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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Leonardo Luiz
Música e psicanálise: A afetação musical na vida psíquica
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
SÃO PAULO
2010
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II
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Leonardo Luiz
Música e psicanálise: A afetação musical na vida psíquica
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
Tese apresentada à banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de Doutor em Psicologia Clínica sob
a orientação do Professor Doutor Alfredo Naffah Neto.
SÃO PAULO
2010
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III
BANCA EXAMINADORA
______________________________
______________________________
______________________________
______________________________
______________________________
IV
Agradecimentos
Alfabetizando a desordem, sou grato a todos que direta ou indiretamente
contribuíram para a conquista desse título:
Meus pacientes e ex-pacientes (especialmente ―Charles‖, ―Priscila‖ e
―Helena‖).
Alunos e ex-alunos.
Ao CNPq, UMC, UNIP, CEP.
Alfredo Naffah, Yara Caznok, David Calderoni, Silvana Rabello, Renato
Mezan, Ines Loureiro, Elisa Cintra, Ana Brisolla, Ana Scatena, Vitor Vicentini, Angela
Salgado Sandim, Antonio Salgado, Leico Nagata, Andrea Perdigão, Amanda
Finamore, Alessandra Soletti, Andre Antas, Camila Flaborea, Clarice Milani, Claudia
Aranega, Diana Mindlin, Dorli Kamkhagi, Andrea Nosek, Eduardo Furtado Leite,
Oscar Cesarotto, Eliane Pimentel, Ernando Luiz, Silmara Lopes, Nathália Lopes Luiz,
Flavia Fernandes, Gustavo Scarpinella, Maurício La Motta, Erlon Campos, Glauco
Costa, Hitamara Rachkorsky, Iris Beccaccia, Karin Szapiro, Liz Mirim, Luciana
Goldman, Luís Claudio Figueiredo, Luiz Hanns, Maria Helena Rowell, Maria Heloisa
Ramos, Maria Teresa Grimaldi Larocca, Maita, Maria Angélica, Marina Costa,
Melissa Catrini, Nathalia Furtado, Ely do Amaral, Noêmia Barbosa, Orlando Luiz,
Tereza Maria Luiz, Leonel Luiz, Nice Rocha, Osmair Galdino, Adriana Lauer, Paula
Miura, Primício (Bruce Lee), Regina Cavalieri, Regina Célia, Ronaldo Rangel, Roseli
Gimenes, Sonia Mansano, nia Vieira, Judith Vero, Sylvio Ferreira, Vera Canhoni,
Viviane Di Pieri, Yara Azevedo, André (Zóio), Catarina Zugaibe, Dona Ofélia,
Elisangela Honorio, Monica Pereira, Erivelton Menezes.
A todos que curtem a LUER...
Muito obrigado!
Leo
V
Dedicatória
Para Ana, por TUDO...
e Paulo Amaral (in memorian), um leitor ímpar.
VI
...Estudos multidisciplinares apareceram, trazendo
para o campo das discussões musicológicas
diversas áreas do conhecimento psicologia,
psicanálise, semiótica, física, matemática,
sociologia e antropologia, entre outras. Mas a
despeito dessa multiplicidade de “saberes” que
tenta auxiliar e incrementar o debate a respeito do
que seja a música e a audição musical,
compositores, intérpretes e ouvintes parecem não
aderir a uma ou outra postura...
(Yara Caznok)
VII
RESUMO
Esta tese trata a música e a escolha musical do ponto de vista da psicanálise.
Busquei considerar as questões da ação da indústria cultural e da manipulação da
indústria fonográfica, uma vez que são fatores que também formam e compõem o
sujeito e sua personalidade. Percorro um trajeto no qual alguns comentadores da
psicanálise freudiana se fundamentaram para criar teorias que pudessem
―conversar‖ com os aspectos musicais de cada sujeito. Primeiramente disserto sobre
uma dimensão do processo de identificação e do funcionamento das massas que
aproximam a música do sujeito ou vice-versa. Em seguida apresento aspectos que
alimentam a fonte das identificações. Abordo como se dão alguns mecanismos de
ordem afetiva que cada sujeito estabelece ao ―se identificar‖, abrindo caminho para a
ênfase à abordagem de questões musicais e seus efeitos psíquicos na história de
cada paciente. Como o objeto musical é invisível e impalpável, escapando ao
tangível e se identificando com o que é indizível, portanto, subjetivo, busquei ainda
―responder‖ como as sonoridades (musicais) afetam essa subjetividade. Os
caminhos percorridos exibirão o papel da escuta psicanalítica que se presta a ouvir o
sujeito ―afetado‖ por qualquer aspecto musical. Identificando a razão singular da
história de vida atravessada por aspectos musicais permitindo uma detida reflexão,
sobre a ideia que denominei: ―afetações musicais na vida psíquica‖. A ideia de que a
afetação musical na vida psíquica e como se relacionam teórica e clinicamente será
amplamente discutida na apresentação dos casos clínicos. Estes rezam sobre as
especificidades de três pacientes com suas evocações/usos musicais. Nessa parte
exemplifico como as sonoridades musicais, de cada um deles, contribuíram para o
curso da própria análise. Apresentando-se como elemento mediador de
transformações psíquicas e fazendo brotar um modo inédito para dar sentido a uma
situação psíquica específica.
Palavras Chave: Música, psicanálise, afetação musical, clínica.
VIII
ABSTRACT
This thesis deals with music and the musical choices from the viewpoint of
psychoanalysis. I‘ve considered the questions of the actions related to the cultural
industry and the manipulation of the phonographic industry due to the fact that both
are factors that mould the subject and his personality. I take the pathway that some
commentators of Freudian Psychoanalysis took which shows on what they based
themselves to formulate theories that could ―talk‖ with the musical aspects of each
individual. First I examine a dimension of the process of identification and the
functioning of the masses that make the music come closer to the individual and vice-
versa. Next, I present the aspects that feed the source of the identifications. I
approach the way that some affective mechanisms happen and how each individual
establishes his identifications which open the pathway to the emphasis given to the
approach to musical questions and their psychological effects in the history of each
subject. As the musical object is invisible and non-palpable, escaping what is tangible
and identifying itself with the that can‘t uttered, therefore highly subjective, I also tried
to answer how the (musical) sonorities affect this subjectivity. The pathways taken
will show the role of the psychoanalytic listening that is capable of listening to the
subject that is affected by any musical aspect. I identified the sole reason of the life
history of each subject crossed by musical aspects which allows a pondered
reflection about the idea that I‘ve named ―musical affects in the psychic life‖. The idea
of the musical affects in the psychological life and how music and psyche relate to
each other theoretically and in the private clinic of the psychoanalyst will be broadly
discussed at the chapter that presents vignettes of three clients and their specific
musical recollections and their usage in the psychoanalytic setting. Here I describe
how the musical sonorities of each one of them contributed to the course of their own
analysis presenting themselves as elements that mediate the psychological
transformations and create original ways to bring meaning to a specific psychic
situation.
Key Words: Music, Psychoanalysis, musical affects, clinic.
IX
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
Música e vida social 14
Primeiras notas musicais 17
CAPÍTULO I. IDENTIFICAÇÃO, GOSTO MUSICAL E CULTURA DE MASSA 20
1.1 Gosto ou escolha? 21
1.1.1 Cultura de Massa 25
1.1.2 Massa em Freud 28
1.2 Semiótica, signo e novas formas de identificação 36
1.3 Signo da paixão musical 39
CAPÍTULO II. MÚSICA E PSICANÁLISE 42
2.1 A música e o sujeito 42
2.2 Pulsão invocante 48
2.3 A psicanálise escuta a música 52
2.4 Prazer e funções da música 54
2.5 Metáfora musical 56
2.5.1 Sonoridades musicais 67
2.5.2 Música tonal e música atonal 70
2.5.3 Linguagem musical 72
CASOS CLÍNICOS 75
CAPÍTULO III. PRISCILA AFETO NO CORPO PSÍQUICO 76
3.1 O Grunge, o modismo, o gosto, a marca... 79
3.2 Escutando a música 87
3.3 Função do pai, Corpo erógeno 97
3.4 Eu-pele 100
X
3.5 Pulsão de morte 103
3.6 A compulsão à repetição 105
3.7 Imagem do Corpo 111
CAPÍTULO IV. O IMPROVISO DE CHARLES 114
4.1 Sonoridades jazzísticas os sons de Charles 118
4.2 A musicalidade psíquica de Charles 123
4.3 O exibicionista 124
4.4 A escolha do instrumento 128
4.5 Narcisismo (sintoma e angústia) 130
4.6 Improvisando no escuro 136
4.7 Metaforizando o improviso 140
4.8 A retórica da improvisação 144
4.9 Liberdade e regras de uma vida improvisada 149
4.10 Resiliência jazzística 151
CAPÍTULO V. HELENA UM DIALETO MUSICAL 153
5.1 Amor pela música, música pelo amor erotismo e transferência 160
5.2 Porque dialeto? 163
5.3 Aspectos Edipianos 166
CONCLUSÃO 168
Sonoridades: afetação musical na vida psíquica 172
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 175
APÊNDICES 186
ANEXOS 197
INTRODUÇÃO
Sem música a vida seria um engano (Nietzsche)
O grau de tensão dos nervos do ouvido para
escutar cada nota explica muito bem a parte física
do prazer da música (Stendhal)
Meu interesse explícito por psicanálise data do ano 1994, ainda no início de
minha graduação no curso de psicologia. Pela música, certamente desde muito
antes. É possível que uma organização consciente a respeito do prazer suscitado
pela escuta musical em minha história, tenha se dado muito mais tarde. Mas,
certamente, foi uma relação que se iniciou antes da psicologia, antes da psicanálise,
antes propriamente do início dos meus estudos primários... Ser músico, ou melhor,
ser um instrumentista (cabe dizer que nada sei sobre as teorias musicais) foi um
desdobramento do prazer primeiro de ser ouvinte. E tentando reproduzir os sons que
ouvia, misturados aos chiados dos discos tocados na velha vitrola que tínhamos em
casa, dedilhei num velho violão os primeiros acordes que desde então me
acompanhariam na minha vida social e, inevitavelmente, profissional.
Muitas pessoas me perguntam, quando me descobrem analista e músico, se
o que faço é terapia musical ou musicoterapia; ou ainda, se convido meus pacientes
a cantar, a falar de suas histórias musicais e da relação que mantêm com a música,
etc.? Respondo, com certo desconforto, que não.
1
A psicanálise que pratico, ainda
que não seja ortodoxa, é freudiana. Portanto, a livre associação continua sendo a
regra fundamental e é a partir dela que meus pacientes (pelo menos os que lançam,
obviamente, mão de alguma referência musical) constroem e apresentam seus
conteúdos. Ou seja, tudo o que apareceu em minha clínica foram associações e
construções oriundas dos próprios pacientes. Ainda que a função do analista
implique, entre outras, o favorecimento a essas vias.
Toda e qualquer forma de linguagem é bem-vinda. Tarefa do analista, repito,
é deixar que o paciente traga à tona seu conteúdo psíquico; porém, essao é uma
1
Não sou musicoterapeuta, tampouco tenho conhecimento aprofundado sobre tal tipo de
atendimento. O pouco que pude pesquisar a respeito confirma que não diálogo entre a minha
abordagem teórica (psicanálise) e a prática mencionada, como se verá com precisão nos capítulos
em que apresento os casos clínicos estudados.
12
empreitada fácil, pois, como é sabido, enfrenta-se a problemática das defesas
inconscientes. Essa, talvez, seja uma pista do porquê das menções estéticas por
vezes presentes nesses discursos. Obviamente, as artes plásticas, o cinema, o
teatro, têm seu lugar garantido em tais menções. Todavia, aquilo que minha escuta
pôde captar está intimamente ligado aos aspectos musicais.
Os anos de atividade clínica em consultório (uma década e meia
aproximadamente) aliada à esfera teórico-acadêmica, ouvindo as mais diversas
realidades psíquicas, os mais diferentes sintomas, os manejos mais ou menos
eficazes da cada paciente diante de sua singularidade, propiciaram-me um repertório
único de casos. Alguns mais interessantes, outros que despertavam menos
interesse; alguns bem complexos, outros mais elementares. Porém,
fundamentalmente, todos com algo especial a ser compartilhado. A isso se some
uma dedicação à leitura e a produção de alguns escritos sobre a estética musical.
É sabido que algumas coincidências analíticas costumam se apresentar na
transferência com certa frequência. Por exemplo, não é de se estranhar que uma
psicanalista grávida comece a receber, coincidentemente, gestantes em seu
consultório; ou que outro colega, por exemplo, cinéfilo inveterado, volte e meia,
receba pacientes amantes da sétima arte comentando filmes de sua preferência.
―Coincidências‖ exploradas por alguns teóricos e explicadas com alguma
relevância. Pode-se pensar, por exemplo, numa conjunção de fatores que promovam
esse encontro ―casual‖.
Comigo não foi diferente no que se refere à música ―deitando-se no divã‖.
2
Não foram raros os pacientes que ao se deitar musicavam a fala em análise. Eu,
naturalmente, ao ouvir qualquer menção que me remetesse a alguma sonoridade
musical das falas, atreladas invariavelmente a um tipo de verbalização associativa,
ficava impedido de me alienar às evidentes incursões musicais introduzidas por
pacientes no tratamento analítico. Tratava-se, posso dizer, de meu interesse e
sensibilidade musical sendo afetados pela sonoridade produzida por meus pacientes
Encantado com essa faceta apaixonante do meu trabalho fui sendo levado,
desenfreadamente, para a tentação natural de escrever apanhados sobre essas
2
A ideia aqui, com o uso dessa expressão, é ―brincar‖ com a noção de que cada paciente ao deitar-
se no divã, leva consigo seu repertório sonoro-musical, depositando-o a serviço de sua própria
análise, de suas associações, reflexões e elaborações.
13
aparições em minha clínica. Alguns casos viraram artigos, outros seminários clínicos
e palestras. Nesse sentido acabei me tornando um colecionador de fragmentos
musicais na clínica‖, ou ―aspectos psíquicos‖ de tais fragmentos que pautavam a fala
de alguns desses pacientes.
Após concluir minha dissertação de mestrado no ano de 2003,
3
talvez por
uma questão apenas da necessidade de desacelerar a corrida pela produção do
texto, instaurada amomentos que antecederam a defesa, passei a consumir uma
vasta literatura exclusivamente musical, que chamei de descomprometida com a
vida acadêmica. Ainda que, originalmente, não estivesse na contramão dos meus
estudos anteriores ou que se seguiram, tinha intencionalmente o propósito de
promover meu descanso.
4
Leituras indubitavelmente enriquecedoras, suscitando questões de toda a
ordem: desde a ideia da música como mercadoria à identificação com os intérpretes.
Todavia serviriam apenas para estimular novas perguntas que ajudariam a criar a
configuração principal da tese. Ou seja, pensar como a vida psíquica de um sujeito é
afetada musicalmente.
Nesta tese, iniciada três anos depois, relato casos nos quais a presença da
sica é muito evidente. São três situações clínicas que ilustram algumas
dimensões de ações e efeitos provocados pela música, ou melhor, pela
3
Vitrola Psicanalítica: Canções que tocam na análise no qual, ―além de trazer reflexões sobre a
natureza de nossas relações com as várias facetas do fenômeno musical (timbres, ritmos, melodias)
e de discutir os processos associativos e o papel do conceito de ‗terceiro analítico‘ que dá sentido à
experiência psicanalítica, o autor nos apresenta vinhetas clínicas. Com elas, busca ilustrar como, pela
música e especialmente pelas associações evocadas por canções que marcam nossa história, é
possível infiltrar-se pelos meandros e capilaridades das sensações indizíveis dos nascedouros por
onde as marcas, as memórias arcaicas, se manifestam, desentocaiando desejos e propiciando
insights, ressignificando ideias ou simplesmente expondo afetos e aproximando o sujeito de sua
própria verdade‖. (Luiz Alberto Hanns na apresentação do texto quando publicado em livro).
4
Os livros eram, em sua maioria, biografias de compositores, cantores, relatos de épocas históricas e
respectiva produção musical; reportagens, entrevistas, crônicas, ensaios e tudo mais que se possa
imaginar, que as editoras publicaram ou reeditaram no período que durou até o ano de 2006.
Passaram pela minha estante e cabeceira biografias como as de Mario Reis, Luiz Gonzaga, Lupicínio
Rodrigues, Araci de Almeida, Baden Powell, Adoniran Barbosa, Dorival Caymmi, Cazuza, Chico
Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paralamas do Sucesso, Sepultura, Os Mutantes, Novos
Baianos, dos mineiros do ―Clube da Esquina‖, entre outras. Frequentaram, ainda, minhas horas de
lazer, livros a respeito de movimentos e estilos musicais, como a Bossa Nova, Tropicália, Jovem
Guarda, A Era dos Festivais, Manguebeat, Funk, Choro, Rock, Blues, Reggae, Jazz, Música
Sertaneja/Caipira, Heavy Metal, Punk, Frevo, Música Eletrônica, entre outros temas, fossem
nacionais ou estrangeiros. Grande parte da publicação que possibilitou tais leituras, por vezes,
extremamente interessantes e bem escritas, sobre alguns dos nomes e movimentos citados, é
oriunda da Coleção Todos os Cantos (anteriormente chamada de Coleção Ouvido Musical) lançada
pela Editora 34. [Cf. Ref. Bibliográficas]
14
especificidade que ela [a música] tem de se apresentar como elemento mediador de
transformações psíquicas. Busco, ainda, ―responder‖ como as sonoridades
(musicais) afetam singularmente cada paciente em especial.
A dimensão de cada fragmento dos casos escolhidos traz, de fato,
idiossincrasias que servem, a meu ver, como guia para cruzar aspectos clínicos dos
atendimentos em si, com aspectos teórico-conceituais abordados nos dois primeiros
capítulos. Priscila, Charles e Helena, ―compartilham‖ conosco, respectivamente, três
grandes eixos: um, (Priscila) sobre as marcas sonoras que a música deixa por
escolha própria em sua vida e em seu corpo. Outro (Charles) sobre a dimensão de
ser músico e toda a sensibilidade criada e construída para justificar, exemplificar e
entender as próprias ações ―improvisadas‖ (analogias entre o jazz e sua
configuração emocional) e, finalmente, o terceiro (Helena), pautado na estrutura
musical como metáfora poética de um amor correspondido que se inicia. Aqui a
música funcionou como agente de transmutação do amor casto ao amor erótico. Em
todos, como se observará, vale repetir, a música aparece como um elemento de
mediação psíquica capaz de transformar, modificar a maneira de falar, ouvir,
entender algum aspecto psíquico. Evocam também a ideia de atravessamentos
sonoros que contribuem para o ―uso‖ específico da relação psíquico-musical
apresentada.
A musicalidade parece ser uma ferramenta familiar a esses pacientes, e
mesmo quando não são o explícitos sobre a aparição de uma sonoridade
específica, algo de suas falas encontrara eco na comunicação paciente-analista a
ponto de terem me conduzido à escolha dos relatos que apresentarei aqui. Estes
identificam a razão singular da história de vida atravessada por aspectos musicais
permitindo uma detida reflexão, sobre a ideia que denominei: ―afetações musicais na
vida psíquica‖.
Música e vida social
Sabe-se que a música existe desde a pré-história. Muito provavelmente ela
tenha surgido da necessidade ou vontade do homem de ―organizar‖ os sons. Pode-
se dizer que a história da música acompanha a própria história do desenvolvimento
do intelecto e da cultura humana. Suas múltiplas dimensões e funções caracterizam-
15
na com elevado grau de importância em épocas e culturas distintas. Nesse sentido a
música tornou-se um elemento cultural que atravessa a história desembocando hoje
na esfera particular de seu uso.
Circunda-nos e acompanha-nos desde muito cedo, como uma espécie de
trilha sonora da vida. Quem nunca escolheu a música que marcou um
acontecimento específico, um amor? Revelando à pessoa amada, por exemplo:
essa será nossa canção‖; muitas vezes pelo enredo do que foi cantado ou por um
verso específico, pelo som produzido, o encanto causado; outras, pela simples
coincidência de que, no momento do beijo, ouvia-se, ao mesmo tempo na estação
de rádio, no bar, na rua, no carro, aquela música que, a partir de então, recebe o
estatuto de ―marco daquele instante‖.
Quando ouvimos qualquer canção popular-comercial, esperamos que se
trate de obra predominantemente lírica, isto é, de palavras cantadas que
expressam a vida interior de um sujeito. Nesse sentido, de algum modo já
sabemos que o canto da personagem nos apresentará coisas e fatos do
mundo concreto exterior como reflexos, mais harmônicos ou mais disformes
conforme o caso, da sua própria disposição interna. Não custa sublinhar que
a voz que canta sempre é a voz de uma personagem, mesmo quando
achamos que o intérprete viveu de fato aquilo que a letra diz, com o sentido
que ela assume do modo como é cantada e em conexão como outros
elementos musicais e extramusicais (jornalísticos ou publicitários, por
exemplo) que sustentam a realização de uma obra fonográfica. Tal
generalização não ignora que traços épicos ou dramáticos também integrem
o trabalho do compositor, assim como o de intérprete e músicos, e daí a
lírica ser o gênero predominante, o que quer dizer que ela não atua
sozinha.‖ (GARCIA, 2007, p.180, In Lendo música)
Entretanto, não apenas a palavra cantada nos afeta, ainda, e talvez,
principalmente, os aspectos puramente sonoros da música (ritmo, melodias...) que
circundam cada sujeito afetando-o em sua íntima singularidade.
Quando ouvimos e nos interessamos por uma música, surge sempre um
interesse grande em saber como aquilo foi feito, como é que conseguiram
fazer com que uma coisa que não existia em nós aparecesse na forma de
uma sensação muitas vezes inesquecível (...). Escrever sobre uma música
que se escutou, sobre uma paisagem que se viu ou pintou, sobre um fato do
dia que nos chamou a atenção não é fácil. Para escrever, nos valemos da
palavra, da nossa língua, e sabemos o quanto nossa linguagem é
atravessada de todo um modo de ver, de pensar; mesmo se nos valemos
das palavras para falar de nossos sonhos e se é com elas que imaginamos
o que é sem limite, muitas vezes elas são o nosso limite, ou nosso campo
de batalha. E se a palavra é um problema, imagine-se o som sem
palavras...‖ (FERRAZ, 2005, pp.17-18)
16
Seja em festas, viagens, comemorações, encontros formais ou informais, ao
vivo ou gravada, ou ainda nos rituais sociais, está ela, cantada, tocada, dançada.
Difícil o filme, o documentário, que se apresente sem trilha musical; o comercial na
tevê, no rádio, até mesmo a Internet exibe seus respectivos jingles; na sala de
espera, nas filas em algumas repartições, nos trens e metrôs, à espera ao telefone.
Está tão presente que, quando nos damos conta, estamos cantando o jingle da
propaganda de margarina, assobiando uma melodia usada no comercial do carro do
momento, ou ainda, repetindo o refrão ―insuportável‖ daquele sucesso ―recém-
descoberto‖. Ouvimos e cantamos, muitas vezes, sem nos darmos conta do quão
importante (e por que não dizer ‗desimportante‘) isso é para as nossas vidas, nosso
ouvido.
Residiria aqui a possibilidade ―musical‖, por exemplo, de criar, afinar e
manter laços sociais? O gosto semelhante pelo mesmo estilo musical, por exemplo,
afinaria as relações interpessoais estabelecidas nas situações descritas acima?
(Identificação)
Na música é preciso descobrir como cada coisa pode e deve ser ouvida.
Quando um determinado idioma musical é mais ouvido, quer se queira quer não,
desenvolvem-se hábitos de escuta.
Não é possível definir uma fronteira entre a música de entretenimento e a
música artística. A música de entretenimento é aquela que tem uma função
basicamente passageira; ela pode distrair e proporcionar prazer num determinado
momento e, uma vez utilizada, cumprindo sua função é logo esquecida, dando lugar
a outra. Já a música artística é aquela que, ao contrário, transcende à época,
continua na memória como algo que permanece fazendo sentido; dotada de um
valor poético, musical, que continua a interessar como forma de interpretação da
realidade.
Vale, então, repetir que a afetação musical incutida na vida psíquica de cada
sujeito, revela suas particularidades, ou seja, a relação afetiva com a música,
propriamente, ou aspectos musicais (timbre, melodia, instrumento, gênero,
intérpretes) são eficazes para a organização da economia psíquica,
independentemente se a música serve para entreter ou satisfazer um gosto estético.
17
Esta tese, especificamente, trata a música e a escolha musical do ponto de
vista da psicanálise. Ainda assim, não deixo de considerar as questões da produção
musical, da ação da indústria cultural, da demanda de mercado e, bem como, da
manipulação da indústria fonográfica, uma vez que são fatores que também formam
e compõem o sujeito e sua personalidade.
Primeiras notas musicais
É bem provável que desde a vida intrauterina estivéssemos expostos aos
primeiros sinais sonoros, e porque não dizer musicais emitidos pela mãe. Para além
dos sons/ruídos produzidos pelo sistema digestivo, respiratório, circulatório da mãe,
e do próprio bebê, estão presentes vozes passíveis de serem escutadas pela criança
a partir de dado período de sua formação. Alguns autores, inclusive, tratam o tema
com bastante relevância.
Portanto, a manifestação sonora aparece realmente antes da organização
da linguagem, e é como se pudéssemos dizer que a música se apresenta antes da
manifestação da fala.
Com as primeiras vogais formaram-se as primeiras articulações ou os
primeiros sons, segundo o tipo de paixão que ditava uns e outros. A cólera
arranca gritos ameaçadores, articulados pela língua e pelo palato: mas a
voz da ternura é mais doce, é a glote que a modifica, e essa voz torna-se
um som; apenas, os acentos são mais frequentes ou mais raros, as
inflexões mais ou menos agudas, segundo o sentimento que a eles se liga.
Assim, a cadência e os sons nascem com as sílabas: a paixão faz falar
todos os órgãos e confere à voz todo o seu brilho; assim, os versos, os
cantos, a palavra, têm uma origem comum. (ROUSSEAU, 2003, p.147)
Nas manifestações da linguagem humana existem aquelas que se limitam a
uma função imediata e que uma vez usadas são deletadas. E existem aquelas que
ficam guardadas, porque têm a capacidade de ultrapassar a sua função imediata.
Um assobio, o ―barulho‖ da chuva caindo, um pássaro cantando, o apito de
uma locomotiva, é música? O que é? E as emoções que são evocadas a partir
dessas sonoridades? Será possível dizer que a música/sonoridade é capaz de
caracterizar (em parte) a constituição de cada sujeito? Como ela afeta nosso
18
psiquismo? E quais contribuições a psicanálise apresenta para construir uma
possível resposta a essa problemática?
Tanto as letras, os sons, e o discurso, nessa relação que é majoritariamente
intensiva o relevantes. O que os sons produzem e que efeito tem sobre nossos
pacientes é outra questão importante a ser respondida nessa tese.
Quando o assunto é música, a memória é, inevitavelmente, evocada, ou
mais particularmente, as afetações psíquicas se manifestam. Certamente
proximidades entre escuta analítica e a escuta musical.
5
Porém o se trata de uma
escuta imediata, é uma espécie de audição errante na qual o analista tal qual
quando na atenção flutuante é fisgado por uma experiência musical por meio da
escuta na dimensão da experiência psíquica.
Essa conexão, de alguma maneira, modifica a potência social e afetiva das
pessoas. Novos afetos são experimentados pelo sujeito quando esse entra em
contato com a música. Por essa razão sua potência pode ser ampliada ou
restringida.
Antes de conhecermos os três casos clínicos mencionados, apresento o
primeiro capítulo (Identificação, gosto musical e cultura de massa), que reza sobre o
processo de identificação, o funcionamento das massas e aspectos populares que
aproximam a música do sujeito ou vice-versa. O capítulo trata, também, mais
detidamente, de aspectos que alimentam a fonte das identificações. Nele, abordo
como se dão alguns mecanismos de ordem afetiva que cada sujeito estabelece ao
―se identificar‖ com a música; o que já abre caminho para o segundo capítulo
(Música e psicanálise). Este enfatizará a relação da música com a psicanálise
abordando as questões musicais e seus efeitos ou dimensões afetivas/psíquicas
possíveis.
Percorro um caminho no qual alguns comentadores da psicanálise freudiana
se fundamentaram para criar teorias que pudessem conversar com os aspectos
musicais de cada sujeito. Tal capítulo culmina talvez, no que de mais
importante no tão escasso material disponível a respeito da temática na
5
Alfredo NAFFAH NETO discute a questão em seu artigo ―A escuta musical como paradigma
possível para a escuta psicanalítica‖. Percurso. Revista de Psicanálise. Ano XVII, 33, semestre
de 2004, São Paulo, p.55.
19
apresentação de dois artigos de Heinz Kohut.
6
Ainda neste capítulo haverá um
segundo momento em que as ideias apresentadas girarão em torno do que chamei
de ―sonoridades musicais‖. Nele, aspectos específicos da dimensão musical serão
apresentados. Trata-se de um trecho que promove um diálogo direto entre a primeira
parte desse capítulo e o seguinte (que descreve os casos clínicos, lançando mão de
conceitos psicanalíticos passíveis de serem articulados com a fenomenologia de
cada paciente apresentado), promovendo uma espécie de transição
precocemente interpretativa sobre as relações afetivas-psico-musicais, isto é, a
afetação musical na vida psíquica e como se relacionam teórica e clinicamente.
Finalmente, o terceiro, quarto e quinto capítulos (Casos Clínicos)
apresentam ao leitor as três vinhetas clínicas essenciais na formulação dessa tese,
bem como sua articulação com o referencial teórico psicanalítico, estritamente
freudiano, no que se refere às especificidades desses pacientes com suas
evocações e usos musicais. Os capítulos exemplificam como as sonoridades
musicais, de cada um deles, contribuíram para o curso da própria análise. Aqui, as
elaborações interpretativas serão compostas de maneira um pouco mais
amadurecidas; além de Freud, alguns de seus discípulos se farão presentes como
agentes colaboradores da ideia central que sustenta a configuração de cada
paciente.
6
Heinz KOHUT (1913-1981) Criador da Escola chamada Psicologia do Self. ―Outro judeu vienense
apresentado como psiquiatra e psicanalista americano no Dicionário de Psicanálise de Elizabeth
ROUDINESCO e Michel PLON. No verbete dedicado a KOHUT, ficamos sabendo que ele nasceu em
Viena, em 1913, em uma família muito cultivada, amante da boa música, mas pouco empática em
relação ao pequeno Heinz, que vivia e tristonho. Sessenta e oito anos mais tarde, ele morreu em
Chicago, cercado de fama e muitos seguidores, chefe de uma importante escola da psicanálise
contemporânea. [―Acerca de Heinz Kohut‖, aula de Luís Claudio Figueiredo, 5 de setembro de
2001/PUC-SP].
20
CAPÍTULO I.
IDENTIFICAÇÃO, GOSTO MUSICAL E CULTURA DE MASSA
Estou ciente que o título que escolho para esse capítulo me lança para uma
quase armadilha. Não apenas o título em si, evidente, mas as considerações a
respeito de cada um desses três aspectos enunciados: a identificação, o gosto e
cultura de massa. Sem dúvida, cada um deles por si daria uma tese. O gosto
englobaria, de imediato, questões ligadas à filosofia, à antropologia filosófica;
identificação e parte do que se refere à cultura de massas, estão intimamente
ligadas à psicanálise; finalmente a cultura de massa, falando de modo stricto sensu,
aparece ligada à sociologia contemporânea.
Mesmo assim, não pude evitar a tentação de transitar rapidamente (talvez
mais detido apenas na psicanálise, que é meu campo de maior familiaridade)
pelos três aspectos, uma vez que, creio, apresentam elementos suficientes para
―arriscar‖ esse sobrevoo com a intenção primeira de criar considerações mais
pertinentes que se seguirão nos casos clínicos apresentados.
A sica exerce um papel importante nas relações interpessoais em vários
níveis. Possui também a função de estabelecer, estreitar e manter laços sociais,
formando grupos. Quando se trata de referenciar o grupo, é certo que o campo das
massas não pode ser ignorado. Porém, trata-se de olharmos para o sujeito que
ajuda a constituir esse grupo e que também o constitui por sua vez. Afinal, um
movimento se inicia quando alguém tem o mesmo motivo que outrem para se
juntar numa causa. Assim, estabelecidas as relações interpessoais, o processo de
identificação se instaura. Nesse sentido, este capítulo pretende percorrer um
caminho que culmine na ideia de que possa haver uma espécie de identificação que
passe pela esfera musical. Antes, então, uma digressão.
O desenvolvimento da indústria fonográfica e cultural talvez seja um
elemento importante a considerar, pois pode ser um dos responsáveis na
determinação desses fenômenos (de escolha, prazer, gosto). uma demarcação
cultural muito intensa nessa esfera. Tal diversidade e massificação da divulgação e,
consequentemente, a atual presença acentuada da música na mídia hoje, possuem
21
reflexos desde as primeiras décadas do século XX
7
da incorporação da música-
ambiente iniciada e sistematizada por Muzak.
8
Desde então a música foi
acrescentada a quase tudo. (LUIZ, 2005)
1.1 Gosto ou escolha?
Quando crianças, éramos presenteados em dias festivos, no próprio
aniversário, Natal, Páscoa, Dia das Crianças e em todas as outras possíveis datas,
independentemente da cultura e da religião às quais fossemos ligados; presentes
escolhidos primeiro por nossos pais (ou quem os representasse) e depois pela
sociedade, parentes, amigos. Fato é que escolher algo o que quer que seja
se torna realidade para muitos de nós após algum tempo. Por mais liberdade que as
crianças tenham, nos tempos atuais ou outrora, com alguns pais de vanguarda, a
escolha é algo que só pode ser vivenciada realmente mais tarde.
Evidentemente, aqui uma tênue diferença entre a escolha e o gosto. Por
exemplo, uma menina que gosta de azul, se veste de azul e tudo bem. Isso é gosto.
Até que, na escola, as outras garotas dizem a ela que azul é ―cor de menino‖; e que
meninas usam a cor rosa. Dependendo da constituição psíquica dessa menina, ela
pode passar a usar rosa e nunca mais olhar para o azul que antes gostava, ou
então, ficar satisfeita com o azul que gosta. Isto é escolha. Ou ainda, seria o caso do
menino que não gosta de usar um chapéu, mas que ouve uma ameaça de sua mãe:
―ou usa, ou fica sem sobremesa, ou de castigo‖. O menino escolhe usar o chapéu,
mas não em função de um possível gosto adquirido instantaneamente pela peça em
questão, mas sim pela escolha de não ficar sem a sobremesa ou no castigo. Este
menino poderá escolher não usar mais a peça, mais tarde. Em outra fase de sua
vida, quando não estiver mais sob o controle de sua mãe, provavelmente sua
escolha dependerá muito mais de sua própria opção, portanto atrelada a seu gosto.
7
Quando a gravação elétrica substituiu a mecânica em meados de 1925, também o rádio tornou-se
tecnicamente suficiente para manter uma programação em tempo integral, ―balizando ao ouvinte sua
orientação espaço-temporal e, companheiro de todas as horas‖, expurgando os efeitos do silêncio.
Com o rádio incorporado à vida cotidiana, a música era vendida como entretenimento para ser ouvida
e não escutada, ―propagandeada como solução de conforto e bem estar mental‖ (Cf. CASTRO, 2002,
pp. 19-20).
8
Criada para vender música por telefone em 1922, a partir da década de 1940, a empresa
desenvolveu programas específicos de música ambiente‖, mais tarde recebida por arquitetos
entusiasmados, pela possibilidade de ―mascarar‖ os sons ambientais, como um tipo de perfume
acústico (ATTALI, apud CASTRO, 2002, p. 20).
22
Segundo Houaiss (2001), escolha é a manifestação da preferência por
alguém ou algo; significa fazer opção entre duas ou mais coisas; selecionar, separar
o bom do ruim; aproveitar (aquilo) que apresenta maior qualidade, marcar, assinalar.
Por sua vez, gosto é o prazer; refere-se a uma preferência subjetiva, estilo, maneira.
Insisto no quão tênue essa ―mistura‖ pode parecer: faço uma escolha porque
gosto, ou gostei e por essa razão escolhi? Ou ainda, por que gostei? Por que
escolhi?
A respeito de tal temática, um interessante ensaio sobre ―O gosto‖ de
Montesquieu,
9
originalmente pensado para a Enclycopédie (1753), ―o livro máximo
do Iluminismo‖. O livro/verbete faz uma descrição do gosto, não apenas para sua
época, mas para a atualidade. Tomando o prazer como tema central do ensaio sobre
o gosto, o filósofo escreve ainda sobre como estimular, manter, conseguir um gosto.
O gosto em sentindo abrangente é a capacidade de discernir características
ou qualidades de objetos e fenômenos; outro modo de ter gosto é a
possibilidade de analisar, dividir um objeto em suas partes componentes
ou de sinteticamente, num grande bloco conceitual, em operação
exatamente contrária à da análise, intuir ou perceber a composição precisa
de um objeto. Mais especificamente, gosto é a vantagem de descobrir com
sutileza e presteza a medida do prazer que cada coisa deve dar aos
homens. (MONTESQUIEU, 2005, pp.93-94)
Uma importante pergunta se fixa na ideia de que esse gosto é adquirido.
Uma vez experimentado pode ganhar espaço na escala de prazer de cada pessoa.
Montesquieu dará, ainda no livro, uma definição mais abrangente sobre o gosto:
como aquilo que, independentemente de ser bom ou mau, correto ou o, liga as
pessoas a uma coisa pelo sentimento...‖ (MONTESQUIEU, 2005, p. 94).
Para o autor francês é preciso diferenciar gosto natural e gosto adquirido. O
Natural é uma aplicação imediata e requintada de regras que não são conhecidas.
Em suma, bastaria o ato de surpreender-se com algo. o adquirido pode ser
desenvolvido por meio do exercício da multiplicação e do conhecimento. E este afeta
e altera o gosto natural, podendo intensificá-lo ou reduzi-lo. O contrário também
poderia acontecer.
9
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O gosto. Trad. e posfácio de Teixeira Coelho.
São Paulo: Iluminuras, 2005.
23
Em seu posfácio, Coelho (2005), tradutor do ensaio montesquiano, aborda,
também, outras questões centrais, porém implícitas no texto de Montesquieu: ―o que
é necessário para ‗ter gosto‘? Gosto se adquire, o gosto pode ser alterado, o gosto
pode alterar alguma coisa, alterar o ser, o modo de ser?‖ (COELHO, p.101)
As questões equacionam então a relevância do gosto e aqui, portanto,
pensaremos no gosto e na escolha como sinônimos um do outro para não
adentrarmos em terrenos etimológicos mais densos.
Escolho o brinquedo que eu quero ganhar, o lugar aonde quero ir. No
entanto, pensemos mais detidamente: por que eu escolho o brinquedo ―x‖?
Resposta óbvia e direta: porque ele existe, foi fabricado. posso optar por ele
porque está. Mas não apenas isso. O tal brinquedo pode existir na Malásia e
nunca ter sido visto/pensado por mim; mas se ele existe e eu tive acesso a essa
informação, posso escolher se gosto ou não gosto dele. Esse ponto é importante
quando se fala da referência, acesso à informação e formação do sujeito por meio
dessas referências. É o caso, por exemplo, do garoto de periferia que, por acaso, é
apresentado à música erudita e passa a admirá-la. Se não tivesse essa informação e
ficasse restrito a outro estilo musical, seu gosto seguiria por outros caminhos.
Curiosamente, na verdade, essa tal escolha está atrelada inevitavelmente a
alguma influência, interna ou externa. Explico: depende do fator de sua referência
anterior. É como se eu dissesse: como posso escolher a cor verde se ela não
existe? Então, primeiro a cor é inventada, eu a observo e, de acordo com o que eu
conhecia sobre a cor vermelha ou cinza, posso comparar e me posicionar; ou seja,
escolher a cor que melhor ou que mais me atrai. Portanto, uma escolha depende de
uma criação primeira. Não nos esqueçamos, no entanto, que, por mais criativo que
seja o ―misturador‖ de cores, criando 200 novas tonalidades para eu decidir se gosto
ou não, essa escolha é minha, passa por minhas referências sobre o que é bom ou
ruim; belo ou feio. Parece contraditório ou até meio esdrúxulo: escolho porque
existe; mas minhas referências anteriores me motivam a escolher ou não o ―novo‖,
ou seja, preciso do ―velho‖, do anterior, para compor o que se seguirá. Em suma,
cada um tem seu próprio filtro e é por ele que a ―tal cor‖ vai passar, ou ainda de
maneira análoga é como uma música será escutada.
É sabido que padrões de beleza acrescente se aqui o gosto que se
modificam de tempos em tempos influenciando o posicionamento das pessoas
24
diante de tais padrões. Vide a moda, por exemplo. Compare os trajes de banho dos
anos 1920 aos da década de 1990. -se explicitamente que modelos sócio-
culturais, valores éticos e morais foram alterados e ganharam novos padrões,
facilmente explicados pela sociologia, antropologia e economia de qualquer nação.
Com a música, que é o objeto desta tese, não é muito diferente.
Algumas perguntas nos bombardeiam, quando o assunto é o nosso
simbólico filtro: qual a necessidade de programas de rádio, redes de TV e outras
mídias transmitindo, em suas ondas ou canais, a mesma música inúmeras vezes
num mesmo dia? O que faz uma sica qualquer, independente de sua qualidade
sonora (escalas, arranjos, harmonias), ganhar status de hit do momento‖ e
transformar, numa questão de meses ou dias, sem exagero, seu intérprete em ícone
nacional? Por que um mesmo sujeito pode transitar numa rede emaranhada e
eclética de sons e estilos (há quem goste de Rock and Roll, Tango, Música Erudita,
Samba ao mesmo tempo) enquanto outros não suportam ouvir nada além daquilo
que elegeram como o essencial, único, principal?
São questões ao mesmo tempo intrigantes e instigantes. Intrigam, pois à
primeira vista poderia parecer óbvio que um garoto da periferia da cidade de São
Paulo estivesse encantado com os ritmos que o circundam (Rap, Hip-Hop, Funk),
porém não é raro encontrar numa dessas zonas periféricas um menino, uma menina,
encantados pelo som que um violino produz, estudando o instrumento numa
comunidade assistencial, por exemplo. Notem-se, também, os ―movimentos‖ de
cultura erudita ou do Samba de Raiz‖ nas escolas públicas ou privadas. Mas, afinal,
por que esses adolescentes gostam (ou não) do que ouvem quando lhes é
apresentado? Seria uma determinação da formação cultural de cada sujeito?
10
Não me parece, grosso modo, que tal distinção se deva às evidentes
configurações econômicas. Veem-se jovens ricos e humildes transitando num rodeio
no interior do Estado de São Paulo (regado à Música Sertaneja), numa ―balada‖
noturna na cidade do Rio de Janeiro (regada à Música Eletrônica). A escolha musical
pode, então, estar relacionada com o grupo ao qual esse sujeito pertence ou ao qual
quer pertence ou à faixa etária deste; logo, não poderia ser essa a condição mais
10
Nesse caso o violino pode representar também a possibilidade de ―escapar‖ de sua realidade tanto
concreta como metaforicamente.
25
ou menos abastada que produziria ou provocaria certos prazeres na escuta
musical, não só dos adolescentes, evidentemente.
11
Daí o efeito instigante.
Assim, faz-se necessário apresentar, em seguida, um rápido panorama que
aponta para os efeitos externos da escolha (sociedade, massificação, manipulações,
etc.) e desse modo culminar no aspecto mais relevante a ser explorado nesta tese,
qual seja, a afetação musical na vida psíquica de cada sujeito ao estabelecer com a
sonoridade musical uma relação singular e íntima.
1.1.1 Cultura de Massa
O leitor também amante de música talvez (não) tenha se perguntado, séria e
detidamente: o que faz uma banda ou um cantor(a) vender um, dois ou três milhões
de cópias?
Estamos imersos numa ―cultura musical‖, expostos aos diferentes gêneros,
intérpretes, etc. uma explosão de novos cantores, grupos, bandas, conjuntos
(somando-se a todos os já estabelecidos) que são lançados por este mercado
fonográfico como novidades a serem escutadas. O fácil acesso à música, como é
possível verificar na gama de possibilidades no dial dos aparelhos de som,
provavelmente intensifica o gosto das pessoas (alicerçado na infância) pela música
(consumo), em geral, e por alguma particularidade presente nas gravações.
12
Não resta dúvida de que, para muitos, a música é entendida apenas como
uma forma de lazer, de diversão, entretenimento. Evidentemente, não seria essa a
única razão que explica o porquê das afeições musicais de cada sujeito. que se
relevar, portanto, a ação da Indústria Cultural.
13
O tão em voga e polêmico ―jabá‖,
11
O que então pode provocar? As influências externas, uma condição interior de sua organização
psíquica? Aqui, evidentemente, começamos a nos defrontar com a discussão sobre aspectos
psicológicos dessa constituição, sobre os quais mais detalhes serão apresentados no capítulo
seguinte.
12
ainda as redes sociais de troca de arquivos musicais, que legal ou ilegalmente fomentam mais
ainda esse mercado (myspace, youtube, facebook, orkut, são os exemplos apenas dos mais
populares).
13
Termo originalmente cunhado pelo filósofo alemão Theodor ADORNO (1903 1969).
26
explicaria parte desse tipo de configuração.
14
Aliás, à guisa de ilustração a prática do
jabá foi relatada por André Midani (2008)
15
de maneira esclarecedora:
Quando a música se tornou o fator preponderante, e não mais o artista, o
público passou a adotar uma nova postura: ‗Por que comprar o CD se eu
gosto somente de uma música? Vou esperar tocar outra música no rádio e,
se gostar, decido...‘ Portanto, para convencer o público, a indústria se
defrontou com a necessidade de estourar no rádio uma primeira música,
uma segunda e, às vezes, uma terceira, até o público comprar o CD. A
canção, e não mais o disco inteiro, tinha que ter começo, meio e fim, e se
transformar num ‗jingle da vida‘ durante os três minutos de sua existência...
Todas as estações de rádio foram obrigadas a tocar a mesma música, ‗a
música de trabalho‘, e o preço do jabá foi à estratosfera. (MIDANI, 2008, p.
218)
Segundo Adorno (2002), a Indústria Cultural transforma tudo em
negócio e exerce um papel específico, qual seja, o de portadora da ideologia
dominante. A Indústria Cultural, que tem como guia a racionalidade técnica
esclarecida, prepara as mentes para um ―esquematismo‖, que aparece para os seus
usuários como um ―conselho de quem entende‖. O consumidor é o bem
manipulado que não tem o trabalho de pensar, é só escolher. É o que Adorno chama
de ―a lógica do clichê‖: esquemas prontos que podem ser empregados
indiscriminadamente, tendo como única condição a aplicação ao fim a que se
destinam.
Merton e Lazarsfeld (1969) analisaram o efeito da massificação sobre o
gosto estético do blico: ―tem-se afirmado que à medida que a assistência
aumenta, o nível do gosto estético decai. É a deterioração do gosto estético e dos
padrões culturais‖. Acreditam, ainda, que houve sim, com o advento da massificação
da cultura, um maior acesso à arte pela população, mas não acompanhado do
refinamento do gosto pela arte, refinamento cultural (MERTON e LAZARSFELD,
1969, p.111). Note-se que o pensamento dos autores ainda parece bastante atual. É
fato, e não nos enganemos que a presença da música no dia-a-dia das pessoas não
é nem um pouco superficial, esteja ela presente ―ao fundo‖ ou como a atração
principal. Isso, também, como enunciado, se deve ao desenvolvimento da
14
Na verdade, corruptela de ―jabaculê‖, que no jargão brasileiro significa a ―caixinha‖ paga por
gravadoras, músicos e compositores para que os disk-jockeys executem as músicas nas rádios.
(Dicionário de termos e expressões da música, p.171)
15
Ícone da indústria do disco, Midani atuou por mais de 50 anos como executivo em companhias
como a EMI-Odeon, Phonogram e Warner Music.
27
indústria fonográfica e cultural. uma demarcação cultural muito intensa nessa
esfera. A pergunta é: trata-se de uma escolha pessoal ou de uma imposição
mercadológica? Volto à questão do início deste capítulo: o que faz uma banda ou
um cantor(a) vender um, dois ou três milhões de cópias? Reisman (1957) comenta
que, no campo da música popular, o domínio dos ―popularizadores‖ parece modelar
o gosto popular e eliminar a livre escolha. ―Não obstante, não me parece haver
maneira de explicar as grandes oscilações do gosto musical. Sempre minorias
que gostam de coisas menos populares‖. (REISMAN, 1957, p. 471)
Segundo Delalande (2007) a revolução musical do século XX nasceu da
possibilidade de se fixarem os sons para reescu-los, a partir da criação dos
instrumentos de escuta. Daí em diante, a relação entre o homem e a música
mudou.
16
Valente (2007) completa o raciocínio, afirmando que houve um processo
de popularização/massificação da música. O que era erudito passou a ser de acesso
popular. Obras que foram concebidas para serem escutadas e apreciadas, hoje
passam despercebidas no som ambiente dos consultórios. E até mesmo trechos de
grandes sinfonias são encontrados nos toques de celulares.
17
Então vou inverter a ordem, ou melhor, o sentido da pergunta enunciada
anteriormente: o que faz um sujeito comprar, por exemplo, o CD de determinado
artista e ainda, por vezes, cultuá-lo? A resposta poderia ser: ―porque ele
gosta/gostou, achou interessante‖, mas minha questão seria ainda mais focal: ―por
que, então, se interessou e escolheu?‖ Reconheço que seria pretensioso responder
com precisão tamanha especificidade, porém creio que alguns elementos da
constituição psíquica de um sujeito podem colaborar nessa compreensão. A escolha
está baseada obviamente em algo pré-existente.
É fato que o gosto musical pode mudar com o tempo, dependendo das
influências que se recebe e daquilo que está ou não disponível para ser ouvido. Os
Beatles devem ter sido idolatrados e esquecidos ou terem perdido a importância
para uma mesma pessoa. Uma noção semelhante vale para os grandes cantores
das décadas de 1920 e 1930 no Brasil. Com a velocidade que a Indústria Cultural
16
(―De uma Tecnologia a outra: cinco aspectos de uma mutação da música e suas consequências
estéticas, sociais e pedagógicas‖, in Música e Mídia, novas abordagens sobre a canção, p.57),
17
Heloisa de Araujo Duarte VALENTE, organizadora do livro citado na nota anterior. ―Canção
Artística, canção popular, canção das mídias: movência e nomadismo‖, in: Música e Mídia, novas
abordagens sobre a canção, 2007, pp. 87-91.
28
produz novos hits e ídolos, essa rotatividade é cada dia mais rápida. O cantor que foi
sucesso na semana passada com uma música sua na novela que se destaca no
momento, por exemplo, nem será mais lembrado quando do término da novela. A
banda paulistana Titãs, apenas para citar outro exemplo, traz num verso de uma de
suas músicas um resumo interessante da questão que se apresenta. Eles cantam:
―A melhor banda de todos os tempos da última semana‖.
18
Outra questão é: o sujeito se identifica com movimentos musicais e
referências de sua época, com o que lhe é contemporâneo? Então, o que dizer
daquele que se ―transporta‖ para outros tempos que, mesmo não vividos, o remetem
a sensações quase sempre agradáveis, de ―velhas‖ novidades a serem
experimentadas? Isso faz pensar no paradoxo de ter saudades do nunca vivido.
Idade, nível cultural, sócio econômico, indubitavelmente, são variáveis
importantes a serem consideradas, quando se trata de escolher o que ouvir, a que
show assistir, a que artista se devotar (cultura de massas). Mas não é só isso. Quem
é o sujeito (psicologicamente falando) que consegue se desprender dessa
massificação e descobre ou assume mais rapidamente a ―personalidade‖ do seu
gosto musical?
1.1.2 Massa em Freud
Em seu ensaio, ―Psicologia das massas e análise do eu‖ (1921), Freud
percorre um caminho interessante para apresentar a importância que a massa
exerce sobre um sujeito. Creio que a função do texto freudiano, aqui, é pontual e se
propõe a criar uma ponte que culminará nos aspectos mais psicológicos (abordados
no capítulo subsequente), apresentando antes de tomar a identificação como
principal elemento conceitual os caminhos percorridos por ele para explicar o
funcionamento das ações coletivas para determinados fins.
Quando da primeira leitura do texto, logo somos provocados a criar
analogias óbvias (inclusive com os próprios exemplos freudianos) com a ação de
massas populares, fanáticos torcedores por times de futebol, manifestações
políticas, passeatas, reivindicações e toda a gama de cultos e encontros religiosos.
18
Gravada no CD de mesmo título em 2001 (Abril Music). (Cf. CD anexo, faixa nº 17)
29
Seja ela pacífica ou agressiva, a figura da massa ganha uma importância
fundamental na representação que um sujeito faz de si mesmo. Com isso, cria-se
uma possibilidade real para entender o funcionamento individual. Em tal
funcionamento, a vida mental, invariavelmente, está constituída por outras pessoas
envolvidas, apresentando-se como objeto, modelo, auxílio ou oponente.
A partir da escrita freudiana, denota-se logo essa possível relação. Freud
sabe da preocupação da psicologia individual, que esta estuda os caminhos pelos
quais se busca alcançar a satisfação dos impulsos pulsionais e que possui um olhar
para a singularidade do sujeito. Porém, não é possível desprezar a relação desse
sujeito com o grupo que o cerca.
Quando Freud se propôs a escrever sobre o tema, a psicologia das massas
encontrava-se em seus primórdios de elaborações teóricas, contudo, não obstante,
apresentava um número expressivo de problematizações específicas a serem
conceituadas. Assim, ele tomou o livro Psychologie dês foules, (1895), de Le Bon,
como um guia para sua jornada na compreensão do funcionamento psíquico da
massa, dedicando um capítulo apenas para o autor francês, elegendo-o para
interlocução. Na verdade o que ele faz é uma apresentação e construção minuciosa
das ideias exibidas por Le Bon. Todavia, ao investigar essa seara, Freud avança
muito para outras direções que não apenas as apontadas por Le Bon, e, com isso
acaba construindo sua específica psicologia das massas, na qual a análise do eu é
peça fundamental nessa organização que se dá quando o ―estar com o outro‖
destitui o sujeito do seu lugar singuralizado.
Freud afirma que toda a relação que um sujeito estabelece com o outro,
seus pais, irmãos, parentes, amigos, se caracterizaria por si como fenômenos
sociais passíveis de serem observados como uma pequena massa. Nesse sentido,
os caminhos individuais tendem a ser ignorados e busca-se indagar como o sujeito
fica influenciado por um grande número de pessoas simultaneamente. Pessoas com
quem haja algum tipo de ligação, mas nem sempre com a garantia de que em todos
os aspectos sejam parecidos. Daí um pouco a ideia de que pessoas completamente
diferentes podem gostar do mesmo cantor(a) por razões semelhantes. Pois da
mesma forma que a música provoca sensações e sentimentos diversos em pessoas
diferentes, o mesmo sujeito pode reagir de muitas maneiras à mesma música em
momentos distintos.
30
―A psicologia das massas trata o sujeito como membro de uma casta, de
uma instituição, de uma nação, de uma multidão de pessoas que se organizaram em
grupo durante certo período e para um determinado fim.‖ (FREUD, 1921, p. 68).
Assim, para a vida psíquica de um sujeito, o outro conta como modelo, como objeto,
como auxiliar em suas tomadas de decisão, atuação e escolhas. Esse mesmo
sujeito sente, pensa, age de modo inteiramente diferente do esperado quando se
encontra sob determinada condição, qual seja: a sua inclusão num grupo de
pessoas que lhe apresenta uma característica da massa psicológica. Então Freud
pergunta: o que é, então, a massa? Como adquire a capacidade de influenciar
decisivamente a vida psíquica do sujeito? E no que consiste a alteração psíquica
imposta a ele (sujeito)?
Para resumir, Freud diz que a massa psicológica ganha especificidade à
medida que cada membro que forma esse grupo deixa de pensar e desejar
individualmente para, na massa, criar uma inédita maneira de pensar e agir e,
quando juntos, formam características diferentes daquelas originais. Há ideias e
sentimentos que o se tornam atos a não ser que encontrem na massa que as
recebe, um lugar para manifestar-se.
Se os sujeitos na massa estão ligados a algo, deve haver algum fator que os
una. Esse meio de união é característico da massa. Por isso é fácil verificar a grande
diferença que há entre um sujeito pertencente à massa e um isolado; difícil é
descobrir as causas da diferença. Por essa razão, o resultado mais importante e que
mais chama a atenção na formação das massas é a exaltação ou intensificação da
emoção produzida em cada um de seus membros.
Os fenômenos inconscientes desempenham papel inteiramente
preponderante, não apenas na vida orgânica, mas também no
funcionamento cognitivo. A vida consciente da mente é de pequena
importância, em comparação com sua vida inconsciente. O analista mais
sutil, o observador mais atento, dificilmente obtêm êxito em descobrir mais
do que um número muito pequeno dos motivos conscientes/inconscientes
que determinam sua conduta. Nossos atos conscientes são o produto de um
substrato inconsciente criado na mente, principalmente por influências
hereditárias. Esse substrato consiste nas inumeráveis características
comuns, transmitidas de geração a geração, que constituem a alma de uma
raça. Atrás das causas confessadas de nossos atos estão sem dúvida as
causas secretas que não confessamos e, atrás dessas causas secretas
existem outras, mais secretas ainda, desconhecidas por nós próprios. A
maioria de nossas ações cotidianas resultam de motivos ocultos que fogem
à nossa observação (LE BON apud FREUD, 1921, p. 70)
31
Quando na massa o sujeito perde suas aquisições singulares e sua
peculiaridade, perde também, por exemplo, seu sentido de responsabilidade,
podendo vir à tona o sentimento de invencibilidade, facilmente entendido quando
observamos uma torcida esportiva e suas inflamações. E também quando o sujeito
que em seu ídolo, um líder capaz de, por exemplo, durante um show, promover
certa catarse coletiva em seus s. Aqui são observados os fenômenos
inconscientes determinando as ações de cada sujeito.
Citando McDougall [―The group Mind‖, 1920], Freud revela que o fenômeno
mais notável e ao mesmo tempo importante da formação de uma massa é a
intensidade da emoção que provoca em cada um de seus membros. Na massa as
emoções dos homens são excitadas até um ponto que elas raramente, ou nunca,
atingiriam sob outras condições. Tudo isso constitui experiência agradável para os
interessados em entregar-se tão irrestritamente às suas paixões e, assim, fundirem-
se na massa e perderem o senso dos limites de sua individualidade. A maneira pela
qual os sujeitos são assim arrastados por um impulso comum é explicada por
McDougall pelo que chama de ―princípio da indução direta da emoção por via da
resposta primitiva da simpatia‖ (FREUD, 1921, p. 80). O que quer dizer que o
contágio sentimental se por algo que previamente conhecemos e estamos
familiarizados. Ou seja, a percepção dos signos de um estado emocional provoca
automaticamente a mesma emoção na pessoa que os percebe.
Quanto maior for o mero de pessoas em que a mesma emoção possa ser
simultaneamente observada, mais intensamente cresce essa compulsão automática.
O sujeito perde seu poder de crítica e deixa-se deslizar para a mesma emoção. Mas,
ao assim proceder, aumenta a excitação das outras pessoas que produziram esse
resultado nele e, assim, a carga afetiva dos sujeitos se intensifica por indução
recíproca. ―É, portanto, inegável que algo da natureza de uma compulsão a fazer o
mesmo que os outros, permaneça em harmonia com a maioria. Quanto mais
grosseiros e simples são os impulsos emocionais, mais probabilidades de difundir-se
em uma massa‖. (MCDOUGALL,The Group Mind, 1920, p. 39, apud FREUD,1921,
p.80).
A massa impressiona como sendo um poder ilimitado e um perigo
insuperável. Momentaneamente, ela substitui toda a sociedade humana, que é a
32
detentora da autoridade, cujos castigos o sujeito teme e em cujo benefício se
submeteu a tantas inibições.
Posto que McDougall se opõe à conduta das massas altamente organizadas
(descritas até esse ponto), Freud propõe uma análise dos fatores que produzem
essa massa e cita as cinco condições principais para elevar a vida psíquica da
massa a níveis mais complexos. São elas: 1) que deva haver um grau de
continuidade e persistência da massa; 2) que deva se formar no membro individual
do grupo uma determinada representação acerca da natureza, composição, funções
e capacidades da massa; 3) que a massa deva ser colocada em posição de
interação com outras massas, seja pela amizade ou rivalidade; 4) que a massa
possua tradições, hábitos e costumes; 5) que dentro da massa haja estrutura
definida, expressa na especialização e diferenciação das funções de seus membros.
De acordo com McDougall, quando tais condições são satisfeitas, afastam-
se as desvantagens psicológicas das formações de massa. E uma maneira de
proteger a capacidade intelectual da massa é subtraindo-se dela o desempenho das
tarefas intelectuais e reservando-as para alguns de seus membros. (FREUD, 1921,
p.82)
Na parte do texto dedicada à ―sugestão e libido‖, Freud entende a sugestão
como fenômeno primitivo irredutível, um fato fundamental na vida do homem. Uma
tentativa de utilizar o conceito de libido é apresentada a fim de esclarecer a
psicologia das massas. A libido é uma expressão oriunda da teoria das emoções.
Freud esse nome à energia encarada como uma magnitude quantitativa das
pulsões relacionadas a tudo que se acha compreendido sob a palavra amor. A
psicanálise a estas pulsões de amor o nome de pulsões sexuais. Supõe-se que
as relações amorosas também constituem a essência da mente coletiva. A massa
evidentemente se mantém coesa por uma força de alguma espécie. Freud a atribui à
força amorosa de Eros (Platão). Se um sujeito abandona sua distinção na massa e
permite que os outros membros influenciem-no pela sugestão, -nos a impressão
de que o faz porque necessita harmonizar-se com eles ao invés de opor-se a eles.
Aproximando-se do fechamento e, fundamentalmente, da parte que mais
nos interessa em seu ensaio, Freud escreve especificamente sobre a questão da
identificação (1921, parte 7, pp. 99-104). O que ele queria entender era o que
provoca uma pessoa a entrar na massa e seguir seu líder sem questioná-lo; ter
33
atitudes que solitariamente não teria. Além, é claro, de pensar sobre o mecanismo
psíquico que leva um sujeito a agir assim. Foi tomado dessa vida que ele
começou a investigar as relações pai-filho e pôde perceber um mecanismo de
identificação entre eles.
Freud toma, em princípio, a identificação como a mais remota exteriorização
de uma ligação afetiva com outra pessoa. Seu papel na pré-história edípica é
manifestado pelo interesse do menino por seu pai e a vontade de ser como ele em
todas as instâncias, tomando-o como seu ideal.
Identificar-se é tomar uma pessoa como seu ideal. É um mecanismo do eu,
o qual estabelece laços emocionais entre duas pessoas e tem um papel importante
no complexo de Édipo. Tomando o menino como exemplo, pode-se perceber que
ele se interessa de forma especial pelo pai, quer ser como ele, ou seja, se identifica
com o pai com o intuito de ―conquistar‖ sua mãe que é seu objeto sexual. Entretanto,
para ter seu objeto de desejo a mãe ele percebe a interferência paterna. Ao
mesmo tempo em que toma o pai como modelo ou ideal, quer e precisa afastá-lo. A
identificação é assim, um mecanismo egoico ambivalente desde o início. Esse modo
de expressão nos mostra que é um mecanismo derivado da fase oral do
desenvolvimento emocional, no qual obter aquilo que almejamos, significa devorá-lo.
Freud considera que a criança, independentemente do seu sexo, tem como
primeiro objeto de amor a mãe, à qual devota intenso apego, caracterizando essa
fase como pré-edípica, sendo o pai apenas um rival inoportuno. A fase edípica
propriamente dita teria início na fase fálica, cobrindo o período dos três aos cinco
anos de idade, com o aparecimento dos primeiros impulsos genitais, quando a
menina tomaria o pai como objeto de amor, tornando-se então a mãe sua nova
rival.
19
Este é o modelo geral, mas podem acontecer modificações, por exemplo, a
identificação com o pai, leva o menino a desejá-lo como objeto sexual. O pai passa,
assim, da pessoa que o menino queria ser para ser a pessoa que ele quer ter.
Freud vai mostrar, nesse trecho do texto, como a identificação pode
encontrar sua expressão em um sintoma neurótico. É o caso da pessoa se identificar
19
Cf. parte final do Caso Helena, p. 166; ver também apêndice 3.
34
com uma parte sofredora do outro. Vemos aqui a identificação com apenas uma
parte do sujeito, ou seja, é uma identificação parcial e limitada.
A identificação é uma forma primitiva de constituição dos laços emocionais,
derivada inclusive da fase oral, como mencionado. Por essa razão, em um
momento de dificuldade emocional, os mecanismos de defesa entram em jogo e
regredimos para modelos mais primitivos de relacionamento. Assim, a escolha do
objeto pode retroagir para a identificação.
Ainda temos a identificação que não é com o sujeito modelo e nem com o
objeto sexual, mas sim com a situação, neste caso a identificação se dá por imitação
ou por infecção como escreve Freud. Este modo de expressão ocorre quando a
pessoa gostaria de vivenciar a mesma situação que a outra está vivendo.
20
Ao estudar as massas, Freud suspeita que o vínculo que se entre esses
membros do grupo é de natureza identificatória. A qualidade de líder oferece aos
outros membros um aspecto importante para a identificação se apoiar. O estudo da
identificação nos leva a questionar também sobre a empatia, problema que Freud
deixa de lado, por ora.
Sobre a formação das identificações entre os semelhantes é preciso
ressaltar que é a impossibilidade de possuir o objeto amado e de eliminar
indefinidamente os companheiros, sem prejuízo próprio, que faz com que a
rivalidade entre os companheiros transforme-se em identificação. Todos se unem
por meio do objeto comum, que, como não pode ser possuído passa a ser idealizado
e se transforma em ideal do eu de todos. Ou seja, como uma autoridade cujas
expectativas todos devem corresponder para serem igualmente amados.
A identificação foi estudada ainda nos casos de melancolia.
21
A pessoa sofre
pela perda do objeto, mas a análise desses casos nos mostra que ele foi introjetado
20
A publicidade muito sabiamente usa esse tipo de conhecimento para ―infectar‖ seus potencias
consumidores. E estes, como na época de Freud, se endividam para obter o objeto do desejo e
sofrem com esse endividamento, ao mesmo tempo em que gozam o prazer de ter aquele bem
precioso.
21
Sobre o processo de identificação em Freud, é bom o esquecer que ele reconhece e
estabelece várias formas de identificação parcial do Eu com os objetos. Quando o cito mencionando
que ―a sombra do objeto recai sobre o eu‖, essa frase refere-se a uma forma específica de
identificação: a identificação melancólica. Embora Freud tenha elaborado uma teoria geral da
identificação, a sua experiência clínica levou-o a compreendê-la em função das suas várias
modalidades específicas. É de suma importância levar em consideração esse aspecto, no que
concerne à análise dos casos clínicos que apresento.
35
no eu. É por essa razão que Freud, em Duelo y melancolia (Luto e Melancolia,
1917), escreve que a sombra do objeto caiu sobre o eu, frase repetida também
neste texto. O eu foi invadido e transborda o objeto, como se fosse possível fazer
uma imagem dessa identificação melancólica.
A repressão e o predomínio dos mecanismos do inconsciente sucedem
amiúde que a eleição de objeto volte à identificação. Ou seja, o eu toma sobre si as
propriedades do objeto. Com essas identificações, o eu pode reproduzir, tanto a
pessoa amada, quanto a não amada. Porém, a identificação é parcial, limitada em
grande parte, pois toma emprestado um único traço da pessoa objeto.
Querer se colocar na mesma situação é uma espécie de máxima do sujeito
identificado. É a sombra do objeto recaindo sobre o eu. Ou seja, uma evidência
inegável da introjeção do objeto. Freud cita como exemplo a gênese da
homossexualidade masculina, quando o menino (sempre considerando o complexo
de Édipo) fixa-se na mãe durante um tempo com intensidade não usual,
relativamente grande. Então, ao chegar à puberdade, é chegada a hora de trocar a
mãe por outro objeto sexual. Sobrevém, assim, uma volta repentina ao primeiro
objeto de amor e ele não o abandona; identifica-se com ele, transmuta-se nele e
busca objetos que o possam substituir. Alguém que ele possa amar e cuidar como
sua mãe o fez. Trata-se de uma maneira de lidar com o objeto perdido ou resignado,
identificando-se com ele.
A melancolia também nos mostra a divisão do eu: uma parte identificada
com o objeto e a outra muito agressiva com essa primeira, pela perda do objeto. Isso
é compreendido, nas análises, como se uma parte quisesse se vingar desse objeto:
por isso essa depreciação desse eu que agora está identificado com esse objeto, ou
seja, ele é o objeto.
Três anos antes, em Introducción del narcisismo (Narcisismo: um introdução,
1914), Freud tinha alertado para a questão do ‗ideal do eu‘ que é uma parte
importante que ficou como herança do narcisismo, ou seja, da época da ―sua
majestade, o bebê‖ e que pode nos ajudar na compreensão da psicologia das
massas.
Ainda que aqui eu redunde com a ideia, o texto freudiano é crucial para
entendermos, em parte, o funcionamento da massa da qual faço referência nesta
36
tese. Qual seja, a massa consumidora de música, de gêneros, de estilos, de
intérpretes... Trata-se da mesma massa que consome o show de Rock ou Pagode,
que compra os discos produzidos de sua banda/cantor(a) preferido(a), que usa
camisetas com dizeres das músicas compostas, que se comportam como seus
ídolos, que tatuam-se, enfim, devotam a eles um lugar muito especial e significativo
em suas vidas.
1.2 Semiótica, signo e novas formas de identificação
Para resumir a identificação no campo psicanalítico, comentários e
definições que se baseiam em Laplanche e Pontalis (1992) são de extrema utilidade.
Seu vocabulário revela: ação de identificar (ou seja, reconhecer como idêntico). O
termo identificação deve ser diferenciado de termos próximos, como incorporação,
introjeção e interiorização. Incorporação e introjeção são protótipos da identificação,
ou pelo menos de algumas modalidades em que o processo mental é vivido e
simbolizado como uma operação corporal (ingerir devorar, guardar dentro de si,
etc.). Entre identificação e interiorização a distinção é mais complexa porque põe em
jogo opções teóricas quanto à natureza daquilo a que o sujeito se assimila. De um
ponto de vista puramente conceitual, podemos dizer que a identificação se faz com
objetos pessoa ou característica de uma pessoa, objetos parciais enquanto a
interiorização é a de uma relação intersubjetiva.
Processo psicológico pelo qual um sujeito assimila um aspecto, uma
propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente,
segundo o modelo desse outro. A personalidade constitui-se e diferencia-se
por uma série de identificações. (LAPLANCHE e PONTALIS, 1992, pp.226-
230).
Uma breve passagem pelo campo da semiótica permite entender, de uma
maneira mais concreta, alguns outros aspectos da identificação e do gosto musical,
via a referência de cada sujeito. Vejamos:
A semiótica trata o signo verbal e não verbal. O signo é composto de
recortes culturais, experiências, vivências de cada ser. Ou seja, compõe-se de
significado e significante. Posto que a sócio-semiótica busca situar esse signo no
tempo, espaço, sociedade, cultura, economia e ambiente, temos um ponto de
37
partida na análise do gosto ou escolha musical. O sujeito é parte da formação,
vivência, ambiente, situação, informação, etc. Esse composto é o filtro para gostar
ou desgostar. É por meio dessas referências adquiridas durante sua vida que ele
formará seus padrões e valores. Isso, evidentemente, somado a quem ele é,
constitui de sua personalidade.
A pessoa se identifica com o que reconhece. Isso se dá por meio do
ambiente, das referências culturais e da soma se outros fatores intrínsecos. Cada
sujeito vai preferir, musicalmente, expressões que tenham um mínimo de afinidade
com seu referencial (consciente ou inconsciente).
Segundo Orlandi (1998),
22
nos identificamos com ideias, assuntos e
afirmações porque elas ―batem‖ com algo que temos em nós. Esse ―algo‖ é a
memória dos sentidos que foram se constituindo em nossa relação com a
linguagem, com a arte, ou com a música.
Serrani-Infante (1998) define identificação como a condição instauradora,
a um só tempo, de um elo social e de um elo com o objeto de desejo do sujeito. Isso,
tanto no plano da relação imaginária à qual correspondem às diversidades e
semelhanças entre uns e outros , quanto no plano da relação simbólica, que não é
dual, mas ternária, por conta da mediação significante. (SERRANI-INFANTE, 1998,
p.252)
A identificação pode ser com a obra, com o autor, com uma banda, com as
letras das músicas. Assim, entramos na semiótica vista pelo prisma das paixões.
Falar da paixão significa reduzir o hiato entre o ‗conhecer‘ e o ‗sentir‘. Greimas e
Fontanille (Sémiotique des Passions, 1991) abordam que a paixão não é apenas o
fruto do sentimento de quem se apaixona, mas também de uma manipulação do
objeto que se faz apaixonar.
Assim, transportando à questão do gosto musical, chegamos aos vários
tipos de manipulação/condução/sensibilização que o receptor receberá ao se
deparar com uma determinada música manipulação do compositor e de sua
mensagem, da indústria fonográfica que ―produz‖ artistas, ídolos e gêneros atrativos.
Os autores, artistas e músicos, têm, invariavelmente, a intenção de dar um recado,
de levar o receptor um ou mil a algum lugar, a alguma reflexão determinada. Ele
22
Identidade Linguística in: Língua(gem) e identidade, 1998, p.205.
38
cria a obra, dentro de suas referências e leituras, e a lança ao receptor(ores). Nesse
processo, a intenção da manipulação, seja ela encomendada por uma
determinada indústria cultural ou a manipulação do próprio autor. A obra em si, visa
de alguma forma, manipular (influenciar, tocar, sensibilizar, como queira) o receptor
expectador. E esta manipulação vem do autor/compositor da música, se modifica
no intérprete e chega ao receptor.
Contudo, essa manipulação vai depender do receptor e de suas referências
para acontecer. Umberto Eco defende no livro Obra Aberta (2005) que toda obra é
inacabada, até passar pelo ―filtro‖ do receptor. Ele coloca a obra no caso os textos,
das artes visuais e extrapolando à sica como uma quina preguiçosa que
necessita a todo o momento da cooperação dos leitores/receptores. (ECO, 2005, pp.
40-41)
A ideia de apropriação da obra/música pelo receptor confere a ele um papel
de agente do processo, com capacidade de diálogo, negociação e formulação de
sentido.
Lopes (2004), diz que é a presença do outro (receptor) que, em última
análise, molda o que dizemos, cantamos ou tocamos, etc. Segundo ele, nos
percebemos (como emissores de mensagens, discursos, canções) no processo de
nos tornarmos conscientes para o outro. Portanto, o que nós somos, nossas
identidades sociais, são constituídas de acordo com nossas práticas discursivas com
o outro. Lopes completa dizendo que essa visão de identidade, como construção
social, também implica o fato de que fomos criados da maneira que somos pelos
outros à nossa volta e pela maneira que reagimos a essa criação, o que leva a crer
que pessoas são produzidas por outras pessoas.
23
É possível pensar ainda na identificação do sujeito com o artista na mesma
linha da semiótica das paixões; pode-se considerar, também, a identificação nas
relações transferenciais, o mito, a idolatria, etc, que acabam regendo o gosto
musical.
O mito de Narciso, que se apaixona por sua imagem refletida, nos remete à
questão da identificação humana. ―O homem se fascina por qualquer extensão de si
23
Luiz Paulo da Moita LOPES. Discursos de identidade em sala de aula de leitura: a construção da
diferença, In Língua(gem) e identidade, pp. 306-308.
39
mesmo em qualquer material que não seja o dele‖. O conceito de ―ídolo‖ se
assemelha ao de Narciso, por se tratar da contemplação de algo ou alguém com que
nos identificamos ou que projetamos.
24
Quando considerado sob o vértice psicanalítico é necessário relacionar o
narcisismo com os processos identificatórios. E entender que esta é uma nova ação
psíquica necessária para saída do autoerotismo rumo à constituição de um eu que
tende a uma unidade do sujeito em contraponto à dispersão autoerótica.
Antes mesmo de realizar uma elaboração mais aprofundada sobre o tema
em seu texto de 1914, Freud propunha a existência de uma fase intermediária
entre o autoerotismo e o amor objetal: narcisismo. Constatou em pacientes
neuróticos que as patologias ditas narcísicas estavam ligadas a uma condição
anterior, desse modo, Freud viu no narcisismo um componente ligado ao
desenvolvimento libidinal. A instauração do narcisismo estaria ligada a um
investimento externo oriundo de uma relação primária, quando, por exemplo, o
desejo e ideal dos pais investem no sujeito um ―molde‖ para a formação de seu eu. E
será em torno desse eu que o narcisismo opera sua organização, unificando as
pulsões (caracterizadas anteriormente como perversas polimorfas onde a
parcialidade das zonas erógenas eram satisfeitas de modo o organizado
encerrando-se em si mesmas). Ou seja, tal processo identificatório é configurado na
imagem de ―sua majestade o bebê‖ proposta por Freud como efeito do narcisismo
dos pais identificado na criança.
Paralelamente, nessa reflexão, Freud repensa sua teoria pulsional afirmando
que o Eu se constitui à medida que se toma por objeto libidinal, reforçando assim a
ideia de um Eu que se estrutura em um processo no qual o narcisismo está
presente.
1.3 Signo da paixão musical
Ainda sob o prisma das paixões, Greimas e Fontanille (1991) afirmam que a
paixão se manifesta por efeito dos sentidos. Ao ouvir os diferentes gêneros musicais
(seja um Samba, um Rock, uma Valsa, uma Ópera, etc.) não a audição, mas
24
―O Amante de ‗Gadgets‘: Narciso como narcose‖, de Marshall MCLUHAN, in: Os Meios de
Comunicação como Extensões do Homem, 1964, p. 59.
40
todos os outros sentidos, inevitavelmente, nos acompanham, em alguma instância,
durante esse movimento. As diferenças entre os estilos ou até a maneira como uma
canção é interpretada, nos causam distintas sensações de um instante para outro ou
de uma música (estilo) para outra. Às vezes, certo ritmo musical nos ‗convida‘,
simplesmente, a acompanhar os compassos com o bater do , um discreto
movimento rítmico do corpo, ou até dançar. Outras não há exagero nos trazem à
memória, um cheiro, um perfume, uma cena... [aqui reside, também, a noção de
evocar] E temos, com isso, o tempo todo, algo que nos remete a sensações e
emoções já vivenciadas. Sentimo-nos afetados pela música. (Luiz, 2005).
Pode se dizer que a música lida especialmente com a emoção, responde a
diferentes necessidades do sujeito seja como vibração sonora (agindo
fisiologicamente), seja como experiência estética (agindo psicologicamente), seja
como expressão, facilitadora do desenvolvimento e socialização, prazer e gozo
estético, seja, ainda, como auxiliar do bem-estar, colaborando na formação da
personalidade.
A bem recente aproximação dos neurobiólogos e neurocientistas (Cf.
SACKS, 2007, pp. 68-69) somada às já não tão recentes contribuições da
psicofísica perscrutando o poder e as funções da música, também apontam para o
papel que ela desempenha, não nos sujeitos, mas em suas relações sociais
afetivas.
Mais uma vez, vale lembrar que, como vou aqui ignorar a criação musical,
ou seja, como a música é pensada, formulada, concebida e tratá-la apenas do ponto
de vista do ouvinte e consumidor, o importante será ocupar as reflexões em torno do
que se passa pela organização psíquica do sujeito que se volta para determinado
gênero, estilo, modelo.
O que então desperta o gosto musical? As influências externas ou uma
condição interior de sua organização psíquica? Podemos pensar a música não
como algo relativo ao processo de identificação, mas como uma forma de
constituição da própria subjetividade, o que na verdade não se opõe à identificação.
Penso que são complementares à medida que é possível, por exemplo, o ouvinte de
música se ver retratado na canção que escuta.
41
Reisman (1957) afirma que não se pode esperar compreender a influência
de nenhum meio no caso a música sem que se compreenda a estrutura total de
caráter de um sujeito.
Por sua vez, a compreensão de seus gostos musicais e o emprego que faz
deles para o propósito de conformismo social, progresso ou rebeldia,
ministra indícios reveladores de seu caráter. Não podemos perguntar quem
ouve o queenquanto o descobrirmos o que é „quem‟ e o que é o „que‟,
através de uma análise psicológica. (REISMAN, 1957, p. 480).
É claro que a questão do gosto ainda tende a permear o trabalho, porém as
afetações musicais na vida psíquica ganham relevância a partir desse ponto.
42
CAPÍTULO II.
MÚSICA E PSICANÁLISE
A música é um exercício inconsciente de
metafísica na qual a mente não se dá conta de
que está filosofando. (Schopenhauer)
A psicanálise é uma experiência entre alguém que
fala e um outro que escuta, constituindo um
espaço fundado na transferência, no qual a
linguagem é sua condição de possibilidade, pois
funda a regra fundamental dessa experiência.
Nesse contexto, a figura do analisante deve dizer
tudo que lhe vem ao espírito (livre associação) e
da figura do analista espera-se a atenção
flutuante. (Joel Birman)
2.1 A música e o sujeito
A música é uma arte, entre outras, da expressão, dos sentimentos, de
articulações, do discurso de produção de sentido e com possibilidades de
interpretação das mais plurais. Dada sua grande complexidade, escrever sobre suas
vertentes é uma tarefa exaustiva, pois os caminhos o tão inúmeros quanto sua
amplitude. Também muito a discorrer sobre os aspectos psíquicos da música,
esquematizar seus significados arcaicos, inventariar seus processos simbólicos e
correlacioná-los com a linguagem psicanalítica. Nesse sentido (conforme enunciado
na introdução), este capítulo apresenta o olhar que a psicanálise timidamente tem
lançado às questões musicais e seus efeitos ou dimensões afetivas/psíquicas
possíveis. Além disso, retorna à ideia da identificação como elemento importante na
configuração de tais dimensões. E, finalmente, enuncio alguns aspectos sobre o que
chamei de ―sonoridade musical‖ que serão evidenciados a seguir nos capítulos que
rezam sobre os casos clínicos.
A partir de agora os caminhos a serem seguidos exibirão o papel da escuta
psicanalítica que se presta a ouvir o sujeito ―afetado‖ por qualquer aspecto musical.
43
Pelas sonoridades musicais que o tocam na esfera psíquica. Ou seja, pensar em
como a música atinge e afeta cada sujeito.
Como vimos no capítulo anterior, existe um fenômeno de escolha musical
que passa por referências pessoais (filtros adquiridos durante a vida), pela cultura de
massa, influências de época (como acontece no caso da moda, por exemplo) e,
ainda, por fatores regionais, sociais e econômicos.
Imaginemos um sujeito que em sua adolescência paulista e interiorana [nos
anos 1950] tenha ouvido Modas de Viola (Música Caipira); por que ele não gosta de
outro tipo de música? Porque não aprendeu a ouvir? Falta de acesso a outros
gêneros? Num outro vértice imagino o que faz um jovem, em 2009 aos dezessete
anos, ou seja, nascido em 1992, se identificar com bandas de Rock da chamada
―geração 80‖, MPB, Bossa Nova, por exemplo, após décadas de seu ápice ou
falecimento de seus ícones, mas que fizeram sucesso no passado.
25
Curiosa ainda a
quantidade de jovens dedicados à escuta musical de autores/compositores
vulgarmente conhecidos ou chamados de clássicos e que foram consagrados pela
qualidade de sua música, muitas vezes, não pelo público, mas pela crítica
também, e que resistem ao tempo, aos séculos e aqui não exageros (vide o
quão são especialmente idolatrados alguns compositores da sica erudita
Chopin, Bach, Beethoven, Mozart, apenas para citar alguns sempre lembrados).
É certo que a relação entre personalidade e os gostos musicais tem sido
alvo de investigações científicas e acadêmicas, não restritas à psicanálise (aliás,
como enunciado, ainda carente de volume significativo de textos sobre a
temática). Estudos da neurociência e da psicologia comportamental revelam que as
preferências musicais definem os traços de personalidade de cada um. Porém, mais
do que a busca por definições concretas e caracterizações, perfis ou traços
individualizados, aqui pretendo trazer à tona aspectos conceituais que de alguma
forma justifiquem o que pude ver na minha prática clínica (exibida nos capítulos, III,
IV e V Casos Clínicos). Evidentemente, cada caso apresentado possui sua
singularidade e não poderá ser usado como modelo conceitual (nem carrego essa
pretensão); eles apenas desdobrarão o capítulo, dialogando com ―aspectos da
25
É o caso de bandas como a Led Zeppelin, The Doors, The Beatles, e cantores/compositores como
Bob Marley, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Raul Seixas, Renato Russo, Elis Regina e tantos outros,
em seus múltiplos estilos, muitas vezes cultuados por tais jovens.
44
sonoridade‖ que ―atravessa‖ cada sujeito em sua íntima e insubstituível relação com
a música. Mas, como disse, esse capítulo antecede os casos clínicos numa rápida
viagem a respeito das afetações musicais que se dão na vida psíquica de cada
sujeito. Vejamos algumas delas:
Afonso (2007) considera que a música altera o estado de ânimo do sujeito, e
que um conjunto de vivências que nos direciona para a fruição de um
determinado gênero musical, com o intuito de libertar emoções provenientes dessas
vivências. ―A música que ouvimos é, em última análise, um reflexo de nós próprios.
Um jogo de espelhos, portanto‖.
26
A música seria então capaz de caracterizar (em parte) a constituição de
cada sujeito. Mas como ela afeta nosso psiquismo? Que contribuições a psicanálise
apresenta para construir uma possível resposta a essa problemática formulada?
O senso comum nos remete à afirmação genérica de que todo mundo gosta
de música, salvo raríssimas exceções, entre as quais se inclui, para surpresa de
alguns, Sigmund Freud. Sabe-se que Freud desconsiderava a relação da música
com seu contexto social e cultural e a colocava como um sedativo, relacionada ao
princípio do prazer e, logo, volátil.
Em sua obra, tratou da questão musical de forma passageira.
27
Entretanto,
dedicou, como se sabe, parte importante de seus estudos a outras obras de arte em
geral. Estas sim causavam nele uma forte impressão e, por isso, a busca de sua
26
Com base em estudos texanos sobre psicanálise e música, o jornalista e músico português, Victor
AFONSO escreve que a música é dos fenômenos atuais que mais contribui para a tribalização‖ de
um grupo, para a consolidação da sua identidade cultural e social. E que, secundariamente, a música
leva à uniformização do gosto musical, na qual os grupos geram à sua volta outros elementos que
criam uma única identidade: a roupa, as atitudes, os códigos sociais, etc. O autor ainda questiona: ―A
música é, seguramente, a linguagem cultural que mais contribui para agregar socialmente os
indivíduos em grupo. A minha dúvida é: e quem gosta, nem que seja um bocadinho e
simultaneamente, de todos os gêneros musicais, qual será o seu perfil de personalidade?‖ [Como o
gosto musical nos define. Victor AFONSO, Publicado em 23 de dezembro de 2007, no blog ―O
homem que sabia demasiado‖].
27
Em O Moisés de Michelangelo (1914), FREUD escreve: ―Posso dizer de saída que não sou um
conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo. Tenho observado que o assunto obras de arte tem
para mim uma atração mais forte que suas qualidades formais e técnicas, embora para o artista o
valor delas esteja, antes de tudo, nestas. Sou incapaz de apreciar corretamente muitos dos métodos
utilizados e dos efeitos obtidos em arte. Confesso isto a fim de me assegurar da indulgência do leitor
para a tentativa que aqui me propus. Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um
poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos frequência, a pintura. Isto
me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreende-las à minha própria maneira,
isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como por
exemplo, com a música sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim,
racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber
porque sou assim afetado e o que é que me afeta.‖
45
compreensão. Freud afirmava, a respeito da experiência de ouvinte, que, ao não
poder compreendê-las (as músicas), sentia a fruição do pensamento interrompida e
abandonava-as imediatamente. Uma luta entre sua disposição racionalista ou quem
sabe analítica contra a emoção quando não conseguia identificar por que estava
comovido, nem o que é que o ―pegava‖: era o que acontecia quando o assunto
remetia-o à música.
28
Mas, voltando à afirmação genérica, não se pode abraçar
simplesmente a ideia de que ―todo mundo gosta‖ e ponto. Há algo, creio, que
possibilita-nos dar as costas ao senso comum e refletir de frente sobre aspectos que
na constituição do sujeito acentuam sua relação com a música. Para isso foi
importante ―passear‖ por diferentes autores, filosofias, perspectivas psicanalíticas, na
contribuição que trazem à ideia de afetação musical.
Ao seguirmos algumas pistas, vemos que a experiência musical não é verbal
(originalmente), tampouco discursiva e, no entanto, ela acaba produzindo esse tipo
de discurso a posteriori. Cria experiências que tanto podem passar rapidamente,
como podem ser conservadas, criando marcas, também análogas com experiências
de artes literárias e plásticas, por exemplo. Desse modo, o sujeito se inscrito
nessa experiência. Poder-se-ia supor que há, na música, algo que se corresponde
com a forma como nosso psiquismo aborda o mundo da experiência. O pensamento
musical poderia seguir a mesma linha que usamos para criar uma imagem de nós
mesmos, do nosso mundo de experiências e das relações entre ambos.
29
Nesse sentido, na perspectiva nietzschiana o uso da linguagem se propõe a:
tornar o inapreensível, o fugidio, designável e reconhecível, fundar a comunicação
verbal e facilitar o domínio da natureza segundo critérios utilitários para a
sobrevivência da espécie humana‖. (NAFFAH NETO, 1998, p.18)
convergências entre a psicanálise e a experiência do canto,
considerando a voz e a sica como elementos próximos de puro afeto, não
representáveis e relacionados aos laços iniciais do bebê com a mãe.
28
Ainda neste capítulo observações de H. KOHUT acerca das motivações daqueles que o
encontram na música fonte de prazer, mas, ao contrário, de aversão, medo e incômodo, sempre se
pautando em construções conceituais freudianas.
29
Quando se trata de correlacionar música e psicanálise, em geral, os autores que se dedicam a tal
tarefa apontam para aspectos da constituição do eu, desde suas origens mais arcaicas, das relações
intra-uterinas com a voz materna [como é o caso de D. ANZIEU (―Envelope sonoro‖), P. LACAS
(―Autour de l‟inconscient et de la musique‖) e outros].
46
Stahlschmidt
30
ao abordar a relação dos bebês com a musicalidade, afirma
que, desde a metade da gestação, o feto humano escuta os sons provenientes do
corpo materno e do ambiente exterior. Assim, a musicalidade da voz da e, o
sotaque da comunidade em que a família está inserida e o repertório musical que os
pais escutam em casa, por exemplo, são percebidos, antes mesmo do
nascimento, criando impressões sobre o mundo, que poderão permanecer ao longo
de toda a vida dessa pessoa. E completa dizendo que, neste momento inicial do
desenvolvimento, o bebê não é capaz de fazer escolhas e, assim, é importante que
seus pais emprestem a ele seus gostos e preferências, o que permitirá que, no
futuro, essa pessoa seja capaz de fazer suas próprias opções.
31
Stahlschmidt julga
fundamental nesse momento que o repertório escolhido pelos pais proporcione
prazer aos bebês para que, além do interesse pelos estilos musicais apresentados,
possa ser despertado na criança o gosto pela música em si.
Somos levados a compreender que a transmissão mais primária do
simbólico à criança se faria por intermédio da música da voz materna.
Vamos situar o som dessa voz como mediação entre o que a precede e o
que a sucede: o que a precede remete ao significante do Nome do Pai que
sustenta o simbólico, o que a sucede é o inconsciente por via da criança
receptora do som. (DIDIER-WEILL, 1999, pp. 151-152)
DIDIER-WEILL supõe ainda que o infans, antes de ouvir o som das palavras,
escandidas, isto é, a dimensão do parlar cantando da mãe, ouviria previamente o
sentido dos sons.
E pontua ainda que:
O não-compositor dispõe de uma profusão de sons inutilizados em outros
lugares, mas prontos a se lançarem, atraídos, como pelo imã, para vir aderir
ao som‘ [Lévi-Strauss], como não reconhecer nessa concepção do som que,
como um ‗imã‘, atrai o sentido, uma metáfora da pulsão invocante cuja
emergência observamos nesse tempo originário em que advém o
inconsciente, a nosso ver, quando o puro som musical da voz materna é
interpretado e recebido como sentido pelo ouvinte que é o infans? (DIDIER-
WEILL, 1992 p.150)
30
―Os sons que fazem história‖, de Ana Paula Melchiors STAHLSCHMIDT, publicado no Zero Hora
Online 03/10/2008 - Ana é ainda autora do livro A Canção do Desejo: a música na relação pais-
bebê, Casa do Psicólogo, 2008; também desenvolve atividades com música para bebês no espaço
"Enlace - Clínica e Projetos Interdisciplinares" e na UFRGS.
31
A esse respeito, a musicalidade da voz da mãe, Alain DIDIER-WEIL dedica um capítulo inteiro em
seu livro ―A nota azul Freud, Lacan e a Arte‖, Rio de Janeiro: Cia de Freud, 1997.
47
Pela leitura psicanalítica, a música constitui-se, além de expressão artística,
como uma modalidade de linguagem que pode trazer algo do inconsciente humano.
Se a psicanálise constitui-se historicamente como um método de análise da vida
psíquica inconsciente, também se torna uma ferramenta primordial de análise para
interpretar a sonoridade musical como expressão linguística, bem como sua eficácia
simbólica no psiquismo humano. Aquilo que dinamicamente dialoga e reinterpreta o
que está sendo ouvido. Neste sentido, a música interessa à psicanálise, posto que a
sonoridade traz, implicitamente, algo da singularidade do inconsciente
representações que se apresentam pelo viés da linguagem. Ainda explorando os
ecos do pensamento nietzschiano na psicanálise, Naffah Neto afirma:
Não é por mero acaso que vamos encontrar na linguagem-em-ato, a fala,
uma possibilidade de ultrapassar a sua dimensão representativa na direção
de uma função basicamente afetiva. Afinal, os afetos se formam nas
relaçãoes vivas entre homens e é aí, talvez, que a língua pode servir para
iludir, dissimular uma solidão inexorável e angustiante. (NAFFAH NETO,
1998, p. 20)
Assim como acontece em outras formas de comunicação, como na pintura e
na palavra escrita, a música traz sempre uma lacuna que é preenchida pelo
imaginário do receptor/ouvinte. A ação do artista na música é o processo inicial, que
irá se completar com processos secundários da percepção do público. O conjunto
completo se dá quando da união da criatividade do artista e do público.
Mesmo quando a música contém uma letra e é cantada, a interpretação do
sentimento que ela transmite continua variável. Cada sujeito poderá
escutar/entender de maneira muito singular o enredo poético.
Isto nos remete à
ligação da música à subjetividade. Existe a teoria musical e a partitura, que
encaminham à execução, mas musicalmente um deslocamento, realizado pelo
intérprete. aqueles intérpretes extremamente fiéis às notas e à partitura musical
sem, contudo, perderem em interpretação (Maria Callas foi um exemplo dessa
maneira de cantar, pois em nenhum momento de sua carreira a cnica e o respeito
ao compositor estiveram dissociados da interpretação), outros, no entanto, vão além
do escrito trazendo o sentimento à tona. Desse modo a interpretação cai no domínio
ilimitado da subjetividade.
48
2.2 Pulsão invocante
A música, em certos casos, pode fazer algum sentido para o ouvinte, quando
uma analogia entre determinados sentimentos e as impressões proporcionadas
ao ouvi-la. Algumas melodias nos causavam muito medo quando éramos crianças;
há quem diga que outras provocam uma melancolia inexplicável. Lévi-Strauss (1977)
afirma que as palavras são apenas signos convencionais das coisas e, quando
possuem equivalentes, podem ser substituídos. Afirma que a palavra substitui a
coisa, mas os sons não se caracterizam como a expressão da coisa porque eles
são a própria coisa. (LÉVI-STRAUSS, 1977, p.87)
Didier-Weill afirma ser a música anterior à palavra e exprime uma linguagem
universal. Trata-se da pulsão invocante, a mais próxima da experiência do
inconsciente, que ao mesmo tempo permite emergir o sujeito do inconsciente, que
existia em potência, mas não em ato, e também causa que seja dito um segundo
―sim‖, interior, em resposta ao chamamento do outro. (DIDIER-WEILL, 1992, p. 253)
A demanda da pulsão invocante é uma exigência absoluta feita ao Outro, de
que se manifeste aqui e agora. Se o sujeito está numa posição de
dependência absoluta do Outro, é porque cedeu a este o poder de
satisfazê-lo por completo, ou não satisfazê-lo. A invocação, ao contrário, é
um movimento que retira o sujeito dessa dependência: invocante, o sujeito é
guiado, orientado em direção a um ‗ponto azul‘ que ainda não es
presente, mas que se situa num porvir possível, de onde convoca o sujeito
como pura possibilidade (DIDIER-WEILL, 1992, p.17)
O autor chama esse ponto de ‗ponto azul‘ porque o articula à capacidade do
sujeito, dividido pela tensão produzida entre harmonia e a melodia, de atingir uma
certa nota ainda não presente no nível da qual a tensão entre a sincronia
harmônica e a diacrônica melódica poderia ser resolvida. A transferência para essa
ausência que chama nota azul é, assim, a possibilidade de um ato de esperança
no fato de que o que ainda não está possa cessar de não estar. A música que
pode às vezes nos oferecer essa nota azul assim batizada por Delacroix em carta
dirigida a Chopin nos ensina que a esperança que pode nos levar a esperar a
promessa dessa nota pode não ser vã. (DIDIER-WEILL, 1992, p.33)
49
... ao homem que canta é creditada instantaneamente a possibilidade de
invocar uma alteridade que não estaria foracluída. Enquanto, ao falarmos,
aproxima-se o mal-entendido com o Outro, ao cantarmos instaura-se com o
outro, instantaneamente evocado, uma relação transferencial onde o Outro
é situado como bom ouvinte. (DIDIER-WEILL, 1992, p.63)
Poder cantar implica uma relação com a voz que é de outra ordem que não
a da voz que fala: falar implica uma relação com o objeto voz que, constituído como
lugar do Outro, permite substituir a demanda do Outro por um desejo causado pelo
objeto da falta, diz Didier-Weill. Vocalizando seu fort-da, o neto de Freud proclama
vitoriosamente que ele não está mais na demanda do Outro, já que se tornou
desejante de um objeto causal cuja falta é simbolizada pelo jogo dos dois fonemas‖.
(DIDIER-WEILL, 1992, p. 66)
Finalmente a pulsão invocante deve ser entendida como esse impulso que é
chamado a mover-se em direção a esse significante detentor do inaudito que
ultrapassa todo significado.
O fato de que o músico seja, por excelência, aquele que tende a executar
esse movimento não exclui que o não-músico não o execute: diversas obras
no campo da literatura, da filosofia ou das ciências humanas são disso a
expressão eloquente. Mas nenhuma delas, sem dúvida, testemunha disso
tão lucidamente como a de Claude Lévi-Strauss.‖ (DIDIER-WEILL,1992,
p.149)
Lévi-Strauss baseia-se na ideia de que, tanto o mito quanto a música, devem
ser compreendidos como uma sequência contínua e apresenta duas análises: a
primeira, sobre um episódio ocorrido entre os índios Cuna, no Estado do Panamá,
quando uma índia em difícil trabalho de parto é salva em um ritual no qual o feiticeiro
inicia um longo canto místico de cura. Acerca disso, Lévi-Strauss afirma que o canto
constitui uma manipulação psicológica do órgão doente e que é dessa manipulação
que a cura é esperada. Na segunda análise, diz que foi no período da Renascença e
do século XVIII em que começaram a aparecer as primeiras novelas, em vez de
histórias ainda elaboradas segundo o modelo da mitologia. Neste momento, o mito
foi relegado a um segundo plano no pensamento ocidental, em prol do romance. Ele
observa um movimento tal, como se a música tivesse assumido a função mitológica
(intelectual e emotiva) que o pensamento ocidental havia abandonado. Para o
antropólogo, tanto o mito como a música se originam na linguagem, mas cada um
50
seguiu diferentes direções: a música veio a destacar os aspectos sonoros da
linguagem, enquanto o mito se direcionou a ressaltar o seu campo de sentido.
32
Lévi-Strauss buscou na música a relação com os mitos. E na linguagem,
repetições e elementos comuns e equivalentes da questão estética também.
Entendida como uma das formas de produção de significados mais interessantes, é
por meio dela que, nas diversas culturas, é possível analisar sistemas simbólicos
visuais, sonoros e da linguagem. Esses expressam exclusivas formas de pensar
apropriando-se de flutuações e imprecisões nos sistemas simbólicos de modo que a
arte pode criar novas combinações e descobrir inusitadas relações formais, atingindo
conteúdos inimagináveis.
Lévi-Strauss analisa a arte, os mitos e os sistemas de parentesco sob a
mesma perspectiva teórica. Aspectos que ele identifica em diversas obras a que se
dirige. Por isso o mito é, para Lévi-Strauss, porta de acesso privilegiada às leis de
funcionamento do inconsciente, sem nenhum tipo de constrangimento: nem mesmo
a realidade exterior. Música e mito.
A música não tem palavras. Entre as notas, e a frase, não nada. Para
Lévi-Strausss na música não há algo parecido com o que seria a palavra no universo
da língua falada e escrita. A linguística busca estruturas inconscientes, um dos
pontos principais da produção surreal. Desse modo, ao incorporar mecanismos da
arte surrealista e dadaísta, como a colagem, e amalgamá-los com as influências de
sua formação, Lévi-Strauss ficou conhecido como o descobridor de estruturas.
Tanto o mito quanto a música ocidental teriam em comum a capacidade de
transcender a oposição entre o sensível e o inteligível e a qualidade de trabalhar
com a verticalidade e a horizontalidade. Uma partitura, por exemplo, pressupõe
leitura vertical, que seria simultânea para todos os instrumentos. Entretanto, é
possível ouvir a flauta, o que torna a leitura horizontal. A música é capaz de se
libertar totalmente da linguagem: os sons propriamente musicais não seriam os
utilizados pela ngua, o sentido mítico exigiria sempre a mediação de uma língua
particular para se expressar.
32
CASTRO, Bruno Portes de. Entre o mito e a música: Pontuações sobre a estrutura. Psicanálise &
Barroco Revista de Psicanálise. Núcleo de Estudos e Pesquisas em Subjetividade e Cultura, Juiz de
Fora, MG; v.5, n.2: p.95-103, dez. 2007.
51
Roland Barthes, reflete sobre o fenômeno da significação sobre os
conceitos de música e linguagem, contribui com novas elaborações. Ramalho (2003)
comenta nos ensaios sobre música reunidos em ―O óbvio e o obtuso‖, que Barthes
apresenta a linguagem como pertencente à ordem do geral e a música pertencendo
à da diferença. A mudança do objeto musical, tal como se apresenta à palavra, o
deslocamento da zona de contato entre música e linguagem, é a principal
contribuição de Barthes para a musicologia. em ―A escuta‖ (1976), Barthes diz
que o nível de sentido que orienta a escuta musical é da ordem não da significação,
mas da significância. Diferentemente da escuta dos índices e dos signos, o que é
escutado não é um significado, objeto de reconhecimento ou de decifração, é a
própria dispersão, o espelhamento dos significantes, que voltam, sem cessar;
uma escuta que produz novos significantes sem que desapareça o sentido. Barthes
afirma, ainda, que a escuta psicanalítica é aquela que melhor pratica a escuta da
significância, por não esperar ―signos determinados, classificados: não aquilo que é
dito ou emitido, mas aquele que fala, aquele que emite‖.
33
Uma escuta que se lança
sem cessar no jogo da transferência, de uma significância geral, que já não é
concebível sem a intervenção do inconsciente.
Para Barthes, a escuta psicanalítica é como uma atenção flutuante, como
uma escuta flexível, entre o engajamento teórico e o deixar vir, que permite prestar
ouvido ao inconsciente. Na obra musical, seria revelada uma escuta, não mais
imediata ou linear, mas uma narrativa musicológica abstrata, não decifrável
imediatamente em palavras; uma narrativa de entrelinhas, de percepções. Para
tratar desse nível de escuta, seria necessário se falar por meio de metáforas, de
imagens musicais.
Ao identificar, na escuta musical, a mesma forma arquetípica de escuta da
psicanálise, Barthes coloca escuta musical e escuta psicanalítica no mesmo
patamar. Ele afirma que esta combinação entre música e psicanálise tem
consequências maiores e mais profundas do que simplesmente a abertura dos
vasos comunicantes entre as duas atividades.
33
RAMALHO, Rafael Guedes. As possíveis contribuições de Roland Barthes para a Musicologia.
Caderno do Colóquio, p. 65, 2003. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Música do Centro
de Letras e Artes da UNIRIO. Rio de Janeiro, CLA/UNIRIO, ano V, dezembro de 2005, 120p.
52
2.3 A psicanálise escuta a música
De que ‗lugar‘ a sica retira este poder de nos transportar, emocionar,
envolver? Questionamentos sobre os poderes da música têm sido formalizados em
estudos que datam de muitos séculos. no Egito Antigo, os efeitos da música
sobre o ser humano eram discutidos, tema que ocupou também filósofos como
Sócrates, Pitágoras e Platão, entre outros, claro.
A psicanálise, assim como a sica, também marcou a história da
humanidade com seus conceitos inovadores sobre o ser humano. E, como pudemos
constatar acima, pode-se dizer que, tanto na música, como na psicanálise, temos a
presença de sonoridades. Na primeira, pelo canto, ritmo, melodia e harmonia; na
última, pela interpretação clínica dos sentidos da fala e suas inflexões, pelo silêncio
e pausas.
Pode se explicar a indiferença ou até mesmo repulsa dos principais
nomes da psicanálise pelo entendimento da música, em parte, porque, mesmo que a
psicanálise sempre tenha influenciado o prazer e busca de outras artes e até tenha
servido de fundamento para novas propostas artísticas (vide o Surrealismo
34
) , a
música, suas causas e efeitos ainda são, de algum modo, um campo misterioso para
ela.
Fora a condição da expressão artística, a música pode ser vista como uma
modalidade de linguagem que pode trazer, à luz da psicanálise, nuances do
inconsciente. Em contrapartida, se a psicanálise tem sido ferramenta para o
entendimento da estrutura psíquica inconsciente do sujeito, ela pode ser igualmente
ferramenta de interpretação da ação da música, seu simbolismo e seu efeito no
psiquismo humano.
São poucos os autores que se aventuraram a analisar o binômio psicanálise-
música (considerando a comparação que poderia ser feita com qualquer outra
temática ―psicanálise e literatura, por exemplo que ganha disparado em número
de publicações). Em seus estudos, Lopes (2006) lembra que, até duas décadas,
34
Surgido na França na década de 1920. Este movimento foi significativamente influenciado pelas
teses psicanalíticas de FREUD, que mostram a importância do inconsciente na criatividade do ser
humano. De acordo com FREUD, o homem deve libertar sua mente da lógica imposta pelos padrões
comportamentais e morais estabelecidos pela sociedade e dar vazão aos sonhos e as informações do
inconsciente.
53
os autores que se atreveram a fazê-lo foram pouco além da questão da catarse e da
imaginação evocadas pela música.
35
Arthur Schopenhauer talvez tenha sido o primeiro pensador a considerar a
música como mais que um apêndice à sua teoria estética. Em O Mundo Como
Vontade e Representação (2005), Schopenhauer diz que por meio da arte
atingem-se as ideias, que sintetizam as representações produzidas pela ―vontade‖
cega e irracional. A ―vontade‖ objetiva-se por intermédio das ideias (platônicas), das
quais as obras de arte permitem acesso ao ser humano: da ―vontade‖ às ideias,
destas às obras de arte. Entretanto, Schopenhauer distingue a música dos outros
tipos de arte. Ele postula a música como a emanação direta da ―vontade‖, uma
linguagem universal anterior a todas as outras linguagens, plástica ou verbal. No
caso da música, a obra é quem olha e penetra o espectador.
Esta chamada invasão (o que Schopenhauer denomina de ―sentimento
oceânico‖) justifica o seu existir, além de sua real intensidade. E, então, o espetáculo
da existência, as contradições externas e a própria ―vontade‖ em si mesma podem
ser contemplados e aceitos. Nietzsche foi o grande leitor e crítico de Schopenhauer,
mas que, quanto à música, Nietzsche pode ser encarado como seu melhor leitor e
principal discípulo. Em sua obra ―O Nascimento da Tragédia (2000), a música
como Schopenhauer como a origem de todo existir, corporificada por deuses
(Apolo e Dionísio) um da forma e do equilíbrio perfeito, o outro do sentimento
oceânico e do arrebatamento.
Didier-Weil (1997), afirma que música não é escutada a partir de uma
deliberação interna que permita ao sujeito dizer um ―não‖. Trata-se de um ―sim‖
absoluto. Constitui o acesso a um ―real‖ que é intraduzível pela palavra.
Trata-se então de algo anterior ao gosto. É um modo de atingir o ouvinte
sem restrição ou filtro com a música e que pode resultar em sentimentos positivos
ou negativos.
Ainda segundo o autor, nas diferentes articulações lógico-temporais que se
apresentam quando nos submetemos à experiência de escuta da música, um
momento crucial em que ocorre um reviramento da pulsão no sentido de se
35
LOPES, Anchyses Jobim. Afinal, o que quer a sica? Estudos de Psicanálise, Círculo Anual
Brasileiro de Psicanálise, Rio de Janeiro, Nº 29, Setembro de 2006.
54
aproximar de um objeto reconhecido como ―definitivamente perdido‖. ―No primeiro
momento, a falta é articulada com a pulsão e o ouvinte tentará capturá-la, deixando-
se levar somente porque espera da sica a satisfação de algo que nem sequer
sabe-se desejado‖. Didier-Weill propõe que, nesse instante, ocorre uma mudança no
destino da própria pulsão que, em consequência, faz deslocar a posição do ouvinte
frente ao objeto faltoso. O ―gozo musical‖ recebe uma significação dionisíaca, via
uma sensação que ele identifica com o sentimento de ―nostalgia‖.
Para o autor, a música toca o não-sentido de nossas perguntas. O ―ouvir da
música‖ é nossa procura de uma resposta circunscrita a algo pelo qual não é
possível nem perguntarmos. Segundo ele, o que experimentamos ao escutar uma
música está relacionado ao ponto enigmático em que a mensagem do outro se torna
nossa própria palavra. Trata-se, assim, de um ―eterno retorno‖ do desejo essa
condição demasiado humana, capaz de levar à usura do significante, ao
reconhecimento do não-sentido como condição para um novo sentido; enfim, a ―uma
nova forma de gozo‖. Correr o risco de quebrar o círculo da repetição pura e conferir
à existência um novo significado: este é o verdadeiro desafio a que a pulsão nos
convoca. E é isso o que Didier-Weill afirma ser o que a verdadeira obra de arte
consegue realizar e é por isto que ela sobrevive ao seu criador: porque esvazia o
significante. (DIDIER-WEILL, 1992, p.118)
2.4 Prazer e funções da música
Faber (1996)
36
afirma que toda a música alcança o território pré-verbal do
ouvinte, compositor e executante envolvendo sua vida emocional de alguma forma e
em algum grau; para o autor a música atrai o sentido da forma conforme esse
sentido tornou-se intrinsecamente ligado às tendências afetivas e perceptivas.
(FABER, 1996, pp.419-420)
O ritmo entra virtualmente em toda a música de uma maneira ou de outra. O
ritmo tem sido reconhecido universalmente como um tranquilizante natural, com
sons repetidos regularmente ou movimentos rítmicos espontaneamente usados
para, por exemplo, acalmar crianças agitadas. Vide o que se faz no momento de
36
The Pleasure of Music: a Psychoanalytic Note. Psychoanalytic Review, vol. 83, no. 3, 419-433,
June 1996.
55
acalanto. Assim, o ritmo em si mesmo envolve o reino pré-verbal e muito
particularmente o universo materno (nossa primeira natureza, ambiente ou mundo)
de uma forma biológica elementar que tem uma conexão crucial com a nossa reação
durante os momentos musicais (FABER, 1996, p. 420)
Antigos conflitos relacionados com a separação podem ser reativados em
qualquer estágio das nossas vidas. O prazer que sentimos com a música deriva em
boa parte do seu poder de despertar em nós aquele mundo de experiências
arcaicas, relacionadas ao vínculo e-bebê, cuja união persiste em nosso
inconsciente. Podemos estar afetivamente preparados para a música, seu ritmo e
melodia porque a música envolve profundamente nossa vida emocional, a partir das
primeiras interações com a mãe até o mundo subsequente dos objetos substitutos.
A música evoca, portanto, num nível crucial, uma corrente de afetos pré-
verbais, inteiramente inconscientes, ligados aos derivativos dos impulsos e às
internalizações fundamentais.
Do mesmo modo que nosso comportamento no cotidiano é determinado
pela mente e, portanto, engloba significados inconscientes, todos os
elementos que adquirem forma nas artes aumentam a tensão e promovem o
relaxamento, quando ambos estão ligados à nossa vida afetiva, conforme
se estendem ao passado dos anos formativos e ao futuro do terreno dos
objetos substitutivos. (FABER, 1996, p.422)
Aqui a ênfase não recai sobre os impulsos do recém-nascido e a repressão
desses pela cultura, mas sobre o modo como as pulsões ganham forma através da
simbiose mãe-bebê e as consequências desse cenário. A tônica recai sobre o
mundo interno e particularmente sobre a fantasia relacionada com os primórdios da
união e da separação (como se verá no jogo de esconder freudiano fort-da)
Faber afirma que o ritmo que sublinha ou acompanha a composição
melódica corresponde ao aspecto da união, ou seja, da ‗mesmice‘ das rimas. Para
ele a origem psicanalítica da rima está ligada ao prazer afetivo ou gratificação que
obtemos a partir dela. ―A rima nos gratifica ou nos reassegura no nível mais profundo
da resposta o nível inconsciente ao atrair nosso prazer pela separação ao
mesmo tempo em que atrai nosso prazer pela união simbiótica. (FABER, 1996, p.
427)
56
Quanto ao grau em que o ritmo acompanha simultâneamente tanto a
demanda da rima como sua respectiva superação, ele nos traz segurança ao
estabelecermos nossa individualidade ao mesmo tempo em que nos relembra dos
profundos ritmos biológicos que foram, e ainda estão intimamente associados à
nossa relação primeva com a mãe, indo até a vivência no útero materno. (FABER,
1996, p. 428)
Investigações psicanalíticas demonstram que as crianças de 2 a 3 anos
tendem em suas atividades a repetir e reelaborar os tópicos primordiais de suas
vidas, por meio das cantigas infantis, ou seja, a manutenção de um vínculo
primordial e a incumbência de elaborar uma separação traumática. (FABER, 1996, p.
429)
Nós nunca nos esquecemos e o cessa o nosso prazer a partir da
experiência do balbuciar mágico onde os sons são diferentes. Nós não
estamos separados e sozinhos, o ritmo declara; não estamos divorciados da
mãe que dá vida que é música. (FABER, 1996, p.430)
Assim, estamos no presente, sentindo nossa atual existência emocional no
caminho melódico, porém estamos também no passado, entregues ao palpitar
rítmico das nossas fontes de segurança mais profundas, nosso lar biológico e
maternal.
2.5 Metáfora musical
A psicanálise trata de encontrar representação para fenômenos do mundo
mental. Lança mão de metáforas no momento clínico para configurar teorias.
Todavia o fenômeno inconsciente necessita encontrar um correspondente para se
tornar apreensível ao entendimento.
Assim, temos feito amplo uso de metáforas literárias, figurações plásticas e
poéticas. A música tem encontrado pouco uso neste sentido, pois a apreensão
ingênua ignora que se trata também de linguagem própria com gramática e sintaxe
específicas. Quando ouvimos ingenuamente, somos apenas tomados por emoções,
ignorando o pensamento conceitual intrínseco à sua feitura. Também ingenuamente
sabemos do poder representativo que possui, pois ao querermos nos apresentar a
57
alguém especial, muitas vezes o fazemos mostrando as músicas das quais
gostamos, pois elas nos representam. (GERBER, 2009)
Usar uma metáfora musical para representar um fazer psicanalítico é,
portanto, o conceito que subjaz a esta prática. Assim, não se trata mais do trabalho
clínico de encontrar a paz da solução, mas compartilhadamente com o paciente
realizar um trabalho nunca finalizado de desenvolvimento humano.
Entre tantas definições possíveis de psicanálise, poderíamos chamá-la de
―ciência das emoções‖; por outro lado, a música é talvez, entre as artes, uma via
régia ao mais recôndito de nossas emoções. Duas escutas em busca de emoções
primordiais. (GERBER, 2009, p.105)
Permeada pelos costumes introjetados de cada cultura, a música em suas
diferentes formas parece se comunicar diretamente com o inconsciente emocional.
Falo Inconsciente emocional a partir do modelo de Matte-Blanco (1975), que
propõe o Inconsciente não reprimido como o território das emoções, anterior
à palavra, porque é infinito em suas contraditórias possibilidades
associativas, e a palavra consciente finita é muito limitada para poder
exprimi-lo; algo como tentar desenhar um objeto de quatro ou mais
dimensões com a nossa limitada apreensão sensorial tridimensional.
(GERBER, 2009, p.108)
Claro que essa relação profunda do som musical, com a emoção não
poderia ter escapado a Freud, mesmo com o repertório midiático de sua época. É aí
que me vem uma perplexidade: por que Freud declarava repetidamente sua limitada
sensibilidade para a linguagem musical, afirmando enfaticamente que as palavras
lhe eram indispensáveis? (GERBER, 2009, p.108)
Talvez possamos relacionar essa possível dificuldade de se entregar à
música, emoção sem conteúdos, com a dificuldade expressa por Freud em sua
correspondência com o escritor Romain Rolland. Este último, afirma Gerber,
escrevia a Freud sobre a vivência do sentimento oceânico, um estado
contemplativo desligado de palavras e pensamentos, uma absorção na vivência da
emoção estética do puro presente. Freud respondeu que nunca tinha vivido essa
experiência, que ela lhe era estranha. Estranha resposta, se considerarmos a
psicanálise e a música como vias privilegiadas para o inconsciente. A música dos
58
ruídos corporais, dos gestos, das eclosões, das expressividades e dos silêncios.
(GERBER, 2009, p.109)
momentos em que somos tomados pela música; desaparecem todas as
mediações: o autor, os intérpretes, a sala de concertos, as teorias musicais, a
história, e somos a música. Mais ainda, desaparece qualquer sentido de propriedade
ou de posse, a música é tão nossa quanto de toda a humanidade: dissolvemo-nos
nela. Proponho que quem mais ouve em nós nesses momentos é nosso ID, nosso
Inconsciente. Afinal, é através dele que fazemos parte essencial da humanidade, da
colmeia humana. (...) a música preexiste ao seu criador. (GERBER, 2009, p.111).
Alguns psicanalistas atuais, sem medo de se perder no caos, conseguem
fazer a travessia entre a sonoridade das falas na sessão e o cenário musical,
propriamente dito.
Quando transitamos nessa audição polifônica abrangente para uma audição
linear concentrada, através de um esforço de atenção, estamos transitando
entre nossos dois modos de ser, do inconsciente para o consciente, ou vice-
versa. (GERBER, 2009, p.113)
E, apesar da entrega emocional, o ouvinte o tem um papel passivo. O
processo é dialético.
Voltando à ideia de prazer atrelado à escuta musical, apresento a seguir as
ideias kohutianas, desenvolvidas em dois artigos, um chamado ―Sobre o prazer de
ouvir música‖ (1950), em co-autoria com Siegmund Levarie, e outro, sob o título
―Observações sobre as funções psicológicas da música‖.
37
Talvez uns dos primeiros
autores a enfocar a música sob o ponto de vista da psicanálise.
Mesmo breve, não obstante importante, o dedicado trabalho de Kohut (1957)
contribui significativamente no enriquecimento das ideias aqui elaboradas, à medida
que entende a música como uma ―forma artística altamente desenvolvida e que, por
isso, envolve como um todo a personalidade do músico, seja ele o compositor, o
instrumentista ou o ouvinte‖. (KOHUT, 1957, p. 390).
37
Originalmente publicados ―On the enjoyment of listening to music‖ (Psychoanalytic Quartely 1950,
19: 64-87); ―Observations on the psychological functions of music‖ (Journal of the American
Psychoanalitic Association 1957, 5: 389-407, respectivamente.
59
Em ―Sobre o prazer de ouvir música‖ os autores iniciam o artigo
considerando a música um fenômeno universal sempre despertando questões para
teóricos e filósofos que buscam saber, entre outras coisas, se a base psicológica da
música consiste de um único fator que provê a motivação primordial; se uma
multiplicidade de fatores variáveis, nenhum deles sendo indispensável, mas que
proveem juntos a necessária motivação ou uma combinação de uma necessidade
psicológica essencial com diversas motivações auxiliares.
Aristóteles, por exemplo, afirmou que a música tinha uma posição especial
entre as artes por não imitar aspectos externos dos objetos, mas seu caráter
(paixões e virtudes). Schopenhauer, por sua vez, diz que outras formas de arte são
objetivações apenas indiretas da vontade, enquanto que a música é a cópia da
própria vontade. Assim, diante da dificuldade de traduzir conceitos filosóficos (como
caráter e vontade...), os autores se sentiram inclinados a acreditar que aspectos
musicais estão relacionados com forças motivadoras associais, irracionais,
emocionais ou instintivas, ou seja, relacionados com a parte da anatomia do
aparelho mental que Freud chamou de Id (FREUD, 1921, p.64).
Ainda no início do artigo, Kohut e Levarie enunciam o pensamento de outros
escritores e filósofos que parecem estar divididos em dois grandes grupos: um que
acredita que a música serve como um meio especial de comunicar as emoções do
compositor por meio do intérprete ao ouvinte, e outro que tem como certa a
qualidade da música e se restringe à descrição de gostos e desgostos em reação
aos sons. ainda a conclusão dos filósofos que segundo os autores não
esclarecem o problema que não faz muita diferença (ao prazer musical) se enfatiza
o papel das emoções ou do intelecto, ou se demonstra a participação do id ou do eu.
Por essa razão escrevem:
Sendo um fenômeno psicológico complexo, o prazer de ouvir música
deveria atestar a participação da personalidade total. O que continua
obscuro é algo mais específico: é uma explicação do mecanismo da
produção de prazer no ouvinte, levando em conta a universalidade
essencial dessa experiência bem como a explicação das circunstâncias que
podem impedir que a experiência seja agradável. (KOHUT E LEVARIE,
1950, p.65)
Os autores são claros ao afirmarem que o interesse [deles ao escreverem o
artigo] o está atrelado ao prazer de criar música, seja pela composição ou pela
60
interpretação. Estão mais interessados no prazer produzido pela ―audição‖ da
música e, por essa razão, abstém-se do exame das origens da música como
fenômeno biológico ou social, bem como os mecanismos psicológicos do artista
criativo.
Não dúvida quanto a que o precursor primitivo do impulso a criar música
esteve presente na história da raça desde muito tempo antes que o ouvinte
não criativo se tornasse importante. Na medida em que a música se
desenvolve e se torna parte integrante de uma cultura, a importância desse
ouvinte não-criativo aumenta. Esse desenvolvimento por sua vez influencia
a composição musical, pois o artista criativo, ainda que esteja seguindo
necessidades internas de expressão, sabe que está compondo para uma
audiência, por mais que possa negá-lo. (KOHUT E LEVARIE, 1950, p.66)
Kohut e Levarie comentam que o precursor da música para o bebê está
pautado nos estímulos auditivos (raramente efetivos nas primeiras horas de vida
pois o ouvido do recém-nascido está cheio de tecido conjuntivo embrionário). Os
ruídos vão gradativamente se apresentando, revelando os reflexos, as respostas de
sobressalto, sustos e gritos. Após essa fase, é da experiência diária, tanto crianças,
quanto adultos reagirem diretamente a um ruído súbito, por ato reflexo (aqui não
interferência imediata do pensamento lógico. ―Um som agudo e intenso pode ser
experimentado como um ataque desagradável‖ (KOHUT E LEVARIE, 1950, p.67).
Sob circunstância de vulnerabilidade emocional, mesmo um ruído suave, quando
interrompe o silêncio, pode despertar uma reação de susto, ainda que no momento
seguinte a pessoa possa se sentir envergonhada em função da reação exagerada e
aparentemente tola que apresentou.
Esta reação ocorre particularmente quando o barulho interrompe uma
atmosfera de autopreocupação e autoconcentração. Aqui se incluem as
frequentes observações de hipersensibilidade ao ruído em períodos de
angústia durante sessões psicanalíticas ou nas neuroses traumáticas,
quando as energias mentais estão concentradas na tarefa de dominar uma
recente ameaça à integridade fisiológica e psicológica do sujeito. Estes dois
estados assemelham-se à psicologia do bebê num importante aspecto: a
catexia principal é intrapsíquica, enquanto que um remanescente
enfraquecido do eu se defronta com uma realidade ameaçadora. (KOHUT E
LEVARIE, 1950, p. 70)
Os autores abordam, também, aspectos do prazer proporcionado pela
música ligado à identificação com o compositor, dos estímulos auditivos (precursor
da música) para os bebês, da sensibilidade aos ruídos, do emprego dos sons e suas
61
relações como mundo interno e externo. Sua máxima é de que se experimenta o
prazer quando a tensão psicológica é aliviada ou quando esse alívio é antecipado
inesperadamente. Trata-se de energia liberada a favor da organização dos estímulos
não verbais da música. Nesse sentido afirmam:
Se a fonte de prazer musical se origina da energia liberada, se esta
liberação de energia é possibilitada pela demonstração de que a
necessidade é desnecessária; e, finalmente, se a ansiedade se torna
desnecessária por causa da inteligibilidade dos aspectos formais da música
pode-se perguntar: por que estas considerações não se aplicam
igualmente a todos os sons inteligíveis? E por que então nem todos os sons
inteligíveis despertam prazer como a música? A resposta é que
diferenças quantitativas entre os efeitos psicológicos da música e a
significação psicológica de outros sons inteligíveis. (KOHUT E LEVARIE,
1950, p.74)
O mundo externo representa um influxo de estímulos perturbadores para o
bebê e o que o ambiente faz para diminuir essa ameaça é tentar manter
minimizados tais estímulos, sejam internos ou externos (fome, mudança de
temperatura); logo, nesse estágio, o silêncio pareceria ser o ambiente ideal. Mas é
preciso relacionar-se com o mundo externo e o eu em desenvolvimento percebe que
no mundo não o perigo desconhecido (do qual se busca afastar). Esse perigo
pode ser também entendido como uma fonte de satisfações a serem alcançadas.
Daí a ideia de que se experimenta prazer quando a tensão psicológica é
aliviada ou quando esse alívio é antecipado inesperadamente. As energias presas à
determinada tarefa são liberadas e podem ser empregadas em uma descarga
agradável.
A voz da mãe, assim como a canção de ninar, pode estar associada com a
gratificação oral. O erotismo sinestésico precoce (como o balançar do berço) pode
antecipar o prazer de dançar e assobiar modalidades rítmicas. Mais tarde ―a
identificação com o solista, mas também muitas vezes com o som solitário ou
predominante de uma produção musical, pode ter implicações fálico-exibicionistas.
Em estágios posteriores do desenvolvimento, o silêncio pode por sua vez ser
experimentado como ameaçador porque desde que o eu descobriu a necessidade
de um bom ambiente humano, o silêncio passou a significar estar sozinho‖. (KOHUT
E LEVARIE, 1950, p.79)
62
A música como experiência de grupo implica no alívio desse medo de estar
sozinho. O propósito de certas formas musicais parece ser o de abrandar angústias
específicas. ―Aqui se incluem os cantos em coro de clubes e irmandades, o canto de
hinos nacionais capaz de inspirar coragem e provavelmente até certo ponto, os
cânticos de guerra dos povos primitivos. ‗Assobiar no escuro‘ é uma tentativa de
conjurar a angústia da solidão criando a ilusão de ter o apoio de todo um grupo.‖
(KOHUT E LEVARIE, 1950, p.81) A agradabilidade da música como experiência
grupal está ligada a um sentimento de força, ao apoio de muitos.
Desfrute regressivo, desfrute do ritmo, gratificação sublimada, identificação
com o intérprete ou compositor, são fatores, por si só, ou ainda combinados com
outros, que representam um papel importante onde quer que a música seja
desfrutada, mas, não explicam qual é o elemento especificamente musical no prazer
de ouvir música. Sendo assim, os autores ―solucionam‖ esse problema retornando à
ideia do medo mais primitivo dos sons a um estágio do eu para qual o som é uma
experiência caótica, ameaçadora e não pode ser controlada. E afirmam que os
aspectos formais da música realizam o alívio desse medo primitivo da destruição,
pois fornecem ao eu desenvolvido, musical, o domínio dessa experiência sonora pré-
verbal.
Por meio da música, cria-se uma situação psicológica na qual o sujeito é
confrontado com um influxo não verbal, complexo, de estímulos auditivos
que essencialmente, não podem ser compreendidos em outros termos. Tal
situação se assemelha àquela em que o eu se defronta com o mundo. Se a
fuga não é possível ou resiste ao impulso de retirar-se, uma grande
quantidade de energia é mobilizada para neutralizar a angústia que é
antecipada à medida que o ouvinte se prepara para defrontar-se com sons.
Mas a música ‗é‘ inteligível, tem formas e leis que o eu pode aprender e
transformar em parte de sua organização. Com o auxílio desta organização,
os estímulos sonoros são dominados e a energia que tinha sido mobilizada
por antecipação para lidar com o influxo de som não-organizado é liberada.
(KOHUT E LEVARIE, 1950, pp. 81-82)
A música pura não pode ser traduzida em palavras. O mundo dos sons
puros não pode ser controlado pelo principal instrumento do pensamento lógico as
funções mentais neutralizadoras, refreadoras de energia que Freud chamou de
processo secundário do psiquismo. É possível que este fato contribua para a
posição especial da música entre as formas de arte. Seguramente é a explicação
para a quantidade específica do prazer de ouvir música. Como observado, os
63
estímulos que não podem ser controlados por meio da tradução em palavras
mobilizam forças maiores que correspondem a uma organização muito primitiva do
eu. (KOHUT E LEVARIE, 1950, p. 83)
A faculdade de desfrutar da música reside na capacidade de defrontar-se
com o mundo dos sons sem aulio de processos de verbalização e sem uma lógica
em termos de imagens visuais.
Finalmente, nossos autores revelam que o prazer da liberação de energia ao
ouvir música não costuma ser descarregado imediatamente como ocorre por meio
da gargalhada, por exemplo. ―A composição musical repete o trabalho original e sua
solução se por meio da criação de uma tensão secundária no ouvinte. Na música
isso é efetuado pela passagem da consonância para a dissonância e daí volta à
consonância.
[
38
]
(KOHUT E LEVARIE, 1950, p.84) Esse mecanismo corresponde
àquele que Freud descreveu na brincadeira de crianças.‖ Trata-se do jogo ―foi
embora‖ (fort-da), usado para controlar a dolorosa experiência da ausência da mãe.
Quando o ouvinte reconhece que as emoções expressas na música são as
suas próprias, ele atinge a união com os sons musicais capazes de ampliar sua
identidade, englobando todo um universo primitivo e não-verbal de sons
organizados. Assim, o pré-requisito para desfrutar do prazer de ouvir música é a
capacidade de regredir ao estágio primitivo do eu, preservando, ao mesmo tempo,
as complexas funções do eu necessárias para reconhecimento e domínio do influxo
de sons organizados.
Passemos então para algumas considerações resumidas, agora a respeito
do texto produzido por Kohut (1957). Na verdade o seguinte estudo
(―Observações...‖) deu prosseguimento à investigação anterior a propósito da
psicologia da atividade musical, fundamentalmente retomando e desenvolvendo
ideias anteriormente apresentadas.
Agora, sozinho, Kohut introduz em seu artigo enunciando que a
abordagem psicanalítica é capaz de proporcionar insights que não podem ser
alcançados por meio dos instrumentos conceituais, derivados do próprio campo a
38
Consonância: vibrações sonoras concordantes, portanto aceitas como mais confortáveis ao ouvido,
em oposição às dissonâncias, que quer dizer discordância, na harmonia tradicional, grupo de duas ou
mais notas de um acorde que criam forte tensão e se tornam instáveis ao ouvido humano.
(DOURADO, Henrique, A. Dicionário de termos e expressões da música, pp. 91 e 110). Da ideia
análoga ao que é familiar x estranho.
64
ser examinado, isto é, no caso da sica, das leis da acústica e das regras da
estética musical.
Para ser mais específico, áreas de conflito entre as potencialidades da
musicalidade inata que desponta e as atividades de função musical
desenvolvida. A área de ‗autonomia primaria‘ da função musical (talento
musical inato, sequência do amadurecimento musical, etc.) é o campo do
geneticista, do neurologista e daqueles que pesquisam comportamento
infantil; também aqui cabem teorias biológicas, como as de Darwin, que via
a música como resíduo de um meio de comunicação anteriormente muito
importante a serviço da sobrevivência da espécie (1872, vol. 2 p.330). A
área de ‗autonomia secundária‘ (as funções musicais maduras) é do
domínio do psicólogo experimental e especialmente, do musicólogo.
(KOHUT, 1957, p. 389)
Em seguida, como mencionei, reconhecendo que a sica é uma arte
extremamente desenvolvida, envolvendo a personalidade do músico, seja ele
compositor interprete ou ouvinte, Kohut aponta para três efeitos da música que estão
amplamente reconhecidos e parecem bem compreendidos: 1) que a música
proporciona prazer sexual ao ouvinte e ao executante;
39
2) que a execução ou a
composição proporcionam ao intérprete ou ao compositor o prazer de desfrutar de
sua própria habilidade; 3) que a atividade musical pode ser experiência social (por
exemplo, o tocar em conjunto, o cantar em coro, etc.).
Segundo ele, no que concerne ao Id, é preciso observar que a música
estaria predominantemente ligada a uma experiência catártica, ou então,
metapsicologicamente, como experiência transferencial, a uma formação de
compromisso ou uma sublimação. ―É claro que o ritmo também representa
importante papel na sexualidade madura, que é a única experiência do eu adulto
que se equipara à qualidade e à intensidade relativa da vida psíquica infantil‖.
(KOHUT, 1957, p. 400)
39
O prazer sexual para a psicanálise tem características muito peculiares. A função sexual existe
desde o princípio de vida, logo após o nascimento e não só a partir da puberdade como afirmavam. O
período da sexualidade é longo e complexo até chegar à sexualidade adulta, onde as funções de
reprodução e de obtenção de prazer podem estar associadas, tanto no homem como na mulher. A
libido, nas palavras de FREUD, é a "energia das pulsões sexuais e delas. No segundo dos "Três
ensaios de sexualidade" que FREUD postulou o processo de desenvolvimento psicossexual, o
indivíduo encontra o prazer no próprio corpo, pois nos primeiros tempos de vida, a função sexual está
intimamente ligada à sobrevivência. O corpo é erotizado, isto é, as excitações sexuais estão
localizadas em partes do corpo (zonas erógenas) e um desenvolvimento progressivo também
ligado as modificações das formas de gratificação e de relação com o objeto, que levou FREUD a
chegar nas fases do desenvolvimento sexual (oral, anal, fálica, latência e genital).
65
No que se refere ao eu, a atividade musical se oferece como uma agradável
forma de controle, como a divertida superação da ameaça de um estado traumático
(ou seja, a prevenção de uma experiência de pânico), semelhante à teoria do jogo
que Freud apresentou em 1920 [também mencionada]. Mudando de instância, a
música se relaciona com o supereu quando nossa participação é avaliada em
relação ao reconhecimento de regras e à obediência a essas regras.
Em síntese, os três efeitos apontam para o sentido de que primeiro a música
permite a catarse de impulsos primitivos, sendo assim é uma experiência emocional.
Segundo, que a atividade musical constitui um exercício de controle (substitutivo) em
que a música é uma forma de jogo. E, finalmente, a música, como expressão de
regras a que a pessoa se submete tornando-se uma tarefa a cumprir.
Com o auxílio do ponto de vista estrutural, compreendemos como a pressão
de impulsos inaceitáveis, o desespero de se ver incapaz de exercer um
controle interno ou externo e as exigências de um sentido de dever
antiquado ou tirânico, levam-nos, em nossas atividades musicais, a formas
substitutivas de descarga, controle e submissão num ambiente o verbal
que, habitualmente, está fora do campo da maioria dos conflitos estruturais.
(KOHUT, 1957, p. 401).
Sobre os prazeres da audição, Kohut alerta que o conteúdo musical teria
que ser dominado para não se tornar desagradável e faz, com isso, observações
acerca dos processos musicais primários e secundários (o mesmo pressuposto já foi
anteriormente, de modo parcial, enunciado). Escreve:
A atividade musical também passa por um desenvolvimento, cujos pontos
finais podem ser considerados processos musicais primários e secundários.
Na mente do adulto, os processos primários continuam a existir no id e são
experimentados, por exemplo, nos fenômenos de satisfação alucinatória de
desejos descarregados nos sonhos. Mas esses processos primários ficam
encobertos pelos processos secundários do eu desperto. De maneira
análoga, encontramos os processos musicais primários encobertos pelos
processos musicais secundários. (KOHUT, 1957, p. 402)
Bem, entendo então que, justamente os efeitos e a significação da música
possibilitam o rearranjo de representações psíquicas, de certa maneira também
refletindo e representando aspectos da vida de um sujeito. Uma especificidade
psíquica da música, um agente que compõe a constituição do sujeito que encontra
na música elementos capazes de ―alterar‖, criar e conduzir ideias.
66
O significado e a função da música podem ser definidos, não somente em
termos de funções do processo primário e secundário, mas também pelo
relacionamento com a profundidade da camada total que é ativada. Ou seja, aquilo
que parece objetivamente uma mesma peça musical afetará diferentemente pessoas
distintas ou afeta de maneiras distintas a mesma pessoa em momentos diferentes.
―Inversamente, poderíamos aprender, na ocasião, a discernir, na complexidade de
uma composição musical, os fatores responsáveis pelas reverberações das
estruturas mais primitivas, bem como aqueles que se dirigem às formas mais
elevadas de organização psicológica.‖ (KOHUT, 1957, p.405)
67
2.5.1 Sonoridades musicais
Os silêncios e as pausas estão presentes na
articulação da própria linguagem, da fala viva.
Uma linguagem viva não existe sem silêncio. A
linguagem analítica pode funcionar ora como
parlar cantando, ora como prima La musica. Há
momentos em que a sonoridade da voz e as
emoções que ela veicula produzem mais sentido
do que está sendo expresso pelo conteúdo verbal,
especialmente em pacientes em fase de regressão
intensa . [Alfredo Naffah Neto Revista IDE, São
Paulo 30(44) 8-14, 2007]
O sonoro funde e nutre o inconsciente em sua
aparição primeira. Mas em termos fisiológicos, não
existe imagem de um som. Um som é tão
imaginável quanto o silêncio. O sonoro, sendo
muito mais arcaico, não impõe fronteiras
facilmente demarcáveis, aptas para guiar as
relações entre as crianças e os objetos que soam
(...) O sonoro é sempre evanescente e
constantemente destruído, morre no mesmo ritmo
que o tempo. Objeto musical é aquele que
sobrevive psiquicamente quando na realidade
física desapareceu. E sobrevive psiquicamente ao
instaurar o rastro mnemônico, ou seja, ao romper,
no sistema de neurônios, barreiras de contato,
criando dessa forma vias de facilitação que vão
construir a memória. Sem ato memorial não se
poderia escutar música. (Miriam Chnaiderman, in:
Música e psicanálise, 1989, pp. 94-95)
Muito mais que um simples conjunto de sons que se une em uma melodia, a
música transmite mensagens, via seu sistema de regras próprio, como a gramática
para a fala. Sem pausas, suspensões e silêncios, a música seria ruído e
provavelmente não poderia ser entendida nos moldes que está sendo discutida aqui.
Observemos que a música não foi criada e depois transmitida, como em
outras invenções, o que faz dela uma ―invenção‖ em constituição (apesar das regras
68
teóricas da música tonal ocidental), o que seria análogo, de certa forma, à própria
constituição do sujeito que se a partir da configuração das experiências
psíquicas.
O som é elemento material da música. regras e leis que legitimam sua
identidade. Uma lógica que determina uma significação sobre o ouvinte num
movimento direto.
Nem todo mundo compreende a terminologia secreta de instrumentistas e
compositores, nem todo mundo uma partitura, mas é possível pensar em
‗imagens de som‘, e por vezes até mesmo imagem de música sem
referência a som. É um pouco do que fez Paul Klee ao desenhar a música
de Bach, Mondrian ao desenhar o bee-bop e Matisse ao recortar e colar as
peças de Jazz. Ouvir o ponto, a linha e o plano. Mas ouvir os ciclos, os
pequenos ritornelos de ideias, de sons, de imagens, de paisagens, em uma
poesia, isto também soa como música. (FERRAZ,1998, p.27)
Ferraz continua sua interessante posição afirmando que música é aquilo que
se faz ao mesmo tempo em que se desfaz, que ganha uma realidade a cada
instante, sempre lançada sobre o futuro.
Quando se ouve uma música pela primeira vez, é no futuro que esta música
está; ela cruza aquilo que não temos a menor ideia com um pouco daquilo
que conhecemos. Daí a música seguir a dinâmica da repetição, não a da
simples reiteração circunscrita a um objeto, ao fenômeno sonoro, mas de
uma outra repetição, totalmente a parte, em que a música não repousa
apenas no sonoro. A repetição vista como o ato de repetir sempre a
condição de trazer o diferente, de permitir novas conexões. E nesse
sentido, ideias tradicionais, como aquela que atrela o serialismo à diferença
e o minimalismo à reiteração, podem até mesmo ser postas pelo avesso,
revelando-se novamente o futuro como potência de escuta. (FERRAZ, 1998,
pp. 28-29)
No livro Introdução à Física e a Psicofísica da Música, Roederer (2002) trata
dos sistemas físicos e processos psicofísicos que ocorrem na música e no ouvinte.
Analisa quais propriedades físicas, objetivas, dos padrões sonoros estão associadas
a quais sensações psicológicas, subjetivas, da música. O autor nos conduz a uma
outra percepção da música. Busca uma compreensão realizada por elementos
matemáticos sem ser desprazerosa. Segundo ele, ―a maioria das pessoas sabe dizer
com facilidade por que prefere um tipo de música em detrimento de outro, mas
69
ignora que essa preferência possa ser explicada pela física e pela psicofísica‖.
40
(ROEDERER, 2002, p.13)
Consoante a essas ideias é possível pensar a música tal como a toma
Wisnik (1989) em O som e o sentido: como uma partitura de várias claves, de modo
a combinar a percepção do som, na interação do corpo e o pensamento poético,
histórico-social, antropológico e outros (WISNIK, 1989, p. 12).
Do mesmo modo em que toda a natureza é repleta de sons e nosso corpo
de ritmos somáticos, a música possui sons e ritmos que efetuam recortes de tempo,
inscrevendo recorrências e variações que dão singularidade a cada uma das
composições musicais. Dois elementos básicos da música, ritmo e melodia,
mesclam-se criando novas matizes a cada encontro, e quando se apresentam
simultaneamente na música, um porta o outro se entrelaçando, dialogando entre si e
conferindo autenticidade à música.
Os sons entram em diálogo e exprimem semelhanças e diferenças na
medida em que põem em jogo a complexidade da onda sonora por meio de
ressonâncias e defasagens, atritos e congruências, dissonâncias e consonâncias,
que engendram a música. Ademais, estas correspondências e desigualdades no
interior destes processos tornam a música possível.
A música tem o poder de mesclar a repetição e a diferença, o contínuo e o
descontínuo. Por isso, remete não apenas ao tempo histórico e linear, mas também
aquele que é ausente, espiral, não cronológico, sugerindo o contraponto entre
consciente e inconsciente. (WISNIK, 1989, p. 28).
As tentativas de descrever ou imitar figurativamente a natureza, ou de
representar e suscitar sentimentos e emoções por meio de sons, permeiam
a história desde o renascimento até os dias de hoje. Encontra-se em
diferentes estilos e épocas uma espécie de compromisso e de cumplicidade
que une compositores e ouvintes, cuja força não consegue ser diminuída
pelos críticos mais ferrenhos.
As bases desse compromisso se assentam sobre conceitos de
representação, de imitação e de construção simbólica que, uma vez
instalados na cultura, predispõem ouvidos e sensibilidades à apreensão e
40
A psicofísica tenta fazer previsões sobre a evolução de um sistema específico, sujeito a certas
considerações iniciais. O sistema em consideração é o sistema sensorial de um indivíduo. As
condições são determinadas pelos estímulos físicos de entrada e a resposta é expressa pelas
sensações psicológicas despertadas no cérebro e relatadas pelo indivíduo.
70
aceitação de um determinado repertório de obras e, com ele de uma série
de procedimentos e códigos que garantem a relação entre o sonoro e o
visual.
Descrevem-se apenas três das várias possibilidades de entrelaçamento do
ouvido com a visão. Todas têm o mesmo alvo a junção da audição e da
visão , mas seus percursos se diferenciam quanto à forma de solicitação
dos sentidos. A primeira apoia-se na leitura de uma partitura, a segunda
associa a leitura com a descrição de imagens, e a terceira baseia-se apenas
na audição. (CAZNOK, 2003, p. 77)
O objeto musical é invisível e impalpável, escapando ao tangível e se
identificando com o que é indizível. É objeto, portanto, subjetivo porque propõe a
harmonia entre familiar e o estranho, o oculto e o aparente que nela se organizam.
2.5.2 Música tonal e música atonal
Frente ao fenômeno sonoro, à escuta de sons e ruídos, cada cultura oferece
respostas de desorganização e utilização específicas. Cada uma delas remete-se a
um campo sonoro distinto, convencional, baseado em fundamentos e códigos que
lhes são próprios. Temos, assim, linguagens e modos musicais relacionados a
culturas e períodos específicos: a música modal, predominantemente ritualística e a
música tonal da civilização ocidental.
Primeiro grande sistema musical, chamado de modal, é aqui representado
pelo cantochão e canto gregoriano, ambos inseridos nos antigos cultos cristãos,
executados sem acompanhamento, originalmente monofônicos, cantado em
uníssono, utilizando-se apenas cinco das sete notas musicais. Este sistema musical
tem como característica predominante um movimento circular em torno de um centro
fixo, fortemente marcado por um retorno a ele, neste caso, o próprio centro que é a
tônica.
A passagem da música modal a tonal está caracterizada por um
deslocamento da centralidade da tônica para a predominância do pulso. O
entrelaçamento de sete notas da escala dispostas em acordes mediadas por
movimentos de tensão e repouso é sua marca principal.
71
Na música tonal é necessário entender que o ritmo, a melodia e a harmonia
podem mover-se em velocidades diferentes. É POSSIVEL conceber infinitas
variações de ritmo. Essa tríade de ritmo, melodia e harmonia revela a
necessidade de um ponto de vista individual, da mesma forma que um
diretor de cinema posiciona a câmera para um ponto que permite
‗enquadrar‘ a cena como ele mesmo a vê. Embora Nietzsche tenha afirmado
que ‗não existe verdade, mas interpretação‘, a música o precisa de
interpretação. Requer a observação do texto, o acompanhamento de sua
execução e a capacidade do músico para se fundir com o trabalho de outra
pessoa‖ (BORENBOIM, 2009, p. 21)
Mostrando as possibilidades de sua resolução o tonalismo exibe a crise
interna ao sistema de trocas sonoras. E revela como a subjetividade humana foi
explicitada também na música.
Por fim, o tonalismo define-se como um sistema teórico que estrutura a
composição musical em torno de uma nota principal, a tônica, segundo regras
harmônicas específicas marcadas por movimentos de tensão e repouso, isto é, de
um passeio pelas notas e de uma volta à tônica que define a tonalidade de
determinado trecho musical.
Conceitua-se como atonalismo a ausência do princípio tonal que faz girar
todo o sistema musical em torno da tônica. O atonalismo utilizou a escala cromática
de 12 semitons, em substituição à escala diatônica. A uniformidade dessa escala
anulou por completo a funcionalidade e a hierarquia tonal entre os sons.
Um dos modos de atonalismo é a música serial. Criado por Schoenberg em
1923, o serialismo configura a mais total rejeição pelo sistema tonal ao enfatizar as
doze notas da escala e buscando assim a total descentralização dos sons. As
escalas diatônicas e cromáticas unem-se sem fronteiras fazendo surgir uma nova
problemática: a repetição. A ideia de retorno na música atonal se por um
movimento que evidencia a repetição que constrói e desconstrói numa insistência
não linear e que abre possibilidades infinitas de variações sonoras. A série não é um
modo nem é um tema. Não é um modo por meio do qual circula a melodia, pois é
ela, a série, que circula pela trama polifônica. Não é um tema concebido como uma
unidade de identidade melódica, pois está destituída de qualquer identidade estável,
apenas oferecendo ocasião para a manifestação de configurações puramente
relativísticas.
A música serial é por excelência dialética, dotada de uma linguagem repleta
de contradições e ambivalências. O objeto musical é invisível e impalpável,
72
escapando ao tangível e se identificando com o que é indizível. É, portanto, subjetivo
porque propõe a harmonia entre familiar e o estranho, o oculto e o aparente que nela
se organizam.
A natureza psicológica da linguagem musical é extremamente rica. A
qualidade de comunicação que a música promove está ligada ao nosso sistema
psicomotor e às emoções. Também por meio das sonoridades musicais é possível
comunicar, formas emocionais, estados afetivos, capazes de nos levar a associar,
evocar e integrar experiências. Na linguagem musical, em que a relação
significado/significante é estrutural, sua construção, sua leitura e sua escuta são
também alimentadas por emoções e pulsões que escapam à lógica-formal, e dessa
maneira confirma que apenas a superfície da mente é racional.
2.5.3 Linguagem musical
... cada linguagem é uma tradição, cada
linguagem oferece uma série de possibilidades e
também impossibilidades, ou de dificuldades.
(Jorge Luis Borges)
Rechardt (1994) crê que uma das maiores dificuldades de se falar/escrever
sobre música e psicanálise reside no fato de que sua linguagem [da música] é
abstrata e de difícil apreensão. Talvez por isso haja mais interpretações dispensadas
acerca das outras artes.
41
O autor comenta, ainda, que a re-elaboração de conflitos
internos em forma de jogo/brincar é, por certo, um elemento essencial na
experiência musical, mas não o único.
Uma das maiores dificuldades na definição de música é que ―ela expressa a
si mesma através do som, mas este sozinho o pode ser considerado
música pois é, simplesmente, o meio pelo qual a mensagem da música ou
seu conteúdo são transmitidos. Descrevendo o som, muito frequentemente
utilizamos expressões relacionadas à cores: um som brilhante ou um som
escuro; isso, entretanto, é muito subjetivo, pois o que é escuro para um
indivíduo é claro para outro e vice-versa. Contudo existem outros elementos
do som que não são subjetivos. Ele é uma realidade física que pode e deve
41
O autor se propõe a examinar a experiência musical subjetiva que tem como propósito demonstrar
que existe um isomorfismo (similitude na forma, estrutura cristalina similar) que liga o fenômeno
psíquico e a linguagem musical, desde os níveis mais primitivos, até as relações sociais mais atuais.
Para ele ―o ritmo organiza o caos‖. RECHARDT, Eero. Vivenciando la música. In: Psicoanálisis
APdeBA, 1994 Vol.38.
73
ser observada objetivamente, e quando isso é feito, percebemos que ele
desaparece assim que para; é efêmero. Ele não é um objeto como uma
cadeira, por exemplo, que podemos colocar em uma sala vazia e, mais
tarde, encontrá-la ainda ali, exatamente como foi deixada. O som não
permanece nesse mundo; ele desaparece no silêncio. (BORENBOIM, 2009,
p.13)
O conteúdo da música pode ser articulado por meio do som. Mas o fato
de que seu conteúdo não possa ser articulado em palavras o significa,
naturalmente, que ele não exista; se fosse esse o caso, as atuações musicais seriam
totalmente desnecessárias e seria inimaginável que houvesse algum interesse em
compositores como Bach, que viveram há vários séculos. (BORENBOIM, 2009,
p.18)
A música relaciona-se à condição humana, porque é escrita e executada por
seres humanos que expressam seus pensamentos íntimos, sentimentos, impressões
e observações.
A música produz reações cuja amplitude parece depender do conteúdo
emocional. Deduz-se e este é um ponto essencial que a música não evoca
emoções apenas de acordo com a história pessoal de cada um, mas que ela de fato
as provoca.
Essas emoções nascem tanto da experiência particular como de um prazer
universal. Evocam lembranças, mas também se traduzem em manifestações físicas,
como arrepios ou aceleração do ritmo cardíaco. A emoção musical é um diálogo,
uma comunicação não verbal. O prazer que ela suscita regula os comportamentos
afetivos.
O que a linguagem musical pode exprimir é feito unicamente de sentimentos
e impressões, desligada de nossa língua verbal. Escapa à composição musical e
ultrapassa a intenção do compositor. O que permanece inexprimível para a língua
musical absoluta é a descrição exata do objeto do sentimento e da impressão
[objeto] que estes atingem com maior nitidez. A ampliação da faculdade de
caracterizar com acuidade o particular, a música adquire por meio de sua aliança
com o verbo. A propósito disto, verifica-se que houve, através dos tempos, tentativas
para nomear algumas obras, que os próprios autores não nomearam. Chopin
apenas numerava seus estudos e, no entanto, mais tarde, alguns deles foram
batizados com nomes propriamente. Assim como Beethoven hoje tem a ―Sonata ao
74
luar e outras, que outrora foram apenas denominadas, inicialmente, pelo número da
obra e o tom. Não foram os compositores que lhes deram estes nomes porque eles
compositores eram pura inspiração daquilo que não podiam dizer em palavras.
Subjetividade.
Para finalizar esse capítulo, lembro que a música está inserida num contexto
social, cultural e ideológico; fundamenta-se em teorias que garantem sua identidade
(forma, gênero, estilo,); Desse modo, as diversas relações sonoras ganham uma
lógica intelectual e um significado psicológico, que determinam (ou deveriam
determinar) um efeito direto sobre o ouvinte.
Evidente que essa experiência musical é singular para cada ouvinte e deve
também sofrer alterações de uma escuta para outra. Observa-se, ainda, que estilos
musicais diversos podem afetar as pessoas de formas distintas. Essa é uma das
razões que justificam o olhar da psicanálise sobre os manejos musicais.
uma gama infinita de arranjos subjetivos a respeito da articulação
música/psicanálise os quais não podem ser mensurados. Penso que a ideia de
tomar as conexões psíquicas mobilizadas pela música talvez remeta a um horizonte
de criação afetado pela sica. Talvez ela nos afete, porque incide sobre a nossa
memória mais primordial, mais arcaica. O infantil que em nós, o pré-verbal, em
última instância ao feminino original. Mas, novos elementos virão à tona com os
―casos‖ apresentados agora.
CASOS CLÍNICOS
Seria necessário lembrar que o relato de uma
experiência que vivemos, mesmo o mais fiel, é
inevitavelmente uma ficção, a ficção daquele que
o escreveu? (Juan-David Nasio)
A psicanálise possui duas fontes essenciais para o
enriquecimento de sua construção teórica. Por um
lado, e sendo a maior delas, a experiência clínica
é o que permite que a psicanálise não se confunda
com uma elucubração pseudofilosófica, pois é da
escuta da palavra dita pelo analisando isto é, da
fala do sujeito em análise , e de nenhum outro
lugar, que ela retira tanto suas grandes
descobertas como suas mais complexas
interrogações. (...) Por outro lado, e isso desde a
sua fundação freudiana, a psicanálise retira das
conexões com os saberes oriundos das mais
variadas disciplinas muitos elementos que
constituem o objeto de constante reflexão e
questionamento. (Marco Antonio Coutinho Jorge)
76
CAPÍTULO III.
PRISCILA AFETO NO CORPO PSÍQUICO
A música tem a função de trazer conforto e
compreensão, mesmo que seja através do
desconforto e da incompreensão que ela pretende.
O reconhecimento do desconforto e da
incompreensão exige que você alcance isso.
A gente quer ser feliz. (Nando Reis, In Palumbo,
Patrícia. ―Vozes do Brasil 2‖, p. 109, 2007)
Priscila tem 27 anos e está iniciando sua terceira graduação. Dos 17 aos 21
anos, cursou faculdade de Geografia. Depois se bacharelou em Enfermagem, porém
nunca foi enfermeira de fato. Atualmente, está cursando o terceiro semestre de uma
faculdade de psicologia.
Tem uma origem social bastante humilde. Filha de mãe solteira, Priscila não
conhece o pai. Na verdade, segundo sua mãe, algumas tentativas de encontrá-lo
foram realizadas, porém nada resultou de concreto dessa procura. A não ser por
meio de uma foto antiga e mal focada‖, Priscila nunca viu o pai pessoalmente.
Conta não se importar muito com esta situação e vale dizer que, quando procurou
análise por sugestão dos professores em sua atual graduação , queria entender
se o fato de não ter pai faria dela uma pessoa diferente, com problemas ou
dificuldades específicas.
42
Argumentava que para ser psicóloga é preciso lidar
com os próprios problemas‖, mas não via neste fenômeno, não ter um pai, um
problema. De qualquer forma, veio à análise para atender a demanda dos
professores. Aparentemente (fora da análise), Priscila tem esta questão
extremamente bem resolvida. Ou, pelo menos, faz crer que é assim.
Estudante oriunda de instituições públicas de ensino, ela sabia que não
chegaria muito longe se não frequentasse uma faculdade. Também tinha clareza de
42
Padronizei que as falas em primeira ou terceira pessoa dos pacientes aparecerão sempre em
itálico. Os grifos referem-se às falas literais dos pacientes adequadas à linguagem aqui usada. Nos
três casos, detalhes importantes para o entendimento de articulações e elaborações clínicas foram
omitidos com a intenção óbvia de privá-los de qualquer exposição (ainda que o relato tenha sido
consentido por eles) e mais do que isso, detive-me naquilo que me pareceu relevante sobre o
aspecto musical apresentado nas sessões que tivemos e ainda temos (exceção de Charles que hoje
vive em outro Estado). Talvez as informações relatadas sejam em grande maioria ―descartáveis‖,
mesmo assim, resisti à permanência delas, de modo a ilustrar minimamente a história clínica de cada
um desses pacientes.
77
suas limitações e, ao descobrir o índice de candidatos por vaga num determinado
vestibular, prestou a prova para o curso de geografia, por ser menos concorrido, e foi
aprovada. À época, Priscila havia trabalhado numa loja de departamentos como
vendedora de roupas, numa rede de fast-food e também em uma vídeo-locadora.
na faculdade, Priscila vislumbrou a possibilidade de lecionar e, ainda na
metade de seu primeiro ano, conseguiu ser professora substituta na escola que
estudou sinônimo máximo de orgulho para sua condição. ―Dar aulas na escola que
estudei, foi o máximo, uma conquista e tanto‖. Porém, sua e (empregada
doméstica) sempre cercada por dificuldades financeiras, demandava seu apoio.
Assim, toda sua renda era destinada para o pagamento do aluguel, supermercado,
farmácia e, com intervalos bem longos, para a compra de roupas nova para si e, é
claro, alguns CDs - itens de primeira necessidade. Salário recebido, pelo menos um
CD comprado. Se fosse ―pirata‖, três ou quatro. Graças ao advento do MP3 e de um
aparelho portátil, razoavelmente barato, adquirido num camelô do bairro em que
mora, pôde aumentar seu acervo musical significativamente.
43
Como possuía horários vagos, Priscila se dispôs a prestar cuidados à
vizinha que carecia acompanhamento diário de uma enfermeira. Com parte de seu
primeiro salário com a nova atividade, colocou um piercing na cartilagem superior da
orelha, depois, com os próximos salários, em outras partes do corpo: no umbigo, no
nariz e, finalmente, na região da sobrancelha; mais tarde contou bastante reticente e
envergonhada, ter colocado na auréola de um de seus seios. Todos colocados entre
25 e 26 anos de idade, portanto não se tratava de uma adolescente se adequando
ao modismo vigente sobre os hábitos de vestir-se ou comportar-se. Isso me fisgou a
atenção e, mais curioso, passei a investigar as peculiaridades desse movimento,
bem como os significados que ela atribuía a cada um desses gestos.
Eu não os chamaria de radicais, mas, sem dúvida alguma, traziam uma
marca de provocação, não no sentido de afronta, mas, no mínimo, era intrigante
observar os piercings exibidos na face de Priscila em comparação aos de um
transeunte na rua de meu consultório, ou até mesmo aos de um garoto adolescente
que fizera uma entrevista comigo há tempos. Havia um contraste. Seria por sua
idade? Não! Eu tinha visto outras mulheres, até mais velhas, exibindo tal adorno
43
MP3 PLAYER, é um aparelho eletrônico capaz de armazenar e reproduzir arquivos de áudio do tipo
mp3.
78
que talvez não trouxesse uma conotação específica. Penso que, simplesmente, pelo
fato de ser ela minha paciente respondia o porquê de minha curiosidade tão
acentuada. Mas, mesmo assim, destituído de qualquer elaboração teórico-conceitual
a respeito do uso dos adornos, perguntava-me, com certa frequência, o que esses
piercings quereriam dizer? Quase como uma curiosidade sustentada pelo senso
comum. O que leva essa mulher a se comportar de tal maneira?
Talvez fosse, em alguma instância, algo semelhante ao que Cintra (2006)
chamou de ―adolescência prolongada‖.
44
Uma espécie de incapacidade de assumir a
vida adulta, do ponto de vista da convivência social, sentindo-se incapaz também de
lidar com a cobrança de realização de projetos, perdida em meio a crises de
identidade, dúvidas a respeito de seus talentos e valores...
Freud afirmou certa vez que um número assustadoramente grande de
pessoas não consegue separar-se da dependência afetiva e material dos
pais: passam o resto de suas vidas reeditando os conflitos e impasses da
infância. Inúmeros processos de separação dos modos de ser da infância
realizam-se durante os cinco primeiros anos de vida a chamada ‗neurose
infantil‘ que podemos aproximar da travessia do complexo de Édipo. Tais
separações ou ‗rituais de passagem‘ são revividos e elaborados não só
durante as crises da adolescência, mas ao longo da vida e constituem a
‗tarefa nuclear‘ de toda análise bem conduzida. (CINTRA, 2006, p.50)
De certo modo, Priscila não estava totalmente mergulhada na congruência
desse pensamento freudiano, que na verdade era ela quem ―sustentava‖ a mãe,
mas, não dúvida de que a ―separação‖ do pai precisaria realmente ser revivida
em sua análise já que em sua adolescência ―adiantou-se‖ para a vida adulta.
Nos ―momentos de passagem‖, situações de mudanças importantes na vida
na adolescência, por exemplo essa necessidade torna-se maior, na medida em
que perda dos referentes de suporte corporal construídos desde a infância. Essa
reconstituição das bordas corporais é o que suporte à circulação social do nosso
corpo, para nos sentirmos ―em um lugar‖, representados e amparados. (COSTA,
2003)
44
CINTRA, Elisa Maria de Ulhôa. Adolescência prolongada. In: Adolescência. São Paulo: Escuta,
2006, pp. 45-61
79
Mas voltando às perguntas enunciadas: muitas delas batiam à porta de
minha ―atenção flutuante‖.
45
Quando ainda não frequentava o divã, Priscila (na
poltrona) pouco olhava em minha direção o que, por vezes, me deixava mais à
vontade para observá-la sem censura.
Hoje, com mais clareza, penso que Priscila recorreu a essas atuações
(provocando interferências no próprio corpo) na tentativa de recuperar um tempo em
que se dedicava exclusivamente a outras coisas que não a si mesma. Posso falar
em uma reatualização de sua adolescência, vivida em seu tempo de forma muito
adulta e responsável. Ou seja, agora, um pouco de dinheiro e liberdade outorgavam
a ela (amadurecida) possibilidades outrora rechaçadas pelas condições impostas
pela configuração de sua própria história: entre elas a obrigatoriedade de frequentar
com a mãe e as tias uma igreja evangélica.
3.1 O Grunge, o modismo, o gosto, a marca...
Seus músicos e bandas preferidos faziam parte de um movimento musical
que eclodiu na cidade de Seattle (EUA) entre o final da década de 1980 e o início
dos anos 1990. Portanto, não estavam no auge do movimento e de certa maneira
soavam datados. Tratava-se das bandas mais famosas daquele que se denominou o
movimento grunge.
46
Entre as preferências de Priscila se destacavam ainda outras
bandas que não fizeram parte do movimento em si, porém as sonoridades
apresentadas pelas respectivas bandas guardavam bastante semelhança com as
precursoras do movimento.
Penso que uma breve digressão, a respeito de toda a constituição do
movimento, poderia nos ser útil para entender uma maior fração do apelo de Priscila
por suas escolhas musicais. E especialmente à sonoridade (das bandas) que
45
Sobre essa ideia, bem como as associações oriundas do analista cf. BOLLAS, Cristhopher. Sendo
um personagem. Rio de Janeiro: Revinter, 1998.
46
O Grunge era um estilo que se diferenciava do rock que era tocado na época. Foi preciso dar um
nome a essa explosão musical, que estava se tornando a nova moda, e Grunge (que quer dizer sujo
em inglês) foi o escolhido. Grunge foi na verdade um nome sugerido pela mídia e adotado pelo
público a essa explosão de bandas oriundas de Seattle e suas proximidades. As bandas na
verdade não possuem, necessariamente, semelhança musical; cada uma possui influências
diferentes e características particulares, como em qualquer movimento. No entanto, existe evidente
semelhança nos temas e comportamento destas bandas. Associam-se ao grunge bandas como
Nirvana, Alice in Chains, Soundgarden, Pearl Jam, Stone Temple Pilots, Mudhoney, Temple of the
Dog e outras de sucesso mais discreto no meio. (baseado na Wikipedia). (Cf. CD anexo)
80
poderiam ser relacionadas à esfera psíquica da paciente. Ou seja, de modo mais
específico, sua afetação psíquica oriunda desse estilo de música.
A cidade de Seattle em Washington, é considerada o berço do movimento.
Possui um clima muito peculiar: registra 0º ou menos no inverno e 23º, 25º no verão.
Chove em média 200 dias por ano, o índice pluviométrico é elevadíssimo. A cidade
carrega a fama de ser um lugar onde coisas estranhas acontecem. Muitas estórias
sobre OVNIS e cerimônias ocultistas bem como ―dar‖ ao país uma boa quantidade
de serial killers fazem parte dessa cidade com 369,2 km² de extensão cuja
população é de pouco mais de 570.000 habitantes (censo 2000).
Seattle não era uma cidade que recebia grandes bandas de sucesso em
seus arredores. Na época (final dos anos 1980) tais bandas não faziam shows na
cidade por julgarem ser um ―mau negócio‖ subir até a região noroeste para uma
única apresentação. Por conta disso, nunca existiu um circuito de grandes
apresentações na região; não que não houvesse bandas locais, mas eram
escassas. Em geral eram bandas Punk ou de Heavy Metal apresentando um visual
extravagante com aqueles cabelos armados e pontiagudos e muitas correntes. Não
havia nada original, novo propriamente. Poderíamos dizer que se tratava de
releituras de movimentos e modismos do passado.
Poucos shows, aliado ao fato de chover o tempo todo, faziam com que os
garotos, principalmente, da cidade enclausurassem-se em porões com amigos,
vizinhos, colegas de rua ou da escola e começassem com isso a inventar músicas, a
criar um som barulhento formando bandas.
A quantidade de bandas formadas na cidade se explica (de maneira
lendária) pela relação com o clima chuvoso, deixando a cidade com ares sombria e
tediosa. Conta-se que a falta de ocupação de muitos garotos era, invariavelmente,
―corrigida‖ ao formarem uma banda. A ideia era de fato ―fazer barulho‖. Não havia
compromisso com a estética musical, com melodia, ou campos harmônicos: tratava-
se de um som ―nu e cru‖. Inclusive sem preocupação com estilo/moda, se vestiam no
palco como no dia-a-dia, dispensando figurino específico e previamente elaborado.
Certamente, o clima citado, penso, não é suficiente para elucidar as razões
de o movimento ter se concentrado em determinado espaço geográfico. Há hoje, por
exemplo, na internet, milhares de menções ao movimento dando conta, cada fonte à
81
sua maneira, das motivações musicais e afetivas da ―construção do movimento
grungenaquele determinado espaço. Creio que não são o seguras como fontes
bibliográficas, uma vez que a ―verdade‖ fica por conta das singularidades de cada
―intérprete‖, jornalista ou não, que expôs sua visão a respeito do grunge. Não
obstante, o clima parece ser uma questão, ainda mítica, considerável na formação
desses grupos.
Em pouco tempo as bandas começaram a se juntar para alugar galpões com
intenção de realizar seus próprios shows fora de suas garagens. A partir disso,
então, surge uma cena roqueira em Seatlle. Desta vez, sem as comuns ―imitações‖
ou explícitas influências de outros movimentos. Parecia de fato, nascer algo que
mais tarde se chamaria de inédito, mesmo com a reserva de que ineditismo em
música é muito relativo. Fiquemos então com a palavra criativo. Sim! Algo
originalmente criativo nascia naqueles arredores.
O curioso é que todas as bandas tinham consciência de que estavam
apenas se divertindo, de que a terra dos contratos milionários era a Califórnia e de
que ninguém iria até Seattle para contratá-los; ingênuos, como se verá depois;
afinal, todos, ou grande parte desses que ―fundaram‖ o movimento, conheceriam a
fama, o sucesso e o dinheiro resultante do descompromissado e barulhento período
musical. Um contrassenso, que originalmente não corriam atrás desses
elementos. Tornar a sica conhecida, vender 500 ou 1000 cópias de um disco,
transitar por clubes e levar uma vida sossegada sim, coincidia com a ―ideologia‖
grunge. Ou seja, aversão à fama, que com ela viriam as armadilhas da
responsabilidade, sem dúvida, a última coisa que desejavam.
Na maior parte das vezes, as letras das canções são depressivas ou
melancólicas, ou ainda (como a própria cidade que abrigava esses garotos) podem
ser classificadas como sombrias e tediosas, além, é claro, de apresentarem um quê
de rebeldia, invariavemente presente nas canções de rock.
Camisas de flanela com mangas longas, em geral quadriculadas, sobre
camisetas velhas e, de preferência, mal conservadas, calças jeans rasgadas, tênis
all stars, bermudões, coturnos velhos e jeito ―largado‖, eram componentes do visual
desses jovens no início da década de 1990. Aliás, tal imagem até hoje se associa ao
movimento [cf. ―Anatomia do Grunge‖, anexo 1]. Priorizavam a simplicidade e não a
ostentação. Mas o é necessário estar a carácter de algum estilo para segui-lo.
82
Muitos s com visual extravagantes, ou não, foram conquistados ao longo das
produções sonoras lançadas por essas bandas.
Os especialistas (em geral críticos musicais) costumam dizer que, na
verdade, o grunge seria uma combinação sonora entre punk e heavy metal,
influenciados pelas guitarras ―pesadas‖ do metal da década de 1970 e certamente
por letras baseadas no punk também da mesma fase. Assim como a atitude dos
jovens seguidores.
47
A sonoridade produzida pelas bandas do movimento era no início bem mais
pesada se comparado a bandas da chamada segunda fase. O abuso das
distorções de guitarra é frequente nas gravações, bem como a dinâmica punk,
tocando as músicas de maneira muito rápida e invariavelmente bem curtas. Ou seja,
arranjos simples sem grandes preocupações com a estética musical. As bandas da
segunda fase que teriam talvez na banda Nirvana como melhor exemplo, ainda que
mantivessem a estrutura de um som ―sujo‖, traziam algo mais melódico como
componente, ou melhor, novo ingrediente aos altos índices de decibéis
propositalmente presentes, especialmente nos shows. [cf. anexo, CD com seleção
de algumas músicas das bandas que marcaram o movimento].
Havia nas bandas uma característica muito singular, também
intencionalmente mantidas nas gravações em estúdio, qual seja: a aspereza
produzida nas garagens e nos porões dos ensaios. Resumindo: eles tocavam
músicas despretensiosas, desconstruídas e exageradamente barulhentas, por vezes
inclusive, assumidamente desafinadas promovendo apresentações sem mesmo
terem ensaiado anteriormente.
Esses jovens criavam selos, bandas, fanzines, se autoproduziam criando
uma efervescência underground. Tudo de maneira muito natural, sem planejamento
(nada incomum entre adolescentes de grande parte mundo). As misturas sonoras,
barulhentas também lembravam o hard rock da banda Black Sabbath com pitadas
da estética e das atitudes punk, vale repetir: um som agressivo e barulhento. Nada
muito diferente do som underground já presente na cena norte-americana.
47
Importante diferenciar que punk e metal além de distinguir um estilo/moda, movimento, também
servem para nomear o gênero musical. Muitas são as definições, e nem sempre congruentes. Para os
mais interessados sugiro a leitura de dois interessantes títulos que rastreiam os movimentos e suas
peculiaridades com bastante clareza e correção: Punk: Anarquia Planetária e a Cena Brasileira,
(Silvio ESSINGER, Editora 34, 1999) e Heavy metal: guitarras em fúria, (Tom LEÃO, Ed. 34, 1997).
Interessa-nos saber aqui que tal mistura teria influenciado o modo grunge de tocar os instrumentos.
83
Teoricamente, o que se começou a fazer de diferente foi inverter a escala
de notas das canções dos Sex Pistols e a dar um ar mais compassado,
mais Sabbathiano por assim dizer. Foi essa sonoridade que veio a ser
chamada mais tarde de "grunge", coisa que na época ninguém pensava em
nomear. (OLIVEIRA, 2002, p.1)
Esse, então, era o contexto musical no qual estavam inseridas as bandas
veneradas por Priscila, a quem voltamos agora propriamente. Digamos que a fase
dos piercings desencadeou em Priscila o interesse por tatuagens. O estúdio, onde
fizera a colocação de suas jóias, também estava repleto de tatuadores expondo
seus trabalhos e modelos, enfim, como ela dizia, instigando sua vontade.
Cada vez mais seduzida com a ideia, decidiu, finalmente, tatuar um signo
musical em seu pé. Uma clave de sol [ ]. Mostra com orgulho a marca que a liga
com a música, pois música é uma coisa de pele, visceral, toca e te atravessa. Algum
tempo depois, tatuou o mesmo desenho num dos braços. Depois, ainda, tatuou o
que chamou de matar dois coelhos com uma cajadada apenas, a sigla P.J. que,
além de compor as iniciais de seu nome, também significariam as iniciais de sua
banda preferida, qual seja: Pearl Jam.
48
Sua análise caminhava, de certo modo, produtiva. Ela conseguia formular,
cada vez mais, com maior precisão, suas questões. O círculo acadêmico também
parecia proporcionar boas reflexões a respeito de sua própria constituição. Vivia a
teoria e a prática. Agora, entendia que estava ali, não por um mero conselho de seus
professores. Parecia realmente entender o significado, a importância e as
dificuldades implicadas num processo como este. Tudo o que se pode esperar
emergir num processo analítico ali estava.
Tudo, exceto um ―senão‖. Toda proximidade com qualquer assunto que
remetesse a seu pai era imediatamente desviado, rechaçado e não havia
intervenção que a fizesse falar sobre ele. Parecia existir um anteparo sonoro e visual
que impedia o acesso à figura paterna. Foram meses de esquiva, digamos, natural,
pois o analista a deixava à vontade para conduzir a fala e as respectivas reflexões.
Hoje, penso que esse meu ―disfarçado‖ desinteresse tenha sido um agente
provocador de sua fala cifrada no primeiro momento.
48
Pearl Jam foi um nome surgido aleatoriamente a Eddie Vedder (vocalista da banda). Sua avó se
chamava Pearl e era casada com um índio que influenciou seu estilo de cozinhar. A lenda diz que ela
criou uma receita de geleia que continha um alucinógeno, batizada pela família de Pearl Jam [geleia
de Pérola]. (SANCHES, L. O movimento grunge, 2004.)
84
Numa sessão muito silenciosa, disse quase ao término que tinha algo a
confessar Imaginei que fosse um novo piercing , mas que não gostaria de falar
com detalhes sobre aquilo, depois que me contasse. Pediu que eu não perguntasse
a razão e que, assim que contasse, ou melhor, assim que me mostrasse,
terminaríamos a sessão. Concordei, garantindo-lhe que acabaríamos ali, porém
disse a ela que, para o processo, sua decisão de contar tal segredo (fosse o que
fosse), parecia importante demais para não ser comentada. Penso que esse meu
comentário tenha a posteriori surtido algum efeito. Ainda que, obviamente, ela
demandasse falar sobre aquilo até então inominável, o que, naturalmente, acabou
acontecendo no encontro seguinte concretizado depois de três faltas
consecutivas.
Finalmente disse-me que não tinha dúvidas quanto ao meu conhecimento na
língua inglesa e levantando-se do divã, postou-se virada de costas à frente de minha
poltrona um pouco distante (talvez tímida), entretanto, perto o suficiente para que eu
lesse logo acima da altura da cintura da calça a frase tatuada em círculo: The
picture kept will remind me.
49
A forma circular da disposição da tatuagem
demandou-me alguns segundos para decifrá-la. Abri a porta, em silêncio, como
combinamos, e nos despedimos. Imediatamente escrevi a frase.
Meu paciente seguinte telefonou cancelando a sessão, tempo que passei
procurando a frase em sites de busca e música na internet. Algo me fazia acreditar
que se tratava de um verso de alguma canção de sua preferência. Não tive muito
tempo, nem paciência para continuar a procura ali, porém, suas faltas seguintes,
como enunciei, me deram mais tempo para pesquisar. E encontrei a seguinte
música de autoria da banda Pearl Jam:
49
―A foto guardada vai me fazer lembrar‖.
85
Daughter
Alone
Listless
Breakfast table in an otherwise
empty room.
Young girl
Violins
Center of her own attention.
The mother reads aloud, child tries
to understand it
Tries to make her proud.
The shades go down, it's in her head.
Painted room...can't deny there's
something wrong...
Don't call me daughter, not fit to.
The picture kept will remind me.
Don't call me daughter, not fit to.
The picture kept will remind me.
Don't call me...
She holds the hand that holds her down.
She will rise above.
Don't call me daughter, not fit to.
The picture kept will remind me.
Don't call me daughter, not fit to be.
The picture kept will remind me.
Don't call me...
The shades go down...the shades go down...
The shades go, go, go...
86
Traduzindo:
Filha
sozinha
desatenta.
a mesa de café da manhã
num quarto vazio diferente
menina jovem
violinos
centro de sua própria atenção.
a mãe lê em voz alta e a criança
tenta entender,
tenta deixá-la orgulhosa.
as sombras descem, está na sua cabeça.
Quarto pintado... não dá pra negar
que há algo errado...
não me chame de filha, não combina.
a foto guardada vai me fazer lembrar.
não me chame de filha, não estou pronta pra isso
não me chame
ela segura a mão que
permanece com ela
Ela subirá ao alto
Não me chame de filha, não estou pronta para isso
a foto guardada vai me fazer lembrar.
Não me chame de filha, não estou pronta para isso
a foto guardada vai me fazer lembrar.
Não me chame...
As sombras descem... as sombras descem...
As sombras vão, vão, vão...
87
3.2 Escutando a música
A música Daughter
50
é tonal, o que quer dizer que sua construção se
caracteriza, principalmente, sobre os fundamentos da tonalidade. Ou seja, trata-se
da relação entre as notas e os acordes de uma ―peça‖ com determinada centralidade
designada tônica.
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Composta em Sol maior (G), releva a simplicidade da harmonia
do violão e da guitarra, que basicamente atuam em Sol maior e Sol maior com
(G4), deixando o contrabaixo exercer a função de instrumento melódico da
composição. Isso significa dizer que o trabalho do baixo juntamente com o da bateria
é ―frasear‖ melodicamente como uma espécie de sustentação para o vocal, soturno,
porém doce. Tal fraseado é claramente percebido quando a música muda sua
harmonia para Mi menor com 7ª (Em7), pontuando, a partir de então, em Mi menor
com 6ª (Em6).
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Basicamente o violão e a guitarra atuam em Sol (G) e criam essa tensão
quando passam para Em7 (6º grau da escala de Sol maior). Vale dizer que o 6º grau
de todo o campo harmônico cria uma tensão natural e quem resolve essa ―tensão‖ é
o contrabaixo que trabalha como um contraponto da linha melódica do vocal para
voltar novamente à nota Sol (G).
Daughter revela a simplicidade de uma música tonal bem resolvida, aliada
ao vocal denso com uma mensagem musical bem simples, não obstante sofisticada,
que não perde nenhum atributo por ser tonal; não é maçante, chata ou cansativa.
Notadamente a letra cantada é repetida, praticamente despercebida que a suave,
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Sugiro ao leitor que ouça a música, faixa número 1 do CD anexo, antes de continuar a leitura.
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[A música tonal] ―Começou a perder espaço no final do século XIX com a incursão de diversos
compositores pelos caminhos da atonalidade, novas trilhas abertas por compositores como Wagner,
especialmente na obra Tristão e Isolda. A partir do abandono gradual do conceito de tonalidade, que
vigorou por quase três séculos, surgiram definições como atonalismo (ausência ou indefinição de
tonalidade), a pantonalidade (expansão dos limites do conceito de tonalidade), a bitonalidade
(emprego de duas tonalidades justapostas) e a politonalidade (múltiplas tonalidades)‖. (DOURADO,
Henrique. Dicionário de termos e expressões da música. Ed.34, 2004.) Em se tratando de rock e
música pop, é comum observar o trânsito de alguns artistas pela atonalidade, (o americano Frank
Zappa talvez seja o maior exemplo desse percurso), porém é realmente na via da tonalidade que
transita a maioria esmagadora das bandas comerciais de pouco ou grande sucesso. Ou seja,
apresenta uma tonalidade definida, uma hierarquia entre as notas utilizadas, girando em torno de
uma principal. Certamente Pearl Jam ocupa esse rol.
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Rápido glossário: harmonia é a combinação de notas musicais soando simultaneamente, para
produzir acordes. O termo é usado para indicar notas e acordes combinados e, também, para
determinar um sistema estrutural de princípios que governam suas combinações; melodia, de forma
genérica é certa sequência de notas organizadas sobre uma estrutura rítmica que encerra algum
sentido musical. Ritmo é a subdivisão do tempo em partes perceptíveis e mensuráveis, ou seja, a
organização do tempo segundo a periodicidade dos sons (DOURADO, ibidem, 2004).
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porém vigorosa harmonia ‗pontua‘ e quebra a marcação do tempo rítmico. Não é
aleatória, pelo contrário, mantém um ciclo. Tem um centro tonal específico gerando
um "percurso" harmônico e melódico com tensões e repousos.
Foi registrada em versão de estúdio pela primeira vez em 1993, lançada no
segundo álbum da banda intitulado Vs. Seu compasso é quaternário.
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Os
instrumentos utilizados na gravação original são: violão de aço, baixo, guitarra,
bateria e o vocal propriamente.
Resumindo: simplicidade e sofisticação são as características mais
marcantes da composição.
Os sites relacionados ao grunge e especialmente ao Pearl Jam trazem a
música apresentada como uma espécie de ―hino da banda‖, de modo que nunca fica
à margem das apresentações ao vivo. Ela é sempre cantada/tocada nos espetáculos
dos quais participam.
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a letra da canção é, sem dúvida, hermética. Provavelmente traz
referências muito pessoais a respeito de seu compositor. Restam-nos, entretanto,
apenas elucubrações a esse respeito.
Parece haver uma ideia de uma mudança, não se sabe o que a mãe está
lendo em voz alta para a criança entender (como muitas vezes teria a mãe de
Priscila contado histórias sobre seu pai? E esta ensurdecida pelo abandono não
teria ouvido). uma mão que segura uma pessoa. algo errado, que não
para saber o que é. O que se que a filha sente? Por que pede para não ser
chamada de filha, porque não se capaz desse papel (not fit to be)? Como isso
está no refrão e é a mensagem mais intensa e, naturalmente, traduzindo a letra,
ficamos tentados a interpretar se Priscila se identifica com o conteúdo abordado na
canção ou se se ateve apenas ao verso sublinhado, aquele que tatuou: The picture
kept will remind me‖ (a foto guardada vai me fazer lembrar). Todas essas são
hipóteses para uma rasa interpretação, que o sei exatamente, como se verá
mais adiante, se Priscila tomou a letra ou apenas o verso para ―identificar-se‖.
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Compasso é unidade métrica musical formada por grupos de tempos em porções iguais; compasso
quaternário significa dizer que essa unidade tem quatro tempos.
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A banda ainda é atuante e recentemente comemorou 20 anos de carreira lançando um CD com
músicas inéditas.
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Na letra da canção e na vida de Priscila, fundamentalmente, sobra um
retrato para ser lembrado. Diz ainda para não ser chamada de filha (Don't call me
daughter), pois não se sente filha de um pai que a abandonou, não combina (not fit
to) sentir sua falta, mas sente, pois ritualiza a foto, único objeto que garante alguma
relação possível.
Lembro que a paciente, desde que começou a questionar (segundo ela, uma
ou duas vezes) sobre o paradeiro do pai, teve um prêmio de consolação doado pela
mãe: a foto velha, na qual ele aparece abraçado com mais quatro amigos. Tal foto
está guardada dentro da bíblia.
Cabe outra digressão. Até os 17 anos, Priscila foi assídua frequentadora de
cultos religiosos, estimulada pela mãe e pelas tias. Só questionou sua crença
quando no curso de geografia; Eram muitos estímulos que me afastavam cada vez
mais dos dogmas religiosos‖. Aos 19, não sentia nenhum interesse pela
comunidade religiosa que frequentava. Desde então, sua bíblia não é aberta. Há
quanto tempo a foto do pai está ali alojada? Ela, novamente, não sabe dizer ao
certo. Não tem lembrança de que tenha sido ela a colocar lá, tampouco soube
precisar desde quando guardada lá está. Ela vê a foto? Não. Trata-se de uma
lembrança traumática, como se verá mais adiante.
Evidentemente, com a exibição da tatuagem, seu pai veio à tona, mas por
enquanto tratava-se apenas de fantasias minhas, porque, que sentido teria para ela?
Conhecia a letra de fato? Dissera-me que estava aprendendo inglês com traduções
de músicas que gostava...
Sua ascensão era notável. A menina humilde conquistava espaços
profissionais colhendo frutos que ela mesma havia plantado. Infelizmente, não havia
na (desmembrada) família nenhum traço de reconhecimento, regozijo, a respeito de
seus feitos. Parecia-me que a música era tida como único suporte que a sustentasse
de bem com as adversidades encontradas na vida. Dizia sempre: estou de boa
com a vida.
Para ela [e isso não é exclusividade desta paciente], sua vida estava repleta
de ilustrações musicais. Era como se cada letra com a qual se identificava, ou que a
identificava, desse a ela mais força e vontade de prosseguir na luta por seus
objetivos. As ilustrações musicais também se davam pelo som, ou seja, Priscila não
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dependia exclusivamente das letras das canções para entendê-las ou apreciá-las.
Muitas das músicas que ouvia, eram (segundo seu relato) estranhas, no que se
referia ao entendimento das letras, mas o som me pega‖, dizia. Sempre tem algo
no ritmo que me envolve e aí viajo no som da música‖.
Priscila comentou a vontade que pairava em alguns de seus devaneios de
tatuar-se inteira com frases como esta, que a explicassem. Que ilustrassem sua
história. Disse ter assistido a um certo filme no qual uma personagem se tatuava
para se lembrar de quem era realmente.
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Porém, sabia que não era uma boa ideia
de fato, pois lhe causaria certos problemas, sem contar que sua mãe morreria do
coração.
Sim, disse, meses após revelar-me a tatuagem: ―acho que é sobre a foto que
tenho guardada, eu não o conheço, mas ele é tão parte de mim...‖ ―Acha?‖
Perguntei, ela então silenciou, chorou como nunca teria chorado na frente de
nenhuma pessoa. Soluçando disse ter certeza de que era isso, mas que tinha
vergonha de admitir, pois não conseguia ser orgulhosa a ponto de realmente ignorar
a existência do pai/ausente. Agora marcado para sempre, presente na pele.
Certo dia, assistindo TV, salvaguardado pelo controle remoto, eu me deparei
com um programa exibido pelo canal People & Arts intitulado Miami Ink.
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Tal
atração se propõe a contar as histórias que estão por trás da vida de cada tatuado
ou de cada tatuagem a que os participantes do programa se submetem durante a
exibição.
O que de fato me chamou a atenção foi a frase que ouvi assim que sintonizei
o canal: Faço tattoos, pois, assim como a música, ela é trilha sonora para nossas
vidas‖. Ouvi de outro participante, na verdade um aspirante a tatuador: As pessoas
que aparecem aqui para se tatuar estão sempre querendo dar sentido a alguma
história de sua vida com a imagem que imprimirão no próprio corpo. A imagem está
sempre relacionada a uma história de vida. É como dar voz a uma coisa que não
poderia se dita‖. E arremata no final do programa: As pessoas gostam de se tatuar
para lembrarem-se do que superaram‖. Essa imagem pode ser análoga à sica,
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Provavelmente trata-se do filme ―Amnésia‖ (Memento), de Christopher Nolan, 2000.
56
Atualmente o canal chama-se Liv, pela curiosidade sugiro uma visita ao site oficial do programa:
http://tlc.discovery.com/fansites/miami-ink/miami-ink.html
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que grande parte das pessoas encontra nesta [música] uma espécie de
organizadora de indizíveis.
A música é um modo ímpar de dizer o que não pode ser falado, de ouvir o
inaudível.
Lembrei-me, então, inevitavelmente, da paciente e passei a assistir, sempre
que possível, ao programa semanal. Não como um exercício, mas
fundamentalmente pela curiosidade nessa prática tão fascinante e, ao mesmo
tempo, estranha. Talvez, ―estranha‖ não seja, de fato, a melhor palavra para
expressar tais impressões, pois, em certo sentido, remeter-nos-ia à ideia do espectro
freudiano, ―o fantasma‖; ainda assim o antônimo de fascínio não parece ser
suficiente para explicar as tantas outras sensações eclodidas diante das mais
diversas formas e tamanhos de tatuagens exibidas em centenas de milhares de
corpos mundo afora.
A tatuagem tem uma importância etnológica que está além dessa discussão.
Presente em culturas diversas, essa ―arte do corpo‖ exibe um traço essencial do ser
humano que se refere à necessidade de processar e significar suas vivências e
experiências e ―dar-lhes‖ alguma forma de expressão. Muitos são os significados
atribuídos à tatuagem que apresenta múltiplas funções nas culturas:
Já utilizada como sinal de realeza; como símbolo de devoção religiosa; para
marcar a transição da adolescência para a fase adulta, como distintivo de
um clã ou tribo, como meio de identificação pessoal ou uma forma de
demonstrar valor ou virilidade; como estímulo de atração sexual; como
talismã para afastar os maus espíritos, como parte necessária de ritos
funerários, para diferenciar a mulher casada da mulher solteira; como
demonstração de amor, como forma de marcar e identificar escravos ou
marginais. Também usadas como fator curativo ou preventivo. (REISFELD,
2005, p.22)
Para Priscila, a tatuagem teve e tem um papel que representa suas
escolhas. Tal traço a marcou, literalmente. Voltarei a esta afirmação.
No programa televisivo, anteriormente comentado, a reprodução de
imagens-retratos de ―pessoas queridas‖ é uma constante. Seja do filho, do pai, da
mãe, do namorado, ou ainda o nome da pessoa, representado por caracteres
orientais ou arabescos, por exemplo.
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Também no programa, tatuagens com os nomes ou com os desenhos das
fotos dos entes queridos mortos fielmente reproduzidas pelos excelentes artistas-
tatuadores fornecidas pelos que querem ser tatuados, igualmente, o
intensificam as lembranças daqueles desaparecidos, mas os mantêm vivos e
eternos, marcados na pele destes que os perderam.
Modismo entre as celebridades, a criação desses ―laços de sangue‖ (afinal,
trata-se de perfurações sequenciais de agulhas que marcam o desenho e o fazem
sangrar para somente depois cicatrizarem) é muito mais comum do que se poderia
imaginar, é só atentar para o alto índice da população que se tatua.
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Entre os adolescentes, as maiores motivações para realização de piercing
ou tatuagem são: a procura de uma forma de se exprimir personalizada,
fazer uma prova de coragem e seguir uma moda. Além disto, são citados a
pressão dos pares e o desejo de pertencer a um grupo. Para os estudantes,
a arte corporal é um meio para criar seu próprio ritual de passagem à idade
adulta, onde as sociedades nada haviam previsto para eles. Na maioria
das vezes o uso do piercing nada tem a ver com um prazer na dor‘, mas a
dor que acompanha o piercing o é mais que um efeito secundário
importante necessário a um ritual de passagem bem-sucedido. Destas
motivações, a principal é a busca de uma individualidade, de uma
identidade pessoal. (GORENDER, 2008, p.40)
Tatuagens e piercings atraem o olhar do outro e expressam a ruptura com
limites; Por vezes é atribuída a essa ―inclinação narcisista‖ a busca por marcar o
corpo. Porém tal análise precisa ser feita com cautela, porque de o geral acaba
perdendo seu fundamento. Se o uso das marcas corporais tivesse como explicação
algo inerente exclusivamente a nossa sociedade, como entender seu uso o
milenar e abrangente? São curiosas as maneiras como nos representamos, em
diferentes lugares e relações.
As marcas corporais são formas de produzir zonas e recortes que
representam, ao mesmo tempo, limites e traçados. Esse funcionamento testemunha
a necessidade constante de reconstituição de nossos orifícios. Estes são como
bordas, que compõem a erotização resultante do funcionamento de nossas pulsões.
São os limites que constituem a relação do corpo com o ambiente, com o outro e
com a realidade, formando passagens interior/exterior, tanto separando como
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Dados de 2006 do Sindicato das Empresas de Tatuadores e Body Piercing do Brasil (SETAP)
apontam que, até então, 25 milhões de pessoas eram tatuadas no país. Certamente esse número,
agora em 2010, tenha avançado significativamente.
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confundindo nossos limites ou permitindo ao mesmo tempo a reunião ou
comunhão com o outro. (COSTA, 2003)
Nosso erotismo se apoia nessa ambiguidade constante de
fusão/distanciamento, por meio do exercício de nossos orifícios: boca, ânus, olhos,
ouvidos.
Para entender o lugar das intervenções no corpo em nossa sociedade,
podemos pensar que tatuagens e piercings visam tanto a inclusão em ―tribos‖
urbanas, quanto a iniciativa individual de mudar de ―estado‖, como transposição de
tristeza de amores perdidos e lugares desfeitos ou incorporação de coragem para
mudar.
Pensando em sua função para essas pessoas, vemos o quanto pode
funcionar como busca de um lugar. A tatuagem pode funcionar nesse caso como
possibilidade uma contenção.
Nosso corpo é marcado por traços invisíveis e incompreensíveis, apesar
de se expressarem materialmente que buscam algum destino social. Esse
―endereço‖ se constitui tanto nos amores privados quanto nas situações que
envolvem reconhecimento por parte do grupo. Temos sempre de inventar
possibilidades de inclusão. A produção de marcas contém um elemento de
erogenização: produzir prazer ao se oferecer para o olhar do outro. Mas também
pode trazer um elemento de insuficiência e se tornar compulsão, levando à
necessidade de repetição incessante. (COSTA, 2008)
No que diz respeito ao olhar, é importante pensar na diferença entre a
tatuagem e a maquiagem. A maquiagem também atrai o olhar do outro para o corpo.
Mas isso não permite a suposição de algo definitivo, tem mais a ver com a
possibilidade de brincar com o engano. a tatuagem traz em si a ideia da marca
definitiva e, só de forma secundária, ―convida‖ ao jogo do engano.
Se na passagem pela adolescência essa forma de marcar o corpo pode ser
suporte de uma singularidade, também temos experiências sociais nas quais as
marcas imprimem anonimato.
De alguma maneira, a entrada na cultura pela aquisição da linguagem,
mutila, e ao mutilar produz detritos restos impossíveis de representar. Com esses
restos corporais e psíquicos se produz arte e literatura, que é uma forma de
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reinscrevê-los na cultura. Muitas vezes fazemos o inverso: interpretamos como
detrito o nosso aparente sucesso, o nosso produto maior. Dentro disso, dor e
mutilação ou o retorno de um masoquismo primário, como propõe Freud ocupam
lugares variados na forma como cada um se organiza.
As marcas corporais (tatuagens, piercings e escarificações) sempre foram
usadas em todos os tempos e na maioria das sociedades. É muito
importante poder considerar a história de cada sujeito e a cultura à qual ele
pertence. Em cada época, esses corpos têm servido de motivação para
retratar a beleza, a saudade, a lembrança ou a nostalgia de algo importante
em suas vidas, dando-lhes um sentimento de ligação e pertinência. Se
falhas na constituição do sujeito, devido a uma ausência de cuidados
maternos [ou paterno para Priscila], poderá ocorrer um estado de excitação
pulsional permanente e difusa, capaz de transformar essa angústia através
de um envoltório físico. As mais diversas formas de sequelas deixadas por
marcas no corpo, poderiam ser retratadas pela expressão ―sofro, logo
existo‖. Diante desse vazio, a pele servirá de objeto continente para que o
conteúdo, ainda que pobre, possa vir a ser construído nela. (HENRIQUES,
2008, p.159)
De volta ao caso e sobre a representação de suas escolhas, Priscila se
refere à própria ascensão sempre com orgulho, mencionando, duas ou três vezes,
que escreveria a história no próprio corpo em forma de tatuagens. Que história
seria? Pergunto.
Meus passos, as coisas que consegui comprar, meus amores (Priscila
conta que se apaixonou apenas três vezes até então). Aqui um pequeno parêntese:
diz que brigou com o namorado, pois ele insinuou que ela devia ter muitos
problemas mentais por ficar tatuando letra de música em inglês nas costas. Disse,
ainda, que ela, cada vez mais, se comportava como uma relaxada e desleixada, tal
como uma adolescente revoltada. Ela replicava, dizendo que tal visual” tratava-se
de uma escolha. E era intencional mesmo, dizia. Romperam, mas reataram.
Creio que não cabe uma interpretação ou mais delonga a respeito da
efêmera briga do casal, a não ser observar que tal revelação foi crucial para o
mergulho de Priscila na fala a respeito dessas articulações. E eu arriscaria ainda
dizer que esse ir e vir, no rompimento com o namorado (já que eram brigas
quinzenais praticamente), também se assemelha ao fort-da freudiano, bem como o
―romper‖ e ―reatar‖ com a imagem do pai.
Ela confessa que o interesse de conhecer o pai sempre a rondou. Ora isso
era tomado por um sentimento muito frustrante, ora desesperador. Essa lacuna em
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sua vida era pela primeira vez verbalizada. Dizia, ainda, que preencher a lacuna não
era fácil. Todas as tentativas de conhecer o pai ou de saber mais sobre ele ou sobre
a foto que herdara foram inúteis. Mas ela nunca quis demonstrar desconforto com
isso, sempre se esforçou muito para não sofrer essa ausência. Eu sinto vergonha
de assumir que não tenho pai, quer dizer, que ele me abandonou...‖ Afirma,
inclusive, que talvez essa tenha sido sua força para conquistar o mundo‖. O meu
mundo!‖, exclamava sempre enfática.
Do pouco que se falou sobre a frase tatuada, além de confirmar que se
tratava de um verso da música da banda Pearl Jam, Priscila também relatou que
chegou a pensar em tatuar a imagem da foto em seu braço. Mas a imagem
distorcida provavelmente não ficaria boa. Nesta, uma de suas derradeiras sessões,
na qual muito se emocionou, falou bastante a respeito de não sentir rancor, nem
ódio, mas, fundamentalmente, da falta. Eu não sei o que aconteceu, por que ele se
foi, se ele fugiu, se ele morreu, se ele me abandonou, sei lá... sei apenas que não o
tenho fisicamente, mas acho, pensando aqui na análise, que esta [tatuagem] foi a
melhor maneira que encontrei para -lo perto, sica e emocionalmente. Mas não
acho que foi consciente, sei lá... às vezes acho que foi, às vezes não...
Ainda que seu discurso se revelasse bastante enviesado pela ―fala da
estudante‖ de psicologia, pareceu-me de uma riqueza que se somou à minha
intervenção àquela pontuação: a marca tatuada pode ser a marca que revela a falta,
mas agora, inscrita no corpo, preenche a lacuna. Revelando outros indizíveis. Por
exemplo, rancor, ressentimento, saudade.
O vazio engendrado a partir da ―ausência do pai‖. Simples? Óbvio? Talvez.
Mas ―o buraco‖ era, sem dúvida, este. O que incomodava e inquietava sua posição
no mundo.
A tentativa de capturar seu indizível e amenizar sua inquietação me pareceu
bem sucedida. Pôde ser simbolizada. A figura do pai que, segundo o discurso
lacaniano, é tratada como metáfora, aqui foi tratada como figura literal, aliás, como o
próprio Freud admite de maneira consistente ―que reconhece (muitas vezes) o pai
como figura literal‖ (AZEVEDO, 2001, p. 26).
Priscila pôde interrogar-se e descobrir-se. ―Encontrou‖ a foto e agora a exibe
num lindo [literal] porta-retratos.
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Encontrou também partes de seu mundo interno, e pôde simbolizar esta falta
que poderia ter uma outra inscrição não pela via concreta (corpo) mas metafórica
pela foto/ externa-interna.
Certamente, a partir de sua ida ao divã, se livrando de meu olhar, e não
precisando mais expor o próprio corpo, inteiro e explícito, (importante lembrar que
certa conotação erótica está presente ao levantar parte da vestimenta para mostrar
para o analista uma marca em seu corpo) permitia a ela uma distância necessária
para criar e reatualizar questões que a perseguiam em seu íntimo. Incomodando-a
suficientemente para, por exemplo, calar-se diante de um assunto tão emergente: a
figura do pai. E mais: além do erótico, quando exibe o corpo e a frase marcada na
pele para o analista, na transferência, me coloca no lugar da figura paterna a quem
desejaria, mesmo que timidamente, exibir tal marca que denuncia a tão sofrida
ausência-presença. Perguntei-me também: Por que a tatuagem foi feita nas costas e
não em um lugar mais visível do corpo? Teria a ver com o fato de o pai ter lhe virado
as costas? Ela própria só consegue olhá-la através de um espelho, literalmente.
Não é cil olhar para as próprias marcas, mas, elas estão, inscritas. Para
mostrá-la a outras pessoas, precisa levantar a blusa ou a camiseta. Precisa
desnudar-se, ainda que muito timidamente. A relação com este pai (ou a condição
de filha deste pai) é ainda algo difícil e doloroso de se lidar, não é facilmente
revelada. O próprio analista tem certa dificuldade em decifrar as letras tatuadas que
encerram essa difícil relação. Mas Priscila, na transferência, ainda, ao intuir ou
avaliar que eu conhecia a língua inglesa, coloca-me no lugar de um pai
compreensivo e acolhedor. Capaz de compreendê-la e decifrá-la? A partir do
momento em que faz a tatuagem e a mostra, começa a tentar entender e a decifrar,
ela própria, o que verdadeiramente sente em relação ao pai e por que ele se foi?
O espírito da música, que era inaudito e ilimitado, encarnando-se num corpo
cujos movimentos vão explorar seus próprios limites, vai cessar de ser
invisível para tornar-se visível. Mas essa visibilidade do corpo tem algo de
paradoxal: ela só advém por intermédio de um corpo velado, sobre o qual o
tapa-sexo nos instrui: tu és visível porque o real cobrou o imposto que te
recorda que, se adquiriste a visibilidade, é porque uma parte de ti adquiriu a
invisibilidade‖ (DIDIER-WEILL, 1999, p. 23)
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3.3 Função do pai, Corpo erógeno
Tais fragmentos a respeito do processo analítico de Priscila suscitam uma
série de caminhos teóricos a serem percorridos. Alguns poderiam ser considerados
clichês pela obviedade ou até mesmo por aparentar fazer uma interpretação pautada
em articulações clássicas da psicanálise. Pai, mãe, Édipo, regressão, inconsciente,
agressividade (pulsão de morte)... Enfim. Mas o que importa aqui o os fatos, e
como eles se deram na articulação clínica, daquele momento de reflexão sobre os
fragmentos coletados pela escuta flutuante.
Nesse sentido, Serge Leclaire (1992 [1979]), lançando mão da ideia de
corpo erógeno e Didier Anzieu (2000), com a ideia de Eu-pele, respectivamente,
contribuem de maneira significativa para compreensão do que Priscila fez com seu
corpo, tomando como inscrição de um dizer musical, ou melhor, de uma afetação
musical na sua vida psíquica instaurada de alguma forma em sua pele.
Tomando a ideia de que a pulsão não está determinada apenas
corporalmente e que ela é infinitamente criadora de ―novos corpos‖, Leclaire
apresenta a noção de corpo erógeno. Para ele, o corpo erógeno substituiria de modo
mais vantajoso algo tradicionalmente chamado de psique. E é justamente para
introduzir sua teoria a respeito do complexo de Édipo, que o autor inicia seu texto
discorrendo sobre o como a ―função do pai‖, será útil para entender a configuração
triangular.
E para entender a função do pai não se trata da representação clássica e
famosa do ―pai forte‖, ou do ―pai fraco‖, como figura literal. Disse anteriormente que
Priscila tratou assim, como literal a figura do pai, mas penso que só pôde fazê-lo por
conta do registro da fotografia. Antes disso a ideia de um pai ausente, morto ou
desaparecido certificavam as fantasias de Priscila, que neste último caso a imagem
é mais precisa: é nesta conjunção que o pai ou a função do Pai estariam melhor
representados, embora, certamente não sob a rubrica desta figura do pai de que
tanto se fala. ―Trata-se de superar a imagem para tentar aprender a função, função
sempre alterada ou desviada a partir do momento em que se pretenda dar-lhe como
suporte uma imagem ou representação‖. (LECLAIRE, 1992, p. 32)
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Não podemos desconhecer que os enunciados sobre o Pai na obra
freudiana se apresentam em três versões: em Totem e tabu, em Moisés e
em Édipo. Por este caminho não seria errado pensar que o estatuto do
Outro, nas formulações de Lacan, se apresenta como uma conjunção
conceitual destas três versões. Porém isto não seria suficiente se o
destacamos a lógica implícita nos argumentos que sustentam essas versões
do pai. Isto é, considerar as formulações metapsicológicas que estão
alicerçadas nos relatos míticos, inclusive da vivência mítica de satisfação.
Ali podemos apreciar a gênese do complexo semelhante (Nebenmensch) e
o estatuto da Coisa, que não são alheios à formalização desta invenção do
Outro (CRUGLAK, 2001, p. 25)
Entretanto, no argumento mítico o corpo se situa no banquete totêmico, o
corpo a ser devorado é o corpo do pai assassinado. Pai morto que se tornará pai
simbólico. O substituto como símbolo, o totem no relato do mito, no lugar do pai se
fará lei; um pelo outro a morte se simboliza. (CRUGLAK, 2001, p. 39)
A ausência paterna na constituição de Priscila, ausência que na verdade,
como se viu, é marcada (literalmente) pela ―presença tatuada‖ do pai, que outrora
―não existia‖, pode ser entendida por essa função.
Birman (2006) também colabora conosco ao descrever a cultura da
tatuagem disseminada em nossos tempos altamente buscada pelos jovens ,
diante da invisibilidade identitária que os marca a ferro e fogo. E afirma que
A juventude marca seu corpo com tatuagens como formas desesperadas
para adquirir alguma visibilidade, isto é, para ser identificada e
singularizada. Ao lado disso, procuram se reinscrever em outras linhagens e
ascendências imaginárias, denunciando desde modo a fragilidade presente
no seu sistema de filiação. (BIRMAN, 2006, p.42)
Então podemos reconhecer que o desamparo que caracteriza a juventude, e
aqui especificamente o desamparo de Priscila com a ausência do pai, inscreve
dolorosamente em seu corpo ―lancetado pelas tatuagens, a sua condição psíquica
torturada. Formando assim, a partir da marca em seu corpo, uma complexa
sonoridade musical que deu voz a seu sofrimento ‗colado‘ na imagem psíquica.
Quando a tatuagem é feita por adolescentes, aparentemente designa um
suporte para a circulação social do corpo. A produção dessas marcas tem a ver com
a reconstituição de um circuito da pulsão, faz com que o corpo seja libidinizado, mas
também, fundamentalmente, representado para o outro, principalmente na captura
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do olhar. A libidinização e o suporte representacional permitem dois movimentos: o
de pertença a um grupo e o de expressão de um erotismo.
Observando a questão da geração do corpo erógeno de modo mais abstrato,
vejo que, estruturalmente, a função paterna se situa entre a singularidade do corpo
erógeno e a universalidade da lei. Leclaire fala do
Corpo erógeno como algo singular/individual; da singularidade de um corpo
erógeno, do secreto de um fantasma, ou da organização libidinal que,
porém, se conjugam com a universalidade de determinados fantasmas
preexistentes à existencia de determinados indivíduos (fantasmas de
sedução, de castração e mesmo fantasmas de assassinato). (LECLAIRE,
1992, p. 38)
O pai como genitor, guardião da lei, fruidor e iniciador são algumas
constantes da função do pai; o que Lacan (segundo LECLAIRE, 1992, p. 39)
tematiza sob a rubrica do Outro é justamente este um que nunca pode encontrar seu
lugar no Outro, mas que faz com que o Outro esteja marcado. Nesse sentido, vejo
claramente a clivagem de Priscila, que por um lado enxerga a ausência do pai, por
outro, nega sua existência.
A função paterna pode ser situada como aquilo que garante a clivagem
entre o corpo biológico e o corpo erógeno, aquilo que gera o corpo erógeno,
aquilo que assegura a articulação do singular da unidade erógena com a
universalidade do discurso dito de outra forma, que permite que um
fantasma origine uma organização libidinal, um fantasma que não é o
fantasma original e universal, mas que, de certo modo, constitua um
fantasma, que seja realmente o fantasma singular que preside a
organização libidinal do indivíduo. (LECLAIRE, 1992, p. 40)
As pulsões estão entre o somático e o psíquico, como postulado por Freud.
Para alcançar a visão ―nome do pai‖ é preciso abandonar a ideia de virilidade
atrelada à imagem do pai. Trata-se, repito, de uma função e essa se num plano
simbólico. Assim como a pele marca/simboliza o pai ausente/presente, (soma), a
mente se angustia pelas mesmas razões (psíquico).
100
3.4 Eu-pele
Em seu livro, ―O Eu-pele‖, Anzieu (2000), faz inferências importantes a
respeito da dupla sustentação para o psiquismo: uma, sobre o corpo biológico, outra,
sobre o corpo social (em relação com o ambiente).
O Eu-pele é uma realidade do tipo fantasmático: figurada ao mesmo tempo
nas fantasias, nos sonhos, na linguagem corrente, nas atitudes corporais,
nas perturbações de pensamento; e fornecedora de um espaço imaginário
que é componente da fantasia, do sonho, da reflexão, de cada organização
psicopatológica. (ANZIEU, 2000, p.18)
Assim, o autor apresenta o Eu-pele como uma metáfora em que caberiam
todas as questões referentes à construção do psiquismo como uma estrutura
intermediária do aparelho psíquico: entre a e e o bebê, entre a inclusão mútua
dos psiquismos na organização fusional primitiva e na diferenciação das instâncias
psíquicas que corresponde à segunda tópica freudiana (ANZIEU, 2000, p.19).
A complexidade fisiológica das funções da pele antecipa a complexidade do
eu no plano psíquico. Anzieu afirma que a pele é o mais vital dos órgãos dos
sentidos, pois podemos viver cegos, surdos, sem paladar e sem olfato, mas sem a
integridade da maior parte da pele não nos é possível. Por essa razão pressupõe a
existência de relações que tem na pele um meio de representação/relação.
A noção de Eu-pele busca entender como se formam os envelopes
psíquicos cuja metáfora de contenção é a pele, e define o "eu" como uma estrutura
de envelope , suas estruturas, seus encaixes, suas patologias e como, por meio da
psicanálise, seriam restabelecidas as fronteiras no sujeito. Por fim o Eu-pele pode
ser entendido como uma função continente que dividiria, ou melhor, diferenciaria as
zonas interna e externa do corpo.
58
58
Sobre o adoecer cutâneo, Anzieu assinala o arranhar-se como uma das formas primitivas do
retorno da agressividade sobre o corpo; mutilações da pele, reais ou imaginárias, como tentativas
dramatizadas de manter os limites do corpo e do eu, restabelecendo sentimentos de coesão,
juntamente com a sensação de estar intacto. As feridas apresentadas quando da existência de uma
doença de pele não poderiam acaso ser consideradas uma forma de mutilação, posta a característica
autoimune de algumas dessas doenças? A tatuagem não seria uma ferida imposta também? Afinal,
Priscila relatou o quão dolorido foi marcar-se. Dolorido ser marcada, interpretemos. ―O sofrimento
masoquista, antes de ser secundariamente erotizado e antes de conduzir ao masoquismo sexual ou
moral, se explica primeiro por alternâncias bruscas, repetidas e quase traumáticas, antes do andar,
da fase do espelho e da palavra, de superestimulações e de privações do contato físico com a mãe e
101
Como Eu-pele Anzieu compreende, também, a representação que serve ao
eu da criança durante seu precoce desenvolvimento, a partir das experiências da
superfície do corpo. Corresponde ao momento em que o eu psíquico se diferencia
do eu corporal. Toda a atividade psíquica se estabelece sobre uma função biológica.
Nesse sentido o Eu-pele se firma desempenhando o papel de interface que marca o
limite do que está fora como um meio de comunicação com os outros,
estabelecimento de relações significantes , e o que está, digamos, dentro dessa
superfície inscrita de traços deixados por tais relações.
a fantasia de uma pele comum oriunda da experiência amorosa mãe-
filho, que se encaminha para um funcionamento cada vez mais separado. Essa
etapa requer o desaparecimento da pele comum e o reconhecimento de que cada
um tem sua própria pele e seu próprio eu, o que não acontece sem resistência nem
dor.
Uma configuração que toma o lugar do corpo e que é a pele, não como
embalagem, invólucro, mas como forma sensível e de visibilidade do corpo. A pele
tende a funcionar como limite, zona de separação entre o dentro e o fora, fronteira
de uma zona de poluição, de interdito, de legislação das práticas do corpo, ordem do
simbólico que ajuda a formar a própria identidade.
A pele adquire a função de continente de todo o fluxo de significados e por
essa razão o corpo/pele é por excelência, superfície de contato, abertura ao mundo
e ao(s) outro(s), lugar de comunicação e partilha.
É possível falar primeiramente de uma correspondência metafórica entre o
eu como ―envelope psíquico‖ e a pele como ―envelope orgânico‖; em seguida, de
uma relação metonímica que liga o eu à pele, na medida em que eles se inscrevem
ao mesmo tempo como dentro e fora, um englobando o outro.
O fora não é um simples envelope, uma fronteira, mas o próprio lugar da
sensação. A importância da pele vem do fato de ela estar em contato com o Outro.
Anzieu a pele sempre como pano de fundo e apresenta entre outras
funções do Eu-pele, a volta contra si da pulsão agressiva que teria a mãe como
objetivo final, exatamente pelo processo de diferenciação. Como não reconhece o
seus substitutos, e, portanto, de satisfações e frustrações da necessidade de apego‖. (ANZIEU, 2000,
p. 63)
102
outro, volta contra si mesmo. Isso talvez explique a relação de Priscila e sua mãe, no
acordo tácito de não falar sobre o pai com clareza, abertura e sinceridade. (Sobre a
agressividade ver adiante pulsão de morte/compulsão à repetição).
A instauração do Eu-pele responde à necessidade de um envelope
narcísico e assegura ao aparelho psíquico a certeza e a constância de um
bem-estar de base.‖... por Eu-pele designo uma representação de que se
serve o Eu da criança durante fases precoces de seu desenvolvimento para
se representar a si mesma como Eu que contém os conteúdos psíquicos, a
partir de sua experiência da superfície do corpo. Isso corresponde ao
momento em que o Eu psíquico se diferencia do eu corporal no plano
operativo e permanece confundido com ele no plano figurativo. (ANZIEU,
2000, pp. 61-62)
Priscila não teve concretamente o toque do pai (que por meio da tatuagem
toca agora sua pele), portanto a carência da carícia pode ser entendida como
proibição de se colar ao corpo do outro. Teria a mãe suprido esse contato? O quão
seu desenvolvimento psíquico foi afetado, de modo a permitir, ou não, que o
envelope psíquico fosse particularmente apropriado?
A capacidade de Priscila suportar e acolher a dor e impotência diante da
ausência do pai não era das mais maduras. Seu processo de luto, pelo menos até a
inscrição do verso na tatuagem não estava ainda elaborado.
Para elaborar ―a morte‖ do pai foi necessário gerar uma nova relação objetal,
capaz de construir uma nova catexia pulsional. Desse modo, inscrito na tatuagem, o
pai passa a existir como memória de um passado.
O ponto de partida de qualquer trabalho de luto é a pergunta por quê? Por
que comigo, por que a mim acontece isso? Interrogação perplexa dirigida à
divindade, às ‗potências obscuras do destino‘ na expressão de Freud, em
O problema econômico do masoquismo à Alguém, versão mitológica dos
pais, no patético da ilusão quebrada e, da tentativa, in extremis, de
recompô-la na busca de uma resposta, ou seja, de um sentido. Foi junto a
eles, aos pais, que fomos encontrando os sentidos. Eles não respondiam
com o calor de um olhar animado, alegre, a cada movimento nosso? a
mãe, desde o primeiro sorriso ou primeiro grito, não foi ela que nos ensinou
que o sorriso era um sorriso e o grito um apelo?Seria possível pensar que
agora ninguém responde, ninguém responde pelo que acaba de me
acontecer, que o mundo segue o seu curso, silencioso e indiferente em seu
jogo de dados, ignorando meus sonhos mais profundos, inclusive aquele de
que nas equações que dizem o acaso e as leias da física, pelo menos
alguma letrinha me representasse em minhas aspirações? Onde está o
quarto tão familiar, tão habitado, da ‗criança maravilhosa‘? Mas nada, a o
ser o silêncio barulhento do movimento cego das engrenagens do real,
nenhum aceno, só o automatismo mecânico, a repetição muda. É nessa
linguagem tão particular, que a evocação de experiências clínicas
103
permite, que prossigo aqui, procurando dizer que sentido(s) tem encontrado
o conceito de pulsão de morte em meu trabalho de analista. (MENEZES,
2001, p.175)
3.5 Pulsão de morte
A respeito da imagem circular [ver figura abaixo] que a tatuagem de Priscila
apresenta, fui levado a uma radical (talvez nem tanto) analogia com a compulsão à
repetição.
E aqui, naturalmente, abrimos espaço para discutir a controversa pulsão de
morte, tratada por Freud em ―Além do princípio do prazer‖ (Más Allá Del principio de
placer, 1920). Neste texto, é bom saber, submetido a tantos comentadores de Freud,
somos lançados a muitas interpretações a respeito da ideia de pulsão de morte que
escolher qualquer definição, sem o devido cuidado, prejudicariam substancialmente
nossa compreensão do conceito em sua essência.
Em geral as relações afetivas comportam algum grau de ambivalência, que
corresponde à pulsão de vida e pulsão de morte. O domínio da pulsão de vida sobre
a pulsão de morte (domínio das forças de ligação, de construção) embora possa
haver um embate permanente entre ambos os movimentos (de ligação, construção,
permanência, de um lado; de desligamento, desconstrução, de outro, é sempre
evidente quando as coisas andam bem. Em contrapartida, se angústia, por
exemplo, são necessárias desconstruções que ocorrem em função das adaptações
à realidade.
Há, sem dúvida, uma dimensão catastrófica e frágil que circunda a ideia de
não pertencer a uma função paterna. O vínculo não estabelecido com um
representante de paternidade lança Priscila num abismo de autoagressões.
104
Podemos falar também em ruptura do vínculo que talvez tenha se formado
simbolicamente que promove uma liberação de forças de pulsão de vida e de pulsão
de morte, necessitando, então, encontrar novos investimentos no campo de relações
objetais do sujeito. Nesse caso, o objeto para um investimento pulsional capaz de
absorver cargas libidinais que seriam originalmente destinadas à relação afetiva
com o pai é a própria Priscila; seu corpo/pele é o objeto de certa agressividade,
lembrando que tanto os furos dos piercings quanto das agulhadas que desenham as
tatuagens são certamente doloridos na pele. E, como vimos não são menos
desprazerosos emocionalmente (configuração psíquica).
A pulsão de morte se refere à descarga destrutiva aos objetos ou, quando
barrada por alguma força, que se reintrojeta e volta contra o próprio sujeito, como
autodestrutividade, caso de Priscila.
A destrutividade para com o objeto primário não é apenas, como descreveu
Freud, desvio da destruição para o exterior tão importante quanto isso
possa ser , mas que o desejo de aniquilamento está, desde o começo,
dirigido ao mesmo tempo contra o self que percebe e contra o objeto
percebido, quase indistinguíveis um do outro. (Hanna SEGAL in: ―A pulsão
de morte‖, p.30)
Haveria ódio dirigido ao pai por conta de sua ausência? Por que a mãe
sofreria um ataque do coração se visse a filha completamente tatuada?
diferentes módulos das representações afetivas no caso de investimentos pulsionais,
ciúme, a inveja, a vingança, na vertente das relações objetais, e autoataque,
depressão, desejos suicidas, na vertente da relação como o próprio eu.
As pulsões são religadas pela construção de outras relações objetais, e
podem aqui ser entendidas como vinculadas aos aspectos musicais, isto é, além do
próprio corpo, um investimento direcionado às descargas que a música
(especialmente o estilo/gênero) adotada por Priscila provoca (nela).
Como a pulsão de morte tende a descarregar-se sobre algum objeto
culpabilizável estaria Priscila se culpando pela ausência do pai? Como se o
abandono da mãe e dela respectivamente tivessem sido estimulados pela notícia da
gravidez (indesejada, ao menos para o pai)? Se a resposta for positiva, vejo o
processo de culpabilização eclodido pela necessidade de justificar o ataque
destrutivo ao objeto. Novamente: ela própria.
105
3.6 A compulsão à repetição
Freud não escapa das duras consequências do período de guerra das
primeiras décadas do século passado. Certamente enfrentou difícil situação
econômica; comentam seus biógrafos que temia pela sorte do filho servindo no
fronte; no mesmo período com mulher adoecida a filha morre, deixando dois netos. E
ainda, a febre espanhola dizimando milhares de vítimas, preocupava toda Europa.
Sem dúvida um cenário pouco propício para felicidade e, certamente, o momento
não inspirava otimismo. É provável que todos esses fatos tenham levado Freud a
refletir sobre a ―violência‖ do cotidiano humano, em suas mais diversas
manifestações: violência do desejo, do qual a guerra tinha sido uma expressão
evidente, violência da cultura que limita o sujeito, submetendo-o a regras que
frustram seus impulsos, enfim... No entanto, o caminho pelo qual Freud chega ao
conceito de pulsão de morte, em Além do princípio do prazer, é outro.
Sem dúvida os numerosos fenômenos ligados a traumas de guerra se
refletiam no psiquismo dos pacientes. Esse reflexo se dava mediante a presença de
sonhos traumáticos notou Freud. Assim, como considera o sonho uma manifestação
do desejo inconsciente, tornou-se necessário postular a existência de um
funcionamento psíquico que levasse à repetição de experiências traumáticas,
situado além do princípio do prazer, pois, indubitavelmente, nestes casos, não pode
ser o prazer o elemento motivador do sonho. Freud constata que, nessas
experiências, conteúdos inconscientes reprimidos esforçam-se para se expressar. A
primeira experiência a que Freud se refere é aquela ligada aos sonhos que se
relacionam às neuroses traumáticas. Trazer o paciente de volta à situação de seu
trauma: uma experiência nada agradável.
Freud introduz a novidade trazida pela noção de traumatismo, em além do
principio do prazer, de que a análise não se limita às representações
inconscientes recalcadas, mas que ‗algo‘ que age como o recalcado e
que ele chama de ‗sensações e sentimentos‘ inconscientes, em todo caso
‗algo que não tem representação‘, perguntando-se sobre que via este ‗algo‘
poderia tomar para poder ter acesso à consciência. Teria de passar pelas
representações pré-conscientes da palavra? Sim, é sua resposta, esta é a
única maneira de tornar consciente este ‗algo‘ (o trauma, a dor sem
representações?) é preciso passar pelas palavras. Reafirmação dos
fundamentos do método, qualquer que seja a elasticidade do fazer clínico.
Neles reside a sua especificidade e os fundamentos de sua ética.
(MENEZES, 2001, p.169)
106
Com isso Freud inicia sua reflexão sobre a pulsão de morte tomando
fenômenos marcados pela repetição e o fenômeno da transferência como base de
seu texto. No livro, percebe e relata ser clara a indicação da existência de algum
princípio do psiquismo que vai além do princípio do prazer.
Entretanto, ainda que haja o domínio do princípio de prazer, maneiras e
meios suficientes para tornar o que em si mesmo é desagradável em situação a ser
rememorado e elaborado na mente. Mesmo assim, observa Freud, em última
análise, estas situações ainda têm a produção de prazer como resultado final. Assim
Freud encontra na prática analítica um indício inegável da necessidade de ir além do
princípio de prazer e em particular, repito, no fenômeno da transferência analítica.
A compulsão à repetição se origina nas resistências do eu, quando o trauma
não é assimilado e não se forma uma representação. Tais resistências funcionam
sob a influência do princípio de prazer, pois buscam evitar o desprazer que a
liberação do reprimido causaria. Seu objetivo, portanto, não é evitar o desprazer. No
caso de Priscila a compulsão à repetição rememora do passado experiências que
não incluem possibilidade alguma de prazer, a porque, com seu pai, isso não
ocorreu.
Se pensarmos na música como sugere Wisnik (1989, p. 175), relacionada
com um traço determinante do tempo que foge à experiência: o não-tempo
inconsciente, enquanto tempo não linear, não ligado, não causal, tempo das puras
intensidades diferenciais ela resolve, por um lado, a questão do retorno e do
movimento de tensão e repouso, fortes marcas do tonalismo, cria por outro lado uma
nova problemática que é a repetição. Neste sentido, Wisnik considera que esta é o
mais puro traço da compulsão à repetição.
A subjetividade humana instaura-se, pois, a partir da desordem, da falta, da
incompletude, que desencadeará um movimento dinâmico pela busca de realização
do desejo que não mais terá fim e acompanha o homem nas suas mais diversas
produções, invenções e criações, inclusive musicais. ―A sica está sujeita, como
sempre, à flutuação do significante, que oscila entre não dizer nada e dizer tudo,
porque, sem portar significados, aponta para um sentido global (universo sonoro
que, se não diz nada, diz, de algum modo, um todo)‖ (WISNIK, 1989, p. 77).
107
Priscila repetia na transferência as situações indesejadas e emoções
penosas, especialmente as que tangenciavam a (não)história com o pai. Indicativo
de que em sua configuração a compulsão à repetição tinha domínio sobre o princípio
de prazer. Tratava-se de uma ação necessária do inconsciente em realizar o próprio
desejo, que, ao ser bloqueado pelo eu, não tem outra saída a não ser repetir-se
indefinidamente. A circularidade da tatuagem é uma clara representação dessa
repetição pulsional. Não fala do pai, mas ali está ele, marcado. Num eterno retorno,
novamente pensando no formato geométrico circular do desenho.
Como explica Mezan (1991), referindo-se ao processo de repetição nas
neuroses traumáticas:
Repetir é procurar ganhar controle da situação, e também preparar o
indivíduo para resistir melhor a traumas futuros, dotando-o na capacidade
de desenvolver angústia e desta forma estar prevenido quando eles
ocorrerem (...) Podemos perceber que a repetição envolve uma nova
concepção da temporalidade, já que o presente, o passado e o futuro
deixam de estar em relação linear e passam a reproduzir-se um no outro
como um jogo de espelhos. (MEZAN, 1991, p. 256)
Observando seus netos, Freud apresenta a famosa ideia de repetição nos
jogos infantis no qual a criança lança longe de si um objeto, aguardando que alguém
volte a apresentá-lo para ela. Neles a criança simboliza, no gesto repetido de jogar
longe de si um brinquedo, a experiência de separação da mãe. A criança,
inicialmente dominada pela experiência de ser abandonada pela mãe, ao repeti-la na
sua brincadeira, assume um papel ativo, como se quisesse controlá-la.
O fenômeno da repetição é visto por Freud como uma experiência não
prazerosa tentando receber alguma assimilação psíquica. Uma experiência psíquica
elementar, mas que Freud genialmente atesta que a criança estaria elaborando a
"perda" da mãe, vivenciada toda vez que esta se afasta dela.
Um dos pontos que parece dos mais estabelecidos da teoria analítica é o do
automatismo, do pretenso automatismo da repetição, cujo primeiro exemplo
foi tão bem mostrado por Freud em Mais além do princípio de prazer. Vê-se
como age a primeira mestria: a criança abole seu brinquedo, pelo
desaparecimento. Essa repetição primitiva, essa escansão temporal, faz
com que a identidade do objeto seja mantida na presença e na ausência.
(LACAN, 2005, p.35)
108
Pensando na circularidade da tatuagem de Priscila, e a disposição da
frase/verso da música inscrita de maneira circular, repito e seu significado
(lembrança via foto) são experiências apresentadas em forma de repetição. Sem
dúvida envolve sentimentos reminiscentes. Tenho que a repetição é caracterizada
pela ―lembrança‖ não marcada pelo prazer, estabelecidos nas primeiras relações de
objeto, na infância. O que chama a atenção aqui é a natureza compulsória da
repetição, remetida a uma pulsão de caráter primário no funcionamento psíquico.
Tal funcionamento psíquico parece ter a função de restabelecer um estado
original, anterior ao atual (que causa desprazer). Então diante de uma ameaça de
desprazer no embate com as exigências da realidade, ela é deslocada, distorcida e
transferida pelos processos defensivos que se manifestam nos sintomas.
o que insiste em repetir não são apenas as fantasias de desejo recalcadas,
mas também, e isto é diz Freud ‗fato novo‘, experiências do passado, sem
nenhuma relação com o prazer, experiências desde sempre dolorosas
tendem também a se repetir na análise. E os neuróticos repetem e fazem
reviver com muita habilidade todas essas circunstâncias não desejadas e
todas estas situações afetivas dolorosas‘. Entre outras coisas, eles obrigam
o médico a lhes falar duramente e a lhes tratar friamente‘, quer dizer, adotar
comportamentos em contradição com a neutralidade benevolente própria à
função analítica. O analista é levado a agir os seus afetos, incapaz de
pensá-los! Trata-se, em suma, de situações em que o analista é deslocado
das condições psíquicas requeridas pela escuta e pela necessidade de dar
sustentação às solicitações transferenciais.‖ (MENEZES, 2001, p.165)
A necessidade de reduzir as tensões ao mínimo necessário para a
sobrevivência provoca tensão. As excitações, porém, não vêm apenas do mundo
externo, mas também do próprio organismo humano. O aumento da tensão
evidentemente origina desprazer, que, por sua vez, resulta numa descarga em
busca do prazer (alívio). Foi a partir deste processo, que Freud chegou à sua
primeira formulação, vale repetir: o que caracteriza o funcionamento do psiquismo é
a dominância do princípio do prazer. Mezan afirma ainda que ―o desejo é repetição,
como a experiência é reencontro; a repetição é o modo no qual o desejo existe e
insiste‖. (MEZAN, 1991, p. 259)
Priscila reduz as tensões ao tatuar-se, ou as aumenta?
Freud credita a dominância do princípio do prazer na vida mental em razão
do aparelho mental se esforçar para manter a quantidade de excitação nele presente
tão baixa quanto possível, ou, pelo menos, por mantê-la constante.
109
O princípio do prazer interage com outro princípio regulador, o princípio de
realidade, que está ligado aos processos mentais secundários, processos em que os
estímulos pulsionais são vinculados a determinadas representações. Essa é a
função do eu: agir como intermediário entre as exigências pulsionais do inconsciente
e o mundo externo. assim pode evitar que a atividade pulsional se volte contra o
próprio indivíduo. Desse modo permite, ao mesmo tempo, que a sobrecarga
pulsional seja mantida num estado suportável de tensão e o fluxo pulsional em
situação de constância.
Em si, a repetição não apresentaria nenhum problema, se tivesse como
objeto experiências agradáveis. Isto confirmaria a predominância do princípio de
prazer, sustentada por Freud. Mas, em algumas circunstâncias, a repetição não tem
como objeto experiências prazerosas, e sim experiências dolorosas. Como as
observadas em Priscila e nas crianças com o jogo de esconder freudiano (fort-da)
que repete, ou melhor, carrega o desprazer/trauma tatuado no corpo.
O objetivo da análise é tornar consciente o que é inconsciente. Este
processo, contudo, não funciona se for apenas baseado nas considerações teóricas
do analista, por este ―comunicadas‖ ao paciente. Para o processo analítico ter efeito,
o paciente é levado pela própria análise a ―repetir‖ o material reprimido como se
fosse uma experiência contemporânea, no lugar de recordá-lo como algo
pertencente ao passado. No entanto, nem tudo pode ser significado, nem faz
sentido, nem tudo é recalcado no inconsciente; sendo assim, nem tudo se
recordável na experiência analítica. No lugar do não recordável/não interpretável,
Freud coloca a compulsão de repetição: em vez de recordar, o sujeito repete, em
ato, o que não pôde se tornar consciente, recalcado.
As características pulsionais da compulsão à repetição aparecem como uma
derivação da natureza mais íntima das pulsões e suficientemente poderoso para
desprezar o princípio do prazer. Cada elemento que se repete nessa cadeia deixa
de ser idêntico a qualquer outro por ocupar um espaço único.
Por fim, compulsão é, em resumo, uma tendência a repetição de
acontecimentos infelizes da infância e é a análise que pode ser agente facilitador da
―redramatização‖ da situação traumática, buscando novos sentidos de representação
para cada sujeito. Se as necessidades forem satisfeitas, não problemas... Cabe
ao discurso psicanalítico, quando tais necessidades não são satisfeitas, buscar
110
entender a impossibilidade de reencontro do repetido com o original (gerando todo o
tipo de sintomas neuróticos).
Quando Priscila mudou da poltrona para o divã, o que se passava na análise
até então era sua eficiente dissimulação a respeito do pai. Sua ida ao divã, penso,
foi determinante para que pudesse compor sua música psíquica organizando
minimamente a carga desprazerosa na relação paterna.
Após ver o analista e ouvi-lo, passou principalmente a ouvi-lo durante a
sessão. Poderia ser um divisor de águas, esse movimento de aceitação plena do
processo psicanalítico, tendo introjetado a figura do analista presente. Como ela
expressa seu íntimo por meio da música, estava criado o vínculo necessário (ouvir)
para ela poder prosseguir no caminho do autoconhecimento.
Quanto ao pai, não foi possível saber se ele a registrou como filha lhe dando
o sobrenome e desapareceu, ou se sumiu sem reconhecê-la como tal. Quem, de
fato, dá existência ao pai é a mãe que guardou uma foto onde aparecem ―cinco pais‖
em potencial (fantasia inconsciente mais primitiva). A mãe escolhe um deles e o
distingue dos demais. Não fosse esse gesto materno, as implicações sobre a falta de
um pai poderiam ser bem mais graves.
Não se trata de amnésia, mas de uma lacuna mais profunda, pois ao invés
de relembrar, ela tem que criar um vínculo e torná-lo presente, apesar do seu
desconhecimento sobre o pai. Além disso, persistem os laços de sangue
(elaboração secundária) que passam a ter um destino reconhecido na pele, onde
são colocadas cinco piercings...
Ela passa dos piercings para as tatuagens. A pele provê um sentimento de
unidade, da individualidade (ser o próprio corpo). Surgem os devaneios de tatuar-se
inteira com frases. Como ela dizia: "esse é o meu mundo... eu não o conheço, mas
ele é tão parte de mim... esta [tatuagem] foi a melhor maneira que encontrei para -
lo perto, física e emocionalmente".
Ela falava da frase circular, porém ao escrever pensei nas iniciais. P.J.
Como se fosse uma certidão de nascimento inscrita na pele que limita, contém,
protege (eu corporal). Como é sabido, são as iniciais de seu nome, e além de
coincidir com Pearl Jam, também, coincide, pelo menos a letra ―P‖, com inicial do
111
nome de seu pai. ―P‖ de pai, ―P‖ de Pedro... Finalmente ela diz: "... música é uma
coisa de pele, visceral, toca e te atravessa."
O pai que nunca viu, nem ouviu pôde ser representado na música Daughter.
Note-se que a mãe é mencionada, segurando a mão da filha. Mas, há algo errado: a
falta do pai que é percebido na foto guardada que servirá de recordação. Na
verdade, não fosse a mãe, ela poderia se sentir órfã. No limite extremo, poderia nem
ter nascido mentalmente ainda (não me chame de filha, como diz o verso da
canção).
... graças ao exemplo de Freud, vocês podem perceber essa coisa simples
que consiste em dizer que o símbolo do objeto é justamente o objeto-aí.
Quando ele não está mais aí, é o objeto encarnado em sua duração,
separado de si próprio e que, por isso mesmo, pode estar de certa forma
sempre presente para você, sempre ali, sempre à sua disposição.
Encontramos aqui a relação que entre o símbolo e o fato de que tudo o
que é humano é conservado como tal. Quanto mais humano, mais
preservado do lado movediço e descompensante do processo natural. O
homem faz subsistir em uma certa permanência tudo o que durou como
humano, e antes de tudo ele próprio. (LACAN, 2005, p.36)
3.7 Imagem do Corpo
A imagem do ser ou
da coisa que amo, odeio, temo ou desejo é
sempre falsa. (Juan-David Nasio).
O sofrimento psíquico criado pelo sintoma não
seria a percepção endopsíquica de uma alienação
de liberdade induzida pela descontinuidade do
corpo, do espírito e do sujeito? (Alain Didier-Weill)
Outro autor que contribuiu com esse modo de pensar as marcas que
conduziram a vida psíquica de Priscila é J.D. Nasio, via seu recente livro ―Meu corpo
e suas imagens‖ (2009).
Sua contribuição é muito cara para essa tese, na medida em que cria
articulações sobre a marca, imagens que a criança tem do próprio corpo desde sua
primeira infância ao se dar conta do Outro nas relações que estabelece com o meio
social.
112
Quando a criança percebe que a imagem que ela a ver aos outros é a
imagem do espelho, e que essa imagem é ela, que os outros só têm acesso a
ela pelo que ela a ver, com isso ela privilegia as aparências e negligencia
suas sensações internas. (NASIO, 2009, p.21)
Não é possível sentir nenhuma emoção, viva, agradável ou dolorosa sem
que, simultaneamente, imprima-se sua representação psíquica. Nasio afirma que
―todo vivido afetivo e corporal intenso, consciente ou não, deixa seu traço indelével
no inconsciente‖ (NASIO, 2009, p.25).
Para que uma sensação torne-se constitutiva do inconsciente e possa
imprimir sua imagem, são necessárias duas condições: primeiro que seja uma
sensação emanando do corpo quando o bebê acha-se em estado de desejo, ou
seja, em busca do corpo de sua mãe para nele encontrar ternura e serenidade, e
assim saber de modo intuitivo que seu pai, amado por sua mãe, proporciona-lhes
uma segurança afetiva. A condição segunda para que uma sensação forje uma
imagem duradoura é a repetição.
Com efeito, para que uma sensação deixe sua marca, é preciso que seja
frequentemente sentida, repetitivamente percebida e, a cada vez, associada
à presença carinhosa, desejante e simbólica dos pais. É apenas assim que
uma sensação repetitivamente sentida e emanando de um corpo marcado
pela presença da mãe terá suficiente intensidade para gravar no
inconsciente uma imagem vivaz, capaz de influenciar para sempre o destino
do sujeito. (NASIO, 2009, pp.30-33)
A imagem da emoção não é em absoluto uma figura, ―a imagem da emoção
não é visual, mas essencialmente rítmica; ela é o traço de um ritmo, a marca em
relevo das variações ritmadas da intensidade emocional‖. (NASIO, 2009, p. 35)
A imagem inconsciente do corpo em vez de uma linguagem de sensações é
uma linguagem das emoções. Sua proposição afirma que a imagem do inconsciente
do corpo é uma linguagem de ritmos; ―e que falar essa linguagem significa antes de
tudo, para o terapeuta, entrar em ressonância com a vibração básica, funcional e
erógena dominante em seu paciente‖ (NASIO, 2009, p.35).
Não somos nosso corpo em carne e osso, somos o que sentimos e vemos
de nosso corpo: sou o corpo que sinto e o corpo que vejo. Nosso eu é a
ideia íntima que forjamos de nosso corpo, isto é, a representação mental de
nossas sensações corporais, representação mutante e incessantemente
influenciada por nossa imagem do espelho. Em suma tenho o sentimento de
ser eu mesmo quando sinto e vejo meu corpo vivo. Eis a ideia motriz da
113
qual toda nossa obra é desenvolvimento. Para nós, o eu é, portanto,
composto de duas imagens corporais de naturezas diferentes, mas
indissociáveis: a imagem mental de nossas sensações corporais e a
imagem especular da aparência do nosso corpo. Sentir viver meu corpo e
-lo mexer-se no espelho me a sensação inegável de ser eu. (NASIO,
2009, pp. 54-55)
A imagem inconsciente do corpo de Priscila afinou-se com a tatuagem.
Representante de seu sintoma da falta causada pela ausência e ―descaso‖ do pai
em sua história de vida. É possível pensar que o uso afetivo que fez da música, ou
do movimento grunge em sua história foi fundamental para a compreensão de suas
emoções. Priscila usou artifícios, certamente inconscientes para inovar a experiência
pretérita da falta. Como se a tatuagem fosse usada como um conjunto de marcas
evocando as sonoridades que simbolizam a ausência do pai. Nesse sentido o texto
de Nasio também contribui com essas articulações ao afirmar que
... O que importa num tratamento analítico não é a rememoração, mas a
revivescência. Quando escuto meu analisando, provavelmente espero que o
passado surja, mas quando ele surge através de uma emoção, ele se torna
o instante presente mais inédito possível. Quando o passado se reatualiza,
não é mais passado, é uma produção. O inverso também é verdadeiro.
Quando inovamos, quando realizamos um ato criativo, isto é, quando
modificamos nosso meio ambiente e modificamos a nós mesmos, tenhamos
certeza, é nosso passado que volta e nossas raízes mais profundas que
afloram. (NASIO, 2009, p. 49)
A questão mais importante levantada pela tatuagem, mas não , pois não
se pode abrir mão de toda a articulação simbólica da música, é de como o gênero
musical na história de Priscila, somando-se, vale repetir, ao conjunto de marcas
afetivas evoca as sonoridades psíquicas que simbolizam o pai ausente.
O mundo dela e do grunge. É nele que foi buscar (e encontra) aproximação
com aspectos de sua vida. Foi nesse tipo de repertório com características gerais de
um ambiente que a atraía que ela pode se reconhecer. Um mundo de rock, áspero
ainda que com alguma suavidade , como talvez sua vida tenha sido
emocionalmente até aqui.
114
CAPÍTULO IV.
O IMPROVISO DE CHARLES
A escuta inconsciente é uma outra escuta, com
infinitas possibilidades simultâneas. Nossa escuta
é um instrumento musical no qual a obra se
completa. (Ignácio Gerber)
Charles tem quarenta anos de idade, é trompetista. Músico de carteirinha
(tem registro na O.M.B Ordem dos Músicos do Brasil). Toca quase
profissionalmente vinte anos, em bandas de jazz. Sua ambição musical é
comedida, faz por hobby. Ensaia com a atual banda uma vez por semana e,
eventualmente, se apresentam ao vivo para algumas plateias. Mesmo se intitulando
amador, adora a perfeição, exige que os temas tocados pela banda sejam
meticulosamente ensaiados, repetidos, às vezes à exaustão, para que fique bem
feito, sempre ao seu modo. Ainda que Charles o seja o líder do grupo, às vezes,
age como se fosse, razão que o coloca em conflito com outros membros da banda,
no entanto, são discussões superficiais e passageiras que invariavelmente se
esgotam ao término dos ensaios.
O que mais importa aqui, é ressaltar sua íntima relação com a música,
especialmente via o ato de tocar um instrumento. Mesmo tendo outras
responsabilidades na vida cotidiana, não seria exagero dizer que Charles ―respira‖
música, o tempo todo, 24 horas de seu dia estão cercadas de ideias musicais, de
lembranças musicais e sempre que pode ouve ou toca música.
Como um bom obsessivo, tem o melhor instrumento, lança mão da técnica
mais apurada para manuseá-lo, limpá-lo e guardá-lo. Nunca o vi tocando, mas, pelo
modo como descreve sua relação com a música e o instrumento, não seria arriscado
supor ser verdadeira sua virtuosidade musical. Não obstante, nega seu virtuosismo.
Diz que sua cnica ao tocar está muito aquém do que desejaria. Embora todos os
que o assistam, sempre impressionados, o elogiam muito, levando-o a ruborizar a
face.
O estilo Charles de ser, sempre preterido, piorado, falido e fracassado, é
análogo ao autojulgamento que faz sobre a própria capacidade musical. Como
115
alguns de seus ídolos jazzistas, outrora entregues às drogas e às bebidas Charles
comenta que tais gênios da composição não conseguiram enfrentar seus fantasmas.
Ele também não, mas, em vez de drogar-se, se deprime. Não consigo nem compor
minha vida‖, diz. Muito já falamos sobre a necessidade (ouo) de que ele tomasse
alguma medicação que amenizasse a sensação depressiva que por vezes
enfrentou. Era ele quem sempre trazia à tona a sugestão e ele próprio acabava se
convencendo de que não era, de fato, necessário [o que quase sempre esteve em
acordo com minhas intenções]. Aliás, foi seu explícito questionamento logo nos
momentos iniciais da primeira sessão: se não era o caso de ser medicado...
Poderia descrevê-lo como um paciente prendado, disciplinado, tomou a
análise como uma partitura e passou a -la, no início como um leigo das notas, que
de fato não sabe o que está ―escrito‖ em cada linha da transcrição musical. Em
seguida (ao longo dos meses que se seguiram) com a precisão de um maestro que
inclusive brinca com o tempo e andamento da música. Como se verá mais adiante,
esse brincar de Charles pode ser entendido como algo mais leve, menos engessado,
duro. Algo distante do modo como organiza a própria vida, por vezes
sobrecarregada de cobranças e culpa.
Separado meses da mulher com quem ia se casar, o ex-noivo procura
análise para relatar suas dificuldades em lidar com os relacionamentos afetivos, as
mulheres, o trabalho, a família, os amigos; não necessariamente nessa ordem. Seu
jeito introvertido sempre teria sido a motivação ou a desculpa para o fracasso nas
relações. Interpretação dada por Charles, que de fato nunca teria sofrido
explicitamente nenhum rechaço, sobre sua condição tímida.
Quando Charles iniciou a análise, dizia-se acomodado com seu trabalho
com carga horária bem maleável, numa multinacional do ramo alimentício. Sua
queixa girava em torno dos axiomas: meu mundo caiu, a vida não presta, eu não
amo ninguém, que tudo mais para o inferno, sobras [raspas] e restos me
interessam, minha vida é um blues menor tocado num instrumento desafinado...
Com todas essas referências musicais inclusive para quem não percebeu, as
frases são versos de algumas canções populares no repertório nacional eu ainda
levei aproximados seis meses para saber detalhes sobre seus dotes musicais. Sua
análise durou dois anos e pouco mais de quatro meses.
116
Charles fala da incapacidade de lidar com as garotas, elas parecem se
distanciar quando meus assuntos parecem mais intelectualizados que os delas‖;
ressalta também a falta de jogo de cintura em delicadas situações no trabalho, pois
apesar de trabalhar quando quer, tem sob sua responsabilidade atividades de
extrema confiança, além de liderar uma pequena equipe, o que estava sendo um
agente provocador de alto índice de estresse. Suas tentativas de conseguir outro
emprego são sempre desastrosas. Parece que as pessoas não respeitam minha
opinião.
Mete-se em confusões de toda ordem. É um gastador nato, nunca fez contas
de como anda seu orçamento, sabe quanto ganha, porém perde de vista como e
com o que gasta. Em geral, sua receita é menor que suas despesas. Ainda assim,
graças a uma herança, que não é muita coisa e deve estar prestes a se esgotar,
recebida do avô materno o único que o queria bem somada à sua parte do
apartamento comprado com a ex-noiva, não passa por apertos financeiros.
Tampouco se incomoda com esse quesito.
Aliás, este [finanças] teria sido um dos motivos que mais colaboraram para
minar o bom andamento da relação/noivado, ela dizia que eu não tinha trato com
meu próprio dinheiro‖. E ainda: voé inseguro com tudo e não me segurança
alguma‖.
Boa deixa para focalizar um curioso e interessante insight (se é que assim
poderia chamá-lo) que ocorrera durante esse processo.
Houve um período que uma bateria de associações, ligadas a aspectos
jazzísticos, era depositada nas sessões de Charles. Das diversas vertentes e
analogias apresentadas, a que mais ganhou espaço fora a da possibilidade natural
da improvisação atrelada a esse gênero musical. Sabe-se que o jazz é um estilo
musical que tem uma base melódica (normalmente chamada de tema) sobre a qual
os sicos, cada qual com seu instrumento, improvisam na execução levadas que
dialogam com o tema, mas não se repetem sequências de acordes, tampouco de
solos. É mais ou menos como se disséssemos que o solo nunca, jamais, pudesse
ser repetido. Improviso. Literalmente é lidar com aquilo que ali está disponível.
59
59
A base das formas tradicionais de improvisação é criar espontaneamente e tocar melodias que são
construídas sobre a progressão harmônica básica da canção. Nos níveis mais básicos, as notas que
você escolhe para sua improvisação são parcialmente ditadas pela escala associada com cada
117
Curiosamente essa capacidade de improvisar, em geral, reservada aos
músicos que escolhem essa prática musical, não parecia familiar a Charles, que
conta com certa frustração sobre o quão a técnica (o tema), a precisão e o controle
obsessivo para não escapar da linha condutora o atrapalhavam, ou seja, era uma
espécie de greencard para a ―incompetencilândia‖ que julgava ser seu lugar.
Estranho para um músico de tão longa data? Afinal são pelo menos, 20 anos de
relação com o instrumento.
O insight? Ora, toda essa elucubração pertence a Charles que concluiu que
na sua vida as lacunas mais escancaradas poderiam ser preenchidas com muito
improviso, afinal é isso que um verdadeiro jazzista faz e era isso que Charles
decidira fazer. Transitar com seu trompete por campos musicais nunca antes
explorados, exagerar nos agudos, até então comedidos, nas firulas e macaquices,
queria mesmo era morar na improvisolândia.
E não é que conseguiu?! Quase três anos após grande uso da (figura de
linguagem) metáfora, analogias e interpretações muitas criadas por ele mesmo ,
casou-se com a ex-vizinha (com quem teve um efêmero romance no passado) e
mudaram-se para Belo Horizonte (MG). Nesta cidade, ela é professora de francês e
ele trabalha numa empresa do mesmo grupo, porém exercendo outra função,
improvisando e se divertindo muito: no trabalho, nos bares, nos shows, na vida...
acorde. Isso é chamado de improvisar sobre a progressão harmônica ("playing changes"). Formas
mais avançadas de improvisação dão ao músico maior liberdade melódica e harmônica, seja pela
redução do número de mudanças de acordes, seja por tornar as progressões de acordes mais
ambíguas em tonalidade, a ponto de eliminar essas estruturas inteiramente. O próximo nível de
liberdade em improvisação é eliminar os acordes totalmente. Dependendo de até que ponto você
esteja disposto a ir, poder-se-ia dispensar a melodia, ritmo, timbre ou forma tradicional. muitas
abordagens diferentes para se tocar livremente, mas por sua própria natureza, não há regras.
[Sabatella, de Marc (2005). Uma Introdução à Improvisação no Jazz, - Disponível em:
http://www.jazzbossa.com/sabatella/06.06.improvisacaolivre.html. Acesso em: 10 jun. 2009 [Cf.
adiante, maiores detalhes a respeito da improvisação].
118
4.1 Sonoridades jazzísticas os sons de Charles
O jazz não é apenas um estilo musical, mas
uma forma de encarar a música. E mais do que
isso, um modo de encarar o mundo, capaz de
oferecer a cada indivíduo não só soluções de
sobrevivência, mas caminhos para aproveitar ao
máximo todo o potencial de prazer e de liberdade
que a vida nos reserva. (Roberto Muggiati)
Creio que uma (talvez não breve) digressão para ―explicar‖ o jazz como
gênero seja necessária. Com isso poderei aventar algumas relações sobre este
estilo musical escolhido por Charles e sua configuração psíquica. Assim como
observei em Priscila e sua relação com a música grunge, parto agora para uma
análise pormenorizada no que se refere às articulações entre a história psíquica de
Charles e o jazz, ou melhor, o processo histórico do jazz, que como se observará,
muito tem em comum com nosso paciente e seus improvisos na vida.
Não se sabe com precisão uma data que pontue o nascimento do jazz como
gênero musical. Mas é consenso que nasce do blues, oriundo em suas raízes dos
sons produzidos por negros norte-americanos, ligados ao spiritual black protestante.
Esses pioneiros negros que, mais por intuição do que por conhecimento musical,
compravam seus instrumentos de segunda mão, muitas vezes de pouca ou sem
nenhuma qualidade sonora, produziram em seu início o que futuramente se tornaria
em termos musicais um dos estilos mais prolíferos do século XX. Passando por uma
excepcional sucessão de transformações, talvez como nenhum outro gênero tenha
passado. Transformações que, de alguma forma, se assemelham com as vividas por
Charles ao longo de sua história.
Rangel [2007 (1958)] comenta num antigo artigo que o jazz foi uma música
que nasceu espontaneamente, do negro para o negro, sem nenhuma pretensão de
se tornar difundida e aceita pelo mundo. A princípio, só interessou aos executantes e
ouvintes negros à margem da música escrita e da tradição europeia. Nascida com o
século XX a música jazz extraía ―elementos das canções de trabalho, das marchas
militares, das polcas e quadrilhas francesas de Nova Orleans, além de outras; o
negro tudo isso fundiu e modificou, nascendo então essa expressão inconfundível de
seu talento musical que é a música jazz‖. (RANGEL, 2007, pp.195-196)
119
Ainda pensando no seu processo histórico [jazz], e mais especificamente
sobre o instrumento escolhido por Charles, é curioso saber que
A partir da segunda metade do século XIX, os instrumentos de sopro
começam a se popularizar nos Estados Unidos. Na Guerra de Secessão
(1861-65) as bandas marciais tiveram importante papel na elevação do
moral das tropas, e sua criação foi grandemente estimulada. Ao mesmo
tempo, a tecnologia dos instrumentos, em decorrência dos progressos da
Revolução Industrial, era aperfeiçoada com a introdução dos pistões nos
metais, a simplificação do mecanismo das clarinetas, flautas e flautins e a
invenção dos saxofones e saxhorns. As fábricas saíam em busca de um
novo e florescente mercado, e a grande procura tornava os preços mais
acessíveis. No início do século XX, cornetas, trompetes, trombones e
bombardinos custavam, nos Estados Unidos, entre 10 e 15 dólares. E havia
os instrumentos de segunda mão, baratíssimos, que abarrotavam os
―pregos‖. (MUGGIATI, 2008, pp. 13-14)
Uma tese levada muito a sério é a de que o jazz nasceu em Nova Orleans
justamente porque as bandas marciais da Guerra Hispano-americana (1899)
desfizeram ali, e seus instrumentos trocados por uma noite de farra na irrequieta
cidade amanheceram enfeitando as vitrinas das lojas de penhores e foram parar
nas mãos dos músicos negros.
Desse modo, gradativamente, os primeiros músicos de jazz tinham contato
com os instrumentos. Porém o acesso à educação musical era muito restrito, quando
não nulo. Mas isso não configurava um problema, eram autodidatas, dotados de
ouvidos privilegiados, aprendiam apenas escutando os sons a matéria prima
para inventarem sua própria música.
Uma característica primordial das primeiras bandas de jazz era o fato de não
tocarem música improvisada, mas fazerem uma improvisação coletiva em que
tudo se encaixava admiravelmente. A explicação mais coerente se resume, como
vimos, ao fato de que a maioria dos negros pioneiros no estilo não sabia ler partitura;
um líder aprendia de ouvido uma melodia, e à medida que tocava, os outros
instrumentistas iam executando aproximações daquela melodia modificada, ou
tecendo variações em torno do tema básico apresentado. ―Foi desse processo
intuitivo, tateante e espontâneo, que nasceu a tentativa consciente de modificar um
tema, fazendo improvisações coletivas em torno dele.‖ (MUGGIATI, 2008, p.15).
Importa sabermos que a palavra jazz vem do francês jaser, conversar. Ou seja, o
jazz é na verdade uma forma de diálogo entre instrumentistas. (MCLUHAN, apud
MUGGIATI, 2008, p.17)
120
Indubitavelmente, Nova Orleans foi seu berço;
60
Jazz passou a ser usado
como termo entre o final dos anos 1910 e início dos anos 1920, para descrever o
tipo de música que apresentava certa liberdade ao ser executada tendo como
principal característica a improvisação dentro de determinado tempo e sobre
determinado tema.
Muito se escreveu sobre a dificuldade de se definir o jazz. É bastante
comum a afirmação de que o jazz não é o que se toca, mas sim como se toca. De
qualquer modo, pode-se afirmar com certa confiança que dois elementos são
absolutamente necessários numa performance jazzística: o swing e a improvisação.
Como me interessa especialmente definir a improvisação com mais precisão
e penso ser o swing um elemento de maior complexidade para ser definido, vou me
limitar apenas a uma citação que talvez nos baste para compreendê-lo:
Trata-se de algo que engloba o fraseado, o ritmo, o ataque das notas. O
swing não se escreve numa partitura, por mais detalhada e precisa que seja
a sua notação. (...) tocar com swing, swingar, significa trazer à execução de
uma peça um certo estado rítmico que determine a sobreposição de uma
tensão e de um relaxamento. Esta é a dialética do swing, por assim dizer:
dar flexibilidade a um ritmo, dar ‗balanço‘ a uma frase, e, contudo manter a
precisão, preservar o foco da música, evitando que ela perca o caráter
incisivo. (HTTP://www.ejazz.com.br/textos, acesso em: 22 jan 2010 autor
não identificado)
Uma analogia sugerida por Charles Mingus
61
para caracterizar o swing é
pensar que podemos partir de uma música na qual os tempos estão precisamente
definidos. Em seguida delimitamos um "halo", uma pequena região ao redor da
posição original de cada nota: a nota, agora, pode cair em qualquer ponto dessa
região, a critério do executante. A música como um todo, portanto, oscila
caprichosamente dentro dessas regiões de "incerteza". É importante que o âmbito
dessas pequenas regiões não ultrapasse aquele ponto no qual o ritmo deixa de ser
swingado‖ para se tornar impreciso. Como se determina esse ponto? Os bons
músicos de jazz m uma intuição desenvolvida a tal ponto que mantêm esse jogo
de precisão e imprecisão perfeitamente sob controle, o tempo todo e o resultado,
60
O já citado, polêmico e radical, crítico Lúcio Rangel comenta em livro que apresenta seus textos
(Samba, Jazz e outras notas, Agir, 2007) que os franceses, por exemplo, embora sejam grandes
amantes do estilo e tenham contribuído significativamente para a propagação do jazz na Europa, se
equivocam com datas e estilos escrevendo ‗tolices‘ de toda a ordem.
61
Contrabaixista, [1922-1979] compositor, considerado um dos mais criativos músicos na história do
jazz.
121
todos nós conhecemos: o deleite de escutar uma interpretação cheia de swing.
62
(MINGUS, 2005)
Raros eram os casos em que os primeiros expoentes do jazz tivessem
acesso ou conhecimento ao estudo de partituras. Assim, o desconhecimento da
notação musical, ao mesmo tempo em que criava limitações, abria a porta do
improviso. Essa ―ignorância‖ proporcionou em sua gênese a característica mais
marcante do jazz: a improvisação. Ou seja, sem saber ler partitura os músicos
dotados de uma capacidade auditiva para reproduzir os sons das músicas
conseguiam tocar exibindo certo virtuosismo.
63
O curioso, é que hoje em dia,
normalmente o improvisador é um instrumentista que possui técnica altamente
desenvolvida e profundo domínio dos recursos de seu instrumento.
O músico de jazz costuma navegar num espaço em que a escolha aleatória
das notas cria condições para a intervenção do acaso. No jazz a imaginação não se
reduz à capacidade de conceber e criar imagens, e sim a capacidade de fazê-lo num
espaço-tempo restrito.
Gravar um disco, no primeiro meio século de vida do jazz, era um desafio
que obrigava os músicos a dizerem tudo o que tinham a dizer em nada além
de três minutos. Até o surgimento do LP, os discos comuns raramente
ultrapassavam a barreira dos três minutos, obrigando os solistas a
exercerem sua imaginação ao máximo num tempo mínimo (MUGGIATI,
2008, p. 44).
O conceito de improvisação, em si, não apresenta grandes dificuldades para
ser entendido, embora exija anos e anos de dedicação para ser posto em prática, tal
qual a formação do analista, e a longa duração de uma análise. quem pense que
a improvisação em si é fácil, pois afinal trata-se de improvisar, logo, não apresentaria
grandes dificuldades. Trata-se de tecer em tempo real, no exato momento em que
se está tocando variações em torno de algo que serve de base: a linha de uma
62
Nos anos 1930 o jazz estaria consolidado com várias grandes orquestras excursionando
deliberadamente pelo globo. Em meados dos anos 1930, o swing torna-se o primeiro estilo
maciçamente popular do jazz; dançante e palatável agradava imensamente às multidões durante a
época da guerra.
63
Mesmo com toda sua complexidade sonora o jazz era tido como uma música de camadas mais
humildes e comparada à música clássica era tachada de infinitamente inferior (ainda que muitos
maestros, atualmente comparem alguns compositores jazzísticos a fenômenos como Mozart e
Chopin, no que se refere à capacidade criativa e prolífica).
122
canção que serve de tema, uma sequência de acordes, alguns intervalos melódicos,
uma tonalidade. Portanto, algo de extrema complexidade.
Na análise o improviso se revela na possibilidade de associar em tempo real
aquilo que vai acabar tendo ligação com o tempo passado, possibilitando novos
insights. O que também não se caracteriza como sendo uma tarefa elementar.
O improvisador, como já relatei, deve ser dotado de uma capacidade criativa
e conhecedor de música e melodia para transitar tranquilamente em torno do tema
escolhido, caso contrário, suas improvisações não passariam de tentativas
estranhas de formulação musical, ou seja, deixariam o ouvinte confuso e ―perdido‖
na escuta de algo ―sem encaixe‖ na qual as notas soariam feias e sinistras como se
não as combinassem entre si. Parece existir aqui outra semelhança com a análise,
pois quantas não são as formulações confusas e contraditórias que se apresentam
no setting?
Nenhuma apresentação ou gravação de jazz está completa se não houver
algum trecho improvisado. Uma peça de jazz 100% escrita e fixada na partitura é
uma contradição. Se compararmos com a psicanálise seria uma antissessão.
O jazz sempre foi uma arte extremamente competitiva. Antes de se lançar
aos desafios de apuro musical e destreza técnica com seu instrumento, o
jazzista precisa estar fisicamente condicionado, quase como um atleta. Se a
mens sana não é tão importante aqui o jazz sempre comportou uma
saudável dose de loucura , o corpore sano é essencial. (MUGGIATI, 2008,
p. 79)
Na Renascença era habitual tomar como tema uma canção popular e
fazer variações sobre ela. Os instrumentistas, que frequentemente eram também
compositores, competiam entre si, cada um tentando sobrepujar os rivais em
virtuosismo e engenhosidade. Assim como as variações, a improvisação não é uma
invenção moderna. Bach era um improvisador de mão-cheia (e improvisava fugas
64
);
tivesse ele nascido no século XX, poderíamos devanear que teria características
suficientes para ser chamado de jazzman.
Na Renascença já havia o costume de se apresentar peças de caráter
improvisatório e de forma totalmente livre, denominadas fancies (em inglês) ou
64
Fuga é uma técnica composicional que consiste em elaborar por imitação temas entre diversas
vozes. Pode ser considerada a forma mais estruturada e complexa de toda a música.
123
fantasias (em espanhol), nas quais o executante soltava as rédeas de sua
imaginação. Muitas dessas fantasias e coleções de variações foram registradas em
partitura, e assim podemos reviver e apreciar, depois de décadas, ainda que sem a
espontaneidade do momento, as jam sessions
65
de outrora.
(http://www.ejazz.com.br/textos, Acesso em: 22 de janeiro de 2010 autor não
identificado)
4.2 A musicalidade psíquica de Charles
Escrever sobre Charles, fez com que, durante meses, eu me dedicasse
atentamente à escuta das sonoridades jazzísticas. Numa espécie de estudo paralelo
sobre o gênero procurei ouvir não só os expoentes trompetistas, mas outros solistas
que como os ídolos de Charles haviam dado uma medida significativa de
contribuição para a música no século XX, na propagação do jazz. Queria entender,
sobretudo, como se dá o improviso nessa música.
Com isso fui lançado a algumas bibliografias e estudos a respeito do
movimento que devo confessar mais me confundiram do que organizaram meu
pensamento acadêmico, que pretendia fazer com Charles o mesmo processo de
―desconstrução‖ precedido pela paciente Priscila. Por essa razão [confusão causada]
me limitei a pesquisar em alguns sérios e respeitados sites, indicados inclusive por
músicos profissionais.
66
Concomitantemente a essa audição e leituras, chegou-me às mãos,
justamente quando eu estava às voltas com a transcrição das primeiras ideias a
respeito desse paciente, o livro ―Improvisando soluções‖, de Roberto Muggiati [já
citado]. Apesar de conhecer os escritos do jornalista e também músico, confesso
que o subtítulo do livro mencionado [O jazz como exemplo para alcançar o sucesso]
causou-me, à primeira vista, certo desconforto; estaria o autor criando uma espécie
de auto-ajuda para músicos? Para minha agradável surpresa, a leitura demonstrou-
se prazerosa e muito interessante. Além de traçar uma linha na qual apresenta
65
Jam session, expressão que designa o encontro de músicos de jazz para tocar de improviso, sem
contrato ou cachê, é abreviação de jazz after midnight (Jam), que era o horário que tais encontros se
davam em seus primórdios, já que antes disso deveriam seguir o repertório previamente estipulado.
66
Cito essa deferência, pois muito do que se encontra publicado na rede não têm bases fidedignas e
ainda que por vezes alguns textos citados não tragam seus autores estampados são confiáveis do
ponto de vista bibliográfico. A não indicação de autores e seus respectivos textos pareceu-me uma
posição assumida por, especialmente, um dos sites pesquisados.
124
expoentes do jazz desde seu início, Muggiati revela-se um excelente contador de
―causos‖ jazzísticos criando uma espécie de almanaque do jazz com uma pitada de
curiosidades e revelações a respeito de seus mais ilustres propagadores,
apresentando com um texto suave e fluente, as ‗improvisações‘ desses músicos
diante das adversidades encontradas por cada um deles em sua vida.
Com a leitura percebi que muitas configurações coincidiam com as histórias
ou soluções apresentadas por meu paciente. Decidi então ―retalhar‖ esses
momentos fundindo-os com os relatos que fui colecionando ao longo da análise de
Charles. Não se trata, porém, de ficar encaixando-o nas histórias de outros jazzistas,
mas apenas elencar algumas configurações que fazem de Charles um músico e um
homem dotado de capacidades singulares, de modo que poderiam ser entendidas
em sua importância na compreensão específica de seu comportamento psíquico e o
como as sonoridades de sua vida o levam para esse estilo adotado.
4.3 O exibicionista
Há, sem vida, um senso de impotência no sujeito exibicionista. Ser
impotente, falido, fraco, covarde, eram expressões usadas por Charles no início da
análise. Não quero pensar em Charles como um radical exibido que literalmente se
masturba publicamente expondo certa característica sádica atrelada a seu
comportamento sexual. Pois não relatos em sua análise que me oferecessem
interpretações dessa natureza. Por outro lado, não consigo deixar à margem a ideia
de um exibicionista que tem em seu fálico instrumento um alcance expressivo de
prazer.
67
Assim como o exibicionista, em sua mais psicanalítica definição, não oferece
nenhum perigo às suas vítimas (embora seu comportamento sexual seja
caracterizado pelo que se entende legalmente como atentado e violência ao pudor),
o exibido Charles também era inofensivo nesse aspecto; tirava proveito dessa
configuração apenas como um meio compensatório para encobrir a dificuldade de
67
Como sabem o trompete é um instrumento musical de sopro, um aerofone da família dos metais.
Basicamente o trompete é um tubo de metal, com um bocal no início e uma campana no fim. A
distância percorrida pelo ar dentro do instrumento é controlada com o uso de pistos ou chaves, daí a
ser também conhecido como pistão. Tais chaves controlam a distância a ser percorrida pelo ar no
interior do instrumento. Além dos pistos as notas são controladas pela pressão dos lábios do
trompetista e pela velocidade com que o ar é soprado no instrumento.
125
estabelecer a intimidade sexual (todas suas relações eram pautadas por alguma
problemática incapacitante), ou menos especificamente sua intimidade social
também muito comprometida (tocar, interagir com os colegas de trabalho,
namoradas).
A ação comportamental de Charles é clássica do exibido. Alguém que quer
mostrar algo de si para outrem, com a clara intenção de atrair atenção e ter
reconhecida alguma qualidade pessoal. No caso, a virtuosidade nem sempre
assumida que apresenta ao tocar seu instrumento. Ou seja, pode-se dizer sem
dúvida que Charles age movido por forças pulsionais, compensatórias.
A repressão moral, ou mais especificamente rechaço paterno (relatado
detalhadamente mais adiante) o, indubitavelmente, fatores que motivam o
exibicionismo musical de Charles. Creio que este (exibicionismo) apareceu como
clara tentativa de revelar a proibição ou obstruções sofridas ao longo de um
importante período em sua constituição como sujeito. Isso exibir-se para o público
certamente alivia o conflito anterior. E o resultado desse comportamento parece
ser evidentemente muito benéfico.
Vejo aqui que a finalidade primordial do exibicionismo de Charles está
atrelada à necessidade de adequação de exigências sociais. Exigências, para sua
configuração, particularmente relevantes.
Se a definição dicionarizada (HOUAISS, 2001) aponta para o exibicionista
como aquele que exibe a própria nudez, especialmente as partes sexuais com a
finalidade de excitação e obtenção do prazer sexual consequentemente, chamando
atenção sobre si; poderia, por analogia, dizer que a excitação e prazer de Charles
são parecidos com as de um ―exibicionista patológico‖
68
: que se masturba em
público buscando um tipo de excitação atrelada à exibição de seu genital. No caso, o
trompete de Charles equivaleria a seu pênis, e como se com calças abertas o
exibisse, tocando(-se) em público. Ou ainda, alguma variação de sexo oral.
Lembremos dos lábios que sopram o tubo de metal do trompete, lábios que se
encaixam no orifício e liberam excessiva saliva durante a execução de uma música,
ou uma relação sexual, a começar do beijo.
68
Obviamente não existe exibicionista saudável, porém, minha observação objetiva ―afastar‖ Charles
da ideia estruturante de um pervertido.
126
O exibicionismo (masculino)
69
é uma forma de aliviar a ansiedade de
castração, um meio compensador que atenua o sentimento de impotência. E ainda
uma espécie de ameaça de perigo (mesmo sendo inofensiva a ameaça é da ordem
simbólico-fantasmagórica) para as mulheres/ou qualquer espectador voyeur em
locais públicos.
―Ameaça‖ (no caso de Charles) aos seus ouvintes/espectadores dos shows
que realiza? Quase sempre quando recebe os elogios por sua performance nos
palcos, sente-se superior e, como sabe tocar, é o único momento que se sente, de
fato, poderoso. Goza e faz seu público gozar. Prazer compartilhado. Nesse sentido
haveria consentimento do público-parceiro que se deixa envolver na relação a dois.
Aquém dessa ideia, curiosamente, é o temor pelo desempenho que gera a
ansiedade, incapacitando o exibido de concretizar uma relação consentida. Quando
Charles subestima-se se confessando um mau músico, penso que fala sobre essa
insegurança, sobre a dificuldade de compor a vida.
De certo modo, a ―competição‖ de Charles se dá com ele mesmo. Ainda que
se compare exageradamente com outros músicos, com outros colegas de trabalho,
com outros namorados.
Pode parecer contraditório para um tímido: gostar de se exibir, mas de fato
seria paradoxal? Penso que seu exibicionismo e posicionamento histriônico, foram
originalmente usados de forma defensiva e consciente. Todavia, mais tarde, muito
provavelmente, Charles descobre o prazer adicionado à esfera defensiva, o que me
pareceu não se tratar mais de uma defesa. Agora, então, uma esfera prazerosa e
não mais protecionista como outrora fora.
Mesmo assim, (fora da banda, no início da aprendizagem do instrumento) o
original isolamento do instrumento de sopro era ideal para o mido Charles que
ensaiava sozinho, especialmente, quando a família não estava em casa. Anos mais
tarde Charles viria a estudar leitura musical em conservatórios de ensino, mas
69
O exibicionismo feminino carrega outras conotações. Está atrelado mais especificamente à sutis
demonstrações de desejos libidinais por meio de fetiches da indumentária. ―Esconder-se‖ nos decotes
ou em saias bem longas, porém apertadas, por exemplo, é muito mais excitante para a mulher do que
revelar os seios ou as pernas explicitamente.
127
contava-me que invariavelmente o clima era enfadonho. Mesmo assim, aprendeu
com bastante vigor as regras da pauta musical e seu correto uso.
70
Invenção notável dos músicos de jazz foi a distorção sonora nos metais. Ao
contrário dos intérpretes eruditos, que procuravam obter do instrumento um
som neutro, os instrumentistas de sopro do jazz procuravam aproximar o
som ao máximo da voz humana, de gritos e de grunhidos animais (...)
(MUGGIATI, 2008 p.17)
O que percebo no que foi possível ser elaborado por Charles é que, tocar da
melhor forma possível era um caminho a ser percorrido buscando provar para
aqueles que o o aprovavam ou acolhiam suas qualidades mesmo apresentando
algumas limitações, digamos, nos relacionamentos sociais, interpessoais que
conseguiria mostrar/exibir sua criatividade e se fazer ouvir gritando no trompete.
algum tempo depois Charles entendeu que esse ―tocar melhor‖ estava literalmente
atrelado às suas mais íntimas necessidades.
Uma explicação mitológica para importância do trompete:
Para muitos negros o contato com a bíblia foi uma experiência mitológica,
em que a trombeta aparecia como um instrumento sagrado, tocada por
anjos que anunciavam o Apocalipse, por Josué, que derrubava com seu
sopro possante as muralhas de Jericó. O trompete tinha vantagens práticas:
era relativamente barato e um instrumento portátil por excelência, levado
para toda parte, e ao mesmo tempo suficientemente forte para se fazer ouvir
nos ruidosos bailes, nos piqueniques, em concertos ao ar livre, nas paradas
pelas ruas da cidade. (MUGGIATI, 2008, p.115)
Com essa ideia não é arriscado dizer que a escolha do instrumento pudesse
estar intrinsecamente ligada à necessidade de fazer-se ouvir, Charles gritaria para o
mundo social e familiar que o circundava na indireta forma. Porém, certamente tudo
o que estava contido durante sua adolescência e infância encontrava uma válvula de
escape aparentemente satisfatória. Repito sua fala: gritando no trompete.
70
A tradição que mais exige escola sistemática é a da música de concerto ocidental: é preciso
aprender leitura, teoria, é preciso ter orquestras sinfônicas, instrumentistas, solistas, cameristas, é
preciso preservar e manter vivo um repertório. Ela é também, às vezes, uma base para o
desenvolvimento de outros estilos e repertórios. As instituições escolares tradicionais perderam a
capacidade de dar conta desse processo. Na medida em que o conservatório foi deixando de
corresponder aos novos padrões, foram surgindo escolas livres que se transformavam para atender a
essas demandas do mercado, aumentando assim a dificuldade de se manter aquele caráter da
escola tradicional, de conservadora da tradição da música erudita. A sensação de que a música
praticada no conservatório e a que tocava de ouvido eram universos separados. Hoje, sabendo que o
conhecimento se constrói socialmente, isso me parece lógico. O conservatório, que tinha uma função
de manutenção da tradição europeia.
128
Quando escolheu sua primeira graduação, o pai também o rechaçara quase
o impedindo de cursar a escolha artística que o filho fizera. Desse modo, o sonhado
curso de arte, fora abandonado em detrimento da implícita imposição paterna e
Charles cursou (durante três anos e meio) o mesmo caminho da engenharia trilhado
pelo pai. Todavia, ser engenheiro, era o que menos interessava ao jovem criativo.
Sua ‗radical‘ mudança da engenharia para um curso de Propaganda e Marketing foi
a saída mais equilibrada que pôde encontrar para não pirar, dizia.
Cada vez mais se destacando (sempre discretamente) no emprego,
galgando aumentos graduais em seu salário, o demoraria muito para que Charles
adquirisse um novo, caro e elegante instrumento.
4.4 A escolha do instrumento
Seu primeiro trompete foi herança do querido avô que tocava na banda da
praça na cidade em que morava no interior do Estado de Minas Gerais. Charles o
por acaso se aproximou do estilo jazzístico e penso que por influência do avô os
primeiros impulsos sobrevieram.
Em alguma medida pensei o quão semelhantes poderiam ser a iniciação de
Charles e dos negros precursores do jazz; estes pegaram os instrumentos
―abandonados‖ que seriam vendidos bem baratos legado da guerra ; Charles, por
sua vez, herda de seu avô a esfera musical, discos, histórias e, mais importante, o
instrumento, já sem utilidade para seu original dono.
Os velhos e pesados ―bolachões‖ faziam-lhe companhia quando brincava de
loja de música. Jogo que consistia em fingir que vendia discos para compradores
―invisíveis‖. Seu avô, um pouco debilitado fisicamente, aposentou-se e passou a
morar com a família. Contava ‗estórias‘ para Charles dormir. Muitas dessas histórias
recordadas por Charles são reconhecidas hoje como histórias reais. Não eram
inventadas pelo avô, como ele acreditou durante anos, mas sim biografias dos ídolos
do avô que tocavam nas primeiras décadas do século passado. Esse encanto do
ouvinte de histórias [musicais] deve, sem dúvida, ter sido um dos elementos
influenciadores de suas escolhas na música.
129
Charles era muito jovem e nunca se arriscara a tocar a corneta.
71
Poucas
vezes fingiu que a tocava, como se encenasse uma apresentação musical solo, mas,
na verdade, não tinha forças para soprá-la realmente. Hoje conta que era divertido
dramatizar o ato de tocar, mas confessa sentir-se meio ridículo com essa lembrança.
Apesar de ser mais ou menos o que faço hoje, nos ensaios e no palco. Com a
diferença fundamental de que sei tocar um pouco.‖
Apenas quando mais velho, se interessou pelo antigo presente, e passou a
desejar com mais frequência a aprender a tocá-lo. Aentão, Charles possuía um
violão em casa, mas se deparava com uma óbvia dificuldade para segurá-lo, era um
garoto muito pequeno, minguado e logo abandonou a ideia de investir tanto esforço
para segurá-lo, tamanha era a dificuldade.
Será que a importância do trompete entre os músicos de jazz teria sido um
agente significativo na escolha de Charles ao aceitar e eleger o instrumento do avô
como seu? Infelizmente não possuo elementos concretos para responder
precisamente tal questão, no entanto, creio que seja possível admitir alguma relação
pertinente a este fato. Pois como enunciei, Charles, sentindo-se preterido, excluído,
e ainda de certa forma fracassado, escolheu ainda que inconscientemente um
instrumento que exige sua exposição na frente do palco, instrumento que se
caracteriza por sua aguda sonoridade e visual/designer, afinal não escolheu tocar
outro instrumento qualquer, por exemplo, como a bateria ou piano, em geral, ao
fundo e ao lado respectivamente, (cf. adiante a questão de seu exibicionismo) e com
proporções físicas bem mais avantajadas.
Nos instrumentos de sopro, o músico vibra o ar diretamente, utilizando-se
dos próprios lábios, da força do diafragma e do controle das aberturas do
instrumento isso é feito com as pontas dos dedos diretamente ou com auxílio de
teclas ou chaves.
Quando Charles começou a trabalhar em meados de sua adolescência a
vontade de comprar um instrumento melhor que a carcaça herdada, foi logo
rechaçada pelo pai que além de inibi-lo a tal, provocava-o dizendo que ser músico
não lhe daria arroz e feijão no prato. E que o avô só tocava, já na velhice, por não ter
71
―A corneta depois aperfeiçoada na forma de trompete era o rei dos instrumentos em Nova
Orleans e produziu os primeiros grandes improvisadores do jazz, enaltecidos de forma superlativa‖
(MUGGIATI, 2008, p. 263)
130
o que fazer na aposentadoria, mas que passara, como ele, a vida dedicando-se ao
digno trabalho honesto. Ele devia pegar o dinheiro que ganharia e guardar para
estudar numa boa faculdade. Por isso, pensar em estudar numa escola de música
estava completamente fora de cogitação. Fora dos planos do pai que não o apoiava
e dele próprio, que o conseguiria bancar sozinho a empreitada; afinal precisaria
investir muito. Charles não conseguia soprar a corneta, e agora não conseguia
soprar em favor de seu desejo.
Mesmo frustrado e sem apoio financeiro [com os primeiros jazzistas não
teria sido muito diferente], Charles economizava miúdos na esperança de um dia
comprar um bom instrumento. Enquanto isso se arriscava em aprender sozinho
alguns acordes; admirado pela mãe durante anos de prática solitária (talvez única
espectadora, ou melhor, ouvinte, que a ideia de se exibir ainda o era segura a
Charles).
Sua família, pelo que contara, não era extremamente humilde, desprovida de
condições para, por exemplo, lhe presentear pelo menos com um instrumento de
segunda mão, porém o pai pão duro acentuava os ares de aperto. O luxo, portanto,
não era algo do qual poderia se gabar.
Os instrumentos de sopro não são tão populares como o violão, a guitarra
(originalmente nem tão jazzísticos) ou o próprio piano invariavelmente presente nos
trios de jazz compostos por um pianista, um contrabaixista e um baterista.
72
Aliás,
popular era tudo que Charles não queria ser, pelo menos em sua infância e
adolescência. Hoje podemos pensar na esfera exibicionista/narcísica, que ele
apresenta, mas são elementos desencadeados pela análise de suas questões.
4.5 Narcisismo (sintoma e angústia)
Curiosamente seu novo instrumento o fez se sentir novo também. Explico:
Charles olhava-se no espelho primeiro em casa, depois na sala de ensaios , e
conseguia (apenas quando estava tocando o trompete) enxergar um sujeito mais
jovem, boa pinta, às vezes até menos enrugado.
O que Charles via refletido nesses espelhos?
72
E convenhamos que desde sua maior popularização, os instrumentos de sopro deixaram de ser tão
baratos quanto foram aqueles primeiros comercializados em Nova Orleans.
131
Diante da angústia de castração, que não pôde ser descartada nessa rede
de pensamentos, Charles consumia-se entre aquilo que queria e aquilo que queriam;
desejos de seu pai, especialmente, e mais tarde os da mãe, agora viúva, e o
padrasto (mesmo sendo muito gente fina) repetindo os princípios do pai: ―tenha um
bom emprego, um bom salário e configure uma estruturada família‖. Vivia uma
guerra de forças entre o eu ideal e o ideal do eu conforme postulado por Freud.
73
Ou
seja, entre um ideal narcísico de onipotência e um modelo ao qual o sujeito procura
corresponder.
74
Aqui cabe uma digressão teórica, na qual busco, mais uma vez, transitar
pelo caminho percorrido por Freud a respeito do narcisismo. Com isso, penso, temos
mais elementos para entender claramente o posicionamento de Charles diante de
seu sintoma.
A essência do sofrimento sintomático nos ensina que este não se liga ao
efeito objetivo de uma perda de função: o sofrimento da perda hemiplégica
das funções locomotoras do corpo ou da fala é profundamente diferente do
sofrimento causado pelo sintoma quando este adverte o sujeito de que é
uma causa interna psíquica que o priva do acesso ao movimento da fala ou
do corpo. Nesse sentido, podemos dizer que a essência do sofrimento
sintomático vem da percepção endopsíquica de uma impossibilidade de
chegar a advir e que a significação dada a essa impossibilidade é aquela
que sentido, por sua própria negação, ao termo ‗liberdade‘. (DIDIER-
WEILL, 1999, p. 19)
A autoimagem de Charles esteve, de algum modo, sempre vinculada a
esses episódios de rechaço do pai. Tudo o que se propunha a fazer na vida sempre
teve algum tipo de receio do que o Outro (pai) iria pensar: o que esperam de mim, o
que querem que eu faça?!Seu sintoma o aprisionava, arrastando-o para o campo
da ansiedade.
Por que Charles toca? Para aliviar a ansiedade? Para se defender? Para
investir energia outrora recoberta (sublimação) nos prazeres musicais, ou artísticos
rechaçados pelo pai? Note-se que tocar é a sublimação. Ele não se masturba em
público de fato. O exibicionismo encontrou uma válvula de escape viável, compatível
com o que a sociedade considera aceitável.
73
Para Freud o desenvolvimento do eu consiste em um afastamento do narcisismo primário e
margem a uma vigorosa tentativa de recuperação desse estado. Esse afastamento é ocasionado pelo
deslocamento da libido em direção a um ideal do eu imposta de fora, sendo a satisfação provocada
pela realização desse ideal.
74
Ver apêndice 4.
132
Frustrado no primeiro momento com a questão do pai na escolha da
profissão, Charles encontra reverberação no meandro edípico da rivalidade e
disputa, tão peculiares ao complexo. Ama o pai, mas odeia sua posição castradora.
Com isso Charles se apresenta ao mundo de maneira sempre defensiva.
Trata-se de sua composição sintomática. Por exemplo, afirmando que o que planeja
não dará certo, que tal emprego poderá ser prejudicial à sua dedicação musical, que
tal garota não falará com ele, pois se sente meio fora do peso, e não se acha
bonitão. Certamente suas ações (pensemos na música e seus artifícios) são de uma
ordem muito mais defensiva do que sublimatória (o ato de tocar um instrumento).
Sua mensagem velada na fala é de demanda insatisfeita, seu desejo se faz
presente, mas na maior parte das vezes é sentido como interrompido ou cortado.
Parece até, por vezes, com um discurso histérico. Desejo sempre interrompido,
desejo de ser apreciado, querido. Daí seu exibicionismo digladiando com a timidez.
Permeia todos os seus textos desde 1910, sendo inerente a tudo o que diz
respeito ao narcisismo, é a dependência do Eu, desde seus momentos
constitutivos, dos sinais de amor ou de ódio que lhe chegam do outro, ou
que ele possa entender como tal. A própria constituição de um aparelho
psíquico passa inevitavelmente por aí. ‗Isto é bom e quero introduzir em
mim e isto é ruim, e quero por para fora‘ está relacionado com o
prazer/desprazer que provoca em mim, o que terá de ser entendido não
no registro da satisfação pulsional, mas também no registro narcísico: o
outro gosta ou é hostil a esta minha atividade, é tolerante ou intolerante em
relação a ela. (MENEZES, 2001, p. 163)
elementos em sua história que permitem criar o perfil de um sujeito
angustiado, criando defesas intensas por meio das relações de objetos que Charles
estabelecia. O emprego, a namorada, os amigos eram invariavelmente motivo de
ameaça/desconfiança, falta de apoio, transferidos da relação paterna, e presentes
mais tarde na transferência com o analista.
Demandar o amor do outro, querer ser visto, admirado no palco, mas ao
mesmo tempo exaltar a solidão valorizando os momentos em que ficava só; fugir das
aglomerações sociais, aparecer nos palcos... Contradições que são permitidas
porque o inconsciente domina o aparelho psíquico.
Quando Charles aprendeu a ler sica passou a tocar única e
exclusivamente o que estava escrito na pauta. Duro, enrijecido, sem liberdade para
criar. Seus compassos e ritmos estavam marcados pela retidão que a partitura
133
propõe. Ainda que as pautas musicais nem sempre estejam escritas em linha reta,
Charles mesmo em suas nuances acompanhava as curvas sem derrapar ou correr
riscos.
Aspectos contraditórios: estudar música em conservatório. Não saber ler
uma nota, tocar tudo de ouvido ou inventado, fazer a própria música, tocar do
próprio jeito como se quisesse criar certa ordem para a desorganização psíquica.
Aleatoriedade, irregularidade, imprevisibilidade, caos: os músicos de jazz se
adaptam admiravelmente a esse quadro. Recursos técnicos versus recursos
psíquicos. Agarrar-se à música sem conhecer aspectos teóricos, sem aprendizado
técnico é uma aventura talvez muito parecida com o lançar-se aos recônditos da
análise.
Muito mais tarde, no processo, Charles enuncia sua carência em se projetar
como um improvisador e cria, ele mesmo uma marca duvidosa, a questão em que
diz: como vou improvisar na música, se nem mesmo na vida consigo lidar com as
coisas inesperadas? Se saio do padrão planejado, perco toda a noção, e
dificilmente consigo conduzir uma situação às vezes bem simples, e corriqueira, que
imagino, qualquer pessoa mais centrada tiraria de letra, quer dizer, menos centrada,
pois eu fico no centro e perco as oportunidades que as margens me oferecem.‖
Quando dessa longa autointervenção interrogativa, Charles a caminho da
porta de saída, disse-me que precisava aprender a improvisar, que já tinha dentro de
si a chave para esse aprisionamento de sua liberdade. Apenas lhe faltava algo para
deixar a mão firme e encontrar o buraco da fechadura... e, claro, além de introduzir a
chave, manifestar forças para abrir a tal porta da improvisolândia. É interessante
pensar na metáfora usada por Charles: ter a chave. Sim ele tinha as chaves do
instrumento, mas não as usava para improvisar. Curiosamente são as chaves (no
instrumento) que dão as notas e timbre deles.
Faltava coragem, fugir às regras tão arraigadas não é uma tarefa simples,
ainda que almejada. Pois mesmo a morte do pai (bem antes do início de sua análise)
não foi capaz de remover as marcas traumáticas instauradas em Charles (e deveria
ser assim? Certamente não, mas a peculiaridade era Charles manter vivos e
atuantes o medo e a insegurança que acentuavam sua ansiedade).
134
O medo. Talvez seu maior rival, medo de tudo, de todos; certa vez Charles
relatou uma crise de pânico ao sair da aula de música. Numa tentativa produtiva de
entender o que se passou naquele dia ou nas proximidades do evento, descobrimos
que a crise se deu imediatamente após uma apresentação/prova musical a que se
submetera. Não se tratava de uma avaliação final, comprometedora, que colocaria
em risco sua aprovação naquele módulo. Mas foi o suficiente para paralisá-lo. Como
entender essa ―timidez paralisante‖, esse travamento na tal apresentação? que
para ele as apresentações ao vivo (mesmo para pequenos grupos composto não
apenas por amigos dos músicos, mas pagantes desconhecidos) eram extremamente
prazerosas, relatadas como um momento mágico de aprovação, mesmo quando
aquele frio na barriga vinha à tona.
Outra contradição psíquica? Não, o fato de Charles gostar de tocar ao vivo,
ser elogiado, o coloca num lugar seguro, no qual, quase que in-tocavelmente, (assim
como algo que não pode ser tocado na música, notas não alcançadas, improvisos
não realizados) o sustenta em seus apreciados minutos de fama, acreditando estar
mais protegido. E de fato, (falando em ego/eu) está.
Improvisar, sair da regra estabelecida, desviar-se parcial ou totalmente de
um padrão, é não andar em linha reta, tampouco em círculos; ou mais do que isso, é
entregar-se às sinuosidades do caminho. o improviso permite sair dessas linhas
regradas.
A queixa atrelada ao incômodo constante do pouco trato nas relações
sociais apresentava um gradiente: este dimensionava a sua angústia para mais ou
menos suportável, dependendo da (não) intimidade com seus interlocutores.
Creio que Charles construiu uma defesa irreconhecível para ele mesmo.
Pois esse relato (a respeito da improvisação em sua vida) que aqui se concretiza
agora o estava necessariamente ainda formulado pelo paciente. Arrisco dizer que
o ponto se centra na formação de compromisso.
75
75
―Forma que o recalcado assume para ser admitido no consciente, retornando no sintoma, no sonho,
e mais geralmente, em qualquer produção do inconsciente. As representações recalcadas são então
deformadas pela defesa ao ponto de serem irreconhecíveis. Na mesma formação podem assim ser
satisfeitos num mesmo compromisso simultaneamente o desejo inconsciente e as exigências
defensivas. (LAPLANCHE & PONTALIS, 1992, p. 198)
135
Sabemos que os sintomas neuróticos são resultados de um conflito. No
caso, a formação de sintomas é representada por esse compromisso entre forças
separadas que se juntam novamente na tentativa de dar sentido/organizar o
sintoma.
...Encontram-se casos clínicos em que, quer a defesa, quer o desejo, se
manifestam de forma predominantemente, a tal ponto que, pelo menos em
primeira análise, parece tratar-se então de defesas e, inversamente, de um
retorno do recalcado em que o desejo se exprimiria sem compromisso. Tais
casos constituiriam os extremos de uma gradação no compromisso que se
deve compreender como uma série complementar. [...] Os sintomas têm
como objetivo ou uma satisfação sexual, ou uma defesa contra ela, e no seu
conjunto, o caráter positivo de realização de desejo predomina na histeria, e
o caráter negativo, ascético, na neurose obsessiva. (LAPLANCHE &
PONTALIS, 1992, p. 199)
que a citação apresentada nos remete, também, ao caráter sexual, creio
ser importante ressaltar a busca desenfreada de Charles por outras mulheres para
apenas se satisfazer. É como se os corpos ―conquistados‖ fossem apenas
receptáculos de sua satisfação obscura e truncada. Charles na verdade paga (os
programas sexuais) por um reconhecimento que nem sempre consegue
gratuitamente.
O Eu do paciente é suposto se capaz de encontrar uma saída para a
pressão pulsional, seja uma boa saída pela via sublimatória, por exemplo,
seja uma saída menos boa pela formação do sintoma. O tratamento
analítico possibilita uma revificação do sintoma, uma reabertura deste na
situação analítica, pela via da transferência, e uma retomada da trama
conflitual, que pelo trabalho interpretativo poderia dar-lhe uma melhor saída,
na forma de novas modalidades de satisfação pulsional, ou ainda, uma
outra maneira para o EU se situar em relação às fantasias de desejo
inconscientes, cujo único modo de realização era o sintoma. a
suposição, pois, de uma estrutura conflitual ativa no interior do sintoma.
(MENEZES, 2001, p. 172)
136
4.6 Improvisando no escuro
Improvisar soluções na música é uma coisa.
Improvisar soluções na vida é outra, bem mais
complicada. A agilidade do pensamento é um
verdadeiro dom e alguns jazzistas se deram muito
bem nessa arte. (Roberto Muggiati)
Como comentei, o improviso é uma técnica que para ser utilizada
demanda do músico alguma especialidade. Charles é bom músico. É o que todos
dizem. Estudou seu instrumento minuciosamente, horas de sua vida foram
intensamente dedicadas à música durante anos. O que o impedia de improvisar?
Nos shows, nos ensaios? Sozinho, em seu apartamento?
O improvisador é, antes de tudo, um individualista. Detesta obedecer regras
e se mostra, na maioria das vezes, avesso às ordens de comando. A tarefa
do líder de orquestra, portanto, é particularmente difícil e ingrata no jazz.
Nos primeiros tempos, a solução encontrada em Nova Orleans foi a
‗improvisação coletiva‘, uma fórmula mágica que soube equilibrar
admiravelmente individualismo e organização. (MUGGIATI, 2008, p. 223)
Charles, não queria fazer música sozinho, falava da importância de tocar
com outros músicos, da segurança que transmitiam: era como tomar uma cerveja
juntos, cumplicidade coletiva. Mesmo assim, não se sentia livre para viajar nos solos.
Os improvisos dos elementos instituídos socialmente bateriam frontalmente
com as suas fantasias de liberdade/libertação e o fantasma do complexo de Édipo
que o arrastavam para a dura sensação ainda simbólica da ameaça de castração?
76
76
O complexo de Édipo é uma peculiar constelação de desejos amorosos e hostis que a criança
vivencia em relação aos seus pais no auge da fase fálica. Em sua forma positiva, o rival é o genitor do
mesmo sexo (e a criança deseja uma união com o genitor do sexo oposto).
Nessa estrutura triangular a interação entre os desejos inconscientes dos pais e as pulsões da
criança desempenha papel fundamental na constituição do cenário edípico. O ideal do eu, como
agente de superação do narcisismo infantil, expressa o que o sujeito deseja ser, contém uma
aspiração, deriva sua força de uma promessa, enfatiza a natureza amorosa dos objetos introjetados.
A ansiedade principal é o medo da perda do objeto de amor. O supereu começa a se esboçar a partir
do complexo de Édipo. Baseia-se numa estrutura de postergação dos impulsos. Expressa o que o
sujeito deve ser. Contém obviamente uma proibição. Exerce pressão por meio da ideia de punição.
Enfatiza a natureza frustradora e hostil dos objetos introjetados. A ansiedade principal é a castração.
O supereu lida com o complexo de Édipo positivo, ou seja, com a consequente introjeção do genitor
do mesmo sexo como figura rival.
O ideal do eu se relaciona com o complexo de Édipo negativo, no que diz respeito à introjeção da
relação de amor com o genitor do mesmo sexo. Sua resolução é ulterior à cristalização do supereu,
ocorrendo na puberdade, quando as tendências latentes homossexuais forem dominadas.
137
Quando menciono o exibicionismo de Charles, é preciso ressaltar que são
impulsos inconscientes, porque na realidade, como apontei, ele não é um
perverso estruturalmente falando. Enquanto o perverso não reconhece a castração
e, por extensão, a lei, Charles é o oposto: sempre preso às leis, desejando em seu
íntimo infringi-las, mas sem êxito.
Ele é um neurótico. Que em sua clássica definição é fruto de tentativas
ineficazes de lidar com conflitos e traumas inconscientes; se distinguindo
normalidade pela intensidade do comportamento e a incapacidade do analisando
resolver os conflitos internos e externos de maneira satisfatória.
Se eu fosse generalizar que todos os que buscam plateias são exibicionistas
de fato, então o teatro e o cinema, pintores, escultores, sicos, as artes em geral
teriam que ser incluídas. Não se trata de um traço perverso, mas o resultado da
sublimação (em maior ou menor grau) que é um mecanismo de defesa do eu
altamente valorizado pela psicanálise.
O complexo de Édipo mantém sua função de um organizador inconsciente
durante toda a vida e forma um elo indissolúvel entre o desejo e a lei.
No caso Charles, pode-se acompanhar o processo de dissolução do Édipo
durante a análise. Sublinho alguns aspectos transferenciais: no início ele via no
analista um empecilho a ser confrontado e, posteriormente, passei a
representar para ele um papel facilitador, de liberação. Os aspectos persecutórios de
seu supereu, identificado com um pai considerado castrador dos seus sonhos vão se
diluindo e seu eu pôde paulatinamente transformar seus desejos em realidade - sua
relação com a música, seu trabalho criativo, sua vida sexual mais satisfatória, a
melhora na qualidade dos vínculos.
Dessa forma dois conceitos foram articulados simultaneamente. Além do
complexo de Édipo a transferência, que é sempre pano de fundo para o surgimento
dos mais variados aspectos conceituais que se deseja abordar.
Penso se o ato de tocar de Charles não significava, também
simbolicamente, buscar um reconhecimento da própria masculinidade por parte do
pai. Um pouco como se essa masculinidade vinda do avô tivesse se rompido na
relação dele com o pai.
138
Charles parecia, no percurso da análise, realmente se esforçar para
entender as configurações psíquicas que o guiavam. Contava com detalhes tudo o
que se lembrava de sua infância tentando ele mesmo, às vezes um tanto eloquente,
criar possibilidades de amarração entre sua vida pretérita e seu presente.
Certa vez disse adorar se lançar ao trítono,
77
que era o mesmo que burlar
diabolicamente e com prazer o que estava organizado; fazer errado quando tocava
lhe provocava, era excitante. Mas a proibição sempre gritava mais alto (pelo menos
até quando percebeu que seu trompete poderia ‗falar‘/gritar acima dos decibéis
proibitivos). Ponderou: Sei que esse prazer precisa vir à tona, quebrar as regras
musicais é mais fácil que quebrar as regras da vida, mas será que existe regra?
Afinal o jazz sem improviso não é jazz, logo, a música que eu faço não é jazz; se eu
não improvisar não serei ouvido. E sabe? Eu sei, apenas não consigo ainda, mas
estou lutando‖. Charles continuou: É como se eu fosse um viciado às avessas, não
faço nada de errado, ou seja, não faço nada contrário ao que se espera. Preso no
que é certo. E o que é certo? As pessoas me ouvem e esperam se deparar com o
que é previsto, quero ser imprevisível. Eu toco os solos improvisados por outros
jazzistas, mas preciso EU criar minha música em torno da esfera que eles criaram...
Precisava demonizar-se...
Que algum tipo de música seja capaz de corromper a moral ou subverter a
ordem, não creio. Mas que o perigo‘ tenha assombrado toda uma tradição
de filósofos e teólogos, não como duvidar. Platão, nas Leis, propôs a
proibição de certas escalas e ritmos musicais devido a sua perturbadora
sensualidade; Agostinho, nas Confissões, discorre sobre os ‗prazeres do
ouvido‘ e se penitencia por sua irrefreável propensão ai ‗pecado da lascívia
musical‘ (GIANNETTI In COHEN, 2003, pp. 70-71)
Uma coisa é tocar o que está escrito, preparado, outra coisa é criar na
improvisação. Talvez não seja possível dizer que as sonoridades musicais
escolhidas por um sujeito possam determinar sua constituição psíquica, mas não há
dúvidas que seu contrário possa ser absolutamente plausível, ou seja, a constituição
77
Trata-se, na música, do ―intervalo de quarta aumentada, formado por notas distantes entre si três
tons inteiros. A dissonância [grupo de duas ou mais notas de uma acorde que criam forte tensão e se
tornam instáveis ao ouvido humano] do intervalo provocou celeuma: na música religiosa, durante o
renascimento, chegou a ser proibido pela Igreja, razão pela qual era chamado DIABOLUS IN
MUSICA‖ (Dicionário de termos e expressões da música, 2004, p. 340).
139
psíquica determinando qual sonoridade fisgará o sujeito. Ainda é possível pensar
que isso ocorra simultaneamente.
O jazz foi o que deu certo na vida de Charles. As configurações jazzísticas
(que determinavam seu gosto) foram passíveis de serem usadas naquele momento.
Isso não o isentou de gostar/admirar a sonoridade de outros estilos. Isso pode ser
visto em outras pessoas que relatam, por exemplo, encontrar substratos emocionais
na chamada música brega (ou cafona, como outros preferem), no tango, no funk
carioca. Os estilos podem ser generosos com cada ouvinte, que por vezes veneram
e relatam com paixão e apego suas escolhas sonoras, de tal maneira que diriam: ―tal
gênero me salvou‖, assim como relatou o saxofonista paulistano Ivo Perelman, (em
depoimento exclusivo para o livro de Muggiati) que, creio, guardada as óbvias
diferenças reservadas às respectivas personalidades, certamente singulares,
identifica um pouco do que Charles vivenciou no relato:
O jazz salvou minha vida tão profundamente que seria difícil para eu
separar um do outro. Depois de 25 anos debruçado quase diariamente
sobre a mesma questão básica como tocar ludicamente uma música
espontânea que também seja estruturada e intelectualmente instigante
minha vida acabou se tornando a própria improvisação, no sentido mais
abrangente da palavra. A experiência do artista acabou vazando para o
âmbito cotidiano do homem tão harmoniosamente que acredito que essa
seja a melhor forma de se viver: improvisar também a partir das pequenas
coisas mundanas para se atingir ao longo do tempo a tênue catarse de se
contemplar o cotidiano liricamente. O jazz reorganizou vários departamentos
aparentemente antagônicos do meu psiquismo. Improvisar como o resultado
de uma longa e meticulosa planificação. Improvisar como resposta para o
paradoxo de sermos ao mesmo tempo pensantes e intuitivos. Improvisar
ocupando os espaços mais sãos do meu ego criador mais despedaçado,
unificado somente pela imensa força terapêutica do espontâneo na arena
mais segura que a sociedade nos permite: as artes. De fato, o jazz salvou
minha vida muitos anos. Validou minha existência e respondeu as
questões mais dolorosas do âmago do meu ser. Enfim, me ofereceu um
modelo perfeito de conduta em que somos simultaneamente criadores
divinos e meros mortais, criaturas bestiais, mas também civilizadas e
racionais. Egresso das mesmas forças caóticas, mas coerentes nas quais
se agrupa na natureza, o jazz ao espelhar fielmente nossa admirável
progressão evolucionária, me trouxe grande conforto espiritual. Permitiu-me
uma existência que, embora caótica, tem sido ao mesmo tempo
extremamente articulada em seus desdobramentos fractais. Essa tem sido a
maior dádiva que recebi do processo artístico. Um sentimento quase
religioso de nos mecanismos naturais que regem o cosmos. Improvisar é
brincar de ser Deus e perpetuar assim o impulso criativo do universo.
(MUGGIATI, 2008, p. 177)
140
O jazz deu a Charles a oportunidade de improvisar. Foi sua via possível
dentre tantas outras para articular um modo equilibrado de estar no mundo. As
frases sincopadas, as construções sonoras, os timbres, as melodias, as harmonias,
sobretudo, a técnica de improvisar são todos fenômenos capazes de inscrevê-lo
numa sonoridade única, qual seja, a própria. A que fora possível ser criada por ele
para ele mesmo. ―A verdadeira essência do jazz é bem mais complexa: ele não é
feito de solos improvisados, mas de uma [sic] amálgama de timbres, ritmos,
harmonias, configurações tonais‖ (MUGGIATI, 2008, p.233).
Poetas e filósofos costumam dizer que somos o que somos hoje em razão
daquilo que se experienciou no passado. Tudo, absolutamente tudo o que vivemos
em nossa pregressa história significado ao eu atualizado. Nada diferente do que
prega a psicanálise: o psicanalista convida seu paciente o tempo todo a mergulhar
em configurações pretéritas que possam conduzi-lo no momento atual, na direção
(que favoreça o encontro) de elementos úteis, no entendimento de cada escolha
realizada. Momento em que as experiências traumáticas são novamente
vivenciadas, e percebemos que todas as marcas deixadas são/foram cruciais para
constituir o sujeito do presente.
Na análise cria-se, pensa-se; transformar conteúdos, elaborá-los, torná-los
compatíveis à organização psíquica é uma meta. Creio, como propôs Lichtenstein
(2003), na intrínseca relação que pode ser pensada entre a improvisação musical no
jazz e a associação livre em psicanálise.
78
4.7 Metaforizando o improviso
79
As formas de transformação usadas na improvisação musical são
equivalentes às duas formas básicas de transformação poética: metáfora e
metonímia.
Colocar-se disponível para esse tipo de escuta, recepcionando evocações
causadas por canções, para poder manejar as associações, tecer comentários,
intervindo e realizando articulações com base na história de vida do respectivo
78
The rhetoric of Improvisation Spontaneous Discurse in jazz and psychoanalysis. American Imago,
vol. 50, nº 2, 227-252, 2003.
79
Parte significativa das ideias condensadas nessa parte da tese foi originalmente publicada no livro
Vitrola Psicanalítica: canções que tocam na análise‖. Via Lettera, 2005.
141
paciente é tarefa do analista. Haveria aqui uma especificidade, relativa a essas
associações, pois ainda que envolvam a palavra, trazem na sonoridade algo que é
fundamental. (LUIZ, 2005, p. 59)
O gênero jazz foi apresentado por Charles e passou a ser referência das
situações vividas anteriormente à sessão e atualizadas nela por meio de uma fala
que acontece em razão da regra fundamental que permite o desenrolar de uma
análise. Bem como, evidentemente, ―sem a transferência estabelecida entre analista
e analisando não há processo analítico que possa ser sustentado‖. (LUIZ, 2005,
p.60)
O dispositivo analítico foi inventado para permitir o surgimento de cadeias
de sentido, cadeias de pensamento concebidas como instrumento
libertador. Freud afirmou várias vezes ao longo de sua obra que sofremos
de reminiscências quando nos vemos aprisionados nessas cadeias de
sentido. A fim de nos libertarmos de tais reminiscências de seus sentidos
fixos , é necessário revivê-las para que ganhem novas significações; é
preciso abrir seu sentido, recuperar a mobilidade das significações e a
possibilidade de experimentar. O meio para isso é o mergulho transferencial
(CAVALCANTI, 2001, p. 245).
As associações trazidas à tona (pré-consciente) via lembranças de
determinadas situações funcionam como agentes de um ―favorecimento‖,
conduzindo a uma série de outros temas ainda não mencionados em sessão. Ou
seja, a associação livre estimulada por esse tipo de intervenção é o agente dessa
―especificidade‖ de evocações e de improvisações.
Ora, a palavra em si não é a responsável pelo desencadeamento das
associações, mas o efeito particular que a palavra mobiliza na memória. A palavra,
cantada ou não, possui ritmo, sonoridade, algum tipo de expressão (que pode trazer
consigo algum significado, uma figura de linguagem, um meio...) está sempre
presente. Assim, podemos incluir a hipótese do uso metafórico e metonímico que a
música teria na análise. que, mesmo a sonoridade (não verbal) possa ser
verbalizada pelo paciente.
Segundo Houaiss (2001) metáfora é a transferência de sentido de um termo
para outro numa comparação implícita e metonímia é o uso de um nome por outro
numa relação de causalidade. no Dicionário Enciclopédico de Psicanálise
encontra-se a seguinte definição: ―Metáfora e metonímia são definidas
classicamente como ‗figuras de estilo‘ que modificam o sentido das palavras: elas
142
‗fazem figura‘, ‗ornamentam o discurso‘, como se existisse além delas a palavra
justa‖ (KAUFMANN, 1996, p. 331). É a semelhança que aparece no sentido figurado.
Mas como entendê-las e compreendê-las na análise?
Lacan, partindo da leitura de Freud sobre os processos primários, formulará
a ideia de que existe correspondência entre essas figuras de linguagem e dois
mecanismos no trabalho dos sonhos. A saber: condensação e deslocamento.
A Interpretação dos sonhos (1900) apresenta o próprio sonho como uma
linguagem. Lacan diz, então, que o sonho é um enigma de imagens e ―as imagens
do sonho devem ser consideradas pelo seu valor significante‖ (Apud GARCIA-
ROZA, 1993, 187).
A imagem não é ela mesma portadora de seu significado. Significante e
significado são duas ordens distintas, constituindo redes de articulações
paralelas. Há um deslizamento incessante do significado sob o significante e
é a rede do significante, pelas suas relações de oposição, que vai constituir
a significação do sonho (LACAN apud GARCIA-ROZA, 1993, p. 187).
Tal deslizamento do significado sob o significante é encontrado no trabalho
do sonho em seu efeito de distorção. Em suma, a condensação e o deslocamento
produzem essa distorção.
Lacan torna assimiláveis esses mecanismos à metáfora e à metonímia.
Na condensação teríamos uma sobre-imposição dos significantes dando
origem à metáfora; no deslocamento pela substituição dos significantes com
base na contiguidade, teríamos o equivalente a metonímia. Condensação e
deslocamento desempenhariam, no sonho, uma função homóloga à da
metáfora e metonímia no discurso (LACAN apud GARCIA-ROZA, 1993, p.
188).
Esses processos (metafórico e metonímico) encontrar-se-iam em
funcionamento em todas as formações do inconsciente sendo responsáveis pela
característica de duplo sentido da linguagem.
Dor (1989) sintetiza a ideia:
As noções de metáfora e metonímia constituem, na perspectiva lacaniana,
duas das pedras fundamentais da concepção estrutural do processo
inconsciente. Estas duas molas mestras sustentam, com efeito, uma larga
parte do edifício teórico mobilizado pela tese: o inconsciente é estruturado
como uma linguagem. Assim também, se os processos ―metafórico‖ e
―metonímico‖ estão na própria origem dos mecanismos que regulam
143
geralmente o princípio do funcionamento inconsciente, devemos poder
evidenciar a aplicação destes dois paradigmas tanto ao vel do processo
primário, como ao nível das formações do inconsciente propriamente ditas
(DOR, 1989, p. 49).
Análogas ao sonho, as imagens, assim como a música, dão outro sentido à
linguagem verbal, de tal modo que em função das associações que se seguem,
permitem a inserção de outras sonoridades no espaço analítico. Por meio da
substituição (na metáfora) de significante a significante produz-se um efeito de
significação. A metonímia, por sua vez, se por meio de um processo que se
designa como transferência de denominação (um objeto é designado por um outro
termo que apresente algum tipo de ligação com o primeiro). Ou seja, espera-se a
conexão de um significante novo com um significante antigo. Como no improviso,
novo sentido, ―desorganizando organiza‖.
Podemos pensar que o papel da metáfora é falar sobre algo por um ―meio‖
diferente, por formas que se equivalham sem, no entanto, falar diretamente. Ainda
no dicionário (segundo Lacan) temos que:
A metáfora se situa no ponto preciso em que o sentido se produz a partir do
não senso: ―é entre o significante do nome próprio de um homem e aquele
que o abole metaforicamente que se produz a centelha poética‖; assim que
é abolido não ressurge jamais, mas se manifesta pelo que surge em seu
lugar (KAUFMANN, 1996, p. 332).
a metonímia é entendida como um termo que é designado por outro
termo, que não é o mesmo que habitualmente o designa, devendo existir
necessariamente uma relação entre eles.
Nesse campo, Rosenfeld (1998) argumenta que as metáforas: ―permitem
que se verbalizem coisas para as quais não palavras, elas nomeiam vivências
emocionais significativas, permitem que se pense e se converse sobre elas‖
(ROSENFELD, 1998, p. 44). Assim como poderia nomear os sons do jazz em
Charles, que na maior parte das gravações não possuem canto, uma letra.
A importância dessas (metáfora e metonímia) na música é,
fundamentalmente, criar condições para que a verbalização, ou melhor, alguma
construção significante se apresente. ―A metáfora é a palavra pronunciada que
144
contém, que dá a ouvir, o impronunciável. Ela nos convida a um movimento diferente
que o de compreender um significado‖ (ROSENFELD, 1998, pp. 80-81).
Por uma espécie de automatismo psíquico, uma ideia ou imagem quase
sempre nos evoca outra que se lhe opõe ou se lhe assemelha. Constitui por assim
dizer uma operação normal estabelecer contrastes e analogias: os primeiros
traduzem-se principalmente em antíteses, e as segundas, em comparações e
metáforas.
Mas pode a linguagem metaforizar o som? Sim. Pois a música é elemento
de mediação e transmutação, dos traços de personalidade: do controle obsessivo à
liberdade de improvisação. Em Charles viu-se a sonoridade como metáfora dos
sentimentos. A angústia pode ser representada ao falar, ou seja, criando a metáfora
a partir da metáfora. Tomando a metáfora como forma de construção do
pensamento, apenas um substrato para a experiência musical ser expressada.
Como se a sonoridade usada fosse o caminho para chegar à linguagem. Nesse
sentido a linguagem sonora pode sim ser metafórica. Afinal, imagens e música,
desde que produzidas pelo homem em princípio, são linguagens com regras de
escrita e leitura e passíveis de interpretação.
4.8 A retórica da improvisação
No ensaio, A retórica da improvisação: discurso espontâneo no jazz e na
psicanálise‖, Lichtenstein compara a improvisação musical no jazz com a associação
livre em psicanálise a fim de entendê-los sob uma nova luz. Afirma que atos de
improvisação podem ser rotulados sob o título de talento ou até receberem certo véu
místico, tais como inspiração ou intuição criativa (LICHTENSTEIN, 2003, p. 227).
O objetivo, [da improvisação] no caso da psicanálise, é libertar-se de
inibições e/ou sintomas neuróticos e promover a liberdade de expressão espontânea
em relação ao analista.
O autor comenta sobre a expectativa não atendida de se encontrar uma
vasta literatura psicanalítica sobre as características do discurso espontâneo. E
ainda que tal literatura
145
... existe quanto ao que pode interferir na expressão espontânea no setting
analítico, ou seja, sobre a natureza da resistência; no entanto, não é o
mesmo que olhar, num nível formal, para o que realmente ocorre
necessariamente, ainda que de forma rara, quando as resistências são
superadas. (LICHTENSTEIN, 2003, p. 228)
Freud citou Schiller para indicar que o princípio que ele estava considerando
ser a fundação da prática psicanalítica era conhecido pelos poetas. Essa herança
das artes continuou a ter um papel na ciência da psicanálise. É também interesse de
Lichtenstein reconhecer essa linhagem e estudar seus efeitos sobre a psicanálise;
com isso pôde esboçar uma comparação com outro campo, a improvisação no jazz,
onde o princípio de Schiller também está atuando. (LICHTENSTEIN, 2003, p. 228)
Pode-se pensar, lendo o autor, que a liberdade formal do improviso no jazz
representa determinados desejos de liberdade em relação à autoridade social. Isso
foi explícito na relação de Charles com seu pai. Talvez como nos primórdios de sua
criação, o jazz trazia os mesmos ―desejos de rebelião‖, rechaçando o isolamento e
humilhação (aos quais os negros precursores foram submetidos), que agora por
razões diferentes também se revelam. Por exemplo, saindo da linha, tocando fora da
melodia, num compasso diferente, único, singular.
Entretanto, não se trata de liberdade completa, pois regras ou estruturas
pelas quais tais liberdades se expressam. Respeito e transformação estão
intimamente relacionados e não constituem atitudes opostas. ―Subestimar essa
dialética é perder de vista o que pode ser o aspecto realmente sublimatório do jazz:
a bem-sucedida junção entre invenção e ordem‖. (LICHTENSTEIN, 2003, p.229)
Freud manteve-se interessado durante toda a sua vida em mapear a relação
entre o discurso manifesto e o texto latente. Seus vários modelos de mente são
metáforas para essa relação.
Uma das virtudes da metáfora é a de que ela nos convida a considerar como
essa leitura ocorre, ou seja, o que em relação ao método da associação livre no
setting analítico permite ou facilita esse tipo de leitura? Em relação ao jazz, no que
consiste o texto de uma forma de música que não está escrita, como é o caso da
improvisação no jazz? (LICHTENSTEIN, 2003, p. 231).
uma estrutura musical implícita ou um texto latente por trás de todo
improviso que funciona analogamente às estruturas psíquicas, determinando tanto
146
possibilidades como limites. Mas nunca se pode dizer tudo o que está contido,
porque na improvisação o músico descobre algo novo, novas possibilidades que
parecem emergir a partir da estrutura dada. Essas formas emergentes, se tiverem
suficiente autoridade e ―veracidade‖, passam então a expressar possibilidades que
sempre estiveram lá, mas nunca antes percebidas. ―São consideradas descobertas
sobre o texto latente ao mesmo tempo em que são invenções baseadas nesse texto,
um paradoxo também encontrado no caráter da descoberta psicanalítica‖.
(LICHTENSTEIN, 2003, p. 232)
Da mesma forma, a relação de um indivíduo com a estrutura de um desejo
inconsciente permite uma descoberta contínua no contexto da transferência (sem
mencionar a realidade da vida fora da análise).
Numa metáfora musical é como se fosse possível ouvir o tema original como
fundo do que é tocado. Apesar de estarem sendo tocadas notas diferentes, o que
resulta é um novo sentido dado à nota original subjacente. Variações musicais estão
repletas de representação metafórica de notas anteriormente tocadas.
Na substituição via metonímia, não se ouve toda a melodia original
representada numa nova forma; na verdade se reconhece sua presença por meio de
partes. ―A metonímia não cria um novo sentido. Ela cria novas conexões ou ligações
com signos familiares‖ (LICHTENSTEIN, 2003, p. 235).
Esses momentos de ambiguidade e inesperadas mudanças de significado
são possíveis por causa do caráter metafórico e metonímico da linguagem. As
figuras de linguagem, tal quais os processos de condensação e deslocamento no
trabalho do sonho, são os mecanismos do processo primário.
Como consequência do caráter onipresente da metáfora, qualquer
vocalização pode ter inúmeros significados e conotações. A melodia original, afirma
Lichtenstein, tanto quanto foi um fato objetivo no início, é revelada pela sequência de
improvisações e pelo seu lugar entre elas para também ser um signo dentre outros
signos.
No discurso analítico, o contexto dos comentários tende a mudar de formato
e deslizar de uma forma que é normalmente restringida num discurso comum. Por
essa razão, o analista pode chamar a atenção para os momentos de ambiguidade,
não para eliminá-los como se faz num discurso denotativo, mas com a intenção de
147
sublinhar a presença deles e permitir sua expansão. Pelo fato da regra fundamental
perder sua restrição denotativa no discurso analítico, essas funções poéticas
alternativas começam a trabalhar abertamente. A atividade diária da psicanálise
coloca em funcionamento as funções poéticas num contexto de improviso.
Às vezes, em determinados momentos, os problemas musicais se tornam
muito grandes. A improvisação vacila. Se o músico estocando e não tem
o direito de parar, ele pode se apoiar em substituições familiares num dado
momento, com frases enfadonhas, transformações que têm apenas a
aparência de improvisações. (LICHTENSTEIN, 2003, p. 236)
Por vezes o analisando enfrenta um impasse semelhante em suas
associações. Bloqueado, ele fica em silêncio ou cai na repetição, em substituições
conhecidas, qualquer coisa que ele possa usar para se apoiar. É importante que o
analista perceba isso e descubra um modo de fazer com que o processo continue
rumo à possibilidade de algo novo vir a ser dito.
A mudança na forma discursiva altera a relação entre discurso e objeto,
introduzindo variações que abrigam um novo significado; o significado do indivíduo
evidentemente, mas um significado que não conseguia encontrar seu rumo no
discurso denotativo devido aos mecanismos da repressão. Dessa forma, o desejo
latente encontra sua expressão. (LICHTENSTEIN, 2003, p. 238)
O sico que toca jazz geralmente comunica o objeto melódico primário
diretamente num modo denotativo. Pode ser observado o cuidado extremo ao
executar precisamente o que está escrito. É tratado, pelo músico, como um fato
objetivo que vai ser descrito numa linguagem musical prática e comum. É
apresentado como um objeto independente existente no mundo, algo denotado.
As improvisações começam apenas após isto ter sido feito.
Ao apresentar o objeto-melodia no início e no final das improvisações, uma
sequência mais plena de signos é criada. Não somente uma sequência de
improvisações, mas um tipo que também inclui a melodia original. A sequência de
improvisações é tal que por meio dela a relação do signo com o objeto é mais solta
por meio de transformações poéticas.
Quando o psicanalista relembra o analisando a respeito de comentários
anteriores, ele se esforça para preservar o próximo quanto possível a forma
148
dessas comunicações: seu status de signos e não meramente seu sentido literal. O
analista também está atento às pausas e lacunas na sequência dos signos.
Por meio da função poética [do discurso anatico], ou seja, por meio de uma
relação signo-objeto mais solta, um vínculo entre essas expressões se torna um
novo locus da verdade, ou seja, um lugar onde o significado pode ser encontrado
onde previamente parecia não existir. (LICHTENSTEIN, 2003, pp. 239-240)
Além das relações entre a melodia e variações e a emergência de uma
relação signo-signo, ainda uma dimensão de tempo: o tempo da improvisação
onde uma nova figura é revelada onde não existia antes; tem a ver com a melodia,
mas também com o músico que está improvisando, refere-se à convergência
particular naquele momento do desejo e da melodia.
É semelhante ao ouvir um analisando. ―Ouve-se tanto mais do que é
possível descrever‖. (LICHTENSTEIN, 2003, p. 245)
Não apenas os objetos musicais, mas todos os objetos são definidos pelas
suas lacunas, ou seja, seus limites. Relacionar-se com o objeto é passar a conhecer
seus limites, considerar isso suportável ao mesmo tempo em que o objeto frustra os
desejos do sujeito de satisfação total, ininterrupta. De fato, a possibilidade de um
desejo sustentado é assegurada somente pelas lacunas no objeto. Dessa forma,
tornam-se tanto a fonte de prazer como de frustração.
Talvez, realmente, o existam melodias originais no mundo, apenas
variações tomadas no momento como originais. Assim é com o sonho e todos os
demais sonhos. Um sonho apenas é original no sentido de que dá uma nova forma a
traços já existentes. (LICHTENSTEIN, 2003, p.250)
É verdade que a eficácia do trabalho psicanalítico jaz na obtenção de certa
plenitude do discurso, uma plenitude na qual afeto e significado se reúne, onde o
impacto do desejo é vivenciado por meio do discurso, depois são pelas figuras de
linguagem do improviso que esse religar acontece.
149
4.9 Liberdade e regras de uma vida improvisada
Existe uma arte visual japonesa em que o
artista é forçado a ser espontâneo. Deve pintar
sobre um pergaminho fino e esticado com um
pincel especial e tinta de aquarela preta de tal
maneira que se a pincelada não for natural, ou for
interrompida, destruirá a linha ou romperá o
pergaminho. Rasuras ou correções são
impossíveis. Estes artistas devem praticar uma
disciplina particular que permita à sua ideia
plástica se expressar em comunicação com suas
mãos de um modo tão direto que a deliberação
não possa interferir. As imagens resultantes
carecem da composição complexa e das texturas
da pintura comum, mas aqueles que as veem
encontram algo capturado que escapa à
explicação. Esta convicção de que a ação direta é
a reflexão mais significativa, acredito, propiciou a
evolução das disciplinas extremamente severas e
únicas do músico de jazz ou do músico
improvisador. (Bill Evans, in Kind of Blue [1959],
texto impresso na capa do álbum de Miles Davis)
Jazz é um território
em que a gente pode quebrar todas as regras e
ser livre. (Matt Savage)
Charles estava atento ao peso causado por qualquer tentativa de desvio, de
qualquer forma de desvencilhamento das estruturas regradas que o guiavam. No
entanto, ou por isso mesmo, corre o risco, e seu esforço de não poder errar ficou
menos engessado.
Com as mulheres o prevendo o que vai acontecer‖, perde parte da
importância assustadora que cobrava reconhecimento e consegue, mais leve, se
envolver agradavelmente com outra mulher.
No palco exibe-se, perde a timidez, ou controla-a com mais firmeza, é o
lugar no qual seu improviso toma forma mais concreta, consistente e convincente.
Mostrou como determinados padrões de impulso para se defender via compromisso,
150
permitiram improvisar diante da interdição paterna. Seus investimentos para escapar
de uma configuração perturbadora atrelaram-se ao som/música que
produzia/escutava.
Inspirado e inventivo, Charles relevou ter os atributos essenciais que lhe
conferiam o estatuto de sico de jazz. Fez bom uso do acaso, explorou a
imaginação, superou adversidades, encontrando a própria voz. Um exercício de
agilidade mental como muitos músicos souberam fazer para lidar com situações
adversas. Nem todos com a disciplina e talento para romper barreiras e desbravar
novos territórios. ―Se a agilidade mental conta pontos na hora da interpretação
jazzística, ela é fundamental, também, para a sobrevivência dos músicos em
situações de dificuldade ou conflito...‖ (MUGGIATI, p.154.) Assim pareceu ser com
Charles: foi ágil e sobreviveu.
Fazer jazz significa assumir um risco o risco de se confrontar com o
silêncio e preenchê-lo com um discurso inédito e próprio, o risco de ser um
"compositor instantâneo", como escreveu/disse Charles Mingus.
Sobre o silêncio... Terá de fato alguma vez existido? Em se tratando de
ventre materno, certamente não está. A ausência da fala pode estar impregnada
dos não-ditos que esvoaçam pelo espaço-tempo. A atenção flutuante é palavra sem
som (mesmo calada a boca, resta a cuca). A interpretação alienante pode falar
muito sem jamais tocar. Aa associação dita livre pode tentar engessar o direito
que tem o avesso.
A essência da improvisação do jazz é relatada por Keith Jarret, colhida por
Muggiati. Jarret, entre outras adversidades enfrentadas na vida, sofreu de amusia e
uma espécie de ‗síndrome do cansaço‘, [síndrome da fadiga crônica]. Num
depoimento sobre a separação de seus pais quando tinha 11 anos disse:
Acho que aquilo me tornou mais ferozmente enfocado na música. Uma
coisa fenomenal no fato de ser músico, e, em particular, tocar um
instrumento que não precisa de outros para ser tocado, como um piano, ou
uma guitarra, é que você pode transformar qualquer estado emocional em
que você se encontra em música. Aprendi isso muito cedo. Se estava com
raiva ia tocar piano, e não tocaria música raivosa. Tudo é energia, e você
pode mudar a direção para onde essas flechas estão apontando. Tem que
usar a energia, de certo modo. Essa é a melhor qualidade da música para
quem a toca. É uma maneira de saber quem você é e o que está sentindo.
(JARRET apud MUGGIATI, 2008, p. 108)
151
4.10 Resiliência jazzística
Quando toco, não gosto de programar demais
meu pensamento. Quero ter a mente limpa para
exprimir espontaneamente no saxofone as minhas
experiências de vida. (Sonny Rollins)
A resiliência (flexibilidade) termo nascido da física, que nada mais é que a
capacidade que têm certos materiais para resistir a choques e tensões e ainda voltar
a seu estado original após esse choque, pode ser conceito aplicado a seres
humanos como um:
Conjunto de forças psicológicas e biológicas exigidas para que as pessoas
superem com sucesso as mudanças ocorridas em suas vidas. Não é uma
questão meramente psicológica, é também física, pois é preciso que os
processos fisiológicos do corpo humano, ativados pelo estresse, funcionem
bem nas mais diversas situações (FLACH, apud MUGGIATI, 2008, p. 292).
Deste modo, o músico de jazz, pelo tipo de arte improvisada e espontânea
que pratica e por sua própria postura existencial, é um mestre na arte da resiliência.
Ao escrever as últimas páginas de seu livro, Muggiati (2008) relata que lia
concomitantemente uma pesquisa científica na qual a atividade cerebral de duas
dúzias de pessoas fora fotografada por ressonância magnética e outras técnicas de
escaneamento. O experimento concluía que sonhar acordado parece ser um padrão
da mente humana e algumas regiões cerebrais são especificamente desenhadas
para o devaneio. ―A atividade cerebral espontânea, que não depende de estímulos
externos, deixa claro que a improvisação do jazz seria a representação musical do
devaneio‖ (MUGGIATI, 2008, p. 295)
Os ritmos do jazz, sua agilidade mental, sua propensão a abraçar o acaso,
sua capacidade de superar as adversidades, de encontrar uma voz própria, de
romper barreiras, de usar a imaginação foram convincentes para Charles em sua
vida, o que permite dizer que encontrou nele (jazz) uma reverberação possível para
ser afetação musicalmente.
A genealogia da improvisação em Charles incide na identificação com o
repertório jazzístico. De algum modo uma compensação desse mundo musical
que sustentou suas articulações e arranjos psíquicos. Novos afetos foram
152
experimentados, os sons, e o discurso, nessa relação que é majoritariamente
intensiva foram relevantes. Mas Como saber quais especificidades psíquicas o
fizeram buscar esse tipo de repertório?
Charles, sem dúvida, estabeleceu com a música seu meio de dialogar com o
mundo suas questões mais arcaicas, o que significa dizer que encontra um meio de
expressão e aceitação que outrora não conseguia ter. Mas a improvisação acabaria
lhe proporcionando.
153
CAPÍTULO V.
HELENA UM DIALETO MUSICAL
...por sorte, a
capacidade de ser afetado por um som, uma
imagem, uma ideia, não é exclusividade de
especialistas ao contrário, é uma potência do
homem comum. Costuma-se dizer que a política é
coisa séria demais para ser deixada na mão de
políticos, e talvez o mesmo valesse para a
economia, a literatura, a dança, mesmo a música...
(Peter Pál Pelbart)
Assim como no amor, não existem ideais
genéricos na música. Ideais musicais são sempre
específicos, pessoais e intransferíveis.
(Arnaldo Cohen)
Helena é estudante do curso de direito, hoje tem 23 anos. Na adolescência
estudou flauta transversal, tocava hinos sacros de louvor a Deus com um pequeno
grupo de amigos na comunidade religiosa que frequentou, até que conheceu
Hermes. O encontro se deu no dia de seu vigésimo primeiro aniversário.
Começaram, a partir daquela data, a trocar mensagens pela internet e por telefone
(sms). Poucos encontros depois, namoravam sério. Contrariando os pais, que não
aprovavam a relação com o rapaz não frequentador da igreja, Helena lutava para
que ele fosse aceito e querido. Estereótipo de garoto rebelde, guitarrista de uma
banda punk-rock,
80
Hermes sonhava em tocar fora do país. Helena define o estilo da
banda do namorado como rock de garagem, um som meio sujo e cru, mas uma
batida contagiante e meio alucinada‖. Ainda que Hermes soubesse de sua inclinação
religiosa, nunca trazia à tona assuntos ligados à igreja. Aliás, um espanto mútuo
tomou conta de ambos ao descobrirem o quão musicalmente antagônicos eram os
respectivos gostos pelos gêneros escolhidos. Prova de que os opostos se atraem‖,
afirmava ela.
80
Movimento musical que surgiu em 1974 nos Estados Unidos e com força na Inglaterra em meados
de 1976. Trata-se um tipo de Rock tocado mais rápido, mais ―sujo‖, uma sonoridade mais crua, com
poucas melodias e acordes muito simples, somados a efeitos sonoros mais agudos e ruidosos.
154
O programa preferido do casal era: encontrarem-se num shopping center na
Zona Sul da cidade de São Paulo aos finais de semana. Iam ao cinema, almoçavam
e tomavam sorvete da forma mais romântica que pode existir, ambos usando a
mesma colher. Suas conversas, entre outras, fundamentalmente giravam em torno
das músicas que ele e ela gostavam.
Embora o gosto pelo gênero fosse diferente, há uma atração na semelhança
que o gosto pela música num sentido macro se dá; quem sabe poderia ser
entendida como ―atração musical‖. Ainda que estudos abordem que a identificação
de gostos musicais semelhantes promove a atração entre os sujeitos, entendo que,
no caso de Helena, a identificação deve ser pensada aquém dessa relação. Ela é
quem está completamente identificada com a estrutura musical.
Bem, uma série de elementos sobre essa jovem paciente que, penso,
seriam desnecessários para a vinheta que me propus a escrever sobre sua história.
Creio que nos basta saber sobre sua relação com a música, com a religião, além da
ainda não mencionada, delicada e intensa relação com o pai; e, por fim, sua, até
então, aversão aos relacionamentos íntimos (sexo).
Helena ainda virgem estava decidida a encontrar alguém que
carinhosamente pudesse tocá-la em todos os sentidos‖. Independentemente de
estarem predestinados a casar, queria perder a virgindade como grande parte, se
não todas, de suas amigas o fizeram. O pai dizia saber que seria impossível ela
aguentar ficar sem se envolver fisicamente com um homem por muito tempo, mas
que tinha que preservar o melhor dela para o casamento. Tal fala soava como uma
declaração que, ao mesmo tempo, misturava alforria e constrangimento.
Não foram muitos os namoros que antecederam a relação com Hermes.
Ainda assim, a intimidade entre eles era limitada a carícias mais ingênuas. Quando a
coisa esquentava, ―lembrava do pai‖ e a interdição implícita de outrora se fazia
presente. Todavia, ela estava decidida a transar, inicialmente como um modo de
vingança e afronta ao pai, devido a uma briga com proporções violentas, provocada
por uma discussão a respeito das finanças da família. E também, e mais importante
para ela, por estar ―tremendamente apaixonada‖ por Hermes. Transaram.
81
81
Evidentemente, apenas a briga pontuada o seria responsável por desencadear essa ―vingança‖.
Farei adiante uma breve consideração a respeito do Édipo feminino, que penso, pode explicar com
mais precisão esse evento.
155
Então, pulemos aqui sua saída da igreja, do grupo musical, a mudança
radical de visual (das longas saias aos topes e vestidinhos insinuantes), o interesse
por sica instrumental, jazz, MPB. E haja mudança: o também virgem Hermes
passou a ser o estereótipo de roqueiro romântico, apaixonado, que escreve/copia
poemas (de Fernando Pessoa e Mario Quintana, que esconde em meio às coisas
dela, para saber da ―surpresa do encontrar algo não previsto‖) e se torna o
carinhoso e casamenteiro que não sabe mais viver sem ela.
Esse preâmbulo é para apresentar, com um nível mínimo de
contextualização, duas cartas/e-mails de amor musical que Helena escreve a
Hermes e envia a ele no dia em que comemoraram um ano de namoro.
Antes do envio, assim como uma espécie de pedido de revisão, ela o
escrito no divã para o analista, não sem antes fisgar minha flutuante atenção
alertando-me primeiro pela seguinte fala: Fui a uma palestra sobre música que
culminava numa apresentação de um harpista, muito interessante. Acabei
comprando livro, sobre história da música. Acho que minha mente anda meio
musical esses dias, deu até vontade de voltar a tocar... E escrevi uma carta para ele,
que estou mesmo apaixonada e não me policio mais a respeito do que ele vai ou
não achar, e eu tenho certeza de que ele também está; estou pensando em enviar
por e-mail, o que você acha? Posso ler para ter sua opinião?” ―Sim, pode ser‖, eu
disse, sem esconder minha curiosidade (musical) analítica.
Retira facilmente o papel dobrado do bolso e inicia a interessante leitura:
Hermes querido, sabe, eu não sei se alguém disse isso, também não importa e,
tampouco, quero primar pelo que vou escrever. Eu te amo! As últimas vezes que
fizemos amor foram divinas, eu devo ter dito/escrito que fazer amor com você é
uma poesia, mas agora diria também que fazer amor com você é uma música...
Posso explicar. É que seus beijos são como um doce prelúdio e quando te toco é
como se eu estivesse aprendendo uma nova música; seu corpo, cada vez mais, traz
uma gostosa e indescritível novidade, acho que seu corpo é um mistério, é muito
bom te desvendar, adoro senti-lo em cada detalhe, é como um solfejo, enquanto
ainda está se descobrindo cada nota, cada tom, criando certa intimidade, antes de
propriamente tocar a música...
82
82
Ver glossário dos termos musicais usados por Helena: apêndices 1 e 2.
156
E quando finalmente está dentro de mim, completa-se a combinação de
melodia, harmonia e ritmo, a junção de sons simultâneos, harmonia tão forte, que
daria para criar um acorde, seus ritmos elevam minha respiração, como um
sustenido eleva uma nota em meio grau, enquanto me penetra com carinho e depois
com intensidade, parecem síncopas, aquelas notas fracas que se encontram com as
fortes ligando-se...
'Agitato' como a própria expressão diz, adoro sua „incansabilidade‟, você é
uma delícia em todos os sentidos, cabe ainda outra expressão musical para seu
corpo: 'con anima' com movimento e calor mesmo fazendo amor com você
para compreender o quão é sublime uma música, e nem precisa ser músico para
entender...
Entendo então, mais uma [grifos dela] modificação do movimento e da
intensidade (estou falando de música? Risos!!!) não sei, não sei também se a
expressão, mais uma (é que daria para escrever muitas outras ainda) para seu corpo
seria 'sotto voce' com ternura e suavidade, pois, ah, mas olha a antítese
que pensei agora: é que gosto muito de sentir o seu corpo pesando sobre o
meu, devo dizer também que adoro essas palavras indecentes que você fala,
inclusive pode continuar falando, quem sabe da próxima vez, eu não fico 'sem-
vergonha' (ai agora vai ficar com duplo sentido) e não falo também pessoalmente o
que escrevo aqui; deixa eu voltar pra música (risos)...
mesmo, por fim, pedindo 'al Coda' tocando-te até final repetindo um
determinado trecho para depois pular para o último compasso com uma
longa 'fermata' para os movimentos mais gostosos, melhor que isso, mesmo 'da
capo'. (sic)
Em outras palavras, quando me disse que queria me dar pelo menos a
metade do prazer que te dei, o que posso responder, é que me deu muito mais que
a metade do prazer que lhe dei, nem sei se lhe dei tanto prazer assim, mas saiba
que você sim dá prazer, e prazer até com palavras... palavras que se
transformam em música.
Ouvir o relato muito me interessou. A forma de sua escrita, bastante poética,
flertava com o que estava escrevendo e, naturalmente, acabei compartilhando com
ela duas ou três sessões mais tarde, sobre meu trabalho em desenvolvimento. Era
157
uma prévia sondagem sobre a autorização, ou não, dela para publicar parte da
história relatada. Para meu contentamento, ela não aceitou como me enviou
outros textos que havia escrito para ele, nos quais sempre criava metáforas
musicais.
83
Textos que nem sempre eram lidos nas sessões, pois eu pedia que ela
os comentasse e depois ela enviava-me de fato, para o uso que faço nesta tese.
Das que me enviou não querendo privar o leitor, que me acompanha agora, do
interesse despertado pelo texto na íntegra escolhi a que se segue, compartilho-a
sem recortes:
Eu estava aqui, tocando, estudando, mas meu dedo começou a incomodar
um pouco (lembra que estou dodói?), tive que parar por um tempo. Enquanto
tocava, sua lembrança invadia meus pensamentos de modo constante, então
aproveitando a pausa na música resolvi escrever pra você...
Eu disse que a fermata (lembra?) poria um fim na música, proposital e, feliz
engano, afinal a fermata prolonga a nota por tempo indeterminado, né? E você é
uma sonata sem fim...
Digo sonata porque esse tipo de peça musical reúne três ou quatro partes
diferentes (allegro, andante ou adágio, presto, prestissimo...) e você reúne muito
mais que três ou quatro movimentos musicais... Você é a própria música... É ela que
o tem em cada nota, cada compasso... e não o contrário...
Breve pausa no e-mail (minha Kaká [uma cadela] acabou de chegar pra se
juntar à bagunça, é que estou no meio de um monte de livros de música, lápis,
bolsa, flauta... tudo em cima da cama e agora também a Kakinha querendo
atenção...)
Enquanto lia a partitura, solfejava seu corpo... Você tira a roupa e eu é que
perco o compasso, esqueço os tempos e todo o resto... Viajava na lembrança de
cada detalhe de você, fecho os olhos porque decorei seu corpo (sua boca
irresistível, seus ombros inabaláveis, sua barriga perfeita, sua intimidade poderosa,
suas coxas espetaculares, seu cheiro que enlouquece...), abro os olhos porque meu
olhar é nítido como um girassol (tomando Fernando Pessoa emprestado), mas
83
Evidentemente, é possível crer numa ―não naturalidade‖ desses textos posteriores ao primeiro.
Como se a paciente estivesse apenas respondendo a demanda do analista/acadêmico; porém, tendo
a crer na fidedignidade ―das cartas‖, que a primeira foi lida/levada à sessão espontaneamente.
Claro que podemos interpretar a intenção da leitura, porém prefiro tratar os escritos como sendo
produção de sua realidade psíquica.
158
continuo perdida dentro do seu sorriso envolvente e do seu olhar que seduz e
paralisa...
Seu corpo nu é lindo e facilmente poderia ser confundido com uma grande
obra musical como as Quatro Estações de Vivaldi, a Sinfonia em Dó Maior de
Schubert, Tristão e Isolda de Wagner, qualquer um dos belíssimos minuetos de
Bach, os balés de Tchaikovsky, ou ainda as lindas sinfonias de Beethoven, ou
seja, com todas essas e outras das maiores peças musicais existentes...
Outra breve pausa preciso respirar acabo perdendo o fôlego quando me
lembro de você, minha respiração fica mais curta e com intervalos de meio em meio
tom, como uma escala cromática. Por falar/escrever em escala aquelas notas
ascendentes em grau conjunto até a repetição da primeira com algumas
semelhanças e diferenças é o meu desejo por você, ele começa com volume e
ascende em grau conjunto a cada beijo, cada toque, cada mordida sua, atinge o
apogeu e não termina mais (peço um ritornello, estribilho, barra de repetição, ou
qualquer movimento que façam -lo dentro de mim novamente) continuo te
desejando mais e mais...
Mais uma vez minha respiração acelera ao ritmo desse compasso já nem sei
mais qual nota é agora, com tanta presteza de movimento pode ser uma fusa,
colcheia, semicolcheia... Você me deixa confusa e o consigo mais controlar
minhas sensações...
Você sabe que a música é a arte de combinar e produzir sons, dividida em
três partes: melodia, harmonia e ritmo... você é isso... uma arte manifestada na
melodia da sua voz, a combinação certa de sons sucessivos de cada palavra que
fala... Na harmonia de corpo e rosto simultaneamente perfeitos e de uma vez...
No ritmo de cada um dos movimentos do seu corpo... Ritmo a combinação dos
tempos... falando em tempo... Tempo corrido, e com longos intervalos... Tempo curto
e transitório o nosso... Mas cada momento passado com você é um momento que
valorizo muito... porque (tomando Pessoa emprestado pela última vez):
„o que vejo e sinto a cada momento,
é aquilo que nunca antes eu tinha visto e sentido
e eu sei dar por isso muito bem...‟
159
Você é cheio de brilho... Você brilha muito... Não era isso o que eu
escreveria hoje, mas a música e a lembrança de ontem me conduziram pra outros
caminhos...
Adoro entrelaçar meu corpo no seu, quando introduz seu corpo no meu,
quando entra em mim, chega ao meu íntimo... Tudo isso enquanto me beija... O
carinho, a vontade, o tesão que sinto por você...vai além do corpo... Parece musical.
Meus gemidos de prazer, minha respiração ofegante, meus batimentos
cardíacos acelerados, tudo isso revela que sou sua e de mais ninguém. Mais
música...
Não compreendo como consegue ser tão incansável, tão poderoso, tão
gostoso... Supremacia absoluta!!! E não compreendo mais ainda esse fogo
incontrolável que tenho por você...
Pausa final, ou barra dupla para esse e-mail que chega ao fim, porque
voltarei pra outro tipo de música, com minha flauta... você, voltando ao começo,
ou 'da capo' é uma música sem fim...
P.S: você diz que eu não digo essas coisas pessoalmente (e algumas
„sacanagens‟ não acredito que escrevendo), mas saiba que o que escrevo é tão
ou mais genuíno do que quando falo...
P.S (2): eu gostando dessa coisa de 'ps' certo que 'ps' é uma rápida
abreviação... Mas, bem... dispenso apresentações... Você sabe que escrevo
demais...
P.S (3) era pra ser o 'ps 2'... Desculpe... Não é vergonha de você... (quer
dizer, às vezes é...) Enfim, esse 'pudor' todo é algo inerente, é mais forte... Você não
entenderia, é meio complicado, não sei, talvez até religioso... Às vezes isso faz com
que eu fique me sentindo meio 'mal' por você... Não quero escrever sobre isso
agora. Mas mudou muito desde que o conheci... Desde que fizemos amor. Estou
me aperfeiçoando, aperfeiçoando para você. Não desista! Eu te amo!
A partir dos termos estritamente musicais usados por Helena, em suas
cartas de amor, vislumbra-se uma espécie de ―Ode à Pulsão‖, onde estão expressas
as quatro características que lhe são peculiares: intensidade, fonte, alvo e objeto.
160
Em Pulsiones y destinos de pulsión (As pulsões e seus destinos,1915),
Freud cria o conceito de pulsão para construir uma teoria da sexualidade humana:
as pulsões são os representantes psíquicos de estímulos internos, situando-se no
limite entre o psíquico e o somático, as pulsões sexuais (oral, anal, fálica e genital),
constituídas pelos quatro elementos citados (impulso, fonte, alvo e objeto), passam
por quatro processos de transformação: reversão a seu oposto, retorno em direção
ao próprio eu, recalque e sublimação.
5.1 Amor pela música, música pelo amor erotismo e transferência
Helena não sente a menor vergonha de ler ou disponibilizar mensagens tão
eróticas que tanto desvendam o seu íntimo. Pareceu-me que seu principal
interlocutor, o namorado teve a honra de receber explicitamente afirmações tão
afetivas e também eróticas num momento que, segundo ela, o despertou para dar
mais atenção do que ela imaginava poder receber. Era como se ela estivesse
cultivando a paixão do namorado roqueiro, sempre presente e dedicado.
Vale dizer que o erotismo pode ser definido como um conjunto de
expressões culturais e artísticas humanas referentes ao sexo. A palavra provém do
latim „eroticuse este do grego erotikós‘, que se referia ao amor sensual e à poesia
de amor. A palavra grega é derivada do nome Eros, o deus grego do amor, Cupido
para os romanos, que com suas flechas unia corações, significando hoje amor,
paixão e desejo intenso. A literatura erótica é um gênero literário que lança o do
erotismo em forma escrita, para despertar ou instruir o leitor sobre as práticas
sexuais. A literatura erótica de Helena poderia ser também chamada de literatura
pornográfica, já que as cenas sexuais são realmente muito explícitas.
A pornografia é pura e simplesmente uma descrição dos prazeres carnais; o
erotismo é a mesma descrição revalorizada, com base em um ideal de amor ou da
vida social. Tudo o que é erótico é também necessariamente pornográfico. É mais
importante fazer a distinção entre o erótico e o obsceno. Neste caso, considera-se
que o erotismo é algo que torna a carne desejável, inspirando uma sensação de
saúde, beleza e prazer, enquanto que a obscenidade desvaloriza a carne, que é
associada com sujeira, imperfeições e palavras sujas. Teria sua cadela algo a ver
com a ideia de caca (sujeira) [Kaká/Kakinha, lembro, foi o nome dado ao animal
161
doméstico] relacionada aos seus impulsos sexuais, projetados e identificados no
bicho de estimação?
Sem dúvida o erotismo e o sexo estão associados à sociedade e à cultura
humana desde o início dos tempos, e a literatura não foi uma exceção, embora
tenha sido muitas vezes submetida à censura por ser considerado um tema
reprovável e pecaminoso. Que toca a esfera íntima do passado religioso da
paciente. O erotismo e o sexo estão associados à sociedade e à cultura humana
desde o início dos tempos, a literatura não foi uma exceção, embora tenham sido
muitas vezes submetidos à censura por serem considerados temas reprováveis e
pecaminosos.
Dito isto, penso como a transferência cumpriu seu papel na análise. Helena,
até a conclusão da elaboração desta tese, não sabia da minha condição de sico.
Obviamente soube do meu manifesto interesse por sua escrita bem como os
conteúdos latentes que articulava com a música e sua vida amorosa quando contei-
lhe meu processo acadêmico. Faço tal observação para descartar de imediato
qualquer tentativa, ou tentação de pensamento voltado a algo previsto, premeditado,
―encomendado‖, como se ela atendesse a algum pedido explícito da análise/analista.
Logo, a sedução implícita em toda relação terapêutica o se apresentava como
fator sintomático na transferência.
84
Recusei-me, como relatei, a ler algumas cartas, e pedia para que ela
falasse sobre seu conteúdo e depois eu acrescentaria ao acervo que poderia, ou
não, figurar na pesquisa. Sua voz precisava ser escutada. Afinal seu pai biológico
jamais aceitaria aquele tipo de linguajar, essencialmente romantizado, por vezes
malicioso e explícito. Obviamente havia nessa relação analítica um esquema
voyerista-exibicionista que as peculiaridades de suas falas e gestos apresentam.
Claro que ela se exibia, e isso o foi descartado em sua análise, mas, penso que
aqui a função musical foi muito mais significativa para ser relatada, pois o recorte do
uso que fez pelo modo como foi afetada pela música é o que mais importou na
interpretação. Era como se ela me colocasse como testemunha auditiva da sua
84
A transferência clínica (em alemão übertragung, indica transcrição, transmissão, contágio,
tradução) é relacionada ao fenômeno do deslocamento. Na transferência a energia livre da pulsão,
que caracteriza o processo primário, tende a se vincular em busca de uma representação. Na
transferência, experiências psíquicas não elaboradas no plano consciente são "traduzidas" na relação
que se estabelece entre o analista e o seu paciente.
162
relação sexual. Sem vida que um voyerismo, pela escuta, se assim posso
chamar, do analista, criava um novo modo no qual a paciente podia perceber sua
existência. Fazendo da sessão analítica um fio condutor da musicalidade que
aparecerá, numa espécie de costura emocional entre o paciente-analista, em que o
analista escuta e pode decodificar.
Voltando ao pensamento, creio que é possível concluir que a transferência
amorosa se deu especificamente com a música. Não (apenas) com o analista, como
ressaltei anteriormente. Sem dúvida havia um significativo depósito de confiança na
análise supondo o saber que o analista carrega. Criava-se com isso uma espécie de
erotismo também na transferência; mostrar as cartas, exibir sua intimidade...
Certamente havia um quê de 'fazer amor' com a análise, com o processo
que, sem dúvida, a libertava de tantas correntes impostas. Certa vez me falou: ―vo
é como um pai que não julga; não tenho receio que publique o que escrevi, pois
sinto que respeita e entende meu direito de amar e ser amada‖. Logo, não tive
dúvidas que o aspecto transferencial estava, de fato, resolvido e que em última
instância, Helena tenha se saído muito bem na questão. Ou pelo menos me fez
acreditar que sim.
É fundamental salientar que Helena, para além da sexualidade muito bem
compartilhada com o namorado, poderia ter sublimado parte de suas pulsões para
falar dessa harmonia e ter composto músicas, até cantado ou tocado canções, mas
ela prefere a escrita, repleta de metáforas melódicas, por um lado e por outro é
como se ela vestisse os corpos dela e do Hermes com uma musicalidade verbal,
apesar de uma vaga nudez explícita.
85
Também chama a atenção que ela começou a escrever espontaneamente,
como se colocasse sua criatividade na escrita, (Helena contou que sempre gostou
de escrever, tinha o hábito de se corresponder com a prima que migrara para outro
Estado; tratava-se de longas cartas, detalhando a vida como se fosse um grande
diário, já que eram muito apegadas quando moravam próximas uma da outra).
A mente reconhece o sublime de um relacionamento pleno e
procura expressá-lo. A forma escolhida para abordar o conteúdo é a questão.
85
Creio que os aspectos metafóricos discutidos no caso anterior (Charles) também seriam passíveis
de alguma correspondência aqui.
163
Pensemos um pouco como Helena trouxe à tona seus conteúdos. Por que
escrevemos? Qual a função da escrita para cada um? De fato, ela (escrita) pode ser
terapêutica, seja para se tornar pública, em busca de um leitor atento, ou se manter
nos meandros da intimidade. Confessional, mas qual escrita não seria? Penso que
até a escrita ficcional confessa algo. Toda escrita é confessional! Apenas varia em
grau de autoexposição e autodesvelo.
Etimologia da palavra escrita quer dizer gravar, fazer uma marca. E é certo
que seu surgimento se deu antes da fala (BARTHES, 1976).
Por exemplo, pode-se ler Freud de tantas maneiras, quantas possam ser
nossas associações, mas em todas aquelas linhas existe um homem nos oferecendo
seu funcionamento psíquico, indo até os próprios sonhos. Este será um tema
constante nas suas reflexões. Existem vários tipos de ruptura desse processo, desde
o óbvio fato do paciente não mais comparecer ou do analista informar que não mais
pode continuar o atendimento, ao dificultar/impedir o acontecer analítico, mesmo
se passando pelo processo, com presença e pagamento, durante anos. Como era
―ler‖ Helena?
Lúcio Cardoso (1970) escreveu em seu ―diário completo‖ questionando o
porquê de sua escrita, e penso que suas considerações se encaixam com as que
faço agora sobre Helena: ―escrevo apenas porque em mim alguma coisa não quer
morrer e grita pela sobrevivência‖; ―escrevo para que me escutem‖.
Ler Helena era escutá-la, suas sonoridades não exatamente verbais, mas
havia algo, de fato musical até em seu jeito de falar; especialmente quando
associava livremente misturando suas emoções com conteúdos da técnica musical
que advinham primeiro da interlocução com Hermes, depois com o analista.
Helena tinha uma necessidade muito grande de gritar/cantar sua música
erótica para ―o mundo‖, pois, penso essa era uma forma de se libertar do pecado em
ter sucumbido aos prazeres da carne de modo tão intenso e vivo.
5.2 Porque dialeto?
Ela fala em sonata, colcheias, etc. De maneira bastante erudita, como quem
entende muito de teoria musical. Parece uma língua estrangeira. Para mim, em
164
alguns trechos ela poderia estar falando grego que daria na mesma. Mas, ela passa
da teoria para a prática e vice-versa.
Fiz uma brincadeira que vai assim, quando ela escreve:
"Adoro sua incansabilidade" (lá, lá, ri, lá, ra, lá)
“Gosto muito de sentir o seu corpo pesando sobre o meu” (tã, tã, tã)
“Sua boca irresistível, seus ombros inabaláveis, sua barriga perfeita, sua
intimidade poderosa, suas coxas espetaculares, seu cheiro que enlouquece” (nã, nã,
nã).
No lugar das metáforas melódicas que a Helena usa, eu coloquei um
cantarolar para deixar mais em evidência o quanto ela fala do corpo, que fica meio
disfarçado em meio a todos aqueles termos do glossário que ela usa. Tirei, por
assim dizer, a roupagem musical e o que restou fala por si mesmo.
Quando ela diz: "... E escrevi uma carta para ele, que estou mesmo
apaixonada e não me policio mais a respeito do que ele vai ou não achar", ela
também poderia estar se referindo ao fato de que confia no analista como um
ouvinte atento, aberto para as suas revelações, diferentemente do pai que proibia
relações sexuais antes do casamento. Mas, será que temia uma maior intimidade
emocional com o analista, quando ela teria acesso às suas emoções mais recônditas
e descobriria novos significados, não ficando tão ligada a certo estereótipo musical
que ela mesma criou?
Poderia ela vir a se tornar poeta? Afinal, ela recebia poemas do Hermes da
autoria de Fernando Pessoa, Mario Quintana.
Com a análise mais avançada após um intervalo significativo sobre as
conversas enredadas pela música, Helena apresenta mais cartas para eu ler; meu
discurso não mudaria: ela teria que narrar o conteúdo.
Para não me transformar no depositário, meio atônito e paralisado diante da
enxurrada de material que a paciente trazia, sem ao menos fazer alguma
interpretação sobre esse acting-in, digo-lhe que seria muito importante conversar
165
sobre as cartas (que ela e me entrega, conforme combinado). Ela cai num longo
silêncio e ao término da sessão sai sem dizer mais nada.
86
Na sessão imediatamente posterior, Helena relata um sonho: estava
vestindo uma roupa muito atraente, num local desconhecido, onde se sentia
observada sem identificar quem a olhava. Sua atenção recai sobre um relógio de
parede que marcava a hora em que foi quebrado. Ela começa a associar e diz que o
vestido tinha alguma propriedade estranha porque ao invés de cobri-la, mais parecia
um raio-X que revelava seus contornos e a deixava nua aos ossos. Relata que
acordou desse sonho sentindo-se muito ansiosa.
Disse a ela, em minha intervenção, que achava que esse sonho tinha a ver
com o que falamos sobre as cartas. Ela tinha uma grande facilidade de descrever os
coitos com Hermes, mas não encontrava coragem para desvelar seu íntimo para o
analista. (pelo menos no começo da análise, quando ela se acanhava ao falar sobre
assuntos sexuais).
Ela não falou mais sobre as cartas. Era como se esse conteúdo tivesse
parado no tempo.
86
Segundo Sophie de MIJOLLA-MELLOR (2005) o termo acting-in corresponde ao uso de FREUD da
palavra alemã agieren(como verbo e substantivo). Deve ser distinguido do conceito, ao qual es
intrinsecamente relacionado, de ‗passagem ao ato‘ herdado da tradição psiquiátrica francesa e que
denota os atos impulsivos e violentos geralmente relacionados com a criminalidade. O termo acting-
out se refere à descarga por meio da ação, ao invés da verbalização, de material mental conflitivo.
Embora exista esse contraste entre ato e palavra; ambos os tipos de descarga são respostas ao
retorno do reprimido: repetido no caso de ações e relembrado no caso das palavras. Outra distinção
ocasionalmente feita entre acting-out e acting-in, usado para distinguir entre ações que ocorrem fora
da análise (frequentemente explicadas como compensações para as frustrações acarretadas pela
situação analítica, pela regra da abstinência, por exemplo) e ações que ocorrem dentro do setting (na
forma de comunicações não verbais ou linguagem corporal, onde também estão incluídos os silêncios
prolongados, sucessivas repetições ou tentativas de seduzir ou atacar o analista.
Com relação ao fato de que ocorrem o acting-in e o acting-out na situação analítica, Freud disse que
o analista precisa estar preparado para perceber que o paciente se entrega à compulsão à repetição,
que agora substitui o impulso para relembrar, não apenas na sua atitude em relação ao analista, mas
também em todas as outras atividades e relacionamentos que possam estar ocupando sua vida
nesse momento. A ação e a repetição são afinal o mesmo processo, envolvendo tudo que surgiu das
fontes do recalcado, abarcando a personalidade manifesta do sujeito suas inibições e atitudes
inadequadas bem como os traços de caráter patológicos. De acordo com o pensamento de Freud, o
acting-out desde o início está relacionado com a transferência. Ele enfatiza a necessidade de
demarcar claramente o que é ‗atualização‘ na transferência e o que é ação tanto dentro quanto fora
da situação analítica. O acting-in da Helena não está relacionado à falta de verbalização. Mas, tem
como exemplo de ação o componente de trazer prontos vários textos escritos em casa (cadê a
associação livre?) e desejar que o analista passe a ter a função de guardar suas cartas amorosas.
Resta ao analista o manejo desse tipo de transferência para tentar fazer com que a paciente volte a
seguir a regra fundamental, enquanto ele se abstém de satisfazer os próprios desejos. Penso que
isso (o manejo), de fato, se deu com Helena após minha mais ―severa intervenção‖: fale você!!!
166
Essas cartas são claramente eróticas e tangenciam a pornografia quando
ela diz: devo dizer também que adoro essas palavras „indecentes‟ que você fala,
inclusive pode continuar falando, quem sabe da próxima vez, eu não fico 'sem-
vergonha'‖. E ainda: ―Você diz que eu não digo essas coisas pessoalmente (e
algumas „sacanagens‟ não acredito que escrevendo, mas saiba que o que
escrevo é tão ou mais genuíno do que quando falo‖.
5.3 Aspectos Edipianos
Sobre a relação com o pai. Lembro algumas falas escritas nessa tese:
―Creio que basta-nos saber de sua relação com a música, com a religião, além da
ainda não mencionada, delicada e intensa relação com o pai e, por fim, sua, até
então, aversão aos relacionamentos íntimos (sexo)‖; ―O pai dizia saber que seria
impossível ela aguentar ficar sem se envolver fisicamente com um homem por muito
tempo, mas que tinha que preservar o melhor dela para o casamento.‖ ―Quando a
coisa esquentava, ‗lembrava do pai‘ e a interdição implícita de outrora se fazia
presente. Todavia, ela estava decidida a transar, inicialmente como uma espécie de
vingança e afronta ao pai...‖
Ao escrever o caso a ideia do Édipo feminino me veio à tona e creio ser
elucidativa pra compreender Helena e sua relação com o pai/lei. Em Freud a noção
de fálico-castrado tem papel fundamental no processo edipiano. Diferentemente do
menino que diante da ameaça de castração (relacionada com a fase fálica), a
menina é ―castrada‖. Por isso a formação do supereu, para Freud (1931), tem
componentes preponderantemente genitais.
87
Creio que cabe aqui outra breve menção ao relacionamento com a mãe,
mencionada uma vez nessa tese e, ainda assim, como fazendo parte do casal
parental que não aceitava Hermes como namorado da filha, entre muitas razões,
principalmente o fato do rapaz não pertencer à mesma religião da família.
Embora Helena pouco falasse da mãe, quando o fazia geralmente tratava-se
de uma imago benevolente e apresentava os pais como tendo um bom casamento.
Esse vínculo-modelo foi estruturante para a paciente que pôde desfrutar desde a
infância de uma modalidade de relacionamento significativo e promissor.
87
Para mais detalhes cf. apêndice 3.
167
Minha música silenciada... e espero que seja breve esse momento de
pausa... que seja antes, de tudo uma pausa fugaz... pois a cada dia que passa mais
aumenta a vontade de senti-la e de tocá-la... queria que ela entrasse dentro de mim
hoje, ainda que em pensamento... e que eu pudesse senti-la como da primeira vez,
mais forte que a primeira vez... que era apenas de descobertas... descobertas de
sensações... de emoções... frágeis. Descobertas... descobertas de tudo o que eu
pensava dela... hoje, algumas confirmadas... outras reafirmadas... e outras... ainda
que se descobrir... essa música é nova, ainda que se repita... traz sempre uma
novidade inesperada...ah música, que saudade de você... volta a tocar... e toca
só no meu aparelho de som...no meu aparelho de sensações e emoções... [trecho
de uma das cartas escritas por Helena, quando Hermes viajou e ficou
aproximadamente 30 dias sem vê-la]
Penso que Helena fez um deslocamento de linguagem ao tomar a escrita
musical como análoga a sua vida afetiva, e mais especificamente sexual. Talvez o
uso dessa linguagem pode promover sua saída do lugar de ―assexuada‖ para ocupar
o lugar de mulher.
Existe uma grande distância entre descrever um efeito, entre narrar o quase
inenarrável da sensação que desencadeia uma escuta musical, e um
processo de abstração e criação de um quadro de previsibilidade para uma
próxima escuta. (FERRAZ, 2005, p. p.17).
Helena lançou mão da forma sonata, tomando um discurso narrativo da
música fazendo-o análogo ao seu relacionamento amoroso e a relação sexual mais
especificamente.
A música também organizou afetivamente conteúdos psíquicos de sua
história amorosa. Hoje, a futura advogada está com o casamento marcado com o
roqueiro expert em computação gráfica; opostos confirmando a atração?! Que sejam
felizes...
168
CONCLUSÃO
88
Quem ousaria decifrar um discurso como se
decifra uma partitura musical? E aguçar o terceiro
ouvido que é o que apreende o incorporal do
texto para os sons harmônicos, os ritmos que
dançam? Quantos estariam aptos a captar o seu
tempo no sentido musical do termo e
discriminar os staccati, os rubati, os glissandi. Ou
a estar atento ao momento que aparece uma
fermata? E quando se passa da escrita à fala
aprender a variação das cores e dos matizes: os
tons escuros e densos transmutando-se em
clareza flutuante, capaz de levitar nos limites do
dizível? E conseguir discriminar um tremolo, lá
onde o discurso reverbera e se agita, abrindo
passagem para um afeto sem lugar? E captar as
diferentes mudanças de timbre de voz humana,
anunciando ora uma dor camuflada, ora uma
alegria contida, e, às vezes, devastando espaços
afetivos através de suspiros rítmicos, lacrimejantes
ou explosões exuberantes, ensolaradas, de
prazer? Como é difícil numa sessão de análise
sutil e pacientemente se deixar afetar pela
multiplicidade metaforseante do discurso do
analisando, suspender a interpretação precipitada,
esperar que o corpo próprio ecoe e responda, e
que os afetos emergentes deem forma e sentido à
fala interpretante! (Alfredo Naffah Neto , pp. 23-24)
Nenhum de meus escritos foi concluído; sempre
se interpuseram novos pensamentos, associações
de ideias extraordinárias, impossíveis de excluir,
com o infinito como limite. Não consigo evitar a
aversão que tem meu pensamento ao ato de
acabar. (Fernando Pessoa)
88
Encerrar algo, que supomos não estar concluído, culmina invariavelmente numa sensação muito
incômoda. Ao digitar o ponto final, fica um gosto de que adiante caminhos a serem percorridos
ainda. Por outro lado, creio na necessidade e importância desse ponto, que no fundo talvez não seja
final propriamente, mas demarca, sobretudo, uma etapa que se encerra com falhas e acertos,
apontando para outras direções.
169
Música, oriunda do grego mousikós (musical/relativo às musas) referia-se ao
vínculo do espírito humano com qualquer forma de inspiração artística. A evolução
do termo, porém, se afunilou na criação estética relacionadas à combinação dos
sons. Logo, somos seres essencialmente musicais, visto o ritmo do nosso andar, dos
batimentos cardíacos e da fala que nos remete a algum tipo de produção sonora.
Claro que isso se sofistica, na medida em que conhecemos a organização musical,
por mais elementar que ela possa parecer.
Um paciente me dizia que ouvir Beatles, mesmo sem entender uma só
palavra proferida nas canções (já que não conhecia a língua inglesa),
proporcionava-lhe um prazer desmedido; dizia sentir se ―afetado‖ pela sonoridade do
grupo. Fosse dançando ou apenas escutando as músicas.
Nesse sentido haveria um poder de sedução em uma determinada música
ou gênero, que levaria o sujeito, de alguma forma, metaforizar o que o som produz
nele.
Qual a fonte secreta do seu inesgotável poder de sedução? É possível que
exista uma resposta em termos técnico-musicais precisos para isso. A
pesquisa da psicologia dos estados hedônicos vem formulando conjecturas
cada vez mais refinadas sobre as bases do prazer da audição musical. Mas
por mais que isso avance nessa linha, não creio que o mistério da vivência
subjetiva da música uma realidade interna, intransferível e agudamente
pessoal chegue a se render algum dia ao saber científico. (GIANNETTI In
COHEN, 2003, pp.73)
Se considerasse a voz de cada um desses pacientes um canto, uma
―sonoridade psíquica‖ poderia me intitular (na condição de analista) um receptor
desses sinais, um intérprete das músicas cantadas por cada um deles em sua
singularidade. Processo no qual as desafinações, pausas/silêncios, momentos de
tensão e relaxamento, timbres, ritmos, lentos, acelerados, e toda a gama de
analogias musicais ainda passíveis de serem incluídas nessa construção simbólica,
seriam equivalentes à escuta psicanalítica. Por isso meu papel era semelhante a um
articulador. Um ouvinte hi-fi, que escuta música e a transforma em psicanálise.
A dificuldade de escrever sobre sica e psicanálise, como lembrou
Rechardt (1994), reside no fato de que sua linguagem é abstrata e de difícil
apreensão. Quantos anos são necessários para formar um músico, quantos mais
para formar um psicanalista? Independentemente da resposta (que não pode ser
170
precisa) o prazer da escuta musical, ou analítica, talvez seja muito parecido. O
prazer de ouvir poderia estar atrelado a algum disparador psicológico e emocional
datando dos primeiros contatos com a voz materna onde as primeiras afetações
sonoras recairiam sobre o sujeito. Esse seria apenas o início do que mais tarde se
transformaria nas afetações causadas pela música em si, já organizada e com algum
sentido sonoro. Não importando o estilo, mas certamente ligada a aspectos de
natureza afetiva. Boa ou ruim, determinando o gosto e as afetações que cada sujeito
enfrentará diante das sonoridades.
Quando crianças nos ninaram com cantigas e o acalanto esteve presente na
constituição de grande parte dos sujeitos. Seria um risco dizer que todos, desde a
tenra idade foram apresentados às manifestações musicais de sua sociedade,
porém não há risco em aceitarmos como fato que certamente a grande maioria o foi.
Como é possível alguém não se apaixonar por sica? Esse é um mistério
para todos os que descobriram o prazer que ela provoca. Agindo sobre o ouvinte,
muitas vezes de maneira avassaladora, ressoando para além daquilo que devem
dizer, a beleza dos sons apresenta sentidos que, sem um ouvinte, seriam incapazes
de sugerir algo afetivo.
Essa tese me fez percorrer caminhos muito distintos. Perguntas
desnecessárias, ingênuas, descabidas, foram criadas ao longo de minha pesquisa
para tentar dar alguma consistência na jornada até que uma hipótese mais coerente
pudesse ser demarcada. Por vezes, encantado com a possibilidade de formular
corretamente uma questão, eu criava perguntas como essa: ―Por que os sujeitos se
identificam com uma música e/ou seus intérpretes? E respondia: À primeira vista
parece ser elementar: ora por influência dos pais, dos amigos, ora da escola, da vida
social...‖ Logo, não se tratava de um pergunta tão elementar. Tampouco uma
resposta para ela parecia clara e consistente. Ampliava o questionamento: por que
começamos a gostar de música? Como esse gosto se inicia? Essas, no entanto,
ainda eram perguntas que não poderiam ser efetivamente respondidas; frustrava-me
tal descoberta, pois, por mais que algumas vertentes possam apresentar
justificativas convincentes, sempre haveria outra em seu lugar capaz de refutá-la.
Não apenas na mídia segmentada, mas também na grande imprensa, a
música sempre teve espaço garantido. Não um dia, sem exageros, que ela
não seja citada nos jornais e em seus respectivos cadernos de cultura, em revistas
171
especializadas ou não, nos canais de televisão (TV aberta e a cabo), nas difusões
radiofônicas (até por motivos óbvios), mas também como glosa em muitas pautas;
enfim, são múltiplos os aspectos que circundam a esfera musical na mídia, o que
significaria dizer que está muito próxima de leitores potenciais consumidores.
Encontra-se, quase que diariamente, desde cantores, compositores,
produtores, que têm seus novos (ou não) trabalhos e shows sendo divulgados, a
críticos e jornalistas exibindo seus artigos e opiniões a respeito, não apenas do
artista em si, mas, muitas vezes, do gênero, dos estilos. ainda, além da crítica
especializada (ou não), uma gama de informações a respeito da música
propriamente dita. Trata-se de discussões em torno de sua importância na formação
e constituição do sujeito, sobre aspectos que dialogam com a neurociência, com
teorias cognitivas, pesquisas sobre o gosto e escolha musical, sobre a relação
individual e coletiva que se trava com a música e, finalmente, com aspectos técnicos
e teóricos, tais como a influência do ritmo, harmonia, melodia (linguagem musical),
análogas a outras manifestações.
Nesse sentido o fenômeno da indústria cultural (meios de comunicação
capazes de colocar uma mensagem ao alcance de um grande número de indivíduos)
merece ser considerado por sua importância.
Ao deixar, simbolicamente, as obviedades do manejo do mercado
fonográfico, ou seja, independentemente da manipulação da mídia sobre o ouvinte,
refleti ao longo da primeira parte da pesquisa sobre o que levaria um sujeito a
comprar, consumir esse ou aquele gênero musical. Veio à tona, assim, um longo
percurso que se baseou quase que exclusivamente em aspectos ligados ao
mecanismo de identificação.
Descobri, então, que o que nos motiva a escutar determinada música,
assistir determinado filme, ser expectador de determinada peça teatral ou ir a
determinado lugar, não era, de fato, passível de ser respondido numa tese de
doutorado. A não ser o fato de que tais laços afetivos (pais, amigos, escola, vida
social) poder de algum modo afinar essas relações e apontá-las para o desejo de se
ouvir, ver ou fazer coisas semelhantes, senão iguais.
Assim, penso que deveria haver especificamente algo na articulação
psíquica de cada sujeito ao promover essas identificações e com isso o afunilamento
172
ia cada vez mais determinando meu trabalho. Tal pista promoveu o encontro com a
ideia que determinaria a afetação musical na vida psíquica de cada sujeito. Mas,
mais do que isso: como essa afetação poderia trabalhar a favor da análise de cada
um dos pacientes apresentados ao longo da tese. Portanto os aspectos
psicanalíticos do processo de identificação pareceram os mais precisos nas
formulações teóricas.
Em seguida, falar de música e sua articulação com a psicanálise demandou
muita dedicação, pois os poucos autores que se aventuraram por esse campo,
quase não conversam entre si teoricamente. De modo que coube a mim criar os
cruzamentos necessários entre eles para apresentar algo consistente que revelasse
o ―poder‖ do aparelho psíquico diante das afetações musicais que cada paciente
apresentou.
Portanto, chegar ao afunilamento demandou acertos e erros, alegrias e
frustrações na prática da escrita. Refletir sobre o gosto, sobre as identificações sobre
o papel da cultura de massa e, sobretudo, sobre as relações entre música e
psicanálise dariam, ao final, elementos concretos passíveis de articulação entre os
casos clínicos apresentados e as formulações que os precederam.
Sonoridades: afetação musical na vida psíquica
Um objeto vibrando de forma completamente desordenada produz um som,
um ruído. Pode ser um barulho, uma buzina tocando, um grito, um trovão.
Fisicamente falando o ruído é o resultado da soma de frequências. A diferença entre
os sons musicais e outros quaisquer é que nos instrumentos musicais, ou na voz
utilizamos apenas algumas dentre as inúmeras frequências possíveis. Essas foram
estabelecidas por convenção e constituíram-se nas notas musicais. Quando um
instrumento produz frequências diferentes daquelas que estamos acostumados a
ouvir, pode-se dizer que o instrumento está desafinado, e carece de afinação para
voltar a produzir sons na escala convencional.
Nesse sentido a experiência musical, ou melhor, a estrutura musical pode
ser pensada na dimensão da experiência psíquica. Pois o sujeito é ―fisgado‖ pela
experiência musical estética e sua organização, que afina sua escuta.
173
Ligados à experiência íntima e singular do inconsciente, a música promove
impactos deixando marcas que induzem a diferentes usos psíquicos.
A inspiração, criação e escutas musicais envolvem também organização e
desorganização. Esses pacientes (mas não apenas) vivenciaram e vivenciam a
música, se comprometendo com ela num nível que ultrapassa a consciência. Assim,
puderam expressar muito mais do que o desejado quando procuraram meu
consultório.
A sonoridade como algo físico, independente do gosto musical do sujeito,
me pareceu uma ―ferramenta‖, um indicativo que pode colaborar com o analista no
tratamento de um paciente. Uma interpretação psicanalítica da experiência musical,
das sonoridades, e de suas diferentes incidências na economia psíquica, evidencia
um caminho menos tortuoso quando a identificação, gosto e a cultura podem ser
articulados com a singularidade de cada sujeito.
Como se viu nos casos, Priscila pôde, por meio da tatuagem ritualizar sua
relação com o pai-ausente, via as ―precárias‖ sonoridades encontradas e absorvidas
na identificação com o movimento grunge. Seu corpo foi usado como espaço para
nomear a escrita musical. Ela também passa a ter um outro reconhecimento pelo
olhar, escuta e voz, a partir da existência deste outro analista que permite
acesso a função paterna. A fala e a escuta como referência do som que a criança
emite tendo alguém que a ouve.
A transferência também pode ser pensada como uma relação de sangue
que se estabeleceu e se desenvolve e pode saturar as falhas parentais. O que o
analista escuta ajuda no processo de um novo olhar, o pai que não pôde libidinizar o
bebê.
Da mesma maneira Charles encontrou na improvisação a possibilidade de
metaforizar sua vida psíquica a partir do jazz. Algo na forma do jazz que é diferente
de outros gêneros o tocou; estabelecendo diretas relações com seu modo de viver e
tocar o instrumento, a criação de suas analogias talvez estivesse sendo
contrabalanceada com outros gêneros musicais, pois cada um apela a determinado
tipo de sujeito, a uma determinada constituição. Entretanto, a maneira como o jazz
tocou Charles, ou seu avô, um amigo da banda, ou da escola de música é
indubitavelmente intrínseca, subjetiva, extremamente singular.
174
Helena nomeia sua aventura amorosa quase análoga a uma sonata, em
que seu primeiro movimento ainda era muito rígido, depois veio o movimento livre,
em andamento lento, e por último dançante (já desprovido de qualquer censura) com
caráter enérgico e conclusivo, elevando-a a mais perfeita conjunção carnal que
culmina com seu casamento marcado. No que se refere à sua escrita não é de todo
estranho dizer que Helena criou a seu modo uma literatura erótica (e porque não
musical?) capaz de organizar suas referências psíquicas e sonoras que as guiou no
início e no desenvolvimento da relação com o namorado.
O modo como eles foram tocados pela música me permitiu realizar, de
maneira muito particular, interpretações a respeito de suas singularidades afetivas
articuladas às afetações musicais que apresentaram.
Nos três casos a música teve um papel fundamental, tanto na história
pregressa de cada paciente como em sua aparição e permanecia na análise,
permitindo que cada um deles, a sua maneira, criasse condições psíquicas de lidar
com aquilo que se manifestava no discurso analítico. Organizando também um
conjunto de dados capaz de facilitar a metaforização de certas vivências e
experiências afetivas. A sonoridade de cada paciente encontrou na música uma
certa estrutura e configuração capaz de promover algum tipo de representação mais
facilmente acessível.
Finalmente, penso que questões que dizem respeito à condição que a
música ―penetra‖ o sujeito pouco podem ser respondidas, uma vez que cada um se
sente afetado pela música por uma vertente muito singular. O que talvez possa ser
generalizado é o fato de que todos fomos ―expostos‖ a estímulos musicas passíveis
de, em algum momento, abrirem conexões com nossa vida psíquica afetando os
meandros de nossa mente.
175
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Apêndices
187
Apêndice 1
Glossário da carta/e-mail (parte A)
89
Prelúdio termo que se refere à parte instrumental que antecede uma obra
ou movimento maior; originou-se dos preparativos e aquecimentos feitos pelo
músico antes da execução de uma peça ou de uma apresentação.
Solfejo inicialmente referia-se à técnica ou disciplina de exercícios vocais
não associados a textos, construídos sobre estudos de escalas e arpejos. Passou a
designar genericamente exercícios vocais empregados no adestramento da técnica
e na percepção musical.
Nota Som cuja altura é definida e identificada.
Tom Genericamente, e em especial na sica popular, a tonalidade de
uma peça.
Melodia de forma genérica é certa sequência de notas organizada sobre
uma estrutura rítmica que encerra algum sentido musical.
Harmonia é a combinação de notas musicais soando simultaneamente,
para produzir acordes. O termo é usado para indicar notas e acordes combinados e,
também, para determinar um sistema estrutural de princípios que governam suas
combinações.
Ritmo é a subdivisão do tempo em partes perceptíveis e mensuráveis, ou
seja, a organização do tempo segundo a periodicidade dos sons.
Acorde Grupo de três ou mais notas executadas de forma simultânea.
Síncopas Deslocamento do acento de um tempo ou parte dele para antes
ou depois do tempo ou da parte dele que deveria ser naturalmente acentuada.
Agittato em andamento agitado, rápido.
Com anima indicativo de execução com espírito.
Sotto voce [voz suave] indica execução discreta e pouco enfática.
Al coda À coda, ao final.
Fermata prolongamento de uma nota ou pausa a critério do intérprete.
Da capo Expressão indicativa de retorno ao início do movimento ou da
peça.
89
Todas as definições estão baseadas em DOURADO, 2004.
188
Apêndice 2
Glossário (parte B)
Sonata peça musical escrita para instrumento solista; oposição a cantata,
escrita para vozes.
Allegro Andamento rápido, animado.
Andante Andamento situado entre o adágio e o allegretto, e sugere passo
moderadamente lento.
Adágio andamento lento, entre lardo e andante. Vagaroso.
Presto Indicativo de andamento rápido.
Prestissimo andamento muito rápido.
Compasso Unidade métrica musical formada por grupos de tempos em
porções iguais. Na partitura, delimita um trecho compreendido entre duas barras
verticais.
Tempo A pulsação musical, unidade essencial de um compasso.
Andamento de determinada peça; a duração de uma nota.
Escala Genericamente, qualquer sequencia de notas organizadas
ascendente ou descendentemente por tons, semitons ou mesmo microtons.
Escala cromática Escala construída por semitons. Na extensão de uma
oitava, compõe-se de 12 tons.
Volume Intensidade do som.
Ritornelo Indica a volta ao início ou a um ponto determinado da música.
Refrão.
Estribilho Versos que são repetidos após cada estrofe de uma música.
Barra linha divisória que delimita compassos.
Fusa Nota cuja duração é a metade de uma semicolcheia, a quarta parte
de uma colcheia e a oitava parte de uma semínima. Representada por uma nota
cheia.
Colcheia figura rítmica que corresponde a um oitoavos [sic] de uma
semibreve, um quarto de uma mínima e metade de uma semínima.
Pausa silêncio ou ausência de som. A duração da pausa é precisa, e sua
notação na partitura corresponde à duração idêntica dos sons musicais.
189
Apêndice 3
Concepções Freudianas
O ponto de partida de Freud (1915) é a bissexualidade que, do ponto de
vista psicanalítico, se constitui na noção de que todo indivíduo teria desde o
nascimento tendências psicossexuais tanto masculinas quanto femininas, de tal
modo que o processo para assumir seu sexo biológico, por meio de uma síntese
relativamente harmoniosa desses aspectos antitéticos, o se faria sem conflitos,
especialmente no caso das mulheres.
Na fase fálica, o desejo primordial da menina é receber um pênis da mãe e a
vagina seria virtualmente desconhecida de ambos os sexos, se tornando
conhecida pela menina na puberdade.
Essa constatação despertaria sentimentos de inveja do pênis e daria origem
ao complexo de Castração o qual tenderia a se manter por um longo tempo. Assim,
para conseguir atingir seu desenvolvimento genital completo, a menina teria duas
tarefas adicionais em relação ao Édipo do menino:
a) Mudança de zona erógena: com a passagem para a feminilidade, o
clitóris deveria ceder total ou parcialmente sua sensibilidade e importância à vagina;
b) Mudança de objeto: na fase edipiana a menina deslocaria seus
impulsos amorosos da figura materna para a figura paterna.
Freud (1915) acrescenta que o forte antagonismo desenvolvido pela menina
contra a mãe se torna a mola propulsora que viabiliza a consecução das duas
tarefas acima mencionadas. E, para tanto, passa a mencionar as várias razões que
detonaram a eclosão dos sentimentos de ódio infantil:
O desmame;
O ciúme (do pai, dos irmãos);
A crença de que a mãe é responsável pela sua falta de um pênis.
Na feminilidade normal, a menina volta-se para o pai, com o desejo de
receber dele o pênis. Só, secundariamente, deseja obter filhos dele, como
substitutos do órgão tão valorizado. A fase fálica teria sido inteiramente abandonada
e a menina entra no estágio do complexo de Édipo propriamente dito.
O complexo de Édipo se faz acompanhar da formação do supereu,
principalmente devido ao temor da perda do amor materno, ainda que não apresente
a rigidez do supereu masculino.
190
Concepções Kleinianas
Mais tarde, a menina inconscientemente sabe de sua vagina. É também de
seu conhecimento que dentro do seu corpo podem existir bebês em potencial, o que
considera como o seu mais precioso tesouro e deseja o pênis paterno, não como
doador desses bebês, mas equiparado a eles.
Ao mesmo tempo, ela nutre sérias dúvidas a respeito da sua capacidade de
procriar. Suas fantasias e emoções giram principalmente ao redor do seu mundo
interno e dos objetos nele contidos. Sua rivalidade edípica se expressa
principalmente no desejo de roubar do interior da mãe os bebês e o pênis do pai. O
medo de que uma mãe vingativa faça a mesma coisa com ela é o determinante de
sua fantasia mais fundamental e persistente.
A superestima do pênis e as manifestações de inveja têm como função
também encobrir as intensas ansiedades subjacentes, relacionadas com o temor de
um dano irreparável à sua feminilidade.
É na menarca, que a menina pode experimentar gratificação, provando que
ela é uma mulher madura e que poderá ter filhos e obter gratificação sexual. A
menstruação nesse caso, serviria como um antídoto contra as várias fontes de
ansiedade.
Na formação do supereu, o pai bom admirado coexiste, até certo ponto, com
o pai mau e castrador. Imagem que muito provavelmente a mãe teria ajudado a
construir. Porém, interiorização de uma mãe boa pode contrabalançar esse temor,
fortalecendo inclusive sua relação com o pai bom internalizado, por meio de uma
atitude maternal para com ele. A menina também é capaz de uma completa
submissão a esse pai admirado.
Um princípio do inconsciente, analiticamente demonstrado, determina que
todo processo reativo ou de sublimação restitua, ponto por ponto, e por oposição,
tudo aquilo que foi imaginariamente danificado: o que foi roubado deve ser
devolvido, o que foi estragado deve ser consertado.
A posição final da menina dependerá da crença de que sua onipotência
construtiva possa equiparar-se à força da sua destrutividade. Caso isso ocorra, além
de um maior domínio sobre a ansiedade e inveja, o eu obtém uma gratificação
adicional por meio dessas tendências reparadoras.
191
Apêndice 4
Narcisismo
Para Freud (1914) o narcisismo seria o momento organizador das pulsões
parciais, permitindo a passagem do autoerotismo para o investimento libidinal de um
objeto exterior. Entendendo que o eu se constitui como o objeto da pulsão.
O eu, na teoria freudiana, não existe desde o início. Ele se constitui de
maneira que possa identificar-se com a imagem de seu corpo, imagem que assume
como sua, ou seja, como sendo ele próprio.
A criança mesmo sem o domínio de sua organização corporal pode
reconhecer-se no espelho. Assim a organização do próprio corpo, o conhecimento
sobre ele vem do exterior e é capaz de constituir sua estrutura psicológica.
Quando o sujeito percebe a existência do outro, se conta,
concomitantemente que não é único, que para ser querido/amado/desejado precisa
se lançar a alguns investimentos para além de si mesmo.
O eu, anterior à Introdução do Narcisismo é sede das pulsões de
autoconservação (pulsões de vida) e é o pólo defensivo do psiquismo, interessado
em conservar a vida. E Freud ainda não havia elaborado uma teoria do eu
consistente, que o concebesse a partir de uma perspectiva rigorosamente pulsional.
O eu poderia ser definido, então, como o resumo do esforço de viver, trincheira de
um desejo, no máximo, natural o desejo de viver e manter-se vivo, conexo, porém,
oposto ao sexual, este perverso polimorfo, subversivo, voltado para o gozo e para
o prazer, mais que para a vida.
Antes do conceito de narcisismo, o eu estava situado diante dos
investimentos pulsionais (uma pulsão sexual, sem sujeito, oriunda do inconsciente),
defendendo-se, recalcando, produzindo e administrando conflitos, mas não era
pensando como instância subjetiva, como efeito do circuito pulsional.
Assim Freud altera seu esquema pulsional anterior, postula a existência de
uma pulsão, a pulsão sexual: a libido, que passa a ter o eu como uma de suas
localizações possíveis.
O eu é irredutível ao mundo dos demais objetos e assume a força suficiente
para constituir uma libido de natureza distinta, a que Freud dá o nome de libido
narcísica. Assim posto, não se pode pensar apenas em uma libido; duas
192
libidos: de um lado o eu constituindo a libido narcísica; do outro, os outros objetos,
constituindo a libido objetal.
Freud escreve:
...uma unidade comparável ao eu não pode existir no indivíduo desde o
começo; o eu tem de ser desenvolvido (...) sendo, portanto, necessário que
algo seja adicionado ao autoerotismo uma nova ação psíquica a fim de
provocar o narcisismo. (FREUD, 1914, p.93)
Esse eu define-se, dentro da teoria da libido, como unidade em relação ao
funcionamento anárquico e fragmentado da sexualidade da fase precedente que é o
auto-erotismo.
Mas, que fenômeno viabilizaria este novo ato psíquico, ou seja, esta
autopercepção como um todo, via representação unificada de si mesmo?
Outra visão (Lacan) propõe a gênese do eu como unidade que se processa
por intermédio da identificação com a imagem do Outro. É assim que Lacan define
sua ―fase do espelho‖, quando a criança ainda não organizou sua coordenação
motora e almeja essa unidade corporal que lhe falta. Fase compreendida entre os
seis e 18 primeiros meses. Assim antecipa o domínio e a apreensão da criança,
imaginariamente, por meio da identificação com a imagem do outro, como forma
total, para depois fazê-lo também com sua própria imagem especular. Essa fase
assinala o momento fundamental da constituição do primeiro esboço do eu.
Para a teoria das relações de objeto, a e antes de gratificar o bebê
satisfazendo suas necessidades, tem que discriminá-las. Ao responder
adequadamente aos apelos indiscriminados do bebê, ela se torna um agente
organizador desse comportamento caótico.
Assim sendo, as funções do sujeito podem se constituir como tal, por
meio do contato com outros objetos. A partir da apreensão de um significado a cerca
de si mesmo e da busca da identificação com a imagem do outro, o sujeito se
organiza no que se refere às pulsões, adquirindo uma imagem unificada de si
mesmo: assim nasce o eu.
Na fase do auto-erotismo, quando a zona erógena ainda não está
coordenada na imagem de um eu unificado, uma pulsão parcial encontra sua
satisfação no seu local de origem, sem para tanto recorrer a um objeto exterior. Essa
193
satisfação, porém, pode ser mais que um prazer ligado à sensualidade de uma zona
do corpo.
A satisfação pode derivar do significado do encontro da função com o objeto:
o prazer narcisista do ser ao obter o reconhecimento do outro. O objeto da atividade
narcisista é correlato dessa representação unificada de si mesmo e visa à satisfação
do eu, como se este fosse o equivalente psíquico de uma zona erógena por assim
dizer, por meio da demonstração e exaltação de seus méritos.
A libido não se origina no eu, mas volta-se sobre ele, quando o outro
proporciona prazer narcisista ao sujeito, podendo então essa libido narcisista ser
reinvestida em objetos que possam proporcionar novamente esse tipo de prazer.
Gênese do eu ideal
Inicialmente, a criança passa a imitar a mãe, sem ter noção dela como
alguém separado. Essa experiência de estar mesclada à mãe e de confundir o que é
atributo dela como sendo da criança ensejo a ilusões onipotentes. A criança
passa a se ver como símbolo da perfeição, funcionando sob a égide do princípio do
prazer.
O eu ideal se origina tanto das ilusões onipotentes que a criança tece a
respeito de si mesma, quanto dos resquícios narcisistas dos próprios pais,
projetados sobre os filhos.
O destino do eu ideal depende da altura a que foi elevado, pois o mesmo
pode ser mantido completamente isolado do eu de realidade, como uma estrutura
persistente e pronta a ser reativada por meio de manifestações de megalomania em
surtos psicóticos; ou pode ser absorvido pela estrutura que lhe segue, o ideal do eu.
O mais provável é ocorrer um equilíbrio entre as duas alternativas.
Gênese do ideal do eu
É a partir do predomínio do princípio de realidade que a grandiosidade do eu
ideal passa a ser ameaçada: a criança começa a ter a noção de que é um ser
separado da mãe, e que os poderes que julgava serem seus são na verdade dela. A
criança passa a perceber não suas próprias limitações e a ver-se dependente da
194
mãe, como também experimenta desaprovação e condicionalidade quanto aos seus
comportamentos expressas pelo meio. Essa é a fase da crise narcisista.
A perda desse poder afugenta o desejo de recuperá-lo. E isso poderá ser
possível graças ao processo de separação mãe-criança que enseja a possibilidade
da mãe, como objeto separado, poder ser idealizada e introjetada pela criança como
uma imagem amorosa e poderosa; e, também, ao desejo de corresponder ao desejo
do outro, resgatando a realidade, a segurança e a auto-estima anteriormente
desfrutadas em consequência do predomínio anterior do princípio do prazer.
O medo da perda do objeto vai se reduzindo, devido ao processo da
introjeção, ao mesmo tempo em que aumenta o medo da perda do amor do objeto
internalizado, caso a criança não consiga cumprir com as condições impostas para a
obtenção de amor. Esta é a ansiedade dominante que caracterizará para sempre a
relação entre o eu e o ideal do eu. O ideal do eu introjetado é não apenas buscado
pelo eu como objeto de amor, mas toma também, reflexivamente, o eu como objeto
do seu amor.
Poderia dizer que a diferença sica entre os conceitos de eu ideal e ideal
do eu se resume na seguinte configuração: a) o eu ideal é o resultado de um
discurso totalizante, acrítico, que toma a parte pelo todo, quando a partir de um
atributo admirado generaliza a perfeição do sujeito todo; b) o ideal do eu resulta de
um discurso discriminante que, por ser crítico, jamais generaliza, considerando cada
atributo individualmente.
Narcisismo em Lacan
O narcisismo corresponde ao investimento do eu pela libido que, neste ato
constitui-se como libido narcísica. Para Lacan este investimento se faz sobre a
imagem do próprio corpo,
Na fase do espelho não investimento objetal possível (lembrar do auto-
erotismo). Não há relação de objeto que o precede o narcisismo (o que se
evidencia pela impossibilidade de que haja relação eu-objeto antes da constituição
do eu)
195
Na experiência do espelho o sujeito se identifica com algo que não é; ele
acredita ser o que o espelho lhe reflete, acaba se identificando com um fantasma, é
uma ilusão da qual procurará se aproximar.
Para Lacan o bebê tem uma representação fantasmática do corpo, na qual
este aparece fragmentado (a imago do corpo fragmentado continua a se expressar
durante a vida adulta nos sonhos, delírios, e processos alucinatórios).
O espelho situa a instância do eu, ainda antes de sua determinação social,
em uma linha de ficção. O eu constituído é o eu ideal, diferente do ideal do eu. O
eu ideal é uma imago antecipatória prévia do que o sujeito não é, mas deseja ser. É
uma imagem mítica, narcisista, incessantemente perseguida pelo homem. O ideal do
eu surge da inclusão do sujeito no registro simbólico.
A fase do espelho traz a reflexão sobre a intersubjetividade humana. O olhar
do outro produz no sujeito sua identidade, por reflexo. Através do olhar do outro, o
sujeito sabe quem é, e nesse jogo narcisista, como se constitui a partir de fora.
196
Apêndice 5
Músicas do CD anexo
1. Daughter - Pearl Jam
2. Flat out Fucked - Modhoney
3. Smells like teen Spirit - Nirvana
4. Lithium - Nirvana
5. Spoonman - Soundgarden
6. Dead and Bloated - Stone Temple Pilots
7. Crackerman - Stone Temple Pilots
8. Kickstand - Soundgarden
9. Here comes sickness - Modhoney
10. Angry Chair - Alice in Chains
11. Animal - Pearl Jam
12. Say hello to heaven - Temple of the dog
13. Hunger strike - Temple of the dog
14. Your saviour - Temple of the dog
15. Let me drown - Soundgarden
16. The day I tried to live - Soundgarden
17. A melhor banda de todos os tempos da última semana - Titãs
Anexos
198
Anexo 1 Anatomia do “Grunge”.
Fonte: http://blitz.aeiou.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=bz.stories/10693,
acesso em 30 de setembro de 2008.
199
Anexo 2
Cifra da música Daughter
G G4 G G4 G G4 G G4
Alone, listless. Breakfast table in an otherwise empty room.
G G4 G G4 G G4 G G4
Young girl, violence. Center of her own attention.
G G4 G G4 G G4
The mother reads aloud, child tries to understand it.
G G4
Tries to make her proud.
G G4 Em7 Em6 Em7 Em6
The shades go down. It's in her head.
Em7 Em6 Em7 Em6
Painted room. Can't deny there's something wrong.
G G4 G G4
Don't call me daughter. Not fit to.
G G4 G G4
The picture kept will remind me.
G G4 G G4
Don't call me daughter. Not fit to.
G G4 G G4
The picture kept will remind me.
G G4
Don't call me...
(Em7 Em6 Em7 Em6 Em7 Em6 Em7 Em6 G G4)
Em7 Em6 Em7 Em6 Em7 Em6
She holds the hand that holds her down.
Em7 Em6 G G4 G G4 G G4 G G4
She will rise above. Ooh... Oh.
(G G4 G G4 G G4 G G4)
G
Don't call me daughter. Not fit to.
G
The picture kept will remind me.
G
Don't call me daughter. Not fit to be.
G
The picture kept will remind me.
G
Don't call me daughter. Not fit to.
The picture kept will remind me.
Don't call me daughter. Not fit to be.
The picture kept will remind me.
Don't call me...
The shades go down. (x2) The shades go... Go... Go...
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