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NILCE CAMILA DE CARVALHO
SASASASAS CCCCJJ
NILCE CAMILA DE CARVALHO
Londrina
2010
Ambiguidades da representação do caipira paulista no poema Juca Mulato.
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Ambiguidades da representação do caipira paulista no poema Juca Mulato
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras - Estudos
Literários, da Universidade Estadual de
Londrina, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. André Luiz
Joanilho
Londrina
2010
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NILCE CAMILA DE CARVALHO
Ambiguidades da representação do caipira paulista no poema Juca Mulato
COMISSÃO EXAMINADORA
__________________________________
Prof. Dr. André Luiz Joanilho
UEL - Londrina
__________________________________
Prof. Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes
__________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Célia Regina da Silveira
Londrina, setembro de 2010
4
À memória dos meus avós Maria
Flora, Dorvílio e Maria Clara, que apenas
puderam ver essa pesquisa nascer.
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente, gostaria de agradecer ao professor André Luiz Joanilho, que me
aceitou no programa e me orientou ao longo desses dois anos, às professoras Marta Dantas e
Célia Regina da Silveira, pela dedicada leitura e contribuição na qualificação e defesa,
respectivamente. De modo especial, gostaria de agradecer ao professor Frederico Augusto
Garcia Fernandes, que me auxiliou na qualificação, na defesa e também em outros momentos
no decorrer das disciplinas. Gostaria também de agradecer à CAPES pelo apoio financeiro.
Quero lembrar também o apoio dos funcionários e coordenadores da “Casa Menotti
Del Picchia”, instalada em Itapira, que me permitiram realizar as pesquisas necessárias para
esta dissertação. Agradeço ao Sérgio Freitas, que mesmo sem me conhecer, enviou alguns
jornais que continham informações úteis. Ainda de Itapira, gostaria de agradecer ao meu
primo José Luis, que também me enviou documentos e me ajudou nas pesquisas no acervo do
escritor.
Ademais, agradeço aos meus pais que, mesmo de longe, sempre me apoiaram e
acreditaram em mim, às minhas amigas Aline, Pâmela e Monique, que estiveram mais
próximas nesse período e tentaram me ajudar diante de minhas dificuldades. E especialmente,
gostaria de agradecer ao meu companheiro de todas as horas, meu amor, Ricardo Sorgon, que
dialogou comigo sobre cada item do trabalho e suportou minhas dúvidas, anseios e crises.
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“Não há obra de arte em que não se encontre,
tornando-a um produto de sua terra, a seiva
tranqüila e borbulhante do povo em cujo seio
rompeu, grosseira, como um produto
embrionário, ou radiosa como a flor de uma
civilização. Por mais universal que seja nas suas
concepções, profunda e largamente humanas, e
por mais dilatados que se apresentem os
horizontes abrangidos pelo descortínio do artista,
onde deita suas raízes toda e qualquer literatura
original é na consciência étnica de que ela
emergiu e tirou quando não a substância, os
caracteres essenciais. Para que ela traga, em
vibração comunicativa, nos seus motivos e na sua
expressão, o espírito racial, não é preciso que
corresponda diretamente aos interesses do
folclore, se adapte com estreiteza, ao fundo da
poesia, dos costumes ou tradições populares, ou
reproduza, em quadro largo, a civilização de um
povo, em todas as fases de sua evolução ou em
qualquer de suas partes significativas. Ainda nas
obras que o vôo do pensamento ou da imaginação
parece manter desenraizadas, sem ligação
aparente com o meio, o espírito criador não se
subtrai à força de gravidade que o detém preso e
atraído à raça de que proveio e ao ambiente que o
modelou.”
Fernando Azevedo
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CARVALHO, Nilce Camila. Ambiguidades da representação do caipira
paulista no poema Juca Mulato, 2010. Dissertação de Mestrado do Programa
de Pós-Graduação em Letras (Estudos Literários) UEL Londrina.
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Ambiguidades da representação do caipira paulista no poema Juca Mulato
RESUMO:
O poema Juca Mulato (1917) de Menotti del Picchia, no momento de sua publicação,
foi considerado inovador e polêmico por narrar a história de um caipira “mulato”. Sua
aceitação entre críticos e leitores foi estrondosa, considerado precursor da primeira geração
modernista. A temática amorosa e nacionalista foram os elementos que impulsionaram as
inúmeras edições do poema.
Apesar de sua forma ser devedora da estética parnasiana, Juca Mulato não possui
elementos apenas parnasiano, uma vez que agrupa diversas particularidades observáveis em
outros estilos literários. A partir desses elementos literários reunidos no poema, este trabalho
procura apresentar o modo como o poeta compreendeu o mundo caipira, ou melhor, o modo
como ele representou o caipira paulista.
Na intenção de apreender o mundo rural encetado pelo poeta, faz-se necessário
abordar aspectos que possibilitam a inserção de Juca Mulato no contexto e grupo social
demarcado por esse segmento no início do século XX. Nesse sentido, esta pesquisa inicia-se
com um estudo acerca do período histórico paulista que remonta o auge da economia cafeeira
e o consequente desenvolvimento da capital do estado, para depois analisar o personagem
isoladamente e também contrapondo-o à imagem de outros caipiras, inclusive o Jeca Tatu de
Monteiro Lobato.
Por fim, pretende-se enfocar as práticas cotidianas do caboclo, enfeixadas pelo poema,
as quais caracterizam o universo de Juca Mulato, e permitem uma rememoração lírica da vida
rústica do homem do campo, através dos afazeres tradicionais da cultura caipira ali
enxertados. Ademais, Juca será destacado como um representante lírico, que apesar de ser
extremamente idealizado pelo poeta, cumpre o papel de referir-se a um grupo social que
permaneceu nas terras do interior paulista, para trabalhar nas lavouras de café, num momento
em que a cultura caipira ruía com o capitalismo emergente e o êxodo rural.
PALAVRAS CHAVE: Caipira paulista; representação; regionalismo; práticas culturais;
identidade.
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ABSTRACT
The poem Juca Mulato (1917) from Menotti Del Picchia, by the time of its
publication, was considered innovative and controversial narrating the story of a mulatto
yokel. Its acceptance between critics and readers was astounding, considered to be the
precursor of the first modernist writers. The loving and nationalist themes were the elements
which boasted the numerous editions of the poem.
Though of doubtful parnassian aesthetic, Juca Mulato doesn't only work with elements
from this style, since it groups several observable singularities from other literary styles. From
these gathered elements, this work tries to introduce a way in which the poet comprehends the
yokel universe, better yet, they way how he represents the yokel of the state of São Paulo.
In order to apprehend the rural world brought by the poet, one must broach certain
aspects which make possible the insertion of Juca Mulato on the social group and context in
which both make part in the beginning of the twentieth century. In this way, this research
beings with a study regarding the historical period of São Paulo that retraces the apex of the
coffee-based economy and the consequential development of the state's capital, for then to
analyze the character solely and also placing him close to other yokel figures, like Jeca Tatu
from Monteiro Lobato.
Finally, it is intended to focus on the everyday practices of the caboclo brought by the
poem, which characterize the Juca Mulato's universe and allows a lyrical reminisce from the
lout life of the country dweller, through the traditional chores of the yokel culture there
demonstrated. Furthermore, Juca will be highlighted as a lyrical representative, that, although
he's extremely idealized by the poet, fulfills its role of reference from a social group that
belongs in the country of São Paulo, to work on the coffee farming, at a moment in which the
yokel culture collapses with the emerging capitalism and the rural exodus.
KEYWORDS: São Paulo‟s yokel; representation; regionalism; cultural pratices; identity.
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ÍNDICE DE ILUSTRAÇÔES
1. Largo do Rosário década de 20 ...................................................................................... 70
2. A cidade de Itapira vista da Estação Ferroviária em 1920 .............................................. 70
3. Fazenda Santa Catarina da Capoeira do Meio em 1917 ................................................. 70
4. Jeca Tatu - Da série: “Personagens célebres da literatura” por Belmonte ................... 119
5. Juca Mulato Capa de Portinari.................................................................................. 119
6. Juca Mulato na interpretação de Tarsila do Amaral...................................................... 119
7. O universo rural de Juca Mulato, por Menotti Del Picchia..........................................146
11
SUMÁRIO:
Introdução................................................................................................................................12
A forma (ô) criadora de Juca Mulato: da forma (ó) medieval ao tema moderno..........................23
1. A sociedade
1.1. Um “canto de despedida” do sertão paulista......................................................................42
1.2. A “cidade viva” de Juca Mulato.........................................................................................57
2. O homem
2.1 Um panorama do caipira paulista: a literatura regionalista de fins do século XIX e início
doXX.........................................................................................................................................71
2.2 O contraponto entre Juca Mulato e Jeca Tatu.....................................................................87
2.3 Tristeza: um mal de amor irresolvido ou um caráter “racial” imputado?.........................102
2.4 O bom selvagem................................................................................................................113
3. A cultura
3.1 Nos trâmites da cultura caipira: o cotidiano e a religiosidade..........................................120
Considerações Finais.............................................................................................................147
Bibliografia............................................................................................................................150
12
Introdução
Descortina-se diante da leitura do poema Juca Mulato de Menotti del Picchia,
publicado em 1917, a triste história de um caboclo do mato‟ que sonhou alcançar o amor de
uma mulher que lhe era impossível. O equívoco desse amor vinha do fato dessa mulher ser a
filha da patroa. O enredo do poema é simples, trata-se da descoberta desse sentimento por
parte do Mulato, da empolgação e delírio amoroso do caboclo e da constatação da
impossibilidade amorosa.
O poema tem como narrador o próprio Menotti
1
, que se anuncia pai de Juca, na
Biografia de um poema pelo autor, e afirma tê-lo composto a partir de “todas as coisas
telúricas e celestes, e do chão que abriga o homem e o alimenta”. Assim, além do tema
central, o amor platônico de Juca, há no todo da obra referências à vida cotidiana do caboclo e
ao espaço físico por ele habitado. Ele é um personagem completamente amalgamado à
natureza e à cultura rústica do interior paulista, fator que permite deleite estético através das
imagens poéticas que retomam o universo cultural e memorialístico do caipira. (PICCHIA,
198?, p.9)
O poema surgiu num momento crucial em que o povo brasileiro sentia os efeitos do
nacionalismo extremado da Primeira Guerra e a crescente modernização do País, sobretudo de
São Paulo. Nesse ínterim, um poema que louvasse o homem brasileiro e a terra brasílica com
certeza teria boa aceitação e se fixaria como “símbolo da Nação que cresce”, tal como foi
considerado Juca Mulato. (ALVES, 1969, p.118)
O caráter romântico do poema auxiliou na conquista popular, e entre os elementos
1
Ao anunciar-se narrador do drama do caboclo e de seu modo de vida, Menotti constrói uma representação
desse segmento social. No entanto, sua visão, sobre o personagem que irá conceber, traz consigo suas
próprias concepções e valores, na medida em que apresenta o discurso de uma camada social, em específico.
Segundo Dominique Maingueneau, as representações abarcam as escolhas, os saberes, os julgamentos, os
valores e as normas de conduta, que são caras ao indivíduo enunciador. Ou seja, “a finalidade do homem, ao
falar, não é a de recortar, descrever, estruturar o mundo; ele fala, em princípio, para se colocar em relação
com o outro, porque disso depende a própria existência, visto que a consciência de si passa pela tomada de
consciência do outro, pela assimilação do outro e ao mesmo tempo pela diferenciação com relação ao outro”.
(MAINGUENAU, 2006, p. 64).
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responsáveis por essa popularidade estão: o próprio tema amoroso, o fato de o personagem ser
um homem simples, trabalhador, que toca viola, canta, conta bravatas, bebe pinga, e sofre.
Outra característica significativa é a inclusão de versos heptassílabos, comuns nas trovas
populares. Tais particularidades garantiram o sucesso popular, enquanto a linguagem e a
musicalidade atraíram os leitores e críticos mais devotos do parnasianismo e do simbolismo,
ainda em pauta, e o polêmico tema, um mulato protagonista épico de uma história de amor,
chamou a atenção dos que desejavam uma arte moderna e, talvez revolucionária para a época.
A junção desses requisitos, mais a qualidade estético-literária do poema, foram os
responsáveis pelo sucesso do poema e do poeta. O sabor nacionalista e regionalista causou
grande impacto, e realizou, eficientemente, o objetivo de Menotti: cantar o homem simples do
campo na sua lide diária.
2
De acordo com Nestor Victor, o poema “representa uma audaciosa
e difícil enxertia da poesia popular com a de alto coturno”, “é uma tentativa curiosa e atrevida
porque tenta realizar um brasileirismo que esteja entre o de Gonçalves Dias ou, melhor, o de
Alencar, e, por exemplo, o dos Cromos, de B. Lopes, - um brasileirismo realista e idealista, a
um tempo, com tintas do misticismo atual”. (VICTOR apud BRITO, 1971, p. 73)
Centrado na grandiosidade da natureza, o poeta exprimiu um canto de exaltação ao
mestiço e à vida campestre que provém de “momentos capitosos” de sua infância no interior
paulista. O mérito do autor foi entrelaçar o pitoresco da paisagem rural e os costumes caipiras
a um sentimento universal: o amor, espiritual e carnal e o amor à terra natal.
A trajetória pessoal e ideológica de Menotti del Picchia é essencial para compreender
o pensamento que criou um personagem que seria considerado um “símbolo da Nação”, “o
gênio triste da nossa raça e da nossa gente”, “o canto de despedida” do homem campo, “a
reconciliação do homem consigo mesmo”, e cuja obra estaria em “conformidade com o meio,
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Menotti afirma em sua autobiografia que seu intuito era “exprimir o que houvesse de universal na alma e na
paisagem do nosso homem rural”, pois estava imerso “na vida dos camaradas e colonos entre as rumas dos
cafezais festivos que pareciam, como estrofes verdes, rimas do grande poema agrário da minha gente
paulista”. Nessa “paisagem quase edênica da fazenda” nasceria Juca Mulato, inspirado “nalgum peão caboclo
ágil de corpo, limpo de espírito”. (PICCHIA, 1970, p. 127-137).
14
perfeita radicação no solo pátrio”. (ALVES, 1969, p.118; BRITO, 1971, p. 80-81; NESTOR
VICTOR apud COUTINHO, 1986, p. 8)
Menotti del Picchia (1892-1988) nasceu em São Paulo e passou sua infância na cidade
de Itapira, cidade do interior do estado, marcada por suas lavouras de café. Estudou em
colégios de Itapira, Pouso Alegre, em Minas Gerais, e Campinas. Formou-se em Direito pela
Faculdade de São Paulo. Ademais, são apenas datas que em nada contribuem para a análise do
poema.
Quando escreveu Juca Mulato, Menotti estava instalado em Itapira, e ali trabalhava
como advogado, jornalista, e fazendeiro. A decepção com a publicação do seu poema Moisés
(1917) na capital do estado, o tinha levado novamente para aquele lugarejo, e ali, envolto pelo
trabalho nos cafezais, pela pouca procura de seus trabalhos como advogado e a escassa
movimentação jornalística, o autor imaginou a vida idílica de um caboclo totalmente apegado
ao seu chão e à natureza.
Segundo consta na primeira etapa de sua autobiografia, a intenção do poeta era
apreender a imagem do homem local que, se encerrava na árdua tarefa de promover o
desenvolvimento do País. Vinha daí, o veio nacionalista de Menotti. Cantar o homem da terra
significava valorizar a áspera luta do dia a dia, e, por conseguinte, destacar a contribuição de
uma região para o progresso da nação.
Inesperadamente, ao buscar um retrato típico desse homem, Menotti delineou o
protagonista de um sentimento universal. Sua inadaptação ao rigor parnasiano de composição
e seu cunho nacionalista o fez vincular-se aos ideais da Semana de Arte Moderna em prol de
uma liberdade estética e a clamar em seu discurso, pronunciado na segunda noite no teatro
municipal, por “uma arte genuinamente brasileira”. Como ele próprio mencionou, “a arte
brasileira deve ser brasileira, isto é, girar na ambiência física e moral da nossa terra e do nosso
povo”. (PICCHIA apud COUTINHO, 1986, p. 72)
15
O primeiro objetivo da “revolução modernista” era romper com as formas tradicionais
de escrita, buscando uma forma mais moderna para expressar essa nova configuração do País.
Nesse sentido, ela representou um marco, uma ruptura com a “forma” passadista. A
participação de Menotti no movimento modernista foi intensa e significativa, uma vez que
coube a ele ser o defensor e propagandista dos novos ideais literários de “um grupo de moços
de São Paulo”. As crônicas, que publicava diariamente no Correio Paulistano, tinham o
objetivo de apresentar as tendências artísticas das vanguardas européias, propondo uma
“revolução” nas artes por meio da adequação do conhecimento “importado” na realidade
brasileira.
Em contrapartida à ruptura estética, a arte nacional a que propunham os modernistas
foi um tema debatido ao longo da década de 20, e os intelectuais envolvidos conceberam
formas diferentes de “consciência nacional”. Depois da Semana de Arte Moderna, “os moços”
se dividiram em diferentes grupos que se contrapunham ideologicamente: Antropofagia, Pau-
Brasil, Escola da Anta ou Verdeamarelismo. Menotti foi um dos fundadores do “Movimento
Verdeamarelo” juntamente com Cassiano Ricardo, Plínio Salgado e Cândido Mota Filho.
É patente o elo que se estabelece entre a criação do poema Juca Mulato, os ideais
propagados pela Semana de 1922 e o Verdeamarelismo. O discurso do poeta concorda com
sua criação, Juca Mulato partiu de um contato lírico do criador com o ambiente físico e com o
homem brasileiro de determinado local. A adesão ao verdeamarelismo demonstra o seu
interesse por temas essencialmente brasileiros, como a paisagem, o homem e os problemas
nacionais, porém, o movimento retoma um nacionalismo conservador e exacerbado que, mais
tarde, deu origem ao integralismo
3
.
3
É relevante informar sobre a proposta dos intelectuais do verdeamarelismo em dividir o Brasil em regiões,
para, assim, fixar melhor um ideário nacional. Eles renunciavam a qualquer tipo de preconceito, apesar de no
próprio manifesto declará-los, afirmavam um retorno ao neoindianismo e uma busca incansável por
representar um País homogêneo e autônomo (recusa à qualquer estrangeirismo).
16
Tanto na política quanto na literatura, Menotti del Picchia oscilou por entre diferentes
ideais. Por vezes, compunha poemas com uma linguagem extremamente rebuscada, mais ao
gosto parnasiano, e outras, tentava, embora sem muito sucesso, elaborar poemas e romances
em conformidade com os ideais modernistas. Do mesmo modo, na política, alternava entre
posições ora mais à esquerda, ora mais à direita.
Das obras que publicou, nenhuma obteve tanto reconhecimento quanto Juca Mulato.
Dentre elas, as que mais se aproximaram dos ideais modernistas foram Chuva de Pedra
(1925) e República do Estados Unidos do Brasil (1928), porém, Salomé (1940), talvez seja
“sua maior contribuição para a novelística nacional”, sua obra-prima em romance,
principalmente por tratar-se de personagens mais densos e definidos psicologicamente, num
cenário que divide-se entre campo e cidade. (ANDRADE, 1955 p. 244)
A temática nacionalista perpassou sua obra, especialmente, nas duas primeiras acima
citadas, sendo República dos Estados Unidos do Brasil, seu poema, eminentemente,
verdeamarelo. Embora sua obra siga uma vertente nacionalista, seus temas são variados.
Segundo o próprio autor, seus livros são bem diferentes uns dos outros, visto que procurava
“se realizar totalmente em campos diferentes”, em razão disso, Menotti é o “escritor que
menos parece consigo mesmo”.(CIACCHIO, 1928)
Em Juca Mulato, o que se percebe é um escritor ágil que procura conciliar dois lados
de um mesmo tema, unindo um canto épico ao homem rural à necessidade dos “barões” do
café de possuir trabalhadores em suas roças. Menotti del Picchia é um autor volátil que, como
afirma Carlos Ciacchio, em suas obras “se dispersa, se difunde, se dilui, em múltiplas
diretrizes, que se não o perdem de todo, lhe evitam contudo, a fixação final de um gênero,
com mais aprumo e melhor êxito”. Se tal singularidade é observável em cada poema ou
romance, em particular, fica difícil estabelecer um parâmetro para julgar sua obra como um
todo. (CIACCHIO, 1928)
17
Se compararmos, por exemplo, o conteúdo de Juca Mulato, com o de algumas
crônicas, publicadas no Correio Paulistano, verifica-se que, enquanto no poema, Menotti
louva o caipira, nas crônicas ele chega a satirizar o caipira na cidade, principalmente por sua
ingenuidade. Essa é a contradição de sua visão acerca do homem rural. Porém, por outro viés,
pode-se compreender que o escritor está apenas afirmando sua intenção elitista e
conservadora, de que cada indivíduo deve ocupar um lugar na sociedade. E o lugar do caipira
é no interior do estado, nas fazendas de café.
De modo geral, Menotti não deixou seus pensamentos e concepções definidos em sua
obra. Cada poema, romance, conto ou crônica, abriga um prisma diferente acerca de um
mesmo tema, ou contexto social que, se analisados comparativamente, não se concatenam.
Ao transcorrer pela vida e pensamento ideológico de Menotti del Picchia, percebe-se que seu
caráter era conservador, e ao mesmo tempo possuía certa flexibilidade, ao passo que
transitava por entre variados estilos literários, sem conseguir fixar-se em nenhum deles.
Sua contundente participação na fase heróica do Modernismo revela seu espírito jovial
e afoito às mudanças nas artes, no entanto, ao visualizar o encaminhamento político dos
escritores pertencentes ao grupo modernista, como a decisão de Oswald de Andrade pelo
comunismo na década de 30, ou a posição esquerdista de Mário de Andrade, Menotti toma
uma posição mais conservadora, integrando-se ao Verdeamarelismo.
4
E mais tarde, com o
desfecho radical do movimento, Menotti funda o movimento “A Bandeira” que vinha
contrapor-se ao integralismo de Plínio Salgado.
O objetivo não é discorrer sobre a participação do autor na Semana de Arte Moderna,
nem sobre os ideais políticos de Menotti del Picchia, e sim, fornecer os dados necessários
para uma melhor compreensão de Juca Mulato, obra precursora do movimento de 22. Nesse
sentido, o acolhimento crítico do poema e a inserção do mesmo no seu contexto histórico-
4
Sobre a visão política dos autores modernistas, e as posições divergentes entre Mário de Andrade e Menotti
Del Picchia, Ver (FARIA, 2006).
18
social viabilizam uma melhor compreensão da obra. Convém também, frisar o que alguns
críticos mencionaram acerca do poema, o caráter de regionalista e nacionalista identificado
por uns, se contrapõe a analise de outros que afirmam tratar-se de um mero poema de ideais
românticos, como se o veio condutor do poema fosse o amor, ignorando suas demais
características.
Baseando-se no perfil do autor, no seu convívio com o homem rural na cidade de
Itapira, na sua função de fazendeiro, no seu apego àquele lugarejo, bem como na sua adesão a
ideais que pregavam um nacionalismo literário e uma imersão nos elementos regionais a fim
caracterizar os diversos tipos brasileiros, é possível classificar Juca Mulato como simples
expressão do idealismo romântico, como assegura Aderaldo Castello, ou apenas como plena
afirmação parnasiana, como assinala Wilson Martins? (CASTELLO, 1999, p.161; MARTINS,
1973, p. 222)
Apesar de haver muitas peculiaridades comuns da estética romântica, através da leitura
do poema outras características a serem consideradas, além do seu caráter romântico.
Embora Sérgio Milliet afirme que Menotti era um “poeta neo-parnasiano na forma e
romântico no espírito”, o poema não possui elementos apenas românticos e parnasianos.
Outros elementos literários, de estéticas diferentes, são facilmente percebidos no poema.
Ao considerar o poema como precursor do Modernismo, dado que antes da década de
vinte apenas se tinham as polêmicas exposições de Anita Malfatti, que elementos podem ser
destacados como “moderno”? Ao deter-se no ambiente natural de um pequeno lugarejo, o
poema retoma o sertanismo romântico e revela um cuidado constante para com os aspectos
regionais, que inclusive serão abordados com afinco pela segunda e terceira fase modernista.
Em relação à vida social, o personagem Juca Mulato é um dos símbolos caipiras de
São Paulo, e a faceta de um homem que poderia representar a nação. Sua imagem não é única,
ela, por vezes, se identifica e se contrapõem com outras representações de caipiras, como as
19
encetada por Valdomiro Silveira, Cornélio Pires e Monteiro Lobato.
Por trás da criação do personagem Juca Mulato pode-se perceber um mito formador da
identidade nacional. Sua tristeza não é apenas o resultado de um amor impossível, e seu
isolamento lírico não é somente uma idealização ou rememoração romântica de um tempo que
se foi, mas reflete a condição do brasileiro miscigenado e a corrupção que a civilização pode
impor a um caboclo simples e intocado pelos malefícios da sociedade urbana. Essas
proposições impulsionaram a uma análise que reveja a inserção do personagem como um
produto do seu tempo, devedor ou não das ideologias em pauta na época, visto que era lugar
comum a busca pela identidade nacional.
grandes questões que podem ser abordadas a partir de Juca Mulato, além das
acima citadas, pois, sobre ele, paira também a concepção de mundo de seu autor. Menotti del
Picchia deixou registrado nos versos de Juca Mulato um pouco da visão que tinha do homem
rural paulista.
É impossível não deixar que os olhos apreendam os detalhes do poema, os quais são
responsáveis pela imersão do leitor no ambiente físico e social da obra. A caracterização do
ambiente rural não é exacerbadamente descritiva, porém consegue captar em pormenores o
espírito do local e as principais atividades da rotina do caboclo. Grosso modo, o poema
abrange usos e costumes tradicionais do mundo caipira, e consegue transpor a sensibilidade
imagética do lugarejo.
Pretende-se a partir dessas particularidades, existentes no poema, expor o modo como
Menotti del Picchia percebeu a cultura caipira e a utilizou no decorrer da obra, bem como
configurou social e culturalmente um tipo caipira, até então, não considerado como
participante imediato da cultura rústica.
Com essas intenções, este trabalho aborda o conteúdo literário e formal do poema,
explorando o contexto histórico, e detendo-se na imagem do caipira como uma das muitas que
20
poderia representar o caráter nacional do brasileiro daquele momento histórico, além de
explorar o conteúdo cultural que o identifica socialmente.
Pensando nas divergências existentes entre as muitas representações de caipiras, faz-se
necessário um trabalho comparativo entre algumas dessas imagens, uma vez que conduzidas
apenas pelo contexto histórico e pelas práticas culturais, o foco somente em um personagem
não seria suficiente para delimitar o caráter de um grupo social inteiro. E separadamente, Juca
Mulato tem um papel primordial na representação dos caipiras paulistas, sobretudo por tratar-
se de caipiras descendentes de negros. Com o intuito de apreender as idéias veiculadas pelo
caboclo, Juca Mulato, este trabalho perpassa pelas imagens de caipiras construídas por outros
autores na literatura brasileira, sobretudo autores paulistas, mais conhecidos como
regionalistas.
Dessa forma, a intenção é levantar através de algumas obras literárias, o ideário que
alguns intelectuais e membros de elites tinham desse segmento social que tanto obteve
imagens estereotipadas, quanto idealizadas. O objetivo primordial é dar ênfase a imagens de
caipiras que contrastam entre si, como é o caso entre Juca Mulato e Jeca Tatu, entre outros,
ressaltando, sobretudo, o fator histórico-social sob o qual foram concebidos.
Assim, a abordagem social do homem caipira estará calcada nas criações e descrições
de autores como Monteiro Lobato (“Urupês” e “Velha Praga”), Cornélio Pires (anedotas e
crônicas) e Valdomiro Silveira (contos). Esses autores, em diversos momentos, descreveram
personagens que ora apresentam qualidades positivas do homem rural, ora negativas, mas que
independentemente, encetam diferentes visões do mesmo elemento social, visões essas que
tiveram uma formação ideológica pré-concebida, e que acabaram por contribuir
decididamente para com a memória que se fixou no imaginário popular acerca do homem
caipira do sertão paulista.
Ao deter-se nas malhas do poema, nos elementos escolhidos pelo poeta para a
21
construção do cenário caipira, percebe-se a relevância dada ao relacionamento do homem com
terra, sendo este profundo entrelaçar do matuto a sua localidade o fator que o impede de
abandonar o lugarejo, e permanecendo ali, o caboclo acaba por cumprir com a tarefa de fazer
a capital do estado florescer e modernizar-se. Juntamente com essa relação intrínseca do
caboclo com seu ambiente, o poeta apresenta as práticas cotidianas de Juca
Nesse sentido, é de extrema relevância analisar os fazeres de Juca com a finalidade de
compreender o modo como esse matuto se relaciona com as ações “ditas” tradicionais da
cultura caipira. Além das práticas cotidianas, representadas pelo trabalho na lavoura de café, e
pelas parcas ações rotineiras como fumar cigarro de palha e beber um cálice de pinga são
apresentados no poema alguns costumes cristalizados como sendo práticas culturais dos
caipiras, como tocar viola, contar causos e disputas, assim como ter crenças e superstições.
Tais elementos devem ser enfocados como partes essenciais de um saber cultural que
foi transmitido a esses indivíduos através dos tempos, e sobre o qual, a cada geração, foi-se
acrescentando outras maneiras ou outras usanças. Usos que auxiliam, guardada as devidas
proporções, na compreensão do poema como sendo uma releitura lírica de uma dada realidade
social ao valorizar os detalhes naquilo que o homem realmente realiza.
Enfim, embasados pelo contexto histórico social da Primeira República, na dicotomia
existente entre campo e cidade, e principalmente no processo de urbanização que permeou as
primeiras décadas do século XX, o personagem que recebeu a alcunha de “gênio triste de
nossa raça” traz à baila os principais elementos da cultura caipira, e por meio dos usos e
costumes presentes no poema pode-se chegar à essência do homem rural, uma vez que o
personagem guarda sentimentos e saberes, sentimentos que são esmiuçados no decorrer do
poema através do contato do caboclo com a terra e de suas “cismas”, e saberes que o matuto
realiza e expressa sem saber que são práticas que foram passadas geração após geração.
Assim, Juca Mulato agrega características centrais que refletem a tentativa da lírica
22
menottiana em reconstituir um dos segmentos sociais, que juntamente com muitos outros,
compõem o fragmentado quadro memorialístico da cultura brasileira e da identidade nacional.
23
A forma (ô) criadora de Juca Mulato: da forma (ó) medieval ao tema moderno
Tens, às vezes, o fogo soberano
Do amor: encerras na cadência, acesa
Em requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano.
Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.
És samba e jongo, xiba e fado, cujos
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:
E em nostalgias e paixões consistes,
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.
Olavo Bilac
Antes de configurar um drama e questões referentes à vida social de um tempo e
espaço, Juca Mulato é um poema de versos detalhadamente trabalhados, de ritmo fácil e que
oscila por entre diversas formas e estilos poéticos. No preâmbulo da obra, o autor define a
origem espiritual do personagem se colocando como um narrador onisciente:
“A fala do “Juca” é coloquial e divina. Sai da boca do homem e vem da conexão
mágica que ele tem com as coisas. É que o universo é um eterno diálogo de vozes
mudas. No seu êxtase lírico, o poeta as escuta. Cabe-lhe comunicá-las às demais
criaturas. Ele é o intérprete da formidável comunhão espiritual que nos envolve numa
harmoniosa coesão de vivências e mistérios regida pela fatalidade dessa divina força
que é o amor.” (PICCHIA, 198?, p. 10)
Para Menotti, a função do poeta é captar esse “diálogo de vozes mudas”, que
comunicaria aos leitores, sentimentos e desejos a partir do prisma poético, e no caso de Juca
24
Mulato que é, reconhecidamente, um canto em louvor ao homem com raízes fincadas na terra,
o poeta apresenta um drama que não teria relevância se não fosse apreendido poeticamente.
O poema é dividido em nove capítulos, sendo eles: o “Germinal”, “A serenata”, “Alma
Alheia”, Fascinação”, “Lamentações”, “Presságios”, “A mandinga”, “A voz das coisas” e
“Ressurreição”. Através desses títulos, percebe-se que o poeta tencionou informar sobre a
origem do personagem como gérmen da terra e o brotar de um sentimento que por ora irá
conduzi-lo; o processo repleto de anseios e angústias amorosas do personagem; e enfim, o seu
ressurgimento ancorado no contato íntimo que possuía com a terra.
É notório o esforço do autor em produzir os versos observando as rimas e a cadência
dos sons, elementos responsáveis pelo aspecto sonoro do poema. O primeiro capítulo é
composto por sete poemas, cada um com formas e métricas distintas, no primeiro tem-se:
“Nuvens voam pelo ar como bando de garças.
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira
pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro apruma-se a bandeira
de S. João desfraldando o seu alvo losango.
Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o.
Vem na tarde que expira e na voz de um curiango
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.
Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.
No piquete relincha um poldro; um galo álacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
E num magote escuro a manada se abisma
na treva.
Anoiteceu
Juca Mulato cisma. (PICCHIA, 198?, p. 17)
O poema apresenta uma sequência livre de rimas e de números de versos. A métrica
25
também não segue um padrão específico, sextilhas como versos alexandrinos. As rimas
não obedecem a um padrão, sendo portanto apenas um recurso que garante a musicalidade
pela cadência dos sons.
A sonoridade das sílabas e mesmo a das rimas é que estabelecem o ritmo do poema.
Tais sílabas estão muito bem inseridas nos versos. No primeiro verso, por exemplo, tem-se a
quebra do mesmo depois do vocábulo “ar” e sua retomada é complementado em “garças”,
esse corte na frase favorece a comparação da imagem poética entre “nuvens” e “garças”, dado
que o “ar” é o elemento comum entre as duas palavras.
Nos dois versos seguintes, nota-se uma relação entre uma paisagem sendo observada a
olho nu, e sua percepção dentro dos limites pictóricos de um quadro. Assim, “o sol”,
“cordilheira” e “esparsas” referem-se à paisagem que se estende pelo horizonte, enquanto
“artista”, “mescla” e “pinceladas” são a reunião de elementos que indicam a tentativa de
apreender, pictoricamente, algo de ordem natural.
Como observou Jairo Dias Carvalho, Menotti consegue “esboçar uma aquarela”
através das “nuvens” que “voam”, “o sol” que “mescla”, “a bandeira” que “apruma-se”, “Juca
Mulato” que “cisma”, a “tarde” que “expira”, “o sorriso” que “ilumina”, “o galo” que
“tatala”, “o poldro” que “relincha”. Tais componentes por terem sido empregados em longos
versos alexandrinos dão efeito de uma ação presente num tempo paralisado. (CARVALHO
apud PICCHIA, 198?, p. 90)
Esse recurso utilizado por Menotti é uma figura de retórica denominada hipotipose.
Segundo Umberto Eco, a hipotipose é um fenômeno que consiste na tentativa de propiciar ao
leitor uma imagem visual da paisagem que está sendo descrita. É uma figura que apela para a
imaginação do leitor e que, geralmente, pauta-se pela “experiência” do escritor com a imagem
descrita. Eco afirma que tal técnica pode “atingir estágios de extrema minúcia e refinamento”.
(ECO, 2007, p.232) No trecho do poema, é possível, de fato, visualizar o entardecer no
26
horizonte e a figura do Mulato inserida na paisagem rural.
Após a primeira estrofe do poema, o narrador informa que “Juca Mulato cisma. A
sonolência vence-o” e os versos posteriores anunciam a chegada da noite. Nesse trecho, a
referência à “voz de um curiango”
5
, bem como ao “ventre da treva” indicam o anoitecer. São
elementos que coadunam com a escuridão da noite, ao passo que as figuras expressas em
“tarde que expira”, “narcótico do ar parado”, “veneno” e “alma do silêncio” transmitem,
sensorialmente, a melancolia de ter-se findado mais um dia.
Essas imagens poéticas introduzem mornidão e lugubridade ao poema. Absorto nessa
quietude está Juca Mulato, o poeta diz que “um sorriso ilumina o seu rosto moreno”. Ele
participa desse panorama, e segundo o poeta, o seu sorriso é a luz daquela paisagem, pois em
seguida, a descrição dos animais que compõem o quadro rural, os quais, assim como o
ambiente, inspiram melancolia: os “bois processionais e lerdos”, “o galo álacre” e a “manada
[que] se abisma na treva”, transmitem uma sensação dolosa de algo que se perde na escuridão.
O poema encerra-se dizendo que “anoiteceu” e que “Juca Mulato cisma”. O dia se foi,
persiste apenas o caboclo a matutar na noite. Os fragmentos seguintes versam sobre o elo do
caboclo do mato com a natureza, e a descoberta do amor, tema que norteará todo o poema.
À exemplo do trecho apresentado, todo o poema persiste numa estrutura rítmica e num
trabalho rigoroso no emprego dos vocábulos que lembram a busca da perfeição estética que
era alvo dos poetas parnasianos. Os resquícios do parnasianismo o visíveis não apenas pelo
uso de palavras rebuscadas, mas também através dos sonetos e versos alexandrinos (verso de
doze sílabas escolhidos pelos parnasianos como característica básica dessa estética literária),
por uma forte presença de imagens por meio de metáforas e descrições, além de uma
preocupação com o esmero formal das rimas.
Ademais, o que se destaca de âmbito parnasiano e simbolista é a própria busca pela
5
O curiango, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, é um pássaro de hábitos noturnos. A
referência a ele pode expressar melancolia ou mesmo algo incômodo, remetendo, nesse último caso, ao
próprio timbre do canto do pássaro.
27
sonoridade do verso. Porém, em detrimento dos poetas parnasianos, Menotti opta por registrar
seus pensamentos e sensações, sendo portanto, muito subjetivo, o que não coaduna com a
extrema racionalização dos poemas parnasianos. Desse modo, Juca Mulato possui elementos
da estética parnasiana principalmente por ter surgido num momento em que predominava o
culto à forma, mas o poeta não se restringiu ao culto beletrista, uma vez que registra variadas
formas estéticas e diferentes ideais políticos e sociais.
No segundo capítulo, denominado “A serenata”, algo que deve ser analisado em
razão da inusitada relação que estabelece com outro estilo poético-literário. Trata-se de uma
alusão às trovas provençais ou galaico-portuguesas.
“A serenata” é composta por um único poema que, a princípio, narra Juca Mulato
pegando sua viola e cantando sua canção “dolente” sob a “brisa” da noite. Após a descrição
do caipira, há a transcrição do seu canto, do qual segue abaixo alguns versos:
“Veio coleante, essa mágoa
arrastas triste e submisso;
também choro, veio d‟água,
sem que ninguém dê por isso...
Os céus não vêem tua mágoa,
nem estas ela adivinha...
Veio d‟água, veio d‟água,
tua sorte é igual a minha.
Ventura... doida corrida
de uma folha sobre um veio
Folha... esperança perdida
de um bem que nunca me veio.
Assim vou, sangrando mágoa
e doido, para onde for,
veio d‟água, veio d‟água,
corro atrás da minha dor!” (PICCHIA, 198?, p. 29-31)
O fator intrigante desses versos, e recorrente em todo o poema, é o fato do caboclo
28
confessar seus anseios amorosos a um veio d‟água. Recurso poético usual no trovadorismo,
comum nas cantigas de amigo (poemas compostos por homens que se faziam passar por
mulheres). Nessas trovas, a mulher dirigia sua confissão a seu amado, chamando-o de amigo,
ou confessavam suas dores e saudades a qualquer elemento da natureza.
No entanto, a temática tal qual é abordada por Menotti del Picchia relembra as
cantigas de amor, visto que partem do pressuposto de um amor idealizado, apenas espiritual,
impossível de ser concretizado. Nesse sentido, os cantos de Juca fazem uma junção de alguns
aspectos das cantigas provençais de amor e de amigo.
Devido a esses cantos, que correspondem formalmente à estrutura das trovas de
origem provençal, faz-se necessário explicitar alguns dos elementos basilares da estética
literária medieval, surgida por volta do século XII na Europa, e cultivada em Portugal no
século XIII.
Segismundo Spina, pesquisador das trovas medievais, postula que
“a poesia lírica occitânica, (...), lançou uma mensagem perene para as literaturas da
moderna Europa, descobrindo o Amor, espiritualizando-o e fazendo dele o fulcro de
sua inspiração. Os trovadores criam, então, o primeiro grande tema da inspiração
lírica: o Amor. A Morte e a Natureza apenas se esboçam como tópicos dessa poesia em
que o trovador é o mártir. O amor cortês, estranhamente, aparece enlaçado com os
quadros picturais da natureza primaveril, talvez sobrevivência da poesia folclórica dos
cantos da primavera.” (SPINA, 1991, p.23-24)
A partir do próprio tema recorrente nas trovas, pode-se aproximar o poema Juca
Mulato da lírica trovadoresca, dado que o amor é, assim como na poesia provençal,
espiritualizado e motivo de inspiração para que o caboclo cante sua triste sina. Outras
semelhanças existem, como por exemplo, no fato de Juca ser também o “mártir” de um amor
impossível, amor que é condenado a permanecer apenas na imaginação do caipira.
29
Para ressaltar a alusão dos cantos de Juca às “cantigas de amor” dos trovadores
medievais, é interessante analisar o capítulo “Lamentações”, momento do poema em que
apenas Juca fala, e sua fala vem marcada por um canto lírico à moda dos vassalos provençais.
O capítulo Lamentações”, que pelo título apregoa a intenção de registrar as queixas
amorosas do caboclo, compõe-se de cinco poemas, cada um observando uma estrutura formal
específica. O segundo é um soneto, no qual Juca dirige-se a um bosque comparando suas
emoções e sonhos com as palmeiras e com a flora existente no bosque. Os tercetos encerram:
“Ai! Bosque real é o tempo das queimadas!...
É agosto, é agosto! O fogo arde o que existe
em turbilhões sinistros e medonhos.
Ai de nós!... Somos almas desgraçadas,
pois, na luz de um olhar lânguido e triste
também ardeu o bosque dos meus sonhos...” (PICCHIA, 198?, p. 50)
Observa-se que o caboclo invoca um “bosque real” para confessar a sensação de ter
seus sonhos e sua alma se queimando como o bosque em tempo de queimada. É
imprescindível notar que ele clama por um bosque real”, aludindo ao período medieval ou à
existência de uma “realeza” formada por uma classe nobre, de suseranos, e
consequentemente, uma de vassalos.
A natureza do amor que Juca devota à filha da patroa corresponde à do amor cortês,
uma vez que seu amor também permanece apenas no campo das idéias, amor platônico e
inatingível. A alma do caboclo é pura, assim como quer o amor provençal, porém seu amor é
enlouquecedor, rondando, por vezes, “certo masoquismo”, e prazer no sofrimento e
humilhação, igualmente comum em trovas eróticas, frutos do amor carnal, também
30
trovadoresco
6
:
“Há amor na alucinada
fascinação do abismo
amor paradoxal humano e forte
que se traduz nas febres do sadismo,
nessa atração perpétua para o Nada,
nessa corrida doida para a Morte.
(...)
É que o amor quer a morte. Num momento
resume a vida, os loucos entusiasmos
dos supremos espasmos...
Nesse furor que invade,
tem volúpia da ferocidade,
tem o delírio do aniquilamento! (PICCHIA, 198?, p. 41-42)
Nesse trecho do capítulo “Fascinação”, o poeta menciona a alucinação do personagem
que no abismo certa “fascinação”, e transcreve nos versos com letra maiúscula, a palavra
“Nada” e “Morte” indicando talvez a única possível solução para o drama do caboclo.
Percebe-se que o sentimento puro do personagem, associado ao “amor-elevação” dos
trovadores, e o amor carnal, também observado em algumas cantigas provençais, aparecem
conjuntamente em Juca Mulato.
A imagem da “Morte” também é recorrente em outras estrofes, agora sendo cantada
pelo próprio personagem em “Lamentações”
7
:
6
Segismundo Spina explicita as características que comumente possuem as trovas de caráter erótico. Segundo
ele, tais elementos se misturam, por vezes, ao amor puro, ingênuo e cortês do trovador nas cantigas de amor.
7
O tema da “Morte” e a tentativa de apreender as sensações do caboclo dão ensejo para buscar, no poema,
elementos que o vinculam a características da poesia simbolista. Observam-se versos em que o poeta dialoga
com a visão decadentista do universo simbolista, como no trecho “Arrasta-me, também, no turbilhão que
passa!/ Leva-me ao teu destino,/ Amor que vens da Vida e que vais para a Morte!”. Nota-se uma forte
referência à atração pela morte e pelo “Nada”, temas que, como a Natureza, o Absoluto e Deus, são centrais
na estética simbolista. (PICCHIA, 198?, p.45)
31
“Água cantante, água estuante, é singular
a semelhança em que te iguala à minha sorte:
vais para a frente e nunca mais hás de voltar,
vens da montanha e vais correndo para o mar,
venho da vida e vou correndo para a morte.” (PICCHIA, 198?, p. 51)
Novamente Juca tem, num elemento da natureza, o confidente do seu amor, e da
mesma forma que o poeta narra a empreitada do personagem em direção ao abismo, aqui é o
personagem quem afirma ter na morte o seu destino. A morte é um tema presente nas cantigas
trovadorescas, pois os trovadores ao cantar o amor que lhes eram inatingíveis, muitas vezes
vêem na morte a solução dos seus males. Spina também alerta para a presença constante da
“Natureza” e da “Morte” nessas cantigas.
Ao valer-se de vocativos, Menotti insere um artifício comum das cantigas de amigo.
No trecho, esse elemento é a “água cantante”, que simboliza uma passagem rápida e inflexível
pela vida, uma ida constante em direção ao mar, assim como o caboclo que pensa na vida
como um inabalável trilho que desemboca na morte.
O sentimento que avassalou a vida cotidiana de Juca, e que o faz correr, mais
rapidamente, para a morte, veio do olhar de sua amada, olhar que aparece no primeiro
capítulo quando o narrador diz que nessa noite, porém, parece-lhe mais quente o olhar
indiferente da filha da patroa”. Tal olhar é o responsável pela quarta cantiga entoada pelo
caboclo em “Lamentações”:
“Tenho uma santa em casa, o seu olhar encanta.
O olhar dela é, porém, igualzinho ao da santa.
Quando rezo nem sei à dúbia luz da vela
se me dirijo à santa ou me dirijo a ela
Esse olhar que, de meigo, é como o olhar da corça,
tem, na própria fraqueza, a sua própria força.
Quando o fito a minha alma enche-se da incerteza
32
que há na canoa sem dono à flor da correnteza.
Ele é tal qual o sol indiferente e mudo
sem saber que aclara anda aclarando tudo... (PICCHIA, 198?, p. 52)
Os cantos do caipira seguem formas específicas da lírica trovadoresca, esses versos,
em específico, encerram uma poesia trovadoresca de influência arábico-andaluz. De acordo
com Spina, tal poesia é permeada de exotismo e rica em “metáforas mirabolantes”, assim
como a poesia contemporânea.
8
Sua forma é semelhante à empregada por Menotti no poema
acima, apesar de não possuir o rigor das rimas:
“Que formosa é, e dizer que a formosura é apenas uma de suas qualidades!
Não há feitiço no mundo fora daquele que existe nos seus movimentos!
É uma lua tão bela, que, se dissesse à lua: “que pretendes ser?”, por certo
Haveria de dizer: “serei um de seus halos”.
Quando a meia lua do céu está diante dela, é vista como sua imagem,
Quando se olha no espelho.
O luar pontua na página de seu rosto os nunes que escrevem nela os risos
De suas têmporas.” ( apud SPINA, 1991, p. 353)
A título de comparação, salienta-se a natureza dos elementos empregados pelos poetas
para alcançar uma imagem de esplendor da mulher amada. Se no poema modernista tem-se a
presença da “santa”, da “luz da vela”, do “olhar da corsa” e do “sol” que tudo aclara, na lírico
andaluz tem-se, a “lua”, o “espelho” e o “luar [que] pontua na página de seu rosto”, categorias
imagéticas que permitem a mesma transfiguração luminosa do ente amado.
As trovas de Juca estão repletas de características metafóricas por recorrer sempre a
8
Esse estilo poético, arábico-andaluz, influenciou, sobremaneira, o trovadorismo galaico-português, em razão
da cultura mourisca que adentrou a Península Ibérica através da diáspora árabe e judaica. Afrânio Coutinho
assinala que esse estilo poético de “profusão metafórica” é evocado em um poema de Menotti intitulado
“Jardim Tropical”, presente em sua obra Chuva de Pedra. Ver (COUTINHO, 1986, p. 72)
33
elementos naturais e do universo do caipira para transmitir sensorialmente uma imagem ou
emoção. Esse recurso, Paul Zumthor afirma ser comum no mundo camponês medieval
formado por “sociedades desprovidas de todo sistema de simbolização gráfica, ou nos grupos
sociais isolados e analfabetos” no qual era comum ilustrar ou alegorizar um tema.
(ZUMTHOR, 1993, p.18)
O último poema de “Lamentações” apresenta uma confidência de Juca para seu fiel
companheiro, o cavalo Pigarço:
“Pigarço: a dor me aquebranta...
Quando lembro o olhar que adoro
e que nuca esquecerei,
ai! Sinto um nó na garganta
e choro, Pigarço, choro,
eu que até chorar não sei...
Quando, a trote, ela nos via,
debruçada na janela,
nós levávamos, após,
com o pó que do chão se erguia,
o nosso olhar cheio dela
e o dela cheio de nós...” (PICCHIA, 198?, p.54)
É claramente perceptível o conteúdo trovadoresco nas cantigas de Juca Mulato. Assim
como os poetas provençais e os do trovadorismo galaico-português se colocavam como
vassalos do amor de uma dama da corte, na maioria das vezes inatingível, as vezes por ser
casada e outras por não corresponder ao sentimento, no poema menottiano, tem-se um
caboclo do mato que ousa sonhar com uma mulher, representante da aristocracia cafeeira. Em
relação ao cavalo, o nome “pigarço”, “cinza” (cor intermediária entre o branco e o preto),
alude à intenção de criar para o companheiro de Juca, um animal de uma mesma condição
“racial” que ele.
Para finalizar a análise que se centra nos aspectos trovadorescos das cantigas de Juca
34
Mulato, é importante frisar a descrição da natureza que também participa dos cantos do
personagem. No último capítulo do poema, intitulado “Ressurreição”, Juca compara o seu
amor impossível com o desejo inatingível de um coqueiro do mato que tenta alcançar o céu:
“Coqueiro! Eu te compreendo o sonho inatingível;
queres subir ao céu mas prende-te a raiz...
O destino que tens de querer o impossível,
é igual a este meu de querer ser feliz.
Por mais que bebas seiva e que as forças recolhas
que os verdes braços teus ergas aos céus risonhos
no último esforço vão caem-te murchas as folhas
e a mim, murchos, os sonhos!
“Ai! Coqueiro do mato! Ai! Coqueiro do mato!
Em vão tentas os céus escalar na investida...
Tua sorte é tal qual a de Juca Mulato.
Ai! Tu sempre serás um coqueiro do mato...
Ai! Eu sempre serei infeliz nesta vida!” (PICCHIA, 198?, p. 75)
Em seguida, o caboclo do mato sentencia nos quartetos de um soneto:
“Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...
Este sonho que ergui o poderia pôr
onde quisesse, longe até da minha dor,
em um lugar qualquer onde a ventura mora;
onde, quando a buscasse o encontrasse a toda hora,
tivesse-o em minhas mãos... Mas, louco sonhador,
eu coloquei muito alto o meu sonho de amor...
Guardei-o em vosso olhar e me arrependo agora.” (PICCHIA, 198?, p. 76)
O rústico lavrador reconhece estar preso às raízes da terra, logo, preso também por
uma imposição da vida social, motivo que o obriga a reprimir seus sentimentos. O uso
frequente das interjeições “Ai!” denota outra similaridade com as cantigas dos trovadores,
bem como o emprego do “senhal”, modo de referir-se à mulher amada, demonstrando, assim,
35
a opção de não revelar-lhe o nome, o que lhe mancharia a honra e, ao mesmo tempo romperia
com a caracterização de um típico “amor cortês”.
Como comprovado pelos exemplos acima, Menotti del Picchia construiu um poema
que dialoga com as cantigas do trovadorismo provençal e português, e o poema não possui
intertextualidade apenas com as cantigas de amor, mas também se utiliza de aspectos das
cantigas de amigo, ao passo que, por um lado tem-se o amor platônico, impossível, “amor
cortês” do caboclo em relação à filha da patroa, por outro, os cantos do caipira vem permeado
de resquícios da cantiga de amigo por utilizar constantemente a confidência do amor a um
elemento da natureza circundante.
Essa distinção é de primordial importância para se compreender a natureza da
intertextualidade realizada pelo poeta. Das cantigas de amor, cantadas, especificamente, por
nobres e letrados da corte, Menotti usufrui do tema e da posição do trovador em relação à
amada, enquanto, das cantigas de amigo, faz uso do aspecto confessional do trovador aos
seres da natureza capazes de compreender seu enleio.
O segundo estilo de trova advém de um contato sublime com a natureza, comum aos
lavradores da antiga Provença e da sociedade galaico-portuguesa.
9
Dado que as cantigas de
amigo eram compostas por trovadores que se colocavam como uma mulher para, assim, poder
cantar sentimentos femininos, cabe ressaltar que, diferentemente das cantigas de amor, essas
possuíam caráter popular por não serem oriundas de aristocratas letrados ou religiosos.
Nas cantigas de amor, os trovadores cantavam suas próprias sensações, o eu-lírico era
o próprio sujeito, enquanto na cantiga de amigo um eu-lírico que não é o compositor,
portanto existe certa ficcionalidade do eu-poético que, geralmente, é uma mulher que lamenta
a ausência do amado. Segundo Cid Seixas, as cantigas de amigo possuem um “caráter local” e
9
O contato sublime com a natureza lembra também os poemas neoclássicos ou árcades, no qual o poeta canta
seus sentimentos a sua amada num ambiente bucólico, repleto de serenidade e beleza. O cenário do poema
corresponde ao da poesia árcade, porém, o drama vivido pelo personagem, sua profunda melancolia e atração
pela morte não coadunam com a mansidão espiritual dos poetas neoclássicos.
36
“são sustentadas numa longa tradição popular”, a maioria dos trovadores eram conhecedores
do seu ofício e da arte de seu tempo”. O estudioso ressalta também a espontaneidade de
algumas cantigas e o alto grau de processos formais de outras. (SEIXAS, 2000, p. 92)
Embora haja essas diferenciações, as cantigas, de modo geral, eram manifestações
orais, principalmente porque eram compostas para serem cantadas, a base da lira ou da cítara,
e não lidas.
10
A união de características dos dois modelos no poema menottiano indica, por
um lado, a intenção do poeta em enfatizar a diferença social entre o personagem, que nessas
cantigas comporta-se como o eu-lírico, e sua amada, através doamor platônico”, e por outro,
a finalidade de fazer com que o caboclo pudesse entoar suas lamentações. Essa segunda
finalidade acaba por aproximar uma espécie de canto popular a um poema erudito.
A relação dos cantos entoados por Juca, com as cantigas trovadorescas, reflete a
tentativa do poeta de buscar na poesia medieval um modelo para o camponês brasileiro, e
assim fixar o homem rural na posição social que, até então, ocupava. O mundo rural, no início
do século XX, passava por uma completa desestruturação, a cultura caipira estava se
transformando rapidamente, e esse retorno a temas e características medievais sugere uma
reafirmação da necessidade do homem permanecer no campo. Em outras palavras, Menotti ao
mesmo tempo em que engrandece o trabalho do caboclo na terra, tenta mantê-lo isolado das
mudanças sociais que agitavam todo o estado de São Paulo.
A lírica do poema Juca Mulato não agrupa apenas características de um mesmo estilo
literário, mas também congrega elementos comuns de algumas estéticas que precederam ao
modernismo. A reunião de variados estilos literários indica um momento de transição social e
uma inadaptação a um estilo poético definido. Nesse sentido, é mister identificar,
sinteticamente, outros aspectos literários como alguns resquícios do naturalismo, do
10
Paul Zumthor afirma que o “índice de oralidade” “é indiscutível quando consiste numa notação musical”
pois “manifesta a existência de uma ligação habitual entre a poesia e a voz”, e tal era a relação das canções
trovadorescas, utilizadas por Menotti para conceber o canto lírico do caboclo Juca. (ZUMTHOR, 1993, p.
36).
37
regionalismo realista, do romantismo, bem como do sertanismo romântico.
A descrição que o poeta faz das mudanças ocorridas no corpo do personagem que se
desenvolve para o amor lembra a estética naturalista:
“Que delícia viver! Sentir entre os protervos
renovos se escoar uma seiva alma e viva
na tenra carne a remoçar o corpo moço...”
E um prazer bestial lhe encrespa a carne e os nervos,
afla a narina, o peito arqueja, uma lasciva
onda de sangue lhe incha as veias do pescoço...
Ei-lo supino e só na noite vasta. Um cheiro
acre, de feno, lhe entorpece o corpo langue
e no torso trigueiro
enroscam seus anéis serpentes de desejos
e um pubescente ansiar de abraços e de beijos
incendeia-lhe a pele e estua-lhe o sangue.
Juca Mulato cisma.” (PICCHIA, 198?, p. 19)
Percebe-se a comparação da transformação hormonal do personagem com o
desenvolver das plantas, auxiliada pelas metáforas animalescas como “prazer bestial” e
“serpentes de desejos”. Toda a descrição realizada nesse trecho legitima a imagem de algo
que, não podendo mais se conter, rompe com violenta força para fora do corpo, de uma forma
puramente instintiva e sensorial.
11
Ademais, no verso seguinte, o personagem ouve os “gritos soluçantesdos sapos e
pensa no “eterno amor dos charcos” comparando sua dor à dos animais. Em seguida, o poema
sugere certa sexualidade, descrevendo Juca como um caboclo “viril”, “possante” possuidor
das “audácias de coluna” e da “elegância de barcos”. A animalização, comum nas obras
naturalistas, é reforçada quando o narrador onisciente informa que o personagem equipara sua
agilidade e força a de um poldro e um touro, respectivamente.
11
Por naturalista aqui, entende-se as reações biológica que metamorfoseiam os sentidos e o corpo do
personagem Pode-se equipar as descrições das transformações de Juca com as ocorridas com os elementos da
natureza.
38
Surge também, no poema, a imagem do amor como sentimento “cruel” e “assassino”
que destrói com violência a vida simples do personagem:
Por isso quando as lianas
em lascívias florais cercam de abraços
o tronco hirsuto e grosso,
têm, no amplexo mortal, crueldades humanas.
Há no erótico ardor de enlaçá-lo, abraçá-lo,
a assassina violência de dois braços
crispados num pescoço,
atenazando-o para estrangulá-lo! (PICCHIA, 198?, p. 41)
O poeta equipara a força do amor do personagem com os ramos da flor que se
espalham pelos troncos da planta. Essa analogia reforça a idéia de um sentimento avassalador,
bem como exemplifica a característica natural da emoção que desorganizou a vida simples do
caboclo.
É igualmente forte a intertextualidade do poema com a temática corrente nas obras do
nacionalismo romântico e do sertanismo. Nessa perspectiva, o que se sobressai são a
idealização do sertanejo e a profunda relação deste com a região na qual está inserido. Tema
que será discutido neste trabalho, assim como as similaridades do poema de Menotti com
obras do regionalismo realista que também enfatizaram aspectos locais.
No entanto, além desses temas recorrentes em obras que tratam do homem sertanejo,
Juca Mulato apresenta algumas características comuns do romantismo e do realismo. À visão
da natureza como mãe e protetora, quando o caboclo decide fugir, Valéria Batista Pereira
acrescenta a visão da natureza como amante e confidente do personagem baseando-se no
abandono que Juca a relegou quando se apaixonou pela filha da patroa e na relação de
confidência do personagem para com o Pigarço. (PEREIRA, 1983, p.3)
também a visão idealizada da amada, o amor platônico que Juca devota pelo olhar
39
da filha da patroa, olhar esse que possui uma atração fatal e mística, própria do Romantismo,
assim como uma visão conformista do herói frente a suas impossibilidades, ou seja, Juca não
luta, ao contrário, aceita os desígnios de Deus e permanece sereno, provavelmente tentando
encontrar a felicidade que o poeta afirma existir no seu interior:
“O homem foi sempre assim... Em sua ingenuidade
teme levar consigo o próprio sonho, a esmo,
e oculta-o sem saber se depois o achará...
E, quando vai buscar sua felicidade,
ele, que poderia encontrá-la em si mesmo,
escondeu-a tão bem que em sabe onde está!”(PICCHIA, 198?, p.76)
Fica patente, nesses versos, a visão do próprio autor sob o caboclo. Quando expressa a
capitulação do personagem, o conformismo revela ideais românticos, uma vez que o eu-lírico
dos poemas românticos também se entregam ao sofrimento e vão a cada dia definhando. Juca
antes de consultar o mandingueiro Roque, aparece “pálido como a cera e magro como um
vime” e com “olheiras cercando os grandes olhos lassos”. Porém, quando expressa a
concepção do poeta, esse ideal conformista traz à baila certo pessimismo, comumente
observado na literatura realista do final do século XIX.
A impossibilidade do personagem de encontrar a felicidade por -la colocado nos
olhos da filha da patroa, portanto distante de si, mais a frase do poeta que afirma Sofre Juca
Mulato, é tua sina”, assomados à frustração que o próprio Juca declara haver na
concretização amorosa,
“Amor?
Receios, desejos,
promessas de paraísos.
40
Depois sonhos, depois risos,
depois beijos!
Depois...
E depois, amada?
Depois dores sem remédio,
depois pranto, depois tédio,
depois...nada!” (PICCHIA, 198?, p. 49)
não corroboram com uma visão pessimista do homem, como apresentam alguns
traços da filosofia de Schopenhauer. Nesse sentido, atenta-se para a relação entre o “desejo”
de amor, a concretização em “risos” e “beijos”, e a frustração, marcada pelo “pranto” e pelo
“tédio”. É visível a concepção schopenhauriana da “vontade”, do “querer” que gera apenas
insatisfação e outros desejos. Esse eteno “querer”, para Schopenhauer, é apenas solucionado
através da “sublimação”, do “não querer”, opção que é apresentada ao caboclo, pelo feiticeiro,
no capítulo “A mandinga”: “Juca Mulato: esquece!”
Menotti del Picchia procurou realizar em Juca Mulato um intertexto com quase todas
as estéticas literárias que antecederam ao modernismo. O poema foi “formado” por meio de
elementos que vão desde o trovadorismo, através da utilização da forma medieval, até o
modernismo, pela tentativa de um tema inovador, como a presença de um “caipira mulato”
como protagonista, passando por várias correntes estéticas. Dessa junção, o que resultou foi a
tentativa de compor um poema universal que congregasse sentimentos populares a uma
concepção elitista e conservadora de sociedade.
Tal confluência comunica um poema de estrutura e tema universais, com
peculiaridades locais, pois dialoga com diversas formas artísticas e, tem de moderno apenas a
“inteligência” criadora, como afirma Sérgio Milliet, e a expressão sentimental de um simples
lavrador que participava da configuração social, cultural e racial do País, mas que ainda não
havia sido reconhecido e, menos ainda, louvado.
O poema retoma formas e idéias que permearam a literatura não apenas brasileira, mas
41
também portuguesa, como é o caso do trovadorismo. A recorrência a esses diversos estilos,
bem como a escolha do tema amoroso como norteador do poema, denota uma busca de, pela
literatura, representar a imagem de um caipira imerso no seu universo social e cultural. A
idealização do personagem e a gama de relações literárias visam, de certa forma, convencer
gregos e troianos sobre a necessidade do homem rural permanecer no seu “lugar”.
42
1. A sociedade
1.1 Um “canto de despedida” do sertão paulista
A quadra de história que vem servindo
de paisagem para esse meu deambular
dentro de uma era abrange um vasto
panorama dos mais dramáticos da
evolução do mundo, tão importante como
o ocaso de Roma, a queda de Bizâncio, o
surgimento de Renascença, enfim, o
crepúsculo da civilização do ferro e do
carvão e o advento atômico e
revolucionário da tecnologia, domínio do
método científico no reajustamento
racional das coisas do mundo: Estados,
povos e, individualmente, criaturas.”
(PICCHIA, 1970, p. 2)
Antes de adentrar o universo que compreende o homem rural, aqui representado pela
figura de Juca Mulato, faz-se necessário esboçar o contrastante cenário de um estado dividido
entre o campo e a cidade. Se por um lado a cidade de São Paulo alcançava o tão sonhado
progresso, por outro, a base desse desenvolvimento estava nas áreas rurais. São Paulo
constituiu-se num pólo devido à expansão da cultura cafeeira no interior do estado, e esses
“dois mundos”, o rural e o urbano, o primeiro sendo o veículo sustentador do segundo,
formavam a base do comércio externo que mobilizava a economia do País.
No movimento histórico que fundamenta esse período de transição da economia rural
para economia urbana, o século XIX possui um significado singular por assinalar o momento
em que ocorreram as maiores transformações na sociedade, cultura, política e economia desde
a chegada dos europeus em 1500.
No período de apenas um século, o Brasil tornou-se independente, consolidou-se
43
territorialmente, constituiu-se como nação, aboliu a escravidão, instaurou a república, dentre
muitas outras transformações que repercutiram nos mais diversos setores da sociedade.
Contudo, tais acontecimentos foram constantemente marcados ora por rupturas, ora por
continuidades, gerando por isso enormes contradições, uma vez que essas mudanças sempre
deixavam a segundo plano os interesses de grande parte da população, sendo sempre impostas
de cima para baixo.
Nesse sentido, as maiores transformações ocorrem a partir da segunda metade do
século XIX devido às novas conjunturas em voga nesse momento. É com vista nesses
acontecimentos e nas principais mudanças a ele relacionado que será desenvolvido esse
capítulo.
Dentre as principais alterações ocorridas no Brasil a partir de 1850, o café foi o
responsável direta ou indiretamente devido a sua grande importância para a economia
brasileira desde a época da independência, e do grande poder concentrado na mão dos
latifundiários cafeicultores, que formavam o grupo social mais influente e privilegiado.
Concomitante ao desenvolvimento da economia cafeeira, a região sudeste do Brasil
(notadamente o Vale do Paraíba) sofria com a falta de mão de obra nas lavouras em
decorrência da promulgação da lei Eusébio de Queiroz, em 1850, lei resultante das inúmeras
pressões internas, mas principalmente externas (sobretudo da Inglaterra) para o fim do tráfico
de escravos.
Consequentemente houve diminuição da mão de obra escrava, o que encareceu o
comércio escravista mesmo internamente. Devido à dificuldade e alto valor dos escravos,
pensou-se em substituí-lo
12
, dando preferência por um regime de trabalho livre que seria
também mais produtivo e lucrativo, uma vez que viabilizava o modelo capitalista europeu que
12
Apesar da diminuição do comércio interno, muitos fazendeiros ainda optavam pela mão de obra escrava,
principalmente os fazendeiros do Vale do Paraíba, local onde a cultura escravista estava muito arraigada.
Assim, era grande o comércio de escravos vindos do Nordeste, já decadente, devido à falência da economia
açucareira, em direção ao estado de São Paulo. (SCHWARCZ, 1987, 33-53).
44
procurava por especialização de mão de obra e racionalização da produção.
Ademais, as elites latifundiárias, adeptas das teorias raciais advindas do racismo
científico europeu, desconsideravam a opção de incorporar os negros escravos ou ex-escravos
como mão de obra livre tendo em vista a necessidade de “branquear” a população brasileira,
como uma medida vital para alcançar o nível de progresso e civilização dos países da Europa
Ocidental.
Para resolver esse impasse, apostou-se na alternativa da mão de obra do imigrante
europeu para trabalhar nas lavouras de café, a qual se expandiu com extrema rapidez por todo
Oeste Paulista (região que no início do século prosperava com o cultivo do café),
demandando por isso, um constante fluxo de trabalhadores. Obviamente, os imigrantes não
eram apenas uma mera força de trabalho. Sua chegada ocasionou inúmeras transformações na
sociedade brasileira decorrentes da introdução de novas práticas culturais, religiosas,
alimentares, dentre outras, as quais com o tempo acabaram por serem incorporadas ao corpus
da identidade e da cultura brasileira.
Desse modo, a vida nas fazendas de café no interior do Estado sofreu várias alterações,
pois havia a necessidade de pagar os imigrantes com um salário, condição sine qua non para a
vinda de mais mão de obra estrangeira, além da construção de colônias para os recém
chegados que estavam sendo abrigados nas senzalas, e a priori recebiam tratamento
semelhante aos negros no período do cativeiro. Tais soluções, entre outras, modificaram
significativamente a economia, pois era imprescindível a utilização da moeda, fator que
contribuía para o surgimento e crescimento dos núcleos urbanos no interior do estado.
(COSTA, 1979, p. 193-196)
Ao mesmo tempo em que a vida no campo se rearranjava com a chegada dos
imigrantes, o comércio do café acelerava, o Brasil se tornou o principal exportador da bebida,
sendo que o baixo preço e a grande produção permitiram o “ingresso” do País na
45
modernidade. Sob a égide do progresso europeu, a elite culta via a necessidade do Brasil se
desvincular do estigma de país atrasado, subdesenvolvido, e avançar rumo à “civilização”,
adotando as “idéias novas”
13
dos países desenvolvidos, na tentativa de receber o título de país
moderno e progressista.
Com esses projetos, a capital paulista deslanchou numa corrida em prol da
modernidade, e urbanizou-se a partir de uma nação bem atrasada em relação à Europa
ocidental. O sucesso no comércio do café possibilitou o enriquecimento de muitos fazendeiros
exportadores paulistas, cujo capital excedente foi aplicado, em parte, no setor da indústria na
metrópole paulistana.
Além disso, outros fatores contribuíram para o fato da industrialização ter se
concentrado em São Paulo: a abundância de recursos naturais usados como matérias primas
para a maioria das indústrias, como ferro, carvão e algodão; de mão de obra barata e, às vezes,
qualificada representada pelos imigrantes que, em grande parte, preferiam o trabalho
industrial devido à experiência obtida no continente europeu e aos maus tratos sofridos nas
fazendas; e também por São Paulo possuir uma infra-estrutura adequada à implantação das
indústrias, como as ferrovias que se expandiram também financiadas pela economia cafeeira,
e demandavam novas forças de trabalho.
Ao inserir-se em um novo cenário, essa nascente metrópole, que mantinha constante
seu ritmo de urbanização com os olhos na Europa, apresentava uma nova configuração social.
A cidade recebia novos prédios, novas indústrias, novos trabalhadores, esses últimos
representados pelo constante fluxo de imigrantes e migrantes que se dirigiam para a capital,
na esperança de ali prosperar, ou mesmo, de participar da almejada modernidade.
Essa grande massa populacional, que saltou de 31.385 habitantes em 1872 para
13
Tais “idéias” referem-se aos diversos conceitos de modernidade surgidos na Europa no início do século XX,
e vão desde inovações quanto à arquitetura, arte, literatura, vestuário, regras de etiqueta até teorias que
propagavam a hierarquia das raças através de estudos científicos sobre eugenia, determinismo e
antropometria.
46
239.820 em 1900, garantia ao espaço urbano uma rede de relações culturais e de costumes
bem diversificados, que a cada momento eram re-significados devido ao surgimento de outras
profissões, mercados, meios de transporte, jornais, novas maquinarias, indústrias e
automóveis, que por conseguinte, atraiam cada vez mais habitantes. (COSTA, 1979, p. 205)
Em suma, a “cidade habitada” desse início de século era alicerçada pelo entrecruzar de seus
“praticantes” que compunham uma “história múltipla, sem autor nem espectador, formada em
fragmentos de trajetórias e em alterações de espaços”. (CERTEAU, 1995, p. 171)
Essas múltiplas relações citadinas compunham-se tanto de pessoas pobres que visavam
um futuro mais próspero, quanto daqueles fazendeiros enriquecidos com a exportação do café.
Desse modo, pautada na economia cafeeira que teve seu auge no momento de transição do
século XIX para o século XX, a elite paulista, que era formada em grande parte pelos
fazendeiros do interior do estado que esbanjavam seus lucros nas comodidades e luxos que a
cidade de São Paulo proporcionava, relacionava-se com aqueles, poucos, novos ricos que
compunham o quadro de burgueses das novas empresas e indústrias. A cidade adquiriu uma
aparência próspera que não advinha unicamente desses habitantes ilustres, mas das aplicações
financeiras que os mesmos faziam e que transformavam a imagem da pequena e retrógrada
província em uma metrópole.
O catrouxe, além de modificações na economia, mudanças também nos costumes
desse contingente de novos burgueses. A cidade de São Paulo começou a florescer, muitos se
dirigiam para em busca de uma vida mais “glamourosa”, outros na esperança de uma vida
melhor, e como a indústria se desenvolvia vertiginosamente, o comércio também expandia
para acompanhar essa evolução citadina.
14
Do mesmo modo, a imprensa também ganhava força ainda no fim do século XIX, na
medida em que era necessário à cidade expandir suas informações, propagar suas inovações,
14
Sobre o desenvolvimento do comércio sustentável na cidade de São Paulo Ver (MANZONI, 2004)
47
noticiar a política local, os pensamentos e acontecimentos em voga na Europa que dirigiam
indiretamente o estilo de vida da elite na nascente metrópole. Nos jornais e revistas, homens
letrados e ilustrados, a elite intelectual da época, publicavam seus estudos científicos e
crônicas, que grosso modo, discorriam sobre os últimos acontecimentos da capital e do
ocidente europeu.
Os periódicos da época, em primeira instância o Almanach Literario de São Paulo
(1876-1885) e a Revista do Instituto Histórico Geográfico de São Paulo (1895-1940), e mais
tarde, a Revista do Brasil (1916-1925) cumpriam o papel de discutir e expor a produção
intelectual em voga e os dilemas que surgiam com as tentativas do País, sobretudo de São
Paulo, de se constituir como nação. Assim, em tais periódicos sobressaem assuntos que
perpassam pela história nacional, tendo como parâmetro, muitas vezes, a história de São
Paulo; discussões acerca dos valores étnicos, teorias cientificistas, construção da cultura
nacional, entre outros.
15
Além dos periódicos, era grande o número de jornais que noticiavam os
acontecimentos da cidade, dentre esses, destaca-se aqui o Jornal do Commercio, A Gazeta, O
Estado de São Paulo e o Correio Paulistano, este último era dirigido pelo Partido
Republicano Paulista, partido então no poder, e no qual durante o período de 1920 a 1923, o
autor Menotti del Picchia publicou, diariamente, crônicas que versavam sobre os mais
variados assuntos, desde os inusitados problemas de infraestrutura da cidade até discussões
acerca de literatura e arquitetura que visavam o interesse da elite formada pela aristocracia
rural e pelos burgueses.
A chegada de Menotti ao Correio Paulistano deu-se por volta de 1920 em decorrência
do sucesso obtido com a publicação do poema Juca Mulato e da sua experiência como
redator-chefe d' A Tribuna de Santos, cidade para qual foi logo após seu reconhecimento
15
A respeito do papel exercido pelos periódicos na produção intelectual da época Ver (LUCA, 1999, pp. 35-78 )
e (FERREIRA, 2002, pp.29-158)
48
como escritor. Após cantar o homem do sertão paulista, o poeta dedica-se às crônicas diárias
no jornal paulistano defensor das oligarquias cafeeiras.
Tem-se nessas crônicas, uma imagem da São Paulo que se moderniza, urbaniza-se, e
que se constitui, no dizer do próprio Menotti, em um “xadrez de nacionalidades”, uma mistura
de diversas etnias e costumes. Sob o pseudônimo Hélios, o escritor debate sobre os impasses
vividos pela sociedade nessas primeiras décadas do século XX.
Nesse sentido, com os olhos voltados para a sociedade paulistana, o cronista delineia a
imagem arquitetônica dos prédios, os novos costumes adquiridos, as vidas que atraídas pela
industrialização passavam a participar daquele crescente núcleo urbano.
16
A sociedade
brasileira aderiu às inovações tecnológicas, começaram a florescer as indústrias, os trens a
vapor, bondes, carros, a eletricidade, e a cidade de São Paulo foi o palco principal para a
efervescência de tudo que era moderno. E tais transformações se deram com uma rapidez
assustadora, como descreve Menotti: “S. Paulo surge, assim, maravilhosamente, da noite para
o dia, como uma cidade de encantamento, construída por ciclopes e realizada pela obra
miraculosa de um sonho...” (PICCHIA, 1983, p. 275).
A cidade, na visão de Menotti, correspondia à imagem da “cidade americana”,
yankeezada, da “cidade ciclópica”, disputando espaço com elementos pertencentes a um
passado que se queria esquecer. Era a “metrópole do café”, a “locomotiva” do País.
17
A cidade
recebia multidões de pessoas que para se dirigiam, assim foi-se inchando, tornando-se um
grande núcleo urbano. Muitos eram imigrantes, italianos, espanhóis, japoneses, portugueses, e
outros que vinham do interior do estado ou de qualquer outra parte do País, trabalhadores
rurais que deixavam o campo com suas dificuldades esperando prosperar na capital do estado.
16
Especificamente sobre a imagem da cidade de São Paulo nas crônicas de Menotti del Picchia Ver (CASTRO,
2008)
17
O epíteto de “locomotiva” do Brasil é justificado pelo brasilianista Joseph Love quando este cita algumas
idéias que foram veiculadas no limiar do século XIX e início do XX, como o fato dos paulistas serem os
“descendentes modernos dos bandeirantes”, ou serem “o cérebro que pensa (e) o braço que executa”, ou
ainda por “serem essas regiões “mais brancas” que o resto do país” e de “só pensarem em dinheiro”,
acusação que levou os propagandistas a retrucarem com a arrogante frase: “o Brasil, como sempre, espera
que São Paulo trabalhe”.
49
A obsessão em buscar meios de ostentar o progresso do País, fez com que muitas
invenções fossem patenteadas, deu-se uma corrida em favor do desenvolvimento. As
“exposições universais”
18
, da qual o Brasil ansiava participar, foi um grande exemplo dessa
busca pelo progresso, eram os frutos da eletricidade, dos trens e demais máquinas a vapor que
tendo surgido no fim do século XIX, tinham nesse início de século suas mais diretas
repercussões e consequências.
São Paulo, como queria a elite, era comparada por Menotti nas crônicas com as
grandes metrópoles dos países mais desenvolvidos da Europa e Estados Unidos:
O tímido lugarejo de ontem, (...), é hoje uma metrópole febril, milionária,
imprevistamente enorme. Nela as emoções de todas as raças e os tipos de todos os
povos agitam uma das vidas sociais mais violentas e gloriosas do universo. Esse
entrechocar de ambições, de gostos, de vontades de raças oriundas dos quatro
pontos cardeais, se reflete em todas as manifestações da vitalidade citadina, nos
seus tipos de rua, na sua arquitetura, nas cousas expostas ao comércio, nas línguas
que se falam pelas calçadas. (...) S. Paulo de hoje é um Paris, uma nova York menos
intensa, um Milão mais vasto...É uma formidável e gloriosa cidade ultramoderna.
(PICCHIA,1983, p. 242-243)
No entanto, apesar de parecer uma cidade civilizada e moderna nos moldes europeus,
São Paulo compreendia imensas contradições, uma vez que ali convivia a civilização
tecnológica e progressista com uma grande parcela de pessoas pobres, imigrantes e muitos
caipiras que deixavam o interior e dirigiam-se para a nova capital encantados com a cidade
cosmopolita e, ali, eram obrigados a se sujeitarem às regras massacrantes de trabalho nas
indústrias, e a viverem com o mínimo, pois a renda que recebiam era insuficiente para o
sustento de toda a família, que na maioria das vezes eram compostas por muitos filhos.
18
Segundo Sandra Pesavento, o Brasil esperava acertar o passo com a modernidade e por isso se pôs numa
louca corrida a fim de alcançar tal objetivo, visto que participar das exposições era assinar o atestado de país
moderno. Teve sua participação marcada nas “exposições universais” no ano de 1861. Ver (PESAVENTO,
1997, p. 99)
50
O grupo que compunha os trabalhadores era formado por operários, pequenos
comerciantes, artesãos, e por homens que não tendo emprego fixo, realizavam trabalhos
informais e temporários. A situação econômica desse contingente de pessoas era muito
complicada, faltava não a alimentação básica como também recursos que pudessem
proporcionar hábitos mais higiênicos, moradias mais decentes e acesso à alfabetização.
Essa precariedade demonstra o descaso do governo para com essa população de pobres
que eram jogados na periferia, mais precisamente nos bairros do Brás, Bexiga, Barra Funda,
Bom Retiro, enquanto que para as classes burguesas eram arquitetados bairros planejados, as
chamadas cidades jardins, como Higienópolis, Avenida Paulista, Campos Elíseos, Jardim
América.
19
Menotti del Picchia apontou algumas contradições do cenário da capital paulista. E
nesse sentido, o trabalho da historiadora Veiga de Castro é interessante para elucidar tais
questões, pois se centra nesse contrastante panorama apresentado por São Paulo na cada de
20. Veiga de Castro afirma que é pelas “brechas” deixadas pelo autor que se pode encontrar
outra cidade que não seja a moderna e yankeezada.
A autora analisa uma crônica em que Menotti descreve uma grande festa em certa
mansão na Avenida Paulista, e, a par do deslumbramento no interior do palácio, referência
a um grupo de “curiosos grudados às grades do jardim”. Apesar de haver menções acerca das
classes baixas que também habitam a cidade, Menotti não se dedica a elas com afinco,
segundo Veiga de Castro, é rara as passagens em que o “pobre trabalhador” é considerado
como força motriz para o desenvolvimento da capital. De modo abrangente
19
Antônio de Alcântara Machado em Brás, Bexiga e Barra Funda (1927) e Laranja da China (1928) apresenta
um panorama das relações sociais e cotidianas dessa massa de trabalhadores, principalmente de italianos, que
habitavam as periferias, ou melhor, os bairros operários da cidade de São Paulo. Diferentemente das crônicas
de Menotti Del Picchia, que centrava-se na cidade “moderna” e na elite paulistana, Alcântara Machado
destacou o modo de vida do imigrante e a integração destes na sociedade, incluindo em seus contos, a fala e
os gestos desses ítalo-paulistas, estilo (macarrônico) que celebrizou Juó Bananére, em La Divina Encrenca
(1924).
51
“as crônicas de Menotti trazem para hoje a representação da cidade que era feita por
um grupo específico, ao qual o cronista pertencia, por isso as poucas ou nenhumas
referências a uma cidade operária ou trabalhadora. Mas é a partir das brechas das suas
crônicas, de pequenas e esparsas referências, que outra cidade surge. Justamente uma
cidade que, colada à cidade da modernização implacável, se ressentia dessa
modernização e dava conta da complexidade daquele momento.” (CASTRO, 2008, p.
153)
As crônicas de Menotti, de modo geral, estão embasadas na visão da cidade ciclópica,
a qual segundo Sevcenko “tinha como contrapartida o encolhimento da figura humana e a
projeção da coletividade como um personagem em si mesma”. Em outras palavras, o cronista
se pautava mais pela euforia das novas invenções e pelo estilo de vida moderno das classes
mais privilegiadas do que observava ou analisava criticamente as repercussões e
consequências desse surto modernizador que deixava em seu rastro, negros, mestiços,
imigrantes e outras minorias étnicas, que marginalizadas não conseguiam acompanhar o
progresso da nova “metrópole”. (SEVCENKO, 1992, p. 19)
Em contraposição às escassas aparições de operários e demais trabalhadores, a
presença do homem do interior é marcante, seja através dos fazendeiros em busca de prazeres
e um estilo de vida europeu, seja pelo caipira pobre que pensa encontrar boas oportunidades
na capital do Estado.
O escritor dedica muitas de suas crônicas e anedotas à figura do caipira, deixando
transparecer sua relação com o mundo rural. Por vezes, Menotti exalta o caboclo, assim como
os personagens de escritores vinculados ao regionalismo, mas segundo Veiga de Castro, em
algumas crônicas o que se pode notar é o intelectual munido do discurso cientificista que,
baseando-se na inferioridade da “raça”, originada pela mestiçagem, via o caipira com olhos
preconceituosos.
20
20
Veiga de Castro afirma que em algumas crônica publicadas por Menotti del Picchia no Correio Paulistano,
o caipira acaba estereotipado negativamente, o que o aproxima à visão de Monteiro Lobato à respeito do
caipira em 1914. Tais crônicas são anedotas que apresentam o caipira de forma pejorativa e grotesca. Yoshie
Barreirinhas assinala que ao criar esses personagens caipiras, Menotti, por ter convivido com caboclos no
52
A nova configuração social, originada pela confluência de variados tipos físicos e
culturalmente diversificados, pela junção desse ambiente modificado pela tecnologia
nascente, pelas indústrias, pelo comércio que crescia a fim de suprir as necessidades vitais da
população e os luxos das classes “nobres”, e pelos novos jornais que se proliferaram com o
objetivo de noticiar os acontecimentos da cidade que a cada hora ganhava um novo prédio,
abrigava inúmeros problemas decorrentes do crescimento acelerado, e tais questões sempre
que possível eram camufladas para que se imperasse a cidade moderna que se vestia à
francesa.
Um outro mundo estava sendo edificado devido ao surgimento de uma vida social que
não correspondia em nada àquela da antiga cidade provinciana, cada um dos lugares recebia
outras maneiras de compor o espaço. As semelhanças entre a capital do Estado e as pequenas
cidades do interior perdiam-se rapidamente.
Em pouco tempo, São Paulo transformou-se na urbe que conduzia” a economia do
País. E o escritor Menotti del Picchia, além de caracterizar a cidade em suas crônicas, pode
ser utilizado como um representante do êxodo rural do período, uma vez que, assim como
muitos, deixou a vida na fazenda de café para ser cronista na capital. As obras e crônicas do
escritor identificam a coexistência desses dois mundos, ou dois Brasis, visto que já havia
dedicado uma obra em louvor ao homem e ao sertão paulista, Juca Mulato, e agora delineava
a imagem da cidade de São Paulo nas páginas do Correio Paulistano.
21
Dado um panorama da São Paulo do início do século XX, convém abordar a imagem
do interior paulista, e para tanto, o poema Juca Mulato é útil na empreitada. Ao situar o
poema no seu período histórico, destaca-se o caipira descendente de negros, o trabalho na
lavoura de café, a vida simples do homem do campo e o apego ao que seria a sua pátria”.
interior do estado, não consegue esconder a simpatia e admiração que sente por eles. Ver (CASTRO, 2008, p.
140) e (BARREIRINHAS, 1983).
21
É frequente a imagem do campo nas obras de Menotti del Picchia, principalmente como lugar de refrigério, e
a exemplo do romance Salomé (1940), como local para cura de males físicos.
53
Nessa relação, campo/cidade, tem-se duas instâncias fortes e contrárias, uma, fruto do
louvável cosmopolitismo que imperava na capital, e outra, a base econômica que sustentava
essa modernização, o homem rústico e sua constante tarefa na faina da terra, a qual contribuía
para o engrandecimento do Estado.
Em Juca Mulato, o mundo caipira aparece de maneira romantizada, nota-se que a
intenção do autor foi exaltar o homem sertanejo e a terra com sua natureza límpida e
encantadora. O personagem é um ser completamente integrado ao seu ambiente, fator que o
distingue do personagem representado por Jeca Tatu. O culto à natureza é a base do poema,
principalmente no que tange às sensações do caboclo em relação a ela.
Como se sente bem recostado ao chão!
Ele é como uma pedra, é como a correnteza,
uma coisa qualquer dentro da natureza,
amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,
a esse desejo de viver grande e complexo
que tudo abarca numa força de coesão.”
Compreende em tudo ambições novas e felizes,
tem desejo até de rebrotar raízes, deitar ramas pelo ar,
sorver, junto da planta, e sobre a mesma leiva,
o mesmo anseio de subir, a mesma seiva,
romper em brotos, florescer, frutificar! (PICCHIA, 198?, p. 18)
Esse apego à natureza louva tanto a terra em questão, ou seja, o interior paulista,
quanto à cultura caipira de maneira geral, visto que no poema aparecem as práticas cotidianas
e culturais do caboclo, menções acerca de suas crenças e superstições, de seus
entretenimentos, enfim costumes que demarcam a sociedade caipira. Por essas delimitações, o
autor mostra sua intimidade para com a vida campesina, assim como acontece com as
imagens citadinas relatadas em suas crônicas. Ademais, ao louvar o caipira paulista, Menotti
não engrandece o trabalhador que permanece na lavoura cafeeira, como também canta a
saudade desse mundo rústico deixado para trás por muitos caboclos que saíam do campo
rumo à cidade.
54
O canto saudosista, presente no poema, é percebido pelo fato de Juca Mulato pensar
em partir do seu lugarejo em razão do amor que sente pela filha da patroa. Essa fuga,
premeditada pelo Mulato, não se concretiza porque Juca ouve a voz dos elementos da
natureza que o chamam de “filho desnaturado”:
E Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado:
“Queres tu nos deixar, filho desnaturado?
E um cedro escarneceu: “Tu não sabes, perverso,
que foi de um galho meu que fizeram teu berço?”
(...)
Juca Mulato és meu! Não fujas que eu te sigo...
Onde estejam teus pés, eu estarei contigo.
(...)
Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos,
que, na terra natal, a própria dor dói menos.
E fica que é melhor morrer (ai, bem sei eu!)
no pedaço de chão que a gente nasceu!.(PICCHIA, 198?, p. 69-71)
Nesses versos, é possível observar o elo que o poeta estabelece entre o campo e o
homem, tal ligação não subverte o costume de que o caipira é dado à vida nômade, como
também pode simbolizar a renúncia do homem frente ao êxodo rural. Esse apego do caboclo à
terra, é uma alusão do autor, que demonstra uma outra visão de um costume caipira. Em
resumo, o poeta a partir do seu próprio amor à vida no campo, de “capítulos” saudosos de sua
infância numa pequena cidade do interior, aconselha, através da natureza, a Juca, que
permaneça em sua terra.
A intervenção do poeta, nesse conselho da natureza, é explicita quando ele se
pronuncia em “ai, bem sei eu!”. Tal desejo, de saudosismo e de retorno àquela sociedade
agrária tradicional, foi, muitas vezes, expresso em suas crônicas, principalmente ao ver o
constante fluxo de caipiras que diariamente chegavam à capital.
Num período de acelerado crescimento urbano, mas que precede ao surto da década de
55
20, o poema vinha marcar a passagem de uma era a outra. Segundo Mário da Silva Brito em
História do Modernismo brasileiro:
“Juca Mulato é o poema filho da era agrária que se finda, do homem emocionalmente
apegado à terra e que daí a pouco virá padecer as seduções da cidade fabril. É o canto
de despedida da era agrária, do Brasil essencialmente agrícola, e surge no momento
em que a industrialização começa a comprometer os alicerces rurais do Estado”.
(BRITO, 1971, p. 141)
Desse modo, sendo um poema regionalista por conter em seu âmago as raízes da
cultura social caipira, Juca Mulato fixa-se num momento de transição da sociedade paulista.
Seus versos representam um homem pueril, ainda intocado pela modernização, um homem
que parece não ter consciência da existência de outros mundos, principalmente mundos
diferentes daquele ligado à terra, mas que cogita a hipótese de sair. É importante notar que
para esse caboclo, prosperar não significa enriquecer, mas florescer e frutificar junto à
natureza, como aponta os versos citados. (PICCHIA, 198?, p. 18) Nesse sentido, se
houvesse uma fuga, ela não está vinculada à ação migratória rural-urbana do início do século
XX.
Embora Juca Mulato não pense em sair de sua localidade por necessidade de
sobrevivência ou por sede de prosperidade material, em um momento específico de seus
versos um diálogo do matuto com as águas correntes de um riacho, nesses versos,
impregnados de lirismo e oralidade, identificam-se o medo e as incertezas que povoam seu
coração ao cogitar a partida:
“Água cantante, soluçante, esse gemente
marulho triste quantas tristes cismas traz...
E fica incerta ao ouvir-te a voz a dor da gente
56
se vais cantando por ansiar o que há na frente
ou soluçando pelo que deixaste atrás...
(...)
“Água cantante, ai, como tu, esta alma embrenho
nas incertezas de caminhos que não sei...
E, na inconstância em que me agito, só obtenho
esta ânsia imensa de deixar o que já tenho,
depois a dor de não ter mais o que deixei! (PICCHIA, 198?, p. 51)
É no capítulo denominado “Lamentações” que o caboclo faz tal confissão, suas
angústias frente ao desconhecido estão explícitas nos versos. Não se sabe que destino o
Mulato teria se realmente tivesse partido, talvez seguisse em direção ao pequeno núcleo
urbano local, ou ainda, para a capital do estado, que essa era uma rota comum entre os
caipiras do interior paulista do período histórico estudado. Porém, o que ressalta, nesse
momento do poema, não são as cogitações acerca do possível futuro do caboclo, mas o
sentimento de ansiedade pelo o que de vir, e o de uma dor saudosa por perder aquilo que
deixou. Tal aflição remete a um sofrimento provavelmente comum entre os caipiras que
realizavam semelhante êxodo.
Em relação a esse êxodo, Menotti silenciou-se. Não nenhuma referência a grande
evasão da população rural. No poema, essa transformação no mundo caipira é suplantada pelo
foco no drama amoroso do caboclo. O que importa ao poeta é registrar o amor de Juca pela
filha da patroa. O principal problema do caipira não é discutido em prol de uma representação
que procura engrandecer o campônio dentro dos limites da área rural.
Assim, é no percurso simbólico do “caboclo do mato”, representado por Juca, que se
pode apreender o saudosismo do homem rústico que parte para a cidade. É justamente por
cantar um representante da alma regional num momento de transformação que o poema pode
ser considerado de transição. Seu aparecimento no ano de 1917 sustenta a tese de que é um
“poema da era agrária que se finda”, uma vez que não faz referência à vida rural que se
destituía com o crescimento urbano e industrial, ocorrido na capital na década de vinte, ao
57
contrário, demarca o fim de uma “era” de reclusão do homem no campo.
Se analisado pelo viés especifico de campo e cidade, essa particularidade do poema,
a de louvar o homem ainda intocado pela civilização, ganha outras dimensões, que não
precisamente remetem às diferenças ou ao caminho percorrido entre o mundo rural do interior
e o surto fabril da cidade de São Paulo, mas pode também cuidar intrinsecamente da evolução
citadina da própria localidade habitada por Juca. Em outras palavras, o “canto de despedida”
pode referir-se à passagem sofrida pelas sociedades das pequenas cidades do interior que
embaladas pela modernidade da capital, construíam seus centros urbanos observando padrões
e conceitos da metrópole paulistana.
Enfim, seja em homenagem ao momento transitório do Estado de São Paulo, nesse
dado período, ou seja, um canto unicamente local, o que permanece é a imagem de um
caboclo que transita entre o ficar e o partir. Nessa indecisão, o personagem Juca Mulato
resolve aceitar os conselhos da natureza, que até aquele momento lhe havia sustentado, e
decide ficar. Ele fica, mas a sua atitude, decorrente do amor que sente por sua “pátria”, não é
empecilho para que o centro de sua comunidade floresça, e menos ainda, motivo de obstáculo
para que a urbe paulista continue em ebulição, pelo contrário, sua decisão contribui para que a
“metrópole do café” alcance o status de cidade moderna e progressista.
1.2 A “cidade viva” de Juca Mulato
A cidadezinha onde moro lembra soldado que
fraqueasse na marcha e, não podendo acompanhar
o batalhão à beira do caminho se deixasse ficar,
exausto e só, com os olhos saudosos pousados na
nuvem de poeira erguida além. Desviou-se dela a
civilização. O telégrafo não a põe á fala com o
resto do mundo, nem as estradas de ferro se
lembram de uní-la á rede porintermédio de
humilde ramalzinho.O mundo esqueceu Oblivion,
que já foi rica e lépida, como os homens esquecem
a atriz famosa logo que se lhe desbota a
mocidade. E sua vida de vovó entrevada, sem
58
netos, sem esperança, é humilde e quieta como a
do urupê escondido no sombrio dos grotões.
(LOBATO, 1959, p. 9)
No âmago das sociedades do interior paulista, os núcleos urbanos, emergentes no final
do século XIX e início do XX, começavam a alterar o estilo de vida das famílias que
habitavam as áreas rurais e trabalhavam nas lavouras cafeeiras. A transformação dessas
localidades foi gradual e totalmente dependente do cultivo e comércio do café. A pida
expansão do café para o oeste paulista ocorreu devido à escassez do solo no vale do Paraíba,
região que antes exercia o domínio da produção. Nessa “marcha rumo ao oeste, muitos
fazendeiros começaram a plantar seus pés de café. A região de Campinas, seguiu a do vale do
Paraíba, e passou então a dominar a produção desse mercado ainda promissor.
Com a demanda do produto, muitos fazendeiros investiram no comércio cafeeiro, e ao
redor desses agricultores enriquecidos surgem os primeiros núcleos urbanos buscando suprir
as necessidades básicas desses agricultores. O café alastrou-se por todo o oeste paulista, e foi
modificando as pequenas freguesias que ali existiam. A chegada do capitalismo nesses sertões
ocorreu por meio de um único produto que foi capaz de dar uma outra estrutura à economia
do interior, economia que dantes era unicamente baseada na subsistência.
Na medida em que avançava, o café trazia melhorias para aqueles pequenos centros. A
instalação das ferrovias foi um dos veículos propulsores da economia de diversas cidades, e
também o motivo do desastre econômico de outras que, por não abrigar nenhuma estação da
Estrada de Ferro, acabavam relegadas ao abandono e não prosperavam como as outras pelas
quais passavam a linha férrea. De acordo com Odilon Nogueira de Matos, os trens de ferro
seguiam o caminho percorrido pelo café:
59
Parece fora de dúvida que a nossa Ferrovia surgiu e se desenvolveu à cata” do café,
isto é, a Estrada de Ferro seguiu de perto o caminho feito pelo cafezal. Sem o
deslocamento do canão haveria a extensão da rede ferroviária. Ao contrário do
que se passou em todo o processo de desenvolvimento de redes ferroviárias no
mundo, as nossas ESTRADAS DE FERRO, em especial as PAULISTAS, não
abriram novas fronteiras, mas, pelo contrário, acompanharam aquelas que iam sendo
desbravadas e se constituíram em “frentes pioneiras”, na expansão colonizadora
desencadeada pelo CAFÉ. (MATOS, 1974, p. 14)
Juntamente com a ferrovia, o progresso que, mormente, correspondia ao
desenvolvimento econômico, ao crescimento urbano, à instalação de luz elétrica, a água
encanada e outras facilidades da nova “vida moderna”, também vai seguindo a rota aberta
pelo café, e essas pequenas vilas vão se expandindo e abrigando pequenos centros comerciais
que mais tarde transformam-se em núcleos urbanos.
Do mesmo modo invasor que o capitalismo se estende por todo o oeste paulista,
muitas pessoas também se deslocam para essas regiões com o objetivo de trabalhar nas
lavouras. O estado recebe além de imigrantes, muitos mineiros e fluminenses, que deixavam
seus territórios e seguiam para o interior paulista por saberem que, ali, encontrariam terras
mais propícias à nova cultura que então surgia.
As fazendas de café constituíam-se num mundo à parte, pois sua função não era
apenas econômica. A vida cotidiana em seu interior era plena de hábitos, costumes e crenças
que acabaram por construir um verdadeiro estilo de vida. Tudo se voltava para a civilização
cafeeira. Além de direcionar a vida de inúmeras pessoas, entre elas, e mais diretamente, os
senhores das casas grandes, os italianos e demais estrangeiros que participavam ativamente na
produção do café, os negros e ex-escravos que permaneceram com o trabalho no eito, o café
imprimia ao lugarejo um cenário bem característico marcado pela própria disposição dos
cafezais, pelas máquinas utilizadas para o beneficiamento do café, pelas tulhas, assim como,
pela linha férrea e pelo surgimento do pequeno comércio.
Nessas lavouras cafeeiras, o trabalho de colheita, secagem, beneficiamento e
60
armazenamento do café era realizado, ainda no século XIX, por escravos, e por parcos
imigrantes que, após a lei Eusébio de Queirós, desembarcaram no Brasil a fim de suprir a
ausência da mão de obra do negro africano. Tais imigrantes eram contratados pelas fazendas
como colonos, em regime que lhes pareciam semelhantes à escravidão, e que mais tarde foi-se
modificando, o que permitiu que alguns poucos pudessem fazer economias, aplicá-las em
terras e começarem suas próprias roças, além de facilitar a vinda de novos imigrantes
posteriormente, os quais, desembarcaram entre os anos de 1882 à 1930 em grandes números
no porto de Santos, onde eram enviados diretamente para a Hospedaria dos Imigrantes em
São Paulo, e depois de rápida inspeção, encaminhados para as fazendas de café no interior do
estado.
Com a alta do café na virada do século e a grande produção da rubiácea no estado de
São Paulo, houve a necessidade crescente de novos contratos estrangeiros, de forma que
aportaram no Brasil pessoas de várias nacionalidades como portugueses, espanhóis,
japoneses, e sobretudo os italianos. Assim, pouco a pouco a mão de obra do negro ex-escravo
foi sendo substituída pelo trabalho dos imigrantes.
Apesar dessa substituição do negro pelo imigrante, e da grande maioria dos ex-
escravos, após abolição, preferirem migrar para os centros urbanos, alguns permaneceram nas
lavouras de café na condição de colonos ou de simples assalariado rural, num regime de
trabalho semelhante ao do imigrante, porém tratados preconceituosamente. Essa parcela de
ex-escravos e de seus descendentes, que continuaram a trabalhar nas fazendas de café, nem
sempre são consideradas em relatos do período por serem uma minoria e pela posição central
que os italianos obtiveram no desenvolvimento da cultura cafeeira.
22
22
Célia Marinho discute sobre um projeto de Martinho Prado Jr. que propunha que os imigrantes não fossem
apenas direcionados para as lavouras, mas também para os centros urbanos. Com isso, visava substituir o
número de negros nas cidades, “internando-os” no campo, onde ficavam sob o controle dos fazendeiros e não
se tornariam autônomos nas cidades. Há ainda um outro deputado que defendia a permanência dos negros no
campo, em detrimento aos imigrantes, por serem os ex-escravos “os únicos que se amoldam aos costumes
agrícolas do país.”(AZEVEDO, 2004, p. 109-144)
61
Na literatura do início do século XX, principalmente as duas primeiras décadas que
remontam o auge do mercado cafeeiro, as obras que dão vazão a tais períodos históricos, e
que abrangem a civilização formada pelo café, são poucas, mas convêm citar algumas: tem-se
a publicação, em 1919, do romance Madame Pommery por Hilário Tácito, tal obra apresenta a
saga de uma prostituta estrangeira que ao chegar a São Paulo depara-se com a sociedade
formada pela economia cafeeira, porém, trata mais detalhadamente da sociedade paulistana no
auge de suas transformações e, nesse sentido, uma gama imensa de obras representativas
da nascente sociedade paulistana, como a própria Paulicéia Desvairada (1922) de Mário de
Andrade. No teatro, referente ao mundo cafeeiro, as peças de Jorge Andrade trazem o cenário
das fazendas e da família tradicional paulista, formada pela sociedade patriarcal, tão
profundamente definida.
Ao deambular por esse período, a literatura modernista, em primeira instância,
tenciona dar voz ao homem nacional, ao elemento tipicamente brasileiro, recorrendo mais
comumente a grupos marginalizados pela estética literária precedente que se importava mais
com a métrica, rimas perfeitas e vocábulos rebuscados. Apesar dos autores modernistas terem
se preocupado, em princípio, mais com a questão do estilo do que com a nacionalização da
literatura, é nesse momento que aparecem os primeiros personagens surgidos de uma tradição
popular.
De início, a estética modernista, muito embasada pelo Manifesto Futurista de
Marinetti, não adentrou de forma contundente as questões sociais de seu tempo, ficando a
cargo das gerações posteriores esta imersão nos valores do povo, excetuando Mário de
Andrade que o fez com primazia, sobretudo em seus contos.
23
No entanto, é nesse momento
que os intelectuais paulistas, influenciados pelas vanguardas européias, buscarão uma
renovação das artes brasileiras tendo como referencial a cidade de São Paulo. É dessa forma,
23
Da obra de Mário de Andrade, considera-se como parte dessa literatura, voltada para as questões sociais de
seu tempo, os contos reunidos nas obras Os contos de Belazarte (1934) e Contos novos (1947).
62
que a nova estética, lança luz no homem brasileiro, com intuito de criar uma literatura que
fosse nacional e não um arremedo francês.
Esse período histórico é demasiadamente relevante, pois a questão da nacionalidade é
uma discussão corrente entre intelectuais paulistas, principalmente devido à eclosão da
Primeira Guerra Mundial em 1914, e sendo um momento calcado na rápida expansão
capitalista, a identidade brasileira deveria ser criada ou interpretada para que a nação tivesse
um novo elemento simbolizador.
A busca por esse homem havia passado pelo índio na literatura oitocentista, pelo
bandeirante bravo e destemido no limiar do século XIX, e nas primeiras décadas do século
XX, muitos intelectuais voltavam-se para o homem comum que pudesse expressar a
“realidade brasileira”. É dessa forma que os escritores modernistas também vão se empenhar
na construção desse símbolo nacional, muitas vezes recriando e reinventando lendas e mitos
brasileiros
24
.
Juca Mulato antecede essas tentativas por ser nacionalista e por inspirar a Semana de
Arte Moderna de 22. A intenção desses intelectuais é apresentar uma arte brasileira genuína, e
seja em poema, romances ou mesmo contos, os autores da primeira fase modernista iniciam
um novo padrão estético que embora critique as influências estrangeiras na arte nacional, eles
também recorrem a movimentos estéticos surgido na Europa para a renovação da arte
brasileira, mas num sentido de usufruto consciente, sem transformá-las em meras cópias.
O “Manifesto Antropófago”, escrito por Oswald de Andrade, em 1928, explica
detalhadamente o objetivo dos modernistas e aponta a diferença existente entre a proposta
antropofágica, e a simples adequação ou aclimatação de um estilo estrangeiro aos elementos
da cultura nacional, tal como os romancistas e poetas anteriores ao movimento vanguardista
realizavam.
24
Destaca-se as tentativas de Guilherme de Almeida com os poemas Meu (1925) e Raça (1925), a rapsódia de
Mário de Andrade, Macunaíma (1928), Cassiano Ricardo com Martim Cererê (1928) e Raul Bopp com
Cobra Norato(1931).
63
Como escritor de seu tempo, que sentia o apelo nacionalista do período e a exaustão
do rigor parnasiano, Menotti del Picchia criou um personagem que representa essa
nacionalidade que se originava na voz coloquial do homem simples do campo. Em A longa
viagem ele declara:
“Aquela égloga, que era minha vida na fazenda da “Capoeira do Meio”, exigia de
mim que eu descobrisse uma linguagem que expressasse essa integração minha com o
espírito da terra. Eu queria dizer que por certo haveria uma forma telúrica, não
contaminada por influência de outros países, para exprimir o estranho encantamento
que me empolgava, que fazia com que eu aspirasse ser uma pedra, um pranto de água,
um corruchio de pássaro, para participar daquela magia pânica em que o homem e
coisas se fundiam num todo. Era isso que eu sentia a necessidade de exprimir. O
protagonista do poema deveria ser algo que surgisse do chão, da terra-mãe pura e
casta, como nascem de um prodígio as criaturas mitológicas. Foi então que concebi o
“Juca Mulato”. Ele não seria uma criatura. Talvez um símbolo. Talvez um brado.”
(PICCHIA, 1970, p. 138-139)
É desse modo que Menotti del Picchia pressente Juca Mulato, cuja alma lírica também
empolgou os seus leitores no decorrer do século XX, recebendo por isso tantas edições.
25
Juca
Mulato, como menciona o autor, estaria intimamente ligado àquela terra. O caboclo era o
fruto da “vida espiritual” que o poeta percebia entre os seres e a natureza do lugarejo em que
habitava. Menotti não tinha pretensão de que Juca transformasse em símbolo nacional, mas
sim, que o personagem representasse a participação de um segmento social na construção da
nacionalidade, por isso recorre ao caboclo paulista a fim de caracterizá-lo em sua vida e
afazeres cotidianos. É evidente que essa visão do caipira, como representante da “alma
nacional”, está relacionada com o orgulho dos paulistas que viam seu estado como a
“locomotiva” do país.
No preâmbulo da obra, o poeta informa que o personagem nasceu na cidade de Itapira,
região da zona Mogiana, no interior de São Paulo. Os dados referentes à localidade são
25
Em 1977, o poema alcançou sua 70
a
edição.
64
precisos, Menotti declara que o poema nasceu entre o “silêncio do Parque que se debruça
sobre o bairro do Cubatão e o ambiente da fazenda Santa Catarina da Capoeira do Meio”.
Tendo como fundamentação o objetivo exposto em A longa viagem, Menotti cumpre o
seu desejo e traz à lume um caipira completamente integrado ao seu ambiente, sua localidade,
e apresentando conflitos íntimos decorrentes de um mal de amor. Juca Mulato, de acordo com
o próprio autor, foi inspirado em algum “peão caboclo ágil de corpo, limpo de espírito”.
O contexto histórico das cidades do interior paulista, pertencentes à economia cafeeira,
remontam, basicamente, aquele definido no início deste capítulo. Sendo Juca um produto do
seu meio social, é imprescindível recorrer àquela localidade e analisar algumas de suas
particularidades.
Segundo Menotti, “A fazenda de Santa Catarina da Capoeira do Meio” é uma unidade
agrícola típica da civilização do café situada em terras que fornecem, com produtos da região
circundante, excetuando o fronteiriço Mogi-Mirim do melhor tipo do café brasileiro”.
(PICCHIA, 1970, p. 129)
A localidade, berço de Juca, como descrita no poema, foi fundada em 1820, e em
1917, ela já havia se elevado à categoria de cidade, e possuía um pequeno núcleo urbano, cuja
população era em sua maioria rural e habitante das fazendas de café. A economia da cidade
alcançava relativo desenvolvimento devido à produção cafeeira e à presença de duas Estações
Ferroviárias, uma localizada no centro urbano e outra na vila de Eleutério, na divisa com o
estado de Minas Gerais. Essa última permitia a ligação da ferrovia paulista com o estado de
Minas.
Em relação ao campo, o próprio autor descreve a divisão social e hierárquica da
fazenda “Santa Catarina da Capoeira do Meio” em um trecho de A longa Viagem, no qual se
percebe que a cidade realmente apresentava um panorama exclusivamente formado pela
economia cafeeira. A fazenda incorpora a situação social abordada no início desse capítulo, ou
65
seja, era fortemente marcada pela presença de imigrantes e por alguns negros remanescentes
do tempo da escravidão:
“No velho solar da nossa fazenda Santa Catarina da Capoeira do Meio, a grei dos
Cunhas Salles, organizava ruidosas festas. Vinham de trole das fazendas vizinhas ou
da cidade, os convidados. Baile fidalgo na casa grande, bailéco proletário dos colonos
na tulha e samba dos negros esfervendo junto das fogueiras no terreiro. Aí estava
a divisão das castas nesse fim de singular feudalismo agrário” (PICCHIA, 1970, p.
132)
Nota-se, dessa forma, que dentro da fazenda a vida era regida por três laços
comunitários: os proprietários, os colonos italianos e os negros
26
. As relações sociais daquele
ambiente eram devidamente separadas, e a presença de negros na descrição do autor confere
mais veracidade à própria criação do caboclo Juca.
Sabendo sobre a formação econômica, social e étnica da cidade e da fazenda, pode-se
partir para um estudo mais aprofundado acerca do panorama em que Juca Mulato aparece.
Tem-se pelo poema algumas indicações:
Nuvens voam pelo ar como bando de garças
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira
pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro apruma-se a bandeira
de S. João. Desfraldando seu alvo losango.
(...)
Vem, na tarde que expira e na voz de um curiango,
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.
Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.
26
Quanto aos negros, a cidade recebeu muitos deles na época da escravidão, era grande o número de escravos
e forte a pressão escravista que, inclusive, obteve ocorrências singulares, como o “linchamento” de um
delegado, Joaquim Firmino, por ilustres fazendeiros e homens públicos. Posteriormente ao assassinato, o
delegado foi considerado o mártir abolicionista da sociedade itapirense, e na mesma época o nome da cidade
foi mudado de Penha do Rio do Peixe para Itapira, embora esse último já fosse um nome comum para referir-
se à cidade. (MANDATTO, 2000).
66
No piquete relincha um poldro; um galo álacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos e
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e, num magote escuro, a manada se abisma
na treva.
Anoiteceu (PICCHIA, 198?, p.17)
Primeiramente, pela descrição do ambiente da fazenda, destacam-se o curiango,
pássaro de canto triste e anunciador da noite, o galo, o poldro que relincha, os “bois
processionais” e a manada que se perde no escuro da fazenda. Esses elementos compõem o
mundo rural de um caipira, principalmente quando se referem aos animais que mais
diretamente influem no dia-a-dia do homem que trabalha na terra e tira dela o seu sustento. O
cavalo, fiel companheiro do caboclo em suas andanças pelo local, o galo que anuncia o
amanhecer e o curiango o anoitecer, o bois para o sustento dos senhores, e os porcos que
provém a banha e a carne que, tão efetivamente, participam da mesa do caipira.
Com o cenário definido, o poeta início à construção do personagem colocando-o
como um sujeito que possui o desejo de participar de todo aquele ambiente vivo e trepidante.
Juca é o homem rural amalgamado ao seu chão, fator que, agregado às práticas culturais e o
apego à terra, acabam por qualificar o poema como “regionalista”.
Admitindo tal alcunha, as informações que se retiram da obra são as descrições do
espaço rural, as quais abrigam o lugar onde estão os animais, o cafezal, a casa grande, o
ocidente no qual resvala as “chamas das queimadas”, o terreiro, lugar que segundo Menotti
era habitado pelos negros e seus descendentes, a cocheira, a restinga, “a venda do caminho”, o
bosque, a choça do próprio Mulato, a tapera do negro Roque, a natureza circundante e o alto
da serra. Esses espaços remontam o ambiente da fazenda do qual o poeta narra a história. O
alto da serra é o ponto que culmina na decisão de Juca. Foi de lá, já pronto a deixar sua terra,
67
que Juca Mulato olhou para trás:
E Mulato parou
Do alto daquela serra,
cismando, o seu olhar era vago e tristonho:
“Se minha alma surgiu para a glória do sonho,
o meu braço nasceu para a faina da terra.”
Reviu o cafezal, as plantas alinhadas,
todo o heróico labor que se agita a empreita,
palpitou na esperança imensa das floradas,
pressentiu a fartura enorme da colheita... (PICCHIA, 198?, p.77)
Juca decide ficar. Seu lugar era ali. Nesse olhar para a terra surge uma antecipada
saudade de sua vida simples, de suas conquistas frente à natureza local, de seu trabalho na
lavoura, bem como uma esperança de tempos mais frutíferos. É a singeleza de sua alma pura
que o impede de partir. O bíblico não olha para trás porque nada do que estava deixando
lhe importava muito, dinheiro e bens materiais ele poderia conseguir em qualquer outro lugar,
mas e Juca? Na sociedade transitória do período, abandonar sua terra natal significaria
começar tudo novamente, seja no campo ou na cidade, a situação seria completamente outra, e
ele o estaria cumprindo o seu destino que “nasceu para a faina da terra”. (PICCHIA, 198?,
p.77)
É claro que essa visão de que o Mulato nasceu para o trabalho na lavoura de café, para
“frutificar” e “florescer” junto ao seu ambiente “pátrio”, advém da concepção de mundo do
próprio autor que se esconde por trás da voz narrativa. Menotti del Picchia era fazendeiro na
cidade de Itapira, portanto, pertencente à aristocracia rural. Sua função era reconhecer o
trabalho daquela gente simples que contribuía para com o progresso de São Paulo, a
“metrópole do café”, e louvar o homem que sabia permanecer no seu lugar na sociedade.
Por esse prisma, percebe-se o quanto o autor expressava suas idéias conservadoras e
68
reacionárias ao tratar as relações e funções sociais do homem comum. Tais ideais eram
comumente veiculados pela elite dominante, e como Menotti pertencia a esse grupo social, é
evidente que seu discurso retificaria alguns dos pressupostos hierárquicos da sociedade
paulistana.
Mesmo sendo na concepção de um membro da aristocracia rural, o poema apresenta,
grosso modo, o cotidiano do homem caipira, o elo existente entre o homem e a terra, a
consciência social do Mulato, bem como a visão de mundo de seu autor. Ao analisar esses
temas, chega-se à conclusão de que o poeta demonstrou uma pequena síntese do que seria a
“civilização do café”.
A construção romântica do poema contribui para a caracterização do personagem e do
mundo que o cerca, cada palavra, frase, expressão escolhida pelo autor corresponde à forma
como o poeta observava esse mundo rural. O estilo de vida, propiciado pelo comércio do café,
está presente nos versos do poema, é claro que não completamente, uma vez que se trata de
uma cidade e fazenda específicas, mas pode-se considerar que Juca Mulato contenha
intrinsecamente alguns valores e costumes da cultura caipira, que, emergiu e planou-se,
enquanto pode, sustentada pelo café.
Referente ao modo de vida, que se desenvolveu tendo como gérmen a cultura cafeeira,
cabe ressaltar alguns pontos que caracterizaram as pequenas cidades que dela participaram,
tendo como exemplo a localidade que Juca habitava. Cidades pequenas, mas que receberam
relativo aumento devido à produção da rubiácea. Como mencionado, atrás do café veio a
Estrada de Ferro, sempre recebida com muitos festejos pelos moradores locais, e os italianos,
que chegaram especificamente para o trabalho nas lavouras.
Com a expansão do capitalismo pelo oeste paulista, a economia do homem rural deixa
de ser de subsistência e, progressivamente, entra o comércio de alguns produtos básicos para
sua sobrevivência, pois como assalariados não podiam mais manter o cultivo de alimentos
69
para o próprio consumo. Com o declínio da economia de subsistência, ganham espaço as
pequenas vendas ou armazéns, que geralmente localizavam-se perto do centro urbano ou ao
longo de seu caminho, como aparecem no poema, sendo acessível apenas por meio de
transporte.
Outro fator que distingue uma localidade são as atividades religiosas, e em Juca
Mulato, algumas referências que serão abordadas mais tarde, mas faz-se necessário
salientar que, em 1917, a cidade abrigava uma igreja Matriz e duas capelas menores em
louvor a São Benedito, importante santo negro canonizado pela igreja católica. Antes mesmo
da construção da capela principal, existia na cidade uma Irmandade de São Benedito e o
santo era cultuado na igreja Matriz. É conhecida a devoção popular por esse santo na
localidade, em sua homenagem comemoram-se, até hoje, o dia 13 de maio com festas,
procissões e com a famosa congada.
Esses festejos legitimam a existência de uma grande comunidade negra naquele
lugarejo, existência essa que nem sempre foi declarada, ao contrário, sendo tendencioso
escondê-la, uma vez que traz à baila uma história que não glorifica as bases de uma cidade
idealizada pela elite dominante.
Juca Mulato, o protagonista de um sonho de amor irrealizável, representa não o
homem caipira desse período, como também uma cultura específica e uma cidade em
particular. Nesse sentido, o poema de Menotti del Picchia é fruto de uma determinada situação
social, que, economicamente, havia sido formada pela cultura cafeeira, e cujo sucesso
dependia da continuidade desse modelo sócio-econômico. Os versos de Juca Mulato contam a
malfadada história de um amor pueril, proveniente das relações hierárquicas de em um
lugarejo que, como tantos outros, receberam a monocultura cafeeira e teve seu momento
áureo para depois soçobrar às traças, assim como as “cidades mortas” de Monteiro Lobato
70
Largo do Rosário na década de 20
Cidade de Itapira vista da estação
ferroviária em 1920
Fazenda Santa Catarina da Capoeira do Meio em 1917.
71
2. O homem
2.1 Um panorama do caipira paulista: a literatura regionalista de fins do século
XIX e início do XX
“o caipira se define como um homem
rústico de evolução muito lenta, tendo por
fórmula de equilíbrio a fusão intensa da
cultura portuguesa com a aborígene e
conservando a fala, os usos, as técnicas,
os cantos, as lendas que a cultura da
cidade ia destruindo, alterando
essencialmente ou caricaturando.”
Antônio Candido (CANDIDO, 1993, p.
250)
Talvez como uma tentativa de construir um símbolo social que, num primeiro
momento, se constituísse como representante de uma identidade local, o personagem Juca
Mulato foi criado quase como uma resposta de seu meio, e por representar significativamente
sua região, sua colaboração se expandiu e alcançou âmbito nacional.
27
O enfoque nas características regionais perpassou a literatura brasileira em alguns
momentos específicos, tendo sua origem no Romantismo com o sertanismo romântico,
passando pelo Realismo/Naturalismo com o regionalismo realista, e se fixando também entre
os modernistas. A primeira vertente é caracterizada por uma idealização do homem e da
paisagem rural, apresentando o sertão como algo exótico e pitoresco, e o sertanejo com
qualidades e valores oriundos do Romantismo europeu.
Dentre as obras de mais destaque, nesse período, encontram-se O gaúcho (1870) e O
Sertanejo (1875) de José de Alencar e O seminarista (1872) de Bernardo Guimarães, além de
27
A obra Juca Mulato foi impressa, pela primeira vez, em um semanário, intitulado Cidade de Itapira, e
como o autor não iria destinar a edição à venda, devido a decepção com a publicação de seu poema anterior,
Moisés (1914), foram tirados apenas 500 exemplares, mas a repercussão crítica do poema fez com ele alcançasse
muitas outras edições. (PICCHIA, 198?, p. 11-12).
72
outras obras de Franklin Távora e Taunay. Em o Paulo, o Regionalismo realista teve início
com os contos de Valdomiro Silveira em 1891, seguido posteriormente pelas anedotas e
poemas de Cornélio Pires a partir de 1910, e pela publicação do artigo “Urupês” e “Velha
Praga” de Lobato em 1914.
A literatura regionalista foi muito criticada e é objeto de controvérsias. Antônio
Cândido afirma que tal literatura é de “gênero artificial e pretensioso”, “que encara com olhos
europeus as nossas realidades mais típicas”, além de ser “sentimental”, “jocosa” e “trat[ar] o
homem rural do ângulo pitoresco”. (CANDIDO, 2000, p. 105) Em contraposição, Bosi afirma
que alguns autores como Valdomiro Silveira e Simões Lopes Neto souberam aproveitar as
“matrizes regionais”, “aprofundaram na linha realista” e com “fidelidade” compreenderam
“ambientes rurais ainda virgens para a nossa ficção”, “pesquisaram o folclore e a linguagem
do interior, alcançando em alguns momentos, efeitos estéticos notáveis”. (BOSI, 1988, p. 232)
Antes de situar Juca Mulato no contexto do regionalismo, é imprescindível retomar a
imagem literária do caipira paulista, que pairava no final do século XIX até o momento da
publicação do poema em 1917, a fim de demonstrar rupturas e continuidades. Desse modo, ao
delimitar o agente social “caipira paulista” pela literatura brasileira, tem-se a necessidade de
recorrer aos vários retratos compostos por Valdomiro Silveira, Monteiro Lobato e Cornélio
Pires.
O embate entre as representações feitas por esses autores é essencial, pois sem elas
corre-se o risco de generalizar a partir de usos e costumes que tais homens possuam em
comum. Guardada as devidas proporções, tem-se o perigo de classificar um homem de
determinada época e local a partir de um conceito da antropologia denominado consensus
gentium (um consenso de toda a humanidade), debatido e criticado por Clifford Geertz.
O debate proposto pelo antropólogo consiste na superação do pensamento
antropológico, predominante até a década de 50/60, que concebia para o homem um “padrão
73
cultural universal”, ou seja, homens dotados de elementos essenciais comuns, que os
condicionariam a estabelecerem para si “realidades” culturais semelhantes ou
correspondentes, sendo totalmente indiferente aos aspectos psicológicos, biológicos e sociais.
Tais pensamentos não consideram as particularidades culturais de cada povo, mas apenas um
denominador comum, a “existência humana”.
De acordo com o antropólogo, não se pode estabelecer um conceito universal do
homem através de uma dada cultura. É esse o risco que se corre ao agrupar diversas
comunidades sob o rótulo de “caipiras paulistas”, baseando-se nas práticas comuns existentes
entre eles. Mesmo se tratando de culturas de um mesmo país, compreendidas em uma mesma
região, a cristalização de apenas uma dessas figuras, como representante de todo um grupo,
não deve se sobressair, pois esse relativismo apaga o ser individual que reside por trás
daquelas roupagens características do homem do campo e dos hábitos culturais que lhes
foram transmitidos por herança.
Elegendo um como representante de uma grande massa, não se aproxima do
desenvolvimento interior do homem, e, por conseguinte, de uma representação mais próxima
do real, bem como da sua relação com o ambiente, conseguindo apenas definir o contato que
obtinham com as práticas culturais que os caracterizavam. Para Geertz:
“É na carreira do homem, em seu curso característico que podemos discernir, embora
difusamente, sua natureza, e apesar de a cultura ser apenas um elemento na
determinação desse curso, ela não é o menos importante. Assim como a cultura nos
modelou como espécie única e sem dúvida ainda nos está modelando assim
também ela nos modela como indivíduos separados. É isso o que temos realmente em
comum nem um ser subcultural imutável, nem um consenso de cruzamento cultural
estabelecido.” (GEERTZ, 1989, p.64).
Levando em consideração tal proposição, este capítulo preocupa-se em ressaltar as
74
diferenças encontradas nas diversas representações do caipira paulista na literatura brasileira
do final do século XIX e início do século XX, compreendendo que cada autor que o
representou, viveu em um período histórico marcado por diferentes ideologias e concepções,
não apenas sobre o caipira, mas também sobre arte, literatura. Tendo sido influenciados pela
região em que o mesmo se encontrava, e com a contribuição desta para com o progresso e
modernização do país.
Atenta-se, primeiramente, para a literatura regionalista de Valdomiro Silveira (1873-
1941) que abarca principalmente o período histórico das últimas décadas do século XIX, e
veicula uma imagem do caipira como representante de uma “raça paulista” que se queria
progressista e moderna, e ao mesmo tempo voltada para as tradições culturais daquela
sociedade.
28
Construir uma identidade nacional era um objetivo recorrente no final do século XIX,
válido para inúmeros países americanos, europeus e asiáticos. Todos buscavam representar
seu país como uma nação unida, homogênea e já estabelecida séculos antes, quase sempre por
meio de um herói e de um mito fundador, que congregaria todos os seus habitantes.
Nesse processo, a literatura assumiu um papel fundamental, a de servir como suporte
para a criação e consolidação dos elementos da nacionalidade, ainda que por meio da ficção.
No Brasil, em especial, a literatura assumira esse caráter durante quase todo o século XIX e
início do XX, por meio de duas figuras centrais, o bandeirante e o caipira.
A imagem do bandeirante enquadrava-se perfeitamente nos ideais dos intelectuais
paulistas de criar uma história e uma tradição para o Brasil a partir de São Paulo. Para essa
elite, São Paulo destacava-se como superior às demais regiões do país desde o período
colonial com o “pioneirismo paulista”, encetado pelo bandeirante. Assim, a gênese da
liderança paulista, como a região mais rica e desenvolvida do país devido ao café no século
28
E relação à tentativa de se definir uma “raça paulista” com base no pioneirismo bandeirante Ver (ELLIS,
1936)
75
XIX, teria origem no século XVI e XVII com as Bandeiras, que demonstravam o espírito de
liderança e bravura nato ao paulista.
Considerando a popularidade, entre as elites brasileiras, das concepções do racismo
científico importadas da Europa, que se fundamentava na superioridade do homem branco, a
figura do Bandeirante colocaria para São Paulo a idéia de um passado pouco vinculado às
“raças inferiores”, uma vez que o bandeirante seria resultado da miscelânea entre portugueses
e índios, excluindo assim o elemento racial visto como o mais atrasado, o negro.
Além disso, é importante ressaltar que, apesar do bandeirante ser fruto da
miscigenação entre portugueses e índios, esses últimos é que foram dominados, catequizados,
“civilizados”, e em sua grande maioria exterminados. Assim, os bandeirantes paulistas e suas
proeminentes gerações, legariam apenas algumas características positivas dos indígenas,
como algumas técnicas agrícolas e hábitos culinários, mas considerando-se, eminentemente,
descendentes dos bravos portugueses.
O motivo pelo qual São Paulo se tornou a província/estado mais importante do país
deveu-se ao fato de sua população ser formada, historicamente, por um padrão cultural e
racial superior às demais regiões brasileiras, devido à, comparativamente, baixa presença de
negros entre os paulistas. Essa formação diferenciada fez com que autores invocassem a
separação da “Pátria Paulista”.
Nesse período de transição do século XIX para o XX, o caipira foi representado pela
literatura em dois momentos distintos: o sertanismo romântico e o regionalismo realista.
Apesar das diferenças entre essas vertentes, uma preocupação central faz-se presente em
ambas, a construção da identidade nacional por meio da elaboração de um passado comum a
todos, materializado na figura do homem interiorano.
Deve-se notar que o Regionalismo coincide com a abolição da escravatura (1888) e a
proclamação da República (1899), momentos que para além das transformações políticas
76
econômicas e sociais, ocasionou novas discussões quanto à definição de povo brasileiro. Além
disso, a instauração republicana incentivou novas discussões quanto à identidade nacional e a
necessidade de uma nova história para o Brasil.
A maior autonomia estadual, decorrente do novo sistema federativo, foi um incentivo a
mais para as produções regionais, tanto para a história e a geografia, quanto para a literatura.
A elite paulista, acreditando na superioridade cultural, econômica e racial de sua população
em relação ao restante do país, propôs a construção de uma história e uma literatura que
defendessem a vanguarda histórica dos paulistas, não apenas no campo da economia, mas
também no das artes e das idéias. Essa intenção fica evidente quando da fundação do Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo (1894), do Museu Paulista (1894) e da Academia
Paulista de Letras (1909).
Retomando a questão sobre a literatura regionalista, pode-se dizer que ela se
caracterizou por uma tentativa de descrever com o máximo de precisão possível a realidade
física e social das populações sertanejas, dando importante destaque para os hábitos, as
práticas culturais como modo de vestir, falar, enfim, os diferentes modos de viver dessas
populações.
Todavia, à semelhança da sertanista, acabava por idealizar seus personagens, uma vez
que ainda prevalecia para os escritores a intenção de, por meio da literatura, se criar uma
identidade étnico-cultural para o povo brasileiro buscando na figura do homem rural o
elemento catalisador das mais puras e autênticas manifestações populares.
Durante quase todo o período do século XIX, a figura do caipira e do bandeirante
foram, constantemente, abordadas pela literatura paulista no sentido de criar uma tradição e
uma identidade comum ao povo brasileiro. Apesar de serem, por vezes, apresentados como
sinônimos, suas representações eram complementares, pois o bandeirante expressava os
atributos de força, coragem, destreza e pioneirismo, enquanto que o caipira aparecia associado
77
à pureza, bondade e ingenuidade.
Apesar da intenção de se criar figuras representativas da nação, ambas retratavam
elementos oriundos de São Paulo, ou seja, o paulista seria o modelo para construção de uma
identidade comum para o Brasil. Tal concepção foi reforçada com o crescente
desenvolvimento de São Paulo devido ao comércio cafeeiro. É dessa forma que Valdomiro
Silveira representa o caipira em suas obras.
Valdomiro Silveira passou a maior parte de sua vida no interior de São Paulo, tendo
contato com os caipiras em diversas regiões do estado. Suas principais obras são: Os
Caboclos (1920), Nas Serras e nas Furnas, (1931) Mixuangos (1937) e Leréias: histórias
contadas por elles mesmos (1945). Apesar de seus livros terem sido publicados nas datas
marcadas, eles foram escritos bem antes, entre 1895 e 1906. Como representante do
regionalismo, Valdomiro Silveira procurou eleger o caipira paulista como o representante da
identidade nacional, valorizando-o como o genuíno habitante da nação brasileira.
O grande destaque das obras de Valdomiro Silveira se dá pelas inovações literárias que
acabaram por resultar em obras com um padrão literário reconhecidamente mais sofisticado
quando comparado aos demais regionalistas de São Paulo. Dessas inovações a de maior
destaque é decorrente da valorização da oralidade típica do caipira.
O autor entendia que em uma sociedade com um número bastante reduzido de
letrados, a oralidade tornava-se um veículo para a manutenção das tradições e da cultura
“original” dos campônios. Cultura e tradição que, para o autor, são as mais genuínas
manifestações do povo brasileiro.
Os narradores das obras de Valdomiro são oniscientes e exímios conhecedores do
universo cultural caipira, o que lembra uma postura folclorista típica das primeiras décadas do
século XX, a qual procurava “resgatar” e “catalogar”, como algo estático e livre de
contradições, os modos do sertanejo. Todavia, Valdomiro se distancia dessa postura ao incluir
78
em seus romances tramas e enredos que mostram a dinâmica e a complexidade desse universo
como algo vivo e em constante diálogo consigo próprio, bem como com outros universos
culturais.
Para esse autor, o caipira passa a ser identificado menos por suas características
raciais, como ocorre em Cornélio Pires e Monteiro Lobato, e mais por suas manifestações
culturais, principalmente por sua linguagem, por seus costumes e crenças
29
. Sendo tal enfoque
um dos grandes elementos de destaque em suas obras.
- Ota! Solama Bruta! ia dizendo do Chico Pica-pau, sòzinho, pela estrada
vermelha, ao pino do dia. O suor caía-lhe em grossas gotas pela testa e rosto
abaixo, banhando-lhe a camisa de algodão e um bentinho de baeta azul que vestia a
oração livradeira das cobras e dos outros bichos de peçonha. Derrubou mais o
chapéu na testa, pôs a mão esquerda sobre os olhos, atentou no céu
demoradamente:
- Pois já devêra de ‟tar mais friinho um pouco: arre, dianho! Neste tempo que o sol
aponta branco, a fresca vem cedo. Isto é chuva que tá aprojetando, não hai como
não seja!
E, de fato, para os lados do Ourinho havia nuvens acasteladas sobre os morros,
vagamente ameaçadoras na sua cor plúmbea e triste. Uma tapera começou a
circular ao cimo da mata, com preguiça, dois tucanos principiaram de uma banda a
outra da estrada um diálogo em voz rachada e enfadonha, e o sol teve sombras
intermitentes a cobrirem-lhe a face esfogueada. (SILVEIRA, 1962, p. 14-15)
No trecho pertencente ao conto “Na tapera de Nhô Tido”, observa-se um narrador em
terceira pessoa, uma descrição bem realista do personagem, na qual se inclui elementos que
caracterizam a cultura caipira, como a crença no “bentinho” que protege contra cobras ou
outros bichos peçonhentos. Uma caracterização da paisagem rural: o sol, a previsão da chuva,
os tucanos e uma tapera, aspectos que demarcam a literatura de Valdomiro Silveira como um
todo. Ademais, na fala do personagem percebe-se o uso do linguajar típico do caipira,
constantemente utilizado pelo autor, as vezes de forma mais distanciada e por vezes mais
aproximadas, sendo que em Leréias: histórias contadas por elles mesmos o autor abole o
29
Sobre o enfoque cultural na obra de Valdomiro Silveira.Ver (SILVEIRA, 1997).
79
distanciamento entre o narrador culto e os personagens rústicos.
Valdomiro evidencia a importância da linguagem própria do homem interiorano como
um elemento caracterizador de sua tradição e cultura, a qual seria a fundadora da identidade e
da origem do povo brasileiro. Entretanto, para Valdomiro a genuína cultura caipira estava
ameaçada pelo avanço do cultivo do café, que por seus efeitos econômicos e sociais, como o
deslocamento forçado, a destruição de parte das culturas de subsistência em prol do
latifúndio, e também pela introdução dos imigrantes, estavam desestruturando e
descaracterizando a cultura rural, ameaçando inclusive a sua existência.
Vale lembrar que, se por um lado, Valdomiro não considera como muito relevante a
questão racial por seu caráter determinista, por outro, o autor constrói seus personagens como
descendentes de europeus, sobretudo portugueses, pois tal descendência seria o elo que ligaria
o caipira, como sendo o maior representante da nacionalidade, aos antigos bandeirantes.
Portanto, uma nacionalidade branca, de origem européia e paulista. O próprio autor se via
como um genuíno paulista e afirmava sua descendência bandeirante.
Contudo, não havia somente posicionamentos positivos acerca do sertanejo. Inúmeros
intelectuais imbuídos, principalmente, das teorias da eugenia, do darwinismo social e do
racismo científico europeu, atacavam veementemente o caipira. Assim posto, gerou-se um
conflito entre, de um lado os intelectuais que defendiam o campônio, considerando-o como o
genuíno habitante da nação e guardião das tradições” brasileiras, como Valdomiro Silveira e
Cornélio Pires, e no extremo oposto, autores que depreciavam o caipira, enxergando-o como
um ser racialmente inferior devido à sua mestiçagem, sendo assim, culpado pelo atraso
econômico e social da nação. Dentre os intelectuais dessa vertente, destaca-se Monteiro
Lobato com a caracterização de seu Jeca Tatu
30
.
Mesmo antes desses trabalhos literários, é importante notar que durante o século XIX,
30
A respeito do caipira, descendente dos bandeirantes, como sendo o “guardião das tradições” Ver (SILVEIRA,
1997, cap. 3)
80
a preocupação de se criar uma genealogia da nação era uma constante nas artes em geral, e
não apenas na literatura. A figura do caipira era um elemento chave para a consolidação
desses objetivos também nas artes plásticas, como no caso dos trabalhos de Almeida Júnior
(1850-1899).
Por ter nascido no interior de São Paulo, Almeida Júnior teve contato desde criança
com o universo caipira, sendo esse, a grande inspiração durante sua vida artística. Entretanto,
a intenção do pintor em retratar com “precisão” o cotidiano e os modos de vida dos
campesinos com quem teve contato, ia além dos objetivos provincianos de um pintor apegado
a sua terra, considerando que Almeida Júnior também tinha uma preocupação em construir
um elemento que representasse a nação brasileira, vendo, para tanto, o caipira paulista como o
modelo ideal.
Almeida Júnior idealiza o caipira pela forma pictórica do mesmo modo que autores
como Valdomiro Silveira o fazem pela escrita. Por seu inegável talento artístico, Almeida
Júnior viaja a estudos à Paris como pensionista de D. Pedro II, tendo contato com as novas
técnicas de pintura em voga na Europa. Tais técnicas são utilizadas em muitos de seus grandes
trabalhos como O derrubador brasileiro (1879), Caipiras negaceando (1888), Caipira
picando fumo (1893) e O violeiro (1899).
Assim, é visível a contribuição do pintor na idealização desse segmento social, como o
genuíno habitante brasileiro, descrevendo-os como trabalhadores vigorosos, humildes e
corajosos. Seus trabalhos também podem ser enquadrados como realistas/regionalistas, dada a
intenção do autor em descrever da forma mais verídica e precisa possível, as práticas culturais
e cotidianas do homem rústico do sertão paulista.
Por sua vez, o escritor e folclorista Cornélio Pires (1884-1958), à semelhança de
Valdomiro Silveira, teve contato com o universo caipira desde sua infância na cidade de Tietê,
no interior de São Paulo, onde nasceu. A maioria de suas obras são coletâneas de inúmeros
81
casos e anedotas sobre o caipira, poesias, além de algumas composições musicais, sendo por
isso considerado o fundador da música caipira.
Segundo Cornélio, os caipiras:
São os filhos das nossas brenhas, de nossos campos, de nossas montanhas e dos
ubérrimos vales de nossos piscosos, caudalosos, encachoeirados inumeráveis rios,
“acostelados” de milhares de ribeirões e riachos.
Nascidos fora das cidades, criados em plena natureza, infelizmente tolhidos pelo
analfabetismo, agem mais pelo coração que pela cabeça. Tímidos e desconfiados ao
entrar em contato com os habitantes da cidade, no seu meio são expansivos e
alegres, folgazões e francos; mais francos folgazões que nós outros, os da cidade. De
rara inteligência não via nisso exagero são, incontestavelmente, mais argutos,
mais finos que os camponeses estrangeiros. Compreendem e apreendem com maior
facilidade: fato, aliás, observado por estrangeiros que com eles têm tido ocasião de
privar.
É fato: o caipira puxador de enxada, com a maior facilidade se transforma em
carpinteiro, ferreiro, adomador, tecedor de taquares e guembé, ou construtor de
pontes. Basta-lhe “uma só” explicação bem clara; ele respondera:
“Se os ôtro fáiz... proque não hi de fazê!... Não agaranto munto, mais
exprimentá”. (PIRES, 2002, p. 20)
Assim, percebe-se, pelo primeiro parágrafo, a visão do autor acerca do caipira como
um ser praticamente oriundo da própria natureza brasílica, sua origem se perde por parecer tão
antiga e atemporal quanto as montanhas, os rios e os campos. Sua relação com a natureza é
tão próxima que o caipira é tido como “acostelado” aos elementos naturais, sugerindo uma
analogia bíblica com a criação da mulher, Eva, a partir da costela do homem, Adão, tendo
ambos origem divina.
É possível que Cornélio tentasse eleger o caipira como o elemento mais representativo
da nacionalidade brasileira. Tal propósito é reforçado quando, no segundo parágrafo, o
caipira, representante do trabalhador nacional, é mostrado como sendo mais inteligente,
“fino” “arguto” que os “camponeses estrangeiros”, e ao propor a predominância do
trabalhador nacional no campo. Conversas ao do fogo, é de 1921, período em que grande
parte dos intelectuais ainda apoiava fortemente a imigração, não apenas por questões
82
econômicas, mas também sociais e étnicas, pois viam o trabalhador estrangeiro, branco e
europeu como mais produtivo, civilizado e racialmente superior.
Apesar disso, ao comparar os caipiras com os citadinos, Cornélio reforça um velho
estereótipo que permeia a sociedade brasileira, ou seja, a de que o campo é um local de atraso
e ignorância por ver os caipiras como ingênuos, impulsivos e contrários a atividades de cunho
racional, e no extremo oposto os citadinos como cosmopolitas, racionais e desenvolvidos
econômico e intelectualmente. Cornélio em muitas anedotas acaba colocando o caipira em
situações de ridicularização face ao ambiente urbano.
Assim, se por um lado Cornélio valorizava a cultura caipira por sua simplicidade,
ingenuidade e principalmente por seu caráter trabalhador, confrontando com as teorias
preconceituosas que viam o caipira como indolente como a adotada a princípio por Monteiro
Lobato, ao mesmo tempo reforçava um estereótipo antigo de oposição entre mundo rural,
atrasado e tradicional, e mundo urbano, moderno e cosmopolita.
O humorista não era adepto das teorias racistas de sua época - que pregavam o
embranquecimento do povo brasileiro como única forma de se atingir o progresso econômico
e social - por defender a grandeza do trabalhador e da cultura caipira totalmente miscigenada,
mas não estava imune à influência desses pensamentos, uma vez que tipifica os caipiras em
quatro grupos raciais: os caipiras brancos, os caipiras pretos, os caipiras caboclos e os caipiras
mulatos.
Quanto ao primeiro tipo, Cornélio afirma que são oriundos dos europeus. São os que
mais se preocupam com a educação, são sempre proprietários, limpos, recatados, sempre
respeitados pelos caipiras pretos e caboclos. Se são analfabetos, são gentis e bem educados,
além de sóbrios, alegres e excelentes patrões.
Em relação ao caipira negro, o autor destaca que são os descendentes dos africanos,
sendo bons brasileiros, porém, sofrem ainda as conseqüências da escravidão, uma vez que em
83
sua maioria são pobres e esfarrapados. São carinhosos, gentis, pacientes e humildes, em
especial os velhos. A casa desses é limpa, mas o facilmente vencidos pela “cachaça” e pela
tuberculose. O caipira negro não se deixa humilhar pelo branco e são descritos como mais
patriotas que esses.
Contudo, ao descrever os negros velhos, Cornélio é mordaz: “Que é o negro velho?
Um farrapo de gente... é um bagaço da vida! É um hospital de doenças! Tem os pés inchados
e rachados pelas frieras, pelos espinhos, pela erispela, pela elefantíase...Seu peito ronca e
ringe cheio de asma!” (PIRES, 2002, p.28).
Cornélio foi pioneiro ao descrever qualidades positivas do negro, bem como sua
importância na configuração do universo caipira, no entanto, os negros são retratados como
passivos, doentes, maltratados e com certos vícios. Para o autor, a contribuição que os negros
deram à formação do caipira paulista foi puramente étnica, não considerando seu importante
legado cultural. Algo que será feito, somente com Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre
em 1933.
O caipira mulato é descrito como o mais vigoroso, altivo, independente e mais patriota
de todos os demais. Apesar de ser apreciador de samba, não se mistura com os negros, pois
considera-se superior a eles por serem mais “claros”, mesmo assim, trata-os com carinho. É
perceptível uma forte presença racial na definição do “caipira mulato” pelo fato do autor
afirmar que as mães negras mimam e satisfazem-se mais com seus filhos por serem diferentes
delas mesmas, ou seja, por serem mais “claros”. É curioso o fato de que a figura do negro na
definição do caipira mulato acaba sendo mais depreciada do que a apresentada pelo próprio
caipira negro.
Na época da publicação de Conversas ao pé-do-fogo, apenas Menotti del Picchia em
Juca Mulato havia apontado algumas qualidades e a importância do “mulato” como elemento
participante da comunidade rural. Contudo, no poema menottiano, nota-se uma ausência de
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traços mais aprofundados acerca desse segmento social. Juca Mulato apesar de possuir
“força”, “elegância”, “agilidade”, é um caipira sob o qual paira a dominação do homem
branco. À semelhança do caipira mulato de Cornélio, Juca Mulato acaba por não apresentar
uma contribuição cultural definida para a formação do caipira paulista, apesar de ser um
elemento dele constituinte, Juca apenas participa da rotina rural do seu espaço físico.
Quanto ao caipira caboclo, Cornélio Pires define sua origem como descendentes dos
“bugres catequizados”, apresentando às vezes “um tiquinho de sangue espanhol ou
português”. Comparando-o com o caipira branco que se apresenta como membro de uma
determinada família, o caipira caboclo se apresenta como “sendo da raça de tal gente”. São
descritos como fortes, porém “magruços”, são resistentes a doenças. Citando Cornélio, esses
caipiras são: “inteligentes e muito preguiçosos, velhacos e mantosos, barganhadores como os
ciganos, desleixados, sujos e emulambados, dão tudo por um encosto de mumbava ou de
capanga, são valentes, brigadores e ladrões de cavalos”. (PIRES, 2002, p.25).
Além dessas características, os caipiras caboclos são descritos como mulherengos,
“almofadinhas caboclos”, e apesar de serem raros, existem em todo o estado. Segundo
Cornélio a vida desses
[...] é caçar, (com aviamentos arranjados aqui e ali à custo de pedinchices) pescar,
dormir, fumar, beber pinga e tocar viola, enquanto a mulher, guedelhuda e
imunda,vai pelos vizinhos, pidonha e descarada, filar dos bons trabalhadores o
feijão, o toicinho, o açucre, o caa farinha e... um manojo de couve [...] (PIRES,
2002, p. 25-26)
Fora isso, os caboclos criam seus filhos ao Deus-dará, são sujos, usam roupas
imundas. Suas casas além de miseráveis, nas quais não ratos apenas porque não o que
roer, são nojentas, pois não são limpas por pura preguiça. O autor termina sua descrição
afirmando que “graças a Deus, parece que esse tipo vai desaparecer”.
85
É perceptível a dose de preconceito imersa na construção da imagem do caipira
caboclo, descrevendo-o como indolente, preguiçoso, ladrão, bêbado, imundo, dentre outros.
Cabe lembrar que, muitas das características dos caboclos, são extremamente semelhantes às
descrições de Monteiro Lobato em Urupês e Velha Praga. A propósito, Cornélio finaliza
sua descrição do caipira caboclo afirmando que foi um desses caipiras que Lobato estudou e
descreveu, apenas errando por generalizá-lo.
Dentre o que foi colocado, acerca da obra de Cornélio Pires, deve-se destacar que
apesar de seu estilo de fazer anedotas e descrever causos, que por vezes ridicularizavam o
caipira, o autor apresenta imagens que mostram a convivência de cidades do interior com
elementos da modernidade urbana que alterava a rotina dessas pequenas cidades, quebrando,
dessa forma, com a simples dicotomia existente na época que dividia mundo urbano e rural,
no qual esse último era visto como rigidamente estático.
Segundo Cláudio Bertolli Filho, Cornélio Pires:
[...] afastou-se de Monteiro Lobato e Valdomiro Silveira ao negar o futuro
desaparecimento dos caipiras, quer pela americanização do rústico até que se
metamorfoseasse em outro tipo social, quer pela sua pura exclusão do território
paulista. Em vez disso, Cornélio fincou na capacidade da cultura interiorana
transformar-se sem no entanto perder sua originalidade, de ser outra sem deixar de
ser a mesma. (FILHO, 2009, p. 58)
Assim, Cornélio teve um importante papel ao valorizar a cultura caipira,
especialmente por demonstrar sua abrangência e complexidade, ainda que suas figuras
tipificadas tenham contribuído, por vezes, para a construção de uma imagem deturpada e
preconceituosa do caipira paulista.
A figura do caipira desempenhou uma importante função no campo das artes
brasileiras, sobretudo na literatura, ao longo do século XIX, uma vez que essas estavam
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preocupadas em criar um personagem que representasse a nacionalidade brasileira por meio
de um elemento tipicamente paulista.
Em contraposição, havia também representações que menosprezavam o caipira,
acusando-o de ser um entrave ao desenvolvimento do Brasil, como ô fez Monteiro Lobato, e
que será analisado mais adiante. Porém, ambas as representações mostram como o caipira era
uma figura muito pensada, diante desse contexto de debate em torno da definição do que era o
povo brasileiro.
Todas essas questões estavam na pauta do dia no momento em que Menotti Del
Picchia escreveu Juca Mulato em 1917. Ainda mais, ao se considerar o contexto específico
em que o livro foi escrito, no qual havia um forte apelo nacionalista diante do quadro da
Primeira Guerra Mundial.
Menotti cria um caipira apegado a sua terra e ao seu modo de vida, totalmente
integrado à natureza que o cerca, da mesma maneira que os caboclos de Valdomiro Silveira,
porém a inovação do poeta é apresentar a epopéia romântica de um caipira mulato em um
período que a idealização do caipira, como representante da nacionalidade, baseava-se em um
caipira eminentemente branco e descendente dos bandeirantes.
Menotti se distancia de Cornélio, que especificou em 1921 as qualidades e defeitos do
“caipira mulato”, por não buscar definir um tipo caipira, mas apresentá-lo com características,
até então, não atribuídas a um “mulato”. Juca é descrito romanticamente por “seu rosto
moreno”, “seu torso trigueiro”, por sua altivez, agilidade e robustez, sendo ainda sóbrio,
amante da natureza e patriota, um perfeito “Hércules do mato”, para usar a expressão cunhada
por Júlio Dantas.
No entanto, o poema acaba por fixar um lugar determinado para o negro naquela
sociedade, quando, no capítulo “A voz das coisas”, a mãe de Juca afirma que ele será doutor,
e o pai “sensato” sentencia: “Nosso filho será um caboclo do mato, forte como a peroba e
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livre como o vento”. Liberdade totalmente duvidosa por revelar o conformismo do pai e a
submissão do filho, que justamente é representado como um caboclo do mato, a uma condição
social inferior ao dos senhores da casa-grande. (PICCHIA, 198?, p.)
Apesar disso, Juca Mulato representou uma grande inovação na literatura regionalista,
nesse momento de transição, fundamentalmente por sua temática, que considerou os
“mestiços” na formação do caipira, valorizando-o como braço forte para a lavoura, elevando-
o à categoria de herói de uma fábula cabocla, descrevendo-o com adjetivos que o
engrandecem e o tornam mais altivo que os demais caipiras, também representados num
momento de grande adesão às teorias raciais e de branqueamento da população.
2.2 O contraponto entre Juca Mulato e Jeca Tatu
“Pobre Jeca Tatu!
Como és bonito no romance
e feio na realidade!
Jeca mercador,
Jeca lavrador
Jeca filósofo
Monteiro Lobato
Seguindo a proposta de delinear a imagem literária que se tinha do caipira paulista até,
o momento da publicação do poema Juca Mulato, faz-se necessário aprofundar a relação que
se estabelece consciente ou “talvez inconscientemente”, como afirma Paulo Rónai, entre os
personagens criados por Menotti del Picchia e Monteiro Lobato.
A literatura é um veículo artístico que abrange uma grande quantidade de
representações sociais. Tais representações identificam “o modo como em diferentes lugares e
momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”, motivo pelo
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qual, constantemente a literatura vem sendo estudada pela história cultural. Chartier
prossegue afirmando que “uma tarefa deste tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz
respeito a classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social
como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real.” (CHARTIER, 1998, p.
16)
Devido às diferenças que apresentam, é relevante contrastar tais visões,
principalmente, quando possuem características tão adversas ao tratar de um mesmo elemento
social. Destarte, a comparação entre o Jeca Tatu e Juca Mulato desnuda uma possibilidade de
constituição literária do caipira para além da imagem cristalizada por Monteiro Lobato, na
medida em que o poeta tenta fixar a figura de um caipira “forte” e “livre”, mas
intrinsecamente amarrado pelas correntes sociais que invadem o seu isolamento lírico.
Com a publicação do artigo “Urupês” em 1914 na seção “Queixas e denúncias” do
jornal O Estado de São Paulo, Monteiro Lobato dá vida a um personagem que habita as áreas
rurais do interior do estado paulista. Num primeiro momento, o fazendeiro, preocupado com a
devastação de suas terras pelos caipiras, visava denunciar a precariedade do modo de vida e
dos costumes dos caboclos.
Em “Urupês”, Lobato se posiciona contra a “onda caboclista” ou sertanismo, que
segundo ele, conferia ao homem do interior uma imagem romantizada e não condizente com a
realidade brasileira. Tal estilo literário voltado para “a gente do interior” e suas regiões se
ascendeu, como foi abordado, devido à intenção dos intelectuais e políticos em configurar
um caráter nacional para o homem brasileiro.
O artigo “Urupês” atinge enorme sucesso entre os leitores do jornal, fato que anima
Lobato a dedicar-se a outro artigo de mesma temática, “Velha Praga”, publicado também em
1914. Alguns dos leitores, também pertencentes à oligarquia rural, se identificaram com os
problemas enfrentados por Lobato em suas terras e viam no articulista, o porta voz de seus
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interesses econômicos. Através desses dois artigos, a figura do homem interiorano fica
moldada seguindo os padrões de um único caipira, Jeca Tatu.
Antes de apontar as razões que levaram Lobato a generalizar o homem rústico
baseando-se em apenas um exemplo, cabe ressaltar que Lobato descreve a situação que
observa de sua fazenda situada no Vale do Paraíba, região em decadência devido ao desgaste
do solo, provocado pela monocultura cafeeira. Nesse sentido, fica patente que os caipiras
daquela região possuíam hábitos e costumes condenáveis aos olhos da aristocracia rural, em
razão das próprias condições do ambiente desgastado, pois até mesmo os ricos fazendeiros
sofriam com a derrocada econômica daquelas cidades, eternizadas pelo próprio Lobato,
posteriormente, em Cidades Mortas (1919).
No momento da publicação dos artigos n'OEstado de São Paulo, a imagem do Jeca
Tatu para Lobato era a de um caboclo que vivia “a vegetar de cócoras, incapaz de evolução,
impenetrável ao progresso”; antipatriota; supersticioso; indolente e preguiçoso, “parasita da
terra”. O articulista sentencia:
O caboclo é soturno.
Não canta senão rezas lúgubres.
Não dança senão o cateretê aladainhado.
Não esculpe o cabo da faca como o kabyla.
Não compõe sua canção como o fellah do Egyto.
Triste como o curiango, nem sequer assobia.
No meio da natureza brasilica, tão rica de formas e côres, onde os ipés floridos
derramam feitiços no ambiente, e a infolhescência dos cedros, ás primeiras chuvas de
Setembro, abre a dança dos tangarás, onde abelhas de sol, esmeraldas vivas,
cigarras, sabiás, luz, cor,
perfume, vida dionisica em escachôo permanente, o caboclo é o sombrio urupê de páu
podre, a modorrar silencioso no recesso das grotas.
Só elle não fala, não canta, não ri, não ama.
Só elle, no meio de tanta vida, não vive. (LOBATO, 1920, p. 217-218)
Por meio dessa descrição, Lobato apresenta um caipira paulista avesso àqueles
representados pelos outros autores, desmistificando, portanto, a idéia comum de um homem
forte e valente, descendente dos heróicos bandeirantes portugueses que haviam expandido o
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território brasileiro, e que foram escolhidos como símbolos da nação. Contrariamente a esses
regionalistas, Lobato representa um caipira que em sua concepção pode ser classificado como
“piolho da terra”, um “urupê de pau podre”. Se por um lado, há denúncia de um modo de vida
precário e relegado ao abandono, por outro, o foco na condição do homem, e não nos
problemas por ele enfrentado, salienta alguns pensamentos ideológicos do autor.
Na criação de Jeca Tatu ficam evidente as concepções ideológicas de Monteiro
Lobato, acerca principalmente do racismo científico, do darwinismo social e do determinismo
geográfico, pela forma como ele ataca o caipira. Em “Urupês”, o autor ao criticar o que
considera como “caboclismo”, propõe uma literatura de caráter nacional e voltada para a
realidade humana. Contudo, ao buscar retratar e explicar a “realidade” vivida pelos caboclos,
Lobato cria para esse grupo social uma imagem estereotipada e impregnada pelos conceitos e
valores raciais da pseudo ciência européia, muito em voga no período entre os grupos
dominantes.
Munido de tais teorias, advindas, principalmente das leituras de obras de Herbert
Spencer e das “importações” brasileiras do pensamento europeu, Lobato cristaliza uma
imagem negativa do caipira, esquecendo-se mesmo das dificuldades pelas quais passavam a
velha região do Vale do Paraíba.
É importante ressaltar que o momento histórico em que surge Jeca Tatu está
impregnado pela ideologia da modernização do país, e esta, está intimamente ligada a uma
ideologia de evolução racial. A modernização econômica seria possível em um país onde o
povo tivesse condições, físicas morais e raciais de se adaptar ao progresso. Assim, para
Lobato o caipira na sua profunda e histórica inércia, atraso e ignorância, não só não se
adaptaria ao progresso, como atrasaria o Brasil, como um todo, nessa busca.
Contrapondo-se a esse pensamento que prenunciava a inferioridade do caipira,
Menotti del Picchia dá luz a um outro personagem que em tudo destoa de Jeca Tatu. Enquanto
91
o caipira lobatiano é o “parasita da terra”, que dela tudo extrai, para depois abandoná-la e
seguir em direção a outras terras com a intenção de apenas usufruir do melhor que ela possa
fornecer-lhe, o Juca Mulato é um caboclo totalmente apegado ao seu chão.
O autor nomeia o primeiro capítulo de Germinal trazendo a idéia do homem como
gérmen da terra, um produto do solo brasileiro. Tal concepção está encetada logo nos
primeiros versos:
Como se sente bem recostado no chão!
Ele é como uma pedra, é como a correnteza,
uma coisa qualquer dentro da natureza
amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo
a esse desejo de viver grande e complexo
que tudo abarca numa força de coesão
Compreende em tudo ambições novas e felizes,
tem desejo até de rebrotar raízes,
deitar ramas pelo ar,
sorver, junto da planta, e sobre mesma leiva,
o mesmo anseio de subir a mesma seiva,
romper em brotos florescer, frutificar! (PICCHIA, 198?, p. 18)
O narrador diz que Juca se sente bem recostado ao chão, apresentando em seguida a
imensa ligação da personagem com a natureza que o cerca e que de tal modo o abarca no
mesmo amplexo. Nesse instante, com desejos de pertencer à natureza, Juca sente vontade de
arraigar-se, e emergindo-se da terra, florescer assim como as plantas, ou seja, o caboclo, em
um apogeu de esperanças, tem ânsias de prosperidade.
Tal relação íntima com a natureza evidencia uma outra diferença essencial entre o Juca
e o Jeca, dado que o ambiente tem valores distintos para a formação do caráter físico e
sentimental dos mesmos. No Jeca, nota-se um caipira preguiçoso, para o qual a natureza
brasílica exerce um poder degenerativo por meio do sol forte, e da escassez de solo fértil,
proveniente do mau uso que ele próprio fazia da terra, e que por conseguinte, o obrigava a não
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fixar residência definitiva; contrariamente, o Juca é um ser que resulta da natureza, ele sente
prazer em pertencer àquele lugarejo e ainda sonha com entrelaçamentos mais profundos.
O ápice desse entrelaçamento, entre homem e natureza, se no capítulo denominado
“A voz das coisas”, no qual Juca é exortado pela natureza, que se posiciona como mãe do
caboclo, ao vê-lo cogitar uma fuga:
E Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado:
“Queres tu nos deixar, filho desnaturado?
E um cedro escarneceu: “Tu não sabes, perverso,
que foi de um galho meu que fizeram teu berço?
E a torrente que ia rolar para o abismo:
“Juca, fui eu quem deu a água do teu batismo”.
Uma estrela, a fulgir, disse da etérea altura:
“Fui eu que iluminei a tua choça escura
no dia em que nasceste. Eras franzino e doente.
E teu pai te abraçou chorando de contente...
Será doutor! - a mãe disse, e teu pai, sensato:
Nosso filho será um caboclo do mato,
forte como a peroba e livre como o vento! -
Desde então foste nosso e, desde esse momento, nós
te amamos, seguindo o teu incerto trilho,
com carinhos de mãe que defende seu filho!”
Juca olhou a floresta: os ramos, nos espaços,
pareciam querer apertá-lo entre os braços:
“Filho da mata, vem! Não fomos nós, ó Juca,
o arco do teu bodoque, as grades da arapuca,
o varejão do barco e essa lenha sequinha
que de noite estalou no fogo da cozinha?
Depois, homem já feito, a tua mão ansiada
não fez, de um galho tosco, um cabo para a enxada? (PICCHIA, 198?, p.
69- 70)
O elo entre Juca e a natureza se deu desde o nascimento do caboclo. E esses elementos
naturais, o interpelam, provando-lhe que sua vida não existiria se não fosse o carinho e os
benefícios concedidos por ela. Em Juca Mulato, a relação do homem rural com o ambiente é
completamente divergente da relação predatória existente entre Jeca Tatu e seu espaço rural.
Para o Mulato, o ambiente é o complemento do seu ser, é o que o impede de fugir e
93
abandonar o seu pedaço de chão, ao contrário do Jeca, no qual, não disposição de reformar
sua própria casa por faltar pouco tempo para deixá-la e seguir para outro lugarejo,
estabelecendo-se sempre na condição de agregado, e somente “pelo tempo necessário a
completa sucção da seiva convizinha; feito o que, salta para adiante com a mesma bagagem
com que alli chegou”. (LOBATO, 1920, p. 222)
É provável que o poema de Menotti tenha realmente surgido como uma resposta à
criação literária de Lobato, pois vários trechos em que se nota uma desconstrução de
alguma característica pessimista apontada em “Urupês” ou “Velha Praga”. Nesse último,
Lobato se detém na crítica ao costume do caipira de tocar fogo no mato para realizar a
limpeza do terreno. É dessa forma que o fazendeiro que suas terras estão sendo destruídas
pelo caipira. Apesar da razão em não querer ser prejudicado por maus hábitos do caipira,
Lobato se excede ao afirmar que “a queimada é o grande espectaculo do anno, supremo regalo
d'olhos e ouvidos” e que diante dela o caboclo exclamaria: “Eh! Fogo bonito!”. (LOBATO,
1920, p.225)
Para o caboclo, tocar fogo no mato era simplesmente um processo realizado na
preparação do terreno para um novo plantio. Os caipiras herdaram essa técnica de seus
antepassados tupis, cuja cultura agrícola era realizada apenas para subsistência. O costume
permaneceu entre os caboclos devido à transmissão de muitas técnicas dos índios para os
portugueses e mamelucos. Porém, nem sempre esse recurso era realizado de acordo com as
técnicas indígenas, o que acabava prejudicando o bom cultivo dos alimentos e alastrando o
fogo para outros locais, como bosques e florestas, além disso, é importante lembrar que, se
tratando de uma agricultura voltada para a monocultura exportadora, tal técnica era feita
precariamente para se evitar custos.
31
Ao contrário do que aponta Lobato, não é tácita a felicidade do caboclo diante da terra
31
Com relação ao processo da “coivara” e a transmissão da técnica aos portugueses Ver (FREYRE, 2006, p.
232)
94
em chamas. No poema Juca Mulato, o personagem lamenta a chegada do mês de agosto, por
este ser o tempo das queimadas: “Ai! Bosque real é o tempo das queimadas!.../ É agosto, é
agosto! O fogo arde o que existe/ em turbilhões sinistros e medonhos”. Além da melancolia,
sentida nas palavras de Juca em relação ao tempo das queimadas, por esta destruir tudo,
inclusive os bosques, o personagem em versos antes, compara a “luxuriante” e “violenta
flora” do “bosque real” com os desejos, crenças e ambições que palpitavam em sua alma.
Dessa forma, tem-se em Juca Mulato uma outra visão de um dos principais problemas
do caipira indicado por Monteiro Lobato.
À semelhança de Jeca Tatu, Menotti pinta o caipira cheio de “cismas” em meio à
natureza selvagem. Na concepção dos dois autores o caboclo é um sujeito triste, quieto e que
vive meditando: Jeca em uma nova forma de alastrar mais as queimadas, e Juca nos olhos da
filha da patroa. Menotti também faz referência à preguiça do caboclo, qualidade muito
comum atribuída ao homem da terra. Contudo, no poema menottiano ela é mencionada após
um dia de trabalho:
Aflora-lhe no imo um sonho que braceja;
estira o braço; enrija os músculos, boceja,
supino fita o céu e diz em voz submissa:
“Que tens, Juca Mulato?...” e, rebolado na erva,
sentindo esse cansaço irritante que o enerva,
deixa-se, mudo e só, quebrado de preguiça.
Cansado ele? E por quê? Não fora essa jornada
a mesma luta, palmo a palmo, com a enxada
a suster no café as invasões da aninga? (PICCHIA, 198?, p. 21)
Nota-se que o cansaço de Juca é oriundo de um dia duro de trabalho numa roça de
café, contudo, o poeta menciona que ele encontra-se “quebrado de preguiça”. O sertanejo é,
aqui, um homem trabalhador que cumpre sua jornada de trabalho e ao entardecer tem o seu
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momento de descanso junto à natureza. Destarte, primeiramente o poeta tenta subverter a
imagem do caipira como um ser preguiçoso e indolente, apresentando-o como um trabalhador,
no entanto, Juca aparece a cismar” sonolento e o poeta não deixa de mencionar o vocábulo
“preguiça”.
Através de Juca Mulato, Menotti acreditava que
Poderia assim fixar um flagrante de alma, colher num verso como rútila e pura gota de
orvalho numa pétala, sua emoção, coisa ingênua e não sofisticada. Fluxo miraculoso e
virgem de um primeiro amor.
Pouco importaria registar que esse amor não fosse retribuído ou compreendido.
Retrataria sua eclosão expontânea como força inelutável da natureza, botão que
rompesse de planta na fatalidade de ser flor. Essa ia emocional incrustaria na
paizagem mágica circundante o cafesal simétrico, o pomar estrelado de laranjas,
jabuticabas, frutas-do-conde a convocar todos os pássaros para seus aéreos
concertos e seus banquetes silvestres.
Sentiria a reimersão do universo, seres e coisas na pureza do primeiro dia.
“Juca” seria um Adão sem Eva. De início uma plena candura, uma premunição, uma
ânsia. Integração na alma pânica das árvores, dos veios de água, das nuvens e das
pedras. Comunicação emotiva com o que tivesse vida e movimento: pássaros músicos,
bois melancólicos erguendo contra o poente de fogo seus focinhos indagadores,
taciturnos e errantes momentos de carne. E vida comunicante e confidente o
“Pigarço”, (...)”.(PICCHIA, 1970, p. 136)
Em A longa viagem, o escritor expõe uma de suas principais intenções ao criar o
personagem Juca Mulato. Apesar da íntima relação telúrica entre o homem e o chão que o
sustenta, Menotti estabelece esse elo apenas entre o Mulato e a natureza, ou seja, os outros
personagens que aparecem no poema não possuem a mesma ligação mágica com o lugarejo
descrito. A filha da patroa está inserida num espaço determinado, a janela da casa grande, na
qual Juca a observa, mas é o seu olhar que participa da trama. O negro Roque, feiticeiro que
Juca procura a fim de solucionar seu dilema amoroso, é pejorativamente descrito. A partir
desses personagens, o escritor explicita sua visão de mundo acerca do homem e das relações
sociais estabelecidas entre eles.
Embora o drama emocional e espiritual enfatize o protagonista Juca Mulato, as
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personagens secundárias merecem consideração. Assim, tendo o Mulato como parâmetro, é
possível reconhecer a hierarquia exposta pelo autor ao compor o poema. A filha da patroa tem
parcas aparições, sobressaindo a idealização amorosa do caboclo em relação a ela, Juca o
olhar longínquo e indiferente da amada na lua, na poça, no horizonte, na mata. O olhar da
amada, também calmo e doce, é o responsável por despertar o caipira para a vida.
No capítulo “Lamentações”, Juca Mulato demonstra compreender o abismo que o
separa de sua amada ao comparar a filha da patroa a uma santa que tem em casa, ou seja, em
sua concepção a amada tem auras divinas, e está tão distante dele quanto os seres santificados
do homem comum:
“Tenho uma santa em casa, o seu olhar encanta.
O olhar dela é, porém, igualzinho ao da santa.
Quando rezo nem sei à dúbia luz da vela
se me dirijo à santa ou me dirijo a ela.
Esse olhar que, de meigo, é como o olhar da corsa,
tem, na própria fraqueza, a sua própria força.” (PICCHIA, 198?, p. 52)
A divinização do ente amoroso evidencia a posição em que o caipira a amada,
pertencente a uma classe social mais elevada. Para o protagonista, não como lutar por esse
amor, seu sentimento está definido por sua posição social frente ao status da filha da patroa.
Soma-se a sua condição de “caboclo do mato”, o fato de ser “mulato”, ou seja, além de um
pobre lavrador, Juca apresenta o “estigma da mestiçagem”. (DE LUCA, 1999, p. 156)
São muitos os versos em que a beleza “branca” e “pura” da filha da patroa é
ressaltada. A luz dos olhos dessa mulher é a metáfora mais recorrente. “Luz” que indica
claridade, luminosidade. No capítulo “A mandinga”, o negro Roque pergunta a Juca: “Como
queres possuir o olhar límpido dela? Tu és tal qual um sapo a querer uma estrela...”. Por meio
97
desses versos, nota-se o quanto Menotti expressou suas concepções européias de beleza, visto
que apesar de atribuir características positivas ao caboclo, ele em nenhum momento referiu-se
a cor da pele do personagem, quando o fez qualificou-o de “moreno”. (PICCHIA, 198?, p.17)
A hierarquia social e racial está caracterizada nos versos do poema: no pólo oposto ao
da filha da patroa encontra-se o negro Roque, velho feiticeiro, a quem Juca procura a fim de
libertar-se do amor impossível; a mulher branca e rica é colocada no topo da ordem social; o
protagonista tem assegurado uma posição intermediária, afinal, apesar de ser um descendente
de negro e branco, o caipira está amalgamado aquela natureza, e é o seu trabalho que
possibilita o enriquecimento dos seus senhores, e por extensão da capital do estado.
Nesse ínterim, resta ao velho mandingueiro ocupar a escória da sociedade. Seus traços
físicos e modos são descritos no momento em que Juca chega a sua tapera:
Juca Mulato apeia.
É macabro o pardieiro.
Junto à porta cochila o negro feiticeiro.
A pele molambenta o esqueleto disfarça.
Há uma faísca má nessa pupila garça,
quieta, dormente, como as águas estagnadas.
Fuma: a fumaça o envolve em curvas baforadas.
Cuspinha; coça a perna onde a sarna esfarinha
a pele; pachorrento inda uma vez cuspinha.
Com o seu sinistro olhar o feiticeiro mede-o. (PICCHIA, 198?, p. 63)
Percebe-se que ao construir tal personagem, o poeta não se esforçou para que o
mandingueiro tivesse uma aparência menos estereotipada. O negro Roque, não se pode
averiguar se por ser negro ou por ser feiticeiro, recebe características demasiadamente
pessimistas, algumas delas um tanto quanto semelhantes às recebidas por Jeca Tatu. No
trecho, o poeta se refere à casa do negro velho como “macabro pardieiro”, lembrando o
98
mesmo lugar lúgubre habitado por Jeca, uma tapera suja e tosca, erguida às pressas sem o
mínimo de capricho ou asseio.
A imagem do feiticeiro, representada por Menotti, é a de um caipira magro, sarnento,
um tanto quanto mau, apático e, acima de tudo, preguiçoso. Tal personagem transmite certa
repugnância, sua figura caricata destoa daquela representada por Juca Mulato, o qual, de certa
forma, ocupa uma posição privilegiada em relação ao negro.
É evidente a estratificação social presente no poema, a filha da patroa, representando a
classe dirigente, a aristocracia rural; Juca Mulato, como o representante de um grupo social
que conseguiu um grau maior de aceitação social por portar também sangue branco. É essa a
divisão social encetada por Menotti del Picchia, uma hierarquia baseada não na condição
social: senhores, empregados ou agregados, e o negro feiticeiro, um pária da sociedade local;
como na racial: uma mulher branca, um “mulato” e um negro.
Nesse sentido, o discurso de Menotti é idêntico àquele das classes privilegiadas que
viam os pobres como sujos e inferiores, além de imputarem aos negros os piores
qualificativos possíveis. Por meio de Juca Mulato, percebe-se que Menotti não ocultou a
desestruturação da economia agrária, como retificou ao “mestiço” a condição de sujeito
dominado. Essas concepções abarcavam uma gama de idéias e descobertas científicas da
época, e tanto Juca Mulato quanto Jeca Tatu estão repletos do “espírito da época”.
As páginas da Revista do Brasil, periódico que pertenceu e foi dirigido por Monteiro
Lobato, estavam repletas de discussões acerca dessas teorias científicas, que projetavam o
futuro do homem e de toda uma nação com base na origem racial. De acordo com De Luca:
“A intelectualidade presente na Revista do Brasil movimentou-se no interior dessa
tradição, tendo estabelecido, conforme teremos oportunidade de constatar, um
complexo relacionamento com as ximas racistas. O esforço que empreenderam a
fim de encontrar saídas positivas para o país muitas vezes aparece, ao observador
contemporâneo, como uma luta destituída de sentido (Ortiz, 1986, p. 13).
99
Perdemos de vista o quanto a atmosfera da época estava impregnada pelas noções de
superioridade e inferioridade biológica, secularmente reafirmadas por filósofos,
cientistas e políticos.” (DE LUCA, ORTIZ, 1999, 1986, p. 132 -133)
Nesse quesito, tanto Monteiro quanto Menotti expressaram idéias e concepções acerca
do mundo tal como o compreendiam, Monteiro não pelo seu ofício de escritor como
também pela posição privilegiada que ocupava quando se tornou editor e, então poderia
selecionar as obras literárias que chegariam ao público. Seu mérito, além da luta contra os
problemas sociais, pela literatura, deve-se à popularização do livro, por torná-lo um bem de
consumo mais acessível.
Menotti del Picchia, apesar de não delimitar uma posição literária e política linear,
manifestou seus ideais em relação ao homem brasileiro e à situação cultural do país, desde a
criação de Juca Mulato em 1917. Se por um lado, engrandecia o trabalho do caboclo no
campo, por outro, manifestava um interesse, muito particular, em manter a sociedade tal
como, ainda, se encontrava.
Comparado a Lobato, que não poupou adjetivos negativos ao descrever o Jeca,
Menotti assume uma posição paternalista, visto que ao invés de denunciar a situação como
esta se apresentava, preferiu camuflar, construindo um ambiente e um personagem,
aparentemente perfeitos e em comunhão um com o outro, enquanto proclamava a
superioridade do branco sob o negro, e indicava uma visão patriarcal em relação ao
personagem.
Essa atitude confirma a visão de mundo do poeta. Enquanto Monteiro desconstrói a
imagem romantizada do caipira, denunciando a precariedade do seu modo de vida, Menotti
reafirma essa visão idealizada, demonstrando que nem todos os caipiras são como o Jeca, mas
não aborda os problemas desse segmento social de maneira mais crítica e realista.
Em relação as suas obras, assim como Lobato, Menotti modificou seu posicionamento
100
de acordo com algumas mudanças ocorridas na ciência, na história política e literária do
Brasil, e apresentou certa volubilidade em relação ao mercado editorial do período. O poeta,
que iniciou-se brilhantemente na carreira literária em 1917, não conseguiu manter a mesma
qualidade estética nas obras posteriores, salvo algumas exceções, como Salomé, ou mesmo as
crônicas que apresentam acentuado valor literário.
Suas obras expressam uma concepção elitista acerca de diversos acontecimentos
históricos da época. Monteiro e Menotti, em seus projetos literários, acabam sendo porta-
vozes de um dado grupo social, recebiam influências do pensamento científico e cultural
europeu, e se posicionavam ideologicamente diante dos vultuosos debates que dia a dia eram
veiculados pelos jornais e periódicos na capital paulistana, nos quais tanto Monteiro quanto
Menotti publicavam suas contribuições.
A questão crucial, que faz-se necessário mencionar, é a participação desses dois
intelectuais na formação da mentalidade literária e social da época. Eles, em determinados
momentos e situações, através de seus talentos artísticos, transmitiam aos leitores a concepção
de mundo que possuíam. Por meio das representações de caipiras que encetaram, pode-se
conhecer a visão que possuíam acerca desse segmento social. E de acordo com Chartier
“As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à
universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos
interesses de grupo que as forjam.” (...)
“As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem
estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade
à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador o a
justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.” (CHARTIER,
1998, p. 17)
Tanto Monteiro quanto Menotti buscaram caracterizar o caipira de acordo com a visão
que possuíam do mesmo. Como foi mencionado no início desse capítulo, talvez Juca Mulato
101
tivesse surgido apenas como resposta à visão do caipira de Lobato, e tal conjectura é válida,
uma vez que, segundo Chartier, “as lutas de representações tem tanta importância como as
lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta
impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio.”
(CHARTIER, 1998, p. 17)
Ambos, em suas primeiras obras, de reconhecimento público, produziram imagens
acerca do homem rural que se contrastam em vários quesitos, porém, cada uma dialoga com
teorias sociais e críticas específicas a respeito do homem e da sociedade, assim como
demonstra uma relação diferente com os caboclos e com as terras do sertão paulista. De tal
forma, sobressai em seus textos literários, juntamente com a temática abordada por cada um, a
imagem que construíram diante do conhecimento que tinham do homem rural, das teorias
científicas e da sociedade da época em que viveram.
A imagem que se solidificou foi a de Jeca Tatu, mas a figura caricatural criada por
Lobato foi-se modificando e, em 1918, momento em que o escritor publicou o livro de contos
Urupês, as idéias propostas através do caipira eram outras. O personagem deu origem a um
projeto que buscava encontrar soluções para um “problema nacional”, assim, o autor retificou,
por volta do ano de 1930, a construção estereotipada que fez do campônio, afirmando que
“Jeca não é assim, ele está assim”, e intercedendo em favor do caipira, que jazia abandonado à
própria sorte, no interior do estado.
“Jeca Tatuzinho” e, mais tarde, o personagem Brasil, de Monteiro Lobato,
simbolizam a evolução do insolente Jeca de 1914. Apesar do grande esforço do escritor em se
retratar diante de sua pobre criatura, Jeca continuou a ocupar no imaginário social brasileiro o
lugar comum do “caipira paulista”. Da mesma forma que Jeca Tatuzinho e Zé Brasil são suas
evoluções, Juca Mulato é o seu avesso por ter sido criado nesse meio tempo, de 1914 a 1918,
fator que fortifica a idéia dele representar uma resposta de seu meio à visão generalizada que
102
se havia concebido do caipira paulista.
A identificação dos personagens pela posição social que ocupam e pela função que
exercem, ou seja, o trabalho braçal com a terra, é tácita. O que, porém, agiganta a própria
questão da identidade dos caboclos é a origem racial de cada um. Monteiro representou um
elemento social branco, provavelmente descendente de portugueses, em mistura, talvez com o
sangue indígena, enquanto Menotti buscou representar um mulato, sujeito com sangue de
brancos e negros.
Independente das diferenças entre os caipiras paulistas, representados pela literatura, o
que deve-se ressaltar é a imagem detalhista e contraditória de um elemento histórico que
simbolizou ou representou, positiva ou negativamente, o caráter nacional do homem brasileiro
num momento cheio de divergências, e de variadas vertentes, resultantes da própria
vultuosidade de pesquisas e descobertas científicas relacionadas à questão racial, descobertas
a que estavam sujeitos os intelectuais do início do século XX.
2.3 Tristeza: um mal de amor irresolvido ou um caráter “racial” imputado?
“Numa terra radiosa vive um povo triste.”
Paulo Prado
Após estabelecer as relações entre Juca Mulato e outras representações de caipiras na
literatura brasileira até 1917, este capítulo analisa a figura o caboclo menottiano atentando
para a intenção do poeta e a interpretação de alguns críticos. Nesse sentido, serão
consideradas algumas relações ainda não pensadas, principalmente, referenciando assuntos
sociológicos em voga na época da publicação do poema.
103
Consta nesse estudo muitas menções acerca do caráter desse personagem da literatura
nacional, sua semelhança com os sertanejos do regionalismo realista, seus aparatos
românticos, bem como suas contraposições e coincidências ao Jeca Tatu, porém falta
compreender alguns dos adjetivos que o exaltam e ao mesmo tempo atribuem ao personagem
características que excedem ao estigma apenas “pitoresco” com que ficou marcada a literatura
de cunho regionalista.
Nessa intenção, primeiramente destaca-se a função do poema como contribuinte, num
retrocesso, ao nacionalismo literário pregado por autores românticos como José de Alencar,
Bernardo Guimarães, Távora e Taunay, que em alguns de seus romances procuraram exaltar o
homem nacional e a natureza brasílica.
Menotti del Picchia, em Juca Mulato, antecipa o sentimento patriótico que mais tarde,
após a Semana de Arte Moderna, o vincularia ao movimento “Verdeamarelo” ou “Escola da
Anta”. Tal vertente literária surgiu pregando uma volta aos antepassados tupis, tendo a anta”
como totem. Acreditavam que, somente através desse retorno conseguiriam negar qualquer
influência estrangeira nas artes brasileiras.
O manifesto do verdeamarelismo, publicado em 1929 por Menotti del Picchia, Plínio
Salgado, Cassiano Ricardo e Cândido Mota Filho sob o título “Nhenguaçu Verde Amarelo”
preconiza
“a liberdade plena de cada um ser brasileiro como quiser e puder; cuja condição é
cada um interpretar o seu país e o seu povo através de si mesmo, da própria
determinação instintiva; - o grupo “verdeamarelo”, à tirania das sistematizações
ideológicas, responde com a sua alforria e a amplitude sem obstáculo de sua ação
brasileira.
Nosso nacionalismo é de afirmação, de colaboração coletiva, de igualdade dos povos e
das raças, de liberdade do pensamento, de crença na predestinação do Brasil na
humanidade, de fé em nosso valor, de construção nacional.
(...)
Nosso nacionalismo é “verdeamarelo” e tupi.” (PICCHIA apud CARVALHO, 1972, p.
155)
104
O que se observa é uma tentativa de caracterização e interpretação sociológica do País
através da literatura. Intenção que não foi alcançada pelas primeiras obras modernistas, uma
vez que elas se deteram na transformação estética, sem realmente aprofundar nas questões
sociais, que teoricamente, seriam caras aos autores do modernismo literário.
Juca Mulato não é um poema militante, tal como propõe os verdeamarelistas, no
entanto, ele antecede ideologias que surgiriam uma década depois com a publicação de
Retrato do Brasil (1928) por Paulo Prado. A definição do poema, dada por Henrique L.
Alves, é demasiadamente relevante para se entender “a nese da dor” do “caboclo do mato”.
Segundo ele, Juca é a
“simbiose de homem brasileiro perdido nas curvas das estradas, a cismar e a cismar
sei o quê. Palmilhou o chão de sua Itapira, com o poeta colocando pedras emotivas
que calçam as ruas de uma cidade sentimentalmente brasileira, símbolo e reflexo de
uma Nação que cresce.” (ALVES, 1969, p. 118)
A palavra “simbiose”, empregada pelo crítico, remete à condição de “mestiço” do
protagonista, termo que também denota os laços do poema com a estética modernista, e
“cismar”, refere-se a um ato frequente de Juca, ato esse, comum também ao caipira Jeca Tatu.
Para Ferreira, o “cismar” de Juca é oriundo do fato dele ser o “gênio triste da nossa raça e da
nossa gente”, portanto, essa tristeza racial, expressa pelas constantes cismas do caboclo, é a
aquela originária da miscigenação dos povos que aqui se fundiram.
Menotti del Picchia afirma que “o Juca quis tentar ser essencial, autêntico como
encarnação de um estado de alma que hoje (1970) sei que não era apenas meu, mas de
milhares de espíritos”, ou seja, o personagem personificava uma gama de sentimentos e
concepções que não só iriam corresponder às expectativas ansiosas dos leitores que
105
almejavam um poema nacionalista, como também antecipar e preparar o caminho para os
pensamentos sociológicos que pretenderiam identificar o caráter nacional brasileiro.
Em sintonia com a configuração do homem brasileiro, mas detendo-se no homem do
sertão paulista, o poeta parte da concepção social do sertanejo como possuidor de um caráter
forte, como foi percebido por Euclides da Cunha no habitante do interior do nordeste
descendente dos indígenas, para criar um caipira paulista que, mesmo sendo “forte como a
peroba e livre como o vento”, possui certa melancolia.
Embora a tristeza do Mulato esteja mais claramente delineada após o momento em que
ele “deita” os olhos na filha da patroa, há versos que, mesmo antes, referem-se a taciturnidade
do personagem. No início do poema, ao descrever a paisagem, o poeta insere um verso que
diz: “Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o”. Em seguida, o poema apresenta elementos
que propiciam uma imagem lúgubre do local e do personagem.
Para o poeta, Juca Mulato é um caboclo que vive a “cismar”, esse é o verbo que o
caracteriza antes de apresentar a relação íntima do personagem com a natureza. Assim como o
caipira de Lobato, e de outros autores, “Juca Mulato cisma”. Da onde provém sua constante
preocupação ou sua melancolia? A filha da patroa ainda não foi mencionada, os primeiros
versos apenas apresentam o personagem e o cenário, e sua única ação e característica que
aparece nessa primeira parte, é seu ato de “cismar”. O poema seguinte enfoca sua ligação com
a natureza, dando início a uma interiorização no personagem e no ambiente, visto que até
então o poeta havia apenas traçado os componentes básicos para a compreensão da história
que se segue nos nove capítulos.
A única referência concreta a respeito dos sentimentos de Juca Mulato, antes deste ter
contato com os olhos da filha da patroa, está no capítulo “Presságios”, no qual o caboclo mais
uma vez pega a viola e canta o seu triste canto:
106
“Antes de amar eu dizia:
Para cortar na raiz
esta constante agonia,
preciso amar algum dia,
amando serei feliz.”
“Amei...Desventura minha!
Quis curar-me e piorei.
O amor só mágoas continha
e, aos tormentos que eu já tinha
novos tormentos juntei!” (PICCHIA, 198?, 59)
Nessa canção entoada por Juca, nota-se que o caboclo mesmo antes de padecer por
amor, tinha a “alma cheia de abrolhos”. Ele declara que havia tristeza, agonia, em seu
coração, e que necessitava do amor para ser completamente feliz. São esses tormentos sem
nenhuma causa aparente que preocupam. À primeira instância, pode-se pensar, em razão da
relação intrínseca de Juca com a natureza, que ele era um caboclo feliz, mas na verdade era o
desejo de se sentir feliz que palpitava em sua alma, e que o fez ver a “luz” dos olhos da filha
da patroa.
Ao apresentar Juca como um caipira um tanto quanto melancólico e preocupado, o
poeta antecipa um retrato do homem brasileiro que torna-se comum na década seguinte com o
ensaio de Paulo Prado. Em Retrato do Brasil, o sociólogo partindo de conceitos científicos e
históricos, explica a “tristeza” do homem brasileiro como sendo fruto da mistura étnica
ocorrida no país. Mais do que fusão racial, Paulo Prado teoriza sobre as contribuições que
cada um dos povos habitantes da Colônia legou ao sujeito miscigenado em que se
transformou o brasileiro.
De acordo com ele, esse traço característico da identidade do brasileiro, provém, pelo
lado português, do “germe da decadência” que havia predominado no instinto do colonizador
desde seu contato com povos das Índias Orientais e do norte da África, e pelo outro lado, era
fruto do sensualismo que brotava do povo autóctone que habitava a nova terra. Dos
107
portugueses, sobressaía a “cobiça”, a “paixão do ouro”, que esperavam encontrar em solo
brasileiro, além do incentivo erótico provocado pelo clima, pela terra e pela quantidade de
mulheres indígenas ou mesmo escravas africanas que aguçavam os sentidos dos “nobres”
portugueses.
Nesse sentido, da reunião desses itens resulta o caráter soturno do brasileiro. Paulo
Prado afirma:
Na luta entre esses apetites sem outro ideal, nem religioso, nem estético, sem
nenhuma preocupação política, intelectual ou artística criava-se pelo decurso dos
séculos uma raça triste. A melancolia dos abusos venéreos e a melancolia dos que
vivem na idéia fixa do enriquecimento - no absorto sem finalidade dessas paixões
insaciáveis são vincos fundos na nossa psique racial, paixões que não conhecem
exceções no limitado viver instintivo do homem, mas aqui se desenvolveram de uma
origem patogênica provocada sem dúvida pela ausência de sentimentos afetivos de
ordem superior. Foi na exaltação desses instintos que se formou a atmosfera especial
em que nasceu, viveu e proliferou o habitante da Colônia. (PRADO, 1997, p. 140-141)
Ou seja, segundo Paulo Prado, o Brasil seria uma nação de homens tristes, uma vez
que sua composição étnica teve como elementos fundadores a cobiça do colonizador
português, o erotismo do indígena e a saudade do negro cativo. Sua teoria abarca o país como
um todo:
No Brasil, o véu da tristeza se estende por todo o país, em todas as latitudes, apesar do
esplendor da Natureza, desde o caboclo, tão mestiçado de índio da bacia amazônica e
dos sertões calcinados do Nordeste, até a impassibilidade soturna e amuada do
paulista e do mineiro. (PRADO, 1997, p. 143)
Nenhum habitante miscigenado foge a regra, e mais tarde, segundo ele, o estilo
literário predominante na literatura oitocentista, o Romantismo, trazido da Europa com suas
108
características pendentes para o gótico avultaria ainda mais a lugubridade do brasileiro. A
partir desses elementos teria se formado essa civilização, e a psicopatia, cujos sintomas são
“abatimento físico e moral, fadiga, insensibilidade, abulia, tristeza”, seria o resultado aparente
dessa mescla racial.
O poema Juca Mulato, por tentar capturar uma alma que fosse nacional, partilha
dessas idéias, pois Juca possui todos os elementos dessa constituição racial: tristeza, preguiça
e sensualismo. Tais idéias, apesar de mais tarde circular decididamente entre o campo
sociológico do país, possuía solo fértil entre os intelectuais, na medida em que eram assuntos
de artigos publicados nas páginas de periódicos da época como a Revista do Brasil e a do
Instituto Histórico e Geográfico Paulista. A adesão de Menotti a esses ideais está explícito em
sua obra República do Estados Unidos do Brasil, publicada em 1928, no mesmo ano de
Retrato do Brasil.
Baseando-se em artigos de Alceu Amoroso Lima, de 1921, a historiadora De Luca
explana sobre o caráter sentimental do brasileiro:
“A incapacidade de realizar algo de prático encontrava razão de ser no espírito
contemplativo da raça, no seu ceticismo sonhador, na sua indolência, defeitos
singulares que eram associados a uma peculiar sensibilidade: “à pecha de excessivos,
tanto associada aos brasileiros, tenho que antes nos cabe o labéu de hesitantes. A
massa de nossa gente é tímida, e como tal, incapaz de insurgir-se ou gabar-se. Nos
somos, na acepção comum da palavra, um povo de românticos, prontos a sacrificar a
ação à contemplação. Somos fatalistas. Estamos sempre perante a adversidade em
posição defensiva”. Tais características nos predisporiam a concluir com segurança de
premissas erradas, vício que “vindo no sangue que nos legou o Mediterrâneo,
agravou-se pelas mesclas sucessivas de raças imaginosas e sentimentais””. (DE
LUCA, LIMA, 1999, 1921, p. 187)
Como aponta Alceu Amoroso Lima, era lugar comum referir-se ao brasileiro como
homem soturno, triste, indolente, visto que tais debates eram frutos de descobertas cientificas
que pregavam a superioridade da raça branca e não miscigenada. E, nesse âmbito, ao
109
brasileiro, misto de pelo menos três etnias diferentes, o branco, o indígena e o negro, caberia o
estigma de povo contemplativo e dado à preguiça, além de outros qualificativos
depreciadores.
Juca Mulato é caricaturalmente contemplativo. Também é fecunda a relação do poema
com alguns ideais da escola romântica. Destaca-se, a profunda ligação da desilusão do
caboclo, com a descoberta do amor e a confirmação de sua impossibilidade amorosa. Como
solução, o caboclo decide fugir, em outras palavras, transparece no poema uma das principais
características do Romantismo: a fuga da realidade.
Tal resquício Romântico advém de duas formas: a primeira na decisão do Mulato de
abandonar sua terra e partir para longe dos olhos da filha da patroa; a segunda vem expressa
na fuga imaginária que o caboclo principia ao dialogar com os elementos da natureza que
queriam prendê-lo naquele pedaço de chão.
No capítulo intitulado “A voz das coisas”, a natureza reage ante a decisão de fuga do
caipira provando-lhe que seria um ato de filho ingrato se Juca a abandonasse, pois havia sido
ela quem provera todas as coisas essenciais para a existência do caboclo. Esse diálogo entre
Juca e os elementos da natureza é responsável por sua desistência de partir.
O personagem se sente tão integrado ao seu ambiente que recebe da natureza carinhos
de mãe protetora. Tal passagem constitui-se no ápice do poema, dado que o personagem
transcende a sua realidade, se entregando a devaneios que apontam sua relação com o lugarejo
e sua utilidade para continuação daquela sociedade.
O matuto intenta fugir ao encontrar adversidades, mas como sua fuga está relacionada
com questões amorosas irremediáveis, e não uma causa de subsistência, muito comum na
cultura caipira, Juca encontra outra forma de “escapismo” para amenizar seu sofrimento, ou
mesmo para encontrar um consolo diante da sociedade hierárquica.
Além desses elementos presentes no poema que revelam um conteúdo neo-romântico,
110
atestando a presença do mal do século, que segundo Paulo Prado, muito contribuiu para
constituir o caráter melancólico do homem brasileiro, tem-se ainda a questão do personagem
ter recebido a alcunha de “gênio triste da nossa raça e da nossa gente”.
Porventura, teria Juca Mulato recebido esse apelido em razão do sofrimento causado
por um mal de amor irresolvido? É patente a influência romântica no poema de Menotti. Se
como afirma Paulo Prado, o Romantismo teria contribuído para exacerbar o idealismo em
relação à pátria e ao homem brasileiro, seria Juca Mulato uma tentativa de afirmar, guardada
as devidas proporções, um ressurgimento do nacionalismo romântico através da idealização
de um segmento social que lograria sair vencedor de uma batalha travada consigo mesmo,
ainda que para a sociedade seu caráter fosse de passividade ao conformar-se com seu
silencioso e soturno destino?
Os últimos versos do poema narram o destino do caboclo do mato:
E Mulato parou.
Do alto daquela serra
cismando o seu olhar era vago e tristonho:
“Se minha alma surgiu para a glória do sonho
o meu braço nasceu para a faina da terra.”
Reviu o cafezal, as plantas alinhadas,
todo o heróico labor que se agita na empreita,
palpitou na esperança imensa das floradas,
pressentiu a fartura enorme da colheita...
Consolou-se depois: “O Senhor jamais erra...”
Vai! Esquece a emoção que na alma tumultua.
Juca Mulato! Volta outra vez para a terra,
procura o teu amor numa alma irmã da tua.
Esquece calmo e forte. O destino que impera,
um recíproco amor às almas todas deu.
Em vez de desejar o olhar que te exaspera,
procura esse outro olhar que te espreita e te espera
que há por certo um olhar que espera pelo teu. (PICCHIA, 198?, p. 77)
Neste poema, o narrador aponta o destino do personagem: permanecer dentro daquele
111
sistema social, sem nunca conhecer outras realidades. Tal futuro é proposto pelo narrador, ou
melhor, pelo próprio poeta que se considera o pai do caboclo. Por essa vertente, o trecho é
uma expressão das concepções sociais do poeta que, ao mesmo tempo em que idealiza uma
vida perfeita para o caipira, acaba por determinar, divinamente, uma posição alienadora para o
homem do campo. Salientam-se, nesse determinismo social duas visões: a do caipira como
um ser marginalizado diante da “civilização”, e a do caipira como detentor de um estilo de
vida harmônico em relação à sociedade corrupta.
É possível também sugerir a existência de alguns preceitos da teoria comtiana
embutidos no poema. Segundo Augusto Comte (1798-1857), a sociedade, vista como um
organismo social, deveria funcionar de forma similar a um corpo orgânico, no qual cada grupo
social corresponderia a uma parte ou órgão desse corpo. De acordo com essa analogia, a
sociedade seria harmônica, e qualquer distúrbio gerado por um agrupamento social, poderia
ocasionar um mau funcionamento e até o definhamento do corpo social.
Ainda de acordo com Comte, a resolução dos atritos entre os diversos grupos sociais,
mas principalmente entre dominantes e dominados, deveria ser dada adotando-se uma prática
altruísta e filantrópica, dispensando como alternativa à solução do conflito a revolta de um
dos grupos, o que poderia ser desastroso para o funcionamento desse organismo social.
No trecho do poema acima, pode-se conjecturar alguns preceitos comtianos ao se levar
em conta que o personagem Juca Mulato, na primeira estrofe, conforma-se com sua posição
social, (fainar a terra) tendo direito apenas à liberdade de sonhar. Menotti ocupa a função de
narrador onisciente e também participante do drama, uma vez que se coloca como o “pai” de
Juca Mulato, estabelecendo uma relação patriarcal aparentemente tão próxima quanto àquela
proposta por Comte, baseada no amor e na filantropia mútua.
A partir desses preceitos, percebe-se a partir de que ponto de vista Menotti observa o
personagem. Está explícita na atitude conformista do caboclo, a idéia reacionária do seu
112
criador. O espírito paternalista do autor é expresso, principalmente pela ausência do patrão,
uma vez que apenas aparece a filha da “patroa”. Destarte, não por trás do personagem
alguém que o obrigue a trabalhar, a cumprir suas tarefas, muito menos alguém “real” que o
impeça de partir. Todas as ações são praticadas por vontade própria de Juca. O personagem
sabe o que deve fazer, e faz. O autor omite a voz de ordem do patrão e, ainda, atribui plena
liberdade a Juca, liberdade essa altamente duvidosa, uma vez que está condicionada a cuidar
de um bem que não lhe pertence, mas que Juca sente como se fosse seu.
O último poema citado é o que encerra a obra e apresenta o desfecho do drama
amoroso. As “cismas” que participam do panorama pincelado nos primeiros versos, também
aparecem nos últimos versos. A tristeza que se analisa aqui, não é a que provém do fracasso
sentimental do personagem, mas sim aquela transmitida no início pela imagem do caipira
sonolento meditando constantemente. O retrato que Menotti realiza permite ao mesmo tempo
uma idealização do sertanejo paulista, e uma compaixão por sua condição, que mesmo sendo
superior ao do negro, nunca chegará à posição do branco, permanecendo sempre com um
status enfadonho de imobilidade social e tristeza crônica, advindas de sua origem.
De acordo com o trecho, o personagem consola-se crendo numa predestinação
soberana que certamente aconteceria. A conformação do caboclo com seu destino revela o
pensamento de seu autor que, sendo um aristocrata, cria na hierarquia social que continuaria a
pregar a utilidade do braço que lhe servia na lavoura.
“O gênio triste da nossa raça e da nossa gente” tem, nesse prisma, traçado segundo a
ideologia psicológica de Paulo Prado, uma vertente que exala compaixão diante de um retrato
triste e malfadado. A figura do Mulato é a de um caboclo que se sente feliz por estar integrado
plenamente ao seu ambiente físico, mas que não esconde sua alma entristecida e preocupada
em razão do destino que lhe foi imputado. Tal destino revela a visão do poeta que, apesar de
considerá-lo como pertencente à sociedade em questão, não admitia sua elevação social e
113
mantinha sobre ele o estigma das três raças, as quais, juntas, não legariam nada, a não ser
esterilidade e tristeza.
2.4 O bom selvagem
Num outro prisma, o caboclo Juca Mulato propicia uma análise um pouco menos
pessimista, na qual o objeto central não seria suas “cismas”, mas o seu contato com “o outro”,
com um outro indivíduo de costumes e hábitos diferentes, representado, no poema, pela filha
da patroa que, por sua posição privilegiada, apresenta uma realidade nova ao simples e rude
caipira. Tal análise está fundamentada na influência romântica do poeta, observável
principalmente na escolha dos temas centrais do poema.
Pautado no idealismo romântico, pode-se conjecturar que talvez o poeta intencionasse
construir uma figura ainda mais forte e de maior presença para assinalar a simplicidade desse
“caboclo do mato”. O poema aponta um completo isolamento do personagem. Nada há ali por
perto, nenhuma pessoa, num primeiro momento, é mencionada além dos olhos da filha da
patroa.
Juca vivia numa completa solidão. A paisagem, na qual esta inserido, é extremamente
silenciosa e bucólica. Apesar do mastro de São João indicar a existência de uma comunidade,
a impressão transmitida pelo poema é a de um individuo que tem no seu ambiente a
completude do seu ser. Os versos abaixo demonstram a profundidade dos laços entre Juca e a
natureza que o cerca:
Como se sente bem recostado no chão!
Ele é como uma pedra, é como a correnteza,
uma coisa qualquer dentro da natureza
114
amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo
a esse desejo de viver grande e complexo
que tudo abarca numa força de coesa. (PICCHIA, 198?, p. 18)
Intrinsecamente unido à natureza, o caboclo do mato não necessita de nada externo
para continuar sua vida ali naquele lugarejo. Num momento de intensa transição rural-urbana,
Juca tem sonhos de progredir, mas seu progresso não vai além da possibilidade de poder
participar do crescimento natural do seu ambiente:
Compreende em tudo ambições novas e felizes,
tem desejo até de rebrotar raízes,
deitar ramas pelo ar,
sorver, junto da planta, e sobre a mesma leiva,
o mesmo anseio de subir a mesma seiva,
romper em brotos florescer, frutificar! (PICCHIA, 198?, p. 18)
O caipira completamente isolado da civilização, a qual, inclusive, tomava um vulto
incontrolável, não deseja outra coisa além de envolver-se cada vez mais com os elementos
naturais responsáveis por sua auto-suficiência. Juca é um lavrador de café, ele mora e trabalha
em uma fazenda, provavelmente como um agregado. O pedaço de terra que cultiva o é seu,
uma comunidade a sua volta, mas apesar disso, ele é um ser solitário. Ele não perfaz a
imagem de um homem primitivo, embora apresente o protótipo de um “bom selvagem”.
Nesse sentido, o personagem de Menotti segue, novamente, o mesmo caminho traçado
por autores do romantismo brasileiro como, por exemplo, José de Alencar, que em muitas de
suas obras, como O Gaúcho e O sertanejo, romanceou picos “bons selvagens” brasileiros.
Assim como Alencar nos romances românticos, Menotti explora o caráter do “homem
natural” rousseauniano para compor a figura de um caipira ainda intocado pelos malefícios de
uma sociedade civilizada.
115
Para Rousseau, o “homem no estado de natureza” teria alguns aspectos positivos que
derivavam da sua condição natural de vivência, uma delas é ter em seu ambiente natural o
local ideal de receptividade e acolhimento, com todas as fontes e elementos necessários para o
seu completo bem estar, tudo feito sobre medida para sua felicidade, sendo que o ambiente
proporcionaria todas as condições para sua sobrevivência. De acordo com Rousseau, “suas
módicas necessidades encontram-se tão facilmente ao alcance da mão e ele está tão longe do
grau de conhecimentos necessários para desejar adquirir outros maiores, que não pode ter nem
previdência, nem curiosidade”. (ROUSSEAU apud LEOPOLDI, 2002, p.160)
Outra característica do “homem natural” é ausência de agrupamentos, o homem ainda
não vivia em comunidades, e sua completa solidão é quebrada apenas pelo instinto de
reprodução. Apesar de ser em grau bem menor, num sentido lírico idealizado, no poema Juca
Mulato o personagem é representado completamente só, e assim como o “bom selvagem” de
Rousseau, ele tem um aguçado amor-próprio, e seu isolamento é interferido pelas “serpentes
de desejos” que invadem sua alma.
Juca nos primeiros versos apenas deseja participar do seu ambiente físico, em seguida
seu corpo começa ansiar novos prazeres que ele não compreende, mas os explica como uma
transformação natural, tão natural como o brotar de alguma planta:“Que delícia viver! Sentir
entre os protervos/ renovos se escoar uma seiva alma e viva/ na tenra carne a remoçar o corpo
moço...”. À declaração pura do caboclo, o poeta acrescenta:
E um prazer bestial lhe encrespa a carne e os nervos,
afla a narina, o peito arqueja, uma lasciva
onda de sangue lhe incha as veias do pescoço...
Ei-lo supino e só na noite vasta. Um cheiro
acre, de feno, lhe entorpece o corpo langue
e no torso trigueiro
enroscam seus anéis serpentes de desejos
e um pubescente ansiar de abraços e de beijos
incendeia-lhe a pele e estua-lhe no sangue
116
Juca Mulato cisma. (PICCHIA, 198?, p. 19)
A mudança a que Juca se refere, e que o poeta sentencia, advém da transformação
natural do seu corpo que se prepara para o amor. O personagem, nos versos seguintes, medita
no “eterno amor dos charcos” e ao ouvir a “voz em coro dos batráquios no açude” identifica a
complementaridade dos seres, deixando “crescer” no seu interior um desejo que, segundo o
poeta, fere como uma espada que fincada ao peito se perde no “abismo” ou na “noite” de uma
alma solitária. (PICCHIA, 198?, p.19)
O trecho sintetiza afirmando que “Juca Mulato cisma” e “A natureza cisma”,
mostrando, destarte, que opera-se na alma do caboclo uma transição que modificará a rotina
de sua vida campestre, rotina essa que a natureza também sentirá. Após o seu contato com os
olhos da filha da patroa, o caipira é despertado para a Vida:
Juca Mulato cisma. Olha a lua e estremece.
Dentro dele um desejo abre-se em flor e cresce
e ele pensa, ao sentir esses sonhos ignotos,
que a alma é como uma planta, os sonhos como brotos,
vão rebentando nela e se abrindo em floradas...
Franjam de ouro, o ocidente, as chamas das queimadas
Mal se pode conter de inquieto e satisfeito.
Advinha que tem qualquer coisa no peito
e, às promessas do amor, a alma escancara ansiado
como os áureos portais de um palácio encantado!...
Mas a mágoa que ronda a alegria de perto
entra no coração sempre que o encontra aberto...
Juca Mulato sofre...Esse olhar calmo e doce
fulgiu-lhe como a luz, como a luz apagou-se.
Feliz até então tinha a alma adormecida
Esse olhar que o fitou o acordou para a vida!
A luz que nele viu deu-lhe a dor que ora o assombra
como o sol que traz a luz e, depois, deixa a sombra... (PICCHIA, 198?, p. 23-24)
117
A “vida” para a qual Juca foi despertado é grafada aqui com letra minúscula, porém,
no início do capítulo “Germinal”, “Vida” está com letra maiúscula provavelmente indicando
um outro modo de viver divergente daquele vivido pelo matuto. Essa nova vida divisada por
Juca proveio pelo olhar cheio de “luz” da filha da patroa, luz que trouxe apenas escuridão. Foi
através dele, que Juca pode reconhecer seus limites e perceber que essa “luz” somente fez
escurecer seu caminho. Pensando na teoria rousseauniana, a “luz” vista por Juca poderia ser
analogamente a civilização alcançada por meio dos olhos da filha da patroa.
O despertar do Mulato tem as mesmas consequências que o “homem natural” de
Rousseau enfrenta quando se aproxima das facilidades que podem tornar sua vida mais
cômoda, da vida em sociedade e, das primeiras paixões. O “caboclo do mato”, seguindo o
pensamento rousseauniano estaria em um momento de transição, pois com suas habilidades
havia construído armas e outros utensílios que o auxiliavam em sua vida cotidiana, como o
“bodoque” e a “arapuca”. (PICCHIA, 198?, p.70)
A transição do homem em estado de natureza para um estado civilizado é fruto do seu
contato com “o outro” civilizado ou não. De acordo com Rousseau a vida em comunidade
despertou ambições e vaidades que antes o homem não conhecia. No poema, é a partir do
despertar do espírito do caboclo para o amor que o poeta anuncia que ele desperta para a
“Vida”. “Vida” significaria, nesse sentido, uma outra concepção de mundo, na qual o Mulato
teria contato com outros indivíduos e, principalmente com diferentes modos de vida.
A relação de Juca Mulato com o “bom selvagem” de Rousseau descortina uma
possibilidade de compreender o poema como uma idealização poética de um mundo perfeito,
no qual o caboclo vive idilicamente com a natureza que o cerca e dela usufrui o necessário
para sua auto-suficiência. Essa intimidade do Mulato com seu ambiente revela o seu “instinto
de sobrevivência”, pois são os elementos da natureza que proporcionaram sustento ao caboclo
118
que o impedem de partir.
A existência literária de um caipira que representando, num primeiro momento, a
felicidade pueril de uma alma intocada pelos malefícios da vida em sociedade e,
posteriormente, as consequências advindas desse contato com “o outro”, revela a imagem
idealizada do autor em relação ao homem e ao trabalho do campo. Ao mesmo tempo que o
poeta a vida rural como um estilo de vida ideal para o bem estar e para a completa
felicidade do homem, ele está afirmando um ponto de vista ideal para a elite aristocrata da
época, que dependia economicamente do trabalho e da permanência do caipira no seu
ambiente natural.
Enfim, Menotti del Picchia encerra, no personagem Juca Mulato, uma fértil
possibilidade de diálogo com a concepção rousseauniana de homem primitivo ao expressar
através de um sujeito rude, um tipo de vivência perfeita, fechada em si mesma, e natural,
compreendendo, o caipira paulista como um típico “bom selvagem”, uma vez que sua
trajetória, até o primeiro contato com um sujeito civilizado, perfaz uma verdadeira écloga
sertaneja com todos os requintes subjetivos e heróicos de um homem rústico que beirava
um momento de transição.
119
Jeca Tatu - Da série: Juca Mulato Capa de
Portinari
“Personagens célebres da literatura” por Belmonte
Juca Mulato na
interpretação de Tarsila do
Amaral
120
3. A cultura
3.1 Nos trâmites da cultura caipira: o cotidiano e a religiosidade
Quando os raios desenfeixa
O sol e as luzes derrama:
O caboclo logo deixa
a cama.
Quando os sol, do alto, orgulhoso,
As luzes na roça espalha:
O caboclo, vagaroso,
trabalha.
Quando a pino o sol atira
Seus raios; sob uma frança,
Deitado o nosso caipira
descansa.
E quando no poente rola
O bom sol, depois da janta,
Ponteia o caboclo a viola
e canta.
Cornélio Pires (VEIGA, 1959,
p. 99)
Para compreender o modo de vida representado pelo personagem Juca Mulato é
imprescindível direcionar esse estudo às práticas cotidianas, presentes no poema, que se
referem a atos comuns nas comunidades caipiras. O intuito é focar os usos e costumes tais
como se apresentam no lugarejo habitado por Juca, e assim entender como o poeta
representou os elementos culturais que por ele eram observados.
Sabendo que as tradições culturais de um povo, bem como o seu fazer diário, são
cruciais para a construção de uma identidade, embora não seja a única forma de apreender o
homem, sua delimitação é importante para o trabalho que se segue ao permitir uma
rememoração lírica de um segmento social. É na importância dada aos detalhes que se situa
essa análise, no afã de entender como se constitui o homem naquilo que realmente ele realiza.
121
O estudo pormenorizado, que se atenta para os trâmites do dia a dia, e que procura
delimitar o homem desde os seus atos mais essenciais até os mais banais, abrangendo não
apenas seu modo de agir, mas também de pensar e de sentir, tem sua base na assertiva de
Michel de Certeau, quando este afirma que
“O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos
pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia,
pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de
viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O
cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a
meio caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. Não se deve
esquecer este “mundo-memória”, segundo a expressão de Péguy. É um mundo que
amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância, dos
prazeres.” (CERTEAU, 1996, p. 31)
O teórico assinala a importância que pequenos fatos do cotidiano exercem para a
formação emocional e social do homem. São esses afazeres diários que acabam por constituir,
tecnicamente, o papel que o homem assume perante a sua sociedade. Michel de Certeau
denomina esses diversos papéis, assumidos por diferentes indivíduos, dentro de um tempo e
espaço determinados, de “maneiras de fazer”.
Nesse sentido, essa análise busca alguns pontos cruciais do poema que enfatizam as
práticas diárias do personagem Juca Mulato, procurando, por meio dela, recuperar, guardada
as diferenças entre realidade e ficção literária, a memória social de um determinado grupo
que, de acordo com Antônio Candido, encontra-se em acentuada dissolução, ou perdeu quase
completamente o veio cultural que formou suas bases sociais, perda essa, ocasionada
imperativamente devido à chegada do capitalismo nas áreas rurais.
No ensaio intitulado “Caipiradas”, publicado na obra Recortes em 1980, Candido
afirma que, por entre os anos de 1943 1955, quando andava por lugares do interior paulista:
122
“o caipira ainda era uma realidade cultural definida, apesar de ser cada vez maior a
sua ligação com a cultura urbana, aceleradamente modernizada. Era espoliado e
miserável na absoluta maioria dos casos, porque, com o passar do tempo e do
progresso, quem permaneceu caipira foi a parte da velha população rural sujeita às
formas mais drásticas de expropriação econômica, confinada e quase compelida a ser
o que fora, quando a lei do mundo a levaria a querer uma vida mais aberta e farta,
teoricamente possível.” (CANDIDO, 1993, p. 251)
É para a sociedade caipira, prestes a desaparecer, que o sociólogo se volta. E em razão
desse problema, ele menciona a importância exercida pelo canto e pela música caipira que não
sofreram influências da “deformação caricatural”, oriunda do rápido processo modernizador, e
ainda guardam puramente a representação do mundo caipira. Para Candido, o essencial é que
o modo de ser do caipira e sua técnica poético-musical permaneçam intactos na música
caipira, e sejam transmitidos sem abrigar o caráter ridicularizador de que o caipira foi alvo
durante muito tempo.
O mesmo sociólogo realizou também uma pesquisa na zona rural da cidade de Bofete,
no interior do estado de São Paulo. Foi durante essa pesquisa, que Candido teve contato direto
com os caipiras paulistas. Sua obra, Os parceiros do Rio Bonito: Estudo sobre o caipira
paulista e a transformação dos seus meios de vida, resultado dessa pesquisa, publicada em
1964, enceta um levantamento de dados que procura compreender o modo de vida de uma
comunidade rústica.
Nessa obra, Candido se detém, sobremaneira, no modo de vida da população rural, ali
residente, destacando as formas de agrupamento, a solidariedade entre os convizinhos, as
bases da alimentação, as divisões de trabalho, seja entre os membros de uma mesma família,
ou seja, entre os próprios parceiros, e também os períodos de entretenimento como os leilões
e as festas, sempre relacionadas a comemorações religiosas.
Referindo-se ao desaparecimento do tipo de vida do caipira, Candido assinala que
123
“A cultura do caipira, como a do primitivo, não foi feita para o progresso: a sua
mudança é o seu fim, porque está baseada em tipos tão precários de ajustamento
ecológico e social, que a alteração destes provoca a derrocada das formas de cultura
por eles condicionada. Daí o fato de encontrarmos nela uma continuidade
impressionante, uma sobrevivência das formas essenciais, sob transformações de
superfície, que não atingem o cerne senão quando a árvore foi derrubada e o
caipira deixou de o ser.” (CANDIDO, 1975, 82-83)
Além de postular sobre as mudanças ocasionadas no interior dos agrupamentos rurais,
Antônio Candido centra seu estudo no modo de ser do caipira, no seu jeito de agir, falar,
pensar, de encarar essas diversas mudanças sociais e de relembrar os tempos “gloriosos” em
que se observavam as maneiras tradicionais de vivência.
Atentando para esses detalhes, também presentes no cotidiano do caipira Juca Mulato,
embora de forma bem reduzida, pode-se alcançar um quadro, ainda que impressionista, das
principais ações culturais e cotidianas deste, e consequentemente, da visão que o poeta tinha
do caboclo do mato e de sua vida simples e rude.
Em relação ao vínculo entre esses elementos da vida cotidiana e a obra literária,
Michel de Certeau encerra:
“abandonado pela colonização tecnológica, adquire valor de atividade “privada”,
carrega-se com investimentos simbólicos relativos à vida cotidiana, funciona sob o
signo das particularidades coletivas ou individuais, torna-se em suma a memória ao
mesmo tempo legendária e ativa daquilo que se mantém à margem ou mesmo no
interstício das ortopraxias científicas ou culturais. Enquanto indícios de singularidades
murmúrios poéticos ou trágicos do dia-a-dia as maneiras de fazer se introduzem
em massa no romance e na ficção. Assim, em primeiro lugar o romance realista do
século XIX. Essas maneiras encontram um novo espaço de representação, o da
ficção, povoado por virtuosidades cotidianas das quais a ciência não sabe o que fazer,
e que se tornam, bem reconhecíveis para os leitores, as assinaturas das micro-histórias
de todo o mundo. (CERTEAU, 1996, p. 142-143)
124
Considerando que a ficção literária está repleta desses “murmúrios poéticos do dia-a-
dia”, e que a literatura é um veículo que demarca as pequenas histórias do cotidiano, o trecho
seguinte pode ser analisado tanto a partir da influência do social sobre o literário,
considerando que o poeta eternizou um momento histórico em um determinado espaço social,
como do trabalho da lírica na representação da realidade, crendo, dessa maneira, que a arte
proporciona fruição artística ao aproximar o texto literário de um dado fato social.
Aflora-lhe no imo um sonho que braceja;
estira o braço; enrija os músculos, boceja,
supino fita o céu e diz em voz submissa:
“Que tens, Juca Mulato?... e, reboleado na erva,
sentindo esse cansaço irritante que o enerva,
deixa-se, mudo e só, quebrado de preguiça.
“Cansado ele? E por quê? Não fora essa jornada
a mesma luta, palmo a palmo, com a enxada
a suster no café as invasões da aninga?
E, como de costume, um cálice de pinga,
um cigarro de palha, uma jantinha à-toa,
um olhar dirigido à filha da patroa?
Juca Mulato pensa: a vida era-lhe um nada...
Uns alqueires de chão, o cabo de uma enxada,
um cavalo pigarço, uma pinga da boa,
o cafezal verdoengo; o sol quente e inclemente...”
Nessa noite, porém, parece-lhe mais quente
o olhar indiferente,
da filha da patroa... (PICCHIA, 198?, 21)
Nesse fragmento do poema, o narrador enumera as ações cotidianas do caboclo Juca
Mulato. Esses atos permitem identificar não apenas a função que o pobre caipira teve durante
o seu dia de trabalho no cafezal, como também a mesmice das práticas realizadas ao final de
um dia de labor. O trabalho na lavoura talvez tivesse sido mais monótono e cansativo que o de
outros dias, uma vez que Juca passou o dia a espantar as “pragas” que tentavam avançar pelo
cafezal, ou seja, o dia não foi nem de semear, nem de colher, atividades que seriam um pouco
menos melancólicas e que, literariamente, possuem um significado mais alegre.
125
As outras atividades mencionadas fazem referência a momentos de descanso do
caboclo. Através das palavras empregadas por Menotti del Picchia, é possível esmiuçar o
legado cultural que elas veiculam. Assim, o “café”, a “enxada”, o “cálice de pinga”, o “cigarro
de palha” e a “jantinha-à-toa” possuem um valor que extrapola ao talhe artístico.
São esses elementos selecionados que conduzem o olhar para o período histórico ali
inserido. O trabalho na lavoura de café demarca o início do século XX, momento do apogeu
da economia cafeeira. Os outros vocábulos designam os costumes que o campônio acabou
adquirindo por hábito e por isso remetem ao universo cultural caipira.
Esses hábitos, por ele adquirido, nem sempre o são por vontade, são atos na maioria
das vezes ordenados por uma imposição social, como é o caso da referência ao trabalho no
campo, ao “cabo de uma enxada”, ao “sol quente”, ao “cafezal”, que constituem figuras
remissivas à necessidade do trabalho em troca de uma simples sobrevivência.
Os costumes, e aqui inclui-se o trabalho, são atos que o poeta afirma que Juca, após
cismar (meditar), melancolicamente como “um nada”. Apenas ações corriqueiras que não
empolgam o triste caboclo, mas que constituem maneiras de usar o conhecimento que lhe foi
transmitido geração após geração, ou adquiridos pela experiência pessoal no trato diário com
a terra.
O uso do tempo livre é empregado em práticas rotineiras que, não necessariamente
partem do indivíduo, são como o trabalho no campo, costumes também herdados, assim como
o hábito de fumar cigarro de palha, contar causos, tomar um cálice de pinga, entre outras
ações, que cotidianamente, foram observadas por seus antepassados e o são por outros
caipiras.
No reconhecimento da frivolidade da vida, está implícito o desânimo do personagem
frente às ações por ele desempenhadas. O ser praticante não nelas nenhum prazer, são
“fazeres” cotidianos que se tornaram nulos, não pelo reconhecimento de uma possível
126
banalidade de tais atos frente à vida, mas sim, por não haver sentido em continuá-los, se
nunca poderá ter sua amada. Inclusive, Juca revela seus anseios ao calcular o grau de
indiferença do olhar de sua amada: “Nessa noite, porém, parece-lhe mais quente o olhar
indiferente, da filha da patroa...”. (PICCHIA, 198?, p. 21)
Antes de tentar definir qualquer particularidade é preciso compreender que aquela
mesma imposição social que separa Juca de sua amada, impossibilitando-o de qualquer
concretização amorosa, é a que aqui age imperativamente sobre ele delimitando seus atos
sociais e culturais, práticas que, hoje, são elementos relevantes para que se compreender
alguns fragmentos do processo histórico brasileiro e o modo como eles foram transformados
em matéria artística.
Embora os costumes entre os caipiras de São Paulo sejam um tanto quanto similares,
devido à própria constituição social e cultural que os obriga a realizar sempre o mesmo
trabalho: na lavoura; a alimentar-se quase sempre dos mesmos alimentos: arroz, feijão,
farinha, e vez ou outra de carne; a ter as mesmas opções de entretenimento: festas realizadas
em torno de datas religiosas; podem-se explorar significativas diferenças em cada uma das
representações feitas por autores regionalistas, motivo que ensejo para um estudo
aprofundado nas práticas culturais esboçadas por Menotti del Picchia.
Ao certificar o valor cultural existente nas pequenas tarefas realizadas por Juca
Mulato, tem-se, nesse momento, como prioridade, buscar no poema elementos menos
palpáveis, ou seja, que não foram descritos com afinco, mas apenas mencionados pelo poeta,
e que podem ser sentidos através caráter contemplativo do personagem. Nesse âmbito,
adquirem relevância os momentos em que o personagem se expressa, e as inúmeras vezes em
que aparece ensimesmado, apesar de que mesmo nesses momentos, sua imagem é delineada
pelos traços de seu criador.
É uma imagem comum a do caipira “cismando”, autores como Valdomiro Silveira,
127
Cornélio Pires e Monteiro Lobato, em suas representações, também delinearam a imagem do
caipira absorto em si mesmo, “cismando sei o quê”. Essas “cismas” representam um jeito
típico do caboclo, o qual foi observado unanimemente por esses autores que tiveram um
contato muito próximo com o “homem da terra”.
Em vários momentos, antes e após a enunciação da voz narrativa, o personagem
“cisma”. As constantes cismas indicam seu enfrentamento diante da vida e das mudanças que
ocorrem em sua alma, visto que é depois de “cismar” que ele percebe a frivolidade dos seus
atos cotidianos e o brilho dos olhos da filha da patroa.
Perceber o modo de sentir do Mulato é tão relevante quanto abarcar o seu universo
mediante os raros momentos em que o poeta lhe transmite o direito à fala. que não se tem
uma manifestação íntegra da voz do caipira, apenas expressões apreendidas no interior de
uma comunidade rural e passadas pelo crivo de um representante da elite letrada da época,
suas parcas expressões são emblemáticas, e possibilitam compreender a concepção de mundo
que o poeta atribuía ao caipira e o juízo que fazia do mesmo.
Paul Zumthor assinala que
“dentro de uma sociedade humana, a voz é verdadeiramente um objeto central, um
poder, representa um conjunto de valores que não são comparáveis verdadeiramente a
nenhum outro, valores fundadores de uma cultura, criadores de inumeráveis formas de
arte.” (ZUMTHOR, 2005, p. 61)
Nesse sentido, a voz contribui na representação popular de uma comunidade por meio
das diversas narrativas, descrições e expressões orais que comunicam aos seus descendentes
um modo particular de ver e sentir o mundo, o qual de certo modo traz à baila a visão que tais
indivíduos tem de si mesmo e da sociedade que os agrupa.
Entretanto, o poema Juca Mulato não possui a oralidade própria do caipira, o linguajar
128
caipira, pois o poeta restringiu a participação do personagem na écloga a ele dedicada. A rigor,
a intromissão do Mulato consiste nos momentos em que ele canta suas dores e seu amor pela
filha da patroa. O seu canto é determinantemente marcado por sugerir uma similaridade entre
suas trovas, e as cantigas de amor e amigo do trovadorismo português.
Por observar o estilo de composição que se originou na antiga Provença, Menotti del
Picchia imprime ao poema um caráter que dialoga, inicialmente, com as tradições populares,
não da cultura caipira, como também com as existentes no folclore português. A voz do
triste caipira é marcada entre aspas nesses poucos momentos, como por exemplo, no trecho
em que aparecem outras práticas cotidianas de Juca, e um diálogo deste consigo mesmo e com
seu cavalo:
“Que tens, Juca Mulato?
Uma tristeza mansa
embaça-lhe o fulgor dos olhos de criança.
Ele é outro... Um langor anda a abrasar-lhe a pele.
Não sabe definir o que de novo há nele,
Fuma e segue pelo ar uma espiral que esvoaça
Pensa que seu destino é igual a essa fumaça...
“A vida é mesmo assim...” ele cisma tristonho.
“Sai do fogo da dor a fumaça do sonho”...
Da cocheira, um nitrir, de intervalo a intervalo,
vibra no ar... É o pigarço. Esse pobre cavalo
anda esquecido e há muito tempo que, sozinho,
sente a falta que faz o calor de um carinho.
Juca Mulato todo o dia vinha vê-lo...
Afagava-lhe o dorso, acamava-lhe o pêlo,
e ele, baixando, quieto, as pálpebras vermelhas,
nitrindo e resfolegando, espetava as orelhas...
Juca Mulato, então, numa voz doce e calma
dizia-lhe baixinho o que ele tinha n‟alma.
Coisa de pouca monta: umas fanfarronadas,
uns receios pueris, façanhas de caçadas,
desafios na viola em noites de luar,
coisas que tinha pejo até de lhe contar,
que sussurrava a custo, onde, por entre os dentes,
a gente adivinhava umas frases ardentes:
bocas mordendo um seio em que os bicos quentinhos
tinham a cor da rosa e a ponta dos espinhos...
Ele ria e a risada espocava-lhe aos pinchos
e o pigarço sisudo explodia uns relinchos
que diriam, talvez, traduzidos em frases:
“Toma tento, Mulato! Olha bem o que fazes...”
129
Juca afagando-o, então, murmurava contente:
“Pigarço, você tem uma alma como a gente!” (PICCHIA, 198?, p. 35-36, grifo
meu)
Neste longo trecho do poema, têm-se novas referências às práticas realizadas
diariamente por Juca Mulato, mas primeiramente, convém analisar as frases que saem da voz
coloquial do personagem. O verso inicia com uma interrogação do próprio caipira procurando
entender os motivos de sua ânsia, e no final da estrofe ele conclui: “A vida é mesmo assim...”
pois Sai do fogo da dor a fumaça do sonho”, em outras palavras, o personagem começa a se
conformar com o sofrimento que o atinge, e por analogia, associa seus sonhos com o cigarro
de palha que se queima com o fogo (dor).
Esse tipo de comparação é muito comum no universo caipira, visto que a parca
instrução os obriga a procurar entre os elementos que lhes são acessíveis, estabelecer relações
que possam explicar ou definir determinados sentimentos, para os quais não encontram
palavras.
32
É plausível também se pensar que tais metáforas não passam de figuras de
linguagem, criadas a fim de transmitir uma imagem poética associada a um elemento
tradicional da cultura caipira.
Além da frase dita por Juca Mulato, o diálogo, um tanto quanto surrealista, entre o
personagem e o cavalo Pigarço, o qual após ouvir as confidências do caboclo, reage com um
relincho que Juca interpreta como um conselho: “Toma tento, Mulato! Olha bem o que
fazes...”; tal conselho é uma expressão da linguagem oral que indica a necessidade do caboclo
voltar para sua “vidinha” interior, sem sobressaltos.
À exclamação do cavalo, Juca responde: “Pigarço, você tem uma alma como a gente”.
As frases ditas pelo caboclo e por Pigarço não apresentam nem resquícios da linguagem
32
Paul Zumthor destaca três tipos de oralidade, sendo que o primeiro não possui contato com a escrita, nem
com nenhum sistema de simbolização gráfica, por isso é corriqueiro entre sociedades isoladas e analfabetas,
nas quais é muito comum ilustrar ou alegorizar um tema. (ZUMTHOR, 1993 p. 19)
130
caipira tal qual foi registrada por Amadeu Amaral na obra O Dialeto Caipira
33
, mas abrigam
em seu âmago as marcas da oralidade, pois apesar de seguirem a forma dos versos poéticos
anteriores, elas apresentam elementos da língua falada, como nas expressões “toma tento” e
“você tem um alma como gente”.
Na obra como um todo, aparecem palavras que remetem ao universo oral do caipira,
como é o caso do verbo “apear”, dos substantivos “jantinha-à-toa”, “pinga”, “fumo”,
“bodoque”, “arapuca”, “curiango”, “fanfarronadas”, “disputas”, “caipiras”, “coisa-feita”,
entre outros vocábulos, que foram registrados por Amadeu Amaral e constituem parte da vida
rural do caipira.
Outras expressões aparecem em alguns versos da estrofe seguinte, quando o
personagem percebe que anda se comovendo, constantemente, ao observar uma ave e uma
flor, e exclama para si mesmo: “Juca: toma cuidado.../ Estás ficando gira.../ Deixa de te
arrastar como um doido qualquer/ atrás da tentação de uns olhos de mulher!” O verso em
destaque é uma expressão da linguagem coloquial, que pela flexão do verbo pode,
provavelmente, ser uma expressão portuguesa.
Esses versos também guardam indícios da linguagem oral do personagem e, assim
como os outros, embora não remetam diretamente ao linguajar caipira, eles apresentam
expressões e vocábulos corriqueiros que destoam da erudição usada na composição dos outros
versos. Ao serem falados, tais versos, adquirem mais expressividade do que quando são
meramente lidos e mantidos estritamente na linguagem escrita.
O longo poema acima citado, além de possibilitar uma análise da voz do protagonista,
permite também enfeixar outras práticas cotidianas ainda não mencionadas. De acordo com o
primeiro trecho, Juca ia constantemente visitar seu cavalo na cocheira, rotina que é quebrada
33
Na obra O dialeto caipira, publicada em 1920, Amadeu Amaral postula a existência de um falar caipira, de
um linguajar paulista que dominava desde a grande maioria da população até a minoria culta, possivelmente
influenciando também a linguagem dos bacharéis. Esse caipirismo não era apenas na linguagem, visto que
constituía um estilo de vida, que participava de “todas as manifestações da nossa vida provinciana”.
(AMARAL, 1955, p. 41)
131
quando se apaixona. Na cocheira, o caboclo tinha em seu cavalo, o confidente de todas as suas
ansiedades e desejos.
As ações enumeradas pelo poeta correspondem a práticas tradicionais entre a
população caipira: as fanfarronadas, referem-se a bravatas, momentos de diversões, e desafios
entre os “parvos caipiras de mistura”; as caçadas, um costume caipira que além de
proporcionar momentos de distração, garantia carne para a, por vezes, precária alimentação; e
enfim, os desafios na viola remontam um dos mais tradicionais costumes do caipira, e que se
estendem para danças como o cururu e o cateretê, tradições herdadas, provavelmente dos
antepassados portugueses, dado que os desafios são elementos recorrentes no folclore
português. (PICCHIA, 198?, p.37)
É através desses elementos tradicionais da cultura caipira, presentes no poema, que
Menotti del Picchia acabou por introduzir práticas populares e do universo oral em Juca
Mulato. Essas referências são bem poucas, na verdade, pode-se afirmar que o autor utiliza-se
dos dados que obteve no convívio com a população rural, transformando essas informações
em matéria poética.
Outros fragmentos abarcam as práticas de Juca, como o trecho posterior ao momento
em que ele se vê completamente sensibilizado:
“E resolve consigo ir altivo insolente
fingir que não padece e mostrar que não sente,
montar o seu pigarço, atacar a restinga
às foiçadas, beber um cálice de pinga
na venda do caminho e, entre parvos caipiras,
de mistura, contar três ou quatro mentiras,
onde lampeja a faca; onde, aos uivos e aos brados
põe em fuga, triunfante, um bando de soldados!
Revive na ilusão! Ele é outro! Salvou-se!” (PICCHIA, 198?, p. 37)
132
Nesses versos, tem-se um caipira que deixou sua vida rotineira, e ao perceber que
estava apenas aumentando sua dor ao isolar-se, decide restabelecer seu cotidiano tal como era,
e assim, tentando “mostrar” que não “sente” e que não “padece”, Juca retoma sua rotina, e
vai, “altivo”, passear pela “restinga” com seu pigarço, “beber um cálice de pinga” e contar
“causos” entre os caipiras da venda.
Nessas práticas, realizadas por Juca, há traços essenciais que auxiliam na identificação
dos elementos que constituem parte da cultura popular brasileira do período representado pelo
poema. É evidente que a referência é à cultura popular do sertão paulista, visto que os
elementos assinalados correspondem ao modos vivendis do homem caipira do estado de São
Paulo, sob a representação do caboclo Juca Mulato.
Os atos rotineiros de Juca, agrupados no poema, congregam dados folclóricos
essenciais para conhecer a alma do homem caipira, e os caminhos racionais que o levaram a
interpretar o mundo dessa e não daquela maneira. O corpus da cultura popular é permeado de
saberes e de invenções amalgamadas a um estilo próprio de vida, que o folclore nacional
procurou reunir com intuito de preservá-lo para desfrute das gerações posteriores, porém, não
considerou a evolução que esse conhecimento catalogado obteve através dos anos.
Os dados recolhidos do poema Juca Mulato serão compreendidos respeitando a visão
que seu autor tinha da cultura, dos hábitos e costumes da população rural, evitando lançar sob
o alvorecer do século XX, um olhar contemporâneo, e portanto anacrônico. Os elementos
folclóricos, segundo Florestan Fernandes pode
“compreender todos os elementos culturais que constituem soluções usual e
costumeiramente admitidas e esperadas dos membros de uma sociedade, transmitidas
de geração a geração por meios informais. Do ponto de vista da sistematização dos
dados folclóricos, essa conceituação tem a vantagem de englobar elementos da cultura
material, ergológica, como elementos de natureza não material”. (FERNANDES,
2003, p. 49)
133
As práticas agrupadas como parte do folclore do caipira paulista não se referem apenas
a costumes seguidos rotineiramente, mas também a festas populares, crenças, superstições, e
demais elementos que caracterizam o comportamento desse grupo social. No entanto, como o
folclore sempre visou diferenciar a “cultura do povo” da “cultura da elite”, e coletar práticas
culturais “sobreviventes”, sem nunca ter elaborado um método específico para tal trabalho,
convém abordar as tradições, mencionadas por Menotti, como práticas da cultura popular,
compreendendo a “cultura” como um conceito que abarca “tudo o que pode ser apreendido
em uma sociedade como comer, beber, andar, falar, silenciar”, ou seja, incluindo a “história
das ações ou noções subjacentes à vida cotidiana”. (BURKE, 2010, p. 22)
Os dados folclóricos apresentados no poema compõem o “tempo cíclico” da vida do
caboclo, visto que estão “integrados no movimento da vida, nos acontecimentos da vida como
seus participantes vivos”. Desse modo, a relação espaço-temporal é marcadamente assinalada
por esses elementos culturais, os quais possuem autonomia para referir-se a aspectos da
realidade histórica e social representada por Juca Mulato. (BAKHTIN, 1988, 319)
Mesmo que a vida cotidiana e as demais referências culturais não sejam o enfoque
principal do poeta, recorrer a elas, demonstra a importância que tais costumes exercem por,
simplesmente, refletir pequenos fragmentos de uma realidade representada naturalmente no
decorrer do relato de um drama amoroso. O registro circular dessas atividades, que compõem
a vida cotidiana, possibilitam a assimilação do tempo e do espaço histórico vivido pelo
indivíduo. (BAKHTIN, 1988, p. 211)
No poema Juca Mulato, além das práticas referentes ao cotidiano do personagem,
ocupa espaço na trama, as vivências religiosas da comunidade caipira. Uma dessas referências
aparece levemente pincelada, enquanto a outra possui um espaço central no drama do caboclo.
A primeira faz apenas uma menção à principal festa caipira, a festa de São João. Nos
134
primeiros versos do poema, no capítulo intitulado “Germinal”, o poeta descreve o cenário
habitado por Juca:
“Nuvens voam pelo ar como bandos de garças.
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro apruma-se a bandeira
de S. João desfraldando o seu alvo losango”
“Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o.” (PICCHIA, 198?, p.17)
A partir do primeiro verso, o poeta nos revela um entardecer poético e extremamente
pictórico, em seguida, para completar a paisagem, observa-se uma referência a um mastro
com a bandeira de S. João. Os primeiros versos, que visam situar o leitor no campo imagético
da personagem Juca Mulato, são definidos pelo pôr-do-sol, pelas nuvens que se mudam na
previsão da noite.
Considerando a relação tempo-espaço, a bandeira de São João, “altiva” e ao vento,
exibindo seu “alvo losango”, remete a uma gama de crenças decorrentes da confluência de
cultos católicos, trazidos pelos portugueses e transmitidas aos negros africanos e aos índios.
Sendo a festa de São João um rito dêitico da tradição rústica do povo brasileiro,
investigar a sua aparição no quadro remissivo ao caipira paulista é de igual valor tanto para
uma simples interpretação da vida campesina como para relembrar práticas que tendem ao
declínio e ao esquecimento por tratar-se de costumes vistos como arcaicos em contraposição
às idéias de progresso da sociedade moderna.
34
Desse modo, ao aludir à bandeira do santo católico, Menotti del Picchia retoma a mais
tradicional festa caipira, comemorada na noite do dia 23 de junho, a qual foi trazida pelos
portugueses juntamente com uma série de superstições, que em solo brasileiro se expandiu e
34
A festa de São João, aqui referida, é aquela tradicional do caipira, e não as “sobrevivências teimosas”, que
segundo Antônio Candido não “são praticadas por caipiras, mas por gente que finge de caipira e usa a
realidade do seu mundo como um produto comercial pitoresco”. (CANDIDO, 1993, p. 248)
135
adquiriu outras crendices, se fixando, sobremaneira, entre as comunidades rurais.
Os festejos da noite de São João remontam rituais primitivos, observados em vários
pontos da Europa como celebração do solstício de verão, que para os camponeses,
representava o período de maior fertilidade da terra. A esses costumes antigos foi acrescida a
lenda de um santo da religião católica, tido como o antecessor do evangelho.
Não obstante, o mastro e a bandeira de São João relembram, especificamente, os
traços que o culto adquiriu no Brasil. De acordo com Melo Morais, as festas giram em torno
da crença em São João Batista, primo de Jesus, filho da estéril Isabel que após um encontro
com Maria, mãe de Jesus, seu filho do ventre prostrou-se em adoração ao “Filho de Deus” no
ventre de Maria. Assim, Isabel promete a Maria que quando lhe nascesse o filho ela colocaria
um mastro com uma boneca e acenderia uma fogueira no alto da montanha.
Tal crença foi transmitida oralmente em todo o Brasil, e o costume de homenagear o
santo popularizou-se, tornando-se uma das comemorações mais características da cultura
popular caipira. A inserção de tais festejos entre o povo, confirmam a idéia de Bakhtin,
quando este afirma que
“As festividades (qualquer que seja o seu tipo) são uma forma primordial, marcante,
da civilização humana. Não é preciso considerá-las nem explicá-las como um produto
das condições e finalidades práticas do trabalho coletivo nem, interpretação mais
vulgar ainda, da necessidade biológica (fisiológica) de descanso periódico. As
festividades tiveram sempre um conteúdo essencial, um sentido profundo, exprimiram
sempre uma concepção do mundo.” (BAKHTIN, 1996, p. 7)
Em resumo, essas festas encerram manifestações do espírito humano, sendo também
uma forma de escapar da opressão imposta pelo cotidiano, posto que as crenças nos
sortilégios, realizados na noite de São João, expressam o anseio de modificar a rotina dos
dias. Tais festejos também estão relacionados com o próprio estilo de vida desse grupo social,
136
na medida em que, como cerimônia ou ritual, fazem parte do “tempo cíclico” da vida agrária
tradicional. (BAKHTIN, ANO, p. 320)
Quanto ao caráter supersticioso das festas, Gilberto Freyre sintetiza em Casa-Grande e
Senzala:
“Uma das primeiras festas meio populares, meio de igreja, de que nos falam as
crônicas coloniais do Brasil é a de São João já com as fogueiras e as danças.
Pois as funções desse popularíssimo santo são afrodisíacas; e ao seu culto se ligam
até práticas e cantigas sensuais. É o santo casamenteiro por excelência: “Dai-me
noivo, São João, dai-me noivo, dai-me noivo, que me quero casar.” As sortes que se
fazem na noite ou na madrugada de São João, festejado a foguetes, busca-pés e
vivas, visam no Brasil, como em Portugal, a união dos sexos, o casamento, o amor
que se deseja e não se encontrou ainda”. (FREYRE, 2006, p. 326)
Unem-se a essas crenças, os aparatos dos festejos, que vão desde a confecção de bolos
e doces típicos, como os gêneros preparados com milho verde, coco, as batatas doces e carás
assados, canas, entre outros, até a ansiosa espera das moças frente à realização dos sortilégios
que lhes dirão o nome do futuro marido, e o costume de não cair em sono na noite de São
João sob o perigo de permanecer dormindo o ano todo. (MORAIS, 1967, p.141) Todas essas
incontáveis práticas, observadas nesta noite, envolvem o sentimento do povo que deposita
nesses atos os seus desejos e esperanças.
Em Juca Mulato, a única referência à festa de São João está nos versos citados, no
entanto, a alusão tanto pode ser apenas um adorno da paisagem rural, como pode direcionar o
leitor à idéia de que havia tido, recentemente, naquele cenário, uma festa de São João, e,
portanto, um clima de grandes expectativas amorosas pairava no ar, provável origem da ânsia
de viver de Juca, que mais tarde declara seu amor pelo olhar da filha da patroa.
Juca Mulato, até a ocasião presente, era um homem comum, mas sua existência é
marcada por um sentimento que aflora e conduz sua vida e emoções. Quando Juca percebe
137
esse amor que o prendeu, o matuto começa a sonhar, a sentir em cada planta, cada relva, o
amor que lhe sustém, seu desejo é crescer e frutificar como as plantas, “deitar ramas pelo ar”.
Eufórico pela descoberta do amor, Juca constata a frivolidade da vida. Semelhante
questão é sintetizada na imagem do caboclo do mato” absorto, pensando no seu trabalho, na
sua rotina, nos seus pertences, e diferentemente da maneira como outrora se apresentava, ele
se desencanta ao perceber que sua vida, dia após dia, não se modificava; em seguida, toca sua
viola, o som é gemente, e assim, ele principia a notar que sua alma não é mais a mesma.
Considerando o caráter romântico e casamenteiro da festa de São João, pode-se
conjecturar que talvez os preparativos da festa, juntamente com as superstições e esperanças,
vindas na maior parte das moças, de durante a realização do evento lançarem a “semente” que
lhes garantiriam um marido, tenha despertado no caboclo solitário o mesmo anseio.
Antes de atentar para os olhos da filha da patroa, Juca Mulato dizia: “Para cortar na
raiz/ esta constante agonia,/ preciso amar algum dia,/ amando serei feliz”, mas ao conhecer o
amor, o personagem afirma que amando, apenas desventura, tédio e pranto encontrou.
No capítulo denominado “Presságios”, o caboclo aparece pálido, magro e com
olheiras, pressente que esse agonizante amor pode ser “coisa-feita”, e por isso “precisa sem
demora, ir uma sexta-feira, à tapera do Roque”. Prontamente no capítulo seguinte, o poema
apresenta “A mandinga”, momento em que o Mulato chega à tapera do negro na esperança do
feiticeiro indicar-lhe uma cura para o seu mal:
Juca mulato apeia.
É macabro o pardieiro.
Junto à porta cochila o negro feiticeiro.
A pele molambenta o esqueleto disfarça.
Há uma faísca má nessa pupila garça,
quieta, dormente, como as águas estagnadas.
Fuma: a fumaça o envolve em curvas baforadas.
Cuspinha; coça a perna onde a sarna esfarinha
a pele; pachorrento inda uma vez cuspinha.
138
Com o seu sinistro olhar o feiticeiro mede-o. (PICCHIA, 198?, p. 63)
Os primeiros versos, do capítulo “A mandinga”, apresentam o feiticeiro e sua choça.
Pela descrição realizada por Menotti del Picchia, tem-se um mandingueiro completamente
descaracterizado, morando em uma tapera um tanto quanto semelhante à do Jeca Tatu. A
imagem estereotipada do bruxo, tanto pode estar relacionada ao fato dele ser um negro e,
ainda por cima, velho, bem como pode referir-se a um preconceito em relação às práticas
mágico-religiosas por ele praticadas.
As crenças mágico-religiosas presentes na cultura caipira, muitas vezes, incidiram em
corriqueiras estereotipações, como se faz presente em algumas obras da literatura popular,
denominada mais comumente de literatura regionalista. Como exemplo, tem-se abaixo um
trecho do conto Camunhengue”, escrito por volta de 1891-1897, mas publicado somente em
1920, na obra Os Caboclos de Valdomiro Silveira:
“Não era coisa a que se pudesse chamar bonita, aquela tapera onde assistia o
Cabeludo. Ao fundo dum angola praguejado, em que a unha-de-gato, o cipócaboclo e
a japecanga se entrançavam, caindo dos maricas ou dos ceboleiros, escurentada e
escondida por um maracujazeiro de árvore, aparentava o jeito de um gato mourisco
assanhado, que se encolheu e vai saltar de súbito à cacunda tremente do xintã. Toda a
gente sabia, contudo, que um mundão de romeiros cheios de vingava diariamente
aquele rincão, em busca do milagroso expriente que distribuía a vida e a saúde a troco
de uns sacos de mantimento ou de umas poucas cabeças de galinhas ou leitões...”
(SILVEIRA, 1962, p. 56)
O fragmento de Valdomiro Silveira apresenta a tapera onde residia o feiticeiro
Cabeludo, dando grande relevância para o aspecto pitoresco e ao mesmo tempo aterrorizante
da paisagem, terror esse que advém da própria natureza selvagem que ali se desenvolve
livremente.
139
A descrição do escritor refere-se apenas ao panorama do lugarejo no qual o feiticeiro
reside e recebe os visitantes que para se dirigem em busca das milagrosas curas. Em
comparação com o trecho de Juca Mulato, pode-se afirmar que os mandingueiros e suas
respectivas “taperas” atestam a marginalidade a que são tidas suas práticas.
Não qualquer menção no conto “Camunhengue” que aponte a descendência do
Cabeludo, referência que aparece em primeiro plano nos versos do capítulo “A mandinga”,
caracterizando o negro Roque, porém, o espaço retratado é lúgubre assim como em Juca
Mulato, embora o primeiro contenha mais elementos que estabeleçam um elo entre o
feiticeiro e a natureza, enquanto no outro o enfoque centra-se no aspecto decadente da choça,
e na figura deteriorada do negro feiticeiro.
Independente dos aspectos responsáveis pela marginalidade dos mandingueiros, o
ponto fátuo é que muitas práticas, crenças e rituais foram criados ou adaptados no Brasil, seja
partindo da utilização dos saberes e ritos dos nativos, seja das inúmeras cerimônias trazidas
pelos africanos, e mesmo dos cultos portugueses aos santos católicos. E assim como na
Europa, essas práticas nunca tiveram liberdade de existir, sem sofrerem perseguições, e sem
que seus praticantes fossem alvos de preconceitos.
No Brasil, tais cultos agrupavam uma parcela imensa de rituais, que iam desde
convicções na cristã a entidades demoníacas, ambas trazidas por portugueses e que
permearam as crenças brasileiras, destarte, não como garantir que não houve uma
miscelânea cultural, no que tange a essas práticas religiosas cultivadas no seio das
comunidades rurais, uma vez que elas recorriam a qualquer tipo de poder sobrenatural para
realizar eficientemente suas curas, fossem elas de ordem física ou emocional.
Os ritos mágico-religiosos sempre foram acompanhados de muitos preconceitos, e a
nefasta descrição do negro, apresentado no poema como um ser preguiçoso, com a “pele
molambenta”, os olhos sem brilho (garços), frio, parado, fumando, coçando sua sarna e
140
cuspindo, corrobora com a marginalidade a qual esses “mestres de cerimônias” brasileiros
eram relegados.
Os adjetivos “macabro pardieiro”, utilizados para descrever a tapera de Roque,
permitem uma leve aproximação a outras descrições lúgubres, como a descrita em Os
caboclos, uma tapera, lugar deplorável e, acima de tudo, sinistro, contudo, considera-se o
adjetivo “pardieiro” como responsável pelo aspecto “podre” e “sujo” do lugarejo.
Essas práticas religiosas proibidas, ou mesmo renegadas, acabaram adquirindo várias
nomenclaturas pelo País, sendo conhecidas como feitiçaria, muamba, canjerê, despacho,
mandinga, ebó e pajelança. E tanto as que mantinham as tradições durante sua realização,
como o candomblé com sua pompa característica, quanto o cerimonial do catimbó, são partes
das práticas religiosas que, segundo Michel de Certeau “se recruta[m] nos meios rurais,
menos enquadrados e como que massificados pelas próprias modalidades que subvertem as
hierarquias locais”. (CERTEAU, 2006, p. 158)
Em suma, constituem saberes e ritos não aceitos pela população culta, ou erudita do
país, permanecendo como práticas específicas das camadas mais populares. Sabendo do
caráter de tais crenças e superstições, e da ilegalidade dessas cerimônias no Brasil, cumpre
especificar de que práticas religiosas o poema se refere:
Tenho ramos de arruda, urtigas, água benta,
uma infusão que cura a espinhela e a maleita,
figas para evitar tudo que é coisa-feita...
Com uma agulha e um cabelo, enroscado a capricho,
à mulher sem amor faço criar rabicho.
Olho um rastro, depois de rezar um bocado
vou direitinho atrás do cavalo roubado.
Com umas ervas que sei, eu faço, de repente,
do caiçara mais mole um caboclo valente!
Dize, Juca Mulato, o mal que te tortura.
Roque, eu mesmo não sei se este mal te cura...
Sei rezas com que venço a qualquer mau olhado;
141
breves para deixar todo o corpo fechado.
Não há faca que vare e nem ponta de espinho;
fica o corpo tal qual o corpo de Dioguinho...
Mas de onde vem o mal que tanto te abateu? (PICCHIA, 198?, p. 63-64)
O negro Roque enumera as moléstias que, comumente, eram causas de sofrimentos
entre os caipiras e o remédio usado para a cura. Pode-se a partir dos sortilégios relacionados,
bem como, do medicamento recomendado, indicar os remédios mágicos, naturais e religiosos
utilizados para a realização da mandinga, pois, enquanto alguns partem do usufruto de ervas e
raízes medicinais, outros partem de rezas e elementos religiosos, e os de caráter apenas
mágico.
Um exemplo bem comum entre a “gente antiga”, e que é mencionada pelo
mandingueiro, são as rezas ou determinadas cerimônias que se faziam para fechar o corpo,
para que, assim, a pessoa não corresse o risco de ser atacada por cobras e outros animais
silvestres, ou morta em tocaias.
O exemplo de corpo fechado” dado pelo mandingueiro é o de Dioguinho, um célebre
matador do sertão paulista, cuja “figura lendária e temida apavorava e instigava a imaginação
da população rural”. Diogo da Rocha Figueira prestava serviços como “vinganças pessoaise
de “cunho político”, e por isso, era protegido devido às relações pessoais que mantinha com
os seus cúmplices.
Descobriu-se com as investigações policiais que Dioguinho era “religioso” e lia
devotadamente as “Horas Marianas”. A lenda diz que por isso sua “pele não podia ser atingida
pelas balas da escolta”. Paira nesse interstício a dúvida quanto à possível eficácia do rito
mágico e o inquérito policial. (SCHENEIDER, 2003, p. 298)
A feitura de magias, desde o uso de amuletos ao complexo costume de preparar as
infusões à base de ervas, guarda uma gama de superstições que além de milenar, possuem
raízes tão indefinidas que apenas salientam o processo de aculturação desses rituais,
142
principalmente a mistura cultural ocorrida no Brasil. Esse elemento cultural resultante foi
cercado de inúmeras precauções, bem como de preconceituosas e errôneas associações com as
práticas religiosas dos negros, como as diversas formas do candomblé e/ou umbanda.
O poder que Roque anuncia existir ao se entrelaçar “uma agulha e um cabelo”, faz o
leitor supor que solução para o mal de amor do personagem. Tal magia provém,
provavelmente, de costumes ou superstições européias. “Magias simpáticas”, que segundo
Frazer é baseada pela “similaridade”, pela “lei do contagio”, crença de que um elemento que
antes estava em contato com determinada pessoa, quando distanciado, pode lhe enfeitiçar.
(FRAZER, 1982, p. 34)
As moléstias advêm de várias causas, no caso da personagem Juca Mulato, observa-se
que a sua dor o tornou “pálido como a cera e magro como um vime” e ainda “tem olheiras
cercando os grandes olhos lassos”, sua dor não é fruto de uma saúde frágil, pois Juca era “ágil
como poldro e forte como um touro”, o que lhe oprime são as dores do amor impossível, o
qual ele suspeita ser até “artimanhas do Demo”. (PICCHIA, 198?, p.60)
Quando o protagonista confessa que o mal que lhe aflige é o amor à filha da patroa, o
feiticeiro responde: “Arranco a lepra do corpo; estirpo da alma o tédio; para o mal de amor
nunca encontrei remédio...” Essa última sentença é definitiva, por ela, o leitor percebe que a
magia simpática que resolveria o problema do personagem não pode ser aplicado ao caso de
Juca, visto que seu amor excedia os limites do possível por ser dedicado a uma mulher branca
e pertencente de um grupo social mais elevado. (PICCHIA, 198?, p. 64)
Depois de anunciar a não resolução do problema do caboclo, o feiticeiro lhe ensina
como se deve esquecer um amor:
“Vencendo o teu amor, tu vences teu tormento
Isso conseguirás só pelo esquecimento
Esquecer um matando-o como se mata um filho
que a gente vai matando um filho que estremece
ouvindo, com terror, no peito, este estribilho:
143
Tu não sabes, cruel, que matas o teu filho?
E, quando se estrangula, aos seus gemidos loucos,
a gente quer que viva... e vai matando aos poucos!
Foge! Arrasta contigo essa tortura imensa,
Que o remédio é pior do que a própria doença,
pois, para se curar um amor tal qual esse...
- Que me resta fazer?
- Juca Mulato: esquece!” (PICCHIA, 198?, p. 65)
De acordo com o mandingueiro, o processo é sofrido, mas não outra solução, pois
Juca “és tal qual um sapo a querer uma estrela”, o melhor a fazer é fugir deste sentimento,
esquecer, mesmo sendo o esquecimento “um remédio pior do que a própria doença”.
É esta a triste sina do Mulato, a única solução que seria possível para o seu mal falhou.
De todos os males, o seu era o pior. Não havia “mesinha” capaz de lhe arrancar da alma o
feitiço dos olhos da sua amada. A impossibilidade desse amor é tão visceral que no capítulo
seguinte, o caboclo apela para que a natureza lhe aconselhe quanto a uma possível fuga, e é
nesse momento que rompendo todos os limites do insonhável, ele ouve a “voz das coisas”, ou
seja, a voz, a recomendação da natureza que havia lhe dado a vida.
A provável intenção do poeta ao apresentar um capítulo intitulado “A mandinga”, com
um direcionamento romântico, porém condicionada por preceitos e rituais encarados de
maneira preconceituosa, é apontar a sociedade hierárquica que mesmo após abolição
mantinha os grupos sociais bem definidos e separados.
Posto que os ritos tradicionais da mandinga formaram um acoplado de crenças com
saberes dos negros africanos, da bruxaria branca e de rituais indígenas, é lícita também a
sugestão de que esse entrelaçado campo uniu diversas vertentes, sendo o candomblé o
responsável pelo ingresso do homem no mundo dos deuses e divindades da mitologia
africana, a bruxaria a que trouxe costumes primitivos, de camponeses europeus, introduzindo
no Brasil um conhecimento milenar, além da contribuição dos nativos que através de ervas e
144
práticas espirituais ajudou a criar um culto, ou melhor, uma cerimônia mágico-religiosa que
pretende-se mais mágica do que religiosa.
Partindo do exposto, compreende-se a riqueza de superstições adotadas pelo povo
brasileiro, na qual para cada mazela um remédio específico, um ritual, uma reza, e nem
sempre os males são de ordem natural, podendo ser causado por algum feitiço, ou coisa-feita,
como dizem.
Essas práticas, alicerçadas no Brasil, passaram a fazer parte do folclore nacional,
uma vez que se desenvolveram, instantânea e diversamente, em rios lugares do País, tendo
em cada local, características peculiares, fruto das influências locais, das próprias diferenças
de crenças, seja devido às diversidades étnicas dos próprios africanos e indígenas, ou até
mesmo, variações devido às condições climáticas, fator que influi sobremaneira na aquisição
cultural de uma nação, distanciando-a da maneira como os cultos eram praticados na África,
pelos indígenas ou ainda por camponeses europeus.
Enfim, tanto os folguedos de São João, quanto às feituras de mandingas, constituem
práticas de religiosidade arraigadas a costumes ora inventados pela imaginação popular, ora
amalgamadas a tradições que romperam muitos séculos. E a inserção dessas práticas
tradicionais caipiras no poema Juca Mulato demonstra que o poeta Menotti del Picchia era
sensível para com esse universo cultural que o rodeava, porém, sua “inteligência criadora”
apenas usufruiu desses dados culturais.
O poeta apanhou os elementos culturais pertencentes à cultura rústica e os distribuiu
em uma epopéia que aspirava apenas “cantar” o homem da terra, mas o poema tornou-se o
reflexo de um universo destituído de sentido, se considerado a negligência do poeta às
mudanças sociais e econômicas da vida rural naquele momento histórico.
Desse modo, pode-se afirmar que Menotti del Picchia construiu uma obra e, por
145
extensão toda uma literatura
35
, que embora pretenda dialogar com esse universo cultural, ela
somente possui suas bases na cultura popular, uma vez que o escritor utiliza-se de costumes,
lendas, mitos, recriando-os a seu bel prazer, com intuito de receber a aprovação de críticos e
oferecer entretenimento à elite leitora de sua época.
35
Considera-se, parte dessa literatura do autor, as obras Juca Mulato(1917), Salomé(1943), Dente de
ouro(1922), o conto A outra perna do Saci, Laís(1924), República dos Estados Unidos do Brasil(1928),
Chuva de pedra(1925), que partem de tradições populares, ou em algum momento de seu enredo apresentam
práticas e costumes observados nas tradições do povo.
146
Univers
o rural
de Juca
Mulato,
por
Menotti
Del
Picchia
147
Considerações Finais
Ao considerar o poema de Menotti como devedor de variados estilos literários, que
vão desde a lírica trovadoresca até o rebuscamento parnasiano, a musicalidade simbolista e o
tema de direcionamento, ainda, “pré-moderno”, pode-se concluir que ao perpassar por essas
várias modalidades artísticas, o poeta intentou abranger um público bem vasto, criando um
poema que não obtivesse rejeição estética.
À erudição dos vocábulos e versos do poema, o autor adicionou um tema,
aparentemente, de caráter popular. Superficialmente, observa-se a epopéia de um caboclo, seu
canto saudosista e o apego a sua terra, porém, nas entrelinhas, percebe-se que o autor,
juntamente com esse canto em louvor ao homem do sertão paulista, rastreou os pensamentos e
ideais de sua época. Exprimindo, portanto, apenas a profusão do que sentia e almejava
naquele complexo início de século.
Não se pode omitir a participação direta de pensamentos do autor na criação de Juca
Mulato, pois para além de uma imagem simbólica do caipira, o poema transmite a percepção
de mundo do seu criador. Enquanto personagem em si, Juca Mulato significa mais que um
“canto de despedida” e que “o gênio triste da nossa raça e da nossa gente”, ele é a resposta à
imagem caricaturesca do Jeca Tatu; o personagem não considerado pelos regionalistas que
buscavam um representante para a nação; e a expressão sentimental de um elemento que
contribuiu para a configuração da cultura caipira.
Cultura que também viveu nos terreiros, onde segundo Menotti era o lugar dos negros
e de seus descendentes, e cuja participação o poeta pincela nos versos do poema, procurando
incluir o “mulato” como participante da alma nacional na célebre frase de Juca: “Pigarço,
você tem uma alma como a gente”. Seja através das práticas que demarcam a rotina do
“caboclo do mato”, ou mesmo de suas crenças de âmbito religioso, o poeta demonstrou a
148
similaridade de sentimentos e afazeres de Juca com a de qualquer outro caipira que se queira
comparar.
O tema é polêmico, e garante ao poema o epíteto de moderno, ao dar vazão para que o
Modernismo verse sobre tais enfoques, entretanto, o autor trata a questão a partir do ponto de
vista da aristocracia cafeeira, e nesse âmbito, o “mulato” é visto como o elemento dominado
perante a dominação exercida pelo olhar da filha da patroa.
O caráter regionalista, observado no poema, propõe que o assunto seja discutido entre
escritores modernistas, repetindo um estilo que surgiu no Romantismo e no Realismo, e que é
reafirmado na tendência nativista propagada no Manifesto Verdeamarelo.
Ao abordar tal tema, Menotti congrega, em Juca Mulato, duas possibilidades que
indicam diferentes posicionamentos em relação ao homem do sertão paulista: primeiro,
partindo de uma adesão às descobertas científicas da época, o poeta pode ter-se inspirado na
teoria, mais tarde, defendida por Paulo Prado, de que o brasileiro é triste devido à mestiçagem
ocorrida no Brasil; como pode também ter criado, imbuído de idéias românticas acerca do
homem sertanejo, um arquétipo do “bom selvagem” rousseauniano.
Se um sobressai ao outro não convém discutir, o que permanece é a complexidade que
envolve o personagem construído por Menotti, personagem que representa não apenas um
modelo de caipira paulista, mas também, todo um tempo de dúvidas e incertezas que até agora
permaneceu camuflado diante da concepção de que o poema não passava de um romance
banal.
Se o personagem, em si, possui duas diferentes concepções ideológicas, o poema
como um todo, também abriga uma grande ambiguidade. Nele, pode-se ler a heróica história
de um caboclo, trabalhador e com desejos humanos, que vence seus próprios sentimentos e
limitações, e permanece forte e altivo na terra em que nasceu. E pode-se também, perceber a
triste sina de um elemento social, para o qual, não existe liberdade, uma vez que sua vida é
149
definida desde seu nascimento.
Nesse sentido, Juca Mulato é um personagem que possui todos os seus atos
condicionados e dirigidos pelo narrador. O canto em louvor ao caipira intenciona fixar a
estabilidade do homem no campo, estabilidade que garantiria uma posição privilegiada para a
aristocracia rural do período. A outra leitura de Juca Mulato, reside nessa questão, visto que o
conformismo do personagem é o elemento que põe em dúvida a autonomia do personagem,
demarcando a intromissão do autor. Em suma, Juca Mulato é um caipira que, inserido em seu
ambiente social e cultural, corrobora para a manutenção de um organismo social que não
privilegia os próprios caipiras, apenas identifica-os como elementos relevantes para a
continuidade da monocultura cafeeira, mas visa representá-lo como o herói de uma fábula
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