Download PDF
ads:
Frederico Alves Costa
Democratização social e pluralidade de sujeitos políticos:
uma leitura a partir da Teoria Democrática Radical e Plural
Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Frederico Alves Costa
Democratização social e pluralidade de sujeitos políticos:
uma leitura a partir da Teoria Democrática Radical e Plural
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Social
Linha de Pesquisa: Política, Participação Social e
Processos de Identificação
Orientador: Marco Aurélio Máximo Prado
Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
2010
ads:
150 Costa, Frederico Alves
C837d Democratização social e pluralidade de sujeitos políticos [manuscrito] :
2010 uma leitura a partir da Teoria democrática radical e plural / Frederico
Alves Costa. -2010.
193 f.
Orientador: Marco Aurélio Máximo Prado
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
.
1.Psicologia – Teses. 2.Democracia – Teses .3. Hegemonia – Teses. 4.
Participação política – Teses 5. Psicologia social - Teses. I. Prado, Marco Aurélio
Máximo. II. Universidade Federal de Minas
Gerais. Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas. III. Título
4
Dedico esta dissertação a todos aqueles que lutam por um Brasil justo
e àquela que infelizmente não pôde vivenciar a realização do curso de
mestrado: Érica Arantes.
5
AGRADECIMENTOS
Este trabalho, ao qual hoje chegamos a um final, pôde ser produzido mediante o
aprendizado, o apoio, a confiança, a amizade de muitos com os quais tenho construído
vínculos durante minha caminhada.
Agradeço, inicialmente, à minha mãe, ao meu pai, à minha irmã pelo apoio que me
deram durante meus 26 anos de vida e que, com esforços, permitiram-me chegar até aqui. Aos
meus familiares que também me acompanharam durante estes anos e sempre estavam
dispostos a me auxiliar.
Agradeço a todos aqueles que contribuíram para a minha formação acadêmica, desde
os que me ensinaram as primeiras letras até os que despertaram e continuam a despertar meu
interesse pelas Ciências Humanas. Dentre estes, agradeço especialmente àquele que tem sido
meu orientador no Núcleo de Psicologia Política desde 2005, e com quem tenho construído
uma relação de amizade: Marco Aurélio Máximo Prado. Esteja certo que você é um mestre
por quem tenho muito reconhecimento, respeito e admiração. Foi em suas aulas, no quarto
período de graduação, que descobri a importância do campo da psicologia social e da
psicologia política na investigação científica e na construção de um mundo melhor. Muito
Obrigado!
Agradeço, ainda, a todos meus companheiros e companheiras de pesquisa do NPP;
muito do que sei é fruto das discussões, sobre diferentes temáticas de interesse da psicologia
social e da psicologia política, que construímos juntos. Claudia Mayorga, com quem tenho
realizado projetos e dividido disciplinas: muito obrigado pela confiança que tem em mim e
pelo que tem me ensinado. Cornelis van Stralen, agradeço-lhe pela perspicácia em debater os
projetos de pesquisa. Vanessa Andrade de Barros, obrigado pelo apoio e pela confiança nos
projetos que pude partilhar com você. Otacílio de Oliveira, Frederico Machado, Marco
Antônio Torres, Manuela Magalhães, Rafael Prosdocimi, Júlia Mesquita, Cristiano Rodrigues,
Juliana Perucchi, Andréa Carmona, Cássia Beatriz, Ana Carolina Campagnole, Robson
Nascimento, Thalles Ribeiro: foi e continua a ser muito boa a troca de textos e projetos com
vocês, bem como nossas ótimas conversas. Agradeço também ao professor Salvador Sandoval
por suas contribuições a esta dissertação no momento da qualificação, bem como no período
em que lecionou uma disciplina no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG.
Não teria como deixar de agradecer aos amigos e amigas que também me ensinaram e
me apoiaram neste percurso, seja na realização de bons debates, seja na descontração
necessária à saúde psíquica: Júlia Machado, Cláudia Salum, Saulo Geber, Lucas Mello,
6
Ariana Lucero, Leonardo Poggialli, Flávia Torquetti, Ana Paula Leite, Camila Lima, Júnia
Penido, Daniel Martins, Paulo Roberto Júnior, Cristiana Mazzini, Alina Gomide, Mariana
Pôssas, Mayra Brancaglion, Luciana Souza, Aline Martins, Nicole Lagazzi, Alexandre
Magalhães, Laura Martelo. E também aos meus primos e primas que sempre estiveram perto
de mim: Luciana Costa, Diego Silva, Priscila Silva, Ludmilla Jales, Renato Jales, Rodrigo
Gonçalves, Regiane Gonçalves.
Agradeço ainda àqueles e àquelas para quem tive oportunidade de dar aulas (Isabella,
Natália, Joyce, Lívia, Rander, Maria Carolina, Nadja, Ana, Sandro, Bárbara, Laíss, Alba,
Vivane, Geíse...), uma vez que, na troca de saberes, contribuíram para meu aprendizado e me
incentivaram a continuar trilhando o caminho rumo a um forte desejo: tornar-me um professor
e um pesquisador universitário competente e dedicado, como muitos daqueles que fizeram
parte da minha formação acadêmica.
E certamente, muito obrigado a todos e todas participantes deste trabalho que
dedicaram a mim parte de seu tempo, muitas vezes escasso em função da luta constante e
cotidiana que travam em direção a uma sociedade justa.
Agradeço também à CAPES pela bolsa de mestrado que muito auxiliou no
desenvolvimento desta dissertação. Bem como à Aninha, secretária da FAFICH/UFMG, à
Beth, secretária do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG, ao Alessandro,
chefe da Seção de Ensino de Pós-Graduação da FAFICH/UFMG, pelas vezes que me
auxiliaram durante a realização das pesquisas que participei.
7
“Si por ‘fin de la historia’ se entiende el fin de un objeto conceptual
inteligible, que pretendia abarcar en su espacialidad diacrônica a la
totalidad de lo real, estamos claramente en el fin de la “historia”
pero en tal caso “historia” es una categoría cuasi-trascendental, un
intento de inscribir la totalidad de los hechos y dislocaciones en
formas conceptuales que los trascienden. Pero, en otro sentido,
podemos decir que estamos en el comienzo de la historia, en el
momento en que nuestra historicidad recibe por fin su pleno
reconocimiento. Porque en la medida en que toda “trascendentalidad”
es ella misma vulnerable, todo intento de espacializar el tiempo
finalmente fracasa, y el espacio mismo pasa a ser um evento. La
irrepresentabilidad en la última instancia de la historia es la condición
de nuestra radical historicidad. Es en nuestra pura condición de
evento, que se muestra en los bordes de toda representación, en las
huellas de temporalidad que corrompen todo espacio, donde
encontramos nuestro ser más próprio, que se confunde con nuestra
contingencia y con la dignidad inherente a nuestra índole perecedera”.
(Laclau, 1993a, p. 98-99)
8
RESUMO
Nas últimas décadas, uma pluralidade de sujeitos políticos emergiram nas sociedades
contemporâneas; paralelamente, críticas à análise marxista de sociedade foram construídas.
Dentre elas, a crítica à noção de espaço político unificado; à concepção de um sujeito
histórico privilegiado; à compreensão de um movimento teleológico da história. Diante desse
contexto, uma tensão se colocou no debate democrático contemporâneo: como construir
estratégias de vínculos entre diferentes sujeitos políticos, de modo que estes não se dissipem
na experiência das identidades, caindo no risco dos particularismos, mas também não se
percam na afirmação de uma universalidade que negue a liberdade em nome da igualdade.
Concebendo esta tensão como ponto de partida, o objetivo desta dissertação é discutir
possíveis estratégias de enfrentamento ao conjunto de lógicas hegemônicas presentes nas
sociedades contemporâneas, que acarretam em múltiplas condições de desigualdade e
exclusão, reproduzindo diferentes formas de subcidadania. Desta maneira, temos como
problemas de pesquisa: que possibilidades de democratização social têm sido construídas
diante do descentramento do espaço político e da pluralidade de sujeitos políticos? O que tem
sido pensado sobre a unidade política da esquerda hoje? Que estratégias têm sido
desenvolvidas a fim de se combater às diferentes formas de desigualdade e exclusão
politizadas como formas de opressão na atualidade, de modo a se construir uma luta contra-
hegemônica?
Estes problemas de pesquisa são analisados a partir de um diálogo entre a Teoria
Democrática Radical e Plural - desenvolvida por Chantal Mouffe e Ernesto Laclau desde
meados da década de 1980 - e dados coletados junto a representantes de grupos de diferentes
movimentos sociais e de espaços de vínculos entre sujeitos políticos, através da realização de
entrevistas semi-estruturadas com os mesmos, de um processo de devolução de análises
parciais aos entrevistados e da leitura de documentos relativos aos grupos e espaços de
vínculos investigados.
Deste modo, utilizando de conceitos chaves à Teoria Democrática Radical e Plural
como hegemonia, articulação, lógica da equivalência, gica da diferença, deslocamento -
discutimos duas possíveis estratégias de vínculos entre movimentos sociais na construção de
enfrentamentos a lógicas hegemônicas que acarretam em condições de subcidadania,
nomeadas: “estratégia de articulação” e “estratégia de aliança”. Também analisamos dois
modos em que a hegemonia dominante enfraquece lutas políticas que buscam construir
alternativas antagônicas de sociedade, modos estes denominados “expansão hegemônica” e
9
“expurgo à diferença”. Ademais, discutimos concepções dos grupos investigados quanto à
noção de desenvolvimento da História e à concepção de sujeito histórico na compreensão do
processo de democratização social da sociedade brasileira, bem como formas de ação que
consideram fundamentais para se alcançar a sociedade almejada.
Palavras-chave: Democracia; Hegemonia; Participação Política; Movimentos Sociais.
10
ABSTRACT
With the emergence of a plurality of political subjects since the 1960s, along with the
various theories, critics and critiques that have followed, a tension has arisen in the dialogue
about the multiple identities held by political subjects. The debate asks the question of how
strategies among different political subjects can be constructed in such a way that these
subjects do not dissipate themselves in the experience of identities, neither segregating
themselves due to their particularities nor losing their autonomy through the affirmation of a
universality that denies liberty for the sake of equality.
Having this tension as a starting point, the objective of this dissertation is to discuss possible
strategies to confront the set of hegemonic logics leading to those conditions of inequality and
exclusion that continually reproduce sub-citizenship in its many forms. With this in mind, we
have the following research problems to explore: what possibilities of social democratization
have been built as a result of the de-centralization of the political space and the plurality of
political subjects? How does the Left view its own political unity in this new political
landscape? What strategies have been developed in order to fight the different forms of
inequalities and politicized exclusions as means of oppression in the present time, so as to
build a counter-hegemonic struggle?
These research problems have been analyzed within the theoretical framework of the Radical
and Plural Democratic Theory developed by Chantal Mouffe and Ernesto Laclau; as well as
through empirical data collected from group representatives of different social movements,
including both semi-structured interviews and related documentation.
Using the key concepts of the Radical and Plural Democratic Theory such as articulation,
equivalence logic, difference logic, and displacement we discuss two possible strategies for
social movements to face the hegemonic logics leading to conditions of sub-citizenship:
“articulation strategy” and “alliance strategy”. We also analyze two ways through which the
dominant hegemony weakens political struggles aimed at building antagonistic alternatives
for society, referred to as “expansion of the hegemony” and “exclusion by difference”.
Furthermore, we discuss the conceptual development of “History” and “historical subject”
within the process of social democratization in Brazilian society, as well as the forms of
action that are considered fundamental in order to achieve a more pluralistic and democratic
society.
Key-words: Democracy; Hegemony; Political Participation; Social Movement.
11
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
1
QUADRO 1 - Entrevistado/a por grupo/espaço de vínculo respectivo (em ordem
alfabética dos grupos/espaços de vínculo)............................................................................ 70
QUADRO 2 - Documentos coletados por grupo/espaço de vínculo respectivo (em ordem
alfabética dos grupos/espaço de vínculo)............................................................................. 71
QUADRO 3 - Documentos coletados relativo a lutas conjuntas entre grupos/espaço de
vínculo .....................................................................................................................................72
FIGURA 1 – Estratégia de Articulação ...............................................................................96
FIGURA 2 – Estratégia de Aliança ....................................................................................107
QUADRO 4 Caracterização Assembléia Popular Metropolitana de Belo Horizonte
............................................................................................................................. APÊNDICE II
QUADRO 5 Caracterização Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais,
Travestis e Transexuais....................................................................................APÊNDICE II
QUADRO 6 – Caracterização Brigadas Populares ...................................... APÊNDICE II
QUADRO 7 - Caracterização Central Única dos Trabalhadores ...............APÊNDICE II
QUADRO 8 - Caracterização Marcha Mundial das Mulheres.....................APÊNDICE II
QUADRO 9 - Caracterização Movimento dos Trabalhadores Desempregados ..................
..............................................................................................................................APÊNDICE II
QUADRO 10 - Caracterização Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ............
............................................................................................................................. APÊNDICE II
QUADRO 11 - Caracterização Negras Ativas ............................................... APÊNDICE II
1
Os apêndices, assim como os anexos desta dissertação, encontram-se no CD-ROM que acompanha a cópia
impressa desta dissertação.
12
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABGLT = Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais
ALBA = Aliança Bolivariana para os Povos da nossa América
AP = Assembléia Popular Nacional
APAC = Associação de Proteção e Assistência ao Condenado
AP-MBH = Assembléia Popular Metropolitana de Belo Horizonte
BP = Brigadas Populares
CEB = Comunidades Eclesiais de Base
CNPJ = Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica
COMACON = Coordenadoria dos Assuntos da Comunidade Negra da Prefeitura de Belo
Horizonte
CUT = Central Única dos Trabalhadores
FIEMG = Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais
HSH = Homens que fazem sexo com homens
LGBT = Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
MAB = Movimento dos Atingidos por Barragem
MMM = Marcha Mundial das Mulheres
MS = Movimentos Sociais
MST = Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MSU = Movimento dos Sem Universidade
MTD = Movimento dos Trabalhadores Desempregados
NA = Negras Ativas
NPP = Núcleo de Psicologia Política FAFICH/UFMG
ONG = Organização Não-Governamental
PPA = Plano Plurianual
PSOL = Partido Socialismo e Liberdade
PSTU = Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados
PT = Partido dos Trabalhadores
SEPPIR = Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial
13
LISTA DE NOTAÇÕES
Na transcrição das entrevistas foram utilizados os seguintes sinais:
(xxx) = uma palavra não entendida
(xxx) (xxx) = mais de uma palavra não entendida
sublinhado = dúvida quanto à palavra
... = continuação da palavra (Ex: aaa = a...)
! = palavra enfatizada durante a fala
rsss = risos
14
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................................... 15
Capítulo1
Pluralidade de movimentos sociais: politização de outras hierarquias sociais ................ 20
1.1 Movimentos sociais contemporâneos e suas condições de possibilidade ................ 22
1.1.1 O contexto brasileiro e a emergência dos movimentos sociais
contemporâneos ................................................................................................................ 27
1.2 Teoria democrática radical e plural: importantes aspectos na análise dos movimentos
sociais contemporâneos ........................................................................................................ 37
1.2.1. Negatividade como constitutiva da identidade ....................................................... 40
1.2.2. Relações sociais como relações de poder ............................................................... 42
1.2.3. Primazia do campo político e o caráter histórico das relações sociais ................... 48
1.2.4. Passagem de antagonismos democráticos para luta democrática: democracia
radical e plural .................................................................................................................. 48
Capítulo 2
Dos caminhos da pesquisa ...................................................................................................... 54
2.1. Procedimentos metodológicos ....................................................................................... 57
2.2. Caracterização dos grupos investigados ........................................................................ 73
2.2.1 Assembléia Popular Metropolitana de Belo Horizonte (AP-MBH) ........................ 73
2.2.2 Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais
(ABGLT).......................................................................................................................... 76
2.2.3. Brigadas Populares (BP) ......................................................................................... 77
2.2.4 Central Única dos Trabalhadores (CUT) ................................................................. 80
2.2.5 Marcha Mundial das Mulheres (MMM) .................................................................. 82
2.2.6 Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) ......................................... 84
2.2.7 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) ....................................... 85
2.2.8 Negras Ativas (NA) ................................................................................................. 87
Capítulo 3
Construindo a mudança social: movimentos sociais e seus vínculos ................................. 89
3.1. Construção de vínculos entre os movimentos sociais ................................................... 93
3.1.1. Estratégia de Articulação ........................................................................................ 95
3.1.2. Estratégia de Aliança ............................................................................................ 107
Capítulo 4
Resistências da hegemonia a possibilidades de “outro mundo possível”: expansão
hegemônica e expurgo à diferença ...................................................................................... 119
4.1. Expansão hegemônica ................................................................................................. 120
4.2 Expurgo à diferença ...................................................................................................... 143
Capítulo 5
Concepções de luta e o processo de democratização social: indeterminação da história,
pluralidade de sujeitos políticos, formas de ação .............................................................. 149
5.1. Democratização social: formas de ação salientadas pelos movimentos sociais .......... 167
Considerações finais ............................................................................................................. 183
Referência .............................................................................................................................. 189
15
Introdução
Desigualdade e exclusão: fenômenos psicossociais, vivenciados nas sociedades
ocidentais, que se apresentam no interior de um sistema hierarquizado, acarretando em
diferentes modos de subordinação, que foram amplamente ressignificados com o advento da
revolução democrática no século XVIII. Ao romper com uma lógica política-teológica que
definia posições diferenciais fixas para cada indivíduo na sociedade, e afirmar a
universalidade da igualdade e da liberdade, a emergência da democracia moderna fez do
poder “um lugar vazio”, permitindo que desigualdades e exclusões, até então justificadas
como naturais, pudessem ser questionadas como formas de opressão e, portanto, como
construídas injustamente, a fim de privilegiar alguns (Mouffe, 2000a).
Assim, o rei foi “enforcado” e o imaginário democrático, perseguido por muitos
daqueles que mesmo diante do ideal político de universalidade da igualdade e da liberdade -
continuavam a ser considerados seres humanos inferiores. Eles serão chamados de
subcidadãos
2
nesta dissertação, pelo fato de a condição a que se encontram subjugados
implicar na negação deles como participantes na construção dos direitos de cidadania, em
condições de igualdade, bem como no reconhecimento dos mesmos como pessoas dignas
daqueles direitos
3
.
Diante da influência deste imaginário possibilitador da politização de diferentes
formas de subcidadania, reivindicações de uma diversidade de sujeitos políticos emergiram, a
partir do século XIX, a fim de ampliarem os fundamentos democráticos de igualdade e
liberdade.
Em função da luta dos trabalhadores frente ao processo de industrialização das
sociedades ocidentais contemporâneas, bem como da análise marxista de sociedade, a luta de
classe fora tratada, por teóricos e militantes, como a luta central na construção da mudança
social até meados do século XX. Contudo, nas últimas décadas, emergiram na cena política
movimentos sociais que expandiram os valores democráticos para diferentes âmbitos sociais
2
O termo subcidadania, ao ser utilizado aqui, pretende sinalizar a ausência de reconhecimento de direitos a
alguns indivíduos ou grupos em uma determinada sociedade em um determinado momento histórico, seja a
direitos existentes, seja ao direito de se ter novos direitos. Uma análise da construção da subcidadania em
sociedades periféricas como o Brasil, a partir do conceito de habitus, de Pierre Bourdieu, e do conceito de
dignidade, de Charles Taylor, pode ser encontrada em Souza (2003).
3
Poderíamos dizer que há, desta forma, uma retroalimentação da subcidadania. Na medida em que não são
reconhecidas como pessoas dignas dos direitos de cidadania, justifica-se sua menor legitimidade na construção
dos mesmos, e esta menor legitimidade reproduz condições de desigualdade e exclusão no interior da
comunidade política.
16
até então considerados privados, culturais, não-políticos: movimento feminista
4
, movimento
LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais), movimento negro, movimentos
populares urbanos. Estes movimentos sociais colocaram em questão a noção de um espaço
político unificado, definido pela contradição relações de produção X força produtiva; a idéia
de um sujeito unitário, determinado por sua localização nas relações econômicas; bem como a
concepção de um movimento teleológico da história, marcado por um fundamento subjacente
que a determina, a luta de classe (Laclau, 1996).
Em conseqüência do deslocamento do imaginário democrático, outros sujeitos
coletivos se constituíram no intuito de impedir a ampliação dos direitos democráticos. É neste
sentido que Laclau e Mouffe (1985) denunciam a emergência de um neo-conservadorismo,
que compreende a busca pela ampliação da revolução democrática como um ‘excesso de
democracia’, e como uma onda de igualitarismo que tem feito a sociedade ingovernável. Tal
perspectiva afirma que se está colocando em risco o verdadeiro ideal de igualdade das
revoluções democráticas ao se substituir a noção de igualdade de oportunidades pela noção de
igualdade de resultado, de igualdade entre indivíduos pela de igualdade entre grupos, vivendo
a sociedade uma “crise dos valores democráticos”.
A pluralidade de sujeitos políticos na esfera pública
5
, portanto, acarretou num grande
debate sobre a democratização das sociedades ocidentais contemporâneas. Dicotomias como:
esfera pública e esfera privada; indivíduo e sociedade; demandas por redistribuição e por
4
Deve-se ressaltar que algumas autoras analisam que o movimento feminista pode ser compreendido a partir da
sua mobilização em três momentos distintos, denominados “ondas” do movimento feminista. Assim, ao
apontarmos que o movimento feminista emergiu nas últimas décadas, fazemos referência à segunda “onda” que
ocorreu na década de 1960, em torno do lema “o pessoal é político” e à terceira “onda”, que emerge na década de
1980, na qual “mulheres do Terceiro Mundo” passam a questionar o caráter elitista, racista e heteronormativo do
movimento feminista. A primeira “onda” caracteriza-se pela luta das mulheres pelo sufrágio universal em fins do
século XIX e início do século XX.
5
É importante salientar que a noção de pluralidade de sujeitos políticos aqui trabalhada não é compreendida a
partir da idéia de uma sociedade atomizada, entendida como um conjunto de sujeitos coletivos essencializados e
fixos. É neste sentido que a esta noção deve-se articular à compreensão da identidade como descentrada, precária
e não-essencialista. Nas palavras de Mouffe (1995):
minhas reflexões estão inscritas dentro de um modelo teórico anti-essencialista de
acordo com o qual o agente social é constituído por um conjunto de “posições de
sujeito” que nunca podem ser totalmente fixadas em um sistema fechado de
diferenças. É construído por uma diversidade de discursos, entre os quais não existe
relação necessária, mas um constante movimento de sobredeterminação e
deslocamento. A ‘identidade’ deste múltiplo e contraditório sujeito é desta forma
sempre contingente e precária, temporariamente fixada na interesecção daquelas
posições de sujeito e dependente de formas específicas de identificação. Esta
pluralidade, entretanto, não envolve a ‘coexistência’, uma por uma, de uma
pluralidade de posições de sujeito, mas a constante subversão e sobredeterminação
de umas pelas outras, o que faz possível a geração de ‘efeitos de totalizaçãodentro
de um campo caracterizado por fronteiras abertas e determinadas (p. 33-34, tradução
nossa).
17
reconhecimento tiveram de ser repensadas. O “grito” não poderia mais ser simplesmente
“proletários de todo o mundo, uni-vos!”, era necessário reconhecer outras desigualdades e
exclusões que não se pautavam diretamente na luta econômica nem no âmbito da produção e
que, portanto, exigiam rever o caráter ontológico tanto do sujeito da história (a classe
trabalhadora) quanto da centralidade das relações de produção na luta da esquerda. Não era
suficiente a distribuição das riquezas, o combate à mais-valia, a alternativa economicista
marxista, a centralidade do espaço da produção. Reivindicava-se a necessidade de enfrentar
desigualdades e exclusões referentes à crescente urbanização das cidades e escassez de bens e
serviços coletivos, bem como outras formas de subcidadania decorrentes de lógicas
hegemônicas como o patriarcado, a heteronormatividade, o racismo - que não se faziam
presentes somente no lado de da esquerda, mas também eram reproduzidos no interior da
própria esquerda.
Todavia, se, por um lado, esta pluralidade permitiu a politização de diferentes formas
de desigualdade e exclusão, por outro lado, trouxe para a luta política a necessidade de se
enfrentar uma tensão: a de construir estratégias de vínculos entre diferentes sujeitos políticos,
de modo que estes não se dissipem na experiência das identidades, caindo no risco dos
particularismos, mas o se percam na afirmação de uma universalidade que negue a
liberdade em nome da igualdade.
É frente a esta tensão colocada no debate democrático que cabe compreender: que
possibilidades de democratização social têm sido construídas diante do descentramento do
espaço político e da pluralidade de sujeitos políticos? O que tem sido pensado sobre a unidade
política da esquerda hoje? Que estratégias têm sido desenvolvidas a fim de combater às
diferentes formas de desigualdade e exclusão politizadas como formas de opressão na
atualidade, de modo a se construir uma luta contra-hegemônica
6
?
São estes problemas que guiam a construção desta dissertação e que se justificam pela
importância de se compreender como as práticas e os discursos que acarretam em
desigualdade e exclusão de seres humanos têm sido problematizados, articulados e
enfrentados hoje. Pensar a existência e as possibilidades de vínculos entre diferentes
antagonismos democráticos
7
permite não compreender possíveis estratégias de luta foco
6
Nesta dissertação, ao trabalhar com a compreensão de Laclau e Mouffe que a luta política é uma luta
caracterizada pelo enfrentamento de projetos hegemônicos, utilizaremos o termo “contra-hegemonia” para nos
referir a projetos de enfrentamento à hegemonia dominante (ao que Laclau e Mouffe compreenderiam como um
momento de “reativação” da dinâmica social) o momento de “reativação” e o momento de “sedimentação”,
concebidos pelos autores na análise da dinâmica social, serão mais bem explicados no Capítulo 1.
7
Antagonismos democráticos são entendidos como formas de enfrentamento a determinadas práticas e discursos
hegemônicos específicos, a partir da visibilidade de condições de subcidadania como relações de poder, ou seja,
18
central deste trabalho –, mas também dialogar com questões concernentes a dualidades como
lutas por reconhecimento/lutas por redistribuição, lutas reformistas/lutas revolucionárias, e
escapar destes dualismos e de explicações essencialistas sobre a mudança social. Além disso,
espera-se que as discussões referentes aos problemas de pesquisa apresentados possam servir
de ferramentas para diferentes sujeitos que se encontram na luta por sociedades igualitárias e
justas.
No capítulo 1, Pluralidade de movimentos sociais: politização de outras hierarquias
sociais, expomos, de maneira mais detalhada, o contexto de emergência da pluralidade de
sujeitos políticos nas sociedades ocidentais contemporâneas. Além disso, apresentamos
aspectos fundamentais à teoria democrática radical e plural, desenvolvida por Ernesto Laclau
e Chantal Mouffe, desde meados da década de 1980, para a análise dos movimentos sociais
contemporâneos.
No capítulo 2, Percursos metodológicos: construções e reconstruções, apresentamos
os caminhos percorridos na construção desta dissertação, bem como o modo escolhido para se
analisar o problema de pesquisa proposto. Ademais, caracterizamos, brevemente, cada um dos
grupos investigados nesta dissertação.
No capítulo 3, Construindo a mudança social: movimentos sociais e seus vínculos,
distinguimos possíveis estratégias de vínculos entre movimentos sociais contemporâneos e
apresentamos implicações destas na construção da mudança social, a partir de um debate entre
a teoria democrática radical e plural desenvolvida por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe e
posicionamentos de representantes de grupos investigados nesta dissertação, referentes às
principais reivindicações de cada um destes grupos e os modos como cada grupo busca se
relacionar com outros movimentos sociais.
No capítulo 4, Resistências da hegemonia a possibilidades de “outro mundo
possível”: expansão hegemônica e expurgo à diferença, desenvolvemos um debate sobre
modos de atuação da hegemonia que, frente a sujeitos políticos que lutam por alternativas
antagônicas de sociedade, objetivam enfraquecer possibilidades de democratização social,
distinguindo as conseqüências de cada um destes modos na construção da luta política.
No capítulo 5, Concepções de luta e o processo de democratização social:
pluralidade de sujeitos políticos, indeterminação da história, formas de ação, discutimos
concepções dos grupos investigados relativas ao “sujeito da história” e ao “desenvolvimento
como não naturais e sim como reprodução de lógicas de desigualdade e exclusão construídas a fim de reproduzir
o privilégio de alguns, mantendo a hegemonia sedimentada. É a articulação entre diferentes antagonismos
democráticos em direção a uma ampla democratização da vida social que constitui um projeto contra-
hegemônico, uma luta democrática (Mouffe, 1988).
19
da história” na construção da mudança social, bem como formas de ação apontadas por estes
grupos como importantes para se conquistar a sociedade almejada.
Por fim, nas Considerações Finais, elaboramos uma síntese de nossas discussões e
apresentamos possibilidades de aprofundamento dos problemas de pesquisa trabalhados nesta
dissertação, uma vez que novas pesquisas poderão analisar outras facetas destes problemas
que aqui não puderam ser investigadas.
20
Capítulo 1
Pluralidade de movimentos sociais: politização de outras
hierarquias sociais
Segundo Doimo (1993, p.17), o termo movimento social foi cunhado por volta de 1840
para designar o movimento operário europeu e, posteriormente, foi desenvolvido no
marxismo para representar “a possibilidade de transformação racional das relações
econômicas privadas do sistema capitalista”. Entretanto, antes mesmo da crise do Leste
Europeu e da queda do muro de Berlim, o termo movimento social já designava novas formas
de participação contrárias à lógica capitalista, organizadas espontaneamente no âmbito da
cultura e não a partir da racionalidade pregada pelos marcos marxistas, colocando em questão
o significado do próprio termo.
Assim, até o início dos anos de 1960, segundo Doimo (1993, p.17), falar em
movimento social significava dizer da virtualidade revolucionária do proletariado
“entendido como classe determinada pelas relações capitalistas de exploração do trabalho pelo
capital” – e de uma organização racional, que apresentava metas previamente definidas, sendo
os sindicatos e os partidos políticos de orientação socialista e comunista reconhecidos como a
forma mais acabada deste tipo de organização. Desta maneira, a leitura mais comum na
esquerda brasileira era a de que, ainda segundo Doimo (1993, p.49) “a história dos homens
em sociedade é a história da luta de classes e que a sociedade capitalista é formada por duas
classes fundamentais, a burguesia e o proletariado, cabendo a esta última o papel de
verdadeiro motor da transformação social rumo ao socialismo”.
Entretanto, rápidas mudanças desde os fins da década de 1960 levaram, por um lado, a
crítica à primazia das relações de produção capitalista, ao lugar do proletariado como a classe
emancipatória per si, à premissa da homogeneidade de classe; e, por outro, à afirmação da
importância da cultura e do cotidiano como lócus de emergência de importantes contestações
e à emergência de uma pluralidade de sujeitos políticos que apresentavam uma variedade de
reivindicações com fins a ampliação democrática e a uma renovação da vida política.
Estas reivindicações tinham como pauta a ampliação de bens e serviços coletivos
(moradia, educação, saúde, etc.) e a afirmação do direito a se ter direitos
8
. Construíam-se a
8
Dagnino (2000), em sua analise dos movimentos sociais contemporâneos que emergiram na América Latina, a
partir dacada de 1970, aponta que estes instituíram uma nova noção de cidadania, caracterizada pela
transformação de necessidades em direitos e pela construção de reivindicações que não se reduziam a inclusão
21
partir de lutas em torno de demandas locais e da politização de formas de subordinação
invisibilizadas ou desconsideradas na luta política, mediante a ênfase atribuída até então às
relações de produção capitalista e à construção do socialismo nos moldes da concepção
marxista tradicional.
A politização da cultura e do cotidiano, a emergência daquela pluralidade de sujeitos
políticos em torno de diferentes reivindicações e a busca por diferentes teóricos em
compreender o que de “novo” havia no cenário dos movimentos sociais levou a revisões
teóricas e a uma variedade de formas de interpretação destes sujeitos, tanto na Europa quanto
na América Latina. Assim, segundo Doimo (1993), é revelada, junto à crise do marxismo,
uma crise do conceito de movimento social, marcada pela polaridade analítica entre o desejo
de “unidade” dos diferentes movimentos sociais e a inexorável fragmentação
9
destes
movimentos.
Neste contexto, diversas denominações foram cunhadas para designar os sujeitos
políticos que emergiram a partir da década de 1970 na luta contra diferentes formas de
injustiça
10
. Ademais, reinterpretações relativas à noção de transformação social, à relação
entre Estado e sociedade, entre cultura e política foram realizadas a fim de se entender o
contexto de pluralidade de movimentos sociais.
num sistema constituído, colocando em questão a própria forma de constituição deste sistema e a necessidade
de transformá-lo numa luta pelo direito a se ter direitos. Assim, a cidadania é compreendida como participação
direta ou indireta dos cidadãos na busca não pela resolução dos problemas sentidos, mas também na busca de
radicalização da democracia, no intuito de transformar a própria ordem social (BAIERLE, 2000).
9
É importante ressaltar novamente o apontamento feito em nota anterior sobre a noção de pluralidade de sujeitos
políticos nas sociedades contemporâneas, de modo a se compreender que o termo “fragmentação”, aqui, não
condiz com uma concepção de sujeitos coletivos essencializados e fixos, mas sim como identidades precárias
que se constituem frente à também precariedade inerente à ordem social a fim de ressignificar esta ordem.
Assim, fragmentação é entendida como uma multiplicidade de sujeitos coletivos em torno de diferentes lógicas
hegemônicas de desigualdade e exclusão que, em decorrência do descentramento do espaço público e da disputa
pela significação da ordem social, diante do reconhecimento da inexistência de um significado último e
subjacente à ordem social, acaba por promover isolamentos entre os movimentos sociais e rupturas internas aos
mesmos.
10
Doimo (1993) apresenta algumas destas denominações: movimentos sociais urbanos, lutas urbanas,
movimentos populares, “o” Movimento Popular, ou movimentos sociais simplesmente, numa diferenciação do
movimento operário-sindical, no caso latino-americano; ou como na Europa, novos movimentos sociais de
protesto, novo populismo, comportamento político não-ortodoxo, novos movimentos sociais. Nesta dissertação
nos referiremos a estes diferentes sujeitos políticos que emergiram a partir da segunda metade do século XX
como movimentos sociais contemporâneos, de maneira a compreendê-los, como melhor descreveremos no
decorrer do capítulo, não no interior da dicotomia “novos” movimentos sociais / “velhos” movimentos sociais,
mas através de uma continuidade e descontinuidade relativa à ampliação do imaginário democrático.
22
1.1 Movimentos sociais contemporâneos e suas condições de
possibilidade
Apesar de existirem especificidades referentes aos países de capitalismo avançado e
aos países latino-americanos
11
, a emergência dos movimentos sociais contemporâneos em
ambos pode ser inserida no interior das possibilidades oferecidas pela revolução democrática
em direção à politização de diferentes relações sociais, possibilidades estas inclusive que
colocam em questão a dicotomia entre “velhos” movimentos sociais (“movimento operário-
sindical”) e “novos” movimentos sociais (emergentes a partir da segunda metade do século
XX), já muito reproduzida e criticada no campo de estudo dos movimentos sociais
12
.
Segundo Laclau e Mouffe (1985), a revolução democrática possibilitou uma condição
discursiva fundamental para o questionamento de diferentes formas de desigualdade e
exclusão como ilegítimas e anti-naturais, favorecendo o surgimento de antagonismos
democráticos diante da compreensão daquelas relações como formas de opressão. Diante do
imaginário da democracia moderna, originado na Revolução Francesa, é que, de acordo com
Laclau e Mouffe (1985), foi possível se constituírem as lutas socialistas, sendo estas
proporcionadas pelo deslocamento da igualdade e da liberdade do domínio político para o
domínio econômico. Elas decorrem, portanto, da revolução democrática. É também somente
na presença deste imaginário - que rompe com a reprodução da subordinação num sistema
fechado de diferenças - que se faz inteligível compreender, no contexto de pós-Segunda
Guerra Mundial, a emergência de uma pluralidade de sujeitos políticos contrários a diversas
11
Especificidades referentes, por exemplo, à forma de implementação de um Estado de Bem Estar Social nestes
países, trabalhada ao longo do capítulo.
12
“Velhos” movimentos sociais foram caracterizados, em geral, por aspectos econômico-estruturais (Cf.
MACHADO & PRADO, 2005), pela utopia de uma sociedade ideal, pela defesa do interesse de um grupo, por
objetivos revolucionários (Cf. JAVALOY; RODRÍGUEZ & ESPELT, 2001); enquanto os chamados "novos"
movimentos sociais, por questões simbólico-culturais (Cf. MACHADO & PRADO, 2005), pela preocupação
com a identidade coletiva, com a supremacia da sociedade civil (Cf. SZTOMPKA, 1998), pelo pluralismo
ideológico, por interesses não exclusivos a um grupo, pelo estabelecimento de reformas limitadas na sociedade
(CF. JAVALOY et al., 2001), pela ampliação da noção de dominação e opressão, pela compreensão dos
participantes como agentes ativos de transformação dos meios de opressão (Cf. MAHEIRIE, 1997). No entanto,
tal distinção é criticada por diferentes autores, como Machado e Prado (2005), Alvarez, Dagnino e Escobar
(2000), Maheirie (1997), Butler (2000), Fraser (1997), os quais enfatizam que a postura dualista é promotora de
reducionismos na análise de ações coletivas, levando a um empobrecimento teórico. Para estes autores os
movimentos sociais devem ser compreendidos no campo da complexidade em que se apresentam (Cf.
MACHADO & PRADO, 2005), sendo vistos como “sínteses dialéticas inacabadas entre subjetividades e
objetividades (...) [envolvendo] tanto aspectos macroestruturais histórico-político-econômicos, quanto aspectos
microestruturais como relações intergrupais, interpessoais, consciência, linguagem, emoções, identidade"
(MAGEIRIE, 1997, p.164).
23
formas de subordinação que não se reduziam às relações de produção capitalistas, politizando
outras hierarquias sociais (escassez de bens e serviços, patriarcado, homofobia, racismo, etc.).
A politização de diferentes hierarquias sociais e consolidação de novas formas de se
fazer política no contexto de pós-Segunda Guerra Mundial acarretou, segundo Laclau e
Mouffe (1985), em se conceber os agentes destas novas demandas democráticas como
“novos” movimentos sociais
13
, sendo os autores contrários a este termo em decorrência de ele
agrupar uma série de lutas muito diferentes em torno de um denominador comum: sua
diferenciação em relação às lutas dos trabalhadores, concebidas como lutas de classe,
colocando à parte diferentes lutas construídas no nível das relações de produção. De acordo
com estes autores, o que de inovador nos “novos” movimentos sociais não se encontra na
oposição dos mesmos ao movimento de classe (“velhos” movimentos sociais), mas sim na
expansão, propiciada por eles, do imaginário democrático a um conjunto de novas relações
sociais características das sociedades industriais avançadas.
Neste sentido, Laclau e Mouffe (1985) analisam a relação entre as lutas dos
movimentos sociais contemporâneos e as lutas políticas emergentes no século XIX a partir de
uma noção de continuidade e de uma noção de descontinuidade. Por um lado, as lutas dos
movimentos sociais contemporâneos apresentam uma continuidade com as emergentes no
século XIX, uma vez que mantêm o imaginário igualitário da revolução democrática,
reivindicando igualdade de condições. Por outro lado, possuem uma descontinuidade em
relação a elas por se caracterizarem como uma ampliação da revolução democrática,
politizando novas formas de subordinação, “derivadas da implantação e expansão das relações
capitalistas de produção e do crescimento da intervenção do Estado” (p. 160, tradução nossa).
Esta reorganização das relações sociais pode ser entendida como decorrente de uma
série de mudanças pós-Segunda Guerra Mundial nas relações de trabalho, no formato do
Estado e nos modos de difusão cultural (Cf. LACLAU & MOUFFE, 1985)
14
. A partir do
ponto de vista econômico, esta reorganização foi caracterizada pela “expansão das relações de
produção para o conjunto das relações sociais, bem como pela subordinação destas relações
pela lógica de produção para o bem-estar [profit]” (LACLAU & MOUFFE, 1985, p. 160,
tradução nossa). Segundo Laclau e Mouffe (1985), Aglietta afirma que o momento
13
Ver nota anterior sobre a dicotomia entre “novos” movimentos sociais e “velhos” movimentos sociais.
14
Esta nova conjuntura de emergência e politização de diferentes hierarquias sociais pode ser compreendida,
segundo Laclau e Mouffe (1985), a partir de três aspectos: a) “mercantilização” das diferentes esferas sociais; b)
construção do Estado de Bem-Estar Social; c) expansão dos meios de comunicação de massa.
24
fundamental desta reorganização foi a introdução do Fordismo
15
, no inicio do século XX, e
sua intensificação, na década de 1940, transformando a sociedade num vasto mercado. Esta
transformação se deu a partir da criação incessante de novas necessidades, acarretando em
uma penetração da gica de acumulação capitalista em diferentes âmbitos sociais. Assim, os
indivíduos encontravam-se subordinados ao capital, não mais somente nas relações de venda
da força de trabalho, mas em diferentes relações sociais: cultura, educação, lazer, doença etc.
Esta “mercantilização” da vida social propiciou a emergência de lutas que buscavam
resistir às conseqüências geradas por esta reordenação social, como a destruição do meio-
ambiente - devido à intensa produção - ou aos novos problemas para as classes populares,
decorrentes da transferência das mesmas para periferias urbanas, diante da crescente
urbanização das cidades, da escassez de bens e serviços coletivos como habitação, saúde etc.
16
(LACLAU & MOUFFE, 1985). Assim, outras relações sociais, não as relações de
produção, passaram a ser politizadas, sendo construídas lutas contra diferentes formas de
desigualdade e pela reivindicação de novos direitos.
Segundo Doimo (1993), a intervenção do Estado nas sociedades ocidentais
contemporâneas, a fim de garantir e repor relações de troca entre atores incapazes de se
manter nestas relações, acarretou na seguinte condição: “em vez de ser somente um Estado
dentro da sociedade capitalista, agora é a dinâmica capitalista que passa necessariamente por
dentro dele [do Estado]” (p. 32). Desta maneira, o fundo público do Estado passa a financiar
tanto a acumulação do capital quanto a força de trabalho, e, ao se instituir o Estado de Bem
Estar Social, a natureza dos conflitos sociais é alterada, passando estes a se articular em torno
do Estado.
De acordo com Laclau e Mouffe (1985), por um lado, o Estado de Bem Estar Social
foi necessário para a acomodação do novo regime capitalista de produção, de modo a
construir acordos entre capital-trabalho, intervindo o Estado na reprodução da força de
trabalho em função das necessidades do capital. Por outro lado, o Estado de Bem Estar Social
proporcionou a emergência de lutas contrárias a mudanças provocadas pelo capitalismo nas
relações sociais, como nas redes tradicionais de solidariedade de uma comunidade ou de tipo
familiar. Assim, sob pressão destas lutas, o Estado foi forçado a suprir diferentes demandas
15
Compreendido por Aglietta como produtor da “articulação entre um processo de trabalho organizado em torno
de uma linha de produção semi-automática, e um modo de consumo caracterizado pela aquisição individual de
mercadorias produzidas em larga escala para consumo privado” (LACLAU & MOUFFE, 1985, p. 160, tradução
nossa)
16
Estes movimentos que tinham como pauta a escassez de bens e serviços, o direito à cidade pelas classes
populares, entre as diferentes denominações concebidas, foram tratados na América Latina como movimentos
populares urbanos (DOIMO, 1993; SADER, 1988; DAGNINO, 2000; BAIERLE, 2000).
25
relativas a serviços sociais em relação à saúde, ao desemprego e, diante de lutas dos
trabalhadores, assegurar alguns benefícios para a classe trabalhadora referentes a salário
mínimo, duração da jornada de trabalho, etc.
Além disso, ressaltam Laclau e Mouffe (1985), a intervenção do Estado em diferentes
níveis da reprodução social foi acompanhada por um crescimento da burocratização do Estado
e, assim, de múltiplas formas de vigilância e regulação em relações sociais concebidas como
privadas. Esta alteração na demarcação entre público e privado produziu efeitos ambíguos:
por um lado, revelou o caráter político das relações privadas, por outro lado, impôs novas
formas de subordinação, propiciando a emergência de numerosas lutas contra a
burocratização do Estado (LACLAU & MOUFFE, 1985).
Ademais, esta reformulação na fronteira entre público e privado e a afirmação de
direitos sociais acarretaram na necessidade de uma redefinição da noção liberal de cidadania,
legitimando demandas por igualdade econômica e por novos direitos sociais, possibilitando,
assim, um aprofundamento da revolução democrática.
No intuito de salientar esta redefinição na noção liberal de cidadania, Dagnino (2000)
aponta que, se existem semelhanças de vocabulário entre a definição de cidadania na tradição
liberal e a definição de cidadania construída pelos movimentos sociais contemporâneos
caracterizada pela luta pelo “direito a se ter direito” -, como no uso dos termos democracia e
direito, há também distinções significativas entre estas duas noções.
Primeiramente, a nova noção de cidadania rompe com uma essência universal dada e
afirma a construção histórica do significado e conteúdo da cidadania, não estando estes
previamente definidos e delimitados como na perspectiva liberal.
Também, promove uma redefinição na idéia de direitos, na medida em que seu ponto
de partida é a concepção de um direito a ter direitos, não se limitando a conquista de direitos
previamente definidos ou à efetiva implementação de direitos formais abstratos, incluindo a
invenção/criação de novos direitos a partir da construção de lutas políticas. Ademais, esta
redefinição da noção de direitos se pauta não só no direito à igualdade, mas também no direito
à diferença, na busca por aprofundar e ampliar o direito à igualdade.
Além disso, de acordo com Dagnino (2000), a nova noção de cidadania está vinculada
não a uma estratégia das classes dominantes ou do Estado de uma incorporação gradual dos
setores excluídos, como uma condição legal e política necessária para a instalação do
capitalismo, mas sim é fundada por aqueles considerados como subcidadãos e que passam a
decidir quais devem ser seus direitos e lutar pelo reconhecimento destes.
26
A redefinição da noção de cidadania diferencia-se da noção liberal também por
transcender à idéia de inclusão num sistema político dado, no sentido em que coloca em
questão a própria definição deste sistema e o direito a participar na invenção de uma nova
sociedade, apontando o reconhecimento dos direitos de cidadania para transformações
radicais nas sociedades e na estrutura das relações de poder.
Por fim, segundo Dagnino (2000), a ênfase no “tornar-se cidadão”, diante da difusão
de uma “cultura de direitos”, aponta para mais uma distinção com a noção liberal: a nova
cidadania não se limita à aquisição formal e legal de um conjunto de direitos, é também um
projeto para uma nova sociabilidade, buscando construir relações igualitárias em todos os
níveis, inclusive novas regras para viver em sociedade. Desta maneira, implica em reconhecer
o outro como portador de interesses válidos e direitos legítimos. Para Dagnino (2000), na
constituição de uma dimensão pública de cidadania, na qual os direitos se consolidam como
parâmetros públicos de interlocução, questiona-se não o autoritarismo social presente na
sociedade, mas também o discurso liberal que estabelece o interesse privado como a medida
de tudo, negando a alteridade e, assim, a dimensão ética da vida social.
Junto a esta redefinição na noção de cidadania fez-se necessário também uma
ampliação da noção de política, devendo esta ser compreendida para além
das atividades específicas (votar, fazer campanha ou lobby) que ocorrem em espaços
institucionais claramente delimitados [...]; ela deve ser vista como abrangendo
também lutas de poder realizadas em uma ampla gama de espaços culturalmente
definidos como privados, sociais, econômicos, culturais e assim por diante
(ALVAREZ et al., 2000, p.29).
Outro aspecto importante a se considerar na análise da emergência dos movimentos
sociais contemporâneos são os modos de difusão cultural, segundo Laclau e Mouffe (1985).
De um lado, a expansão dos meios de comunicação de massa acarretou na massificação e
uniformização social; de outro lado, possibilitou o abalo de identidades tradicionais ao
propiciar o questionamento da naturalização destas identidades, a partir da compreensão da
contingência das relações sociais e da aparente igualdade pregada pela sociedade de consumo,
possibilitando a diferentes grupos politizarem diferentes formas de subordinação.
Portanto, a emergência de novas lutas e radicalização de lutas antigas, como aquelas
realizadas pelas minorias étnicas e pelas mulheres, precisa ser entendida a partir da
“transformação das relações sociais característica da nova formação hegemônica do período
pós-guerra, e dos efeitos do deslocamento em novas áreas da vida social do imaginário
igualitário constituído em torno do discurso democrático-liberal” (LACLAU & MOUFFE,
27
1985, p. 165, tradução nossa). Deslocamento este compreendido por neo-conservadores como
um “excesso de democracia” e uma “onda de igualitarismo” que acarreta numa sobrecarga
dos sistemas políticos ocidentais.
Os aspectos salientados por Laclau e Mouffe (1985) – “mercantilização” da vida
social, implementação do Estado de bem-estar social, expansão dos meios de comunicação de
massa - auxiliam a compreender a conjuntura política das sociedades ocidentais
contemporâneas pós-Segunda Guerra Mundial. Contudo, por se focarem, sobretudo, na
análise dos países de capitalismo avançado, tratar tais aspectos na compreensão da
emergência dos movimentos sociais contemporâneos em países como o Brasil requer
reconhecer algumas especificidades.
1.1.1 O contexto brasileiro e a emergência dos movimentos sociais
contemporâneos
Ao analisar “movimentos populares urbanos” brasileiros, Doimo (1993) ressalta a
necessidade de se reconhecer a construção de um “Estado de mal-estar-social” no país. Em
países em que um “Estado de bem-estar social” foi constituído, o Estado ampliou suas ações
para diferentes âmbitos da sociedade e criou uma base própria de acumulação. Entretanto,
diferente do que ocorreu naqueles países, tal expansão do Estado em sociedades em que se
constituiu um “Estado de mal-estar social” não foi acompanhada pela construção de
instituições democráticas estáveis e pelo combate a desigualdades sociais proeminentes. Esta
expansão do Estado no Brasil não só fez dele um ator estruturante das relações sócio-
econômicas, como também o colocou como gestor do desenvolvimento e produtor direto,
acarretando numa dinâmica onde as políticas públicas decorriam muito mais de decisões de
poder do que de conflitos de classe, resultando numa burocracia forte e poderosa e numa
sociedade marcada por uma “desarticulação social” ou seja, numa intervenção estatal que
financia a reprodução do capital sem financiar a reprodução da força de trabalho. Desta
forma, de acordo com Doimo (1993), Oliveira afirma que o Estado se expandiu através de
uma “regulação truncada”, marcada pela ausência de regras estáveis e pela ausência de
direitos, persistindo profundas desigualdades no país.
Assim, ressalta a autora, a cultura política brasileira fundou-se sobre uma concepção
hierárquica do mundo, imprimindo relações clientelistas intensas em detrimento da cidadania
política que jamais consolidou uma verdadeira esfera pública. A versão brasileira do Estado
28
de bem-estar social, segundo Doimo (1993), desta maneira, não alterou os conflitos de classe,
como se observou nas sociedades européias, e sim serviu para descaracterizar e corromper as
relações de classe.
Entretanto, apesar da construção deste “Estado de mal-estar social” no Brasil, Doimo
(1993) afirma que isso não significou a inexistência de uma “socialização da política” e de
uma posição liminar entre Estado e mercado na construção dos conflitos de ação-direta, sendo
a diferença com relação aos países de capitalismo avançado, marcada pelo fato de que
enquanto nestes “as carências são visivelmente dotadas de maior sofisticação como, por
exemplo, proteção ao meio ambiente, liberação sexual, direito ao aborto e paz mundial -, no
Brasil elas passam pela sobrevivência imediata” (DOIMO, 1993, p. 36). O desemprego é,
talvez, a única coincidência relevante em ambos os contextos
17
.
Neste sentido, Doimo (1993) ressalta que seja “bem-estar social” ou “mal-estar
social”, o importante a se ressaltar nesta conjuntura de emergência dos movimentos sociais
contemporâneos é a construção de uma nova estrutura de direito, não mais ligada diretamente
ao trabalho, mas ao fundo público do Estado nas sociedades ocidentais contemporâneas a
partir da década de 1970.
Outra consideração importante, relativa à emergência dos movimentos sociais
contemporâneos no Brasil, são as matrizes discursivas (Cf. SADER, 1988) que serviram de
fonte para estes novos sujeitos políticos interpretarem e politizarem suas experiências
cotidianas, mesclando-as, transformando-as a fim de fazerem visíveis subordinações
17
É importante salientar, entretanto, que, na década de 1970, se observa também no Brasil a emergência de
movimentos sociais LGBT, movimento feminista, movimento ecológico, etc. os quais trazem para a esfera
pública pautas apresentadas por Doimo (1993) como características de movimentos sociais que emergiram nos
países de capitalismo avançado meio ambiente, liberação sexual, direito ao aborto. Assim, os movimentos
sociais que emergem no Brasil, no contexto das décadas de 1970 e 1980, não se reduziam à luta pela
sobrevivência imediata. Entretanto, diante do “Estado de mal-estar social” implementado no Brasil, as
desigualdades sócio-econômicas e a necessidade de se lutar por bens e serviços básicos (moradia, educação,
saúde, etc.) se configurou de forma muito mais acirrada do que nos países onde se constituiu um Estado de bem-
estar social. Além disso, cabe considerar que vivíamos no país um quadro de ditadura militar, o que levou a
reivindicações por reconhecimento (feminista, LGBT, racial, etc.) serem sobrepostas, na época, pelo combate ao
regime autoritário e pela redemocratização do Brasil, bem como a dificuldades na organização dos movimentos
sociais. No que tange ao movimento LGBT brasileiro, por exemplo, segundo Green (2000), a repressão e a
ampliação da censura no Brasil, a partir do Ato Institucional mero 5 (AI-5), é um fator fundamental a se
considerar quanto à primeira organização duradoura e bem-sucedida de defesa dos direitos homossexuais,
denominada “SOMOS: Grupo de Afirmação Homossexual”, que surgiu apenas em 1978, quando já havia
condições propícias para a construção de movimentos politizados pelos direitos dos homossexuais no Brasil, no
fim dos anos 1960. Podemos citar como algumas destas condições: o aparecimento de uma subcultura
homossexual no Rio de Janeiro e em São Paulo na virada do século XIX para o século XX, a ampliação da
apropriação do espaço público por homossexuais no decorrer do século XX, a crítica aos padrões tradicionais de
gênero, publicação de jornais caseiros por alguns homossexuais e tentativas de construção de grupos de
discussão sobre a homossexualidade, a influência do movimento gay internacional, a auto-afirmação de uma
nova identidade gay marcada pelo questionamento das noções hegemônicas da homossexualidade, que a
consideravam um comportamento pervertido e doentio (GREEN, 2000).
29
invisibilizadas e reivindicarem como direitos, e não mais como favores, mudanças nas
condições de desigualdade e exclusão experenciadas na vida cotidiana.
As experiências da ‘voragem do progresso’ com a remodelação incessante da
paisagem urbana e as mudanças repetidas de casas e trajetos, as longas distâncias, a
casa própria como sonho e/ou como realidade, o acesso a novos bens de consumo e
a linguagem da televisão, o ritmo fabril de cada dia -; as experiências de aculturação
dos migrantes na selva urbana e da mobilização das relações informais para
enfrentar os desafios; as experiências do desemprego e do despotismo fabril, das
diferenças de exploração entre profissionais e peões, jovens e velhos, homens e
mulheres, já vividas carregadas dos significados culturais instituídos, foram
reelaborados através dos movimentos sociais (SADER, 1988, p. 142).
Sader (1988) apresenta matrizes discursivas promovidas por “três instituições em
crise” que influenciaram na organização dos movimentos sociais que emergiram no país nas
décadas de 1970 e 1980: 1) a Igreja Católica, que sofria a perda da influência sobre o povo,
sendo criadas as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), a partir da matriz discursiva da
Teologia da Libertação, a qual apresentava raízes profundas na cultura popular e se apoiava
na organização da Igreja; 2) os grupos de esquerda, desarticulados por derrotas políticas,
buscando novas formas de integração com os trabalhadores, através da matriz marxista,
teoricamente consistente no que tange aos temas da exploração e da luta sob e contra o
capitalismo; 3) a estrutura sindical, esvaziada por falta de função, sendo criado o “novo
sindicalismo”, pautado no papel sindical de agenciar os conflitos trabalhistas.
Diante do contexto de perda de influência da Igreja junto à população mais pobre, a
partir da década de 1950, frente ao crescimento do pentecostalismo e da umbanda, iniciativas
progressistas começaram a emergir de dentro da Igreja a fim de se aproximar da população
marginalizada, denunciando as injustiças vigentes e promovendo uma contestação política
conjuntamente com o “povo”. Estas ações foram estimuladas pelo Concílio Vaticano II, que
falava da Igreja como “povo de Deus”, referindo-se à participação ativa de grupos
comunitários, e pela Conferência de Medellín, organizada para aplicar as diretrizes daquele
Concílio ao continente latino-americano, fazendo um chamado para uma presença mais
intensa da Igreja na transformação da América Latina. Esta parte da Igreja buscava construir
uma “nova Igreja”, pautada na matriz discursiva da teologia da libertação e marcada pela
criação das Comunidades Eclesiais de Base, tendo como fim, a partir de reflexões sobre
valores do cristianismo, que o “povo” deixasse de tratar as privações vividas como fatalidades
e, assim, constituíssem reivindicações não no campo do “favor”, e sim como um direito, tendo
a Igreja aberto, deste modo, um espaço de legitimidade por onde protestos de mudança
sufocados puderam ser proclamados.
30
Nesta “nova Igreja”, a “salvação” é anunciada na construção de uma vida mais
humana, caracterizada por atributos cristãos de humanidade, entre eles o ‘espírito de
pobreza’, o reconhecimento de valores supremos e a fé em Deus, a caridade de Cristo”
(SADER, 1988, p. 154). Ademais, é afirmada não como uma conquista passível de ser
alcançada individualmente, mas pela construção de comunidades que tivessem como centro a
eucaristia, mantendo a Igreja viva.
Desta maneira, se a Igreja se abre para o reconhecimento das lutas “humanas”, ela
também normatiza o que é “verdadeiramente humano”, julgando os atos humanos a partir de
sua doutrina, reafirmando o papel central da “família cristã” na preservação da moralidade e
no combate a “uniões ilegais”, ao “divórcio”, às “desordens sexuais”, ao “hedonismo”, ao
“erotismo”, reproduzindo diferentes formas de opressão.
Assim, por um lado, a Igreja se apresenta como um ator importante na emergência de
sujeitos políticos no Brasil, tendo as CEB reformulado a estratégia de caridade da Igreja em
direção a uma estratégia de libertação do povo. Buscava não só mitigar a fome dos humildes,
mas atacar os fundamentos que reproduziam a injustiça social, vendo nos pobres a
possibilidade de serem conscientes na luta por sua própria libertação.
Por outro lado, a valorização do cotidiano e da cultura na luta política pelos
movimentos sociais contemporâneos - sendo as relações de reprodução da existência o mais
novo lócus de conflito político para a transformação social - serviu à Igreja como
possibilidade de reprodução de seus interesses frente a efeitos da modernidade do mundo
urbano industrial:
desenraizamento das massas e a atomização da existência, a complexa divisão do
trabalho e a fragmentação dos papéis sociais, o apego a práticas seculares e o
desencantamento do mundo, a monetarização das relações e a perda do sentimento
de solidariedade, o avanço da racionalidade das instituições e o desapego às relações
do tipo primário, especialmente às referidas à família e à religião (DOIMO, 1993, p.
55).
No que toca a matriz discursiva da esquerda política, segundo Sader (1988), a
esquerda revolucionária dos anos 1960 - contemporânea da revolução cubana, da revolução
cultural chinesa, da guerra do Vietnã, do maio de 68, das guerrilhas latino-americanas - havia
colocado a revolução como tema da atualidade. Desta maneira, revivia o dualismo condições
objetivas/condições subjetivas, considerando que diante das primeiras faltava a
organização de um partido ou de uma vanguarda que viesse tirar o sujeito revolucionário do
seu “torpor”.
31
Esta “nova esquerda”, de acordo com Sader (1988), se alcançou seu apogeu a partir
da construção de lutas de rua, em 1968, e de lutas armadas, em 1969 (como no seqüestro do
embaixador norte-americano), e em 1971, em oposição a lutas reformistas, foram estes
mesmos enfrentamentos que acarretaram em sua derrota. Tal derrota se consolidou não apenas
pela repressão cada vez mais pesada das salas de tortura da polícia e das forças armadas; mas
também por aquilo que toca na própria identidade da esquerda: os “sujeitos revolucionários”
não tiveram participação naqueles enfrentamentos produzidos pela esquerda, quando o que se
esperava era que diante da abertura do caminho pela vanguarda, as massas populares iriam
intervir na construção do processo revolucionário. A ligação entre as “vanguardas
revolucionárias” e as “massas trabalhadoras” não se fazia presente, gerando, assim, um
processo de auto-crítica pela esquerda, referente a como mobilizar aquelas massas, buscando
os militantes atuar em pequenos círculos, na tentativa de aglutinar os trabalhadores,
colocando-se uma dualidade entre estratégias revolucionárias e a realização de pequenas
atividades junto aos trabalhadores.
Segundo Sader (1988), este momento de crise da esquerda brasileira ocorreu no
mesmo momento em que teses marxistas estavam a ser criticadas internacionalmente, não
por razões teóricas, mas também pelo “desencantamento” com o “socialismo real”; e num
momento histórico do Brasil no qual, diante da ditadura militar, as possibilidades de
comunicação da esquerda com aqueles que objetivava mobilizar para a luta política se faziam
escassas. As idéias da esquerda atravessaram a reelaboração das experiências populares a
partir, sobretudo, do espaço das pastorais católicas, de maneira a proporcionar aos discursos
destas pastorais uma compreensão das lutas de classe e das condições da sociedade capitalista.
[a] situação de clandestinidade [das organizações de esquerda] definia um “público”
quase conspirativo: eram os próprios militantes e, dentre suas áreas de influência,
aqueles restritos setores nos quais se poderia ter confiança para entregar um
documento clandestino. Essa relação com seu “público” definia sua linguagem,
referida a um universo de significados decifrado apenas por essa franja reduzida de
leitores. É certo que haviam também os jornais clandestinos voltados para um
público mais amplo [...] Mas, obrigados à clandestinidade, tampouco puderam
constituir verdadeiramente um público. Procurando referir as questões da atualidade
à luta revolucionária contra o regime, tinham por público os setores que de algum
modo reconheciam tal problemática. [...] Mas mesmo essa ressonância foi diminuída
na medida em que as mensagens manifestavam uma enorme falta de aderência à
realidade vivida pela população. [...] E por isso mesmo os aspectos das formulações
marxistas que circularam mais fluentemente e desempenharam importante papel nas
elaborações dos movimentos sociais não foram os referidos às diretrizes estratégicas
e nem mesmo às palavras de ordem; foram principalmente os que falavam do
funcionamento do capitalismo, da exploração da classe operária, das suas formas de
luta, das experiências da sua história (SADER, 1988, 176-177).
32
Segundo Dagnino (2000), uma das principais contribuições na reformulação do
pensamento da esquerda latino-americana, durante as décadas de 1970 e 1980, foram aquelas
desenvolvidas por Gramsci referentes a uma imbricação entre cultura, política e economia
18
.
Esta influência de Gramsci decorreu, segundo a autora, da possibilidade de a esquerda em
crise revisar seu pensamento, sem que isso acarretasse numa ruptura traumática com os ideais
socialistas e com a capacidade crítica do marxismo. De igual modo, as idéias de Gramsci
permitiram examinar a especificidade histórica das sociedades latino-americanas, sobretudo
as relações entre Estado e sociedade, e também possibilitaram enfrentar desafios políticos
decorrentes de novos processos políticos que estavam tomando forma, por exemplo, a
identificação da democracia como um conceito unificador da luta política contra os regimes
autoritários vigentes nos países latino-americanos.
Assim, mediante o conceito de hegemonia e da noção de transformação social, não
como decorrência de um ato insurrecional de tomada de poder do Estado ou como um
processo fatalista e predeterminado; e sim como uma construção histórica em que se
privilegia o papel da agência e se concebe o poder não como uma “coisa”, mas como uma
relação entre forças sociais que necessita ser transformada, foi consolidada na esquerda latino-
americana uma concepção alternativa ao marxismo clássico.
Até então, se a esquerda na América Latina se pautava no conceito de ideologia -
tratando a cultura, sobretudo a cultura popular, como domínio da alienação -, e no conceito de
Estado - entendido “como uma condensação das relações de poder e como o locus específico
da dominação na sociedade” (DAGNINO, 2000, p. 64-65), sendo o lugar e o alvo relevante da
luta política -, a leitura predominante da esquerda a partir da influência gramsciana confluía
em torno de três tendências diferentes: “a crítica renovadora do marxismo tradicional, a
ênfase na construção da democracia, com seu correlato fortalecimento da sociedade civil, e
nos interstícios das duas uma nova abordagem da relação entre cultura e política”
(DAGNINO, 2000, p. 70), não subordinando as relações culturais e considerando cultura e
política como constitutivas
19
.
Deste modo, parte da esquerda desdobrou a luta contra o Estado autoritário numa luta
contra todas as formas de autoritarismo, e a introdução da noção de hegemonia no
pensamento da esquerda colocou como questão e buscou responder ao desafio de como fazer
18
Foi também sob a influência da concepção de hegemonia de Gramsci que Laclau e Mouffe desenvolveram a
Teoria Democrática Radical e Plural.
19
Por um lado, a cultura, como um conjunto de significados que integram práticas sociais, não pode ser
analisada sem se considerar as relações de poder embutidas nestas práticas; por outro lado, a análise das relações
de poder não se faz possível sem a compreensão do caráter cultural ativo, já que expressam, produzem e
comunicam significados (Cf. DAGNINO, 2000).
33
com que lutas com objetivos distintos convergissem na formação de vínculos, de maneira a
não permitir com que elas se dispersassem ou se esgotassem no particularismo.
O ‘objetivo único’ e a ‘concepção de mundo comum’ não são pontos de partida,
assegurados por sujeitos e conteúdos pré-definidos, mas uma construção em
processo, uma articulação sempre submetida à reelaboração e renovação, concebida
como base para uma ação política coletiva na direção da transformação social. Além
disso, essa concepção de hegemonia como articulação permite a consideração da
autonomia dos diferentes sujeitos e dos processos de construção de suas próprias
identidades coletivas [...]. Para seus defensores, essa visão expressa várias
motivações, entre elas o desejo de romper com o reducionismo econômico sem cair
no pluralismo liberal e a necessidade de dar conta da diferença sem deixar de lado a
preocupação histórica com a igualdade. Ademais, o tratamento desses novos atores
[movimentos sociais contemporâneos] estava intimamente ligado à expectativa de
fazer avançar a socialização da política na sociedade civil como base de uma
socialização radicalmente democrática de poder (DAGNINO, 2000, p. 73)
20
.
Em relação ao “novo sindicalismo”, Sader (1988) afirma que diante do contexto de
repressão e controle sobre os sindicatos pela ditadura militar, estes acabaram por ficar
esvaziados no que tange ao seu caráter reivindicativo, passando a exercer somente funções
meramente assistenciais. Entretanto, se a maioria dos sindicalistas apenas reproduzia esta
situação, em categorias em que conflitos fabris localizados geravam maiores pressões sobre os
sindicatos, ocorreram ou mobilizações fabris das bases contrárias às direções sindicais ou a
absorção pelos dirigentes das inquietações das bases sindicais, o que alterou a prática sindical.
É neste contexto que emerge, na década de 1970, uma corrente sindical renovadora
denominada de “novo sindicalismo” ou ‘sindicalismo autêntico’, que buscava assumir as lutas
reivindicativas das bases.
Deste modo, se , por um lado, o discurso emitido pelo novo sindicalismo se localiza no
interior dos sindicatos portanto de dentro da institucionalidade estatal, o que impunha sérias
limitações a suas falas e movimentos; por outro lado, assumia o papel institucionalmente
definido – de agenciadores dos conflitos trabalhistas, o que tornava legítimas as suas ações em
defesa dos interesses específicos dos trabalhadores, gerando “discursos capazes de interpelar
as mentalidades formadas pelos discursos dominantes” (SADER, 1988, p. 184). Deste modo,
absorvia as pressões da base de maneira a exigir o respeito aos trabalhadores, a dignidade dos
mesmos, o recebimento (material e moral) daquilo que mereciam, a partir de brechas legais,
objetivos e formas de ação consideradas legítimas para confrontar as autoridades.
20
Segundo Dagnino (2000), é importante salientar que a leitura da hegemonia pelos autores latinos foi realizada
mediante interesses teóricos que correspondiam àquelas motivações. Desta forma,, eles deixaram de lado
aspectos das contribuições de Gramsci que fossem problemáticos para a afirmação da pluralidade de sujeitos
políticos e para a crítica ao reducionismo econômico.
34
Nesta conjuntura política, caracterizada por estas matrizes discursivas, que emergem
os movimentos sociais contemporâneos brasileiros. Segundo Dagnino (2000), se estes
movimentos foram vistos como participantes da luta pela democratização desde o seu inicio,
na resistência ao regime autoritário, após 1985 passaram a ter seu papel de sujeitos políticos
na expansão e aprofundamento da democracia questionado por alguns teóricos. Para a autora,
este questionamento encontra-se pautado no privilégio da dimensão institucional do processo
democrático, não conseguindo tais analistas reconhecerem exatamente a existência de
disputas entre concepções alternativas de democracia e de arena política, invisibilizando
dimensões do processo de democratização historicamente valorizados por aqueles excluídos
da democracia representativa tradicional.
Neste mesmo sentido, segundo Baierle (2000), a centralidade conferida por alguns
autores aos âmbitos institucionais e técnicos da política parece se pautar na idéia de que fosse
preciso primeiro transformar as populações marginalizadas, pela força do Estado, em clientes,
para só depois conquistarem a condição de cidadãos:
o argumento básico aqui é de que os setores populares organizados – o campo
popular – representam uma parcela muito pequena da população, estando ainda
eivados de contradições internas e sendo incapazes, devido ao seu corporativismo
atávico, de atingir um nível de ação voltado para a sociedade como um todo, com
soluções objetivas e ágeis sobre os problemas diagnosticados (p. 186).
Diante disso, segundo Dagnino (2000), é importante enfatizar as implicações culturais
na análise política da luta dos movimentos sociais contemporâneos de modo à visibilizar
dimensões negligenciadas na luta política e reconhecer
a capacidade dos movimentos sociais de produzir novas visões de uma sociedade
democrática, na medida em que eles identificam a ordem social existente como
limitadora e excludente com relação a seus valores e interesses. Embora possam ser
fragmentárias, plurais e contraditórias, essas contestações culturais não devem ser
vistas como subprodutos das lutas políticas, mas como constitutivas dos esforços dos
movimentos sociais para redefinir o significado e os limites da própria política (p.
81).
O reconhecimento de mudanças culturais como fundamentais para o processo de
democratização foi de suma importância para os movimentos de mulheres, negros e outros,
dirigindo suas lutas no enfrentamento da cultura autoritária brasileira que demarca espaços
específicos nos diferentes âmbitos sociais a partir de diferenças de raça, classe, gênero e
outros. O que pouco se reconhece, segundo Dagnino (2000), é que também os movimentos
populares urbanos produziram esta compreensão da imbricação entre cultura e política ao
35
perceberem que não tinham que lutar apenas por seus direitos sociais moradia,
saúde, educação, etc. mas pelo próprio direito a ter direitos [...] [na medida em
que] ser pobre significa não apenas privação econômica e material, mas também ser
submetido a regras culturais que implicam uma completa falta de reconhecimento
das pessoas pobres como sujeitos, como portadores de direitos. [...] Essa privação
cultural imposta pela ausência absoluta de direitos, que em última instancia se
expressa como uma supressão da dignidade humana, torna-se então constitutiva da
privação material e da exclusão política (p. 82).
Esta conexão entre cultura e política, segundo Dagnino (2000), realizada pelos
movimentos populares urbanos, possibilitou a estes estabelecer um campo comum de
articulação com outros movimentos sociais mais culturais como étnicos, de mulheres, de
homossexuais, ecológicos e de direitos humanos
21
na busca de se construir relações mais
igualitárias em todos os níveis sociais.
É importante ressaltar que “a ênfase na sociedade civil e nas práticas culturais que
subjazem às relações sociais como arenas de luta dos movimentos sociais pela
democratização não deve ser entendida como uma opção restritiva que excluiria, novamente,
o Estado e a institucionalidade política como arenas secundárias.” (DAGNINO, 2000, p. 93).
Condição que, segundo a autora, pode ser visualizada no fato de que tanto movimentos
populares urbanos quanto “movimentos sociais mais amplos” (mulheres, negros,
homossexuais, etc.) encontram-se vinculados a partidos políticos e consideram o voto como
instrumento importante de participação na sociedade
22
. Entretanto, ressalta a autora, esta visão
positiva não ocorre de modo complacente, coexistindo com uma clara demanda pela
ampliação do conteúdo democrático desses mecanismos.
A politização de diferentes formas de subordinação por diferentes sujeitos políticos,
observadas nas últimas décadas nas sociedades contemporâneas, encontra-se, segundo
Dagnino (2000), articulada a uma redefinição da noção de cidadania, construída a partir da
compreensão pelos movimentos populares urbanos das suas reivindicações como direitos e da
afirmação da luta dos movimentos sociais - como o de mulheres, negros, homossexuais
como uma luta pelo direito à igualdade e à diferença. Esta redefinição da noção de cidadania
21
É importante salientar este campo comum de luta entre os diferentes movimentos sociais contemporâneos
frente à importância de se questionar dicotomias entre movimentos sociais por redistribuição e movimentos
sociais por reconhecimento, na medida em que, como apontado por diferentes autores (BUTLER, 2000;
FRASER, 1997; MACHADO e PRADO, 2005; SOUZA, 2003), observa-se uma retroalimentação entre
“injustiças econômicas” e “injustiças culturais”, bem como uma mistura de ambas nas reivindicações de
diferentes movimentos sociais contemporâneos.
22
Considero que, no caso brasileiro, após a “desesperança” produzida pelo governo Lula, parte dos movimentos
sociais contemporâneos apresentam uma visão menos positiva quanto à possibilidade de, pelo sistema eleitoral,
se construir uma sociedade mais igualitária, na qual se implementem políticas em direção às reivindicações dos
movimentos sociais. Contudo, isso não significa a exclusão da atuação por vias institucionais, ainda que alguns
grupos critiquem esta forma de atuação.
36
acarretou a construção de novas identidades como sujeitos portadores de direitos e significou
uma ruptura com estratégias políticas caracterizadas por relações de favor, clientelismo, tutela
e subordinação, muito presentes na história brasileira - e ainda hoje observadas - que reforçam
a cultura autoritária do país, na medida em que não questionam os sistemas de classificação e
exclusão existentes.
De acordo com Baierle (2000), após a década de 1930, a cidadania das classes
populares deixou de ser, gradativamente, apenas questão de polícia, passando a ser tratada
num jogo de barganha que, por um lado, se caracterizava pela proteção social e, por outro,
pela subordinação política em troca de direitos sociais. A partir de 1980, esta gica foi
redefinida em razão de duas crises: “crise de expansão da arena política”, caracterizada pela
interpelação de setores excluídos pelo regime militar; “crise do modo de regulação”, pautada
no estrangulamento externo da economia e insuficiência do Estado em manter o ritmo de
investimentos e absorver os custos da dívida externa. Segundo o autor, a opção pelo Consenso
de Washington e a defesa da idéia, pelas classes dominantes, de que fora do ajuste monetário
não haveria salvação (idéia esta consolidada nos dois governos de Fernando Henrique
Cardoso), se, por um lado, aquietou as tensões dos grandes empresários internacionalizados e
estava amparada no controle dos meios de comunicação, por outro, deixou em aberto a
questão da ampliação social da base política do sistema, tendo as políticas sociais produzido
nada mais do que a ampliação do apartheid social.
Neste contexto de implementação do neoliberalismo, a partir do final da década de
1980, a noção redefinida de cidadania pelos movimentos sociais “direito a ter direitos”
continuou presente nas lutas populares e práticas políticas de alguns partidos políticos como o
PT. Contudo, versões neoliberais de cidadania se tornaram predominantes em toda América
Latina, redefinindo o domínio político e seus participantes, através de uma concepção
minimalista de Estado e de democracia. Estas versões trabalham, por um lado,
com uma visão de cidadania como uma sedutora integração individual ao mercado.
Por outro lado, [atuam] sistematicamente para a eliminação dos direitos
consolidados, transformando seus portadores/cidadãos nos novos vilões da nação,
inimigos privilegiados das reformas políticas que pretendem diminuir as
responsabilidades do Estado. Ademais, os gastos sociais são dirigidos na reversão
daquilo que foi o grande passo na organização dos movimentos sociais, que tornou
possível o próprio surgimento da nova cidadania, a definição de necessidades como
direitos (DAGNINO, 2000, p. 84),
sendo estes transformados em caridades públicas para carentes, e, assim, definidos à margem
da participação da sociedade civil.
37
Apesar de inúmeras dificuldades enfrentadas e em enfrentamento, os movimentos
sociais “ao politizar o que não é concebido como político, ao apresentar como público e
coletivo o que é concebido como privado e individual, desafiam a arena política a alargar seus
limites e ampliar sua agenda” (DAGNINO, 2000, p. 95).
1.2 Teoria democrática radical e plural: importantes aspectos na
análise dos movimentos sociais contemporâneos
De acordo com Laclau (1993b), nas últimas décadas, observamos a emergência e
politização de diferentes hierarquias sociais; o declínio da classe trabalhadora como um
sujeito político nos países pós-industriais, devido mudanças estruturais do capitalismo; a crise
e descrédito do modelo de sociedade implantado nos países socialistas, incluindo a promoção
de novas formas de dominação, estabelecidas em decorrência da ditadura do proletariado.
Estas transformações históricas acarretaram a necessidade, para se intervir na história de
nosso tempo, de se repensar a teoria marxista, rompendo com elementos-chave como a noção
de uma sociedade suturada e de um agente necessário e privilegiado da História.
Desta maneira, Laclau e Mouffe (1985) propõem a (re)construção de um projeto para a
esquerda num terreno pós-marxista, ou seja, num terreno caracterizado pela consideração de
que a teoria marxista pode auxiliar na construção de um novo pensamento para a esquerda
através da “preservação de alguns de seus conceitos, transformação ou abandono de outros, e
diluição de outros na infinita intertextualidade de discursos emancipatórios que a pluralidade
do social tem modelado” (p. 05, tradução nossa).
Este novo projeto, denominado pelos autores de projeto de democracia radical e
plural
23
, afirma a necessidade de se construir uma nova positividade do social, baseada no
respeito ao direito de igualdade de todos os grupos subordinados e, ao mesmo tempo, na
compreensão de que esta nova positividade do social nunca pode ser plena, pois é
continuamente penetrada por uma precariedade constitutiva, não existindo um fundamento
transcendente ou subjacente a ela, devendo a igualdade sempre ser limitada e complementada
pela demanda da liberdade (Cf. LACLAU & MOUFFE, 1985). De acordo com Mouffe
(1996):
23
Hegemonia e Estratégia Socialista: em direção a uma Teoria Democrática Radical e Plural (1985) é o
principal livro no qual Laclau e Moufe desenvolvem os pressupostos de sua Teoria Democrática Radical e
Plural.
38
Fundamental nesta abordagem é a consciência de que uma democracia pluralista
contém um paradoxo: o próprio momento da sua realização seria também o início da
sua desintegração. [...]. Portanto, uma tal democracia será sempre uma democracia
‘futura’, uma vez que o conflito e o antagonismo são simultaneamente condição de
possibilidade e condição de impossibilidade de sua total realização (p. 19).
Segundo Laclau (1993a), na obra de Marx, mais especificamente em O Prefácio à
Contribuição Crítica da Economia Política e no Manifesto Comunista, observa-se, por um
lado, uma teoria da história baseada na contradição entre forças produtivas e relações de
produção; por outro lado, uma descrição que pressupõe a natureza antagônica das relações de
produção nas sociedades de classe, ou seja, a luta de classe.
A coerência lógica do esquema marxista depende, segundo Laclau (1993a), da
possibilidade teórica de integrar a luta de classes à teoria geral da mudança histórica, sendo
possível, a partir deste ponto, pressupor três saídas teóricas:
a) Redução do antagonismo (luta de classes) à contradição força produtiva
/ relações de produção. Esta redução se faz impossível pelo fato da luta de classes
caracterizar-se por ser um antagonismo sem contradição, ou seja, a luta de poder
entre grupos não tem como ser compreendida como inerente à contradição entre
força produtiva e relações de produção, pois, apesar de esta contradição implicar
necessariamente num colapso interno às relações de produção, ela não acarreta
automaticamente num enfrentamento entre grupos (sendo, assim, uma contradição
sem antagonismo);
b) Compreensão da luta de classes como inerente a forma das relações de
produção, não por ser determinada pela contradição entre força produtiva e
relações de produção, mas por existir um antagonismo necessário no capitalismo
entre trabalhador assalariado e capitalista. Esta consideração é impossível, segundo
Laclau (1993a), pelo fato das relações capitalistas serem relações entre categorias
econômicas, ou seja, entre vendedor da força de trabalho e comprador da força de
trabalho, sendo as pessoas de carne-e-osso apenas sustentadoras destas relações.
Assim, o antagonismo, ao invés de ser intrínseco às relações capitalistas, é
possível quando o trabalhador resiste à extração da mais-valia por parte do
capitalista, sendo este ato dependente de algo que exista na exterioridade da
relação comprador-vendedor (por exemplo, o imaginário democrático, que postula
a igualdade como um princípio fundamental a ser perseguido), pois não nada
nesta relação que sugira ser aquela resistência uma condição lógica;
39
c) Afirmação da presença irredutível de um “exterior” à relação entre
força produtiva e relações de produção, mas compreendendo este “exterior” na sua
relação com o interior de modo preciso e racional, por exemplo, introduzindo o
pressuposto da subjetividade do agente de maneira a possibilitar a afirmação de
que “o antagonismo é inerente às relações de produção, que aquele tem se
tornado um jogo de soma-zero entre o trabalhador e o capitalista” (Laclau, 1993a,
p. 27, tradução nossa). Esta saída implica em pressupor que as motivações dos
trabalhadores se guiam, assim como a do capitalista, pela maximização da
ganância, naturalizando a motivação dos mesmos e, além disso, contrariando
qualquer relação entre classe trabalhadora e socialismo. Também implica em não
reconhecer que o antagonismo não se constrói como interno à lógica do contrato
entre trabalhador e capitalista, e sim na crítica a este contrato, de modo a
demonstrar as desigualdades que ele pressupõe, negando o trabalhador a
reproduzir o papel de trabalhador que lhe é atribuído por este contrato, condição
que é possível a partir da existência de um elemento exterior à própria relação
de produção.
Diante da insuficiência destas três alternativas de articulação entre a teoria geral da
história e a luta de classe, Laclau (1993a) enfatiza que é possível afirmar que o antagonismo
entre trabalhador e capitalista não é inerente à relação de produção, mas sim proveniente de
uma relação entre as relações de produção e algo que o agente é fora dela, dependendo,
portanto, as relações antagônicas de relações contingentes de poder entre forças que não
podem ser submetidas a nenhum tipo de lógica unificada. Desse modo, a compreensão do
antagonismo implica em analisá-lo não a partir de critérios abstratos e racionalistas, e sim no
interior das possibilidades e condições históricas específicas - nas sociedades democráticas
contemporâneas a revolução democrática, caracterizada pelo questionamento dos marcos de
certeza e pelo discurso de igualdade e liberdade para todos, é uma condição histórica
importante para a construção das diferentes lutas contrárias à subordinação que emergiram na
sociedade desde o século XIX.
Em Hegemonia e Estratégia Socialista: em direção a uma política democrática
radical, Laclau e Mouffe (1985) demonstram que mesmo os autores marxistas que buscaram
superar o economicismo da teoria - como Rosa Luxemburgo, através da teoria da
espontaneidade”; como Lênin, a partir da noção de “aliança de classes”; e Gramsci, com a
noção de “bloco histórico” – reconhecendo a contingencialidade das condições históricas, seja
pela necessidade da classe trabalhadora em assumir o papel da classe burguesa no contexto da
40
Rússia dos fins do século XIX e início do XX; seja pela observação da emergência de
diferentes antagonismos não reduzidos à esfera econômica, acabaram por manter a idéia da
esfera econômica como fundamento último da prática política. Assim, tais autores acabaram
por utilizar a contingência como uma forma de preencher um vazio na confirmação de uma
“necessidade histórica”, reduzindo, assim, seu efeito nas articulações hegemônicas.
Esta preservação do postulado ontológico da luta de classes no debate marxista se
pauta na manutenção de três teses básicas da teoria marxista que, segundo Laclau e Mouffe
(1985), não se sustentam diante da contingencialidade do social aberta pela revolução
democrática: a) tese da neutralidade das forças produtivas, ou seja, que as relações de
produção respeitam leis necessárias alheias à intervenção consciente; b) tese da simplificação
da estrutura social, acarretando numa divisão transparente entre os agentes a partir das
relações de produção; c) tese do interesse histórico da classe trabalhadora no socialismo em
decorrência da posição dos trabalhadores na estrutura social.
Na busca de se compreender os antagonismos contemporâneos e as possibilidades de
se construir um projeto socialista e democrático, através das condições históricas presentes, e
não a partir de categorias abstratas como aquelas mantidas pelos teóricos marxistas, quatro
aspectos fundamentais à análise social contemporânea são discutidos por Laclau (1993a): 1) a
negatividade é constitutiva da identidade, apresentando toda objetividade um caráter
contingente e precário. Portanto, ao se basear na determinação de um sentido objetivo ou
positivo dos processos sociais, o projeto racionalista estava destinado ao fracasso; 2) relações
sociais são relações de poder, pois a construção de qualquer objetividade decorre,
necessariamente, da exclusão de outras alternativas sociais presentes no campo político; 3)
uma primazia do político sobre o social, sendo o campo político aquele que, através da
emergência dos antagonismos, visibiliza a contingência de toda objetividade e o caráter
indecidível de toda alternativa, fazendo com que qualquer decisão seja um ato de poder; 4)
relações sociais são sempre relações históricas, pois decorrem do caráter contingente de
determinada condição de existência social.
1.2.1. Negatividade como constitutiva da identidade
A compreensão de que a negatividade é inerente a toda identidade, como constitutiva
do social, implica em reconhecer a impossibilidade de uma objetividade plena, sendo o
antagonismo o limite de toda objetividade, uma vez que ele não tem sentido objetivo senão o
de impedir que a objetividade se constitua como tal.
41
É importante esclarecer que a noção de antagonismo difere-se da noção de
contradição. Essa distinção decorre, sobretudo, de a contradição fundamentar-se em um
processo dialético no qual a negação é um momento interno e necessário ao próprio sistema,
sendo ela absorvida numa síntese superior contida nos elementos da tese e da antítese.
Diferentemente, a noção de antagonismo implica em um elemento de negação externo e
contingente ao sistema, mas que, ao mesmo tempo, interage com o sistema, pois funciona
como um “exterior constitutivo”. Assim, este elemento impede a totalidade da identidade do
“interior” do sistema, ao mesmo tempo, que é a condição de existência desta identidade, o
podendo ser dialeticamente recuperado pelo fato de possuir uma exterioridade em relação ao
sistema
24
.
Outro ponto importante a se considerar, com relação ao caráter contingente de toda
objetividade, é que a contingência não significa completa ausência da necessidade; caso
contrário, teríamos uma totalidade vazia e encontraríamos apenas pura indeterminação e
impossibilidade de um discurso coerente. Portanto, a contingência não é tratada como uma
negação frontal à necessidade, e sim como uma subversão desta, de modo que, para que o
antagonismo possa mostrar o caráter contingente de uma identidade, esta tem de existir, tem
de se pressupor a afirmação desta identidade
25
. Para Laclau e Mouffe (1985), a afirmação da
plena contingência é uma ameaça à democracia, pois implicaria na ausência de qualquer
referencia à unidade do social, quando esta, apesar de impossível, necessita ser mantida como
um horizonte a fim de impedir a implosão social, ou seja, a ausência de alguma referência
comum entre os sujeitos sociais. Nesse sentido afirmar que tudo é contingente seria um
absurdo, segundo Laclau (1993a), estando as fronteiras entre o contingente e o necessário
constantemente em deslocamento.
24
Neste sentido, a identidade do trabalhador, como um sujeito político, se faz possível mediante o
reconhecimento por parte dos trabalhadores de que o capitalista impede que eles sejam trabalhadores (tenham
direito aos frutos do seu próprio trabalho) e alcancem seus interesses, e que este bloqueio é decorrente de uma
condição de opressão, desvelando a contingência da relação de subordinação a partir da mediação discursiva
propiciada pela universalidade dos princípios de igualdade e liberdade. Assim, o capitalista não é uma oposição
externa ao trabalhador que acarretaria numa negação direta entre estes dois agentes com identidades e interesses
totalmente constituídos (noção de contradição), mas um outro que, se impede a existência do trabalhador, ao
mesmo tempo, possibilita - mediante o imaginário democrático que o trabalhador emerja como um sujeito
político (desvelando a contingencialidade da relação de subordinação) e afirme uma nova positividade do social.
25
Neste sentido, para que os trabalhadores emerjam como sujeito político, faz-se necessário que reconheçam a
existência do capitalista como um outro (“eles”) que impede a existência deles (“nós”), subvertendo o caráter
hegemônico da relação capitalista-trabalhador.
42
1.2.2. Relações sociais como relações de poder
O caráter contingente de toda objetividade acarreta em compreender uma segunda
característica fundamental às relações sociais: a institucionalização de uma objetividade é
sempre um ato de poder, pois acarreta na exclusão de alternativas que lhe eram antagônicas e,
exatamente por serem antagônicas, tiveram de ser suprimidas para que esta objetividade
pudesse se afirmar como “universal”.
Dessa maneira, a precariedade de qualquer objetividade decorre: 1) da impossibilidade
de sua plenitude, uma vez que sua constituição depende da existência de um exterior
constitutivo; 2) dessa impossibilidade se caracterizar como uma relação de poder, no sentido
em que outras alternativas que são antagônicas à objetividade, apesar de existirem, devem ser
continuamente reprimidas para que a objetividade se mantenha sedimentada.
A manutenção de uma objetividade e a conseqüente supressão do que lhe antagoniza
depende de contínuos deslocamentos das relações sociais e da possibilidade desta objetividade
ser decorrência da articulação de um número cada vez maior de significantes, de modo a
permitir uma unificação simbólica que abarque a heterogeneidade das diferentes demandas
sociais.
Esta unificação simbólica, segundo Laclau (2005), só é possível pela articulação
destas demandas sociais, não em torno de um significante que represente um significado
apriorístico e fixo, e sim em torno de um significante “vazio” que ganha significação a partir
de um processo de “nomeação”, decorrente da articulação das diferentes demandas que
constituem a objetividade hegemônica, funcionando como um “ponto nodal”. Este “nome”
que busca significar o significante “vazio” não representa nenhuma das demandas em sua
particularidade, e sim é um elemento “singular”, construído no processo de articulação das
diferentes demandas, e que pretende abranger toda heterogeneidade, convertendo-se, assim,
no fundamento da “Coisa”, ou seja, da objetividade que é sempre precária por ser contingente
e por existir numa relação de poder.
Assim, a hegemonia, apesar de resultar das possibilidades da estrutura, não é
determinada por esta, mas é o resultado de uma articulação contingente que, desde o início,
encontra-se marcada pela ambigüidade e pela incompletude da objetividade e que,
necessariamente, implica na repressão de alternativas também contingentes, constituindo-se,
portanto, como uma relação de poder. Deste modo, o conceito de hegemonia entendido por
Laclau e Mouffe é definido pela interação entre a objetividade - inerentemente incompleta,
pois está fundada sob a condição de um exterior constitutivo que a possibilita e, ao mesmo
43
tempo, a nega - e as relações de poder inerentes à relação mútua entre diferentes alternativas
antagônicas de sociedade, uma vez que a afirmação de uma objetividade, necessariamente,
implica na exclusão das outras alternativas.
Esta compreensão do processo hegemônico possibilita entender os sujeitos, portanto,
não como determinados por uma estrutura unificada e homogênea, e sim como a distância
entre a estrutura indecidível, pois é sempre incompleta e contingente, e a tomada de decisão
entre as diferentes possibilidades oferecidas pela estrutura, que sempre implica na repressão
de alternativas antagônicas a esta decisão.
É neste sentido que é possível entender a afirmação de Mouffe (1996) de que para se
compreender a democracia moderna se faz
indispensável desenvolver uma teoria de sujeito como um agente descentrado e não
total, um sujeito construído no ponto de intersecção de uma multiplicidade de
posições subjetivas, entre as quais não existe uma prioridade ou relação necessária e
cuja articulação é o resultado de práticas hegemônicas. Conseqüentemente, nenhuma
identidade é alguma vez definitivamente estabelecida, havendo sempre certo grau de
abertura e de ambigüidade na forma como as diferentes posições de sujeito são
articuladas (p. 26).
A afirmação de uma identidade é sempre a afirmação de uma objetividade ameaçada,
por se constituir a partir da repressão daquilo que a ameaça, ou seja, por ser sempre um ato de
poder. A “essência” de uma identidade, desse modo, não se remete a um elemento interno e
natural da própria identidade, e sim é decorrência da contingência da articulação de um
conjunto de elementos em torno de um significante vazio, a partir da exclusão daquilo que o
ameaça.
Cabe ainda ressaltar, referindo-se novamente ao debate sobre a relação entre
necessidade e contingência, que o projeto hegemônico democrático radical, segundo Laclau e
Mouffe (1985), implica não só na lógica democrática de deslocamento equivalencial do
imaginário democrático entre diferentes espaços sociais, que acarreta na possibilidade de
politização das relações de subordinação. Faz-se necessária também, à construção deste
projeto, a afirmação da lógica da positividade do social que, através de um processo de
nomeação, funda um “senso comum” entre as diferentes demandas sociais, a partir do qual o
social será reconstituído.
Desta maneira, o sucesso de um projeto hegemônico democrático radical depende “de
um ponto de equilíbrio entre um avanço máximo da revolução democrática num largo campo
de esferas, e a capacidade da direção hegemônica e reconstrução positiva destas esferas por
parte dos grupos subordinados” (Laclau & Mouffe, 1985, p. 189, tradução nossa), sendo a
44
articulação entre estes dois momentos sempre contingente, pelo fato de não existir nenhum
fundamento antropológico que os una. Esta tensão entre a lógica subversiva da democracia e a
lógica da positividade do social, inerente à construção hegemônica, aponta para a condição
primária e constitutiva da descontinuidade discursiva no projeto democrático radical e plural.
Antes de caminharmos para o terceiro aspecto característico das relações sociais, é
importante ainda fazermos um parêntese com relação à forma que entendemos a construção
hegemônica na Teoria Democrática Radical e Plural de Laclau e Mouffe. Compreendemos a
construção hegemônica, sobretudo, a partir de três livros de Laclau e Mouffe: Hegemonia e
Estratégia Socialista (1985), escrito em conjunto pelos dois autores, no qual apresentam os
principais aspectos da teoria desenvolvida por eles; Nuevas Reflexiones sobre la Revolución
de Nuestro Tiempo (1993), no qual Laclau debate a teoria marxista, diferenciando as noções
de contradição e antagonismo na construção da luta política; La Razón Populista (2005),
escrito por Laclau, em que o autor analisa a formação da identidade popular a partir da
construção de projetos hegemônicos. Deste modo, nos utilizamos aqui de obras que
constituiriam, segundo Howarth (2008), os dois últimos modelos de hegemonia da obra de
Laclau.
Para Howarth (2008), Laclau, em sua obra, tem desenvolvido três modelos de
hegemonia. Nos seus primeiros escritos, na década de 1970, ao buscar criticar e reelaborar as
teorias marxistas da política e da ideologia, “argumenta que as práticas hegemônicas são
conduzidas por ‘classes sociais fundamentais’ que ambicionam transformar a sociedade de
acordo com seus interesses” (p. 320, tradução nossa, aspas no original). Em Hegemonia e
Estratégia Socialista, nos anos de 1980, apresentaria, junto com Mouffe, um segundo modelo
de hegemonia, reformulando sua perspectiva política em torno do projeto de democracia
radical:
As práticas hegemônicas pressupõem um campo social cindido por relações
antagônicas e pela presença de elementos contingentes ou "significantes
flutuantes” - que podem ser articulados por projetos políticos opostos. A prática da
hegemonia se concebe como uma operação metonímica que implica o deslocamento
de um conjunto de demandas de um lugar social a outro, ou de um grupo a outro.
[...] A maior aspiração dos projetos hegemônicos é construir e estabilizar sistemas
de sentido ou ‘formações hegemônicas’ que, no nível social, se organizam em torno
da articulação de pontos nodais. Estes pontos se definem como condensações
privilegiadas de sentido que fixam parcialmente as identidades de um conjunto
particular de significantes (HOWARTH, 2008, p. 321, tradução nossa).
Já, na década de 1990, de acordo com Howarth (2008), estruturando seu trabalho em
torno da psicanálise e frente à fragmentação das políticas de esquerda, Laclau desenvolve um
45
terceiro modelo de hegemonia, em parte como resposta às críticas de Zizek, referentes à
noção de posição de sujeito de Laclau e Mouffe, baseada na argumentação de que “os sujeitos
sociais não são antagonizados por um ‘outro’ que ameaça sua identidade. Ao contrário, o
sujeito é inerente e ontologicamente dividido [...] as diversas identificações do sujeito com
objetos externos se baseiam numa falta original ou vazio no núcleo mesmo da subjetividade”
(p. 323, tradução nossa).
Assim, em Nuevas Reflexiones sobre la Revolución de Nuestro Tiempo, Laclau,
segundo Howarth (2008), “estende a contingência dos elementos discursivos aos sujeitos dos
projetos hegemônicos e às estruturas sociais” (p. 323, tradução nossa), concebendo estas
últimas como “entidades ‘indecidíveis’ constituídas e, ao mesmo tempo, ameaçadas por um
exterior discursivo, e enfoca o problema da subjetividade introduzindo uma cisão entre as
posições de sujeito dentro da formação discursiva e os sujeitos políticos que constituem
ativamente as estruturas
26
(p. 323-324, tradução nossa, itálico no original), introduzindo o
conceito de deslocamento, de modo a expressar a interrupção e a desestabilização das ordens
simbólicas. Além disso, neste terceiro modelo, de acordo com Howarth (2008), Laclau
introduz o conceito de significantes vazios. Ao contrastar este conceito com o conceito de
significantes flutuantes, os significantes vazios se diferenciam na medida em que se os
26
Assim como definido por Mouffe (1995), em nota anterior, em Hegemonia e Estratégia Socialista Laclau e
Mouffe (1985) afirmam que a categoria de sujeito é entendida como posições de sujeito no interior de uma
estrutura discursiva, na crítica à concepção de sujeito como transparente e racional, como origem e base das
relações sociais, que supõe unidade e homogeneidade de suas posições. Assim, entendem que “Como toda
posição de sujeito é uma posição discursiva, ela compartilha do caráter aberto de todo discurso;
conseqüentemente as várias posições não podem ser totalmente fixadas em um sistema fechado de diferenças”
(LACLAU & MOUFFE, 1985, p. 115, tradução nossa). Portanto, na busca de evitarem a substituição do
essencialismo da totalidade pelo essencialismo dos elementos, afirmam que a noção de posição de sujeito
necessita estar articulada à noção de sobredeterminação, devendo o sujeito ser entendido como “penetrado pelo
mesmo caráter ambíguo, incompleto e polissêmico que a sobredeterminação assinala para toda identidade
discursiva” (p. 121, tradução nossa). Assim, o agente pode encontrar-se posicionado simultaneamente em torno
de diferentes posições de sujeito, mas nenhuma destas posições apresenta um caráter pleno, sendo a falha destas
identificações o que proporciona a ele se identificar as novas posições. Cabe ressaltar que não se afirma, com
isso, uma perspectiva completamente voluntarista, reconhecendo os autores que estas identificações são
limitadas pelas posições em que o sujeito foi posicionado na estrutura social, a qual, apesar de não determiná-lo,
lhe é anterior.
em Nuevas Reflexiones sobre La Revolucion de Nuestro Tiempo, de acordo com Laclau (1993a), o sujeito é
concebido como “a forma pura de deslocamento da estrutura, de sua inerradicável distância a respeito de si
mesma” (p. 76, tradução nossa), ocupando o espaço da dialética entre ausência (deslocamento da estrutura) e
presença (identificação com uma nova plenitude, sempre impossível de ser alcançada). Na diferenciação com
posição de sujeito, concebe: “À parte do sujeito, neste sentido radical, somente existe posições de sujeito no
campo geral da objetividade” (p. 77, tradução nossa). Para Laclau (1993a), no momento em que o sujeito é
reabsorvido pela estrutura ele passa a ser reduzido à posição de sujeito. Desta forma, a noção de sujeito difere
aqui da noção de posição de sujeito, no sentido em que a primeira concerne à ação do agente social frente ao
reconhecimento da negatividade da formação hegemônica, enquanto a segunda está relacionada a identificações
do sujeito no interior da ordem social. Podemos dizer, assim, que a introdução do conceito de sujeito busca
deixar mais clara a distinção da forma como os agentes sociais se comportam no momento de sedimentação e no
momento de reativação da dinâmica social, ressaltando que a formação social nunca é completa, sendo o
deslocamento da estrutura um processo constante.
46
significantes flutuantes se definem “como elementos ambíguos sempre ‘sobredeterminados’
por uma pluralidade de sentidos no campo discursivo, o significante vazio é ‘um significante
sem significado’; se se desenvolve o conceito de pontos nodais, os significantes vazios não
são possíveis por um superávit de sentido, mas sim pela impossibilidade estrutural da
significação como tal” (p. 324, tradução nossa). Para Howarth (2008), Laclau considera que a
presença de significantes vazios é a condição para a hegemonia, uma vez que “‘a relação
hegemônica’ alude à maneira em que um significante particular (‘povo’, ‘nação’, ‘revolução’)
se esvazia do seu sentido particular e passa a representar a ‘plenitude ausente’ de uma ordem
simbólica” (p. 325, tradução nossa).
Consideramos que estes dois últimos modelos de hegemonia, mais do que uma
ruptura, seriam modelos que se complementam, na medida em que o terceiro modelo permite
evidenciar a cisão intrínseca às formações sociais e, assim, a contingencialidade e
incompletude das mesmas, que exige um deslocamento constante dos projetos hegemônicos.
Ainda, ele apresenta de maneira mais clara a emergência do sujeito político ao distinguir
posição de sujeito e sujeito.
Podemos dizer que a introdução do conceito de sujeito busca
distinguir a forma como os agentes sociais se comportam no interior de uma formação
hegemônica e no momento de subversão da ordem social, ressaltando que a formação social
nunca é completa, sendo o deslocamento da estrutura um processo constante.
Apesar disso, cabe ressaltar que o próprio Howarth (2008) aponta ambigüidades na
obra de Laclau. Uma delas é a imprecisão na relação entre os pontos nodais e os significantes
vazios na transição entre o segundo e o terceiro modelo de hegemonia, importante nesta
dissertação, na medida em que temos como problema de pesquisa as estratégias de vínculo
entre diferentes movimentos sociais na construção de uma contra-hegemonia:
não está claro se o significante vazio é simplesmente um sinônimo de ponto nodal,
um refinamento do conceito original ou bem seleciona e captura diferentes aspectos
da realidade social. Mais ainda, a distinção acarreta em [conlleva] importantes
implicações para sua ontologia social geral: se bem o segundo modelo parece
implicar numa pluralidade de pontos nodais vinculados pelas práticas hegemônicas
em uma estrutura discursiva ou bloco histórico, o terceiro modelo sugere que a
unidade de uma estrutura social se constitui por um significante vazio que estabelece
o sentido dos outros significantes, isto é, que desempenha a função totalizadora de
vincular os elementos do sistema (p. 333-334, tradução nossa).
Diante desta imprecisão, sem a pretensão de resolvê-la nesta dissertação, trabalhamos
a possibilidade da construção contra-hegemônica a partir do posicionamento de que esta
construção depende da articulação das reivindicações dos diferentes movimentos sociais, em
torno de um significante que ganha significação a partir de um processo de “nomeação”. Este
47
“nome” deve englobar o maior número possível de demandas sociais, de modo a diminuir as
possibilidades de significação do social, dividindo o campo social em dois blocos antagônicos
(comportando aquele significante como um significante vazio). Neste sentido, o “nome”
converte-se no fundamento da “Coisa”, ou seja, da objetividade social que é sempre precária
por ser contingente e por existir numa relação de poder, sendo este “nome”, portanto, nunca
pleno, que: a) para se hegemonizar, depende de excluir aquilo que lhe antagoniza seja o
conjunto de práticas e discursos que constituem a hegemonia sedimentada; sejam outras
possíveis cadeias de equivalência, que buscam se constituir contra-hegemônicas, existindo
nesta situação uma disputa pelo significado da “Coisa” (isto é, pelo significado da “plenitude
ausente” da sociedade) fazendo-se visível uma dimensão “flutuante” do projeto contra-
hegemônico; b) o processo de nomeação não representa o fim das particularidades entre os
sujeitos que o constitui, mas sim o estabelecimento de um ponto de equivalência entre os
mesmos, em torno da construção de uma nova positividade do social, implicando numa
ressignificação de cada um destes sujeitos.
Ainda, cabe apontar uma distinção realizada por Laclau (2005) entre significante vazio
e significante flutuante:
as categorias de significantes ‘vazios’ e ‘flutuantes’ são estruturalmente diferentes.
A primeira tem a ver com a construção de uma identidade popular, uma vez que faz
presente uma fronteira estável; a segunda tenta apreender conceitualmente as lógicas
do deslocamento desta fronteira. Na prática, no entanto, a distância entre ambas não
é tão grande. As duas são operações hegemônicas e, o mais importante, os referentes
em grande medida se sobrepõem. Uma situação na qual somente a categoria de
significante vazio fosse relevante, com exclusão total do momento flutuante, seria
uma situação na qual haveria uma fronteira completamente imóvel, algo difícil de
imaginar. Inversamente, um universo puramente psicótico em que tivéssemos um
flutuamento puro sem nenhuma fixação parcial, é também impensável. Portanto,
significantes vazios e flutuantes devem ser concebidos como dimensões parciaise,
portanto, analiticamente delimitáveis em qualquer processo de construção
hegemônica do ‘povo’(p. 167, tradução nossa).
Nesta dissertação, portanto, concebemos a construção de projetos hegemônicos na
maneira acima apontada e utilizaremos as noções de significante vazio e significante flutuante
a partir desta diferenciação proposta por Laclau (2005). Feito este parêntese, retornemos aos
dois últimos dos quatro aspectos característicos das relações sociais apontados por Laclau
(1993a).
48
1.2.3. Primazia do campo político e o caráter histórico das relações sociais
O terceiro aspecto fundamental à análise social contemporânea é a primazia do campo
político sobre o campo social. Laclau (1993a) compreende o campo social como aquele no
qual uma objetivação se hegemoniza, produzindo um ocultamento da sua condição
contingencial, assumindo, assim, uma forma de presença objetiva. Este momento é
denominado de sedimentação. Já o campo político é entendido como aquele em que se
verifica o momento de reativação, o qual não consiste em retornar ao momento de origem de
institucionalização do instituído, e sim visibilizar a sua contingencialidade, através da
emergência de novos antagonismos. Deste modo, demonstrar-se-á que a hegemonia é um ato
de poder e que uma sociedade reconciliada e transparente é um mito.
A primazia do político, portanto, decorre da crítica de Laclau e Mouffe à noção de
uma sociedade portadora de uma identidade orgânica, descrita a partir de um ponto de vista
universal, explicitando ambos, ao contrário desta perspectiva, que toda objetividade se
constitui pela contingência e, diante da impossibilidade da plenitude, é sempre uma
“nomeação” resultante de um processo hegemônico.
Por fim, afirma Laclau (1993a) que toda estrutura social é uma estrutura histórica, em
decorrência do caráter contingente de suas condições de existência, bem como o são todos os
objetos, pelo fato de serem socialmente construídos e estruturados em sistemas de
significação. Assim, não se faz possível afirmar uma objetividade estrutural básica que guiaria
toda a história, devendo uma análise histórica desconstruir todo sentido, de modo a
reconstituir as condições contingentes da emergência de toda objetividade, ao invés de buscar
um sentido objetivo da história.
1.2.4. Passagem de antagonismos democráticos para luta democrática:
democracia radical e plural
É diante das quatro características das relações sociais contingência, poder, primazia
do político e historicidade que podemos compreender a construção de um projeto socialista
como decorrência da passagem da pluralidade de antagonismos democráticos para a
constituição de lutas democráticas. Os antagonismos democráticos são entendidos como
formas de resistência à subordinação e à desigualdade, mas que o necessariamente
conduzem a lutas democráticas, visto que podem ser articulados no interior de projetos da
direita. As lutas democráticas são definidas como lutas políticas dirigidas a uma ampla
democratização da vida social: “Somente se a luta dos desempregados estiver articulada com
49
a luta dos negros, das mulheres, de todos os oprimidos, podemos nós falar da criação de uma
luta democrática” (MOUFFE, 1988, p. 96, tradução nossa).
Esta passagem de antagonismos para lutas democráticas caracteriza-se, portanto, não
pela redução da luta política a um sentido linear da história e a um sujeito histórico
privilegiado, como pressupunha a teoria marxista clássica. Ela se configura pelas articulações
constantes e contingentes entre diferentes antagonismos democráticos, a partir da construção
de cadeias de equivalência.
Neste sentido, cabe discutir dois outros conceitos fundamentais à obra de Laclau e
Mouffe: os conceitos de articulação e de lógica da equivalência. O conceito de articulação é
entendido como uma relação entre elementos - ou seja, diferenças que não apresentam
ligações prévias a nenhum projeto hegemônico - em torno de um ponto de referência,
denominado por Laclau e Mouffe de “ponto nodal”, que possibilita uma amarração destas
diferenças, acarretando na modificação das identidades de cada uma delas. Recorremos aos
autores para uma melhor definição de alguns conceitos importantes à prática articulatória:
Nós chamaremos articulação qualquer prática que estabeleça uma relação entre
elementos de modo que a identidade de cada um seja modificada como um resultado
da prática articulatória. A totalidade estruturada resultante da prática articulatória,
nós chamaremos discurso. As posições diferenciais, na medida em que elas
apareçam articuladas dentro de um discurso, nós chamaremos momentos. Por
contraste, nós chamaremos elemento qualquer diferença que não está articulada
discursivamente (LACLAU & MOUFFE, 1985, p. 105, tradução nossa).
É diante da noção de articulação que se faz possível compreender a lógica de
equivalência, remetendo-se esta não a uma mera aliança entre diferentes antagonismos
democráticos. A lógica de equivalência implica em uma redefinição dos antagonismos
democráticos na construção de um projeto contra-hegemônico, que expressa uma negação do
sistema discursivo hegemônico, dividindo o campo social e condensando significados em
torno de dois pólos antagônicos. Diferente da lógica da equivalência, Laclau e Mouffe
definem a lógica da diferença, a qual se caracteriza pela afirmação da particularidade, sendo
os únicos laços existentes entre as particularidades de natureza diferencial, e não antagônica.
Assim, a particularidade é incorporada dentro de um sistema social em expansão, colocando à
margem a divisão do espaço social (HOWARTH & STAVRAKAKIS, 2000; LACLAU,
2005), permanecendo a luta política no âmbito dos antagonismos democráticos.
A defesa pela necessária construção de lutas democráticas para se construir um projeto
socialista, portanto, baseia-se na compreensão de que enquanto os antagonismos democráticos
referem-se à resistência a subordinações e desigualdades específicas, sendo possível
50
articularem-se dentro de uma grande amplitude de discursos - desde a nova direita até os
discursos da nova esquerda -; as lutas democráticas buscam construir uma nova hegemonia
pautada na ampla democratização da vida social. Cabe ressaltar que a ampla democratização
da vida social não implica em suturar o espaço social deslocado, pois o ideal de uma
sociedade harmônica, na qual todo poder tenha sido eliminado, não é nada mais que um mito.
Trata-se de subverter a lógica hegemônica sedimentada, mediante a visibilidade de sua
contingência e a articulação de todas as forças democráticas contrárias à subordinação.
A construção de uma cadeia de equivalência entre todos os antagonismos
democráticos contrários à subordinação deve, segundo Mouffe (1988), questionar não as
relações estruturais da produção capitalista, mas também o modo de racionalidade da
produção capitalista responsável pelas numerosas formas de subordinação e desigualdade,
interpeladas pelos novos movimentos sociais. Assim, a luta política não pode se limitar à
esfera da produção, precisa abranger também novos direitos e demandas reivindicadas por
diferentes minorias sociais.
Cabe ressaltar também que, pelo fato de a cadeia de equivalência constituir-se através
de uma articulação contingente entre os diferentes antagonismos, não nada a priori que
garanta que os antagonismos democráticos articulem-se em torno de um ponto nodal
favorável a um projeto socialista e progressista, caracterizado pelo combate a toda forma de
opressão. Podem, diferente disto, ser absorvidos ou neutralizados por projetos da direita.
Além disso, segundo Mouffe (1988), a proliferação de antagonismos democráticos nas
últimas décadas exige uma reformulação da própria noção de democracia, no intuito de
radicalizar a revolução democrática. Dessa maneira, não é suficiente criar diferentes
estratégias democráticas através das quais os cidadãos possam participar do mundo público,
como defendem aqueles aliados a uma perspectiva parlamentar liberal de democracia. Faz-se
necessário, para a radicalização da revolução democrática, o reconhecimento e a
institucionalização da existência de um verdadeiro pluralismo, o que Mouffe (1988) define
como pluralismo de sujeitos, que exige o respeito e a autonomia das diferentes minorias
sociais.
Esta compreensão da noção de democracia também requer que se transcenda a uma
concepção individualista de direitos e que se elabore uma noção central de solidariedade, de
modo que o direito de uns não seja defendido em detrimento do direito de outros. Este aspecto
da redefinição da noção de democracia, segundo Mouffe (1988), demarca uma clara
separação entre o projeto da esquerda e um projeto da direita: enquanto o primeiro sustenta-se
num sistema de equivalências entre um maior número de antagonismos possíveis, a fim de
51
reduzir todas as desigualdades, o projeto da direita satisfaz demandas de alguns grupos,
criando novas desigualdades, uma vez que promove sempre um distanciamento entre
privilegiados e não-privilegiados.
O papel central da noção de solidariedade é importante também para a compreensão
de que o caráter emancipatório da luta democrática não depende da origem dos antagonismos,
mas sim da articulação de diferentes antagonismos democráticos numa cadeia de
equivalência, em direção a uma ampla democratização da vida social, condição importante
para dificultar a assimilação e neutralização destes antagonismos dentro do projeto da
direita
27
. Assim, segundo Mouffe (1988), o fato de algum grupo social jogar um papel central
na luta política decorre não de uma razão ontológica, mas da capacidade política do grupo e
de condições históricas favoráveis a ele no momento da articulação entre os antagonismos.
Por fim, de acordo com Mouffe (1988), a construção de lutas democráticas exige uma
redefinição dos conceitos de liberdade e igualdade dentro de uma perspectiva de democracia
radical, libertária e plural, baseando-se no seguinte imperativo: “as pessoas serão
perfeitamente livres devido serem inteiramente iguais, e perfeitamente iguais devido serem
inteiramente livres” (MOUFFE, 1988, p. 101, tradução nossa).
Este projeto socialista, baseado na construção de cadeias de equivalência, ao afirmar a
contingência das relações sociais, o caráter permanente (não-erradicável) das relações de
poder e a impossibilidade de se alcançar uma sociedade reconciliada, não necessariamente
implica em pessimismo; estas afirmações podem ser a base para um otimismo radical, pois:
se as relações sociais são contingentes, isso significa que podem ser radicalmente
transformadas através da luta, em lugar de conceber esta transformação como uma
autotransformação de caráter objetivo; se o poder não é erradicável é porque existe
também uma radical liberdade que não está limitada por nenhuma essência; se a
opacidade é constitutiva do social, isto é precisamente o que faz possível o acesso a
verdade concebida como desvelamento (LACLAU, 1993a, p. 52, tradução nossa).
Nesta perspectiva da democracia radical, a categoria deslocamento conquista uma
centralidade crescente, segundo Laclau (1993a), tanto no que tange ao caráter deslocado de
toda identidade - no sentido desta se construir na dependência de um exterior que é, ao mesmo
tempo, possibilidade e impossibilidade de sua existência -, quanto no que diz respeito à
condição de deslocamento de toda objetividade - ao exigir rápidas e contínuas rearticulações
por estar sempre sob uma ameaça constante. A centralidade desta categoria propicia uma
27
Contudo, se esta articulação dificulta a absorção ou neutralização dos antagonismos democráticos no interior
de um projeto da direita, não significa que a impossibilite, visto o deslocamento contínuo de qualquer cadeia de
equivalência no enfrentamento a alternativas antagônicas de sociedade.
52
maior consciência da contingencialidade dos discursos, um crescimento do papel dos sujeitos
na história - já que esta não apresenta um fundamento subjacente que a determina -, e também
a compreensão da estrutura como descentrada, o que não significa a ausência de um centro,
muito pelo contrário, significa a proliferação de centros de poder com distintas capacidades de
influência e estruturação.
Assim, segundo Mouffe (2000a), a tarefa da democracia radical não deve ser a de
eliminar o poder, de negar o caráter não-erradicável do antagonismo, visando um consenso
racional universal. A tarefa deve ser a de constituir formas de poder compatíveis com os
valores democráticos, de modo a construir instituições que permitam limitar a dominação e a
violência. O conflito e o antagonismo, nesta perspectiva democrática, não são compreendidos
como um distúrbio que não pode ser completamente eliminado, nem como um impedimento
empírico que obstrui a realização plena de uma sociedade ordenada e harmônica. Mas como
uma condição de possibilidade e, ao mesmo tempo, de impossibilidade da constituição de
qualquer objetividade (MOUFFE, 2000a).
Diante disso, segundo Laclau (1993a), a democracia radical distingue-se da teoria
marxista clássica em dois aspectos: a) apesar de ambas focarem nos desajustes e
deslocamentos produzidos pelo desenvolvimento capitalista, enquanto para o marxismo
clássico os deslocamentos têm um sentido objetivo, sendo parte de um processo que apresenta
uma direção determinada deste modo, o sujeito da mudança é sempre predeterminado por
este processo -; para a democracia radical, o lugar do sujeito é o lugar do deslocamento, sendo
não uma determinação da estrutura, e sim resultante da impossibilidade de se constituir a
estrutura como tal; b) para o marxismo clássico, a condição para se transcender o capitalismo
era a simplificação da estrutura social e a emergência de um agente privilegiado de mudança
histórica, enquanto para a democracia radical, a transformação socialista e democrática se
faz possível diante da proliferação de novos sujeitos de mudança, somente propiciada se
houver condições de existência no capitalismo que permitam uma pluralidade de novos
antagonismos.
A crítica ao marxismo, segundo Laclau (1993b), não somente auxilia na compreensão
das lutas políticas que emergiram pós-II Guerra Mundial, mas também garante ao marxismo
sua dignidade teórica, reconhecendo suas limitações e sua historicidade, de modo a permitir
que ele permaneça assim presente em nossa cultura política.
Além disso, a crítica ao sujeito universal no marxismo e a defesa do necessário
reconhecimento da pluralidade de antagonismos políticos na construção democrática não
significa opor radicalmente as lutas operárias e as lutas dos novos movimentos sociais. Ambas
53
as lutas pautam-se na busca de obtenção de novos direitos ou na luta contra a negação de
alguns direitos, sendo partes da expansão do imaginário democrático. Ademais, a dicotomia
entre classe trabalhadora e movimentos sociais é uma dicotomia estéril, desde que se
reconheça “que os trabalhadores não podem ser reduzidos a sua posição de classe e estão
inseridos em outros tipos de relações sociais que formam outras posições de sujeito”
(MOUFFE, 1988, p. 98, tradução nossa); bem como que o desenvolvimento do capitalismo e
o aumento da intervenção do Estado em todos os âmbitos da vida social ampliaram as
possibilidades da luta política e estenderam os efeitos da revolução democrática para
diferentes relações sociais (MOUFFE, 1988).
Desta maneira, se as ambições escatológicas e epistemológicas contemporâneas são mais
modestas, de acordo com Laclau (1993a), as aspirações de libertação são mais amplas e
profundas, sendo as lutas democráticas caracterizadas não pelo jugo de um universal e de um
sujeito histórico unificado e privilegiado, ou pela construção de um consenso público neutro e
racional, mas sob articulações e rearticulações constantes entre demandas plurais em torno de
pontos nodais contingentes e vazios, a fim de se constituir um novo projeto hegemônico.
Assim, ao contrário de negar os ideais democráticos, a democracia radical busca garantir que
o processo democrático mantenha-se sempre vivo, opondo-se ao fechamento do hiato entre
justiça e lei e reconhecendo que a “incerteza” é a “maior condição de possibilidade de decisão
e, portanto, de liberdade e pluralismo” (MOUFFE, 2000a, p. 34, tradução nossa).
54
Capítulo 2
Dos caminhos da pesquisa
A dissertação apresentada é decorrência de um caminho de pesquisa que se iniciou no
ano de 2005 com minha inserção no Núcleo de Psicologia Política (NPP) da Universidade
Federal de Minas Gerais. Neste caminho, participei de diferentes pesquisas referentes ao
campo de estudo de movimentos sociais, tendo me concentrado, sobretudo, nos dois primeiros
anos, na análise da participação política no movimento social LGBT (Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais) de Belo Horizonte
28
e, posteriormente, compreendido a
importância de se pensar a relação entre diferentes formas de hierarquização social na análise
da participação política nos movimentos sociais, bem como da construção de um “outro
mundo possível”.
Durante o desenvolvimento destas pesquisas e constantes debates com outros
integrantes do NPP que o anteprojeto enviado à seleção para o mestrado no Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da UFMG foi construído. Neste, o objetivo era compreender a
articulação entre orientação sexual, gênero, raça e classe social nas possibilidades e
dificuldades da participação política de LGBT no movimento social LGBT de Belo
Horizonte. O anteprojeto era uma continuidade das Iniciações Científicas realizadas
anteriormente, que apontavam para a ocorrência de uma interrelação entre diferentes
hierarquizações sociais no cotidiano de LGBT, colocando como questão os motivos pelos
quais estes indivíduos se inseriam ou não no movimento social LGBT, bem como o modo que
tentavam articular as múltiplas hierarquizações sociais sobre as quais estavam subjugados.
Entretanto, no processo de reflexão sobre o próprio projeto inicial, outra pergunta
emergiu: diante da politização de diferentes formas de subordinação nas últimas décadas do
século XX, quais seriam as possibilidades de construção de uma luta contra-hegemônica? Esta
pergunta foi colocada no interior do debate sobre a emergência dos novos movimentos
28
Entre estas pesquisas ressalto dois estudos quantitativos realizados nas Paradas do Orgulho LGBT de Belo
Horizonte nos anos de 2005 e 2006, nos quais se buscou analisar diferentes aspectos relativos aos participantes
destas Paradas; a realização de duas Iniciações Científicas, a primeira referente à dinâmica da participação
política de LGBT, em grupos do movimento social LGBT na cidade de Belo Horizonte (com bolsa de pesquisa
do CNPq), a segunda relativa à articulação de diferentes categorias sociais na dinâmica interna do movimento
social LGBT de Belo Horizonte (com bolsa de pesquisa FAPEMIG). Ademais, no ano de 2007, inseri-me numa
pesquisa, ainda em desenvolvimento, realizada no NPP, intitulada “Alquimia de Categorias Sociais: gênero e
suas relações com classe, raça e orientação sexual na agenda política de movimentos sociais”, na qual se busca
compreender como a categoria social “gênero” se relaciona a outras categorias sociais em diferentes movimentos
sociais.
55
sociais, no qual se ressaltava o descentramento do espaço político e a pluralidade dos sujeitos
políticos nos processos de democratização social. Debate este que apresentava divergências
com relação à centralidade da luta de classe nos processos de democratização social das
sociedades contemporâneas.
Desta maneira, uma mudança foi realizada no projeto de mestrado: deixava-se o
campo empírico do movimento social LGBT de Belo Horizonte, inseria-me no debate teórico
sobre como as lutas por democratização social vinham sendo analisadas em teorias
democráticas contemporâneas, no intuito de discutir estratégias políticas que propiciassem a
construção de uma luta contra-hegemônica. Assim, os seguintes problemas de pesquisas
foram propostos: como a relação entre a pluralidade de sujeitos políticos e o descentramento
do espaço político e as lutas por democratização social têm sido debatida nas teorias
democráticas contemporâneas? Quais estratégias têm sido pensadas para a construção de
sociedades mais justas e igualitárias diante desta conjuntura política?
Desta maneira, para o projeto de qualificação, apresentado à banca de qualificação em
dezembro de 2008
29
, requisito parcial para a obtenção do título de mestre no Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da UFMG, foi realizada uma revisão bibliográfica que
apresentava como foco compreender como teóricos contemporâneos ressignificavam a noção
de classe social na teoria marxista (Jessé de Souza, Basílio Salum
30
; Nancy Fraser, Judith
Butler
31
; Ernesto Laclau, Chantal Mouffe
32
), de maneira a discutirem os antagonismos atuais
presentes nas sociedades ocidentais contemporâneas, diante da emergência de uma
pluralidade de sujeitos políticos e, assim, da crítica a noções como ontologia do sujeito e
teleologia da história.
Esta revisão bibliográfica se fazia importante, uma vez que se, por um lado, a teoria
marxista é uma importante teoria de análise dos conflitos sociais, tendo trazido para o centro
29
Banca de qualificação composta pelos professores Doutor Marco Aurélio ximo Prado (UFMG -
orientador), Doutor Salvador Sandoval (PUC-SP), Doutor Cornelis Johanes van Stralen (UFMG).
30
Autores que apresentam como um elemento central em sua discussão a noção de habitus utilizada por Pierre
Bourdieu na análise sobre a distinção nas sociedades contemporâneas. Jessé de Souza articula a noção de habitus
à noção de dignidade discutida por Charles Taylor, bem como utiliza do debate de Florestan Fernandes sobre a
integração do negro na sociedade brasileira, no intuito de compreender a construção da subcidadania no Brasil.
Basílio Sallum defende a importância de se articular a noção de habitus à noção de contradição em Marx no
sentido de ligar as implicações do debate de Bourdieu relativas à ressignificação da noção de classe social à
contribuição da teoria marxista sobre o conflito nas sociedades capitalistas.
31
Autoras que trabalham a discussão de classe a partir do rompimento com a dicotomia entre lutas por
redistribuição e lutas por reconhecimento, dicotomia esta muito presente na análise dos movimentos sociais
desde a emergência dos novos movimentos sociais.
32
Autores que debatem a reconfiguração da análise das ações políticas diante da emergência dos novos
movimentos sociais, a partir de uma compreensão “com e contra” a teoria marxista, abandonando noções
ontológicas e teleológicas marxistas, mas também ressignificando outras noções importantes à tradição marxista
como a de hegemonia.
56
da luta política o debate sobre a configuração desigualitária de classes nas sociedades
capitalistas, visibilizando a necessidade de se construir uma sociedade que tenha a igualdade
como princípio fundamental; por outro lado, a emergência dos chamados novos movimentos
sociais colocaram a teoria marxista em questão exatamente no que tange à centralidade
atribuída por ela à luta de classe e à determinação estrutural dos sujeitos políticos, mediante a
divisão do social em proletários e detentores dos meios de produção. Assim, uma
reconfiguração na análise das ações políticas nas sociedades contemporâneas se fez
necessária, que outras hierarquias sociais, que não se reduziam às relações de produção,
passaram a ser politizadas no espaço público.
O debate realizado durante a qualificação permitiu visualizar a importância de se
analisar aqueles problemas de pesquisa, não somente através de uma análise teórica, mas
também da coleta de informações junto a movimentos sociais, de maneira a se construir um
diálogo com estas teorias na análise do problema de pesquisa proposto. Foi nesta direção que
decidimos dar encaminhamento à pesquisa e que reformulamos um pouco os problemas a
serem pesquisados: que possibilidades de democratização social têm sido construídas diante
do descentramento do espaço político e da pluralidade de sujeitos políticos? O que tem sido
pensado sobre a unidade política da esquerda hoje? Que estratégias têm sido desenvolvidas a
fim de combater às diferentes formas de desigualdade e exclusão politizadas como formas de
opressão na atualidade, de modo a se construir uma luta contra-hegemônica?
Desta forma, resolvemos por nos concentrar teoricamente em uma teoria democrática
específica, denominada de Teoria Democrática Radical e Plural, desenvolvida por Ernesto
Laclau e Chantal Mouffe desde meados da década de 1980; e realizar entrevistas semi-
estruturadas com representantes de grupos de diferentes movimentos sociais que atuam em
Belo Horizonte, sendo um grupo de cada um destes movimentos, bem como com
representantes de espaços de construção de nculos entre diferentes sujeitos políticos.
Ademais, foram coletados, junto aos grupos, materiais referentes a ações desenvolvidas por
eles, à história dos grupos, às suas bandeiras políticas. Também participamos de reuniões da
Assembléia Popular Metropolitana de Belo Horizonte, da Marcha Mundial das Mulheres e de
manifestações que tinham como organizadores a Assembléia Popular Metropolitana de Belo
Horizonte e o Comitê Mineiro do Fórum Social Mundial. E, ainda, fizemos um procedimento
de devolução referente a dados parciais que haviam sido coletados a cada um dos
entrevistados para esta pesquisa.
57
2.1. Procedimentos metodológicos
A escolha pela Teoria Democrática Radical e Plural decorreu de esta ser uma teoria
que busca se focar exatamente no dilema referente a como se pensar a construção de um
projeto contra-hegemônico da esquerda, na conjuntura das sociedades contemporâneas,
caracterizada pela pluralidade de sujeitos políticos e pelo descentramento do espaço político, a
partir de concepções de sujeito e de mudança social que vão ao encontro do campo da
psicologia social, ao interpelar o hiato indivíduo/sociedade na análise da dinâmica social,
possibilitando reconhecer uma intrínseca relação entre subjetividade e objetividade.
Diferentes autores (SANDOVAL, 1989; MELUCCI, 2001; PRADO, 2001;
DOMINGUES, 2004) m apontado que, desde os finais do século XIX, o estudo das ações
coletivas caracterizou-se por análises que ora enfocavam aspectos psicológicos ora enfocavam
aspectos estruturais, criando, assim, um hiato na análise da dinâmica social e uma concepção
essencialista do sujeito coletivo, seja psicológica seja sociológica. Desta forma, nenhum dos
lados da dicotomia permitiam compreender processos intermediários na formação do “NÓS”.
De acordo com Sandoval (1997), “Inicialmente a Sociologia e a Política partiram do
pressuposto de que, em matéria de ordem causal do comportamento político, as forças e
estruturas sociais eram superiores ou estavam acima dos indivíduos” (p. 13), tendo o
estruturalismo determinista de ótica marxista compreendido o mundo social como ordenado
por “poderosas estruturas sociais e as pessoas como indivíduos plenamente sujeitos aos
caprichos das ideologias e manobras das classes dominantes” (p. 13); e o determinismo
categorial atribuído ao “indivíduo interesses e disposições psicossociológicas conforme a
categoria social a qual pertencia” (p. 14).
a Psicologia Social, ao contrário da Sociologia, “encarava o coletivo com suspeita,
uma vez que este subvertia as melhores qualidades dos indivíduos” (SANDOVAL, 1997, p.
14), seguindo a noção proposta por Le Bon, no estudo das “massas”, que a coletividade
tornava o indivíduo irracional; ou ainda, outra linha da Psicologia Social compreendia o
comportamento social através de traços inerentes ao indivíduo, como se fosse determinado
por traços de personalidade.
Segundo Prado e Rodrigues (2008), ao menos dois elementos são fundamentais para a
reinserção da Psicologia Social no campo de análise das ações coletivas a partir de uma
perspectiva psicossociológica que busca relacionar a constituição dos atores sociais com as
formações dos sistemas e suas rupturas: a) a crise da experiência do sujeito coletivo único e
privilegiado, na medida em que a emergência dos movimentos sociais contemporâneos
58
colocou em questão o modelo de ator único, a determinação estrutural do sujeito coletivo a
partir das relações de produção; b) a redimensão do político, comportando práticas e discursos
que interpelam a institucionalidade da política e questionam a separação entre experiências
públicas e privadas. Estes elementos são centrais às análises de Laclau e Mouffe.
É de forma a afirmar a necessidade de se explicar e sistematizar os processos de
interação na análise dos fenômenos sociais, e de romper com aquele hiato entre
agência/estrutura, que Moscovici (2003) considera que o campo específico da Psicologia
Social é o campo do
estudo dos processos culturais que são responsáveis pela organização do
conhecimento em uma sociedade, pelo estabelecimento das relações interindividuais
no contexto do ambiente social e físico, pela formação dos movimentos sociais
(grupos, partidos, instituições), através dos quais os homens agem e interagem, pela
codificação da conduta interindividual e intergrupal que cria uma realidade social
comum com suas normas e valores, cuja origem deve ser novamente buscada no
contexto social (p. 154).
E mais à frente afirma:
A pergunta principal que os psicólogos sociais faziam era: Quem socializa o
indivíduo? Os psicólogos negligenciaram o segundo aspecto do problema contido na
sua pergunta: Quem socializa a sociedade? Um novo enfoque com respeito à relação
entre indivíduo e sociedade deveria tomar em consideração dois fenômenos básicos.
O primeiro é o de que o indivíduo não é apenas um produto biológico, mas um
produto social; e o segundo é o de que a sociedade não é um ambiente destinado a
treinar o indivíduo e a reduzir suas incertezas, mas um sistema de relações entre
‘indivíduos coletivos’. Esta visão da dinâmica social possui implicações científicas
imediatas, assim como importância psicológica e política; ela nos obriga a encarar o
controle social e a mudança social em uma perspectiva comum e a não tratá-los
separadamente como aconteceu no passado. Não existe razão nenhuma para
conceder prioridade aos aspectos da socialização que tendem para a transmissão das
tradições existentes e da estabilidade do status quo; as tendências opostas, que
possibilitam reformas e revoluções, são igualmente importantes (p. 158, itálico e
aspas no original).
É diante da concepção de indivíduo e sociedade, a partir da ruptura com o hiato
agência/estrutura, e da compreensão da dinâmica social, através de uma relação de subversão
entre o que Laclau e Mouffe (1985) chamam de “momento de sedimentação” e “momento de
reativação” na análise das formações hegemônicas, que concebemos a Teoria Democrática
Radical e Plural como uma teoria democrática que converge com o campo da psicologia
social. O processo de subjetivação e a articulação entre os sujeitos políticos, fundamentais na
análise da construção de projetos hegemônicos, podem ser entendidos a partir da noção
proposta por Laclau e Mouffe de que a constituição identitária não decorre de uma
59
determinação direta da estrutura sobre o indivíduo ou tampouco de uma escolha livre e auto-
determinada pelos indivíduos. Ela decorre, sim, de um processo de subjetivação construído a
partir da mediação entre a posição estrutural do indivíduo e as diferentes possibilidades de
discurso existente em determinado contexto histórico que funcionam como um modelo
interpretativo, através do qual o indivíduo pode interpretar a sua posição estrutural na ordem
simbólica em que se encontra inserido (Cf. SMITH, 1998). Como afirmam Howarth e
Stavrakakis (2000), a partir da distinção apontada no capítulo anterior entre posição de sujeito
e sujeito,
o sujeito político nem é simplesmente determinado pela estrutura, nem constitui a
estrutura. Pelo contrário, o sujeito político é forçado a tomar decisões ou
identificar com certos projetos políticos e com os discursos que eles articulam
quando identidades sociais estão em crise e estruturas precisam ser recriadas (p. 14,
tradução nossa).
As relações entre o indivíduo e a sociedade são compreendidas, desta maneira, como
relações simbólicas, sendo abandonadas concepções essencialistas referentes à sociedade ou
ao indivíduo, e ressaltado o caráter contingente e precário daquelas relações.
Assim, se, por um lado, a prática articulatória exige que os indivíduos reconheçam
sua condição de subordinação em determinada ordem simbólica como uma condição de
opressão - reconhecimento necessário para a emergência de antagonismos democráticos -, e
compreendam que diferentes formas de opressão decorrem da impossibilidade de existência
de alguns grupos sociais diante da hegemonia dominante -condição necessária ao
estabelecimento da equivalência entre diferentes antagonismos políticos -; por outro lado,
Laclau e Mouffe defendem que os indivíduos se encontram “posicionados estruturalmente no
interior de sistemas hierárquicos sociais, culturais, políticos e econômicos, por forças e
instituições que antecedem a vontade deles mesmo” (SMITH, 1998, p. 56, tradução nossa).
Sistemas estes que limitam as possibilidades de interpretação do mundo pelos indivíduos, sem
que isso signifique, contudo, a existência de um interesse “autêntico” ao indivíduo em
decorrência da sua posição estrutural ou a afirmação de um discurso como privilegiado sobre
outros, sendo a disputa entre os discursos um modo de demonstração da configuração das
relações de poder em determinado momento histórico.
A teoria democrática radical e plural de Laclau e Mouffe localiza-se num campo de
discussão “com e contra” duas importantes teorias: o marxismo e o liberalismo. Deste modo,
esta teoria se reconhece como pós-marxista, ao se afastar de concepções como a de sujeito
unitário e privilegiado e de teleologia da história, e, ao mesmo tempo, ao assumir noções
60
marxistas como hegemonia e manter a importância de se defender a igualdade como um pilar
fundamental de uma sociedade justa; sem, entretanto, negar a importância do liberalismo
político - no sentido em que afirma que a liberdade evidenciada por esta corrente teórica é
outro pilar fundamental de uma sociedade caracterizada pela pluralidade de sujeitos e, assim,
pela necessidade de se abandonar a idéia de um sujeito ontológico - de modo que isso não
implique na afirmação de uma noção individualista de sujeito.
De acordo com Mouffe (2000a), faz-se necessário reconhecermos que a democracia
moderna encontra-se fundada num paradoxo entre liberdade e igualdade, devendo a
construção de uma democracia radical e plural buscar a articulação de ambos os valores de
maneira que liberdade e igualdade possam coexistir:
A novidade da democracia moderna, que a faz propriamente moderna’, é que, com o
advento da ‘revolução democrática’, o velho princípio democrático que ‘o poder deve
ser exercido pelo povo’ emerge novamente, mas, desta vez, dentro de um modelo
simbólico informado pelo discurso liberal, com sua forte ênfase no valor da liberdade
individual e nos direitos humanos. [...] É, dessa forma, crucial afirmar que, com a
democracia moderna, nós estamos lidando com uma nova forma política de sociedade
cuja especificidade emerge da articulação entre duas diferentes tradições. De um lado,
nós temos a tradição liberal constituída pela regra da lei, a defesa dos direitos
humanos e o respeito à liberdade individual; de outro lado, a tradição democrática,
cujas principais idéias são aquelas de igualdade, identidade entre governante e
governado e soberania popular. Não existe relação entre aquelas duas tradições
distintas, mas somente uma articulação histórica contingente (p. 02-03, tradução
nossa).
Mais à frente continua:
liberdade perfeita e igualdade perfeita tornam-se impossíveis. Mas esta é a principal
condição de possibilidade para uma forma pluralística de coexistência humana, na
qual direitos podem existir e serão exercidos, na qual liberdade e igualdade podem de
algum modo coexistir (MOUFFE, 2000a, p. 10-11, tradução nossa).
A teoria democrática radical e plural ainda se afasta de outra corrente de pensamento,
de maneira geral, denominada de pós-moderna, que se caracteriza pela afirmação de um
“pluralismo extremo” ao não reconhecer a possibilidade da construção de um denominador
comum possível entre as diferentes identidades políticas no interior das políticas
democráticas. Nas palavras de Mouffe (1996):
Defendo que, a fim de radicalizarmos a idéia de pluralismo, de forma a tranformá-lo
num meio de aprofundamento da revolução democrática, temos de romper com o
racionalismo, o individualismo e o universalismo. [...] Isto não implica a rejeição de
qualquer idéia de racionalidade, individualidade ou universalidade, mas afirmar que
elas são necessariamente plurais, racionalmente construídas e comprometidas com
61
relações de poder. [...]. É por isso que este pluralismo deve igualmente distinguir-se
da concepção pós-moderna de fragmentação do social, que se recusa a conceder aos
fragmentos qualquer tipo de identidade relacional. A perspectiva que tenho mantido
consistentemente rejeita qualquer gênero de essencialismo quer do todo, quer dos
seus elementos – e afirma que nem o todo nem os fragmentos possuem qualquer tipo
de identidade fixa, anterior à sua forma de articulação contingente e pragmática (p.
18-19).
Ademais, segundo Mouffe (1995), esta compreensão pós-moderna, que nega qualquer
possibilidade de denominador comum entre as demandas contra os diferentes modos de
subordinação, “torna impossível distinguir entre diferenças que existem, mas não devem
existir e diferenças que não existem, mas devem existir. [...]. Relações de poder e
antagonismos são apagadas, e nós ficamos com a típica ilusão liberal de um pluralismo sem
antagonismo” (p. 39, tradução nossa).
No que tange às entrevistas semi-estruturadas realizadas, como já ressaltado, elas
foram feitas no intuito de se estabelecer um diálogo entre as considerações da Teoria
Democrática Radical e Plural referente à construção da luta política nas sociedades
contemporâneas e os posicionamentos de representantes de grupos de diferentes movimentos
sociais, e de espaços de vínculos entre sujeitos políticos que lutam pela garantia de direitos
existentes e pela construção de novos direitos democráticos. O uso de entrevistas semi-
estruturadas é uma ferramenta metodológica que tem sido muito utilizada nas pesquisas de
movimentos sociais, sendo úteis para a “exploração, descoberta e interpretação de processos e
eventos sociais complexos” (BLEE & TAYLOR, 2002, p.93, tradução nossa). De acordo com
estes autores, as entrevistas semi-estruturadas possibilitam um aprofundamento de
informações, uma compreensão da história do movimento social, insights do pesquisador
quanto a esperanças, expectativas críticas do presente, bem como com relação a projeções
para o futuro no que diz respeito às ações coletivas e ao formato dos movimentos sociais,
além de trazer para o centro da análise os representantes dos movimentos sociais,
reconhecendo a voz dos mesmos no processo da pesquisa (Cf. BLEE & TAYLOR, 2002).
Assim, as entrevistas realizadas para esta pesquisa foram motivadas pela tentativa de
se compreender como movimentos sociais que apresentam diferentes bandeiras políticas se
posicionam diante do debate sobre as possibilidades de democratização social, num contexto
de pluralidade de sujeitos políticos e descentramento do espaço político. Neste sentido que se
resolveu investigar não um movimento social específico, mas abranger grupos de diferentes
movimentos sociais. Nestas entrevistas, buscamos focar na história do grupo, nas estratégias
políticas desenvolvidas pelo grupo, nos seus nculos com outros movimentos sociais, na
62
noção de mudança social desenvolvida pelo grupo, nas suas bandeiras políticas, nas principais
dificuldades de se alcançar a mudança social desejada.
Foram entrevistados representantes do movimento feminista (Marcha Mundial das
Mulheres), do movimento negro (Negras Ativas), do movimento camponês (Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra), do movimento sindical (Central Única dos Trabalhadores),
do Movimento dos Trabalhadores Desempregados e da Brigadas Populares
33
. Além disso,
foram entrevistadas a secretária da Assembléia Popular Metropolitana de Belo Horizonte e a
vice-presidente “Trans” da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e
Transexuais
34
.
A escolha por entrevistar “lideranças” foi decorrente de a pesquisa apresentar como
problema as estratégias de vínculo que os movimentos sociais vêm desenvolvendo diante da
emergência de uma pluralidade de sujeitos políticos e do descentramento do espaço político
nas últimas décadas, na tentativa de se articularem no enfrentamento de seus adversários e
construírem possibilidades mais democráticas de organização social. Problema este, portanto,
que dependia do conhecimento dos entrevistados sobre a história do grupo, das lógicas de
33
Inicialmente havíamos caracterizado a Brigadas Populares como um grupo do Movimento de Moradia Urbana.
Entretanto, durante a devolução realizada com Joviano (BP), este ressaltou que a luta pela moradia urbana é um
elemento central somente de uma das Frentes de Trabalho da Brigadas Populares (Frente pela reforma urbana),
sendo a Brigadas Populares não um movimento social, mas uma organização política. O entrevistado diferenciou
movimento social e organização política no sentido em que enquanto o primeiro, apesar de também ter um
projeto de sociedade, se vincula a determinadas bandeiras (como exemplos cita: movimento sem teto = luta pela
moradia; movimento sem terra = luta pela reforma agrária), a organização política (no sentido da Brigadas
Populares, que não é uma organização política partidária) se em torno da disputa pela hegemonia na
sociedade, sendo a conquista do poder pelos trabalhadores e trabalhadoras o elemento central, construindo lutas
em diferentes frentes de trabalho, mas tendo como foco a proposição de uma alternativa de projeto de sociedade
a partir da convergência de diversas bandeiras políticas (elementos centrais a este projeto: construção do poder
popular; compreensão das cidades como o local privilegiado para a luta política; socialismo).
Com relação ao Movimento dos Trabalhadores Desempregados este se posiciona como um movimento social
que se encontra em um momento de definição estratégica, não estando clara sua definição em torno de um
campo de luta mais ampla, no sentido em que se encontra indefinida sua localização no interior do campo dos
movimentos sociais. Por exemplo, apesar de hoje o grupo desenvolver ações no campo dos movimentos
sindicais, não se reconhece de modo pleno como um grupo do movimento sindical, apontando ser reconhecido
de modo diferenciado em regiões distintas do país – como movimento de moradia, como movimento de
educação e juventude, como movimento de luta pela terra. O entrevistado do MTD afirma a importância de se
construir esta definição do MTD, estando o grupo a debater sobre isso, de modo a deixar claras suas prioridades.
34
Também realizamos uma entrevista com a gerente da COMACON (Coordenadoria dos Assuntos da
Comunidade Negra da Prefeitura de Belo Horizonte). Entretanto, esta entrevista não foi utilizada na pesquisa em
decorrência da sua especificidade com relação às outras entrevistas, no sentido em que se localiza no interior da
esfera institucional. Apesar da reivindicação por movimentos sociais pela construção de Secretarias e
Coordenadorias no interior do Estado, que sejam coordenadas, inclusive, por militantes dos próprios movimentos
sociais, ser um elemento importante para a compreensão das estratégias dos movimentos sociais hoje, que
visualiza a ambigüidade na delimitação na fronteira entre movimento social e Estado, optou-se por não se
analisar esta entrevista com a gerente da COMACON. Isto se deu diante da impossibilidade de entrevistar
representantes de outros movimentos sociais investigados que ocupam cargos institucionais, bem como do foco
desta pesquisa se concentrar na compreensão por parte de movimentos sociais quanto à construção de vínculos
entre movimentos sociais, conjuntamente com as considerações da teoria democrática radical e plural,
63
subcidadania, das possibilidades de vínculos com outros movimentos sociais, da razão das
bandeiras políticas do grupo, de como as estratégias políticas dos grupos eram definidas.
É importante deixarmos claro o modo como definimos “lideranças”: estas são
compreendidas como informantes reconhecidas, tanto pelo grupo quanto por outros
movimentos sociais, como referências daquele grupo entrevistado. De igual modo, era
necessário que apresentassem uma participação freqüente na organização das ações
desenvolvidas pelo grupo. Assim, nem todos entrevistados ocupam cargos formais de
representação institucionalizados pelo movimento (Presidente, Secretário, etc.), inclusive em
alguns dos grupos entrevistados não cargos formais estabelecidos. Desta forma, o termo
“liderança” é concebido aqui como uma forma de salientar um conhecimento amplo do
entrevistado sobre o grupo e o fato de este ser reconhecido como referência deste grupo por
parte de outros entrevistados.
Deste modo, no que tange a NA e a BP, estes são grupos com atuação regional (região
metropolitana de BH) e não existem especificações claras de cargos no interior dos grupos;
contudo, os entrevistados destes grupos (Cássia e Flávia NA; Joviano BP) são
reconhecidos como pessoas de referência dos mesmos. Uma segunda consideração é no que
se refere aos grupos que apresentam representações nacionais e/ou internacionais. Com
exceção de Edith (MST) - representante da Direção Nacional do MST - e de Liliane (ABGLT)
vice-presidente Trans da ABGLBT -, os entrevistados não ocupavam, no momento da
entrevista, cargos nacionais em relação ao grupo: Temístocles (CUT) foi da Executiva
Nacional da CUT, tendo ficado à frente da Secretária de Meio Ambiente durante nove anos,
hoje voltou a atuar no cargo que ocupava na Fundação Ezequiel Dias antes de entrar na
militância sindical; Bernadete (AP-MBH) é Secretária Estadual da AP e Secretária da AP-
MBH, também é Secretária Nacional da MMM (entretanto, a entrevista relativa à MMM foi
feita com outra participante da MMM, estando Bernadete presente, contudo, no momento da
devolução da entrevista para a MMM); a entrevistada da MMM, o entrevistado do MTD e o
entrevistado do MST são militantes que atuam na região metropolitana de Belo Horizonte e
são reconhecidos como pessoas de referência dos grupos dos quais fazem parte por outros
entrevistados. No núcleo BH do MTD, do qual Bruno é membro, não uma divisão de
cargos. A entrevistada da MMM também não possui um cargo e sim uma função: construção
de vínculos da MMM com outros grupos de movimentos sociais da região metropolitana de
Belo Horizonte.
Ressalta-se que estávamos cônscios de que a escolha por uma variedade de grupos
impossibilitaria uma análise aprofundada de suas dinâmicas interna e externa no tempo
64
exíguo para a realização do trabalho de campo. Esta análise exigiria além das entrevistas
realizadas, entrevistas com outros participantes dos grupos, bem como métodos que
propiciassem uma interação mais próxima com estes grupos, como a observação participante,
e, assim, acompanhamento de reuniões e ações construídas por cada um dos grupos, tanto na
qualidade de observador quanto na de participante nestas ações. Neste sentido, cabe salientar
que buscamos investigar, sobretudo, a forma que os grupos compreendem o estabelecimento
de vínculos com outros movimentos sociais na construção de suas estratégias políticas.
Ademais, é importante considerar que a pressuposição de que as “lideranças” dos
grupos poderiam falar de maneira mais ampla e aprofundada sobre os aspectos a serem
analisados do que outros militantes destes grupos também foi construída tendo nós
consciência de que podem existir hiatos entre o discurso das “lideranças” e as idéias e ações
dos grupos que elas representam. Deste modo, as análises se concentraram na exposição das
“lideranças” no decorrer das entrevistas realizadas, sendo elas complementadas pelo
procedimento de devolução das entrevistas e pela coleta de materiais produzidos pelos grupos
entrevistados.
Foram realizadas oito entrevistas semi-estruturadas, sendo seis com lideranças de
grupos de movimentos sociais
35
e duas com representantes de espaços de construção de
vínculos entre sujeitos políticos. O contato com os representantes dos grupos de movimentos
sociais foi, inicialmente, realizado por telefone. Os entrevistados foram identificados a partir
de entrevistas que haviam sido realizadas anteriormente
36
, considerando que pedíamos aos
entrevistados que informassem quais movimentos sociais e quais representantes destes eles
consideravam importantes de serem entrevistados diante do problema de pesquisa exposto.
No que tange à entrevista com a representante da Assembléia Popular Metropolitana
de Belo Horizonte e com a representante da ABGLT, tivemos contato com a primeira a partir
da participação em uma plenária da Assembléia Popular Metropolitana de BH, cuja realização
nos havia sido informada por uma entrevistada. Com relação à vice-presidente Trans da
ABGLT, esta tem atuado junto ao Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da
UFMG, do qual também faço parte como pesquisador.
Infelizmente não foi possível entrevistar todas as pessoas indicadas pelos
entrevistados, em decorrência do curto tempo para a realização de trabalho de campo e para
análise dos dados coletados, e também por distâncias geográficas ou por problemas de
35
Ver consideração sobre a Brigadas Populares em nota anterior.
36
A primeira entrevista realizada foi exatamente a que não fizemos uso nesta dissertação, com a gerente da
COMACON, a qual indicou o grupo NA. Daí em diante, fomos conseguindo o contato dos outros entrevistados
(MMM, MTD, BP, MST, CUT).
65
agenda. Desse modo, resolvemos por nos concentrar, sobretudo, nos grupos de movimentos
sociais que faziam parte da Assembléia Popular Metropolitana de BH, já que estávamos
acompanhando as reuniões periódicas da AP-MBH, espaço caracterizado pelo
estabelecimento de vínculos entre movimentos sociais, importante, portanto, para nosso
problema de pesquisa. Consideramos que a escolha pelos grupos que compunham a AP-MBH
nos possibilitaria ter maior contato e maiores informações sobre os movimentos sociais
entrevistados
37
.
Blee e Taylor (2002) ressaltam que se a força dos estudos em movimentos sociais que
utilizam da técnica de entrevista semi-estruturada encontra-se em obter em profundidade
alguns aspectos dos grupos investigados, essa condição é também um dos limites destes
estudos, pois
quando se começa a analisar os dados de entrevistas qualitativas, pesquisadores
percebem que gastam a maior parte do seu tempo in file work do que no trabalho de
campo. Essa é uma das razões que estudos baseados em entrevistas semi-
estruturadas são geralmente baseados num pequeno número nítido de entrevistas (p.
110, tradução nossa).
Todas as entrevistas foram gravadas com consentimento dos entrevistados, transcritas
e categorizadas. Para todos os entrevistados, informamos que preservaríamos o anonimato dos
mesmos, a menos que autorizassem a divulgação dos seus nomes. Utilizamos para a
realização destas entrevistas um guia de entrevista
38
(APÊNDICE I), não em vista de
estabelecer uma relação rígida de perguntas e respostas, mas no intuito de abordar aspectos
importantes para a investigação do problema de pesquisa proposto.
Após a realização e transcrição das entrevistas, todas foram lidas exaustivamente na
busca por semelhanças e diferenças na exposição dos entrevistados com relação aos aspectos
de interesse desta pesquisa, de modo a se construir algumas categorias para análise do
problema de pesquisa proposto. De acordo com Blee e Taylor (2002)
37
Todos os grupos de movimentos sociais entrevistados faziam parte da AP-MBH na época em que as
entrevistas foram realizadas, com exceção de NA e CUT, não existindo nenhum grupo do movimento negro, do
movimento LGBT e nenhuma Central Sindical no espaço da AP-MBH naquela época. Ademais, dois grupos de
movimentos sociais que fazem parte da AP-MBH não foram entrevistados, sobretudo, em decorrência do
número de entrevistas que já haviam sido realizadas, as quais tinham gerado um grande número de elementos
a serem analisados no curto espaço de tempo da pesquisa, e também por dificuldades para se agendar entrevistas.
Estes grupos foram: o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) e o Movimento dos Sem Universidade
(MSU). A partir daqui, utilizaremos o termo “grupo” para nos referir tanto aos grupos de movimentos sociais
entrevistados quanto aos espaços de vínculos entre sujeitos políticos investigados.
38
Este guia de entrevista foi realizado conjuntamente com Frederico Viana Machado, doutorando no Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG e também integrante do NPP, o qual participou comigo na realização
de algumas das entrevistas realizadas para esta dissertação.
66
pesquisadores desenvolvem interpretações dos dados de entrevistas através de
procedimentos sistemáticos de codificação, categorização e análise. Métodos
qualitativos são usados em pesquisa de movimento social para descobrir os fatores
essenciais de um caso ou de um número de casos, e pesquisadores qualitativos
tipicamente usam um caso ou casos para exemplificar um ou mais processos teóricos
gerais pertinentes aos movimentos sociais. A codificação de entrevistas depende,
mais do que tudo, dos objetivos do estudo [...] Através da codificação, categorização
e análise de entrevistas semi-estruturadas pesquisadores desenvolvem conceitos que
reforçam teorias, mas que também são consistentes com as colocações individuais.
Ao mesmo tempo, métodos qualitativos são holísticos, o que significa que aspectos
dos movimentos são percebidos no contexto dos movimentos como um todo. Na
análise, pesquisadores qualitativos fazem grande esforço para ancorar suas
interpretações na compreensão da vida cotidiana e na linguagem de seus sujeitos (p.
111-112, tradução nossa).
Deste modo, focamos durante a leitura das entrevistas na relação dos grupos com
outros movimentos sociais, nas concepções de sujeito e de desenvolvimento da história, nas
bandeiras de luta, no papel dos movimentos sociais nas sociedades contemporâneas, nas
formas de ação do grupo, nas potencialidades e dificuldades relativas à construção da luta
política. Ademais, pelo fato de a Teoria Democrática Radical e Plural ser a nossa teoria de
referência na compreensão dos processos de democratização nas sociedades contemporâneas,
tínhamos como “pano de fundo”, no processo de categorização, noções fundamentais a esta
teoria: articulação, lógica da equivalência, lógica da diferença, hegemonia, deslocamento.
Desta maneira, buscamos construir categorias que nos possibilitassem debater nosso problema
de pesquisa a partir de um enlaçamento entre a teoria democrática radical e plural, e o que
diziam aqueles que estavam cotidianamente lutando por um mundo melhor, de modo a não
sobrepor um a outro, mas sim buscar maneiras em que a teoria contribuísse para se analisar os
grupos e os grupos contribuíssem para trabalharmos a teoria.
O processo de categorização das entrevistas foi realizado com o uso do programa
Nvivo8, o qual permite selecionar trechos das entrevistas e vinculá-los a categorias
construídas a partir da leitura das mesmas, bem como relacionar os trechos categorizados nas
diferentes entrevistas, facilitando o processo de comparação destas. Das categorias
construídas no decorrer do processo de categorização, diante da leitura exaustiva das
entrevistas, após uma revisão e enlaçamentos entre elas, concebemos quatro categorias para
serem analisadas nesta pesquisa. A elaboração destas quatro categorias decorreu do fato delas
propiciarem a compreensão das principais reivindicações dos movimentos investigados; dos
modos como cada movimento busca se relacionar com outros movimentos no intuito de
conquistar suas bandeiras de luta; do papel atribuído aos movimentos sociais na construção da
luta política; da concepção de mudança social; das possibilidades e dificuldades de efetivar tal
mudança.
67
As categorias construídas foram intituladas:
Bandeiras de luta: compreende as reivindicações que os grupos têm construído no
desenvolvimento de suas ações, apontando para a necessidade de reconfigurações do campo
social;
Construção de Vínculos entre os Movimentos Sociais: compreende os modos como
os grupos se relacionam a outros movimentos sociais na construção da luta política,
possibilitando compreender formas de vínculo estabelecidas ou desejadas pelos grupos;
Papel dos Movimentos Sociais e Resistências Hegemônicas: compreende o
entendimento dos grupos em questão sobre qual deve ser o papel dos movimentos sociais no
momento presente, e implicações de outros atores (ONG, Estado, imprensa) na tentativa de
manutenção da hegemonia sedimentada;
Mudança Social: compreende concepções dos grupos sobre o processo de
democratização social, bem como formas de ação que eles consideram importantes para se
alcançar a sociedade almejada.
Com relação aos documentos coletados nesta pesquisa, estes foram conseguidos junto
aos entrevistados no momento da entrevista ou da devolução feita ao grupo pesquisado, nas
manifestações e reuniões das quais participamos, e em sites indicados pelos entrevistados.
Estes documentos serviram como fontes auxiliares às entrevistas, sendo nosso foco na leitura
dos mesmos igual ao que tivemos naquelas. Contudo, diferente das entrevistas, não fizemos
uso do programa NVivo 8 no que tange aos documentos, tendo os categorizado manualmente.
Foi também a partir das entrevistas e dos documentos que descrevemos a origem dos grupos
entrevistados e a forma de organização dos mesmos.
O procedimento de devolução feito aos grupos pesquisados foi realizado após leitura
das entrevistas, leitura parcial dos documentos que haviam sido coletados e de textos
referentes à Teoria Democrática Radical e Plural em torno do problema de pesquisa proposto.
O objetivo deste procedimento foi debater com cada grupo a sua concordância ou
discordância com relação às descrições que havíamos construído sobre ele, bem como sua
compreensão da distinção que tínhamos desenvolvido sobre estratégia de vínculos entre
movimentos sociais: estratégia de articulação e estratégia de aliança
39
.
Desta maneira, lemos e discutimos, ponto a ponto, um quadro que elencava uma
caracterização do respectivo grupo em torno dos seguintes itens: origem do grupo, estrutura
do grupo, bandeiras de luta, adversários, papel dos movimentos sociais, vínculos entre os
39
Estas estratégias de vínculos serão debatidas a partir do próximo capítulo.
68
movimentos sociais, mudança social, problemas enfrentados (APÊNDICE II)
40
. No decorrer
do processo de devolução, esclarecemos alguns aspectos que haviam ficado pouco explícitos
nas entrevistas e alteramos alguns elementos, no intuito de aproximar a descrição apresentada
com a compreensão dos grupos sobre esta mesma descrição.
Este processo de devolução demonstrou sua importância por nos ter permitido
aprofundarmos em alguns aspectos que não estavam claro, bem como por ter possibilitado
àqueles que nos “falavam” sobre suas lutas tomar ciência do que “dizíamos” sobre eles,
permitindo a ambos construir conhecimentos mais “verdadeiros”. Estes concebidos aqui como
conhecimentos que se constroem sob problematizações, permitindo tanto ao pesquisador
quanto aos pesquisados refletirem sobre suas próprias concepções e práticas, a partir da
interação entre os mesmos. Assim, possibilitam chegar não a saberes últimos, mas a
interpretações consideradas por ambos como legítimas para se compreender aquela realidade.
Cabe considerar que entendemos a relação entre pesquisador e pesquisado não como
uma relação entre sujeito (pesquisador, ativo, pensante, racional) e objeto (pesquisado,
passivo, alienado, não-racional), e sim como uma relação entre sujeito e sujeito em torno da
reflexão sobre um determinado objeto: o problema de pesquisa a ser investigado. Portanto, a
relação pesquisador e pesquisado é entendida como uma relação entre sujeitos que podem
apresentar saberes distintos sobre a realidade, mas que de maneira alguma a simples
adjetivação de um dos saberes como “científico” o faz, a priori, uma forma superior de
compreensão da realidade e de outro como “popular”, “militante” inferior na reflexão sobre o
objeto analisado. Assim, o conhecimento é entendido como um conhecimento co-construído,
sendo pesquisador e pesquisado sujeitos na interpretação sobre aquele objeto pesquisado.
Diante destas considerações sobre a produção do conhecimento e a relação
pesquisador/pesquisado, concordamos com Ranci (2005) no que tange a compreender que
o ator social não tem uma função neutra de informações colocadas à disposição do
pesquisador, mas desenvolve um papel ativo que condiciona o processo
cognoscitivo. Ele assume, no curso de uma pesquisa empírica, um duplo papel: de
um lado é parte do objeto de estudo do pesquisador, e de outro, enquanto sujeito
discursivo, age também como médium entre o pesquisador e a realidade social mais
ampla que ele está investigando (p. 44).
40
Os quadros presentes no APÊNDICE II mantêm a organização apresentada no procedimento de devolução
realizado com os grupos, assim, estão formatados em torno das categorias expostas naquele procedimento (com
exceção daquelas denominadas Origem e Estrutura, pela razão de que estas serão descritas no próximo tópico).
Foi a partir de enlaçamentos destas categorias que, construímos as quatro categorias analisadas na dissertação,
explicitadas anteriormente. Os quadros se mantêm a estrutura apresentada aos grupos, seu conteúdo já se remete
ao processo de revisão realizado após a devolução com cada grupo e à leitura dos documentos respectivos a cada
grupo coletados para esta pesquisa.
69
Por outro lado, complementamos, o pesquisador não se encontra também no lugar de
produção de um conhecimento neutro, no sentido de uma neutralidade significada como
afastamento completo de seus valores, de sua empatia, afeto, amizade estabelecida com os
pesquisados. Deve-se ressaltar que diante da consideração do pesquisado como um co-
construtor do conhecimento, e não como um objeto a se pesquisar, como se fosse um
informante que deva estar a nosso serviço, a realização da pesquisa depende que o pesquisado
aceite o pesquisador e que se estabeleça uma relação de confiança e empatia entre eles.
Segundo Martins (2004), “Para os positivistas, essa referência a sentimentos é motivo
para dúvidas a respeito do caráter científico do conhecimento produzido” (p. 294), quando
para nós os sentimentos são elementos dos quais não podemos nos eximir. O que não deve,
contudo, significar a equivalência do conhecimento científico à militância, mas sim em
afirmar que pesquisadores constroem interpretações e não verdade neutra, no intuito de
fornecer ferramentas que contribuam para análise do problema investigado. Nesta dissertação
pretendemos contribuir para a análise das possibilidades de lutas contra-hegemônicas e,
assim, para a construção de sociedades mais radicais e plurais.
Ademais, é importante ressaltar aqui proposições como aquelas de Santos (2002) sobre
a “tradução de saberes” e a noção de “saberes localizados” apresentada por Haraway (1995),
no sentido em que possibilitam reconhecer a importância de se romper com a dicotomia
sujeito-objeto e de desmistificar a neutralidade e universalidade de qualquer conhecimento.
Tais proposições permitem salientar que a construção do conhecimento não deve se pautar na
reprodução de uma “razão indolente” (Cf. SANTOS, 2002), de saberes universais e neutros
(Cf. HARAWAY, 1995), mas no reconhecimento de uma pluralidade de saberes, construídos
sob diferentes modos de racionalidade, sendo sempre localizados e parciais. Estas formas de
se abordar o conhecimento não implica em afirmar uma postura relativista: “O relativismo é
uma maneira de não estar em lugar nenhum, mas alegando-se que se está igualmente em toda
parte. [...]. Nas ideologias da objetividade, o relativismo é o perfeito gêmeo invertido da
totalização; ambos negam interesse na posição, na corporificação e na perspectiva parcial”
(HARAWAY, 1995, p. 24).
Foi na busca de se romper com a dicotomia sujeito-objeto, desmistificar a neutralidade
de qualquer conhecimento e construir saberes que contribuíssem para a democratização das
sociedades latino-americanas que psicólogos sociais latino-americanos, após a década de
1970, passaram a enfatizar a importância das ciências sociais reconsiderarem as dimensões
ontológica, epistemológica e metodológica do cânone científico e introduzir outras dimensões
70
na produção do conhecimento: dimensões relacional, ética e política (Cf. LANE & SAWAIA,
1991; LANE, 2002; MONTERO, 2002).
Diante dos procedimentos e concepções metodológicas expostas, buscamos
estabelecer laços entre a Teoria Democrática Radical e Plural e os dados coletados junto aos
grupos, no intuito de trabalhar nossos problemas de pesquisa. Segundo Martins (2004), a
capacidade integrativa e analítica dos dados em pesquisas qualitativas “depende do
desenvolvimento de uma capacidade criativa e intuitiva. [...]. A intuição aqui mencionada não
é um dom, mas uma resultante da formação teórica e dos exercícios práticos do pesquisador”
(p. 292).
Listamos, nos quadros abaixo, os entrevistados e as entrevistadas e seus respectivos
grupos, bem como os materiais coletados junto aos grupos:
QUADRO 1
Entrevistado/a por grupo/espaço de vínculo respectivo (em ordem alfabética dos
grupos/espaços de vínculo)
Grupo/espaço de vínculo Entrevistado/a
Assembléia Popular Metropolitana de Belo Horizonte Bernadete
Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais Liliane
Brigadas Populares Joviano
Central Única dos Trabalhadores Temístocles
Marcha Mundial das Mulheres
41
-
Movimento dos Trabalhadores Desempregados Bruno
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Edith / Chumbinho
Negras Ativas Cássia / Flávia
41
A entrevistada solicitou que seu nome não fosse divulgado.
71
QUADRO 2
Documentos coletados por grupo/espaço de vínculo respectivo (em ordem alfabética dos
grupos/espaço de vínculo)
Grupos/espaço de
vínculo
Documentos coletados
Assembléia Popular
Metropolitana de Belo
Horizonte (AP-MBH)
ANEXO I (AP-MBH): “Assembléia Popular. De onde vem? Para onde vai?”
ANEXO II (AP-MBH): “Encaminhamentos realizados na Plenária Nacional da
Assembléia Popular (out. 2009)”
ANEXO III (AP-MBH): “Repasse Encontro Nacional da Assembléia Popular (nov.
2008)”
ANEXO IV (AP-MBH): “O Brasil que queremos. Assembléia Popular Mutirão por
um Novo Brasil (out. 2005)”
42
ANEXO V (AP-MBH): “Jornal da Assembléia Popular Mutirão por um novo Brasil
(maio 2009)”
Associação Brasileira de
Gays, Lésbicas,
Bissexuais, Travestis e
Transexuais (ABGLT)
ANEXO I (ABGLT): “Carta de Princípios da ABGLT (jan. 1995)”
ANEXO II (ABGLT): “Resoluções do I Congresso da ABGLT (2006)”
ANEXO III (ABGLT): “Carta de Belém – III Congresso da ABGLT (abr. 2009)”
ANEXO IV (ABGLT): “Plano Nacional de Promoção dos Direitos Humanos e
Cidadania LGBT (2009)”
ANEXO V (ABGLT): “Projeto Somos. Desenvolvimento Organizacional, Advocacy
e Intervenção para ONGs que trabalham com gays e outros HSH (2005)”
Brigadas Populares (BP) ANEXO I (BP): “Estrutura organizativa das Brigadas Populares (abr. 2009)”
ANEXO II (BP): “Correio Brigadista 2009 – Boletim Especial”
ANEXO III (BP): “A Plataforma Brigadista (maio 2008)”
ANEXO IV (BP): “Cartilha Preparatória do III Encontro de Comunidades de
Resistência – Organização Popular: Alternativa Brigadista (out. 2009)”
ANEXO V (BP): “A linha política (maio 2008)
ANEXO VI (BP): “Histórico Dandara (abr. 2009)”
Central Única dos
Trabalhadores (CUT)
ANEXO I (CUT): “Histórico (ago. 2008)”
ANEXO II (CUT): “Central Única dos Trabalhadores (dez. 2007)”
ANEXO III (CUT): “Cronologia das Lutas (março 2009)”
ANEXO IV (CUT): “Nota da CUT Sobre o Congresso da Contag (março 2009)”
ANEXO V (CUT): “Correntes políticas avaliam mandato 2006-2009 e destacam
combatividade da Central (agosto 2009)”
ANEXO VI (CUT): “Ato político (agosto 2009)”
Marcha Mundial das ANEXO I (MMM): “Jornal da Marcha (out.2005)”
42
Deste documento colocamos em anexo apenas as partes referentes à Apresentação e à Introdução. Foram estas
as partes utilizadas nesta dissertação.
72
Mulheres (MMM) ANEXO II (MMM): “Cadernos MMM 2008”
ANEXO III (MMM): “Jornal da MMM – Ação 2010 (agosto 2009)”
ANEXO IV (MMM): “Marcha Mundial de las Mujeres 1998-2008 Uma década de
lucha internacional feminista”
Movimento dos
Trabalhadores
Desempregados (MTD)
ANEXO I (MTD): “Curso Levante Juventude”
ANEXO II (MTD): “MTD no Conjunto Jardim Felicidade conquista títulos de
moradia”
ANEXO III (MTD): “Assembléia Popular dos/as Desempregados/as (abril 2009)
ANEXO IV (MTD): “MTD do Bairro Jardim Felicidade exige Títulos de Moradia”
Movimento dos
Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST)
ANEXO I (MST): “Nota de esclarecimento sobre os recentes acontecimentos (out.
2009)”
ANEXO II (MST): “Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Edição Especial
(Jan-Fev 2009)”
ANEXO III (MST): “Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (maio 2009)
ANEXO IV (MST): “Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Abr. 2009)”
ANEXO V (MST): “Nossa proposta de Reforma Agrária Popular (julho 2009)”
ANEXO VI (MST): “Em defesa da democracia e do MST (set. 2009)
ANEXO VII (MST): “Governo ampara invasões do MST (out. 2009)”
43
Negras Ativas (NA) ANEXO I (NA): “Portifólio Negras Ativas”
ANEXO II (NA): “Marcha Zumbi dos Palmares, contra o racismo, pela cidadania e
pela vida (nov.1995)”
QUADRO 3
Documentos coletados relativo a lutas conjuntas entre grupos/espaço de vínculo
ANEXO I Lutas Conjuntas (LC): “Dia de luta! 30 de abril. Manifestação do dia do trabalhador e da
trabalhadora”
ANEXO II Lutas Conjuntas (LC): “Jornal Brasil de Fato – Edição Especial Crise (julho 2009)”
ANEXO III Lutas Conjuntas (LC): “Grito dos/as Excluídos/as 7 de setembro de 2009”
ANEXO IV Lutas Conjuntas (LC): “O Petróleo tem que ser nosso”
43
Este anexo não foi nos indicado pelo MST, tendo sido retirado por nós do site do Partido Democratas
(www.democratas.org.br). Contudo, como se trata de um tema referente ao MST, nós o colocamos nos anexos
referentes ao MST.
73
2.2. Caracterização dos grupos investigados
Caracterizamos aqui, brevemente, cada um dos grupos investigados nesta dissertação,
no intuito de apresentar a origem destes grupos e a forma como se organizam internamente.
Esta caracterização é decorrente das entrevistas, de documentos coletados junto aos grupos e
do processo de devolução com os mesmos. Ressaltamos que no APÊNDICE II há uma
caracterização dos grupos em torno das categorias Bandeiras de Luta, Adversários, Papel dos
Movimentos Sociais, Vínculos entre Movimentos Sociais, Mudança Social, Problemas
Enfrentados.
2.2.1 Assembléia Popular Metropolitana de Belo Horizonte (AP-MBH)
Constituição: A Assembléia Popular (AP) segundo o Documento “Assembléia
Popular. De onde vem? Para onde vai?” (ANEXO I AP-MBH) surgiu nacionalmente
em 2005, através da junção entre dois processos existentes: Semanas Sociais
Brasileiras e a “Campanha Jubileu Sul”. O primeiro processo era promovido pela
CNBB e na Semana Social “Mutirão para um novo Brasil” seus integrantes
decidiram construir no final de 2005 um momento nacional, no qual se reuniria todas
as contribuições destes integrantes sobre “o Brasil que queremos”. Já o segundo
processo, organizado em 1998, durante o Simpósio da Dívida Externa, decorrente da
Semana Social da CNBB, objetivava agrupar todas as campanhas contra a dívida da
América Latina, África e Ásia (realizando, por exemplo, a Campanha Continental
contra a ALCA), e programou para o ano de 2005 assembléias populares em todos os
níveis, no intuito de realizar no final do ano uma Assembléia Nacional.
A crise política com a revelação dos casos de corrupção, a coincidência dos dois
eventos nacionais programados para o final do ano 2005, a oportunidade de
reagrupar as forças sociais algo dispersas, levou a juntar os dois eventos. A primeira
Assembléia Popular Nacional aconteceu em Brasília com a presença de
aproximadamente 8000 participantes (Documento “Assembléia Popular. De onde
vem? Para onde vai?” – ANEXO I AP-MBH –, não paginado).
Esta Assembléia Popular Nacional elaborou um documento: “O Brasil que
queremos. Assembléia Popular Mutirão por um Novo Brasil”, de modo a favorecer a
elaboração de um projeto popular para a nação. O objetivo da AP é construir um
projeto de rompimento com o sistema hegemônico que para além das demandas
74
particulares de cada movimento social, como “uma forma da luta do povo para
responder aos embates do capitalismo, para defender os seus direitos, a sua dignidade
e os da nação” (Documento “Assembléia Popular. De onde vem? Para onde vai?”
ANEXO I AP-MBH
, não paginado).
Segundo Bernadete (AP-MBH), na região metropolitana de Belo Horizonte a AP se
constituiu a partir de um Comitê Metropolitano, em 2005, organizado diante da
orientação da Assembléia Nacional da AP de se construir AP locais em todo o Brasil.
Entretanto, nesta mesma época foi organizado o Fórum das Articulações
44
, ocorrendo
uma desmobilização em torno da AP-MBH, tendo os movimentos de bairro e
movimentos sociais se organizado em outros espaços. Em 2008, após nova plenária
nacional da AP, o Comitê Metropolitano de BH foi rearticulado, promovendo uma
aproximação entre bairros e movimentos sociais, entre demandas locais e demandas
nacionais.
Bandeiras que aglutinaram a AP: a AP surge como forma de resistência e de
proposição de uma alternativa à globalização neoliberal que acarretou não somente no
aumento do número de excluídos e na deterioração das condições de vida de muitos,
mas também numa concepção de que não havia alternativas possíveis. Ela nasce num
contexto de frustração de grande parte da esquerda com o governo Lula que se, por um
lado, “se mostrou mais firme nas negociações comerciais internacionais, por outro
continua a política do governo anterior, dando a prioridade aos privilégios do capital
sobre o atendimento das necessidades básicas da maioria da população” (Documento
“Assembléia Popular. De onde vem? Para onde vai?” ANEXO I AP-MBH
, não
paginado), não tendo realizado as reformas prometidas e ignorado a força
transformadora dos movimentos sociais.
44
O rum das Articulações, segundo a entrevistada, surgiu com o objetivo de criar vínculos entre espaços de
vínculos entre movimentos sociais já existentes, no âmbito estadual. Estavam presentes neste Fórum das
Articulações o Comitê Mineiro do Fórum Social Mundial, a Via Campesina, a Articulação Mineira de
Agroecologia, entre outras. Contudo, como grande parte dos movimentos sociais presentes no Fórum das
Articulações localizavam-se na região metropolitana de Belo Horizonte, muitas das pessoas que se reuniam em
torno deste Fórum eram as mesmas que se reuniam em torno da AP-MBH. O Fórum das Articulações organizou
o I e o II Encontro dos Movimentos Sociais; contudo, entre o I e o II Encontros começou a se desmobilizar,
diante da compreensão dos movimentos sociais que se fazia necessário fortalecer um espaço mais permanente de
luta, que buscasse construir vínculos entre os movimentos sociais, mas também construir trabalho de base,
iniciativa esta que estava sendo desenvolvida como Assembléia Popular. Esta desmobilização do Fórum das
Articulações, entretanto, trouxe como perda a diminuição de entidades vinculadas, na medida em que nem todas
que estavam no Fórum das Articulações passaram a compor a AP-MBH.
75
Organização: a AP é uma organização nacional, e seus cargos são preenchidos,
durante as Plenárias (Nacional, Metropolitana, Estadual), por indicação dos
movimentos sociais e organizações sociais (pastorais sociais da Igreja Católica, Rede
de Educação Cidadã, por exemplo) que a constituem. Bernadete aponta que apesar de
os membros da AP se vincularem a ela a partir dos movimentos sociais específicos, ou
seja, como militantes destes movimentos, na construção do trabalho de base os
moradores dos bairros se aglutinam, muitas vezes, em torno da AP, não
necessariamente em torno de movimentos sociais específicos, isto é, como um
militante da AP.
No documento Encaminhamentos realizados na Plenária Nacional da Assembléia
Popular” (out. 2009) ANEXO II AP-MBH aponta-se que a AP se organiza
atualmente da seguinte maneira:
a) Secretaria Operativa da Assembléia Popular Nacional:
tem por objetivo reunir-se periodicamente para a partir das definições da plenária ou
conforme a realidade e as demandas dar encaminhamento político e operativo.
Composição atual: Pastorais Sociais/CNBB, Cáritas Brasileira; INESC; MST;
MAB; Jubileu Sul; Grito dos Excluídos Continental e Nacional; Consulta Popular;
Pastoral Operária (p.06);
b) Plenária Nacional da AP: “é o espaço de coordenação nacional da Assembléia
Popular e é composto por UM representante de cada movimento, entidade, pastoral
social em âmbito nacional e DOIS representantes de cada articulação da
Assembléia Popular estadual/regional” (p. 06);
c) Assembléia Popular Nacional:
seria a instância maior para as definições, encaminhamentos sobre a AP e o projeto
popular O Brasil que Queremos, por ser um espaço mais representativo, não tem
uma peridiocidade definida, é realizada conforme a demanda e a necessidade do
processo de articulação (p. 06).
Além disso, deve-se observar a existência da Plenária Metropolitana, no âmbito
regional (na AP-MBH tenta-se organizar uma plenária por mês), e da Plenária
Estadual da AP (a última Plenária Estadual da AP-Minas Gerais ocorreu em dezembro
de 2009).
Financiamento: apresenta como fonte de financiamento os movimentos sociais que
fazem parte da AP; Igreja Católica (pastorais sociais).
76
No documento Encaminhamentos realizados na Plenária Nacional da Assembléia
Popular” (out. 2009) ANEXO II AP-MBH –, afirma-se que para a realização da II
Assembléia Popular Nacional se buscará recursos através de projetos locais,
internacionais, estatais e outras possibilidades. Também se afirma neste documento
que, no que tange à sustentabilidade financeira da AP, deve-se priorizar “a auto-
sustentação da Assembléia Popular pelos movimentos/entidades/pastorais e estados”
(p. 06), tendo sido estabelecido um valor de cotização anual com diferenciação por
Estados (mais organizados / em fase de organização) e pelo tamanho dos movimentos
sociais e entidades (grande, médio, pequeno).
2.2.2 Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e
Transexuais (ABGLT)
Constituição: surge em 1995, durante o VIII Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas,
mediante a compreensão de uma intensa discriminação de gays, lésbicas e travestis na
sociedade brasileira, no intuito de se lutar pelos direitos humanos e civis dos mesmos.
Neste momento de fundação, redigiu-se a “Carta de Princípios da ABGLT (jan.
1995)” (ANEXO I ABGLT), assinada por 31 grupos de gays, lésbicas e travestis
brasileiros que participaram de sua fundação.
Bandeiras que aglutinaram a ABGLT: Na “Carta de Princípios da ABGLT (jan.
1995)” (ANEXO I ABGLT) consta que “a ABGLT se forma para lutar pela promoção
da livre orientação sexual, pela liberdade, justiça social, democracia, pluralidade e
diversidade de gêneros” (não paginado), bem como aponta que a
ABGLT pretende: 1) fomento à criação de novos grupos e fortalecimento dos
existentes, sobretudo aos de lésbicas e travestis, pois entende que estes são alvo de
uma discriminação ainda mais contundente; 2) promoção do intercâmbio e
solidariedade entre todos os grupos e indivíduos que lutam pela livre orientação
sexual; 3) conscientização dos homossexuais da sua importância enquanto seres
humanos e de seu papel na sociedade em geral; 4) pressão pela criação de leis que se
posicionem claramente contra a discriminação e garantam a plena igualdade de
oportunidades; 5) ação visando à interferência na elaboração de políticas públicas de
saúde e afins; 6) luta pela liberação de gays, lésbicas e travestis da discriminação
legal, social, cultural e econômica. (não paginado)
Organização: a ABGLT é uma organização nacional composta por 220 organizações
afiliadas, sendo a maior rede LGBT na América Latina. Apresenta a seguinte
estrutura: um presidente, dois vice-presidentes, uma Secretaria Geral, uma Secretaria
77
de Finanças, uma Secretaria de Comunicação, uma Secretaria de Direitos Humanos,
cinco Secretarias Regionais. Os cargos são eleitos na Assembléia Geral da ABGLT,
órgão soberano da instituição. A articulação entre os veis nacional, estadual e
municipal ocorre através da relação entre estas três instâncias e com redes formadas
por grupos filiados à ABGLT.
No documento “Resoluções do I Congresso da ABGLT (2006)” ANEXO II ABGLT
–, a ABGLT afirma ser fundamental a autonomia política, não devendo o movimento
“se submeter às decisões ou às necessidades de nenhuma tendência política ou grupo
social” (p. 30).
Financiamento: ocorre através de recursos via aprovação de projetos financiados pelo
Estado (Ministério da Saúde, Ministério da Cultura, por exemplo) e também por
verbas decorrentes de emendas parlamentares.
2.2.3. Brigadas Populares (BP)
Constituição: organização política constituída em 2005, a partir da dissolução do
Núcleo de Estudos Marxistas, a qual se deu em decorrência de alguns integrantes deste
Núcleo terem decidido se dedicar a uma atuação prática pautada na construção de um
projeto de poder popular, ao invés de continuarem apenas como membros de um
Núcleo de formação teórico marxista. Este Núcleo se reunia em Belo Horizonte na
FAFICH/UFMG, na Faculdade de Direito/UFMG, na PUC-São Gabriel, num espaço
externo às universidades, no centro da cidade, sendo que, neste último, participavam
mais trabalhadores e menos estudantes. Este Núcleo também se reunia em Ouro Preto.
A Brigadas Populares apresenta como objetivo a atuação dentro de comunidades
periféricas, realizando ações em torno de um projeto de poder popular, na busca de
disputar a hegemonia na sociedade, sendo a conquista do poder pelos trabalhadores e
trabalhadoras um elemento central. Defende a autonomia política e financeira da
organização (considerando a autonomia financeira inclusive como condição para a
autonomia política), não se articulando em torno nem de partidos políticos nem de
sindicatos, e não buscando financiamento do Estado para evitar o atrelamento e a
cooptação da organização pelo Estado. Também não busca financiamento junto a
fundações e ONGs que atuam dentro da gica neo-liberal do Consenso de
78
Washington, por conceber que estas servem de “barreira de contenção” para a
construção da luta popular.
Bandeiras que aglutinaram o grupo: organização da periferia em torno da construção
de um projeto de poder popular, na busca de construir um bloco histórico contra-
hegemônico (contrário às elites, ao projeto neoliberal). A organização não pretende ser
a vanguarda que vai apontar o caminho da transformação social, mas contribuir na
construção do projeto popular.
Organização: é um grupo de atuação regional (região metropolitana de Belo
Horizonte), composto por um número de militantes, segundo Joviano (BP),
relativamente reduzido, existindo em torno de 50 a 60 brigadistas orgânicos. O grupo
não apresenta cargos específicos, e sim distribuição de funções entre os militantes.
Inicialmente organizava-se somente em torno das Brigadas Territoriais, contudo,
diante do objetivo de fortalecer o trabalho político nas comunidades foram criadas as
Frentes de Trabalho, os Núcleos Brigadistas, os Secretariados, as Brigadas Especiais,
a Assembléia Brigadista, bem como o Encontro de Comunidades de Resistência e o
Círculo Brigadista. A partir do documento “Estrutura organizativa das Brigadas
Populares (abr. 2009)” (ANEXO I BP), as instâncias organizativas podem ser
definidas:
Brigadas Territoriais: traço característico da BP, devido o foco na construção de
poder popular. Encontram-se vinculadas a determinados territórios de atuação da
BP, sendo constituídas a partir de uma vinculação prévia com alguma entidade ou
liderança da área. A partir do método de Assembléia Popular, militantes orgânicos
da BP buscam contribuir na organização de lutas pela conquista das demandas
locais, bem como elevar as pautas específicas e imediatas das Brigadas Territoriais
a um patamar político mais amplo. Considera-se importante que o território em que
atua a Brigada Territorial reconheça esta como uma ferramenta para a
transformação da realidade, e não como um grupo de pessoas voltadas para a
assistência ou para a caridade. Atualmente, existem seis Brigadas Territoriais
organizadas.
Frentes de Trabalho: são agrupamentos de militantes voltados para alguma
demanda, sendo que o que une a atuação de cada Frente é o projeto político da
Brigadas Populares, o qual vai para além de cada demanda específica. Considera
importante a conexão entre as diferentes Frentes de Trabalho na atuação das
mesmas. Atualmente existem cinco Frentes de Trabalho.
79
Núcleos Brigadistas: se organizam em torno de temas específicos, podendo ser
constituídos por qualquer militante nos territórios que a BP atua (comunidades,
ocupações, presídios, universidades, escolas), apresentando uma diferença com
relação às Brigadas Territoriais, no que tange a tais Núcleos não estarem,
necessariamente, vinculados às deliberações da BP, apesar de se considerar
importante que tenham como perspectiva se tornarem Brigadas Territoriais. Esta
estrutura serve, portanto, como uma forma de entrada de mais pessoas na BP. No
documento “Estrutura organizativa das Brigadas Populares (abr. 2009)” - ANEXO I
BP
–,
expressa-se a existência de dois Núcleos; contudo, no documento “Correio
Brigadista 2009 Boletim Especial” (ANEXO II BP - documento mais recente que
o anterior), são apresentados cincos Núcleos Brigadistas, estando os dois anteriores
incluídos nestes.
Brigadas Especiais: diferente das Brigadas Territoriais, não estão vinculadas a um
território, e sim a temas específicos considerados importantes dentro da linha
política da BP. Atualmente há duas Brigadas Especiais.
Secretariados: compreende secretários políticos, organizativos e financeiros, sendo
estes nomeados por cada uma das outras instâncias da BP (Brigadas Territoriais,
Brigadas Especiais, Frentes de Trabalho, Núcleos Brigadistas), compondo, assim, o
Secretariado da BP. O Secretariado é entendido como um espaço de interconexão
entre aquelas outras instâncias. Segundo Joviano (BP), o secretário político
apresenta como função a articulação das BP com outras organizações; o secretário
organizativo, o mapeamento da militância, organização de reuniões, da memória da
organização inteligência da organização; e o secretário financeiro é responsável
pela política de auto-financiamento da organização.
Assembléia Brigadista: instância máxima de organização política, espaço onde se
estabelecem as definições políticas mais amplas da organização: concepções gerais,
definição de aliados, construção da estratégia e da linha política.
Encontro de Comunidades de Resistência: evento anual que busca reunir todas as
pessoas dos territórios em que a BP atua, mais apoiadores e outras organizações e
movimentos de esquerda, na busca de construir análises sobre a conjuntura política,
construir vínculos entre lutas e bandeiras, promover interação entre as bases de
influência da BP.
80
Círculo Brigadista: espaço de apresentação da estrutura e do trabalho das BP para
pessoas que se interessam em se incorporar à organização ou contribuir nas
atividades desenvolvidas por esta.
Financiamento: a auto-sustentação financeira é um princípio central da Brigadas
Populares, não recebendo dinheiro de instâncias estatais para evitar atrelamento da
organização ao Estado, nem de fundações e ONGs que atuam dentro da lógica neo-
liberal do Consenso de Washington, concebidas como uma “barreira de contenção” da
luta popular. Esta posição decorre do fato de considerar que a autonomia política
encontra-se atrelada à autonomia financeira, pois como nos disse Joviano (BP), “quem
paga a banda escolhe a música”. Desta maneira, a BP busca se sustentar com
contribuições dos militantes, arrecadação decorrente da realização de festas, venda de
materiais, e também com contribuição de parceiros (como sindicatos). Ressalta,
contudo, que esta contribuição de parceiros deve atender a três requisitos básicos: a) o
dinheiro não deve ser para manutenção de estrutura ou liberação de militante, apenas
para ações pontuais concretas, pois se no futuro o apoio for retirado, isso não
influenciará no andamento do trabalho da BP; b) o recurso tem que partir de uma
solidariedade incondicional, baseada no critério da verdade, ou seja, no compromisso
da BP de que o dinheiro será utilizado exatamente para o que foi solicitado; c)
necessidade da organização que propicia o apoio financeiro se encontrar no mesmo
campo contra-hegemônico que a BP.
2.2.4 Central Única dos Trabalhadores (CUT)
Constituição: Central Sindical organizada em 1983, período de redemocratização do
Brasil, em oposição aos sindicatos “pelegos”, no Congresso Nacional da Classe
Trabalhadora, no intuito de ser uma frente única dos trabalhadores, englobando todo o
conjunto dos trabalhadores em torno de seus objetivos imediatos e históricos.
Diferente do PT, forte aliado na construção da CUT, esta não se configura como um
partido político, no sentido que busca representar não uma parte da população, mas
todo o conjunto dos trabalhadores. Na sua fundação a CUT, assim como o PT,
apresentava como referência para a luta a construção do socialismo. Entretanto,
segundo Temístocles (CUT), infelizmente esta concepção ideológica-política tem se
enfraquecido nos últimos anos, devido transformações históricas que levaram a novas
81
configurações políticas vivenciadas nas sociedades contemporâneas. Contudo, o
entrevistado ressalta que a CUT não é defensora dos valores capitalistas, atuando no
interior do jogo capitalista pelo fato de vivermos numa sociedade capitalista. Hoje é a
maior Central Sindical da América Latina e a quinta maior do mundo.
No documento “Histórico (ago. 2008)” ANEXO I CUT
,
afirma-se que a CUT,
baseada em princípios de igualdade e solidariedade, tem como objetivos “organizar,
representar sindicalmente e dirigir a luta dos trabalhadores e trabalhadoras da cidade e
do campo, do setor público e privado, ativos e inativos, por melhores condições de
vida e de trabalho e por uma sociedade justa e democrática”
45
(não paginado).
Bandeiras que aglutinaram o grupo: construção de uma frente unitária dos
trabalhadores, incorporando, além das bandeiras econômica e trabalhista, a luta pela
redemocratização da sociedade, por eleições diretas, pela anistia, devendo-se
considerar que a CUT foi fundada no momento de redemocratização do Brasil (1983).
Desde seus primeiros anos, segundo Temístocles, a CUT defende a integração entre as
dimensões econômica, social e ambiental na concepção de desenvolvimento, tendo
sido Chico Mendes, importante ativista ambiental brasileiro, por exemplo, um dos
fundadores da CUT.
No documento “Cronologia das Lutas (março 2009)” ANEXO III CUT
–,
afirma-se
que no Congresso Nacional da Classe Trabalhadora (1983), no qual foi aprovada a
criação da CUT, exigiu-se o fim da Lei de Segurança Nacional e Eleições Diretas para
Presidente da República, bem como foi aprovado “o combate às políticas econômica e
salarial do governo, a luta contra o desemprego, pela reforma agrária, em defesa da
liberdade e autonomia sindical” (não paginado). No Congresso Nacional da CUT
(1984), as principais resoluções foram “organização de uma campanha nacional de
luta em torno de reivindicações imediatas, a luta pelas Diretas Já e a definição da
greve como principal instrumento de luta dos trabalhadores” (não paginado).
Organização: grupo de atuação nacional que apresenta uma Direção Nacional e
Direções Estaduais, sendo a eleição para os cargos e as diretrizes da organização
definidas no Congresso Nacional da CUT (ocorre a cada três anos). Possui como
princípio a autonomia frente a partidos políticos, governo e empresas e defende que
sindicato deve ser frente ampla”, incorporando todo o conjunto dos trabalhadores,
45
Observa-se que neste documento, diferente de um documento anterior também presente no site da CUT
Nacional, e muito semelhante a este, mas publicado oito meses antes (ANEXO II CUT “Central Única dos
Trabalhadores (dez. 2007)”), não se faz uso em nenhum momento do termo “socialismo”, sendo utilizada a
noção de construção de uma sociedade justa e democrática.
82
inclusive as oposições sindicais, de maneira a construir uma frente única, impedindo a
fragmentação do movimento sindical. A CUT é composta por sindicatos filiados.
No documento “Histórico (ago. 2008)” ANEXO I CUT
–,
afirma-se que a CUT se
estrutura em dois níveis: a) Organização Horizontal: organização dos trabalhadores em
âmbito regional, estadual e nacional, existindo, além da estrutura nacional, CUT
estaduais (26 estados e no Distrito Federal); b) Organização Vertical: organizações
sindicais de base e entidades sindicais por ramo de atividade econômica: sindicatos,
federações e confederações” (não paginado). Neste mesmo documento explicita-se
que a
CUT defende a liberdade e autonomia sindical com o compromisso e o
entendimento de que os trabalhadores têm o direito de decidir livremente sobre suas
formas de organização, filiação e sustentação financeira, com total independência
frente ao Estado, governos, patronato, partidos e agrupamentos políticos, credos e
instituições religiosas e a quaisquer organismos de caráter programático ou
institucional (não paginado).
Financiamento: o entrevistado afirma que quem sustenta a CUT são os sindicatos
filiados à CUT, sendo o imposto sindical apenas um componente das taxas de
sindicalização. Ressalta a importância de autonomia do movimento com relação a
governos, a partidos políticos e a empresas.
2.2.5 Marcha Mundial das Mulheres (MMM)
Constituição: movimento social feminista e anti-capitalista que começou a ser
organizado por grupos de mulheres no Canadá, em 1995, e que surgiu como um
Fórum de Articulação de movimentos de mulheres em 2000 com a realização de uma
marcha internacional 2000 razões para marchar contra a pobreza e a violência
sexista -, na qual mulheres se colocaram contra a violência, a pobreza e a sociedade de
mercado e entregaram um documento com dezessete pontos de reivindicações à ONU.
Em 2005, realizou sua segunda ação internacional na qual se construiu a Carta
Mundial das Mulheres para a Humanidade
46
e deixou de ser um Fórum de
46
Segundo o “Jornal da Marcha (out. 2005)” ANEXO I MMM –, a passeata em torno da Carta das Mulheres
para a Humanidade iniciou-se no Brasil, tendo sido organizada em alas conforme os valores expressos na Carta:
a ala da igualdade apresentou a campanha de valorização do salário mínimo, a luta
pela reforma agrária; a ala da liberdade mostrou a legalização do aborto, o respeito
83
Articulação para se tornar um movimento social de âmbito internacional, composto
por mulheres sindicalistas e de movimentos populares, abarcando uma grande
diversidade de mulheres. Em 2010, realizará a terceira ação internacional com o tema
Seguiremos em marcha até que todas sejamos livres.
A MMM consolidou-se no Brasil em 2005, a partir de uma marcha nacional, apesar de
as mulheres brasileiras participarem da MMM desde 2000, tendo, neste ano,
construído a Carta das Mulheres Brasileiras. Em 2006 a MMM brasileira passou a
abrigar o Secretariado Internacional da MMM.
A MMM se constitui como um movimento social que busca romper com o processo
de institucionalização do movimento feminista, proporcionado desde o final da década
de 1980, caracterizado pela constituição de ONGs e pela criação de estruturas
governamentais referentes à temática feminista. Além disso, busca construir
alternativas de mudanças estruturais da sociedade diante de um contexto, iniciado no
início dos anos de 1990, de hegemonia do neoliberalismo.
No Brasil e na América Latina, a MMM é uma alternativa à institucionalização e
perda de radicalidade do movimento de mulheres, afirmando a centralidade da auto-
organização das mulheres, da mobilização e da luta feminista articulada à luta anti-
capitalista na construção da mudança social.
Bandeiras que aglutinaram a MMM: apresenta como insígnia “mudar o mundo para
mudar a vida das mulheres, mudar a vida das mulheres para mudar o mundo”,
afirmando a necessidade de se romper com o patriarcado e com o capitalismo na
construção de uma sociedade justa. Segundo a entrevistada, como o patriarcado está
fortemente presente tanto no ocidente quanto no oriente, por maior que seja a
diversidade entre as mulheres, todo lugar do mundo é lugar de luta das mulheres.
Organização: é um grupo de atuação internacional que apresenta a seguinte estrutura:
Coordenação Internacional, composta por representantes de cada um dos continentes;
Secretariado Internacional, assumido por um país, estando no Brasil desde 2006,
sendo composto por quatro mulheres da MMM brasileira; Secretaria Executiva
Nacional, composta pelas entidades que desde o inicio estão na MMM; Coordenação
Nacional, composta por representantes dos estados do país no qual a MMM atua;
às lésbicas e o fim das imposições sobre o corpo das mulheres. Na ala da justiça foi
apresentado o fim das discriminações raciais ou contra as pessoas com deficiência, o
direito à moradia e reforma urbana. A ala paz e solidariedade mostrou nosso não à
guerra, ao imperialismo, à ALCA e por outra integração das Américas (p. 04, itálico
nosso).
84
Comitês Estaduais, compostos por representantes dos núcleos locais; Núcleos Locais,
a organização destes núcleos depende de cada região no caso de BH não cargos
definidos entre os membros. Os campos de ação da MMM são definidos
internacionalmente, sendo transversais às bandeiras das mulheres da MMM ao redor
do mundo. diretrizes nacionais, mas a forma de construção da luta depende do
espaço em que as mulheres da MMM estão (sindicatos, partidos políticos, Assembléia
Popular, ONG, grupos autônomos de mulheres, local de trabalho - saúde, educação,
etc.). A MMM é composta por mulheres urbanas e rurais, que atuam ao redor de
vários países do mundo, a partir da auto-organização ou junto a movimentos populares
e sindicais.
No documento “Jornal da MMM Ação 2010 (agosto 2009)” ANEXO III MMM
–,
aponta-se que
Entre os princípios da MMM estão a organização das mulheres urbanas e rurais a
partir da base e as alianças com movimentos sociais. Defendemos a visão de que as
mulheres são sujeitos ativos na luta pela transformação de suas vidas e que ela está
vinculada à necessidade de superar o sistema capitalista patriarcal, racista,
homofóbico e destruidor do meio ambiente (p. 01).
Financiamento: apresenta dificuldades para sua auto-sustentabilidade, de acordo com a
entrevistada. Como fontes de financiamento apresenta, atualmente, a ONG Sempre
Viva Organização Feminista, o Centro Feminista 08 de Março, a partir da captação de
verbas decorrente da aprovação de projetos governamentais nacionais e internacionais
por estas entidades.
2.2.6 Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD)
Constituição: o grupo surgiu no fim da década de 1990, no Rio Grande do Sul, a partir
do MST, da Consulta Popular e da CUT, diante da crise econômica que emergira
naquele momento, que acarretou num grande número de demissões. O MTD atua no
Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Minas
Gerais. Em Minas Gerais, constituiu-se aproximadamente três anos, através do
MST e da Consulta Popular.
Bandeiras que aglutinaram o grupo: contradições urbanas decorrentes do processo de
desemprego. Num primeiro momento (antes da crise econômica de 2008), as pautas
eram por teto, terra e educação (campo das lutas populares, interferindo indiretamente
85
nas contradições dos trabalhadores desempregados). No momento pós-crise 2008, foi
introduzida na pauta do MTD a construção de ações diretas com os trabalhadores
demitidos das fábricas (campo das lutas sindicais).
Organização: é um grupo de atuação nacional, que apresenta a seguinte estrutura:
coordenação nacional, coordenações estaduais e núcleos políticos locais. O núcleo do
MTD em Belo Horizonte não apresenta uma divisão por cargos (não tendo ainda o
grupo entendido como necessária esta divisão, devido ao pequeno número de
militantes), mas ressalta que esta configuração não é uma linha política do MTD,
existindo esta divisão em outros locais. Os núcleos políticos constroem trabalhos de
base, sendo os Grupos de Produção uma das frentes de trabalho de base (existem três
Grupos de Produção em BH: Morro das Pedras, Conjunto Felicidade, Barreiro). O
MTD, no Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, é composto por pessoas da periferia
urbana; na Bahia, apresenta um perfil rural; em Minas Gerais, seus integrantes são
pessoas da periferia urbana e militantes da Consulta Popular.
Financiamento: as fontes de financiamento do grupo são recursos gerados pelo próprio
movimento (através de realização de festas, contribuição de militantes); projetos
financiados por ONGs e outras instituições (como a CNBB, através do Fundo
Nacional de Solidariedade); projetos governamentais. Defende que é legítima a
conquista de financiamento através do Estado para a sustentação e ação do movimento
social, desde que isso não interfira na autonomia do movimento, pois o dinheiro do
Estado é dinheiro do povo brasileiro e, se os movimentos não lutarem por ele, vai
servir apenas para financiar a burguesia (adversária do MTD).
2.2.7 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST)
Constituição: fundado em 1984, no Rio Grande do Sul, tendo como objetivo a geração
de conflito em torno da luta pela terra, no intuito de fazer o Estado cumprir com a
Constituição Brasileira
47
. Hoje se encontra em 24 estados brasileiros, o que significa
47
Segundo o documento “Nota de esclarecimento sobre os recentes acontecimentos (out. 2009)” - ANEXO I
MST: o MST faz
pressão por meio da ocupação de latifúndios improdutivos e grandes propriedades,
que não cumprem a função social, como determina a Constituição de 1988. A
Constituição Federal estabelece que devem ser desapropriadas propriedades que
estão abaixo da produtividade, não respeitam o ambiente, não respeitam os direitos
trabalhistas e são usadas para contrabando ou cultivo de drogas.Também ocupamos
86
que ocupações do MST nestes 24 estados. Apresenta como um princípio a
importância da unidade interna do movimento, reconhecendo, ao mesmo tempo, a
riqueza da pluralidade de idéias. O principal parceiro, no momento de fundação, era a
igreja, voltada para a teologia da libertação, sendo hoje ainda compreendida como
uma importante aliada. O PT também foi um aliado desde o início.
Bandeiras que aglutinaram o grupo: surge com a bandeira da luta pela terra, a qual se
amplia já no inicio das ações do MST, passando a reivindicação pela Reforma Agrária
abranger saúde, educação, assistência técnica, política para agricultura, na busca de se
defender outro modelo de desenvolvimento que propicie condições de vida digna pra a
classe trabalhadora do campo e da cidade. Assim, a luta pela reforma agrária passou a
ser caracterizada por outras demandas para além da luta pela terra.
No “Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Edição Especial (Jan-Fev 2009)”
ANEXO II MST –, a Direção Nacional do MST afirma:
nosso Movimento não apenas sobreviveu nestes 25 anos um feito inédito para um
movimento camponês no Brasil -, como estabelecemos uma nova concepção de
Reforma Agrária. Muito mais ampla do que apenas democratizar o acesso a terra e
extinguir o latifúndio. Nossa luta construiu na prática a democratização do acesso à
educação, à saúde, à comunicação e à própria efetivação da democracia (p. 02).
Organização: é um grupo de atuação nacional, que apresenta a seguinte estrutura:
Congresso Nacional, Coordenação Nacional, Direção Nacional, Encontros Estaduais,
Coordenação Estadual, Direções Estaduais (esta mesma organização é reproduzida nas
regiões e nos locais de assentamento). O Congresso Nacional ocorre de 5 em 5 anos,
nele se define as grandes linhas do MST para os próximos 5 anos. A Coordenação
Nacional se reúne de 2 em 2 anos e a Direção Nacional se reúne periodicamente,
sendo composta por uma mulher e por um homem de cada estado brasileiro. O MST
reúne mais de 12 mil pessoas, havendo hoje 100 mil famílias em acampamentos do
MST, já tendo sido organizadas pelo MST, nos seus 25 anos, mais de 300 mil
famílias.
Financiamento: não há um “caixa central”, sendo a lógica de financiamento uma
lógica descentrada, composta por auto-financiamento dos assentados e por aqueles que
as fazendas que m origem na grilagem de terras públicas, como acontece, por
exemplo, no Pontal do Paranapanema e em Iaras (empresa Cutrale), no Pará (Banco
Opportunity) e no sul da Bahia (Veracel/Stora Enso). São áreas que pertencem à
União e estão indevidamente apropriadas por grandes empresas, enquanto se alega
que há falta de terras para assentar trabalhadores rurais sem terras (não paginado).
87
vão fazer uma ocupação (só depois da ocupação realizada é que os ocupantes se
organizam para conseguir direitos sociais); convênio com o governo (para prestação
de serviços que o governo deveria prestar, mas que no governo FHC, diante do
sucateamento dos serviços de saúde, educação, assistência técnica, foram terceirizados
para ONG); solidariedade da sociedade: igreja (manutenção de sedes), entidades
internacionais (processos de educação e formação política).
2.2.8 Negras Ativas (NA)
Constituição: surge em 2003 com o objetivo de empoderar mulheres negras, jovens, de
periferia e favelas, sendo as bandeiras raciais, feminista e da juventude centrais ao
grupo. As primeiras militantes, dentre as quais se encontrava Flávia (NA), haviam
sido integrantes de grupos mistos do movimento negro (Movimento Negro Unificado;
Agente Pastoral Negro), tendo optado por fundar o grupo Negras Ativas, no intuito de
criar um grupo específico de mulheres negras jovens para debater suas bandeiras de
luta, na busca de ter mais autonomia na organização de suas ações. Entretanto, suas
integrantes ressaltam que a criação do grupo não significou a não tentativa de se
construir a discussão sobre mulheres negras jovens de periferia e favela no interior de
grupos mistos do movimento negro. Contudo, apontam a presença do machismo e do
adultocentrismo nos grupos mistos. Também apontam dificuldades na construção de
debates sobre a especificidade das mulheres negras no movimento feminista, não
tendo conhecimento de grupos feministas, em Belo Horizonte, na época de criação do
Negras Ativa. Entretanto, atualmente, têm se aproximado de grupos como a Marcha
Mundial das Mulheres.
No início, o grupo concentrava suas ações em torno das mulheres do Hip Hop. Com o
tempo, passou a observar a importância de atuar em outros espaços não formais ou
institucionais da luta política como organização de ações comunitárias, rodas de
conversa -, bem como ocupar alguns espaços mais institucionais e formais já ocupados
por militantes de gerações anteriores (Conferências, Conselhos, por exemplo). Cássia
entrou no grupo em 2006, na mesma época em que Negras Ativas, junto com outros
grupos de mulheres da região metropolitana de BH, organizaram o grupo Atitude de
Mulher, a fim de dar visibilidade às mulheres dos movimentos culturais da região
metropolitana de BH. Cássia participava de um grupo que apresentava como foco a
88
discussão sobre igualdade racial; neste grupo, entretanto, encontrava dificuldade em
discutir a especificidade da mulher negra. A integrante mais recente do grupo já
participava anteriormente no movimento Hip Hop.
Bandeiras que aglutinaram o grupo: anseio de organizar um grupo específico de
mulheres negras jovens de periferia e favela, que possibilitasse espaço para se debater
demandas de mulheres negras jovens de periferia e favelas.
Organização: é um grupo de atuação regional (região metropolitana de Belo
Horizonte), composto por um pequeno número de militantes, atualmente cinco
mulheres negras da periferia/favelas de BH. Afirma priorizar ações em espaços mais
informais e menos institucionalizados, apesar de também transitar por estes espaços
(Conferências, Conselhos).
Financiamento: apresenta dificuldades referentes à escassez de recursos financeiros e
estruturais, visto que não possui financiamento permanente, apenas financiamentos
pontuais. Considera que uma dificuldade de captação de recursos financeiros decorre
do fato de não possuir CNPJ, condição necessária muitas vezes para se participar de
editais. Afirma que, cinco anos, tem discutido internamente sobre o grupo se tornar
uma ONG, mas apresentam receio quanto a esta institucionalização do grupo.
As integrantes informaram como fontes de financiamento do grupo: Fundo Ângela
Borba; Fundação Friedrich Ebert; produção de materiais para venda; prestação de
serviços.
89
Capítulo 3
Construindo a mudança social: movimentos sociais e seus
vínculos
Neste capítulo focaremos no diálogo entre a Teoria Democrática Radical e Plural e
duas das quatro categorias consideradas importantes de se analisar nesta pesquisa: bandeiras
de luta e construção de vínculos entre os movimentos sociais. Estas categorias permitem
compreender tanto as reivindicações que têm sido construídas pelos diferentes grupos
entrevistados, bem como as formas de nculos que têm sido estabelecidas ou desejadas por
estes diferentes grupos na construção da mudança social. Neste sentido, apontam tanto para o
reconhecimento da negatividade da hegemonia quanto para uma reconfiguração do campo
social.
Diferentes entrevistados ressaltam a reivindicação pela construção de um novo modelo
de sociedade, baseado na concepção de “projeto popular”
48
, como elemento fundamental para
a luta política. Este modelo encontra-se pautado na importância da organização popular
(mobilização social daqueles reconhecidos como subcidadãos) e, apesar de não negar as lutas
por via institucional
49
, considera estas como insuficientes na construção de conquistas em
direção a uma sociedade justa e igualitária.
Além disso, a construção deste modelo requer alterações na lógica econômica, uma
vez que exige uma reconfiguração na distribuição de renda e de bens e serviços (moradia,
educação, saúde, terra, trabalho, etc.) no país, considerando a democratização econômica
como um elemento importante de justiça social. Contudo, não se pauta na unilateralidade da
luta econômica, no sentido em que aponta para a insuficiência desta na promoção da mudança
48
A concepção de “projeto popular” está pautada na unidade entre classe operária e classes populares,
juntamente com o apoio de setores da pequena burguesia, na busca de se construir um bloco contra-hegemônico
para disputar a hegemonia da sociedade, sendo salientada a importância da organização popular. Esta concepção
é ressaltada, sobretudo, pela AP-MBH e por movimentos sociais que fazem parte desta, devendo-se lembrar que
a construção do “Projeto Popular para o Brasil” é um elemento fundamental à constituição da Assembléia
Popular. Contudo, a concepção de projeto popular também se faz presente nas entrevistas dos grupos que não são
membros da AP-MBH (CUT, NA, ABGLT), sendo enfatizada a necessidade de construção de vínculos entre os
diferentes movimentos sociais e a necessidade de se compreender lógicas de opressão que não se reduzem ao
âmbito da produção e à dimensão econômica da luta política, no enfrentamento às diferentes formas de
desigualdade e exclusão. O entrevistado da CUT faz referência à CUT ser parte da construção do projeto
democrático popular construído em torno do PT, na década de 1980, projeto este que a Assembléia Popular
considera enfraquecido na atualidade, sendo esta uma razão de se construir o “Projeto Popular para o Brasil”.
49
Ações pautadas na via eleitoral, na ocupação de cargos no Estado, na criação de instâncias estatais como
Secretarias, Coordenadorias relativas a pautas de movimentos sociais específicos, na participação em Conselhos
e Conferências de Políticas Públicas.
90
social, exigindo o reconhecimento da legitimidade e da necessidade de se alterar sistemas
opressivos baseados em hierarquias sexuais, raciais; de se lutar pelo reconhecimento dos
subcidadãos como sujeitos que possuem direito a ter direito
50
; de abarcar a dimensão
ambiental no interior de um novo modelo de desenvolvimento econômico. Assim, o modelo
de sociedade baseado na concepção de “projeto popular”, salienta a necessidade de se
estabelecer vínculos entre diferentes movimentos sociais, de modo a se lutar contra distintos
sistemas de desigualdade e exclusão.
Neste sentido, se o capitalismo é compreendido por todos os entrevistados como um
adversário fundamental à efetivação de um projeto popular, o enfrentamento a diferentes
sistemas opressivos é abordado pelos entrevistados - sendo enfatizado, sobretudo, o sistema
patriarcal - bem como salientam a importância de se considerar a dimensão ambiental no
quadro de mudança social.
Os entrevistados do MST ressaltam a defesa pela emancipação e libertação das
mulheres, e a reconfiguração do modelo de desenvolvimento a partir da ênfase na
agroecologia e não no agronegócio
51
.
A entrevistada da MMM concebe o patriarcado como um sistema hierárquico
transversal ao sistema capitalista, sendo este dependente do trabalho reprodutivo, garantindo
às mulheres a escassez de autonomia sobre o seu corpo e uma inserção subjugada no espaço
público e produtivo, bem como enfatizam a luta pela soberania alimentar, posicionando-se
50
Cabe lembrar a redefinição da noção de cidadania proporcionada pelos movimentos sociais contemporâneos,
apresentada por Dagnino (2000), e a ressignificação das demandas populares como a construção de um direito e
não como um pedido de favor ou caridade, presente na organização dos movimentos populares brasileiros desde
a década de 1970, a partir da matriz discursiva da Teologia da Libertação (SADER, 1988). Estas reconstruções
discursivas podem ser observadas em documentos dos grupos entrevistados para esta dissertação, em afirmações
como: “O Título saiu porque o povo se uniu! Não se trata de favor, mas de direito!” (Documento “MTD no
conjunto Jardim Felicidade conquista títulos de moradia!” - ANEXO II MTD, não paginado); “é importante que
o território (comunidades, ocupações etc.) tenha nas Brigadas Territoriais uma referência, que vejam na
organização uma importante ferramenta para a transformação da realidade e não um grupo “pessoas boas”
voltadas para a assistência ou caridade” (Documento “Estrutura organizativa das Brigadas Populares” - ANEXO
I BP- ).
51
No “Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (maio 2009)” ANEXO III MST -, o agronegócio é definido
pela Direção Nacional do MST como um modelo de agricultura que
se baseia em grandes lavouras extensivas. Cada fazenda se especializa num produto,
na forma de monocultivo, da cana, café, soja, milho, algodão, cacau... Todo o
processo é muito mecanizado. Expulsam a mão de obra e agridem o meio ambiente
com a utilização de agrotóxicos para manter a escala de produtividade. É uma
agricultura sem agricultores. Uma agricultura que está preocupada apenas em
produzir lucros e não comida. E, assim, o Brasil se transformou no maior
consumidor mundial de venenos na agricultura (p. 02).
Diferente deste modelo, a agroecologia é compreendida pelo MST como um modelo que leva em conta fatores
ambientais, a diversidade de cultivos e a agricultura familiar.
91
contrariamente ao modelo do agronegócio e do monopólio das transnacionais na produção de
alimentos.
O grupo NA salienta a necessidade de se alterar as hierarquias sexuais, raciais e
adultocêntricas, reconhecendo que a alteração do sistema econômico não garante a alteração
nestes outros sistemas, a fim de que se reconheça a legitimidade de uma pluralidade de
sujeitos políticos na cena pública, possibilitando uma inserção e participação equânime dos
mesmos.
A BP se afirma como uma organização classista e compreende o patriarcado como
uma das dimensões centrais a ser enfrentada para a construção de outro modelo de sociedade,
não se restringindo à luta econômica.
O MTD concebe as lutas feminista, racial, LGBT como lutas democráticas e, assim,
importantes de serem consideradas na promoção de uma sociedade socialista, também não se
restringindo à luta econômica.
O entrevistado da CUT aponta para o fato de que, desde os primeiros anos, esta
Central Sindical reconhece a luta feminista, LGBT, da juventude como lutas pela
democratização da sociedade e, assim, necessárias ao processo de mudança social. Além
disso, aponta a necessidade de um modelo de desenvolvimento integrar a dimensão
econômica, a dimensão social e a dimensão ambiental, de maneira a compreender que este
modelo deve se pautar na sustentabilidade destas e não no predomínio do lucro.
Além disso, a AP se constitui exatamente no intuito de construir vínculos entre
diferentes atores sociais, de modo a integrar bandeiras distintas e elaborar o Projeto Popular
para o Brasil, reconhecendo que a mudança social não se reduz à luta econômica.
A representante da ABGLT ressalta a necessidade de se integrar diferentes dimensões
na luta política e construir projetos que visem a luta contra a homofobia, de modo a
possibilitar a democratização de diferentes âmbitos sociais (escola, mercado de trabalho,
saúde, etc.).
As principais bandeiras apontadas, e sob as quais se observa uma similaridade entre
diferentes grupos, são: a) a ampliação de direitos sociais como acesso à moradia, sendo
necessárias a reforma urbana e a reforma agrária ademais, o MST e o NA abordam a luta
quilombola pela demarcação das áreas quilombolas pelo Estado -; acesso à educação e a
saúde de qualidade; construção de programas pelo Estado, como a tarifa social de energia;
cumprimento dos direitos trabalhistas; b) a reestruturação do modelo energético para o Brasil,
92
como a luta pelo Pré-Sal
52
e a necessidade de se pensar formas mais sustentáveis de produção
de energia; c) a reconfiguração da dimensão ambiental no interior de um modelo de
desenvolvimento, tanto no que se refere à pauta da agroecologia - modelo para o campo
contrário ao modelo do agronegócio - quanto no que tange a pauta da soberania alimentar e da
preservação do meio ambiente; d) ao enfrentamento do machismo, da homofobia, do racismo,
como processos de democratização da sociedade; e) à construção de um projeto popular, o
que aponta para a compreensão da importância de se romper com a fragmentação entre os
movimentos sociais, ocorrida nas últimas décadas no campo dos movimentos sociais,
reconhecendo os diferentes entrevistados que esta fragmentação é prejudicial para a luta
política da esquerda, na medida em que enfraquece as possibilidades de enfrentamento destes
movimentos.
Contudo, a integração de diferentes bandeiras na luta dos diferentes movimentos
sociais não ocorre de modo simples, sendo ressaltado, sobretudo nas entrevistas com o MTD e
com a BP, por exemplo, a compreensão de que, se, por um lado, as bandeiras dos “novos”
movimentos sociais devem ser consideradas como importantes em todo projeto de mudança
social, por outro lado, necessitam, para tanto, de apresentar um “recorte de classe”, ou seja, ter
como “horizonte estratégico” a superação do capitalismo; caso contrário acabariam por se
reduzir a lutas “atomistas” que não possibilitam a construção da mudança social. O que
aponta para a tensão decorrente da politização de diferentes formas de desigualdade e
exclusão na construção da luta política: como construir vínculos entre diferentes sujeitos
políticos, de modo que estes não se dissipem na experiência das identidades, caindo no risco
dos particularismos, mas não se percam na afirmação de uma universalidade que negue a
liberdade em nome da igualdade.
Tendo consciência deste desafio que buscamos discutir as possibilidades de vínculos
entre os movimentos sociais, a partir da noção de articulação apresentada pela Teoria
52
A campanha de luta em torno da defesa do Pré-Sal (região em que a Petrobrás descobriu grande quantidade de
petróleo) foi nomeada “O Petróleo tem que ser nosso”, sendo as reivindicações as seguintes:
Fim do modelo de concessão e das rodadas de licitação dos blocos petrolíferos.
Monopólio do Estado na exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás
natural no Brasil, através de uma Petrobrás 100% pública. Controle social da
destinação dos recursos gerados pela produção de petróleo e gás natural, através de
instrumentos que garantam ao povo brasileiro os benefícios destas riquezas.
Reincorporação à Petrobrás das atividades de operação e construção de dutos,
terminais marítimos e embarcações para o transporte de petróleo, derivados e gás
natural, acabando com a segregação imposta pelo Artigo 65 da Lei 9478/97, que
resultou na criação da Transpetro S.A. (Documento “O Petróleo tem que ser nosso”
– ANEXO IV LC).
93
Democrática Radical e Plural e por uma diferenciação destes vínculos entre o que
denominamos “estratégia de articulação” e “estratégia de aliança”.
3.1. Construção de vínculos entre os movimentos sociais
Os vínculos entre movimentos sociais foram trabalhados, a partir da sua divisão, em
dois tipos: “estratégia de articulação” e “estratégia de aliança”. Compreendendo o conceito de
“articulação” como o estabelecimento de uma relação de equivalência entre elementos, “de
modo que a identidade de cada um é modificada como resultado da prática articulatória”
(LACLAU & MOUFFE, 1985, p. 105, tradução nossa), consistindo esta prática na construção
de pontos nodais que parcialmente fixam sentido no interior do campo da discursividade
(LACLAU & MOUFFE, 1985), utilizamos este conceito para tratar apenas de uma das duas
formas de vínculos observadas nos relatos dos entrevistados: para a forma de estratégia de
articulação. Para a outra forma, utilizaremos o termo “aliança”, concebendo-o como vínculos
em torno de bandeiras específicas entre os movimentos sociais na construção de ações
conjuntas, sem que isso implique, necessariamente, numa relação de equivalência entre os
grupos.
Esta distinção é feita no sentido de enfatizar que se a estratégia de articulação diz
respeito à construção de um “nós” (como relação de equivalência) entre os diferentes
movimentos sociais, produzindo-se, assim, uma ressignificação da identidade de cada um
destes movimentos e a identificação de um centro em torno do qual se construir um projeto
contra-hegemônico; a estratégia de aliança, apesar de também se pautar no estabelecimento
de vínculos entre diferentes movimentos, diferencia-se da subcategoria anterior, que seu
foco de ação não se encontra na localização de um centro comum da luta política que divide o
campo social em dois blocos hegemônicos, mas na tentativa de fortalecer bandeiras
específicas dos movimentos sociais presentes na relação, sem que com isso, necessariamente,
ocorra uma ressignificação da identidade de cada um dos movimentos.
Ressalta-se que estas alianças podem contribuir, mesmo que parcialmente, para a
construção da utopia
53
de um “outro mundo possível”, ou seja, para a construção de um
53
Utopia é entendida neste trabalho não como sinônimo de ilusão, nem como pautada em categorias abstratas e
pré-determinadas, mas sim como um horizonte que se constrói em termos das possibilidades oferecidas no
presente, a fim de se lutar para a afirmação daquele horizonte como um futuro concreto. Tal compreensão
baseia-se em considerações como aquela de Laclau e Mouffe, referente à criação de uma nova positividade do
social por aqueles em condição de subordinação, sendo esta positividade decorrente do reconhecimento pelos
mesmos da negatividade da hegemonia sedimentada e da construção de uma luta contra-hegemônica,
94
projeto contra-hegemônico, ao possibilitar conquistas parciais para os movimentos sociais; ao
colaborar para o fortalecimento e para a legitimidade de bandeiras políticas a serem
reconhecidas na significação do projeto contra-hegemônico; ao favorecer um reconhecimento
mútuo entre diferentes movimentos, proporcionando uma compreensão mais ampla sobre a
negatividade da hegemonia. Deste modo, ao invés de se compreender estes dois tipos de
vínculos como opostos, eles podem ser mais bem entendidos como modos complementares de
se construir a mudança social. Assim, a estratégia de aliança não apresenta um sentido, a
priori, pejorativo no que tange à luta política, podendo vínculos constituídos em torno dela
contribuírem para a constituição de lógicas de equivalência.
Neste sentido, a entrevistada da MMM, por exemplo, considera que existe uma relação
bidirecional entre estratégia de aliança e estratégia de articulação na construção da luta
política: por um lado, a construção de alianças permite aprofundar pautas comuns entre os
movimentos sociais, na medida em que focos distintos, relativos a uma mesma bandeira,
podem ser compartilhados; possibilita que bandeiras específicas de cada um dos movimentos
sociais aliados sejam reconhecidas por outros movimentos sociais, ainda que em uma ação
pontual, e, assim, fortalecidas; propicia condições de troca de experiências de luta entre os
movimentos, auxiliando a construção de um projeto comum de luta política; por outro lado, a
estratégia de articulação constrói uma alternativa comum de sociedade, na qual novos grupos
possam se integrar a fim de fortalecer a luta contra-hegemônica.
A complementariedade entre estas duas formas de vínculos também pode ser
observada no posicionamento do entrevistado da CUT de que, provavelmente, a concepção de
mudança social para a CUT não inclui a luta armada, a tomada do poder, mas certamente a
radicalização da democracia, sendo importante o acúmulo de conquistas parciais. Também
pode ser observada na compreensão de Bernadete (AP-MBH), de que a mudança social
ocorrerá através do trabalho de base e da conquista de reivindicações específicas, e não de
uma ruptura radical. E ainda nas considerações do grupo NA e da ABGLT, de que a mudança
social deve ser entendida como um processo contínuo de luta, devido à impossibilidade de se
caracterizada não por uma ruptura radical com a sociedade existente, mas pela radicalização do princípio de
igualdade e de liberdade, decorrentes da revolução democrática do século XVIII, buscando na insatisfação com o
presente afirmar alternativas de sociedade a partir das próprias condições existentes; ou como aquela de
Boaventura Sousa Santos (2002), relativa às noções de sociologia da ausência e sociologia da emergência, a
partir das quais o autor ressalta ser fundamental para pensarmos um projeto futuro de sociedade ampliarmos o
presente, de modo a focarmos ações que têm sido desenvolvidas neste tempo, e contrair o futuro, de maneira que
o imaginemos não a partir de conceitos abstratos, mas através das ações do presente Ou ainda, como aquela de
François Houtart (2006), de que o conceito de utopia deve ser entendido como aquilo que apesar de não existir
hoje, poderá ser realidade amanhã, devendo ser uma construção coletiva e permanente.
95
romper plenamente com relações de poder (NA), ou devido à politização de novas relações
sociais pelas gerações futuras (ABGLT).Na colocação de Bruno (MTD), sobre a importância
do acúmulo de forças e de vitórias reais, mesmo que parciais, para a promoção da mudança
social.
A preocupação em se construir vínculos entre os diferentes movimentos sociais - visto
que a fragmentação entre os mesmos é compreendida por todos os entrevistados como um
elemento enfraquecedor na conquista das bandeiras de luta - é muito influenciada por uma
conjuntura atual: a crise econômica mundial que emergiu no final do ano de 2008, a qual, por
decorrer de um colapso interno ao sistema hegemônico, é compreendida como uma
possibilidade de fortalecimento de outra alternativa de sociedade.
3.1.1. Estratégia de Articulação
Esta estratégia de vínculo entre movimentos sociais caracteriza-se pela articulação
destes em torno de um projeto político que ressignifique
54
as especificidades dos diferentes
movimentos - o que poderíamos compreender como um “ponto nodal” - de modo a minimizar
as possibilidades de significação do campo da discursividade, ou seja, as alternativas de
significação do social, constituindo um bloco contra-hegemônico na disputa com a hegemonia
até então sedimentada.
De acordo com Pinto (1999),
o sucesso do projeto hegemônico se traduz na capacidade de articular em uma cadeia
de equivalências um conjunto de lutas dispersas. Esta absorção mútua não é
simplesmente uma adição que conserva conteúdos originais [neste caso, nesta
dissertação afirmaríamos que isso se trataria apenas de estratégia de aliança] [...] Aí
talvez resida a maior dificuldade na construção de novos projetos democráticos-
hegemônicos: abrir mão de identidades protegidas ou reformular demandas que se
tornaram canônicas em certos movimentos (p. 90-91).
Uma representação sintética do que definimos como estratégia de articulação poderia
ser:
54
Cabe lembrar que a construção de um ponto nodal não significa o fim da particularidade dos antagonismos
democráticos que se articulam em torno dele, contudo, implica uma ressignificação da identidade de cada um
destes antagonismos (Cf. LACLAU & MOUFFE, 1985).
96
FIGURA 1 – Estratégia de Articulação
Nesta figura, as letras maiúsculas (A, D, A’, E) representam projetos hegemônicos
(conjunto de práticas e discursos que, para se sustentar, precisa excluir outras possibilidades
de existência) e as letras minúsculas, internas à chave, antagonismos específicos que se
encontram articulados numa cadeia de equivalência (“momentos”). As letras minúsculas
externas às chaves remetem-se a elementos do Campo da Discursividade (representado pelo
retângulo que engloba as chaves e o que está para fora das chaves). A linha verde que liga os
dois quadros da figura 1 diz respeito ao êxito do projeto contra-hegemônico A sobre a
hegemonia D. Assim:
1) No quadro à esquerda, observa-se que A é construído num processo de
antagonismo dirigido a D, a partir do reconhecimento de D (projeto hegemônico) por
q, y e z, como aquele que nega a existência de ambos (“negatividade” da hegemonia),
sendo D visto como “anti-q y z”, ou seja, como uma objetividade parcial. Este
97
reconhecimento de D como não-universal (“momento de reativação”) é o que permite
a construção da equivalência entre q, y e z, constituindo, desta forma, A (nova
“positividade” do social).
2) A, ao conseguir ser um projeto exitoso na disputa hegemônica com D,
se constitui como uma nova objetividade que tenta continuamente se afirmar universal
(quadro à direita). Contudo, como D fizera anteriormente, para A se colocar como
universal necessita excluir outras possibilidades de existência e incorporar cada vez
mais novos elementos no interior da hegemonia. Por isso A, após o êxito, é
representado como A’, que necessita promover deslocamentos contínuos no Campo
da Discursividade para se fazer hegemônico. Desta maneira, aqueles que são
subordinados, diante de determinadas contingências, reconhecem, como fizeram q, y e
z anteriormente, A’ como aquele que nega a existência de ambos, compreendendo A’
como anti- subordinados (anti-u f t), desnaturalizando a condição de universalidade
deste projeto e constituindo, desta maneira, o projeto E para disputar a hegemonia com
A’.
Utilizamos E, e não D, assim como A’, e não A, exatamente para realçar a
dinamicidade das relações sociais; na disputa entre hegemonia e contra-hegemonia, elementos
(letras minúsculas que se encontram fora das chaves na figura 1) e cadeias de equivalência
alternativas à cadeia hegemônica ou contra-hegemônica (cadeias que se constituem a partir da
articulação entre demandas existentes na cadeia equivalencial contra-hegemônica e demandas
que fazem parte da hegemonia dominante) existentes no Campo da Discursividade precisam
ser considerados, já que também impedem a plenitude dos projetos hegemônicos. Os
primeiros (elementos) podem ser assimilados pelos projetos hegemônicos, através da lógica
da diferença; além disso, podem construir nculo com momentos de cadeias de equivalência
existentes, alterando a configuração das mesmas. As cadeias de equivalência alternativas
podem se constituir antagônicas aos projetos hegemônicos, disputando o significado que visa
fundamentar a “universalidade” da objetividade social
55
. Portanto, os projetos hegemônicos
encontram-se em constante instabilidade, sendo precários e contingentes.
Para Laclau e Mouffe (1985), o “conteúdo equivalente” sob o qual se a prática
articulatória se define pela significação de todos os traços positivos de um adversário, em sua
55
Discutiremos estes deslocamentos que impedem a plenitude dos projetos hegemônicos no capítulo 4 desta
dissertação, servindo os mesmos como formas de resistência hegemônica.
98
oposição aos grupos subordinados, como traços contrários a existência destes grupos
subordinados, sendo o adversário constituído discursivamente como anti-subordinado (“anti-q
y z”; “anti-u f t”). Assim, a identidade do adversário é representada de maneira puramente
negativa
56
, visibilizando sua contingencialidade (“momento de reativação”). Desta forma, a
relação de equivalência não ocorre por uma determinação plena subjacente a todos os traços
que buscam afirmar a presença dominante do adversário, e nem pela referência comum dos
grupos subordinados a alguma coisa tomada positivamente. Decorre do fato de que a prática
articulatória não se por uma relação entre pólos plenamente constituídos. Somente existe
articulação diante do ato de subversão do caráter diferencial dos termos antagônicos, ou seja,
da demonstração da precariedade final de toda diferença, já que a relação equivalencial
mostra o que cada um destes pólos não é
57
. O que não significa, segundo Laclau e Mouffe
(1985), a banalidade de se afirmar que ser “A” implica não ser “B”, mas que, se por um lado,
o pólo dominante é aquele que impede a existência dos grupos subordinados, não podendo
estes serem uma presença plena para si mesmos, por outro lado, a gica do antagonismo,
através da equivalência, revela também que o pólo dominante nunca poderá ser uma
objetividade plena, pois é transbordado por uma pluralidade de sentidos existentes no campo
da discursividade, dando uma “real existência para a negatividade” (LACLAU & MOUFFE,
1985, p. 128-129, tradução nossa), visibilizando as possibilidades a todo tempo excluídas pelo
sistema hegemônico para se sustentar.
Assim, uma prática articulatória contra-hegemônica se constitui no estabelecimento
da relação de equivalência elaborada na confrontação com forças antagônicas (práticas
articulatórias hegemônicas), que estão em constante redefinição, pois não se estabelecem
como pólos positivos, mas na presença da subversão do caráter necessário de cada uma,
diante da evidência da contingencialidade de ambas. Com isso, a relação entre hegemonia e
contra-hegemonia não se caracteriza por ser uma relação objetiva de fronteiras, mas como
uma subversão recíproca daquelas posições: é a partir do reconhecimento da negatividade do
pólo dominante que os diferentes antagonismos democráticos, que se articulam na formação
de um projeto contra-hegemônico, se estabelecem como a alternativa de um “outro mundo
56
A noção de “negatividade” ou de “positividade” não diz respeito a um valor (ruim e bom), mas sim, se ligam,
respectivamente, ao momento de reativação do campo político, sendo visualizada a condição contingente e
precária da hegemonia; e, ao momento de sedimentação do campo social, sendo uma alternativa de sociedade
afirmada como alternativa à ausência reconhecida na hegemonia até então sedimentada, buscando-se
hegemonizar como a plenitude (impossível) da ordem social. Ver discussão do item 1.2 desta dissertação.
57
Por este motivo os pólos representados na figura 1 se encontram entre chaves e não no interior de um círculo,
pois nunca se configuram como identidades plenas, se constituindo cada um a partir da existência de um exterior
(“eles”) que se nega sua existência, ao mesmo tempo, é o que lhe permite emergir como uma identidade, sendo
esta, assim, sempre não-suturada.
99
possível”, pleiteando ser a universalidade do social. Tal condição, no entanto, é impossível de
ser alcançada, pois, assim como a formação hegemônica, a alternativa contra-hegemônica
também nunca será plena, sustentando-se na exclusão de outras possibilidades e, portanto,
sendo sempre ameaçada por isso que a impede de existir.
Laclau e Mouffe (1985) apontam, ainda, que é importante para o estabelecimento da
relação de equivalência que cada antagonismo democrático emerja em oposição a um
conjunto sobredeterminado
58
de práticas e discurs os que criam diferentes formas de
subordinação a um grupo específico de sujeitos políticos, e não em oposição a simples
referentes empíricos – homem, branco, heterossexual, etc. Esta necessidade decorre do fato de
que, do contrário, haverá dificuldades de articulação entre estes antagonismos, pois cada um
ignorará a especificidade do espaço político em que outros antagonismos emergiram. Este
apontamento decorre da concepção de Laclau e Mouffe (1985) de espaço político, que o
entendem como constituído por uma multiplicidade de práticas que, para se manterem como
plenas, criam diferentes exclusões, existindo, assim, múltiplos espaços políticos. Por exemplo,
“o espaço político de emergência da luta feminista se constitui no interior do conjunto de
práticas e discursos que criam as diferentes formas de subordinação da mulher” (LACLAU &
MOUFFE, 1985, p. 132, tradução nossa), devendo aquela luta se dirigir contra este conjunto
de práticas e discursos e não contra o referente empírico “homem” (o homem enquanto
realidade biológica). Do contrário, haverá dificuldades em situações como naquelas em que se
faz necessário se contrapor a práticas e discursos que acarretam na subordinação de homens e
mulheres, como a luta pela liberdade de expressão ou a luta contra a monopolização do poder
econômico.
Diante destas considerações, observam-se, nas entrevistas, relatos que se aproximam
da noção de articulação, apesar de estes relatos estarem pautados mais no desejo de construí-
la do que na já concretização desta prática.
58
Laclau e Mouffe (1985) retomam o conceito de sobredeterminação da obra de Althusser, sendo a psicanálise e
a lingüística os campos originais de formulação deste conceito. O conceito de sobredeterminação é definido por
Freud, segundo os autores, como um tipo muito específico de fusão “que implica uma dimensão simbólica e uma
pluralidade de significados. O conceito de sobredeterminação é constituído no campo do simbólico e não tem
qualquer significado fora deste campo” (p. 97, tradução nossa). Segundo Laclau e Mouffe (1985), o significado
potencial mais profundo do uso deste conceito por Althusser foi ter permitido afirmar que o social se constitui
como uma ordem simbólica, o que implica na inexistência de uma literalidade última que o reduziria a
momentos necessários de uma lei imanente. Assim, “não existem dois planos, um da essência e outro da
aparência, que não existe possibilidade de se fixar um sentido literal último através do qual o simbólico deva
ser um plano de significação secundário e derivado” (p. 98, tradução nossa). Esta compreensão faz com que se
negue qualquer essência à sociedade ou aos agentes sociais, sendo a regularidade destes decorrentes de formas
precárias de fixação no interior de determinada ordem social.
100
Neste sentido, o MST aborda que diferente do que era a bandeira da reforma agrária
no inicio da formação do movimento, baseando-se apenas na luta pela terra, hoje ela se
configura como um modelo oposto ao modelo hegemônico de desenvolvimento para o campo
(modelo que apresenta como um momento o agronegócio), devendo ser uma bandeira de
todos os movimentos, do campo e da cidade, que tal modelo hegemônico é aquele que
impede a existência do camponês no campo - e assim o expulsa para a cidade -, mas
impedindo também sua existência na cidade, que, reduzido ao espaço da periferia e da
favela, lhe são negados direitos sociais básicos como moradia, educação, saúde, trabalho.
Deste modo, aqui se observa a compreensão de uma unidade dos movimentos em
torno de um projeto político não pela importância da conquista da reforma agrária como uma
bandeira específica - o que se configuraria somente como uma estratégia de aliança” -, mas
pela referência de que a reforma agrária é um centro contra-hegemônico em torno do qual as
lutas devem ocorrer, no sentido em que a afirmação deste projeto alternativo de
desenvolvimento implica na possibilidade de existência da pluralidade de subordinados (no
campo e na cidade). Assim, o ponto nodal estabelecido é significado na negatividade do
modelo de desenvolvimento capitalista (compreendido como um modelo que, para se
sustentar, depende da exclusão de camponeses e implica na exclusão de urbanos, não sendo
nele possível a construção de direitos iguais), e positivado na alternativa de um modelo que
permita camponeses e urbanos viverem dignamente. Portanto, a reforma agrária seria um
ponto nodal para a democratização social, um significante vazio” que permitiria articular
diferentes movimentos sociais, na medida em que possibilitaria a luta pela existência dos
camponeses e pela conquista de direitos – moradia, saúde, educação, etc. – nas cidades,
pautando uma igualdade inexistente na conjuntura presente: o direito à dignidade pelos
subcidadãos.
Esse negócio da estratégia é interessante de falar que cai naquilo que antes s
estávamos falando dos objetivos, das estratégias. A Edith citou também o êxodo
rural, se você for na década de 40 você tinha 80% da população brasileira no
campo e 20% na cidade, hoje se tem o inverso, 20% no campo e 80% na cidade e a
tendência é você chegar nos níveis de São Paulo, é você ampliar o nível de São
Paulo que é 9% da população do campo e 91% na cidade. Essa é a meta do capital. E
esses nove que ficam no campo eles não ficam no campo com seus projetos não, eles
ficam submetidos aos projetos das grandes transnacionais voltadas para exportação,
eles estão lá no que eles chamam de parceria né e integração que é o seguinte: o cara
produz frango, mas não é pra ele, ele nem pode comer o frango, se ele comer o
frango ele paga multa. Ele faz todo o frango pra vender para uma dessas aí, sadia e
etc. Ele produz soja pra vender, ele produz uma coisa também, ele não pode
diversificar não, se ele produz fruta é para indústria de processamento e nisso eles
tem o domínio. Por isso que é estratégia pra gente do que vocês estão pesquisando
do que é estratégia se aliar com todos os povos tradicionais que defendem o
101
território, a luta é por território. Existe uma ofensiva, eles têm que entrar para dentro
do campo para fazer essas grandes plantações (Chumbinho, MST).
Mas, hoje, nesse atual momento, qual é a análise nossa do MST? A bandeira da
Reforma Agrária tem que se tornar uma bandeira da sociedade brasileira. E qual
que é a análise que a gente faz? Hoje, talvez quem vai sofrer menos com a crise,
chamada superprodução do capital, mas vai além disso, é quem está na cidade. E
esse fluxo do campo pra cidade, esse êxodo rural que foi muito rápido no Brasil, de
fato ele hoje, nesse momento em que estamos vivendo de crise mundial, e a
alimentação, a agricultura também sofre com isso, é que os camponeses são os que
menos vão sofrer. Porque, no mínimo, eles vão ter condições de produzir pra comer,
e quem está nas cidades? Se perde emprego, a gente perde a capacidade de
sobrevivência no meio urbano, e que considerando é um contingente de número de
pessoas muito grande. Então, para nós hoje a Reforma Agrária, o meio urbano hoje
não apoderar disso enquanto saída, inclusive para própria crise, para o campo
brasileiro, é, de fato, nós do MST não vamos dar conta. Por isso que nós nos
aliamos à Assembléia Popular no meio urbano. Estamos vindo também para o meio
urbano, nós temos experiência no Paraná, em São Paulo com as Comunas da Terra,
que é essa experiência que nós de Minas estamos criando (Edith, MST).
É tornar um pouco a alternativa das pessoas, esse processo que a gente vem dizendo
do êxodo, foram enviados pra sem ter aquilo que foi prometido: o emprego, a
moradia, a qualidade de vida, a saúde pública, educação, não tem nada disso. Foram
feitas as favelas. Agora tem um novo projeto no programa do Kassab, que em Belo
Horizonte a gente muito claro isso, que é de tirar tudo quanto é pobreza ali do
hipercentro, nesse projeto Vila Viva, e manda pra periferia das grandes cidades. Os
que estão no campo, como a Edith disse, a Reforma Agrária saiu da pauta do
governo, é preciso limpar o campo pra chegada desses projetos de desenvolvimento
dos grandes monocultivos aí, pra comodite e tal, então são enviados também. Então,
essa faixa de periferia das grandes cidades ela explodindo de contradições, de
exploração e a gente viu nesse processo de massificação dessa ocupação nossa
(Ocupação Dandara
59
), de 150 famílias que entraram tem 1500 hoje, 1000
acampadas, 500 na lista de espera. São famílias que não tão pedindo um pedaço de
moradia somente, tão pedindo uma alternativa! de dignidade, são famílias que tão
optando! pela dignidade, porque existem outras sáidas pra elas também, existe a
saída de colocar filho em sinal de trânsito, existe a saída também de mendigar, existe
a saida da prostituição, existe a saída do tráfico de drogas, principalmente, para
juventude. Mas são famílias que disseram que não! que não vão procurar essas
saídas, que vão procurar saídas inclusive constitucional (Chumbinho, MST).
Outra aproximação com a noção de articulação proposta por Laclau e Mouffe (1985)
pode ser observada no relato da MMM, ao compreender a necessidade de se considerar as
lutas anti-capitalista e anti-patriarcal como transversais na construção da mudança social.
59
Ocupação de uma área urbana na periferia de Belo Horizonte mais de 30 anos sem nenhuma destinação e
com uma dívida de IPTU próxima a 18 milhões de reais, da qual uma Construtora alega ser proprietária. A
ocupação foi e é coordenada pelo MST, pela Brigadas Populares e pelo Fórum de Moradia do Barreiro, tendo se
iniciado no primeiro semestre de 2009, já existindo hoje na área mais de mil famílias ocupadas. Esta ocupação é
chamada de Ocupação Rururbana pelo fato de se encontrar numa área urbana, mas propor o desenvolvimento de
uma produção agrícola no interior da área ocupada como forma dos ocupados produzirem renda em seu
benefício, construindo uma aliança entre atores defensores da reforma urbana e da reforma agrária. O nome
Dandara é em homenagem a uma liderança brasileira na resistência negra, tendo ela sido companheira de Zumbi
dos Palmares (“Correio Brigadista 2009 – Boletim Especial” - ANEXO II BP).
102
Assim, a entrevistada aponta o horizonte da luta anti-capitalista como um projeto político
coletivo a diversos movimentos sociais, mas ressignificando este horizonte no sentido de
afirmar que ele deve se pautar numa luta anti-capitalista não-androcêntrica. Neste sentido, ela
compreende que se o capitalismo acarreta na negação da existência dos pobres, que nega
direitos sociais a estes ao promover uma intensa desigualdade social; a mudança social não
pode ocorrer na negação de outra “inexistência”, a das mulheres
60
, devendo se considerar, na
construção desta mudança, tanto o trabalho produtivo quanto o trabalho reprodutivo, bem
como a reprodução dos valores que acarretam na subordinação das mulheres.
A lógica capitalista para se reproduzir, aponta a entrevistada, depende da divisão entre
trabalho produtivo e trabalho reprodutivo, sustentando, ao mesmo tempo, esta divisão: a
discriminação às mulheres, já que são estas as “enjauladas” no espaço privado da reprodução,
devido ao patriarcado; e a exploração do trabalhador, pois a produção da mais-valia no espaço
produtivo depende de que exista alguém que se responsabilize pela reprodução da vida
daquele trabalhador explorado no presente (o marido), e de futuros trabalhadores para serem
explorados no futuro (os filhos).
É o que a gente que é feminista fala: “trabalhador e trabalhadora não para em se
não tiver o que comer! quem lavar a roupa! quem fazer comida! e ter uma casa pra
morar, um teto pra morar”. Então não adianta falar que a produção que importa,
reprodução do viver é extremamente necessária! (Entrevistada, MMM).
60
É importante destacar que, segundo a entrevistada da MMM, o termo mulher é compreendido como uma
identidade construída em oposição a uma lógica de subordinação às mulheres, decorrente de práticas e discursos
como a divisão entre trabalho produtivo e reprodutivo, a afirmação de um papel social inferiorizado em
diferentes espaços sociais, a exigência de um casamento monogâmico e heterossexual. Assim, reconhece a
diversidade existente entre as mulheres (mulheres negras, mulheres brancas, mulheres camponesas, mulheres
urbanas, mulheres indígenas, mulheres heterossexuais, mulheres homossexuais, mulheres em situação de
prostituição, mulheres da classe trabalhadora, mulheres burguesas) e, desta forma, a multiplicidade de formas de
opressão, mas afirma a possibilidade destas diferentes “mulheres” se identificarem em torno de uma identidade
comum: como “mulher”:
Entrevistador: nesse sentido, pensando que também! na década de 80 o movimento
feminista viveu um momento importante! que foi do questionamento da própria
categoria mulher! você tem então a história das Mulheres do Terceiro Mundo.
como que vocês pensam hoje a categoria mulher!?
[...]
Entrevistada (MMM): ela se trata disso! Da identificação do ser mulher via qual que
é o papel que eu exerço na sociedade. Não é nem questão se eu tenho um peito! ou
se eu tenho uma vagina! Ou se eu posso reproduzir ou não. É qual que é o papel,
qual que é o papel social mesmo! o que que... o que que me coloca! nesse lugar de
mulher? né! é o meu trabalho! é a minha família! é a minha escola! é a igreja! então,
são esses instrumentos do Estado que me colocam nesse espaço de ser mulher.
Então, é inclusive no fato da própria opção sexual. Então a pessoa se identificar
como mulher para gente é uma categoria que tem um papel social! Então esse papel
social ele sofre opressão, portanto, a gente se identifica enquanto mulher.
103
para gente não dá! pra lutar! no espaço da produção, para gente o espaço da
reprodução é muito importante! Então a questão do rompimento com o privado, para
gente o privado também é político! então discutir aquela coisinha de quem divide
o trabalho! dentro de casa? para gente isso é político! Isso reflete uma estrutura...
social... e... então é um problema. Só que é um problema! que... é aquela coisa... se a
gente enquanto movimento não pautar! nenhuma outra... né! entidade vai fazer isso.
Então é um problema, mas é um problema naquele sentido a ser solucionado! [...]
Então para gente os problemas são! aquilo que eu comecei a falar: é o rompimento
com o patriarcado que, sem ele! o capitalismo não estaria tão desenvolvido. Não
estaria tão... caminhando, por mais que esteja em crise, mas não estaria tão
conformado. A classe trabalhadora não estaria tão bem encaixada. O operariado não
estaria tão... bem... é... desvalorizado como é. Então, esses problemas eles
continuam. Então, para gente...é... na questão da luta pela sobrevivência, então, o
fato das mulheres não terem creche, por exemplo, pros seus filhos, impede que ela
se organizem!Impede que elas tenham um trabalho que possa! investir na sua
educação... impede que ela participe na associação de bairro... impede com que ela
tenha uma atuação política na sua comunidade. Então, para gente é um outro
problema... o que que impede isso né? É... que mais? É a questão da falta de
autonomia sobre o próprio corpo, sobre a própria vida! A determinação de que
mulher realizada é mulher bem casada! bem estudada! e bem dotada! saber cozinhar,
lavar, passar e ser boa de cama. Isso, por mais banal que pareça, está cada dia mais
incrustado assim, mesmo na juventude, a gente percebe (Entrevistada, MMM).
É diante da busca da construção de uma articulação entre os movimentos sociais que a
MMM vai afirmar a importância de que estes movimentos reconheçam que a luta política está
para além das fábricas, compreendendo que a classe trabalhadora não se reduz aos operários
fabris, nem às reivindicações destes, englobando também homens e mulheres das lutas
populares. Deste modo, o ponto nodal estabelecido é significado na negatividade do modelo
de desenvolvimento capitalista, reconhecido como um modelo que, para se sustentar, nega a
existência das mulheres e dos pobres, não sendo ele passível de promover direitos iguais; e
positivado na afirmação de uma alternativa anti-capitalista não-androcêntrica, central na
promoção de uma ampla democratização social, ao se pautar, assim como observado no MST,
na afirmação de uma igualdade inexistente no presente, construída pela pluralidade de
subordinados, não se constituindo somente como uma conquista específica no interior do
próprio sistema.
Cuba é um exemplo de que não adianta romper com o capitalismo. E a Europa é
um exemplo de que não adianta ter capitalismo desenvolvido, porque a vida das
mulheres é... o patriarcado da Europa e de Cuba ta lá, né! E pouco mexido! assim...
pouquinho... alguma coisa, uma ou outra coisa está remexido aí pelas feministas que
foram queimadas na história. Mas... ... é uma coisa que..isso, é um projeto de
emancipação humana né! não é so das maquinas! não éde ocupação das fábricas!
Isso é essencial! Mas pra gente é... eu aprendi com umas companheiras da Argentina
que é: “revolucionemos as casas! as praças! e as Câmaras
!” Então não para
revolucionar o espaço público não. Acho que a gente precisa romper! inclusive o
que que é publico e o que que é privado para conseguir entender esse raio! de
104
machismo, de patriarcado, sistema que é esse que nos mantém tão enjauladas
(Entrevistada, MMM).
A defesa deste projeto contra-hegemônico, anti-capitalista, não-androcêntrico pode
também ser observado no documento “Marcha Mundial de las Mujeres 1998-2008 Uma
década de lucha internacional feminista” (ANEXO IV MMM):
Nossa posição como feminista no rum [Social Mundial] é evitar que as lutas de
mulheres e a desigualdade de gênero sejam tratadas como uma questão de
identidade. Desejamos expressar que as mulheres, as pessoas de cor, os
homossexuais ou indígenas são cidadãos ativos da mudança global. Quais são
nossos desafios comuns e que ações podemos coordenar para combater a ordem
patriarcal, racista e capitalista, e criar opções para este outro mundo que nos
comprometemos a construir? Declaramos firmemente que outro mundo não pode ser
construído sem estas perspectivas diferentes coordenadas em um claro projeto
político de mudança. Não falamos de integrar as mulheres na ordem atual, lutamos
para mudar o mundo no sentido que seja uma sociedade justa para todas as mulheres
(não somente para algumas) e para os homens, como expressa a Carta Mundial das
Mulheres para a Humanidade (p. 37, tradução nossa).
Sendo que na “Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade”, presente neste
mesmo documento, se explicita:
A Marcha Mundial das Mulheres da qual fazemos parte, identifica o patriarcado
como o sistema de opressão às mulheres e o capitalismo como o sistema de
exploração de uma imensa maioria de mulheres e de homens por parte de uma
minoria. Estes sistemas se fortalecem mutuamente. Se fundamentam e se conjugam
com racismo, sexismo, misoginia, xenofobia, homofobia, colonialismo,
imperialismo, escravismo e trabalho forçado. Constituem a base dos
fundamentalismos e integrismos que impedem as mulheres e os homens serem
livres. Geram a pobreza, a exclusão, violam os direitos humanos, particularmente os
das mulheres e põem a humanidade e o planeta em perigo. Rechaçamos este mundo!
Propomos construir outro mundo onde a exploração, a opressão, a intolerância e as
exclusões não existam mais, onde a integridade, a diversidade, os direitos e
liberdades de todas e todos sejam respeitadas (p. 61, tradução nossa).
A compreensão das mulheres como “excluídas dos excluídos”, considerando o
patriarcado uma contradição fundamental de ser pautada em qualquer projeto de mudança
social, também é visibilizada na entrevista com as Brigadas Populares:
A contradição que a gente prima pela superação dela é a do patriarcalismo, da
relação, da dominação dos homens pelas mulheres, da estrutura monogâmica
familiar de dominação do patriarca, do homem. Então isso coloca as mulheres numa
situação, são as excluídas dos excluídos (Joviano, BP).
105
Bem como no documento “A linha política (maio 2008)” (ANEXO V BP) desta
organização, no qual também se afirma a importância de se combater conjuntamente o
capitalismo e o patriarcado na luta pela mudança social:
A
situação vivenciada pelas mulheres na sociedade contemporânea não decorre da
discriminação, mas da dominação. O problema fundamental, portanto, é que
vivemos em uma sociedade patriarcal que, em sua fundação, não considerou a
questão da mulher, ou, quando a considerou, o fez tomando-a como objeto. Trata-se
de uma sociedade pautada pela supremacia masculina, sob a qual as diferenças de
gênero são tornadas relevantes para a distribuição de benefícios, para desvantagem
sistemática das mulheres. Gênero determinará uma diferenciação na dimensão da
cultura, de modo que tudo o que é vinculado ao feminino será tratado como inferior,
pior, não racional. Por outro lado, é também uma dimensão estruturante da
economia, que implicará as diferenciações entre trabalho pago e trabalho doméstico
não pago, funções mais e menos valorizadas, dentre outras. Desse modo, o
feminismo que advogamos demanda uma transformação social profunda que requer,
por um lado, a superação do modo capitalista de produção e, por outro, o fim do
patriarcado. Embora haja um “casamento bem acertado” entre patriarcado e
capitalismo, o patriarcado existe antes mesmo do capitalismo, como demonstrou
Engels. Por isso, concomitantemente à superação do sistema capitalista, é necessária
a superação do patriarcado, promovendo-se uma transformação cultural que, de fato,
implemente um princípio de igualdade entre homens e mulheres. Isso significa que
os termos da nova sociedade devem ser fruto de deliberação ativa também das
mulheres, como protagonistas desse processo. Mas essa transformação não é algo
que virá em um determinado momento, razão pela qual devemos contribuir no
debate e na intervenção nas seguintes linhas principais: i) combate à violência
doméstica; ii) fim da divisão sexual do trabalho; iii) empoderamento das mulheres
nos espaços políticos; iv) igualdade salarial entre homens e mulheres; v) garantia de
direitos sexuais e reprodutivos, dentre outros (não paginado).
Estes relatos referentes ao MST e à MMM, aproximações da noção de prática
articulatória, apesar de serem desejos a se realizar, não estando efetivamente concretizados,
encontram-se na luta cotidiana dos grupos e permitem-nos reforçar a crítica à redução da luta
dos movimentos sociais contemporâneos às lutas particulares, organizadas em torno da lógica
da diferença.
É importante lembrar que a nova positividade do social, afirmada por um projeto
hegemônico, não se encontra dada a priori. Assim, se estas aproximações apontam para
possibilidades de nomear a “Coisa”, tal nomeação é sempre uma construção contingente à
prática articulatória. Portanto, estas aproximações dizem apenas de horizontes possíveis de
nomeação. Deste modo, é importante considerarmos o que Laclau (2005) salienta sobre a
distinção entre vacuidade e abstração quanto à concepção deste processo de nomeação da
cadeia de equivalência:
o que reveste crucial importância é não confundir vacuidade e abstração, isto é, não
conceber o comum denominador expresso pelo símbolo popular como um traço
106
positivo compartilhado em última instância por todos os laços da cadeia. Se assim
fosse, não haveríamos transcendido a lógica da diferença. [...] uma cadeia
equivalencial deve ser expressada mediante a catexia de um elemento singular
porque não estamos tratando com uma operação conceitual de encontrar um traço
comum abstrato subjacente em todos os agravos sociais, mas com uma operação
performativa que constitui a cadeia como tal. É como o processo de condensação
nos sonhos: uma imagem não expressa sua própria particularidade, mas uma
pluralidade de correntes muito dissimilares do pensamento inconsciente que acham
sua expressão nessa única imagem. É bem conhecido como utilizava Althusser esta
noção de condensação para analisar a Revolução Russa: todos os antagonismos da
sociedade russa se condensavam em uma unidade ruptural em torno das demandas
de “pão, paz e terra”. [...] A esta altura devia está claro porque estamos falando de
“vacuidade” e não de “abstração”: pão, paz e terra não são o comum denominador
conceitual de todas as demandas sociais russas de 1917. Como em todos os
processos de sobredeterminação, agravos que não tinham nada a ver com estas três
demandas se expressavam, no entanto, através delas (p. 125-127, tradução nossa).
Considerando também que toda articulação se constitui a partir de uma relação de
equivalência que nunca é totalizante, na medida em que não significa o fim da particularidade
dos sujeitos, apesar de implicar numa ressignificação da identidade de cada um deles, que
isso representaria a divisão do espaço discursivo em dois campos plenos - o que impossibilita
qualquer subversão das diferenças (LACLAU & MOUFFE, 1985) - é interessante considerar
o posicionamento do grupo NA sobre a construção da luta política, ainda que este
posicionamento esteja mais próximo de uma noção de abstração do que de vacuidade.
As entrevistadas do grupo afirmam que a construção de uma forma de unidade se faz
importante, na medida em que os adversários que subjuga todos os subcidadãos não são tão
distintos e não serão os responsáveis pela construção de processos de democratização social.
Contudo, ressaltam que a construção desta unidade não se deve dar em detrimento da
pluralidade de vozes, no sentido em que não pode se caracterizar pela redução da luta a
bandeira de um movimento específico, como se esta fosse capaz de englobar a totalidade, ou
seja, representasse uma equivalência total.
NA (Cássia): Eu não acho que as pessoas vão assim se conscientizar sabe e falar:
“não, é, realmente eu explorei esse povo a vida inteira, agora eu vou dar licença pra
eles pegarem uma parte desse bolo aqui também”, sabe, eu acho que não. E eu
acho que os Movimentos, assim, quem está e aí os parceiros, quem está realmente se
incomodando com essa desigualdade eu acho que precisam ter espaço para cada um
reivindicar o que acha que é importante, assim, que não contido, às vezes, nas
reivindicações do outro, mas também se articular, porque em alguns momentos a
gente está enfrentando o mesmo adversário, que com demandas diferentes, que a
gente sabe quem concentra poder e privilégio: são grupos muito semelhantes mesmo
e que concentram várias características que são diferentes das nossas e por isso, das
nossas e dos grupos gays, né, assim e dos sindicalistas, e que por essa junção, né, de
características se consideram superiores e dignos de maior privilégio. Então, acho
que em alguns momentos a gente para ter força, a gente precisa realmente de
conseguir identificar junto com os colegas aí dos outros Movimentos em que medida
em que as nossas lutas elas podem ser conciliadas assim pra enfrentar o adversário
107
que longe da gente sabe, o nem aqui nem no Movimento Gay, nem nos
Sindicalistas, sabe.
NA (Flávia): Eu to pensando nas minhas ações, mas eu ainda acredito que eu
acho que nós temos que ir pra rua sabe e tomar... eu acho assim que o diálogo ele é
muito bacana, sabe, eu acho que ele funciona em alguns momentos, mas a gente tem
que estar juntos, unidos, nós estamos muito dispersos, os Movimentos, cada um
cuidando do seu projeto, correndo atrás do seu edital e eu acho que a gente tem que
voltar a focar as nossas ações ali todas e, sabe, e estar juntos, militar juntos, estar
mais próximo, estar mais juntos. assim a gente vai ser ouvida, eu acho que a
gente caiu muito nessa questão, assim, a gente se deixou levar muito pelo
capitalismo, desse distanciamento, sabe, de interesses pessoais, que acabou
favorecendo o interesse de poucos, de algumas organizações e foi dispersando
muito a luta, acho que a gente tem que voltar e focar as nossas lutas para uma
Marcha só, eu acho que isso que funciona.
NA (Cássia): Pois é, mas eu acho que tem que ser uma Marcha que várias vozes
possam fazer presença, não é uma Marcha que um fulano ou então um grupo do
Movimento X considera que a luta dele é a mais relevante e a bandeira dele vai
dar conta de todas as outras e a gente vai ter que gritar aquilo ali, não, nós
vamos te ajudar a gritar por isso aí, mas, por favor, reconheça que a nossa demanda
também é legítima, sabe, assim, e se responsabilize em alguma medida pelo o que a
gente está discutindo.
3.1.2. Estratégia de Aliança
Esta forma de vínculo entre movimentos sociais, diferentemente da Estratégia de
Articulação, caracteriza-se pela construção de ações que não se configuram como uma
convergência em torno de um projeto político contra-hegemônico - baseado numa ampla
democratização da vida social. Estas ações se estabelecem pelo o compartilhamento de
algumas bandeiras específicas, em momentos pontuais, sem a pretensão de se subverter as
posições diferenciais de sujeito, a fim de fortalecer a luta pela conquista das mesmas. Uma
representação sintética do que aqui definimos como Estratégia de Aliança poderia ser:
q j p
k s u
y f → D
h t
z o
l m r
FIGURA 2 – Estratégia de Aliança
108
Nesta figura, as letras minúsculas q, y, z representam antagonismos democráticos, as
letras minúsculas u, f, t são momentos que se encontram articulados no interior do projeto
hegemônico sedimentado, representado pela letra maiúscula D. as outras letras minúsculas
(k, h, l, m, r, s, j, p, o) representam antagonismos democráticos que não apresentam nculos
com q, y, z, u, f, t naquela determinada ocasião ou em torno da bandeira específica
reivindicada por q, y, z naquela determinada ação.
A figura 2 então busca demonstrar três movimentos sociais que, apesar de não
estabelecerem uma articulação entre eles, se unem em torno de uma determinada
reivindicação, contrária a certa prática ou discurso específico da hegemonia (t), para fortalecer
ações contra-ofensivas a esta prática ou discurso: “y” e “z” seriam movimentos que já
apresentavam, nas suas reivindicações, a bandeira de luta contrária ao discurso ou prática
empreendida por “t” (por exemplo, luta do movimento feminista e do movimento LGBT
contra gicas sexistas hegemônicas), unindo-se em razão deste compartilhamento, enquanto
“q” constrói aquela aliança com y” e “z” a partir da inclusão daquela bandeira em suas
pautas de luta (por exemplo, a inclusão da luta contra lógicas sexistas no movimento sindical).
Ou seja, aquela bandeira não fazia parte de suas lutas até então.
Desta maneira, a estratégia de aliança caracteriza-se por duas formas de aliança entre
os movimentos. Uma primeira que se define pelo que Laclau (2005), como apontado
anteriormente, afirma ser importante distinguir do processo de nomeação da cadeia de
equivalência (distinção entre vacuidade e abstração): pela identificação de um traço
compartilhado entre os movimentos sociais, que constroem vínculos em torno de uma
determinada ação (caso entre y e z na figura 2), não tendo ocorrido, portanto, uma
ressignificação da lógica da diferença, permanecendo a luta política no âmbito dos
antagonismos democráticos. Desta forma, os movimentos sociais se aliam pelo fato de ambos
apresentarem, na sua agenda política, aquela determinada demanda, ainda que possam ter
concepções distintas sobre a compreensão e as formas de se conquistar esta demanda
específica.
Neste sentido, podemos entender a construção de aliança entre o MST e a BP em torno
da ocupação Dandara, na medida em que este vínculo se constrói, como apontado no ANEXO
VI BP (“Histórico Dandara (abr. 2009)”), mediante a luta pela função social da propriedade,
prevista na Constituição Brasileira, pauta esta que se fazia presente nos dois grupos. É
interessante apontar para o fato de que se este vínculo não se caracteriza pela construção de
uma estratégia de articulação, focando-se em um aspecto específico da hegemonia a partir de
109
um traço presente nos dois movimentos, sua realização permite o fortalecimento da relação
entre reforma urbana e reforma agrária, construindo como alternativa uma ocupação
rururbana, contribuindo para a aproximação de dois sujeitos políticos que compartilham uma
mesma pauta.
A BP também aponta construir alianças como esta com relação a outras frentes de
trabalho que possui, como com o Movimento Estudantil na frente de Juventude e com o
Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade na frente Anti-Prisional.
Quanto ao MST, também pode ainda se considerar a construção de aliança com outros
grupos do movimento do campo, no intuito de somar força para manutenção da população no
campo e contra os grandes inimigos do campo que expulsam os camponeses: fazendeiros,
investidores do agronegócio. Neste sentido, pode-se citar a aliança com o Movimento dos
Pequenos Agricultores, o qual também apresenta como bandeira política a defesa pela
agricultura familiar.
Outra demonstração desta forma de aliança pode ser a construção de vínculos do
grupo NA com outros grupos que apresentam a discussão anti-racista (como com o Grupo
Mulheres em União e com o Grupo Odum Orixás) ou que fazem o debate sobre a temática
feminista (como com a MMM e com a Articulação Brasileira de Jovens Feministas). Além
disso, construíram junto com outros grupos de mulheres de Belo Horizonte o grupo cultural
chamado Atitude de Mulher, de maneira a dar visibilidade à presença da mulher no
movimento cultural de Belo Horizonte. Neste caso também, se o objetivo não era de construir
uma estratégia de articulação entre movimentos sociais - sendo o grupo constituído em torno
de uma reivindicação existente no interior de diferentes grupos de mulheres (importância da
visibilidade das mulheres no interior do movimento cultural de Belo Horizonte) e com fins de
se montar um espetáculo de dança para o Festival da Arte Negra de Belo Horizonte -segundo
as entrevistadas, a construção do Atitude de Mulher trouxe conquistas importantes referentes
à visibilidade dos movimentos culturais na cidade, à visibilidade das mulheres no interior
destes movimentos e ao combate à discriminação às mulheres:
NA (Flávia): E já era o começo de outros grupos, que foram com seus grupos
articular, mas foi um momento muito importante assim: não para os grupos, mas
também para Belo Horizonte. Porque a Secretaria de Cultura passou a funcionar, na
PUC nós apresentamos em todas as PUC. Então, essa questão de mostrar a questão
da mulher no Hip Hop, até pros meninos do Hip Hop, teve a discussão do Hip Hop
Chama que teve a discussão de gênero, sexualidade e redução de danos, foi muito
mesmo em função da presença da mulher, dessa cobrança de falar, dar visibilidade,
então foi um momento muito importante.
110
NA (Cássia): eu considero que alguns avanços foram conseguidos, mas durante
um período, e eu acho que bem nesse período que eu entro para o Atitude de
Mulher e para Negras Ativas em 2006, acho que em 2005 também, teve alguns
embates que foram fortes. E quando se consegue, por exemplo, fazer esse
processo lá do Hip Hop Chama dos debates públicos de gênero, sexualidade e
convidar e conseguir uma participação grande tanto do Movimento, quanto de
estudantes, um público jovem muito assim, o auditório do Chico Nunes ficava
lotado! Eu acho que foi um marco mesmo, sinal de algum avanço que teve na cidade
sabe, e mesmo de conseguir que os meninos começassem a refletir mais sobre que
tipo de letra, como que eles estavam dizendo das mulheres e que tipo de relação que
eles tinham com essas mulheres no Movimento, em casa, nos grupos. Você tinha
muita mulher que às vezes era backvocal, mas que não aparecia e aí assim um
movimento mesmo de tentar sempre questionar e problematizar sobre o que era
necessário avançar ainda. Eu lembro, nem sei de quem que foi essa fala, não sei se
foi da Áurea, mas todo mundo super satisfeito com a coisa dos debates e tal e com a
coisa do Hip Hop Chama e aí uma pessoa questionou, isso foi a gente comentando
num ensaio do Atitude de Mulher é: ‘mas assim ainda tem coisa que a gente precisa,
ainda tem barreiras que às vezes são sutis e que a gente precisa desconstruir, eu não
sei se vocês repararam, mas na construção do processo a coisa da logística ficava
muito mais em cima das meninas e a coisa sei lá que demandava habilidades
técnicas tipo filmagem, microfone, não sei o que os meninos comandando assim, o
que que é isso sabe? Será que a gente realmente tem déficit (rss) nessas habilidades
técnicas e os caras não sabem organizar umas cadeiras em cima do palco sabe?’
A construção do Fórum das Centrais Sindicais, apontada por Temístocles (CUT),
também pode ser compreendida como esta forma de aliança. Este Fórum, de acordo com o
entrevistado, apresenta como objetivo a aproximação entre as diferentes Centrais Sindicais
existentes hoje no país, na busca de se construir ações e posições conjuntas frente a
negociações com os empresários e com o governo, ao invés de as Centrais isoladamente
estabelecerem esta negociação, contribuindo, assim, para uma diminuição da fragmentação no
interior do movimento sindical.
Cabe considerar também o posicionamento da entrevistada da MMM com relação à
importância da construção de aliança com a Via Campesina, visto que a MMM é um
movimento transversal no que tange às lutas camponesas e lutas urbanas:
existe uma aliança internacional entre a Marcha Mundial das Mulheres e a Via
Campesina, que são os movimentos camponeses que aqui no Brasil se expressam
através do MST, do MAB, que é o Movimento dos Atingidos por Barragens, pelas
pastorais do campo. A gente acredita que essa aliança das mulheres e com esses
movimentos fortalece! a luta no campo e a luta na cidade. A gente sempre deixa
claro! que o movimento de mulheres, no caso a Marcha!, não é um movimento
urbano! Ele é um movimento transversal! É um movimento que cabe! a mulher do
campo e que cabe a mulher da cidade. Mas pra gente é muito importante! a luta das
mulheres no campo. Então quando a gente tem um inimigo grande aí que é o
latifúndio no campo a gente vem com todo... o aparato aí do capitalismo para
oprimir a vida dessas mulheres. Então para gente, uma aliança estratégica,
declarada! é a Via Campesina (Entrevistada, MMM).
111
Uma segunda forma de aliança é aquela em que movimentos sociais que não
apresentavam uma determinada pauta passam a incorporá-la em suas lutas, ao reconhecerem a
legitimidade daquela reivindicação no processo de democratização social almejado por estes,
e a construir lutas conjuntas em torno daquela bandeira, sem que isso necessariamente
acarrete num processo de ressignificação da identidade de cada um dos movimentos sociais
que se aliaram pontualmente (caso de q com y e z na figura 2).
Esta última forma de aliança é concebida como uma aproximação ao que Laclau
(2005) vai caracterizar como um momento “metonímico” (uma relação de contigüidade entre
movimentos sociais), anterior à construção e nomeação de uma cadeia de equivalências. O
autor aborda os mecanismos retóricos na discussão sobre o processo de nomeação de uma
cadeia de equivalência pelo fato de compreender que “uma reagregação ou um deslocamento
retórico tem precisamente a função de emancipar um nome de suas referências conceituais
unívocas” (p. 140, tradução nossa). Assim, continua Laclau (2005):
Permita-me introduzir na discussão um exemplo que tenho discutido em outra
parte. Imaginemos um determinado bairro onde existe violência racial e as únicas
forças locais capazes de organizar uma contra-ofensiva anti-racista são os sindicatos.
Agora bem, em um sentido estritamente literal, a função dos sindicatos não é lutar
contra o racismo, mas negociar os salários e outras questões similares. No entanto,
se a campanha anti-racista é empreendida por sindicatos, é porque existe uma
relação de contigüidade entre as duas questões em um mesmo bairro. Uma relação
de deslocamento entre termos, problemas, atores, etc. é o que se denomina, em
retórica, uma metonímia. Suponhamos agora que esta conexão entre lutas anti-
racistas e sindicais continua por um certo período de tempo: neste caso, vamos
começar a sentir que existe um vínculo natural entre os dois tipos de luta. Assim, a
relação de contigüidade vai começar a se converter em uma relação de analogia, a
metonímia em uma metáfora. Este deslocamento retórico implica em três mudanças
principais: Primeiro, apesar do particularismo diferencial dos tipos iniciais de lutas e
demandas
,
se está criando entre eles certa homogeneidade equivalencial. Segundo, a
natureza dos sindicatos se modifica neste processo: deixam de ser a pura expressão
de interesses setoriais precisos e se voltam em maior medida se desenvolve uma
variedade de articulações equivalenciais ao ponto nodal na constituição de um
“povo”. Terceiro, a palavra “sindicato” se converte no nome de uma singularidade,
no sentido em que a temos definido antes: já não designa o nome de uma
universalidade abstrata e se converte no nome de um agente social concreto, cuja
única essência é a articulação específica de elementos heterogêneos que, mediante
este nome, cristaliza uma vontade coletiva unificada (p. 140-141, tradução nossa).
Com relação a esta forma de aliança, podemos apontar a consideração pelo
entrevistado da CUT de que esta tem incorporado na sua história bandeiras do movimento
feminista, do movimento ecológico, do movimento LGBT, devido ao fato de as considerar
importantes para o processo de democratização da sociedade brasileira e para a emancipação
dos trabalhadores. Assim, o entrevistado explicita que a CUT participou na Conferência
Rio+10 e vem participando do debate sobre os transgênicos, no qual se alia com o MST.
112
Também afirma que a CUT apóia a realização das Paradas LGBT no país desde o inicio desta
forma de manifestação pública. E ainda, que foram construídas na CUT a Secretaria de
Juventude, Secretaria da Mulher Trabalhadora e Secretaria do Meio Ambiente.
No documento “Cronologia das Lutas (março 2009)” (ANEXO III CUT), observa-se
que a cota mínima de 30% de mulheres nas instâncias de direção da CUT foi aprovada na
Plenária Nacional da CUT, em 1993. Note-se ainda que no Congresso Nacional da CUT
(1994) foi decidido “que a CUT deveria priorizar lutas nas questões de gênero e política
racial” (não paginado); que na 12ª Plenária Nacional da CUT (2008) foi discutido “o respeito
às cotas de gênero, a criação das secretarias de Juventude e Combate à Discriminação Racial”
(não paginado). Em outro documento (“Ato político (agosto 2009)” - ANEXO VI CUT),
aponta-se que em agosto deste ano a CUT aderiu oficialmente à Frente Nacional pelo Fim da
Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, tendo Artur Henrique, presidente
atual da CUT, afirmado que esta é uma luta de todos, homens e mulheres.
No que tange a alianças com o movimento negro, na parte Apresentação do
documento “Marcha Zumbi dos Palmares, contra o racismo, pela cidadania e pela vida
(nov.1995)” – ANEXO II NA–, consta o seguinte agradecimento à CUT:
Gostaríamos de fazer uma menção especial à participação de Vicente Paulo da Silva,
Vicentinho, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que desde a
aprovação da proposta da Marcha levada pelo Movimento Negro unificado (MNU)
ao encontro de sindicalistas negros cutistas, realizado em maio de 1995, em Brasília,
desempenhou importante papel na garantia da aliança, muitas vezes conturbada,
entre o movimento negro e o movimento sindical, sem nenhuma dúvida uma das
razões essenciais do êxito alcançado pela Marcha (não paginado).
Assim, concordamos com Mouffe, em entrevista realizada juntamente com Laclau,
que
Uma hegemonia não pode ser formada por um movimento meramente absorver
outras lutas. Esta ameaça tem repetidamente sido posta na história. Na Grã Bretanha,
o Partido Trabalhista tem feito tentativas de absorver o movimento de mulheres, mas
as mulheres têm afirmado corretamente que não é suficiente ser apenas mais uma
demanda na lista do Partido Trabalhista. Se o feminismo é para estar ligado ao
Partido Trabalhista, a estrutura do Partido tem que mudar, incluindo suas
instituições, sua linguagem e sua cultura (1998, não paginado, tradução nossa).
Contudo, afirmamos que esta forma de aliança pode propiciar condições de
aproximação entre os movimentos sociais, contribuindo para o enfraquecimento da
fragmentação entre eles, bem como para um possível deslocamento de uma relação de
113
contigüidade para uma relação de analogia, de maneira a potencializar estratégias de
articulação.
Assim, concordamos também com a entrevistada da MMM, como anteriormente
descrito, que a construção desta forma de aliança pode contribuir para a construção de
articulação, uma vez que possibilita que bandeiras específicas de cada um dos movimentos
sociais aliados sejam reconhecidas por outros movimentos sociais, ainda que em uma ação
pontual, e assim, fortalecidas; bem como propicia condições de troca de experiências de luta
entre os movimentos. Aspectos que podem contribuir para um amplo desvelamento da
negatividade da hegemonia e, assim, para a construção de uma nova positividade do social a
partir da equivalência entre diferentes subcidadãos.
Deste modo, ressaltamos a constituição da Assembléia Popular: esta pretende ser um
espaço que possibilite o estabelecimento de vínculos entre diferentes atores sociais, de
maneira que estes construam alianças em torno de determinadas bandeiras de luta, constituam
ações em conjunto, no intuito de se elaborar a partir destes vínculos o Projeto Popular para o
Brasil
61
, isto é, uma nova positividade do social.
A Assembléia Popular é a organização do povo. O poder da Assembléia Popular
emana do povo organizado que assume o seu poder. existem milhares de formas
de organização e participação do povo: movimentos sociais, cooperativas, grupos
auto-geridos, associações e redes de empreendimento nos diversos setores da
economia, sindicatos, comunidades tradicionais (quilombolas, povos indígenas,
etc.), clubes de mulheres, grupos culturais, agroindústrias familiares, etc. A
Assembléia Popular é um processo de coordenação e articulação das organizações
do povo. É abrangente. Quer ser um reagrupamento, o mais amplo possível, das
forças populares construindo a democracia autêntica. Reúne forças distintas, mas
todas lutam por uma outra sociedade, não dominada pelo poder do dinheiro.
Organiza-se em todos os níveis, priorizando a organização na base, nas ruas, nos
bairro e nos municípios. Articulação e coordenação, mas sem perder a diversidade e
especificidade dos grupos. A Assembléia Popular é plural. Integra forças sociais,
com perspectivas, estratégias e lutas distintas, próprias a cada entidade. A
diversidade das contribuições é uma força e riqueza para superar as atitudes setoriais
e corporativistas, na perspectiva duma transformação política do país. [...]. O
método participativo, com muitos debates e propostas, deve desembocar na
construção, desde a base até o plano nacional, de um projeto popular para o
Brasil. [...] Não é pouca coisa. É no andar que se faz e se descobre o caminho
(Documento “Assembléia Popular. De onde vem? Para onde vai?ANEXO I AP-
MBH –, não paginado).
61
Cabe apontar que se, por um lado, a construção deste Projeto Popular para o Brasil encontra-se pautada na
elaboração de vínculos entre diferentes sujeitos políticos em torno de uma alternativa justa de sociedade, por
outro lado, segundo Bernadete (AP-MBH), a forte presença da Igreja, sobretudo, nas direções nacionais da AP,
dificulta a incorporação de demandas como, por exemplo, a legalização do aborto, a criminalização da
homofobia. Assim, a construção de lutas conjuntas em torno destas demandas se faz dificultada neste espaço de
articulação.
114
Ainda com relação a esta forma de aliança, observa-se, em alguns dos grupos
entrevistados, que estas alianças são construídas também no intuito de incorporar suas pautas
em outros movimentos sociais, de modo a construir legitimidade das mesmas junto a estes
outros sujeitos políticos.
N
o documento “Marcha Mundial de las Mujeres 1998-2008 Una
década de lucha internacional feminista” (ANEXO IV MMM) se afirma:
Nosso chamamento é como uma cadeia de laços: mudar a vida das mulheres para
mudar o mundo... Isto significa que não existe nem análises nem demandas
“específicas” ou “secundárias” e que é hora dos diversos movimentos assumirem as
reivindicações das mulheres e defenderem-as, pois estas são essenciais para a
mudança. Portanto, devemos realizar um trabalho constante para ampliar nossa
agenda, com a ajuda de um aprendizado contínuo de outras lutas. É assim que
imprimiremos a marca feminista nos debates e nas ações, amplificando a voz das
mulheres onde, inclusive nos meios progressistas, es geralmente silenciada
[acallada] (p. 34, tradução nossa).
Mais à frente, neste mesmo documento, aponta-se: “As alianças são ainda mais
evidentes para realizar lutas concretas: direito ao aborto, direito das lésbicas, direito das
mulheres imigrantes na Europa” (p. 37-38, tradução nossa).
Diante dessa busca por ampliar as bandeiras do movimento, é também possível
compreender a ênfase atribuída pela entrevistada da ABGLT quanto ao uso do advocacy
como uma ferramenta política. Segundo a entrevistada, o uso do advocacy não se restringe a
ações nos espaços legislativo, executivo e judiciário, podendo ser realizado junto a qualquer
ator político, no intuito de propiciar que este se alie ao movimento com relação a uma
determinada bandeira reivindicada
62
.
Neste capítulo, portanto, buscamos discutir duas formas de vínculos entre movimentos
sociais, enfocando que, se a estratégia de articulação se estrutura mediante a construção da
lógica da equivalência e a estratégia de aliança, não necessariamente, proporciona uma
redefinição das identidades,levando ao rompimento com a lógica da diferença, isso não
significa entender tais estratégias, a priori, como opostas na construção da luta política.
Defendemos que estas duas estratégias podem ser complementares, uma vez que a construção
de alianças pode servir para potencializar a formação de uma cadeia de equivalência dos
seguintes modos: por propiciar o reconhecimento pelos diferentes movimentos de que
enfrentam adversários semelhantes, e que são estes os responsáveis pela impossibilidade de
62
No documento “Projeto Somos. Desenvolvimento Organizacional, Advocacy e Intervenção para ONGs que
trabalham com gays e outros HSH (2005)” ANEXO V ABGLT - advocacy é definido como “um conjunto de
ações dirigidas a quem toma decisões, em apoio a uma causa política específica, levando em conta a
conjuntura de aliados, adversários e pessoas não mobilizadas” (p. 57).
115
existência dos diferentes subcidadãos; por fomentar visibilidade e conferir legitimidade a
pautas políticas muitas vezes invisibilizadas diante da dificuldade, como apontara Pinto
(1999), de movimentos sociais abrirem “mão de identidades protegidas ou reformular
demandas que se tornaram canônicas em certos movimentos” (p.90-91); por enfraquecer o
processo de fragmentação dos movimentos sociais, o qual, longe de favorecer a construção de
um projeto contra-hegemônico, é uma condição facilitadora para a manutenção da hegemonia
dominante.
Cabe ressaltarmos, deste modo, que não estamos a defender que a luta dos
movimentos sociais se reduza a estratégias de aliança, mas sim que, ao invés de afirmarmos
dicotomias como lutas reformistas (estratégias de aliança) x lutas revolucionárias (estratégias
de articulação), argumentamos a importância de compreendê-las como complementares.
Sobretudo se considerarmos que assim pode ser possível aproveitar as “brechas” da
hegemonia sedimentada para a construção de uma nova positividade do social, ou ainda, o
fato de que muitas vezes nem mesmo estratégias de aliança são passíveis de serem
estabelecidas frente às estratégias de “expansão hegemônica” e “expurgo à diferença”,
desenvolvidas pela hegemonia sedimentada. São estas últimas que abordaremos no próximo
capítulo.
Antes, entretanto, cabe considerarmos mais um aspecto: é possível que, ao mesmo
tempo, um mesmo movimento social estabeleça estratégia de articulação e estratégia de
aliança? Pensar sobre esta questão requer lembrarmos, ao menos, de duas condições
referentes à prática articulatória: a) que nenhuma equivalência é total, ou seja, não implica no
fim das particularidades de cada um dos antagonismos democráticos presentes na cadeia de
equivalência - do contrário não haveria possibilidade de uma relação equivalencial, que os
antagonismos seriam iguais e não equivalentes. Desta forma, como o processo de nomeação
da cadeia de equivalência se pauta numa singularidade decorrente da prática articulatória, se
todos os movimentos sociais na relação de equivalência se reconhecem em torno deste
“nome”, isso não significa, contudo, que o projeto hegemônico abarque todas as
particularidades de cada um dos movimentos; b) a construção de um projeto hegemônico tem
como fim a diminuição das possibilidades de significação do campo social, dividindo o
espaço social e condensando significados em torno de dois pólos antagônicos, de modo a se
afirmar universal.
Assim, temos uma tensão inerente à construção de uma cadeia de equivalência entre a
autonomia e a subordinação de cada um dos componentes da cadeia. Segundo Laclau (2005):
116
a inscrição equivalencial tende a dar solidez e estabilidade às demandas, mas
também restringe sua autonomia, que estas devem operar dentro de parâmetros
estratégicos estabelecidos para a cadeia como um todo. [...] A tensão entre estes dois
momentos é inerente ao estabelecimento de toda fronteira política e, de fato, de toda
construção do “povo” como um agente histórico. Finalmente, está a questão dos
limites deste duplo jogo de subordinação e autonomização das demandas
particulares. A cadeia somente pode viver dentro da tensão instável entre estes dois
extremos, e se desintegra se um deles se impõe totalmente sobre o outro. A
unilateralização do momento da subordinação transforma os significantes populares
em uma essência [entelequia] inoperante incapaz de atuar como um fundamento para
as demandas democráticas. [...] Por outro lado, a autonomização, mais além de certo
ponto, conduz a uma lógica pura das diferenças e ao colapso do campo equivalencial
popular (p. 163-164, tradução nossa).
Desta maneira, propomos ser possível a um movimento social articulado em torno de
uma cadeia de equivalência estabelecer alianças referentes àquelas particularidades que não
foram subsumidas na articulação. Alianças estas que podem inclusive ocasionar em
deslocamentos naquela cadeia de equivalência, na medida em que particularidades que se
encontravam desarticuladas da cadeia passam a se expressar também em torno daquela cadeia.
Laclau (2005), na análise daquela tensão presente na construção da cadeia de
equivalência, afirma que simplificações que devem ser resolvidas. Uma destas
simplificações
63
refere-se à limitação da inserção de demandas insatisfeitas na cadeia de
equivalência. Assim, esclarece o autor:
uma demanda pode não ser incorporada na cadeia equivalencial porque se opõe aos
objetivos particulares de demandas que já são laços desta cadeia. Se o particularismo
das demandas individuais fosse totalmente neutralizado por sua inscrição
equivalencial, esta possibilidade poderia ser descartada, mas sabemos que isso não
ocorre. Portanto, uma cadeia equivalencial não somente se opõe a uma força ou um
poder antagônico, mas também a algo que não tem acesso a um espaço geral de
representação. Contudo, “opor-se” significa algo diferente em ambos os casos: um
campo antagônico é inteiramente representado como o inverso negativo de uma
identidade popular
64
que não existiria sem esta referência negativa; mas no caso de
uma externalidade que se opõe ao interior somente porque não tem acesso ao espaço
de representação, “oposição” significa simplesmente “deixar à parte” e, portanto,
não forma em nenhum sentido à identidade do que está dentro. [...] Este tipo de
exterioridade é o que vamos denominar heterogeneidade social. A heterogeneidade,
concebida desta maneira, não significa diferença; duas entidades, para serem
diferentes, necessitam de um espaço dentro do qual esta diferença seja representável,
enquanto que o que agora estamos denominando heterogêneo pressupõe a ausência
deste espaço comum (p. 175-176, tradução nossa).
63
Além desta, outra simplificação apontada por Laclau (2005) diz respeito a formas de a hegemonia confrontar
projetos contra-hegemônicos que não apenas a partir da lógica da diferença. Discutiremos esta questão no
próximo capítulo.
64
Em um momento posterior a esta citação, após ter discutido a heterogeneidade presente no processo de
construção de qualquer projeto hegemônico, na crítica, portanto, a uma fronteira imóvel entre hegemonia e
contra-hegemonia, Laclau (2005) alude: “a oposição entre A e B nunca vai se tornar completamente A-nãoA. A
‘essência-B’ de B será, em última instância, não dialetizável. O “povo” sempre vai ser algo mais que o oposto
puro do poder. Existe um real do “povo” que resiste à integração simbólica” (p. 191, tradução nossa).
117
Laclau (2005) também vai denominar este tipo de heterogeneidade inerente à dinâmica
social de elemento irrepresentável. Laclau afirma, nesta passagem, que este tipo de
heterogeneidade não significa diferença, na medida em que não há um espaço comum entre a
cadeia equivalencial e o elemento irrepresentável, em decorrência da oposição a este por parte
de “objetivos particulares de demandas que já são laços desta cadeia”. Contudo, ao
compreender esta heterogeneidade como aquilo que é “marginal”, que “está à parte” de
qualquer bloco antagônico, e não como aquilo que é antagônico à cadeia, a entendemos como
semelhante ao que Laclau e Mouffe definiram em Hegemonia e Estratégia Socialista como
elemento: “qualquer diferença que não está discursivamente articulada” (1985, p.105,
tradução nossa). O que difere do que chamam de momento”: “As posições diferenciais, na
medida em que elas aparecem articuladas dentro de um discurso, nós chamaremos momentos
(1985, p. 105, tradução nossa, itálico no original), concebendo “discurso” como “A totalidade
estruturada resultante da prática articulatória” (1985, p. 105, tradução nossa).
Neste sentido, propomos então que movimentos sociais que se encontram no interior
de uma cadeia de equivalência podem se aliar tanto a outros movimentos que também fazem
parte desta cadeia - no que tange a particularidades de cada um que não foram subsumidas na
equivalência -, quanto a estes elementos que não estão representados em nenhum bloco
antagônico (as letras minúsculas fora das chaves presente na figura 1), sendo este o motivo de
mais uma vez ressaltarmos o deslocamento presente na construção de projetos hegemônicos
(uso diferenciado das letras A e A’, D e E na figura 1). Deslocamentos estes que podem ser
visibilizados na seguinte afirmação de Laclau (2005): “toda transformação política não
somente implica uma reconfiguração de demandas existentes, mas também a incorporação
de demandas novas (isto é, de novos atores históricos) à cena política ou seu oposto: a
exclusão de outros que estavam presentes previamente” (p. 193, tradução nossa).
Deste modo, pode ser que elementos irrepresentáveis, que inicialmente não faziam
parte de nenhuma cadeia de equivalência presente no campo da discursividade -por se oporem
a particularidades de agentes que já se encontravam articulados na cadeia -, ao se aliarem com
alguns componentes da cadeia de equivalência, que não lhe são opostos, promovam
deslocamentos nesta e, assim, passem a se expressar em torno da mesma diante da exclusão
daqueles componentes que resistiam a esta integração simbólica. A estratégia de aliança teria,
então, proporcionado legitimidade àquele elemento, até então deixado à parte, fazendo com
que componentes que se encontravam articulados na cadeia reconhecessem sua importância
118
para a afirmação do projeto hegemônico, transformando não aquele elemento em um
momento, mas também alterando o próprio significado atribuído ao projeto hegemônico.
119
Capítulo 4
Resistências da hegemonia a possibilidades de “outro mundo
possível”: expansão hegemônica e expurgo à diferença
Na impossibilidade da plenitude de qualquer objetividade que se faz necessária à
repressão de alternativas antagônicas de sociedade: diante disso que se podem compreender as
possibilidades da afirmação do projeto hegemônico como universal e, ao mesmo tempo, a
precariedade de qualquer universalidade, fazendo das relações sociais uma relação de poder.
Assim, se, por um lado, a mudança social depende daqueles em condição de subcidadania
vislumbrar uma nova positividade do campo social, a partir do reconhecimento da
negatividade da hegemonia sedimentada; por outro lado, a hegemonia até então sedimentada,
como qualquer projeto hegemônico, busca se sustentar frente ao que possa vir lhe antagonizar.
Nesta medida, alguns aspectos da conjuntura política brasileira são abordados pelos
entrevistados como modos de manutenção das práticas e discursos hegemônicos, aspectos
estes relacionados ao papel dos movimentos sociais na sociedade contemporânea.
Abordaremos neste capítulo a terceira categoria analisada nesta dissertação: papel dos
movimentos sociais e resistências hegemônicas
65
.
Podemos tratar os modos de atuação da hegemonia a partir de duas formas distintas.
Uma marcada por uma expansão hegemônica, caracterizada: a) pela incorporação pela
hegemonia sedimentada de algumas reivindicações dos movimentos sociais na dimensão da
lógica da diferença, de modo que os laços entre as posições de sujeito se mantenham como
laços diferenciais, não como laços antagônicos, no intuito de dificultar a divisão do espaço
social em dois pólos antagônicos; b) pela atuação da hegemonia a partir da construção de
vínculos entre antagonismos democráticos contrários à hegemonia e momentos presentes na
própria cadeia hegemônica, enfraquecendo a luta política não somente pela reprodução da
lógica da diferença, mas pela promoção de deslocamentos nas relações antagônicas.
Outra forma de atuação da hegemonia é definida pelo expurgo
66
à diferença, a partir
da invisibilidade e/ou criminalização dos movimentos sociais, seja pela omissão de suas
ações, seja pela manipulação de informações e construção de uma imagem pejorativa dos
65
Categoria esta que, como indicado no Capítulo 2, compreende o entendimento dos grupos sobre qual deve ser
o papel dos movimentos sociais no momento presente, e implicações de outros atores (ONG, Estado, imprensa),
na tentativa de manutenção da hegemonia sedimentada.
66
Entendido como “livrar o que é nocivo ou imoral” no Dicionário Aurélio (Cf. FERREIRA, 2000).
120
movimentos sociais, na busca de impossibilitar a legitimidade dos mesmos e, assim, dificultar
a construção de apoio às demandas dos movimentos.
4.1. Expansão hegemônica
As diferentes entrevistas realizadas apontam para um elemento importante da
conjuntura política dos últimos anos no Brasil, sobretudo, após o ano de 2003, com o início
do governo Lula: a aproximação entre movimentos sociais e Estado. Esta conjuntura política
parece atravessar o comportamento de todos os grupos entrevistados, influenciando tanto a
construção de diferenças entre os movimentos sociais, no que tange à compreensão da relação
com Estado, quanto à criação de divergências internas aos movimentos, com relação às
formas de ação a serem implementadas para a conquista das bandeiras políticas.
Em todas as entrevistas, aponta-se como papel dos movimentos sociais aquele de lutar
por alternativas de sociedade e de gerar conflito no interior da sociedade presente através da
organização e conscientização da população em torno das bandeiras políticas defendidas pelos
movimentos, de modo a pressionar o Estado a atender as reivindicações dos movimentos,
sejam elas pela ampliação dos direitos sociais, pela construção de políticas públicas, pelo
cumprimento com a Constituição Brasileira, pelo financiamento de ações dos movimentos
sociais.
A entrevistada da MMM ressalta a importância de se distinguir movimentos sociais e
ONGs, afirmando que se aos primeiros cabe transformar a ordem social, produzir
enfrentamentos ao Estado, não lhes cabe se comportar como ONG, ou seja, se restringir à
manutenção da sustentabilidade da sociedade.
o papel do movimento social não é isso! O papel do movimento social não é
manter sustentabilidade, não é cumprir papel de Estado! isso é papel de ONG né! e
muito... é... muito... precarizado! (Entrevistada, MMM)
Segundo o entrevistado da BP, a disseminação de ONG nas periferias do país, nos
últimos anos, está pautada numa ação neo-liberal do Estado que busca uma “domesticação”
das periferias, no sentido de se criar uma contenção da luta popular, através da concessão de
algumas benesses. Aponta inclusive que a construção desta “barreira de contenção” se produz
lado a lado com a criminalização da periferia.
121
É claro que essa aproximação ela não é a toa, né? Essa é uma estratégia dentro do
neoliberalismo, do Consenso de Washington, a disseminação abusiva de ONGs de
atuação dentro das periferias, pra criar mesmo essa barreira de contenção. Uma
barreira de contenção no sentido de que a luta popular fica reduzida diante de um
contexto numa periferia que tem três ONGs atuando, dando cesta básica, fazendo
atividadezinhas com as crianças, então a organização popular ela perde a sua... perde
o seu caráter é... combativo, digamos assim. Porque são feitas essas concessões, e ai,
não é que se substitui a força repressiva pela atuação das ONGs, as duas coisas se
dão paralelas. Por um lado você reprime a periferia, mata! as pessoas, porque é isso
que a polícia faz dentro das favelas, mata! as pessoas, mas, por outro lado, você
massageia, sopra a ferida. Por exemplo, o Aglomerado da Serra é Criança
Esperança, é Fundo Cristão, é isso, é aquilo. São mais de noventa instituições que
não entram em enfrentamento, não vão na estrutura da ordem social, no
questionamento das contradições centrais da ordem social. Elas criam uma condição
tal de oferecimento de algumas benesses, de algumas oficinas, cursos de capacitação
e tudo mais, claro isso é importante, mas dentro de uma perspectiva maior cria essa
barreira de contenção de contestação à ordem social. Ora, quais são as contradições
centrais da sociedade hoje? Questiona-se isso? As ONGs, mais de duzentas mil que
existem no Brasil. Então, é um pouco por ai quando a gente usa esse termo, barreira
de contenção, de contenção quanto ao questionamento e a luta pela transformação da
ordem social. Então, é nesse sentido que faz uso dessa expressão (Joviano, BP).
De acordo com Pinto (2008), a problemática das ONG deve ser pensada
como um fenômeno típico da atual fase do capitalismo, na qual impera o princípio
da privatização não na área econômica, como na dos serviços públicos prestados
pelo Estado ao cidadão portador de direito. É neste cenário de Estado minimalista,
de perda de direitos historicamente adquiridos, desobrigação do Estado com seus
compromissos e do império do mercado para muito além das relações
eminentemente econômicas que é possível entender as organizações não-
governamentais e sua zona de sombra não tão virtuosa (p. 443).
Ainda relata a autora que sendo a base de todos os financiamentos das ONGs projetos
apresentados a fundações internacionais e nacionais e ao Estado, projetos estes inclusive
indispensáveis para sustentar as próprias estruturas das ONGs, “Algumas vezes as ONGs
necessitam mudar o foco de sua ação para poder concorrer a financiamentos em áreas
definidas pelas grandes financiadoras internacionais” (p. 445-446). É diante de implicações
como esta, relativa às ONG focarem ações em torno de editais de financiamento, que o grupo
NA aponta grande receio em se tornar uma ONG
67
, mesmo reconhecendo a importância desta
reorganização no que tange, sobretudo, às possibilidades de captação de recursos, que a
escassez de recursos é um problema enfrentado pelo grupo.
Entrevistador: E vocês falaram de CNPJ, o que vocês pensam da onguização dos
Movimentos Sociais, o que vocês pensam de virar ONG ou não virar ONG?
67
Segundo Pinto (2008), três tipos bem delimitados de ONG no Brasil: “as que nasceram durante o regime
militar, buscando uma brecha para a luta pela democracia, as que se derivaram dos movimentos sociais e as que
se constituíram como prestadoras de serviços, o que se poderia chamar grosso modo de terceiro setor” (p. 443).
122
NA (Flávia): na verdade nós temos assim, desde 2003 nós pensamos, mas aí nós
resolvemos abrir a gavetinha e colocar ali a ONG e falar: ‘vamos vivenciar um
pouco essa prática, como que a gente sobrevive, não vamos mexer com isso não,
até porque nós viemos de outros grupos, passamos por um processo, porque o grupo
teve esse processo e não teve um fechamento muito bacana, umas pessoas saíram,
briga e torna uma empresa’. Então, a gente resolveu esquecer e aí nós tivemos assim
uma certa resistência por um bom tempo. Mas a necessidade de momento fazia que
a gente abrisse a gavetinha e tirasse e vamos discutir, nós temos um estatuto todo
montadinho bonitinho, passou pelo advogado, passou agora pela Monica de
Recife e ele voltou pra gaveta. Então, no fundo a organização ela tem uma certa
resistência, são várias questões, são várias experiências.
Entrevistador: Quais questões?
NA (Flávia): Medo mesmo assim dessa coisa de cair nessa coisa que cai as outras do
mercado, da empresa, de virar uma empresa, virar uma captação de recurso, de viver
em função de administrar.
NA (Cássia): Assim, lógico que a gente queria participar de alguns editais, pensar
algumas coisas, mas a gente não quer ficar pensando ação em função de edital,
inverter a lógica.
NA (Flávia): A gente quer pensar ão e ver assim qual que é a necessidade real!
dela da gente buscar essa grana. É muito bacana! o que a gente faz, muito legal
mesmo, mas a gente está precisando, a gente precisa de espaço, na hora de um
espaço, de um computador por conta.
NA (Cássia): Tem umas coisas que é foda mesmo assim, tem umas dificuldades que
são mínimas, coisas básicas que a gente tinha que ter e não tem.
NA (Flávia): Transporte. A gente tem transporte para ir trabalhar, para ir para casa
do namorado, para ir para casa da família. A gente não tem o transporte para militar,
ele exige uma transição maior, aí você tem que almoçar então essas coisas... na hora
que a gente, sabe, bate de frente, a gente pensa: “nossa, se a gente tivesse CNPJ,
em São Paulo tem uma que paga alimentação, paga estrutura e computador”.
Mas depois dá uma esfriada, a gente coloca na gaveta. Então, é um processo, mas eu
acho bacana porque tem quase cinco anos que a gente está com isso amadurecido,
estamos pensando, estamos discutindo. Então, quando nós tivermos, eu acho que a
gente vai tomar todos os cuidados para não virar uma empresa, para não ficar em
função de editais. Eu acho que ele vai mais consolidado, assim, pra cada uma,
assim, e isso é muito importante. Mas, assim, a gente está gritante, momento está
por vir, está aí né.
NA (Cássia): a gente fica muito na dúvida mesmo, sabe, porque realmente, também
não é CNPJ que pode, se a gente tiver o CNPJ que também não vai cair, tem uma
coisa de organização interna também. a gente sempre discute a necessidade de
ampliar, mas a gente precisa ter condição de mobilizar pra ampliar o grupo e etc,
assim. [...] Mas, o meu medo é de uma institucionalização muito pesada enrijecer a
organização e tal. Eu acho que a gente tem muito forte um desejo e também uma
afinidade por uma militância não muito formal, então, eu acho que isso facilita sabe
é... inclusive a gente ter criticidade em relação ao trajeto que a gente tem feito e tal e
os riscos de às vezes tomar uma posição mais institucional, mas eu acho que se a
gente for seguir esse caminho mesmo nós vamos ter que estar sempre em alerta para
não correr o risco de repetir umas coisas que a gente vendo assim em outras
experiências que a gente não quer pra gente né. Agora eu acho assim, o Odum é
muito a prova de que (rsss) não é o CNPJ que garante alguns acessos, algumas
coisas sabe, eu sei lá.
123
No que tange ainda à ação em torno de editais, Flavia (NA) acrescenta a fragmentação
que esta ação gera na luta política:
nós estamos muito dispersos, os Movimentos, cada um cuidando do seu projeto,
correndo atrás do seu edital e eu acho que a gente tem que voltar a focar as nossas
ações ali todas e, sabe, e estar juntos, militar juntos, estar mais próximo, estar mais
juntos. Só assim a gente vai ser ouvida, eu acho que a gente caiu muito nessa
questão, assim, a gente se deixou levar muito pelo capitalismo, desse
distanciamento, sabe, de interesses pessoais, que acabou favorecendo o interesse
de poucos, de algumas organizações e aí foi dispersando muito a luta (Flávia, NA).
Desta forma, se a proliferação de ONGs no país propicia possibilidades financeiras
para ações de enfrentamento de desigualdades e exclusões existentes, sendo esta uma razão
para grupos de movimentos sociais terem se tornado ONGs, observa-se nas entrevistas que
elas acabam por servir também como uma forma de enfraquecimento da luta política. Este
enfraquecimento seria ocasionado pelo fato de ONGs proporcionarem o atendimento de
algumas necessidades imediatas da população sem interpelar a lógica de produção da
subcidadania, o que leva a dificuldades na mobilização de subcidadãos em torno da mediação
discursiva propiciada pelos movimentos sociais. Além disso, o enfraquecimento decorreria
dos grupos concentrarem suas ações na busca por editais de financiamento, focando-se em
ações específicas a um lócus da hegemonia. Assim, acabam por contribuir para a
fragmentação da luta política e também para a própria limitação das ações dos grupos, na
medida em que acabam por moldar, algumas vezes, suas ações àqueles editais.
Na interação dos movimentos sociais com o Estado, duas distinções são importantes a
partir de considerações dos entrevistados. Uma diz respeito à necessidade de se diferenciar o
papel dos movimentos sociais e o papel do Estado, a outra se remete à diferenciação entre a
noção de Estado e a noção de governo. Destaca-se que divergências entre os entrevistados
no que tange ao recebimento de financiamento pelo Estado, bem como no que se refere à
construção de ações por vias institucionais, em decorrência das possibilidades de limitação da
luta política.
Enfatiza-se que se cabe ao Estado cumprir com a Constituição, construir, gerenciar e
executar políticas públicas, os movimentos sociais devem sempre assumir um lugar de
autonomia política nas suas relações com o Estado, não podendo, diante da aproximação com
este, ter que limitar suas críticas ou enfatizar ações institucionais em detrimento do trabalho
de base, da organização popular, ou, ainda, assumir o papel do Estado na operacionalização
de programas governamentais.
124
Eu não vejo mal nenhum em construir um projeto! que seja em parceria, desde que
a autonomia do movimento não seja respingada e desde que esses militantes do
movimento não se acomodem! e acabem por isso esvaziando a possibilidade de
mobilização. Então o que eu vejo! que aconteceu no Brasil nos últimos anos! foi
justamente isso: o movimento social não deu resposta aos projetos populares que
deveria dar, sempre mantendo o pé-no-chão com auto-crítica e tentando mobilizar
mais gente. Acho que teve um certo esvaziamento, muita! cooptação e pouco!
desenvolvimento mesmo, pouca concretização do que foi proposto (Entrevistada,
MMM).
o programa “minha casa minha vida” tem Movimento Social que tá fazendo o
trabalho do Estado, cadastrando famílias e inserindo as famílias no programa do
governo. A gente tem uma idéia de que não! de que na realidade o Movimento
Social, inclusive se algum dia a gente tiver realmente um governo dos trabalhadores,
o papel! do Movimento Social é cobrar e nunca de se confundir com o Estado, senão
a gente limita a participação do Movimento (Bruno, MTD).
Apesar de apresentarem críticas aos movimentos sociais assumirem a execução de
tarefas que caberiam ao Estado, os entrevistados do MST ressaltam que se hoje os
movimentos sociais estão executando políticas públicas, isso é decorrência da ausência do
Estado no cumprimento do seu papel, salientando que esta inversão de papéis advém do
sucateamento das políticas sociais produzidas pelo governo Fernando Henrique Cardoso.
Então, porque que traz esse grande tema hoje relação dos Movimentos Sociais com
o Estado Brasileiro enquanto parceiro né? Enquanto parceiro porque acabou nós dos
Movimentos Sociais hoje mais voltado para essa questão da institucionalidade, a
execução de políticas públicas, estamos cumprindo um papel que o Estado deveria
cumprir. Então, hoje quando aparece na mídia muito evidente xxx direto as... as
entidades ligadas, não ao MST, mas ligadas às organizações sociais, é para trazer
de fundo, não deveria em pauta as Entidades! Deveria em pauta o papel que o
Estado tem que é cumprir as políticas públicas. E se os Movimentos Sociais e as
Entidades ligadas às Organizações Sociais estão fazendo esse papel, porque está
ausente o Estado, porque ele não está fazendo, por isso que nós estamos fazendo
(Edith, MST).
O que tem de convênio com o governo é para prestar serviço que o governo deveria
prestar para entidades que apóiam! o Movimento Sem Terra, e que é totalmente
legal. Está lá nas leis tudo aí que isso deveria ser feito, inclusive quem gerou isso d
foi o governo passado, que são os tucanos, que são os democratas, que hoje em dia
perseguem em relação... olha que contradição: eles sucateiam todos os serviços
básicos que deveriam ser prestados como educação, como assistência técnica, como
saúde, quando as Entidades que são solidárias se cadastram para prestar o serviço
de assistência técnica, contratam os agrônomos que saíram das Universidades e
botam os agrônomos para fazer assistência técnica, contrata médico, enfermeiro e
etc. para fazer a assistência básica de saúde, e contrata educadores, as
Universidades, principalmente, eles m bater nisso. Foram eles que retiraram esse
serviço que o INCRA antes prestava, que os Ministérios prestavam e geraram! essa
terceirização de serviço através das ONG e agora sucateiam (Edith, MST).
125
Assumindo uma postura mais crítica, diferente dos outros grupos entrevistados, a BP
se posiciona no sentido de não estabelecer nenhuma parceria com o Estado no que tange à
conquista de financiamento
68
, uma vez que afirma que “quem paga a banda escolhe a
música”, sendo um princípio da BP a autonomia política, financeira e organizativa.
As Brigadas Populares têm como um princípio central, é até um pleonasmo, se é
princípio é central né?, mas é importante até, que é auto-sustentação financeira.
Então as Brigadas não recebem dinheiro do Estado, as Brigadas não recebem
dinheiro de Fundação Ford, de ONGs dentro da lógica do Consenso de Washington,
neoliberal, de barreira de contenção e tudo mais. Então nós auto-financiamos a nossa
organização, entendendo que se a gente não financiar a nossa organização nosso
inimigo vai financiar e quem paga a banda escolhe a música. Então isso explica hoje
organizações e movimentos estarem atrelados e não terem uma postura mais
combativa frente a governos, frente ao Estado de maneira geral [...] Porque quando a
organização se situa numa posição de enfrentamento ao Estado a forma que o Estado
tem pra chantagear e pra poder cooptar essa organização, ou mesmo os militantes
individualmente, é a partir disso, e o petismo foi o grande exemplo. Aqui em Belo
Horizonte nós tivemos dezesseis anos de gestão petista, por exemplo, no caso da luta
pela moradia, os coordenadores de núcleos, todos cooptados pela lógica da política
habitacional. Então, tem um cargo dentro da prefeitura, conseguem aprovar projeto
de auto-gestão e não vão mais para o enfrentamento, não vão para as ruas, não fazem
organização popular, não constroem o poder popular. Então, assim, é em função
disso de que o velho ditado quem paga a banda escolhe a música”. Então, não vou
citar nomes, mas tem grandes movimentos no Brasil que têm uma base social
estabelecida, uma força social estabelecida, mas que não ataca o governo Lula, não
ataca, porque senão não vai vir um projeto da Petrobras, senão não vai vir um
projeto do ministério tal, tal, tal... Então, esse é um grande problema, então nós
prezamos muito pelo auto-financiamento, por isso que eu achei importante a sua
pergunta que é até, somos muito criticados por isso, muitas vezes, mas pra nós é um
princípio fundamental se a gente quer manter a nossa autonomia política. Então, o
auto-financiamento está estritamente vinculado com a autonomia política (Joviano,
BP).
É exatamente neste ponto, referente aos movimentos sociais buscarem financiamento
do Estado para suas ações, que é possível abordar aquela segunda distinção, notada
anteriormente, como importante à compreensão da interação entre movimentos sociais e
Estado: a distinção entre Estado e governo. Ela pode ser compreendida como uma resposta à
posição de afastamento da BP em relação ao Estado, uma vez que se aponta ser direito dos
movimentos sociais receberem financiamento do Estado para suas ações por duas razões, ao
menos: a) verbas estatais específicas para serem gastas com movimentos sociais, sendo
68
A BP apresenta uma postura contrária ao recebimento de verba do Estado e também de ONGs pautadas numa
lógica neo-liberal de “domesticaçãodas periferias. Assim, afirma como um princípio central a auto-sustentação
do movimento e aceita contribuição de parceiros na luta diante de três condições: a) o dinheiro não deve ser
para manutenção de estrutura ou liberação de militante, apenas para ações pontuais concretas, pois se no futuro o
apoio for retirado, isso não influenciará no andamento do trabalho da BP; b) o recurso tem que partir de uma
solidariedade incondicional, baseada no critério da verdade, ou seja, no compromisso da BP de que o dinheiro
será utilizado exatamente para o que foi solicitado; c) a necessidade da organização que propicia o apoio
financeiro se encontrar no mesmo campo hegemônico que a BP.
126
estas fruto de luta destes movimentos; b) este financiamento é decorrente de dinheiro público
e, portanto, de toda a sociedade, quando muitas décadas foi somente direcionado para um
grupo específico da sociedade: o empresariado.
Neste sentido, entrevistados salientam que o recebimento deste dinheiro não deve
promover uma limitação na crítica e pressão dos movimentos sociais dirigidas ao governo,
pois este dinheiro não deve ser compreendido como solidariedade de um governo, ficando os
movimentos em “dívida” com este, mas sim como um direito dos movimentos sociais e uma
ação de Estado.
a gente também não cair num certo idealismo assim de achar que a gente não vai de
maneira nenhuma nos relacionar com o Estado, porque Estado é Estado. Então,
assim, a gente cobra do Estado direitos sociais! Então é justíssimo a gente disputar o
Estado, cobrar uma política pública sabe? tentar conseguir dinheiro do governo para
financiar as atividades dos Movimentos sabe? na medida em que isso não interfira
na nossa autonomia, então isso a gente acha que é legítimo! importante e necessário,
porque esse dinheiro que está também é dinheiro de contribuição do povo
brasileiro. Se a gente deixar isso vai para as mãos dos grandões, para financiar a
manutenção dessa sociedade (Bruno, MTD).
Liliane (ABGLT): o Movimento Social também tem que entender que, às vezes, eu
também não sou contra de usar a verba do governo não, porque se a gente não usar o
dinheiro ele não vai ser gasto e vai ser sumido, infelizmente. Porque o que que
acontece, 10% recebem a verba pra ser gasta com os Movimentos Sociais, não sei se
vocês têm idéia.
Entrevistador: Em cada ministério?
Lliane (ABGLT): Da saúde, no caso. Mas o governo federal ele dispõe 10% pra ser
gasto, e isso realmente a gente tem que cobrar, porque, por exemplo, Belo Horizonte
tem anos que não faz projeto pelo estado. entrou coordenador, saiu coordenador,
entrou esse homofóbico que já foi mandado embora, e esse dinheiro está indo para
onde? Então 10% é para Movimento Social, se a pessoa não for no estado e
gastar, esse dinheiro é devolvido, e com as suas especificidades. Por isso existem os
Conselhos, os Conselhos que dentro dos Conselhos vai se deliberar o gasto disso,
não é a ONG, que isso é bom a gente ter entendimento também. Que assim, existe,
igual eu fiz aquele relato fazendo aquela crítica que a gente esta gastando dinheiro
do governo, mas a gente tem que saber como esta gastando, com edital: porque se
você esta gastando com edital, você pode bater no governo, agora se eu estou
recebendo dinheiro por fora, eu não posso bater no governo. Então, edital, eu estou
sendo transparente, porque edital ele vai ser publicado, ele vai saber quanto, ele vai
ser passado pelo Conselho, então ele terá uma transparência e tem uma ética. E a
gente tem que gastar esse dinheiro, porque se nós não gastarmos esse dinheiro
alguém vai consumir com esse dinheiro ou vai fazer uma prestaçãozinha, porque
papel vale tudo. Então, é preferível que o Movimento faça isso, porque isso lá
específico dentro da pasta da esfera do programa. Eu vou dar exemplo do Ministério
da Saúde: ele pega essa verba, passa pro estado, o estado fica com uma porcentagem
dessa verba, e o município tem outra. E nós temos o Plano Plurianual, que o Plano
Plurianual que é chamado de PPA, a gente tem que ocupar isso aí, porque o Plano
Plurianual você tem que especificar o que você quer nesse Plano Plurianual. E a
gente tem que trabalhar com as emendas também, que às vezes a gente não conhece
as emendas. Então, o Movimento também tem que ocupar a emenda, fazer com o
dinheiro daquele deputado, ele tem que cobrar a emenda, porque senão aquele
127
dinheiro que seria para o Movimento Social vai para o bolso dele, e a gente não
pode deixar, porque ele já recebe muito bem pra não fazer porra nenhuma.
O que que acontecia antes? Quem ocupava e fazia toda essa relação com o governo e
com o Estado era sempre um setor, os empresários, se você pegar mesmo de 82 pra
cá, Fernando Henrique, quem é que apropriou mais? Todos, eles indicavam os
principais ministérios, ocupavam Conselhos de Fundos Públicos pra financiar
fomento das entidades deles [...]. Então esse pessoal da Brigadas que lhe falou que
quem financia paga a banda é verdade, mas quem é que financia? É o Estado
Brasileiro. O Estado Brasileiro deve financiar mesmo, pelo menos
proporcionalmente como financia os empresários, ele deve financiar os
trabalhadores e as suas múltiplas organizações. Não é o governo, é o Estado
Brasileiro, isso é sutileza muito grande, porque no governo Fernando Henrique
Cardoso o MST recebia recursos públicos do governo Fernando Henrique Cardoso,
não é uma coisa que o governo Lula inventou. Que é o problema aqui agora... então,
sempre foi apropriado pelo Estado, pelos empresários, desde 1500 foi pelos
empresários. O que está acontecendo, até já no governo do Fernando Henrique
começou acontecer um pouquinho, começou... o Collor colocou o Magre que era da
Força Sindical como ministro do trabalho, começou outros setores também
gradualmente ocupar espaço, não significa que a CUT, a CUT nunca teve no
governo, institucionalmente. Assim como a FIEMG quando indica um ministro ou
um secretário não é a FIEMG que ali, tem uma separação, é muito difícil fazê-la,
mas formalmente, por exemplo, o Marinho era presidente da CUT, ele foi pro
Ministério do Trabalho, ele não era mais presidente da CUT, saiu, claro, deixou de
ser presidente e licenciou formalmente e foi assumir. O Paulinho, ele é deputado
federal, ele é presidente da Força Sindical, é diferente o legislativo do executivo,
mas se a CUT tiver um presidente que se eleger deputado federal ele vai licenciar! aí
vai cumprir o papel dele de parlamentar entendeu, o vice-presidente assume.
Então essas... não é errado que o presidente da Força Sindical se eleja deputado,
porque todos os empresários lançam deputados, porque nós trabalhadores não
podemos lançar? O MST não possa? A CUT não possa? Devemos, que são outras
arenas, outros terrenos que vão construindo brechas pra obter conquistas para os
nossos representantes, e não para os nossos representantes, mas para a sociedade,
democratização da sociedade, políticas públicas universais, essa coisa toda. Agora,
isso que você falou que não consegue entender, antes, eu não gosto muito dessa
idéia de parceria, esse termo exatamente, todo mundo abusa desse termo, eu prefiro
o termo aliado, esse termo ele possibilita uma movimentação diferente, entendeu,
porque via de regra acontece isso que você falou mesmo, sobretudo as entidades que
não são nossas, vinculados a nós, pagou fica vassalo, totalmente, sobretudo quando é
gente despolitizada, que não tem partido político que orienta ideologicamente,
entendeu. Agora é porque a compreensão é como se fosse o governo pagando, não é
o governo, é o Estado Brasileiro, como ele financia tudo, ele financia tudo, se você
pegar as empresas aí, EMBRAER, tudo, eles pegam dinheiro fora, eles mamam na
teta do Estado Brasileiro, aí quando começam outros a receberem recursos “ah, é um
crime!” Não é um crime (Temístocles, CUT).
O trecho anterior demonstra o posicionamento do representante da CUT, que afirma
não ser apenas direito dos movimentos sociais receberem dinheiro do Estado, mas também
que se faz importante para a conquista de suas bandeiras políticas ocuparem cargos
institucionais, apoiar candidaturas para o legislativo, na busca de ampliar seus espaços no
Estado a partir da inserção nele de representantes dos movimentos sociais. Também Liliane
(ABGLT) ressalta a construção da luta política através da via institucional, sinalizando a
importância da participação dos movimentos sociais nos Conselhos, na construção do PPA e,
128
em outra parte da entrevista, salienta a construção de advocacy como uma das formas
principais de atuação da ABGLT hoje. No site
69
da ABGLT, a realização de advocacy nos
espaços executivo, judiciário e legislativo é considerada como uma linha prioritária de
atuação desta associação, e no ANEXO V ABGLT (“Projeto Somos. Desenvolvimento
Organizacional, Advocacy e Intervenção para ONGs que trabalham com gays e outros HSH
(2005)”), as ações de advocacy são entendidas como “fundamentais para se garantir o
exercício dos Direitos Humanos dos homossexuais” (p. 32)
70
. Ademais, no documento
“Resoluções do I Congresso da ABGLT (2006)” ANEXO II ABGLT
–,
aponta-se a
importância de se construir candidaturas LGBT, de modo a LGBT ocuparem cargos
estratégicos para a explicitação das demandas do movimento, bem como terem suas demandas
incluídas nas diretrizes políticas dos partidos políticos.
A CUT e a ABGLT são as que mais parecem se aproximar desta forma de ação, na
medida em que os entrevistados dos outros grupos se não negam a importância das vias
institucionais, afirmam que elas se fazem muito limitada para a luta política, pois a presença
no interior do sistema não permite que se promova o rompimento com o próprio sistema.
Além disso, defendem que a conquista das bandeiras políticas deve passar pela centralidade
da organização e mobilização popular, e não pelo foco na decisão de alguns representantes
nos espaços institucionais.
primeiro é enxergar que por mais que a gente tenha que reivindicar os direitos e que
isso vai passar pela relação com o Estado, isso não se pelas vias institucionais
assim colocadas tipo: “ah, vamos fazer uma abaixo-assinado e vamos fazer ”,
que isso não basta! assim, pode até estar casado uma coisa com a outra, mas que na
verdade o povo tem que se organizar para ir para rua mesmo, para ir fazer pressão
popular! As Assembléias Populares tentam motivar o povo nesse sentido, de que as
mudanças que a gente quer mesmo não se consagram dentro desse sistema do jeito
que ele está, precisa de um rompimento maior, mas isso vai acontecer a partir do
momento em que o povo se colocar mesmo para fazer isso, que não adianta a gente
colocar seja um representante, é preciso que tenha... a gente precisa de uma
democracia direta, que é o povo... então a principal coisa é isso, a gente colocar o
povo na rua e colocar o povo! para decidir, para conversar e buscar soluções para
seus problemas, e não colocar na mão de uma ou duas pessoas (rsss) (Bernadete,
AP-MBH).
69
Site: www.abglt.org.br/´prt/index.php acessado em 10 de dezembro de 2009.
70
Cabe considerarmos que, na atualidade, no Congresso Nacional uma forte bancada religiosa que impede a
aprovação de pautas favoráveis aos LGBT ou ao movimento feminista como a criminalização da homofobia, a
legalização do aborto; e também uma forte bancada ruralista, a qual dificulta a aprovação de medidas que
beneficiem, por exemplo, a promoção da Reforma Agrária. Condições que apontam para a resistência de
adversários dos movimentos sociais em instâncias estatais, colocando em questão tanto a importância dos
movimentos sociais construírem um espaço maior no Estado, quanto à dificuldade dos movimentos em
conquistar vitórias nestes espaços.
129
No interior do movimento feminista, durante a década de 1990, as entrevistadas da
MMM e da AP-MBH apontam ter ocorrido uma divergência entre as feministas quanto à
forma de ação do movimento, tendo alguns grupos feministas optado por atuarem
institucionalmente na busca de se conquistar bandeiras políticas do movimento
71
. Decisão
distinta da MMM, no que tange a esta afirmar a centralidade da organização popular na
construção da mudança social, apesar de existirem militantes da MMM em cargos
institucionais.
Neste sentido, no documento “Cadernos MMM 2008” ANEXO II MMM
–,
aponta-
se que a MMM
se constituiu como uma das mais importantes articulações do movimento feminista
nos últimos anos. Um aspecto central para essa análise é o fato de ter possibilitado
uma recomposição do movimento de mulheres a partir de uma mudança de agenda.
Seu método de ação, que busca articular desde as mulheres de base, num amplo
processo de mobilização e educação popular, também foi fundamental (p. 08).
Assim, neste documento ressalta-se que a MMM se colocou como alternativa ao
processo de institucionalização do movimento feminista, marcado “de um lado [pela]
profissionalização das ONGs e, de outro, pela entrada dessa temática no Estado através da
criação de estruturas governamentais” (p. 07); e também como uma alternativa à perda de
radicalidade do movimento de mulheres, diante do contexto de implementação do
neoliberalismo, em que
A globalização era analisada como um dado irreversível e vista a partir de seus
efeitos positivos e negativos sobre as mulheres [...] onde a palavra de ordem era ser
propositivo, trabalhar em parceria com os governos e organismos multilaterais,
colocando o estabelecimento de políticas públicas como um grande horizonte, mas
sem questionar os limites dados pelo modelo de Estado vigente. Portanto, definido
como ação fazer o possível, sem pretender mudanças estruturais. Por outro lado, as
plataformas aprovadas nas conferências da ONU eram consideradas grandes
avanços, mesmo que suas definições fossem genéricas, e sem questionar o fato de
que elas não entram nos aspectos estruturantes das desigualdades (p. 07).
Salienta-se, contudo, que a entrevistada da MMM aponta que esta decisão não foi
pautada na defesa de um afastamento completo com o Estado, e nem acarretou na
impossibilidade da MMM construir vínculos com grupos do movimento feminista que
escolheram privilegiar as vias institucionais. Mas sim por acreditar que o espaço institucional
71
Durante o processo de devolução, as participantes da MMM apontaram que, no caso brasileiro, a União
Brasileira de Mulheres, a Associação de Mulheres Brasileiras e a Rede Feminista de Saúde são organizações que
optaram, no interior do movimento feminista, pela via institucional de luta política.
130
é insuficiente para a promoção de uma ampla democratização social, tendo a “não aplicação
dos planos de ação de igualdade de sexo que foram firmados por governos e instituições
internacionais [mostrado] às feministas a importância das ações de rua e das mobilizações
massivas” (“Marcha Mundial de las Mujeres 1998-2008 Una década de lucha internacional
feminista” - ANEXO IV MMM-, p. 35, tradução nossa) para a efetivação de suas bandeiras
políticas.
Entrevistada (MMM): Então, na década de 90 teve uma certa discordância entre as
feministas no Brasil, e foi feito um caminho! Era opção! Ou a gente ia para dentro
dos gabinetes assessorar! a construção de políticas públicas ou a gente ia construir
com as mulheres! a organização e na raiz destes problemas ir, sem deixar de lado as
políticas públicas, mas construir valoramento com as mulheres que não estão no
espaço institucional, definitivamente não estão. Então, a partir de então a Marcha é
vista como movimento de rua! como movimento de contestação, como movimento
que o seu principal! foco é esse... construir o fortalecimento através de experiências
populares!
[...]
Entrevistador: e então qual é a vantagem do feminismo popular em relação a
essa...
Entrevistada (MMM): ao... ao feminismo institucional?
Entrevistador: é... esse outro caminho?
Entrevistada (MMM): olha, a vantagem! é que a instituição não dá conta de enxergar
o trabalho invisível das mulheres. E o feminismo popular é uma coisa que para mim!
e para Marcha a gente tem até falado um pouco disso, que é educação popular.
Sabe? Quem é que é a sujeita da história!? São as mulheres! Então, a Marcha é um
sujeito político, é um movimento. Mas, não adianta ter pasta! em não sei aonde... é
projeto não sei o quê... sendo que as sujeitas! mulheres continuam sem consciência
feminista, sem se sentirem empoderadas para estarem nas ruas... então eu acho
que a vantagem é a gente engrossar o caldo de mulheres que estejam cada dia mais
empoderadas sobre as suas realidades! Então, a gente não abre mão disso!: a
educação popular é um princípio de construir feminismo. Então, para isso! não... não
dá! para construir! isso dentro de uma secretaria. Não dá! pra construir! isso dentro
de um gabinete. sim! para sistematizar, para gerar verba para certos recursos né!
Mas, pra fazer mesmo! para constituir esse tão chamado feminismo popular não dá!
Porque você vai se chocar com algumas limitações, porque você dentro né! ta
dentro da instituição! Como é que você vai... romper! com a instituição que você
está dentro? Então, eu acho que isso algumas mulheres que são da Marcha vivem...
tem suas contribuições, estão lá dentro e elas mesmas falam: “olha! se não existirem
vocês aí, não dá! para o nosso trabalho seguir aqui”. Tem gente que es na
Coordenadoria da Mulher que é da Marcha... se a gente não tiver se movimentando
pela cidade... denunciando e aglomerando cada mais dia mulheres que consigam
fortalecer essa consciência feminista, não faz sentido elas lutarem na
Coordenadoria da Mulher, por exemplo. E... até porque estes espaços! mesmo
quando ocupados, eles são espaços mínimos! não m recursos, são super
desvalorizados, têm pouca verba, não têm grana nenhuma para conseguirem o
trabalho que querem.
131
O grupo NA aborda que se a ocupação de espaços institucionais, nos últimos anos,
pelo movimento negro foi e é decorrência de uma luta vitoriosa do movimento
72
; por outro
lado, ela não deveria se dar em detrimento da invisibilidade de ações não institucionais
desenvolvidas por grupos que também buscam combater a discriminação racial (movimento
quilombola, grupos religiosos de matrizes africanas), até mesmo porque outras formas de luta
têm sido configuradas no espaço público hoje. Contudo, esta invisibilidade acabou por
ocorrer, tendo mais força e visibilidade aquelas pessoas que ocupam cargos institucionais -
inclusive são estas que conseguem se eleger como representantes do movimento para irem às
Conferencias Nacionais realizadas pelo Estado, segundo as entrevistadas.
Flávia (NA): Então, assim, porque na verdade foi se institucionalizando, claro que
por causa de luta mesmo do Movimento Negro e aí se viu a necessidade, e o
Município através de pesquisas percebeu, cria específico lá, tem a
Coordenadoria do Negro e a Coordenadoria do Negro ela vai estipular o Movimento
Negro. Se você for na Coordenadoria do Negro, igual ela passou uma referência,
“ah, o grupo de mulheres do Movimento Negro”, ela tem todos lá, mas quando vai
para ações, para as ruas, o que vai aparecer é a Coordenadoria, não mais os
Movimentos Negros. Que antes você via assim: “o MNU fez um ato na praça 7”,
“Agente Pastoral Negra fez não sei o que”. Não, você não mais, vai falar: “a
Coordenadoria Municipal de Belo Horizonte fez”. Então, descaracterizou um pouco,
foi uma luta nossa (rss) bacana, mas agora a gente ficou assim (rsss) a gente queria
isso? Queria. Mas aí a gente fica com esse discurso, porque, assim não falando
assim, mas é muito o discurso que o branco usa com a gente: “ah, não tem mais
Movimento Negro?” Aí você fala: “não, tem Movimento Negro sim, as Negras
Ativas é Movimento Negro, o Odum Orixás faz discussão racial”, porque quer
desarticular e quer virar para gente e falar que a gente não está discutindo mais?
Não, estamos. A gente conseguiu uma luta super bacana que foi uma Coordenadoria,
porque não é a Coordenadoria ali. É, o que a gente quer é que o governo assuma
que existe discriminação contra a mulher, contra xxx não sei o que, a gente não
queria que fosse uma ação que tampasse as outras ações, que pegasse algumas
bandeiras e aí colocasse quando ele achasse melhor em algumas datas
72
As entrevistadas do grupo NA apontam como um marco importante da luta do movimento negro no Brasil a
Marcha Zumbi dos Palmares, realizada em 1995, a partir da qual foi assinado um decreto presidencial criando
um Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de desenvolver políticas públicas favoráveis à população
negra. No documento “Marcha Zumbi dos Palmares, contra o racismo, pela cidadania e pela vida (nov.1995)”
ANEXO II NA -, afirma-se que a Marcha contou com a participação de diferentes entidades do movimento
negro, espalhadas por todo país, sendo que naquela ocasião “foi entregue ao presidente [Fernando Henrique
Cardoso] um documento com as principais reivindicações do Movimento Negro, denunciando o racismo,
defendendo a inclusão dos negros na sociedade brasileira e apresentando propostas concretas de políticas
públicas” (não paginado).
Ao fazer referência a esta Marcha como um marco na história do movimento negro, Rodrigues (2006) relata que
Para além de uma simples comemoração pelo dia nacional da consciência negra, as
organizações negras brasileiras empreenderam discussões sobre reparações e
políticas de ação afirmativa, assumindo de vez uma postura de confronto em
relação à falsa neutralidade do Estado brasileiro frente às desigualdades
raciais. Se, até o início da década de 1990, o foco do movimento negro
estava em se desmascarar o mito da democracia racial, a partir de agora há uma
mudança para se pensar em políticas de promoção da igualdade racial e o acesso de
negros e negras a espaços de decisão e poder (p. 190-191).
132
comemorativas. Não, não é isso, abafou um pouco? Abafou, mas os Movimentos
estão aí, você vai nas comunidades você vê os Movimentos Negros.
Cássia (NA): Agora, de toda forma é bom pra se questionar: “que interlocução existe
nesse espaço mais institucionalizado?” “Quais são as vias com visibilidade de quem
está fazendo militância nas comunidades tem?” Porque, infelizmente, quem aparece
é quem está ocupando cargos altos, é quem está dentro das Coordenadorias mesmo,
e aí, por exemplo, no processo de Conferência quem vai pra Brasília não somos nós
(rsss), nem nós nem os Quilombolas...
Assim como observado na entrevista com a representante da MMM, as entrevistadas
do grupo NA afirmam que a luta desenvolvida fora dos espaços institucionais permite muitas
vezes mobilizar e empoderar pessoas que não seriam atingidas por vias institucionais.
Consideram ser fundamental a construção de processos de conscientização e de
empoderamento para a efetivação da mudança social, sendo este o foco de sua ação, apesar de
não serem contrárias às vias institucionais de luta. Ainda apontam, também como a
entrevistada da MMM, que a opção pela institucionalização pode acabar por reforçar a
deslegitimidade das lutas realizadas por canais não institucionais, inclusive pode contribuir
para que adversários dos movimentos sociais afirmem a não necessidade das lutas populares,
pois já teriam alcançado legitimidade no interior do Estado. Ademais, segundo a entrevistada
da MMM, a centralidade na luta popular acarreta também nos grupos que optaram por esta
forma de luta serem deslegitimados como movimentos reformistas.
Outro aspecto importante a se considerar, no que tange à relação entre movimentos
sociais e Estado, é a vitória de Lula na disputa presidencial, em 2002, a qual trouxe uma
maior complexidade para esta relação, na medida em que os movimentos sociais buscaram se
aproximar e apoiar o governo, na expectativa de que enfim a “esquerda” havia assumido o
Estado. Entretanto, o que se constatou foi exatamente que a vitória do PT nas urnas não
configurou na alteração do Estado desejada pelos movimentos sociais, tendo o governo
inclusive apoiado modelos de desenvolvimento que vão na contramão das reivindicações dos
movimentos sociais, como no caso da bandeira da Reforma Agrária.
aqui não projeta um governo decente, e nós hoje temos essa clareza que não é mais,
não é o projeto da Reforma Agrária, é tanto que o governo hoje não acredita, o
governo hoje é... é óbvio acredita no projeto do desenvolvimento pro campo, o
agronegócio, essa é uma bandeira do governo. A Reforma Agrária hoje não é mais
prioridade dentro desse Governo, por isso que a Amazônia hoje vai para dentro do
MDA, que é o Ministério responsável. Então pra nós hoje o sucateamento do próprio
INCRA dentro desse governo hoje tem interferido bastante esse processo da aliança
nossa com o próprio governo, na expectativa bastante... o corte! no orçamento da
Reforma Agrária é um outro exemplo onde que, além do governo ferir a
Constituição Brasileira, mas a própria relação histórica do Movimento e das
organizações, e não é do MST não, vamos falar aqui dos Movimentos Sociais.
[...] E hoje isso nós do MST afirmamos e podemos afirmar com mero para
133
vocês, olha o número de famílias que foram assentadas em 2008, não passou, a nível
nacional, do MST foram 8000 famílias em 2008. Então, isso a nível nacional. Então,
assim, hoje nós temos todos... talvez assim, todos os argumentos possíveis de dizer
assim: “o governo nos últimos anos não fez, se olhar o que fez, foi muito aquém
daquilo que historicamente nós acreditávamos em 2002 o que iria ser pós 2003
(Edith, MST).
Deste modo, se uma maior abertura do Estado foi possibilitada aos movimentos
sociais, e se havia grande expectativa por parte de alguns movimentos sociais em construir
processos de democratização social pela via institucional - na medida em que fossem
efetivadas amplas reivindicações dos movimentos sociais -, estas expectativas se frustraram.
Além disso, houve um enfraquecimento do processo de mobilização social, do caráter
contestatório dos movimentos sociais, e uma fragmentação da esquerda brasileira.
o que que acontece com o Lula: uma é... todo mundo se aglutinava um pouco
em torno do projeto que representava o PT e a figura do Lula assim né. Então para
os Movimentos Sociais, a esquerda toda se aglutinava em torno disso, e eu acho
que com o Governo chegando, o Lula chegando à presidência muitos dos
Movimentos vão para dentro do Governo, se tornam Governo. Então, por exemplo,
o Movimento de saúde, eu sou enfermeira, então o Movimento de Saúde foi um que
todo mundo foi pra dentro do Ministério da Saúde assim sabe. [...] E, assim, gico
que está casado com uma coisa assim: “olha, você tem um projeto, você tem que
defender um tipo de projeto”, por exemplo, na coisa da saúde, um projeto onde que
o SUS acontecesse, onde que tivesse democratização da participação popular, então
você oportunidade disso se efetivar, então você vai pra construir o projeto. O
problema é que é indo para dentro disso se perdeu a mobilização social! não se
continuou uma mobilização social pra que realmente garantisse que esses projetos
fossem efetivados. Porque é isso né, o Estado não é uma coisa neutra, ele é um
Estado capitalista e que tendo uma presença você vai conseguir alguns ganhos, mas
você não vai mudar a natureza do Estado estando dentro na burocracia. Você pode
conseguir alguns ganhos, pode ter um Governo mais progressista e tal, mas
mudanças que realmente impactam, mude na vida das pessoas são mais difíceis.
Então, aconteceu isso também, tipo mesmo os movimentos do campo, por exemplo,
como o MST, acreditaram que indicando um Ministro, o cara lá do INCRA e tal não
sei o que, garantiriam que a Reforma Agrária fosse efetivada. Pelo contrário, o
próprio Lula, tem uns cartazes espalhado falando que uma fala do Lula antes,
falando que era um absurdo alguém não fazer a Reforma Agrária e tal não sei o que
e tal. E hoje a gente que um retrocesso na Reforma Agrária. Tipo, se antes no
Fernando Henrique tinha não sei quanto, hoje paralisou, não tem mais
desapropriação de terra, não tem mais. Então é lógico que vai se desmistificando ao
longo do processo, mas no início todo mundo vai pra dentro do Governo (Bernadete,
AP-MBH).
Apesar desta configuração política, que contraria reivindicações dos movimentos
sociais, alguns entrevistados afirmam a dificuldade de os movimentos atuarem de forma
crítica ao governo, na medida em que o PT sempre foi um aliado histórico dos mesmos, e
devido ao receio de que a crítica ao governo acabe por fortalecer a “direita” no país.
134
a burguesia sabe trabalhar talvez muito bem, é difícil para nós do Movimento que já
tem uma tradição de esquerda é... de fato ir contra a essa própria esquerda, a gente...
ou você se alia a burguesia, que dentro do Estado pra manter essa ordem, quando
a gente vai contra o governo a nossa análise seria dar mão a palmatória da direita.
Então, assim, o capital de fato ele colocou o Presidente da República de fato com
uma capacidade de controlar as massas muito bem controladas, e nós do Movimento
não somos diferentes, o Movimento é feito de gente, de gente que votou no Lula
(Edith, MST).
Além disso, diante de políticas realizadas pelo governo, considerados por alguns
entrevistados como assistencialistas ou compensatórias - na medida em que atendem
interesses imediatos da população sem produzir uma alteração efetiva das lógicas de
desigualdade e exclusão - o processo de enfrentamento por parte dos movimentos sociais,
bem como a mobilização social, é dificultada.
na hora que você vê pesquisas o Lula com 85% de aprovação você fica assim
pensando (rsss) como é que é isso assim. Vovai conversar com as pessoas nos
bairros, no imaginário das pessoas eles estão xxx, do operário, você ir
desmistificando isso é muito difícil. Na hora que chega ainda na cidade isso é mais
forte ainda porque está nisso, no cotidiano das pessoas mesmo, então, diversas
políticas mesmo assim que a gente sabe que é compensatória, que isso não é
nem uma migalha do que realmente o Estado devia fornecer para as famílias, mas
que é uma certa resposta a uma demanda imediata que elas tem, então muita gente,
muita gente mesmo, está nessa coisa assim do âmbito da sobrevivência mesmo, não
é nem uma das possibilidades de acordo de fazer qualquer coisa, é de estar no
capitalismo. Então, se consegue um apartamentinho e assim mesmo que você
saiba que aquilo ali não é o que você devia ter e tem milhares de outras pessoas que
não tem nem se quer a possibilidade de ter você acaba lutando por aquilo ali e
defendendo isso, que isso também acontece, muitas lideranças começam a defender
aquela política (Bernadete, AP-MBH).
o governo desenvolveu um papel que pra nós foi desmobilizador [...]. O Bolsa
Família, além de ser um programa assistencialista, ele é um programa em que as
pessoas se conformam apenas com aquilo, diferente de se o governo pegasse os 10
bilhões de dólares e investisse em educação, na Reforma Agrária, que não passa
hoje de... hoje nosso orçamento pra Reforma Agrária é de dois bilhões de reais. Em
todas as ações, por ano, contingenciado, porque foi contingenciado um bilhão agora.
Então, olha só, e a Reforma Agrária é um programa que além de gerar emprego,
gera educação, gera saúde, gera produção de alimentos, gera várias outras atividades
hoje da nossa vida que prepara para vida e para nossa sobrevivência hoje. E o Bolsa
Família, gera o quê? Gera uma dependência do Estado que quando cortar as fontes,
as pessoas vão fazer o quê? Então, gerou assim um conformismo em torno dessa
política pública e uma desmobilização dessa massa hoje, conforma a família. Você
se conformar hoje com 150 reais é você se conformar em ser miserável até quando
né? (Edith, MST).
Na quebra da expectativa de que as reivindicações dos movimentos sociais poderiam
ser efetivadas, acirrou-se o embate entre as organizações da esquerda, havendo um
fortalecimento da fragmentação, no sentido em que algumas mantiveram o apoio ao governo,
enquanto outras se colocaram numa posição de enfrentamento ao governo.
135
tem muitas questões que envolvem a dificuldade de criação de unidade dentro da
esquerda hoje né? [...] Uma outra dificuldade que a própria eleição do governo Lula
criou de pessoas, de organizações, partidos que continuaram apoiando o projeto
petista, que não, de popular não tem nada né? E de um outro campo que ficou em
posição de enfrentamento ao governo Lula. Então isso criou uma cisão, uma
fragmentação ainda maior (Joviano, BP).
Ricardo Gebrim (membro da Consulta Popular), na Plenária Estadual de Minas Gerais
da AP, realizada nos dias 05 e 06 de dezembro de 2009
73
, ao analisar a conjuntura política
atual do Brasil, enfatizou a cisão na esquerda diante da vitória da candidatura de Lula à
presidência da República. Para ele, esta vitória fez com que o Programa que unificava a
esquerda, baseado na palavra de ordem “Lula-lá!” (chegada do Lula à presidência da
República) se dissolvesse, acarretando numa divisão da esquerda que pode ser didaticamente
representada da seguinte maneira: a) parte da esquerda aceitou a diminuição da radicalidade
do Projeto Democrático Popular (construído em torno do PT na década de 1980) e, assim,
continuou aliada ao governo; b) parte da esquerda passou a compreender o Lula como um
“inimigo” no processo de mudança social, sendo radicalmente contrária ao governo; c) parte
da esquerda se aglutina em torno do Projeto Popular defendido pela AP, apoiando o governo
Lula quando este se aproxima das reivindicações dos movimentos sociais, mas mantêm a luta
política e a crítica ao governo quando este é contrário às demandas dos movimentos sociais.
Esta divergência relativa ao governo Lula é também verificada no interior dos próprios
movimentos sociais. Stédile, no “Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Edição
Especial (Jan-Fev 2009)” – ANEXO II MST –, afirma que:
Muitos companheiros principalmente na nossa base gostariam de estar mais
próximos do governo, para conquistar mais benefícios. E outros companheiros
que, por esse não ser um governo de esquerda, acham que deveriam ter distância. Os
dois estão certos, mas esse não é o centro da questão. O centro é que nós
mantivemos nossa autonomia em relação ao governo (p. 05).
No que tange à CUT esta também tem vivenciado desfiliações de entidades, devido à
divergência de posicionamento frente ao governo Lula, sendo considerada por estas entidades
como uma Central Sindical governista. Na crítica às desfiliações ocorridas, no 10º Congresso
Nacional da CUT, realizado este ano, Artur Henrique, presidente da CUT, declarou:
Não adianta nos chamar de chapa-branca. Nos últimos sete anos, quem mais fez
greves foram os sindicatos da CUT, incluindo no setor público. Os sem-lutas e
73
Plenária na qual participei das atividades, ocorrida no dia 05 de dezembro de 2009.
136
outros saíram da CUT, e eu digo que eles serão bem vindos de volta, mas saíram e
não causaram o impacto que imaginavam. Sem mexer artificialmente na
proporcionalidade, construímos esse grande Congresso. O que precisamos agora é
ampliar nossa unidade interna para a disputa com as outras centrais” (documento
“Correntes políticas avaliam mandato 2006-2009 e destacam combatividade da
Central (agosto 2009)” – ANEXO V CUT -, não paginado).
Para a BP, hoje no cenário político muitas legendas e poucos partidos políticos,
entendendo estes como uma organização política fundada sob um programa político, sendo
difícil construir uma classificação precisa dos partidos políticos. Contudo, aponta a
importância de situar estes partidos em campos políticos determinados, definindo estes
campos no documento “A linha política (maio 2008)” (ANEXO V BP) em “campo
reacionário”, “campo neoliberal”, “campo nacional”, “campo da esquerda”.
Para a organização, o campo da esquerda é um campo político extremamente
fragmentado, constituído, geralmente, por cisões de partidos maiores que já estiveram
vinculados à esquerda; que não possuem um projeto consistente de sociedade; que apresentam
grande dificuldade de articulação em torno de um projeto unitário e participação
insignificante em governos e parlamentos. As organizações apontadas como destaque deste
campo são PSOL, PSTU, PCB, PCO, PCR, Consulta Popular
74
, Refundação Comunista,
74
A fragmentação neste campo político pode ser visualizada na relação entre a BP e a AP-MBH. Durante a
realização da entrevista com Joviano, a BP fazia parte da AP-MBH; contudo, no momento em que fiz a
devolução, Joviano afirmou que a organização não participava mais da AP-MBH. Como justificativa apontou
que a AP-MBH apresenta uma concepção de luta política muito atrelada à concepção da Consulta Popular, a
qual se caracteriza, segundo o entrevistado, por ser uma organização política constituída por “pessoas ilustradas”
que eventualmente no futuro, no processo revolucionário, irão dirigir este processo em torno de um projeto
popular para o Brasil. Assim, afirmou que se, por um lado, a BP encontra-se no mesmo campo contra-
hegemônico da AP-MBH (aliada à Consulta Popular), por outro lado, diverge desta quanto a concepções da luta
política.
segundo Bernadete (AP-MBH), a BP nunca explicitou os motivos pelos quais resolveu se desligar da AP.
Uma divergência existente entre a AP-MBH e a BP, apontada pela entrevistada, diz respeito ao modo como
pensam a construção da luta política: enquanto a AP-MBH defende a relação entre reivindicações locais e
reivindicações nacionais, a BP afirma que o projeto popular deve-se focar nas reivindicações locais, na medida
em que a aglutinação em torno de pautas nacionais acaba por invisibilizar aquelas. De acordo com a entrevistada,
a BP, por exemplo, afirmava que suas reivindicações, por serem locais, ficavam invisibilizadas na AP-MBH.
Além disso, outro problema com relação à BP, de acordo com Bernadete, é que esta não assume externamente
que é um instrumento político (na devolução que realizei com a BP, entretanto, que ocorreu após a saída da BP
da AP-MBH, Joviano ressaltou que a BP se definia como uma organização política); diferente do que faz a
Consulta Popular, a qual todos os movimentos sociais que fazem parte da AP-MBH hoje se encontram
vinculados, tendo a Consulta Popular surgido nos mesmos moldes da AP. Sendo a questão, portanto, não de
divergências de leitura da conjuntura política pela BP e pela AP (no que tange a forma de construção da luta
afirmando a BP, segundo a entrevistada da AP-MBH, que eles estão focados na construção de trabalho de base,
enquanto a Consulta Popular é um instrumento que busca construir quadros para a luta política), mas também da
“impossibilidade” (termo utilizado pela entrevistada) de a BP construir hegemonia no espaço da AP. De acordo
com a entrevistada, a presença da Consulta Popular na AP nunca teve por objetivo construir um espaço fechado,
do qual pudessem fazer parte aqueles que fossem da Consulta Popular, como se a AP fosse um espaço da
Consulta Popular; pelo contrário, busca aglutinar diferentes movimentos sociais em torno da construção do
projeto popular. a BP está tentando construir outro espaço de articulação de movimentos sociais o Encontro
de Comunidades de Resistência. O receio é que se reproduza no movimento popular o que ocorreu no
137
Corrente Petista, pequenas tendências no interior do PT. a maior parcela do PT e o PSDB
são considerados os principais articuladores de outro campo político: o campo neoliberal,
composto por
partidos políticos que defendem a modernização conservadora, sem rompimento
com a estrutura do regime político vigente. Representam os interesses do grande
empresariado nacional e internacional, independente da base social de que são
originários. Dirigem as principais capitais e vários estados e possuem maioria nas
vagas no Congresso Nacional. Existem diferenças na proposta de condução do
modelo neoliberal, contudo convergem nas linhas fundamentais desse modelo
(documento “A linha política (maio 2008) – ANEXO V BP -, não paginado).
Nesta relação com o Estado, três pontos podem ser considerados, a partir dos dados
coletados junto aos grupos, os quais apontam para uma expansão da hegemonia, na medida
em que acarretam no enfraquecimento da radicalidade das lutas dos movimentos sociais.
Um primeiro aspecto diz respeito à concentração da luta política nas vias
institucionais. Esta concentração acarreta no enfraquecimento da mobilização social, no
sentido em que acaba por colocar à margem o trabalho de organização popular, promovendo
um afastamento com as bases dos movimentos. Ademais, contribui para a invisibilidade de
ações construídas por grupos que buscam se focar na construção de lutas populares, ou ainda,
a deslegitimação das lutas populares frente à afirmação de que os movimentos se
encontravam integrados ao Estado. Em concordância com estas limitações, a entrevistada da
Marcha salienta a importância do feminismo popular:
na época da Lei Maria da Penha, a gente tava junto! A gente sabe! que a Lei Maria
da Penha ela não vai resolver a violência, então nosso trabalho não é é... também
virar as coisas, a gente ajuda a construir. Tem mulheres pelo interior deste país ou
por outras cidades que ajudam... tão ajudando a construir as delegacias e tudo. Isso é
uma ação! que faz parte! da vida destas mulheres, mas a gente acredita que o papel!
do movimento é combater o machismo e antever! essa violência. Então como que a
gente antevêm essa violência? Então o trabalho concreto é na discussão sobre a
autonomia mesmo! das mulheres. O que é essa autonomia? Autonomia financeira,
autonomia... psicológica... então, para gente fortalecer o feminismo popular! é uma
ação que se a gente não fizer ninguém vai fazer.
Ademais, a centralidade nestas vias institucionais acaba por promover também
dificuldades de vínculos entre os movimentos sociais, na medida em que as reivindicações são
incorporadas de maneira fragmentada pelo Estado, sendo criadas Secretarias, Coordenadorias
movimento sindical: isolamento entre as Centrais Sindicais, sendo a principal divergência entre elas relativa à
aproximação de cada uma a um partido político.
138
ligadas a pautas de movimentos sociais específicos e que, por vezes, apresentam dificuldade
de comunicação. Liliane (ABGLT) aponta, por exemplo, dificuldades em se integrar a
discussão LGBT no interior da SEPPIR (Secretaria Especial de Promoção de Políticas de
Igualdade Racial), apesar de hoje já se terem construído alguns acordos.
eu estive numa reunião até com o ministro da SEPPIR para gente fazer um
posicionamento com a SEPPIR também, porque quando vai discutir a questão racial
ela tem um poder muito grande, mas que quando vai discutir a questão GLBT a
SEPPIR acaba não tendo um olhar na questão dos LGBT afro-brasileiros. Você é
macaco então é uma questão que vai ser posicionada porque é racismo, ou você é
preto, mas se for a questão de falar que é viado e ele for negro não vai ter um
questionamento. Então a gente pegou isso e teve uma reunião juntamente com o
ministro colocando a nossa bandeira dentro da SEPPIR (Liliane, ABGLT).
Vide também as próprias Conferências de Políticas Públicas, sendo cada uma delas
direcionadas a determinadas populações Conferência de Política Pública para Juventude,
Conferência de Política Pública para as Mulheres, Conferência de Política Pública de
Igualdade Racial, Conferência de Política Pública LGBT, entre outras reforçando, assim,
uma dinâmica baseada na lógica da diferença, além de nem sempre as deliberações propostas
nas mesmas serem efetivadas pelo Estado. Segundo o documento “A Linha Política (maio
2008)” (ANEXO V BP),
O regime político brasileiro, manifestação do Estado capitalista, é impermeável, ou
seja, não atende as necessidades de participação popular nas principais decisões
políticas. Porém se manifesta com uma capa de porosidade quanto às decisões
secundárias, que não alteram substancialmente a orientação prevalecente, a
orientação neoliberal. A multiplicação de conselhos, conferências, e fóruns
temáticos criaram uma espécie de “participacionismo”, gerando a ilusão de
democracia participativa. O que está colocado na verdade é uma estrutura eficiente
de legitimação do regime e cooptação de movimentos sociais e lideranças políticas
sob uma agenda governamental (não paginado).
O segundo aspecto diz respeito aos vínculos dos movimentos sociais com partidos
políticos. Estes, por um lado, acarretam em dificuldades para a construção de enfrentamentos
a governos representados por partidos que apresentam alianças com os movimentos sociais,
como é o caso do PT, por mais que os movimentos reconheçam a importância desta
autonomia e busquem construí-la.
Por outro lado, também fortalece a fragmentação entre os próprios grupos da esquerda,
na medida em que implica em desacordos entre estes grupos com relação à proximidade com
um ou outro partido, levando à promoção de lutas isoladas e à dificuldade de colocar em
139
debate pautas e concepções distintas sobre a construção da luta política. Assim, torna-se mais
difícil a construção de enfrentamentos conjuntos à hegemonia dominante e se fortalece a
organização das lutas em torno da lógica da diferença, facilitando a absorção das demandas
pela hegemonia, servindo à sedimentação desta e, portanto, ao enfraquecimento das
possibilidades de articulação entre os diferentes movimentos sociais.
Esta fragmentação, decorrente da proximidade partidária dos grupos, é visível nos
processos de desfiliação que a CUT tem vivido. Segundo Temístocles (CUT) é fundamental
que as Centrais Sindicais possuam uma autonomia política, financeira e organizativa em
relação a partidos políticos, já que não deve ser nem oposicionista nem governista por
princípio, e sim capaz de dialogar autonomamente com o governo. Contudo, desfiliações da
CUT estão ligadas à consideração da mesma como governista, posição incorreta, segundo
Temístocles (CUT), e também de acordo com Artur Henrique, presidente da CUT, como
vimos no trecho do ANEXO V CUT explicitado anteriormente.
Ainda um terceiro aspecto deve ser considerado. Este se remete à segunda
simplificação que Laclau (2005) afirma ser importante esclarecer
75
, de modo a evidenciar
deslocamentos presentes nos projetos hegemônicos não relativos à lógica da diferença.
Segundo Laclau (2005), a absorção diferencial, de modo não antagônico, dentro do sistema
simbólico existente, não é a única possibilidade à articulação de uma demanda dentro de uma
cadeia equivalencial contra-hegemônica.
Laclau (2005) aborda a situação em que a fronteira antagônica, sem desaparecer, se
borra, a partir da tentativa, por parte da hegemonia, de dissolver a cadeia equivalencial contra-
hegemônica, através do estabelecimento de uma cadeia de equivalência alternativa a esta,
constituída pela articulação entre demandas desta cadeia e demandas que fazem parte da
hegemonia dominante, ou seja, que se opõem àquele campo contra-hegemônico.
Deste modo, uma mesma demanda particular recebe pressão advinda de dois projetos
rivais e, com isso, a autonomia desta demanda é referenciada não somente na sua
independência com relação à articulação equivalencial em torno da cadeia em que está
articulada (ou seja, àquilo que apresenta de particularidade na relação equivalencial); mas
também numa indecisão entre fronteiras equivalenciais alternativas, nas quais se articula em
torno de laços equivalenciais totalmente distintos (isto é, a autonomia aqui se remete às suas
virtualidades equivalenciais). Assim, teríamos duas maneiras antagônicas de construção da
representação da plenitude ausente da sociedade, ou seja, do “povo” como ator histórico,
75
A primeira simplificação foi discutida no capítulo anterior desta dissertação.
140
dependendo a significação deste de uma luta hegemônica, comportando o significante “povo”
como um significante flutuante.
Diante desta consideração de Laclau (2005), na relação entre movimentos sociais e
Estado aqui apresentada, podemos observar uma aproximação com esta lógica hegemônica de
enfraquecimento da radicalidade de laços contra-hegemônicos na vitória de Lula à presidência
da República.
Lula e o PT, segundo alguns entrevistados, historicamente, estiveram ao lado dos
movimentos sociais, construindo conjuntamente com estes outra alternativa de Brasil, a qual
se configurava na construção do Projeto Democrático Popular. Contudo, ações do governo
Lula foram construídas em favor de grupos que se encontram exatamente no interior do
projeto hegemônico contrário a estes movimentos sociais que se uniam em torno do Projeto
Democrático Popular.
É diante desta compreensão que podemos entender o relato de Edith (MST), que
afirma que o projeto de desenvolvimento para o campo enfatizado pelo governo Lula é o do
agronegócio, não sendo a reforma agrária uma prioridade, diferente de quando, como aponta
Bernadete (AP-MBH), Lula afirmava ser um absurdo não se realizar a reforma agrária no
país. Ou também a colocação da BP, no ANEXO V BP, de que o PT e o PSDB são os
principais articuladores de um mesmo campo político, caracterizado por partidos políticos que
defendem uma “modernização conservadora” e que representam os interesses do grande
empresariado nacional e internacional.
Apesar disso, os movimentos encontram dificuldades de enfrentamento ao governo,
com o receio de favorecerem, desta maneira, seus próprios adversários. Neste sentido que
podemos citar, mais uma vez, a colocação de Edith (MST):
a burguesia sabe trabalhar talvez muito bem, é difícil para nós do Movimento que já
tem uma tradição de esquerda é... de fato ir contra a essa própria esquerda, a gente...
ou você se alia a burguesia, que dentro do Estado pra manter essa ordem, quando
a gente vai contra o governo a nossa análise seria dar mão a palmatória da direita.
Então, assim, o capital de fato ele colocou o Presidente da República de fato com
uma capacidade de controlar as massas muito bem controladas, e nós do Movimento
não somos diferentes, o Movimento é feito de gente, de gente que votou no Lula
(Edith, MST).
Deste modo, poderíamos dizer que se o Projeto Democrático Popular, estabelecido em
torno do PT, servira até um dado momento como um “significante vazio”, possibilitando uma
delimitação de fronteira entre esquerda e direita, a articulação do PT e de Lula com atores
contrários àquela cadeia de equivalência contra-hegemônica fizeram com que o Projeto
141
Democrático Popular deixasse de ser um significante que abarcasse a pluralidade de
antagonismos democráticos que fazia parte da cadeia. Assim, os significantes “esquerda”, o
“povo”, tomaram o lugar de um “significante flutuante”. Diante do Projeto Democrático
Popular não mais representar a “plenitude ausente” da ordem simbólica, novos projetos têm
tentado disputar o “nomea ser conferido à esquerda, como é o caso do Projeto Popular para
o Brasil, sem contudo o PT e o Lula se tornarem, para todos os antagonismos democráticos,
atores antagônicos a eles.
Neste sentido, se faz possível entender a dissolução da esquerda, apontada por Ricardo
Gebrim (membro da Consulta Popular) na Plenária Estadual de Minas Gerais da AP -
realizada em dezembro de 2009 - ao redor de projetos distintos e os rompimentos de vínculos
que ocorreram entre movimentos sociais e as divergências internas aos próprios movimentos
sociais. Junto a esta dissolução da esquerda, Gebrim também ressaltou que há outro agravante
para a mudança social: para parte da base dos movimentos sociais, o programa atual do PT é o
que mais se aproxima de um programa da esquerda no Brasil, sendo desprezadas
possibilidades mais radicais da esquerda.
Bernadete (AP-MBH) observa que, atualmente, os espaços de nculos entre
movimentos sociais na região metropolitana de Belo Horizonte encontram-se isolados entre
si, gerando dificuldades de construção de lutas conjuntas e de uma mobilização mais ampla: a
AP-MBH (mais voltada para o trabalho de base, sendo composta por movimentos de bairro,
movimentos sociais e pastorais sociais); o Comitê Mineiro do Fórum Social Mundial (reúne
sindicatos, sobretudo, aqueles vinculados à CUT); o Fórum Mineiro de Luta, o qual construiu
dois Seminários Contra a Crise, aglutinou movimentos sociais em torno da luta do dia 30 de
março de 2009 e a luta do dia 1º de maio de 2009, mas já nesta última se encontrava
enfraquecido, devido ao fato de existir outro Fórum, em âmbito nacional, que tinha objetivos
semelhantes a este – o Fórum das Centrais Sindicais. Deste modo, hoje não há nenhum espaço
que consiga aglutinar todos os movimentos sociais, gerando dificuldades em mobilizar os
diferentes movimentos sociais em torno de uma luta conjunta.
Diante do reconhecimento da insuficiência do governo Lula em efetivar um projeto
político capaz de satisfazer as reivindicações de movimentos sociais que construíram
historicamente lutas conjuntas com o PT, na avaliação da MMM - presente no documento
“Jornal da Marcha (out. 2005)” – ANEXO I MMM -, o governo Lula
a despeito de melhorar algumas políticas públicas, duas coisas fundamentais não
mudaram: o esquema político da governabilidade baseada em aliados de ocasião
mantidos com benefícios e a ilusão do poder que pode comprar a impunidade [...]
142
Também não mudou a política econômica neoliberal. O ministro Palocci [...] tenta
nos convencer de que não alternativa, mas na verdade trata-se de uma opção
política em favor do capital. O desemprego permanece alto e os empregos criados se
concentram na faixa de até dois salários mínimos. Ao agir desta maneira o governo e
o partido forneceram à direita a possibilidade de irem para o ataque, de se
apresentarem como éticos, de afirmarem que não alternativa de esquerda que não
seja corrompida no exercício do poder, de que não homem do povo que possa
governar o país (p. 01).
Contudo, se estes aspectos relativos à expansão hegemônica concentração da luta
política nas vias institucionais; vínculos dos movimentos sociais com partidos políticos;
deslocamento presentes nos projetos hegemônicos não relativos à lógica da diferença -
devem ser considerados na análise das possibilidades de um projeto contra-hegemônico, é
importante salientar a complementaridade entre Estratégias de Articulação e Estratégias de
Aliança que temos debatido nesta dissertação. Deste modo, consideramos também o quão
importantes ações em torno de demandas específicas podem ser para a construção da mudança
social.
Assim, se a expansão da hegemonia, por um lado, objetiva manter a disputa entre os
grupos em torno de laços diferencias e enfraquecer a radicalidade da luta contra-hegemônica;
por outro lado, o reconhecimento da existência dos subcidadãos no interior da hegemonia
possibilita, mesmo que de maneira ainda incipiente, tornar visível a precariedade de toda
hegemonia e fortalecer a socialização da política (DOIMO, 1993; DAGNINO, 2000). Desta
maneira, pode proporcionar a inserção de pautas até então invisibilizadas ou marginalizadas, e
a compreensão por parte dos subcidadãos de que estes têm direito a ter direitos, e que o
espaço público não deve se reduzir a grupos privados
76
.
Em convergência com esta consideração, Prado & Costa (2009), ao analisarem a
dinâmica dos movimentos sociais contemporâneos a partir de noções como aquelas de
76
Se críticas ao governo Lula foram apontadas por todos os entrevistados, avanços também foram considerados
por alguns entrevistados, a partir da eleição do governo Lula. O entrevistado da CUT afirma que diferente de
momentos anteriores, não se tem realizado uma política, pelo executivo federal, de criminalização dos
movimentos sociais; ocorreu um expressivo aumento de recursos para a agricultura familiar, apesar de também
ter se financiado o agronegócio e não ter sido realizada a reforma agrária desejada; se criou um expressivo
número de empregos; foi possibilitada a construção de diálogo com os movimentos sociais, promovendo uma
democratização do Estado; foram construídas Conferências Temáticas de Políticas Públicas. A liderança da
ABGLT também aponta a promoção destas Conferências como um avanço, bem como o Plano Nacional que
vem sendo desenvolvido junto ao Estado para a construção de políticas LGBT. O MST também, mesmo que
crítico ao governo, reconhece que, sobretudo no primeiro mandato do governo Lula, ocorreram alguns avanços
no campo da agricultura familiar. O MTD também reconhece que avanços foram realizados, enfatizando
inclusive que apesar de não se estar satisfeito com o governo Lula e nem ser possível dizer que este é um
governo que possui um conteúdo político de interesse dos trabalhadores, diferente de outros setores da esquerda,
não apóia a concepção de que não há diferenças entre um governo do PT e um governo do PSDB.
143
hegemonia, concebida por Laclau e Mouffe, de política e polícia
77
, trabalhadas por Jacques
Rancière, afirmam:
a instituição das partes dos “sem parcela” no interior da hegemonia, é condição para
a emergência da política, ou seja, da visibilidade da contingência de toda polícia, na
medida em que os “sem parcela” instituem uma nova divisão do sensível ao
constituírem outra comunidade na qual executando uma série de atos de palavras
que mimetizam aqueles concebidos como dotados de palavra, descobrem-se pela
transgressão como seres falantes (como seres passíveis de firmar promessas e
estabelecer contratos) e, assim, reivindicam serem contados: a compreensão do dano
do sensível pelos “sem parcela” já os fazem necessariamente iguais àqueles
concebidos como dotados de palavra, que pressupõe uma divisão igualitária que
destrói aquela divisão anterior (p. 79).
4.2 Expurgo à diferença
Este outro modo de resistência da hegemonia frente a reivindicações dos movimentos
sociais - diferentemente do modo de expansão hegemônica, no qual algumas pautas dos
movimentos sociais são reconhecidas, mesmo que de maneira parcial caracteriza-se por
invisibilizar ações em defesa da ampliação da democratização social por parte destes
movimentos e por construir maneiras de criminalizá-los, de forma a não apenas deslegitimá-
los, contribuindo para a desmobilização social e para a diminuição do apoio social às lutas,
mas também de justificar ações repressivas sobre os mesmos. Setores conservadores do
judiciário, do legislativo e da imprensa são vistos por alguns entrevistados como importantes
atores na realização destas ações contrárias aos movimentos sociais.
Cabe lembrar aqui a constituição de uma concepção neo-conservadora, apontada por
Laclau e Mouffe (1985), que, frente à influência do imaginário democrático na emergência
dos novos antagonismos políticos, afirma que a sociedade vive um ‘excesso de democracia’ e
uma onda de igualitarismo que tem feito dela ingovernável; que se está colocando em risco o
verdadeiro ideal de igualdade ao se substituir a noção de igualdade de oportunidades pela de
igualdade de resultado, de igualdade entre indivíduos pela de igualdade entre grupos.
No documento “Marcha Zumbi dos Palmares, contra o racismo, pela cidadania e pela
vida (nov.1995)” – ANEXO II NA –, aponta-se a omissão, por parte da imprensa, das
reivindicações publicizadas por esta Marcha - marco na luta do movimento negro no Brasil - e
77
Rancière (1996) define política como uma conturbação do curso do consentimento, um rompimento com a
distribuição geométrica das partes que compõem uma comunidade, a partir do desvelamento da contingência
daquela ordem e, assim, da visibilidade da igualdade de qualquer um com qualquer outro. Já a polícia é
entendida como o conjunto de processos pelos quais se opera aquela ordem do consentimento e da gestão dos
corpos.
144
dos resultados da mesma, como o decreto presidencial de criação do Grupo de Trabalho
Interministerial, com fins ao desenvolvimento de políticas públicas de valorização da
população negra: “O texto do decreto, negligenciado pela grande imprensa, como de resto o
documento da Marcha e tudo o mais, teve circulação até agora no Diário Oficial” (não
paginado).
A direção do MST, no Editorial do “Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Abr.
2009)” – ANEXO IV MST –, aponta para a forma como a ação de deslegitimação dos
movimentos sociais e a justificativa da repressão aos mesmos se vincula diante de ações da
mídia e dos Poderes do Estado:
Antes mesmo que os setores reacionários do poder judiciário, a mídia trata de
criminalizar as lutas populares, as organizações da classe trabalhadora e seus
militantes e dirigentes. Não interessam os fatos ou a realidade. Interessa a versão dos
fatos, interessa a realidade que a mídia cria para atender seus interesses e objetivos
corporativos. Criado o clima junto à sociedade de estigmatizar as lutas, sempre
haverá um juiz de plantão para criminalizar as lutas populares ou uma repressão
policial justificada. Assim, as classes dominantes buscam, constantemente,
aperfeiçoar seus instrumentos políticos, ideológicos e repressivos para, cada vez
mais, restringir e coibir as lutas populares como forma das classes subalternas de
fazerem política. [...] Os seguidos pronunciamentos dados pelo atual presidente do
Supremo Tribunal Federal (STF), doutor Gilmar Mendes, telefonando para que os
governadores estaduais atuem contra as ocupações de latifúndios, também se
inserem neste contexto de inibir a atuação dos movimentos populares e de preservar
os interesses do capital (p. 02).
Uma ação recente de criminalização do MST foi decorrente de uma ocupação feita
pelo movimento em uma fazenda “grilada” (segundo o MST) pela empresa Cutrale, tendo
sido noticiada pela imprensa a realização de vandalismos por parte dos integrantes do MST na
fazenda. Diante desta divulgação, considerada pelo MST como uma manipulação de
informação, no documento “Nota de esclarecimento sobre os recentes acontecimentos (out.
2009)” – ANEXO I MST – referente à ocupação da fazenda da Cutrale, o MST esclarece:
Os companheiros e companheiras do MST de São Paulo reafirmam que não houve
depredação nem furto por parte das famílias que ocuparam a fazenda da Cutrale.
Quando as famílias saíram da fazenda, não havia ambiente de depredações, como foi
apresentado na mídia. Representantes das famílias que fizeram a ocupação foram
impedidos de acompanhar a entrada dos funcionários da fazenda e da PM, após a
saída da área. O que aconteceu desde a saída das famílias e a entrada da imprensa na
fazenda deve ser investigado. [...] O MST luta mais de 25 anos pela implantação
de uma Reforma Agrária popular e verdadeira. Obtivemos muitas vitórias: mais de
500 mil famílias de trabalhadores pobres do campo foram assentados. Estamos
acostumados a enfrentar as manipulações dos latifundiários e de seus representantes
na imprensa. À sociedade, pedimos que não nos julgue pela versão apresentada pela
mídia. No Brasil, um histórico de ruptura com a verdade e com a ética pela
grande mídia, para manipular os fatos, prejudicar os trabalhadores e suas lutas e
defender os interesses dos poderosos. Apesar de todas as dificuldades, de nossos
145
erros e acertos e, principalmente, das artimanhas da burguesia, a sociedade brasileira
sabe que sem a Reforma Agrária será impossível corrigir as injustiças sociais e as
desigualdades no campo. De nossa parte, temos o compromisso de seguir
organizando os pobres do campo e fazendo mobilizações e lutas pela realização dos
direitos do povo à terra, educação e dignidade (não paginado).
No momento próximo a esta divulgação “manipulada” de informações, segundo o
MST, foi aprovada no Congresso Nacional Brasileiro uma CPI para investigar a relação entre
o MST e repasses de recursos públicos destinados à Reforma Agrária para o MST, a partir do
requerimento da senadora Kátia Abreu (Democratas – TO), e sob forte pressão dos partidos de
oposição (PSDB, Democratas).
Para a autora do requerimento, “O MST enfrenta a sociedade brasileira e o Congresso
Nacional. Eles não têm limites nem medo de nada porque o governo ampara silenciosamente -
e outra vezes pelo INCRA e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário - repassando
recursos de cooperativas de fachada” (Documento “Governo ampara invasões do MST (out.
2009)” – ANEXO VII MST
– ,
não paginado).
Contudo, como apresentado anteriormente, de acordo com Edith (MST),
O que tem de convênio com o governo é para prestar serviço que o governo deveria
prestar para entidades que apóiam! o Movimento Sem Terra, e que é totalmente
legal. Está lá nas leis tudo aí que isso deveria ser feito, inclusive quem gerou isso d
foi o governo passado, que são os tucanos, que são os democratas, que hoje em dia
perseguem em relação... olha que contradição: eles sucateam todos os serviços
básicos que deveriam ser prestados como educação, como assistência técnica, como
saúde, quando as Entidades que são solidárias se cadastram para prestar o serviço
de assistência técnica, contratam os agrônomos que saíram das Universidades e
botam os agrônomos para fazer assistência técnica, contrata médico, enfermeiro e
etc. para fazer a assistência básica de saúde, e contrata educadores, as
Universidades, principalmente, eles m bater nisso. Foram eles que retiraram esse
serviço que o INCRA antes prestava, que os Ministérios prestavam e geraram! essa
terceirização de serviço através das ONG e agora sucateiam.
E segundo um Manifesto produzido pelo MST, contrário à criminalização do
movimento:
O ataque ao MST extrapola a luta pela Reforma Agrária. É um ataque contra os
avanços democráticos conquistados na Constituição de 1988 como o que
estabelece a função social da propriedade agrícola e contra os direitos
imprescindíveis para a reconstrução democrática do nosso País. É, portanto, contra
essa reconstrução democrática que se levantam as lideranças do agronegócio e seus
aliados no campo e nas cidades. E isso é grave. E isso é uma ameaça não apenas
contra os movimentos dos trabalhadores rurais e urbanos, como para toda a
sociedade. É a própria reconstrução democrática do Brasil, que custou os esforços e
mesmo a vida de muitos brasileiros, que está sendo posta em xeque. É a própria
reconstrução democrática do Brasil, que está sendo violentada. É por essa razão que
se arma, hoje, uma nova ofensiva dos setores mais conservadores da sociedade
146
contra o Movimento dos Sem Terra seja no Congresso Nacional, seja nos
monopólios de comunicação, seja nos lobbies de pressão em todas as esferas de
Poder. Trata-se, assim, ainda uma vez, de criminalizar um movimento que se
mantém como uma bandeira acesa, inquietando a consciência democrática do país: a
nossa democracia só será digna desse nome, quando incorporar todos os brasileiros e
lhes conferir, como cidadãos e cidadãs, o direito a participar da partilha da riqueza
que produzem ao longo de suas vidas, com suas mãos, o seu talento, o seu amor pela
pátria de todos nós (“Em defesa da democracia e do MST (set. 2009)” ANEXO VI
MST -, não paginado).
Bernadete (AP-MBH) aponta a ação de criminalização dos movimentos sociais por
parte da imprensa como uma contribuição para a desmobilização social, na medida em que
quando a gente faz essas é... de ir pra rua, de fazer algum tipo de enfrentamento
somos tidos como como bandidos, como gente que está destruindo patrimônio
público, que está fazendo, prejudicando os outros, sendo que na verdade o prejuízo
está sendo muito maior (rsss) para o povo do que aquilo que está sendo colocado.
Cássia (NA) também afirma ser a mídia um “grande adversário” dos movimentos
sociais e, assim, aponta a importância de se construir meios de comunicação que sejam
capazes de promover algum enfrentamento aos posicionamentos ideológicos contrários aos
movimentos produzidos por aquela.
É, a mídia convencional acho que é o nosso grande, assim, eu acho que a mídia ela
não existe sozinha, mas quem está por trás, né, assim, quem usa essa mídia enquanto
instrumento ideológico, acho que é um grande adversário que não a gente tem,
acho que boa parte dos Movimentos, mas a gente fica muito conversando que
precisa de desenvolver uma estratégia de comunicação que dê conta de fazer uma
cosquinha nessas estratégias midiáticas e poderosas mesmo, sabe, Fred (Cássia,
NA).
Compreensão também ressaltada no documento “A linha política (maio 2008)” -
ANEXO V BP –, no qual se aponta a dificuldade de construção de uma imprensa de “classe”:
A
imprensa possui um papel importante na disseminação da ideologia do Bloco
Neoliberal. As camadas médias da sociedade são as principais consumidoras da
imprensa escrita, consomem publicações, sejam jornais, revistas, livros, etc.
majoritariamente alinhados a ideologia dominante. A mídia eletrônica de massas
com destaque para as emissoras de TV e rádio são as principais fontes de
informação para a classe trabalhadora, e por isso oferecem uma cultura rebaixada e
conservadora. Até o momento as organizações não conseguiram construir um
enfrentamento real neste campo, ações dispersas e pouco organizadas existem e
resistem a repressão estatal, com destaque para as rádios comunitárias. Os sindicatos
e partidos de esquerda se retiram da luta por uma mídia da classe e priorizam seu
trabalho em boletins inofensivos, ou exploram pequenos espaços cedidos pela mídia
burguesa (não paginado).
147
Cabe considerar ainda, quanto a estas dificuldades de disseminação de práticas e
discursos da esquerda, seja mediante a omissão e criminalização dos movimentos sociais, seja
mediante a dificuldade em se construírem meios de comunicação favoráveis aos movimentos
sociais, o enfraquecimento da Teologia da Libertação na Igreja Católica e o fortalecimento de
grupos conservadores no interior da Igreja Católica, bem como de Igrejas protestantes
também conservadoras. Condições estas apontadas no momento de devolução com a MMM e
com a entrevistada da AP-MBH e no documento “A linha política (maio 2008)” - ANEXO V
BP.
Na Igreja Católica a Teologia da Libertação passa por um momento de profunda
desmobilização, as pastorais sociais diminuíram significativamente sua capacidade
de mobilização e diálogo político com a sociedade. O neopentecostalismo atinge
hoje cerca de 20 % da população, as principais Igrejas deste tipo, atuam como
grande empresas no mundo da comunicação, dirigindo inúmeras rádios e canais de
tv (ANEXO V BP, não paginado).
Como observa Sader (1988), a Teologia da Libertação, a partir da atuação das
pastorais sociais, teve papel importante na emergência dos movimentos populares brasileiros
na década de 1980, ao servir como um discurso mobilizador para as classes populares,
possibilitando a estas se reconhecerem como cidadãos que apresentavam “direito a ter
direitos”, devendo lutar coletivamente contra os fundamentos da injustiça social. Diante do
período ditatorial brasileiro, o espaço das pastorais católicas era uma das únicas possibilidades
de comunicação da esquerda com aqueles que objetivava mobilizar para a luta política.
Estes dois modos de resistência da hegemonia a alternativas antagônicas a ela –
expansão hegemônica e expurgo à diferença - demonstram dificuldades para a construção de
um projeto contra-hegemônico, atuando, por um lado, no enfraquecimento da radicalidade das
lutas e, por outro, na deslegitimação dos movimentos sociais. Ao discutir a democratização na
América Latina no interior do quadro neoliberal dos anos 1990, Baquero (1996) afirma que a
efetivação das reformas econômicas desejadas pelo programa neoliberal depende do
enfraquecimento de grupos de oposição às políticas neoliberais, as quais - como apontado por
Baierle (2000) e Dagnino (2000) - têm acarretado na eliminação de direitos consolidados, na
precarização de políticas sociais e na ampliação das desigualdades sociais.
Diante destas dificuldades e das possibilidades de vínculos discutidas no capítulo
anterior, sob que concepções políticas, referentes ao desenvolvimento da história e ao sujeito
da luta política, os processos de democratização têm sido compreendidos pelos grupos
148
entrevistados? Que formas de ação consideram importantes para a realização destes
processos? Foi a partir destas questões que buscamos discutir no próximo capítulo a última
categoria construída para esta dissertação: mudança social.
149
Capítulo 5
Concepções de luta e o processo de democratização social:
indeterminação da história, pluralidade de sujeitos políticos,
formas de ação
Para os entrevistados, a sociedade almejada é uma sociedade marcada pela justiça
social, pela desnaturalização e rompimento com os privilégios existentes na sociedade
brasileira que acarretam na desigualdade e na exclusão de diferentes grupos sociais. O
caminho apontado para esta mudança social está baseado, sobretudo, no acúmulo de
conquistas parciais, no estabelecimento de relações entre lutas cotidianas e decorrentes de
necessidades imediatas e lutas políticas mais amplas, de modo a constituir, a partir e na
construção de um processo parcial de conquistas, um bloco contra-hegemônico.
Compreender este caminho exige que levemos em conta noções de desenvolvimento
da história e de sujeito histórico da luta política, de forma a apontar o “como” (modo que
ocorrerá) e o “quem” (os responsáveis pela realização) da mudança social. Neste capítulo
abordaremos a última categoria analisada nesta dissertação: mudança social
78
.
Afirmações próximas a concepções marxistas tradicionais de transformação social são
observadas em algumas entrevistas, como se pode notar na afirmação de que a superação do
“capitalismo” é o fim capaz de englobar a totalidade do social, de modo que as lutas por
“reconhecimento”, em algumas passagens, são concebidas, mesmo que consideradas
importantes, como incapazes desta totalidade por serem lutas fragmentárias.
Contudo, considerações sobre a luta cotidiana apontam para a importância de se rever
a noção de “classe trabalhadora”, de se reconhecer a pluralidade de hierarquias sociais a
serem enfrentadas na luta política, de se conquistar vitórias, ainda que parciais, para a
construção de “outro mundo possível”. Estas considerações se aproximam muito menos de
definições precisas e apriorísticas relativas ao processo histórico, de uma teleologia da
história, mesmo que se afirme como horizonte a superação do capitalismo; e muito mais da
necessidade de se considerar aspectos conjunturais no desenvolvimento da luta política,
apontando para uma indeterminação quanto à forma da mudança social.
Entrevistador: Como seria possível essa tranformação social? Como vocês pensam
essa mudança da sociedade?
78
Como indicado no Capítulo 2, esta categoria compreende concepções dos grupos sobre o processo de
democratização social, bem como formas de ação consideradas pelos mesmos como importantes para se alcançar
a sociedade almejada.
150
Bruno (MTD): Oh, primeira coisa que eu acho importante é... a gente... até nos
estudos a gente vai descobrir muito isso e na observação da experiência do dia a dia
da luta: que não para a gente ficar fazendo previsões, bolas de cristal, dizendo
exatamente a forma como vai se dar o processo de Revolução, é... isso é uma coisa
muito séria, muito importante pra nós.
A teoria da Revolução Brasileira deve ser concebida enquanto uma ação prático-
reflexiva de interpretação da formação social e econômica do Brasil. Neste sentido
não cabe dogmas e fórmulas postuladas a priori, pois é a própria dinâmica da luta de
classes, o terreno fértil que propiciará a superação da sociedade burguesa. Deste
modo o caminho ao socialismo no Brasil, é resposta às mazelas geradas pelo
desenvolvimento do capitalismo, processo pelo qual nos constituímos enquanto
povo, entendendo este como todos aqueles setores sociais vítimas da exploração
capitalista e da dependência externa (Documento “A linha política (maio 2008)” -
ANEXO V BP, não paginado).
Os entrevistados salientam a importância de se considerar conjunturas relativas ao
sistema hegemônico. Isto pode ser verificado, por exemplo, na compreensão de alguns deles
quanto à crise econômica mundial que emergiu em 2008. Para eles ela possibilitaria uma
maior abertura à construção de nculos entre os diferentes movimentos sociais e colocaria
novamente em pauta o socialismo, que é uma crise da lógica do próprio sistema
hegemônico, e que exigia uma resposta coletiva referente a outras alternativas possíveis a este
sistema.
Então, com essa coisa da crise também tem tido um esforço maior no sentido de
construir uma unidade. Então, mesmo gente que se enfrenta o dia inteiro tipo
CONLUTAS, CUT e tal, não sei o que, tem tentado sentar junto para construir
pautas comuns (Bernadete, AP-MBH).
buscamos sempre estar nos espaços de articulação da esquerda, né? Nos espaços
para construir a unidade, principalmente nesse cenário que a gente vive hoje de crise
econômica, que o grande desafio que se coloca no cenário de crise econômica é a
construção de unidade. E um exemplo disso é esse acampamento que nós estamos
aqui, que é fruto dessa unidade das Brigadas com o MST, junto com o Fórum de
Moradia do Barreiro, casando ai as bandeiras da reforma agrária com a reforma
urbana (Joviano, BP).
como a gente está de crise do capital! a gente tem feito esforços! para se unir assim...
para construir unidade! Mas é difícil! Então, se você perguntar: qual é o papel dos
movimentos neste momento para o processo revolucionário? É construir unidade.
[...] eu acho que agora a gente tem possibilidades de... dessas coisas... de aumentar!
assim a força! porque o capitalismo está em xeque! Então a crise é do sistema! não é
de nada. A crise é do sistema! não tem um... né! então. Você vê o povo indo falar de
socialismo! na televisão. Morro de medo! Gente, Ciro Gomes falando de
socialismo... muito engraçado. Mas é isso assim, como o capitalismo está em xeque!
agora o socialismo voltou a pauta... voltou a ser falado. Talvez a gente fale de
diversos socialismos, mas pelo menos não é mais proibido falar de socialismo. Antes
falava: “oh, está viajando” “oh, sua lunática”. Então, a gente está num momento
diferente! a gente está numa conjuntura diferente. Não é brincadeira um presidente!
151
é... falar socialismo ou morte (xxx) (xxx). Isso é serio! É... não... não... essas
demissões que tão acontecendo elas vão... vai cair assim... efervescência da
população quando toca na questão econômica, nas dificuldades para colocar o de
comer em casa... para pagar o aluguel... elas... movem! essa população né! fazem o
tom ideológico! É uma questão de sobrevivência, mais uma vez (Entrevistada,
MMM).
A consideração da conjuntura também se demonstra quando se afirma a necessidade
de se reconhecer aspectos históricos da própria sociedade brasileira. Neste caso, podemos
citar a compreensão da BP de que diante da intensa concentração da população nas cidades - o
que acarretou graves contradições - o processo de mudança social brasileiro será popular e
urbano. Esta concentração populacional se articula com o incentivo ao êxodo rural, presente
décadas nos projetos de desenvolvimento do país, e com a intensificação deste êxodo
decorrente da entrada do modelo do agronegócio no campo, como apontado pelas lideranças
do MST.
A revolução brasileira, a gente entende que ela vai ser, nesse sentido, uma revolução
popular e uma revolução urbana né? Diferentemente de alguns processos históricos
que ocorreram de revoluções de matriz basicamente camponesa. Por quê? Simples.
Quase noventa por cento da população está nas cidades, onde as contradições são
mais agudas. Onde estão concentrados os avanços tecnológicos, as condições
objetivas e subjetivas para se pensar um processo de transformação da sociedade.
Então, ela vai ser também urbana, e não está na próxima esquina. É um processo,
claro, a gente não tem a ilusão de pensar que nossos filhos possam viver uma
sociedade comunista ou algo parecido, mas, enfim, essa crise econômica coloca
alguns desafios e coloca na pauta do dia a palavra de ordem pelo socialismo, coisa
que alguns anos atrás se teria ressalva de se dizer (Joviano, BP).
Ainda cabe apontar o posicionamento de algumas entrevistadas – como das integrantes
do NA e da representante da ABGLT referente à compreensão da luta política como uma
luta permanente, distanciando-se da idéia de uma sociedade plena.
Mas, assim, eu acho que transformação numa sociedade que é construída assim com
relações de poder ela acontece é no embate mesmo, e aí, assim, nós vamos... e,
assim, ia ser muito louco se a gente conseguisse eliminar as relações de poder, eu
não sei, assim, se isso é possível, sabe (rsss), não sei. Então, eu acho que a gente vai
ter que começar pelo menos fazer os lugares nas suas relações serem um pouco
mais permeáveis, sabe, se não é possível acabar com elas, então acho que para
transformar as pessoas vão precisar estar transitando mais e isso hoje em dia, assim,
não acontece. Acontece mais que ontem, mas ainda tem muito para melhorar
(Cássia, NA).
Entrevistador: Como você pensa a transformação social pela qual você e muitos
militantes estão lutando? Para onde você acha que ela está indo e qual é o caminho
que tem que ser trilhado pra chegar até lá?
152
Liliane (ABGLT): Ah, essa receita eu não tenho pronta, é difícil viu, porque assim,
tudo que você constrói na luta, você acha que construiu, você vai perceber que
tem mais coisas para construir. Eu acho muito difícil isso, porque se você pegar a
luta toda da história de luta, de outros Movimentos, você percebe isso o tempo todo,
é uma luta que ela nunca vai ter fim, eu acho que por isso que ela nunca vai parar,
ela vai ter que está... que ela vem com processos diferenciados, ela não vai dar de
forma igual a essa que nós estamos passando agora, então ela vai ser trilhada de
forma diferente, então você acha que você fez, você não fez. Porque o que acontece?
As pessoas estão chegando e elas vão ter outra cabeça nova, o que você está lutando,
o que você acha que você está fazendo hoje não é mais a luta da geração que está
vindo, não é mais, elas estão renovando aquilo ali e estão pensando. Então você tem
que estar acompanhado o novo e quando você está acompanhado o novo você se
perde, você acha que fez muita coisa, que você acaba vendo não fiz, falta mais
ainda, tem tudo isso.
Na construção de um caminho indeterminado da mudança social quem seria o sujeito
da história para estes entrevistados? Pensar esta resposta requer reconhecer a importância
atribuída por eles à construção de vínculos entre as lutas dos diferentes movimentos sociais,
sendo ressignificada a noção de classe trabalhadora
79
, ressaltada a idéia de projeto popular, e
reconhecida a importância da pluralidade de vozes. Mas ainda assim, quem dirigiria este
bloco contra-hegemônico?
Se, por um lado, os entrevistados do MTD e da BP afirmam ser fundamental aquela
ressignificação da noção de “classe trabalhadora” e concebem tanto lutas por
“reconhecimento” quanto lutas por “redistribuição” como importantes no processo de
mudança social, por outro lado, apontam para um lugar diferenciado do operariado, os
mesmos compreendidos como somente uma parte da “classe trabalhadora”, na luta rumo a
uma sociedade socialista. Esta postura decorre de compreenderem que devido ao fato de os
operários se encontrarem no interior do processo produtivo, podem atuar diretamente neste,
tendo maior capacidade de enfrentar a burguesia do que outros sujeitos que podem somente
interferir indiretamente. Isto é: que não possuem condições de agir diretamente no processo
produtivo na construção da luta política. Consideram também que se os “novos” movimentos
sociais (movimento negro, movimento feminista, movimento LGBT) devem ser considerados
aliados na luta, necessitam de afirmar um conteúdo de classe, pois, do contrário, não serão
capazes de construir a mudança social.
79
O MTD aponta que a definição de “classe trabalhadora” está pautada na luta pela sobrevivência, devendo
incorporar homens e mulheres que precisam vender "energia, suor, a cabeça e a mente para sobreviver”, não se
reduzindo aos operários. Nesta direção que o MST, a MMM, a AP-MBH, a BP vão ressaltar que a noção de
“classe trabalhadora” deve incorporar a classe operária e as classes populares. NA e ABGLT também apontam
para a idéia de que a luta deve ser uma luta construída em conjunto por todos os subcidadãos. De acordo com
Bernadete (AP-MBH), o termo “povo” busca abarcar todos estes que se encontram em condição de
subcidadania.
153
Primeiramente, assim, as classes populares elas podem não ser a classe dirigente de
um processo de transformação. Quando eu falo classes populares estou falando do
favelado, do vendedor de pipoca, da doméstica. Mas eles são imprescindíveis dentro
do processo, de um processo revolucionário. Então não descartamos que o
operariado, que o operário tem mais condições, pelo lugar que ele ocupa dentro do
processo produtivo, de dirigir um processo revolucionário, mas sem o vendedor de
pipoca, a doméstica, os favelados, as classes populares espoliadas do espaço urbano,
esse processo revolucionário não chegará a termo (Joviano, BP).
é fundamental que um projeto de transformação incorpore certas demandas que
foram historicamente omitidas dos processos revolucionários e tudo mais, como a
questão racial, você citou... a questão da luta contra a homofobia, da luta LGBT, da
luta das mulheres. Então, é fundamental que essas bandeiras estejam em qualquer
projeto de transformação social, estejam contempladas como parte estruturante, a
superação de todas essas opressões. O capitalismo tem a genialidade de criar cada
vez opressões em todos os campos da vida. Então essas lutas identitárias são
fundamentais. A grande questão que se coloca, que é uma perspectiva inclusive
influenciada pela pós-modernidade, é de fragmentação! dessas bandeiras, de não
uma visão, não uma visão da totalidade! do sistema, da superação da ordem social
como uma totalidade, e isso implicando superação dessas opressões, mas sim a luta
atomista, a luta fragmentada! nesses campos. Da luta racial, da luta das mulheres, da
luta ambiental, que hoje é muito forte né? Então, qualquer projeto dessas lutas tem
que ter um conteúdo de classe, um corte de classe, pra que aponte para totalidade da
ordem social (Joviano, BP).
A gente acha que não existe divergência, não pode existir divergência entre a luta
popular e a luta dos trabalhadores, nós não vamos fazer esse projeto nosso sem a
participação dos trabalhadores, então os metalúrgicos, os... todo mundo do setor
produtivo eles são fundamentais, inclusive são eles que vão conta mesmo sabe?
de puxar, de dirigir assim e tal, mas que isso não se faz sem a presença do povão
mesmo, dos trabalhadores, das classes populares. Que são a grande massa mesmo do
povo e que vive as contradições gente, não sei o que vocês acham vivendo no
dia-a-dia aí, mas a gente vive as contradições, o povão vive as contradições, a gente
vive né, o tempo todo assim! (Bruno, MTD).
a gente acha que esses novos! Movimentos Sociais eles agregam! para luta, desde de
que a gente não caia... não perca o horizonte estratégico, sabe? a gente tem muito
esse cuidado no MTD assim. O problema que a gente sente das mulheres, dos
negros, ele não vai se resolver na plenitude dos marcos de uma sociedade capitalista
entendeu? então isso que um pouco de uma teoria, entendeu? Que eu acho que as
meninas da Marcha também têm isso muito forte, que esses Movimentos eles são a
às vezes policlassistas, por exemplo, no Movimento GLBT às vezes tem pessoas que
não são da classe trabalhadora.
[...]
Mas a gente acha que a gente tem que dar esse recorte sabe que é diferente né.
Mesmo a questão da Reforma Agrária, que é um negócio que hoje no Brasil o MST
conseguiu pautar, se que vários lugares aconteceu reforma agrária, mas dentro
dos marcos capitalistas, então a gente tenta trabalhar esses direitos sociais como
parte! da luta para! uma sociedade mais socialista mesmo (Bruno, MTD).
Assim, se a revisão da noção de classe trabalhadora, caracterizada pela crítica à sua
redução ao operariado, devendo englobar todos aqueles que se encontram em condição de
subcidadania, aponta para a idéia de que o sujeito histórico deve ser decorrente da prática
articulatória entre os diferentes subcidadãos; a compreensão acima indica - ainda que feita na
154
busca de defender a importância da participação das “classes populares”, dos “novos”
movimentos sociais no processo de mudança social - um lugar diferenciado do operariado,
reafirmando uma condição privilegiada das relações de produção e da dimensão econômica na
ruptura em direção ao processo de mudança social. O que pode apontar para uma limitação na
construção do “povo” e, assim, para dificuldades na construção de estratégias de articulação,
como a afirmada pela entrevistada da MMM, relativa à compreensão de que na conjuntura
atual, se os trabalhadores formais no campo da esquerda são os que apresentam maior recurso
financeiro, estrutural e de poder político, não são os que mais fazem luta, sendo os
movimentos sociais populares aqueles que se apresentam mais mobilizados na construção da
luta política. Contudo, em razão daqueles maiores recursos por parte dos trabalhadores
formais, os movimentos sociais populares acabam por se encontrar em posição
desprivilegiada nos momentos de construção de vínculos.
Cabe ressaltar que não estamos aqui a negar a importância de se romper com as
desigualdades decorrentes das relações de produção, com as desigualdades econômicas nas
sociedades capitalistas, sobretudo, em países como o nosso em que, como aborda Doimo
(1993), foi implementado um “Estado de mal-estar social”. O que estamos a abordar é o
privilégio do espaço produtivo como ponto de ruptura da mudança social, diante do qual não
haveria motivo de não se afirmar o proletariado como um sujeito diferenciado na luta política,
a dimensão econômica como central e as outras identidades como somente agregados a esta
luta, ainda que reconhecidas como importantes. Lembremos aqui a consideração da
entrevistada da MMM de que não adianta romper apenas com o capitalismo, sendo necessário
construir uma luta anti-capitalista não-androcêntrica. Também lembremos da afirmação no
documento “Marcha Mundial de las Mujeres 1998-2008 Una década de lucha internacional
feminista” (ANEXO IV MMM) de que na luta para “mudar o mundo”, “não existem nem
análises nem demandas “específicas” ou “secundárias”, e que é hora dos diversos movimentos
assumirem as reivindicações das mulheres e defenderem-nas, pois estas são essenciais para a
mudança.” (p. 34, tradução nossa).
Este nosso apontamento decorre da afirmação do descentramento do espaço político
nas sociedades contemporâneas, não existindo um único centro de poder, e sim uma
pluralidade de centros de poder relativo na estrutura capitalista. Também decorre, assim, da
consideração de que
posto que toda universalidade se constrói somente através da sobredeterminação de
uma série indefinida e aberta de demandas concretas, a força que haverá de encarnar
estas ‘universalidades relativas’ é indeterminada e será somente o resultado de uma
155
luta hegemônica. Isto é exatamente aquilo no que a política consiste. Existe aqui
duas dimensões: por um lado, posto que nenhuma força é em si e por si encarnação
do universal, uma ‘vontade coletiva’ somente consolidará sua hegemonia se
conseguir apresentar-se a outros grupos como a força capaz de promover a melhor
ordem social possível para assegurar e expandir uma universalidade que a
transcende. A assimetria entre ‘universalidade relativa’ e força que a encarna abre
assim a via para uma competência [competencia] democrática entre os grupos,
que o universal não tem medida comum com nenhuma das forças que podem
momentaneamente encarná-lo.Mas, por outro lado, tampouco o ‘universal’ tem uma
existência e um sentido fixos, a margem das forças sucessivas que o encarnam
(LACLAU, 1993a, p. 96, tradução nossa).
Com exceção daquelas compreensões relativas ao MTD e à BP, todos entrevistados
afirmam que a mudança social será um processo decorrente da construção de vínculos entre
diferentes movimentos sociais, que atuam em torno de diferentes antagonismos democráticos
(ainda que, como vimos nos capítulos anteriores, a luta cotidiana dos grupos demonstram
apenas aproximações à construção de uma estratégia de articulação, estando enfraquecido os
vínculos entre os atores da esquerda na atualidade). É na importância atribuída a estes
vínculos que, mesmo diante de obstáculos decorrentes de diferenças quanto a concepções em
torno da luta política, as entrevistadas da MMM, do grupo NA e da ABGLT vão salientar a
busca pela formação dos mesmos.
A gente inclusive discute isso: como a gente é historicamente! propriedade privada
dos homens, da igreja e do Estado! é... e a gente sabe da onde que surgiu essa
necessidade de saber de quem que é o pai e... do casamento monogâmico e da... do
impedimento da igreja católica da mulher realizar aborto! Então... isso é uma coisa
que é do âmbito... que o patriarcado está mais forte! Então, que a classe como um
todo não acolhe como algo... é... importante. Por quê? Se o papel da mulher é
reproduzir mão de obra isso para burguesia ou para o Estado ou para o patriarcado é
o que interessa. Se você pegar o mapa de onde que no mundo o Brasil é... o aborto é
legalizado!? É do meridiano para cima. África, América Latina para baixo, os
trópicos, daqui para baixo não são, então, assim é... de onde vem isso? a
necessidade de... de... como assim que as mulheres vão ter direito ao próprio corpo?
Vai ter política pública para decidir se ela vai ter filho ou não? Então, isso para gente
é transversal! é político! Não... não... não é algo que está ali no âmbito privado. É
a primeira causa de mortalidade materna em Belo Horizonte! ponto final! (rsss)
Como assim, tem mulheres morrendo mais... de aborto inseguro do que de eclapse!
Então, é grave para gente! mas não é... da mesma forma para outros movimentos em
que se tem uma visão androcêntrica e que isso vai ser deixado de lado e depois
que ocuparem as fábricas! depois que tomarem o poder! é que essas coisas...
assim como a saúde, a luta por saúde, por educação... então, os vícios, eu acho que
eles permanecem. Então, é... para gente não deixa de ser importante, mas não é para
o todo da classe A gente tem plena certeza disso, inclusive quando a gente vai fazer
articulação a gente fala: ‘oh! Nós estamos juntas na luta contra o capitalismo! Agora
eu quero ver! a gente quer ver se vocês estão junto com a gente na luta contra o
patriarcado’. E definitivamente não estão. Inclusive companheiros! que falam
isso. Que isso não vai fazer diferença na luta contra o capital, portanto... não é... não
é que se interesse. Isso é muito sério! Para gente... e é isso que a gente sempre avisa:
‘olha companheiros! a gente não está aqui brincando! de ser feminista! a gente não
está brincando! de construir poder popular! isso vai chegar um ponto que para gente
é essencial! E a gente não vai abrir mão’. Então, se você for pensar assim... se hoje a
156
gente tivesse essa oportunidade, com certeza causaria... desgastes! e rompimentos
com alguns... é... com algumas... organizações (Entrevistada, MMM).
Entrevistador: a [entrevistada], por exemplo, da Marcha Mundial, quando eu fiz essa
questão pra ela, ela fala: ‘é, é importante a gente construir a unidade, mas, por
exemplo, quando a gente vai debater a questão do aborto eles vão falar não, essa
questão não vai dar para gente fazer unidade, não vai dar, vamos construir unidade
sim, mas essa questão deixa para depois’, então...
Flávia (NA): Pois é, não é no meio das mulheres que tem a questão do aborto,
têm várias questões que são muito complicadas, assim, o outro que é... são pares não
dão conta de discutir, não querem discutir, mas ai vai ter alguma coisa que a gente
pode caminhar junto em comum e cada respeitando as suas bandeiras, porque
também não dá pra colocar todo mundo igualzinho ali.
Cássia (NA): É tem algumas coisas que não vão ser conciliadas.
Flávia (NA): Não vão, não vão ser, então eu acho que... e por causa disso de ficar
‘ah, não vai ser, não vai ser conciliada’ foi se afastando e acho que não deve
Cássia (NA): é diferente de fragmentar. Eu acho que assim, reconhecer em que
momento que a gente realmente não concorda e não vai concordar é diferente de
fragmentar nos momentos em que é possível caminhar junto.
Eu acho assim, a gente faz um pré-julgamento sem ocupar espaço, e se a gente vai
ocupar um espaço vai haver diferença. Vai haver diferença sim, mas a partir do
momento que eu começo a me posicionar, que as pessoas começam a falar assim:
‘nossa, mas esse viado eu imaginava assim’, vão falar assim, mas a gente vai
reeducando a pessoa, ela vai entender que a minha luta, além de eu querer a minha
luta específica, ela vai estar precisando de mim na mesma luta, nós vamos fazer a
mesma luta, não para diferenciar, vai ter um momento diferenciado, mas em
vários momentos a gente tem que estar juntos, está me entendendo como. Porque,
por exemplo, se eu quero falar sobre homofobia na escola vai chegar um
momento em que vai ser um saco, o trabalho vai acabar. Se você for parar para
pensar não vai ter mais discurso. Agora se eu levo o trabalho com um leque muito
mais aberto, eu vou levar, por exemplo: ‘ah, hoje eu quero falar sobre ecologia’. Por
que eu não posso falar sobre ecologia, mas incluindo a questão da homofobia? Tem
formas? Tem formas. Se a gente for inteligente e saber agregar aquilo ali é muito
legal (Liliane, ABGLT).
A compreensão de Laclau e Mouffe sobre a importância de se construir uma
articulação entre os diferentes movimentos sociais na construção de uma luta democrática é
decorrência do reconhecimento da impossibilidade de se afirmar um sujeito ontológico da luta
política, bem como um ponto de ruptura privilegiado, na medida em que isso significaria uma
limitação do caráter sobredeterminado da prática articulatória sob um fundamento anterior à
própria articulação. Por isso que, segundo Mouffe (1988), o fato de algum grupo social jogar
um papel central na luta política decorre não de uma razão ontológica, e sim da capacidade
política do grupo e de condições históricas favoráveis a ele no momento da articulação entre
os antagonismos.
157
É também no reconhecimento da impossibilidade de se definir na sociedade
contemporânea - marcada pela sujeição de diferentes grupos sociais a diferentes mecanismos
produzidos pelo capitalismo, que não se reduzem a contradição capital x trabalho - o sujeito
histórico como um sujeito unívoco e privilegiado, como fora definido o proletariado no século
XIX e início do século XX, que Houtart (2006, p. 424) vai afirmar que o sujeito histórico é
um sujeito popular e plural, sendo democrático “não somente por sua meta, mas também pelo
próprio processo de sua construção” .
A crítica a um desenvolvimento pré-determinado da história e à ontologia do sujeito
histórico coloca em pauta a importância de se compreender que a construção do bem comum
e a forma de se alcançá-lo deve se dar num processo de construção coletiva, e não através de
critérios abstratos ou da imposição de dogmas por algum sujeito político que se posicione
como o revelador da verdade. Desta maneira, a unidade política construída em torno da utopia
da sociedade justa e os caminhos a se seguir para concretizar este futuro almejado requerem
considerar o conjunto de tradições culturais presentes em determinado tempo e lugar, se
estabelecendo através de uma construção permanente entre os atores (MOUFFE, 1996;
HOUTART, 2006).
Cabe ressaltar inclusive que mesmo que a emergência dos diferentes movimentos
sociais decorra do processo de ampliação da revolução democrática, suas concepções sobre
igualdade, liberdade não necessariamente são as mesmas, podem ser significadas de distintas
maneiras, encontrando estes significados em contínua disputa no campo discursivo
(LACLAU & MOUFFE, 1985, MOUFFE, 2000b).
A crítica a um desenvolvimento pré-determinado da história e à ontologia do sujeito
histórico também coloca em questão interpretações sobre a mudança social, baseadas na
dicotomia entre “novos” movimentos sociais e “velhos” movimentos sociais. Bem como
afirmações de que a luta parcial representa, necessariamente, o abandono do socialismo como
horizonte histórico ou o contentamento com a impossibilidade de se superar o capitalismo
(ZIZEK, 2003; 2007).
A dicotomia “novos” movimentos sociais X “velhos” movimentos sociais pode ser
questionada diante de grupos entrevistados estabelecerem uma relação entre a busca do
reconhecimento pela cidadania e a necessidade de se colocar em questão lógicas
redistributivas, apontando para uma relação entre cultura e política e para a inter-relação entre
aqueles dois modos de injustiça social.
É neste sentido que, como apontado anteriormente, a MMM compreende que a lógica
capitalista depende da divisão entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo. Esta divisão
158
reproduz a discriminação às mulheres, que o elas as “enjauladas” no espaço privado da
reprodução, devido ao patriarcado, e, ao mesmo tempo, a exploração do trabalhador, pois a
produção da mais-valia no espaço produtivo depende de que exista alguém que se
responsabilize pela reprodução da vida daquele trabalhador, explorado no presente, e de
futuros trabalhadores para serem explorados no futuro.
A relação entre as categorias raça e classe foi salientada por autores como Jessé de
Souza (2003). Este autor demonstra que, Brasil, os negros, com a abolição da escravidão,
foram abandonados à própria sorte, servindo a inabilidade deles em se integrarem à lógica
produtiva capitalista, decorrente deste abandono, de justificativa para a reprodução do
preconceito racial no interior da própria lógica produtiva. Assim, se aquele abandono reforça
o preconceito racial, já que, frente à escassa pré-socialização dos negros a pressupostos
sociais e psicossociais da sociedade capitalista, passaram a ser julgados como detentores de
uma “personalidade” improdutiva e disruptiva para os interesses da sociedade; o preconceito
racial reforça a desigualdade de classe, que justifica menores salários e a ocupação de
cargos menos valorizados socialmente pelos negros. Para Souza (2003), a marginalização dos
negros e a constituição de uma “ralé” nacional, mais do que decorrência da “cor da pele”,
deriva da combinação de abandono e inadaptação dos mesmos aos pressupostos da sociedade
competitiva capitalista.
As integrantes do grupo NA, durante o processo de devolução da entrevista, definem o
racismo como um elemento estruturante da organização do capital, que delimita as relações,
marca os papéis sociais e a redistribuição de recursos e bens. Assim, consideram que a
discriminação de classe no Brasil é caracterizada pela condição racial, sendo os pobres em sua
maioria negros, e que o racismo é um dos elementos estruturantes do capitalismo no Brasil
hoje, sendo fundamental combatê-lo.
Além disso, ao se definirem como um grupo de mulheres negras jovens de periferia e
favelas, apontam a importância de se relacionar raça e classe à categoria gênero, relação esta
que pôde ser visualizada através da cisão promovida no Brasil das mulheres negras, no
interior do movimento negro, e na dificuldade das mesmas em se verem representadas no
interior do movimento feminista (RODRIGUES, 2006).
A relação entre orientação sexual e classe é discutida por Butler (2000), ao apontar o
modo como operações homofóbicas contribuem para o funcionamento da economia política,
servindo para a preservação da noção de família heterossexual, entendida pelo Estado como
uma unidade econômica, negando direitos aos LGBT de herdar propriedades do companheiro
morto, ou ainda, como apontado por Liliane (ABGLT), restringindo as possibilidades de
159
LGBT se inserirem no mercado, sobretudo, no que tange a travestis e transexuais, para as
quais muitas vezes existe como única possibilidade de sobrevivência a prostituição.
A relação entre homofobia, patriarcado, racismo e desigualdade social, na sociedade
brasileira, é afirmada pelo entrevistado da BP
80
quando este expõe que por mais que as
mulheres tenham conquistado ganhos políticos e econômicos, recebem salários menores, o
tratadas numa posição subalterna no interior da divisão social do trabalho, e consideradas
responsáveis pelo trabalho doméstico; no que tange aos negros, recebem menores salários, são
discriminados e a cultura africana (religiões de matriz africana, por exemplo) é marginalizada;
no caso dos homossexuais, apesar das conquistas do movimento LGBT, os homossexuais são
concebidos de forma discriminatória nos meios de comunicação, sendo reafirmado o
preconceito e o ódio aos mesmos.
Além disso, como apontado anteriormente, Dagnino (2000) explicita que os
movimentos populares urbanos reconhecem mudanças culturais como fundamentais ao
processo de democratização social, uma vez que perceberam
que não tinham que lutar apenas por seus direitos sociais moradia, saúde,
educação, etc. mas pelo próprio direito a ter direitos [...] [na medida em que] ser
pobre significa não apenas privação econômica e material, mas também ser
submetido a regras culturais que implicam uma completa falta de reconhecimento
das pessoas pobres como sujeitos, como portadores de direitos. [...] Essa privação
cultural imposta pela ausência absoluta de direitos, que em última instancia se
expressa como uma supressão da dignidade humana, torna-se então constitutiva da
privação material e da exclusão política (p. 82).
Ainda, como afirmado por Mouffe (1988), a dicotomia entre classe trabalhadora e
“novos” movimentos sociais é uma dicotomia estéril, desde que se reconheça “que os
trabalhadores não podem ser reduzidos a sua posição de classe e estão inseridos em outros
tipos de relações sociais que formam outras posições de sujeito” (MOUFFE, 1988, p. 98,
tradução nossa).
A segunda hipótese, aquela de que a luta parcial significa o abandono do socialismo e
contentamento com o capitalismo, não se sustenta, na medida em que em todas as entrevistas
se afirma, ao mesmo tempo, a importância de conquistas parciais na construção da luta
política, e - em umas mais (MTD, BP, MMM, CUT, MST, AP-MBH) em outras menos (NA,
ABGLT) - a divergência com os valores capitalistas de exploração, com a concentração de
renda e de bens, com a dicotomia entre o trabalho reprodutivo e trabalho produtivo (que
80
Ainda que se aponte um privilégio das relações econômicas na luta política como vimos anteriormente, o que
contribui para a reprodução de dicotomias entre “lutas por redistribuição” e “lutas por reconhecimento”.
160
acarreta na desvalorização do primeiro), apontando a necessidade de se superar estes
elementos no processo de mudança social.
É na decorrência da expansão das fronteiras de acumulação do capitalismo que se
entende a expulsão dos camponeses do campo, diante da disseminação do modelo do
agronegócio no país, e, conseqüentemente, a dificuldade de se fazer a reforma agrária no
Brasil.
o êxodo rural, se você for vê na década de 40 você tinha 80% da população
brasileira no campo e 20% na cidade, hoje se tem o inverso, 20% no campo e 80%
na cidade e a tendência é vo chegar nos níveis de São Paulo, é você ampliar o
nível de São Paulo que é 9% da população do campo e 91% na cidade. Essa é a meta
do capital. E esses nove que ficam no campo eles não ficam no campo com seus
projetos não, eles ficam submetidos aos projetos das grandes transnacionais voltadas
para exportação [...] Por isso que é estratégia pra gente do que vocês estão
pesquisando do que é estratégia se aliar com todos os povos tradicionais que
defendem o território, a luta é por território. Existe uma ofensiva, eles têm que entrar
para dentro do campo para fazer essas grandes plantações, principalmente na área da
celulose e na área da energia (Chumbinho, MST).
Também em decorrência da expansão das fronteiras de acumulação do capitalismo
que se compreende a intensificação da desigualdade social e, assim, a manutenção e
reprodução da pobreza, que faz com que as favelas se proliferem, ao mesmo tempo em que a
especulação imobiliária aconteça, sendo necessário realizar ocupações urbanas no país para
que muitos tenham direito ao direito constitucional de moradia.
A cidade é produzida socialmente e apropriada individualmente pelos rentistas da
especulação imobiliária, que é a pior espécie de capitalista, que ganha sem produzir
nada, sem empregar ninguém. Só mantendo terreno para engorda e, no caso da
construção civil pesada, valorizando os loteamentos e tudo mais. [...] Vejam bem,
uma cidade como Belo Horizonte, uma cidade com o olhar das elites, a maior parte
da população vivendo precariamente sem acesso aos equipamentos, com dificuldade
de acesso ao trabalho também, enquanto uma minoria privilegiada usufruindo das
potencialidades do que de melhor do processo de urbanização, industrialização
que o país sofreu intensamente. Então são contradições centrais e, por exemplo,
quando a gente fala, eu falo um pouco mais porque, porque eu inclusive tenho mais
apropriação da luta pela reforma urbana, Belo Horizonte tem um déficit habitacional
quantitativo de sessenta mil unidades, esse é um dado de 2002 e é quantitativo, e é
um dado oficial, o que eu desconfio um pouco. Então, a pessoa tem um barraco
caindo aos pedaços em cima do morro, não entra no déficit. Então, é quem está em
situação de rua, quem está morando de favor e quem arca com mais de trinta por
cento da sua, de seu salário com aluguel, esse é o ficit habitacional: sessenta mil
famílias em 2002. Por outro lado, você tem setenta mil imóveis ociosos, a mesma
pesquisa da Fundação João Pinheiro, está no site da prefeitura. Essa é uma
contradição estrutural do sistema. Então, com base nisso o que nós vamos querer?
Se tanta gente sem casa e tanta casa sem gente, vamos desapropriar esses
imóveis. E não é nada fora da ordem que nós estamos, é o que está na Constituição,
é o que está no Estatuto da Cidade, então é um pouco por ai. Superar essas
contradições (Joviano, BP).
161
É deste modo que também se reconhece a importância de se lutar por Títulos de
Moradia a fim de garantir aquele direito constitucional de moradia:
Existem, segundo dados da PBH, mais de 15.000 moradias em Vilas e Favelas sem
títulos de propriedade. São ocupações urbanas antigas, organizadas de forma
espontânea ou como estratégia de luta do povo trabalhador, que ainda não se
concretizaram. Por isso, a comunidade do Felicidade e o MTD anunciam: outras
lutas por títulos de moradia virão (Documento “MTD no Conjunto Jardim
Felicidade conquista títulos de moradia” – ANEXO II MTD -, não paginado).
É em decorrência da expansão das fronteiras de acumulação do capitalismo que
também se pode entender a reprodução de discriminações de gênero, de raça e de orientação
sexual, a partir da retroalimentação evocada anteriormente entre a desigualdade e exclusão
decorrente destes processos de hierarquização social e aquela promovida pela hierarquia de
classe social.
Uma melhor compreensão para se abordar a importância de conquistas parcias, na luta
pela mudança social, poderia ocorrer a partir da análise das lógicas impressas pelo capitalismo
após a Segunda Guerra Mundial (“Estado de bem estar social” ou “Estado de mal estar
social”; mercantilização das relações sociais), que proporcionaram a politização de diferentes
formas de subcidadania, apontando para a impossibilidade de se entender a luta política a
partir de um único ponto de antagonismo. Em conjunto com as conseqüências advindas da
fase neo-liberal do capitalismo - precarização das relações de trabalho, diminuição de
políticas sociais e privilégio de políticas monetárias, “deslocalizaçao” do capital - que
aprofundaram desigualdades e trouxeram dificuldades para a construção de enfrentamentos
políticos, como a identificação do adversário, o grande número de desemprego, a
disseminação da idéia de que não haveria outras alternativas de sociedade.
Tais condições, juntamente com a crítica ao marxismo e o desencantamento produzido
pelo “socialismo real”, acarretaram uma “crise” da esquerda (Cf. LACLAU & MOUFFE,
1985; SADER, 1988, 2002; DAGNINO, 2000) e, assim, na necessidade de reformulação do
pensamento da esquerda em torno de uma concepção alternativa ao marxismo clássico.
Apesar de se manter fundamental a construção de uma possível unidade política, ao ser
ressaltada a noção de hegemonia, fez-se necessário reconhecer que a mudança social não
ocorrerá a partir de uma alteração imediata e unilateral do sistema, determinada
aprioristicamente. Ela requer a transformação de múltiplas lógicas de opressão, as quais,
ainda que muitas vezes interligadas, não podem ser enfrentadas apenas pela superação de uma
lógica específica, sendo necessário conceber o espaço político como um espaço pluricentrado.
162
Consideramos esta uma hipótese mais provável, que se coaduna com a crítica à
ontologia do sujeito - no sentido em que vai ao encontro da pluralidade de antagonismos
políticos e da impossibilidade de se afirmar um sujeito privilegiado da história -, e também
com a crítica à teleologia da história, pois rompe com a definição a priori dos caminhos da
mudança social, sendo a construção da sociedade almejada decorrência não de um a priori
abstratamente determinado, mas de um processo de objetivação do social, que como qualquer
outra objetivação - no sentido atribuído a este termo por Laclau e Mouffe é precária e
contingente.
No debate entre Laclau e Zizek sobre as possibilidades de se construírem alternativas
de sociedade no nosso tempo presente, segundo Zizek (2003; 2007), a retirada na obra de
Laclau da centralidade da classe social, a partir da defesa da indeterminação da luta política,
considerando a luta de classe como somente mais uma forma de luta possível, acabou por
acarretar numa postura teórica reformista, que privilegia lutas identitárias particulares, que
longe de combater o sofrimento produzido pelo capitalismo, contribui para o esforço
ideológico do capitalismo de invisibilizar a homogeneização produzida por ele, sendo estas
demandas particulares incorporadas pelo próprio sistema capitalista (ZIZEK, 2007).
Mais do que isso, segundo Zizek (2003), a passagem de um sujeito unívoco e
privilegiado da luta de classe para uma irredutível pluralidade de lutas políticas esconde uma
importante questão: a consideração de que o capitalismo é a única opção, renunciando Laclau
as alternativas de superação deste sistema. Esta renúncia, segundo Zizek (2003), nos leva a
questionar até que ponto ela acarreta não somente na perda da alternativa socialista, mas
também na própria despolitização da política, já que esta deve significar a “arte do
impossível”, ou seja, objetivar a alteração do marco que determina o funcionamento das
coisas (ZIZEK, 2007).
Contrariando esta consideração de Zizek (2003; 2007) de que Laclau acaba por
construir uma teoria “reformista” da sociedade, cabe considerar que Laclau e Mouffe
enfatizam que a construção de uma luta hegemônica de esquerda implica na constituição de
uma lógica da equivalência entre todos os antagonismos democráticos contrários à
subordinação, de modo que o espaço social seja dividido, condensando significados em torno
de dois pólos antagônicos. Desta maneira, segundo Mouffe (1988), o projeto da esquerda,
baseado na lógica da equivalência, questiona não só as relações estruturais da produção
capitalista, mas também diferentes formas de subordinação interpeladas pelos movimentos
sociais, e que não se reduzem às arenas econômicas.
163
Além disso, a crítica de que as lutas identitárias marginais, defendidas por Laclau,
acabam por ser incorporados pelo capitalismo, não o ameaçando, mas pelo contrário,
contribuindo para a invisibilidade da homogeneização produzida por ele, pode ser
problematizada a partir da distinção entre o que Laclau e Mouffe denominam de lógica da
equivalência e de lógica da diferença. A construção de cadeias de equivalência entre as lutas
políticas é exatamente a estratégia política enfatizada por Laclau e Mouffe para dificultar a
assimilação e neutralização das mesmas dentro do projeto da direita, pelo fato de dividirem o
espaço social em pólos antagônicos. Diferente da lógica da diferença, que por se restringir à
afirmação da particularidade, permite, assim, que as demandas sejam satisfeitas pelo sistema
hegemônico de direita - que se baseia sempre num distanciamento entre privilegiados e não-
privilegiados.
Ademais, de acordo com Laclau e Mouffe (1985), um projeto democrático radical, não
pode se furtar da utopia, ou seja, da possibilidade de negar a ordem social para além do ponto
em que somos capazes de ameaçá-la, uma vez que se pauta não no reconhecimento da
negatividade da hegemonia, mas também na afirmação de uma nova positividade do social, de
modo a sedimentar uma nova lógica hegemônica. Lembremos aqui o paradoxo que domina a
dinâmica social:
existe liberdade [possibilidades de auto-determinação do sujeito] porque a sociedade
não consegue constituir-se como ordem estrutural objetiva [por conseguinte, não
consegue constituir o sujeito como pleno]; mas toda ação social tende à constituição
deste objeto impossível e à eliminação, portanto, das condições da própria liberdade
(LACLAU, 1993a, p. 61, tradução nossa).
Portanto, será mesmo que a não centralidade da luta de classe significa,
necessariamente, uma despolitização da política, ou seja, a renúncia da alteração do marco de
funcionamento das coisas? Será mesmo que o que se renuncia com a não centralidade da luta
de classe é a possibilidade de outras alternativas de sociedade? Parece que o que Laclau e
Mouffe renunciam verdadeiramente é à consideração de que exista um “marco de
funcionamento das coisas” pré-determinado e que este seja, necessariamente, a dimensão
econômica, afirmando que o radicalismo da sociedade encontra-se na contingência. Nas
palavras de Laclau (2005):
Zizek afirma que seu desacordo comigo descansa no fato de que, para ele, os
elementos que intervêm na luta hegemônica não são iguais, de modo que sempre
existe um que “ao mesmo tempo que forma parte da cadeia, sobredetermina o
horizonte mesmo”, o que significa, segundo ele, que é mais forte que a luta pela
hegemonia, e que estrutura o terreno no qual esta tem lugar. Agora bem, a afirmação
164
de que existe uma desigualdade essencial entre os elementos que participam na luta
hegemônica é algo com que certamente coincido a teoria da hegemonia é,
precisamente, a teoria desta desigualdade -, mas Zizek não está apresentando um
argumento histórico, mas um argumento transcedental: para ele, em toda sociedade
possível, este papel determinante corresponde necessariamente à economia (neste
ponto pareceria que estamos voltando àquelas distinções ingênuas da década de
1960 entre “determinação em última instância”, “papel dominante”, “autonomia
relativa”, etc.). A primeira coisa que podemos dizer esta é, novamente, outra de
suas metáforas vazias é que Zizek está utilizando erroneamente a categoria
freudiana de “sobredeterminação”. A instância da sobredeterminação depende
totalmente, para Freud, de uma história pessoal: não existe nenhum elemento que
sobredetermine em e por si mesmo. No entanto, se Zizek nos diz que, como um a
priori histórico, alguns elementos estão predestinados a ser os sobredeterminantes,
está abandonando completamente o campo freudiano de fato está mais próximo de
Jung. Em seu desespero por defender a “determinação em última instância pela
economia”, Zizek se refere, em alguns casos, a um último reduto de naturalismo que
se deveria manter. Mas isto não serve. Não se pode unir duas ontologias
incompatíveis. Ou bem a sobredeterminação é universal em seus efeitos, ou bem a
sobredeterminação é uma categoria regional, que está rodeada por uma área de
determinação plena que, posto que estabelece os limites dentro dos quais a
sobredeterminação pode operar, se converte no campo da ontologia fundamental” (p.
293-294, tradução nossa).
Outra consideração realizada por Zizek (2003), ainda com referência à consideração
da teoria democrática radical e plural de Laclau e Mouffe como reformista”, diz respeito à
afirmação de que a renúncia da esquerda contemporânea em lutar por alternativas possíveis ao
capitalismo está pautada no temor de que a construção de projetos políticos que busquem
efetivamente alterar a ordem existente, por melhor que seja, pode acabar por se transformar
em um projeto protototalitário inaceitável e perigoso. Desta forma, segundo Zizek (2007), esta
postura acaba por considerar a democracia sempre como um futuro inacessível, caindo na
‘armadilha’ de uma política marginalista, “aceitando a lógica dos estalidos momentâneos de
uma politização radical impossível’, que contém as sementes de seu próprio fracasso, e deve
retroceder ante a ordem existente” (ZIZEK, 2007, p. 252-253, tradução nossa). Assim, de
acordo com Zizek (2003), pode-se até questionar se esta idéia não implica uma postura cínica
de que apesar de sabermos que iremos fracassar, devemos persistir na busca.
Uma possibilidade de problematização desta consideração é que: se é correto afirmar
que, para Laclau e Mouffe, a democracia é um projeto a ser incessantemente buscado, sendo
sua plenitude inacessível, que toda objetividade será sempre precária; por outro lado, longe
de esta ser uma concepção pessimista de democracia, como parece pressupor Zizek (2003),
Laclau salienta que é no reconhecimento de que nenhum projeto é inabalável que se instaura a
potencialidade do discurso de liberdade, pois como ninguém pode se afirmar como a
consciência verdadeira do mundo, abre-se a possibilidade para várias perspectivas credíveis
em um determinado momento histórico (LACLAU, 1996).
165
Dessa forma, não estaria nesta compreensão também a falha da colocação de Zizek
(2003; 2007) de que para Laclau o capitalismo é a única alternativa de sociedade possível?
Como qualquer outra totalidade, para Laclau, o capitalismo também não seria um sistema
não-suturado? Portanto, mais uma vez, não parece que Laclau se pauta na defesa da
impossibilidade de alteração do sistema capitalista, apesar de, sim, afirmar o perigo de um
projeto totalitário, pois diante da inexistência de uma essência fundamental da sociedade, este
implicaria, certamente, na ruptura da liberdade. Para Laclau (2005)
se questionarmos as duas premissas iniciais de Zizek, chegamos a um cenário no
qual existe mais lugar para a esperança. Em primeiro lugar, em referência à
parcialidade das lutas. Como temos visto ao longo deste livro, não existe nenhuma
luta ou demanda que não tenha uma área de irradiação equivalencial. Zizek se
equivoca quando apresenta as lutas, por exemplo as multiculturais, como
secundárias e totalmente integráveis dentro do sistema existente. De fato, apresentar
o problema em torno de qual delas é mais fundamental, é totalmente inapropriado.
Como temos visto, a centralidade sempre está relacionada com a formação de
identidades populares que não são outra coisa que uma sobredeterminação de
demandas democráticas. Portanto, a centralidade de cada uma delas não vai
depender de sua posição dentro de uma geometria abstrata de efeitos sociais, como
pretende Zizek, senão de sua articulação concreta com outras demandas em uma
totalidade popular. Isto obviamente não garantirá o caráter “progressista” dessa
totalidade, mas sim cria um terreno dentro do qual podem ter lugar várias tentativas
hegemônicas. Em segundo lugar, podemos entender claramente porque não existe
nada tal como uma luta anticapitalista per si, senão efeitos anticapitalistas que
podem derivar, em certo ponto de ruptura, da articulação de uma pluralidade de
lutas. [...] No entanto, subsiste um problema: qual é o conteúdo semântico do
“anticapitalismo”? É o anticapitalismo um significante vazio, em cujo caso o
“capitalismo” seria uma construção do movimento anticapitalista, o outro lado” de
uma fronteira que constitui a unidade do campo de equivalências anticapitalistas?
Ou o capitalismo é mais bem a lógica subjacente de todo o sistema, em cujo caso o
anticapitalismo somente pode ser um efeito interno da lógica mesma do próprio
capitalismo? Aqui fica claro o que é que me separa de Zizek. Ele permanece dentro
do campo da imanência total, enquanto para mim, o momento da negatividade é
irredutível. Esta é a razão pela qual, em nossa visão, o ator histórico central –
inclusive ainda que em certo ponto pode empiricamente ser uma “classe” sempre
vai ser um “povo”, enquanto que para Zizek sempre vai ser uma “classe” tout court
(p. 296-297, tradução nossa).
Em outra parte do mesmo livro, Laclau afirma:
não existem pontos privilegiados de ruptura e disputa a priori; os pontos antagônicos
particularmente intensos somente podem ser estabelecidos contextualmente e nunca
deduzidos da gica interna de nenhuma das forças enfrentadas tomadas na forma
isolada. Em termos práticos não existe motivo para que as lutas que têm lugar dentro
das relações de produção devam ser os pontos privilegiados de uma luta global
anticapitalista. Um capitalismo globalizado cria uma miríade de pontos de ruptura e
antagonismos crises ecológicas, desequilíbrios entre diferentes setores da
economia, desemprego massivo, etcétera –, e é somente uma sobredeterminação
desta pluralidade antagônica a que pode criar sujeitos anticapitalistas globais
capazes de levar adiante uma luta digna de tal nome. E como demonstra a
experiência histórica, é impossível determinar a priori quem vão ser os atores
166
hegemônicos nesta luta. o resulta em absoluto evidente que venham ser os
trabalhadores. Tudo que sabemos é que vão ser os que estão fora do sistema, os
marginais que são decisivos no estabelecimento de uma fronteira antagônica (2005,
p. 188-189, tradução nossa).
Ainda cabe apontar a consideração de Bernadete (AP-MBH) de que hoje, faz-se
necessário (re)construir o significado do termo socialismo, na medida em que, além da
pluralidade de sujeitos a serem considerados na construção do processo de mudança social, a
elite passou a nomear o socialismo a partir da associação deste termo com o socialismo
construído no Leste Europeu, com o Stalinismo. Assim, é preciso que os movimentos sociais
construam o significado da sociedade pela qual lutam cotidianamente, não estando este
definido a priori esta é uma tarefa que a AP, de acordo com Bernadete, busca conduzir
através da organização do Projeto Popular para o Brasil.
Além disso, segundo Temístocles (CUT), hoje, diante de mudanças históricas
vivenciadas nos últimos anos, como o declínio da URSS, projetos progressistas na América
Latina, como o ocorrido na Bolívia, permite considerar que possibilidades de “mundos
possíveis” estão para além da dicotomia capitalismo/socialismo.
o mundo hoje tem outros paradigmas, não é só isso hoje, entendeu, de capitalista ou
socialista, tem mais, o Evo Morales não fala disso, o Evo Morales fala de outros
valores, entendeu. Eu fui à Bolívia, vai lá e fala que você é marxista, e daí? Isso diz
pouco, porque o Marx não levava e não integrava a dimensão dos cocaleiros, dos
mineiros. Então hoje tem que ter formulações superiores que algumas pessoas estão
buscando fazer entendeu (Temístocles, CUT).
Ademais, a extensão do capitalismo contemporâneo para uma dimensão globalizada
acarretou em dificuldades de se estabelecer delimitações claras entre “nós” e “eles”, em se
identificar de modo preciso quem são os adversários e como enfrentá-los, sendo este um
obstáculo importante a ser levado em conta na construção da mudança social hoje. João Pedro
Stédile, no “Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Edição Especial (Jan-Fev 2009)”
ANEXO II MST -, ao falar do desenvolvimento do capitalismo na década de 1990, em
direção a um capitalismo internacionalizado, dominado pelo capital financeiro, afirma com
relação à luta pela Reforma Agrária que:
Antes era mais fácil, havia a ocupação do latifúndio e a gente enfrentava o
fazendeiro. Agora não. Agora, mesmo quando a gente ocupa uma fazenda, em geral,
por trás do fazendeiro tem uma grande empresa, tem o Estado brasileiro, que o
protege, colocando em primeiro lugar não a eliminação da pobreza e da
desigualdade, mas a produção [...] Se antes o camponês tinha ódio do latifundiário, e
muitas vezes um ódio pessoal, agora ele tem que desenvolver consciência de classe.
Ele tem que compreender que o inimigo agora é o sistema, a Monsanto, a Nestlé,
inimigos que a gente não conhece tão bem (p. 04).
167
A entrevistada da MMM afirma esta mesma dificuldade na identificação dos
adversários da luta hoje:
voltando a importância das transnacionais ! é... antes você tinha uma... é... crises
isoladas! meio que demoravam! um certo tempo pra chegar. Hoje não, hoje você
tem um escritório na Itália! e um tanto de trabalhador na FIAT aqui em Betim.
Então, é diferente. A crise da FIAT não está na Itália! (rsss) Entendeu? Então é... a
burguesia ela é transnacional! Ela não é... não são cinqüenta famílias que têm a
maior renda per capita do que todos os brasileiros do país. A gente não está lidando!
com essa burguesia. Os nossos inimigos eles... eles.. não estão aqui. Eles são...
eles se deslocam! eles estão no computador... eles estão nos números da bolsa,
capital financeiro. Então... é... uma coisa que para gente não... não deixa de ser
concreta: classe! a questão econômica! manutenção da vida! e tudo muito aqui,
mas... o que rola é que o capitalismo financeiro internacional é uma... é um outro
tipo de... de... inimigo. A gente não sabe nem quem é! a gente sabe o nome das
empresas, mas a gente não sabe nem qual país as vezes, a gente... [...] mas... é isso! o
capital ele se deslocou! então a classe ainda não sabe lidar direito com isso, a gente
ainda não... não... não sabe. Por isso a importância, e hoje tem se reunido, tem um...
Comitê é... por continente de discussão sobre a crise e de é... construção de lutas.
Não dá! para classe trabalhadora do Brasil achar que vai fazer o enfrentamento da
crise, não dá! o negócio é transnacional (Entrevistada, MMM).
Diante das considerações aqui apresentadas, referentes à insuficiência de se
compreender as possibilidades de mudança social a partir de dicotomias como “novos”
movimentos sociais x “velhos” movimentos sociais, lutas “revolucionárias” x lutas
“reformistas” podemos lembrar que vivemos hoje um tempo em que temos perguntas fortes e
respostas fracas, na medida em que as experiências existentes vão além dos conceitos e teorias
construídas pelas Ciências Sociais, cabendo a nós expandir o presente e contrair o futuro
(SANTOS, 2002).
5.1. Democratização social: formas de ação salientadas pelos
movimentos sociais
Ao menos três formas de ação são salientadas pelos entrevistados no que tange à
promoção da mudança social: conscientização e mobilização política; luta por demandas
específicas; construção de uma alternativa comum de sociedade.
Diante da análise do processo de subjetivação como entendido por Laclau e Mouffe,
deve-se ressaltar a existência de uma disputa entre alternativas possíveis de se compreender o
social, cabendo aos movimentos sociais estabelecerem discursos e práticas que possibilitem a
construção e fortalecimento de identidades políticas, de maneira que aglutinem um grande
168
número de indivíduos e grupos em torno de suas bandeiras políticas
81
. É desta forma que
podemos compreender a seguinte colocação de Cássia (NA):
a gente encontra várias pessoas assim com um super potencial, que tem uma
discussão muito legal e que são jovens e negros e com uma experiência foda e que
acham que não dão conta de fazer um tanto de coisa, porque elas aprenderam e
continuam escutando que elas não dão conta e que algumas situações, alguns
espaços e algumas experiências não são para elas. eu acho que é bem que a
gente começa a cutucar, sabe, com as nossas armas.
Todos os entrevistados enfatizam que a mudança social depende de a população estar
consciente das lógicas de opressão; mesmo porque, como enfatiza a entrevistada da MMM, a
construção do poder popular é concebida numa forma que
não seja um poder de gado! você vai tocar gado para ir numa manifestação... ou
você vai... achar que as pessoas ali são... é... alienadas, manipuladas e quanto mais
gente você colocar no ônibus e for para Brasília: ‘beleza! Eu acho legal!’ Não! a
gente não acredita nesse processo. Então, eu acho que o nosso papel enquanto
movimento social é isso: é fortalecer a consciência da classe! e fortalecer de uma
forma feminista.
[...]
não nos interessa, assim, eu falo no caso da Marcha, nas últimas lutas que a gente
tem construído, não nos interessa ter um bando de gente nas ruas sem saber o que
está fazendo. Um bando de mulher na rua gritando, com uma bandeira que não sabe
o nome! com um lenço que não sabe o que significa! se não tem um processo
anterior que faça sentido! da pessoa estar na rua, além! do comer, do vestir, do
morar.
Neste sentido, os diferentes grupos constroem ações de conscientização e mobilização
política para que, assim, possam efetivamente promover a luta popular, decorrendo estas
ações de duas frentes complementares: formação política e participação na luta
82
.
De acordo com o entrevistado da BP, a formação política é uma importante ferramenta
de conscientização e mobilização política, uma vez que “não prática revolucionária sem
81
Cabe ressaltar que, para Laclau e Mouffe, a interpretação da condição de subordinação como uma condição de
opressão pelos indivíduos não se encontra pautada em uma noção de conscientização, caracterizada pela
emergência de um interesse “autentico” do sujeito, como se houvesse superado a condição de falsa consciência.
Esta compreensão não é possível no interior da Teoria Democrática Radical e Plural, desenvolvida por estes
autores, exatamente pelo fato de que a constituição identitária é entendida como discursivamente mediada, não
sendo possível afirmar a existência de um interesse autêntico a ser desvelado, mas somente que diferentes
possibilidades de se interpretar o real, sendo o discurso dos movimentos sociais, pela politização de formas de
subordinação, apenas um dos discursos possíveis de mediação entre agente e estrutura social.
82
De forma semelhante a estas frentes de conscientização e mobilização política, Klandermans (2002) subdivide
o processo de mobilização em dois passos (“steps”): mobilização de consenso, a qual se remete a disseminação
das visões do movimento; mobilização de ão, que se refere à transformação daqueles que adotam a visão do
movimento em participantes, necessitando, assim, os movimentos sociais dos resultados da mobilização de
consenso e de se concentrar naquelas pessoas que apresentam uma disposição comportamental para participar na
luta política travada pelo movimento.
169
uma teoria revolucionária” (Joviano, BP). A partir dos grupos entrevistados, observa-se que
esta frente de formação política se constrói através da promoção de cursos sobre a conjuntura
política (adversários, aliados, mecanismos de funcionamento da sociedade, estratégias de
enfrentamento, etc.) – como o Curso Ls Carlos Prestes, organizado pela BP; o Curso
Levante Juventude, organizado pelo MTD, por exemplo - sendo estes cursos promovidos
pelas próprias organizações ou em parceria com universidades.
vocês ouviram falar do 13 de Maio? é um grupo de formação política que tem ai,
está fazendo cursos, vai tem um em Montes Claros agora, vai ter em Belo Horizonte
também mais para frente, tem o... a própria assembléia popular que faz umas
atividades de formação de vez em quando, tem o curso Realidade Brasileira que a
gente fez também como MTD é... e vira e mexe os Movimentos Sociais estão
conseguindo galgar alguns espaços de formação na universidade. Tem um... um...
têm três grandes cursos nacionais assim, quatro! talvez de formação política para os
Movimentos Sociais brasileiros hoje. Um é na Universidade Federal de Juiz de Fora,
com o pessoal do serviço social que tem um curso de realidade latino-americana,
que envolve assim mais ou menos umas cem pessoas, e a gente traz, o Movimento
indica pessoas do Brasil inteiro que vão, estudam assim (xxx). Tem na Federal do
Espírito Santo um curso de economia política, que é do pessoal da faculdade de
economia mesmo, o Reinaldo que ajudou como professor militante sabe? que...
que... que participa. Está acontecendo na Federal do Rio de Janeiro também dois
cursos, um curso que é o que eu participo também pelo MTD, que é um curso de
realidade do capitalismo contemporâneo também, discutindo um pouquinho mais
com foco na questão da energia, que é o Movimento que articulou que o movimento
dos atingidos por barragens e... um curso de filosofia. Na Federal do Rio Grande do
Sul também, na Federal do Rio de Janeiro que foi o MST que articulou também e
que participam vários Movimentos Sociais. Esses cursos são mais sistematizados.
São dois anos de duração, estudando um mês. E a Escola Nacional Florestan
Fernandes, você já ouviu falar? Que é aquela escola que o MST faz que também tem
feito alguns cursos assim, que não são assim tão institucionais como os cursos de
universidades que já existem, mas são cursos também bem dedicados. Tem um curso
que é o latino que eles fazem, que eles chamam até gente da America Latina
inteira assim dos Movimentos Sociais para passar 4 meses! estudando lá né, a pessoa
fica lá 4 meses recluso só estudando economia política (Bruno, MTD).
Também se caracteriza pela construção de espaços de diálogo junto a indivíduos
mobilizados localmente pelo movimento social ou que sejam alvo deste movimento:
construção de “Rodas de Conversa e Poesia” pelo grupo NA com o objetivo de empoderar e
organizar mulheres em torno do enfrentamento a formas de opressão, bem como delas
levarem tais discussões para outros grupos dos quais participam; construção de “hortas
comunitárias” nas periferias de Belo Horizonte pela MMM, na busca de atrair mulheres destas
regiões e, assim, construir junto a elas reflexões críticas sobre as bandeiras defendidas pela
MMM; organização de “Grupos de Produção” pelo MTD, com o objetivo tanto de reinserir
desempregados no mercado de trabalho quanto de debater com estes os mecanismos de
exploração vivenciados na sociedade, sobretudo, aqueles relativos á gica de produção
capitalista; organização de grupos de mulheres, de jovens nas ocupações, feito pela BP, para
170
se discutir os problemas enfrentados por estes grupos e também as contradições consideradas
fundamentais a serem superadas.
A formação política abarca ainda a distribuição de folhetos, fanzines e informativos
pelos grupos, como o “Recado das Minas”, feito pelo NA, que se define, segundo as
entrevistadas, pela produção de textos com linguagem acessível, para serem distribuídos em
situações políticas expressivas, em situações de conflito, na comemoração de datas de luta
importantes, a fim de dar visibilidade ao debate político referente ao evento em que são
distribuídos, de modo a informar as pessoas sobre condições de opressão.
Além disso, uma importante forma de conscientização e mobilização política se a
partir da construção de assembléias populares nas periferias, de modo a aglutinar lideranças e
população local para se debater os problemas imediatos daquela região e, a partir disso,
relacionar as pautas locais às lógicas de opressão mais amplas.
então no ano passado que a gente consegue rearticular esse comitê [AP-MBH]
trazendo bairros e tal e aí a gente casa a coisa da luta dos bairros com lutas nacionais
também, que não ficava no âmbito ali local, mas casava, por exemplo, uma das
bandeiras que a gente ano passado foi a questão da tarifa social da Cemig, por
exemplo, da questão da energia, que era uma coisa que estava acontecendo no Brasil
inteiro, inclusive diferentes Estados que tiveram ganho assim, que as pessoas
conseguiram realmente que fosse cumprido uma lei que era nacional, e aqui a gente
não teve esse ganho, mas a gente fez essa luta com os bairros e tal, e acho que
apresentamos para os bairros que não adiantava fazer uma abaixo-assinado, não
adiantava ir na CEMIG conversar (rsss), que a gente tinha que ter um processo de
conscientização das pessoas. Foi bem bacana porque ano passado a gente teve vários
processos de mobilização, luta mesmo, que juntou todo mundo da cidade e tal. Não
sei se vocês viram em junho do ano passado, por exemplo, que a gente parou o trem
da Vale no São Geraldo, no bairro São Geraldo, junto com a comunidade de lá,
a comunidade enfrentava outros problemas, morte de gente na hora de atravessar e
essas coisas assim que reivindicava transposição da linha, só que isso não acontecia,
e a gente casou com essa coisa da tarifa, da luta também porque aqui em Minas a
Vale, por exemplo, a gente paga 10,67 por cada Kw, a Vale paga 10,03 por cada Kw
83
(rsss). Então, porque que uma grande empresa é beneficiada desse jeito e o
consumidor tem que pagar isso? Então, a gente casou essas duas lutas e tivemos...
paramos por metade do dia o trem lá, no São Geraldo, foi bem bacana, a
comunidade e conseguimos uma coisa da transposição da linha, que está em
obras, tal, para transpor a linha (Bernadete, AP-MBH).
Na afirmação deste processo de conscientização e formação política, o trabalho de
base é ressaltado pelos entrevistados como uma importante ferramenta na luta política.
Segundo o documento Repasse Encontro Nacional da Assembléia Popular” (nov. 2008)
83
Na edição do “Jornal da Assembléia Popular Mutirão por um novo Brasil (maio 2009)” (ANEXO V AP-
MBH), aponta-se que “uma família mineira paga em torno de 63,78 reais por 100 KW de energia enquanto a
empresa VALE paga apenas 3,30 reais pela mesma quantidade de 100 KW” (p. 04).
171
ANEXO III AP-MBH, o trabalho de base apresenta como princípio que “todos nós somos
capazes e têm saberes e só aos oprimidos interessa a luta” (não paginado) e como tarefas:
1) acirrar as crises e desmascarar suas causas; 2) elevar o nível de consciência do
povo trabalhador; 3) aumentar o estado de ânimo das massas; 4) descobrir sementes
de lutadores e militantes; 5) conhecer a realidade concreta e material, a história de
lutas, as forças políticas existentes; 6) fazer ações concretas (o povo vem para a
luta quando tem certeza que terá vitórias); 7) manter organizado grupos de base; 8)
fazer formação política; 9) sair do território, enxergar para além; 10) acumular
forças para a grande batalha (não paginado).
De acordo com Bernadete (AP-MBH), a AP-MBH tem enfrentado dificuldades na
construção do trabalho de base, encontrando problemas na mobilização de militantes dos
bairros para a participação nas Plenárias Metropolitanas. Ela considera que isso pode ser
decorrência do fato de que como as lutas dos bairros são muito locais, os militantes encontram
dificuldades de se inserir nos espaços de vínculos. Outro aspecto apontado por participantes
da AP-MBH, quanto ao trabalho de base, é a necessidade de se aglutinar mais pessoas na
construção do mesmo, para que seja possível, assim, um trabalho mais permanente com os
bairros. Segundo Bernadete (AP-MBH), a crise econômica de 2008 produziu um maior
esvaziamento dos espaços de vínculos entre movimentos sociais, na medida em que cada
movimento necessitou retornar para suas lutas específicas, a fim de manterem ou ampliarem
suas próprias bases, de modo a sobreviverem.
Quanto à frente da participação na luta, alguns entrevistados apontam ser esta uma
condição importante para a conscientização e mobilização política, já que propicia uma
condição favorável para que os indivíduos construam uma identidade coletiva
84
com o grupo.
A história de Edith de pertença ao MST e seu compartilhamento de valores e crenças com
movimento demonstram a formação desta identidade coletiva com um grupo:
o meu trabalho que eu faço no Movimento hoje, assim várias pessoas que vem
disponibilizar a força de trabalho, é muito diferente da força de trabalho do mercado,
é um trabalho que a gente faz acreditando que vai haver uma recompensa na
frente, coletiva! que não é um resultado pessoal meu. É um tipo de realização
84
Segundo Prado (2002), a formação de identidade coletiva é um elemento fundamental para a politização das
relações de subordinação, remetendo-se ao sentimento de pertença do indivíduo a um determinado grupo, a
práticas cotidianas do grupo na construção de redes sociais, nas quais os atores, instituições ou organizações se
colocam como colaboradoras ou adversárias do grupo, e ao "compartilhamento de valores e crenças que definem
uma cultura política do grupo, colaborando na configuração e mediação da relação entre diferentes grupos"
(PRADO, 2002, p. 66). Outros dois elementos considerados fundamentais pelo autor, para a politização das
relações sociais, são: passagem da relação de subordinação para relação de opressão; demarcação de fronteiras
políticas entre os grupos sociais.
172
pessoal minha, eu fui para um acampamento eu tinha nove anos de idade, então eu
cresci no MST, eu fui para o MST em 88, quando nós ocupamos a primeira fazenda
em Minas Gerais e... [comendo] cesta básica envenenada (rsss) do governo, mas
também aprendendo a produzir, a plantar enfim. E fui educada dentro do MST, fui
educada por um Movimento que hoje eu tenho uma tarefa de retribuir essa educação,
mas em função de um resultado coletivo, de um projeto que seja coletivo para a
sociedade brasileira. E assim são vários militantes que vocês se depararem (Edith,
MST).
Segundo Temístocles (CUT), com relação ao processo de conscientização e
mobilização política, o indivíduo precisa dar somente o “primeiro passo” (participar em
alguma luta), pois depois disso, se ele tiver internalizado valores coletivos referentes à luta,
ele é “capturado” pelo movimento social. A construção deste “primeiro passo”, segundo os
entrevistados, decorre, predominantemente, da busca por necessidades imediatas como a
conquista de um pedaço de terra para morar e cultivar, de uma moradia, de melhores salários,
de vivências de discriminação.
Bruno (MTD): o chamado que leva as pessoas pra luta em geral é por um ganho,
uma possibilidade de ganho real! È porque hoje em dia como a consciência não está
tão grande são poucas pessoas que vêm assim, ‘vamos participar’, participar não
chama ninguém.
Entrevistador: Vamos fazer a Revolução
Bruno (MTD): Não, nem fala isso né, isso afasta às vezes as pessoas. ‘Vamos
reunir’, isso aí não atrai ninguém, as pessoas precisam de motivo que as mobilizem a
gastar energia entendeu. Então a gente pensa em trabalhar muito com essas pautas
mais econômicas. Os Movimentos mais... alguns mais novos, modernos, GLBT,
Feministas, às vezes eles têm um pouco de crítica a isso, porque não vão lutar por
uma questão econômica real, é mais uma condição de opressão mais subjetiva, é
valido! também, mas nós do MTD trabalhamos muito com essa pauta econômica
mesmo.
Então o que leva alguém a participar de alguma coisa? Infelizmente é isso, devia ser
outras coisas mais, outros valores, outras necessidades, mas basicamente a
necessidade imediata de reivindicações: salários tão ruins, as condições de trabalho
estão ruins, a condição de saúde se tiver ruim, as condições de trabalho e de saúde
do trabalho, essas coisas todas, isso leva a pessoa a dar o primeiro passo. Ao dar o
primeiro passo, se ela é ganha para valores coletivos maiores, mais nobres, mais
universais, ela entra como foi o meu caso. Na verdade, a pessoa tem que dar o
primeiro passo, o resto é... sabe como é que é, eu me olho assim para trás, foi um
pouco isso, eu podia ter feito outras coisas, mas eu fui capturado para outra
perspectiva, você entendeu de... mas começou a partir de luta salarial, não foi
revolução, não foi necessidade de um novo governo no estado, não foi o partido, foi
salário: ‘vão discutir salário?’ ‘Vamos’ ‘Então to dentro’. Participei, entendeu, então
é isso. Acho que é a necessidade da pessoa (Temístocles, CUT).
A gente trabalha com os excluídos dos excluídos da sociedade. Quem vem para o
MST hoje são aquelas pessoas que não m mais onde procurar, não têm mais por
onde fugir de um problema que causa miséria. Então, as pessoas hoje que m para
o MST é porque o Movimento se tornou a última saída que ele tem pra melhorar de
173
vida. Não, isso não exclui que no Movimento não vem pessoas por simpatia, seja
estudantes, por exemplo, que vêm para o MST, mas a porta de entrada no
Movimento, assim do número, desde a formação nossa das mais de 300 mil famílias
que hoje foi regularizada pelo Movimento durante os 25 anos, o maior contingente
entra pelas ocupações de terra que vem em função da conquista de um pedaço de
terra (Edith, MST).
No meu caso, eu acho que era muito porque... assim (rsss) eu não venho é... antes do
Negras Ativas eu acho que eu tinha uma trajetória muito mais de atuação
comunitária do que política assim de ir pro quebra pau mesmo sabe. Mas, enfim,
tinha uma trajetória de atuação no meu bairro, Goiânia, e ai com... dentro de um
projeto que se propunha discutir, principalmente, a questão racial e trabalhar isso
assim, a necessidade de uma igualdade racial. E que fez uma super diferença,
assim, na minha vida em relação à, primeiro, aprender a valorizar uma origem, e,
segundo, me identificar com ela, e que, realmente assim, eu acho que produziu
uma mudança, sabe, na minha percepção assim das coisas. Mas ser mulher
dentro entendeu ainda, às vezes, me fazia pensar que talvez não era a questão da
necessidade de rever essas relações sociais que estava colocada, pelo menos para
mim, entendeu, e não para mim, para as minhas colegas mulheres dentro
também. E aí, e nem a questão de ser moradora de periferia, tava colocada. E
quando eu fui me aproximando das meninas e veio o convite para Negras Ativas eu
vislumbrei a possibilidade de tentar tratar dessas coisas de maneira mais conectada.
E para lhe falar a verdade, a questão da juventude, assim, apesar de eu ter uma
reflexão que era muito mais teórica! sobre o assunto, assim, me tocou mesmo
quando eu comecei a militar junto com as Negras Ativas é a tomar na cabeça, sabe,
pelo fato de ser jovem nessa vida de militância política. eu falei: ‘é, realmente:
se posicionar enquanto jovem em alguns momentos vai ser importante, inclusive
para denunciar esse negócio, sabe, que isso? Será que eu vou ter que viver 45 anos,
50 pra poder falar?’ (rss). Então, foi mais ou menos isso (Cássia, NA).
De acordo com alguns entrevistados, vive-se atualmente um quadro de forte
desmobilização social, apontando, como descrito anteriormente, tanto aspectos relativos a
uma expansão da hegemonia – atuação das ONG, a centralidade nas vias institucionais,
fragmentação e dificuldade de enfrentamento da esquerda frente ao governo Lula – quanto às
ações de invisibilidade e criminalização dos movimentos sociais promovidas por instâncias
estatais, pela imprensa.
Desta forma, alguns entrevistados afirmam a importância dos movimentos sociais
construírem ações de conscientização da população, de combate à criminalização dos
movimentos sociais. Ademais, dizem da importância dos movimentos proporcionarem
àqueles que já deram oprimeiro passo” a possibilidade de transformarem os interesses
imediatos, que os levaram a participar de determinada ação, em interesses coletivos para a
construção da luta política.
Entrevistador: como que os movimentos sociais então apoiariam! essa ação, essa
luta revolucionária? Como eles construiriam essa ação revolucionária?
Entrevistada (MMM): assim, o que a gente tem feito? É isso que você... que eu te
relatei assim é... primeiramente! construir trabalho de fortalecimento popular! As
174
pessoas identificarem que elas são trabalhadoras e que... é... elas são oprimidas! e
que esse problema não é um problema delas, que é um problema da maioria das
pessoas do país, da América Latina e que isso não é natural! não é natural que Deus
quis que umas pessoas fossem pobres! e outras pessoas fossem ricas, acumulassem e
explorassem as outras. Então a coisa está muito no início! É... é de formação
mesmo... é de mobilização social... acho que o papel dos movimentos no processo
revolucionário é esse. Eu não sei qual que é o papel dos partidos, eu não sei qual que
é o papel dos governos que são socialistas acho... porque eu não entendo mesmo,
mas o que eu entendo hoje: qual que é o papel do movimento social no processo
revolucionário? É de formação do povo! de formação com! o povo, é da gente se
sentir povo, se sentir trabalhador, trabalhadora e ir experimentando! as... as formas...
as alternativas que a gente tem de revolução do cotidiano e não perdemos de vista!
uma revolução estruturante.
Companheirada, não tá fácil não gente, as pessoas para gente construir a nossa
consciência da necessidade da luta e dedicar a vida a isso é muito trabalho! Muitas
vezes a gente gasta nossa energia militante demais não é nem para ter vitória real!,
mas é para trazer gente, para somar. E isso também é uma beleza, é uma
potencialidade da coisa. Então, na Dandara vocês podem ter certeza, daquelas 1000
pessoas, famílias que estão vai ter muita gente que vai sair de e vai estar
militando nos Movimentos sabe, vai estar potencializando, vai pular da consciência
econômica, da luta econômica, individual, corporativa da minha casa por uma luta
mais coletiva. E é bem diferente! da pessoa ganhar uma cesta básica e a pessoa lutar!
para ter uma cesta básica que seja, para pessoa lutar pra ter uma casa e a pessoa
lutar! pra ter uma casa. Na luta a pessoa se junta, se organiza, divide tarefas, debate,
se relaciona, marca uma reunião com peixe grande, percebe a contradição do
processo, fica incomodada, angustia, chora, entendeu. Tem que estudar, porque tem
alguma coisa que eserrada, entendeu. No processo da luta a gente forma militante
e são esses militantes que vão construir, estão construindo, vão construir a
Revolução, um projeto mesmo de uma sociedade alternativa, diferente, socialista
que a gente quer (Bruno, MTD).
No documento “Cadernos MMM 2008” ANEXO II MMM -, afirma-se que o
rompimento da MMM com as vias institucionais de luta, centrando-se na mobilização, na
educação popular, na auto-organização das mulheres propiciou saldos positivos para a luta
política:
Com a MMM vimos a retomada da mobilização nas ruas, a organização ampla das
mulheres desde a base, articulando do nível local ao internacional, a construção e o
reforço das alianças com vários movimentos sociais. Houve um crescimento da
legitimidade perante outros movimentos mistos, a partir da participação no
plebiscito da dívida externa e posteriormente na campanha contra a ALCA. A
participação no Fórum Social Mundial possibilitou ampliar a visibilidade e
articulação da MMM, além de expressar seu envolvimento e compromisso com o
movimento anti-globalização. Essa participação permitiu ampliar, intensificar
debates antes muito restritos, como, por exemplo, sobre a mercantilização do corpo
e da vida das mulheres. Um outro saldo muito positivo da constituição da MMM
como um movimento permanente foi o crescimento da unidade entre mulheres
urbanas e rurais. Isso pode ser verificado não apenas pelo fato de que ambos setores
estão em uma mesma agenda, mas também pelo crescimento do apoio e participação
das urbanas na Marcha das Margaridas e pelo crescimento de ações conjuntas entre
rurais e urbanas (p. 08).
175
Alguns entrevistados consideram que momentos de crise econômica, como o
vivenciado atualmente, são propícios a uma maior mobilização daqueles em condição de
subordinação. Esta compreensão decorre do fato de que se estes vivenciam situações
precárias em momentos de estabilidade do sistema social, nos momentos de crise tais
situações se intensificam em grande medida. Entretanto, sobretudo no momento da devolução
realizada com os grupos, apontam que os movimentos sociais não foram capazes de mobilizar
grande contingente de pessoas para a luta.
Segundo Bernadete (AP -MBH), uma das razões desta dificuldade de mobilização é
que a bandeira da luta contra a crise é uma bandeira muito ampla, que dificilmente consegue
aglutinar os movimentos de bairro. Caso muito diferente, por exemplo, da bandeira da tarifa
social de energia, a qual, ao mesmo tempo em que é uma pauta passível de se vincular com
bandeiras nacionais - luta pela soberania nacional, pela reestatização da Vale, contra o valor
do kw/h pago pela Vale com relação ao pago pela população -, é também mais palpável para a
população (a conquista da tarifa social de energia interfere no valor da conta de luz da
população). Ademais, a construção de vínculos entre os movimentos sociais em torno da
bandeira contra a crise econômica tinha como expectativa que as Centrais Sindicais
conseguissem mobilizar um grande contingente de pessoas, o que não aconteceu, tendo isso
frustrado militantes e, assim, contribuído para uma maior desmobilização social.
Quanto ao eixo luta por demandas específicas, salienta-se a promoção de mudanças
cotidianas, de conquistas parciais, consideradas por alguns grupos como lutas estratégicas
para a organização popular, para a conscientização da população, para a conquista da
mudança social.
também não para esperar quando! a revolução acontecer. Acho que a revolução é
um processo e ela tem que começar agora! Então, ela tem que começar no
rompimento do... com meu rompimento com os padrões de beleza impostos... é com
meu relacionamento, é na minha... na minha prática social enquanto enfermeira...
individualmente! Mas é coletivamente! também, da forma como a gente se estrutura
enquanto movimento social... é... na forma que a gente dialoga com outros
movimentos sociais... do jeito que a gente quer construir o poder popular...
(Entrevistada, MMM).
ganho real! concreto! para o povo! é ganho para nós político, entendeu. Uma
categoria ganhar mais, que bom! Os metalúrgicos conseguir aumentozinho de
salário é menos dinheiro, é menos mais valia que o patrão es ganhando, bom
demais gente, é isso que nós queremos mesmo entendeu. Gente que estava sem casa
conseguir casa, bom demais! Entendeu. Direito social que estamos conseguindo, é
um processo de construção de acúmulo de força. Então, assim, não podemos ser,
sabe, assim sabe, esse sentimento de egoísmo: ‘ai não, mais é uma luta
individual! corporativa deles de ganhar uma casa! ou de ganhar um salário a mais’.
176
Não, isso é luta que passa pelo individuo, mas a luta é da classe, de acúmulo de
força e vitória real (Bruno, MTD).
Bom, nós partimos é, Frederico, partimos das demandas reais do povo. Tem até uma
frase do Marx: “a verdadeira transformação é a transformação das necessidades
reais”. Então partimos, por exemplo, no caso aqui da moradia, se mobiliza um
contingente populacional para essa luta pela moradia, e a partir daí, por meio, tendo
como ferramenta as ocupações urbanas, que ela não é um fim em si mesmo, ela é um
meio pra fazer uma denúncia da situação, para pressionar o poder público, para
poder garantir uma vida digna para as pessoas, mas a partir daí buscar elevar essa
luta, que parte do imediato, parte do estômago, uma luta de reposição salarial, é o
dinheiro do aluguel que vai deixar de ir para o lixo para poder voltar para
subsistência da família; parte dessa luta imediata e com a tarefa de, a partir daí, da
tomada desse território, elevar para um patamar político essa luta. Então, criar
condições que as pessoas aqui passem por um processo de tomada de consciência e
de conscientização da grandeza dessa luta, que não se reduz a casa, vai muito para
além, e passa a ter um acordo político com a organização em torno do nosso projeto
político. Então, elevar isso para outro patamar que não se restringe apenas ao
imediato dessa luta, que tem como proposta garantir a mobilização. Bom, então ai as
ocupações são uma das estratégias (Joviano, BP).
Neste eixo, observam-se estratégias de aliança entre alguns movimentos sociais, em
torno de bandeiras específicas, funcionando estas como um elemento estratégico da luta
política, uma vez que a continuidade dos indivíduos na luta depende da obtenção de algumas
conquistas. Temos, por exemplo, a construção da Ocupação Dandara, a partir de estratégia de
aliança entre BP, MST, Fórum de Moradia do Barreiro; a formação do Grupo Atitude de
Mulher, por mulheres de grupos de mulheres da região metropolitana de Belo Horizonte; o
projeto Resgate dos Quintais, a luta pela soberania alimentar, ou a Marcha das Margaridas,
ações realizadas a partir da aliança entre mulheres do campo e da cidade; a luta pela tarifa
social de energia e por títulos de moradia numa aliança entre os movimentos sociais que
fazem parte da AP-MBH
E um exemplo disso [de construção de alianças] é esse acampamento que nós
estamos aqui [Ocupação Dandara], que é fruto dessa unidade das Brigadas com o
MST, junto com o Fórum de Moradia do Barreiro, casando ai as bandeiras da
reforma agrária com a reforma urbana (Joviano, BP).
como, por exemplo, a luta pela soberania alimentar. As mulheres camponesas e as
mulheres da cidade, a gente tem construído tanto alternativas de... por exemplo, aqui
no bairro tem o projeto Resgate dos Quintais! como uma forma é... que parece
invisível, mínima! mas é uma forma de resgatar a questão da alimentação, da saúde,
mas é também de discutir qual é a imposição do mercado sobre os enlatados...sobre
os alimentos transgênicos... ou inclusive sobre os agrotóxicos... então, parece uma
coisa mínima! cotidiana! mas para gente é uma forma de enfrentamento, é mínima,
mas também quando a gente junta estas mulheres que estão lá na sua hortinha
plantando e leva pra porta de uma... grande... é... transnacional alimentícia elas
sabem o que elas estão fazendo. Então, vai desde desse micro! desse espaço... que é
privado! até a questão do espaço público e que ultrapassa! inclusive as fronteiras do
próprio país. Então, tem Fóruns, teve o Fórum em Helenice sobre Soberania
177
Alimentar que a Marcha e a Via Campesina construíram junto com outros
movimentos camponeses (Entrevistada, MMM).
A população do Bairro Jardim Felicidade organizada no Movimento dos
Trabalhadores Desempregados (MTD) se mobiliza nesta quinta-feira para exigir da
URBEL os títulos de propriedade de suas moradias. [...] A população espera pelos
Títulos de Moradia há cerca de 23 anos [...] basta a vontade política da Prefeitura de
Belo Horizonte para regularizar a situação fundiária dos moradores do Bairro Jardim
Felicidade, considerado a maior ocupação da história do movimento dos sem-casa
desta capital. A Luta conta com o apoio da Assembléia Popular Metropolitana,
articulação de movimentos sociais que, em Belo Horizonte, envolve o Movimento
dos Sem-Universidade (MSU), a Marcha Mundial das Mulheres (MMM), o
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Via Campesina, entre outros
(Documento “MTD do Bairro Jardim Felicidade exige Títulos de Moradia” -
ANEXO IV MTD -, não paginado).
A construção destas lutas por demandas específicas ocorre, sobretudo, através de vias
não institucionais. Cabe apontar a descrença, por parte dos movimentos sociais, da efetividade
de estratégias institucionais para a conquista de suas bandeiras políticas. Com exceção da
liderança da ABGLT e da CUT, observa-se, nos outros entrevistados, uma desesperança
quanto à efetividade da luta a partir da participação em Conferências, Conselhos, da ocupação
de cargos institucionais por militantes de movimentos sociais, da construção de candidaturas
políticas para a promoção da mudança social, apesar de também utilizarem estas vias de luta.
Esta descrença encontra-se alicerçada, como vimos no capítulo anterior, na
compreensão de que os interesses da classe trabalhadora não são interesses considerados
centrais ou importantes nestes espaços; na limitação existente nestes espaços no que tange à
construção da mudança social; no risco do enfraquecimento da mobilização social e de ões
de enfrentamento ao Estado. É frente a esta desesperança nas vias institucionais, agravada
com a quebra da expectativa com o governo Lula, que, segundo Bernadete (AP-MBH), a AP
tem buscado construir o Projeto Popular para o Brasil, a partir do estabelecimento de vínculos
entre diferentes sujeitos da esquerda, tendo como centro da luta a organização popular:
Essa coisa de construir um projeto para o Brasil, um projeto popular para o Brasil
que trouxesse, que colocasse em pauta esse debate do projeto assim que até então é...
fazia-se uma análise de que é... essa proposta é... do projeto no âmbito das eleições
não sei o que a gente via que tinha se perdido, que tinha eleições atrás de eleições,
mas que não tinha mais discussão de projetos na sociedade, caía na questão do
marketing e tal e perdeu isso. Então, umas das principais coisas que a Assembléia
Popular contestava é que o povo devia se organizar pra construir um projeto e não
apostar em candidatos, no eleitoral, mas que é o povo organizado que construía um
novo país, um país justo, então uma das coisas da Assembléia Popular é isso, fugir
dessa coisa institucional, da via eleitoral (Bernadete, AP-MBH)
178
Com relação ao último eixo salientado, construção de uma alternativa comum de
sociedade, trata-se de construir o que foi anteriormente denominado de Estratégia de
Articulação, mesmo considerando os entrevistados dificuldades em se promover tal projeto:
a) fragmentação das ações entre os movimentos sociais, ocorrida nas últimas décadas
devido a diferentes fatores, como o processo de “ongzação” dos movimentos, proporcionado
pela lógica neo-liberal hegemônica; o distanciamento entre os movimentos, pelo fato de uma
compreensão prévia destes de que haveria muitas dificuldades em se estabelecer vínculos, em
decorrência de diferenças nas concepções de mudança social, de estratégia política; a vitória
do PT em prefeituras, estados e sobretudo no governo federal, acarretando numa cisão no
interior da esquerda entre aqueles que apóiam e aqueles que se opõem ao governo;
b) criminalização e invisibilidade das ações dos movimentos sociais como forma de
resistência da hegemonia, acarretando na deslegitimação das ações dos movimentos sociais e
na construção de uma imagem pejorativa dos mesmos, dificultando, assim, a construção da
luta política;
c) reprodução de gicas de opressão internas aos movimentos sociais como o
machismo (apontado pelo entrevistado da CUT, no interior do movimento sindical; por NA,
no interior do movimento cultural de BH; por Liliane (ABGLT), no interior do movimento
social LGBT), o adultocentrismo (relatado pelo grupo NA como existente em diferentes
âmbitos de discussão pública), a homofobia (visibilizada no interior do movimento feminista
diante da dificuldade de travestis e transexuais em se inserir no movimento; no interior do
movimento sindical, e em espaços que a Igreja se faz presente, sendo as pautas LGBT
marginalizadas, como indicado por Liliane (ABGLT)), o racismo (observado na história do
movimento feminista, como indicado pelo NA, a partir da dificuldade de inserção das
mulheres negras neste movimento).
Na afirmação da importância desta articulação entre os movimentos sociais na
construção de um “outro mundo possível”, no “Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Edição Especial (jan/fev 2009)” ANEXO I MST
–,
afirma-se que no processo de
redemocratização e abertura política do Brasil, na década de 1980, instrumentos políticos
importantes de organização da classe trabalhadora foram construídos (como o PT, o MST e a
CUT), tendo estes produzido um projeto político Democrático Popular. Contudo, com a
derrota do projeto socialista, no final da década de 1980, e com o desenvolvimento do
capitalismo no campo e na cidade, os instrumentos políticos forjados naquela época têm
perdido sua combatividade. Os vínculos da esquerda em torno do projeto político
Democrático Popular encontram-se enfraquecidos, ao mesmo tempo em que estes atores não
179
conseguiram construir nenhum projeto político que o superasse, sendo a unidade entre
trabalhador do campo e da cidade condição importante para se enfrentar a crise vivenciada
pela esquerda.
Compreendendo a construção de vínculos entre os movimentos sociais como
importantes para a efetivação da luta política, no ano de 2009, vínculos se estabeleceram em
torno das reivindicações contrárias aos efeitos da crise econômica mundial de 2008 sobre a
“classe trabalhadora”, sendo um dos lemas o de que “o povo não é culpado pela crise”.
Bandeiras de luta unificadas foram construídas por diferentes movimentos sociais em torno
das manifestações do Dia do Trabalhador, da Jornada de Luta ocorrida entre os dias 10 e 14
de agosto, do 15º Grito dos/as Excluídos/as.
O documento “Dia de luta! 30 de abril. Manifestação do dia do trabalhador e da
trabalhadora” (ANEXO I LC), assinado por diferentes entidades
85
, explicita como pautas de
luta: defesa do emprego e da renda, redução da jornada de trabalho sem redução dos salários,
reforma agrária e reforma urbana, valorização dos servidores e dos serviços públicos.
No que tange à Jornada de Luta, o “Jornal Brasil de Fato Edição Especial Crise
(julho 2009)” ANEXO II LC - aponta que “MOVIMENTOS SOCIAIS, centrais sindicais e
partidos de esquerda brasileiros estão elaborando uma plataforma unitária a ser defendida nas
próximas jornadas de luta [...]. O objetivo é mostrar para a sociedade que existem alternativas
populares à situação atual” (p. 04). Como bandeiras unitárias aprovadas pelas entidades e
organizações populares a serem explicitadas nas manifestações do dia 14 de agosto, estas
foram, segundo o Jornal: não às demissões; pela ratificação das Convenções 151 e 158 da
Organização Internacional do Trabalho; redução dos juros; fim do superavit primário; redução
da jornada de trabalho sem redução de salários e direitos; reforma agrária e reforma urbana;
fim do fator previdenciário; em defesa da Petrobrás e das riquezas do pré-sal; por saúde,
educação e moradia; por uma legislação que proíba as demissões em massa; pela continuidade
da valorização do salário mínimo e pela solidariedade internacional aos povos
86
.
No documento “Grito dos/as Excluídos/as 7 de setembro de 2009” (ANEXO III LC)
se afirma que
85
O documento é assinado por: CUT-MG, UGT-MG, CTB, CGTB, NCST-MG, CONLUTAS, Intersindical,
MST-MG, Comitê Mineiro do rum Social Mundial, Via Campesina, MAB, Assembléia Popular, MLB, MLC,
UNE, UBES, AMES-BH, DCE-UFMG.
86
Segundo o Jornal, as entidades que estavam a construir a Jornada de Luta eram: CGTB, CTB, CUT, Força
Sindical, NCST, UGT, Intersindical, Assembléia Popular, Cebrapaz, CMB, CMP, CMS, Conam, FDIM, Marcha
Mundial das Mulheres, MST, MTL, MTST, MTD, Oclae, UBES, UBM, UNE, Uneafro, Unegro/Conen, Via
Campesina, CNTE, Círculo Palmarino.
180
A crise nos apresenta 2 faces: de um lado, tem todo o lado perverso [concentração
de renda, aumento do desemprego, exclusão social, intensa devastação do meio
ambiente]. E de outro, pode ser um instante extremamente criativo, tempo de lançar
novas sementes e, como o lavrador, acreditar em suas potencialidades ocultas.
Assim, o lema ‘Vida em primeiro lugar: a força da transformação está na
organização popular’. Este lema apela para a necessidade de transformação, não
vinda de cima, de um messias mas através da organização popular e da elaboração
de um Projeto Popular para o Brasil (não paginado).
O Grito dos/as Excluídos/as, segundo o mesmo documento, busca:
denunciar o modelo político e econômico que, ao mesmo tempo, concentra riqueza e
renda e condena milhões de pessoas a exclusão social; Tornar público, nas ruas e
praças, o rosto desfigurado dos grupos excluídos, vítimas do desemprego, da miséria
e da fome; Propor caminhos alternativos ao modelo capitalista neoliberal, de forma a
desenvolver uma política de inclusão social, com a participação ampla de todos os
cidadãos/as
87
(não paginado).
Segundo entrevistados, assim como havia uma expectativa de que a crise
potencializasse a mobilização popular, também se esperava que ela contribuísse para a
construção de vínculos que permitissem a afirmação e construção de um projeto comum de
sociedade, mesmo tendo ciência das dificuldades que teriam de enfrentar. No entanto,
apontam que, infelizmente, esta expectativa também não se concretizou, na medida em que a
importância de se construir unidade na luta se restringiu a falas, à construção de fóruns de
debate, e a algumas iniciativas conjuntas, não tendo se consolidado até o momento vínculos
mais permanentes entre os movimentos sociais.
também que salientar, no que tange à construção de vínculos entre diferentes lutas
políticas, a organização do Fórum Social Mundial, espaço criado por diferentes atores da
esquerda no intuito de se elaborar alternativas globais às práticas capitalistas atuais. Segundo
Sader (2002),
O Fórum Social é um ponto de encontro excepcional para a reunião de todas as
forças anti-sistêmicas em escala mundial. Não tem precedentes tanto por sua
diversidade que reúne não somente partidos e correntes políticas, mas também
movimentos sociais, ONG, grupos em favor dos direitos civis, sindicatos – como por
seu caráter não-estatal e não-partidário. [...] Em segundo lugar, o Fórum busca criar
a possibilidade de uma aliança entre forças radicais da periferia e do centro, que
reestabelece uma conexão rota pelo triunfo do neoliberalismo e a queda da URSS.
[...] Em terceiro lugar, o Fórum permite que as contribuições teóricas, sociais e
políticas ao projeto convirjam no mesmo espaço, sem que se determine uma
87
O 1 Grito dos/as Excluídos/as, segundo o documento, teve a participação de igrejas, pastorais sociais,
sindicatos, Comitê Mineiro do Fórum Social Mundial, Brigadas Populares, Marcha Mundial das Mulheres,
Movimento de Lutas de Vilas e Favelas, CONLUTAS, Maristas, MTC, CEB, Caritas-MG, Fórum Político
Intereligioso, Vicariato Episcopal para Ação Social e Política, Assembléia Popular, Grupo Universitário em
Defesa da Diversidade Sexual, AMES-BH.
181
hierarquia, reparando, em certo modo, o legado da esquerda histórica, abordando as
temáticas de uma globalização alternativa (p. 127-128, tradução nossa).
Contudo, de acordo com Joviano (BP), apesar da importância do Fórum Social
Mundial como um espaço de trocas e de vínculos entre diferentes atores da esquerda, poucos
encaminhamentos elaborados no Fórum são concretizados.
no caso do Fórum Social Mundial é um espaço importante de articulação da
esquerda mundial, inclusive porque a luta ela é internacionalista, as Brigadas
defende o internacionalismo como bandeira, porém está muito imbuído dessa lógica
pós-moderna da fragmentação, do atomicismo. Então, a gente participa do Fórum
Social Mundial, vai lá, mas mais um espaço de articulação, de articulação, porque
concretamente poucos encaminhamentos ali se tornam realidade, geram frutos...
Então, é um espaço para poder estar em contato com organizações de outros países,
organizações de outros continentes e garantir é... é... que essas relações gerem frutos
para além daquele espaço ali.
Compreensão também compartilhada por Sader (2002) no sentido de que este afirma
como uma das deficiências do Fórum Social Mundial a incapacidade de se converter as
virtudes do Fórum, como aquelas apontadas acima, em “uma força política seja no âmbito
dos governos ou dos parlamentos como no terreno da mobilização de massas que permita
exercer eficazmente um veto sobre as políticas neoliberais reinantes ou empreender outras
formas inovadoras de ação política” (p. 128, tradução nossa).
Cabe considerarmos novamente que estratégias de aliança e estratégias de
articulação não são estratégias a priori opostas, podendo ser complementares na construção
de “outro mundo possível”. Assim, se dificuldades de construção de vínculos são apontadas,
ressaltamos novamente que estratégias de alianças, ainda que pontuais, podem contribuir para
a aproximação entre os movimentos sociais na construção de lutas concretas, para o
fortalecimento e legitimidade de bandeiras políticas a serem reconhecidas na significação do
projeto contra-hegemônico, para conquista de vitórias parciais, condições que se fazem
importantes para possibilidades de se construir práticas articulatórias. Ademais, a busca pela
elaboração de vínculos, reconhecida por todos entrevistados como uma estratégia fundamental
para a luta política, mantém os grupos mobilizados em direção a uma ampla democratização
social, proporcionando a construção de novas alianças e articulações em torno da utopia
desejada, de modo a combaterem diferentes formas de subordinação, como também
dificultarem a assimilação dos movimentos sociais no interior da mesma hegemonia que nega
dignidade àqueles a quem buscam defender.
182
Se as ambições escatológicas e epistemológicas contemporâneas são mais modestas,
como nos diz Laclau (1993a), cabe sabermos como diferentes movimentos sociais no mundo
contemporâneo constroem vínculos entre si. Pode ser esta a questão primordial de nosso
tempo, e não aquela que busca incessantemente encontrar a “repressão primordial”, o “sujeito
autêntico”, o “marco de funcionamento das coisas”. Afinal, se esta busca pode não nos levar à
dissipação dos movimentos sociais na experiência das identidades, caindo as lutas na
armadilha dos particularismos, pode ser que nos leve a desperdiçar as experiências do
presente. Nossa tentativa nesta dissertação foi de contribuir para a resposta àquela questão
primordial...
183
Considerações finais
Nossos problemas de pesquisa foram elaborados diante da tensão de como construir
vínculos entre diferentes sujeitos políticos, de modo que estes não se dissipem na experiência
das identidades, caindo no risco dos particularismos, mas não se percam na afirmação de uma
universalidade que negue a liberdade em nome da igualdade. Assim, foram eles: que
possibilidades de democratização social têm sido construídas diante do descentramento do
espaço político e da pluralidade de sujeitos políticos? O que tem sido pensado sobre a unidade
política da esquerda hoje? Que estratégias têm sido desenvolvidas pelos movimentos sociais a
fim de se combater às diferentes formas de desigualdade e exclusão politizadas como formas
de opressão na atualidade, de modo a se construir uma luta contra-hegemônica?
Deste modo, discutimos, inicialmente, elementos importantes a ser considerados na
emergência dos movimentos sociais contemporâneos, bem como suas implicações nas
análises sobre as possibilidades de mudança social. Abordamos, assim, críticas a posições
marxistas referentes a considerações sobre o sujeito da história, o desenvolvimento da luta
política, tomando a noção de articulação, como compreendida por Laclau e Mouffe, uma
centralidade na análise sobre a constituição de um “outro mundo possível”.
Seguimos, então, para uma apresentação dos caminhos trilhados na construção desta
dissertação e dos procedimentos metodológicos adotados, de modo a esclarecer como
chegamos às análises produzidas nos capítulos posteriores. Ainda, caracterizamos, de maneira
breve, cada um dos grupos investigados, salientando a origem e a estrutura organizativa dos
mesmos, haja visto que no APÊNDICE II foi colocado um quadro específico a cada um dos
grupos, nos quais constam outras características dos mesmos: bandeiras de luta, adversários,
papel dos movimentos sociais, vínculos entre movimentos sociais, mudança social, problemas
enfrentados.
A partir da discussão teórica e da apresentação metodológica, começamos então a
caminhar rumo a possibilidades de respostas aos nossos problemas de pesquisa. Fizemos
debates, considerações, análises, no intuito de produzirmos um texto que apresentasse
coerência e densidade teórica, que fosse capaz de trazer elaborações a partir da Teoria
Democrática Radical e Plural, das entrevistas com representantes dos grupos, das devoluções
com os mesmos e dos documentos coletados junto aos grupos; mas que também implicasse
em um cuidado quanto às formas de se enlaçar a teoria e o que diziam aqueles que estavam
cotidianamente lutando por um mundo melhor, de modo a não sobrepor um a outro, mas sim
184
buscar maneiras em que a teoria contribuísse para se analisar os grupos e os grupos
contribuíssem para trabalharmos a teoria.
Nesta busca, tentamos distinguir possíveis estratégias de vínculos entre os grupos
analisados e apresentar as implicações destas para a luta política. Deste modo discutimos que,
por um lado, a estratégia de articulação é fundamental na promoção de uma sociedade radical
e plural, ao proporcionar como horizonte uma ampla democratização social, a partir da
construção de equivalências entre diferentes movimentos sociais. Por outro lado, se faz
importante não considerarmos, a priori, na luta política, a estratégia de aliança como
pejorativa.
Esta consideração foi construída mediante o reconhecimento de que a estratégia de
aliança pode se encontrar numa relação de complementaridade e não necessariamente de
contraposição à estratégia de articulação. A estratégia de aliança rompe, ainda que de maneira
momentânea, com a fragmentação entre os movimentos sociais, sendo uma resposta ao
isolamento dos atores políticos. Ela pode acarretar em vitórias, mesmo que parciais, que
proporcionem maior dignidade aos subcidadãos e que são também importantes para que estes
se reconheçam como pessoas que têm “direito a ter direitos”e, assim, continuem na luta por
uma sociedade justa. A estratégia de aliança pode, ainda, fortalecer bandeiras e estratégias de
luta, às vezes invisibilizadas por outros movimentos sociais, e propiciar vínculos mais
permanentes entre eles, colaborando para a produção de laços equivalenciais. A ampliação de
um conhecimento mútuo entre os movimentos sociais e das diferentes lógicas de opressão
facilitam o estabelecimento de fronteiras políticas na construção da luta, contribuindo para o
reconhecimento amplo da negatividade da hegemonia dominante. Deste modo, a estratégia de
aliança pode possibilitar a passagem de um momento de contigüidade entre as lutas para um
momento de analogia entre as mesmas, servindo à construção de um projeto contra-
hegemônico.
Discutimos também que um movimento social presente em uma cadeia de
equivalência é capaz de construir, ao mesmo tempo, estratégia de articulação e estratégia de
aliança, visto que a equivalência não significa o fim da particularidade de cada momento. Por
tal razão, pode ser que alianças produzidas por ele venham a implicar em deslocamentos da
cadeia equivalencial, inclusive ao serem realizadas com elementos que, por se encontrarem
em oposição à particularidade de outros componentes da cadeia, foram impossibilitados de
fazer parte da mesma.
Elaboradas estas possibilidades de estratégia de vínculos e as suas implicações para a
luta política, passamos a apontar modos de atuação da hegemonia dominante, que têm como
185
fim o enfraquecimento das possibilidades de reativação do político, de modo a se manter
como única alternativa de sociedade, limitando possibilidades de democratização social.
Desta maneira, buscamos diferenciar dois modos de atuação da hegemonia dominante. O
primeiro deles, denominado expansão hegemônica, reconhece os antagonismos democráticos
como possibilidade de existência. Contudo, visa apaziguá-los, seja mantendo-os numa relação
baseada na lógica diferencial, seja pela constituição de uma cadeia equivalencial alternativa,
composta por antagonismos da cadeia contra-hegemônica e também por atores que são parte
da própria hegemonia que aquele antagonismo buscava enfrentar.
O segundo modo, nomeamos de expurgo à diferença, o qual, diferente do anterior, ao
invés de reconhecer os antagonismos democráticos como possibilidade de existência,
compreende-os como uma diferença nociva e imoral, buscando desta forma invisibilizá-los ou
criminalizá-los, construindo e reproduzindo um caráter pejorativo desta diferença a fim de
deslegitimá-la e enfraquecer as possibilidades de apoio a ela.
Apresentadas, portanto, possibilidades de estratégias de vínculos entre os movimentos
sociais e formas de resistência da hegemonia à luta por outra positividade do social, travada
pelos movimentos sociais, no último capítulo buscamos tratar das concepções dos grupos
investigados sobre o sujeito da história e o modo de desenvolvimento da luta política na
construção de processos de democratização social. Mostramos que se, por um lado, algumas
considerações apontam para elementos que não poderiam ser parte da Teoria Democrática
Radical e Plural - como a compreensão do espaço produtivo como ponto de ruptura
privilegiado da mudança social e da centralidade da dimensão econômica frente a outras
demandas políticas –, pelo fato de restringirem o caráter sobredeterminado da luta política,
por outro lado, todos entrevistados ressaltam a exigência de se reconhecer a pluralidade de
formas de opressão na construção de outra sociedade e a indeterminação do desenvolvimento
da luta política. Assim, eles apontam para uma revisão da noção de classe trabalhadora e para
a importância de conquistas parciais no processo de mudança social. Diante disto, também
salientamos a insuficiência de dicotomias como aquelas entre “novos” movimentos sociais /
“velhos” movimentos sociais, lutas reformistas / lutas revolucionárias na análise da dinâmica
social.
Ademais, neste capítulo, apresentamos formas de ação apontadas pelos entrevistados
como importantes à construção de “outro mundo possível”, discutindo estas formas a partir de
três eixos: conscientização e mobilização política - marcado pela importância de processos de
formação política e de construção de uma identidade coletiva com os grupos; lutas por
demandas específicas - no qual se salienta a construção de estratégias de aliança entre os
186
movimentos sociais; construção de uma alternativa comum de sociedade, estando presente
neste a busca pela construção de uma estratégia de articulação. Eixos que se encontram
relacionados àquela revisão da noção de classe trabalhadora e à compreensão da mudança
social, a partir não de uma ruptura imediata, e sim de um processo indeterminado da história
no qual se fazem importantes vitórias parciais. Compreensão esta decorrente de uma proposta
de construção da mudança social a partir da elaboração de um projeto popular, sendo a
Assembléia Popular um espaço importante para esta construção. Propomos caracterizar a
Assembléia Popular como um espaço que objetiva proporcionar o deslocamento de estratégia
de aliança para estratégia de articulação, constituindo-se em torno do compartilhamento de
demandas e construção de ações conjuntas entre movimentos sociais distintos, a fim de se
elaborar o Projeto Popular para o Brasil.
Seguimos por este caminho no intuito de construir uma dissertação que trabalhasse os
problemas de pesquisa propostos através das características daquele texto que almejamos
desde o início. Estamos certos que chegamos a uma “estação”, mas também que “restos”
ficaram no caminho e que a estrada continua.
Discutimos estratégias de vínculos e dissemos das implicações de cada uma delas.
Contudo, análises mais específicas sobre o modo que cada um dos movimentos sociais tem
construído aquelas estratégias de vínculos, no decorrer da luta política, são importantes de
serem realizadas, na medida em que podem evidenciar em que direções estão caminhando e,
assim, quais horizontes podem ser possíveis a estes grupos. Ademais, análises referentes ao
que propusemos quanto à complementaridade entre estratégia de aliança e estratégia de
articulação, a partir de investigações específicas a cada movimento social, também são
necessárias.
De forma complementar, análises mais pormenorizadas precisam ser construídas para
se compreender os meandros dos modos de resistência da hegemonia frente às lutas dos
movimentos sociais. Aqui discutimos somente alguns elementos que podem contribuir para
estas análises, distinguimos alguns modos de resistência e propusemos algumas
conseqüências destes modos na luta dos movimentos sociais. Não analisamos, entretanto,
como eles atuam especificadamente em cada um dos grupos analisados. Como movimentos
sociais que se tornaram ONGs têm ou não conseguido escapar ao processo de resistência da
hegemonia. Como se construiu historicamente o enfraquecimento da radicalidade do Projeto
Democrático Popular, constituído durante a década de 1980, e que serviu à esquerda brasileira
como horizonte de conquista da sociedade almejada.
187
Outro passo nesta estrada, ainda a se percorrer, é a análise de processos alternativos de
integração continental, como a ALBA, e das redes internacionais de movimentos sociais, com
as quais alguns dos grupos entrevistados constroem alianças. Esta análise se faz importante
frente à construção de alternativas ao modelo neoliberal e à dificuldade dos movimentos
sociais em identificarem de forma clara suas fronteiras políticas frente à globalização
capitalista, o que implica, conseqüentemente, em um obstáculo para o estabelecimento de
antagonismos democráticos e, assim, para a construção da luta democrática.
No doutorado, que iniciarei em março deste ano, também no Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da UFMG, buscarei discutir um pouco destes caminhos ainda a se
percorrer. O projeto de doutorado pretende ser um aprofundamento desta dissertação na
medida em que tem como problema de pesquisa analisar dificuldades na elaboração de
estratégia de articulação entre os movimentos sociais, tomando como eixos de investigação: a)
o processo de subjetivação política: que mediações discursivas têm sido construídas por
indivíduos e grupos que se encontram em situações de subordinação? Que implicações estas
mediações discursivas trazem para a construção da participação política e, assim, para a
construção de uma contra-hegemonia? Cabe entender, por exemplo, as implicações dos
discursos empreendidos por ONG e por grupos de movimentos sociais que se encontram
focados na via institucional de luta na construção da participação política daqueles em
condição de subcidadania; b) os modos de resistência da hegemonia: como a expansão
hegemônica e o expurgo à diferença têm atuado sobre alguns dos movimentos sociais
contemporâneos brasileiros? A compreensão de como discursos conservadores tem
repercutido na sociedade brasileira é importante de ser analisada.
Deste modo, se nesta dissertação o centro de nossos problemas de pesquisa eram as
possibilidades de estratégia de vínculos entre os movimentos sociais contemporâneos na
elaboração de processos de democratização social, no doutorado coloca-se como fundamental
entender, por exemplo, a construção do enfraquecimento da radicalidade do Projeto
Democrático Popular, que serviu à esquerda brasileira como alternativa de realização da
plenitude ausente da ordem social. Projeto este que, se conquistou um dos seus grandes
objetivos Lula-lá” –, não produziu mudanças esperadas pelos próprios movimentos sociais
que participaram de sua construção. Outro ponto a ser compreendido são as implicações de
discursos conservadores na construção de lutas contra-hegemônicas.
Estamos agora próximos a mais um processo eleitoral de âmbito nacional. Por um
lado, se a maioria dos grupos por nós entrevistado afirma não ser a via institucional a
centralidade da luta, e também se apontamos para como esta via pode acarretar no
188
enfraquecimento da luta política pela mudança social, por outro lado, estamos em um
momento em que novamente os subcidadãos, os militantes da esquerda terão que se
posicionar no processo eleitoral. Lembremos que se a via institucional não é entendida como
central, ela também não é negligenciada pelos grupos e, ademais, tem implicações nos modos
de resistência da hegemonia e nas estratégias de vínculos entre os atores políticos. Frente à
quebra da expectativa com o governo Lula e a fragmentação da esquerda decorrente desta
insatisfação, o processo eleitoral pode apontar por onde caminhará o Projeto Popular, ou os
projetos populares.
É difícil terminarmos, sobretudo, cônscios do quanto ainda há por se investigar.
Contudo, temos que terminar. Terminamos, então, com alguns versos:
“Posso dizer que cantei
Aquilo que observei;
Tenho certeza que dei
Aprovada relação
Tudo é tristeza e amargura,
Indigência e desventura,
Veja, leitor, quanto é dura
A seca no meu sertão”
(ASSARÉ, 2005, p. 128)
E, ainda que consciente do “quanto é duro” o enfrentamento às lógicas hegemônicas, não
abandonamos a utopia pela construção de sociedades radicais e plurais.
189
Referência
ALVAREZ, S.; DAGNINO, E.; ESCOBAR, A. Introdução: O cultural e o político nos
movimentos sociais latino-americanos. In:_____(Ed.). Cultura e política nos movimentos
sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 15-57.
ASSARÉ, P. Patativa do Assaré: uma voz do nordeste. 2ª ed. São Paulo: Hedra, 2005. 131p.
BAIERLE, S. G. A explosão da experiência. Emergência de um novo princípio ético-político
nos movimentos populares urbanos em Porto Alegre. In: ALVAREZ, S.; DAGNINO, E.;
ESCOBAR, A. (Ed.). Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas
leituras. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 185-217.
BAQUERO, M. Cultura política e neoliberalismo na América Latina. In: PINTO, C. R.;
GUERRERO, H.(Ed.). América Latina: o desafio da democracia nos anos 90. Porto Alegre:
Universidade/UFRGS/Associação de Universidade Grupo Montevideo, 1996, p. 131-142.
BLEE, K. M.; TAYLOR, V. Semi-structured interviewing in social movement research. In:
KLANDERMANS, B.; STAGGENBORG, S. (Ed.). Methods of social movement research.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002. p. 92-117.
BUTLER, J. El marxismo y lo meramente cultural. New Left Review, 2, p. 109-121,
Maio/Junho 2000.
DAGNINO, E. Cultura, cidadania e democracia. A transformação dos discursos e práticas na
esquerda latino-americana. In: ALVAREZ, S.; DAGNINO, E.; ESCOBAR, A. Cultura e
política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: UFMG,
2000. p. 61-102.
DOIMO, A. M. Movimento Popular no Brasil Pós-70: Formação de um campo ético-político.
1993. 254 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.
DOMINGUES, J. M. Sistemas sociais e subjetividades coletivas. In: _____. Ensaios de
sociologia: teoria e pesquisa. Belo Horizonte: UFMG, 2004. p. 12-38.
EXPURGO. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Miniaurélio Século
XXI Escolar. O minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. P.
307.
FRASER, N. ¿De la redistribución al reconociemiento? Dilemas em torno a la justicia em una
época “postsocialista”. In:_____. Justicia interrupta: Reflexiones críticas desde la posición
“postsocialista”. Santafé de Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad de los Andes,
1997. p. 17-54.
GREEN, J. N. Além do Carnaval: A Homossexualidade Masculina no Brasil do Século XX.
São Paulo: Editora Unesp, 2000. 541p.
HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da
perspectiva social. Cadernos Pagu, 5, p. 07-41, 1995.
190
HOUTART, F (2006). Os movimentos sociais e a construção de um novo sujeito histórico. In
BORON, A.; AMADEO, J.; GONZÁLEZ, S. (Ed.). A teoria marxista hoje: problemas e
perspectivas. Buenos Aires: CLACSO.
HOWARTH, D. Hegemonia, subjectividad política y democracia radical. In: CRITCHLEY,
S.; MARCHART, O. (Ed.). Laclau: Aproximaciones críticas a su obra. Buenos Aires: Fondo
de cultura Economica, 2008. p. 317-343.
HOWARTH, D.; STAVRAKAKIS, Y. Introducing discourse theory and political analysis. In:
HOWARTH, D.; NORVAL, A. J.; STAVRAKAKIS, Y. (Ed.). Discourse theory and political
analysis: Identities, hegemonies and social change. Manchester: Manchester University Press,
2000. p. 01-23.
JAVALOY, F.; RODRÍGUEZ, A.; ESPELT, E. Cómo surgen, crecen y triunfan los
movimientos sociales. In:_____. Comportamiento colectivo y movimientos sociales. Madrid:
Prentice Hall, 2001. p. 245-289.
KLANDERMANS, B. (2002). The demand and supply of participation: Social psychological
correlates of participation in a social movement. Revista Psicologia Política, São Paulo, v. 2,
n. 3, 83-114, jan./jul. 2002.
LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolucion de nuestro tiempo. In:_____. Nuevas
reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión,
1993a. p. 19-99.
LACLAU, E. Posmarxismo sin pedido de disculpas (con Chantal Mouffe). In:_____. Nuevas
reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión,
1993b. p. 111-145.
LACLAU, E. Beyond Emancipation. In:_____. Emancipation(s). Londres: Verso, 1996. p. 1-
19.
LACLAU, E. La Razón Populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica de Argentina,
2005. 312 p.
LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and Socialist Strategy. Towards a radical democratic
politics. London: Verso, 1985. 197 p.
LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hearts, Minds and Radical Democracy. London, junho
1998. Entrevista concedida a REDPEPPER MAGAZINE. Disponível
em: <http://www.redpepper.org.uk/Hearts-Minds-and-Radical-Democracy>. Acessado em:
10 Dez.
LANE, S. T. M. Psicologia Social na América Latina: por uma ética do conhecimento. In:
CAMPOS, R.H.; GUARESCHI, P. Paradigmas em Psicologia Social: A perspectiva latino-
americana. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. p. 58-69.
LANE, S. T. M.; SAWAIA, B. B. Psicologia: Ciência ou Política? In: MONTERO, M. (Ed.)
Accion y Discurso.Venezuela: Eduven, 1991.p. 05-69.
191
MACHADO, F. V.; PRADO, M. A. M. Movimentos Homossexuais: A Constituição Da
Identidade Coletiva Entre A Economia E A Cultura. O Caso De Dois Grupos Brasileiros.
Interações, São Paulo, v.10, n.19, p. 35-62, jan./jun. 2005.
MAHEIRIE, K. Contribuições da psicologia social na análise dos movimentos sociais. In:
CAMINO, L.; LHULLER, L.; SANDOVAL, S. (Ed.) Estudos sobre comportamento político.
Teoria e pesquisa. Florianópolis, SC: Obra Jurídica, 1997. p. 161-173.
MARTINS, H. H. T. de S. Metodologia qualitativa de pesquisa. Educação e Pesquisa, São
Paulo, v. 30, n. 2, p. 289-300, maio/ago. 2004.
MELUCCI, A. Para uma teoria dos movimentos sociais. In:_____. A invenção do presente.
Movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 29-69.
MONTERO, M. Construcción, desconstrucción y crítica: teoria y sentido de la psicología
social comunitaria en América Latina. In: CAMPOS, R. H; GUARESCHI, P. Paradigmas em
Psicologia Social: A perspectiva latino-americana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. p. 70-87.
MOSCOVICI, S. Sociedade e teoria em psicologia social. In:_____. Representações Sociais:
investigações em psicologia social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. p. 111-166.
MOUFFE, C. Hegemony and new political subjects: toward a new concept of democracy. In:
NELSON, C.; GROSSBERG, L. (Eds.) Marxism and the interpretation of culture. Chicago:
University of Illinois Press, 1988. p. 89-104.
MOUFFE, C. Democratic politics and the question of identity. In: RAJCHMAN, J. (Ed.). The
identity in question. New York: Routledge, 1995. p. 33-45.
MOUFFE, C. O Regresso do Político. Lisboa: Gradiva, 1996. 206 p.
MOUFFE, C. The democratic paradox. Londres/Nova York: Verso. 2000a. 143 p.
MOUFFE, C. Deliberative democracy or agonistic pluralism? Political Science Series,
Institute for Advanced Studies, Vienna, 72, p. 01-17, Dez. 2000b.
PINTO, C. R. J. ONGs. In: AVRITZER, L.; BIGNOTTO, N.; GUIMARÃES, J.;
STARLING, H. M. M. (Ed.). Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: UFMG, 2008. p.
441-447.
PINTO, C. R. J. Democracia como significante vazio: a propósito das teses de Ernesto Laclau
e Chantal Mouffe. Sociologias, Porto Alegre, v. 1, n. 2, 1999. Disponível em: <
http://www.seer.ufrgs.br/index.php/sociologias/article/view/6927/4200
>. Acesso em: 01 dez.
2009.
PRADO, M. A. M. Psicologia política e ação coletiva. Revista Psicologia Política, São Paulo,
v. 1, n. 1, 149-170, Jan./Jul. 2001.
PRADO, M. A. M. Da mobilidade social à constituição da identidade política: Reflexões em
torno dos aspectos psicossociais das ações coletivas. Psicologia em Revista, Belo Horizonte,
v. 8, n. 11, 59-71, Jun. 2002.
192
PRADO, M. A. M.; COSTA, F. A. A raridade da política e a democracia: os movimentos
sociais entre sujeitos e identidades. In: BERNARDES, J.; MEDRADO, B. (Ed.). Psicologia
social e políticas de existência: fronteiras e conflitos. Maceió: ABRAPSO, 2009. p. 71-82.
PRADO, M. A. M.; RODRIGUES, C. S. Por que a psicologia social é política? Identidades
coletivas e movimentos sociais na contemporaneidade. In: ROSA, E. M.; SOUZA, L.;
AVELLAR, L. Z. (Ed.). Psicologia social: temas em debate. Vitória: ABRAPSO, 2008. p.
201-225.
RANCI, C. A interação entre pesquisadores e atores sociais. In: MELUCCI, A. Por uma
sociologia reflexiva:pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 43-66.
RANCIÈRE, J. (1996). O Desentendimento. Política e Filosofia. São Paulo: 34 Literatura S/C
Ltda, 1996. 138 p.
RODRIGUES, C. S. As fronteiras entre raça e gênero na cena pública brasileira: um estudo
da construção da identidade coletiva do movimento de mulheres negras. 2006. 234 f.
Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.
SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos
trabalhadores da Grande São Paulo (1970-1980). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 329 p.
SADER, E. Más alla de la sociedad civil: la izquierda después de Porto Alegre. New Left
Review, 17, 118-129, 2002. Disponível em: <
http://www.newleftreview.org/?getpdf=NLR25105&pdflang=es
>. Acesso em: 05 set. 2009.
SANDOVAL, S. A. M. A crise sociológica e a contribuição da psicologia social ao estudo
dos movimentos sociais. Educação e Sociedade, Campinas, n. 34, 122-130, dez. 1989.
SANDOVAL, S. A. M. O comportamento político como campo interdisciplinar de
conhecimento: a reaproximação da sociologia e da psicologia social. In: CAMINO, L.;
LHULLER, L.; SANDOVAL, S. (Ed.). Estudos sobre comportamento político. Teoria e
pesquisa. Florianópolis: Livraria e Editora Obra Jurídica Ltda, 1997. p. 13-23.
SANTOS, B. de S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências.
Revista Critica de Ciências Sociais, n. 63, p.237-280, out. 2002.
SMITH, A. M. Laclau and Mouffe: the radical democratic imaginary. London: Routledge,
1998. 236 p.
SOUZA, J. A construção social da subcidadania. Para uma sociologia da modernidade
periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. 212p.
SZTOMPKA, Piotr. A sociologia da mudança social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1998. 576 p.
ZIZEK, S. ?Lucha de clases o posmodernimso?!Sí, por favor! In: BUTLER, J.; LACLAU, E.;
ZIZEK, S. Contingencia, hegemonía, universalidad. Diálogos contemporáneos en la
izquierda. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2003. p. 95-140.
193
ZIZEK, S. La subjetivación politica y sus vicisitudes. In:_____ El espinoso sujeto. El centro
ausente de la ontología política. Buenos Aires: Paidós, 2007. p. 183-259.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo