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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – FAFICH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
SER VOLUNTÁRIO, SER REALIZADO: INVESTIGAÇÃO
FENOMENOLÓGICA NUMA INSTITUIÇÃO ESPÍRITA
Yuri Elias Gaspar
Belo Horizonte, fevereiro de 2010
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Yuri Elias Gaspar
SER VOLUNTÁRIO, SER REALIZADO: INVESTIGAÇÃO
FENOMENOLÓGICA NUMA INSTITUIÇÃO ESPÍRITA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da
Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito parcial para
a obtenção do título de Mestre em
Psicologia.
Orientador: Prof. Dr. Miguel Mahfoud.
Linha de Pesquisa: Cultura, Modernidade
e Subjetividade.
Área: Psicologia Social.
Belo Horizonte
2010
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150 Gaspar, Yuri Elias
G249s Ser voluntário, ser realizado [manuscrito] : investigação fenomenológica
2010 numa instituição espírita / Yuri Elias Gaspar. – 2010.
186 f.
Orientador: Miguel Mahfoud
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
.
1.Psicologia – Teses. 2.Fenomenologia – Teses .3. Voluntários – Teses. 4.
Experiência (Religião) – Teses 5. Psicologia da cultura - Teses. I. Mahfoud,
Miguel II. Universidade Federal de Minas
Gerais. Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas. III. Título
A Deus
e aos trabalhadores da sua seara
que colaboraram para a concretização dessa obra.
AGRADECIMENTOS
A Deus, presença que solicita e conforta.
À Roberta, muito mais que esposa e colaboradora, a companhia real que me ajudou a
sustentar todo esse percurso, exemplificando o verdadeiro sentido de amar. De verdade:
obrigado por tudo!
A minha e, Sara, a quem devo minha formação, sempre iluminando meus passos
com seu exemplo de vida.
A meu pai, Ovídio, por doar tudo de si para possibilitar que nós, seus filhos,
estivéssemos aqui hoje, felizes.
Aos meus irmãos, Rolf e Raydan, por me apoiarem mesmo nos momentos mais difíceis
da nossa caminhada.
A meus avós, Seu Nahyme e Dona Ivone, pelo cuidado constante em todos os âmbitos
da vida e por me ensinarem a lição de que se deve “fazer o bem, sem olhar a quem, e não
fazer mal a ninguém”.
A toda minha família, pelo apoio e compreensão. Não é possível citar todos os nomes,
mas gostaria de ressaltar a gratidão por minha tia Sandra e minha prima-irmã Amanda, por me
ajudarem dos mais diferentes modos na elaboração deste trabalho.
Aos amigos “os cara praça”, por não desistirem de mim. Mesmo quando precisei estar
longe, a certeza dessa amizade sustentou meus passos.
Aos amigos e colegas da graduação em Psicologia, pelos encontros que fizeram de mim
o que sou hoje.
Aos amigos do CPH e do grupo de estudos da ACP, por me aceitarem e por me
incentivarem a ser quem sou.
Aos amigos, colegas e professores do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, pelos
encontros e desencontros que me ajudaram a retomar o significado e o valor de realizar
pesquisa na UFMG.
Aos amigos do LAPS, pela companhia e colaboração. Obrigado por fazerem da
formação acadêmica uma formação humana e por me ajudarem a entender o real sentido da
palavra “universidade”.
Aos demais amigos que fiz ao longo dessa caminhada, presenças marcantes que, cada
qual a sua maneira, contribuíram para a concretização desse ideal. Em especial, ao Lucas pela
disponibilidade para traduzir o resumo dessa dissertação para o inglês e à Rosário pelo
cuidado na revisão deste texto.
Ao CNPq, pelo apoio financeiro por meio de Bolsas de Iniciação Científica.
À CAPES, pelo apoio financeiro por meio de uma Bolsa de Mestrado.
À Casa Espírita, por abrir suas portas permitindo que esse trabalho se realizasse.
Aos tarefeiros da Casa Espírita, especialmente às pessoas entrevistadas, por permitirem
que eu comunicasse a beleza contida no gesto voluntário.
Ao Miguel, por anunciar algo grande ao qual vale à pena dedicar a vida e por contribuir
efetivamente para minha formação acadêmica e pessoal como orientador, mestre, amigo e
padrinho. É também por você que cheguei até aqui.
RESUMO
Gaspar, Y. E. (2010) Ser voluntário, ser realizado: investigação fenomenológica numa
instituição espírita. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
O voluntariado ganha espaço no cenário nacional, gerando aumento de investimentos, estudos
acadêmicos e dando visibilidade a movimentos culturais que muito o propõem. Neste
trabalho, objetivamos investigar como se configura o relacionamento entre a experiência de
voluntariado enquanto potencialmente realizadora da pessoa e o contexto sociocultural de
uma instituição espírita, tal como vivido e revelado pelos sujeitos da experiência. De modo a
apreender o dinamismo característico da experiência de voluntariado preservando sua
complexidade e unidade, adotamos a Fenomenologia (Husserl e Stein) como proposta teórico-
metodológica. Partimos da definição de conceitos nucleares da abordagem fenomenológica
(epoché, atitude fenomenológica e análise das vivências) com vistas a fundamentar a noção de
pessoa, base para compreensão do relacionamento do sujeito com a realidade. Abordamos a
constituição da pessoa em ão (definindo motivação e realização), o modo como ela
apreende o mundo físico (percepção e apercepção) e se relaciona com o mundo humano
(empatia, comunidade, mundo-da-vida e cultura). Problematizamos a orientação cultural do
homem na contemporaneidade e discorremos sobre as possibilidades de articulação entre a
dinâmica da realização humana e a experiência religiosa. Para a coleta de dados, recorremos a
observação participante de cunho etnográfico e a entrevistas semi-estruturadas. Selecionamos
quatro entrevistas para análise fenomenológica, seguindo o critério de escolha intencional de
sujeitos reconhecidos na instituição como referência quanto ao modo ideal de trabalhar
voluntariamente. Na análise do modo como os sujeitos elaboram sua ação voluntária,
emergem elementos essenciais da experiência de voluntariado nesse contexto sociocultural.
Destacamos a consideração da ação voluntária como compromisso e doação de si ao outro; a
centralidade do juízo dado sobre a realização de si vivenciada nessa experiência; a abertura à
contemplação e à transformação pessoal a partir dos sentidos colhidos ao agir; a importância
dos relacionamentos e a potencialidade de constituição de vínculos comunitários; a
consciência de participar de uma obra maior; a quanto à existência de presenças
transcendentes que intervêm na realidade de modo providencial, sustentando e mobilizando a
ação voluntária. Articulando esses resultados à análise do que é proposto aos voluntários pela
instituição, colhemos a vitalidade do processo de mútua constituição entre pessoa e contexto
sociocultural e compreendemos como a realização de si, elemento estruturante da experiência
de voluntariado, dinamiza esse processo de mútua constituição. Tal compreensão, aliada às
provocações advindas do contato com os sujeitos, fundamenta nossa conclusão quanto à
importância de investigar o voluntariado ressaltando a força da experiência, capaz de romper
concepções fechadas e de abrir horizontes que explicitam os vários sentidos implicados no
gesto de se doar voluntariamente.
Palavras-chave: Fenomenologia; Voluntariado; Pessoa e Cultura; Realização.
ABSTRACT
Gaspar, Y. E. (2010) Being voluntary, being realized: a phenomenological investigation in a
spiritist institution. Master’s Thesis, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
Volunteering becomes more important in the national landscape, generating an increase of
investments, academic studies and providing visibility to cultural movements which have
been proposing it for a long time. In this paper, we intend to investigate how the relationship
between the volunteering experience as a potentially tool to realize the person and the socio-
cultural context of a spiritist institution, as lived and revealed by the experience of the person.
In order to apprehend the characteristic dynamism of the volunteering experience but
preserving its complexity and unit, we adopted the Phenomenology (Husserl and Stein) as a
theoretic-methodological proposal. We started by the definition of the phenomenological
approach’s nuclear concepts (epoché, phenomenological attitude and lived experience
analysis) aiming to underlie the notion of person, a base for the understanding the subject’s
relation with reality. We focused on the constitution of the person in action (defining
motivation and realization), the way this person apprehends the physical world (perception
and apperception) and relates with the human world (empathy, community, life-world and
culture). We elected as a problem man’s cultural orientation in contemporaneity and we
discussed about the possibilities of articulation between the dynamic of human realization and
the religious experience. For data collection, we used the ethnographic participative
observation and semi-structured interviews. We selected four interviews for
phenomenological analysis, using the intentional choice criteria from subjects considered
references in the institution concerning their way of working voluntarily. In the analysis of the
way subjects elaborate their voluntary action, essential elements from the volunteering
experience emerge in the social-cultural context. We call attention to the voluntary action as
commitment and donation of self to the other; to the solid judgment given about the self
realization lived in that experience, to the opening to contemplation and personal
transformation based on the meanings collected from acting; to the importance of relationship
and the potentiality of communitarian bonds constitution, to the conscience of participating in
a bigger act, to the faith as the existence of transcendent presences which interfere with reality
in a providential way, sustaining and mobilizing the voluntary action. Articulating these
results to the analysis of what is being proposed to the volunteers of the institution, we
collected the vitality of the process of mutual constitution between person and social-cultural
context and we were able to understand how the self realization, structuring element of
volunteering experience, accelerates this process of mutual constitution. This comprehension,
allied to the resulted evocations from the contact with the subjects, underlies our conclusion
about the importance of investigating volunteering emphasizing the strength of the
experience, capable of rupturing closed conceptions and of opening horizons which explicate
the various meanings implied in the gesture of self donating voluntarily.
Keywords: Phenomenology
; Volunteering; Person and Culture; Realization.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................
09
I – REFERENCIAL TEÓRICO .......................................................................................
14
1. Dimensões constitutivas da pessoa ............................................................................
15
2. Pessoa em ação ..........................................................................................................
18
2.1. Da motivação à ação: contribuições de Edith Stein ..........................................
19
2.2. A ação enquanto auto-realização: contribuições de Karol Wojtyla ..................
23
3. Modalidades de relação com o mundo: o campo perceptivo ....................................
27
4. Modalidades de relação com o outro: da empatia à comunidade ..............................
29
5. Mundo-da-vida e culturas ..........................................................................................
32
6. Orientação cultural na contemporaneidade ...............................................................
35
7. Experiência de realização de si e experiência religiosa: possibilidades de
articulação ................................................................................................................
37
II – OBJETIVOS ............................................................................................................... 42
1. Objetivo geral ........................................................................................................... 42
2. Objetivos específicos ................................................................................................
42
III – JUSTIFICATIVA ......................................................................................................
43
IV – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ............................................................
44
1. Campo de pesquisa ....................................................................................................
44
2. Coleta de dados .........................................................................................................
44
2.1. Trabalho de campo e escolha dos sujeitos ........................................................
44
2.2. Entrevistando os sujeitos ..................................................................................
46
3. Transcrição dos relatos ..............................................................................................
46
4. Análise dos dados ......................................................................................................
46
4.1. A análise do contexto sociocultural ................................................................. 47
4.2. A análise das experiências de voluntariado ......................................................
48
5. Apresentação dos resultados e da discussão ........................................................... 50
V – RESULTADOS ........................................................................................................... 52
1. Adentrando a Casa Espírita .......................................................................................
52
2. Olívia: Nós fazemos parte, Ele deixa a gente fazer parte dessa maravilha ...............
69
2.1. A experiência de voluntariado de Olívia: uma síntese .....................................
86
3. Telma: Servindo a Casa Espírita toda vida, eu venho e sou grata por isso ..............
88
3.1. A experiência de voluntariado de Telma: uma síntese .....................................
99
4. Márcia: essa é a minha tarefa, eu vou abraçar ela com todo amor ...........................
101
4.1. A experiência de voluntariado de Márcia: uma síntese ....................................
115
5. Shirley: Essa tarefa é missionária: é uma oportunidade única, eu tenho que
abraçar .....................................................................................................................
117
5.1. A experiência de voluntariado de Shirley: uma síntese ....................................
136
VI – DISCUSSÃO DOS RESULTADOS: diálogos e elaboração da experiência-tipo
139
1. A ação voluntária como doação de si ao outro ...........................................................
140
1.1. Na doação de si, emerge a pessoa .....................................................................
140
1.2. Para doar-se é preciso amor: o eu em direção ao outro ....................................
142
2. A realização de si na ação voluntária: um círculo virtuoso ........................................
144
2.1. Na elaboração da experiência, emerge a centralidade da realização de si ........
144
2.1. Realização e juízo .............................................................................................
146
3. A ação voluntária como provocação à contemplação e à transformação ...................
150
3.1. Na abertura da razão, a ação convida à contemplação .....................................
150
3.2. Na contemplação do agir, a possibilidade de transformar a si mesmo .............
152
4. A ação voluntária como relacionamento e participação .............................................
153
4.1. A centralidade dos relacionamentos na experiência de voluntariado ...............
153
4.2. Da ressignificação dos obstáculos à vivência da gratidão ................................
155
4.3. Agir é participar de uma obra maior .................................................................
157
4.4. Na ação compartilhada, constitui-se a comunidade ..........................................
158
5. A ação voluntária como abertura ao relacionamento com presenças transcendentes .
160
6. A ação voluntária e o contexto sociocultural: processo de mútua constituição ........ 164
6.1. A experiência-tipo de voluntariado na Casa Espírita .......................................
164
6.2. Experiência-tipo e contexto sociocultural ....................................................... 165
6.3. A ação voluntária realiza a pessoa: provocações a ampliar o olhar ..................
168
VII – CONCLUSÕES: certezas e provocações ...............................................................
170
EPÍLOGO: um retorno à experiência ..............................................................................
174
REFERÊNCIAS .................................................................................................................
176
ANEXO ...............................................................................................................................
183
9
INTRODUÇÃO
Investigar o tema voluntariado tem se mostrado tarefa complexa e árdua. A começar
pelo próprio termo “voluntariado”. Seria essa a expressão ideal? Ou seria “trabalho
voluntário”? Ou “caridade”? Ou “solidariedade”? Ou “filantropia”? Ou “assistência social”?
Ou “Terceiro Setor”? Cada uma dessas expressões carrega diferentes conotações e
desdobramentos, os quais não se desvinculam de quem as propõe, de como propõe e de que
pressupostos adota para propor.
Paralelamente, trata-se de tema que se encontra na ordem do dia, ganhando cada vez
mais espaço no cenário nacional. Destacam-se, nesse sentido:
1) O fortalecimento do chamado “Terceiro Setor”, que agrega as “organizações sem fins
lucrativos, autogerenciadas, integrantes da sociedade civil, com finalidade pública ou
coletiva” (Sampaio, 2004, p. 37). Na esteira de tal consolidação, o voluntariado ganha
notoriedade na medida em que se constitui como forma recorrente das relações de trabalho no
contexto do Terceiro Setor.
2) Associada a este primeiro fator, tem-se a regulamentação do trabalho voluntário na
Lei Federal n.º 9.608 (1998), que tornou obrigatória a assinatura de um termo de adesão, no
qual são definidos a natureza do serviço e as condições para seu exercício, bem como
identificados o prestador e o tomador de serviços.
3) A maciça divulgação midiática, impulsionada pela definição de marcos
internacionais como a Declaração Universal do Voluntariado
1
e, especialmente, o Ano
Internacional do Voluntariado, 2001, proclamado pela Assembléia Geral das Nações Unidas.
2
4) O aumento de investimentos de diversas modalidades de instituições de
organizações não-governamentais a “empresas sociais” nesta forma de trabalho, aumento
que muitas vezes surpreende os estudiosos: “a impressão que se tem é que o trabalho
voluntário transformou-se, nas mais diferentes situações, em um ‘bom negócio’” (Barros,
Pinto & Guedes, 2006, p. 118).
Portanto, não é por acaso que assistimos atualmente à proliferação de estudos
acadêmicos na realidade brasileira que se debruçam sobre o tema, partindo de diferentes
1
Documento aprovado em 1990 por voluntários de várias partes do mundo a partir da convocação da
International Association for Volunteer Effort (IAVE). O texto inspira-se na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, de 1948, e na Convenção dos Direitos da Criança, de 1989 (Portal do Voluntário, n. d.).
2
As Nações Unidas definiram como objetivos para 2001: 1) Reconhecer de forma crescente o trabalho
voluntário; 2) Facilitar de forma efetiva o trabalho voluntário; 3) Organizar um modelo de trabalho em rede que
envolva a mídia como um todo na divulgação de ações; 4) Promover o trabalho voluntário criando um clima
generalizado na opinião pública que estimule e suporte o voluntariado (Carneiro, 2008).
10
referenciais e assumindo posições muitas vezes dissonantes. A título de exemplo, cabe
mencionar os trabalhos sobre a constituição dos discursos a respeito do tema “voluntariado”
em um ambiente universitário (Bavaresco, 2003); sobre as particularidades do trabalho
voluntário em um contexto religioso (Castro, 2003); sobre as tendências que marcam o
voluntariado, tomado criticamente enquanto trabalho que descaracteriza a assistência como
direito (Holanda, 2003); sobre a cultura organizacional e a motivação de voluntários em uma
organização de Terceiro Setor (Sampaio, 2004); sobre as razões do engajamento a uma causa
social e o contexto carcerário a partir da visão de pessoas que voluntariamente trabalham
nesse ambiente (Barros, Pinto & Guedes 2006); sobre a motivação e os benefícios que os
voluntários esperam receber, pesquisa realizada em uma ONG (Silva, 2006); sobre a
caracterização do perfil sociodemográfico e psicológico de voluntários de uma ONG
(Dockhorn, 2007).
De modo a problematizar o campo em que nos inserimos, destacamos as elaborações de
dois autores-referência que enfrentam o tema do voluntariado a partir de parâmetros distintos.
Montaño (2003), partindo de uma leitura marxista da realidade social, aponta nesta atual
configuração de valorização do trabalho voluntário especialmente daquele apropriado pelo
Terceiro Setor uma nova estratégia político-ideológica neoliberal de reestruturação do
capital. Segundo o autor, a descentralização e a transferência para o setor privado (lucrativo
ou filantrópico) das políticas sociais desresponsabiliza o Estado de seu dever social, precariza
o trabalho e homogeneíza a sociedade civil ao abafar conflitos dentro desta, levando assim à
perda do direito de cidadania e escamoteando a desarticulação do padrão de resposta estatal às
seqüelas da “questão social”. Nesse sentido, a resposta às mazelas sociais passa “a ser uma
opção do voluntário que ajuda o próximo, e um não-direito do portador de necessidades, o
‘cidadão pobre’” (p. 22).
O conjunto de organizações e atividades que compreende o chamado
“terceiro setor”, para além dos eventuais objetivos manifestos de algumas
organizações ou da boa intenção que move o ator solidário singular, termina
por ser instrumentalizado, pelo Estado e pelo capital, no processo de
reestruturação neoliberal, particularmente no que se refere à formulação e
implementação de uma nova modalidade de trato à “questão social”,
revertendo qualquer ganho histórico dos trabalhadores nos seus direitos de
cidadania (Montaño, 2003, p. 19).
Giumbelli (1998), por outro lado, coloca em outros termos o debate em torno da
assistência social ao estudar a lógica interna de um movimento que propõe o trabalho
voluntário e que possui grande notoriedade no contexto histórico-cultural brasileiro: o
Espiritismo. Objetivando conhecer o modo como o movimento espírita enfrenta e desenvolve
11
a questão da assistência social, o autor se volta para a caracterização do sistema doutrinário e
da organização institucional do Espiritismo no Brasil. Nessa pesquisa de cunho etnográfico
que também contém análises quantitativas, Giumbelli (1998) evidencia que, não obstante seja
recorrente a associação genérica e pejorativa ao assistencialismo, a experiência de
voluntariado no âmbito da Doutrina Espírita carrega uma complexidade que lhe é própria.
3
Giumbelli (1998) demonstra que tal experiência remete direta ou indiretamente à noção
de caridade, que não designa meramente uma disposição ou motivação psicológica e
individual, mas diz de um pilar que decorre de um compromisso com a Doutrina Espírita em
sua totalidade. No entanto, o próprio autor alerta que explicar o investimento espírita na
assistência social e, por conseqüência, no voluntariado somente fazendo alusão ao
compromisso doutrinário com a caridade não é suficiente. É preciso considerar as novas
formas de envolvimento e de elaboração que m emergindo no contexto espírita no que se
refere à assistência social, provocadas por reflexões acadêmicas no âmbito do Serviço Social
e por atuações de lideranças espíritas na sociedade civil. Trata-se de uma configuração
emergente de organização do trabalho assistencial espírita que, nas palavras de Giumbelli
(1998, p. 165), ressalta a “caridade como cidadania, mas também cidadania afirmada pela
caridade”.
Toda essa discussão em torno da significação do voluntariado situado em um
determinado contexto ganha uma nova consistência ao nos aproximarmos da experiência de
pessoas que trabalham voluntariamente numa instituição espírita.
Impelidos pelo ideal de ajudar o próximo e impulsionados por companhias que nos
ajudaram a aderir ao percurso de voluntariado proposto nessa instituição, começamos a
trabalhar durante um dia da semana. No primeiro contato, deparamo-nos com uma realidade
diferente daquela que havíamos imaginado: encontramos pessoas de diferentes trajetórias
pessoais e profissionais. Encontramos pessoas que oravam, conversavam e se divertiam juntas
durante a realização do trabalho. Encontramos também alguns atritos, dificuldades de
relacionamento, e encontramos pessoas dispostas a dialogarem e a reverem as dificuldades,
buscando uma melhor solução para todos. Encontramos pessoas que buscavam ajuda, com
grandes dificuldades financeiras. Mas, acima de tudo, encontramos pessoas, cada qual com a
sua história e com o seu motivo para estar ali, seja recebendo, seja auxiliando.
3
Atualmente, cresce o número de estudos sobre o Espiritismo desenvolvidos no país. Nesse sentido, destacamos
o livro organizado por Sampaio (2009a) que, reunindo textos acadêmicos e independentes, tem como uma de
suas perspectivas explicitar como estudos sobre o Espiritismo têm ganhado espaço nas universidades brasileiras.
12
Inicialmente, baseados no conhecimento do senso comum, pensávamos no voluntariado
nos perguntando sobre os motivos que levam as pessoas a trabalhar. No encontro com os
voluntários que se dedicam ao trabalho por rios anos, fomos provocados a reformular esta
pergunta, questionando-nos sobre o que leva as pessoas a permanecerem naquele trabalho por
tanto tempo. É um questionamento que nos intrigou também porque começamos a perceber na
nossa própria experiência que somente os motivos que nos levaram ao trabalho voluntário não
sustentavam a permanência ali. Com o passar do tempo, percebemos que as dificuldades
apareciam, o cansaço começava a nos desanimar, outros compromissos surgiam naquele
horário atrapalhando a assiduidade no trabalho. Enfim, problemas de toda a ordem faziam
questionar se realmente valia a pena gastar” o tempo em um trabalho que não tinha nem terá
retorno financeiro. Além disso, vimos muitas pessoas iniciarem o trabalho voluntário e, após
poucas semanas, desistirem, cada qual devido a um motivo diferente.
Mesmo em face das dificuldades, permanecemos no trabalho. E, abertos às solicitações
daquele contexto, começamos a reconhecer na experiência de algumas pessoas, e na nossa
também, a provocação para considerar um novo fator que incide no voluntariado: a realização
de si vivida enquanto se concretiza o gesto. Com essa provocação, chegamos a problematizar
as imbricações entre o contexto e os sujeitos da experiência.
Em outras palavras, sob uma perspectiva, é o próprio contexto sociocultural dessa
instituição religiosa que nos interroga, fazendo emergir em nós o interesse por conhecê-lo em
sua dinâmica concreta, isto é, por conhecer o modo vivo como é proposto, o campo de
possibilidades por ele aberto para os sujeitos que o compõem. Visto sob outro ângulo, esse
mesmo interesse tem como foco os sujeitos, os “voluntários” cuja experiência pessoal nos
solicita: como eles se posicionam diante do que lhes é proposto cotidianamente por esse
contexto sociocultural? Qual é a relação entre tal posicionamento e a sua vivência religiosa?
Como é possível que esse posicionamento de doação gratuita do seu tempo seja vivenciado
como realização? Qual é a dinâmica dessa realização? Vivendo processos como esses, de que
modo essas pessoas podem contribuir para a constituição da proposta cultural da instituição?
Perguntas como essas não são óbvias. Implicam ficar com a tensão suscitada pela
experiência que se quer conhecer com empenho para que seja preservada sua complexidade e
unidade. E, para tanto, encontramos na Fenomenologia de Edmund Husserl (2006a, 2006b,
2008) o referencial teórico-metodológico capaz de nos auxiliar. A escolha por esta abordagem
justifica-se na medida em que o nosso objetivo de compreender o fenômeno em questão,
articulando subjetividade e cultura, pode se concretizar através da dupla direção implicada na
descrição fenomenológica, que, de um lado, empreende a análise das vivências e da vida da
13
consciência em suas modalidades e, de outro, busca a compreensão das cosmovisões através
da investigação da inter-subjetividade (Ales Bello, 1998, 2004; Zilles, 1996, 1997).
No capítulo I buscamos introduzir o leitor à abordagem fenomenológica partindo de
alguns elementos nucleares que a caracterizam (epoché, atitude fenomenológica e análise das
vivências) com vistas a fundamentar a definição do conceito de pessoa, noção base para a
compreensão do relacionamento do sujeito com a realidade. Dada a complexidade de tal
relacionamento, abordamos a constituição da pessoa em ação (destacando os conceitos de
motivação e realização) e o modo como ela apreende o mundo físico por meio da percepção e
apercepção. A seguir, apresentamos as modalidades de relação com o mundo propriamente
humano por meio da descrição da dinâmica da empatia, da comunidade e das definições de
mundo-da-vida e cultura. Como desdobramento de tais compreensões, elaboramos uma
problematização da orientação cultural do homem na contemporaneidade. Complementa essa
exposição teórica a argumentação diretamente vinculada à dinâmica da realização humana e à
emergência da dimensão religiosa na experiência.
É a partir das clarificações advindas do referencial teórico adotado que delineamos o
objetivo geral e os específicos da presente pesquisa, bem como apresentamos os aspectos que
embasam sua justificativa nos capítulos II e III, respectivamente.
No capítulo IV, descrevemos os procedimentos metodológicos, também embasados na
abordagem fenomenológica. Destacamos o campo de pesquisa, as modalidades de coleta de
dados, bem como os procedimentos de transcrição dos relatos e análise do material.
No capítulo V encontram-se os resultados das análises realizadas. Inicialmente, temos
como foco a descrição do contexto da instituição investigada, com destaque para a
compreensão alcançada a respeito de suas principais propostas socioculturais. Em seguida,
encontram-se as análises das experiências de voluntariado dos quatro sujeitos dessa pesquisa.
A discussão dos resultados é realizada no capítulo VI, no qual optamos por apresentar
cada um dos elementos essenciais presentes na experiência de voluntariado de todos os
sujeitos imediatamente seguido pelo diálogo com grandes autores. A partir desses diálogos,
elaboramos a síntese da experiência-tipo de voluntariado neste contexto sociocultural e a
articulamos às propostas socioculturais da instituição investigada. Finalizando o capítulo,
recorremos novamente ao diálogo com alguns autores de modo a dimensionar a contribuição
desta pesquisa para o campo de estudos das experiências de voluntariado.
No capítulo VII retomamos as principais conclusões e provocações advindas deste
trabalho de investigação e, com o epílogo, encerramos a dissertação convidando o leitor a um
retorno à experiência comunicada.
14
I – REFERENCIAL TEÓRICO
A Fenomenologia de Husserl (1952/2006a, 1924/2006b, 1954/2008) e Stein (1932-
33/2003a, 1930/2003b, 1930/2003c, 1922/2005a, 1917/2005b, 1932-5/2007a, 1934-6/2007b)
enquanto proposta teórico-metodológica implica um modo de olhar que parte das provocações
daquilo que se manifesta a mimo fenômeno – tendo como meta compreendê-lo, deixando-o
viver (Ales Bello, 1998, 2004). Olhar que não repousa nem sobre a coisa em si mesma e nem
na criação subjetiva daquele que lhe dirige sua mirada, mas sim na relação que se estabelece
entre eu e mundo, na realidade enquanto percebida por alguém (van der Leeuw, 1933/1964).
Isso é possível graças à atitude de epoché, que consiste em colocar entre parênteses
concepções prévias, voltando-se para o fenômeno com o intuito de colher ali o que de
essencial. Trata-se de uma postura crítica e antiespeculativa de suspensão do juízo, que visa a
evitar a sobreposição de construções categoriais ao significado do fenômeno estudado, de
modo a favorecer que emerja o que lhe é mais próprio, sua estrutura (Ales Bello, 1998, 2004;
van der Leeuw, 1933/1964; Zilles, 1996).
Com tal postura passa-se da “atitude natural” que toma fatos e coisas apenas por sua
manifestação exterior – à “atitude fenomenológica”, a qual se ocupa das vivências internas ao
sujeito, do modo como ele elabora aquilo que lhe acontece e se posiciona no mundo (Ales
Bello, 1998). Ao falar em “vivência”, Husserl utiliza a palavra Erlebnis, substantivo que
busca expressar aquilo que estou vivendo no momento presente. Nas palavras de van der
Leeuw (1933/1964), é
uma vida presente que, segundo o seu significado, constitui uma unidade
(…). Assim, pois, a vivência não é simplesmente “vida”; em primeiro lugar,
está condicionada pelo objeto vivenciada), em segundo lugar, está
indissociavelmente unida com sua interpretação como vivência (p. 643).
Partindo de exemplos colhidos na experiência comum e cotidiana, Stein (1922/2005a)
demonstra que toda vivência é composta por:
1. Um conteúdo que é recebido na consciência (por exemplo, um dado
relativo a uma cor ou um sentimento de bem-estar).
2. A vivência desse conteúdo, sua acolhida na consciência (o ter a sensação,
o sentir bem-estar).
3. A consciência dessa vivência que a acompanha sempre em maior ou
menor grau – e pela qual a vivência mesma é designada também como
consciência (p. 232).
15
A vivência se dá à consciência, é o que se faz ao tomar algo: união entre ato do sujeito e
fenômeno por ele apreendido (Ales Bello, 2004; van der Leeuw, 1933/1964). Portanto, a
vivência designa os atos próprios da interioridade humana, elemento estrutural e constitutivo
da consciência (Ales Bello, 1998).
A consciência é definida por Ales Bello (2006) como “ponto de convergência das
operações humanas, que nos permite dizer o que estamos dizendo ou fazer o que fazemos
como seres humanos” (p. 45). Nesse sentido, a consciência distingue-se da reflexão e não
pode ser entendida como algo fixo, estanque. Ela é, outrossim, a condição de possibilidade do
vivenciar humano, é a corrente ou fluxo original de vivências puras (Stein, 1922/2005a).
Nesse sentido, é possível apreender três características basilares da consciência: 1) ela é
um fluxo, puro devir composto por vivências puras que se sucedem e que, apesar de estar em
produção contínua, constitui-se como unidade por brotar de um único eu, o “eu puro”; 2) ela é
original no sentido de que está na base, na origem de toda ordem de experiência humana; 3)
ela é vivenciada, experimenta-se como viva. Portanto, o fluxo da consciência se constitui
como um complexo no qual as vivências se despertam (Stein, 1922/2005a).
1. Dimensões constitutivas da pessoa
Ao investigar as vivências, Husserl pôde explicitar que elas são a base da subjetividade,
uma vez que se constituem como a estrutura comum a todos os seres humanos, que se
articulam de modos diversos de acordo com as variadas orientações culturais. Possuem
também diferenciações qualitativas que permitiram ao investigador chegar à delimitação das
três dimensões constitutivas do humano: a corpórea, a psíquica e a espiritual (Ales Bello,
1998; Husserl, 1956/2006a; Stein, 1922/2005a).
A dimensão corpórea refere-se às vivências ligadas mais diretamente às sensações. Sua
constituição é dada e dela não se pode prescindir: o corpo vivente é o nível de percepção de si
mais imediato e o meio de expressão do ser no mundo (Ales Bello, 2004, 2006; Husserl,
1956/2006a).
A dimensão psíquica diz respeito ao modo como o real ressoa no sujeito e vincula-se
também ao temperamento, às tendências e aos impulsos. Para fundamentar e facilitar a
compreensão dessa dimensão, destacamos a seguinte situação apresentada por Stein
(1922/2005a):
16
Se sinto frio, então não me engano nem acerca do conteúdo desse sentimento
que designo precisamente como frio –, nem acerca da consciência desse
vivenciar. Sinto, indubitavelmente, quando sou consciente disso, e sinto frio,
e não outra coisa, quando tenho precisamente esse sentimento. Porém, é
possível que eu me sinta com frio, sem que exista realmente uma situação de
frio, podendo conscientizar-me de tal fato somente em seguida (pp. 236-7).
Esse exemplo abrange tanto um conteúdo de vivência, que pode ou não ser egológico,
isto é, referir-se ao próprio eu (sentimento vital), quanto o estado interno que esse mesmo
conteúdo exprime (estado vital). A manifestação dos sentimentos vitais e estados vitais indica
a existência de uma qualidade real permanente que os sustenta: a força vital. Trata-se de certo
quantum de energia próprio de cada individualidade, que pode variar de acordo com
modificações nas condições vitais (Ales Bello, 2000; Stein, 1922/2005a).
O conjunto formado por força vital, sentimentos vitais e estados vitais constitui
justamente a dimensão psíquica. As vivências psíquicas se articulam no âmbito da força vital
e se expressam nos estados vitais por elos causais, porém não de maneira exata ou
quantificável. Trata-se de uma causalidade peculiar, posto que uma vivência é condição para o
acontecimento de uma gama possível de outras vivências, de modo que todo efeito possui
uma causa, mas não se pode fazer a passagem de que uma causa necessariamente leva a certo
efeito. Daí porque somente se pode investigar as causas retroativa e empiricamente, a partir de
seus efeitos concretos. Em oposição à delimitação de uma causalidade quantitativa tal como
perseguida pelas ciências da natureza, tem-se, portanto, o reconhecimento de uma causalidade
qualitativa, na medida em que é possível identificar essencialmente as mudanças de qualidade
dos estados psíquicos e as diversas gradações dessa qualidade (Stein, 1922/2005a).
Para a compreensão da dinâmica de funcionamento do mecanismo psíquico, é
fundamental destacar a importância dos impulsos, definidos como tendências não motivadas,
vivências sem fundamentação objetiva, isto é, sem um sentido a priori que as sustente.
“Temos aqui um mero ser impulsionado, como no caso de uma bala que, por um disparo, é
arremessada em uma determinada direção” (Stein, 1922/2005a, p. 278). Embora o eu tenha
consciência do fato de ser impulsionado, tanto a direção quanto a concretização do impulso
são em função da satisfação real ou possível do próprio impulso. Nesse sentido, se
eliminarmos eventuais interferências da vontade, o impulso depende puramente do
correspondente estado vital pelo qual é gerado e da energia psíquica consumida ou
incrementada pela força vital que o alimenta. Portanto, a vida da psique me acontece, pois eu
não decido ter certos impulsos.
17
Em síntese, pode-se dizer que a dimensão psíquica é esfera daquilo que nos acontece e
que se pode apenas reconhecer, portanto, das vivências de reação, que se configuram como
estados e sentimentos vitais e se conectam de modo causal, embora não seja mensurável
quantitativamente, mas apreensível qualitativamente em suas estruturas essenciais (Husserl,
1956/2006a; Stein, 1932-33/2003a,1922/2005a).
A dimensão espiritual, por sua vez, engloba as vivências volitivas e intelectivas, que se
distinguem como atos de liberdade: posicionamentos do sujeito frente ao que lhe acontece. É
esfera ativa, em que as vivências se articulam por motivação e visam à realização de um
objetivo (Husserl, 1956/2006a; Stein, 1922/2005a). Desenvolveremos as especificidades da
dimensão espiritual na seção subseqüente, intitulada “Pessoa em ação”.
É o reconhecimento da indissociabilidade dessas três dimensões constitutivas que leva à
definição de ser humano enquanto pessoa.
O eu pessoal é aquele que se delineia a partir da corporeidade, com uma base
de pré-datidade (predatità) que se pode definir psíquica, mas se configura
como pessoa, realmente unitária num sentido superior, como sujeito das
tomadas de posição da vontade, das ações do pensamento; numa palavra,
como eu livre. O eu puro, então, é o espelho, a via de acesso a uma realidade
corpórea, psíquica e espiritual, que constitui o eu pessoal (Ales Bello, 2007,
p. 72).
Para Stein (1932-33/2003a, 1930/2003c), o ser pessoa distingue-se pela liberdade de
posicionamento e pela abertura tanto para a esfera interna (por via da capacidade de
autoconsciência), quanto para a externa (mundo físico e esfera de relações). Possui um
princípio formativo (ou “alma intelectiva”) que lhe confere potências e limites e permite-lhe
ordenar aquilo que recebe de modo a se estruturar e a intervir no mundo externo, de onde a
sua denominação como microcosmos.
Em obras posteriores, Stein (1932-5/2007a, 1934-6/2007b) retoma a noção de
consciência e pessoa em articulação com as contribuições da filosofia tomista, reelaborando o
modo de apreender o ser, a temporalidade e o eu puro no fluxo de vivências. Partindo da
evidência indubitável do próprio ser, isto é, que eu vivo e sou consciente da vida do meu ser,
Stein reconhece diferentes modos de ser que constituem o fluxo temporal da consciência.
Trata-se, na linguagem escolástica, das potências e dos atos. Para nossos propósitos, vale
destacar o reconhecimento de diferentes potencialidades que são e estão presentes na vida do
eu, mesmo que não ativadas em ato no momento atual.
Como corolário, pode-se identificar disposições de ser que constituem a estrutura da
pessoa, cabendo ao eu atualizá-las e desenvolvê-las em função de si mesmo. Nesse sentido, o
18
“eu puro” o eu tomado substancialmente em si mesmo e consciente de si é
existencialmente presente na experiência humana, com qualidades tais que podem conduzir a
formação da pessoa (Stein, 1932-3/2003a).
Ao investigar a elaboração de Stein acerca da formação propriamente humana, Mahfoud
(2005) contribui para a compreensão do conceito de pessoa ao ressaltar que
um elemento de vida espiritual contido num objeto cultural (produzido pelo
espírito humano) é apreendido pela alma e ganha vida naquele
relacionamento. A pessoa (…) se encontra num mundo de pessoas e de bens
espirituais pelos quais a vida flui a ela. Mas cabe a cada um decidir sobre o
funcionamento do intelecto (se e como), quanto ampliar o mundo espiritual,
o quê dos elementos culturais acolher em si mesmo. (…) Além de receber e
crescer, a alma humana tem condições também de organizar o que vai
assumindo e se estruturar, se formar, fazer de si uma forma e con-formar-se
a uma imagem, e intervir no modo formativo do mundo externo (p. 57).
Assim, o fruto das análises rigorosas da subjetividade é uma proposta antropológica que
diferencia qualidades de vivência, reconhece dimensões distintas do humano e recoloca a
centralidade do relacionamento com o mundo para a constituição do ser pessoa (Ales Bello,
2004). Como corolário, tal proposta antropológica favorece uma aproximação da experiência
que se pretende investigar com uma posição de abertura para todos seus níveis e suas sutis
variações, buscando apreender o modo como o sujeito elabora aquilo que lhe é proposto.
2. Pessoa em ação
Ao diferenciar as dimensões constitutivas do ser humano a partir da análise das
vivências e da vida da consciência, a Fenomenologia objetiva explicitar fundamentos que
podem possibilitar a elaboração de uma psicologia da pessoa (Stein, 1932-3/2003a). Uma
psicologia que se ancore numa antropologia filosófica que evidencie a estrutura propriamente
humana em seus elementos essenciais (Ales Bello, 2000, 2004; Goto, 2008; Husserl,
1954/2008; Mahfoud & Massimi, 2008; Stein, 1922/2005a; Wojtyla, 1982).
Giussani (2009) nos indica um caminho para apreender os elementos constitutivos da
pessoa ao propor como ponto de partida a observação do eu em ação. “Não existe,
efetivamente, um ‘eu’ ou uma pessoa abstraída da ação que realiza” (p. 60). É somente em
ação que a pessoa se revela, nos alerta Wojtyla (1982), e é nesta busca por acompanhar o
movimento da pessoa se revelando que podemos estar abertos e atentos ao que emerge de
19
mais radical. Está a possibilidade de uma descrição fiel e provocadora da experiência
propriamente humana e efetivamente pessoal.
Edith Stein e Karol Wojtyla nos ajudam a compreender fenomenologicamente a
constituição do ser pessoa em ação ao analisar a dinâmica que motiva o agir e o que essa ação
realiza na pessoa.
2.1. Da motivação à ação: contribuições de Edith Stein
Dando continuidade ao percurso de análise da manifestação das vivências no fluxo de
consciência, Stein (1922/2005a) reconhece, além das vivências propriamente psíquicas, outra
classe de fenômenos, os atos – tomados no sentido de vivências intencionais –, que se referem
ao movimento da consciência de se voltar para aquilo que se mostra (fenômeno), dinamismo
este que evidencia tanto o eu quanto o mundo apreendido de modo humano. Se tal mirada se
dirige a um objeto exterior, transcendente, trata-se do ato da percepção (Ales Bello, 2000).
Diante do objeto transcendente, pode-se ainda discriminar os atos de relacionar aspectos
singulares numa apreensão contínua (apercepção), numa apreensão sintética (síntese) ou numa
apreensão do movimento que conecta um aspecto a outro (motivação) (Stein, 1922/2005a).
Stein, portanto, nos provoca a ampliar o conceito de motivação ao defini-lo como a
vinculação que liga um ato a outro, ligação esta que estrutura toda a dimensão das vivências
intencionais (Ales Bello, 2000). Não se trata de mera fusão, co-penetração ou conexão
associativa entre vivências, mas sim de procedência, isto é, de uma vivência partir de outra,
ser completada por motivo da outra, um realizar-se ou ser realizado de um em virtude do
outro, por razão do outro. Tal vinculação é possível se se reconhece a presença ativa do eu
como ponto de origem dos atos: o eu realiza um determinado ato porque realizou um outro
anterior. Nesse sentido, o eu não só vivencia os atos como também é “senhor de seu
vivenciar”, nas palavras de Stein (1922/2005a, p. 264).
A análise da experiência cotidiana evidencia que os fatores causais e motivacionais
podem interferir um no outro, o que possibilita reconhecer tanto o condicionamento da força
espiritual à sensível
4
quanto a independência dos mesmos.
4
“Como unidades constituídas na corrente original, os atos (…) estão condicionados no ritmo de seu transcurso
e em seu ‘colorido’ por variações dos sentimentos vitais. Precisamente essas
vivências, que são ‘realizadas’ em
sentido próprio, mostram com particular clareza a ‘energia de tensão’ do vivenciar” (Stein, 1922/2005a, p. 288).
20
Como vimos, a dinâmica da motivação é característica da dimensão espiritual, que se
refere ao movimento propriamente humano de abertura para dentro (percepção de si mesmo
enquanto ser autoconsciente e livre) e abertura para fora (mundo físico, social, comunitário,
cultural, histórico, divino) (Stein, 1932-3/2003a, 1922/2005a, 1932-5/2007a).
Para melhor explicitar a ligação por motivação, própria da vida espiritual, vejamos um
exemplo de Stein (1922/2005a) no campo perceptivo:
Quando capto uma coisa extensa no espaço, percebo também “com” ela o
lado de trás, que não capto por si mesmo, e essa co-apreensão pode motivar,
por sua vez, a eventual realização de um movimento livre, que faça ressaltar
o lado de trás co-apreendido em uma genuína percepção. Pode-se apreender
a maneira peculiar do dar-se de um objeto como um motivo para uma
tomada de posição do eu frente a este objeto, a datividade perceptível, por
exemplo, como motivo para crer em sua existência (p. 254).
Desse modo, a motivação se a partir do momento em que o eu apreende um objeto
não como um vazio, mas como algo carregado de conteúdo de sentido (chamado usualmente
de motivo) que aponta para certas direções, com consistência unitária de ser. É esse conteúdo
de sentido que provoca o eu a se voltar
5
e a se posicionar diante do objeto com o intuito de
conhecê-lo em sua totalidade e de se mover em função dessa compreensão.
Daqui que deduzir a exigência de que todo aquele que tiver formulado os
correspondentes juízos como premissas deduza deles também a conclusão. O
sentido de uma coisa reconhecida como valiosa ao mesmo tempo se
apresenta como algo que deva ser. Daqui se deve deduzir a norma de que
aquele que leva o valor à condição de datividade (tanto no caso da não
existência do valor como no caso da possibilidade de sua atuação) deve
tomar para si a meta de sua realização (p. 256).
É a partir de evidências colhidas na experiência que podemos concluir que a motivação
não pode como deve ser regida pelas leis da razão. Isso quer dizer que não é o fato do ser
humano possuir certas estruturas que o leva necessariamente a atuar no mundo, mas sim que a
compreensão do conteúdo de sentido motiva o eu a tomar posição considerando um espectro
limitado de direções razoáveis. “O relâmpago se converte para mim no motivo para esperar
que aconteça o trovão, não a percepção do relâmpago” (p. 256). Há motivos vivenciados pelo
eu que permitem diferentes tomadas de posição sem solicitar nenhuma em particular,
entretanto, existe fundamentação racional somente quando o posicionamento assumido
corresponde àquilo que é exigido pelo conteúdo de sentido apreendido.
5
“A unidade de sentido prescreve quais complementações admitem um sentido parcial dado, e, portanto, quais
passos ulteriores podem ser motivados por este primeiro passo” (Stein, 1922/2005a, p. 255).
21
A lei de motivação é, então, a base sob a qual os atos e, correlativamente, a própria
motivação se estruturam no fluxo original de vivências. Como decorrência, é possível
apreender e discriminar diferentes configurações de atos presentes no eu: 1) a tomada de
conhecimento como ato de se voltar a algo, no qual o objetivo de tal mirada se converte em
datividade, sendo que cabe ao eu receber o que lhe foi dado; 2) a tomada de posição do eu
ante o conhecimento de algo num sentido mais básico de dar espaço ou não ao que o conteúdo
de sentido do objeto lhe indica; e 3) o ato livre propriamente dito, que é um posicionamento
num sentido genuinamente pessoal de aceitar ou rechaçar as provocações do objeto e tirar daí
as conseqüências para a ação.
Quanto aos atos livres, diferentes classes que se conectam, estruturando possíveis
configurações da dinâmica da vida espiritual. Diante de algo, o eu é levado a crer na
existência desse estado das coisas tal como se apresenta, estando assim convicto em sua
crença. Dessa convicção suscitada cabe ao eu conceder ou não o seu reconhecimento, isto é,
“re-conhecer”, a partir de si, que o motivo que se apresenta é razoável, está fundamentado
objetivamente. É a partir daí que se pode afirmar genuinamente um estado de coisas. No
entanto, a própria experiência indica que afirmações que não estão nem suficientemente
fundamentadas (motivadas somente pela crença) nem se baseiam na convicção. Embora estas
últimas não estejam fundamentadas teoricamente, elas podem estar motivadas no sentido
prático da vida cotidiana.
Vejamos um exemplo apresentado por Stein (1922/2005a) que nos ajuda a compreender
as nuances de um possível ato livre: “asseguro a um enfermo que seu estado de saúde
melhorará logo, porém sem crer nisto (ou crendo precisamente no contrário). Esta certeza que
dói está motivada pelo desejo de tranqüilizar o paciente” (p. 266). Não se trata de uma
afirmação genuína por não estar presente frente a mim mesmo ou frente ao outro, embora não
se configure por definição como uma afirmação mentirosa ou falsa. Nesse sentido, é possível
distinguir as certezas que se dão sem convicção das mentiras que estão em contradição com a
convicção.
Vale a pena retomar que todos esses atos são livres, ou seja, a existência dos motivos
não força o sujeito a efetuar os correspondentes atos, mesmo porque situações em que
motivos opostos em cena. Esses casos explicitam ainda mais que a decisão por uma ou outra
direção não se dá automaticamente, “como se a agulha indicadora de uma balança indicasse o
prato que contivesse maior ‘peso’ de motivos” (p. 268), mas depende radicalmente do eu que
toma a decisão em função do que lhe é mais importante. Assim todo ato livre pressupõe um
motivo, mas não é ele que determina por si o curso da ação.
22
Aqui nos aproximamos, por conseguinte, da esfera do querer e do agir, que completa o
arco dos atos livres, ou melhor, dos atos voluntários. Stein (1922/2005a) delimita o querer
como um propósito da vontade que tem por pressuposto necessário um “poder”, no sentido de
possibilitar a ação propriamente dita. Isso não significa que todo ato livre seja um propósito
embora todo propósito tenha como pressuposto uma tomada de posição da vontade –, porém
um âmbito de atos livres que podem proceder de um propósito e que devem ser realizados
por um “fiat!”, uma aceitação e decisão voluntária que efetivamente provoca uma ação
exigida naquele momento. Acompanhemos uma situação cotidiana descrita pela autora:
Por exemplo, que me tenha proposto a dar uma notícia importante a alguém
quando se apresente a ocasião propícia. Encontro-me com esta pessoa, e no
transcorrer da conversa se produz o “momento favorável”: enquanto me dou
conta claramente dele, digo internamente a mim mesma “agora!” e começo a
dar a notícia. O dizer “agora!” não é uma renovação do propósito que eu
“tenho estado abrigando” eventualmente muito tempo; é o “fiat!” que
vazão à execução do propósito (p. 270).
É somente nessa dimensão dos atos livres que a motivação – inicialmente tomada
enquanto vinculação geral que conecta as vivências intencionais adquire um sentido
expressivo, na medida em que se refere a um nível de vinculação em que a pessoa se atualiza
e se realiza em toda a sua potência espiritual. Na esteira do pensamento de Pfãnder, Stein
(1922/2005a) apreende a motivação na relação existente entre um motivo exigido pela
vontade e o ato da vontade baseado nele. Tomada nestes termos, a motivação se realiza
enquanto tal na medida em que o eu percebe, reconhece e afirma uma exigência que emerge
do centro de si mesmo, passando a agir em função da correspondência entre essas exigências
constitutivas da sua pessoa e as provocações apreendidas no mundo.
A esse respeito, escreve a fenomenóloga:
Semelhante exigência (uma possível razão da vontade) se transforma
somente em razão real da vontade e, com isso, em motivo, quando o eu
fundamenta na exigência o ato da vontade e o que faz sair dela… então o eu
não deixa fora de si a exigência e simplesmente a reconhece e aceita, mas a
integra em si mesmo, a incorpora; logo, apoiando-se nela, realiza o ato
voluntário em conformidade com a exigência e a cumpre assim
provisoriamente de maneira ideal”. Ressalta-se, além disso, como
característica do ato da vontade em contraste com a tendência o fato de
que este ato “não é cego em si mesmo”, mas que contém em sua essência
uma consciência do que é querido”; de que, “pensando nele, se faz um
propósito prático”; finalmente se afirma que é inerente ao ato voluntário uma
espontaneidade que falta na tendência; que o ato voluntário parte do centro
do eu, porém não como um acontecer, mas como um agir peculiar, no qual,
saindo centrifugamente de si mesmo, executa uma pulsação espiritual (pp.
272-3).
23
A partir dessas elaborações é possível retomar tanto o sentido espiritual que realiza o ser
pessoal quanto a radicalidade de um centro que indica e determina a direção de
desenvolvimento formativo das capacidades psíquicas e espirituais.
A vida espiritual de um indivíduo é determinada pela singularidade deste
núcleo; todavia, o núcleo é algo novo em relação à própria vida espiritual, e
nem mesmo um conhecimento completo da vida espiritual – ou da vida
psíquica seria suficiente para captá-lo em sua inteireza (Ales Bello, 2007,
p. 72).
Trata-se, portanto, de um núcleo singular, princípio de identidade da pessoa
constituído por esta capacidade do querer que motiva, direciona e integra a pessoa no
momento mesmo de seu agir (Ales Bello, 2000; Stein, 1922/2005a, 1932-5/2007a).
2.2. A ação enquanto auto-realização: contribuições de Karol Wojtyla
A apreensão da estrutura propriamente humana passível de ser realizada em ato nos
conduz à análise da ação propriamente dita capaz de revelar a pessoa, questão esta
desenvolvida por Wojtyla (1982) em seus múltiplos aspectos.
Nesse sentido, a ação – enquanto ato autêntico da pessoa é um momento singular para
captação e conhecimento da estrutura essencial do ser humano. Para tal empreendimento, é
imprescindível retomar a descrição aristotélico-tomista do dinamismo potência-ato tal como
proposta por Wojtyla (1982).
A potência, em latim potentia, pode ser definida como potencialidade, como
algo que já é mas que ainda o é; como algo que está em preparação, que
está disponível, inclusive ao “alcance de nossa mão”, mas que ainda não está
realizado. O ato, em latim actus, é a atualização da potencialidade, sua
realização (p. 78).
Todo ato humano (actus humanus) provém de uma potência correspondente e se realiza
no mundo a partir do momento em que o homem se volta intencionalmente para aquilo que se
lhe apresenta e decide agir voluntariamente, ampliando a consciência de si neste processo. No
entanto, elevar a consciência à categoria de valor central do acontecer humano é um problema
próprio do pensamento e da vida contemporânea que precisa ser enfrentado, pois as filosofias
clássica e escolástica a concebiam implicitamente, subjacente aos conceitos de racionalidade e
vontade (Wojtyla, 1982, 1961/2003a).
24
A consciência emerge então como base sob a qual é possível conceber e conhecer a
pessoa em ação, aspecto intrínseco e constitutivo dessa estrutura dinâmica. A consciência
carrega tanto uma função cognoscitiva quanto reflexiva, isto é, ela não busca somente
conhecer o mundo, mas também interioriza à sua própria maneira o que é conhecido,
explicitando assim a presença autoconsciente e criativa do eu neste processo. Desse modo, a
consciência possibilita a subjetivação do ser humano nas ações realizadas no mundo. Segundo
Wojtyla (1982), “a consciência é o ‘fundo’ em que se manifesta o próprio eu com toda a sua
peculiar objetividade (ao ser objeto de autoconhecimento) e ao mesmo tempo experimenta
plenamente sua própria subjetividade” (p. 52).
É neste sentido que se pode diferenciar aquilo que ocorre no homem processo este em
que o eu é passivo da ão enquanto execução concreta de um ato humano intencional,
consciente e voluntário que realiza a estrutura propriamente humana.
Portanto, é imprescindível reconhecer e incluir a dimensão da realização na análise da
pessoa em ão, pois é somente a partir dela que a pessoa se expressa em toda a sua potência.
Tomada nestes termos, a realização mesma tem, em certa medida, um caráter estrutural, que
se atualiza no agir propriamente humano. Assim, toda realização de uma ação no mundo é
também auto-realização da estrutura da pessoa.
Realizar-se significa não somente atualizar, mas sim levar à devida plenitude a estrutura
própria do homem. Nesse sentido, a realização implica e solicita o ser humano em sua
unidade e totalidade, não bastando a atualização parcial de alguns dinamismos humanos. Para
Wojtyla (1982, 1961/2003a), o homem se realiza enquanto tal a partir do momento em que é
pessoa, que se caracteriza pelo reconhecimento de uma personalidade concreta, singular e
pelo fato de ser alguém e não meramente algo. Ser alguém é ser uma presença no mundo, é
ser capaz de governar e possuir a si mesmo no sentido de querer e agir a partir da
correspondência entre os objetos que se lhe apresentam como valor e o próprio eu como
centro de avaliação.
Tal estrutura fundamenta a dimensão da moralidade como realidade existencial presente
no interior do homem, alcançando certo nível de durabilidade que procede da pessoa
(Wojtyla, 1982). Partindo dessa evidência, a moralidade não consiste em um jogo abstrato dos
valores morais do que é bom e do que é mau, mas solicita um envolvimento da pessoa em
toda a sua estrutura humana, além de explicitar a possibilidade da não realização da pessoa na
ação. Portanto, segundo o autor, do ponto de vista axiológico (ou ético), a bondade moral leva
à realização da pessoa, enquanto a maldade moral equivale à não realização. Como
decorrência, a realização em sua plenitude não prescinde da dimensão ética, pois a pessoa
25
somente se realiza verdadeiramente na medida em que se posiciona levando em consideração
a bondade moral de sua ação: a mera execução da mesma ação não lhe basta.
Para ser moralmente bom é necessário não somente querer um bem, mas o
querer de modo bom; se não se quer de modo bom, o homem chega a ser
moralmente mau, ainda que o que queria seja sempre um certo bem. A
moralidade, por conseguinte, pressupõe o conhecimento, a verdade sobre o
bem, mas se realiza através do querer, através da escolha, de uma decisão
(Wojtyla, 1961/2003a, p. 314).
A partir dessa constatação, ressalta-se a centralidade da liberdade para a realização da
pessoa, não no sentido de uma independência incondicional e absoluta do poder de escolha,
mas enquanto possibilidade real de reconhecimento e afirmação pessoal da verdade tal como
se lhe apresenta na experiência.
Sintetizando as proposições até aqui apresentadas, Wojtyla (1982) enuncia que:
A realização, que ontologicamente corresponde à própria estrutura da
pessoa, unicamente se pode conseguir na pessoa. A pessoa encontra sua
realização ao executar uma ação, e ao conseguir assim sua adequada
plenitude ou perfeição, que em sua estrutura se adapta essencialmente à
condição estrutural de autogoverno e autoposse. Na ação, a pessoa consegue
sua própria realização, convertendo-se em “alguém”, e o ser “alguém” é a
manifestação de si mesmo. Junto com essa realização pessoal a palavra
“junto” tem aqui muita importância ou em união direta com ela se a
realização do eu em sentido axiológico e ético, a realização mediante a
cristalização do valor moral. Esta realização ou não realização depende
diretamente da consciência, do juízo formado na consciência. A função da
consciência é assim determinada pela estrutura ôntica da pessoa e pela ão,
especialmente pela dependência da liberdade em relação à verdade, que
corresponde unicamente à pessoa; este é o centro em que deve convergir a
transcendência da pessoa na ação e a espiritualidade do homem (p. 183).
A consciência tem então uma função essencial por referir-se à capacidade humana de
compreender, avaliar e distinguir o que é verdadeiro daquilo que não o é. Em outras palavras,
ela busca apreender a verdade enquanto valor, condicionando assim a experiência de
veracidade, regra normativa da verdade. Nessa busca, a consciência não aspira à verdade
na esfera dos valores como também identifica o valor fundamental da pessoa enquanto sujeito
da vontade e, portanto, agente das ações.
É possível destacar novamente a centralidade da pessoa na experiência de realização,
subordinada à consciência da verdade de si nas ações executadas no mundo. Trata-se de um
reconhecimento que brota na transição do “é” ao “deve” transição do “X é verdadeiramente
bom” ao “eu deveria fazer X”.
26
O centro de referência na experiência de dever é o eu, que toma para si a função de agir
em conformidade à verdade reconhecida por evidência. Uma ação que se baseia numa
convicção ou certeza subjetiva e que desemboca numa experiência de obrigação interior, no
sentido de um “chamamento” que conduza à realização de tal reconhecimento. A pessoa se
torna responsável por suas próprias ações, no sentido de ser capaz de responder aos valores a
partir dessa correspondência eu-mundo que a realiza. Por isso a responsabilidade está em
conformidade tanto com aquilo que se apresenta à pessoa como importante quanto com o
próprio eu como sujeito e agente da ação. Todo esse processo é entendido como um
dinamismo que explicita a radicalidade da potencialidade espiritual dimensão irredutível à
matéria, que se refere ao entendimento e à vontade enquanto fator constitutivo da ação
humana que possibilita a realização do eu pessoal na e por meio da ação.
É a partir destas elaborações que se conclui que realização e felicidade são sinônimas,
no sentido de apontar para o mesmo dinamismo estrutural presente na ação. “A felicidade
constitui o fim da natureza e não um objeto que se possa escolher” (Wojtyla, 1955-57/2003b,
p. 73), pois ela é um anseio por totalidade correspondente à estrutura da pessoa, e não um
conjunto de normas que acabam se tornando abstratas se não consideram esta busca pessoal.
Por outro lado, tal noção de felicidade se diferencia do prazer, que está estritamente
relacionado à dimensão natural, psíquica, isto é, fenômeno que se no homem (Wojtyla,
1982). Entretanto, esta distinção não é fácil de apreender no vivo da experiência, uma vez que
felicidade e prazer podem sobrepor-se. Não obstante, Wojtyla (1982, 1955-57/2003b) não
abre mão desta diferenciação por entender que a estrutura pessoal de felicidade não se reduz à
dimensão do prazer, não sendo nem guiada nem determinada pelo pressuposto da busca do
prazer e distanciamento da dor, tal como anunciado pelos sistemas éticos utilitaristas. Nesse
sentido, a realização experiencial do ser humano inclui o dinamismo do prazer-desprazer, mas
não é definida por ele.
É indispensável destacar ainda a dimensão intersubjetiva presente na realização da
pessoa em ação. De fato, a ação humana carrega em si um aspecto individual e um aspecto
social. Isso quer dizer que toda ação é realizada num mundo de relações, sendo que a pessoa
pode agir junto a outras pessoas. É nesse sentido que se reconhece um fator essencial da
estrutura humana que possibilita “estar junto” com os outros: a participação. Mais do que
simplesmente “fazer parte de”, participação se expressa no homem concreto enquanto
capacidade intrínseca de agir com outros, atualizando e valorizando as potencialidades
pessoais na relação com outras pessoas. Isso indica que o ser humano se realiza em sua
27
plenitude na medida em que participa pessoalmente e comunitariamente do mundo de
relações que o constitui.
Uma das conseqüências existenciais decorrentes da participação é a atitude de
solidariedade, que consiste em reconhecer o bem comum que condiciona adequadamente e
que possibilita a participação mútua da pessoa na comunidade.
Adentrando a obra de Stein e Wojtyla, pudemos elaborar um percurso que nos ajuda a
apreender a experiência da pessoa em ato, com atenção à sua motivação e à auto-realização
contida na ação.
Ora via motivação, ora via realização, destacamos a importância de considerar a
experiência contemplando a presença ativa do sujeito, presença livre que brota do centro da
pessoa. Ambos os autores explicitam a existência de um núcleo fonte da verdade de si mesmo,
um centro que mobiliza, que estrutura, que desperta, que busca, que pede e que espera. Um
ímpeto tão radical que precisa acontecer no mundo para que o eu aconteça, posto que é
somente aqui, neste nível, que se pode dizer, verdadeiramente, “eu sou”.
Além disso, Stein e Wojtyla nos provocam a olhar a experiência de voluntariado de
modo atento aos seguintes aspectos: 1) valorizar a análise das vivências como caminho
privilegiado para a descrição do dinamismo subjetivo; 2) evidenciar a centralidade da ação
enquanto reveladora e constituinte da pessoa; 3) acentuar que o ser pessoa emerge somente de
um certo tipo de elaboração que coincide com o que lhe é mais próprio; 4) reconhecer o
núcleo pessoal como capaz de estruturar e formar a pessoa em sua unidade e totalidade.
3. Modalidades de relação com o mundo: o campo perceptivo
O método fenomenológico, por meio da análise das vivências, reconhece a importância
de delimitar a estrutura da subjetividade e o modo como a mesma se expressa em ato no
mundo, buscando explicitar “a conexão profunda entre sujeito e objeto não como
contrapostos, mas como dois elementos que têm uma única raiz” (Ales Bello, 2004, p. 169).
Para tanto, a opção de Husserl é por iniciar a análise preferencialmente pelas operações mais
básicas, em que se destaquem os atos perceptivos (Ales Bello, 1998).
Buscando remontar às suas origens e evidenciar suas fontes, Husserl chega a demonstrar
que a percepção propriamente dita é precedida pela síntese passiva: conjunto de operações
básicas de diferenciação entre características como continuidade-descontinuidade,
28
homogeneidade-heterogeneidade, as quais nos possibilitam apreender o objeto em sua
unidade. Passividade, nesse sentido, diz de processos que nos afetam antes mesmo do seu
registro na consciência, de tal sorte que se pode apreender analiticamente um encadeamento
gradual de operações até que se chegue aos níveis mais elaborados de vivência humana (Ales
Bello, 2006).
Com a descrição da ntese passiva, Husserl nos oferece subsídios para a compreensão
de como a realidade apreendida pelo homem não se reduz a construções do seu próprio
intelecto, e sim é constituída pessoalmente por ele a partir dos elementos perceptivos que
recebe do exterior. Tal processo de constituição tem início já no ato da percepção, posto que a
síntese passiva é sucedida pela síntese ativa, que por sua vez está na base das operações mais
complexas que configuram a atividade intelectiva. Encontramos em Mahfoud e Massimi
(2008) uma descrição precisa desse processo, em que se pode apreender as íntimas conexões
entre percepção e pensamento:
Inicialmente os elementos do campo perceptivo se impõem ao eu: o estímulo
do objeto intencional, dirigindo-se para o eu, o atrai com força maior ou
menor, de modo que o eu cede. Esta receptividade do eu ante o objeto, na
verdade, é o grau mais baixo de sua atividade, pois o eu permite que o objeto
entre e o apreende. Tanto maior é a força afetiva do objeto, tanto mais forte é
a tendência do eu a dar-se ao objeto. Assim o eu se volta para o objeto,
iniciando uma nova tendência (eu objeto). Desta desenvolve-se o
pensamento, ou cogito, que é uma tendência ao objeto que parte do eu (p.
56).
Husserl destaca ainda que o campo perceptivo é composto tanto pela percepção
propriamente dita quanto pelo horizonte aperceptivo. Por apercepção entende-se o movimento
de implementar o que é captado diretamente pela percepção, do qual brota a impressão de
apreender a coisa em sua totalidade. Trata-se de uma espécie de indução, que se dirige tanto
para trás posto que se baseia em recordações ou modificações de recordações quanto para
frente – uma vez que pode se estender ao que ainda irá acontecer. Segundo Ales Bello (1998):
Com base nisso se conclui que: 1) cada percepção tem o seu horizonte
aperceptivo; 2) o mundo como universo das realidades é o correlato de um
entrelaçamento de percepções de diversos objetos e de todos os horizontes
aperceptivos reais e possíveis; 3) dirigindo a atenção para as formas ôntico-
subjetivas em que se realiza a percepção é possível distinguir os atos e as
afeições específicas do eu e as formas objetivas da entidade do que é
idêntico onticamente. Desse modo se justifica o fato de que a visão de
mundo, ou seja, a Anschauung der Welt pode torna-se Weltanschauung:
critério de orientação global (pp. 37-8).
29
Nesse sentido, a Fenomenologia ajuda-nos a redescobrir o valor da vivência perceptiva
enquanto modalidade de relacionamento entre o eu e o mundo, na qual se identifica tanto um
nível passivo do sujeito que sofre impacto da presença do mundo, quanto um nível
caracterizado pela presença ativa do sujeito, que elabora tal impacto buscando apreender a
presença do mundo. Quanto a tal elaboração, a identificação do horizonte aperceptivo
permite-nos compreender que o trabalho pessoal realizado pelo sujeito não prescinde da sua
história, daquilo que ele recebeu da cultura em que foi formado. É por isso que se pode
afirmar que
a apercepção, em especial, permite compreender a gênese dos produtos da
cultura que são percebidos com realidades com as suas propriedades de
coisas físicas, mas são igualmente apercebidos como formações culturais;
neste sentido, a apercepção do mundo pode ser considerada uma
“cosmovisão” (pp. 23-4).
4. Modalidades de relação com o outro: da empatia à comunidade
Com a descrição da dinâmica de articulação entre percepção e apercepção,
apresentamos as modalidades com as quais o sujeito amplia seu conhecimento do mundo
circundante em seu caráter físico (Ales Bello, 1998). Com relação à descrição da modalidade
de apreensão do mundo humano, Husserl realiza este passo ao considerar uma modalidade
peculiar de abordagem do outro, a vivência específica da empatia (Ales Bello, 2000). Edith
Stein (1917/2005b), uma de suas principais discípulas, enfrenta diretamente este tema
utilizando-se do referido método com o intuito de responder à seguinte provocação: o que
significa tomar conhecimento da vivência alheia?
De modo rigoroso, Stein (1917/2005b) demonstra o fato imediato de que os seres
humanos se reconhecem mutuamente enquanto sujeitos por meio do ato empático. Do ponto
de vista estrutural, trata-se da capacidade de captar que o outro experiencia que ele ativa
vivências que eu também ativo –, de apreendê-lo como alter ego, “outro eu”, reconhecendo-o
portador de potencialidades afetivas e cognitivas, formado de corporeidade, psiquicidade e
espiritualidade. Eu não vivo o que o outro está vivendo, mas sim eu o reconheço como
sujeito, isto é, um “eu” que vive, assim como eu vivo. Eu até posso buscar entender o que este
outro está vivendo, mas isso já é num segundo momento, após esta percepção imediata do
outro como ser humano.
30
Nesse sentido, a empatia, além de implicar uma clara diferenciação entre os sujeitos
que, com isso, podem se relacionar reciprocamente, torna-se a base a partir da qual se
desenvolve a própria subjetividade. “De fato, a constituição do indivíduo fora de mim é a
condição da constituição do indivíduo em si mesmo; pois, quando capto o corpo de um outro
como meu semelhante, capto também a mim mesmo como igual a ele” (Ales Bello, 2000, p.
162).
Portanto, pode-se dizer que a alteridade é constitutiva da subjetividade. Este ponto
merece atenção. É a partir do olhar do outro que eu tenho condições objetivas de poder olhar
para mim mesmo, reconhecendo-me e constituindo-me como um “eu”, diferente deste outro
“eu” que me olha. Isso não significa que meu conceito de eu é determinado pelo outro,
pois, ao contrário, desperta em mim a comparação com aquilo que se
apresenta a mim na percepção interior, permitindo-me adquirir cada vez
mais a consciência de mim mesmo através de uma referência contínua que
pode ter também uma função de corrigir enganos eventuais (p. 162-3).
Assim, o olhar do outro pode possibilitar que eu seja mais “eu mesmo” por meio do
reconhecimento desta contínua correspondência entre autoconsciência e realidade. Tal
correspondência refere-se a um trabalho árduo de subjetivação, na medida em que, no contato
com o mundo, o ser humano elabora continuamente a própria vivência de modo a se constituir
cada vez mais enquanto pessoa. É no impacto com o real, nas respostas às provocações que a
vida solicita, que o ser humano se conhece, tornando-se “si mesmo”.
Em outras palavras, a empatia manifesta toda a sua potência no nível espiritual, ou seja,
quando o sujeito compreende o outro inserido no mundo humano atualizando atos intelectivos
e, especialmente, atos volitivos, isto é, quando o ser humano se dispõe por inteiro a estar
diante do outro em sua pessoalidade característica. É a partir daí que o conceito de pessoa
entendido organicamente enquanto microcosmos aberto faz sentido e ganha consistência ao
destacar a justa posição do ser humano inserido no mundo que o constitui.
Dentre os vários níveis da vida associada humana que Stein analisa,
6
o que mais
interessa para a presente discussão é o da comunidade, devido à potencialidade que ela
carrega para afirmar a pessoa em sua totalidade. Tal afirmação é possível graças ao
reconhecimento do caráter orgânico da comunidade, constituída por uma força vital oriunda
inicialmente dos indivíduos particulares, mas que, uma vez objetivada, os estimula e sustenta.
Por conseguinte, a comunidade se realiza por meio de atos sociais, os quais expressam a
abertura da pessoa ao relacionamento recíproco e a tomada de posição própria de cada
31
indivíduo singular que podem direcionar e redirecionar o curso de desenvolvimento da
comunidade (Ales Bello, 2000).
Tais posicionamentos são carregados de valor, podendo ser positivos ou negativos,
dependendo dos efeitos que geram. A genialidade de Stein consiste justamente em evidenciar
que a positividade se torna valor não em sentido abstrato, mas sim porque afirma a pessoa
naquilo que lhe é mais próprio: sua capacidade de abertura e tomada de posição. Nestes
termos, o relacionamento empreendido é valorativamente positivo quando é capaz de permitir
que as pessoas envolvidas sejam mais “si mesmas” no relacionamento posto.
Experiencialmente, torno-me mais “eu mesmo” quando consigo favorecer o outro a se tornar
mais “si mesmo”. É justamente nesta posição de disponibilidade, reconhecimento e afirmação
do outro que se funda a solidariedade. Desse modo, o ato solidário é “re-significado”,
conduzindo-nos a compreendê-lo enquanto relacionamento estruturante do ser do homem,
base sob a qual a pessoa e a comunidade se realizam. Retornaremos a este ponto
oportunamente.
Assiste-se, a partir do estudo da empatia, ao enriquecimento da antropologia
fenomenológica, a qual possibilita responder à questão referente à constituição do ser humano
considerando-o imprescindivelmente inserido num contexto social e histórico (Ales Bello,
1998).
Toda essa discussão lança a possibilidade de se compreender do ponto de vista do outro,
na medida em que possuímos estruturas comuns passíveis de serem atualizadas. Daí a
importância de um método rigoroso que nos permita a aproximação do outro em suas
modalidades expressivas a um tempo singulares e universais. Incita-nos também a
vislumbrar a experiência de voluntariado em sua ligação orgânica com a dinâmica da
solidariedade, e, assim, o ato de voltar-se para o outro sem esperar daí um retorno material
revela-se como algo constitutivo, que pode até ser reduzido a prática ideológica, mas que
possui seu fundamento originário na estrutura da pessoa. Essa última constatação ajuda-nos a
olhar para a experiência que investigamos estando mais atentos ao modo como o sujeito
empenha-se nessa modalidade de trabalho e às conseqüências que dpodem surgir. Além
disso, tomado nesses termos, o voluntariado pode se concretizar como meio de
reconhecimento e afirmação do ser pessoal, de onde emerge o seu potencial realizador.
A problematização da empatia e de sua vinculação com a comunidade provoca-nos,
ainda, a encarar a experiência perguntando-nos até que ponto ela vincula-se a um contexto
6
Ales Bello (2000) apresenta as análises de Stein referentes a comunidade, massa, sociedade, povo e Estado.
32
comunitário e de que modo isso se dá; em que medida esse contexto ajuda a pessoa a emitir
juízos frente ao que está vivendo; e qual é a qualidade desses juízos do ponto de vista da
estrutura da subjetividade.
5. Mundo-da-vida e culturas
A análise estrutural da percepção-apercepção e da empatia apontam modalidades que
possibilitam ao sujeito ampliar o conhecimento da realidade que o cerca, isto é, do mundo
circunstante. Dando continuidade ao espírito de investigação fenomenológica, é fundamental
se perguntar sobre os elementos constitutivos deste mundo, buscando evidenciar aquilo que
lhe é essencial (Ales Bello, 1998).
É no bojo desta indagação que emerge um conceito de fundamental importância para
compreender o substrato que possibilita ao sujeito elaborar a própria experiência: mundo-da-
vida (Lebenswelt). Trata-se de um mundo nosso, mundo histórico-cultural concreto,
fundamentado intersubjetivamente em usos e costumes, saberes e valores (Husserl,
1954/2008; Zilles, 1996, 1997). A um tempo baseado na experiência pessoal e coletiva, o
mundo-da-vida é “constituído por toda a bagagem de experiências vivenciais que cada ser
humano possui e compartilha com o grupo ao qual pertence” (Ales Bello, 1998, p. 38).
Refere-se ao que é habitual, que nos confere segurança para nos movermos no campo da
vida prática, cotidiana e, portanto, configura-se como estável e pré-reflexivo, embora possa
posteriormente tornar-se objeto de reflexão. Mundo-da-vida é a matriz de significação que
oferece instrumentos que possibilitam que o sujeito lide com o real de modo conexo com a
experiência compartilhada, pois é o âmbito originário das “formações de sentido”, horizonte
aberto e vivo no qual “os dados e experiências singulares compartilham ser e sentido com a
totalidade na qual se inserem” (Zilles, 1996, p. 146). Assim, cada pessoa não precisa inventar
soluções novas a cada problema que surge: pode percorrer caminhos trilhados por outros,
sem se sentir sozinha e sem precisar lidar sempre com o desconhecido (Schutz cf. Wagner,
1979).
O mundo-da-vida oferece recortes que permitem a pessoa adentrar o real a partir de uma
perspectiva que é situada e, justamente por isso, ela pode se abrir para o que encontra à sua
volta, podendo depois contemplar possibilidades outras. Dando-lhe certezas, fornece a
coragem para enfrentar o desconhecido e fazer um trabalho pessoal ao elaborar aquilo que
33
encontra, podendo chegar até mesmo a questionar elementos do seu próprio mundo-da-vida
(Husserl, 1954/2008).
Por toda essa ligação com a experiência concreta, viva, o mundo-da-vida revela a sua
ancoragem numa antropologia a priori, ou seja, num vel básico da estrutura humana, já
caracterizada acima como constituída pelas dimensões corpórea, psíquica e espiritual (Ales
Bello, 1998). Isso não quer dizer que todos os mundos-da-vida sejam idênticos ou que
favoreçam a realização, de uma forma acabada, de todas as dimensões da pessoa. Ao invés,
essa ancoragem significa uma base de onde emergem as mais variadas formas de articulação
das qualidades de vivências, justamente porque a configuração do mundo-da-vida o
prescinde de um trabalho que é pessoal e, conseqüentemente, criativo.
Daí a importância de uma descrição fenomenológica que se ocupe de modo essencial da
configuração própria do contexto de significação em exame. Além disso, a conceituação do
mundo-da-vida permite-nos começar a compreender o sujeito sem desconectá-lo do seu
mundo, incitando-nos a construir uma verdadeira ciência da pessoa, da subjetividade inserida
no mundo (Mahfoud & Massimi, 2008).
Mas uma tal ciência não pode se limitar ao mundo-da-vida: há outros mundos nos quais
se move o sujeito, em que se destaque o “mundo das culturas”. Termo que carrega uma
complexidade que lhe é própria, cultura requer múltiplos níveis de análise (Ales Bello, 1998).
Num primeiro nível, cultura pode ser descrita como relacionada à produção humana, ou,
mais precisamente, como atividade que manipula a realidade segundo um projeto e, nesse
processo, contribui para a constituição dessa realidade de um determinado modo. Dada a sua
variabilidade, Husserl insiste que o termo cultura ligue-se sempre a um adjetivo, favorecendo
a diferenciação de expressões “pré-científicas” daquelas mais teóricas e evidenciando o modo
como as mesmas podem se articular, ancorando-se ou não no mundo-da-vida. A esse respeito,
escreve Zilles (1996):
Entre o mundo da ciência e o mundo da vida instaura-se um processo
dialético de maior ou menor distanciamento. O mundo expresso no modelo
científico, interpretado por uma ideologia ou cosmovisão, permanece
mundo, mas é um mundo mutilado ou parcial. É um empobrecimento da
realidade rica do mundo da vida do qual não deixa de ser um ato derivado. O
sentido da ciência legitima-se, em última instância, no mundo da vida.
este confere fundamentação axiológica, estrutura intencional e doação
originária de sentido à própria ciência. (…) O mundo da vida é, para
Husserl, um mundo que tem o homem como centro (p. 146).
Nesse sentido, Husserl chama a atenção para o fato de que a cultura científica ou não
pode afastar-se do mundo-da-vida, tornando-se abstrata e levando os sujeitos a vivenciarem
34
experiências fragmentadas. Entretanto, permanece aberta a possibilidade de constituição de
cultura articulada organicamente ao mundo-da-vida, desde que se busque preservar a
centralidade da pessoa e a promoção de espaços para que ela elabore suas vivências de modo
integrado.
Dessa maneira, a Fenomenologia realiza uma leitura interior das expressões culturais,
culminando com a delimitação da cultura sob um novo prisma, “no sentido de que ela é
reconduzida ao seu significado profundo, constituído pela mentalidade, pela forma de
orientação, pelas expressões e pelos produtos próprios de um grupo humano” (Ales Bello,
1998, p. 42). Neste nível de análise, a expressão cultural contribui para e é fruto do
posicionamento do sujeito.
Grygiel (2002) enriquece esse debate ao defender que não é qualquer posicionamento
que constitui cultura. Diferentemente dos processos civilizatórios, em que se prioriza a
técnica, a eficiência, distanciando o homem de si mesmo e de seu passado, os processos
culturais se caracterizam pela abertura da pessoa ao mundo numa atitude de pergunta pelo
significado daquilo que encontra e de espera pela realização do ser de cada coisa segundo suas
próprias leis. Tais posicionamentos nascem da consciência moral, dimensão mais constitutiva
da pessoa, fonte de onde brotam essas perguntas pelo ser das coisas e essa laboriosa espera
das conseqüências do verdadeiro e do bem realizado no homem. Como corolário, chega-se a
uma definição de cultura que não prescinde dessa consciência.
Para ilustrar sua definição, o autor utiliza-se da metáfora do agricultor: ele é homem da
cultura por ser capaz de relacionar-se com a terra buscando a sua verdade e confiando nas
conseqüências que daí advêm, mesmo que elas não lhe tragam prazer. Confia também na
verdade do próprio labor, pois sabe ler os sinais, arar, semear e esperar, ou seja, sabe colocar
algo de seu no mundo respeitando a dinâmica desse mundo. Essa metáfora evidencia o
reconhecimento de uma ordem existente e estável kosmos
7
que a cultura busca respeitar e
contribuir para que se expresse e se realize plenamente.
A análise fenomenológica, ao se voltar para a experiência da pessoa, ressalta a
importância de considerá-la situada em um mundo, seu mundo-da-vida, que não apenas a
rodeia, mas contribui para sua constituição oferecendo-lhe as ferramentas, o substrato para
seu processo de subjetivação. Por outro lado, esse mundo é sempre um mundo humano, que
se estrutura e se mantém a partir dos posicionamentos daqueles que o compõem.
7
O kosmos sustenta e supera a figura transeunte do mundo, marcada por seu caráter corruptível: saeculum.
35
O reconhecimento dessa complexidade, somado à possibilidade de escavar a cultura até
chegar a seu sentido radical, permite que nos aproximemos da experiência de voluntariado
considerando-a não como expressão de uma individualidade, mas vinculada desde sempre
a uma elaboração coletiva situada em um horizonte cultural determinado. Portanto, incita-nos
a olhar dessa perspectiva mais ampla, na qual não se perde o que é mais próprio da pessoa, ao
mesmo tempo em que se busca considerar as matrizes sociais dos seus posicionamentos.
Trata-se, pois, de um duplo chamado: buscar captar na ação dos sujeitos o que há ali de
estrutural e compartilhado e buscar compreender de que modo a proposta cultural em que essa
ação se ancora contribui para a efetivação dessa ação e para a constituição da subjetividade.
6. Orientação cultural na contemporaneidade
Ao apresentar as bases para uma compreensão profunda da cultura e de suas possíveis
relações com o mundo-da-vida, a Fenomenologia oferece-nos parâmetros para uma apreensão
crítica das diversas propostas culturais existentes, em que se destaque a orientação cultural
das sociedades tipicamente modernas.
Berger & Luckmann (2004) realizam tal apreensão crítica tomando como ponto de
partida a explicitação dos fundamentos da significância na vida humana e de seu
delineamento nas relações sociais. Seguindo este percurso, os autores demonstram a
centralidade do reconhecimento do sentido
8
e da sua objetivação por meio do agir social para
o desenvolvimento da subjetividade humana. As ações humanas, compartilhadas
intersubjetivamente em comunidades de vida e/ou de convicção e objetivadas em instituições,
podem ter como derivação diferentes estratificações de sentido que vão desde as tipificações
simples e basilares relacionadas a fatos da natureza e ao mundo social até os sistemas de
valores supra-ordenados. Tais sistemas pretendem explicar e regular significativamente a
totalidade da conduta subjetiva e intersubjetiva, incidindo, portanto, até mesmo nos estratos
inferiores de sentido.
Enquanto nas culturas tradicionais verifica-se alto grau de integração e de coerência
entre as estratificações de sentido, os autores apontam que o que caracteriza estruturalmente
as sociedades modernas é o fato de que os diversos campos institucionais buscam autonomia
8
“O sentido é a consciência de que existe uma relação entre as experiências” (Berger & Luckmann, 2004, p. 15).
36
de normas, utilizando-se, para isso, da vinculação de seus sentidos funcionais (racionais-
finalistas) a valores supra-ordenados. Entretanto, tais tentativas
de ligar finalidades legitimadoras a valores supra-ordenados podem acarretar
nada mais do que fórmulas vazias, assim como a conduta de vida orientada
para valores pode ficar limitada ao âmbito privado. Assim se fortificariam as
condições para a difusão de crises subjetivas e intersubjetivas de sentido.
Contudo, criam-se assim também os pressupostos para outra coisa, isto é,
para a coexistência de diferentes ordens de valores e de fragmentos de ordem
de valores na mesma sociedade e, com isto, a existência paralela de
comunidades de sentido bem diferentes. O estado que resulta desses
pressupostos pode ser chamado pluralismo. Quando ele mesmo se
desenvolve como um valor supra-ordenado para a sociedade, podemos falar
de pluralismo moderno (p. 36).
Apesar do pluralismo moderno encarnar tal relativização dos sistemas de valores e,
como conseqüência, contribuir decisivamente para a desorientação individual e coletiva,
Berger & Luckmann (2004) assumem uma posição original com relação às críticas habituais
da sociedade e da cultura contemporâneas ao reconhecerem a capacidade dos indivíduos e das
comunidades de vida em preservar seus valores, resguardando a si e a sociedade como um
todo de uma crise generalizada de sentido.
Como tal capacidade de resistência se expressa? Por meio das instituições
intermediárias, que se constituem como instituições de produção e comunicação de sentido
que permitem ao indivíduo colocar os valores da sua vida a serviço dos vários setores da
sociedade. “Estas instituições atuam como geradoras e sustentadoras de sentido na conduta de
vida dos indivíduos e na coesão de comunidades de vida(p. 74), desde que apoiadas nos
mundos-da-vida de tais comunidades. Nessa configuração, as instituições intermediárias
revelam sua proeminência sobre outras formas de trato social das crises de sentido, tais como
as posturas opostas do fundamentalismo e do relativismo. É por educar pessoas e
comunidades para o diálogo com a proposta cultural vigente que as instituições intermediárias
carregam em si a possibilidade de tanto prevenir contra as crises subjetivas e intersubjetivas
de sentido quanto de auxiliar na própria produção e processamento do acervo social de
sentido.
Quanto à consideração de quais seriam essas instituições intermediárias, Berger &
Luckmann (2004) apontam para entidades com grande potencial para realizarem a
intermediação entre a organização social ampla e a vida do indivíduo. Dentre estas, destacam-
se as instituições de cunho religioso justamente por tenderem a representar a comunidade de
sentido mais importante para os indivíduos, por meio da qual eles podem construir uma
“ponte significativa entre sua vida particular e sua participação nas instituições sociais” (p.
37
72) e resguardarem-se da alienação para com a sociedade. No entanto, os próprios autores
alertam para o fato de que o reconhecimento de quais instituições efetivamente funcionam
como intermediárias somente é possível por meio da análise empírica do seu modo concreto
de funcionamento.
Desse modo, fica a provocação da centralidade de investigações rigorosas para que se
consiga explicitar o papel desempenhado pelas diferentes instituições que compõem o tecido
social. No caso específico da presente pesquisa, as contribuições de Berger & Luckmann
(2004) incitam-nos a buscar compreender em que medida a experiência de voluntariado
realizado no contexto da instituição espírita em estudo constitui-se como uma resposta pessoal
dos sujeitos à configuração cultural moderna. Como desdobramento, esperamos poder captar
até que ponto tal instituição é tomada por esses sujeitos como intermediária entre sua vida
pessoal e a sociedade mais ampla na qual se inserem.
7. Experiência de realização de si e experiência religiosa: possibilidades de articulação
Até aqui, vimos como a Fenomenologia auxilia-nos a reconhecer a centralidade das
pessoas na cultura, pois a constituição desta depende fundamentalmente das elaborações e
ações daqueles que a compõem. Ademais, é a resposta pessoal dos sujeitos que se constitui
como a possibilidade de superar os recortes culturais potencialmente geradores de crises de
sentido e alienação.
Esse processo alienante não coincide com uma das finalidades nucleares da ação: o ser
pessoa (Giussani, 2001d; Grygiel, 2002; Wojtyla, 1982). E o voluntariado, por definição,
coloca tal finalidade em primeiro plano, retomando o sentido de solidariedade como
realização de si e do outro (Morandé, 1990).
Tocando neste último ponto, emerge a questão do que entendemos por experiência de
realização de si, aspecto fundamental em nossa discussão.
Vimos com Wojtyla (1982) que a realização, do ponto de vista ontológico, se na
execução da ação que atualiza a estrutura própria da pessoa, convertendo-a em alguém, e não
meramente em algo. No entanto, a realização em sua plenitude não prescinde da dimensão
ética, pois a pessoa somente se realiza por inteiro quando se posiciona considerando a
bondade moral de sua ação. E o que se entende por bondade moral? Trata-se da busca, do
reconhecimento e da adesão livre à verdade que se apresenta à consciência e que, ao tornar-se
38
um valor correspondente à pessoa, emerge como um dever a ser concretizado em ato. De fato,
mesmo que eventualmente possa trazer algum tipo de prazer, a ação que não atende a tal
critério da bondade moral leva à não realização, ainda que a pessoa atue.
Giussani (1998, 2003b, 2009) contribui para essa discussão ao indicar que, do ponto de
vista vivencial, a pessoa se realiza quando satisfaz alguma necessidade e, se tal necessidade é
física e/ou psíquica, a realização se dará nestes níveis.
Por exemplo: quando estamos com sede, temos necessidade de beber alguma coisa para
“matá-la”. O que “mata a sede”? Água. Então, ao beber a água, a necessidade passa e ficamos
saciados, gerando um prazer subseqüente. Por instantes, sentimo-nos completos quanto a esta
necessidade. No entanto, pouco tempo depois, sentimos sede novamente. Bebemos água e nos
saciamos, e assim ininterruptamente. Esta é a dinâmica própria do prazer-necessidade, que é
dada pela falta de algo, precedida por um desejo que gera um prazer momentâneo (Lewis,
2005).
Entretanto, Giussani (1998, 2003b, 2009) e Mahfoud (2001) retomam a experiência de
realização em seus elementos fundantes ao apontar a centralidade de critérios estruturais,
denominados exigências, chegando a uma compreensão do dinamismo propriamente humano
que inclui, mas não se reduz à dimensão da necessidade.
Giussani (2002, 2004, 2009) chama esse núcleo de experiência elementar: conjunto de
evidências e exigências (liberdade, justiça, beleza, felicidade, verdade, amor) constitutivas da
pessoa, critério para avaliação de toda a experiência, busca infindável de sentido
estruturalmente aberta à totalidade e que se revela somente no eu em ação.
Experiência elementar: algo que tende a indicar de maneira acabada o
ímpeto original com o qual o ser humano se lança na realidade procurando
identificar-se com ela por meio da realização de um projeto que imprima à
própria realidade a imagem ideal que o estimula interiormente (Giussani,
2009, p. 27).
Nesse sentido, a experiência de realização não se joga na capacidade individual de
estarmos isentos de condicionamentos para, enfim, podermos escolher; possibilidade que
muitas vezes nos paralisa ao invés de mobilizar. Tal experiência também não coincide com
vivências sentimentalistas de prazer que, passageiras, podem nos levar ao vício de querer
sempre mais algo que não nos satisfaz pessoalmente. De fato, a realização se afirma enquanto
experiência justamente no posicionamento da pessoa, calcado na promessa que a vida solicita,
promessa esta que acende e potencializa a busca de ir em direção à realização plena (Gaspar,
Maia & Mahfoud, 2008a).
39
Tal dinâmica é experienciada como liberdade, que não se encerra na capacidade de
escolha, completando-se na adesão da pessoa àquilo que lhe corresponde no real (Giussani,
1998, 2003b, 2009). Assim, a liberdade se apresenta não como possibilidade de escolha,
mas se realiza como capacidade humana de carregar em si critérios elementares com os quais
julgar a realidade e como responsabilidade (dever moral) de aderir àquilo que se reconhece
como verdadeiro e realizador (Giussani, 1998, 2009).
Giussani (2001b, 2001d, 2003a, 2008) identifica neste dinamismo a possibilidade real
do encontro entre pessoas por via do compartilhamento da vida em suas necessidades mais
concretas até o sentido último que as motiva. Quanto mais se vive esta exigência, tanto mais a
pessoa se realiza no encontro com o outro. Portanto, essa dinâmica evidencia a necessidade da
alteridade para a realização pessoal, uma vez que são precisamente os relacionamentos
significativos que dão força e consistência à liberdade de aderir às provocações próprias da
vida e que realizam a pessoa naquilo que lhe é mais radical. Afirma Giussani (2009):
A dimensão comunitária representa não a substituição da liberdade, da
energia e da decisão pessoal, mas é a condição para a sua afirmação. Se eu
coloco uma semente de feijão sobre a mesa, mesmo depois de mil anos
(dado que tudo permaneça intacto) ela não se desenvolverá. Se eu tomo essa
semente e a coloco na terra, ela se torna uma planta. O húmus não substitui a
energia irredutível, a “personalidade” incomunicável da semente: o húmus é
a condição para que a semente germine. A comunidade é a dimensão e a
condição para que a semente humana dê o seu fruto (p. 198).
Fruto da experiência de felicidade é o empenho contínuo em imprimir no mundo o que é
vislumbrado como ideal. Diferentemente do sonho que, por natureza, se constitui a partir de
um amálgama produzido pela mente, o ideal se funda na virtude de emitir certezas
existenciais acerca de propostas correspondentes às “urgências do coração” (Giussani, 1998,
2009).
Seguindo o percurso ressaltado por Giussani (1998), tais certezas existenciais provocam
a pessoa a se comover em ato, a se relacionar com o outro reconhecendo suas exigências,
esperando que ele se realize e confiando na potencialidade daquele encontro. A conseqüência
última dessa confiança é a letícia, expressão da plenitude do ser calcada na experiência de
gratuidade, que não espera nada do outro a não ser a sua felicidade total (Giussani, 1998,
2003a).
Trata-se de posicionamentos que expressam um relacionamento autêntico com alguma
alteridade reconhecida como correspondente e que se tornam referência para a avaliação de
outras vivências, mesmo que seja por meio da dor da não realização da experiência elementar
40
que convida a uma constante retomada das próprias exigências (Gaspar, Maia & Mahfoud,
2008a).
No entanto, uma correspondência total pode se dar diante de uma alteridade infinita,
demonstrando assim a importância de se considerar esse ímpeto por correspondência total,
denominado senso religioso, como dimensão constitutiva da pessoa, imprescindível para a
reflexão sobre as modalidades de realização plena (Giussani, 2000, 2008).
De fato, a experiência elementar ressalta o ímpeto existencial de abertura à realidade
que busca algo correspondente à sua “face interior”, realizando-a. Essa abertura, fator
constituinte da razão, se exprime em certas perguntas radicais e inextirpáveis da vida do eu e
pedem uma resposta total. E quanto mais a razão se volta na tentativa de respondê-las, mais se
evidencia a desproporção dramática entre a resposta dada e o horizonte total que a solicita
(Guissani, 2009). No impacto com a realidade, a vida desperta perguntas cujas respostas estão
para além da medida do homem, mas que, existencialmente, em vez de paralisá-lo, o instigam
cada vez mais (Giussani, 2009; Mahfoud, 2001).
Segundo Giussani (2009), o senso religioso é justamente a “capacidade que a razão tem
de exprimir a própria natureza profunda na interrogação última, é o lócus da consciência que
o homem tem da existência” (Giussani, 2009, p. 88, grifos do autor). Isso significa que o ápice
da conquista da razão consiste justamente em se abrir à totalidade dos fatores, aceitar
maravilhado a provocação da realidade e perceber o sinal da Presença de um ser
transcendente do qual tudo e todos dependem. Esta é a idéia de mistério. Portanto, o senso
religioso é a base da experiência religiosa, que consiste no relacionamento do eu com esta
Presença misteriosa reconhecida como fonte de sentido (Giussani, 1997, 2002, 2008, 2009).
Tal definição aproxima-se das elaborações de Gerardus van der Leeuw (1933/1964)
que, em sua obra clássica Fenomenología de la religión, busca evidenciar a estrutura interna
irredutível do fenômeno religioso. Analisando diferentes religiões, o fenomenólogo pôde
identificar que todas apontam para o reconhecimento de um Poder transcendente,
surpreendente e altamente solicitador. A experiência religiosa é, então, a resposta concreta
que tenta realizar a busca propriamente humana por um sentido último e por um
relacionamento com o Mistério que lhe transcende.
Delineia-se, assim, o dinamismo propriamente humano que fundamenta a experiência
religiosa, ponto fundamental do nosso projeto. O reconhecimento das imbricações entre
experiência religiosa e experiências de realização, bem como a compreensão de que tais
experiências de realização carregam um movimento próprio que se atualiza nos modos
singulares da pessoa se posicionar no mundo preparam-nos para o trabalho de campo. De fato,
41
percebemos como tais compreensões abrem horizontes, possibilitando-nos adentrar nas
vivências de voluntariado numa instituição espírita sem perder a complexidade dinâmica de
seus fundamentos: a motivação pessoal; a ação livre e gratuita; a finalidade ideal e o horizonte
cultural e religioso que a sustenta.
42
II – OBJETIVOS
1. Objetivo geral
Investigar como se configura o relacionamento entre a experiência de voluntariado
enquanto potencialmente realizadora da pessoa e o contexto sociocultural de uma
instituição espírita, tal como vivido e revelado pelos sujeitos da experiência.
2. Objetivos específicos
1) Captar como os sujeitos da experiência apreendem e elaboram o que lhes é proposto
por esse contexto sociocultural e de que modo esse posicionamento pela via do
voluntariado pode ser realizador;
2) compreender de que modo o contexto sociocultural da instituição espírita em estudo
se estrutura e como é proposto concreta e cotidianamente aos sujeitos que o
compõem;
3) apreender as contribuições da experiência religiosa no processo de elaboração e de
realização da pessoa no contexto sociocultural.
43
III – JUSTIFICATIVA
Vimos que considerável material disponível a respeito do voluntariado, inclusive a
respeito do voluntariado no contexto sociocultural de instituições espíritas. Qual é então a
originalidade do presente projeto?
Os estudos que abordam esses temas centram-se em análises históricas, antropológicas,
institucionais e motivacionais, ao passo que a s interessa a dinâmica de interação entre um
contexto sociocultural específico e a experiência de voluntariado enquanto potencialmente
realizadora da pessoa.
Entendemos que enfocar essa prática cultural a partir das vivências das pessoas nela
inseridas gera subsídios para se repensar o voluntariado em seus fundamentos e problematizar
a forma como ele tem sido exercido e definido contemporaneamente. Nessa perspectiva,
situamo-nos no âmbito da Psicologia da Cultura de orientação fenomenológica (Augras,
1995), vertente da Psicologia Social.
44
IV – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
1. Campo da Pesquisa
Realizamos a pesquisa em uma instituição espírita de reconhecida notoriedade dentro do
Movimento Espírita Mineiro e oficialmente vinculada à Federação Espírita Brasileira (FEB).
2. Coleta de dados
2.1. Trabalho de campo e escolha dos sujeitos
Temos como objetivo captar o relacionamento entre a experiência de voluntariado
enquanto potencialmente realizadora da pessoa e o contexto sociocultural sem perder a
riqueza característica desta dinâmica. Para tanto, recorremos à observação participante tal
como proposta por Brandão (2005, 2007) com vistas a compreender este fenômeno sem
retirar sua vitalidade, preservando o que há de mais essencial naquilo que se apresenta.
A primeira etapa da coleta de dados constitui-se como um trabalho de campo de cunho
etnográfico que se estendeu por três meses, em que buscamos partir da realidade concreta da
vida cotidiana dos sujeitos em suas múltiplas facetas e interações com o intuito de colher a
estrutura e as dinâmicas da vida social em sua historicidade e totalidade. A observação
participante nessa modalidade de investigação solicita um envolvimento e uma convivência
pessoal do pesquisador, que compreende e produz conhecimentos na relação intersubjetiva
com os sujeitos que compõem tal realidade social (Brandão, 2005).
Nesse sentido, buscamos proceder à observação participante reconhecendo a
centralidade do processo de elaboração pessoal, evitando pré-ideologizações partidárias e
imposição de informações e valores, e salientando o compromisso com a comunidade
enquanto fonte originária do saber que o pesquisador apreende, reconstrói e comunica em sua
vivacidade (Brandão, 2007).
Baseando-nos nos passos ressaltados por Brandão (2007), num primeiro momento,
convivemos pessoalmente com os sujeitos que trabalham voluntariamente na instituição
investigada, objetivando descrever seu modo de funcionamento prático, apreender sua
proposta sociocultural. Tal convivência implicou não observar e registrar descritivamente,
45
mas buscar compreender em profundidade a vida social tal como vivida e revelada pelos
sujeitos.
Não nos interessamos por identificar informações genéricas sobre o trabalho realizado,
sobre fatos objetivos que o delineiam, mas sim por colher a experiência mesma dos sujeitos
enquanto trabalham (Amatuzzi, 1996, 2008; Bosi, E., 2005), colher elaborações reveladoras, a
um tempo, de posicionamentos pessoais e do contexto sociocultural no qual eles se
assentam. Para tanto, aproximamo-nos dos sujeitos em suas situações de trabalho, inclusive
desempenhando algumas atividades junto a eles quando isso se mostrou pertinente, de modo
que pudéssemos compartilhar a concretude do seu cotidiano de voluntários em uma
instituição espírita.
Nesse empreendimento, utilizamos diário de campo e, quando necessário
especialmente em momentos de elaboração da experiência –, gravamos as conversas em
registros sonoros.
Com essa imersão na realidade da instituição, pudemos, num segundo momento,
identificar pessoas-referência quanto ao modo ideal de trabalhar ali, isto é, pessoas que o
reconhecidas como modelos pelo modo como se envolvem e comprometem-se pessoalmente
com a experiência de voluntariado. Sendo este um ponto crucial para nossa pesquisa, uma vez
que estamos interessados em apreender possibilidades de relação entre voluntariado,
realização da pessoa, contexto sociocultural e experiência religiosa, entendemos que a seleção
aleatória de sujeitos traria grandes chances de que elementos acidentais do fenômeno fossem
tomados como essenciais, inviabilizando o alcance de nosso objetivo. Por isso, optamos por
proceder à modalidade de seleção intencional dos sujeitos, que parte das informações
disponíveis para a identificação de figuras emblemáticas para a temática em questão (Gil,
1999).
Com essas pessoas selecionadas intencionalmente, objetivávamos passar a outro tipo de
entrevista, que se diferenciasse pelo caráter semi-estruturado. Entretanto, em nosso contato
com a instituição investigada, muitos foram indicados e reconhecidos por nós como pessoas-
referência. Como, então, selecionamos os que entrevistamos nesse segundo momento? De um
lado, a partir da observação das situações de trabalho voluntário, optamos por aqueles cuja
atuação mais despertou nossa atenção quanto à vitalidade e empenho no modo de trabalhar.
De outro, a variabilidade dos graus de dificuldade de acesso aos sujeitos favoreceu a
realização de algumas entrevistas e inviabilizou outras.
46
2.2. Entrevistando os sujeitos
A etapa de entrevistas semi-estruturadas se estendeu por dois meses. Mantemos a
proposta de privilegiar não opiniões sobre o assunto, mas a expressão da experiência
(Amatuzzi, 2008). Em momentos propícios à elaboração, solicitamos diretamente aos sujeitos
que discorressem sobre o trabalho voluntário que realizam.
9
Ao longo da entrevista, buscamos
não induzir que os sujeitos falassem aquilo que esperávamos deles, respeitando a dinâmica de
elaboração de cada um, mas com cuidado para auxiliá-los a retomarem o foco na experiência
sempre que necessário (Thompson, 1992).
3. Transcrição dos relatos
Os registros sonoros realizados foram transcritos integralmente, com cuidado para que
fossem mantidos os estilos de linguagem de cada sujeito. Essa forma de transcrição implica
buscar, a um tempo, preservar a maneira como o sujeito se expressa e atentar para que a
reprodução escrita não se torne caricatural. Entendemos, com Mahfoud (2003), que o critério
para realizar a transcrição por esse modo está no fato de que os sujeitos possam se reconhecer
no texto.
Procuramos também incluir nas transcrições dados não verbais registrados no diário de
campo que pudessem ser reveladores da vivência dos sujeitos no momento da entrevista, tais
como expressões faciais e corporais, olhares e gestos expressivos, etc.
Posteriormente, realizamos a textualização das transcrições com vistas a facilitar a
leitura e a compreensão da experiência comunicada, com cuidado para que não fosse perdida
sua vitalidade e complexidade original (Mahfoud, 2003).
4. Análise dos dados
A análise dos dados guiou-se pelo método fenomenológico (van der Leeuw,
1933/1964), que toma os relatos como expressão do vivido e escava a subjetividade e o
9
A entrevista também foi acompanhada pela leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (vide modelo do Termo em Anexo).
47
mundo-da-vida. Com esse procedimento, podemos chegar ao modo como a realidade social se
estrutura; à constituição mútua entre o eu e o mundo; e também à estrutura das diversas
vivências, como elas se organizam e se manifestam (Amatuzzi, 1996; Ales Bello, 2004).
Segundo van der Leeuw (1933/1964), a estrutura das vivências é uma totalidade
orgânica compreendida, a qual emerge como o “desenho” que o sujeito traça no caótico
emaranhado da realidade. É, pois, uma reconstrução, já que não há possibilidade de apreensão
direta das vivências. Dessa forma, resulta que a estrutura a que chegamos não é nem
totalmente experimentada e nem totalmente abstrata, ela é compreendida. Para chegarmos a
essa compreensão da estrutura, é preciso apreender os diversos sentidos que se abrem aos
sujeitos. Como passo ulterior, torna-se possível identificar a conexão compreensível entre as
estruturas reveladoras da experiência-tipo daquele conjunto de dados.
Pautando-nos no método fenomenológico assim caracterizado, procedemos à análise
dos dados, que se dividiu em dois momentos. Inicialmente, analisamos os dados referentes à
proposta sociocultural da instituição investigada e, posteriormente, procedemos à análise das
entrevistas semi-estruturadas.
4.1. A análise do contexto sociocultural
Para a compreensão da proposta sociocultural da instituição, utilizamos as informações
registradas no diário de campo e os registros sonoros realizados no primeiro momento de
coleta de dados. Sendo a instituição pesquisada uma entidade vinculada ao Movimento
Espírita Mineiro, a análise de seu contexto sociocultural não poderia prescindir do contato
com a filosofia que fundamenta tanto suas práticas quanto a visão de mundo por ela
difundida. Entretanto, considerando que não temos por objetivo analisar a filosofia espírita e
nem tampouco os fenômenos espíritas,
10
optamos por recorrer a estes aspectos tão-somente na
medida em que eles se fizessem necessários para que o leitor compreendesse a dinâmica do
contexto desta instituição.
Dessa forma, para a apresentação da análise das propostas socioculturais, optamos por
elaborar uma descrição que se aproximasse ao máximo da vivência de um observador que
10
Realizamos esta diferenciação seguindo a indicação de Sampaio (2009b), pois, como salienta o autor, o
crescente montante de pesquisas científicas brasileiras sobre o Espiritismo concentra-se nessas três vertentes, a
saber: o movimento espírita, os fenômenos espíritas e a filosofia espírita.
48
adentra a instituição. Quando se fez necessário apresentar conceitos da filosofia espírita ou
explicar práticas relativas a fenômenos espíritas, buscamos nos ater às definições utilizadas
pelos próprios integrantes da instituição, utilizando como fonte bibliográfica apenas as obras
básicas do Espiritismo e o material produzido pela Federação Espírita Brasileira, entidade à
qual a instituição é vinculada.
4.2. A análise das experiências de voluntariado
No segundo momento da análise, dentre dez entrevistas que foram realizadas,
selecionamos quatro para análise. A necessidade de equacionar a produção da dissertação no
período estipulado, sem prejuízo de nenhuma das partes que a compõem, mobilizou-nos a
eleger as entrevistas que se revelaram como especialmente provocadoras e viáveis para a
análise. Não obstante o ímpeto por incluir todo o material coletado, a análise realizada
indicou-nos que as quatro entrevistas selecionadas apresentam riqueza de dados capaz de
contemplar a experiência de voluntariado nesse contexto sociocultural em seus múltiplos
níveis.
Na análise de cada entrevista, ordenamos os dados em três eixos temáticos elaborados a
partir de nossos objetivos geral e específicos. Com tal ordenação, buscamos facilitar a
compreensão das experiências a nós comunicadas e favorecer nossa atenção a aspectos que,
seja pela revisão da literatura, seja pelo próprio contato prévio com os dados, reconhecemos
como particularmente importantes. Assim, os eixos elaborados são: a) o trabalho concreto e os
sentidos da ação voluntária apreendidos pelo sujeito; b) a configuração dos relacionamentos
interpessoais, seja com os companheiros de trabalho, seja com o público atendido; c) a
articulação entre ação voluntária e experiência religiosa.
Feita a ordenação, realizamos leituras sucessivas do material buscando, num primeiro
momento, apreender o movimento da pessoa, seu modo próprio de elaboração. Num segundo
momento, procuramos compreender os dados do ponto de vista da experiência de nosso
interesse, atentando para o modo como a pessoa se realiza nessa experiência e de que forma
ela responde às solicitações do contexto sociocultural em que se insere.
Como meio de apreender metodicamente a dinâmica da experiência e chegar a delimitar
uma experiência-tipo a partir dos dados colhidos, tomamos como referência as diretrizes
metodológicas propostas por van der Leeuw (1933/1964):
49
1) Nomeação: ato de separar e agrupar as vivências, que nos permite organizá-las,
tornando-as inteligíveis. Ao darmos um nome a um conjunto de vivências, buscamos
favorecer a aproximação das mesmas, e não sua reificação. Para tanto, utilizamos expressões
tomadas dos próprios relatos dos sujeitos.
2) Inserção na própria vida: vivência consciente e metódica das ressonâncias que o
fenômeno em estudo provoca no pesquisador. Não “mergulhamos” de modo inconsciente nos
dados, mas sim buscamos colher com rigor o impacto das vivências do outro como
indicativos de um sentido a ser compreendido. Uma vez que as ressonâncias são colhidas pelo
pesquisador, é importante destacar que esse passo reconhece o lugar da pessoalidade daquele
que investiga, que somente pode ser provocado a partir da sua própria história e sensibilidade.
Nesse sentido, ressaltamos como os estudos teóricos preliminares enriqueceram nosso
repertório, abrindo o campo de possibilidades a serem problematizadas e reconhecidas no ato
da análise.
3) Inserção entre parênteses: suspensão da faticidade e de convicções pessoais prévias
para a captação do sentido presente no que se mostra. Essa diretriz nada mais é que a atitude
de epoché, com a qual se pretende que o pesquisador não se perca nem nas “coisas”
(faticidade), nem no próprio ego (juízo), tendo como objetivo privilegiar a estrutura da
vivência que está sendo buscada.
4) Elucidação: clarificação das vivências contempladas, em que se estabelecem
categorias que ressaltem as conexões de sentido existentes. Nesta diretriz, a articulação entre
as categorias apreendidas permitiu-nos a elaboração da conexão típica ideal, ou experiência-
tipo de voluntariado tal como vivida e revelada pelos sujeitos da experiência.
5) Compreensão: espécie de união ou culminância das diretrizes antecedentes, na qual
“a realidade caótica, inerte, converte-se (…) em uma informação, em uma revelação” (p.
648). Para alcançarmos a compreensão das experiências investigadas, foi importante, durante
a análise, buscar colher os vários níveis de realização presentes nos depoimentos, bem como
explicitar as especificidades e interconexões da ação voluntária e da experiência religiosa.
6) Retificação contínua: correção das compreensões alcançadas a partir do confronto
com outros materiais. Nessa diretriz, a retomada do material coletado mostrou-se como
imprescindível para que pudéssemos retificar as compreensões. Além disso, recorremos ao
diálogo com pares em espaços coletivos de discussão acadêmica e à supervisão com o
orientador. Concomitantemente, empreendemos a discussão de nossas compreensões com
elaborações teóricas já apresentadas em nosso referencial e com contribuições de outros
50
autores, uma vez que a configuração dos dados ultrapassou a revisão inicialmente realizada,
solicitando-nos a ampliar nossa gama de referenciais.
7) Reconstrução da experiência vivida pelo sujeito visando a sua apresentação a
terceiros de modo a possibilitar o acesso à compreensão da vivência alcançada. Esse passo,
tão caro à pesquisa fenomenológica ao ponto de van der Leeuw (1933/1964) afirmar que a
Fenomenologia “só quer uma coisa: dar testemunho daquilo que se mostra (…) mediante uma
reconstrução” (p. 649), consiste justamente na apresentação dos dados na presente
dissertação.
5. Apresentação dos Resultados e da Discussão
De modo a orientar a leitura das próximas seções, indicamos a forma como organizamos
a apresentação dos resultados de nossas análises e a discussão dos mesmos:
1) Apresentação das propostas socioculturais da instituição investigada, na qual
recorremos à estrutura narrativa, colocando-nos na perspectiva de um observador que adentra
a instituição em momentos de intensa atividade.
2) Apresentação da reconstrução de cada entrevista, em que trechos dos depoimentos
dos entrevistados são seguidos pela análise que fizemos deles. Iniciamos com a descrição do
contexto em que encontramos os entrevistados, em plena execução de seu trabalho voluntário.
Na reconstrução de suas experiências, procuramos partir de elementos mais concretos da
atividade e progressivamente apresentar suas elaborações mais complexas sobre a ação
voluntária. Ao final de cada entrevista analisada, realizamos uma síntese da experiência de
voluntariado do sujeito, buscando retomar aspectos relacionados aos eixos temáticos acima
descritos. Destacamos a opção por alterar todos os nomes próprios, como forma de resguardar
os sujeitos.
3) Discussão dos Resultados. Em lugar de apresentar inicialmente a experiência-tipo
para somente depois iniciar a discussão dos resultados, optamos por subdividir o capítulo da
discussão em seções, nas quais as compreensões alcançadas sobre cada uma das categorias da
experiência-tipo de voluntariado são imediatamente seguidas pelo diálogo com contribuições
de alguns autores.
4) Apresentação da experiência-tipo. Na última seção do capítulo da discussão,
apresentamos a experiência-tipo e em seguida a articulamos às propostas socioculturais da
51
instituição investigada. Nessa etapa, recorremos novamente ao diálogo com alguns autores de
modo a explicitar nossa contribuição para a compreensão das experiências de voluntariado.
5) Conclusões, com retomada das principais conclusões e provocações advindas desse
trabalho de investigação.
6) Epílogo: um convite de retorno à experiência.
52
VI – RESULTADOS
1. Adentrando a Casa Espírita
Anoitece. Nas proximidades de uma das principais vias de trânsito da cidade de Belo
Horizonte, uma pequena fila se forma às portas da instituição cujo contexto sociocultural
pretendemos conhecer. Pontualmente às dezenove horas os portões são abertos. As pessoas
que aguardavam começam a entrar de modo organizado encaminhando-se para diferentes
pontos dos três andares do prédio, enquanto outras chegam demonstrando familiaridade com o
local e sua rotina.
Na fachada, podemos ler as iniciais e o nome completo da instituição, a que
chamaremos Casa Espírita. São os próprios freqüentadores que a designam como “casa”,
sugerindo-nos a intenção de expressar acolhimento. A designação “espírita”, por sua vez,
busca expressar a vinculação desta instituição ao Espiritismo,
11
doutrina codificada por Allan
Kardec
12
na França, em meados do século XIX.
Ainda à frente do prédio, podemos observar que ele é constituído por dois blocos
conexos. O primeiro data de 1978 e sua construção conta um pouco da origem da Casa.
Segundo o relato de seus fundadores, eles iniciaram suas atividades como uma instituição
religiosa espírita em 1976, mesmo antes de possuírem uma sede própria, a partir da orientação
de um Espírito dada a um médium.
13
Após dois anos utilizando as dependências de outra
instituição espírita, a Casa Espírita transferiu-se para o prédio em que agora nos encontramos,
o qual foi construído com recursos angariados pelos próprios fundadores e por outras pessoas
que a eles se juntaram. O segundo bloco, conhecido como “prédio anexo”, foi construído com
a justificativa de melhor abrigar as atividades da Casa, tendo sido inaugurado em 2008.
11
“Conjunto de princípios e leis, revelados pelos Espíritos Superiores, contidos (…) na Codificação Espírita: O
Livro dos Espíritos; O Livro dos Médiuns; O Evangelho segundo o Espiritismo; O Céu e o Inferno; A Gênese
(FEB, 2008, s.p.). O Espiritismo “trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações
com o mundo corporal” (Kardec, 1859/2005c, p. 50). É importante destacar que o termo “Espíritos” refere-se aos
“seres inteligentes da criação [que] povoam o Universo, fora do mundo material” (Kardec, 1857/2005a, p. 99) e
que “são de diferentes ordens, conforme o grau de perfeição que tenham alcançado” (p. 105).
12
Allan Kardec é o pseudônimo de Leon Hippolite Denizard Rivail (1804-1869). Bacharel em Letras e em
Ciências, especialista em Pegadogia e doutor em Medicina, Kardec foi discípulo emérito do célebre pedagogo
suíço Johann Heinrich Pestalozzi (Wantuil & Thiesen, 2004). Kardec é conhecido como codificador por afirmar
que não escreveu as obras, mas sim as organizou e comentou a partir das respostas dadas por Espíritos às suas
perguntas em sessões mediúnicas, primeiramente com três meninas e, posteriormente, com outros médiuns em
diversas partes do mundo (Kardec, 1857/2005a; Wantuil & Thiesen, 2004).
13
Todo aquele que sente, num grau qualquer, a influência dos Espíritos é, por esse fato, médium. Essa
faculdade é inerente ao homem; (…) todavia, usualmente, assim se qualificam aqueles em quem a faculdade
mediúnica se mostra bem caracterizada e se traduz por efeitos patentes, de certa intensidade, o que então
depende de uma organização mais ou menos sensitiva” (Kardec, 1861/2005b, p. 203).
53
Ambos os processos de construção, bem como todas as demais atividades ali desenvolvidas,
foram e são viabilizados com recursos provenientes de doações, financeiras ou não, e de
campanhas e eventos beneficentes.
Passando pelos portões, vemos um pequeno canteiro que circunda a edificação e somos
cumprimentados pelo vigia noturno, um dos poucos trabalhadores assalariados desta
instituição. À porta, um pequeno balcão onde encontramos um grupo de pessoas que se
destacam pelo uso de coletes azuis. Elas também usam crachás, nos quais constam os nomes
da instituição e da própria pessoa, bem como a designação “voluntário”. Os voluntários ou
“tarefeiros”, como são conhecidos na Casa Espírita, compõem a grande maioria dos
trabalhadores da instituição e são responsáveis por uma vasta gama de atividades, ou
“tarefas”, como logo veremos.
Os primeiros tarefeiros que encontramos próximos ao balcão, em que se
“informações”, são responsáveis pela tarefa da Recepção. Muitos que chegam à Casa vão até
eles buscando esclarecer todo tipo de questionamentos sobre a instituição e suas atividades.
Atividades que entendemos dividirem-se em duas categorias principais, pois a Casa Espírita
apresenta-se tanto como uma instituição religiosa que busca se guiar pelo Evangelho de Jesus
Cristo
14
iluminado pelas orientações da Doutrina Espírita
15
, quanto como uma entidade
filantrópica que presta assistência social a populações carentes.
16
Assim, aqueles que
encontramos na Casa Espírita podem estar ali para freqüentar atividades regulares de cunho
religioso, sendo pessoas que reconhecem o Espiritismo como sua religião, ou simplesmente
curiosos ou simpatizantes, bem como podem estar ali para prestar ou receber assistência
social.
Demonstrando disponibilidade e alegria, os tarefeiros da Recepção sorriem para todos
os que chegam, esclarecem dúvidas e fazem encaminhamentos quando necessário.
Observando o modo como eles conduzem essa tarefa, percebemos que as perguntas e pedidos
são todos anotados e contabilizados em uma ficha. Esse procedimento foi implantado para
14
Para o Espiritismo, Jesus é o guia e modelo para toda a humanidade: seus ensinamentos e exemplos são a
expressão mais pura da lei de Deus (Kardec, 1857/2005a).
15
Segundo a Doutrina Espírita, “o Espiritismo realiza o que Jesus disse do Consolador prometido: conhecimento
das coisas, fazendo que o homem saiba donde vem, para onde vai e por que está na Terra; atrai para os
verdadeiros princípios da lei de Deus e consola pela fé e pela esperança” (Kardec, 1864/2004, p. 145).
16
Essa associação entre o caráter religioso e assistencial é recorrente nas instituições espíritas brasileiras
(Giumbelli, 1998; Sampaio, 2004) e pode ser compreendida como uma forma de buscar aplicar uma máxima
anunciada por Kardec (2005a, p. 284): “fora da caridade não salvação”. Conforme expresso na Doutrina
Espírita, a palavra “caridade” carrega um sentido calcado na moral cristã, abarcando “benevolência para com
todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas” (Kardec, 1857/2005a, p. 457).
Orientando qualquer tipo de ação por esses princípios, a pessoa está praticando a caridade e, portanto, está
54
que, identificando demandas recorrentes, eles possam elaborar propostas a partir delas,
propostas que vão desde a alteração no modo de identificar as salas mais procuradas (como
veremos), até a ampliação da divulgação de um curso oferecido pela Casa Espírita. Além
dessa função formal, a Recepção é também ponto onde muitos freqüentadores se encontram,
conversam sobre o cotidiano, estreitam laços de amizade, compartilham a vida.
A tarefa da Recepção é tida como “porta de entrada” da Casa e, por isso, se espera que
o modo como os tarefeiros trabalham comunique o modo como a instituição como um todo
trabalha. Portanto, podemos entender que aquilo que vimos expresso nesse setor – o empenho
para acolher todos que chegam; a preocupação em atender adequadamente às necessidades
das pessoas expressas em seus pedidos de informação; a atenção à experiência cotidiana para
melhor organizar a tarefa; a abertura para constituir relacionamentos pessoais nos fornecem
indícios de posicionamentos valorizados em todo tipo de atividade desenvolvida por essa
instituição.
Passando pela recepção, é possível ver à esquerda um destino procurado por muitos: a
Livraria, também considerada porta de entrada ou “cartão de visitas” da Casa Espírita. Assim
como a Biblioteca, que se encontra logo à frente, e o Jornal, produzido mensalmente pela
instituição desde 1988 e distribuído gratuitamente, a Livraria é responsável pela divulgação
espírita da Casa. Para os tarefeiros da Livraria e da Biblioteca, uma de suas funções é
responder aos pedidos de indicação de livros tendo o cuidado de acolher o solicitante e
compreender o que ele realmente está buscando. Outro aspecto por eles destacado é que todas
as obras vendidas (ou emprestadas, no caso da Biblioteca) são avaliadas por uma comissão
quanto a seu conteúdo doutrinário, pois a Casa entende que muitas obras que se dizem
espíritas desvirtuam o conteúdo da Codificação. Os únicos autores cujos livros não
necessitam de avaliação são Francisco Cândido Xavier
17
e Divaldo Pereira Franco,
18
os quais
têm respaldo da Federação Espírita Brasileira.
A localização privilegiada e o grande fluxo de pessoas na Livraria e na Biblioteca bem
como o cuidado na seleção e indicação de livros são alguns dos sinais que podemos colher
quanto à importância dada à leitura na Casa Espírita. Tal compreensão é fortalecida ao
contribuindo tanto para a própria evolução pessoal rumo à perfeição, quanto para a evolução da humanidade
inteira, a qual levará à transformação da Terra em um mundo de regeneração (Kardec, 1864/2004, 1857/2005a).
17
Médium mineiro, Francisco Cândido Xavier (1910-2002), ou Chico Xavier, como é conhecido, escreveu 412
livros cuja autoria atribuiu a Espíritos, afirmando que as mensagens ali contidas lhe eram repassadas pelos
Espíritos por meio da psicografia (escrita) ou psicofonia (fala). Dada a envergadura de sua obra e de sua atuação
no movimento espírita, Chico Xavier é apontado como figura central na constituição do Espiritismo no Brasil
(Maior, 2003; Lewgoy, 2001; Stoll, 2004).
18
Divaldo Pereira Franco (1927- ), médium e orador baiano, é reconhecido como um dos maiores expoentes
espíritas da atualidade (FEB, n.d.).
55
depararmo-nos repetidas vezes com a referência que os tarefeiros fazem à convocação:
“Espíritas! amai-vos, este é o primeiro ensinamento; instruí-vos, este é o segundo” (Kardec,
1864/2004, p. 146). Com essa frase eles nos indicam que um dos modos de instruir-se é
buscar, por meio do estudo do Evangelho e das obras básicas e subsidiárias da Doutrina
Espírita, conhecer e meditar sobre as verdades reveladas à humanidade. Assim, na
convocação constante ao “estudo”, apreendemos o valor que a Casa confere ao
aprimoramento intelectual, pois o exercício da razão é entendido como via de acesso à
verdade e como fator fundamental do crescimento pessoal.
19
Observando a Livraria e a Biblioteca, podemos ainda descobrir outros elementos que
nos comunicam aspectos importantes do contexto sociocultural da Casa Espírita. Um desses
elementos está expresso no nome de ambas, que remete a seus respectivos mentores. E o que
ou quem é o mentor? Os tarefeiros nos explicam que mentor é o Espírito desencarnado
20
responsável por orientar e amparar a tarefa e todas as pessoas nela envolvidas. Cada setor da
Casa possui um mentor e, caso existam subdivisões em virtude da quantidade ou variedade de
tarefas realizadas, cada subdivisão conta também com um mentor próprio.
Na descrição da multiplicidade de mentores, captamos indicações a respeito de como a
Casa Espírita organiza-se em uma estrutura segmentada e hierarquizada. Para nossos
objetivos, basta destacar que cada tipo de atividade (doutrinária, assistencial, administrativa,
etc.) corresponde a uma diretoria, composta por departamentos, os quais, por sua vez, podem
ser subdivididos em setores. Cada segmento responde por uma tarefa, em geral realizada
unicamente por voluntários, dentre os quais sempre um responsável formal, chamado
dirigente ou coordenador, ao qual os demais tarefeiros se remetem para sanar dúvidas ou
solucionar conflitos.
Saindo da Livraria e percorrendo o corredor à sua esquerda, podemos perceber que o
modo de organização dessa estrutura institucional orienta a divisão e nomeação das salas ali
19
De fato, assim como a ação de caridade, o desenvolvimento das faculdades intelectuais é um imperativo
presente na Codificação Espírita, aspecto importante no processo de evolução do Espírito. (Kardec, 1857/2005a).
20
Considerando-se que o Espiritismo adota a tese da reencarnação, o nascimento e a morte não são concebidos
como o início ou fim da vida: o Espírito, existente como individualidade, “encarna”, ou melhor, “reencarna”
no mundo material quantas vezes forem necessárias para sua evolução rumo à perfeição. Por isso, utiliza-se o
termo “desencarnado” para fazer-se referência a pessoas já falecidas que ainda não reencarnaram e, portanto,
encontram-se no mundo espiritual. Cf. cap. IV de O Livro dos Espíritos (Kardec, 1857/2005a, p. 142-165).
Ainda com relação aos Espíritos, vale destacar que a evolução moral alcançada no curso das reencarnações
influencia suas ações enquanto desencarnados. Dessa forma, Espíritos evoluídos moralmente são considerados
benfeitores e podem ser mentores de tarefas, enquanto aqueles que ainda praticam ações que causam prejuízos a
si e aos outros são considerados “Espíritos imperfeitos, caracterizados pela predominância da matéria sobre o
Espírito e pela propensão para o mal” (Kardec, 1857/2005a, p. 108).
56
existentes. placas e sinalizações, revelando-nos a intenção de facilitar que as pessoas
encontrem o departamento que procuram.
Do lado direito do corredor, encontramos primeiramente a sala do departamento de
Tarefeiros, responsável por organizar todo o fluxo de voluntários da Casa Espírita.
Conversando com a coordenadora desse departamento, somos informados de que, ao longo
dos anos, percebeu-se a necessidade de formar os tarefeiros antes que eles começassem a
realizar qualquer tipo de trabalho. Por isso, atualmente existe um Ciclo de Palestras no qual
são abordados conteúdos evangélico-doutrinários, é apresentada a dinâmica de funcionamento
da Casa e são debatidos os sentidos implicados na realização da tarefa. A participação nos
módulos I e II
21
desse Ciclo de Palestras é pré-requisito para que uma pessoa possa participar
voluntariamente de qualquer atividade, isto é, tarefa da Casa.
22
Após assistir às palestras, o
interessado deve procurar o departamento de Tarefeiros, onde é entrevistado, recebe
orientações gerais sobre as tarefas e é informado sobre os setores que possuem vagas
disponíveis. A seguir, ele é encaminhado ao setor em que pretende trabalhar para conversar
com seu coordenador sobre os detalhes da tarefa. Como último passo, o candidato retorna ao
departamento de Tarefeiros, onde assina o termo de adesão, recebe uma carta de apresentação,
uma carta de orientação ao tarefeiro e o seu crachá. Segundo a coordenadora, as pessoas que
estão mais tempo na instituição comumente realizam mais de uma tarefa, e aquelas que se
afastam muitas vezes não comunicam o desligamento ao departamento de Tarefeiros. Assim,
torna-se difícil precisar o número exato de voluntários da instituição, mas a estimativa é que
eles sejam em torno de 1.500 pessoas trabalhando em mais de 100 tarefas.
Além da referência aos procedimentos formais, a coordenadora nos indica um panfleto,
fixado em um mural, em que estão expressas diretrizes da tarefa na instituição. Dividido em
tópicos, o panfleto inicia com uma frase atribuída àquele que é o mentor da Casa como um
todo: “O compromisso da Casa Espírita é com o ser humano.” Fazendo uma síntese dos
demais tópicos, podemos afirmar que todas as tarefas são tidas como iguais em valor e têm
como objetivo auxiliar a Espiritualidade
23
a realizar o trabalho programado que visa ao
crescimento espiritual
24
de todos e, para que isso aconteça, são necessários: ter como alicerce
21
Os módulos I e II têm como tema, respectivamente, Princípios Fundamentais da Doutrina Espírita
e Evangelho. Os demais módulos são: III – Passes; IV – Mediunidade; V – Temático (Evangelho); VI –
Expositor Espírita.
22
Destaca-se que, para algumas tarefas, há pré-requisitos específicos de acordo com a atividade desenvolvida.
23
Embora possa referir-se a sentidos mais amplos, o termo “Espiritualidade” é utilizado aqui, e em geral, para
designar o conjunto de Espíritos que se dedicam a fazer o bem.
24
Assim como afirmamos, na Doutrina Espírita, a perfeição é a meta da evolução do Espírito. Para atingi-la, é
preciso crescer espiritualmente, o que inclui, entre outros fatores, o autodesenvolvimento intelectual e moral e o
autoconhecimento. Esse processo, conhecido também como “reforma íntima”, é expresso como um dever ético
57
o Evangelho de Jesus; conhecer a Doutrina Espírita e o funcionamento da Casa e da tarefa;
sintonizar-se com os mentores e buscar harmonizar a si e ao ambiente pela prece; demonstrar
respeito, disciplina e compromisso, inclusive por meio da pontualidade e assiduidade; acolher
fraternalmente todas as pessoas que buscam auxílio; integrar-se aos companheiros de tarefa e
demais equipes de trabalho.
No contato com o departamento de Tarefeiros e com as orientações ali expressas,
apreendemos elementos primordiais para a compreensão do contexto sociocultural da Casa
Espírita. Mais uma vez, vemos evidenciada a importância dada ao que eles denominam ser
“disciplina”, isto é, a organização e sistematização das atividades, seja na formulação de um
curso específico para os voluntários, seja na delimitação de um fluxo preciso para que a
pessoa se torne tarefeira, seja na formalização das diretrizes da tarefa. Em tais diretrizes,
especialmente na alusão à frase do mentor da Casa, percebemos a preocupação em comunicar
que todas as atividades ali desenvolvidas têm como foco primeiro a pessoa. O destaque dado à
frase do mentor, a definição de que o objetivo da tarefa é auxiliar a atuação de Espíritos e a
orientação de que é preciso sintonizar-se a eles indicam-nos que o trabalho voluntário é
concebido nesse contexto como uma ação compartilhada entre pessoas encarnadas e
desencarnadas, isto é, como uma ação que sempre inclui a dimensão religiosa de
relacionamento com “presenças transcendentes”.
25
Além desses aspectos, apreendemos o
quanto é valorizada a formação dos tarefeiros e o quanto se espera que eles se empenhem para
transformarem-se interiormente, comprometam-se com a tarefa em todos os seus aspectos e se
disponham para relacionarem-se pessoalmente com aqueles com quem convivem nesse
ambiente.
Saindo do departamento de Tarefeiros, na próxima sala encontramos o departamento de
Visita a Lares e Hospitais. Os tarefeiros ali presentes têm a função de agendar visitas àqueles
que receberam essa indicação no Receituário Espiritual.
26
De segunda a sexta-feira, nos
períodos da tarde e da noite, e aos sábados, no período da tarde, 77 equipes de duas a quatro
pessoas se dirigem a casas e hospitais de toda a região metropolitana de Belo Horizonte, tendo
do espírita, tal como postulado no Evangelho segundo o Espiritismo: “reconhece-se o verdadeiro espírita pela
sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas inclinações más” (Kardec, 1864/2004, p.
327).
25
Considerando-se que, na Casa Espírita, os Espíritos ou a Espiritualidade são reconhecidos como seres que
transcendem o “Plano Físico” e carregam a potência de intervir sobre a realidade, reconhecemos que eles são
tomados como presenças, embora não perceptíveis diretamente pela maioria. D nossa escolha pelo termo
“presenças transcendentes” para designá-los ao longo do texto.
26
O Receituário Espiritual é composto por orientações espirituais dos Espíritos mentores da instituição, também
chamadas “receitas”. O Receituário é fornecido por meio da psicografia dos médiuns da Casa a partir da
solicitação de interessados, que podem ser pessoas que vivenciam algum sofrimento físico, moral ou espiritual,
cuja família enfrenta dificuldades, ou simplesmente pessoas interessadas em receber orientações mediúnicas.
58
como objetivo auxiliar o visitado e sua família por meio da prece, da leitura e comentário de
mensagem de cunho evangélico
27
e do Passe.
28
Com as visitas, espera-se que a pessoa, ao
receber ânimo e consolo, possa se equilibrar e fortalecer espiritualmente.
Percebemos no expressivo número de equipes de voluntários atuantes nessa tarefa a
importância conferida ao acolhimento aos que sofrem, física ou espiritualmente. A mesma
atenção para com os que necessitam e buscam auxílio na Casa Espírita pode ser observada se
sairmos do departamento de Visita a Lares e Hospitais e nos dirigirmos à próxima sala, onde
situa-se o Atendimento Fraterno. Há sempre uma pequena fila de pessoas sentadas em bancos
à sua porta, pessoas que desejam conversar sobre a Doutrina Espírita e o funcionamento da
Casa, ou sobre problemas pessoais em busca de esclarecimento, orientação ou consolo. O
Atendimento Fraterno funciona nas noites de domingo a sexta-feira e, além disso, a Casa
Espírita acolhe as pessoas que buscam auxílio por meio do SOS Preces, tarefa de atendimento
a ligações telefônicas na qual voluntários se revezam em plantões das oito horas da manhã às
vinte e uma horas e trinta minutos, todos os dias da semana, inclusive feriados. Os tarefeiros
do setor nos explicam que sua função é levar mensagens de amor, otimismo e confiança
àqueles que ligam buscando amparo, auxílio, uma palavra fraterna que possa soerguê-los
moral e espiritualmente no enfrentamento dos mais diversos problemas e dificuldades.
A sala do Atendimento Fraterno é a última do lado direito. O corredor termina em uma
porta de vidro que acesso ao refeitório. Sobre as mesas, vemos grande quantidade de
sacolas com doações que são separadas por uma equipe. Trata-se de uma tarefa sob
responsabilidade do departamento de Arrecadação, também conhecido como “Bazar”, nome
que remonta à sua origem. Poucos anos após a fundação da Casa Espírita, tarefeiros iniciaram
a organização de bazares nos quais objetos doados eram vendidos a preços simbólicos como
meio de angariar recursos para as atividades assistenciais. Mais tarde, o Bazar tornou-se
atividade semanal e, com a complexificação das tarefas a ele relacionadas, também foi
organizado como departamento, tornando-se responsável por todo o fluxo de doações, exceto
27
A conjunção entre prece e estudo do Evangelho feitos fora das instituições é chamada genericamente de
“pequeno culto”. Trata-se de uma alusão ao “Culto do Evangelho no Lar”, prática estimulada pelo Espiritismo e
também pela Casa Espírita, que o define como momento semanal em que familiares se reúnem, de forma livre e
espontânea, para orar juntos, estudar mensagens evangélicas e buscar aplicá-las na reflexão sobre
acontecimentos do cotidiano. Um dos objetivos do Culto é contribuir para a harmonia do lar, criando um
ambiente favorável ao estudo, ao entendimento e à prática dos ensinamentos do Cristo.
28
O Passe ou fluidoterapia é uma terapêutica amplamente empregada nos meios espíritas e que encontra
fundamentação na Codificação (Cf. Kardec, 1864/2004, p. 440). O Passe é definido pela Casa Espírita como
transmissão de energias por meio da imposição de mãos feita por médiuns passistas. Tais energias, oriundas do
próprio passista, dos Espíritos benfeitores que operam juntamente a ele, ou de fluidos extraídos da natureza por
esses Espíritos atuam sobre os centros vitais do doente a fim de reequilibrá-los.
59
as de neros alimentícios, desde o momento em que estas chegam à Casa até sua destinação
final.
Atualmente, o departamento de Arrecadação funciona em outra unidade da Casa
Espírita: a Fundação. Entidade filantrópica fundada e mantida pela Casa Espírita, a Fundação
foi construída entre os anos de 1988 e 1992 no município de Contagem, num terreno doado de
aproximadamente 11.320 metros quadrados. Seu objetivo é assistir famílias em situação de
risco social por meio da oferta de serviços gratuitos de saúde
29
e educação infantil em tempo
integral, bem como ensino fundamental e médio para 420 crianças e adolescentes e ensino
profissionalizante.
30
Ao narrar a trajetória do departamento de Arrecadação e da Fundação, voltamos nosso
olhar para o caráter assistencial da Casa Espírita. A preocupação em auxiliar também
materialmente aos que necessitam remete-nos a uma passagem do Novo Testamento
constantemente repetida por dirigentes e tarefeiros da instituição: “mostra-me a tua sem
obras, e eu te mostrarei, pelas minhas obras, a minha fé” (Tg 2:18).
Se, ao passar pelo balcão na recepção, tivéssemos seguido à direita, teríamos entrado
nas dependências do prédio anexo, onde consultórios médicos, odontológicos, farmácia e sala
de enfermagem poderiam nos fornecer mais indícios sobre a importância das atividades
assistenciais na Casa Espírita. Entretanto, é noite e as luzes estão apagadas, sugerindo-nos
que é preciso voltar num outro dia para que possamos encontrar o que estamos buscando.
Guardando o convite, prosseguimos caminhando pelas dependências do prédio que se
apresentam abertas para o público nas noites de domingo a sexta-feira.
Começando a subir as escadas situadas logo atrás da recepção, podemos ler numa placa
o agradecimento a todos os que colaboraram para a construção do prédio anexo, doando
recursos, tempo ou vibrações positivas, possibilitando assim a ampliação das atividades que
reforçam o compromisso da Casa com o ser humano. Chegando ao segundo andar, deparamo-
nos com um quadro de avisos, no qual vislumbramos mais uma vez como a organização
formal alia-se à abertura para compartilhar a totalidade da vida. Ali, informações sobre
eventos, palestras e campanhas de arrecadação de doações da Casa e de outras instituições
espíritas figuram ao lado de pedidos de doação de sangue e convites para a formatura
universitária de jovens freqüentadores da instituição.
29
A administração do Centro de Saúde construído nas dependências da Fundação foi recentemente transferida
para a Prefeitura do município.
30
A oferta de ensino profissionalizante é uma meta ainda não concretizada da Fundação.
60
Grande parte das pessoas que havíamos encontrado na fila fora da Casa Espírita antes
das dezenove horas dirige-se para o corredor à esquerda, ainda obedecendo à ordem de
chegada. A pequena extensão desse corredor acesso ao “salão novo”, uma sala de múltiplo
uso com capacidade para 150 pessoas. Nesse momento, a sala é utilizada para a tarefa do
Receituário Espiritual. As pessoas da fila, que chegaram cedo por saberem que o número de
atendidos é limitado, são recebidas por tarefeiros que anotam seu nome, idade e endereço em
uma ficha, na qual mais tarde será psicografada uma receita espiritual. A designação “receita”
visa a indicar que, além de uma mensagem de estímulo e conforto, a pessoa poderá receber
orientações dos Espíritos sugerindo tratamento com Passes, leitura de livros, participação em
tarefas, adoção do Culto do Evangelho no Lar, entre outras.
No modo como se configura o Receituário Espiritual, apreendemos a conjugação entre
alguns dos elementos que destacamos como essenciais na configuração do contexto
sociocultural da Casa Espírita: a concepção do trabalho realizado como uma ação
compartilhada com presenças transcendentes; a disposição para acolher os que buscam auxílio
e consolo; a preocupação em atender a quem solicita fornecendo orientações em consonância
com aquilo que a Doutrina Espírita indica ser favorável ao crescimento espiritual.
Retornando ao ponto do quadro de avisos, encontramos à direita um salão com
capacidade para cerca de 450 pessoas, no qual acontece a principal atividade da Casa Espírita
nas noites de domingo a sexta-feira: a Reunião Pública. Assim como em todas as demais
atividades, tarefeiros que trabalham na Reunião Pública organizando o salão, ajustando os
equipamentos de som e microfones, acrescentando cadeiras quando necessário e anotando
pedidos de orações em intercessão de pessoas encarnadas ou desencarnadas. Entramos no
salão por sua parte de trás e vemos que à frente das cadeiras para o público se localiza uma
grande mesa. Nesta mesa sentam-se: o dirigente que preside a Reunião Pública (um para cada
dia da semana), alguns auxiliares e dois a quatro médiuns que irão realizar a psicografia do
Receituário Espiritual durante o transcorrer da Reunião. Atrás da mesa, uma fileira de
cadeiras ocupadas por tarefeiros da Casa que se mantêm em oração durante toda a Reunião:
trata-se da “corrente vibracional” que tem como objetivo sustentar energeticamente os
médiuns que psicografam. Do lado direito da mesa, uma tribuna onde são proferidas duas
palestras a cada noite e, do lado esquerdo, observamos o local reservado para a fluidificação
da água:
31
um grande móvel com prateleiras repletas de garrafas identificadas com o nome de
quem as deixou ali, em sua maioria pessoas que vieram assistir à Reunião Pública.
31
De acordo com a Codificação Espírita, a água é substância especialmente suscetível à influência dos Espíritos
que, manipulando seus elementos e aplicando-lhe fluidos, podem conferir à água propriedades curativas (Cf.
61
Praticamente em todos os dias da semana, a Reunião Pública é entremeada por hinos
cantados pelo Coral ou pelo Grupo Musical da Casa Espírita ou tocados por tecladistas. A
Reunião começa pontualmente às vinte horas. O presidente da mesa indica a pessoa que irá
proferir a prece inicial e, em seguida à prece, convida o primeiro orador da noite ou
“expositor do primeiro horário” a pronunciar sua palestra, baseada na leitura e comentário de
um capítulo psicografado por Chico Xavier.
32
Trinta minutos depois, outro momento de
oração, conhecido como “prece de irradiação”: no mesmo horário, instituições espíritas de
todo o país se unem em oração para enviar vibrações positivas e pedir a intercessão dos
Espíritos em benefício de todos aqueles que sofrem. No “segundo horário” é proferida a
principal palestra da noite, na qual um expositor convidado discorre sobre um tema escolhido
pela Casa Espírita. Por fim, em torno das vinte e uma horas e trinta minutos, a Reunião é
encerrada com avisos gerais e a prece final que, assim como as demais, é sempre uma oração
espontânea.
Logo no início da Reunião Pública, observamos que, após a primeira prece, pessoas
sentadas nas primeiras fileiras levantam-se e dirigem-se para duas salas, cujas entradas
situam-se do lado direito e do lado esquerdo do local em que se encontra a mesa onde estão o
presidente e os médiuns. Depois, em ambos os lados do salão, um tarefeiro percorre as fileiras
chamando algumas pessoas que assistem às palestras, as quais se levantam, vão até as
referidas salas e pouco tempo depois voltam. Toda essa dinâmica descreve a tarefa do Passe
que ocorre durante as Reuniões Públicas. As primeiras pessoas a se dirigirem às salas ou
“cabines de Passe” são os médiuns passistas, e os demais são aqueles que receberam a
indicação para tratamento com Passes em suas receitas espirituais ou que simplesmente
desejam receber o Passe naquele dia.
Finalizada a Reunião, enquanto a grande maioria das pessoas deixa o salão, alguns
cumprimentam os expositores agradecendo pelas palestras, outros vão buscar suas garrafas de
água fluidificada e aqueles que solicitaram o Receituário Mediúnico são chamados
nominalmente para receberem suas receitas. Tarefeiros da Reunião Pública, dirigentes,
médiuns e alguns freqüentadores aproveitam a ocasião para conversarem entre si,
demonstrando grande intimidade e satisfação.
Kardec, 1861/2005b, p. 170-3). O líquido assim transformado é conhecido como “água fluidificada” e pode ser
obtido em qualquer situação em que, ao realizar preces ou cultos, um recipiente com água é colocado à frente.
32
São os próprios expositores do primeiro horário que selecionam o tema de suas palestras, seguindo, porém, a
indicação dada pela Casa Espírita para utilizarem capítulos de livros de Chico Xavier nos quais o Espírito
Emmanuel apresenta um pequeno trecho do Evangelho e comenta-o à luz da Doutrina Espírita.
62
Caminhando pelo salão quase vazio, podemos ver que na parede do fundo uma
placa na qual, em nome de dirigentes e tarefeiros, se agradece à Espiritualidade pelo carinho,
amizade e oportunidade bendita de trabalho em favor dos necessitados. Ao lermos esses
dizeres tendo presente o que observamos na Reunião Pública, fica-nos ainda mais evidente
aquele que entendemos ser um dos elementos essenciais do contexto sociocultural da Casa
Espírita: a certeza quanto à existência de um relacionamento pessoal com presenças
transcendentes, entendidas como benfeitores que acompanham, auxiliam e abençoam os
trabalhadores da Casa. No agradecimento à dádiva de poder trabalhar cuidando de quem
necessita, evidencia-se também como a instituição, em consonância com a Doutrina Espírita,
defende que a ação voluntária de doar-se em benefício do outro é via privilegiada para a
evolução de cada pessoa e da humanidade como um todo.
Continuando a conhecer a Casa Espírita, se, ao invés de entrar no salão, tivéssemos
continuado a subir as escadas, chegaríamos ao terceiro e último andar. À direita, um
corredor com salas em que acontecem reuniões de coordenação e outras atividades
doutrinárias, dependendo do dia da semana. À esquerda, vemos outro corredor com várias
salas em que crianças, separadas em cinco ciclos de acordo com sua idade, recebem aulas de
Evangelização enquanto seus responsáveis assistem à Reunião Pública no salão.
Semanalmente, 70 voluntários da tarefa da Evangelização recebem cerca de 400 crianças de 3
a 12 anos
33
com o objetivo de contribuírem para sua formação e evolução ao repassarem-lhes
os ensinamentos de Cristo à luz da Doutrina Espírita. Os tarefeiros da Evangelização prezam
pelo relacionamento acolhedor e afetuoso com as crianças, não sendo raro vê-las recebendo
doces e pequenos brinquedos ao fim das aulas.
A dinâmica da tarefa da Evangelização, e também da Reunião Pública, remete-nos
novamente àquilo que compreendemos com relação aos cursos oferecidos aos tarefeiros: a
formação das pessoas é amplamente valorizada no contexto sociocultural da Casa Espírita e
por isso a instituição empenha-se para oferecer formação adequada a todos os seus
freqüentadores, levando em conta a totalidade da sua pessoa, com especial atenção à sua faixa
de idade e aos motivos que a levam a estar ali.
Todo esse quadro, que encontramos ao visitar a Casa Espírita em qualquer noite de
segunda a sexta-feira,
34
é radicalmente transformado aos sábados pela manhã. Falar sobre “o
33
Os adolescentes que completam 12 anos são estimulados a assistir às Reuniões Públicas junto a seus pais e a
freqüentarem os encontros da Mocidade Espírita da Casa, os quais acontecem aos sábados no período da tarde.
34
Aos domingos a maior parte das atividades descritas não acontece, porém há Reuniões Públicas e
Evangelização das crianças em horário diferente: das dezenove horas e trinta minutos às vinte e uma horas.
63
Sábado” é fazer referência ao conjunto de atividades que acontecem na Casa somente neste
dia, tendo como alvo um público que em geral não freqüenta a instituição durante a semana.
Retornamos, então, à Casa Espírita em uma mande sábado. Por volta das oito horas
é possível ver uma grande fila de pessoas aguardando a abertura dos portões: são os
chamados “assistidos materiais”
35
ou simplesmente “assistidos”, moradores de rua ou de
vilas, favelas e bairros próximos que vão à Casa prioritariamente em busca de algum tipo de
assistência social. A cada semana, cerca de 300 assistidos são atendidos.
As atividades do dia começam com o cadastro dos que vêm à Casa Espírita pela
primeira vez. Todos os assistidos possuem uma carteira com número de identificação, pré-
requisito para solicitar qualquer tipo de atendimento na Casa. Em seus registros, constam
mais de 10.700 cadastrados, pois a cada semana em média 20 novos cadastros. A alta
rotatividade observada é interpretada como positiva, pois a meta é que as pessoas
progressivamente não dependam mais desse tipo de auxílio.
Após informarem seu nome na portaria, os assistidos que desejarem vão ao refeitório,
aquele mesmo em que vimos doações serem separadas numa noite, antes e durante a Reunião
Pública. Às oito horas e trinta minutos o café da manhã começa a ser servido acompanhado
por pão com manteiga, leite e achocolatado. Após a refeição, todas as crianças presentes são
conduzidas ao terceiro andar para participarem da Evangelização. Os adultos, por sua vez,
direcionam-se: ou para o salão no segundo andar; ou para as salas atrás das cabines de Passe
onde aqueles que se interessam têm aulas de Alfabetização para Adultos; ou para uma sala do
terceiro andar onde acontece o Curso para Gestantes, composto por oito palestras sobre os
aspectos espirituais da maternidade e sobre a saúde da mulher e do recém-nascido.
36
Todos os assistidos que se encaminham para o salão podem solicitar atendimento
médico ou odontológico,
37
assistência jurídica,
38
banho adulto ou infantil, corte de cabelo e
barba: para tanto, basta sentar-se nas cadeiras identificadas com o nome da tarefa. Como
forma de cuidar ainda mais da organização, são distribuídas senhas para que os assistidos
35
A designação “assistido” refere-se a qualquer pessoa que recebe auxílio. Uma vez que os tarefeiros da Casa
Espírita consideram-se auxiliados espiritualmente por Espíritos, eles também se denominam como “assistidos
espirituais”. Daí a necessidade de diferenciar aqueles que, além do auxílio espiritual, também recebem
assistência social como “assistidos materiais”.
36
O Curso para Gestantes é aberto a todos os freqüentadores da Casa Espírita e, ao final, as gestantes que
compareceram aos oito encontros e são cadastradas no departamento de Assistência Social recebem um enxoval
básico para o bebê.
37
atendimento médico na Casa Espírita também em alguns dias da semana à noite. O atendimento
odontológico, por sua vez, é oferecido aos sábados para pessoas com quadros urgentes, enquanto o tratamento
dentário acontece somente durante a semana.
64
possam ser atendidos em ordem de chegada. A partir das dez horas, um dos expositores da
Casa profere palestra sobre temas do Evangelho e da Doutrina Espírita, palestra que é
acompanhada por música e, assim como nas Reuniões Públicas, é iniciada e finalizada por
uma prece espontânea.
Além das modalidades de atendimento citadas, os assistidos podem solicitar também
o recebimento de remédios (mediante apresentação de receita médica) e de cesta básica,
roupas,
39
material escolar, móveis e eletrodomésticos. Essas doações vinculam-se à
disponibilidade do que foi solicitado e à realização da “Sindicância”, isto é, de uma entrevista
inicial e posterior visita à residência do assistido. No empenho demonstrado em mapear tudo
o que cada assistido recebe, em sistematizar a tarefa da Sindicância e em zelar pelo destino de
todas as doações que passam pela instituição, apreendemos como os tarefeiros desse setor se
dedicam a colocar em prática as orientações da Casa Espírita com relação à disciplina e à
seriedade no trabalho.
poucos meses, em agosto de 2009, foi instituída uma nova tarefa no sábado: trata-se
da Evangelização de Mães, momento em que as mulheres cujos filhos participam da
Evangelização ou do Banho Infantil são convidadas para um encontro especialmente voltado
para a troca de experiências. O objetivo desta tarefa é tanto oferecer às mães ensinamentos
evangélico-doutrinários relativos à família e criação dos filhos quanto, principalmente,
constituir um espaço de diálogo em que essas mulheres tenham oportunidade de conversar
sobre as dificuldades e situações de violência que vivenciam. Inicialmente restrita às mães,
essa tarefa tem como meta ampliar seu público, favorecendo assim a ampliação da
convivência entre os tarefeiros da Casa Espírita e todas as pessoas por ela atendidas.
Em tantos modos de ofertar auxílio a quem necessita seja por meio do alimento, da
educação, da assistência à saúde, da doação de recursos materiais e da abertura de espaços
para a troca de experiências vislumbramos novos indícios que fortalecem nosso
entendimento de como o contexto sociocultural dessa instituição é marcado pela valorização
da acolhida e do amparo à pessoa em sua totalidade. Mais uma vez, recordamos a frase,
38
Oferecida por duas advogadas que representam a Casa Espírita juridicamente, a Assistência Jurídica restringe-
se a causas vinculadas ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). São quatro a cinco casos por mês, em
sua maioria relativos a aposentadoria e pensões.
39
Todos os assistidos, adultos e crianças, que tomam banho na Casa Espírita recebem doação de roupas
quinzenalmente. As roupas provêm de doações feitas à instituição e também são produzidas na tarefa de Corte e
Costura. Nesta tarefa são confeccionadas ainda bolsas, cintos, colchas de fuxico, colares, entre outros, os quais
têm como destino, além da doação a assistidos, a venda no Bazar que acontece na Fundação, a composição dos
enxovais doados às futuras mães no Curso para Gestantes, bem como o atendimento a solicitações de outros
setores da Casa e da Fundação.
65
também estampada no salão de Reuniões Públicas: “O compromisso da Casa Espírita é com o
ser humano.”
Conversando com o coordenador do departamento da Assistência Social, tal
compreensão se amplia na medida em que ele é enfático ao afirmar que a finalidade maior do
Sábado não é dar auxílio material, e sim ofertar ensinamentos evangélico-doutrinários aos
assistidos. Favorecer a formação e o desenvolvimento espiritual de todos é por ele apontado
como o principal objetivo da Casa Espírita que é, antes de tudo, uma instituição religiosa. Na
preocupação expressa por esse coordenador, colhemos mais indícios de como, no contexto
dessa instituição, busca-se explicitar que todas as suas atividades ou tarefas abarcam e
privilegiam a dimensão religiosa.
Outro elemento a nós evidenciado pelo coordenador da Assistência Social é a
valorização do rigor na execução das tarefas. Ele nos conta que uma de suas preocupações, ao
receber os novos tarefeiros do Sábado, é explicar a todos que cada procedimento adotado tem
uma razão de ser, pois as atividades da Assistência Social e de toda a Casa são sistematizadas
a partir do que a experiência mostra ser mais eficiente e adequado para atender às
necessidades das pessoas. Assim, todos os tarefeiros podem contribuir com sugestões, que
devem ser repassadas aos seus respectivos coordenadores, pois é justamente pela via da
experiência de quem realiza a tarefa que ela pode ser aprimorada. Em tal comunicação sobre
como as tarefas vão sendo sistematizadas, colhemos uma importante indicação de como, no
contexto da Casa Espírita, busca-se justificar as razões da disciplina e do rigor ao mesmo
tempo em que se valoriza a abertura a mudanças que possam contribuir para o
aperfeiçoamento das atividades.
Encerrada a Evangelização das Crianças e a palestra para os adultos, os assistidos
começam a retornar ao refeitório para o almoço. É dada prioridade a crianças e suas mães. Em
todos os sábados do ano, a partir das onze horas é servida sopa com legumes, soja e macarrão
e, como sobremesa, salada de frutas. Para os tarefeiros da Sopa e da Salada, não basta que a
comida preparada seja nutritiva: ela precisa ser também gostosa. E, de fato, a refeição é
constantemente elogiada por quem a saboreia e por isso espera ansiosamente pelo momento
de “tomar a sopa e a salada”. Para incrementar as comemorações de datas especiais (natal, ano
novo, dia das mães), há um almoço diferenciado, seguindo o estilo das ceias de final de ano.
Assim como o café da manhã, as tarefas da Sopa e da Salada de Frutas fazem parte do
setor de Nutrição do departamento da Assistência Social. A preparação da sopa começa no dia
anterior, com a Pré-sopa, quando todo o alimento que será utilizado é higienizado e cortado,
bem como são cozidos os ingredientes que necessitam desse tipo de preparo. na manhã de
66
sábado, tudo é misturado e cozido em panelas muito grandes, chamadas pelos tarefeiros de
“panelões”. A salada de frutas, por sua vez, é toda preparada no sábado: frutas são compradas
e, junto àquelas que foram doadas, são lavadas, picadas e misturadas a um suco preparado
com algumas frutas e leite condensado.
Os tarefeiros do setor de Nutrição se distinguem por suas vestimentas: todos usam
avental, touca, luvas e bocal. A prevenção de contaminações é manifesta também no trabalho
de duas nutricionistas voluntárias que dão cursos de higiene para os tarefeiros, orientam a
preparação dos alimentos e recolhem, todo sábado, amostras da sopa e da salada para análise.
Nesse cuidado revelado em detalhes mínimos apreendemos a disposição desses tarefeiros por
seguir as indicações da Casa Espírita, que preza por ter seu trabalho assistencial reconhecido
oficialmente graças à observação rigorosa das regras prescritas pelos órgãos que fiscalizam
entidades filantrópicas.
Voltando ao refeitório, vemos que os tarefeiros do Sábado também tomam sopa e salada
de frutas, mas em geral permanecem de pé, pois, como em tudo o que acontece no Sábado, a
prioridade nas mesas é dada aos assistidos. Observando a alegria e o entrosamento dos
tarefeiros enquanto almoçam, percebemos que há um grupo que se destaca. Alguns vestem
camisas diferenciadas e todos estão chegando agora à Casa Espírita, pois a sua tarefa é
desenvolvida fora da instituição.
Esses são os tarefeiros da Campanha do Quilo, que todos os sábados saem às oito horas
da manhã
40
em equipes de quatro pessoas dirigindo-se a diversos bairros da região
metropolitana para pedirem doações de casa em casa. Eles permanecem preferencialmente em
duplas e, ao receberem as doações, sempre entregam um folheto com uma pequena mensagem
de conteúdo cristão. Retornando à Casa, o que foi recolhido é entregue na Despensa, local em
que tudo é pesado e separado. As doações que não são do nero alimentício ou material de
limpeza são encaminhadas na segunda-feira para o departamento de Arrecadação que, como
dito, situa-se na Fundação. Os alimentos e materiais de limpeza, por seu turno, são registrados
e estocados na própria Despensa, sendo posteriormente encaminhados para reabastecer tarefas
e setores que deles necessitam e para compor cestas básicas distribuídas aos assistidos
cadastrados.
41
Caso haja excedente, tudo é repassado a outras 15 instituições filantrópicas, as
quais são cadastradas na Casa Espírita e avaliadas anualmente pela Sindicância.
40
A tarefa da Campanha do Quilo acontece também em todas as tardes de sábado e manhãs de domingo. Ao
total, são 18 equipes que a cada semana percorrem 2 bairros cada uma, perfazendo 108 bairros a cada 2 meses.
41
A cada semana, são distribuídas cerca de 20 cestas básicas para os assistidos da Casa.
67
Próximo à Despensa, em bacias, pias e tanques um cuidadoso processo de lavagem
de todo o material utilizado nas tarefas da Sopa e da Salada, processo que se inicia antes
mesmo do almoço ser servido e termina depois que todos os assistidos foram embora.
Após a “lavação”, panelas, pratos, talheres e vasilhas são secos, embalados e guardados, e a
última equipe de tarefeiros a finalizar as atividades encerra o Sábado do mesmo modo como
todas as tarefas da Casa Espírita começam e terminam: com uma prece. Despedindo-se, todos
os tarefeiros se abraçam e desejam “boa semana”.
Findo o Sábado, compreendemos que, mesmo não tendo sido possível descrever todas
as tarefas da Casa Espírita,
42
tivemos a oportunidade de colher muitos indícios sobre como se
configura o contexto sociocultural dessa instituição.
Dentre esses indícios, destacamos em primeiro lugar a associação entre o caráter
religioso e assistencial: na Casa Espírita as atividades que usualmente seriam tomadas como
unicamente religiosas o apresentadas como tarefas, destacando-se assim que os envolvidos
estão ou trabalhando ou sendo assistidos de algum modo. As atividades que, por outro lado,
tenderíamos a descrever como meramente assistenciais são concebidas como ocasião de
colaboração entre pessoas encarnadas e presenças transcendentes, num processo que tem
como objetivo principal favorecer o crescimento espiritual de todos. Compreendemos que
essa conjugação entre fé e obras, constantemente expressa nas alusões à mensagem contida na
Carta de Tiago, sustenta-se numa concepção de que, ao agir para transformar o mundo, o
agente transforma também a si mesmo, favorecendo a progressão de ambos rumo a suas metas
de perfeição.
Na explicitação do crescimento espiritual como objetivo de todas as tarefas realizadas,
entrevemos a ligação com outro fator que vislumbramos como essencial em tudo o que é
proposto na Casa Espírita. Trata-se do compromisso com o ser humano, formulado
explicitamente pelo mentor da Casa e expresso na prática cotidiana dos tarefeiros, seja ao
empenharem-se para acolher e amparar todos que chegam, especialmente os que procuram
auxílio material ou espiritual; seja ao buscarem relacionar-se pessoalmente com aqueles que
são atendidos; seja ao tentarem compreender a totalidade das necessidades das pessoas, de
modo a poder ajudá-las da melhor forma.
Para dar juízos sobre o que é melhor em cada situação, o crivo de orientação proposto
pela Casa Espírita é sempre o Evangelho de Jesus tomado a partir da Doutrina Espírita. E se
no Espiritismo a meta de toda obra da criação é a perfeição, colhemos como mais um
42
A tulo de exemplo, citamos os Ciclos de Estudos e Educação Mediúnica, bem como a Reunião do Terceiro
Domingo, na qual médiuns da Casa transmitem mensagens dos mentores por psicofonia.
68
elemento estruturante do contexto sociocultural dessa instituição o incentivo dado a todos
para que se desenvolvam moral e intelectualmente. Esse incentivo, dirigido com especial
ênfase aos tarefeiros da Casa, traduz-se no estímulo à prática da caridade, ao empenho
pessoal para a reforma íntima e à disponibilidade para constituir laços fraternos com todos
com quem se convive. Traduz-se também na exortação ao estudo das obras básicas da
Codificação e à participação nos vários eventos de formação que os próprios responsáveis da
Casa Espírita elaboram com vistas justamente a oferecer instrução adequada a cada tipo de
público.
Outro elemento deste contexto sociocultural que nos salta aos olhos é a valorização da
organização das atividades. No contato que pudemos ter com as mais variadas tarefas da Casa
Espírita, colhemos na importância dada à capacitação, ao compromisso e à disciplina a
tentativa de sistematizar o trabalho ali desenvolvido. Se a preparação e execução das
atividades exigem rigor, a justificativa apresentada é a de que a ordem estabelecida nasceu a
partir do que a experiência demonstrou ser mais efetivo. Assim, as orientações dadas por
instâncias superiores, religiosas ou jurídicas, bem como as ações e os posicionamentos que se
mostraram adequados vão se cristalizando como propostas para todos.
Nesse processo de organização formal, a abertura para mudanças e para compartilhar a
totalidade da vida não é excluída, pois, como ficou dito, no lema da Casa Espírita o
compromisso tem como centro a pessoa. E isso é patente também naquela última cena que
narramos, quando os tarefeiros se despedem ao fim do Sábado. A realização da prece é, a um
tempo, uma determinação formal da Casa, um momento em que se busca explicitar e
ampliar a conexão com presenças transcendentes que também atuam na tarefa, e uma ocasião
para fortalecer as amizades constituídas com os companheiros.
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2. Olívia: Nós fazemos parte, Ele deixa a gente fazer parte dessa maravilha
Manhã de sábado. O café da manhã é servido aos assistidos da Casa no refeitório.
Alguns tarefeiros organizam-se para distribuir o café, o leite achocolatado, o pão com
manteiga. Continuando em frente, saímos do refeitório e adentramos um novo ambiente: cerca
de vinte tarefeiros vestidos com jaleco branco, touca, bocal e luvas debruçam-se sob vasilhas
picando frutas. São várias: mamão, abacaxi, maçã, banana, manga, laranja. Ao lado, outros
tarefeiros preparam uma espécie de suco que será misturado às frutas picadas num grande
recipiente, com capacidade para mais de cem litros. Terminada esta primeira etapa, enquanto
alguns cuidam da limpeza das vasilhas utilizadas, outros distribuem a mistura em pequenos
potes. Está pronta a salada de frutas. Mais tarde, a partir das onze horas, ela será servida aos
assistidos como sobremesa da sopa.
Acompanhando todo o processo, destaca-se a figura de Olívia, 54 anos, contadora
aposentada e coordenadora desta tarefa. Ela não somente segue de perto a preparação da
salada de frutas, verificando a quantidade precisa de cada ingrediente e o modo de distribuí-la
nos potes, como recebe de braços abertos todos os tarefeiros que vão chegando, verifica quem
está presente e quais são suas atividades, orienta a redistribuição de funções, solicita que
todos acelerem a tarefa caso seja necessário. O modo como Olívia realiza essas atividades
chama nossa atenção: são marcantes sua alegria que contagia e dita o tom de como os
tarefeiros realizam a tarefa, sua afeição autêntica com cada pessoa que encontra e o gosto de
cuidar de cada detalhe para que a tarefa aconteça da melhor forma.
Para tantas pessoas que encontramos na Casa, Olívia é a grande referência da tarefa da
Salada de Frutas, não somente por ser coordenadora, mas principalmente por seu empenho em
dar continuidade à tarefa e em defender a Salada nos mais variados contextos.
Acompanhemos como ela elabora a sua experiência de trabalhar ali.
Ao ser indagada sobre este trabalho que realiza no Sábado, Olívia faz questão de
destacar que ela tem “outras tarefas que não sejam só a de Sábado”, e continua:
São outras tarefas, mas a mais empolgante para mim é a tarefa de Sábado.
Não que as outras não sejam gostosas de fazer, senão eu não estava nelas.
Eu sempre falo: “tarefa é aquilo que a gente gosta! Se não você não faz com
amor, aí não adianta”.
Apesar de destacar, de partida, que trabalha em outras tarefas, Olívia afirma
categoricamente que a mais empolgante é realmente aquela vinculada à preparação e
distribuição da salada de frutas. O que não significa que as demais tarefas não lhe despertem
70
gosto, pois senão, para Olívia, não haveria sentido em participar delas. Não sentido porque
a tarefa é, por definição, aquilo que a gente gosta. Nesse sentido, evidencia-se um critério
importante que Olívia elege para descrever sua ação voluntária: é o gosto pela tarefa. E, para
ela, trata-se de um critério tão central que, se não gosto, não amor, e se não há amor,
não adianta.
Mas por que a tarefa do Sábado é a mais empolgante? Por que as outras tarefas também
são gostosas, fazendo-a permanecer nelas? Por que a definição de tarefa precisa incluir a
dimensão do gosto? Por que, se não fizer com amor, de nada adianta? Vejamos como Olívia
enfrenta cada uma dessas questões.
Talvez, o carinho especial pela Salada, é porque foi criada por mim e por
outro tarefeiro, o Roberto.
Talvez, o meu xodó é maior com a Salada porque a gente viu nascer.
O carinho especial que Olívia tem pela Salada passa pelo fato de que foi ela, em
conjunto com outro tarefeiro da Casa, o Roberto, que criou esta tarefa, eles a viram nascer.
Ficamos intrigados, pois habitualmente o ato de criar uma coisa que traz o foco para a
pessoa que criou – é diferente do ato de ver um nascimento – que traz o foco para o
reconhecimento de um dado. Como é possível que, para Olívia, o fato de ter criado esta tarefa
coincida com o fato de vê-la nascer?
Nós dois é que criamos e enfrentamos todos os percalços. E tivemos muitos,
para ver se a gente era persistente. Foi legal. Uma senhora convidada desse
Roberto, que era tarefeiro do Sábado, veio aqui, ajudou, e no sábado
seguinte voltou. Ela mora em Brasília, mas estava passando férias aqui em
Belo Horizonte. E trouxe uma porção de frutas. Eu falei: “uai?”. Ela falou:
“não, é porque lá em Brasília, na Casa Espírita que eu freqüento, a gente dá
frutas de sobremesa”. Logicamente, aqui a gente recebe muito mais gente. A
Casa dela é pequena, tanto que as frutas que ela deu, dava para a gente
dar um pouquinho para cada criança. Aí demos e achamos aquilo tão
bonito, os meninos acharam aquilo uma novidade, né? E nós achamos
aquele gesto lindo. No outro sábado ela não voltou mais. o Roberto
falou comigo: “ô, Olívia, vamos fazer esse negócio.”
Para criar a tarefa, Olívia e Roberto enfrentaram muitos percalços, que solicitaram de
ambos persistência para superá-los. Ao se propor a retomar a trajetória desta criação, Olívia
percebe o quanto foi legal e, a partir desse juízo, adentra no acontecimento que provocou a
iniciativa de fazer esse negócio. Foi uma iniciativa que nasceu a partir do gesto de outra
pessoa, de outra cidade, de outra Casa Espírita, de levar uma porção de frutas para a tarefa do
Sábado. O gesto seguinte de distribuir tais frutas para as crianças que estavam, mesmo
sendo um pouquinho para cada criança, provocou um maravilhamento, o bonito, em quem
71
distribuiu e despertou uma novidade em quem recebeu que, dali, a iniciativa nasceu: vamos
fazer esse negócio. Ao mesmo tempo em que Roberto e Olívia criaram, formulando a idéia de
distribuir frutas para os assistidos, eles viram nascer porque aceitaram maravilhados a
provocação de um gesto proposto por um outro capaz de despertar a percepção da beleza
em quem faz e trazer novidade para quem recebe.
Ao destacar em seu relato que enfrentou muitos percalços na constituição da Salada e
que se empenhou pessoalmente para superá-los, compreendemos que Olívia está nos
comunicando como essa tarefa é um valor para ela. E tanto é assim que, a seguir, ela retoma
vários destes percalços enfrentados ao longo do caminho:
Lógico que a Casa teve um certo receio, porque é uma coisa nova, uma
coisa que não se sabia. Principalmente porque a Casa vive de doação e,
quando a Casa abraça um compromisso, ela tem (ênfase) que abraçar esse
compromisso. Ela tem que, de qualquer forma, fornecer o café da manhã, a
sopa, a cesta básica… são compromissos que ela assumiu. E a Salada
veio como mais uma coisa que é desgaste financeiro. E eu e Roberto
resolvemos assumir do nosso bolso (ênfase). [No início] a gente fornecia
[para] crianças. que nem eu nem ele tínhamos condições financeiras de
assumir (ênfase) o número de crianças que tem. Então a gente saiu pedindo
nos sacolões. E a gente ganhava…
Ante a iniciativa de criação da tarefa da Salada de Frutas, é lógico para Olívia que a
Casa apresentasse um certo receio, não porque se tratava de uma tarefa nova, que não se
sabia, mas principalmente porque traria mais um desgaste financeiro. Se é um princípio da
Casa garantir a continuidade de cada compromisso abraçado, é compreensível concluir que
seria difícil assumir mais um, pois ela vive de doação. Mas reconhecer que as limitações
colocadas pelo contexto são justas não aplacou o ímpeto por concretizar o que se vislumbrou
como beleza e novidade: sem o apoio da Casa, Olívia e Roberto decidem assumir a tarefa com
o dinheiro retirado do próprio bolso. E mesmo ao tomarem para si a responsabilidade, Olívia
relata que eles não tinham condições financeiras para darem conta do número de crianças que
a Casa atende. Era preciso então dar um passo a mais: se nem a Casa nem eles mesmos
tinham condições de sustentar a tarefa, a saída foi tentar ganhar os alimentos necessários para
a realização da tarefa pedindo nos sacolões.
E, para Olívia, a experiência de pedir nos sacolões tinha como resultado mais do que
conseguir os alimentos:
Eu aprendi muito (ênfase) com isso. E o Roberto tinha uma cabeça incrível.
Eu me lembro que a gente ia ao sacolão… Sabe aqueles restos que ficam
assim, que eles vão jogando [quando estão] podres? Verdura com fruta, com
legume, com tudo. E nós fomos pedir e o cara [responsável pelo sacolão]
72
falou assim: “leva esse aí, ó.” Eu já ia falar: “não”, e o Roberto: “Jesus te
abençoe.” E eu: “levar aquilo, cheio de lixo?” E o Roberto falou: “Olívia,
ele começou a ajudar, ele está desprendendo.” Eu falei: “Mas isso é
lixo!” Ele falou: “Lixo para ele não é o que é lixo para nós. Para ele nós
vamos aproveitar alguma coisa, mas lógico que nós vamos jogar tudo no
lixo.” Chegamos aqui, jogamos no lixo e eu na minha revolta: “que absurdo
uma pessoa fazer isso.” Ele: “ó, todo sábado nós vamos lá.” E no sábado
seguinte: [o homem disse] “só tem essa coisa…”. Mas, com alguns sábados,
ele começou a tirar da banca, não deu mais do lixo. “Até tem umas
bananas que eu deixei dentro”, podres, mas não pegava do lixo. E o
Roberto: “calma, porque a tarefa, Olívia, é essa. Não é minha, nem sua,
nem de fulano, é da humanidade. Então, a gente não pode tirar a
oportunidade desse moço de aprender a doar. Ele vai aprender a doar.” E,
nisso aí, foi até o cara dar caixa fechada, para resumir a história, dava
caixa fechada de frutas.
Empenhando-se para sustentar uma nova tarefa, Olívia não ganhou somente alimentos,
ganhou uma grande lição de vida no relacionamento com Roberto. Em sua experiência de
pedir nos sacolões, Olívia a princípio preocupava-se com o resultado concreto, com as
doações, e por isso se revoltava e negava-se a aceitar a atitude de um homem que oferecia
alimentos podres: levar aquilo, cheio de lixo?”. Roberto, por outro lado, estava atento à
disponibilidade inicial daquela pessoa em ajudar, em estar se desprendendo. Por isso ele era
capaz de acolher tanto o alimento recebido mesmo sendo inutilizável, indo tudo para o lixo
quanto o movimento de ajuda expresso naquele gesto de oferecer: Jesus te abençoe”.
Enquanto Olívia se pautava na reação de absurdo por uma pessoa fazer isso, Roberto, com
paciência, tomava posição ao insistir em pedir para a mesma pessoa, no intuito de não tirar a
oportunidade desse moço, pois, a partir daquele indício colhido, Roberto afirmava que aquela
pessoa ainda iria aprender a doar. E foi essa insistência no movimento de doarpresente na
experiência daquela pessoa que possibilitou que esta dinâmica se desenvolvesse e crescesse
no seu ritmo. Se no início eram alimentos podres do lixo, depois estes, mesmo sendo podres,
não estavam mais no lixo, até chegar ao ponto do cara dar caixa fechada de frutas. Nesse
sentido, Olívia pôde aprender que a tarefa de pedir no sacolão estava para além do resultado
material pretendido: conseguir as frutas. A ação voluntária se refere à disponibilidade para se
relacionar oferecendo e aproveitando oportunidades de aprendizado. Tanto quem pede quanto
quem recebe o pedido precisam aprender a doar e a doar-se. A tarefa, portanto, é de todos: a
tarefa, Olívia, é essa: é da humanidade.
O relacionamento com Roberto implicava um convite a considerar a tarefa sob um novo
ângulo. Enquanto ela se dedicava à tarefa preocupada com seus resultados imediatos, ele
insistia em acentuar os horizontes mais amplos de aprendizado humano. E como Olívia
respondeu a tais provocações para modificar o seu olhar?
73
Então o Roberto me ensinou muita coisa assim, sabe? Eu sou muito
estabanada e ele trabalhava por esse lado aí. Então começou assim: na
coragem (ênfase). E pedindo, pedindo mesmo. Davam para gente dez
centavos, outro dava cinco centavos, alguém dava um real. E eu e Roberto
ficávamos felizes e juntávamos: “quanto você tem?”. “Eu tenho tanto.”
O modo como Roberto se posicionava na tarefa é tão marcante para Olívia que ela
insiste em dizer o quanto ele lhe ensinou, pois enquanto ele trabalhava por esse lado aí, ela se
considera muito estabanada. Independente do quanto de alimento arrecadado ou do quanto de
dinheiro juntado, ambos ficavam felizes, porque agora a questão para Olívia estava colocada
em outros termos. Os ensinamentos de Roberto se tornaram referência para Olívia, permitindo
a ela focar o olhar no que é realmente importante na experiência de realizar a tarefa. Desse
modo, compreendemos que o ponto fundamental não era mais ficar na reação de absurdo,
negando o que não é aproveitável. Era fundamental retomar a coragem que os fizera começar,
insistindo na ação voluntária de pedir e podendo, assim, construir um relacionamento em que
ambos se realizam com o pouco alcançado.
Superado este percalço, eis que outro aparece:
E aí o Roberto ficou desempregado. Falei: “agora está danado.” (…)
Porque a Casa deixou bem claro que não podia mesmo colaborar com a
gente porque não tinha condições [devido a] outros compromissos
assumidos.
Mas Jesus faz tudo bonitinho. Ele viu que estávamos interessados mesmo e
trouxe um tarefeiro que entrou na Casa, achou bonitinho e começou…
(…) Com a entrada dele, a gente pôde fornecer para os nossos assistidos
adultos. As crianças podiam tomar mais [potes de salada de frutas], os
adultos só podiam tomar um, mas tarefeiro, nunca.
Olívia, deparando-se com o desemprego de Roberto, vivencia o choque por acreditar
que não seria mais possível dar continuidade à tarefa da Salada de Frutas: nem eles tinham
condições de mantê-la, nem a Casa tinha condições de colaborar devido a outros
compromissos assumidos. Mas eis que um tarefeiro entra na Casa, sente-se tocado pela
tarefa e começa a contribuir, possibilitando o aumento do número de potes de salada
fornecidos e do público atendido. Olívia toma este acontecimento não como mero acaso ou
golpe de sorte, mas como uma intervenção de ordem superior, pois Jesus faz tudo bonitinho.
Para ela, Jesus, ao perceber que eles estavam interessados mesmo, intervém encaminhando
uma pessoa e possibilitando, por meio da ajuda desta, tanto a continuidade da tarefa quanto a
sua ampliação.
nesse trecho Olívia comunica-nos um fator que irá se revelar crucial no modo como
ela retoma e elabora seu percurso de voluntariado: o relacionamento com presenças detentoras
74
de uma potência capaz de modificar o curso dos acontecimentos. Nesse sentido, entrevemos
que, para compreender sua experiência ao realizar a tarefa, não podemos desconsiderar a
dimensão religiosa. Para melhor compreender essa relação entre o trabalho voluntário e a
religiosidade, vejamos o que Olívia afirma diante do reconhecimento da evidência da
intervenção de Jesus:
“Meu Deus, nós temos que assumir mesmo, nós não podemos parar a
tarefa.” Com isso as portas foram se abrindo porque a gente persistiu na
tarefa, a gente não desistiu, nem eu, nem Roberto e nem quem estava
entrando.
Surpresa, Olívia se conta do dever que eles têm de assumir mesmo, de não parar a
tarefa. A intervenção de um outro na concretização da tarefa não é tomada como interferência
desestabilizadora, mas como sinal que a mobiliza a reafirmar o caráter de dever do
compromisso assumido e reforça o desejo de não desistir. E, nesse movimento de cada um
persistir na tarefa, as portas foram se abrindo, e novas pessoas foram entrando:
Depois entrou Mariana que começou a colaborar e foi dando idéia: “vamos
abrir esse leque?”. A gente foi abrindo esse leque de pessoas e até hoje a
Casa não contribui. Até hoje somos nós. A Casa não contribui com dinheiro;
contribui dando o açúcar e o material de limpeza, mas o resto ali é a gente
que compra: todas as vasilhas, leite condensado, creme de leite, suco, tudo é
nosso. Então a Casa fica muito feliz com nosso trabalho, mas nós
assumimos até hoje.
Dentre as pessoas que entraram, Olívia destaca Mariana, que, além de auxiliar
trabalhando na tarefa e doando dinheiro, colabora com a idéia de abrir esse leque de pessoas,
possibilitando que a tarefa se sustente mesmo sem a contribuição financeira da Casa.
Repercorrendo essa trajetória cheia de percalços, aprendizados, intervenções e colaborações é
que compreendemos efetivamente o valor da tarefa para Olívia, que faz questão de afirmar:
até hoje somos nós. É verdade que a Casa contribui dando o açúcar e o material de limpeza, e
que fica muito feliz com o trabalho, mas para Olívia são as pessoas que estão colaborando
com o próprio dinheiro que efetivamente assumem financeiramente a tarefa até hoje. Nesse
sentido, Olívia nos comunica que um dos pontos de sustentação da ação voluntária é o próprio
agente, que se empenha pessoalmente na concretização desse gesto no mundo. E esse
empenho pessoal possibilita uma experiência comunitária, o reconhecimento de um nós.
No entanto, o empenho das pessoas e a constituição de uma experiência de comunidade
na realização da tarefa não eliminam o aparecimento de novos percalços:
75
Acontece. Igual outro dia: um dos colaboradores saiu… porque muitas vezes
tem gente que nem é da Salada e colabora porque foi da Salada. Sai da
tarefa, mas continua contribuindo. Um dos tarefeiros que contribuía parou.
Falou comigo que não tinha mais condições de ajudar. E ficou muito
entre eu, Mariana e Afrânio, e eu falei com a Mariana: “Mariana, nós
perdemos…”. Qualquer dinheiro para nós faz falta. Aí no mesmo dia em que
eu estava falando com a Mariana chegou uma tarefeira e falou: “ô, Olívia,
eu queria colaborar, mas eu só posso dez por mês.” Então já não é vinte que
eu preciso, é dez, né? Que nós (ênfase) precisamos. Falei: “mas lógico, é
muito bem-vindo.” Aí chegou outro: “Olívia, posso colaborar com dez
reais?” Inteirou os vinte! (risos) Eu fico feliz porque é a resposta da
Espiritualidade, a resposta de Jesus para nós, certo? Porque se não fosse
uma tarefa que fosse feita com amor, tinha acabado, não ia durar tanto
tempo. Quando eles dão essa resposta rápida, tipo assim: “é isso mesmo, eu
estou no caminho.” Então, você faz parte desse negócio todo sabendo que
está no caminho. Eu estou dando o meu melhor e a Espiritualidade está aí,
concordando com a gente.
Justamente porque são as pessoas que assumem financeiramente a tarefa da Salada,
colaborando com o próprio dinheiro de maneira livre, o risco de alguém deixar de
contribuir, e isso acontece. Quando um dos colaboradores saiu porque não tinha mais
condições de ajudar, sustentar financeiramente a tarefa ficou mais difícil, uma vez que
qualquer dinheiro faz falta. Mas, novamente, algo inesperado acontece: uma tarefeira quis
contribuir, outro tarefeiro pediu para colaborar, e eis que inteirou os vinte reais necessários
para continuar sustentando a tarefa. Ao se dar conta do caráter providencial deste
acontecimento, isto é, quando reconhece que ele se dá segundo um desígnio que lhe é
favorável, Olívia fica feliz, se realiza identificando neste fato presenças de ordem superior,
porque é a resposta da Espiritualidade, a resposta de Jesus para nós. Para Olívia, a rapidez
com que esta resposta é dada indica que ela está no caminho, e o fato dela dar o seu melhor
neste caminhar mostra que esta presença da Espiritualidade está concordando com ela.
Para Olívia, é a percepção de que a Espiritualidade e Jesus estão facilitando e
concordando com o caminho percorrido que direciona a ação voluntária por ela desenvolvida.
Embora distintos, esses dois níveis de vivência se entrecruzam: é por trabalhar, isto é, por
realizar a tarefa que Olívia pode perceber a intervenção divina providencial e, reconhecendo
essa experiência religiosa como realizadora de si, ela a toma como resposta que sustenta e
orienta o modo de agir voluntariamente.
Nesse trecho, Olívia também retoma a idéia, elaborando-a, de que se não fosse uma
tarefa que fosse feita com amor, tinha acabado, não ia durar tanto tempo, respondendo
assim diretamente ao questionamento por nós proposto no início deste depoimento. Então,
vamos à resposta: “por que se não fizer com amor de nada adianta?” Até o presente momento,
compreendemos que, para Olívia, fazer com amor é fazer: com interesse, com disposição para
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aprender, com outras pessoas, com gosto, com persistência, com colaboração de quem se
dispõe a ajudar, enfrentando os percalços, trabalhando com coragem. Mas, acima de tudo,
fazer com amor é fazer com a certeza de que se está sendo amparado por presenças de ordem
superior, o que indica que o caminho percorrido é o caminho certo. Sem a intervenção desta
ordem, não ia durar tanto tempo, porque as pessoas da Salada não dariam conta, por si
mesmas, de efetivamente assumir a tarefa. Portanto, no fim das contas, fazer com amor é fazer
sabendo que não é só você quem faz.
E como se dá o relacionamento de Olívia com a Espiritualidade?
Eu e o Roberto decidimos que era o Paulo o nosso mentor… porque é a
Casa que escolhe. Mas aí… Roberto também é rebelde, então, “nós vamos
pôr o Paulo!” Porque o João Alberto já é da Sopa, mas se você vê no jornal,
não fala do Paulo, fala do João Alberto, porque eu e Roberto é que
inventamos, criamos para nós. Então a gente considera. As vezes em que nós
passamos dificuldades, a gente fala: “Paulo, você é mentor da Salada, meu
filho, dá um jeito aí pra gente.” (…) E ele responde em atos. A gente
passava sábados com pouco para dar para as crianças, dava um pouquinho
assim… porque não era pote igual é hoje não, era nos canecos que servem o
café. A gente punha aquele pouquinho… “ô tia, eu quero mais…”. E eu
falava “ó, Paulo, você se vira aí, meu filho. Nós estamos aqui e está muita
pouca fruta.” no sábado seguinte sempre a gente ganhava mais uma
caixa daqui, alguém que doava algum dinheiro, entendeu? Então, ele faz
bem o papel dele de mentor. (risos)
Apesar de ser a Casa que escolhe qual é o mentor espiritual de cada tarefa, Olívia e
Roberto decidiram por si mesmos quem seria o mentor da Salada: o Paulo. Trata-se de uma
decisão de caráter informal, pois o nome dele não aparece oficialmente, não se vê no jornal
fundado e publicado pela própria Fraternidade –, mas independente disso, eles o consideram
como tal. É por isso que, em momentos de dificuldade, é a ele que Olívia recorre: um jeito
pra gente. Para ela, o modo como Paulo responde é fazendo algo acontecer que resolva a
situação, pois ele responde em atos. É por isso que para Olívia ele faz bem o seu papel de
mentor. Trata-se de um relacionamento tão pessoal que Olívia tem a liberdade de pedir para
ele “se virar aí” e a intimidade de chamá-lo de meu filho.
Então, eu fico muito feliz quando a gente mentaliza João Alberto e Paulo,
eles estão juntos, né? Não é Paulo, tem o João Alberto, e, mais que tudo,
Jesus. A gente está sempre lembrando que a tarefa é para Ele. Ele falou: “o
que fizeres para qualquer um dos pequeninos é para mim que fazeis”,
então… Na verdade, nós somos os primeiros beneficiados, né?
Ao mentalizar João Alberto e Paulo, que estão juntos enquanto mentores da Sopa e da
Salada de Frutas, atividades do departamento de Assistência Social, Olívia fica feliz por entrar
em sintonia com a Espiritualidade. E entrar em sintonia com a Espiritualidade é entrar em
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sintonia, mais que tudo, com Jesus. Por que mais que tudo? No modo como Olívia toma a
frase do Evangelho, é razoável entendermos que, para ela, servir salada de frutas para os
assistidos é realizar a tarefa para Ele e, fazendo assim, quem doa é quem primeiro recebe.
Mais uma vez, Olívia nos comunica como a vivência religiosa incide diretamente no
objetivo de sua ação voluntária. Não há como desvencilhar uma da outra: no ato mesmo de
trabalhar voluntariamente para os assistidos, Olívia amplia seu horizonte de observação e
compreende que está atendendo ao chamado de Jesus e, portanto, trabalhando para Ele. E
Jesus é, mais que tudo, sentido último da tarefa que direciona o modo concreto de doar para
os assistidos.
Mas permanece uma pergunta: por que, para Olívia, na verdade, nós somos os
primeiros beneficiados? Para compreender essa sua conclusão, acompanhemos a descrição
dos vários benefícios por ela elencados:
Porque você chega aqui, e quando vai trabalhar naqueles panelões [por
exemplo], você sai cansado, mas com uma energia diferente, não é?
Vitalizado. Então, é esse sabor, é esse sabor. Igual, agora que eu vou entrar
de licença, você fica, assim, antenada, sabe? Não é porque eu coordeno não,
é porque eu faço parte da tarefa. Fico assim: “ai meu Deus, será que está
tudo sendo feito na hora?” Ou fico assim: “a essa hora o café já está
pronto”, “deve estar bem cheiroso”. “Ah, já está servindo sopa!” Você fica
antenada mesmo, é muito legal, é muito bom.
Um benefício que Olívia descreve é experimentar esse sabor de, mesmo cansado, sair
com uma energia diferente depois do trabalho realizado, sair vitalizado. O reconhecimento
com gosto desse sabor vitalizado e com certeza de fazer parte da tarefa faz Olívia ficar
antenada no transcorrer da tarefa, mesmo quando está de licença. Ficar antenada é ficar
preocupada em saber se tudo está sendo feito na hora ou aliviada em imaginar que o café já
deve estar pronto; satisfeita em intuir que o café deve estar bem cheiroso; contente em
afirmar que está servindo a sopa. E a própria experiência de ficar atenta à tarefa, mesmo
quando não está contribuindo diretamente, é muito legal e muito boa. Em síntese, trata-se de
afeição por um trabalho que corresponde e realiza Olívia.
Até aqui, podemos compreender que Olívia se beneficiada por participar de um
trabalho que vitaliza a sua pessoa, que lhe interessa e que lhe corresponde, por isso a atenção
e o cuidado com o transcurso da tarefa. Além disso, ela se vê beneficiada porque:
Sábado, talvez, a gente tem a oportunidade de conviver com os nossos
assistidos materialmente. E me mudou no conceito da minha vida pessoal.
Para ser franca, antes da tarefa eu era uma pessoa que não era nem de
olhar para mendigo, sabe? E é você percebe o quanto que você é
orgulhosa. Você não percebe assim… Eu não olhava, não fazia parte do
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meu caminhar. E, de repente, você essas pessoas e pensa: “esse pode
estar na rua.” Hoje em dia é o contrário: eu olho para ver se tem algum
assistido nosso, sabe? Então, de cara, me ajudou muito em saber que tem
irmãos nossos em situações horrorosas.
A oportunidade de conviver com os assistidos da Casa provocou Olívia a rever o modo
com que ela concebia e lidava com aqueles menos favorecidos e a perceber o quanto ela era
orgulhosa ao tratá-los com indiferença. E foi justamente esta convivência concreta que a
ajudou a se dar conta deste outro enquanto pessoa, porque, se antes ela não olhava, não
entrava no seu horizonte de experiência, não fazia parte de seu caminhar, agora ela essas
pessoas e pensa sobre a condição de vida em que elas se encontram. Se antes era mendigo,
hoje são irmãos nossos. Se antes não era nem de olhar, hoje Olívia procura saber.
E quando você tira essa carga de orgulho, quando você vai conviver, você
pára e conversa com eles, qualquer migalha que a gente passa, eles ficam
muito felizes… Lógico que tem exceções, mas a maioria nunca deixa: “nó,
obrigada, estava tão bom.” É uma satisfação muito grande que dá.
E, quando Olívia tira essa carga de orgulho, e começa efetivamente a conviver e a
conversar com os assistidos, ela se satisfaz ao reconhecer a felicidade e a gratidão que a
maioria dessas pessoas vive ao receber alguma doação, nem que seja qualquer migalha, mas
que não deixa de ser tão bom.
Para Olívia, ajudar convivendo com o outro nestes termos é vivido como uma
satisfação muito grande, que realiza a sua pessoa, seja devido à possibilidade de reconhecer a
felicidade e a gratidão do outro a partir de tão pouco, seja porque:
Isso me lembra então o sofrimento que a gente… Então, sua vida, seus
problemas. Isso não é demagogia não, é verdade (ênfase). E quando você
vai enfrentar alguma barra, eu tiro por mim mesmo. eu lembro: “gente,
aquela dona me contou isso, isso e isso e eu estou aqui reclamando por
causa disso!”, sabe como? Falei: “gente, aquele assistido ali perdeu tudo,
está debaixo de uma lona! Uma lona quente ‘toda vida’, e eu calorenta.” Eu
lembro que no último calor que teve: “meu Deus, eu o agüento, nem o
ventilador está me ajudando!…”. eu lembrei direitinho de um casal de
idosos que mora debaixo de uma lona preta. Daquela lona preta! Eu falei:
“meu Deus do céu! Eu tenho a minha cama, eu tenho ventilador na minha
cara e aqueles dois, o que estão fazendo na rua?” Então, essa tarefa do
Sábado me dá esse tipo de satisfação.
A convivência com a situação de sofrimento do assistido provoca Olívia a pensar em
quê este sofrimento tem a ver com sua própria vida e o modo como ela lida com os seus
problemas. Por ser uma compreensão calcada na experiência, isso não se trata de demagogia
para ela, trata-se de uma afirmação contundente de verdade. E, para evidenciar tal
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compreensão, Olívia lança mão de exemplos concretos de dificuldade, quando enfrentou
alguma barra, em que ela, ao se lembrar dos problemas daquelas pessoas assistidas que
conhece pessoalmente, reformulou o modo de enxergar e de encarar a situação. Ao retomar a
própria vida considerando as provocações da pessoa do outro, Olívia também se realiza, vive
esse tipo de satisfação.
Considerar a vida dos assistidos da Casa e as dificuldades materiais que eles passam é
um valor tão importante para Olívia que ela orienta o modo de distribuir os potes de salada de
frutas a partir desse valor:
As crianças e os adultos assistidos podem tomar à vontade e passamos [a
dar um pote] para cada tarefeiro, que não é nem a nossa finalidade não. É
porque a gente sabe que agrada muito as pessoas. E muita gente não fica
satisfeita com esse hábito, mas é uma decisão nossa, é bem pensada mesmo.
Eu não posso dar salada para a Olívia, para o Yuri à vontade, se nosso
assistido não tem essa oportunidade. se eles vão comprar maçã, laranja
e deixar de comprar o pão, o leite? Então, eles têm esse prazer de tomar a
salada porque sabem que normalmente é o momento que eles m de comer
fruta.
A finalidade da salada é servir aos assistidos e não aos tarefeiros. É por isso que Olívia
tomou esta decisão, bem pensada mesmo, de dar somente um pote para cada tarefeiro,
mesmo que esse hábito desagrade muita gente. Ela sabe que comer a salada agrada muito as
pessoas, mas o sentido da tarefa não está em agradar, e sim em orientar sua ação em função
da finalidade reconhecida: dar oportunidade àqueles que não têm. E, para Olívia, o prazer que
os assistidos têm ao tomar a salada vem do modo como eles aproveitam essa oportunidade,
pois este é o momento que eles têm de comer fruta.
Ao retomar seu relacionamento com os assistidos, Olívia retoma sua própria história: se
antes era orgulhosa e indiferente com relação aos miseráveis, a tarefa a ajudou a vê-los como
pessoas e a se lançar no relacionamento com eles, importando-se com suas condições
concretas e movendo-se na tentativa de ajudá-los, mesmo que seja com pouco. Diante das
dificuldades do outro, Olívia é também solicitada a se voltar para a própria vida,
reformulando o modo como se posiciona ante seus problemas. Envolvida desse modo com os
assistidos, ver a gratidão com que eles recebem auxílio a realiza e orienta suas decisões
também com relação aos companheiros de tarefa. Portanto, a experiência de trabalhar
voluntariamente é vivida como uma abertura que permite Olívia se realizar ao reelaborar um
modo pessoal de se relacionar com os assistidos, tirando daí conseqüências para outros
âmbitos da vida e para o próprio modo de conduzir a tarefa.
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Da convivência com os assistidos, chegamos à convivência com os tarefeiros. Se, de um
lado, Olívia é firme na decisão de que a tarefa não tem como função primordial agradá-los,
por outro, ela expressa o quanto a presença deles é importante para ela:
E tem esse outro lado de conviver com muita gente, né? Você me conhece,
sabe que eu sou uma pessoa agitada. E meu astral, normalmente, é… Eu
gosto da alegria, sabe? E aqui eu convivo com gente de todos os jeitos, mas
sempre gente do bem. É muito bom conviver com essas pessoas.
[Essas pessoas estão] na busca, na mesma busca minha de crescimento, de
aprendizado, de paz, e de altos fluidos, porque a gente está atrás de altos
fluidos, né?
A tarefa da Salada possibilita que Olívia conviva com muita gente, fator que a realiza
por corresponder a algo que ela é, que ela gosta e que ela busca. Não é simplesmente conviver
com gente de todos os jeitos que realiza Olívia, mas a evidência de que essas pessoas, cada
qual à sua maneira, são sempre gente do bem, isto é, pessoas que estão na mesma busca que
Olívia reconhece em si.
E [ao conviver com essas pessoas] eu aprendo e acrescenta muito na minha
vida. Eu acho gostoso que alguns me procuram para falar sobre problemas,
para falar de alegrias, telefonam para a minha casa, me mandam e-mail. E
sempre para mim é satisfatório, falo assim: “ah, que legal, criei mais uma
amizade”, entendeu? E isso para mim é satisfatório. Não o pessoal da
Salada, o pessoal da Sopa também, de outras áreas aqui, de outros setores
da tarefa. Então, Sábado, talvez seja por isso, que eu conviva com um
número maior de pessoas e eu gosto de gente, sabe? E, é claro, de conviver
com os próprios tarefeiros… e aprendendo, né? Você vai convivendo e você
vai vendo as bobeiras a que a gente se apega. E aí, quando você percebe no
outro, você vê que você também tem os mesmos melindres, as mesmas
frescuras. Aí você começa a trabalhar em si mesmo, sabe. “Nossa… é
mesmo! Para quê aquela situação ali?” Uma coisa boba e daí você percebe
que está fazendo a mesma coisa, então você começa a mudar. Então, me
ajuda na reforma íntima.
Conviver com os tarefeiros da Casa é muito bom também porque Olívia aprende com
esses relacionamentos, o que acrescenta muito em sua vida. Trata-se de relações de amizade,
nas quais alguns a procuram para falar sobre problemas, para falar de alegrias, telefonam
para sua casa, mandam e-mail. Isto é, criam-se vínculos que ultrapassam o mero fazer algo
juntos. Cuidar desses relacionamentos e continuar criando amizades é muito realizador para
Olívia, a satisfaz enquanto pessoa. As amizades são vividas também como ocasião de
aprendizado, porque na convivência tornam-se explícitas as bobeiras a que o outro se apega
e, percebendo-as, Olívia pode se dar conta de que também tem os mesmos melindres, as
mesmas frescuras. Nesse processo, ela se sente ajudada na própria reforma íntima: a
percepção de como o outro se posiciona a mobiliza a rever os próprios posicionamentos e, a
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partir dessa percepção de si com surpresa, –
“Nossa… é mesmo! Para quê aquela situação ali?”
ela pode começar a mudar.
Aproximando as várias vivências que Olívia nos comunica a respeito de seu
relacionamento com os companheiros de tarefa, podemos compreender que as dificuldades
presentes na convivência, como o desagrado que ela provoca em alguns ou as bobeiras que ela
percebe em outros, não definem o tom das relações. O ponto fundamental que a orienta é a
realização vivenciada no convívio com essas pessoas, o qual é possibilitado pela ação
voluntária e se concretiza tanto no momento mesmo da tarefa quanto fora dos muros da
instituição.
Olívia expressa essa realização no gosto constantemente reafirmado e também no
reconhecimento de que compartilha com os companheiros a busca por concretizar o mesmo
critério de bem; no cuidado em criar e manter relacionamentos de real amizade; no
aprendizado ao tomar esses relacionamentos como ocasião para se descobrir e para reformar-
se interiormente.
Com essa compreensão, podemos retomar a pergunta sobre por que Olívia afirma ser a
primeira beneficiada ao realizar a tarefa. De fato, vimos que a ação voluntária em si a vitaliza
e lhe corresponde e que, ao trabalhar, ela constrói relacionamentos verdadeiramente pessoais
– com assistidos e tarefeiros – nos quais tanto a presença quanto a provocação que o outro traz
para que ela se transforme são vividos como satisfação. Assim, Olívia pode se reconhecer
como a primeira beneficiada porque, antes mesmo de efetivar o auxílio a quem precisa, ela se
realiza no ato de fazer a tarefa. Mas é preciso lembrar que essa possibilidade de satisfação
não é encontrada em qualquer atividade, mas em um certo tipo de ação, que expressa um
sentido muito preciso: uma ação que, dirigindo-se concretamente para os pequeninos, é mais
que tudo, para Ele, Jesus.
Diante de todo o percurso até aqui apresentado, entendemos que não é por acaso que
Olívia considera a atividade realizada na Salada a mais empolgante. É a mais empolgante não
porque ela a concebeu, a viu nascer e se empenhou para que continuasse a crescer, mas
também porque ali Olívia se reforma interiormente e se realiza enquanto pessoa por atualizar
suas potencialidades e por agir reconhecendo, elaborando e afirmando em todas aquelas
experiências cotidianas de trabalho o valor e o sentido último que as sustenta.
Esta compreensão ajuda Olívia a problematizar o sentido da tarefa:
Toda tarefa, a finalidade dela é essa [a reforma íntima]. Então, o
voluntariado, que a gente deveria… A gente, aqui na Casa Espírita, tenta
sempre passar isso para as pessoas, que ser tarefeiro é muito mais que ser
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voluntário. Porque o voluntário, no conceito geral, é aquela pessoa que vai
quando tem uma horinha, quando pode. Têm alguns até que são
persistentes, mas se prendem à palavra “voluntário”. “Eu sou voluntário.”
Então, se hoje eu tenho que fazer compra para minha mãe, eu não posso ir
lá. Se eu tenho uma festa, então eu vou para o salão e não tenho tempo de ir
lá. o tarefeiro, ele tem um compromisso (ênfase) com a Casa. Ele tem um
horário a cumprir e não é uma coisa… É um trabalho, mas para Jesus, não
é para nenhum de nós. Então, o compromisso é muito grande. Não que o
voluntário também não faça. Mas a gente, dentro da Casa Espírita, tem que
ter muita consciência disso. A gente fala muito disso, então tem que ter
consciência, não é? Então, o tarefeiro tem que ver isso com um
compromisso maior. E essa Casa (ênfase) Espírita… e Casa nenhuma… se
você falta e eu falto, sempre tem alguém. Mas é pela nossa própria
necessidade, né?
Para Olívia, tomar a reforma íntima como finalidade da tarefa é um ponto que
diferencia a postura do tarefeiro da postura do voluntário. Enquanto o voluntário, no seu
conceito geral, trabalha quando pode e faz questão de dizer que é voluntário, se auto-
afirmando sob o próprio trabalho, o tarefeiro, para ser considerado como tal, precisa ter a
consciência do compromisso assumido consigo mesmo, com a Casa e com o sentido último
que a tarefa expressa, isto é, com um trabalho para Jesus. Esse compromisso assumido não
significa auto-afirmação voluntarista, pois se você falta e eu falto, sempre tem alguém, a
tarefa vai continuar. Isso significa que, para Olívia, não estão somente no indivíduo a força e
o sentido da tarefa: pelo contrário, a pessoa deve trabalhar percebendo e afirmando sua
participação em uma obra maior, reconhecendo que está ali pela sua própria necessidade. E
essa é uma proposta da gente da Casa Espírita, ou seja, é um direcionamento dado pelo
contexto ao qual Olívia adere pessoalmente e se empenha para comunicar, para passar isso
para as pessoas. Em síntese, ser tarefeiro é muito mais que ser voluntário, é ser capaz de
aderir a uma proposta feita por um outro com consciência dos objetivos a serem alcançados,
com clareza do sentido último a ser afirmado e com comprometimento com o próprio
processo de crescimento pessoal.
Tarefa não é você vir numa instituição espírita ou em qualquer outra
instituição de ajuda, é dentro de casa. (…) Nós temos esse conhecimento.
Tem que ser um grande tarefeiro dentro da casa da gente. tem que ser
com certeza. A gente treina aqui fora para ficar dentro de casa.
Comprometimento com o próprio processo de crescimento pessoal, ou seja: é preciso
que o conhecimento adquirido na tarefa transforme a pessoa do tarefeiro. Nesse sentido, o
chamado não se restringe a fazer alguma tarefa dentro da instituição: tem que ser um grande
tarefeiro dentro da casa da gente. Para Olívia, a casa é o ambiente privilegiado de verificação
da transformação pessoal operada a partir do treino, isto é, dos conhecimentos adquiridos e do
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compromisso com a tarefa aqui fora. Como corolário, assumir efetivamente esse
compromisso dentro de casa configura-se como um dever: tem que ser, com certeza.
É fundamental retomarmos que, na experiência de Olívia, o reconhecimento de que,
tanto na instituição espírita quanto dentro de casa, fazer a tarefa é um dever não elimina a
possibilidade de realização que este fazer contém. A todo o momento, Olívia descreve a
satisfação que a tarefa lhe traz, independente de qual seja:
Eu tenho outra tarefa na segunda, que é de Passe, que é outra gratificante,
porque o passista, ele é o primeiro a receber mesmo. Então quando você sai,
conclui essa tarefa, você sai altamente revigorado, sabe? Você sai com uma
energia que dá vontade de abraçar o mundo!
Porque você é um canal. A Espiritualidade pega energia sua, trabalha nessa
energia e a passa para aquele paciente. E é por isso que você tem que ter
uma entrega principalmente no dia da tarefa. Mas no dia a dia você tem que
ser uma pessoa que tenha disposição para a tarefa. (…) Aliás, toda tarefa
tem que vir com o seu melhor. A tarefa de segunda é pura energia, pura
energia. Então você tem que ter muita cautela com isso. Então é
gratificante, é!
Assim como na tarefa da Salada de Frutas, Olívia também se realiza na tarefa do Passe
por reconhecer que é a primeira a receber, pois fazer esta tarefa a revigora de um modo tal
que lhe vontade de abraçar o mundo. Então é gratificante, mas isso não significa que o
foco principal seja favorecer o tarefeiro, pois o que é característico dessa tarefa é o fato de o
passista ser canal para que a Espiritualidade trabalhe passando energia para aquele paciente.
Para Olívia, ser este canal a solicita a empenhar-se e a cuidar-se no dia a dia de modo a estar
efetivamente disposta para que a tarefa se concretize. Reconhecendo essa sua entrega ao
trabalhar como passista, Olívia apreende um critério que deve orientar todas as tarefas: tem
que vir com o seu melhor. Portanto, ela se realiza ao perceber que sua atividade a transforma
em instrumento da Espiritualidade: ela recebe e doa energia para o outro e, nesse processo,
toma para si o que recebe, vitalizando-se e sentindo-se mobilizada a agir considerando
horizontes de totalidade.
É evidente como a afeição pela tarefa é um ponto que marca o modo como Olívia
elabora o que lhe acontece naquela atividade e também na tarefa da Salada de Frutas, como
vimos acima. É por isso que a definição de tarefa, para ela, inclui sempre a dimensão do
gosto. E na tarefa de Visita aos Lares não é diferente:
Na terça, eu faço Visita aos Lares, que também é gostoso. É uma
responsabilidade de uma forma mais sensível porque você leva a palavra de
Jesus para uma casa, sabe? E a maioria dos lares que a gente adentra são
lares católicos. De vez em quando aparece algum espírita, mas a maioria é
católica. Na instituição espírita, normalmente, grande parte dos
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freqüentadores é católico. Então você tem que ter essa preocupação,
primeiro porque, nós espíritas… eles têm uma visão deturpada da gente.
Têm aquela visão: “nó, macumbeiro!” Então a gente tem que mostrar que a
gente tem a visão de Cristo como todos têm.
Mesmo quando está preocupada em romper com preconceitos, visões deturpadas
associadas ao espírita, a responsabilidade de levar a palavra de Jesus para uma casa é vivida
com gosto por Olívia, pois o intuito não é ficar na diferença que distancia (“nó,
macumbeiro!”), mas mostrar a unidade que permite compartilhar: a gente tem a visão de
Cristo como todos têm.
E de que modo Olívia compartilha essa visão de Cristo com o outro?
A gente vai levar o Evangelho (ênfase) de Jesus para dentro da casa da
pessoa. E a gente sabe que quando é pedido um passe no lar, a pessoa está
com o comprometimento espiritual maior. Não é de dívida não, é de sintonia
dentro de casa. Muitas vezes não é a pessoa que está tomando o passe, ela é
um canal para dentro de casa. E nunca você está sozinho naquele
ambiente, tem irmãos que estão vendo do plano espiritual e que estão tão
necessitados quanto. Então, na verdade, você está dando uma palestra. A
gente faz um pequeno culto. Você vai cantar um hino para sintonizar; fazer
uma oração inicial; fazer uma leitura é a pessoa que vai tomar o passe
que abre o livro –; comentar a leitura; dar o passe e encerrar. É um culto
isso aí. A tarefa da Visita no Lar normalmente dura quinze, vinte minutos e
encerrou. Mas são quinze, vinte minutos em que a gente percebe a
ansiedade que a pessoa fica esperando a gente, sabe? “Ah, vocês
chegaram!” Então não pode nem atrasar, porque a gente sabe da ansiedade
do outro. É um quadro gostoso.
Olívia enumera vários fatores envolvidos na tarefa de Visita aos Lares: o
comprometimento espiritual da pessoa que é visitada, o fato de ela ser um canal para dentro
de casa, a presença na casa de Espíritos desencarnados tão necessitados quanto; mas reafirma
que a questão é levar o Evangelho de Jesus. Todo o conhecimento espírita e a estrutura de
como se deve fazer este pequeno culto estão em função desse objetivo. O alcance deste
objetivo, acrescido da espera de quem será visitado e do cuidado que isso desperta em Olívia,
compõem para ela um cenário de auto-realização, um quadro gostoso. Que gosto é esse que
Olívia vivencia?
Então… é difícil, a pessoa está com uma dificuldade… mas o gostoso é
perceber… Igual, um lar que a gente adentrou de uma pessoa muito
chorosa. Chorando muito, desde o primeiro dia que nós fomos lá. Uma
pessoa que não conhece o Espiritismo, uma pessoa que alguém deve ter
dito: “ó, vai lá, tira uma receita.” E essa semana, que ela está tomando o
quarto passe, é outra pessoa. O prazer… é um prazer enorme. Você fala:
“pô!…”. Cara, eu chego em casa à noite porque a nossa tarefa é de dia
e falo assim: “Jesus, você me deixa (ênfase) participar disso!”, sabe como?
Eu vou agradecer: “Jesus, você me deixa (ênfase) participar dessa
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maravilha de…”. Lógico que eu tenho consciência que não sou eu, não é a
minha dirigente, nem a equipe. Nós fazemos parte, Ele deixa a gente fazer
parte, porque… se Ele precisa da gente, né? Então por isso que a gente
tem que ter essa cautela (ênfase) de não achar nfase), não é? Se achar
(ênfase), não. Ele deixa a gente participar. Para, quem sabe um dia,
desenvolver a caridade real… Hoje em dia a gente ainda faz porque precisa,
mas um dia a gente vai fazer com esse desprendimento com que a
Espiritualidade faz, simplesmente porque ama. Não tem outro sentido a não
ser esse. Então, é gratificante. Essa semana ela [está] mais centrada, mais
tranqüila… E isso a gente já percebeu em vários lares, então…
Embora envolvida em uma situação difícil, em que precisa lidar com pessoas em
dificuldade, Olívia vivencia um prazer enorme por poder ajudar uma pessoa a sair de uma
postura chorosa, de modo a ficar mais centrada, mais tranqüila. Retomando essas
experiências quando chega em casa, ela se dá conta de que a maravilha desse acontecimento
não está unicamente em sua mãos. Olívia tem clareza de que não é ela que faz o processo
acontecer, porque sabe que nem Jesus nem a Espiritualidade precisam dela para fazer a
caridade: se Ele precisa da gente, né?. Olívia, a dirigente e a equipe participam dessa
experiência, mas não a sustentam por si mesmos, pois é um Outro que a faz: Ele deixa a
gente participar. Por isso não sentido em se achar. Por isso o fato dela poder participar
dessa experiência gratificante é reconhecido como uma oportunidade concedida, despertando
gratidão: Jesus, você me deixa participar disso!”. Gratidão também porque tais experiências
se constituem como ocasião de aprendizado e crescimento pessoal, pois, se hoje ela ainda faz
porque precisa, sua esperança é de que a prática a conduza a fazer com esse desprendimento
com que a Espiritualidade faz.
Em síntese, o maravilhamento diante de um acontecimento solicita Olívia a reconhecer
que esta experiência lhe foi dada por Alguém. Assim, não porque se auto-afirmar
exaltando o próprio trabalho: a resposta que lhe corresponde é a gratidão por poder participar
de algo que ultrapassa sua própria capacidade. Essa experiência abre horizontes que a
permitem vislumbrar sua espera pela caridade real, espera por um dia poder agir com
desprendimento, simplesmente porque ama. Chegar a fazer por amor: é por isso que Olívia se
dedica à tarefa, porque não tem outro sentido a não ser esse, e gostaria que todos soubessem
de quê se trata:
Tarefa é muito gostoso. Se as pessoas soubessem a força, a grandeza que é
essa oportunidade… de estar junto de Jesus fazendo o que Jesus fazia,
contente, caminhando lado a lado, ombro a ombro… acho que o mundo todo
abraçava, cada um abraçava uma coisa para fazer.
86
Retomando todo seu percurso de elaboração sobre o sentido da tarefa e sobre o gosto
que se vive ao realizá-la, Olívia pode expressar com convicção que se as pessoas soubessem o
que ela sabe, o mundo todo abraçava. Partindo do âmbito circunscrito da sua experiência
pessoal, da alegria por estar junto a uma Presença tão significativa para ela, por caminhar
ombro a ombro com Ele e por se realizar na tarefa em Sua companhia, Olívia é capaz de dar
um juízo que se abre para a humanidade inteira. Ela identifica a força e a grandeza, isto é, o
valor da oportunidade oferecida pela tarefa e daí extrai a potência que o conhecimento desse
valor tem de provocar o ser humano a se mover, a abraçar uma coisa para fazer.
Assim, tantos sentidos abertos pela tarefa, tantas possibilidades de realização e de
vivência de experiências religiosas de integração com a divindade retornam ao elemento mais
concreto, à ação: tudo isso é possível pelo fazer e convida a fazer. É a concretude da tarefa
realizada, com esforço e cuidado, que possibilita e sustenta essa dinâmica.
2.1. A experiência de voluntariado de Olívia: uma síntese
No modo como Olívia elabora e comunica sua experiência de voluntariado,
apreendemos que a realização de si emerge como vivência estruturante: é expressando o
gosto, a satisfação, a felicidade que ela adentra cada experiência vivida enquanto tarefeira.
E qual é o dinamismo próprio de tais experiências? Em situações do cotidiano, Olívia
apreende certas solicitações que a motivam a abraçar a tarefa. Aderindo àquilo que reconhece
como correspondente, ela empenha-se pessoalmente para concretizar o que vislumbra como
ideal. Esse processo é vivido como realização de si, permitindo que ela atualize sua motivação
e persevere na ação voluntária. Nessa ação que é doação de si ao outro, ela enfrenta
obstáculos e admira-se com os resultados alcançados, tomando tanto as dificuldades quanto o
maravilhamento como provocações para reafirmar seu compromisso. Olívia também se
descobre como beneficiada, identificando o que a realiza e reconhecendo que a sua ação é
sustentada: ela participa de uma obra maior.
Na apreensão desses fatores, o relacionamento com o outro emerge como mais um
ponto central na constituição da experiência de voluntariado de Olívia. Na relação com os
assistidos, ela reformula o modo de lidar com eles, considerando-os como pessoas e buscando
ajudá-los em suas reais necessidades. Nesse processo, ela reelabora seus próprios
posicionamentos na forma de conduzir a tarefa e a vida como um todo. Com os companheiros
87
de tarefa, Olívia, mesmo considerando as dificuldades próprias da convivência, busca
construir relacionamentos pessoais que a solicitem a reformar-se interiormente e que se
tornem amizade, dentro e fora da instituição. A ação voluntária é, portanto, vivida como
experiência compartilhada que carrega em si a força para a constituição de um nós, de um
grupo unido pelo ideal e por laços de afeto: uma comunidade. com a Espiritualidade e com
Jesus, Olívia busca configurar um relacionamento pessoal, reconhecendo suas intervenções
providenciais e compreendendo que estas relações sustentam e direcionam sua ação
voluntária.
Todos esses são relacionamentos que gratificam e realizam Olívia. Em cada um deles,
ela se reconhece acompanhada por presenças que a envolvem pessoalmente, que a
possibilitam transformar-se interiormente e que permitem que sua ação voluntária tenha
sustentação, ressonância e impacto no mundo.
Dentre todas essas presenças, Jesus se configura como a principal: participar da sua obra
é o sentido último da tarefa para Olívia. Trata-se de uma experiência de ordem religiosa que a
gratifica profundamente e que fundamenta seu trabalho voluntário. É a partir da própria
religiosidade que Olívia contempla e compreende o que lhe acontece, formula o voluntariado
como um dever a ser cumprido e vivencia uma realização radical da sua pessoa ao
reconhecer-se como partícipe da obra divina por meio de sua ação voluntária.
Nesse processo de elaborar sua inserção na tarefa em uma casa espírita, Olívia
ultrapassa a descrição do fazer no âmbito circunscrito da materialidade, abrindo-se para os
sentidos implicados nessa ão voluntária. Compreender a tarefa como ocasião de realizar-se,
relacionar-se, reformar-se interiormente e viver a caridade cristã é tanto uma proposta do
contexto sociocultural quanto uma vivência de Olívia ao agir. Isso significa que os
direcionamentos que lhe foram e são passados encontram ressonância em sua experiência,
mobilizando-a a repassar a outros aquilo que reconhece como correspondente para que eles
também possam ter consciência do que está implicado em seu agir. Por outro lado, Olívia não
deixa de inovar neste mesmo contexto, pois o maravilhamento diante de novos caminhos
possíveis de ação a mobiliza a persistir para dar continuidade àquilo que reconhece como
valor.
Seguindo e transformando, Olívia é formada e “con-forma” o contexto sociocultural em
que se insere. Refletindo sobre sua inserção na tarefa, ela elabora sua experiência de
voluntariado enquanto ponto de abertura que permite inserir a própria vida em horizontes de
totalidade. Realizando-se em relação, Olívia sente-se integrada à obra divina: nós fazemos
parte, Ele deixa a gente fazer parte dessa maravilha.
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3. Telma: Servindo à Casa Espírita toda vida, eu venho e sou grata por isso
No sábado pela manhã, logo após as onze horas, cresce a fila de assistidos na porta do
refeitório. Crianças, suas mães e pessoas idosas têm preferência e adentram o salão enquanto
os demais aguardam. Os caldeirões já foram dispostos nas cabeceiras das mesas e estão cheios
de sopa fervilhante. Enquanto os assistidos são instruídos a se acomodarem nas mesas,
tarefeiros executam suas respectivas funções: preparar e colocar a sopa nos caldeirões, servir
a sopa nos pratos, entregá-la aos assistidos, repor a sopa para aqueles que solicitam repetição,
limpar as mesas quando necessário e todo o salão ao final da tarefa. O ritmo é ditado pelo
número de assistidos que receberão a refeição e, para que o processo tenha continuidade, é
preciso que os pratos e talheres utilizados sejam constantemente lavados para serem
reutilizados.
A “lavação dos pratos” é feita por quatro a cinco tarefeiros num espaço próximo ao
refeitório. Sobre uma bancada, bacias cheias de água e produtos de limpeza são instrumento
para um processo cuidadoso de lavagem. Nesse espaço, o rigor com que são cumpridas as
normas de higiene é entremeado por gargalhadas. É que encontramos Telma, uma dona de
casa de 60 anos que caminha com dificuldade e que por onde passa leva um sorriso no rosto,
sendo alvo constante de brincadeiras. Suas risadas são inconfundíveis. Embora não seja
coordenadora, Telma, que trinta anos trabalha na Casa, é uma figura bastante conhecida e
respeitada no setor de nutrição por sua simplicidade, vivacidade e por sua trajetória de vida.
Para muitos, é surpreendente que ela continue perseverando na tarefa mesmo com a saúde
debilitada por problemas de articulação nos joelhos e por uma catarata progressiva, que
ameaça roubar-lhe completamente a visão. É também digno de nota o fato de que ela não
possui sequer o ensino fundamental completo, freqüenta a Igreja Católica e que, sendo muito
pobre, mora em um bairro periférico distante e por isso precisa pegar dois ônibus para chegar
até a Casa.
Não admira que Telma seja alguém capaz de solicitar tanto os demais tarefeiros, sendo
considerada referência por muitos. Vejamos o que ela mesma comunica da sua experiência na
tarefa.
Yuri: Eu queria saber como é o trabalho que você faz, o que você faz aqui
na Casa…
Telma: De uns tempos para cá, agora, eu estou na sexta e no sábado. Na
sexta-feira a gente vem, corta legumes, lava tudo direitinho e guarda. E
cozinha o feijão… põe tudo no freezer e guarda tudo direitinho. E lava tudo,
as vasilhas, tudo direitinho, seca e guarda. Isso na sexta, né?
89
Yuri: Vocês cortam o legume para Sábado?
Telma: Corta tudo, separa, guarda o que tem que guardar na geladeira e…
casca tudo, corta e lava com muito cuidado para não sair nada errado. (tom
de brincadeira)
Ao iniciar o relato sobre seu trabalho na Casa, Telma enfatiza a dimensão cronológica
das tarefas que realiza: de uns tempos para cá, agora, eu estou na sexta e no sábado. Nessa
primeira afirmação, é possível colher seu interesse em comunicar que esteve envolvida em
outras tarefas, dando a entender que está na Casa algum tempo e que, comparado ao que
ela fez, o trabalho que ela realiza atualmente é pouco: estou na sexta e no sábado. A
ênfase nesses dois fatores, o tempo de trabalho e a quantidade de atividades realizadas,
sugere-nos o valor, para Telma, do ato de fazer tarefa. Outro indício desse valor pode ser
apreendido no modo como ela, ao listar suas tarefas de sexta, destaca seu empenho para que
saia tudo direitinho. Não basta vir, separar, cortar, cozinhar, lavar, secar e guardar, é preciso
realizar cada uma dessas atividades com muito cuidado para não sair nada errado.
Descrevendo o cotidiano da tarefa, Telma ressalta seu empenho e zelo com cada alimento e
objeto manuseado: tudo é cuidado assim. E por que cuidar para que não haja nenhum erro é
tão importante?
Tem que sair tudo certo, porque se não… além de ficar feio para nós que
estamos trabalhando ali, estraga, né? Se a gente faz alguma coisa errada,
estraga. Mas eu já trabalhei em muitas (ênfase) outras tarefas aqui na Casa.
É preciso cuidado porque, caso alguma coisa saia errado, além de ficar feio para quem
está trabalhando, o alimento que está sendo preparado estraga. Cuidar de cada atividade tanto
comunica a dedicação de quem faz, quanto permite que realmente se concretize sua
finalidade. Para Telma, se a gente faz alguma coisa errada, estraga, isto é, sua ação
voluntária carrega a responsabilidade de expressar o cuidado pessoal e de garantir que o
objetivo pretendido não seja impossibilitado. Nesse sentido, compreendemos que a
necessidade do cuidado é reconhecida como um dever por Telma: tem que sair tudo certo.
Finalizando esse trecho, Telma retoma o que havia insinuado anteriormente, isto é,
que já trabalhou em muitas outras tarefas da Casa. Por que ela insiste nesta afirmação?
trabalhei também perto do Ceasa, no [bairro] Kennedy.
43
Trabalhava
na quarta separando roupa, calçados e na quinta era o Bazar. Então a gente
ia para dar uma força, que de uns anos para cá eu fiquei com as minhas
pernas muito… né? Aí não deu. Aí eu fiquei aqui só na Casa.
[Hoje] eu fico mais é na lavação no sábado. Justamente agora que eu não
tenho muita força nas pernas, também não estou enxergando direito, então
43
Neste trecho Telma refere-se a outra unidade da mesma instituição.
90
eu me imagino no meio do povão dentro, eu tenho medo de esbarrar em
alguém e cair, tenho medo de tropicar e cair. Então para eu fico mais
segura. Então, de qualquer maneira, é a tarefa que está saindo. Mas se
precisar de mim ali no meio do povão, é lógico que vou. Comigo não tem
escolha de serviço não. Qualquer (ênfase) lugar na Casa que precisar de
mim, eu vou lá. Por enquanto eu estou para cá, eu estou contente (risos).
Está tudo certo.
Descrevendo algumas das atividades que realizou, Telma introduz a razão por que
não pode mais executá-las: de uns anos para a debilidade de suas pernas se acentuou e
não deu para continuar a dar uma força naquelas tarefas, pois o local em que ocorrem é muito
distante, perto do Ceasa.
44
Diante desse quadro, sua opção foi por ficar na Casa, isto é, por
trabalhar na sede da instituição. Sua fragilidade física e o medo daí decorrente também
influem na decisão por não realizar tarefas dentro do refeitório onde é servida a sopa, e por se
dedicar à tarefa de lavação, pois lá ela se sente mais segura. Entretanto, mesmo diante dessas
limitações, Telma faz questão de afirmar que não é essa condição que a determina, que a
tarefa está saindo, ela está contente e, como conclusão, está tudo certo. Independente de sua
fragilidade ou da atividade a ser realizada, Telma reafirma o gosto por permanecer
trabalhando e sua disposição para continuar: se precisar de mim, é lógico que vou, pois
comigo não tem escolha de serviço não.
Mais uma vez, emerge o valor da ação voluntária para Telma, valor que é exacerbado
seja na descrição das condições adversas, seja na afirmação da disposição por superá-las.
Nesse sentido, é possível compreender também por que Telma destaca que agora faz certas
tarefas e que trabalhou em muitas anteriormente. Nessa afirmação constantemente repetida,
colhemos a mesma dinâmica, em que Telma sublinha as restrições ao mesmo tempo que
comunica seu empenho: o ponto é explicitar que ela se dedica onde for preciso. Ao relembrar
como as tarefas da Pré-sopa e da Sopa eram realizadas anteriormente, Telma expressa esse
mesmo dinamismo:
Na Pré-sopa, antigamente, a gente começava cortando legumes seis horas
da tarde da sexta-feira. Eu chegava na minha casa uma e meia da manhã. E,
na época, o ônibus não era em cima igual é, porque eu moro perto do
final. O ônibus era embaixo. eu subia tudo a pé. (…) que enquanto
eu estava na rua, eu não tinha medo. Depois que eu chegava lá em casa, que
olhava o relógio, é que me dava aquele medo, mas aí eu já estava em casa e
ia agradecer. Agora a gente pega cedo, e seis horas está em casa. E,
antes, seis horas a gente estava começando a fazer o trabalho. E era muita
44
O Ceasa (Centrais de Abastecimento de Minas Gerais S/A) situa-se na rodovia BR 040, num ponto limítrofe
entre os municípios de Belo Horizonte e Contagem. Ao tomá-lo como ponto de referência, é comum que as
pessoas que vivem em Belo Horizonte queiram expressar uma grande distância, um local de difícil acesso.
Considerando a localização da residência de Telma, o Ceasa situa-se, literalmente, do outro lado da cidade.
91
carne, era muita coisa que fazia. (…) Então, foi muito tempo, depois eles
mudaram os horários e ficou melhor para mim. Passaram a pedir para ir
mais cedo, porque tinha gente reclamando por causa dos horários, né? Eu
mesma fui uma que reclamava… Pensa chegar em casa… E no outro dia,
nós voltava para poder trabalhar. Chegava em casa tarde e no outro dia
voltava, porque era a gente mesmo que fazia o trabalho da sopa no sábado.
Não era igual hoje que tem uma equipe na sexta, e no sábado tem outra
equipe. Antes era a gente mesmo. Deu certo, estou aqui até hoje, graças a
Deus! (risos) Mas é muito bom, graças a Deus.
Ao retomar os horários da tarefa realizada na sexta-feira, Telma relembra as
dificuldades que enfrentava: chegava em casa somente uma e meia da manhã, tinha que subir
tudo a pé, dormia tarde e precisava voltar no outro dia. E, se hoje as condições melhoraram,
Telma ressalta que isso se deve ao posicionamento de algumas pessoas, dentre as quais ela
mesma, que, reclamando, conseguiram as modificações. Em sua experiência de voluntariado,
Telma reconhece tanto as dificuldades pelas quais passou quanto o seu movimento de agir
para que algumas coisas mudassem. E, arrematando sua fala, Telma novamente conclui
ressaltando o caráter positivo dessa experiência: seu juízo é de que deu certo, pois está na
Casa até hoje e isso é possível graças a Deus. Essas afirmações nos indicam que Telma vive a
gratidão por poder permanecer na tarefa tanto por reconhecer limitações e o ímpeto de superá-
las quanto pela realização experimentada ao trabalhar ali: é muito bom.
Ao relatar como era a tarefa antigamente, Telma também começa a nos contar mais
detalhes de como se entrelaçam o trabalho nesta instituição e a sua trajetória pessoal.
Acompanhemos o que ela nos diz sobre como se iniciou sua história na Casa:
Telma: Eu ainda morava de aluguel. (…) E eu, nessa época… não tinha o
que dar para minhas filhas para comer. Eu, nessa época… pode falar
mesmo?
Yuri: Pode.
Telma: Eu catava no lixão do mercado para dar para minhas [filhas] para
comer. (…) um dia, a minha vizinha, a Dona Angélica, que pegava feira
aqui [na Casa], falou assim: “olha, amanhã, se a senhora quiser ir no Seu
Luciano, eu pego uma cesta [básica] todo sábado. Se quiser ir, eu vou a
com você para te ensinar o caminho e para ajudar a carregar os
meninos.” Aí, falei: “eu vou sim.” Minhas meninas eram bem pequenas e eu
tinha um menino também que não era muito bom de saúde, inclusive Deus
me tirou ele. Ela falou comigo assim: “ó, você leva todo mundo e leva uma
vasilha bem grande que no fim o Seu Luciano deixa trazer comida para
casa.” Peguei uma latona bem grandona e trouxe. nós viemos. (…)
nesse dia (ênfase) que eu não lavei nada, não fiz nada, esse primeiro
sábado.
A história de Telma com a instituição em que hoje trabalha voluntariamente começou
pela necessidade de auxílio material. Para nos contar sobre esse primeiro contato, ela precisa
descrever, mesmo com receio do nosso julgamento, que vivia em situação de extrema
92
pobreza, chegando inclusive a catar restos de comida no lixão do mercado para poder
alimentar seus filhos. Como não tinha o que dar para eles, Telma seguiu a indicação de sua
vizinha, que lhe fez um convite e lhe ofereceu companhia para ir a um local que oferecia
alimento todo sábado, inclusive permitindo levar comida para casa. Vislumbrando a
oportunidade de ser ajudada, Telma aceitou prontamente a proposta: aí nós viemos. A situação
miserável vivida por Telma nos impressiona e poderia nos levar a enfatizar somente sua
condição de pedinte, entretanto, ela faz questão de ressaltar que o auxílio recebido não é o
único fator que determina sua relação com a Casa, pois só nesse dia ela não trabalhou,esse
primeiro sábado. E por que aconteceu assim?
Quando eu cheguei, a Dona Janaína me apresentou para a Dona Terezinha
que me apresentou para o Seu Luciano mais a Márcia. Eu expliquei a minha
situação e o
Seu Luciano virou para mim: “ó, a senhora vai fazer assim:
hoje, você está com as crianças todas. Nós vamos te ajudar, mas você não
vai ajudar nós hoje não. Sábado que vem, você tem com quem deixar as
meninas?” Falei: “tenho, deixo as meninas em casa.” Ele falou: “sábado
que vem você vem cedo porque nós temos trabalho para você. Você vai
ajudar nós e nós vamos te ajudar.” Eu falei: “então tudo bem.” Eles me
deram um tanto de coisa… Me deram muito mantimento, me deram sopa
para levar, me deu roupa para as meninas, me deu tudo! E ainda me deu
dinheiro para a passagem, para eu voltar para casa com todo mundo esse
dia, o primeiro sábado. Voltei toda contente, com tudo, eu tinha o que dar
para minhas filhas durante a semana. Aí… (começa a chorar) eu até me
emociono, porque eu passava a semana inteira, às vezes, sem dar nada.
Passei muita necessidade na vida. eu voltei, toda feliz, minhas meninas
tudo de roupa nova, tudo… Quando foi no outro sábado, eu cheguei cedo e
daí, nunca mais (ênfase) eu fiquei sem mantimento. Servindo a Casa Espírita
toda (ênfase) vida, eu venho e sou grata por isso. Depois, Deus levou o meu
marido e eles, Seu Luciano mais a Márcia, me ajudaram a fazer o enterro,
ajudaram a fazer tudo, e eu continuo na Casa, continuo na Casa. É assim.
O primeiro sábado. Telma retoma esse dia marcante em sua vida elencando as pessoas
que encontrou: a Dona Janaína, a Dona Terezinha, o Seu Luciano mais a Márcia. Contar
como começou sua história na Casa é retomar a presença de pessoas significativas que lhe
ofereceram atenção, companhia, recursos para atender às suas necessidades imediatas e um
convite para trabalhar. Convite que se apresentou como uma espécie de troca, “você vai
ajudar nós e nós vamos te ajudar”, na qual Telma foi a primeira a receber: me deram muito
mantimento, me deram sopa para levar, me deu roupa para as meninas, me deu tudo! Tendo
aceitado a proposta do Seu Luciano, Telma viu suas necessidades serem prontamente
atendidas, sendo a mais importante delas a possibilidade de ter o que dar para as filhas
durante a semana. Necessidades atendidas naquele dia e em todos os demais, pois ela, que
passou muita necessidade na vida, nunca mais ficou sem mantimento. É por isso que Telma
93
afirma tão enfaticamente que recebeu tudo e que voltou toda contente, toda feliz: a satisfação
das necessidades materiais, tão prementes naquela época de sua vida, coincide com a
realização de sua pessoa inteira. Também os relacionamentos iniciados naquele dia se
tornaram referência, acompanhando-a inclusive em outros momentos, como quando seu
marido morreu e eles ajudaram a fazer o enterro, ajudaram a fazer tudo. Diante de uma
realização concreta que se abre em horizontes tão amplos, o juízo por ela emitido, a sua
resposta foi e é o empenho de servir com gratidão a quem lhe ofereceu essa oportunidade.
Vivendo carências profundas, Telma encontrou companhias que lhe ofereceram
justamente aquilo que lhe era mais importante naquele momento. A proposta de receber e
doar-se tocou no centro de suas necessidades e, por isso, no todo de sua pessoa. A experiência
de dizer sim a essa proposta e receber o que tanto almejava foi realizadora e gratificante,
tornando-se referência para Telma: àqueles que lhe deram tudo, ela o que for preciso, toda
vida. A ênfase na sua ação que responde ao chamado para trabalhar soma-se à gratidão
àqueles que lhe concederam a oportunidade de vir, de trabalhar. É assim: Telma continua na
Casa e prossegue realizando, se realizando e sendo grata.
Ao falar de si como alguém que passava a semana inteira, às vezes, sem dar nada às
filhas, e que, tendo recebido o que precisava, até hoje continua servindo com gratidão, Telma
se emociona e comove também a quem lhe escuta. As situações dramáticas por ela vividas são
provocadoras, mas, sobretudo, admira-nos sua resposta ao convite contido na doação
recebida, pois nessa resposta reconhecemos a potência de um gesto que transforma a própria
vida e a de tantas pessoas que mais tarde viriam a conhecer a sua figura simples e a sua
história surpreendente. A força do seu posicionamento permeia também outros episódios de
sua trajetória na Casa:
Telma: Na época, eles davam para gente uma cesta por semana. Depois,
passou de uma cesta de quinze em quinze e, quando passou bastante tempo,
passou a ser uma cesta por mês. Até hoje, eu tenho uma cesta por mês. (…)
Eu sou grata por isso. Teve um ano, um tempo, não sei se o Seu Luciano
pensou que eu tinha melhorado de situação, não sei, ele cortou minha
cesta e eu fiquei dois anos sem pegar cesta, mas eu não fiquei um sábado
sem vir.
Yuri: Você continuou trabalhando.
Telma: Continuei vindo, fazendo a minha tarefa (tom de dignidade). ele
mesmo voltou com a minha cesta, mas eu não implorei, não falei nada. Ele
mesmo voltou com a minha cesta, e estou até hoje, graças a Deus. Acabei de
criar minhas meninas tudo, criei meus netos, da minha irmã, até hoje eu
ajudo meus netos. E estou na Casa e sou feliz por isso, graças a Deus.
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Num primeiro momento, Telma nos relata que, não obstante a freqüência das doações
tenha diminuído ao longo do tempo, ela continua a receber uma cesta por mês e permanece
sendo grata por isso. Em seguida, ela revela que ficou dois anos sem pegar cesta, mas isso
não a impediu de continuar na tarefa: não fiquei um sábado sem vir. A ênfase que a própria
Telma confere ao fato de que ela permaneceu trabalhando e que não implorou pelo auxílio
expressam o valor que fazer a tarefa assumiu em sua vida: não se trata de realizar algo em
função somente da recompensa imediata, e sim de continuar fazendo a minha tarefa. A tarefa
se tornou sua. Ao ressaltar a permanência no trabalho, Telma nos comunica a satisfação com
o próprio posicionamento, pois a dedicação àquela ação voluntária é, para ela, sinal da sua
dignidade, do seu comprometimento até hoje com a responsabilidade assumida,
independentemente de receber ou não a cesta.
Telma permaneceu no trabalho e permaneceu sendo grata; está na Casa e é feliz por
isso. Enquanto narra esse processo, ela afirma também: acabei de criar minhas meninas tudo,
criei meus netos, da minha irmã, até hoje eu ajudo meus netos. Essa associação nos intriga:
por que Telma aproxima o seu trabalho na Casa à criação dos seus descendentes?
Minhas meninas, a maioria delas, foram criadas aqui. Minha filha caçula,
quando eu fiquei grávida dela, eu já estava na Casa. Ela cresceu, fez
Campanha do Quilo por um tempo, mas depois deixou de vir… A cabeça
muda, né? Mas eu estou aqui.
Até quando, Deus que sabe, mas enquanto
eu puder estar aqui, eu vou estar, com certeza.
A história pessoal de Telma e a sua inserção na instituição não podem ser
desvencilhadas: suas meninas, a maioria delas, foram criadas aqui. Estar na Casa favoreceu
que ela cuidasse da formação das filhas. Uma delas, inclusive, chegou a seguir os passos da
mãe, atuando na tarefa da Campanha do Quilo por algum tempo, mas depois deixou de vir.
Ao relatar esse fato, Telma mais uma vez faz questão de acentuar que, independentemente do
que aconteça, ela persevera no trabalho: eu estou aqui. O limite temporal se apresenta então
como um fator a ser considerado, pois até quando, só Deus sabe, mas Telma segue afirmando
que enquanto depender do próprio esforço, ela vai continuar, com certeza.
Como temos observado ao longo desta análise, na apresentação de suas vivências
relacionadas ao trabalho voluntário, Telma fornece-nos inúmeros indícios da centralidade do
seu posicionamento pessoal de empenho, disposição e cuidado na configuração de sua ação.
Para ela, realizar a tarefa não se restringe ao mero fazer: realizar a tarefa é uma ação que
expressa seu posicionamento firme de permanecer se dedicando ao que assumiu, mesmo que
as condições não sejam favoráveis. Em seu depoimento, a constante contraposição entre os
95
obstáculos e a disposição para superá-los é sinal de que permanecer na tarefa é um valor
central para Telma e ocasião para a realização de si. Vejamos agora em que termos se dá essa
realização:
Telma: Agora fez trinta anos que eu estou aqui na Casa e eu estou muito
feliz.
Yuri: O que te deixa feliz aqui?
Telma: Eu gosto de estar aqui no meio de todo mundo. Gosto. Gosto de
estar aqui no trabalho e gosto das pessoas. Eu acostumei aqui, né? Eu
não sei muito explicar, mas… (tom de desculpa). Eu gosto muito de estar
aqui. Às vezes… agora eu não estou tendo muita força nas pernas e nos
braços, mas mesmo assim eu gosto de estar no meio do povo, fico feliz.
Após trinta anos na Casa, Telma reconhece que está muito feliz. Indagada sobre os
fatores que a fazem sentir-se realizada, ela começa a enumerar alguns: o gosto de estar no
meio de todo mundo, o gosto de estar aqui no trabalho, o fato de ter se acostumado.
Entretanto, mesmo tendo elencado esses elementos, a própria Telma ressalta a dificuldade em
detalhar essa vivência, indicando-nos que a realização no trabalho voluntário é como uma
evidência para ela: eu não sei muito explicar, mas… Eu gosto muito de estar aqui.
Embora não pareça claro para Telma, seu relato deixa transparecer a centralidade das
pessoas para que ela se sinta realizada na tarefa. Poder estar no meio do povo, compartilhando
o trabalho com quem faz e com quem recebe, a faz feliz. Mesmo quando Telma não tem muita
força física, a ação compartilhada num contexto habitual desperta nela um gosto, pelo
trabalho e pelo lugar, que é realizador da sua pessoa.
Yuri: Você gosta de estar no meio dessas pessoas aqui?
Telma: Gosto. E há uns anos atrás… Ó, antes eu era muito egoísta, eu vinha
para trabalhar, e se eu visse alguém ganhar alguma coisa, eu também
queria. Hoje em dia eu não sou assim. Hoje em dia… nossa! Eu venho,
trabalho e vou embora gratificada.
Yuri: Só o trabalho já te gratifica?
Telma: Só, só! Mas antes eu era egoísta, eu não entendia direito. Eu era
muito egoísta.
Continuando a falar sobre sua realização no convívio com as pessoas na tarefa, Telma
introduz um novo elemento: sua mudança de posição diante da vida. Se uns anos atrás ela
era muito egoísta e queria ganhar tudo o que os outros ganhassem, agora ela afirma
categoricamente: hoje em dia eu não sou assim. A própria Telma expressa admiração por não
ser mais egoísta e por alcançar a gratificação com o trabalho: nossa! Para ela, o seu
egoísmo vinculava-se à falta de compreensão: eu não entendia direito. E o que Telma
entendeu para mudar de postura e deixar de ser egoísta?
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Telma: Não tem mais aquele egoísmo, aquela bobagem comigo, nossa, como
eu era egoísta! Egoísta demais, Nossa Senhora. E hoje em dia, eu sei que
não é nada disso. Se os outros me fizessem, me falassem uma palavra, eu
ficava com raiva à toa das pessoas. Agora não.
Yuri: Agora não?
Telma: Não, o qque é isso! Não vai me fazer bem ficar com raiva de
ninguém! (risos). Não vai me fazer bem, fazer nada. Ficar com raiva das
pessoas, para quê?
Em primeiro lugar, Telma entendeu que o egoísmo é uma bobagem que não lhe faz bem.
Diante desse reconhecimento, não faz sentido ficar com raiva das pessoas, para quê?
[Antes], se eu fizesse o trabalho e visse alguém ganhar alguma coisa, eu
também queria. Eu achava que eu também trabalhei, então… Só que a
gente, assim, no íntimo da gente, a gente ganha muito mais do que… né?
Então é isso que me dá força.
Em segundo lugar, Telma reconhece que ao trabalhar ganha muito mais do que alguma
coisa. Com o tempo, ela descobriu que fazer a tarefa lhe traz uma gratificação muito maior
que qualquer recompensa material. Assim, não há sentido em reagir, em ficar com raiva de
quem lhe desagradou ou ganhou algo. Trabalhando, Telma acredita ter se modificado,
tornando-se capaz de não levar em consideração o que não lhe faz bem: sua ação voluntária
abriu possibilidade de rever posicionamentos e caminhar desprendendo-se do que lhe é
nocivo. Além disso, reconhecer o verdadeiro ganho, aquele que se dá no íntimo, também lhe
força. Força para quê?
Telma: Me força, nossa! Igual, hoje mesmo eu acordei sentindo tanta
(ênfase) dor nas pernas. Falei: “ô meu Deus, eu não vou o, porque eu
não vou dar conta.” depois eu pensei: “meu Deus, é feriado. Eu vou
tomar o remédio e vou!” tomei o remédio, enfiei debaixo do chuveiro e
estou lá: “ai, João Alberto, dá força nas minhas pernas, dá força nas
minhas pernas…”. Quando eu me vi eu estava aqui! (risos) É engraçado
isso, né? É muito engraçado! Eu não dou sossego para o João Alberto não,
eu peço força para o João Alberto o tempo todo. Nó! Tenho mesmo,
muito.
Yuri: E você quis vir no feriado, por quê?
Telma: Porque eu imaginei que viria pouca gente. falei: “gente, deixa eu
ir lá.”
A força que Telma ganha é disposição para trabalhar superando as dificuldades,
disposição sustentada pela . Sofrendo com a dor nas pernas, ela dialoga com Deus, dizendo-
lhe acreditar que não conseguirá realizar a tarefa: eu não vou dar conta. Mas a intuição de que
no feriado poderia haver pouca gente trabalhando na tarefa reacende em Telma o juízo de se
dedicar ao trabalho sempre que for preciso. Retomando esse ponto, as hesitações
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desaparecem, e Telma pode se posicionar a favor do que reconhece como mais
correspondente: eu vou tomar o remédio e vou! Entretanto, ela sabe que cuidar do que lhe
corresponde não é algo que possa fazer sozinha: por isso pede ajuda a João Alberto, mentor
espiritual da tarefa, para sustentar sua disposição para o trabalho. O reconhecimento da
resposta imediata, quando eu me vi eu estava aqui, é vivido com surpresa, levando-a a
retomar sua em João Alberto, a quem ela recorre o tempo todo: Eu não dou sossego para o
João Alberto não.
Telma reafirma constantemente o seu ímpeto por superar os obstáculos para permanecer
se dedicando à tarefa e, neste trecho, ela nos comunica que seu empenho é sustentado por
interlocutores de seu diálogo íntimo: Deus e João Alberto. Nesse sentido, a vivência religiosa
de relacionamento com figuras transcendentes incide no modo como ela realiza a ação
voluntária: é a elas que Telma recorre quando percebe que não consegue sustentar sozinha o
seu posicionamento. Observando que adquire forças para trabalhar mesmo quando acredita
que não vai dar conta, Telma compreende que é a intervenção deles que opera modificando a
realidade e instigando-a a continuar. A continuar mesmo com suas limitações físicas, que
impõem limites ao modo como a tarefa é executada:
É, às vezes não sai certo, porque, igual, eu não estou enxergando direito,
muita coisa sai errada, né? Porque quem não enxerga direito nem tudo vê.
Assim, se eu não enxergo com o olho, eu vou enxergar com o olho do
coração, com certeza. eu lavo, direitinho. (…) Eu venho para cá de
coração.
Enquanto realiza sua tarefa de lavar, Telma reconhece que às vezes muita coisa sai
errada devido à sua dificuldade para enxergar, pois quem não enxerga direito nem tudo .
Entretanto, para Telma, sua limitação visual é suplantada e ela pode enxergar com um outro
olho, o olho do coração. O coração que a leva a estar ali é capaz de permitir que, mesmo sem
ver com os olhos físicos, ela consiga lavar direitinho. Telma diz que faz direitinho, mas
também admite que às vezes não sai certo: a aparente contradição nos indica que fazer direito
não é fazer sem erros, fazer direito é fazer de coração. É o coração, o que de mais nuclear
na sua pessoa, que caracteriza o modo de Telma estar e agir ali. É esse fundamento que
orienta sua disposição para trabalhar e lhe a certeza de que os erros não apagam o valor de
sua contribuição.
Prosseguindo, Telma reafirma:
Eu venho para cá de coração. Às vezes eu falo assim, eu chego dia de sexta-
feira aqui, chego assim desanimada, todo mundo desanimada… Eu fico
98
assim para minhas colegas: “vamos, gente, se a gente quiser curtir
preguiça, fica em casa, não vem para cá, não.” (risos)
Ao ir para a tarefa de coração, mesmo chegando desanimada e percebendo este estado
de ânimo também em suas colegas, Telma é capaz de retomar o valor do trabalho,
comunicando-o para as demais e incitando-as a prosseguir: vamos, gente”. A tarefa não é
lugar para curtir preguiça: é necessário estar ali de um outro modo.
Pautando-se no fundamento que é o coração, Telma age tanto superando a limitação
física para enxergar quanto modificando seu estado de ânimo. Nesse sentido, podemos
retomar toda a sua dinâmica de exaltar a superação de obstáculos iluminando-a com essa nova
luz: a sua disposição para lutar contra todos os impedimentos fundamenta-se no coração.
Agindo de coração e vitalizada pela força recebida no íntimo, Telma dá sua contribuição para
que a tarefa se concretize da melhor forma. Contribuição que muitas vezes vem em forma de
brincadeira, como expresso acima, explicitando que, para Telma, a alegria é um importante
recurso:
Telma: O meu trabalho, eu tenho certeza que é gratificante para mim e para
quem participa do meu trabalho. Porque, assim…(risos) Eu tenho certeza,
nem que seja rir bastante (risos). Ai, ai…
Yuri: Então você tenta passar isso para as pessoas, essa alegria?
Telma: Eu tento, não sei se as pessoas saem gratificadas, mas eu fico. Eu
saio.
O trabalho de Telma é permeado pela alegria e pela realização: ela sempre pode rir
bastante e sair gratificada. A princípio, ela diz que também seus companheiros de tarefa
reconhecem o trabalho como gratificante, mas depois pondera que, mesmo tentando passar
isso para eles, não pode garantir qual seja a vivência das outras pessoas. Nesse movimento,
Telma retoma a certeza quanto à própria experiência de realização, podendo afirmar de modo
categórico: mas eu fico gratificada. A certeza quanto ao que vivencia ao agir voluntariamente
mobiliza Telma a buscar compartilhar com os demais essa realização e, ainda que não saiba o
modo como as pessoas tomam a sua tentativa, ela sabe que, ao fazer assim, sai gratificada:
isso também a realiza.
Eu sou feliz. Eu tenho esperança de que tudo vai dar certo, tanto na minha
vida quanto na vida dos meus amigos, de todos. Porque, nas minhas
orações, Yuri, eu não peço por mim. Sabe como que eu me refiro? Eu
digo assim, quando eu peço força para Deus, saúde, tudo, eu peço para a
família da Casa Espírita. Eu tenho aqui uma família. Eu faço é assim.
Porque, no meu coração, aqui é uma família. Então eu peço assim. Dá força
para nós, a nossa família da Casa Espírita, que fique todo mundo feliz,
99
reunido, alegre, fazendo cada qual a sua tarefa. Aí, no fim, no dia, tudo
certo. É muito gostoso aqui, eu gosto.
Telma é feliz e tem esperança: reconhece que é muito gostoso aqui, acredita que tudo
vai dar certo e não se esquece de todos os seus amigos nas suas orações, pois no seu coração
eles são como sua família. Ser família é ser um nós: o fazer juntos com clareza do sentido da
ação e com gosto, afeto e humor consolida laços que superam a convivência ocasional,
levando-nos a compreender que, para Telma, o grupo de tarefeiros constitui-se como
comunidade.
Retomando a sua realização no trabalho voluntário, ela juízos sobre o que vive no
contexto específico da Casa, falando da sua experiência presente que se abre para o futuro e
que inclui o cuidado com presenças significativas. Nesse horizonte de totalidade, também o
seu pedido específico para o dia da tarefa se apresenta de modo abrangente, incluindo as
dimensões da força, da saúde, da felicidade, da união, da alegria, e retornando ao substrato em
que tudo isso se ancora: a ação voluntária de cada um. Com todas essas dimensões
contempladas e fazendo cada qual a sua tarefa, tudo certo e Telma pode finalizar
afirmando mais uma vez a sua realização: eu gosto.
3.1. A experiência de voluntariado de Telma: uma síntese
Ao longo de seu depoimento, Telma apresenta-nos um modo próprio de elaborar sua
experiência de voluntariado. Na referência constante a condições adversas e a sua disposição
por superá-las, ela nos comunica como valoriza seu posicionamento de persistir se
empenhando naquilo que a corresponde e faz sentido para ela. O modo como Telma se
empenha é expresso no cuidado e na certeza de que, mesmo existindo erros, a tarefa alcança
sua finalidade porque sua disposição para trabalhar brota do centro da sua pessoa, do seu
coração. Nesse processo de se dedicar a algo que lhe é correspondente, Telma vivencia a
gratidão e a realização de si, bem como a oportunidade de se transformar superando
posicionamentos de fechamento e sendo fortalecida interiormente.
Trabalhando voluntariamente, Telma também vivencia o gosto por compartilhar sua
ação com outros: estar junto aos companheiros empenhando-se na tarefa é evidentemente
realizador para ela. Telma apreende nesses relacionamentos fortes vínculos que, para ela,
coincidem com vínculos familiares, o que evidencia para nós o reconhecimento de que, na sua
100
experiência, a equipe de tarefeiros forma uma comunidade. E é por meio de seu empenho, de
sua alegria característica, da tentativa de comunicar o sentido da tarefa e de suas orações que
Telma busca ajudar os demais a prosseguir, contribuindo a seu modo para que essa
comunidade se constitua e perdure no tempo.
Assim como reafirma sua disposição e realização no trabalho voluntário e busca instigar
os companheiros, Telma percebe que suas limitações evidenciam que ela não conseguiria
sustentar sua ação sozinha. Não consegue, mas faz: a superação de certas adversidades a leva
a intuir que é amparada por presenças transcendentes e a recorrer a elas solicitando forças
para prosseguir. Nesse sentido, compreendemos que a experiência religiosa se constitui como
um dos pilares de sustentação de sua ação voluntária.
E compreendemos também que a análise da ação voluntária de Telma não pode
prescindir da reflexão sobre o contexto sociocultural em que essa ação é realizada. É o
relacionamento com presenças físicas e transcendentes neste contexto que sustenta e fortalece
a disposição de Telma para se empenhar na tarefa. Além disso, foi por um convite de pessoas
da Casa que Telma começou a trabalhar voluntariamente, de início como forma de retribuir
uma satisfação totalizante por ela vivida graças às doações recebidas. Com o passar dos anos,
ela passou a vivenciar novos sentidos ao fazer a tarefa, transformando sua motivação ao
atualizá-la e ampliando a gama de fatores que a realizam. Nesse sentido, diante de uma
proposta vinculada a uma experiência de realização, Telma emitiu um juízo de gratidão e
compromisso: a proposta se converteu em dever que satisfaz a totalidade da sua pessoa e a
motiva a persistir na tarefa superando obstáculos. Servindo a Casa Espírita toda vida, eu
venho e sou grata por isso.
101
4. Márcia: essa é a minha tarefa, eu vou abraçar ela com todo amor
Num espaço próximo ao refeitório em que são servidos o café da manhã, a sopa e a
salada de frutas, bebês e crianças de até quatro anos transitam no colo ou de mãos dadas com
tarefeiras vestidas de aventais. O modo como as crianças saem dali, limpinhas, cheirosas, com
cabelo bem penteado e roupa impecável chama atenção de todos que as vêem e anuncia o
que elas foram fazer: tomar banho. O “Banho Infantil” é uma tarefa que acontece todos os
sábados, das nove às onze e meia da manhã. Embora a tarefa aconteça muitos anos, o local
em que é realizada foi recentemente alterado: é o “Banho novo”. Em virtude da alteração do
local, hoje, todo o setor da Assistência Social acompanha o trânsito de crianças e tarefeiras e
são notáveis o cuidado e o carinho com que os pequenos são tratados. Aproximando-nos do
local do Banho, vemos por uma vidraça que cada tarefeira cuida de uma criança em uma etapa
diferente do processo: primeiro tirar a roupa, depois dar o banho propriamente dito, secar,
vestir a roupa, arrumar o cabelo.
Em meio a este trabalho, destaca-se a figura alegre de Márcia, coordenadora da tarefa.
Ela possui 59 anos, é atriz e produtora executiva, trabalha na Casa treze anos e, nove,
começou no Banho Infantil. Sua vivacidade e a proximidade que demonstra ter com as
crianças e as mães bem como o modo como orienta as colegas de trabalho indicam-nos sua
centralidade na execução daquela tarefa.
Ao nos mostrar o espaço do Banho Infantil, rcia opta por descrever cada etapa do
trabalho, voltando-se para a sua experiência de modo a nos comunicar sua contribuição na
atual configuração desta tarefa. Acompanhemos seu percurso de elaboração:
Nós somos voluntárias do Banho Infantil. E a gente acha a tarefa
maravilhosa (ênfase). É uma tarefa que nos ensina muito, porque a gente
aprende com a criança o carinho e o amor, aprende com as mães e elas
aprendem várias coisas com a gente, como cuidar dos filhos. Porque às
vezes muitas mães são novinhas e têm meninos sem nenhuma experiência. E
aqui a gente tenta passar as experiências para elas, tenta passar o que a
gente sabe.
no início do seu depoimento, Márcia apresenta-nos uma espécie de síntese de sua
experiência como tarefeira do Banho Infantil, contemplando os principais pontos de seu
trabalho: a opção por usar o “nós” para incluir a equipe envolvida; o valor de definir sua ação
como voluntária; a realização de si vivida nessa tarefa, tida como maravilhosa; o aprendizado
na convivência com as crianças, marcada pelo carinho e pelo amor; a importância do
102
relacionamento com as mães, que tanto ensinam às tarefeiras quanto apreendem experiências
que lhes são passadas; a centralidade da dimensão do cuidado.
Ao longo de sua fala, Márcia explora cada um desses elementos, a começar pela
dimensão do cuidado, que orienta o modo como ela apresenta o cotidiano da tarefa:
Normalmente, o banho começa às nove horas. Oito e meia, nós estamos
aqui, fazemos a nossa prece, as meninas põem o avental e a toquinha para
dar banho. No final, terminou o banho, todas fazem a limpeza do lugar.
Deixa tudo arrumadinho para o próximo sábado. Você que está tudo
lavado; os tapetes, os panos de chão… até os panos de chão são limpinhos.
Neste quadro geral da tarefa, é ressaltado o compromisso com os horários, com a prece
no início, com a arrumação no final para o próximo sábado, com a limpeza. Entendemos que,
no modo como Márcia enumera os pormenores da atividade, afirmando que tudo é
arrumadinho, já se anuncia como, em sua ação voluntária, ela valoriza a preparação, a
organização e o cuidado no desenvolvimento da tarefa. Nesse sentido, realizar a prece antes
das crianças chegarem é cuidar do ponto de vista espiritual; colocar o avental e a toquinha é
preparar-se para poder dar banho; lavar tudo, deixando limpinhos até os panos de chão, é
cuidar e organizar o ambiente com atenção para todos os seus elementos.
Então funciona assim. Tudo fica organizadinho. Cada criança é com uma
buchinha. A gente nunca usa… Por exemplo, se a criança es com
sarampo, catapora ou com algum outro tipo de doença de pele, ou alguma
coisa, a gente sempre dá banho, joga a água fora, lava a banheira, desinfeta
com álcool. Às vezes a gente bota até Lysoform. Tem uma nossa menininha
agora que tem sarna. Então é um negócio que pega mesmo. Então a toalha
dela é lavada separada. A bacia, toda vez que ela acaba de tomar banho, é
lavada com Lysoform. Então a gente tem esse cuidado das crianças não
transmitirem as coisas para as outras crianças.
Para Márcia, o modo organizadinho como funciona o Banho Infantil não inclui somente
o cuidado com a limpeza e a organização do espaço, pois é importante que sua ão
contemple sempre o cuidado com as crianças atendidas. Para exemplificar, ela relata todas
as precauções tomadas no procedimento de limpeza quando alguma criança está com doença
no intuito de evitar a transmissão para as outras crianças. E o cuidado e a organização do
espaço também se refletem na separação das crianças por idade:
Aqui [onde estão as banheiras] é onde lavam as crianças, aqui [onde estão os
chuveiros] são os maiores. Normalmente a gente separa os maiores dos
menores na hora do banho. (…) Porque às vezes não tem jeito, tem quinze
recém-nascidos, são só pequenininhos. A gente não atende os maiores. E
os maiores choram porque eles não tomaram banho. Tem menino, que
quando eu chego no salão, está em prantos. “Por que você está chorando?”,
103
“porque eu não tomei banho hoje”. até pena. Mas tem dia que não dá,
porque nós temos hora de começar e hora de terminar. E tem menino que
chora.
Ao diferenciar o espaço onde as crianças menores e as maiores tomam banho,
ressaltando que, às vezes, devido à grande quantidade de recém-nascidos, não é possível
atender os maiores, Márcia retoma a experiência de vínculo afetivo que as crianças têm com o
banho. Assim, o relato de que tem menino que chora porque não pôde tomar banho naquele
dia evidencia que, para Márcia, o cuidado com as crianças desperta nelas o gosto pelo banho.
Diante do choro dos maiores, Márcia sente até pena, mas reconhece que, devido ao horário
determinado para a realização da tarefa e à prioridade dada aos recém-nascidos, tem dia que
não dá.
Na descrição de como as crianças e ela própria vivenciam emocionalmente situações
cotidianas da tarefa, Márcia nos comunica como, em sua experiência, a ação voluntária é
capaz de estabelecer vínculos afetivos recíprocos entre tarefeiros e assistidos. Além disso,
compreendemos que em sua ação o cuidado com o lugar e com as crianças soma-se à decisão
por respeitar o modo de organização da tarefa e a quem ela primeiramente se dirige. Nesse
sentido, colhemos um primeiro indício de como Márcia elabora sua experiência de
voluntariado de modo integrado, contemplando tanto a dimensão afetiva quanto o
compromisso assumido com a proposta da tarefa.
Continuando a nos mostrar o espaço do Banho Infantil, Márcia conclui:
Então funciona assim. É lindo. O Banho ficou lindo, arejado, claro, tudo
novinho. Muito bom, é muito gostoso trabalhar aqui. Eu sou apaixonada, e
com os meus nenéns também, nossa! E os meninos se apaixonam de tal
maneira pela gente que quando chegamos lá em cima os pequenininhos
dão os bracinhos. Eles sabem que nós vamos pegar para dar banho. E
chega aqui é a maior festa. Tinham muitos que choravam bastante quando
vinha tomar banho, mas agora não choram. Chega e já sabe que aqui é o
lugar de tomar banho. Então parece que eles entram em sintonia com a
gente. E isso é maravilhoso!
Tem uma criança que é tão apaixonada comigo! Acho que ela me escolheu,
né? Eu chego no salão, ela já o bracinho. (…) Lindo demais! E ela
fica no meu colo o tempo todo. Enquanto não desce para o banho, ela não
sai do meu colo. Então, é muito prazeroso, eu amo.
Dando o juízo sobre como ficou lindo o espaço onde é realizado o Banho Infantil,
Márcia afirma o quanto é bom e gostoso trabalhar ali. Da descrição do local, ela chega à
afirmação sobre a realização pessoal que vivencia, dizendo-se apaixonada pela tarefa e pelas
crianças atendidas. E ela percebe essa paixão também nessas crianças porque, se num
primeiro momento choravam bastante, elas agora não choram, dão os bracinhos para ir para
104
o banho e fazem a maior festa quando chegam. Para Márcia, o fato delas saberem que ali é
o lugar de tomar banho parece indicar que elas estão em sintonia com as tarefeiras. E isso é
maravilhoso, ou seja, reconhecer que as crianças também se satisfazem nesse processo é
realizador para Márcia. Portanto, compreendemos que a sua vivência de realização de si
enquanto trabalha voluntariamente inclui o reconhecimento de que sua ação tem ressonância
naqueles para quem é direcionada.
Ao falar do relacionamento com uma criança em especial, que é tão apaixonada por ela,
Márcia conta-nos como é lindo demais o momento em que essa criança lhe o bracinho
para ficar em seu colo, e conclui: é muito prazeroso, eu amo. Com esse exemplo, ela fornece-
nos mais indícios de como o vínculo afetivo com os pequenos que são atendidos é central na
configuração desta ação voluntária que realiza a sua pessoa.
Assim, ao falar sobre a dimensão do cuidado na tarefa, Márcia chega a tematizar seu
relacionamento com as crianças, elaborando como sua ação voluntária contribui para a
constituição do afeto mútuo, aspecto central desse relacionamento que a realiza como pessoa.
E, do relacionamento com as crianças, ela passa ao relacionamento com as mães:
A tarefa de quem trabalha com as crianças na Casa Espírita é uma tarefa
maravilhosa, de muita responsabilidade. Nossa responsabilidade é maior,
eu acho, por ser isso: cuidar das crianças. (…) É difícil uma mãe entregar o
recém-nascido para você, sem saber como é que ele vai ser tratado. (…)
Nossa! Tem todo um cuidado mesmo. Porque a nossa responsabilidade é
muito grande, e as mães confiam na gente. No nosso trabalho, a gente
sempre tem que estar mostrando para elas que nós realmente merecemos a
confiança delas.
Para Márcia, a tarefa do Banho Infantil, além de ser maravilhosa, é de muita
responsabilidade justamente porque se trata de cuidar das crianças. Isso quer dizer que, por
definição, é preciso um acompanhamento mais cuidadoso, que leve em consideração também
a confiança que as mães precisam ter nas tarefeiras. Reconhecendo que é difícil uma mãe
entregar seu filho pequeno a um desconhecido, Márcia compreende que sempre tem que estar
mostrando para elas que nós realmente merecemos a confiança, ou seja, a confiança
consolida-se no modo como é realizado o trabalho, com todo um cuidado mesmo. Nesse
sentido, é possível perceber que a ação voluntária de Márcia, ao propor um relacionamento
com as crianças pautado no cuidado, amplia horizontes incluindo também o cuidado com as
mães.
E de que modo Márcia consegue transmitir às mães esse cuidado, construindo relações
de confiança?
105
Por exemplo, aconteceu um caso aqui muito interessante e toda vez eu cito.
Tinha uma mãe que não dava banho aqui porque tinha medo. Ela falava “eu
não conheço as pessoas que dão banho, não sei como é que é”. eu a
trouxe aqui para conhecer o Banho. Ela achou lindo: “eu vou deixar o meu
neném tomar banho com vocês.” Mas a irmã dela não quis deixar: “você
nem conhece, como é que você vai deixar?”. No outro sábado, eu falei para
ela: “e aí?”, e ela falou: “minha irmã acha que eu não devo.” E o qque
aconteceu? A menina dela teve uma diarréia tão grande que sujou até a raiz
do cabelo, de tanto que a menina ficou suja. ela chegou com a menina
aqui e falou: “gente, pelo amor de Deus, me ajuda.” Eu fui, dei banho e
botamos a menina toda cheirosa, toda linda. Quando eu entreguei para a
mãe, ela viu, olhou para mim e falou: “de hoje em diante, minha menina vai
tomar banho aqui todos os sábados.” Essa menina… quando a gente chega
lá, ela fica doida! Desde pequenininha até hoje, quando a gente chega, ela
fica com os bracinhos. Eu tenho que pegá-la e ela fica o tempo todinho
comigo porque sabe que vem dar banho. E se eu a devolvo para a mãe, ela
não quer. O que ela quer? Tomar banho. Então, para você ver, como até
mesmo os Espíritos encaminham, porque sabem que aquela criança está
precisando.
Para mostrar como constrói relacionamentos de confiança com as mães, Márcia se
ancora em um caso que ela cita toda vez por considerar muito interessante. Diante da opção
de uma mãe por não deixar sua filha tomar banho devido ao medo por não conhecer as
tarefeiras nem o modo de realização da tarefa, Márcia se posiciona levando-a para conhecer o
Banho. Mesmo impactada pela beleza do que viu, a mãe mantém a decisão de não deixar a
filha lá, influenciada pela opinião da irmã. Mas eis que um novo fato acontece: a menina, com
diarréia, suja-se muito, obrigando a mãe a recorrer à ajuda de Márcia para limpar sua filha. A
mãe, provocada pelo resultado final do trabalho, que deixou sua filha toda cheirosa, toda
linda, reformula sua decisão: “de hoje em diante, minha menina vai tomar banho aqui todos
os sábados.” E não foi a mãe que gostou. A menina, quando Márcia, sabe que é a
hora do banho, ficando doida porque quer tomá-lo. Para Márcia, toda essa experiência é uma
evidência da intervenção dos Espíritos que, neste caso, encaminharam esta criança para o
banho porque sabem que ela está precisando.
Compreendemos que, para Márcia, este caso é interessante porque evidencia diversos
aspectos que ela considera essenciais em sua ação voluntária no Banho Infantil: o fato de que
é a reflexão sobre situações concretas por ela vivenciadas que orienta o modo de conduzir a
tarefa; o valor do cuidado e do respeito no relacionamento com as mães; a experiência de
maravilhamento que essa tarefa provoca em quem a conhece; a importância de, pelo trabalho,
despertar o gosto e conquistar a confiança tanto das crianças quanto das mães; o
reconhecimento da intervenção dos Espíritos em função da necessidade da pessoa.
Com relação a este último aspecto, Márcia afirma:
106
Porque o banho não é só um banho. Como a sopa. Os Espíritos põem dentro
da sopa tudo aquilo que… Eles estão nos vendo e sabem o que a gente
precisa. Então, cada assistido vai comer aquela sopa e vai ter ali dentro o
que ele necessita para poder… E eu acho que o banho é assim também. A
tarefeira está dando um passe na criança, e [transmitindo] o amor que elas
têm pelas crianças. Aquilo faz com que aquela criança, quando está doente,
melhore; a mãe, quando está com problema, melhora.
Ao comparar o banho com a sopa, entendemos que Márcia objetiva explicitar o modo
de intervenção dos Espíritos na tarefa, ressaltando o saber que eles têm sobre o que a pessoa
precisa. Para ela, enquanto na sopa os Espíritos colocam ali dentro o que é necessário, no
banho a intervenção é via passe, isto é, as tarefeiras são instrumentos que repassam energia
para a criança. Soma-se a isso a transmissão do amor que elas têm e, como resultado, Márcia
apreende como a ação realizada na tarefa do banho faz com que aquela criança, quando está
doente, melhore; a mãe, quando está com problema, melhora.
É nesse sentido que o banho não é um banho. Compreendemos que, na experiência
de Márcia, está implícito algo a mais nessa atividade, pois sua ação é ocasião tanto de
abertura para o relacionamento com presenças transcendentes que intervêm em função do que
é preciso quanto de concretização do amor que o tarefeiro nutre pela criança assistida.
Contemplando esse processo, Márcia conclui que a comunhão desses fatores faz com que
aconteçam transformações na vida dos assistidos, o que significa que, para ela, sua ação
voluntária atinge horizontes mais amplos do que sua finalidade imediata.
E tanto é assim que as mães vislumbram em Márcia uma companhia para compartilhar
situações dramáticas por elas vivenciadas:
Quando a mãe está tão confiante no trabalho da gente, ela nos chama
quando está com problema. Fala assim: “Márcia, estou com um problema e
queria a sua ajuda.” Conversam… Mãe que tem problemas de consumo de
drogas, mãe que tem marido que bebe e bate, mãe que tem marido que quer
molestar as crianças.
Novamente: o banho não é só um banho. Para Márcia, a confiança em seu trabalho abre
caminho para que as mães a chamem para conversar sobre seus problemas, buscando sua
ajuda. O cuidado demonstrado no relacionamento com elas e com seus filhos levam-nas a
tomar a tarefeira como referência, ponto de apoio em momentos de dificuldade. A esse
respeito, Márcia, mais uma vez, exemplifica sua compreensão retomando um caso recente:
No começo do ano, o marido de uma das mães foi assassinado. Uma das
menininhas deles tomava banho aqui. E ela ficou assim… ela presenciou
tudo. Sempre quando ela chegava aqui, a gente se reunia, fazia uma oração
107
para ela e para o pai. Porque a gente sabe que [se a pessoa] morrer
naquelas circunstâncias, fica por aí. E ele era muito apegado com ela. A
menina o via, sabe? Falava para a mãe: “olha o meu pai ali.” Quer dizer,
não está, mas ele estava presente. Ele não queria ir embora. Então nós
fizemos muita oração para eles, todas nós, todas as tarefeiras. Toda vez
em casa, no Culto no Lar, colocamos o nome dele. São pessoas que a gente
nunca viu, não conhece, mas o nome e o endereço estão ali para orarmos.
O fato de que uma das crianças assistidas presenciou o assassinato do próprio pai
provoca Márcia profundamente. De acordo com a sua compreensão calcada na Doutrina
Espírita, morrer naquelas circunstâncias leva a pessoa a ficar por , o que justificaria o fato
de que a menina o via e a conclusão de que ele não queria ir embora. A provocação vivida
diante deste acontecimento e a compreensão sobre o que nele está implícito mobilizam Márcia
e as demais tarefeiras a reformularem o modo de lidar com a menina, reunindo-se antes de
recebê-la no Banho para fazer uma oração para ela e para o pai. Esse movimento de oração
se estende para fora dos muros da instituição, pois Márcia também ora para ele em sua casa,
no Culto no Lar.
Na forma como Márcia narra este caso e apresenta seu posicionamento a respeito,
vislumbramos como, de modo semelhante ao que afirmou a respeito dos Espíritos, ela age
buscando levar em consideração o que a e e a criança estão precisando em suas vidas.
Além disso, ao relatar que ora em sua casa por pessoas que nunca viu, ela mais uma vez
indica como se abre para um relacionamento pessoal com os assistidos, especialmente com as
mães.
Você ter essa relação também com as mães. De ver o que a gente pode fazer
para diminuir um pouco o sofrimento delas, porque não é fácil não. É uma
vida muito difícil a delas. A gente, que não passa por esse tipo de coisa,
acha às vezes que nem
existe. Porque a gente não tem essa convivência, mas
acontece, e muito. E aqui a gente aprende essa lição. Aprende a agradecer a
família que a gente tem, aprende a agradecer ter nascido espírita e saber da
Doutrina Espírita. Porque tudo que a gente faz, a Doutrina Espírita uma
força para a gente. E as mães estão aprendendo agora.
Márcia, que não passa por esse tipo de dificuldade, acha às vezes que nem existe, mas a
convivência com as mães proporcionada pela tarefa lhe ensinou a lição de que é preciso
reconhecer que os problemas acontecem, e muito, e de que é preciso fazer o que se pode para
diminuir um pouco o sofrimento delas. Diante dessa provocação, Márcia também colhe a
lição da gratidão: aprende a agradecer a família que tem, aprende a agradecer ter nascido
espírita e saber da Doutrina Espírita. Gratidão pelo fato de ter uma base familiar e religiosa
que lhe dá uma força em tudo que ela faz.
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Compreendemos que, para Márcia, a experiência de trabalhar voluntariamente é ocasião
de abertura para o relacionamento com o outro em toda a sua dramaticidade, isto é, nas
dificuldades que ele enfrenta em sua vida e na possibilidade concreta de se posicionar
pessoalmente ajudando-o a enfrentar e diminuir seus problemas. Além disso, ao se dar conta
dessa realidade, Márcia agradece por aquilo que recebeu, seja no âmbito familiar, seja no
âmbito religioso, e que lhe sustentação e lhe impulsiona em tudo que ela faz, inclusive em
sua ação voluntária.
Diante do reconhecimento de que a Doutrina Espírita lhe oferece força, Márcia afirma
que as mães estão aprendendo agora. Que aprendizado é esse? De que modo Márcia entende
que as mães estão aprendendo e como ela tem contribuído na constituição desse aprendizado?
Depois que eu comecei a coordenar o banho, eu achei que… porque antes
elas às vezes ficavam brigando: “eu cheguei primeiro”, “não! Fui eu que
cheguei primeiro.” Então eu falei: “não. Agora o Fábio vai anotar e a gente
vai dar uma senha. Então todo mundo vai receber uma senha.” Porque
não tem briga, cada uma sabe que a hora que for chamada é a hora dela.
Agora, elas ficam sentadas lá no lugar que é do Banho Infantil, e as
tarefeiras vão subindo e chamando pelo número da senha.
Se antes as mães ficavam brigando para ver quem iria ser atendida primeiro, Márcia, ao
começar a coordenar a tarefa do Banho Infantil, posicionou-se buscando solucionar essa
questão por meio da distribuição de senha, de modo que cada mãe, quando chamada, saberá
que é a hora dela. Nesse sentido, para ela, um primeiro aprendizado das mães envolve o
respeito pelas pessoas e pela dinâmica da tarefa, aprendizado favorecido pela mudança na
recepção, proposta pela própria Márcia, que pôs fim a certo tipo de conflito. Portanto, ao
assumir a coordenação, rcia propõe uma melhoria na organização formal da tarefa, de
modo a facilitar o trabalho dos tarefeiros e a diminuir a briga entre as mães. Outra mudança
proposta refere-se à doação de roupas para as crianças:
Aqui a gente dá roupa de quinze em quinze dias. Um sábado a gente a
roupa, no outro sábado a mãe traz a roupa. Porque antes não, antes era
todo sábado que dava
roupa. eu conversei com o coordenador [da
Assistência Social], que na época era o Henrique, e falei: “Henrique, você
que pode, seu filho ganha roupa todo sábado? Não ganha.” Isso é outra
coisa que a gente tem que aprender. Nós estamos aqui não é para achar
que a gente tem que dar, dar, dar. Não. A gente tem que fazê-las também
aprender que elas têm que ter responsabilidade, elas têm que aprender que
aqui não é só doação das coisas, elas têm que se doarem também.
Se antes cada criança que tomava banho ganhava roupa todo sábado, agora é de quinze
em quinze dias. Trata-se de uma mudança específica com um intuito preciso: a gente tem que
109
aprender. Diante de uma provocação concreta feita ao coordenador da Assistência Social:
“você que pode, seu filho ganha roupa todo sábado? Não ganha”, Márcia propõe uma
mudança de mentalidade quanto à questão da doação. Para ela, o objetivo de quem trabalha
voluntariamente não é só dar, dar, dar. É preciso também que a experiência de doação seja
ocasião de aprendizado tanto para quem doa quanto para quem recebe. Para quem doa, é um
dever ensinar algo a mais com o gesto de doar: a gente tem que fazê-las também aprender.
Para quem recebe, é um dever se responsabilizar pessoalmente pelo que ganha materialmente:
aqui não é só doação das coisas, elas têm que se doarem também.
Compreendemos que a ação de Márcia de modificar aspectos formais da tarefa, seja
organizando a recepção, seja alterando a dinâmica das doações, ao mesmo tempo em que visa
a mudar concretamente uma determinada situação, busca repropor a relação entre quem doa e
quem recebe. Assim, no empenho de Márcia para concretizar melhorias pontuais,
apreendemos a expressão de um objetivo bem mais amplo, de transformação de mentalidades
e de formação de todas as pessoas envolvidas.
No caso específico das mães, Márcia entende que essa formação tem como meta que
elas se responsabilizem e se doem a partir daquilo que recebem. Como se dá esse processo?
Antes era uma briga, era uma confusão. eu comecei a conversar com o
Henrique para falar [às mães]: “olha, gente… vocês aqui também estão
ajudando. Vocês têm que vibrar positivamente. Quando entrar no salão,
começar a rezar. Rezar para vocês, para os filhos, para todos que estão aqui
na Casa. Porque mãe tem uma energia muito boa, muito positiva. Com suas
energias, vocês vão fazer o trabalho do salão melhorar. Não vocês
atrapalharem, mas vocês têm que ajudar. Então, neném está chorando, pega
o neném e uma saidinha para ele melhorar. Os maiores têm (ênfase) que
ir para a evangelização. Tenta conversar para eles ficarem em cima.
Vocês têm que ajudar aqui.” Porque antes era uma briga, uma confusão!
Toda vez chamavam a gente, “sobe porque as mães estão dando
trabalho”. Então hoje elas estão, assim, outra coisa.
Dada a briga, a confusão que as es faziam no salão, Márcia mais uma vez conversa
com o coordenador da Assistência Social para, num segundo momento, comunicar às mães o
que entende ser a contribuição delas para que as tarefas cumpram o seu objetivo da melhor
forma: vocês têm que ajudar, com suas energias, vocês vão fazer o trabalho do salão
melhorar. Márcia expressa como um dever aquilo que considera importante, um dever com
finalidade e forma de concretização bem precisos. Com esse chamado de atenção, se antes
procuravam Márcia porque as mães estavam dando trabalho, hoje elas estão, assim, outra
coisa.
110
Dessa forma, vemos que, diante de uma circunstância conflituosa, Márcia recorre a seu
superior para conversar, levando a ele propostas de mudanças concretas que gerem
aprendizados. Uma vez discutidas e aprovadas, Márcia narra como essas propostas foram
colocadas em prática, modificando tanto a situação quanto as pessoas nela envolvidas. Nesse
sentido, revela-se novamente como sua ação voluntária configura-se a partir da observação e
reflexão apuradas sobre cada situação e do respeito à organização estabelecida, tendo como
meta concretizar modificações com a convicção de poder contribuir para a melhoria da tarefa
ao formar e transformar as pessoas.
Tal convicção de rcia poderia levar-nos a vê-la como uma figura autoritária, como
alguém que impõe às mães a sua visão de mundo. Se fosse assim, por que elas iriam levá-la à
sério?
Quando você conversa com amor, com carinho, explica para elas qual o
sentido da Casa Espírita, que elas não vêm aqui só para receber, elas
podem doar também… Então, por exemplo, até roupa, que antes ia e nunca
voltava, agora não. As roupas que não vão servindo, elas falam: “Márcia, a
gente pode trazer as roupas que não servem mais para o neném?” “Pode.”
Então elas trazem as roupas. Quer dizer, olha, aprenderam que, ao
invés delas receberem, elas podem pegar as roupinhas que não servem
mais e doar para outras que estão chegando.
Márcia comunica sim o que acredita ser o certo e busca fazer isso conversando com as
mães com amor, com carinho, explicitando o sentido do voluntariado: elas não vêm aqui
para receber, elas podem doar também. Nesse processo, as es têm a oportunidade de
reconhecer a validade daquilo que é proposto por Márcia e de modificar o seu
comportamento: até roupa, que antes ia e nunca voltava, agora não, elas doam aquelas que
não servem mais para outras que estão chegando. A transformação das mães, para Márcia, é
sinal de que o modo como ela expressa suas compreensões, buscando ensinar-lhes algo,
constrói um relacionamento educativo que contém uma proposta e espera uma resposta,
tornando-se aprendizado.
E as mães estão aprendendo agora. Tanto é que agora elas estão ficando
separadas no salão, porque vai ter o curso para todas as mães. Vai ter
palestras de tudo quanto é tipo, pedagógico mesmo, para elas aprenderem
como orientar e conduzir os filhos. Eu achei fantástico. De dez às onze
horas, todas as mães vão ao salão novo para ter esse tipo de palestra. Elas
precisam disso. Isso também foi conversado com os nossos
coordenadores, que acharam que deveria ser isso. Queira ou não queira,
elas são diferenciadas de outras pessoas que vêm. Porque, afinal de contas,
elas estão entregando seus filhos em nossas mãos para orientarmos e ajudá-
las a orientar.
111
Eu conversei com o Welington [coordenador da Assistência Social] ano
passado, e ele pediu para gente assim: “faz o que vocês acham que a
gente deveria fazer com as mães, quais os temas que se deveria abordar.” O
Banho Infantil fez e a Evangelização também fez. Então agora todas as mães
que têm crianças na Evangelização e no Banho Infantil vão para esse
trabalho. É mais um passo que foi dado no Sábado em benefício das mães
da Casa. Então eu achei fantástico, era uma tarefa que não tinha. E a gente
achava que precisava disso. Ali elas vão aprender coisas de cultura, de
psicologia, de crianças, porque elas não têm isso, coitadas. Infelizmente, são
mães às vezes analfabetas, que moram em áreas de risco, em áreas de
droga. Tem muito problema: tem muito pai alcoólatra, tem muita mãe
alcoólatra, que tem problema de droga, e estão com os filhos aqui. Quer
dizer, isso é um pedido de ajuda, um pedido de socorro. Agora essas mães
vão realmente ser atendidas nesse ponto que elas precisam mais. São
pessoas que entendem e que podem passar isso para elas. Bom demais,
fantástico.
Outro sinal que indica a importância do aprendizado das mães para Márcia é o
entusiasmo com que ela se refere à proposta de um curso específico para as assistidas que são
mães: bom demais, fantástico. Trata-se de um curso de caráter pedagógico cujo objetivo é
ensinar às mães como orientar e conduzir os filhos. Conversando com os coordenadores,
Márcia propõe e valoriza esse tipo de palestra porque entende que essas mães são pessoas
diferenciadas que precisam desse tipo de orientação devido à falta de oportunidade, de
conhecimento e aos problemas que elas enfrentam. Para Márcia, o fato de as mães estarem ali,
mesmo com tantos problemas, é um pedido de socorro, e por isso esse curso é mais um passo
que foi dado em benefício delas porque elas serão realmente atendidas nesse ponto que elas
precisam mais. Apreendemos que, comovida pela realidade dramática vivida pelo outro,
Márcia se mobiliza para auxiliar da forma que entende ser a melhor, isto é, da forma que
vislumbra ser adequada às principais necessidades de cada grupo de assistidos.
Novamente nos é possível visualizar o modo como Márcia se empenha para ajudar os
assistidos elaborando propostas que, debatidas com seus superiores, são colocadas em prática
com o intento de possibilitar aprendizados para quem esteja envolvido. Além disso,
compreendemos que, para ela, é fundamental trabalhar atenta àquilo que a realidade concreta
solicita, para elaborar propostas que nasçam destas solicitações e busquem responder às
necessidades compreendidas. E, estando atenta à realidade vivida pelos assistidos, Márcia
constantemente reafirma o quanto as situações dramáticas por eles relatadas a tocam:
Tem crianças que falam para gente cada coisa que acontece com elas, que
acontece com a mãe. Meninos de quatro anos, cinco anos, que estão
aprendendo, começando a vida agora, mas já sabem tanta coisa que o
coração da gente dói. Porque a gente sabe, a gente que tem família
estruturada, que tem noção de relacionamento familiar, de como conduzir
os filhos. Principalmente nós espíritas, que temos mais ou menos uma noção
112
de como conduzir. E a gente o tanto que essas crianças sofrem, e a gente
sofre junto. O coração fica apertadinho quando eles começam a falar.
Lidar com os problemas dos assistidos, principalmente quando relatados pelas próprias
crianças, comove rcia fortemente: meninos que estão começando a vida agora, mas
sabem tanta coisa que o coração da gente dói. Para ela, reconhecer que tem família
estruturada e que tem noção de como conduzir os filhos, principalmente por ser espírita,
permite que ela veja o tanto que essas crianças sofrem, levando-a a sofrer junto. Nesse trecho,
é evidente o quanto Márcia se importa pessoalmente com aqueles em quem banho,
revelando, uma vez mais, sua paixão pelas crianças atendidas.
E Márcia entende que essa paixão pelas crianças é um ponto tão estrutural para as
tarefeiras que atrai pessoas de outra religião…
As tarefeiras aqui, nós somos apaixonadas (ênfase) pelas crianças. Tem uma
tarefeira, a Lourdes, ela é católica, freqüenta a Casa, e falou que não
deixa por nada (ênfase) essa tarefa das crianças. Ela fala: “as minhas
crianças!” Ela é apaixonada mesmo. Inclusive, o padre da Paróquia sabe
que ela trabalha aqui como voluntária. E ela já falou para ele: “oh padre,
eu não deixo, porque eu amo aquelas minhas crianças.”
… e jovens que não têm filhos:
Então todas as tarefeiras daqui, inclusive, têm umas novatas, que são moças
novinhas que não têm filhos. E cuida dos meninos como se tivessem! Elas
dão banho em recém-nascidos. Não têm nenhum medo. Parece que elas
foram feitas para isso, já estão aqui aprendendo.
Em ambos os trechos, Márcia destaca que o forte vínculo afetivo que as tarefeiras têm
com as crianças é critério que as permite enfrentar possíveis objeções, seja devido ao fato de
professar uma religião diferente, seja devido à inexperiência no manejo com recém-nascidos.
Nesse sentido, é possível entrever como ela entende que a ação voluntária pode ser vivida
como uma experiência de abertura capaz de aproximar os diferentes em torno de um núcleo
compartilhado: o amor pelas crianças na realização da tarefa.
Além disso, para Márcia, as tarefeiras estão aqui aprendendo, ou seja, ela destaca mais
uma vez a função de aprendizado que a tarefa do Banho Infantil possui:
Inclusive, tem uma tarefeira que está de licença, a Joana. Ela chegou aqui e
falou assim: “gente, eu vim para para aprender a ser mãe. E eu estou
tentando ter um filho uns três anos e não consigo. Então eu vim porque
eu quero aprender como é que se cuida de uma criança, como se banho.
Porque quando o meu vier…”. Ela ficou aqui com a gente trabalhando e um
tempo depois estava grávida. A nossa mentora é a Mirian. Então a Mirian
deu a… “é agora! Está na hora, ela já aprendeu.” Agora ela está de licença
113
e veio aqui esse mês para mostrar a barriga dela para gente. Então assim, é
uma tarefa que eu acho abençoada.
O aprendizado como fator constitutivo da tarefa é tão explícito para Márcia que ela faz
questão de apresentar o exemplo de uma pessoa que procurou o Banho Infantil justamente
para aprender a ser mãe, aprender como é que se cuida de uma criança, como se banho.
Neste exemplo, a mulher que há três anos tentava ter um filho, ao trabalhar no Banho Infantil,
um tempo depois ficou grávida e, de licença, retornou para compartilhar o fato com as
demais tarefeiras. Ao relatar-nos esse caso, Márcia afirma que o trabalho voluntário, além do
aprendizado, proporciona também outros ganhos, pois a gravidez da tarefeira é descrita como
uma benção e sua convivência com as demais, que começou com um interesse específico,
transformou-se em amizade: mesmo tendo interrompido suas atividades, ela foi ao encontro
das outras tarefeiras para mostrar a barriga.
Em sua elaboração sobre a gravidez aparentemente improvável, mais uma vez vemos
como, para Márcia, a atuação dos Espíritos incide sobre a ação voluntária. Anteriormente,
compreendemos como ela descreve a ação como um canal para a atuação da Espiritualidade,
bem como se descobre amparada ao agir voluntariamente em benefício daqueles que
precisam. E, neste trecho, ao definir a gravidez como uma bênção recebida a partir da
intervenção da mentora Mirian, Márcia novamente ressalta como, em sua experiência, a ação
voluntária não se separa da intervenção providencial de presenças transcendentes. Intervenção
que, para ela, não prescinde do posicionamento daquele que será beneficiado: a tarefeira
precisou aprender para que chegasse a sua hora, ou seja, precisou se empenhar para merecer
aquilo que tanto almejava.
Além disso, apreendemos nesse trecho como a ação voluntária pode favorecer a
constituição de laços de amizade entre as companheiras de tarefa. Ao elaborar esse vínculo
das tarefeiras entre si e com o Banho Infantil, Márcia comunica-nos que ele se torna explícito
particularmente em momentos em que há a possibilidade de deixar essa tarefa:
Todas as tarefeiras do Banho não trocam. Quando tem que sair daqui,
quando tem que deixar, fica… Hoje mesmo nós recebemos a visita de uma
ex-tarefeira que ficou doente, e ela falou: “Ah, Marcinha, eu estou doida
para voltar, não agüento ficar longe do Banho.” Então a gente que as
pessoas fazem com amor mesmo a tarefa.
Eu acho que a gente está sempre no lugar que tem afinidade. Eu tenho outra
tarefa que é o Coral. E, de vez em quando, eu tenho que me afastar porque é
à noite e, às vezes, eu não posso. Mas a tarefa do Banho… essa eu não
deixo. Tem nove anos que eu faço essa tarefa do Banho. Não quero deixar
de jeito nenhum, a não ser que aconteça alguma coisa. Eu acho que cada
pessoa que vai para um determinado lugar, é porque aquele é o lugar dela.
Porque, quando você vai para uma tarefa que realmente não é para você,
114
você logo a está deixando. Mas quando você acha aquela que é a sua, que
você abraça mesmo, e fala: “essa é a minha tarefa, eu vou abraçar ela com
todo amor.” Você não sai dela fácil também não. Cria um vínculo.
O fato de as tarefeiras não quererem sair do Banho Infantil ou, quando afastadas por
algum motivo, ficarem doidas para voltar é, para Márcia, um sinal de que elas fazem com
amor mesmo essa tarefa. Porque, para ela,
quando você vai para uma tarefa que realmente
não é para você, você logo a está deixando. A permanência não depende de uma decisão
voluntarista, mas sim se articula à correspondência vivida no trabalho, à afinidade que não
pode ser inventada, apenas reconhecida. Márcia reconhece esse sinal também em sua própria
experiência como tarefeira, pois, se às vezes ela precisa se afastar do Coral outra tarefa que
realiza na Casa –, a tarefa do Banho, essa ela não deixa de jeito nenhum. Este é mais um
entre tantos outros indícios que ela nos fornece de que o Banho Infantil é a sua tarefa, a tarefa
que a realiza como pessoa e que ela abraça mesmo, com todo amor.
Observando o seu vínculo com o Banho Infantil e o de outras tarefeiras, Márcia pontua
novamente a centralidade do amor na execução dessa tarefa. A constante referência à
vinculação afetiva às crianças e à tarefa em si indica-nos ser este um ponto que tanto sustenta
a ação voluntária e a permanência nessa tarefa quanto unifica o grupo, constituindo-se como
eixo em torno do qual se constitui a equipe de tarefeiras.
Retomando os demais pontos que no início da análise indicamos como centrais para
Márcia na vivência do voluntariado, podemos perceber como o reconhecimento desse amor
encontra-se na base de suas elaborações sobre o cuidado com o ambiente e com as pessoas, a
valorização da abertura ao outro num processo contínuo de aprendizado e a vinculação à
equipe que, com ela, trabalha voluntariamente. Entretanto, não podemos desvincular a
vivência desse amor à realização de si experienciada na tarefa, realização que também
fundamenta seu percurso de elaboração, levando-a a concluir, ao final do depoimento:
Então… é bom demais! Ser voluntária da Casa, pelo menos para mim, foi a
melhor coisa que eu já fiz na minha vida.
Finalizando sua fala, Márcia se conta de que a realização de si vivenciada na tarefa é
tão intensa que ela afirma que ser voluntária da Casa foi a melhor coisa que ela já fez em sua
vida. Nesse sentido, vemos como, para ela, reconhecer que é bom demais! constitui-se como
um juízo sobre a satisfação possibilitada pela ação voluntária que torna a experiência de
voluntariado uma referência na elaboração do que ela vivencia na totalidade de sua existência.
115
4.1. A experiência de voluntariado de Márcia: uma síntese
Na elaboração que Márcia realiza sobre sua experiência de voluntariado, colhemos o
quanto essa experiência é para ela significativa e realizadora e como ela busca configurar sua
ação voluntária como um posicionamento de cuidado, seja com o ambiente, seja com as
pessoas. E, em todas essas formas de cuidado, apreendemos a centralidade do aprendizado.
Para Márcia, ela própria, as crianças e suas mães, as companheiras de tarefa e seus dirigentes,
todos podem sempre ensinar e aprender com a experiência. Nesse sentido, compreendemos
que o aprendizado apresenta-se como um dos sentidos fundamentais da ação voluntária no
modo como Márcia a concebe e vivencia.
Além disso, comunicando-nos como busca cuidar, Márcia revela como se envolve
pessoalmente na tarefa do Banho Infantil. Nessa ação voluntária, ela se dedica por inteiro,
atualizando tanto sua capacidade reflexiva na atenção às circunstâncias e na constante
avaliação sobre o melhor modo de contribuir quanto a sua afetividade na vivência do carinho
para com os assistidos e da amizade com os companheiros de tarefa.
Uma vez que Márcia elabora sua ação voluntária afirmando a centralidade dos
aprendizados mútuos e dos vínculos afetivos recíprocos, sua análise não pode prescindir da
consideração dos relacionamentos interpessoais. No contato e na convivência com o outro
possibilitados pela tarefa, Márcia ensina e aprende, constitui laços de afeto e se realiza como
pessoa. Atenta ao que está implícito nos relacionamentos vivenciados nesse contexto,
especialmente com os assistidos, Márcia busca ser uma companhia em quem tanto crianças
quanto mães possam confiar. Estreitando laços com pessoas que vivem realidades tão distintas
da sua, ela se comove com experiências que lhe são comunicadas. É uma comoção que amplia
sua compreensão do caráter dramático da vida, sua gratidão por tudo aquilo que recebeu e sua
determinação por auxiliar essas pessoas naquilo que elas precisam das formas que estão ao
seu alcance. Assim, compreendemos como Márcia trabalha voluntariamente construindo
relacionamentos pessoais que ultrapassam o âmbito delimitado pela finalidade imediata do
banho e que se configuram como oportunidade para sua própria transformação pessoal.
Assim como Márcia age buscando auxiliar pessoas que passam por dificuldades,
compreendemos que, para ela, a alteração providencial no curso de certos acontecimentos é
sinal da atuação de Espíritos, presenças transcendentes que intervêm na realidade dando às
pessoas o que elas precisam e merecem. Refletindo sobre sua experiência na tarefa, Márcia
entende que sua força para lidar com situações dramáticas que a comovem relaciona-se tanto
à companhia dessas presenças quanto aos ensinamentos da Doutrina Espírita e, reconhecendo-
116
se privilegiada, sente-se grata e realizada por isso. Nesse sentido, compreendemos que a
experiência religiosa sustenta e fortalece sua ão voluntária, constituindo-se como elemento
fundamental na realização de si vivenciada por Márcia no trabalho desenvolvido na Casa.
Trata-se de um trabalho que se caracteriza pela busca por inovar para atender às solicitações
apreendidas na realidade, sempre respeitando a organização já estabelecida.
Ao guiar sua ação voluntária por esses parâmetros, vislumbramos que Márcia se
empenha para conhecer o contexto em que atua. Isso inclui conhecer as necessidades de quem
é assistido e a hierarquia proposta por quem dirige a Casa, de forma a poder contribuir de
modo pessoal e integrado ao seu contexto sociocultural. E esse seu modo próprio de
contribuir revela-se na determinação por sugerir e implantar melhorias com o cuidado de
propor conversando, cultivando assim os relacionamentos que são significativos para ela.
Assim, compreendemos como Márcia, em sua experiência de voluntariado, tanto
aprende quanto busca ensinar. Atenta e aberta para se transformar a partir do que vivencia, ela
entende que pode propor esperando que o outro responda aderindo às razões que ela comunica
por apreendê-las como correspondentes. E todo esse processo tem como base o seu juízo
sobre a realização vivenciada na ação voluntária, juízo que a permite reconhecer a
importância que essa ão tem em sua vida e comprometer-se com ela na totalidade da sua
pessoa: essa é a minha tarefa, eu vou abraçar ela com todo amor.
117
5. Shirley: Essa tarefa é missionária: é uma oportunidade única, eu tenho que abraçar
Quinta-feira. São quase oito horas da noite. As pessoas chegam à Casa para a reunião
pública. Enquanto algumas ficam no primeiro andar para serem atendidas, para irem à livraria
ou à biblioteca, a grande maioria sobe para o segundo andar, acomodando-se nas cadeiras do
salão onde acontecerá a reunião, que está prestes a começar. No terceiro andar, onde se
localiza o departamento de Evangelização, o cenário é dominado pelas crianças: enquanto
algumas, tímidas, ficam encostadas na parede, outras conversam animadamente sentadas
sobre uma mesa, e outras, subvertendo a ordem, ainda correm pelos corredores onde se
localizam as salas de evangelização, sendo rapidamente repreendidas pelos pais e pelos
evangelizadores que se encontram por perto. Muitos dizem que se trata de um verdadeiro
“colégio” devido tanto à quantidade de crianças quanto à disciplina, à responsabilidade e ao
trabalho que são exigidos. Adentrando a sala da coordenação, encontramos vários
evangelizadores conversando descontraidamente sobre a vida cotidiana e, logo depois,
reunindo-se em volta de uma mesa para a realização de uma “leitura edificante” e da prece do
dia, antes de irem para as suas respectivas salas de evangelização.
É nesse ambiente que somos recebidos pela dirigente geral da Evangelização Infantil,
Shirley, que nos convida para sentar à mesa de reuniões. Formada em pedagogia, ela
trabalhou durante vinte e um anos como professora e hoje, aos 46 anos, não exerce a
profissão. É a ela que as pessoas se referem quando o assunto é evangelização. Observando a
dinâmica de funcionamento desse departamento, percebemos como Shirley destaca-se como
referência não pelo cargo de direção que ocupa e pelo fato de ser filha de um casal que
atuou na Casa desde a sua fundação. É visível o quanto Shirley é querida pelos
evangelizadores, que a ela recorrem para sanar dúvidas concretas, para compartilhar
preocupações, conquistas e alegrias, seja a respeito do cotidiano da tarefa, seja com relação a
acontecimentos em outros âmbitos da vida. A disposição, a alegria e a seriedade com que
Shirley conduz o trabalho contagiam os demais e ditam o tom da conversa nesta sala de
reuniões.
Questionada sobre o seu cotidiano de trabalho, Shirley se volta para a descrição do
modo de organização das atividades ali desenvolvidas no departamento de Evangelização,
comunicando-nos os dias e horários de funcionamento das aulas de evangelização; o modo de
divisão das salas com a correspondente idade das crianças atendidas; as campanhas e eventos
promovidos pelo departamento e como ocorre o planejamento e preparação das aulas e da
118
formação dos evangelizadores. Vejamos como ela elabora sua experiência de voluntariado
começando pela descrição de uma destas atividades:
Para assumir a turma, ele tem que fazer o curso de evangelizador. (…) Tem
um curso que prepara. E a gente, de dois em dois meses, se reúne num
domingo pela manhã e faz os planos de aula, sabe? A gente faz o
planejamento de oito aulas. Então a gente ainda encontra para poder
discutir… Cada coordenador é responsável por um ciclo. Então reúne todos
do Maternal, todos do Ciclo I, todos do Ciclo II numa sala e eles vão
discutir os temas que vão ser abordados nessas oito aulas, tirar dúvidas,
trazer material de enriquecimento. E, antes de começar o planejamento, a
gente divide o domingo em duas partes: a primeira parte a gente sempre
traz alguma coisa para os evangelizadores, no sentido assim de palestras,
oficinas… tudo no intuito de fazer com que eles se enriqueçam com as aulas
que eles vão trabalhar. E que eles possam ser fortalecidos também na
tarefa.
Para o evangelizador assumir a turma é necessário estar preparado para exercer tal
função, o que implica uma formação anterior oferecida pela própria Casa e um trabalho
contínuo de planejamento junto aos demais evangelizadores. Inicialmente, Shirley se propõe a
descrever os aspectos formais desta atividade de planejamento das aulas, apresentando de
quanto em quanto tempo ela ocorre, quantas aulas são planejadas, como este momento é
organizado, a necessidade da utilização de materiais para discutir temas. E, enquanto descreve
tais atividades, ela inclui um novo elemento que precisa acontecer: o envolvimento pessoal,
pois o intuito de tudo aquilo ali é possibilitar que os evangelizadores se enriqueçam com as
aulas que eles vão trabalhar. Assim, a estrutura formal está em função da pessoa, de modo
que eles possam ser fortalecidos também na tarefa.
Dessa afirmação, emerge para nós a pergunta sobre que fortalecimento é este: trata-se
de um fortalecimento do sujeito enquanto tarefeiro ou enquanto pessoa? Acompanhemos o
modo como Shirley responde a esta questão:
A gente prepara… é uma palestra, um texto para refletir, incentiva a estudar
a doutrina, incentiva a fazer os cursos. Inclusive tem o Ciclo de Palestras
também que a Casa oferece. Então a gente incentiva também os
evangelizadores a fazerem esse ciclo, porque é um conhecimento a mais que
eles vão adquirindo e que vai trabalhando cada vez mais o interior da gente.
Porque o nosso objetivo também é a reforma íntima.
Fortalecer-se é, portanto, buscar refletir, estudar, fazer cursos, preparando-se para a
tarefa. E fortalecer-se é também aceitar as oportunidades oferecidas por Shirley e pela Casa
para adquirir um conhecimento a mais, isto é, um conhecimento que promova um trabalho
interior. Nesse sentido, o evangelizador, ao se fortalecer como tarefeiro, pode se fortalecer
como pessoa se tomar o conhecimento oferecido como instrumento para sua reforma íntima.
119
Em ambos os trechos até aqui apresentados, Shirley começa a nos sinalizar como ela,
enquanto dirigente, busca contribuir no processo de preparação dos evangelizadores ao
incentivá-los a participarem de cursos oferecidos pela própria instituição e ao propor
indicações que os ajudem em sua formação pessoal.
E como se justifica a importância da reforma íntima no trabalho de evangelização?
O quê que acontece? A maioria de nós trabalha o dia inteiro naquela
tensão, naquele desgaste. Se a gente chegar à tarefa atordoado,
atormentado, excitado, vai entrar no ritmo dos meninos que estão chegando
aqui também. Então tem que se tranqüilizar, serenar a mente, o coração,
para poder adentrar a sala e se preparar para receber as crianças que vão
chegar com toda a bagagem, com tudo de bom e de ruim que captaram
durante o dia.
Shirley, para explicitar o valor da reforma íntima no trabalho do evangelizador,
apresenta um fato cotidiano que solicita dele uma postura diferenciada do ritmo tenso e
desgastante do trabalho habitual. Para que o estado inicial de excitação possa ser superado, é
preciso um empenho pessoal de tranqüilizar, serenar a mente e o coração de modo a poder
receber adequadamente as crianças que chegam. A reforma íntima é, então, o conhecimento a
mais que prepara a pessoa do tarefeiro para enfrentar concretamente as situações de modo
centrado.
A reforma íntima é aspecto tão importante na configuração da ão voluntária que se
torna critério para selecionar e conduzir a formação do evangelizador:
Porque o evangelizador pode assumir a sala depois que ele fizer o Curso
de Evangelização. E, como o curso acontece uma vez no ano, então muitas
vezes o evangelizador tem que esperar até o próximo ano para poder fazer.
Não deixa de, nesse tempo, ele estar se preparando, ? Porque aqui a
gente não exige que a pessoa seja um professor, que seja da área de
educação, mas que seja um voluntário de boa vontade, comprometido com
aquilo que faz, responsável para abraçar a causa. Porque, ao longo do
tempo, ele vai vendo que o suporte que a gente dá, os encontros que a gente
faz, vai dando segurança à pessoa que está passando aquele conteúdo. E
ela, fazendo a parte dela, estudando, se dedicando, tudo fica tranqüilo.
Não é exigido do tarefeiro uma formação especializada ou um domínio prévio do
conteúdo, mas é preciso que o mesmo, além de cumprir com as exigências formais para ser
evangelizador, tenha boa vontade, isto é, busque se preparar constantemente e tenha
comprometimento para responder à causa educativa, abraçando-a. Para Shirley, se os
evangelizadores têm consciência e dedicação para agir a partir do princípio da boa vontade,
tudo fica tranqüilo, porque é a partir daí que todo o suporte que ela pode oferecer tem terreno
fértil para florescer.
120
E como é possível que tudo fique tranqüilo se se trata de um trabalho contínuo de
preparação que exige um grande comprometimento do tarefeiro? Como é possível que o
tarefeiro não se sinta sobrecarregado se lhe são solicitadas muita dedicação e
responsabilidade? Como Shirley ajuda a responder a estas provocações? Acompanhemos:
A gente procura envolver todo mundo. (…) É muito importante estar
trabalhando em equipe, que fica um trabalho mais leve, mais gostoso,
cooperativo mesmo. As pessoas vêem a sua importância, o seu papel ali.
Não tem ninguém que está aqui para fazer uma coisa, a gente acaba
fazendo mil coisas, justamente porque abraçamos essa causa. A gente divide
as comissões [dentro do próprio departamento de Evangelização], mas acaba
que uma comissão ajuda a outra, sabe? Então assim, a gente sempre
trabalha nessa troca mesmo, nessa troca de experiências, procura escutar a
experiência de um, a experiência do outro. Eu acho que não tem outra
maneira de você trabalhar.
Para que a preparação se torne formação, para que a boa vontade se torne dedicação,
Shirley procura envolver todo mundo de modo que a tarefa seja de cooperação. Fazendo
assim, em equipe, o trabalho se torna leve e gostoso, realizando a sua pessoa. Como a própria
Shirley diz em outro momento de seu depoimento, o trabalho fica mais leve porque “a
responsabilidade é dividida”; fica mais gostoso porque tem um certo envolvimento, um
vínculo que se cria um com o outro, com a Casa, com a tarefa”; e, por tudo isso, fica
cooperativo mesmo por se basear na ajuda mútua e no compartilhamento de experiências. É
nesse sentido que Shirley propõe um modo pessoal de se relacionar com o outro na tarefa,
criando vínculos comunitários onde cada um é considerado em sua singularidade e em sua
importância, em seu papel ali. E não tem outra maneira de trabalhar porque, a partir de sua
experiência, é somente assim que a ação voluntária tem ressonância e impacto no mundo de
um modo que a corresponde.
É possível reconhecermos aqui a centralidade do relacionamento com o companheiro de
tarefa na constituição da ação voluntária de Shirley. Seja enquanto proposta de formação
pessoal para a tarefa, seja no momento da ação mesma, Shirley entende que é trabalhando
comunitariamente, em equipe isto é, respeitando a individualidade e a contribuição de cada
um e cultivando a cooperação –, que se pode concretizar a finalidade da tarefa, facilitar a
própria execução do trabalho e ampliar a realização de si.
Retomando o percurso de análise até este ponto, identificamos vários indícios que nos
permitem enfrentar com mais consistência a questão de como Shirley, em sua ação voluntária,
busca auxiliar na formação dos tarefeiros e na organização do próprio departamento de
Evangelização. Como vimos, Shirley se propõe a contribuir no fortalecimento dos tarefeiros,
121
oferecendo materiais didáticos e incentivando sua participação em momentos propícios ao
diálogo para que eles se preparem para o trabalho e, nesse processo, reformem-se
interiormente, cumprindo assim os critérios esperados para a realização dessa tarefa. Nessa
busca por facilitar a formação pessoal do evangelizador, Shirley empenha-se tanto para
acompanhá-los ao longo da tarefa, dando suporte didático e experiencial sempre que
necessário, quanto para envolvê-los no trabalho em equipe, de modo que eles se ajudem
mutuamente, reconhecendo a importância de cada um e compartilhando pessoalmente sua
experiência. E todo esse empenho ao agir voluntariamente, essas mil coisas que são feitas,
têm como sentido abraçar essa causa.
Curiosos, perguntamo-nos: que causa é essa que precisa ser abraçada? Em outras
palavras, qual o sentido desta tarefa que tanto solicita do tarefeiro?
Uai… é divulgar mesmo os ensinamentos de Jesus à luz da Doutrina
Espírita às crianças que aqui vêm! Ensinar para elas desde pequenininhas
os ensinamentos de Jesus, para que elas possam, ao longo da vida, da sua
caminhada evolutiva, focar a sua vida nesses ensinamentos. Então a gente
lança essas sementes.
Diante da pergunta pelo motivo de tudo isso, a resposta emerge como pura evidência:
uai. É tão óbvio para Shirley, está tão perto, que ela se surpreende ao explicitá-lo, uai. O
motivo é simples no sentido de ser transparente, evidente, é divulgar mesmo. Entendemos que
não é divulgar qualquer coisa de qualquer jeito: é divulgar ensinamentos de Jesus a partir das
luzes lançadas pela Doutrina Espírita, ou seja, é apresentar às crianças conhecimentos
iluminados por parâmetros precisos. É isso, simplesmente, ensinar. Para Shirley, este é um
ensino que, ao mesmo tempo em que se propõe a focar, lança; ao mesmo tempo em que é
para crianças, pequenininhas, é para o decorrer da vida, da caminhada evolutiva. Nesse
sentido, sua ação voluntária consiste em propor um modo educativo de responder à vida a
partir de certos ensinamentos. Um modo focado, mas não fechado, pois a aposta é que estes
ensinamentos repassados sejam sementes lançadas no presente com consciência de sua
possível fecundidade futura, ao longo da caminhada da vida.
Como lançar essas sementes? Como trabalhar tais ensinamentos?
Aqui a gente tem um papel de dar o exemplo e de mostrar esses
ensinamentos do Cristo de uma forma prática e que seja do cotidiano deles,
que eles possam vivenciar no dia a dia. Não é uma coisa distante deles.
O foco educativo proposto por Shirley não é passar certo conteúdo, é uma proposta para
a vida. Nesse sentido, a forma de educar não é medida pela formação técnica do
122
evangelizador, mas se fundamenta no dar o exemplo, isto é, no posicionamento diante da vida
que a própria pessoa do educador comunica em ato. Além disso, é preciso que tal ensinamento
seja adequado à realidade dos educandos, para que eles apliquem concreta e cotidianamente o
que lhes foi passado, para que eles possam vivenciar no dia a dia.
Portanto, para educar, é preciso preparar o semeador de modo que ele lance as sementes
em terreno fértil e cuide para que elas brotem adequadamente, de acordo com o momento do
solo lançado, pois assim a semente pode dar frutos. assim, a aposta pode se tornar
vislumbre de certeza. Nas palavras da própria Shirley: trabalhando esses ensinos de Jesus,
com certeza pessoas melhores eles serão!”. E ela vai além:
O departamento de Evangelização é o que está trabalhando com o início de
uma nova humanidade. Você despertar nesses Espíritos os ensinamentos do
Cristo é muito bacana! Ser mais humano, ser mais solidário, isso é muito
bacana. Hoje, quando você a nação mobilizando o homem, já barbado,
sensibilizando por causa de um, por causa de outro, se solidarizando por
causa das turbulências da vida, você fala: “poxa vida, isso é bacana.” Um
se preocupando com o outro. Se a gente puder desde pequenininho colocar
essas crianças nesse caminho, com certeza esse mundo de regeneração vem
mais rápido. (risos)
Porque trabalhar os ensinamentos do Cristo é também iniciar uma nova humanidade.
Nova por fundamentar a relação humana em outros termos, no princípio da solidariedade. E o
que é ser solidário? É ser capaz de se sensibilizar, preocupar, mobilizar por causa das
turbulências da vida de cada pessoa que se encontra, de um e de outro. Em síntese, é ser mais
humano. E, para Shirley, envolver-se nesse processo é muito bacana, realizador da sua
pessoa, porque é a sua contribuição no processo de despertar as potencialidades humanas
visando à construção de um mundo melhor, de regeneração.
Portanto, Shirley vivencia a realização de si ao empenhar-se pessoalmente em algo que
a corresponde por tocar em seus anseios e ao reconhecer que sua ação contribui para a
concretização do sentido da tarefa. Contribuição colocada num horizonte amplo e, ao mesmo
tempo, completamente enraizada nas suas atividades mais cotidianas enquanto dirigente do
departamento de Evangelização, pois ela pode ajudar a colocar essas crianças nesse caminho
enquanto:
um suporte muito grande à equipe, procura sempre estar trazendo
novidades, sempre estar trazendo pessoas para falar, para desenvolver e
pensar no trabalhador mesmo: a importância daquela tarefa, o
compromisso assumido, porque ninguém cai aqui de pára-quedas, né? Todo
mundo tem uma razão de estar no departamento, seja ele de Evangelização,
seja ele departamento de Relações Públicas, Mediúnico, seja o que for, ou
até mesmo aquela senhorinha, aquela pessoa que fica lá escrevendo o
123
endereço das pessoas no livro de irradiação. Então toda tarefa aqui tem um
porquê, tem uma razão daquela pessoa estar ali.
Retomando os diferentes modos de dar suporte aos evangelizadores, Shirley, diante de
temas que remetem à pessoa do trabalhador mesmo, comunica-nos sua crença de que
ninguém cai aqui de pára-quedas. Ao aprofundar os modos de considerar a pessoa do
tarefeiro, ela se conta da importância de problematizar a razão do mesmo realizar um
trabalho voluntário, independente de qual seja. Diante desta sua conclusão, somos levados a
buscar compreender qual é a razão dela mesma estar ali, no departamento de Evangelização.
Busquemos, em primeiro lugar, elementos de sua história que nos ajudem a apreender o
porquê desta tarefa e não de outra:
Formei-me professora, sou pedagoga. Trabalhei em sala de aula vinte e um
anos. Então assim, a minha história de educação faz parte de mim.
Uma primeira razão perpassa sua formação acadêmica e profissional, formação esta que
faz parte da sua pessoa, uma vez que ela reconhece o gosto pela educação,
desde quando era pequena. Eu dava aula sozinha, meu quadro era as portas
dos armários de roupa dos meus irmãos, sabe? Eu punha carteiras e meus
cadernos eram cadernos de escola. Eu trabalhava e ficava brincando ali,
com meus aluninhos imaginários. E deu certo, porque foi o caminhar, foi
tudo… eu fiz o magistério, depois fui trabalhar, fui dar aula, fiz pedagogia,
participei de vários seminários, vários cursos. Então assim, a educação
estava sempre no meu sangue, e continua!
E o fato deste gosto estar no sangue, isto é, estar presente desde quando Shirley era
pequena permite que ela reconheça a ligação com a educação mesmo quando não está
atuando profissionalmente:
A gente que fica na área de educação, por mais que você desgrude da aula,
você acaba de alguma forma ficando preso a ela. Porque eu passei por uns
problemas e tive que sair, desligar de escolas, de serviço que tinha horário e
carteira remunerada. Porque minha mãe adoeceu, e eu ainda tive que
cuidar dela.
Retomando os trechos anteriores, percebemos como o gosto pela educação direcionou o
modo de Shirley caminhar: perpassando as brincadeiras quando criança, a escolha de qual
profissão seguir, a formação técnica e acadêmica e o trabalho profissional na área escolhida.
Trata-se de um caminho tão pessoal que es no sangue: o percurso pode até ser
redirecionado, mas nunca abandonado completamente, pois de alguma forma se permanece
conectado a ele. E de que forma Shirley continuou conectada à educação?
124
Eu toda vida trabalhei em escola, fui professora, e depois eu parei. E
quando eu tive a oportunidade no departamento [de Evangelização] e
cheguei a ser dirigente dele, falei assim: “é… realmente é um caminho que
eu não posso parar.” (…) E tento colocar tudo aquilo que eu aprendi ao
longo da minha caminhada acadêmica e de experiência aqui.
Eu parei de dar aula, mas tive de continuar com a evangelização, né? Então
assim, é a missão da gente mesmo!
Ao assumir o cargo de dirigente do departamento, Shirley se deu conta de que, mesmo
tendo parado de dar aulas profissionalmente, o seu caminho na área educativa não poderia ser
interrompido, tanto porque ela continuou a utilizar nesse trabalho voluntário o que aprendeu
ao longo da caminhada acadêmica e de experiência quanto porque ela chega à conclusão de
que esse caminho é missionário. E o que isso significa?
Porque teve épocas que tive vontade de sair da tarefa de evangelizar, e eu
falava assim “eu dava aula, mexia com meninos e ainda tinha de noite
(voz de preguiça)e tinha que ficar e tal”. Passou pela minha cabeça essa
questão, sabe? E quando eu pedi uma orientação para o mentor da Casa
Espírita, ele falou: “não, essa tarefa é missionária.” Então assim, quando
foi colocado dessa forma, que eu realmente senti que era uma
oportunidade única que estavam me dando e que eu precisava persistir nela.
Estamos perplexos… por que Shirley reconhece como missão a adesão a uma tarefa que
vai contra a sua vontade? Que missão é essa que, proposta (outros diriam, “imposta”) por um
outro, é vivida como oportunidade única? Esta persistência na missão não seria, no fundo,
alienação? Vejamos como Shirley se debruça sobre o acontecimento relatado anteriormente:
Quando ele falou isso [que a tarefa é missionária], eu falei “nossa! Eu não
posso sair né? É uma responsabilidade muito grande! Eu que assumi isso
daqui perante a Espiritualidade.” Então agora eu tenho que abraçar.
Não foi o desejo de querer fazer uma coisa diferente ou o estado de preguiça que
orientou a decisão de Shirley. É verdade que passou pela sua cabeça, mas esse não foi o fator
preponderante na sua resolução por continuar ou não naquele caminho. O fato de o caráter
missionário da tarefa de evangelização ser apontado por um outro não elimina o
posicionamento pessoal de Shirley. Pelo contrário, exalta-o. Foi diante da proposta do mentor
de considerar a tarefa enquanto missão que Shirley sentiu realmente a provocação que estava
contida ali, retomando a grandeza da oportunidade e da responsabilidade dessa ação
voluntária. Além disso, na resposta ao anúncio recebido, Shirley afirma compreender que foi
ela mesma quem assumiu isso perante a Espiritualidade: diante da proposta do outro,
apresenta-se como resposta à consciência do eu. O chamado é assim reconhecido como dever
que a convoca a persistir na tarefa, a continuar abraçando-a.
125
Ao tomar a tarefa de Evangelização enquanto missão, Shirley indica-nos que essa ação
voluntária é vivida como oportunidade concreta de realização do sentido da sua vida. Trata-se
de uma experiência em que, a partir de algo que é dado, apontado por um outro, emerge um
posicionamento pessoal de seguir as indicações recebidas, um posicionamento que não é
alienado porque se vincula ao reconhecimento desse dado como correspondente a si mesmo.
Daí a responsabilidade que essa ação carrega para Shirley e o reconhecimento de dever
realizá-la no mundo, realizando-se como pessoa nesse ato.
É nesse sentido que a Espiritualidade, para Shirley, é companhia que a ajuda a tomar
nas mãos o próprio percurso. O modo como ela adere ao chamado da Espiritualidade
evidencia-nos a importância e a incidência que esse relacionamento tem em sua vida.
Aprofundando o relato sobre a vivência da tarefa como missão, chegamos assim a
identificar dois elementos fundamentais: o relacionamento com a Espiritualidade que indica
certos direcionamentos, e o modo como Shirley responde ao que lhe é proposto. Essa
compreensão continua a nos interrogar: qual a natureza desse relacionamento? Que modo é
esse de responder ao chamado da Espiritualidade? Quais os desdobramentos dessa resposta
em sua vivência pessoal? Partamos do primeiro questionamento:
Com os ensinamentos da Doutrina [Espírita], estando com esses
ensinamentos em ebulição dentro da gente, a gente ganha uns aliados. A
Espiritualidade sente um canal para poder estar nos intuindo, nos
auxiliando até nos momentos de baixa, de desânimo. Porque quando a gente
pega alguma coisa para fazer, até um livro, quando você pega para ler, você
está ali intuído para sugar o máximo que puder daquele conteúdo. E assim é
no trabalho também. Quando o tarefeiro está dando o melhor que ele pode,
a Espiritualidade está ali preparando ele, intuindo na hora de um desânimo,
injeta nele uma energia vital.
Seja enquanto a pessoa está elaborando os ensinamentos da Doutrina, seja quando o
tarefeiro está dando o melhor que ele pode, Shirley acredita que a Espiritualidade atua como
aliada intuindo, auxiliando, preparando. Para ela, a pessoa, ao agir buscando dar o seu
melhor, é amparada por presenças transcendentes que sustentam o seu caminhar. O trabalho
voluntário é compreendido como uma ocasião especial que favorece a concretização desse
amparo. E tanto é assim que Shirley reconhece que a persistência na ação voluntária aproxima
ainda mais a Espiritualidade de si:
A Espiritualidade fica mais próxima da gente. (…) Eu não tenho vergonha
de pedir, não tenho vergonha de implorar tem hora, você entendeu? Porque
acaba tendo tanta intimidade que a gente não tem nem vergonha mais de
ficar escondendo. Por que esconder? Esconder o quê?
126
Trata-se de um relacionamento pessoal, de tanta intimidade, que permite a Shirley se
mostrar por inteiro: não existe vergonha de pedir, de implorar. A Espiritualidade é, portanto,
reconhecida como companhia que acolhe tanto o que é pedido, implorado, quanto a própria
fragilidade de quem solicita ajuda. Por isso não há sentido em ficar escondendo. Além disso,
a Espiritualidade sabe de tudo, das nossas necessidades. Deus está aí, Jesus
está no [leme], para compreender, e a Espiritualidade para nos dar o
amparo. Com certeza a gente tem uma afinidade muito gostosa com a
Espiritualidade, sabe que pode contar. O quanto que a gente é amparada e
não sabe! Se a gente pudesse ter olhos de ver o trabalho que é feito aqui [na
Casa]…
Para Shirley, a Espiritualidade é presença que sabe das nossas necessidades e pode dar
o amparo, mas que não pode ser desvinculada de Deus, que está , e de Jesus, que está no
leme. Vislumbramos aqui a expressão de uma hierarquia entre Deus, Jesus e a Espiritualidade,
da qual podemos depreender que cabe à última executar o trabalho de amparar. Enquanto
sente receber esse amparo, mesmo que não seja capaz de enxergar tudo o que é feito na Casa,
Shirley reconhece uma afinidade com a Espiritualidade, a qual é vivida como gosto e como
confiança: sabe que pode contar.
E sabe porque viveu, mais de uma vez, situações dramáticas em que a presença e o
amparo invisível se tornaram evidentes para ela:
Quando minha mãe adoeceu, quando o médico confirmou que ela estava
com um tumor nos rins, aquilo assim… meu mundo caiu. Porque (…) eu que
ficava naquele envolvimento dela e o médico comunicou a mim. Nossa
Senhora, eu entrei no desespero. E eu fui para o carro pedindo a Deus:
“pelo amor de Deus, que me desse a oportunidade de cuidar dela”. Eu não
importaria de abrir mão de nada da minha vida. Por isso que eu te falo,
parece que a Espiritualidade fica tão próxima que eu não tenho vergonha de
pedir nada. E de repente eles me deram essa oportunidade. Você entendeu?
De repente me deram. E foi o interessante porque ela ia fazer uma
cirurgia, ia ter que tirar um rim, e acabou quebrando o fêmur. Caiu no
banheiro e quebrou o fêmur. Então o rim ficou para dois anos depois que
ela recuperou da cirurgia da perna. (…) Quer dizer, e a gente achando que
o rim é que iria primeiro [risos]. Ainda teve esse episódio da perna. Então
assim, é muito interessante para você ver como que as coisas acontecem,
como que a Espiritualidade a todo o tempo mostra presença. Eu mesmo não
vejo, mas sinto, percebo a presença deles, o amparo. Mesmo não vendo eles,
vejo a coisa acontecer, e saber que foi através deles, que foi por eles que
aconteceu. Em momento algum a gente, assim, desacreditava.
E eu fui muito beneficiada porque em 1995 eu tive esclerose múltipla. De
uma certa forma, me deram uma prorrogação! Um segundo tempo para que
eu pudesse chegar onde eu estou, porque com certeza de pra muitas
coisas se renovaram dentro de mim. Então foi uma oportunidade que,
graças a Deus, eu despertei para ela e vi que estava em minhas mãos, que a
oportunidade estava me sendo dada, que o segundo tempo estava me sendo
dado, e que eu precisava fazer algo a mais!
127
Falamos em presença invisível e Shirley nos diz justamente que sabe e reconhece a
intervenção, mesmo não sendo capaz de ver seu autor, pois a coisa acontece. Frente ao
desespero inicial, sua resposta é a oração. Da oração, segue-se, para ela, a intervenção da
Espiritualidade que se manifesta na oportunidade concedida: seja a possibilidade de cuidar da
mãe, seja a prorrogação da própria vida. A Espiritualidade, portanto, oferece a oportunidade
em benefício da vontade radical que orienta o pedido, o que nem sempre coincide com a
forma concreta que a própria Shirley achava que deveria ser.
A partir desses últimos trechos, em que Shirley nos apresenta o modo como concebe seu
relacionamento com a Espiritualidade, compreendemos que sua elaboração sobre a ação
voluntária não pode ser dissociada de sua experiência religiosa. Fazer a tarefa, para ela, é
ocasião de proximidade com presenças transcendentes que preparam, intuem e amparam,
convocando-a a persistir no trabalho anunciado e reconhecido como missão. Nesse sentido,
apreendemos como a ação voluntária é vivida por Shirley como uma experiência que
possibilita a conexão com o transcendente e que se configura como abertura, abraçando a
totalidade da sua existência.
Diante da oportunidade concedida, Shirley é provocada a se mover, levando-nos à
questão do modo como ela responde ao que lhe é proposto no relacionamento com a
Espiritualidade. Até aqui, colhemos alguns dinamismos que nos possibilitam apreender
posicionamentos estruturantes da experiência de Shirley: pedir sempre que necessário,
despertar-se tomando nas mãos a oportunidade concedida, renovar-se interiormente e fazer
algo a mais. Continuemos a colher indícios que nos ajudem a compreender melhor a
experiência dela:
Quando você descobre que você está com alguma coisa, quando você
descobre que uma pessoa que você ama, que você gosta, está com uma coisa
grave, a primeira coisa que você tem é aquele choque! Às vezes você tenta
entrar no desespero, e quando você vê, começa acontecer alguma coisa que
te acalma, te aserena (sic). (…) Eu te falo assim, a sintonia com a
Espiritualidade é tão grande que até o tempo de sofrimento é pequeno.
Ao vivenciar situações dramáticas, a primeira reação de Shirley é o choque. Se algo
inesperado entra no horizonte de sua experiência, pode provocar desespero, mas quando você
, isto é, quando Shirley abre os olhos para sintonizar-se com a Espiritualidade, um
acontecimento se dá, alguma coisa a acalma, levando-a a refletir:
Se tiver que passar, vai passar com tranqüilidade, se tiver que sofrer alguma
coisa, vai sofrer com tranqüilidade. (…) O que vai diferenciar um do outro
128
vai ser como você vai passar, se vai ser com mais sofrimento, ou com menos
sofrimento, ou com nenhum sofrimento. Eu acho às vezes impossível, porque
um pouquinho, nem que seja um pouquinho, a gente sofre. (…) Mas é o
tempo mesmo de sofrimento, é a importância que você dá para determinadas
coisas. Então é assim, a vida vai dando oportunidade de demonstrar “poxa,
você estuda tanto, fala tanto e tal. Então vamos pôr uma prova, vamos
passar agora um pouquinho para ver se você realmente fixou aquilo.” Às
vezes a gente capenga mas vai (risos). Não desiste.
Nessa reflexão, vemos que Shirley, ao reconhecer que a duração do sofrimento depende
do posicionamento da pessoa, do modo como ela vai passar, explicita valores a serem
cuidados: o tempo mesmo de sofrimento, a importância que a pessoa dá para determinadas
coisas. Portanto, para ela, a dinâmica própria da vida convida à fixação da compreensão, à
elaboração da experiência. Sofrer, nem que seja um pouquinho; ficar capenga, às vezes. Mas
o foco da questão não é eliminar por completo o sofrimento ou nunca mais capengar. O ponto
é que o fato de não desistir, de continuar persistindo, é que faz a pessoa ir, caminhar.
E, ao caminhar neste rumo:
A gente abre mais esse campo de compreensão, de entendimento das coisas;
sabe que nada é por acaso; tenta dar o melhor e aproveitar ao máximo
aquela oportunidade ali. (…) uns dez anos atrás, eu achei que minha
mãe ia desencarnar, e hoje ela ainda está aí. A alegria de tê-la com 85 anos
e poder curtir isso.
você começa a descobrir coisas, sabe? Você começa a descobrir como é
gostoso falar eu te amo”. Você ter essa oportunidade… Uma benção que
eu recebi na minha vida foi poder cuidar da minha mãe. E eu falei assim
“gente, quantas pessoas às vezes não têm essa oportunidade”.
Ao elaborar os próprios passos, Shirley abre horizontes de compreensão, colhe sentidos
e se empenha pessoalmente para aproveitar ao máximo aquela oportunidade. Este movimento
a faz descobrir coisas com gosto, com gratidão, com realização de si e com provocação,
chegando a extrair conclusões que, enraizadas na vivência de situações dramáticas, tornam-se
orientações para compreender a vida como um todo:
O caminhar da gente é assim, é altos e baixos. Ninguém está aqui para
colher os louros. Está todo mundo aqui para passar por uns pedacinhos.
Mas tudo é passageiro. Você tem que ter muita paciência, prudência, e ter a
certeza de que a nossa caminhada aqui é evolutiva. A evolução não
saltos. Tudo é no seu tempo.
Do seu caminhar, isto é, da elaboração sobre seu modo de responder ao amparo
concedido pela Espiritualidade, Shirley passa a discorrer sobre o caminhar da gente, de todas
as pessoas. Retomando a sua história, ela colhe a certeza de que a nossa caminhada aqui é
evolutiva porque é capaz de apreender para quê todo mundo está aqui e que tudo é passageiro,
129
no sentido de que as pessoas passam pelas coisas e de que as coisas mesmas passam. Isso
significa que, partindo da sua experiência circunscrita de responder às oportunidades que lhe
são dadas pela Espiritualidade, ela amplia horizontes de compreensão sobre o que é a vida,
uma evolução que não saltos, e sobre como todos precisam se posicionar diante dela, com
muita paciência e prudência.
Trata-se de reflexões que incidem na sua ação voluntária, pois a ajudam a dar um juízo
sobre o próprio processo de crescimento pessoal na tarefa de Evangelização:
Hoje, na Casa Espírita, na Evangelização propriamente dita, eu creio que
um pouquinho melhor do que ontem eu acho que eu fiquei, porque tem
coisas que é até percebível na gente. E vai muito também do
amadurecimento, como você enxerga as coisas. Eu não sou uma pessoa
radical, mas sou uma pessoa que, hoje, eu tenho princípios. Então assim,
não é qualquer coisa que me leva.
Aí você pensa “mas por que caiu na minha mão e não caiu na mão de outro,
né?”. Então sou eu que preciso ser trabalhado. Esses cargos de direção
trabalham justamente a maleabilidade, a postura diante do outro, o respeito.
Então assim, é uma oportunidade de crescimento pessoal muito grande,
sabe? (…) Aqui fica um pouquinho mais tranqüilo porque você tem um
objeto que é o evangelho de Jesus, que é Kardec, a Doutrina Espírita, mas
isso não quer dizer que as tendências de cada um às vezes não atrapalhem o
andamento das coisas. Mas que vem aquela pessoa que dirige, que é o
jogo de cintura, que é você escutar e, antes de retrucar, você respirar fundo
para poder dizer de outra forma. Ou então “vamos tentar fazer dessa forma
que você então está pensando”.
O modo como Shirley toma na mão os princípios que a orientam na ação voluntária
possibilita que ela não seja levada por qualquer coisa. Mas isso não significa que Shirley se
veja como uma pessoa radical, isto é, que a forma como ela enxerga as coisas seja fechada.
Pelo contrário. É a afirmação destes princípios que permite Shirley se abrir aos
questionamentos que emergem no cotidiano do trabalho. Assim, da reflexão do porquê esta
tarefa caiu em sua mão e não caiu na mão de outro, ela colhe uma provocação para si e
conclui: então sou eu que preciso ser trabalhado. É nessa dinâmica que Shirley identifica
com clareza quais são os pontos que precisam ser enfrentados no trabalho como dirigente,
reconhece as facilidades e as dificuldades presentes na tarefa de evangelização e toma posição
levando em consideração todos estes fatores, transformando-se.
Portanto, ao agir voluntariamente, Shirley colhe uma oportunidade de crescimento
pessoal muito grande, que a faz perceber que um pouquinho melhor do que ontem ela ficou,
não só dentro da Casa, pois:
A gente vai treinando para fora a gente pôr em prática também ?
(risos) A gente treina aqui para fora a gente tentar. fora o peso é
130
maior. Aqui tudo são flores (risos). Quando a gente põe o pé ali fora,
começam os conflitos, as dificuldades. Mas você se pega pedindo a Deus
para amenizar o coração, para tirar os pensamentos ruins. E você fica
assim: “poxa… parece que eu estou crescendo, estou caminhando!” Porque
antes pensava: “eu queria era matar! Pegar um, pegar outro.” Hoje você já
pede pelo amor de Deus para cortar a sua mão para não fazer bobagem!
Então já é um caminho, já é uma caminhada.
Ao aproveitar as oportunidades que sua experiência na tarefa de Evangelização
proporciona para o próprio crescimento pessoal, Shirley, de certa forma, vai treinando para
praticar fora os ensinamentos adquiridos. Se dentro da Casa é mais tranqüilo devido ao
objetivo que é o evangelho de Jesus, fora o peso é maior em virtude dos conflitos e
dificuldades. No entanto, mesmo diante do peso das situações externas ao ambiente da Casa,
Shirley reconhece que o fato de se colocar numa posição de pedido é um avanço que a
possibilita caminhar, porque, se antes ela queria mesmo era pegar um, hoje ela pede para
cortar a sua mão para não fazer bobagem. O que é elaborado no trabalho voluntário é, pois,
tomado como referência que orienta e permite reconhecer as mudanças de posicionamento em
todos os contextos de sua vida.
Ao voltarmo-nos para os dois últimos trechos, ficamos intrigados com a seguinte
questão: como é possível que Shirley conceba e se divirta com o fato de que aqui, na
Evangelização, tudo são flores se, por vezes mesmo a tarefa sendo mais tranqüila –, as
tendências de cada um podem atrapalhar o andamento das coisas? Acompanhemos:
E assim, vale a pena! É uma tarefa que, se todo mundo conseguisse
dimensionar a beleza dela, a importância dela, o valor que ela tem na vida
de um ser humano, a
gente nem queixaria das reuniões (risos) que a gente
tem no domingo de manhã. A gente viria… como eu sei que tem muitos
que já se conscientizaram disso, vêm de coração aberto, é a maioria,
graças a Deus. Têm uns ainda que reclamam, mas está tudo dentro da
caminhada de cada um, a gente sabe. Mas a minha caminhada foi essa. E a
gente abraçou mesmo com muita dedicação, com muito amor, ou como
podia. Aqui é o meu emprego! Aqui a minha remuneração é a minha saúde,
o meu bem-estar, a minha energia de poder trabalhar mais ainda.
O modo pessoal de se empenhar na tarefa colhendo as provocações que dali emergem
possibilita Shirley dizer, de “boca cheia”, vale a pena!. Diante desta afirmação, ela constata
que se os evangelizadores vislumbrassem a beleza, a importância, o valor desta ação
voluntária para o ser humano, eles viriam de coração aberto às reuniões de domingo de
manhã, evento que, por parte de alguns tarefeiros, é alvo de queixas e reclamações. Portanto,
para Shirley, tudo são flores na Evangelização não porque inexistam problemas a serem
enfrentados. Tudo são flores porque ela tem clareza e certeza de quais critérios são mais
131
correspondentes à sua experiência de voluntariado, devendo então orientar a tarefa e a pessoa
do tarefeiro. E, ainda, tudo são flores porque ali ela se realiza ao abraçar a causa com
empenho pessoal, com amor e com consciência da sua responsabilidade: aqui é o meu
emprego!; bem como ao reconhecer os vários benefícios recebidos: a minha saúde, o meu
bem-estar, a minha energia. Dessa forma, compreendemos que reconhecer os sentidos
implicados na experiência de voluntariado mobiliza Shirley a agir enfrentando as dificuldades
guiada pelos critérios que a correspondem e dedicando-se por inteiro a algo que a realiza.
Retomemos agora o percurso que nos permite apreender o modo como Shirley se
posiciona ante a proposta da Espiritualidade, ante a tarefa de Evangelização e, por que não,
ante a própria vida. Vimos que ela reconhece na Espiritualidade uma companhia segura, para
a qual ela se mostra por inteiro e não tem vergonha de pedir, vivendo assim uma experiência
de intimidade e de compartilhamento da vida. Com a certeza desse relacionamento, ela pode
vivenciar situações dramáticas em que suas reações frágeis são acompanhadas pela
possibilidade de reconhecer intervenções que a tranqüilizam. então ela é capaz de ir além
do desespero e de pedir à Espiritualidade que lhe a possibilidade de se posicionar naquela
situação de sofrimento em prol de uma renovação da vida, na qual ela se empenha para viver
o que realmente apreende como valor e para ser digna das oportunidades recebidas. E, ao se
empenhar para aproveitar essas oportunidades, Shirley reflete e toma nas mãos suas
experiências, apreendendo critérios de orientação que ampliam sua compreensão da vida, da
tarefa de Evangelização, do tarefeiro e de si mesma. Trata-se de uma compreensão que
mobiliza responsabilidade com o próprio processo de crescimento pessoal em todos os
contextos em que Shirley se encontra, que a realiza enquanto pessoa e que desperta gratidão:
Aqui, eu tenho alegrias, tenho que agradecer mesmo as bênçãos de
Deus por ter me dado essa chance, essa oportunidade de trabalhar.
Agradeço sempre a Espiritualidade, agradeço sempre os nossos mentores
por terem confiado no meu trabalho, na minha postura aqui dentro. Então
assim, é um trabalho que eu levo com muita seriedade. Isso aqui eu faço
como meu trabalho, onde eu não tenho o salário em espécie, mas a gente
sabe dos bônus!
Então, para mim, trabalhar neste departamento aqui, meu filho, é uma
benção. Eu me considero uma pessoa privilegiada pela Casa ter me
concedido essa oportunidade de trabalho, porque a grandeza desse
departamento aqui é uma coisa imensurável. Não tem como medir o
trabalho que é desenvolvido aqui com essas crianças. Porque eu sempre
penso assim: “poxa vida, eu estou tendo a oportunidade de trabalhar num
departamento onde a gente está trabalhando a nova geração com valores,
com posturas, com exemplos do Cristo.” Então assim, para mim, foi uma
dádiva divina ter sido me dada essa oportunidade de estar aqui servindo
essa Casa nesse departamento.
132
Admirando-se com a grandeza do departamento de Evangelização, reconhecendo a
oportunidade que lhe foi concedida de participar e de crescer interiormente nesta tarefa e
conscientizando-se da confiança que lhe foi depositada e dos bônus recebidos, Shirley tem
a agradecer mesmo às bênçãos de Deus e à Espiritualidade. Doando-se na tarefa, ela se
percebe como beneficiada e é grata por isso. A oportunidade de trabalhar voluntariamente na
Evangelização é vivida por Shirley como uma dádiva que lhe foi dada por alguém, e por isso
a gratidão por quem permitiu e possibilitou que isso acontecesse, e a realização de si, cheia de
alegria, por poder agradecer e desfrutar desta benção recebida.
É uma gratidão tão forte por essa oportunidade que Shirley, ao falar disso, se comove:
Falar do departamento de Evangelização para mim é uma emoção. Isso me
envolve, me comove (choro). A gente tenta segurar as lágrimas, mas
realmente é uma coisa que importa. Tanto é que às vezes eles pedem para a
gente falar alguma coisa e eu fico segurando, porque falar do departamento
para mim é falar realmente… de emoção (choro).
É um vínculo muito grande que eu tenho com isso aqui. Eu falo que a
misericórdia divina na minha vida foi abraçar essa tarefa. Eu digo que é a
misericórdia de Deus (choro). Para mim é a oportunidade bendita que Deus
me deu, sabe.
Comunicar a experiência de voluntariado vivida no departamento de Evangelização
emociona Shirley porque realmente é uma coisa que importa, toca em algo de valor que a
envolve pessoalmente. O reconhecimento com gratidão da misericórdia de Deus por conceder
a oportunidade de trabalhar na Evangelização a sensibiliza até as lágrimas. Em outras
palavras, ao agir voluntariamente, ao abraçar essa tarefa, Shirley emite um juízo sobre a
gratidão que ali vivencia, juízo que arrasta sua sensibilidade, chegando a emocioná-la.
Portanto, falar do departamento não é falar genericamente do que acontece ali, é falar com
emoção de um vínculo pessoal muito grande que a envolve e que a comove por inteiro.
Então, a gente defende esse departamento aqui com “unhas e dentes”. Na
reunião de diretoria, o povo fala: “lá vem a Shirley falar do
departamento”, falo mesmo! Cada um “puxa a sardinha para sua lata”. Eu
procuro sempre estar divulgando o departamento, sempre inovando, sempre
fazendo coisas aqui para mostrar, para gente pensar no tarefeiro, a
grandeza dessa tarefa, sabe?
Aqui eu dou o meu sangue, dou a minha vida por esse departamento. É a
extensão da minha família, muitas vezes até… não que assim, coloco isso
aqui como mais importante, mas muitas vezes deixo até muitas coisas
para vir agir aqui, sabe? Porque é um compromisso que eu abracei, e isso
aqui fala muito forte no meu dia a dia. Então aonde eu tiver que deixar para
poder vir para cá, eu estou deixando, entendeu? Então assim, é aqui que eu
tenho também força para prosseguir. É aqui que eu me reabasteço para
continuar o dia a dia, as tarefas. A gente como médium, a gente fica muito
sensível, e tem seus altos e baixos, então a tarefa me fortalece.
133
O envolvimento de Shirley com o departamento de Evangelização a leva a defendê-lo
com “unhas e dentes”, sendo capaz de doar o seu sangue, a sua vida. Nesse processo, ela se
move: divulga, inova, mostra, prepara, envolve; enfim, faz acontecer. Se for preciso, deixa
outras coisas importantes, inclusive de família, para vir para , agir nesta tarefa, pois Shirley
a reconhece como uma extensão da sua família. Mas por quê? Porque é na ação voluntária
realizada na Evangelização que Shirley reconhece o compromisso missionário que direciona
sua vida, se reabastece para prosseguir no dia a dia, e se fortalece para lidar adequadamente
com a sensibilidade própria de sua mediunidade, seus altos e baixos.
A percepção dos benefícios recebidos ao doar-se no trabalho voluntário mobiliza
Shirley a defender o contexto em que ela concretiza essa ação e a se dedicar ainda mais a essa
tarefa. E, mesmo dedicando-se, Shirley tem consciência de que sempre poderá ser necessário
doar-se ainda mais:
Eu acho que [a evangelização das crianças assistidas do] Sábado aqui
mostra isso, pede da gente mostrar um algo a mais. É uma realidade que
nos mostra o contraste de valores. É muito diferente! Sabe assim, quando
você um carrinho sem rodas, para eles, você deu o melhor presente do
mundo! E tudo o que esse carrinho sem roda significa para esse menino,
para valer tanto assim. São outros valores, são outras visões, (…) tem tanta
coisa acontecendo à sua volta e a gente às vezes fica numa picuinha. Então
você começa a fazer até uma reflexão mesmo do seu dia a dia, das coisas
que você importância, das coisas que você ainda fica naquele “nhê, nhê,
nhê”, aí você vê: “o quê que é isso!”.
A tarefa de Evangelização que acontece aos sábados pede um algo a mais porque, para
Shirley, as crianças atendidas neste dia revelam uma realidade muito diferente, que contém
uma grande provocação por questionar o modo habitual como as pessoas valorizam e
significam suas experiências. A satisfação com que estas crianças recebem um presente
singelo, mesmo que seja quebrado, surpreende Shirley de um modo tal que a faz refletir e
rever o real valor que ela ao seu dia a dia. É verdade que os valores, as visões são outros,
mas eles abrem horizontes que incidem diretamente no modo como Shirley lida com as coisas
que são realmente importantes e a levam a questionar as picuinhas: “o quê que é isso!”.
Portanto, a ação voluntária é vivida também como ocasião para relacionar-se com
pessoas que significam a vida de outro modo e, nesse impacto com a alteridade, a apreensão
do contraste entre si e o diferente solicita Shirley a repensar os próprios valores e a forma de
se posicionar diante da vida.
É uma oportunidade de crescimento, de amadurecimento, de reflexão, sabe?
A dor do outro, o problema do outro. “Eu tenho problema…”. Qual? Qual
134
problema? E com isso a gente vai vendo que, se tem um problema, tem uma
solução. Todo problema tem uma solução. Por mais complicado que seja um
problema, tem uma hora que vai ter um retorno disso. Outro dia eu estava
lendo uma revista espírita, e o Divaldo [Pereira Franco] falou que “as
respostas estão todas dentro de nós”. Se você for pensar bem, todo
questionamento tem uma resposta, e você já sabe qual é. Você já sabe. Teve
um seminário que o Otávio, nosso diretor doutrinário, falou assim: “ô
Shirley, faz uma pergunta aí, uma dúvida que você tem”, e eu falei: “mas…
que dúvida?”. (…) Dúvida de quê! Você tem é que aplicar! Você tem é que
pôr em prática! Dúvida de quê mais, quê mais que a gente está querendo
explicação, as coisas estão claras! Explicar o quê! Dúvida de quê! Por quê?
Porque aquilo a gente traz na gente, falta “arregaçar as mangas” e
praticar, e trabalhar, e pôr em prática, olho a olho, corpo a corpo, cara a
cara. Tem coisa que não tem mais o quê perguntar, está claro! Dúvida de
interpretação que você quer? Você quer perguntar dúvidas? Se você quer
perguntar sobre mediunidade, sobre o que é mediunidade, como é que o
médium tem que agir, isso nós já estamos carecas de saber! Nós
precisamos é praticar.
Lidar com os assistidos de Sábado é uma provocação tão grande para Shirley que ela
toma a dor do outro também como oportunidade de crescimento e amadurecimento pessoal.
Por quê? Porque o problema do outro a faz olhar não para a existência do problema, mas
para a espera de solução que todo problema contém. Portanto, todo problema tem uma
solução. Não importa o quanto ele seja complicado, a possibilidade do retorno à solução está
dada por princípio, basta reconhecer e aplicar. Compreendemos que, para Shirley, se a
resposta é inerente à pergunta, e se a pergunta faz parte da vida do eu, por conseqüência, a
resposta brota de dentro do eu, a questão é saber dizer qual é. Não se trata de responder de um
modo que elimine a questão, mas de uma resposta que está para além da dúvida de
interpretação que paralisa. Isto é, se trata de uma resposta que dinamize a ação, que coloque
em prática o motor humano, pois o conteúdo mesmo da resposta já se está careca de saber.
Compreendemos que é por se dedicar ao trabalho voluntário que Shirley pode
reconhecer a necessidade de superar posições racionalizantes, que se limitam a explicar o que
na verdade se deve aplicar. Agindo e refletindo sobre a realidade que a cerca, Shirley
apreende como a consciência de possuir a resposta a seus anseios converte-se no dever de
colocar em prática aquilo que ela traz em si. E esse processo, que tanto a solicita, é vivido
também como auto-realização:
É muito bacana! É uma responsabilidade muito grande. Por isso que tudo
que a gente fizer tem que fazer com amor, tudo que a gente abraçar tem que
ser com amor. Não tem outro caminho! Se você quiser fazer as coisas por
fazer, você vai perder um tempo muito grande. Mas quando você faz por
amor, tudo rende, tudo cresce, tudo multiplica, divide, soma. Nada subtrai.
Então é muito bacana… muito bacana.
135
Shirley destaca que não basta fazer as coisas por fazer, pois se perde um tempo muito
grande. É preciso um algo a mais: é preciso amor. Todo o caminho de Shirley não tem
sentido se o amor não guiar seus passos. E ao fazer por amor, o tudo é concebido, e o nada
não tem valor. Dar-se conta disso é, para Shirley, muito bacana… muito bacana.
Assim, para agir voluntariamente responsabilizando-se pela grandiosidade anunciada e
realizando-se enquanto pessoa, o foco da ação voluntária não pode estar no mero fazer, mas
sim no porquê e no como se faz, isto é, por e com amor. Para Shirley, é somente assim que o
fazer tem incidência no mundo, pois o amor lança horizontes cheios de afirmação positiva que
ampliam o alcance da ação e que não podem ser reduzidos, diminuídos em sua potência.
E, da reflexão sobre como deve constituir-se a ação voluntária, Shirley chega à reflexão
sobre a vida como um todo:
Então assim, são coisas que vão levando a gente a refletir, a pensar, a
mudar postura, a rever valor. E você sabe… dá um rumo na sua vida! O quê
que você quer para sua vida? Você quer uma vida cheia de turbulência,
cheia de altos e baixos, quer uma vida desequilibrada, desregrada? Tem!
Tem essa vida. Você quer uma vida mais equilibrada, você quer uma vida
mais tranqüila, um caminho mais reto para seguir, sem muitas curvas? Tem
também esse caminho. Você tem que escolher! que tem hora que você
fala assim “chega!”, “chega de tanto tumulto!”, “chega de tanto sofrimento
desnecessário!”. Se eu tiver que sofrer tem que ser realmente por uma causa
muito nobre (risos). Mas por pequenez, por coisas pequenas… você
que alguma coisa está acontecendo em você. Se você começa a pensar e a
ver como é que você está agindo, você: “poxa, eu acho que já consegui
entender mais ou menos.” Mas se a gente ainda tiver dúvidas, a gente
volta! (risos) Mas a gente está avançando, de alguma forma a gente está
avançando. Então é isso, a caminhada que eu tenho feito na minha vida tem
me dado oportunidades grandiosas, de crescimento, amadurecimento. A
gente não está aqui para ser perfeito, mas a gente está aqui pelo menos para
ser um pouquinho melhor. Voltar do jeito que veio não pode! (risos), pelo
menos com alguma coisa na mão, né! Pelo menos com alguma coisa na mão
para poder falar que “espera que eu ainda tenho uma cartinha para
poder tirar” (risos). Não chegar tão de mãos vazias. Tem que levar! Valer a
pena a oportunidade.
Para Shirley, a reflexão sobre as coisas vivenciadas na ação voluntária, além de levar a
mudanças de postura e valor, um rumo na vida. Para isso é preciso um ato de liberdade: é
preciso se perguntar sobre o que se quer para a própria vida e escolher um caminho. O drama
da escolha evidencia que tanto um caminhos cheio de turbulência que aponta para uma
vida desequilibrada, desregrada, quanto um caminho mais reto para seguir, uma vida mais
equilibrada. O ponto da questão está em identificar os momentos em que a própria
experiência te solicita a falar “chega!”. É a partir dessa percepção que se torna ação que a
pessoa pode retomar e compreender a vida em outros termos. E no percurso de Shirley, essas
136
oportunidades são percebidas como dadas, cabendo a ela aproveitá-las. Não se trata de cobrar
perfeição, pois a fragilidade do ser humano é evidente. Trata-se de valorizar a busca por ser
uma pessoa melhor, nem que seja um pouquinho. Esta é a caminhada que permite Shirley
avançar, crescer, amadurecer e carregar alguma coisa na mão, para fazer valer a pena a
oportunidade.
Podemos, assim, apreender que a ação voluntária para Shirley é o ponto que a permite
cuidar das provocações contidas na experiência e se empenhar a partir do que é solicitado,
aderindo ao que reconhece como mais correspondente. Fazendo assim, ela compreende que
pode tanto aproveitar as oportunidades que lhe são concedidas quanto se transformar
interiormente, avançando na sua caminhada.
5.1. A experiência de voluntariado de Shirley: uma síntese
Na análise da experiência de Shirley, a ação voluntária configura-se como um ato de
liberdade que visa a transformar o mundo por meio da transformação das pessoas. Enquanto
dirigente da tarefa de Evangelização Infantil, Shirley busca contribuir para tal transformação
preparando e formando os tarefeiros que coordena, de modo a viabilizar melhorias na
execução da tarefa e a auxiliar os evangelizadores em sua própria reforma íntima.
Contemplando o próprio empenho na tarefa, Shirley apreende como ela conecta-se a sua
trajetória pessoal e profissional, descobre caminhos para a concretização da causa que a
solicita interiormente e se vê solicitada a buscar também a transformação de si mesma. Assim,
a ação voluntária apresenta-se como transformadora do próprio agente que, refletindo sobre
sua experiência ao agir, é mobilizado a modificar posicionamentos e ampliar horizontes de
realização da ação mesma e de compreensão de si e da vida como um todo.
É nesse sentido que os dramas e problemas vividos e elaborados na experiência de
voluntariado solicitam tanto Shirley, provocando-a a questionar valores e posturas cotidianas,
convidando-a a ir mais fundo em cada questão que se lhe apresenta e a dar um passo a mais,
colocando em prática uma resposta apropriada aos próprios questionamentos.
Compreendemos que Shirley, mesmo considerando que todo esse percurso passa pela
liberdade, já que a vida também apresenta outros caminhos, busca identificar e levar a sério as
provocações da experiência que lhe indicam um caminho mais correspondente e realizador de
si. Desse modo, mesmo uma experiência de dor ou de dificuldade é vivida como realização
137
por Shirley, pois ela sabe que pode lidar com as adversidades enfatizando aquilo que a
corresponde, aprendendo com a oportunidade e empenhando-se no que reconhece como
realmente importante na vida. Em outras palavras, Shirley expressa como vivencia a
realização de si mostrando-nos que essa realização não elimina o sofrimento, mas propõe um
modo humano e vivo de enfrentá-lo, o que implica aceitar a realidade, abraçar o que lhe é
dado e dar o testemunho com dedicação e gratidão pela oportunidade.
Apreendemos que essa dedicação que Shirley nos comunica é um indício central que
nos revela que essa ação voluntária é vivida como um dever com o compromisso assumido e,
a partir de um acontecimento, reconhecida como missão. A radicalidade desse compromisso
em sua vida lhe foi anunciada por um outro e imediatamente reconhecida e abraçada como
própria. Esse caráter missionário se torna uma experiência referência que a motiva a persistir
comprometendo-se ainda mais com a tarefa. Compreendemos que essa resposta de Shirley à
provocação recebida não se configura nem como intimista nem como alienada, mas sim como
profundamente pessoal: trata-se de uma experiência de descobrir o sentido de sua existência
no relacionamento com o outro e de realizá-lo no mundo com a consciência ainda maior do
que está implicado naquela ação. Nesse sentido, compreendemos que, na experiência de
Shirley, seguir um outro que te corresponde é seguir os princípios que te constituem. E
Shirley se realiza ao aderir à própria missão, que lhe indica um percurso de trabalho muito
mais correspondente do que seguir outros caminhos que ela poderia querer. E a possibilidade
de concretizar essa missão nesta instituição é vivida com gratidão por Shirley, que considera
essa ação voluntária uma oportunidade que lhe foi dada, cabendo a ela depurar-se para ser
digna dessa oportunidade e empenhar-se com gosto e dedicação.
Com clareza dos sentidos implicados em sua ação voluntária, Shirley também vivencia
satisfação nos relacionamentos interpessoais: a experiência de trabalhar voluntariamente em
equipe, tendo como fundamento o princípio de solidariedade e compartilhando o cotidiano da
tarefa e da vida com os outros, a realiza enquanto pessoa. Além disso, os relacionamentos são
tomados como oportunidade de crescimento pessoal, uma vez que ela experiencia como a
convivência a transforma, tornando-a mais preparada para contribuir de modo mais efetivo na
tarefa. E o que Shirley vive é também por ela proposto: o modo como busca formar o outro e
constituir vínculos comunitários, que respeitem a pessoa de cada um e que estimulem a troca
de experiências, tem a mesma meta de reforma íntima e conseqüente aprimoramento da
própria ação voluntária.
O relacionamento que Shirley apreende como mais potente nessa dinâmica de colher
oportunidades para se transformar, transformando também a própria ação voluntária, é o
138
relacionamento com presenças transcendentes. Na experiência de Shirley, o trabalho
voluntário a aproxima da Espiritualidade, reconhecida como companhia íntima que a ajuda: a
modificação do curso de acontecimentos, especialmente aqueles mais dramáticos, é
compreendida por ela como intervenção de caráter providencial. E é reconhecendo-se como
amplamente amparada e beneficiada que Shirley expressa com realização de si, gratidão e
convicção ainda maior o seu empenho para dedicar-se à ação voluntária, tomada como um
dever. Nesse sentido, apreendemos como a ação voluntária abre canais que possibilitam
Shirley reconhecer, vivenciar e elaborar experiências de cunho religioso que instigam e
sustentam sua ação mesma.
Dessa forma, compreendemos como Shirley se relaciona com o contexto sociocultural
em que age reconhecendo os fortes vínculos que a ligam a esse contexto, aproveitando as
propostas oferecidas e instigando os demais a seguirem o caminho que ela reconhece como
correspondente, realizador de si. No modo como ela elabora sua ação voluntária, não cisão
nem sobreposição entre pessoa e meio: ao tomar de modo próprio o que lhe é oferecido pelo
contexto, principalmente por meio de relacionamentos significativos, Shirley também dá a sua
contribuição para a constituição deste contexto, pois, iluminada pelas indicações de sua
própria experiência, ela elabora o que recebe e se posiciona propondo o que considera
importante. Uma dinâmica de formar-se no contexto, “con-formando” esse contexto de modo
pessoal, dinâmica que se mostra especialmente evidente no anúncio que lhe é feito, essa
tarefa é missionária, e na resposta que ela nos anuncia: é uma oportunidade única, eu tenho
que abraçar.
139
VII DISCUSSÃO DOS RESULTADOS: diálogos e elaboração da
experiência-tipo
Ao adentrar a Casa Espírita buscando apreender as bases em que se estruturam suas
propostas e ao analisar os depoimentos de Olívia, Telma, Márcia e Shirley acompanhando o
modo como cada uma elabora sua ação voluntária, empenhamo-nos para colher os elementos
essenciais que nos permitissem chegar à apreensão da experiência de voluntariado nesse
contexto sociocultural em sua complexidade dinâmica. A Fenomenologia, enquanto
referencial teórico-metodológico, auxiliou-nos a compreender como os conteúdos
comunicados articulam-se de modo a expressar um movimento que é próprio de cada sujeito,
um movimento que revela como eles se posicionam e quais são os elementos que emergem
como essenciais em suas elaborações da experiência de voluntariado.
Finda a etapa de análise, é chegado o momento de explicitar como os elementos
essenciais que se mostraram comuns a todos os sujeitos foram estruturados em categorias, as
quais, por sua vez, orientam a elaboração da experiência-tipo.
Destaca-se que as categorias apreendidas articulam-se intimamente umas às outras, de
modo que a compreensão de cada uma não pode prescindir da compreensão das demais. Tal
configuração coloca-nos o desafio de apresentá-las ressaltando o que é específico e
encadeando-as de forma a facilitar a comunicação da complexidade da experiência
investigada. Considerando esse desafio, buscamos organizar as seções deste capítulo em uma
seqüência que favoreça a apreensão tanto das nuanças de cada categoria quanto da expressiva
conexão existente entre elas.
Em cada seção, empreendemos o diálogo com a produção de outros autores, de modo
que se consolide nossa contribuição para a compreensão dessa modalidade de experiência.
Além das conceituações presentes em nosso referencial teórico-metodológico, a
configuração dos dados analisados nos solicitou diálogos com outros autores, cujas
contribuições se mostraram pertinentes para a ampliação das compreensões que alcançamos.
Assim, comparando o que encontramos com o dinamismo de certas modalidades de
experiência descrito em termos gerais por esses autores, poderemos explicitar como as
vivências por nós compreendidas articulam-se à constituição da estrutura fundamental da
experiência humana. E, apreendendo a experiência analisada em termos da estrutura
propriamente humana, poderemos lançar as bases para que nossos dados sejam generalizados
sem que se perca sua vitalidade originária.
140
Na última seção, sintetizamos a experiência-tipo elaborada e a articulamos àquilo que
apreendemos com relação às propostas socioculturais da Casa Espírita, de modo a atender ao
objetivo de delinear como se configura o relacionamento entre a experiência de voluntariado e
o contexto sociocultural dessa instituição espírita. Assim como as demais, essa seção também
inclui o diálogo com alguns autores com vistas a dimensionar a contribuição dessa
investigação para o campo de estudo das experiências de voluntariado.
1. A ação voluntária como doação de si ao outro
1.1. Na doação de si, emerge a pessoa
Ao nos comunicarem a experiência vivida na tarefa, os sujeitos entrevistados elaboram
sua atividade como uma ação marcada pelo empenho para que se cumpram os objetivos ali
visados. Embora traduzido de diferentes maneiras na experiência de cada um, o empenho se
caracteriza pela atenção às orientações dadas pelo contexto sociocultural no qual se revela o
esforço de dar o melhor de si ao fazer a tarefa.
A ação voluntária configura-se como um gesto de doar-se ao outro buscando concretizar
no mundo algo que se reconhece como importante. Privilegiando o posicionamento de
empenho como elemento estruturante na elaboração da experiência, cada sujeito indica-nos, a
um tempo, como o objetivo pretendido é para ele um valor e como a ação voluntária
expressa a sua pessoa. Expressa a sua pessoa ao revelar o seu temperamento, os seus gostos e
interesses, os seus medos e preocupações. Na explicitação desses aspectos da sua
personalidade, vemos emergir também o modo como os sujeitos lidam com suas
características, um modo que, sendo próprio e único, expressa a singularidade de cada um.
Como vimos, para Stein (1922/2005a), o que possibilita o ato não é um acontecimento
causal ou arbitrário, e sim o posicionamento do sujeito, posicionamento este que revela tanto
o movimento do eu em direção a algo quanto aspectos do mundo apreendido de modo
singular e humano. O ato, portanto, pode ser entendido como livre quanto se trata de um
posicionamento pessoal de aceitar ou rechaçar as provocações da realidade que mobilizam
uma ação propriamente dita. É nesse sentido que Stein (1922/2005a) explicita como o eu, ao
vivenciar os atos, é também “senhor de seu vivenciar” (p. 264).
141
Por outra via de análise, Wojtyla (1982) chega a considerações similares ao demonstrar
como a ação é capaz de revelar a pessoa inteira e não alguns de seus aspectos,
convertendo-a em alguém capaz de governar e possuir a si mesmo. Isto é, ao agir a pessoa é
sujeito de sua ação, é capaz de tomá-la nas mãos, direcionando seu curso a partir daquilo que
emerge como valor para si.
Giussani (2008, 2009), por seu turno, contribui para essa discussão ao explicitar como é
somente por meio do empenho que a pessoa poderá descobrir suas capacidades. Para o autor,
não é possível se descobrir apenas pensando sobre si: é na ação que emerge a
individualidade, seus talentos e fragilidades.
De modo a tornar claro seu argumento, Giussani (2009) apresenta um exemplo:
Imaginemos (…) um jovem que, por vários motivos, não goste de aritmética
e, por isso, nunca se tenha empenhado em estudá-la. Ele não está em
condições de entender que possui uma capacidade pelo menos normal nesse
campo. Se, pelo contrário, começar a se empenhar, poderá de verdade
descobrir que tem até uma capacidade acima do normal (p. 61).
Nesse exemplo, explicita-se como o empenho ou o “eu-em-ação”, nas palavras do autor,
é o que de fato revela a pessoa. Ainda a esse respeito, Giussani (2008) afirma: “a dedicação de
si ao outro não é uma coisa genérica, é uma coisa muito concreta. Por quê? Porque o eu vive
não como uma grande nuvem abstrata, vive como ato; o eu vive como ato, move-se como ato”
(p. 287).
Sem agir, o sujeito não atualiza suas potencialidades e nem mesmo pode saber que elas
existem, pois elas se encontram obliteradas. É nesse sentido que Giussani (2009) explicita a
importância de empenhar-se em ação para que os fatores constitutivos do humano possam ser
expressos e percebidos.
Essa breve apresentação das implicações do empenho para Giussani (2009), somada à
retomada das afirmações de Stein (1922/2005a) e Wojtyla (1982) sobre como o ato expressa a
pessoa, enriquece o olhar lançado à experiência dos sujeitos que entrevistamos.
Ao elaborarem a experiência de voluntariado como doação de si, Olívia, Telma, Márcia
e Shirley revelam como se posicionam livremente: no ato de doarem-se, cada uma emerge
como sujeito de sua ação. Ali, elas dão o seu sangue, a sua vida, como diz Shirley,
sintetizando um movimento de empenho pessoal que perpassa a experiência de cada uma.
Naquele gesto, a pessoa se compromete para concretizar no mundo as exigências
reconhecidas como valor e, como corolário, atualiza o dinamismo que lhe é peculiar e pode
ver expressa a totalidade do seu ser. Por tudo isso, compreendemos que o modo de agir
142
voluntariamente comunicado por cada sujeito coincide com o seu “eu”, aquela tarefa é sua,
nas palavras de Márcia: é a sua pessoa acontecendo no mundo.
1.2. Para doar-se é preciso amor: o eu em direção ao outro
O que os sujeitos apreendem como central ao se expressarem doando-se ao outro?
Na análise dos depoimentos, vimos como cada qual vivencia esse processo a seu modo,
sendo fatores que marcam a singularidade dos posicionamentos a trajetória pessoal e certas
características peculiares às tarefas realizadas por cada um. Não obstante, todos apontam o
amor como elemento fundamental, sem o qual a ação voluntária não pode efetivamente
alcançar seus objetivos.
A eleição do amor como fator imprescindível, somada à crítica às posições voluntaristas
de auto-afirmação, evidencia como os sujeitos tomam como ideal a afirmação do outro por
meio da doação de si sem exigir retribuição. Nas palavras de Olívia, sem amor, não adianta:
assim como a intenção sem ação não pode construir, não basta executar a atividade sem
incluir no gesto concreto a abertura à dimensão afetiva e a espera de que essa ação concretize
seu ideal.
Em tal configuração, o amor emerge não apenas como sentimento, mas como uma
forma de posicionamento, o que contraria definições correntes e solicita-nos ao diálogo com
autores que se debruçam sobre a experiência do amor e seus significados.
Victor Frankl (1986) nos auxilia a apreender o amor para além do nível instintivo ou
psíquico ao afirmar que na experiência de amor o homem pode, de fato, se voltar para um
sentido que simultaneamente o transcende e o constitui. O amor é um estado de espírito, um
ato intencional – do qual temos consciência e podemos compreender – que permite ao homem
ir ao encontro de um tu. E é na afirmação deste tu em seu caráter único e irrepetível que o
“eu” pode afirmar a si mesmo.
Para o autor, quanto mais verdadeira a relação entre duas pessoas fundamentada no
amor, mais tal relação remete, indica algo maior, algo que os une naquela relação e no seu
ideal. Em outras palavras, o amor pressupõe, além da pessoa amada, a valorização do caráter
de encontro e acolhimento, pois não se ama somente a pessoa, mas também a relação que se
estabelece com ela. Quem ama afirma, confirma e reafirma tanto quanto for necessário o valor
143
desse amor e tal ideal de relação torna-se referência, passando a nortear a ação nos demais
relacionamentos.
Tocando nesse ponto, Frankl (1986) retoma como o amor é um posicionamento e não só
um sentimento, pois o amor precisa da ação para concretizar o que é reconhecido como ideal:
A resposta a dar em cada caso não se pode dar efetivamente com palavras,
mas antes com ações, através de um agir (…) A resposta correta vem a ser,
portanto, uma resposta ativa e uma resposta no dia-a-dia, enquanto espaço
concreto do humano ser-responsável (p. 159).
De modo análogo, Giussani (1999, 2008, 2009) ressalta como a experiência de amor é
uma exigência propriamente humana, a qual é indissociável do gesto de ir além de si mesmo,
de voltar-se para o outro e afirmá-lo. Sendo uma exigência, a sua concretização é vivida como
correspondência, isto é, na experiência de amor, a busca por afirmar o outro coincide com a
afirmação de si mesmo: é cuidando do outro que a pessoa cuida do que corresponde ao
próprio ser (Gaspar, Maia & Mahfoud, 2008b).
Não se trata de uma posição puramente sentimentalista nem puramente voluntarista,
pois a experiência de amor é vivida como um “juízo da inteligência que arrasta toda a
sensibilidade humana” (Giussani, 2001c, p. 71). Portanto, é o juízo dado sobre tal
correspondência que mobiliza a pessoa por inteiro a afirmar o outro. Trata-se de uma
experiência que solicita uma abertura, tornando-se referência, pois a pessoa passa a buscar nas
demais relações a correspondência que é vivida num relacionamento fundamentado no amor.
É nesse sentido que a experiência de amor, ao mesmo tempo em que realiza a pessoa, a
conclama ao dever, a algo que deve acontecer nas relações.
Não obstante, para que o amor aconteça no mundo, não basta o mero fazer concreto
pelo outro, pois este fazer, se desprovido de simpatia e comoção, não alcança o seu verdadeiro
objetivo: a afirmação do outro. Nesse sentido, é fundamental que o movimento de buscar
atender às necessidades do outro inclua a busca por compartilhar a vida. Para Giussani (2008),
é preciso, então, o “dom de si comovido” (p. 285), que afirma, no gesto de se doar ao outro, o
sentido último que sustenta o fazer. Tomada nesses termos, a ação como expressão amorosa
se constitui como movimento “em que o eu se move pelo outro e a razão que a sustenta é o
objeto autêntico do amor, isto é, o bem e o destino do outro” (p. 286).
A ação voluntária pautada no amor caracteriza-se, portanto, pela clareza quanto à razão
que a orienta, que é a afirmação do outro sem esperar recompensas. Como explica Giussani
(2008), a ação assim caracterizada é o mesmo que caridade, termo derivado do grego caris,
144
que significa simplesmente grátis ou gratuidade. Por todo o exposto, na caridade se encontra a
forma suprema de expressão amorosa, pois nela
é banido todo cálculo, toda espera de recompensa, toda previsão de levar
vantagem. (…) A caridade abole totalmente totalmente, no sentido
absoluto do termo qualquer retorno. Quer dizer: a caridade age por puro
amor, somente por amor (pp. 269-270).
Com tal explicitação de como o amor não pode ser reduzido ao sentimento por ser um
posicionamento concreto de afirmação de um tu, cuja forma suprema é a caridade em que o eu
se doa comovido ao outro, colhemos a possibilidade de ampliar a compressão da experiência
de voluntariado na Casa Espírita.
Elaborando sua experiência, os sujeitos que entrevistamos constantemente reafirmam
como se dedicam às tarefas que, como sabemos, constituem-se como uma modalidade de
trabalho sem remuneração. Dedicam-se demonstrando como valorizam a ação de cuidar do
outro em suas mais variadas necessidades e, aliada a essa dedicação, vemos expressa em seus
depoimentos a clareza de que sem amar a quem se doa, o gesto torna-se árido, é um fazer sem
sentido. Novamente: fazer sem amor não adianta, pois o mero ativismo não é capaz de
alcançar tudo aquilo que a ação voluntária quer realmente afirmar.
Fundamentada no amor, a ação voluntária é vivenciada pelos sujeitos, a um tempo,
como sentimento, decisão e entrega. Amar, para eles, é doar-se por inteiro ao outro, buscando
afirmar com esse posicionamento o que é reconhecido na experiência como solicitador e
correspondente. Essa experiência os recompensa na medida em que concretiza o ideal
vislumbrado, mas não se trata de fazer esperando retribuição do outro. Trata-se, isso sim, de
fazer por amor e com amor, como bem sintetiza Shirley, incitando-nos a caracterizar a ão
voluntária dos sujeitos como caridade no sentido original do termo.
2. A realização de si na ação voluntária: um círculo virtuoso
2.1. Na elaboração da experiência, emerge a centralidade da realização de si
A ação voluntária, ao expressar a pessoa, carrega a potência de realizar plenamente o
agente e é isso que observamos nas experiências a nós comunicadas. Em todos os
depoimentos, não foi preciso colocar a tema a questão da realização de si: os sujeitos,
145
elaborando sua experiência na tarefa, recorrentemente afirmavam o quanto se satisfazem,
gostam, são apaixonados, sentem-se felizes e gratificados nessa experiência. Para eles, quem
se doa ao outro sempre recebe, porque o próprio gesto de doação voluntária realiza quem o
faz.
Surgindo espontaneamente em diferentes níveis e guiando grande parte das elaborações,
a realização de si emerge como elemento estruturante da experiência de voluntariado, sendo
uma de suas marcas distintivas a ligação a algo nuclear à pessoa: ao coração de Telma, à
missão de Shirley, à paixão de Márcia, ao gosto de Olívia. Uma vivência assim radical marca
os sujeitos: o modo como a realização de si orienta suas elaborações evidencia-nos como a
espera por essa realização mobiliza-os a continuarem se dedicando. A ação voluntária,
portanto, ao expressar e realizar a pessoa, solicita ao dever: solicita que Shirley abrace a causa
e Márcia, a tarefa; solicita que Telma continue servindo e Olívia, participando.
Ao descrever o modo de constituição dos atos que compõem a estrutura da pessoa, Stein
(1922/2005a) demonstra como a auto-realização se na medida em que o eu atualiza a
totalidade da sua estrutura propriamente humana. E, para realizar a pessoa em sua totalidade,
é preciso que o ato corresponda a uma exigência que brote do centro de si mesmo. Portanto,
não é qualquer posicionamento que realiza a pessoa, e sim aquele que toma a exigência como
critério que orienta a ação.
Wojtyla (1982) caracteriza esse agir realizador apontando que a ação realiza algo que o
homem é e para o qual ele foi feito. Conforme evidenciado, o homem é pessoa e foi feito para
se posicionar em função daquilo que mais o corresponde moralmente no relacionamento com
a vida. Isso significa que é preciso que na ação esteja incluída a dimensão moral de adesão a
um bem reconhecido e concretizado de modo bom, que corresponda à solicitação própria do
bem e ao núcleo da pessoa. Realizar-se é realizar a si mesmo no mundo, é um acontecimento
que se faz presente e que mobiliza a pessoa por inteiro. Trata-se de uma mobilização
justamente porque toca naquilo que a pessoa almeja de mais verdadeiro, como um chamado
que brota do centro do eu, um dever ser. Desse modo, a realização tanto é conduzida quanto
conduz a ação humana, mas sempre em função de uma estrutura pessoal que precisa acontecer
existencialmente.
E Giussani (2000, 2008, 2009), por sua vez, destaca que a experiência de realização de
si é fundamentada em um conjunto de evidências e exigências radicais, por ele denominado
Experiência Elementar. Dentre tais exigências encontra-se a de realização, que indica aquele
ímpeto original por felicidade, por satisfação de si no mundo. Ímpeto que se afirma enquanto
experiência no posicionamento da pessoa buscar concretizar a promessa de realização plena
146
suscitada pela vida. Essa dinâmica, experienciada como liberdade, solicita empenho contínuo
em imprimir no mundo o ideal vislumbrado, provocando letícia e comoção.
Com Stein (1922/2005a), Wojtyla (1982) e Giussani (2000, 2008, 2009), podemos
compreender como a realização de si comunicada por cada sujeito é um acontecimento que se
refere à sua pessoa inteira na medida em que, realizando os sentidos da ação voluntária, ele
está realizando algo que lhe é radicalmente correspondente. Além disso, por ligar-se a algo
que lhes é nuclear, apreendemos que essa realização é realização do seu centro e, por isso,
trata-se de uma correspondência que abarca a totalidade da sua pessoa.
A realização de si é, portanto, um acontecimento que concretiza uma exigência, que
atualiza o que a pessoa é e que corresponde ao que ela espera. E é um acontecimento que
inaugura um dinamismo, pois a vivência da realização de si se converte em promessa de que
essa experiência se perpetue e o empenho passa a ser reconhecido como compromisso para a
concretização de algo que deve acontecer.
2.2. Realização e juízo
Na elaboração do próprio agir e da realização de si por ele possibilitada, os sujeitos se
vêem solicitados a retomarem o que os motiva a estarem ali, num movimento de abertura que
reconfigura os motivos já apreendidos e permite a percepção de novos. Tendo decidido
livremente por dedicarem-se à tarefa, eles nos mostram como a clareza quanto ao porquê
trabalham voluntariamente constitui-se como um juízo que os solicita a avaliarem
constantemente o modo como realizam sua ação e os auxilia a permanecerem se empenhando
e colhendo novas provocações que os mobilizam ao trabalho.
Nesse movimento de retomada constante, o juízo dado revela sua centralidade para que
a associação entre doação e realização de si possa se tornar experiência e referência. É como
um “círculo virtuoso”:
45
a consciência do porquê agir voluntariamente os mobiliza a
dedicarem-se; dedicando-se, eles se expressam e se realizam como pessoa, surpreendendo-se
com as novas provocações que constantemente estão emergindo; atentos e abertos a essas
provocações, eles podem dar novos juízos sobre o valor e o sentido da ação voluntária,
fortalecendo, assim, o ímpeto por dedicarem-se e realizarem-se sempre mais.
45
Expressão que remonta à filosofia aristotélica, a noção de círculo virtuoso quer indicar que a virtude motiva a
razão prática, a qual, por sua vez, alimenta a virtude (Cf. Aristóteles, IV a.C./2002).
147
Em nosso referencial teórico-metodológico, recorremos prioritariamente a Stein
(1922/2005a) com vistas a compreender a motivação em seu sentido profundo. Vimos como a
fenomenóloga destaca a radicalidade da motivação como a vinculação capaz de desvelar as
especificidades da experiência humana, posto que indicativa da existência da vida espiritual.
E vimos também que as vivências podem se ligar por causalidade, mas são os vínculos por
motivação que nos caracterizam enquanto humanos. Não obstante o caráter estrutural da
motivação, é somente na pessoa entendida em sua singularidade, unidade e totalidade que
o dinamismo motivacional efetivamente se constitui. Nesse sentido, não basta compreender
somente os antecedentes que levam o homem a agir no mundo, é preciso considerar a
dinâmica de elaboração pessoal destes motivos que possibilitam a ação propriamente dita.
Ales Bello (2004, p. 114) sintetiza tal compreensão ao dizer que “a motivação é,
portanto, a análise pessoal das condições que tornam possível a realização de um motivo”. É
daí que se conclui que a motivação não é um mecanismo que opera à revelia da pessoa, mas
emerge enquanto dinamismo estrutural e existencial, porque reconhecido na experiência.
Somente a partir daí se pode apreender o valor da motivação em sua plenitude, expressão do
centro e da integração do eu em ação. Nesse processo, o eu efetivamente se realiza por se
abrir verdadeiramente às suas exigências mais radicais, aos anseios mais profundos que o
mobilizam no mundo, e por julgar aquilo que vivencia como correspondente ou não a esses
anseios.
Considerar a motivação sob este prisma desvela a necessidade de compreendermos a
fundo o que seja o juízo, suas características e desdobramentos. Para tanto, selecionamos o
ensaio Renovação como problema ético-individual, de Husserl (1924/2006b), por sua especial
fecundidade para a temática em questão.
Para o fenomenólogo, é na ação que o valor deixa de ser genérico e efetivamente regula
a constituição do sujeito e do seu mundo. Nesse processo, é possível a realização do bem, do
verdadeiro e de si se o sujeito agir segundo a razão, isto é, se agir perguntando-se pelo que é
verdadeiro e buscando apreender o elemento fundante do que encontra. É o exercício da
razão, portanto, que permite o juízo sobre o vivido, juízo que salienta o que corresponde à
totalidade da pessoa e que permite coordenar a ação em função dessa correspondência. A esse
respeito, escreve Husserl (1924/2006b):
Assim se compreende a peculiaridade do esforço racional, enquanto esforço
para dar à vida pessoal, a respeito das suas respectivas tomadas de posição
judicativas, valorativas e práticas, a forma da intelectividade, ou seja, numa
relação de adequação a esta, a da legitimidade ou da racionalidade. Numa
expressão correlativa, isso é o esforço para expor, na sua autocaptação
148
intelectiva, o “verdadeiro” em cada um destes aspectos ser verdadeiro,
conteúdo judicativo verdadeiro, valores e bens verdadeiros ou “autênticos”
(…) Poder ver isso e deixar-se motivar por isto pertence às possibilidades de
essência do homem. Como também, além disso, a possibilidade de que o
homem avalie segundo normas da razão e se transforme do ponto de vista
prático (p. 45 - grifos do autor).
É a esse posicionamento contínuo do sujeito de retomada da autenticidade da sua
experiência que Husserl (1924/2006b) se refere ao falar em “renovação”. Para sustentar essa
posição ativa de colher o que se apresenta como valor, é necessário abrir-se para os horizontes
totais implicados em cada gesto, e essa é a possibilidade de uma vida ética. Tomada nesses
termos, a ética se refere ao ato pessoal de reconhecer o valor que corresponde porque permite
experimentar a inteireza de si, de tomá-lo como bem e de continuamente decidir por sua
afirmação e pela verdade da experiência. Nesse processo, o sujeito se empenha para que sua
ação contribua para a continuidade daquele valor reconhecido. Esse querer configurar o
mundo a partir do valor que emerge na experiência de inteireza confere estabilidade à pessoa
e, como corolário, é essa inteireza que dá o caráter de duradouro a algo circunscrito, posto que
ela reordena outros posicionamentos.
Desse modo, Husserl (1924/2006b) nos auxilia a perceber a centralidade do
posicionamento da pessoa, seja ao dar juízos sobre o que vivencia, seja ao extrair de tais
juízos a possibilidade de uma vida ética. Auxilia-nos também a compreender como os
posicionamentos pautados no exercício da razão podem afirmar de modo legítimo valores e
bens reconhecidos como verdadeiros, favorecendo novos posicionamentos que caminhem na
mesma direção. Em síntese, trata-se de como, respondendo às solicitações da vida, podemos
experimentar a inteireza da nossa pessoa e como essa experiência, reconhecida como bem,
pode se configurar como o fundamento do posicionamento ético em todos os contextos da
vida. Nas palavras do autor:
De acordo com estas análises, é claro como a vida ética, segundo sua
essência, é, de fato, vida provinda de uma renovação”, provinda de uma
vontade originária de renovação, que, de seguida, sempre de novo deve se
reativar. Uma vida que se denomine como vida ética, no sentido verdadeiro,
não pode surgir e crescer “a partir de si”, ao modo da passividade orgânica,
não pode também ser encaminhada e sugestionada a partir de fora, sejam
quais forem as disposições racionais originárias capazes de desenvolvimento
que se possam pressupor, e seja qual for a ajuda trazida pelo exemplo e a
reta orientação de outros. Somente pela liberdade própria pode um homem
chegar à razão e dar forma racional tanto a seu mundo circundante quanto a
si próprio (pp. 61-2).
149
Retomando contribuições de Stein (1922/2005a) acerca da complexa dinâmica da
motivação e introduzindo elaborações de Husserl (1924/2006b) acerca do juízo e da
possibilidade da vida ética, podemos redimensionar a compreensão das experiências de
voluntariado a nós comunicadas.
A partir da análise dos depoimentos, afirmamos que a ação voluntária se configura
como experiência em que motivações se concretizam num processo realizador da pessoa.
Acompanhando Olívia, Telma, Márcia e Shirley, captamos como a força da vivência de
realização de si faz com que os sujeitos a tomem como chave de leitura, inclusive, de sua
motivação. Isso significa que eles retomam sua trajetória guiando suas elaborações pela
realização de si, num processo em que muitas vezes os fatores que mobilizaram inicialmente à
ação voluntária não precisam sequer serem tematizados, pois o se constituem como
essenciais para a compreensão da experiência em ato (Mahfoud, 2008).
Assim, enquanto muitos se perguntam sobre o que leva as pessoas a trabalharem
voluntariamente restringindo-se ao questionamento pelos motivos, os sujeitos da experiência
nos evidenciam a importância de considerarmos como eles estão se realizando e o que eles
estão realizando ao trabalhar. Dialogando com Stein (1922/2005a), podemos perceber o
quanto essa configuração em que os motivos manifestam-se como secundários às elaborações
da pessoa em ação são condizentes com a dinâmica da motivação em seu sentido pleno. Um
olhar que questiona sem considerar o movimento do sujeito que trabalha voluntariamente se
revela, assim, como um olhar externo que não consegue alcançar aquilo que é mais central na
experiência.
Complementando esse quadro, temos o reconhecimento de que os sujeitos, pautando-se
nos juízos dados sobre o que é valor e bem na experiência, buscam se dedicar dando o melhor
de si. Recorrendo às contribuições de Husserl (1924/2006b), entendemos que essa dedicação
pode ser descrita como posicionamento ético. Além disso, podemos avançar na compreensão
do “círculo virtuoso” a partir da explicitação de como o exercício da razão permite dar juízos
sobre as experiências vividas como realizadoras da totalidade da pessoa, juízos que mobilizam
a novos posicionamentos na mesma direção, num processo que favorece o empenho para
buscar configurar o mundo a partir dos valores reconhecidos como verdadeiros e
correspondentes.
150
3. A ação voluntária como provocação à contemplação e à transformação
3.1. Na abertura da razão, a ação convida à contemplação
Analisando o modo como os sujeitos elaboram sua ação voluntária, percebemos como a
experiência de voluntariado afeta o agente: provoca maravilhamento em Olívia e felicidade
em Telma, toca Márcia e emociona Shirley. E, diante desse impacto, a pessoa julga o que lhe
aconteceu, procurando rever concepções e agir da forma que reconhece ser mais razoável e
correspondente a si mesma, o que inclui modificar os próprios posicionamentos.
Nesse processo de elaborarem sua experiência de voluntariado, reconhecemos como os
sujeitos partem da vivência concreta e, numa dinâmica de abertura da razão, colhem, além do
sentido imediato da atividade, sentidos outros que incidem diretamente no modo como
realizam tal atividade. Nesse movimento de ampliação dos sentidos apreendidos na ação
voluntária, eles tomam as experiências como provocações que dilatam seus horizontes de
compreensão de si e da vida como um todo.
Na discussão sobre o lugar do juízo na dinâmica da experiência de realização de si, já
chegamos a delimitar a importância do exercício da razão diante daquilo que se vive. Aqui,
vislumbramos outro desdobramento desse processo de abertura da razão: trata-se do
alargamento de horizontes em que os sentidos apreendidos numa ação circunscrita se
constituem como crivo que transforma até mesmo a visão de mundo do agente. Assim, para
compreender esse movimento que se revela como essencial na elaboração que os sujeitos
fazem de sua experiência de voluntariado, recorremos ao diálogo com as considerações de
Hannah Arendt (1958/2001, 1971/2008) acerca da importância da contemplação na dinâmica
da ação.
Segundo Critelli (1993), seguindo um viés fenomenológico de apreensão da ação
enquanto constituinte da condição humana, Hannah Arendt debruça-se sobre as conseqüências
do agir no mundo. Partindo da afirmação de que nem toda atividade é necessariamente ação,
Arendt (1958/2001, 1971/2008) mostra que esta última revela o agente no processo mesmo de
agir; precisa ser comunicada e ter ressonância no mundo para realizar-se enquanto tal;
expressa pluralidade de posicionamentos e é base para o reconhecimento mútuo; bem como é
a única capaz de trazer novidade, romper limites e, por isso, construir história.
Lançando um olhar crítico à racionalidade moderna, a autora salienta como o valor
extremo conferido à ação, entendida como fazer, levou à eleição da verificação como a única
modalidade de se alcançar a certeza do conhecimento, em detrimento da contemplação. Nesse
151
processo, até mesmo o pensamento é tomado como um fazer que elimina o espaço da vida
contemplativa, abolindo, assim, o sentido original do pensar enquanto contemplação da
verdade.
Retomando a filosofia clássica, Arendt (1971/2008) afirma que, para alcançar a verdade
das coisas, a contemplação precisa da quietude, ou seja, de “uma ausência de qualquer ão
ou perturbação, a retirada do envolvimento e da parcialidade dos interesses imediatos que de
um modo ou de outro fazem de mim parte do mundo real” (p. 101). Definida como um ato de
não participação ativa e deliberada, a contemplação se traduz na posição de abertura que lança
o olhar sob cada aspecto da realidade tendo presente o kosmos como um todo.
Como corolário, para Arendt (1971/2008), “não é por meio da ação, mas da
contemplação, que o ‘algo diferente’, a saber, o significado do todo é revelado. O espectador,
e não o ator, tem a chave do significado dos negócios humanos” (p. 115). Tomada nesses
termos, a contemplação se revela como pré-requisito de todo juízo verdadeiro e como
condição da compreensão do sentido da vida.
Isso significa que, para não empobrecer seus próprios objetivos, a ação precisa dar
espaço à contemplação, precisa de quietude para conseguir se inserir num contexto maior,
ultrapassando os resultados imediatos do fazer e podendo, assim, ser realmente efetiva. De
outra parte, também a contemplação precisa da ação, caso contrário a atenção aguda aos
elementos da realidade pode levar o sujeito a não se envolver com o mundo, perdendo-se num
racionalismo visionário. Na constatação dessa dependência mútua, dissolve-se a aparente
contradição entre ação e contemplação.
Tomando como ponto de partida as afirmações de Arendt (1958/2001, 1971/2008),
Mahfoud, Dillinger, Gaspar, Leite & Maia (2009) ressaltam como o caráter livre da ação
voluntária favorece com que o sujeito não encerre no próprio ato todas as suas expectativas de
correspondência. Concebendo a própria vida como parte de algo maior, ele pode distanciar-se
da concretude do gesto e da reatividade dos próprios interesses. Nesse processo, o desapego
quanto aos resultados imediatos da ação abre espaço para a apreensão das provocações que
emergem durante o fazer, para a contemplação da beleza e da verdade dos sentidos implicados
na ação, para a vivência de experiências totalizantes.
Assim, resgatando a importância primordial da contemplação para a ação, Arendt
(1958/2001, 1971/2008) e Mahfoud et al. (2009) permitem-nos perceber como os sujeitos que
entrevistamos não se restringem ao ativismo tipicamente contemporâneo, mas sim agem
voluntariamente com a abertura racional capaz de colher as múltiplas solicitações contidas na
experiência. Relatando-nos como as situações vivenciadas na tarefa os provocam a modificar
152
posicionamentos e concepções sobre a ação, sobre si e sobre o mundo, eles estão expressando
como o seu fazer é acompanhado pela contemplação que os permite superar limites
circunscritos e avançar em direção a horizontes de totalidade.
3.2. Na contemplação do agir, a possibilidade de transformar a si mesmo
Considerar que as experiências que analisamos incluem ação e contemplação significa
reconhecer como a ação voluntária, a um tempo, comove e solicita reflexão, mobiliza a
pessoa a se perguntar sobre o que a realiza e a se posicionar a partir do que compreende. É
nesse sentido que podemos compreender como os sujeitos que entrevistamos vivem a ação
voluntária como ocasião de “reforma íntima”.
Aspecto essencial na elaboração que os sujeitos fazem de sua experiência, a reforma
íntima apresenta-se também como uma proposta do contexto sociocultural, à qual os sujeitos
aderem e, a seu modo, repropõem aos demais por reconhecerem-na vivencialmente como
correspondente. Correspondente porque esse processo os realiza: transformando-se, os
sujeitos apreendem que estão crescendo em direção àquilo que acreditam ser o melhor para si
e para o mundo.
Para captarmos a possibilidade dessa transformação de si a partir da reflexão sobre o
agir, buscamos o diálogo com a filosofia da atenção de Simone Weil (1947/1993, 1949/2001),
a qual em muitos pontos se aproxima da temática da contemplação acima apresentada.
A obra, e também a trajetória de vida da filósofa, testemunham seu projeto de unir a
busca pela verdade à ação eficaz (Bosi, E., 2003). Para tanto, o fazer marcado pela angústia da
pressa e do consumo precisa ser vencido pela perseverança do olhar que ama aquilo que olha.
Esse é o significado da atenção para Weil (1947/1993):
Método para compreender as imagens, os símbolos, etc. Não tentar
interpretá-los, mas olhá-los até que jorre a luz. De maneira geral, método de
exercer a inteligência que consiste em olhar. (...) A condição é que a atenção
seja um olhar e não um apego (p. 131).
O ego é chamado, portanto, a sacrificar seu apego às coisas e a si para que possa
ampliar suas possibilidades de compressão. Nesse processo de desapego, os pensamentos
prévios são sacrificados e o sentimento de realidade pode se tornar mais intenso. Assim, ao
153
retrair-se para melhor agir, o ego pode participar das forças cósmicas que o transcendem
(Bosi, E., 2003; Weil, 1949/2001).
Segundo Alfredo Bosi (1993), Simone Weil aprendeu com seu mestre Alain a
reconhecer a atenção como a força que permite à práxis não naufragar no mar de ilusões do
ego preenchido apenas por si mesmo. Aprofundando esse caráter de despojamento como
dimensão estrutural da atenção para Weil, escreve o autor:
A atenção é uma escolha, logo, uma ascese. Quem prefere, pretere. O mesmo
movimento do espírito que vai ao encalço dos seres esvazia-se dos caprichos
do ego enceguecido que, na reveladora expressão da linguagem coloquial,
“não quer nem saber”. A atenção, ao contrário, tudo sacrifica para ver e
saber. O desapego liberta os olhos das ilusões compensadoras entre as quais
são particularmente cativantes e tenazes as que lisonjeiam o amor-próprio
(pp. 84-5).
A práxis acompanhada pelo olhar atento configura-se então como via privilegiada para
que a pessoa possa superar o amor-próprio e transformar-se a partir do impacto com a
realidade. E é justamente esse processo que apreendemos na dinâmica de elaboração dos
sujeitos que entrevistamos: atentos ao seu fazer, eles podem colher solicitações presentes em
situações circunscritas, solicitações que direcionam e ampliam seu olhar. Em sua ação
voluntária, eles se posicionam de modo a dar espaço às provocações da experiência, abrindo-
se para rever valores, preconceitos, posturas, visões de mundo, e para reafirmar o que buscam
expressar e cuidar em sua ação.
Assim, impactados pela ampliação dos sentidos apreendidos na ação voluntária, os
sujeitos colhem provocações permitindo que elas alarguem seus horizontes de compreensão e
que os modifiquem pessoalmente, pois, na transformação de concepções e posicionamentos a
partir de uma situação circunscrita, é a pessoa inteira que está se transformando.
4. A ação voluntária como relacionamento e participação
4.1. A centralidade dos relacionamentos na experiência de voluntariado
Nas elaborações que os sujeitos nos relatam, apreendemos a centralidade do
relacionamento com o outro na constituição da ação voluntária. Compreendemos que, para
eles, sua ação somente pode ter ressonância e impacto no mundo se incluir o cuidado com as
154
relações estabelecidas, seja com as pessoas a quem essa ação se dirige, seja com os
companheiros com quem se realiza a ação.
Trabalhando voluntariamente, os sujeitos se surpreendem no encontro com o outro e,
seguindo os convites que colhem nessa experiência, empenham-se na constituição de
relacionamentos pessoais nos quais se evidenciam sua comoção diante do outro, sua
consideração por ele e sua disposição tanto para aprenderem quanto para ensinarem. Diante
do outro, o “eu” não fica parado.
Provocados na convivência com o outro, os sujeitos também reelaboram o modo como
agem voluntariamente e colhem aprendizados que se tornam referência, inclusive em outros
contextos de suas vidas. Nesse processo, os sujeitos também nos expressam a realização de si
ao se abrirem para a vivência de relacionamentos renovados, em que todos são considerados
em sua singularidade e humanidade.
Dialogando com Stein (1917/2005b), podemos ampliar nosso horizonte de compreensão
retomando a descrição da vivência da empatia, isto é, na percepção imediata do outro
enquanto pessoa, um “outro eu” formado de corpo, psique e espírito, capaz de agir no mundo.
Explicitar essa modalidade de vivência permite desvelar como o relacionamento tem como
fundamento originário o fato de que os seres humanos se reconhecem mutuamente enquanto
sujeitos, simultaneamente diferenciados e semelhantes.
Nesse sentido, afirmamos a importância da alteridade na constituição da subjetividade,
na medida em que, no relacionamento pessoal, o olhar do outro convida a pessoa a olhar para
si mesma e a se posicionar. Assim, é no relacionamento que o sujeito se constitui por
responder, de modo próprio, às provocações solicitadas nessa relação, podendo ampliar a
consciência de si mesmo.
A respeito da constituição da pessoa nesse intercâmbio constante entre interior e
exterior, Stein (1930/2003b) ressalta, ainda, que é somente crescendo como membro de
coletividades que a pessoa pode ver florescer aquilo que lhe é mais característico. Em outras
palavras, embora não seja inteiramente determinada por seu contexto social, a pessoa precisa
fazer parte de um grupo humano para poder ser mais si mesma.
Voltando às contribuições de Frankl (1986), podemos avançar nessa discussão a partir
da compreensão de como a percepção do outro como pessoa, como um ser presente, único,
permite a constituição de relações em que o sujeito não capta “apenas o que a pessoa ‘é’ (…),
mas também e simultaneamente o que ela pode vir a ser” (p. 191).
Assim, uma relação em que prevalecem os laços de amor, o sujeito se mobilizado a
transformar-se para poder viver concretamente o ideal que a relação solicita. Saber-se
155
envolvido num relacionamento pessoal encoraja-o a explorar a existência com mais
segurança, a buscar o próprio crescimento, a querer ser uma pessoa melhor.
Com essas considerações, podemos melhor compreender como, na experiência de
voluntariado, a presença do outro e as solicitações apreendidas nesse relacionamento são
essenciais tanto para a apreensão dos sentidos do gesto quanto nos modos de concretizá-lo no
mundo.
Apreendemos, assim, como a ação voluntária pode se constituir como via privilegiada
para uma modalidade de convivência em que os sujeitos são provocados a reconhecerem o
outro enquanto um ser humano singular, com necessidades a serem consideradas e
respondidas, com potencialidades a serem desenvolvidas, com arestas a serem lapidadas. Em
síntese, uma modalidade de convivência em que todos podem ser reconhecidos como pessoa,
podem aprender e ensinar, podem se transformar e, por isso, vivenciar a realização de si.
4.2. Da ressignificação dos obstáculos à vivência da gratidão
Ao caracterizar os relacionamentos renovados que podem emergir no âmbito da
experiência de voluntariado, não estamos pressupondo que os problemas não existam ou
sejam desconsiderados. A consciência dos obstáculos à concretização da ação voluntária e à
constituição dos relacionamentos interpessoais é evidente para os sujeitos: existem
dificuldades físicas e erros para Telma; percalços e melindres para Olívia; queixas e
turbulências para Shirley; trabalho ao lidar com as mães para Márcia.
A evidência das dificuldades, entretanto, não é o que as determina: elaborando suas
experiências, elas tiram o foco do obstáculo por si mesmo e buscam colher o que ele está
indicando. Nesse movimento, os sujeitos podem perceber, inclusive, que o obstáculo exalta a
beleza, a grandiosidade e o valor do sentido do gesto. Como corolário, emerge a vivência da
gratidão: os limites reforçam o reconhecimento da ação voluntária como oportunidade de
crescimento pessoal e os sujeitos são gratos por isso.
Para dimensionar tal vivência de gratidão a partir do reconhecimento de obstáculos à
ação, retomamos o diálogo com Husserl (1924/2006b) em seu ensaio Renovação como
problema ético-individual.
Vimos como o fenomenólogo demonstra que, para a constituição de posicionamentos
éticos, é imprescindível direcionar a ação a partir dos juízos dados sobre o que é
156
correspondente na experiência. Husserl (1924/2006b) denomina de valores positivos” tudo o
que é reconhecido como correspondente, realizador da pessoa, argumentando:
À essência da vida humana pertence, ademais, que ela se desenrole
continuamente sob a forma do esforço; e, por fim, ela toma constantemente,
com isso, a forma de um esforço positivo, e está dirigida, portanto, para a
consecução de valores positivos. Porque todo o esforço negativo, a saber, o
esforço para se afastar de um desvalor (por exemplo, a dor “sensível”), é
apenas um ponto de passagem para o esforço positivo (…) Em suma, o
sujeito vive na luta por uma vida “plena de valor”, assegurada contra
sobrevenientes desvalorizações, contra o desmoronamento ou o
esvaziamento de valores, contra as decepções, numa vida que sempre se
eleva no seu teor de valor o sujeito vive para uma vida que possa obter
uma satisfação global continuamente e segura (pp. 43-4).
Problematizando este reconhecimento da prevalência dos valores positivos, Husserl
(1924/2006b) avança na discussão demonstrando a inevitabilidade das frustrações e negações,
pois todo o esforço empreendido na busca de concretizar um bem pode se mostrar inútil.
Entretanto, a decepção pode mobilizar a crítica e a dor sentida na frustração reafirma a
radicalidade da busca por satisfação plena. Assim, frente ao drama das negações vividas na
experiência, a dinâmica propriamente humana é por ir além delas, é por buscar um horizonte
sempre mais amplo. Em síntese, a frustração configura-se como um estado provisório, pois o
ímpeto humano é por captar o que vale, é por empenhar-se na realidade para concretizar o que
é apreendido como positivo.
Desse modo, desvela-se a importância da reflexão sobre o ímpeto por realização total de
si para que se possa conceber a possibilidade de enfrentar as frustrações que fazem parte do
caminho. Se não existe clareza quanto a essa realização buscada em cada ação, o sujeito se
prende ao que consegue fazer, chegando a uma posição insustentável dada sua inevitável
fragilidade. Num horizonte assim restrito, o erro é encarado fatalmente como o fim do
percurso. Por outro lado, o empenho com cada pequeno aspecto do real e a abertura para
encarar as frustrações como passageiras somente podem se sustentar se o sujeito pautar sua
ação na afirmação de valores perenes que guiam ao infinito (Mahfoud, 2008).
A partir dessa discussão, compreendemos com maior clareza como os sujeitos podem
ser gratos diante do reconhecimento de limitações. Entendemos que o ponto está em levar a
sério a provocação e o sentido da ação voluntária, o que lhes permite encarar o drama dos
obstáculos sem paralisarem-se diante deles. Ligando-se aos valores que apreendem como
correspondentes, cada um se empenha de modo criativo para superar entraves e abre-se para
as possibilidades de crescimento pessoal indicadas pela experiência.
157
4.3. Agir é participar de uma obra maior
Na expressão da gratidão diante das dificuldades, apreendemos como a ação voluntária,
para os sujeitos entrevistados, não se prende àquilo que eles efetivamente fazem ou são
capazes de fazer. Essa mesma percepção emerge, como surpresa, na apreensão do contraste
entre os inúmeros limites presentes na realidade e a amplitude dos resultados alcançados a
partir da ação voluntária. Nesse processo, os sujeitos vislumbram que sua ação se insere num
horizonte maior: o agir emerge então como uma oportunidade que lhes foi dada e eles se
sentem realizados e gratos por poderem fazer parte de algo que os supera e corresponde.
Assim, Olívia agradece por poder participar do trabalho de Jesus e Telma, por poder
continuar servindo à Casa. Shirley entende que está apenas lançando sementes para que o
mundo de regeneração venha mais rápido e Márcia, que os Espíritos atuam fazendo com que
o banho não seja só um banho.
Vimos com Wojtyla (1982) como a ação não é solitária: a pessoa age junto a outros. A
ação se insere num horizonte humano, revelando tanto um aspecto individual quanto um
aspecto social. Como a ação revela a pessoa, Wojtyla (1982) destaca a dimensão
intersubjetiva presente na estrutura propriamente humana, denominada por ele participação.
Mais do que simplesmente “fazer parte de”, participar é compartilhar em ato a sua
pessoa com o outros, constituindo vínculos comunitários que podem ser solidários, isto é, que
se fundamentam no reconhecimento de um bem comum que orienta e possibilita as relações.
Nicolas Berdiaeff (1936/1982) nos auxilia a entender a radicalidade da participação
no nível da consciência. Não obstante o caráter íntimo e pessoal da consciência, a sua
realização no mundo é de caráter social, tornando possível a compreensão e a comunicação
mútua. Portanto, a realização da consciência no mundo é também uma socialização, que se
concretiza de acordo com o modo de organização e articulação de cada comunidade.
É nesse sentido que o autor afirma que a comunidade se encontra em um nível básico da
experiência humana, posto que estrutura a pessoa em seu mundo. A existência do homem
implica o relacionamento do “eu” com o “outro” em um mundo: a condição para que a pessoa
exista é ter sempre presente um “tu” e um “nós”. Como corolário, para se realizar, a pessoa
supõe a comunidade e esta, por sua vez, supõe a comunhão entre seus membros para que
possa ser estável.
Aprofundando a temática da comunhão, Berdiaeff (1936/1982) esclarece que ela não
pode ser função do Estado, não pode emergir de processos puramente formais, pois se
entre homens que, juntos, miram sempre um algo maior, a transcendência. Assim, somente se
158
pode realizar a comunhão se se concebe um “tu” em relação com um outro “eu” e a comunhão
entre “eu” e “tu” forma um “nós”. A comunhão é participação, participação recíproca, “inter-
penetração”. Uma participação que realiza a unidade da pessoa e realiza a unidade da relação
entre “eu” e “tu” na medida em que, compartilhando a vida, pode-se reconhecer valores que
lançam um horizonte de totalidade e de verdade. E é o reconhecimento compartilhado desses
valores que permite ao homem reconhecer-se como instrumento de algo maior, do qual ele faz
parte.
Fazer parte: Wojtyla (1982) e Berdiaeff (1936/1982) nos apontam como participar
significa compartilhar a própria pessoa com outros, compartilhar valores que se dirigem a
horizontes de totalidade, compartilhar a percepção de agir no mundo em função de algo
maior. Trata-se de um processo em que, na unidade com o outro, o “eu” se afirma e realiza ao
reconhecer-se como partícipe, instrumento.
Com tal definição, retornamos à experiência dos sujeitos podendo compreender melhor
como eles articulam a gratidão frente a algo que os supera ao ímpeto por agirem. Sentindo-se
integrados numa obra que ultrapassa o seu raio de atuação, compreendemos que eles se vêem
impelidos a auxiliar, apreendem o dever de darem sua contribuição própria para que essa obra
se concretize no mundo. Trata-se de um movimento em que, imprimindo no mundo a sua
contribuição particular, os sujeitos, a um só tempo, realizam a unidade de uma relação
reconhecida como correspondente e se realizam como pessoa.
4.4. Na ação compartilhada, constitui-se a comunidade
Concebendo a ação voluntária como participação numa obra maior, os sujeitos a
reconhecem, ainda, como gesto a um só tempo pessoal e compartilhado: é preciso que muitos
se unam para que a tarefa aconteça. Entretanto, não se trata de um mero conglomerado de
pessoas que se aproximaram para executar um objetivo, pois os sujeitos sentem pertencer a
um grupo, vivem a experiência de um “nós”, como nos dizem Olívia e Márcia, de uma
“família” para Telma ou, “equipe” para Shirley.
Um grupo marcado não pela homogeneidade de crença ou de personalidade, mas sim
unido pelo mesmo ímpeto, o mesmo desejo de se doar ao outro. Um grupo que, na vivência
dos sujeitos, ultrapassa as barreiras do fazer juntos, abarcando relações de afeto e a
consideração de cada pessoa em seu aspecto singular. Envolvidos na totalidade da sua pessoa,
159
compreendemos que os sujeitos se realizam ao compartilharem sua ação voluntária, num
processo que consolida vínculos cada vez mais estreitos e fortalecidos.
Vimos com Stein (1930/2003b, 1922/2005) o caráter orgânico de formação da
comunidade, que se realiza na disponibilidade para o relacionamento recíproco e no
posicionamento próprio de cada sujeito que contribui para a constituição de vínculos onde
cada um é considerado em sua pessoalidade. Tais vínculos, por sua vez, estimulam e
sustentam os indivíduos que fazem parte da comunidade, possibilitando que as pessoas
envolvidas sejam “si mesmas” nos relacionamentos em questão.
Discorrendo sobre a dinâmica da vida em comunidade, Stein (1930/2003b) afirma que,
vivendo com seus semelhantes, a pessoa
aprende a pensar, sentir e trabalhar, cresce como membro da comunidade,
porém ao mesmo tempo, também como indivíduo, pois a natureza individual
que traz consigo ao mundo começa a fazer se sentir, vive e se ocupa nos atos
em que ele realiza na e com a comunidade e lhe conferem sua característica
pessoal. Pelo fato de que um novo membro cresce na comunidade e se
desenvolve como um membro seu, a comunidade mesma experimenta uma
transformação e um desenvolvimento dinâmico. Deste modo, crescem e se
desenvolvem a comunidade, a qualidade de membro e a individualidade (p.
132).
Simone Weil (1949/2001) também lança luzes sobre a importância da constituição de
meios sociais capazes de formar a pessoa por meio da descrição do “enraizamento” como uma
das necessidades mais importantes da alma humana. Segundo a autora, uma pessoa encontra-
se enraizada quando participa real, ativa e naturalmente de uma coletividade que conserva, de
modo vivo, riquezas do passado e intuições de horizonte de futuro. São essas raízes que
constituem o ser humano, uma vez que ele “precisa receber a quase totalidade de sua vida
moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos meios dos quais faz parte naturalmente”
(p.43).
Dadas as contribuições de Weil (1949/2001) sobre a radicalidade do enraizamento, e de
Stein (1930/2003b, 1922/2005) sobre a importância da comunidade, podemos apreender, nos
laços de afeto e no compartilhamento de experiências a nós comunicados pelos sujeitos
entrevistados, a constituição de verdadeiras comunidades. Comunidades nas quais os sujeitos
se transformam mutuamente e se posicionam pessoalmente, reconhecendo a singularidade e o
valor de cada um. Comunidades capazes de enraizar as pessoas que a elas se vinculam, uma
vez que oferecem subsídios que permitem a seus membros elaborarem sua experiência
160
“Eu tenho aqui uma família”, diz Telma, sintetizando uma vivência comum às demais
entrevistadas e indicando-nos o reconhecimento da força desses laços comunitários que os
unem e os mobilizam a cuidar para que essa comunidade perdure.
5. A ação voluntária como abertura ao relacionamento com presenças transcendentes
Os relacionamentos se mostram centrais na experiência de voluntariado dos sujeitos que
encontramos e, dentre esses relacionamentos, um se destaca como especial. Olívia, Telma,
Márcia e Shirley, todas elas reconhecem que são acompanhadas e sustentadas pela
Espiritualidade, isto é, por presenças transcendentes que atuam de modo providencial sobre a
realidade. Atribuindo tais intervenções a entidades individualizadas e benfeitoras, os sujeitos
buscam constituir relacionamentos pessoais com essas entidades percebidas como
companhias. Nos depoimentos, eles fazem referência a Deus, a Jesus e à Espiritualidade,
sendo esta última a interlocutora mais constante.
Apreendemos nesse movimento a configuração de relacionamentos de fé, nos quais os
sujeitos constroem o diálogo por meio da oração e do pedido e reconhecem mudanças no
curso dos acontecimentos como respostas que lhes são dadas. Respostas que, como nos
mostra Shirley, podem não atender exatamente ao que foi solicitado, mas sempre se
constituem como intervenção benéfica, que a pessoa reconhece como correspondente por
orientar-se em favor do critério que fundamenta o pedido. E, tendo a certeza de serem
beneficiados pelas presenças transcendentes que operam transformando o mundo, os sujeitos
também se vêem solicitados a agir, a dar a sua resposta como contribuição à obra dos
benfeitores.
Comprometendo-se com essa obra que os ultrapassa por meio de sua ação voluntária, os
sujeitos apreendem que os resultados de sua ação são potencializados pela intervenção
superior e reconhecem que conseguem persistir na tarefa porque são fortalecidos. Sentindo-se
gratos pelas oportunidades que lhes são dadas, eles se realizam nesse processo por se
perceberem amparados e por vislumbrarem que estão progredindo no caminho que mais
corresponde a eles mesmos e ao ideal que carregam.
Tal articulação entre experiência religiosa e ão voluntária, apreendida por Olívia,
Telma, Márcia e Shirley em suas vivências cotidianas na tarefa, é também uma proposta do
161
contexto sociocultural da Casa Espírita, sugerindo-nos a íntima relação entre concepções que
a instituição formaliza em orientações e aquilo que os sujeitos vivenciam em seu cotidiano.
Vimos a partir das elaborações de Giussani (2009) que a experiência religiosa se
fundamenta no senso religioso: capacidade de abertura da razão que se exprime em certas
interrogações radicais e inextirpáveis que emergem na experiência e solicitam uma resposta
total. A evidência estrutural da inexauribilidade das perguntas não aplaca a busca humana por
tentar respondê-las. Pelo contrário, a percepção existencial dessa desproporção dinamiza cada
vez mais o motor humano, evidenciando como a natureza do ser humano é espera por resposta
total, calcada na promessa que a vida solicita, e é exigência de ser-em-relação com algo que o
supera e o constitui profundamente em cada aspecto concreto da vida.
Trata-se, portanto, de uma dimensão humana radical que é despertada existencialmente
quando a pessoa, por meio do exercício de sua razão, abre-se à totalidade dos fatores e aceita
maravilhada as provocações que daí advêm. Reconhecendo-se parte dessa presença que lhe é
dada e que lhe atrai, a pessoa percebe o caráter providencial presente na realidade, isto é,
percebe que a realidade é ordenada e “se move segundo um desígnio que lhe pode ser
favorável” (p. 160, grifo do autor). O reconhecimento dessa providência provoca letícia,
gratidão e solicita o sujeito a se perguntar sobre quem fez e continua fazendo tudo isso,
inclusive a si mesmo.
Trata-se da intuição, que em todos os tempos o espírito humano mais agudo
teve, dessa misteriosa presença pela qual a consistência do seu instante, do
seu eu, é possível. Eu sou “tu-que-me-fazes”. que este “tu” é
absolutamente sem rosto; uso a palavra “tu” porque é a menos inadequada,
na minha experiência de homem, para indicar aquela presença incógnita que
é incomparavelmente maior do que a minha experiência de homem. Que
outra palavra deveria usar? (p. 162, grifo do autor).
Está nesse movimento a raiz que permite ao ser humano intuir o sinal da presença de um
Ser transcendente do qual tudo e todos dependem. Esta é a base sob a qual se estrutura a
experiência religiosa, que se constitui enquanto tal na resposta concreta do sujeito a tais
perguntas últimas estabelecendo um relacionamento com a Presença transcendente,
surpreendente, totalizante, solicitadora, reconhecida como fonte de sentido (Giussani, 1997,
2002, 2008, 2009; van der Leew, 1933/1964).
Vimos também com Giussani (2001d e 2009) que o eu se expressa e se conhece em
ação. É agindo que as capacidades do eu se revelam, que suas exigências constitutivas se
expressam em toda a sua potência e unidade. O trabalho, entendido como energia que opera
162
transformações segundo um desígnio, constitui-se como uma ocasião privilegiada de ação que
pode expressar o ser pessoa em sua totalidade.
Para Giussani (2001a), a ação pode criar obras somente na medida em que busca
responder sistematicamente a uma necessidade vital que solicita o ser humano. E o verdadeiro
trabalho é aquele que consegue exprimir a autêntica natureza humana: sua relação com o
infinito. “Esse horizonte maior deve presidir cada atividade humana; caso contrário, sua
atividade restringe-se como gestão do real” (p. 112). Portanto, é o trabalho que coloca a
pessoa em relação com o destino e com Deus. É por isso que “o trabalho é a oração real, e não
existe oração que não seja trabalho, que não exprima um trabalho” (p. 103).
É nesse sentido que o senso religioso é concebido como a razão de todo o agir, pois é
por via da ação que a pessoa pode atender à necessidade concreta fundamentada em suas
exigências constitutivas, conectando-a ao horizonte de totalidade apreendido na realidade.
Essa abertura ao infinito própria da dimensão religiosa tanto realiza a unidade da pessoa que
trabalha, tornando-a protagonista, quanto lhe permite partilhar seu trabalho junto a outros,
pois se compreende que todos são humanos e estão num mesmo caminho de realização.
O trabalho fundamentado no senso religioso também mobiliza a pessoa a questionar a
todo o instante se o modo como concretiza o gesto coincide com o ideal que carrega dentro de
si. Fazendo assim, ela é capaz de colher, em cada necessidade existencialmente presente, o
sentido de totalidade que a sustenta, podendo realizar, no gesto concreto, a sua missão pessoal
e o ideal de si e do mundo.
Para Giussani (2001a), é por amor ao infinito e com amor que se realiza plenamente
esse ideal em cada ação. No entanto, como nos adverte o autor:
Assim como não é possível nascer sozinho nem viver sozinho, não é possível
responder à própria necessidade seja ela qual for, até a mais singular –, a
não ser em uma companhia, a o ser com a ajuda de uma companhia.
Sozinhos não podemos enfrentar nenhuma necessidade de modo sistemático,
como exige a organicidade da nossa vida (p. 102).
Na experiência de voluntariado, a centralidade dessa companhia se faz presente de
modo explícito, pois o gesto de solidariedade solicita a pessoa a se perguntar por que adere e,
para Giussani (2001b), a adesão consciente é possível numa experiência de pertencimento.
É o fato de “pertencer que estrutura o ímpeto de generosidade e torna seus efeitos mais
permanentes” (p. 124). Assumir esse pertencimento significa inserir a própria ação num
horizonte maior e, se tal horizonte contempla o relacionamento com o transcendente, no gesto
163
de caridade o sujeito se doa gratuitamente buscando concretizar o ideal de Perfeição
vislumbrado em sua experiência religiosa.
Nesse sentido, a caridade vivida como expressão da religiosidade é marcada pela
segurança quanto ao horizonte em que o gesto se insere e pela certeza de que nada se perde.
Assim, o sujeito se mobilizado a levar em consideração a totalidade dos fatores; a ser leal
com o dado, com o que se lhe apresenta; a atender à necessidade acolhendo a pessoa; a
compreender o outro e a se comover com ele partilhando a vida; a ter paciência para suportar
as dificuldades. Além disso, a experiência de caridade concretizada em obras carrega a
potência de se estabilizar num habitus permanente e é vivida como uma abertura para todos os
âmbitos da experiência, tornando-se critério, compromisso e dever.
Com efeito, a caridade faz o ímpeto humano da solidariedade tornar-se
realmente imaginativo e criativo. Na caridade, a pessoa, movida pela
carência e pela necessidade com que a Providência a leva a deparar gera
obras justamente pelo fato de que sua ação não se limita ao particular
[detalhe] que o comove, mas tende a se encarregar, de maneira adequada,
melhor e mais justa, da totalidade do contexto. E a totalidade do contexto é
sem medida, tem como horizonte a própria totalidade do homem (p. 126).
E Giussani (2001b) conclui: “quanto mais um sujeito for vivo e consciente, quando
solicitado por qualquer necessidade, mais responderá segundo uma preocupação total, isto é,
segundo uma preocupação religiosa” (p. 126).
Com esse aprofundamento em múltiplos níveis da experiência religiosa, podemos
avançar na compreensão de como o emergir de perguntas radicais suscitadas no impacto com
a realidade mobiliza a pessoa a reconhecer Presença(s) de ordem superior e a buscar
relacionar-se com o transcendente inserindo sua ação em horizontes de totalidade.
A explicitação desse dinamismo permite-nos afirmar com maior segurança como a
experiência religiosa articula-se à ação voluntária no contexto sociocultural da Casa Espírita.
Compreendemos que a experiência religiosa é vivida intensamente pelos sujeitos, chegando a
ordenar sua apreensão da realidade e a fundamentar e direcionar sua ação voluntária. A
percepção do caráter providencial da realidade os realiza como pessoa, mobilizando-os a
buscar contribuir, com a totalidade da sua pessoa, para a concretização de um bem que supera
seus interesses imediatos. E esse bem que os ultrapassa também os abraça: eles se sentem
pertencentes a um horizonte totalizante, um horizonte cuja amplitude lhes permite dar a sua
contribuição sem se prenderem aos resultados concretos do seu gesto. Um horizonte, portanto,
que os convida a ampliar o olhar sobre a ação e sobre o que ela indica, convida-os a se
perguntarem sobre o sentido da realidade e sobre o modo como têm se orientado nela.
164
Em síntese, a compreensão de como Olívia, Telma, Márcia e Shirley elaboram sua
experiência permite-nos afirmar como, no contexto sociocultural da Casa Espírita, a ação
voluntária é vivida como abertura para a experiência religiosa, pois, doando-se ao outro em
gestos concretos, os sujeitos reconhecem que sua ação é sustentada por presenças
transcendentes e direcionada à afirmação de um horizonte absoluto.
6. A ação voluntária e o contexto sociocultural: processo de mútua constituição
6.1. A experiência-tipo de voluntariado na Casa Espírita
A partir da discussão das categorias apreendidas, é chegado o momento de sintetizar a
experiência-tipo de voluntariado na Casa Espírita.
Atentos à dinâmica da experiência de voluntariado dos sujeitos que entrevistamos,
compreendemos como sua ação voluntária apresenta-se como uma doação de si ao outro na
qual os sujeitos se empenham, com amor e por amor, para concretizar algo que apreendem
como valor. Trata-se de uma ação que, expressando a totalidade da pessoa, é vivida pelos
sujeitos como realização de si, como correspondência ao seu núcleo.
Elemento estruturante da experiência de voluntariado, a vivência da realização de si
orienta a ação, potencializando seu caráter de espera e dever, espera de que a correspondência
se perpetue e dever de comprometer-se pessoalmente com os sentidos dessa ação voluntária.
Os juízos dados a partir dessa experiência de expressar-se e realizar-se ao agir
voluntariamente mobilizam os sujeitos a reelaborarem suas motivações e a se abrirem para as
provocações que constantemente emergem na experiência, num círculo virtuoso em que se
fortalecem e dinamizam os juízos dados e o empenho na ação.
Assim, a experiência de voluntariado configura-se como abertura que considera ação e
contemplação: agindo para transformar o mundo, a pessoa se comove, amplia horizontes de
compreensão, transforma a si mesma e se realiza nesse processo de reformar-se interiormente.
A ação voluntária, profundamente pessoal, é também compartilhada. A presença do
outro, reconhecido como pessoa, solicita tanto a rever posicionamentos quanto a cuidar dos
relacionamentos. A experiência de um nós, com seus conflitos e correspondências,
fundamenta-se em vínculos comunitários, favorecendo que a ação voluntária tenha
ressonância no mundo. Reconhecendo-se como partícipes de uma obra que os supera, os
165
sujeitos buscam dar a sua contribuição pessoal para a concretização dessa obra que os
corresponde e, nesse processo, sentem-se gratos e realizados.
Para os sujeitos, trata-se de uma obra na qual operam também outras mãos: com a
certeza quanto à companhia de presenças transcendentes que intervêm providencialmente na
realidade, eles se percebem amparados e mobilizados a continuarem trabalhando
voluntariamente. Nesse quadro, a ação voluntária apresenta-se como sustentada e guiada pela
experiência religiosa: embora distintas, essas duas experiências não são dissociadas nas
elaborações dos sujeitos.
6.2. Experiência-tipo e contexto sociocultural
A experiência de voluntariado que investigamos se em um contexto sociocultural
específico, o que nos provoca a ampliar as considerações sobre sua constituição. As
considerações advindas da análise das elaborações dos sujeitos que entrevistamos sintetizam a
típica experiência de voluntariado, ou experiência-tipo, nesse contexto sociocultural. A
compreensão até aqui alcançada parte fundamentalmente da perspectiva dos sujeitos da
experiência e, para complementar a visada sobre o fenômeno do voluntariado em uma
instituição espírita, passamos agora à reflexão sobre este fenômeno contemplando-o a partir
da perspectiva da proposta sociocultural dessa instituição.
Adentrando o contexto da instituição investigada, a qual denominamos Casa Espírita,
foi-nos possível apreender a íntima relação entre seu caráter religioso e assistencial. Por um
lado, todas as atividades, mesmo as de conotação fortemente religiosa, são propostas como
tarefas, isto é, como um trabalho voluntário que exige compromisso e disciplina. E, por outro,
concebe-se que as atividades de cunho assistencial são acompanhadas pela atuação de
presenças transcendentes que operam visando à transformação espiritual de todos os
envolvidos. Nesse processo, espera-se que o agente comprometa-se com o ser humano, isto é,
que priorize a pessoa em todas as suas ações, seja buscando acolher e ajudar da melhor forma
todos que buscam auxílio, seja colaborando para a integração fraterna dos grupos de trabalho,
seja investindo no próprio processo de crescimento intelectual e moral. Na formulação de tais
orientações, valoriza-se a fundamentação no Evangelho tomado à luz da Doutrina Espírita, a
formação adequada e a disciplina na sistematização das atividades, pois a conjugação desses
três aspectos é entendida como via privilegiada para o alcance dos objetivos pretendidos. Por
166
fim, ressaltamos como essa preocupação com o rigor alia-se à atenção, à experiência e à
abertura para compartilhar a totalidade da vida.
Correlacionando as propostas apreendidas no contexto sociocultural da Casa Espírita à
compreensão das elaborações de sujeitos que trabalham voluntariamente e que, por seu
empenho, são tidos como figuras de referência nessa instituição, percebemos como a
experiência dessas pessoas articula-se profundamente ao contexto em que estão inseridas. A
concepção da ação voluntária como compromisso e doação de si, a importância dada à
transformação pessoal e aos relacionamentos, a certeza quanto à existência de presenças
transcendentes que intervêm na realidade, todos esses são elementos essenciais da proposta
sociocultural da Casa Espírita e da elaboração que os sujeitos fazem de sua experiência de
voluntariado.
Compreendemos tal correspondência entre o que é proposto e o que é vivido como sinal
do seu processo de mútua constituição. Podemos vislumbrar, por um lado, que o contexto
sociocultural constitui-se como pleno de propostas que convidam as pessoas a agirem
pautadas nos aspectos tidos como centrais para o trabalho voluntário numa instituição espírita
e elas, verificando tais propostas em sua experiência, aderem ao que lhes corresponde,
repropondo de modo criativo às demais o que reconhecem como valor. Por outro lado, os
sujeitos vivenciam a ação voluntária como realizadora de si em múltiplos níveis e, atentos às
provocações da experiência, colhem os elementos que se evidenciam como nucleares.
Buscando cuidar desses elementos, eles se empenham para transformar o contexto de modo
que aquilo que foi apreendido na experiência se formalize em orientações institucionais para
todos.
A Fenomenologia husserliana nos auxilia a apreender o dinamismo de mútua
constituição entre contexto sociocultural e pessoa por meio do conceito de mundo-da-vida
(Ales Bello, 1998; Zilles, 1996, 1997). Trata-se do mundo histórico-social concreto, habitual,
estável e pré-reflexivo, baseado na experiência pessoal e coletiva, que possibilita que o sujeito
lide com o real de modo integrado à experiência compartilhada. Nesse sentido, o mundo-da-
vida, ao mesmo tempo em que propõe recortes sobre como encarar a realidade, não prescinde
do posicionamento do sujeito, que toma de modo próprio o que lhe é dado, contribuindo para
a constituição da sua pessoa e do mundo que o cerca (Husserl, 1954/2008; Schutz cf. Wagner,
1979). O mundo-da-vida tem o homem como centro, ancorando-se numa antropologia a
priori. Nesse sentido, o mundo-da-vida pode se articular de diferentes maneiras, favorecendo,
ou não, o desenvolvimento da pessoa em seus múltiplos veis: corpóreo, psíquico e
espiritual.
167
Assim como o mundo-da-vida, é preciso considerar o mundo da cultura, analisado
fenomenologicamente desde o seu interior. Nesse sentido, não como desvincular a cultura,
composta “pela mentalidade, pela forma de orientação, pelas expressões e produtos próprios
de um grupo humano” (Ales Bello, 1998, p. 42), do posicionamento do sujeito que a constitui
e que é por ela possibilitado. Embora possa se tornar abstrata, é fundamental que a cultura se
articule organicamente ao mundo-da-vida de modo que os percursos oferecidos pela proposta
cultural favoreçam que a pessoa elabore sua experiência levando em consideração toda a sua
estrutura humana.
Como vimos, Grygiel (2002) destaca que não é qualquer posicionamento que constitui
cultura. É preciso que tal tomada de posição coincida com o centro da pessoa, com a sua
“consciência moral”. O verdadeiro homem de cultura é aquele que se relaciona com a
realidade perguntando sobre o sentido do que está implicado nesse relacionamento;
respeitando e confiando na dinâmica ordenada por ele apreendida; e agindo pessoalmente de
modo a favorecer que tal dinâmica se expresse e se desenvolva cada vez mais.
A partir das contribuições acima descritas, apreendemos como, na Casa Espírita, a
mútua constituição entre pessoa e contexto sociocultural se fundamenta em um mundo-da-
vida complexo e pleno de significado. Pleno de significado porque é um mundo-da-vida capaz
de favorecer que as experiências sejam pessoais e compartilhadas, de constituir a pessoa em
seus múltiplos níveis e de contemplar um horizonte de totalidade correspondente à
experiência ali vivida. Compreendemos que a força com que os elementos essenciais
elencados estruturam a elaboração da experiência dos sujeitos, incidem nas propostas da
instituição e no modo como são apresentadas, é indicativo de que tais elementos são basilares
nesse mundo-da-vida.
As propostas presentes no contexto dessa instituição configuram-se como cultura na
medida em que comunicam e encarnam uma visão de mundo compartilhada por um grupo e
que contribui para e é fruto do posicionamento do sujeito. Trata-se de um contexto a um
tempo estruturado e aberto a novas solicitações, pois permanece o modo pessoal como os
sujeitos propõem, realizam e elaboram sua ação voluntária. Portanto, o mundo-da-vida se
conecta intimamente às propostas culturais presentes nessa instituição, favorecendo que a
pessoa elabore sua experiência e aja no mundo de modo integrado. Nesse sentido, é uma
cultura que respeita o posicionamento da pessoa e é vivida como fonte de realização pessoal.
Podemos então compreender que as propostas dessa instituição constituem-se como cultura
no sentido profundo do termo, pois correspondem àquilo que é mais nuclear à pessoa ao
evidenciarem a centralidade conferida ao ser humano, seja na força da doação de si expressa
168
pelos sujeitos, seja no empenho por considerar o outro como pessoa, acolhendo-o em todas as
suas dimensões.
Por fim, dialogando com as elaborações de Berger & Luckmann (2004), podemos
apreender que essa instituição por nós analisada é tomada pelos sujeitos como mediadora
entre sua vida pessoal e âmbitos mais amplos da vida social. Trata-se então de uma
“instituição intermediária” por se apoiar em um rico mundo-da-vida que propõe um horizonte
de totalidade, por oferecer oportunidade dos sujeitos contribuírem para a formação da
sociedade, e por contribuir para a construção do acervo social de sentido.
6.3. A ação voluntária realiza a pessoa: provocações a ampliar o olhar
Por tudo o que foi descrito e discutido até aqui, compreendemos que, no processo de
mútua constituição entre pessoa e contexto sociocultural, a experiência de realização de si
emerge como fator fundamental que o dinamiza e vitaliza.
Seja descrevendo o processo a partir da proposta que é acolhida, seja partindo da
experiência que se transforma em proposta, a realização de si emerge como inseparável do
empenho dos sujeitos para se doarem na ação voluntária. Vivida na ação mesma que expressa
a pessoa, nos relacionamentos, na percepção da própria transformação pessoal, na certeza
quanto à intervenção providencial de presenças transcendentes e no reconhecimento de ser
partícipe de uma obra maior, a realização de si é potencializada pelo juízo dado sobre essa
vivência, juízo que a converte em experiência. Mobilizando os sujeitos a dedicarem-se para
que tal experiência perdure, o juízo favorece que eles se abram continuamente a novas
solicitações, ampliando a gama de possibilidades de realização e alargando horizontes de
compreensão dos sentidos da ação voluntária, de si e da vida como um todo.
Na descrição desse percurso que abarca ação, juízo, reflexão e transformação, vemos
evidenciado como a realização de si dinamiza e vitaliza o posicionamento dos sujeitos que
trabalham voluntariamente e, justamente por isso, dinamiza e vitaliza o contexto sociocultural
em que eles agem, uma vez que esse contexto se constitui a partir do posicionamento dos
sujeitos que o integram. Com tal compreensão de que a Casa Espírita estrutura suas propostas
em princípios que são vivenciados como correspondentes pelos sujeitos em suas experiências
cotidianas de voluntariado, chegamos à delimitação de como essas propostas possam se
169
apresentar a nós como capazes de expressar seu objetivo primeiro: o compromisso com o ser
humano.
Tal compreensão sobre o lugar da realização de si nas experiências de voluntariado no
contexto sociocultural de uma instituição religiosa espírita convida-nos a comparar os
resultados que alcançamos com estudos acadêmicos atuais que se debruçam sobre a temática
do voluntariado.
Quanto aos estudos que analisam a relação entre o voluntário e o contexto em que ele se
insere, vimos que parte das investigações critica posições que reduzem a motivação e o
engajamento aos motivos colhidos na história pregressa dos sujeitos e às razões alegadas
pelos próprios voluntários, ressaltando a importância de olhar para a experiência (Barros,
Pinto & Guedes, 2006; Sampaio, 2004; Silva, 2006). Há ainda uma pesquisa sobre os aspectos
característicos da personalidade do voluntário (Dockhorn, 2007).
Em nosso processo de pesquisa, apreendemos a importância de considerar a realização
contida na ação voluntária, posto que ela se revelou como central na elaboração que os
sujeitos fazem de sua experiência. Essa realização, que se refere tanto à concretização no
mundo de algo que se reconhece como valor quanto à realização de si ao trabalhar, solicita a
pessoa a se perguntar sobre o sentido da ação, o sentido da sua pessoa e o sentido da vida
mesma. Por todo o exposto até aqui, podemos afirmar o quanto a realização se revela
primordial para a compreensão da experiência de voluntariado, permitindo que nos
aproximemos das razões pelas quais as pessoas persistem nesse tipo de trabalho sem receber
monetariamente por isso.
Assim, confrontando nossos resultados com as produções científicas brasileiras,
endossamos a crítica de que a pura ênfase nos motivos, tomados por si mesmos, leva à
redução da experiência de voluntariado, perdendo-se dessa maneira a riqueza e a provocação
das elaborações daqueles que, dedicando-se ao outro, realizam obras que os realizam como
pessoas. É nesse sentido que apontamos o risco de olhar os voluntários somente pelo seu
perfil, o que pode levar à compreensão de que tal experiência é restrita a um grupo específico.
Entretanto, todo o nosso esforço de contemplar a dinâmica dessa experiência aponta para a
compreensão do quanto ela é provocadora e acessível a todos, dado que diz do humano em
suas múltiplas dimensões.
170
VIII – CONCLUSÕES: certezas e provocações
Encerrada a discussão, chegamos ao momento de apresentar nossas conclusões, aquilo
que carregamos como certeza de tudo o que colhemos ao longo de nosso percurso. Certezas
que levamos conosco como provocações, como experiência e como proposta.
Essa pesquisa nasceu da provocação de experiências que nos solicitaram a adentrar o
universo do voluntariado. Impactados pela beleza do gesto, pela gratuidade com que ele é
realizado e pela auto-realização por ele possibilitada, descobrimo-nos perplexos e impelidos à
aventura do conhecimento. Assim impactados e mobilizados, começamos a nos perguntar:
que experiência é essa que, nascida do gesto de se dispor ao outro sem esperar nada em troca,
carrega uma realização tão potente para as pessoas?
Pergunta que nasceu da experiência e que buscou, na experiência, seus elementos
fundamentais, seja analisando o modo como a pessoa toma o que lhe é proposto, seja
contemplando o modo como uma proposta se objetiva tornando-se estruturante de um
determinado contexto. Partir da experiência: fica conosco a certeza quanto à importância de
avaliar o modo como o trabalho voluntário é executado contemplando a experiência de quem
trabalha. Para isso, descobrimos a centralidade de um olhar atento à experiência, capaz de
colher os elementos essenciais tanto da elaboração da pessoa sobre sua ação quanto do
mundo-da-vida por ela compartilhado. Um olhar capaz de considerar outros fatores que
incidem na ação mesma, como a experiência religiosa, o valor do relacionamento com o outro
e a realização de si. Nesse sentido, colhemos também a certeza quanto à importância de olhar
a pessoa encarnada em seu contexto, pois é no relacionamento com ele que a pessoa é
formada, “con-formando” tal contexto de modo pessoal, criativo e vitalizado.
Vimos também que o olhar atento à experiência rasga horizontes fechados e
preconcebidos sobre a realidade do voluntariado. Nosso olhar sobre a experiência pôde abrir
horizontes e colher provocações que são apreendidas somente quando reconhecidas no modo
como os sujeitos tomam a sua ação.
Com essas certezas, podemos afirmar que um olhar que desconsidera a complexidade
dinâmica presente no vivo da experiência e que adentra o fenômeno do voluntariado com uma
leitura predeterminada e externa não está aberto às provocações que esse fenômeno solicita.
Como decorrência, não é possível encontrar nada de novo, e as conclusões se caracterizam
por reafirmar somente o que se compreendeu e por desconsiderar o que as pessoas
vivenciam em seu cotidiano de voluntariado. Em nossa investigação, ao contrário, pudemos
171
apreender como a experiência de voluntariado carrega a força de problematizar concepções
prontas que privilegiam somente uma única faceta da questão. A experiência de voluntariado
é complexa e pode ser vitalizada, exigindo um esforço do pesquisador para compreender os
elementos implicados no fenômeno, com abertura para o dinamismo que lhe é próprio.
Contemplando as compreensões advindas da investigação de como a experiência
pessoal se articula ao contexto sociocultural, apreendemos, ainda, a importância de tomar o
fenômeno do voluntariado situado em seu contexto. O contexto é sempre prenhe de propostas,
vitalizadas ou não, que incidem diretamente no modo como as pessoas tomam sua ação
voluntária e como elas estarão atentas ao realizarem esse gesto. Vimos, a partir dessa pesquisa
em uma instituição espírita, como a experiência religiosa pode definir o modo de a pessoa
estar ali e pode sustentá-la naquele trabalho, seja por via da força para enfrentar as
dificuldades, seja por via da realização por ela possibilitada.
E o que colhemos de essencial dessa experiência?
Colhemos, na presença de Olívia, o espírito de uma pessoa forte, que no trabalho de
coordenação da Salada expressa um afeto especial para com as pessoas que com ela
interagem. Adentrando sua experiência, identificamos o valor daquela tarefa para ela: o
carinho especial pela Salada carrega uma história cheia de percalços, de maravilhas e de
aprendizados. Aprendizados que lhe permitem anunciar que a tarefa é “nossa”, dos
companheiros de caminhada que assumem aquele gesto, e da humanidade como um todo. A
tarefa é o que ela gosta, é a quê ela se dedica com empenho e com amor. A tarefa também é
da Espiritualidade, que intervém possibilitando que tudo se dirija ao caminho certo. Ali ela
agita, convive com o diferente, insiste em certas posições, faz amizades, doa e se
beneficiada, reforma-se interiormente e se realiza: é um sabor diferente que a satisfaz. Aquele
gesto transforma a todos e comunica sentidos. Sentidos que buscam expressar, de modo muito
concreto, o sentido último que a sustenta: fazer parte de um trabalho que é para Jesus.
Colhemos, na presença singela de Telma, a surpresa diante de alguém que, com tantas
dificuldades físicas, lavando pratos num pequeno espaço, persiste na tarefa com uma alegria
que cativa a todos. Conversando com ela, podemos entender o porquê de tamanha dedicação e
satisfação: ali ela serve a quem lhe serviu no momento em que mais precisava. Ali ela se
descobriu muito feliz e grata por tudo. Com Telma não tem escolha de serviço, ela se doa à
Casa toda vida, cuida para não estragar nada, gosta de trabalhar ali, está tudo certo: é assim,
evidente. E é importante buscar fazer tudo direitinho: na atenção aos detalhes, ela afirma o
valor daquela experiência, comunicando-nos o quanto aprende a ser menos egoísta e o quanto
também é fortalecida. É a fé, somada à dedicação, que a sustenta, fazendo-a continuar ali,
172
mesmo diante de todas as suas dificuldades. O trabalho pode até não sair certo, mas se o olho
físico não enxerga, o olho do coração, esse sim, e faz acontecer. Naquele gesto, ela serve
de coração, sabendo que ali ela tem uma família.
Colhemos, na presença cativante de Márcia, uma paixão evidente. O carinho com as
crianças é explícito para quem a observa na tarefa e é também explícito em sua elaboração.
Márcia e suas companheiras de trabalho são voluntárias do Banho Infantil: uma tarefa
abençoada, linda, apaixonante. O trabalho de dar banho naquelas crianças é a sua tarefa,
aquela em que ela cuida do espaço, das mães, das crianças, aprende, ensina, se comove e se
realiza. O Banho solicita confiança, pede abertura para atender a quem precisa e gera
mudança em quem se envolve, em Márcia, inclusive. Propondo ajudar no que está ao seu
alcance, Márcia inova ao ensinar que o assistido não deve só receber, precisa se doar também,
pois todos estão ali aprendendo. O Banho é a sua tarefa, é que tem afinidade e cria
vínculos: essa tarefa Márcia não deixa por nada. Cuidando de cada detalhe, ela cuida de si e
do ideal que carrega. É verdade: o banho não é só um banho.
Colhemos, na presença marcante de Shirley, o empenho para que a Evangelização
alcance seu objetivo da melhor forma possível, empenho que busca transformar o mundo
transformando as pessoas, inclusive a si mesma. Ali ela prepara, ensina, suporte, incentiva
o trabalho em equipe: o importante é ter boa vontade e abraçar a causa. Empenhando-se, ela
se lançando sementes, mostrando aos pequeninos os ensinamentos de Jesus por meio do
exemplo. Naquele gesto, Shirley busca ajudar na formação pessoal das crianças e dos
tarefeiros: é a sua contribuição para que o mundo de regeneração venha mais rápido. Isto é
mais do que a sua contribuição, é a sua missão. Missão anunciada por aqueles a quem Shirley
confia e pede: é a Espiritualidade, companhia íntima presente em sua vida, que lhe dá
oportunidades e guia seus passos. Evangelizar abre-lhe horizontes de compreensão da vida,
deixando-a melhor do que ontem. E tudo isso é mesmo “bacana” para Shirley: os problemas
existem, mas o sentido ali implicado lhe permite afirmar com alegria, gratidão e comoção que
tudo são flores e que pela Evangelização ela o seu sangue, a sua vida. Vida que, é verdade,
até poderia ser outra coisa, mas Shirley entende que aquele gesto e a realização ali vivida lhe
indicam um caminho mais correspondente à sua missão e ao ideal que carrega. O importante é
fazer, é dedicar-se por inteiro para fazer valer a pena a oportunidade.
Colhemos, em todas essas experiências de voluntariado, o movimento de pessoas que,
doando de si ao outro, expressam-se inteiramente.
Ficamos com a certeza quanto à importância de considerar o modo como tal doação é
feita: é preciso amor, luz que ilumina os passos de quem trabalha e que aponta o caminho para
173
se alcançar o outro e o ideal pretendido. Certeza de que tal doação é vivida como realização, é
correspondente ao centro da pessoa. Certeza de que o gesto de doar-se contempla horizontes
mais amplos do que a concretude do gesto mesmo.
Doar-se é empenhar-se num ideal que corresponde e que solicita. Doar-se é também se
perguntar sobre os sentidos implicados na doação. Doar-se é depurar-se interiormente para ser
digno do ideal que tal doação quer comunicar. Portanto, a doação de si implica um juízo que
mobiliza a pessoa. A ação convida à reflexão e à transformação. Quem doa de si ao outro é
grato por essa oportunidade que lhe foi dada.
Também colhemos a certeza de que quem doa de si ao outro não está sozinho. Há outras
pessoas com as quais se compartilha o gesto, companhias que sustentam a ação e que fazem
do ambiente de trabalho uma comunidade, que fazem do gesto uma obra.
Ficamos com a certeza de queo é fácil construir e sustentar uma obra, pois os
problemas existem. Mas também é certeza que os problemas não são limites que paralisam,
são limites que pedem um passo a mais em direção à solução que o problema solicita e em
direção ao valor que o limite não conseguiu apagar, pelo contrário, exalta.
A ação voluntária sustenta e é sustentada por uma obra da qual cada um participa de
modo próprio. Obra que é maior também porque se abre para reconhecer atuações de ordem
superior, situando-a num horizonte de totalidade. A ação voluntária pode ser concretização do
relacionamento da pessoa com a transcendência, em que a doação de si ao outro é doação de
si a um Outro. Portanto, ficamos com a certeza quanto à potência da experiência religiosa de
impulsionar à ação, de estruturar o modo como o gesto é realizado e o modo como a pessoa se
realiza nesse gesto.
Findo o percurso da dissertação, muitos horizontes se abrem aos nossos olhos.
Horizontes de diálogo que nascem a partir de nossas compreensões. Horizontes de provocação
àqueles que se deixarem tocar pela força das experiências que, comunicadas a nós, são agora
comunicadas a vós. Horizontes de gratidão pela oportunidade de testemunhar o que vimos e
de poder concretizar este trabalho como contribuição a uma obra que nos supera e solicita.
174
EPÍLOGO: um retorno à experiência
Gostaríamos de finalizar nosso trabalho de investigação do mesmo modo como
buscamos conduzi-lo: voltando sempre à experiência.
Para tanto, queremos apresentar um dos hinos entoados na Casa Espírita. O modo como
ele é cantado com comoção por freqüentadores e tarefeiros nas Reuniões Públicas indica-nos
como, concretizando pequenos gestos juntos, eles se unem na afirmação de um grande ideal.
Refletindo sobre seu conteúdo, surpreendemo-nos como este hino expressa grande parte dos
elementos essenciais que estruturam a ação voluntária nesse contexto, tal como pudemos
apreender em nossa análise.
Com tal empreendimento, esperamos explicitar e poetizar o relacionamento entre a
experiência de voluntariado enquanto potencialmente realizadora da pessoa e o contexto
sociocultural da instituição espírita pesquisada.
FAZE O BEM - the psalms of life
46
Faze o bem, o dia desponta
Para um futuro de paz e de luz.
Anjos no alto anotam, vêem
Todos os atos, oh, faze o bem
Faze o bem, as portas se abrem,
Quebram-se agora cadeias servis.
Faze o bem com santa coragem,
Ei-a avante, avante ao fim.
Ora, espera a verdade que vem
Cessam as dores, oh, faze o bem.
Olhos chorosos fitam o além
Serão enxutos oh, faze o bem.
Faze o bem, os efeitos espera;
Sê livre, luta com fé e vigor
Sê forte, olha o futuro também
Deus te protege oh, faze o bem!
Faze o bem: este é o chamado. Convite a realizar em ato o bem anunciado que, como
vimos, corresponde também a quem o faz. Quem responde em gestos ao chamado ilumina a
vida como um todo, pois o dia desponta, desvelando horizontes futuros e contribuindo para o
46
Composição anônima.
175
despertar de um novo mundo, de paz e de luz. Horizontes que incluem os anjos no alto,
presenças transcendentes, de ordem superior, que anotam e vêem, intervindo
providencialmente em todos os atos.
Não perca a oportunidade de fazer parte dessa obra maior: oh, faze o bem, pois as portas
se abrem para quem se dedica ao trabalho no bem. Portas repletas de ensinamentos que
transformam o tarefeiro e o ambiente em que ele se encontra. Transformação que o liberta dos
círculos viciosos de toda ordem que o impedem de crescer, pois, fazendo o bem, quebram-se
agora cadeias servis.
Para isso, é preciso se empenhar, agir com o ideal que o coração carrega, com santa
coragem. E é preciso perseverar no caminho superando as dificuldades na busca por afirmar o
ideal de totalidade reconhecido como correspondente, avante ao fim.
É uma busca que sabe o que quer, é uma busca que contém uma espera. Porque quem
age espera que o ideal de bem anunciado, reconhecido como verdade, se concretize no
mundo, isto é, quem faz o bem espera a verdade que vem.
Um reconhecimento de verdade que consola, pois o tarefeiro sabe que seu gesto, assim
como sua vida, se encontra inserido num horizonte maior pleno de sentido. O alcance da ação
se multiplica, pois o compromisso desse bem é com o ser humano. E, assim, os olhos que se
abrem para esse além anunciado no gesto serão enxutos.
É uma ação voluntária, livre, que embora não se prenda aos resultados, contém uma
promessa: os efeitos espera. É um chamado exigente. É preciso deixar-se provocar por todas
essas solicitações contidas no gesto, persistindo com e vigor, contemplando o futuro
também. Pois é uma ação sustentada por um Outro: Deus te protege.
Se reconhece o chamado, se se reconhece chamado, aproveite a oportunidade que ora
lhe é oferecida: oh, faze o bem!
176
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original de 1994).
183
ANEXO: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - FAFICH
Pós-Graduação em Psicologia – Mestrado na área de concentração da Psicologia Social
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Você está sendo convidado(a) a participar, como voluntário, em uma pesquisa. Após ser
esclarecido(a) sobre as informações a seguir, no caso de aceitar fazer parte do estudo, assine
ao final deste documento, que terá duas vias. Uma delas é sua e a outra é do pesquisador
responsável. Em caso de recusa, não ocorrerá nenhum tipo de penalização. Em caso de
dúvida, você pode entrar em contato com o pesquisador responsável e/ou com o Comitê de
Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais: Av. Pres. Antônio Carlos, 6627
Unidade Administrativa II andar Sala 2005, CEP 31270-901 BH/MG Telefax:
3409-4592 – e-mail: [email protected].
1. INFORMAÇÕES SOBRE A PESQUISA:
Título do Projeto: Ser voluntário, ser realizado: uma investigação fenomenológica numa
instituição espírita
Pesquisador Responsável: Yuri Elias Gaspar – CRP: 28.079
Telefone para contato: (31) 8876 2483
Orientador da Pesquisa: Prof. Dr. Miguel Mahfoud
A presente pesquisa tem como objetivo investigar a experiência de voluntariado no
contexto cultural de uma instituição espírita. Para tanto, serão entrevistadas pessoas que
realizam trabalho voluntário na Instituição Espírita selecionada para a pesquisa: a Casa
Espírita.
A participação como sujeito da pesquisa se por livre decisão e opção da pessoa.
Portanto, sua participação não é obrigatória e, a qualquer momento, você poderá desistir de
participar e retirar seu consentimento.
184
Se concordar em participar, vo concederá uma ou mais entrevistas que serão
realizadas pelo mestrando e gravadas, transcritas e utilizadas como material de pesquisa.
Apenas informações relacionadas aos objetivos da pesquisa serão utilizadas para fins de
análise e como conteúdo da dissertação do mestrado e/ou como parte de publicação relativa à
pesquisa. Serão preservados os dados que você delimitar como confidenciais.
A sua participação não implica em riscos, prejuízos, desconforto ou lesões. Também não
haverá nenhuma despesa ou gratificação.
_______________________________________
Yuri Elias Gaspar
2. CONSENTIMENTO DA PARTICIPAÇÃO DA PESSOA COMO SUJEITO
Eu, _______________________________________________, RG __________________
CPF ______________________, abaixo assinado, concordo em participar da pesquisa Ser
Voluntário, Ser Realizado: Uma Investigação Fenomenológica numa Instituição Espírita,
como sujeito. Fui devidamente informado e esclarecido pelo pesquisador Yuri Elias Gspar
sobre a pesquisa, os procedimentos nela envolvidos, assim como os possíveis riscos e
benefícios decorrentes de minha participação. Foi-me garantido que posso retirar meu
consentimento a qualquer momento, sem que isto leve à qualquer penalidade.
Belo Horizonte, _____ de ____________ de ______
______________________________________________
Nome:
Presenciamos a solicitação de consentimento, esclarecimentos sobre a pesquisa e aceite
do sujeito em participar.
Testemunhas (não ligadas à equipe de pesquisadores):
Nome: ________________________________ Assinatura: _________________________
Nome: ________________________________ Assinatura: _________________________
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