Pagamos caro por essas noites. Eu posso fingir que não percebo, mas meu
subconsciente não. E isso é péssimo. Confesso que às vezes uma parte de mim fica
lisonjeada com esse clima de grande emoção, mas em geral não o aprecio nem um
pouco. É aí que começo a me sentir condenada. Quanto maior a fama, maior a
responsabilidade, maior a sensação de fragilidade e desamparo; a fama é um
bumerangue.
Constantemente ameaçada por esta situação apreensiva e tensa, Maria construiu a
convicção de que o mundo era seu inimigo. A este respeito, ela declarou:
Querem [os tebaldistas]
beber meu sangue. Só no dia em que minha querida amiga
Renata Tebaldi fizer Norma ou Lucia numa noite, Violetta, Gioconda ou Medea
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na
noite seguinte, poderemos ser rivais. Por enquanto, é como comparar champanhe com
conhaque. Nem isso: com Coca-Cola.
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Norma é personagem principal da ópera homônima, de Vincenzo Bellini (1801-1835), compositor romântico,
enquanto Lucia é papel-título da ópera de Gaetano Donizetti (1797-1848), também do período romântico.
Violetta Valeri é personagem da ópera “La Traviata”, de Giuseppe Verdi (1813-1901) do período nacionalista;
Gioconda é o papel-título da ópera “La Gioconda”, de Amilcare Ponchielli (1834-1886), compositor romântico,
enquanto Medea é personagem da ópera “Medea”, de Luigi Cherubini (1760-1842) um dos representantes do
classicismo. (Conde de HAREWOOD. Kobbé. O Livro Completo da Ópera. p.228, 325 e 366).
Trata-se, portanto, de personagens principais de óperas distintas, escritas por compositores também
distintos, que pertencem a diferentes períodos da história da ópera italiana. Além da diferença relativa aos
períodos históricos, que imprimiram marcas singulares na escola italiana de ópera há, sobretudo, uma diferença
fundamental em relação aos referidos personagens, que devem ser interpretados por sopranos com tessituras
vocais bem definidas e distintas entre si.
Assim, no meu entendimento, ao comparar-se com Renata Tebaldi por esta via, Maria Callas denunciou
seu inconformismo em relação aos limites de sua tessitura vocal.
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Entre colchetes, interpolação minha.
A partir desta declaração, suponho que esta atitude altiva, desdenhosa e desafiadora de
Maria, constituiu uma poderosa defesa contra a depressão: presunçosa, ela se transformava na
representante máxima da perfeição e procurava proteger essa imagem ideal de si,
desvalorizando Renata Tebaldi, sua suposta rival.
No entanto, Maria não estava imune ao desgaste que estas rivalidades exerciam sobre
ela: invariavelmente, sucumbia ao nervosismo e à ansiedade, a ponto de seu médico lhe
prescrever repouso absoluto o que, muitas vezes, fez com que ela cancelasse récitas previstas
em contrato, provocando turbulências no público, na imprensa e no meio artístico.
Em uma destas vezes, ela recebeu uma carta de sua mãe. Evangelia via a vida da filha
como um sonho e, por este motivo, ansiava restabelecer o contato com ela. Em 1951, escreveu
uma carta a Maria comunicando-lhe que ela havia dado início ao processo de divórcio – o
qual foi concluído em 1958 - e voltara a Grécia com uma pequena pensão semanal provisória.
Nesta época, Evangelia começou a confeccionar e vender bonecas inspiradas em
personagens operísticas, enquanto sua família supria-lhe suas necessidades financeiras.