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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Cláudia Andréa Gori
Os Traços Depressivos na Histeria Feminina: um olhar psicanalítico
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
SÃO PAULO
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Cláudia Andréa Gori
Os Traços Depressivos na Histeria Feminina: um olhar psicanalítico
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutora em
Psicologia Clínica, pelo Núcleo de Psicalise, sob
a orientação da Profa. Dra. Maria Lucia Vieira Violante
SÃO PAULO
2010
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Banca Examinadora:
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AGRADECIMENTOS
A essa força que pulsa em mim e que me fez continuar escrevendo, apesar de estar
imersa em um ambiente permeado por ameaças reais, discórdia e morte.
À minha orientadora, Profa. Dra. Maria Lucia Vieira Violante. Muito obrigada pela
sua parceria, pela sua paciência ao ler e escutar minhas iias. Lembrarei sempre dos nossos
cafés, quando colocamos Maria Callas no divã, várias vezes.
Às Professoras Doutoras que compuseram a banca de qualificação e defesa: Marilucia
Melo Meireles, Marina Ramalho Miranda, Paula Regina Perón e Vera B. Zimmermann.
Meus sinceros agradecimentos.
Àqueles que me permitiram escutar sua história. A cada um de vocês, todo meu
respeito.
Ao meu querido Hélio Gori: mudamos o rumo da história...
À Antonia Romano Lucchi (in memorian)
A pesquisa que deu origem a esta tese contou com o auxílio financeiro da Fundação
Capes, na forma de uma Bolsa de Doutorado. A esta instituição, agradeço o generoso apoio
recebido.
“Viver é sofrer, e quem diz o contrário para as crianças é desonesto, cruel. (...)
Se você está vivo, está lutando. Isso acontece com todos nós. A diferença está
nas armas que você usa e nas armas que são usadas contra você.
Trata-se da combinação de personalidade e circunstância. De destino.”
Maria Callas.
SUMÁRIO
Resumo
Introdução.................................................................................................................................01
Capítulo 1:
A constituição do psiquismo segundo Sigmund Freud.............................................................07
Contribuições metapsicológicas de Piera Aulagnier.................................................................22
1. O processo originário................................................................................................25
2. O processo pririo..................................................................................................35
3. O processo secundário e a constituição do Eu -
os momentos fundamentais da dialética identificatória................................................38
3.1 A identificação primária..........................................................................................40
3.2 A identificação especular ou imaginária.................................................................42
3.3 A identificação simbólica........................................................................................48
Capítulo 2:
A psicopatologia da histeria......................................................................................................51
Contribuições psicopatológicas de Piera Aulagnier: o conceito
de potencialidade e o conflito identificatório no registro da neurose.......................................73
Capítulo 3:
Uma leitura psicanalítica dos
fragmentos biográficos de Maria Callas...................................................................................78
Antecedentes hisricos.................................................................................................81
A história de Maria:
a triste menina ofuscada pelo brilho de uma estrela......................................................84
O lugar da voz na história de Maria............................................................................139
Considerações Finais.............................................................................................................155
Bibliografia Referida............................................................................................................163
Cláudia Andréa Gori Os Traços Depressivos na Histeria Feminina: um olhar psicanalítico
RESUMO
O presente estudo consiste em uma leitura psicanalítica dos fragmentos biográficos de
Maria Callas, soprano de origem grega. Tem como objetivo revelar o poder facilitador da
fixação da libido na fase oral, na manifestação dos traços depressivos que se fazem presentes
na organização histérica desta artista lírica.
O estudo dos aspectos depressivos da histeria feminina foi realizado a partir de um
percurso através dos fragmentos biográficos de Maria Callas, que foram por mim
selecionados e extrdos da biografia escrita por Arianna Stassinopoulos Huffington,
intitulada Maria Callas. A Mulher Por Trás do Mito.
1
Nesta pesquisa, procedo tal como Freud fez em relação à análise do manuscrito
originário do santrio de Mariazell, intitulado Trophaeum Mariano-Cellense, no qual havia
uma descrição da neurose de Christoph Haizmann, pintor bávaro do século XVII.
Esta pesquisa encontra seus fundamentos na psicanálise, enquanto teoria que versa
sobre a constituição e o funcionamento do psiquismo, tendo Sigmund Freud e Piera Aulagnier
como seus autores privilegiados.
2
Oriento-me também, pelos passos que Freud sugere em seu texto datado de 1937,
Construções em Análise”
3
1
Ariana Stassinopoulos HUFFINGTON. Maria Callas. A Mulher por Trás do Mito. São Paulo: Companhia das
Letras: 1997. Tradução de Hildegard Feist.
2
Sigmund FREUD (1923[1922]). Uma Neurose Demoníaca do Século XVII. ESB. Vol. XIX.
3
IDEM (1937). Construções em Análise. ESB. Vol. XXIII.
, tomando os dados biográficos de Maria Callas por meio de uma
leitura-escuta flutuante - que opera a partir de uma suspensão de tudo aquilo que a atenção
habitualmente focaliza, abrindo as vias de acesso aos supostos pensamentos inconscientes e à
suposta história libidinal e identificatória do sujeito.
Deste modo, com base na clínica e amparada teoricamente pelos autores referidos,
formulo a tese segundo a qual “na provável história libidinal e identificatória de Maria
Callas, a fixação da libido na fase oral que pode ter se estabelecido em virtude da carência
de investimento libidinal materno, de modo prevalente -, pode ser um fator facilitador para a
manifestação de traços depressivos em sua possível constituição psíquica histérica.”
Palavras-chave: histeria feminina fixação oral e fálica tros depressivo
Cláudia Andréa Gori. The Depressive Signs in the Feminine Hysteria: a psychoanalytic
approach
ABSTRACT
This study is a psychoanalytic view of Maria Callas’ biographic fragments, the greek
origin soprano. It aims to reveal the facilitator power of the libido fixation on the oral phase,
in the manifestation of depressive signs that are present in the hysteric organization of this
lyric artist.
The study of the depressive aspects in the feminine hysteria was realized from a course
through Maria Callas’ biographic fragments, which I selected and extracted from her
biography written by Arianna Stassinopoulos Huffington, called Maria Callas. The Woman
Behind the Myth.
4
In this research, I do as Freud did in relation to the analysis of the first manuscript of
Mariazell sanctuary, called Trophaeum Mariano-Cellense, which has a detailed description
about Christoph Haizmann’s demonological neurosis, a Bavarian painter from the XVII
century.
This research has its basis in the psychoanalysis, regarding the theory about the
psychism constitution and functioning. Its grantee representatives are Sigmund Freud and
Piera Aulagnier.
5
I also guide myself by Freud’s steps suggested in one of his text written in 1937,
called “Constructions in Analysis”
6
4
Ariana Stassinopoulos HUFFINGTON. Maria Callas. The Woman Behind the Myth.. o Paulo: Companhia
das Letras: 1997. Translated by Hildegard Feist.
5
Sigmund FREUD (1923[1922]). A Demonological Neurosis of the XVII Century. ESB. Vol. XIX.
6
IDEM (1937). Constructions in Analysis. ESB. Vol. XXIII.
, and rely on Maria Callas biographic data by a fluctuant
act of reading and listening, that operates through a suspension of everything that the attention
regularly focuses on, opening the access paths to the supposed unconscious thoughts and to
the supposed subject’s libidinal and identifying history.
Thus, based on the clinics and the theory of the authors above mentioned, I conceive
the thesis according to the following “in the supposed Maria Callas libidinal and identifying
history, the libido fixation on the oral phase that may be established due to the lack of
maternal libidinal investment, in a prevalent way -, which can be a facilitator factor to the
manifestation of the depressive sign in its possible hysterical psychic constituition.”
Key Words: feminine hysteria oral and phallic fixationtraços depressives
Cláudia Andréa Gori Les Traits Dépressifs chez Lhystérie minine: un regard
psychanalytique
RÉSUMÉ
La présente étude porte sur une lecture psychanalytique des fragments biographiques
de Maria Callas, soprano d’origine grecque. Son objetif est celui de révéler le pouvoir
facilitant de la fixation de la libido dans la phase orale, dans la manifestation de traits
dépressifs qui sont présents dans l’organisation hystérique de cette cantatrice.
L’étude des aspects dépressifs de l’hystérie féminine a été réalià partir d’un
parcours fait par l’intermédiaire des fragments biographiques de Maria Callas, qui ont été
sélectionnés par moi-me et extraits de la biographie écrite par Arianna Stassinopoulos
Huffington, intitulée Maria Callas. La Femme Derrière le Mythe.
7
Pour cette recherche, je suis la même démarche faite par Freud par rapport à l’analyse
du manuscrit originaire du sanctuaire de Mariazell, intitu Trophaeum Mariano-Cellense,
dans lequel il y a une description détaillée de la névrose démoniaque de Christoph Haizmann,
peintre bavarois du XVII siècle.
Cette recherche trouve ses fondements dans la psychanalyse en tant que torie qui
penche sur la constitution et le fonctionnement du psychisme ayant comme ses représentants
privilegs Sigmund Freud et Piera Aulagnier.
8
Je suis aussi les suggestions de Freud présentes dans son texte daté de 1937,
“Constructions en Analyse
9
7
Ariana Stassinopoulos HUFFINGTON. Maria Callas. La Femme Derrière le Mythe. o Paulo: Companhia
das Letras: 1997. Traduction de
Hildegard Feist.
8
Sigmund FREUD (1923[1922]). Une Nevrose Démoniaque du XVII Siècle. ESB. Vol. XIX.
9
IDEM (1937). Constructions em Analyse. ESB. Vol. XXIII.
, et j’obtiens les données biographiques de Maria Callas par
l’intermédiaire d’une lecture-écoute flottante, qui s’opère à partir d’une suspension de tout ce
que l’attention focalise habituellement, en ouvrant les voies d’accès aux supposées pensées
inconscientes et la supposée histoire libidinale et identificatoire du sujet.
De ce fait, ayant comme base la clinique et l’appui théorique des auteurs cités, je
soutiens la tse selon laquelle “dans la probable histoire libidinale et identificatoire de
Maria Callas, la fixation de la libido dans la phase orale quie peut s’être établie em raison
de la carence d’investissement libidinal maternel, de façon prépondérant -, cela peut être un
facteur facilitant pour la manifestation des traits dépressifs dans sa possible constitution
psychique hystérique.”
Mots-clés: hystérie minine fixation orale et phalliqueaspects dépressifs
1
INTRODUÇÃO
O presente estudo consiste em uma leitura psicanalítica dos fragmentos biográficos de
Maria Callas (1923-1977), soprano norte-americana de origem grega.
Esta pesquisa encontra seus fundamentos na psicanálise, enquanto teoria que versa
sobre a constituição e o funcionamento do aparelho psíquico, tendo como objetivo revelar o
poder facilitador da fixação da libido na fase oral - que pode se estabelecer em virtude da
carência de investimento libidinal materno, de modo prevalente -, na manifestação de traços
depressivos, que se fazem presentes na organização histérica desta artista lírica.
Meu interesse neste estudo advém, em primeiro lugar, de minha experiência clínica
com pacientes histéricas. Além da experiência em consultório particular, tive a oportunidade
de analisar pacientes histéricas que também apresentavam aspectos depressivos na Clínica
Psicogica do Instituto Sedes Sapientiae, onde realizei minha formação em psicanálise.
Em segundo lugar, fui também mobilizada pela investigação que deu origem à minha
dissertação de mestrado
1
Eu me sinto mal em casa, detesto os afazeres domésticos. Só me sinto bem quando
estou trabalhando ou ensinando artes plásticas para as crianças... Fora isso, me sinto
. Para elaborá-la, analisei seis pacientes com organização histérica,
com idade entre 30 e 55 anos, e apresentei um caso clínico com o propósito de desvendar
como se dá a problemática identificatória relativa ao feminino.
Desta pesquisa, pude concluir que o sofrimento histérico da paciente em questão está
intimamente relacionado com os conflitos relativos à feminilidade, os quais têm suas raízes na
suposta história libidinal e identificatória vivida pela paciente.
Nestes casos clínicos, paralelamente às questões relativas à problemática
identificatória que era o foco de meu interesse naquela ocasião , outras questões estavam
presentes, despertaram minha atenção e não puderam ser investigadas naquele momento, mas
foram fortes o suficiente para manter minhas inquietações. Entre estas questões, saliento as
que são relativas aos aspectos depressivos que se fazem presentes na histeria feminina.
A este respeito, no caso clínico que apresentei na dissertação, logo em sua primeira
entrevista, entre outras queixas importantes, a paciente fez o seguinte comentário a respeito de
si:
1
Pesquisa realizada no Núcleo de Psicanálise da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação
da Profa. Dra. Maria Lucia Vieira Violante, que deu origem ao livro de minha autoria intitulado“Histeria
Feminina. A Problemática Identificatória” São Paulo: Via Lettera / FAPESP / 2007, 134 pgs.
2
feia, sempre angustiada... Ah! (suspira) Eu nasci para ser qualquer coisa famosa... Eu
deveria ter sido estrela.
Ao escutar a paciente, percebi que a tonalidade afetiva de seu discurso sofreu uma
ruptura: enquanto ela me contava sobre seu mal estar diante das tarefas domésticas, sua voz e
sua fisionomia apresentavam uma tonalidade opaca, até mesmo sombria.
Por outro lado, quando a paciente disse-me que nasceu para ser qualquer coisa famosa
e que deveria ter sido uma estrela, ela sorriu e seu rosto e sua voz foram iluminados por um
estranho brilho.
Comecei a suspeitar que, talvez, esse brilho que iluminou o rosto e a voz da paciente
prestava-se para ofuscar a existência de traços depressivos como, por exemplo, o sentir-se mal
em casa e as autorrecriminações decorrentes da decepção diante do fato de não ter nascido
“qualquer coisa famosa” e por não “ter sido estrela, como acreditava que deveria.
A partir desta experiência, minha atenção dirigiu-se aos aspectos depressivos, que se
faziam presentes por meio do discurso das pacientes histéricas por mim analisadas, com o
objetivo de perceber quais eram os momentos críticos do processo analítico nos quais eles se
manifestavam.
Em um dos casos, na relação transferencial, foi possível constatar que a paciente
mostrava-se, invariavelmente, insatisfeita diante de suas conquistas na vida profissional,
familiar ou amorosa; ela identificava o momento da conquista como sendo o exato momento
da decepção e dizia: “Não era bem isso que eu queria. Não é do jeito que eu imaginava que
fosse. É tudo uma droga mesmo... .”
No decorrer do processo analítico desta paciente, pude perceber que essa insatisfação
era derivada de uma busca insaciável pela perfeição: conquistar uma boa colocação
profissional, ser amada pelo marido e pelos filhos não eram suficientes para que ela se
sentisse satisfeita consigo mesma.
Havia, sobretudo, a necessidade de ser reconhecida como uma profissional exemplar,
além de esposa admirável e mãe impecável; como se isso não bastasse, era preciso também
ser bonita, inteligente, excepcional em todos os aspectos da vida.
No meu entendimento, a paciente não conseguia viver a distância existente entre a
satisfação que ela imaginava encontrar e aquela que, efetivamente, encontrava, como um fator
positivo, capaz de impulsio-la para novos projetos de vida. Ao contrário disso, essa
distância era vivida por ela como uma amarga decepção, geradora de um intenso desprazer.
Um dos aspectos mais marcantes deste estado de coisas era, sobretudo, a manifestação
de sentimentos de desânimo e dúvida em relação à vida. Como compreender o aparecimento
3
destes traços depressivos justamente no momento em que a vida da paciente era marcada por
importantes conquistas profissionais e pessoais?
Desde 1892, no “Rascunho A”, Freud utilizou a palavra depressão para descrever uma
constelação sintomática à qual ele designou depressão periódica.
No que se refere à histeria, em seus Estudos Sobre a Histeria” (1893-1895), Freud já
havia notado a presença de aspectos depressivos em suas pacientes, como no caso de Frau
Emmy Von N. (1888 ou 89).
No caso de Miss Lucy R. (1892), em uma nota de rodapé, Freud acrescenta o relato do
caso de uma mulher de 38 anos de idade, que sofria de neurose de angústia. No “Rascunho
F”, datado de 1894, ele faz referência a uma paciente chamada Herr K., de 27 anos.
Anos depois, em 1905[1901], Freud relatou a análise de Dora, jovem histérica de 18
anos, que sofria, entre outros sintomas, de depressão.
A respeito da depressão, em um texto inédito, intitulado “A Melancolia e as
Depressões” (2007), Violante escreve: “No meu entender, Freud usa o termo depressão para
designar um sintoma que pode aparecer em diferentes afecções psíquicas.”
2
Delouya (2000) compartilha desta posição a respeito da depressão, ao escrever: “Os
estados depressivos figuram nos diferentes quadros psicopatológicos, definidos segundo o
conflito ou o jogo de forças psíquicas que o determinam.
3
2
Maria Lúcia Vieira VIOLANTE. A Melancolia e as Depressões. Texto inédito, 2007.
3
Daniel DELOUYA. Depressão. Clínica Psicanalítica. p.75.
Concordo com a posição destes autores e acrescento que, ao longo de sua obra, Freud
aponta a presença de traços depressivos em pacientes com as mais distintas organizações
psíquicas como, por exemplo, o Homem dos Ratos, o Homem dos Lobos e também em suas
pacientes histéricas.
Porém, Freud não teceu considerações a respeito das circunstâncias que podem
favorecer a manifestação dos traços depressivos na histeria feminina. Uma vez que sua clínica
foi constituída por pacientes adultos neuróticos, em decorrência disto, ele não sentiu
necessidade de entrar em contato com a problemática psíquica dos pais de seus pacientes, o
que é imprescindível na clínica infantil e na das psicoses.
A partir de sua experiência com psicóticos, Piera Aulagnier salientou o lugar do desejo
dos pais entre si e do desejo de cada um deles pelo(a) filho(a) o que está intimamente
relacionado com a constituição psíquica deles -, na constituição do sujeito psíquico.
4
Neste estudo, procederei tal como Freud fez em relação à análise do manuscrito
originário do santrio de Mariazell
4
No caso de Aulagnier, conforme referido, sua experiência clínica com pacientes
psicóticos tornou possível o enriquecimento e a ampliação do alcance clínico da
metapsicologia freudiana. Além disso, está presente em sua obra uma teorização detalhada e
rica a respeito dos momentos anteriores à constituição do Eu, a saber: os modos originário e
primário do funcionamento psíquico, que antecedem o secundário, que rege o Eu.
, intitulado Trophaeum Mariano-Cellense, no qual havia
uma descrição pormenorizada da neurose demoaca de Christoph Haizmann, pintor bávaro
do século XVII.
É claro que não se trata de tomar Maria Callas em análise, mas assim como Freud,
enquanto psicanalista, considero legítimo abordar os fragmentos biográficos de Callas por
meio do que designo por leitura-escuta flutuante.
Essa leitura-escuta flutuante diz respeito à possibilidade de afetação do analista pelos
escritos que constituem o texto, ou seja, trata-se da capacidade de o analista sonhar esse texto
que lhe “fala”, por meio de imagens que o decodificam.
No meu entender, é por meio deste estado de flutuação pela superfície do texto, que o
analista entrega-se e se deixa levar pelos seus próprios processos psíquicos, que são
disparados pela textura dos escritos e abrem espaço para que o texto se desdobre em seus
efeitos de ressonância e significância.
Assim, seguirei os passos que Freud sugere em seu texto datado de 1937,
“Construções em Análise, e tomarei os fragmentos biográficos de Maria Callas por meio de
uma leitura-escuta flutuante, que opera a partir de uma suspensão de tudo aquilo que a
atenção habitualmente focaliza, abrindo as vias de acesso aos pensamentos inconscientes e à
provável história libidinal e identificatória do sujeito.
Penso que é legítimo ressaltar as semelhanças entre Maria Callas e uma histérica à
medida que ela se dirige ao outro para interro-lo sobre o que é ser uma mulher, ou seja,
cabe ao outro assim como ao analista na transferência - lhe dizer quais os atributos
femininos que se constituem como objeto de desejo para um homem.
Para fundamentar teoricamente este trabalho, Sigmund Freud e Piera Aulagnier
ocupam lugar privilegiado, pois as formulações freudianas a respeito da constituição e do
funcionamento normal e patológico do psiquismo são indispensáveis para abordar a
problemática psíquica que se faz presente na histeria feminina.
4
Segundo Freud, lugar de peregrinação localizado a 130 Km a sudoeste de Viena. (Sigmund FREUD
(1923[1922]). Uma Neurose Demoníaca do Século XVII. ESB. Vol.XIX, 1996).
5
No texto de 1896, “A Etiologia da Histeria”, Freud considera que, na histeria, por trás
das pequenas ofensas sofridas no momento atual “(...) jaz (...) a lembrança de uma grave
ofensa na infância que nunca foi superada.”
5
Segundo Freud, a fixação da libido apareceria “(...) em virtude da incapacidade [do
sujeito que poderá se tornar neurótico] de lidar com uma experiência cujo tom afetivo fosse
excessivamente intenso.
6
Em 1931, no estudo intitulado “Sexualidade Feminina”, o mestre reconheceu a
importância da fase de ligação exclusiva entre a menina e a mãe na etiologia da histeria: “(...)
essa fase comporta todas as fixações e repressões a que podemos fazer remontar a origem das
neuroses. (...) essa fase de ligação [da menina] com a mãe está especialmente relacionada à
etiologia da histeria.”
A este respeito, entendo que, na histeria e na história de Maria Callas -, essa
experiência de tonalidade afetiva excessivamente intensa na qual a libido se fixa é a “grave
ofensa” sofrida pela menina na fase oral, à qual Freud faz referência.
7
Assim, com base na clínica, na leitura dos fragmentos biográficos de Maria Callas e
amparada pelos autores que fundamentam teoricamente esta investigação, formulo minha
tese, segundo a qual “na provável história libidinal e identificatória de Maria Callas, a
fixação da libido na fase oral - que pode ter se estabelecido em virtude da carência de
Piera Aulagnier postula que o nascimento do bebê é precedido por um discurso que o
concerne, uma espécie de “sombra falada”, que é constituída pelos enunciados que
testemunham o desejo materno pela criança. Segundo a autora, o sexo do bebê poderá tornar-
se o primeiro ponto de ruptura entre a sombra falada e o corpo do bebê.
A autora compreende a vivência de satisfação no encontro inaugural boca-seio, como
a coincidência entre a demanda primária do bebê que é demanda de desejo, de libido e o
desejo materno de que o bebê demande o seu seio. Para Aulagnier, da demanda primária
resulta a identificação primária - com as percepções coextensivas à resposta materna à
demanda do be -, que é precursora do Eu.
Na clínica e na história de Maria Callas, constato que o sujeito histérico manifesta
traços depressivos nos momentos em que se defronta com pequenas ofensas que acionam as
lembranças de ofensas anteriores, sobretudo a lembraa infantil relacionada ao desamor
materno.
5
Sigmund FREUD. A Etiologia da Histeria. p.212.
6
IDEM. Fixação em Traumas O Inconsciente. p.282; entre colchetes, interpolação minha.
7
IDEM. Sexualidade Feminina. p.234-5; entre colchetes, interpolação minha.
6
investimento libidinal materno, de modo prevalente-, poderá vir a ser um fator facilitador
para a manifestação de traços depressivos, em sua possível constituição psíquica histérica.”
Considerando que os avanços da teoria psicanalítica tornam-se possíveis a partir de
contribuições que decorrem do estudo de um número modesto de casos, é bem provável que a
tese que foi por mim constrda seja composta, ao mesmo tempo, por traços gerais que
poderão prestar para salientar a experiência de outros analistas e por traços singularesque
são peculiares aos fragmentos biográficos por mim analisados.
Assim, em primeiro lugar, no Capítulo 1, será apresentada a teoria freudiana a respeito
do processo de constituição da psicossexualidade feminina.
Ainda neste capítulo, serão ressaltadas as contribuições metapsicológicas de Piera
Aulagnier, relativas aos modos de funcionamento psíquico origirio, primário e secundário,
além dos momentos fundamentais da dialética identificatória na constituição do Eu.
Em um segundo momento, o Capítulo 2 abordará a questão da psicopatologia da
histeria. Neste capítulo, a teoria freudiana a respeito da histeria feminina firmará dlogo com
autores contemporâneos como Hugo Mayer, Octave Mannoni, Monique David-Ménard,
Françoise Dolto, Malvine Zalcberg e Catherine Millot que são lacanianos e contribuem para
a compreensão freudiana acerca da histeria feminina -, além das contribuições de Violante,
Kehl e de Alonso & Fuks.
No Capítulo 3, com fundamento na teoria psicanatica, será apresentada uma leitura
dos dados históricos e biográficos de Maria Callas, que comem uma seleção que foi por
mim intitulada A História de Maria: a triste menina ofuscada pelo brilho de uma estrela. Esta
seleção articula a singularidade da relação de Maria Callas com sua voz e com a arte do canto,
com destaque para a problemática relativa aos aspectos depressivos, que se fazem presentes
em sua organização psíquica histérica.
No capítulo reservado às Considerações Finais, seo interligados os pontos principais
tratados nos capítulos anteriores, bem como o objetivo desta investigação, o método utilizado
e os fundamentos metapsicológicos e psicopatológicos que sustentam a leitura psicanalítica
dos dados biográficos de Maria Callas, tendo como ponto de chegada a formulação da tese.
7
CAPÍTULO 1:
A CONSTITUIÇÃO DO PSIQUISMO SEGUNDO SIGMUND FREUD
“Onde é que existe um homem desses?
(...) Não creio que hoje em dia exista um homem
desse tipo, mas adoraria encontrar um.
Isso resolveria meus problemas psicológicos”.
Maria Callas
A constituição e o funcionamento do psiquismo implicam dois registros que são
solirios e, ao mesmo tempo, distintos entre si: o registro da psique, ou seja, das operações
psíquicas que fundam as instâncias do aparelho, e o registro da sexualidade, isto é, as
transformações pelas quais a sexualidade passa desde a pré-genitalidade à genitalidade adulta.
Enquanto Freud concentrava seus esforços na elaboração do “Projeto”, suas pesquisas
clínicas tinham como foco principal o estudo do papel que a sexualidade desempenhava na
etiologia das neuroses.
Assim, a partir das descobertas advindas da clínica das neuroses - especialmente no
que diz respeito às ideias excessivamente intensas presentes na histeria e nas obsessões -,
Freud obteve elementos para propor sua teoria a respeito da gênese do psiquismo.
Em seu texto de 1895, intitulado “Projeto para uma Psicologia Científica”, Freud fala
do lugar que o outro que, em geral é a mãe, ocupa na instauração da sexualidade na criança,
momento em que o psiquismo é inaugurado e que Freud denomina vivência de satisfação.
Para Freud (1895), um aumento quantitativo no sistema neuronal dá origem a um
estado de urgência, que tende à descarga pela via motora. Porém, o mestre considera que
nenhuma forma de descarga desta natureza seria capaz de produzir como resultado um estado
permanente de alívio, visto que o estado de tensão é restabelecido pela constância do estímulo
endógeno. Desta forma, proe que o esmulo só pode ser abolido por meio de uma
intervenção capaz de suspender, temporariamente, as descargas no interior do corpo.
Segundo Freud, uma intervenção desta ordem requer a alteração do mundo externo e
se configura como uma ação específica, que só pode ser executada de determinadas maneiras.
Visto que, a princípio, o organismo humano é incapaz de executar essa ação específica, ela é
promovida por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é despertada pelos
movimentos de descarga do bebê como, por exemplo, o grito ou o choro.
Desta forma se, por meio de seus movimentos de descarga, o bebê consegue fazer com
que uma pessoa venha prestar-lhe cuidados, essa ação adquire a função de comunicação, à
8
medida que informa à pessoa, a presença de um estado diante do qual o bebê encontra-se
desamparado, já que em um momento inicial ele é incapaz de promover os cuidados
necessários para fazer cessar o estímulo endógeno que é gerador de tensão.
É a totalidade dessa vivência originária que envolve o apaziguamento das tensões
por meio dos cuidados prestados pelo outro ao bebê que Freud denomina vivência de
satisfação.
É importante lembrar que, para Freud, a vivência de satisfação instaura o desejo e,
portanto, não se restringe à satisfação das necessidades físicas e alimentares do bebê, mas
principalmente, ao suprimento de uma demanda libidinal.
Afinal não faz sentido pensar que o leite, em sua materialidade bruta, seja capaz de
instaurar o desejo e inaugurar a atividade psíquica. Se assim fosse, todos os mamíferos teriam
o privilégio de dispor de um aparelho psíquico semelhante ao humano, o que não é verdade!
Portanto, o que instaura o desejo é a libido materna que o bebê ingere juntamente com o leite.
A propósito do desejo, Freud define-o da seguinte maneira:
Um componente essencial dessa vincia de satisfação é uma percepção específica
(...) cuja imagem mnêmica fica associada, daí por diante, ao traço mnêmico da
excitação produzida pela necessidade. Em decorrência do vínculo assim estabelecido,
na próxima vez em que essa necessidade for despertada, surgirá de imediato uma
moção psíquica que procurará reinvestir a imagem mnêmica da percepção e reevocar a
própria percepção, isto é, restabelecer a situação da satisfação original. Uma moção
dessa espécie é o que chamamos de desejo (...).
8
O trato da criança, com a pessoa que a assiste é, para ela, uma fonte incessante de
excitação e satisfação sexuais vindas das zonas erógenas, ainda mais que essa pessoa
usualmente a mãe contempla a criança com os sentimentos derivados de sua própria
Assim, em 1900, Freud reitera as teorizações por ele desenvolvidas no Projeto” de
que a vivência de satisfação se inscreve na psique por meio de traços mnêmicos inaugurando,
desta forma, o psiquismo e marcando a gênese da sexualidade.
Em seu texto de 1905, intitulado “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud
ressalta a importância atribuída ao outro que, geralmente é a mãe, na instauração da
psicossexualidade na criança, ao considerar que esta é despertada na criança pela pessoa que
lhe presta cuidados. A este respeito, ele escreve:
8
Sigmund FREUD. A Interpretão dos Sonhos. p. 594-5.
9
vida sexual: ela a acaricia, beija e embala, e é perfeitamente claro que a trata como o
substituto de um objeto sexual plenamente letimo.
9
Em psicanálise, o conceito do que é sexual abrange bem mais; ele vai mais abaixo e
também mais acima do que seu sentido popular. (...) nós reconhecemos como
pertencentes àvida sexual’ todas as atividades dos sentimentos ternos que têm os
impulsos sexuais primitivos como fonte, mesmo quando esses impulsos se tornaram
inibidos com relação a seu fim sexual original, ou tiveram de trocar esse fim por outro
que não é mais sexual. Por essa razão, preferimos falar em
psicossexualidade,
colocando assim ênfase sobre o ponto de que o fator mental na vida sexual não deve
ser desdenhado ou subestimado.
Assim, é possível notar a importância fundamental que Freud atribui à assistência
alheia na instauração da psicossexualidade, à medida que ele considera que a mãe, com os
sentimentos derivados de sua vida sexual, dispensa cuidados à criança despertando-lhe, desta
forma, a pulsão sexual.
Aqui, abro um breve parêntese para expor o que Freud compreende por
psicossexualidade. Em seu texto de 1910, intitulado “Psicalise ‘Silvestre’”, o autor faz a
seguinte consideração:
10
A libido tem a missão de tornar inócuo o instinto destruidor e a realiza desviando esse
instinto, em grande parte, para fora (...) no sentido de objetos do mundo externo. O
instinto é então chamado de instinto destrutivo, instinto de domínio ou vontade de
poder.
Para Freud, a sexualidade não se restringe à genitalidade e aos propósitos
reprodutivos, mas tem um fator psíquico - am do sotico -, e está especialmente vinculada
às possibilidades de obtenção de prazer, daí a psicossexualidade.
Fecho parêntese e retomo os “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”. Neste
texto, em uma nota de rodapé datada de 1924, Freud remete o leitor aos seus estudos sobre “O
Problema Econômico do Masoquismo”, no qual ele escreve:
11
9
Sigmund FREUD. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. p.210-11.
10
IDEM. Psicanálise ‘Silvestre’. p.234.
11
IDEM. O Problema Econômico do Masoquismo. p. 181.
Para Freud, as duas classes de pulsões que operam no psiquismo são a pulsão de vida
(libido ou pulsão sexual e pulsão de auto conservação) e a pulsão de morte (pulsão destrutiva,
de domínio ou vontade de poder), sendo que a função da libido é tornar inócua a pulsão de
morte desviando-a, em grande parte, para fora do psiquismo.
10
No que se refere aos diferentes modos de organização da libido
12
A respeito das organizações pré-genitais, Freud escreve: Chamaremos pré-genitais às
organizações da vida sexual em que as zonas genitais ainda não assumiram seu papel
preponderante.”
, nos “Três Ensaios
Sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud trata das organizações pré-genitais que incluem a
oral ou canibalesca e a sádico-anal -, a organização genital infantil de primazia do falo e a
organização genital adulta, que tem seu início depois da fase de latência.
13
No texto de 1905, “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud postula que na
fase oral, o ato de chuchar “(...) é determinado pela busca de um prazervivenciado e agora
relembrado.”
Para Freud, a sexualidade infantil caracteriza-se pela presença de uma organização
libidinal na qual as pulsões parciais encontram-se em estado polimorfo, ou seja, são
desvinculadas e independentes entre si na busca de prazer, visando suprimir a tensão no nível
da fonte corporal (prazer de órgão).
As pulsões parciais não estão subordinadas à primazia da zona genital, o que será
configurado no momento da puberdade, quando a pulsão sexual coloca-se a serviço da função
reprodutora.
No que se refere à organização oral ou canibalesca, esta é caracterizada pela busca de
prazer por meio da estimulação da boca, lábios e língua. A organização sádico-anal,
caracteriza-se pela busca de prazer na região anal; nestas na organização oral e anal - a
presença de opostos que se configuram como ativo e passivo.
14
Freud considera que: “Como traço mais destacado dessa prática sexual [o chuchar]
salientamos que a pulsão não está dirigida para outra pessoa; satisfaz-se no próprio corpo, é
auto-erótica (...).
15
O autoerotismo é o meio pelo qual a pulsão sexual busca satisfação no próprio corpo,
por meio de uma atividade que responde à excitão de uma zona erógena.
Isto significa que a satisfação buscada por meio do autoerotismo deve ter sido
vivenciada antes, para que haja uma necessidade de repeti-la. Assim, o autoerotismo é um
tempo segundo e os prazeres orais e anais reportam-se àquela que cuida da criança, que
geralmente é a mãe.
12
Para Laplanche & Pontalis, a organização da libido é a “Coordenação relativa das pules parciais,
caracterizadas pelo primado de uma zona erógena e um modo específico de relação de objeto. (Laplanche &
Pontalis, 1999, p.328).
13
Sigmund FREUD. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. p. 186.
14
Ibid. p. 171.
15
Ibid. p. 170; entre colchetes, interpolação minha.
11
Freud define a zona erógena como “(...) uma parte da pele ou da mucosa em que certos
tipos de estimulação provocam uma sensação prazerosa de determinada qualidade.
16
Em uma nota de rodapé acrescentada neste mesmo texto e datada de 1915, Freud
ampliou o alcance da definição de zona erógena. Nas palavras do mestre: “As reflees
posteriores e o aproveitamento de outras observações levaram-me a atribuir a propriedade de
erotogenia a todas as partes do corpo e a todos os órgãos internos (...).
17
(...) uma unidade comparável ao ego o pode existir no indivíduo desde o começo; o
ego tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram
desde o icio, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo
uma nova ação psíquica a fim de provocar o narcisismo.
É no texto de 1914, intitulado “Sobre o Narcisismo: uma introdução”, que Freud
considera que o ego não existe desde o início da vida do bebê, mas precisa ser desenvolvido.
Nas palavras do autor:
18
Neste mesmo texto de 1914, o autor postula que a atitude dos pais para com os filhos,
(...) é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há muito
abandonaram.
19
É por meio desta supervalorização que, segundo Freud, a criança é alçada à posição de
“Sua Majestade o Bebê”, ou seja, aquele que é depositário de todos os sonhos não realizados
pelos pais. Por esta razão, Freud defende a ideia de que O amor dos pais, tão comovedor e
no fundo tão infantil, nada mais é do que o narcisismo dos pais renascido, o qual,
transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior.”
Para Freud, essa atitude dos pais para com os filhos é regida pela supervalorização, ou
seja, os pais têm a tendência de ocultar todas as deficncias do filho e a atribuir-lhe toda a
perfeição.
20
A respeito do ego ideal que emerge na cena psíquica, Freud faz a seguinte
consideração: “Esse ego ideal é agora o alvo do amor de si mesmo (...) desfrutado na infância
Graças à supervalorização que rege a atitude dos pais para com os filhos - exaltando a
criança e elevando-a à posição de “Sua Majestade o Bebê”-, o ego constitui-se em sua
primeira forma como um ego ideal.
16
Sigmund FREUD. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. p. 172.
17
Ibid. p.173.
18
Sigmund FREUD. Sobre o Narcisismo: uma introdão. p.84.
19
Ibid. p.97.
20
Ibid. p.98.
12
pelo ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, o
qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor.
21
No que se refere ao narcisismo, em seu texto de 1915, intitulado “Os Instintos e suas
Vicissitudes”, Freud concebe o narcisismo como a “(...) fase inicial do desenvolvimento do
ego.”
22
Segundo ele, nesta fase, o(...) amar-se a si próprio (...) [é] o traço característico do
narcisismo.
23
Ele [o indivíduo] o está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância;
e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo
despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela
perfeição, procura recupe-la sob a nova forma de um ideal de ego. O que ele projeta
diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua inncia
na qual ele era o seu próprio ideal.
Assim, o ego ideal é a primeira forma pela qual o ego é constituído e
caracteriza-se por ser o alvo do amor a si mesmo.
Freud considera que, ao crescer, a criança deve renunciar a este ego dotado de toda
perfeição e valor. Nas palavras do autor:
24
Posteriormente (1923), eu mesmo modifiquei essa exposão [a respeito das
diferentes fases de organização da libido], intercalando, depois das duas organizações
pré-genitais, uma terceira fase no desenvolvimento infantil; esta, que já merece o
nome de genital, exibe um objeto sexual e certo grau de convergência das aspirações
sexuais para esse objeto, mas se diferencia num aspecto essencial da organização
Para compreender como se dá esse movimento de renúncia do ego à perfeição
narcisista - que o envolve em seus primeiros tempos de existência - e a consequente
recuperação do narcisismo perdido de sua infância sob a forma de um ideal de ego, antes, é
preciso entender o que se passa com a sexualidade no momento designado por Freud como
organização genital infantil ou fase fálica, bem como as modificações impostas ao ego pelos
complexos de Édipo e de castração.
Em uma nota de rodapé datada de 1924 e acrescentada ao texto de 1905, “Três Ensaios
Sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud teoriza a respeito de um terceiro modo de organização
libidinal chamado de organização genital infantil ou fase fálica. A este respeito, o autor
escreve :
21
Sigmund FREUD. Sobre o Narcisismo: uma introdução. p.100.
22
IDEM. Os Instintos e suas Vicissitudes. p.137.
23
Ibid. p.138.
24
Sigmund FREUD. Sobre o Narcisismo: uma introdãos. p. 100-101; entre colchetes, interpolação minha.
13
definitiva da maturidade sexual. É que conhece apenas um tipo de genitália; a
masculina. Por isso denominei-a de estágio fálico da organização.
25
Em seu texto de 1923, “A Organização Genital Infantil (uma interpolação na teoria da
sexualidade)”, Freud diferencia esta fase do desenvolvimento infantil na qual apenas a
genitália masculina está em questão e as pulsões parciais estão unificadas sob a égide do falo -
da organização genital adulta. Nas palavras do autor: “[a diferença] (...) consiste no fato de,
para ambos os sexos, entrar em consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino.
O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do
falo.
Para Freud, na vida sexual das crianças há uma escolha objetal que se aproxima o
máximo possível da forma definitiva que a vida sexual assume depois da puberdade.
26
Segundo Laplanche & Pontalis, o termo falo “(...) sublinha a função simlica
desempenhada pelo pênis na dialética intra e intersubjetiva, enquanto o termo pênis é
sobretudo reservado para designar o óro na sua realidade anatômica.”
27
Entre outras teorias, Freud faz referência àquela por meio da qual a criança atribui a
todos os seres, animados e inanimados, a posse de umnis. A este respeito, ele escreve: “A
primeira destas teorias (...) consiste em atribuir a todos, inclusive às mulheres, a posse de um
nis (...).”
Permito-me uma digressão para explicitar que em 1908, no texto intitulado Sobre as
Teorias Sexuais das Crianças- a partir da observação direta das crianças e do tratamento
psicanalítico de adultos neuróticos -, Freud apresenta algumas teorias elaboradas pelas
crianças por meio das quais elas procuram forjar uma resposta acerca dos enigmas colocados
pela sexualidade.
28
Diante da realidade imposta pela diferença sexual anatômica, as criançaso
compreendem porque o pênis está presente no corpo do menino e ausente no corpo da
Retomo o texto de 1923, intitulado “A Organização Genital Infantil (uma interpolão
na teoria da sexualidade)”. Neste texto, segundo Freud, as crianças deparam-se com realidade
da diferença sexual anatômica e, em decorrência disto, elas descobrem que o pênis não é um
atributo presente em todos os seres vivos, conforme elas acreditavam até então.
25
Sigmund FREUD. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. p. 220; entre colchetes, interpolação minha.
26
IDEM. A Organização Genital Infantil (uma interpolação na teoria da sexualidade). p.158; entre colchetes,
interpolação minha.
27
Jean LAPLANCHE & Jean-Bertrand PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. p. 166-7.
28
Sigmund FREUD. Sobre as Teorias Sexuais das Crianças. p.196.
14
menina. Assim, as crianças estão diante de um enigma colocado pela sexualidade e a única
maneira de resolvê-lo é forjando respostas fundamentadas em construções fantasiosas.
Ainda neste texto de 1923, para Freud, a primeira reação das crianças diante da
diferença sexual anatômica é a rejeição. Ele escreve:
Sabemos como as crianças reagem às suas primeiras impressões da ausência de um
pênis. Rejeitam o fato e acreditam que elas
realmente, ainda assim, em um pênis.
Encobrem a contradição entre a observação e a preconceão dizendo-se que o pênis
[supostamente, o da menina] ainda é pequeno e fica maior dentro em pouco, e
depois lentamente chegam à conclusão emocionalmente significativa de que, afinal de
contas, o pênis pelo menos estivera lá, antes, e fora retirado depois.
29
(...) ela é impedida de fazê-lo porque supõe ser a falta de um pênis resultado de ter
sido castrada como punição. Ao contrário, a criança acredita que são apenas pessoas
desprezíveis do sexo feminino que perderam seus órgãos genitais (...). Mulheres a
quem ela respeita, como suae, retêm o pênis por longo tempo. Para ela
[a
criança], ser mulher aindao é sinônimo deo ter pênis.
Freud considera que, apesar dessa observação feita pelas crianças - da diferença sexual
anatômica –, elas não estendem prontamente suas conclues a respeito da ausência do pênis
no corpo feminino para todas as mulheres. Nas palavras do autor:
30
Em decorrência de toda esta problemática apresentada, Freud considera que neste
estádio da organização genital infantil “(...) existe masculinidade, maso feminilidade. A
antítese aqui é entre possuir um órgão genital masculino e ser castrado.
Para Freud, a auncia do pênis no corpo da menina é interpretada pelas crianças
como o resultado da castração, ou seja, elas acreditam que a menina não tem pênis porque foi
castrada, em decorrência de impulsos inadmissíveis. Assim, as crianças elaboram fantasias
relativas à castração para explicar o enigma que a diferença sexual anatômica coloca.
31
Assim, a oposição não se estabelece entre os dois termos que designam as duas
identidades sexuais, masculina e feminina; a oposição se dá entre a presença ou ausência de
De acordo com Freud, neste momento de sua constituição psicossexual, a criança não
sabe o que é ser homem ou mulher; se tudo correr bem, ela encontrará essa resposta no
momento em que lhe for possível o acesso a uma identificação feminina ou masculina.
29
Sigmund FREUD. A Organização Genital Infantil (uma interpolação na teoria da sexualidade). p.159; entre
colchetes, interpolação minha.
30
Ibid. p.160; entre colchetes, interpolação minha.
31
Ibid. p.161.
15
um único termo: trata-se de ter o falo ou ser castrado - o que foi antecedido pela oposição
entre ativo e passivo, nas organizações pré-genitais da libido.
Segundo Freud, a partir da percepção da diferença sexual anatômica pela menina,
abrem-se três destinos psíquicos
32
A descoberta de que é castrada representa um marco decisivo no crescimento da
menina. Daí partem três linhas de desenvolvimento possíveis: uma conduz à inibição
sexual ou à neurose, outra, à modificação no cater no sentido de um complexo de
masculinidade, a terceira, finalmente, à feminilidade normal.
. Nas palavras do autor:
33
O primeiro passo na fase fálica (...) é uma momentosa descoberta que as meninas
estão destinadas a fazer. Elas notam o pênis de um iro ou companheiro de
brinquedo, notavelmente visível e de grandes proporções, e imediatamente o
identificam com o correspondente superior de seu próprio órgão pequeno e
imperceptível; dessa ocasião em diante caemtimas da inveja do pênis.
Deste modo, as fantasias relativas à castração que são construídas pelas crianças para
explicar o enigma da diferença sexual anatômica colocam o menino e a menina em posições
diferentes em relação ao complexo de castração.
No menino, a fantasia de castração provoca o temor pela ameaça de castração. No caso
da menina, as fantasias relativas à castração - a partir das quais ela supõe ter sido efetivamente
castrada e, por este motivo, seu corpo é desprovido de um pênis -, têm como corolário o
acesso da menina à inveja do pênis.
A respeito da inveja do pênis, no texto de 1925, intitulado “Algumas Conseqüências
Psíquicas da Distinção Anatômica entre os Sexos”, Freud tece as seguintes considerações:
34
(...) cada período da vida do indivíduo tem seu determinante apropriado de ansiedade.
Assim o perigo de desamparo psíquico é apropriado ao período da vida quando o ego
do indiduo é imaturo; o perigo da perda de objeto, até a primeira infância, quando
ele ainda se acha na dependência de outros; o perigo de castração, até a fase fálica
Isto quer dizer que a percepção da diferença sexual anatômica, que é da ordem da
forma e da estrutura do corpo, expressa-se em consequências de ordem psíquica.
No texto de 1925, intitulado “Inibição, Sintoma e Ansiedade”, Freud faz a seguinte
afirmação:
35
32
Neste trabalho, tratarei de apenas dois destinos psíquicos, quais sejam, a feminilidade e a neurose.
33
Sigmund FREUD. Feminilidade. p.216.
34
IDEM. Algumas Conseqüências Psíquicas da Distinção Anatômica entre os Sexos. p.280.
35
Grifo meu.
;
e o medo do superego, até o período de latência. (...) Não obstante, todas essas
situações de perigo e determinantes de ansiedade podem resistir lado a lado e fazer
16
com que o ego a elas reaja com ansiedade num período ulterior ao apropriado; ou,
além disso, várias delas podem entrar em ação ao mesmo tempo. (...)o há perigo
algum em considerarmos a ansiedade de castração como a única força motora dos
processos defensivos que conduzem à neurose.
36
Na Conferência XXXIII, de 1933[1932], intitulada “Feminilidade”, Freud considera
que o complexo de castração é o fator que leva a menina a se separar da mãe, seu primeiro
objeto de amor. Segundo o autor, “(...) as meninas responsabilizam sua mãe pela falta de
pênis nelas e não perdoam por terem sido, desse modo, colocadas em desvantagem.
37
(...) no início, a menina considera sua castração como um infortúnio individual, e
somente aos poucos estende-a a outras mulheres e, por fim, também à sua mãe. Seu
amor estava dirigido à sua mãe fálica; com a descoberta de que sua mãe é castrada,
torna-se possível abandoná-la como objeto, de modo que os motivos de hostilidade,
que há muito se vinham acumulando, assumem o domínio da situação.
No entanto, para Freud, esse afastamento não se dá de uma só vez. A este respeito, o
autor esclarece que:
38
Segundo o mestre, “O afastar-se da mãe, na menina, é um passo que se acompanha de
hostilidade; a vinculação à mãe termina em ódio.”
39
Em seu texto de 1931, intitulado “Sexualidade Feminina”, Freud faz a seguinte
observação a respeito do complexo de Édipo feminino: “(...) podemos ampliar o conteúdo do
complexo de Édipo de modo a incluir todas as relações da criança com ambos os genitores
(...).“
Assim a menina, ressentida com a mãe
por considerar que esta não lhe deu o pênis - o que ela acredita que deveria ter-lhe dado -,
volta-se ao pai, primeiramente, movida pelo desejo de que este lhe dê o valioso atributo.
40
A respeito de toda essa problemática edipiana na mulher, Freud escreve: “O complexo
de castração prepara o complexo de Édipo, em vez de destruí-lo; a menina é forçada a
Isto significa que, segundo Freud, o complexo de Édipo feminino tanto quanto o
masculino - inclui um complexo negativo - no qual o desejo incestuoso toma como objeto o
genitor de mesmo sexo, hostilizando o genitor de sexo oposto e um complexo positivo, no
qual o desejo incestuoso toma como objeto o genitor de sexo oposto e como rival, o genitor de
mesmo sexo.
36
Sigmund FREUD. Inibição, Sintomas e Ansiedade. p.140-1.
37
Ibid. p.124.
38
Sigmund FREUD. Feminilidade. p.126.
39
Ibid. p.122.
40
Sigmund FREUD. Sexualidade Feminina. p.234.
17
abandonar a ligação com sua mãe através da influência de sua inveja do pênis, e entra na
situação edipiana [positiva] como se esta fora um refúgio.
41
Assim, para o autor,(...) a mulher [quer dizer, a menina] atinge a normal situação
edipiana positiva depois de ter superado um período anterior que é governado pelo complexo
negativo.
42
(...) onde a ligação da mulher com o pai era particularmente intensa, a análise
mostrava que essa ligação fora precedida por uma fase de ligação exclusiva com a
e, igualmente intensa e apaixonada. Com exceção da mudança de seu objeto
amoroso, a segunda fase mal acrescenta algum aspecto novo à sua vida erótica. Sua
relação primária com a mãe fora construída de maneira muito rica e multifacetada.
Portanto, a menina percorre uma trajetória que tem início com o complexo de Édipo
negativo - no qual predomina a relação da menina com a mãe -, para o complexo de Édipo
positivo, dominado pela vinculação da menina com o pai.
No que diz respeito à fase de vinculação da menina com a mãe, Freud tece a seguinte
consideração:
43
Na Conferência de 1933[1932],Feminilidade”, Freud postula que, na fase de
vinculação da menina com a mãe, a menina tem um desejo que é claramente expresso: “(...)
de ter da mãe um filho, e o desejo correspondente de ela mesma ter um filho (...).
44
Parece que em todas elas [as meninas] a atividade masturbatória é executada nesse
equivalente do pênis
[o clitóris] e que a vagina verdadeiramente feminina, a essa
época, ainda não foi descoberta por ambos os sexos. É verdade que há também alguns
relatos isolados de sensações vaginais precoces, mas não poderia ser fácil distingui-las
de sensações no ânus e no vestíbulo; de qualquer maneira não podem ter muita
importância. Estamos autorizados a manter nossa opinião segundo a qual, na fase
lica das meninas, o clitóris é a principal zona erógena. Mas, naturalmente, não vai
permanecer assim. Com a mudança para a feminilidade, o cliris deve, total ou
Assim,
segundo o autor, nesta fase o pai de uma menina é, para ela, um rival causador de problemas.
Em relação à zona erógena que está em proeminência neste momento da constituição
psicossexual feminina, Freud considera que o clitóris é a principal zona erógena e somente
depois, com a puberdade, a sensibilidade deve ser transferida também para a vagina. Sobre
esta questão, Freud faz as seguintes observações:
41
Sigmund FREUD. Feminilidade. p.129; entre colchetes, interpolação minha.
42
IDEM. Sexualidade Feminina. p.234; entre colchetes, interpolação minha.
43
Ibid. p.233.
44
Sigmund FREUD. Feminilidade. p.120.
18
parcialmente
45
, transferir sua sensibilidade, e ao mesmo tempo sua importância, para a
vagina.
46
Freud postula, também, que: “[o amor próprio da menina] é modificado pela
comparação com o equipamento muito superior do menino e, em conseqüência, [a menina]
renuncia à satisfação masturbatória derivada do clitóris, repudia seu amor pela mãe e, ao
mesmo tempo, não raro reprime uma boa parte de suas inclinações sexuais em geral.”
47
Para o
autor, “Se, no decurso desse desenvolvimento, não se perderem demasiados elementos através
da repressão, essa feminilidade pode vir a ser normal.
48
Além disso, ele considera que a vaidade física é uma das maneiras que a menina
poderá encontrar para compensar seu sentimento de inferioridade decorrente da descoberta da
diferença sexual anatômica. A este respeito, ele escreve: “A inveja do pênis tem em parte,
como efeito, também a vaidade física das mulheres, de vez que elas não podem fugir à
necessidade de valorizar seus encantos, do modo mais evidente, como uma tardia
compensação por sua inferioridade sexual original.”
49
O desejo que leva a menina a voltar-se para seu pai é, sem dúvida, originalmente o
desejo de possuir o pênis que ae lhe recusou e que agora espera obter de seu pai.
No entanto, a situação feminina só se estabelece se o desejo de pênis for substituído
pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar do pênis, consoante uma
primitiva equação simbólica.
Em relação à entrada da menina no complexo de Édipo positivo, na Conferência
XXXIII, de 1933[1932] intitulado “Feminilidade”, Freud ressalta que:
50
Com a transferência, para o pai, do desejo de um nis-bebê, a menina inicia a
situação do complexo de Édipo. A hostilidade contra sua mãe, que não precisa ser
Desta maneira, ao longo do processo de constituição de sua psicossexualidade, a
menina precisa renunciar ao desejo de receber o pênis do pai e substituí-lo pelo desejo de
ganhar dele um filho. Tal renúncia é condição sine qua non para o acesso da menina à
feminilidade.
Segundo Freud, durante o complexo de Édipo positivo, ocorre uma intensificação da
hostilidade da menina em relação à mãe. Nas palavras do autor:
45
Grifo meu.
46
Sigmund FREUD. Feminilidade. p.118; entre colchetes, interpolação minha.
47
Ibid. p.126; entre colchetes, interpolação minha.
48
Ibid. p.127-8.
49
Ibid. p.131.
50
Ibid. p.128.
19
novamente criada, agora se intensifica muito, de vez que esta se torna rival da menina,
rival que recebe do pai tudo o que dele deseja.
51
A respeito da fase de ligação da menina com o pai, em seu texto de 1924, intitulado
A Dissolão do Complexo de Édipo”, Freud afirma que “A menina gosta de considerar-se
como aquilo que seu pai ama acima de tudo o mais, pom chega a ocasião em que (...) é
atirada para fora de seu paraíso innuo.”
Para o autor, na situação edipiana positiva a figura paterna torna-se objeto do desejo
da menina sendo que, ao longo de sua constituição psicossexual, ela deverá renunciar a este
objeto paterno, orientando seu desejo no sentido da escolha objetal definitiva.
52
No texto “Sexualidade Feminina, de 1931, o autor ressalta que “(...) a intensa
dependência de uma mulher quanto ao pai simplesmente assume a herança de uma ligação
igualmente forte com a mãe.
53
Ele acrescenta que a menina pode aferrar-se à sua ligação
com o pai “(...) em que se tinha refugiado da fase primitiva (...) [de ligação com a mãe].
54
Freud reitera essa idéia na Conferência XXXIII, de 1933[1932], “Feminilidade”,
quando ele afirma que “Para as meninas, a situação edipiana [positiva] (...) é uma espécie de
(...) posição de repouso que não é logo abandonada.”
55
Abandonando o complexo de Édipo, uma criança deve (...) renunciar às intensas
catexias objetais que depositou em seus pais, e é como compensação por essa perda de
objetos que existe uma intensificação tão grande das identificações com seus pais, as
quais provavelmente há muito estiveram presentes em seu ego.”
Considerando a importância que o complexo de Édipo desempenha na constituição da
psicossexualidade, na Conferência XXXI, de 1933[1932], intitulada “A Dissecção da
Personalidade Psíquica”, Freud trata da questão da resolução do referido complexo. A este
respeito, ele escreve:
56
Neste mesmo texto, o autor define identificação como (...) a ação de assemelhar um
ego a outro ego, em conseqüência do que o primeiro ego se comporta como o segundo em
determinados aspectos, imita-o e, em certo sentido, assimila-o dentro de si.
57
51
Sigmund FREUD. Feminilidade. p.128.
52
IDEM. A Dissolução do Complexo de Édipo. p.198.
53
IDEM. Feminilidade. p.236.
54
Ibid. p.234; entre colchetes, interpolação minha.
55
Ibid. p.128; entre colchetes, interpolação minha.
56
Sigmund FREUD. A Dissecção da Personalidade Psíquica. p.69.
57
Ibid. p.68
No que diz respeito à resolão edípica na menina, na Conferência XXXIII, também
de 1933[1932], intitulada “Feminilidade”, Freud ressalta que:
20
Na ausência do temor de castração, falta o motivo principal que leva a menina a
superar o complexo de Édipo. As meninas permanecem nele por um tempo
indeterminado; destroem-no tardiamente e, ainda assim, de modo incompleto. Nessas
circunstâncias, a formação do superego deve sofrer um prejzo; não consegue atingir
a intensidade e a independência, as quais lhe conferem sua importância cultural (...).
58
O temor de castração não é, naturalmente o único motivo para a repressão: na verdade,
não sucede nas mulheres, pois, embora tenham elas um complexo de castração, não
podem ter medo de serem castradas. Em seu sexo, o que sucede é o temor à perda do
amor, o que é, evidentemente, um prolongamento posterior de ansiedade da criaa
quando constata a ausência da mãe.
No entanto, na Conferência XXXII, intitulada “Ansiedade e Vida Instintual”, de
1933[1932], Freud faz a seguinte ressalva:
59
[O superego] É também o veículo do ideal de ego, pelo qual o ego se avalia, que o
estimula e cuja exigência por uma perfeição sempre maior ele se esforça por cumprir.
Não há dúvida de que esse ideal de ego é o precipitado da antiga imagem dos pais, a
expressão de admiração pela perfeição que a criança então lhes atribuía.
Assim, o que Freud quer dizer é que na menina, o temor pela perda do amor é o fator
responsável pela dissolão do complexo de Édipo. Isto porque, apesar de a menina ter
formulado as fantasias relativas à castração, ela não teme ser castrada, pois ela interpreta a
ausência do pênis em seu corpo como sendo o resultado de uma castração já consumada.
Desta maneira, ela é movida a abandonar o investimento no objeto incestuoso pai -,
porque receia que a mãe deixe de amá-la.
Para Freud, a resolão edípica tem como corolário a instauração de uma nova
instância superior dentro do ego, a qual foi por ele chamada de superego.
Na Conferência XXXI, de 1933[1932], intitulada “A Dissecção da Personalidade
Psíquica”, Freud relaciona o superego com o ideal de ego que, segundo ele, é veiculado pelo
superego. A este respeito, escreve ele:
60
58
Sigmund FREUD. Feminilidade. p.129.
59
IDEM. Ansiedade e Vida Instintual. p. 90-1.
60
IDEM. A Dissecção da Personalidade Psíquica. p.70; entre colchetes, interpolação minha.
No processo de constituição da psicossexualidade, o que se segue à resolução edípica,
segundo Freud, é o período de latência. A este respeito, no texto de 1926, intitulado “A
Questão da Análise Leiga”, Freud reitera o que ele apresentou, primeiramente, nos “Três
Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”, de 1905, referente aos dois tempos da escolha
objetal. A este respeito, ele escreve:
21
(...) o fato mais notável sobre a vida sexual das crianças, (...) passa por todo seu
desenvolvimento mais amplo nos cinco primeiros anos de vida. A partir desse ponto
até a puberdade estende-se o que se conhece como período de latência. Durante ele a
sexualidade normalmente o avaa mais; pelo contrário, os anseios sexuais
diminuem de vigor e são abandonadas e esquecidas muitas coisas que a criança fazia e
conhecia. Nesse período da vida, depois que a primeira eflorescência da sexualidade
feneceu, surgem atitudes do ego como a vergonha, a repulsa e a moralidade, que estão
destinadas a fazer frente à tempestade ulterior da puberdade e alicerçar o caminho dos
desejos sexuais que se vão despertando. Esse ‘desencadeamento bifásico’ (...) da vida
sexual muito tem a ver com a gênese das doenças neuróticas.
61
A organização completa só se conclui na puberdade, numa quarta fase, a genital.
Estabelece-se então um estado de coisas em que (1) algumas catexias libidinais
primitivas são retidas, (2) outras são incorporadas à função sexual como atos
auxiliares, preparatórios, cuja satisfação produz o que é conhecido como pré-prazer, e
(3) outros impulsos são excluídos da organização, e são ou suprimidos inteiramente
(reprimidos) ou empregados no ego de outra maneira, formando traços de caráter ou
experimentando a sublimação, com deslocamento de seus objetivos.
De acordo com Freud, durante o período de latência reinstala-se na psique a barreira
do incesto, que integra os preceitos morais que têm como função impedir que se tome as
figuras parentais como objeto do amor e do ódio. Assim, as experiências vividas pelas
crianças ao longo do período da organização genital infantil sucumbem à amnésia infantil
decorrente do recalcamento.
Depois de encerrado o período de latência, segundo Freud, a organização libidinal
assume sua última forma na puberdade, que está relacionada com a quarta fase da organização
da libido, denominada organização genital adulta. A este respeito, no texto de 1940[1938],
intitulado “Esboço de Psicanálise”, Freud escreve:
62
No entanto, neste mesmo texto, de 1940[1938], Freud defende a ideia de que este
percurso por meio do qual a organização libidinal vai se complexificando - desde as
Assim, com o advento da puberdade, as zonas erógenas subordinam-se à primazia da
zona genital.
Em decorrência da existência dos dois tempos da escolha objetal, a barreira do incesto
é erigida e as aspirações incestuosas das crianças são desviadas das figuras parentais e
orientadas para outras pessoas que se assemelham àquelas.
61
Sigmund FREUD. A Questão da Análise Leiga. Conversações com uma Pessoa Imparcial. p.204.
62
IDEM. Esboço de Psicanálise. p.168.
22
organizações pré-genitais até a organização genital adulta, passando pela organização genital
linfantil -, está sujeito a inibições e fixações. A este respeito, escreve ele:
Este processo nem sempre é realizado de modo perfeito. As inibições em seu
desenvolvimento manifestam-se como os muitos tipos de distúrbios da vida sexual.
(...) Nessas circunstâncias, a organização genital é, na verdade, obtida, mas faltam-lhe
aquelas porções da libido que não avaaram com o resto e permaneceram fixadas em
objetos e metas pré-genitais. Este enfraquecimento revela-se numa tendência, se
ausência de satisfação genital ou se existem dificuldades no mundo externo real, de a
libido retornar a suas catexias pré-genitais anteriores (...).
63
Nossa atitude para com as fases da organização da libido modificou-se um pouco, de
um modo geral. Ao passo que, anteriormente, enfatizávamos principalmente a forma
como cada fase transcorria antes da fase seguinte, nossa atenção, agora, dirige-se aos
fatos que nos mostram quanto de cada fase anterior persiste junto a configurações
subseqüentes, e depois delas, e obtém uma representação permanente na economia
libidinal e no caráter da pessoa.
Além disso, ainda no que se refere às três fases da organização da libido, Freud faz a
seguinte ressalva:
64
Em decorrência disto, neste momento o leitor deve estar às voltas com a seguinte
questão: considerando que esta investigação se desenrola no campo da neurose - mais
Isto significa que a teoria proposta por Freud trata da imbricação da sexualidade com a
constituição do psiquismo, de modo que é impossível pensar em uma superação total de um
estádio da organização da libido por outro, mais complexo que o anterior.
O que há é uma coexistência de todos os estádios da organização libidinal e da
erogeneidade do corpo, sob a égide da genitalidade adulta.
Contribuições Metapsicológicas de Piera Aulagnier:
modos de funcionamento psíquico
Antes de recorrer à teoria de Piera Aulagnier, considero importante lembrar que o
presente estudo tem como objetivo revelar o poder facilitador da fixação da libido na fase
oral, na manifestação dos traços depressivos que se fazem presentes na possível organização
histérica de Maria Callas.
63
Sigmund FREUD. Esboço de Psicanálise. p.168.
64
IDEM. Ansiedade e Vida Instintual. p.102.
23
especificamente da histeria feminina -, por que recorrer às teorizações de Aulagnier que foram
construídas com base na clínica da psicose, e pouco escreveu sobre a neurose? Por que não
permanecer apenas com a teoria freudiana que foi assentada sobre as bases da cnica da
histeria feminina?
É verdade; foi por meio da clínica das psicoses que Aulagnier defrontou-se com os
limites que o modelo freudiano apresentava para tratar desta forma de sofrimento psíquico e
de suas condições de analisabilidade.
A clínica freudiana constituiu-se, sobretudo, por adultos neuróticos e, por esta razão,
Freud não sentiu necessidade de entrar em contato com os pais de seus pacientes, o que é
imperativo na análise de crianças e de psicóticos.
Em decorrência disto, o mestre não teve acesso aos processos psíquicos dos pais de
seus pacientes; seu interesse era compreender metapsicologicamente qual é o caminho por
meio do qual a menina e o menino tornam-se mulher e homem, respectivamente, bem como
as vicissitudes psicopatológicas neste caminhar.
Por meio de sua vasta experiência analítica com psicóticos Aulagnier ressaltou o lugar
do desejo dos pais entre si e do desejo de cada um pelo(a) filho(a) - o que depende da
constituição psíquica de cada um dos membros do casal parental -, na constituição do sujeito
psíquico.
A partir disto, a autora complementou o modelo freudiano nos aspectos
metapsicológicos, psicopatológicos, metodológicos, técnicos e éticos. Enfatizou a constituição
e o funcionamento do Eu
65
65
As traduções da obra de Piera Aulagnier tratam de forma indiferenciada os termos Je e Moi e, em decorrência
disto, os conceitos de Eu e eu são também utilizados de forma indistinta. De acordo com o que foi proposto por
Violante, intérprete de Aulagnier em língua portugesa, o conceito de Eu será utilizado, no decorrer deste
trabalho, sempre com letra maiúscula, referindo-se ao Je. (Maria Lucia Vieira VIOLANTE. Piera Aulagnier.
Uma Contribuição Contemporânea à Obra de Freud. o Paulo: Via Lettera/FAPESP, 2001, p.9).
- pois é seu funcionamento o que nos diferencia, conforme o
conflito identificatório - em suas relões com os modos origirio e primário de
funcionamento psíquico e com o mundo extrapsíquico.
É imprescindível lembrar, também, que apesar de reconhecer a influência e a
importância de Jacques Lacan em seu modo de pensar a psicanálise, a autora deixa claro que
ela é freudiana, assim como são considerados os psicanalistas franceses que acompanharam
Lacan até a primeira fase de suas teorizações, quando ele fez um “retorno a Freud”.
Portanto, os aportes teóricos de Aulagnier não são discordantes da teoria freudiana,
mas se prestam para contribuir com o legado de Freud, enriquecendo-o e ampliando seu
alcance trico-clínico.
24
Deste modo, como visto anteriormente, no texto Sobre o Narcisismo: uma
introdução, datado de 1914, Freud considera que “(...) uma unidade comparável ao egoo
pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem que ser desenvolvido.”
66
(...) o equivalente psíquico do trabalho de metabolização própria à atividade orgânica.
Podemos definir trabalho de metabolização como a função pela qual um elemento
heterogêneo à estrutura celular é rejeitado ou, ao contrário, transformado num material
que se torna a ele homogêneo.
No entanto,
Freud não precisa a data em que o ego é constituído.
Segundo a teoria lacaniana do estádio do espelho, o Eu constitui-se entre 6 e 18 meses
de idade, o que é mantido por Piera Aulagnier. Para ela, no nascimento, a psique do beé
inaugurada pelo encontro com dois fragmentos da realidade: o próprio corpo e o Eu materno.
Como o Eu ainda não está presente na cena psíquica, esta vivência sensorial inaugural
é inscrita na psique do bebê por meio dos modos origirio e pririo do funcionamento
psíquico, que serão detalhados neste capítulo.
Além disso, Aulagnier considera que o Eu é historiado, ou seja, constitui-se pelo
discurso do meio familiar, que é mediatizado por um meio ambiente psíquico organizado pelo
desejo e pelo discurso do casal parental. Desta maneira, o Eu nasce no seio da história
edipiana dos pais e se constitui em sua própria história edipiana, por meio de uma dialética
identificatória.
Esse mesmo Eu é estruturado pela linguagem, na medida em que, antes do
nascimento do bebê, ele é pré-enunciado pelo discurso do casal parental.
No que se refere à atividade de representação, para a autora, esta é uma das tarefas
específicas da psique, que é por ela compreendida como:
67
66
Sigmund FREUD. Sobre o Narcisismo: uma introdução. p.84.
67
Piera AULAGNIER. A Atividade de Representação, seus Objetivos e sua Finalidade: In: A Violência da
Interpretação. p. 27
Segundo Aulagnier, cabe à atividade de representação inscrever na esfera psíquica
todas as experiências vividas pelo indivíduo, nos sucessivos encontros de sua psique com o
seu próprio corpo, com o Eu do outro e com a realidade, desde que essas experiências sejam
dotadas de um índice libidinal, ou seja, carregadas de informações capazes de gerar prazer ou
desprazer.
Deste modo, a proposição metapsicológica de Aulagnier defende a hipótese segundo a
qual, os objetos passíveis de serem representados - sejam eles pertencentes à realidade física
ou psíquica - são aqueles que enviam à psique informações dotadas de um índice libidinal.
25
Para a autora, esses objetos serão remodelados e transformados pela atividade
psíquica, que se constitui pelo conjunto de três modos de funcionamento, ou três processos de
metabolização: o processo origirio cuja atividade dá origem à representação pictográfica
ou pictograma -, o processo primário que produz a representação fantasmática ou fantasia -
e o processo secundárioque gera a representação ideativa ou ideia.
Ainda no que se refere à hipótese metapsicológica de Aulagnier, ela considera que
nenhum dos processos psíquicos está imediatamente presente na psique, mas eles “(...) se
sucedem temporalmente
68
e a emergência de cada um deles resulta da necessidade que se
impõe à psique de tomar conhecimento de uma propriedade do objeto, exterior a ela,
propriedade que o processo anterior tinha a obrigação de ignorar.”
69
Am disso, para Aulagnier, ao longo da existência do indiduo, os três processos
psíquicos o origirio, o primário e o secunrio coexistem entre si, de modo mais ou
menos conflituoso. Segundo ela, “(...) em espaços diferentes, tendo entre eles relações não
homólogas, cada um desenvolve a atividade que lhe é própria.
70
1. O Processo Originário
Esses aportes teóricos são de fundamental importância para orientar a leitura dos
dados biográficos de Maria Callas, que será apresentada mais adiante.
O processo originário, segundo Aulagnier, “(...) define uma forma de atividade e um
modo de produção que são os únicos presentes na fase inaugural da vida.”
71
Para a autora, o espaço originário que é o lugar hipotético que se supõem ser a sede
das atividades e produções desse modo de funcionamento psíquico - é diferente do
Inconsciente e do processo primário
72
De acordo com Aulagnier, a atividade do processo origirio é pulsional e consiste em
metabolizar todas as experiências, que são fonte de afetos e que procedem de um espaço
, postulados por Freud.
68
Para Aulagnier, esta sucessão temporalo é mensurável, mas “Tudo leva a crer que a distância que separa a
entrada em ação do processo originário da do processo primário é extremamente reduzida; a atividade do
processo secundário é também muito precoce. (Piera AULAGNIER. A Atividade de Representação, seus
Objetivos e sua Finalidade. In: A Violência da Interpretação. p.28).
69
Piera AULAGNIER. A Atividade de Representação, seus Objetivos e sua Finalidade. In: A Violência da
Interpretação. p. 28
70
Ibid. p. 28
71
Ibid. p. 55
72
O processo primário é um dos modos de funcionamento do aparelho psíquico que, segundo Laplanche &
Pontalis, “(...) caracteriza o sistema inconsciente (...) e a energia psíquica escoa-se livremente, passando sem
barreira de uma representação para outra segundo os mecanismos de deslocamento e de condensação; tende a
reinvestir plenamente as representações ligadas à vivência de satisfação constitutivas do desejo (alucinação
primitiva).” (Laplanche & Pontalis, 1999, p.371)
26
heterogêneo ao espaço origirio, em um pictograma ou representação pictográfica, o que é
uma condição necessária para que a experiência seja registrada na esfera pquica. A este
respeito, ela escreve:
A atividade do processo origirio é coextensiva a uma experiência responsável pelo
estabelecimento da atividade de uma ou derias funções do corpo, resultantes da
excitação das superfícies sensoriais correspondentes. Esta atividade e esta excitação
exigem o encontro entre um óro sensorial e um objeto exterior que possua um poder
de estimulação sobre ele. É este modelo sensorial
que o processo origirio retoma
nas suas configurações.
73
Essa experiência que é responsável pelo estabelecimento da atividade de uma ou de
rias funções do corpo, da qual fala Aulagnier, tem como protótipo a primeira e inaugural
74
(...) não depende da justaposição fortuita entre o prazer do gosto e a satisfação da
necessidade alimentar, mas que no registro da sensibilidade existe, efetivamente, uma
espera do objeto, que tem um poder de excitabilidade e umanecessidade de
informação, que explica que a atividade das diferentes zonas sensíveis possua a
propriedade de se acompanhar do que chamamos de prazer erógeno
experiência de prazer, que é o encontro entre a boca do bebê e o seio da mãe.
Neste momento inaugural da psique, o seio é um fragmento do mundo que deve ser
dispensador de libido e, ao mesmo tempo, uma fonte de esmulos auditivos, visuais, táteis e
olfativos, que desencadeiam a atividade do sistema sensorial do bebê, juntamente com a parte
do sistema muscular que é necessária ao ato da sucção.
Aulagnier compreende que esta atividade do sistema sensorial
75
., portanto,
equivalência entre a excitabilidade e a erogeneidade das zonas (...).
76
Nesta experiência de encontro entre o bebê e o seio materno, Aulagnier postula a
existência de uma (...) percepção muito precoce feita pela psique, de um ‘a mais’ de prazer,
Assim, no momento inaugural da psique, o corpo materno mais especificamente, o
seio - possui a propriedade de estimular a atividade sensorial do bebê, por meio dos cuidados
que a mãe lhe presta.
73
Piera AULAGNIER. O Processo Originário e o Pictograma. In: A Vioncia da Interpretação. p. 43
74
Em seu livro A Violência da Interpretação, Aulagnier considera que o encontro originário “(...) em princípio,
acontece no momento do nascimento, entretanto nos autorizamos a deslocar este momento, para situá-lo quando
de uma primeira e inaugural experiência de prazer: o encontro boca-seio.” (Piera AULAGNIER. O Processo
Origirio e o Pictograma. In: A Violência da Interpretação. p. 41)
75
Segundo Laplanche & Pontalis, o adjetivo erógeno refere-se à “(...) produção de uma excitação sexual.”
(Laplanche & Pontalis, 1999, p. 150) Segundo os autores, uma zona erógena é “Qualquer região do revestimento
cutâneo-mucoso suscetível de se tornar sede de uma excitação de tipo sexual. De forma mais espefica, certas
regiões queo funcionalmente sedes dessa excitação: zona oral, anal, uretro-genital, mamilo.” (Laplanche &
Pontalis, p. 533)
76
Piera AULAGNIER. O Processo Originário e o Pictograma. In: A Violência da Interpretação. p. 62
27
vivenciado no momento da experiência da satisfação real (...), com a condição de que esta
satisfação seja apta a dar prazer e não se reduza a saciar a necessidade.”
77
Para Aulagnier é a qualidade afetiva desta vivência corporal, da qual fazem parte uma
dualidade formada pela zona sensorial e pelo objeto que causa a excitação, que a atividade do
processo originário registra na esfera psíquica por meio de “(...) uma imagem que os figura
como uma entidade que chamaremos ‘imagem da coisa corporal’ ou preferivelmente,
‘imagem do objeto-zona complementar’. Essa imagem é o pictograma (...).
78
Segundo a autora, a consequência direta desta complementaridade é “(...) a ilusão de
que toda zona auto-engendra o objeto a ela adequado (...).
De acordo com o funcionamento do processo origirio, é imposvel reconhecer a
dualidade do encontro boca-seio e representar uma boca separada de um seio.
79
O encontro boca-seio e as demais experiências sensoriais prazerosas serão
representadas pela psique “(...) como uma fonte de prazer auto-engendrado por ela, e,
portanto, fazendo parte do que é ‘apropriado’ no interior de si mesmo (...).”
Assim, a boca que é a zona
sensorial do bebê - e o seio – que, para o bebê, é o objeto complementar, proveniente do meio
extra psíquico e dotado de poder de estimulação - serão pictografados como se fossem uma
unidade indissociável: a unidade objeto-zona complementar.
80
Para a autora a atividade de representar, que é desenvolvida pela psique,(...) não é
jamais gratuita e o gasto de trabalho que ela comporta deve ser assegurado por uma
Este é o
postulado do autoengendramento, que rege a atividade de representação que é própria ao
processo origirio.
A psique confere à sua própria atividade de representação o poder de dar origem, ou
seja, de autoengendrar todo afeto de prazer ou de desprazer decorrentes das experiências
sensoriais vividas.
Ainda no que se refere ao registro psíquico do encontro boca-seio por uma
representação pictográfica, Aulagnier considera que essa representação pode ser fonte de
prazer ou de desprazer.
O prazer decorrente das experiências sensoriais leva a psique a investir a informação
libidinal e o objeto de excitação que é responsável por essa informação, ou seja, a psique
investe a sua própria atividade de representação e o representado que dela resulta.
77
Piera AULAGNIER. O Estado da Alienação. In: Os Destinos do Prazer. p.44
78
IDEM. O Duplo Princípio de Causalidade. In: Os Destinos do Prazer. p.51.
79
IDEM. O Processo Originário e o Pictograma. In: A Violência da Interpretação. p.53.
80
Ibid. p.48.
28
recompensa em prazer (...).
81
Assim, o não investimento da atividade de representar marcaria o limite da vida
psíquica, mas para a autora, a psique está preservada desse perigo “(...) pela presença do que
nós chamaremos o ‘prazernimo’”.
É essa recompensa em prazer que assegura o investimento da
atividade de representação, garantindo a continuidade da atividade vital.
82
(...) conseqüência da relação entre os elementos da informação que penetram no
espaço psíquico e o estado de quiescência resultante para a atividade de representação;
isto, na medida em que o representado se oferece como suporte que imanta e fixa em
seu proveito a energia da qual dispõe este processo.
A respeito deste “prazer mínimo”, Aulagnier escreve que ele é a
83
Desta forma, este “prazer mínimo” é o prazer decorrente da fixação da energia
psíquica a um representado que é por ela investido. Neste caso, segundo Aulagnier, “(...) há
uma atração entre a atividade representante e a imagem representada, cuja presença ou retorno
será, desde então, desejada pela psique. Esta tendência para a representação, este desejo de
presença, é o que chamamos de Eros.”
84
Por este motivo, Aulagnier afirma que é necessário acrescentar ao “prazer mínimo
“(...) a espera de uma ‘recompensa em prazer (...), que a partir do momento em que a
experiência é feita, torna-se a finalidade da atividade psíquica.”
Entretanto, a autora observa que se o prazer mínimo” fosse o único a operar, haveria
uma tendência psíquica em tornar perene a representação inaugural, transformando-a no
primeiro e último suporte da totalidade da energia psíquica.
85
(...) o estado de fixação torna-se impossível e que a atividade psíquica deve forjar
novamente uma representação. (...) o trabalho necessário à constituição de uma nova
representação tem como conseência um estado de tensão, responvel pelo que
chamaremosdesprazer mínimo”, simétrico ao que chamamos “prazer mínimo”.
No que se refere às condições relativas ao afeto de desprazer, para Aulagnier, este se
faz presente todas as vezes que
86
Assim, segundo a autora, esse “desprazer mínimo” decorre do estado de tensão que se
faz presente nos momentos em que a psique estiver confrontada com a obrigação de forjar
uma nova representação, ou quando ela estiver diante de uma situação de necessidade
81
Piera AULAGNIER. O Processo Originário e o Pictograma. In: A Violência da Interpretação. p.43
82
Ibid. p.43.
83
Ibid. p.43-4.
84
Ibid. p.55.
85
Ibid. p.44.
86
Ibid. p.44.
29
ocasionada pela falta de um objeto sensível à zona complementar que seria adequado para
satisfazer as necessidades psíquicas e corporais.
Nestas circunstâncias Aulagnier ressalta que, na psique, haverá o predonio de uma
representação submetida aos poderes de Tánatos. A este respeito, escreve ela:
O desprazer tem como corolário e sinônimo um desejo de auto-destruição, primeira
manifestação da pulsão de morte, que vê na atividade de representação, enquanto
forma original da vida psíquica, a tendência contrária a seu próprio desejo de retorno
ao “anterior” a qualquer representação.
87
(...) Eros só poderá se impor se a espera do prazer não se prolongar, já que sua tática
consiste em oferecer a Tanatos, através do objeto, a ilusão de que ele atingiu sua
finalidade: o silêncio do desejo, o estado de quiescência, o repouso da atividade de
representação.
É a esta tendência regressiva, que inclina a atividade psíquica a um impossível tempo
supostamente anterior à exigência de representabilidade, que a autora denomina Tánatos.
Sob o domínio da pulsão de morte, a atividade do processo origirio forjará
representações pictográficas nas quais o estado de desprazer corresponde a um movimento de
rejeição entre a zona sensorial e seu objeto complementar.
Diante desta situação, marcada por um predomínio da pulsão de morte, Aulagnier
considera que:
88
Para Aulagnier, tanto o afeto de prazer como também o desprazer experimentado por
uma zona erógena, propagam-se para as demais zonas porque, segundo a autora,(...) o
originário está sempre sob o domínio da lei do ‘tudo ou nada’, do amor ou do ódio.”
89
A totalidade sincrônica da excitação das zonas é de uma importância fundamental:
antecedente necessário à integração do corpo como unidade futura, mas, também,
Isto
significa que, em decorrência da complementaridade zona-objeto, o mau objeto é
indissociável de uma má zona, ou seja, se o seio é mau, a boca também o é.
Essa indissociabilidade entre o objeto e a zona complementar, que garante a difusão do
prazer e do desprazer de uma zona erógena para as demais zonas, desempenha uma
importante função na integração do corpo como unidade futura. A este respeito, a autora
escreve:
87
Piera AULAGNIER. O Processo Originário e o Pictograma. In: A Violência da Interpretão. p.45.
88
Ibid. p.56.
89
Ibid. p.58.
30
causa de uma fragmentação desta “unidade” que é fonte de uma angústia de
mutilação; angústia que implica numa desintegrão da imagem do corpo.
90
(...) é forcluído do poder do conhecimento do Eu. Os seus efeitos se manifestam fora
do campo da psicopatologia, através destes sentimentos indefiníveis que a linguagem
traduz por metáforas, cujo sentimento profundo foi banalizado pelo uso: “sentir-se
bem na própria pele”, “estar em forma”, “estar mal”, “carregar o mundo nas costas”,
sentir o corpo em pedaçose outros mais.
Em decorrência disto, no momento em que o processo primário entra em cena, a
matéria-prima que a sua atividade representativa irá transformar em cena primária é essa
protorrepresentação, anteriormente forjada pelo originário.
No entanto, para Aulagnier, o pictograma não tem lugar na figuração fantasmática,
visto que ela implica a presença de um terceiro pólo, representado por um olhar que é exterior
à cena figurada.
No que se refere ao Eu, este será representado no origirio por meio de um
pictograma no qual o Eu apresenta-se como zona complementar, e o objeto investido (ideia)
ocupa o lugar de objeto complementar.
Assim, segundo Aulagnier, a representação pictográfica do espaço e da atividade dos
processos primário e secundário é por ela designado por “fundo representativo”. Para a autora,
esse “fundo representativo
91
Na concepção de Aulagnier,(...) a vida exige que ao menos uma pessoa assuma o
encargo de nos fazer viver e de tornar a realidade viável. Refiro-me ao desejo do porta-voz de
Nesse fundo representativo serão inscritos, junto à instância pictografante, os afetos
que são ligados às sucessivas vivências do indivíduo.
Porém, apesar do fundo representativo manter sua atividade ao longo da vida do
indivíduo, paralelamente ao funcionamento das demais instâncias, ele não tem uma
representação ideativa, ou seja, não tem lugar no registro do dizível e, portanto, não tem
existência no registro do Eu, o que não impede que o Eu sofra os seus efeitos.
Conforme visto anteriormente, o processo originário é a única atividade psíquica
que está presente na fase inaugural da vida do bebê. Portanto, é ele que irá representar, por
meio de um pictograma, o encontro da psique incipiente do bebê com dois fragmentos da
realidade: o próprio corpo e o Eu materno.
90
Piera AULAGNIER. O Processo Originário e o Pictograma. In: A Violência da Interpretão. p.52.
91
Ibid. p.65
31
‘fazer viver’ um corpo, desejo que permitirá que a vida não se reduza a um estado vegetativo
(...).”
92
No entanto, a autora considera que “(...) esse desejo que surge num primeiro tempo
nesse lugar onde o sujeito falta, nos prova que a causa desse desejo não é o sujeito, mas sim a
significância que tem para o desejante esse ponto vazio onde a criança terá que advir.”
93
(...) a função atribuída ao discurso da e, na estruturação da psique: porta-voz no
sentido literal do termo, pois é a esta voz que o infans
Para Aulagnier, mesmo antes de nascer, o bebê é marcado por um discurso que lhe diz
respeito, o qual é enunciado por aquela que ela chama de porta-voz. Com este termo, a autora
define:
94
deve, desde seu nascimento, o
fato de ter sido incluído num discurso que, sucessivamente, comenta, prediz, acalenta
o conjunto de suas manifestações, mas porta-voz, também no sentido de delegado, de
representante de uma ordem exterior cujo discurso enuncia ao infans suas leis e
exigências.
95
Ainda no que diz respeito a esse discurso do porta-voz, Aulagnier considera que “O
discurso materno se dirige, inicialmente, a uma sombra-falada projetada sobre o corpo do
Infans (...).
Assim, em uma primeira fase da vida do bebê, a psique materna assume o papel de
uma prótese, pois a sua voz é, por excelência, o elo intermediário que torna possível a
comunicação entre o bebê e o meio em que ele vive.
96
Para ela, essa sombra-falada é constituída por “(...) uma série de enunciados que
testemunham o desejo materno referente à criança; eles constituem uma imagem
identificatória que antecipa o que será enunciado pela voz deste corpo, ainda ausente.”
97
Por meio destes enunciados dirigidos à sombra a mãe enuncia, para ela própria e para
a criança, as interdições. A este respeito, Aulagnier escreve: “(...) a sombra, herdeira da
estória edipiana da mãe e de seu reprimido, induz, por antecipação, o reprimido na criança;
graças a ela, o infans fala’ à mãe como se a repressão já tivesse ocorrido.
98
92
Piera AULAGNIER. Prazer Necessário e Prazer Suficiente. In: Os Destinos do Prazer. p.139.
93
IDEM. O “Desejo de Saber” em suas Reações com a Transgressão. In: Um Intérprete em Busca de Sentido I.
p.178.
94
Segundo Pierre Kaufmann, infans é “(...) o termo que o próprio Lacan emprega para qualificar a criança antes
que ela utilize a linguagem (...).” (Kaufmann, 1996, p.157).
95
Piera AULAGNIER. O Espaço no qual o Eu pode Constituir-se. In: A Violência da Interpretação. p.106.
96
IDEM. A Relação Amorosa: introdução à análise das relações de simetria. In: Os Destinos do Prazer. p.110.
97
Ibid. p.113.
98
Ibid. p.117.
32
Segundo a autora, a mãe (...) pede [ao corpo do bebê] a confirmação da identidade da
sombra, sendo desta sombra que se espera uma resposta, raramente ausente, pois ela foi pré-
formulada”.
99
(...) a mãe pode falar no feminino à sombra de um corpo dotado de um pênis e vice-
versa mas, neste caso, ela não ignora que existe uma antinomia entre o sexo da sombra
e o
sexo do corpo na sua totalidade. Esta clivagem da criança, operada pela mãe, é
testemunhada pela ambiidade de seu investimento em relação ao corpo da criança.
(...) o objeto corpo será (...) objeto de cuidados, preocupações e interesses, ao mesmo
tempo que permanece um mero suporte da sombra impondo-se como o que é amado
ou “a amar”.
A despeito disto, Aulagnier trata também da possibilidade de haver um ponto de
discordância entre a imagem do corpo do bebê que foi construída pela mãe ao longo da
gestação - e o corpo real deste.
A autora considera que o sexo do bebê pode tornar-se o primeiro ponto de ruptura
entre a sombra falada e o corpo do bebê. A este respeito, Aulagnier escreve:
100
Para Aulagnier, a possibilidade de contradição entre a sombra falada e o corpo real do
bebê pode persistir e “(...) é o corpo que pode manifestá-la; o sexo primeiramente, em seguida
tudo o que, no corpo, pode aparecer como sinal de uma ‘falta’, de um ‘a menos’”.
101
Segundo a autora, (...) Todo defeito no seu funcionamento [do corpo] e no modelo que
a mãe privilegia, corre o risco de ser recebido como um questionamento, uma recusa de
conformidade deste corpo à sombra (...).
102
A persistência dessa discordância entre a sombra-falada e o corpo real do bebê,
segundo a autora, “(...) está na base do que é vivido pelo Eu como dúvida, sofrimento,
opressão e, inversamente, como prazer, alegria, certeza, nos momentos em que ele tem a
garantia da concordância entre sombra e objeto.
103
Aulagnier ressalta que o encontro entre o corpo real do bebê e o Eu materno “(...) vai
exigir uma reorganização de sua economia psíquica [da mãe], que deverá fazer com que esse
99
Piera AULAGNIER. O “Desejo de Saber” em suas Reações com a Transgressão. In: Um Intérprete em Busca
de Sentido I. p.110; entre colchetes, interpolação minha.
100
IDEM. O Espaço no qual o Eu pode Constituir-se. In: A Violência da Interpretação. p.111.
101
Ibid. p.112.
102
Ibid. p.112; entre colchetes, interpolação minha.
103
Ibid. p.111-2.
33
corpo desfrute do investimento que só gozava, até então, o representante psíquico que o tinha
precedido.”
104
(...) a relação da mãe com o corpo do bebê comporta, inicialmente, uma parte de
prazer erotizado, permitido e necessário, que ela pode ignorar
parcialmente, mas que
constitui o fundamento da
ancoragem somática desse amor que ela possui pelo
corpo singular de seu filho, amor que, longe de ignorar, ela está pronta a clamar. Esse
corpo que ela vê, que ela toca, essa boca que ela leva ao seu peito, são ou deveriam
ser, para ela, fontes de um prazer, que o seu próprio corpo participa. Esse componente
somático da emão materna transmite-se de um corpo a outro, o contato com um
corpo comovido toca o seu; uma mão que o toca sem prazer não provoca a mesma
sensação que a de uma mão que vivencia o prazer de tocar.
Assim, a partir da reorganização de sua economia psíquica, a mãe poderá investir em
sua relação com o corpo real do bebê. Nas palavras da autora:
105
Deste modo, o corpo do bebê poderá encontrar-se com (...) a emoção que as suas
manifestações provocam na mãe, emoção cuja percepção, pelo bebê, inaugura a união entre a
sua psique e esse discurso e essa história que o esperavam.”
106
(...) as mensagens, as oferendas que a mãe dirige ao “Eu antecipado”, bem como as
respostas que este último supostamente lhe enviaria, vão apoiar-se nesse substituto
representado pelo corpo do bebê, nas suas expressões, no seu estado, nos seus
movimentos, na sua apatia, nos seus choros... (...) as manifestações que a vida e a
singularidade exprimem e, também, essa parte do
imprevisto que constitui um corpo
vivo, deverá ser acolhido pela e como o referente, na cena da realidade, desse
representante psíquico que o precedia e o esperava. O corpo do bebê é o
complemento necessário para estabelecer um estado de união entre o representante
psíquico pré-forjado pela psique materna, que se referia à “idéia criança” (ou à sua
criança ideal) e a essa criança que está aí. O corpo do be só pode dar à mãe esses
materiais informativosque garantem, ao “Eu antecipado”, um ponto de ancoragem
na realidade de um ser singular, que obrigam e possibilitam à e preservar seu
investimento no seu representante psíquico do bebê e nesse “corpo psíquico” presente
Ainda no que se refere à ancoragem da sombra-falada no corpo do be, Aulagnier
escreve:
104
Piera AULAGNIER. Nacimiento de un Cuerpo, Origen de una Historia. In: Luis HORNSTEIN et al Cuerpo,
Historia, Interpretación. Piera Aulagnier: de lo originario al proyeto identificatorio.p.151; tradução livre; entre
colchetes, interpolação minha.
105
Ibid. p.152.
106
Ibid.p.150.
34
na sua própria psique, investindo na separação, porque é sinal de vida, entre esse
representante e o bebê real.
107
Para Aulagnier, a vivência depressiva manifesta-se (...) pela impossibilidade de o
deprimido experimentar prazer nos e por meio dos seus contatos, nos seus investimentos,
impossibilidade de experimentar e, então, de mostrar e compartilhar os sinais.”
Por outro lado, a autora considera a possibilidade de a mãe não conseguir reorganizar
sua economia psíquica após seus primeiros contatos com o corpo real do bebê, o que poderá
desencadear uma vivência depressiva ou psicótica na mãe.
108
Embora a mãe possa ter o mesmo comportamento gestual, a mesma postura, tenho a
impressão de que se ela mesmao experimenta prazer, se não existe por meio do
corpo uma experiência comum de prazer, a psique do bebê não receberá o alimento
prazer, do qual ele tem necessidade, de um modo apto para a sua assimilação ou para a
sua metabolização.
Neste caso, a autora considera que
109
Segundo Aulagnier, em uma primeira fase da vida, o bebê responde mais “(...) às
manifestações da depressão [materna] do que à sua causa, mesmo que o impacto dessa última
se encontre no modo que a mãe viverá a sua relação com a criança, sobre a qual ela projetará
imediatamente a imagem daquele cujo luto ela não fez (freqüentemente um primeiro filho)
(...).”
110
De acordo com a autora, “(...) as conseqüências de um tal começo de vida, com
freqüência, vão deixar traços indeléveis no funcionamento psíquico da criança ou do adulto
(...). Traços que nos esclarecem a particularidade e a complexidade das respostas que a
criança soube encontrar, para que a vida do bebê tivesse uma continuação.”
111
Assim, para ela, (...) esse ‘Eu antecipado’ traz consigo a imagem dessa criança que
não está mais aí, imagem fiel às ilusões narcisistas dae e imagem mais próxima de um
filho ideal.”
112
107
Piera AULAGNIER. Nacimiento de un Cuerpo, Origen de una Historia. In: Luis HORNSTEIN et al Cuerpo,
Historia, Interpretación. Piera Aulagnier: de lo originario al proyeto identificatorio.p.162; tradução livre.
108
Ibid.p.160.
109
Ibid.p.160.
110
Ibid.p.161; entre colchetes, interpolação minha.
111
Ibid.p.167.
112
Ibid.p.161.
35
2. O Processo Primário
A concepção de Aulagnier a respeito do processo primário e de sua representação
fantasmática da relação entre a psique e o mundo é, fundamentalmente, a mesma que está
presente nas teorizações de Freud.
Como a experiência da ausência e do retorno da mãe ime à psique o reconhecimento
da separação entre dois espaços corporais e, portanto, entre dois espaços psíquicos - o espaço
corporal e psíquico da mãe e aquele que pertence ao bebê é preciso que outro modo de
funcionamento psíquico entre em ação para representar essa alternância entre a presença e a
ausência da mãe.
Assim, desde muito cedo
113
Além disto, Aulagnier considera que a produção fantasmática tem uma característica
específica: “(...) é uma figuração na qual, efetivamente, existe a representação de dois
espaços, mas estes dois espaços estão submetidos à onipotência do desejo de um só.
, quando o conceito de separável impõe-se à psique, o
processo primário entra em ação para representar - por meio de uma fantasia ou representação
fantastica - os afetos de prazer e desprazer que decorrem desta experiência.
114
Ao contrário disto, segundo Aulagnier, “Presença e ausência serão interpretadas por e
na fantasia, como conseqüência da intenção do seio de oferecer prazer ou de impor o
desprazer (...).”
Deste modo, quando a psique do bebê se confronta com o fragmento da realidade que
a informa que o seio é um objeto separado do seu próprio corpo e que, em decorrência disto,
nada poderá garantir sua posse, a presença ou ausência deste seio não pode mais ser
concebida pelo bebê como sendo um autoengendramento.
115
113
A respeito do tempo de entrada do processo primário na cena psíquica, Aulagnier ressalta que “(...) a presença
exclusiva, na cena psíquica, da atividade do originário só pode ser de uma duração extremamente breve, mais
próxima do conceito de momentos que do de fase.” (Piera AULAGNIER. A Representação Fantasmática do
Processo Primário: imagem de coisa e imagem de palavra. In: A Violência da Interpretão. p.86).
114
Piera AULAGNIER. A Representação Fantasmática do Processo Primário: imagem de coisa e imagem de
palavra. In: A Violência da Interpretação. p.69-70.
115
Ibid. p.73.
De acordo com o postulado da onipotência do desejo do Outro, tudo aquilo que atesta
a existência do não-eu será interpretado pelo fantasiante como uma manifestação do desejo do
Outro. Em contrapartida, tudo aquilo que é vivenciado pelo próprio fantasiante e que faz parte
dele mesmo, será por ele interpretado como um efeito da resposta que o desejo do Outro
espera ou ime.
36
Como as experiências de desprazer são inevitáveis ao longo da existência, de acordo
com o postulado do primário, esse desprazer será interpretado como a realização do desejo do
Outro e pode tornar-se fonte de prazer. Aulagnier escreve: “(...) ao experimentá-lo [o
desprazer] asseguramo-nos de estar conformes ao desejo do Outro. Esta interpretação
projetada sobre o desejo do Outro é o fundamento do masoquismo primário.”
116
É por causa deste modo de funcionar que é peculiar ao processo primário que, em Os
Destinos do Prazer (1979), Aulagnier enfatiza que “O próprio do primário é o de não poder
traçar um limite pornimo que seja entre fantasia e as circunstâncias reais da experiência
que coloca em cena.”
Assim, na medida em que o fantasiante interpreta o desprazer experimentado pela
psique como sendo aquilo que o Outro deseja, torna-se possível investir esse desprazer, pois
ao submeter-se a ele o fantasiante estará respondendo ao desejo do Outro, apesar do preço que
a psique paga por esta posição.
117
Para ela, a fantasia é o “(...) núcleo primeiro e irredutível do inconsciente onde se
inscreve de modo indelével a relação do sujeito com o desejo (...).”
118
A autora considera, também, que o processo primário funciona, primeiramente,
representando a imagem de coisa e, depois, a imagem de palavra. A este respeito, o próprio
Freud já havia formulado a ideia de que o Pensar em figuras (...) se situa mais perto dos
processos inconscientes do que o pensar em palavras, sendo inquestionavelmente mais antigo
que o último (...).
Assim, quando nos
referimos às representações fantasmáticas, estamos lidando com o registro do Inconsciente, ou
seja, daquilo que é indizível e como em Freud, será dizível se ligar-se a uma representação
de palavra.
119
116
Piera AULAGNIER. A Representação Fantasmática do Processo Primário: imagem de coisa e imagem de
palavra. In: A Violência da Interpretação. p.72-3; entre colchetes, interpolação minha.
117
IDEM. As Exigências do Eu. In: Os Destinos do Prazer. p.95.
118
IDEM. O “Desejo de Saber em suas Relações com a Transgressão. In: Um Inrprete em Busca de Sentido I.
p.171.
119
Sigmund FREUD. O Ego e o Id. p.35.
Assim, para Freud - e também para Aulagnier -, as representações verbais são
derivadas das lembranças das percepções auditivas e a palavra enunciada pelo indivíduo é
aquilo que restou de uma palavra que fora anteriormente ouvida por ele.
A partir disto, a questão que se coloca é: no processo primário, como se opera a junção
das palavras - que foram escutadas pelo indivíduo - às imagens de coisa? A este respeito,
Aulagnier escreve:
37
A junção deste “escutado” à imagem de coisa estabelece um sistema de significações
primárias, que se diferencia do sistema próprio às significações secundárias pelo fato
de que, no primário, a representação que ele se forja de sua relação ao mundo
permanece organizada de maneira a demonstrar a onipotência do desejo do Outro.
Esta demonstração é a única que pode fornecer ao “fantasiante” a certeza de verdade
de sua representação (...).
120
Segundo Aulagnier, “Esta primeira participação do princípio de realidade no trabalho
da psique é responsável pela heterogeneidade presente entre a produção pictográfica e a
produção fantasmática.
No processo primário, não importa a significação linguística das palavras que são
pronunciadas pela voz materna. O que importa é o sentido libidinal, ou seja, aquilo que é
percebido pelo fantasiante como sendo o desejo do Outro de dar ou de recusar o prazer. É
assim que o primário apresenta um primeiro esboço daquilo que, mais tarde, será a
especificidade da linguagem: a criação de sentido.
No que se refere ao Inconsciente e à fantasia, Aulagnier defende a ideia de que tanto
um como outro resultam da ação de dois elementos: o postulado da onipotência do desejo do
Outro, e de uma primeira participação do princípio de realidade, que impõe o reconhecimento
da presença de um espaço exterior e separado da psique.
121
120
Piera AULAGNIER. A Representação Fantasmática do Processo Primário: imagem de coisa e imagem de
palavra. In: A Vioncia da Interpretação. p.85.
121
Ibid. p.71.
Esta maneira de a autora compreender o processo primário, como sendo marcado pela
presença do princípio de realidade - e não apenas pelo princípio de prazer -, imprime uma
diferença entre a sua concepção e a de Freud.
Para a autora, é no limite entre os processos originário e primário que se inscreve o
que ela chama de cena primária: trata-se de uma fantasia que é construída pelo processo
primário, a partir da remodelagem que este faz do cenário do originário.
A cena primária é o núcleo de toda organização fantasmática e se presta para
responder às indagações que a criança se coloca a respeito de sua origem, da origem do
desejo, do prazer, do desprazer e do mundo.
Essa construção fantasmática organiza-se de um modo específico, sendo que o cenário
que é contemplado pelo fantasiante é composto por três objetos: ele mesmo, a mãe e o outro
sem seio, ou seja, a figura paterna.
Aulagnier ilustra o funcionamento do processo primário com o seguinte exemplo:
38
(...) seu modo de funcionamento faz pensar em um sujeito que colaria num álbum as
fotografias que um aparelho fotográfico captaria sucessivamente de si mesmo, sujeito
que saberia que todas as fotografias lhe pertencem e têm como agente o mesmo
aparelho, sendo, entretanto, incapaz de ler nelas a história de sua temporalidade ou de
prever, a partir delas, qual se o seu futuro.
122
3. O Processo Secundário e a Constituição do Eu os momentos fundamentais da dialética
identificatória
Isto quer dizer que a imagem de coisa configura-se como um elemento de transição:
ela sucede a atividade pictográfica e, ao mesmo tempo, prepara o território no qual o dizível
estabelecerá seu reinado.
Assim, o sistema de significações primárias - que é próprio do processo primário -
abre o caminho para uma atividade ideativa, que é obra do Eu e que leva em consideração o
signo linguístico e o sistema interpretativo que é por ele organizado.
O processo secundário, para Aulagnier, é o modo de funcionamento psíquico que é
próprio ao Eu ou instância enunciante. Segundo a autora,O que caracteriza o Eu é
representar e se representar o existente (...) sob a forma de uma construção de iias. Para o
fazer, deve poder acrescentar à imagem de coisa, a imagem de palavra e investir esta
última.
123
Assim, os produtos desse modo de funcionamento são as ideias ou representações
ideativas e os enunciados. Além disso, Aulagnier considera que “O que se desenvolve neste
registro, se acompanha do que chamamos de sentimentos do Eu, ou seja, o afeto na sua forma
consciente.”
124
Antes de tecer qualquer consideração a respeito dos momentos fundamentais da
dialética identificatória presente na constituição do Eu, é importante relevar que o Eu que faz
A atividade desta instância enunciante é regida pelo postulado da causalidade
inteligível, ou seja, o Eu deve representar a sua existência e a realidade por meio de
representações ideativas que são submetidas a um discurso portador de significações não
arbitrárias: o discurso cultural.
122
Piera AULAGNIER. A Representação Fantasmática do Processo Primário: imagem de coisa e imagem de
palavra. In: A Vioncia da Interpretação. p.83.
123
IDEM. Alienação e Psicose: duas respostas antinómicas ao conflito identificatório. In: Os Destinos do Prazer.
p.19.
124
IDEM. O Processo Originário e o Pictograma. In: A Violência da Interpretação. p.60.
39
parte da metapsicologia de Aulagnier é diferente do ego freudiano. A este respeito, a autora
escreve:
Para mim, o Eu é uma instância que está diretamente vinculada à linguagem.o há
lugar em minha concepção metapsicológica para o conceito freudiano ego-id
indiferenciado. Neste sentido,o se pode fazer uma equivalência entre a maneira
como Freud se serve do conceito de ego (...) e o que eu defini como Eu. Defini um
conceito para mim fundamental que é o Eu antecipado e não se pode falar de um ego
(...) antecipado no discurso materno.
125
Em sua proposição metapsicológica, Aulagnier considera que “O Eu antecipado é um
Eu historiado que inscreve a criança desde o início em uma ordem temporal e simbólica.
126
No livro A Violência da Interpretação, Aulagnier defende a ideia de queTodo
indivíduo nasce num ‘espaço falante’ (...).
127
125
Luis HORNSTEIN. Diálogo com Piera Aulagnier. In: Cuerpo, Historia, Interpretacion. p. 369; tradução
livre.
126
Ibid. p. 369.
127
Piera AULAGNIER. O Espaço no qual o Eu pode Constituir-se. In: A Violência da Interpretação. p.105.
Para ela, a constituição do Eu depende da inserção do bebê em um “meio psíquico
ambiente, sendo que o meio familiar que é organizado pelo discurso e pelo desejo do casal
parental entre si e destes em relação à criança -, é um minúsculo fragmento do campo social
que deve funcionar como um elo intermediário entre a psique singular do bebê e esse “meio-
psíquico-ambiente”.
Esta concepção metapsicológica de Aulagnier a respeito do Eu é imprescindível para
a compreensão da psicogênese da histeria feminina e da singularidade do meio- psíquico-
ambiente no qual Maria Callas nasceu e se constituiu psiquicamente.
No que diz respeito à dialética identificatória por meio da qual o Eu é constituído,
Aulagnier considera que esta se dá ao longo da infância, mas devido à complexidade das
questões envolvidas no processo identificatório e à multiplicidade dos mecanismos que lhe
são próprios, a autora propõe-se a abordá-lo por meio de um artifício de esquematização.
Assim, na evolução própria desta trajetória, a autora privilegia dois momentos
fundamentais, que são a identificação especular ou imaginária e a identificação simlica que
culmina na identificação ao projeto. Além disso, ela destaca também um momento que
antecede o advento do Eu, que é a identificação primária.
Em O Aprendiz de Historiador e o Mestre Feiticeiro, Aulagnier recorre a um artifício
esquemático por meio do qual ela apresenta os tempos fundamentais dessa dialética
identificatória.
40
Para a autora, o marco T0 (tempo zero) corresponde à identificação primária, que
ocorre no nascimento do bebê e é precursora do Eu. Este tempo estende-se até T1 (tempo
um), que corresponde à identificação imaginária ou especular, por meio da qual o Eu advém.
Por sua vez, T1 desdobra-se até T2 (tempo dois ou tempo de concluir”), tempo no qual deve
ocorrer a identificação simbólica, que culmina com a identificação ao projeto.
3.1 A Identificação Primária
A identificação primária torna-se possível gras à satisfação da demanda primária
do bebê, que é de libido, do desejo materno. Este conceito é fundamental nesta tese porque é
por meio dele que se torna possível pensar a singularidade do encontro inaugural entre a mãe
e o bebê na história de Maria Callas.
Na identificação primária, Aulagnier considera que o bebê identifica-se “(...) com as
percepções coextensivas à resposta materna. Ele é primeiramente aquilo que ele percebe do e
pelo objeto, esse prazer de beber ou esse desespero da ausência (...).
128
Para a autora, “Essa demanda que visa o desejo da mãe é o que chamaremos de
demanda primária, aquela que é dirigida ao Outro e que não pode exprimir senão um voto: ser
resposta em conformidade com a oferta (...).
Assim, na
identificão primária, o beidentifica-se com aquilo que ele percebe a partir da resposta
materna à sua demanda primária, que é de libido, de desejo.
129
Assim, a demanda primária - que conduz à identificação primária - pode ser
representada pela sequência que se refere ao encontro mãe-be: “’A mãe deseja que o infans
demande’ e ‘O infans demanda que a mãe deseje’.”
130
O encontro inaugural entre a mãe e o bebê é marcado pela crença que a mãe tem de
que ela dispõe de um saber sobre as necessidades do corpo e da psique do bebê. A partir desta
situação, tudo aquilo que é manifestado pelo bebê,(...) seja o grito mais inarticulado, não
impede que seja entendido pela mãe como ‘demanda de...’.”
131
128
Piera AULAGNIER. Demanda e Identificação. In: Um Intérprete em Busca de Sentido I. p.195.
129
Ibid. p.197.
130
Ibid. p.197.
131
Ibid. p.195.
Para Aulagnier, o seio é o objeto que inaugura o jogo identificatório, tendo uma dupla
função na identificação primária. Em primeiro lugar, para a mãe, o seio é imediatamente
identificado àquilo que o bebê demanda.
41
Assim, no encontro inaugural, é por meio do seio que a mãe se sente demandada pelo
be, e é por isso que ela deseja que ele lhe demande o seio: porque é pela possibilidade de
ofertá-lo que ela se sente convocada pelo bebê para atualizar o seu dom de ser mãe.
Em segundo lugar, para o bebê, o seio é aquilo que ele descobre em uma primeira
experiência de prazer. Por este motivo, o seio torna-se o objeto privilegiado que é suporte da
demanda libidinal do bebê e, ao mesmo tempo, presentifica o desejo que a mãe tem por esta
criança.
Em relação a esta identidade demanda-desejo, Aulagnier considera que isso “(...) só se
realiza no primeiro encontro, nesse tempo em que o demandante ainda não conhece o que
demanda; em seguida, se produzirá sempre um desvio entre o seio demandado (...) e o seio
recebido (...).”
132
Deste modo, ao longo da existência do sujeito, esse Outro primordial ao qual ele
dirigiu suas primeiras demandas de desejo, constitui-se como o “Referente inconsciente ao
qual serão daí por diante medidos todos os ‘outros’ da demanda, que pronunciará seu
veredicto sobre a inadequação de todo objeto de resposta com relação a esse primeiro objeto
da oferta (...).”
133
1) ao corpo que o Eu habita, suas necessidades e seu bom funcionamento;
Conforme referido anteriormente, o Eu não está presente desde o início da vida do
bebê, mas precisa ser constituído por meio de uma dialética identificatória. Assim, para que a
vida do Eu seja possível, é preciso que ele experimente o que Aulagnier designa de “prazer
necessário”: trata-se do prazer que decorre da satisfação de algumas necessidades corporais e
psíquicas que dizem respeito:
2) à possibilidade de ter sido antecipado e portanto, pré-investido e pré-pensado pelo
Eu do porta-voz;
3) ao investimento de um mínimo de referências e pensamentos com função
identificatória, para que o Eu possa pensar, representar e investir sua própria
existência;
4) ao encontro de, pelo menos um outro Eu que, na cena da realidade possa servir
como ponto de apoio e suporte de investimentos.
134
132
Piera AULAGNIER. Demanda e Identificação. In: Um Intérprete em Busca de Sentido I. p.200.
133
Ibid. p.209.
134
Apesar disso, em uma observação feita entre parênteses, Aulagnier destaca que “A experiência mostra que um
só Eu é raramente suficiente para satisfazer esta condição.” (AULAGNIER, Piera. Prazer Necesrio e Prazer
Suficiente. In: Os Destinos do Prazer. p.140).
42
No entanto, para que a possibilidade de viver faça parte das escolhas do Eu, ele
precisa acrescentar ao “prazer necessário” um prazer suficiente”, que é decorrente de seus
investimentos e que tem uma relação com a questão das escolhas.
Assim, o Eu precisa ter a convicção de que ele pode escolher os pensamentos que ele
deseja pensar e aqueles que ele deseja recusar. Da mesma forma, ele precisa convencer-se de
que ele é amado e ama porque foi escolhido e escolheu, e não apenas por obrigação.
3.2 A Identificação Especular ou Imaginária
No texto “Demanda e Identificação”, Aulagnier situa a identificação especular ou
imaginária como o momento do advento do Eu. Segundo a autora, este é um segundo tempo
da dialética identificatória na constituição do Eu, sendo a identificação primária como
precursora do Eu considerada o primeiro tempo.
Para Aulagnier, esta identificação torna-se possível por meio da satisfação das
demandas pré-genitais do bebê, que são demandas de objetos revestidos de brilho fálico como
o seio, as fezes, o pênis, etc., que são endereçadas à mãe, em primeiro lugar.
Segundo a autora, na identificação especular ou imaginária ocorre o encontro entre o
olhar do bebê e sua imagem no espelho, sendo que este encontro é testemunhado pelo olhar
materno. Ela escreve: “É esta junção que aciona o registro imaginário
135
e designa o momento
no qual entra em cena o que preanuncia o Eu: momento no qual se opera uma soma entre a
imagem especular e o enunciado identificatório que o Outro, num primeiro tempo, pronuncia
sobre ela.
136
135
No que se refere aos conceitos de simbólico e imaginário, Aulagnier faz a seguinte observação: “Devemos a
Lacan o lugar que vieram ocupar na teoria analítica os conceitos de simbólico e de imaginário, tanto quanto o
questionamento da psicanálise e de uma teoria da identificação, da qual fizemos empréstimo do essencial, para
construirmos a nossa.(Piera AULAGNIER. O Eu e a Conjugação do Futuro: sobre o projeto identificatório e a
clivagem do Eu. In: A Violência da Interpretação. p.161) Assim, quando Aulagnier recorre a esses conceitos, ela
os utiliza apenas no registro da identificação imaginária e simbólica.
136
Piera AULAGNIER. O Espaço no qual o Eu Pode Constituir-se. In: A Violência da Interpretão. p.166.
Com isso o bebê constitui, imaginariamente, a imagem especular como objeto de
prazer da mãe, à medida que ele faz uma junção entre aquilo que ele viu no espelho e os
enunciados que ele escutou sua mãe pronunciar a respeito desta imagem.
Aulagnier defende a ideia de que essa junção entre a imagem especular (visto)
confirmada pelo olhar materno e o enunciado identificatório (escutado) que a mãe dirige à
criança pode promover uma assunção jubilosa de si. A este respeito, ela escreve:
43
(...) o Eu só se constitui graças àquilo que, do discurso escutado e investido retorna
à cena psíquica para oferecer-lhe seus enunciados identificatórios. Estes enunciados
não podem ser autocriados pela instância que eles devem, inicialmente, instaurar. Este
primeiro momento é insubstituível e implica a apropriação, pela psique, de enunciados
impostos e formulados por um discurso cujo mediador é o porta-voz. Além do mais, é
necessário que tais enunciados (...) confirmem o direito que tem o Eu de se reconhecer
numa imagem narcísica e valorizada.
137
Para a autora, esse Eu ideal constitui-se como uma unidade formada por duas
dimensões: o identificado e o identificante. O identificado, segundo Aulagnier, é “(...) esse
agente da ação psíquica necessário ao investimento dos pensamentos com função
identificatória, ou enunciados identificatórios (...).”
138
(...) no início, ele [o Eu] foi efetivamente a iia, o nome, o pensamento falados pelo
discurso de um outro: sombra falada, projetada pelo porta-voz sobre uma psique que o
ignora e de quem ele ignora as exigências e a louca finalidade. Enunciados que vem
do exterior e dos quais a voz da criança se apropria inicialmente através da repetição.
O Eu começa por investir nos pensamentosidentificantes” pelos quais o porta-voz o
pensa e gras aos quais ele lhe transmite seu amor. Uma vez efetuado este
investimento, vai poder ocupar o lugar de enunciante destes mesmos pensamentos. A
partir deste momento, retornam a sua própria escuta como enunciados dos quais é o
agente e pelos quais se impõe a sua própria atividade de pensar enquanto existente.
Estes pensamentos retornam ao enunciante sob a forma de um identificado no qual o
enunciante reencontra o suporte necesrio a seu auto-investimento.
Em Os Destinos do Prazer Aulagnier explica o que ela entende por unidade
identificado-identificante. Para ela, a particularidade do Eu se encontra no fato de que, no
início, ele foi pré-enunciado e pré-investido pelo porta-voz, que é quem realiza uma primeira
idealização do Eu do bebê. A este respeito, escreve ela:
139
Assim, a mãe torna-se para o bebê a única figura capaz de completar a imagem
especular com um “a-mais” de prazer. Esse “a-mais” não especularizável é indispensável para
Antes mesmo que o Eu faça sua primeira aparição na cena psíquica sob a forma de
um Eu ideal - ele é falado e investido, antecipadamente, pelo porta-voz por meio daquilo que
foi definido por sombra falada.
137
Piera AULAGNIER. À Guisa de Conclusão: as três provas que o pensamento delirante remodela. In: A
Violência da Interpretação. p.280-1.
138
IDEM. Alienação e Psicose: duas respostas antinômicas ao conflito identificatório. In: Os Destinos do Prazer.
p.22.
139
Ibid. p.21; entre colchetes, interpolação minha.
44
que a imagem seja revestida com um brilho, que faz com que ela não seja apenas um efeito
das leis ópticas.
Aulagnier considera que esse estádio impõe uma primeira permutação na dialética
identificatória. A este respeito, ela escreve:
A posse pelo sujeito (...) dessa imagem de si pela qual pode concomitantemente
representar-se como diferente dae, como objeto de seu prazer (dae) e como
objeto de seu próprio prazer, fará com que essa imagem seja concomitantemente o
veículo disso que se chama libido do objeto e í disso que se chama libido narcísica
(que se poderia igualmente nomear libido identificatória).
140
A propósito disso, abro aqui um breve parêntese para explicitar o que Aulagnier
entende por libido objetal e por libido narcísica. Para a autora, libido objetal é “(...) essa parte
de libido que recai sobre outra pessoa (...).
Para a autora, a imagem especular desempenha um duplo papel na economia
identificatória do sujeito: funciona ao mesmo tempo como vculo de libido e ímã narcísico.
141
No que se refere à libido narcísica, Aulagnier a designa como(...) essa parte de libido
que se fixa sobre o sujeito enquanto resultado de suas identificações (sua imagem, sua função,
seu projeto), encontramos em primeiro plano a dimensão do prazer: será investido
libidinalmente aquilo que se revelar fonte de prazer.”
142
[O objeto] (...) guardará um papel isomorfo na dinâmica relacional assim como na
repartição libidinal, qualquer que seja sua natureza (do objeto parcial cujos protótipos
serão o seio, uma vez que é percebido como separado da mãe e, num segundo tempo,
as fezes, passando pelo ego especular tal como funciona na relação narcísica com o
Segundo Aulagnier, essas duas posições do sujeito em relação ao prazer, ou seja, dar-
se prazer e dar prazer ao outro, permanecem em parte tributárias uma da outra, ao longo
da vida do sujeito.
Encerrado este parêntese, volto a tratar das particularidades da identificação especular
ou imaginária.
À medida que o bebê adquire o manejo da linguagem deixando, portanto, de ser um
be -, ele fará uso desta para demandar objetos com brilho fálico e, para Aulagnier, esses
objetos de demanda têm uma função específica na economia identificatória do sujeito:
140
Piera AULAGNIER. Demanda e Identificação. In: Um Intérprete em Busca de Sentido I. p.203.
141
Ibid. p.203.
142
Ibid. p.203.
45
outro, para chegar a qualquer coisa que possa tornar-se suporte da demanda infantil
num tempo anterior ao Édipo).
143
(...) o registro do imagirio define o conjunto dos enunciados que têm a função de
emblemas identificatórios e a imagem especular que deve servir-lhes de ponto de
ancoragem. Esses emblemas se apresentam ao Eu como idênticos a suas “posses”:
possesdefinidas pela mensagem que, a partir delas, retorna ao sujeito para lhe dizer
“quem” ele é.
Assim, neste tempo de constituição do Eu, o objeto assume duas significações para a
criança: primeiramente, o objeto é prova de investimento libidinal porque,-lo ao outro ou
recebê-lo do outro é prova de amor.
Ao mesmo tempo, o objeto é emblema identificatório porque, ao oferecê-lo ao outro, a
criança identifica-se àquele que tem o objeto do prazer materno e, ao recebê-lo do outro,
identifica-se àquele que é objeto do prazer materno. A este respeito, Aulagnier escreve em A
Violência da Interpretação:
144
Considerando essa função de emblema identificatório desempenhada pelo objeto,
Aulagnier postula que “A identificação imaginária pressupõe a possibilidade, para o sujeito,
de se designar por um enunciado identificatório que possa ser referido à sua imagem,
entendendo-se aqui esta imagem de si mesmo que o acompanha ao longo de sua
existência.
145
Esse conflito (...) induzirá uma reorganização da problemática identificatória, a qual
deslocará seu centro de gravidade do suporte especular para o que chamamos o saber
identificatório, ou o discurso que o Eu pode manter sobre o Eu. (...) a partir desse
momento, a verdade dos enunciados que se referem ao Eu e o definem, o se
encontra mais em poder exclusivo do discurso de um outro, mas ela é esperada do
discurso do meio, que será o único a ter o poder de decidir em que condições o saber
No entanto, segundo a autora, a imagem não tem autonomia suficiente para fazer com
que os outros a vejam tal como o sujeito a vê, ou tal como ele gostaria que os outros a vissem.
A respeito desse conflito que será singularizado ao longo da análise da história de
Maria Callas - entre a imagem (de si) que o sujeito vê no espelho e aquela que lhe é enviada
pelo olhar dos outros, Aulagnier destaca sua consequência direta:
143
Piera AULAGNIER. Demanda e Identificação. In: Um Intérprete em Busca de Sentido I. p.204-5; entre
colchetes, interpolação minha.
144
IDEM. O Espaço no qual o Eu Pode Constituir-se. In: A Violência da Interpretação. p.168.
145
Ibid. p.166.
46
do Eu sobre o Eu pode se afirmar como adequado a uma prova de verdade
reconhecida pelos outros, mesmo se ela é refutada por
um outro.
146
Ainda no que diz respeito ao objeto das demandas pré-genitais, Aulagnier entende que
seja qual for ele (seio, fezes, etc.), seu papel é sempre o mesmo: “(...) fonte de prazer para
uma zona ou para uma função erotizada pelo sujeito, coisa definida, isto é, que permite à
demanda dizer qual é seu objeto (...), diferente desde então do sujeito assim como da mãe, ele
é aquilo que tapa esse buraco da linguagem infantil onde falta o termo gozo.”
147
A consequência disto para a economia identificatória da criança, segundo Aulagnier, é
que “(...) já que os objetos de demanda são coisas que não faltam neste mundo, as referências
identificatórias permanecem estáveis para ela [criança], qualquer que possa ser seu
desfiladeiro substitutivo.”
Isto significa que, nos primeiros tempos da infância, enquanto a criança ignora o
prazer sexual (genital), ela acredita na existência de um objeto que lhe assegure uma
repartição sem perda de sua libido. Por exemplo, do ponto de vista da criança, o amor que ela
ao outro equivale exatamente ao que ela recebe em troca, sem nenhum prejuízo.
148
À criança, ela [a mãe] pode oferecer muitos emblemas narcisistas; pode achá-la
bonita, boa, inteligente; porém, um emblema que elao pode discriminar para o
filho: aquele que lhe daria seu estatuto de sujeito no campo do gozo. Este olhar
surpreendido no espelho, que ela está sempre pronta para lhe oferecer, investe sua
imagem e não sua carne. Aquela que gratifica a criança com uma infinidade de dons,
privou-a o tempo todo daquilo que elao sabia demandar, mas que no entanto funda
seu desejo: ser causa de gozo. (...) Eis por que designamos a prova da castração com
esse “tempo para compreender” (...).
A autora considera que nesta fase relacional que se estende até o decnio do
complexo de Édipo a mãe representa, para a criança, aquela que é detentora de grande
quantidade dos objetos a quem ela pode demandar.
Por outro lado, ela ressalta a importância de definir o que limita o poder que a mãe
exerce sobre a criança no período pré-genital. A este respeito, ela escreve:
149
Aqui, permito-me uma digressão para explicitar a concepção de Piera Aulagnier a
respeito da castração. Segundo ela, “A castração pode ser definida como a descoberta, no
146
Piera AULAGNIER. O Espaço no qual o Eu Pode Constituir-se. In: A Violência da Interpretão. p.167.
147
IDEM. Demanda e Identificação. In: Um Intérprete em Busca de Sentido I. p.206. Aqui, o termo gozo é
empregado como sinônimo de prazer e, portanto, é algo totalmente distinto do conceito proposto por Jacques
Lacan.
148
Ibid. p.206; entre colchetes, interpolação minha.
149
Ibid. p.210; entre colchetes, interpolação minha.
47
registro identificatório, de que não ocupamos jamais o lugar que acreditávamos nosso e que
inversamente já estávamos destinados a ocupar um lugar no qual não poderíamos ainda
encontrar-nos.
150
No que diz respeito à angústia de castração, Aulagnier escreve: “A angústia surge no
momento em que descobrimos o risco que implica o saber que não estamos, para o olhar dos
outros, no lugar que acreditávamos ocupar e que poderemos não mais saber de que lugar nos
falam, e em que lugar nos situa aquele que nos fala.”
151
Se a angústia de identificação ou a angústia de castrão (os dois termos significam
exatamente a mesma coisa) se cristaliza para o homem de forma privilegiada, em pelo
menos grande parte das culturas, no temor de ser privado do seu órgão sexual e para a
mulher, no temor de que o homem ao descobrí-la sem pênis, decrete sem valor o que
ela oferece ao seu desejo, é porque ser homem ou mulher é a primeira descoberta que
faz o Eu no campo de suas referências identificatórias.
Para a autora, a angústia de castração é uma angústia de identificação, à medida que
ressurge nos momentos em que o discurso identificatório que o Eu sustenta a respeito de si for
abalado pela prova da realidade.
Em relação à cristalização da angústia de castração no homem e na mulher, a autora
acrescenta:
152
(...) confrontado com a realidade do desejo do pai e dae por este último, é a
proibição do incesto que ele encontra onde esperava encontrar a realização do
desejo. Isso com o que a mãe o ameaça através de sua recusa em aceitar seu pênis
como objeto de prazer, é um corte insustentável. Se o filho o renunciar a essa
demanda, será desvalorizado, negado como filho, será excluído (...).
Retomando as formulações de Aulagnier a respeito do tempo para compreender, para a
autora, o primeiro efeito daquilo que é compreendido pelo filho notempo para compreender”
é a interdição do objeto incestuoso (mãe) enquanto objeto de desejo.
Segundo a autora, no “tempo para compreender”, ele deve compreender uma amarga
verdade:
153
De acordo com Aulagnier, essa interdição marca o declínio do complexo de Édipo e,
em decorrência disso, o Eu da criança - que em um primeiro tempo de sua existência delegou
ao porta-voz a tarefa de formular suas próprias aspirações identificatórias -, começa a
antecipar e investir em seu tempo futuro formulando enunciados identificatórios do tipo
150
Piera AULAGNIER. O Espaço no qual o Eu Pode Constituir-se. In: A Violência da Interpretão. p.158.
151
Ibid. p.158.
152
Ibid. p158.
153
Piera AULAGNIER. Demanda e Identificação. In: Um Intérprete em Busca de Sentido I. p.214.
48
“quando eu crescer, serei..., demandando ideais endereçados a si mesma, o que caracteriza a
demanda pós-edípica.
Aulagnier entende o encerramento do tempo da infância da seguinte maneira:
A saída do tempo e do mundo da infância exige que o Eu se torne o único signatário,
tomando para si a incumbência do prosseguimento das negociações comportadas pela
relação entre si e a realidade, entre seus desejos e dos outros, entre o que pensa ser e
seus ideais.
154
De acordo com a autora, para que seja possível compreender a problemática
identificatória é necessário “(...) considerar o que Freud chamava os ‘ideais do ego’, e que eu
denominei ‘projeto identificatório.
Essa posição libidinal e identificatória do Eu, que é decorrente da assunção da
castração e correlata da demanda pós-edípica que é a demanda de ideais dirigidos a si
mesmo funda o terceiro tempo da dialética identificatória, designada pela autora como
identificação simbólica.
3.3 A Identificação Simbólica
A identificação simbólica, segundo Aulagnier, inclui dois tempos: o “tempo de
compreender”, que se estende desde o advento do Eu até a assunção da castração, e o “tempo
de concluir”, que se inicia com a castração e atinge seu ápice com a identificação ao projeto.
155
Aulagnier considera que o projeto identificatório constitui-se por um conjunto de(...)
enunciados sucessivos pelos quais o sujeito define (para si e para os outros) seu anseio
identificatório, ou seja, seu ideal.”
Portanto, o projeto identificatório corresponde, na
teoria freudiana, ao ideal do ego.
156
Para ela, na identificação pós-edipiana, o Eu é obrigado a firmar um pacto com um
paradoxo: “Para ser, o Eu deve se apoiar neste desejo [de tornar-se outro], mas, este tempo
futuro uma vez alcançado, deverá tornar-se fonte de um novo projeto, num movimento que
terminará com a morte.”
157
154
Piera AULAGNIER. Os Dois Princípios do Funcionamento Identificatório: permanência e mudança. In: Um
Intérprete em Busca de Sentido I. p.188.
155
IDEM. Alienação e Psicose: duas respostas antinômicas ao conflito identificatório. In: Os Destinos do Prazer.
p.20.
156
IDEM. Demanda e Identificação. In: Um Intérprete em Busca de Sentido I. p. 214.
157
IDEM. O Espaço no qual o Eu Pode Constituir-se. In: A Violência da Interpretação. p.157; entre colchetes,
interpolação minha.
49
Segundo a autora, o projeto identificatório é (...) a autoconstrução contínua do Eu
pelo Eu, necessária para que esta instância possa se projetar num movimento temporal,
projeção de que depende a própria existência do Eu.”
158
(...) o Eu é constitdo por uma estória representada pelo conjunto dos enunciados
identificatórios, cuja lembraa ele conserva, pelos enunciados que manifestam, no
presente, sua relação ao projeto identificatório e, enfim, pelo conjunto dos enunciados
em relação aos quais ele exerce sua ação repressora
Com a dissolão do complexo de Édipo, aquele Eu idealizado que assim se
assumiu, a partir do fato de ter sido investido e enunciado pelos pais - deve percorrer um
longo e dicil caminho que lhe permitirá abandonar sua idealização em benefício dos ideais
futuros nos quais o Eu deverá investir.
Portanto, a presença do projeto identificatório pressupõe uma vitória do Eu: é aquilo
que atesta que o Eu conseguiu percorrer a trajetória que se inicia com a sua entrada na cena
psíquica e culmina com a dissolução do complexo de Édipo.
Para preservar seu projeto, o Eu precisa ser capaz de selecionar, em sua estória, quais
os enunciados identificatórios que serão preservados em sua meria porque são coerentes
com o seu projeto identificatório - e quais serão excluídos de seu campo de saber porque
ameaçam a coerência do projeto. A este respeito, Aulagnier escreve:
159
, para que eles permaneçam
excluídos de seu campo (...).
160
Ela considera que, “Para que o Eu se preserve é necessário que o identificante assegure
o investimento de dois suportes: o identificado atual e a transformação (devenir) deste
identificado.
Para Aulagnier, além de ser uma via de acesso à categoria do futuro, o projeto
identificatório exerce também uma ação repressora sobre determinados enunciados
identificatórios que vão constituir um tempo passado.
Além disso, conforme a autora, a energia narcísica que o Eu investe no tempo futuro
pela via dos ideais, enriquece o investimento de libido no Eu e no tempo atual.
161
158
Piera ALAGNIER. O Espaço no qual o Eu Pode Constituir-se. In: A Violência da Interpretação. p.154.
159
Na metapsicologia proposta por Piera Aulagnier está ausente o conceito de superego. No entanto, ao ser
entrevistada por Luis Hornstein, ela justifica essa ausência: “Quando me refiro a esta instância [o superego],
utilizo o termo ideal de Eu. Em minha maneira de conceber a psique, vejo a ação do superego nos ideais que o
Eu se propõe com todas suas exigências e seus excessos possíveis.” (Luis HORNSTEIN et al. Dialogo com Piera
Aulagnier. In: Cuerpo, Historia, Interpretacion. Piera Aulagnier: de lo originario al proyecto identificatorio.
p.368; tradução livre; entre colchetes, interpolação minha).
160
Piera AULAGNIER. O Espaço no qual o Eu Pode Constituir-se. In: A Violência da Interpretão. p.160.
161
IDEM. Alienação e Psicose: duas respostas antinômicas ao conflito identificatório. In: Os Destinos do Prazer.
p.22.
Isto significa que a existência do Eu depende da possibilidade do
50
identificante investir naquilo que o Eu é, no tempo atual, e naquilo que ele pretende tornar-se,
em um tempo futuro.
O que caracteriza, portanto, a dialética identificatória pós-edipiana é a assertiva de que
o Eu só pode ser valorizado mediante o seu anseio de tornar-se outro e, esse outro, quando
encontrado, se projetará em um novo projeto.
Portanto, no plano da identificação, a saída do Édipo implica que a referência
identificatória do Eu seja sempre o resto da subtração entre o Eu futuro e o Eu presente, ou
seja, há sempre uma distância a ser preservada entre o Eu e o projeto identificatório. A este
respeito, Aulagnier escreve:
Entre o Eu e seu projeto deve persistir uma separação: o que o Eu pensa ser, deve
revelar um “a menos” sempre presente, em relação ao que ele deseja tornar-se. Entre
o Eu futuro e o Eu presente, deve persistir uma diferença, um “x” representando o que
deveria ser acrescentado ao Eu, para que os dois coincidissem. Este x” deve
permanecer ausente: ele representa a assunção da experiência da castração no registro
identificario e ele relembra o que esta experiência deixa intacto: a esperança
narcísica de um auto-encontro, sempre postergado, entre o Eu e seu ideal, que
permitiria a cessação de toda busca identificatória.
162
Para a autora, “O Eu assina, portanto, um compromisso com o tempo: ele renuncia
fazer do futuro esse lugar no qual o passado poderia retornar, aceita esta constatação, mas
preserva a esperança de que, um dia, este futuro lhe devolverá a possessão de um passado, tal
qual ele sonhou.
163
162
Piera AULAGNIER. O Espaço no qual o Eu Pode Constituir-se. In: A Violência da Interpretão. p.157.
163
Ibid. p.157.
Isto equivale a dizer que o Eu é constitdo por um compromisso entre as diferentes
posições libidinais e identificatórias assumidas pelo sujeito em seu passado, no presente e no
futuro.
51
CAPÍTULO 2:
A PSICOPATOLOGIA DA HISTERIA
“Eu tinha a sensação de ter ficado muito tempo
presa numa gaiola. Assim, quando conheci Aristo [Onassis]
164
Para versar sobre a questão da psicogênese da histeria, é necessário retroceder no
tempo e compreender que no final 1892, no “Rascunho A” - o primeiro dos seus “Extratos
dos Documentos Dirigidos a Fliess -, Freud levantou a hitese segundo a qual, os Traumas
sexuais anteriores ao início da idade de compreender”
,
tão cheio de vida, transformei-me em outra mulher”.
Maria Callas
No presente capítulo a psicopatologia da histeria será abordada a partir de um diálogo
entre a concepção freudiana, a respeito da constituição psicossexual da histérica, as
teorizações de Piera Aulagnier, além de autores contemporâneos como Hugo Mayer, Octave
Mannoni, Monique David-nard, Françoise Dolto, Malvine Zalcberg e Catherine Millot
que são lacanianos e contribuem para a compreensão freudiana acerca da histeria feminina -,
além das contribuições de Violante, Kehl e de Alonso & Fuks.
165
Essa iia, conhecida como “teoria traumática das neuroses”, é reiterada por Freud em
seu “Rascunho B”, datado de 8/2/1893, quando ele afirma que (...) toda histeria que não é
hereditária é traumática.”
estavam dentre os fatores etiológicos
das neuroses.
166
Foi somente em 1896, em seu texto intitulado Observações Adicionais Sobre as
Neuropsicoses de Defesa”, no item I A Etiologia ‘Específica’ da Histeria”, que Freud
esclareceu em que consiste este trauma sexual que estaria presente como fator etiológico das
neuroses. Nas palavras do autor: “(...) Seu conteúdo [dos traumas] deve consistir numa
irritação real dos órgãos genitais (por processos semelhantes à copulação).”
167
Essas idéias foram mantidas pelo mestre em seu outro trabalho de 1896, intitulado “A
Etiologia da Histeria”, quando ele afirma que o trauma consiste em “(...) experiências sexuais
que afetaram o próprio corpo do sujeito de contato sexual (no sentido mais amplo).”
168
164
Entre colchetes, interpolação minha.
165
Sigmund FREUD. Extrato dos Documentos Dirigidos a Fliess. Rascunho A.. p. 223.
166
IDEM. Extrato dos Documentos Dirigidos a Fliess. Rascunho B. p. 223.
167
IDEM. Observações Adicionais Sobre as Neuropsicoses de Defesa. p.164; entre colchetes, interpolação
minha.
168
IDEM. A Etiologia da Histeria. p.199.
Mais adiante, neste mesmo texto, Freud acrescenta que:
52
(...) Não é a última desfeita (...) que produz o acesso de choro, a exploo de desespero
ou a tentativa de suicídio, desrespeitando o axioma de que um efeito deve ser
proporcional a sua causa: a pequena ofensa do momento atual despertou e pôs em ação
as lembranças de muitas e mais intensas ofensas anteriores, por trás das quais jaz,
além disso, a lembrança de uma grave ofensa na infância que nunca foi superada.
169
O autor inicia esta carta confiando a Fliess o que ele havia compreendido nos últimos
meses, em relação à etiologia das neuroses: “Não acredito mais em minha neurotica [teoria
das neuroses].”
Nesses dois referidos textos datados de 1896, Freud acrescenta uma nota de rodapé em
1924, que diz respeito às indispensáveis revisões que ele realizou em sua “teoria traumática
das neuroses”.
No entanto, antes de tratar destas revisões, abro aqui um breve parêntese para relevar
que Freud, em decorrência do início de sua autoanálise no verão de 1897, escreveu uma carta
a Fliess datada de 21/9/1897, a Carta 69”.
170
Assim, em sua carta de 15/10/1897, a Carta 71”, Freud escreve: “Não é nada fácil
(...). Verifiquei, também no meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme pelo pai, e agora
considero isso como um evento universal do início da infância (...). Sendo assim, podemos
entender a força avassaladora de Oedipus Rex.”
Deste modo, Freud revela o abandono de sua “teoria traumática das
neuroses”, ou seja, de sua “neurotica”.
Esta teoria foi abandonada por Freud porque, a partir de sua autoanálise e também por
meio da análise de seus pacientes, ele descobriu em si mesmo a presença de afetos relativos
ao que seria por ele conceituado como complexo de Édipo e a função que este, articulado com
o complexo de castração, desempenhará na constituição do psiquismo.
171
Esta seção é dominada por um erro que desde então tenho repetidamente reconhecido
e corrigido. Naquela época, eu ainda não sabia distinguir entre as fantasias de meus
pacientes sobre sua infância e suas recordações reais. Em conseqüência disso, atribuí
ao fator etiológico da sedução uma importância e universalidade que ele não possui.
Depois que esse erro foi superado, tornou-se possível alcançar um discernimento nas
manifestações espontâneas da sexualidade das crianças (...). Não obstante, não é
Fecho parêntese e retomo as notas de rodapé introduzidas por Freud em 1924, nos
textos datados de 1896. Na nota de rodapé acrescentada ao texto “Observações Adicionais
Sobre as Neuropsicoses de Defesa”, ele faz a seguinte ressalva:
169
Sigmund FREUD. A Etiologia da Histeria. p.212; grifo meu.
170
IDEM. Carta 69. p. 309; entre colchetes, interpolação minha.
171
IDEM. Carta 71. p. 316.
53
necessário rejeitarmos tudo o que está escrito no texto acima. A sedução preserva certa
importância etiológica, e ainda hoje considero pertinentes alguns desses comentários
psicológicos.
172
Ainda em referência à idéia do trauma sexual como fator etiológico das neuroses, na
nota de rodapé adicionada em 1924 ao texto “A Etiologia da Histeria, Freud corrige-se
novamente quando escreve que “Tudo isso é verdade, mas convém lembrar que, na época em
que o escrevi [ou seja, em 1896] eu ainda não me havia libertado de minha supervalorização
da realidade e minha subvalorização da fantasia.”
173
Depois de ter abandonado sua “neurotica”, no texto intitulado “Fragmentos da
Análise de um Caso de Histeria”, de 1905[1901], Freud fez a seguinte observação a respeito
da histeria: “Eu tomaria por histérica, sem hesitação, qualquer pessoa em que uma
oportunidade de excitação sexual despertasse sentimentos preponderante ou exclusivamente
desprazerosos, fosse ela ou não capaz de produzir sintomas somáticos.”
No meu modo de entender, Freud não deixa de valorizar a nocividade da irritação real
dos genitais. Pom, é fundamental ressaltar que este evento não é mais colocado pelo autor
na psicogênese das neuroses, além de não ser mais designado por ele por meio da expressão
“trauma sexual”.
Assim, ao abandonar a “teoria traumática das neuroses”, Freud descartou uma idéia
pontual, qual seja, a de que a irritação real dos genitais da criança por outra pessoa do que
decorreria o que ele chamou de trauma psíquico - fosse um fator presente na psicogênese das
neuroses.
174
Em cada uma de nossas pacientes, a análise nos mostra que elas foram conduzidas de
volta a um determinado período de seu passado (...). Na maior parte dos casos, com
efeito, escolheu-se, para este fim, uma fase muito precoce da vida um período de sua
inncia ou, até mesmo (...) um período de sua existência como criança de peito.
Foi na Conferência XVIII, de 1917[1916-17], intitulada “Fixação em Traumas O
Inconsciente”, que o autor fez a seguinte observação a respeito da histeria:
175
172
Sigmund FREUD. Observões Adicionais Sobre as Neuropsicoses de Defesa. Nota de roda acrescentada
em 1924. p.168.
173
IDEM. A Etiologia da Histeria. Nota de rodapé acrescentada em 1924. p.201; entre colchetes, interpolação
minha.
174
IDEM. Fragmentos da Análise de um Caso de Histeria. p.37.
175
IDEM. Fixação em Traumas O Inconsciente. p.282.
No meu entendimento, quando Freud observa que suas pacientes são conduzidas a um
período de sua existência como criança de peito, ele considera que, na histeria, é possível
supor a existência de uma fixação da libido na fase oral.
54
A este respeito, Laplanche & Pontalis (1999) escrevem: “Pretende-se encontrar a
especificidade da histeria na predominância de um certo tipo de identificação e de certos
mecanismos (particularmente o recalque, muitas vezes manifesto), e no aflorar do conflito
edipiano que se desenrola principalmente nos registros libidinais lico e oral.
176
A respeito da fixação, na Conferência XXII, “Algumas Idéias Sobre Desenvolvimento
e Regressão Etiologia”, de 1917[1916], ele escreve: “(...) nos propomos a descrever o
retardamento de uma tendência parcial num estágio anterior como sendo uma fixação (...).
Aqui, vale ressaltar que, naquela época, como Freud ainda não havia concluído a
teoria do complexo de Édipo, ele concebia a psicopatologia a partir dos pontos de fixação e
regressão da libido, concepção que não será descartada no futuro de sua obra.
177
Além disso, ele escreve: “(...) as partes [da libido] que prosseguiram adiante podem
também, com facilidade, retornar retrocessivamente a um desses estádios precedentes o que
descrevemos como regressão.
Segundo o autor, ao longo do processo de evolução da libido, algumas tendências
sexuais permanecem aderidas aos estádios anteriores do desenvolvimento, enquanto outras
seguem seu curso normal.
178
Nesta mesma conferência, o autor acrescenta que (...) na histeria, opera-se uma
regressão da libido aos primitivos objetos sexuais incestuosos (...), contudo, não existe (...)
nenhuma regressão a um estádio anterior da organização sexual.
179
Assim, mesmo depois de Freud ter abandonado sua teoria traumática das neuroses”,
ele atribuiu um sentido econômico ao termo traumático e descreveu como traumáticas “(...)
aquelas experiências nas quais nossos pacientes neuróticos parecem se haver fixado. (...)
Assim, a neurose poderia equivaler a uma doença traumática, e apareceria em virtude da
incapacidade de lidar com uma experiência cujo tom afetivo fosse excessivamente
intenso.
Retomo as teorizações presentes na Conferência XVIII, de 1917[1916-17], “Fixação
em Traumas O Inconsciente”. Neste texto, Freud ressalta que as experiências às quais as
pacientes se fixaram podem ser reconhecidas como traumáticas.
180
No meu modo de entender, na histeria, essa experiência de tonalidade afetiva
excessivamente intensa e, portanto, traumática, na qual a libido se fixa é a “grave ofensa”
176
Jean LAPLANCHE & Jean-Bertrand PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. p.211.
177
Sigmund FREUD. Algumas Idéias Sobre Desenvolvimento e Regressão – Etiologia. p. 344.
178
Ibid. p. 344; entre colchetes, interpolação minha.
179
Ibid. p. 346-7.
180
Sigmund FREUD. Fixação em Traumas O Inconsciente. p.283.
55
sofrida pela menina na fase oral, à qual Freud faz referência no já citado texto de 1896,
intitulado “A Etiologia da Histeria”.
Como já visto anteriormente, no referido texto, o autor considera que, na histeria, por
trás das pequenas ofensas sofridas no momento atual “(...) jaz (...) a lembrança de uma grave
ofensa na infância que nunca foi superada.”
181
tardiamente, em 1931, o autor escreveu um estudo intituladoSexualidade
Feminina”, no qual ele reconheceu a importância da fase de ligação exclusiva entre a menina
e a mãe a fase negativa do complexo de Édipo - na etiologia da histeria. Ele escreve: (...)
essa fase comporta todas as fixações e repressões a que podemos fazer remontar a origem das
neuroses. (...) essa fase de ligação [da menina] com a mãe está especialmente relacionada à
etiologia da histeria (...).”
182
Ele reitera esta idéia em 1933[1932], na Conferência XXXIII, Feminilidade”, onde
escreve: Sabíamos, naturalmente, que houvera um estádio preliminar de vinculação [da
menina] com a mãe, mas não sabíamos que pudesse ser tão rico e tão duradouro, e pudesse
deixar atrás de si tantas oportunidades para fixações e disposições.
183
(...) as impressões desse período [os primeiros anos da infância] incidem sobre o
ego imaturo e débil e atuam sobre este como traumas. O ego não consegue desviar as
tempestades emocionais que esses traumas de algum modo provocam, exceto por meio
da repressão, e assim adquire na infância todas as disposições para uma doea
ulterior e para distúrbios funcionais.
A este respeito, na Conferência XXXIV, de 1933[1932], intitulada “Explicações,
Aplicações e Orientações”, Freud considera que:
184
O ego desvia o perigo pelo processo da repressão. O impulso instintual é, de alguma
maneira, inibido, e esquecida sua causa precipitante, com suas percepções e idéias
concomitantes. Isso, contudo,o constitui o fim do processo: o instinto ou reteve
Apesar de Freud considerar que as impressões que incidem sobre o ego imaturo e débil
dos primeiros anos da infância podem atuar como traumas, no meu entender, isto não é
determinante de uma organização histérica.
No que se refere ao material recalcado, no texto “Moisés e o Monoteísmo. Ts
Ensaios”, datado de 1939[1934-38], na Parte II, intitulada “O Retorno do Reprimido”, Freud
faz a seguinte observação:
181
Sigmund FREUD. A Etiologia da Histeria. p.212.
182
IDEM. Sexualidade Feminina. p.234-5; entre colchetes, interpolação minha.
183
IDEM. Feminilidade. p.120; entre colchetes, interpolação minha.
184
IDEM. Explicações, Aplicações e Orientações. p.145; entre colchetes, interpolação minha.
56
suas forças ou as rne novamente ou é redespertado por alguma nova causa
precipitante. Logo após, ele renova sua exigência, e, como o caminho à satisfação
normal lhe permanece fechado pelo que podemos chamar de cicatriz da repressão,
alhures, em algum ponto fraco, ele abre para si outro caminho ao que é conhecido
como satisfação substitutiva, que vem à luz como sintoma, sem a aquiescência do ego,
mas também sem sua compreensão. Todos os fenômenos da formação de sintomas
podem ser justamente descritos como o ‘retorno do reprimido’.
185
Apesar de considerar que, na histeria, durante o complexo de Édipo negativo, a
menina sofreu uma “grave ofensa” e uma “experiência cujo tom afetivo [foi]
Assim, para Freud, o material recalcado não é aniquilado e tende a se manifestar por
intermédio de formações de compromisso entre as representações recalcadas e a instância
recalcadora o ego, a serviço ou não do superego -, resultando no aparecimento de um
sintoma.
Freud não deixa dúvidas a respeito da importância etiológica da fase de ligação
exclusiva entre a menina e a mãe, ou seja, a fase negativa do complexo de Édipo, que está
recalcada.
186
A diferença na reação da mãe ao nascimento de um filho ou de uma filha mostra que o
velho fator representado pela falta de pênis não perdeu, até agora, a sua força. A mãe
somente obtém satisfação sem limites na sua relação com seu filho menino; este é,
sem exceção, o mais perfeito, o mais livre de ambivalência de todos os
relacionamentos humanos.
excessivamente intenso- capaz de produzir uma fixação da libido na fase oral -, Freud não
esclarece em que consistiu essa experiência traumática.
A este respeito, na Conferência XXXIII, intitulada “Feminilidade,” de 1933[1932], o
autor apenas destaca que a reação dos pais ao nascimento de um filho ou de uma filha não é
indiferente. Ele escreve:
187
Como já visto no capítulo anterior, segundo Aulagnier, a sombra falada é projetada
sobre o corpo do bebê, testemunhando o desejo materno que pré-existe a este corpo e
constituindo uma imagem identificatória que antecipa o que será enunciado pelo Eu desta
Compreendo que o sexo do bebê poderá desempenhar um papel importante no
primeiro encontro deste com os pais e, de modo prevalente, com a mãe, mesmo não sendo
condição sine qua non para a instalação de uma organização histérica.
185
Sigmund FREUD. Moisés e o Monoteísmo. Três Ensaios. p.141.
186
Entre colchetes, interpolação minha.
187
Sigmund FREUD. Feminilidade. p.132.
57
criança. A autora considera, também, que esse Eu antecipado traz consigo uma imagem fiel às
ilusões narcisistas da mãe, ou seja, uma imagem de um filho ideal. Escreve ela:
Todo objeto novo investido durante a nossa existência ocupa o lugar de um já visto.
Ele não é senão isso, certamente, mas ele goza do que eu denominei “um investimento
em busca de um suporte”. A experiência ensina-nos que o importa que suporte pode
realizar essa tarefa, e que uma certa “iia” o precedia e o antecipava; e é a
descoberta, parcialmente ilusória, da sua conformidade com essa representação
antecipada do objeto da espera que desencadeia esse fenômeno denominado amor.
188
Octave Mannoni (1994), também faz referência à reação dos pais diante do sexo do
be. A partir de suas observações cnicas, ele escreve: O problema da identificação nas
histéricas é muito complicado. Ele se origina no nascimento, ou quase: ‘Essa criança não é
como deveria ser’. (...) ‘Nós queríamos um menino, não foi como deveria ser.’”
No entanto vale lembrar que, para Aulagnier, essa imagem - que é criada e pré-
investida pela mãe em um tempo anterior ao nascimento do bebê - comporta um risco, à
medida que poderá ocorrer um desencontro entre o corpo real do bebê e a representação
materna que o antecipou. No capítulo anterior vimos que, segundo a autora, esse risco de
desencontro recai, sobretudo, sobre o sexo de que o bebê é portador.
189
A este respeito, Mayer (1989) considera que O recém-nascido pode ser idealizado ou
rechaçado segundo corresponda ou não às expectativas parentais.
190
Mayer (1989) assinala também, que “(...) nos casos em que os pais conscientemente
valorizam a identidade sexual morfológica do filho, mas inconscientemente a rechaçam (...)
este fator (...) é, semvida, um facilitador de uma organização neurótica (...).”
A partir dos autores citados, compreendo que na histeria, a identidade sexual da
menina pode ser recebida com desilusão pelos pais, porque eles descobrem que o corpo real
da menina não está em conformidade com a representação que o antecipou - na psique dos
pais.
191
Ele
acrescenta ainda que, na clínica, “(...) é freqüente vermos sobretudo na histeria feminina
que a mãe desvaloriza sexualmente sua filha (...).”
192
Deste modo, a partir da clínica, das teorizações freudianas e das contribuições
contemporâneas de Aulagnier, Mannoni e Mayer, pode-se dizer que o desejo dos pais de que
188
Piera AULAGNIER. Nascimiento de un Cuerpo, Origen de una Historia. In: Luis HORNSTEIN et al.
Cuerpo, Historia, Interpretación. p. 165; tradução livre.
189
Octave MANNONI. As Identificações na Clínica e na Teoria Psicanalítica. p.87.
190
Hugo MAYER. Histeria. p.33.
191
Ibid. p.34.
192
Ibid. p.34.
58
aquela filha fosse um menino, pode facilitar mas não determinar a instalação de uma
organização histérica.
Ainda no que se refere a esse risco de desencontro entre a sombra falada e o corpo real
do bebê, em um texto inédito intitulado “O Dilema da Histérica”, Violante (2007) considera
que: “Na dependência da constituição psíquica da mãe, tal desencontro pode dificultar ou
impedir que o beseja libidinalmente investido por ela. Como conseqüência, novel do
originário, prevalece o pictograma de rejeição, e, no do primário, a fantasia da onipotência do
desejo do outro de recusar prazer (...).”
193
No meu entendimento, quando Freud considera que, na histeria, durante o complexo
de Édipo negativo, a menina sofreu uma “grave ofensa” e uma “experiência cujo tom afetivo
[foi]
194
À luz destas teorizações de Aulagnier, compreendo o que Freud escreveu em 1892-3
em seu texto “Um Caso de Cura pelo Hipnotismo”, quando ele afirma que as neuroses, em
geral, caracterizam-se pela (...) presença primária de uma tendência à depressão e à
diminuição da autoconfiança.”
excessivamente intenso- capaz de produzir uma fixação da libido na fase oral -,
compreendo que se trata do desencontro entre o corpo real da menina e a representação
materna que o antecipou.
Esse desencontro tem como corolário a desvalorização da identidade sexual da menina
pelos pais e a carência do investimento libidinal materno, de modo prevalente.
Conforme referido no capítulo anterior, para Aulagnier, o desencontro entre a sombra
falada e o corpo real do bebê exige que a mãe reorganize sua economia psíquica, para que ela
possa investir em sua relação com o corpo real do bebê.
Por outro lado, se a mãe não conseguir reorganizar sua economia psíquica, ela poderá
experimentar uma vivência depressiva que a impossibilita de sentir e compartilhar prazer em
sua relação com o bebê. Para Aulagnier, esta situação deixa traços permanentes no
funcionamento psíquico da criança ou do adulto.
De acordo com a autora, a persistência da discordância entre a sombra falada e o corpo
real do bebê é a base sobre a qual se apóia o que é vivido pelo Eu como dúvida, sofrimento e
opressão.
195
No meu entendimento, na histeria, essa “tendência à depressão e à diminuão da
autoconfiança” referida por Freud bem como a dúvida, o sofrimento e a opressão,
193
Maria Lucia Vieira VIOLANTE. O Dilema da Histérica. Texto inédito, 2007.
194
Entre colchetes, interpolação minha.
195
Sigmund FREUD. Um Caso de Cura pelo Hipnotismo. p.163.
59
mencionados por Aulangier - são os tros permanentes no funcionamento psíquico da
criança e do adulto, decorrentes da persistência da discordância entre o corpo real da menina e
a representação materna que o antecipou.
Violante (2007) supõe que o encontro da menina que poderá se tornar histérica com os
pais deve ter sido desastroso, podendo intervir na assunção jubilosa de si pelo Eu e na
assunção da castração simlica. A este respeito, ela escreve:
A partir daí [do encontro da menina com os pais], o seu destino psíquico [da menina]
começa a delinear-se, fatalmente intervindo tanto na assunção jubilosa de si pelo Eu,
na identificação especular, por meio da qual o Eu advém, quanto na assunção da
castração simbólica pelo Eu que a histérica assume, poiso é nem homossexual e,
muito menos, psicótica!
196
Compreendo que na histeria, a identificação primária poderá ser marcada pelo
desencontro entre o corpo real do bebê e a representação materna que o antecipou.
Deste modo, na histeria, a desilusão dos pais - que poderá estar presente no momento
em que eles se deparam com a identidade sexual da filha -, pode dificultar o investimento
libidinal da menina pelos pais.
Mas, de que maneira a carência de investimento libidinal dos pais e, de modo
prevalente, da mãe podeinfluenciar na constituição psíquica da criança?
Como referido no catulo anterior, segundo Freud, os pais têm a tendência de ocultar
todas as deficiências do bebê, atribuindo a ele toda a perfeição. Para o autor, graças a esta
supervalorização que rege a atitude dos pais para com os filhos exaltando a criança e
elevando-a à posição daquele que é depositário de todos os sonhos jamais realizados pelos
pais -, o ego constitui-se em sua primeira forma como um ego ideal, dotado de toda perfeição
e valor.
No meu entendimento, na histeria – e, particularmente, na história de Maria Callas -, a
constituição do ego ideal pode ter sido comprometida, à medida que a provel desilusão
sentida pelos pais diante da identidade sexual da menina pode tê-los impedido de
supervalorizar a filha, atribuindo-lhe toda perfeição e valor.
Na concepção de Aulagnier, como já referido, a identificação primária é precursora do
Eu. Neste primeiro tempo da dialética identificaria, o bebê identifica-se com o que ele
consegue perceber a partir daquilo que a mãe lhe oferece como resposta à sua demanda
primária, que é de libido, ou seja, do desejo materno.
196
Maria Lucia Vieira VIOLANTE. O Dilema da Histérica. Texto inédito, 2007; entre colchetes, interpolação
minha.
60
Consequentemente poderá ocorrer, também, uma desvalorização da identidade sexual da
menina pelos pais e, em decorrência disto, uma provável a carência do investimento libidinal
materno, de modo prevalente.
A este respeito, David-Ménard (1994) considera que essa identificação arcaica da
menina com a mãe é recalcada e consiste em uma constante ameaça. Para a autora, essa
identificação consiste na “(...) fixação em imagos que capturam o sujeito, prendem-no e o
ameaçam, uma espécie de identificação-prisão (...).”
197
A respeito deste momento de júbilo, Dolto (1996) ressalta que “Há atitudes
inconscientes da mãe e do pai e palavras conscientes que, desde a primeira infância (...)
trazem o seu fruto simlico na forma como esse be-menina (...) consti uma imagem de si
mesmo, narcisada em sua pessoa e em seu sexo ou não.
Deste modo, entendo que a menina que poderá tornar-se histérica é frustrada de modo
prevalente pela mãe mas, também pelo pai - em sua demanda de amor e reconhecimento e é
esta frustração que precede e prepara o terreno no qual o Eu deverá advir.
Conforme exposto anteriormente, Aulagnier considera que a identificação especular
ou imaginária, é o momento no qual o Eu advém na cena psíquica, por meio da assunção
jubilosa de si.
198
Para compreender como se dá esse movimento psíquico na histeria, é preciso entender
quais são as vicissitudes que, provavelmente, estarão presentes na constituição psicossexual
da menina que poderá tornar-se histérica, no momento da descoberta da diferença sexual
anatômica, que ocorre durante a organização genital infantil ou fase fálica.
Assim, a partir da clínica, das teorizações de Aulagnier e das contribuições de Dolto e
Violante, compreendo que na histeria, no momento da identificação especular ou imaginária,
provavelmente, não houve uma assunção jubilosa de si, porque é possível que os pais tenham
desvalorizado o sexo da filha, pois eles queriam um menino e não uma menina.
No que se refere ao ego ideal, Freud considera que ao crescer, a criança deverá
renunciar a este ego dotado de toda perfeição e valor, procurando recuperá-lo sob a forma de
um ideal de ego.
No caso da menina que poderá tornar-se histérica, vimos também que a desilusão dos
pais diante da identidade sexual da filha, possivelmente, impediu-lhes de atribuir a ela toda
perfeição e valor comprometendo, desta forma, a constituição do ego ideal. Assim, como a
histérica poderá renunciar a uma perfeição da qual ela nunca desfrutou?
197
Monique DAVID-MÉNARD. As identificações na Clínica e na Teoria Psicanalítica. p.72.
198
Françoise DOLTO. Sexualidade Feminina. p.109-110.
61
Conforme referido no capítulo anterior, para Freud, a neurose histérica é um dos
possíveis destinos psicossexuais que se abre para a menina, a partir do momento em que ela
descobre a ausência do pênis em seu corpo e supõe-se, fantasmaticamente, castrada.
A esse respeito Mayer (1989) acrescenta que, na menina, “(...) a ausência do pênis é
interpretada (...) como uma castração materializada e sentida como uma menos-valia que
dificilmente pode ser compensada.
199
(...) na proposição pela qual o sujeito se define enquanto sujeito sexuado, é o verbo ser
que deve ocupar o centro do palco: “Eu sou um homem”, “Eu sou uma mulher” são
duas afirmações que devem englobar o atributo sexual que se tem, sem que por isto o
ente seja a ele reduzido. “Tenho um pênis porque sou um homem”; “Tenho seios e
uma vagina porque sou mulher, maso o contrário. Nossa experiência nos mostra o
que acontece quando a ordem das duas proposições se inverte. Esta inversão confronta
o sujeito com uma definição do ente por uma negação, por um vazio do corpo, por
uma falta do ter (...). Esta definição pelo que o se possui pode ter sérias
conseqüências para o “destino psicológico do sujeito (...).
Segundo Aulagnier:
200
Sobre este destino psicossexual, Violante (2007) escreve: “No destino neurótico
histérico, a inveja do pênis acentua-se, mas não a ponto de levar a menina ao ‘complexo de
masculinidade’.
201
A autora acrescenta, ainda, que “Na fase fálica, (...) a menina sente-se prejudicada pela
mãe por não lhe ter dado umnis, daí a inveja do pênis (...). Apesar dessa fantasia ser
constitutiva da feminilidade, no caso da histérica, ela é reforçada por uma realidade de
desprestígio da menina por parte dos pais.”
202
199
Hugo MAYER. Histeria. p.86.
200
Piera AULAGNIER. As Exigências do Eu. In: Os Destinos do Prazer. p.100.
201
Maria Lucia Vieira VIOLANTE. O Dilema da Histérica. Texto inédito, 2007.
202
IDEM. Algumas Notas Sobre a Histeria e a Homossexualidade Femininas. In: Trieb, vol. IV, ns.1 e 2, 2005.
A partir da clínica, das teorizações freudianas e das contribuições de Violante,
compreendo que a inveja donis é estruturante para o psiquismo feminino e, portanto, está
presente também no processo de constituição da psique de meninas que não se tornam
histéricas. No entanto, na histeria, a inveja do pênis pode encontrar reforço na
desvalorização sofrida pela menina por parte dos pais.
Mas, o que poderia desviar a menina desse destino psicossexual histérico?
A partir de sua larga experiência na análise infantil, Dolto (1996) afirma que:
62
A decepção narcísica provocada por essa descoberta [a diferença sexual
anatômica] é sempre manifesta; (...) O comportamento da mãe ou do pai (...) nesse
estágio, pode mudar completamente o sentido narcisista dessa surpresa dolorosa, se
ela é transformada em um mero ensejo para um esclarecimento sobre a sexualidade, e
não de uma rejeição emocional por parte do adulto a quem a criança pede
explicações.
203
Para a autora, quando a menina recebe uma confirmação de que seu pai a desejou
menina e, portanto, à imagem de sua e sem pênis ela aceita rapidamente sua
característica sexual como uma gratificação recebida dos pais. A autora escreve: “A partir do
momento em que a menina aceitou, como prova de sua conformidade com o corpo feminino,
ser construída sexualmente tal como é, parece que isso provoca (...) um desenvolvimento
simbólico muito mais rapidamente visível do que no menino (...).
204
Joyce McDougall (1997) considera que (...) a menina precisa ouvir de seu pai
expressões de apreço e valor de sua feminilidade e pela feminilidade da mãe dela sua
esposa.”
205
Malvine Zalcberg (2003) observa que “Se houver por parte da mãe uma receptividade
do corpo da menina, ela o acolherá e o envolverá com palavras. Poderá, (...) ao olhar para a
filha, formular palavras cujo sentido é compensatório por natureza: ‘Minha linda menininha’,
lhe dirá.”
206
Segundo Violante (2007) “(...) somente desta maneira a inveja do pênis pode ser
superada (...).”
207
Se a criança só reconhece um órgão sexual o pênis e interpreta a diferença entre
homens e mulheres como sendo uma oposição entre fálicos e castrados, o
desenvolvimento da sexualidade infantil para a adulta depende de que se possa vir a
pensar esta oposição como entre dois sexos diferentes, o masculino e o feminino. Do
contrário, o sexo da mulher será sempre intolerável, tanto para os homens quanto para
as próprias mulheres.
Para Kehl (1997), a passagem da sexualidade infantil para adulta é marcada por uma
mudança na maneira como a criança interpreta a diferença sexual anatômica. Nas palavras da
autora:
208
203
Françoise DOLTO. Sexualidade Feminina. p.55; entre colchetes, interpolação minha.
204
Ibid. p.122.
205
Joyce MCDOUGALL. As Múltiplas Faces de Eros. p.12.
206
Malvine ZALCBERG. A Relão Mãe e Filha. p.187.
207
Maria Lucia Vieira VIOLANTE. O Dilema da Histérica. Texto inédito, 2007.
208
Maria Rita B. KEHL.Os Deslocamentos do Feminino. A Mulher Freudiana na Passagem para a
Modernidade. p. 198.
63
Na histeria, é provável que a mãe tenha desvalorizado a sexualidade da filha. Assim,
Mayer (1989) postula que “(...) o rechaço materno da feminilidade da filha (...), contribui para
que a menina não valorize o seu papel de mulher.
209
Muitas pessoas são incapazes de superar o temor da perda do amor; nunca se tornam
suficientemente independentes do amor de outras pessoas e, nesse aspecto,
comportam-se como crianças (...).o hávida de que as pessoas que qualificamos
como neuróticas, permanecem infantis em sua atitude relativa ao perigo e não
venceram as obsoletas causas determinantes de ansiedade.
Na Conferência XXXII, “Ansiedade e Vida Instintual”, datada de 1933[1932], Freud
considera que os neuróticos são incapazes de superar o temor da perda do amor. Nas palavras
do autor:
210
Zalcberg (2003) acrescenta que “A menina busca o reconhecimento de seu corpo
feminino e nem sempre encontra um lugar para ele no olhar da mãe.”
211
Mais adiante, a
autora ressalta que “A filha pode experimentar o fato de a mãe não aceitar seu corpo feminino
como abandono ou perda de reconhecimento. Tal situação, em vez de se atenuar com os anos,
pode acentuar-se; vemos, então, a manutenção da dependência de uma filha de sua mãe e do
seu olhar.
212
Segundo Violante, na histeria, desde o nascimento a menina é desvalorizada pelos
pais, por ela ter vindo ao mundo desprovida de pênis. Em decorrência disto, a autora ressalta
que “(...) ‘o perigo de perda de um objeto (ou perda do amor)’, que se ajusta ‘à falta de auto-
suficncia dos primeiros anos da infância’ (...), se estenderia até a fase fálica.”
213
A autora salienta também, que essa desvalorização sofrida pela menina por parte dos
pais “(...) faz com que ela se aferre mais à mãe (fálica), e, quando chegar na fase fálica, se
identifique com ela.”
214
A elaborão deste complexo [de castração] será dificultada pelas fixações
narcisistas. Quanto maiores sejam estas, o outro contará cada vez menos como ser
sexual diferenciado que se deseja e cada vez mais como instrumento que se necessita
para renegar a diferença sexual (e o complexo de castração a que ela remete). A partir
Na histeria, Mayer (1989) considera que a elaboração do complexo de castração será
dificultada pelas fixações narcisistas que o precederam. A este respeito, o autor escreve:
209
Hugo MAYER. Histeria. p.43.
210
Sigmund FREUD. Ansiedade e Vida Instintual. p.92.
211
Malvine ZALCBERG. A Relão Mãe e Filha. p.182.
212
Ibid. p.188.
213
Maria Lucia Vieira VIOLANTE. Algumas Notas Sobre a Histeria e a Homossexualidade Femininas. In:
Trieb, vol. IV, ns.1 e 2, 2005.
214
IDEM. O Dilema da Histérica. Texto inédito, 2007.
64
disso, são múltiplas as variantes que a clínica nos mostra: a inibição genital, a
fascinação amorosa (...) etc.
215
A histérica é filha de uma outra histérica que não conseguiu valorizar a sua própria
feminilidade e, em conseqüência disso, teria transmitido à filha um sentimento de
menos valia em relação ao corpo. Chegado ao momento do reconhecimento das
diferenças entre os sexos, esse sentimento se tornaria um obstáculo à aceitação da
castração.
Ainda no que se refere à elaboração do complexo de castração na histeria, Alonso &
Fuks (2004) acrescentam que:
216
Na histeria, no que se refere à entrada da menina no complexo de Édipo positivo,
David-Ménard (1994) considera que as meninas “(...) atribuem ao pai aquilo que as separa de
suas mães, mas, de imediato, elas não têm nenhuma razão para separar-se deles (...).”
Com base nos autores citados, compreendo que na histeria, em decorrência da possível
desvalorização sofrida pela menina por parte dos pais, ela não consegue superar o temor que
advém do perigo de perder o objeto. Deste modo, ao invés de abandonar completamente a
ligação com sua mãe fálica, a menina intensifica sua identificação com ela.
É verdade que, conscientemente, a histérica sabe que não perderá, necessariamente, o
amor do objeto e nem que ela veio castrada ao mundo. Porém, no inconsciente, as impressões
que estão ali mantidas por meio do recalcamento permanecem inalteradas.
217
A este respeito, Mayer (1989) ressalta que “Toda filha alguma vez quis substituir a
mãe como companheira do pai. Porém, a mãe da histérica, com suas falências, estimula essa
fantasia, pois aparenta ser facilmente superável como mulher do pai.”
218
Além disso, ele acrescenta que “(...) à histérica foi possível distanciar-se da mãe o
suficiente para (...) querer ocupar o lugar daquela com relação a ele [ao pai].”
219
Entretanto, segundo o autor, “(...) para que a mulher chegue a desejar ter um pênis, e
depois um filho, deve haver uma (...) proximidade paterna adequada.
220
215
Hugo MAYER. Histeria. p.32-3; entre colchetes, interpolação minha.
216
Silvia Leonor ALONSO & Mario Pablo FUKS. Histeria. p.167.
217
Monique DAVID-MÉNARD. As identificações na Clínica e na Teoria Psicanalítica. p.77-8.
218
Hugo MAYER. Histeria. p.68.
219
Ibid. p.42; entre colchetes, interpolação minha.
220
Ibid. p. 96.
E qual seria a função de um pai diante de uma filha que o procura, primeiramente,
como o doador idealizado do pênis que ela acredita que a mãe deveria ter lhe dado, mas não
lhe deu, e depois como o doador de filhos?
65
Segundo Alonso & Fuks (2004), o pai tem uma função específica diante das demandas
da filha. Nas palavras dos autores:
O pai deve promover e facilitar uma passagem, uma remodelação das expectativas,
ressignificando a incompletude como função de uma lei simbólica. Na histeria, o pai
o teria operado esta passagem: ser um representante da lei aí aonde é demandado
para ser um doador que obture o rombo narcísico aberto pelo complexo de
castração.
221
No passado, a dependência infantil não pôde ser bem tolerada pelos pais,
especialmente pela mãe. Muitas vezes há uma tentativa de compensar o recho
materno com um deslocamento da dependência da mãe para o pai idealizado.
Idealizado e superestimado como representação materna, como uma compensação
dela, porém também como um “salvador que poderia tirá-la de um nculo materno
vivido como deserto afetivo e transfor-la em uma mulher amada com ternura.
A este respeito, Mayer (1989) acrescenta que:
222
Apesar da histérica superestimar a figura paterna, esperando que ela seja forte o
suficiente para resgatá-la donculo materno vivido como um deserto afetivo, para Mayer
(1989), o que ela encontra é um pai (...) suficientemente frágil e escorregadio para erotizar a
relação com ela, e, ao mesmo tempo, rechaçá-la. Ele, ainda que aceite a lei, vê sua filha mais
como menina-mulher do que como menina-filha, dando a entender, com esta conduta, que é
possível uma relação incestuosa.”
223
Mayer (1989) salienta, ainda, que na histeria (...) o pai se transforma em um ajudante
[da filha], ou ela em ajudante do pai. Nesse sentido, [eles] recriam uma unidade narcisista
onde o homem, como objeto erótico, conta pouco.”
224
Em decorrência disso, segundo o autor, “Para um pai e uma filha (...) nunca a barreira
do incesto é tão frágil como aqui. (...).”
225
Ainda no que se refere ao pai da histérica, Violante (2007) escreve que (...) sua
feminilidade [da menina] não é o alvo do investimento paterno (...).
226
Além disso, a autora
ressalta que “O pai a decepciona em suas reivindicações o que acontece com toda menina -,
mas lhe oferece um lugar de companheira-mplice junto a ele.
227
221
Silvia Leonor ALONSO & Mario Pablo FUKS. Histeria. p.143.
222
Hugo MAYER. Histeria. p.62.
223
Ibid. p.87.
224
Ibid. p.97; entre colchetes, interpolação minha.
225
Ibid. p.60.
226
Maria Lucia Vieira VIOLANTE. O Dilema da Histérica. Texto inédito, 2007; entre colchetes, interpolação
minha.
227
IDEM. Algumas Notas Sobre a Histeria e a Homossexualidade Femininas. In: Trieb, vol. IV, ns.1 e 2, 2005.
66
Para Mayer (1989), no caso da histeria, “[Para a histérica] Fica-lhe a raiva de que o
pai, em vez de ter sido um terno estimulador que mantivesse firme a proibição, tenha sido
mplice excitador de fantasias em que o proibido era transgredível.
228
No texto intitulado “Dois Verbetes de Enciclopédia”, de 1923 [1922], Freud faz
referência à resolão edípica nos neuróticos. A este respeito, ele escreve: “Descobriu-se ser
característica de um indivíduo normal aprender a dominar seu complexo de Édipo, ao passo
que o neurótico permanece envolvido nele.”
Em decorrência dessa estrutura parental que abriga a histeria, Mayer considera que a
histérica não conseguiu internalizar um pai que proíbe o incesto. Como consequência disto,
ela permanece fixada na equivalência entre desejo sexual e desejo incestuoso.
Tal equivalência, segundo o autor, é o que impede a histérica de estabelecer uma
identificação com o lugar simbólico da mãe como mulher apenas com os aspectos formais
desta.
229
Na histeria, o temor à perda do amor leva a menina a recalcar o complexo de Édipo, ao
invés de dissolvê-lo, como Freud propôs em 1924, no texto “A Dissolução do Complexo de
Édipo”. Neste texto, ele escreve: “Se o ego, na realidade, não conseguiu muito mais que uma
repressão do complexo, este persiste em estado inconsciente no id e manifestará mais tarde
seu efeito patogênico.
Como já referido, na histeria, possivelmente, a menina foi desvalorizada por parte dos
pais e, por este motivo, ela não consegue superar o temor que advém do perigo de perder o
objeto.
Deste modo, no momento da resolução edípica, a histérica o abandona
completamente o investimento libidinal nas figuras parentais, substituindo-o por
identificações com a figura materna e paterna.
Ao invés disso, a histérica intensifica sua identificação arcaica com a mãe fálica - que
não se presta como modelo de feminilidade à filha - e com uma figura paterna
demasiadamente frágil que não servirá como modelo para orientar a escolha do objeto de
amor -, permanecendo aprisionada na problemática edípica.
230
228
Hugo MAYER. Histeria. p.70; entre colchetes, interpolação minha.
229
Sigmund FREUD. Dois Verbetes de Enciclopédia. p. 262.
230
IDEM. A Dissolução do Complexo de Édipo. p.197.
Assim, além da fixação oral, a histérica permanece envolvida na problemática do
complexo de castração, apresentando também uma fixação na fase fálica da organização
libidinal, ou seja, em um mundo no qual os seres são fálicos ou castrados.
67
Ao formular sua compreensão a respeito da histeria, Mayer (1989) defende o seguinte
ponto de vista:
Entendo, pois, que a histeria é uma patologia que se situa a meio caminho entre o
complexo de Édipo negativo e o complexo de Édipo positivo, nesta positivação do
complexo de Édipo normal pelo qual toda menina deve passar para transformar-se em
mulher. (...) quanto mais próxima esteja de positivar totalmente o complexo de Édipo,
mais próxima esta de ser uma mulher normal. E quanto mais dominada pelo
complexo de Édipo negativo, mais próxima estará da relação perversa ou psicótica.
231
No que se refere à fixação da libido nos objetos incestuosos, em seu texto “O Tabu da
Virgindade (Contribuições à Psicologia do Amor III)”, de 1918[1917], Freud escreve: “O
marido é, quase sempre, por assim dizer, apenas um substituto, nunca o homem certo; é outro
homem nos casospicos o pai que primeiro tem direito ao amor da mulher (...).”
232
Segundo David-Ménard (1994), o que suas pacientes histéricas pedem a um homem é
que ele “(...) imponha limite às identificações arcaicas [com a mãe] e, para tal, que esteja
presente.
233
Para a autora, (...) a angústia que acompanha o recalque da relação com a mãe dá
à demanda que elas dirigem aos homens esse caráter de exigência insaciável.
234
A persistência da demanda, deixa a mulher na dependência de um Outro real, que
pode ser o pai ou, mais freqüentemente, um substituto do pai. (...) É por isso que a
fonte de sua angústia residirá no risco de perder esse amor, perda que assumirá, para
ela, a significação de uma recusa de recebimento da demanda fálica. A partir daí, o
Outro ao qual se dirige a demanda encontra-se em posição de submetê-la a exigências
eventualmente sem limites.
A este respeito, Millot (1989) escreve:
235
(...) ela pode desenvolver um vínculo de dependência idealizada com quem representa,
em sua vida fantasmal, o pai adorado da infância, o aliado e protetor. Procura ter,
então, na realidade material, uma relação amorosa na qual funcione como filha e
colaboradora incondicional. Pode postergar ou inibir seu desenvolvimento pessoal em
função de um objetivo deste tipo: ser reconhecida com o status de filha excepcional,
Ainda a este respeito, Mayer (1989) acrescenta que, na histeria, a fixação da libido nos
objetos incestuosos poderá manifestar-se por meio de uma dependência em relação ao marido
ou a algum personagem idealizado que represente a autoridade. Nas palavras do autor:
231
Hugo MAYER. Histeria. p.88-9.
232
Sigmund FREUD. O Tabu da Virgindade (Contribuições à Psicologia do Amor III). p.210.
233
Monique DAVID-MÉNARD. As identificações na Clínica e na Teoria Psicanalítica. p.77.
234
Ibid. p.78; entre colchetes, interpolação minha.
235
Catherine MILLOT. NobodaddyA Histeria no Século. p. 35.
68
única ou predileta do pai. Pai idealizado que, na prática, pode ter para com ela mais as
características (sádicas) da mãe que as complacentes do pai.
236
(...) o que ocorre é uma recusa de assumir o fato de que é simplesmente uma mulher.
Alguém deve ter o falo. Seus vínculos podem parecer um tanto estereotipados;
entretanto, nela uma profunda necessidade de amor, ainda que bloqueada pelo
temor de que a entrega total a um homem implique repetir a traumática experncia de
rechaço, abandono ou humilhação a que foi submetida pelae.
Mayer salienta que, na histeria:
237
Deste modo, segundo o autor, “(...) não há para ela um homem, como outro qualquer,
mas o que há é um falo, que tem como premissa universal o pênis, e cujo portador é
convocado pela histérica para fazê-la dona deste falo: seja despojando-o, seja recebendo-o
dele que está colocado no lugar de Deus, o que eleva sua auto-estima (...).”
238
Kehl (1997) considera que a histérica mantém-se na dependência do desejo dos
homens. Nas palavras da autora: “Do outro depende então a condução do destino da histérica,
condenada a nunca se satisfazer com o resultado.
239
Mayer (1989) ressalta que “A histérica não tardará a decepcionar-se quando, em vez
de assumir-se como Ideal, orienta seu desejo de perfeição para a sedução de alguém que
representa essa ‘perfeição ideal’ e com quem pretende unir-se para alcançá-la.
240
Ainda a este respeito, o autor considera que “A histérica não pode aceitar que a ela
‘falte’ qualquer coisa. Há que ser bela e completa como imagina a Virgem. De que forma?
Apelando à fantasia, ao sonho, à identificação, a recursos que lhe permitem cumprir seus
múltiplos e contraditórios desejos.
241
(...) graças a ela, a mulher histérica consegue ser o objeto de amor de um pai
idealizado. E mais ainda, pois não tem apenas o pai, tem tudo: beleza, perfeição,
completude. Encanto para dissimular, para silenciar o que, todavia, agora sente
inconscientemente: que é feia, incompleta, vazia, que os homens têm mais, que para
eles tudo é mais fácil, etc.
No que se refere à fantasia, ele escreve que:
242
236
Hugo MAYER. Histeria. p.62.
237
Ibid. p.65.
238
Ibid. p.102.
239
Maria Rita B. KEHL. Os Deslocamentos do Feminino. A Mulher Freudiana na Passagem para a
Modernidade. p. 265.
240
Hugo MAYER. Histeria. p.65.
241
Ibid. p.44
242
Ibid. p.59.
69
Segundo Violante (2007) “Este é o terreno movediço no qual a menina vai assumir sua
feminilidade. Apesar do temor de ver mais uma vez rechaçado o que ela oferece ao desejo do
homem, a histérica escolhe como objeto de amor e de identificação um ‘príncipe encantado’,
ou seja, um homem idealizado superior ao pai. (...) ela permanece na indagação acerca do
que deve ter para ser desejada pelo ‘príncipe’.
243
(...) o objeto do desejo é sempre o falo. Se uma mulher é aquela que se identifica
plenamente com a despossessãolica à espera de um homem que venha constit-la
como mãe, por outro lado ela terá que jogar sempre com algum traço fálico que a
constitua, no nimo, como objeto do desejo para ele.
Ainda no que se refere ao significante do desejo da histérica, Kehl (1997) considera
que:
244
No que diz respeito à busca de uma compensação tardia como um efeito da inveja do
pênis, em seu texto datado de 1937, “Alise Terminável e Interminável”, Freud escreve:
(...) esse desejo [da mulher por um pênis] é fonte de irrupções de grave depressão
245
nela
[na mulher], devido à convicção interna de que a análise não lhe será útil e de que nada pode
ser feito para ajudá-la.
246
Em relação à inveja do pênis, Kehl (1997) defende a ideia de que essa inveja é o que
impede as mulheres de “(...) renunciar a suas pretensões masculinas em troca das
compensações que a feminilidade poderia lhes oferecer: não um falo, mas um filho. Não um
pênis em seu próprio corpo, mas o desejo dos homens dotados de pênis (...).”
247
Para a autora,(...) a menina mantém sempre a esperança de que, se for amada pelo
pai, receberá [dele] o órgão do qual ele privou a mãe [o pênis].”
248
Mais adiante, ela
acrescenta que “(...) o importante na análise de mulheres é encontrar um destino para o
Penisneid [inveja do pênis], seja pela via do falo-bebê, seja pela via das sublimações (e por
que não pelas duas?). A superação da inveja não impede ao contrário, favorece a
sexualidade feminina.”
249
243
Maria Lucia Vieira VIOLANTE. O Dilema da Histérica. Texto inédito, 2007.
244
Maria Rita B. KEHL. Os Deslocamentos do Feminino. A Mulher Freudiana na Passagem para a
Modernidade. p. 212.
245
Grifo meu.
246
Sigmund FREUD. Análise Terminável e Interminável. p.270; entre colchetes, interpolação minha.
247
Maria Rita B. KEHL. Os Deslocamentos do Feminino. A Mulher Freudiana na Passagem para a
Modernidade. p. 190.
248
Ibid. p. 205; entre colchetes, interpolação minha.
249
Ibid. p. 230; entre colchetes, interpolação minha.
A autora escreve, ainda:
70
Se existe uma cura para as mulheres, isto é, para o penisneid [inveja do pênis], ela
passa pela (re)conquista daquilo que, sendo dos homens,o tem porque não ser das
mulheres também. Não um pênis, mas uma ou algumas infinitas faces do falo. Fazer-
se feminina e sedutora a partir da castração é apenas uma delas, da qual as mulheres
sabem e podem gozar. Mas é impensável subjetivar-se inteiramente na posão
feminina, uma posição de dependência em relação ao desejo do outro muito
semelhante à da castração infantil.
250
É, [a histérica] em termos psicossexuais, uma menina ferida em seu narcisismo, pois
considera o fato de o ter pênis como o resultado de uma castração (...). [ela] tentará
compensar este sentimento de intolerável inferioridade dissimulando o que ela percebe
como falta, imperfeição ou defeito, com o desejo de ocupar um lugar de completude e
perfeição. Lugar instável no qual precisa ser constantemente confirmada pelo desejo
que é capaz de despertar no outro: pela perfeição de sua voz, pelo atrativo de suas
roupas, pela beleza de seu corpo, pela agudeza de seu intelecto.
Segundo Mayer (1989), a histérica tenta compensar o sentimento de inferioridade
dissimulando o que ela percebe como falta e buscando ocupar um lugar de perfeição. Nas
palavras do autor:
251
Para Mayer (1989),Esta busca insaciável de perfeição pode ser entendida como a
necessidade de se preencher, de dissimular sua falta de pênis (falo), ou como a busca
identificatória de um modelo ideal de mulher, para o qual sua própria mãe não serviu, e de
muitas outras maneiras.”
A partir da clínica e dos autores citados, compreendo que na histeria, essa incessante
busca por um lugar de perfeição, pode ser uma forma de dissimular o sentimento de
inferioridade e os traços depressivos que decorrem da provel carência de investimento
libidinal materno - de modo prevalente - e paterno, nos primeiros momentos de vida.
252
Segundo Freud, para evitar entrar em contato com percepções que podem desencadear
novamente esse sentimento de humilhação narcísica, a histérica faz uso da anticatexia. A este
respeito, no texto de 1926, intitulado “Inibições, Sintomas e Ansiedade”, Freud escreve: “A
anticatexia histérica é principalmente dirigida para fora, contra percepções perigosas. Assume
a forma de uma espécie especial de vigilância que, por meio de restrições do ego, causa
situações a serem evitadas que ocasionariam tais percepções (...).
253
250
Maria Rita B. KEHL. Os Deslocamentos do Feminino. A Mulher Freudiana na Passagem para a
Modernidade. p.270; entre colchetes, interpolação minha.
251
Hugo MAYER. Histeria. p.42; entre colchetes, interpolação minha.
252
Ibid. p.63.
253
Sigmun FREUD. Inibições, Sintomas e Ansiedade. p.154.
71
Mayer (1989) acrescenta que “Como [as histéricas] necessitam ser reconhecidas como
seres ‘perfeitos’, reagem com desmedida agressão a qualquer observação, comentário ou
crítica que possa ferir sua casca de onipotência ou sua ilusão de admivel
excepcionalidade.”
254
(...) esta vivência do corpo imperfeito, esta importante ferida narcisista, se transforma
em uma reivindicação narcisista corporal, pela qual a mulher, que não tem pênis,
procura constituir-se como falo (...). Quer ser amada como se fosse o falo. A angústia
de o ser querida, de não ser amada
[pelos pais, na infância], de ser imperfeita em
sua castração, toma neste caso a forma de ser o falo e ser admirada esteticamente.
Assim, para o autor, a diferença sexual anatômica que tanto angustia a histérica e
que é por ela interpretada como decorrência da castração é o que a incita a reagir por meio
de uma hiperfeminilidade (que exagera a importância da diferença) ou por meio de um estilo
unissex (minimizando a importância da diferença). A este respeito, ele escreve:
255
Deste modo, o corpo pode ser uma forma de despertar o desejo dos homens e mantê-lo
vivo. Para Mayer (1989),O desejo deve estar vivo para confir-la, permanentemente,
como não-castrada.
Segundo o autor, a histérica - na tentativa de compensar o que é por ela sentido como
falta recorre à libidinização do corpo, igualando-o ao falo.
256
Para Kehl (1997), “(...) a ausência donis na menina não resulta imediatamente na
completa despossessão fálica; (...) uma das dimensões da feminilidade é esta, de produzir o
falo através dos efeitos fascinatórios da beleza e da sedução.”
257
A respeito do perfeccionismo histérico, Mayer (1989) acrescenta ainda que A
arrogância e o desafio constantes contribuem para seu propósito de transformar-se na
representante do ‘Sexo’ ou da ‘Verdade’ e de alguma forma assinalam permanentemente a
castração no outro (...).”
258
No entanto, diante desta obsessão pela perfeição, que pode estar presente na histérica,
o autor coloca a seguinte questão: “Por que não pensar que, por trás deste protótipo de mulher
que ela exibe, há uma menina desvalorizada que luta desesperadamente para alcançar o amor
parental que lhe faltou como filha?”
259
254
Hugo MAYER. Histeria. p.64; entre colchetes, interpolação minha.
255
Ibid. p.95; entre colchetes, interpolação minha.
256
Ibid. p.86.
257
Maria Rita B. KEHL. Os Deslocamentos do Feminino. A Mulher Freudiana na Passagem para a
Modernidade. p. 195.
258
Hugo MAYER. Histeria. p.94.
259
Ibid. p.62.
72
Ainda no que diz respeito às tentativas de compensação do sentimento de inferioridade
na histeria, no texto de 1930[1929] “O Mal-Estar na Civilização”, em uma nota de rodapé,
Freud faz a seguinte observação a respeito do trabalho, como uma possível fonte de satisfação
substitutiva para as mazelas humanas. Escreve ele:
o é possível dentro dos limites de um levantamento sucinto, examinar
adequadamente a significação do trabalho para a economia da libido. Nenhuma outra
cnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto a
ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um
lugar
260
seguro
numa parte da realidade, na comunidade humana.
261
O desejo de ter o pênis tão almejado pode, apesar de tudo finalmente contribuir para
os motivos que levam uma mulher à análise, e o que ela racionalmente pode esperar da
alise capacidade de exercer uma profissão intelectual, por exemplo amiúde pode
ser identificado como uma modificação sublimada desse desejo reprimido.
No meu entendimento, na histeria, esse lugar na comunidade humana que o trabalho é
capaz de oferecer, pode trazer uma compensação para o fato de a menina não ter tido lugar
valorizado na psique materna.
Na Conferência XXXIII, datada de 1933 [1932] e intitulada “Feminilidade, Freud
exemplifica que a intelectualidade pode ser uma forma possível de compensação para o
sentimento de humilhação narcísica decorrente da ausência do pênis. Nas palavras do autor:
262
Lembrando de minhas experiências com as histéricas, observo que elas se curam
quanto têm sucesso, um sucesso marcante. O sucesso creio que é ele que as cura. Uma
vez que obtêm um determinado sucesso, elas se destacam. Isso me faz pensar que o
sucesso as livraria dos problemas, permitindo-lhes que se identificassem com elas
mesmas. Elas o elas, quando têm sucesso. É preciso que seja um
sucesso visível
Assim, compreendo que a intelectualidade é apenas uma possibilidade por meio da
qual a histérica poderá vir a compensar seu narcisismo ferido. No entanto, essa compensação
poderá ser conseguida por qualquer outro meio que permita à histérica ocupar um lugar de
reconhecimento.
Octave Mannoni (1994), faz a seguinte observação clínica:
263
,
é claro. (...) Eu não acredito que tenha sido de outro modo, que o trabalho da alise as
tenha transformado dessa maneira. Mas ele lhes permitiu a transformação.
264
260
Grifo meu.
261
Sigmund FREUD. O Mal-Estar na Civilização. p.87-8.
262
IDEM. Feminilidade. p.125.
263
Grifo meu.
264
Octave MANNONI. As Identificações na Clínica e na Teoria Psicanalítica. p.87.
73
Portanto, Mannoni (1994) considera que o sucesso por si mesmo não é suficiente para
compensar o narcisismo ferido da histérica. Ele ressalta que é preciso haver um sucesso
visível, ou seja, que esteja evidente ao olhar alheio. Por meio do sucesso a histérica pode
alcançar o olhar alheio, este sim capaz de reconhe-la (ou não) como sendo alguém dotada
de valor pessoal.
Deste modo, ela poderá investir em uma imagem valorizada de si impedindo, desta
maneira, a emergência dessa tendência primária à depressão e à diminuição da autoconfiança.
No entanto, Kehl (1997) considera que “Por outro lado, a angústia de castração
introduz-se também do lado das mulheres a partir do momento em que elas se apropriam de
algum falo simbólico.
265
Millot (1989) faz referência ao caso de uma mulher bem sucedida profissional e
economicamente que, para desculpar-se diante dos homens pela sua ousadia fálica, rebaixa-se
e se oferece como objeto erótico para eles. A autora conclui que “A angústia é uma das provas
de existência do falo.”
Esta ideia de Kehl é importante para compreendermos a angústia
que Maria Callas sentia em relação à possibilidade de perder a voz.
266
Para Alonso & Fuks (2004), “(...) nem sempre a histérica pode preservar a imagem
especular que lhe garante o narcisismo fálico.”
267
Deste modo, considero pertinente recorrer à concepção psicopatológica de Aulagnier
para compreendermos o conflito identificatório que se faz presente na história de Maria
Callas.
No meu entendimento, nos momentos em que a histérica não consegue preservar a
integridade de uma imagem adornada com brilho fálico, ela se torna vulnerável à
manifestação dos traços depressivos.
Contribuições Psicopatológicas de Piera Aulagnier: o conceito de potencialidade e o
conflito identificatório no registro da neurose
Assim como Freud, Piera Aulagnier considera que o complexo de Édipo desempenha
um papel fundamental na estruturação psíquica normal e patológica do sujeito. A autora
acrescenta à teoria freudiana o conceito de potencialidade e concebe a psicopatologia como
conflitos identificatórios.
265
Maria Rita B. KEHL. Os Deslocamentos do Feminino. A Mulher Freudiana na Passagem para a
Modernidade. p. 272.
266
Catherine MILLOT. NobadaddyA Histeria no Século. p. 40.
267
Silvia Leonor ALONSO & Mário Pablo FUKS. Histeria. p.169.
74
Como referido anteriormente, a compreensão de Piera Aulagnier a respeito da
psicopatologia está vinculada à criação de dois conceitos fundamentais em sua teoria: os
conceitos de potencialidade e de conflito identificatório.
Para a autora, a potencialidade “(...) engloba os ‘possíveis’ do funcionamento do Eu e
de suas posições identificatórias, uma vez terminada a infância.”
268
Aulagnier concebe a psicopatologia a partir do estabelecimento da potencialidade de
um conflito no registro da identificação: no interior do Eu - caracterizando a potencialidade
psicótica -, entre o Eu e os ideais – que distingue a potencialidade neurótica
269
268
Piera AULAGNIER. O Conceito de Potencialidade e o Efeito de Encontro. In: O Aprendiz de Historiador e o
Mestre Feiticeiro. p. 228.
269
Neste trabalho será abordado apenas o conflito identificatório neurótico, uma vez que tratar dos conflitos
psicótico e misto, exigiria um desenvolvimento incompatível com os limites desta tese.
e um conflito
misto, entre o Eu e seus ideais e no interior do Eu - próprio da potencialidade polimorfa.
Em relação ao estabelecimento do conflito identificatório, a autora recorre a uma
metáfora para explicá-lo: ela equipara o edifício identificatório a um quebra cabeças no qual o
primeiro agrupamento de peças é formado pelos identificados veiculados pelo discurso
parental, os quais devem constituir os pontos de certeza para o sujeito.
A este primeiro agrupamento de peças, são acrescentados os identificantes que a
criança utiliza para nomear seu próprio Eu, os quais devem se adaptar mais ou menos ao
primeiro conjunto.
Segundo Aulagnier, esta característica heterogênea do Eu é a responsável pela
potencialidade de conflito, pois neste edifício existirão sempre linhas de fragilidade e,
portanto, um risco potencial de ocorrer uma fissura.
Se essa fissura ocorrer entre o primeiro agrupamento - que comporta os pontos de
certeza do Eu -, e as peças acrescentadas que atestam no que o Eu está se tornando -, o
conflito organiza-se entre o Eu e seus ideais, o que resulta no estabelecimento da
potencialidade neurótica.
Conforme referido no catulo 1, todo Eu alcança o “tempo de concluir” (T2), exceto
quando ocorre o autismo ou a eclosão de uma psicose infantil. Portanto, segundo Aulagnier,
uma vez atingido o (T2) o Eu com a colaboração do Eu dos pais tem a possibilidade de
estabelecer uma ligação entre os identificados veiculados pelo discurso parental e os
identificantes acrescentados pelo sujeito a esse primeiro agrupamento.
No que diz respeito à possibilidade de manifestação de uma potencialidade, a autora
postula que:
75
O poder “maléfico” ou “benéfico” de um episódio, de um encontro depende de
múltiplas razões mas sua importância será sempre proporcional às suas repercussões
sobre a economia identificatória do Eu e, mais precisamente, à gravidade do risco que
implicam: tornar ineficaz a primeira solução que achara para o conflito identificatório
e que lhe tinha permitido, senão superá-lo, pelo menos tor-lovivível”.
270
Segundo a autora, “Qualificar uma fantasia de psicótica, perversa ou neurótica é um
abuso de linguagem: os roteiros (...) de fantasia são os mesmos para todos, obedecem a um
mesmo postulado, repetem uma organização figurativa sobre a qual o Eu não tem poder.”
271
Toda neurose apresenta sua forma manifesta no momento em que o complexo de
Édipo deveria dissolver-se; momento em que o investimento dirigido aos Eus
Para ela, o limite entre o normal e o patológico é dado pelas possibilidades que o Eu
dispõe para metabolizar uma parte dessas fantasias inserindo-as em uma trama relacional, por
meio do trabalho de sublimação e/ou de recalcamento.
No meu entender, na história de Maria Callas, os mecanismos de sublimação e
recalcamento prestam-se a esta função, qual seja, de metabolizar algumas fantasias incluindo-
as em uma trama relacional.
Aulagnier acrescenta que o trabalho de sublimação e de recalcamento é uma forma de
compromisso que o Eu dispõe para tornar favorável sua relação com o Id e com a realidade.
No entanto, esses mecanismos não podem ser utilizados no momento em que o Eu se
depara com possíveis episódios futuros que são imprevisíveis. Isto significa que a presença ou
ausência de determinadas condições com as quais o Eu se encontra em seu meio psíquico e
físico, podem entravar inevitavelmente seu funcionamento.
Para a autora, enquanto o Eu permanece em seu estado infantil há a possibilidade de
adiamento de um conjunto de decies, de atos e de encontros que poderiam vir a exigir uma
modificação na relação do Eu com a temporalidade, a sexualidade, a realidade.
Porém, quando o Eu se encontra em situações que colocam em risco o prosseguimento
de seu trabalho de identificação, esse encontro reativa o conflito identificatório e mobiliza as
defesas que o Eu dispõe para fazer frente a ele.
Apesar de não teorizar sobre a histeria especificamente, no que diz respeito à neurose,
Aulagnier elabora formulações sobre o conflito identificatório que se estabelece entre o Eu e
os ideais, como sendo um conflito que define a potencialidade neurótica, de forma geral.
Em Os Destinos do Prazer, Aulagnier considera que
270
Piera AULAGNIER. O Conceito de Potencialidade e o Efeito de Encontro. In: O Aprendiz de Historiador e o
Mestre Feiticeiro. p.229.
271
Ibid. p.227.
76
parentais não deve desaparecer mas modificar-se através de uma decantação das
demandas a eles dirigidas e através do desejo de encontrar novos destinatários para as
demandas que o podem mais ser dirigidas aos pais. Recalque que permite ao Eu
esquecer que esperava dos pais um prazer sexual quando na realidade preserva este
mesmo desejo graças à fixação que se opera.
272
De acordo com Aulagnier, “(...) a resposta que ele [neurótico] recebe não pode
satisfazer o que se oculta atrás da aparente legitimidade dos objetos ou dos prazeres que [ele,
neurótico] supõe pedir.”
Segundo ela, ao endereçar suas demandas ao Eu dos outros, o neurótico ignora o
componente sexual devido ao recalque que incide sobre ele que é veiculado por essas
demandas e espera receber como resposta algo da ordem do impossível: que o outro seja pai e
amante, mãe e parceira sexual, filho e objeto de gozo.
273
Em decorrência dessa impossibilidade que o neurótico se impõe, de encontrar
satisfação nas respostas que recebe, Aulagnier considera que “Pode ocorrer (...) uma des-
implicação parcial, quando uma parte da agressividade se desprende do sexual e vai tentar se
realizar, seja através de uma conduta agressiva para com o outro, seja através da auto-
agressividade. (...) esta agressividade é sempre induzida pela recusa do outro ao prazer que se
esperava.
Para a autora, esta ignorância do neurótico acerca do componente sexual veiculado
pelas demandas que ele endereça aos outros, é a grande responsável pelo caráter acusatório
presente na demanda neurótica.
É por isso que, para Aulagnier, o conflito neurótico incide primordialmente sobre o
registro sexual e sobre a problemática do gozo: se o Eu dos outros responde à demanda do
neurótico de forma a favorecer a ilusão de que a resposta que está sendo recebida é idêntica
àquela que foi esperada dos primeiros destinatários, então o sujeito recua diante do horror da
possibilidade de consumação do incesto. Em contrapartida, se a resposta recebida não sustenta
essa ilusão, o sujeito não tem acesso ao gozo.
274
Segundo Aulagnier, “Na neurose a pulsão de morte só pode triunfar porque o Eu
recusa o sofrimento causado pela ausência de um prazer ao qual ele não quer renunciar,
embora a eventual realização de um tal prazer implique a culpabilidade de se ter transgredido
a interdição do incesto.”
275
272
Piera AULAGNIER. As Relações de Assimetria e seu Protótipo: a paixão. In: Os Destinos do Prazer. p.161.
273
Ibid. p.161; entre colchetes, interpolação minha.
274
Ibid. p.162.
275
Ibid. p.162.
77
Para a autora, a resposta agressiva que o neurótico dirige ao outro ou a si mesmo é, em
última instância, decorrente da impossibilidade de realizar o incesto e, ao mesmo tempo, de
renunciar ao desejo incestuoso.
78
CAPÍTULO 3
UMA LEITURA PSICANALÍTICA DOS
FRAGMENTOS BIOGRÁFICOS DE MARIA CALLAS
“Só quando estava cantando eu me sentia amada.”
Maria Callas
A história que será apresentada e analisada a seguir foi construída a partir de uma
leitura psicanatica dos fragmentos biográficos de Maria Callas, que foram por mim
selecionados e extrdos da biografia escrita por Arianna Stassinopoulos Huffington,
intitulada Maria Callas. A Mulher Por Trás do Mito
276
As fontes utilizadas pela biógrafa foram cartas que, ao longo de vinte e sete anos,
Maria endereçou a seu padrinho Leonidas Lantzounis - nas quais ela escreve como se
conversasse consigo mesma -, as cartas íntimas dirigidas a um amigo, além de suas conversas
com Jonh Ardoin
.
277
276
Ariana S. HUFFINGTON. Maria Callas. A Mulher Por Trás do Mito. São Paulo: Companhia das Letras:
1997; tradução de Hildegard Feist.
, que constitui o registro mais tgico de seus sentimentos.
Estas cartas permanecem nos arquivos particulares de seus respectivos destinatários e
nunca foram publicadas. Em seu trabalho, a biógrafa preservou a originalidade da escrita de
Maria, mantendo os erros de ortografia, a gramática e a sintaxe tomadas do grego, do francês
e do italiano, e as palavras que, embora escritas em inglês, correspondem a uma tradução
rigorosamente literal.
A biógrafa recorreu, também, a pessoas que, apesar de não terem feito parte da vida
profissional e pública de Maria Callas, conheciam detalhes de sua intimidade. Assim, nos
momentos em que aparecem referências às ideias e sentimentos, não se trata de uma
especulação, mas da escrita baseada em informações obtidas em primeira mão.
Além disso, na biografia acima referida, constam trechos de declarações públicas e
entrevistas que, segundo a biógrafa, revelam pouco a respeito do verdadeiro estado de espírito
de Maria Callas, pois o que ela dizia em público quase sempre correspondia ao contrário do
que ela realmente sentia.
Nesta tese, todas as falas de Maria Callas e das demais pessoas que fizeram parte de
sua história, foram por mim recortadas da biografia e citadas literalmente, entre aspas.
277
John Ardoin (1935-2001). Crítico de música. (WIKIPEDIA. http://pt.wikipedia.org. Acesso em 27 set.2009).
79
A escolha desta biografia não foi arbitrária. A história de Maria Callas foi aquela que
trouxe consigo, de forma mais explícita, a presença de aspectos depressivos e das
manifestações clínicas por meio das quais Laplanche & Pontalis (1999) definem a histeria: o
aflorar do complexo de Édipo nos registros libidinaislico e oral, além da predominância do
recalcamento e de um certo tipo de identificação.
Deste modo, esta história revelou ser o relato mais apto para fornecer as respostas
procuradas por esta investigação.
A partir de uma leitura psicanalítica dos dados biográficos de Maria Callas, investiguei
a manifestação dos aspectos depressivos na histeria desta artista lírica, que se revelam como
cicatrizes de suas experiências mais arcaicas.
Seguindo um percurso histórico regressivo, recorri ao andaime trico em busca de
um modelo conceitual das leis universais da constituição e do funcionamento do psiquismo,
que me permitem construir hipóteses acerca da provável história libidinal e identificatória
vivida por Callas.
No entanto, vale ressaltar que o exercício de construção de hiteses acerca das
experiências mais arcaicas do sujeito, apesar de ser legítimo do ponto de vista teórico, não
pretende ser mais do que uma conjectura.
Isto porque a construção de hipóteses será realizada a partir dos fragmentos
biográficos de Maria Callas que, apesar de excluir a vivência transferencial inerente ao
processo analítico - e, com ela, a possibilidade de acessar as lembranças e associações do
sujeito, que poderiam vir a confirmar ou refutar as hipóteses construídas -, inclui o impacto
emocional da obra sobre o leitor, o que me permite empreender um trabalho de interpretação.
Assim, não estou imune ao risco de reduzir a singularidade da história de Callas aos
elementos de uma história universal da constituição e do funcionamento do psiquismo,
proposta pelo modelo teórico.
Apesar disso, longe estou da pretensão de patologizar a pessoa desta ilustre artista,
reduzindo-a a uma leitura psicopatológica, mesmo porque encontro-me confrontada com a
inexistência de uma rede teórica perfeita e suficiente para recobrir todas as facetas do “prisma
humano.
Conforme nos ensina Piera Aulagnier, toda história está sujeita a “(...) momentos que
remetem à luz de uma faceta sobre a outra, deixando na sombra uma terceira”.
278
278
Piera AULAGNIER. Alguém Matou Alguma Coisa. In:Um Intérprete em Busca de Sentido II, p.142.
Portanto, o
texto que apresento está submetido aos inevitáveis efeitos de um jogo de luzes e sombras.
80
Friedrich Nietzsche, em sua obra prima intitulada Assim Falou Zaratustra, escrita em
1883, trata desse jogo de luzes e sombras de uma maneira peculiar. Ele anuncia que o futuro
da humanidade depende dos super-homens, criaturas capazes de aceitar a finitude e se
converter em dono de seu destino, libertando-se do desespero para se afirmar no prazer e na
dor de existir. Assim, ele escreve: “É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma
estrela dançante”.
279
279
Friedrich NIETZSCHE. Assim Falou Zaratustra. p.29
Parafraseando Nietzsche, acrescentaria que Callas precisou ter a caótica
Maria dentro de si para dar à luz uma estrela cantante.
No meu entendimento, na história de Maria Callas, a menina Maria emprestou seu
conflito interior à estrela Callas, para que ela pudesse vivê-lo encarnando-o na pele das
personagens das óperas.
No entanto, havia um hiato entre a figura tica da estrela, à qual chamarei de Callas,
e as fragilidades inerentes à condição humana da pequena Maria, a menina mal-amada que
habitou as entranhas crepusculares da estrela.
A pequena Maria surgia no ocaso da estrela e trazia consigo desamparo e tristeza, mas
também, frustração e ódio por não se sentir incondicionalmente amada pelas figuras parentais
e pelas demais pessoas que, mais tarde, fizeram parte de sua vida. A menina vulnerável e
infeliz, que precisava ser amada, continuava bem viva, mas era ofuscada pelo brilho da
estrela.
Saliento que, ao longo deste capítulo, o sobrenome Callas se utilizado nos momentos
em que me refiro aos aspectos fálicos e brilhantes relativos ao percurso artístico de Maria
Callas, bem como os processos sublimatórios que estão envolvidos em sua arte.
Para contrastar com a faceta brilhante da estrela Callas, o prenome Maria será
empregado para designar os aspectos depressivos e crepusculares presentes no psiquismo de
Maria Callas, bem como para tratar de sua infância e adolescência, época em que o brilho da
estrela ainda não havia se consolidado. Desta maneira, proponho-me a olhar através de
Callas, em busca da história de Maria, a triste menina ofuscada pelo brilho de uma estrela.
81
Antecedentes Históricos
“Desde que Vasily morreu rezei para
ter outro filho que preenchesse
o vazio de meu coração.
Evangelia Kalogeropoulos
Cecilia Sophia Anna Maria Kalogeropoulos era a filha mais nova de Evangelia
280
e
George Kalogeropoulos; ela nasceu em 2 de dezembro de 1923, poucos meses depois do
falecimento de seu irmão Vasily
281
três anos mais velho do que ela -, sendo cinco anos e
meio mais nova do que sua irmã Jackie
282
Dimitriades e esposa
, a primogênita.
A história que antecedeu o nascimento de Maria tem suas raízes na Grécia, na época
anterior à Primeira Guerra Mundial. Em Stylis, às margens do golfo de Lamia, no lado oposto
às Termópilas, viveu o avô de Maria, o Coronel Petros Dimitriades, oficial do exército grego,
que se tornou conhecido durante a Guerra dos Bálcãs como o “Comandante Cantor”. Sua voz
era unanimemente considerada a melhor da região.
283
280
A biógrafao faz nenhuma referência ao sobrenome de Evangelia.
281
Na biografia não referência sobre o nome completo de Vasily.
282
Não consta, na biografia, o nome completo de Jackie.
283
Na biografia,o existem referências a respeito do nome da esposa de Dimitríades.
tiveram sete filhos: três meninos e quatro meninas, sendo que
sua filha favorita era a primogênita Evangelia - também chamada porLitza” pela família
que, anos mais tarde, viria a ser a mãe de Maria.
Evangelia queria ser atriz; possuía o senso teatral e o magnetismo do pai, mas faltava-
lhe talento. Além disso, naquela época e no seio daquela família de militares residente em um
lugarejo da Grécia, a simples ideia de seguir a carreira teatral parecia absurda.
Diante das circunstâncias, Evangelia seguiu o caminho do matrimônio e escolheu para
marido George Kalogeropoulos, elegante farmacêutico formado pela Universidade de Atenas.
Apesar de todos terem apoiado sua decisão, Dimitriades era contra o casamento da filha,
alegando que ela não seria feliz com o rapaz que escolheu.
Poucos meses depois que Evangelia e George se conheceram, Dimitriades veio a
falecer em decorrência dos ferimentos que sofrera na Guerra dos Bálcãs. Dezesseis dias
depois, o casal se uniu em matrimônio, numa igreja ortodoxa grega de Atenas; formavam um
belo casal.
Os dois se mudaram para Meligala, no Peloponeso, onde George abriu sua farmácia,
que era a única existente em treze municípios. Assim, ele ganhou dinheiro suficiente para se
instalar na melhor casa da cidade.
82
Porém, depois de seis meses de casada, Evangelia concluiu que seu pai tinha razão e
que ela nunca deveria ter se casado com George, pois nunca seria feliz com ele: para Litza, a
aparência elegante do marido escondia um homem desprovido de ambição, sem energia
suficiente para satisfazer seus anseios de luxo, poder e distinção. Assim, Evangelia decidiu
fazer de seu matrimônio uma simples convenção.
Nesta época, George estava em plena ascensão: sua farmácia prosperava e sua posição
de cidadão rico e respeitado se consolidava. Ao mesmo tempo, ele se empolgava com seus
casos amorosos
284
284
A biógrafao precisou se George se tornou mulherengo antes ou depois de Evangelia chegar à conclusão de
que sua uno fora um equívoco.
e Evangelia seguia a velha tradição das mulheres gregas: ocupava-se das
tarefas domésticas, engolia a mágoa e experimentava prazer representando o papel de vítima.
Aos 18 anos e meio, Evangelia foi para Atenas para dar à luz sua primeira filha,
Jackie, em 04 de junho de 1917. Três anos depois, em 1920, nasceu Vasily, um menino, que,
além de ocupar o lugar especial tradicionalmente reservado aos filhos varões na família grega,
conseguiu ressuscitar o afeto que existira entre os pais.
Entretanto, aos três anos de idade Vasily foi vítima de uma epidemia de febre tiide.
Por ocasião da morte do filho, Evangelia declarou: “Foi como se meu coração tivesse morrido
junto (...) e pensei que nunca voltaria a viver.”
Depois da morte de Vasily, o afeto que o nascimento deste filho havia ressuscitado no
casal, desapareceu. Eles permaneceram encerrados em suas respectivas fortalezas de dor até
que um dia, secretamente, George concebeu um plano: vendeu sua farmácia - que era seu
maior orgulho -, a casa e comprou três passagens para os Estados Unidos.
Somente às speras da viagem, em 1923, George informou Evangelia que iam partir.
Nesta época, a primogênita Jackie contava seus cinco anos e meio de idade; Evangelia estava
grávida novamente e não possuía dinheiro nem qualificação. Diante desta situação, ela não
teve alternativa a não ser sufocar a dor de deixar a pátria e a família.
Durante a travessia do Atlântico, Evangelia sentiu-se constantemente enjoada. A este
respeito, ela declarou: “Durante toda a travessia do oceano me senti extremamente infeliz”.
Ela nunca perdoou o marido por isso.
O navio atracou no porto de Nova York em 02 de agosto de 1923. O casal o falava
uma palavra de inglês e, no cais, foram recebidos por Leônidas Lantzounis, um médico grego,
que um ano antes deixara Meligala e fora para Nova York, onde se tornou um bem sucedido
cirurgião ortopedista.
83
Com ajuda do Dr. Lantzounis, George conseguiu trabalhar como empregado em uma
farmácia, enquanto Evangelia dedicava-se à decoração do apartamento que o casal alugara em
Astoria, Long Island. Além disso, os Kalogeropoulos se preparavam para a chegada de seu
novo filho.
O casal nunca havia pensado na possibilidade de ter uma menina; seus desejos
levaram-nos a crer que um menino viria a ocupar o lugar que Vasily havia deixado vazio.
Deste modo, eles o haviam pensado em nenhum nome feminino; além disso, todas as
roupinhas tricotadas por Evangelia eram azuis, e tudo o que compraram para o bebê
destinava-se a um varão. Ela dizia: Desde que Vasily morreu (...), rezei para ter outro filho
que preenchesse o vazio de meu coração.
No dia 02 de dezembro de 1923, o filho tão esperado não veio à luz. Ao invés de um
menino, o Dr. Lantzounis apresentou à mãe uma menina, que pesava 5,6 quilos. Sentado na
cama, rindo e afagando a mão de Evangelia, o Dr. Lantzounis disse-lhe: “Você fez roupas
para uma boneca (...), são muito pequenas para essa criança. As enfermeiras não conseguem
vesti-la. Ela parece uma ovelhinha! É enorme!”
Dirigindo-se ao Dr. Lantzounis, que colocou Maria, pela primeira vez, nos braços de
Evangelia, ela ordenou-lhe: “Leve-a daqui”. Após proferir estas palavras, durante três dias ela
não conseguiu olhar para o bebê. Evangelia permaneceu em silêncio e começou a pensar em
Vasily, com os olhos pousados na nevasca que caía.
Quando a enfermeira perguntou a Evangelia que nome deveria constar no bracelete de
identificação do bebê, não obteve resposta. Por fim, Evangelia disse: “Sophia”. George a
corrigiu: Não. Cecilia”. E ambos concordaram com Maria”. Três anos depois, a menina foi
batizada na catedral ortodoxa grega da East 74 Street e, tendo como padrinho o Dr.
Lantzounis, recebeu os três nomes e mais um: Cecilia Sophia Anna Maria.
Na mesma época do batizado, Maria recebeu um sobrenome diferente: por
determinação judicial, seus pais trocaram Kalogeropoulos por Callas, demonstrando que
pretendiam morar na América para sempre. Os gregos amigos do casal continuaram
chamando-os como antes, de modo que Maria cresceu habituada com os dois sobrenomes.
Somente quatro dias depois do nascimento de Maria, Evangelia conseguiu olhar para a
filha e sucumbiu aos grandes olhos negros da menina.
No entanto, o lugar que cada uma das filhas ocupou na psique materna sempre foi
diferente. Jackie era linda, esbelta, com cabelos e olhos castanhos, enquanto Maria era a mais
nova, gorda, com o rosto salpicado de espinhas e os grandes olhos negros escondidos atrás de
grossas lentes.
84
Assim, a pequena Maria frustrou todas as expectativas do casal Kalogeropoulos. Am
disso, para Evangelia, o fato de não ter dado à luz um menino intensificou suas antigas
frustrações: ela jamais se conformou com a ideia de levar uma vida pacata ao lado do marido,
bem como a de nunca ter tentado a carreira de teatro. Deste modo, ela transferiu suas
ambições para as filhas, fazendo com que as duas meninas estudassem piano.
Em relação a Maria, Evangelia estava convencida de que conseguiria transformar a
filha em uma estrela de fama internacional. Para alcançar este sonho, ela passou a impulsionar
a carreira da filha sem perceber que estava sendo movida por suas próprias necessidades
emocionais.
A História de Maria: a triste menina ofuscada pelo brilho de uma estrela
“Eu gostaria de ser Maria, mas La Callas exige
que me comporte com sua dignidade. Eu gostaria
de pensar que as duas na verdade são uma só,
porque uma vez Callas também foi Maria (...).”
Maria Callas
No meu entender, o que marcou os primórdios da vida psíquica de Maria Callas,
conforme exposto, foi o desejo do casal Kalogeropoulos: George e Evangelia esperavam que
um menino viesse à luz para preencher o vazio deixado pela morte de Vasily.
Deste modo, o nascimento da pequena Maria foi decepcionante para o casal,
especialmente para Evangelia que, nos primeiros três dias após o parto, não conseguiu sequer
olhar para a recém-nascida.
Este fragmento biográfico explicita o que Freud escreveu em sua Conferência XXXIII,
intitulada “Feminilidade”, (1933[1932]), conforme referida no catulo anterior: (...) A mãe
somente obtém satisfação sem limites na sua relação com seu filho menino.”
285
285
Sigmund FREUD. Feminilidade. p.132.
Ainda a este respeito, como estudado no capítulo anterior, Mannoni (1994) observou
que, em algumas de suas pacientes histéricas, foi possível supor a presença do desejo dos pais
de que aquela filha fosse um menino.
Parece-me que este desejo dos pais de trazer à luz um menino, ao qual Mannoni faz
referência, esteve presente na história de Maria. Todavia, suponho que a presença possível
deste desejo não seja suficiente para determinar uma organização psíquica histérica.
85
O que é possível supor, conforme a metapsicologia proposta por Aulagnier, é que, na
história de Maria, provavelmente, o sexo do be tornou-se o primeiro ponto de ruptura entre
a representação psíquica materna do corpo do bebê e o corpo real do be, ou seja, o corpo
real de Maria não estava em conformidade com a representação que o antecipou na psique dos
pais.
Assim, presumo que a auncia do pênis no corpo da recém-nascida tenha sido
recebida pelos pais como uma recusa da conformidade deste corpo com a representação
psíquica que o precedeu sobretudo a materna.
Como exposto anteriormente, este desencontro entre a sombra falada e o corpo real do
bebê pode dificultar que este seja libidinalmente investido pela mãe, de modo prevalente.
Na história de Maria, considero que Evangelia expressou sua dificuldade para investir
libidinalmente na rem-nascida quando, dirigindo-se ao Dr. Lantzounis que estava com o
be nos braços - ela ordenou: “Leve-a daqui”.
Entretanto, é impossível prever quais seriam os efeitos que esta dificuldade encontrada
por Evangelia poderia imprimir na psique da recém-nascida. A este respeito, Aulagnier
escreve:
(...) qualquer que seja a particularidade daquilo que será vivido nessa fase de
“iniciação” à vida psíquica, não podemos predizer seus efeitos sobre a seqüência de
sua evolão, mesmo que possamos predizer que haverá efeitos. Essa não-
preditibilidade se aplica de igual modo às conseqüências do conjunto dessas mutações
que balizam o funcionamento psíquico de seu início até o fim da infância.
286
286
Piera AULAGNIER. Os Dois Prinpios do Funcionamento Identificatório: permanência e mudança. In: Um
Intérprete em Busca de Sentido II. p.186.
Na história de Maria suponho que, provavelmente, Evangelia não fez o luto pela morte
de Vasily e projetou sobre a filha a imagem deste filho ideal que ela perdeu e que era suporte
de suas aspirações narcisistas. Por este motivo penso que, quando a pequena Maria nasceu,
talvez, para Evangelia tenha sido difícil experimentar prazer na relação com o bebê e investi-
lo libidinalmente.
Segundo as teorizações de Aulagnier, o primeiro encontro entre o bebê e a mãe
configura a cena que inaugura o psiquismo e abre o jogo identificatório. Assim, como
consequência da dificuldade de Evangelia investir libidinalmente no bebê, é possível supor
que, talvez, Maria tenha sido frustrada em sua demanda primária, que é demanda de libido, ou
seja, uma demanda que visa o desejo materno.
86
Conforme referido anteriormente, a demanda primária conduz à identificação primária,
na qual o beidentifica-se com o que ele consegue perceber a partir daquilo que a mãe lhe
oferece como resposta à sua demanda.
Deste modo, é fundamental salientar que o que Evangelia conseguiu oferecer como
resposta à demanda primária de Maria foi um “Leve-a daqui”, seguido de um silêncio, pois
elas-se a pensar em Vasily e a olhar a nevasca.
A respeito do silêncio de Evangelia diante da filha recém-nascida, vale ressaltar que,
para Aulagnier, o objeto-voz e o registro do escutado “(...) merecem uma atenção particular,
devido ao lugar preponderante que ocuparão na organização do sistema semântico que
constitui o Eu.”
287
Quando a mãe responde aos gritos da criança, ela os reconhece e os constitui como
demanda; mas (...) ela os interpreta no plano do desejo desejo da criança de tê-la por
perto, desejo de lhe tomar alguma coisa, desejo de agredi-la, pouco importa. O certo é
que, por sua resposta, o Outro
[mãe] vai dar dimensão de desejo ao grito de
necessidade; e este desejo do qual a criança é investida é sempre, no início, resultado
de uma interpretação subjetiva, fuão apenas do desejo materno, do próprio fantasma
dae.
Para a autora, no registro do originário, a voz da mãe é um objeto parcial dotado de
um poder de excitabilidade, capaz de fazer com que a atividade sensorial da zona-função
auditiva do bebê seja acompanhada de um prazer erógeno, ou de um desprazer.
Na história de Maria, em decorrência da decepção que Evangelia sentiu ao saber que
havia dado à luz uma menina, ela se recusou a olhar, a falar e a acolher em seu colo o bebê.
Em relação à resposta da mãe às primeiras manifestações da criança, Aulagnier
escreve:
288
287
Piera AULAGNIER. A Representação Fantasmática do Processo Primário: a imagem de coisa e a imagem de
palavra. In: A Violência da Interpretão. p.88.
288
IDEM. Angústia e Identificação. Percurso n.14 1/1995. p.8; tradução do francês: Prof. Dr. Renato Mezan;
entre colchetes, interpolação minha.
Considerando as teorizações da autora, suponho que Evangelia não tenha conseguido
interpretar as manifestações de Maria como uma mensagem que o bebê estava lhe
endereçando e que, portanto, a ela deveria responder.
No que se refere à representação psíquica dessa experiência inaugural, segundo
Aulagnier, o processo originário é a única forma de atividade psíquica que está presente na
fase inicial da vida.
87
Assim presumo que, na história de Maria, provavelmente, essa experiência inaugural
tenha sido marcada pelo desprazer ainda que deva ter havido um mínimo de prazer vindo de
um outro .
É possível conjecturar que a carência do investimento libidinal materno e, mais
especificamente, da voz materna nos primeiros momentos da vida de Maria, pode ter sido
metabolizada pelo processo originário por meio de um pictograma de rejeição, como tendo
sido autoengendrada pelo poder da zona-função (ouvido) e objeto complementar (voz
materna) de recusar prazer.
Conforme visto anteriormente, para Aulagnier, o desprazer faz-se presente sempre que
a psique estiver diante de uma situação de necessidade provocada pela falta de um objeto que
seria adequado para satisfazer as necessidades psíquicas de prazer e corporais.
Deste modo, entendo que em seus primeiros momentos de vida, é provável que Maria
tenha sido confrontada com o afeto de desprazer decorrente da carência do investimento
libidinal materno, de modo prevalente.
Nestas circunstâncias, Aulagnier salienta que haverá o predonio de uma
representação submetida aos poderes de Tânatos e o originário forjará representações
pictográficas nas quais o estado de desprazer tem como corolário um desejo de autodestruição
e corresponde a um movimento de rejeição entre a zona sensorial boca do be e seu
objeto complementar seio da mãe ou seu substituto.
No meu entendimento, na história de Maria, este desejo de autodestruição manifesta-
se, sobretudo, pela ingestão de grandes quantidades de comida: Maria viveu até seus 53 anos
de idade e foi obesa durante vinte e nove anos de sua vida.
No que se refere à obesidade de Maria durante a infância, penso que ela utilizou a
concretude da comida para tentar preencher um vazio de ordem afetiva.
No texto intitulado “Angústia e Identificação”, Aulagnier aborda a questão da maneira
como a mãe oferece o alimento à criança. A este respeito, a autora escreve:
(...) a atividade de amamentar (...) permite à criança viver a fase fundamental e essencial do estágio
oral. (...) este é o caso mais visível da veracidade do provérbio que diz: ‘a maneira de dar vale mais do
que o que se dá.’ Graças a esta maneira de dar, em função do que ela lhe revelará do desejo materno, a
criança vai captar a diferença entre dom de alimento e dom de amor.
289
289
Piera AULAGNIER. Angústia e Identificação. Percurso n.14 1/1995. p.9; tradução do francês: Prof. Dr.
Renato Mezan.
88
A autora considera que: (...) paralelamente à absorção nutritiva, haverá introjeção de
uma relação fantasmática, na qual a criança e o outro serão representados por seus desejos
inconscientes.
290
Segundo Aulagnier, se a criança puder “(...) encontrar no dom do alimento o dom de
amor desejado (...), a relação oral, enquanto atividade de absorção, poderá ser
abandonada.”
291
Segundo Aulagnier, “(...) o corpo (...), poderá tornar-se o representante do outro (...)
cada vez que a relação entre o indiduo e esse outro se torna muito conflituosa e muito
dolorosa.”
Por outro lado, dependendo da maneira como a mãe oferece à criança este mesmo
alimento, ele poderá se tornar o objeto por meio do qual a mãe procura encobrir o que ela
sente em relação a esta criança.
A este respeito, em uma determinada passagem da biografia de Maria consta que,
diante de sua incapacidade de dar o afeto necessário à filha, Evangelia tentava aplacar sua
própria culpa oferecendo à menina quantidades ilimitadas de comida.
No entanto, independente da oferta materna, Maria se levantava à noite, ia à cozinha,
carregava para o quarto todo doce, bolo ou sorvete que encontrava e comia até adormecer.
Além disso, para ela, nenhuma refeição estaria completa por mais farta que fosse sem
saganaki: dois ovos fritos guarnecidos com queijo.
Penso que, na história de Maria, a maneira pela qual Evangelia ofereceu o alimento à
filha, durante a infância, foi marcada por um excesso que se prestou a dissimular o desamor
materno em relação à pequena Maria.
Deste modo, possivelmente, a mensagem subliminar captada por Maria nesta atitude
de sua mãe foi que a rejeição afetiva poderia ser compensada pela concretude da comida.
292
Para a autora, “Essa substituição pode induzir o outro a se ocupar do seu corpo, a se
preocupar com o que lhe acontece, a rodeá-lo de ‘cuidados’.”
293
Acrescenta que: “Uma
substituição transitória entre o outro e o corpo é um fenômeno que todos os sujeitos lançam
mão, seja para modificar as respostas recebidas, seja pela substituição imposta pelo próprio
corpo.
294
290
Piera AULAGNIER. Angústia e Identificação. Percurso n.14 1/1995. p.9; tradução do francês: Prof. Dr.
Renato Mezan.
291
Ibid. p.9.
292
Piera AULAGNIER. Nacimiento de un cuerpo, origen de una historia. In: Cuerpo, historia, interpretación.
p.135; tradução livre.
293
Ibid.p.135.
294
Ibid.p.135-6.
89
Ainda a este respeito, Torok & Abraham (1994) escrevem: (...) por não poder se
nutrir das palavras trocadas com outrem (...), este [o sujeito] introduz no lugar uma coisa
imaginária. O artifício desesperado que consiste em encher a boca de um alimento ilusório
terá por efeito suplementar ilurio também suprimir a ideia de uma lacuna a ser
preenchida com a ajuda de palavras (...), de (...) falar com outrem sobre o que vem a faltar
(...).”
295
Ressalto que não é possível saber se, efetivamente, houve desamor por parte de George
e Evangelia em relação à filha. No entanto, é certo que, durante toda sua vida, Maria sentiu-se
desamada pelos pais. Aos 38 anos de idade, ao conversar com seu fiel amigo Panaghis
Vergottis, ela afirmou: “Foi uma grande alegria poder considerá-lo [Vergottis] mais que um
pai, já que na realidade nunca tive pai nem mãe.”
No meu entender, havia uma lacuna afetiva entre Maria e seus pais, o que a
impossibilitava de lhes dizer o quanto ela necessitava de ser amada. Assim, penso que durante
a infância, a ingestão exagerada de comida foi uma tentativa desesperada que Maria
empreendeu para se defender de seu lado depressivo, que se manifestava, sobretudo, por
sentimentos de desvalia.
Suponho que, para Maria, comer exageradamente foi o meio que ela encontrou para
tentar compensar, imaginariamente, o desamor dos pais em relação a ela e a impossibilidade
de fazer uso das palavras para falar, com eles, sobre seus sentimentos.
296
Até esta idade, Maria dedicava-se exclusivamente ao seu projeto de tornar-se uma
cantora famosa; ela não demonstrava nenhum interesse pelos rapazes; passear, namorar e
conquistar amizades eram atividades que não faziam parte de seu cotidiano.
Por outro lado, é provável que, se o corpo de Maria tornou-se, temporariamente, o
representante da figura materna, ao atacar o próprio corpo com o excesso de comida,
imaginariamente, ela estava atacando a figura da mãe que, provavelmente, era incapaz de
a-la.
Penso ainda que, na história de Maria, durante a adolescência e parte da idade adulta,
a voracidade alimentar - além de ser uma defesa contra seu lado depressivo -, esteve também
a serviço de um desejo de autodestruição, à medida que se prestou a destruir e/ou camuflar os
contornos corporais femininos, bem como de substituir a atividade sexual genital que, para
Maria, foi praticamente inexistente até seus 37 anos de idade.
295
Maria TOROK & Nicholar ABRAHAM. Luto e Melancolia. In: Boletim de Novidades Pulsional. Ano VII, n.
61, maio 1994, p.28. Publicado originalmente em Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. VI, 1972; entre colchetes,
interpolação minha.
296
Entre colchetes, interpolação minha.
90
Ao mesmo tempo, ela se entregou à voracidade alimentar. Maria passeava por Nova
York e experimentava guloseimas. Ao se lembrar desta passagem, ela disse: “Eu sentia aquela
fome de quem passou muito tempo sem ter o bastante para comer. E eu comia e comia...”.
Presumo que, na adolescência e na idade adulta, a voracidade de Maria em relação à
comida foi um sintoma histérico, que esteve a serviço de uma satisfação sexual autoerótica,
uma vez que substituiu a satisfação que poderia advir da sexualidade genital - que estava
recalcada - por um prazer oral.
A propósito do recalcamento, abro um breve parêntese para ressaltar que Laplanche &
Pontalis (1999) consideram que o recalque é um mecanismo de defesa dominante nas
neuroses, como é o caso da histeria.
No entanto, no verbete recalque ou recalcamento, os autores fazem a seguinte ressalva:
“Se o recalque está também universalmente presente nas diversas afecções e não especifica,
como mecanismo de defesa em especial, a histeria, é porque as diversas psiconeuroses
implicam todas um inconsciente separado que, precisamente, o recalque institui”.
297
Fecho parêntese e acrescento que, para Freud, os sintomas (...) criam (...) um
substituto das satisfações frustradas, realizando uma regressão da libido a épocas de
desenvolvimento anteriores (...), que necessariamente se vincula a um retorno a estádios
anteriores de escolha objetal (...).
Entendo que o recalque primário enquanto mecanismo que separa o consciente do
Inconsciente -, está presente na origem do psiquismo; e o secundário enquanto mecanismo
de defesa -, é esperado que ocorra ao final do complexo de Édipo, com o recalcamento da
sexualidade infantil. Assim, o recalque secundário ocorre em todas as neuroses e, na histeria,
os sintomas histéricos decorrem da falha neste mecanismo de defesa com o retorno do
recalcado.
298
Segundo o autor, quando a libido depara-se com uma frustração no mundo externo, ela
será “(...) induzida a tomar o caminho da regressão pela fixação que deixou após si nesses
pontos do seu desenvolvimento.”
299
Para Freud, “(...) a fixação, que supusemos estar presente em determinados pontos do
curso do desenvolvimento (...) consiste na retenção de determinada quantidade de energia
libidinal.”
300
297
Jean LAPLANCHE & Jean Bertrand PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. p.430.
298
Sigmund FREUD. Os Caminhos da Formação dos Sintomas. p.367.
299
Ibid. p.366.
300
Ibid. p.366.
E acrescenta:(...) a libido dos neuróticos está ligada às suas experiências
91
sexuais infantis. Assim, ela concede a essas experiências uma dimensão de grande
importância (...).”
301
Na história de Maria, apesar de Evangelia ter respondido à demanda primária da
recém-nascida com um “Leve-a daqui”, seguido por um silêncio, o Dr. Lantzounis observou o
bebê e previu que ele “haveria de partir muitos corações.
Interpreto que, para Maria, a voracidade em relação à comida revela o retorno do
material recalcado, que decorre da falha neste mecanismo de defesa, que é predominante nas
organizações histéricas.
Por outro lado, penso que, na história de Maria, a ingestão de grandes quantidades de
comida pode ser compreendida, também, como a manifestação de uma fixação da libido na
fase oral, o que caracteriza, em parte, uma organização histérica.
Retomando a questão da possível presença de um desejo de autodestruição na psique
de Maria, saliento que, se houvesse unicamente este desejo, suponho que ela não teria
sobrevivido, pois, de acordo com Aulagnier, é o prazer que assegura o investimento da
atividade de representação, garantindo a continuidade da vida psíquica. Deste modo, se
houvesse apenas desprazer no encontro que inaugura o psiquismo, como a vida psíquica
poderia existir?
302
No que diz respeito às teorizações de Aulagnier, segundo as quais a presença exclusiva
do processo originário na cena psíquica tem uma breve duração, é possível pensar que, com a
entrada em ação do processo primário, o psiquismo de Maria, provavelmente, deve ter
Além disso, no quarto dia após o nascimento de Maria, Evangelia conseguiu
reorganizar sua economia psíquica e investir em sua relação com o corpo real do bebê; ela
conseguiu olhar para a filha e admirar os grandes olhos negros da menina.
Deste modo compreendo que, ao reorganizar sua economia psíquica e investir em sua
relação com o corpo real da recém-nascida, Evangelia preservou a psique de Maria de
sucumbir ao donio das forças de Tânatos, porque lhe garantiu a presença do que Aulagnier
chamou de “prazer mínimo”.
Assim, suponho que apesar do encontro com o outro - que inaugura o psiquismo -
provavelmente ter sido representado pelo processo origirio por meio de um pictograma de
rejeição, deve ter havido, também, experncias sensoriais prazerosas, sem as quais a
continuidade da vida psíquica de Maria seria impossibilitada.
301
Sigmund FREUD. Os Caminhos da Formação dos Sintomas. p.365.
302
Vale ressaltar que os dados biográficos de Maria Callas atestam que ela realmente partiu os corações de
muitas plateias com sua linda voz, conforme a profecia de seu padrinho, o Dr. Lantzounis.
92
representado as manifestações de Evangelia como sendo a onipotência do desejo da mãe de
recusar prazer, o que pode ser masoquisticamente investido.
Na história de Maria, isto se revela no momento em que, certa vez, ao recordar de suas
experiências da infância, afirmou que se sentia “Detestada e detestável”. Porém, compreendo
que esse sentimento de desvalia não foi suficiente para impedir que Maria investisse na vida e
na arte do canto.
Como referido no capítulo anterior, segundo Aulagnier, a palavra enunciada pelo
indivíduo é aquilo que restou de uma palavra que fora anteriormente ouvida por ele.
Para a autora, em um tempo anterior à aquisição da linguagem, a percepção dos
elementos sonoros que estão presentes na voz daquele que cuida do bebê que, em geral é a
mãe -, é metabolizada e transformada pelo processo primário em termos de significações
primárias, que dizem respeito à significação do desejo materno de dar ou de recusar o prazer.
Deste modo penso que Maria, ao escutar as primeiras palavras proferidas por sua mãe,
certamente não compreendeu o significado linguístico das mesmas. Apesar disso, suponho
que o processo primário tenha percebido a informação libidinal contida nestas palavras como
sendo o desejo do Outro neste caso, a mãe - de recusar o prazer.
Suponho que o fragmento biográfico que se segue traga ressonâncias do modo de
funcionamento psíquico primário. Certa vez, no auge de sua carreira, Maria declarou a
respeito de sua mãe e de seu pai:
Nunca a perdoarei por ter me privado de minha infância. Na época em que eu deveria
apenas brincar e crescer, eu estava cantando ou tratando de ganhar dinheiro. O que fiz
por eles em geral foi bom, e o que eles fizeram por mim em geral foi péssimo.
No meu entender, a causa do desprazer vivido nos sucessivos encontros e
desencontros com o Eu do outro e com a realidade foram representados na psique de Maria e
atribdos ao desejo dos pais de recusar prazer.
Neste fragmento discursivo, Maria faz referência não apenas a Evangelia, mas à figura
paterna, também. A respeito do lugar do pai, Aulagnier escreve:
(...) a mãe é também aquela por meio da qual o primeiro ‘signo’ da presença (ou da
ausência) de um pai abre uma brecha na psique do bebê: a eleição que a mãe realiza
destessignos dependerá de sua relação com esse pai. Em um tempo ulterior, mas
muito próximo, a criança poderá recusá-los e forjar os seus próprios, instaurando com
o pai uma relação que concordará ou não com aquela que a precedera.
303
303
Piera AULAGNIER. Nacimiento de un cuerpo, origen de una historia. In: Luis HORNSTEIN. Cuerpo,
historia, interpretacn. p.139; tradução livre.
93
Na história de Maria, enquanto George se lançava em seus casos amorosos, Evangelia
representava o papel de vítima do marido. Este desentendimento entre o casal começou muito
antes de Maria nascer e perdurou durante toda a sua infância e adolescência.
Em seu discurso, Evangelia definia George como um zangão que via em cada mulher
uma flor e a rodeava em busca de mel.Mesmo depois que o marido deixou de ser empregado
e voltou a ter sua própria farmácia, Evangelia sentia-se superior ao marido e dizia-lhe que a
família dos Dimitriadis à qual ela pertencia - era melhor do que a dele.
Apesar de o casal Callas pertencer ao que poderíamos chamar de baixa classe média,
George comprou uma pianola, instrumento que representava sua condição de homem
ascendente na sociedade. Logo em seguida, Evangelia comprou um gramofone e o primeiro
disco que adquiriu foi “Vissi D’arte
304
304
Ária cantada por Floria Tosca, soprano, no ato II de “Toscaópera em três atos, libreto de Giacosa e Illica,
com base na peça de Sardou - de Giacomo Puccini (1858-1924). Na cena, ajoelhando-se aos pés de Scarpia,
chefe da polícia, Tosca implora pela vida de Mário Cavaradossi, seu amante, cantando: “Vivi da arte, vivi do
amor. Jamais fiz mal a um ser vivo! Discretamente ajudei quantas misérias conheci. Sempre com fé sincera dirigi
as minhas orações aos santos altares. Dei flores para o culto. Dei joias ao manto da Madona e dediquei o meu
canto aos astros e ao céu que sorriam ainda mais belos por esse motivo. E agora, na hora da dor, por que Senhor,
por que me pagas assim? Olha, estendo para ti as minhas mãos! E espero piedade, humilhada e vencida, de tua
boca” (Giacomo PUCCINI. Tosca. p.222-227; tradução livre).
, enquanto George gostava de ouvir canções
populares gregas.
Regularmente, o casal brigava a prosito da música reproduzida no gramofone e
Evangelia, com seus grandes olhos faiscantes, aos berros, ordenava ao marido que retirasse
imediatamente seus discos horríveis, que poderiam estragar o gosto das filhas.
No meu entendimento, Evangelia não reconhecia o lugar ocupado pelo pai de suas
filhas como sendo um lugar dotado de valor e autoridade. Assim, suponho que, em um
primeiro momento, a representação psíquica que Maria forjou da figura paterna,
provavelmente, foi marcada pelo signo da desvalorização.
Apesar disso, Maria recebeu afeto e segurança do Dr. Lantzounis: além de ter sido seu
padrinho e leal defensor, ele sempre a presenteou no Natal; na Páscoa, ela recebia a
tradicional vela e uma pequena joia de prata e, aos domingos, iam almoçar no Longchamps,
da 10 Street.
No que diz respeito ao momento da identificação especular ou imaginária, presumo
que ao Eu de Maria talvez não tenha sido possível reconhecer-se em uma imagem narcísica
valorizada, pois ela se refere a si por meio de enunciados que revelam que ela possui uma
autoimagem desvalorizada.
94
Clinicamente, este provel anti bilo no advento do Eu encontra ressonâncias no
seguinte fragmento biográfico: ainda criança, quando Maria começou a usar óculos,
convenceu-se de sua feiúra e desviava ou fechava os olhos para não ver sua própria imagem
refletida no espelho.
A este respeito, mais tarde ela afirmou que achava justo que a rejeitassem, porque não
tinha dúvida de que era “um patinho feio, gordo, desengonçado e malquisto.
Conforme visto anteriormente, Aulagnier considera que, na experiência especular, a
criança não encontra apenas a objetivação de si como imagem. Além disso, encontra a
designação enviada pelo olhar do outro, que lhe indica quem é este que o outro ama, nomeia e
reconhece.
A partir desta experiência, o bebê poderá investir libidinalmente em sua imagem, à
medida que ele pode referir seu corpo a uma imagem que se torna objeto de um desejo de ver.
Na história de Maria, talvez, a Evangelia o tenha sido possível adornar a imagem
especular da filha com um “a-mais” de prazer, o que poderia revesti-la com um brilho que a
transformaria em objeto de um desejo de ser vista.
Maria foi a filha menos amada pelo casal Callas, pois na competição pelo amor da
mãe, sua irmã Jackie vencera e Maria a idealizava como uma substituta materna, ansiando
receber todo o seu afeto.
Aos 5 anos e meio de idade, Maria estava com os pais aguardando o momento de
atravessar a rua, quando avistou Jackie na calçada oposta. Imediatamente, ela se desvencilhou
da mãe e correu de braços abertos na direção da irmã, quando um carro a atropelou e a
arrastou por mais de sete metros. A pequena Maria sofreu ferimentos graves e permaneceu no
hospital por vinte e dois dias, recebendo cuidados.
Outras referências permitem sustentar a hipótese de que, provavelmente, Maria viveu
entraves identificatórios no momento da identificação imaginária ou especular. Na infância,
ela tentou competir com Jackie, porém, logo desistiu dessa tarefa, que julgava impossível,
pois sua irmã era alta, esguia e atraente, enquanto Maria sentia-se um patinho feio”.
Evangelia não valorizava Maria enquanto menina e não havia entre elas uma relação
permeada pelo afeto; o que ela desejava era ser mãe de uma estrela de fama internacional.
Para isto, obrigava George a desembolsar uma parte considerável de seu minguado salário
para pagar aulas de piano para as filhas, quatro vezes por semana.
Apesar de Maria ter declarado que, quando crescesse, queria ser dentista, Evangelia
sem dar importância às aspirações da filha fez com que ela iniciasse sua educação musical
aos 7 anos de idade.
95
George não via justificativa para tal gasto, a não ser o sonho de glória alimentado pela
esposa. Com a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, ele precisou vender sua farmácia
novamente e, para sustentar a casa, começou a trabalhar como caixeiro viajante de produtos
farmacêuticos.
A família passou por dificuldades financeiras e o centro das discórdias eram as aulas
de piano das meninas. Além de precisar adaptar-se a uma queda significativa no orçamento
familiar, George ainda suportava as queixas de Evangelia: ela estava insatisfeita com a vida
que levavam e, constantemente, lembrava o marido do conforto que desfrutavam na Grécia.
Movida pela ambição de ter uma filha famosa, em fins de 1936, Evangelia chegou à
conclusão de que as bases para a construção da carreira que ela sonhava para Maria estavam
na Grécia.
George mostrou-se ambivalente em relação à viagem. Porém, Evangelia não levava
em conta a opinião do marido, mas agia como se tivesse gerado as duas filhas sem sua
participação. Sozinha ou associada às filhas, cada vez mais, ela alimentava a tendência do
marido a mergulhar na insignificância.
Assim, no início de 1937, após a formatura da oitava série de Maria que
correspondeu a seu último contato com a instrão convencional -, Evangelia deixou o marido
nos Estados Unidos e partiu para a Grécia, juntamente com as duas filhas e os três canários.
George pagou as passagens com um profundo sentimento de alívio, pois ao livrar-se,
temporariamente, da esposa e das filhas, ele poderia viver suas aventuras amorosas com maior
liberdade.
Ao desembarcarem na Grécia, Evangelia passou a morar na casa de sua mãe,
juntamente com Maria e Jackie. Em solo grego, aos 14 anos de idade, Maria transformou-se
em uma máquina de cantar: ela se apresentava a quem sua mãe conseguisse persuadir a
sentar-se e escutar.
Maria permaneceu na Grécia até os 22 anos de idade. Durante toda sua adolescência,
ela não reencontrou o pai; George não tinha endereço fixo nos Estados Unidos, pois viajava
sem parar, vendendo produtos farmacêuticos e cosméticos, e quase nunca mandava notícias.
Na adolescência, Maria pensava que o lado feminino da vida cuidar da aparência,
caprichar nas roupas, esmerar-se na arte de ser agradável, fazer mexericos, etc. cabia apenas
à irmã que, aos 21 anos, conquistou um namorado invevel: Milton Embiricos, jovem
pertencente a uma renomada e riquíssima família de armadores.
96
O noivado realizou-se em 1939 e foi celebrado com uma viagem a Corfu a bordo do
Hèlene, iate de Milton. Os convidados foram alojados no Grand Hotel e cobertos com todo
tipo de luxo.
Evangelia estava extasiada com o noivado de Jackie. No entanto, os Embiricos
opunham-se à união de seu filho e herdeiro com uma moça de categoria social tão “inferior” a
sua. Por sua vez, para não contrariar a vontade da falia, Milton nunca veio a se casar com
Jackie; eles ficaram eternamente noivos até 1975, quando ele faleceu em decorrência de um
câncer.
Enquanto assistia à felicidade da irmã, Maria que, na época, contava 16 anos de
idade sentia-se sozinha, deslocada e ignorada por todos.
Suponho que Maria sentiu-se inferiorizada diante da figura de sua bela e adorada ir
Jackie e, no meu entender, este provável sentimento de inferioridade foi o que a levou a
adotar uma postura marcada pela altivez e pela necessidade de competir com homens e
mulheres que faziam parte de seu círculo de convivência.
Maria percebeu que sua voz poderia ser o único meio dela conseguir alguma atenção
de Evangelia e compensar, assim, seu sentimento de desvalia, submetendo-se parcialmente
aos desígnios maternos.
No meu entendimento, a atitude de Maria - de transformar-se em uma máquina de
cantar para satisfazer a ambição de Evangelia e receber algumas poucas migalhas de seu afeto
-, revela que, na fase fálica, provavelmente, ocorreu uma acentuação da dependência de Maria
em relação às figuras materna e paterna.
Isto porque, como exposto no capítulo anterior, em decorrência da desvalorização
sofrida pela menina (que poderá se tornar histérica) por parte dos pais, ela não consegue
superar o temor que advém do perigo de perder o amor parental.
Deste modo, ao chegar à fase fálica, ao invés de abandonar completamente a ligação
com sua mãe fálica, provavelmente, Maria intensificou sua identificação arcaica com ela, à
medida que herdou o ideal do ego materno, assumindo-o como seu.
Por outro lado, suponho que Maria aferrou-se à identificão com o aspecto
305
305
No capítulo VII do texto “Psicologia de Grupo e Análise do Ego” (1921), intitulado “Identificação, Freud
faz a seguinte observação: “[a identificação pode ser] (...) parcial e extremamente limitada, tomando
emprestado apenas um traço isolado da pessoa que é objeto dela.” (Sigmund FREUD. Psicologia de Grupo e
Análise do Ego. p.117); entre colchetes, interpolação minha.
desvalorizado da figura paterna, o qual esteve sempre presente no discurso que Evangelia
mantinha sobre o marido. Assim como seu pai, Maria se submetia ao autoritarismo da mãe.
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Evangelia parecia decidida a administrar a vida da filha; Maria sonhava em partir e
deixar a mãe, mas não sabia para onde, nem como. Às speras de seu aniversário de 21 anos,
ela estava confusa e indecisa. Nesta época, George mandou seu primeiro sinal de vida em seis
anos: enviou à filha um envelope contendo cem dólares.
No meu modo de entender, neste momento de sua vida, o que Maria mais precisava
era da presença de um pai que fosse capaz de orientá-la em suas escolhas.
Diante da ausência de George, Elvira De Hidalgo, a mestra que Maria tanto admirava,
sugeriu-lhe ir para a Itáliaberço da arte lírica -, onde ela poderia conquistar a fama
internacional que tanto desejava.
Maria sempre venerou De Hidalgo; ela foi uma discípula obediente e agradecida, que
sempre acatou seus conselhos. Entretanto, neste momento decisivo de sua vida, Maria decidiu
partir para a América para juntar-se ao pai -, contrariando a vontade de sua mãe e de sua
mestra.
Em 1945, aos 22 anos de idade, Maria desembarcou na América com cemlares na
bolsa; ela estava exultante porque, pela primeira vez, havia se oposto à autoridade da mãe e da
mestra, assumindo toda a responsabilidade por sua vida.
Quando ela saiu da alfândega, um homem de seus 60 anos aproximou-se e lhe
perguntou se conhecia Maria Kalogeropoulos. Ela caiu nos braços do pai e chorou por vários
minutos; agora, Maria tinha um lugar para morar em Nova York e um pai para sustentá-la, até
que as contratações surgissem.
No meu entendimento, talvez, o choro de Maria nos braços do pai não possa ser
resumido ao apoio material que ele podia lhe oferecer. Suponho que ela tenha esperado,
sobretudo, encontrar nele uma figura forte o suficiente para protegê-la do desejo obstinado de
Evangelia de transfor-la, a qualquer custo, em uma cantora famosa.
Apesar de George ser um companheiro, ele não compreendia a filha e não partilhava
de seus sonhos de grandeza; a ópera o entediava e, diante das dificuldades que Maria
encontrou no início de sua carreira, ele abanava a cabeça com um ar de “bem que eu falei”.
No entanto, quando Maria tornou-se a estrela Callas e brilhou no firmamento da arte
lírica, as reservas de George contra a carreira teatral da filha desapareceram. Ele se sentia
orgulhoso por ser pai de Maria Callas, que era idolatrada pelo público, elogiada pela imprensa
e honrada pela elite cultural e social.
Assim, compreendo que George assim como Evangelia não valorizou a
feminilidade de Maria. Ele ofereceu à filha um lugar como companheira-mplice:
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sustentando financeiramente a filha e abrigando-a em sua casa, ela ocuparia a posição de
mplice no que se refere aos flertes de seu pai.
Deste modo é possível pensar que, provavelmente, Maria não encontrou na figura
paterna um salvador capaz de resgatá-la do vínculo materno, que era por ela vivido como uma
constante ameaça.
Maria começou a procurar agentes e empresários aos quais exibia seu currículo,
dizendo ter cantado em Atenas. No entanto, ela logo percebeu que a fama conquistada em um
teatro grego de ópera não era valorizada em Nova York.
Em suas buscas, Maria se deparou com respostas desalentadoras. Sua pior experiência
foi quando se apresentou para Gaetano Merola, empresário da San Francisco Opera. Ele lhe
disse: “Você é jovem. Primeiro faça carreira na Itália; depois eu a contrato.” E ela respondeu:
“Obrigada, mas depois que eu fizer carreira na Itália não vou precisar de você.
Assim, na cidade onde nasceu, aos 23 anos de idade, Maria teve suas primeiras
experncias de adversidade profissional. Ela não as esperava, mas estava disposta a enfrentar
seus adversários e as inevitáveis decepções que viriam permear sua busca por um lugar no
firmamentorico.
As rejeões se sucediam, deixando rastros de amargura. Maria se sentia exasperada
pela indiferença de George a tudo que não dissesse respeito aos negócios ligados à farmácia; a
mentalidade estreita e provinciana do pai atuava como um jato de água fria sobre o seu
entusiasmo. Nesta ocasião, Maria começou a apresentar sinais de retraimento, insegurança e
dúvida, o que a levou a suspirar pela ambição ardente da mãe.
No meu entendimento, é perfeitamente esperado que o retraimento, a insegurança e a
dúvida sejam algumas das possíveis respostas de um ser humano às frustrações que ele
experimenta ao longo da vida.
Portanto, não se trata, absolutamente, de elevar estas respostas à categoria de sintomas
neuróticos depressivos. Nesta tese, os traços depressivos aos quais faço referência, dizem
respeito ao que Freud chamou no texto intitulado “A Etiologia da Histeria”, de 1896 - de
“reação histérica anormal e exagerada aos estímulos psíquicos.” Segundo ele, os pacientes
histéricos reagem “(...) ao menor sinal de deprecião como se estivessem recebendo um
insulto mortal.
306
No meu entendimento, na história de Maria Callas, o medo, a insegurança, a dúvida, a
diminuição da auto-confiança, autorrecriminações, irritabilidade, retraimento, amuo, além de
306
Sigmund FREUD. A Etiologia da Histeria. p.212.
99
uma visão sombria da vida e do mundo, podem ser considerados como sintomas neuróticos
depressivos desde que haja uma discrepância entre os estímulos psiquicamente excitantes e a
resposta do sujeito.
Deste modo, penso que, neste momento da vida de Maria, estes sinais seriam respostas
esperadas diante das frustrações inerentes ao seu percurso na arte lírica.
No entanto, aos 23 anos de idade, suponho que ela precisou da presença materna para
reforçar sua falicidade que, provavelmente, foi construída na infância sob o alicerce das
identificações com traços da figura da mãe fálica.
Assim, é provel que a resposta apresentada por Maria diante das frustrações
configurou-se como um sintoma neurótico depressivo, à medida que ela recorreu à presença
fálica da figura materna, numa tentativa de se proteger dos efeitos de sua identificação com o
aspecto frágil e desvalorizado da figura paterna.
Maria escreveu para Evangelia suplicando que ela viajasse para a América, mas a mãe
não tinha dinheiro para comprar a passagem. Ela tentou consegui-lo com o pai, mas George
ganhava um salário modesto e não estava disposto a fazer nenhum sacrifício para ter a esposa
novamente ao seu lado.
Mas, Maria não desistiu: recorreu ao padrinho que, prontamente, lhe emprestou o
dinheiro. Em dezembro de 1946, Evangelia chegou à Nova York e, depois de nove anos, ela, a
filha e George passaram o Natal juntos.
O encontro foi desastroso: as aventuras extraconjugais de George se resolveram em
uma relação estável com Alexandra Papajohn, uma mulher simples, caseira, um pouco mais
jovem que ele
307
307
Na biografia,o há nenhuma referência à idade exata de Alexandra Papajohn.
que, em 1964, tornou-se sua segunda esposa.
Evangelia dormiu no quarto de Maria desde a primeira noite, para não deixar dúvida
de que voltara no papel de mãe ultrajada e abnegada, que sempre cuidou das filhas enquanto o
marido, imprestável, vivia ociosamente.
A presença de Evangelia não impediu que Maria experimentasse muitas outras
decepções na vida profissional. Porém, nenhuma foi suficiente para abalar sua determinação,
o que, no meu entendimento, revela a presença de um projeto identificatório investido
libidinalmente, mesmo que por identificação parcial com o projeto identificatório materno.
100
Penso ser necessário esclarecer um ponto importante a respeito da determinação de
Maria Callas diante de seus projetos na arte lírica: o estudo do Bel Canto
308
Isto porque, para preservar seu projeto, ela precisou excluir de sua memória os
enunciados identificatórios ligados aos sentimentos de desvalia que foram mobilizados pelas
decepções que experimentou.
exige que o
sujeito seja dotado de noções organizadas de tempo e espaço; para suportar o sacercio
diário são necessárias, também, condições psíquicas para transitar em uma rotina contínua de
regras, além de uma tonicidade suficiente para enrijecer constantemente a musculatura
diafragmática, a fim de sustentar a altura das notas.
De acordo com as proposições metapsicológicas de Aulagnier, entendo que essas
capacidades pressupõem a posse, pelo sujeito, de uma imagem corporal unificada. Assim
penso que, na história de Maria, os entraves identificatórios que, provavelmente, estiveram
presentes no momento da identificação especular ou imaginária, não foram suficientes para
comprometer a unificação da imagem corporal e as funções que dela decorrem.
Maria superou todos os obstáculos que se colocaram em seu caminho e, anos mais
tarde, a estrela Callas observou: Quando a gente é jovem, gosta de soltar a voz, tem prazer
em cantar. Não se trata de força de vontade nem de ambição. Trata-se apenas de amor ao
trabalho a essa coisa linda e impalpável chamada música.”
Penso que este fragmento biográfico é aquilo que atesta a presença da identificação ao
projeto na história de Maria Callas, à medida que o Eu investe naquilo que ele é, no tempo
atual, e naquilo que ele pretende tornar-se, em um tempo futuro.
Assim, impelida pelo prazer, pelo amor à arte e, sobretudo, pelo seu anseio de tornar-
se outra, Maria investiu no tempo futuro pela via dos ideais, enriquecendo o investimento de
libido no Eu e no tempo atual.
Talvez, este movimento psíquico fez com que Maria suportasse e superasse as
decepções inerentes ao seu percurso artístico, mantendo o investimento libidinal na arte rica,
a despeito das opiniões adversas em relação a sua voz.
De acordo com os fundamentos metapsicológicos propostos por Aulagnier, presumo
que, na história de Maria, o ato de se projetar em um movimento temporal - guiada pela ideia
de tornar-se uma cantora internacionalmente famosa -, pode ter desempenhado uma função
organizadora em sua economia psíquica.
308
Segundo Della Corte e Gatti (1955), “Locução que, delimitada historicamente, indica o complexo das
qualidades vocais e dos requisitos técnicos que foram próprios dos grandes cantores do século XVII e XVIII (...).
A melodia para uma só voz criou um gosto e uma estética particular (...) que pode ser encontrada nos métodos e
nos tratados específicos. (A. DELLA CORTE & G.M. GATTI. Dizionario di Musica. p.61; tradução livre).
101
Deste modo, além de ter sido uma via de acesso à categoria do futuro, é provável que,
para Maria, o projeto identificatório exerceu, também, uma ação repressora sobre os
enunciados identificatórios de um tempo passado.
Penso que, na história de Maria, apesar de ser provável que o Eu não tenha se
assumido de forma jubilosa no momento da identificação especular ou imaginária, presumo
que houve a assunção de uma imagem de si capaz de construir referências identificatórias
autoinvestidas e estabelecer um projeto identificatório factível.
Em 1947, aos 24 anos de idade, Maria foi convidada por Giovanni Zanatello o
famoso tenor que era diretor do Festival de Verona -, para estrear no papel-título de “La
Gioconda”.
309
309
Ópera em quatro atos de Amilcare Ponchielli (1834-1886), com libreto de Arrigo Boito, baseado na peça
Angelo”, de Victor Hugo. (Conde de HAREWOOD. Kobbé. O Livro Completo da Ópera. p.366).
No dia 27 de junho de 1947, Maria desembarcou na Itália e foi recebida com um jantar
oferecido pelos dignitários da Arena de Verona, entre os quais se encontrava Giovanni
Battista Meneghini, um industrial italiano apaixonado por ópera. Anos depois, ao lembrar-se
deste momento, Maria declarou: Cinco minutos depois de conhecê-lo, eu já sabia que era
ele”.
Meneghini fora escolhido pelos organizadores do Festival de Verona para acompanhar
Maria; ela estava descobrindo a Itália e os prazeres de ser admirada como mulher, e não
apenas como cantora.
Movido pelas histórias sobre os poderes misteriosos da voz de Maria e pela percepção
intuitiva de sua grandeza, o nobre industrial agiu como se estivesse na presença de umnio e
se deliciou com o fato deste gênio ser uma mulher, o que a deixou encantada.
Meneguini contava 53 anos de idade tendo, portanto, vinte e nove anos a mais do que
Maria, que estava com 24 anos quando o conheceu; ela ficou apaixonada pela estabilidade do
industrial, além da deferência com a qual ele era tratado na sociedade veronense e da maneira
como ele a fez o centro de suas atenções.
Apesar disso, Maria alimentava incertezas a respeito da possibilidade de casar-se com
ele. Embora ela não considerasse a aprovação da mãe um elemento decisivo, frequentemente,
escrevia a Evangelia para pedir sua opinião sobre as coisas que lhe aconteciam. Assim, a
respeito de seu relacionamento com Meneghini, ela escreveu: “Ele quer se casar comigo. Não
sei o que dizer. Ele tem 53 anos; o que você acha? É muito rico e me ama”.
102
Evangelia não se entusiasmou com a perspectiva de ver sua filha casada com um
homem bem mais velho do que ela e deu sua opinião. Porém, Maria não lhe deu ouvidos e
consultou o padrinho, que lhe disse para ser fiel aos seus próprios sentimentos. Em 1949, aos
26 anos de idade, Maria casou-se com Meneghini, que contava 55 anos de idade, e
permaneceu casada durante onze anos.
No meu modo de compreender, o encantamento que Maria sentiu por Meneghini não
decorreu apenas do fato dele valori-la como artista, mas principalmente, por ter sido
talvez, pela primeira vez na vida, valorizada como mulher.
O interesse de Maria por Meneghini avançava, embora ele não tivesse despertado nela
nenhuma inspiração erótica. A ausência desta inspiração erótica pode ser notada a partir do
depoimento de Walter Legge
310
Segundo ele, na época em que Maria conheceu o industrial, apesar de obesa, ela estava
comando a descobrir seus encantos como mulher, mas ele perdeu sua aura romântica
algumas horas depois que o casal se conhecera. Certa vez, após a estréia de “Lucia de
Lammermoor
, a respeito do relacionamento do casal.
311
310
Walter Legge (1906-1979). Influente produtor musical britânico. (WIKIPEDIA.
em Berlim, Legge chegou ao hotel às três horas da manhã e recebeu o
recado que os Meneghini o aguardavam. Ele declarou:
Encontrei-os sentados na cama, a camiseta de lã visível sob a roupa de dormir.
Folheavam umas revistas italianas enquanto esperavam o momento de me inquirir
sobre o espetáculo. Maria fizera jus a si mesma? Recebera aplausos mais ruidosos e
demorados que o restante do elenco? Tranqüilizados, deitaram-se e finalmente
apagaram a luz.
No meu entendimento, Maria desenvolveu uma dependência em relação à figura
idealizada de Meneghini: ela precisava da proteção de um pai, mais do que sexo com um
homem.
Esta depenncia manifesta-se no fragmento que se segue: depois de oito anos de
casada, quando Maria representou “Lucia no Festival de Berlim, o avião do marido atrasou.
Minutos antes de abrir a cortina, ela andava nervosamente de um lado para o outro, temendo
que ele não chegasse a tempo para a estréia: “Não posso cantar, não posso cantar, se ele não
estiver lá...”.
http://pt.wikipedia.org.
Acesso em 27 set.2009).
311
Ópera em três atos de Gaetano Donizetti (1797-1848), com libreto de Salvatore Cammarano, baseado em
The Bridge of Lammermoor, de Walter Scott. (Conde de HAREWOOD. Kobbé. O Livro Completo da Ópera.
p.266).
103
Suponho que, na presença de Meneghini, Maria se sentia mais segura e menos
amedrontada; para ela, o marido representava um salvador que poderia protegê-la das
angústias às quais estava sujeita ao transitar pelo mundo da ópera.
Penso que, na história de Maria, a ausência de atração erótica que marcou sua vida
conjugal com Meneghini revela a presença do recalcamento da sexualidade genital.
Ressalto, ainda, que nos três primeiros anos de casada, Maria entregou-se à voracidade
alimentar. Nesta época de sua vida, entendo a ingestão exagerada de alimentos como um
sintoma neurótico.
Assim, pela via do sintoma, o prazer oral advindo da voracidade alimentar, substituía o
prazer que poderia ter sido obtido por meio da sexualidade genital, se esta não estivesse
recalcada.
No texto intitulado Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade” (1905), Freud
afirma: “A normalidade da vida sexual só é assegurada pela exata convergência das duas
correntes dirigidas ao objeto sexual e à meta sexual: a de ternura e a sensual.”
312
Sobre esta questão, Mayer (1989) escreve: “(...) as mulheres histéricas dissociam (...) o
amor sexual genital com o amor terno.”
313
Para o autor, esta dissociação “(...) sintetiza e
ilustra a impossibilidade de desprender-se de suas fantasias edípicas.”
314
Logo depois que Maria conheceu Meneghini, ela começou a ensaiar com o maestro
lio Serafin
Compreendo que, possivelmente, a vida amorosa de Maria tenha sido marcada por
uma dissociação das correntes terna e sensual, que são dirigidas ao objeto sexual: ternura sim,
sensualidade, não.
Considerando que Maria não sentia nenhuma atração erótica pelo marido, suponho que
ela o escolheu porque ele se prestava a ocupar o lugar de um substituto paterno.
Isto quer dizer que Maria encontrou nele qualidades que gostaria de ter encontrado na
figura paterna como, por exemplo, sua capacidade de acalmá-la diante das tempestades
emocionais que enfrentava na arte lírica, além de valorizar seus atributos femininos.
315
Deste modo, ela encontrou em Serafin e Meneghini dois escudos protetores: o
primeiro fora seu mentor, elogiava sua bela voz e elevava o seu brilho como artista, enquanto
que, certa vez, declarou:Tão logo a ouvi, reconheci uma voz excepcional”.
Este reconhecimento a fortaleceu, tornando-lhe os ensaios menos aflitivos.
312
Sigmund FREUD. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. p.215.
313
Hugo MAYER. Histeria. p.68.
314
Ibid. p.69.
315
Tulio Serafin (1878-1968). Maestro italiano. (A. DELLA CORTE & G.M.GATTI. Dizionario di Musica.
p.585; tradução livre).
104
o segundo mantinha a brilhante estrela Callas ao abrigo das críticas ácidas que permeavam o
ambiente lírico italiano.
Invariavelmente, Maria sentia-se sufocada por estar rodeada de hostilidade, inveja e
ressentimento. Quando estava preparando seu próximo papel no Scala, “Il Pirata”
316
, ela
preferia trabalhar à noite: acomodava-se na cama com a partitura nas mãos, Toy
317
Desde sua estia na Arena de Verona, Meneghini sempre acompanhou Maria em suas
apresentações. Mas, quando ele se fez ausente pela primeira vez, ela voltou-se para outra
figura idealizada, em busca de apoio: Visconti Luchino
no colo e
Meneghini dormindo a seu lado.
Esses eram seus momentos mais felizes; ela chegou a revelar que esses momentos
proporcionavam-lhe maior alegria que as suntuosas estréias, geradoras de ansiedade e
autorrecriminações.
Nas noites de estréia, Meneghini sempre pedia à direção do teatro que o mantivesse
informado a respeito de todas as críticas recebidas por Maria; ele arrasava todos os
comenrios menos lisonjeiros.
Ao lado do marido, Maria assumia as vestes de uma menina desamparada que ansiava
ser ternamente amada e protegida pelo representante da figura paterna, que deveria estar
sempre presente.
Certa vez, no intervalo entre uma récita e outra, Maria estava descansando em uma
praia, na companhia de Meneghini, e conversava com uma amiga, quando dois jovens se
aproximaram e as convidaram para sair logo mais à noite.
Diante do convite inesperado, Maria assumiu a atitude de uma mocinha namoradeira e
disse, apontando para o marido, que dormia a seu lado: “Não posso prometer nada agora.
Preciso pedir permissão a meu pai.”
318
, um dos maiores diretores italianos,
que ela conheceu em 1950, quando ele a escolheu para estrear seu primeiro papel cômico
como Fiorilla, de “Il Turco in Itália”
319
316
Ópera em dois atos de Vincenzo Bellini (1801-1835), com libreto de Felice Romani. (Conde de
HAREWOOD. Kobbé. O Livro Completo da Ópera. p.279).
317
Seu cachorrinho poodle.
.
Nesta ocasião, Maria viu-se fascinada por Visconti apesar dele ser homossexual -,
pela sua aura de elegância aristocrática e pela sua presença nos ensaios.
318
Visconti Luchino (1906-1976). Diretor e cenógrafo italiano. (WIKIPEDIA. http://pt.wikipedia.org. Acesso
em 27 set.2009).
319
Ópera em dois atos de Gioacchino Antonio Rossini (1792-1868), com libreto de Felice Romani. Na ópera,
Fiorilla é a jovem esposa de Don Geronio. Ela andava pela casa enaltecendo os prazeres da infidelidade e
flertando com o sultão visitante. (Conde de HAREWOOD. Kobbé. O Livro Completo da Ópera. p.236).
105
A este respeito, Visconti declarou: [Ela] Começou a se apaixonar por mim.
Possessiva como muitos gregos, fazia terríveis cenas de ciúme. Odiava Corelli
320
porque ele
era bonito. Enervava-se com sua beleza, pois desconfiava de gente bonita.”
321
Apesar de ter recebido críticas favoráveis em sua estréia na Arena, Callas o foi
convidada para voltar a Verona. Enquanto isso, brilhava no firmamento lírico o soprano
Renata Tebaldi
Maria expressava esse fascínio como uma típica adolescente, mesmo sabendo que a
homossexualidade de Visconti já havia se definido! Assim, em suas fantasias, ela endereçava
sua ardente paixão para a figura de Visconti, com quem era impossível estabelecer uma
relação amorosa.
Diante dele, ela se comportava como se fosse uma estudante apaixonada pelo
professor, deixando emergir a menininha desamparada em busca de um pai que a guiasse e a
protegesse. Sobre esta questão, Visconti comentou:
Ela fazia tudo lindamente, com empenho, com precisão. Cumpria minhas ordens à
risca, sem acrescentar nada de seu. Às vezes eu lhe dizia: “Ora, vamos, seja mais você
mesma, faça alguma coisa que lhe agrade. Mas logo ela me perguntava: “O que devo
fazer com esta o? Não sei onde colocá-la!” O fato é que por causa daquela
paixonite maluca Maria queria que eu dirigisse todos os seus passos.
Meneghini o permitiu que a “paixãoda esposa por Luchini o aborrecesse, já que se
tratava de um romance impossível!
No meu entendimento, a relação de Maria com Luchini é mais uma mostra da
presença do recalcamento da sexualidade genital, pois ao cultivar a “paixão” por um
homossexual, ela estaria evitando as situações nas quais a excitação sexual poderia vir a
emergir.
Assim, tanto em relação a Meneghini como a Luchini, Maria encontrou a possibilidade
de manter uma relação afetiva na qual ela não ocuparia o lugar de mulher-amante, mas
permaneceria no lugar de filha e colaboradora, sendo por eles amada ternamente, da maneira
como gostaria que tivesse sido em relação à figura paterna, visto que ela nunca se sentiu
amada pelo pai.
322
, a favorita do maestro Arturo Toscanini
323
320
Franco Corelli (1921-1974). Tenor italiano. (WIKIPEDIA.
. Tebaldi era festejada num teatro
http://pt.wikipedia.org Acesso em 27 set. 2009)
321
Entre colchetes, interpolação minha.
322
Renata Tebaldi (1922-2004). Soprano italiana. (A. DELLA CORTE & G.M.GATTI. Dizionario di Musica.
p.626; tradução livre).
323
Arturo Toscanini (1867-1957). Maestro italiano. (A. DELLA CORTE & G.M.GATTI. Dizionario di Musica.
p.638; tradução livre).
106
de ópera após outro, enquanto Maria permanecia em Milão, sentada, esperando o telefone
tocar e entristecendo-se cada vez mais.
No meu entender, o fato de Maria entristecer-se diante das adversidades do início da
carreira, não se configura como um sintoma neurótico.
Por outro lado, penso que o que é sintomático em Maria é que, durante toda a sua
existência, ela esteve convencida de que quando seus colegas de estudo avançavam, ela
recuava. Imaginava-se sempre em combate com o mundo, com medo de ver o próprio sucesso
ofuscado pelo sucesso alheio.
Consequentemente, Maria alimentava uma rivalidade e uma postura competidora em
relação às figuras masculinas e femininas que faziam parte de seu ambiente imediato.
A este respeito, é relevante a rivalidade que Maria alimentou em relação a Renata
Tebaldi. Na época em que Callas estreou na Arena de Verona, como uma simples visitante
grega, Tebaldi havia estreado no Teatro alla Scala de Milão o templo sagrado da ópera - e
então fora recebida em Verona envolta na aura do sucesso.
Os admiradores de Tebaldi ressaltavam a deslumbrante beleza cristalina de sua voz e
não aceitavam o fato de Callas subordinar a técnica à expressão e a beleza vocal à verdade
dramática. Por outro lado, os admiradores de Callas consideravam a voz de Tebaldi
“insípida.
No que se refere a este fragmento biográfico, compreendo que, naquele momento,
Callas estava iniciando sua carreira na Itália e, por esta razão, não era esperado que fosse
imediatamente renomada e fizesse um sucesso instantâneo. Por outro lado, Renata Tebaldi
havia conquistado renome e sucesso nos mais altos círculos líricos italianos.
Considero que se trata de uma situação semelhante à que Maria viveu em sua infância,
quando sua irmã Jackie recebia o amor de Evangelia e era apreciada por sua beleza e por seus
dotes, enquanto Maria usava óculos, era obesa, com espinhas no rosto e era desvalorizada pela
mãe.
No meu entendimento, é provável que, para Callas, Tebaldi tenha representado uma
ameaça à perfeição que ela imaginava ter, à medida que atra para si toda a admiração do
público, da mesma forma que sua irmã Jackie, que recebia o amor da mãe.
A partir deste fragmento biográfico, é possível conjecturar que o sucesso de Tebaldi
foi um elemento na cena da realidade que informou a Callas que ela era “menos” do que
gostaria de ser, ou seja, que ela não era a estrela absoluta no firmamento lírico.
107
Suponho que, para Callas, o sucesso de Tebaldi fez com que ela percebesse o estado
de seu Eu atual, ou seja, um Eu insatisfeito por não ter conseguido alcançar uma imagem
ideal, adornada com o brilho e o sucesso que ela almejava alcançar.
Mesmo depois de a estrela Callas ter conquistado um lugar reconhecido no
firmamentorico, a menina Maria declarou: “Nunca estou satisfeita. Não consigo exultar com
o que fiz bem, pois vejo muito ampliadas as coisas que poderia ter feito melhor.”
Considerando os fundamentos metapsicológicos de Aulagnier, tenho como hipótese
que este fragmento biográfico revela a possível presença de um conflito identificatório entre o
Eu e seus ideais, o que, segundo a autora, ocorre na potencialidade neurótica.
Além disso, presumo que este episódio tenha tido repercussões sobre a economia
identificatória de Maria, à medida que despertou e reativou as lembranças do momento em
que, provavelmente, buscou a confirmação de sua própria imagem no olhar materno e, ao
invés disso, encontrou o desamor e a desvalorização.
Deste modo, penso que, talvez, diante do brilho de Tebaldi, Maria viveu este “a
menos” como uma confirmação de seus próprios sentimentos de desvalia.
Foi o maestro Túlio Serafin que a ajudou a sair desta situação: ele solicitou que um
funcionário do teatro La Fenice fosse até Milão para contratá-la para co-estrelar a produção
de “Tristão e Isolda”
324
Ao longo de 1950, quando a fama de Callas aumentava a cada uma de suas
apresentações, aconteceu o que tanto esperava: Tebaldi adoeceu e ela foi convidada para
substit-la em Aida”
, sob sua regência.
Callas assinou o contrato sem ler e só depois se deu conta de que havia se
comprometido a cantar um papel que desconhecia. Certa de que Serafin ficaria apavorado ao
saber disso, ela o notificou no dia seguinte, quando ele chegou a Milão.
O maestro riu e lhe disse: “Você só precisa de um mês de estudo e trabalho pesado.
Para ela, essa cabal demonstração de confiança foi suficiente para eliminar o gosto amargo
dos dois meses anteriores. De uma hora para outra, o mundo que a rodeava deixou de existir e
nada mais havia além do papel que representaria.
325
324
Ópera em três atos de Richard Wagner (1813-1883), com libreto do próprio compositor, baseado na obra de
Gottfried von Strassburg. (Conde de HAREWOOD. Kobbé. O Livro Completo da Ópera. p.153).
325
Ópera em quatro atos de Giuseppe Verdi (1813-1901), com libreto de Antonio Ghislanzoni, baseado num
texto de Camile Du Locle. (Conde de HAREWOOD. Kobbé. O Livro Completo da Ópera. p.351).
, no Teatro alla Scala. Callas aceitou o convite, embora preferisse
estrear no célebre teatro com uma montagem especialmente concebida para ela.
108
Naquela ocasião, ela foi rodeada de repórteres e, com suas respostas deliberadamente
indiferentes, em uma de suas declarações, disse: “O Scala, um teatro magfico (...). Sim,
estou entusiasmada, é claro. Mas, sabem, eu sou míope. Para mim todos os teatros são iguais.
Se estou empolgada? O Scala é o Scala, mas eu sou míope: ecco tutto’”.
É claro que esta declaração de tonalidade indiferente foi uma estratégia utilizada por
Maria para dissimular sua amargura, decorrente de seu papel de substituta de Tebaldi.
Em 1950, aos 27 anos de idade, Callas já havia conquistado o célebre Teatro alla
Scala de Milão. Antes de seguir para sua estia no México, ela desembarcou em Nova York
para visitar os pais, o padrinho e, sobretudo, mostrar à mãe sua nova condição de mulher rica
e famosa.
No entanto, Evangelia estava internada, recuperando-se de uma infecção ocular, e
Callas convidou-a para acompanhá-la tão logo deixasse o hospital. Ela comprou as passagens
para a mãe, que foi recebida no México pela filha e pelos dignitários da ópera local.
Evangelia ficou hospedada no Hotel Prince, sendo que seu apartamento tinha
passagem para o da filha. Ela se viu coberta de flores, convites para jantares e recepções
governamentais. Era a rainha-mãe e, apesar de nunca ter desempenhado esse papel, ela não
teve nenhuma dificuldade em assumi-lo.
Suponho que o aspecto público da estada de Evangelia no México denunciou a franca
rivalidade que Maria nutria em relação à figura materna: ela alcançara o cume de sua carreira
lírica e sua mãe estava ao seu lado para conferir o seu sucesso.
No entanto, essa postura pública nada mais era do que uma fachada que escondia o
pesadelo que mãe e filha se esforçavam para ignorar: elas o tinham um relacionamento
afetivo verdadeiro.
Ainda no México, na noite da estréia de “Aida”, mãe e filha estavam deitadas e não
conseguiam dormir. Evangelia ouviu Maria chorar, levantou-se e murmurou:Você acha que
não foi um enorme sucesso? Pois foi. Vosabe disso”. Maria respondeu, chorando ainda
mais: “o me importo com ‘Aida’”. Diante da resposta da filha, Evangelia perguntou-lhe:
“Então, qual é o problema?” E Maria disse: “Eu quero ter filhos (...). Gêmeos. (...) Quero
muitas criaas a minha volta. (...) E quero que você crie meus filhos”. Maria continuou
chorando nos braços da mãe, até mergulhar num sono profundo.
No meu entendimento, esta cena talvez represente um eco invertido daquilo que,
possivelmente, na fase fálica, tenha sido o desejo de Maria - o de receber da mãe um bebê.
Pela manhã, Maria esforçou-se para acreditar que nada disso havia acontecido. Para
ela, seu lado terno e vulnerável era uma “infantilidade” e qualquer insinuação sobre o que
109
escondia por trás da carapaça de dedicação profissional era aterrorizador. Assim, quando se
aproximou da mesa na qual Evangelia e Giulietta Simionato
326
Depois da euforia de “Lucia”, Maria entrou em uma semana de profunda depressão.
Estava exausta e extremamente preocupada com “Rigoletto”
tomavam o desjejum, recusou
o beijo materno, exclamando “o sou mais criança!
Suponho que, depois de ter se tornado a grande estrela Callas, Maria não mais
precisou do olhar materno para impulsioná-la em sua carreira. Entendo que, a partir deste
momento de sua história, ela passou a investir em seu próprio projeto identificatório,
independente das aspirações maternas.
No entanto, para ela, foi imprescindível fazer com que Evangelia testemunhasse sua
ascensão. Assim, Maria pôde mostrar à mãe que, enfim, ela havia se tornado uma estrela
adornada com atributos que, imaginariamente, fariam dela uma pessoa melhor e mais potente
do que a mãe.
Penso que esta atitude de Maria, de procurar a mãe para lhe mostrar sua posição de
estrela, revela sua identificação com o lugar da mãe fálica, que denigre Evangelia, agora
colocada em uma posição inferior à sua.
Depois da temporada mexicana, que foi um sucesso, Callas partiu para Madri e para os
braços de Meneghini. Evangelia acompanhou a filha até o aeroporto e recebeu dela dinheiro
para pagar as contas do hospital, decorrentes de sua recente internação.
Elas se despediram e Evangelia ficou mais uns dias no México “tomando fôlego,
rodeada de flores e mergulhada em um mar de pressentimentos; ela nunca mais veria a filha.
A partir deste momento até sua morte em 1977, aos 53 anos de idade -, Maria
enxergou a mãe através de umavoa, vendo-a como uma figura sombria e quase
ameaçadora.
A temporada de Maria Callas no México foi um sucesso absoluto; com “Lucia de
Lammermoor”, ela voltou ao palco dezesseis vezes para receber uma ovação de vinte
minutos.
No entanto, o capataz que existia em seu interior era realmente implacável. A respeito
de sua “Lucia”, dezesseis anos depois, Maria declarou: “Sim, a primeira representação no
México. Sem dúvida, belos agudos e tudo o mais, porém ainda não era bem assim”.
327
326
Giulietta Simionato (1910). Mezzo-soprano italiana. (A. DELLA CORTE & G.M.GATTI. Dizionario di
Musica. p.590; tradução livre).
327
Ópera em três atos de Giuseppe Verdi (1813-1901), com libreto de Francesco Maria Piave, baseado em
Roi’s Amuse”, de Victor Hugo. (Conde de HAREWOOD. Kobbé. O Livro Completo da Ópera. p.316).
: não havia tido tempo nem
110
energia para ensaiar e não poderia rescindir o contrato, pois interpretaria Gilda mediante o
maior pagamento que o México já efetuara para um artista.
A este respeito, considero que as boas condições vocais de Callas, ao interpretar
“Lucia”, garantiram-lhe o sucesso que ela esperava obter: por meio da beleza e da potência
de sua voz, conseguiu fazer emergir o desejo do público.
No entanto, depois do sucesso de “Lucia”, Callas não ensaiou Rigoletto” pois,
faltavam-lhe tempo e energia e, portanto, não estava certa de que conseguiria corresponder
às expectativas do público.
Diante desta incerteza, Maria escolheu uma resposta neurótica depressiva: reteve um
minúsculo fracasso e o ampliou até obliterar por completo todos os sucessos, deprimindo-se,
mesmo depois de ter obtido êxito em “Lucia”. Esqueceu-se das intermináveis chamadas ao
palco, das ovações que recebeu e das críticas extasiadas e guardou em sua lembrança apenas a
“humilhação” de “Rigoletto”.
Compreendo que o fracasso de “Rigoletto” abalou o discurso identificatório que o Eu
de Callas sustentou sobre si à medida que ela descobriu que, para o olhar dos outros, naquele
momento, ela não esteve no lugar que acreditava ocupar: o da estrela perfeita e inabalável.
Em 1952, Callas partiu para sua etapa seguinte:o Paulo e Rio de Janeiro. Apesar do
sucesso da temporada mexicana, estava exausta, com as pernas inchadas e os nervos à beira
de um colapso.
Além do desgaste devido à viagem e às apresentações, Maria vivia extenuada pelo
medo que sentia do futuro. A este respeito, Nicola Rossi-Lemeni
328
Quando Maria Callas chegou ao Rio de Janeiro, deparou-se com as manchetes dos
jornais enaltecendo Renata Tebaldi, que havia se apresentado uma semana antes no Teatro
Municipal, com “La Traviata”
fez a seguinte observação:
“Apesar de sua capacidade, Maria muitas vezes duvidava de si mesma e ficava ansiosa,
temendo o fracasso.”
329
. Apesar de Callas ter sido entusiasticamente aplaudida em
sua estréia com “Norma”
330
328
Nicola Rossi-Lemeni (1920-1991). Baixo nascido em Istambul. (NAXOS.
, os triunfos paralelos aumentavam sua tensão.
Assim, o reconhecimento que Callas obteve por meio de seu trabalho tornou-se uma
armadilha. A respeito dos triunfos nas noites de estréia, ela declarou:
http://www.naxos.com. Acesso em
27 set.2009).
329
Ópera em três atos de Giuseppe Verdi (1813-1901), com libreto de Francesco Maria Piave, baseado em “La
dame aux camélias”, de Alexandre Dumas Filho. (Conde de HAREWOOD. Kobbé. O Livro Completo da
Ópera. p.325).
330
Ópera em dois atos de Vincenzo Bellini (1801-1835), com libreto de Felice Romano, baseado na obra de
Louis-Alexandre Soumet. (Conde de HAREWOOD. Kobbé. O Livro Completo da Ópera. p.286).
111
Pagamos caro por essas noites. Eu posso fingir que não percebo, mas meu
subconsciente o. E isso é péssimo. Confesso que às vezes uma parte de mim fica
lisonjeada com esse clima de grande emão, mas em geral não o aprecio nem um
pouco. É aí que como a me sentir condenada. Quanto maior a fama, maior a
responsabilidade, maior a sensação de fragilidade e desamparo; a fama é um
bumerangue.
Constantemente ameaçada por esta situação apreensiva e tensa, Maria construiu a
convião de que o mundo era seu inimigo. A este respeito, ela declarou:
Querem [os tebaldistas]
beber meu sangue. Só no dia em que minha querida amiga
Renata Tebaldi fizer Norma ou Lucia numa noite, Violetta, Gioconda ou Medea
331
na
noite seguinte, poderemos ser rivais. Por enquanto, é como comparar champanhe com
conhaque. Nem isso: com Coca-Cola.
332
331
Norma é personagem principal da ópera homônima, de Vincenzo Bellini (1801-1835), compositor romântico,
enquanto Lucia é papel-título da ópera de Gaetano Donizetti (1797-1848), também do período romântico.
Violetta Valeri é personagem da ópera “La Traviata”, de Giuseppe Verdi (1813-1901) do período nacionalista;
Gioconda é o papel-tulo da ópera “La Gioconda”, de Amilcare Ponchielli (1834-1886), compositor romântico,
enquanto Medea é personagem da ópera “Medea”, de Luigi Cherubini (1760-1842) um dos representantes do
classicismo. (Conde de HAREWOOD. Kobbé. O Livro Completo da Ópera. p.228, 325 e 366).
Trata-se, portanto, de personagens principais de óperas distintas, escritas por compositores também
distintos, que pertencem a diferentes períodos da história da ópera italiana. Além da diferença relativa aos
períodos históricos, que imprimiram marcas singulares na escola italiana de ópera há, sobretudo, uma diferença
fundamental em relação aos referidos personagens, que devem ser interpretados por sopranos com tessituras
vocais bem definidas e distintas entre si.
Assim, no meu entendimento, ao comparar-se com Renata Tebaldi por esta via, Maria Callas denunciou
seu inconformismo em relação aos limites de sua tessitura vocal.
332
Entre colchetes, interpolação minha.
A partir desta declarão, suponho que esta atitude altiva, desdenhosa e desafiadora de
Maria, constituiu uma poderosa defesa contra a depressão: presunçosa, ela se transformava na
representante máxima da perfeição e procurava proteger essa imagem ideal de si,
desvalorizando Renata Tebaldi, sua suposta rival.
No entanto, Maria não estava imune ao desgaste que estas rivalidades exerciam sobre
ela: invariavelmente, sucumbia ao nervosismo e à ansiedade, a ponto de seu médico lhe
prescrever repouso absoluto o que, muitas vezes, fez com que ela cancelasse récitas previstas
em contrato, provocando turbulências no público, na imprensa e no meio artístico.
Em uma destas vezes, ela recebeu uma carta de sua mãe. Evangelia via a vida da filha
como um sonho e, por este motivo, ansiava restabelecer o contato com ela. Em 1951, escreveu
uma carta a Maria comunicando-lhe que ela havia dado início ao processo de divórcio o
qual foi concluído em 1958 - e voltara a Grécia com uma pequena pensão semanal provisória.
Nesta época, Evangelia começou a confeccionar e vender bonecas inspiradas em
personagens operísticas, enquanto sua família supria-lhe suas necessidades financeiras.
112
Ela acreditava que Maria tinha o dever filial de ajudá-la - ainda mais sendo casada
com o milionário Meneghini e exigiu que a filha lhe enviasse, semanalmente, uma quantia
em dinheiro e que patrocinasse a carreira de Jackie, que continuava dando aulas de piano.
Maria tinha verdadeiro horror de ser usada e, ante a possibilidade real ou imaginária
de que isso acontecesse, encolhia-se de medo e partia para o ataque. Assim, ela respondeu à
mãe que a carreira da irmã não lhe dizia respeito e que Evangelia não deveria aborrecê-la:
“Não venha nos aborrecer com seus problemas. Eu trabalho para ganhar meu dinheiro e vo
é suficientemente jovem para trabalhar também. Se não consegue ganhar o bastante para viver
você pode se jogar da janela ou se afogar”.
Essa resposta deu início a uma verdadeira guerra entre as duas: enquanto Maria
sufocava-se com lembranças tristes, a mãe se orgulhava de lembranças heróicas. Nesta
ocasião, Maria escreveu ao padrinho:
Po-lhe que não conte a ninguém, Leon mas minha mãe me mandou uma carta me
xingando etc. como é de seu costume para obter as coisas, dizendo também que não
me trouxe a este mundo por nada disse que me deu à luz e que portanto devo
susten-la. Essa frase, sinto muito, mas é difícil de engolir. (...) Acredite que fiz e
farei de tudo por eles maso vou permitir que exagerem. Tenho de pensar em meu
futuro e também quero ter um filho. Por favor, ame-me e acredite em mim (...).
No meu entendimento, Evangelia não queria se aproximar afetivamente da filha.
Suponho que o que ela desejava era pousar ao lado da estrela Callas para ser ornamentada
com seu brilho satisfazendo, assim, seus anseios de glória.
Na ocasião de sua estréia no Covent Garden, com “Norma”, em 1952, aos 29 anos, o
teatro a enalteceu como “A Norma” e “A Nova Estrela da Ópera”. Porém, a imprensa, direta
ou indiretamente, perguntava: “Mas ela tem de ser tão gorda
333
Pouco antes de morrer, aos 53 anos de idade, referindo-se a esta crítica, ela declarou
com a lembrança ainda viva e dolorosa: “Durante muitos dias chorei lágrimas amargas por
causa daquele artigo. Foi cruel, horrível.
?”
Essa era a pergunta que estava martelando na cabeça de Callas desde sua primeira
“Aida” na Arena de Verona, quando um crítico escrevera: “É impossível distinguir entre as
patas dos elefantes que estavam no palco e as pernas da Aida interpretada por Maria Callas.”
333
No que diz respeito ao porte físico dos cantores líricos, é prudente não confundir as figuras que habitam o
imaginário popular com os artistas que consagraram a arte do Bel Canto, pela observância rigorosa da teoria e da
técnica que consta nos tratados. No imaginário popular, o perfil corpulento é um traço caricaturesco que
compõem a imagem do cantor de ópera. Entretanto, se considerarmos os prinpios fundamentais do Bel Canto,
veremos que a obesidade constitui um obstáculo ao desempenho do cantor, porque é imprescinvel que ele seja
dotado de uma desenvoltura e resistência física consideveis, a fim de atender às exincias técnicas e
interpretativas de sua arte.
113
No meu entendimento, para Maria, vinte e cinco anos depois, a lembrança desta crítica
manteve-se viva e dolorida, porque lhe revelou que ter uma bela voz e um senso teatral
excepcional, não lhe garantiu a perenidade do brilho que adornava sua imagem. Apesar de ter
atributos fálicos, a imprensa declarou que Maria não era perfeita, como gostaria de ser.
No que se refere à histeria, Violante (2006) entende que “(...) o falo e não a diferença
mantém-se significante do desejo (...). (...) o dilema da histérica diz respeito mais ao ‘ter’ do
que ao ‘ser’ (...).
334
Para Kehl (1997), “Nas mulheres, a posse ou manejo de um falo não é condição
essencial de uma certeza narcísica sobre o eu. É possível perdê-lo também, vez ou outra (...)
sem se verem com isto ameaçadas de deixarem de ser o que são.”
335
Na tentativa de compensar seu narcisismo ferido, pouco a pouco, ela foi tomando uma
decisão que a levaria a uma extraordinária metamorfose: escolheu, secretamente, como seu
modelo Audrey Hepburn
Considerando estas teorizações tenho como hipótese que Maria não conseguiu efetuar,
totalmente, a separação entre a categoria do ser e do ter. Assim, sua problemática
identificatória foi regida por uma equação que definia seu ser por meio do ter, ou seja, a posse
da voz tornou-se condição essencial de certeza narcísica sobre o Eu.
É neste sentido que entendo que, na problemática identificatória de Maria Callas, o
falo ocupou um lugar determinante e regeu a construção da imagem e do discurso
identificatório que o Eu manteve sobre si. Deste modo, qualquer ameaça à posse do falo era
suficiente para colocar em perigo a integridade dessa imagem.
Assim, Callas não se conformou com o veredicto da imprensa e partiu para mais uma
jornada em busca da perfeição.
336
334
Maria Lucia Vieira VIOLANTE. O Dilema da Histérica. Texto inédito.
335
Maria Rita B. KEHL. Os Deslocamentos do Feminino. A Mulher Freudiana na Passagem para a
Modernidade. p.271.
e manteve, firmemente, sua resolão de alcançar uma forma
corporal que lhe garantisse a perfeição.
Para atingir seu prosito, Maria Callas fez um rigoroso regime alimentar durante dois
anos de sua vida dos 29 aos 31 anos de idade. A este respeito suponho que ela acreditava
que, se tivesse um corpo semelhante ao de Audrey Hepburn que era uma artista valorizada
por seus dotes físicos e sensuais , ela seria amada.
336
Audrey Hepburn (1929-1993). Atriz, modelo e humanista belga radicada nos EUA símbolo da feminilidade
nos anos 60. (WIKIPEDIA.
http://pt.wikipedia.org. Acesso em 27 set.2009).
114
As frustrações que Callas viveu nos ensaios finais de Medéa”
337
Segundo o autor, a “cegueira branca” mergulha o sujeito em uma “(...) brancura tão
luminosa, tão total, que devorava, mais do que absorvia, não só as cores, mas as próprias
coisas e seres, tornando-os (...) duplamente invisíveis.
fortaleceram ainda
mais seu propósito. A este respeito, ela declarou: “(...) eu estava cansada de representar uma
linda jovem, sendo uma mulher gorda com dificuldade para me deslocar.
Por fim, a admiração de todos que a rodeavam ao que Callas atribuía uma
importância fundamental contribuiu para que ela mantivesse a ideia de fazer um severo
regime, até alcançar a forma corporal que ela julgava ideal, ou seja, semelhante à de Audrey
Hepburn.
Ao longo de dois anos de 1952 a 1954 -, Maria emagreceu vinte e oito quilos,
transformou-se em uma mulher esguia e bonita, com seus cinquenta e dois quilos, e assim se
manteve por toda sua vida, ou seja, durante os próximos vinte e três anos.
Considerando a singularidade da história de Maria, penso que o anti júbilo que,
provavelmente, marcou o momento da identificação especular ou imaginária, não se
configurou como um impedimento à assunção de um Eu suficientemente capaz de investir em
si e renunciar ao prazer autoerótico obtido por meio da voracidade alimentar.
A respeito do desejo de Callas, de ser adornada por um brilho intenso e perene,
ressalto que em seu livro Ensaio Sobre a Cegueira, José Saramago faz referência a uma
espécie de cegueira, que é por ele designada “cegueira branca”, ou seja, aquela que não está
relacionada com a ausência de luz, mas com seu excesso.
338
337
Ópera em três atos de Luigi Cherubini (1760-1842), com libreto de François Benoit Hoffmann, baseado na
tragédia de Eurípedes. (Conde de HAREWOOD. Kobbé. O Livro Completo da Ópera. p.228).
338
José SARAMAGO. Ensaio Sobre a Cegueira. p.15.
No meu entender, para Maria Callas, a busca por um olhar capaz de confirmar a
intensidade do brilho da estrela, foi uma maneira que ela encontrou para cegar-se com o
excesso de luz e ofuscar as dores da triste Maria, que (imaginariamente) seria absorvida pela
vioncia do brilho.
Assim, Callas lutou com todas as suas forças para dissimular suas fragilidades e
preservar a imagem de perfeição artística, que ela construiu por meio de sua dedicação ao
trabalho. Provavelmente, as tentativas de preservar a perfeição de sua voz e de seu corpo
esbelto - foram, para ela, uma maneira de impedir a manifestação de sua tendência à
depressão e à diminuição da autoconfiança.
115
Apesar de seus atributos vocais e físicos, Callas vivia angustiada com sua preocupação
excessiva com a própria imagem. A este respeito, ela afirmou: É muito fácil deturpar uma
imagem (...).”
Durante toda a sua vida, ela acreditou que o brilho de Callas seria sua única proteção
contra a convião que sempre lhe causou sofrimento: a ideia de que era feia. Maria não
estava satisfeita com o próprio corpo, tinha vergonha de suas pernas e só se orgulhava de suas
mãos longas e expressivas.
Para ela, a linda mulher admirada peloblico era apenas uma máscara. Ela sempre
acreditou que o objeto de admiração geral não era ela mesma, e sim o conjunto de roupas,
penteados, joias e peles que usava. Por causa disso, Callas foi obsessivamente preocupada
com sua beleza; para ela, a beleza era uma arma e não um atrativo.
A este respeito, certa vez, ela concedeu uma entrevista à BBC, declarando: “Afinal, o
que é o mito? O público me fez”. Assim, quanto maior sua identificação com o mito, maior a
responsabilidade e seu medo de não corresponder às expectativas.
Por um lado, Callas não se conformava com o abismo que havia entre o mito e ela
mesma. Por outro, não suportava mais o peso de ter que corresponder ao mito, uma impecável
figura de cera, livre de contradições.
Deste modo, entendo que o conflito entre o que ela realmente era (um ser humano,
com suas qualidades e fragilidades) e aquilo que gostaria de ser (um mito) estava provocando
um dilaceramento em seu ser.
Para Callas, ocupar o lugar de uma estrela no firmamentorico era mais um fardo do
que um privilégio; cada palavra laudatória dirigida a ela tornava esse fardo ainda mais pesado.
Ela dizia: “Quanto mais famosa me torno, mais apavorada fico.”
Conforme exposto, mesmo depois de famosa, Callas não se permitia descansar, porque
ela precisava “lutar” para manter a ilusória perenidade do brilholico que ornamentava sua
posição de estrela. Assim, ela estava sempre em busca de olhares que a confirmassem na
posição de detentora do falo. Nas palavras de Callas:
Uma luta constante esse foi o grande problema de minha carreira, sempre tive de
brigar. E não gosto nada disso. Detesto brigas e desaveas; detesto o nervosismo e a
tensão que acarretam. Mas, se me vejo forçada a lutar, eu luto. Até agora em geral
venci, porém nunca exultei com essas vitórias (...), decorrentes da simples necessidade
de lutar.
Por outro lado penso, também, que estas palavras de Maria Callas evidenciam a
dúvida e a angústia que ela sentia por não saber o quê, nela mesma, era capaz de atrair o
116
desejo e o olhar dos outros, pois ela sempre suspeitou ser um mito criado pelo público e se
angustiava diante da possibilidade de ter sua imagem deturpada pelo mesmo público que a
criou.
Foi deste modo que, para Maria, o mundo da ópera deixou de ser um refúgio (como foi
durante sua infância) e se tornou uma arena de lutas narcísicas e uma prisão ameaçadora.
Assim, Maria se mantinha à deriva numa posição pendular, na qual os momentos de
êxito e brilho se alternavam com outros de quebra catastrófica, que a faziam cair na
impotência e a manifestar sinais de depressão. Sua visão sombria da vida e do mundo se
acentuava e ela acreditava que o mundo era seu inimigo. Ela dizia: “meus cachorros nunca
hão de me trair.
Em um destes momentos depressivos, inconformada, ela caiu nos braços de Franco
Zefirelli
339
e chorou: “Por que não posso cantar minha Norma em paz, só eu e a lua numa
floresta? Por que sou obrigada a suportar tudo isso? [referindo-se aos sofrimentos decorrentes
de seu estado depressivo].
340
339
Franco Zefirelli (1923). Encenador e diretor italiano. (WIKIPEDIA.
Suponho que a indignação presente no discurso de Maria revela o esvanecimento de
um desejo que, em seu íntimo, ela acalentou desde a infância: de que o mundo da ópera fosse
capaz de livrá-la de suas dores, e que as personagens encarnadas em cena, pudessem ofuscar
sua história de menina mal-amada pelos pais.
No meu entendimento, por meio destas palavras carregadas de dor, Maria expressou a
decepção que sentiu diante do descompasso entre o mundo da ópera que ela sonhou e o
ambiente rico que ela descobriu nos bastidores dos grandes teatros: um verdadeiro ninho de
cobras (venenosas!).
A respeito dos momentos em que sua voz falhava, ela declarou: “A voz sempre me
falhava diante de um público agressivo. É horrível sentir-se odiada”. Em outra ocasião,
afirmou: “Só um pássaro feliz pode cantar. O problema não é com minha voz, e sim com
meus nervos.
Assim, estava instalada uma batalha entre Callas e a voz, ou seja, entre o brilho que
adornava a imagem fálica (e insustentável) de si e a sombria e triste Maria, que invadia a cena
nos momentos em que a imponente Callas quebrava a voz publicamente em notas cruciais.
http://pt.wikipedia.org. Acesso em 27
set.2009)
340
Entre colchetes, interpolação minha.
117
Além de tudo isso, Maria sentia-se atormentada pelas condutas exuberantes de sua
mãe. Em 1953, ela soube que a mãe havia tentado o suidio em Nova York, tomando uma
certa quantidade de soníferos.
Evangelia declarou que sua atitude constituíra mais um esforço para “sacudir Maria”.
A este respeito, Callas escreveu ao Dr. Lantzounis: “Se ela está (mentalmente) enferma diga-
me se é necessário inter-la numa boa clínica talvez na Europa onde as coisas são mais
baratas. Não sei mas por favor ajude-me”.
Evangelia aspirava à glória e ao sucesso; ela não se conformava com a ideia de não
participar da vida de sua filha famosa. Assim, ela forneceu informações a respeito de Maria a
Lawrence Blochman, que escreveu um livro intitulado My doughter Maria Callas. No livro,
Evangelia conta a história da vida da filha representando o seu papel predileto: o de mãe
ofendida e abandonada.
Depois de ter saído da joalheria Gabor, onde trabalhava, Evangelia vivia do
adiantamento dos direitos autorais do livro, que eram divididos entre ela e Lawrence
Blochman.
A publicação provocou uma enxurrada de artigos acusando Callas de maldade e
ingratidão, mas ela não se deixou abalar pelo escândalo e o livro logo caiu no esquecimento.
Como se isso não bastasse, Callas recebeu uma carta do Welfare Department of Nova
York, informando que sua mãe requerera ajuda do Estado e que, de acordo com a lei, cabia-lhe
a “obrigação de sustentá-la na medida de suas possibilidades.”
Apreensiva com o escândalo que poderia vir à tona se os jornais noticiassem que
Evangelia apelara para a caridade pública, Callas solicitou que o padrinho negociasse com ela
um acordo. Dr. Lantzounis escreveu à afilhada, informando-lhe o resultado das negociações:
“(...) eu lhe disse que, se durante seis meses ou um ano ela se abstiver de qualquer tipo de
publicidade, você com certeza aumentará sua mesada (...).”
Evangelia ficou animada com o acordo, mas não conseguiu cumprir com a sua parte e
concedeu à revista italiana Gente uma entrevista que fez Callas explodir numa carta ao
padrinho: “Você precisa me ajudar a enfiar um pingo de bom senso naquela cabeça oca, a
fazê-la entender sua posição e a calar sua linda boca. Parece câncer. Nunca vou me livrar dela
e de suas conseqüências”.
Leio estas palavras de Maria, referindo-se à mãe como um ncer do qual ela nunca se
livraria, como um efeito da identificação arcaica dela com a mãe fálica que, segundo David-
Ménard (1994), consiste em uma fixação em imagos que capturam e ameaçam o sujeito.
118
Ressentida com Evangelia, Callas apresentou-se com seu pai em um programa de
entrevistas comandado por Hy Gardner. George estava muito sério, um pouco acanhado e,
sobretudo, orgulhoso. Ela lhe falou carinhosamente sobre Meneghini, mas recusou-se a dizer
uma só palavra em relação à mãe.
Ainda no que se refere ao ressentimento de Maria em relação à figura materna,
conforme explicitado anteriormente, para Mannoni (1994), o sucesso quando este é
visível
341
A singularidade desta problemática manifesta-se nos fragmentos biográficos que se
seguem: na temporada do México, depois de sua estréia como “Norma”, Callas cantou
“Aida”, com Kurt Baum
- é o que permite às histéricas que elas se identifiquem com elas mesmas, à medida
que, alcançando o olhar alheio, capaz de reconhe-las (ou não) como sendo alguém dotada
de valor pessoal, podem vir a compensar seu narcisismo ferido.
A este respeito, certa vez, numa entrevista para o The Observer, Maria Callas
declarou: “Trabalho, logo existo. O que você há de fazer se não trabalha?”
Assim entendo que, provavelmente, o trabalho proporcionou a Maria um lugar de
reconhecimento, ou seja, uma possibilidade de existência sem a qual, talvez, ela teria
sucumbido aos seus sintomas neuróticos depressivos.
Além disso, penso que para Maria Callas, a voz, a dedicação profissional e o sucesso
na arte lírica foram atributos fálicos por meio dos quais ela tentou defender seu lado terno e
vulnevel o qual era por ela considerado como uma “infantilidade” , que representou uma
constante ameaça.
Penso que, provavelmente, Maria Callas tenha construído sua falicidade sob o alicerce
das identificações com traços da figura da mãe lica, ao passo que George era visto por
Maria como uma figura frágil e submissa, uma vez que ele sempre foi desprezado por
Evangelia.
No meu entender, o lado depressivo de Maria deveu-se tanto à identificação com o
aspecto desvalorizado da figura paterna, como à possível carência de investimento libidinal
materno, de modo prevalente, o que pode promover a fixação da libido na fase oral.
Suponho que, para Maria Callas, o brilho fálico associado à posse da voz prestou-se
para encobrir seus sentimentos de desvalia.
342
Nesta ocasião, o tenor exagerou nos agudos, enfurecendo-a. Ela se sentiu afrontada e,
na cena triunfal, ao invés de seguir a partitura, Callas cantou um mi bemol em oitava acima,
no papel de Radamés.
341
Grifo meu.
342
Kurt Baum (1900-1989). Tenor tcheco. (WIKIPEDIA. http://pt.wikipedia.org. Acesso em 27 set.2009).
119
sustentando-o até a conclusão do finale orquestral. O choque que Baum sentiu ao ouvir o
longo mi bemol levou-o a declarar que “Nunca mais cantaria com Callas”. É claro que essa
esgrima vocal não fazia parte da grande arte, mas mesmo assim, o público gostou.
Ao longo de sua carreira, as esgrimas vocais foram frequentes e Callas esteve sempre
às voltas com atitudes desafiadoras.
Compreendo que, para Callas, é provável que a potência vocal talvez tenha sido aquilo
que lhe permitiu reconhecer-se em uma imagem adornada por um brilho lico. Por outro
lado, suponho que a diminuição da potência vocal, provavelmente, era vivida como castração.
Kehl (1997) considera que “Se existe uma cura para as mulheres, isto é, para o
penisneid
343
, ela passa pela (re)conquista daquilo que, sendo dos homens, não tem por que
não ser das mulheres também. Não um pênis, mas uma ou algumas das infinitas faces do
falo.
344
[Nas neuroses, o sujeito] (...) irá identificar-se com aquele que (...) tem [o falo], mas
(...), o ter significará sempre para ele um ter castrado o Outro. (...) Esse conflito
identificario entre ser o agente da castração ou o sujeito que a sofre é o que define
esta alternância contínua, esta questão sempre presente no nível da identificação, que
clinicamente se chama uma neurose.
No meu entendimento, na psique de Maria Callas estava instalado um conflito entre
ter o falo-voz ou ser castrada. A este respeito, Aulagnier tece a seguinte consideração:
345
No início de 1959, aos 35 anos de idade, Maria Callas estreou em Paris, em um
concerto de gala frequentado por importantes personalidades. Apesar de sua aversão à ópera,
Aristóteles Sócrates Onassis
Apesar dos esforços de Meneghini para proteger Maria Callas das críticas e assegurá-
la em seu ilurio lugar de perfeição, ela estava exausta, pois vinha mantendo um ritmo
incessante de trabalho.
Para quebrar o circuito dessas lutas narcísicas que a dilaceravam, Maria precisava ter
algo muito mais forte do que o brilho da estrela Callas e imensamente maior do que a
proteção que ela recebia de Meneghini.
346
343
Inveja do pênis.
344
Maria Rita B. KEHL. Os Deslocamentos do Feminino. A mulher freudiana na passagem para a
modernidade. p.270.
345
Piera AULAGNIER. Angústia e Identificação. Percurso n.14 1/1995. p.10; tradução do francês: Prof. Dr.
Renato Mezan; entre colchetes, interpolação minha.
marcou presença juntamente com sua esposa Athina
346
Aristóteles Sócrates Onassis (1906-1975). Armador Grego.(WIKIPEDIA. http://pt.wikipedia.org Acesso em
27 set.2009).
120
Onassis
347
; antes da estia, ele enviou a Callas três buquês de flores. Am disso,
repetidamente, convidou o casal Meneghini para um cruzeiro a bordo do Christina
348
Apesar de obstinada, Callas ficou “loucamente apaixonada”
.
Depois de muita relutância, Callas aceitou o convite, apesar das objeções de
Meneghini. Antes de atracar no Pireu, em 1960, Callas e Onassis ficaram a sós no salão de
jogos, conversando e contemplando o fogo que ardia na lareira de lápis-lázuli.
349
e, pouquíssimo tempo
depois, pensando em Meneghini, ela se perguntava: “Como uma mulher diz a um marido que
vai deixá-lo?” Ela encontrou um único modo e, depois de ter vivido onze anos como sua
esposa, disse a ele: “Eu amo Ari [Onassis]
350
347
Athina Mary Livanos Onassis Spencer-Churchill Niarchos (1926-1974). Primeiramente, foi casada com
Aristóteles Sócrates Onassis (1946-1960), com quem teve dois filhos, Alexander Onassis e Christina Onassis.
Depois, casou-se com John Spencer-Churchill, Marquês de Blandford (1961-1971). Por último, casou-se com
Starvos Niarchos (1971-1974), viúvo de sua irmã Eugenie. (WIKIPEDIA.
.
O magnata grego, aos 54 anos, era dezessete anos mais velho do que Maria Callas, que
contava 37 anos de idade; por ele, Maria Callas sacrificou sua voz, a arte e a carreira. No
entanto, vale ressaltar que Onassis nunca esteve totalmente disponível para ela, pois ele era
casado com Athina.
A respeito do relacionamento de Onassis com a grande estrela da ópera, certa vez,
assediado pelos jornalistas de Veneza, ele fez a seguinte declaração: “Claro que estou
lisonjeado! Imaginem, uma mulher da classe de Maria Callas apaixonada por um homem
como eu! Quem não se sentiria orgulhoso?”
Era evidente que o bilionário armador, senhor dos petroleiros, precisava de mulheres
“de classe” para confirmar seu próprio valor.
Quando Athina requereu o divórcio no início de 1959, depois de treze anos de
casamento, ele recuou como costumava fazer quando se via confrontado com a necessidade
de tomar uma decisão de caráter pessoal e, em vão, empreendeu inúmeras tentativas de
reconciliação.
Nas ausências de Onassis, Maria sentia medo do vazio que a espreitava; enquanto ele
se via às voltas com o divórcio de sua esposa Athina, ela estava às voltas com uma nova fonte
de angústia: o perigo de perder o poderoso armador.
http://pt.wikipedia.org. Acesso em 27
set.2009).
348
Luxuoso iate, de propriedade de Aristóteles Onassis.
349
A respeito do encantamento instantâneo de Callas pela figura de Onassis vale lembrar que, na adolescência,
Maria sofreu com o fato de sua adorável irmã Jackie além de ter sido a filha predileta de Evangelia – foi noiva
de Milton Embiricos, um poderoso e rico armador grego, enquanto ela se sentia rejeitada, feia e sozinha.
350
Entre colchetes, interpolação minha.
121
Em 1960, depois de perceber a inutilidade de suas tentativas de reconciliação com
Athina, Onassis abandonou todas as suas atividades para não se afastar de Maria Callas nem
um instante sequer. Ele a fez descobrir sua própria sensualidade e foi a primeira pessoa por
quem ela se sentiu atraída. A este respeito, ela anunciou: Não quero mais cantar. Quero viver
como uma mulher normal, com filhos, uma casa, um cachorro”.
Agora, por sua própria escolha, seus compromissos profissionais encaixavam-se nas
brechas, cada vez mais estreitas, de uma frenética e envolvente vida particular. A este
respeito, anos depois, Maria Callas declarou:Envelheci prematuramente, tornei-me apática,
só pensava em dinheiro e posição.”
Em decorrência de sua escolha de reduzir os compromissos profissionais e as horas de
estudo, algumas vezes Callas quebrava a voz em público. Nestas ocasiões, a presença de
Onassis era um bálsamo para ela. Quanto a ele, vendo-a vulnevel, procurava protegê-la e
escudá-la contra a dor. Certa vez, falou-lhe de Skorpios
351
Ela se sentia aliviada por ter escapado da prisão em que sua vida artística havia se
tornado; em relação a este fato, mais tarde declarou:Eu tinha a sensação de ter ficado muito
tempo presa numa gaiola. Assim, quando conheci Aristo [Onassis], tão cheio de vida,
transformei-me em outra mulher”.
, dos olivais, do mar reluzente;
prometeu-lhe a felicidade, como se fosse um deus capaz de tanto.
Callas e Onassis passavam horas sonhando, fazendo planos para Skorpios. Ele queria
infinitas noites de pleninio; ela queria um verão eterno. Ele queria plantar tabaco, como em
Esmirna; ela queria a ilha sempre em flor. Falavam em grego o tempo todo e Onassis estava
sempre ansioso para partilhar com Callas todos os seus pensamentos e incluí-la em todos os
seus planos para o futuro.
352
351
Ilha grega de propriedade de Aristóteles Onassis.
352
Entre colchetes, interpolação minha.
Suponho que Callas se encantou diante da figura de Onassis porque talvez ela tenha
encontrado nele uma espécie de “príncipe encantado”: um ser meio deus, meio homem e,
portanto, superior à figura paterna.
Ela transformou o célebre armador grego no centro de sua vida: fascinada por ele, ela
se esmerava em aprender tudo o que fizesse parte de seu mundo; era mais uma forma dela lhe
dizer que o amava. Em certa ocasião, ele confidenciou a um amigo: “Ela é a única mulher
com quem posso falar de negócios”.
122
Além disso, Onassis gostava de -la vestida de preto e, por esta razão, Callas
encomendava muitos vestidos pretos, apesar de suas cores favoritas serem vermelho e
turquesa; ele também a fez mudar de penteado e ela cortou suas longas melenas.
Como se não bastasse, ela passava longas horas a bordo do Christina, preparando
iguarias gregas para agradar ao seu “príncipe”. Ela estava adorando sua transformação e sua
vontade era jogar para longe a velha Callas e tornar-se outra mulher. A este respeito, certa
vez, ela disse: “Um homem não consegue mudar, mas uma mulher sim.
Ao lado de um ser supostamente tão perfeito e poderoso, Callas acreditou que
conseguiria manter-se distante das constantes ameaças que vivia no mundo da ópera, além das
angústias decorrentes da crença de que poderia ser destituída de uma posição (imaginária) de
perfeição.
Assim, depois de suas cada vez mais escassas representações, exausta, era no
Christina que Callas se refugiava. Nestes momentos, Onassis tornava-se seu salvador: o
homem que a libertava da prisão que a arte lírica havia se transformado.
Deste modo compreendo que, durante toda a sua existência, Maria Callas procurou
dissimular a existência de suas fragilidades por meio de vários artifícios.
Em primeiro lugar, encontrou no ato de cantar uma possibilidade de receber alguma
atenção de Evangelia. Depois, quando Callas tornou-se uma estrela de fama internacional, a
perfeição vocal foi uma arma por meio da qual ela tentou construir uma imagem perfeita de si.
Nesta tarefa impossível, encontrou em Meneghini seu maior colaborador, pois ele
esteve sempre presente para minimizar as críticas que feriam sua casca de onipotência.
Por fim, ilusoriamente amparada pela poderosa figura de Onassis, Callas não mais
precisaria desgastar-se em busca da perfeição vocal para se sentir amada, pois ao associar-se
amorosamente a um homem que era poderoso e socialmente valorizado qualidades que seu
pai não possa -, ele lhe concederia esse brilho perfeito.
Penso que, para Maria Callas, era importante estar ao lado de uma pessoa poderosa e
valorizada como Onassis, ainda que ele não estivesse disponível para ela.
Aos 37 anos, ainda em 1960, no mais novo nightclub de Monte Carlo - o Maona -,
Maria Callas anunciou publicamente suas inteões matrimoniais. No dia seguinte, Onassis
desmentiu a notícia, dizendo que tudo isso não passava de uma brincadeira. Foi uma
humilhação, mas apesar disso, ela sabia “esperar”, como dissera, e estava contente.
123
Como se isso não bastasse, os filhos de Onassis Christina
353
, na época com nove
anos, e Alexander
354
Ari [Onassis] (...) nunca repreendeu os filhos por causa de Maria. (...) Longe de tentar
conciliar as crianças e Maria, Onassis usou em seu favor a aversão que sentiam pela
“cantora”. (...)o se cansou de repetir que sua união com Maria seria traumatizante
para seus filhos e por isso não podia se casar.
, com doze voltaram-se contra Callas, pois não a perdoaram por ter sido
o motivo do divórcio entre seus pais.
Por seu lado, Callas não sabia o que fazer para ganhar a estima das crianças, que a
tratavam com frieza e tentavam aborrecê-la. A este respeito, certa vez, Zeffirelli declarou:
355
A histeria (...) se distingue da paranóia por uma acentuação excessiva do objeto. A
histeria é um estado amoroso excessivo; (...) O histérico (...) é ligado (...) às pessoas;
angústia quando ele se afasta delas um pouco mais que o habitual. O histérico
exagera o amor do objeto e se torna por isso incapaz de se mover: ele se fixa.
Callas acreditava que, por Onassis haver despertado nela tantos sentimentos, apenas
ele poderia alimentá-los. Ela dizia: “O amor é tudo que importa. Amor, veneração, respeito
são indissociáveis. Não se pode amar de outra forma. Há quem resuma tudo em atração. Não é
assim. Primeiro a gente ama, depois venera, depois respeita.
Na minuta da Sociedade Psicanalítica de Viena, datada de 06 de fevereiro de 1907, há
a seguinte nota a respeito da histeria:
356
Em 1961, quando Maria Callas contava 38 anos de idade, o romance começou a
esfriar. Onassis necessitava do brilho de Callas para confirmar seu próprio valor como
No meu entender, Maria estava às voltas com uma nova fonte de angústia: o perigo de
perder o (suposto) amor do poderoso armador. Em decorrência disto, ela se submetia a ele e
tratava-o como Deus, o que despertou nele o déspota existente em seu íntimo, ou seja, ele
assumiu para com ela, características sádicas.
A partir do momento em que, impelida pelo medo de perder Onassis, Maria Callas
começou a tratá-lo como um Deus, o relacionamento do casal perdeu seu caráter de
reciprocidade.
A figura de Onassis foi idealizada por Maria Callas e, como consequência, sua posição
altiva e desafiadora cedeu lugar à devoção: na posição de serva, ela não mais duvidava do
discurso de seu senhor; tudo o que ele fazia e lhe pedia, para ela, era correto e inocente.
353
Christina Onassis (1950-1988). (WIKIPEDIA. http://pt.wikipedia.org. Acesso em 27 set.2009).
354
Alexander Onassis (1948-1973). (WIKIPEDIA. http://pt.wikipedia.org. Acesso em 27 set.2009).
355
Entre colchetes, interpolação minha.
356
Les Premiers Psychanalystes. Minutes de la Société Psychanalytique de Vienne I, 1906-1908, p.130; tradução
livre.
124
homem, posto que era milionário. Deste modo, quando a estrela da ópera teve seu brilho
enfraquecido no cenário internacional, o célebre armador não tardou a decretá-la sem valor.
Mais do que qualquer outra pessoa em sua vida, Onassis conseguia lançá-la num
estado de profunda insegurança, valendo-se de apenas uma palavra ou olhar; ele a fazia
assumir um ar sofrido de criança desamparada.
Ele detestava vê-la de óculos e, muitas vezes, na presença de terceiros, disse-lhe que
os óculos tornavam-na feia. Sem se acostumar com as lentes de contato, ela vivia com os
óculos nas mãos, colocando-os por um breve instante, apenas para se orientar; na maior parte
do tempo, Maria Callas via o mundo envolto numa névoa ameaçadora.
Assim, essa história não foi um conto de fadas; ao contrário disso, foi uma luta entre
duas superpotências: o poderoso armador encontrou uma mulher mais famosa do que ele e
cuja fama tinha bases maislidas do que a sua.
Aturdido com a arte de Callas, ele passou a depreciá-la e ridicularizá-la publicamente.
No tocante à ópera, ele se limitou a aprender apenas o suficiente para cortejar Callas. Quando
os passageiros do Christina começavam a falar de ópera a fim de agradá-la, Onassis
rapidamente procurava mudar de assunto, às vezes de forma grosseira; ele estava cansado de
receber parabéns em nome dela.
Certa vez, Callas e Onassis estavam reunidos com alguns empresários para tratar das
negociações relativas a uma filmagem que ela faria. Durante a reunião, ela lhe fez uma
pergunta e ele explodiu: “Cale a boca! Não se meta! Você não entende nada dessas coisas.
Você não passa de uma cantora de cabaré.”
Diante desta cena grotesca Sander Gorlinsky, um dos empresários, expressou sua
indignação: “Achei que Maria fosse agarrar a garrafa mais próxima e atirá-la nele. Mas não:
simplesmente se levantou e saiu da sala. Ele a dominava completamente.
Constantemente, Onassis exercia seu despotismo sobre Callas e, para muitos amigos
dela, isso se tornou um espetáculo insuportável. A este respeito, Franco Zefirelli chamou o
armador grego à parte e lhe disse: “Não conheço os detalhes de sua vida particular, mas para
quem gosta de Maria é horrível ver você tratá-la desse jeito.Suas palavras de nada valeram.
Em outra ocasião, mais uma vez, Onassis desqualificou publicamente Maria, dizendo-
lhe: “Quem é você? Nada. Você só tem um apito na garganta, e esse apito não funciona
mais.
Neste contexto, em 1961, aos 38 anos de idade, Callas conheceu Maggie van Zuylen
que, frequentemente, atuou como mediadora no relacionamento entre ela e Onassis.
125
Maggie Van Zuylen era filha de sírios, nascida em Alexandria. Conheceu o barão van
Zuylen durante uma de suas viagens e o fascinou de tal modo que ele decidiu despo-la,
apesar da oposição de seu pai, que o deserdou.
Tendo 23 anos a mais do que Maria, Maggie possuía o que ela sempre desejou e
jamais conseguiu ter: a longa experiência sexual de uma sedutora que sabe agradar um
homem.
Essa desenvoltura de Maggie encantava Maria Callas, cujas conquistas a arte, o
charme, até mesmo a vida social sempre resultaram de árduos esforços. Por outro lado,
Maggie era uma artista frustrada, com dois filhos e seis netos, que ficava fascinada pelo
sucesso da grande estrela da ópera, pois nunca fizera o menor esforço na vida e nunca criara
nada além de festas efêmeras.
Assim, a artista frustrada deparou-se com a célebre cantora que desejava ardentemente
realizar-se como mulher. Entre elas brotou uma intensa amizade e, por cerca de dez anos,
Maggie foi para Maria Callas uma fonte inesgotável de conselhos mundanos.
Como Maria mal conhecia os rudimentos dos artifícios femininos, supervalorizava-os
e admirava qualquer mulher que soubesse usá-los com tanta maestria quanto Maggie; via-a
reinando sobre um território misterioso no qual desejava ardentemente circular com
desenvoltura. Maggie, a primeira amiga íntima de Maria Callas, foi uma pessoa com a qual
podia falar de tudo, inclusive de sua vida sexual com Onassis.
No que se refere à intimidade que permeou a amizade entre Maria e Maggie van
Zuylen, suponho que esta desempenhou o papel de um objeto de identificação para aquela.
Maria gostaria de ser como Maggie, à medida que ela era mestre na arte de seduzir e agradar
um homem.
No caso de Maria, como seria possível investir em seu ser feminino se, durante a
infância e adolescência, o modelo de mulher que lhe foi oferecido pela mãe foi uma figura
que não era motivo de atração para o pai?
Provavelmente, o desfecho da situação edipiana de Maria foi constitdo por uma
identificação com o aspecto frágil, desvalorizado e submisso da figura paterna. No meu
entendimento, essa identificação com a figura paterna foi o que fez com que Maria se
submetesse à tirania de Onassis, tolerando ser espezinhada por ele, da mesma maneira que seu
pai fazia em relão a Evangelia.
Por outro lado, penso que houve, também, uma intensificação de sua identificação
arcaica com a mãe fálica, figura desprovida de atributos femininos, que não se prestava para
ser tomada como um modelo de feminilidade.
126
Suponho que Maria elegeu a figura Maggie para tentar se apropriar, por identificação,
de um atributo que ela valorizava: a desenvoltura na arte de seduzir e agradar os homens.
Assim, na história de Maria, a identificação - por meio da qual a histérica se apropria
de aspectos femininos de uma mulher que ocupa o lugar de um modelo -, manifesta-se pelo
vínculo de cumplicidade e intimidade que permeou a amizade entre Maria e Maggie.
Em 1963, Maria sofreu profundamente, ao perceber que estava perdendo o centro de
sua existência: Onassis mantinha seus casos paralelos e ela repetindo o destino de sua mãe -
aceitava isso como parte do quinhão que as mulheres gregas aprenderam a esperar da vida.
O poderoso armador andava de amores com a princesa Lee Radziwill, irde
Jackeline Kennedy
357
Apesar das contestações de Callas, por um lado, e do presidente norte-americano John
Fitzgerald Kennedy
. Certa vez, a princesa interrompeu suas férias a bordo do Christina
porque sua irmã, Jackeline, havia dado à luz um bebê prematuro, que morreu dois dias depois.
Após o enterro do menino, a princesa voltou à Atenas e, durante o jantar, contou a Onassis e
Callas que Jackeline estava desolada; imediatamente, ele colocou o iate à disposição dela.
358
357
Jackeline Lee Bouvier Kennedy Onassis (1929-1994). (WIKIPEDIA.
, por outro, no início de outubro de 1963 o Christina zarpou com
Onassis e Jackie, além dos Radziwill e de Franklin Roosevelt que, a pedido do presidente
Kennedy, acompanhou sua esposa na viagem. Onassis não permitiu que Callas permanecesse
a bordo, obrigando-a a voltar para Paris. Nesta ocasião, ele lhe disse: Eu vou embora de sua
vida. Você nunca mais vai me ver, nunca”.
Em seu inferno particular, Callas acompanhava mentalmente o cruzeiro e não
conseguia imaginar o seu futuro sem Onassis. Nesta época, ela dormia com a ajuda de
soníferos o que, no meu entendimento, pode ser uma manifestação depressiva.
Diante do desamor de Onassis, Callas voltou a buscar amparo narcísico na arte rica.
A este respeito, ela declarou: “Preciso reencontrar minha alegria na música”. Mas isso parecia
impossível, pois Maria temia competir com o que ela fora no passado e, ao mesmo tempo, a
possibilidade de parar de cantar era-lhe assustadora.
Sobre esta questão, ela disse: “Se não trabalhar, o que vou fazer da manhã à noite?
(...). Não tenho filhos, o tenho falia (...); o que vou fazer, se não tiver minha carreira?
Não posso simplesmente ficar sentada, jogando cartas ou mexericando não sou esse tipo de
gente.
http://pt.wikipedia.org. Acesso em 27
set.2009)
358
John Fitzgerald Kennedy (1917-1963). Presidente dos EUA. (WIKIPEDIA. http://pt.wikipedia.org. Acesso
em 27 set.2009)
127
Assim, ela se lembrou de seus triunfos e, imediatamente, escreveu a David Webster
359
Depois do cruzeiro - que terminou em 17 de outubro de 1963 -, Onassis foi encontrar-
se com Callas para lhe contar façanhas. Ele ainda não havia assumido oficialmente seu
romance com Jackie Kennedyainda primeira dama dos Estados Unidos
,
do Covent Garden, para dizer-lhe que estava disposta a cantar Tosca, mas só se fosse
naquela hora, pois era quando precisava escudar-se em sua arte para não se deixar dominar
pelos sentimentos depreciativos que Onassis despertava nela.
Quanto mais o armador alimentava as inseguranças e os sentimentos de inferioridade
de Maria, mais ela precisava do incentivo de Franco Zefirelli. A este respeito, ele declarou:
“Ela encontrou em sua arte uma válvula de escape para todos os seus problemas. À medida
que seus problemas com Onassis se agravavam, Maria precisava mais e mais dessa válvula de
escape (...).
Compreendo que, quando Maria percebeu que não encontraria em Onassis o que ela
tanto esperava um poderoso “príncipe encantado, pai e amante-, ela recorreu à arte lírica,
buscando recuperar o brilho da estrela Callas.
360
Em 1964, aos 41 anos, época em que Maria Callas atravessou suas maiores
dificuldades em seu relacionamento com Onassis, ela recebeu a notícia de que seu pai estava
gravemente doente
- e, apesar da dor
que sentia, Maria continuou alimentando esperanças em relação a ele.
361
Diante desta notícia, Maria escreveu um telegrama ao padrinho expressando sua
indignação: “Fiquei chocada com seu casamento [de George] (...), estou muito aborrecida e
chocada (...).”
e que, antes de dar entrada no hospital, casou-se com Alexandra
Papajohn que, há anos, era sua companheira.
362
Nesta época, Maria recebeu uma conta de 4.338,37 dólares, referente às despesas
hospitalares acarretadas pela internação de George. Seu sentimento predominante era a
Inconformada com o segundo casamento de seu pai, Maria rompeu definitivamente
relações com ele. Pelo lado de George, depois de ter se casado, ele voltou a morar na Grécia,
juntamente com sua nova esposa, e se afastou ainda mais da filha. Mesmo depois de ter
recuperado sua saúde, ele não mais presenciou as récitas de Maria.
359
David Webster (1903-1971). Diretor do Royal Opera House, em Londres. (WIKIPEDIA.
http://pt.wikipedia.org. Acesso em 27 set.2009).
360
O presidente norte-americano John Fitzgerald Kennedy foi assassinado em 22 de novembro de 1963.
(WIKIPEDIA.
http://pt.wikipedia.org. Acesso em 27 set.2009).
361
Na biografia não há referências a respeito da doença de George.
362
Entre colchetes, interpolação minha.
128
amargura. Ela ressentiu por saber que outra pessoa, “uma estranha”, era quem estava ao lado
de seu pai. A este respeito, escreveu ao seu padrinho:
Portanto querido Leo, deixe isso bem claro. Ele escolheu outras pessoas. Pois que
fique com elas. Eu me retiro para sempre. (...) Quanto à minha madrasta, etc., não me
interessa ter nenhum tipo de relacionamento com ela. Já estou muito velha para esse
tipo de bobagem (...). Espero que os jornais o fiquem sabendo disso. Do contrário
vou amaldiçoar o momento em que o destino me deu pai e mãe.
Neste trecho de uma carta que Maria endereçou ao Dr. Lantzounis, ressalto a seguinte
passagem: (...) Ele [seu pai] escolheu outras pessoas [Alexandra Papajohn]. Pois que fique
com elas. Eu me retiro para sempre (...).”
363
363
Entre colchetes, interpolação minha.
Flutuando atentamente pelas entrelinhas deste discurso lido-escutado, compreendo que
estas palavras carregam consigo o ressentimento e o ódio que, provavelmente, na fase fálica,
Maria sentiu por não ter sido escolhida pelo pai para receber dele o filho que ela desejara.
No meu entendimento, este trecho da carta revela a ambivancia que, provavelmente,
deve ter permeado suas relações com as figuras parentais.
No que se refere à relação de Maria com a figura paterna, os sentimentos de coloração
hostil são explícitos: o ressentimento e o ódio pelo pai aparecem de forma patente quando ela
escreveu que Ele escolheu outras pessoas. Pois que fique com elas. Eu me retiro para
sempre”.
No entanto, a atitude de Maria de “retirar-se para sempre”, no meu entender, imprime
uma tonalidade amarga ao discurso, o que revela que, na infância, provavelmente, Maria
sentiu um profundo descontentamento por não ter sido a escolhida para receber o amor
paterno.
Ora, se, na infância, Maria sentiu-se descontente por ter sido preterida pelo pai, isto
significa que ela gostaria de ter sido escolhida, o que pressupõe a presença do desejo de
eliminar a figura materna encarnada pela madrasta e ocupar seu lugar em relação ao
amado pai.
No que diz respeito à figura materna - representada pela madrasta -, Maria deixou
claro que achava uma “bobagem” aproximar-se dela e que não queria manter “(...) nenhum
tipo de relacionamento com ela. Esta atitude revela que, na infância, provavelmente, Maria
nutriu uma franca rivalidade em relação à figura da mãe.
129
Todavia, suponho que, na infância de Maria, além desta rivalidade, ela sentia também
uma profunda e obscura admiração pela mãe, pois se ela foi escolhida para receber o amor do
pai, isto significava que ela devia possuir atributos que a tornavam perfeita e merecedora do
amor de George - apesar de suas aventuras extraconjugais.
A partir deste fragmento biográfico, suponho que Maria o renunciou ao
investimento libidinal nas figuras paterna e materna, mas permaneceu enredada no complexo
de Édipo positivo e negativo. Deste modo, a fixação da libido na fase fálica que é um dos
pontos de fixação que se fazem presentes organização histérica, ao lado da fixação oral
manifesta-se, na história de Maria, pela presença da ambivalência experimentada por ela em
relação às figuras parentais.
Provavelmente, Maria sentiu-se duplamente preterida: por Onassis, que zarpou em um
cruzeiro com Jackie, e por George seu pai -, que se casou com Papajohn. Cada vez mais,
Maria buscava escudar-se na arte lírica para não submergir à dor.
Em 1965, aos 42 anos, seu medo aumentava à medida que se aproximava a estia de
“Norma”, na Ópera de Paris. Na noite do espetáculo, após tomar uma infinidade de
tranquilizantes, Maria constatou que não conseguiria entrar no palco.
Em uma conversa com John Ardoin, ela desabafou com amargura: “Você pode ir lá e
dizer a eles [o público] que eu sou um ser humano e tenho meus medos? Como podem
conhecer uma pessoa que só vêem no palco, brilhando sob as luzes da ribalta? Como os
jornalistas podem conhecer essa pessoa?”
364
364
Entre colchetes, interpolação minha.
Ela conseguiu chegar ao fim do terceiro ato, mas quando a cortina se fechou, Maria
caiu no chão e foi levada desacordada para o camarim. Uma hora depois, apoiada em dois
homens, murmurou para a multidão que a aguardava: Perdoem-me eu voltarei para
merecer seu perdão.” Ela estava com os olhos marejados, o rostolido, estava arrasada e a
platéia percebeu.
Compreendo que, neste momento da vida de Maria Callas, os traços depressivos
manifestam-se por meio da insegurança e da ansiedade que ela sentia nos momentos que
antecediam suas estréias.
Apesar de sempre ter sido “a outra” na vida de Onassis, Maria acreditou que ele se
casaria com ela e que lhe daria um filho. Aos 43 anos de idade, Callas ficou grávida e foi
doloroso ver Onassis, o homem que ela adorava, rejeitar o fruto de seu amor e declarar que se
a gravidez fosse levada adiante, sua união chegaria, definitivamente, ao fim.
130
Tomada por um torvelinho de dúvidas, medo e confusão, ela sacrificou o projeto de
ser mãe. Anos atrás, Meneghini havia lhe dito que a maternidade destruiria a grande diva que
ela havia se tornado. Deste modo, os dois homens de sua vida recusaram-lhe um filho.
No meu entender, existe uma interpretação errônea do texto freudiano quanto à
questão do desejo de filhos. Autores como Alonso & Fuks (2004) entendem que, ao afirmar
que a situação feminina só se estabelece se o desejo pelo pênis for substituído pelo desejo por
um bebê, Freud quis dizer que ser mãe seria a única saída possível para a mulher chegar à
feminilidade. Eles escrevem:
Ela [uma das saídas da menina diante do complexo de castração] estabelece, também,
entre as possibilidades presentes para a sexualidade adulta da mulher, aquela que vai
chamar de “saída feminina”, diferente da neurótica ou perversa; porém, restringe essa
possibilidade a uma fonte única e exclusiva; o desejo do filho.
365
No entanto, em seu textoUma Neurose Demoníaca do Século XVII” (1923[1922]),
Freud escreve: “(...) sua [do menino] atitude feminina para com o pai, (...) culmina pela
fantasia de dar-lhe um filho.
366
A este respeito, Aulagnier acrescenta que “(...) o menino e a menina herdam um desejo
de ter filho, transmitido pelo desejo materno (...).
367
Em 1968, aos 45 anos, Maria Callas e Onassis foram vistos por um repórter quando
saíam do Régine’s, em Paris, e a pergunta foi inevitável: “É verdade que estão para se casar?”
Assim, entendo que seria um engano equiparar o desejo de ter filho que é
transmitido tanto ao menino como à menina, pelo desejo materno - a uma estreiteza de
perspectivas que pretenderia afirmar que a mulher não poderia ocupar nenhuma outra posição
feminina na vida além daquela que a designa como mãe.
Na singularidade da história de Maria, penso que a inveja do pênis foi parcialmente
solucionada pela via da sublimação e, talvez, poderia ter encontrado solução, também, por
meio do tornar-se mãe.
Retomando a história de Maria Callas, em 1967, aos 44 anos, ela o tardou a
descobrir que Jackie viúva - e Onassis jantavam juntos no apartamento dele, em Nova
York. Quando o magnata voltou a Paris, ela lhe disse coisas muito amargas, extravasando
seus sentimentos que estavam represados; por fim, sentiu-se mais vazia do que aliviada.
Ainda assim, quando ele a procurava, ela deixava tudo de lado para lhe dedicar atenção
integral.
365
Silvia Leonor ALONSO & Mario Pablo FUKS. Histeria. p.240; entre colchetes, interpolação minha.
366
Sigmund FREUD. Uma Neurose Demoníaca do Século XVII. p.105; entre colchetes, interpolação minha.
367
Piera AULAGNIER. O Espaço no qual o Eu Pode Constituir-se. In: A Violência da Interpretação. p.137.
131
“Já nos casamos. Há quinze dias. Foi maravilhoso”. Onassis respondeu no exato momento em
que já havia decidido, de fato, que se casaria com Jackie.
Em 20 de outubro de 1968, Onassis casou-se com Jackie
368
O rompimento com Onassis abriu as comportas de toda a amargura que Maria
acumulou ao longo da vida. Na tentativa de dissimular a frustração e a fragilidade que a
assolavam, Maria apresentava ao mundo uma imagem forte de si, como é possível notar no
fragmento de uma carta que ela escreveu a uma amiga: Estou perfeitamente tranila. Estou
trabalhando, estudando, aproveitando a vida. Quanto a papai O. [Onassis], o que passou,
passou. Os sagitarianos são assim mesmo. Não se deve sair por aí exibindo a própria fraqueza.
É preciso manter a dignidade.
, na capela de Panayitsa,
em Skorpios. Depois de ter passado nove anos de sua vida dos 37 aos 45 anos de idade
enamorada por um homem que nunca foi inteiramente dispovel para ela, Callas estava
narcisicamente abalada. Dez dias depois do casamento, ela escreveu para John Ardoin:
Tantas coisas aconteceram e estou reagindo exteriormente bem, suponho. Mas me
encontro sob forte pressão e tento desesperadamente manter o controle. Claro que vejo
tudo isso como uma libertação. Mas como é mínima a fé que restou! Num momento
estou confiante e no outro não acredito praticamente em nada. Luto contra a descrença
porque não é uma coisa cristã e nem digna. E meus sentimentos são essencialmente
puros (...). Oh, John, que vida solitária me espera! Nenhum trabalho que eu... venha a
fazer será como no passado. E nenhum homem está à altura de minhas expectativas ou
de meus padrões e não me refiro a situação financeira. Será muito pedir a alguém
que seja leal, honesto, fiel e apaixonado (sempre na medida justa?). Ando muito
desanimada por poder confiar apenas em mim mesma e em ninguém mais – no
passado, no presente e no futuro. Será que sou uma criatura tão estranha? E por quê?
Perdoe-me esta carta estranha, mas estou num momento estranho.
369
Depois de nove anos, me vejo sem filho, sem família, sem amigo! (...) E me pergunto:
“Meu Deus, por quê?” Por que essas coisas têm de acontecer? Com minha lógica boba
acho que uma pessoa que recebeu o privilégio de conquistar uma posição de destaque
Assim, quanto mais ela se sentia frágil e desamparada, mais bravateava. Mas, não era
sempre que Maria conseguia dissimular o que estava sentindo. Nos momentos de maior
desespero, ela recorria a John Ardoin:
368
Como se não bastasse o fato de sua ir mais velha ter sido a preferida do casal Kalogeropoulos e ter
conseguido tornar-se noiva de um rico e poderoso armador grego, mais uma vez, apareceu uma “Jackie” na vida
de Maria para lhe roubar o amor de Onassis. Ironia do destino?
369
Entre colchetes, interpolação minha.
132
devia compreender que tem a obrigação de ser feliz, mas, quando se leva um pontapé,
não é nada bom, você não acha? Amanhã vo arranja uma namorada e gosta dela, e
hoje ela diz que vai amar você para sempre, e amanhã ela de repente trata você mal.
Isso é um tapa na cara. Ora, se as coisas continuam assim indefinidamente, um dia
bem, um dia péssimo, vo vira um trapo. Concorda? Vo ainda teria esperança? (...)
Prefiro esperar o pior e me deparar com o melhor. Francamente, durante nove anos
achei que teria o melhor. (...) Como um homem pode ser tão desonesto?o...tão
louco,o sei. Pobre coitado...
Em 1969, aos 46 anos de idade, em uma tarde na casa de John Ardoin, depois de
gravarem uma entrevista, Maria emudeceu de repente e teve os olhos marejados. Ele a tomou
nos braços e, chorando, ela explodiu: “Como alguém pode ser tão cruel?”
Frustrada, Maria falava de sua dor como se quisesse esgotá-la e, ao mesmo tempo,
agarrava-se a ela porque temia sentir-se vazia depois que o sofrimento se esvaísse.
Ainda assim, Maria o submergiu às suas dores; no auge do desespero, ela dizia:
“Meu Deus, seja como o Senhor quiser, mas, por favor,-me forças para suportar o que vier
e para sobreviver”.
Após o primeiro ano de casado, Onassis começou a sentir-se usado pelo consumismo
compulsivo de Jackie e quanto mais se sentia usado pela esposa, mais procurava Maria.
A gota d’água ocorreu quando Maria contava 47 anos, em fevereiro de 1970: neste
ano, todas as cartas que Jackie escreveu a seu ex-pretendente Roswell Gilpatric ex-
secretário da defesa do governo Kennedy caíram nas mãos de um colecionador de
autógrafos e foram publicadas em todo o mundo.
A vingança de Onassis foi convidar Maria Callas para jantar no Maxim’s, onde o casal
foi fotografado sorrindo esfuziantemente. Ela estava radiante e este encontro atiçou suas
fantasias em relação ao futuro. No entanto, estas não tardaram a se esfacelar. Algum tempo
depois do jantar com Onassis, Maria soube que ele havia voltado ao Maxim’s, mas, desta vez,
com sua esposa Jackie.
Mais uma vez, ela se sentiu envolta no vazio e escreveu a John Ardoin:Minhas
esperanças chegaram aos céus e depois ruíram. Oh, não. Chega de tantos altos e baixos.
Prefiro ficar em baixo o tempo todo.”
Maria queria dormir, mas não conseguia; então ingeriu barbitúricos e tranquilizantes
para mergulhar no sono e na manhã do dia 26 de maio de 1970, foi levada, inconsciente, para
o hospital. No meio da tarde do mesmo dia, recebeu alta médica e os jornais noticiaram
freneticamente a “tentativa de suicídio” de Maria Callas, mobilizando um grande público.
133
O telefone da casa de Maria Callas não parava de tocar. A este respeito ela comentou:
“Nunca recebi tantas flores sem cantar”. Penso que estas palavras trazem consigo
ressonâncias do episódio que ela viveu aos 5 anos e meio de idade, quando foi atropelada e
permaneceu no hospital, despertando a atenção e recebendo cuidados de George e Evangelia.
No meu entendimento, a suposta tentativa de suidio” de Maria Callas configurou-se
como uma manifestação depressiva e não como uma forma de autodestruição, à medida que
ela não levou a termo o ato de pôr fim à própria vida.
Ao contrário disso, ao sair do hospital, Maria ficou surpresa pelo fato de não ter
precisado usar sua voz para receber tantas flores. Assim, ela obteve a confirmação de que era
admirada pelas pessoas, mesmo quando não estava cantando.
Sentindo que suas energias se esvam, Maria precisava ainda mais da vitalidade que
lhe proporcionava a certeza de ser o alvo das atenções: sendo observada, contemplada,
admirada, tornava-se mais alerta, mais viva.
Assim, Maria concordou em presidir as festividades organizadas pelo Sindicato dos
Artistas e, a este respeito, escreveu a John Ardoin: “Qualquer coisa pela sobrevivência, meu
caro. Nesse meu estágio do jogo, vale tudo para eu sobreviver. Não se iluda, John. A
felicidade não faz parte do meu mundo.
Em 1971, aos 48 anos, a noite de estréia constituiu um fantástico espetáculo circense,
com acrobatas, domadores de leões e tudo o mais. Sobre o evento, Michael Cacoyannis
370
Além disso, aos 49 anos, em 1972, Callas engajou-se em um projeto de Master
Class
observou: “Ela estava radiante de prazer. Precisava confirmar a própria existência, e as luzes
da ribalta lhe proporcionavam tal confirmação.
371
Sentindo-se profundamente solitária, em março deste mesmo ano, Maria Callas
envolveu-se com Giuseppe Di Stefano
na Juilliard School, em Nova York. Por meio dessas aulas ela obteve a confirmação
de que conseguiria enfrentar novamente o público sem se deixar dominar pelo pânico.
372
370
Michael Cacoyannis (1922). Proeminente cineasta grego. (WIKIPEDIA.
. Esse relacionamento trouxe-lhe alguma alegria,
mas lhe causou grande dor: mais uma vez, ela se envolveu com um homem casado e, por
ironia, sua esposa também se chamava Maria.
http://pt.wikipedia.org. Acesso em
27 set.2009).
371
Aulas oferecidas para estudantes de uma disciplina particular e ministradas por um expert nesta disciplina,
usualmente música, mas também pintura, drama ou outras artes.
372
Giuseppe Di Stefano (1921). Tenor italiano. (A.DELLA CORTE & G.M.GATTI. Dizionario di Musica.
p.189; tradução livre).
134
Durante os cinco anos que teve de Di Stefano ao seu lado, Callas manteve seu
romance em segredo, referindo-o apenas ao Dr. Lantzounis, seu padrinho, que nunca aprovou
esse relacionamento.
Em dezembro de 1972, George veio a falecer; sua morte provocou um efeito doloroso
em Maria: ela se lembrou de um dia em Nova York quando, menina, caminhava ao lado do
pai e teve vontade de tomar sorvete; ela parou diante do sorveteiro, puxou o paletó do pai,
mas não lhe pediu.
Do mesmo modo, anos depois, quando Maria teve uma vontade imensa de receber a
atenção e o carinho do pai, tampouco lhe pediu e ele, por sua vez, também se manteve em
silêncio. Viam-se basicamente nas noites de estia e, raras vezes, se aproximavam, cada qual
achando muito difícil dar ou receber afeto.
Além dessas lembranças dolorosas, a morte de George trouxe à tona o relacionamento
de Maria com sua mãe. A este respeito, ela declarou: “Nunca hei de me reconciliar com
minha mãe e tenho bons motivos para isso. Ela me fez muito mal e os laços de sangue não são
tão fortes. Não me vejo obrigada a representar e dizer ‘mãezinha querida’. Não sei fingir”.
Quando Maria contava 50 anos de idade, em 1973, Alexander, filho de Onassis,
faleceu em decorrência de um acidente aéreo. Depois dos funerais, Maria Callas foi o único
elo de Onassis com a vida. Nesta ocasião, ao-lo envelhecido, enrugado, desvigorado e
pronunciando palavras desconexas, deu-se conta de que o homem que ela havia idealizado
durante anos não era o herói onipotente de sua imaginão; de repente, o mundo parecia mais
árido e hostil.
Depois da morte de George, Maria e Di Stefano fizeram várias turnês, nas quais
obtiveram pouco sucesso, o que produziu uma considerável tensão entre os amantes. Além
disso, no decorrer das turnês, Di Stefano começou a ter casos amorosos, em relação aos quais,
Maria dizia: o posso competir com moças de vinte anos.”
Porém, essa serenidade de Maria era apenas aparente. Aos 51 anos, em 1974, quando
ela e Di Stefano se preparavam para enfrentar a seleta platéia do Carnegie Hall, em Nova
York, uma tragédia aconteceu.
Maria recebeu a notícia de que Sol Horuk empresário que sempre organizou suas
turnês americanas desde 1950 havia morrido. Ela encontrava-se particularmente fragilizada
e viu como um mau presságio esse passamento ocorrido no dia do concerto. Apesar de estar
extremamente perturbada, ela concordou em apresentar-se para não cancelar o espetáculo.
Antes do início do espetáculo, ela fez um discurso dedicando aquela noite à memória
de Sol Horuk e desculpando-se por seu estado emocional. Ao término da récita, quase caiu no
135
palco e, debito, pôs-se a atacar a administração dos teatros de ópera, especialmente do
Metropolitan, num discurso extenso, agressivo e, em grande parte incongruente. A situação
foi constrangedora, pois toda a dirão do Metropolitan estava presente.
No meu modo de entender, a verborragia agressiva de Callas foi uma resposta histérica
que se prestou a ocultar o sofrimento de uma mulher arrasada e exausta.
Durante uma dessas trágicas turnês, apesar do fracasso, o público continuou
acreditando no mito Callas e ela declarou: “Por que me amam? Não é porque cantei uma bela
ária ou emiti uma bela nota; deve haver algo mais”.
Penso que este fragmento discursivo atesta o sofrimento de Maria diante da dúvida
explícita a respeito do quê, nela, seria objeto de desejo do público, uma vez que a voz,
naquele momento, não ocupava mais esse lugar.
A este respeito, sua amiga, a escultora Mary Mead, observou:Maria havia perdido
todo o seu amor pprio e surpreendeu-se ao constatar que as pessoas ainda a amavam, ainda
se preocupavam com ela, ainda a admiravam.
Aos 51 anos de idade, no outono de 1974, Callas e Di Stefano rumaram para o
Oriente a fim de cumprirem a última etapa da turnê em Saporo, no norte do Japão, onde
Callas cantou pela última vez, em 11 de novembro.
Depois do fracasso das récitas, ela escreveu ao padrinho para lhe comunicar sua
decisão: “Tomei uma grande decisão. Vou parar de cantar. Estou farta disso tudo! (...) Depois
de minha última turnê fiquei tão mal que agora me apavoro à medida que essa data se
aproxima. Meus nervos não suportam mais tamanha tensão.
No que diz respeito ao seu romance com Di Stefano, aos 52 anos de idade, Callas
escreveu ao Dr. Lantzounis, seu padrinho:
Pippo [Giuseppe Di Stefano] es loucamente apaixonado por mim mas eu estou
esfriando bem quem sabe só quero que ele entenda isso pouco a pouco (...). Ele
sabe que mudei mas paciência. Se tivéssemos nos apaixonado quinze anos atrás
quando ele ganhava uma fortuna e cantava como um deus poderia ter dado certo,
mas o próprio Pippo diz que sou rica e não tem nada a me oferecer além de amor
porque nenhum des quer o dircio. Assim este é um caso de amor infeliz.
373
373
Entre colchetes, interpolação minha.
Em 15 de março de 1975, Onassis que já sofria de uma miastenia grave - veio a
falecer em decorrência de uma cirurgia da vesícula biliar. Maria sofreu um golpe quase fatal;
não havia sentido continuar vivendo em um mundo que não o incla. Em seu profundo
sofrimento, o passado desvaneceu-se e o futuro não existia.
136
Nesta ocasião, Maria mantinha as pessoas à distância e se refugiava em suas fortalezas
de dor. Certa vez, afirmou: Quanto menos se dá, menos se sofre. Mesmo quando aparece
uma coisa boa, você a recusa, porque tem medo. E perde a oportunidade. Você se fecha e
desconfia de tudo.”
Considerando as proposições teóricas de Aulagnier a respeito da presença da
agressividade nas neurosesem Os Destinos do Prazer -, entendo que, na história de Maria, a
impossibilidade de encontrar prazer nas respostas que recebia das pessoas, induziu-a a
empreender movimentos agressivos em direção a si e ao outro, à medida que ela recusava, se
fechava e desconfiava de tudo”.
Algumas vezes, deitada na cama, ela gravava em fita alguma idéia. Neste trecho,
revela-se o quanto o brilho de Callas negava a natureza humana que Maria trazia consigo:
Eu gostaria de ser Maria, mas La Callas exige que me comporte com sua dignidade.
Eu gostaria de pensar que as duas na verdade são uma só, porque uma vez Callas
também foi Maria, e sempre me coloquei inteira em minha música. Tudo que fui
sempre foi autêntico. Trabalhei com toda a honestidade possível, e Maria também.
374
A respeito da maestria com a qual Callas dissimulava seus momentos de
vulnerabilidade, John Vickers
375
, que contracenou com ela em uma das apresentações de
“Medea”, fez a seguinte observação: [Ele a chamava de “pequena Maria”]. Mas ela não
deixava a pequena Maria aparecer.
376
Em meu caso ele [o homem] tem de ser inteligente, rico e merecedor de afeto e
confiança. Tem de ser honesto e generoso e não tentar me mudar como nosso querido
amigo [Onassis]. Onde é que existe um homem desses? (...) só me deparo com
homens superficiais e presuosos, nem um pouco interessados naquelas coisas
maravilhosas que tornam nossa vida mais agravel. Não creio que hoje em dia exista
um homem desse tipo mas adoraria encontrar um. Isso resolveria meus problemas
psicológicos.
Ao constatar o fim de seu relacionamento com Giuseppe Di Stefano, em outubro de
1976, aos 53 anos de idade, Maria escreveu novamente ao padrinho expondo seus
sentimentos:
377
Nestes trechos de suas cartas ao Dr. Lantzounis, Callas deixou claro qual era o perfil
de homem que ela gostaria de encontrar: que ele fosse capaz de aceitá-la, que fosse
inteligente, rico, merecedor de afeto e confiança, honesto e generoso.
374
Entre colchetes, interpolação minha.
375
Jon Vickers (1926). Tenor canadense. (WIKIPEDIA. http://pt.wikipedia.org. Acesso em 27 set.2009)
376
Entre colchetes, interpolação minha.
377
Entre colchetes, interpolação minha.
137
Neste ponto, uma obstinada questão se faz presente: se o que Callas desejava era
encontrar um homem com todos os adjetivos acima elencados, por que ela começou a
“esfriar” bem no momento em que Pippo estava “loucamente apaixonado” por ela?
Além disso, se Maria reconhecia que Pippo estava em condições de lhe oferecer o
amor que ela tanto queria, por que ela acreditava que este caso de amor só poderia ter dado
certo se tivesse acontecido na época em que ele “ganhava uma fortuna” e “cantava como um
deus”? Que diferença faria isso para uma mulher que já havia conquistado fama,
reconhecimento e era milionária?
Vimos que, para Aulagnier, a sintomatologia neurótica manifesta-se no momento em
que o Eu investe o Eu de um outro esperando satisfazer sua demanda infantil de ser amado,
protegido e receber prazer sexual, ou seja, o neurótico espera que o outro seja, ao mesmo
tempo, pai e amante, o que é impossível.
Entendo que as relações amorosas de Maria Callas foram permeadas por um conflito
neurótico: se Pippo respondesse as suas demandas de modo a favorecer a ilusão de que a
resposta recebida seria idêntica àquela que foi esperada das figuras parentais, Callas recuava
diante do horror da possibilidade de consumação do incesto.
Para Callas, o único homem que seria capaz de resolver seus “problemas psicológicos
seria nada mais do que o homem perfeito, incomparável, o melhor, ou seja, aquele capaz de
desempenhar as funções de pai e amante.
Se assim não fosse, ela o conseguia encontrar satisfação. Neste caso, ela justificava
a situação dizendo que adoraria” encontrar um homem assim perfeito - mas, ao mesmo
tempo, reconhecia que “é impossível achar homens assim” e se perguntava Onde é que existe
um homem desses?” Não, na realidade.
A realidade foi aquilo que esfacelou a perfeição aspirada por Callas durante toda a sua
vida, pois neste território, o que ela encontrou foram homens superficiais e presunçosos”, ou
seja, pobres mortais.
O que um pobre mortal significaria diante da magnitude do brilho da grande estrela
Callas? Uma nulidade e, como tal, deve se recolher em sua insignificância.
Nos últimos tempos da vida de Maria Callas, Fraçois Valéry
378
378
François Valéry. (? - ?). Compositor francês. (WIKIPEDIA.
foi seu companheiro
mais assíduo. Ela telefonava para ele e pedia: “Você me leva no cinema, Françoise?” E ele:
“Claro, Maria”. No dia seguinte: “Não, hoje não posso. Estou esperando o cabeleireiro.o,
amanhã o; amanhã vou estudar. Quarta-feira?” Nas primeiras horas da quarta-feira:
http://pt.wikipedia.org. Acesso em 27 set.2009)
138
“Françoise, vamos cancelar a saída desta noite? Não me sinto muito bem.” No entanto,
Françoise insistia e, no fim, acabavam saindo.
Certa vez, depois de ter ido ao cinema com Fraçois Valéry, Callas convidou-o para ir
até sua casa, para que ele lhe fizesse companhia. Ela e Valéry instalaram-se em seu quarto e
ficaram conversando, quando ela lhe disse de repente, sorrindo:É uma hora da madrugada e
aqui estamos em meu quarto sozinhos... muito comprometedor.”
A respeito desta situação, Valéry fez o seguinte comentário:
Percebi que queria que eu ficasse. Pela primeira vez na vida fiquei embaraçado.
Queria beijá-la e ao mesmo tempo, como um garoto em seu primeiro encontro,o
sabia o que fazer. Acabei dizendo-lhe o que sentia: “Você intimida os homens, Maria.
Eles a respeitam demais. Sei que a irritei com isso, mas era verdade.
Maria Callas admitiu a verdade nas palavras de Valéry e, em outra ocasião, ela disse:
“Não são muitos homens que conseguem se aproximar de mim. A fama vem a ser uma
espécie de desvantagem. Ademais tenho uma cabeça muito ativa, uma personalidade forte, e
creio que assusto os homens e os afugento.
No entanto, sobre este aspecto de Maria Callas, Vasso Devetzi
379
apresentou outra
versão: “Estávamos sentadas [Devetzi e Callas], conversando, e de repente tocava o telefone.
E diante de meus olhos sua voz, toda a sua postura mudavam. Imediatamente ela se punha no
papel de Callas; assim que desligava, voltava a ser Maria. Era automático!”
380
Em 1977, aos 54 anos, Callas fez sua última peregrinação a Skorpios, onde passou
horas rezando, ajoelhada diante do túmulo de Onassis. De volta a Paris, em seu luxuoso
apartamento, sentia-se sufocada e não tinha forças para gritar por socorro. Seus velhos amigos
Portanto, não era a fama que afugentava os homens, mas a atitude assumida por Callas
em relação a sua própria fama: ao olhar das outras pessoas, ela se apresentava como uma
estrela de magnífico brilho.
Por este motivo, ela demandava que o outro da relação amorosa fosse superior à figura
paterna e desempenhasse o apenas o papel de pai, mas também o de amante, o que é
impossível.
No meu modo de entender, esta crença na existência de um pai-amante contribuiu para
que ela suportasse o desprezo que Onassis lhe dedicou, pois conforme ela mesma disse certa
vez, ela sabia “esperar”.
379
Vasso Devetzi (? 1987). Pianista grega. (WIKIPEDIA. http://pt.wikipedia.org. Acesso em 27 set.2009)
380
Entre colchetes, interpolação minha.
139
ficaram chocados ao-la: ela estava curvada, com as linhas ao redor dos olhos repletas de
tensão.
No meu entendimento, este estado físico apresentado por Maria pouco tempo antes de
sua morte curvada, com linhas tensas ao redor dos olhos -, talvez esteja estreitamente
relacionado à persistência de estados afetivos de natureza penosa como, por exemplo, o
desgosto, a preocupação e a tristeza, que permearam intensamente seus últimos anos de vida.
Acerca dos afetos depressivos, Freud faz a seguinte consideração, em “Tratamento Psíquico
(ou anímico)”, (1905):
Os estados afetivos persistentes de natureza penosa, ou, como se costuma dizer,
‘depressiva’, tais como desgosto, a preocupação e a tristeza, abatem a nutrição do
corpo como um todo, causam o embranquecimento dos cabelos, (...) e provocam
alterações patológicas nas paredes dos vasos sangüíneos. (...) a duração da vida pode
ser consideravelmente abreviada pelos afetos depressivos.
381
A respeito dessas palavras da grande estrela Callas, eu acrescentaria que se o encontro
entre ela e Zaratustra o lendário personagem de Friedrich Nietzsche fosse possível, ele lhe
diria: Grande estrela (...) olho profundo de felicidade, que seria da tua felicidade se te
faltassem aqueles a quem iluminas?”
Conforme Callas disse na ocasião de seu rompimento com Onassis, “(...) Depois de
nove anos de humilhação, me vejo sem filho, sem falia, sem amigo! (...)”.
382
Em sua carreira, Maria Callas foi louvada com longas ovações e intermináveis
chamadas ao palco, além dos aplausos que recebeu em cena aberta; foi recebida com
honrarias e plenamente admirada como artista em todos os países nos quais se apresentou.
Em sua escravidão, Maria ficou presa no quarto, solitária, deprimindo-se; seu olhar se
perdia no nada, como se atrás de seus olhos não existisse ninguém. A triste menina Maria
estava morta havia algum tempo, e no dia 16 de setembro de 1977, depois de uma dor aguda
no lado esquerdo do tórax, o brilho da estrela Callas se esvaiu.
O lugar da voz na história de Maria
“O canto constitui uma expressão de nosso ser,
de um ser que está se formando.”
Maria Callas
381
Sigmund FREUD. Tratamento Psíquico (ou anímico). p. 275.
382
Friedrich NIETZSCHE. Assim Falou Zaratustra. p.266.
140
Nos idos de 1950, quando a música lírica ocupou lugar de destaque no cenário
mundial, Callas conquistou a admiração e o respeito de um público seleto e consagrou-se
como uma importante representante do gênero operístico do século XX, o que lhe garantiu
relevante posição no firmamento da arte lírica.
Assim, em um primeiro momento, ao se olhar a estrela Callas o que se vê são as
ofuscantes cintilações que, à vista desarmada, podem siderar nossos olhos. No entanto, em seu
Livro do Desassossego, Fernando Pessoa faz a seguinte observação a respeito dos corpos
celestes: “As estrelas mentem luz.
383
Impelida por sua ambição, Evangelia levava as filhas à biblioteca e estimulava-as a
lerem os “grandes livros os quais ela nunca leu -, sobretudo Tolstói, Victor Hugo e
Diante da intensa luminosidade da estrela Callas, resta-nos apertar os olhos para que
nos seja possível perceber sua face crepuscular, pois o que há de depressivo na triste menina
Maria está ofuscado pelo brilho da estrela.
Portanto, tratar da questão da manifestação dos traços depressivos em Maria Callas
implica, também, explicitar a singularidade de suas relações com sua própria voz e com a arte
lírica.
No meu entendimento, na história de Maria Callas, a voz é um elemento significativo
devido à importância que ela lhe atribuía. Para ela, “O canto constitui uma expressão de nosso
ser, de um ser que está se formando”.
Penso que a relação de Maria Callas com sua voz e com a arte do canto pode ser
abordada por meio de três aspectos que coexistem em seu psiquismo: como uma possibilidade
de ter acesso a uma imagem narcísica e valorizada de si, como sublimação e como insígnia
fálica.
Em decorrência da complexidade que esta questão coloca, ressalto algumas
experiências significativas da trajetória artística de Maria Callas, enfatizando o modo como
essas experiências, provavelmente, se inscreveram na esfera psíquica.
Aos 3 anos de idade, Maria teve seu primeiro contato com um instrumento musical:
uma pianola comprada por seu pai, George Kalogeropoulos.
No entanto, quem conduziu os primeiros passos de Maria no universo musical foi sua
mãe, Evangelia. Levada pela lembrança da gloriosa voz de seu pai, ela fez com que suas duas
filhas estudassem piano.
383
Fernando PESSOA. Livro do Desassossego. p.271.
141
Dostoiévsky. Porém, nada conseguia afastar Maria da prateleira onde ficavam os discos de
ópera.
Entendo que, apesar de ser impulsionada pelos desejos maternos, Maria não estava
inteiramente submetida a eles. Ainda criança, ela conseguiu contrapor-se ao desejo da mãe de
que ela lesse os “grandes livros” e seguiu seu próprio desejo, que a orientou no sentido dos
discos de ópera.
Apesar disso, suponho que Evangelia usava as filhas como objetos que poderiam vir a
compensar suas frustrações. Diante desta situação, penso que a única maneira de Maria atrair
para si o amor materno seria se ela carregasse consigo um atributolico que, para Evangelia,
era a habilidade vocal da filha.
No texto intitulado “Angústia e Identificação”, Aulagnier faz referência à
possibilidade de um objeto tornar-se, para a mãe da criança, um equivalente do falo que ela
[mãe] deseja.
A este respeito, a autora escreve: “(...) para a própria mãe, na castração, algo
permaneceu mal assumido. Então, qualquer objeto capaz de ser para o outro fonte de prazer e
alvo de demanda corre o risco de se tornar para a mãe o equivalente fálico que ela deseja.”
384
A autora acrescenta: “(...) a equivalência criança/falo (...) está no centro da gênese da maior
parte das estruturas neuróticas.”
385
O fragmento biográfico que se segue torna explícita a cena que, provavelmente, levou
Evangelia a alçar a voz da filha a uma insígnialica. Certa vez, em uma noite quente de
maio, quando Maria estava com 10 anos de idade, ela tocava piano e cantava La
Paloma”
Deste modo suponho que, para Evangelia, a habilidade vocal de Maria tornou-se um
equivalente fálico à medida que, cantando, a filha constituiu-se numa fonte de prazer e
orgulho para ela (mãe) e para as pessoas que a ouviam.
386
No meu entendimento, Maria identificou-se com a figura da mãe fálica e assumiu
como seu o ideal materno. Ao mesmo tempo que Maria sentia prazer em ouvir os discos de
ópera na biblioteca, Evangelia desejava transformar a filha numa estrela de fama
. Ao olhar pela janela, Evangelia viu as ruas cheias de gente escutando e
aplaudindo sua filha e se lembrou daquela noite, há tantos anos atrás, quando ela própria
estava sentada aos pés de seu pai, no alpendre, extasiada ao ouvi-lo cantar a ária do duque.
384
Piera AULAGNIER. Angústia e Identificação. Percurso n. 14 1/1995. p. 10; tradução do francês: Prof. Dr.
Renato Mezan.
385
Ibid.p.10.
386
Canção popular de Sebastián Iradier (1809-1865), composta depois de sua visita a Cuba. (Alan ISAACS &
Elizabeth MARTIN. Dicionário de Música Zahar. p.185).
142
internacional. A este respeito, certa vez, Evangelia afirmou: “O que eu queria para minha filha
era a fama. O dinheiro vinha em segundo lugar”.
Maria passou a viver em um longo e exaustivo circuito de espetáculos infantis,
programas de rádio, competições. A este respeito, já adulta, declarou com amargura: “Devia
haver uma lei contra esse tipo de coisas. (...) Com esse tratamento uma criança se torna adulta
antes da hora. Não se deve privá-la de sua infância.
No entanto, não foi da infância que Evangelia privou Maria, mas de seu amor
incondicional, pois todo amor e aprovação que Maria recebeu nessa época foram estritamente
condicionais ao fato dela realizar as aspirações maternas, dedicando-se à arte de cantar.
No meu entender, o amor de Evangelia não era dirigido à filha propriamente, mas à
possibilidade de tornar-se mãe de uma cantora de fama internacional e conquistar, com isso, a
admiração e o respeito das pessoas.
Aos 12 anos de idade, Maria fez uma importante descoberta: na escola, quando atuou
em “The Mikado”
387
387
Ópera cômica de Sir Arthur Seymor Sullivan (1842-1900), com libreto de W.S. Gilbert. (A. DALLA CORTE
& G.M. GATTI. Dizionario di Musica. p.617; tradução livre).
, ela recebeu aplausos e elogios dos colegas e entendeu, então, que sua
voz seria a única maneira de destacar-se na escola, além de conquistar a aprovação da mãe e
até mesmo, receber dela algum afeto. A cada dia que passava, Maria estava mais convencida
de que ela seria uma grande estrela.
Penso que esta convicção de Maria, de que ela se tornaria uma estrela, revela a
presença de um projeto identificatório fálico, constituído por identificação com o projeto
identificatório materno.
Compreendo que, na infância, Maria percebeu que sua voz poderia ser uma arma e,
com isso, o ato de cantar tornou-se, para ela, a única maneira possível de lutar contra o
desamor de Evangelia.
Em setembro de 1937, aos 14 anos, na Grécia, Maria apresentou-se para Maria
Trivella, professora do Conservatório Nacional; no dia do teste, ela ficou apavorada, como
quase sempre ficava antes de entrar no palco.
Apesar disso, Trivella ficou encantada com o talento de Maria, aceitou-a como aluna
de canto e de francês e ajudou-a a obter uma bolsa de estudos. A partir de então, Maria
Trivella tornou-se a primeira professora de Maria e também sua mãe substituta
provavelmente fálica, assim como Evangelia.
143
Deste modo, o papel de força propulsora que era desempenhado por Evangelia ficou
em segundo plano. Agora, Maria impulsionava a si mesma, apesar de sempre precisar de ter
ao seu lado alguém suficientemente convencido de seu dom e de sua grandeza.
Em 1939, quando Maria contava 16 anos, Evangelia soube que a cantora espanhola
Elvira De Hidalgo havia chegado à Atenas. Sob sua orientação, Maria começou a desenvolver
seus agudos e a descobrir seus graves.
Para Maria, De Hidalgo com sua aura de glória e seu conhecimento mágico de
mundos inteiramente novos da música - era uma fada madrinha. Assim, Maria passava dez
horas por dia no conservatório e, certa vez, declarou:Ficar em casa era impensável; eu não
saberia o que fazer lá”. Provavelmente, para ela, De Hidalgo representava um espelho que
refletia uma imagem adornada pelo brilho de uma promessa de sucesso na carreira lírica.
Em fins de novembro de 1940, Maria estreou profissionalmente no Teatro Lírico
Nacional, em Atenas, com a opereta Boccaccio”
388
À noite, durante os bombardeios, Maria e sua ir Jackie pegavam as gaiolas dos
canários e seguiam com Evangelia pelos degraus que levavam ao porão. Apesar de nunca ter
, de Von Suppé. Ela foi aplaudida,
elogiada e, pela primeira vez, reconhecida como cantora profissional, aos 17 anos de idade.
Depois do espetáculo, apesar de ter sido aplaudida por toda sua família, foi para De
Hidalgo que Maria correu em busca da confirmação de que trabalhara bem: “Trabalhara muito
bem”, disse-lhe a mestra. No mesmo instante, o nervosismo e o pânico de Maria se
desvaneceram.
Neste momento da vida de Maria, De Hidalgo adornou a imagem de Maria,
confirmando o que os aplausos do público já estavam dizendo: que ela havia cantado bem.
No dia 27 de abril de 1941, os alemães ocuparam Atenas. Nesta época, aos 18 anos de
idade, não foram poucos os obstáculos que Maria precisou transpor para continuar estudando:
as caminhadas de quilômetros para comprar alimentos nas montanhas, as balas que passavam
zunindo quando ela atravessava a rua para ir ao conservatório estudar, além da fome, da
miséria e do medo que permearam boa parte de sua adolescência, no período da Segunda
Guerra Mundial.
A despeito do medo que sentia, Maria infringia o toque de recolher e ia estudar todos
os dias na casa da mestra De Hidalgo, onde ficava o dia inteiro e só ia embora ao anoitecer.
388
Opereta em três atos de Franz Von Suppé (1819-1895), com libreto de Camillo Walzel e Richard Genée,
baseado na peça de Jean-Françoise-Antoine Bayard, Adolphe de Leuven, Leon Lévy Brunswick e Arthur de
Beauplan. (Alan ISAACS & Elizabeth MARTIN. Dicionário de Música Zahar. p.370).
144
se deixado afetar pelo medo dos ataques, quando a porta do abrigo fechava-se, Maria sofria
violentas náuseas.
A este respeito, compreendo o fechamento das portas do abrigo como um limite,
intransponível naquele momento, que impossibilitava Maria de ter acesso ao brilho da
imagem narcísica e valorizada de si refletida pelo olhar de De Hidalgo -, fazendo com que
ela ficasse forçosamente confrontada com seus medos e fragilidades.
Deste modo, fechada no abrigo juntamente com Evangelia e Jackie, Maria encontrava-
se desprovida de munição: na ausência do olhar de De Hidalgo, que revestia sua imagem com
o brilho que Evangelia nunca conseguiu atribuir à filha, como Maria poderia proteger-se da
desvalorização que era refletida pelo olhar materno?
Sobre a necessidade de Maria de apoiar-se em uma imagem valorizada de si enviada
pelo olhar do outro vale ressaltar que, nesta época, ela contava apenas 18 anos de idade e
estava no início de sua carreira.
É esperado que uma adolescente que sonhe em seguir a carreira artística e esteja
descobrindo que consegue dar seus primeiros passos nesse sentido, não seja segura de si e
necessite do apoio e da aprovação de seus mestres.
No decorrer de sua carreira, Maria teve condições psíquicas de se identificar com essa
imagem de si refletida pelo olhar do outro, integrando-a ao Eu e investindo-a como referência
identificatória.
A propósito da sublimão, em seu texto de 1914, intitulado “Sobre o Narcisismo:
uma introdução”, Freud considera que a sublimação(...) é um processo que diz respeito à
libido objetal e consiste no fato de o instinto se dirigir no sentido de uma finalidade diferente
e afastada da finalidade da satisfação sexual; nesse processo, a tônica recai na deflexão da
sexualidade.”
389
389
Sigmund FREUD. Sobre o Narcisismo: uma introdução. p.101.
Já na infância, o mundo da ópera foi se tornando um refúgio para Maria, que sofreu as
dores de ter nascido de uma mãe que parece nunca ter conseguido a-la verdadeiramente, e
de um pai que não a valorizou nem como menina e nem como artista.
Na biblioteca, longe de casa e da escola, ela conseguia se esquecer de suas tristezas e
de suas falhas reais e imaginárias e criar seu próprio mundo na fantasia da ópera.
No meu entendimento, esse movimento psíquico empreendido por Maria, no sentido
de mergulhar no mundo da ópera, revela os germes de seu potencial sublimatório.
145
No entanto, penso que, durante a infância e toda a adolescência de Maria, sua relação
com o mundo da ópera revela um ideal de ego investido libidinalmente - ainda que por
identificação com o ideal materno -, mas não pode ser considerada como uma atividade
predominantemente sublimatória.
No texto “Sobre o Narcisismo: uma introdução” (1914), Freud escreve:
A formação de um ideal do ego é muitas vezes confundida com a sublimação do
instinto (...). Um homem que tenha trocado seu narcisismo para abrigar um ideal
elevado do ego, nem por isso foi necessariamente bem-sucedido em sublimar seus
instintos libidinais. É verdade que o ideal do ego exige tal sublimação, mas não pode
fortale-la; a sublimação continua a ser um processo especial que pode ser
estimulado pelo ideal, mas cuja execução é inteiramente independente de tal
estímulo.
390
É precisamente nos neuróticos que encontramos as mais acentuadas diferenças de
potencial entre o desenvolvimento de seu ideal do ego e a dose de sublimação de seus
instintos libidinais primitivos (...). Além disso, a formação de um ideal do ego e a
sublimação se acham relacionadas, de forma bem diferente, à causação da neurose.
(...) a formação de um ideal aumenta as exigências do ego, constituindo o fator mais
poderoso a favor da repressão; a sublimação é uma saída, uma maneira pela qual essas
exigências podem ser atendidas sem envolver repressão.
Na história de Maria, o período da infância e da adolescência foi marcado, sobretudo,
pela presença da voracidade alimentar e pela obesidade daí decorrente.
Conforme referido, em sua infância, a voracidade alimentar e a obesidade, podem ser
compreendidas como uma defesa contra seu lado depressivo.
Na adolescência e parte da idade adulta, provavelmente, a ingestão exagerada de
alimentos foi um sintoma histérico, por meio do qual Maria obteve prazer oral, em detrimento
do prazer que poderia advir da sexualidade genital, que estava recalcada.
De acordo com Freud:
391
390
Sigmund FREUD. Sobre o Narcisismo: uma introdução. p.101.
391
Ibid. p.101.
Deste modo, entendo que, durante a infância e adolescência de Maria, é provável que a
sublimação da pulsão sexual e da agressividade tenha sido estimulada pelo ideal do ego, mas
o foi bem sucedida. Naquela época, o que imperava no psiquismo de Maria era a presença
do sintoma histérico da voracidade alimentar, que revela o retorno do material recalcado,
decorrente da falha do mecanismo do recalcamento.
146
Por outro lado, entre 1952 e 1954, Maria emagreceu vinte e oito quilos e passou a
pesar cinquenta e dois quilos, mantendo-se assim até o final de sua vida, em 1977, aos 54
anos de idade.
Simultaneamente à remissão do sintoma da voracidade alimentar, ressalto que até
1960, quando Maria contava 37 anos de idade, sua atividade sexual genital era praticamente
inexistente.
Apesar de ter sido casada com Meneghini durante onze anos - de 1949 a 1960 -, ele
não inspirava nenhuma atração erótica em Maria. Foi neste mesmo período que ela atingiu o
auge de sua carreira lírica, ou seja, dos 26 aos 37 anos de idade.
Suponho que, a partir do momento em que o sintoma da voracidade alimentar cessou,
provavelmente, a atividade sublimatória ocupou o primeiro plano no psiquismo de Maria
Callas, à medida que a pulsão sexual foi dirigida no sentido de uma finalidade diferente e
afastada da finalidade da satisfação sexual genital.
Na Conferência XXII, “Algumas Idéias Sobre Desenvolvimento e Regressão
Etiologia”, de 1915-1917, segundo Freud “(...) as pessoas adoecem de neurose quando
impedidas da possibilidade de satisfazer sua libido (...) adoecem devido à ‘frustração’ (...) e
seus sintomas são justamente um substituto para sua satisfação frustrada.
392
Segundo o mestre, “A atividade profissional constitui fonte de satisfação especial, se
(...) por meio de sublimação, tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos
instintivos persistentes ou constitucionalmente reforçados.
393
(...) como qualquer outro homem insatisfeito, [o artista] afasta-se da realidade e
transfere todo seu interesse, e também toda sua libido, para as construções plenas de
desejos, de sua vida de fantasia (...). Um artista encontra, porém, o caminho de retorno
à realidade (...) [porque ele] sabe como dar forma a seus devaneios de modo tal que
estes perdem aquilo que neles é excessivamente pessoal (...) possibilitando que os
outros compartilhem do prazer obtido nesses devaneios. (...) Ademais, possui o
misterioso poder de moldar determinado material até que se torne imagem fiel de suas
fantasias; e sabe, principalmente, pôr em coneo uma tão vasta produção de prazer
com essa representação de sua fantasia inconsciente, que, pelo menos no momento
considerado, as repressões são sobrepujadas e suspensas. (...) Se o artista é capaz de
tudo isso, (...) granjeia a gratidão e a admiração delas [das pessoas], e, dessa forma,
Na Conferência XXIII “Os Caminhos da Formação de Sintomas”, de 1915-1917,
Freud escreve:
392
Sigmund FREUD. Algumas Idéias Sobre Desenvolvimento e Regressão – Etiologia. p.384.
393
IDEM. O Mal-Estar na Civilização. p.88.
147
através de suas fantasias conseguiu o que originalmente alcançara apenas em sua
fantasia honras, poder e o amor (...).
394
Segundo Aulagnier, a capacidade sublimatória do Eu pressupõe que ele seja capaz de
(...) adaptar os objetivos pulsionais à realidade e às suas exigências, o que pressupõe que o
Eu seja capaz, no registro do prazer narcísico, de um trabalho de sublimação que lhe permitirá
sentir prazer investindo objetivos que se tornaram autônomos em relão aos objetivos
pulsionais primitivos.
Assim entendo que, na história de Maria Callas, por meio do trabalho de sublimação,
seu Eu encontrou uma possibilidade de metabolizar suas fantasias, inserindo-as em uma trama
relacional: encarnando heroínas e vivenciando outras histórias que, mais tarde, seriam
compartilhadas peloblico -, ela não se deixou dominar pelos benefícios secundários de sua
sintomatologia e pelas dores de sua história de menina mal-amada pelos pais.
395
394
Sigmund FREUD. Os Caminhos da Formão dos Sintomas. p.378; entre colchetes, interpolação minha.
395
Piera AULAGNIER. Prazer Necessário e Prazer Suficiente. In: Os Destinos do Prazer. p.135.
Compreendo que, para empreender a atividade sublimatória, o Eu deve ser dotado de
um potencial narcísico que coloca em ação a capacidade plástica da pulsão, ou seja, a
possibilidade de desviar o investimento libidinal que incide em um objeto erótico,
direcionando-o para outro objeto não sexual e obtendo, deste modo, uma satisfação pulsional
sublimada.
Deste modo, considero que o desejo de Maria Callas está orientado no sentido do
prazer que pode ser auferido do trabalho psíquico que está implicado no processo de criação.
A respeito da presença desse prazer no processo de criação, certa vez Maria Callas
declarou:Eu era como o atleta que sente prazer em utilizar e desenvolver os músculos, como
a criança que corre e salta, divertindo-se e crescendo ao mesmo tempo, como a menina que
dança por um puro deleite e ao mesmo tempo aprende a dançar.”
Considerando que Callas auferiu prazer da arte de cantar, suponho que a atividade
sublimatória possa ter desempenhado uma função organizadora em sua psique, à medida que
propiciou a produção de um bem socialmente valorizado a arte lírica -, desviando para este
fim os destinos das pulsões sexual e agressiva, que puderam ser satisfeitas indiretamente.
Além disso, compreendo que na história de Maria Callas, o prazer encontrado no ato
de cantar e no processo de criação dos personagens permitiu-lhe relativizar sua dependência
do olhar do outro, como forma de acesso a uma imagem narsica e valorizada de si, o que é
corroborado pelo fragmento biográfico que se segue.
148
Certa vez, em uma entrevista, Callas posicionou-se em relação à questão da verdade
dramática da interpretação, dizendo:
Não basta ter uma bela voz (...). O que isso significa? Quando interpreta um papel
você precisa ter mil nuaas para transmitir felicidade, alegria, tristeza, medo. Como
poderia fazer isso só com uma bela voz? Às vezes a expressão exige estridência. (...)
Pois seja estridente, ainda que as pessoaso compreendam. Com o tempo elas
acabarão compreendendo, porque você precisa convencê-las [convencer as pessoas da
verdade dramática da representação].
396
Durante anos me esforcei para criar essa qualidade doentia na voz de Violeta
No que se refere ao processo de crião de personagens, em outra ocasião, ela disse:
397
;
afinal, ela é uma mulher doente. Na verdade tudo se resume a uma questão de
respiração, e é preciso ter uma garganta muito limpa para sustentar esse cansaço na
maneira de falar ou cantar. E o que foi que eles [os críticos] disseram? Callas está
cansada. A voz está cansada. Mas era justamente essa impressão que eu queria criar.
No estado em que se encontrava, Violeta poderia cantar em tons grandiosos, altos,
sonoros? Seria ridículo. Ora, eles que digam o que bem entenderem. Eu canto do jeito
que canto.
398
Em seu texto “Personagens Psicopáticos no Palco” (1942[1905ou1906]), Freud
considera que é por meio do drama que o herói tem condições de expressar a luta e o
sofrimento que se passa em sua alma. Nas palavras do mestre: “(...) O drama nos leva para um
novo terreno em que se torna totalmente psicológico. Aqui, é na própria alma do herói que se
trava a luta geradora do sofrimento: são os impulsos desencontrados que se combatem
(...).”
Assim suponho que, para Maria Callas, a arte lírica cumpriu, também, a função de um
território no qual ela pôde encenar o drama que se passou nas regiões crepusculares de seu
psiquismo: a história da triste menina Maria.
399
O autor acrescenta, ainda, que: “(...) o drama precisa de uma ação que engendre
sofrimento (...) ela tem que por em jogo um conflito e incluir um esforço da vontade e uma
situação adversa.”
400
396
Entre colchetes, interpolação minha.
397
Violeta Valery (soprano) é o personagemtulo da ópera “La Traviata”, de Giuseppe Verdi (1813-1901). Na
última cena do ato III, em decorrência de uma tuberculose, Violeta está em seu leito de morte e canta uma ária
chamada “Addio del Passato”, que exige grande habilidade técnica e dramática. (Conde de HAREWOOD.
Kobbé. O Livro Completo da Ópera. p.325).
398
Entre colchetes, interpolação minha.
399
Sigmund FREUD. Personagens Psicopáticos no Palco. p.295.
400
Ibid. p.294.
149
Na história de Maria Callas, suponho que sua carreira lírica proporcionou-lhe os meios
necessários para transformar em arte as forças que habitavam as entranhas de seu ser,
colocando-as a serviço de sua capacidade dramático-interpretativa. A este respeito, ela
declarou:Uma ópera se inicia muito antes de abrir-se a cortina e termina muito depois que a
cortina se fecha. Começa em minha imaginação, torna-se parte de minha vida e como tal
permanece muito tempo depois que saio do teatro. A platéia vê apenas um excerto.
Penso que a capacidade de Callas de captar as nuanças dramáticas de um personagem
e de recriar essa percepção por meio do uso que faz da voz, é o que confere à obra de arte a
capacidade de produzir o efeito de deslumbramento no espectador, suscitando nele o mesmo
estado afetivo que levou o artista a engendrar sua obra.
Na história de Maria Callas, esse deslumbramento pode ser notado, por exemplo,
quando ela contava seus 34 anos de idade: na temporada de 1957 do Covent Garden, sua
“Norma” provocou aplausos tão ensurdecedores, que o teatro não teve alternativa senão
infringir sua rigorosa proibição do bis: Brava! Divina!” gritava a platéia, em delírio.
A este respeito, certa vez, Harold Shonberg, jornalista do “The New York Times”,
publicou: “Essa mulher tem algo que toca as vísceras de cada espectador. Enquanto tiver esse
algo, as pessoas vão derrubar as portas [do teatro] e gritar até ficarem roucas.”
401
401
Entre colchetes, interpolação minha.
Isso parece revelar a verdade contida nas representações desta grande artista. No meu
entendimento, a capacidade vocal e dramática de Maria Callas foram as chaves com as quais
ela abriu as portas do universo da música lírica e imprimiu sua marca na história da ópera.
No entanto, vale ressaltar que, no caso de Maria Callas, o fato de sua atividade
artística envolver processos sublimatórios não impede que o objeto voz seja, também, uma via
de acesso a uma imagem narcísica e valorizada de si e, ao mesmo tempo, desempenhe uma
função fálica, à medida que provoca a emergência do desejo no outro. Como já referido, no
meu entender, estes três aspectos parecem coexistir no psiquismo de Maria Callas.
Antes de tratar do aspecto fálico da relação de Callas com sua voz, permito-me uma
digressão para explicitar a diferença entre os termos falo e pênis, que não são sinônimos.
Conforme referido no capítulo 1, para Freud, no estádio da organização genital infantil
de primazia do falo -, as crianças acreditam que a menina foi punida com a castração de seu
pênis, por sustentar impulsos inadmissíveis (de amor e ódio) em relação às figuras parentais.
No entanto, o objeto central que organiza o complexo de castração não é onis,
enquanto órgão anatômico masculino, mas o seu valor simbólico.
150
Portanto, aquilo que as crianças percebem como atributo que é possuído pelos
meninos e ausente nas meninas se expressa, no registro psíquico, sob a forma de uma dialética
intra e intersubjetiva.
No que se refere à função do falo na dialética intra-subjetiva, para Laplanche &
Pontalis (1999), o complexo de castrão tem seu ponto de impacto no narcisismo. Segundo
eles, “(...) o falo é considerado pela criança como uma parte essencial da imagem do ego; a
ameaça a ele põe em perigo, de forma radical, essa imagem; ela tira sua eficácia da conjunção
entre esses dois elementos: predomincia do falo, ferida narcísica.”
402
A respeito da dialética intersubjetiva, os autores consideram que “O complexo de
castração deve ser referido à ordem cultural em que o direito a um determinado uso é sempre
correlativo a uma interdição. Na ameaça de castração que sela a proibição do incesto vem
encarnar-se a fuão da Lei enquanto institui a ordem humana.”
403
Para os autores, “(...) a castração é uma das faces do complexo das relações
interpessoais onde se origina, se estrutura e se especifica o desejo sexual do ser humano.”
404
Além disso, para eles, o complexo de castração é “(...) a condição a priori que regula a troca
inter humana enquanto troca de objetos sexuais (...).
405
Ainda a respeito do falo, Laplanche & Pontalis (1999) ressaltam que “(...) o que
caracteriza o falo e se encontra nas suas diversas metamorfoses figuradas é ser um objeto
destacável, transformável e, nesse sentido, objeto parcial.
406
Segundo Kehl (1997), “(...) o falo, simbolizável a partir de qualquer objeto ao qual
uma cultura atribua valor, não pertence a sujeito nenhum mas está ao alcance de todos.”
407
A partir das teorizações dos autores citados, suponho que a voz de Maria Callas foi
alçada a uma insígnia fálica. Para fundamentar esta hipótese, recorro ao “Seminário 11” de
Jacques Lacan, “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, datado de 1964, e
Assim, toda e qualquer coisa que seja revestida de um valor cultural e possa ser
pensada em termos de ter ou não ter poderá ser alçada, pelo sujeito, a uma insígnia fálica,
sendo passível de circular de uma pessoa para outra e podendo servir a uma competição
fálica.
402
Jean LAPLANCHE & Jean Bertrand PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. p.74.
403
Ibid. p.76.
404
Ibid. p.76.
405
Ibid. p.76.
406
Ibid. p.168.
407
Maria Rita B. KEHL. Os Deslocamentos do Feminino. A Mulher Freudiana na Passagem para a
Modernidade. p. 195.
151
esclareço que utilizarei deste autor apenas o conceito de objeto a, sem comprometer-me com
o restante de sua obra.
Antes de tecer qualquer consideração a este respeito, vale ressaltar que os
fundamentos teóricos deste trabalho estão assentados sobre as teorias de Sigmund Freud e de
Piera Aulagnier, que é freudiana, pois acompanhou Lacan apenas até a primeira fase de suas
teorizações nas quais ele se propôs a fazer o que chamou de “retorno a Freud” -, rompendo
com o mestre em 1969, conforme já referido.
Considerando que oSeminário 11” é datado de 1964 e, portanto, faz parte da
primeira fase das teorizações lacanianas, não se trata de um aporte teórico discordante dos
autores que ocupam lugar privilegiado nesta tese.
NoSeminário 11”, Lacan entende que O objeto a é algo de que o sujeito, para se
constituir, se separou como órgão. Isso vale como símbolo da falta, quer dizer, do falo
(...).”
408
Ainda a respeito do objeto a, Kaufmann (1996) esclarece: O pulsional passa
necessariamente pelas pulsões parciais (...). A lista dos objetos, especificados por zonas
corporais, culmina então nos quatro objetos da sucção, da excreção, do olhar e da voz. (...)
Será essa a lista dos objetos a (...) mais precisamente a lista dos ‘estilhaços’ do objeto a.”
409
Na interpretação de Violante, para Lacan (...) a voz, enquanto objeto a, causa de
desejo, possui uma função fálica na medida em que busca fazer emergir o desejo no
Outro.”
410
(...) todo som emitido, seja pelo emissor, pelo infans ou pelo exterior, volta ao
seu ouvido como uma produção que o mundo lhe devolve, testemunho
antecipado do prazer ou do sofrimento que acompanharão sua permancia,
numa cena onde o discurso é senhor. Seu próprio grito ou seu próprio balbucio,
irrompem na sua cavidade auditiva como som de ódio ou de amor (...).
No que se refere à voz emitida e ouvida pelo bebê, Aulagnier escreve:
411
408
Jacques LACAN. Seminário 11. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. p.101.
409
Pierre KAUFMANN. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise. O Legado de Freud e Lacan. p.377.
410
Maria Lucia Vieira VIOLANTE. De Lacan a Piera Aulagnier. Texto Inédito.
411
Piera AULAGNIER. A Representação Fantasmática do Processo Primário: imagem de coisa e imagem de
palavra. In: A Violência da Interpretão. p.89-90.
Considerando as teorizações dos autores citados, suponho que, em um tempo anterior
à aquisição da linguagem, ao oferecer seu balbucio a Evangelia, provavelmente, a pequena
Maria percebeu a informação libidinal contida nas palavras maternas como sendo o desejo da
mãe de lhe recusar o prazer.
152
No entanto, Maria possuía outro objeto capaz de fazer emergir o desejo em Evangelia
e, mais tarde, no público das renomadas casas de ópera: a voz.
A este respeito, certa vez, ela disse: “Só quando estava cantando eu me sentia amada.
Mas, a que preço? Talvez, ela tenha querido dizer que se sentia amada apenas nos momentos
em que se submetia aos desígnios maternos.
Assim, suponho que Maria trazia consigo a ideia de que, em seu corpo, estava ausente
algum atributo que sua mãe valorizava e que, portanto, ela deveria ter para ser amada.
Considero que na história de Maria, no registro do primário, a posse da voz equivaleria
à posse do objeto seio; controlar a voz estaria relacionado ao controle (imaginário) sobre a
presença ou ausência deste seio e do prazer ou desprazer que ele pode dar.
Para Callas, suponho que a voz/canto seja um atributo fálico que está a serviço de uma
demanda oral, ou seja, por meio da voz ela fazia emergir o desejo no outro e isto satisfazia sua
demanda identificatória. Assim, Maria devorava o desejo do público em relação a ela, desejo
este que surgia como uma serpente diante do som da flauta de seu encantador.
No meu entendimento, o fragmento biográfico que se segue é o que melhor revela o
aspecto fálico da relação que Maria manteve com sua voz. No auge de sua carreira lírica, em
uma de suas viagens a Áustria, ao chegar ao hotel, Maria se deu conta de que não trazia
consigo a miniatura a óleo com a imagem de Nossa Senhora, que sempre a acompanhava.
Depois de telefonemas frenéticos para Milão, a imagem foi encontrada no quarto que
ela havia ocupado, e um amigo seguiu para Viena com a incumbência de colocá-la em suas
mãos antes da estréia.
Maria era muito apegada a sua Madonnina; sua devoção à imagem ia muito além de
mero capricho ou de uma superstição sem sentido: traduzia sua convicção em grande parte
inconsciente de que os deuses lhe haviam concedido poderes excepcionais e a qualquer
momento poderiam reto-los.
A respeito desta convicção de Maria de ter recebido poderes vocais dos deuses como
uma prova de amor , depois de uma de suas récitas de “Lucia di Lammermoor”, quando ela
voltou ao palco vinte e duas vezes para agradecer os aplausos, na Lyric Opera of Chicago,
declarou: “A justiça existe e foi feita. Deus existe e me tocou com seu dedo.
Maria realmente acreditava que sua voz era um dom divino e, portanto, ela deveria ser
eternamente grata e devota aos deuses, o que se expressava por meio de seu apego à imagem
da Madonnina.
153
No meu entendimento, o apego de Maria Callas à imagem da Madonnina, bem como
sua convicção de ter sido agraciada pelos deuses, recebendo deles o dom de cantar, sugere a
presença de uma divisão psíquica.
Em “Esboço de Psicalise(1940[1938]), Freud considera que, nas psicoses, ocorre
uma divisão psíquica, ao escrever: Duas atitudes psíquicas formaram-se (...) uma delas, a
normal, que leva em conta a realidade, e outra que, sob influência dos instintos, desliga o ego
da realidade. (...) Se a segunda (...) se torna a mais forte, a pré-condição necessária para uma
psicose acha-se presente.”
412
Segundo Aulagnier, “(...) o Eu é a única instância que deve obrigatoriamente investir a
realidade e os objetos realmente presentes nesta cena. No registro da neurose, o desvio, o
desconhecimento, a negação são compromissos assumidos pelo Eu para preservar estes
investimentos, e é por isso que eles concernem a um fragmento
No caso de Maria Callas, diferentemente do que ocorre nas psicoses, o Eu não efetuou
uma retirada do investimento libidinal na realidade e nos objetos nela presentes.
413
da realidade.”
414
412
Sigmund FREUD. Esboço de Psicanálise. p.215.
413
Grifo meu.
414
Piera AULAGNIER. As Exigências do Eu. In: Os Destinos do Prazer. p.106.
A partir das teorizações de Freud e Aulagnier, entendo que o discurso de Callas não se
configura como uma tentativa de o Eu de substituir uma realidade que foi anteriormente
recusada, como ocorre na psicose.
Considerando que, para Maria, sua voz era um atributo fálico, compreendo que ela
trazia consigo a convião de que, como uma prova de amor, os deuses concederam-lhe
poderes vocais e, em decorrência disto, ela passou a ocupar a posição daquela que detinha o
falo.
A imagem da Madonnina manifesta sua devoção aos deuses e, ao mesmo tempo,
aquilo que poderia protegê-la da angústia decorrente da possibilidade de perder a voz.
Conforme referido no capítulo 1, segundo Aulagnier, depois do Édipo, a angústia de
castração poderá sempre ressurgir sob a forma de um terror de ser privado de um bem que,
ausente, torna-se obstáculo ao prazer.
De acordo com as postulações da autora, compreendo que Maria foi tomada pela
angústia de castração diante da possibilidade de entrar no palco sem a imagem da Madonnina
porque, talvez, isso representasse um ato de ingratidão dela em relação aos deuses que,
furiosos, poderiam retomar seus poderes vocais, impedindo-a de obter prazer por meio da voz.
154
Tenho como hipótese que a ideia de Maria Callas de ter sido tocada pelos deuses é um
desvio parcial operado pelo Eu no registro da neurose -, na tentativa de dissimular a
angústia de castração a fim de preservar seu investimento na realidade.
155
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Minhas esperanças chegaram aos
céus e depois ruíram. Oh, não.
Chega de tantos altos e baixos.
Prefiro ficar em baixo o tempo todo.”
Maria Callas
Desde meus tenros anos de infância, a música exerce sobre mim uma atração
extraordinária, especialmente a música lírica. Ainda criança, deleitava-me ouvindo discos de
ópera em uma pequena vitrola azul. Foi assim que conheci Maria Callas, a estrela.
Em um primeiro momento, para mim, Maria Callas era uma voz, que eu podia ouvir e
apreciar suas qualidades formais, técnicas e interpretativas. Em seu repertório, nunca uma
peça rica me causou tanta impressão como Vissi D ‘arte” da ópera “Tosca”, de
Giacomo Puccini e Casta Diva”da ópera “Norma”, de Vincenzo Bellini.
Ao ouvir Maria Callas nas peles de “Tosca” e “Norma”, era paralisada pelo
espetáculo de sua voz e pelo efeito geral do personagem. Em outras palavras, era siderada
pelo brilho da estrela.
Por ocasião de meu encontro com sua biografia - escrita por Ariana Stassinopoulos
Huffington -, tive a oportunidade não apenas de ouvir Callas, mas de escutar a história de
Maria.
À maneira como Freud procedeu em “Notas Psicanaticas Sobre um Relato
Autobiográfico de um Caso de Paranóia (Dementia Paranoides)”, de 1911 - entre outros -,
sensibilizada, pude perceber que, na história de Maria Callas, o brilho daquela voz de
magnífica beleza não reinava soberano na cena psíquica, mas ofuscava aspectos depressivos e
crepusculares de seu ser.
Impactada pela nitidez do contraste produzido pela coexistência de aspectos brilhantes
e depressivos no psiquismo de Maria Callas, empreendi uma leitura psicanalítica do texto
biográfico, com a finalidade de lançar luz sobre o problema da depressão na histeria feminina.
No meu modo de entender, na biografia de Maria Callas, a nítida presença do contraste
entre os aspectos brilhantes e depressivos tomado por meio de uma leitura-escuta flutuante
produziu um material que, na clínica, teria de ser arduamente extrdo pelo trabalho analítico.
Isto porque é pouco comum recebermos em nossos divãs figuras dotadas de tamanho
brilho e de tão sólido reconhecimento. Na clínica, nem sempre o contraste entre os aspectos
156
brilhantes e depressivos do paciente apresenta-se tão nítido como ocorre na biografia de Maria
Callas.
Apesar disso, empreender a leitura psicanalítica do texto biográfico que come esta
pesquisa constituiu, para mim, uma árdua tarefa. A ausência do material derivado das
associações livres dificultou meu trabalho, como analista, de trazer à tona os processos
psíquicos do sujeito.
Diante da impossibilidade de lidar com Maria Callas de modo a fa-la recordar
quando e frente a quais acontecimentos ela encontrou motivos para manifestar seus traços
depressivos, contentei-me em salientar aqueles aspectos de seu funcionamento psíquico que
remontam a sua provel história libidinal e identificatória.
Nesta pesquisa, o texto biográfico ocupou o lugar daquilo que, em um contexto
clínico, viria a ser o relato do paciente. Isto torna legítimo fundamentar minhas interpretações
analíticas nos fragmentos biográficos de um sujeito que nunca conheci.
As motivações iniciais, que me levaram a empreender esta investigação tiveram
origem no trabalho clínico com pacientes histéricas. Na relão transferencial com uma destas
pacientes, constatei que os traços depressivos manifestavam-se justamente no momento em
que sua vida era marcada por importantes conquistas profissionais e pessoais.
Pude perceber, também, que ela se sentia decepcionada diante da distância existente
entre a satisfação que ela imaginava encontrar e aquela que, de fato, encontrava. Assim, a
distância que deveria impulsioná-la para novos projetos de vida provocava, na paciente, um
intenso desprazer e deflagrava os traços depressivos.
Em seus primeiros escritos, datados de 1892-3, Freud já havia reconhecido, nas
neuroses, a presença primária de uma tendência à depressão. Em seu texto “Um Caso de Cura
pelo Hipnotismo”, ele escreve: “(...) quando há uma neurose presente e não me estou
referindo explicitamente apenas à histeria, mas ao status nervosus em geral -, temos de supor
a presença primária de uma tendência à depressão e à diminuição da autoconfiança (...).”
415
415
Sigmund FREUD. Um Caso de Cura pelo Hipnotismo. p.163.
Além disso, o autor considerou a depressão como um sintoma que pode figurar em
diversas organizações psíquicas e identificou a presença de aspectos depressivos em algumas
de suas pacientes histéricas.
No entanto, Freud não tece considerações a respeito das circunstâncias que podem
favorecer a manifestação dos tros depressivos na histeria feminina.
157
No meu entender, este silêncio acerca da elucidação dos aspectos depressivos, pode
dever-se ao fato de a clínica freudiana ter sido constituída, sobretudo, por pacientes adultos
neuróticos.
Em decorrência disto, o mestre não precisou entrar em contato com os pais de seus
pacientes, o que é imprescindível na análise infantil e de pacientes psicóticos. Por esta razão,
não lhe foi possível abordar a problemática psíquica dos pais de seus pacientes e,
consequentemente, o desejo entre o casal e os filhos e entre si.
Piera Aulagnier, por meio de sua vasta experiência analítica com psicóticos, ressaltou
o lugar do desejo dos pais entre si e do desejo de cada um pelo(a) filho(a) o que depende da
constituão psíquica deles - na constituição do sujeito psíquico.
A partir das contribuições de Piera Aulagnier psicanalista que ampliou o modelo
freudiano nos aspectos metapsicológico, psicopatológico, metodológico, técnico e ético -,
considero que, no caso de Maria Callas, a provável fixação da libido na fase oral tenha se
estabelecido em virtude de uma possível carência de investimento libidinal materno, de modo
prevalente.
Conforme referido, nos antecedentes históricos de Maria Callas, pude constatar a
presença do desejo dos pais de trazer à luz um menino, além da dificuldade de a mãe,
Evangelia, de modo prevalente, de investir libidinalmente no be.
Para Aulagnier,
(...) o discurso dos pais e aquilo que podemos observar de seu comportamento em
presença de seu filho, podem nos permitir deduzir com certas provas de apoio o que
pôde manifestar-se disso na relação deles com o infans, o que se traduziu disso nas
expressões, nas comunicações, na qualidade, na intensidade, na forma, do
investimento deles para com o bebê. (...) Aqui, estamos exatamente no registro do
manifesto.
416
416
Sigmund FREUD. Um Caso de Cura pelo Hipnotismo. p.125.
No meu entender, a dificuldade de Evangelia de investir libidinalmente esta filha pode
ser inferida, especialmente, pela maneira como reagiu ao saber que havia dado à luz uma
menina: recusando-se a olhar, a falar e a acolher Maria em seus braços. Além disso, ela
permaneceu em silêncio durante três dias, pensando em Vasily, o filho que havia falecido aos
três anos de idade, em 1923 - portanto, no mesmo ano em que Maria nasceu.
A partir destes fragmentos biográficos presumo que, em seus primeiros momentos de
vida, é provável que Maria tenha sido confrontada com o afeto de desprazer decorrente da
carência do investimento libidinal materno, de modo prevalente.
158
Em decorrência disso, talvez, possa ter havido uma demanda primária que é
demanda de libido, que visa o desejo materno satisfeita apenas com um “mínimo de prazer”
e, como consequência, uma identificação primária que é a identificação com as percepções
coextensivas à resposta materna à demanda primária do be - inscrita psiquicamente por
meio de um pictograma de rejeição, antes que de fusão.
Assim sendo, no momento do advento do Eu, no estádio do espelho - quando, por
meio da identificação especular ou imaginária o Eu se identifica com a resposta ao desejo
materno -, o Eu de Maria não deve ter podido assumir-se com pleno júbilo.
Na história de Maria, isto se revela no momento em que, certa vez, ao recordar de suas
experiências da infância, afirmou que se sentia “Detestada e detestável”, porque não tinha
dúvida de que era “um patinho feio, gordo, desengonçado e malquisto”.
Deste modo, entendo que, em sua provável história libidinal e identificatória, pode ter
havido uma fixação da libido na fase oral, o que se manifesta por meio do sintoma da
voracidade alimentar, que se fez presente desde sua infância e adolesncia, até parte da idade
adulta.
Afora isso, a fixação da libido na fase fálica revela-se por meio das relões
triangulares, das escolhas de objeto amoroso, bem como da profissão de cantora, o que inclui
a voz e o lugar que esta ocupa na dialética intra e interpsíquica de Maria Callas.
Saliento, ainda, que, durante toda sua vida, Maria sentiu-se desamada pelos pais, o que
é explícito em passagens como: “(...) Nunca tive pai nem mãe.” Em outra passagem, encontro:
“Parece câncer. Nunca vou me livrar dela [mãe] e de suas conseqüências”.
417
417
Entre colchetes, interpolação minha.
Penso que estas palavras de Maria, provavelmente, constituem cicatrizes de sua
experiência de ter se deparado, logo nos primeiros momentos de vida, com a figura materna,
que lhe negou o olhar, a palavra e o afeto.
A partir da clínica, das teorizações dos autores que ocupam lugar privilegiado nesta
investigação e da leitura psicanatica dos fragmentos biográficos de Maria Callas, minha
contribuição com esta pesquisa consiste no que constitui minha tese, segundo a qual “na
provável história libidinal e identificatória de Maria Callas, a fixação da libido na fase oral -
que pode ter se estabelecido em virtude da carência de investimento libidinal materno, de
modo prevalente -, podevir a ser um fator facilitador para a manifestação de traços
depressivos, em sua possível constituição psíquica histérica.”
159
No que diz respeito à tese, devo esclarecer que, com a finalidade de compreender o
problema da depressão na histeria feminina - a partir da singularidade da provável história
libidinal e identificatória de Maria Callas -, além da fixação da libido na fase fálica, ressaltei
a questão da problemática materna e da possível fixação da libido na fase oral.
A respeito do lugar da problemática materna na constituição do sujeito psíquico,
Aulagnier escreve: “Pode-se mesmo com razão atribuir um papel prevalente à problemática
materna. Mas, não se pode ir mais longe atribuindo-lhe a exclusividade de um poder patógeno
sobre a criança, a menos que se partilhe a fantasia de onipotência que a criança imputa à
mãe.”
418
Segundo Aulagnier, “(...) o discurso clínico ultrapassa sempre nossa contrapartida
teórica; se ele pretende ilustrar nossas hipóteses, esclarece ao mesmo tempo aquilo que elas
deixaram na sombra.”
Deste modo, por meio de uma leitura psicanalítica, extraí artificialmente dos dados
biográficos de Maria Callas, apenas o material que julguei necessário e apto a fornecer uma
possível resposta sobre a questão de suas manifestações depressivas.
419
Conforme foi exaustivamente discutido no catulo 3, na provel história libidinal e
identificatória de Maria Callas, além da coexistência da problemática oral e fálica é possível
Portanto, a problemática materna e a provável fixação da libido na fase oral que
foram por mim iluminadas nesta tese -, são elementos parciais que come apenas uma
faceta do prisma psíquico de Maria Callas: a faceta crepuscular, relativa aos aspectos
depressivos.
No meu entendimento, na história de Maria Callas, os traços depressivos apresentam-
se em filigrana, pois é possível vislumbrá-los em contraste com as intermitentes cintilações
dos aspectos fálicos que compõe seu psiquismo.
Assim, ao analisar as manifestações depressivas de Maria Callas do ponto de vista
dinâmico e econômico, concluí queo sintomas que se incluem no registro da neurose
mais especificamente, da neurose histérica.
Isto porque a complexidade de uma organização histérica é marcada pela coexistência
da problemática oral que, na história de Maria se manifesta, sobretudo, pela voracidade
alimentar e da problemática lica que inclui a voz, a profissão de cantora, as escolhas de
objeto amoroso, bem como as relações triangulares.
418
Piera AULAGNIER. O Conflito Psicótico. In: Um Intérprete em Busca de Sentido II. p.130
419
Ibid. p.142.
160
inferir, também, a presença de outros elementos que justificam a hitese diagnóstica da
histeria feminina, como por exemplo:
1. o recalcamento da sexualidade genital, que esteve presente na história de Maria até
os 37 anos de idade e se manifestou, sobretudo, pela ausência de atração erótica por qualquer
homem, na adolesência e, na idade adulta, marcou sua vida conjugal com Meneghini;
2. identificação com a figura da mãe da fase oral, ou seja, a mãe fálica, à medida que
Maria realizou os anseios glória e poder de Evangelia, transformando-se em uma cantora de
fama internacional;
3. identificação, por meio da qual a histérica se apropria de aspectos femininos de
uma mulher que ocupa o lugar de modelo, o que se manifesta pelo vínculo de cumplicidade e
intimidade que permeou a amizade de Maria e Maggie van Zuylen;
4. identificação com o aspecto frágil da figura paterna, pois George era um homem
desprezado por Evangelia, ao que se acresce aspectos próprios seus, como a submissão à
esposa. Essa identificação com a figura paterna, no meu entender, foi o que fez com que
Maria demandasse ao outro da relação amorosa, que fosse superior à figura paterna e
desempenhasse não apenas o papel de amante, mas também o de pai;
5. conflito identificatório entre o Eu e seus ideais que, segundo Aulagnier, ocorre na
potencialidade neurótica e, na história de Maria, manifesta-se, sobretudo, pela constante
insatisfação que ela sentia diante de suas conquistas profissionais e de suas escolhas
amorosas.
6. Além disso, é relevante, também, o fato de que as decepções que Maria
experimentou em sua vida profissional não foram suficientes para abalar sua determinação o
que, no meu entendimento, revela a presença de um projeto identificatório libidinalmente
investido.
Considero que as manifestações depressivas na histeria feminina colocam uma questão
relativa à escuta do analista.
Penso que, ao analista, não é suficiente apenas reconhecer a presença de aspectos
depressivos em alguns de seus pacientes. Afinal de contas, Friedrich Nietzsche (1967)
havia assinalado que “Todos nós sangramos em altares secretos. Todos nós ardemos e nos
consumimos em honra a velhos ídolos.
420
No meu entender, é imprescindível que o analista tenha condições de compreender o
lugar e a função que os aspectos depressivos assumem na vida do paciente. Para isto, penso
420
Friedrich NIETZSCHE. Obras Completas. p.45.
161
que - além da análise pessoal e da supervisão - a metapsicologia e a psicopatologia são os
únicos instrumentos de que o psicanalista dispõe.
Para Aulagnier, “A metapsicologia nos fornece um conhecimento sobre as leis
econômicas desse aparelho [psíquico], sobre as condições psíquicas responsáveis e
necessárias para sua evolução, assim como sobre aquelas que podem obstaculizar isso.
421
Aulagnier escreve: Nenhum sujeito é redutível à sua sintomatologia.
É por meio destes instrumentos que o analista poderá ter condições de estabelecer a
relação entre a sintomatologia e o possível conflito identificatório que a deflagrou, sem
incorrer em uma semiologia sumária, que se preste apenas para identificar a presença de uma
alterão psicopatológica no sujeito.
422
Ao interpretar “Norma”, por exemplo, no momento de louvor à Deusa dos druidas,
com a oração “Casta Diva”, no meu entendimento, Maria Callas foi até o limite do que é
exprivel por meio da arte, dando forma às suas experiências internas relativas à figura
materna, quando ela canta: “(...) Vira para nós o teu belo semblante, sem nuvem e sem véu
(...).”
No meu
entender, a genialidade de Maria Callas não pode se perder na sintomatologia. É relevante o
fato de ela ter construído sua carreira e ter sido reconhecida profissionalmente, apesar de seus
infortúnios afetivos.
Penso que, na história de Maria Callas, a realização profissional e o reconhecimento,
conquistados por meio da atividade artística, foram o que a impediu de perder-se no
torvelinho dos benefícios secundários de sua sintomatologia.
Na história de Maria, o que está ofuscado pelo brilho da estrela é a distância afetiva
entre ela e a figura materna, que fez com que ela enxergasse a mãe através de uma névoa,
vendo-a como uma figura sombria e quase ameaçadora. Essa história sem palavras é o drama
de Maria, que se passa em nas entranhas crepusculares da estrela.
423
A própria Callas reconheceu a semelhança entre a história da heroína “Norma” e a
sua: “Talvez [“Norma”] tenha algo de minha própria personalidade. A mulher insatisfeita,
orgulhosa demais para revelar seus sentimentos prova no fim que não é nada disso, embora
rosne como uma leoa.
424
421
Piera AULAGNIER. Os Dois Princípios do Funcionamento Identificatório: permanência e mudança. In: Um
Intérprete em Busca de Sentido II. p.185; entre colchetes, interpolação minha.
422
Ibid. p.190.
423
Vincenzo BELLINI. Norma. p. 157.
424
Entre colchetes, interpolação minha.
162
Suponho que, na história de Maria, por um lado, a experiência do desamor foi o drama
que evocou os sentimentos representados em seu semblante nos momentos em que ela entrava
na pele das heroínas das óperas, que lhe emprestavam palavras para colo-lo em ato.
Por outro lado, foi esse mesmo drama que La Callas tentou, obstinadamente, manter à
distância, encobrindo-o com seu brilho.
No meu entendimento, na história de Maria, esse sentir-se desamada pelos pais,
somado à efetiva desvalorização sofrida da parte de Evangelia, constituíram a fonte das
angústias subjacentes ao brilho da estrela Callas.
Assim, suponho que, para Maria Callas, a ópera foi o elemento capaz de cicatrizar,
momentaneamente, o hiato existente entre a estrela Callas e a menina Maria, pois, em sua
vida, Callas permitiu que Maria entrasse em cena apenas nos momentos que lhe foi possível
encarnar sua tristeza e sua dor na pele das heroínas das óperas.
Penso que, independente da roupagem que o sintoma histérico possa vir a assumir
sempre, no paciente, um desejo de ressignificação de si e de significação do aparente non
sense do sintoma.
É isto que precisa encontrar ressonância na escuta do analista para que ele tenha
condições de proporcionar ao paciente por meio de sua compreensão e de sua intervenção
a possibilidade de conjugar de outra maneira os verbos ser (no registro identificatório) e ter
(no registro objetal), remodelando uma parte das construções, por meio das quais ele se
contava sua própria história.
A experiência clínica dá provas de que somente deste modo será possível, ao analista,
vincular um determinado femeno cnico universal, segundo a teoria, à singularidade da
suposta história libidinal e identificatória do paciente.
Por isso, aquilo que no analista escuta, precisa estar sensível a qualquer rugosidade na
superfície da fala (ou do ato) do paciente, que possa denunciar a presença de uma
condensação, que reúne pensamentos distintos em uma palavra ambígua, mostrando e ao
mesmo tempo, ocultando os sentidos.
É por meio desta escuta que a histérica poderá renunciar aos benefícios secundários de
sua sintomatologia, engendrando outras imagens, outros sentidos que lhe permitam relativizar
as organizações formais que a agrilhoam, porque não mais comportam as exigências da vida
que borbulha e pede passagem.
163
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