uma
linguagem, e sim como um escasso recurso de substituição à comunicação por meio
da fala. Quanto à possibilidade de comunicação entre surdos/as na língua de sinais,
são remotas. O diálogo entre esses sujeitos e sua família surda possivelmente
ocorria numa língua de sinais. Os aportes teóricos de Sacks (1990, p. 39) permitem
a compreensão de que onde houver surdos/as haverá língua de sinais.
Ainda na linha teórica desse autor, a língua de sinais se origina a partir do
momento em que os/as surdos/as se reúnem, criam e compartilham a ngua.
pelo menos dois fatores que dificultaram o intercâmbio desses sujeitos: Na
população em geral, a cada mil nascimentos de pessoas ouvintes, nasce uma
pessoa surda, e esse dado se mantém sem variações desde a Antiguidade;
provavelmente as pessoas surdas permanecessem em casa convivendo com seus
familiares ouvintes ou com familiares surdos. Os sinais eram um escasso recurso em
substituição à fala de surdo/a e sua família ouvinte. Possivelmente se tratava de
uma comunicação relacionada a necessidades básicas fome, sede, banho, dor
não propriamente a uma comunicação na língua de sinais. No seu entendimento, a
forma de comunicação, escassa, afetava o intelecto.
As reflexões de Capovilla (2004) e de Sacks (1990) enriquecem a abordagem
dos dois parágrafos anteriores sobre as sérias consequências da ausência da
linguagem, que acarreta prejuízo ao desempenho social, emocional e intelectual do
ser humano. Capovilla considera que “graças à linguagem, a criança pode aprender
sobre o mundo, beneficiando-se da experiência vicária para além da mera imitação e
observação direta” (CAPOVILLA, 2004, p. 222) e Sacks observa que pela linguagem
“ingressamos plenamente em nossa condição de cultura humana, comunicamo-nos
com os nossos semelhantes, adquirimos e partilhamos informações” (SACKS, 1990,
7
p. 24). Argumenta ainda que o impedimento da linguagem resulta na incapacidade e
no isolamento.
As ponderações em relação à questão da ausência da audição atrelada à
ausência da fala resultaram na crença, vigente a o século XVI, de que era
impossível educar pessoas surdas. Sánchez (1990), Sacks (1990) e Lodi (2005)
evidenciam como os/as surdos/as de famílias nobres iniciaram a alfabetização por
exigência jurídica, para obterem o direito a herdar títulos e propriedades da família.
A concretização desse fato resultou em uma educação com atividades pedagógicas
e com procedimentos metodológicos baseados em sinais e soletração manual.
Esses sujeitos eram submetidos a exercícios intensivos e constantes, com a
finalidade de comprovar judicialmente a aptidão linguística na escrita, na leitura e na
fala. Quanto os/as surdos/as pobres? De acordo com Sacks, até 1750, para noventa
e nove por cento dos que nasciam surdos/as não havia perspectiva de educação.
A situação das pessoas surdas pobres em período anterior ao indicado acima
é considerada por Sacks como uma calamidade:
[...] incapazes de adquirir a fala, portanto “estúpidos” ou “mudos”; incapazes de
desfrutar a livre comunicação até mesmo com seus pais e famílias; confinados a
uns poucos sinais e gestos rudimentares; isolados, exceto nas grandes cidades,
até mesmo da comunidade de seus iguais; privados da alfabetização e instrução,
de todo conhecimento do mundo; forçados a fazerem os trabalhos mais servis;
vivendo sozinhos muitas vezes próximos da miséria total; tratados pela lei e pela
sociedade como pouco melhores do que imbecis [...] (1990, p. 30)
Durante as leituras sobre as condições de vida e sobrevivência de surdos/as,
uma curiosidade se acentuou. A pergunta que me fazia era: Esses sujeitos, durante
toda a história da humanidade padeceram pela desqualificação da língua e,
consequentemente, pela crença da sua incapacidade?
A vontade se aguçou durante a pesquisa da obra de Oliver Sacks, ao ler sua
referência ao livro de Nora Ellen Groce Everyone here spoke Sign Language:
hereditary deafness on Martha's Vineyadr”. A autora descreve Martha's Vineyard, em
8
Massachusetts, em 1690, habitada por colonos surdos/as. Lá, a condição de ser
surdo por hereditariedade perdurou por 250 anos. Uma em cada quatro pessoas
nessa ilha era surda, e toda a comunidade se comunicava pela língua de sinais,
inclusive as pessoas não-surdas.
Os subsídios de Groce sobre as condições de vida dos/as surdos/as da
referida ilha desencadeiam a reflexão sobre as representações usuais sobre o/a
surdo/a isolado/a, apartado/a, imbecil. Não se vivenciava esse tipo de
representação no referido local. Pensando a literatura oral como prática antiga e
presente em todos os povos, provavelmente os/as surdos/as desse lugar não foram
alijados da língua, da condição de ser surdo e da literatura.
9
O termo ser surdo será encontrado no decorrer da pesquisa diversas vezes.
Esse termo será empregado tendo em vista os aportes de Perlin e Miranda (2003,
p. 217), a partir de dois aspectos abordados pelo autor e pela autora sobre o termo
ser surdo: “O inglês tem substantivos como manhood, ou seja, ser homem ou o
estado de passagem; womanhood, ou seja, ser mulher ou o estado de ser ou atingir.
[...] os surdos ingleses tiveram um espaço criativo para a invenção da nova palavra
deafhood”. O segundo é que, para responder a pergunta do que é ser surdo, o autor
e a autora definem: “Ser surdo é uma questão de vida. Não se trata de uma
deficiência, mas de uma experiência visual. Experiência visual que significa a
utilização da visão em substituição total à audição, como meio de comunicação”
Perlin e Miranda (2003, p. 218).
Philip (1998, p. 10) afirma que contos de fadas no mundo inteiro, e suas
tramas se reproduzem com os mesmos pormenores e com o mesmo requinte em
diferentes áreas geográficas. Semelhantes aos sonhos, as imagens emergem em
sequência mágica. O início do conto com “Era uma vez...” expressa a alusão a um
mundo similar aos sonhos; a realidade se modifica. Nesse mundo, os animais falam,
9
Sacks (1990, p. 49/50) faz referência a outras comunidades que seguiram o mesmo caminho dos
habitantes de Martha's Vineyard, ou seja, por terem habitantes surdos, todos se comunicavam na
língua de Sinais. Providence Island, no Caribe, foi pesquisada por James Woodward (1982) e por
Willian Washabaugh (1986). O etnógrafo Hubert Smith filmou uma aldeia em Iucatã que vem
sendo estudada em termos linguísticos e antropológicos por Robert Johnson e Jane Norman da
Universidade Gallaudet. vivem treze adultos e um bebê surdos em uma população de mais ou
menos quatrocentas pessoas e todos se comunicam na língua de sinais.
9
a criança pueril se transforma em herói e “tudo pode estar de pernas para o ar”.
Esses contos reúnem elementos essenciais, infindáveis, mágicos, com o poder de
transformar uma abóbora em carruagem ou de fazer dormir uma princesa durante
um século. Branca de Neve, após comer a maçã envenenada, é dada como morta
pelos anões e retorna à vida posteriormente ao beijo de um príncipe. Isso tudo se
insere no maravilhoso. Sem ele, o conto é incompreensível (JOLLES, 1971, p. 202).
Destaca Philip (1998, p. 8) que os contos de fadas antes de serem reunidos
em livros, foram narrados por séculos “ao do fogo no mundo inteiro.” As
referências indicam a narrativa falada, portanto ouvida. Conforme visto, Sánchez
(1990), Sacks (1990) e Lodi (2005) destacam que as pessoas surdas de famílias
ricas e as pessoas surdas de famílias pobres não tiveram as mesmas oportunidades
educacionais a partir do século XVI. Esse dado será importante para refletir sobre a
participação dos sujeitos surdos nas conversas ao pé do fogo.
Em relação à participação de surdos/as nas narrativas orais, Masutti (2007,
p. 93) considera-as como um elemento essencial na construção do imaginário.
Desde tenra idade, as crianças ouvintes são expostas a contos e relatos. Essa
situação não se assemelha à maioria dos sujeitos surdos, que é excluída de
narrativas assinaladas pela oralidade, em face ao aparato monolinguista construído
nas relações sociais e que impede a circulação de língua e linguagens.
De acordo com Lodi (2005, p. 411), a metodologia de Pedro Ponce de León
(1520-1584)
10
na Espanha, na educação de surdos, no século XVI, influenciou os
métodos de ensino para esses sujeitos e desmistificou os argumentos médicos,
filosóficos e religiosos da incapacidade dessas pessoas de desenvolverem a
linguagem e a aprendizagem. Embora se enfatizasse o exercício da fala, a escrita
teve destaque, por ser considerada “como a natureza primeira da linguagem: a fala
era apenas um instrumento que a traduzia. À escrita, fora atribuído, assim, um signo
de poder”. A propósito das reflexões da autora, Mignolo (2003, p. 22) acentua que,
10
Essa autora apesar de citar o trabalho pioneiro de León como o primeiro professor de surdos/as,
revela que Plann (1993) indica registros históricos de que o frei Vicente de Santo Domingo foi o
primeiro professor de surdos/as no século XVI. O ensino desse frei estava voltado para a
aprendizagem da leitura, da escrita e das artes. Portanto, o ensino da fala não fazia parte de sua
metodologia. O pintor espanhol surdo Juan Fernández Navarrete foi alfabetizado nesse método.
10
no século em questão, “os missionários espanhóis julgavam e hierarquizavam a
inteligência e civilização dos povos como critério de dominarem a escrita alfabética”.
A ideia de que pessoas surdas são tão antigas quanto a humanidade
baseia-se nas ponderações de Sánchez (1990). Apesar do índice apresentado pelo
autor sobre indicadores de nascimentos de pessoas ouvintes e a proporção de
pessoas surdas, dois fatores se destacam: surdos/as se encontraram, resultando na
propagação da língua de sinais, de geração em geração; a referida língua foi
desvalorizada com a imposição da escrita, da leitura e da fala. O autor ressalta que
a fala era a condição para pessoas surdas adquirirem direito ao legado familiar.
Nesse sentido, a contratação de professores para educar esses sujeitos foi
possibilitada pelo poder econômico das famílias ricas.
A metodologia consistia no ensino da escrita em substituição à fala, com a
inserção do alfabeto manual. Sánchez (1990, p. 37) afirma que, a partir do século
XVII, em vários em países da Europa, além da escrita, desenvolveram-se técnicas
para o ensino e aprendizagem da leitura labial e a dicção.
Moore (1978) narra a experiência de Francisco de Velasco, aluno de León:
En el tiempo en que era un niño e ignorante como una piedra, comencé a
trabajar copiando lo que mi maestro había escrito: y escribí todas las
palabras de la lengua castellana en un libro preparado a tal efecto. De ahí
en adelante comencé, com el favor de Dios, a deletrear y a expresar
algunas sílabas y palabras con todas mis fuerzas, de modo que la saliva
fluía abundantemente de mi boca. Después empecé a leer historia, y em
diez años leí la historia del mundo entero. Más tarde aprendí latín. Todo eso
fue mediante la inmensa gracia de Dios, que determina la existência del
mundo. (SÁNCHEZ, 1990, p. 37)
Desde a Antiguidade até meados do século XX, a língua de sinais foi
subalternizada. A exigência legal de alfabetizar pessoas surdas desencadeou
metodologias visando possibilidades de comunicação desses sujeitos com recursos
da leitura, da escritura, do alfabeto manual, da leitura labial e da fala. Esses eram
considerados os meios socialmente mais aceitáveis que os sinais.
Essa situação se reconfigurou a partir da década de sessenta do século XX,
quando William Stokoe (1919-2000) comprovou para a comunidade científica dos
11
Estados Unidos que a Língua de Sinais Americana é uma ngua natural e que os
sinais são símbolos abstratos, complexos e com estrutura interna. Sua pesquisa
contribuiu mundialmente para que pesquisadores se voltassem para as línguas de
sinais em seus respectivos países.
Investigar B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S me reporta a
uma língua proibida por cem anos e por sujeitos cujos antepassados foram coibidos
de se comunicarem por meio dela. A pesquisa se desenvolve em uma língua visual e
espacial, natural, criada, desenvolvida e transmitida de geração em geração. A
simultaneidade dos aspectos gramaticais é uma das imposições e delimitações que
estabelecem sua diferença estrutural com as línguas orais. As modalidades de
recepção e produção das línguas visuais e orais se diferenciam, mas cada qual
possui potencialidades para criar sentidos a partir de suas estruturas subjacentes.
No projeto de pesquisa inicial o objeto da pesquisa, ou seja, B-R-A-N-C-A D-E
N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S, não foi indicado. A ideia inicial era a de traçar
um panorama de deos de Literatura Infanto-juvenil Brasileira em Língua de Sinais
e, a partir disso, eleger o objeto.
Em um primeiro momento, foram reunidas as produções literárias em Língua
Brasileira de Sinais disponíveis em CD-ROM
11
:
da Editora Arara Azul, Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll;
Iracema, de José de Alencar; As Aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi;
O Alienista, O Relógio de Ouro, A Missa do Galo, A Cartomante e O Caso
da Vara, de Machado de Assis; A História de Aladim e a Lâmpada
Maravilhosa, de autor desconhecido; Peter Pan, de J. M. Barrie; e o Velho
da Horta, de Gil Vicente;
Do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), clássicos da literatura
mundial: O Gato de Botas, A Roupa Nova do Rei, Rapunzel, Os Trinta e
Cinco Camelos, Aprende a Escrever na Areia, O Cântaro Milagroso, Dona
Cabra e os Setes Cabritinhos, As Fadas, O Príncipe e o Sapo, A Galinha
Ruiva, A Galinha dos Ovos de Ouro, O o e o Lobo, Chapeuzinho
11
O mapeamento se refere a produções em vídeo; não significa que não há produções em livros.
12
Vermelho, A Raposa e a Uvas, A Lenda do Guaraná, Branca de Neve e os
Sete Anões, O Curumim que Virou Gigante, A Lebre e a Tartaruga, O
Patinho Feio, Os Três Ursos, Cinderela, João e Maria, Os Três Porquinhos,
A Bela Adormecida.
Os aportes teóricos de Zumthor (2007, p. 35) foram significativos para
contemplar as produções acima indicadas, ou seja, “que um texto seja reconhecido
por poético ou não, depende do sentimento que nosso corpo tem. Necessidade para
produzir seus efeitos; isto é, para nos dar prazer. [...] Quando não há prazer – ou ele
cessa – o texto muda de natureza”. B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E
A-N-Õ-E-S emociona e desperta em mim a vontade de recriar e recontar. Além
disso, trata-se de uma produção de uma instituição de ensino público para surdos e
de uma contadora de histórias surda.
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-TE A-N-Õ-E-S é fruto da literatura oral,
que segundo Patrini (2005, p. 105), se transmite de indivíduo a indivíduo, de povo a
povo. O conto se constituiu como algo imprescindível à vida dos seres humanos e
estes, com o decorrer do tempo, elegeram pela experiência.
Para desenvolver a pesquisa, deparei-me com várias “janelas”, algumas ainda
fechadas. Não tinha noção de quantas deveriam ser abertas. As leituras aguçaram a
minha curiosidade e o meu entusiasmo por esta pesquisa. Os aportes teóricos dos
estudos surdos, da teoria literária e dos estudos pós-coloniais me permitiram a
abertura de “janelas” cuja existência jamais imaginara, tampouco sua totalidade. É
um universo rico, vasto, com várias direções; por isso foi necessário atentar para os
“recortes”.
12
Para a elaboração do capítulo I, o referencial teórico de Jolles (1971) permitirá
abordar sobre o “conto” e não “contos de fadas” ou “contos maravilhosos”. A
trajetória do conto em seu princípio, destinado aos adultos e posteriormente
adequado ao blico infanto-juvenil norteará o capítulo. Para isso, foram valiosas
12
Faço referência às valiosas contribuições de Edward Said em O Orientalismo: o Oriente como
invenção do Ocidente. São Paulo. Companhia das Letras. 2007.
13
as contribuições de Jolles (1971), Coelho (1987), Bettelheim (1985), Arroyo (1968),
Philip (2001), Bortolussi (1985) e Almeida (2004).
Coelho (1987, p. 11) se refere a “contos de fadas” e a “contos maravilhosos”
fazendo uma distinção entre ambos. Afirma que não possuem a mesma origem, que
apresentam problemáticas diferentes e também que foram assimilados e
identificados como formas análogas. De origem celta, os contos de fadas são
narrativas que se desenvolvem dentro da magia. Existem reis, rainhas, príncipes,
princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, transformações,
tempo e espaço fora da realidade conhecida. Além disso, se desenvolvem tendo
como princípio uma problemática existencial, que significa a realização essencial do
herói ou heroína, que em geral se refere à união homem/mulher. A autorrealização
existencial é alcançada após o herói ou a heroína vencerem obstáculos.
Os contos maravilhosos, de origem oriental, o narrativas em que não
existem fadas ou animais falantes. Desenvolvem-se no cotidiano mágico, com
tempo e espaço reconhecíveis ou familiares. Apresentam objetos mágicos, gênios,
duendes e têm como eixo gerador uma problemática social, ou seja, o desejo de
autorrealização do herói, da heroína, do anti-herói ou da anti-heroína, no âmbito
socioeconômico, por meio de conquistas de bens, riqueza e poder material. A
miséria ou a necessidade de sobrevivência física é o ponto de partida para as
aventuras da busca da autorrealização.
Analogamente a uma “colcha de retalhos”, pretende-se recorrer aos
apontamentos similares entre os teóricos e apresentar uma “árvore genealógica” do
gênero literário conto. Bortolussi (1985) ressalta que a definição do conto não pode
ser uma forma única e categórica e propõe a pluralidade de estudos desse gênero,
por meio da história, da crítica e da teoria literária, cada um com seus conceitos e
métodos diferenciados. Portanto, não foi eleito o caminho de definição do conto,
tampouco suas categorizações.
Branca de Neve foi compilado da narrativa oral do povo alemão pelos irmãos
Grimm e publicado em 1823. Walt Disney, em 1937, apresentou o primeiro longa-
-metragem, intitulado de Branca de Neve e os sete anões e nomeou os anões. Em
2006, o Instituto Nacional de Educação de Surdos produziu na Língua de Sinais
14
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S. semelhanças e diferenças
em cada variante que são apresentadas, porém não houve a intenção de aprofundá-
las.
Em Branca de Neve e os sete anões e em B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S
S-E-T-E A-N-Õ-E-S, apresentam-se, não em sua totalidade, as características dos
contos celtas alistadas por Coelho (1997) e por Bussato (2003): o excessivo
espiritualismo, o poder feminino, a inclinação ao sobrenatural, o fascínio por regiões
distantes com lagos misteriosos e com névoa, a adoração à natureza dotada de
forças misteriosas, as lendas em que personagens heróicos possuem um
encantamento místico, as mulheres divinas ou diabólicas, os anões e as anãs, os
seres monstruosos, os seres gigantescos, os objetos com poderes extraordinários e
os reinos fantásticos. Porém os anões, o espelho como oráculo, o castelo, a
madrasta diabólica, a bruxa, a floresta distante para onde Branca de Neve fugiu e foi
acolhida, o príncipe e o triunfo da heroína aparentemente possuem uma semelhança
com os contos celtas.
Aborda-se ainda no capítulo I, consta o debate entre Achim von Arnim e os
irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, abordado por Jolles (1971) a partir de uma
correspondência entre eles que data de 1811. Havia divergências de entendimento
entre Arnim e Jacob acerca da poesia da natureza e da poesia artística, o que
culmina em uma discussão entre compilação e modificação. Posteriormente se
verificará que as narrativas surgidas entre os povos da antiguidade foram
incorporadas, misturadas, modificadas, acrescidas de elementos que as tornassem
significativas em vista os costumes e as regras estabelecidas socialmente e se
difundiram pelo mundo.
O conteúdo da correspondência apresentado por Jolles ocasionou a
compreensão da forma simples e da forma artística. As contribuições do autor
elucidam questões relacionadas ao conto popular e ao conto literário, atribuindo a
cada um suas peculiaridades, com o acréscimo dos objetivos moralizadores dos
contos. A partir do título Contes du temps passé avec des Moralités de Perrault,
Jolles atribui ao conto um estilo de narrativa moral, tendo em vista que cada conto
finaliza como uma moral da história.
15
No capítulo II, a contadora de histórias, antes de iniciar a narrativa, apresenta
o nome visual de cada personagem. Os nomes visuais da bruxa e do caçador não
foram apresentados e, por esse motivo, não constam da apresentação do nome de
cada personagem na língua portuguesa seguida da escrita de sinais. A narrativa foi
transcrita das legendas do CD-ROM e acompanha a sinalização da contadora.
A cada vez que a palavra for apresentada em letras maiúsculas separadas
por hífen (B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-TE A-N-Õ-E-S), isto significa que a
contadora de histórias realizou a soletração do alfabeto manual da LIBRAS. A
mesma palavra ou nome da personagem anteriormente soletrada no alfabeto
manual pode aparecer o nome Branca de Neve, significando que não foi realizada a
soletração manual e sim uma referência que permite a contextualização, seja no
nome visual, seja na palavra sinalizada.
Wilcox e Wilcox (2005, p. 40) consideram que os sinais são semelhantes às
palavras faladas, escritas ou sinalizadas. São blocos de construção que formam a
base das línguas. Algumas linhas do texto na língua portuguesa aparecem em
negrito, tendo em vista que posteriormente serão referidas nas considerações do
capítulo seguinte em que há abordagem de que as personagens não são surdas.
A Língua de Sinais será compreendida como celebração, luta e resistência de
um povo subalternizado no que diz respeito à língua e à literatura. A partir do
referencial teórico de Mignolo (2003), compreende-se a imposição de uma língua
nacional e de uma literatura nacional como estratégias de dominação para
assegurar a constituição de comunidades imaginadas homogêneas. Para
exemplificar, abordo o Congresso de Milão ocorrido em 1880, a proibição da língua
de sinais, a imposição da fala, o fechamento de escolas de surdos, dentre outros. A
subalternização da língua e, consequentemente, da literatura persistiram até o início
da cada de sessenta do século XX, quando William Stokoe (1919-2000) obteve
repercussão mundial ao concluir em sua pesquisa que a língua de sinais americana
é uma língua natural.
A língua de sinais é arte em movimento, uma coreografia circular, uma poesia
cuja tensão corporal inscreve os ritmos que reaproximam os corpos das sensações
16
da dança. Para sentir a dança, é preciso se libertar das travas dos olhos que estão
engessados pelo som e pelas estereotipias culturais (MASUTTI, 2007, p. 89).
O CD-ROM produzido pelo INES, por diversas vezes assistido, foi produzido
por uma contadora de histórias proficiente na Língua Brasileira de Sinais. Possui
legendas na Língua Portuguesa e a música de fundo de Antonio Vivaldi “As quatro
estações”. Parte de mim a iniciativa de considerar B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S
S-E-T-E A-N-Õ-E-S como uma tradução. Reflito sobre o espaço da tradução em um
país, o Brasil, onde a maioria das pessoas ouvintes se comunica pela fala na língua
portuguesa e pessoas surdas se comunicam pela língua de sinais.
A convivência com a comunidade surda despertou o desejo de abordar a
importância do nome visual como uma construção a partir de parâmetros visuais.
Cada personagem é apresentado no início do vídeo pela contadora de histórias com
um nome visual. A estratégia de escrever o nome na língua portuguesa seguido do
nome visual na escrita de sinais visa demonstrar que possivelmente diferenças
entre eles.
O meu nome na ngua portuguesa é Carla. Meu nome visual na língua de
sinais envolve configuração de mãos, movimento e locação. Alguns personagens do
conto envolvem expressões faciais em seu nome visual. Serão abordados os nomes
visuais das personagens apresentadas logo no início do vídeo. Nesse sentido, os
nomes visuais do caçador e do espelho não foram mencionados no início. Não
haverá ilustração do nome visual da bruxa, tendo em vista que se trata da
transformação da Rainha em bruxa. Porém, o desempenho, a expressão facial e
os recursos utilizados permitem ao espectador perceber a referida metamorfose.
Esclareço que meu conhecimento básico da escrita de sinais me auxiliou na
pesquisa. Provavelmente, um conhecedor do referido sistema apontará equívocos,
mas nem por isso irá considerá-lo como incompreensível. O sistema utilizado será
SignWriting, com recursos do Software SW-Edit, que abrange 72 configurações de
mãos.
Na comunidade surda, meu nome visual é a configuração de mão R realizada
no espaço a direita, logo abaixo do olho direito. Com a mão direita na posição
horizontal, configuração de mão R, toca-se no lado direito do rosto, logo abaixo dos
17
olhos e arrasta-se num movimento curto para fora do rosto. O R faz parte do meu
nome, e o ato de passar a configuração de mão em R abaixo dos olhos evidencia as
olheiras.
Em uma apresentação na língua de sinais, indicarei meu nome visual seguido
da soletração do meu nome no alfabeto da LIBRAS: C-A-R-L-A. A referência ao meu
nome visual será em substituição do meu nome de batismo na língua portuguesa.
(meu sinal visual na escrita de sinais) C-A-R-L-A
Os aportes teóricos dos estudos pós-coloniais me auxiliaram na reflexão que
o sujeito surdo transita entre fronteiras de línguas. Ao conviver com a língua de
sinais e a língua portuguesa, esse sujeito convive com outros em uma relação de
heterogeneidade cultural. Esse foi um fator que permitiu refletir sobre a soletração
manual B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S. Quadros e Karnopp
(2004) conceituam a soletração manual como uma representação da ortografia da
língua falada ou escrita que envolve a sequência de configuração de mão que
corresponde à sequência com palavras escritas da língua portuguesa. Ao lado do
referencial de Mignolo (2003) sobre Arguedas em Tupac Amaru Kamaq
Taytanhisman e sobre Anzaldúa em Bordelands/La frontera: The New Mestiza,
compreendo que a soletração manual é um ponto de encontro entre a Língua
Brasileira de Sinais e a Língua Portuguesa.
Mignolo (2003) avalia a utilização de palavras castelhanas com declinações
quíchua e palavras castelhanas escritas segundo a pronúncia dos índios e mestiços
por Arguedas como também faz referência a Anzaldúa que escreve em espanhol,
inglês e nahuatl. Com isso o autor aborda o linguajamento como interação entre
indivíduos que estabelece uma oportunidade de língua e o bilinguagismo como um
modo de denunciar a colonialidade do poder e do saber. Em relação aos sujeitos
surdos que incluem a soletração manual da língua portuguesa em meio às palavras
sinalizadas, provavelmente denunciem também a colonialidade do poder e do saber.
18
O capítulo III me conduziu pelos caminhos do reconto, da recriação e da
memória, a partir da consideração de que “o conto fixado acabaria por ser a morte
de todo o universo do conto”, conforme verificado no capítulo I. Nesse sentido a
estratégia de iniciar capítulo com a narrativa “O rei e o cadáver” instiga a reflexão
sobre a possibilidade de recontar. Patrini (2005), Bussato (2004) e Bettelheim (1998)
proporcionaram a compreensão de que narrar é uma arte e uma prática cultural
amparada pela memória, que conserva as narrativas de gerações em geração.
Além da proposição de apreciar o objeto da pesquisa como uma tradução,
proponho a compreensão que se trata de uma contadora de histórias surda na
atualidade. Essa atividade do/a contador/a de histórias não desapareceu, porém seu
desempenho se diferencia. Ela reconta na língua de sinais, para uma câmara, uma
história da literatura oral. A partir das considerações sobre a leitura da imagem,
apresenta-se uma abordagem sobre recepção, com o envolvimento das sensações
corporais.
No objeto da pesquisa, a contadora de histórias reconta e recria na arte em
movimento para espectadores/as surdos/as. Nesse processo, emerge a diferença da
experiência visual que abarca todo tipo de significações, representações e/ou
produções, no campo intelectual, linguístico, ético, estético, artístico, cognitivo e
cultural (SKLIAR, 1999, p. 11).
A experiência visual identifica o povo surdo que se comunica na língua de
sinais, possui história e interesses semelhantes. A partir disso, justifico no referido
capítulo, a utilização do termo povo surdo com o referencial teórico de Perlin e
Miranda (2003), Rangel (2004) e Strobel (2008). O entretenimento proporcionado por
produções na língua de sinais é uma forma de fortalecimento do povo surdo.
Patrini (2005) e Benjamin (1994) contribuíram para abordagem de que a
contadora de histórias surda não está em uma praça pública narrando para o/a
espectador/a surdo/a. Ela se encontra diante de uma câmara que filma sua arte em
movimento e com os recursos indispensáveis a esse ato. O/a espectador/a surdo/a,
que contempla a imagem em uma tela, talvez não perceba que ações foram
necessárias para que o produto final chegasse às suas mãos.
19
Com o referencial teórico do pós-colonialismo, B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E
O-S S-E-T-E A-N-O-E-S é apresentada como uma produção híbrida. Por
conseguinte, o/a surdo/a contador/a ou espectador/a é híbrido e realiza a leitura do
texto sinalizado em uma moldura. Nesse processo do prazer de ler, estão envolvidos
o corpo e as palavras sinalizadas, que se traduzem em configurações de mãos
acompanhadas das expressões faciais e corporais. Em sua contemplação,
provavelmente o/a espectador perceberá que todas as personagens do objeto da
pesquisa não são surdos/as.
Assim como não houve a intenção de direcionar o olhar para terminologias
dos contos, não haverá o anseio de divisões terminológicas de literatura no capítulo
IV. Compagnon (2001) ressalta que toda sua obra buscará um termo apropriado para
literatura. Nesse sentido, constam no capítulo considerações acerca de teóricos e
suas abordagens sobre o termo. Para esse autor, após retomar todo um processo
histórico sobre o termo, incluindo teóricos de renome, compreende-se que literatura
é literatura. O referencial teórico de Casanova (1999) sobre língua e literatura
contribuiu para a elaboração do capítulo.
No interstício entre os dois teóricos acima, encontram-se Cinderela Surda e
Rapunzel Surda, que representam uma literatura provavelmente pouco conhecida.
Sem perder de vista o caráter híbrido abordado na pesquisa, estas obras serão
consideradas como literatura produzida na escrita de sinais.
Como possibilidade de compreensão sobre a escrita de sinais, foram
transcritos trechos dos livros indicados. O diferencial é que houve uma mudança na
estética, ou seja, a leitura se dará no sentido vertical, de cima para baixo e por
colunas sequenciais. Ao apresentar essas produções literárias, destaco que, além da
possibilidade de recontar e recriar narrativas da literatura oral na língua de sinais, os
sujeitos surdos o fazem na escrita de sinais.
Os primeiros ensaios sobre escrever a língua de sinais, em 1875, foram
iniciativa de Roch-Ambroise Auguste Bébian, com a publicação do livro Mimographie.
Bébian percebeu que havia uma incompatibilidade do ensino sem um registro efetivo
e começou a escrever os sinais. A escrita hoje conhecida como notação Stokoe,
apresentada em 1960, no livro Sign Language Structure, de William Stokoe,
20
contribuiu para o reconhecimento das línguas de sinais como sistemas linguísticos
autênticos e na elaboração de um sistema de notação de registro da referida língua.
Em 1996, François Neve publicou uma notação com o intuito de possibilitar uma
numeração e uma elaboração informática dos sinais, a Universidade de Hamburgo,
na Alemanha, na década de 1990, também desenvolveu pesquisas sobre notação de
sinais, o sistema D’Sign, de Paul Jouison, iniciado em 1974, não foi concluído, em
razão do falecimento do pesquisador. No Brasil, em 1997, a pesquisadora
Mariângela Estelita, desenvolveu pesquisa e criou um sistema de escrita das línguas
de sinais de base alfabética e linear, denominado ELiS. Salienta-se que todas as
pesquisas se desenvolveram a partir do referencial de Stokoe.
13
Para a elaboração do capítulo, se utilizado o sistema SignWriting,
desenvolvido pela dançarina Valerie Sutton, em 1974, e pesquisado na Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a partir 1996. Percebe-se o êxito
desses estudos, tendo em vista que o Instituto Federal de Santa Catarina Campus
de São José
14
, a Escola Estadual de Educação Especial Dr. Reinaldo Fernando
Coser, em Santa Maria (RS), e o Curso de Graduação em Letras LIBRAS da
Universidade de Santa Catarina adotaram a leitura e a escrita no referido sistema.
Capovilla (2001, p. 56) explica que o sistema de escrita visual de sinais
Signwriting se trata de um sistema de notação de movimentos que registra todo e
qualquer movimento de seres humanos, de animais e insetos. O SignWriting de
Sutton foi desenvolvido a partir de um sistema de notação de coreografia da dança
também criado por ela DanceWriting. Atualmente seu uso ocorre em vinte e oito
países e se trata de uma escrita visual para a comunicação entre sujeitos surdos.
Sobre a escrita de sinais, Valerie Sutton escreveu:
A escrita visual direta de sinais SignWriting não começou nos
Estados Unidos, mas na Dinamarca. Contudo não é invenção
dinamarquesa, mas americana. A escrita é SignWriting não é
13
Parágrafo elaborado com o referencial de Silva (2009) e Stumpf (2005).
14
SignWriting faz parte da disciplina curricular de LIBRAS para a turma de Ensino Médio Bilingue
LIBRAS/PORTUGUÊS. Em 2009, o IFSC-SJ ofertou para a comunidade o Curso Básico de
SignWriting.
21
baseada numa determinada Língua de Sinais, embora possa ser
usada para escrever qualquer Língua de Sinais do Mundo. Ela não
tem qualquer nacionalidade porque pertence à comunidade do
mundo. Mas acima de tudo o SignWriting pertence à comunidade
surda e de sinalizadores nativos de todo o mundo. Ele é uma
ferramenta flexível que pode ser usada por qualquer sinalizador.
Como a argila usada para criar uma estátua que perdurará por
gerações futuras, SignWriting pertence aos surdos para moldar sua
própria Língua de Sinais, sua Cultura, sua História.
15
Cinderela Surda e Rapunzel Surda foram fundamentais para refletir sobre
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S. No capítulo, reflito sobre as
diferenças entre as produções. Cinderela Surda proporcionou uma abordagem sobre
a importância de Charles Michel l’Épee (1712-1789) e de Paris para o povo surdo. A
escrita de sinais foi utilizada em Rapunzel Surda, onde se enfatiza a interação entre
personagens surdas e personagens ouvintes. As duas produções são
imprescindíveis para repensar o objeto da pesquisa principalmente no que se refere
ao ver e ao ouvir.
15
Esse parágrafo de Valerie Sutton faz parte da apresentação do Dicionário Enciclopédico Trilíngue
da Língua Brasileira de Sinais (2001, p. 21).
CAPÍTULO I
A ÁRVORE GENEALÓGICA DO CONTO COMO FORMA LITERÁRIA
A missão da ficção tem, em resumo, não uma, mas um milhão de janelas – um número de possíveis
janelas que não pode ser computado; cada uma delas foi aberta, ou ainda pode ser aberta, em sua vasta
fachada, pela necessidade da visão individual. Essas aberturas, de formatos e tamanhos diferentes, pairam
todas tão acima do cenário humano que até se poderia esperar delas similaridade maior para descrever o que
encontramos. São na melhor das hipóteses, simples janelas, meros buracos numa parede fechada,
desconexos, empoleirados uns sobre os outros; não são portas que se abrem para a vida. Mas têm a marca
própria de, em cada um deles, estar uma figura com um par de olhos, ou no mínimo um binóculo, que serve
novamente para a observação, como instrumento único, para garantir à pessoa que faz uso dele uma
impressão distinta de todas as outras.
(Henry James)
Pretendo apresentar os apontamentos similares entre os autores, os quais me
proporcionaram aprofundar o conhecimento sobre o conto, em seu princípio
destinado aos adultos e posteriormente adequado ao público infanto-juvenil. Para
Bortolussi (1885), a definição do conto não pode ser uma forma única e categórica.
A autora revela a pluralidade dos estudos desse gênero por meio da história da
crítica e da teoria literária, cada um com seus conceitos e métodos diferenciados.
Essas considerações desencadeiam a reflexão de não enfatizar as divergências
sobre o conceito de conto e sim de moldar uma “árvore genealógica” desse gênero
literário.
Coelho (1987) permite a compreensão do momento literário dos contos no
século XVIII. Suas considerações indicam que os estudos da gramática comparativa
na área de Filologia culminaram no entendimento da semelhança entre o sânscrito e
a maioria das línguas européias e modernas. Os estudos comparativos objetivaram
revelar as origens das várias línguas e dialetos, as normas que ocasionaram
diferentes processos de transformação e a descoberta da identidade nacional de
23
cada povo. Os resultados das pesquisas evidenciaram a tradição oral da literatura
popular e desencadearam em toda a Europa a compilação de narrativas
maravilhosas, contos exemplares, bulas, provérbios, cantigas de roda e lendas,
todas reunidas da memória do povo
16
e transcritas em conformidade com a teoria
literária. Sobre esses estudos, a autora escreve:
O núcleo europeu mais importante desses estudos surge na Alemanha.
Participantes do Circulo Intelectual de Heidelberg, Jacob e Wilhelm Grimm
(filólogos e grandes folcloristas, estudiosos da mitologia germânica e da
história do Direito alemão) recolhem da memória popular as antigas
narrativas maravilhosas, lenda ou sagas germânicas, onde se mesclavam
relatos das mais diversas fontes, que os germanos, ao longo dos séculos,
foram acrescentando aos seus próprios. (COELHO, 1987, p. 73)
Em 1812, foi publicado Kinder- und Hausmärchen (Contos de fada para
crianças e adultos
17
ou Contos para Crianças e Famílias
18
) por Wilhelm Grimm
(1786-1859) e Jacob Grimm (1785-1863). Trata-se de uma coletânea de contos
selecionados a partir das inúmeras narrativas recolhidas para os estudos
linguísticos. De acordo com Jolles (1971, p. 181) no século XVIII, encontraremos os
Contos de Fadas (Freenmärchen), os Contos de Magia e Fantasmagoria (Zauber-
und Geistermärchen), os Contos e Narrativas para pequenos e grandes (Märchen
und Erzählungen fur Kinder und Nichetkinde)r, as Histórias, Contos e Anedotas
(Sagen Märchen und Anekdoten) e os Contos Populares Alemães (Volksmärchen
der Deutschen). Ainda segundo esse autor, Wieland, Goethe, Tieck, Novalis e
Musäus utilizavam a palavra conto sem ocorrer uma conceituação homogênea ou
diferenciações do que se entendia por conto. Kinder- und Hausmärchen, no século
XIX, atribui ao conto o status de forma literária. Anteriormente a esse fato, o conto
era utilizado com uma multiplicidade de compreensões de seu significado. A partir
16
Aqui a autora evidencia a presença feminina da camponesa Katherina Wieckmann e de Jeannette
Hassenpflug, de quem os irmãos Grimm recolheram os textos (Coelho, 1987, p. 73). Dortchen
Wild, Amalie Hassenpflug (irmã de Jeannette) e Dorothea Viehmann foram evidenciadas por Philip
(2001, p. 15).
17
Coelho (1987, p. 74).
18
Jolles (1971, p. 181).
24
da obra citada, as pesquisas sobre essa forma literária começaram a ser realizadas
tendo como parâmetro a contribuição, a padronização e a configuração de conto dos
irmãos Grimm.
Jolles (1971, p. 181) discorre sobre toda trajetória da denominação de formas
simples: legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso memorável, conto e chiste,
desde sua origem e consagração enquanto forma artística. Dado o objeto dessa
pesquisa, B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S, será enfatizado
como conto, na forma simples e sua modificação. Ou seja, passa da espontaneidade
para a elaboração, da atividade de recolher narrativas, “herança de conhecimento e
da memória coletiva”, e escrevê-las.
19
Não poderia deixar aqui de solicitar um parêntese às contribuições de Jolles,
ao considerar os contos como saídos da condição do anonimato, de histórias
passadas de geração em geração, para passar à condição da propriedade de um
autor, o qual assina a obra e assume a responsabilidade sobre ela. Ao texto foi dado
um autor, se fechou a escritura. O texto é considerado por Barthes (1968, p. 69)
como um espaço de dimensões múltiplas onde, ao mesmo tempo, ocorre a união e a
contenda de escrituras variadas, das quais nenhuma é original. O ato de leitura e
escritura era privilégio de classe, e não melhor referência do que os contos como
narrativa oral cedendo lugar à escritura, em vista do momento histórico.
Barthes pondera sobre a responsabilidade da narrativa em sociedades
etnográficas. Em tempo algum a responsabilidade da autoria é assumida por uma
pessoa. Do mediador, xamã ou recitante, a rigor, se pode admirar a performance
20
,
nunca o “gênio”. O autor é um personagem moderno implantado na literatura pelo
sistema capitalista, o qual lhe concedeu prestígio. Sobre o autor, escreveu Barthes:
[...] O autor reina ainda nos manuais de história literária, nas biografias de
escritores, nas entrevistas dos periódicos e na própria consciência dos
literatos, ciosos por juntar, graças ao seu diário intimo a pessoa e a obra; a
imagem da literatura na cultura corrente está tiranicamente centralizada no
19
JOLLES (1971, p. 181) utilizou o termo “tradição oral”. Permito-me a substituí-lo pelo termo entre
aspas como empréstimo de Patrini (2005, p. 105).
20
Admirar a performance, segundo esse autor, significa admirar o domínio do código narrativo.
25
autor, sua pessoa, sua história, seus gostos, suas paixões [...] (BARTHES,
1998, p. 66).
Retomo Jolles, que se refere de um lado às coletâneas de Arnim e Brentano
Des Knaben Wunderhorn (A Trompa Maravilhosa do Menino)
21
, reunindo o lirismo e
a música do povo, e do outro, às coletâneas dos irmãos Grimm Kinder- und
Hausmärchen, compilando as narrativas populares. A oposição entre Achim von
Arnim e Jacob Grimm desencadeou a discussão e a divergência entre eles sobre
poesia da natureza e poesia artística. Considero que será necessário abordá-las
para posteriormente entender a delimitação realizada por Jolles sobre o conto e a
novela.
Relata Jolles a partir de uma correspondência publicada em 1811: Achim
von Arnim und Jacob und Wilhelm Grimm o desacordo quanto ao entendimento
relacionada à poesia da natureza (poesia popular ou poesia antiga) e à poesia
artística (poesia erudita, poesia moderna ou poesia nova). No debate, desenvolveu-
-se entre os dois teóricos citados principalmente a diferenciação entre a poesia da
natureza e a poesia artística. Jolles (1971, p. 182) relata a concepção de duas
formas de poesia por Grimm: a poesia popular, produção da alma popular, por
conseguinte, uma criação espontânea e inexistente de autoria; e a poesia artística,
produção da alma individual, que especifica o autor e a elaboração.
As considerações de Jacob Grimm, ainda na citada correspondência, foram
realizadas tendo em vista a manifestação de Arnim, que considerava não haver
“oposição entre a poesia popular e a poesia erudita”. Os argumentos de Jacob
Grimm intensificaram o desacordo da opinião entre os dois. Grimm sustentava a
seguinte teoria “não se deve mudar uma rgula sequer na ‘poesia antiga’, quando a
descobrimos; por isso que toda e qualquer modificação, seja qual for o seu intuito, é
21
Des Knaben Wunderhorn (A trompa mágica do menino). Trata-se de uma coleção de textos de
canções populares publicadas em 3 volumes em Heidelberg pelos poetas e escritores Achim von
Arnim (1781-1831) e Clemens Brentano (1778-1842), entre 1805 e 1808, que incluem canções
desde a Idade Média até o século XVII. Disponível em <www.mafua.ufsc.br> acesso em 15 de
março de 2010.
26
ruim” e acrescenta que a poesia antiga é “um todo que não pode ser obra da oficina
ou das meditações de poetas individuais” (citado por JOLLES, 1971, p. 185)
O acirramento do debate ocorreu mediante a publicação de Kinder- und
Hausmärchen. Jacob se dirige a Arnim com críticas ao trabalho de Brentano e se
refere ao Kinder- und Hausmärchen como narrativas simples, reunidas com exatidão
cujo resultado causaria vexame às transposições de Brentano. Jacob criticou as
transposições com acréscimo, as modificações e a infidelidade como realizações de
poetas modernos. Arnim respondia que o significado do conto estava no incentivo à
invenção, à atualização e a contar novamente, ponderando que “o conto fixado
acabaria por ser a morte de todo o universo do conto”. O trabalho de reunir os
contos populares, de organizá-los e publicá-los era obra de poetas. Portanto,
escreveu Arnim a Jacob: “jamais acreditei, mesmo que tu próprio creias, que os
Kindermärchen (Contos Infantis) foram transcritos tal qual os recebestes.”
Parte da correspondência transcrita por Jolles aborda a relevância da
fidelidade e da infidelidade da elaboração do escritor na transposição de narrativas
orais. Verificaremos abaixo a posição de Grimm:
Ei-nos chegado à fidelidade. Uma fidelidade matemática é absolutamente
impossível e não existe nem mesmo na história mais verdadeira e mais
rigorosa; mas isso não carece de importância, pois sentimos que a
fidelidade é coisa verdadeira e não ilusão; ela opõe-se, portanto à
infidelidade. Não podes escrever uma narrativa perfeitamente fiel e
conforme, assim como não podes quebrar um ovo sem que uma parte da
clara adira à casca; é a consequência inevitável de todo o labor humano e é
a façon que muda constantemente. Para mim, a verdadeira fidelidade,
nessa imagem, seria não quebrar a gema do ovo. Se duvidas da fidelidade
dos nossos Contos, não pode duvidar dessa outra fidelidade, pois ela
existe. Quanto à outra e impossível fidelidade, nós próprios e outros que no-
los narram outrora, com palavras em grande parte diferentes, nem por isso
fomos menos fiéis: nada de fundamental foi acrescentado ou mudado.
(trecho da correspondência Achim von Arnim und Jacob und Wilhelm
Grimm, Introdução de Reinhold Steig, 1811, p. 255, citado por JOLLES,
1971, p. 187).
Percebe-se que o debate entre os dois teóricos contribuiu para as
delimitações de Jolles sobre a forma simples, o conto popular, as vozes do povo e
sua atualização ou sua fixação determinante na forma artística. O ponto de partida
27
desse autor é o século XIV, com o despontar de pequenas narrativas na Europa,
denominadas novelas toscanas e produzidas a partir de coletâneas que
reproduziram o modelo de Giovanni Bocaccio
22
(1313-1375). Destaca Jolles (1971,
p. 188) que “as coletâneas de novelas têm, em geral, uma forma herdada do
Decameron, sua grande precursora. As narrativas estão todas ligadas entre si por
um quadro que assinala, entre outras coisas, onde, em que ocasião e por quem
essas novelas são contadas.” Ainda segundo o autor a novela toscana pretendia, de
modo geral, contar um fato ou um episódio impressionante, com o intento de causar
a percepção de um acontecimento efetivo. Nesse sentido, o deslumbramento do fato
é mais importante do que as personagens que o vivem.
É interessante pensar a diferenciação entre conto e novela apresentada por
Jolles (1971, p. 192) para o entendimento do conto popular e a sua atualização. A
forma simples se apresenta no plano do maravilhoso, e a forma artística
desencadeia a impressão de um acontecimento real. O conto popular, recolhido,
compilado, organizado por parágrafos que lhe dão uma forma literária, emerge no
povo. A novela é fruto da imaginação ou elaboração de um autor. Nesse sentido,
apesar das divergências de Arnim e Jacob, sugere-se que ambos realizaram um
trabalho de gabinete que culminou na forma artística. Jacob, que não se incluía no
rol dos poetas modernos, na verdade o era.
Jacob Grimm contribuiu para o entendimento da forma artística e da forma
simples. Na primeira, podemos pensar em elaboração, um modo de representar o
universo e intervir nos acontecimentos; trata-se de palavras de um poeta; a
linguagem é “sólida, peculiar e única” e desencadeará na “execução única e
definitiva da forma”. Na segunda, por se tratar de uma criação espontânea, no
universo do maravilhoso, a linguagem é “fluida, aberta e dotada de mobilidade”; as
palavras são de um narrador, de um contador de histórias, o que permite a essa
forma a renovação, a sua execução por uma ou mais pessoas. O conto será
recontado e renovado, tendo em vista que, segundo Jolles (1971, p. 195), “a
22
Entre 1348 e 1353, Bocaccio escreveu em dialeto toscano uma coleção de cem novelas, o
Decameron ou Decamerão. Disponível em <www.pco.org.br>. Acesso em 15 de março de 2010.
28
verdadeira força de execução é aqui a linguagem, na qual a forma recebe
realizações sucessivas e sempre renovadas”. A partir dessa conceituação, me
permito acrescentar que na forma artística, o poeta ou o autor apresenta a seu
público uma obra arrumada. A diferença entre elas é que uma atividade grupal se
transforma em uma atividade individual. A relação mútua entre elas é de atualização.
O autor utiliza como exemplo o surgimento do conto na literatura ocidental:
[...] uma corporação de poetas e escritores especializados há muitos
séculos em Formas artísticas crê ser seu dever e estar ao alcance de suas
possibilidades atualizar uma Forma Simples, tal como atualiza suas Formas
artísticas; uma série de novelistas procura tratar o Conto como uma novela,
“encerrá-lo” da mesma maneira, incutir-lhe uma configuração sólida,
peculiar e única...em tal caso a Forma Simples rejeita semelhantes espécie
de acasalamento, opõe-se a que a modelem nesse sentido e pretende
manter-se ela própria. Repugna-lhe de tal modo esse encontro quer ser tão
decididamente ela própria que, apesar de todas as transformações e todas
as reorganizações, os espíritos lúcidos e capazes de discernir as formas,
como Herder ou Grimm, descobrem a natureza híbrida e díspar dessas
misturas, apreendem a Forma Simples como tal e acabam por destrinçar as
diferentes vozes do povo” a “poesia da natureza” ou a poesia artística”.
(JOLLES, 1971, p. 196).
Possivelmente, podemos considerar que, à medida que os contos populares
foram recolhidos ou compilados (no dizer de Jolles, “destrinçados”) e escritos por
poetas, autores, escritores, a literatura oral passa à forma literária. uma
atualização: a Forma Simples transforma-se em Forma artística. Contudo, o conto
popular, aquele surge da memória do povo, pode ser narrado por qualquer pessoa
com suas próprias palavras e não carece de um autor. Nesse sentido, Jacob e Armin
privilegiaram a forma artística, por meio da elaboração, do trabalho de reunir,
organizar, tornar acessível a um leitor, por meio da linguagem própria dessa forma.
As contribuições de Jolles elucidam questões relacionadas ao conto popular e
ao conto literário, atribuindo a cada um suas peculiaridades. Além das assinaladas
anteriormente, acrescentam-se os objetivos moralizadores dos contos populares, os
quais o observados pelo próprio Jolles (1971), por Coelho (1987), por Bettelheim
(1985), por Arroyo (1968), por Philip (2001), por Bortolussi (1985) e por Almeida
(2004). Jolles atribui ao conto um “caráter de narrativa moral” e exemplifica o título
29
Contes du temps passé avec des Moralités, de Perrault, que permite conferir que
cada conto apresentado finaliza com uma “moral da história”. Sobre esse tema,
podemos nos inteirar na citação abaixo:
Em todos eles a virtude é recompensada e o vício punido, tendem todos a
mostrar a vantagem que existe em sermos honestos, pacientes, refletidos,
trabalhadores, obedientes, e o mal que recai sobre todos os que não o são
[...] Por muito frívolas e estranhas que estas fábulas sejam em suas
aventuras, é certo que estimulam nas crianças o desejo de se
assemelharem aos que elas vêem tornar-se felizes e, ao mesmo tempo, o
temor de que lhes ocorram os infortúnios com que os perversos foram
punidos por suas maldades[...]São essas sementes que se lançam, que no
começo apenas produzem movimentos de alegria e tristeza, mas não
tardarão muito a frutificar as inclinações para o Bem”. (PERRAULT, citado
por JOLLES, 1971, p. 198).
Acerca da questão da “moral da história”, Jolles avalia a pertinência do termo
em virtude do comportamento do gato em Der Gestiefelte Kater (O gato de botas).
Apesar de não realizar uma análise profunda, considero sua pertinência, tendo em
vista o que a literatura consultada infere sobre o assunto. Por exemplo, o gato é
mentiroso, ludibria as pessoas e, pela coibição, influencia as pessoas a mentir. Em A
Bela adormecida, avalia Jolles (1971, p. 198), o príncipe rouba da princesa um beijo
no momento em que está inerte, dormindo.
Por essas observações, Jolles admite que as personagens e as aventuras do
conto não podem ser consideradas em sua totalidade como morais. Porém a
compensação se realiza com a satisfação dos acontecimentos do conto pela nossa
vertente para o maravilhoso e o nosso valor à sinceridade. As histórias se
desenvolvem de acordo com o nosso sentimento e pensamento. Por conseguinte,
refletem como as coisas deveriam acontecer no universo.
O gato de botas é um exemplo abordado por esse autor e auxilia na
compreensão de que, no conto, os acontecimentos devem ser de acordo com os
valores que se acredita serem verdadeiros. A história é centrada em três irmãos.
Quando o pai morre, deixa de herança para dois irmãos o burro e o moinho; o
terceiro irmão, o mais moço, herdou um objeto aparentemente sem valor: o gato.
30
Segundo esse autor, o sentimento de injustiça se estabelece a partir da
desigualdade da partilha da herança.
Seguida à insatisfação, a justiça é o sentimento que desencadeia a
expectativa de um final em que o injustiçado seja o vitorioso. Será exatamente a
herança sem valor – o gato – que proporcionará o sucesso e a felicidade do herdeiro
inferiorizado. Em nenhum momento do conto se diz quem é ou não virtuoso ou que o
moleiro é bom ou mal por ter deixado uma herança desproporcional entre os filhos.
Todos os acontecimentos desse conto desencadeiam em nós a esperança do final
da narrativa com um fato concebido como ético e justo.
“A ideia de que tudo deva passar-se no universo de acordo com a nossa
expectativa”, de acordo com Jolles, é a disposição mental do conto. Esse autor
observa que Perrault identificou como “disposição moral” o que Jolles denomina de
“ética do acontecimento ou moral ingênua”:
O nosso julgamento de ética ingênua é de ordem afetiva; não é estético,
dado que nos fala categoricamente; não é utilitarista nem hedonista,
porquanto seu critério não é o útil nem o agradável; é exterior à religião,
visto não ser dogmático nem depender de um guia divino; é um julgamento
puramente ético, quer dizer, absoluto. Se partirmos desse julgamento para
determinar a Forma do Conto, poderemos dizer que existe no Conto uma
forma em que o acontecimento e o curso das coisas obedecem a uma
ordem tal que satisfazem completamente as exigências da moral ingênua e
que, portanto serão “bons” e justos” segundo nosso juízo sentimental
absoluto. (JOLLES, 1971, p. 200).
Os acontecimentos do conto são opostos ao acontecimento real. O universo
do conto se constitui de histórias desenvolvidas nas quais, inicialmente, fere-se o
sentimento de justiça, contrariando as “exigências da moral ingênua”, mostrando-nos
um universo que entendemos como imoral. A disposição mental do conto se
apresenta em dois sentidos: “toma e compreende o universo como uma realidade
que ela [a moral ingênua] recusa e que não corresponde à sua ética do
acontecimento” e “propõe e adota o outro universo que satisfaz a todas as
exigências da moral ingênua” (JOLLES, 1971, p. 200). A disposição mental do conto,
ao mesmo tempo em que propõe o trágico, propõe também a supressão. Por isso,
31
os estados e os incidentes no conto não são aleatórios. O objetivo é justamente ferir
o nosso sentimento de acontecimento justo.
[...] um moço recebe menos em herança que seus irmãos, é menor ou mais
tolo que os que os cercam; crianças são abandonadas por seus pais ou
maltratadas por uma madrasta; o noivo é separado da sua verdadeira noiva;
homens ficam sujeitos a espíritos malfazejos, são forçados a executar
tarefas sobre-humanas, sofrem perseguição e têm de fugir; eis outras tantas
injustiças que são invariavelmente abolidas no decurso dos acontecimentos
e cujo desfecho satisfaz nosso sentimento de acontecimento justo. Sevícias,
desprezo, pecado, arbitrariedades, todas estas coisas aparecem no
Conto para que possam ser pouco a pouco, definitivamente eliminadas e
que haja um desfecho em concordância com a moral ingênua. Todas as
mocinhas pobres acabam por casar com o príncipe que devem desposar,
todos os jovens pobres têm sua princesa; e a morte, que significa, em certo
sentido, o auge da imoralidade ingênua, é abolida no Conto [...] (JOLLES,
1971, p. 202)
Na linha teórica do autor, a realidade imoral é aniquilada no conto. O
maravilhoso é uma característica dominante dessa forma e nos torna confiantes da
inexistência da imoralidade da realidade, atributo imprescindível, sem o qual se
tornaria incompreensível o conto e seu universo alegórico perderia a essência.
O conto é acontecimento em oposição ao universo da realidade, portanto tem
o sentido da moral ingênua. A ação e a localização do universo do conto são tais
que se verifica sua ocorrência sempre “num país distante, longe, muito longe daqui”
e “há muito, muito tempo”; “o lugar é em toda e nenhuma parte, a época sempre e
nunca”. Nesse sentido, Jolles (1971, p. 202) avalia que não se concebe na forma
simples a localização histórica e o tempo histórico, que seriam elementos de
aproximação com a realidade imoral e, por conseguinte, romperiam com o
deslumbramento do maravilhoso. À indeterminação do lugar e da época, ajunta-se o
anonimato das personagens, para que prevaleça a “ética do acontecimento” e não a
“ética da ação”.
Segundo o autor, no conto, além do lugar sem nome e da época indefinida, as
personagens não possuem um nome. A “disposição mental” delimita a ação, ou seja,
de um lado os monstros, os espíritos malignos, os ogros e a bruxa representam o
trágico e de outro as fadas representam os poderes mágicos capazes de
32
transcender a realidade. Todas as personagens pertencem ao maravilhoso, são
executores do acontecimento ético e atuam em conveniência com o nosso exame
sentimental.
Além dos fatores acima, o autor considera a impossibilidade de imaginar o
conto isento de um acontecimento trágico, despojado de um sentido de justiça, sem
as quebras de barreiras ou vencimento de obstáculos e sem um final ético. Esses
itens não estão dissociados, e o final deve proporcionar a satisfação moral. A
inexistência destas questões acarretará “um esqueleto desprovido de sentido, o qual
não poderá proporcionar-nos satisfação moral de espécie alguma e servirá, no
máximo, como veículo mnemotécnico para reconstruir a forma.” O trágico e a justiça,
em consonância com a moral ingênua, correspondem ao gesto verbal que “está
sempre impregnado do poder que aniquila a realidade imoral e, de um modo ou de
outro, significa sempre o maravilhoso.” (JOLLES, 1971, p. 203-204).
O MARAVILHOSO
O Oriente era praticamente uma invenção européia e fora desde a Antiguidade
um lugar de episódios romanescos, seres exóticos, lembranças e paisagens
encantadas, experiências extraordinárias.
(Edward Said)
Não divergências em Bettelheim (1980), Bortolussi (1985), Coelho (1987),
Jolles (1971) e Silva (2004) de que se cultivava o conto muito antes de ser dado a
ele o seu status de gênero literário. Os autores apontam o maravilhoso como
originado da literatura oral popular. E afirmam também que os contos surgiram
destinados aos adultos e posteriormente foram dedicados às crianças. São fontes de
uma literatura escrita oriental e propagaram-se pelo mundo, de geração em geração;
portanto, foram contados e recontados por séculos. Posteriormente, foram reunidos
em livros. Onde quer que se vá ao planeta terra, haverá contos.
Coelho (1987), Arroyo (1968), Bettelheim (1985) e Bortolussi (1985) discorrem
sobre narrativas surgidas entre os povos da Antiguidade, que, incorporadas,
misturadas, modificadas se difundiram pelo mundo. As modificações ocorreram com
33
acréscimo de elementos, tornando as narrativas significativas, em vista dos
costumes e das regras estabelecidas socialmente. O argumento de que contos
em diferentes posições geográficas se verifica a seguir:
Se perseguirmos, numa viagem através dos textos (muitos dos quais
nasceram séculos antes de Cristo), passaremos pelas sábias e místicas
regiões da Índia ou do misterioso Egito; defrontaremos a bíblica Palestina
do Velho Testamento e a Grécia clássica; entraremos pelo Império Romano
adentro, descobrindo-o como o grande mediador/divulgador que foi no
Ocidente, de toda a sabedoria mágica gerada no Oriente, Ao mesmo tempo
descobriremos as migrações narrativas realizadas na Pérsia, Irã, Turquia e
principalmente na luxuriosa Arábia, cuja ênfase na materialidade sensorial
mais plena vai se contrapor ao espiritualismo gerado pela imaginação
sonhadora dos celtas e bretões.
na idade média, veremos como todo esse lastro pagão choca-se, funde-
se ou deixa-se absorver pela nova visão do espiritualismo cristão e
transformado, chega ao Renascimento [...] Até que, finalmente, na
passagem da era clássica para a romântica, grande parte dessa antiga
literatura maravilhosa destinada aos adultos é incorporada pela tradição oral
popular e transforma-se em literatura para crianças. (COELHO, 1987, p. 15)
Cinderela, Branca de Neve e A Bela Adormecida exemplificam a transcrição
acima. Philip (1988, p. 131) e Bettelheim (1980, p. 304) revelam que Cinderela se
tratava de um conto oriental da China, país que valorizava os pés pequenos como
atributos de beleza feminina. Sua primeira versão data do século IX d.C. e adquiriu
notoriedade na versão de Charles Perrault, em 1697. De acordo com Philip, Perrault
adicionou a fada madrinha, a carruagem-abóbora e o sapatinho de cristal. Um “final
sangrento” é o termo utilizado por Philip na versão dos irmãos Grimm:
[...] as irmãs cortam um pedaço do para poder calçar o sapatinho, mas
dois pombos denunciam a trapaça, dizendo ao príncipe: “Olhe bem, há
sangue no sapato, que é pequeno demais para elas. Olhe bem sua
verdadeira noiva o espera”. Mais tarde, no casamento de Cinderela, os
mesmos pombos arrancam os olhos das irmãs presunçosas. (PHILIP, 1988,
p. 131)
O conto A Bela Adormecida surge no século XIV e foi publicado por Perrault
em 1697 sob o título La belle au bois dormant. Nessa versão, a história prossegue
após o casamento: “a mãe do príncipe, uma ogra que gosta de comer carne
34
humana, planeja devorar a nora e os netos. Quando o filho descobre seus planos,
ela se mata, jogando-se numa tina cheia de serpentes”. (PHILIP, 1988, p. 18 e 21).
O conto Branca de Neve foi publicado com esse título pelos irmãos Grimm em
1823
23
. Em algumas versões, os fiéis companheiros da heroína são ladrões.
Acrescenta Philip que Walt Disney (1901-1966), em 1937, apresentou o primeiro
desenho animado de longa-metragem intitulado Branca de Neve e os Sete Anões e
nomeou os anões: Mestre, Zangado, Dunga, Dengoso, Soneca, Feliz e Atchim. Na
narrativa de Philip, a madrasta ordena ao caçador tirar a vida de Branca de Neve na
floresta e que comprove isso entregando-lhe o coração e o fígado. Tendo em vista
que o caçador não cumpriu a ordem da madrasta, entregou os órgãos de um filhote
de javali à rainha, que os comeu. Esse conto finaliza com a punição da madrasta,
forçada a calçar um sapato em brasa e dançar com ele até a sua morte (PHILIP,
1988, p. 122-125).
A propósito de contos que atravessaram gerações, Coelho (1993, p. 88)
selecionou seis narrativas anônimas que foram recolhidas por diferentes autores e
que atualmente integram a Literatura Infantil: “O homem e a serpente” (de Calila e
Dimna, século VI a. C.), “A gralha soberba e o pavão” (das Fábulas de Esopo,
século V a. C., reescritas por Fedro no século I da era cristã), “A moça e o pote de
leite” (recolhida por La Fontaine no século XVII), “As fadas” (reescrita por Perrault no
século XVIII), “Moedas de estrelas” (recolhida pelos irmãos Grimm no século XIX),
“A rainha da neve” (recolhida/reescrita por Andersen no século XIX). Segundo essa
autora, a popularização de narrativas pelo mundo pode ser conferida em outras
obras, ou seja, as fábulas “O Homem e a Serpente” e “A Gralha soberba e o Pavão”
além de incluídas em Calila e Dimna, encontram-se na coletânea de Esopo, nas
fábulas de La Fontaine e nas fábulas de Monteiro Lobato. “A moça e o pote de leite”
pode ser lida em Calila e Dimna sob o título “O Eremita, a Jarra de Manteiga e o
Mel”, foi recolhida do folclore francês no século XVII por La Fontaine, está presente
no “Auto de Mofina Mendes” de Gil Vicente no século XVI, na coletânea oriental “As
23
Arroyo (1968, p. 31), argumenta que “Branca de Neve” e outras histórias presentes em Kinder-
und Hausmärchen, dos irmãos Grimm, já haviam sido publicadas por Charles Perrault.
35
mil e uma noites”, com o título “O Asceta e a Jarra e Manteiga” e em Monteiro
Lobato, como “A Menina do Leite” (COELHO, 1993, p. 90/92).
A transcrição da narrativa abaixo objetiva uma contextualização sobre a
questão abordada de que os contos atravessaram gerações, se modificaram, eram
destinados aos adultos e posteriormente se transformaram em literatura infantil.
Disse o rei ao filósofo:
Escutei tua história. Conta-me agora, se o tens por bem, uma história que
ilustre o caso do homem que age precipitadamente, sem meditar nem estar
seguro do que faz.
O que age irrefletidamente, respondeu o filósofo, é facilmente vitima de
arrependimento. Entre as histórias que ilustram esse caso, está a do asceta
e do mangusto.
– E como é essa história? Perguntou o rei da Índia.
Conta-se, disse o filósofo, que, na terra de Jurjan, um asceta era casado
com uma mulher que viveu com ele muitos anos sem conceber. Quando
concebeu enfim, o homem alvoroçou-se e disse-lhe:
Alegra-te, que haverás de dar à luz um filho varão, em quem estarão
nosso júbilo e nossas esperanças. Procurar-lhe-ei desde agora uma ama, e
escolherei para ele um nome formoso.
Perguntou a esposa: “Com quem aprendeste a falar do que ignoras? Quem
sabe se nosso filho será varão ou mulher? Cala-te, antes, e aceita o que
Deus nos enviar; e recorda que o homem sensato não fala do que está além
do seu conhecimento. Senão, acontecer-lhe-á o que aconteceu ao eremita
sobre cuja cabeça se derramou o mel e a manteiga.”
– E como é essa história? Perguntou o esposo.
O EREMITA, A JARRA DE MANTEIGA E O MEL
Disse a esposa:
Conta-se que um asceta costumava receber de um mercador caridoso
mel, pão e manteiga para se sustentar. Comia o pão e punha a manteiga
numa jarra, que tinha pendurada numa parede. Ao cabo de certo tempo,
encheu-se a jarra, coincidindo com isso a uma alta do preço do mel e da
manteiga.
Conjeturou o homem: “Se eu vender o que tenho por um dinar, poderei
comprar dez cabras, que ao cabo de cinco meses, me darão dez crias...” E
estendeu suas contas sobre cinco anos, chegando à conclusão de que teria
então quatrocentas cabras. E, prosseguindo, disse consigo mesmo:
“Venderei as quatrocentas cabras e comprarei cem touros e vacas.
36
Conseguirei sementes e, com os touros, ararei e semearei a terra, enquanto
que as vacas me estarão dando leite e crias; e, assim, antes de
transcorrerem outros cinco anos, terei acumulado uma grande fortuna.
Construirei, então, uma suntuosa mansão, adquirirei vestimentas, móveis e
escravos; casar-me-ei com uma formosa mulher de nobre linhagem, que me
dará um filho provido de todos os dons, em cuja formação porei todo
empenho; e, se vir que é ingrato, descarregar-lhe-ei um golpe na cabeça
com esta vara, assim...”E, erguendo a vara para mostrar o que faria,
golpeou a jarra e quebrou-a, e todo o conteúdo se despejou sobre sua
cabeça, e todos os seus planos e esperanças foram frustrados.
Contei esta história, prosseguiu a esposa, para que te abstenhas de dizer
o que ignoras e que depende somente do destino. Aproveita, pois, a
experiência daquele asceta.
Pouco tempo depois, a mulher deu à luz a um filho formoso, que causou
grande alegria a seu pai. E, passados alguns dias, disse ela ao esposo:
“Fica ao lado do menino e cuida dele enquanto vou tomar banho e volto
logo.
Assim que a mulher saiu, porém, apresentou-se um emissário do soberano
e levou o asceta. Antes de sair, chamou um mangusto que tinha em casa, e
que tratava como a um filho, e encarregou-o de cuidar do recém-nascido.
Pouco depois, uma cobra, que tinha seu ninho naquela morada, lançou-se
sobre o menino. Mas o mangusto fez-lhe frente e a despedaçou.
Quando o asceta regressou à casa, o mangusto saltou a recebê-lo como
querendo contar-lhe sua façanha. O asceta, ao vê-lo coberto de sangue,
pensou, ao contrário, que ele havia matado o menino, e, perdendo a
cabeça, sem nada verificar, descarregou um golpe na cabeça do mangusto,
e matou-o. Entrou, em seguida, no aposento e viu seu filho e a cobra em
pedaços, e compreendeu. Transtornado de arrependimento, pôs-se a
golpear o próprio peito, a arrancar os cabelos, repetindo: “Teria preferido
que este menino não tivesse nascido para que eu não houvesse cometido
esse ato de ingratidão e ignomínia!”
Nesse momento chegou, a esposa e, vendo o marido chorando, disse-lhe:
“Por que choras e quem matou esta cobre e o mangusto?” O marido contou-
lhe a história e concluiu: “Essas são as consequências da precipitação.”
Este, ó rei soberano, concluiu dizendo Báidaba o filósofo ao rei da Índia, é o
caso do homem que age precipitadamente, sem antes refletir nem verificar.
(CHALLITA 1975. p. 126 a 128).
“Os Dois Irmãos” é mais um conto assinalado por Coelho (1987, p. 20) que
reaparece em diversas partes do mundo. Bettelheim (1985, p. 115) revela que a
referida narrativa foi encontrada em um papiro egípcio de 1250 a. C. A partir de
então se modificou. Uma pesquisa relaciona setecentos e setenta variantes. O
significado assume diferentes posições e relevância de acordo um o lugar para o
37
qual foi traduzido. Ainda segundo o autor, a plenitude do conto se obtém “não
recontando-o ou ouvindo-o várias vezes quando então algum detalhe de início
despercebido torna-se ainda mais significativo, ou é visto sob uma nova luz.”
Coelho (1987, p. 15) e Arroyo (1968, p. 29) indicam que a fonte oriental
apontada como a mais antiga da literatura popular maravilhosa e presente no
imaginário de todas as nações do mundo ocidental é a coletânea Calila e Dimna,
proveniente da Índia, do século VI. São narrativas escritas em sânscrito, que fazem
parte do “Pantshatantra” (sabedoria dos budistas a partir do século V).
Segundo Challita (1975, p. 29), os originais de Calila e Dimna são compostos
de três livros: Pantchatranti
24
, Mahabharata
25
e Vischno Sarna. No primeiro,
encontram-se as histórias “O Leão e o Boi”, “Os corvos e os corujões”, “A pomba-de-
colar, o corvo, o rato, o cágado e o veado”, “O Macaco”, “O cágado, o eremita e o
mangusto”; no segundo, “O rato e o gato”, “O rei e a ave fanza” e “O Leão e o
Chacal”; no terceiro, “A cobra e o rei dos sapos”.
Calila e Dimna, após a tradução do sânscrito para o persa por Ibn Al-Mukafa,
se propagou pelo mundo e foi traduzido em diversas línguas. De acordo com Challita
(1975, p. 24), Victor Chauvin, em Les Ouvrages Árabes, aponta 30 traduções
diferentes dessa coletânea. Salienta Chalitta que, no século VIII, foi traduzido por
João de Cápua com o título Guia da vida humana. Em 1570, Thomas North
traduziu-o para o inglês com o título A filosofia do comportamento. Em 1965, Antonio
Challita traduziu para o espanhol com o título O livro do soberano e do político.
Das quatro versões sobre a origem de Calila e Dimna apresentadas por
Chalitta (1975, p. 12) foram selecionadas duas:
Kisra Anuchiruan, imperador persa, ouvindo falar de Calilla e Dimna, enviou
Barzauaih, munido de presentes e ouro, para conseguir uma cópia do livro a
qualquer custo.
24
Mansour Chalitta (1975, p 29) tradutor de Calila e Dimna, esclarece na apresentação do livro que
tranta é singular de tranti que significa “tesouro de bons conselhos”.
25
Na elaboração do parágrafo, foram reunidas as considerações de Coelho. (1987, p. 17) e Buck
(1973, p. 9).
38
Barzauaih teve que passar meses na Índia e valer-se de toda a sua astúcia
para convencer um frequentador da corte a lhe entregar ilegalmente a
cópia almejada.
Quando voltou para a Pérsia, foi recebido com honras de herói.
Relata ele que, no século VI antes de Cristo, governava na Índia um rei
chamando Dabshalim, que era um déspota sanguinário. E vivia em seu
tempo um grande filósofo, chamado Báidaba, que era chefe dos brâmanes
e o cume das virtudes de seu povo.
Revoltado pelas abominações do tirano, o filósofo se apresentou diante dele
e, após lembrar e exaltar as glórias dos reis anteriores, apontou-lhe seus
próprios desvarios e convidou-o a reconsiderar e tomar o caminho da
equidade, traçado por seus antepassados.
O rei, furioso, mandou encarcerar o filósofo. Mas um dia, fez apelo a seus
conhecimentos numa disputa sobre astronomia, e ficou impressionado com
sua vasta cultura e sua lucidez, e expressou-lhe seu arrependimento pela
maneira como o havia tratado.
– Tudo o que fiz, disse o filósofo, foi para vosso próprio bem.
O rei pediu-lhe então que escrevesse um livro sobre a conduta que deve
observar o soberano para fazer a felicidade de seus súditos e, ao mesmo
tempo, defender-se de seus inimigos. “Este livro, frisou o rei, deve perpetuar
minha memória ao longo dos séculos e, ademais, causar deleite ao leitor e
ensinar-lhe toda a sabedoria humana.”
O filósofo aceitou o encargo e, com a ajuda de seus discípulos, escreveu
Calila e Dimna num ano de labor ininterrupto, e apresentou-o ao rei
Dabshalim.
O rei reuniu seus ministros e conselheiros e todos os notáveis da corte e
convidou Báidaba a ler-lhes a sua obra
.
Ao concluir Báidaba a leitura, o rei não pôde expressar-lhe sua admiração
senão descendo de seu trono e convidando-o a ocupá-lo em seu lugar e
reger ele próprio os destinos do reino. O filósofo agradeceu e declinou da
honra.
O livro foi então zelosamente guardado nos armários reais. Passou a ser
um segredo dos soberanos desse país, por longos séculos, até que
Barzauaih, após difíceis e pacientes esforços conseguiu uma cópia dele.
A referida obra compreende a sabedoria humana guiada para importantes
atividades: a ação política, “a arte de governar”, de guiar o destino de seres
humanos e da população e de “moldá-lo pouco a pouco conforme convicções e
concepções próprias.” Esse, provavelmente, deve ser o motivo pelo qual esse
39
tradutor relata que a coletânea foi escondida, disputada e roubada por reis e
imperadores. O tradutor assinala uma “originalidade única” da coletânea em
questão:
[...] os animais substituem os homens e falam como homens, mas sem
pertencerem a nenhuma terra determinada. Assim, o mundo político que
evolui diante de nós é de todos os tempos e de todos os lugares. O leão é
qualquer governante: rei, imperador, presidente, ditador. Seus ministros,
cortesãos, servidores, inimigos, o boi, o urso, a raposa, o porco, o camelo,
são também de todos os países e de todos os tempos. (CHALLITA, 1975, p.
15/19).
Chalitta (1975, p. 18) e Coelho (1987, p. 18) afirmam que o tema central de
Calila e Dimna é a luta pelo poder; trata-se de um tratado de política que se projeta
como lição de bom comportamento. A autora acrescenta que se trata de uma visão
mágica do mundo, no qual o real e o imaginário se unem de tal modo que se torna
difícil de discernir o limite entre eles. Vamos encontrar em Branca de Neve, no
século XIX, a crença que impõe formas e atributos humanos a entidades abstratas
ou seres não-humanos e os episódios de metamorfose presentes na referida
narrativa do século VI.
Em Branca de Neve, dos irmãos Grimm, em Branca de Neve e os Sete
Anões, de Walt Disney, e em B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S,
se apresenta a vaidade, a luta pelo poder da beleza, a metamorfose da madrasta em
bruxa, os animais (o corvo, a pomba e a coruja), o rei, a rainha, o servidor
representado pelo caçador, uma terra não determinada, um tempo e um lugar não
determinados, o espelho como objeto que responde às perguntas da madrasta.
O Mahabharata, um épico indiano, com 5.800 páginas, escrito em sânscrito,
entre os séculos IV a.C. e IV d.C., traz como tema central a luta entre os Kurus e os
Pandavas pela propriedade das terras situadas entre os rios Ganges e Yamuna. De
acordo com a fonte pesquisada, o livro “deve ser compreendido como uma narrativa
moral, filosófica e não apenas histórica”. Não informações precisas de quando
ocorreu a guerra, porém sabe-se desse episódio por meio dos contos folclóricos e
dos registros da guerra. De acordo com o calendário indiano, ocorreu no ano 3102
a.C. Outras fontes indicam aproximadamente 1400 a.C.
40
Nesse épico, os deuses mantêm uma relação estreita com os indianos e
indianas, há narrativas sobre casamento de deuses e deusas com seres humanos. A
legitimação e o respeito pelas divindades são valorizados, tendo em vista que os
conselhos e as ordens eram obedecidos e executados. O conteúdo dessa narrativa
envolve a imaginação de um mundo ideal, “onde os feitos heróicos, os gestos de
coragem e bravura e a força física o vistos com espanto e temor. Somos
transportados para um mundo idílico onde a ilusão e a realidade não podem ser
separadas” (BUCK, 1973, p. 13). Nesse épico, os animais também falam e o
encantamento mágico é o mantra, ou seja, palavras mágicas que, quando entoadas,
têm o poder de modificar o universo.
O trecho abaixo transcrito pretende indicar a presença do contador de
histórias e a questão abordada anteriormente de que o acontecimento ocorreu “há
muito tempo”:
“Uma mina de jóias e preciosidades”
Sauti, o contador de histórias, narrou esta lenda a seu amigo Saunaka, na
floresta Naimisha. Curvado de humildade, Sauti vinha à noite vagando pelo
mato, quando viu diante de si o fogo intenso que ardia noite e dia vagando a
casa de Saunaka, na floresta.
Saunaka lhe perguntou: Sauti dos olhos de lótus, de onde vem vagando
você?
Sauti respondeu: – Venho de Hastinapura, do sacrifício das serpentes do rei
Janamejava, dos Kurus. Ouvi então o Mahabharata de Vyasa, escrito pela
primeira vez para o poeta pelo deus-elefante Ganesha.
– Como isso aconteceu?
– Sauti respondeu: eu lhe contarei.
Ouça:
Durante três anos Vyasa compôs mentalmente o Mahbharata e, ao
terminar, convocou Ganesha para ser seu escriba.
Veio o filho de Shiva e perguntou-lhe:
– Por que me chamou?
Vyasa replicou:
– Não remove você todos os obstáculos e todas as barreiras? Não é você o
deus dos ladrões e dos escritores? Ponha meu livro em palavras escritas,
conforme eu narrar.
41
Ganesha sacudiu sua tromba, e o ar sibilou.
– Om! Mas há livros e livros. O seu livro é muito bom?
– É.
Ganesha riu e sua barriga enorme tremeu. Deixe-me apenas livrar-me de
todas estas coisas... e largou o zio e o lótus, o disco e o machado que
segurava em suas quatro mãos e começarei a escrever para você; mas,
se uma só vez me interromper a história, irei embora e jamais retornarei.
Com uma condição disse Vyasa: Se você não compreender o que
quero dizer, deve parar de escrever até que tenha compreendido.- Está
certo! No mesmo dia em que nasci cometi o meu primeiro erro, e por este
caminho venho buscando a sabedoria desde então.
Ouça:
nasci adulto do aljôfar do corpo de minha mãe. Estávamos sós, e Devi
me pediu:
– Guarde a porta. Não deixe ninguém entrar, pois vou banhar-me.
Shiva, então, a quem eu nunca tinha visto, voltou para casa. E eu não deixei
que entrasse na sua própria casa!
– Quem é você para barrar a minha entrada? – perguntou ele, irado.
Mas eu lhe disse:
– Nada de mendigos aqui, vá embora!
Posso estar seminu respondeu ele mas o mundo inteiro é meu, ainda
que eu não me interesse por ele.
– Pois vá arrastar-se pelo mundo, mas não na cada de montanha de
Parvati! Sou filho de Shiva, e guardo esta porta para ela com a minha vida!
Ora disse ele você é um grande mentiroso. Pensa que não conheço
meus próprios filhos?
Tolice! disse eu. Nasci somente hoje, mas conheço o molambento
quando o vejo. Agora vá e siga o seu caminho.
Ele fixou seus olhos nos meu e, muito calmamente, perguntou:
– Vai deixar-me entrar?
– Não adianta insistir! – retruquei.
– Não vou insistir replicou; e, com um golpe agudo cortou minha cabeça e
jogou-a longe, além dos Himalaias.
Devi saiu correndo.
42
Você jamais prestará para coisa alguma! Matou o nosso filho! E caiu
sobre o meu corpo, em prantos. Não vale nada como marido! Sai
vagueando e me deixa em casa para fazer todo o trabalho. É por muito
vagar, sonhando o tempo todo, que vivemos na pobreza, sem ter o que
comer.
O Senhor de Todos os Mundos a tranquilizou: olhando ao redor, a primeira
cabeça que viu foi de um elefante, e a pôs sobre os meus ombros e me
trouxe de volta à vida.
– Parvati ficou feliz novamente, e foi assim que conheci meu pai pela
primeira vez – disse Ganesha – há muito, muito tempo.
26
Além de Calila e Dimna e o Mahabharata, referência a um manuscrito
egípcio de 3.200 anos encontrado na Itália, no fim do século XIX por uma egiptóloga,
D'Orbene. Trata-se de narrativas; que, apesar de anteceder os textos indianos
citados, se assemelhavam a eles. Nessa versão egípcia dos contos, também são
abordadas questões do amor, do ódio, do ciúme, tendo como consequência a
desavença, o rompimento e a morte de familiares ou de amigos. Da mesma forma,
apresentam as metamorfoses que afetam os inocentes e, no final, os culpados são
castigados com o triunfo dos injustiçados. A diferença apontada por essa autora
entre os textos originários da Índia e o texto egípcio é a representação da mulher
como um ser maligno (COELHO, 1987, p. 19).
Em continuidade à árvore genealógica
27
dos contos, Sendebar ou O livro dos
enganos das mulheres é uma coletânea de narrativas escrita em sânscrito, originária
da Índia, com a mesma característica de Calila e Dimna e do texto egípcio, fontes
orientais que constituem as narrativas ocidentais. Segundo Coelho, Sendebad foi um
filósofo hindu e o autor do texto original, o qual se perdeu. Mesmo assim, essas
narrativas continuaram a se propagaram entre os séculos IX e XII em diversas
línguas, inclusive o castelhano, em que constam vinte e seis narrativas envolvendo
paixão, ódio e sabedoria, e que foram fontes de pesquisa para as nações européias
26
BUCK (1973, p. 29 a 31).
27
No dicionário eletrônico Aurélio, árvore genealógica é a representação gráfica com os nomes dos
antepassados e dos descendentes de uma pessoa, de uma família. Em relação à pesquisa sobre
os contos, considero que a obra citada da autora permite ao pesquisador conhecer as
ramificações dos contos.
43
no século XIX. As narrativas abordam a representação da mulher de forma
pejorativa, apresentada sempre como esposa ou madrasta que, respectivamente,
acusa o cunhado ou o enteado de violentá-la.
A maior propagação de Sendebar ocorreu na Europa entre os séculos X, na
versão árabe, e XII, na versão castelhana. A propagação desta narrativa tinha o
objetivo de cristianizar o mundo, coligado ao intento de fortalecer o ideal sagrado da
imagem feminina, por meio da veneração da Virgem Maria, ao mesmo tempo em
que ocorreu o fortalecimento da atividade dos trovadores nas cortes medievais,
incentivando o culto do amor cortês (COELHO, 1987, p. 22).
A transcrição abaixo evidencia que muitas das narrativas reunidas em As Mil
e uma noites
28
assemelham-se às narrativas reunidas em Calila e Dimna, em
Sendebar e em várias coleções orientais. Demonstram como os contos se
assemelham em diversos países e são adequados aos valores de cada lugar:
[...] Na labiríntica trama das narrativas, reunidas nesta fabulosa coletânea,
misturam-se textos originários de todas as regiões do Oriente: desde os
apólogos indianos até os velhos romances” de amores e traições, narrados
nos bazares de Bagdá: desde lendas chinesas ou egípcias até compilações
budistas; desde contos persas até fabulas judaicas... Daí que inúmeros de
seus episódios estejam presentes também em Calila e Dimna, Sendebar e
outras coleções orientais. (COELHO, 1987, p. 24).
Kathãsaritsãgara (O Oceano Torrencial das Narrativas) é citado por Jolles
como uma coletânea surgida na segunda metade do século XI, atribuída a um
indiano de nome Somadeva que recolheu inúmeras narrativas em Cachemira e em
outras regiões. Assemelha-se às coletâneas de “outras épocas e outras regiões: as
Gestas Romanorum, as Mil e Uma Noites, o Decameron”. Em relação a essa
compilação realizada por Somadeva, Jolles (1971, p. 157) observa que “O rei e o
cadáver”, uma narrativa contida no Kathãsaritsãgara, é encontrado em versões
diferenciadas na própria Índia e em diferentes áreas geográficas.
28
A coletânea As mil e uma noites terá uma abordagem posterior, tendo em vista que veio a ser
traduzida para o francês somente no século XVIII.
44
Em Branca de Neve, na versão dos irmãos Grimm, e em Branca de Neve e os
Sete Anões, na versão de Walt Disney, existem duas mulheres, uma boa e uma má.
Essa última se transforma em bruxa. Antes de falar da bruxa, será necessário viajar
pelo mundo das fadas e do povo celta.
Na época do deslocamento dos povos orientais para o mundo ocidental, fato
ocorrido anteriormente a Cristo, iniciou-se a migração dos celtas. Esse povo
distinguia-se de outros povos da época principalmente na questão da guerra, pois a
iniciavam somente quando suas terras eram ameaçadas. Os celtas atuaram em todo
o processo de formação e modificação da cultura ocidental, de forma “silenciosa”,
por meio de seus valores espirituais e de sua inteligência. Entre os mitos do povo
celta, aparecem as fadas, ou seja, na elaboração poética céltico-bretã foi que
surgiram as primeiras mulheres sobrenaturais, denominadas de fadas.
A palavra fada vem do latim fatum destino, fatalidade, oráculo. As fadas de
todas as nações européias são nomeadas com termos provenientes da mesma área
semântica latina: fada (port.); fee (fr.); fairy (ingl.); fata (ital.); feen (al.); hada (esp.).”
(COELHO, 1987, p. 31).
As fadas significavam “a luz no fim do túnel” para homens e mulheres que se
encontravam em situações extremas. Essas mulheres sobrenaturais,
extraordinárias, belas e virtuosas do imaginário europeu possuíam poderes que lhes
permitiam intervir na vida de homens e mulheres, amparando-os em momentos de
perigo ou em situações que representavam problemas aparentemente insolúveis. A
fada representava o bem, e a bruxa representava o mal. Estas, segundo Coelho
(1987) são formas simbólicas da dualidade da mulher ou da condição feminina.
Nos contos de origem celta, destaca-se: o excessivo espiritualismo; o poder
feminino; a inclinação ao sobrenatural; o fascínio por regiões distantes com lagos
misteriosos e com névoa; adoração à natureza, considerada dotada de forças
misteriosas; lendas em que personagens heróicas possuem um encantamento
místico; mulheres divinas ou diabólicas; anões e anãs; seres monstruosos; seres
gigantescos; objetos com poderes extraordinários; reinos fantásticos. (COELHO,
1987, p. 33).
45
O caminho entre os contos de fadas destinados aos adultos até se
transformarem em literatura infantil atravessa séculos e nações e toda essa trajetória
é delineada por Coelho (1987), começando pelo poema Beowulf, considerado um
dos mais belos e importantes textos épicos da Europa anglo-saxã
29
e nórdica.
30
Apesar de Beowulf ser apresentado como uma narrativa maravilhosa, os relatos nele
contidos são históricos, escritos em língua anglo-saxã e das ilhas britânicas, no
século VI. Sobrinho do rei nórdico Hygelac, Beowulf é o típico herói da Idade Média,
exemplo de cavalheiro perfeito cuja história se transformou em lenda. Esse poema
faz referência a duas proezas do herói. Na primeira, ele enfrenta o gigante
antropófago Grendel, vencendo-o. A vitória do herói se atribui a energias interiores e
misteriosas. Gravemente ferido é encontrado inconsciente por uma mulher
misteriosa que o cura. Após cinquenta anos, ocorre a segunda luta. Beowulf vence
um dragão, mas é ferido por ele e morre.
Coelho (1987, p. 44) avalia que a amenização da agressividade dos
chamados “primitivos povos bárbaros germânicos” na literatura foi ocasionada pelo
contato dos germanos com os celtas. O maravilhoso nebuloso e atemorizante dos
territórios nórdicos, o vigor de homens e monstros que se equiparavam a deuses
presentes em Beowulf, são atenuados nos contos maravilhosos, tendo em vista a
influência da espiritualidade celta.
Após a referência a Beowulf, a autora indica os Mabinogion, quatro poemas
narrativos surgidos do culo IX, escritos em língua gaulesa. Esses poemas
originam as fadas, e a história
31
se transforma em lenda:
32
29
Anglo-saxão é a denominação dada à fusão dos povos germânicos, anglos, saxões e jutos que se
fixaram no norte e centro da Inglaterra no século V. Em relação aos saxões, podemos dizer que
eram um antigo povo da Germânia, habitantes da região próxima da foz do rio Álbis (atual Elba). E
correspondente ao atual estado de Holstein na Alemanha. Disponível em: <www.dec.ufcg.edu.br>.
Acesso em: 15 de marco de 2010.
30
Relativo aos países do norte da Europa Dinamarca, Finlândia, Suécia, Noruega e Islândia.
(Dicionário Eletrônico Aurélio da Língua Portuguesa, 2009).
31
História: uma narração verdadeira de acontecimentos ou situações significativas para o
conhecimento da evolução dos tempos, culturas e civilizações, nações, etc. Não é mera exposição
de fatos, mas resulta de uma indagação inteligente e critica dos fenômenos que tem por fim o
conhecimento da verdade. (COELHO, 1987, p. 85)
46
Os Mabinogion estão entre os mais antigos documentos da poesia primitiva
céltico-gaulesa, a que está na origem da grande novelística da matéria
bretã: as novelas de cavalaria do ciclo do rei Artur. Transformada pela
imaginação celta (nutrida de lendas, feiticeiros, fadas, seres sobrenaturais,
florestas encantadas, lagos e pântanos, castelos ou montanhas misteriosas,
espectros, etc.), a História transforma-se em lenda ou mito. (
COELHO
1987, p. 45)
É nesses poemas, reunidos em narrativas fantásticas envolvendo feitiçaria,
fadas, magos, metamorfose, animais monstruosos, paisagens imaginárias e
misteriosas, que emerge o herói legendário
33
rei Artur e suas aventuras com seus
cavaleiros, destacadas pelo poema “Culhwch e Olwen”, contido no Mabinogion”.
Esse narra o amor entre o cavaleiro Culhwch e Olwen. A diferença entre as
narrativas reunidas no Beowulf e no Mabinogion é o amor como poder que tanto
pode realizar quanto destruir.
34
Os poemas celtas do século IX impulsionaram os lais bretões, e a França é
reconhecida como o país que iniciou a tradução e a divulgação pela Europa, no
século XII, na corte de Luís VII, sob influência da rainha Alienor D'Aquitânia (1122-
1204). O monge anglo-normando Wace, em 1152, por solicitação da rainha Alienor,
escreve o Romance de Brut, traduzindo para o francês a história dos reis da
Bretanha (escrita em latim, em 1135, por G. Monmouth; por sua vez, baseada na
História dos Bretões, escrita por Nennius, no século VII). Ajustando acontecimentos
históricos com depoimentos fabulosos, o Romance de Brut discorre sobre a
genealogia troiana dos primeiros príncipes bretões e enfatiza as peripécias do rei
Artur e seus cavaleiros. Mostra também a fada Viviana, que, no lago onde vive,
32
Lenda (do latim legenda, legere ler), narrativa anônima de matéria supostamente heróica ou
verdadeira, guardada pela tradição (oral ou escrita). Nela, o real e o imaginário mesclam-se de tal
maneira que é impossível discernir onde acaba o verdadeiro e começa a fantasia. Todos os
folclores estão repletos de lendas, que tentam “explicar” de maneira mágica os mistérios da vida e
do Universo (COELHO, 1987, p. 85).
33
Legendário: designa o que não é verdadeiro no sentido histórico (JOLLES, 1971, p. 60).
34
Sobre o Mabinogion, Robert Graves (2003) apresenta uma pesquisa aprofundada, que pode ser
consultada em A deusa branca – uma gramática histórica do mito poético, capítulos I e II.
47
cuida de uma criança desamparada que, na vida adulta, vem a ser Lancelote ou o
Cavaleiro do Lago (COELHO, 1987, p. 47).
No referido romance, está presente a criatura histórica do sábio Ambrósio,
grande mestre de Astrologia que influenciou o rei Artur a formar a Ordem de
Cavalaria da Távola Redonda. É possível que o sábio Ambrósio seja o mago Merlin,
personalidade invariável das novelas arturianas. Merlin e Artur constituíram uma
ordem druida, de estilo literário. O mesmo Merlin, idoso, é seduzido e iludido pela
fada Viviana, a Dama do Lago, lenda que Walter Scott utiliza em seus romances
históricos no século XIX. O rei Artur, vitorioso dos saxões, soberano da Inglaterra, da
Escócia, da Irlanda e da Noruega, é personagem dominante nos lais bretões,
maravilhando as fantasias, com sua bravura, sua corte majestosa, seus cavaleiros e
suas damas fascinados pelo encanto do amor. (COELHO, 1987, p. 48-49).
Uma segunda mulher apontada por essa autora é Marie de France, filha da
rainha Alienor, que, por sua educação britânica, sua convivência com os trovadores
da corte e o contato com a literatura bretã, traduziu para o francês os bretões que
ficaram conhecidos como os Lais de Marie de France
35
. A referida tradução
propagou o universo céltico-bretão e contribuiu para a fusão da religião pagã com a
religião cristã. Ainda segundo Coelho (1987), a rapidez da difusão desses poemas
pela Europa e os incontáveis episódios das novelas arturianas impulsionaram o
código do amor cortês
36
e a poesia trovadoresca
37
que se expandiram no sul da
35
A autora destaca os mais os mais conhecidos: Lai d'Yonec, Lai de Bisclavaret, Lai de Lanval, Lai
de Iwenec, Lai de Fresno, Lai de Tidorel, Lai de Eliduc, Lai de Guingamor, Lai de Tiolet e Lai da
Maressilva. (p. 50-53).
36
Elenco de normas ou regras de “bem amar”, difundidas como moda nas cortes européias a partir
do século XII. Correspondeu, em nível mundano, ao esforço de valorização da mulher que, em
nível religioso, a Igreja vinha desenvolvendo através do culto marial Virgem Maria). Desse
“código”, nasceu o amor tal como a civilização cristã expandiu por todo o mundo ocidental: amor
“puro”, livre do tabu do sexo, idealizado como o grande meio de aperfeiçoamento do ser; amor
fatal, eterno, indestrutível, cuja perda acarreta a destruição do ser (seja pela morte, loucura ou por
seu voluntário e total afastamento do convívio humano) (COELHO, 1987, p. 88).
48
França, espiritualizando o amor por meio da valorização da mulher. Além de divulgar
os lais bretões
38
, Marie de France, ainda no século XII, difundiu o romance cortês
39
na corte, em substituição às canções de gesta
40
.
A autora revela que Marie de France traduziu os lais bretões e que Chrétien
de Troyes (1135-1191) traduziu e recriou o romance bretão, dando-lhe expressão
literária mais elaborada e uma estrutura narrativa com acréscimo de episódios
41
. A
autora se refere à versão de Chrétien de Tristão e Isolda, que veio a ter sua versão
completa no século XIX por Joseph Bédier (1864-1938). Considera ainda que essa
obra “representa a mais bela fusão do espírito mágico dos celtas e bretões com a
espiritualidade cristã e constitui a essência dos contos, quando entendidos no nível
simbólico.” Os romances bretões se difundiram pela Europa no século XIII,
37
Composições em verso produzidas na península ibérica entre o final do século XII e meados do
século XIV. São cerca de 1600 cantigas de caráter profano e 400 poemas de conteúdo religioso. É
provável que a mais antiga reunião dessas canções tenha sido no século XIV, no denominado
Cancioneiro da Ajuda. O Cancioneiro da Biblioteca Nacional e o Cancioneiro da Vaticana são
cópias feitas no século XVI na Itália, a partir de um manuscrito mais antigo. A fonte consultada não
retrata a poesia trovadoresca como estritamente portuguesa e galega, tendo em vista que os 150
trovadores e jograis que a produziram originam-se de diversas regiões da península. Os
trovadores eram geralmente nobres; e os jograis, que cantavam as cantigas nas feiras, romarias e
palácios, eram de origem popular. Nesses cancioneiros, se encontram as cantigas de amigo, as
cantigas de amor e as cantigas de escárnio e maldizer. Disponível em
<http://www.brasilescola.com/literatura>. Acesso em 15 de março de 2010.
38
A designação de lai é uma das mais ambíguas da literatura medieval. Pode referir-se a textos
bastante distintos, tanto temática quanto formalmente. Os lais bretões eram composições
musicais, canções em parte líricas e em parte narrativas divulgadas por poetas viajantes que as
cantavam acompanhados de um instrumento musical desde o século XI. O lai bretão
provavelmente possibilitou o lai narrativo. Os lais celtas eram textos breves em francês medieval
compostos em versos de oito sílabas, rimados nos pares. Disponível em
<http://www.ufscar.br/~revistaolhar>. Acesso em 15 de março de 2010.
39
Correspondem às narrativas em verso, de natureza aristocrática e sentimental, cuja leitura distraia
as cortes. Dividem-se em três correntes: os da Antiguidade (que fundem o épico cristão com o
maravilhoso helênico), os bizantinos (de matéria romanesca e maravilhosa greco-latina) e os
bretões (de matéria bretã, que funde o heróico, o romanesco e o maravilhoso de raízes celtas).
Este último foi o mais famoso, e a ele pertencem os romances do ciclo arturiano. (COELHO, 1987,
p. 87).
40
Do latim gesta, orum feitos notáveis. Breves poemas épicos que surgem na França medieval
(século XI), cantando os feitos heróicos de Carlos Magno, imperador dos francos e de seus
cavaleiros guerreiros, em luta contra os árabes que invadiram a península Hispânica. Expressando
os ideais guerreiros e religiosos da época, as canções de gesta (chansons de geste) têm um ponto
de partida histórico: a batalha de Roncesvales, que ocorreu no século VIII. (COELHO, 1987,
p. 82).
41
Chrétien de Troyes traduziu e adaptou: Lancelot ou o Cavalheiro na Carroça (1172). Ivã ou o
Cavaleiro Leão (1173), Percival ou O conto do Graal (1190) (COELHO, 1987, p. 55).
49
adaptados em uma estrutura conhecida como novelas de cavalaria do rei Artur.
(COELHO, 1987, p. 56).
O poder divino e diabólico das mulheres nas narrativas orientais foi
vulgarizado no mundo ocidental e elas passaram a representar, respectivamente, a
fada e a bruxa e a fazer parte dos contos de fadas. Coelho (1987, p. 59) avalia que
as personagens femininas Morgana, Viviana e Melusina dos poemas bretões se
modificaram na tradução, seguindo os interesses da fusão da religiosidade ltico-
bretã com a religiosidade cristã. A autora exemplifica com a transformação da
representação da personagem Viviana, que de Dama do Lago, protetora de
Lancelote, fada, mulher sobrenatural e companheira do mago Merlin transforma-se
em sedutora maligna que faz de um Merlin idoso, uma vítima.
As coletâneas das narrativas orientais, a partir do século XVI, terão uma nova
apresentação. As compilações adaptadas são acrescidas da criatividade de um
autor. O anonimato dos textos de origem popular cede espaço a uma elaboração
erudita e adquirem grande aceitação ocasionada pelo movimento de renovação das
artes e ciências européias, sem perder de vista a valorização da Antiguidade
clássica. Coelho (1987, p. 61) destaca duas obras desse período: a coletânea de um
grande número de narrativas orais em vários dialetos das províncias italianas, que
resultou na publicação em duas etapas (1550 e 1554) de Noites prazerosas (Le
piacevoli notti)
42
, de Giovanni Francesco Straparola.
43
A outra é a coletânea O conto
dos contos, conhecida como Pentameron (Lo cunto degli cunti)
44
, publicada em
Nápoles, em 1634, tendo como autor Giambattista Basile (1566-1632). Os contos,
apesar de compilados da população napolitana, cultivam as versões mediterrâneas
42
Arroyo (1968, p. 32) destaca que é nessa reunião de contos folclóricos, cujos temas se
universalizaram, inclusive na literatura infantil, que o famoso personagem Gato de Botas sua
entrada na literatura”.
43
Jolles (1971, p. 189) revela que, na citada obra, estão “O Gato de Botas”, Os animais
agradecidos” e “O mestre e o ladrão”, dentre outras histórias que serão reencontradas nos Kinder-
und Háusmarchen.
44
O mesmo ocorre a “A Gata Borralheira”, “A Bela Adormecida no Bosque” e “Branca de Neve”, que
permaneceram na literatura infantil.
50
e as narrativas maravilhosas indo-germânicas ou saxônicas e lembram as novelas
do ciclo arturiano.
45
Conforme Coelho (1987, p. 64), várias obras do século XVI foram
influenciadas pela magia céltico-bretã. Em Sonho de uma noite de verão, de William
Shakespeare (1564-1616), encontram-se Oberon (mago), Titânia (rainha das fadas)
e Puck (duende). Em Romeu e Julieta, encontra-se a rainha Mab. No poema épico
Orlando Furioso (1516), de Ludovico Ariosto (1474-1533), encontram-se as fadas
Andrônica e Melissa e a maga Carandina. Em Jerusalém Libertada (1580), de
Torquato Tasso (1544-1595), tem-se a fada Arminda. Em Os Lusíadas” (1572), de
Luís de Camões (1524-1580), o episódio Ilha dos Amores, a descrição do lugar onde
ninfas acolhem os portugueses cansados possivelmente seja influenciada pela
magia céltico-bretã.
No século XII, a França teve a iniciativa de traduzir e divulgar pela Europa as
narrativas céltico-bretãs. Nesse mesmo país, no século XVII, além de serem
traduzidos, os contos foram adaptados, readaptados, desprovidos de episódios
considerados indecorosos para a cultura ocidental, perdendo o significado original e
transformando-se em histórias infantis.
Ao final do século XVII, na França, todo esse caudal de narrativas
maravilhosas entrara em declínio; parte delas fora absorvida pelo povo e
transformara-se em narrativas populares folclóricas, esvaziadas de sua
essencialidade primitiva; outra parte diluira-se nos romances preciosos, nos
quais as aventuras heróico-amorosas da novelística medieval tendem a ser
substituídas pelas aventuras sentimentais, patéticas ou pelo heroísmo da
paixão, intensificando-se o maravilhoso que lhe servia de espaço. A valentia
cavaleiresca cede lugar ao romanesco. A fantasia desafia a lógica.
(COELHO, 1987, p. 65)
Charles Perrault (1608-1703) é considerado por Coelho (1987, p. 66) e Philip
(1998, p. 14) o compilador, no século XVII, de relatos da memória do povo e o
fundador do primeiro núcleo da literatura infantil ocidental, publicando em 1697 os
45
Jolles (1976, p. 190) destaca que “Cinderela”, Os sete corvos” e “A bela adormecida”,
posteriormente compuseram a obra dos contos dos irmãos Grimm.
51
Contes de ma Mère l'Oye, sob o título de Histoires ou Contes du Temps Passé avec
des Moralités
46
, incluindo os contos: “A Bela Adormecida”,” Chapeuzinho Vermelho”,
“Barba Azul”, “O Gato de Botas”, As Fadas”, “A Gata Borralheira”, “Henrique do
Topete” e o “Pequeno Polegar”. Esses oito contos reunidos por Perrault se
originavam dos antigos lais ou dos romances céltico-bretões e de narrativas indianas
que se transformaram, se fundiram e, consequentemente, perderam sua significação
de origem (COELHO, 1987 p. 63-68).
A Mãe Gansa (Mère l'Oye) era uma personagem de velhos contos populares
franceses que contava histórias para seus filhotes. No costume popular europeu, as
mulheres contavam histórias e, ao mesmo tempo fiavam, após o jantar. Estudioso da
mitologia pagã, Perrault provavelmente relacionou a tarefa das parcas, de tecer a
vida dos homens e mulheres à questão de tecer histórias. Na Idade Média, o fuso e
a roca estavam relacionados à mulher, ao poder feminino de tecer o abrigo dos
corpos e de tecer novas vidas. A ilustração da capa do livro de Perrault mostrava
uma velha fiandeira e o uma gansa. O nome Mère l'Oye dos contos populares
passou a significar uma velha contadora de histórias e recebeu nomes diferenciados
em cada país para o qual foi traduzido. (COELHO, 1987, p. 69). Em relação à
publicação dos Contos de Perrault no século XVII, Jolles observa que narrativas do
mesmo gênero se disseminaram por toda a Europa. Segundo o autor, toda a
literatura do início do século XVIII foi influenciada por esse gênero, em substituição à
grande narrativa do século XVII, ou seja, o romance e a novela toscana. (JOLLES,
1971, p. 191).
É necessário abrir mais um parêntese para aludir à coletânea As Mil e uma
noites, que data do século XV e foi traduzida para o francês em 1704. Coelho
(1987), Jolles (1971), Bortolussi (1975) e Said (2007) atribuem a Antoine Galland a
tradução dessa coletânea. Coelho acrescenta que o trabalho do referido tradutor
ocorreu sete anos após a publicação dos contos de Perrault e, provavelmente por
46
Na obra de Coelho (1987, p. 66), foi traduzido como Histórias ou contos do tempo passado, com
suas moralidades Contos da minha Mãe Gansa. Na obra de Jolles (1971, p. 190), foi traduzido
como Contos da Mãe Pata. Na obra de Philip (1998, p. 14), foi traduzido como Histórias ou contos
de tempos passados.
52
esse motivo, foi recebido pelos críticos e orientalistas com desconfiança e descrença
sobre a fidelidade da tradução, tendo em vista o desconhecimento dos textos
originais.
A coletânea conhecida como As Mil e uma Noites, traduzida por Richard
Burton, em 1894, constata a sua origem hindu e persa. O número mil em árabe
significa inumerável ou um número infinito. A representação da mulher como
colecionadora de livros e crônicas de poetas do passado e como leitora de livros de
ciência e medicina se apresenta em Sherazade que “era sábia, espirituosa, prudente
e de boa formação”, guardava a leitura em sua memória e recontava.
(BETTELHEIM, 1985, p. 108)
Sherazade sabia que corria risco de morte, suas narrativas ao rei Schariar
asseguravam-lhe a vida. Toda a noite contava ao rei histórias e façanhas de reis
antigos e lendas de povos distantes e em determinado momento interrompia a ação
para dar continuidade na noite seguinte, e assim sucessivamente. Instigar a
curiosidade do rei a mantinha viva. As narrativas de Sherazade encantaram o
público pelos episódios maravilhosos, repletos de transformações, de seres
fantásticos e de objetos gicos. A reversão do tempo, a supressão das leis
naturais revelou o fascinante mundo oriental (COELHO, 1987, p. 27).
Retoma-se ao “trabalho de redescoberta e recriação do maravilhoso”
realizado por Perrault. Pelo caráter dos argumentos dos contos selecionados por ele
para compilação, percebe-se que a maioria se referia a mulheres injustiçadas.
Bortolussi (1985) e Coelho (1987) atribuem essa preferência à simpatia e adesão à
causa feminista, da qual uma das líderes, Mlle ritier, era sua sobrinha. Nesse
sentido, possivelmente, Perrault não começou sua arte de contar o maravilhoso para
o público infanto-juvenil.
Exemplo dessa adesão ao feminismo é A paciência de Grisélidis, publicado
por Perrault em 1691. Grisélidis é decorrência da recriação em versos de um dos
mais remotos e conhecidos fabliaux do imaginário francês, que exacerba a
disposição de resignação da mulher frente às agonias infligidas pelo homem. Com
base em Brauner, M. Lahy-Hollebecque e Bettina Hurlimann, Bortolussi (1985, p. 25)
considera que Perrault tinha o objetivo de denunciar a corte. Por isso,
53
provavelmente, seus contos a princípio não se destinavam ao público infantil.
Acrescenta-se a isso que os contos de Giambattista Basile possuíam o mesmo
intento e seus personagens seriam reflexo da sociedade da época.
Anteriormente às publicações de Perrault, a escritora Mme D'Aulnoy (1650-
1705) publicou em 1690, de sua autoria, o romance História de Hipólito (1690), que
contém o episódio “História de Mira”, apresentando uma fada como personagem
central. Entre 1696 e 1698, oito romances foram publicados por Mme D'Aulnoy:
Contos de fadas, Novos contos de fadas e Ilustres fadas, O pássaro azul, A princesa
de cabelos de ouro, O ramo de ouro, O anão amarelo, O golfinho, O sapo
benevolente, igualmente destinados aos adultos, posteriormente modificados para a
literatura infantil.
De acordo com os aportes teóricos de Coelho (1987, p. 70), a delimitação
entre os contos para os adultos e mais tarde para as crianças ocorreu entre 1785 e
1789, com a publicação de Gabinete de fadas coleção escolhida de contos de
fadas e outros contos maravilhosos, com quarenta e um volumes e diversos autores.
A revolução francesa, ocorrida em 1789, foi o marco do desinteresse dos adultos
pelos contos de fadas, que passaram a encantar o público infantil.
De acordo com Almeida (2004, p. 205), no século XVIII, foi publicado na
Inglaterra um livro para o público infantil, pelo editor John Newbery (1713-1769), cujo
conteúdo se perdeu. Esse fato não permite ter conhecimento se foram histórias
escritas, compiladas ou adaptadas. Segundo esse autor, dois livros ingleses
destinados às crianças foram publicados ainda naquele culo: Robinson Crusoé
(1789), de Daniel Defoe (1660-1731), e As Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan
Swift (1667-1745). O autor considera que “o sortilégio de fantasia, de sabedoria,
edificação e misantropia, nessas obras, maravilharam a juventude pelas suas
ficções, e transformou em sonho a poesia e a dura realidade.” Foi publicado pela
primeira vez em Londres, em 1785, As aventuras do Barão de Munchhausen, escrito
por Rudolph Erich Raspe.
Coelho (1987) e Almeida (2004) consideram Hans Christian Andersen (1805-
1875), poeta e novelista dinamarquês, o verdadeiro criador da literatura infantil. Seu
livro Eventyr (1835) inclui contos infantis colhidos da literatura popular e contos
54
escritos por ele. Coelho (1987, p. 77) considera ainda que Andersen redescobriu a
literatura da memória do povo e instituiu uma nova literatura. Para essa autora, os
contos de Andersen
47
apresentam “o constante confronto entre o poderoso e o
desprotegido enfatizando a superioridade humana do explorado tendo em vista a
consciência democrática e cristã dos direitos iguais entre os homens, o ideal básico
do Romantismo”.
48
Entre as várias obras publicadas no século XIX citadas por
Coelho e por Almeida se inclui Alice no país das maravilhas
49
, sucesso de público
infantil publicado na Inglaterra em 1865, por Lewis Carroll (1832-1898).
Finalizo o capítulo considerando a correspondência entre Armin e Jacob,
citada por Jolles (1971, p. 186), com uma perspectiva mais abrangente do contexto
universal onde a obra a ser analisada se inscreve. Soma-se a isso a importância do
entendimento de que “nesse incentivo à invenção que Arnim o significado do
conto: se não nos obriga a voltá-lo a contar em termos atuais, o conto antigo perde
todo seu poder de atração”.
47
No sítio eletrônico http://hac.gilead.org.il, encontram-se os 168 contos atribuídos a Andersen,
dentre eles: “A princesa e a ervilha” (1835), “O menino atrevido” (1835), “O companheiro de
viagem” (1835), “O jardim do paraíso” (1838), “O anjo” (1844), “O patinho feio” (1844), A família
feliz” (1848), “Tudo no lugar certo” (1853), “O gargalo” (1858), “Dois irmãos” (1859), “A beleza da
forma e a beleza da mente” (1860), “A caneta e o tinteiro” (1860).
48
A fim de se obter informações aprofundadas sobre o Romantismo, consultar Coutinho, Afrânio O
movimento Romântico: In: A Literatura no Brasil. Direção: Afrânio Coutinho. Co-direção: Eduardo
de Faria Coutinho. São Paulo. Global. 2004. vol. 3. Essa fonte de pesquisa permite a
compreensão das características do movimento romântico: individualismo e subjetivismo; ilogismo;
escapismo; reformismo; sonho; fé; culto da natureza; retorno ao passado; pitoresco; exagero.
49
O público surdo tem acesso a essa literatura na Língua Brasileira de Sinais. Coleção Clássicos
da Literatura em LIBRAS/Português. Rio de Janeiro. Arara Azul. 2005.
CAPÍTULO II
TECIDO NA LÍNGUA DE SINAIS:
B-R-A-N-CA D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S
Abramos os olhos para experimentar o que não vemos, o que não mais veremos, - ou melhor, para
experimentar o que não vemos com toda (a evidência do visível) não obstante nos olha como uma obra (uma
obra visual) de perda. Sem dúvida, a experiência familiar do que vemos parece na maioria das vezes dar
ensejo a um ter: ao ver alguma coisa, temos em geral a impressão de ganhar alguma coisa. Mas a modalidade
do visível torna-se inelutável – ou seja, votada a uma questão de ser – quando ver é sentir que algo
inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é perder. Tudo está aí.
(Didi-Hubermann)
A contadora de história surda, antes de iniciar a narrativa na língua de sinais,
esclarece o público: “Vou contar uma história para vocês. É uma narrativa infantil:
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S.” A seguir, a narradora
apresenta as personagens ao público com o nome visual:
“Sou a Branca de Neve, uso um laço na cabeça. Sou muito meiga.”
56
“Sou a rainha má. Sou a mais bonita e vaidosa.”
“Sou o filho do rei. Um príncipe.”
“Mestre.”
“Feliz.”
57
“Atchim.”
“Dengoso.”
“Soneca”
“Zangado”
58
“Dunga”
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S
50
Era uma vez um castelo onde morava a rainha má. A pequena Branca de
Neve morava lá também. Era uma criança muito linda.
Um dia a rainha perguntou para o espelho mágico: “Me diga! Eu sou a
mais bonita de todas?”
O Espelho mágico respondeu: “Sim, você é a mais bonita de todas.” A rainha
ficou muito orgulhosa ao confirmar que era a mais bela do mundo.
O tempo passou e Branca de Neve cresceu.
A rainha perguntou de novo para o espelho mágico:
“Me diga! Eu continuo sendo a mais bonita de todas?”
O espelho respondeu: “Não! Branca de Neve é a mais bela.”
Ao ouvir isso a rainha ficou furiosa.
Enquanto isso, Branca de Neve estava alegremente arrumando o castelo.
Pegou um balde e foi buscar água no poço.
Enquanto trabalhava, cantarolava juntos aos passarinhos, Um príncipe
estava passando a cavalo quando ouviu umas vozes.
Desceu do cavalo e foi ver o que era. Se apaixonou na hora pelo que viu.
Pulou o muro e foi falar com ela.
Enquanto isso, Branca de Neve estava cantando e sonhando com um
príncipe para amar.
O príncipe se aproximou da Branca de Neve, que quando o viu fugiu
assustada e se escondeu dentro do castelo.
Subiu as escadas até a varanda para poder ouvir as declarações que o
príncipe estava fazendo. Mas ficou com vergonha de aparecer porque estava
usando um vestido muito sujo. Mas não resistiu. Foi ver quem era e viu que era um
príncipe que estava cantando para ela.
Encabulada, Branca de Neve se apaixonou pelo príncipe.
50
Nessa narrativa transcrita na língua portuguesa, a cada vez que a palavra for apresentada em
letra maiúscula, significa que a contadora de histórias fez a soletração no alfabeto manual da
LIBRAS. A mesma palavra anteriormente soletrada no alfabeto manual poderá aparecer em letra
minúscula. Isso indica que não foi realizada a soletração, mas sim uma referência que permite a
contextualização. Na transcrição B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S, foi
realizada a soletração manual. Na transcrição Branca de Neve, foi apresentado o seu nome visual.
59
A rainha má viu os dois e ficou morrendo de raiva.
Foi direto para o trono e mandou um caçador matar a Branca de Neve. “Matar
a Branca de Neve?!” Perguntou o caçador, receoso.
“Eu estou mandando! E também prender o príncipe!”
Contra sua vontade, o caçador obedeceu.
Branca de Neve estava passeando no bosque.
Viu um bichinho e pegou no colo para acariciar, enquanto cantava distraída. O
caçador ficou observando de longe. Chegou mais perto em silêncio.
Pegou a faca e levantou o braço. Branca de Neve virou assustada, mas o
caçador não conseguiu matá-la.
“É melhor você fugir e nunca mais voltar para o castelo! Fuja logo!” Branca de
Neve saiu correndo pela floresta até tropeçar e cair chorando.
Muitos animais apareceram. Um coelho, um passarinho e um esquilo
chegaram perto para ver quem estava chorando.
Quando Branca de Neve levantou a cabeça os animais se espalharam.
“Venham aqui. Quero ser sua amiga!” Falou Branca de Neve. Os animais voltaram
para perto.
“Por favor, preciso de uma casa para morar!” Os animais saíram andando e
ela foi junto. No meio da floresta, atrás de umas árvores, viu uma casa, bem
pequenina.
Ela foi lá e bateu na porta. Ninguém atendeu.
Resolveu entrar e encontrou tudo bagunçado. Viu uma mesa e cadeiras bem
pequeninas. “Mas que bagunça e sujeira!”
Pediu para os passarinhos ajudarem-na a limpar a casa.
Trabalharam até ficar tudo limpinho. Enquanto preparava a comida, Branca de
Neve sentiu-se cansada.
Resolveu subir até os quartos para dormir. Chegando lá, viu várias caminhas,
cada uma com um nome.
Ela se deitou nelas e dormiu.
Enquanto isso lá na floresta, os sete anões trabalhavam cortando árvores.
O Mestre olhou no relógio e viu que já era tarde.
Chamou os outros anões para irem embora. Voltaram para casa cantando:
“Eu vou, eu vou, para casa agora eu vou...”
Ao chegar em casa, viram que havia velas acesas lá dentro.
Assustados, cada um se escondeu em um canto. Quando viram que nada de
estranho estava acontecendo, se juntaram de novo e combinaram de entrar com
muito cuidado.
Abriram a porta e levaram um susto. A casa estava arrumada!
Zangado passou o dedo pelo móvel e exclamou: “Estudo limpo!” E
foram pegando as coisas para verem se aquilo era verdade mesmo. Foi
quando ouviram um barulho e viram pássaros fugindo.
Os anões se reuniram e concluíram que o barulho vinha lá de cima, do quarto.
Alguém tinha que ir ver o que era. Todos olharam para o Dunga que,
assustado, perguntou: Eu? Subir lá no quarto? “Vai lá!” Mandaram os outros anões.
Morrendo de medo, Dunga subiu as escadas em silêncio.
Abriu a porta devagar, justo quando Branca de Neve se mexeu.
60
Apavorado, Dunga desceu correndo as escadas e trombou nos outros anões
que ficaram assustados com o desespero de Dunga. Dunga não conseguia falar,
mas fez gestos de chifres e garras. Os outros anões ficaram desconfiados e
resolveram ir todos juntos ver o que realmente estava lá em cima. Devagar, subiram
as escadas, cada um com um pedaço de pau na mão.
Mestre puxou a coberta e Branca de Neve se mexeu de novo.
Ele ia bater nela, mas antes viu que era apenas uma linda moça.
Ao -la, Mestre e os outros anões ficaram em dúvida sobre o que fazer.
Nisso, Branca de Neve acordou e os anões se esconderam atrás da cama. Ela os
achou uma gracinha: eram sete anõezinhos.
“Quem são vocês?” perguntou. Desconfiados, os anões levantaram a
cabeça. “Por favor, deixem eu morar aqui! Eu fugi porque eles querem me matar. Se
eu ficar, eu prometo que ajudo a cozinhar e a limpar a casa.”
Depois de pensar bem, Mestre aceitou. Mas Zangado logo falou: “Não quero
ela aqui!” Os outros anões intervieram e convenceram Zangado a deixá-la ficar.
“Quem é você?” Perguntou Branca de Neve.
“Eu sou o Mestre.”
“Eu sou o Feliz.”
“Eu sou o Atchim.”
“Eu sou o Dengoso.”
“Eu sou o Zangado.”
“Eu sou o Soneca.”
Esse aqui, é quem? Perguntou Branca de Neve.
“Ele é o Dunga,” respondeu um outro anão.
De repente, Branca de Neve ouviu um barulho e foi correndo embaixo.
Levantou a tampa da panela quente e mexeu a comida. em cima os anões
sentiram o cheiro gostoso e desceram correndo para ver que chegava primeiro na
mesa.
Branca de Neve viu a bagunça e falou: “Parem com isso!”
Os anões pararam. “E vão lavar as mãos.”
“Minhas mãos estão limpas,” respondeu o mestre.
“Deixa eu ver,” falou Branca de Neve indo até o Mestre.
O Mestre mostrou as mãos que estavam imundas.
Envergonhados, todos foram lavar as mãos, menos o Zangado. “Eu não vou!”
disse ele olhando a mão.
“Ai meu Deus!” pensou Branca de Neve. Foi até ele e pediu:
“Por favor, vai lavar as mãos.Zangado nem respondeu, simplesmente ficou
de costas. “Por favor,” repetiu ela.
“O que eu posso fazer, ele não me obedece,” pensou.
Zangado deu a língua para ela e saiu da casa.
Do banheiro um dos anões teve uma ideia: “Vamos jogar o Zangado na
banheira cheia de água!” Foram discretamente até ele. De repente pegaram o
Zangado e jogaram na banheira.
Assustado, Zangado quase se afogou. Os anões sentaram-se à mesa e
começaram a devorar a comida. Branca de Neve viu aquilo e até se assustou.
61
“Calma! Que coisa feia! Que bagunça! Tem que comer direito!” Eles
obedeceram.
“Assim que se come!” falou Branca de Neve.
Enquanto isso, a rainha má mostrava uma caixa para o espelho mágico. “Aqui
dentro está a prova de que Branca de Neve está morta!” O espelho mágico
respondeu. “Não. Isso aí prova só que um animal está morto.”
Furiosa, a rainha má desceu as escadas e foi até o porão.
Jogou a caixa no chão e pensou no que fazer.
Pegou um livro de feitiçaria e procurou a receita para uma poção. Pegou os
ingredientes e misturou tudo nos tubos de ensaio. A poção borbulhava. Ela bebeu o
líquido e começou a se transformar. Se transformou em uma bruxa.
Depois procurou a receita para fazer uma maçã envenenada para matar
Branca de Neve. Preparou a poção no caldeirão e mergulhou a maçã dentro.
“Branca de Neve vai comer essa maçã e morrer envenenada!”
Pegou a maçã envenenada e colocou em uma cesta com outras maçãs. Pôs
a cesta no braço e saiu andando.
Mas antes de ir, foi ver no livro como o encanto podia ser quebrado. com
um beijo na boca. “Duvido que os sete anões descubram isso. Eles não sabem
nada!”
A bruxa pôs a cesta no barco e saiu remando.
Enquanto isso Branca de Neve dançava e cantava com os sete anões.
Dançaram e cantaram tanto que Branca de Neve cansou e se sentou. Mas
logo o cuco tocou.
Branca de Neve disse: “chega”. “Já está na hora de dormir.”
Vamos, vamos. O Mestre falou: “Esperem ! A Branca de Neve dorme em
cima no quarto e nós dormimos aqui na sala.”
Branca de neve ficou sem graça, mas todos concordaram. Branca de Neve
deu boa noite e subiu para o quarto. Os anões também pegaram no sono.
A bruxa remou até o amanhecer.
Branca de Neve acordou os anões para eles irem trabalhar.
Antes de sair o Mestre falou para ela tomar cuidado e tomar conta de casa.
“Pode deixar,” respondeu ela e foi dando um beijo em cada um. O Dunga voltou três
vezes.
Antes de receber o beijo o Zangado até se arrumou! Ele fingiu estar zangado
por Branca de Neve tê-lo beijado, mas no fundo ficou feliz.
E assim os anões foram para a floresta trabalhar e Branca de Neve começou
a preparar a comida.
Enquanto trabalhavam na floresta, um dos anões teve a ideia de fazer uma
cama para Branca de Neve. Os outros gostaram da ideia e começaram a construir a
cama.
Na casa, Branca de Neve continuava a cozinhar.
A bruxa apareceu na janela e Branca de Neve se assustou.
Os passarinhos fugiram, mas quando viram que era a bruxa a atacaram.
Bicaram a bruxa até ela cair.
Branca de Neve saiu da casa e foi proteger a bruxa. “Parem! Não façam isso!
Tadinha.” Ela ajudou a bruxa a se levantar.
62
Branca de Neve continuava a consolar a bruxa, que lhe ofereceu a maçã
envenenada. “Tome essa maçã! Coma!”
Branca de Neve falou: “Não, não.” Mas acabou não resistindo.
Deu uma profunda mordida e caiu no sono profundo.
Os passarinhos foram avisar os anões, enquanto a bruxa comemorava:
“ganhei! Agora sou a mais bela de todas.”
Ao ir embora viu os anões correndo e fugiu em direção ao penhasco. Os
animais e os anões foram atrás.
Ao chegar lá no alto tentou empurrar uma pedra enorme neles, mas de
repente um raio caiu do lado dela derrubando-a do penhasco. Ela caiu de cima e
morreu.
Os anões chegaram no topo e viram a bruxa morta.
De repente, lembraram da Branca de Neve e foram correndo atrás dela,
preocupados. Ela estava caída no chão.
Todos ficaram muito tristes.
Zangado ficou arrependido de tê-la tratado mal.
Colocaram Branca de Neve em um caixão de cristal, cheio de flores e se
ajoelharam em volta, tristes.
O príncipe conseguiu escapar da prisão e fugiu a cavalo.
Quando viu os anões, desceu do cavalo e perguntou: “O que aconteceu? Ela
está morta?”
“Sim, ela está morta.” Respondeu um dos anões.
Desolado, o príncipe beijou-a na boca.
Branca de Neve acordou e não entendeu onde estavam nem porque estavam
todos cabisbaixos. Quando o príncipe levantou a cabeça, e viu que ela estava
acordada e a tirou do caixão. Se abraçaram felizes. Um dos anões viu e cutucou os
outros. Ficaram muito felizes.
Branca de Neve e o príncipe viveram felizes para sempre.
F-I-M.
Desejo apresentar ao leitor a língua de sinais como celebração, luta e
resistência de um povo subalternizado no que diz respeito à língua e à literatura.
Pretende-se apontar o caminho da “colonialidade do poder enfatizando a diferença
colonial em direção à língua e à literatura”.
51
De acordo com Quijano (1997) a colonialidade do poder se institui por meio:
da classificação e reclassificação da população do planeta; de uma estrutura
operacional institucional para administrar as classificações, ou seja, o aparato do
Estado, universidades, igreja, etc.; espaços definidos e adequados para objetivos;
51
Mignolo (2003, p. 306).
63
por fim, de uma perspectiva epistemológica para articular o sentido e o perfil da nova
matriz de poder e a partir da qual canalizar a nova produção do conhecimento. A
colonialidade do poder envolve todo o globo, inclusive a divisão continental África,
América, Europa e organiza a produção de conhecimento e seu aparato
classificatório.
52
O eurocentrismo torna-se, portanto, uma metáfora para descrever a
colonialidade do poder, na perspectiva epistemológica em que o saber e as histórias
locais européias foram vistos como projetos globais, e envolve desde o sonho de um
orbis universalis christianus até a crença de Hegel em uma história universal,
narrada de uma perspectiva que situa a Europa como ponto de referência e de
chegada. A história universal contada por Hegel é uma história universal na qual a
maioria dos atores não teve a oportunidade de também ser narradores. (MIGNOLO,
2003, p. 41).
O primeiro capítulo, intitulado “O negro e a Língua”, do livro de Franz Fanon
Black Skins, White Masks (1952), ressalta a valorização do fenômeno da língua,
para explicar o início de sua obra por esse pico “que nos proporciona um dos
elementos da compreensão que o negro tem da dimensão do outro. Pois está
implícito que falar é existir absolutamente para o outro”
53
. Fanon argumenta que “a
mímica colonial consistia, no primeiro contexto, em adquirir status de branco ao falar
bem o francês.”
54
De acordo com Poblete (1997 apud MIGNOLO, 2003, p. 299) a imposição de
uma língua nacional e de uma literatura nacional foram estratégias de dominação
para assegurar a “construção de comunidades imaginadas homogêneas”, trazendo à
questão da língua centrada na fala ao “laço que prende a língua à boca, à garganta,
52
Quijano (1997, citado por Mignolo, 2002, p. 41).
53
Mignolo (2003, p. 324) esclarece que a obra de Fanon norteia os povos negros das Antilhas
Francesas e se refere à língua metropolitana e às diferenças entre línguas faladas pelos
habitantes da Martinica e de Guadalupe, no Caribe, e as línguas faladas pelos habitantes das
Antilhas e do Senegal no contexto da diáspora africana.
54
Fanon (1052, citado por Mignolo, 2002, p. 325).
64
ao peito
55
. Nesse sentido, a língua de sinais foi excluída de ideologias nacionais
que se projetaram para a constituição de um todo homogêneo, abarcando a língua,
a literatura, a cultura e o território. Por conseguinte, provavelmente, a insistência de
ensinar os sujeitos surdos a falar teria uma profunda relação com elevá-los ao status
de pessoa ouvinte, por conseguinte, existir.
As declarações de Mignolo (2003) de que os padrões linguísticos e filosóficos
do século XX foram coniventes com a expansão colonial são importantes para a
compreensão da uniformização “do sujeito falante” tendo em vista o projeto de
consolidação de línguas nacionais. Ao comparar “as práticas linguísticas e a política
pública” do início dos séculos XVI e XVII com a atual fase da “colonialidade global”,
o autor menciona uma mudança de orientação relacionada às línguas como forma
de controle e dominação colonial, tendo em vista que, a partir do século XX, o
processo colonial inicial de “modernizar, cristianizar e civilizar” altera-se em um
projeto para “mercadizar” o mundo.
Avalia ainda o autor que, para a concretização desse plano, o domínio global
passa a exigir a eficácia do movimento de modernização, a comercialização, o
estímulo e o encorajamento ao consumismo, tendo em vista a abertura de novos
mercados, consequentemente ampliando a oferta de frentes de trabalho e
intensificando os processos migratórios. Além das questões indicadas, Hall (2003,
p. 55) menciona que calamidades naturais, mudanças ecológicas e climáticas,
guerras, conquistas, opressão do trabalho, colonização, escravidão, semiescravidão,
coerção política, guerra civil e subdesenvolvimento econômico, dentre outras razões,
ocasionam as migrações.
A desqualificação e a repressão de numerosas línguas serviam a um projeto
de línguas nacionais/imperiais impostas pelo “uso de um código uniforme”,
constituído por comodidade administrativa para “governar um país ou um império”
56
;
a subalternização abrangeu línguas, povos e territórios. A ngua de sinais e o povo
55
Tomo de empréstimo esse termo a Zumthor (2007, p. 43).
56
As citações são empréstimos a Coulmas (1988), citado por Mignolo ( 2003, p. 303).
65
surdo incluem-se nessa análise, e o território aqui será considerado o local que
habita. O processo migratório permitiu o encontro desses sujeitos.
Possivelmente o “código uniforme” coligado à comodidade administrativa,
repercutiu mundialmente para surdos/as. Reporto-me ao Congresso Internacional de
Educadores Surdos em Milão ou Congresso de Milão, ocorrido em 1880, do qual
participaram cerca de cento e oitenta e dois representantes de diversas nações. O
objetivo era avaliar a educação de surdos/as e estabelecer em qual língua seria a
aprendizagem desses sujeitos – língua oral ou língua de sinais. As pesquisas acerca
desse evento evidenciam as estratégias de dominação: permitiu-se o voto dos
professores/as ouvintes, mesmo havendo a presença de professores/as surdos/as.
A proposta de que os sujeitos envolvidos deveriam ser educados na língua oral foi
vencedora. A deliberação da educação na língua oral incluiu a imposição da fala e a
proibição da língua de sinais mundialmente. Considero o resultado do referido
acontecimento como a legitimação do código uniforme mundial da língua falada
57
.
As considerações teóricas de Hall (2005, p. 49) permitem compreender que a
concepção de uma cultura nacional ocasionou protótipos de alfabetização
universais, com vistas a uma única língua vernacular, tendo em vista a dominação
da comunicação em toda a nação, a homogeneização cultural e a conservação de
instituições culturais nacionais; por conseguinte, um sistema educacional nacional.
Após o Congresso de Milão, providências imediatas foram adotadas para
assegurar as deliberações desse acontecimento. As escolas de surdos/as,
consideradas um lugar de convivência facilitador da comunicação pela língua
proibida, foram extintas. A coibição da língua se inseria em um projeto mais
abrangente: o impedimento do casamento entre esses sujeitos, para evitar o
nascimento de crianças surdas permite inferir que se punha em ação um plano de
aniquilamento de surdos/as.
Segundo Mignolo (2003, p. 303), no período de 1945 a 1989, ocorreu uma
resignificação das línguas e dos territórios em decorrência da reorganização
57
Este parágrafo e o imediatamente posterior estão embasados em: Sacks. (1990, p. 44), Sánchez
(1990, p. 67). Silva (2006, p. 26).
66
geográfica mundial. A intensificação migratória instituiu um novo formato para
sustentar a conveniência da ligação entre línguas e territórios. Em oposição a essa
ideia, os estudos de área instituíram uma divisão do trabalho científico, cabendo aos
pesquisadores do Primeiro Mundo a finalidade de assegurar sua hegemonia
econômica e tecnológica. Mediante essa conformação, as línguas deveriam ser
agregadas a “culturas” e “territórios”, ocasionando a necessidade de entender
“outras línguas” de um lado e “culturas estrangeiras” de outro. Abranger a diferença
e “as línguas e saberes subalternos” passa a ser o problema vital, tendo em vista
que estão envolvidas a atitude do sujeito e a noção de que línguas e saberes são
compreensíveis.
Os referenciais teóricos do parágrafo anterior são importantes para apreender
o início de estudos da linguística sobre a língua de sinais. Capovilla (2004, p. 223),
Quadros e Karnopp (2004, p. 29) e Sánchez (1990, p. 23) indicam que a hegemonia
da língua oral persistiu na linguística até o início da cada de sessenta do século
XX, quando William Stokoe (1919-2000) pesquisou, concluiu e comprovou para a
comunidade científica dos Estados Unidos que a Língua de Sinais Americana é uma
língua natural e os sinais são símbolos abstratos, complexos e com estrutura
interna. As referidas autoras opinam que as conclusões de Stokoe foram
fundamentais para que linguistas em âmbito mundial iniciassem estudos sobre a
estrutura linguística das línguas de sinais em seus respectivos países. A partir de
então, Quadros e Karnopp consideram a mudança de paradigma em relação a seis
mitos apresentados a seguir: 1. A convicção de que a língua de sinais seria uma
mescla de pantomima e gesticulação concreta incapaz de traduzir conceitos
abstratos. 2. O crédito da universalidade da língua de sinais. 3. A carência de
organização gramatical a alocava em uma posição inferior às línguas orais. 4. A
consideração de que se tratava de um sistema de comunicação superficial, com
conteúdo reduzido e com qualidade inferior ao sistema de comunicação oral. 5. A
comunicação gestual voluntária de pessoas ouvintes teria originado a língua de
sinais. 6. Por sua organização espacial, seriam representadas no hemisfério direito
do cérebro que é responsável pelo processamento de informação espacial sendo o
hemisfério esquerdo, responsável pela linguagem.
67
As produções de histórias infantis na língua de sinais revela a sua importância
para o povo surdo e é onde se percebe todo o potencial da língua. Semelhante ao
de sentimento de Arguedas (1962, p. 5 apud MIGNOLO, 2003, p. 307), ao propor:
“provaremos que o quíchua é uma língua na qual é possível escrever com a mesma
beleza e com um efeito tão comovente como em qualquer outra língua aperfeiçoada
por séculos de tradição literária”, as produções dos contos infantis na língua de
sinais desconstroem “a ideologia monolingual e a hermenêutica monotópica da
modernidade e do nacionalismo”
58
, demonstrando a beleza, o sentimento, o
entusiasmo e o acesso ao conhecimento na sua língua
59
, acrescenta-se o orgulho
de pertencer a uma minoria linguística, a difusão dos valores culturais para a
manutenção da identidade de grupo, a possibilidade de literatura produzida na
língua de sinais e talvez “o resgate da identidade que aprendeu a desprezar”.
(MIGNOLO, 2003, p. 308).
Perlin e Miranda (2003), Skliar (1998), Lane (1992) e Sánchez (1990)
consideram os surdos/as como uma minoria linguística e a língua de sinais é uma
herança cultural desses sujeitos. Sacks (1990) se refere aos surdos como membros
de uma comunidade linguística cuja comunicação envolve a linguagem visual.
Quadros e Karnopp (2004, p. 47) esclarecem que a denominação “modalidade
visual” ou “espaço-visual” significa a informação linguística auferida pelos olhos e
produzida pelas mãos.
O reconto e a criação artística de B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E
A-N-Õ-E-S na ngua de sinais envolveram uma tradução. Segundo Arrojo (1992,
p. 78) toda tradução realizada, mesmo de caráter simples e despretensiosa,
apresenta marcas de sua realização, ou seja, o tempo, a história, as circunstâncias,
os objetivos e a perspectiva do tradutor; portanto, não tradução imparcial ou
literal. Ainda segundo a autora, inevitavelmente toda tradução é uma leitura ou uma
58
Termo emprestado de Mignolo. op. cit. p. 311.
59
No caderno pedagógico Aprendendo a Língua Brasileira de Sinais como segunda língua. Nível
Básico, a língua materna se refere a surdos/as que nascem em família surdas, onde a língua
comum é a LIBRAS. Surdos/as que nascem em famílias ouvintes onde não comunicação em
LIBRAS entende-se como língua natural.
68
interpretação que envolve a atividade linguística e a ação humana. Quando se
desmascara o anseio de estabilidade e de transcendentalidade que enfatiza a
maioria das concepções de significado, a tradução deixa de ser um embaraço
teórico e pode tornar-se um marco inicial para a reflexão mais ampla acerca de
questões de linguagem.
Os referenciais teóricos de Capovilla (2004) Quadros e Karnopp (2004), Skliar
(1999), Fernandes (2003) e Lodi (2005) explicitam que a Língua de Sinais é a
primeira língua do sujeito surdo. Tecido na Língua de Sinais, B-R-A-N-C-A D-E
N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S é uma produção que implica na tradução de um
texto escrito para um texto sinalizado. Os contadores de histórias “partem do tema e
das imagens das histórias, com um discurso próprio da LIBRAS”.
Para refletir sobre o “discurso próprio da LIBRAS”, recorre-se à importância
de indicar as diferenças que envolvem a tradução da língua portuguesa escrita para
a língua brasileira de sinais. Sacks (1990, p. 46), ao se referir às línguas de sinais,
afirma que estas possuem sintaxe, gramática e semântica; além disso, são dotadas
de um estilo que as diferencia da língua falada ou escrita. Nesse sentido, considera
o autor, não é possível a tradução palavra por palavra ou frase por frase de uma
língua falada em língua de sinais.
Qual o significado das considerações de Sacks sobre a diferença entre a
língua de sinais e a língua falada ou escrita? Qual o ensejo de esse autor
praticamente alegar a impossibilidade de traduzir uma língua falada palavra por
palavra, frase por frase para uma sinalizada?
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S se trata de uma
elaboração que não podeser dissociada da tradução de um texto escrito para um
texto sinalizado. Nesse sentido, Berman (2007) acena para várias questões
pertinentes à questão da tradução. O autor substitui a dúplice “teoria e práticapor
“experiência e reflexão” e afirma que “a tradução pode perfeitamente passar sem
teoria, não sem pensamento”. A consciência do exame da tradução e a “reflexão da
tradução sobre si mesma a partir de sua natureza de experiência” o autor denomina
tradutologia, a qual não deve instituir uma teoria da tradução, mas evidenciar que
não pode haver teoria da tradução.
69
[...] a tradutologia não ensina a tradução, mas sim, desenvolve de maneira
transmissível (conceitual) a experiência que a tradução é na sua essência
plural...ela não concerne somente aos tradutores, mas a todos os que estão
no espaço da tradução. Isto é, todos nós, considerando que da tradução,
ninguém está livre. (BERMAN, 2007, p. 24).
Na linha teórica do autor, a tradução não se reporta exclusivamente aos
tradutores, mas a todos os que se encontram nesse ambiente. Portanto, sempre que
houver surdos/as e ouvintes em um espaço onde há o reconhecimento da ngua de
sinais, haverá tradução, seja por intermédio de um intérprete de língua de sinais,
seja por um ouvinte bilíngue, seja incluo por experiência própria por sujeitos
meio-surdos.
Berman (2007, p. 25) aponta três alegorias, as quais denominou etnocêntrica,
hipertextual e platônica, que considera presentes na tradução ocidental, na medida
em que anulam o caráter ético, poético e pensante da ação de traduzir. Pela
“analítica da tradução”, o autor propõe extingui-las, porém alerta de que esse ato
não deve se consolidar por mera intervenção “ideológica ou teórica”. Um exame
indicativo do que necessita ser extinto deve preceder essa ação. Segundo Berman
(2007, p. 25), “a analítica da tradução critica o etnocentrismo, o hipertextualismo e o
platonismo e em aversão ao formato canônico do traduzir. Simultaneamente propõe
a tradução ética, a tradução poética e a tradução pensante”.
Eco (2007, p. 19) considera que a tradução não se resume a uma via entre
duas línguas; ela envolve também duas culturas. O tradutor deve atentar que, além
dos princípios estritamente linguísticos, os elementos culturais, na acepção mais
ampla do termo. Na tradução de B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E
A-N-Õ-E-S da língua portuguesa para a língua brasileira de sinais, estão envolvidos
artefatos culturais viso-espaciais: a configuração das mãos, a locação das mãos, os
movimentos, as expressões corporais e faciais.
A LIBRAS possui uma estrutura gramatical. Seus principais parâmetros
fonológicos apontados por Brito (1990, p. 32 apud QUADROS E KARNOPP, 2004,
p. 54) são: configuração das mãos, locação da mão e movimento. As explicações
das autoras permitem compreender que os referidos parâmetros se complementam.
70
Os movimentos possuem um compasso coligado ou não às expressões faciais. A
articulação dos sinais pode ser desempenhada com uma ou com as duas mãos. Um
mesmo sinal pode ser articulado com a mão direita ou com a mão esquerda.
Brito e Langevin (1995 apud QUADROS E KARNOPP, 2004, p. 53)
apresentaram, após estudos da LIBRAS, 46 configurações de mãos. Locação de
mãos é o local onde a palavra sinalizada se realiza, em geral na frente do corpo, em
um espaço neutro ou em uma região do corpo, cabeça, tórax, braço. O
deslocamento da mão no espaço onde se realiza a palavra sinalizada é denominado
de movimento e envolve uma multiplicidade de configurações e direções.
Em se tratando da nação brasileira, homens e mulheres ouvintes se
comunicam pela fala cuja língua oficial é a portuguesa; homens surdos e mulheres
surdas se comunicam pela língua de sinais. As referências de Mignolo (2003, p. 323)
indicando o inglês, o francês e o alemão como línguas hegemônicas do período
moderno permitem pensar que, tal como se deu com as línguas quíchua, catalão,
crioulo, nahuatl e muitas outras, a língua portuguesa foi igualmente subalternizada.
Nesse sentido é interessante refletir sobre a língua menor utilizada para
subalternizar outra língua, ou seja, a imposição da língua portuguesa contribuiu para
a depreciação da língua brasileira de sinais e, consequentemente, dos sujeitos que
através dela se comunicam.
A contadora de histórias inicia a narrativa sinalizando que a história se passou
muitos anos. treze “personagens falantes”, Branca de Neve, o príncipe, a
rainha má, o espelho, os sete anões, a bruxa e o caçador. A contadora de histórias
atenta para a espacialidade, ou seja, o/a espectador/a surdo/a deve ter subsídios
para perceber quem está falando. Toda a informação é recebida pelos olhos através
da sinalização da contadora.
Em relação à espacialidade, a pergunta na língua portuguesa “Quantas
pessoas moram na sua casa?”, na língua de sinais seria realizada indicando os
dedos um a um da mão (direita ou esquerda). O sinalizador declara “Dentro da sua
casa vive você, seu pai...”. Então o/a surdo/a completa também contando nos dedos
da mão: mãe, irmã, ou seja, quatro pessoas. A temporalidade e a espacialidade
envolvem a visualidade.
71
Ao iniciar uma conversa com surdos/as é preciso atentar para a questão do
tempo da ação. Os verbos na língua de sinais não são flexionados (não trazem
marcação temporal)
60
, é necessário situar na língua brasileira de sinais se a ação
ocorreu no passado, no presente ou no futuro. Por exemplo, considere-se, na língua
portuguesa, a frase “Eu fui ao cinema”. O verbo ir, flexionado, indica que a ação
foi realizada. Na língua de sinais, a ordem das informações será: passado cinema
– eu – ir.
O contato constante com sujeitos surdos permitiu observar que o nome visual
envolve o nome próprio na certidão de nascimento. Interpretei para surdos/as em
entrevistas, dizendo que após esse “batismo”, o nome visual não pode mudar, pois
se assemelha ao nome que consta na carteira de identidade. Percebi que a questão
envolve características pessoais e visuais. Outro fato observado é que, em geral, o
nome visual envolve configuração de mãos, locação e movimento. Porém,
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S trouxe a reflexão de que,
provavelmente, na forma artística há o acréscimo da expressão facial.
A configuração de mão do nome visual se movimenta em direção a uma parte
do corpo ou para fora do corpo. No meu nome visual, a configuração de mão R toca
o espaço logo abaixo do olho direito e arrasta-se em um movimento curto para fora
do rosto. O nome visual de uma surda conhecida de São Paulo é a configuração de
mãos em M e mão direita com a palma voltada para baixo deslocando-se em direção
ao braço esquerdo, em um movimento que inicia no pulso em direção ao antebraço.
A explicação para esse nome visual, segundo ela, é que era obesa quando lhe
atribuíram esse nome. O nome visual da minha vizinha é a configuração de mão em
R, com a o direita passando na região entre a testa e a boca, o que indica que
envolve a inicial de seu nome e seu cabelo louro. Até o presente momento não
conheci uma pessoa cujo nome visual envolva a expressão facial.
O primeiro contato de uma pessoa com a comunidade surda não significa que
lhe será imediatamente conferido um nome visual. O exercício do olhar, da
característica e do jeito de ser, requer o convívio. A experiência com a comunidade
60
Quadros e Karnopp (2004, p 127-204), aprofundam a pesquisa.
72
surda me levou a perceber que alguns sujeitos ouvintes que têm contato com surdos
ainda não possuem um nome visual. Nesse caso, enquanto não lhes for atribuído o
nome visual, a referência à pessoa se dará ainda, por seu nome na soletração do
alfabeto manual da LIBRAS.
Surdos/as e pessoas ouvintes, num primeiro contato, revelarão o nome visual
e o nome próprio. Após as apresentações formais, saberão que a realização de
determinado nome visual indica a pessoa a quem se faz referência
61
. Um fato
curioso ocorreu no curso do qual fui aluna. Após seis meses de contato com a
comunidade surda, a professora externou, no último dia de aula, sua surpresa de
não possuir um nome visual. O motivo pelo qual isso acontece seria um bom objeto
de pesquisa.
A atribuição do nome visual na comunidade surda
62
é uma ocasião esperada
pelos/as alunos/as com ansiedade. Mais ou menos uns dois meses após o início das
aulas do curso de LIBRAS, chegou o anunciado momento. Antes de atribuir o nome
visual aos/às alunos/as, o professor realizou uma dinâmica de grupo que descrevo:
Primeiro foram escritos em pedaço de papel os nomes das pessoas presentes e que
ainda não possuíam o nome visual
63
. A seguir, os nomes foram depositados em uma
sacola e misturados. Cada aluno/a presente retirou o papel da sacola e verificou se
não era o próprio nome. Caso isso ocorresse, devolveria à sacola e sortearia outro.
Terminado o sorteio, o professor explicou que o exercício consistia em
observar no/a colega, os adornos, as expressões faciais e corporais, o corte do
cabelo ou algo a ser enfatizado. Após o tempo concedido para a realização desse
exercício que envolve o olhar, foi formado um círculo na sala com os presentes e
cada um descreveu uma ou mais características de seu/sua sorteado/a. Geralmente
foi possível perceber a quem o aluno estava se referindo. Muitas vezes, os/as
61
A fonte de pesquisa para essas explicações é o caderno pedagógico “Aprendendo Libras como
segunda língua, Nível Básico” CEFETSC//SJ/NEPES, disponível em
www.sj.cefetsc.edu.br/~nepes.
62
Eu me permitirei utilizar o termo nome visual.
63
Há pessoas ouvintes que, antes de iniciarem o curso, já têm contato com surdos e já possuem seu
nome visual.
73
alunos/as se surpreenderam com a observação do professor e dos colegas de
características que não percebiam em si próprios.
Ainda em relação à referida aula, o aluno/a poderia concordar ou discordar
daquele nome visual. Havendo discordância, outro seria atribuído até que houvesse
concordância. Por exemplo, o primeiro sinal proposto pelo professor não foi por mim
aceito. Na época, eu usava tranças africanas no cabelo e lhe respondi que aquela
condição visual certamente seria alterada. Após uma conversa chegamos a um sinal
que me contentou e que expliquei na introdução da presente pesquisa.
O nome visual das personagens de B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E
A-N-Õ-E-S envolve configuração de mãos, locação, movimento e expressão facial.
Esse último fator foi enriquecedor para a pesquisa, tendo em vista que, nessa forma
artística, o nome visual das personagens envolve a expressão facial:
a testa: franzida ou não;
as sobrancelhas: para cima; retas; para baixo; para dentro; para cima e
para o lado de fora; para baixo e para o lado de fora;
os olhos: abertos; espremidos; fechados; meio abertos; meio fechados;
bem abertos;
o olhar: para cima, para um lado, para os lados, para baixo e para um lado,
para baixo; para frente; para frente e para um lado; para os lados; para
trás; para um lado;
as bochechas: estufadas; não estufadas; sugadas; tensas; toda a face se
move para a direita; soprando o ar; expirando; inspirando; ar dentro da
boca; a língua passa na bochecha direita.
o nariz: franzido; se mexe;
a boca: reta; fechada e projetada para frente; sorrido fechado; sorriso
aberto; metade sorriso e metade reta; triste fechada; triste aberta; aberta;
aberta e projetada para frente; aberta e franzida ao redor; oval e aberta;
bocejo; retangular e aberta horizontal; retangular e aberta vertical; beijo;
beijo com lábios projetados; tensa; tensa projetada para frente; tensa
puxada para trás; lábios sugados; lábio superior sobre o inferior; lábio
inferior sobre o superior; dobra ao redor da boca; dobra ao redor do lado
74
direito da boca; lado direito da boca erguido; ambos os lados da boca
erguidos;
a língua: para cima com a boca aberta; visível dentro da boca; para baixo;
metade da língua para cima; com a boca fechada; visível dentro da boca;
para cima; para fora, no centro; visível dentro da boca, no centro;
os dentes: superiores tocando o lábio inferior; inferiores tocando o lábio
superior; superiores tocando a língua; mordida do centro do lábio; mordida
do lado esquerdo do lábio.
Soma-se aos indicados acima: face; expressão de pergunta; orelha; pescoço;
atrás da cabeça; expressão radiante; cabelo; queixo para cima e queixo para baixo.
Todas as personagens desse reconto possuem um nome visual, que é
representativo para o espectador surdo/a. Provavelmente os nomes visuais
atribuídos a cada personagem tenham origem na imagem do filme assistido pelos
envolvidos na produção do objeto desta pesquisa. Não necessariamente todas as
expressões faciais indicadas acima se apresentam nas personagens, tampouco se
trata de pormenorizar cada uma, e a estratégia utilizada será a de apresentar na
escrita de sinais. A cada vez que a contadora de histórias realizar um dos nomes
visuais descritos abaixo, o(a) espectador(a) saberá de que personagem se trata:
Branca de Neve
Expressão facial: sorridente. Palma da mão direita para cima passa um pouco atrás
da cabeça, curvando para a direita e se deslocando para o lado esquerdo.
Mão esquerda horizontal fechada, palma da mão para baixo, apontando para a
direita horizontal aberta, palma para cima. Passar o dorso dos dedos direitos sobre o
antebraço esquerdo, do cotovelo em direção ao pulso.
75
Rainha má
Expressão facial: sobrancelhas levantadas. Mão fechada com o dedo anular para
cima passa acima do lado direito da sobrancelha. As sobrancelhas estão franzidas
para dentro. A seguir é realizada a soletração manual M-Á com a mão direita.
Príncipe
Mão direita à frente da testa, mão esquerda atrás da cabeça. O príncipe usa um
chapéu com pontas. As duas mãos em C nas posições indicadas se movimentam
simultaneamente e se fecham na frente e atrás da cabeça.
Mestre
Expressão facial: sorridente. Mão direita com o dedo médio e indicador dobrados na
segunda articulação, palma aponta para o lado direito em direção à testa. Os dois
dedos, na configuração de mão indicada, tocam o lado direito da testa e, em um
movimento curto, se afastam. Esse nome visual significa que se trata de uma
pessoa inteligente.
Feliz
Expressão facial: radiante. Mão direita na configuração de mão na letra F da escrita
de sinais. Palmas das mãos direita e esquerda voltadas para a região próxima ao
76
ombro e logo à frente a cada lado da cabeça. Baixar as mãos com um movimento
ondulatório.
Atchim
Expressão facial: boca aberta, nariz levemente franzido, sobrancelhas franzidas.
Mão direita horizontal aberta, palma da mão para dentro, dedos ligeiramente
separados. Mover a mão em direção ao nariz. Inclinar a cabeça e a mão para frente,
franzindo a testa.
Dengoso
Expressão facial: olhos fechados. Mão esquerda horizontal aberta, palma para
baixo, dedos para a direita; mão direita horizontal aberta, palma para baixo, dedos
para a esquerda. Passar a palma direita sobre o dorso da mão esquerda duas
vezes, lentamente.
Soneca
77
Expressão facial: olhos meio fechados. Mão direita em L, palma para frente, dedo
indicador para a esquerda, ao lado direito do olho. Tocar a ponta do indicador na
ponta do polegar, fechando os olhos simultaneamente, duas vezes.
Zangado
Expressão facial: sobrancelhas contraídas para dentro do rosto. Mão aberta com a
palma voltada para o peito, os cinco dedos dobrados na junta média. Movimentar a
mão esfregando-a no peito para cima e para baixo.
Dunga
Expressão facial sorridente. Mãos direita e esquerda com os dedos indicador e
polegar em forma de C em direção às orelhas. As mãos se movimentam
simultaneamente para frente e para trás.
Toda a descrição a respeito do nome visual envolve o exercício de olhar o
outro. Para Masutti (2007, p. 86), o olhar é um significante que marca a relação do
sujeito surdo e impõe a tarefa da tradução um decifrar constante, que gera, por sua
vez, novas cifras de leitura. Aquilo que se quando se olha é modificado
profundamente, de acordo com a experiência cultural que se tem com a visão. Na
transcrição a seguir, a autora de forma poética, une o sentido da configuração de
mãos, da locação das mãos, do movimento e das expressões corporais e faciais, à
pertinência do olhar:
É preciso um olhar acurado e vigilante para o que se organiza e se articula
com o topo da cabeça, a testa, o rosto, as expressões, a parte superior e
inferior do rosto, os olhos, o nariz, a boca e a bochecha, o pulso, o queixo, o
braço, o antebraço, o pescoço e o ombro. As sobrancelhas franzidas, os
olhos arregalados, os lances dos olhos, as sobrancelhas levantadas, as
78
bochechas contraídas ou infladas, os lábios contraídos, o franzir do nariz, o
tronco inclinado para frente ou para trás, a cabeça projetada para frente ou
para trás e o balanceamento alternado dos ombros indicam que mais
sentidos articulados expressam aquilo que está à margem de uma lógica
centrada em torno da voz e do aparato sensorial de um corpo fragmentado
e tolhido em seus movimentos. (MASUTTI, 2007, p. 89)
Ao discorrer sobre a língua de sinais Masutti (2007, p. 89) diz que “a dança
sígnica da língua do corpo e no corpo” revela sua sensibilidade como ouvinte e seu
olhar, em forma de poesia, para uma língua sinalizada como veículo de
comunicação:
O formato da mão assume inúmeras configurações nas línguas de sinais,
que geram sentidos, e, em uma intrincada sintaxe, elaborada no tempo e no
espaço, toma direções e movimentos arbitrados, conformando uma
profundidade linguística”. As mãos como articuladores primários se
movimentam no espaço em frente, ao lado e atrás do corpo. O lugar onde
este sinal é articulado, aliado ao formato de mão assumindo e o tipo e
movimento, estabelece o caráter distintivo da palavra. Sentidos saltam das
configurações de mãos que ganham diferentes formas, e nessa variação
fazer explodir a multiplicidade de palavras. Mesmas configurações de mãos,
mas movimentos com direções diferentes também indicam novas palavras.
Mesmas configurações de mãos, mesmos movimentos, mas sinalizações
em diferentes pontos do corpo ou do espaço abrem também distintas
significações.
Uma espécie de arquitetura corporal ganha forma com movimentos:
retilíneos, helicoidais, circulares, semicirculares, angulares que se alternam,
aproximam-se, separam-se, inserem-se e cruzam-se em interações
signicas. Alguns movimentos se ligam, agarram-se, outros tocam, esfregam-
se, outros apenas tocam em zonas de contato corpóreo. Os pulsos dobram
para cima e para baixo, e as mãos se abrem, fecham-se, curvam-se e
dobram-se simultaneamente. Os movimentos para vão para cima, para
baixo, para a direita, para a esquerda, para dentro, para fora, para o centro,
para a lateral inferior esquerda, para a lateral inferior direita, enfim para
específicos pontos referenciais construídos no espaço. Os movimentos têm
tensão, velocidade, ora contidos, ora contínuos, com frequência simples e
de repetição (MASUTTI, 2007, p. 89)
.
O discurso pós-colonial contribui para o entendimento das
(in)compatibilidades, das (in)determinações e das ambivalências que emergem a
partir dos entrecruzamentos culturais. No objeto da pesquisa, a língua portuguesa e
a língua brasileira de sinais se hibridizam. Ao considerar os sujeitos surdos como
sujeitos híbridos, argumento que a estrutura da língua brasileira de sinais está
atravessada pela língua portuguesa. Isso se acentua na soletração do alfabeto
79
manual como também no fato de que vinte e seis das quarenta e seis configurações
de mãos estão diretamente relacionadas com a representação visual do alfabeto da
língua portuguesa (BRITO, 1995, p. 36). As fronteiras entre as duas línguas são
fluídas, e o encontro entre uma língua oral e uma língua sinalizada requer uma
ininterrupta negociação de sentidos.
Na soletração manual de B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E
A-N-Õ-E-S, “as letras são colocadas umas ao lado das outras com essa disposição
e essa forma que facilitam a leitura”
64
. Quadros e Karnopp (2004, p. 88) indicam que
a comunicação na língua de sinais envolve a soletração de palavras da língua
portuguesa para uma variedade de contextos, ou seja, para as palavras técnicas que
não possuem o sinal equivalente, para indicar o assunto, o título a que se faz
referência, para nomes próprios. Para essas autoras, a soletração manual é uma
representação da ortografia da língua falada ou escrita e envolve uma sequência de
configurações de mão que corresponde à sequência de letras das palavras escritas
da língua portuguesa.
Battison (1978, apud QUADROS E KARNOPP, 2004, p. 88) considera que
palavras da ngua portuguesa podem ser emprestadas à língua brasileira de sinais.
Quadros e Kanopp indicam que geralmente todas as línguas orais ou de sinais,
incorporam em seu vocabulário palavras estrangeiras que são consideradas como
empréstimos linguísticos.
Além das importantes considerações dos teóricos acima, as contribuições de
Mignolo (2003) sobre Arguedas
65
e Anzaldua
66
contribuíram para o entendimento da
soletração manual, como a encruzilhada ou o ponto de encontro entre a língua
portuguesa e a língua brasileira de sinais. Em meio às palavras sinalizadas e à
soletração manual, provavelmente o sujeito surdo denuncie a colonialidade do poder
e do saber.
64
René Magrite, citado por Foucault (1988, p. 28). Tomo de empréstimo para explicar a forma da
soletração manual.
65
Arguedas, José Maria. Tupac Amaru Kamaq Taytanchisman (1962, citado por Mignolo 2003,
p. 305).
66
Anzaldúa, Gloria. Borderlands/La frontera. The New Mestiza (1987, citada por Mignolo 2003,
p. 311).
80
“Não lamento escrever em quíchua”. Esse foi o título com que Arguedas
intitulou a introdução de Tupac Amaru Kamaq Taytanhisman. Mignolo (2003) avalia
que, ao antever oposições de “quichuólogos” sobre a pureza da língua quíchua,
Arguedas argumenta que utilizou palavras castelhanas com declinações quíchua e
palavras castelhanas escritas segundo a pronúncia dos índios e mestiços. Uma
palavra em quíchua foi utilizada pelo autor e pertence a um registro requintado da
referida língua, assim como palavras do dialeto huanca-conchucos. Arguedas
considera que, mesmo assim, seus poemas são inteligíveis aos povos falantes de
quíchua, no Peru, na região quíchua na Bolívia e no Equador.
Mignolo (2003) destaca que, em Bordelands/La frontera: The New Mestiza,
Anzaldúa remaneja o quadro das práticas linguísticas e literárias e escreve em
espanhol, em inglês e em nahuatl. Segundo Mignolo (2003), “o linguajamento da
escritora invoca dois tipos de escrita: a escrita alfabética do centro metropolitano e a
escrita pictográfica das civilizações pré-colombianas mexicanas e também
mesoamericanas.” Ainda segundo esse autor, o linguajamento situa a interação
entre indivíduos, entre seres humanos em vez de ideias preexistentes. O encontro
entre a pessoa, o eu, seres humanos, organismos vivos se estabelece como
oportunidade de língua.
[...] não é precisamente o bilingualismo, em que ambas as línguas são
conservadas em sua pureza, mas ao mesmo tempo em sua assimetria.
Como em Arguedas e Anzaldúa [...] ou o bilinguajamento dos “zapatistas”
que escrevem em espanhol, inserindo estruturas e conceitos das línguas
ameríndias, não é uma questão gramatical, mas política; até o ponto em
que o próprio bilinguagismo é corrigir a assimetria das línguas e denunciar a
colonialidade do poder e do saber. (MIGNOLO, 2003, 315)
Mignolo (2003, p. 359) acrescenta sua preferência ao bilinguajamento e ao
bilinguagismo e não ao bilinguismo, tendo em vista que seus aportes teóricos
versam sobre o que se encontra além do som, da construção gramatical e do
dicionário, e além da obrigação de saber duas línguas.
A colonização deve ser compreendida atualmente em termos das relações
verticais entre colonizadores e colonizados e de como essas e outras configurações
de relações de poder foram desarticuladas e descentradas. Na recomposição dos
81
campos epistêmicos e de poder/saber no circuito das relações da globalização, por
meio de seus vários formatos históricos, é que a “periodização” do “pós-colonial” se
torna um desafio. Em sua conjuntura global e transcultural, a colonização demudou
o despotismo étnico em uma tática cultural cada vez mais precária. As “colônias”, ou
as extensões do mundo “pós-colonial” se transformaram em regiões “diaspóricas”
em relação ao que se poderiam arquitetar como suas culturas de origem. Portanto, a
ideia de que unicamente as cidades multiculturais do Primeiro Mundo são
diasporizadas é uma ilusão amparada por quem jamais vivenciou as áreas
hibridizadas de uma cidade “colonial” do Terceiro Mundo (HALL, 2005, p. 114).
Os movimentos transversais e transculturais, registrados na história da
colonização e cautelosamente suprimidos por formas mais binárias de
narrativização, manifestaram-se de diversas formas, para abalar as relações de
preponderância e oposição inscritas em outras narrativas. O alcance de viver a
diferença nas sociedades colonizadas, posteriormente à veemente e repentina
ruptura da colonização, se diferenciou na medida em que esse processo não foi
uniforme entre as culturas. A partir do final do século XV, as sintetizações e
eliminações surgiram no momento em que as diferentes temporalidades, ainda
conservando-se presentes e reais em seus efeitos diferenciados, se coligaram com
o propósito de romper com os efeitos categóricos das temporalidades e princípios de
representação e poder eurocêntricos, para cunhar sua diferença.
Mediante os aportes teóricos dos estudos pós-coloniais, é possível considerar
que o sujeito surdo não possui uma identidade fixa, estática, centrada, essencial ou
permanente. Pensar a identidade nos dias atuais envolve um posicionamento de um
movimento contínuo em relação às formas por meio das quais é representada nos
diferentes sistemas culturais. “A identidade é sempre híbrida porque ela se constrói
no espaço relacional, em que o sujeito é atravessado por toda uma gama
contraditória e conflitante de elementos linguísticos e culturais” (BHABHA, apud
SOUZA, 2004, p. 119).
A utilização do termo “hibridismo” na crítica pós-colonial assinala as culturas
ponderadas como mistas e diaspóricas. Não se trata de uma alusão à constituição
racial mista de uma população, e sim um termo para a coerência cultural da tradução
82
que se manifesta nas diásporas multiculturais e em comunidades minoritárias e
mistas do mundo pós-colonial. A posição ambivalente do dentro/fora é localizada em
todos os lugares e determina a lógica cultural composta e irregular pela qual a
chamada “modernidade” ocidental pulsa as áreas geográficas desde o princípio da
ideação globalizante européia (HALL, 2003, p. 74). Ainda segundo o pensamento do
autor, o hibridismo não se refere a indivíduos híbridos, que podem ser contrastados
como os “tradicionais” e “modernos”, como sujeitos plenamente formados. Trata-se
de um processo de tradução cultural inquietante, tendo em vista seu caráter
inconcludente; portanto, permanece irresoluto.
O hibridismo não é simplesmente apropriação ou adaptação, é um processo
que se exige das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de referência,
normas e valores, pelo distanciamento de suas regras habituais ou “inerentes” de
transformação. Ambivalência e antagonismo acompanham cada ato de tradução
cultural, pois negociar com a “diferença do outro” revela uma insuficiência radical de
nossos próprios sistemas de significado e significação (BHABHA, 1997 apud HALL,
2003, p. 75).
O hibridismo significa um momento bio e ansioso, de transição, que
acompanha qualquer modo de mudança social sem o compromisso de um
encerramento sublime ou transposição das condições complexas inerentes a essas
transformações. O hibridismo objetiva apresentar as discrepâncias a serem
transpostas, não obstante as relações de proximidade, de poder ou atitudes a serem
contraditas, os valores éticos e estéticos a serem traduzidos, mas que não
transcenderão ilesos no processo de transferência (BHABHA, 1997 apud HALL,
2003, p. 75).
Masutti (2008, p. 89) revela que há sempre algo nas línguas de sinais que é
irredutível à tradução. A autora considera essa arte em movimento, descreve-a
como uma coreografia circular, equipara-a a uma poesia cuja tensão corporal
inscreve os ritmos que reaproximam os corpos das sensações da dança. Entretanto,
para ver e sentir dessa dança é preciso libertar as travas dos olhos, que estão
engessados pelo som e pelas estereotipias culturais. A autora utiliza o termo zona
de contato entre surdos e ouvintes, que exige uma política de tradução cultural que
83
articule os processos interativos, que provoque uma crise nas relações ambivalentes
de subalternidade e poder organizadas em torno da presença ou ausência da voz.
Finalizo o capítulo refletindo sobre o termo ser surdo, muito semelhante a ser
e a definir-se como crioulo.
67
“Na semelhança, encontra-se o orgulho da língua, a
identificação com um grupo de pessoas e a diferenciação de outros” e reconhecer e
celebrar uma língua em que se pode escrever e pensar. Ser surdo define-se por
“uma ‘atitude interior’ por um modo de ser mais que por uma aparência.”
68
67
Mignolo (2003, p. 326) apresenta o termo crioulo e seu significado em diferentes lugares. No
Caribe Francês e no Caribe Inglês, é uma língua no Caribe Espanhol; crioulo é utilizado para
pessoas de descendência européia que falam espanhol. Diz o autor “os crioulos na Bolívia e no
México são os ‘mestizos’ que detêm o poder. Na Hispano-America, são considerados crioulos os
ocidentais marginais que vivem. A frase marcada com aspas no parágrafo se refere a uma
citação que faz Mignolo (p. 327) de Élogie de La créolité/In Praise of Creoleness (Bernabé,
Chamoiseau e Confiant, 1989). Mignolo esclarece que seu “foco será na língua, na etnicidade, na
geopolítica do Caribe insular e na encruzilhada dos conflitos imperiais”.
68
Tomo de empréstimo a frase de Mignolo (2003, p. 329) que faz referência a ser crioulo.
CAPITULO III
A CONTADORA DE HISTÓRIAS NA ARTE EM MOVIMENTO, NO
RECONTO, NA RECRIAÇÃO E NA MEMÓRIA
O REI E O CADÁVER
Todos os dias um monge mendigo ia até a corte do rei hindu e lhe dava
silenciosamente uma fruta de presente. O rei aceitava a oferenda sem lhe prestar muita
atenção e a entregava ao guardião do tesouro. Todos os dias, o pedinte ia embora como
viera sem pedir nada para si mesmo.
Durante anos essa enigmática pantomímica desenrolou-se da mesma forma. No
entanto, certo dia, o rei deu o presente a um dos seus macacos, seguindo um súbito
impulso. Quando o animal mordeu a fruta, apareceu uma maravilhosa pedra preciosa. Ao
ver isso, o rei perguntou ao guardião do tesouro onde estavam as frutas que lhe haviam sido
presenteadas anteriormente. Haviam sido jogadas na sala dos tesouros, cujo solo agora
estava coalhado de frutas podres e pedras preciosas.
O rei alegrou-se, mas ficou curioso. No dia seguinte, dirigiu a palavra ao monge
mendigo e este, pela primeira vez, pediu uma recompensa. O rei teria de ser o herói
destemido que ele precisava para o seu exorcismo. Corajoso, o rei consentiu num encontro
que foi marcado para a primeira noite de Lua Nova, no grande cemitério, no lugar em que
eram cremados os cadáveres e onde eram enforcados os criminosos.
Na escuridão da noite combinada, disfarçado e armado com uma espada, o rei
inabalável, foi ao seu horrendo encontro. Crânios calcinados e restos de esqueletos
estavam espalhados pelo lugar, enquanto demônios cruzavam os ares fazendo um ruído
irritante. Quando o rei chegou mais perto, a fim de descobrir o que tinha de fazer, o velho
feiticeiro estava riscando um circulo encantado. O bruxo mandou o rei ir até uma árvore na
outra extremidade do cemitério na qual estava pendurado um homem. A majestade tinha de
soltar o cadáver da árvore e levá-lo até o círculo encantado.
Trêmulo, porém decidido, o rei foi até a forca, a fim de colher o seu estranho fruto.
Subiu na árvore e cortou a corda. Quando o morto caiu, o rei ouviu um gemido. Enquanto
verificava se ainda havia vida naquela forma enrijecida, da garganta daquele corpo rompeu
uma risada fantasmagórica. O rei falou com o espírito, mas no mesmo instante o cadáver
voou em volta para o seu galho.
Quando subiu outra vez na árvore para cortar novamente a corda, o rei prestou
atenção para não emitir nenhum som. Ele carregou o corpo nas costas e encaminhou-se de
volta ao circulo encantado. Mas não andou muito e o espírito lhe disse: “Você arranjou uma
grande carga, a que não está acostumado, para carregar nas costas; portanto, venerável rei,
vou contar-lhe uma história para encurtar a passagem do tempo.” O rei ficou em silêncio e o
fantasma contou:
85
Era uma vez três jovens brâmanes que tinham um professor cuja filha os três
amavam, pois ela era lindíssima. O pai não queria dá-la a nenhum dos três, com medo que
o coração dos outros dois se rompesse de dor. Então a moça morreu subitamente, levada
por uma doença. Desesperados, os três cremaram o seu cadáver; então um deles saiu
como um asceta mendicante pelo mundo; o outro pegou a ossada da amada e rumou até as
correntes doadoras de vida do Ganges; o terceiro, por sua vez, construiu uma cabana de
asceta sobre a última morada da jovem e dormia sobre as cinzas.
Aquele que viajou pelo mundo testemunhou um milagre. Ele viu quando, a partir das
cinzas, alguém fez retornar à vida uma criança, dizendo um encantamento mágico. Ele
roubou o livro e voltou rapidamente para onde estavam as cinzas da amada. Ao mesmo
tempo, o outro, que havia espargido os ossos da amada com a água sagrada do rio divino,
também retornou. Fizeram a mágica sobre as cinzas e os ossos: ali estava a amada, mais
linda do que nunca.
Logo irrompeu o conflito entre os três: um havia protegido suas cinzas, o outro
molhara sua ossada com a água da vida e o terceiro pronunciara um encantamento mágico.
A quem ela pertencia?
Sim, a quem pertenceria? perguntou o fantasma ao rei. Se você souber e não
disser a sua cabeça explodirá.
O rei achou que sabia a resposta e não teve coragem de não revelá-la. O brâmane
que trouxera a moça de novo à vida agira como um pai. O outro que trouxera para si o
encargo de levar a ossada até o rio sagrado se comportara como um filho. O último,
entretanto, não abandonara a amada e até dormira sobre suas cinzas, e só este poderia ser
seu marido.
Assim que ele disse a última palavra, o cadáver gemeu perturbado e voou dos
ombros do rei de volta para a árvore. Querendo ou não, o rei teve de voltar a fim de buscar
outra vez o cadáver e recomeçar o penoso caminho.
Mas quantas vezes o refez, tantas vezes a triste cena se repetiu. Cada vez o
fantasma atormentava com um novo enigma e ameaçava explodir-lhe a cabeça se o rei
calasse a resposta. E cada vez, a consciência do rei se ampliava mais; ele descobria novos
conhecimentos em si mesmo, de cuja existência antes sequer suspeitava. Mas todos os
seus sábios julgamentos sempre o levava de volta à árvore que servia de forca. Era
desesperador.
O fantasma contou ao todo vinte e quatro histórias. Mas o rei precisou retornar à
árvore apenas vinte e três vezes. Para a vigésima quarta história, não encontrou solução.
Nenhum conhecimento humano pode decifrar o âmago da escuridão. No mais profundo
silêncio, ele ficou pensando que graças ao comportamento do monge havia encontrado a
sabedoria; que um macaco lhe ensinara a ser humilde; e que os ridículos enigmas propostos
por um estranho aparentemente ameaçador tinham aumentado o seu conhecimento.
Como não sabia a resposta para a última pergunta, chegou afinal ao objetivo e pôde
carregar o cadáver até o rculo mágico. Acaso terá sido mais sábio na sua reflexão interior
silenciosa do que com suas sábias respostas?
Por fim, o espírito pareceu ficar satisfeito e deixou o corpo, agora imóvel, nas costas
do rei. Mas antes de desaparecer, ele advertiu o soberano: - Ouça o que lhe vou dizer para
o seu bem, e faça o que lhe disser! O asceta mendigo é um perigoso embusteiro; com seus
encantamentos, ele quer nos obrigar a voltar para o cadáver; então ele me idolatrará e
tentará entregá-lo a mim como sacrifício. Para isso, ele pedirá a você que se prostre na
minha frente e assim que você estiver com a cabeça e as mãos rentes ao solo ele cortará a
sua cabeça com a espada. Por isso diga-lhe: “Mostre-me o que gostaria que eu fizesse,
ensine-me como é preciso prostrar-se no chão”, e assim que ele se deitar, decepe-lhe a
cabeça. Então você dominará sobre os espíritos que você gostaria de ter. Eles serão seus!
86
De fato, quando o rei pisou no circulo mágico, tudo transcorreu como o fantasma
previra. O mago mandou-o prostrar-se no chão, mas caiu a armadilha preparada pelo rei e
perdeu a cabeça. Os espíritos do cemitério irromperam em alegre algazarra; afinal estavam
livres da servidão do malvado mago negro. Em agradecimento, o rei podia manifestar um
desejo. Com sábia contenção, ele apenas pediu que naquela noite a história fosse
transmitida para todo o mundo, para que pudesse ser contada pelos séculos dos séculos.
E assim, essa história continua viva no Oriente e no Ocidente, em todas as
línguas, passadas, presentes e futuras. Fiz a minha parte na medida em que a contei a
vocês. Por sua vez, façam a sua, contando-a a outras pessoas.
69
O propósito de incluir a narrativa “O rei e o cadáver” nesta pesquisa é
discorrer sobre a possibilidade de recontar uma história. O narrador acima solicita
sua difusão para outros sujeitos. Não indícios de que houve um registro escrito.
Os espectadores têm a missão de divulgá-la. Não foi requerida a rigorosidade do
texto, nem a forma de recontar oral ou escrita e sim que ela continue viva “no
Oriente e no Ocidente, em todas as línguas, passadas, presentes e futuras”. Não se
sabe o número de espectadores presentes naquele momento. Conforme visto no
capítulo I, a referida narrativa integra uma coletânea da segunda metade do século
XI. um fato que não poderei deixar de refletir, o de que tomei conhecimento
dessa narrativa por meio da escrita da língua portuguesa.
A arte de contar
70
se apresenta no oriente e no ocidente. Patrini (2005, p. 106)
se refere a essa prática como uma atividade subsidiada pela memória. Para a
autora, o/a contador/a de histórias possui um desembaraço alegórico, convoca
imagens de sua lembrança para suas composições contextuais e verbais. Esse
processo se realiza por adaptação e de acordo com o entendimento cultural e
ideológico de sua comunidade. O conto, continua a autora, contribui para a harmonia
mental e emocional de uma comunidade e impede a sua desagregação.
Um lugar onde as pessoas habitam, trabalham e estabelecem relações
personalizadas e estáveis constitui a base identitária. Fazer parte de uma
comunidade e viver em determinado ambiente denota adotar princípios e ser
reconhecido. Nesse local de convívio, um elo criador une a população, tornando-se
69
Citado de: Sheldon Kopp, Kopfunter hängend sehe ich alles Anders” (“De cabeça para baixo vejo
tudo com outros olhos”). In: Banzhaf, Hajo (1986, p. 122 a 124). Os grifos são de minha parte.
70
Essa questão foi elaborada mediante as orientações de Patrini (2005, p. 106), Bussato (2004, p. 9)
e Bettelheim (1988, p. 189).
87
a marca de uma cultura reveladora de um tipo de comunicação que agrupa as
pessoas por e para experiências tanto pessoais como também comunitárias
(PATRINI, 2005, p. 107).
A comunicação, o intercâmbio de experiências, as narrativas, a história do
povo surdo são possibilitadas pela língua de sinais. A experiência visual identifica os
sujeitos surdos, que comunicam sentimentos, pensamentos, idéias, e agrupa o povo
surdo. Bhabha (2005) considera que o termo povo não se refere meramente a
ocorrências históricas ou a membros de um corpo político patriótico. Analisa o autor
esse termo como “uma complexa estratégia retórica de identificação social”. Rangel
(2004), Perlin e Miranda (2003) e Strobel (2008) consideram os sujeitos surdos
como um povo que se comunica na língua de sinais, possui costumes, história,
tradições comuns e interesses semelhantes.
O prazer e o entretenimento proporcionados pela arte na Língua de Sinais
são meios de fortalecimento do povo surdo. Sutton-Spence e Quadros (2006, p. 115)
salientam que durante o longo período que os sujeitos surdos foram bombardeados
pela ideia de que somente as línguas faladas eram superiores e que as línguas
sinalizadas eram inferiores. A produção poética era permitida somente na ngua
falada. Tomando como parâmetro a Língua de Sinais Americana (ASL), relatam as
autoras que, no período anterior aos anos setenta, o registros poéticos na
referida língua e que essa realidade pode ser estendida às outras línguas de sinais.
A partir dos anos setenta, houve uma mudança dessa realidade, com a
possibilidade da produção poética na língua de sinais ocasionando o surgimento do
“orgulho surdo”, o reconhecimento das línguas de sinais e a atividade dos poetas
precursores de língua de sinais. As transformações principiadas nos Estados Unidos
se disseminaram para outros países, tendo em vista o intercâmbio entre os sujeitos
surdos que aprenderam uns com os outros e deram início à produção artística em
suas próprias línguas. “Nesse contexto sócio-histórico, cultural e político, toda
produção poética na língua de sinais apresenta repercussões no empoderamento do
povo surdo e é uma expressão implícita do seu orgulho na sua ngua” (SUTTON-
SPENCE e QUADROS, 2006, p. 116).
88
Sutton-Spence e Quadros (2006, p. 117) consideram a experiência sensorial
dos sujeitos surdos como um atributo principal de vários poemas na língua de sinais.
A relevância da presença ou da ausência do som é um espaço pouco cultivado nas
produções artísticas na língua de sinais.
Percebem-se o olhar e o ver, os olhos e a visão nas produções literárias dos
sujeitos surdos. No momento em que a contadora de histórias realiza a “soletração
manual com a mão articulada no lado ipsilateral, ligeiramente abaixo da altura do
ombro” de B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S, seu olhar ora
chama a atenção do público em direção à mão e nesse momento, pois ela também
olha para a mão. Como destacam Sutton-Spence e Quadros (2006, p. 118-127),
“colocar as imagens do olhar e da visão em poema na língua de sinais fortalece o
poeta e a platéia mostrando sua identidade visual”.
Essa produção artística envolveu a leitura, a tradução e seu reconto em
vídeo, na língua de sinais. Certamente se o referido conto fosse produzido na ngua
falada, ou seja, “da boca ao ouvido”
71
, não se destinaria ao surdo/a espectador/a. A
narrativa parte das mãos da contadora e atrai a atenção de seu público. Seu
desempenho é sedutor; suas mãos, expressões corporal e facial, encantadoras. Não
se concebe em sua atuação a destituição da teatralidade, da improvisação, da
espontaneidade e do carisma.
De acordo com Patrini (2005, p. 108) a arte de contar requer a presença de
um público para ver e ouvir o/a contador/a. Esse ato solicita o olhar de um ouvinte
atento e de uma memória que aguarda ser preenchida por ritos e gestos. As
reflexões da autora para um mundo pautado na fala e no som, para a atividade de
contadores/as histórias ouvintes e falantes, cuja arte destina-se a quem igualmente
ouve e fala, se torna importante para pensar a desenvoltura de uma contadora de
histórias surda que se apropria um texto escrito, o recria sem utilizar os recursos da
pronúncia das palavras, da leitura em voz alta e do som. Ela reconta uma narrativa –
herança da literatura oral na língua brasileira de sinais, mediante o olhar de um/a
espectador/a atento/a as imagens e à história.
71
Termo emprestado a Zumthor (1993. p. 222).
89
Adjacente à leitura, a contadora requereu a memória, que, segundo Chauí
(2005, p. 138), representa a consciência da diferença temporal e da percepção
interna, cujo objeto é interior ao sujeito do conhecimento, equivalente às lembranças
do passado, o próprio passado do sujeito e o passado aludido ou registrado por
outros em narrativas orais e escritas. A autora revela que os antigos gregos
apreciavam a memória como uma divindade.
A deusa Mnemosyne era a mãe das musas protetoras das artes e da história.
Ela oferecia aos poetas e adivinhos o poder de retroceder ao passado e trazê-lo à
lembrança da coletividade. Além disso, ela tinha a faculdade de conceder eternidade
aos mortais por meio das obras de arte. O artista ou o historiador registravam em
suas obras as expressões, os gestos, as realizações e as palavras de seres
humanos, para que fossem lembrados como modelo de comportamento para as
próximas gerações. O ato de registrar pela obra de arte tornava os sujeitos
inesquecíveis e significava que jamais morreriam (CHAUÍ, 2005).
A memória, além de imortalizar os mortais, auxiliar da medicina, era
indispensável na retórica, uma arte entre os antigos gregos e romanos reservada a
convencer e a causar emoções aos espectadores/as por meio do uso da linguagem.
Na aprendizagem dessa arte, a memória era imprescindível, tendo em vista que o
bom orador era aquele que proferia longos discursos sem ler e sem recorrer a
anotações. A propósito da valorização da “arte da memória” entre os antigos, Chauí
narra uma lenda sobre o poeta grego Simônides de Céos, o criador da retórica,
transcrita a seguir:
Conta a lenda que Simônides foi convidado pelo rei de Céos a fazer
um poema em sua homenagem. O poeta dividiu o poema em duas partes:
Na primeira, louvava o rei, na segunda, os deuses Cástor e Pólux.
O rei ofereceu um banquete no qual Simônides leu o poema e pediu o
pagamento.
Como resposta, o rei lhe disse que, como o poema também estava
dedicado aos deuses, ele pagaria metade, que a outra metade Simônides
fosse pedir a Cástor e Pólux.
Pouco depois, um mensageiro aproximou-se de Simônides dizendo-
lhe que dois jovens o procuravam ao lado de fora do palácio. Simônides
saiu para encontrá-los, mas não encontrou ninguém. Enquanto estava no
jardim, o palácio desabou e todos morreram. Assim, Castor e Pólux, os dois
jovens que fizeram Simônides sair do palácio, salvando o poeta, afinal
pagaram o poema.
90
As famílias dos demais convidados desesperaram-se porque não
conseguiam reconhecer seus mortos.
Simônides, porém, graças à “arte da memória” lembrava-se dos
lugares e das roupas de cada um e pôde ajudar na identificação dos mortos.
(CHAUÍ, 2005, p. 140).
Calvino (2007, p. 17) aborda a perda da memória de Ulisses como uma
ameaça que a personagem enfrenta em três situações, com o convite do lotófagos,
com os elixires de Circe e com o canto das sereias. Observa o autor que “para quem
conta versos sem o apoio de um texto, esquecer é o verbo mais negativo que
existe”. Nesse sentido, continua o autor:
O que Ulisses salva do lótus, das drogas de Circe, do canto das sereias,
não é o passado e o futuro. A memória conta realmente para os
indivíduos, as coletividades, as civilizações se mantiver junto a marca
do passado e o projeto do futuro, se permitir fazer sem esquecer aquilo que
se pretendia fazer, tornar-se sem deixar de ser, sem deixar de tornar-se.
(CALVINO, 2007, p. 19).
A pertinência de abordar sobre a “musa da narrativa” nesta pesquisa se
atribui à consideração de que, no reconto de B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S
S-E-T-E A-N-Õ-E-S na língua de sinais, em meio a outros recursos, a memória
contribuiu para a atuação da contadora de histórias, que poderia recorrer ao texto
escrito. Como revela Benjamin (1994, p. 175), a elaboração final de um filme envolve
imagens isoladas e sequências de imagens que são eleitas na edição, o que garante
sua perfectibilidade. Ainda segundo o autor, durante a filmagem inexiste um único
ponto de observação, o que permite excluir do nosso campo visual as câmaras, os
aparelhos de iluminação, os assistentes e outros elementos estranhos à cena.
A memória se traduz na perceptibilidade do caráter de cada personagem
apresentado pela contadora, não havendo possibilidade de confundi-los. Cada um
possui sua particularidade, identificada pelo nome visual guardado na memória da
contadora e apresentada ao espectador/a, que conservará na reminiscência os
nomes visuais das personagens e a narrativa, o que permitirá seu reconto. É nesse
91
movimento que Sherazade sobrevive e se manifesta tanto no sujeito que narra
quanto no sujeito que torna a narrar.
Os referenciais teóricos de Patrini (2005) e de Benjamin (1994)
desencadearam a necessidade de refletir em nossos dias quem é esse sujeito
contador/a tendo em vista os recursos da imagem por aparelhos eletrônicos e não o
contato pessoal e a apresentação ao vivo. O vídeo denota que a ação ocorreu e
cumpriu etapas anteriormente organizadas por seus produtores. Não há espaço para
o improviso ou para que um sujeito da platéia, curiosa, pergunte ou receba
conselhos.
De acordo com Patrini (2005) o novo contador de histórias, a partir da década
de oitenta se profissionalizou e passou a realizar seu trabalho principalmente nas
bibliotecas. Esses sujeitos se transformaram em bibliotecários, estagiários,
estudantes dos cursos de Pedagogia, Letras, Comunicações, professores,
arte-educadores, atores e atrizes de teatro. Segundo a autora, o evento intitulado de
“hora do conto” pretendia aproximar a criança do livro.
Ainda em referência à época a autora avalia que recorrer ao texto escrito se
tornou uma prática do professor em escolas maternais que “transmitiam por meio da
voz, um texto já publicado. Nesse caso, a criança ouvia um texto sonoro que
possuía as características da língua escrita, com uma sintaxe completa, com um
vocabulário diversificado e uma forte coesão”. Nesse sentido, houve um
redimensionamento do novo contador de histórias e de sua prática no mundo da “era
tecnológica em que as pessoas se isolam atrás das máquinas”
72
.
A arte de narrar, sob a ameaça da extinção profetizada por Benjamin,
continua viva, porém como uma atividade diferenciada da que se referiu este autor.
No objeto desta pesquisa, a narradora não é o viajante que vem de longe nem o
camponês que contam as histórias que ambos retiram da própria experiência ou da
narrativa de outros e contam. Ela é uma narradora surda e, provavelmente, integra a
72
A pesquisa de Patrini, (2005, p. 20/27) ocorreu na França e envolveu os contadores de histórias
daquele país. Apesar de a autora abordar sobre o novo contador de histórias, ela admite que no
nordeste do Brasil, a oralidade persiste e seus habitantes vivem intensamente pelos jogos, festas
populares, canções em torno da mesa ou do fogo, danças e destas de casamento, jogos típicos da
infância, dentre outros citados pela autora.
92
maioria dos contadores que conhece os contos advindos da memória coletiva oral
por meio da língua escrita
73
. Os contadores e contadoras de histórias sobrevivem.
Provavelmente conservem o legado de Heródoto, o primeiro narrador grego, a que
se refere Benjamin, porém com o acréscimo de sua profissionalização. O sujeito
espectador/a é surdo/a e, para não perder a história, não fia ou tece enquanto
74
;
não pode realizar as duas coisas ao mesmo tempo, porque sua comunicação é
visual.
Para Schollhammer (2002), verifica-se, na virada do século, uma ampla
demanda de referencialidade nas manifestações artísticas e literárias. Nos estudos
da literatura, a imagem é um assunto que se destaca quando se aborda a estética
atual, tendo em vista a convergência híbrida e a apropriação de artifícios e técnicas
representativas dos meios visuais com o intuito de motivar efeitos sensuais afetivos.
Entendo que os contos infantis produzidos por surdos/as na língua de sinais
se inserem no que o Schollhammer (2002) denomina de literatura visual, que se
sobressai pela velocidade e pelo contato imediato com o público. B-R-A-N-C-A D-E
N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S envolve elementos da experiência visual,
fortalecendo o questionamento sobre “ideais e princípios nacionais sobre a pureza
da linguagem, a homogeneidade da literatura e o caráter distinto das culturas
nacionais”
75
. As produções de vídeo na língua de sinais acentuam a possibilidade de
outra língua, outra literatura, outra forma de expressão, demonstrando “que os
valores nacionais depositados nas línguas e literaturas já não correspondem à
experiência transnacional
76
de uma parte significativa da população”.
77
73
Verificar a introdução de Elie Bajard em Patrini, (2005, p. 15).
74
A elaboração do parágrafo se refere à leitura do ensaio de Benjamin (1994).
75
Mignolo (2003, p. 306-339).
76
Os estudos transimperiais, transnacionais, transcoloniais e culturais propõem um novo espaço
inter e transdisciplinar de reflexão onde os estudos literários se redefiniriam assim como
promoveriam discussões sobre os resultados da expansão colonial e das interconexões globais
desde o fim do século 15. O autor assinala que o prefixo trans indica algo além das línguas e
literaturas nacionais e dos estudos comparatistas que pressupõem as línguas e literaturas.
(MIGNOLO, 2003, p. 302).
77
As citações do parágrafo são empréstimos a Mignolo (2003, p. 313-316).
93
Em relação à abrangência do verbo ler, Barthes (1988, p. 44) considera: “leio
textos, figuras, cidades, rostos, gestos, cenas, etc.” O objeto que se é constituído
exclusivamente no intuito de ler. O ato de ler é impregnado pelo desejo ou pelo
desprezo. Ainda segundo o autor, o corpo humano está presente na leitura onde as
emoções estão acopladas, emaranhadas, cingidas, ou seja, onde o encanto, a
vacância, a agonia e a sensualidade.
Há pelos menos três circunstâncias do prazer de ler ou três vias pelas quais a
leitura pode prender a atenção do sujeito leitor: na primeira, no ato da leitura, ocorre
o prazer das palavras, maravilhando o leitor e que o autor denominou de leitura
metafórica ou poética e avalia que não requer amplo conhecimento de linguística.
Na segunda via, o fascínio impede a interrupção da leitura e mantém vivo o desejo
de continuar a leitura do livro que aos poucos chega ao fim. Nessa ação irrequieta e
deslumbrante, habita o deleite. Na terceira via, a leitura é desencadeadora do desejo
de escrever (BARTHES, 1988, p. 49).
Considero que o/a espectador/a surdo/a desempenha a leitura da imagem
poética em uma moldura a tela de um aparelho eletrônico. O prazer de ler as
palavras sinalizadas acompanhadas das expressões faciais e corporais e o enlevo
da leitura da imagem associam-se ao desejo de não interrompê-la. O prazer de ler
provavelmente resulta no desejo de contar ou recontar na língua de sinais.
Santaella e Nöth (1997, p. 15) apresentam dois campos das imagens: No
primeiro se inserem as representações visuais: desenhos, pinturas, ilustração,
fotografias, cinematografia, sistema de telecomunicações de impulsos
eletromagnéticos para transmissão de vídeo e áudio, holo e infográficas. Os autores
consideram esses campos como artefatos materiais, signos representativos do meio
ambiente visual.
As visões, as imaginações, os esquemas e os modelos são representações
mentais que integram o segundo campo abordado. Os autores consideram que “não
imagens como representações visuais que não tenham surgido de imagens na
mente daqueles que as produziram, do mesmo modo que não imagens mentais
que não tenham alguma origem no mundo concreto dos objetos visuais”, portanto os
dois campos não são autônomos, são atrelados desde a sua origem.
94
Em todo esse movimento que envolve a leitura, está envolvido o corpo:
[...] é ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele
que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso
sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização
daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação
com o mundo. Dotado de significação incomparável, ele existe à imagem de
meu ser: é ele que vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior.
Conjunto de tecidos e de órgãos, suporte da vida psíquica, sofrendo
também às pressões do social, do institucional, do jurídico, os quais, sem
dúvida, pervertem nele seu impulso primeiro [...] (ZUMTHOR, 2007, p. 23).
Semelhante a um quadro, as mãos da contadora de histórias desenham e
pintam as palavras sinalizadas, harmonizam o texto em imagem, ordenando e
produzindo sentido. B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S se
encontra no interior de uma moldura a tela um espaço com dimensões
superiores e inferiores, com largura direita e esquerda, com artifícios que permitem
ao leitor avançar, retroceder, pausar, intensificar o brilho, dentre outros. Os limites
da tela são a moldura
78
. Deve-se atentar para o fato de que esse quadro e essa
moldura apresentam uma arte em movimento.
A contadora não representa diante de um público comum a cena a ser
reproduzida e sim diante de profissionais envolvidos na produção. Afastada da tela,
ela lança um olhar em direção à filmadora, ciente de que a não observância às
dimensões prejudicará o acabamento da obra
79
. Analogamente a um/a pintor/a em
seu ateliê, que olha para seu quadro, a contadora, em um estúdio, olha para a
câmera que registra o espetáculo na língua de sinais.
Suas mãos desenham palavras, seja em retenção ou em movimentos, de um
lugar para outro, em configurações de mãos, um ponto de articulação e uma
orientação da palma da mão para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo.
A habilidade das mãos está interligada com as expressões facial e corporal, que
78
O parágrafo foi elaborado com os referenciais de Foucault (1990, pp. 11-15).
79
Barthes (1988, p. 71-78), distingue a obra e o texto: “a obra se vê [...] o texto se demonstra, se fala
segundo certas regras (ou contra certas regras); a obra se segura na mão, o texto, mantém-se na
linguagem: ele só existe tomado num discurso [...]; a obra é a cauda imaginária do texto [...]”.
95
denotam a alegria e a tristeza, o claro e o escuro, o dia e a noite, as lágrimas e o
sorriso, o quente e o frio, o bem e o mal e assim por diante. A contadora está fixa em
um lugar que, de um instante a outro, não cessa de mudar de conteúdo, de forma,
de expressão, de personagens.
A contadora se encontra em um estúdio. Conforme Benjamin (1994, p. 186),
nesse local, o aparelho penetra tão intensamente o real que o que surge como
realidade “pura”, sem o corpo alheio da máquina, é o efeito de um processo
meramente técnico, ou seja, a imagem é filmada por uma câmara montada em um
ângulo especial e junto a outras de igual espécie.
As mãos à frente do corpo da contadora concedem vida a cada uma das
personagens, identificando-as para o/a espectador/a. A possibilidade de visualização
da imagem abrange o olhar, a leitura, a iluminação da platéia sentada frente à tela
em casa, na escola, na biblioteca, em um ato solitário ou compartilhado. A
contemplação sugere que um par de olhos, observa, diferencia, aprecia, assimila,
“vê mais onde o outro menos, preto onde outro branco, grande onde
outro pequeno, grosso onde outro fino.”
80
A coisa ou a imagem não são
percebidas inteiramente, e o que percebemos está intimamente relacionado àquilo
que temos interesse em perceber, mediante nossos interesses econômicos, nossas
convicções e nossas exigências psicológicas
81
.
O/a leitor/a, considerado/a na presente pesquisa também como uma
personagem, independente do local que assiste ao espetáculo, ainda que não
reconhecido, o que cada um dos parceiros não vê; seu olhar é único. Barthes
(1988, p. 51) considera o/a leitor/a como personagem com capacidade de apreender
a pluralidade simultânea dos sentidos em um espaço abrangente exterior às leis que
invalidam a contradição. O texto é a postulação desse espaço. O/a leitor/a reúne as
decodificações, remove o freio do sentido, sobrecodifica, produz, acumula
80
James. (s/d, p. 9). Este parágrafo e o anterior foram elaborados a partir da leitura de “Las
meninas”. In: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.
1990. p. 19 a 31.
81
Bergson (citado por DELLEUZE, 2007, p. 31)
96
linguagens, deixa-se interminável e incansavelmente atravessar por elas. Esse
sujeito, além de uma personagem, é a travessia.
82
O texto apresenta espaços a completar, que demandam a ingerência de
aspiração exterior, de sensibilidade e de empenho de uma energia individual para
serem temporariamente preenchidos. “O texto vibra, o leitor o estabiliza,
integrando-o àquilo que é ele próprio. Então é ele que vibra, de corpo e alma.” Não
existe criação da linguagem, nem estrutura nem sistemas totalmente fechados; os
brancos constituem um espaço de liberdade imaginário pelo fato de que somente
podem ser preenchidos por um momento, pelos leitores, peregrinos por inclinação. A
demarcação, o preenchimento, o prazer da liberdade brotam na relação de
expressão a expressão (ZUMTHOR, 2007, p. 53).
Diante do texto, o/a espectador/a, mesmo no anonimato, assiste;
repercute-lhe uma palavra sinalizada, ambígua, obscurecida e ele/a, confuso/a,
investiga um sentido efêmero e ficcional. Ao retornar posteriormente ao mesmo
texto, ou seja, voltar à leitura do texto, provavelmente seu sentido se diferencie
83
.
Ainda no texto, compreendemos a importância das palavras sinalizadas, das
expressões faciais, das composições das imagens “e as reações que elas provocam
em nossos centros nervosos”, denominadas por Zumthor de percepção. A partir da
percepção, o leitor com elucidações ou sugestões advindas de mudanças no
tempo e no espaço do texto apodera-se do texto e lhe atribui sentido. É a partir da
percepção que se desencadeia o desejo de reconstruir um texto; a ausência do
desejo de fazê-lo implica que o texto não inspirou a ação.
Fayga (1988, p. 167) sublinha o temperamento criativo do ser humano, que,
no ato de perceber, interpreta, e nisso reside a ação criativa. Segundo a autora, o
momento da compreensão possui relação intrínseca com a criação. Patrini (2005,
82
Barthes (1988, p. 51) considera que o leitor é aquela personagem que está no palco (mesmo
clandestinamente) e que sozinha ouve o que cada um dos parceiros do diálogo não ouve; sua
escuta é dupla (e, portanto, virtualmente múltipla).” Nesse sentido, o parágrafo foi elaborado tendo
em vista o/a espectador/a surdo/a.
83
Zumthor (2007, pp. 53-54) observa que “diante do texto, no qual o sujeito espresente, mesmo
quando de forma indiscernível: nele ressoa a palavra pronunciada, imprecisa, obscurecida talvez
pela dúvida que carrega em si” [...]. O parágrafo foi elaborado tendo em vista o leitor surdo.
97
p. 134) considera que a recriação admite a mudança da trajetória da história, tendo
em vista o maravilhoso e a imaginação criadora. Contar e recontar contribui para o
aprimoramento da nova geração sem perder de vista o tom lúdico essencial desta
experiência. “O ato de contar se realiza na e através da linguagem”; o valor presente
no ato de contar, desencadeia o reconhecimento da sabedoria e do prestígio.
Os aportes teóricos de Hall (1977) enfatizam que o sentido é concedido pela
linguagem e por meio dela os significados são compartilhados. O sistema de
representação por meio da linguagem é fundamental para os processos que
ocasionam o significado a objetos, a seres humanos e a acontecimentos, pelo modo
como interpretamos e integramos em nossas ações habituais. Segundo o autor, os
significados culturais não se encontram na mente; suas efetivações são legítimas e
regulam práticas sociais. A legitimação do significado integra o sentido de nossa
própria identidade pelo sentimento de pertencer a uma comunidade.
Hall (1997) contribui para pensar o objeto da pesquisa B-R-A-N-C-A D-E
N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S recontado na língua de sinais com todas as
personagens ouvintes. Os significados dos sinais representam os conceitos, as
idéias, a sensibilidade e orientam para que os outros sujeitos possuam a mesma
interpretação. Muito além de existirem em si mesmos, os objetos, as pessoas e os
eventos adquirem significado mediante a representação mental que lhes atribui um
determinado sentido sociocultural; nesse sentido, as linguagens são digo de
representação.
O reconto e a recriação de B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E
A-N-Õ-E-S para o público infantil envolveu os artefatos culturais do povo surdo. O
objeto da pesquisa envolveu a constituição de sentidos do texto, com base no
diálogo com outros sujeitos e na tradução de uma língua para outra. Os sujeitos
surdos recontam histórias para outros sujeitos surdos e reconstroem, por meio da
língua e da cultura, os sentidos veiculados pelo texto que serviu como ponto de
partida para a criação de outro texto (ALVES E KARNOPP, 2002).
Compreende-se, a partir de Hall (1997), que a representação pode ser
adequadamente analisada em relação às verdadeiras formas concretas assumidas
pelo significado, no exercício concreto de leitura e interpretação, e requer uma
98
análise dos verdadeiros sinais, símbolos, figuras, imagens, narrativas, palavras e
sons, as formas materiais onde circula o significado simbólico. Os exemplos,
segundo ele, estabelecem uma oportunidade para exercitar essas habilidades
analíticas e aplicá-las a tantas outras instâncias semelhantes que nos cercam na
vida cultural diária. Contudo, há uma ressalva imprescindível à realização dessa
análise: não resposta única, e, mais do que isso, correta para o significado de
uma imagem, mas sim uma interpretação plausível. O significado não é diretor, nem
transparente e não permanece intacto na passagem pela representação. Ele é
continuamente negociado e inflectido, para ressoar em novas situações.
A linguagem, por consequência, é o espaço cultural partilhado em que se dá a
produção de significados através da representação. Não há, portanto, uma maneira
única de apropriar-se da linguagem como pertencente exclusivamente ao remetente
e ao receptor. Os códigos funcionam somente se são partilhados, pelo menos na
medida em que torne possível a tradução entre os comunicantes. Por conseguinte,
devemos considerar o significado menos em termos de exatidão e verdade e mais
em termos de efetivo intercâmbio, um processo de tradução que facilite a
comunicação cultural, que sempre reconheça a persistência da diferença e do poder
entre os diferentes comunicantes dentro do mesmo circuito cultural.
Para analisar as práticas de representação, Hall (1997) avalia que ela conecta
o significado e a linguagem à cultura. Representar é usar a linguagem para dizer
algo significativo ou representar o mundo de forma significativa. Portanto, a
representação é parte essencial do processo pelo qual o significado é produzido e
intercambiado socialmente. A noção de representação é a produção do significado,
do conceito, em nossa mente, através da linguagem.
Nesse sentido, o autor sugere a representação dois processos: um deles
relacionado aos sistemas de correlação, a um conjunto de representações mentais,
e o outro pertinente à linguagem, o que possibilita a existência de um mapa
conceitual partilhado, pelo qual possamos representar ou intercambiar significados.
O processo mental e de tradução para o sistema no qual somos instruídos a fazer
referência ao mundo, às pessoas e aos acontecimentos é a construção de signos.
Estes representam os conceitos e as relações conceituais que temos em nossas
99
mentes e que juntos compõem os sistemas de significado de nossa cultura. A noção
de arbitrariedade possibilita o entendimento do referido sistema a relação entre o
signo, o conceito e o objeto que nos referimos é arbitrária, pois corresponde a uma
construção socialmente consentida, ainda que pudesse ter sido estabelecida de
outra forma inteiramente oposta.
O significado não está no objeto, na pessoa, na coisa, e nem na palavra.
Determinado ou fixado socialmente, o significado se torna automático. Nesse
sentido, mesmo que não seja herança genética, o conhecimento consente que
convivamos socialmente como sujeitos constituídos de idênticas habilidades de
comunicação. O significado é concebido e decorre de uma prática de significações.
Nesse sentido, é necessário distinguir o mundo das coisas e das pessoas, do mundo
das práticas de simbolização e os processos por meio dos quais resultam a
representação, o significado e a língua. Utilizamos o sistema linguístico ou qualquer
sistema para representar nossos conceitos, que transferem o significado. Este
ocorre somente em função de convenções associadas à linguagem, que é um
sistema de códigos do mundo, legitimado por cada cultura (HALL, 1997).
Nesse sentido, se abordará que provavelmente o/a espectador surdo/a
perceberá que todas as personagens do objeto da pesquisa não são surdos, a partir
das seguintes observações:
– Branca de Neve cantarola junto aos passarinhos;
– o príncipe ouve Branca de Neve cantar do outro lado do muro;
Branca de Neve sobe as escadas e caminha aà varanda do castelo para
ouvir as declarações do príncipe;
– Branca de Neve, ao encontrar a casa dos anões, bate na porta e aproxima o
ouvido em direção à porta para ouvir se há algum ruído no interior da casa;
Zangado passa o dedo pelo vel e exclama: “está tudo limpo!”. Após esse
fato, os anões ouvem um barulho;
Dunga, que não consegue falar, faz gestos de chifres e garras, porém esses
fatores não indicam que ele seja surdo ou que se comunique na língua de
sinais.
100
Hall (1997) considera que o conhecimento se produz por discursos e
repercute no comportamento, na constituição das identidades e na interpretação de
determinados períodos históricos. No reconto e recriação de B-R-A-N-C-A D-E
N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S na língua de sinais, o significado provavelmente
resulte no entendimento da possibilidade de ouvir e falar, o que contradiz a
celebração da língua e o orgulho de ser surdo.
Nem por isso se retirará o mérito do referido reconto e recriação. O objeto da
pesquisa significa uma oportunidade de circulação dos saberes subalternos.
Mediante a compreensão de que os sujeitos surdos transitam na fronteira entre a
língua portuguesa e a língua brasileira de sinais, considera-se que, dependendo do
lugar em que se encontram, recorrem a uma ou a outra língua para se comunicar,
para escrever, para contar histórias, e intercambiar saberes e práticas culturais. Esse
movimento requer representações que, para criar sentidos, relacionam-se com uma
série de outros enunciados que com ele coexistem em um espaço historicamente
delimitado. Porém, as histórias, os saberes e as práticas culturais, são constituídos
de múltiplos enunciados.
A literatura produzida na língua de sinais resulta da “virada cultural”, a qual
contribuiu para a mudança do paradigma da homogeneização cultural, desencadeou
o entendimento da diferença cultural, das relações de poder e possibilitou a
interpretação da cultura sob outro olhar, ou seja, várias culturas. O entendimento
da multiplicidade cultural desconstruiu o conceito homogêneo, único e determinante
de cultura e de identidade assim como a visão etnocêntrica de cultura e as várias
formas de poder. A partir disso, a crítica pós-colonial apresenta alternativas para a
circulação dos saberes subalternos.
As reflexões acerca das personagens ouvintes do objeto da pesquisa seguem
os aportes teóricos de Hall (2005) acerca da identidade, que é determinada por um
processo de representação e identificação. Ela surge no diálogo entre os conceitos e
definições que nos são representados pelos discursos de uma cultura, por nossa
vontade, consciente ou não, de retorquir às solicitações dos significados que nos
intimam a adotar posições de sujeito construídas para s pelos discursos. Ainda
segundo o autor, o que designamos “nossas identidades” são os acúmulos, as
101
diversas identificações ou atitudes que abraçamos e vivenciamos, gerados
adjacentes às circunstâncias, sentimentos, histórias e experiências restritas como
sujeitos individuais. Nossas identidades são constituídas na cultura.
As identidades resultam de um processo de identificação que consente nossa
posição no interior dos significados fornecidos nos discursos culturais exteriores.
Nossas subjetividades são restringidas parcialmente de modo discursivo e dialógico.
A partir dessa compreensão, considera-se complexo cultivar a tradicional diferença
entre o “interior” e o “exterior”, entre o social e o psíquico, mediante a interferência
da cultura (HALL, 2005).
Calvino (2007) lembra que, quando Ulisses retornou a Ítaca como um velho
mendicante irreconhecível, quem sabe não fosse mais o Ulisses que foi para Tróia.
A troca de nome para Ninguém salvou sua vida, e somente o cão Argos o
reconheceu imediatamente “como se a continuidade do indivíduo só se manifestasse
por meio de sinais perceptíveis para um olho animal”. Ulisses confirmou sua
identidade de três formas: Para a ama-de-leite, mostrou a cicatriz da garra de javali;
para a esposa, revelou que o leito do casal foi fabricado com raiz de oliveira; para o
pai, relacionou diversas árvores frutíferas.
Pondera Calvino (2007) que os signos o identificaram ora como um caçador,
ora como um marceneiro e ora como um homem do campo. Por conseguinte,
Ulisses não reconhece Ítaca. Somente a intervenção de Atenas o convenceu de que
era sua pátria. A crise da identidade é generalizada na segunda metade da
Odisséia, e a certeza de que as personagens e os lugares são os mesmos é
afiançada somente pela narrativa.
As identidades sugerem invocar a precedência de um passado histórico com
o qual conservariam um nculo. Elas possuem relação com os recursos da história,
da linguagem e da cultura, para a produção não simplesmente do que somos e sim
daquilo em que nos transformamos, o que, por conseguinte, se relaciona com o
modo como somos representados e como a representação simula aquilo que nós
podemos nos representar. As identidades estão relacionadas com o invento da
tradição que nos constrange a interpretar situações que se alteram e ocasionam
uma negociação com nossas “rotas” (GILROY, apud HALL, 2000, p. 109)
102
Compreender que as identidades se constroem no interior e não no exterior
de um discurso requer refletir que as mesmas se originam em lugares históricos e
institucionais exclusivos, no cerne de concepções e práticas discursivas
características, por estratégias e iniciativas particulares. Elas surgem na astúcia de
organizações de poder, delineando a diferença e a exclusão e não do signo da
uniformidade espontaneamente arquitetada, de uma identidade pautada na
inalterabilidade, sem suturas e sem distinção interna (HALL, 2000, p. 109).
Nesse sentido, as identidades se estabelecem por meio da diferença, da
relação com o “Outro”, com a coisa vaga que consiste no seu exterior constitutivo, e
que o significado positivo de qualquer teor pode ser construído
84
. As identidades
podem vigorar continuamente como alvos de identificação e apego, por sua
inclinação para eliminar, para modificar o diferente e considerá-lo desprezível. A
unidade, a homogeneidade interna, que o termo identidade assume como alicerce, é
inadequado, assim como é uma forma construída de fechamento”. Nesse sentido,
toda identidade reclama uma lacuna, mesmo que essa falta seja o outro emudecido
e impronunciado.
Na linha teórica de Hall (2000), a identidade o celebra o núcleo interior do
sujeito que, do princípio ao fim, se desenvolve, sem transformação. Não se concebe,
no conceito de identidade apresentado pelo autor, o “eu verdadeiro e único”, “o
mesmo”. O caráter unificado e imutável da identidade cede espaço para pensar
identidades fragmentadas, múltiplas, edificadas por discursos, práticas e atitudes
convergentes ou divergentes a partir do século XX e que continuamente se
transformam.
Pensar a cultura como uma condição constitutiva da vida social significou a
“virada cultural”. Por conseguinte, a linguagem entra em evidência para as práticas
de representação e assume uma prerrogativa na constituição e movimento do
significado. O autor enfatiza que a virada cultural acarreta:
[...] uma inversão da relação que tradicionalmente tem se pensado que
exista entre as palavras que usamos para descrever as coisas e as próprias
84
Derrida (1981), Laclau (1990) e Butler (1993), citados por Hall (2000, p. 110, grifos do autor).
103
coisas. A suposição usual do senso comum é a de que os objetos existem
“objetivamente”, como tal, no mundo” e, assim, seriam anteriores às
descrições que deles fazemos. Em outras palavras, parece normal
presumirmos que as “moléculas” e os “genes precedam e sejam
independentes dos seus modelos científicos; ou que a “sociedade” exista
independentemente das descrições sociológicas que dela se fazem. O que
estes exemplos salientam é o modo como a linguagem e os objetos
descritos por ela tem sido radicalmente revista. A linguagem passou a ter
um papel mais importante. Teóricos de diversos campos filosofia,
literatura, feminismo, antropologia cultural, sociologia – têm declarado que a
linguagem constitui os fatos e não apenas os relata. (DU GAY, 1994, apud
HALL, 1997, p. 13)
A “virada cultural” se localiza na revisão do conceito relacionado à linguagem,
haja vista que a cultura começa a ser pensada na totalidade dos diversos sistemas
de categorização e díspares concepções discursivas utilizadas pela língua para
conceder significado às coisas. O próprio termo “discurso” refere-se às afirmações
em todos os âmbitos e ministra uma linguagem com a qual se articulam tópicos,
produzindo modelos alegóricos de conhecimento que o institucionalizados e
orientam as práticas sociais. Conforme ressalta Hall (1997, p. 15), “dizer que uma
pedra é apenas uma pedra num determinado esquema discursivo ou classificatório
não é negar que a mesma tenha existência material, mas é dizer que seu significado
é resultante não de sua essência natural, mas de seu caráter discursivo”.
A concepção do sujeito surdo como fisicamente deficiente resultou na
atribuição de características indesejáveis de sua personalidade: O surdo elabora
raciocínios confusos, tem comportamentos impulsivos e integra uma comunidade
específica, um mundo à parte, sendo inconveniente e responsável por perturbações
sociais. “O silêncio é sinônimo de vácuo”. O silencioso denota o lugar sombrio do
sujeito surdo. Este não pode participar de uma conversa, apreciar a música, ouvir
anúncios, utilizar o telefone. Além desses “não”, acrescenta-se que o possui
ocupação, está isolado em uma redoma. (LANE, 1992, p. 23)
Ao se apresentar em B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S
todas as personagens não-surdas, a referida produção poderá desencadear no/a
espectador/a a imagem de que “o silêncio é sinônimo de vácuo”, mesmo que seja
tecida na língua de sinais. As considerações de Bhabha (2005, p. 105/117)
contribuem para que se reflita sobre os modos de narrar e os processos de
104
subjetivação que ocorrem nas estratégias discursivas como os estereótipos.
Segundo o autor, é imprescindível questionar os estereótipos em seus efeitos e em
seu caráter fixo, duradouro e repetido. “O estereótipo uma simplificação porque é
uma forma presa, fixa, de representação”.
Silva (2009, p. 58) reflete que se fizéssemos uma análise dos discursos
coloniais sobre o sujeito surdo, consideraríamos que possivelmente esse sujeito
acolheria como corretos os discursos estereotipados e se identificaria com a imagem
do que seria bom para ele, ou seja, o mundo ouvinte. Nesse sentido, o sujeito surdo
abdicaria de significados que o identificam como surdo e se aproximaria de práticas
que ratificam sua provável capacidade de ouvir. Segundo o autor, esse modelo
estereotipado de sujeito surdo ainda predomina, segundo as narrativas dos
intelectuais surdos
85
, na educação, na família e no trabalho. Acrescentaria que a
análise do autor pode ser extensiva a B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E
A-N-Õ-E-S.
85
Em sua tese de doutorado, Silva (2009) investiga, a partir das narrativas de educadores-
-intelecutais-surdos, de que forma a política da diferença subverte as relações de poder na
educação de surdos.
CAPÍTULO IV
LITERATURA E ESCRITA
DA ARTE EM MOVIMENTO
Nossas histórias não são totalmente acessíveis aos historiadores. Sua metodologia os limita ao terreno da
crônica colonial. Nossa crônica precede as datas, precede os fatos conhecidos: somos as Palavras atrás da
escrita. Só o saber poético, o saber ficcional, o saber literário, em resumo, o saber artístico pode descobrir-nos,
compreender-nos e trazer-nos evanescentes, de volta à ressurreição da consciência.
(Bernabé e outros)
Os estudos literários discorrem sobre literatura de diversos modos. Pelo
menos o consenso mediante todo estudo literário, qualquer que seja sua finalidade,
é a questão inicial da significação que o estudo literário produz ou não de seu objeto,
ou seja, o texto literário. Compagnon aborda a impossibilidade de discorrer sobre a
questão do que seja, para o estudo literário, explícita ou tacitamente, a literatura,
sem que se considere a relação entre o texto literário com a intenção, a realidade, a
recepção, a língua, a história e o valor (COMPAGNON, 2001, p. 29).
“Literário” e “literatura” são dois termos apreciados com ressalva, na medida
em que o uso de ambos não afiança consonância do que seja ou não literário. O
termo literatura emergiu no século XIX. Compagnon (2001, p. 30) avalia que até
então, a etimologia se referia às inscrições, à escritura, à erudição, ou ao
conhecimento das letras. A tentativa de uma definição se apresentava em vários
escritores: “Qu’est-ce que l’Art?” (“O que é a Arte?”; Tolstoi, 1898); “Qu’est-ce que la
Poésie?” (“O que é a Poesia?”; Jakobson, 1933-1934); Qu’est-ce que la Littérature?
(“O que é a Literatura?”; Charles Du Bos, 1938; Jean-Paul Sartre, 1947).
Barthes abdicou da busca de uma significação de literatura, tendo em vista
sua inferência de que “Literatura é aquilo que se ensina, e ponto final”. Ao mesmo
106
tempo em que considera a frase de Barthes como uma “bela tautologia”, o autor
reflete sobre a possibilidade de uma abordagem diferente de “Literatura é o que se
chama aqui e agora de literatura?” (COMPAGNON, 2001, p. 30)
Na linha teórica de Compagnon (2001) a literatura ou o estudo literário estão
constantemente engessados entre duas abordagens invencíveis: a histórica (o texto
como documento) e a linguística (o texto como fato da língua e a literatura como arte
da linguagem). Na década de 60, um novo debate entre antigos e modernos
reacendeu uma remota discussão entre adeptos de uma definição interna de
literatura e simpatizantes de uma definição externa de literatura. O autor avalia que
avalia ambas como aceitáveis, porém possuem limites.
Ao ponderar sobre a ingenuidade da pergunta “O que é literatura?”, Genette
sugeriu distinguir dois regimes literários complementares: um regime constitutivo,
garantido pelas convenções, logo fechado – um soneto e um romance pertencem de
direito à literatura, mesmo que ninguém os leia e um regime condicional, logo
aberto, dependente de uma apreciação revogável a inclusão, na literatura, dos
Pensamentos, de Pascal, ou de A Feiticeira, de Michelet, depende dos indivíduos e
das épocas.
Compagnon (2001, p. 31) após fazer referência a Genette e aos dois regimes
literários acima considera que a questão “O que é literatura?” não parece ser tão
simples de ser respondida e todos os capítulos de sua obra “continuarão a busca de
uma definição satisfatória de literatura”. O referencial teórico desse autor permite a
compreensão do motivo pelo qual perdure no século XXI a pergunta “O que é
Literatura?”. A concepção de tudo o que é impresso ou manuscrito e de que todos
os livros que contêm a biblioteca seja literatura se atribui à noção clássica de “belas-
letras”, que abrangia o que a retórica e a poética produziam a ficção, a história, a
filosofia, a ciência e a arte de persuadir pelas palavras.
A literatura, como fronteira entre o literário e o não literário, modifica-se de
acordo os períodos históricos e as culturas. A literatura ocidental no culo XIX
emerge mediante a decadência do clássico princípio de gêneros poéticos, vinculado
a Aristóteles, que envolvia o gênero épico e o gênero dramático e recusava o gênero
lírico, considerado um gênero menor, por seu caráter não fictício nem imitativo e
107
tendo em vista a expressão do poeta na primeira pessoa. Segundo Compagnon
(2001, p. 32), ao longo do século XIX, ocorreu uma reviravolta desse cenário. O
épico e o dramático abdicaram do verso e passaram a adotar a prosa; a poesia lírica
transformou-se em sinônimo de toda poesia.
A partir disso, passou-se à compreensão de literatura coligada ao romance,
ao teatro e à poesia como o sentido moderno de literatura e intrínseco do
romantismo, ou seja, da afirmação da relatividade histórica e geográfica do
bom-gosto, em contraste ao preceito clássico de imortalidade e da universalidade do
cânone estético. Circunscrita à prosa romanesca e dramática e à poesia lírica, a
literatura foi compreendida, ademais, em suas vinculações com a nação e com sua
história; “as literaturas, são antes de tudo, nacionais” (COMPAGNON, 2007, p. 33).
Ainda na linha de compreensão do autor, no século XIX a literatura se refere aos
grandes escritores. O cânone clássico, representação de algo a ser reproduzido à
sua semelhança, ou seja, as obras a imitar, cede espaço a uma significação de
literatura a partir da consideração dos professores ou os homens admiráveis. Nesse
sentido, os romances, os dramas, os poemas, a correspondência, as anotações
irrelevantes concerniam à literatura, porque foram escritos por pessoas ilustres.
Compagnon (2001, p. 33) revela que a identificação da literatura com o valor
literário constitui uma importância que resulta na recusa de outros romances,
dramas e poemas. A partir da compreensão de que “todo julgamento de valor
repousa num atestado de exclusão”, o autor reflete que estimar um texto como
literário implica dizer que outro o é. Esse “estreitamento institucional da literatura
no século XIX”, conclui, implica no desconhecimento de que, para quem lê, aquilo
que é sempre literatura, “seja Proust ou uma fotonovela, e negligencia a
complexidade dos níveis de literatura como níveis de língua em uma sociedade.
A literatura, no sentido restrito, seria somente a literatura culta”.
A questão acima, característica do estreitamento institucional da literatura no
século XIX se reconfigurou no culo XX. Ao lado do romance, do drama e da
poesia lírica, ascenderam o poema em prosa, a autobiografia e as narrativas de
viagem, mediante o título de paraliteratura. Situação similar ocorreu com os livros
108
infantis, o romance policial e as histórias em quadrinhos (COMPAGNON, 2001,
p. 34).
Em relação ao que denomina a extensão da literatura, avalia:
O termo literatura tem, pois, uma extensão mais ou menos vasta segundo
os autores, dos clássicos escolares à história em quadrinhos, e é difícil
justificar sua ampliação contemporânea. O critério de valor que inclui tal
texto não é em si mesmo, literário, mas ético, social e ideológico; de
qualquer forma extraliterário. Pode-se, entretanto definir literariamente a
literatura? (COMPAGNON, 2001, p. 35)
A pergunta da citação acima vem acompanhada de outras duas: “O que faz a
literatura? Qual o seu traço distintivo?”. O autor as utiliza para introduzir a
compreensão da função e da forma da literatura. As significações de literatura,
conforme sua função compreendida como individual ou social, privada ou publica,
sugerem uma relativa estabilidade.
De acordo com Compagnon (2001, p. 35), Aristóteles discorria sobre
katharsis, ou purificação de sentimentos como o medo e a compaixão. Mesmo em
sua complexidade, ela se refere a uma experiência particular das paixões
associadas à arte poética. Do mesmo modo, Aristóteles depositava o encanto de
aprender na origem da arte poética: “instruir ou agradar (podesse aut delectare) ou
ainda instruir agradando, serão as duas finalidades ou a dupla finalidade que
Horácio reconhecerá na poesia, qualificada de dulce et utile (Ars Poetica, v. 333 e
343).
Ao indicar as considerações do parágrafo anterior a uma acepção humanista
da literatura como conhecimento especial e distinto do conhecimento filosófico e
científico, Compagnon (2001) indaga: qual é esse o conhecimento que somente a
literatura concede ao ser humano? Avalia o autor que Aristóteles, Horácio e a
tradição clássica compreendiam que esse conhecimento tem por desígnio o que é
geral e provável, a dóxa, as sentenças e ximas que permitem compreender e
regulamentar a conduta social. Esse conhecimento que se refere à individualidade e
à singularidade na visão romântica. Segundo esse autor, Paolo e Francesca em A
Divina Comédia descobrem a paixão um pelo outro durante a leitura conjunta dos
109
romances da Távola Redonda; em Dom Quixote, Alonso Quixano fantasia ser um
cavaleiro medieval após ler os romances de cavalaria; em Madame Bovary, Emma,
extasiada, com rapidez os romances sentimentais. As referidas obras,
visivelmente paródicas, confirmam a função de aprendizagem concedida à literatura.
De acordo com Compagnon (2001, p. 36) a compreensão humanista de
conhecimento literário foi apontada como idealista de um universo de um grupo
reservado, legitimador do indivíduo burguês e vinculado à particularização da cena
de leitura. Essas ponderações da crítica marxista foram acompanhadas da
proposição de associar literatura e ideologia, tendo em vista que se concebia a
literatura como auxiliar na constituição de uma conformidade social.
Matthew Arnold, na Inglaterra, em sua obra Cultura e Anarquia (1869), assim
como Ferdinand Brunetière e Lanson, na França, no final do século XIX, acolheram
a ideia referida no parágrafo anterior, ao associarem o declínio da religião com o
apogeu da ciência. Nesse permeio, à literatura, seria conferida, mesmo que
temporariamente, e mediante o estudo literário, a empreitada de municiar uma moral
social. Nesse sentido, a partir da visão de um universo materialista ou anarquista, a
literatura emerge “como a última fortaleza contra a barbárie, [...] chega-se assim, a
partir da perspectiva da função à definição canônica da literatura” (COMPAGNON,
2001, p. 37)
Abaixo apresenta-se a função questionadora da literatura nas palavras do
autor:
“É difícil identificar Baudelaire, Rimbaud ou Lautréamont com os cúmplices
da ordem estabelecida. A literatura confirma um consenso, mas produz
também a dissensão, o novo, a ruptura. Segundo o modelo militar da
vanguarda, ela precede o movimento, esclarece o povo. [...] A literatura
precederia também outros saberes e práticas: os grandes escritores (os
visionários) viram, antes dos demais, particularmente antes dos filósofos,
para onde caminhava o mundo: “O mundo vai acabar” anunciava
Baudelaire em Fusées (Lampejos) no início da idade do progresso e,
realmente o mundo não cessou de acabar. A imagem do visionário foi
revalorizada no século XX, num sentido político, atribuindo-se à literatura
uma perspicácia política e social a todas as outras práticas. (COMPAGNON,
2001, p. 37).
110
Segundo Compagnon (2001, p. 38), as considerações realizadas a partir da
função direcionam para uma dificuldade aparentemente sem resolução. A literatura
pode permanecer em conformidade ou não com a sociedade e acompanhar o
movimento ou antecedê-lo. A pesquisa da literatura por via institucional induz a uma
inclinação em que o significado se modifica segundo as circunstâncias ou as
analogias com outros elementos e valores.
Compagnon (2001) retoma aos antigos clássicos para a compreensão da
literatura a partir da forma do conteúdo. Da antiguidade à metade do século XVIII, a
arte poética era determinada como imitação ou representação (mimésis) de
atuações humanas pela linguagem e, dessa maneira, instituiu uma fábula ou uma
história (muthus), dois termos presentes em toda a Poética de Aristóteles e que
atribuíram sentido à ficção. Segundo ele, “o poeta deve ser poeta de histórias mais
que de metros, pois é em razão da mimésis que ele é poeta, e o que ele representa
ou imita (mimeisthai) são ações”. (ARISTÓTELES 1451b 27, citado por
COMPAGNON 2007, p. 38)
Ao significar a poesia por meio da ficção, Aristóteles recusava na Poética a
poesia didática, a satírica e a lírica. Esta última, segundo ele, “põe em cena o eu do
poeta e não preserva senão os gêneros épico (narrativo) e trágico (dramático)”.
Genette discorria sobre uma “poética essencialista” ou ainda “constitutivista”, ou
seja, o modo mais indubitável para a poesia esquivar-se do perigo de dissolver-se,
na aplicação usual da linguagem e conservar a obra de arte pela ficção narrativa ou
dramática.
Após discorrer sobre estas questões, Compagnon avalia que tanto Aristóteles
quanto Genette propuseram um regulamento pragmático, característico dos
conteúdos literários; no caso, a ficção como modelo, ou seja, enquanto forma do
conteúdo denominada de ficcionalidade. Esse cenário se modifica no século XIX
com a poesia rica, que passa a representante da poesia e a “ficção como conceito
vazio, não mais uma condição necessária e suficiente de literatura, embora sem
dúvida alguma, seja sempre como ficção que a opinião corrente considera
globalmente a literatura.” Esse panorama inicia na segunda metade do século XVIII,
com o surgimento de uma acepção de literatura em oposição à de ficção. Ao
111
exacerbar o belo, concebido na Crítica da Faculdade do Juízo (1790) de Kant e na
visão romântica, em objeção à linguagem habitual e utilitária, considerava-se a
literatura unicamente “o uso estético da linguagem escrita” (COMPAGNON, 2001,
p. 39).
A separação da linguagem literária e da linguagem cotidiana permanece no
formalismo. A primeira como perceptível e a segunda como imperceptível “significam
mais do que dizem”, observava Montaigne, em relação às palavras poéticas. A
linguagem cotidiana é espontânea, o seu uso é referencial e pragmático. A
linguagem literária é sistemática, o seu uso é imaginário e estético. Nesse sentido,
compreende Compagnon (2001, p. 40) que a literatura cultiva, sem uma finalidade
prática, o material linguístico. Analisa o autor que, do romantismo a Mallarmé, a
literatura resume-se numa intransitividade extrema e se transforma em mera
asserção de uma linguagem e em um retorno sobre si mesma. Em todo caso,
continua, os antigos, os modernos, os clássicos e os românticos estiveram às voltas
para uma explicação precisa e universal da literatura, ou da poesia, como arte
verbal.
Os formalistas russos denominaram de literariedade o uso propriamente
literário da língua ou a propriedade distintiva do texto literário. Segundo Roman
Jakobson, “o objeto da ciência literária não é a literatura, mas a literariedade, ou
seja, o que faz de uma determinada obra uma obra literária [...] o que faz de uma
mensagem verbal uma obra de arte”. (JAKOBSON, apud COMPAGNON, 2001,
p. 40). Na compreensão do formalismo quanto à autonomia do estudo literário,
principalmente em relação ao historicismo e ao psicologismo triviais aplicados à
literatura por meio da significação da especificidade de seu objeto, havia uma
oposição dos formalistas quanto à definição de literatura como documento, ou à
acepção a partir da função de representação do real ou de expressão do autor. Os
formalistas salientavam os aspectos literários considerados exclusivamente literários
e distinguiam a linguagem literária da linguagem não-literária ou cotidiana.
Viktor Chklovski, em L’Art comme Procé A arte como procedimento
(1917), revela que os formalistas adotavam como critério de literariedade a
desfamiliarização ou o estranhamento (ostranénie): a literatura, ou a arte em geral,
112
considerava, revigoram a suscetibilidade linguística dos leitores por meio de
metodologias que desordenam os formatos frequentes e involuntários de sua
compreensão. O efeito de desfamiliarização, segundo Jakobson (1935), decorre do
comando de certos artifícios que, tomados do conjunto dos traços linguísticos,
assinalam a literatura como experimento dos “possíveis da linguagem”, segundo
expressão de Valéry
86
.
Nesse sentido Compagnon (2001, p. 41) avalia que o formalismo, amparado
pela linguística e revitalizado pelo estruturalismo, desobrigou o estudo literário de
compreensões alheias à condição verbal do texto. O estudo literário, ao explorar os
gêneros, os tipos, as figuras, pressupõe a possibilidade de uma ciência da literatura,
em oposição a uma estilística das diferenças individuais. Na investigação por uma
significação de literatura, o formalismo percorreu o caminho da dicotomia, porém
elegeu a compreensão, a forma e a desfamiliarização e abdicou da extensão, da
função e da representação. Nesse percurso, concedeu à literariedade uma condição
necessária e suficiente da literatura. Após essa reflexão, Compagnon interroga se
esse seria o ponto final para a definição de literatura.
Na transcrição a seguir, o autor intenta esclarecer uma contradição em
relação à questão da literariedade:
Afastemos [...] esta primeira objeção: como não existem elementos
linguísticos exclusivamente literários, a literariedade não pode distinguir um
uso literário de um uso não literário da linguagem. O mal-entendido vem [...]
do novo nome que Jakobson, [...] no seu lebre artigo “Linguistique et
Poétique” Linguística e poética (1960) deu à literariedade. Ele, então
denominou “poética” uma das seis funções que distinguia no ato da
comunicação (função expressiva, poética, conotativa, referencial,
metalinguística e fática), como se a literatura (o texto poético) abolisse as
cinco outras funções, e deixou de fora do jogo os cinco elementos aos quais
elas eram geralmente ligadas (o locutor, o destinatário, o referente, o código
e o contato), para insistir unicamente na mensagem em si mesma. Tal como
um de seus artigos mais antigos La Nouvelle Poésie Russe A nova
poesia russa (1919) e “La Dominante” A dominante (1935), Jakobson
esclarecia, entretanto, que, se a função poética é dominante no texto
literário, as outras funções não são, contudo eliminadas. Mas desde 1919,
Jakobson afirmava ao mesmo tempo em que, em poesia, a “função
comunicativa [...] é reduzida ao mínimo”, e que “a poesia é a linguagem na
86
Citados por Compagnon, 2001, p. 40.
113
sua função estética” como se as outras funções pudessem ser esquecidas.
(COMPAGNON, 2001, p. 42, grifos no original).
Prossegue o autor, em sua análise, que a literariedade ou desfamiliarização
não é decorrência do emprego de elementos linguísticos adequados, mas de um
arranjo diferente, ou seja, mais compacto, conexo e complexo dos mesmos
elementos linguísticos habituais. Somente a metáfora não faria a literariedade de um
texto, mas uma organização metafórica mais compacta, a qual colocaria em um
plano secundário as outras funções linguísticas. Nesse sentido, Compagnon (2001,
p. 43) compreende que as formas literárias não se distinguem das formas
linguísticas, contudo sua disposição as torna mais manifestas. Não se trata de
presença ou de falta, de tudo ou coisa nenhuma. A dosagem é o elemento que
produz o comprometimento do leitor.
Em continuidade às suas considerações, o autor manifesta que, mesmo esse
discernimento maleável de literariedade é passível de contestação. Se por um lado
determinados textos literários não se distanciam da linguagem cotidiana, é possível
restabelecê-los, considerando que “o cúmulo da desfamiliarização é a familiaridade
absoluta”. Porém a significação de literariedade em âmbito circunscrito, como
organização peculiar, não a torna menos incoerente; por outro lado, não somente os
traços analisados como mais literários se localizam do mesmo modo na linguagem
não-literária de maneira aparente.
A literariedade fixou a licença poética, mas não a literatura. Analisa
Compagnon que o texto de Jakobson sobre “A Dominante” era claro quanto ao
conceito da desfamiliarização e possuía implicações igualmente éticas e políticas,
sem as quais a literariedade se tornaria infundada, meramente ornamental e com
finalidade lúdica. Tanto a literariedade quanto qualquer definição de literatura resulta
no envolvimento de uma preferência extraliterária. A significação de literatura implica
em um valor ou uma norma e, em função disso, em todo estudo literário. Os
formalistas russos selecionavam manifestamente os textos aos quais melhor se
amoldavam sua visão de literariedade, uma vez que essa ideia procedia de uma
114
razão indutiva, que se consideravam como inovadores da poesia futurista.
(COMPAGNON, 2001, p. 44)
Para Compagnon, posteriormente o estruturalismo, a poética e a narratologia,
entusiasmados no formalismo, também estimaram o desvio e a autoconsciência
literária, em objeção à convenção e ao realismo. Barthes, em S/Z propôs diferenciar
o legível (realista) e o escriptível (desfamiliarizante) como valorativa. Nem por isso,
reflete Compagnon, toda concepção teórica conscienciosa ou não está imbuída por
um sistema de predileção. A literariedade recobria o sentido constitutivo da literatura,
não seu sentido condicional. A literatura denominada constitutiva concebia a poesia
e excluía a ficção narrativa ou dramática. A partir disso, Jakobson considerou que “a
literariedade, sendo um fato plural, exige uma teoria pluralista”.
A ficção, por meio de um critério relacionado à forma do conteúdo, no século
XIX, abrange a prosa não-ficcional, condicionalmente literária: autobiografia,
memórias, ensaios, história, código civil, anexada ou não à literatura, a partir das
preferências individuais ou coletivas. “O mais prudente”, concluía Genette, “aparente
e provisoriamente, [é] atribuir a cada um sua parte de verdade, isto é, uma porção
do campo literário”. Após essa referência, Compagnon adverte sobre a inexistência
de uma essência da literatura, pois se trata de uma realidade complexa,
heterogênea e mutável.
Na busca de um critério de literariedade, reflete o autor, nos deparamos com
uma dificuldade de ordem racional, aparentemente sem solução, a que a filosofia da
linguagem contribuiu para que nos habituássemos. Portanto, a acepção de um termo
como literatura não proporcionará mais que um conjunto de ocorrências em que os
usuários de uma língua aceitam utilizá-lo. Os textos literários são aqueles que uma
sociedade emprega, e não necessariamente remete-os à sua origem. A sociedade
que, pelo uso que faz dos textos, delibera se são literários. (COMPAGNON, 2001,
p. 45)
Um efeito dessa significação ínfima, entretanto, é inoportuno, considera o
autor. Ao nos satisfazermos com essa diferenciação da literatura, o estudo literário
não podeser qualquer arrazoado sobre esses textos, mas precisará ser aquele
cujo intuito é atestar, ou redarguir, sua inserção na literatura. E se a literatura e o
115
estudo literário se definem fortemente pela decisão de que, para certos textos, sua
origem não possui a mesma pertinência que para outros, a decorrência desse fato
será que todo exame que tem por objeto recuperar as conjunturas originais da
produção de um texto literário, o momento histórico em que se descreveu o texto e a
recepção do primeiro blico pode ser importante, mas não concerne ao estudo
literário.
A partir das reflexões sobre a não-pertinência da contextualização histórica, o
autor interroga sobre a mesma questão em relação ao estudo linguístico ou
estilístico. A visão de estilo refere-se à linguagem usual e necessidade de
aprimorá-la. A investigação para uma significação de estilo é tão controversa quanto
para uma busca de uma acepção de literatura. Ela se estabelece continuamente
sobre um invariante de oposição entre a norma e o desvio ou da forma e do
conteúdo. As variações estilísticas não são descritíveis a o ser como diferenças
de significação. Sua pertinência é linguística, não propriamente literária. Nesse
sentido, considera:
[...] a literatura é uma inevitável petição de princípio, Literatura é literatura,
aquilo que as autoridades (os professores, os editores) incluem na literatura.
Seus limites, às vezes se alteram lentamente, moderadamente, [...] mas é
impossível passar de sua extensão à sua compreensão, do cânone à
essência. Não digamos, entretanto, que o progredimos, porque o prazer
da caça, como lembrava Montaigne, não é a captura, e o modelo de leitor,
como vimos, é o caçador. (
COMPAGNON,
2001, p. 46, grifos no original)
Casanova (1999, p. 33) contribui para a compreensão da língua como um dos
principais artefatos do capital literário. O prestígio dos textos escritos em
determinadas línguas existe no universo literário e desencadeia a consideração de
línguas mais literárias que outras. Nesse sentido, a literatura se alia à língua,
identificando-a como a língua da literatura, ou seja, a “língua de Racine” ou a “língua
de Shakespeare” à própria literatura.
Na linha teórica de Casanova, uma ampla literariedade atrelada a uma língua
conforma uma extensa tradição que depura, transforma e expande a cada geração
as possibilidades cerimoniais e estéticas da língua; ela constitui e afiança a
116
comprovação do caráter notavelmente literário do que se escreve nessa língua,
transformando-se em um “certificado” literário.
O valor literário ligado a certas línguas e os efeitos propriamente literários
ligados às traduções dependem do capital linguístico acoplado a uma língua e ao
prestígio vinculado à sua utilização no universo escolar, político e econômico. Esse
valor específico deve ser radicalmente distinto do que os analistas políticos do
“sistema linguístico mundial” descrevem hoje com os indícios de centralidade de
uma língua.
Dependendo da história da língua, da nação política e da literatura do espaço
literário, o patrimônio linguístico literário também está ligado a um conjunto de
procedimentos técnicos elaborados ao longo da história literária, de pesquisas
formais, de formas e coerções poéticas ou narrativas, de debates teóricos e de
invenções estilísticas que enriquecem a gama as possibilidades literárias. Desse
modo, a riqueza literária e linguística é eficiente ao mesmo tempo nas
representações e nas coisas, na crença e nos textos (CASANOVA, 1999, p. 34).
Na tentativa de fazer a língua e a poesia russa alcançarem o reconhecimento
universal, o poeta Velimir Klebnikov, em 1910, proferiu a realidade de uma
desigualdade literária das línguas, a que denominou de “mercados verbais”, ou seja,
as desigualdades do comércio linguístico e literário. Klebnikov considerou que “as
línguas servem a causa da inimizade e, como singulares sons de intercâmbio, para a
influência tua de mercadorias intelectuais, dividem a humanidade plurilíngue em
campos de luta alfandegária, em uma série de mercados verbais, além dos limites
de cada um dos quais uma língua pretende a hegemonia. E, com isso, as línguas,
como tal, servem à desunião da humanidade e travam guerras invisíveis
87
.
Seria necessário estabelecer um indicativo de autoridade literária que
pudesse explicar essas lutas linguísticas às quais se entregam, sem nem mesmo
saber disso, apenas por sua pertença a determinado rumo linguístico, todos os
atores e todos os jogadores do “grande jogo” da literatura, pela mediação dos textos
das traduções, das consagrações e dos anátemas literários. Esse indício levaria em
87
Klebnikov (1910, apud CASANOVA, 1999, p. 35).
117
consideração a antiguidade, a “nobreza”, o número de textos literários inscritos
nessa língua, o número de textos reconhecidos universalmente, o número de
traduções. Desse modo, continua Casanova, seria necessário opor as línguas de
“grande cultura”, ou seja, as línguas de forte literariedade, às línguas de “grande
circulação”. As primeiras o as lidas não apenas por aqueles que as falam, mas
também por aqueles que acham que os que escrevem nessas línguas ou são
traduzidas para elas merecem ser lidos. São por si “autorizações” para circular
literariamente, pois atestam a pertença a um “lar” literário.
Nesse sentido, um dos meios para apurar esse indicativo seria o poder
propriamente literário que uma língua poderia transpor para o universo literário.
Existem de fato critérios objetivos que permitem avaliar o lugar de uma língua no
interior do que Abram de Swaan denominou como “o sistema linguístico mundial em
emergência”. Deste modo, ele compreende o conjunto das línguas mundiais como
um sistema em formação cuja coerência se prende ao multilinguismo. Para ele é
possível avaliar a centralidade de uma língua isto é, o volume de seu capital
propriamente linguístico a partir do número de locutores prurilíngues que a falam:
Quanto maior o número de poliglotas que falam determinada língua, mais a língua é
central, ou seja, dominante.
88
Em outras palavras, mesmo no espaço político, o número de locutores de
uma língua não basta para estabelecer seu caráter central em um sistema descrito
como “figuração floral”, ou seja, um sistema em que as línguas da periferia são
ligadas ao centro pelos poliglotas e pelos tradutores. Será possível medir a
literariedade de uma língua não pelo número de escritores ou de leitores dessa
língua, mas pelo número de poliglotas literários ou protagonistas do espaço literário,
editores, intermediários cosmopolitas, descobridores cultos, que a praticam e pelo
número de tradutores literários tanto para exportação quanto para importação que
fazem os textos circularem a partir dessa língua literária ou em sua direção.
uma literatura produzida na escrita de sinais provavelmente pouco
valorizada pelo capital literário. Essa mesma literatura ainda não possui um lugar em
88
Swann (citado por Casanova, 1999, p. 36).
118
algumas livrarias e em muitas bibliotecas. Não seria uma questão de responder a
quantidade de leitores para a referida literatura. Não há indícios de que os dois livros
apresentados tiveram ampla divulgação em comparação à variedade de livros e sua
ampla divulgação na mídia.
Inicialmente poderá ser compreendido que, ao apresentar a referida literatura,
a pesquisa se desvia da proposição inicial em relação à produção na língua de
sinais de B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S. Mas os sujeitos
surdos não possuem um único recurso para recontar e recriar contos da literatura
oral. Há uma outra possibilidade, pela escrita de sinais.
Os sujeitos surdos brasileiros vivenciam a imposição da pureza monotópica
da língua nacional, ou seja, todos os que vivem neste território deve escrever e falar
em português. Na luta pelo reconhecimento e celebração de sua língua, o povo
surdo constrói sua história local com uma língua diferente do português, produzindo
os contos da literatura oral, com o diferencial de que pode escrever e pensar na
língua de sinais.
Ao trilhar esse caminho, demonstram que a questão está distante de
conservar o mesmo princípio de pureza e coerência da língua portuguesa como
língua hegemônica e colonial
89
. Os sujeitos surdos reivindicam a escrita de “uma
língua à qual possam ligar sua identidade, capaz de comunicar as realidades e
valores que lhes são fiéis”
90
. Esse fato se evidencia em produções literárias na
escrita da língua de sinais, no caso específico desta pesquisa, relacionados aos
contos da literatura oral.
A comunidade surda venceu uma etapa significativa do reconhecimento da
língua brasileira de sinais
91
. Reflito que se trata de uma vitória parcial, tendo em
vista que não foi permitido aos sujeitos surdos escreverem na língua de sinais.
Mesmo com o avanço de se reconhecer que a LIBRAS “como meio legal de
89
O parágrafo é uma adaptação ao referencial teórico de Mignolo (2003, p. 331).
90
Anzaldúa (1987, citado por MIGNOLO, 2003, p. 353) ao se referir ao espanhol chicano como uma
língua viva.
91
O termo comunidade surda foi utilizado por entender que o reconhecimento legal da Língua de
Sinais foi resultado de uma luta que envolveu sujeitos surdos e sujeitos ouvintes.
119
comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora,
com estrutura gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmissão de
ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil”, não se
permite que a LIBRAS substitua a modalidade escrita da língua portuguesa
92
.
A literatura produzida na escrita da língua de sinais no sistema SignWriting,
de escrita visual de sinais foi desenvolvida por Valérie Sutton, como mencionado.
A pesquisadora elaborou um sistema de notação de coreografias, a partir dos
passos da dança, denominado de DanceWriting. Intrigada pelas possibilidades do
sistema para registrar orientações e movimentos do corpo no espaço, na década de
70, ela começou os primeiros ensaios sobre a possibilidade de fazer uso do sistema
como uma maneira de registrar “a mais fascinante e refinada de todas as
coreografias, a língua de sinais”. Atualmente seu uso ocorre em vinte e oito países e
se trata de uma escrita visual para a comunicação escrita cotidiana entre os surdos.
(CAPOVILLA, 2004, p. 260)
Os aportes teóricos de Sutton permitem compreender que a escrita visual
direta de sinais SignWriting não se fundamenta em uma Língua de Sinais específica.
Não obstante pode ser utilizada para escrever as Línguas de Sinais de diferentes
áreas geográficas. O SignWriting, continua a autora, refere-se à comunidade surda e
a comunicantes da língua de sinais. “Como a argila usada para criar uma estátua
que perdurará por gerações futuras, o SignWriting pertence aos surdos para moldar
sua própria Língua de Sinais, sua Cultura, sua História”
93
.
Em relação ao registro da língua de sinais por meio da escrita própria,
Capovilla (2004, p. 255) avalia que sua importância, na medida em que a escrita
própria de um povo, agrega os sujeitos de um território geográfico e contribui para a
constituição da sua identidade. Segundo esse autor, a inexistência de registro de um
povo de sua própria língua, resulta que não se tem o domínio sobre ela e que é
imprescindível para, de modo lido e seguro, promoverem seu desenvolvimento
cultural e organização social. Isso desencadearia em um povo sem memória e
92
Refiro-me à Lei 10436 de 24/04/2002.
93
Esse parágrafo de Valerie Sutton faz parte da apresentação do Dicionário Enciclopédico Trilíngue
da Língua Brasileira de Sinais (ver referências) p. 21.
120
subordinados a feudos e a mediadores cujas informações seriam efêmeras e
incertas. Além desses fatores, seriam vulneráveis a distorções e rumores.
No sentido de compreender as considerações do autor supracitado, Mignolo
(2003, p. 351) relata um fato referente às culturas ameríndias. As primeiras histórias
de culturas ameríndias apreciadas em âmbito europeu foram registradas por sujeitos
da cultura que inseriram a literalidade ocidental para os nativos. Os artifícios desse
povo para historiar o passado e difundi-lo às novas gerações sofreram as
implicações da literalidade, tanto por uma nova aprendizagem de escrita e leitura
quanto pela recepção de narrativas idealizadas por sujeitos que naquele momento,
introduziram o alfabeto.
Os historiógrafos espanhóis continua Mignolo, agiram no crédito de que o
alfabeto era qualidade indispensável para a escrita historiográfica. Mesmo
distinguindo que os nativos possuíam estratégias de registrar o passado, por
narrativas orais ou em escrita picto-ideográfica não a acolhiam como um equivalente
ameríndio da escrita historiográfica. Os historiógrafos espanhóis, a concluírem que
os ameríndios o possuíam historiografia, se autonomearam para registrar e dar
uma procedência lógica às narrativas dos ameríndios que eram consideradas
totalmente desconexas.
Nas fissuras do domínio colonial os sujeitos surdos produzem literatura na
escrita de sinais e possivelmente seja a garantia para que as gerações futuras
tenham acesso aos registros de uma história que “não se limite ao terreno da
crônica colonial” e representa um grande potencial de ressignificação da imagem
baseada em duas ou três tendências de normalidade que desencadeou o juízo de
valor de que os sujeitos surdos são anormais. Na diferença
94
e na subalternidade
colonial os sujeitos surdos por meio da elaboração artística encontram na arte o
94
Mignolo (2003, p. 37) considera como “diferença colonial a classificação do planeta no imaginário
colonial/moderno praticada pela colonialidade do poder, uma energia e um maquinário que
transformam diferenças em valores”.
121
caminho para apresentar a possibilidade de invocar os silêncios da história oficial,
habitar na sua língua, apresentar uma nova estética.
95
recontos da literatura oral na escrita de sinais. sujeitos surdos que
provavelmente não a conhecem e talvez na mesma proporção pouco conhecem a
língua portuguesa. Problema do povo surdo, uma minoria linguística. Problema de
uma literatura menor ou de uma literatura subalterna. É possível recontar histórias
da literatura oral como também é possível registrar narrativas e experiências do
povo surdo na escrita da língua de sinais. Nesse sentido, duas produções serão
apresentadas: Cinderela Surda e Rapunzel Surda. As duas produções se
diferenciam de B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S em vários
aspectos. Cinderela Surda e Rapunzel Surda são recontos que envolvem
personagens surdos e personagens ouvintes; há um texto na escrita de sinais,
seguido de sua tradução na língua portuguesa; os livros com os respectivos
recontos possuem ilustração.
Palo e Oliveira (1992, p. 15) avaliam a importância da ilustração para
apresentar como são as personagens da narrativa, ou seja, a aparência física e
psicológica, ou ainda para materializar cenas, pontos de conflito que se deseja
armazenar na memória do leitor. Por meio do estímulo da ilustração, hábitos
associativos são criados e inscritos no pensamento da criança.
Cinderela e o Príncipe são surdos. Ela aprendeu a língua de sinais com
surdos/as nas ruas de Paris. Ele aprendeu a língua de sinais francesa com o abade
L’Epée. Karnopp (2006) revela que esse fato presente na história evidencia a
maneira como a maioria desses sujeitos aprende a língua de sinais. Para fortalecer
as considerações da autora, retomam-se os aportes teóricos de Sacks (1990, p. 39)
de que a língua de sinais emerge no encontro desses sujeitos.
95
O parágrafo e os dois anteriores foram elaborados a partir da abordagem de Mignolo (2003, p.
332) sobre os autores do Éloge, analisada como uma proposição de apresentar uma nova estética
e que se trata de uma epistemologia que ultrapassa sua definição disciplinar. Nesse sentido, o
crioulismo é concebido e formulado como um “aniquilamento da falsa universalidade, do
monolinguismo e da pureza” (BERNAet al., 1993, p. 90, citado por MIGNOLO). Assim, se
apresenta no crioulismo a possibilidade e a necessidade de produzir conhecimento sem manter os
princípios disciplinares de um monolinguismo das línguas hegemônicas do conhecimento.
122
O encontro do abade Charles Michel l’Epée (1712-1789), no século XVIII, com
os surdos que, por falta de trabalho, se encontravam nas ruas de Paris, é
considerado importante para o povo surdo, tendo em vista que desencadeou um
processo de mudança significativa na qualidade de vida do surdo. A preocupação do
Abade em relação aos surdos era a de que, por não conhecerem os preceitos
religiosos católicos, morreriam sem a absolvição dos pecados. Esse contato, a
princípio de cunho religioso, despertou o interesse de l’Epée por aprender a língua
de sinais francesa. A partir disso, desenvolveu o que denominou de sinais
metódicos, uma espécie de convergência da língua de sinais dos surdos das ruas de
Paris com a gramática sinalizada francesa. O abade fundou a primeira escola para
surdos em 1760, que, mais tarde, veio a se tornar o Instituto Nacional para
Surdos-Mudos de Paris. Os alunos surdos, ao final de cinco ou seis anos de
formação, dominavam tanto a língua de sinais francesa quanto o francês e outras
línguas em sua modalidade escrita.
A estratégia política de demonstração pública à sociedade parisiense divulgou
a língua de sinais e permitiu a comprovação da exatidão do método acerca da
aprendizagem dos surdos. Em 1789, após sua morte, os professores surdos já
formados haviam fundado 21 escolas para surdos pela Europa. O método de l’Epée
permitiu aos surdos se tornarem escritores, engenheiros, filósofos, professores e,
acima de tudo, agentes transformadores e multiplicadores (MORAIS, 2007).
O domínio da língua de sinais francesa e do francês escrito, provavelmente, é
resultado da crença na superioridade da língua francesa que, segundo Diderot
(1713-1784) em Sua Carta sobre os surdos-mudos para o uso dos que ouvem e
falam, afirmava que o francês deveria ser falado em sociedade e nas escolas de
filosofia. Considerava que a língua francesa era a única que podia expressar a
verdade e que as demais nguas eram fábula e mentira. Considerava ainda que o
francês instruía, esclarecia e convencia, ao passo que o grego, o latim, o italiano e o
inglês persuadiam e enganavam. Dizia: “Falai ao povo em grego, latim e italiano,
mas falai em francês ao sábio” (DIDEROT, 1751/1993, p. 43).
A ação e a localização de Paris no reconto Cinderela Surda se diferencia
daquilo que Jolles (1976, p. 202) indica com uma das alegorias do conto, ou seja, a
123
ação incide sempre “num país distante, longe, muito longe daqui” e “há muito, muito
tempo”; “o lugar é em toda e nenhuma parte, a época sempre e nunca”. Cinderela
Surda se diferencia nesse sentido provavelmente pela importância atribuída a esse
país na literatura como também sua importância para o povo surdo, que promovia
banquetes comemorativos em Paris. Perlin (2003, p. 112) indica que o primeiro
banquete foi realizado em 1834, sob organização de Ferdinand Berthier (1803-?)
96
para celebrar cem anos de nascimento de L’Epée. Esses acontecimentos se
transformaram em aglutinação desse povo para combater orientações de que o
sujeito surdo deveria falar. O combate à imagem da deficiência também era uma
forma de sobrevivência.
Paris, considerada a capital do universo literário, favorecida pelo maior
prestígio literário do mundo, é uma “função” imprescindível, conforme Valéry, da
estrutura literária. Esse lugar ajusta qualidades a priori antitéticas, conciliando
inexplicavelmente todas as representações históricas da liberdade. Caracteriza a
revolução, a derrocada da monarquia, os direitos dos seres humanos, o que
concedeu a essa cidade a celebridade de condescendência aos estrangeiros e
hospitalidade aos refugiados políticos. É considerada a capital das letras, das artes,
do luxo, da moda, a capital intelectual, instituidora da democracia política. É uma
cidade imaginada em que se apregoa a liberdade artística
97
. Liberdade política,
amabilidade e intelectualidade delineiam uma condição de conformação inusitada.
Sua convenção histórica e mítica consentiu de maneira factual imaginar ou eternizar
a liberdade da arte e dos artistas:
Sem 89, diz, a supremacia de Paris é um enigma: “Roma é mais majestosa,
Trier, mais antiga, Veneza, mais bela, Nápoles mais graciosa, Londres,
mais rica. Então, o que tem Paris? A revolução. Em toda terra, Paris é o
96
Silva (2009, p. 82) indica que Berthier foi educador surdo na escola Pública de Paris criada pelo
abade L’epée em 1760.
97
As considerações sobre Paris foram elaboradas com os aportes teóricos de Casanova (1999). Os
teóricos são citações e os grifos são da referida autora.
124
lugar onde se ouve fremir melhor o imenso velame invisível do progresso.”
(HUGO, 1867 citado por CASANOVA, 1999, p. 41)
98
Em minha pequena pátria, o nome Paris ressoava como palavra de lenda.
Mais tarde, minhas leituras e experiências não a despojaram desse brilho.
Era a cidade de Heinrich, a cidade de Jean-Cristophe, a cidade de Hugo de
Balzac, de Zola, a cidade de Marat, Robespierre, Danton, a cidade das
eternas barricadas da Comuna, a cidade do amor, da luz,da irreverência e
do prazer. (GLASER, 1951, citado por CASANOVA, 1999, p. 41)
99
Os recursos literários, exclusivos em âmbito europeu e a singularidade da
Revolução Francesa concedem a Paris autoridade na constituição do espaço
literário mundial. Benjamin manifesta como particularidade histórica de Paris a
reivindicação de liberdade política, inteiramente convencionada à criação da
modernidade literária. Para esse teórico, equivalente ao Vesúvio, Paris é um
compacto ameaçador e retumbante, um foco de revolução continuamente ativado:
“Da mesma forma que as vertentes do Vesúvio que tornaram pomares paradisíacos
graças às camadas de lava que as cobrem, a arte, a vida mundana, a moda
desabrocham como em nenhum outro lugar sobre a lava das revoluções”. Para
discorrer sobre literatura e revolução, Benjamin retoma à lembrança o “casal
maldito” de Baudeleire e Blanqui, que representa esse encontro.
100
Mediante as considerações dos teóricos acima citados sobre Paris, Casanova
(1999, p. 42) avalia que essa representação extraordinária foi intensamente
alicerçada na própria literatura. A constituição infatigável de uma representação
literária de Paris, as infinitas narrativas romanescas e poéticas desse lugar nos
séculos XVIII e XIX resultaram no que a autora denomina de “literariedade da
cidade. “Existe uma representação fabulosa de Paris, que os romances de Balzac,
98
Hugo, V. “Introduction”. Paris: Guide par lês principaux écrivains et artistes de la France. Paris,
1867, p. XVIII e XIX. Casanova esclarece que publicação da obra com a direção de Louis Ulbach,
teve a colaboração de 125 homens e mulheres. A publicação se assemelha à abertura da segunda
Exposição universal de Paris.
99
Glaser, Georges. Secret et Violence. Paris, 1951, p. 157.
100
Benjamin, Walter (citado por Casanova p. 42). Paris capitale du XIX siècle. Lê Livre dês Passages,
Paris. Éditions du Cerf, 1989, p. 108.
125
de Eugène e de Ponson du Terrail, contribuíram particularmente para pôr em
circulação”.
101
Paris, de fato, tornou-se literária a ponto de entrar na própria literatura, por
meio das lembranças romanescas ou poéticas, transformando-se em
quase-personagem de romance, o local romanesco por excelência (O ventre de
Paris, O Spleen de Paris, Os mistérios de Paris, Notre-Dame de Paris, O pai Goriot,
Esplendores e misérias das cortesãs, As ilusões perdidas, La Curée...). Paris,
intensamente descrita, reproduzida, literariamente tornou-se A literatura. Sua
descrição literária propagou-se e ostentou seu crédito literário e revolucionário,
alicerçado na unanimidade literária. “A cidade dos cem mil romances”, segundo a
expressão do próprio Balzac, encara literariamente a literatura. “Tudo ocorre como
se a cidade da literatura conseguisse converter literariamente acontecimentos que
marcam época no universo político, reforçando ainda mais, por essa metamorfose, a
crença e o capital parisienses” (CASANOVA, 1999, p. 43).
O reconto e recriação de Cinderela Surda traz uma abordagem do objeto
perdido. A heroína não perde o sapatinho de cristal. Uma das luvas que ela usa para
ir ao baile fica na o do príncipe. Lebedeff (2005, p. 179) considera que “as mãos
são muito mais importantes e o cair da luva emprega muito mais dramaticidade para
os surdos do que perder um sapato.”
102
Em Rapunzel Surda, está presente uma possível interação entre as
personagens surdas e as personagens ouvintes. Na transcrição abaixo,
verificaremos a abordagem sobre a realidade de uma criança surda e sua
convivência com a família de maioria sujeitos ouvintes e a comunicação por sinais
“caseiros” presente no referencial teórico de Sánchez (1990):
101
Caillois, Roger (citado por Casanova, p. 42). Puissance du roman. Um exemple: Balzac”,
Approches de l’Imaginaire, Paris, Gallimard, 1974, p. 234.
102
Citado por Karnopp (2006).
126
127
Passaram-se anos, Rapunzel cresceu e a bruxa percebeu que a menina
não falava, mas tinha uma grande atenção visual. Rapunzel começou a
apontar para o que queria e a fazer gestos para muitas coisas. A bruxa
então descobriu que a menina era surda e começou a usar alguns gestos
com ela. (p. 12)
A experiência visual se manifesta em Rapunzel quando o Príncipe, para
chamar a atenção sua atenção, sinaliza:
128
Um dia, o príncipe resolveu passear pelo reino. No caminho, encontrou a
torre e observou Rapunzel e a bruxa conversando. Viu que as duas tinham
uma comunicação diferente, usando gestos. Quando a bruxa desceu da
torre pelas tranças de Rapunzel, o príncipe aproveitou e logo fez sinais para
que Rapunzel olhasse para ele.
O príncipe começou a fazer sinais e Rapunzel tentou entender aqueles
sinais diferentes.
Rapunzel ofereceu suas tranças para o príncipe subir e eles ficaram
conversando, usando sinais e gestos. (p. 18 e 20, grifo meu)
129
Rapunzel está isolada em uma torre, e seu contato ocorre somente com a
bruxa que é ouvinte. Karnopp (2006) explica que a referida situação chama a
atenção para os estudos de aquisição da linguagem, que consideram a importância
da criança surda desenvolver a língua de sinais. Esse desenvolvimento ocorre de
forma espontânea quando a criança surda convive com a língua de sinais à sua
volta, tendo em vista que se encontra em um ambiente linguístico adequado. As
crianças surdas produzem um balbucio manual, mais ou menos na mesma idade em
que as crianças ouvintes começam a falar. Sucessivamente, aos enunciados com
um sinal, seguem-se enunciados com dois sinais e, a partir da combinação de
sinais, as crianças começam depois a formar sentenças simples.
Os livros infantis foram elaborados trazendo para o primeiro plano a escrita de
sinais, seguida do texto na ngua portuguesa. Esse fator também é importante para
contribuir para o aprimoramento de B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E
A-N-Õ-E-S. Nesse sentido, pode-se indicar a diferença entre o objeto desta pesquisa
e Cinderela Surda em relação a “ouvir o cuco” e “ver o relógio”:
[...] Enquanto isso Branca de Neve dançava e cantava com os sete anões.
Dançaram e cantaram tanto que Branca de Neve cansou e se sentou. Mas
logo o cuco tocou[...]
[...] Cinderela olhou para o relógio da parede e viu que era quase meia
noite. (p. 24)
No decorrer da pesquisa, foi enfatizado que o sujeito surdo transita na
fronteira entre a língua brasileira de sinais e a língua portuguesa. Esse fato se
evidencia tanto no objeto da pesquisa quanto nas duas produções. Cinderela Surda
e Rapunzel Surda apresentam o diferencial da escrita de sinais
103
. Silveira, Rosa e
Karnopp, ao recontarem as referidas histórias infantis, demonstram que é possível
uma produção literária desprovida do “monolinguajamento colonial e nacional”
(MIGNOLO (2003, p. 340).
103
Stumpf (2008) e Silva (2009) desenvolveram suas pesquisas, respectivamente, de doutorado e de
mestrado tendo como tema a escrita de sinais e sua importância para o povo surdo.
130
Hall (2005, p. 114) considera as culturas híbridas a partir da visão da
colonização e das relações verticais entre colonizadores e colonizados e de como
essas e outras configurações de relações de poder foram desarticuladas e
descentradas. Em sua conjuntura global e transcultural, a colonização demudou o
despotismo étnico em uma tática cultural cada vez mais precária. As “colônias, ou as
extensões do mundo “pós-colonial” se transformaram em regiões “diaspóricas”
104
.
Nesse sentido, em todos os lugares insurgem identidades culturais que não
são fixas, são transitórias e assumem diferentes posições. Por conseguinte, as
diferentes tradições culturais procedem de entrecruzamentos culturais cada vez
mais comuns na globalização. Nessas regiões diaspóricas, encontram-se os sujeitos
dispersados de sua terra natal, que mantêm um intenso vínculo com seus lugares de
origem e suas tradições. Ao perceberem a impossibilidade de um retorno ao
passado, a sobrevivência desses sujeitos no novo lugar se vincula às negociações
culturais, o que não significa a assimilação total da cultura ou a perda completa de
suas identidades (HALL, 2006, p. 88).
Mesmo que esses sujeitos cultivem a cultura, a linguagem, as tradições e
suas próprias histórias, considera Hall que a condição de sujeitos diaspóricos é
resultado de várias histórias e culturas interconectadas. Pertencem a uma e, ao
mesmo tempo, várias “casas”. Sujeitos que habitam culturas hibridas vivenciam as
consequências de diásporas instituídas pelas migrações pós-coloniais. Habitam, no
mínimo, duas identidades, convivem com duas linguagens culturais, traduzem e
negociam entre elas (HALL, 2008, p. 89).
104
Hall explica que o termo diáspora deriva na história moderna do povo judeu. Porém, para os
caribenhos, a versão da história no Velho Testamento é significativa, do “povo escolhido”
violentamente levado à escravidão no Egito; de seu sofrimento nas mãos da “Babilônia”; da
liderança de Moisés seguida pelo Grande êxodo, o movimento do povo de Jah, que se libertou do
cativeiro e retornou à terra prometida. Diáspora expressa à dispersão dos povos que se afastam
da terra de procedência com o fim de consolidar a vida em outras áreas geográficas, por coação
ou por livre escolha, a população abdica de seu lugar, porém se mantém apegada às origens que
cultiva, à tradição, à cultura, pela conservação da língua, da religião, da maneira de refletir e atuar.
Porém, na diáspora, continua o autor, a cultura de origem continuamente se transforma com a
absorção e ingerência de novos costumes na identidade individual e coletiva. Os sujeitos que
vivenciam a diáspora preservam o desejo e a esperança do retorno ao lugar de origem.
131
Segundo Bhabha (2003, p. 314), a tradução cultural desfaz reverências de
pressupostos evidentes da hegemonia cultural. Essa ação estabelece uma
exclusividade contextual, uma distinção histórica no interior das posições
minoritárias. O termo tradução pode ser apreendido como “transportar entre
fronteiras”.
105
Nesse sentido, como habitantes de sociedades diaspóricas, os sujeitos
surdos convivem com várias culturas e, principalmente, com a ideia do
monolinguajamento colonial e nacional. O entrecruzamento cultural se apresenta na
literatura produzida que envolve a língua de sinais, a escrita de sinais e a língua
portuguesa. Estamos diante de um modo de ser, de pensar e de escrever em uma
língua subalterna, na perspectiva subalterna e utilizando e incorporando a língua
hegemônica (MIGNOLO, 2003, p. 332).
O autor supracitado apresenta a gnose liminar como uma reflexão critica
sobre a produção do conhecimento, a partir tanto das margens internas
106
do
sistema mundial colonial/moderno quanto das margens externas
107
. Enquanto a
epistemologia é uma conceitualização e reflexão sobre o conhecimento articulado
em coesão com as línguas nacionais e a formação do estado-nação, a gnose liminar
se constrói em diálogo com a epistemologia a partir dos saberes que foram
subalternizados nos processos imperiais coloniais. A gnose liminar é a razão
subalterna lutando para colocar em primeiro plano a força e a criatividade de
saberes, subalternizados durante um longo processo de colonização do planeta.
Em oposição à proposta do estado-nação, do objeto do desejo das línguas
nacionais, a literatura produzida na língua de sinais envolvendo a língua portuguesa
105
A citação se refere a Hall (2006, p. 89), que, por sua vez, faz referência a Rushdie (1991).
106
Mignolo (2003, p. 34) considera as margens internas: os conflitos imperiais, as línguas
hegemônicas, a direcionalidade de traduções. O deslocamento da Espanha de sua posição
hegemônica pela Inglaterra no século 17, a entrada dos Estados Unidos e o gradativo
deslocamento da Inglaterra de sua posição hegemônica imperial, no acordo das nações imperiais
em 1898, são exemplos do autor para a compreensão do conceito de margem interna.
107
Os conflitos imperiais com culturas colonizadas assim como as etapas subsequentes da
independência ou descolonização são exemplos de margem externas, ou seja, as fronteiras da
Espanha com o mundo islâmico, assim como com os incas ou os astecas no século 16, ou as que
existiram entre os britânicos e os indianos no século 19, ou as lembranças da escravidão no
concerto das histórias imperiais (MIGNOLO, 2003).
132
se assemelha ao amor ao bilinguajamento, ou seja, um estilo de vida no interior de
línguas em um mundo transnacional, um amor próximo ao amor pelo lugar entre
línguas, pela desarticulação da língua colonial, o entusiasmo de produzir uma
literatura subalterna, o amor pela impureza das línguas nacionais, e como
repreensão à “generosidade” do poder hegemônico que reconhece a ngua de um
povo, porém não lhe possibilita nela escrever
108
.
108
A elaboração do parágrafo consiste em uma adaptação, a partir do referencial teórico de Mignolo
(2003, p. 371). O autor se refere aos projetos educacionais de Paulo Freire de resistência e de
conscientização. Segundo ele, “o amor seria o corretivo necessário à violência dos sistemas de
controle e opressão”.
CONSIDERAÇÕES
Se não contarmos nossas histórias a partir do lugar em que nos encontramos, elas serão narradas desde
outros lugares, aprisionando-nos em posições, territórios e significados que poderão comprometer
amplamente nossas possibilidades de desconstruir os saberes que justificam o controle, a regulação e o
governo das pessoas que não habitam espaços culturais homogêneos.
(Marisa Vorraber Costa)
Calvino (2007, p. 10) considera que “os clássicos
109
são livros que
desempenham uma influência especial assim como se impõem como inesquecíveis
e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-os como
inconsciente coletivo ou individual”. Contudo, a emoção que advém da leitura pela
primeira vez de um clássico se diferencia na juventude e na maturidade. Segundo o
autor, a juventude comunica a ação de ler como a qualquer outra experiência um
sabor e uma autoridade reservados. Na maturidade, as minúcias e os significados
provavelmente sejam mais considerados.
As leituras da juventude podem ser pouco proveitosas pela sofreguidão,
desatenção, inexperiência das instruções para o uso e pouca vivência. As leituras
podem ser ao mesmo tempo formativas, na medida em que concedem uma
configuração às experiências futuras, municiam padrões que permitem
comparações, categorizações, valores, conglomerados que prosseguem ainda que
nos relembremos raro ou nada do livro que lemos na juventude. A releitura do livro
na idade madura possivelmente ocorra semelhantemente ao reencontro com formas
que compõem as nossas estruturas essenciais e cuja procedência se perdeu.
A existência de um tempo na maturidade destinado a reler os livros
considerados mais importantes na juventude se apresenta em Calvino (2007, p. 11)
109
O autor esclarece que não há a necessidade de justificar se “o uso do termo clássico requer fazer
distinções de antiguidade, de estilo, de autoridade [...] Aquilo que distingue o clássico no discurso
que estou fazendo vale tanto para uma obra antiga quanto para uma moderna, mas com um
lugar próprio para numa continuidade cultural” (CALVINO, 2007, p. 14).
134
como uma atitude respeitável. Os livros, ao mesmo tempo em que permanecem, se
transformam, tendo em vista uma perspectiva histórica diferente. A releitura envolve
que passou um tempo, mudanças e acréscimos de experiências provavelmente
ocorreram no/a leitor/a que reler. O autor aprecia esse reencontro com o livro como
um novo acontecimento.
Os clássicos, como livros que transportam as marcas das leituras que
antecederam à nossa e os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que
atravessaram, não essencialmente ensinam algo que não conhecíamos. Pode
ocorrer de nos depararmos com alguma coisa que sabíamos ou acreditávamos
saber, contudo ignorávamos que um clássico poderia abordar. Mesmo assim, se
trata de um deslumbre que resulta em contentamento. Geralmente essa situação se
apresenta com a descoberta de uma procedência e de uma pertinência. Cada um de
nós possui uma biblioteca ideal do que considera como clássicos. Calvino (2007, p.
12) avalia que ela deveria conter uma parte de livros que foram por nós lidos e
que nos contaram e outra parte de livros que almejamos ler e pressupomos recontar.
A partir dos aportes teóricos de Calvino (2007), reflito que meu primeiro
contato a narrativa Branca de Neve e os sete anões, ocorreu na infância, por meio
do livro e ficou guardada na memória. Naquela época, provavelmente mesmo sem
os aportes teóricos de Jolles (1971) sobre a disposição mental do conto, ou seja, “a
ideia de que tudo deva passar-se no universo de acordo com a nossa expectativa”, o
sentimento de justiça foi maior do que perceber as minúcias.
O reencontro na maturidade ocorreu com Branca de Neve e os Sete Anões
novamente no livro e com B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S em
vídeo, na Língua de Sinais. Nesse momento, a emoção teve como companheiros a
observação dos pormenores e os artefatos culturais do povo surdo. Nesse sentido,
considero que se trata de um novo acontecimento. As duas produções em livro ou
em vídeo trazem as marcas das leituras que precederam a essa e os vestígios que
deixaram nas culturas pelas quais passaram. Porém, com o diferencial que, para a
pesquisa, me deparei com questões anteriormente ignoradas e o contentamento se
misturou à novas sensações.
135
Acrescida de leituras que não se apresentam na pesquisa, a nova sensação
na releitura dos clássicos destinados aos adultos e posteriormente às crianças é a
banalização do mal. O universo diabólico se apresenta em B-R-A-N-C-A D-E
N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S representado pela madrasta má, vaidosa, que
não admite a beleza da enteada.
Na cena da transformação da rainha em bruxa admito que meu olhar se
direcionou à perfeição do desempenho e criatividade da contadora de história. A
bruxa não está vestida de preto, nem seu nariz é enorme e possui uma verruga na
ponta. Sua expressão facial é sorridente de contentamento, tendo em vista que fará
uma porção mágica em seu caldeirão para envenenar Branca de Neve por meio de
uma maçã. A bruxa não se desloca até à casa dos anões montada em uma
vassoura. Ela ai de barco ou canoa e rema a noite inteira. Toda essa contemplação
foi desprovida da ideia de que o mal se tornou comum na literatura destinada às
crianças.
B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S, Cinderela Surda, e
Rapunzel Surda abordam a representação do mal. Possivelmente o sentimento de
justiça predomina a ponto de não se perceber a sua permanência nas narrativas. Os
aportes teóricos de Jolles (1971) desencadearam a reflexão sobre uma possível
narrativa da literatura oral sem a contenda entre o bem e o mal. Provavelmente a
literatura oral demonstrasse que o bem e o mal se apresentam desde a criação do
mundo e que a vitória do mal é momentânea; no final triunfa o bem.
A partir dos aportes teóricos de Patrini (2005), o conto se transmite de
indivíduo a indivíduo, de povo a povo, e se constituiu como algo imprescindível à
vida dos seres humanos que, com o decorrer do tempo, elegeram pela experiência.
Compreendo que, provavelmente, contos que desconhecemos. Portanto não se
poderia dizer que o mal se apresenta em toda forma artística da literatura oral que
conhecemos. Como se trata de uma pesquisa sobre a literatura oral recontada e
recriada na língua de sinais, o que se apresenta nesse momento são apenas
reflexões para a continuidade da pesquisa, com uma abordagem sobre a
importância ou não do mal na literatura destinada às crianças.
136
Em relação a recontar e recriar, a referência de Sacks (1990) ao livro de Nora
Ellen Groce sobre Martha's Vineyard, somada à condição de ser surda e à
celebração da língua de sinais, foram fundamentais para pensar na possibilidade de
recontar B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S.
Como proposição a um novo reconto e recriação de B-R-A-N-C-A D-E
N-E-V-E E O-S S-E-T-E A-N-Õ-E-S, poderia apresentar Branca de Neve, a rainha
má, o príncipe, o espelho, o caçador e os animais como surdos e os sete anões
como ouvintes. De forma semelhante ao ocorrido em Martha's Vineyard, talvez todas
as personagem se comuniquem na língua de sinais. Sugere-se ainda que se
mantenham em vídeo, as legendas na língua portuguesa, com o acréscimo que o
vídeo seja acompanhando de um livro com a narrativa na escrita de sinais.
Sacks (1990, p. 50) observa que, na pesquisa de Ellen Groce sobre a ilha
Martha's Vineyard, os moradores mais antigos lembravam com carinho de parentes,
vizinhos e amigos, sem relatarem que eram surdos. Esse fato emergia a partir da
pergunta realizada pela pesquisadora se a pessoa a quem se referia o entrevistado
era surdo ou surda. A resposta era dada após um momento para reflexão seguido
da resposta: “Ele/Ela era mesmo surdo/a” e eram apenas considerados como amigo,
vizinho, pescador, não como deficiente, especial, afastado.
Sacks (1990) revela que “os surdos em Martha's Vineyard amavam, casavam,
ganhavam a vida, pensavam e escreviam”. Mesmo depois da morte do último surdo
morador da ilha, os moradores que não eram surdos preservaram a comunicação na
língua de sinais
110
. Relata Sacks que, após conhecer a pesquisa de Groce, a
curiosidade de conhecer essa “ilha encantada” se aguçou. Sua experiência na ilha é
relatada a seguir:
Constatei como alguns dos habitantes mais antigos ainda preservavam o
Sinal e se deliciavam com seu uso. Minha primeira visão desse fato foi
inesquecível. Parei no velho armazém geral em uma manhã de domingo,
em West Tisbury, vi meia dúzia de idosos conversando na varanda. Podiam
ser antigos vizinhos conversando [...] até que de repente, de maneira
inesperada, todos passaram a se comunicar por Sinal. Sinalizaram por um
minuto, riram, depois voltaram a falar. Nesse instante compreendi que fui ao
110
Em sua pesquisa, Sacks (1990) quando se refere à língua de sinais, utiliza o termo Sinal.
137
lugar certo. E falando com uma das pessoas mais velhas ali, descobri uma
outra coisa: aquela senhora de noventa anos, ainda lúcida, de vez em
quando caía em devaneio. Ao fazê-lo, dava a impressão de que tricotava,
com as mãos em constante movimento. Porém, sua filha que também
conhecia o Sinal, explicou-me que ela estava pensando e não tricotando [...]
estava pensando em sinal. Mesmo no sono, [...] aquela senhora sonhava
em Sinal. [...] Sinal, eu estava agora convencido, era uma linguagem
fundamental do cérebro. (SACKS, 1990, p. 52).
A partir das considerações do autor acima, passei a refletir sobre a
possibilidade de recontar e recriar B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E
A-N-Õ-E-S mediante a possibilidade de que não se faça uma diferenciação entre
personagens surdos e personagens ouvintes e que todos se comuniquem na língua
de sinais. Porém, a leitura de Wilcox e Wilcox (2005, p. 88) permitiu retomar à
proposta anterior. O autor e a autora avaliam que para os sujeitos pelo menos
dois tipos, ou seja, “nós” e “eles”. As crianças iniciam a vida admitindo que todos são
iguais. Com o passar dos anos, elas começam a perceber que diferenças sobre
quem somos “nós” e quem são “eles”. Esse fator se torna esclarecedor a partir de
Padden e Humphries (1998), que se referem à experiência de Sam Supalla, surdo e
oriundo de uma família surda:
Conforme seus interesses se voltavam para o mundo fora de sua família,
ele percebeu uma garota que vivia ao lado e que parecia ser da sua idade.
Depois de algumas tentativas de encontro, eles se tornaram amigos. Ela era
uma companheira agradável, mas havia o problema de sua “estranheza”.
Ele não podia falar com ela da mesma forma que falava com seus irmãos e
pais. Ela parecia ter uma dificuldade extrema de compreender até mesmo
os gestos mais elementares. Após umas poucas tentativas frustradas de
conversa, ele desistiu e passou a apontar quando queria ir a algum lugar.
Ele ficou curioso sobre essa enfermidade estranha que a amiga tinha, mas
uma vez eles haviam encontrado uma forma de interagir, ele contentou-se
em se acomodar às necessidades peculiares da garota. Um dia, Sam
lembra-se claramente, ele finalmente compreendeu que sua amiga era de
fato excêntrica. Eles estavam brincando na casa dela, quando de repente
sua mãe chegou até eles e começou a mover sua boca animadamente.
Como num passe de mágica, a garota pegou a casinha de bonecas e levou-
a para outro lugar. Sam ficou intrigado e voltou para casa para perguntar a
sua mãe de que mal, exatamente, sua amiga vizinha sofria. Sua mãe
explicou que ela era OUVINTE e, por esse motivo não sabia sinalizar; ao
invés disso, ela e sua mãe FALAVAM, elas moviam suas bocas para se
comunicarem. Sam então perguntou se essa garota e sua família eram as
únicas pessoas “desse tipo”. Sua mãe explicou que não, na verdade, quase
todos eram como seus vizinhos. Sua própria família que era incomum. Foi
um momento memorável para Sam. Ele lembra-se de ter pensando como
138
era esquisita a garota ao lado e, se ela era OUVINTE, como as pessoas
OUVINTES deviam ser esquisitas também.
A “virada cultural” que contribuiu para a mudança radical do paradigma da
homogeneização cultural, desencadeou o entendimento da diferença cultural e das
relações de poder, possibilitando a interpretação da cultura sob outro olhar, ou seja,
não uma única cultura e sim culturas. O entendimento da multiplicidade cultural
permitiu a desconstrução do conceito homogêneo, único e determinante de cultura e
de identidade. Nesse sentido, a literatura produzida na língua de sinais, a partir do
caráter híbrido das sociedades, precisa incentivar a convivência com a diferença.
Na abordagem sobre Arguedas, que utiliza palavras castelhanas com
declinações quíchua e palavras castelhanas escritas segundo a pronúncia dos
índios e mestiços, e sobre Anzaldúa que refaz o quadro das práticas linguísticas e
literárias escrevendo em espanhol, em inglês e em nahuatl, Mignolo (2003) avalia
que o linguajamento do escritor e da escritora situa a interação entre indivíduos e se
estabelece como oportunidade de língua.
As considerações de Mignolo (2003) somadas às de Hall (1997/2005) e
Bhabha (1998) sobre as sociedades diaspóricas e o hibridismo desencadearam a
mudança de uma visão provavelmente essencialista sobre a soletração manual de
palavras da língua portuguesa. A princípio compreendia-a como uma imposição da
língua portuguesa, uma forma imperiosa de subalternização da língua de sinais e
evitava incluí-la na sinalização. Atualmente percebo que se trata de um ponto de
encontro entre a língua portuguesa e a língua brasileira de sinais.
Em relação à escrita de sinais, a pesquisa de Silva (2009) permitirá entender
dois fatores. O primeiro é que, no Brasil, essa escrita é muito recente. E o segundo,
consequência da primeiro, é que poucos sujeitos surdos a conhecem:
[...] o principal da escrita de sinais são os registros. A questão não é se a
escrita em português é melhor ou pior que a escrita de sinais [...] A gente
tem que ter a liberdade de escrever em escrita de sinais ou em português. É
importante transitar entre as línguas e lembrar que a maioria dos surdos não
sabe a escrita da língua de sinais. A língua portuguesa na modalidade
escrita ainda é a língua dominante no meio surdo, talvez porque a
experiência dos surdos na escrita de sinais ainda é muito recente.
(Narradora 1, p. 128, grifos meus).
139
No passado [...] como professor de Língua de sinais, eu pensava em língua
de sinais, mas tinha que escrever em português e também ensinava dessa
forma. Eu percebi que os alunos tinham dificuldades, traumas em relação a
sua escrita na língua portuguesa. Então me perguntei: como professor,
deveria obrigar os alunos a escrever em português? o. Alguns alunos
tinham uma proficiência maravilhosa em língua de sinais, mas não
conseguiam escrever nada em língua portuguesa. Quando conheci a escrita
de sinais ela me pareceu estranha, mas a partir do momento em que fui me
aprofundando e começando a aplicar em sala percebi que ela está bem
mais próxima da forma como os surdos estruturam o seu pensamento. [...]
Quando eu leio um texto em escrita de sinais eu penso em língua de sinais.
Eu processo esse conhecimento em língua de sinais. [...] mas é importante
lembrar que a escrita de sinais é muito recente e o português existe
muito tempo. (Narrador 2, p. 128, grifos meus).
A escrita de sinais é muito recente e tudo o que é novo parece que
certa instabilidade. [...] ela está passando por um período de transição. A
escrita de sinais deve ser ensinada principalmente para as crianças surdas
que estão começando a adquirir a língua de sinais. Se elas aprenderem a
escrita de sinais poderão se desenvolver bem mais rápido do que acontece
com as crianças surdas atualmente. [...] é um problema sério essa confusão
da escrita da ngua portuguesa e da língua de sinais, talvez porque os
surdos começam a aprender a sua própria língua tardiamente. [...] a escrita
de sinais tem uma influência sobre minha vida, ela me ajuda a pensar,
a ver, a refletir a partir da própria língua de sinais. A escrita de sinais me
resgata me puxa para esse pensamento reflexivo. Porém, se se
desenvolver como qualquer outra língua escrita, ela nos trará as histórias
surdas e outros registros magníficos dos surdos que até então não têm sido
registrados no papel. Isso vai contribuir com as futuras gerações surdas.
Elas poderão ter registros que nós não tivemos. Isso é emocionante.
(Narradora 6, p. 128/129, grifos meus).
Mesmo que poucos sujeitos surdos conheçam a escrita de sinais, sugere-se
que se inicie um movimento de ampla divulgação e incentivo a sua aprendizagem,
desde a educação básica, com a literatura produzida na língua de sinais como
elemento de incentivo e divulgação. A mesma comunidade surda que, por anos,
reivindicou o reconhecimento da língua de sinais, deve promover ações para o
reconhecimento da escrita de sinais. Além desses fatores, penso que nas escolas,
nas associações, nos locais em vias blicas em que os sujeitos surdos se
encontram, o conto que se transmite de sujeito a sujeito, de povo a povo e
permaneceria na memória a partir do incentivo ao “momento do conto”.
Os sujeitos surdos produzem literatura a partir da visão de mundo da
experiência visual. O significado não é fixo e acabado, os caminhos que se pretende
140
percorrer nem sempre são propiciados pelas situações, que se apresentam como
uma caixa de surpresa. Faço referência a B-R-A-N-C-A D-E N-E-V-E E O-S S-E-T-E
A-N-Õ-E-S e às incontáveis vezes que contemplei essa produção, cada uma com
um objetivo diferente, ou para ter a certeza de que aquilo que eu vi poderia ser visto
de outra maneira em outro momento.
Seguindo as referências de James (s. d.) de que a contemplação sugere que
um par de olhos, observa, diferencia, aprecia, assimila “um mais onde o outro
menos, preto onde outro branco, grande onde outro pequeno,
grosso onde outro fino” –, solicitei auxilio dos colegas de trabalho para a
elaboração do nome visual. Na realidade, outros pares de olhos contribuíram para
que eu visse muito além do que o nome visual.
As questões abordadas no decorrer da pesquisa incluindo essas
considerações não estão impregnadas da fixidez. É possível que algo venha a ser
modificado a cada leitura. A oposição binária surdo/ouvinte, língua portuguesa/língua
de sinais, experiência visual/experiência do som, que muitas vezes emerge na
pesquisa, durante um período foi incômoda. Isso foi posteriormente resolvido ou,
quem sabe, continua sem resolução, a partir do momento em que vivencio na prática
profissional a referida oposição binária. Constantemente me desloco de um mundo
surdo para um mundo ouvinte em um curto espaço de tempo. No espaço da
tradução, penetro e retiro-me da diferença de um para a diferença do outro. Por mais
simples que seja a experiência, percebo no cotidiano o quanto é difícil “negociar com
a diferença do outro” (BHABHA, 1998).
As narrativas do povo surdo permitem a compreensão da vitória da língua de
sinais presente atualmente em vias públicas, na mídia, na universidade, nas escolas
de educação básica, nos restaurantes, nos bares, nos aeroportos. As tentativas de
apagar a língua de sinais dos sujeitos surdos não vingaram. O motivo, quem sabe,
se situe “nas forças milenares e as lembranças de uma língua cravada no corpo”.
(MIGNOLO, 2003, p. 307). Os sujeitos surdos provavelmente apreciam recontar e
recriar contos da literatura oral. A celebração da língua de sinais e o orgulho de ser
surdo se apresentam em suas produções, seja por vídeo, livros produzidos por meio
institucional, seja por vídeos produzidos por uma filmadora e disponibilizados em
141
suas páginas via internet. Em qualquer uma das produções, o conto sobrevive em
um povo que se comunica com os olhos, com as expressões faciais, com as mãos,
por que não dizer, com o corpo.
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