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231
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
DOUTORADO EM SOCIOLOGIA
A “LUTA DA CASA”,
ARRANJOS ECONÔMICOS E REDES DE PROTEÇÃO
EM FAMÍLIAS POBRES URBANAS
Antonia Ieda de Souza Prado
Junho/2010
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232
ANTONIA IEDA DE SOUZA PRADO
A “LUTA DA CASA”, ARRANJOS ECONÔMICOS E REDES DE PROTEÇÃO
EM FAMÍLIAS POBRES URBANAS
Tese de doutorado apresentada ao programa
de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal do Ceará sob
orientação da Profa. Dra. Irlys Alencar
Firmo Barreira, como requisito parcial para
obtenção do Título de Doutora em
Sociologia.
Fortaleza - Ceará
Junho/2010
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233
Para Dona Terezinha, minha mãe,
mulher forte que lutou para sobreviver
arrastando quatro filhos pequenos:
Neto, Rosa, Ieda e Kiko.
Com todo o meu amor,
Dedico.
234
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 1
Apresentação ...............................................................................................................................1
Hipótese e conceitos da pesquisa ...............................................................................................7
1.1ANOTAÇÕES METODOLOGICAS – UMA INCURSÃO ÀS REDES DE
PARENTESCO.............................................................................................................................16
A construção do objeto sociológico............................................................................................16
O percurso do olhar....................................................................................................................20
.......................................................................................................................................................
2 FAMILIAS DO PIRAMBU.....................................................................................................32
2.1 CIDADE E POBREZA: A MIGRAÇÃO E FORMAÇÃO DO BAIRRO.............................32
Um passeio pelo bairro...............................................................................................................32
A migração e a formação das redes de parentesco ..................................................................33
A Beira-Mar e a beira da praia..................................................................................................37
.......................................................................................................................................................
2.2 FAMÍLIAS EM REDE NO PIRAMBU: POBREZA, TRABALHO E HABITAÇÃO.........40
2.2.1 Famílias, redes e arranjos.....................................................................................................43
2.2.1.1 A rede familiar: uma panela só.........................................................................................50
2.2.1.2 Famílias conviventes - IBGE ...........................................................................................52
2.2.1.3 O retrato do Pirambu no Cadastro Único: o censo dos pobres .........................................54
2.2.2 A casa e a luta da casa..........................................................................................................64
2.2.3 Trabalho informal, bairro popular e transferência de renda.................................................67
2.3 A FAMÍLIA EM ARRANJOS ECONÔMICOS E REDES DE PROTEÇÃO ......................72
Noções sobre valores...................................................................................................................72
Arranjos econômicos...................................................................................................................74
Redes de proteção........................................................................................................................83
3 CONVERSA COM A LITERATURA SOBRE FAMÍLIA..................................................90
3.1 A FAMÍLIA PATRIARCAL PODE SER CONSIDERADA O MODELO DA FAMÍLIA
BRASILEIRA? .............................................................................................................................91
3.2 A FAMÍLIA COMO REPRODUÇÃO DA SOCIEDADE.....................................................97
3.3 A COMPLEXIDADE DOS LAÇOS FAMILIARES.............................................................104
4 DO RURAL AO URBANO: A TRAJETÓRIA DA FAMÍLIA DE DONA RITA.............113
4.1 A VIDA RURAL E A RELEVÂNCIA DE A MULHER “SER CASADA”.........................113
O casamento.................................................................................................................................113
4.2 A CHEGADA À CIDADE GRANDE E A LUTA POR UMA CASA..................................120
4.3 A VIDA DE MÃE “ARRASTANDO OS FILHOS”: A REDE FAMILIAR.........................124
4.4 ARRANJO ECONÔMICO: SOU O “MANOBRO” DA CASA............................................129
4.5 REDE DE PROTEÇÃO: “A FAMÍLIA É MEIO DESTRAMBELHADA”..........................131
5 A LUTA DAS CASA E OS ARRANJOS ECONÔMICOS NA FAMÍLIA DE DONA
SELENE.......................................................................................................................................136
A família em cena: o almoço......................................................................................................136
5.1 A HISTÓRIA DE UMA MULHER DO “INTERIOR” E SEUS MUITOS FILHOS NA
CIDADE........................................................................................................................................140
5.2 “CASA DE FERREIRO, ESPETO DE PAU”........................................................................146
5.3 A GRANDE FAMÍLIA E A REDE DE PARENTESCO.......................................................156
235
5.3.1 A mãe e a rede de parentesco ..............................................................................................158
A matrifocalidade e a circulação de crianças...........................................................................163
5.4 A GERÊNCIA DA MÃE NA ECONOMIA DA CASA E O COMÉRCIO NA COZINHA. 166
Transferência de renda: Bolsa-Família e aposentadoria na casa de Dona Selene................168
Noções de economia de pobres...................................................................................................169
5.5 REDE DE PROTEÇÃO NA GRANDE FAMÍLIA................................................................171
6. A FAMÍLIA DE DONA TELMA E A FUNÇÃO SOCIAL DA POLÍCIA.......................176
6.1 DO CRATO AO PIRAMBU: A LONGA TRAJETÓRIA DA FAMÍLIA.............................176
6.2 A “NOVELA” DA CONSTRUÇÃO DA CASA: DA TAIPA AO TIJOLO .........................181
6.3 A FAMÍLIA EM REDE: PAPÉIS SOCIAIS E ORGANIZAÇÃO FAMILIAR....................184
6.4 A ECONOMIA DOMÉSTICA NA CASA DE D. TELMA ..................................................190
6.5 A FORÇA FÍSICA NO UNIVERSO SIMBÓLICO DA FAMÍLIA: A POLÍCIA E A REDE DE
PROTEÇÃO..................................................................................................................................193
Cadernos e audiências teatrais no palco da delegacia.............................................................195
A função social da polícia...........................................................................................................199
7 A COMPLEXIDADE NA REDE DE PROTEÇÃO FAMILIAR DE PAI VITO.............202
7.1 A HISTÓRIA DE UM PAI DE MUITOS FILHOS COM MUITAS MÃES.........................202
7.2 A CASA DA CACIMBA DOS POMBOS: DA TAIPA AOS TIJOLOS...............................205
7.3 A FAMÍLIA EM REDE NA CACIMBA DOS POMBOS: Aqui nós só briga ......................210
7.4 A GERÊNCIA ECONÔMICA DO HOMEM NA FAMÍLIA................................................217
Arranjos econômicos na rede familiar......................................................................................218
7.5 FAMÍLIA E REDE DE PROTEÇÃO EM SITUAÇÃO DE EXTREMA INDIGÊNCIA.....222
Conflitos na família de Pai Vito: conjugalidades e crianças...................................................224
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................231
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................235
APÊNDICES ...............................................................................................................................248
236
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES
ABEP – Associação Brasileira de Estudos Populacionais
BO – Boletim de Ocorrência
CADÚNICO – Cadastro Único
COELCE – Companhia Energética do Ceará
CAGECE – Companhia de Água e Esgoto do Ceará
ENCE - Escola Nacional de Ciências Estatísticas
HABITAFOR – Fundação Habitacional de Fortaleza
IDH – Índice de Desenvolvimento Humano
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPECE – Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará
LEP – Laboratório de Estudos sobre a Pobreza
PBF – Programa Bolsa Família
PEA – População Economicamente Ativa
PNAD – Pesquisa Nacional de Amostra de por Domicílios
RFPC – Renda familiar “per capita”
SEINF – Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Infraestrutura
SEMAS – Secretaria Municipal de Assistência Social
SINE – Sistema Nacional de Emprego
SIS – Síntese dos Indicadores Sociais
237
RESUMO
Objetivo analisar o modo como as famílias moradoras de bairros pobres urbanos, especificamente, o
bairro Pirambu no período de 2006 a 2009, constroem arranjos econômicos e redes de proteção,
com base na constatação empírica da organização da “família em rede” e da complexidade dessas
relações num contexto de parcas condições de vida e moradia; considerando também a ineficiência
do Estado em prover habitação e seguridade, que, associadas à precariedade do mercado de
trabalho, levam a família a criar estratégias de sobrevivência. A “luta da casa” é o trabalho
cotidiano envolvendo os afazeres do lar, como a limpeza, o preparo dos alimentos e o cuidado
dispensado às crianças. O termo “luta” também é sinônimo de ‘denúncias ou reflexões’,
enfrentamento e traduz a condição de ser pobre, sendo assim representativo de uma visão de família
e sociedade que transpõe concepções de trabalho doméstico e desvenda a real situação de
responsabilidade e compromisso, principalmente das mulheres para com suas famílias. Na pesquisa
de “observação participante”, realizei um “estudo de caso” com quatro redes de parentesco,
analisando a operacionalização da proteção e da economia como condições de possibilidade para
sobrevivência num contexto de extrema pobreza. Para esta análise, elenco a hipótese da influência
de solidariedade do “mundo rural” apreendida [pelos idosos, pessoa de referência para análise na
família] antes da migração para Capital, no universo rural ou em cidades do interior do Estado e
elejo os conceitos da Teoria da Ação de Bourdieu (1996, 2000), e as concepções de família pobre
de Sarti (2005). A tese chegou a conclusão de que a família produz um mecanismo de proteção
numa rede de apoios, onde a economia familiar não se mede só em números, mas é expressa em
vivências.
Palavras-chave: Família. Pobreza. Rede de Proteção. Arranjo Econômico Familiar.
238
ABSTRACT
This study analysis the way of living of families who live in the urban poor places of Fortaleza,
especially, Pirambu, from the year 2006 to 2009. They construct economic estrategies and
protection nets based on the empiric observation of the social organization of the “familiar net” and
in the complexity of the relations in the context of the hard conditions of life and habitation. In this
case, it is also considered the inefficacy of the state to provide habitation and security. These
factors are associated to the dificult conditions of work market. This way the families create
survival strategies. The home fight is the daily work involving, home tasks, cleaning, the food
preparation, children cares. The word fight means also ‘reinvidications and reflections.’ It
translates the poor conditions. It represents the vision of the family and society that envolve the
conceptions of the domestic work and a real situation of responsability and the purpose, especially
women and their families. In the observation research in which the researcher takes part, I realized a
case history. I observed four familiar nets. I realized an operacionalism of the protection and
economy as the condition of the survival possibility in the context of the extreme poverty. My
analisys is based in the hypothesis of the solidarity in the“rural world”. The comprehension is based
on the symbol of the old person in order to understand the family, before the migration to capital in
the rural universe or in the interior cities of the state. My study is based on the action theory of
Bourdieu (1996 to 2000) and the conception of poor family.(Sarti, 2005). The thesis concluded that
family produce a protection estrategy of survival in the guard nets where the family economy is
estimated, not only in numbers but the estimation is based on living experiences.
Palavras-chave: Family. Poverty. Rede de Proteção. Arranjo Econômico Familiar.
239
RESUMÉ
Objetivo analisar o modo como as famílias moradoras de bairros pobres urbanos, especificamente, o
bairro Pirambu no período de 2006 a 2009, constroem arranjos econômicos e redes de proteção,
com base na constatação empírica da organização da “família em rede” e da complexidade dessas
relações num contexto de parcas condições de vida e moradia; considerando também a ineficiência
do Estado em prover habitação e seguridade, que, associadas à precariedade do mercado de
trabalho, levam a família a criar estratégias de sobrevivência. A “luta da casa” é o trabalho
cotidiano envolvendo os afazeres do lar, como a limpeza, o preparo dos alimentos e o cuidado
dispensado às crianças. O termo “luta” também é sinônimo de ‘denúncias ou reflexões’,
enfrentamento e traduz a condição de ser pobre, sendo assim representativo de uma visão de família
e sociedade que transpõe concepções de trabalho doméstico e desvenda a real situação de
responsabilidade e compromisso, principalmente das mulheres para com suas famílias. Na pesquisa
de “observação participante”, realizei um “estudo de caso” com quatro redes de parentesco,
analisando a operacionalização da proteção e da economia como condições de possibilidade para
sobrevivência num contexto de extrema pobreza. Para esta análise, elenco a hipótese da influência
de solidariedade do “mundo rural” apreendida [pelos idosos, pessoa de referência para análise na
família] antes da migração para Capital, no universo rural ou em cidades do interior do Estado e
elejo os conceitos da Teoria da Ação de Bourdieu (1996, 2000), e as concepções de família pobre
de Sarti (2005). A tese chegou a conclusão de que a família produz um mecanismo de proteção
numa rede de apoios, onde a economia familiar não se mede só em números, mas é expressa em
vivências.
Palavras-chave: Família. Pobreza. Rede de Proteção. Arranjo Econômico Familiar.
240
1 INTRODUÇÃO
Apresentação
Em uma das entrevistas, colhida durante esta pesquisa realizada na área designada de
Grande Pirambu, na cidade de Fortaleza (CE), solicitei a uma senhora responsável pelo domicílio
que fizesse uma narrativa da rotina de sua casa. Creio que ela não entendeu o que sugeri, pois sua
resposta imediata foi através de um gesto de franzir a testa e essa ação caracterizava um não-
entendimento. Ao explicar que me referia às atividades domésticas desde o amanhecer até o final do
seu dia, sua testa desenrugou, seus olhos se abriram em confirmação ao entendimento e ela me
perguntou: você quer saber a respeito da “luta da casa”? Respondi afirmativamente, pois já
conhecia a expressão muito falada por minha tia-avó. Essa expressão é muito empregada para
caracterizar a rotina da família, é comum entre as mulheres das camadas populares como sinônimo
das dificuldades que a dona de casa enfrenta para suprir as necessidades domésticas e cumprir sua
função de provedora e organizadora das atividades do lar.
Segundo Rosilene Alvin (1979), a expressão “dona de casa” representa a mãe da família
e suas funções são: como dona de casa, manter um padrão alimentar mínimo e na qualidade de mãe
conservar a unidade de seu grupo. Considerando a “luta” do cotidiano pela moradia e manutenção
da família que os moradores de bairros pobres
1
enfrentam, adoto nesta tese a categoria nativa
2
“luta
da casa” como título e código de interpretação. A nomeação sinaliza os desafios de ser mãe, pai,
dona de casa e chefe de família em um bairro popular marcado pela pobreza e dificuldade de
sobrevivência. Essa expressão representa o trabalho cotidiano envolvendo os afazeres do lar, como
a limpeza, o preparo dos alimentos e o cuidado dispensado às crianças. O termo “luta”
(COMERFORD, 1999, p.19) também é sinônimo de ‘denúncias ou reflexões’, enfrentamento, e
traduz a condição de ser pobre, sendo, assim, representativo de uma visão de família e sociedade
1
O locus de referência desta pesquisa foi o Grande Pirambu [Barra do Ceará, Cristo Redentor e
Pirambu] situado ao leste na área litorânea da Capital. Os bairros em Fortaleza não são homogêneos
de pobres ou de ricos (ARAÚJO & CARLEIAL, 2003), e no caso do Pirambu [principal fonte da
pesquisa], não se aplica o conceito de periferia (CALDEIRA, 1984) em oposição geográfica aos
centros, pois o bairro dista somente 3 km do Centro. Nessa perspectiva, nomeio o bairro como
pobre por ser o segundo maior [o bairro com maior número é o da Barra do Ceará] beneficiário do
Programa Bolsa Família - PBF na Capital, segundo dados do cadastro único – CADÚNICO
(dezembro/2009) que se destina a identificar famílias pobres. O Bolsa Família (PBF) é um
programa de transferência direta de renda com condicionalidades, que beneficia famílias em
situação de pobreza (com renda mensal por pessoa de R$ 70 a R$ 140) e extrema pobreza (com
renda mensal por pessoa de até R$ 70), de acordo com a Lei 10.836, de 09 de janeiro de 2004 e o
decreto no. 5.209 de 17 de setembro de 2004. Fonte: www.mds.gov.br/bolsafamilia
2
As categorias nativas são palavras carregadas de sentido que uma comunidade adota para explicar
situações cotidianas. Ver mais em Geertz (2000).
241
que transpõe concepções de trabalho e desvenda a real situação de responsabilidade e compromisso,
principalmente das mulheres para com seus afazeres domésticos.
A dinâmica cotidiana das famílias aponta para a concepção de luta associada ao
sofrimento na dificuldade de manter o padrão mínimo alimentar em condições precárias de vida.
Essas condições fazem das mulheres as protagonistas da “luta da casa”, que inclui entre as
obrigações oferecer alimentos e moradia aos filhos e descendentes, numa rede de proteção que
permite sobreviver no meio urbano.
A noção de “redes” foi desenvolvida pela antropóloga Elisabeth Bott (1976), que
analisa a formação das conexões nas famílias com origem na ligação entre as redes sociais dos
casais, em que o núcleo individual de cada cônjuge se mistura e vai sendo tecida uma rede
ampliada. Nessa perspectiva, utilizo a nomeação para fazer referência ao parentesco que se estende
pela vizinhança na dupla conotação de “rede de parentesco” com um sentido mais objetivo de
pessoas ligadas por parentesco organizadas em teias de relações e, num sentido mais subjetivo,
examino esta rede que conecta parentes a uma teia de relações com a finalidade de amparar os pares
consanguíneos.
Nas narrativas das famílias, estão presentes histórias de pessoas que lutam pela
sobrevivência todos os dias. Os narradores que entrevistei são pais e mães que acolhem os filhos
adultos e sua prole nas suas casas para oferecer-lhes um lar, quando lhes faltam recursos e moradia
para manutenção dos seus núcleos
3
. A família atua como suporte material e afetivo para os
moradores urbanos pobres
4
, sendo a base de sua sociabilidade constituída na necessidade de
proteção, vinculada a moradia, alimentação, saúde e outras carências que surgem no cotidiano. A
categoria família analisada neste estudo se estende no parentesco, formando uma unidade
doméstica
5
multinucleada, que mantém a troca de obrigações com vizinhos parentes (filhos adultos
3
São famílias nucleares de pai, mãe e filhos ou monoparentais. Cada novo enlace nupcial forma um
novo núcleo com os sem filhos. Assim, um casal ou um pai ou mãe com seus filhos representam um
núcleo.
4
Uso a palavra “pobre” de maneira genérica, mas estou me referindo às famílias em suas diversas
condições de carência de renda: pobreza e extrema pobreza (PBF). A maioria dos entrevistados
desta tese tem renda familiar per capita média de R$ 70,00 considerada como referência da “linha
da pobreza” numa base de cálculo de extrema pobreza do Banco Mundial U$ 1,0 ou R$ 2,00 ao dia
por pessoa. Associado ao dado estatístico está a observações empírica do cotidiano dessas famílias
organizadas em rede ante as condições de miséria impostas.
5
As formas da unidade doméstica implicam a forma de interação da família, podendo moldar “os
processos de tensão e ajustamento entre familiares”. (GOODE, 1970, p.78).
242
e suas proles), constituindo uma rede de relações. Nas sociedades contemporâneas ocidentais
6
, por
exemplo,
[...] o modelo arquétipo é a família conjugal tradicional, constituída pelo casal e seus filhos
não emancipados, e que residem em um domicilio independente. Contudo, como já se
avançou, há uma brecha clara e crescente entre este modelo e uma realidade muito mais
plural, na qual uma proporção crescente de famílias não se enquadra nesse padrão.
(CARVALHO & ALMEIDA, 2003, p. 111).
Apesar da predominância da configuração conjugal ou nuclear, as estatísticas brasileiras
apontam para a pluralidade das interações e indicam o aumento das variações dos modelos
nucleares
7
. Os dados da PNAD 2006 apontam o crescimento das famílias monoparentais (homens e
mulheres com filhos), especialmente no tipo de mulheres com filhos (15,8% em 1996 para 18,1%
em 2006) e aumento de casais sem filhos
8
, dados que denotam uma variedade dos circuitos
nucleares. As mudanças incluem ainda as famílias extensas
9
e unipessoais (pessoas morando
sozinhas).
Estudar o tema família é assumir o risco de indagar uma instituição cristalizada no
imaginário com um desenho mononuclear que todas as pessoas conhecem. Entre os pobres, ela se
ramifica, formando uma rede de apoio como alternativa para viver no espaço urbano em precárias
condições de vida. Segundo Cyntia Sarti (2005b: 28), “A primeira característica a ressaltar sobre as
famílias pobres é sua configuração em rede, contrariando a ideia corrente de que esta se constitui
em um núcleo”. Desse modo, na análise do cotidiano das camadas populares de Fortaleza, observo
que a família pobre é complexa no tocante à divisão de papéis e funções, levando à organização do
arranjo econômico que distribui os bens e da rede de proteção que forma um elo de ajuda mútua.
6
Os estudos de família que tenho acompanhado fazem análises com base no mundo ocidental, seja quanto aos grupos
analisados ou pesquisadores. Faço essa ressalva a fim de alertar para o fato de que se trata de sociedades de classes, pois
o capitalismo separa os grupos nas sociedades. Então, o princípio da divisão é o ponto de partida e essa se faz com
suporte em interesses, principalmente econômicos, e leva a lutas dentro dos campos de força que são os grupos sociais,
desde a menor unidade política – a família – até o Estado no sentido amplo.
7
O IBGE, tomando como referência a família nuclear, classifica as organizações domiciliares
familiares em nucleares, estendidos e complexos, além dos unipessoais, compostos por indivíduo
único.
8
O crescimento de casais sem filhos aumentou de 13,3% em 1998 para 16,7% em 2008
(Informações da Síntese dos Indicadores Sociais SIS/ PNAD-IBGE2008. Fonte:
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_impressao.php?id_noticia=1476 acesso
em: 05/12/09.
9
Os domicílios familiares são considerados estendidos quando há a presença de uma pessoa cuja
relação de parentesco com o chefe do arranjo domiciliar seja “outro parente”. Ver mais em
www.ipea.gov.br
243
Quadro de organização da família, do modo nuclear ao complexo (Ver mais em “Família,Rede e Arranjo” cap.2)
Família Família nuclear Simples Arranjo econômico
(conceito) (pai, mãe e filhos) (papéis e funções) Rede de proteção
Família extensa
(unidade doméstica (casa)
multinucleada, conviventes)
Rede Complexa Arranjo econômico
(Casa e vizinhos) (papéis e funções) Rede de proteção
Fonte: Elaborado pela autora (2010).
A família
10
é um conceito que define o modo de organização de um grupo de parentes
quanto à gerência de bens materiais e simbólicos, sendo o modelo nuclear formado por pai, mãe e
filhos, vivendo numa mesma casa, o modo mais recorrente nas sociedades industrializadas.
Composta por apenas um núcleo (simples), os papéis e funções na família nuclear são bem
definidos e, mesmo havendo variações, elas são delimitadas num universo de parentesco direto, de
modo que o arranjo econômico e a rede de proteção se restringem a uma mesma nuclearidade.
Por arranjo entende-se a relação, o modo de funcionamento e organização da parentela.
A família, para se constituir grupo social, se ergue em dois eixos: proteção e economia, de um lado
a força da consanguidade e consideração ao parentesco e, de outro, a coerção da economia
necessária à manutenção das pessoas. Esses dois eixos coadunam as funções e normatizações da
família no âmbito econômico, afetivo, moral e jurídico em situações evidenciadas na troca de
obrigações recíprocas entre os parentes.
O desafio desta análise consiste em compreender o modo de funcionamento (arranjo) da
família num contexto de organização em rede, no sentido de que o parentesco se estende da casa-
sede onde residem vários núcleos (famílias conviventes) sob a chefia dos pais ou de um dos pais
idosos em contato diário com o parentesco consanguíneo vizinho. No que se refere à troca de
obrigações e gerências de bens materiais e simbólicos o coletivo redesenha as formas de
10
“A palavra ‘família’ se restringe ao imaginário da família conjugal, uma família que implica co-
residência de um casal e seus filhos – sendo a casa lugar das mulheres e das crianças”. (FONSECA,
2006a, p. 20).
Ob
j
eto
244
organização dos papéis e funções para atender as suas necessidades, formando um arranjo familiar
complexo.
Desde a constatação empírica da organização da “família em rede”, estudei a
complexidade dessas relações num contexto de parcas condições de vida e moradia; considero
também a ineficiência do Estado em prover condições mínimas de habitação e seguridade, que,
associadas à precariedade do mercado de trabalho, levam a família a criar estratégias, formando
uma base de proteção e um arranjo econômico para a sobrevivência. Com efeito, meu objetivo é
analisar o modo como as famílias moradoras de bairros pobres urbanos constroem arranjos
econômicos e redes de proteção.
Este é um estudo de longa duração e abordagem qualitativa, com interação direta junto
as famílias e suas práticas, num contexto de pobreza. Na pesquisa de observação participante,
realizei um estudo de caso com quatro redes de parentesco, analisando a operacionalização da
proteção e da economia como condições de possibilidade para a sobrevivência das famílias num
contexto de extrema pobreza. Para exposição dos casos analisados, esta pesquisa etnográfica segue
um roteiro de cinco pontos com origem no chefe da família: 1) a migração para Fortaleza; 2) a
história da construção da casa própria; 3) a formação da rede de parentesco e suas trocas de
cotidianas; 4) a arregimentação do arranjo econômico; e 5) a organização da rede de proteção ante a
precariedade das condições de vida dos pobres urbanos.
A tese está divida em nove capítulos, incluindo a Introdução e as Considerações finais.
No capítulo segundo, relato a trajetória teórica e empírica da pesquisa desde a construção do objeto
sociológico, com o estudo da família como uma categoria “naturalizada” da vida social, até o
percurso empírico do olhar, passando pelas ruas e casas do bairro.
No terceiro capítulo, sob o título “As Famílias do Pirambu”, analiso o bairro com seus
contornos de urbanidade e pobreza e realizo um estudo sobre o modo de vida dos habitantes de
bairros populares. Apresento dados de fontes governamentais nacionais e locais, de modo a permitir
um quadro geral das condições de vida das pessoas na extrema pobreza que há na família, em
muitos casos, sua única fonte de apoio e meio de sobrevivência. Esse capítulo apresenta a
operacionalização do arranjo econômico e da rede de proteção que confere cidadania aos pobres ,
em muitas situações.
A conversa com a literatura sobre família está exposta no quarto capítulo, onde me
reporto ao período colonial do Brasil, denotando a modalidade de famílias extensas e a
característica de coabitação como parte da história brasileira. O texto reconstitui argumentos desde
quando os portugueses chegaram ao Brasil para exprimir a noção de que a organização familial em
245
rede e a corresidência são de origens ibéricas. Nesse capítulo faço um apanhado da Sociologia
brasileira sobre tema em três tempos – colonização, urbanização e contemporaneidade – para
análise das relações complexas nas camadas populares.
Após a “conversa com a literatura”, nos capítulos seguintes exibo os dados empíricos da
pesquisa na etnografia das quatro redes de parentesco. O capítulo quinto – “Do rural ao urbano: a
trajetória da família de Dona Rita”. Reconto a história de Dona Rita desde o casamento aos
dezesseis anos no interior do Ceará, até sua vinda para Fortaleza e seu itinerário como mãe junto a
seus filhos na Capital. O texto reflete sobre a vida dos pobres no meio urbano a partir da trajetória
de uma família que passou por um processo de mudança compulsória da beira da praia para um
conjunto habitacional. Desse capítulo em diante, trago as fotografias das ruas e casas do bairro
como material que ilustra várias peculiaridades do lugar, num passeio visual que começa nas ruas e
terminas nas casas das famílias, enaltecendo a configuração de parentesco.
“A luta da casa e os arranjos econômicos na família de Dona Selene”, é o que contém o
capítulo sexto, abordando o lugar da mulher e sua relevância para a unidade doméstica na qualidade
de mãe, dona da casa e chefe de família. Exponho a história de Dona Selene como caso ilustrativo
da organização da economia do lar sob a gerência da mãe, onde se desenvolvem questões como
trabalho, renda, consumo e provisão, numa casa multinucleada, abrigando mais de vinte
moradores
11
.
No capítulo sete “A família de Dona Telma e a função social da polícia” trago uma cena
que vincula conflito familiar com ação policial, a partir da delegacia do bairro, para compreensão da
rede de proteção na narrativa de um embate de três gerações permeado pelo apelo emocional de
uma avó querendo amparar o seu filho/neto.
O capítulo oito fecha as apresentações etnográficas com “A complexidade na rede de
proteção familiar de Pai Vito”. O capítulo retoma a representatividade do homem na família e
explicita questões de violência intrafamiliar num contexto de relações intensas em que o uso da
força denota o respeito e consolida a autoridade. A análise centra-se na narrativa de conflitos
designados como “brigas” envolvendo a rede de parentesco que se divide em quatro casas na
mesma rua.
Nas considerações finais, capítulo nove, retomo o conceito de família para refletir a
situação da pobreza com suporte na organização em arranjo econômico e rede de proteção que
11
A casa da mãe recebe os filhos, alguns são moradores itinerantes, ora estão na casa da mãe e ora
moram em neolocalidades, durante os anos de pesquisa a média é de 21 moradores, podendo ter
somente vinte ou 25 como contei no meu diário de campo em 08/02/2010 e consta nos apêndices da
tese.
246
movimentam a dinâmica no parentesco e permite às pessoas que dela participam um lugar para
“existir” numa sociedade desigual onde os pobres vivem sem conseguir o provimento de condições
mínimas de moradia e saúde, com rendimentos abaixo da linha da pobreza, que lhe imputam a
condição de extrema indigência. Desse modo, a família cria um meio de sobrevivência que não se
restringe aos limites econômicos, mas afetivos. A tese chegou a uma percepção de que a família
produz um mecanismo de proteção numa rede de apoios em que a economia não se revela somente
baseada nas estatísticas, mas é expressa em vivências.
Hipótese e conceitos da pesquisa
A construção do objeto sociológico supõe uma reflexão teórica da realidade social sobre
o dado empírico de maior ou menor de visibilidade
12
. Trata-se sempre de algo observável e
múltiplo, sendo o recorte teórico realizado pelo cientista que se debruça sobre o tema. Desse modo,
o objeto sociológico é definido como resultado de uma reflexão teórica aliada a uma prática social.
No exame das famílias, os programas de transferência de renda são uma recorrência observada
empiricamente. As famílias objeto deste estudo são beneficiárias de programas sociais oriundos dos
governos em políticas públicas de combate à fome e à vulnerabilidade das crianças. Meu recorte,
entretanto, se deu sobre as relações no interior da família, porém sem negar que sucedem num
contexto social mais amplo.
Para esta análise, elenco a hipótese da influência da solidariedade do “mundo rural”
13
apreendida pelos idosos (chefes de família) antes da migração para a Capital e tomo como base os
conceitos da teoria da ação, de Bourdieu (1996, 2000), como referencial teórico.
O mundo rural está presente nas casas das pessoas idosas como a marca dos valores
familiares, tão caros aos interioranos, de socialização
14
fortemente ligada à família. Esta marca é
observada no cotidiano das redes oriundas do campo e chefiada por idosos, com seus valores de
respeito, provisão de alimentos, casamento. Cabe ressaltar que os valores são referência e não
12
A família é um tema clássico nas Ciências Sociais e aumentan seu espaço de debates e interesses
após a unificação dos programas assistenciais do Governo Federal no Programa Bolsa Família –
PBF em 2003.
13
Faço referência a “mundo rural” de modo genérico, mas estou me reportando à sociabilidade
internalizada num universo de relações mais próximas do que as interações na Capital. Acrescento
que dois dos meus narradores são do campo e dois são de cidades interioranas e os quatro migraram
para Fortaleza antes dos 25 anos.
14
Socialização é o processo através do qual a criança adquire valores e conhecimentos de seu
grupo e aprende os papéis sociais adequados a posição que ocupa”. (GOODE, 1970 p.25).
247
significam decisões cabais, de modo que os casamentos
15
, por exemplo, podem ser desfeitos, mas
não sem o apelo à moralidade familiar.
O uso desses valores mantém a rede de proteção, mas também se revela em situações de
conflitos nas casas das famílias extensas em que os filhos já residentes criticam a mãe pelo fato de
receber mais um núcleo para coabitar; em contrapartida, a mãe socializada nos valores familiares
rurais recebe os filhos para não deixá-los sem ter onde morar. Desse modo, não raro há choques das
socializações dos pais da zona agrícola com os filhos da cidade.
Desde o início desta pesquisa com famílias, em 1999, trabalho com a hipótese de que
essas organizações, que ora se constituem nos meios urbanos, são herdeiras da estrutura familiar do
meio rural. No caso de Dona Selene
16
, é ela quem recebe os filhos e tem suas raízes numa
cotidianidade vivida no campo – “puxei a minha mãe”. As pessoas mais velhas migram para a
Capital e deixam o local, e não suas origens culturais, ou seja, separam-se do espaço físico, mas
levam consigo uma carga simbólica da sociabilidade apreendida na infância no campo. Passam a
viver na cidade, porém com princípios advindos do mundo rural, trazendo as vivências desse lugar
para a cidade. Nesta investigação, fiz estudos com muitas famílias e aprofundei as análises em
quatro redes de parentesco chefiadas por idosos e que foram socializados no interior do Ceará.
Os quatro casos foram escolhidos porque representam as relações de parentesco
observadas ao longo da pesquisa no problema da vulnerabilidade econômica e da organização de
apoio e proteção com eixo na família entre os pobres urbanos.
No âmbito dos estudos de família, em que se tem discutido as transformações pelas quais a
família tem passado no contexto da modernidade, no qual o indivíduo e não o grupo ocupa
lugar central de sua história, é interessante notar a importância que assume a parentela e a
recorrência dos costumes considerados tradicionais na sobrevivência e reprodução entre a
população de baixa renda oriunda do meio rural. (ANTUNIASSI,1997, p. 106).
Para viver na família complexa, na casa sede ou rede de parentesco e vizinhança, os
participantes
17
estabelecem regras de convivência e são alvo de interferências: das pessoas num
processo de aprendizado contínuo e corriqueiro – estruturante; da instituição, influências
internalizadas nas gerações anteriores – estruturada. Assim, as pessoas constituem o habitus
18
15
Ver mais sobre a moralidade e o casamento nos capítulos etnográficos.
16
A família de Dona Rosera figura como caso significativo de organização do arranjo econômico e
da rede de proteção, juntamente com mais três casos: Dona Rita, Dona Neide e Pai Vito. Os quatro
são idosos e nasceram no interior do Ceará.
17
Prefiro o termo participante a membro para me referir às pessoas nas famílias, por lhes creditar
uma posição atuante e não meramente numérica no cotidiano da rede de parentesco.
18
Para melhor explicitação do termo, são importantes as colocações sobre o termo ‘habitus’ feitas
em nota de rodapé pelo tradutor do livro Cultura e Subjetividade, no artigo As contradições da
herança, de Pierre Bourdieu (1997:13): “julguei melhor conservar o termo em francês, por ser termo
de cunho técnico e não inteiramente traduzível em português. Habitus: termo antigo que se encontra
248
familiar que, numa situação de moradia coletiva e precárias condições de vida, se amplia para a
rede de parentesco. Considero na teoria da ação, de Bourdieu, o conceito de habitus com caráter
duradouro, mas não imutável, a melhor ferramenta para analisar essa dinâmica.
Ao receber um filho e sua família para morar sem condições favoráveis de espaço físico
e renda, os pais agem com base no habitus internalizado na socialização apreendida no meio rural.
As redes de proteção estão ancoradas em “obrigações e regras incorporadas”, pois não existe
nenhum código escrito de que mãe ou pai tem que acolher os filhos após o momento em que se
tornam aptos para o trabalho.
Nesta análise, procuro compreender como acontece a gerência dos afetos e dos bens
materiais e a prestação de serviços na família com suporte na economia das trocas. Para Bourdieu,
na Economia dos bens simbólicos, há um intervalo entre a dádiva e sua retribuição, o que sugere
uma ação desinteressada, em que “tudo ocorre como se”. Assim, a mãe cuida dos netos deixados
para serem criados por ela “como se” fossem seus filhos; a irmã cuida dos sobrinhos “como se”
ocorresse seus filhos ou “como se” existisse uma ação voluntária. Essas “dádivas”, no entanto,
devem ser retribuídas. As crianças devem cuidados e respeito à mãe/avó. E as tias, ao se verem em
casa desempregadas, devem zelar pelos filhos da irmã.
Nas famílias complexas, o intervalo da dádiva
19
(MAUSS, 1974) é indeterminado,
como no caso do cuidado com as crianças pelas avós e tias, e cujo tempo pode ser vago, longo e
determinado
20
, na maioria das vezes, pelo mercado de trabalho. Nessa perspectiva, a presença ou
ausência de renda enseja expectativas e obrigações recíprocas que, apesar de apareceram na forma
de dádivas no cotidiano, são desinteressadamente vigiadas, entre pares, e o não-cumprimento da
retribuição enseja conflitos, principalmente as irmãs que trocam ofertas com alimentos e no cuidado
com as crianças.
A família é considerada pela sociedade como base de primeira socialização. É com
apoio dela que se começa a interagir no mundo, introjetando o habitus com seu conjunto de sentidos
e valores, consolidando a importância da preservação dos mesmos. Bourdieu (1996, p. 128), no
entanto, contesta essa naturalização e refere-se à família como “uma ficção bem fundamentada”,
em Aristóteles. É usado em sociologia por Pierre Bourdieu. Designa o sistema de disposições
duráveis adquiridas pelo indivíduo ao longo do processo de socialização. Essa noção de habitus
contribui, segundo Bourdieu, para superação da oposição entre os pontos de vista objetivista e
subjetivista, entre as forças exteriores da estrutura social e as forças interiores emergentes das
decisões livres dos indivíduos”. (N.T).
19
Marcel Mauss explica que a dádiva ocorre na tríplice relação de trocas simbólicas: dar-receber-
retribuir.
20
A determinação reside no aço mpanhamento de perto dos credores, mas na lógica da dádiva e não
do crédito.
249
uma elaboração social consolidada no processo de socialização, em que o habitus se torna
internalizado por todos e reforçado pelas esferas subjetivas e objetivas, sendo dotado de uma aura
“que se impõe como transcendente”.
A “ficção da família” é bem fundamentada no imaginário coletivo, e sua aura se impõe
sobre as pessoas, no entanto, entre os pobres, mais do que uma ficção, a rede de parentesco é uma
realidade necessária a organizações de pessoas como grupo social, que sem ela não teriam outra
fonte de apoio ante as condições de vida a que são submetidas. Nesse sentido, a família é um lugar
para “ser” no sentido mesmo de existir, para muitas pessoas pobres, que, muitas vezes, só são
números nas estatísticas dos indigentes, desempregados, sem qualificação para o mercado de
trabalho e outras tipificações excludentes; a família é o seu único lugar de inclusão.
Considero incluídas na condição de pobres pessoas que possuem renda familiar per
capita de até R$ 140,00, residam no Grande Pirambu, os chefes de família sejam migrantes e
habitem ou tenham habitando na “beira da praia” do bairro e se organizem em rede de parentesco
para sobrevivência. Nessas redes, a casa dos pais é a referência de proteção, sendo moradia de três
ou mais núcleos que não conquistaram a neolocalidade para formação da família nuclear.
Dessa compreensão, estudo o modo como as famílias vão se configurando em redes e
arranjos para a garantia da sua existência. Para tal, considero relevante saber como esses laços se
formam, não somente do ponto de vista da sobrevivência econômica, mas também social, com
suporte dos papéis sociais, nos sentidos de unidade e divisão, solidariedade e conflitos. Busco
compreender como acontece a economia dos bens simbólicos (BOURDIEU, 1996) para
constituição, manutenção e consolidação de um habitus familiar que coaduna parentesco direto e
indireto numa mesma rede de obrigações recíprocas.
Nas famílias pobres do Pirambu, os papéis e funções são dinâmicos e dependem das
uniões conjugais (antigas e novas), do mercado de trabalho, do espaço de moradia etc. Toda essa
dinâmica só é possível num sistema de trocas simbólicas. São adolescentes ajudando na provisão da
rede familiar, mulheres que cuidam dos seus filhos e sobrinhos, avós que tomam conta dos netos e
filhos homens que representam o papel masculino junto aos filhos e sobrinhos.
Sob esse prisma, as pessoas se dissociam ou se associam a outras por compartilhar
interesses e necessidades em comum. Para Simmel (1983), sociabilidade se faz pela mediação da
“sociação”. Os indivíduos estão ligados por fatores de “sociação” – que podem ser fome, amor,
trabalho etc. desde que se refiram a outros, ocasionando uma interação que os faz formar uma
unidade baseada em intuições, interesses e ideais comuns. Os fatores de ligação nas famílias
250
complexas são o parentesco, a casa da família, a mãe em comum e a sobrevivência pessoal e da rede
de parentesco.
A vivência comum entre os parentes propicia uma aproximação na esfera íntima (a
casa) em que as pessoas têm como destino o encontro, pois os espaços são restritos e utilizados por
todos, como o banheiro, a cozinha, a sala. Assim, a convivência é consolidada com base no
parentesco, como fator de “sociação”, enseja sociabilidade, mas também conflitos.
Os conflitos fazem parte da dinâmica cotidiana e são objeto de variações de acordo com
o número de núcleos familiares nas casas, o sexo e a idade dos participantes da rede. Se há muitas
crianças, há “brigas” entre os infantes e os pais; se há homens adultos, os conflitos são motivados
por consumo de bebidas alcoólicas; se há mulheres adultas, as questões de enfretamento são de
cunho moral com acusações entre elas; e, se há jovens, as drogas se apresentam como uma
recorrência nas famílias. Esses embates acirram as relações, mas acionam a proteção entre os pares.
A condição de pobreza compartilhada lhes imputa a convivência e a necessidade de uma rede de
contenção que os ampare. Como disse Dona Selene (em 2001) O problema é são tudo pobre [os
filhos], por isso sofre.
Na perspectiva analítica de Simmel, os conflitos têm caráter positivo no valor de
constituir unidade. “Lo que en esta vida aparece inmediatamente como disociación, es, en realidad,
una de las formas elementales de socialización”. (1986, p. 271). A noção de conflito é utilizada
como referência em razão do caráter agregador que Simmel lhe confere. Nas famílias, ora
analisadas, os conflitos são chamados de brigas, e o cotidiano é marcado por elas. No dia a dia do
bairro, seja para tipificar mortes ou discussões verbais, a palavra briga aparece como representativa
do fato. Na vida familiar, no entanto, o termo também é usado como uma forma de amenizar o fato,
“foi só uma briga”. As brigas familiares fazem parte da dinâmica das relações entre os pobres.
Para realização desta análise, além dos conceitos expostos, apresento dois outros
elementos conceituais: arranjos econômicos e redes de proteção, partindo da compreensão de que,
na constituição de um circuito de parentesco, se faz necessária uma troca dos bens simbólicos, para
manutenção física e social da família. A motivação econômica é a necessidade primária de
existência do grupo, e a proteção confere a rede sua unidade. Com esse aparato, a família delimita o
seu conjunto de obrigações recíprocas. Afinal, “Dispor-se às obrigações morais é o que define a
pertinência ao grupo familiar”. (SARTI, 2005a, p. 85).
O modo de organização das obrigações morais na família sucede como arrimo nas
relações de base que fundamentam os arranjos como eixos econômicos e de proteção de onde se
desencadeiam as ações no cotidiano dos participantes da parentela. O arranjo é a relação que as
251
pessoas estabelecem entre si, denotando o modo de funcionamento das ações com características
que se ligam ora a economia, ora a proteção, ou aos dois. Nessa perspectiva, o arranjo é uma forma
de ser da rede.
Partindo da percepção de família em rede, conheci e entrevistei muitas famílias nos anos
de 1999 a 2010 de pesquisa no Pirambu, e aprofundei o estudo de caso em quatro situações para a
análise. São famílias com trocas de obrigações recíprocas, em que na unidade doméstica de
referência habitem pelo menos três modelos: dois horizontais (irmãos, primos) e um vertical (avós,
pais e filhos) na linha de ascendência.
As famílias foram escolhidas pelas relações na parentela tendo com referência o modo
de funcionamento do arranjo econômico e da rede de proteção. Desse modo, a localização, a
quantidade de pessoas na rede, o gênero do chefe de família e outras características são
complementares à escolha de casos significativos para a análise. São os estudos de casos que
incidem na descrição de eventos ou situações observadas no contato com as redes de parentesco.
Nos casos significativos das relações de parentesco na família complexa, apresento o recorte de
situações que explicitam o funcionamento precário ou eficiente da rede de proteção na dinâmica
familiar.
Para definição das famílias a serem analisadas, reuni as condições comuns às casas do
bairro, observadas nos anos de investigação. Na pesquisa de campo, notei recorrências de mais de
um tipo de família na mesma residência e a ligação com parentela vizinha como estratégia de
manutenção. Uma escolha metodológica, no entanto, deve levar em conta os critérios objetivos da
pesquisa e subjetivos do pesquisador. Assim, foram escolhidas unidades domésticas que melhor
representavam o objeto de análise e a longa trajetória da pesquisa, levando em consideração as
mudanças (o bairro está passando por um processo de reurbanização e muitas famílias são
removidas) ocorridas nos anos de observação empírica.
As famílias analisadas como casos significativos com características de intensas trocas
na rede de parentesco, foram as seguintes: Dona Rita, Dona Selene, Dona Telma e Pai Vito. O
bairro é alvo de uma intervenção urbana, e as famílias são atingidas.
Dona Rita, 60 anos, família recomposta, vive com o cônjuge há cerca de cinco anos, foi
transferida da beira da praia, no ano de 2001, para um conjunto habitacional (Conjunto Tropical) na
Barra do Ceará, onde a rede familiar possui duas moradias: uma recebida por Rita e outra adquirida
pelo cônjuge de presente para a afilhada Rebeca, filha de Rosana. Dona Rita teve 14 filhos, mas só
sete sobreviveram. Sua residência é o ponto de encontro da rede de parentesco, enquanto a casa da
filha Rosana (neta Rebeca) serve para dormitório de dois dos netos que estão sob a responsabilidade
252
de Dona Rita que mora com onze pessoas, portanto, sua família possui doze membros, dos quais,
sete dormem na sede e cinco na outra casa. A parentela se estende ainda para o bairro Pirambu com
as habitações do filho mais velho e de uma neta, que, rotineiramente, a visitam. A renda familiar
média é de um salário mínimo; as filhas estão desempregadas. As casas do conjunto Tropical são
padronizadas com duas comunicações com a rua, uma pela porta de entrada e outra pela janela do
quarto. Dona Rita usa a janela como vitrine para comercializar pães e refrigerantes. Mesmo com o
comércio, a renda familiar é caracterizada como de extrema pobreza. A família é beneficiária do
Programa Bolsa Família
21
- PBF. Assim, a trajetória de Dona Rita, que conheci em 2000 numa
“área de risco”
22
, na beira da praia do Pirambu, denota o funcionamento da economia doméstica,
num contexto de vulnerabilidade habitacional e transferência compulsória, sendo um fato que
caracteriza a história do bairro e suas lutas por moradia: intervenções governamentais e
mobilizações pela permanência e melhoria das condições de vida.
Dona Selene, 71 anos, divorciada, moradora do bairro Pirambu há mais de 50 anos, é a
grande mãe de uma rede extensa numericamente e complexa de relações de parentesco na unidade
doméstica, sendo, numa mesma casa, vinte e uma pessoas em média como moradores nos últimos
dez anos. Ainda na graduação, em 1999, pesquisando a relação família/escola, cheguei à casa de
Dona Selene. Lá estavam muitas crianças, algumas desacompanhadas dos pais e outras vivendo
com todo o seu núcleo na casa da avó. A maioria das crianças cresceu e continuo mantendo uma
relação de análise com essa família complexa, que chamo grande família
23
.
As relações envolvem muitas pessoas, pois na casa-sede coabitam diversos laços de
parentesco. Entre os moradores há filhos solteiros, casados, com seus cônjuges e prole; netos
desacompanhados dos pais biológicos e até um ex-cônjuge separado da filha na mesma morada com
a atual companheira da ex-mulher. Sua residência é ponto de encontro da rede de parentesco
vizinha, onde vivem filhos e netos que, não raro, almoçam na casa da avó. No que se refere à renda,
a família de Dona Selene está na condição de “extrema pobreza” e é beneficiária do Bolsa Família.
Dona Telma tem 65 anos de idade, é viúva, teve oito filhos, mas somente quatro “se
criaram”, e lhe deram nove netos. Desses, ela assumiu a criação de três, sendo mãe e avó, ante o
desinteresse ou impossibilidade dos pais em oferecer formação aos seus filhos. Sua casa é fruto de
21
Ver mais sobre a formação do programa e os critérios de inclusão do PBF no capítulo 2
22
“Área de risco” foi a denominação que a defesa civil municipal atribuiu à localidade da Areia
Grossa, onde as famílias viviam. Esse argumento também serviu de base da remoção das famílias
para o Conjunto Habitacional Tropical, construído para abrigar as famílias removidas do Grande
Pirambu.
23
Desde minhas primeiras visitas em 1999, nomeio as famílias extensas, numa casa única, de
grande família.
253
autoconstrução. A renda média da família está na condição de pobreza, sendo a família de um de
seus filhos beneficiária do Programa Bolsa Família.
Dona Telma, figura entre os casos significativos, por protagonizar uma situação de
conflito no ano de 2006, envolvendo a delegacia do bairro e sua família. A situação revelou códigos
sobre a respeitabilidade familiar e o questionamento de até que ponto a polícia deve ficar afastada
ou não quando o conflito envolve drogas e agressões à mãe idosa diante da parentela. A unidade
doméstica é extensa e troca obrigações morais entre a casa-sede da mãe, a casa do filho mais velho
construída por ele no quintal e o núcleo da filha quando o casamento desta está em crise.
Pai Vito, como é chamado pelos netos, tem 67 anos de idade, é casado com Bia, mas
tem uma namorada há doze anos. Morador da localidade Cacimba dos Pombos, na beira da praia do
Pirambu, vive na casa de referência da família com três filhas, cada uma com dois filhos menores.
São dez pessoas na moradia, cuja organização geográfica aponta para a proximidade da rede em
que, na mesma pequena travessa, a parentela se distribui em quatro unidades (1. casa-sede, 2. casa
da Viviane, 3.casa do Virgílio, 4. casa da Vanessa). Ele não sabe precisar quantos descendentes
teve, mas contou doze filhos com cinco mulheres diferentes. A renda é insuficiente, a aposentadoria
de Pai Vito não é capaz de suprir a manutenção das filhas e netos e da companheira e ele se exime
da provisão familiar, dizendo que “não tem menino pequeno”. Pai Vito mora na casa da namorada,
mas durante os primeiros meses da pesquisa com sua família, o casal estava separado e ele passou
alguns meses na sua residência com as filhas. A condição de renda é amenizada pelo “Bolsa
Família” das filhas e, quando da ausência do pai, sua filha deficiente física vai às ruas para
mendicância nas calçadas. A renda da família é exígua, portanto, vive em condições de extrema
pobreza.
Conheci Pai Vito numa aproximação com o centro comunitário Luiza Távora em 2006.
Suas filhas eram beneficiárias de programas assistenciais do Governo do Estado do Ceará e, em
uma das reuniões mensais, tive a oportunidade de conversar com uma delas. A escolha por um pai
“chefe de família” ocorre para mostrar a atuação do homem na família.
Quadro das famílias tomando como referência de renda o salário mínimo de janeiro/2010.
Dona Rita Dona Selene Dona. Telma Pai Vito
Mora com na casa
Na rede
6 pessoas
10 pessoas
24 pessoas
8 pessoas
13 pessoas 9 pessoas
12 pessoas
Renda do chefe
Fonte
R$ 250,00
comércio na janela
pães e refrigerantes
R$ 700,00
aposentadoria e
vendas de lan-
ches na cozinha
R$ 510,00
Pensionista
R$ 510,00
Aposentado
254
Renda familiar
Per capita da casa
R$ 760,00
(R$510,00 cônjuge
24
)
R$ 108,00
R$ 1.500,00
R$ 60,00
R$ 1.900,00
R$ 135,00
R$ 510,00
R$ 51,00
Tipo de moradia casa de conjunto
recebida do
Governo do Estado
casa própria
autoconstrução
casa própria
autoconstrução
casa própria
autoconstrução
Tempo de
moradia
7 anos 50 anos 49 anos 29 anos
Bairro Barra do Ceará Pirambu Cristo
Redentor
Pirambu
Localidade Conjunto Tropical Leste-Oeste Colônia Cacimba dos
Pombos
Bolsa família 1 filha beneficiária 3 filhas
beneficiárias
1 filho
beneficiário
3 filhas
beneficiárias
Participantes com
carteira assinada
não tem não tem não tem não tem
Fonte: Elaborado pela autora/2010.
Ao realizar um estudo com famílias pobres e organizadas em rede de parentesco e
vizinhança, algumas questões foram colocadas: 1. Como as redes de solidariedade possibilitam o
cumprimento das obrigações morais e necessidades materiais? 2. Como na “luta da casa” se
administra a rede de proteção dos afetos e desafetos e a economia dos bens materiais? 3. A família
em rede é definida pela necessidade de sobrevivência na pobreza?
Essas questões serão discutidas ao longo dos capítulos da tese com apoio em reflexões
em torno dos conceitos de rede de parentesco, arranjos econômicos, rede de proteção e pobres
urbanos, que incluem questões como trabalho, habitação, o papel do homem e da mulher,
transferência de renda, nupcialidades e dádivas na família.
CAPÍTULO 2 ANOTAÇÕES METODOLÓGICAS – UMA INCURSÃO ÀS REDES DE
PARENTESCO
A construção do objeto sociológico
O questionamento sobre a constituição social da família como sinônimo de unidade e
sua naturalização devem ser o ponto de partida de um estudo sociológico, cujo tema tem
articulações com a Biologia e a Sociedade. Sobre o enfoque da pesquisa em ciências sociais,
destaco Lenoir (1998), com o seu pensamento sobre a construção de categorias de análise e a
postura dos sociólogos em relação aos estudos que envolvem compromissos sociais com a pesquisa
24
A renda do cônjuge é somada no quadro, mas efetivamente não representa renda da família.
255
e, também, a análise de Bourdieu (2000) sobre a necessidade de se pensar o objeto de forma
relacional, com amparo num recorte teórico que sai das percepções do senso comum para a reflexão
sociológica.
No que concerne à definição do problema social e sociológico, Bourdieu e Lenoir
convergem, ao explicitarem que nem todo problema social é objeto sociológico. Dessa forma, é
necessária a intervenção do sociólogo. As famílias pobres são temas constantes nos discursos
governamentais e nos programas sociais, com destaque para o Programa Bolsa Família - PBF. Para
se tornarem um objeto sociológico, no entanto, é necessário que, dentro do problema da pobreza das
famílias, seja feito um recorte e delimitado um problema sociológico. Neste estudo, fiz o recorte nas
famílias complexas, e a delimitação consiste nas redes de proteção e nos arranjos econômicos que
lhe dão sustento.
Esta delimitação permite o direcionamento do olhar ao objeto de estudo e seu
funcionamento. As famílias organizam a gerência dos afetos e a circulação dos bens com amparo
em arranjos econômicos e redes de proteção, sempre interligados, cabendo ao pesquisador
identificar a atuação deles no cotidiano, explicitando em que momentos são acionados ou não como
suporte das relações.
Nesta perspectiva de análise, as práticas cotidianas são o ponto de partida das
formulações sociológicas. Elas são vivenciadas inclusive pelos sociólogos que reúnem ações de
forma articulada com os conhecimentos teóricos ao elegerem seus objetos de estudo. Essas
vivências associadas à pesquisa de campo exigem do pesquisador uma atitude reflexiva sobre suas
observações para se posicionar analiticamente. Essa situação torna-se mais preeminente quando se
refere a temas e categorias naturalizadas na vida social, em que pessoas têm vivências em comum e
conceito prévio.
A família encontra-se, juntamente com a velhice, a juventude e a infância, em uma
dupla condicionalidade biológica e social, que as tornam identificáveis por todas as pessoas, sejam
elas estudiosas ou não dos temas. A priori, esse conhecimento coletivo pode parecer um facilitador
de sua expressão na sociedade, no entanto o sociólogo deve estar atento a esse aparente benefício ao
buscar analisá-lo. "A primeira dificuldade encontrada pelo sociólogo deve-se ao fato de estar diante
das representações preestabelecidas de seu objeto de estudo que induzem a maneira de apreendê-lo
e, por isso mesmo, defini-lo e concebê-lo.” (LENOIR, 1998, p. 61).
Essa dificuldade contribuiu para a análise da família complexa. Nesta tese, optei por
tomar as representações de família como um ponto de partida e não o lugar de chegada, para
apreensão do senso comum sobre o objeto de estudo; acatando opiniões dos moradores e suas
256
representações sobre família, “luta da casa”, “briga”, “apanhar”, “gostar” e outras denominações
nativas, para compreensão dos fatos observados.
O sociólogo deve romper com a concepção de que a família é unida, e todos são iguais
para constituir um objeto sociológico (BOURDIEU, 2000, p. 34). O senso comum é o
conhecimento espontâneo da razão, comum à totalidade das pessoas, nas atitudes e maneiras de ver
o mundo, que se traduz numa convivência universalizadora dos fatos e ações como evidentes a
partir de uma tradição de modos de pensar e agir que se concretizam em nomeações e
classificações. Assim, da mesma forma que não se contesta por que a televisão se liga ao apertar o
controle, não se questiona também o porquê da existência da família, o amor aos irmãos ou respeito
aos pais, pois são instâncias da vida prática do coletivo.
As categorias pré-construídas Bourdieu (2000, p.24) ou “naturalizadas” Lenoir (1998, p.
68), como o amor materno e a provisão dos pais, carregam consigo um histórico de fatos sociais
elaborados ao longo do tempo a partir de interesses políticos, econômicos e sociais, que devem ser
levantados para se compreender como uma categoria da vida social passa a ser objeto de interesse
pelo Estado e pela população
25
. As famílias deste estudo são beneficiárias de programas de
transferência de renda, principalmente o Bolsa Família. A difusão das políticas públicas conduz o
tema a ser destaque de estudo das Ciências Sociais e de outras áreas, como a Saúde e a Economia.
Na perspectiva econômica, as famílias pobres mapeadas neste estudo são alvos de
interferências externas, como os rendimentos oriundos de programas de transferência de renda, que
modificam a circulação de bens da economia doméstica e redefinem posições na unidade doméstica.
Esse fato aconteceu com uma das filhas de uma unidade multinucleada, que, após o recebimento do
Bolsa Família, comprou um fogão e passou a confeccionar o almoço dos seus filhos em seu quarto,
retirando assim da rede a atribuição da refeição de um núcleo. A situação aponta para o
entendimento do funcionamento do arranjo econômico e sinaliza para o fato de que há distinções e
grupos dentro de um circuito de parentes. A filha continua a partilhar da mesma “panela”
(compartilhar o alimento na família), mas só em algumas situações, o que altera as disputas no
“campo”
26
familiar.
No tocante aos valores, há cobranças de ordem moral quanto aos casamentos e uniões
livres, ensejando conflitos entre as mulheres que buscam se diferenciar umas das outras, sob a
alegação das casadas de serem consideradas de “respeito”, em detrimento das irmãs solteiras. Estas
25
Ver mais sobre a relação entre família e as intervenções do Estado em Jacques Donzelot (1986).
26
Para Bourdieu (1996), em todos os universos sociais que ele chama de campos, exige um saber
prático dos que estão nele envolvidos. Esse saber é “um habitus adquirido pela socialização prévia
e/ou por aquela prática do próprio campo”.
257
são demarcações de espaço na rede de parentesco. Para entender essa dinâmica, é preciso estar
atenta aos valores morais desses grupos e à luta ocorrente entre eles.
A percepção de que se trata de valores com origem nos quais se travam lutas,
principalmente intergeracionais e de gênero, é fundamental para compreender a dinâmica familiar.
Nessa perspectiva, a descrição do estudo deve historiar a formação do fato, seja um conflito, seja
um cuidado a um parente analisando como se tornou importante ou não em determinadas situações
observadas nos momentos da pesquisa. Busco compreender o “campo” onde a família está situada e
que foi se constituindo, para identificar as partes em confronto nos fatos observados e ruptura com
as acepções pré-construídas, vendo sua condição dinâmica.
Esse posicionamento de pensar a família em adaptação às transformações urbanas e do
mercado de trabalho marca uma diferença em relação a muitos dos estudos sobre a unidade
doméstica, porque não pretendo ver o grupo como ascensão ou queda em termos de valorização na
sociedade capitalista atual, nem como um amortecedor ou não das crises sociais e muito menos
como unidade de proteção aos costumes morais. Todos esses referenciais de conduta, proteção,
solidariedade, respeito e reputação têm novos significados. A minha contribuição reside na
demonstração de como a sociedade recebe e se adapta a essas transformações para formação de
grupos de relações sociais.
A pesquisa foi realizada numa perspectiva eminentemente qualitativa de observação das
sugestões advindas da interação com o campo de pesquisa, no qual mantive uma atuação marcada
pelo fazer etnográfico, realizando o métier do antropólogo no itinerário de Olhar, Ouvir, Escrever
(OLIVEIRA, 2000, p. 17). A pesquisa não se realiza, todavia, sem um direcionamento do
pesquisador, que vai ao campo em busca de algo que tenciona compreender. Assim, não se deve
confundir o olhar aberto para perceber as pistas do campo com a falta de um direcionamento. Os
rumos da pesquisa são definidos por um “investigador munido de um conjunto de problemas que
deseja submeter ao escrutínio da razão”. (DA MATTA, 1984, p. 160).
Desse modo, fiz uma pesquisa de campo antropológica, mantendo um diário de campo,
buscando proximidade com os informantes, evitando um posicionamento em situações de impasse
para ter acesso a todos os participantes da família, tomando café na cozinha e descrevendo
densamente as suas práticas cotidianas. Realizei, portanto, uma etnografia das famílias complexas,
baseada em estudos de caso.
258
O percurso do olhar...
A pesquisa junto as famílias do bairro Pirambu se confunde com a minha formação
profissional, passando pela graduação, especialização, mestrado e doutorado. Na graduação,
delimitei meu estudo na relação da família com a escola; na especialização, estudei o olhar delas
sobre a escolarização das crianças; no mestrado, fiz um estudo sobre o processo compulsório de
retirada de moradias para a construção de uma via paisagística e hoje, no doutorado, analiso
famílias em rede. Em comum nesses estudos, há o Pirambu e as famílias pobres. Assim, em cada
uma dessas formações, há um recorte e um quantum de atividades definido a partir da delimitação
do objeto.
Nesta perspectiva, as organizações familiares foram trabalhadas em diferentes
momentos e com objetivos distintos, porém, nesse percurso, há algo que permaneceu, como a ideia
de pobreza e de família extensa, mas fundamentada em um estudo que elege casos significativos
observados durante a vivência empírica, como também algo que se modificou. Nesta tese de
doutorado, delimito meu estudo nos arranjos econômicos e redes de proteção evidenciados em
quatro unidades domésticas, tendo observado a operacionalização destes durante os anos de 2006 a
2009.
A grande família é o fator motivador desta tese. Em meados de 1998, quando elegi a
relação família/escola na periferia de Fortaleza como tema para a monografia de graduação, a
perspectiva era voltada para a família e a educação, objetivando a aprendizagem, contudo a
categoria família não era o foco de interesse acadêmico. Neste estudo com as famílias das crianças,
a ideia de realizar os questionários nas casas delas foi uma opção metodológica que permitiu uma
proximidade e um possível acúmulo de informações subjetivas da relação família-escola que
poderiam ser ocultadas no espaço escolar em razão da presença dos professores e gestores da
escola.
Ao entrar no universo da família das crianças, no entanto, encontrei uma organização
domiciliar extensa, que incluía, numa mesma unidade doméstica, pais e filhos, irmãos e irmãs,
primos e primas, tios e tias e avós e, em alguns casos, genros e noras se misturavam a sobrinhos e
sogros; enfim, parentes por consangüinidade e por afinidade a dividir na mesma casa a convivência
diária.
A primeira casa visitada era matrilocal: mães com filhos, sem a presença dos pais. Eram
mulheres com seus filhos misturados aos primos, dividindo espaços numa pequena casa de três
cômodos na rua dos Marinheiros. Somente uma das mulheres adultas tinha emprego regular (não
formal, mas todos os dias), e suas outras duas irmãs se revezavam no cuidado com os filhos e
sobrinhos pequenos. As duas irmãs efetuavam trabalhos informais quando aparecia uma lavagem de
259
roupa ou faxina, sendo o trabalho mais comum de lavar roupas de marinheiros, pois residiam
próximo à Escola de Aprendizes Marinheiros do Ceará.
Ao chegar à primeira casa conhecida em atividades de pesquisa, ainda em 1999, e
chamar o responsável pela criança, uma tia veio à porta e disse ser responsável. Enquanto a mãe
estava trabalhando, a tia cuidava dos sobrinhos, filhos da irmã e dos seus próprios filhos, e, quando
uma terceira irmã estava ocupada com algum trabalho informal, ela também se responsabilizava
pelos sobrinhos.
Essa situação entre as irmãs se invertia facilmente entre elas, em razão das limitadas
possibilidades de renda, pois qualquer uma que obtivesse uma oportunidade deveria sair e deixar os
filhos com as irmãs, afinal o pagamento do trabalho seria necessário para alimentar todos os
moradores da casa.
Essa pesquisa para a monografia de conclusão de curso, realizada em 1999, partiu da
escola onde foram disponibilizados os endereços das famílias dos alunos, de modo que elas
possuíam em comum a característica de ter crianças em idade escolar, à época, de sete a quatorze
anos. Das vinte unidades domésticas visitadas, somente uma tinha menos de quatro moradores na
casa, e a maioria era composta por três núcleos ou mais, o que levou a concluir que as crianças são
uma característica das grandes famílias.
As incursões ao campo de pesquisa desde a graduação em Ciências Sociais somam
dados empíricos sobre os pobres urbanos e foram importantes para o conhecimento do modo de
vida das famílias e, principalmente, para a distinção dos casos significativos dos arranjos
econômicos e redes de proteção nesta tese.
As famílias extensas, denominadas de grande família, são compostas por mais de três
núcleos familiares e formam um arranjo extenso colateral
27
(entre irmãos) cujo número de
moradores na mesma casa seja igual ou superior a seis, ou seja, um adulto e seu descendente,
formando, assim, três núcleos. Considerando-se que o número médio de habitantes por domicílio é
três, quatro pessoas (PNAD, 2007), a convivência, sob um mesmo teto, de seis pessoas ou mais,
contendo minimamente três núcleos, pode ser considerada um tipo extenso e representativo para
análise das instituições familiares.
Na perspectiva de extensão familiar, cabe explicitar que as quatro unidades domésticas
de foco desta tese são do tipo grande família, no entanto, com o desenvolvimento das pesquisas no
27
A decisão de priorizar a linha de parentesco horizontal para caracterizar a grande família ocorre
pela constatação empírica da recorrência desse arranjo e por agrupar familiares ligados por laços de
afinidade com o acréscimo de genros, noras e, consequentemente, cunhados, elevando o grau de
complexidade familiar, ao incluir laços mais amplos da rede de parentesco. Nesta tese, porém, elegi
redes chefiadas por pais idosos.
260
bairro, meu estudo foi ampliado da noção de extensão para as ramificações dos parentes que moram
na vizinhança, considerando a rede de inter-relações das famílias e não mais a casa.
Desse modo, para compor esta análise, acompanho as famílias do bairro Pirambu
detidamente desde 1999, buscando informações com assistentes sociais, agentes de saúde, médicos,
sociólogos e outros profissionais que trabalham com as camadas populares em outros bairros da
Cidade. Considero o Pirambu somente como recorte geográfico, pois as redes se formam com
motivações semelhantes em outros espaços sociais
28
. Como pesquisadora, estou sempre
estimulando conversas para conhecer mais sobre a vida das pessoas nos bairros populares, seja em
sala de aula como professora, onde elejo o tema família para estudos, ou em casa ou na rua.
Em virtude da dificuldade de conceituar a categoria família e apontar o que é ou não é
uma família, reafirmo a minha pretensão em conceituá-la com amparo na proposta de Sarti (2005b)
de que se pode pensá-la como uma “categoria nativa”, considerando o ponto de vista de quem a
vive e o sentido que lhe atribui.
Pretendo sugerir, assim, uma abordagem de família como algo que se define por uma
história contada aos indivíduos, ao longo do tempo, desde que nascem, por palavras, gestos, atitudes
ou silêncios, e que será por eles reproduzida e significada, à sua maneira, dados os seus distintos
lugares e momentos. Dentro dos referenciais sociais e culturais de nossa época e de nossa
sociedade, cada família terá uma versão da sua história, a qual dá significado à experiência vivida;
ou seja, trabalhar com parentela requer a abertura para uma escuta, a fim de localizar os pontos de
vulnerabilidade, mas também os recursos disponíveis (SARTI, 2005, p.26b).
A noção de família é definida pelos narradores da pesquisa que, nas suas falas,
delimitam as atribuições e, principalmente, “quem” são seus componentes. Essa posição
metodológica de ouvir primeiro para identificar a família partiu do pensamento de que as fronteiras
são postas simbolicamente pelas pessoas que dela participam e na maneira como nomeiam a si
próprias. Partindo desse pensamento, a pesquisa toma essa narrativa como válida para análise.
Para contar sua história, o narrador parte de concepções de identidade compartilhada no
grupo. Cada família formula sua história, seus mitos, segredos e ideias comuns que reforçam a
identidade coletiva de pertença a uma rede.
28
A visão da pesquisa recai mais atentamente sobre as famílias pobres, mas percebe-se que as
organizações familiares em rede também ocorrem nas camadas médias, com diferentes motivações,
em razão do fator financeiro, determinante nas duas situações, mas resguardados os diferentes
contextos.
261
Nesta perspectiva de análise, ouvi pessoas, gravei entrevistas
29
, histórias de vida
30
e
narrativas sobre o cotidiano das famílias com as pessoas de referência das unidades domésticas,
escrevi diários de campo
31
e confeccionei árvores genealógicas das redes de parentesco.
Partindo do pressuposto de que a vida familiar é dinâmica, a pesquisa qualitativa
permitiu a flexibilidade dos métodos de coletas dos dados e a compreensão das relações sociais na
rede de parentesco, haja vista que os membros são muitos e alguns itinerantes. Numa semana um
filho pode ser morador de uma casa e na outra ter constituído uma união conjugal bem distante da
família de origem, deixando de se dispor às obrigações por estar morando longe. Pode ser ainda ao
contrário, é o pai dos filhos de Dona Selene, que vem todas as tardes à casa da ex-mulher; para
tanto, precisa pegar dois transportes (é um idoso e não paga passagem de ônibus) e passa mais de
uma hora desde a entrada em sua primeira condução até chegar ao destino.
Sob esta óptica qualitativa de análise, as escolhas das pessoas a serem convidadas para
as entrevistas e a confecção de histórias de vida foram definidas na interação com o campo de
pesquisa. Com estabelecimento de uma proximidade com as famílias, decidi fazer histórias de vida
com as pessoas de referência da rede familiar – Dona Rita, Dona Selene, Dona Telma e Pai Vito – e
realizar entrevista em profundidade com duas das filhas moradoras da casa de Pai Vito e Dona
Selene. Somei a esses relatos outras conversas com filhos adultos dos narradores e netos e netas que
se dispunham a responder minhas perguntas.
Inspirada no célebre estudo Cinco Famílias, de Oscar Lewis, fiz a rotina diária das
famílias na casa de referência da rede de parentesco com base nos relatos e observações do fluxo de
pessoas e atividades. Para escrever as rotinas, fiz visitas seguidas pelas manhãs e tardes, evitando o
horário do almoço para não constranger os moradores com minha presença durante a refeição, em
especial na casa de Pai Vito, em que, por vezes, não havia alimento, e o almoço era proporcionado
por doações.
Regressando da atividade de campo, organizava e aprofundava meu diário,
preferencialmente no mesmo dia, exceto quando fazia duas visitas. Havia, porém, visitas que não
29
Somente as entrevistas em profundidade foram digitalizadas ou gravadas, mas, durante as visitas,
foram muitas entrevistas “A entrevista supõe uma conversa continuada entre informante e
pesquisador; o tema ou o acontecimento sobre o que versa foi escolhido por este ultimo por convir
ao seu trabalho”. (QUEIROZ,1988, p.22).
30
Sobre história de vida, concordo com Queiroz, ao dizer que é o pesquisador a escolher o tema,
mas é o narrador quem decide o que vai falar. Para a autora, a história de vida “se define como
relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, tentando reconstruir os acontecimentos
que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu” (1998, p. 20).
31
Somente fiz diários das visitas mais densas. Algumas visitas não geraram diários e outras tinham
objetivos específicos de confeccionar mapas ou conhecer um parente. Os diários desta pesquisa são
36 cada um com uma média de quatro páginas.
262
geravam um diário, pois nelas, a comunicação foi rápida em respeito à vontade dos meus narradores
e nem sempre soube os motivos. Após alguns meses sem visitar uma família, são necessárias duas
ou três visitas para restabelecer a relação de proximidade e iniciar com perguntas, no entanto,
mesmo com uma rotina de três visitas semanais, algumas inserções foram tolhidas. Houve uma
situação em que Dona Selene, ao me ver chegar à cozinha, após o final de semana, disse que não
podia me atender porque estava muito ocupada. Ante a surpresa da recepção, improvisei uma
desculpa
32
e disse que estava visitando outra pessoa e fui a sua casa só para comprar uma tapioca
para o lanche.
São situações da pesquisa que podem ser negativas, mas também podem ser positivas,
ricas em informações. Certa vez, cheguei à casa de Pai Vito logo após uma briga entre as filhas,
com agressão física na rua. Ele tomava remédios para se acalmar, e a visita foi reveladora dos
conflitos. Noutra ocasião, em casa de Dona Selene, presenciei um problema familiar em que sua
filha mais velha havia consumido drogas e investiu contra a companheira com a ponta de um
guarda-chuva, perfurando profundamente seu braço. Logo após a minha chegada, entrou a
companheira que vinha do hospital, onde foram feitas a sutura e o curativo. Nesta ocasião, também
se desvelaram códigos da família.
O tempo de permanência durante as visitas foi variável e dependeu da disponibilidade
das pessoas e da rotina do dia. Percebi que a família prefere guardar seus desafetos e expor somente
a imagem de unidade. A ideia foi conseguir uma cumplicidade ao ponto de não ser vista como
alguém “de fora”, mas coube a pesquisadora a sensibilidade para decidir até onde seguir em cada
situação e gentilmente se despedir quando preciso.
Algumas visitas foram longas, outras rápidas, determinadas pela minha sensibilidade
sobre o que perguntar, quando, como e a quem. As visitas à casa de Dona Telma foram mais
direcionadas às atividades de pesquisa e só adentrei as dependências do imóvel uma vez, para a
dona da casa apresentar reformas e confeccionar fotografias, enquanto as pesquisas nas casas de
Dona Rita e Dona Selene se estenderam por anos e possibilitaram maior proximidade, de forma que
não era uma estranha nas casas, mas convidada inclusive, para refeições. Já nas casas da rede de
parentesco de Pai Vito, fui poucas vezes sozinha, sendo na maioria das vezes acompanhada por uma
pessoa, geralmente um jovem aprendiz do centro comunitário. O receio da visita residiu no acesso à
rua por becos e o aviso constante de mediadores sociais para não entrar na Cacimba dos Pombos
33
sozinha.
32
Sobre as dificuldades do trabalho de campo com os pobres urbanos, ver Alba Zaluar (2000).
33
A Cacimba dos Pombos é uma localidade na beira da praia do Pirambu apontada pelas lideranças
comunitárias pela condição de pauperismo dos moradores. Ver detalhes sobre o lugar no capítulo 8.
263
A coleta do material empírico ocorreu em visitas às casas de referência da família e foi
obtida com base na observação participante (MALINOWSKI,1978) em que colhi relatos orais e
transformei em textos. Ao longo da investigação, muitas casas foram visitadas em diferentes pontos
do bairro. Fiz vários mapas das genealogias de famílias complexas. As genealogias eram
imprescindíveis para o contato com as redes, pois no fluxo da casa-sede encontrava pessoas com
variados laços de parentesco, trocando obrigações na mesma unidade doméstica e nas casas dos
parentes vizinhos, de forma que a única forma de entender as ligações de filiação e afinidade era
confeccionando um mapa para identificar as relações.
Ainda sobre a pesquisa de campo, uma das famílias pediu para não expor seus nomes, e
as demais não se manifestaram, deixando a divulgação a minha escolha. Desse modo, os nomes são
fictícios. Para facilitar a leitura, os nomes dos participantes na rede de Dona Rita, começam com a
letra “R”, Dona Selene, com a letra “S”, Dona Telma com “T” e todos os nomes da parentela de Pai
Vito se iniciam pela letra “V”. Pessoas de outras famílias estudadas serão citadas com outras letras
iniciais diferentes de R ,S, T e V.
Antes das inserções ao campo focadas nas quatro redes de referência, fiz mapeamentos
sobre as famílias nas ruas, na delegacia (Sétimo Distrito Policial), nas associações de bairro e no
Centro Comunitário Luiza Távora, do Pirambu. A pesquisa é de longa duração, com muitas
incursões por variados tempos e espaços do bairro para compreender o mesmo objeto, visitando e
revistando lugares e pessoas.
A essas inserções empíricas no campo somei dados contidos em laboratórios de
pesquisa (LEP) e em relatórios de órgãos governamentais (IPECE, IBGE, PNAD) sobre pobreza no
Ceará e na Região metropolitana. Os dados mais específicos sobre as famílias do bairro foram
obtidos junto à Prefeitura de Fortaleza, no projeto Vila do Mar
34
, onde obtive informações de renda
e modo de vida das famílias moradoras da beira da praia, e na SEMAS recebendo dados do
Cadastro Único que consiste num “censo dos pobres” e serve de referência para concessão e
acompanhamento de benefícios sociais, como o Bolsa Família.
O IBGE pouco explicita dados sobre a complexidade do parentesco nas residências, mas
constam no Manual do Recenseador perguntas para o conhecimento sobre as famílias
“conviventes”. A falta de exposição de dados censitários com uma indicação desses números no
espaço urbano despertou o desejo de fazer um recenseamento, no bairro Pirambu, por meio de
visitas às casas, observando a incidência dos agrupamentos complexos. Juntamente com técnicos do
34
O início das intervenções na área de praia do Pirambu foi coordenado pelo Governo Estadual e
era chamado de Projeto Costa Oeste. Atualmente a gestão da urbanização da costa oeste está sob a
gerência da Prefeitura, que inseriu mudanças na obra, que agora atende pelo nome de Vila do Mar.
264
IBGE, no ano de 2001, organizei uma pesquisa por amostragem, delimitando um setor no bairro,
um número de cem domicílios e um procedimento de coleta orientado pelos técnicos desse Instituto
de alternar de quatro em quatro casas. Organizei um quadro
35
de relação de parentesco no qual,
após definido o responsável pelo domicílio, seriam escritos os nomes de todos os moradores e seu
parentesco com o responsável. A atividade seria a de coletar informações em cem casas, mas,
passados duas semanas de intensas atividades, decidi permanecer em vinte unidades, pois a
inquisição de um olhar antropológico é muito densa e rica de detalhes, o que tornou cada visita em
longa entrevista. Descobri que algumas famílias extensas conseguiram a separação e não desejam
mais voltar a viver juntamente com os parentes, confirmando que as unidades domésticas
multinucleadas não são espontâneas ou optativas, mas, sim, condições impostas à sobrevivência.
Essa incursão foi rica em informações, pois permitiu ver diversas famílias pobres, e
extremamente pobres, que se apresentaram em unidades domésticas nucleares, multinucleares e até
unipessoais, apontando para a conclusão de multiplicidade de modelos das famílias que conduziu
para a noção de rede.
A organização do quadro permitiu ver como as pessoas se organizavam em relação ao
parentesco e apontou elementos para as análises sobre a história da família e do bairro. O interesse
pelas redes de parentesco motivou outras incursões, desta vez à delegacia, para ter uma noção sobre
os conflitos familiares.
Para saber sobre os conflitos envolvendo famílias, busquei informações na delegacia do
bairro Pirambu, o Sétimo Distrito Policial. Nos meses de janeiro a março de 2006, fiz visitas à
delegacia, li e cataloguei os Boletins de Ocorrências BO’s de casos envolvendo parentes, conversei
sobre os conflitos com o delegado e o investigador e tive a oportunidade de acompanhar uma
audiência sobre uma “questão de família”: um rapaz drogado que estava para ser expulso da
moradia coletiva por um tio insatisfeito com as atitudes do sobrinho em casa. A exposição do caso
na delegacia tinha uma finalidade mais conciliatória do que de aplicação da força policial.
Era uma encenação de poder com o uso simbólico da força como instrumento de
coerção e ordem na sociedade. A polícia sabia o que a família esperava e cumpria o seu papel. O tio
do rapaz saiu bem satisfeito com as declarações de preocupação do sobrinho com sua situação, a
ênfase de que sabia que não podia errar novamente e promessa de comportamento adequado, pois a
“polícia estava de olho nele”.
35
O quadro que organizei em 2001 é muito semelhante ao quadro apresentado no texto “Como
fazer uma história de família”, Pina Cabral & Antonia Lima (2005). Como as pesquisas não se
comunicaram, a semelhança denota que a experiência de trabalhos com famílias indicou a
formatação, como sugerem os autores portugueses.
265
Essa família era complexa, de mais de trêscleos, dividindo espaços em comum. Fiz
uma visita a Dona Telma em março/2006, conheci sua casa e seus filhos e decidi continuar a
observação empírica na rede. Ao chegar à moradia, na entrada, a área de circulação entre o muro da
rua e a sala estava toda ocupada por móveis: sofá, cama de casal, estante e outros. A filha da Dona
Telma estava se separando novamente e voltando para a casa da mãe com os filhos. O mobiliário
não cabia dentro da residência e ficava exposto a céu aberto. O filho mais velho construiu uma
habitação no fundo do quintal onde vive com a mulher e quatro filhos. Fiz a árvore genealógica da
família e contei sete pessoas na sede e seis na casa do quintal, somando treze moradores com a
chegada dos novos parentes naquela semana. A família apresentou a operacionalização da rede de
proteção, sendo um dos casos significativos para esta análise.
As visitas ao Sétimo Distrito Policial foram ricas em informações sobre conflitos
familiares no bairro e adjacências, pois se trata de uma delegacia-polo que também atende a
população em plantões. O delegado foi sempre muito solícito a minha pesquisa e contou que
comumente chegavam casos de conflitos envolvendo familiares, mas as situações se resolviam na
delegacia no mesmo momento e raramente havia continuidade dos casos e prosseguimento em
inquérito policial. Segundo ele, as pessoas vêm à delegacia denunciar parentes, mas poucos fazem
BO, não desejam a prisão nem mesmo que o parente seja processado, ou seja, não há, na maioria
dos casos, mesmo quando a família formaliza o BO, uma continuidade no âmbito jurídico das
questões. Entendi que o BO é uma etapa processual que a família evita e a busca pela polícia
somente ocorre quando não conseguem minimizar os conflitos no âmbito intrafamiliar.
Na minha análise dos BO’s, encontrei poucos casos de conflitos e, como exemplifiquei,
eram de jovens envolvidos com drogas e bebidas ou brigas conjugais. Nesse sentido, o tempo de
convivência na delegacia mostrou que o parentesco inibe o envolvimento policial; a família pede a
ajuda da polícia, mas, acima disso, quer o bem-estar do parente: apesar de entregá-lo à polícia, não
o denuncia formalmente. As observações etnográficas a partir da delegacia denotam a procura da
polícia como ajuda em situações de violência que extrapolam os limites das ações possíveis à
família.
As atividades de pesquisa saíram da análise de uma rua (2000 a 2003, no mestrado),
entraram na delegacia (2006) e foram redundar no Centro Comunitário Luiza Távora (2006 a 2009)
e nas associações do bairro que têm no Centro um lugar de formação e capacitação das lideranças.
Ao chegar ao Centro Comunitário, fui recebida na sala da coordenação e colaborei na
redação de projetos sociais com sugestões para justificativa e articulações entre os objetivos e a
metodologia. Assim, por meio dos projetos, iniciei uma aproximação com as lideranças
266
comunitárias, pois participei como cursista do Curso de Elaboração de Projetos Sociais, oferecidos
às lideranças para dinamizar seus trabalhos junto à comunidade.
Algumas lideranças me informaram que as famílias eram mais numerosas entre os
moradores da beira da praia, onde estavam as moradias mais carentes e me sugeriram a rua Santa
Inês em toda a sua extensão e a localidade Cacimba dos Pombos, vizinha ao Centro Comunitário.
Não raro, os líderes de associações do bairro me indicavam “vai aí na Cacimba dos Pombos que é
só o que tem”.
Na Cacimba dos Pombos, fiz várias entrevistas e mapas genealógicos da pesquisa;
conheci famílias nucleadas e multinucleadas. Uma rede de parentesco com a qual tive o contato no
centro comunitário, no entanto, quando de reunião do “Programa Criança Fora da Rua, Dentro da
Escola”, coadunava todas as modalidades. A família se dividia à época em quatro casas às vistas de
um patriarca, que era a autoridade para as filhas, mesmo nas suas casas, na vizinhança. Chamado de
Pai Vito, o patriarca era respeitado e obedecido pelos filhos e netos, fossem eles vizinhos ou
moradores da sua residência.
São anos de pesquisa, e a trajetória empírica no bairro Pirambu passa por muitas
famílias. Então, aprofundei as análises em mais três redes que se somam à família de Pai Vito e
completam esse estudo. A primeira família extensa que acompanho desde a graduação, há dez anos,
é da Dona Selene, a segunda, a da Dona Rita, que conheci em 2000 na beira da praia. O terceiro
grupo familiar a se somar às narrativas do funcionamento dos arranjos é o de Dona Telma,
perfazendo, assim, quatro casos significativos para conhecer o modo de vida das famílias.
O percurso de construção do objeto supõe uma escolha. Dentre as muitas famílias
conhecidas, era preciso escolher as que representavam melhor as redes de parentesco analisadas.
Assim, enumerei três características
36
principais: 1) a complexidade familiar: moradia coletiva,
mais de duas gerações, multinuclearidade na mesma casa e troca de obrigações recíprocas com
parentes vizinhos; 2) a organização da economia doméstica que permite a inclusão e a manutenção
dos parentes; e 3) a formação de uma unidade familiar que se estende no parentesco e permite a
sobrevivência, apesar da pobreza.
A complexidade familiar é a primeira característica e consiste no ponto de partida para
chegar às redes de proteção, passando pela organização do arranjo econômico. Nas unidades
multinucleadas, observo um sistema de trocas semelhante a uma unidade nuclear, no que tange às
obrigações morais e econômicas entre os participantes. As quatro vivem em situação de pobreza,
36
As famílias têm outras características em comum como a de serem chefiadas por idosos e
receberem beneficios de programas de governo assistenciais, além de muitos filhos e netos, mas as
três acima são significativas.
267
mas não podem ser definidas somente do ponto de vista econômico, pois há uma rede de proteção
que oferece subsídios às faltas econômicas; é porque ela existe que as famílias conseguem
sobreviver, apesar de ser pobre.
A etnografia das famílias segue a trajetória de vida do chefe de família, passando pela
história de construção da casa e da rede de parentesco ligada à pessoa de referência e redunda em
relatos de situações que evidenciam o modo de funcionamento dos arranjos econômicos e das redes
de proteção no cotidiano das famílias. Nesse sentido, as entrevistas foram tomadas como narrativas
e coletadas em repetidas visitas. Nos quatro casos, foram realizadas inserções exclusivas para
coletas de histórias de vida e outras visitas complementares para observações e conversas que são
aqui tratadas, não como informação, mas como narração (BENJAMIN,1983).
O caso das quatro redes de parentesco complexas representa a diversidade das famílias
observadas nos anos de pesquisas no campo. Assim, Dona Selene e sua grande família, Dona Telma
e a rede de proteção exposta no conflito da delegacia, Dona Rita e sua trajetória de remoção e a
família de Pai Vito e sua ramificação na vizinhança são representativos da trajetória de pesquisas no
bairro Pirambu.
Uma recorrência explicativa constante nesta tese são as categorias nativas.
Considerando, como sugere Geertz (2000), sua relevância como categorias explicativas, as
categorias nativas não podem ser vistas como reducionismo da noção do senso comum, mas como
uma ponte para decifrar seus códigos de linguagem e perceber os sentidos atribuídos às palavras
que não se misturam por uma confusão topológica, mas denotam sentidos importantes para
compreensão das relações sociais. Destacam-se: “família”, “luta da casa”, “beira da praia”,
“brigas”, “gostar” e “apanhar”. As categorias nativas, juntamente com as categorias teóricas, são
importantes para análise.
O trabalho de campo foi de longa duração do tipo longitudinal (HITA, 2002) de
observação da trajetória das famílias, especialmente nas redes de parentesco matriarcais de Dona
Selene e Dona Rita, pois foi mantido um contato que se estendeu por anos. Um trabalho nesses
moldes favorece a profundidade, mas não soma em termos de generalização, o que não chega a ser
um problema para um estudo etnográfico na busca de uma “descrição densa”.
O estudo de caso (LAHIRE, 2002) das famílias foi organizado numa sequência que
permite ao leitor estabelecer relações entre os casos e ora seguir uma narrativa ou a outra, pois as
histórias se entrecruzam na beira da praia e na história do bairro e da família com características
semelhantes de pobreza, violência e multinuclearidade, respeitando as singularidades de cada
narrador e especificidades de cada família, que nas suas dimensões subjetivas revelam pontos de
268
vista e maneiras de ver e sentir presentes nas citações das falas. São contextos dispostos para
evidenciar o texto: a vida familiar em situação de pobreza urbana.
No cotidiano da pesquisa etnográfica (GEERTZ, 1989, 2000), o pesquisador se envolve
no relato de seus narradores e passa a compartilhar, além do café na mesa da cozinha, dos seus
sentimentos ao escutar suas falas. A proximidade é necessária para investigar a fundo as relações e
para coletar situações que só se descobrem significativas em virtude da participação no cotidiano de
observações e do trabalho de descrição. O estudo de caso e a etnografia operam no aprofundamento
das situações, em busca de extrair grandes questões com origem em particularidades nas vivências
em pequenos grupos, revelando o não-documentado das práticas sociais. Assim, o estudo de caso é
associado à pesquisa etnográfica, resulta num “estudo de caso etnográfico”
37
(PRADO, 2009) para,
a partir da gota retirada do poço – as relações intrafamiliares de quatro redes de parentesco,
compreender o poço – o modo de vida das famílias nos bairros populares.
2 FAMÍLIAS NO PIRAMBU
2.1 CIDADE E POBREZA: A MIGRAÇÃO E FORMAÇÃO DO BAIRRO
Um passeio pelo bairro...
O vento sopra nas areias do Pirambu
38
e a população que vive à beira da praia leva sua
vida sem lembrar-se de que o mar fica logo ali, a alguns passos. Para muitos, uma vida à beira-mar
é sinônimo de status, mas para os habitantes que povoam as ruas do Grande Pirambu
39
, aquele é
mais um bairro de Fortaleza, sendo a beira da praia mais associada ao lixo do que ao luxo.
No cotidiano urbano, o bairro vive sua rotina nas manhãs quentes, nas tardes ventiladas
e nas noites frias banhadas pela friagem do mar que brinda o lugar com um dos climas mais
agradáveis da Cidade por ser beneficiário dos ventos que sopram do leste para o oeste.
37
Escrevi um artigo sobre a “Gestão Escolar e a etnografia da prática docente” em que apresento o
método etnográfico e suas utilizações em diversas pesquisas, entre elas o estudo de caso com o uso
da etnografia.
38
Ver mais sobre o Pirambu na página do bairro na wikipédia
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pirambu_(Fortaleza)
39
Grande Pirambu (Pirambu, Cristo Redentor e Barra do Ceará) sendo todo o bairro Pirambu e o
Cristo Redentor e somente parte da Barra do Ceará, representado pela extensão de terra entre o mar
e a Avenida Castelo Branco (Leste-Oeste). As fronteiras entre os bairros são muito tênues, em
especial na distinção entre o Pirambu e o Cristo Redentor. Desse modo, me referirei aos dois ao
falar em “bairro ou Pirambu”. Ver a distinção entre os três no mapa [o menor que não foi ampliado
tem a nomeação dos bairros] ao final da tese.
269
Ao chegar à tardinha, o vento do mar sopra uma brisa agradável, principalmente à
sombra, o que é muito valorizado numa cidade quente como Fortaleza. As tardes são marcadas por
intenso movimento de pessoas indo e vindo; afinal, a rua é onde acontecem as novidades e os
encontros. As calçadas do lado da sombra são as poltronas para reuniões de mulheres, homens e
adolescentes. Em frente das casas, as mulheres conversam e olham as crianças nas ruas; nas
esquinas, encontram-se pequenos bares ou vendas de “churrasquinhos” que reúnem homens com
seus copos sorvendo bebidas alcoólicas; no asfalto, as adolescentes ora fazem pequenos círculos de
conversas, exibindo suas roupas de fim de tarde, ora estão andando com seus pares.
A cotidianidade vespertina de pessoas nas calçadas, indo e vindo para todas as direções
nas ruas, representa somente uma faceta da vida do lugar. O bairro Pirambu tem entre 120 e 150
organizações comunitárias
40
e deixou marcas importantes na história dos movimentos de bairro de
Fortaleza, sendo uma referência por conseguir evitar um processo de desocupação na década de
1960. É importante conhecer mais sobre o bairro e sua história social, antes de chegar à casa e
adentrar o universo da família. Afinal, a sociabilidade do espaço público tem muito a dizer sobre o
locus privado.
A migração e a formação das redes de parentesco
Fortaleza, capital do Estado do Ceará, é a quinta maior cidade brasileira em número de
habitantes são: 2.505.552 (IBGE)
41
, sendo somente 1.029.726 incluídos na População
Economicamente Ativa – PEA, correspondendo à metade da população em idade ativa
42
. Isso
significa que grande parte dos fortalezenses sobrevive do trabalho informal ou estão
desempregados, amontoados nos nichos periféricos de Fortaleza. É sabido que a favelização das
grandes metrópoles advém, dentre outros fatores, da falta de políticas públicas no restante do
Estado. Sem trabalho no campo, várias pessoas migram diariamente para as grandes cidades na
esperança da inclusão no mercado de trabalho. E com Fortaleza não foi diferente:
A origem do processo de favelização de Fortaleza está ligada aos constantes deslocamentos
de lavradores sem terra e pequenos proprietários que se dirigem para a cidade devido a
rigidez da estrutura fundiária, que praticamente impede o acesso desses lavradores à terra e
outros meios de produção. Nos períodos de estiagem mais prolongados este processo se
intensifica. A cidade, à medida que oferece melhores condições e dispõe de empregos
industriais ou outros, reforça, até certo ponto, esses deslocamentos. (SILVA, 1992, p. 62).
40
Segundo fontes do Centro Comunitário Luiza Távora, estima-se que o número oscile entre 120 e
150 no bairro.
41
Fonte: www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1
42
Dado do Sine (2006). Fonte: www.sine.ce.gov.br/v3/home.php?st=listnoticia&noticia_id=19
270
Fugindo da seca de 1932, muitos sertanejos chegaram à Capital. À época, os jornais
alardeavam a chegada de flagelados: “Mais de dois trens entulhados de famintos se dirigem a esta
capital”. (O POVO, 13/04/1932).
No final do mês de abril, quando a distribuição de passagens para Fortaleza foi suspensa
em algumas cidades do interior, a expectativa das elites era pela diminuição dos retirantes
nos trens que chegavam lotados. Os comboios despejavam os flagelados na parte da cidade
que ficava mais próxima ao mar, onde se localizavam as estações férreas de Fortaleza.
Muitos retirantes erguiam seus casebres nas proximidades da praia. Esse aspecto ajuda a
entender o processo de constituição das primeiras favelas de Fortaleza. Grandes favelas se
transformaram em bairro e ainda hoje permanecem às margens da fachada marítima, como,
por exemplo, o Pirambu. (RIOS, 2001, p.18).
Na seca de 1932, o Poder Público isolou parte dos retirantes em sete “campos de
concentração” para manter a cidade de Fortaleza afastada da miséria, sendo cinco no interior e dois
na Capital. Um dos campos foi erguido no Pirambu, conhecido como campo de concentração do
Urubu.
Amparado no discurso médico higienista (COSTA, 1989), foi cogitada a possibilidade
de não extinguir o campo do Urubu após a seca para preservar a elite do convívio com os flagelados
e o progresso na Loura desposada do sol
43
. Mesmo após o fim das atividades do campo de
concentração, muitos flagelados recusaram a oferta de passagens e sementes para o plantio na suas
terras de origem, preferindo permanecer na Capital.
Nesse âmbito histórico-social de migrações, o Pirambu
44
cresceu em Fortaleza,
recebendo parte das pessoas que deixaram o meio rural. A favelização no bairro começou a partir de
1930 (COSTA, 1999, p.15). O Pirambu oferecia às massas migratórias importantes atrativos, sendo
uma opção boa aos recém-chegados. É próximo ao Centro da Cidade e localizado em área de praia,
facilitando assim o acesso ao comércio e ao mar como opção de trabalho, além de ser próximo
também das indústrias localizadas naquela região, considerada como o parque industrial do Ceará,
no período de 1960 e 1970, no Pirambu havia famílias operárias (BARREIRA,1992).
Nas décadas de 1940 e 1950, a população se organiza em associações comunitárias e o
movimento de Bairro se fortalece, culminando com a marcha do Pirambu em 1960 sob a
reivindicação de direitos às terras e à moradia na costa oeste da Cidade.
A marcha de 1960, movimento de grande importância no Pirambú, reuniu cerca de 20 mil
pessoas. Tendo a igreja como mobilizadora entre o poder público e a comunidade, no
tocante ao conflito da terra, o movimento trouxe visibilidade e diversos ganhos sociais,
dentre os quais destacamos: o direito à terra através do Decreto Lei 1.058, de 25 de maio de
43
A nomeação poética para cidade foi constituída do soneto “Fortaleza” pelo aracatiense Francisco
Paula Ney.
44
O nome Pirambu decorre de um peixe muito comum naquela área praiana, usado para subsistência das famílias que
ali moravam.
271
1962, além de lançar a comunidade como protagonista dos Movimentos Sociais Urbanos de
Fortaleza. (SEINF-HABITAFOR, 2009).
Residir próximo ao mar representa prestígio social na cidade de Fortaleza, o que conduz
os governantes a tentar tomar de volta essa área, ocupada por pobres no Pirambu. Em razão desse
fator de ocupação do espaço praiano, o Bairro foi palco de várias lutas sociais em torno da questão
de moradia e ocupa um lugar importante na história dos movimentos sociais na cidade
(BARREIRA, 1992; CAVALCANTE, 2000; DAMASCENO, 1992; MATOS, 1998; SILVA, 1992;
SILVA, 1999). O poder governamental buscou os direitos sobre esse terreno que pertencia à União,
por meio de leis, projetos, recadastramentos periódicos e até conflitos diretos com a população,
como consta na história do Bairro, desde o princípio marcado por enfrentamentos.
A luta pela permanência na área ocorre desde o momento em que os moradores tentam se
fixar à terra e resistem às investidas policiais no sentido de impedir a construção das casas.
A experiência do Pirambu, nesse sentido, é marcada, de um lado, pela resistência à
expulsão, fato que implica fixação e permanência na área, e de outro, pela tentativa de
urbanizar uma área inóspita, coberta por dunas e com poucas condições de habitação.
(BARREIRA, 1992, p 56).
Na perspectiva dos conflitos exógenos de confronto com o Estado, o Pirambu deixou
marcas na história da Cidade
45
. Foram manifestações, reuniões, passeatas e a marcha que mobilizou
os movimentos de bairros organizados. Dessa forma, o Bairro foi protagonista de páginas
importantes na história dos movimentos organizados de Fortaleza.
A marcha na década de 1960 chamou a atenção da população de Fortaleza, pois foi um
movimento pacífico. O Pirambu era conhecido como bairro marginal
46
– marca que carrega até
hoje. Como consta nas memórias de Silva (1999), havia casas de jogos, muitas prostitutas,
alcoólatras e todos os tipos de marginalidade. Ainda hoje, nos depoimentos, os moradores lembram
que “o povo” se benzia quando falava no Pirambu. Dona Selene disse: às vezes quando dizem –
onde é que você mora? Moro no Pirambu, pessoal se benzia, porque aqui só tinha gente ruim, aqui
tem tanta gente boa, eu adoro o Pirambu, é minha vida esse lugar.
Pobreza, miséria e marginalidade ainda são marcas que identificam o Pirambu. A
formação por migrações e construções espontâneas de ruas e casas o caracteriza como sinônimo de
45
Mattos (1998) enumera os “marcos e marcas” dos movimentos populares da Cidade.
46
O termo marginal no dicionário Aurélio, significa 1. da margem, 2. que vive fora do âmbito da
sociedade ou da lei, como vagabundo, mendigo ou delinquente; fora da lei. 3 indivíduo marginal.
Esse termo é utilizado para estigmatizar o bairro e a população.
272
pobreza e violência. O “Grande Pirambu”, com o passar do tempo, melhorou em infraestrutura de
equipamentos urbanos
47
e tipos de moradia.
Mesmo com uma das vistas mais belas e simbólicas da Terra da Luz, tendo
ao fundo os luxuosos condomínios e hotéis da Beira-Mar, um dos principais
pontos turísticos da cidade de Fortaleza, o Pirambu é um bairro que traz em
sua história o estigma de ser violento e perigoso, principalmente para os
moradores da Aldeota e afins, parte reservada a elite de Fortaleza, que
daquele espaço muitas vezes só tem idéias televisivas. (SEINF-
HABITAFOR, 2009).
A visão negativa do Bairro na Cidade tem ligação com a sua ocupação e os embates dos
moradores para não deixarem o lugar. A história social do Bairro somada às violências
espetacularizadas em programas policiais locais são elementos para formar de uma visão
desfavorável do Pirambu.
Noutra perspectiva da ocupação do Bairro, observa-se a formação das redes de
parentesco com a vinda de membros da família da zona rural para a Capital. As pessoas
provenientes do campo alojavam-se nas casas de familiares que cediam um terreno no quintal para
levantar uma pequena casa ou indicavam um terreno próximo para enfiar quatro varas
48
no chão e
demarcar o espaço para uma moradia. Assim, aos poucos, foi sendo delineado o traçado das ruas e
becos desalinhados do Bairro, haja vista as construções espontâneas e a formação de dunas que
caracterizam a cartografia do lugar.
Sobre as famílias que chegavam para se acomodar em casa de parentes ou construir nos
quintais, uma moradora contou: ela [uma irmã] que chegou com 3 meninos e num tinha lugar pra
morar, aí eu dei o fundo do quintal pra ela fazer, aí ela fez esses dois compartimentos. (Dona
Nazaré, 2002).
Em visita a uma família complexa em 2001, a dona da casa, que morava há mais de
vinte anos no Bairro, contou que era natural da cidade de Aracoiaba Região de Baturité, e veio para
o Pirambu, porque a família já estava quase toda aqui, aí viemos também [...] no interior não tinha
nada, não tinha trabalho, nada... a gente passava era muita fome... não tinha em quem se agarrar.
(Dona Lourdes, 2001). Na fala da moradora, percebe-se a noção de família como rede de apoio aos
parentes e a ideia de urbanização por parentesco no Bairro.
47
As ruas e becos são estreitos e em muitos não passam carros, mas a maioria das ruas e casas
passou a ter acesso a sistema de esgoto e água encanada e muitas ruas são asfaltadas.
48
No início da sua formação, o espaço das casas era demarcado com quatro varas no chão, para
depois colocar uma lona por cima e se ter uma moradia. Existe um espaço no Pirambu chamado
Quatro Varas.
273
Considerando as circunstâncias da formação do Bairro, ou seja, o apoio dos moradores
aos seus parentes advindos do meio rural, associado à alta taxa de fecundidade das mulheres nas
décadas anteriores, o Pirambu convive com o parentesco estendido na família e vizinhança. Mesmo
após a diminuição da taxa de fecundidade nos últimos anos, entre os mais pobres, ela ainda continua
alta. Uma moradora, mãe de 12 filhos, relatou que todos os filhos adultos já moraram com ela
depois que se tornaram pais e mães. Ela contou:
Ninguém num queira ser eu, porque é osso [difícil] ter muitos filhos, as minhas oito filhas
são mães, mas elas não desejaram ter muitos filhos, só uma que teve muito filho, só que
uma teve quatro, as outras tudo teve é três, é dois. Meu irmão pagou R$ 200,00 pra esposa
poder fazer ligação que já tem três filhos. (Dona Antonia, 2006).
A fala de Dona Antônia reitera dados do IBGE no que concerne à diminuição do
número de filhos entre as camadas populares, entretanto, mesmo com a redução este percentual
ainda supera a média nacional de 1,8 filho por mulher (PNAD/IPEA, 2009). Associando, então, a
condição de pobreza presente no cotidiano destas famílias ao elevado número de filhos, muitas
famílias recorrem à rede de parentesco para garantir as necessidades básicas de sobrevivência e
proteção.
Nas últimas décadas, o bairro foi crescendo, juntamente com a Cidade, que hoje é uma
metrópole. O espaço urbano Grande Pirambu reúne os bairros da costa oeste (Pirambu, Cristo
Redentor e Barra do Ceará) por toda a extensão da praia até o encontro com o rio Ceará, entre o
mar e a avenida Presidente Castello Branco – Leste-Oeste
49
.
A partir de dados do censo de 2000, o Pirambu tem 18.453 habitantes e o Cristo
Redentor tem uma população residente de 28.914 pessoas
50
, sendo a população de mulheres maior
do que a dos homens nos dois. Sobre a urbanização do espaço, cabe exprimir que o plano de
desenvolvimento da Cidade inseriu em seu projeto a construção, em 1973, da avenida Leste-Oeste
para interligar os pontos leste e oeste de Fortaleza ligando o Mucuripe à Barra do Ceará.
A Beira Mar e a beira da praia
Na bela e turística Fortaleza, há diferenças entre as áreas situadas ao leste e ao oeste. Ao
oeste há o Pirambu e outras áreas de periferia e ao leste situam-se as áreas nobres, que retratam
49
Avenida Pres. Castello Branco é conhecida como avenida Leste-Oeste por ser a única via a cortar
a Cidade nos dois pontos cardeais. Situa-se paralelamente à área de praia e consiste num símbolo
das desigualdades sociais na cidade de Fortaleza que tem ao leste a ‘beira-mar’ e outras áreas
nobres que figuram nos cartões postais em detrimento do lado oeste, onde estão o Pirambu e outras
áreas periféricas.
50
O IBGE não fornece dados dos bairros. Esses números foram resultado de informações
fornecidas pela SEMAS e são fruto de cruzamentos de setores do IBGE.
274
Fortaleza nos cartões postais. Ao oeste, em especial na faixa litorânea, as imagens refletidas nas
águas das praias de Fortaleza surgem como um espelho, mostrando a figura da Cidade do Sol,
invertida no seu principal cartão postal – o mar – retratando as desigualdades sociais.
A distinção entre Beira-Mar e “beira da praia” foi percebida na fala dos moradores do
bairro que, em geral, se referem ao espaço e às casas que ficam próximas ao mar como a beira da
praia. Essa expressão tem um sentido diferente do ordinário, referindo-se ao espaço da área nobre
(leste) em que a avenida é chamada de Beira-Mar, e os espaços comercializados nas proximidades
do mar, mesmo não pertencendo à avenida, são vendidos no comércio imobiliário como Beira-Mar.
A beira da praia é estigmatizada dentro do próprio bairro, sendo recurso de moradia para a
população mais pobre do lugar.
A população do Pirambu, em sua maioria, é pobre e, em todos os espaços do bairro, é
possível encontrar famílias em situação de extrema pobreza, no entanto, no seu interior, há
separação de território; as casas próximas das avenidas têm melhor aparência, e são melhores as
condições de vida dos moradores em relação às casas e barracos próximos à praia. Os portões e
cadeados das casas das avenidas se diferenciam das frágeis portas de madeira dos moradores da
beira da praia.
A tese da cidade partida em leste-oeste tem origem no processo histórico de formação
da Capital. O surgimento dos bairros foi planejado para as classes abastadas, potencializando o leste
de infraestrutura, como abastecimento de água, fornecimento de energia elétrica, ruas e avenidas
asfaltadas, saneamento básico; em detrimento do oeste, que, privado de seus benefícios urbanos,
ficou recebendo as populações que não eram bem-vindas do lado rico: mendigos, prostitutas,
populações migrantes do interior e litoral do Estado e pessoas portadoras de doenças contagiosas,
como varíola, tuberculose.
A relevância da tese da cidade partida para compreender a condição de vida e moradia
no Pirambu não pode ser tomada como uma explicação cabal, pois os bairros de Fortaleza não são
homogêneos de ricos ou de pobres. É uma cidade de contrastes sociais (ARAUJO & CARLEIAL,
2003:6). Nem mesmo o Pirambu, que tem um dos mais baixos IDH
51
(0,39) da Cidade, é habitado
somente por pobres.
Desse modo, se originalmente o povoado de pescadores era constituído por casas de palha,
atualmente, o bairro é marcado por contrastes em que se misturam boas habitações cercadas
de infraestrutura urbana e assentamentos feitos com barracos de madeira, plástico e
papelão, onde a sobrevivência é extremamente precária. Nesta situação, são diversos os
contextos fundiários e a população mais fragilizada fica à mercê da especulação imobiliária.
(SEINF-HABITAFOR,2009)
51
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida de comparação que avalia riqueza,
educação e esperança de vida. O índice alcançado pelo Pirambu é considerado baixo (IBGE,2000).
275
Esse movimento é percebido empiricamente no Pirambu. Há pobres, indigentes e pessoas
vivendo em áreas de risco em condição de extrema indigência quanto à renda e à moradia. Também
há camadas médias, no Bairro, com estudantes universitários e empresários. O atual movimento de
intervenção urbana advindo de equipamentos para a urbanização da área de praia têm atraído novos
interessados na localidade, inclusive com a construção de um arranha-céu para as camadas mais
abastadas que têm como sonho de consumo a moradia próxima ao mar
52
. São novos ventos de
especulação recaindo sobre o bairro.
Apesar da variação da população concernente às condições de renda e moradia, a
população é, em sua maioria, pobre, especialmente quem mora na beira da praia, lugar que recebe
as populações sem opção de moradia. Nela também são focados programas sociais de
reassentamento em virtude de intervenção urbana na costa e do risco de desabamento das casas.
A história social do Bairro confunde-se com a luta pela permanência no espaço urbano e
apresenta-se para a Cidade em dois pontos complementares: para combater a fama de marginalidade
e para divulgar que o Pirambu tem uma população de pessoas boas e trabalhadoras, não se
restringindo aos bandidos e à imagem veiculada em programas policiais. O bairro é referenciado
como exemplo ora de marginalidade, ora de inclusão. Atualmente, o projeto de inclusão digital
53
tem uma visibilidade nacional. O Pirambu é um bairro de muitas intervenções urbanas e
movimentos sociais que se organizaram com o objetivo de permanência no lugar, e, hoje, as
organizações associativas alcançam diversos setores, desde o do esporte até a reciclagem de
material usado (lixo).
A formação da identidade do bairro ocorreu a partir dos movimentos sociais. A
ineficiência do Governo para sanar problemas de saúde, educação e, principalmente, habitação e
urbanização, com equipamentos de esgotos e coletas de lixo, gestou uma solidariedade cooperativa
entre moradores, que viam em seus pares
54
a única possibilidade de minimizar seus problemas, seja
52
O “Residencial Navegantes” está sendo erguido na rua Jacinto de Matos, atrás da Escola de
Aprendizes Marinheiros e tem a sua frente o antigo Kartódromo no início do bairro Pirambu com
“vista para o mar”.
53
“Pirambu digital” é um projeto que tem apoio do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Ceará - IFCE e visa à inclusão digital da população do bairro com venda subsidiada
de computares e oferta de conexões gratuitas.
54
No mestrado, fiz um estudo sobre a remoção de moradores e observei a importância dessa forma
de solidariedade social no grupo, que, se achando ameaçado pelo Governo do Estado e desejoso de
receber o seu direito a retirar todo o material da casa possível de reutilização, como telhas e tijolos,
reuniu esse produtos para construção no centro da rua demolida e durante três dias os moradores
organizaram uma vigilância em que permaneciam em sistema de rodízio durante vinte quatro horas
276
de forma organizada em movimentos associativistas, ou em pequenas ações coletivas para resolver
problemas emergenciais cotidianos. Desse modo, o conhecimento dos processos reivindicatórios do
bairro e sua história de formação baseada na migração têm muito a revelar sobre a estruturação das
famílias.
Mapa do Relatório da SEINF com a marcação do Grande Pirambu para o projeto Vila do Mar
Nessa perspectiva histórica e de migração, a localização “beira da praia” é
representativa de uma condição de classe e pobreza no Pirambu. As famílias que residem próximo à
praia são as mais carentes e a opção de moradia ocorre pela impossibilidade de melhores
oportunidades de habitação no Bairro. A beira da praia é receptora dos migrantes e da população
mais carente do Grande Pirambu, sendo o espaço caracterizado como sinônimo da escassez. Os
quatro casos significativos de estudo desta tese têm um histórico habitacional ligado à beira da
praia: Dona Selene morou seus primeiros anos no bairro na beira da praia; Dona Rita foi transferida
em 2001 da beira da praia por viver numa área de risco; Dona Telma comprou sua primeira “casa
própria de taipa” nas proximidades da praia e a família de Pai Vito é considerada moradora da beira
da praia por distar apenas duas ruas do mar. As famílias têm um histórico de migração e pobreza
ligado à autoconstrução, passando da moradia de taipa na “beira da praia” até a casa de tijolo.
As famílias residem no espaço urbano, mas são herdeiras de um modo de vida rural em
relação aos valores familiares de proteção e apoio. Conhecer suas condições de vida, trabalho e
habitação é o primeiro passo a compreender o emaranhado universo das redes de parentesco.
2.2 FAMÍLIAS EM REDE NO PIRAMBU: POBREZA, TRABALHO E HABITAÇÃO
no local. Desse modo, o próprio grupo assegurou seu direito. Eles contaram que essa organização
existe desde a invasão, quando se revezavam na vigilância para se proteger da polícia.
277
As famílias pobres deste estudo são extensas na forma e complexas nas relações
intrafamiliares quanto à gerência de bens materiais e simbólicos atribuídos aos papéis e funções no
seu interior. Nessas organizações configuradas em rede, os papéis se diluem e se complementam de
forma “situacional” para satisfazer as necessidades do grupo. Desse modo, na ausência da mãe de
uma criança, há uma tia ou avó para representar os pais em uma necessidade na escola ou um irmão
mais velho para representar o homem para uma irmã, numa situação de conflito na rua. Não são
papéis peremptórios, pois entram em cena e se modificam de acordo com as necessidades de
manutenção das redes de proteções entre os familiares.
Esses papéis sociais “substitutos” se distribuem na rede de parentesco como mecanismo
de unidade e proteção, de modo a suprir as necessidades da família. Nessa perspectiva, ela é
complexa, pois os papéis não são definidos no modelo arquétipo nuclear; antes ocorrem num
contexto situacional, permitindo a existência e sobrevivência da família como unidade no âmbito
social e também econômico. A substituição dos papéis e a organização da economia doméstica que
inclui os parentes são exemplos de estratégias
55
dos pobres urbanos.
As redes de proteção incidem na obrigação moral dos participantes atuarem em funções
substitutas e cumprirem os papéis que permitam a manutenção do grupo. Nelas estão presentes
também as ações já esperadas aos que devem cumpri-las; enquanto o arranjo econômico exige um
desprendimento dos rendimentos pelas partes em benefício da rede, ênfase maior no compartilhar os
parcos recursos com uma família extensa, que inclui graus diversos de parentesco direto e indireto.
Muitas famílias do bairro do Pirambu são complexas nas relações intrafamiliares,
delineando diferentes formas de organização na sua estrutura. Essas formações se evidenciam na
habitação e nos laços de parentesco dentro da casa e na vizinhança. São fronteiras tênues entre a
sede e as casas dos parentes vizinhos, sendo os limites definidos em lógicas de união e desunião que
somente podem ser explicadas com amparo nos valores e nas condições de renda e moradia das
pessoas.
As famílias analisadas no Pirambu são pobres e algumas vivem em condições de
extrema indigência, haja vista a renda familiar per capita ser inferior à quarta parte de um salário
55
Pierre Bourdieu, no seu livro Razões Práticas questiona se: “É possível um ato desinteressado?”
E considera que as ações dos indivíduos na sociedade não são necessariamente calculadas e nem
ocorrem de maneira disparatada. “[...] os agentes sociais têm ‘estratégias’ que só muito raramente
estão assentadas em uma verdadeira intenção estratégica”. (BOURDIEU,1996, p.145).
278
mínimo. No Brasil, não existe uma linha de pobreza oficial
56
, assim, as definições para pobreza
variam de acordo com as instituições que a calculam. “O Banco Mundial tornou popular a noção de
linha de pobreza para quem ganham [sic] menos de U$ 1,00/dia. No Brasil, é comum a utilização da
linha da pobreza de ½ salário mínimo por mês de renda per capita como medida de pobreza”.
(LOUREIRO; SULIANO; OLIVEIRA, 2009, p.3).
Um dos principais critérios e também controversos utilizados na definição da linha de
pobreza no Brasil [Salário mínimo] estabelece que um indivíduo é considerado pobre se
este possui renda domiciliar per capita igual ou inferior a meio salário mínimo. Esta
definição de pobreza é amplamente utilizada como critério de elegibilidade para
programas governamentais voltados para a população vulnerável. Já a linha de indigência
é definida em 1/4 de um salário mínimo por mês. (LOUREIRO; SULIANO; OLIVEIRA,
2009, p. 6).
Assim, a pobreza fica estabelecida com meio salário por mês de renda per capita, a
indigência, com uma quarta parte do salário mínimo por mês e a extrema indigência com uma
Renda Familiar Per Capita – RFPC – menor de um quarto (LOUREIRO; SULIANO; OLIVEIRA,
2009) ou RFPC correspondente a uma oitava parte
57
de um salário mínimo (BARRETO; MANSO;
SANTOS, 2009). Essas definições são ponto de partida para se compreender a pobreza no Brasil, no
Ceará e em Fortaleza, principalmente quando se observa que o critério se define pela família em
sua estrutura privada como o espaço de distribuição dos bens.
Quantificada a linha da pobreza, parto agora para situar o Ceará e a Região
Metropolitana de Fortaleza em relação à pobreza, à indigência e à extrema indigência.
Estatisticamente, 49,9% da população cearense é de pobres, ou seja, metade dos habitantes do
Estado do Ceará possui uma renda inferior a meio salário mínimo IPECE/PNAD, 2008). Embora
grande parte da população esteja incluída neste percentual, é importante ressaltar que houve um
decréscimo em relação aos 57% obtidos no ano anterior (IPECE/PNAD, 2007). Abaixo da categoria
de pobres, no Ceará, foram identificados 21,5% da população considerados indigentes
(IPECE/PNAD, 2008)
58
.
Já em relação a extrema indigência, faixa de renda ocupada predominantemente pelas
famílias privilegiadas neste estudo, o percentual é de 22,02% vivendo na região metropolitana de
56
Diferentemente dos Estados Unidos ou do Reino Unido, onde há uma definição institucionalizada
nacionalmente.
57
No relatório 5 do LEP – “O mapa da extrema indigência no Ceará e o custo financeiro de sua
extinção” – os autores sinalizam para uma situação além da indigência, cuja RFPC corresponderia a
uma oitava parte de um salário mínimo. Neste estudo, deve ser acentuado que a referência é a
família, e não o domicílio, de modo que uma unidade doméstica com três famílias na mesma casa
não compõe renda juntos, mas em separado por núcleos familiares.
58
Fonte: Loureiro; Suliano; Oliveira (2009). Elaborada pelos autores com os dos dados da
PNAD/IBGE. Nota: esses autores analisam a pobreza e a indigência.
279
Fortaleza
59
(BARRETO; MANSO; SANTOS, 2009). Cabe ressaltar que tomo por base esses
conceitos como parâmetro para fazer um quadro das condições de vida das famílias analisadas.
À luz da representatividade dos dados sobre a pobreza no Ceará e na Região
Metropolitana de Fortaleza, cabe um questionamento: como vivem essas famílias com um
rendimento diário correspondente a R$ 2,00
60
para suprir suas necessidades básicas, principalmente
a alimentação? A resposta não é objetiva como os números, pois passa pela família que coaduna a
dupla função de arranjo econômico, que distribui bens no seu interior, e rede de proteção, que forma
uma teia de ajuda mútua.
2.2.1 Famílias, redes e arranjos
A representação numérica das condições de vida dos pobres urbanos em Fortaleza é
importante para situar o estudo e verificar a situação de precariedade financeira em que vivem as
famílias, considerando que a pobreza é, mais do que um dado estatístico, uma negação da cidadania.
Em Pobreza e Cidadania, Vera Telles (1993) destaca a figura do trabalhador e explica que o
reconhecimento de direitos está perpassado pelo ideal de cidadão que trabalha e cumpre seus
deveres.
Partindo da perspectiva de inclusão do trabalhador, há a exclusão dos “não-
trabalhadores” sobreviventes da instabilidade do mercado, que se repetem na condição de
desempregados, ao ponto de perderem mesmo o estatuto de cidadãos, fazendo da pobreza não
somente uma carência passível de ser medida nos indicadores sociais, mas também “uma condição
de privação de direitos, que define formas de existência e modos de sociabilidade”. (TELLES,
1993)
61
.
Ante a marca de inferioridade, ancorada no imaginário que a pobreza carrega e da
necessidade de recursos morais e materiais que deem suporte à vida em sociedade, a importância da
família é determinante na vida das camadas populares.
Numa sociedade que não abre lugar para o indivíduo e o cidadão, uma sociedade na qual a
insegurança, a violência e a incivilidade são a regra da vida social, é em torno da família
59
Tabela B de dados sobre a distribuição da pobreza no Ceará por área censitária em 2007. Fonte:
http://www.caen.ufc.br/~lep/relatoriolep05.pdf
60
Tomando como referência o salário mínimo de R$ 510,00 em janeiro de 2010, a pobreza
corresponde a uma renda mensal per capita de R$ 255,00; a indigência seria correspondente a R$
127,50, e a extrema indigência a um rendimento per capita inferior a 127,50 (IPECE) ou referente à
oitava parte do salário, sendo de R$ 63,75 (LEP) ao mês ou R$ 2,12 ao dia (cálculos meus).
61
Fonte: < www.cadernocrh.ufba.br/include/getdoc.php?id=1234&article=340. Acesso em
20/12/2009.
280
que os homens e mulheres constroem uma ordem plausível de vida: é espaço que viabiliza
a sobrevivência cotidiana através do esforço coletivo de todos os seus membros; é espaço
no qual se constroem os sinais de uma respeitabilidade que neutraliza o estigma da pobreza
no qual elaboram um sentido de dignidade e recompensa moralmente as adversidades
impostas pelos salários baixos, pelo trabalho instável e pelo desemprego periódico.
(TELLES, 1993).
A família é o refúgio dos pobres, indivíduos que, destituídos das condições básicas de
existência, recorrem ao apoio da rede de parentesco para o enfrentamento das dificuldades de
sobrevivência. Desta feita, utilizo-me da concepção de família pobre adotada por Cynthia Sarti, que
amplia a dimensão restrita de núcleo.
A família pobre não se constitui como um núcleo, mas como uma rede, com ramificações
que envolvem a rede de parentesco como um todo, configurando uma trama de obrigações
morais que enreda em dois sentidos: ao dificultar sua individualidade e ao visualizar sua
existência como apoio e sustentações básicos. (1994, p.49, grifos da autora).
Nesta perspectiva de análise, considero como família um grupo de pessoas que têm em
comum o parentesco e a mãe/avó como identidade coletiva, reunindo-se numa rede de troca de
obrigações recíprocas. As pessoas de referência na pesquisa são mães e pai de família idosos, sendo
três mulheres e um homem, na única rede analisada a partir do pai; a mãe, mesmo ausente, era fator
de identidade da parentela e uma de suas filhas resumiu a ligação de parentesco ao definir quem são
os seus irmãos é quem nasceu do ventre da minha mãe.
A investigação com famílias do tipo extensas e multinucleadas permitiu a percepção
vários núcleos convivendo na mesma casa e que mantêm trocas de obrigações morais com a rede de
parentesco vizinha, filhos, netos e irmãos moradores de casas próximas. Considerei assim as
famílias complexas – vários núcleos numa rede de parentesco, como foco desta análise. Se a família
em rede é um fenômeno que pode ser experimentado também em camadas médias
(DUARTE&GOMES, 2008), entre os pobres, ela é uma condição, em muitos casos, necessária à
sobrevivência.
Partindo da perspectiva da instabilidade das relações conjugais, a família se organiza em
rede com base na consanguinidade. Essa afirmação situa a rede num polo contrário ao modelo
nuclear, cujo epicentro é a conjugalidade que se completa com a chegada dos filhos. As famílias se
unem em rede a partir do parentesco, e não apenas o fator motivador da conjugalidade (FONSECA,
2000; SARTI, 2005a). A vida, em situação de extrema indigência, expõe as pessoas à precariedade
das condições materiais: falta de habitação, privação de alimentos e acesso à saúde, e, por
conseguinte, enseja: moradia coletiva, fome, doenças, violência, alcoolismo, uso de drogas, mortes
violentas e mendicância. Também produz a reunião da família numa teia de trocas de obrigações
281
morais que se transforma em rede. A expressão uma “panela só” indica a partilha do alimento da
mesma panela entre parentes agregados.
A família extensa apresenta-se como arranjo econômico com o símbolo da “panela só”,
mas a conotação de rede é mais do que um arranjo econômico, é proteção, que inclui o parente em
uma teia de pertencimento e identidade. Nesse sentido, o indivíduo passa a ser pessoa, fazer parte
de um coletivo, de uma rede de proteção, por meio da qual ele se torna reconhecido.
A rede de parentesco não é uma comunidade virtual de um site de relacionamentos da
internet
62
, mas é a teia que acolhe os analfabetos de letras e bytes que dá dignidade ante a um
mundo de condições desiguais, pois na família eles são iguais, merecedores de respeito, num mundo
que impõe a pobreza como uma marca que segrega e diferencia pessoas, lhes infringindo condições
desfavoráveis de vida. A participação permite partilhar de uma ética cujas regras do querer, poder e
dever referem-se a códigos compatíveis a todos. Mesmo que seja na unidade doméstica, há um
lugar no mundo para se fazer parte.
A precariedade das condições materiais leva a família a se organizar num arranjo
econômico para sustentação básica, no entanto, o arranjo econômico não se impõe apenas com base
na condição de desproporção de contribuições monetárias. Para se consolidar, precisa ter bases em
um suporte moral da família. Nele, estão os apriorismos de apoio na consanguinidade, que incluem
os pares pelo parentesco
63
, e não pela paridade econômica, fazendo com que a família pobre se erga
sob os pilares (economia e proteção) para o enfrentamento das adversidades e a garantia da
sobrevivência. A mãe é cobrada pelo dever moral de acolher os filhos e não deixá-los sem amparo.
Essa cobrança é pessoal e está associada à obrigação moral do cumprimento de papéis sociais.
A rede de parentesco, então, forma uma organização complexa de funções e papéis,
cujas composições se afastam do modelo conjugal ou nuclear numa mesma residência. Nas famílias
analisadas, coabitam mais de duas gerações e muitos parentescos indiretos numa mesma casa ou nas
moradias vizinhas que dela participam. Cabe lembrar ainda que essa família complexa em rede se
organiza no sentido de estarem todos ligados pela linha que a tece, o parentesco.
62
No mundo moderno, a sociedade do conhecimento faz com que as pessoas se reúnam por meio da
rede internet, e os pobres, aquém desses artefatos, se conectam numa instituição antiga, a família,
para sobreviver neste mundo novo.
63
Esta informação também está presente na Síntese de Indicadores Sociais – SIS/IBGE – 2009: “Os
resultados da PNAD 2008 confirmam a tendência que vem sendo verificada nos últimos anos – a
consanguinidade é o eixo principal de união das pessoas que vivem juntas, 88,1% dos arranjos são
de pessoas com parentesco”. Fonte:
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_impressao.php?id_noticia=1476 Acesso
em: 05/12/09.
282
Sobre as relações de parentesco, cabe explicar que nesta tese as pessoas de referência
são idosos chefes de família e deles saem as decisões de quem é ou não recebido como morador e
com quem há obrigações de trocas para identificação do parentesco. Os chefes recebem os filhos e
seus descendentes e, em alguns casos, os cônjuges. Desse modo, os núcleos dos netos, por exemplo,
não se somam à casa-sede dos avós. A rede de proteção é uma forma de amparar os pares
consanguíneos, são pais e mães que cumprem seu papel de acolher os filhos.
As formas de organização das famílias em núcleos incorporam expressões verbais
decorrentes do modelo nuclear. Não obstante, a relação intrafamiliar é mais dinâmica do que essas
denominações. A vivência na periferia mostra redes de parentesco diversas, e a pesquisa empírica
denota situações de unidades domésticas com três ou quatro núcleos. Um só fogão acolhe os
participantes da casa e alguns parentes vizinhos; também situações de utilização de cada cômodo
como moradia de um só núcleo e confecção em separado de suas refeições. Foram observadas
situações de famílias complexas com vários graus de parentesco consanguíneos e afins,
compartilhando “da mesma panela”.
Ante o exposto, o estudo das famílias complexas, aqui analisadas, se distingue do
padrão nuclear conforme está descrito na literatura com sua divisão de papéis e funções. Mesmo
com essa distinção, porém, este ensaio utiliza o modelo nuclear como um recurso metodológico, um
“tipo ideal” das estruturações familiares. Desse modo, não rejeito o modelo nuclear, a ele
articulando formas complexas de apoio e ajuda mútua.
Trata-se de um “tipo ideal” teoricamente construído para representar a estrutura familiar
melhor adaptada às exigências impostas pela sociedade industrial – de alta competitividade
e mobilidade – aos indivíduos que dela participam. Ao mesmo tempo, esta estrutura
familiar, por meio da socialização que engendra, garante a reprodução desse tipo de
sociedade. (BILAC, 1991, p.75).
O modelo nuclear tomado como tipo ideal é usado como recurso metodológico da
análise para compreender a organização de famílias nucleares articuladas em rede. Cada núcleo, um
casal, com ou sem filhos, ou monoparentalidade (pai ou mãe com filhos), se conecta a outros,
ampliando a troca de obrigações familiares da mononuclearidade para a multinuclearidade. Se um
núcleo viver numa mesma casa com dois ou mais núcleos, então a família é complexa.
Nessa perspectiva, uma família composta por um núcleo é simples, mas, se esse núcleo
coabitar com outros na mesma casa e compartilhar um cotidiano de intensas trocas com sua
parentela vizinha, então, tem-se uma rede familiar complexa.
283
As organizações das relações no interior da família complexa são arranjos. O arranjo é o
conjunto de ações que denota o modo da rede se organizar, se relacionar, como forma de definir
uma prática ou comportamento; são as relações que se estabelecem no coletivo.
A nomeação “arranjo familiar complexo” reside no entendimento de que a moradia
coletiva articulada com base no parentesco faz emergir uma só família na divisão das obrigações
morais para com o coletivo na rede de parentesco, principalmente por se denominarem, eles
próprios, família.
Na coleta do material empírico, observei que algumas das famílias nucleares têm um
histórico de complexidade na sua trajetória. Certas unidades, hoje nucleares, já foram
multinucleadas, e muitas vivem próximas de parentes. Há casos de vizinhança e construções no
quintal das casas, de modo que a rede é contínua na troca de relações cotidianas. Este estudo optou
por não desconsiderar nenhum tipo, mesmo aquele que vive em casa única com um só núcleo, mas
por considerar a rede familiar.
Nas famílias complexas, a referência para análise está nas trocas de obrigações morais
com base nas observações etnográficas na casa-sede (dos pais), ou nas casas satélites vizinhas, e
evidenciadas na fala dos narradores que afirmam como sendo sua família aqueles que moram ou
dormem em habitações próximas. A proposta é não desconsiderar um parentesco afirmado,
tomando como referência o modo como as pessoas nomeiam a si próprias e aos demais
participantes da parentela. No escopo desta investigação, há uma busca para compreender a família
em suas diversas expressões, flexibilizando os conceitos e suas variações para viabilizar uma
análise das práticas.
A família é um conceito que serve como meio para apontar as características e funções
e indicar quem são seus membros de modo descritivo. A rede é a ampliação do conceito para
incluir parentes além do núcleo principal. E a rede de proteção vai além da inclusão física, para a
proteção simbólica, estendendo-se além da perspectiva objetiva ou numérica e oferecendo a
singularidade da identidade a todos os participantes, lhes conferindo unidade. O arranjo é o modo
de funcionamento com características; é uma forma de ser da rede. O arranjo econômico destaca-
se na rede de proteção por ser a organização da economia fundamental à manutenção física dos
parentes.
A família é um conceito e consiste na denominação de grupo de pessoas ligadas por
laços de parentesco que trocam obrigações recíprocas, seja na mesma casa ou não. O conceito mais
utilizado é o de família nuclear e refere-se às organizações de um só núcleo formado por pai, mãe e
filhos. Reiterando, como recurso teórico metodológico explicativo, nomeio essas famílias de
284
simples, para explicitar as relações nas modalidades que estudo com vários núcleos na mesma casa
e rede vizinha, nomeadas complexas.
A literatura apresenta as organizações com vários parentes e mais de um núcleo e
geração na mesma casa como família extensa. O IBGE chama de conviventes as organizações de
mais de um núcleo na mesma unidade doméstica. Essas mesmas modalidades que o IBGE
denomina de conviventes eu nomeio de “grande família” (PRADO, 1999). À época, o Instituto de
Pesquisas estava estudando uma forma de incluir esse tipo familiar na amostragem do
recenseamento, até o censo de 2000 não contabilizadas.
A grande família que acompanho em anos de pesquisa foi definida por mim como
pessoas ligadas por laços de parentesco vivendo numa mesma casa contendo mais de três núcleos e
gerações que trocam obrigações morais e vivem “como uma só família”, no sentido de não serem
desvinculados em quartos ou cômodos, mas compartilham da mesma casa.
Essas unidades domésticas extensas agregam seus membros em razão da necessidade de
apoio e sobrevivência coletiva, levando a formar uma rede em que as relações se estendem e saem
da casa para a parentela vizinha, tornando-a mais complexa nas funções e papéis sociais. Assim a
família passa de nuclear para multinucleada para depois ser complexa, pois a definição de papéis e
funções que havia na nuclearidade ocorrem agora em rede como uma extensão do conceito de
família, significando que as relações internas são complexas.
Os papéis e funções são redefinidos numa rede, e um tio pode assumir a função de pai
de um sobrinho numa determinada situação para satisfazer a uma necessidade da família. A ação
social, no entanto, é situacional e não representa a introjecção de fato das obrigações que o papel
carrega. Assim, o tio ou um irmão que se apresenta como protetor de uma irmã não quer obrigações
para si nem se compromete a ser provedor do sobrinho, no caso do tio ou da irmã ou no caso do
irmão, de modo que as relações não são objetivadas. Nessa perspectiva de análise dos papéis e
funções, a complexidade é a diluição e redistribuição dessas ações numa rede familiar.
A grande família se constitui de laços de parentesco, tendo como ponto de partida a
consanguinidade. É formada por um elevado número de pessoas e marcada por uma diversidade de
graus de parentesco e afinidade entre os participantes, enquanto na unidade nuclear o número de
pessoas é reduzido, e os papéis de pai, mãe e filhos são definidos. Apesar da variedade de laços na
parentela e da elevada quantidade de pessoas que moram na mesma casa, as relações internas dessa
grande família têm sua sociabilidade pautada numa interação muito próxima dos parentes.
A análise da grande família tem especificidade na convivência diária entre parentes. A
obrigatoriedade do encontro no dia a dia possibilita uma não-exclusão do membro do grupo,
285
podendo haver rompimento entre eles, mas a inclusão é condição essencial para a maioria. Nessas
famílias, a aproximação entre parentes não resulta de escolhas baseadas na afinidade; em geral, não
há opções, mas uma condição de existência.
Nesta perspectiva, a grande família não é uma associação voluntária, com indivíduos
autônomos ligados por contratos a serem efetivados em lugares escolhidos. A unidade doméstica
extensa não é fruto de uma escolha em um conjunto de opções, mas um recurso de sobrevivência
que aproxima e intensifica relações numa organização familiar coletiva. Assim, é preciso que se
busquem regras para organização desse universo, em que as pessoas e as atividades se entrelaçam
dentro da casa, pois o encontro é o destino. A mesma cozinha é ponto de encontro da parentela, que
forma uma rede de conflitos e solidariedades em que as interações ocorrem num mesmo lugar e sob
o olhar de todos. A análise da rede tem muitas teias, e o encontro dos nós ocorre na casa da grande
família, onde todos são participantes.
A casa dos pais é o ponto de encontro onde eclodem conflitos como brigas de casais e
entre irmãos que parecem legitimar as ações sob a vista das pessoas de referência da família. Desse
modo, até problemas externos, como os furtos da ex-esposa do filho de Dona Rita, vêm a ser
contadas à avó pela neta Rosilene na sua casa, mesmo distando cerca de três ou quatro quilômetros.
A avó também cuida da neta e dos seus filhos bisnetos quando a jovem precisa de internação em
virtude da complicação nos rins. A casa-sede chefiada pelo idoso é o epicentro das relações sociais
da rede de parentesco.
Ninguém está só e há sempre alguém mais íntimo (irmão, cônjuge – parentesco direto)
entre os já íntimos (primos, cunhados – parentesco indireto). É uma relação múltipla e única, que
por ser vivida pelo coletivo dos moradores, minimiza os transtornos. Na casa-sede, a fragilidade de
moradia e de rendimentos é compartilhada por todos. A chegada da filha de Dona Telma com os
filhos para morar é aceita pelos demais moradores, pois, apesar de terem constituído suas famílias,
também não possuem moradia independente da casa da mãe.
Os participantes da grande família não se consideram como diferentes, admito,
inclusive, as incorreções que a nomeação possa vir a ter. Considerei necessário nomear para
diferenciar do modelo nuclear a que o termo família remete. São minhas as responsabilidades pelo
uso da expressão, pois essa não é uma nomeação nativa: o grupo se define como família, segundo
Dona Selene, como qualquer outra, que “se ajuda e se protege”. Para ela há uma variação de acordo
com os contextos sociais, não significando que a sua seja diferente. Para ela, cada bairro é uma
coisa diferente ou é a mesma coisa, né, eu acho que seje, porque cada bairro tem o modo dos
pessoal viver, né?
286
A casa dos pais é o ponto de comunicação da rede de parentesco, pois nela residem a
mãe (ou o pai) e a história da família materializada na casa onde todos moraram. Toda tessitura tem
um nó inicial para, a partir dele, se desenrolarem linhas, cores e cruzamentos os mais complexos e
diferentes do nó inicial. Esse nó é o núcleo (família principal) que se entende e resulta uma unidade
multinucleada (famílias secundárias, terceárias) para dela se apresentarem outras ligadas ao nó
inicial em rede.
2.2.1.1 A rede familiar: uma panela só
Desde o início da interação com a família extensa, faço referência ao fato de viver em
situação de família. A afirmação parte do nível de proximidade das relações cotidianas observadas
na interação com essas unidades domésticas multinucleadas que se assemelham a uma família
nuclear no tocante às trocas cotidianas.
Apesar do elevado número de pessoas – levando-se em consideração os fatos de
residirem na mesma casa e de os diferentes laços de parentesco, nem sempre, serem de primeiro
grau – elas não vivem na casa desvinculadas, como num albergue ou numa pensão. Há uma forma
de se relacionar, como numa família, em que as pessoas trocam obrigações recíprocas e se
protegem. O fato de referência dessa realidade social reside em uma panela só, que se abre para a
rede de parentesco vizinha e denota a organização do arranjo econômico.
As obrigações recíprocas podem ser de trabalhos na moradia para o coletivo familiar ou
direcionadas a parentes. As trocas mais comuns estão na luta da casa, como no caso da neta de
Selene, que não mora (no sentido de dormir) na residência da avó, mas almoça e passa a maior parte
do dia; então é convidada a cortar verduras ou fazer compras para ajudar a avó. Na unidade
doméstica de Selene, observei ainda que a atual companheira da sua filha mais velha se incumbiu
de acompanhar o seu filho Silvino ao médico após ter sido atropelado e por essa ajuda passou a ser
bastante valorizada na família pela matriarca.
Situação semelhante se observa nas casas de Rita e sua filha que não cozinha em sua
residência, sendo sua unidade habitacional dormitório de apoio à família. Sobre as trocas, observei a
posição do filho de Pai Vito que, na sua ausência, assume a figura paterna na casa das irmãs junto
aos sobrinhos e ante os demais homens do Bairro.
Os participantes da rede familiar, em razão das precárias condições financeiras, passam
por necessidades, ou seja, privações de alimentos, de remédios, água, no entanto, apesar de suas
condições indesejáveis de vida, eles têm características solidárias de se relacionarem entre parentes.
Uma relação de não-exclusão e interação, pautada numa dependência recíproca, em que onde um
287
come todos comem, não havendo assim ênfase na diferenciação entre os que têm dinheiro e os que
não têm, entre quem trabalha e quem não trabalha; a mesa é aberta à partilha de todos, sem
exclusões. Portanto, todos comem de uma panela só.
Quem chegar aqui come – esse é um tratamento de igualdade entre os membros. Isso
não significa que não haja diferenças nem que todos sejam merecedores igualmente da oferta
alimentar diária. A igualdade reside na inclusão como um bem de todos. Uma pessoa não vai ser
excluída do grupo por não contribuir. Quem chegar à casa come do que tiver na panela e vai ter um
lugar para dormir, pois a mãe “apoia” todos os filhos.
Onde come um comem dois – essa forma de se relacionar é cotidiana nas relações
familiares de grupos pequenos e relações de parentesco diretas e próximas, no entanto a rede de
parentesco é um conjunto familiar complexo: situado no contexto urbano, de valorização da
individualidade, com acesso à cultura de massa. Nessa perspectiva, a “mesma panela” é um fato
determinante para compreender as relações ocorrentes no interior dessa rede, que, apesar de
extensa, tem sua sociabilidade baseada numa interação de proximidade com a parentela, por
exemplo, uma cesta básica recebida por um participante no trabalho resulta em benefício para todos.
Na família extensa, o papel de provedor não é assumido pelos filhos na ausência do pai,
a provisão é obrigação de todos os participantes economicamente ativos, no entanto, por ser diluída,
não é direcionada a nenhum dos filhos ou netos no sentido da cobrança. Por exemplo, um filho
solteiro que tenha emprego formal e renda fixa não assume a provisão para si, não há a figura do
filho “arrimo de família”. A responsabilidade pelos alimentos é de todos, gerando uma expectativa
no outro, mas sem a exigência da provisão aos pares. Comum, somente a mãe introjeta a obrigação
moral de oferecer os suprimentos e manter o padrão alimentar.
A inexistência do “arrimo” decorre da dificuldade da renda de um dos membros de ser
suficiente para uma rede extensa e do não-reconhecimento deste com a obrigatoriedade da provisão
dos irmãos, pais, sobrinhos e cunhados. Desse modo, na modalidade nuclear, quando a provisão é
passada para um filho na ausência de renda dos pais, há uma ligação direta de parentesco em
detrimento dos fluidos laços de parentesco afins na modalidade extensa. Esta situação leva à
compreensão de que a unidade da família não é plena, mas feita de partes. Desse modo, com base
no exemplo citado, vê-se que a rede de proteção não funciona quanto à cobrança de provisão de um
dos membros para o coletivo. Há espaços para individualidades no coletivo, mas não sem
expectativas e cobranças. A ligação ocorre pela necessidade recíproca de proteção em virtude das
parcas condições de renda.
288
No Brasil as redes que se estendem no parentesco na mesma unidade doméstica têm
sido chamadas de famílias conviventes, e uma avaliação sobre essas unidades múltiplas revela um
aumento da precariedade das condições de vida das famílias pobres e acentua a característica da
organização em rede como apoio à sobrevivência, como denotam os dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística.
2.2.1.2 Famílias conviventes – IBGE
Os institutos de pesquisa restringem a família ao domicílio, limitando o grupo parental à
delimitação geográfica da residência. Uma mesma família (definida pelos laços de parentesco e de
ajuda mútua) que ocupe dois imóveis é contabilizada como duas (ALVES,s/d). Diferentemente de
outros países
64
, no entanto, no Brasil há um diferencial na coleta dos dados censitários que fraciona
as unidades nucleares na mesma casa – são as “famílias conviventes”. Esse diferencial de coleta
permite que o número de domicílios seja diferente do número de famílias, a saber, são 44.795.101
domicílios e 48.232.05 famílias, havendo assim um “excesso” de 3,4 milhões a mais do que o
número de habitações. São núcleos que convivem com outros na mesma unidade doméstica.
Exemplificando: um casal com dez filhos é uma família única (12 pessoas), mas um casal
com apenas um filho se torna duas famílias se este filho se casa e o cônjuge for morar no
mesmo domicílio. Nesse segundo caso teríamos uma família principal (composta pelo
casal de pais) e uma família secundária composta pelo casal formado pelo filho/a e
genro/nora. Teríamos, então, duas famílias nucleares compostas de duas pessoas cada uma.
Da mesma forma, se algum filho/a de um casal de família principal tem um filho/a que vá
morar debaixo do mesmo teto (neto/a do casal responsável pelo domicílio), então, o IBGE
classifica como duas famílias nucleares. Se uma terceira família nuclear (um irmão ou
primo com o respectivo cônjuge ou filho) for morar sob o mesmo teto, então, teríamos uma
terceira família convivente (mesmo sendo parente próximo) e assim por diante. (ALVES,
s/d:2)
Essas famílias, divididas em principais, secundárias e terciárias e outras, são, em sua
maioria, secundárias, sendo 2.888.707 em que se acrescenta a família principal apenas um núcleo
que pode ser uma unidade nuclear de três componentes ou mesmo uma filha solteira com um filho.
As terciárias são 298.354, e as unidades domésticas com quatro ou mais núcleos somam 250.243.
No censo de 2000, o IBGE passou a incluir a possibilidade de averiguar famílias conviventes e esta
coleta verificou 3,4 milhões não contabilizadas pelo critério de domicílio igual a família.
Tabela 1. Famílias conviventes – Brasil – 2000.
Família
Famílias conviventes
64
O conceito de família do IBGE define um responsável pela família, que não necessariamente é o
responsável pelo domicílio. Tem-se, assim, famílias conviventes. Cabe ressaltar que essa
metodologia não é adotada por países como EUA e Argentina, de modo que, nesses países, o
número de domicílios é igual ao número de famílias.
289
principal
Famílias
secundárias
Famílias
terciárias
4ª ou mais
famílias
Total
2.888.707 2.888.707 298.354 250.243 3.437.304
Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2000
65
.
Eustáquio Alves (ENCE/IBGE) destaca que o número não pode ser associado
diretamente à pobreza: feminização da pobreza, Programa Bolsa Família nem deficit habitacional,
alertando para o fato de que o fenômeno da convivência não se restringe aos pobres. Esse alerta
reside no fato de que, ao fracionar a família no domicílio, o rendimento médio diminui, mas, em
alguns casos, é somente um membro novo, como um neto, por exemplo. Para tanto, demonstra
numa tabela os rendimentos das famílias conviventes.
Tabela 2. Distribuição dos domicílios com famílias conviventes, segundo grupos de renda para
o total do domicílio e para os responsáveis pelas famílias – Brasil – 2000.
Grupos de
rendimento
de salário
mínimo
(SM)
Renda
total do
domicílio
%
Renda do
responsável
da família
principal
%
Renda do
responsável
da segunda
família
%
Renda do
responsável
da terceira
família
%
Zero 46.733 1,62 339.002 11,74 912.923 31,60 116.442 39,03
Até 1 SM 167.265 5,79 847.848 29,35 654.495 22,66 72.790 24,40
1 - 2 SM 315.862 10,93 583.284 20,19 608.830 21,08 59.493 19,94
2 - 3 SM 355.140 12,29 316.148 10,94 272.586 9,44 22.596 7,57
3 - 5 SM 605.606 20,96 336.605 11,65 235.960 8,17 16.559 5,55
5 - 10 SM 780.505 27,02 294.044 10,18 150.994 5,23 8.204 2,75
10 ou + SM 617.597 21,38 171.776 5,95 52.920 1,83 2.271 0,76
Total 2.888.707 100,00 2.888.707 100,00 2.888.708 100,00 298.354 100,00
Fonte: IBGE, Microdados do Censo Demográfico 2000
66
.
O percentual dos pobres com rendimento zero passou de 1,62% dos responsáveis pela
família principal para 39,03 %, quando avaliado o rendimento zero do responsável pela terceira
família convivente, denotando que o percentual dos pobres cresceu com a subdivisão do domicílio.
Apesar, porém, de concordar com Alves, de que não se pode somente confirmar o crescimento da
pobreza, não é possível deixar de ver o seu aumento e a condição de apoio na rede de parentesco
que os dados apontam entre as unidades domésticas com rendimentos mais baixos, haja vista que as
famílias conviventes diminuem quando aumenta o rendimento.
A coleta de informações de famílias conviventes vem ao encontro do argumento deste
estudo de que ela se organiza em rede, estendendo-se no parentesco e, em especial, na unidade
65
: http://www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/notametodologica_familiasconviventes.pdf
66
Retirado de http://www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/notametodologica_familiasconviventes.pdf
290
doméstica. São 3,4 milhões de núcleos familiares que se agregam à família principal, para
sobreviver, afetiva ou economicamente.
2.2.1.3 O retrato do Pirambu no Cadastro Único: o censo dos pobres
O Cadastro Único (CadÚnico) “é um instrumento de coleta de dados e informações com
o objetivo de identificar todas as família de baixa renda no país [...] Devem ser cadastradas todas as
famílias com renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa”
67
. Nesta perspectiva de coleta de
informações, o Cadúnico pode ser considerado o “censo dos pobres”.
Em Fortaleza, os dados do Cadúnico estão sob a gestão da Secretaria Municipal de
Ação Social – SEMAS. Esse cadastro forma um banco de dados e é a referência para concessão de
benefícios sociais, em especial o Bolsa Família.
O Bolsa Família é um programa de transferência direta de renda
68
para beneficiar
famílias em situações de pobreza e extrema pobreza, “...tem o objetivo de assegurar o direito
humano à alimentação adequada, promovendo a segurança alimentar e nutricional e contribuir para
a erradicação da extrema pobreza e para a conquista da cidadania pela parcela da população mais
vulnerável à fome”
69
.
O Programa Bolsa Família – PBF unificou programas sociais existentes até 2002 como
“Bolsa Escola”, “Bolsa Alimentação”, “Cartão Alimentação” e “Vale Gás” em um só programa
com foco na família. Ao banco de dados desses programas foram somados outros programas
sociais, como Peti – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – e hoje estão todos num mesmo
banco de dados, o Cadastro Único.
Por meio do CadÚnico, as condicionalidades
70
e critérios definidos nos programas são
acompanhados, possibilitando a melhor administração das políticas sociais nos âmbitos estaduais e
municipais em parcerias firmadas com o Governo Federal.
67
Informações sobre o que é o cadasatro único, Ministério do Desenvolvimento social – MDS.
Fonte: http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/cadastro_unico/o-que-e-1
disciplinado pelo Decreto n°
6.135, de 36 de junho de 2007, e regulamentado pela Portaria nº 376, de 16 de outubro de 2008
acesso em: 08/01/2010.
68
O PBF e o maior programa de transferência de renda do mundo.
69
Informações sobre Bolsa Família, www.mds.gov.br/bolsafamilia/o_programa_bolsa_familia/o-
que-e.
70
As condicionalidades são manter os filhos na escola e o programa de vacinação do cartão de
vacinação. Há fiscalização periódica com percentuais de visitas a serem cumpridas.
291
Com a criação do PBF em 2003, as políticas públicas se voltaram para família e não
mais para segmentos como juventude, infância e outros. Além das políticas públicas, os estudos
sobre pobreza, seja com base na renda, juventude ou saúde, passaram a focar a família.
A prioridade do PBF é a extrema pobreza, ou seja, a renda familiar per capita inferior a
R$ 70,00 e, consequentemente, o Nordeste, como a região mais pobre do País, e o Ceará, cuja
metade da população é pobre, são grandes beneficiários do Programa, fazendo dos dados do
Cadúnico uma referência na análise dessas famílias. Os percentuais do PBF são divididos conforme
a região sendo os recursos do Programa distribuídos de acordo com as taxas de pobreza e extrema
pobreza: 8% Norte, 50% Nordeste, 27% Sudeste, 11% Sul e 4% Centro-Oeste
(SANT´ANA:2006/2007, p. 4).
O Bolsa Família e seu surgimento estão atrelados à perspectiva de família e pobreza
apresentada na tese de doutorado de Ana Maria Medeiros Fonseca em 2001. A autora alerta para a
articulação entre pobreza e educação, sob o argumento de que é difícil para os pobres manter os
filhos na escola, e a maioria das crianças começa a trabalhar cedo, havendo, assim, uma reprodução
da pobreza. “A pobreza de hoje cria a pobreza do amanhã”. (FONSECA apud SANT´ANA,
2006/2007, p.9). Daí a condicionalidade de manter os filhos na escola.
A experiência com os programas sociais anteriores ao Bolsa Família mostrou que as
famílias se apresentam com diferentes desenhos. Sendo assim, o PBF adotou a seguinte definição de
família:
§ 1o Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:
I - família, a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com
ela possuam laços de parentesco ou de afinidade, que forme um grupo doméstico,
vivendo sob o mesmo teto e que se mantém pela contribuição de seus membros;
O beneficio do PBF é pago preferencialmente às mulheres, fato constatado nas minhas
pesquisas empíricas, e os argumentos apresentados pelo PBF são compatíveis com as observações
junto às famílias do Pirambu. Nesta perspectiva, Sant´Ana (2006/2007 p.10) afirma que:
As mulheres foram escolhidas para serem as responsáveis legais e ‘recebedoras’ do
beneficio. Essa decisão se inscreve numa busca de igualdade entre homens e mulheres,
visando reduzir a dependência econômica das mulheres, assim como a possibilidade de que
as crianças recebam o beneficio e tenham uma certa estabilidade. Existe uma consideração
não menos importante que deve ser feita em relação à atribuição do beneficio às mulheres.
Por um lado, essa distribuição é feita para assegurar a proteção das crianças e a distribuição
diferenciada de poder no lar, o que é muito válido. Por outro lado, essas atribuições
externas de significação e interpretação da masculinidade e feminilidade reforçam os papéis
clássicos de gênero, nos quais o lar e as crianças são de responsabilidade das mães – o que
não é uma ação necessariamente sábia do Estado.
A pesquisa com as famílias no Pirambu denota que as mulheres são mais ligadas aos
filhos do que os homens, sendo a matrilocalidade a maior recorrência em casos de não-coabitação
292
entre os pais biológicos com a criança. A preferência pelas mulheres para benefícios voltados para
as famílias não é uma particularidade do Bolsa Família. As políticas habitacionais também
designam a propriedade das casas oriundas de benefícios sociais no nome das mulheres.
Sobre o PBF e o Cadastro Único, cabe enfatizar que seria engano supor que este é o
Bolsa Família, sendo o cadastro apenas um registro, um banco de dados para identificar os pobres e
sua condição de pobreza. A associação entre os dois é muito comum, e algumas famílias acreditam
que, ao realizar o cadastro, se tornam automaticamente beneficiárias do Bolsa Família, segundo
informações dos gestores municipais.
Quem utiliza o Cadastro Único? E o que leva uma família pobre a se cadastrar? As
respostas estão nas possibilidades de benefícios vinculados ao cadastro único do Governo Federal,
que se podem estender para os âmbitos estaduais e municipais. O Governo Federal utiliza o
Cadúnico para identificar possíveis beneficiários de programas sociais (Bolsa Família, tarifa social
de energia e outros), mas é utilizado também para conceder isenção de pagamento de taxa de
inscrição em concursos públicos não somente no plano federal, mas ainda em algumas localidades
também nos níveis estaduais e municipais
71
.
Os dados censitários coletados pelo IBGE existem por amostragem e não se fornecem
dados específicos sobre unidades populacionais menores como os bairros, de modo que, para saber
a população do Pirambu, por exemplo, são requeridas uma habilidade estatística e o cruzamento de
dados de setores para chegar ao número aproximado da população de uma localidade, enquanto que
o Cadastro Único, por ter uma gestão local e ser direcionado a uma atividade objetiva, concessão e
acompanhamento de benefícios, tem um banco de dados mais específico e possibilita informações
precisas sobre os pobres nos Bairros. Desse modo, verifiquei informações sobre a população
cadastrada e beneficiária do Bolsa Família no bairro, bem como informações sobre renda, tipo de
moradia, número de moradores do domicílio, situação no mercado de trabalho e despesas da
família com alimentação. As informações do Cadastro Único, no entanto, permitem cruzamentos
entre os dados e foi possível ver também dados de conjugalidades e circulação de crianças.
Malgrado toda a gama de possibilidades que os dados oferecem, é preciso firmar que o
Cadastro Único é declaratório, ou seja, as informações são declaradas e não necessitam ser
comprovadas. Há uma exigência legal de fiscalização de 30% dos cadastros dos municípios, mas é
possível que haja incorreções voluntárias ou por desconhecimento, no entanto essas “brechas”,
como se pode argumentar, podem ser preciosas informações para a pesquisa.
71
Ver mais em: http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/cadastro_unico/quem-utiliza
293
A começar pela localidade informada, há muitos indícios para saber mais sobre as
famílias no Cadastro Único. As dezessete famílias cadastradas na localidade Cacimba dos Pombos,
no Pirambu, declararam morar em três bairros diferentes: dez pessoas relataram residir no bairro
Nossa Senhora das Graças
72
, cinco afirmaram que moram no Jacarecanga e somente duas pessoas
informaram que são habitantes no Pirambu. São dados que corroboram a compreensão do estigma
do bairro a partir dos próprios moradores, que preferiram não se declarar moradores do Pirambu
para fins de um cadastramento de pobres.
Nesta perspectiva, os dados do Cadúnico são uma rica fonte de informações
73
e
apresentam um retrato da população pobre do Pirambu. Os indicadores versam sobre as condições
de vida e moradia da população do Bairro, que tem 21.340 pessoas cadastradas em 5.567
domicílios, sendo que são beneficiários do Bolsa Família 6.893 pessoas em 3.611 domicílios. Esses
dados estão na folha de pagamento do Programa no mês de dezembro de 2009. Cabe lembrar que
esse número pode ser maior, pelo fato de que muitos moradores não informam morar no Pirambu e
podem ser cadastrados em outros bairros, como cinco casos da Cacimba dos Pombos, que foram
cadastrados com Jacarecanga.
Com esteio nos dados dos cadastrados, a média de membros nos domicílios do Pirambu
seria de 3,83 pessoas por domicílio e a média dos membros das unidades beneficiadas pelo PBF
seria de 1, 90 pessoa no bairro. Esse número é menor do que a média da Capital, de 3,63 membros
74
(cálculos meus). Esses dados são aproximações e, em muitos casos, não denotam a realidade de
fato, mas a realidade que os beneficiários tencionam expor. Durante o período de visitas à SEMAS
(meses de novembro/2009 a fevereiro/2010), ouvi comentários de que as mulheres cadastradas
“estão mais sabidas”, e o número de divórcios informados tem aumentado em demasia para retirada
do cônjuge com renda comprovada do cadastro familiar, consequentemente a diminuição do valor
da renda per capita para possibilitar a inclusão no PBF ou o aumento do benefício.
Nesses casos de “divórcio”, a Secretaria tem encaminhado visitas e constatado que
alguns casos não são verídicos. Não raro, nas visitas, é o próprio cônjuge que recebe a assistente
social, no entanto, é certo que nem todos os casos visam ao crescimento de benefício nem são
flagrados pela fiscalização.
72
A localidade Nossa Senhora das Graças não é identificada como bairro pelo IBGE e todos os
cadastros que o informaram foram cadastrados como Pirambu. O cadastro tem um espaço para o
bairro do domicílio, onde está o informado e outro para “bairro com acento” onde é digitado um
bairro oficial.
73
No discorrer desta tese, outros dados do Cadastro Único serão apresentados.
74
Fortaleza tem 1.086.806 pessoas cadastradas em 298.620 domicílios. Dados referentes a
Dez/2009.
294
A concessão de benefício do Programa Bolsa Família leva em consideração a
circunstância de pobreza
75
da família de R$ 70,00 a R$ 140,00, sendo considerado até R$ 70,00
(extrema pobreza) como rendimento mensal por pessoa. Constatada a extrema pobreza, o
Responsável Familiar – RF recebe o benefício fixo de R$ 68,00 e mais o benefício variável de R$
22,00 por filho com limite de até três filhos até 14 anos, perfazendo um total de R$ 134,00 por
núcleos na extrema pobreza e, uma vez detectada a condição de pobreza, a RF recebe até três
benefícios variáveis por filho até 14 anos, perfazendo o total de 66,00. Há um novo valor de R$
33,00 para jovens de até 16 anos, Benefício Variável Vinculado ao Adolescente – BVJ, podendo ser
de no máximo dois filhos por família pobres ou extremamente pobres. Assim, a RF extremamente
pobre com três filhos até 14 anos e dois filhos até 16 anos pode chegar ao valor máximo de R$
200,00.
Famílias com renda familiar mensal de até R$ 70
Número de crianças e
adolescentes de até 15
anos
Número de
jovens de 16 e 17
anos
Tipo de benefício
Valor do
benefício
0 0 Básico R$ 68,00
1 0
Básico + 1
variável
R$90,00
2 0
Básico + 2
variáveis
R$ 112,00
3 0
Básico + 3
variáveis
R$ 134,00
0 1 Básico + 1 BVJ R$ 101,00
1 1
Básico + 1
variável + 1 BVJ
R$ 123,00
2 1
Básico + 2
variáveis + 1 BVJ
R$ 145,00
3 1
Básico + 3
variáveis + 1 BVJ
R$ 167,00
0 2 Básico + 2 BVJ R$ 134,00
1 2
Básico + 1
variável + 2 BVJ
R$ 156,00
2 2
Básico + 2
variáveis + 2 BVJ
R$ 178,00
75
As famílias com rendimento entre R$70,00 e R$140,00 são cadastradas no Cadúnico, mas
somente podem receber BF se possuírem crianças ou adolescentes de 0 a 17 anos de idade. Esse
dado explicita a diferença entre Cadastro Único e Bolsa Família, sendo o cadastro uma base de
dados do PBF. A informação sobre os critérios de inclusão do BF também denota a prioridade do
Programa de beneficiar famílias em situação de extrema pobreza, pois, independente de ter crianças
ou adolescentes, as famílias com renda de até R$ 70,00 per capita podem participar do PBF.
www.mds.gov.br/bolsafamilia/o_programa_bolsa_familia/criterios-de-inclusao
Acesso em:
04/01/2010.
295
3 2
Básico + 3
variáveis + 2 BVJ
R$ 200,00
Famílias com renda familiar mensal de R$ 70 a R$ 140 por pessoa
Número de crianças e
adolescentes de até 15
anos
Número de
jovens de 16 e 17
anos
Tipo de benefício
Valor do
benefício
0 0
Não recebe
benefício básico
-
1 0 1 variável R$ 22,00
2 0 2 variáveis R$ 44,00
3 0 3 variáveis R$ 66,00
0 1 1 BVJ R$ 33,00
1 1
1 variável + 1
BVJ
R$ 55,00
2 1
2 variáveis + 1
BVJ
R$ 77,00
3 1
3 variáveis + 1
BVJ
R$ 99,00
0 2 2 BVJ R$ 66,00
1 2
1 variável + 2
BVJ
R$ 88,00
2 2
2 variáveis + 2
BVJ
R$ 110,00
3 2
3 variáveis + 2
BVJ
R$ 132,00
Fonte site MDS: http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/o_programa_bolsa_familia/beneficios-e-contrapartidas
O Pirambu é o segundo bairro que tem mais beneficiários do Bolsa Família em
Fortaleza, perdendo apenas para a Barra do Ceará, que está na área de abrangência do Grande
Pirambu. Os dados do Cadastro Único denotam o nível de pobreza do Bairro e explicitam dados
sobre a vida da população. Desta feita, o cadastro é chamado nos institutos de pesquisa de “censo
dos pobres” e seus dados também são usados pelo IPECE e LEP.
Apresento os dados dos bairros Cristo Redentor e Pirambu como fonte quantitativa das
condições de vida e moradia da costa oeste. Optei por não incluir o bairro Barra do Ceará, por ser
uma localidade de grande extensão e seus limites extrapolarem o “Grande Pirambu”. Na
apresentação dos dados, vou enfatizar a análise nos números do Pirambu, pois os indicativos são
análogos e retratam uma realidade semelhante.
NÚMERODECADASTRADOSNOCADÚNICO


CRISTOREDENTOR
PIRAMBU
CADASTRADO QTDDEDOMICÍLIOS CADASTRADO QTDDEDOMICÍLIOS
Domicílio 
Domicílio 5.567
296
4.619
Pessoas

17.728
Pessoas 21.340
Fonte: Dados cedidos pela Coordenação do Cadastro Único – SEMAS
Há verossimilhanças na média ponderada entre os domicílios e as pessoas nos dois
bairros, sendo o Cristo Redentor com uma média de 3,77 moradores por unidade doméstica e o
Pirambu com 3,83 pessoas contabilizadas, por moradia. Os dados oferecem o número de pessoas
por domicílio, mas no mesmo imóvel pode ser registrado mais de um domicílio. Para tanto, o
Cadúnico distingue dentro da unidade habitacional a possibilidade de cadastrar a habitação como
cômodo.
SITUAÇÃODODOMICÍLIO


CRISTOREDENTOR
PIRAMBU
TIPO QTDDEDOMICÍLIOS TIPO QTDDEDOMICÍLIOS
NãoInformado 199 NãoInformado 8
Próprio 3076 Próprio 3496
Alugado 820 Alugado 1255
Arrendado 3 Arrendado 11
Cedido 471 Cedido 741
Invasão 36 Invasão 44
Financiado 1 Financiado 2
Outra 13 Outra 10
Fonte: Dados cedidos pela Coordenação do Cadastro Único - SEMAS
Quanto ao domicílio, dos 5567 cadastrados no Pirambu, a maioria 3496 informou que
mora num imóvel próprio, 1255 disse ser alugado, 741 cedido, 44 afirmaram ser invadido e 31
correspondem a outras opções. Os dados denotam que em sua maioria as habitações são declaradas
próprias, mas o Bairro é encravado em terreno de marinha; em muitos casos, a população tem a
posse, mas não possui a propriedade legal do imóvel. A situação de domicílios é semelhante
também no bairro vizinho, Cristo Redentor.
TIPODEDOMICÍLIO


CRISTOREDENTOR
PIRAMBU
TIPO QTDDEDOMICÍLIOS TIPO QTDDEDOMICÍLIOS
NãoInformado 199 NãoInformado 8
Casa 4175 Casa 5276
297
Apartamento 122 Apartamento 44
Cômodos 97 Cômodos 192
Outro 26 Outro 47
Fonte: Dados cedidos pela Coordenação do Cadastro Único - SEMAS
Sobre as unidades habitacionais, destaco a quantidade de domicílios do tipo cômodo, ou
seja, 192 casos de famílias que declararam viver em cômodos de uma casa quanto ao tipo de
moradia, sendo o segundo item mais citado, perdendo apenas para a residência do tipo casa, com
5276 informações no Cadastro Único. Esse dado vem ao encontro da tese de que as famílias se
agregam em casa de parentes, formando redes em unidades domésticas multinucleadas.
CRISTOREDENTOR
PIRAMBU
PESSOAS QTDDEDOMICÍLIOS PESSOAS QTDDEDOMICÍLIOS
1
162
1
170
2
787
2
913
3
1.208
3
1.530
4
1.160
4
1.412
5
664
5
792
6
328
6
403
7
163
7
190
8
73
8
81
9
49
9
37
10
15
10
23
11
6
11
8
13
1
12
5
15
3
13
3
Totalgeral
4.619
Totalgeral
5.567
Fonte: Dados cedidos pela Coordenação do Cadastro Único – SEMAS
Sobre o número de moradores, é preciso compreender primeiramente como ocorre a
coleta de dados oficiais (IBGE/PNAD) sobre as famílias e domicílios no País e o fenômeno das
famílias conviventes. Os dados censitários são elencados neste estudo como relevantes pelo fato de
que o número de pessoas observadas nas pesquisas empíricas e verificadas no Cadúnico no Pirambu
excede ao previsto na definição de família. “A questão, então, é definir o que se entende por família a
partir dos dados disponíveis[IBGE]. No caso brasileiro, considera-se que todo domicílio particular
possui uma família, mesmo que seja uma pessoa morando sozinha ou um grupo de pessoas não-
parentes(até o máximo de 5 pessoas)” (ALVES & CAVENAGHI, 2004). O número determinado como
limite é um divisor do tamanho das famílias e aponta para a constatação de que muitas famílias no
Pirambu estão na contramão da média censitária.
298
Ainda sobre a formação em rede nos dados do Cadúnico, destaco o número de pessoas
informado por domicílio. No Pirambu, 1542 domicílios informaram ter cinco ou mais moradores,
sabendo-se que no mesmo imóvel ainda pode haver um cômodo com maior número de pessoas na
formação da rede de parentesco. A leitura dos dados, somada à observação empírica, denota que as
famílias conhecem o cálculo da renda per capita e informam dados adequados aos seus interesses
de benefícios com origem na renda.
NÚMERODEBENEFICIÁRIOSDOBOLSAFAMÍLIA
CRISTOREDENTOR PIRAMBU
BENEFICIÁRIO QTDDEDOMICÍLIOS BENEFICIÁRIO QTDDEDOMICÍLIOS
Domicílio 2.599 Domicílio 3.611
Pessoas 5.167 Pessoas 6.893
Fonte: Dados cedidos pela Coordenação do Cadastro Único – SEMAS
Sendo o Bairro um dos maiores beneficiários do PBF, a população já conhece as
melhores maneiras de inclusão de dados no Cadastro Único, haja vista que a média de pessoas por
domicílio beneficiado em Fortaleza é de 3,63 membros, enquanto no Pirambu a mediana é de 1,90
membro por família e no Cristo Redentor é 1,98 componente.
DISTIBUIÇÃODETOTALDERENDAPORDOMICÍLIO


CRISTOREDENTOR
PIRAMBU
TOTALDE
RENDA QTDDEDOMICÍLIOS
TOTALDE
RENDA QTDDEDOMICÍLIOS
R$116,25 1265 R$116,25 1.566
R$232,5 1008 R$232,5 1.321
R$348,75 642 R$348,75 670
1Sal.Min. 1083 1Sal.Min. 1.370
2Sal.Min. 559 2Sal.Min. 575
3Sal.Min. 49 3Sal.Min. 58
Acimade
Sal.Min. 13
Acimade
Sal.Min. 7
Fonte: Dados cedidos pela Coordenação do Cadastro Único - SEMAS
Sobre a renda familiar, constam 1.566 domicílios em que a renda familiar correspondia
a uma quarta parte do salário mínimo R$ 116,25. 1.321 dos cadastrados no Pirambu possuem renda
familiar até R$ 232,50, que correspondia a meio salário mínimo, e 1.370 unidades domiciliares
possuíam renda familiar de um salário mínimo. Entre os 5.567 cadastrados do Pirambu, somente
299
640 obtinham rendimentos superior a um salário mínimo. Desses dados, conclui-se que a maioria
dos moradores do bairro tem uma renda familiar menor do que um salário mínimo por moradia,
denotando em números a pobreza observada empiricamente no Bairro.
Somando-se a esses indicadores de renda no Bairro, está a situação no mercado de
trabalho dos moradores nas unidades domésticas. A maioria dos 21.340 moradores cadastrados não
tem carteira assinada, sendo somente 165 pessoas declaradas como celetistas com carteira de
trabalho devidamente registrada, perfazendo um total de 1,29%, num universo amostral que
indagou aos cadastrantes sobre a qualificação profissional
76
.
A informação do quantitativo por idades denota o elevado número de crianças e jovens
até 18 anos, 8900 pessoas com idade de 0 a 18 anos no Bairro, sendo 585 pessoas cadastradas com a
idade de 15 anos no Bairro. Tomando por base no fato de que há 83 pessoas cadastradas com 109
anos e possivelmente não existem, pois devem ser resquícios de cadastros antigos, é bem provável
que as crianças e os jovens até 18 anos representem a metade da população do bairro.
Os dados do Cadúnico formaram um retrato das condições de vida e moradia das
famílias pobres no Pirambu, e alguns dados ainda serão apresentados quando nas discussões mais
específicas nos capítulos etnográficos da tese. Ao retrato do Cadúnico somam-se informações
empíricas sobre a casa e o modo de vida das pessoas no Bairro e na família, para chegar ao arranjo
econômico e à rede de proteção.
2.2.2 A casa e a “luta da casa”
A casa é o lugar de identidade da rede de parentesco (CABRAL & LIMA, 2005;
DUARTE & GOMES, 2008)
77
. As famílias pobres que vivem em condições de vulnerabilidade na
cidade e migraram do interior para Capital têm na consolidação do lugar de moradia uma passagem
importante da sua história de vida.
Sendo parte da história da vida das pessoas, a casa é lugar de identidade do “nós”, da
rede de parentesco. As pessoas são consideradas como parte de uma família quando estão ligadas à
76
Creio que haja uma imprecisão nesse dado, pois deve ser preenchido um formulário para cada pessoa da família e não
há nenhum item para estudante. Levando-se em consideração o fato de que o número de crianças é elevado, o resultado
não revela a condição de muitos membros e a obrigatoriedade do preenchimento induz ao erro. Desse modo, considero
como válido somente o dado referente à carteira assinada.
77
Estou chamando de casa-sede, a casa dos pais que abriga os núcleos dos filhos. Pina Cabral e
Lima (2005) no texto Como fazer uma história de Família, se referem à intrínseca relação entre
família e casa e, no livro de Duarte e Gomes (2008), Três Famílias em que os autores analisam
etnograficamente três redes de parentesco, a “casa original” é o ponto de partida para as histórias
trangeracionais e de identidade da família.
300
história de constituição do “nós” familiar que perpassa a construção da unidade habitacional e, não
raro, contou com o trabalho da maioria. São as lutas da casa que a parentela enfrentou para a
conquista de uma moradia.
As famílias que começam suas vidas no Pirambu pela beira da praia são vulneráveis
quando a moradia e a “escolha” da praia é resultante da falta de opção, haja vista que o local não é
apropriado para moradia e não tem condições básicas de infraestrutura. São construções não
planejadas, fruto da autoconstrução no trabalho familiar e, não raro, foram edificadas sem os
materiais adequados. Nas famílias analisadas, as primeiras casas no Bairro foram de taipa, e, com o
tempo, a rede conquistou sua residência de tijolos.
As habitações de taipa são formações de madeira e barro. Nas histórias dos meus
narradores, a aquisição desta moradia não é tratada como provisória, mas, à sua época, uma
conquista. É com orgulho que Pai Vito afirma: comprei a casa de taipa; satisfação também na
narração de Dona Telma, que, feliz, contou como era sua primeira residência logo após seu
casamento: era uma casinha linda de taipa. Nas duas narrativas, a felicidade com o imóvel reside
no fato de serem “suas propriedades”, a casa própria.
A casa própria é um marco na vida das pessoas, representa a independência do aluguel e
significa que a família passa a ter um lugar fixo, algo para chamar de “seu”, seu canto, seu
endereço. A casa que abriga sua família.
A construção da habitação de tijolos em substituição à taipa é outra conquista narrada
pelos familiares como parte da sua história: Essa casa era assim... ali era o quarto... eu dormia
aqui... são narrativas que contam a biografia das pessoas e da família com o eixo na casa, a qual os
filhos conheceram de taipa e viram se tornar de tijolos. A história da casa se confunde com a
história das pessoas, formando “quadros sociais” (HALBWACHS, 1990) que ligam a família à
casa.
A ligação da família com a casa ocorre pela partilha de vivências: nascimento dos
filhos, casamentos, mortes e outras alegrias e tristezas vividas pelas pessoas naquela residência, mas
principalmente pela substituição da moradia de taipa por tijolos, onde construíram a história da
família.
A edificação da casa de tijolos se confunde com a realização de um sonho, e essa
conquista a família narra com detalhes, pois são etapas da vida das pessoas que deixam de sofrer
com as chuvas num período e, no outro, têm um lugar seguro para se abrigar.
Em geral, a casa de taipa permanece erguida enquanto o primeiro ou segundo cômodo
de tijolos é levantado e coberto com telhas seguradas por caibros e ripas, no entanto, logo que os
301
cômodos vão ficando prontos, a família começa a habitá-los e não reclamam em conviver com a
poeira enquanto constroem mais cômodos, afinal, a taipa não era isenta de poeira, de modo que a
casa de tijolos é sempre melhor.
Com raras exceções, a família aluga uma outra casa ou cômodos enquanto constrói sua
habitação de tijolos. As construções são obras que envolvem a família como um todo, seja em busca
de rendas extras para compra de material, seja à procura por economia doméstica, ou seja, no
trabalho de todos para a concretização do sonho da moradia. O pai encabeça a empreitada, mas
recebe ajuda do cônjuge e dos filhos, principalmente dos homens.
Não há engenheiros nem arquitetos no planejamento das obras e, no caso das casas da
beira da praia, o local não é dotado de infraestrutura para moradias, sendo terreno de dunas. Havia
inclusive a desaprovação de concessões de direitos para construções, e muitas localidades são
consideradas “áreas de risco” em razão das marés e das dunas móveis.
Sobre autoconstruções em bairros pobres, Kowarick (2009, p.168-169) escreve que
Técnicas construtivas rudimentares e falta de planejamento da obra implicam constantes
perdas de material, reparos ou reformas, redundando, depois de anos de trabalho coletivo,
em moradias que apresentam defeitos de acabamento, circulação ou insolação, com baixa
qualidade de conforto ambiental. Os cômodos vão sendo construídos um após o outro ou na
parte superior do imóvel, em razão da imperiosa equação necessidade-disponibilidade
financeira, sem que haja uma programação na continuidade da obra: ela é parte de uma
estratégia que deve ser decidida em função da inserção produtiva de cada membro da
família e de seus rendimentos, principalmente o chefe.
A casa é a materialização da história da rede familiar. Ela é mutirão, é o lugar de
construção para fazer uma “puxadinha” ou levantar uma parede para improvisar uma divisória e
reservar um lugar para uma família nuclear. O quintal é espaço para construir “quartinhos” para os
núcleos dos filhos ou uma casa para um dos filhos. Enfim, a casa é um eixo que liga à rede pelo
lugar em si e pela identidade simbólica do lugar partilhada por todos.
“O sonho de todo morador é um lar” (José, morador do Pirambu, 2001). Esta frase foi
dita por um homem de quarenta anos de idade que não tinha conseguido conquistar a casa própria e
vivia na residência da mãe com sua família recomposta. A frase denota a importância e a
dificuldade da aquisição da casa para os moradores pobres. No caso de José, sua opção foi morar
com seu núcleo no domicílio de sua mãe na primeira e na segunda nupcialidades, nunca tendo
conquistado seu lar.
Como José, muitos pobres urbanos constituem família e vão se agregar com o cônjuge e
filhos na casa dos pais. Costumo chamar este endereço de “casa-sede”, pois é o lugar de idas, vindas
e retornos da família em rede. Nela os filhos crescem, casam-se, retornam com os cônjuges,
302
separam-se, deixam os filhos e retornam com novos cônjuges numa relação que não tem fim,
apenas endereço de reinício: a casa dos pais.
Desse modo, a família é o pai, a mãe, os filhos e os seus afins e consanguíneos. Os
filhos compartilharam da casa e da luta da casa ao longo dos anos que se foram, desde a infância até
a fase adulta. Todos viram a construção da moradia e são “donos”. Cada um dos filhos do casal
idoso é parte da “família-mãe” e, sendo parte, seus filhos e cônjuges também o são. A pergunta
“quem é família?” se reponde pela história de identidade na construção da moradia e pelo
parentesco como chefe da casa (pai ou mãe).
2.2.3 Trabalho informal, bairro popular e transferência de renda
A família em rede é proteção aos parentes desde os imaturos até os idosos, mas não
existe sem a provisão. Antes de migrar para a Capital, os moradores do campo tinham a terra como
opção de trabalho e alimentos por meio da manipulação da plantação na atividade agrícola, em
especial sob a gerência do pai, que administrava o roçado, e, para os filhos, diferentemente do rural,
o trabalho urbano exige escolaridade e conhecimentos a que os pobres não tiveram acesso, ou
receberam uma aprendizagem escolar precária para a uma formação que os habilitasse a disputar
vagas no mercado de trabalho.
Na Capital, porém, onde está o espaço para o trabalho do homem manter sua família?
Na cidade, a rua
78
é o lugar do trabalho masculino e feminino. Na pesquisa que fiz em 1999, foram
aplicados 20 questionários nas casas das crianças ligadas à escola e ficou constatado que a maioria
dos participantes da família com ocupação estava no mercado informal. Nesse mercado informal,
trabalhavam como pedreiros, carpinteiros, pescadores, pintores, lavadeiras, serventes e faxineiras.
Nele, as mulheres têm mais oportunidades do que os homens. Conforme elas próprias relataram, é
mais fácil conseguir trabalho.
O diagnóstico da Secretaria de Infraestrutura do Município – SEINF/HABITAFOR
realizou levantamento com 4.052 famílias moradoras nas proximidades da beira da praia que estão
na área de intervenção do Projeto Vila do Mar
79
. Sobre as profissões dos chefes do domicílio e o
trabalho, o relatório expressa que,
78
Utilizo a palavra rua no sentido de que fala Roberto DaMatta, como espaço impessoal, onde
todos são indivíduos em detrimento da pessoalidade dos espaços da casa. Cabe ressaltar que a rua
aqui tem um sentido de distante, a que está na frente das casas é extensão da casa como lugar de
sociabilidade.
79
Projeto de urbanização da área de praia capitaneado pela Prefeitura de Fortaleza, que delineou
novos rumos na intervenção da costa oeste e se chama Vila do Mar.
303
Conforme dados levantados sobre as profissões exercidas pelos chefes de família na
comunidade do Grande Pirambu, constatou-se em maior número os trabalhos de
empregada doméstica, com percentual de 6,54%, em segundo lugar as donas de casa com
3,78%, e em terceiro a atividade de vendedor (a) com (3,46%), além de outras
especificidades, tais como costureira(o) (2,49%), comerciante (2,22%), lavadeira
(1,14%), castanheira (1,63%), catador (0,57%), pedreiro (2,07%), pescador (2,12%),
vendedor ambulante (1,06%), as quais são também relatados. (SEINF-
HABITAFOR,2009).
Como a renda é definidora da pessoa de referência no domicílio, as mulheres têm
ocupado cada vez mais o espaço de provedoras (D`ÁVILA, 2008). A PNAD/IBGE ressalta que no
Brasil, entre 1998 e 2008, as mulheres passaram de 25,9% para 34,9% na provisão familiar, e o
dado que chamou mais atenção na Síntese dos Indicadores Sociais – SIS foi o crescimento das
mulheres declaradas como pessoa de referência com a presença do cônjuge, que subiu de 2,4% para
9,1%. Quanto ao Pirambu, no tocante à chefia feminina, o relatório da SEINF-HABITAFOR
verificou que 52,86% das famílias analisadas são chefiadas por mulheres.
De um modo geral, as famílias que compõe a população do Grande Pirambú, dentre as
quais estão situadas a população beneficiária do Projeto Vila do Mar, segundo o
diagnóstico da SEINF (2009), são em sua maioria chefiadas por mulheres. Com uma grande
predominância de jovens desempregados e muitos beneficiários dos Programas de
Transferência de Renda. O índice de escolaridade é pequeno, o que caracteriza também a
grande precariedade na profissão dos chefes de família que ocupam empregos com baixos
salários. (SEINF-HABITAFOR,2009).
Segundo fonte do relatório da SEINF/PRÓ-SANEAR, onde foram visitadas 1.125
residências para implantação do Projeto Pró-Saneamento
80
nos bairros Pirambu e Cristo Redentor,
as mulheres são mais recorrentes nas chefias entre os mais pobres. O documento denotou que
78,22% das residências eram chefiadas por elas, sendo um universo de 880 mulheres e 245 homens
chefes de família. O relatório destaca que 784 delas recebem até um salário mínimo. São
levantamentos realizados no bairro que afirmam a pobreza e a ligação da mulher com a família.
Nas famílias complexas, destaco o percentual de idosos provedores, considerando que
os quatro casos de referência desta tese são de unidades domésticas chefiadas por sexagenários.
Sobre a chefia do idoso, no relatório da SEINF-HABITAFOR, consta que 11,11% das famílias são
chefiadas por eles, sendo 7,53% de mulheres e 3,53% de homens. Nesse relatório, o número de
chefes coincide com o número de aposentados, levando a crer que o critério foi a renda da
aposentadoria e não da idade a partir de 60 anos.
Na perspectiva da renda, Dona Rita, mesmo tendo 60 anos, não seria considerada chefe
da sua família, pois não é aposentada. Uma pesquisa quantitativa por amostragem apresentaria o
companheiro de Dona Rita como chefe, por ser idoso e aposentado, no entanto ele não é o provedor
80
O relatório faz parte de um diagnóstico da SEINF para construção de kit´s sanitários e realização
de instalações hidrosanitárias intradomiciliares para as famílias de baixa renda residentes no local.
304
da casa nem o responsável pelas crianças; seu lugar é de companheiro e não pai nem mesmo
padrasto dos filhos da cônjuge que ele já conheceu adultos. Para identificar os papéis e funções
numa família complexa, são necessários um acompanhamento, que não se realiza em apenas uma
visita, e a aplicação de um questionário socioeconômico.
As obrigações de manutenção da casa redefinem os papéis e as funções na família. A
moradia não é lugar de produção, mas de consumo, o que requer que os meios de manutenção da
casa venham do espaço exterior a ela, da rua, fora do locus doméstico. Assim, da necessidade de
sustento da casa, os homens e as mulheres saem em busca de trabalho numa condição de paridade
entre os sexos e as funções na família. O êxito ou não na disputa por uma vaga no mercado de
trabalho é um princípio de definição e redefinição dos papéis na unidade doméstica.
Sobre a renda das famílias, o diagnóstico levou em conta rendimentos formais e
informais, excetuando benefícios sociais como o Bolsa Família, e verifiou:
A partir do cadastramento das famílias do grande Pirambu observou-se que 25,96% das
famílias ganha de ½ a 01 salário mínimo. Quanto às famílias com renda mensal
compreendida de 01 a 02 salários mínimos, o percentual verificado é de 31,27%.
Os dados comprovam, portanto, que estas famílias sobrevivem de maneira simples, ou seja,
que suas condições econômicas não lhes proporcionam opções de lazer e alimentação
adequadas. Vale destacar que um total de 89 famílias (ou 2,20%) informou não possuir
renda alguma. Dessa forma, sobrevivendo com dificuldades, contando apenas com doações
da própria vizinhança ou esmolas, uma realidade critica e preocupante a qual clama por
intervenções do poder público. (SEINF-HABITAFOR,2009).
As mulheres das famílias pobres estão mais presentes no mundo do trabalho que os
homens. Muitos, em idade laboral, ficam ociosos nas ruas e bares do Bairro. Observo que os
homens não permanecem durante o dia na residência familiar e não são disponíveis para falar com
pesquisadores, preferindo chamar uma moradora da casa. Apesar de as mulheres terem um número
maior de opções de trabalho do que os homens, elas também têm dificuldades de ocupação; nesse
sentido, esta análise verifica que a maioria dos adultos nas famílias extensas não exerce atividade
remunerada.
Então, como ficam as relações de funções na família diante dessas condições materiais?
Os papéis são trocados e acumulados de acordo com as necessidades de manutenção do grupo por
meio do trabalho de qualquer participante que consiga auferir algum rendimento. As trocas são
solidárias, pois conservam o grupo, mas carregam consigo certa coerção na necessidade de
conservação de si mesmo e da rede. A família se organiza assim, formando um arranjo complexo de
obrigações, envolvendo o parentesco, o trabalho, a subsistência e a casa.
305
Além da dificuldade em torno da questão do trabalho, a população do Pirambu enfrenta
problemas de acesso à habitação. As pessoas moram em casas que denotam, em muitos casos, a
precariedade em que vivem. A casa de Dona Selene, nos últimos dez anos em que foi acompanhada
pela pesquisa, teve uma média de moradores superior a 20 pessoas. Suas condições de higiene são
bem precárias, pois só possui um banheiro e único ponto de água encanada para toda a rede de
parentesco que habita a residência. Cabe ressaltar que a única torneira está situada na sala de jantar,
vizinho à cozinha, e serve para higiene dos cômodos da casa, do banheiro e da cozinha.
As condições de moradia na beira da praia são mais precárias do que na avenida onde
mora Dona Selene, pois essas casas são mais antigas e recebem melhor infraestrutura. Sobre as
tipologias das casas na área da beira da praia, o relatório das famílias a serem beneficiadas com as
intervenções do Projeto Vila do Mar acentua que,
Com relação à tipologia da construção, as unidades habitacionais cadastradas na área são,
em sua grande maioria, constituídas de alvenaria de tijolo, geralmente, com piso de cimento
81,81%, existindo também um número elevado de casas construídas de madeira (4,34%),
papelão (0,05%), plástico (0,05%) e taipa (0,42%). Embora este número possa parecer
pequeno, durante o trabalho de campo, ficou constatada a condição subumana a qual as
famílias estão submetidas, colocando principalmente as crianças e os idosos em situação de
vulnerabilidade. (SEINF-HABITAFOR,2009).
Em sua maioria, as casas no Pirambu são pequenas e construídas sem um padrão
definido, semelhante ao que ocorreu com as ruas do Bairro. As casas têm traçados, tamanhos e
formas diversas em razão da própria história contada no item anterior, em que cada um delimitava
seu espaço numa relação de disputa com o outro, sem a intervenção legal em termos de
urbanização.
As histórias das famílias mapeadas ao longo do processo de investigação foram de
dificuldades para permanecer no local e sobreviver. A construção da casa de tijolo é apontada como
o principal desejo dos moradores e seu êxito o maior prêmio. Na história de Paulo, morador da beira
da praia, ele relata a demora para conseguir comprar os tijolos e construir sua casa, e explica que,
enquanto os cômodos eram levantados, a “barraquinha” permanecia no quintal para abrigar a
família na longa espera pela conclusão de cada cômodo. Aí fomos fazendo os quarto e a casa com a
barraquinha no quintal (Paulo, em 2002).
Nas histórias sobre as habitações, estão presentes o desejo e a dificuldade de construir a
casa de tijolo, que representa, para muitos, a realização de um sonho, a segurança de um endereço,
um lar. Para as famílias que deixaram a zona rural e se aventuram na Cidade, a construção da
moradia significa a confirmação de que a vinda para a Cidade foi um êxito. Por isso, a tristeza
306
aparece e se esconde no rosto das pessoas, ao relatarem que moravam numa “barraca” e construíram
uma casa.
A moradia em “barracas” e “taipa” nos “quintais” e as construções de “compartimentos”
em casas de parentes são um símbolo da relação do parentesco e das relações de sociabilidade rurais
que se realizam em espaços urbanos. Esse símbolo também afirma a intensa presença do parentesco
no Bairro, em que muitos moradores são parentes e vizinhos.
Um dos fatores que entravam a remoção das famílias das áreas de praia do Pirambu
reside no fato de os recebimentos de novas moradias se realizarem de forma parcelada, em que
algumas pessoas são beneficiadas em detrimento de outros parentes que ainda esperam por sua vez.
Assim, colhi um relato de uma jovem que, para não residir longe da mãe, vendeu o apartamento
recebido em benefício pela transferência da “área de risco” e retornou à área a ser beneficiada, para
continuar perto da mãe e receber novamente o direito a um imóvel na remoção das casas.
....a prefeitura deu os apartamentos pra todo mundo né, mas como a minha mãe, eu não ia
vender meu apartamento, como a minha mãe eu só vivia sabendo dela tirando as coisas dos
outros, entrou até na casa da sogra dela pra tirar um celular, roubou um bujão da vizinha
então como tudo isso aconteceu o pessoal me pediu pra mim poder voltar pra lá porque eu
estando morando lá ela se acalmava mais, porque eu tava direto prestando atenção nela né?,
ela tava mais eu fazendo as coisas dentro de casa, não ia ter perigo dela está saindo como
agora, eu me mudei pra lá a pouco tempo não tá nem com três semanas que eu voltei pra lá,
aí eu vendi o apartamento, pra poder comprar uma casa lá, pra voltar pra lá (...) a minha
mãe tava usando drogas demais, tava vendendo tudo de dentro de casa. (Rosilene, em
janeiro de 2009).
No relato da filha sobre os procedimentos da mãe, a jovem não caracteriza a mãe como
ladra e não se refere ao roubo, mas, na sua fala, diz que “ficou sabendo”, o que não lhe confere a
certeza da ação indevida de que a mãe estava tirando as coisas dos outros. Na narrativa da jovem,
resta evidente que a família não tipifica o parente como delituoso, mas antes, como alguém carente
da ajuda e proteção, o que incumbe a filha a alternar a luta da sua casa com seus filhos e suas quatro
sessões semanais de hemodiálise com cuidados à mãe.
Nesse caso, Rosilene retornou ao bairro para cuidar da mãe, pois o agravamento da
situação levou os vizinhos a cobrar sua volta, sob pena de não “considerar” mais a vizinha e deixá-
la para “se entender” com a polícia, haja vista que seus delitos deveriam ser tratados com força
policial, no entanto, mesmo entre vizinhos lesados, a primeira providência é chamar a família. No
caso, a filha para cumprir seu papel de proteger a mãe.
No processo de cessão de imóveis, há um comércio de unidades residenciais ou
“mercado negro” desde os cadastros de “barracas” até as casas e apartamentos prontos para os
beneficiados. Esse comércio, no entanto, não pode ser visto como relação mercantil comum, mas
307
como prática cotidiana que segue uma lógica própria de interesses e necessidades
81
. A questão
habitacional e os problemas ocorrentes nesse processo, recebimento e venda de imóvel beneficiado
nessa política de realocação dos moradores e retorno ao bairro para a mesma área, objetivando um
novo recebimento de imóvel, têm sido assunto das famílias da beira da praia. Minha intenção nesta
análise, no entanto, é enfatizar que uma das motivações desse processo é o desejo de continuar a
residir próximo aos parentes.
Pela leitura da trajetória das famílias pobres nos seus processos de vivência no Bairro e
ante a precariedade urbana e acesso à moradia, pode-se supor que o tema central de união delas
seria somente de ordem econômica no seu sentido mais objetivo e voltado para a sobrevivência,
todavia essa união não consiste meramente de um arranjo econômico, sendo a organização familiar
mais bem explicada por uma unidade que reúne parentes a partilhar valores preservados para
benefício de todos numa rede de proteção.
2.3 A FAMÍLIA EM ARRANJOS ECONÔMICOS E REDES DE PROTEÇÃO
Noções sobre valores
O valor familiar não pode ser mensurado numa cotação de mercado, pois antes ele é
vivenciado pelos que dela participam. A família em si é um valor, significando mais do que uma
instituição social. Roberto DaMatta expressa que,
[...] entre nós ela não é apenas uma instituição social capaz de ser individualizada, mas
constitui principalmente um valor. Há uma ‘escolha’ por parte da sociedade brasileira, que
valoriza e institucionaliza a família como uma instituição fundamental a própria vida social.
(1987, p.125).
Na convivência familiar, compartilha-se um conjunto de princípios e práticas que
orientam as condutas num meio social em que as pessoas se conhecem e se reconhecem, mas há
limites para a atuação de cada um. Esses limites não são explicitados em códigos estruturados ou
estatutos, mas são ensinados e sentidos por todos. Nessa perspectiva de valores, o que se expressa
para reflexão é sobre quais valores fundamentam a identidade coletiva de uma família,
especialmente numa rede de parentesco.
81
Sobre esse tema, ver minha a dissertação de Mestrado (2003) “Uma rua, um bairro, uma
cidade...”, em que trato da remoção de famílias e suas representações sobre direitos e deveres das
famílias e do Estado.
308
Os valores são o alicerce para as organizações sociais familiares. Ela se institui na
gerência de afetos e de circulação de bens materiais e prestação de serviços. São gerências que
fazem a rede funcionar na família, aqui explicados com base em arranjos econômicos e redes de
proteção.
A concepção de respeito carrega dimensões simbólicas como matrizes na relação pai e
filhos, mãe e filhos, irmãos mais velhos e mais novos, além dos avós, tios e primos, e se estende
além do parentesco consanguíneo para o parentesco por afinidade, incluindo cônjuges e cunhados.
A noção de respeito comumente é justificada pelo parentesco: é da minha família. A própria frase
se impõe como identidade “minha” e representa a participação numa coletividade em que se protege
e se é protegido, pois participam do mesmo sistema simbólico.
A pesquisa etnográfica é uma busca por interpretar as vivências do pesquisador no
contato com seu campo. Assim, como observei a “panela só” como representativa do arranjo
econômico, observo “é da minha família” como representativo da rede de proteção que inclui os
membros da rede, contudo também representa a obrigação e o conflito expresso com o acréscimo do
mas na frase “mas é da minha família’.
A família pobre, moradora das grandes cidades, tem na rede de parentesco seu apoio no
enfrentamento das dificuldades. À medida que as instituições públicas se mostram ineficazes em
oferecer assistência básica a essas populações, é na rede de parentesco que a família busca suprir
suas privações, ensejando um sistema de reciprocidade em torno da família e de seus valores.
[...] Suas relações fundam-se portanto, num código de lealdade e de obrigações mútuas e
recíprocas próprio das relações familiares, que visam e moldam seu modo de vida também
na cidade, fazendo da família e do código de reciprocidade nela implícitos um valor para os
pobres. (SARTI, 2005a, p. 52).
As redes de parentesco e proteção se formam dentro do universo simbólico dos
princípios de reciprocidade familial e são pautadas em valores de obrigações morais,
imprescindíveis à sobrevivência do coletivo com arrimo na organização de uma economia familiar
que os mantém.
Sem a organização dos meios econômicos, a família não existe, pois, sem receitas para
manutenção mínima do padrão alimentar, é possível sua morte biológica. Tão importante como a
dimensão econômica é a grandeza moral. A vida familiar pressupõe a convivência, e essa, por sua
vez, não se faz sem a definição de hierarquias e de seus aparatos em funções, atribuições e
obrigações aos membros que se mantêm como família iniciados por motivações biológicas e
consolidados por suporte moral.
309
Arranjos econômicos
A rede familiar se prepara para a sobrevivência formando um arranjo econômico. Esse
arranjo se faz necessário para a organização da economia doméstica, visando à manutenção do
grupo familial, não necessariamente mensurável (quantificável) objetivamente numa equação
matemática, mas realizável na vivência em família.
Falar em economia sugere o uso de números ou teorias sobre a situação econômica do
País, reportando à ideia de algo distante e que exige esforço intelectual matemático; no entanto, a
proposta da pesquisa é justamente contrária e se refere à economia do dia a dia em que os cálculos
que melhor a identificam são feitos pela dona de casa, que decide a quantidade de cada alimento a
ser preparado proporcionalmente ao número de pessoas que irão consumi-lo.
O dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira enumera os significados de
economia “1. Ciência que trata dos fenômenos relativos a produção, distribuição e consumo de
bens; teoria econômica. 2. Sistema produtivo de um país ou região: 3. A arte de bem administrar
uma casa (v. economia doméstica: A arte e a técnica de administrar ou executar tarefas do lar, ou de
manipular seu orçamento). 4.Contenção ou moderação nos gastos; poupança: 5. Organização dos
diversos elementos de um todo [...]” (1999).
As definições denotam que “economia” significa uma gama de situações que a
communis opinio não prevê ao restringi-la ao sentido meramente monetário. Nesta análise, terão
prioridade as acepções que envolvam seus sentidos subjetivos e possibilitem compreender melhor a
“economia doméstica”. Desse modo, a dona de casa na família pobre, ao preparar o almoço,
organiza a economia doméstica na sua produção, distribuição e consumo, manipulando os
elementos numa arte de fazer dos parcos recursos meios para manutenção do todo familiar.
O dicionario ainda oferece como significado de economia doméstica a “arte de
administrar e executar tarefas do lar”, abrindo espaço para pensar a economia familiar em condições
da divisão de tarefas, que pressupõe direitos e deveres dentro do grupo familial e denota a
característica de existência de hierarquia, o que leva a refletir que a economia doméstica representa
uma situação que ultrapassa os limites comumente atribuídos à economia. A economia doméstica se
diferencia por ser uma organização dos meios, a sobrevivência da rede entre as famílias pobres, se
distanciando assim da ideia de acumulação presente na economia de mercado.
O entendimento de arranjo econômico familiar pressupõe a compreensão de formas
diferenciadas de viver e organizar as famílias. Essas formas são privativas da história íntima da cada
casa e não fazem parte dos temas divulgados pela parentela, que prefere assuntos desvinculados de
310
qualquer articulação financeira para preservar a aura de família unida e integrada que normalmente
faz questão de anunciar. O assunto dinheiro é tratado com reservas, pois essa instituição é tomada
como acima de qualquer quantificação, valoração monetária de pagamento ou qualquer referência
objetiva. Sobre esse tema, Bourdieu (1996) faz uma análise acerca da “economia dos bens
simbólicos”, em que há uma “recusa do econômico” na organização de alguns grupos sociais, entre
eles, a família. A economia não faz parte das relações valorizadas nessa instituição, devendo ser,
inclusive, desvalorizada, ensejando o que Bourdieu chamou de “eufemismo” nas relações.
Negações monetárias à parte, a família fala no dinheiro
82
e discute sobre quem compra
ou não um alimento, mas evitando os números e as associações diretas que indiquem cobranças e
obrigações. A negação monetária é perceptível nos casos em que a mãe busca diferenciar a moral
das obrigações contidas no acolhimento a um filho, do dever de contribuição do filho para a
economia da unidade doméstica. A mesma regra de solidariedade da economia monetária não se
aplica a outros problemas anunciados sem reservas, como o alcoolismo acentuado de um filho que,
quando se mantém em estado de embriaguez por longos dias, é afastado do convívio familiar na
casa da mãe e “passa uns dias” na casa do pai.
Observei casos de filhos adultos sem ocupação laboral na casa, mas, quando perguntado
a mãe se o filho contribui com o orçamento familiar, ela responde que sim. Se perguntar novamente
como se dá contribuição, a mãe diz quando o filho tem trabalho, ele dá sim, mas explica que é
difícil e justifica o problema, dizendo as pessoas não querem mais ninguém pra trabalhar. Se for
num dia de insatisfação com o filho, porém, então a mãe diz coisas desagradáveis sem restrições
esse num presta pra nada. O que se consegue apreender é que o filho, normalmente, é protegido.
Percebi também, que: 1) dinheiro para manutenção da família é um assunto privado; 2) não se fala
mal de um parente para os visitantes; 3) mãe e filhos são sagrados; 4) somente quem é parente
próximo pode falar mal de outro: tudo consiste numa rede de proteção.
Pierre Bourdieu propõe uma leitura do “universo econômico”, além das meras
concepções objetivas do cálculo, em busca da maximização do lucro (monetário), mas percebendo
suas práticas e os sentidos da ação. Ele explicita, ainda, que se deve ler o universo econômico como
O universo econômico é feito de vários mundos econômicos, dotados de ‘racionalidades’
específicas, que supõe e exigem, ao mesmo tempo, disposições ‘razoáveis’ (mais do que
racionais), ajustadas às regularidades inscritas em cada um deles, às ‘razões práticas’ que os
caracterizam. (BOURDIEU, 1996, p. 158).
82
Na casa de Dona Selene, há um pequeno comércio na cozinha, destinado principalmente a sua
rede familiar, e a compra dos alimentos vendidos pela avó se dá mediante o pagamento em dinheiro,
em geral, moedas. A avó justifica o recebimento dos numerários, informando que, antes das suas
vendas, eles compravam na rua e pagavam; então, agora compram em casa.
311
A leitura da economia que Bourdieu propõe se diferencia da economia em seu sentido
ordinário. Para realizar essa leitura, o autor remete ao seu passado no universo familiar e na
economia doméstica, que se contradiz às experiências que passa a ter com a economia dos cálculos.
Sob a percepção dessas diferentes economias, procuro estar atenta para não cometer o erro que o
Bourdieu aponta, para os que se dedicam à Sociologia da Família, de não perceber na economia
doméstica o seu universo de práticas.
Bourdieu explica que alguns princípios da organização da economia simbólica ocorrem
com base em duas teorias: Mauss e a “dádiva” e Lévi-Strauss e a “retribuição” – ambas fazendo
referência às trocas simbólicas como parte das relações numa rede social. “Mauss descreveu a troca
de dádivas como seqüência descontínua de atos generosos; Lévi-Strauss definiu-a como uma
estrutura de reciprocidade que transcendia os atos de troca, nos quais a dádiva remete à sua
retribuição”. (BOURDIEU, 1996, p. 159).
Para Bourdieu, faltava, no entanto, uma ligação entre as duas teorias, entre as trocas.
Essa ligação entre as teorias consistia no “intervalo temporal” entre trocas que, segundo o autor,
tornava o sistema de “dar-receber-retribuir” numa oferta despretensiosa em cada uma das fases,
mesmo quando as partes conheciam o ciclo da dádiva.
Quanto a mim, observei que o que faltava nessas duas análises era o papel determinante do
intervalo temporal entre a dádiva e a retribuição, o fato de que, em praticamente todas as
sociedades, admite-se tacitamente que não se devolve no ato o que se recebeu – o que
implicaria uma recusa. Depois perguntei-me sobre a função do intervalo: Por que é preciso
que a retribuição seja diferida e diferente? E mostrei que o intervalo tinha como função
colocar um véu entre a dádiva e a retribuição, permitindo que dois atos perfeitamente
simétricos parecessem atos singulares, sem relação. (BOURDIEU, 1996:159).
Nessa perspectiva, a dádiva tem o caráter de “gratuidade”, “generosidade”. A falta nas
teorias de Mauss e Strauss era o intervalo entre a oferta e a retribuição que tornava a dádiva
desinteressada pela existência da possibilidade de não haver retribuição. Afinal, como ponderou
Bourdieu, “sempre há ingratos”. Em razão da incerteza na retribuição da oferta, a chegada da
retribuição após um intervalo temporal é recebida como dádiva.
As dádivas comumente não são contingenciais, e a “troca” faz parte da dinâmica
familiar, pois ocorrem todos os dias. São a oferta, o intervalo e a retribuição incorporados ao
cotidiano, e sua tríplice ação age como bens de uma triangulação dialética em que a retribuição se
torna uma nova oferta, passível de uma retribuição a nova oferta.
A rede de parentesco impõe intensa troca de dádivas, de modo que sempre há alguém
esperando receber e conformado em dar. Observa-se que a obrigação de retribuir não carrega a
severidade das trocas cabilas, citadas por Bourdieu, como uma ofensa à liberdade. Nas famílias, as
312
trocas são mais sutis, de pequenas proporções, mas em grandes quantidades, o que dificulta ao
pesquisador sua percepção. São ações subjetivas nas “práticas” cotidianas que existem
objetivamente, no sentido de haver a cobrança à participação no “jogo” das relações familiares que
pressupõe a “troca de obrigações” (SARTI, 2005a).
A troca de dádivas opõe-se ao “toma-lá-da-cá” das relações econométricas, pois esta é
direta, enquanto a economia dos afetos é indireta, subjetiva, mas não menos coercitiva. Essa relação
é tratada entre os participantes de forma indireta e sutil, em geral, com “eufemismos”
(BOURDIEU,1996). O compromisso de cuidar dos filhos da irmã enquanto ela sai para trabalhar
não é considerado trabalho, mas a ajuda a irmã e o carinho pelos sobrinhos, e, no mesmo sentido
não há pagamento por essas atividades. O interessante quando há “pagamentos” é que, geralmente,
eles são direcionados para descaracterizar o trabalho e a liberdade de compra, são presentes. Em
geral, não se paga a um familiar, mas se “dá alguma coisa”. Rivânia é lavadeira e, quando lava a
roupa da mãe, não quer receber dinheiro e explica a mãe também não tem, ela dá só o sabão, mas,
após outras perguntas sobre pagamentos na família,ela conta a mãe sabe quando eu não tenho nada
e dá uma feira, arroz, feijão são situações que caracterizam os eufemismos.
Nesse momento em que se reporta aos eufemismos, o autor chama a atenção do
sociólogo que, ao desvendar a troca, corre “o risco de descrever como cálculo cínico um ato que se
quer desinteressado” (BOURDIEU, 1996, p. 160-161) e que deve ser visto como tal na verdade da
vida das pessoas analisadas. O interesse não é objetivo ou claro nas ideias das pessoas que atuam na
ação, pois elas ocorrem num vaivém em que os participantes (familiares) conhecem as regras que,
apesar não serem descritas pela rede de parentesco, são vividas.
As regras da vivência familiar são fundamentais para a existência do grupo,
especialmente para o arranjo econômico atuante sobre as questões mais diretas nas subjetivas
relações familiares. Nele, congregam-se forças para manter as condições de sobrevivência da rede
de parentesco, seja na mesma unidade doméstica ou não.
Desse modo, alguns temas, como produção, distribuição e consumo, são acionados para
se compreender essa economia. Cabe lembrar apenas que, no caso das famílias, esses requisitos de
uma organização econômica não se comportam de maneira objetiva como na maioria de suas
aplicações em outros espaços sociais, haja vista que a família não é uma empresa nem o lucro é seu
objetivo principal. Para o consumo dos alimentos na casa, os processos anteriores são fundamentais
e cabe aos membros da família buscar meios fora da casa para sua manutenção.
Rosilene Alvim (1979) fez um estudo com um grupo de famílias de operários têxteis na
periferia de Recife (PE) e explica que o consumo doméstico significa, efetivamente, aquilo que a
313
família come, no sentido nutricional de todos os dias, de manter um padrão alimentar mínimo e dos
bens que a família pode adquirir, bem como uma poupança para situações de emergência. Segundo
ela, a administração do consumo doméstico é feita pela mulher (dona de casa) e seu desempenho
lhe confere autoridade em razão da capacidade de administrar escassos recursos para garantir o
padrão alimentar. Nesse sentido, a autora ressalta a posição da mulher na administração da casa.
Na distribuição alimentar entre os membros familiares a dona de casa finaliza um processo
que tem por outras fases a distribuição dos bens de subsistência a serem preparados na
alimentação diária e as compras na feira semanal com a renda que lhe é dada pelo marido.
O cálculo usado na realização das compras e a sua capacidade de distribuir os bens
alimentares pela semana e entre os membros do grupo doméstico faz parte do seu papel de
dona de casa. (ALVIM, 1979, p. 112).
A citação denota que a administração da economia doméstica representa mais do que
uma quantificação e que sua manipulação está diretamente ligada às funções, papéis e autoridade no
universo da família. Esta é, no entanto, uma realidade da família operária que tem o diferencial de
rendimentos regulares, enquanto nas famílias analisadas há uma busca diária para concretização dos
alimentos, com exceção do final do mês, pois as casas são de idosos aposentados e três deles, nos
primeiros dias do mês, recebem seus benefícios, mas as famílias são extensas, e os recursos
insuficientes para o custeio do mês todo, em geral se diluindo em poucos dias, pois os aposentados
com crédito fácil são alvo de muitas propagandas, comprometem seus rendimentos com
empréstimos e fazem prestações para consumir bens.
Para sobreviver, a família precisa organizar uma base econômica para suprir as
necessidades alimentares mínimas à sua manutenção, de forma que a administração geral dessa
função econômica recai sobre o “chefe de família” que angaria recursos dos potenciais
colaboradores no grupo para satisfazer às necessidades básicas.
O lugar de chefe da família foi ocupado, ao longo dos anos, pelo homem, inclusive a
própria nomenclatura “chefe” é masculina, sem possibilidade feminina, a não ser com o uso do
artigo feminino “a” à frente da palavra. Essa explicação se aplica a outras áreas de atuação dos
homens e das mulheres na sociedade, mas especialmente a família que se definiu em papéis e
funções. A sociedade, no entanto, muda, e a família segue essas mudanças. “O perfil tradicional de
família perde espaço” – esta é a manchete do jornal em 14 de janeiro de 2007. A matéria destacava
o significativo aumento de mulheres chefiando famílias com cônjuge
83
. (O POVO, 14/01/2007).
O conceito de chefe de família nesta tese vai além da novidade estatística, pois fui ao
campo, ou melhor, às casas, com um olhar aberto a reconhecer como válido qualquer tipo de chefia
83
Ver mais sobre mulheres provedoras na tese de doutorado de Sande D´Avila (2008).
314
familiar, desde que fosse constatada no percurso da pesquisa. A chefia é uma síntese de autoridade
moral e econômica. Consiste no reconhecimento de ser o eixo da obrigação moral que liga a família
em rede e na legitimidade da autoridade pelos participantes. Nesse caso, são pais e mães que
assumem a responsabilidade da gerência moral e econômica da família.
Nas quatro redes pesquisadas em profundidade, foram identificadas três lideranças
femininas e outra masculina. Nas casas de Selene, Telma e Rita, elas acumulam a função de “mãe
de família”, “dona de casa” e “chefe de família”. Na rede de parentesco de Pai Vito, ele foi
identificado como chefe da família, mas suas filhas citavam a mãe, mesmo ausente, como “dona da
casa”, não no sentido de cuidar do lar, mas de ser a referência das filhas com a casa e a família, bem
como no sentido da posse e do direito ao imóvel
84
.
Nas famílias analisadas, em relação ao arranjo econômico, a que mostrou de modo mais
intenso essas trocas foi a chefiada por Dona Selene. Pelo fato de ser numerosa na moradia comum,
a administração da economia e os desdobramentos eram explicitados desde as dificuldades para
efetuar a compra de um pacote de café até a “maratona” diária para o preparo do almoço. Esse
arranjo se apresenta com maior ênfase na repartição do que na produção. Isso decorre da extensão
da família e do fato de a maioria dos membros não contribuir com proventos para a manutenção do
coletivo, no entanto a economia não depende somente de Dona Selene, pois alguns filhos
contribuem com “ajudas”, mas cabe a ela orquestrar esse arranjo.
Além disso, as famílias pobres, em suas organizações, criam estratégias de convivência
coletiva que impõem a necessidade de uma mediação na economia de trocas para existência do
grupo familial. A motivação econômica pressiona os participantes a colaborarem e impõe
obrigações às partes, de forma a fortalecer o vínculo e a adequar as pessoas ao grupo, o que enseja
uma solidariedade na parentela. Nas unidades domésticas complexas, observa-se que o fato de
morar na casa-sede que abriga a rede pressupõe a aceitação de regras tácitas, normas que concorrem
para unir o coletivo em uma família. Regras como obedecer ao chefe da família e imposição do
trabalho doméstico às mulheres foram observadas em todas as casas visitadas.
Na perspectiva econômica, a atividade laboral dos membros é sutilmente acompanhada
pelos demais moradores e apontada quando faltam alimentos, sugerindo a obrigação, no entanto, as
sugestões são feitas à mãe e nunca impostas entre os pares, pois ela, que responde pela economia
familiar, é quem faz “cobranças”. Exemplificando: na falta de um alimento na casa extensa, as
filhas adultas lembram a mãe um dos filhos que trabalha e a incitam a pedir mais recursos para
complementar a economia da casa.
84
Sobre os conflitos e distribuições de papéis na casa de Pai Vito, ver o capítulo 8.
315
A aceitação das regras é acentuada em razão da exigência do respeito. Observei que
uma das netas foi morar com uma irmã e saiu da casa da avó para não conviver com o marido da tia.
Ele aponta a moralidade das sobrinhas e diz que elas são más influências para suas filhas
adolescentes. Certa tarde, quando da chegada do tio, a jovem saiu pelos fundos da casa, “não queria
nem vê-lo”. Neste caso, houve um desarranjo e levou a um afastamento parcial de um dos
participantes. A maior parte da parentela defende a sobrinha, que é neta e viveu desde a infância na
residência, mas há um respeito à tia que colabora nas tarefas da casa e, consequentemente, ao seu
marido. O exemplo denota que as relações na família são dinâmicas.
A base dessas regras está na valorização e proteção ao parentesco consanguíneo. As
funções, papéis e personagens podem variar, mas prevalece a valorização das pessoas mais hábeis,
que medeiam a rede e que desempenham funções vitais na família (cozinhar, prover, cuidar). Essas
personagens se tornam referência no grupo familial e passam a ter a função de elo na família,
consequentemente, o que corresponde a ter autoridade
85
.
As regras e normas que regem uma família não estão escritas em livros nem são ditas
diretamente, mas, quando são feridas, as sanções se tornam evidentes. Ao ferir as normas de
respeito aos mais velhos ou aos que desempenham funções de provedores da casa, o descumpridor
vai ser chamado à atenção por parte de um dos seus parentes próximos para ficar atento as suas
atitudes, sob pena de perder direitos naquela casa.
Casa e família são coisas distintas. As regras da casa se dão muito em torno do arranjo
econômico que se faz para sua manutenção, enquanto a família se organiza mais em âmbito de uma
relação moral. Ambas, casa e família, se completam, mas, nas situações de conflito, elas se
redefinem com os seus arranjos, nos seus limites e possibilidades. Os critérios de inclusão na casa
levam mais em consideração o arranjo econômico do que os critérios de inclusão na família, onde
prevalece o arranjo moral que protege os parentes.
Podem ocorrer, entretanto, situações de exclusão, com a exacerbação dos conflitos, mas
esses conflitos são mediados pelas forças presentes no arranjo moral, que protela ao máximo
possível a exclusão de um morador da casa e se expressa contra a retirada dos seus da família, de
forma que, raramente, alguém é simbolicamente excluído.
Ainda que imposta pela sobrevivência, a solidariedade familiar se divide num
organograma simbólico, em que os papéis e funções são distribuídos com vistas às potencialidades
de realização. A distribuição das atividades é decidida pela pessoa de referência na família,
geralmente a mãe, na condição de dona da casa, que delega as funções a cada pessoa. Observo que
85
Sobre autoridade e poder na família, ver Geraldo Romanelli (2000).
316
os critérios são subjetivos, e a mãe ou pai levam em conta a idade, o sexo, a ocupação laboral, o
tempo e a disposição de cada um a atender seu ordenamento, sendo um cálculo impreciso e cujos
dados somente a dona da casa sabe manusear.
Pai Vito pede aos netos para fazerem mandados, como ir comprar um cigarro ou
adquirir um alimento, e as crianças o atendem respeitosamente. Ele costuma premiá-las com
moedas e bombons. Na casa de Selene, ela distribui tarefas de pegar água ou cortar legumes para o
almoço entre as netas e filhas e faz pedidos de compras sempre com os produtos definidos e o
dinheiro bem contado; quando há escolhas, ela mesma vai às compras. Na família de Dona Rita, ela
é uma autoridade na casa. Observei que controla os horários da saída da escola dos netos e manda
chamar as mães para irem buscá-los, bem como indica uma neta o preparo do lanche do tio.
A família, como um arranjo econômico, não quantifica as ações, mas as qualifica.
Observo a situação contraditória de que a quantidade de dinheiro não é o mais importante, mas o
esforço de cada um em oferecer, de modo que a oferta de um filho casado não morador pode ser
mais valorizado que uma oferta maior de um filho solteiro que ganha só pra ele. Um olhar
desavisado sobre o termo econômico poderia supor uma quantificação mensurável numericamente,
ou que resultasse numa equação exata. Nesse arranjo, porém, os valores são simbólicos, e seu
cálculo é realizado sem a ajuda de números. Não raro, a mãe procura o filho para lhe pedir ajuda
que beneficie o coletivo familiar, bem como lembra-o de que os irmãos são família e devem se
proteger e ajudar uns aos outros. Na lógica das trocas familiares, não há balanças, mas contrapesos.
As ofertas são dadas a uns e cobradas por outros, num jogo de relações em que a troca é
a principal ação de todos. Um membro da família complexa pode justificar o não-cumprimento de
uma obrigação ( lavar os pratos do almoço), argumentando que depositou sua energia (física ou
simbólica) com outro participante da rede (necessitou sair para atender um chamado da escola de
um filho ou sobrinho), justificando-se e ainda cobrando o cumprimento da ação prevista para outro
participante da parentela. Cabe ressaltar que essa cobrança não é feita diretamente, ao não ser em
caso de não-entendimento ou desinteresse por parte de quem deveria cumprir a ação. Esse é um
jogo em que somente os participantes das jogadas conhecem as regras e cabe ao pesquisador
aventurar-se a decifrar alguns lances.
Trata-se, com efeito, de um jogo de relações familiares em que se enfrentam forças
simbólicas que podem ou não ser traduzidas em números, pois muitas disputas ocorrem em dívidas
simbólicas do passado ou que poderão advir. Desse modo, prevalece mais a obrigação de participar
das trocas doque a mensuração numérica.
317
Nesse universo simbólico, a economia é mediada pelos afetos, e a capacidade individual
de cada parte (pessoa) em mobilizar esses afetos vai determinar o lugar de cada um na família. Por
mais hábil que seja o participante, porém, sua moeda sempre vai ser a troca, na possibilidade de
oferecer para receber.
Desse modo, o arranjo econômico que possibilita a existência da família acontece na
economia dos afetos. Esses também estão no pilar de sustentação da outra base da formação da
família complexa, a rede de proteção. Juntos, representam os dois eixos principais de sustentação
das famílias pobres.
Redes de proteção
família reúne os parentes em rede objetivando a proteção deles, no entanto, antes de
falar em rede de proteção, é preciso referir-se a moral, pois é com base num arranjo moral de
códigos de respeito aos consanguíneos presente nos papéis sociais e no amparo aos pares que a
parentela se conecta a uma teia de obrigações recíprocas.
Falar em “moral” na família ou em qualquer outro espaço social requer uma exposição
sobre o que é a moral. A Filosofia distingue a Ética da Moral como sendo a Ética de cunho
intelectual (disciplina teórica) e a outra, a Moral, normas de conduta, ou seja, a prática. A palavra
moral vem do latim mos mor “costumes”, sendo, assim, associada ao conjunto de regras
norteadoras dos comportamentos baseados nos valores de uma comunidade ou cultura
(COTRIM,2006).
Sobre moral e família, no seu artigo Filosofia, moral, ética, família e sociedade no
Brasil, Bernardino Leers escreve que:
[...] Moral não é em primeiro lugar teoria, conjunto de palavras e frases, eventualmente
normas e proibições; subsiste e se realiza na prática do agir, interpretar, querer, decidir e
executar das pessoas concretas que, como as pessoas mesmas, estão submetidas ao tempo e
ao espaço mutáveis. (LEERS, 1987, p. 129).
A moral se faz na prática do agir cotidiano e se edifica no movimento da ação com base
nos costumes e valores do grupo. No caso em estudo, dos pobres urbanos, a moral está sujeita a
alterações nas famílias, desde que mantenha ligação com os valores que a fundamentam.
Pensar a moral no sentido da prática familiar é refletir sobre a estrutura dos valores que
a fundamentam, desde a colonização até as atuais organizações complexas. Os valores são
318
semelhantes
86
, mas a prática não, pois a moral reside no universo da prática. Observo que essa, por
sua vez, se apresenta entre os pobres sob o signo da proteção, no sentido de amparar os pares
consanguíneos numa rede que lhes permite sobreviver no espaço urbano.
Nessa perspectiva, para compreender o que são redes de proteção e como as famílias se
sentem ligadas por valores e laços afetivos, é preciso compreender como se organiza moralmente a
família pobre.
Ainda que, no plano das idéias, o casal planeje viver numa casa e formar um núcleo,
completando o ideal de família com filhos, os vínculos com parentela não se desfazem com o
casamento, especialmente entre os pobres, por causa da dificuldade de manutenção do padrão
conjugal.
Desse modo, a família enreda laços de obrigações morais que não se desfazem com a
separação de um dos membros para constituir novo núcleo em outra unidade doméstica, pois vai
continuar a ser família, não como núcleo, mas, principalmente entre os pobres, como uma rede. O
pai e a mãe não deixam de ser pais quando o filho sai de casa para o casamento ou para morar
sozinho. As obrigações permanecem, não com o peso da palavra “obrigação”, mas na conotação de
mão dupla que a família representa. As portas da casa de origem continuam abertas, e a
reciprocidade não se restringe às paredes da casa, de modo que, mesmo constituindo outro núcleo,
um filho ou irmão pode dar e receber ajuda na sua rede de parentesco. Sobre a delimitação moral
da ideia de família, Sarti (2005a: 85) ressalta que
A família, para os pobres, associa-se àqueles com quem se pode confiar. Sua delimitação
não se vincula à pertinência a um grupo genealógico, e a extensão vertical do parentesco
restringi-se aqueles com quem convive ou conviveram, raramente passando dos avós.
A autora lembra ainda que o sobrenome, tão valorizado para marcar o parentesco entre
as classes abastadas, não é significativo entre os pobres, pois não há status ou poder a ser
continuado. A definição da extensão da família entre os pobres consiste na rede de obrigações
recíprocas – “são da família aqueles com quem se pode contar, isso quer dizer, aqueles que
retribuem ao que se dá, aqueles com quem se tem obrigações”. (SARTI, 2005a:85). Sendo assim,
são as redes de ajuda mútua que delimitam a família.
A noção de família define-se, assim, em torno de um eixo moral. Suas fronteiras
sociológicas são traçadas a partir de um princípio da obrigação moral, que fundamenta a
86
A experiência empírica na pesquisa longitudinal de campo aponta que os valores de família
unida, valorização do parentesco, da consanguinidade e regras de apoio mútuo são valores da
família rural patriarcal e continuam a existir nas famílias pobres.
319
família, estruturando suas relações. Dispor-se às obrigações morais é o que define a
pertinência ao grupo familiar. (SARTI, 2005a:85 grifo da autora).
As obrigações morais acontecem num código de reciprocidade chamado de dádiva por
Marcel Mauss. Nas famílias complexas, os participantes, morando ou não na mesma casa,
convivem numa forma próxima de relacionamento, trocando dádivas e dividindo responsabilidades
em que uns apoiam os outros, ensejando um familismo que possibilita sua sobrevivência. Desse
modo, a dádiva nas famílias complexas consiste numa troca diária. Sobre o sistema de dádivas
recíproco, Mauss (1974:92) refere que
[...] A vida material e moral e a troca funciona aqui sob forma desinteressada e obrigatória
ao mesmo tempo. Além disso essa obrigação se exprime de forma mítica, imaginária ou, se
se quiser, simbólica e coletiva: assume aspecto de interesse às coisas trocadas. Estas nunca
são completamente desligadas dos que as trocam: a comunhão e a aliança que se
estabelecem são coletivamente indissolúveis.
Esse apoio familiar consiste na necessidade de assumir tarefas e responsabilidades, bem
como proteger os vínculos familiares no sentido de que o apoio é dado, recebido e retribuído, não
necessariamente no mesmo período nem da mesma forma, mas a dádiva é oferecida ao grupo
familiar que dá sua continuidade e protege os participantes da rede. Como acentua Mauss
(1974:67), “a obrigação de retribuir tem uma extensão bem diversa”. Vale salientar que as famílias
vivem em situação de extrema pobreza, numa constante instabilidade financeira, em razão do
mercado de trabalho e partem da ideia de que, no ciclo da vida, uns têm e amanhã os outros poderão
ter para também ajudar.
A retribuição da dádiva não reside só numa perspectiva. Veja-se, por exemplo, o caso
das mulheres e das crianças: a mãe que tem trabalho hoje deixa seus filhos com uma irmã que cuida
dos seus filhos e dos sobrinhos em casa. Esta situação se inverte facilmente, pois a maioria das
mulheres tem como opção de renda o trabalho doméstico como diarista, que consiste em um meio
de sobrevivência que num dia se tem e noutro não. Para desempenhá-lo, é preciso uma troca de
favores entre as irmãs e tias no revezamento com as crianças, consistindo em uma relação de troca.
O ponto mais relevante, todavia, não é a troca em si, mas a ‘solidariedade’ presente nos
laços, o que explicita que a dinâmica na família complexa somente é possível numa situação de
carência de recursos em que a parentela não tem outra opção a não ser a união e a convivência
coletiva para minimizar suas carências, resultando em relações em que se misturam sentimentos e
pessoas: avós com netos, genros com sogras, irmãos com primos, numa mesma família.
320
No fundo, são misturas. Misturam-se as almas nas coisas; misturam-se as coisas nas almas.
Misturam-se as vidas, e é assim que as pessoas e as coisas são misturadas saem cada qual
da sua esfera e se misturam: o que é precisamente contrato e troca. (MAUSS, 1974:71).
Na complexidade da vida familiar, as misturas de vidas e pessoas são parte do cotidiano
dos pobres, moradores dos bairros populares. Ao observar a estrutura das casas próximas onde se
criam portas e buracos de acesso para se viabilizar as trocas na rede de parentesco, percebo que a
delimitação da família não é objetivamente imposta pelo parentesco, mas delimitada, como
ressaltou Sarti (2005a), pelo aceite de participação nessa rede de obrigações
Quando a família, mesmo extensa com presença de outros núcleos conjugais, reside
numa unidade doméstica chefiada por pai e mãe, as funções são definidas como sendo a mãe quem
organiza a casa, mantendo sob controle a administração da economia doméstica e a unidade da
família, enquanto o homem é o chefe da família e recaem sobre ele a autoridade moral e o respeito
mútuo sob as deliberações do homem que representa essa dimensão moral na família.
(FONSECA,1987; ROMANELLI, 2000; SARTI, 2005b; ALVIN, 1979). Sobre a divisão casa e
família, papéis sociais e autoridade na família, Sarti (2005a) explica que homem e mulher formam
um par complementar, mas hierárquico, em que a casa é identificada com a mulher e a família com
o homem.
Em consonância com a precedência do homem sobre a mulher e da família sobre a casa, o
homem é considerado o chefe da família e a mulher a chefe da casa. Essa divisão
complementar permite, então a realização das diferentes funções da autoridade na família.
O homem corporifica a idéia de autoridade, como mediação da família com o mundo
externo. Ele é a autoridade moral, responsável pela respeitabilidade familiar. Sua presença
faz da família uma entidade moral positiva, na medida em que ele garante o respeito. Ele,
portanto, responde pela família. Cabe a mulher outra importante dimensão da autoridade,
manter a unidade do grupo. Ela é quem cuida de todos e zela para que tudo esteja em seu
lugar. (p-64).
Noto que esses papéis hierárquicos da família nuclear ainda são referência para as
famílias pobres do Pirambu. Quando há a presença do pai na casa, ele corporifica a autoridade, pois
na divisão de papéis na família o homem (pai) é o seu chefe. Quando, porém, não há o chefe de
família masculino, a pessoa de referência do domicílio passa a ser a mãe, assim a família centra-se
na mulher com os filhos (monoparental), podendo ainda ser a mulher a chefe da família com a
presença do cônjuge. Na maioria dos casos, na ausência masculina, a mulher assume a posição de
autoridade e chefia da casa, passando a acumular o papel de dona da casa e chefe da família.
A família de Dona Rita é chefiada por ela com a presença do cônjuge. O Sr. Luciano é
aposentado e ainda trabalha como catador de materiais usados para reciclagem, mas ela é a pessoa
de referência da casa. Quando ele passou a fazer parte da vida dela, os filhos eram crescidos, de
modo que não recai sobre ele a responsabilidade pela família e a autoridade sobre os enteados
321
adultos. Das famílias analisadas, Dona Rita é única que vive com o cônjuge, mas a dinâmica
familiar gravita ao seu redor e de sua parentela. O tipo familiar mais recorrente nas observações
empíricas é de mulheres com seus filhos sem a presença do pai.
Na ausência do pai provedor, a mulher assume a função de organizar os meios para a
manutenção alimentar da família. Sendo assim, ela se posiciona como chefe da família e toma o
lugar da autoridade. Sem a função da autoridade, designada ao homem, a mulher perde a função de
manter a unidade do grupo que não se faz sem a definição do lugar da autoridade. Desse modo, logo
após a saída do homem, a mulher ocupa as funções masculinas para manter a sobrevivência da
família do ponto de vista moral e econômico.
A autoridade continua nas mãos da mulher, mas isso não significa que o homem não
seja necessário à rede familiar. São possíveis situações em que a mulher precisa de uma figura
masculina (um homem), que pode ser um filho mais velho, um irmão dela ou qualquer outro
possível de ser respeitado. Este é acionado para assumir o papel da autoridade em momentos
circunstanciais, no entanto, na maioria das situações conflituosas das unidades monoparentais com
chefia feminina, a autoridade da mulher é mantida.
Estudo de Socorro Osterne (2001), realizado na comunidade do Sossego, na periferia de
Fortaleza, mostrou que mulheres pobres, ao assumirem a função de ‘chefes’ da família, continuam a
ter a figura masculina como referência de autoridade. Ao tomarem posse da direção da família, com
a saída do cônjuge varão, afirmam: “Eu sou o marido e a mulher da casa”. (p. 208).
As trocas simbólicas na rede de parentesco podem ocorrer com intensidades
semelhantes para moradores da unidade doméstica e para a rede de parentesco próxima entre
vizinhos, no entanto isso não significa não poder ocorrer distanciamentos simbólicos, mesmo em se
tratando de parentes vizinhos. Quando um filho solteiro, um casal ou mesmo um uma família
consegue a autoprovisão sem a rede de parentesco, pode haver um afastamento.
Cabe lembrar que esse afastamento não acontece sem mágoas, e o estreitamento dos
laços pode ser refeito quando o grupo afastado passa por problemas econômicos e, principalmente,
de saúde. Essa mágoa ocorre pelo fato de haver uma quebra nos acordos tácitos que regem a
família, no sentido de que sempre há uma espera de retribuição às ofertas trocadas entre parentes, e
o afastamento motivado por uma “autonomia” é recebido como uma falta de “consideração” à rede
de parentesco e representa uma negativa em participar dessa economia de trocas ou rede de
obrigações, no sentido de que há a recusa em oferecer.
Com efeito, não oferecer não significa somente uma recusa em ajudar financeiramente a
rede de parentesco, mas em participar da oferta cotidiana na intensidade de trocas que ela impõe,
322
em que as fronteiras físicas das casas e a vida privada ou o individualismo de cada um não são
valorizados. Por exemplo, a mãe vai à habitação da filha buscar um produto que falta em sua casa
durante o período em que a filha está fora cumprindo sua jornada de trabalho e, não raro, se esquece
de avisar por não se sentir obrigada a comunicar, pois se considera merecedora da dádiva (que não
foi oferecida, mas é retribuída). Afinal, além de ser mãe, cuida dos netos para a filha poder
trabalhar.
A organização da rede de proteção acontece numa economia dos afetos em que essas
misturas de vidas se entrelaçam de forma a absorver a rede de parentesco numa trama de relações
que transcendem as lógicas objetivas e caracterizam a ambiguidade da vida em família, observada
no seu universo de “práticas”.
Essas “práticas” no sentido em que Bourdieu as apresenta, estão na base conteudista
desta tese. São práticas cotidianas da vivência familiar que se fazem presentes porque são
reconstituídas no dia a dia, mas também porque têm sua existência no passado histórico e foi tema
de interesse das análises sociológicas. Desse modo, o capítulo que se segue busca inventariar
elementos para analisar essa prática numa conversa com a literatura sobre família, com foco no
Brasil e nas famílias pobres.
3 CONVERSA COM A LITERATURA SOBRE FAMÍLIA
Os estudos e as temáticas sobre a família acontecem em diálogos nos quais os
pesquisadores fazem análises teóricas e empíricas com abordagens quantitativas e qualitativas em
diversas áreas do conhecimento, como na Sociologia, na História, na Medicina, na Economia e em
outros ramos disciplinares. A diversidade de perspectiva proporciona mais conhecimentos sobre o
tema que, longe de entrar numa condição de esgotamento, leva a uma exigência maior das análises.
Assim, tendo em vista a multiplicidade de estudos, foco a revisão bibliográfica na Sociologia da
Família no Brasil.
Vou trilhar o caminho mais recorrente na literatura sobre família no Brasil, partindo da
família patriarcal descrita por Gilberto Freyre como base da organização colonial, nas dimensões
econômicas, políticas e sociais. Essa organização da sociedade, com origem na esfera íntima e
pautada em noções de proximidade e parentesco na vida familiar, representa as bases da formação
da família conjugal moderna ou família nuclear? E, ainda, apesar das transformações sociais,
representariam nas famílias complexas a sua unidade? Essa é uma indagação suscitada para a
pesquisa.
323
Tomando a família patriarcal e suas modificações como referência, ainda surgem outros
pontos: a família brasileira é uma continuidade da família extensa da casa grande? A família
patriarcal representa a pedra fundamental da família brasileira? A família é uma instituição de
reprodução das relações sociais? E, por fim, as unidades domésticas multinucleadas observadas
empiricamente são uma continuidade da modalidade patriarcal ou representam a consolidação da
morte da família?
Os estudos sobre família, apesar da diversidade de análises, privilegiam a visão da
família como uma instituição mediadora entre a sociedade e o indivíduo sob determinadas
condições sociais, culturais, econômicas e políticas, sem negar sua capacidade de influir na
sociedade, como ocorreu com a família patriarcal no século XVI.
Para tanto, vê-se a discussão em três abordagens pinçadas de forma arbitrária. São três
formas que compartilham certa constância: 1) a tradição da formação da família; 2) a família como
reprodução da força de trabalho; 3) a complexidade dos laços familiares. É possível dizer três
momentos, pois o primeiro vai desde a colonização até meados da década de 1960, com a
predominância do modelo freyreano e suas repercussões (concordâncias e discordâncias); o
segundo recebe forte influência do marxismo, pois a família era analisada sob a óptica da
sobrevivência e da reprodução da força de trabalho, em cuja discussão o pano de fundo era o atraso
da sociedade apegada à tradição e à família, que limitava o desenvolvimento do País nas décadas de
1970 e 1980; e, finalmente, a família atual e a complexidade dos seus tipos familiares.
O estudo recai sobre as famílias pobres, que se apoiam numa rede de relações entre
parentes-vizinhos para enfrentamento das condições de vida nas camadas populares urbanas. Assim,
na análise desses momentos, atentarei para o foco de estudo na mudança das famílias das camadas
populares com base em cada um deles: nas famílias rurais, nas operárias e nas famílias complexas
da atualidade.
3.1 A FAMÍLIA PATRIARCAL PODE SER CONSIDERADA O MODELO DA FAMÍLIA
BRASILEIRA?
Para Mariza Corrêa (1983), a história de organização familiar no Brasil tem sido a
história da “família patriarcal”, ou seja, como se, na história de um determinado tipo de organização
familiar e doméstica, sua hegemonia não fosse ameaçada e dela brotassem todas as relações sociais.
Ela se instala nas regiões onde foram implantadas as grandes unidades agrárias de
produção – engenhos de açúcar, fazendas de criação ou plantação de café –, mantém-se a
partir da incorporação de novos membros, de preferência parentes, legítimos ou
ilegítimos, a extensos “clãs” que asseguram a indivisibilidade do poder, e sua
transformação dá-se por decadência, com o advento da industrialização e a ruína das
324
grandes propriedades rurais, sendo então substituída pela “família conjugal moderna”.
(CORRÊA, 1993, p. 15-16).
Sendo a família conjugal moderna o ponto de chegada e a família patriarcal o lugar de
partida, Corrêa (1993) explica que a expressão “família patriarcal brasileira” foi difundida por
Gilberto Freyre e “família conjugal moderna” é utilizada por Antonio Cândido de Mello, ao
caracterizar o ponto oposto da trajetória da família brasileira
87
.
Como refere Teruya (2000), Gilberto Freyre é o grande teórico da família brasileira e
todos os estudos sobre família o tomarão como referência, para contestá-lo ou para ampliar suas
ideias sobre a família e a formação da sociedade brasileira.
Gilberto Freyre explicita que a família foi o fator colonizador do Brasil. A família
patriarcal se dava com origem na autoridade do pai, o patriarca da família, que, de olhos abertos,
estendia sua autoridade para o domínio público resguardado pela igreja
88
, que, de olhos fechados,
dava suporte a essa organização privada, centrada na afetividade, no parentesco e no personalismo.
A família, não o individuo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio,
é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital
que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social
que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da
América. Sobre ela o rei de Portugal quase reina sem reinar. Os senados de Câmara,
expressões desse familismo político, cedo limitam o poder dos reis e mais tarde o próprio
imperialismo ou, antes, parasitismo econômico, que procura estender do reino a colônia os
seus tentáculos absorventes. (FREYRE, 2001, p. 92-93).
Para Corrêa (1993) e Samara (1986,1983), esse modelo de organização familiar
transpôs os limites da casa grande e se firmou em três bases – política, econômica e social. Apesar
de sua predominância ocorrer no Período Colonial, a família patriarcal ainda é referência nas
análises políticas e econômicas, mas principalmente na literatura sobre família. Há controvérsias, no
entanto, sobre a afirmação peremptória da sua hegemonia.
87
Gilberto Freyre, com Casa-Grande e Senzala e Antonio Cândido de Mello com The Brazilian
Family são os dois estudiosos clássicos da família no Brasil. (CARVALHO FILHO, 2000;
CORRÊA, 1993; TERUYA, 2000).
88
A força do mando patriarcal restringia a atuação da igreja e, com a presença do capelão
domesticado, a trazia para a casa grande. Visando a cumprir sua tarefa de ortodoxia, a igreja
utilizou-se da mulher e da criança para difundir e dar continuidade a sua doutrinação. “Com esse
domínio sobre a mulher e a criança, a igreja pôde, sem conflitos, penetrar nessa ordem privada e
estender-se pela sociedade da colônia, obtendo perfeita adaptação de sua hierarquia, sem incomodar
nem ser hostilizada pelo senhoriato”. (DUARTE, 1966, p. 151).
325
As contestações em torno do modelo freyreano são baseadas na sua hegemonia, em que
o modelo é tomado como representativo da família brasileira em detrimento de todos os outros
modos de organização familiar.
A família patriarcal foi tomada como “civilizadora” ao impor sua ordem e sua
solidariedade a uma ordem social que seria, de outra maneira, desorganizada e anômica,
sendo as outras organizações familiares possíveis, “apêndices” e complementos da
estrutura patriarcal. (TERUYA, 2000, p. 2).
Eni de Mesquita Samara (1983,1986) dedica muitos dos seus estudos a contestar a
hegemonia do modelo. A autora faz uma análise das transformações na sociedade brasileira e da
família ao longo de quatro séculos, em diferentes períodos econômicos, e conclui que o modelo
freyreano não foi hegemônico.
Seguindo o pensamento da autora, nas áreas rurais, especialmente no Nordeste
canavieiro, durante os séculos XVI e XVII, foi possível detectar diferentes padrões familiares que
conviveram com o modelo patriarcal de família extensa. No século XVIII, a mineração e a mudança
do eixo econômico para o sul do País também trouxeram novas realidades para a família brasileira.
Com a urbanização, surgiu outro tipo de família: a mineira (com caráter mais democrático e
regional, e, nesses pontos, também se encontravam famílias nucleares, casais concubinos, mulheres
chefes de família). Esse modo de vida familiar também se repetiu na família paulista do século XIX,
especialmente nas áreas urbanas, enquanto nas rurais cafeicultoras se encontravam famílias
patriarcais extensas, semelhantes ao modelo canavieiro.
É conclusivo, portanto, dizer que a família brasileira apresentou diferentes padrões
quanto à estrutura e funcionamento ao longo do tempo, com diferenças marcantes por
regiões, classes sociais e etnias.
Isso significa que o modelo genérico de estrutura familiar, denominado comumente de
“patriarcal” e que serviu de base para caracterizar a família brasileira de modo geral,
não pode ser considerado, a priori, como o único existente na nossa sociedade.
(SAMARA, 1986, p. 8).
Em seu livro A família brasileira, no capítulo “O reverso da moeda: a família paulista”,
a autora expressa que, no Período Colonial, em São Paulo, a família patriarcal não era hegemônica
como no Nordeste, não representando sequer 26% dos domicílios paulistas.
A família paulista do século passado (especialmente dos séculos XVIII e XIX) não
apresentava as mesmas características de composição se comparando às encontradas nas
326
áreas de lavoura canavieira do Nordeste Brasileiro do período colonial. (SAMARA,
1983, p.18).
Para Corrêa (1993), essa visão hegemônica da família patriarcal “achata” as
possibilidades de percepção das outras formas de organização da família, tomadas como variações e
extensões desse modelo dominante. A proposta da autora é evitar as generalizações e relativizar o
próprio modelo difundido por Freyre, sem negar sua relevância para os estudos de família no Brasil.
Seria ingênuo forçar o argumento até que ele se transformasse no seu reverso, quando a
tentativa que se faz aqui é justamente a de relativizar essa imagem dominante na
literatura sobre a família no Brasil. A “família patriarcal” pode ter existido, e seu papel
ter sido extremamente importante, apenas não existiu sozinha, nem comandou do alto da
varanda da casa grande o processo total de formação da sociedade brasileira.
(CORRÊA, 1993, p. 27).
Coexistem com as opiniões contrárias à hegemonia do modelo de Freyre outros
conceitos que corroboram o modelo. Almeida (1987) elege o modelo freyreano como ponto de
partida para sua tese:
Tomando a família patriarcal, rural, escravista, poligâmica como ponto de partida, nosso
trabalho endossa ainda uma visão clássica da história política e na antropologia mais
moderna, de que essa família é uma espécie de célula básica da nossa sociedade, e não
apenas nos termos de Gilberto Freyre, mas mais ainda de um texto clássico, hoje meio
esquecido, o Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Isso significa dizer que a
família patriarcal é uma espécie de matriz que permeia todas as esferas do social: a da
política, através do clientelismo e do populismo; e das relações de trabalho e de poder,
onde o favor e a alternativa da violência preponderam nos contratos de trabalho e na
formação de feudos políticos, muito mais que a idéia de direitos universais dos cidadãos; e
por fim, nas próprias relações interpessoais que a cordialidade do brasileiro impõe pela
intimidade e desrespeita a privacidade e independência do indivíduo. (ALMEIDA, 1987, p.
55).
Com suporte no modelo hegemônico da família patriarcal, teria se constituído a “nação
brasileira”, um grupo extenso composto pelo núcleo conjugal e sua prole, em que se juntavam
parentes e agregados, afilhados, escravos e até mesmo filhos bastardos sob a autoridade do
patriarca. Essa família extensa e suas relações de sociabilidade aconteceram num contexto de Brasil
Colonial e quase inexistência do Estado, mas se reproduziram também com a presença do Estado,
expressando-se nas inversões entre o público e o privado.
Sérgio Buarque de Holanda (1995) faz uma análise sociopolítica e cultural do Brasil e
demonstra que a consolidação do Estado é prejudicada pelo personalismo da organização familiar
patriarcal que influenciou a formação brasileira, absorvendo as relações sociais na afetividade e
pessoalidade.
327
Ao analisar o público e o privado – leia-se o Estado e a família – Holanda (1995)
acentua que os traços característicos do familismo agem como empecilho à atuação do Estado.
Apesar da república e da democracia, alguns eventos da política nacional, ainda hoje, emulam as
pessoas a refletir se a separação da família e do Estado se efetivou. Para tal, as funções econômicas
e políticas deveriam ser separadas da família, mas os desdobramentos políticos observados em
práticas de nepotismo, clientelismo e corporativismo são antagônicos ao que se espera do Estado,
em que o intelectual e o abstrato devem estar em oposição aos seus elementos particulares,
materiais e corpóreos, que predominam nas relações familiares.
Para Holanda, o Estado está em oposição à família, pois o Ente estatal se faz com a
definição de interesses objetivos e impessoais que não se coadunam com a subjetividade e
pessoalidade presentes na organização intimista da família. E assevera que “só pela transgressão da
ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, ante as
leis da cidade”. (HOLANDA,1995, p. 141).
Sérgio Buarque de Holanda elege o “homem cordial” para denotar como as práticas
familiares migram do seu interior para os espaços públicos, como forma de manutenção, no poder,
de uma classe dominante, agrária, que leva para o espaço público suas práticas de protecionismo e
clientelismo. Essa cordialidade atua como estratégia de uma classe social para continuar na posição
de mando, com uma política de simpatias e favores que impunha um véu sobre a verdadeira
violência de uma sociedade desigual e incorporava a vida privada (família e amigos) à esfera
pública.
Diferentemente de Holanda, Freyre não via a família em oposição ao Estado nem os
prejuízos inventariados pelo primeiro, mas antes otimista, ressaltava a contribuição dessa ordem
privada para a formação do Brasil.
Enfim, são muitas as interpretações, principalmente as contestadoras do modelo de
“família patriarcal” como hegemônico na sociedade brasileira. Qual a importância de questionar o
modelo de Freyre? A resposta está na literatura da Sociologia da Família, que considera o modelo
freyreano e ainda o consolida como detentor de elementos fundamentais da família conjugal
moderna – a família nuclear. Para Antônio Cândido e Mariza Correia, a família de três componentes
– pai, mãe e filhos – de certa forma é uma continuidade da família patriarcal.
O argumento se justifica pela presença do pai como provedor, da mãe, que cuida da
prole, e dos filhos como complemento de dar e receber, no afeto e no cuidado com os pais, ou seja,
nos papéis sociais. O conceito de papel social reside nas expectativas em torno de uma pessoa que
328
ocupa determinada posição na sociedade e, apesar das transformações da família, o modelo ainda
persiste como referência, principalmente no campo das expectativas.
Nessa perspectiva, observa-se que os casais se separam, mas, comumente, as mulheres
mantêm a guarda dos filhos menores, e os homens são cobrados para prover financeiramente seus
filhos. A sociedade consolida os papéis e o modelo de família “tradicional” ou família patriarcal.
Com esteio no exposto sobre a origem da família brasileira, esta tese ressalta a
importância da família patriarcal extensa, descrita por Gilberto Freyre e herdeira da tradição
portuguesa, como relevante traço da história da família brasileira que se repete ainda hoje, tanto em
Portugal – co-residência como no Brasil – grandes famílias. As famílias analisadas neste estudo são
extensas e se agregam numa rede de parentesco que tem como característica a proximidade e a
troca. Assim, considero a característica da família em rede entre os pobres como um traço cultural
que persiste desde a colonização, se espalhou no mundo rural e se reproduziu na cidade em
condições de pobreza como um meio à sobrevivência.
Duarte (1966) enfatiza o caráter gregário do colonizador português para formação
brasileira com base na família patriarcal colonial, e, de fato, esse caráter se confirma na Sociologia
da Família. Em estudos recentes, em Portugal, a “co-residência” é considerada uma especificidade
do contexto português (WALL, 2005), e esse mesmo fenômeno é tema nesse estudo e observado
nas periferias no Brasil.
Dessa perspectiva de passagem da família patriarcal para a nuclear, posso inferir um
outra visão e interrogar se a queda do modo de produção rural como dominante não poderia ter
conduzido a família a se estender para viver e sobreviver num estado de organização do trabalho em
que as famílias são vítimas das incertezas do mercado de trabalho
89
; ou posso corroborar o discurso
de que a nova organização da sociedade urbana e industrial leva à diminuição das famílias em um
só núcleo e ao estreitamento das relações na família conjugal em detrimento da rede familiar
extensa. Cabe lembrar que o foco desta tese são as famílias pobres. Assim, não há aqui a negação
do padrão nuclear que constitui o tipo dominante na família brasileira, mas inserir provocações para
a literatura sobre família.
As famílias extensas com trocas de obrigações morais não obedecem à mesma lógica da
família patriarcal (FONSECA, 2006:31a), pois têm particularidades históricas, sociais e
principalmente de situação de classe bem distintas. A característica, porém, de reunir, aproximar e
89
Vera Lúcia Telles, em seu artigo Pobreza e Cidadania, escrito na década de 1990, exprime que as
famílias formam um coletivo de ajuda mútua, pois estão expostas ao “acaso”, possibilidade de ruína
da família em casos de doenças, invalidez e em situação de desemprego, “a insegurança é o
elemento definidor das formas de vida” (TELLES, 1993).
329
agregar resiste. Ao afirmar que as famílias se apoiam em redes de parentesco, destaco a herança
gregária do português e da colonização por família, instâncias tão explícitas que coadunam no
cotidiano tênues fronteiras entre o público e o privado e a casa e a rua, não como lugares de
identidade, mas como espaço para disputas e interesses aqui analisados sob a óptica da família, mas
que podem ser retomados em questões políticas e econômicas.
Desse modo, percebe-se que são muitas as interpretações acerca da “família patriarcal
brasileira”. Mesmo os contestadores mais enfáticos não negam sua contribuição para o
entendimento da sociedade brasileira nem para o “surgimento” do modelo que se configura como
representante da família hoje, “a família conjugal moderna” ou “família nuclear”.
3.2 A FAMÍLIA COMO REPRODUÇÃO DA SOCIEDADE
A ‘família operária’ urbana das décadas de 1970 e 1980 é característica de uma época
em que as análises partiam das relações de trabalho e a família era vista como reprodutora humana e
da força de trabalho. Esse período é marcado pelo avanço do processo de industrialização, em que
as pessoas migravam do campo para a cidade para somarem na mão de obra necessária à indústria.
Nessa linha de análise, se inserem as pesquisas sobre a Família e reprodução humana (DURHAM,
1983), com análise sobre a divisão sexual do trabalho e Relações famíliares e lógica reprodutivista:
estudos de famílias Multinucleadas na Periferia de Fortaleza (CARVALHO E BARBOSA: s/d).
Nesses estudos, são destacados dois elementos: a “família urbana trabalhadora” e o fato de essas
análises serem influenciadas por uma leitura marxista das relações sociais.
Para melhor compreensão das análises da família sob o foco da reprodução, é necessário
saber qual pensamento predominava nas décadas anteriores nas Ciências Sociais. Assim, é
importante considerar a visão dos antropólogos e, principalmente, dos sociólogos, nesse período, e
qual a família analisada no contexto das suas pesquisas.
Os estudos de família e das relações familiares nos anos 1950 e 1960 eram conhecidos
por estudos de comunidades, sendo interesse dos antropólogos conhecer melhor a organização
social dos grupos sociais urbanos e rurais, como os estudos dos caipiras e indígenas. Fukui (1980)
considera que os estudos de comunidades tiveram importância considerável na Sociologia brasileira
em virtude de suas ricas contribuições da vida política, econômica, religiosa e familiar de várias
localidades no País.
Sobre os estudos sociológicos da família na segunda metade do século XX, Benedito
Carvalho (2000, p. 31) expressa que
330
Os estudos sobre família no Brasil só começam a ganhar um novo impulso na década de
70, com as pesquisas sobre população, quando certas correntes de orientação marxista
procuram compreender e teorizar sobre a sobrevivência das camadas populares e a
reprodução dos trabalhadores.
O Brasil entrava num processo de desenvolvimento econômico com a industrialização, e
parte do questionamento dos sociólogos se dava em torno da família como um entrave a esse
desenvolvimento, em razão do apego aos costumes tradicionais, sendo esse apego das classes
operárias à tradição um obstáculo ao avanço da acumulação capitalista e ao desenvolvimento. De
certo modo, a análise da sociedade partia da família como organização social e política, ligada à
tradição e à modernidade, num período de transformação econômica e novos fenômenos sociais,
como a inversão campo-cidade, por exemplo.
Desde a década de 1970, tem-se espaço na Sociologia da Família para estudos sobre
fecundidade, como o texto Família e reprodução humana, de Durham (1983), que analisa as noções
de reprodução desde os primatas e questiona os modelos de família e a divisão sexual do trabalho
no caminho de uma reflexão que leva a compreender a família no seu mister de reprodução social,
como local onde são tomadas as decisões sobre o comportamento dos grupos sociais, em especial,
da classe operária como foco de análise.
Eunice Durham (1983) discute o conceito de família e analisa suas diversas concepções
e abordagens. A ideia da autora é mostrar a diversidade das relações de parentesco e as obrigações,
na divisão sexual trabalho e na reprodução biológica, para explicitar que as mudanças na sociedade
influenciam a forma de apresentação e organização dos grupos sociais, como seres adaptáveis, e
conclui seu artigo mostrando essa evolução, em especial na divisão de obrigações com a criação dos
filhos entre os casais e o mercado de trabalho, de forma a enfatizar que as mulheres buscam sua
posição no processo produtivo, redefinindo seu posto na família.
A sociedade capitalista era tomada como caracterizada pela separação de dois grupos
sociais que se diferenciavam por sua oposição em face dos meios de produção; um grupo era
detentor desses meios e o outro, os trabalhadores, não; o processo de migração e urbanização havia
separado os trabalhadores dos meios de produção. Os estudos focavam a sobrevivência da classe
trabalhadora, não detentora dos meios de produção, objetivando estudar os processos de reprodução
dos trabalhadores, que, sob essa concepção teórica, é parte da reprodução da força de trabalho e da
produção, pois o trabalhador necessitava adquirir habilidades e eficiência para competir no mercado
de trabalho.
Um dos textos representativos dessa linha de pesquisa é Família Operária e reprodução
da força de trabalho, de Ana Maria Quiroga Fausto Neto (1982). Logo na introdução do livro, a
331
autora anuncia que se propõe fazer, a uma análise da família não como instituição social ou mera
entidade, mas como uma
... unidade social que se realiza concretamente numa situação de classe onde, do ponto de
vista dos seus membros, a organização e ação da família está voltada para a busca das
condições de sobrevivência, e, de um ponto de vista mais amplo, sua ação está voltada para
a reprodução da força de trabalho em seus aspectos materiais e ideológicos. (FAUSTO
NETO, 1982, p. 9-10).
A autora ressalta que a família se insere em dois universos como uma unidade de
parentesco e um sistema produtivo de classes, resultante de sua inserção no mercado de trabalho.
Nessa perspectiva, acentua a importância na reciprocidade
90
na família operária como “unidade de
relações sociais, de vivências sócio-afetivas que se estrutura em torno a um sistema de códigos e
categorias que estabelecem uma rede de reciprocidades, de trocas de direitos e deveres entre seus
membros”. (FAUSTO NETO, 1982, p. 21).
Inicialmente, Ana Quiroga faz uma análise do parentesco e ressalta a importância desses
estudos para a compreensão da família, que tem sua base em relações de consanguinidade e
afinidade. Analisa a instituição em duas lógicas resultantes do parentesco e do mercado de trabalho
para a sobrevivência do grupo. Para essa compreensão, a autora começa narrando sobre a formação
do bairro e ressalta a importância do parentesco nesse processo, com a adaptação à cidade, as
conquistas materiais da família e o apoio na rede de parentesco. Ela enfatiza a ação da mulher na
organização da unidade doméstica como grupo de parentesco e social. O estudo ressalta bem a
importância do salário e das diversas funções dos membros do grupo familial no sistema produtivo,
vigilante as suas inter-relações na unidade social.
... nossa preocupação está em analisar a família enquanto unidade social na qual incidem
duas ordens de ‘lógica’: uma resultante de sua organização enquanto unidade de parentesco,
e outra, resultante de sua inserção específica de seus membros num sistema produtivo e de
classes mais gerais. Nosso objetivo seria o de desvendar os elementos que compõem essas
duas lógicas e mecanismos de sua articulação. (FAUSTO NETO, 1982, p. 22).
As duas lógicas analisadas nesse estudo são luzes para pensar sobre a família nas
camadas populares que ora examino nesta tese, compreendendo que este ensaio se aproxima da
lógica do parentesco para unidade da família, mas se afasta da lógica da centralidade do sistema
produtivo e suas determinações na sua reprodução.
90
Nessa troca estaria a reprodução ideológica das funções da família, com a naturalização da exploração do trabalho
entendido como dever da família atribuído aos papéis de chefes de família, esposas e filhos trabalhadores, inibindo,
assim, a percepção dos direitos, da cidadania
.
332
Sobre a relação das famílias operárias com a rede de parentesco vizinha, Ana Quiroga
(1982) reporta-se à reunião das famílias no almoço de domingo como um lazer na parentela e
acentua que: “... os parentes vizinhos, além de preencherem uma ampla faixa de ‘funções’ no
quadro da luta pela sobrevivência das famílias, constituem uma alternativa de lazer.” (p.45).
Ao eleger o parentesco, a autora aponta para a organização familiar como unidade que
resulta da formação de redes de parentesco e vizinhança que apareceriam na própria formação do
bairro. Em consonância com esse estudo, esta análise aponta o parentesco como fator motivador das
redes de proteção e da permanência dos valores sociais que migraram com as famílias para o
urbano. Nesse sentido de compreender a família como proteção “... a condição de membro de um
grupo de parentes. Esta condição estabelece como que um código de ‘direitos e obrigações’ entre
eles, ao mesmo tempo que as ações realizadas por cada um são revestidas de determinações
significativas”. (FAUSTO NETO, 1982, p. 48).
Enquanto isso, a lógica do sistema produtivo e da noção de classes é abordando em
demasia, que, sob a influência das análises marxistas e da própria organização social da década de
1970, cuja indústria era a maior expressão, não permitiu ver que não se tratava de uma unidade
social voltada à reprodução da força de trabalho, mas ao grupo familial em si, pois, na lógica da
organização dos meios de sobrevivência, havia o elo com os valores do parentesco, ou seja, os laços
morais que reúnem a família para formar uma unidade. Observa-se que a família pobre se reproduz,
não obstante o mercado de trabalho, mesmo que acentue sua condição de pobreza.
Na contramão do trabalho industrial, essa análise prioriza a visão de Klass Woortman
sobre a relevância do mercado informal para as famílias: “... se a família trabalhadora é um sistema
organizado, é o ‘setor informal’ que lhe permite trabalhar sem deixar de ser família, minimizando
ou neutralizando as contradições nela projetadas por sua condição de classe e realizando sua ética”.
(WOORTMAN apud OSTERNE, 2001, p. 85).
Esta análise se diferencia da visão reprodutivista da força de trabalho, pela constatação
de que, mesmo na falta de oferta para a força de trabalho - emprego, a família continua a buscar
estratégias de sobrevivência, sem, contudo, separar os membros. Isso não significa dizer que a
função econômica não seja fundamental à família, mas que o arranjo econômico é perpassado por
mais elementos do que a força de trabalho e sua reprodução.
Ainda sobre a família operária, questões como o orçamento doméstico e as estratégias
de consumo do grupo são abordadas para explicitar as representações ideológicas da família, que,
sob as interferências do parentesco e do sistema produtivo de reprodução da força de trabalho,
influenciam as relações de reprodução biológica e ideológica da família. Para essa conclusão, a
333
antropóloga Ana Quiroga (1982) ofereceu elementos para análises com estudos sobre o parentesco,
a formação do bairro, as relações de vizinhança, o trabalho produtivo (assalariado ou não), o lazer, a
alimentação e também a habitação.
Na perceptiva de estudos sobre “família operária”, artigo de Rosilene Alvin (1979)
numa vila operária na região metropolitana do Recife mostra que o trabalho industrial, apesar de
externo à área doméstica, se realiza de forma complementar na vivência familiar, não somente no
sentido econômico, inclusive porque a indústria não é a única fonte de renda das famílias que têm
que buscar outros meios para a “reprodução do grupo doméstico”, mas porque altera a dinâmica
interna da família, impondo horários e datas e ensejando uma forma de solidariedade entre as
pessoas que criam práticas e costumes para a dinâmica das vilas operárias, especialmente no tocante
ao parentesco e à vizinhança.
Na vila operária as famílias trazidas do meio agrícola para trabalhar passam a viver uma
cotidianidade adequada aos interesses da fábrica em que os papéis e valores familiares camponeses
recebem interferência, especialmente em relação ao trabalho masculino, que é preterido pelo
trabalho feminino, pois há preferência por tecelãs. Os valores em relação a “chefe de família”, “mãe
de família”, “dona de casa”, “consumo doméstico” e “trabalho feminino” são descritos pela autora
de forma a revelar as tramas sociais e as múltiplas estratégias da família para a sobrevivência.
Essa visão marxista foi amplamente desenvolvida por sociólogos e outros teóricos das
Ciências Sociais, como antropólogos e historiadores, mas sua influência é também percebida em
outras áreas, como a Psicologia, a Nutrição e a Demografia, como denotam os estudos da
Associação Brasileira de Estudos Populacionais – ABEP (1982), em que profissionais dos estudos
demográficos fizeram suas análises populacionais como amparo da reprodução da força de trabalho,
considerada determinante para a compreensão dos processos de migração, de urbanização, da
família, de parentesco, da pobreza, da nutrição, da condição feminina e do trabalho
91
.
A literatura sobre família nas décadas de 1970 e 1980 utiliza demasiadamente o termo
“reprodução” como palavra indispensável a qualquer texto, no entanto, principalmente no tocante às
Ciências Sociais, são leituras ricas a respeito da visão de mundo, o trabalho e economia familiar. Ao
se debruçar sobre esses temas, sociólogos e antropólogos ultrapassam as concepções econômicas e
reprodutivistas que os vocábulos impõem e revelam a cotidianidade das famílias. Em muitos
91
ABEP (1982): “A reprodução dos trabalhadores na periferia de São Paulo” (Lilia Montali);
“mulher e reprodução em favelas de Belo Horizonte” (Maria do Carmo Vale e Lea Silva);
“Trabalho feminino e planejamento familiar” (Ivonete Xavier); “uso potencial das redes de
parentesco como alternativa metodológica para o estudo da migração na América Latina (Luís
Aragon) e outros apresentados no seminário”.
334
escritos, o termo “reprodução” pode ser substituído por “modo de vida” sem prejuízo dos conteúdos
(FAUSTO NETO, 1982; ALVIM, 1979).
A discussão sobre a reprodução é ampla e teve repercussões em áreas diversas do
conhecimento, mas o vocábulo reprodução e seus desdobramentos são anteriores às discussões da
família na década de 1970, enfatizada nesse texto. Bilac (2000) chama atenção para o uso da
palavra “reprodução” em outros discursos teóricos, mas credita ao pensamento feminista a ênfase
do conceito “entendido como ‘esfera’ ou ‘instância’ específica da vida social, reservada à produção
social da vida e dos seres humanos” (BILAC, 2000, p. 30). A autora explica, ainda, que essa esfera
é organizada pelas relações de gênero, sendo fundamentada na divisão sexual do trabalho, mas
distinta, apesar de articulada, da produção de bens e serviços que, segundo ela, é um espaço
privilegiado da subordinação feminina.
Essa visão influenciou significativamente os estudos da década de 1970, mas tem raízes
muito anteriores. Na Roma antiga, ser de uma família significava pertencer a um grupo social e
político, sem a possibilidade de mobilidade, da mesma forma que se viu com a família patriarcal no
Nordeste, pois participar de uma família de um senhor de engenho e, posteriormente, de um coronel
por consanguinidade, afinidade ou parentesco, significava uma aceitação à visão política desse
“chefe de família”.
Há, no entanto, certo desligamento desse tradicionalismo político-familiar com o
advento do “desenvolvimento”, mas, para muitos pensadores desenvolvimentistas, a família
permanecia mergulhada no atraso, e sua maior expressão era a subordinação feminina determinada
pela reprodução biológica e expressa socialmente na divisão sexual do trabalho.
Mesmo exercendo forte influência nas relações sociais, a família não detinha mais o
poder de controle de outrora; com a migração, a urbanização e a industrialização, nasciam também
outros anseios no grupo familial. Simultaneamente ao processo social de modificação das condições
de trabalho, há o estabelecimento de novas relações. Assim, a reprodução não se separou da
produção, mas estabeleceu entre essas instâncias novas relações.
Na vida familiar rural, a reprodução e a produção estavam intimamente ligadas; quanto
maior o número de filhos, maior o quantitativo de pessoas no processo produtivo de trabalho da
família na terra. No espaço urbano, a lógica não permanece a mesma em decorrência da idade
produtiva em termos biológicos e do próprio modo de produção que situa em condições de paridade
o pai, a mãe e os filhos, que apenas representam mercadorias a oferecer sua força de trabalho,
desconsiderando a história produtiva anterior de cada um e a hierarquia familiar. Com efeito, se
335
alteram também as relações de poder na família, no sentido de que os mais jovens se qualificam
melhor e são mais adaptados a esse mundo do trabalho urbano.
Esse mundo do trabalho teria produzido uma “fragmentação” da família; alguns
nomeiam de “crise da família”, haja vista o fato de que, como instituição, há uma perda de funções
na socialização, na educação e na formação política, que passam a ser compartilhadas também pela
escola. O espaço privado da família está cada vez mais público, com profissionais e leis que
interferem na autoridade
92
e distribuições de papéis na família.
As famílias caracterizadas como organismo, dividido em funções para manutenção do
grupo social familial – que serve de ligação com os demais grupos sociais, coadunados, de certa
forma com interesses da reprodução da sociedade capitalista – têm aparentemente perdido suas
funções de procriação e manutenção da reprodução da sociedade, na medida em que diminui o
número de filhos e aumenta a longevidade da população
93
.
A sociedade capitalista adquire nuanças diferentes com o avanço das tecnologias e das
formas de trabalho. Isso resulta numa modificação das famílias e dos papéis sociais dos seus
participantes. As modificações do padrão nuclear se expressam de formas diferentes nas também
variadas condições de classes sociais; não como uma continuidade do modelo patriarcal, nem uma
instituição falida, mas como uma organização social passível de viver no seu tempo social.
Os estudos sobre família e reprodução representam valiosas contribuições para a
Sociologia da Família no Brasil e suas temáticas sobre o consumo doméstico, a reprodução da força
de trabalho, o trabalho feminino, a estrutura da família e dos papéis como retrato de um modo de
vida familiar, especialmente porque abordam o tema família no momento de sua migração do
espaço rural para os centros urbanos. Desse modo, os conceitos refletidos pelos autores ainda são
bons referenciais teóricos para compreensão das famílias pobres urbanas.
Dessa compreensão, no capítulo seis, analiso a gerência da mulher na unidade
doméstica e menciono os conceitos de “consumo doméstico”, “mãe de família” e “dona de casa”,
para explicitar a dinâmica das famílias analisadas na pesquisa. Desse modo, o pano de fundo da
“reprodução” foi fecundo para as análises das famílias de baixa renda. A literatura sobre família
como reprodução da força de trabalho, associada às pesquisas empíricas da tese, forneceram
92
Cynthia Sarti fala sobre as interferências legais e lembra que “O ECA dessacraliza a família a
ponto de introduzir a idéia da necessidade de se proteger legalmente qualquer criança contra seus
próprios familiares, ao mesmo tempo que reitera ‘a convivência familiar’ como um ‘direito’ básico
da criança”. (2005b, p. 24).
93
“Prossegue a redução gradual do tamanho das famílias”. Esta é uma das noticias em destaque no
site oficial do IBGE a partir dos dados da PNAD de 1999. A notícia enfatiza ainda que o número
médio de membros da família é de 3,4 pessoas por família (IBGE 13/05/2009).
336
elementos para minimizar a força econômica na reprodução da família, pois, mesmo sem a garantia
das condições mínimas de sobrevivência, a família se reúne em rede e continua sua trajetória de
busca de unidade, agrupando-se em famílias extensas. Não se desfaz, antes faz-se complexa.
A família, agora, vivendo no urbano, interagindo com um novo modo de trabalho e
sobrevivência, cria também outras expressões na sua apresentação, configurando-se de formas
diversas em arranjos familiares que podem incluir até mesmo “não-famílias”, conceito utilizado
para dados censitários referindo-se a famílias de pessoas morando sozinhas.
3.3 A COMPLEXIDADE DOS LAÇOS FAMILIARES
A família saiu da “casa grande” de Gilberto Freyre e foi para a cidade vivenciar
transformações no mundo do trabalho e também na esfera íntima. Ao falar em família, tem-se de
ponderar acerca das mudanças na conjugalidade que a cada dia se diversifica mais da união
heterossexual com filhos. Lembrar que essas uniões são feitas e refeitas, esse é um fator para
preferir falar em “famílias” no plural. Ante as possibilidades de estruturação das famílias e da
complexidade em sua realização, intenta-se uma reflexão sobre o que são as organizações
domésticas em redes.
Na sua evolução, as famílias vão se tornando complexas e delineiam novas formas de
vida em família. Há uma valorização cada vez maior da individualidade, em que cada pessoa,
baseada nos seus direitos de cidadã, considera ser livre para fazer sua opção de moradia e sexual,
não se sentindo, assim, forçada a constituir uma família ou a continuar presa a uma outra pessoa
por um casamento.
Sobre as famílias moradoras dos bairros populares nas grandes cidades, é possível ainda
ponderar a questão da individualidade entre os pobres, tendo como referência que se trata de uma
marca da sociedade moderna de caráter definidor das organizações familiares em núcleos. Assim,
emerge o questionamento sobre a individualidade e os pobres que vivem em redes familiares: eles
estão impermeáveis a esses valores? Não, esta tese aborda conflitos advindos dessa relação em que
agem novas e antigas ideias em confronto na família, especialmente entre os idosos e os jovens nas
famílias analisadas, no entanto as condições de vida impõem o imperativo da sobrevivência e da
coletividade.
337
De um modo geral, no movimento de transformações da família, as pessoas se associam
em estruturas familiares, vivendo com parentes, ou, então, se dissociam: passam a morar sozinhas,
constituindo família unipessoal (IBGE) ou não-família (GOLDANI, 1994:12). Além do tipo não-
família nas sociedades atuais, Ana Maria Goldani destaca a importância do crescimento do modelo
monoparental (pai ou mãe com filhos). Com apoio nos números da PNAD de 1989, as famílias
monoparentais já representavam o segundo lugar no total das famílias, só perdendo para o tipo
ainda mais comum de casais com filhos (GOLDANI, 1994, p. 13).
O que se observa é uma complexidade, expressa de formas diversas, mas adequada à
lógica interna do grupo. A família não se prende mais a um modelo por questões de conveniência e
se adapta, enquanto forma suas condições, seja se afastando dos parentes ou se organizando em
rede, de acordo com suas necessidades. Nessa perspectiva, esta análise busca compreender a
família em suas diversas expressões, malgrado a rigidez dos conceitos. Assim, para melhor
compreender os modos de vida da unidade doméstica, adoto a expressão “complexidade familiar”
(SILVA, 2001) por considerá-la mais capaz de incluir as diversas expressões e formas de
organização das famílias no Pirambu.
A “complexidade”
94
das formas de vida familiar foi objeto de ensaio de Cristina Silva
(2001) num bairro antigo de Lisboa. A autora definiu seu estudo desde a constatação do elevado
número de famílias alargadas (extensas) e múltiplas (dois ou mais núcleos) na Alfama (bairro antigo
da Capital de Portugal).
Sobre a conceituação de famílias complexas, Silva (2001) considera a complexidade
expressa em famílias alargadas (família com um núcleo conjugal no qual coabitam “outros
parentes” que não sejam filhos ou cônjuges); múltiplas (família em que coabitam dois ou mais
núcleos conjugais). Tomando por base essas nomeações portuguesas, esta análise recai sobre as
famílias complexas e também sobre as redes de parentesco e vizinhança em que a família se
ramifica, mas não se afasta.
Sobre as dimensões da complexidade das “Famílias em Portugal”, Karin Wall ressalta
que,
Para além das famílias simples [um núcleo de casal ou de um casal com filhos: famílias com
apenas um núcleo], o grupo doméstico pode incluir outras pessoas não aparentadas, outros
parentes e ou outros núcleos aparentados, tratando-se então de um grupo doméstico de
‘família complexa’. ( 2005, p. 561).
94
A expressão “complexidade familiar” é bastante usada em Portugal no estudo de famílias
extensas e multinucleadas. Considero a ideia de complexidade pertinente para a análise das famílias
pobres e seus arranjos familiares em rede distintos das famílias simples, mononucleares.
338
No Pirambu, as famílias complexas também são uma recorrência, notadamente, mais
acentuado que a complexidade observada nos estudos portugueses. As famílias do Pirambu estão
no meio urbano, como em Alfama, mas vivem em condições de extrema indigência no tocante a
pobreza das condições de vida
95
e chegam a ter mais de três núcleos na mesma casa, acentuando a
complexidade familiar.
A palavra complexidade nas análises sociológicas de família vem das Ciências Sociais
de Portugal (SILVA, 2001; VASCONCELOS, 2003; WALL, 2005), em que a expressão é
largamente utilizada para nomear os arranjos familiares que diferem das famílias simples, formadas
por pai, mãe e filhos – a família nuclear. A literatura sobre família em Portugal enfatiza o
fenômeno da “co-residência” em modalidades de famílias alargadas e múltiplas
96
.
Sobre os grupos domésticos em situação de “co-residência”, Karin Wall leciona:
Tanto no passado como no presente, os grupos domésticos de co-residência são
configurações instáveis, de contornos variados, que se fazem e desfazem em função de
acontecimentos individuais e familiares e também sob o efeito de mudanças sociais e
movimentos da população que afectam a dispersão geográfica e a situação econômica dos
membros da família. (WALL, 2005, p. 553).
A Sociologia portuguesa lança luzes para pensar a questão da corresidência e sua
variação nos diferentes grupos domésticos. Neste estudo, esses referenciais são citados pelas
características de serem os brasileiros herdeiros dessas tradições familiares (HOLANDA,1995;
FREYRE, 2001; DUARTE,1966) e pelo uso extensivo do termo complexa, que também adoto para
análises de família. Cabe lembrar que, nesta análise, a palavra complexa não se restringe à unidade
doméstica de um mesmo “tecto”, mas à rede de relações na família que pode se dar também na
vizinhança, formando um sistema de parentes vizinhos. Essa perspectiva compreende que os
limites da família não se restringem à moradia, mas aos laços de parentesco e ajuda mútua. Assim,
a organização familiar complexa significa uma visão que ultrapassa a organização simples.
95
Fazendo uma analogia com o bairro de Lisboa, percebi que há uma certa seguridade social, pois a
população tem acesso a empregos e aposentadorias, enquanto, nas famílias do Pirambu, o
rendimento formal é escasso e em muitas casas os adultos, economicamente ativos, nunca tiveram
registros nas carteiras profissionais.
96
A literatura portuguesa sobre família partiu das tipologias presentes no estudo de Laslett, da
escola de Cambridge. Nesse sentido, Karin Wall refere que “Utilizamos aqui a tipologia de Laslett
(1972), recorrendo apenas à secção da tipologia que diz respeito aos grupos domésticos de famílias
simples, de família alargada e de família múltipla...” (WALL, 2005, p. 560); Pedro Vasconcelos
expressa que: “Desde cedo os historiadores do Grupo de Cambridge (Ver Hammel e Laslett, 1974)
tiveram em atenção as situações em que os agregados domésticos não se quedavam pela existência
de núcleos familiares simples, comportando ainda, para além do núcleo, outras pessoas ou mesmo
outros núcleos. Em ambas as situações, estamos em face ao que se convencionou chamar de
agregados domésticos de famílias complexas. Na primeira destas duas situações estamos em face
de agregados alargados; na segunda, em face de agregados múltiplos”. (VASCONCELOS,2003, p.
83, grifos meus).
339
O uso do termo complexidade para analisar as famílias se justifica pela própria
etimologia da palavra latina complexus, que significa entrelaçado, tecido junto. A palavra é
empregada por vários cientistas com significado comum de um pensamento não simplificador, não
conclusivo, mas composto por variáveis. Na Sociologia clássica, o vocábulo complexo também foi
aplicado por Durkheim (1999) para explicar a divisão social do trabalho, opondo as formas de
solidariedade mecânica (simples) e orgânica (complexas).
Sobre complexidade e família, o estudo de Cristina Santos Silva (2001), realizado em
Portugal, aborda as dinâmicas e solidariedades em famílias complexas. Ao buscar compreender a
reabilitação urbana num bairro antigo de Lisboa, a autora descobre em Alfama uma intensa
dinâmica social não adequada as suas preocupações iniciais com o abandono do lugar ou perda dos
traços culturais. Ela descreve o fato de que as dinâmicas familiares chamaram sua atenção e a
motivaram a realizar sua dissertação de mestrado sobre a complexidade da vida familiar na área da
Sociologia da Família. Para Silva, sua atenção (2001, p. 15) “... veio a centrar-se na existência de
numerosas famílias alargadas e múltiplas que residem nesse bairro e, para minha perplexidade, na
maioria dos casos, em habitações inadequadas a tais estruturas familiares”.
A pesquisa que realizei no Pirambu tornou-se um importante referencial para a análise
das famílias em bairros pobres, pois observei com os moradores situações de complexidade
familiar, sendo que em condições de precariedade bem mais acentuadas do que as notadas pela
autora em Lisboa. Na Alfama, as famílias extensas (alargadas) contavam com um ou dois membros
vivendo junto ao núcleo familiar na unidade doméstica, enquanto registrei aqui a existência de mais
de dois núcleos e, em alguns casos, até mais, se somando a uma residência. Desse modo, estudar a
complexidade familiar num bairro popular de Fortaleza representa uma busca para compreender,
além das organizações familiares, o modo de vida das pessoas pobres que recorrem à rede de
parentesco para manutenção de um padrão mínimo de moradia e alimentação que garanta sua
sobrevivência.
No Brasil, o padrão habitacional e de renda mínima não chegou à maioria da
população, como ocorreu nos Estados europeus, na passagem por um Estado de Bem-Estar Social,
de modo que ainda se vive em precárias condições de vida e moradia, expressas de maneira mais
latente nas periferias e se apresentam nesse estudo com base nas organizações familiares aqui
denominadas de complexas.
As famílias extensas são percebidas por outros pesquisadores, mas não chegam a ser
analisadas, pois lhes é atribuída a menção de efêmera, passageira, como um recurso para possibilitar
a continuidade familiar em períodos de “crise” (BANCK, 1980; CORRÊA, 1993; MELLO,2000).
Percebo, no entanto, que essa efemeridade perdeu esse caráter para dar espaço à regularidade.
340
Muitos participantes das famílias não vislumbram mais a possibilidade de voltar a pertencer a um só
núcleo e mencionam como “sonho” ter uma casa.
Heraldo Pessoa Souto-Maior (1999) fez um levantamento dos estudos de comunidade
no Brasil, no qual analisa organizações familiares, em especial no Nordeste, em que busca
“identificar as semelhanças e diferenças existentes na forma de organização das famílias”. Alguns
desses estudos falam em famílias extensas, no entanto essas famílias não são o foco das pesquisas.
Elizabete Bilac (1991, p. 76) refere-se a “famílias ampliadas como momentos transitórios e
possíveis na vida de uma família nuclear...”. Mariza Corrêa (1993, p. 36) questiona se “as redes
mais extensas de relações, familiares ou outras, não são repostas mais adequadas às pressões do
mundo capitalista?” Sejam respostas ou não, essas famílias representam um fenômeno social
recorrente nas periferias urbanas. Alguns pensadores chegam a nomear essas famílias como
“coalizão” (BANCK, 1980), “aglomerados familiares” (MELLO, 2000); “família grupal”
(FERRARI apud SOUTO-MAIOR, 1955), mas não se debruçam em suas análises sobre a
complexidade familiar como um fato social.
Os grupos domésticos complexos se formam com o agrupamento de parentes. Em
alguns casos, o casal já inicia sua união na casa dos pais, formando um tipo familiar que se soma
numa rede. O fio dessa rede é o parentesco que liga as pessoas pela consanguinidade e pela
afinidade, formando famílias complexas que se apoiam nas suas redes de relações de parentesco-
vizinhança para assegurar a sobrevivência.
Nesta perspectiva, o parentesco tem um lugar central nas comunidades tradicionais
rurais e nas periferias urbanas da cidade e pode ser uma base sobre a qual se organizam muitas
famílias em precárias condições econômicas e, principalmente, de moradia. Esta análise privilegia a
família como unidade social, que não se confunde com o parentesco como sistema, objetivando
enfatizar a multiplicidade das formas de organização ocorrentes na família, que pode se estender ou
não ao parentesco e à vizinhança.
... as famílias pobres dificilmente passam pelos ciclos de desenvolvimento do grupo
doméstico, sobretudo pela fase de criação dos filhos sem rupturas (Neves, 1984, Fonseca,
1987 e Scott, 1990), o que implica alterações muito freqüentes nas unidades domésticas. As
dificuldades enfrentadas para a realização dos papéis familiares no núcleo conjugal, diante
de uniões instáveis e empregos incertos, desencadeiam arranjos que envolvem a rede de
parentesco como um todo, a fim de viabilizar a existência da família. (SARTI, 2005, p. 29).
No tocante às famílias pobres em Fortaleza, a pesquisa de Socorro Osterne foi realizada
no bairro Autran Nunes, uma localidade de periferia do lado oeste da Cidade. Em seu estudo
341
Família, Pobreza e Gênero, ela observou que a organização da família se amplia no parentesco e
expressou que
...Encontrei um grande número de mulheres sós, criando suas proles sem ajuda dos homens
e nem sempre filhos dos mesmos pais. um bom número de que guardavam relação de
dependência da figura da avó ou mesmo de uma irmã mais velha. Em todas as situações, a
família não estava desestruturada, mas organizada segundo os padrões de necessidades que
lhe eram peculiares. (OSTERNE, 2001, p. 184)
.
A comunidade estudada pela autora vive em condições de acentuada pobreza e habita
um terreno invadido desde 1992. Sendo assim, é uma comunidade bem mais jovem do que o
Pirambu, cuja ocupação data da década de 1930, mas tem em comum a necessidade de apoio na
família e na rede de parentes. Nesse sentido, a autora escreve que
Encontrei, em alguns casos, grandes aglomerados familiares, compostos pelos membros de
uma mesma família, irmãos, irmãs, avós tios, tias, primos, parentes e afilhados formando
uma grande teia de relações. Além do mais, filhos com filhos que não saem ou retornam ao
núcleo de origem ou mesmo jovens casais que preferiram arrumar um pedaço de terra onde
já viviam a ter que se afastar do espaço familiar. (OSTERNE, 2001, p. 184).
Sobre o processo de individualização entre os pobres nas famílias extensas, Socorro
Osterne (2001) destaca que a questão da individualidade parece ser um dilema mais peculiar às
camadas médias.
Os pobres parecem que não estão vivenciando essa dimensão individualizada da identidade
social própria da contemporaneidade. Os recursos simbólicos para a construção desse
projeto de individual pressupõem condições específicas favoráveis de educação e valores
sociais inacessíveis aos pobres, cuja lógica de reciprocidade respalda-se essencialmente nos
laços de parentesco e de vizinhança através dos quais viabilizam sua condição de existência.
(OSTERNE, 2001, p. 90).
Osterne explica que seria engano, no entanto, supor que os pobres não valorizam o
individualismo, no entanto, entre as classes populares, a ideologia familialista valoriza mais a
unidade doméstica do que a categoria indivíduo, mas não há desvalorização “Apenas não
caracteriza uma efetiva conversão, como ocorre com as famílias da classe média”. (2001, p. 91).
O estudo da autora corrobora esta análise por se situar em uma periferia de Fortaleza e
pelas características descritas sobre a família, que denotam a complexidade da organização familiar
em rede e relevância da família entre os pobres, especialmente as pessoas que vivem em condição
de extrema indigência, que, não raro, dependem do apoio da rede de parentesco para sobrevivência.
342
Outra questão relevante sobre as famílias pobres é a provisão feminina nas famílias em
que coadunam as funções de donas de casa com o trabalho doméstico e a manutenção da unidade
familiar em associação à chefia familiar, mesmo com a presença do cônjuge (D`ÁVILA, 2008).
O estudo O cotidiano e relações de gênero em famílias de mulheres provedoras,
realizado para o doutoramento de Sande D`Ávila entrevistou 19 mulheres provedoras em Fortaleza,
sendo nove das camadas populares e dez dos extratos médios. Entre as mulheres da camada
popular, ficou evidenciado o trabalho feminino associado à atividade doméstica que, na ausência
laboral dos cônjuges masculinos, era o meio de manutenção da famílias, sendo que das nove
famílias analisadas nenhuma estava no mercado formal com vínculo trabalhista celetista. “As
famílias da camada popular vivem uma realidade de trabalho para as mulheres e de desemprego ou
sub-emprego para os homens. Nas nove famílias sete maridos encontravam-se desempregados”
(D`ÁVILA, 2008, p. 100). Diferentemente da autora, considero que o subemprego é uma realidade
para ambos, no entanto, as mulheres, mesmo nesta condição, conseguem trabalho com serviços
domésticos. No caso dos relatos com provedoras, citado pela autora, as mulheres são autônomas e
trabalham com serviços de faxina pela intermediação do SINE/IDT.
A autora oferece um dado interessante sobre a vida laboral das mulheres associada à
luta da casa no cotidiano com a família e socialização apreendida com a mãe na infância
A história de vida dessas mulheres em suas famílias de origem como co-responsáveis na
complementação da renda e na realização das atividades domésticas condiz com o que
escreve Perrot (2007:4) “a filha das classes populares é posta para trabalhar muito cedo,
geralmente em serviços domésticos”. (D`ÁVILA, 2008, p. 102).
Além da provisão e do trabalho doméstico com a dupla jornada de trabalho, as mulheres
da camada popular ainda “assumem a responsabilidade pelo equilíbrio emocional e a sociabilidade
do grupo familiar”. (D`ÁVILA, 2008, p.109). Nesta perspectiva de ação familiar muito focada na
mulher e nas expectativas que existem em torno da mãe, é que enfatizo a escolha do título desta
análise de luta da casa. Ela é a figura que “costura” as relações para manter a unidade familiar.
Os arranjos econômicos e redes de proteção na parentela, analisados no meio urbano do
Pirambu não atribuem à família contornos definidos para identificar suas funções ou definições
cabais. Observo o desenrolar de suas redes de relações no cotidiano, priorizando as formas de
solidariedade e conflitos, os papéis sociais e a hierarquia, bem como as concepções de valores, nas
versões de unidade e divisão. A família sugere uma unidade, mas essa aparente unidade camufla
múltiplas divisões de papéis e funções que resultam em valorização e desvalorização de cada uma
das pessoas no interior de um grupo fechado, cuja senha de acesso é o sangue e a identidade
343
familial, é o parentesco. Assim, ela é uma sociedade hierarquizada que forma uma comunidade e,
mesmo dilacerada em conflitos, sempre se apresenta como integrada.
A conversa com a literatura tratada neste capítulo buscou situar a trajetória das famílias
pobres em três momentos: família rural, transição para o urbano e a complexidade da família
urbana, para facilitar a compreensão sobre as famílias moradoras de periferia e herdeiras desses
movimentos, desde a casa-grande até os modernos lofts
97
de famílias unipessoais nos extratos mais
abastados, ou situando melhor, desde a senzala e os arredores da casa-grande até os quitinetes de
pessoas morando sozinhas nas periferias urbanas. Na casa grande, os pobres eram escravos ou
agregados apadrinhados e serviam ao seu senhor com forte crença na manutenção nos valores
familiares e de parentesco, como está exposto na primeira parte deste texto.
A segunda parte se refere à família como reprodução da força de trabalho, em que as
pessoas migraram do campo, deixando o modo de vida camponês para se tornarem operárias nas
cidades. Esta transformação se deu na literatura desde os estudos de comunidade nas décadas de
1950 e 1960 para os estudos de família como reprodução da força de trabalho nas décadas de 1970 e
1980. Essa passagem representa o movimento físico e social das famílias, no tocante ao modo de
produção e à maneira de vida rural/urbana que resultaram na alteração dos valores, papéis e funções
na unidade doméstica.
Ainda na busca constante pela sobrevivência, as famílias pobres vivem no espaço
urbano e a “visita” que empreendi à literatura dialoga na terceira parte com a complexidade da atual
organização das unidades domésticas. As famílias das camadas populares, ainda pobres, mas agora
urbanas, continuam utilizando a rede de parentesco como apoio para sobrevivência em virtude da
precariedade do Estado para oferecer o “direito à cidade”, restando a essas pessoas o apoio da
parentela para suprir, mesmo que parcialmente, suas carências, em especial, alimentação e
habitação. Essas unidades parentais ainda cultivam práticas e costumes rurais no tocante aos valores
de apoio aos familiares, herdados do modo de vida camponês, mas se confrontam com os valores
urbanos no tocante às uniões conjugais (antigas e novas, homossexuais ou heterossexuais) e à
criação de filhos. Assim, delineio a trajetória da conversa com a literatura, na migração, desde a
vida rural até a complexidade da vida familiar urbana, tendo na família como reprodução o
momento da sua passagem.
Os movimentos migratórios das famílias pobres do rural para o urbano, passando dos
antigos valores às modernas ideias que expressam o modo de ser família, fazem emergir unidades
domésticas complexas. Estas delineiam características significativas do modo de viver dos menos
97
Lofts são apartamentos sem divisórias (paredes) projetados para solteiros.
344
favorecidos que concorrem para acentuar questões sociais, como a educação das crianças e as
funções de pai e mãe. Desse modo, o avanço desta pesquisa e a revisão da literatura levam a refletir
sobre a complexidade dos laços familiares, e o tema caminha para compreender as bases simbólicas
que a fundamentam nas suas dimensões econômicas e também morais como rede de proteção.
4 DO RURAL AO URBANO: A TRAJETÓRIA DA FAMÍLIA DE DONA RITA
O material coletado no locus de minha pesquisa, e que apresentarei neste capítulo,
perpassa a história de migração de uma mulher que veio para a Capital em busca de uma vida
melhor. Retrato a trajetória desde o enlace matrimonial num município distante de Fortaleza,
passando pelo nascimento dos filhos, vida numa invasão na beira da praia e transferência
compulsória pelo Governo do Estado para uma casa de num conjunto habitacional. São fatos que
apresentam recorrências observadas nas situações de extrema pobreza: migração, mais de uma
conjugalidade, muitos filhos, moradia precária, urbanização e transferências de populações
vulneráveis. Desse modo, os fatos corroboram com a interpretação do modo de vida das famílias
pobres moradoras de bairros populares nas grandes cidades.
Minha narrativa parte de depoimentos em entrevistas gravadas e conversas informais
que tive com Dona Rita e seus familiares, participantes do ciclo de relações que caracteriza esta
família como uma “grande família” (com vários núcleos se inter-relacionando diariamente). São
relatos imbuídos de simplicidade e franqueza das respostas, por isso retratam as dificuldades,
alegrias e desafios que suscitam no cotidiano desta família. Estas falas serão trabalhadas com a
descrição etnográfica, que é o fio condutor de minha tese, e que tem como uma de suas
características a interpretação. Segundo Geertz (1989, p. 38) “[...] tirar grandes conclusões a partir
de fatos pequenos, mas densamente entrelaçados; apoiar amplas afirmativas sobre o papel da cultura
na construção da vida coletiva empenhando-as exatamente em especificações complexas”. Nesse
sentido, interpreto os discursos dos depoentes, de modo a intervir no que foi “dito”, trazendo estes
recortes sociais para a discussão e contextualização no âmbito sociológico.
4.1 A VIDA RURAL E A RELEVÂNCIA DA MULHER “SER CASADA”
O casamento
A narradora desta história conta que casou aos 16 anos porque queria sair de dentro da
casa do pai, com quem só foi viver depois dos 13 anos, pois era maltratada pela madrasta. A
menina Rita foi doada pela mãe aos quatro anos a uma família de Itapajé, longe do pai e da mãe.
345
Quando descobriu o nome de um parente, seu avó, fugiu da família com quem morava por sofrer
maus-tratos, para a casa deste aos 12 anos. Um ano depois foi morar com seu pai, que não se
relacionava bem com seu avô e, quando a jovem recorria ao avô, os conflitos com o pai se
acirravam ao ponto de ela pedir para casar com o primeiro que aparecesse. Foi então que, dentro de
três meses, o seu pai “arrumou” o casamento com um rapaz, o irmão da madrasta, bebarrão,
jogador nunca namoremo, ele chegava lá em casa e eu saia, você imagina como foi meu
casamento...
... então dentro de 3 meses esse casamento foi realizado. Só que quando eu me casei meu
marido não tinha onde me botar, eu fui pra dentro da casa da mãe dele, aí no dia seguinte,
no dia que eu cheguei lá, no outro dia, ele amanheceu o dia, se levantou aí pegou os
animais que ele era lenheiro, (...) isso amanheceu o dia sem ter um cafezinho, sem ter nada,
não tinha um pouquinho de café feito... fiquei esperando, só que quando ele chegou, ele
trouxe um pão e um saquinho de milho, o milho era para os animais dele, e o pão era pra
ele comer, eu tava com fome que eu não tinha merendado, não tinha comido nada, aí eu fui
lá na mala dele, abri, tirei meio pão e comi, eu tava com fome, eu tinha casado com ele,
pensava que eu tinha direito aquele meio pão, só tinha aquele, só que esse pedaço de pão
deu uma briga, a primeira briga... (Grifos meus).
Oito dias depois, da lua de mel de brigas, o casal teve uma discussão violenta, e o
marido, armado de faca, agrediu a esposa diante da sua família, que assistiu impassível, até que a
mulher desarmou o esposo, levando-o a se ferir com a faca e causando indignação na parentela
patrilinear pela sua atitude de ferir o marido. A briga novamente se deu, pelo relato da narradora, ao
agir no cumprimento dos seus deveres de mulher
... com 8 dias de casado ele comprou um kilo de carne de porco, lembro como se fosse hoje,
a casa era de palha, aí ele chegou com a carne, pendurou na cabeça do talo assim da palha,
do telhado só que lá não era telha, era palha, ele pendurou lá ai ele tinha trazido assim
metade, mais ou menos metade de meio kilo de feijão e tinha pendurado lá também, só que
eu tinha pegado o feijão e tinha botado no fogo, ele não mandou mais eu tinha botado lá,
também fiz o meu dever de mulher, quando ele chegou que eu tinha botado esse feijão no
fogo ele queria fazer eu comer esse feijão a força né, porque ele queria comer a carne
queria cozinhar a carne dele, queria a panela pra cozinhar a carne dele, eu digo ah Ronaldo,
sinto muito mais não vou comer esse feijão aí, eu achei que era pra botar no fogo e botei
como toda mulher faz, eu sei minha filha, pra encurtar a conversa, nesse dia até faca em
mim ele botou, aí me atraquei com ele tava pai, mãe, irmão tudo na sala, não teve um que
se levantasse nem pra dizer assim Ronaldo, o que é isso (...) minhas unhas era grande, aí
me atraquei com ele, no que eu fui tomar a faca dele eu cortei ele,quando eu cortei ele todo
mundo ave-maria se apavoraram, né? enquanto ele tava querendo me furar num teve quem
fizesse nada, continuei mais ele... (Grifos meus).
Em muitos relatos, minha presença é acentuada, quando ela se dirige a mim para
oferecer uma explicação e diz: minha filha... observei que minha presença a estimulava a continuar
a falar, sendo por vezes mais perturbadora a minha condição de ouvinte do que a sua de narradora.
Nesta perspectiva analítica, em que o pesquisador é sujeito, Laplantine (2004, p. 27) acentua que
346
“longe de ser considerado como um obstáculo epistemológico que conviria neutralizar, é uma fonte
infinitamente fecunda de conhecimento.”
Na fala da narradora há um discurso acentuado de direitos e deveres da mulher no
casamento e, nessas duas brigas relatadas. ela se defende, asseverando que está no “seu direito” de
comer o pão que o marido comprou e no “seu dever” de preparar alimento para a sua família. Entre
as mulheres interioranas, os papéis e funções são bem determinados, e a mulher casada tem direitos
e deveres, como consta no relato de Rita. Sobre esses direitos, a sua maior reclamação para com o
cônjuge desde o primeiro dia de casado é a provisão alimentar que o cônjuge não cumpria, deixando
a mulher insatisfeita nas suas expectativas matrimoniais.
Mas ele nunca trazia nada assim pra chegar trazer e nem me dava nada, não me dava
merenda não me dava almoço não me dava nada absolutamente nada, eu vivia nessa
situação a única peça de roupa que eu tinha, quando era de noite eu tirava me enrolava com
uma tanga era meu lençol, uma tanga de rede,eu tirava me enrolava, lavava a roupa,
estendia pra no outro, dia vestir, assim eu vivi 3 anos com essa criatura,eu não queria passar
fome aí resolvi trabalhar nas capoeira, quebrando milho, plantando feijão, essas coisa de
roça, mais eu sobrevivia assim eu comprava as coisinha nas budega, quando era final de
semana eu pagava as coisinha nas budega quando era final de semana eu pagava o que eu
comprava pra mim, mas nessa situação eu ainda tive 3 filhos com ele, pra completar aí veio
os filho ele nunca comprou uma lata de leite, porque o povo que ele vendia na feira nunca
pagava ele, a lenha tinha sido fiado.
Além do não-cumprimento da provisão de alimentos na família, o cônjuge ainda era
disposto a festas, enquanto deixava a mulher e a filha pequena em casa sem ter alimentos, mas
Dona Rita era uma mulher de averiguar os fatos e, bem disposta, se dispunha às brigas com o
marido em enfrentamentos na rua ou em casa.
Quando foi um dia, minha filha, a minha meninazinha, chorando com fome. Nesse dia era
dia dele receber dinheiro, Quando ele chegou em casa disse que não tinha recebido
dinheiro. Quando foi umas 8 hora, ele disse: Rita, me empresta aí tua chinela que eu vou lá
no seu Maninho pegar meu dinheiro. Tudo bem, pegou minha chinela, meteu nos pés, saiu
era umas 8 hora mais ou menos aí passou, passou 10, passou 11, passou 12, eu digo:
Menino cadê esse Ronaldo, aí eu peguei fiz uma garapinha d’água botei na mamadeira dei
a menina, aí saí, minha filha, tranquei a meninazinha, bebeu uma garapinha, deitei ela na
redinha dela, tranquei a porta e saí, saí caminhando aí fui bater nessa festinha onde tinha,
saí pescando fui bater lá. Cheguei lá, minha filha, tava meu marido lá no forró, dançando
pagando galinha pras outra que tava dançando com ele, e eu em casa e a minha filha sem
nada, aí quando ele me viu ainda quis me empurrar, mas eu não era muito mole nessa
época, saímo no telekete ... o pau comeu.
Da fala da narradora, emergem práticas cotidianas de dormir em rede e compartilhar um
calçado com o marido, mas principalmente práticas sociais da família no compromisso de alimentar
os filhos e nos valores dos papéis de homens e mulheres na condição de ser esposo e esposa, pai e
mãe, muito enfatizada por Dona Rita no campo das expectativas que, não cumpridas, a levavam ao
descontentamento com o marido e com o seu casamento.
347
Apesar das brigas e do sofrimento de privações de alimentos com os filhos em casa, não
foram esses os motivos da separação do casal, mas a infidelidade do marido, trazendo uma jovem
de quem estava “enamorado” para dentro de casa.
Lá tinha uma criaturinha que tinha se perdido com um homem casado e parece que
engravidou desse homem casado... Ele só dizia que era de um homem casado, e o pai dela
botou ela pra fora, botou ela de casa pra fora, aí ela foi pedir abrigo a ele, ai ele chegou lá.
Rita, a Rosimeire vem aqui pra casa, porque seu Raimundo botou ela pra fora de casa e a
pobre não tem pra onde ir. Eu digo: Como é que tu vai botar uma criatura se aqui não tem
nem pra mim, como é que tu vai trazer uma criatura pra cá. Não, mas ela vai passar só uns
dias, enquanto ela dar um jeito na vida dela. A partir desse dia que ele levou essa mulher, ai
minha filha todo dia tinha as coisa dentro de casa, aí apareceu café, apareceu comida, né?
porque a Rosimeirinha não podia ficar sem nada, com fome
.
A expressão “se perdeu” é usada para fazer referência as jovens que deixaram de ser
virgens, perdendo, assim, nos valores interioranos, bons critérios para o casamento. Na
continuidade da narrativa de Dona Rita, veremos como o homem é importante para a
respeitabilidade da mulher nas relações de pequenas cidades. Nessa perspectiva, o casamento é a
ligação legítima entre um casal, e suas coerções são explícitas nas falas de Dona Rita, que está
sempre “cumprindo” seus papéis e deveres de “mulher casada”.
A confirmação da traição do marido com a jovem “perdida’ foi o estopim para o fim da
relação e para ela deixar a casa e o cônjuge, no entanto, o fim do casamento foi difícil, pois o
esposo não aceitou a situação e se sentia com direitos em relação à esposa, sendo sua única opção
de retaliação impedir que ela trabalhasse.
Ai o que que eu fiz, deixei mais só que um belo dia eu peguei ele com ela, num disse nada
não, no outro dia peguei meus paninho de bunda e fui pra casa de uma amiga minha, ai
procurei um emprego e fui trabalhar. Eu esqueci de contar essa parte, ainda bem que Deus
teve compaixão de mim, porque os filhos que eu tinha morria, eu tive 3 filhos dele mais
morreu todos 3, todos 3,uma morreu com 11 meses, que foi a primeira menina, o outro
morreu com 24 hora e o outro morreu com 9 meses. Eu num criei nem um, mas tudo bem,
né, eu arrumei um emprego e fui trabalhar mas quem disse que ele deixava eu trabalhar,
ele, enchia a cara de bebida e ia fazer confusão na casa que eu tava trabalhando, ai a patroa
me botava pra fora, quem era que ia querer, né, uma empregada que tinha um marido que ia
brigar na porta, ninguém queria.
No seu relato, sobre o fim do casamento, chama a atenção o fato de os filhos serem
lembrados como um adendo à história do fim do casamento e da sua percepção de que Deus teve
compaixão de mim, pois os descendentes nascidos da união com o marido não resistiam e morriam.
Sobre trabalho, ela contou que, após a separação, arrumou três empregos como doméstica, mas o
marido a impediu de trabalhar, criando conflitos e levando a sua dispensa das atividades laborais.
348
Em virtude da necessidade de sobreviver e da perseguição do ex-marido, ela decidiu que só tinha
uma opção... ir morar com o cunhado.
Ele tinha um irmão solteiro que morava sozinho, esse irmão dele tinha... só o quê? 20 e
poucos anos, era mais velho do que ele, aí eu pensei, nessa época eu tinha 19 anos, ai eu
pensei sabe o que eu vou fazer, vou morar mais o Roberto que era irmão dele, porque eu
tando com o Roberto o Ronaldo não vai me pertubar porque ele tem medo dele. Assim eu
fiz, peguei as minha roupinha que eu também não tinha, botei numa sacolinha, juntei lá pro
Roberto, não era cidade não, era mato, interior... é um sertãozinho que tem lá, perto de
Maitá [Sobral]... aí eu disse: Roberto, eu vim morar mais tu. Tu é doida, Rita, eu sou um
homem sozinho, como é que tu vem morar mais eu. Eu disse: Rapaz, é o seguinte, eu não
tenho pra onde ir, o teu irmão botou uma mulher dentro de casa e, eu não posso trabalhar,
porque aonde eu vou trabalhar ele vai fazer confusão, aí o povo me bota pra fora, e eu não
posso, não quero ninguém, o único que pode dar certo é com você mesmo. Não dá certo
não, Rita, ele é meu irmão, não dá certo não, você ficar comigo não, pega mal, eu digo ou
pegando mal ou pegando bem eu vou ficar é aqui, minha vida toda vida foi assim
destrambelhada,quando eu digo que minha vida é uma coisa é porque é...
Ao que parece, o cunhado ficou sem reação, e minha narradora é uma mulher de ação
e sabia o que estava fazendo quando decidiu ir morar na casa do cunhado. Depois dessa atitude
destrambelhada, ela não fez nenhuma referência ao ex-marido, o que denota que ela estava certa
sobre ele recuar diante do irmão mais velho. O relato de Dona Rita foi coletado numa tarde
tranquila, e a trajetória de sua vida foi acompanhada por duas de suas filhas e uma neta, que
pareciam ouvir uma história de muita ação à espera da próxima cena, mesmo sendo uma narrativa já
conhecida pela família. Em algumas situações, as ouvintes pediam à mãe para contar detalhes de
alguns episódios. A história com o cunhado foi longa e viveram cinco anos juntos: nesses anos foi
uma paz uma harmonia, ele era um bom marido, um bom companheiro, marido não porque eu não
era casada com ele, foi da onde nasceu esse Rogério, o Rogério é filho desse meu cunhado, o
negócio é pra ri mesmo, eu não rio porque tenho que contar tudo...
Sobre as concepções morais da jovem Rita, é importante acentuar o valor atribuído ao
casamento, que, na sua fala, recebe uma menção de diferenciação entre as uniões com os irmãos. A
vida conjugal com Roberto, mesmo sendo mais respeitosa e harmoniosa do que o matrimônio com o
irmão mais novo, não era um casamento e, sendo assim, o companheiro, para ela, não era marido.
Continuando a narrativa, ela contou que, no outro dia após sua chegada à casa do
cunhado para morar, ele foi a Sobral fazer compras: quando chegou trouxe de tudo, trouxe de tudo
que podia ter dentro de uma casa, de alimento. Ela foi logo preparar o almoço, mas durante alguns
dias os dois viveram na mesma casa como irmãos. Sobre o cunhado, Rita sabia que precisava
assegurar seu lugar de “mulher” na vida dele e na liderança da casa. Então,
349
Ele tinha uma mulher no cabaré, todo final de semana ele ia pra esse cabaré, toda semana
ele ia pra esse cabaré, aí minha filha, quando chegou sábado a roupinha dele eu já tinha
lavado tinha engomado, uma roupinha de linho, ele gostava muito de uma roupa de linho,
linho branco, uma chapéuzinho de cowboyeu lavei e engomei a roupa dele, chega eu
tava tremendo, só que aí ele se ajeitou todinho aí saiu, eu saí também Rita pra onde é que tu
vai? Porque eu vou pro cabaré e tu vai pra onde? Eu digo ora, eu vou pro cabaré também.
Rita o que é que tu vai fazer no cabaré, lá o cabaré é só de mulher, tem nada não, quando
chegar lá você fica com sua mulher e eu fico sentada lá, fico lhe esperando. Eu sei que
fomo acima fomo abaixo, e ele você não vai, e eu digo eu vou, você não vai e eu vou, assim
nós andemo um tanto, uma travessia que só tinha mato, cerca de um lado, cerca de outro aí
ele parou. Rita, volta pra casa. Eu disse: Roberto, eu não vou voltar, eu volto se você voltar
se você não voltar eu também não volto, ele gostava muito de usar uma peixerona desse
tamanho, sabe, aí ele puxou a peixeira, eu digo, meu filho, é o seguinte se você puxou essa
peixeira pra me matar a hora é essa, tamo eu e você cercado, tamo aqui a sua disposição,
você que sabe se você não quiser que eu vá, quer me matar e jogar no matagal você que
sabe, não tenho mesmo pra onde ir , aí ele meteu a faca na bainha, vamos pra casa vamo
Rita. Pronto essa foi a discussão que nós tivemo na vida, aí eu passei a ser mulher pra ele.
Ela conta que viveram cinco anos juntos de muita tranquilidade, mas ele se envolveu
numa briga para defender um cumpade e recebeu pauladas na cabeça ficando com três graves
fissuras que o levaram à morte. Na narrativa da morte, no entanto, a causa apontada foi trabalho de
uma macumbeira por causa de umas vacas da mulher que invadiram o plantiozinho do casal e foram
enxotadas pelo cachorro da família. Então, no outro dia, a macumbeira foi à casa da família
reclamar que o casal tinha botado os cachorro nas vacas dela e jurou o Roberto de morte. Poucos
dias ele adoeceu e foi avisado por outro artífice nas artes sobrenaturais que ele sobreviveria à
doença, mas, se ingerisse bebida alcoólica, morreria.
Algum tempo depois, Roberto disse a Rita que iria ao casamento de um amigo lhe
dizendo: tu frita aí duas galinha que eu vou levar dois litros de cachaça para vender. Ela explicou
que quando fazem festa cada um leva uma mesa com galinha e cachaça pra tirar o gosto da bebida.
Nesse dia, ele bebeu e foi cumprindo o aviso recebido.
Após o ferimento, Roberto foi levado ao hospital, mas não havia como salvá-lo. Ela
contou: eu lutei com esse homem três meses e oito dias dentro de casa. O casal morava em terra
alheia e o pagamento pelo uso da terra era feito com o trabalho. Assim, disse ela: minha filha, só
deu tempo ele ser enterrado me botaram pra fora, porque eu era mulher e quando os filho vieram
pra trabalhar no pesado junto com os outro morador me botaram pra fora, eu fiquei como merda
n’água com dois filhos. À época ela tinha dois filhos, um menino de quatro anos e uma menina bem
novinha.
Sem meios para prover os filhos, ela conta que teve algum amparo de amigos e parentes
vagando de uma casa para outra, enquanto tinha algum dinheiro da venda dos porcos e das galinhas,
pois não tinha onde botar, mas logo que o dinheiro acabou aí o povo começou a botar cara feia pra
350
mim, a família dele começaram a botar cara feia pra mim. Nesse momento, ela cita uma senhora
chamada de Dona Rosângela, que a abrigou, mas eu não tinha como trabalhar porque não tinha
quem cuidasse dos menino, eu fiquei numa situação tão triste. Ela contou que os filhos não tinham
o que comer, e foi para as ruas pedir esmolas:
Eu ver os meus 2 filho chorando com fome, e eu não ter como dar nada, saía eu pegava o
Rogério, botava um no braço e arrastando o outro ia pra rua pedir esmola pelo mercado e
agora as humilhação que eu aguentava, que eu era uma mulher nova, eu era nova mesmo,
tenha vergonha, você é uma mulher tão nova vá trabalhar, arrume um homem, como é que
você vive pedindo esmola, eu só fazia baixar a cabeça, mais eu agradecia.
Esse período de mendicância foi difícil e com muitas humilhações. Nas falas, se
percebem os valores sociais de honra da mulher que deve se alimentar do fruto do seu trabalho ou
então recorrer a um homem que a sustente. A condição da mulher de não ter marido entre as
mulheres no interior ou mesmo na Capital é apontada como uma certa “ineficiência” da mulher que
não consegue arrumar um homem; como sendo o companheiro masculino uma condição de
valorização da mulher na família e na rua.
Diante da situação de fome da família, ela decidiu dar a filha para ser criada por outra
pessoa, mas, mesmo assim, a meninazinha morreu, só o couro e o osso. Com a morte prematura da
filha, ela ficou somente com o filho Rogério. Nessa época, conheceu sua mãe, que lhe indicou o
caminho de Fortaleza.
4.2 A CHEGADA À CIDADE GRANDE E A LUTA POR UMA CASA
Aos 25 anos, Rita conheceu sua mãe em Sobral, que, vendo a situação de penúria da
filha, a convidou para vir a Fortaleza, mas lhe disse que não poderia ficar com ela e lhe indicou
caminhos: mais tem três caminho pra você seguir um emprego, uma casa pra morar e uma pensão,
uma pensão quer dizer o quê? Casa de mulheres, né? é dois caminho, eu escolhi um emprego e um
canto pra mim ficar, aí foi quando eu vim pra cá, aí ela me trouxe.
Contou que ao chegar foi morar em Caucaia (cidade limítrofe com Fortaleza), num
quartinho que alugou de um soldado. Sua mãe conhecia uma senhora que trabalhava pras banda da
Aldeota, e minha mãe pediu pra arranjar um emprego pra mim. Ela conseguiu emprego e contou
que para trabalhar precisava deixar o seu filho Rogério em casa trancado para poder sair e, quando
recebeu o primeiro salário, alugou um quarto próximo ao seu local de trabalho.
A narração não tem uma linearidade, e os eventos nem sempre se ligam a uma ordem
lógica e muito menos cronológica. Na sua fala, ela diz que estava trabalhando no bairro Aldeota
e, ao receber os seus primeiros proventos, locou um quarto perto de onde trabalhava lá pras
351
banda do Aeroporto, na Vila União[bairro], onde alugou um quartinho mesmo, era só eu e meu
menino.
O narrador (BENJAMIN, 1983) não vem, necessariamente, de longe Ele é alguém
que pode ser simples, como Dona Rita, mas é o recordador e na sua memória traz consigo o
sentimento do grupo familial. A história de vida da narradora é a história da migração, da
pobreza e da mulher que vem para a cidade se submeter a morar numa invasão e sonhar com um
lar para sua família.
Morando perto do aeroporto de Fortaleza, ela trabalhava numa cantina da CAGECE
Servia a comida de todo mundo, servia minha casa também, era pertinho eu ia deixar pra ele
[filho Rogério] lá, assim eu vivi um bocado de tempo. O filho, porém, adoeceu de sarampo, e ela
teve que deixar o emprego, pois não tinha meios da vizinha que lhe ajudava ficar com seu filho.
Ele ficou de olho trancado [fortes sintomas do sarampo]. Como deixou do emprego, também
saiu do bairro Vila União. Aí voltei pro Pirambu e aluguei de novo um quartinho e fui tratar do
menino [Na sua narrativa, ela não contou que, quando chegou a Fortaleza, veio morar no
Pirambu. A informação era do conhecimento deste estudo pelo ao fato de sua mãe ter uma casa
no bairro].
Depois desse emprego, ela contou que arumou outros e voltou para Sobral. Seu filho já
contava sete anos, quando apareceu um velho na minha vida. Ela ia fazer 26 anos e ele já era viúvo,
59 anos, e queria casar com ela, ao que ela respondeu que não, pois ele tinha idade e não aceitaria
que maltratasse seu filho. Segundo ela, porque a maioria dos padrasto e madrasta maltrata, né?
Decidiram então se unir maritalmente e ele ajudaria a criar o menino Rogério. O companheiro disse
que não produzia mais filhos: Eu fui na onda do velho, o velho disse que não fazia mais nada, não
fazia mais filho, eu fui na onda dele, mulher só que nessa onda eu arrumei mais 5, justamente essas
bênçãos que eu tenho, é o Ricardo, o Ribamar, o Reinaldo a Rosana e a Regiane, cinco.
O companheiro trabalhava numa fazenda e ela o ajudava no trabalho pesado, durante
anos, criando os filhos e trabalhando, mas segundo ela o homem bebia uma pinga, cachaceiro,
ignorante, ciumento que eu não podia olhar pra cara de ninguém, eu tinha que ficar olhando
pra cara dele, aí pronto passou essa onda, aí passamo uma fase boa.
Ela contou que também sofreu nas unha dele, e explicou que ele não lhe batia, mas
sabia usar as palavras para maltratá-la na boca dele, de rapariga eu não passava.Depois de um
tempo, ele ficou desempregado, e a família voltou para o sertão, pra roça de novo, fui trabalhar
campinando, plantando, trabalho pesado, trabalho pesado de homem mesmo, aì eu tive esses
menino tudinho sofrendo, aí melhorou mais uma coisinha aí quando ele se aposentou.
Voltou para a cidade de Sobral com o cônjuge sexagenário e os filhos e, depois de
algum tempo, disse: Romilson, sabe de uma coisa, vou voltar pra Fortaleza de novo, aí voltei
pra Fortaleza de novo e até hoje tô aqui. Chegando em Fortaleza, diz ela:
Fui morar de aluguel e fui trabalhar de cigarreira nas praia no Mucuripe, no Serviluz, e aí
minha filha, todo dia eu tava com minha caixinha de cigarro pegava mercadoria alheia e
ganhava o mundo trabalhando pra poder sobreviver pra sustentar meus filhos. O dinheiro
dele não dava, o dinheiro dele só dava pra pagar a passagem e o cigarro que ele me dava
durante o mês, e eu tinha que pagar aluguel de casa e sustentar os filhos que era tudo
pequenininho. Até minha filha que um dia eu cheguei em casa, eu tinha tirado uma rede no
galego e tinha guardado o dinheiro do aluguel da casa, aí saí fui trabalhar, quando eu
cheguei o abençoado de Deus tinha ido embora. Mulher, já com 74 anos levou minha rede,
levou o dinheiro do aluguel da quarto, foi embora, me deixou
352
Após esse episódio da sua vida, ela contou: Continuei a vida, continuei pelejando,
trabalhando, ainda penei um bocado com aluguel de casa até que um dia invadiram acolá no
Pirambu, na Areia Grossa. Ela lembra que o lugar era rampa de lixo e até a construção das casas
de mutirão foi muito trabalho.
Foto da autora, 2000.
A conquista da casa na Areia Grossa é motivo de orgulho para Dona Rita que contou:
Ali foi planeado tudo pela nossas mãos, nós trabalhamo, puxamo, cavamo nós planeamos aquilo
ali tudinho manual ai minha filha foi um pedacinho de chão que eu consegui aquela casinha
que eu tinha.
Foto da autora, 2000.
As casas da Areia Grossa foram construídas em regime de mutirão pelos “sem-teto”
que invadiram o lugar ocupado por lixo na beira da praia. Com a ajuda de uma associação
comunitária, conseguiram o material para edificar as casas, que foram autoconstruídas pelos
futuros moradores. Desde o início do processo, os moradores foram avisados de que a área era
passível de desabamentos, como aconteceu. Veja meu diário de campo após quatro meses das
primeiras visitas às famílias da Areia Grossa.
353
Fui informada de que aquelas casas serão retiradas por estarem em situação de risco,
inclusive ao entrar na Araia Grossa percebi que havia mudado alguns aspectos na frente da
casa de Dona Rita, o que a ela confirmou. Foi um pequeno desabamento na parte da frente
da casa onde foi feito um “remendo” de cimento para segurar as casas até a retirada deles,
prevista para janeiro de 2001. (Diário de campo, 03/11/2000).
A construção das casas do conjunto tropical foi antecipada para receber as famílias
da Areia Grossa, pois a área estava susceptível de novos desabamentos. Sendo assim, a Areia
Grossa teve o primeiro grupo de famílias beneficiadas no então Projeto Costa Oeste.
A casa na beira da praia era exposta a instabilidades da moradia, com lixo a céu aberto,
mosquitos, bichos-de-pé (Tunga Penetrans) e outras ameaças à saúde ocasionadas pelas precárias
condições do imóvel.
Foto da autora, 2000.
As imagens associadas às falas e histórias são narrativas da trajetória das famílias
pobres e seu percurso de migração para o urbano em condições de extrema indigência, denotando a
trajetória da pesquisa e seus conceitos-chaves: família e pobreza.
4.3 A VIDA DE MÃE “ARRASTANDO OS FILHOS”: A REDE FAMILIAR
Dona Rita contou que teve 14 filhos, mas só criou sete deles, pois os demais morreram.
Contei quatro nupicialidades na sua vida; a primeira com Ronaldo, com quem teve três filhos que
morreram; a segunda com o irmão do marido, Roberto, com quem teve dois filhos; a terceira com
Romilson, com quem teve cinco filhos, e a atual com Renato, com quem não tem filhos. Há ainda
354
uma união passageira que resultou no seu filho mais jovem, Rinaldo. Na coleta da sua história de
vida só consegui contar 11 filhos dos 14 que ela disse terem nascido.
Após as duas primeiras uniões, ela só ficou com Rogério, filho que a acompanhou em
todas as suas mudanças de cidades, casas, quartos e até na invasão da Areia Grossa, sendo este filho
partícipe de muitas “lutas” com a mãe.
Na união com o “velho”, a narradora teve cinco filhos, que foram Ricardo, Ribamar,
Reinaldo, Rosana e Regiane. Ao ouvir a mãe contar os filhos, as filhas, que estavam na sala,
começaram a cobrar que a mãe contasse sobre o pai de Rinaldo, ao que ela disse agora pronto, o
Rinaldo foi um caso que eu tive, foi uma aventura. A respeito do assunto deste filho a mãe não quis
entrar em detalhes, mas a história já era conhecida pela família.
Sobre o atual companheiro, Renato, ela conta que com ele não teve “história”: O Renato
simplesmente apareceu na minha vida, simplesmente apareceu e ficou. Em 2006, o casal já estava
com mais de dez anos juntos, mas não habitavam na mesma casa. Com o Renato não tem história,
todo fim de semana ele ia lá pra casa e até hoje ele vive assim, ele nunca foi um homem bravo nem
romântico, ele é sem história, com ele não, a história com ele... em 2009 estive na sua casa, e o
Renato tinha se mudado em definitivo para lá, passando a ser contado como morador, pois agora
dormia todos os dias.
A história da família de Rita passa, com o crescimento dos filhos, a se estender para as
composições familiares deles com seus netos. O filho Rogério casou com uma prima, Rosiane, no
Pirambu, e tiveram dois filhos, Rosilene e Rian. Após o fim da união, Rogério contraiu novas
núpcias, agora com Rosa com quem teve o filho Robson. A neta Rosilene e sua mãe moravam na
casa da mãe de Dona Rita. Com o falecimento da mãe de Rita, sua irmã e a neta continuaram na
casa. Ressalto que o parentesco entre a mãe de Rosilene e Dona Rita nunca foi explicitado, pois elas
foram criadas separadas, e a união dos filhos não agradou Dona Rita, o que se agravou com as
traições que a sobrinha fez ao seu filho Rogério, e, atualmente, Rosiane namora o ex-companheiro
da filha Rosilene.
Das duas uniões conjugais de Rogério, a neta Rosilene, da primeira união, vem
cotidianamente à casa da tia-avó e os filhos de Rogério, Rian (primeira união) e Robson (segunda
união) são moradores da casa de Rita, mas não dormem, eles convivem aqui, mas dormir, não
dormem devido ao espaço, eles domem na casa da Rosana, que mora aqui na outra rua, é pelo
espaço. Dona Rita ainda enfatizou que os meninos só dormem na casa da filha, mas são parte da sua
casa, denotando que assume a criação dos netos para o filho deixado pela mulher.
355
A filha Regiane teve dois filhos, Roberval e Rivânia. O mais velho mora com o pai e a
menina mais nova mora com ela na residência de Dona Rita. Quando a conheci em 2000 com a
pequena Rivânia nos braços, ela se considerava casada com o pai da menina e justificou que não
moravam juntos por falta de espaço na casa dela e também na habitação dele, mas era casada. A
união conjugal chegou ao fim, e o pai da menina não é citado pela família, sendo um evento do
passado.
A filha Rosana teve dois filhos, Rebeca e Rafael (Rebeca da primeira união, e Marcelo
da segunda, atualmente Rosana está solteira). Aos 17 anos, Rosana arrumou um namorado sobre o
qual Dona Rita vivia a “lhe abrir os olhos”, pois o rapaz não tinha a nada a oferecer, tu te sai desse
cara, ele não tem futuro. A jovem não a ouviu, e começaram os rumores sobre o namoro do casal
que morava na mesma rua, na Areia Grossa. A mãe conta que a filha ficava até tarde na rua e em
razão da insistência do pai do rapaz em alertar Dona Rita de que seu filho não tinha futuro, ela
chamou os dois e disse para o rapaz enamorado da filha:
Olha, Ruruca, é o seguinte: a Rosana já ta ficando falada na boca de todo mundo, e o teu
pai é o primeiro a esculhambar [difamar] ela, e eu não quero minha filha falada não.
Assuma logo sua responsabilidade com ela, se você quer viver, se você gosta dela, arrume
um canto e bote ela, ou bote na casa da sua mãe... Eu sei, minha filha, que foi uma época
que invadiram um terreno sei minha filha que fizeram um barraco por lá fizeram um ninho,
foi um ninho mesmo, a casa era de palha aí ele engravidou ela, a barriguinha crescendo e a
responsabilidade... cadê? E eu era carrasca?
Dona Rita que “arrastou” suas crianças, espera que seus filhos, especialmente, suas
filhas, tenham responsabilidade com os seus próprios filhos e assumam a criação deles conforme ela
assumiu seus descendentes. A gravidez da filha e a iminência da dissolução da união com Ruruca
gerou conflito na casa de Dona Rita com Renato, pois o companheiro disse que se ela entrasse com
um bucho dentro de casa, ele saia, e a opção da jovem Rosana foi morar na casa da irmã do pai do
seu filho.
Ela foi pra casa da mãe dele, saiu do barraco, foi pra casa da mãe dele, foi pra casa da irmã
dele, o bucho nas nuvens, essa neguinha sofreu com o bucho nas nuvens, essa neguinha
sofreu e num foi brincadeira não, humilhação. A cunhada descia aquela escada e ficava no
meio da escada, porque a Rosana não fazia nada, quando ela fazia o comer antes do marido
dela chegar a Rosana ia lá e metia a mão e ela não gostava que metessem a mão nas panela
dela. Chegava de noite, armava uma rede na sala e se esticava, os irmão não podia nem
assistir televisão, e eu só ouvindo, só ouvindo e eu ouvi tanto, e ela já tava pertinho de
descansar, os pés tudo inchado, ela não tinha nada no corpo, subia aquelas escada com as
baciada de roupa, os balde, a água era lá embaixo e ela puxava água la na bomba pra botar
água pro povo tomar banho, aí quando eu olha Rosana eu vou te dar essa chance se tu
quiser que eu faça alguma coisa por ti, tu pega teus pano de bunda, esquece o Suruca e faz
de conta que ele morreu e vem embora, porque enquanto tu continuar lá tu continua
sofrendo, também a neguinha não cantou pipoca, chegou lá, pegou os paninho de bunda,
dela que também não tinha, veio embora até hoje.
356
Apesar da solidariedade da mãe com a filha, o companheiro Renato continuou resistente
à recepção da jovem, e Dona Rita decidiu que a criança seria doada, mas, ao nascer a menina, o
Renato chegou e perguntou: Cadê a neguinha, já deu a bruguela, não quero saber de zuada de
menino aqui não... rumbora ver a cara dessa menina! Quando Renato viu a menina enrolada numa
tanga dentro da banheira de um primo, pois não tinha sequer uma meia, ele chegou perto da menina
e se emocionou encheu os olhos dágua e saiu voltando umas seis horas depois com banheira,
papeiro, mamadeira, fralda, camisinha, redinha, leite e disse olha, eu nunca tive filho na minha vida,
e essa bichinha aqui ela não teve a sorte de ter um pai, pois de hoje em diante ela vai ser minha
filha cumadre, eu vou ser padrinho dela, enquanto eu for vivo não vai faltar nada pra ela. E a
família enfatizou que até hoje Renato cumpre a promessa. O compadrio assumindo foi um
compromisso de honra e, no caso de paternidade, a menina, hoje, com 17 anos o chama de pai.
O filho Ricardo teve uma conjugalidade problemática com uma jovem. Ambos eram
usuários de drogas e tiveram um filho, o Regivan, que conheci bem pequeno aos três meses de vida,
tomando banho de balde no braço da avó, na área da casa da avó, na Areia Grossa.
Foto da autora, 2000.
357
A mãe do Regivan faleceu numa situação de uso de drogas, deixando o menino com sua
mãe, mas alguns dias depois a avó paterna pediu para Dona Rita que ela fosse buscar o menino e o
criasse, pois não havia condições de manter mais uma criança em sua casa. Dona Rita, mesmo sem
condições, se sensibilizou ao ver o menino largado numa rede com o corpo cheio de ferimentos. O
filho Ricardo à época dava muitas preocupações à sua mãe. Certa vez cheguei a sua casa, e a agente
de saúde tinha estado lá para dar atendimento a Dona Rita enquanto a sua filha preparava um chá
para a mãe, que estava adoentada com problemas de pressão arterial devido ao seu filho estar
“colado” usando drogas. Sobre a mãe de Regivan, Dona Rita disse que a moça era irresponsável
também. Ricardo cumpre pena em regime semiaberto e está em falta com a Justiça. Desse modo, o
menino Regivan não tem registro de nascimento em razão da morte da mãe e o receio do pai de se
apresentar num cartório; o único documento do menino é o cartão de vacinação e, assim, não pode
ser incluído no Cadastro Único para recebimento do Bolsa Família.
A família de Dona Rita compõe-se de filhos e netos. A sua casa no conjunto Tropical é
a referência dos descendentes que lá moram, os que habitam nas casas vizinhas, no conjunto e na
beira da praia onde vivem a neta e a bisneta.
Na sua história de vida, por mais de uma vez, Dona Rita disse que arrastava os filhos,
sugerindo que, mesmo numa situação de procura de moradia de uma cidade para outra, a mulher
quando é mãe não é mais só, leva consigo os filhos, ou melhor, arrasta. A mãe permanece com os
filhos, e em todos os planejamentos que possa fazer para sua vida, ela inclui os filhos como
obrigação.
Os filhos são partes da vida mãe. Onde ela for, eles vão com ela. E foi assim que Rita
saiu do “mato”, foi para Sobral, veio para Fortaleza, retornou a Sobral e em definitivo decidiu que
voltaria para Fortaleza. Acompanhando-a estiveram sempre os filhos. Com ou sem a ajuda de um
companheiro, na trajetória da sua vida, há dois pares complementares: ela e os filhos.
Foi assim no passado quando eram crianças e é assim hoje, mesmo adultos, alguns já
progenitores não deixam o vínculo com a mãe e a história coletiva da família de lutas com fome,
mendicância, quartos e casas alugados, terreno invadido e construção de casa na beira da praia até
chegar ao conjunto habitacional Tropical, tendo sempre como protagonista a mãe arrastando os
filhos.
O que motiva a mulher a não abandonar os filhos é o cumprimento do seu “dever” de
mãe que lhe diz que tem a “obrigação” de cuidar deles e, para tanto, ela perde emprego para cuidar
de filho doente, muda de endereço de casas para quartos alugados e cria muitas estratégias de
sobrevivências para cumprir o seu papel de mãe. A única filha que ela doou foi a segunda filha de
358
Roberto, quando, após a morte do companheiro, ela teve de pedir esmolas na rua e não tinha como
alimentar os filhos. A filha a quem sempre se refere como meninazinha foi doada a uma mulher que
tomava conta de um armazém, o que leva a pensar que Dona Rita acreditava que não lhe faltariam
alimentos.
A biografia da mãe se confunde com a história dos filhos: seus nascimentos, suas
doenças, seus casamentos e o nascimentos de seus filhos. As passagens da vida de Rita são
marcadas pelos filhos. Quando o Rogério completou 7 anos, apareceu um velho na minha vida.
Essa e outras passagens da narrativa são “datadas” pela vida dos filhos.
4.4 ARRANJO ECONÔMICO: SOU O “MANOBRO” DA CASA
Quando perguntei sua ocupação, Dona Rita disse que era a luta da casa e explicou que
ela é a chefe da família, mas, quando indaguei sobre a renda familiar e manutenção da casa, ela
explicou: sou manobro da casa, sou eu quem gira tudo. E explicou ainda que nenhum dos filhos
tem salário com emprego fixo, mas “ajudam” com as despesas domésticas, e ela administra a
economia da casa.
Muitos elementos do arranjo econômico da família de Dona Rita já foram abordados
neste capítulo, especialmente no tocante à casa e organização dos espaços entre a sua casa e a da
filha no mesmo conjunto em ruas vizinhas. A casa vizinha a sua, com parede conjugada, é do filho
Ribamar. O jovem é pouco citado, pois Dona Rita é intrigada com a mulher do filho há muitos
anos. No mesmo conjunto, ainda mora uma sobrinha de 23 anos, que teve oito filhos, mas somente
cinco sobreviveram, e as crianças frequentam a casa de Dona Rita, que, quando pode, ajuda a
sobrinha com tantas crianças pequenas, sendo duas gravidezes de gêmeos.
Na casa de Dona Rita moram 11 pessoas, sendo que a filha mais velha, Rosana, mora na
rua vizinha com o filho Rafael. Assim, são moradores da mesma unidade doméstica: Dona Rita e
seu companheiro Renato, a filha Regiane e sua filha Rivânia, o filho Rogério e seus dois filhos,
Rian e Robson, a neta Rebeca, filha da Rosana e afilhada de Renato, Ricardo e seu filho Regivan e
o filho solteiro Rinaldo. A esta soma pode-se incluir seu filho Reinaldo, que segundo Dona Rita tem
uma mulher e é ora lá, ora aqui este morador ao ser somado a Rosana e seu filho Rômulo totalizam
14 pessoas. Dona Rita disse ainda: Moram tudo é aqui mesmo.
359
Na economia doméstica, a casa de Rosana é uma casa-dormitório sendo as refeições
feitas na casa de Dona Rita. Sobre a moradia da filha, cabe acrescentar que a casa foi um presente
de Renato para a “filha” Rebeca. Ele juntou economias e, na época da entrega das unidades do
conjunto, comprou a habitação de um dos beneficiários para dar de presente a Rebeca. Comumente
a família se refere à “casa da Rosana”. A neta Rebeca ora é contada como moradora da residência
da filha, ora como moradora da casa de Dona Rita. Atualmente ela é citada como moradora da casa
de Dona Rita. Credito esse fato a vinda de Renato, “o pai” para morar na casa.
O arranjo econômico das duas casas é somente um, para única família, e se realiza sob a
administração de Dona Rita que manobra as economias para distribuir os bens e manter o padrão
alimentar da família. A filha Rosana, desempregada e sem renda, não está contribuindo com a
economia doméstica. Quando trabalha, colabora com a economia da casa- sede. A filha Regiane não
tem rendimento fixo, e sua filha é cadastrada no Cadúnico juntamente com os dois filhos de Rosana
no nome de Dona Rita e recebem o Bolsa Família; Ricardo é pescador, mas há algum tempo não
trabalha, pois voltou a usar drogas, e Rogério e Rinaldo ajudam a mãe trabalhando como
autônomos. Desse modo, somente o companheiro Renato tem renda fixa, pois conseguiu se
aposentar no início de 2009 e ainda trabalha com reciclagem de lixo, catando materiais na rua e
vendendo sucata.
Como não tem trabalho fixo, o filho Rogério é ambulante, “cigarreiro”, e o Rinaldo, que
estuda, faz algum trabalho que “aparece” como servente em construções para somar à renda da
família. Quanto às filhas Regiane e Rosana, elas também fazem trabalhos domésticos esporádicos,
sendo que a filha Rosana trabalhou durante oito meses num motel como arrumadeira. A mãe, Dona
Rita, improvisou um pequeno comércio na janela da sua casa para a venda de produtos alimentares.
Foto da autora, 2010.
360
Observei que há um freezer e sei que ela vende refrigerantes e pães, mas, segundo ela,
O que sai melhor é vender cigarro no retalho. À época (2009), ela disse que ganhava R$ 4,00 de
lucro numa carteira de cigarro, vendendo o produto em unidades. Depois acrecentou: Só ganho o
que passou do que eu devo, traduzindo sua condição financeira como sendo insatisfatória e
insuficiente para pagar suas despesas.
Sobre o que vende na mercearia, explicou que não tem capital de materiais e só vende o
que é dos outros, de modo que o refrigerante e os cigarros são recebidos em consignação e, se
houver venda, há lucro. A explicação era na intenção de dizer que não tinha nada de seu nos
produtos, mas uma possibilidade de renda.
Sobre os benefícios oriundos de programas de transferência de renda do Governo
Federal, ela se preocupa, pois teme a chegada de alguém em sua casa vinculado a esse benefício,
pois o fato de ter o comércio pode prejudicar os que recebem o Bolsa Família, caso a família seja
cadastrada no CADÚNICO como ponto comercial.
A condição de rendimentos da família é de extrema pobreza, não havendo nenhum dos
participantes da família com carteira assinada, mesmo sendo a maioria pertencente à população
economicamente ativa, e a complementação das rendas da família se dá pelo pequeno comércio e
pelos programas de transferência de renda.
A condição de pobreza perpassa toda a história de vida de Dona Rita, desde a infância,
quando foi abandonada pela mãe, criada por uma família substituta e morando com o avô paterno e
o pai biológico, e depois o casamento e as demais uniões conjugais que se seguiram. Foram
narrativas de luta para continuar a viver. A nupcialidade com o cunhado foi um evento que mostrou
a sua disposição de sobreviver e criar soluções para sua vida e, depois, para sua vida com os filhos.
A trajetória da vida de Dona Rita é o caminho da pobreza que tem na migração do
interior do Estado para a Capital uma opção de sobreviver. E a chegada a Fortaleza, no Pirambu,
representa a longa história de pobreza e migração, em que muitas Ritas encontraram em uma “área
de risco”, sem condições de habitação, uma opção para construir o seu canto, a sua morada.
4.5 REDE DE PROTEÇÃO: “A FAMÍLIA É MEIO DESTRAMBELHADA”
A rede de proteção da família tem um eixo fortemente fincado na socialização que Dona
Rita apreendeu no interior, em que o valor da mulher consiste em ser esposa e mãe de família, mas
o destino lhe foi cruel, e ela teve um casamento difícil de ser continuado, o que a levou a procurar
361
outros meios para sobreviver e manter os filhos, mas sem perder o compromisso moral de criar seus
filhos consigo, sendo fiel ao seu papel de mãe.
A obrigação moral de proteger os filhos e arrastá-los para onde quer que fosse,
associada ao cumprimento do seu papel de mãe, talvez seja a explicação para, logo no início da sua
fala, no seu primeiro casamento, ela agradecer a compaixão divina de ter perdido os filhos pequenos
e não ter que criar nenhum dos filhos de Ronaldo, possibilitando, assim, deixá-lo quando da
situação de traição. A perda dos filhos é uma interpretação difícil, mas está associada aos valores do
interior de dotação da vontade de Deus sobre o destino de vida ou morte das crianças, livrando os
pais, de certo modo, da responsabilidade pela “perda” dos filhos.
As redes de proteção constituem as obrigações morais e estão ligadas ao cumprimento
de papéis na família para defesa familiar e amparo. Essas obrigações são mútuas e têm efeito
recíproco no sentido de proteger e ao mesmo tempo oferecer uma dádiva que deve ser retribuída e
resultar em proteção também. Assim, Renato protegeu a menina Rebeca e sabe que tem na menina
uma filha, ou melhor, um apoio para ampará-lo na velhice. O que pareceu “presente”, com lágrimas
do pai que “abraça” uma filha de coração, passa a ser, ao seu tempo, uma troca; no entanto, seria
engano pensar na dádiva do passado ou nas suas possibilidades de retribuição no futuro como meras
trocas, pois se tratam de afeto e família.
Ao aceitar Rebeca como filha, Renato ainda expressa que não tem filhos e vai oferecer à
menina tudo o que um pai pode dar a uma filha. Quando Bourdieu (1996) diz que “a família é uma
ficção bem fundamentada”, está se referindo, no meu entendimento, a esse jogo simbólico,
permeado por palavras de afeto, que são, ao mesmo tempo, anúncios de amor e cobranças de
dívidas e cumprimento de papéis. A narrativa da história da menina contada na sala com a presença
da mãe biológica e da tia, além de Rebeca, foi também uma lembrança de dívida que a menina tem
com o companheiro da mãe, que a acolheu e a “salvou” de um futuro incerto não se sabe onde nem
com quem, mas longe dos parentes de “sangue” que a protegem.
Na história do nascimento de Rebeca, há mais elementos para análise da rede de
proteção na família de Dona Rita. No episódio do namoro de Rosana, a questão da proteção ficou
explícita na preocupação da mãe o fato de sua filha não ficar falada. Então, ela chamou o rapaz para
conversar dizendo que sua filha virou motivo de comentários como não sendo uma moça de
respeito e que poderia estar se perdendo ou ter se perdido, afinal o casal ficava até 10,11 horas da
noite no quintal. Entre os pobres, os valores morais são rígidos, e esse evento numa família vivendo
em condições precárias de moradia numa invasão, na beira de praia, mostra a força dos valores das
pessoas que “podem não ter casa, mas têm respeito”. E também exemplifica que há regras a serem
362
cumpridas, conhecidas tanto pelos jovens enamorados como por seus pais que acatam os códigos de
conduta apreendidos na socialização na família e concorrem para sua continuidade.
Os dois, o rapaz e a moça, eram jovens e pobres, sem bens nem moradia certa, mas, nas
regras sociais de uma pequena comunidade (uma invasão) onde todos se conhecem, ele não tinha
nada a perder e nem a oferecer, enquanto que a moça poderia perder a respeitabilidade que a
levasse a um casamento que, no nível das expectativas, lhe conferisse o respeito da mulher casada e
mãe de família que o jovem Ruruca, pouco disposto ao trabalho, não poderia lhe oferecer.
Nesta perspectiva, um olhar não aprofundado pode estereotipar os moradores de uma
invasão como sujos, vândalos e promíscuos, associando pobreza a todo tipo de ações “amoral”, mas
há uma moral acentuada nos valores, que para os pobres chega a ser mais importante do que o
dinheiro. Afinal, na falta de dinheiro, há dignidade que se apresenta na moral e no respeito
simbolizados pela família. A história dos pobres na cidade de Fortaleza foi marcada por esse
estigma, daí as políticas higienistas e os campos de concentração (RIOS, 2001) para afastar os
flagelados das calçadas dos ricos na Cidade.
Desse modo, a dinâmica familiar une e reúne os parentes num eixo que garante a
proteção. O que importa é que tamo tudo junto. A frase de Rosana demarca a percepção de família
unida e colaborativa, mas o que isso significa na vida dela? Ela está desempregada há vários meses
e não teria como se manter sem ajuda da rede familiar com sede na casa de Dona Rita. Na casa da
mãe, sempre chega um dos filhos que traz um alimento ou uma ajuda em dinheiro, pois sabem,
como Rosana também sabia, quando trabalhava, e ajudava na casa de sua mãe que, se precisasse,
também seria colhida. Desse modo, a família é a seguridade dos pobres.
A família vive um ciclo de trocas perene; a avó é mãe para filhos e netos num todo que
se completa em obrigações de acolher e proteger para a defesa familiar e, ao mesmo tempo, defesa
própria. Essa “proteção” pode não parecer tão relevante para as camadas médias e altas que podem
comprar serviços de saúde que lhes acolham na hora da doença ou serviços outros, mas entre os
pobres, sem recursos nem assistência básica, a família é o amparo que permite a sobrevivência ante
a precariedade das condições materiais.
A família é meio destrambelhada, né? Disse Dona Rita sobre sua família, e Rosana
acrescentou: Essa família é uma coisa, não é muito organizada. Mesmo sem seguir o padrão
nuclear de família com as funções e papéis definidos, Dona Rita aprendeu na sua experiência de
vida que a unidade da rede é para o benefício de todos, daí a preocupação da mãe em não deixar que
os filhos se afastem e socializá-los para que sejam unidos e se protejam.
363
Assim, a avó assume o papel de mãe para o neto, para não deixá-lo sem mãe e protegê-
lo, dando-lhe ciência de que ele tem um lugar no mundo, uma família que um dia ele também vai
proteger. Para o Regivan, Dona Rita é sua mãe, e seus tios são seus irmãos. Mesmo com a presença
do pai em casa, a avó fixa sua condição de mãe e, quem sabe, na sua ausência, as filhas como
“irmãs” vão proteger o menino que teve a mãe falecida e o pai é usuário de drogas.
Sobre as drogas que o filho consome, a mãe contou que ele usava drogas até 2001 e
depois passou uns anos fazendo uso “somente de álcool”, mas infelizmente, para a família, ele
estava novamente consumindo entorpecentes. A presença do filho usuário de drogas em casa exige
a atenção de todos, e seus passos são vigiados e monitorados com trocas de olhares e sinais para
evitar que dê prejuízos à família.
Observei que algumas coisas na pequena mercearia eram rapidamente retiradas de casa
quando o rapaz chegava, sob a administração da mãe e com a ajuda das filhas e da neta. Dona Rita
contou: Quando meu doido tá doido, as crianças vão dormir na casa da Rosana. Trata-se do filho
Ricardo, meu filho, meu doido que, mesmo drogado e depredando o pouco que a família tem, é filho
e merece a proteção da mãe.
A família de Dona Rita passa por problemas econômicos e enfrenta crises de âmbito
moral como os filhos não criados pelas filhas, a droga consumida pelo filho Ricardo e a obrigação
de cumprimento de papéis e proteção familiar muito enraizada na história da narradora, mas acima
de tudo a identidade de ser uma família e ter um lugar no mundo, uma casa.
Foto do Conjunto Tropical em 2003
364
Foto da autora, 2003.
Sobre a vida na nova casa, ela conta: Aqui é muito bom, eu não entendo como pode, minha
vizinha vendeu a casa por nada pra viver no esgoto lá e lá... sabe como era... a polícia entrando de
madrugada. Sua fala denota a satisfação de um endereço certo e seguro, um lar.
A casa-sede de Dona Rita é o lugar de identidade da família, a “casa” que já foi de aluguel,
quartinhos, cedida, de palha em terreno invadido, depois de tijolo em construção de mutirão e por
fim fruto de benefício do Governo do Estado num conjunto habitacional, dotada de infraestrutura,
como saneamento e água encanada, é parte da história da família.
Em toda a narrativa de Rita está presente a proteção aos filhos e netos. Sua trajetória de
migração, pobreza e vulnerabilidade quanto à moradia é representativa da história dos movimentos
de bairro e das lutas dos pobres urbanos pela casa própria e provisão familiar.
5 A LUTA DA CASA E OS ARRANJOS ECONOMICOS NA FAMÍLIA DE DONA SELENE
A família em cena: o almoço.
A cena do almoço apresenta a dinâmica de uma família no Pirambu para sobreviver e
manter o padrão mínimo alimentar, com uma renda menor do que dois reais ao dia por morador,
numa casa com vinte e um moradores fixos, além dos parentes vizinhos que chegam para
compartilhar do almoço. A família de Dona Selene é um caso ilustrativo de como se dá a
organização do arranjo econômico no cotidiano.
365
Quase dez horas da manhã, Dona Selene sai de casa rapidamente para comprar
suplementos para o almoço. Nas ruas estreitas, no trajeto da sua casa ao mercadinho, ela é seguida
de perto por duas netas que a acompanham na rua sem lhe fazer companhia diretamente, pois estão
perto, mas não com ela. A neta Suyane
98
, de 18 anos, estava na rua e, ao ver a avó, a segue, mas não
entra no “mercantil”, prefere ficar à porta conversando com uma colega e marcando um passeio à
praia para a manhã seguinte, enquanto a outra neta que ladeava Dona Selene na ida ao mercadinho
era a menina Simone
99
, de 14 anos, que estava com Amanda
100
nos braços, com as pernas
circundando sua cintura apoiada pelo seu braço direito.
A menina seguia a avó de perto dentro do mercadinho e, por vezes, a interrogava: Mãe,
vai comprar verdura? Dona Selene, com passos apressados, se dirigia à seção de temperos à
procura de cominho. Não encontrando, comprou então um pacote de colorau e rapidamente foi para
a seção de frutas e verduras e começou a escolher cebola, um molho de cheiro-verde, depois saiu à
procura do arroz para comprar um quilo. Com as compras na mão, foi ao caixa. Lá chegando, a neta
a acompanhou e se posicionou em outra fila, e chamando a “mãe” com gestos que indicavam que
aquela fila seria mais rápida. Atendendo ao chamado da neta, Dona Selene foi à outra fila e ainda
comprou uma caixinha de temperos com dois tabletes enquanto aguardava sua vez.
Ao chegar ao caixa, retirou os poucos itens de verduras que havia colocado num único
saco para que fossem pesados. A funcionária do caixa fez a soma e disse que o total das compras
era R$ 3,94. A senhora abriu uma pequena bolsa de moedas e as despejou no balcão para que a
caixa a ajudasse a contar. Dona Selene guardou as moedas que sobraram na bolsinha, fechando bem
o zíper. O dinheiro usado para pagar os complementos do almoço é fruto de pequenas vendas de
tapiocas, cafés, paulistinhas (cuscuz), bombons (balas) e dindins que ela faz. Geralmente seus
fregueses são os filhos e principalmente os netos que estão frequentemente lhe oferecendo
moedinhas em troca de bombons.
Selene explica que vende alimentos e balas aos filhos, pois eles consomem esses
produtos independentes da sua venda e justifica que, se não comprarem dela, vão comprar “fora”,
sendo então melhor comprar em casa e gerar renda para a família. Percebo que a iniciativa da venda
98
Suyane é filha de Silvana e neta de Selene. A menina foi conhecida por mim aos sete anos,
quando estava no ensino fundamental I. Desde então, a dinâmica de sua família é analisada. Ainda
menina, Suyane levava-me pelas ruas e becos do Pirambu, informando pessoas e lugares e,
principalmente, abrindo espaços para a minha entrada nos espaços sociais.
99
Simone é filha de Soraya e desde criança mora na casa da avó, desacompanhada da mãe, que
morou em outro Estado e atualmente mora numa rua próxima com o cônjuge e filhos. Simone e seu
irmão foram deixados ainda pequenos na casa da avó, o irmão faleceu num conflito por roubo na
praia do Pirambu, recentemente.
100
Amanda tem 1 ano e não é parente, ela é cuidada por Sara enquanto os pais trabalham. Pelo
cuidado com a criança, Sara recebe R$ 40,00 por semana.
366
foi uma estratégia para forçar os filhos e netos a contribuírem com a família, haja vista que mesmo
não havendo rendimentos fixos, os “ganhos” são gastos em consumos de bebidas, lanches e
balinhas para as crianças. Com essa estratégia de ação comercial, a mãe consegue numerários que
se transformam em dádiva de almoço para toda a família. Cabe lembrar que, mesmo sendo uma
rede extensa, os filhos atribuem a “obrigaçãoeconômica à mãe. Nesta perspectiva, os filhos
também têm “obrigação” de comprar os produtos vendidos e são vigiados para pagar.
No ano de 2002, Dona Selene conseguiu a aposentadoria, pois já contava mais de
sessenta e cinco anos. Assim, passou a receber mensalmente a quantia de um salário mínimo. Essa
nova condição de aposentada resultou numa melhoria de vida para Dona Selene que aumentou seus
proventos em média de 300%, pois seu rendimento era de um terço do salário mínimo que recebia
de pensão do ex-marido. Hoje ela soma pensão e aposentadoria
101
.
Estava se aproximando das dez horas da manhã e Dona Selene continuava atenta ao
almoço, pois a administração das panelas era um dos seus mais importantes compromissos. A volta
do mercadinho para casa foi a passos apressados, a entrada em casa foi rápida, cruzou os cômodos e
comentou que estava tudo escuro. Ao chegar à cozinha, o cheiro de peixe cozido era forte e
incomodava, ao ponto de sua filha pedir para “fechar” o fogo, pois o peixe estava cheirando mal e
comentou “esse peixe véi”. Pouco tempo depois, não se sentia mais o cheiro do peixe, que, desde a
entrada dela na casa, já denotava um cozimento completo.
A dinâmica da cozinha é coordenada por Selene. De forma discreta, ela delega
atividades às filhas e netas. Enquanto Selene mexia a panela e conversava sobre sua rotina, a neta
Suyane cortava cebola, e sua prima Simone, cheiro verde. Na cozinha, a mais ativa era a filha Sara
102
, que participava bem de perto da administração do almoço juntamente com a mãe, mexia a
panela do macarrão, soltando os fios, colocava o arroz, isto, nos intervalos dos cuidados da menina
Amanda, que, naquele momento, precisou de uma troca de roupas. Sara participa das atividades da
cozinha da mãe porque a considera velha e cansada para tantas atribuições, mas no seu fogão já
estavam prontos o arroz e o macarrão desde às nove horas, só faltava a “mistura”, que deixaria para
a hora da chegada dos filhos, quando fritaria a carne. Sara não faz feijão no seu quarto, pois não
gosta.
101
As condições precárias de vida da família foram minimizadas pela aposentadoria de Selene e
pelo programa social “Bolsa Família” que a filha Sara passou a receber do Governo Federal. Com a
nova renda, Sara comprou um fogão e conquistou a autonomia de cozinhar dentro do seu quarto
para os filhos. Esses benefícios sociais geraram uma melhoria na qualidade de vida da família, que
passou a ter rendimentos mínimos para as condições básicas de sobrevivência.
102
Sara é filha de Selene e mora na casa da mãe com o cônjuge e os quatro filhos, tem um quarto na
casa e cozinha para família em separado.
367
Sulany
103
(irmã de Suyane) se aproxima de Dona Selene e lhe dá um dinheiro em
moedas. Pouco tempo depois ela pega a tapioca que ficou pronta e procura a margarina; a avó se
encaminha para um armário na cozinha e pega o produto e dá à neta que lhe comprou a tapioca e
tem direito a recebê-la com margarina. Após o uso, Selene a guarda na mesa em que está
trabalhando no almoço para que fique sob seu olhar e controle.
Nessa mesa, Selene está adicionando temperos a uma galinha que fará cozida. Pisou
alho e pimenta num pilão de madeira grande, de modelo bem antigo, e depois juntou colorau, sal e
verduras picadas com cebola, coentro, pimenta-de-cheiro e cebolinha, mexendo com a colher. Ela
andava pela cozinha e se encaminhava para a mesa e mexia a panela, mais algumas passadas na
cozinha e mexia novamente a panela. Na mesa também estava o peixe, que depois de cozido foi
desfiado e temperado com cheiro verde, cominho e um tablete de caldo de galinha. O cominho foi
colocado na panela do peixe pela filha Sara numa pequena quantidade na ponta da colher, ao que a
mãe comentou que ainda bem que ainda tinha um pouco do tempero, pois estava faltando no
mercadinho, mas disse que era pouco o que a filha estava a colocar na panela. Ela respondeu que
estava bom, e a mãe aceitou.
Sara ajuda à mãe nas tarefas da casa e da cozinha. Segundo Dona Selene, é só Sara que
a ajuda, e as netas são morta dentro das calças e não fazem nada, além de levantar às 11 horas,
não tem responsabilidade com nada. Dona Selene é quem decide o que vai para a panela e as
quantidades e observa várias vezes as porções de alimentos preparados para ver se todos terão
direito a sua refeição na casa da mãe, onde sempre cabe todos os filhos. Nesse momento, ela
destampa a panela do arroz, que já foi cozido e estava à mesa juntamente com os outros alimentos;
ela mexe o arroz, soltando-o, e comenta: ele é bom, pois é rendoso.
Na mesa ainda estava uma vasilha com um feijão cru embebido em água à espera para
ser cozido, mas não para o almoço, pois o cozimento do feijão é lento e já se aproximava das 11
horas da manhã. Dona Selene escutou um chamado e disse que não estava podendo falar, pois
estava tarde e ainda precisava terminar o almoço, pois às 11 horas e 30 minutos os caras chegavam
para almoçar. Ela se referia a um filho e um neto que estavam trabalhando em construções e iriam
almoçar em sua residência. A dona da casa tem uma preocupação especial com a refeição dos
“trabalhadores”, pois, segundo ela, eles têm pouco tempo: chegam, almoçam, descansam um
minutinho e já saem novamente para trabalhar; assim o almoço deles não pode atrasar. Esses filhos,
quando estão trabalhando, são bons patrocinadores do almoço, pois fornecem dinheiro à mãe para
103
Roberta mora numa casa alugada, numa rua vizinha, com um “homem mais velho” e recebe a
irmã Suyane para morar na casa com ela e o cônjuge.
368
comprar suprimentos alimentares, no entanto, o cuidado com os filhos que laboram tem uma
conotação de incentivo, pois eles passam longos períodos sem trabalho.
Sara conta que os irmãos são todos pedreiros e fazem bicos, trabalham uma semana ou
duas e depois passam outra semana bêbados; os irmãos bebem muito e, nos finais de semana, há
muitas brigas, pois se reúnem ocupados e desocupados na casa. Nessas brigas a mãe intervém, mas
quem separa os “valentes’ são os próprios irmãos. Há sempre um que não está bebendo ou está em
um estado melhor para evitar que a mãe se machuque ao tentar impedir os conflitos. Nessa
perspectiva de irregularidade do trabalho, a mãe redobra a atenção aos que estão trabalhando para
incentivar a atividade laboral dos filhos.
Todos os que chegarem à hora do almoço terão direito ao seu quinhão de comida, não
necessariamente na mesma quantidade de alimentos e qualidade de elementos chamados de
misturas. As misturas são as carnes que complementam o almoço, representam a parte mais cara e
disputada no prato de cada pessoa na família. Os pratos são feitos por Dona Selene, que controla
especialmente a quantidade e a qualidade de cada pedaço de “mistura” que é servido a cada um. Ela
mensura individualmente qual o merecimento de cada um e decide o que comerão pela idade, sexo
e contribuição feita para o almoço. Mesmo enquanto está preparando o alimento, ela fica bem
concentrada e parece que a cada vez que mexe a panela está fazendo cálculos de como vai distribuir
o alimento com todos os presentes e os que ainda poderão aparecer.
Passava das 11 horas e o feijão continuava cru na mesa dos alimentos. Então perguntei
se ela não faria o cozimento, ao que ela respondeu que sim, mas não faria com gás, e sim com
carvão. O gás de cozinha é um produto muito valorizado pela dona de casa, pois ele é o combustível
que possibilita o uso do fogão, mas é considerado caro, e seu uso é bem controlado entre as famílias
desfavorecidas economicamente. Para o feijão, que demanda mais tempo de cozimento, existe, na
casa de Dona Selene, um fogareiro no quintal, e era preciso comprar o carvão, pois estava faltando,
mas nenhuma das netas estava disposta a sair para comprá-lo, pois tinham vergonha
104
. Dona
Selene contou que Suyane não iria comprar porque tinha vergonha e acrescentou que isso era
besteira, pois o carvão vinha numa sacolinha branca e ninguém saberia do que se tratava no
trajeto
105
, mas Suyane respondeu que não, todo mundo sabe o que é e eu não vou comprar carvão
não, tenho vergonha.
104
A neta tinha vergonha, pois o cozimento com auxílio do carvão denotava a condição de pobreza
da família. Cabe lembrar que essa situação só pode ser compreendida no contexto social do bairro,
pois nas camadas médias e altas o uso carvão tem uma conotação diferenciada de status, pois o
mineral é usado para o preparo de carnes de churrasco.
105
Nesse momento, Selene se aproveitou da minha presença na cozinha e do meu conhecimento
sobre a neta pra intimidá-la e persuadi-la a fazer a compra. Conheço Suyane desde 1999 e em todas
369
5.1 A HISTÓRIA DE UMA MULHER DO “INTERIOR” E SEUS MUITOS FILHOS NA
CIDADE
Selene é uma mulher baixa, franzina, de cabelos curtos e olhos pequenos, mas é uma
mulher lúcida e esperta a todos os passos da rotina de sua casa. Ela está com 74 anos de idade,
casou cedo, teve 13 filhos. Mora na avenida Leste-Oeste
106
há mais de 50 anos, na mesma casa, de
oito compartimentos com os filhos e seus familiares. Dona Selene é uma mulher de voz baixa e fala
pouco, vive no Pirambu, mas é natural de Aurora: Eu vim pra cá, eu era pobre, né? Eu morava num
lugarzinho, uma cidadezinha [no interior do Ceará] e vim pra cá me empregar que a minha patroa
era de lá e veio pra cá, aí eu vim com ela.
A casa é comprida, e os cômodos são recortados por um corredor que vai da entrada até
a cozinha. Apesar da pouca iluminação, é possível ver todos os cômodos da casa no trajeto da
entrada da casa até a cozinha, que fica nos fundos da casa. A cozinha representa um aglomerado
com quatro espaços: sala de jantar, cozinha, banheiro e quintal; Entre esses espaços há poucas
divisórias: entre a sala de jantar e a cozinha há uma diferença de nível com um batente que eleva a
cozinha em uns dez centímetros. O banheiro fica com a porta para a cozinha entre o fogão e a mesa
de preparo dos alimentos, e também tem uma elevação em relação à cozinha de uns vinte
centímetros, e para o acesso existe uma escada de dois degraus.
as visitas acompanho sua vida escolar e seu crescimento. Para ser aceita, perguntando e anotando,
precisava desenvolver uma empatia com a família que possibilita abrir as portas dos segredos da
família. Não significa me tornar um deles, mas alguém que não cause estranhamento, alguém em
que se acostume a ver repetidas vezes na sua casa, como alguém “de casa”, e não “de fora”,
causando constrangimentos como um invasora.
106
Avenida Presidente Castello Branco, conhecida como Leste-Oeste por ligar Fortaleza de leste a
oeste numa via com seis faixas de rolamentos para passagem do grande fluxo de carros que
circulam na via.
370
Foto: Edmar Oliveira Jr
A rotina na casa começa cedo, pelo menos para Selene, que se levanta às seis horas da
manhã e inicia seus hábitos matinais de organização das atividades da cozinha e acompanhamento
da rotina escolar das crianças e laboral de alguns adultos, observando quem vai acordando. Alguns
moradores se levantam bem mais próximo à hora do almoço e, inclusive, chegam a acordar depois
do meio-dia. A maioria dos filhos moradores da casa não tem uma ocupação constante e não
cumprem horários logo pela manhã.
A cozinha é a área comum da unidade doméstica, onde a família se encontra e todos os
eventos da casa acontecem. É neste espaço onde se encontra também o único banheiro da residência
e onde geralmente fica a mãe de todos. Assim, as pessoas que chegam à casa se dirigem logo à
cozinha e se alternam nos dois ambientes, a sala de jantar, onde existe um televisor, e a pequena
cozinha, que agrega um móvel para mantimentos e o pote de água de onde todos bebem, com uma
cesta acima onde são colocados os copos que são utilizados para o consumo do líquido. É na
cozinha que as pessoas da casa conversam, brigam, fofocam; tudo o que chega à casa passa pela
cozinha e normalmente na presença da mãe. A vida de Selene se confunde com a maternidade, pois
sua vida é ser mãe, a mãe de todos.
371
Foto: Edmar Oliveira Jr
O marido, Silvino, também era de Aurora. Os pais de Selene não queriam o seu namoro
com Silvino. Então ela veio para trabalhar com seu patrões em Fortaleza e, depois, casar-se com o
jovem que também veio à sua procura na Capital e trabalhava numa firma, na mesma rua onde seus
patrões moravam.
Numa tarde ensolarada de sábado, o jovem casal fazia votos de amor eterno na pequena
e charmosa Igreja do Rosário, no centro histórico da cidade de Fortaleza. Na casa de Deus, a
menina Selene, de 16 anos, deixa de ser menina para ser a mulher do senhor Silvino. No dia 12 de
janeiro de 1959, o jovem casal estava feliz por superar a distância e a rejeição da família ao namoro
e, finalmente, serem um do outro numa união legalizada no cartório no mês de dezembro de 1958 e
legitimada na igreja.
Para chegar ao ápice da união na igreja, a moça deixou a família em Aurora, no interior
do Ceará, e veio trabalhar na Capital, mas a distância que deveria separá-los serviu para uni-los
definitivamente, pois o rapaz não aceitou a sentença da família de Selene e veio para Fortaleza ao
seu encontro. Pediu sua mão em casamento, e decidiram viver juntos para sempre.
A moça contava com 16 anos, e o rapaz com 18 anos. Ambos se consideravam
plenamente capazes de decidir o rumo das suas vidas e casaram, numa cerimônia simples, mas
muito amorosa. O conto de fadas, no entanto, durou pouco. Segundo Dona Selene, foram 35 anos
de brigas, bebedeiras, muitas traições e “pisas”. Ela contou que frequentemente era traída e agredida
pelo marido que ao chegar à casa procurava motivos para investir contra ela. A vida conjugal
tortuosa a fez concluir que os passos mais errados de sua vida foram para o cartório e para a igreja.
Aí me casei, mas antes, mal hora, foi os passo mais perdido que eu dei pro cartório e pra igreja (...)
foi a coisa mais horrive do mundo, casei.(...) mas nunca tivesse acontecido isso...
372
Sobre a violência conjugal, ela contou que periodicamente sofria maus-tratos do marido
e corria à delegacia para que o delegado viesse buscar o cônjuge e ele fosse preso, inclusive, o casal
já era conhecido na delegacia. Essa era uma situação rotineira na sua casa, e ela chamava a
delegacia intimamente de ‘sete’ Sétimo Distrito Policial.
Meu marido, quando morava comigo, ele não prestava, arranjava mulher. Eu brigava com
ele, nós ia nós dois pra delegacia no sétimo distrito, mas eu ia deixar ele lá, ele ia atrás,
curria atrás de mim, é o único canto que eu curria para me salvar era no sete. Nesse tempo
não era essa delegacia que tem agora, era o sete, aí ele saía correndo atrás de mim, ou com
uma pedra ou, com um pau atrás de mim, eu entrava dentro da delegacia, ele entrava atrás,
aí a policia prendia ele, até que graças a Deus chegou o dia de nós se separar para sempre,
agora nem na morte eu não quero mais ele, nem na hora da morte.
O casamento acabou, segundo Silvino contou, por motivo de traição dele, que sempre
foi muito namorador, foi flagrado pela mulher aos beijos com uma “namorada” que morava vizinho
na sua casa durante a festa de comemoração dos 35 anos de casamento com Selene. Enquanto ela
recebia os convidados na sala, ele beijava outra mulher na cozinha. Ela mandou eu ir embora, mas
eu merecia, pois tinha muita namorada, fazia pouco com a cara dela, era muito ruim. Ele disse que
merecia era apanhar da mulher pelo que aprontou com ela nos anos de casados e especialmente no
fim da união, disse que Selene era boa e ele que realmente não prestava e nunca prestou no
casamento.
Logo que se casaram, foram morar na rua Santa Inês, no Pirambu, próximo à praia,
durante nove anos, e depois foram morar na av. Leste-Oeste até a separação. Segundo Dona Selene,
quando se mudou para a Leste, ela deixou de ser besta e aprendeu a correr para a delegacia quando
“apanhava” do marido.
Morei na Santa Inês nove anos, foram nove anos de sufrimento e se ele tivesse aqui dentro
de casa eu já tinha murrido a muitos anos, ele tinha me matado, ainda to vivendo porque
butei ele pra ir se embora, se não tinha murrido porque era cabra ruim. Aí no Sétimo
Distrito tinha um caderno só com o nome dele, era, o delegado era muito conhecido da
gente, qualquer coisinha eu curria pra lá, aí a policia vinha buscar ele...Ele chegava em
casa de noite, jantava e ia virar lata, às vezes chegava no outro dia, chegava de
madrugada. Se eu fosse falar, apanhava, não tinha ninguém, era eu só...Tinha uma mulher
lá que sempre que ele me batia eu curria pra casa dela, era a única pessoa que salvava,
era ela e eu era muito besta, que nunca saí pra ir na delegacia, ia aqui, aqui eu era besta
mais não, soube me fazer , aí lá só sofrimento, nove anos e aqui não foi mais porque botei
ele pra correr. (Grifos meus).
O Sétimo Distrito Policial é a delegacia do bairro Pirambu e foi citada pela Dona Selene
como a delegacia a que recorria em casos de violência conjugal. Explicou que existia um “caderno”
para registro das ocorrências do marido contra ela.
373
Em Fortaleza, Dona Selene morou com os patrões na rua Rodrigues Junior e na av. D.
Manoel e depois que casou, morou na rua Santa Inês e na casa atual, onde já vive há 50 anos.
Quando o primeiro filho nasceu, ela conta que ela não tinha nada, era bem pobrezinha. A casa da
Santa Inês era de tijolo, que o marido comprou nesse tempo parece que foi mil cruzeiros a casinha,
a gente não tinha nada depois foi melhorando, trabalhando. Lá na Santa Inês, ela teve os filhos
Silvio, Silvana, Silmara, Sérgio e Suelen, e os demais nasceram na casa atual na Leste-Oeste.
O relato sobre a vida na primeira casa é muito rápido, pois não conhecia ninguém e
vivia muito só sofrendo violências do marido sem ter ação para reagir a submissão que ele lhe
impunha e, como não possuia parentes próximos, não tinha a quem recorrer. Enquanto os filhos são
pequenos, num lugar distante da sua família, a mulher procura ajuda com os vizinhos. Vivia dentro
de casa porque não conhecia ninguém, morava lá não tinha conhecimento com ninguém era
fechava a porta e ficava em casa, passava o dia, ele trabalhava e eu passava o dia em casa, porta
fechada, aí às vezes, aí eu comecei a conhecer os vizinhos...
É interessante acrescer que, apesar de ela afirmar terem sido os passo mais perdidos de
sua vida, os passos dados para o casamento, o casal continua a ter contato diariamente, Mas todos
os dias ele vem aqui. Ele explica: todo dia eu tenho que vim ver essa raça. É uma relação permeada
de violência e parentesco num misto de ações recíprocas amenizadas por seus laços matrimoniais e
consanguíneos, no caso dos filhos. O senhor Silvino atualmente está colaborando com a família,
recebendo em sua casa o filho alcoólatra Sulivan, que ao beber cria problemas dentro de casa.
Então, o pai tem assumido a responsabilidade pelo filho, mas com frequência o jovem aparece e
quer voltar a viver com a mãe.
Sobre sua família extensa, ela explica que apoia os filhos, pois não vai deixá-los na rua
sem ter onde ficar e atribui sua atitude boa à sua mãe e à sociabilidade apreendida no interior do
Estado É uma pessoa boa minha mãe, num é ruim pros filho, muito boa pros filho, ela é que nem
eu, apóia os filho dela, já puxei a minha mãe, que eu num tem meu coração mau, assim se eu vê
uma pessoa com fome, eu tendo eu deixo de comer, chegando aqui com fome.
Para ela sua família no interior era diferente das famílias de hoje, pois os filhos eram
mais respeitosos com os pais e não tinham a liberdade de sair como os seus filhos fazem na sua
casa, sendo os filhos no interior mais obedientes à autoridade dos pais.
A minha família quando eu era pequena é muito diferente de hoje, né? Meu pai, minha
mãe, era uns pai bom e agente era muito obediente, não como é hoje não. Naquele tempo
agente num saía pra canto nenhum, não tinha direito a nada na vida de sair de casa, só pro
uma missa, meu pai não deixa, de oito em oito dia que...era eu e mais duas irmã minha,
quando nós ia pra missa dia de domingo, quando agente chegava no domingo da missa aí a
374
gente já tava adulando ele pra deixar no outro domingo a gente ir, ele não deixava, dizia
que ninguém saía, ninguém saía, aí quando era no dia a gente ia fazia tudo por ele, e ele
deixava e a gente saía, ele deixava agente sair de novo, mas a gente era muito obediente a
ele, não saía de dentro de casa... Ninguém tinha namorado, era a coisa mais difícil do
mundo, também a gente não morava na cidade, era no interior, no mato, a gente morava no
mato num era na cidade e aí ele não deixava a gente sair. Não era como é hoje, os filho não
obedece mais as mães, fazem o que querem e entendi, sei que a minha família era muito
diferente de hoje, meu pai e minha mãe era muito bom pra nós, hoje não, que os filhos num
obedece mais os pais, fazem o que querem, só querem viver é tudo bebo
A vida da Dona Selene é marcada pela luta com os filhos, tanto os homens quanto as
mulheres. Em sua maioria, consomem álcool, e os seus cônjuges, também. Sempre fui de ônibus
fazer minhas pesquisas de campo e, no caminho, da parada até a casa de Selene, há um pequeno
comércio de venda de bebidas. Antes de chegar à sua casa, ficava observando quais dos
participantes da família estavam no bar e comumente observava filhos, filhas e cônjuges varões e
viragos. Discretamente continuava meu trajeto até a casa e monitorava a entrada dos frequentadores
do bar na casa.
Alguns chegam falando alto, outros entram e se deitam, e alguns, como a nora que mora
no primeiro quarto da casa com o filho mais velho, não entrava até a cozinha ou não retornava para
a casa durante a tarde; nunca a via chegar.
O fato é que o consumo de bebida alcoólica é um dos maiores problemas apontados por
Dona Selene. Ela conta que nunca ingeriu nenhum gole de bebida, mas relata seus problemas com
os filhos, especialmente as filhas casadas, que deveriam, no seu entendimento, cuidar dos filhos Eu
tenho uma vida tão aperreada tomo conta de 10 meninos, é 10, é 10 menino eu tomo de conta e as
vezes trabalho, tem essa outra que passa dois três meses bebendo sem parar, num liga os filhos de
jeito nenhum, eu é que tomo de conta. Na ocasião, ela estava se referindo à filha mais velha Silvana,
à época com cinco filhos pequenos e, não raro, bebia junto com o marido e chegavam à casa
bêbados e brigando.
5.2 “CASA DE FERREIRO, ESPETO DE PAU”
O dito popular “casa de ferreiro, espeto de pau” é usado para fazer referência às pessoas
que possuem uma especialidade comercial de atividade, mas na sua vida ou na sua casa carecem do
seu ofício. Assim, Selene explicou: Aqui é tudo pintor, pedreiro, servente, mas a casa é suja e não
fazem trabalhos para melhorar a aparência da residência da família.
A casa é suja não era uma expressão para fazer referência à falta de limpeza com
materiais como água e sabão. A senhora falava da falta de uma pintura na habitação. Entre os
375
pobres é comum “lavar as paredes da casa no natal” o que significa pintar a moradia com tinta
d´agua. A expressão talvez possa ser explicada pelo tipo de tinta usada.
A casa de Dona Selene é localizada numa grande avenida, mas, quando chegou ao local,
ainda não havia sido construída a Leste-Oeste. Estimo que ela tenha chegado à casa no início da
década de 1960, e a construção da avenida data da década de 1970.
Sobre a história da casa na Leste-Oeste, ela contou que, após a saída da rua Santa Inês
levando os filhos pequenos, o marido comprou duas unidades habitacionais, a sua e a vizinha da
esquerda, mas, depois de algum tempo, o cônjuge vendeu o imóvel ao lado, e a família ficou
somente com a residência atual, ressaltando que o quintal também teve um pequeno terreno
recortado e vendido à vizinha. Atualmente sua casa é plana, e a vizinha é de “sobrado”.
Foto: Edmar Oliveira Jr
A casa foi construída pelo marido. Ela contou que era ele quem decidia as ações e, aos
poucos, com seu ofício de ser pedreiro, transformou o imóvel, inicialmente de taipa, numa casa de
tijolos, construindo um cômodo de cada vez.
Derrubava uma parede e fazia outra, eu aqui não mandava em nada, mando agora que ele
não veve mais comigo, mas no tempo dele ninguém não dava um pio em nada, ele era que
mandava... a casa, era uma casa veia toda barro e areia, barro e pau, ele derrubava a parede
e fazia de tijolo, fazia um compartimento, um quarto de tijolo com as parede dentro, depois
376
derrubava a outra, fazia todinha (...) ele fez todinha. Era pequena, só era três
compartimento, aí ele fez isso aqui tudim, ele era pedreiro, ele sabia. Agora se ele tivesse
aqui, já tinha outra era em cima, era bem limpinha, limpava todos os anos, limpava, tinha
plano de fazer o chão todo na cerâmica, aí começou a beber e me maltratar, botei ele pra
fora, preferi ficar assim, só pobre sem ter nada do que viver com ele, senão tinha era me
matado.
A narradora fez um análise da sua vida, tomando o casamento como referência de antes
e depois, com o cônjuge e sem o cônjuge, e atribui a aparência precária da casa a sua condição de
pobreza e ausência da chefia do cônjuge para a manutenção da casa, cuja responsabilidade ele
assumia. Ao mesmo tempo, ela cobra dos filhos, que também têm o oficio de trabalhar com
construções, alguma ajuda na conservação da casa, mas, para sua indignação, nenhum dos filhos se
dispõe a trabalhar para o coletivo da família.
Dona Selene contou que, para os reparos na casa, ela chegou a comprar materiais de
construção para fazer algumas reformas necessárias à residência, que é de uso de todos, mas
reclama que pede a colaboração de um e de outro filho sem sucesso, chegando ao ponto de colocar
no lixo o cimento que comprou em decorrência da demora da construção, levando a inutilidade do
produto, que tem vida útil limitada.
A casa tem cinco quartos, sendo três no seu interior; os outros dois mais reservados: um
na frente e outro no quintal. O quarto da frente (na entrada da casa) serve de moradia para o casal
Silvio e Silvina; nele o casal faz suas refeições; o quarto dos fundos está sendo usado pela filha
Silvana, que vive uma nova nupcialidade com uma companheira e, anos atrás, era usado por
Severino
107
e sua família, que às vezes incluía, além dos filhos e da mulher, a sogra. Já as
ocupações dos quartos dentro da casa se configuram da seguinte forma: no primeiro está a família
da Sara, onde ela dorme com os três filhos menores, seu filho mais velho dorme na sala; no segundo
dormem dois filhos da Dona Selene, Severo e Salomão, e o ex-genro
108
, Sivaldo; no terceiro dorme
a Dona Selene e o filho Seleno.
107
Severino é um dos filhos de Selene. Morou muitos anos na casa da mãe com a companheira e os
dois filhos, recebendo periodicamente a sogra. Atualmente, está separado da primeira esposa e vive
uma nova conjugalidade no mesmo bairro.
108
Após a separação da filha Silvana (a união foi marcada por violentas brigas e seis perfurações a
faca que o marido perpetrou contra a esposa) que o preteriu para constituir uma nova conjugalidade
com Sâmia (a união homoafetiva também é violenta), Sivaldo pediu para continuar a morar na casa,
pois não tinha parentes e Dona Selene aceitou e explicou que o genro bebe, mas não lhe dá trabalho,
pois pode colocá-lo para fora de casa.
377
Foto quarto da frente
Foto: Edmar Oliveira
A casa é o lugar que reúne a família. Quando os conheci, em 1999, os filhos de Silvana
eram pequenos e cuidados por Selene. À época ela vivia com o cônjuge e os filhos na casa, e a
família ocupava o primeiro quarto, que hoje é usado por Sara.
Enquanto o casal Silvana e Sivaldo estavam juntos, Sara morava na casa da sua sogra,
com o marido e os três filhos mais novos, deixando seu filho mais velho de uma conjugalidade
anterior com a avó Selene. Passou o tempo, o casamento de Silvana acabou e seus filhos cresceram,
alguns saíram da casa da avó. Por outro lado, a filha Sara voltou a viver na casa mãe com filhos
pequenos e passou a ocupar o primeiro quarto.
378
Foto quarto Sara
Foto: Edmar Oliveira Jr
Dos três quartos, entre a sala e a cozinha, o segundo, eu chamo de quarto dos homens,
pois dormem os filhos solteiros, netos rapazes e o genro Sivaldo, que foi casado com Silvana. O
terceiro quarto é de Selene, onde ela dorme com seu filho solteiro mais novo. Na sala de jantar
dorme o neto Sólon e no corredor dormem a neta Simone e o neto Suri. Em todos os espaços da
casa, há redes para as pessoas da família dormirem.
Foto quarto dos homens
379
Foto: Edmar Oliveira Jr
As imagens foram apreendidas por volta das 16 horas da tarde, e no quarto dos homens,
havia dois deles dormindo, a foto é representativa da dinâmica da casa e da presença masculina
ociosa.
Foto quarto Selene
Foto: Edmar Oliveira Jr
Nas extremidades da casa há dois quartos, um na entrada, que, durante todos os anos da
pesquisa foi usado pelo filho mais velho e sua companheira que não tem filhos juntos, e o último no
380
quintal já foi usado pela família de Severino com a esposa, os filhos e a sogra; já foi alugado
durante um período de um ano e atualmente está sendo usado por Silvana e sua companheira e a
filha Suyane que recentemente retornou à casa da avó.
Foto quarto do quintal
Foto: Edmar Oliveira Jr
A casa e os usos da família
A usança (FERRARA, 1999) pressupõe a mediação entre o espaço ambiental e o
usuário. Assim, “O habito envolve o uso, que se transforma em usança e condiciona a
habitabilidade urbana”. (p. 21). Essa perspectiva motiva uma busca para decodificar o uso habitual
do espaço, possibilitando lê-lo como lugar no qual as pessoas carregam consigo um conjunto de
sentidos. Na leitura dos usos, busco romper com o olhar habitual acostumado a ver as imagens e
relações cotidianas, para melhor decodificar a comunicação, partindo do pressuposto de que não só
as palavras comunicam, mas também os lugares e os gestos. No caso, as imagens exibidas nas
fotografias durante o discorrer do texto com sua superposição de cores e significados, têm muito a
dizer. Nas trilhas para captar essa comunicação imagética e apreender um registro do lugar, utilizei
a máquina fotográfica como instrumento para possibilitar ao leitor visualizar as cenas e realizar
também uma leitura do ambiente com base na rotina da casa.
381
A primeira a acordar na casa é Sara. Ela é a terceira filha de Dona Selene e a mais
responsável com os filhos das cinco filhas. Ela levanta às cinco horas da manhã e inicia sua jornada
de luta na casa. Os seus quatro filhos são crianças e jovens em idade escolar e se levantam cedo.
Sob a supervisão da mãe, vestem as fardas e vão para cozinha da avó tomar o café com pão
preparado pela mãe, que ainda ajuda na organização das mochilas com os livros e as atividades
escolares do dia. Sara é a única que cumpre o papel de mãe no acompanhamento dos filhos na
escola e em casa.
Sara acorda as crianças numa ordem pensada a partir da idade das crianças e da
distância da escola em que cada uma estuda. As crianças são levantadas uma de cada vez para
viabilizar o uso do único banheiro da casa para todos. Ao levantar às cinco horas, bota a água do
café no fogo, enche os recipientes do banheiro com água para o banho dos estudantes, toma banho,
prepara o café e depois compra o pão. Após todo esse ritual, levanta as “crianças” e ajuda na
preparação para ida à escola. A primeira que ela acorda é a Simone, sua sobrinha (filha da Soraya),
depois chama sua filha Sarita, seu filho Simão, sua filha Silene e por último Silas. Suri
109
(filho da
Silvana) também é estudante. Ele é acordado pela avó ou pela tia Sara, quando a mãe passa uns
tempos fora de casa, mas ambas não o incluem na sua rotina, como um compromisso. Regivânia
estuda com Simone no Colégio Moema Távora e são as primeiras a serem levantadas porque são as
menores, e os menores são chamados primeiro porque são mais trabalhosos para levantar.
A ordem é seguida e o último a ser chamado a acordar, segundo Sara, é Silas, que
levanta às seis e trinta. Ela oferece café com pão aos filhos e a Simone como parte da sua rotina,
enquanto os outros moradores da casa só comem pão quando Selene compra. A avó, mesmo não
comprando o pão todos os dias, se sente no cuidado com o desjejum dos netos Simone e Suri, que
moram em sua casa desacompanhados da mãe e estão sob sua responsabilidade. Desse modo, como
nem sempre Selene compra pão, Sara oferece o café a Simone pela manhã e explica que todo o dia
tem que ter o dinheiro do pão para o preparo do café dos filhos.
Após a saída das crianças para a escola, Sara vai lavar sua roupa e as vasilhas do jantar
do dia anterior e do café da manhã. Ao lado do pote, na cozinha, há um balde grande que é
abastecido por Selene ou Sara todos os dias. Ele é lavado e cheio com água da CAGECE e dele se
retira à água que vai para o pote para consumo de todos na casa. Selene explica que não gosta de
109
Nas falas de Sara e Selene, não ficou claro quem acorda Suri. Selene chegou a referir-se a ele e
Simone como os “seus”, no sentido de ser responsável pelos dois, mas é Sara quem acorda mais
cedo e organiza a rotina escolar das crianças. Simone foi deixada na casa da avó ainda criança.
Desse modo, desde pequena, é cuidada por Selene, e Sara ajuda a mãe, mas Suri é o filho mais novo
de Silvana, que, apesar de não acompanhar a vida escolar dos filhos, não é ausente da casa.
382
água gelada e dentro da geladeira
110
só tem três garrafas; a Silvina (nora) colocou uma garrafa com
água na geladeira [a geladeira tinha sido comprada há dois meses num longo crediário], mas Sara
não acredita que a família adote o habito de beber água gelada, pois não tem quem encha as
garrafas, e os moradores não vão se habilitar a enchê-las. A água gelada não interessa a Selene, que
disse que sempre tomou água do pote e não gosta de água de geladeira, gosta de um suco gelado ou
picolé, mas água não.
Aproximadamente às oito horas da manhã, Sara sai de casa para buscar a pequena
Amanda, de um ano e um mês, da qual cuida desde os quatro meses de idade. Os pais da menina
trabalham e pagam 40,00 por semana para que Sara passe o dia com a criança. Sara e Selene cuidam
da refeição da casa. Sara prepara o almoço para seus filhos no fogão que fica dentro do seu quarto.
Enquanto aguarda a chegada dos filhos, ela ajuda Selene, que prepara o almoço para todos os que
chegarem.
As condições de vida e moradia de Sara melhoraram. Com a ajuda do benefício social
“Bolsa Família”, conseguiu comprar um fogão e cozinha para os filhos, dentro do quarto em que
vive, pois, segundo ela, não dá pra viver às custas da mãe, de modo que deixou de depender e dar
trabalho a sua mãe, que já tem uma certa idade.
110
Ao longo do processo de investigação, família de Dona Selene retirava água para o consumo de
dois grandes potes na cozinha e observei várias vezes os jovens pegando um dos copos coletivos,
colocando no pote e após se servirem da água jogavam o copo num cesto de alumínio.
383
Foto: Edmar Oliveira Jr
Depois do almoço, as tardes são movimentadas, com as constantes entradas e saídas dos
filhos que chegam para conversar, sentar, deitar nas redes, nos quartos ou na sala, comprar
alimentos que a avó vende e visitas, como a neta que trouxe um bisneto para “passear” na casa da
vovó. Nas tardes se ouve constantemente o tilintar dos copos jogados no cesto vazado para colocar
os copos de alumínio e plástico após beberem água do pote. Mas os usos estão mudando na casa. A
coleta das fotos para a pesquisa foi feita em fevereiro de 2010 e as práticas quanto ao consumo de
água estavam mudando, a geladeira agora era usada e estava no lugar do pote, que não foi
abandonado, mas perdeu adeptos, que passaram a consumir água gelada. Quanto à geladeira nova,
ela foi substituída por uma velha, que, segundo Selene, é ótima, muito melhor, mas econômica essa.
Foto geladeira velha e cesto de ferro
384
Foto: Edmar Oliveira Jr
Selene explica a disposição das redes para dormirem todos os moradores na casa: tudo
imendado as redes que a casa num dá... é o maior aperto pra gente passar aqui de manhã, Ave
Maria, é horrive, aqui, olha um em cima e outra em baixo para caber tudo...
A noite, antes de domir, Dona Selene contou que gosta de fechar a porta quando todos
estão em casa para se deitar tranqüila. Disse que fica acordada até meia noite e aguarda a chegada
do último para passar a chave na porta e mandar todos dormirem, mas, infelizmente, nem sempre é
possível; mesmo dormindo tarde, às vezes ela pede que fechem a porta e vai dormir, mas
recomenda que cubram a TV, pois, tem cuidado, e como ela mesma disse: é só o que possuo,
minhas coisinhas.
5.3 A GRANDE FAMÍLIA E A REDE DE PARENTESCO
Dos 13 filhos do casal, oito são homens. Os filhos percorreram trajetórias de
conjugalidades adversas à da mãe, passando por mais de um relacionamento conjugal, união sem
filhos, celibato e homossexualidade, formando uma teia com vários tipos de família numa rede que
tem como referência a casa da mãe.
Seus filhos lhe deram 31 netos, e alguns viveram mais de uma conjugalidade, formando
uma rede de parentesco extensa em que muitos dos filhos, netos, genros e noras não conseguem
formar uma neolocalidade para a vivência familiar como núcleo e voltam a viver na casa da mãe.
Durante os dez anos que acompanho a família como locus de pesquisa, a casa tem em média 20
moradores. Ora uns filhos, ora outros, com duas situações incomuns de parentesco. Acompanhei um
período em que o filho Severino morou com a mulher, os dois filhos e a sogra num quarto ao fundo
da casa, coincidindo com o quintal e, recentemente, neste mesmo quarto, estão vivendo Silvana e
sua atual companheira, mas na casa ainda mora com o seu ex-marido Sivaldo. Dona Selene explica
385
que o genro, separado da sua filha, continua morando na sua casa, pois não tem onde ficar, o pobre
rei.
A filha Silvana passou os últimos três anos morando em outra casa com a companheira,
mas voltou para a casa da mãe, agora com Sâmia, a companheira. A mãe acha estranho a filha ter
um relacionamento homossexual e diz: coisa horrive, né? Mas não se trata de uma rejeição, com o
passar do tempo, a mãe se acostumou com a opção sexual da filha e, em razão do problema de
saúde do filho Severo, que foi atropelado, a companheira de Silvana se aproximou da família. O
rapaz precisava de cuidados no hospital e de alguém que o acompanhasse nas visitas ao médico e,
no acompanhamento pós-cirúrgico, Sâmia faz bicos acompanhando doentes e ajudou a família de
Selene com o tratamento de Severo, se aproximando da família e, meses depois, indo morar na casa
da sogra.
A rede familiar é uma teia que tem na Dona Selene o nó inicial e se desdobra nos 13 nós
representados por seus filhos. Os nós da família são os filhos da mãe idosa e suas famílias composta
por filhos biológicos e cônjuges heterossexuais ou homossexuais. Esses filhos se identificam com a
mãe e com a casa e fazem a teia se expandir com ramificações ligadas a eles como nós. Os filhos
dos filhos(netos de Selene) não formam outros nós, nesse sentido, não há espaço para constituição
de uma nova família de uma neta ou de um neto na casa sede.
Os filhos do casal principal, no entanto, são recebidos. Estive em fevereiro deste ano na
casa de Dona Selene para composição de um quadro sobre a renda e as condições de moradia da
família. Havia três meses que não visitava a casa e observei mudanças quanto ao número de
moradores, que chegou a somar 25 pessoas. Entre os novos moradores, estava a filha Soraya, que
veio com seu cônjuge e o filho morar na casa da mãe.
Soraya morava com o cônjuge próximo à beira da praia, mas o marido se envolveu num
conflito, briga de menino por causa de arraia, levou dois tiros e agora não pode mais voltar para
casa, pois está ameaçado de morte pelo vizinho e pai do menino com quem foi falar porque brigou
com seu filho de oito anos na rua; o pai do outro menino lhe deu os tiros.
A filha Soraya contou que, logo que veio da assistência [hospital], foi para casa da mãe
tratar do companheiro, que levou um tiro na perna e outro na nádega. A bala da perna foi retirada e
a segunda ficou alojada, mas o ferimento já cicatrizou, segundo relatou a esposa. Ela contou que
quando foi buscar roupas para a família na sua casa, foi informada de que se o marido descesse para
a rua na praia, seria morto, pois estava jurado de morte. Assim, Selene a acolheu, pois não ia deixar
a filha na rua com o esposo e o filho. Sobre sua conjugalidade, Soraya explica que, há 12 anos, está
no poder dele, referindo-se ao atual companheiro; enquanto isso, os dois filhos, Sansão e Simone,
386
sempre viveram com a avó. O filho Sansão foi morto há três anos numa discussão na praia e a vinda
de Soraya para casa materna a aproximou da filha Simone de 15 anos, que vive na casa da avó
desde que nasceu.
No poder. A condição da mulher com o companheiro foi explicitada na fala de Soraya
que, narrando sobre seus relacionamentos conjugais e filhos, sugeriu que já foi mais danada para
namorar, a saber, ela teve quatro filhos de quatro nupcialidades diferentes, mas agora está “no”
poder do atual companheiro. Interpretar sua fala é entender a moralidade da condição de mulher
casada e seu estado de submissão ao homem “no poder dele”, ou sob o poder dele, ao mesmo tempo
que significa também proteção, por exemplo, se estamos sob o poder de um “rei”, estamos também
sob sua proteção. É com base nessa lógica que se constituiu a concepção de poder e Estado
(WEBER, 2000) com o monopólio da força.
5.3.1 A mãe e a rede de parentesco
Na narrativa da rotina da casa de Dona Selene, emergem questões sobre o papel da
mulher na família, desencadeando conceitos já trabalhados na literatura sociológica, tais como
“dona de casa” e “mãe de família”, bem como as distinções entre “casa” e “família”, revelando a
divisão de papéis sociais na unidade doméstica. A narrativa da cena do almoço no início do capítulo
conduz à analise dessa rotina numa condição de vida, de família e de mulher a partir de um contexto
de pobreza acentuada, num bairro popular de Fortaleza.
A “dona de casa” tem como responsabilidade a manutenção do padrão mínimo
alimentar da família (ALVIN, 1979). Selene assume essa função e lhe dá nome e hora: o almoço ao
meio dia. Desde o raiar do dia, sua meta é prover alimentos à família: Negoço de alimentação é
comigo.
O almoço é a refeição que representa o acolhimento de todos na casa, sejam filhos
moradores, filhos vizinhos, filhos trabalhadores, que, mesmo não residindo na casa da mãe, fazem a
refeição do meio dia em sua casa. As netas Suyane e Suzy
111
moram próximo, mas almoçam na
casa da avó. O almoço é a refeição que une a família numa panela só.
111
Emília é irmã de Roberta e Suyane; ela mora numa rua paralela e vive uma união conjugal
homossexual com uma moça que foi namorada de Roberta. As irmãs estão magoadas,
principalmente Roberta, que foi preterida por Emília e acusa a irmã de “roubar” sua amada. As três
irmãs, juntamente com Severo e Suri, foram criadas na casa da avó com os pais e ocupavam o
quarto que hoje é usado pela família de Sara. Essas relações não chegam a gerar conflitos diretos
com a matriarca, mas ela não concorda com a opção homossexual e disse: “Isso é horrive”. Suyane
morava com Roberta e recentemente voltou para a casa da avó.
387
O quintal da casa de Selene e as panelas.
Foto: Edmar Oliveira Jr
A única panela é compartilhada por todos e, apoiada nessa atitude, Selene acentua
Quem chegar aqui come. Essa sua fala se realiza na refeição central do trabalhador nordestino: o
almoço. Ao oferecer o almoço aos seus, a matriarca cumpre seu papel de “dona de casa”, pois
representa a manutenção mínima do padrão alimentar, e de mãe, no sentido de garantir a unidade da
família. A relação objetivada consiste numa “panela só”. Dona Selene, que é divorciada, ainda
assume a função de chefe de família, são papéis sociais, no sentido de algo que se espera de uma
dona de casa, chefe de família e mãe, centralizados na pessoa de Selene e simbolizados pelo almoço
na panela coletiva.
A panela coletiva é para todos, mas não de todos. Há um dito popular que expressa a
máxima de que “panela que dois mexem, ou saí cru ou sem sal”. Na casa de Selene a panela é dela,
da mãe, da dona da casa. Ela acompanha a panela durante toda a manhã e ao chegar a hora do
almoço, com a generosidade e a firmeza da mãe de família, distribui o alimento entre os filhos. Seu
olhar calcula e mensura quantidades e necessidades de cada um; essas medidas são praticadas no
dia a dia e planejadas na vivência e no conhecimento da família para ensejar a todos o almoço.
Os filhos, netos e agregados sabem que podem chegar à casa da “mãe” na hora do
almoço e vão ser recebidos com a oferta da refeição. Este alimento é patrocinado pela mãe, então, é
388
para todos. Na casa de Dona Selene, não há café da manhã para todos. Segundo ela, somente às
vezes compra pão, porém os filhos de Sara tomam café e comem pão pela manhã, antes de ir para a
escola. Na cozinha de Selene, a filha Sara faz café para todos, mas só compra pão para seus filhos e
Simone, filha de sua irmã que mora desacompanhada da mãe biológica na casa da avó e vai para a
escola com as filhas de Sara. Quando Selene, porém, compra pão, todos têm direito de comer. O
que pertence à mãe é patrimônio de todos os que compartilham da panela. Somente a mãe tem
“obrigação” com a alimentação de todos, sendo a colaboração dos demais somente ajuda.
O desafio cotidiano começa logo que o resultado do esforço do dia é alcançado. Assim,
finalizado o almoço, se inicia o novo desafio: o almoço do próximo dia. Para tal, a tarde é
fundamental na venda de tapiocas, biscoitos e balas para os vizinhos e principalmente para os netos.
Este comércio doméstico se transforma no dia seguinte em dádiva de mãe: almoço.
Apesar da continuidade do desafio, o dever cumprido representa a realização da mãe,
como emerge em sua fala de ser a “mãe” de todos os filhos, netos e bisnetos ou simplesmente,
meus, “os meus” como chama ela sua prole. No tocante à responsabilidade com escola, alimentação
e vestuário, ela separa os netos menores que são criados sob sua responsabilidade, pois vivem na
sua casa desacompanhados das mães. Atualmente, somente Simone está sob sua responsabilidade, e
Selene recebe a ajuda de Sara na atenção com a menina. Há outro neto, porém, sob seus cuidados:
Suri, de 12 anos
112
, filho de Silvana
113
, alcoólatra, que saiu da casa da mãe para viver uma
conjugalidade com uma companheira, deixando o menino (o menor dos seus cinco filhos) na casa
da avó.
A organização dos meios e a confecção do almoço rotineiro pode ser uma tarefa
simples para muitas mães, mas para Selene, aposentada com um salário mínimo e uma família de 25
pessoas, cada dia, o almoço é um esforço significativo, que ouso aqui chamar de desafio. Afinal, ela
cumpre o papel de mãe ao organizar o arranjo econômico da família em torno do almoço que, na
sua condição de pauperismo, o cumprimento representa o êxito no seu papel e consolida sua
condição de autoridade
114
e referência na família.
112
Certa tarde, o menino havia sido o assunto da cozinha, pois chegou um aviso da escola de que
ele estava pichando as paredes da escola e só poderia retornar acompanhado dos pais e com uma
lata de tinta para nova pintura.
113
Silvana é mãe de Suzy, Sulany, Suyane, Suriel e Suri. Foi casada com Silvino por muitos anos e
viveu a maior parte desses anos na casa da mãe com a família. Os filhos cresceram, e ela se separou
do marido para viver uma nova conjugalidade numa neolocalidade. Recentemente voltou à casa da
mãe, no entanto sua permanência não é certa, enquanto que o filho é contado como morador fixo da
casa.
114
Sobre autoridade e poder, Romanelli (2000) explica que ambas se referem a comando e
obediência, mas “A autoridade reporta-se a experiências comuns vividas no passado e seu exercício
389
A mulher tem um lugar de relevância para a unidade da família, seja por ser dona de
casa, chefe de família, seja por ser simplesmente mãe. Ela une todos em torno dos laços de sangue e
também pelos de afeto. Nas famílias pobres, desprovidas de condições satisfatórias de vida, os
familiares são importantes. Credite-se isso ao costume de chamar a família de “os meus”, denotando
proximidade, identidade e apoio na crença de reciprocidade.
Esse apoio tem nome e atende pelo apelido de mãe. É certo que não se pode generalizar
nem considerar uma universalidade, mas também não se pode negar a figura simbólica da “mãe”.
Cotidianamente, as pessoas podem se magoar ou se ofender na rua por diversos
motivos, mas se chamar “pela mãe” as ofensas e mágoas tomam enormes proporções e podem
causar agressões físicas que são liberadas por atingir algo que reside no plano do “sagrado” para a
maioria das pessoas.
Na trilha de entender essa situação, podemos recorrer ao argumento de alguns familiares
que responderam que família era mãe, ter nascido da mãe e ser irmã dos meus irmãos (Vilani,
2008). Essa fala corrobora a explicação de que se trata de uma questão de identidade com a mulher
e com a família por ela representada, haja vista que frequentemente também não se aceita falar da
família fora de casa, por terceiros, mesmo considerando-se a validade das acusações. Em muitos
casos, certas acusações só são aceitas em casa, não se permitindo que terceiros falem mal dos
”nossos” familiares na rua. Toda essa situação de identidade se personifica na figura da mãe, sendo
ela um calcanhar de aquiles para as pessoas. As mães são as protagonistas da maioria dos palavrões
ofensivos no cotidiano brasileiro.
Nesta perspectiva de centralidade do parentesco, Margarida Hitta (2002) assinala que o
parentesco se faz desde a linhagem da mãe, estando nela, mãe, o cerne do parentesco.
No setor popular o parentesco entre dois indivíduos passa principalmente pelas mulheres,
pelo ventre materno. O cordão umbilical é o símbolo que une os iguais, que constrói o outro
com o irmão através da mãe. É pela mãe que o parentesco entra no mundo e é pela mãe que
dele sairá o novo indivíduo. A mãe é a junção entre a casa e as redes de parentesco que ao
redor dela se constroem. Reconhecer a centralidade da mãe e das redes de parentesco
produzidas através dela não significa, entretanto, afirmar que as famílias como as aqui
estudadas se produza uma falta de homens e abundância de mães. (HITTA, 2002, p.3).
todos os filhos que não têm um lugar pra morar. Essa mesma prática acolhedora se
reproduz na mesa, ou melhor, na panela, da qual todos têm o direito de partilhar o alimento.
visa preservar posições hierárquicas já estabelecidas e que fazem parte da tradição de comando no
interior de um grupo ou associação”. (p. 80).
390
Apesar dessa potencialidade de unidade centrada na mãe de família, especialmente nas
redes, há mães, como dito, que abandonam os filhos à sorte, no entanto observo que, em algumas
mães, confiam essa tarefa às suas próprias mães, nesse caso, biologicamente, às avós
115
.
Segundo dados do Cadastro Único, no Pirambu, das 6.997 crianças cadastradas entre 0-
14 anos, somente 2.276 moravam com o pai. Este número é bem próximo do de crianças que
moram com o pai e a mãe biológicos, que é de 2.148 crianças, significando que apenas 128 crianças
moram somente com o pai, enquanto 6.376 moravam com a mãe desacompanhadas do pai. Das
crianças criadas pelas avós, há registros de 336 crianças que não moram nem com a mãe nem com o
pai.
Esta é uma situação recorrente nas casas de Dona Selene, Dona Rita Dona Telma, mas
não são critérios de vida familiar somente entre os pobres. A antropologia da família tem reservado
boas discussões à questão da circulação das crianças (FONSECA, 2006) nas camadas populares e
médias
116
. Essas mudanças, em parte, são ocasionadas pela conjugalidade cada vez menos restrita a
padrões tradicionais de casamento e aberta a novas configurações e valorização do individualismo e
suas liberdades de escolhas. Isso, consequentemente, gerou uma rotação de parceiros e formas de
configurações dos relacionamentos. Divulga-se, então, a liberdade de escolha dos cônjuges em
torno do afeto que é vivenciado e produz frutos: filhos, estes, porém, após o fim dos
relacionamentos, em alguns casos, são preteridos por novos projetos de amor pelas mães e que, em
algumas situações, deixam os filhos com suas mães. No caso dos homens, a pesquisa empírica
denota que, comumente, a paternidade é determinada pelo tempo de duração da conjugalidade com
a mãe da criança.
A matrifocalidade e a circulação de crianças
A matrifocalidade é um fenômeno recorrente nas famílias pobres. Comumente os filhos
ficam com a mãe ou na rede de parentesco matrilinear após o fim dos relacionamentos conjugais e
suas recomposições.
115
Observo mais casos de crianças com as avós, mas há circulação de crianças nas casas de parentes
e não-parentes. Em uma vila portoalegrense, Fonseca (1987) constatou que 50% das mulheres de
mais de 20 anos tinham colocado pelo menos um filho num lar substituto. Na periferia de Fortaleza,
no bairro Bom Jardim, foi realizado um estudo com 104 jovens sobre Juventude, pobreza e trabalho
e sobre as famílias. A autora constatou que “31% das famílias são chefiadas por mulheres e 21/%
por parentes, com destaque para a figura das avós.” (BRITO, 2006, p.117, grifo meu)
116
Ver sobre a circulação de crianças em camadas populares em (SARTI, 2005b; FONSECA, 2006)
e em camadas médias ( MOTTA-MAUÈS, 2004)
391
Crianças são resultantes de uniões conjugais, nas quais a linhagem da família se renova
e dá continuidade a um grupo familiar. A neta Suyane, aos 16 anos, foi para uma cidade do interior
do Estado viver uma nupcialidade. Passou dois anos e voltou; está sempre namorando. Assim, em
minhas pesquisas no Pirambu, noto que os jovens fazem e refazem suas vidas amorosas com
rapidez. Não raro, vejo jovens que viveram dois ou três relacionamentos conjugais
117
antes dos 30
anos.
Os relacionamentos em si não são problemas sociais, pois vivemos numa sociedade de
grande valorização do “eu”, onde as pessoas buscam constantemente sua “felicidade” e em nome
dela se ligam a um par quando “encontram o amor”, em todas as camadas sociais. O problema entre
os pobres reside nas consequências para as crianças que são frutos desses relacionamentos e
preteridas quando há uma separação e recomposição das famílias. Nessa situação estão muitos netos
de Selene, os dois filhos de Silmara: Salomão e Severo, Suri, filho de Silvana, e Simone filha de
Soraya. Alguns desses netos, como Salomão, Sólon, Simone e Sansão [falecido] foram criados
desde a primeira infância na casa de Selene como se fossem seus filhos, diferente do neto Suri, que
sempre teve a mãe por perto, mas, diante das suas impossibilidades de cuidados com uso de álcool e
agora drogas, o menino acabou ficando a cargo da avó.
A expressão complexidade familiar que foi utilizada para denotar a diversidade das
formas de organização das unidades domésticas desde as unipessoais ou não-família, com única
pessoa morando no domicilio, às unidades extensas. O grande número de crianças nas casas é a
principal recorrência que observo nas famílias complexas estendidas do Pirambu, Como acontece
na casa de Selene, é comum encontrar mulheres com mais de um filho, muitas solteiras ou em um
novo relacionamento e, algumas vezes, grávidas do “novo amor”, sem um local de moradia para um
novo núcleo; mas há também modalidades nucleares vivendo no núcleo extenso.
Como nos casos citados na família de Dona Selene, muitos casais nas camadas
populares vivem suas relações amorosas e geram filhos, mas as condições de ser da paternidade e
maternidade não são fluidas, como os relacionamentos. As crianças são preteridas pelas mães na
situação de novo amor e, em muitos casos, “esquecidas” pelos pais ao término dos relacionamentos.
O ideal de amor é consumido como direito, no entanto, o casamento não é mais uma consequência
desse amor nem a constituição da família, apesar da vinda de filhos.
A questão dos filhos afastados dos pais nas famílias pobres tem sua fonte no
individualismo e na liberdade sexual que se realizam em detrimento da atenção à reprodução
117
O termo cônjuge é utilizado para expressar uma relação entre um casal e por terem filhos como
consequência dessa união. Na verdade, não há casamentos, mas uniões sem formalidades legais.
392
biológica. Não raro, os jovens se tornam pais muito cedo, e os filhos dessa união se agregam à casa
das avós das crianças
118
.
Essas uniões são os novos habitantes que chegam às casas por meio da gravidez das
jovens sem uma união, cujos filhos irão somar-se à já extensa família em que vivem. Em geral, na
matrilocalidade. Daí o elevado número de crianças e adolescentes sem os pais na casa de Dona
Selene.
Em outubro de 2001, conversei com uma moradora da rua da Paz, uma das ruelas do
Pirambu, sobre sua família, e ela relatou que na sua casa moravam dez pessoas: ela , o marido, os
cinco filhos do casal e três netos. Nessa casa, um dos netos era de um filho varão, e a criança estava
separada da mãe — é mesmo que não ter mãe — revelando que as mães também abandonam os
filhos
119
. A moradora falou ainda dos relacionamentos das filhas, não casa, se junta, arranja uns
cabra que não presta e arranja meninos e apontou um neto esse aqui o pai nem conhece; depois
apontou o outro neto e disse: aquele ali o pai ainda deu dois anos, referindo-se ao apoio financeiro.
Em junho de 2005, foi divulgada
120
uma pesquisa encaminhada pelo Banco Mundial em
três bairros da periferia de Fortaleza, a qual avalia a situação designada de risco na periferia. Esta
constatou que, entre os jovens, apenas 7% são criados com o pai biológico. Trata-se de um número
elevado e denota a precariedade da condição de paternidade nos bairros populares.
Os relacionamentos se fazem como parte de um projeto de individualidade e de escolhas
livres, pressuposto no amor, hoje acrescido da transitoriedade, da descrença na eternidade dessas
uniões e numa maior participação nas decisões do relacionamento, ou seja, são projetos de
realização do eu que se contrapõen ao nós da família. A família e a casa não se sustentam em
valores individuais, mas coletivos.
A rede de proteção que ampara e oferece um lugar de identidade se faz com trocas de
dádivas que carregam consigo a obrigação da retribuição. É justamente a retribuição que enseja uma
nova dívida, porém na forma de retribuir é que percebi o conflito. Observei durante anos uma
situação interessante entre três gerações – avó, filha e neta. A filha mais nova de Sara, então com
dois anos, ainda aprendendo a falar, foi ensinada pela mãe biológica a chamá-la de mãe, no entanto
118
Em alguns casos de novas uniões conjugais, a mulher opta pelo novo cônjuge em detrimento dos
filhos que são dados para criar geralmente para rede consanguínea da mãe (SARTI, 2005,
FONSECA,1987). Nas minhas pesquisas, observo frequentemente as avós maternas cuidando dos
netos, como ocorre com as famílias de referência da tese.
119
Esse foi o segundo caso que vi de netos na casa paterna. No outro, a avó explicou que a criança
lhe tinha sido entregue pela avó materna, pois a mãe não tinha responsabilidade. Para as mulheres
que se afastam dos filhos, as críticas são mais intensas do que para os homens.
120
Jornal O POVO 19/07/2005.
393
a situação desagradava à avó, que era dona da casa onde a filha estava vivendo com a neta, e queria
ser chamada de mãe pela criança, como faziam todos os outros netos que viviam em sua residência,
com ou sem a presença dos pais. Dona Selene, proporcionava uma moradia e uma família a todos os
seus filhos e netos, sentia-se no direito de ser mãe, apesar da presença da mãe biológica da criança,
que deveria, como suas outras filhas, ser chamada por seus filhos pelo nome ou apelido. Hoje a
menina com onze anos chama a avó e a genitora de “mãe”.
Para complementar, é importante destacar que, apesar da ausência física do pai, ele é
mencionado nos relatos, sendo assim, uma figura presente. As mulheres consideram importante
saber quem é o pai e onde ele está, apesar de negarem essa presença, dizendo que nem vê e nem
sabe, mas, quando interrogadas se ele sumiu, rapidamente respondem que não e oferecem
informações precisas sobre os genitores dos filhos ele mora bem ali, na outra rua, na casa da mãe
dele. O pai não assume a paternidade como a expectativa criada em torno do papel de pai, mas a
figura moral paterna não é ausente e quando necessária pode ser assumida por um dos tios da
criança.
5.4 A GERÊNCIA DA MÃE NA ECONOMIA DA CASA E O COMÉRCIO NA COZINHA
Na porta da casa da Dona Selene, há uma placa onde se lê: suco – 0,50 centavos tapioca
– 0,50 centavos, café – 0,50 centavos, paulistinha (pão de milho) – 0,50 centavos. Na placa não há o
preço do ovo que é vendido junto com o paulistinha quando o cliente solicita, mas costumeiramente
é comercializado somente dentro da casa com os filhos, netos e agregados.
Foto: Edmar Oliveira Jr
A cozinha de Selene é lugar de trocas comerciais na família. Ela oferece o almoço a
todos como dádiva de mãe, mas vende lanches e guloseimas para os filhos e netos. A maioria dos
394
produtos comercializados na cozinha é direcionada ao consumo familiar e, pelas minhas
observações, cerca de vinte por cento destinam-se ao comércio exterior à família.
São lanches de tapiocas com margarina, pão com ovo, paulistinhas com margarina e
paulistinhas com ovo e guloseimas, como balas, pirulitos, tijolinhos e biscoitos; os principais
consumidores são as crianças. Na cozinha não há balcões ou caixas registradoras para o dinheiro
chegar à mão da avó, mas há a consciência dos filhos e netos em efetuar o pagamento, há cobrança
da avó e os olhos vigilantes das irmãs que monitoram os pagamentos.
Após um diálogo sem palavras entre a avó e o neto entrando na fase adulta, um barulho
de fritura surge acompanhado do cheiro de margarina. O rapaz próximo ao fogão derretia a
margarina onde fritaria um ovo para comer com um cuscuz paulistinha que a avó já tinha
cozinhado. O jovem quebra o ovo na frigideira e, sem muito domínio das técnicas culinárias, mexia
com rápidos movimentos circulares. Enquanto a isso a avó, receosa da negociação pouco clara
sobre a venda do ovo, lhe cobrava, me pague logo, me pague logo. Somente após o pagamento, a
avó se levantou e foi buscar o cuscuz.
A negociação com as balas também é objetiva e, no caso das balas, as moedinhas vêm
para a mão da avó antes dos doces chegarem às mãos das crianças para rapidamente serem
saboreadas pelos pequenos. Em se tratando das balas e outras guloseimas para as crianças, são os
adultos que doam o numerário às crianças, e a avó orienta aos pequenos que mostrem o dinheiro,
cadê o dinheiro? caso contrário, não há acordo. Em geral os homens que oferecem os doces são
tios, primos, pais e irmãos maiores, que, ao chegar, são abordados pelos pequenos e levados pela
mão à cozinha para compra de balinhas.
A venda de produtos fora da casa é pequena e só observei situações de venda de
tapiocas para cabeleireiras de um salão de beleza próximo a sua casa e para a rua da Paz (atrás da
casa), mas a placa está na porta da casa, escrita em madeira.
O comércio externo da casa possibilita bons ganhos, como a encomenda de quatro ou
cinco tapiocas que oferece um ganho maior que um dia de pequenas compras retalhadas no
comércio familiar, mas Dona Selene reconhece que o mais significativo é o resultado das vendas à
família e explica timidamente que, se eles não comprarem dela, comprariam fora; então, ela mesma
vende, justificando o envolvimento comercial dentro da sua casa e com seus parentes.
Quando ela fala que eles gastam fora, há o anúncio de que existe dinheiro entre os seus
pares, mas que não chegam como dádiva para o coletivo, e a venda de alimentos impede que o
dinheiro seja gasto fora da casa e possa fomentar o consumo da família, principalmente de
395
alimentos. Assim, as moedinhas se transformam em quilos de arroz e viram dádiva de mãe no
almoço oferecido a todos.
Nessa perspectiva, há a obrigatoriedade da preferência aos produtos vendidos pela mãe
em casa em detrimento de produtos semelhantes comercializados nas mercearias do Bairro; sendo
assim, há coerção para que a compra seja realizada, bem como para que não sejam feitas sem o
devido pagamento.
Mesmo com a disposição para o trabalho da mãe e a atenção vigilante das irmãs, os
produtos são consumidos sem o pagamento, o que dificulta a reposição. Dona Selene espera o início
do mês, quando recebe sua aposentadoria para comprar alguns suprimentos para seu comércio, mas
reconhece que é difícil, pois parte da sua aposentadoria é comprometida, na fonte, com empréstimo
de R$ 159,00, que solicitou ao banco para receber R$ 1.600,00 para pagamento de contas da casa e
o que lhe sobra ainda paga o agiota do bairro que lhe cobra juros de vinte por cento sobre o valor
utilizado no mês.
O consumo de bens tem sido o desejo da narradora, que comprou uma geladeira a
prestação, tem empréstimo no seu benefício de aposentadoria e agora deseja tirar uma cama box,
em dez prestações de R$ 24,90, que nas suas contas cabe no seu orçamento.
O arranjo econômico é arregimentado pela mãe, que, mesmo não recebendo as
contribuições desejadas por parte dos filhos, lhes cobra ajuda em dinheiro e em trabalho. Assim,
mesmo não assumindo compromissos com a economia doméstica diretamente, os filhos são
cobrados a doar trabalho para o benefício da família, e, mesmo que não façam, há cobrança e
reivindicação por parte da mãe. A vivência numa rede extensa como recurso à sobrevivência impõe
a condição de pobreza, mas a mãe cobra o empenho dos filhos e sente vergonha por não ter sua casa
“limpa”. Assim, ela se dispõe a comprar o material para pintura, mas, diante da estada dos filhos em
casa sem ocupação, ela não se conforma em pagar pelos serviços, sobrando a ela a única opção de
reclamar a falta de compromentimento.
A indignação da mãe consiste numa cobrança ao trabalho em casa como forma de
colaborar com o que tem de possível, haja vista que a maioria dos filhos homens não tem
remuneração, e seus ganhos são destinados a bebidas. Em contrapartida, a mesma cobrança laboral
feita às filhas tem resultado positivo. A filha Soraya lava a roupa da mãe, ela dá o sabão e eu lavo,
num quero que me pague não. São trocas de dádivas no arranjo econômico impulsionadas pelos
valores presentes na proteção familiar.
Transferência de renda: Bolsa Família e aposentadoria na casa de Dona Selene
396
Mesmo com o fogão, que garante a refeição da família nuclear de Sara no almoço, ela e
os filhos tomam o café da manhã na cozinha da mãe, assim como o café da tarde, quando há. Sara
explicou que, além do Bolsa Família, ela recebe a ajuda do pai das “crianças” e complementa a
renda da família cuidando de uma menina de um ano. Assim vai vivendo com a família, às vezes,
explica ela, faz uma faxina ou lava uma roupa para fora de casa, e isso ajuda a comprar uma mistura
ou um pão.
Sara divide o seu tempo cuidando da pequena Amanda que está aprendendo os
primeiros passos no piso de cimento rugoso da casa, e o almoço dos seus filhos. Mesmo cuidando e
alimentando a menina, ela ajuda a mãe no preparo do almoço da família. Discreta, ela está sempre
disposta a contribuir com seu trabalho para minimizar o desgaste da mãe na “luta da casa”. Atenta
às necessidades da mãe, ela procura ajudá-la, mesmo que seja em detrimento de sua opinião.
Sempre concorda com Selene, a orienta e busca estratégias para que a mãe acredite que toma as
melhores decisões.
As condições precárias de vida da família foram minimizadas pela aposentadoria de
Dona Selene e pelo programa social “Bolsa Família” que a filha Sara passou a receber do Governo
federal. Com a nova renda, Sara comprou um fogão e conquistou a autonomia de cozinhar dentro do
seu quarto para os filhos. Esses benefícios sociais ensejaram uma melhoria na qualidade de vida da
família que passou a ter rendimentos mínimos para as condições básicas de sobrevivência.
Em razão da sua idade, Dona Selene confia seus rendimentos à filha Sara, no que
concerne a recebimentos e outros assuntos junto ao banco. Ela confia em Sara e não se preocupa
com os constantes avisos dos filhos de que Sara faz uso pessoal do seu dinheiro. Por outro lado,
Sara explica que, apesar das afirmações maldosas dos irmãos, ela não retira para si nenhum centavo
do dinheiro da mãe e mensalmente presta contas de todos os créditos da aposentadoria e todos os
débitos feitos no seu cartão pela mãe, entrengando-lhe os numerários restantes.
Nem sempre foi assim, porém, há dez anos, Dona Selene se preocupava diariamente
com o que colocaria na panela para alimentar sua prole e descendentes sem saber de onde viriam
recursos para alimentar a todos os que esperam sair das suas panelas o alimento de todos os dias. Na
época ela não tinha nem recursos nem créditos, de modo que sua luta diária era mais precária.
Noções de economia de pobres
No “dicionário” da economia dos pobres está prescrito o gasto com o corpo, tendo
em vista economizar o dinheiro. As mulheres economizam o gás de cozinha cozinhando em
397
fogareiro, consomem com parcimônia a água da CAGECE, que é paga, lavando roupa com água da
bomba (da casa vizinha) e fazem todo tipo de economia para não desperdiçar o dinheiro.
Observei que o feijão é colocado de molho de um dia para o outro para ficar mais mole
e facilitar o cozimento, diminuindo o tempo de cocção e o consumo do gás. Mesmo assim, para não
consumir mais o gás, a família de Dona Selene dá preferência a realizar o cozimento do feijão no
fogareiro, pois o carvão é muito mais barato do que o gás. A essa vantagem se some a desvantagem
da fumaça na cozinha, da posição desconfortável para o manuseio da panela numa altura bem
próxima ao chão, exigindo a curvatura de quase todo o corpo, e do longo tempo de cozimento no
método rudimentar.
Certa manhã, observei que uma das filhas se encostou à mesa de alimentos da cozinha,
retirou a tampa de uma panela e perguntou para mãe: e essa carne é para botar no fogo? ao que
Dona Selene respondeu que não, pois era uma “carne dura” e seria colocada para cozinhar no
fogareiro.
A casa de Selene tem única torneira “o ponto da água”, que fica na sala de estar, vizinho
à cozinha. Dessa torneira que recebe água tratada da CAGECE a família enche os potes de água
para o consumo da família e também os recipientes para lavar os pratos e uso do banheiro.
A filha Soraya é lavadeira e explicou que lava a roupa da mãe com água da bomba. Na
casa de Dona Selene não há bomba de água; então a filha, que lava roupa no quintal aos fundos da
casa, se desloca para ir buscar água na bomba da casa vizinha. Desse modo, ela gasta mais o seu
corpo, com seu trabalho de, além de lavar a roupa, puxar água na bomba e levar água para o tanque
no quintal, mas economiza o dinheiro que é mais difícil de conseguir.
A água encanada é para ser economizada quando é possível substituí-la pelo uso do
corpo, mas deve ser oferecida ao filho que mora na rua da Paz e não tem água tratada, pois não pode
custear o pagamento à empresa fornecedora. Então a mãe resolveu fazer uma abertura artificial que
traspassa o muro do quintal da sua casa para um beco na rua da Paz e oferecer água da CAGECE ao
filho, retirando um tijolo e depois outro. Por esse mesmo orifício por onde passa a água, certa vez
veio um café para mim numa das tardes de pesquisa. Ofereceram-me um suco, mas eu disse preferir
café e, como não havia café feito na casa-sede, foi solicitada a solidariedade parental da família do
filho na rua da Paz. São as dádivas trocadas pela frincha da parede.
5.5 REDE DE PROTEÇÃO NA GRANDE FAMÍLIA
398
Os valores urbanos de individualismo e valorização do “eu” em detrimento do “nós”, do
coletivo parecem não se efetivar no caso da família pobre que se organiza em rede de apoio mútuo.
Ela abre mão, de certa forma, do seu espaço com todos os seus pronomes possessivos: meu quarto,
minha cama, minha casa,... para viver em rede, não por uma escolha, mas por uma necessidade,
sobreviver.
É importante também observar que a família é um coletivo que congrega valores rurais
de apoio ao parentesco, mas também reúne valores individualistas de valorização do indivíduo e da
felicidade focados no prazer e no sucesso pessoal em oposição à família de origem e à rede que dela
se estende. Assim, jovens sonham em trabalhar, ganhar dinheiro, casar e constituir seu núcleo
independente; alguns conseguem e outros, como Sara e Silvana, não tiveram êxito na conquista da
neolocalidade e retornaram à casa da mãe, agora com seus filhos e os cônjuges. A coleta de relatos e
as observações dos ciclos geracionais denotam que, apesar de haver ambições individualistas, a
família pobre permanece cumprindo seu papel de proteção, criando estratégias coletivas para
manutenção da parentela.
Na família de Dona Selene, a filha Sara, que hoje vive com o cônjuge e os quatro filhos
na casa da mãe, já teve seu lar mononuclear, mas, após a separação, não conseguiu mais refazer o
lar, mesmo refazendo o casamento. Nesta situação, também viveu a irmã Silvana com o cônjuge e
os cinco filhos; o casal nunca manteve um lar mononuclear por longos períodos, sendo a história da
família marcada pelos retornos à casa materna.
Na perspectiva do individualismo, não se trata somente da distinção entre rural e
urbano, campo e cidade, casa e rua, mas, antes, de valores tradicionais e modernos, a que todos os
indivíduos estão expostos e suscetíveis numa sociedade de consumo, especialmente na cidade
vivendo a rotina das disputas capitalistas. A vinda para os centros urbanos é possibilitada pela rede
das parentesco e alimentada pelo desejo de melhores oportunidades na “cidade grande”. A
socialização em padrões tradicionais e o valor individualista da mobilidade social representam a
ambiguidade (SARTI, 2005a, p.51) dos pobres na cidade.
Nas famílias analisadas, há o desejo de consumo urbano, sendo este um dos motivos da
migração para a cidade. Ao mesmo tempo, a não-realização da melhoria de vida é justificativa para
retorno à vida no campo. Dona Selene está com 74 anos e, nas últimas visitas, em 2010, falou muito
em vender a casa e voltar para o interior. Disse que a família é grande e brincou que precisa de um
Expresso de Luxo só para levar a família, referindo-se à empresa que fazia o trajeto para sua cidade
natal e explicou que não adianta viver aqui se não tem uma vida melhor, apontando para a casa
velha e suja, pois não foi limpa no Natal.
399
O retorno ao torrão natal planejado por Dona Selene também é desejo de outros
moradores pobres migrantes. Em 2002, coletei relatos de moradores da beira da paria do Grande
Pirambu que vivenciavam um processo de transferência compulsória para construção de uma via
urbana pela costa e afirmaram que, com os proventos das indenizações de suas moradias,
retornariam para seus municípios de origem e comprariam um lote de terra para trabalhar e viver.
Em comum nas duas situações há o fato de acumular algum recurso, os transferidos por meio de
indenização e Selene pela venda da casa, para reinício de vida no campo, com uma condição de
renda melhor.
Em contrapartida ao movimento individualista que prevalece no urbano com a
diminuição do número de membros, aumento da quantidade de casais sem filhos e de pessoas
morando sozinhas, as modificações entre os pobres são menores do que entre as camadas abastadas,
haja vista que os valores individualistas estão associados a consumo de bens e produtos simbólicos
como êxito escolar e econômico que não se realizam, na maioria das vezes, entre os mais pobres
(OSTERNE, 2001). Desse modo, a família se fortalece como laço social.
O coletivo familiar de uma rede de parentesco com intensas trocas é marcado pela
necessidade vital de viver com o outro, o que obriga também a conviver, no sentido de partilhar o
cotidiano. Essa convivência impõe uma lógica solidária que um olhar desavisado poderia supor
integrada, não percebendo a dimensão dos conflitos, afinal todos vivem juntos e na mesma casa.
Todos, porém, são diferentes e têm desejos e ambições distintas. O mais interessante no
indivíduo é que cada um se percebe diferente dos demais, comumente melhor, possivelmente pela
facilidade de ver em si mesmo suas características positivas, o que leva também a ver no outro suas
características negativas. Esse movimento não é objetivamente calculado, mas introjetado como
natural. Assim, os filhos, já residentes, tentam impedir a entrada de novos moradores na casa e
esbarram na herança rural da mãe que diz: sou como a minha mãe desde pequena no interior e num
vou deixar um filho sem ter onde morar.
A vivência familiar em rede impõe uma dinâmica que limita a ação da individualidade
em prol do coletivo, ou melhor, a socialização de Dona Selene que acolhe os filhos, organiza uma
rede de proteção e os reúne na mesma unidade doméstica, que, mesmo coadunando divisões de
opiniões e ações, como no caso dos filhos já residentes que não querem ceder ‘espaço’ aos novos
moradores, não perde a sua característica de acolhimento. Segundo Dona Selene:
As meninas [as filhas] diz ‘a mãe é muito besta, a mãe só presta é sofrendo’, num se
incomode vocês num tão sofrendo, sofre porque são pobre, ninguém tem nada, mas eu sou
assim, eu tenho o meu coração bom por mim seu tivesse 50 filhos, se eles não tivesse onde
morrar, abrigava todos 50 aqui, dorme todo mundo no chão, não tinha onde armar rede, mas
eu apoiava tudim.
400
E continua explicando que essa sua forma de agir tem suas origens na sua família e na
formação recebida pela mãe e apreendida na infância, ou seja, do contexto social do campo. Eu sou
assim, é desde a minha família, da minha mãe, que a minha mãe é assim também boa, ela num qué
o mal pros filho dela, também eu sou do mesmo jeito, eu num quero nada de mal pra eles.
Nessa disputa, há um choque de gerações e valores. De um lado, as filhas reclamam e
afirmam que o novo morador é problemático, bebe, não tem responsabilidades e muitas
características negativas que só são vistas nos outros, de outro lado, está a mãe que é dona da casa e
apoia os filhos. Por mais que haja o desejo de preservar o espaço individual, no entanto, ou
minimamente não conturbá-lo mais ainda seja o cerne da questão, as filhas sabem que a mãe vai
receber os demais filhos que precisarem de lugar pra armar uma rede, por dois motivos: primeiro
porque elas já pediram socorro à mãe também e foram acolhidas e segundo porque os demais são
irmãos e todos têm o mesmo direito à casa materna.
A incorporação de novos padrões de comportamento não está, assim, associada à negação
dos padrões tradicionais pela sua ressonância no meio urbano, onde continuam a ser suporte
de relações sociais. Na tentativa de realizar seus planos e satisfazer suas necessidades e
aspirações pessoais que se mantém atuante no meio urbano. Não são sobrevivências do
mundo rural, mas parte estruturante das relações sociais também na cidade. (SARTI, 2005a,
p. 51).
Na unidade doméstica de Dona Selene, convivem muitas pessoas com diferentes
concepções e formas de interpretar o mundo, que geram conflitos, mas que não os impedem de se
entenderem numa sociabilidade familiar pautada na reciprocidade entre parentes como suporte da
vida em família.
Apesar dos conflitos, as relações muito próximas, em especial entre parentes, se apoiam
em valores como a consideração que tendem por amenizar nas relações conflituosas entre as
parentes, especialmente quando pertencem à mesma casa ou rede de proteção. A unidade doméstica
é um dos eixos centrais dessa rede, que inclui os seus membros como “os de casa” e os difere dos
outros, como “os da rua”. Assim os filhos são merecedores de abrigo, pois são de casa, da família,
protegidos pela rede que ampara e oferece um lugar de dignidade.
A casa e a rua (DA MATTA, 1997) são pensadas como categorias sociológicas no
sentido durkheimiano como conceito capaz de explicitar algo que a sociedade pensa com seus
códigos de valores e idéias. Segundo o autor,
401
Quando digo então que “casa” e ”rua” são categorias sociológicas para os brasileiros, estou
afirmando que, entre nós, estas palavras não designam simplesmente espaços geográficos
ou coisas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social,
províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados e, por
causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens
esteticamente emolduradas e inspiradas. (p.15).
Na perspectiva de casa e rua, a leitura do cotidiano das pessoas pressupõe um
entendimentos dos valores e relações sociais em que os espaços são analisados. Assim, observo as
percepções da família. A mãe/avó vê seus filhos e netos com bons olhos e aponta para a rua o
espaço dos problemas. Dona Selene explicou que os filhos bebem muito e brigam dentro de casa,
mas nunca foram presos e não se envolvem em conflitos na rua. Sobre os netos, ela acentua que são
bons meninos e aponta a diferença: são danado assim pra brigar dentro de casa, mas com menino
de rua, briga não. Na sua fala há uma diferenciação dos netos com os meninos de rua, pois os netos
são de casa, são “dos seus” e beneficiados pela proteção que cabe à família.
A história de Dona Selene é a história da mãe que protege os filhos, para tanto, ela cria
estratégias as mais diversas para acolher a todos e lhes oferecer um lugar para morar. Nos anos de
vivência com essa família, presenciei muitas ocasiões em que a mãe defende os filhos, mesmo em
situações dúbias. Ela os protege, dentro do seu horizonte de possibilidades e valores.
Os filhos consomem bebidas alcoólicas em demasia e um deles lhe causa uma
preocupação especial, pois, em razão nível de embriaguez do rapaz, ele perde a consciência por
completo e repetidas vezes cai na rua desacordado, retornando à casa somente pelos braços de
populares que o conhecem e o conduzem a sua residência. Na tentativa de evitar a exposição do
filho, que pode sofrer maus-tratos na rua, Dona Selene o prende em casa e compra doses de bebida
para ele. A bebida é oferecida em pequenas doses e a mãe mantém o filho sob vigilância para ele
não fugir para a rua, dos seus “cuidados”. Ela explica que dou a bebida, se não ele vai pra rua, bebe
até cair e as pessoas batem nele.
Certa tarde, já passava das 14 horas e alguém chega à porta para entregar um
comunicado da escola de que o filho mais novo de Silvana, o menino Suri, e o seu primo Simão só
poderão entrar na escola no dia seguinte se estiverem acompanhados dos pais ou responsáveis que
devem levar um balde de tinta lavável para pintar o muro da escola que os meninos estavam
pichando pela manhã. Desse evento familiar, a rede de proteção mostrou uma substituição dos
papéis para não prejudicar o menino Suri. À época Silvana (a mãe) não estava morando na casa e
sua filha Suyane se encheu de responsabilidades pelo irmão e disse que o levaria a escola para
conversar com a diretora, sugerindo ser uma injustiça contra o irmão mais novo.
402
O assunto ganhou eco na cozinha, onde também estava Sara que iria acompanhar o seu
filho Simão. Naquela tarde, primeiro a família definiu a estratégia de quem se responsabilizaria,
cumprindo o papel da mãe de Suri como responsável e depois falaram em defesa “dos meninos” e
reclamaram da escola, pois eles só pixaram uma parte do muro e eles querem pintar é a escola
toda. A reclamação residia no fato de ter sido solicitado “um balde de tinta”; observo que acusação
à escola era a forma que a família dispunha para defesa dos jovens. Desse modo, apesar da
reclamação da escola, em casa há a defesa e a proteção.
6. A FAMÍLIA DE DONA TELMA E A FUNÇÃO SOCIAL DA POLÍCIA
6.1 DO CRATO AO PIRAMBU: A LONGA TRAJETÓRIA DA FAMÍLIA
A protagonista desta narrativa é uma mulher branca, magra, pequenos olhos azuis, que
já conta com 65 anos de vida e, com simpatia e receio, relatou sua história desde a vinda para
Fortaleza, passando pelo casamento, viuvez e criação dos filhos. Cearense de poucas letras, nunca
fui na aula, coisa de interior, mas sabe ler e escrever um pouco. Dona de casa, sua ocupação laboral
sempre foi cuidando da família e dos filhos.
Dona Telma nasceu no Crato, Município a 500km de Fortaleza. A mãe veio a óbito no
parto da sua irmã. Pouco tempo depois, o pai também faleceu, deixando seis filhos que foram
criados por uma tia, para não deixar os sobrinhos “abandonados”. Na infância e juventude,
compartilhou vivências com os irmãos e aprendeu a trabalhar em serviços domésticos. Quando
indagada sobre sua profissão e trabalho, respondeu que é a luta da casa.
Aos 24 anos, veio de passagem para Fortaleza com destino a Canindé para “pagar” uma
promessa com o “pai de criação” e seus irmãos. A estada na cidade foi mais longa do que o
esperado, pois os dias se passaram, e ela foi “ficando por aqui”, morando na casa do cunhado
(esposo da sua irmã) enquanto o restante da família retornou para o Crato. A casa da irmã era na
mesma localidade em que reside hoje, “Colônia”(Cristo Redentor). Na demografia oficial da
Cidade, o lugar não existe, sendo parte do bairro Cristo Redentor, entre o Pirambu e a Barra do
Ceará que, juntos, formam o “Grande Pirambu”, cobrindo uma área de terra entre o Kartódromo e a
Barra entre as avenidas Leste-Oeste e o mar da costa oeste urbana.
O casamento foi “arrumado” pelo cunhado que recebeu “ordens” do seu “pai” (tio), no
Crato, para se responsabilizar pelo casamento da “moça” quando do pedido de Tobias. O sentido de
“arrumado” não se confunde com um acordo objetivo de troca econômica ou de favores entre o
403
cunhado e o nubente, mas se trata da questão do cuidado com a “moça” que tem quem por ela se
responsabilize e encaminhe até o casamento. Esses detalhes nos acertos de casamentos eram
importantes, pois se caracterizavam como procedimentos de “moça de família”, que é para “casar”,
no sentido de que ela era cuidada antes do casamento pelo pai e agora, após as núpcias, deve ser
cuidada pelo marido; daí a escolha de um homem, o cunhado, para encaminhar os procedimentos do
pedido e concessão da mão da cunhada para o noivo.
Nessas arrumações, estão implícitos os papéis de homem e mulher na família: o homem
deve prover com proteção e cuidados a esposa, enquanto a mulher, na condição de esposa protegida,
deve respeito e obediência ao esposo. Daí a afirmação já comentada do capítulo de Dona Selene por
sua filha de que está “no poder” do atual marido, reafirmando a moral familiar e os papéis sociais
que levam a mulher a passar do poder do pai para o poder do marido ou das mãos de um para as
mãos de outro, como simboliza o ritual realizado na cerimônia religiosa.
“Tome conta dela, faça de conta que é sua filha” – foi o que disse o pai de criação, “tio”,
ao esposo de sua outra filha, quando do casamento de Telma. A cessão de direitos nas decisões do
seu casamento faz Dona Telma relatar que foi o seu cunhado quem fez o meu casamento. O noivo
era Tobias, um jovem rapaz que conheceu no mesmo bairro. Ele foi um “bom marido”, sempre foi
pedreiro e muito trabalhador e, segundo ela, viveu dedicado à família e ao trabalho, sendo ele
mesmo quem construiu, com seu ofício, a casa da família, pois ele era pedreiro e sabia fazer tudo.
E foi na residência do cunhado onde ela foi se arrumar para casar, sendo deste lar, da
irmã e do cunhado – enfatizou minha narradora – que saiu para casar, simbolizando a mudança de
moradia e de vida, de “moça solteira” para “mulher casada”.
A jovem Telma, logo que casou, foi morar numa casa de taipa na rua Santa Inês, bem
próxima à beira da praia. Lá residiu por alguns anos, até que, por ocasião do fim do resguardo do
primeiro filho, atendeu à solicitação da irmã e foi ao Crato acompanhar o retorno da irmã que veio
para Fortaleza cuidar do seu resguardo. Passados os dias, o marido a surpreendeu ao chegar à casa
dos seus parentes dizendo que tinha vendido a casa e estava chegando para morar com a família na
cidade natal da esposa.
A casa da Santa Inês era uma casinha baixinha de taipa e disse: era boa minha casinha,
pois não pagavam aluguel e só em a casinha ser da gente é bom demais, referindo-se ao bem que o
casal adquiriu logo no início da vida conjugal, quando faziam planos de constituir a família e criar
os filhos que viriam.
A casa da Santa Inês foi comprada pronta e com os cômodos construídos de taipa:
barro e tijolo. Quando indaguei se a casa foi fruto de um terreno e posteriormente construída a casa,
404
ela enfatiza que a casa foi adquirida já edificada e explica: meu marido era muito trabalhador e
gostava das coisas tudo direitinho. A explicação decorre da prática usual presente na história
habitacional do bairro de, após demarcar um pedaço de terra, erguer-se uma casa com a delimitação
inicial de quatro varas. Nessa perspectiva, seu esclarecimento reside na intenção de explicitar que a
casa foi fruto de uma comercialização, e não de uma invasão. Essa ponderação é atenuada pela
ênfase dada na justificativa de que o marido era “trabalhador”, sugerindo que ele obteria seus bens
com o suor do seu esforço laboral.
A vinda do marido ao Crato não foi feliz porque veio acompanhada da notícia da venda
da casa, deixando-a chateada e motivando-a a querer voltar para Fortaleza e desfazer o negócio
realizado pelo marido, sob o argumento de que era esposa e tinha direito de invalidar a venda da
casa sem o seu consentimento. Seus ânimos foram atenuados com os conselhos de uma cunhada de
que deixasse para lá, orientando-a no sentido de ter paciência e aceitar as decisões do seu esposo.
A casa da Santa Inês ocasiona saudades porque foi a primeira moradia do casal e foi
onde nasceu o primeiro filho. Era uma habitação com “uma sala, um quarto, cozinha e o banheiro
com um quintal bem grande”. Ao falar da antiga morada, ela se emocionou e disse: era uma
casinha muito bonita, foi a primeira casa da minha vida, sendo motivo de apego e fonte de um
sonho alhures de reaver o imóvel, cuja lembrança o tempo não apagou. Na narração da história da
família, ficou evidente que a perda da casa, mesmo com o passar dos anos e a morte do
companheiro, não foi superada.
Durante quatro anos, a família viveu no Crato, inicialmente na casa da tia. Depois
alugaram uma casa, lá tiveram mais três filhos, duas meninas e um menino, que faleceu. A família
cresceu no Crato e decidiram retornar a Fortaleza. Ao chegar à Capital, voltaram a se abrigar na
casa do cunhado durante “uns tempos”, enquanto conseguiam uma casa para morar.
À época, a irmã e o cunhado moravam na Colônia, mesmo bairro onde ainda hoje vive
Dona Telma, na rua Dona Mendinha, no bairro Cristo Redentor. A vida das irmãs sob a anuência do
cunhado, que chega a ser mais citado do que a irmã biológica, voltou a se cruzar na mesma moradia
anos mais tarde, quando, já acompanhada do marido e três filhos, ela regressa para Fortaleza e
retorna a viver na casa do cunhado, enquanto o marido conseguia trabalho para constituir uma nova
moradia para a família. Ela relatou que morei uns tempos na casa da minha irmã, enquanto o
cônjuge estava trabalhando para conseguir um lugar para morarem. Foram, então, morar em casa
alugada, passando assim por imóveis alugados antes de chegar à casa definitiva onde vive até hoje.
Morei em bem umas quatro casa alugada, quando voltou à Capital passando da
residência da irmã para quartos e casas alugados em diversos pontos da Cidade. Ela cuidava dos
405
filhos e da luta da casa, e o marido trabalhava para prover a família e seguirem na caminhada da
aquisição da casa própria.
Passaram por vários bairros na Cidade: primeiro a família alugou um quarto no bairro
Jardim Metrópole, mas desistiram de viver neste local, pois tinha muita mosca; depois voltaram
para o Pirambu e foram morar na “Lagoa do Mel”
121
, no mesmo bairro onde vive hoje, mas ela cita
como lugares diferentes em razão das denominações de localidades como Lagoa do Mel, Colônia e
Pirambu.
A localidade chamada “Lagoa do Mel” fica na avenida Leste-Oeste e dista uns cinco
quarteirões da sua casa atual, sendo um trajeto que se realiza a pé em 15 minutos. O lugar já foi uma
lagoa e, quando as chuvas eram fortes, as casas ficavam inundadas e as crianças brincavam nos
córregos, pescando betas
122
. Há trinta anos, a lagoa em tempo de chuva ficava bem demarcada;
atualmente, com o sistema de drenagem, não há problemas de alagamento. Foi construído no local
um conjunto de casas.
A casa de Dona Telma da Lagoa do Mel também era de taipa, mas, segundo ela, era
uma casinha bem ajeitadinha e tinha até um butiquim lá, vendia era muito. A casa era própria, e o
casal tinha planos de longa morada no lugar, mas houve uma enchente e tiveram que sair. Ela
relatou que foi uma enchente grande, tinha umas tábuas no chão e foi muita água que elas ficaram
tudo boiando e os meninos tudo dentro d´água. Em virtude da exposição das crianças com as águas
e a situação insalubre da casa, os filhos adoeceram. Dona Telma levou as crianças para o hospital,
pois estavam se queimando de febre, Conclui a história da moradia na Lagoa do Mel: foi a água que
botou nós pra fora.
Depois de Dona Telma na Lagoa do Mel, a família foi morar no Japão, outra localidade
limítrofe entre os bairros Cristo Redentor e Barra do Ceará, na rua Santa Inês, na beira da praia. Ela
conta que, da sua casa, “avistava o mar”. Talvez pela proximidade com a praia, ela considerava esta
121
A narradora cita lugares como “Colônia”, “Lagoa do Mel”, e “Japão”, são localidades do Grande
Pirambu, mas não há um mapa com os limítrofes dessas áreas. A história do Pirambu é contada por
fases e entre os anos de 1930 a 1940 há o relato: “Nesse período, o Pirambu conta com uma
paisagem de dunas brancas, coqueiros e lagoas: a Lagoa do Mel e a Lagoa Funda. Enquanto que a
Lagoa do Mel enchia de beleza essa parte da orla marítima de Fortaleza; de morros altíssimos como
o do Japão, onde podia-se avistar grande parte da cidade.” (HISTORIANDO O
PIRAMBU,1995,p.15).
122
Fui moradora do Cristo Redentor na década de 1980 e lembro-me das casas da Lagoa do Mel na
Leste-Oeste com água até o meio da parede. Há 25 anos, lembro-me ainda do meu irmão exibindo
esses peixes ornamentais pescados na Lagoa do Mel. Após a pescaria, os peixes eram colocados em
vidros uns de frente para os outros durantes dias ou diante de espelhos e no escuro, com o fim de
ficarem “valentes”. Depois as crianças levavam seus peixes betas treinados para animadas brigas ao
juntarem dois peixes num mesmo aquário.
406
casa como Pirambu. Percebo nas falas dos meus narradores que, ao longo da extensão do Grande
Pirambu, o Pirambu é identificado com as localidades mais próximas à praia.
Depois de muitas habitações pelo Pirambu e suas adjacências, a família veio se
estabelecer no Cristo Redentor, que a minha narradora chama de Colônia, mesmo não sendo bairro
geograficamente delimitado e reconhecido pela Prefeitura e pelo IBGE. A localidade foi durante
muitos anos, destino (nome que indica o nome da linha) de ônibus.
Em Fortaleza, o casal teve mais filhos, chegando ao total de oito, sendo uma barriga de
gêmeos, duas meninas gêmeas que não resistiram e morreram, ainda pequenas, de diarreia. A mãe
contou que as meninas tomaram um leite e depois adoeceram da diarreia e morreram com 22 dias
de nascidas.
Na história de morte dos filhos pequenos, há um caso interessante que ainda hoje
intriga. Na maternidade do Hospital Geral (Fortaleza, CE), deu à luz num parto cesariana uma
menina que pesou 4kg. Disseram-lhe que era uma menina loira, de olhos azuis. A filha não foi vista
pela mãe, que, horas mais tarde, recebeu a notícia de sua morte. Ela questiona o fato, pois entende
que, mesmo morta, a menina deveria ter sido mostrada a ela. Infelizmente, ela não sabe o que
aconteceu, e seus conhecimentos se resumem ao fato de que foi deixada na maternidade pelo
marido, antes de este se dirigir ao seu trabalho, deu à luz e depois foi informada do falecimento da
filha.
Sobre a perda dos filhos ainda pequenos, ela conta que teve um filhom no Cratom que
morreu ainda pequeno. Essas narrativas são tranquilas e aparecem na sua fala entremeada com as
histórias dos demais nascimentos dos filhos como sendo parte da infância. A situação mais
interessante do fato dessas narrativas foi a causa da morte de suas filhas que a mãe acredita ter sido
em decorrência da diarreia.
A mãe “criou”, cuidando e educando, então, quatro dos seus oito filhos e, já na fase
adulta dos filhos, sofreu mais uma perda: o filho Túlio morreu aos 24 anos vitima de si mesmo, por
suicídio. O fato marcou a vida da mãe, que prefere não comentar o caso para não se emocionar, pois
lhe causa grande dor, e o assunto é evitado na casa para preservar o neto, sobre os fatos que
envolveram a morte do pai. Percebi que há transferência de afeto para o neto de dois anos,
sentimento evidenciado pela insistência de criar o filho de seu filho, mesmo com a presença da mãe
biológica na rua vizinha.
Ainda como filhos, ela conta os dois netos Tatiane e Tiago, que foram criados desde
pequenos por ela, pois a filha não queria cuidar. Então, o marido decidiu que eles, os avós, iriam
407
assumir a criação das crianças e acolher os netos, pois não os deixariam na rua como cachorro sem
dono. O casal criou os netos, e Dona Telma os chama meu filho e minha filha, incluindo-os entre os
filhos biológicos.
6.2 A “NOVELA” DA CONSTRUÇÃO DA CASA: DA TAIPA AO TIJOLO
A habitação de taipa na Colônia foi a consolidação da casa própria. Depois de passar
por vários bairros e muitas localidades no Pirambu, morando em residência de parente, área de
lagoa e beira da praia, em casas de taipa e até em quartos alugados, a família chegou ao seu destino,
na rua Dona Mendinha.
A primeira casa na Dona Mendinha, no bairro Cristo Redendor, localidade conhecida
como Colônia, não era pequena não, tinha quarto, sala, outro quarto, uma cozinha e um banheiro,
sabe como é, né? Casa de pobre, eu gostava da minha casa, de taipa mesmo. A compra do imóvel
foi um êxito para a família, que, desde então, passou a ter seu lugar, sua morada definitiva.
A área em que a casa se encontra encravada é de formação de dunas, sendo o terreno
acidentado com muitos altos e baixos, e a casa de taipa passou por mudanças, remoções e
construções motivadas pelo interesse da família de melhorar as condições da habitação e também
uma intervenção da Prefeitura. Essa minha casa era uma altura horrive, bem altona, aí o carro da
prefeitura veio pra derrubar areia aí era as casas tudo pra cima e botou tudo pra baixo as casa, a
casa era aqui mesmo nesse local, mas era muito alto, as bombas só faltavam não sair água.
Certa data, a Prefeitura comunicou aos moradores que as casas estão numa localidade
alta e seria realizado um serviço de aplainar a área das casas – baixar o morro – de modo que os
moradores deviam descer suas casas alguns metros para nova redefinição de ruas e calçadas. As
histórias do imóvel são muitas, e nossa narradora contou que a construção da casa foi uma novela.
Segundo ela, a Prefeitura só deu a ordem para descer as casas e não houve indenização,
não que ela saiba recordar, mas, após a mudança da casa para poucos metros abaixo, a nova casa foi
erguida de tijolos para a felicidade da família, que construiu um lugar mais seguro.
Fez de tijolo aqui em baixo, a prefeitura não indenizou não, só fez mandar descer as casas
pra tirar a areia, pra baixar o morro, aí, enquanto fizemo a casinha aqui, nós fiquemo num
quartinho alugado bem ali, mas nós passemo pouco tempo lá, aí foi o tempo que construiu
uma sala e um quarto e aí nós fiquemos foi tempo só nessa sala, nesta sala e neste quarto, aí
depois foi aumentando os cômodos, porque não podia fazer de uma vez, fazia um pedaço, aí
com mais tempo fazer mais outro...
408
A construção da casa foi realizada pelo próprio marido que, na profissão de pedreiro,
tinha o ofício de edificar habitações e, segundo a esposa, ele entendia de tudo e ensinou ao filho que
a esta época já o ajudava. A casa é fruto, pois, de autoconstrução e resultado de um esforço do
provedor em angariar recursos e tempo para construir a própria residência.
A casa de tijolos da Dona Telma foi sendo construída aos poucos e, logo que os
cômodos ficavam prontos, a família começava a habitar os novos espaços. O processo de construir a
casa de tijolos e ir ocupando-a à medida que ficavam prontos os primeiros cômodos, é um relato
comum nas unidades domésticas do Gande Pirambu
123
. Nesse processo, há muito esforço, e a
construção do imóvel particular envolve toda a parentela. Segundo Kowarick (2009), que analisou a
construção da casa própria com famílias vulneráveis economicamente, esse é um processo longo e
penoso e demanda enorme esforço da rede de parentesco que primeiramente constrói um “embrião”
e depois agrega novos cômodos.
Na autoconstrução, há um investimento alto do provedor que trabalha dobrado para
comprar o material de construção com novos ganhos e trabalha ainda mais para construir sua
residência nos horários de folga e nos fins de semana, quando reúne os filhos para ajudar na
construção da casa própria que abrigará a família.
Cabe notar que há também uma pedagogia na ação do pai, tanto no senso objetivo de
ensinar o ofício aos filhos, quando no sentido simbólico de que a família constrói junta e se ampara
para permitir a moradia dos seus. Desse modo, logo que o filho mais velho anunciou que se casaria,
o pai lhe ofereceu a casa-sede para construir em cima um canto para a sua família. Os dois, pai e
filho pedreiros, no entanto, desistiram de construir em cima da casa e fazer um sobrado, pois não
havia colunas de sustentação e sairia mais cara a construção das vigas de sustentação para o piso
superior.
O pai dele era vivo... e mandou ele fazer a casa dele, primeiro queria que fizesse aqui em
cima, mas ia gastar mais porque a casa não é “aprumada”não, aí fez no quintal... meu
marido foi quem fez pra ele o primeiro quarto, aí ele que construiu o resto, meu marido fez
o quartim e depois ele mesmo construiu... O pai dele ensinou ele a trabalhar, ele ficou com
a mesma arte do pai, sabe trabalhar, é um bom pedreiro.
Logo no início da vida conjugal, o casal ainda não possui recursos, e um quarto
separado da casa-sede nos fundos é um imóvel possível para os cônjuges. Nesses casos, o casal
partilha dos espaços comuns da casa dos pais com os demais da família. Quando os filhos chegam,
123
Para saber mais sobre o tema, remeto o leitor para minha dissertação em 2003, realizada com
famílias removidas da “beira da praia” no Pirambu, intitulada Uma rua, um bairro, uma cidade..
409
o casal precisa de cômodos e espaços próprios, como cozinha e banheiro independentes e quartos
para os filhos.
A opção foi a construção da moradia no quintal, primeiro um quarto e, depois, novos
cômodos. Com o ofício aprendido com o pai, o filho, Tibério, construiu sua casa. Primeiramente o
imóvel era plano e depois fez-se o andar superior. Uma escada curvada no quintal dá acesso ao
andar de cima que tem dois pisos para abrigar o casal e seus quatro filhos. Na pequena área de
serviço entre as casas, ou quintal, há duas lavanderias que permitem a separação das atividades das
duas donas de casa com suas lutas diárias
Foto da autora, 2010.
Lavar roupa é muito simbólico entre os pobres, especialmente para as mulheres vindas
do interior, pois a “lavagem” de roupa nos rios é um momento de encontro das mulheres e lazer das
crianças, sendo também sinônimo de zelo e qualificador da atividade da mulher na luta da casa. Em
priscas eras, dizia-se que a mulher “boa” para casar era a que soubesse lavar, cozinhar e passar.
A novela da construção da casa de Dona Telma foi se completando com as sucessivas
construções de cômodos, paredes e banheiro. Observo que a família não constrói logo o banheiro,
sendo preterido à sala, que pode acolher a parentela. A situação de transição da moradia de taipa
para tijolos exige a edificação de um primeiro cômodo “embrião” (KOWARICK, 2009) para
abrigar a família e que funciona como apoio aos que se seguem. Observo também que, desde a
construção do primeiro cômodo, já existe a previsão dos outros e, por isso, as instalações
410
hidráulicas para os equipamentos sanitários são destinadas aos fundos da edificação, logo após o
primeiro e segundo cômodo. Desse modo, é comum encontrar o lavatório no fundo das casas,
coincidindo com a cozinha e não raro fora da residência, no quintal.
Na dinâmica das autoconstruções, a família não sabe ao certo até onde consegue
construir no terreno disponível para edificar a casa e, quando não chega ao final da construção no
espaço disponível, o banheiro se localiza fora da casa, ou, se chega ao fim, divide espaço com as
panelas na cozinha.
Nessa perspectiva, observo que a casa nunca está finalizada e, se se perguntar a uma
dona de casa nas camadas populares se sua moradia ficou pronta, ela diz que sim, mas faltou...
começa a citar partes sonhadas e não realizadas no imóvel, seja um quarto não finalizado ou uma
porta ou janela que às vezes ficam até em aberto e coberto por lonas ou outros adereços
emergenciais. A casa parece sempre em construção.
A casa de tijolos é um marco na vida de um casal e representa para os filhos o lugar de
identidade e retorno, quando preciso. A casa-sede é aquela moradia de tijolos que os filhos viram
ser construída e não raro ajudaram com seu trabalho, sendo um lugar de identidade pela construção,
moradia, socialização e história familiar. É a casa da mãe e do pai.
6.3 A FAMÍLIA EM REDE: PAPÉIS SOCIAIS E ORGANIZAÇÃO FAMILIAR
Dona Telma teve oito filhos e nove netos, dos quatros filhos que “se criaram”; some-se
aos filhos quatro netos da filha Teresa, mais quatro netos do filho Tibério e um neto do filho Túlio.
Os netos estão todos na casa da avó, se somando aos seus pais e tios e completando a rede familiar
que, em meados de março de 2006, contou 14 pessoas no mesmo endereço e residindo em duas
casas: na casa da mãe, estavam a filha solteira, Tarcília, os dois netos adultos (Tatiane e Tiago,
filhos de Teresa) que foram criados por Dona Telma e o cônjuge como se fossem filhos do casal e
mais as duas irmãs (filhas menores de Teresa) que haviam chegado com a mãe havia duas semanas
para coabitar na casa de Dona Telma; fechando a conta dos moradores da casa da mãe, soma-se
ainda o netinho Tiago, de dois anos, que é filho de Túlio, morto recentemente. Completando a rede,
há o filho mais velho e sua família (esposa e quatro filhos menores) que moram numa casa
construída no quintal da residência.
São quatro núcleos distintos que se entrecruzam e formam uma só família no tocante à
troca de obrigações recíprocas: 1) o núcleo de Dona Telma, composto por ela e a filha solteira
Tarcília, 2) a filha Teresa e seus quatro filhos, frutos de três uniões conjugais, 3) o filho Tibério e
sua família no quintal e 4) o neto Tito, que representa outro núcleo, sendo filho de Túlio. A família
411
é multinucleada na forma, extensa na quantidade e complexa nas relações no tocante ao
cumprimento e troca de papéis. A avó é a principal provedora da casa, cumprindo ainda o papel de
mãe para os dois filhos mais velhos de Teresa deixados para serem cuidados por ela anos atrás, e
atualmente assume o papel de mãe de Tito.
Na perspectiva de papéis e funções na família, ela é a chefe e dona da casa, sendo a mãe
de todos. As funções, no entanto, são complexas e complementares. Por exemplo, a chefia do lar
está nas mãos de Dona Telma, pois ela é responsável pelo domicílio que não tem duas numerações,
mas o imóvel é um todo dividido em duas partes: casa-sede e casa quintal; na segunda, há um chefe
de família e assume lá a função de provedor também, mas, sendo ele o filho mais velho de Dona
Telma, em certos momentos representa autoridade e, como veremos no ponto a seguir, pode
assumir a chefia familiar na condição de ser “o homem da casa” na ausência do pai falecido. Assim,
as funções ocorrem num contexto de complexidade.
Quadro 3 - Rede familiar por núcleos e moradia (Estimativa de rendimentos tomando por base o salário de jan/2010).
Telma Tarcília Tatiane Tiago Teresa Tibério Túlio
Idade
Escolaridade
65 anos
Alfabetizada
42 anos
Fund. I
completo
22 anos
Não informado
21 anos
Não
informado.
43 anos
Fund. I incomp.
45 anos
Fund. I incomp
Faleceu.
Não informado.
Núcleos
morando na
casa sede
1º. Núcleo 1º. Núcleo 2º. Núcleo 2º. Núcleo 2º. Núcleo 3º. Núcleo 4º. Núcleo
Mora com
Renda mensal
Parentesco
2 filhas e 3
netos e a
família do
filho no
quintal
(13pessoas)
510,00
Solteira e sem
filhos
100,00 (por
semana)
Filha
Divorciada sem
filho, foi criada
pela avó desde
pequena
Não informado
neta
Solteiro sem
filhos, foi
criado pela avó
desde
pequeno.
Não informado
Neto
2 filhos menores e é
mãe de Tatiane e
Tiago.
480,00
Filha
Mora com a esposa
e 4 filhos numa casa
no quintal.
510,00
Filho
Seu filho Tiago
é criado pela
avó.
Filho
Tipo de
moradia
Casa própria Casa Casa Casa Casa Casa no quintal Casa
Ocupação
laboral
Dona de casa Faxineira Não informado Não informado Empregada
Doméstica
Pedreiro Não informado
Tempo de
moradia atual
49 anos 40 anos 40 anos 3 meses 2 meses 45 anos
No. de filhos 8 filhos 4 filhos: os dois
mais velhos da
primeira
conjugalidade vivem
com a avó, e os dois
4 filhos 1 filho.
412
mais novos de duas
uniões vivem com
ela.
Fonte: Elaborado pela autora (2010).
A família de Dona Telma na organização de papéis e funções não tem uma delimitação
fixa das atribuições e ações esperadas, mas, os parentes se protegem em rede, seja para representar
o pai ou mãe na escola de uma criança – nessa situação é representada pela avó ou tia –; ou seja
para podar a ação de um sobrinho “drogado” diante da mãe/avó numa situação de conflito – nessa
situação, o tio do rapaz se apresenta como chefe de família.
Essa troca de papéis e representatividade não significa que a família seja desestruturada
ou que sua organização ocorra sob uma disposição meramente situacional; a família é uma rede de
proteção e se ergue numa estruturação de amparo aos seus que permite a unidade da família. São
relações dentro de uma rede costurada sob a égide do parentesco, de modo a lançar mão de todos os
recursos possíveis para proteger os seus, especialmente diante de terceiros, pessoas de “fora” da
família, não parentes. Quando esse apoio familiar é acionado na troca de funções e papéis,
predomina o funcionamento da rede de proteção, que pode também não funcionar total ou
parcialmente como na situação da delegacia a ser narrada no final deste capítulo.
Sobre o funcionamento da rede de proteção no tocante aos papéis, Dona Telma explicita
essa organização ao narrar a criação dos netos. Os dois filhos da primeira conjugalidade da filha
Teresa, Tatiane e Tiago, foram educados por Dona Telma e são considerados como seus filhos. Ela
relata que a filha não queria cuidar de nenhum deles: ela deixou todos dois e eu criei desde
pequenos. O pai biológico dos netos faleceu quando ainda eram crianças, mas ela não ofereceu
detalhes; a narradora preferiu enfatizar sua história com os filhos.
Os netos Tatiane e Tiago, que carinhosamente a avó chama de Tiaguim, são citados, em
várias falas num mesmo bloco como se seus filhos fossem. Quando indagada sobre a morte de
quatro dos seus filhos ainda pequenos, ela explicou que criou “Tibério, Teresa, Tarcília, Túlio,
Tatiane e Tiago”, arrolando assim os netos como filhos mais novos, haja vista a sequência
decrescente de idade dos filhos e finalizada com os netos jovens.
Eu criei o Tiago e a Tatiane, ela não queria, eu criei, ela não quis tomar conta dos meninos
e eu criei, primeiro foi a Tatiane meu marido disse que não ia deixar, que a Tatiane não é
nem cachorro para ficar por aí, pegou e criou, criou a bichinha e depois o Tiago.
413
A filha Teresa ainda teve mais duas filhas de duas uniões conjugais e atualmente vive
com elas juntamente com o pai da filha mais nova, numa neolocalidade. Trata-se de um casamento
instável e permeado por brigas com separações e, conseguintemente, retornos à casa da mãe.
Mesmo quando não está morando com a mãe, a troca de obrigações entre mãe filha é
uma constante, não necessariamente financeira, no sentido de a filha ajudar a mãe ou vice-versa,
mas no tocante ao cuidado e responsabilidades, principalmente da avó com as duas netas pequenas.
A presença da avó como mãe dos dois filhos maiores é um fato aceito pelas partes, de modo tal que
não se menciona a filiação dos jovens com a mãe biológica. A não ser que se trate de uma pergunta
objetiva, não se obtém a afirmação do parentesco com a mãe biológica.
Notei que a distância física de Teresa, que saiu de casa para viver novas nupcialidades
deixando dois filhos, é também fato na economia da casa, de modo que a avó “assume” plenamente
a criação dos filhos. Desse modo, em nenhum momento foi falado em responsabilidades entre
Teresa e seus filhos sob os cuidados de Dona Telma.
A filha Teresa, no entanto, é muito próxima de Dona Telma, e essa proximidade
simbólica não se distancia quando a filha está vivendo numa neolocalidade. Trata-se de uma
proximidade perene e perceptível no cotidiano das duas casas em que a mãe, mesmo não se
deslocando para a casa da filha, tem contato com diariamente com ela e as netas. Há também troca
de dádivas no tocante aos pagamentos e compras da mãe que são realizados pela filha. Como
explica Dona Telma, ela é quem faz meus mandados. Sobre as netas em sua casa, a avó mostra a
menina e diz: ela estuda , ela passa o dia aqui, que a mãe dela trabalha.
Observo que a troca de dádivas entre mãe e filha é sempre mais laboriosa para a mãe,
que absorve mais atividades na luta da casa, enquanto a filha trabalha e busca o sustento dos filhos,
ao mesmo tempo que, se Teresa não busca os meios de prover suas filhas caçulas, sua inatividade
resultaria em mais trabalho para a mãe na sua luta cotidiana.
O filho mais velho mora no quintal, mas tem acesso direto à casa da mãe, inclusive
porque só há uma porta de entrada que separa a casa da rua. Logo que se passa pela porta da frente,
há uma área de circulação e dois portões: um grande para a casa da mãe e um outro portão bem
pequeno que se abre para um beco, com uns quarenta centímetros, que ladeia a casa sede e leva à
casa do quintal sem cruzar pelo interior da casa da mãe. O acesso também pode ser feito pela casa
da mãe que termina no pequeno quintal onde está a escada, a qual leva ao andar de cima da casa e
às lavanderias.
414
Foto da autora, 2010.
A família do filho é uma organização independente, no sentido de que mantém uma
unidade nuclear na forma e distribuição de papéis na casa do quintal: o filho trabalha para prover a
família, enquanto a esposa permanece na “luta da casa” com os filhos; no entanto, não há separação
peremptória entre as casas, não há separação definitiva, pois as fronteiras são literalmente tênues e
os laços de parentesco são muito próximos. O filho cumpre obrigações morais e econômicas na casa
da mãe, como no pagamento de contas, e na representatividade simbólica, que, na ausência do pai,
tem-se no filho mais velho o referencial de proteção masculina, sendo responsável pelo papel de
homem da casa diante da mãe, da irmã solteira e dos sobrinhos.
A jovem Tatiane é adulta e se considera filha de Dona Telma. Ela, juntamente com
Tiago, a chama de mãe. A criação de filhos/netos na casa da avó sem a presença dos pais biológicos
durante anos adquire legitimidade dentro da família, sendo reconhecida pelos demais filhos como
uma “maternidade” válida. No caso de Tatiane e Tiago, os avós em comum acordo decidiram que
assumiriam a criação dos netos como se seus filhos fossem.
Cabe lembrar que essa posição não foi deliberada afetiva dos avós para com os netos,
sendo muito mais explicada por um cumprimento de obrigação moral em vista do descumprimento
do papel de mãe pela filha do casal. Abraçar a criação dos netos era sinônimo de assumir o papel de
pai e mãe.
A obrigação moral está presente nas entrelinhas das narrativas que somente se parecem
solidárias e benevolentes no sentido de que são cobranças. Ao dizer que não poderiam deixar o neto
como cão sem dono, os pais negam a atitude da filha e se afirmam moralmente. A expressão sem
dono é uma forma de inculpação da filha, de um lado, e representa a força simbólica da mãe,
415
cumpridora de deveres, por outro. Assim, os pais assumem o neto como cumpridores da obrigação
moral, mas “despejam” sobre a filha a pecha de descumpridora. Esta situação denota as forças da
moralidade e imoralidade no âmbito familiar e o peso da socialização apreendida pelos pais.
Na casa são recebidos os filhos, os netos e todos da linhagem que aparecerem
solicitando um canto para morar. Em meados de 2006, quando fui pela primeira vez à casa de Dona
Telma, fiquei admirada ao ver logo na entrada da casa, a céu aberto, os móveis da filha Teresa que
tinha se separado novamente do cônjuge e voltado para a casa da mãe.
É a segunda vez que ela vem e traz os móveis e diz que ela não vai mais voltar pra ele
não. A filha chegou à casa da mãe com os filhos e os móveis, que, por não caberem na residência da
mãe, estavam amontoados na área da casa esperando uma decisão sobre o local para onde ir. A filha
morava em imóvel alugado com o companheiro, pai de sua filha mais nova, e uma outra filha de
uma conjugalidade anterior.
Dona Telma contou que o casal bebe e briga e, quando a briga é grande, eles se separam
e a filha vem para sua casa com toda da mobília e os filhos, mas lembra que não é primeira vez e
que, após essas brigas, o casal sempre retoma a união: depois se entendem e aí volta. A narradora
(2006) adiantou que a filha já estava procurando uma nova casa para alugar, inclusive já havia
encontrado uma de R$ 80,00 o aluguel. A filha paga o aluguel com os proventos do seu trabalho
como empregada doméstica e já trabalha numa casa de família há vários anos.
Sobre a vida dos filhos na sua casa, ela contou que criou os netos, os filhos e que,
sempre que eles precisam, aparecem! mãe é pra tudo, os filhos separa, sai de casa, volta pra casa
da mãe de novo, eu já tô é acostumada com essa vida. Esta frase veio seguida da explicação de que
a filha tinha vindo naquela semana morar com os filhos na sua casa, mas que não cabiam os móveis
(sofá, cama, estante da sala...).
Ao dizer que “está acostumada”, minha narradora denota as dificuldades da sua vida e
reafirma o papel de dona de casa e mãe que deve acolher os filhos e ampará-los das adversidades
que enfrentam como parte das suas atividades no cumprimento do seu papel de mãe, mas também
aponta para o sofrimento e o trabalho que essas obrigações representam. Não é por acaso que utiliza
a expressão luta da casa, quando perguntada “como estão as coisas?”, respondendo que está na
“luta”. Essa luta é esse enfrentamento e esse trabalho de acolher, prover, conformar e também
cozinhar, limpar a casa, cuidar das crianças... ser mãe.
A história da casa é também a história da luta da casa e da constituição da família que se
constrói simbolicamente como uma rede de proteção e ajuda mútua, mas não se realiza sem a
416
organização de um arranjo econômico. A seguir, apresento o modo de relação e organização da rede
familiar com base na sua economia doméstica.
6.4 A ECONOMIA DOMÉSTICA NA CASA DE DONA TELMA
A gerência da casa é uma atividade que recai sobre o responsável pelo domicílio.
Mesmo sendo idosa,viúva e tendo passado dificuldades como a perda do filho caçula por suicídio, é
ela, a mãe de todos, quem indica os caminhos da economia doméstica da sua casa.
Quando perguntada pela renda da família, ela explicou que é pensionista e cada um dos
participantes colabora com proventos para a casa, mesmo o filho que tem seu núcleo familiar
separado e mora na casa do quintal contribui para economia doméstica.
O filho Tibério tem sua casa “independente” da residência da mãe, e a economia das
despesas referentes a alimentação é realizada separadamente, cada unidade tem a própria cozinha e
provedores. No imóvel de Tibério, somente ele trabalha fora, enquanto a mulher assume a “luta da
casa” cuidando dos quatro filhos menores do casal. Já na habitação de Dona Telma, ela é a
provedora, mas também a administradora da economia doméstica com proventos advindos dos
filhos.
Sobre as despesas da casa, ela explicou que recebe salário mínimo da pensão por morte
do marido paga pelo INSS, enquanto as duas filhas trabalham em casa de família, mas não chegam
a receber salário mínimo completo pelo trabalho. Ela não informou se a filha/neta Tatiane e o
filho/neto Tiago possuem rendimentos, mas o jovem não trabalha e vive uma fase de constante uso
de drogas e problemas na família que os levaram à delegacia do Pirambu.
Assim, a mãe assume a provisão de alimentos na casa, enquanto o filho Tibério paga a
água consumida pelas duas casas, e a filha Tarcília, com seus trabalhos como doméstica, ajuda nas
despesas do dia a dia, paga a energia elétrica do domicílio e compra o gás de cozinha. A filha
Teresa não foi citada pela mãe, que se ateve aos moradores fixos da casa, excluindo os netos.
Como acontece na casa de Dona Selene apresentada no capitulo 5, recai sobre a mãe os
compromissos com as despesas do lar e a responsabilidade de manter o padrão mínimo alimentar da
família. Faço referencia a “padrão mínimo”, pois, em razão das parcas rendas, a família se reúne
com o objetivo de manter as condições mínimas de alimentação, e isso já representa um desafio
quando a renda per capita da família está na quarta parte de um salário mínimo, como ocorre com
os rendimentos de Dona Telma, mas se acentua quando os proventos estão no nível da linha de
pobreza (menor do que ¼ do salário mínimo per capita) como nas unidades domésticas de Dona
417
Rita, Dona Selene e Pai Vito. Assim, não há espaço para o consumo do supérfluo, mas o necessário
para garantir a sobrevivência.
Numa condição de rendimentos incertos e ganhos inferiores ao salário mínimo, o
recebimento do salário mínimo integral é valorizado. Ao perguntar pelo rendimento do filho
Tibério, a mãe disse que “ganha salário”, certamente em comparação com as filhas, que, apesar de
trabalharem, não o recebem completo.
As atividades laborais são precárias e comumente os rendimentos não são registrados
em carteira de trabalho (o que confere uma seguridade ao trabalhador), no entanto, mais grave que a
falta de registro é o fato de rendimento ser inferior ao salário mínimo, no caso de empregadas
domésticas que cumprem jornadas de trabalho em casa de família.
A discussão sobre o salário mínimo é sinônimo da pobreza de renda no Estado do
Ceará, ao ponto de o ganho mensal de um salário mínimo ser festejado quando, na verdade, deveria
ser o ponto de partida, o mínimo a ser pago a um trabalhador. Essa temática é ampla e envolve
muitos fatores da economia brasileira, do Nordeste e do Ceará, que não cabe a esse estudo adentrar,
inclusive porque, no caso das domésticas, incide o fator de que, na maioria dos casos o empregador
também é assalariado.
Observo que a precariedade dos salários é uma questão que envolve empregador –
necessidade de trabalho – renda, numa tríade complicada em que as assalariadas com salário
mínimo pagam a outras mulheres para cuidar da casa e dos filhos enquanto se aventuram no
mercado de trabalho para assegurar o seu salário, e empregadas domésticas vão em busca de
trabalho em bairros mais abastados que pagam remunerações melhores e retribuem ordenados
menores (possíveis) a “empregadas domésticas locais”. É rotatividade do trabalho e dos
rendimentos quando não há um sistema de creches adequado para cuidar das crianças enquanto os
pais trabalham.
A situação dos rendimentos é um dos critérios que agrava os índices da economia
cearense em que a metade da população tem um rendimento per capita inferior a meio salário em
detrimento do quantitativo dos mais pobres. O quantitativo dos mais ricos é desproporcionalmente
elevado, o que se conclui que o Estado do Ceará convive com elevados níveis de desigualdade
social (IBGE/SIS/PNAD/IPECE, 2007).
Nesse âmbito social desigual, a economia do lar dos menos favorecidos é controlada nos
gastos de água e energia por todos na família, no entanto, o gás de cozinha é o consumo mais
controlado da casa pelas mulheres, certamente porque esse consumo está muito aliado à mulher e a
418
sua atividade na luta da casa, de modo que um gasto demasiado pode ser considerado uma falha,
pela mulher.
A questão do gás é significativa, ao ponto de ser assunto comentado nas rodas de
conversa entre as mulheres, até mesmo comigo como sinônimo de despesas caras da casa. Certa
data, Dona Selene comentou com tom de “fofoca”: o gás só dura 19 dias, mulher... é muita gente.
Na casa de Dona Telma, o gás figurou entre as poucas despesas citadas, juntamente com a água e a
energia, mas comumente referida como “luz”. Ao receber a conta da energia elétrica, dizem: chegou
o papel da luz.
Na casa de Dona Telma, a renda da família permite a manutenção do padrão alimentar.
A pensão da dona da casa associada aos rendimentos do trabalho dos filhos possibilita uma
organização dos gastos, a divisão das funções no tocante ao pagamento das contas e um controle
das despesas do lar, sem tornar o almoço um desafio, como acontece na casa de Dona Selene.
Mesmo numa condição melhor, a renda per capita da família lhe imputa a condição de pobreza com
um rendimento médio de um quarto do salário por pessoa, e o filho Tibério procurou registrar seu
núcleo no CADÚNICO, e é uma das 4.619 famílias
124
beneficiárias do Programa Bolsa Família –
PBF no bairro Cristo Redentor.
Somem-se a essas condições de renda o desafio de garantia da sobrevivência e as
situações de risco a que as famílias são submetidas por fatores externos, como a precariedade dos
serviços públicos. Nos descaminhos da vida familiar, a rede se defronta ainda com o uso de drogas
e álcool, que não se restringem às ruas e, não raro, levam a família a protagonizar situações de
conflito envolvendo violência entre os parentes.
6.5 A FORÇA FÍSICA NO UNIVERSO SIMBÓLICO DA FAMÍLIA: A POLÍCIA E A REDE DE
PROTEÇÃO
Dona Telma entrou nesta tese pela porta da delegacia, quando cataloguei casos de
conflito envolvendo parentes
125
na “delegacia do Pirambu”, o Sétimo Distrito Policial. O diferencial
desta família foi a possibilidade de acompanhar uma audiência e ver o desenrolar da trama policial
na delegacia e na casa.
124
Dados do Cadúnico referente ao mês de dezembro de 2009.
125
Definição da ONU sobre violência doméstica e intrafamiliar: “violência perpetrada no lar ou
na unidade doméstica, geralmente por um membro da família que viva com a vítima, podendo esta
ser homem ou mulher, criança, adolescente ou adulto(a)”.
419
O jovem Tiago, Tiaguim, como é chamado pela avó, contava com dezenove anos
quando o conheci. Em razão do uso de drogas, o rapaz usou de violência física e ameaças contra os
parentes e, para contê-lo, foi chamada a polícia. Na data da minha visita à delegacia, o delegado me
concedeu uma entrevista, contou o caso do rapaz e me convidou para a audiência que estava
agendada para a semana seguinte.
Para a audiência, foram convocadas as partes envolvidas no caso: o rapaz (agressor), a
avó agredida (vítima) e o tio do rapaz (denunciante), nomeando as pessoas: Tiago, Dona Telma e
Tibério.
As partes compareceram à audiência que foi conduzida pelo inspetor da polícia civil, de
quem recebi a autorização para acompanhar todo o processo de depoimentos e falas que constaram
da audiência. Cheguei bem antes do horário e observei a chegada antecipada da avó com o neto, que
ficaram aguardando o horário marcado, e depois a vinda do tio, na condição de denunciante
“informal”. Não há registros do fato na delegacia, inclusive o denunciante não formalizou a
denúncia contra o sobrinho.
Em conversas com policiais, recebi informações de que a família não representa contra
“os parentes” e procura o aparato policial esperando que a polícia solucione o caso. Um policial
disse que “no entendimento” da família a solução seria “levar o parente para passar a noite no
xadrez”, solicitando a polícia que o faça “se acalmar”, no entanto, se a polícia agir com
“truculência”, a família se volta contra os policiais e, nesse caso, não hesita em representar queixa
formal. Esse risco leva os policiais militares, que fazem policiamento nas ruas, a “atender casos de
família com muita cautela”.
Tiago usava drogas e, no impulso de angariar fundos que lhe permitissem comprar o
produto desejado para o consumo, pedia dinheiro à avó, que lhe negava. Com o passar dos tempos,
o vício foi aumentando e a necessidade de recursos também, e a vítima mais frágil e sensível as
inserções do neto era avó. O tio contou que ele estava matando a mãe, e a situação na família estava
insuportável: não dá pra aguentar mais.
Numa das crises de abstinência, o rapaz estava investido violentamente contra a avó, o
que revoltou o tio e o motivou a chamar a polícia para intervir no caso e levar o sobrinho preso
antes que ele matasse a mãe. A chamada de intervenção da polícia é representativa de que a família
esgotou as possibilidades do diálogo e, quando não há mais meios de consenso pelo discurso, só
resta recorrer à força física, no caso, a polícia. A parentela tem meios de coerção apoiados na
obediência e respeito introjetados no processo de socialização, no entanto, quando essas coerções
420
são acionadas, mas perdem a eficácia diante de situações como esta aqui exemplificada, que
envolve drogas e vício, resta à família recorrer à ajuda externa.
Desse modo, mesmo recorrendo ao poder de polícia, a família prefere evitar a
criminalização do parente, não representando queixa formal contra ele, mas espera da polícia uma
mediação do conflito e garantias de direitos e proteção nos casos que envolvem violência familiar,
como no caso de Dona Telma e seu neto.
Mesmo não representando contra o sobrinho, a atitude de chamar a polícia foi uma
represália à atitude do rapaz, neste caso, inclusive, a ação teve resultados práticos e efetivos no
sentido de que o jovem não voltou a reincidir na violência intrafamiliar e, segundo a avó, melhorou
muito.
O interesse pelos conflitos na delegacia se deu pelo caso já conhecido das “brigas” de
Dona Selene com o cônjuge, de que, quando a agredia, era levado para o “sete” – Sétimo Distrito
Policial, delegacia de polícia do Pirambu. Ela contou que, nos anos que antecederam a separação do
cônjuge, estava mais esperta e não era mais besta, não, pois aprendeu a correr para o “sete” quando
era agredida fisicamente pelo marido. Chamou minha atenção sua explicação de que tinha era um
caderno lá só com o nome dele. Isso despertou a curiosidade de conhecer o caderno citado, ou
melhor, os “cadernos”, afinal não é procedimento policial de registro para cada vez que um agressor
reincide no “crime” de violência contra a esposa.
Ao catalogar os conflitos de família, descobri o endereço dos “cadernos da delegacia”,
assim como a efetiva ação dos policiais em casos envolvendo conflitos de família, ou, como bem
explicou o inspetor de polícia, casos envolvendo “sangue”, sangue esse que não é o mesmo
derramado nas ruas no cotidiano dos crimes que a policia investiga. Os cadernos são informais ou
inexistentes. Mesmo não constando na produtividade da delegacia no enfrentamento do crime, esses
“cadernos” cumprem importante função social nas comunidades sob a supervisão da delegacia.
Cadernos e audiências teatrais no palco da delegacia
Aos 14 dias de fevereiro de 2006, fui à delegacia para acompanhar uma audiência de
“problema de família”, como chamava o inspetor, envolvendo a avó e seu neto usuário de drogas,
de um lado, e o tio que denunciou o sobrinho, de outro. A mediação do procedimento policial foi
orquestrada pelo inspetor que realizou a audiência.
421
Os primeiros a chegar foram a avó e seu neto. O rapaz estava banhado com os cabelos
molhados e penteados para o lado, como gosta a avó. Os dois estavam sentados enquanto
esperavam o início da audiência. Dona Telma abriu a bolsa, pegou o pente e cuidadosamente
penteou os cabelos do neto como se ele fosse ainda um menino pequeno, enquanto o rapaz, naquele
dia, aceitava todos os cuidados da mãe/avó, ele chama de mãe. Parecia ser um “bom menino” com a
vovó, essa era imagem que ambos queriam passar diante da força policial ali representada pelo
inspetor da polícia civil, que deu início aos procedimentos ao convidar as partes a entrarem na sala,
quando informado da chegada do denunciante.
Na sala, assisti a uma “encenação” de força policial e coerção sobre um jovem inseguro
e receoso do que poderia lhe acontecer se fosse preso e ficasse detido na cadeia. Por outro lado, o
tio tentava ser firme na denúncia para “ajudar” o sobrinho a sair da situação em que estava
envolvido e atingia toda a rede familiar. Mesmo com o desenrolar do conflito e das severas
acusações que o tio Tibério fez à mãe por proteger o “filho Tiaguim”, ele não representou queixa
formal contra o sobrinho.
O inspetor, sempre com voz firme, ao iniciar sua fala, perguntou o que estava havendo e
o que trazia uma família “de sangue” para delegacia, pedindo então ao tio que contasse o que estava
havendo na casa da família e qual o motivo de a polícia ser chamada.
O tio contou que o rapaz vive pegando droga dentro de casa e a mãe não pode fazer
nada, então, para proteger sua mãe do sobrinho, o tio passou a intervir contra o rapaz, pois ele
precisava “lidar” com um homem e não com a mãe idosa. Desde que o tio passou a não aceitar as
atitudes do sobrinho, eles têm se enfrentado em brigas intrafamiliares, mas, no último dia
09/02/2006, o sobrinho se armou com um espeto grande e ameaçou o tio. Para se defender, Tibério
sacou um caibro (pedaço de madeira utilizada para fazer telhado) e, após desarmar o sobrinho,
bateu bastante nele. Em retaliação ao tio, o rapaz ameaçou matar a mãe dentro de casa.
Diante da ameaça e do descontrole do jovem, o tio chamou a polícia, e o rapaz foi
levado à delegacia. No caminho, o rapaz sentiu a “força” da polícia, e o tempo passado na cadeia o
deixou assustado e motivado a mudar suas atitudes ilícitas. Acreditava a avó que ele não faria mais
outra ameaça. Imbuída dessa fé, a avó esteve durante toda a audiência ao lado do neto.
O inspetor tomou a palavra e realizou uma curta, mas incisiva preleção sobre a família e
os conflitos domésticos, lembrando de que se tratava de pessoas aparentadas por laços de sangue e
enfatizou são família, são sangue. Nesse momento, o inspetor se dirige ao jovem infrator e, com
firmeza na fala, o orienta a se comprometer a não beber e nem se drogar em casa, deixando-o
422
intimidado. O rapaz respondeu fazendo sinal de confirmação com a cabeça e murmurando que não
faria mais coisa errada.
A avó intervém e defende o neto, dizendo que ele não usou mais drogas e não vai fazer
coisas erradas, fato que causa a reação do tio do rapaz, que acusa a mãe de proteger o jovem. No
âmago dessa discussão, o tio conta que a casa é da mãe, ele mora com a mãe numa casa que
construiu no quintal e, olhando para mãe e para o sobrinho que estavam sentados um ao lado do
outro, afirma que com a morte do pai é ele quem bota ordem na família e reclama com a mãe por
defender o neto.
O tio relatou, ainda, que um dia desses, na casa dele, o seu irmão cortou a mulher no
pescoço na tentativa de matá-la, sugerindo que a mãe protege os filhos quando esses estão errados e
disse: a mãe lá, nem que a mãe não concorde, meu pai morreu e eu boto ordem lá em casa agora.
Baixou o tom de voz, se voltou para o inspetor e disse magoado: mas a mãe tá errada em aceitar e
finalizou sua fala, dizendo que não sabe por que a mãe protege ele, referindo-se ao sobrinho. Na
narração emocionada do tio, estavam o cuidado com a mãe e a acusação de conivência com os erros
dos filhos, denotando a “cumplicidade criminosa” da mãe em dois eventos que marcaram a história
da família.
O caso do irmão Túlio, citado por Tibério, resultou em suicídio, ao intentar contra a
vida da mulher (mãe do seu filho Tito) e não conseguir matá-la, mesmo ferindo-a no pescoço, que é
um ponto vital e caracteriza a real intenção de ferir de morte a companheira. O jovem Túlio, então
com 24 anos, atenta contra a própria vida e comete suicídio. O fato ainda hoje abala sua mãe, que
não contou nada sobre o ocorrido durante as entrevistas, conversas informais, nem na gravação da
história de vida, sendo as informações conhecidas pela pesquisa na delegacia e pelo tio que, no
momento de raiva pela proteção da mãe ao sobrinho, a acusa de ser conivente com os erros dos
filhos ao protegê-los.
O filho Tibério disse que não compreende a atitude da mãe e reiterou isso repetidas
vezes na delegacia, mas a mãe, incumbida da sua obrigação moral de proteger os filhos, coloca-se
contra a moral vigente de respeito à vida e a sua integridade física, pois, no seu entendimento, está
cumprindo sua obrigação moral de “mãe” que protege e acolhe.
As mães educam os filhos e são crédulas nos bons ensinamentos que oferecem às
crianças. Sempre dizem que os filhos são menino bom e culpam terceiros pelos problemas de
violência na casa. Mapeei argumentos de mães com filhos assassinados, e os culpados são uma
namorada que usava drogas ou amizades ruins com gente que não presta, sendo o problema sempre
423
localizado fora da casa, mesmo quando os filhos são violentos e a agridem, como neste caso, que a
avó imputa a culpa à droga e justifica que tando bom, não faz isso.
A função mãe/avó é carregada por forte apego emocional, e suas atitudes são regidas
pelos valores morais de proteção e apoio, mesmo que sejam vítimas da situação. Sabendo disso, o
inspetor deixa que as parte se manifestem e sabe que esse ritual faz parte do jogo das relações de
uma audiência de “problemas de família”, que, de fato, na maioria das situações, nem sequer consta
nos registros oficiais das atividades da delegacia.
Antes de finalizar a audiência, o inspetor dá voz ao jovem para que ele conte sua versão,
se explique e se comprometa a não reincidir no erro novamente. O rapaz usou o seu direito de ficar
calado sobre o fato ocorrido e só falou que não sabia contar nada. O inspetor, experiente nesses
casos, partiu para a parte seguinte de comprometimento do rapaz de não trazer problemas para a
família novamente. Bem amedrontado, o rapaz se comprometeu a não brigar mais em casa e nem a
dar mais trabalho a sua avó e prometeu também a não usar mais drogas e nem beber para não ter
problemas com a delegacia, pois não gostaria mais de ser preso.
A ameaça: se você reincidir, você vai ficar preso e não vai ser solto no outro dia, pois já
temos registros de ocorrência sua na delegacia. Então, o inspetor levantou a voz e em tom firme
disse: se acontecer de novo, você não será mais réu primário e nem o delegado, nem o inspetor,
nem pai e nem mãe, nem ninguém pode fazer nada por você. Antes de finalizar, perguntou
novamente se o rapaz entendeu e o fez confirmar seu entendimento, enfaticamente.
A ação da polícia, que mais se assemelhava a uma encenação, falando de sangue e
comprometimento, leva a pensar na função social da delegacia que se vê envolvida em conflitos
domésticos e com poucas possibilidades de atuação objetiva, ao mesmo tempo em que é solicitada
num pedido de socorro da parentela que não consegue solucionar a situação dentro do horizonte de
possibilidades das coerções da família, requerendo, assim, uma ajuda externa, “de fora”, mas
“apenas” uma ajuda, e não prender ou imputar a um filho ou cônjuge a condição de paridade com
um “bandido”. Desse modo, a família chama a polícia, mas não permite a criminalização do
parente, mesmo que se trate de violência evidente.
A função social da polícia
A delegacia é parte de um aparato policial que tem uma função social de coerção ao
crime. Como todo poder de polícia, amparado nas leis, a atuação da delegacia tem a função de
424
repressão amparada no Direito Penal. O direito, no sentido amplo, tem a dupla função explicitada
pelo sociólogo francês Durkheim (1999) de reprimir e restituir
126
o cidadão, mas não consta nas
estatísticas das atividades de combate ao crime resolver intrigas e brigas de família.
A delegacia é um espaço por excelência de aplicação da legislação com punição aos
culpados por crimes no cumprimento da lei. Ao chamar a polícia, no entanto, a família não espera
que o parente seja tratado como criminoso, e, mesmo sendo o agressor de uma idosa, o parente é
cidadão e merece ser bem tratado e respeitado, mesmo com suas faculdades mentais comprometidas
com o uso de “drogas”. A expectativa da família para com a atuação da força policial está mais
ligada ao direito restitutivo do que repressivo.
O caso aqui analisado reside nas questões de cunho moral, envolvendo violência e
parentesco numa condição de impotência da família ante o conflito intrafamiliar que coaduna regras
morais e penais. A moralidade impera diante das penalidades da lei na vida privada da família até o
acirramento do conflito com o uso da força física. Durkheim (1999, p.49) explica, em Da divisão do
Trabalho Social que, diferentemente das questões morais, as questões penais necessitam ser
precisas. “Por isso as regras penais são notáveis por sua nitidez e precisão, enquanto que as regras
puramente morais têm, em geral, algo de impreciso”.
Passados os anos dos escritos de Durkheim, as regulamentações do sistema de penas e
das atribuições constantes do Direito Penal continuam presas a uma precisão que não dão conta do
quantum de imprecisão que o devir das relações hodiernas necessita
127
.
Na perspectiva de direito, o caso da família de Dona Telma resultou em restituição do
jovem infrator “ao meio social”, tendo em vista que, sob a perspectiva da família, o parente não
perde a condição de cidadão, ou supercidadão (DAMATTA, 1997). Mesmo sem a criminalização
formal, o jovem foi restituído em virtude da intervenção eficaz da polícia, no entanto, como “o
Direito das Penas” é preciso, o caso não soma nas estatísticas policiais.
Pereira (2006), em seu estudo sobre as delegacias voltadas para o atendimento a
mulheres em situação de violência doméstica, exprime que “orientação, mediação e assistência em
situação de violência” são ações do fazer policial e não “extrapolicial” e informa que a problemática
da desvalorização de ações mais voltadas à mediação ocorre pelo fato de que essas ações não
somam ponto na “produtividade” das delegacias. Nesse sentido, o problema reside na avaliação das
126
Na definição de Aron (1999:292) “o direito represivo, que pune falhas ou crimes, e o direito
restitutivo, cooperativo cuja essência não é a punição das violações das regras sociais, mas repor as
coisas em ordem quando uma falta foi cometida, ou organizar a cooperação entre os indivíduos”.
127
Ver Pereira (2006) sobre a não-objetivação (representações e prisões) da ação da delegacia de
mulheres, que, mesmo não criminalizando os agressores, atua eficazmente no combate à violência
doméstica.
425
delegacias que regem as noções de eficácia e comprovam a eficiência das ações no “combate” à
criminalidade. “Isto supõe uma redefinição do papel da polícia no sistema de segurança pública, no
sentido de pensar a função policial antes de tudo, como voltada à proteção de normas que
organizam a vida da sociedade e não prioritariamente, como combate e repressão à criminalidade.”
(PEREIRA, 2006, P.8-9).
Ainda sobre a relação moral dos conflitos envolvendo a polícia, a família chama a força
policial para conter um parente, mas não quer sua prisão de fato, no máximo, deseja mostrar que sua
falta (crime) é grave e pode sofrer consequências fora do seio familiar. Desse modo, ao chamar a
polícia numa “briga”, os parentes querem ajuda para solucionar um problema que extrapolou os
limites de ação rede; no entanto, não desejam que a lei seja de fato aplicada com todos os seus
rigores, apesar de precisarem de ajuda externa.
Note-se que chamar a polícia para um parente tem uma conotação diferente da frase
usual. No imaginário do senso comum, chamar a polícia é aplicar a lei aos indivíduos, mas, na
família, ninguém é indivíduo, todos são pessoas e, nesse sentido, nem mesmo o Boletim de
Ocorrência (BO) é confeccionado quando o conflito envolve família.
Há um ditado popular que diz: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Esse dito é bem
representativo de como pensa nossa sociedade forjada nos berços da família patriarcal e de como
acontece a atuação do Estado, de onde se deveria esperar que o intelectual e o abstrato se opusessem
aos elementos particular, material e corpóreo que predominam nas relações de amizade e família.
Consoante a esse pensamento gregário das pessoas e seus valores, quando a família chama a polícia
para um parente espera-se um apoio e não a criminalização (a aplicação da lei).
Essa situação representa um conflito entre a lei e o fato. A polícia atende diariamente
ligações de parentes, principalmente mulheres que sofrem agressões dos seus “amados”. Segundo
narrativa de um policial militar, “quando a polícia chega ao local, ela corre mais risco de se
prejudicar que o agressor”, pois as mulheres visivelmente espancadas defendem o agressor e se
recusam a prestar queixa formal, mas se destinam a denunciar os policiais, caso ajam com
“truculência” contra seus “maridos”.
Mesmo com toda a recusa em formalizar o Boletim de Ocorrência e dar continuidade ao
inquérito, as esposas agredidas pelos companheiros querem que a polícia venha ao local da agressão
para “resolver” o problema, precisam de proteção.
Sabendo dos interesses do denunciante, um policial explicou que comumente preferem
demorar para atender esses casos por dois motivos: o primeiro, por que “não se resolve” e, por
vezes, a polícia passa a ser vítima da situação; segundo porque, se o atendimento for rápido e
426
eficiente, os chamados vão aumentar, e a polícia não pode dedicar todo seu tempo a apaziguar
conflitos de família. Quando o policial afirma “não se resolve”, está fazendo referência à
representação da vítima contra o agressor que formalizaria o procedimento policial.
Observo que, infelizmente, essas situações ajudam a denegrir a imagem da milícia
perante a comunidade, pois a polícia vem e “não faz nada, nem prende” e, quando a polícia leva
preso, “solta logo”, de modo que aparentemente a polícia é ineficaz. Não existe na polícia o
procedimento de levar o preso e deixá-lo a noite na “cadeia” para “se acalmar”, enquanto passam
efeitos de álcool ou drogas; então a polícia opta por não conduzir o agressor à delegacia se a vítima
adiantar que não vai formalizar a denúncia, ou então leva o homem com a mulher e testemunhas
que, ao chegarem à delegacia para fazer o procedimento, desistem e não representam contra o
agressor, de modo que não é possível efetivar a prisão.
É desejo da família que o agressor seja levado à delegacia e passe a noite na cadeia, mas
não que ele se torne um preso comum, como os “criminosos” que assaltaram e feriram terceiros. Os
parentes “apenas” viveram um momento de fraqueza e, “apesar de tudo são da família”, o que
significa que devem ser protegidos. Nesse caso, ao denunciar o cônjuge, a mulher, por exemplo,
passa a ser malvista pela parentela do marido denunciado e pela sua própria família, pois feriu um
código moral e levou um conflito de “dentro” de casa para pessoas de “fora” prejudicarem seu
marido. Assim, os conflitos de família envolvendo o aparato policial são explicados pela lógica da
proteção, em que os parentes recorrem à polícia como meio de garantir a proteção aos seus.
7 A COMPLEXIDADE NA REDE DE PROTEÇÃO FAMILIAR DE PAI VITO
7.1 A HISTÓRIA DE UM PAI DE MUITOS FILHOS COM MUITAS MÃES!
Pai Vito, como é chamado pelos netos em abreviação ao nome de Vitório, é um homem
alto magro e já conta com 67 anos. Vive no Pirambu há cerca de 50 anos e casou com Vani com
quem teve cinco filhos, excetuando-se os abortos. A coleta desta história de vida foi em julho
2006
128
. O narrador contou que trabalhou numa fábrica de arames e hoje está aposentado.
128
Acompanhei a família nos meses de julho a novembro de 2006 em atividades de pesquisa, com
visitas em 2007 e 2009. Ainda fiz duas incursões em 2010: para fazer fotos e um quadro
socioeconômico. Os meses de 2006 foram de intensas incursões, chegando a fazer visitas pela
manhã e tarde. À época Pai Vito estava casado com Vani, mas vivia uma nova conjugalidade com a
namorada Vanusa, há cerca de dois anos, num bairro distante do Pirambu. Nesses meses, ele
morava na sua casa do Pirambu com duas filhas até o mês de agosto quando uma terceira filha,
Vilani, veio também com os filhos morar na casa do pai. Nos meses em que morou com as filhas,
427
Até o momento, as discussões a partir das famílias de Dona Rita, Dona Selene e Dona
Telma caminhavam para a matrilocalidade e para centralidade da mulher na rede, no entanto, a
família não vive somente de centralidade. Assim, a posição simbólica do homem é necessária à
parentela, mesmo estando fisicamente ausente; a figura masculina é relevante para a unidades
doméstica na constituição do arranjo econômico e, principalmente, moral. O homem simboliza
autoridade na família e, não raro, nas unidades monoparentais chefiadas por mulheres, elas citam
seus pais ou irmãos para enfatizar autoridade junto aos filhos menores, ou recorrem a eles quando
precisam de representatividade na rua em situações de conflitos. Nessa perspectiva, a família de Pai
Vito é um dos casos para explicitar o modo de vida dos pobres urbanas.
O jovem Vitório é natural da cidade de Juazeiro do Norte a 500 quilômetros de
Fortaleza. Veio para a Capital ainda jovem, indo residir com seus pais no Pirambu. A casa situada
na travessa Cacimba dos Pombos
129
foi adquirida após o casamento; a família reside no local há 25
anos. O homem é pai de muitos filhos com mulheres diferentes. O próprio narrador ficou surpreso
ao fazer as contas e “descobrir” que é pai de 12 filhos com cinco mulheres. Os nomes das mães das
crianças são lembrados, mas o pai não se recorda o nome dos filhos. Ao final da contagem, ele
sugere que ainda pode haver outros filhos fora do seu conhecimento ao comentar: só que eu saiba.
Muito disposto às festas e à ingestão de bebidas alcoólicas, disse: Cansei de sair na
sexta e chegar no domingo. A esposa Vani
130
relatou que o cônjuge tinha muitas mulheres e até as
trazia para dentro de casa. São sete filhos fora do casamento com quatro mulheres, frutos da
infidelidade de Vitório com a esposa. Na contagem dos filhos, fica evidente a satisfação do narrador
quanto a sua “virilidade” em ter muitos filhos e mulheres na sua vida, não importando a provisão
deles, o afeto e nem mesmo, como já expresso, o nome dos descendentes. Dos casos amorosos ele
relatou um em que teve dois filhos com uma mulher chamada Maria, assim mesmo, lembrando do
romance e dos frutos, não tinha informações sobre os prénomes dos infantes.
Durante os anos de pesquisa com várias famílias no Pirambu, presenciei situações de
pais e mães que não sabem os nomes nem as idades dos filhos. Comumente as mães sabem os
nomes dos filhos de quem cuidam e acompanham o crescimento, mas não sabem as idades. Entre as
ele estava rompido com a namorada, mas em novembro retomaram o relacionamento e ele foi morar
com ela no bairro Araturi, que fica na fronteira entre as cidades de Fortaleza e Caucaia.
129
Ver mais sobre a localidade no decorrer deste capítulo. Adianto que se trata de dois becos que se
encontram num cruzamento coincidente com uma cacimba de água, chamada de Cacimba dos
Pombos, dando nome à localidade.
130
Durante a pesquisa com a família nos anos de 2006 e 2007, Vani estava no interior do Estado do
Ceará e não a conheci. Em fevereiro de 2010, estive na Cacimba dos Pombos para fazer registros
fotográficos da localidade e conheci Vani. Na ocasião gravei uma entrevista de 20 minutos e 58
segundos com a “esposa” de Pai Vito e esclareci pontos para a pesquisa.
428
senhoras mais velhas, algumas citam o ano de nascimento dos filhos ao contar suas histórias de
vida, mas não sabem informar a idade atual. Philippe Ariès (1981) explica que o afeto à criança é
um fenômeno moderno, do mundo industrializado em que os pais diminuem o número de filhos
para poderem dedicar-lhes atenção em virtude das poucas horas que sobram das atividades no
mundo laboral.
Entre os mais pobres, no entanto, as crianças não são, em sua maioria, planejadas.
Sendo assim, não nascem num ambiente voltado para acompanhar seu crescimento nem os pais tem
seu tempo ocupado pelo trabalho (muitos atuam na informalidade onde prevalece a precariedade
das ocupações), de modo que as relações se dão muito por semelhança com relações diretas em que
o cotidiano é compartilhado com as crianças. Como os pais não se afastam das crianças para o
exercício laboral, não há a necessidade do pagamento da “dívida’ que os mais abastados
economicamente contraem com seus filhos por deixá-los para dedicar-se ao trabalho separado do
lar.
Em As idades da vida (ÁRIES,1981) expressa que na sociedade as pessoas ficam felizes
quando uma criança de dois anos e meio responde corretamente sua idade e se acrescentam que isso
é importante, pois durante a vida, muitas vezes o fará ao preencher fichas e outros documentos.
Entre os mais pobres, entretanto, não existe preocupação com as idades das crianças nem dos
adultos. Esses são valores de um universo onde o valor econômico é predominante e
frequentemente é preciso “confirmar dados” para as atendentes virtuais de empresas onde há
consumo de bens e serviços.
Sobre o “esquecimento” dos dados dos filhos, durante pesquisa da Areia Grossa, em
2000, conheci uma senhora que não sabia as idades dos filhos nem sua e se considerava “burra” por
não saber ler; envergonhada, com as mãos no rosto, decidiu ir buscar seu documento de identidade
para eu ler sua idade, que, inclusive, ela gostaria de saber. A senhora tinha 37 anos e considera a
maior façanha de uma pessoa saber ler as letras, sendo este um código que não decodificou e lhe
causava estranheza a filha de oito anos conseguir ler tudo, até as placas grandes na rua referindo-
se aos outdoors.
Voltando ao Pai Vito, à época da investigação, ele namorava
131
uma jovem num bairro
distante, e, durante os meses de julho a novembro de 2006, o casal estava em crise, porque Vanusa
exigia a separação oficial do seu namorado com a esposa para que regularizassem sua união, ao que
Vani se nega. Ele explicou: Quando era mais novo, dançava e arrumava...eu gosto de uma menina
131
O termo namorada é usado por Pai Vito para explicar a ligação com a companheira. Ele ainda é
civilmente casado com Vani e talvez seja essa a justificativa para se referir a Vanusa como
namorada e menina. . São “éticas dúplices”. (WEBER apud DAMATTA1997).
429
há 12 anos. Eu sou casado, era aqui muito perto (a ‘menina’ morava na outra rua) e troquei a casa
[de Vanusa no Pirambu] por uma lá no Araturi.
O casamento de Pai Vito e Vani foi marcado por traições, mas, neste último
relacionamento com Vanusa, Vani resolveu se afastar de casa e foi morar longe da Capital, Pai Vito
disse que ela sabe do seu romance e por isso foi para o interior do Estado e Vani relatou:
Pra evitar de tá vendo ele e ela, fui pro interior cuidar da minha mãe, meu casamento foi só
de sofrimento, nunca fui feliz, porque meu marido bebia muito, era muito cheio de mulher
e passava de 15 dias sem pisar em casa, as mulheres passavam era aqui fazendo hora com a
minha cara, essa última mesma [Vanusa] ele passava o dia em casa, aí tinha roupa lavada,
engomada, comida feita quando era quatro horas da tarde, ele tomava banho trocava de
roupa, ia buscar ela no emprego, dormia na casa dela e quando era de manhazinha, seis
horas, sete horas ele vinha de lá pra cá, passava de braço dado com ela na minha porta, ia
deixar ela no emprego e depois voltava pra casa, isso tudo eu aguentando.
Essa situação gerou uma divisão entre as filhas de pai Vito e somente Valéria apoiava o
pai, enquanto Viviane, Vilani e Velma defendiam a ideia de que a mãe não deveria dar o “desquite”
depois de tantos anos de traição ao lado do marido.
Esse era o conflito de pano de fundo que envolvia a família em 2006, pois havia uma
cobrança moral e econômica sobre o pai. Por um lado, as filhas consideravam correto que ele
continuasse casado com a mulher e por outro lado desejam que seus rendimentos beneficiassem a
família e não a namorada. O fato observado foi que as filhas recorreram à mendicância para
oferecer alimentos aos filhos após a saída do pai para a casa da namorada em fins de novembro.
Durante o período em que morou com as filhas, em 2006, Pai Vito contribuía com o
sustento da família. Certa vez disse: só de tempero[carnes], tô gastando R$ 300,00, tava pensando,
a gente tem que ter uma base. As duas filhas que moravam na casa do pai tinham como único
recurso financeiro os benefícios assistenciais às famílias pobres dos Governos federal e estadual.
Três meses antes da saída do Pai Vito da casa, a filha Vilani veio residir com seus dois filhos (mas
sem o companheiro) na casa do pai, devido a falta de pagamento do aluguel de R$ 80,00 da casa em
que vivia em frente à casa de Pai Vito e vizinho à da irmã Viviane.
Depois da saída de Pai Vito para a casa da namorada, Dona Vani passou a enviar
mensalmente uma cesta básica que conseguia com a ajuda de sua mãe e um irmão no interior para
amenizar a situação das filhas, pois sabia que elas não tinham rendimentos e “passavam
necessidade”. A expressão significa que a família não tem condições para se manter no que se
refere a alimentação, sendo “necessidade”, nesse caso, um eufemismo ao fato de passar fome.
430
Eximindo-se das responsabilidades de prover as filhas e netos, Pai Vito afirmou por
diversas vezes: Não tenho menino pequeno, deixei tudo criado. A frase serve para enfatizar que não
tem mais obrigações com os filhos que são maiores de idade e já constituíram suas famílias. Assim,
devem assumir suas provisões, enquanto ele, livre dessa obrigação, pode usufruir dos seus
rendimentos de aposentadoria, vivendo uma nova conjugalidade.
Mesmo separado da namorada, mensalmente, ao receber seus proventos, ele se dirigia à
casa dela para deixar sua contribuição. Certa vez, às vésperas de receber o pagamento e ansioso por
ter um pretexto de visitar a namorada, estava otimista que o momento fosse potencializador de uma
reconciliação. Pai Vito passou os meses esperando que ela pedisse para reatar o relacionamento que
já durava 12 anos. Sobre o laço nupcial relatou: Se falecer eu disse pra ela (Valéria) que metade do
meu ordenado era pra Socorro, 12 anos que gosto dela. A frase se referindo à amada foi dita na
terceira pessoa, observo que há um respeito ao casamento e à família que estava ali representada
pelas filhas e netos, mas seu compromisso de provisão é com a família da namorada, daí a sua
preocupação em contribuir na casa do Araturi, mesmo após sua morte.
A narrativa da história de Pai Vito foi focada em seus amores e filhos dentro e fora do
casamento. Ele relatava satisfeito que gostava de dançar no Secai
132
e a quantidade de filhos era
contada como sinônimo da sua masculinidade.
7.2 A CASA DA CACIMBA DOS POMBOS: DA TAIPA AOS TIJOLOS
Dando continuidade às histórias de Dona Rita, Dona Selene e Dona Telma e trajetórias
de casas de taipa e autoconstrução, Pai Vito também comprou sua “casinha” na Cacimba dos
Pombos, de taipa, há 25 anos, e com a ajuda de amigos construiu sua residência de tijolos.
132
Sociedade Esportiva Cultural Arco Íris – SECAI. http://pirambutemtudo.com/index.html. O
Secai é um tradicional clube de festas e eventos esportivos no bairro Pirambu.
431
Travessa Cacimba dos Pombos. A casa de Pai Vito é a sexta com telhas na
calçada.
Foto: Edmar Oliveira Jr
Antes de morar na Cacimba dos Pombos, Pai Vito morava na rua Santa Elisa, uma rua
próxima à área onde reside hoje, também localizada na beira da praia no bairro Pirambu. Ele narrou
que comprou a casa de taipa e com seu trabalho construiu a moradia da família, de tijolos. Aqui eu
comprei de taipa, eu derrubei e fiz de tijolo. Aqui era um beco, aqui o terreno era lá pra trás, hoje é
mais largo, era mais estreito.
A casa da família é o lugar da identidade coletiva do grupo familial. Nela os filhos
foram socializados e formaram laços entre os irmãos que são levados por toda a história social de
cada um participantes da família. “O facto de uma pessoa ter sido criada como membro de uma
unidade social primária ‘casa’ é uma das principais fontes de identificação social entre pessoas”.
(CABRAL, 2003, P. 120). Entre as famílias urbanas menos favorecidas, a casa particular assume:
[...] uma importância central para estas pessoas enquanto marco de identidade individual e
de pertença familiar nestes contextos de relativa insegurança urbana. Estas casas são
“ancoras na cidade”, que funcionam como meios de criação de identidades num contexto
urbano que é entendido como instável e propenso à erosão dos laços sociais e da identidade
pessoal. (p. 121).
432
Sala da casa, seguida de quarto e demais dependências, separadas por cortinas coloridas.
Foto: Edmar Oliveira Jr
Para construir a casa, Pai Vito teve a ajuda de um amigo do mesmo bairro e relatou que
primeiro construiu nos fundos da casa, e somente depois edificou a parte da frente. A casa tem uma
sala, um quarto, uma cozinha e ao fundo um banheiro. Acredito que a construção se deu pelos
fundos em virtude da delimitação do espaço para a rua e trecho de calçada para a passagem de
transeuntes na via estreita, onde não há como possibilitar a passagem de um carro; nela somente
transitam pessoas, bicicletas e motos.
A rua, ou melhor, a Travessa, é paralela à rua Gomes de Matos
133
, estando por de trás
de um centro de reciclagem e vizinho o Centro Comunitário Luiza Távora. Para chegar à Cacimba
dos Pombos, é preciso atravessar um dos três becos que a ligam à rua Gomes de Matos ou pelas
ruelas próximas à praia. Em ambos os casos, só há acesso por vias estreitas.
133133
Ver mapa ao final da tese.
433
Foto da rua Cacimba dos Pombos
Foto: Edmar Oliveira Jr
Dos três acessos, o mais largo é pela rua Cacimba dos Pombos (foto acima). Logo após
o poste, fica a cacimba que dá nome à rua e de onde se estende, à frente, a Travessa onde residem
Pai Vito e a sua família.
Foto de uma casa alugada apresentada pela proprietária na foto
434
Foto: Edmar Oliveira Jr
Sobre o valor do aluguel das casas no local, em fevereiro de 2010, em mais uma
incursão ao campo, desta vez para fotografar a localidade, uma das moradoras relatou haver uma
propriedade no local que está alugada atualmente por R$ 50,00. Desse modo, na leitura da imagem
da casa, é possível visualizar as dimensões e condições de casas alugadas na rua.
Foto: Edmar Oliveira Jr
As casas da rua e da travessa Cacimba dos Pombos são conjugadas com paredes em
comum para duas casas; o espaço da rua de “terra batida” não chega a distar três metros de uma
casa para outra. Os espaços da rua e as casas se confundem e se misturam em trocas cotidianas, que
se intensificam entre parentes. É comum ver cordas de varais esticados de uma casa a outra,
apoiados por pedaços de madeira onde se sustentam as roupas lavadas.
Contam os moradores que o lugar é chamado de “Cacimba dos Pombos” porque na rua
há uma cacimba onde antigamente os pombos vinham beber água. A cacimba que dá nome ao lugar
ainda está ativa e localiza-se no encontro da rua Cacimba dos Pombos com a travessa dos Pombos.
A fonte continua servindo à comunidade.
Na Cacimba dos Pombos, não há distinção entre casa e rua (DA MATTA, 1987). Todos
os moradores são identificados com características e muitas informações que os qualificam como
435
pessoas e não como indivíduos. Os vizinhos sabem informações sobre a vida uns dos outros – quem
casou, quem separou, quem é filho de quem e muitas outras informações comuns. Na rua, há pouca
distância física entre as casas e, por não haver trânsito de carros, o espaço pode ser assemelhado a
uma calçada que se estende na frente das casas.
As filhas de Pai Vito que moravam com ele afirmaram que gostariam de ter sua casa
para viver com os filhos, mas ainda não conseguiram. Vilani contou que estava “esperando” as
coisas melhorarem para voltar a viver com o companheiro, Vilemar, quando recebesse uma casa
popular naquele ano (informação do ano de 2006 que não se realizou), pois estava inscrita para ser
beneficiada com uma unidade habitacional. Para segurança da sua família, ela preencheu a proposta
para a casa ser registrada no nome dos dois filhos Victor e Victória. E disse: eles vão dizer quando
eu morrer que pelo menos minha mãezinha deixou essas quatro telhinha pra nós.
As mães pobres acompanhadas pela pesquisa sonham em ter uma casa para viver com
os filhos. Vilani havia sido despejada há poucos meses, quando falou que sonhava em deixar uma
casa para os filhos. A questão habitacional é muito acentuada entre os pobres e a casa própria é um
sonho para muitos homens e mulheres.
7.3 A FAMÍLIA EM REDE NA CACIMBA DOS POMBOS: Aqui nós só briga
Antes de chegar pela primeira vez à casa Pai Vito, conheci uma vizinha que morava
próximo a extremidade da Travessa pelo acesso de entrada da rua Cacimba dos Pombos. Esta
senhora indicou a casa de Pai Vito para minhas pesquisas. A vizinha, Luciana, é de uma família
extensa e de intensas trocas na casa de seu pai, que em numa outra rua bem perto. Nesta parentela,
fiz mapas dos moradores em duas unidades domésticas e entrevistei familiares.
Após me apresentar a Luciana, expliquei o aspecto da pesquisa. Ela logo falou da sua
família, mostrou casas vizinhas da sua rede de parentesco e me levou à casa do seu pai onde
moravam três famílias secundarias de filhos, além do casal principal e alguns netos. Era uma
economia doméstica de uma só panela, a dona da casa disse: O que bota no fogo é pra todos.
Mesmo sendo sua família complexa, minha entrevistada disse que a casa de Pai Vito era mais
interessante e tinha mais núcleos na mesma rede.
Ao bater à porta de Pai Vito, fui recebida pelos netos que solicitaram que eu aguardasse,
pois a mãe estava no banho e a advertiram: Mãe, mãe tem uma mulher aqui. Aguardei a chegada da
senhora, sentada, conforme convite das crianças. Fiquei numa cadeira de madeira da sala e pouco
tempo depois chegou Pai Vito. Calado, sentou-se em outra cadeira.
436
Passados alguns minutos, adentrou a sala Valéria, a mãe das crianças em passos
claudicantes, devido a uma deficiência física. Logo que chegou, interrogou sobre minha visita,
momento em que me apresentei como estudante da Universidade, em busca de estudar uma família
grande em uma só casa, incluindo parentes que residam vizinhos. Expliquei que desejava saber
como vivem, ao que ela se antecipou e definiu a família: Aqui nós só briga. São muitos sobrinhos e
filhos e brigam bastante e cada mãe defende o seu porque acha que é santo, aí começa a briga e,
nenhuma mãe, a mãe acha que o filho é santo.
Depois de algum tempo de pesquisa, entendi por que a vizinha, também de uma
organização complexa, indicou a família de Pai Vito, pois é uma rede de muitas irmãs e suas
frequentes brigas transcendem o limite da casa, de modo que a organização da família em rede é
apresentada na rua com seus embates e vivências.
Nas primeiras visitas, Pai Vito
134
contou que sua parentela se divide em cinco casas na
rua –a unidade do patriarca que mora com duas filhas, cada uma com dois filhos e as casas de
quatro filhos: três consanguíneos e uma “adotada”
135
na mesma rua. Defronte a casa de Pai Vito se
dispõem as moradias de duas das suas filhas com seus núcleos: filhos e cônjuges. O grupo familiar
consanguíneo se completa na rua com outras duas residências de filhos: da neta adotada à brasileira
e do único filho homem oriundo do casamento com Vani.
Pai Vito enumerou seis filhos com a esposa Vani, a neta Vanessa é somada aos cinco
filhos e, segundo ele, é pai dela duas vezes. Porque era pai e avô, no momento de citar os nomes,
soube que o nome oficial de Vanessa é Vanessita e contou sua história paterna. É preciso atenção
para compreender quem são as pessoas, pois elas têm dois nomes (Vanessita é Vanessa e Vanda é
Vani) e algumas ainda têm apelidos. O pai biológico desejava que o nome da filha fosse Vanessa,
mas demorou na indecisão do registro e Vitório foi ao cartório e a registrou com o nome de
Vanessita como sendo sua filha com Vanda (Vani). O pai biológico de Vanessa era deficiente visual
vindo a óbito tempos depois por problemas cardíacos. Pai Vito tem muita satisfação em ser “pai” de
Vanessa.
O filho mais velho, Virgílio, é casado com Vilma e com ela tem um filho de cujo nome
o avô não sabia; pediu ajuda a filha Valéria, e ela respondeu: Valmir. A filha que se encontrava na
134
A formação da rede familiar foi narrada por Pai Vito com a ajuda de sua filha Valéria, mas, neste
texto, trago informações complementares coletadas em outros momentos nas casas de Viviane
(filha) e Vanessa (neta/adotada).
135
Trata-se de uma adoção à brasileira. A menina é filha de uma união conjugal passageira da filha
mais velha de Pai Vito, que resolveu registrá-la como filha legítima sua e da esposa. Esse é um fato
muito comum nas famílias brasileiras, principalmente de baixa renda. Ver mais em Fonseca (2004).
437
sala no momento da entrevista ajudou o pai a lembrar-se dos nomes dos netos. Pai Vito e Valéria
continuaram contando os parentes e a filha incluiu detalhes aos relatos.
A filha Viviane gerou dez filhos, mas somente seis nasceram vivos, Valéria enumerou
quatro abortos da irmã. Viviane, no entanto, acompanhou o crescimento de sete filhos. A primeira
foi Vanessa, registrada como filha por Pai Vito e Vani. A criança foi concebida quando ela contava
15 anos e a união com o pai de Vanessa ora é narrada como uma “aventura” pelas irmãs e ora a mãe
Vani credita o fim da união à morte do companheiro, ao afirmar que a filha ficou viúva e depois
começo a gostar desse agora, o Valon. Com o marido Valon, foram cinco filhos. Viviane ainda
ajudou na formação do menino Vandergean, filho biológico de Valon em outra conjugalidade.
Vandergean, quando veio morar com o casal, já contava oito anos de idade. Sua relação
com Viviane era boa e o menino a considerava como mãe. Vandergean já contava com 17 anos
quando foi morto com um tiro em fevereiro de 2006. À época da pesquisa de campo, a morte era
recente e todos os dias as histórias do rapaz eram contadas pelas tias, madrasta e pai do jovem.
Em relação à morte de Vandergean, Valéria disse em tom de defesa ele não andava bem
certo na linha não, mas morreu de graça, mataram de tiro. Ela relatou que o sobrinho estava na rua
e o assassino veio em busca de outro jovem, ao que ele respondeu não saber e, se o interessado
desejasse localizá-lo, que o procurasse, por isso, levou um tiro em retaliação. A mãe de “adoção”,
Viviane, contou que o enteado era capacho da tia Valéria e fazia tudo o que ela pedia. Entendi que
Valéria apoiava os “delitos” do sobrinho e ele residia mais tempo na casa da tia do que na do pai.
O rapaz “morava” na casa da Valéria, mas somente nos períodos em que não estava
recluso em centros educacionais para menores infratores ou drogados. A tia não sabe precisar quais
os motivos, mas informou que o sobrinho foi internado no Centro Educacional São Francisco e no
Centro Educacional Patativa do Asssaré. Valéria relatou que os institutos educacionais são muito
bons, tem escola e comida, tudo na hora. A família defende o jovem e debita sua morte a uma causa
injusta. Tanto na casa de Pai Vito como de Viviane, falou-se muito em vingança, mesmo sabendo
que a consequência seria de mais mortes.
Sobre sua relação com o enteado, Viviane contou que o filho do cônjuge costuma
repetir que ninguém gostava dele e somente ela o queria bem. Sobre a proximidade da esposa e o
filho Vandergean, Valon explicou: ele tinha um carinho tão grande por ela que ele sendo filho de
mim com outra mulher, era pra eu ter ciúme.
Entre os mais pobres o sexo é muito evidenciado e o senhor Valon explicitou essa
dificuldade de separação entre amor filial e conjugal ao expressar que deveria ter ciúme da esposa
com seu filho, que o casal educou juntos desde a infância do garoto. O senhor Valon denota
438
dificuldades de separar a intenção sexual de outras interações, especialmente quando ingere bebidas
alcoólicas.
Quando visitei a casa de Valon e disse que gostaria de entrevistá-lo, ele foi bem
invasivo e respondeu que estava a disposição, mas que preferia que a conversa fosse num outro
momento, somente nós dois, longe da esposa, causando um constrangimento para mim e sua
mulher, que lhe pediu para parar com a brincadeira. Mesmo assim, o senhor continuou insistente e
protagonizou a cena mais embaraçosa da pesquisa, ao apontar para o jovem que foi cedido pelo
Centro Comunitário para me acompanhar na Cacimba dos Pombos e dizer que o jovem era meu
segurança e devia estar armado
136
, apontando para genitália do rapaz.
Completando a narrativa das moradias da família na rua, a filha Vilani morava em casa
alugada vizinha à irmã Viviane, ambas defronte à residência de Pai Vito onde já viviam as irmãs
Valéria e Velma com os filhos. Vilani foi despejada do imóvel onde habitava com os dois filhos e o
pai da sua segunda filha Victória de dois anos. Desse modo, com a impossibilidade de manter o
núcleo familiar, ela e os filhos voltaram a morar na casa de Pai Vito, enquanto seu companheiro
retornou para a residência de sua genitora. Valéria comentou a vinda de Vilani para sua casa e, em
tom de burburinho, disse: Nós estamos morando juntas, porque eu não tenho opção, está péssimo,
os irmão e primos viviam em guerra e a Vilani só quer que o dela [Victor] bata e nunca apanhe,
tem sido briga em casa, na rua e até na escola já fomos até chamadas por causa das brigas dos
meninos.
Pai Vito e a mãe Vani acolhem os consanguíneos, as filhas e os netos são aceitos, mas
os cônjuges não. Com a chegada de Vilani, são três filhas e seus filhos coabitando com Pai Vito,
todas tem parceiros fixos, mas nenhuma pode trazê-los para residir na casa da família.
A rede familiar é complexa na estrutura e, principalmente, na sociabilidade. O pai
representa o lugar da autoridade para os filhos e netos, tem o respeito de todos e é chamado de
“pai”; em alguns casos, em detrimento do pai biológico, que mesmo presente em casa é chamado
por seus filhos pelo nome.
Observei de interessante, na posição do homem na família de Pai Vito, uma autoridade
sobre as filhas e netos. Uma das netas foi chamada pelo avô quando passava na rua para ir comprar
a “mistura” para o preparo do almoço do avô. Observei que a menina adolescente respondeu a outra
prima que iria comprar o almoço “do pai”, de forma muito íntima. Ele falava com os netos em tom
baixo, mas firme. Sem levantar a voz, suas ordens eram ouvidas com atenção e atendidas de forma
136
A expressão é uma referência popular local à ereção masculina. Ver mais sobre expressões
piadas, gestos e objetos do uso da sexualidade masculina em A ordem fálica, no livro de Pina
Cabral (2003).
439
breve. Sobre a “mistura”, o diferencial foi que outra neta trouxe um saco com frango abatido e Pai
Vito perguntou pela verdura e ela disse que não tinha. Observei que Pai Vito mandou uma neta e foi
outra que veio, mas com as respostas corretas ao pedido do avô.
Quando indaguei sobre a neta o chamar de pai, ele disse que todos o chamam de pai e os
pais biológicos pelo nome, e contou que se os netos brigam uns com os outros em casa ou na rua;
ele pega a cordinha e bate em todos. Ao ouvir a fala da sobrinha, Valéria acrescentou que, se as
filhas interferirem, também apanham
137
e os pais só olham e não se metem. Pai Vito confirmou: Se
eles tiver brigando eu meto a peia neles na frente do pai dele e se as filha se mete, apanha também.
Percebi que a autoridade do avô é importante na rede de parentesco. Enquanto eu fazia
anotações, Pai Vito conversava com sua filha e levava sua rotina. Interrogava um neto sobre o
almoço nas casas das filhas, ao que o neto respondeu que uma ainda não tinha chegado do trabalho,
e outra estava torrando a carne. Muito discreto e atento, ele ficava sentado e sem sair da cadeira, na
sala da sua residência, controlava as moradias da rua onde viviam suas filhas. Observei que a casa
do filho não é monitorada por Pai Vito, sendo o filho, Virgílio, a autoridade em seu lar, sem a
interferência do pai.
Essa família denota a relevância da figura masculina nas famílias pobres. Valéria diz
que apanha do pai e quando ele lhe bate ela baixa a cabeça, em sinal de respeito. Logo após narrar
este fato ela explica: é melhor apanhar do pai que dos outros homem. Em contrapartida, se esse
direito é do pai, um outro homem não-parente não pode lhe bater. Sua frase decifra a função do
homem de proteger, simbolizando, assim, a partir da violência física, a autoridade e o respeito. O
estado de submissão da mulher ao pai ou ao companheiro também foi explicitado na fala de Soraya,
filha de Dona Selene, ao explicar que vive “no” poder do atual companheiro. Nesse relato, analisei
a situação de duas vertentes: uma de submissão ao poder fálico representado na dominação
masculina e outra no sentido dessa representatividade fálica no espaço da rua ser também sinônimo
de proteção
138
.
Ao haver agressões a mulheres solteiras na rua, sabe-se da possibilidade de represália
por parte do pai, amante ou irmãos. Desse modo, entre os pobres, o homem, mesmo ausente da
residência, consiste numa referência necessária ao núcleo familial. A força física formal,
coincidente com a polícia, é bastante usada nos embates entre os pobres, como observei nos anos de
pesquisa, mas percebi que esse é um procedimento posterior aos confrontos diretos na rua e, quando
137
Apanhar é um termo usado para fazer referência a quem perdeu uma disputa. De um lado, há
quem ganha e, do outro, quem perde, apanha. O termo é muito usado em brigas de família e tem
uma conotação nativa de “respeito”.
138
Ver mais no capítulo cinco.
440
a questão tem desdobramentos embasados em lei como as separações, DNA, mortes e outras com
aparato legal.
As relações de sociabilidade nessas famílias não devem ser analisadas somente do ponto
de vista econômico de manutenção do grupo. Não se trata apenas de uma estratégia de
sobrevivência
139
econômica, mas, antes, de manutenção do grupo familiar com suas funções de
proteção às crianças e aos demais participantes da família. Neste estudo, há uma lógica de troca de
dádivas nos papéis sociais e não raro observo irmãos homens assumindo corresponsabilidades com
suas irmãs e sobrinhos na ausência do pai.
Um estudo antropológico em “Vila do Cachorro Sentado”, no Rio Grande do Sul,
mostrou que os elevados índices de mulheres chefes de família, sem a presença do cônjuge, não são,
necessariamente, representativos da realidade dos pobres e podem encobrir variadas formas de
organizações familiares. Cláudia Fonseca aponta que “um olhar mais aprofundado mostra a
presença marcante do homem nessas ‘famílias de mulheres’” (FONSECA, 2000, p. 83). A autora
explica que, no caso das mulheres mais jovens, existia um homem que assumia publicamente o
papel de defensor do lar ou moravam perto de um irmão ou de ex-marido, ou recebiam ajudas
periódicas do pai de um filho e, no caso, das mulheres mais velhas, os filhos já crescidos.
A pesquisa com as famílias do Pirambu corroboram as análises de Cláudia Fonseca. As
quatro redes de referência na pesquisa mostram a presença da representatividade masculina por um
pai, filho, irmão ou ex-marido; no caso das mulheres solteiras, família de Pai Vito e no caso de
Selene e Telma, essa representatividade é assegurada pelos filhos. A casa de Dona Rita tem hoje a
presença constante do seu companheiro, mas no ano 2000, quando a conheci, ele não morava com
ela, mas sua presença diária na casa servia para sua apresentação pública como defensora do lar.
Nesta perspectiva, a filha de Pai Vito explica que não pode apanhar na rua de nenhum
homem porque tem pai, mas na sua fala não havia restrições a bater ou apanhar de mulheres; entre
elas, há paridade, no entanto, os códigos de honra são feridos se um homem (de fora da família)
bater numa mulher na rua, sendo o caso de criar uma dívida com um outro homem da rede de
parentesco que a represente.
A questão do “bater” ou “apanhar” é representativa da moral familiar e desvenda
códigos da organização das famílias, não somente em relação ao homem, mas também em relação
aos filhos e à constituição do masculino na família. Quem tem o direito de bater tem autoridade e
quem permite a ação, mesmo sendo fisicamente mais hábil, ao apanhar, denota o respeito.
Valéria contou que não bate sempre nos filhos:
139
A expressão estratégia de sobrevivência foi mais difundida na segunda metade da década de
1970 por cientistas sociais, em especial antropólogos, nos estudos com famílias pobres, analisando
o modo como agem essas famílias quanto à distribuição de recursos.
441
Eu custo a pegar, mas quando eu pego, eu num escolho onde bater... eles temem mais é o
pai [Pai Vito]e o Virgílio [irmão mais velho que bati em todos os sobrinhos e nas irmãs
também]. Tudim teme ele [Virgílio], até mesmo nós, mesmo tendo idade... tudo apanha do
nego... no dia que eu briguei com a Velma ele veio com um pedaço de pau e disse pros
menino que batia na mãe e nos filhos (
Valéria, Vitson, Vitdson, Velma). Mas... uma vez..
a mãe [Dona Vani] tava brigando, quebrando um prato na minha cabeça aí o nego [filho
mais novo, 5 anos] foi nas pernas dela e mordeu, eu disse que quando o pai e mãe tiver
batendo, não é pra se meter, é só pra ajudar eu chorar.
O filho de Valéria se voltou contra a avó porque recebeu a orientação da mãe para entrar
em qualquer briga e ajudá-la sempre que vir sua mãe envolvida em conflitos na rua ou em casa, mas
ela não havia ainda orientado o filho para não intervir se a questão fosse com seus pais, pois,
segundo ela, eles têm o direito de lhe bater.
Na fala de Valéria, também submissão à autoridade dos pais, que têm o direito de lhe
bater, mesmo já estando com mais de 30 anos de idade e dois filhos. Quando ela estiver apanhando
dos pais, a quem deve respeito, ela deve baixar a cabeça e chorar, como sinal de respeito. Observo
que entre os pobres a ação física é muito utilizada no cotidiano e a partir dela se desenrolam os
códigos de respeito e autoridade. Viviane contou que o enteado Vandergean a considerava como
mãe e exemplificou que o rapaz só aceitava “apanhar dela”, pois ela era sua mãe. A frase decodifica
a questão do respeito e da autoridade a partir efetivação da dominação dos pais pela aceitação dos
filhos em se deixar bater, representando entre os pobres, especialmente adultos e homens fortes, o
sinônimo do respeito na família.
Sobre as crianças brigarem na rua, Valéria conta que
O seu filho mais velho, Vidson [7 anos] apanha dos outros... ele não é igual a mim, ele
apanha, eu tenho ódio porque ele apanha, já disse... quando tiver na rua, pega uma pedra,
um pau... mas ao menos não apanha, mas o pequeno, o nego, é mais esperto e pega uma
pedra, ou qualquer coisa e joga, não apanha. Apontou o menino da Velma “esse menino da
Velma... ainda não vi um menino vencer dele” e contou que o Victor [filho da Vilani, 10
anos] estava apanhando na rua, e ele chorava porque ia apanhar da mãe, porque se apanha
na rua, ele apanha mais é em casa.
Esses conflitos explicitam códigos morais entre as famílias pobres, em que a força é
muito significativa na dinâmica da casa e na rua, ensejando situações simbólicas da demarcação de
espaços. Valéria é deficiente física e tem dificuldades para andar. Rotineiramente, sai de casa no
fim da tarde para a mendicância, mas nas disputas do espaço da rua é forte e não perde embates e
nem “leva desaforos pra casa”. Suas irmãs se dizem impressionadas com a performance da irmã em
442
brigas de rua; daí a insatisfação de Valéria com pouca vocação do seu filho mais querido
140
em
brigas.
A tomada de partido por um irmão envolvido em uma briga com um não-parente denota
a pertença familiar numa rede de parentesco, podendo ser interpretada como sinônimo de união.
Nesse sentido, Vilani questionou a ligação entre os pares e relatou que família não é só quando tá
brigando que se mete numa briga não. A frase denota que a participação num conflito em defesa de
um parente é uma das bases da relação entre as irmãs, podendo inclusive faltar o amparo na
provisão de alimentos, mas não sendo aceitável a falta de ajuda nos embates envolvendo terceiros.
As situações conflituosas da família de Pai Vito explicitam a organização da família em
rede, tanto no sentido de extensão do parentesco na casa-sede e nas casas dos parentes vizinhos
como no sentido do amparo. Mesmo quando se trata de casos de agressões físicas, como pai que
bate nas filhas na rua, há, subjacente ao fato, a representação da proteção familiar.
7.4 A GERÊNCIA ECONÔMICA DO HOMEM NA FAMÍLIA
Além da representatividade masculina e da autoridade do homem, a pesquisa empírica
denotou uma relação dos pais com as crianças que revela um pouco da condição do homem na
família partir das crianças e do valor monetário: R$ 10 centavos.
Ao ouvir falar em centavos, ou mesmo R$ 10 centavos, que é a segunda menor unidade
monetária produzida pelo Banco Central em uso, perdendo apenas para a moeda de 5 centavos,
imaginamos um valor pouco representativo, quando na verdade, para as crianças dos bairros
populares, esse é um valor bem significativo e reporta ao homem, ao pai.
Na casa de Pai Vito, é comum a distribuição da moedinha entre os netos como forma de
“agradar” as crianças e simbolizar a figura do homem com o dinheiro. As filhas contam que ele
sempre trazia moedas ou bombons
141
aos filhos quando chegava do trabalho e, por esse motivo, sua
chegada sempre foi comemorada. Hoje Pai Vito repete o ato com os netos. Quando passava dias
fora de casa, viajando ou morando na casa da namorada, ele sempre retorna com mimos para as
crianças.
Sobre a relação dos homens com as crianças, na casa de Selene, observei que a situação
é semelhante. À tarde quando chega à porta o seu Silvino [ex-marido] que, mesmo vivendo
separado da mulher, visita diariamente a casa, sua chegada é comemorada entre as crianças. O
140
Valéria tem dois filhos, o mais velho Vidson, fruto de longo namoro com um rapaz branco, e o
mais novo, resultado de um programa fortuito com um rapaz negro. Ela afirma não gostar de negros
e tem visível predileção pelo filho mais velho.
141
Os bombons são balas e não bombons de chocolate.
443
senhor chegou e foi para a cozinha, pediu para Dona Selene fazer tapioca e trazer café para ele,
avisando que lhe pagaria (como costuma fazer). Ele foi recebido com festa pelos netos que também
o chamam de pai; as crianças lhe pediam dinheiro, doces e tapiocas.
A filha de Dona Selene explicou a alegria das crianças ao verem o avô: Ele dá dinheiro
a elas. Todos o chamam de pai, até a pequena Amanda já o chama de pai e sua chegada é
comemorada; por todos os cantos da casa se escuta o grito: pai, pai, pai... Sara contou que, quando
eram crianças, o pai chegava à casa com os bolsos cheios de moedas. Ela recorda de que eram
cruzeiros, e distribuía entre os filhos para comprarem bombons. Hoje ele distribui moedas de 10
centavos. Pode parecer pouco, mas 10 centavos possibilita às crianças comprarem três balas, ou
dois chicletes, ou dois pirulitos pequenos, ou um pirulito com chiclete... Enfim, para as crianças, dá
pra fazer uma “festa”.
Não só na casa de Dona Selene e Pai Vito, mas 10 centavos é uma referência para as
crianças na periferia, destacando-se o fato de que são geralmente os pais e avós que oferecem esse
dinheiro às crianças. Em muitos casos, o pai consome álcool em demasia, protagoniza cenas de
violência na família com a esposa, e com os filhos, são infiéis nos relacionamentos e, mesmo
presente ao domicílio familiar, não cumprem suas funções provedoras com a alimentação da
família, mas oferecem presentes em forma de bombons e são amados pelos pequenos. O valor de 10
centavos transcende a sua quantia, sendo tão significativo que é uma das primeiras coisas que as
crianças aprendem a falar. A pequena Amanda um ano e um mês sabe estender a mão e dizer “dez”
quando seu Silvino chega e a pequena Suênia, de um ano e quatro meses, filha da namorada do
Sólon (neto de Dona Selene) sabe dizer “dê dez” e atende rapidamente ao chamado da mãe, se essa,
ao chamá-la, bater no bolso e ressoar o barulho das moedas.
Nas casas de Pai Vito e Selene, tanto Pai Vito como Silvino traíam as esposas e se
ausentavam de casa para diversões em festas. Nos dois casos também preferiam nos momentos de
lazer a vida na rua e nos bares ao convívio no lar e, como “compensação’ das suas ausências,
traziam bombons para as crianças. Interpreto a ação como uma compensação, mas não atribuo à
ação um planejamento objetivo, mas uma socialização introjetada e apreendida na tradição familiar
dos papéis de homem e mulher. Trata-se do habitus familiar do pai na camadas populares.
A mãe é cobrada por uma responsabilidade no cumprimento do seu papel, e organiza os
meios necessários ao fim proposto, no caso da dona de casa, de manter o padrão mínimo alimentar
da família. Enquanto o homem, especialmente, quando não mora com os filhos (nos casos de
separação conjugal), ao ver que a mulher toma para si o compromisso de manter os alimentos da
prole, o pai se sente livre para comprometer seus parcos recursos com interesses pessoais em
detrimento dos filhos que são recompensados com bombons. O homem adota então uma ética da
compensação. Menino se cria com um real de bombom no bolso. A frase do morador da periferia é
444
explicativa dessa prática social e da ética do homem de ser presente com o bombom em substituição
à ausência física e econômica na família.
Arranjos econômicos na rede familiar
A operacionalização do arranjo econômico na família de Pai Vito denota o conflito
entre as irmãs que se acusam mutuamente de falta de ajuda e solidariedade umas com as outras e
apresentam situações em que o arranjo econômico não funciona como laço de união, antes, produz
brigas na rua com enfrentamentos violentos entre as irmãs. Ao mesmo tempo, no entanto, em que se
acirram os conflitos entre as casas das irmãs, elas estão mais próximas, de modo que a situação não
enseja um rompimento das relações, pois, o conflito é, antes de tudo, possibilidade de interação,
estar junto.
A situação financeira da família é de extrema pobreza. As três filhas que vivem na casa
de Pai Vito – Valéria, Vilani e Velma – não têm rendimentos e sobrevivem de programas de
transferência de renda
142
, enquanto que, Viviane, na casa defronte, tem rendimento fixo. Na sua
residência, ela e o cônjuge trabalham numa pequena fábrica de calçados e somam duas fontes de
receitas. A família de Viviane mora numa casa alugada há 13 anos e o casal consegue prover a
unidade doméstica, enquanto as irmãs recorrem à mendicância.
O almoço na casa de Pai Vito no dia 17/05/2007. No dia anterior, as irmãs Viviane,
Vilani e Velma receberam a doação de um alimento baião-de-dois e, após comerem, guardaram o
restante no refrigerador da vizinha, pois não tinham geladeira. Valéria contou que colocaria o
alimento “no fogo” para dar para aos meninos como refeição de almoço quando chegassem do
colégio. A situação alimentar, neste período, somente não estava mais acentuada, porque naqueles
dias a Vani mandou entregar uma feira para as filhas: três quilos de cada coisa; aí estão tendo o que
botar nas panelas. A situação de extrema pobreza e privação de alimentos em comparação com as
melhores condições alimentares da mana tornavam Viviane o alvo das falas das irmãs.
Valéria, ressentida, contou que a irmã Viviane é a “rica” e por isso humilha as irmãs que
vivem de esmolas. Com a saída de Pai Vito para morar com a companheira no bairro Araturi, as
filhas perderam o apoio financeiro do pai na manutenção do padrão alimentar. Valéria recebe o
beneficio básico mais os dois variáveis do Bolsa Família e a Vilani recebia dois benefícios, o PBF e
o Programa Criança Fora da Rua, Dentro da Escola; e Velma também recebe PBF.
142
À época em que conheci a família em 2006, as filhas de Pai Vito recebiam benefícios do “Bolsa
Família” proveniente do Governo Federal e uma delas recebia o benefício “Criança fora da Rua,
Dentro da Escola”, do Governo do Estado do Ceará.
445
Enquanto Valéria e Vilani saem em busca de proventos advindos de mendicância, a
irmã Velma se aproxima da família de Viviane para receber ajuda financeira. Vilani disse: é besta e
se humilha, ganha uns trocados, dois reais ou três, lava roupa, de besta. As irmãs relataram o fato
de que havia um pão que estava em cima da mesa de Viviane e o filho de Velma foi pegar para
comer, mas foi impedido: um dos primos jogou água no pão para que ele não comesse. Valéria e
Vilani contaram que os sobrinhos [filhos de Viviane e Valon] são “umas cobras” e fazem isso
obedecendo ao pai que manda eles não deixarem os primos e tias se alimentarem em sua casa.
Vilani relatou que sua expectativa de família é apoio e união. Sua definição evidencia os
conflitos e a falta de solidariedade da irmã Viviane e do irmão Virgílio. A situação que eu vivo, de
os meus filhos meus passam fome de manhã, do que eu não posso dar, se fosse no meu lugar, se eu
tivesse, eu taria ali ajudando [...] família pra mim significa é dar na hora da alegria, na tristeza, no
sufoco.
A privação de alimentos das três irmãs era a situação mais citada nos relatos e
enfatizada ante a “falta de sensibilidade” da irmã Viviane ao ver suas irmãs e sobrinhos passando
fome. O apelo moral à unidade da família existe, mas a não-realização das ações esperadas acirra os
conflitos entre as irmãs e, contraditoriamente, intensificam os laços, pois o fluxo entre as casas das
irmãs não foi interrompido; antes, é aumentado para permitir a atenção mútua, a rede de proteção.
O desentendimento com o cunhado [marido de Viviane] é o estopim para os problemas
no arranjo econômico da família. As irmãs tenderiam a se unir, mas a presença do cunhado, que não
se entende com as cunhadas, impede as irmãs chegarem a um consenso, restando o acirramento das
relações que envolvem, além das irmãs e do cunhado, os primos, que também passam a brigar entre
si.
Valéria relatou que há algum tempo era ela quem lavava a roupa da casa de Viviane e
ganhava R$ 10,00 por semana, mas o cunhado proibiu, pois não queria ajudar às cunhadas. Muito
aborrecida, Valéria comentou: Agora eles estão cumendo tudo sozinho. A filha Vanessa é quem está
lavando a roupa e ganhando os R$ 10,00 semanais. Na casa de Viviane, há pagamentos a parentes e
sem eufemismos, como na casa de Selene, nessa rede, a situação de pobreza não tem a mediação da
figura da mãe de todos presente, como na casa de Selene, nem os valores rurais. Assim, Vanessa,
que é filha biológica de Viviane e foi “adotada” por seus avós, recebe pagamento em dinheiro para
“trabalhar”, lavar roupa na casa da mãe.
A questão do trabalho é um ponto difícil de analisar e somente com o acompanhamento
das situações por longos períodos se descobrem as motivações das ações. Conversava bastante com
Vilani e por vezes lhe questionei sobre trabalho, pois ela é uma mulher jovem de vinte e poucos
446
anos. Desde o início das nossas comunicações, ela dizia que não queria trabalhar para cuidar da
filha Victória de dois anos, ao que não entendia, pois a menina poderia ficar em creches ou com as
tias. Associei a situação a desinteresse da jovem pelo trabalho, mas, depois de alguns meses sem
visitar a família, descobri que Vilani passou três meses trabalhando no Centro Comunitário Luiza
Távora como ajudante de cozinha, auxiliando no preparo dos alimentos e ganhava por dia R$ 5,00
reais, R$ 3,00 e uns alimentos para levar para casa quando havia excedente. Observei que ela estava
bem contente com as atividades laborais, mas perderia a vaga de trabalho, pois chegou a pessoa
selecionada pelo Sine-IDT pra trabalhar no local.
No Centro, Vilani trabalhava somente na parte da tarde e podia cuidar da filha. Ela
relatou que deixava a filha Talita de dois anos dormindo aos cuidados do irmão e um suco de goiaba
na geladeira para quando a menina acordasse. Sugeri que voltasse a estudar, pois é inteligente e se
expressa bem, mas ela explicou que só tem escola para adulto à noite e não podia deixar a menina
só. Entendi que ela também não podia trabalhar para não deixar a menina de dois anos sozinha com
muitos meninos [primos].
A jovem Vilani não trabalhava para evitar que os sobrinhos abordassem sua pequena
filha de dois anos para fins sexuais, situação corriqueira nas famílias e nas escolas de periferia. Não
raro, coletei relatos de professoras primárias de que é comum “encontrar” crianças de menos de sete
anos nos banheiros das escolas “repetindo” as atitudes sexuais dos pais. O que havia era cuidados
pela parte da mãe com a filha pequena num contexto de muitos sobrinhos do sexo masculino. Sobre
a questão social do trabalho, cabe exprimir que faltam creches de qualidade que deem seguranças às
mães para desempenhar suas atividades laborais.
Sobre os conflitos econômicos, a família de Viviane acusa as irmãs de procurarem sua
casa em busca das “esmolas” que ela oferece e, ela, juntamente com o marido e os filhos, acusam
Valéria, Vilani e Velma de morta- fome. Vilani contou que a irmã é tão ruim que não sossegou
enquanto ela não foi despejada. O locador das casas das irmãs era o mesmo e o aluguel de Vilani
de R$ 80,00 estava há cinco meses atrasado. A proprietária, quando veio despejá-la por falta de
pagamento, disse que foi sua irmã Viviane que todos os meses se dirigia a sua casa para falar dela e
lembrar que os vencimentos dos aluguéis estavam em atraso.
Vilani disse: Não pagava os R$ 80,00, mas pagava R$40,00, R$ 60,00, as vezes R$
20,00 enfim o que eu tinha. A irmã despejada atribui sua expulsão da habitação pelo fato de não
poder pagar o aluguel e pela insistência de sua irmã em lembrar à dívida a proprietária. Pelo relato
de Vilani, sua humilhação ao ser retirada do imóvel foi duplamente dolorosa: de um lado, pela
saída, da casa e de outro pela “alegria” da família de Viviane, que acompanhou o procedimento de
447
saída acentuando mais a humilhação da irmã na rua. Percebi que ela sofreu mais com o escárnio de
Viviane e sua família do que com o despejo.
A condição de pobreza das filhas de Pai Vito era latente e, entre outras despesas, as
irmãs não tinham como honrar os compromissos, como abastecimento de água encanada e energia
elétrica. Sendo assim, elas faziam “gatos” ligações clandestinas (MARTINS, 2008) para benefícios
de fornecimento da CAGECE e da COELCE. Elas contaram as aventuras para burlar a COELCE
em que mudam o fio azul pelo vermelho e o medidor pára; elas sabem fazer uma manobra para o
medidor parar. A ação era justificada pela irmãs que explicaram que a geladeira era velha e
consumia muita energia. Então tinham que parar o medidor, mas orientavam que tinham que ser
“espertas” e deixar o medidor rodar uns 10 dias e anunciam o risco, se forem descobertas e
“lacradas” teriam que pagar uma multa de R$ 5.000,00.
Vilani relatou que no dia em que a COELCE chegou, a irmã Valéria ficou desesperada,
deixou a porta fechada, acendeu todas as luzes para o medidor rodar e rezou para não morrer de um
choque e acertar a troca de fios. Deu certo. Então, ela chamou o namorado da sobrinha e apareceu
para os técnicos dizendo que estava na cama com o rapaz. Por isso demorou a abrir, e, para chocá-
los e ser convincente, dava detalhes da relação sexual. Mesmo assim, os funcionários trocaram o
medidor. Há algum tempo, quando morava com o marido e os filhos na casa alugada, a COELCE
também desconfiou do consumo de energia da casa da Vilani e trocou o medidor por um lacrado,
transparente e externo, então ela vendeu a geladeira.
Sobre o fornecimento de água, Vilani relatou que a CAGECE vem desligar, quebrar os
canos, cortar tudo e no mesmo dia a Valéria faz uma nova ligação; às vezes só esperam os rapazes
da empresa virar a esquina e religam logo. Apesar das narrativas serem lúdicas e se aproximarem de
contos de aventuras, percebi que elas gostariam de ter água e energia regularizadas, mas não
conseguem pagar pelos consumos e os gatos (ligações clandestinas) são a alternativa para ter
energia e a água nas casas.
7.5 FAMÍLIA E REDE DE PROTEÇÃO EM SITUAÇÃO DE EXTREMA INDIGÊNCIA
Mesmo com os conflitos entre as famílias das filhas de Pai Vito, as irmãs trocam
dádivas entre as casas, denotando a organização da rede de proteção. A sobrinha (filha de Viviane)
veio pedir uma panela “escorredor de macarrão”, ao que Valéria permitiu que a menina pegasse,
mas disse que iria precisar para escorrer o arroz, avisando que ela poderia levar se trouxesse rápido.
A menina foi buscar o escorredor e saiu com a panela e um sutil sorriso. Valéria comentou que a
448
sobrinha veio a mando da irmã Viviane somente para saber o que iriam comer e se tinha almoço ou
não. E emendou, em tom sarcástico, que elas (Valéria e Vilani) só tinham cacarecos e esmolas
(referindo-se aos comentários da família de Viviane), mas que precisava das esmolas delas e vinha
até pedir uma panela, e, entre risadas, as irmãs concluíram: as esmolas delas até que servem.
Nesse período, as irmãs estavam em constante confronto e, mesmo sem diálogo, elas se
monitoravam. À época Valéria, Vilani e Velma estavam sem alimentos para suas famílias e
Viviane, mesmo sem colaborar, monitorava as condições na casa das irmãs, podendo ser numa
atitude de proteção para acompanhar a situação e, se preciso, intervir com ajuda efetiva. Se o
desentendimento fosse peremptório, o trânsito entre as casas não existiria nem as famílias não se
comunicariam.
Desse modo, se há trocas de utensílios é porque há relação, o relacionamento só
possível entre pares. Assim, as irmãs são pares que se apoiam e trocam dádivas, ora mais intensas
ora mais escassas, mas que não perdem a condição de ser dádivas. Observei que se as irmãs não
estiverem num dia de confronto aberto em que saem a janela para trocar insultos aos gritos para a
casa da outra, afirmam ser unidas e dizem se ajudar mutuamente.
O marido de Viviane, que é chamado de macaco por Valéria, e este, só chama a
cunhada pela alcunha de carniça, comentou que a família mora na casa alugada da Cacimba dos
Pombos há mais de 15 anos e disse: Se eu pudesse eu morava lá... num sei onde, longe dessa
família... aí é tudo família, a gente sai pra trabalhar, os menino tudo de menor, aí é tudo família.
Valon explicitou que, apesar dos problemas e das constantes brigas, a proximidade com os parentes
da esposa funciona como rede de proteção, ao permitir o acompanhamento e os cuidados com os
filhos menores. Ao fim da sua fala, pondera que se morassem longe teriam problemas de com quem
deixar as crianças. O cônjuge de Viviane disse que na rua há Valéria que olha os filhos do casal
quando os dois saem para trabalhar ou quando os pequenos adoecem.
Observo que, mesmo diante dos mais intensos e até “sangrentos” conflitos entre as
filhas de Pai Vito, a rede de proteção não deixa de ser importante para a sobrevivência das famílias,
haja vista a situação de pobreza e precariedade das condições de vida. As irmãs entram em
confronto, mas não deixam de se comunicar nem de se proteger, principalmente se alguém de fora
da família prejudicar qualquer um deles.
Mesmo se protegendo, as regras do jogo impõem sofrimento e humilhações
acompanhadas e motivo de chacotas e piadinhas que machucam a alma. Em inglês, há uma
expressão bulling para essas agressões sutis e ferozes que não são físicas, mas magoam. As marcas
449
de família não se apagam, são feridas inativas, que doem, maltratam, mas não impedem a
convivência nem a solidariedade familiar que mantém a rede firme na proteção dos consanguíneos.
A formação da rede é um aprendizado que vai sendo introjetado desde a infância e tem
muito do exercício que se realiza na vivência compartilhada de privações em que os irmãos
aprendem a “repartir” e se sentem ligados uns aos outros pela solidariedade apreendida nas fases da
vida. Trata-se se um habitus familiar que, internalizado na vivência com os irmãos na família de
origem, fortifica a rede de proteção.
Sobre a socialização das crianças e a alimentação, observei da sala da casa de Valéria os
seus dois filhos na cozinha sentados ao chão e comendo salgadinhos de milho (“xilitos”). Os dois
estavam um defronte para o outro e entre eles havia os salgadinhos sobre um prato. Eles retiravam
os salgadinhos um por vez e comiam. Enquanto isso, se olhavam para que as regras de comer um de
cada vez e só pegar um outro depois de comer o anterior fossem obedecidas. Então, para garantir o
cumprimento das regras, eles comiam e se pastoravam um ao outro. Essa distribuição é uma forma
da mãe repartir o alimento disputado entre os filhos. Eles comiam rápido para poder ganhar mais,
mas, numa velocidade que sugerisse uma calma, são disputas de crianças, que denotam a divisão de
alimentos e o respeito aos outros, gerando solidariedade, pois isso ensina a partilhar com o irmão e
sugere que ambos têm direitos iguais. Se cada um tivesse o seu saco de salgadinhos, eles não
precisariam de regras para dividir entre si.
A precariedade dos alimentos conduzia os diálogos a apontar os irmãos e acentuar as
críticas por não serem colaborativos com as privações que as irmãs estavam passando na casa do
pai. Desse modo, o assunto foi parar na vida do único irmão homem e sua fé vivenciada na igreja
evangélica. O irmão de Valéria, Viviane, Vilani e Velma é religioso. Valéria e Vilani contaram: ele
também não serve pra nada. As irmãs contaram que passaram mais de um mês sem nem ter o que
botar nas panelas e ele não as ajudou. Disserem que o irmão tem boas condições, tem as coisas,
mas somente para ele, para a mulher e para o filho. Quando precisam dele e pedem R$ 5,00
emprestado à cunhada, tem que pagar logo. Sobre o irmão e sua fé, elas ainda contaram que ele era
farreador e bebia muito, mas agora só vive do trabalho pra casa e pra igreja, ele sai cedo de casa pra
passar na igreja antes de ir pro trabalho. Valéria contou que é simpatizante da Umbanda. Então, ela
e o irmão não se falam ele nem olha na minha cara, não é frequentadora assídua, mas gosta da
Umbanda. Nessa perspectiva de relações com o irmão, Vilani disse que se comunica melhor com o
ele e às vezes vai para o culto evangélico. A narrativa das irmãs aponta para uma crítica da
religiosidade do irmão que não as ajudou em situação de privação de alimentos, questionando,
assim, a bondade pregada pelo argumento da fé do irmão.
450
Contraditoriamente ao que poderia esperar, no sentido das expectativas que permeiam o
imaginário da família, a organização da rede de proteção familial de Pai Vito tem suas bases
fincadas no conflito. Desse modo, o desafio emerge na compreensão da positividade do conflito
como gerador de sociabilidade. A dinâmica da vida das irmãs as leva a interagir por meio de brigas
e disputas que, mesmo sendo embates, não perdem a condição de ser possibilidade de integração.
Conflitos na família de Pai Vito: conjugalidades e crianças
Os conflitos na casa de Pai Vito têm motivações econômicas e também morais. Ao
apresentar os conflitos, observam-se os valores de famílias pobres e o emaranhado das suas relações
em questões que envolvem da fome à fidelidade, passando pela percepção de ser esperto e obter
vantagens num contexto de pobreza que exige a criação cotidiana de estratégias de sobrevivência.
Observo nos bairros populares que os nomes das crianças são difíceis e, não raro, com
consoantes dobradas, além do uso de letras como Y, K e W, até então, letras fora no nosso alfabeto.
Sobre o nome de filhos, Valéria ficou decepcionada no meu retorno ao campo de pesquisa grávida,
quando soube que o filho que eu carregava na barriga se chamaria Daniel, pois, segundo ela, o
nome dos filhos deve ser bem diferente: Se não tivesse ligado e tivesse outro filho homem, ele se
chamaria “Richard” e explicou: porque a gente já é pobre, tem que botar nome de rico, eu sou
pobre, mas tenho raiva de ser pobre.
Valéria tem raiva de ser pobre. Assim, foge do estigma da pobreza associada à pele
morena da mãe, buscando se relacionar com um rapaz branco, colocar “nomes de ricos” nos filhos e
orienta os filhos a buscar meios de ganhar dinheiro e ser “esperto”, mesmo que não seja de forma
lícita, inclusive no seu código moral, há valorização do roubo; os ladrões que têm êxito são
“espertos”.
Sobre as relações conjugais das filhas e a paternidade dos netos de Pai Vito, a dinâmica
da casa é bem diferente das famílias sem a presença do pai, pois não há coabitação mesmo com a
longa duração da relação entre os casais. A moral familiar reside na figura do Pai, chefe da família.
Desse modo, as relações de conjugalidade têm um funcionamento diferente das relações observadas
na unidade doméstica multinucleada de Dona Selene, chefiada por uma mulher.
Pai Vito recebe as filhas que não têm como manter uma união conjugal e ficam sem ter
onde viver com os filhos, mas somente as filhas e os netos, de modo que os cônjuges devem
procurar outro lugar, pois em sua casa só há lugar para seus consanguíneos. As filhas então, para
“namorar”, mesmo que seja com os pais biológicos dos filhos, precisam dar justificativas ao pai
para sair à noite e não raro, saem escondidas, quando o pai se recolhe para dormir. Mesmo após a
saída de Pai Vito, os enlaces amorosos se davam fora da casa da família.
451
A filha Valéria de Pai Vito escondeu a paternidade de seu filho mais novo durante o
início da gravidez, inclusive anunciando ao namorado de longa data que ele era pai do seu filho
mais velho ser dele o filho que esperava, mas, ao ser traída, revelou que o pai do bebê que estava
esperando era outro. Ela escondeu o fato, para não cortar laços com o namorado nem criar laços
com o pai da criança, que é negro, enquanto ela é racista.
Inicialmente a gravidez foi anunciada à família como sendo fruto da relação de anos
com o namorado “branco”, até o namoro culminar numa grande briga em virtude de uma traição
acentuada. Ela contou que “liberou” o namorado para se relacionar com outras mulheres. Disse que
ele arranjasse uma mulher – tava muito inchada e não podia [sexo]; no entanto, ela não esperava
que ele constituísse uma nova conjugalidade, se juntasse, mas ele botou a mulher dentro de casa.
Então, romperam e com satisfação Valéria anunciou que ele não era o pai do filho que estava
esperando. Depois de algum tempo, ela retomou a relação com o namorado, o qual perdura até hoje.
Sobre seu “namorado”, ela contou que não tem companheiro, só um fica de oito anos e
não vivem juntos pois nenhum dos dois tem condições, ela é deficiente física vive de rendimentos
do Bolsa Família com os dois filhos na casa do pai e ele é ex-presidiário e não consegue emprego.
Durante o período de pesquisas, descobri que seu crime foi roubo, enquanto trabalhava como
atendente de uma farmácia, mas Valéria acha que ele era bem “esperto”.
Somente pelo quinto mês de gravidez, ela resolveu abrir o jogo e contar a verdade sobre
a paternidade do filho que esperava. O pai do menino mora próximo e segundo ela ele dá as coisas
ao menino, dá RS 20,00 por semana. A história da paternidade só foi contada após várias visitas a
casa, quando ela relatou: Foi a maior confusão quando disse que o pai era o rapaz o ‘Nego’. O
jovem negou e a mãe dele também, então ela ameaçou fazer um exame de DNA Foi confusão,
porque eu ia fazer o DNA, ele e a mãe dele com medo. Na narrativa ela enfatizou várias vezes: Foi
a maior confusão no meio da rua, deu até delegacia, o menino tinha uns cinco meses. A essa época,
ela conta que o rapaz e a mãe dele estavam com medo de serem presos e responderem processo, ao
que ela se adiantou e explicou que a questão era passível de prisão por crime de calunia e
difamação.
Quiseram negar, mas o menino é nego parece com o pai. O menino nasceu “nego” e,
depois de algum tempo, nem a família do rapaz passou mais a duvidar da paternidade. Valéria
contou que a mãe dele pediu para não fazer o exame. Sobre o fato de levar o caso à delegacia, Pai
Vito e Valéria concordaram em tomar a atitude, pois “tinham direito”, estavam amparados por lei.
Eu num fiquei com pai do meu menino menor porque ele era preto, eu num gosto de
gente preta [...] a minha mãe é preta. A gravidez não foi planejada nem Valéria estava enamorada
452
do rapaz, pois não se interessa por homens negros “só gosta de brancos”, mesmo sendo sua mãe
negra. Ela contou que não tinha como comprar alimentos para o seu filho mais velho Vitson, que é
branco e filho do seu amor de anos de relacionamento, no entanto, estava sem dinheiro e aceitou
fazer um “programa” por R$ 30,00 com o rapaz negro e daí resultou na gravidez do seu filho
Vidtson, que ela chama de forma dúbia e carinhosa de “nego” ou “neguim”. Mesmo sendo da “cor
indesejada”, ela disse que o menino é mais “esperto” do que o outro e mais parecido com ela em
não apanhar na rua nem levar “desaforos” pra casa.
Após a narrativa da história do filho, ela olhou para o menino em tom de altivez e disse
para ele ir buscar o dinheiro da semana. Quando o menino chegou, a mãe o abordou Aí o quê que
aquela [avó do menino] sem vergonha disse? Ao que o menino respondeu: Tem não. A partir da
resposta, Valéria começou a falar do pai do menino, repetindo que iria Dar parte dele, ao que o
menino murmurou em voz baixa o nome do pai do irmão que não o provê em defesa de seu pai. A
mãe Valéria foi só sorrisos de satisfação à resposta do filho menor. Ela fez a provocação de que o
denunciaria à polícia para insultar a reação do filho em defesa do pai. Noto que “dar parte” é uma
expressão comum e simboliza a presença da força policial no cotidiano como mecanismo de
resolução de problemas, caso haja fundamento jurídico para a situação.
Sobre os filhos, Valéria contou: Amo tanto o Vidson que só foi por causa dele que o
mais novo nasceu, pois estava passando “precisão” e não tinha o que dar para o meu filho
querido então... foi uma vez só, tinta real, mas ficou pra vida toda o menino. Valéria disse que hoje
já gosta mais do menino, mas que o mais velho é tudo pra ela, é o que ela sempre quis e desejou,
inclusive sua gravidez do Vidson foi planejada e desejada e o pai do menino é o homem dela, mas
no parto do Vitson ela sofreu e se arrependeu da tentativa de aborto.
A questão do racismo na família é muito preeminente e o fator motivador de muitas
brigas entre as irmãs. O racismo, juntamente com o moralismo na conjugalidade, são os dois fatores
que mais impulsionam as brigas entre as irmãs.
As brigas na rua eram recorrentes. Acredito, inclusive, que a vizinha apontou a família
como “interessante” para meus estudos, em razão dos conflitos entre as irmãs que expunham os
problemas familiares ao conhecimentos de todos no lugar. As irmãs se uniam em bloco. De um
lado, Viviane, casada com Valon, negro, e mãe de seis filhos. Ela tem o apoio discreto de Velma,
que passa boa parte do dia na sua casa e a ajuda nas tarefas domésticas quando a irmã está
trabalhando. Do outro, as irmãs Valéria e Vilani, que moram na casa de Pai Vito com a irmã Velma
e os filhos. Cada uma tem dois filhos e, no caso das três irmãs, os filhos são de pais diferentes; as
irmãs não têm renda e sobrevivem de ajuda de vizinhos e programas de transferência de renda.
453
Viviane, que tem uma situação um pouco mais confortável, acusa as irmãs por pedirem
dinheiro na rua e sugere que não são “direitas”, pois não têm companheiro, ao que Valéria responde
que não queria um marido negro como o cônjuge da irmã, a quem ela comumente chama de
“macaco”. As acusações são revidadas por Viviane, que se considera superior por ser “casada” e ter
uma casa para morar com os filhos. Nesse nível da discussão, as irmãs vão às vias de fato e se
agridem com violência na rua e recebem a ajuda dos filhos. Certa vez, cheguei à casa no fim da
manhã e Valéria comentou que devia ter vindo mais cedo, pois rolou teleket: ela e a irmã brigaram
na rua e foram separadas pelo Pai Vito. Ele pegou uma cordinha e bateu em todo mundo, o pai
afastou as irmãs batendo nas duas e nos filhos. Logo na minha chegada, Pai Vito estava sentado e
disse estar passando mal enquanto a filha Valéria trazia um comprimido e água para o pai. Ele
disse: Elas ainda vão me matar.
Pai Vito, certa vez, também confirmou ser racista e não gostar de negros. Cabe ressaltar
que ele tem pele clara, mas a esposa Vani é morena e os filhos são alguns alvos e outros morenos.
Apesar de não gostar de negros, ele disse adorar as morenas. As questões de racismo emergiam em
razão das disputas com o marido de Viviane, que não é bem aceito por Pai Vito e as filhas Valéria e
Vilani.
Apesar de se considerar diferente das irmãs por manter uma união estável com Valon,
Viviane teve uma filha antes da união com o marido e, segundo enfatizaram as irmãs Valéria e
Vilani, seu casamento tem acentuados problemas com violências conjugais.
Depois de um período sem fazer pesquisas de campo com a rede de Pai Vito, rertornei à
casa da família em meados de 2007, no ano seguinte ao início das atividades de campo na Cacimba
dos Pombos. À época estava com quase cinco meses de gravidez e esse foi o assunto de algumas
visitas. As irmãs, especialmente Valéria, narraram fatos de gravidez e aborto e contaram que
Viviane teve dez gestações, no entanto, um dos abortos ganhou maior destaque. Vilani apontou para
minha barriga de 18 semanas e disse:
Ela tava com a barriga desse tamanho, a Viviane defende o marido, que é ordinário, sem-
vergonha e bate nela, quebra a cara dela e só falta matar ela de peia [...] Ele deu uma surra
tão grande nela, e imprensou a barriga dela na quina da pia que o menino saiu pelas pernas
dela, ficou dependurado, só um bracinho pro lado de fora, aí pegamos uma tanga de rede e
colocamos entre as pernas dela e levamos pro hospital. Ela abortou, mas foi ele que matou
a criança, ela contou no hospital que foi um acidente e que ela caiu batendo na quina da pia.
As irmãs ficaram indignadas porque Viviane não denunciou ao marido e disseram que
ele vai prestar contas a Deus. Além desse relato da irmã, elas narraram casos de gravidez em que
454
tentaram abortar os fetos, tomando chás abortivos e remédios. Valéria contou que consumiu tanto
“citotec”, medicamento abortivo, que teve problemas no parto e seu útero ficou bem fininho
resultando que não pode mais ter filhos. O parto do filho mais novo e a gravidez foram
detalhadamente narrados e acrescidos da declaração explicita de sua preferência pelo filho mais
velho, que é branco e filho biológico do namorado de anos de relacionamento.
Os filhos, em geral, não são planejados,. As mães engravidam e têm filhos que não são
frutos de uma decisão do casal. Apesar da oferta de contraceptivos nos postos de saúde, não há a
conscientização sobre a importância da prevenção de gravidez e, em alguns casos, falta um
entendimento da posologia do medicamento. Em meados de 2003, conversei com uma jovem
grávida que me explicou que “aconteceu” porque faltou “camisinha” no posto de saúde e em 2006
orientei Vilani com a bula de um anticoncepcional, sem saber ler e confusa, sem conseguir lembrar-
se da orientação de como o médico do posto a ensinou a usar.
Observei que os abortos são recorrências nas falas das mulheres sobre os filhos e os
nascimentos, não havendo satisfação em abortar, mas a narrativa transcorre de forma semelhante
entre os filhos nascidos e abortados com a citação da motivação – se foi natural ou provocado.
O sentimento de infância (ÁRIES, 1981) não se realiza plenamente numa situação de
pobreza em que não há trabalho e os filhos representam mais fonte de despesas e ocupações dos
pais do que dádivas singulares, em especial para as mães, que comumente ficam com as crianças,
em detrimento dos pais, que são mais ausentes. Observo que há o sentimento de infância e cuidados
as crianças, mas as relações afáveis com os filhos são permeadas pelas privações do cotidiano e
tornam os “pequenos” reféns de circunstâncias não favoráveis ao afeto ideal.
A criança, no entanto, é sinônimo de alegrias. Valéria contou que Viviane estava
criando um menino de um ano e quatro meses. A criança é filho de um presidiário, o rapaz que está
preso é filho de Lucia, uma mulher que ajudou a criá-los. Os filhos de Vani compartilharam a
infância com os filhos de Lucia, na Cacimba dos Pombos, foram criados como irmãos. A mãe do
menino não quer a criança, o pai está preso e a avó doou o menino para Viviane. Valéria contou que
estão todos felizes com a chegada do pequeno Lulu.
Pela fala de Valéria, a criança é sinônimo de alegrias, mas não é o centro das relações
num contexto de pobreza. Com privações de alimentos e moradia, é mais difícil a destinação do
lugar de afeto. Observo que até os dois anos a criança é beneficiária de mais mimos pela rede
familiar, pois é pequena e precisa de mais cuidados. Após essa idade, o menino começa a se
envolver em disputas com os outros e a interferência das mães nas disputas entre os filhos ensejam
conflitos.
455
Mesmo enfatizando os conflitos, as irmãs tem na família uma fonte de apoio, sendo os
pais e a casa a representação da abrigo. A herança rural têm sua atuação reduzida na parentela de
Pai Vito, mas permanece na posição dos pais de receber os consanguíneos em coabitação e, mesmo
com os enfrentamentos diários de conflitos envolvendo brigas, separações, fome, drogas, violência
conjugal e desempregos, a família é o amparo diante das dificuldades.
Ao ser despejada, se separar do cônjuge e retornar com os filhos para casa da família,
Vilani relatou sua situação e enfatizou a presença da proteção familiar.
Minha separação é por causa de que ele tá desempregado, a mulher pediu a casa, não tinha
condições dele pagar nem eu, o pouco que eu tinha dentro de casa, eu tive que vender, pra
dar de cumer a eles [os filhos], que eu vim pra cá, pra dentro da casa da minha mãe, posso
dizer que não é minha, é da minha mãe porque eu já cheguei aqui já morava duas família,
quer dizer que mora, né? [...] eu num fiquei no meio da rua porque enfim, ainda tinha aqui a
minha mãe. (Vilani em 21/06/2007).
O relato enaltece a importância da família como rede de proteção e, em muitos casos,
um recurso dos pobres para sobrevivência econômica, cuidado das gerações que nascem,
acolhimento dos filhos nos momentos de separações conjugais, acolhimento dos netos na falta de
interesse dos pais, oferta de um “prato de comida” aos parentes vizinhos, enfim dádivas que
socorrem as pessoas das dolorosas vivências cotidianas de privações.
À guisa de conclusão, o capítulo retoma o desafio lançado por Fonseca (2000) de “ir
além”, na compreensão da família com suporte na consaguinidade e não da conjugalidade. A autora
cita que a Antropologia tem avançado nos estudos das camadas médias, mas, no caso dos pobres,
por vezes, ainda esbarra no muro da pobreza. Ela explica o que é “ir além”:
No caso, deslocar o foco analítico da conjugalidade para consangüinidade, permite-
nos ver que as dinâmicas familiares desse grupo não são tanto ‘desviantes’ quanto
‘alternativas’ e que a discussão sobre relações de gênero em grupos populares faz
pouco sentido sem sua contextualização em termos da rede extensa de parentes”.
(FONSECA, 2000, p. 88).
Desse modo, observando os arranjos econômicos e as redes de ,proteção da família de
Pai Vito, assim como os arranjos também apresentados nas unidades domésticas de Rita, Selene e
Telma noto que a vida em família não se condiciona aos limites econômicos, mas afetivos, com
motivações morais e econômicas de proteção. Assim, com base nas vivências ao longo do trabalho
de campo, a família coaduna uma dinâmica em que a economia doméstica não se mede em
números, mas se expressa em vivências.
456
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tese apresentou um estudo de caso, baseado num recorte de quatro redes de
parentesco, para analisar as relações na família e identificar seus códigos de conduta. Um estudo
que aprofunda os conhecimentos dos casos é rico em detalhes, das minúcias do cotidiano, e revela
situações que transcendem a família para percepção das condições de vida dos pobres urbanos.
Sobre o recorte sociológico em pequenas comunidades, Elias & Scotson (2000)
expressam que nesse tipo de análise há limitações, mas também vantagens epistemológicas. Os
autores assinalam que “O uso de pequena unidade como foco de investigação de problemas
igualmente encontráveis numa grande variedade de unidades sociais, maiores e diferenciadas,
possibilita a exploração desses problemas com uma minúcia considerável – microscopicamente por
assim dizer.” (2000, p. 20).
Desse modo, o recorte com as redes de parentesco denotou a organização da família em
rede como forma de manutenção do grupo social diante das faltas de condições de renda favoráveis,
e de outros apoios afetivos e morais que levam a família a se agrupar para somar forças e recursos
para sobreviver.
As famílias analisadas são extremamente pobres, com rendimentos médio de 25% do
salário mínimo por pessoa, sendo que, das quatro redes analisadas, três estão no nível de renda
considerado mais acentuado de um oitavo do salário. Desse modo, a renda per capita situa-se em
R$ 2,00 ao dia, sendo um valor que explicita a precariedade das condições de vida das redes
pesquisadas.
Essas pessoas se apoiam na família como meio de garantir a sobrevivência nos centros
urbanos, no entanto, o fazem amparados em valores advindos de uma sociabilidade herdada no
meio rural ou em pequenas cidades, por meio de seus chefes de família migrantes do interior do
Estado para a Capital. Desse modo, a análise confirma em muitos depoimentos concedidos pelos
narradores da tese a hipótese de que as famílias se estendem na cidade, mas têm uma herança rural
de apoio e proteção aos parentes. São redes extensas, em que as pessoas abdicam dos seus espaços
de individualidade em prol do coletivo, não por uma benevolência voluntariosa, mas pela
necessidade coletiva de sobrevivência.
A unidade doméstica extensa não pode ser vista somente do ponto de vista das faltas da
economia, da renda, das privações, da precariedade das condições alimentares, da falta de recursos
457
ao consumo de bens, pois, ante todas as ausências, há a presença da família que cria um arranjo
econômico e uma rede de proteção que garante a sobrievivência e a cidadania familiar aos que
vivem no abismo (MARTINS, 2008) das dolorosas experiências de privações nas metrópoles,
mesmo convivendo com a opulência do urbano. No caso das redes em análise, vivência com a
235
imagem do principal cartão postal da Cidade invertido, das luzes que iluminam a Beira-Mar
para obscuridade do cotidiano da beira da praia.
Ao longo da investigação, observei que as famílias não fazem planos para o
futuro, mais remoto, pois, no seu horizonte de possibilidades, está o presente, que determina
suas relações e impõe desafios a serem alcançados diariamente. Não há a crença de que a
escola vai melhorar suas vidas, principalmente porque a ascensão social pela escolarização é
lenta e as necessidades do cotidiano são urgentes, bem como os que atingem o ensino médio
são poucos e muitos não conseguem boas colocações no mercado de trabalho. No entanto há
dois pontos a favor da escola: o primeiro é o incentivo monetário do Programa Bolsa Família
e, no segundo, os pais se sentem cobrados a manter os filhos na escola, sabendo que é uma
oportunidade que se pode oferecer aos filhos, como um papel social cujo cumprimento está
nas expectativas esperadas por eles.
Os moradores pobres urbanos não têm grandes preocupações com linhas de
crédito e cadastros de pessoas físicas para consumo de bens econômicos. Observa-se isso
pelas dificuldades de nomear os filhos e lhes associar as características de idade e
escolaridade. Nesse sentido de viver com pouco tempo de escolaridade e sem muitas
perspectivas do mercado de trabalho, ante a falta de formação específica, as pessoas só
necessitam ter um lugar para sobrevivência. Se não há absorção de mão de obra no mundo do
trabalho e do consumo, a família é um lugar para que os indivíduos se tornem pessoas
reconhecidas.
Quem não tem família não tem nada na vida. A frase da moradora do Pirambu
que nunca aprendeu a ler nem escrever e teve dificuldades para encaminhar a vida escolar dos
filhos demarca o lugar das famílias de proteção para os pobres. Acrescenta ainda a narradora
que quem não tem uma rede de parentes não tem amparo. Segundo suas palavras: Quem tem
uma precisão, uma coisa, tá doente, tem que ter uma família pra ajudar. Na continuidade da
frase, a moradora explicita que a parentela é a seguridade dos pobres, sem ela não há amparo,
ou seja, na falta de políticas sociais para manutenção das condições mínimas de vida e
sobrevivência no urbano, a família é o recurso possível.
Observei, que entre os mais pobres, as relações são mais intensas e, não raro, as
soluções se dão com o uso da força física em que o mais forte prevalece. Há regras, porém, e
códigos de respeito e autoridade e muitas vezes se explicitam no mesmo instrumento de
comunicação da violência com o uso da força. Um jovem rapaz que vence as brigas na rua,
mas se deixa bater em casa pela mãe sem reagir denota sinal de respeito a sua autoridade. As
236
regras do jogo familiar são mais explicitas nas famílias pobres, mas, para identificá-las, é
preciso tempo e paciência. Um trabalho que só pode realizado com a observação participante,
pois a simples coleta do discurso resultaria na visão de um jardim de flores com seus espinhos
escondidos. Vejo nas minhas pesquisas empíricas esse jardim e ressalto a importância dos
espinhos para existência dele, sem obscurecer todo o colorido que o compõe.
As famílias se apresentam como unidas e integradas, mas coadunam conflitos e
disputas que ultrapassam os limites das violências verbais para a violência física, com marcas
no corpo que denotam o grau das intensidades das interações. No entanto, meu olhar
caminhou no sentido de buscar ver as profundidades das marcas e as possibilidades de
rompimentos advindos delas e, na busca pelas fissuras, encontrei emendas e a busca pelo
outro como apoio. Constatei situações diversas de violências entre casais, pais e filhos e
irmãos, e, malgrado as marcas físicas, permanece o reconhecimento do outro como parte de
um mesmo grupo de identidade, uma rede familiar.
O apoio ao outro é condição de vivência cotidiana e sobrevivência pessoal. Os
parentes unidos em rede são mais fortes para o enfrentamento das adversidades. Assim, rejeito
os olhares higienistas históricos que apontavam os pobres como sujos e promíscuos, ou as
visões que os tipificam como violentos e causadores de medo. Confesso que se encontrasse
com alguns deles (alcoolizados ou drogados) numa rua de pouco movimento, os temeria, mas
não dentro de suas casas, onde há identidade e sentimento de participação do espaço, nesse
espaço privado, mas que não os estigmatiza, antes o protegem, eles se apresentam gentis e
colaborativos.
Vivemos num mundo onde a lógica sistêmica das relações sociais se impõe por
duas instâncias fundamentais – o Estado e suas leis impessoais e o mercado, mercado de
trabalho de bens e serviços. Diante desses horizontes de possibilidades de vida em que o
dinheiro é fundamental à sobrevivência das pessoas, cabe perguntar como vivem os pobres
urbanos em situações precárias de renda familiar. Num mercado que escolhe as pessoas por
suas formações e competências adquiridas em formação escolar e profissional, como vivem os
que têm pouca ou nenhuma escolaridade e num Estado de leis que priorizam os mais
abastados pela consolidada aliança entre Estado e capital. Nessa perspectiva, como vivem os
pobres urbanos sem trabalho formal e informal, sem escola de qualidade, sem acesso a
moradia e sem perspectiva com crença num mundo melhor para os filhos por meio da
educação ou mecanismos outros de mobilidade social? A resposta não está nas expectativas,
mas na vivência cotidiana de solidariedade entre parentes.
237
Nesse âmbito de precariedade do mercado e do Estado, sem dinheiro, sem
recursos e sem escolaridade, os pobres urbanos têm na família o seu refúgio para o amparo
cotidiano, pois, ela se estende na parentela, formando uma rede em que se protege e é
protegido numa troca de dádivas que lhes permite viver, apesar das faltas, sendo assim, fonte
de apoio e recurso de vida, quando lhes faltam condições básicas para sobreviver.
O indivíduo encontra-se inserido no paradigma da sociedade capitalista de
necessitar do capital para sobreviver e depender das condições de uma economia que exclui
os indivíduos, de um lado, e de outro, depende do Estado que deveria recompor a sociedade
ao sanar os fossos e possibilitar a todos a esperada “cidadania’ na pólis, no urbano. Nesse
ínterim, há o cidadão sem seus direitos às garantias mínimas e vulnerável ao mercado e às
carências do urbano no tocante a saúde, alimentação e moradia.
Nas privações de alimentos, moradia, saúde e outras condições mínimas à vida na
cidade, a parentela cria estratégias que não são planejadas objetivamente e se organizam para
prover os seus pares num arranjo econômico que possibilita a gerência dos bens materiais da
unidade doméstica, principalmente no tocante à manutenção do padrão mínimo alimentar. No
entanto, a família não se faz somente de manutenção do econômico, mas do simbólico, que dá
sentido às relações e, diante das faltas econômicas, ela organiza uma rede de proteção para
incluir os seus e ampará-los, oferecendo aos parentes um lugar para existir.
Na família, instaura-se uma nova economia, das trocas entre os parentes em que o
cálculo é substituído pela dádiva. Nas redes de parentesco mapeadas ao longo do processo de
investigação, não é a ausência da obrigação que rege as relações, mas a ausência do cálculo
(GODELIER, 1996, p.14). Desse modo, há uma economia para viabilizar a manutenção das
pessoas, mas, numa lógica de troca de obrigações, que inclui os parentes, há uma rede de
proteção com o objetivo de sobreviver.
Com amparo no exposto, considero que as famílias pobres são complexas e seu
estudo uma necessidade para compreensão dos seus códigos e relações e, quiçá, políticas
públicas contextualizadas com a realidade cotidiana desses sujeitos sociais. Concordo com
Fonseca (2000), porém, na ideia de que ainda precisamos romper o muro da pobreza e realizar
mais estudos sobre os pobres urbanos.
A observação empírica revelou a rede familiar como uma forma de organização
da parentela para possibilitar a sobrevivência no urbano, explicitando a proteção como função
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primordial entre os pobres. Porém, não se trata de solidariedade natural, mas de uma
necessidade recíproca de articulação coletiva que os mantém.
A frente dessa organização coletiva está a mulher, a mãe, ela é o elo que une e
reúne a família, a mãe acolhe os filhos, protege e cria um laço de compromisso e obrigações
morais no coletivo da rede que enseja em cada um dos participantes uma identidade que
transcende os limites biológicos e efetiva o pertencimento ao coletivo familiar.
Os achados da pesquisa apontam para o entendimento da família como um laço
fundamental na sociabilidade dos pobres e apresenta características de solidariedade e afeto
que se contrapõem as cenas urbanas das periferias expostas na mídia, levando a reflexão de
que é preciso um olhar de dentro para identificar os modos de vida das numerosas massas
urbanas com seus históricos de migração, trabalho e pobreza.
A apresentação da família, como laço essencial no cotidiano dos pobres urbanos,
não se realiza sem conflitos. Inclusive, observei que eles fazem parte da dinâmica dos bairros
pobres e da própria essência das relações entre os parentes como delimitador de papéis,
funções e autoridade na estruturação das relações intrafamiliares.
Finalizando este estudo, ainda preciso falar sobre a dimensão simbólica da “luta
da casa”. A expressão é significativa dos desafios que a dona de casa enfrenta para manter sua
família. Nas trilhas da pesquisa, sempre ouvi mulheres dizendo que estavam na “luta”,
“lutando com os filhos” e na “luta da casa”. Nesse sentido, este estudo, é um relato da história
dessas mulheres e suas lutas para segurar as redes de proteção das suas famílias.
Essa tese é uma análise da realidade cotidiana que todos os dias nossos olhos
assistem nas ruas, nas esquinas e nos inúmeros sinais de trânsitos da cidade, com o diferencial
de ver essas relações pelo outro lado, na esfera íntima, na casa. Ao passar pelas ruas, não
pensamos para onde aquelas pessoas vão, onde dormem, como vivem, o que fazem. Essas são
perspectivas que se encontram nas páginas dessa tese e se constituíram na busca, ver e dar voz
aos pobres, com base nas suas representações de família e pobreza.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
239
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ANEXOS
252
Diário de campo.
No dia 08 de fevereiro de 2010, às 15 horas, cheguei à casa de Dona Selene para
composição de um quadro sobre a renda e condições de moradia da família. Há três meses não
visito a casa e muita coisa mudou. Antes havia 21 moradores e hoje 22, 23, 24, e a soma final
chegou a 25 pessoas.
Ao chegar, perguntei por Dona Selene. Responderam que ela estava na cozinha,
localizada nos fundos da casa, e que eu poderia entrar. Passei então pelo primeiro quarto antes
da porta da sala, onde vivem um filho e a companheira; passei pela sala onde está dormindo
uma filha, que veio morar com a família há dois meses. No primeiro quarto, moram uma filha
e seus quatro filhos, no segundo quarto dormem os homens e no terceiro dormem a dona da
casa com alguns filhos e netos. Na cozinha havia uma rede armada, onde dorme um dos
filhos, e no fim da casa, há um quarto que estava alugado e hoje é usado por Silvana, com sua
companheira e seus filhos.
Ao chegar à cozinha, ouvi falar na Soraya e sentei-me ao seu lado, olhei para ela e
me apresentei, explicando que faço pesquisas na casa há dez anos, mas não a conhecia
pessoalmente, “só de ouvir falar”. Ela explicou-me que não vinha muito à casa da mãe e
morava há alguns quarteirões, mas o marido se envolveu num conflito “briga de menino por
causa de arraia”, levou dois tiros e agora não pode mais voltar para casa, pois o marido está
ameaçado de morte pelo pai do menino que brigou com seu filho de oito anos na rua e lhe deu
os tiros.
Ela contou que, logo que veio da “assistência”, foi para casa da mãe tratar do
companheiro que levou um tiro na perna e outro na nádega. A bala da perna foi retirada, mas
a segunda ficou alojada no corpo do homem, e o ferimento já cicatrizou, segundo ela. Quando
foi buscar roupas para a família na sua casa, foi informada de que, se o marido descesse para
rua que fica próxima à praia, seria morto, pois estava jurado de morte. Assim, Selene a
acolheu “pois não ia deixar a filha na rua” com o esposo e o filho. Ela explica que há 12 anos
está “no poder dele” referindo-se ao atual companheiro. Enquanto isso, os dois filhos, Sidney
e Simone, sempre viveram com a avó. O filho Sidney foi morto há três anos numa discussão
na praia e, com a vinda da família para casa materna, Soraya também está próxima da filha
Simone de 15 anos, que vive na casa da avó desde que nasceu.
253
Depois da conversa com Soraya, fui para o quintal que estava mais arejado na
quente tarde de fevereiro. Lá estavam a filha mais velha de Silvana e sua namorada, e Sara
com sua filha caçula. Então, expliquei que estava na casa para compor um quadro dos
rendimentos da família e fazer a renda per capita. Voltamos ao ritual de contar os moradores
na data da visita e a renda. Sara começou contando que tem oito irmãos, mas são todos
“bebos” e não trabalham. Comecei a anotar os nomes até concluirmos os oito e depois
indaguei sobre o trabalho, renda, moradia e filhos de cada um deles. Na nossa contagem,
quatro dos filhos homens eram moradores da casa: Severo, Seleno, Selton e Silvio; os três
primeiros são solteiros e Silvio vive com a companheira num quarto reservado logo na
entrada da casa. Na contagem, perguntei por Sulivan (pequeno) e a irmã respondeu que ele
está morando com o pai há algum tempo e, quando aparece, “arruma confusão”. Lembrou que
ontem esteve lá e houve briga, ressaltando ser um alívio a troca da casa da mãe pela do pai.
Sobre os rendimentos dos filhos solteiros, ela explicou que “eles não podem ter
família, só vive bebo”, mas, ao insistir na questão da renda, a irmã justificou que todos são
pedreiros e fazem bicos, mas trabalham uma semana e na outra só bebem, e sobre contribuir
com a família, ela explica que “eles dão dinheiro a mãe, mas é pouco, ganham R$ 100,00 e
dão R$ 10,00”, mas a mãe fica feliz em receber.
Quanto aos rendimentos e a composição da renda, a mãe é aposentada (R$
510,00) e duas filhas recebem o Bolsa Família (R$ 102,00 e R$ 134,00); os filhos e netos
contribuem quando trabalham (R$ 100,00); o genro passa uns dias no mar e quando volta “dá
R$ 15,00; R$ 20,00 ou R$ 25,00” (R$ 50,00); um dos filhos de Sara está estagiando e recebe
meio salário (R$ 255,00) e ela cuida de uma menina de dois anos e meio, e recebe
semanalmente R$ 40,00 (R$ 160,00); e para fechar a conta, a mãe vende cuscuz paulista,
tapioca e agora caldo para a família e os “fregueses” da vizinhança (R$ 200,00), perfazendo
um total de R$ 1.511,00.
Certamente que a família contestaria esta soma, pois não vê este dinheiro e,
principalmente, o Bolsa Família e o salário do menor não são benefícios da rede familiar, mas
dos núcleos da família. O Bolsa Família de Soraya é do seu núcleo, e o Bolsa Família de Sara
e o salário do seu filho menor também são do seu núcleo que vive na casa, mas tem um quarto
onde cozinha em separado dos demais moradores.
Dona Selene já conta 74 anos de idade, estava indisposta com uma dor na barriga
e preferiu ficar na cozinha sentada, descansando e guardando energia para quando fosse
preparar um cuscuz ou tapioca para seus “fregueses”. Sara estava fazendo a conta dos
254
moradores da casa naquele dia e começou a contar as cinco mulheres, que somavam os 13
filhos, junto com os oito homens. Começamos a riscar os não-moradores, para contar os
núcleos de cada filho morador. Sara, hoje, preferiu não contar o marido e somou ela e os
quatro filhos (5); depois contou Silvana e seus três filhos homens (5+4=9); Severo (9+1=10);
Seleno (10+1=11); Selton (11+1=12); Silvino e esposa (12+2=14); Soraya, os dois filhos e o
companheiro (14+4=18); os dois filhos de Silmara (18+2=20) e Dona Selene (20+1=21), mas,
na continuidade da conversa, lembrou que Suyanne, filha de Silvana, está morando na casa,
pois o “velho” com quem a irmã vive a acusou de levar Sulany para o “mau caminho, pois as
irmãs estavam bebendo” e não a aceitou mais na casa (21+1=22); neste momento, Sara
avistou na cozinha o ex-marido de Silvana (22+1=23). Então perguntei pela companheira da
irmã e apontei para o quarto onde ela dormia, que fica no quintal onde estávamos
conversando (23+1=24); e, por fim, se deu a chegada de um pequeno com uma bolsa de
viagem na mão, voltando para a casa da mãe (24+1=25). A renda per capita é feita com base
de cálculo em R$ 1.511,00; excetuando os benefícios do Bolsa Família, perfaz uma renda de
R$ 1.275,00 que, dividido a por 25 pessoas, resulta em R$ 51,00 por pessoa ou R$ 1,70 ao
dia.
Os conflitos que envolvem a rede familiar como um todo desembocam na casa de
Dona Selene. Além desses moradores, considerando-se a condição de dormirem na casa,
ainda há os filhos e netos que residem na vizinhança, mas fazem refeições e passam períodos
na casa da mãe de todos os filhos e netos.
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