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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
ALTERIDADE E SENTIDO ÉTICO DA RELIGIÃO
NA FILOSOFIA DE EMMANUEL LÉVINAS
JOSÉ GERALDO ESTEVAM
BELO HORIZONTE
2010
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JOSÉ GERALDO ESTEVAM
ALTERIDADE E SENTIDO ÉTICO DA RELIGIÃO
NA FILOSOFIA DE EMMANUEL LÉVINAS
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Reli
g
ião da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, como requisito parcial para
obtenção do título de mestre.
Orientador: Prof. Dr. Márcio Antônio de Paiva
BELO HORIZONTE
2010
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Estevam, José Geraldo
E79a Alteridade e sentido ético da religião na filosofia de Emmanuel Lévinas /
José Geraldo Estevam. Belo Horizonte, 2010.
106f.
Orientador: Márcio Antônio de Paiva
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião.
1. Lévinas, Emmanuel, 1905-1995. 2. Alteridade. 3. Ética. 4.
Religião. 5. Responsabilidade. I. Paiva, Márcio Antônio. II. Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião. III. Título.
CDU: 177.9
JOSÉ GERALDO ESTEVAM
ALTERIDADE E SENTIDO ÉTICO DA RELIGIÃO
NA FILOSOFIA DE EMMANUEL LÉVINAS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito parcial para obtenção do título de
mestre.
--------------------------------------------------------------------
Prof. Dr. Márcio Antônio de Paiva (Orientador) – PUC Minas
--------------------------------------------------------------------
Prof. Dr. Eduardo Gross – UFJF
--------------------------------------------------------------------
Prof. Dr. Flávio Augusto Senra Ribeiro - PUC Minas
Belo Horizonte, 05 de abril de 2010
AGRADECIMENTOS
À minha esposa Nina,
Mulher e companheira que, neste tempo de recolhimento dedicado à pesquisa, revelou-me
aquilo que Lévinas (1982b, p.58) descreve como a origem do próprio conceito de alteridade:
o feminino, cuja presença é discretamente uma ausência e a partir da qual se realiza o
acolhimento hospitaleiro por excelência. (LÉVINAS, 1980, p.134).
Aos meus pais,
Pela sensibilidade e cuidados paternais (e maternais) na educação de seus cinco filhos. Sequer
ouviram falar do filósofo de Kaunas, mas encarnaram suas palavras na fecundidade – e a
partir das possibilidades de que seus filhos – ultrapassassem as possibilidades inscritas na
natureza do ser. (LÉVINAS, 1982b, p.62).
Ao Professor Dr. Pe. Márcio Antônio de Paiva, pela sábia orientação levada com esmero
nestes mais de dois anos, período em que descobri que filosofar é também crer, é manter-se
aberto rumo ao futuro que se propugna com a reflexão filosófica. (PAIVA, 2000, p. 230).
Aos demais professores do Programa do Mestrado em Ciências da Religião da PUC-MINAS,
extensivo à Professora Dra. Jaqueline de Oliveira Moreira do Mestrado em Psicologia e,
especialmente, ao Professor Dr. Flávio Augusto Senra Ribeiro, pelo precioso trabalho na
Coordenação do PPGCR, e pela leitura minuciosa com que me prestigiou, do capítulo
entregue para a qualificação.
Aos Frades da Província de Santa Cruz, pela convivência fraterna, reflexo do carisma
proposto por São Francisco de Assis. E a todos os amigos que me fizeram compreender as
palavras de Lévinas (2002, p.199) de que O próprio movimento que conduz a outrem conduz
a Deus.
Resumo
A filosofia de Emmanuel Lévinas (1906-1995) filósofo de origem judaica, nascido em
Kaunas na Lituânia e naturalizado francês destaca-se pela primazia da ética em relação à
ontologia que desde a origem da filosofia na Grécia Antiga, reinou absoluta sobre todas as
outras formas de saber. Ao propor esta inversão sua proposta além de reconhecer o outro em
sua alteridade, possibilita ao eu romper com a prisão de si mesmo. Nesse sentido, Lévinas
sinaliza para um outro modo de ser em que o eu assumi sua responsabilidade para com o
outro de forma desinteressada, numa abertura para o infinito na sua separação e exterioridade
que desvela a transcendência da ética. Na linguagem levinasiana a ética deve ser entendida a
partir do serviço profético no qual a justiça e a igualdade social são estabelecidas na relação
em que o eu é sempre o primeiro a responder pelo outro e por toda a humanidade. Nessa ótica
a ética passa a ser entendida como religião e o rosto do outro como aquele que manifesta o
vestígio de Deus que vem à ideia sem que esta consiga tematizá-lo ou conhecê-lo. O sentido
ético da religião, portanto, origina-se na socialidade cuja transcendência e glória do infinito
estão no outro que liberta o eu de seu egoísmo e a filosofia de seu dito ontológico.
Palavras-chave: Ética; Alteridade; Religião; Responsabilidade; Sentido.
Abstract
The philosophy of Emmanuel Lévinas (1906-1995); a Jewish philosopher who was
born in Kaunas, Lithuania, was naturalized French; excels by its ethics primacy in relation to
ontology that ever since the origin of Ancient Greek Philosophy, reigned absolutely over
other ways of thinking. By proposing this inversion, he goes beyond, not only recognizing the
other in its alterity but, also makes it possible for the “I” to release from the prison of self.
Thus Lévinas signalizes to a different way of being in which the “I” takes responsibility for
the other in a disinterested way, in an opening to infinity in its separation and exteriority that
reveals ethics transcendence. On levinasian language, ethics should be understood from the
prophetic point of view on which both justice and social equality are established in the
relation to which the “I” is always the first to answer by the other, as well as for the whole
humankind. From this view, ethics can be understood as religion, and the other’s face as the
one who is able to manifest the trace of God who comes to mind in a way that it can neither
thematize nor know him. The ethical sense of religion, therefore, has its origin at sociality
whose transcendence and glory of the infinite are both on the other who free the “I” from
selfishness and Philosophy from ontological dictum.
Key-words: Ethics; Alterity; Religion; Responsibility; Sense.
ABREVIATURAS DAS OBRAS CITADAS DE EMMANUEL LÉVINAS
AE De Otro Modo que ser: o más de la esencia
DEE Da existência ao existente
DL Difícil Libertad
DMT Deus, a morte e o tempo
DSS Do Sagrado ao Santo
DV De L’évasion
DVI De Deus que vem à idéia
EI Ética e infinito
EN Entre nós: ensaios sobre a alteridade
HH Humanismo do Outro homem
TI Totalidade e infinito
T Int Transcendência e Inteligibilidade
Sumário
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................8
2 A DESCOBERTA DA ALTERIDADE....................................................................12
2.1 A ontologia como redução do outro .........................................................................12
2.2 Evasão e libertação ...................................................................................................13
2.3 A ética como filosofia primeira.................................................................................17
2.4 A excedência do Infinito ...........................................................................................21
2.5 A passividade do finito diante do Infinito.................................................................23
2.6 Solidão e ruptura........................................................................................................25
2.7 Socialidade e transcendência.....................................................................................28
2.8 A separação ...............................................................................................................29
2.9 A transcendência da ética..........................................................................................33
3 ALTERIDADE E RESPONSABILIDADE..............................................................37
3.1 O desvelar da alteridade ............................................................................................37
3.2 O outro que ser como desejo.....................................................................................41
3.3 Alteridade e reconhecimento.....................................................................................44
3.4 O ser-para-o-outro como sentido do humano............................................................46
3.5 Substituição e eleição ................................................................................................50
3.6 Responsabilidade transcendência: a sabedoria do amor........................................... 53
3.7 Responsabilidade e justiça como serviço profético...................................................57
3.8 Justiça e igualdade social...........................................................................................60
3.9 Justiça e profecia .......................................................................................................63
4 A RELAÇÃO ÉTICA COMO RELIGIÃO .............................................................67
4.1 O sentido original da religião ....................................................................................67
4.2 O sentido ético da religião.........................................................................................69
4.3 O sentido universal da religião..................................................................................73
4.4 O pensamento impensado: a ideia de Deus...............................................................77
4.5 Deus enquanto vestígio..............................................................................................80
4.6 A eleidade e o outro...................................................................................................82
4.7 A epifania de Deus e a glória do Infinito...................................................................86
4.8 O Rosto......................................................................................................................89
4.9 O Dizer como glória do Infinito................................................................................91
5 CONCLUSÃO.............................................................................................................99
REFERÊNCIAS ..........................................................................................................103
8
1 INTRODUÇÃO
A busca pela sabedoria empreendida pela filosofia desde sua origem, por volta do
século VI a.E.C
1
, consolidou-se numa busca pela verdade do ser, conforme se pode ler já na
metafísica de Aristóteles que, ao lado de Platão
2
, fundamenta a filosofia em sua trajetória
histórica. Para Aristóteles (1969, p.4) “[...] A verdadeira natureza do ser não se manifesta
naquilo que só pode existir como elemento de um todo concreto, nem no que é contagiado
pela potencialidade e pela mudança, mas unicamente naquilo que é ao mesmo tempo
substancial e imutável”
3
.
Grosso modo, pode-se dizer que todo pensamento não considerado lógico-racional foi
excluído da ótica filosófica, conforme aconteceu com as narrações míticas, religiosas e
poéticas, até então aceitas como oriundas do saber humano
4
. Assim sendo, o conhecimento só
será considerado verdadeiro, se coerente com os padrões estabelecidos pela ontologia, a qual
servirá de alicerce para o saber. Associada e até mesmo cativa desta maneira de pensar, a
cultura ocidental se consolidará de forma absoluta, iluminada pela razão e sua lógica de
dominação: quanto mais saber, mais poder.
É nesse contexto que Lévinas tece sua filosofia não apenas como uma crítica à
ontologia, mas, principalmente, como um outro modo de ser, em que a ética tem a primazia e
o outro deve ser respeitado em sua alteridade infinita. Por isso, é que sua filosofia rompe com
a linearidade histórica do pensamento do Ocidente e seu itinerário filosófico, percorre outros
caminhos em especial, o da relação estabelecida entre eu e o outro, a partir do outro e da
superação dos interesses egoístas do eu. A filosofia levinasiana, ao contrário, desenvolve-se
em forma de espiral, representando assim, a incompletude da filosofia ou do dito filosófico, o
1
A sigla a.e.c.(antes da Era Comum), substitui na atualidade a sigla a.C. (antes de Cristo), utilizada
historicamente para fazer referência ao período anterior ao nascimento de Cristo. Quanto à origem da filosofia,
historicamente ela surgiu entre os séculos VII e o VI, na Grécia Antiga.
2
Também de Sócrates, já que se deve levar em consideração que Platão constrói seu pensamento, principalmente,
a partir do pensamento socrático.
3
A esse respeito conferir na Metafísica de Aristóteles (1969), principalmente o livro VI, p.141 a 146.
4
Catherine Chalier em sua obra Lévinas: a utopia do Humano tece o seguinte comentário sobre a posição de
Lévinas em relação à maneira como a filosofia se impôs historicamente: Em primeiro lugar, é necessário
recordar que ele põe em causa a existência de uma diferença radical entre filosofia e ‘simples pensamento’
porque, diz Lévinas, isso é esquecer que as filosofias provêm de fontes não filosóficas: o mito, a literatura e,
evidentemente, todas as experiências de uma vida. E não é suficiente ‘definir uma terminologia insólita através
de palavras provenientes do grego para convencer os mais difíceis que acabamos de entrar na
filosofia’.(CHALIER,1993, p.37-38).
9
que ocorre principalmente após segundo período
5
. Ribeiro Júnior (2005, p.119, nota 1) a
partir de Difícil Liberdade
6
descreve o método espiral como aquele “[...] que sempre
recomeça e não pode voltar sobre si e nem alcançar seu ponto de partida.[...].”
Esta ruptura proposta aponta para a ética como a única via capaz de despertar o
homem do sono dogmático como abertura ao outro em sua alteridade, ou seja, abertura do eu
para a exterioridade do outro entendido como infinito, por isso inabarcável pela razão. Isto
porque, na perspectiva levinasiana, a ética deve pautar as relações humanas, no sentido de
tornar o homem mais humano, sendo ela, portanto, a filosofia primeira e não a ontologia.
Desse modo, a filosofia levinasiana reveste-se de uma originalidade inimaginável no âmbito
da racionalidade dominante na tradição, sinalizando para a alteridade do outro que desvela o
infinito. Vale dizer que “[...] no pensamento ‘ético’ levinasiano há um distanciamento do
significado que a palavra ‘ética’ tem assimilado no contexto da filosofia ocidental como
‘ciência do ethos’ ou como ‘conjunto de normas do agir’[...]”, na qual Lévinas busca “[...]
encontrar o significado da ética para além da ética ocidental e da ontologia que a
fundamenta. (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 14).
Partindo desse pressuposto, o tema desta pesquisa foi motivado pela sua implicação
religiosa, filosófica e social, tendo em vista a importância de se estabelecer, ou melhor, de se
retomar o sentido original tanto da religião quanto da filosofia, de acordo com a concepção
levinasiana. A proposta é apresentar como que elas antecedem o pensamento que ao tentar
abarcar e sintetizar tudo pela razão negou a filosofia na sua abertura para o infinito e a religião
5
Conforme a periodização da obra levinasiana proposta por Ulpiano Vásquez Moro em El discurso sobre Dios
en la obra de E.vinas, e adotada por Nilo Ribeiro Júnior (2005, p.22), este período está compreendido entre
os anos de 1952 a 1964, sendo denominado período metafísico. Segundo esta periodização o primeiro período
vai de 1929 a 1951 (período ontológico) e, consequentemente, o terceiro período ocorre a partir de 1964, indo
até 1995 (período ético). Vale mencionar que esta não é a única divisão cronológica feita da obra de Lévinas.
Segundo o próprio Ribeiro Júnior (2005, p.22), “[...] existem três tendências explícitas [...]”. Para mais detalhes
confira RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p.22. Vale dizer ainda que, entre aqueles que adotam outra periodização, está
Márcio Luis Costa que, em sua obra: Lévinas: uma introdução propõe a divisão em quatro períodos (momentos).
De acordo com Costa (2000, p.20-30) o primeiro momento compreende o período entre os anos de 1928 a 1930;
o segundo compreendido entre 1931 a 1960 e o terceiro, entre os anos de 1961 a 1973; e por fim, o quarto
momento, que vai de 1974 a 1995. Neste trabalho, será seguida a periodização adotada por Nilo Ribeiro Júnior.
6
Obra que contém ensaios sobre o judaísmo na sua condição religiosa, mas também política. Nela, Lévinas deixa
transparecer toda sua posição sobre o que ele considera o verdadeiro e digno papel da religião enquanto relação
ética, até porque, para ele, o judaísmo é uma ‘religião ética’. Aliás, sobre esta característica do judaísmo,
conforme a propõe o filósofo lituano, Nilo Ribeiro Júnior (1999, p.19), assim explica o título e a escolha das
motivações para sua tese de doutorado sobre a filosofia de Lévinas: O título de nosso trabalho é ‘A gênese da
ética e da teologia na filosofia de Emmanuel Lévinas’. A escolha tem como motivação mostrar que a maneira de
Lévinas superar a ‘crise’ do monoteísmo ocidental e a ‘destruição da linguagem’ em íntima relação com o
judaísmo como ‘religião ética’, ajuda a perceber que a teologia católica – sem cair numa simbiose perigosa
tanto para si como para o pensamento levinasiano – poderia ser repensada graças a uma mais profunda
rearticulação com os diversos tratados da teologia dogmática, da teologia fundamental e da Bíblia, e,
sobretudo, da hermenêutica bíblica.
10
em seu sentido ético de serviço ao outro. Para tanto, o método escolhido tem como
prerrogativa a filosofia da religião e sua contribuição para o aprofundamento do debate
epistemológico sobre a relação entre ética e religião, sobre a ideia de Deus e, sobre a filosofia
enquanto questionamento do próprio saber filosófico.
Nessa perspectiva, tem-se como objetivo principal discorrer sobre o sentido ético da
religião conforme a abordagem filosófica feita por Lévinas, em que o eu deve assumir
incondicionalmente sua responsabilidade para com o outro numa disposição de serviço que
testemunha a relação intrínseca entre ética e religião e que se constitui na originalidade de sua
filosofia. Esta observação se faz importante, tendo em vista que, o pensamento do filósofo
além da filosofia, inclui aspectos bíblico-talmúdicos relevantes
7
, mas que, no entanto, não faz
parte da abordagem aqui proposta. De acordo, portanto, com esta linha de pesquisa, o trabalho
foi desenvolvido em três capítulos conforme descrição a seguir.
No primeiro capítulo, será apresentado a ética como abertura para a alteridade e
ruptura com a redução ontológica, a qual, ao voltar-se sempre para o Mesmo, relegou o outro
ao esquecimento. A abertura da ética constitui-se, assim, na saída do ser numa evasão que não
representa fuga, mas libertação do eu de si mesmo, já que a ética enquanto filosofia primeira
destitui o eu de seu locus finito e possibilita-lhe estabelecer relação com o infinito que lhe
vem à ideia
8
. Isto é, o eu, na sua condição finita, deve reconhecer-se na sua passividade diante
do infinito, que não depende do pensamento para existir. Aliás, é a partir deste
reconhecimento da excedência do infinito que, na perspectiva de Lévinas, torna-se possível ao
eu romper com a solidão que o acomete constantemente para encontrar o outro em sua
exterioridade separada do Mesmo.
Dessa forma, a existência separada do infinito e, nesse caso, do outro sem que o finito
(eu) possa tematizá-lo, associado à exigência ética que perpassa a relação entre eu e o outro
em sua alteridade, apontam para a responsabilidade como testemunho do infinito, conforme
será explicitado no segundo capítulo. Este importante aspecto do pensamento levinasiano
parte do princípio de que a ética se opera no cotidiano da vida e não numa condição
idealizante presente num Ser distante. Por isso, o outro que ser possui uma significância para
além do ser, já que “[...] existir tem um sentido numa dimensão diversa da simples
perturbação da totalidade [...]” (LÉVINAS, 1980, p.281), ou seja, uma dimensão anterior a
7
Levando em consideração a densidade das obras de Lévinas e a abordagem distinta que o próprio filósofo dá às
obras de cunho filosófico e as de cunho bíblico-talmúdico, convém dizer que neste trabalho o destaque será dado
às obras voltadas para a filosofia, mesmo reconhecendo a importância das obras bíblico-talmúdicas para uma
compreensão mais aprofundada de seu pensamento.
8
Referência à concepção cartesiana de infinito, que será abordada ao longo deste trabalho.
11
todo e qualquer conceito formulado ontologicamente, o que transforma a responsabilidade do
eu para com o outro no próprio desejo insaciável que advém da relação.
É por isso, que a primazia da ética não significa apenas mais uma retórica, mas sim,
deve se concretizar na alteridade de forma assimétrica que torna o eu totalmente responsável
pelo outro, à disposição para servi-lo desinteressadamente, isto é, sem que este serviço possa
ser tematizado ou vir a lhe redundar em benefícios. Por este viés, a responsabilidade do eu
que reconhece o outro em sua alteridade revela como que o ser-para-o-outro, mais que
simples utopia, constitui-se aquilo que Lévinas considera o sentido do humano enquanto
testemunho do infinito, que assume sua condição de eleito, sendo capaz de substituir o outro
até em suas dores e erros. A primazia da ética, portanto, está na relação.
Nesse contexto, o terceiro capítulo dedica-se à relação ética como religião, ponto
chave desta pesquisa, quando se buscará mostrar como que Lévinas atribui um outro modo de
ser para a relação entre o eu e o outro, o que produz um novo sentido para a filosofia, a qual
passa a ser vista a partir da ética e não mais como detentora do saber. O filósofo de Kaunas
desvela, assim, o sentido original da religião entendida como ética, sem que para isso “[...] a
religião seja reduzida à ética ou a ética seja reduzida à religião [...]” (Cf. RIBEIRO
JÚNIOR, 2005, p.320). Vale ressaltar, portanto, que Lévinas não atribui um sentido novo para
a religião, mas sim, resgata seu sentido original de forma a que esta se liberte dos conceitos –
inclusive teológicos – que a restringiram às doutrinas institucionais.
Ora, este resgate do sentido original da religião traz à tona também a concepção de
Deus que, fundamentada na teologia enquanto conhecimento de Deus transformou-O num Ser
distante da realidade, mas ao mesmo tempo abarcável pelo pensamento humano, como se este
pudesse pensar mais do que pensa. Assim sendo, Lévinas alerta para a limitação do
pensamento que não consegue ter mais que vestígios de Deus e que, assim como o infinito se
mantém separado do finito, Ele se mantém separado do pensamento, apesar de se manifestar
para ele. Manifestação, ou melhor, epifania que se viabiliza no rosto do outro enquanto
mandamento que ordena ao eu, servi-lo incondicionalmente. Ordem esta que desvela a glória
do infinito presente na relação ética, que rompe com as conceituações e tematizações da
razão, permitindo que o dizer da filosofia seja sempre dito e desdito em sua incompletude.
12
2 A DESCOBERTA DA ALTERIDADE
A primazia da ética proposta por Lévinas constituiu-se na abertura da filosofia para o
outro e, consequentemente, para o infinito na sua dimensão transcendente e separada do
finito. Este é o assunto principal deste capítulo que tem, como objetivo, apresentar na
perspectiva da filosofia levinasiana a possibilidade de se pensar para além da ontologia, a
qual, vista desde sua origem como filosofia primeira, reduziu o outro aos seus conceitos. Por
isso a ética como filosofia primeira constitui-se oportunidade para que o eu possa sair de si
mesmo e romper com a solidão que o ameaça constantemente, abrindo-se para o infinito que
lhe vem à ideia, num encontro impetrado pela socialidade que desvela toda a transcendência
da ética.
2.1. A Ontologia como redução do outro
A ontologia vista como imutável e absoluta constituiu-se capaz de abarcar toda a
realidade em si, sem levar em consideração o conhecimento proveniente do mundo externo ao
eu, ou seja, do outro. Esta concepção auto-suficiente do pensamento transformou o saber em
poder, justificando as inúmeras violências praticadas contra o outro na tradição ocidental
9
.
Nesse sentido é que Lévinas (1980, p.31) afirma que A filosofia ocidental foi, na maioria das
vezes, uma ontologia: uma redução do Outro
10
ao Mesmo, pela intervenção de um termo
médio e neutro que assegura a inteligência do ser. Paulo César Nodari ao discorrer sobre este
aspecto do pensamento de Lévinas diz que
A ontologia, como filosofia primeira, é uma filosofia do poder. O caminho de todo o
Ocidente foi uma redução de toda a alteridade à mesmidade. A ontologia causou,
assim, uma luta entre os poderes assimiladores, cuja regra do jogo consiste em
reduzir a identidade do outro à identidade do eu. (NODARI, 2002, p.195).
9
Segundo o que escreve Nilo Ribeiro Júnior (2005, p.36) esta forma de pensar do Ocidente chega até Heidegger
que “[...] ao tentar tirar o ser do esquecimento, acabou por esquecer-se do Outro [...]”.
10
No conjunto das obras levinasianas é possível constatar uma certa ambiguidade quanto à utilização da palavra
outro. Ora o filósofo a utiliza referindo-se a Deus (transcendente, absoluto), ora ele se refere ao outro humano.
Ao comentar sobre esta “ambiguidade”, Luiz Carlos Susin (1984, p.238-255) assim escreve: “[...] O outro a
partir do qual Lévinas pensa o bem além do ser, é Deus ou o outro humano? Lévinas pensa em ambos: enquanto
criador do universo Elemental pensa em Deus, mas sua revelação como bem e como criador – e não como
demiurgo ou causa – se dá concretamente no Olhar humano, que a seu modo também é além do ser, que é
precisamente a revelação e o mandamento do bem que valoriza os seus valores, e que Lévinas indica no verbo
‘valer’[...]”: Uma exceção observada, mas que não rompe totalmente esta ambiguidade é citada por Fabiano
Victor de Oliveira (2008, nota 17, p. 27) na sua dissertação de mestrado.
13
Nesse contexto, pode-se verificar que não há espaço nem reconhecimento do outro
enquanto outro, já que todo saber é reduzido à ontologia e, consequentemente, ao eu que
detém o saber e o poder de pensar o outro a partir do si mesmo. Nessa ótica, o próprio diálogo
que supostamente deveria nivelar a relação entre o eu e o outro é considerado paradoxal como
o descreve, por exemplo, o filósofo brasileiro Henrique de Lima Vaz (2001, p.232)
11
quando
diz que
há um paradoxo profundo no fato de que a filosofia do logos tenha sido a filosofia
da anulação do outro. Na verdade, a mais alta realização dessa filosofia, ou seja, o
platonismo encontrou seu método e sua expressão precisamente no diálogo. Mas o
que é significativo no diálogo platônico, como encontro das almas e sua salvação
pela filosofia – essa essência da mensagem socrática-, é a submissão dos
interlocutores ao logos, de tal sorte que a salvação oferecida pela filosofia reside,
finalmente, no consentimento à Ideia, que o logos descobre através do diálogo.
Como se pode vislumbrar, as palavras de Lima Vaz são esclarecedoras: O logos
nasce centrado em si mesmo. A ampla consequência deste autocentrismo recairá na anulação
sistemática do outro que, relegado ao ostracismo não terá reconhecida sua alteridade. A
modernidade fundada no racionalismo de Descartes, voltada para o eu penso
12
como detentor
da verdade, sem a perspectiva da existência do outro, consolidará o poder do eu gestado no
Ocidente desde Platão. A partir desse pressuposto é que Lévinas propõe uma inversão entre a
ética e a ontologia, numa perspectiva de abertura para a relação com o outro a partir do outro
e não do eu. Para isso, é de se supor que haja um movimento de saída da ontologia,
denominado por Lévinas como evasão do Ser, o qual será descrito a seguir.
2.2. Evasão e libertação
A proposta de saída da ontologia já na primeira obra
13
de Lévinas é uma espécie de
despertar
14
da razão que a possa desprender de suas próprias amarras. A evasão, portanto, não
constitui uma fuga nem uma necessidade provocada pelas angústias inerentes às escolhas e
11
Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002), considerado um dos, senão, o mais conceituado filósofo brasileiro
das últimas décadas. Entre outros, recebeu o Prêmio Nacional de Filosofia conferido pela ANPOF (Associação
Nacional de Pós-Graduação em Filosofia) aos 08-07-1988 pelo livro Escritos de Filosofia.
12
Penso, logo existo. Esta máxima cartesiana que centra todo o conhecimento (pensamento) no cogito como
representação de uma razão absoluta em seu saber e poder, é descrita pelo filósofo moderno nas suas
Meditações. (Cf. DESCARTES, 1999, p.258).
13
De L’évasion (A evasão) publicada pela primeira vez em 1936. Obra em que Lévinas trata da evasão, ou seja,
da saída da ontologia, do despertar para outras possibilidades, livre das amarras de um ser que se arroga detentor
da verdade absoluta.
14
Esta palavra é utilizada por Lévinas num sentido que está para além do mero acordar de um sono, mas sim,
como condição do estar sempre atento, em constante vigília para não sucumbir aos encantos da ontologia.
14
limitações humanas, mas sim, uma saída para outras possibilidades de conhecimento e,
principalmente, de relacionamento.
Dessa forma, a saída da ontologia consiste em saída da identidade restrita ao mesmo
em direção ao outro na sua alteridade, sendo a evasão uma forma do eu se libertar da
dependência de si mesmo, já que o egoísmo redunda em uma autoprisão. Nos dizeres de
Lévinas (1982a, p.98-99):
Na identidade do eu, a identidade do ser revela sua natureza de dependência, pois
ela aparece sob forma de sofrimento e convida à evasão. Também a evasão é ela
própria a necessidade de sair de si mesmo, ou seja, de quebrar a dependência mais
radical, irredutível, do fato de que o eu é si mesmo. A evasão tem então pouco em
comum com a necessidade de “vidas inumeráveis”, que é um motivo análogo da
literatura moderna, mas totalmente diferente em suas intenções. O eu que quer sair
de si mesmo não foge enquanto ser limitado. Não é o fato de a vida ser feita de
escolhas e, consequentemente, do sacrifício de numerosas possibilidades que
jamais se realizarão, que incita à evasão. A necessidade de uma existência
universal ou infinita, que admita a realização das possibilidades, supõe, no fundo
do eu, a paz realizada, ou seja, a aceitação do ser. A evasão, ao contrário, coloca
em questão precisamente esta suposta paz consigo mesmo, uma vez que ela aspira
a quebrar a dependência do eu do si. É do próprio ser, do “si mesmo”, de cuja
limitação ela tenta em vão fugir. Na evasão, o eu foge não enquanto contrário ao
infinito daquilo que ele não é ou
não será, mas do fato mesmo do que ele é ou do
que ele se torna.
15
(Tradução nossa).
Percebe-se que a crítica levinasiana sinaliza para a primazia da ontologia como a
magna responsável por ter transformado o Ocidente numa cultura egoísta, presa em si mesma.
Consagrada detentora do saber, ela se vê capaz de guiar toda a humanidade por uma única via:
a da razão. De acordo com Lévinas (2003, p. 164) “Para a tradição filosófica do ocidente
toda espiritualidade pertence à consciência, à exposição do ser no saber”.
16
Por isso, a
proposta de uma saída do ser implica a possibilidade de abertura para outras formas de saber e
superação da violência praticada pelo eu em relação ao Outro.
15
Dans l’identité du moi, l’identité de l’être révèle sa nature d’enchaînement car elle apparaît sous forme de
souffrance et elle invite à l’évasion. Aussi l’évasion est-elle le besoin de sortir de soi-même, c’est-à-dire de
briser l’enchaînement le plus radical, le plus irrémissible, le fait que le moi est soi-même. L’évasion n’a donc
que peu en commun avec ce besoin de <<vies innombrables>> qui est un motif analogue de la littérature
moderne, mais totalement différent dans ses intentiones. Le moi qui veut sortir de soi-même ne se fuit pas en tant
qu’être limité. Ce n’est pas le fait que la vie est choix et par conséquent sacrifice de nombreuses possibilités qui
ne se réaliseront jamais qui incite à l’évasion. Le besoin d’une exsitence universelle ou infinie admettant la
réalisation des compossibles suppose au fond du moi la paix réalisée, c’est-à-dire l’acceptation de l’être.
L’évasion, au contraire, met en question précisément cette prétendue paix avec soi, puisqu’ elle aspire à briser
l’enchaînement du moi à soi. C’est l’être même le <<soi-même>>, qu’elle fuit et nullement sa limitation. Dans
l’évasion le moi se fuit non pas en tant qu’opposé à l’infini de ce qu’il n’est pas ou de ce qu’il ne deviendra pas,
mais au fait même qu’il est ou qu’il devient. (LÉVINAS, 1982a, p. 98-99). As citações de língua estrangeira
foram traduzidas pelo pesquisador. As citações do original estarão nas notas de rodapé.
16
“Para la tradición filosófica de occidente toda espiritualidad pertenece a la conciencia, a la exposición del ser
en el saber”. (LÉVINAS, 2003, p. 164).
15
Vale ressaltar, porém, que Lévinas não se posiciona contra a ontologia, mas sim, ao
fechamento da filosofia a um pensamento que acredita poder abarcar tudo no ser. Nessa
perspectiva, o que não se enquadra no saber ontológico é considerado não ser, podendo ser
excluído sem consequências, já que não é um existente
17
. A evasão, portanto, não é uma
negação do ser, mas sim, uma outra maneira de concebê-lo a partir do movimento da
existência e não da estaticidade de ser. O pensamento levinasiano visa, assim, a um novo
sentido para a filosofia que esteja para além do ser ou do não ser
18
. O próprio Lévinas diz que
O modo de pensar aqui proposto não significa desconhecer o ser nem tão pouco
tratá-lo na ridícula pretensão de um modo desdenhoso como o desfalecimento de
uma ordem ou de uma desordem superior. Ao contrário, adquire seu justo sentido a
partir da proximidade que ele adquire. (LÉVINAS, 2003, p.61).
19
A saída do ser, portanto, não significa negação do ser, como em geral aconteceu na
história do Ocidente que tende a acreditar que, ao se afirmar determinada teoria,
automaticamente negam-se, desdenham-se as demais. Lévinas elabora sua crítica de forma
propositiva, ou seja, não segue a dialética da negação em que uma antítese supõe uma tese a
ser negada. Esta se dirige à auto-suficiência do ser, em consonância à descrição reproduzida a
seguir:
Mas esta categoria da auto-suficiência é concebida sobre a imagem do ser tal como
nos oferecem as coisas. Sua essência e suas propriedades podem ser imperfeitas, o
fato mesmo do ser se projeta para além da distinção perfeito e imperfeito. A
brutalidade desta afirmação é absolutamente suficiente e não se refere a nada mais.
O ser é: não há nada a acrescentar a essa afirmação, da mesma forma que nada se
espera de um ser que não a sua existência. Esta referência a si próprio é
precisamente o que se diz quando se fala da identidade do ser. A identidade não é
uma propriedade do ser, e não saberia consistir em uma semelhança de
propriedades que suporiam elas próprias a identidade. Ela é a expressão de que
17
É importante citar aqui Da existência ao existente, obra que começou a ser escrita antes da segunda grande
guerra, sendo sua maior parte concluída no período em que Lévinas esteve no cativeiro. Nesse contexto, o
filósofo descreve o processo pelo qual a razão, (o eu) estão acorrentados em si mesmos, presos ao que ele
denomina cansaço do ser e que justifica a tentativa de saída da ontologia. O primeiro parágrafo do preâmbulo da
referida obra evidencia a proposta levinasiana, como se pode ler a seguir: O Estudo que apresentamos tem um
caráter preparatório. Ele percorre e aflora um determinado número de temas de pesquisas mais vastas
consagradas ao problema do Bem, ao Tempo e à Relação com Outrem como movimento em direção do Bem. A
fórmula platônica colocando o Bem além do ser é a indicação mais geral e mais vazia que os guia. Ela significa
que o movimento que conduz um existente em direção ao Bem não é uma transcendência pela qual o existente
eleva-se a uma existência superior, mas uma saída do ser e das categorias que o descrevem, uma ex-cendência.
Mas a ex-cendência e a Felicidade têm necessariamente raízes no ser e, por isso, ser vale mais do que não ser.
(LÉVINAS, 1998, p.9).
18
Ao citar De Otro modo que ser o más allá de la esencia,Ricardo Timm de Souza explicita esta proposta
levinasiana, como se pode ler a seguir: “[...] o sentido... não (é o que) se mede pelo ser e pelo não ser, mas é o
ser que, ao contrário, se determina a partir do sentido”.( SOUZA, 2001, p. 412).
19
El modo de pensar aquí propuesto no significa desconocer el ser ni tampoco tratarlo en ridícula pretensión de
un modo desdeñoso como el desfallecimiento de un orden o de un desorden superior. Al contrario, adquiere su
justo sentido a partir de la proximidad que él adquiere. (LÉVINAS, 2003, p. 61).
16
basta o fato de ser, cujo caráter absoluto e definitivo ninguém ousaria colocar em
dúvida. (LÉVINAS, 1982a, p.93, tradução nossa).
20
Fica evidente a posição de Lévinas acerca da ontologia e em como sua proposta abre
as portas para uma nova forma de pensar, capaz de sair do ser em direção à alteridade, numa
relação que não supõe dogmatismos e egoísmos, mas que se coloca de forma espontânea em
relação com o outro a partir do outro, relação não fundada no poder de uns contra os outros,
na tirania do pensamento que utiliza a razão como instrumento de dominação contra o outro.
A utilização da palavra tirania recebe neste contexto uma ênfase especial, pois é uma das
principais críticas de Lévinas à filosofia de Heidegger, conforme descrito na 1ª seção de
Totalidade e Infinito:
Filosofia do poder, a ontologia, como filosofia primeira que não põe em questão o
Mesmo, é uma filosofia da injustiça. A ontologia heideggeriana que subordina a
relação com Outrem à relação com o ser em geral – ainda que se oponha à paixão
técnica, saída do esquecimento do ser escondido pelo ente – mantém-se na
obediência do anônimo e leva fatalmente a um outro poder, à dominação
imperialista, à tirania. Tirania que não é a extensão pura e simples da técnica a
homens reificados. Ela remonta a ‘estados de alma’ pagãos, ao enraizamento no
solo, à adoração que homens escravizados podem votar aos seus senhores. O ser
antes do ente, a ontologia antes da metafísica – é a liberdade (mesmo que fosse a
da teoria) antes da justiça. É um movimento dentro do Mesmo antes da obrigação
em relação ao Outro. (LÉVINAS, 1980, p.34)
21
.
Segue então que Lévinas, ao colocar a ontologia em xeque, questiona os pressupostos
racionais que serviram para justificar as inúmeras formas de violência contra o outro, que
marcam e mancham a história. Basta citar aqui as cruzadas e a inquisição de cunho religioso-
político, as colonizações e a escravização de cunho econômico-expansionista, além, é claro,
das guerras étnicas do século XX.
Assim, a proposta de Lévinas visa a apontar um outro que ser que pressupõe um outro
modo de pensar, no qual a ética tenha primazia sem, no entanto, substituir a ontologia, pois
caso contrário apenas haveria uma inversão na lógica da dominação. Surge daí, aquilo que se
20
Mais cette catégorie de la suffisance est conçue sur l’image de l’être telle que nous l’offrent les choses. Elles
sont leur essence el leurs propriétés peuvent être imparfaites, le fait même de l’être se place au-delà de la
distintction du parfait et de l’imparfait. La brutalité de son affirmation est suffisante absolument et ne se réfère
à rien d’autre. L’ être est : il n’y a rien à ajouter à cette affirmation tant que l’on n’envisage dans un être que
son existence. Cette réfèrence à soi-même, c’est précisément ce que l’on dit quand on parle de l’identité de l’être
et ne saurait consister en une ressemblance de propriétés qui supposent elles-mêmes l’indentité. Elle est
l’expression de la suffisance du fait d’être dont personne, semble-t-il, ne saurait mettre en doute le caractère
absolu et définitif. (
LÉVINAS, 1982a, p.93)
21
Ao comentar sobre este trecho da crítica de Lévinas à filosofia heideggeriana, especialmente no que tange à
tirania da ontologia, Marcelo Fabri diz que: “A ontologia traduz, no fundo, uma filosofia do poder e da violência,
ou ainda, a dominação imperialista, a tirania e o poder do estado. O primado do ser sobre o ente (Heidegger),
que não escapa a este primado da violência, será um dos alvos decisivos nas críticas de Lévinas à ontologia
[...]. (FABRI, 1997, p. 13).
17
pode considerar o diferencial da filosofia levinasiana, ou melhor, a originalidade de sua
filosofia, que é a ética entendida como filosofia primeira, a qual se abre para outras
possibilidades de filosofar a partir da relação, da socialidade como reconhecimento da
primazia do outro sobre o eu.
2.3. A ética como filosofia primeira
A primazia da ética, conforme a propõe Lévinas, provoca uma reviravolta na forma
de se pensar as relações sociais, pautadas até então pela ontologia em sua verdade
inquestionável. Esta reviravolta traz à tona outra forma de pensar que antecede o próprio
pensar e, ao mesmo tempo, está para além do pensamento, o que inverte a lógica do eu e
reconhece o outro na sua alteridade, tendo como pressuposto uma relação ética de
responsabilidade e não mais uma relação de poder e superioridade por parte do eu.
Como se vê, a ética em Lévinas
22
se funda na relação, por isso ela “[...] não funciona
como um substantivo nomeando um estado de coisas, antes, como modalidade determinando
o sentido de uma relação com o outro. A ética não é um sistema de normas racionais”.
(NODARI, 2002, p.196). Aliás, é esta dimensão que a caracteriza como filosofia primeira,
mostrando como a crítica de Lévinas à ontologia caminha na direção de outro saber que
pressupõe a relação ética como aquela que detém a verdadeira sabedoria. Retoma-se, assim, a
importância da evasão em seu sentido ético como aquela que deve garantir ao eu a libertação
de si mesmo. É o que se pode constatar, por exemplo, na descrição a seguir, elaborada por
Márcio Paiva (2000, p.220-221):
Sair da Ontologia exprime liberar o Eu do imperialismo do mesmo, do seu caráter
objetivante e totalizador da realidade, cuja posse ele procura através do trabalho,
esquecendo a capacidade de fruir da vida que é o gozo. O problema da relação
com o mundo externo, o problema epistemológico da consciência, se torna para
Lévinas, o problema da relação ética com o outro. A sua intenção é a de identificar
na ética uma estrutura – não necessariamente metafísica – que precede a ontologia,
cujos termos não sejam unidos nem pela síntese do intelecto nem pela relação
sujeito-objeto. Uma relação ética em que um pesa ou importa ou é significante
para o outro. Uma relação onde o elo que liga os termos é um enredo que o saber
não poderia nem exaurir nem deslindar.
22
Vale reproduzir aqui um comentário feito por Nilo Ribeiro Júnior em sua obra A gênese da ética e da teologia
na filosofia de Lévinas, na qual ele explica o sentido da palavra ética para o filósofo lituano. De acordo com
Ribeiro Júnior (1999, p.13): “[...] no pensamento ‘ético’ levinasiano há um distanciamento do significado que a
palavra ‘ética’ tem assimilado no contexto da filosofia ocidental como ‘ciência do ethos’ ou como ‘conjunto de
normas do agir’. O autor não está preocupado com a distinção entre ‘ética’ e ‘moral’. Sua intenção se nucleia
em torno da tentativa de encontrar o ‘significado da ética’ para além da ética ocidental e da Ontologia que a
fundamenta”.
18
Márcio Paiva sinaliza para o outro modo de ser, proposto por Lévinas, que está para
além do saber, que não se reduz ao conhecimento nem se submete ao pensar e à tematização
da razão, devendo, pois, representar uma abertura para as relações que se estabelecem com o
outro. Ou seja, a sabedoria outrora fundada no logos deve ser redimensionada para a
socialidade e sensibilidade do eu para com o outro, o que a caracteriza como ética. Segundo
Lévinas (2003, p. 120):
No saber, por si mesmo simbólico, se realiza a passagem desde a imagem –
limitação e particularidade – até a totalidade e, por conseguinte, de modo relativo à
essência do ser se realiza todo o conteúdo da abstração. A filosofia ocidental jamais
tem duvidado da estrutura gnosiológica e, portanto, ontológica da significação.
Dizer que esta estrutura é secundária dentro da sensibilidade no tanto que a
vulnerabilidade significa, é reconhecer um sentido diferente ao da ontologia e
inclusive subordinar a ontologia a esta significação do mais além da essência.
23
Nesse intuito é que Lévinas concebe a ética como filosofia primeira, isto é, aberta para
a relação com o outro a partir do outro e não do eu. Relação de proximidade, face-a-face, que
não deve acontecer pelo conhecimento, mas sim, pela socialidade, livre dos conceitos que
acorrentam o ser em si mesmo. Não mais o pensar, mas sim, a sensibilidade, o
reconhecimento do outro e a responsabilidade os quais devem pautar as relações humanas.
Assim sendo, a filosofia levinasiana não significa apenas uma retórica, jogo de
palavras vazias, meras elucubrações filosóficas, presa numa razão estéril, incapaz de sair de si
mesma. A ética se sustenta exatamente pela sua significância
24
enquanto abertura para a vida
concreta, vivida e não tematizada, numa experiência relacional que supõe o reconhecimento
da alteridade. Isto é, ela representa uma virada no jogo da ontologia, uma abertura para a
alteridade, em que o outro é reconhecido antes mesmo de se formular um conhecimento
racional e tematizável sobre ele. Márcio Luis Costa (2000, p.140) tece o seguinte comentário
sobre este pensamento de Lévinas:
A relação ética com o Outro é linguagem, é rosto, é face-a-face, em suma, não é
tematizar o Outro no “meu mundo”, mas no egoísmo “do meu, comunicar-me”,
23
En el saber, por si mismo simbólico, se realiza el paso desde la imagen – limitación y particularidad – hasta
la totalidad y, por consiguiente, de modo relativo a la esencia del ser se realiza todo el contenido de la
abstracción. La filosofia occidental jamás ha dudado de la estructura gnosiológica y, por tanto, ontológica de la
significación. Decir que esta estructura es secundaria dentro da la sensiblidad en tanto que vulnerabilidad
significa, es reconocer un sentido en lugar distinto al de la ontología e incluso subordinar la ontología a esta
siginificación de lo más allá de la esencia. (LÉVINAS, 2003, p. 120).
24
Termo que, para Lévinas, vai além do significado ou sentido de algo, representação daquilo que não se
aprisiona num conceito. Abertura para além do Ser.
19
compartilhar ‘meu mundo’ com o Outro. Linguagem é doação e doação é o
primeiro gesto ético.
Como se pode constatar, em Lévinas a ética deve despertar o homem do sono
dogmático da ontologia como forma de superação da violência do ser que reduz o outro ao eu,
de forma acrítica e violenta. Desta feita, a crítica do filósofo representa a saída do ser em
direção à alteridade, movimento que se traduz pelas vias da ética, numa relação construída
pela abertura do eu, sem que haja retorno a si mesmo. Para ele:
a crítica não reduz o Outro ao Mesmo como a ontologia, mas põe em questão o
exercício do Mesmo. Um pôr em questão do Mesmo – que não pode fazer-se na
espontaneidade egoísta do Mesmo – é algo que se faz pelo Outro. Chama-se ética a
esta impugnação da minha espontaneidade pela presença de Outrem. A estranheza
de Outrem – a sua irredutibilidade a Mim, aos meus pensamentos e às minhas
posses – realiza-se precisamente como um pôr em questão da minha
espontaneidade, como ética. A metafísica, a transcendência, o acolhimento do
Outro pelo Mesmo, de Outrem por Mim produz-se concretamente como a
impugnação do Mesmo pelo Outro, isto é, como a ética que cumpre a essência
crítica do saber. E tal como a crítica precede o dogmatismo, a Metafísica precede a
ontologia. (LÉVINAS, 1980, p.30):
A crítica levinasiana dirige-se, como se vê, diretamente à ontologia, acompanhada por
um dogmatismo incapaz de reconhecer o outro em sua condição e dignidade inalienável de
outro. Nessa perspectiva é que se pode predicar que a ética em Lévinas é aberta, de uma
dinamicidade que está para além de todos os sistemas idealizantes, que não se submete às
necessidades de síntese, que buscam englobar toda realidade num conceito único, totalizante.
A ética está para além de toda pretensa busca de totalidade, de querer abarcar a realidade no
ser, que violenta o outro em sua diferença e justifica uma cultura marcada pela violência.
Philippe Nemo, numa entrevista
25
a Lévinas, faz-lhe o seguinte questionamento sobre
este assunto: “esta visão globalizante, que caracteriza, pois, os grandes sistemas filosóficos,
parece-lhe constituir um insulto a outra experiência do sentido?” (LÉVINAS, 1982b, p. 68).
Eis a resposta:
A experiência irredutível e última da relação parece-me, de facto, estar noutra
parte: não na síntese, mas no frente a frente dos humanos, na sociedade, no seu
significado moral. Mas é necessário compreender que a moralidade não surge
como uma camada secundária, por cima de uma reflexão abstracta sobre a
totalidade e seus perigos; a moralidade tem um alcance independente e preliminar.
A filosofia primeira é a ética. (LÉVINAS, 1982b p.68-69).
25
Esta entrevista está publicada em Ética e Infinito.
20
Esta dimensão da ética que aponta para a relação frente a frente (face-a-face) revela,
por exemplo, as diferenças entre o pensamento de Lévinas e os pensamentos de Husserl e
Heidegger
26
. Em Lévinas a ética como filosofia primeira se processa nas relações humanas
vividas na própria vida, e não na tematização, na síntese e conceitos ontológicos, assumindo
pois uma característica que sinaliza para a transcendência da ética, o que, pela interpretação
levinasiana, não ocorre nos pensamentos nem de Husserl nem de Heidegger. Esta posição
crítica de Lévinas à filosofia heideggeriana e husserliana é elucidada pelo próprio filósofo
lituano em Deus, a morte e o tempo:
Na tradição filosófica, a ética foi sempre concebida como uma camada que
recobria a camada ontológica, afirmada como primordial. Ela estava assim
imediatamente referida ao Mesmo, àquilo que é idêntico a si. Mas não trará à ética
uma significação sem referência ao mundo, ao ser, ao conhecimento, ao Mesmo e
ao conhecimento do Mesmo? Uma transcendência que já não coincidiria com o
preenchimento de uma visada por uma visão? Porque o simples facto de conhecer,
é transcender-se para o outro, é ir do Mesmo para o Outro. Mas, em Husserl – e é o
fundamento da sua fenomenologia – a transcendência é visada do pensamento que
deverá preencher uma visão “em carne e osso”. Neste sentido, a transcendência é
apropriação, e, como tal, é ou permanece imanência. (LÉVINAS, 1993, p.151).
No próprio Heidegger, o ser do mundo faz-se actividade do sujeito. É por ele que o
repouso é ato e que é ativo. A essência [essance] do repouso repete-se na
positividade da tematização e da síntese. E é da natureza do repouso mostrar-se, e
da natureza da sua atividade ser sintético. A própria ciência, que há que pensar
como reflexo do ser vem do ser, vem de uma luz que é luz do ser. Do mesmo
modo, em Heidegger o homem é suscitado pelo ser, pela energia do ser, pela sua
energeia.(LÉVINAS, 1993, p.147).
A partir dessa crítica aos pensamentos de Husserl e Heidegger, pode-se deduzir que a
ética como filosofia primeira assume uma característica que transcende os conceitos de ética
impostos pela ontologia. Ela se coloca ou está para além das inúmeras tematizações racionais,
o que a torna aberta para o infinito e, consequentemente, para além de qualquer possibilidade
de síntese ou conhecimento fechado em si mesmo. Por isso, sua dimensão transcendente não
nega a imanência das relações cotidianas. Nas palavras de Marcio Luis Costa (2000, p.139),
“[...] a ética se inscreve preferencialmente nestas situações de assimetria em relação a
situações de vida muito próximas à originalidade constitutiva do mundo e das relações dos
‘eus’ no mundo”.
Diante do exposto até aqui, depreende-se que a originalidade da filosofia levinasiana
está na sua concepção de que a ética precede a ontologia, sendo a filosofia primeira. Isto
26
Não é o objetivo neste trabalho discorrer sobre as diferenças entre os referidos filósofos. Todavia, para uma
leitura mais aprofundada sobre o assunto, vale conferir, entre outros, o capítulo II da obra, Lévinas: uma
introdução, de Márcio Luis Costa (2000 p.51-67); e os artigos de Marcelo Luiz Pelizzoli, Acerca do (des)
encontro: Husserl, Heidegger e Lévinas (2001, p.255 a 263); e, Da fenomenologia à ‘metafenomenologia’ e
‘meta-ontologia’ – aportes para uma crítica a Husserl e Heidegger desde Lévinas. (2001, p.279-298).
21
significa que a ética possui uma dimensão transcendente que é a sua abertura para a alteridade
enquanto infinito exterior ao mundo fechado da ontologia e do eu.
2.4. A excedência do Infinito
Nos passos de Descartes, mas, para além do pensamento cartesiano, Lévinas sinaliza
para o infinito que se dá à ideia, ou melhor, que vem à ideia, sem, no entanto, se reduzir a ela.
Esta irredutibilidade é que marca a concepção levinasiana de infinito que se oferece ao
entendimento, sem que este seja capaz de contê-lo. Isto porque o infinito vem à ideia na sua
dimensão de infinito, e não na síntese finita como a razão pretende pensá-lo.
É nesse sentido que Lévinas considera o infinito que se dá ao pensamento, mas que
não se restringe a ele. Percebe-se que há nessa concepção levinasiana uma aproximação com a
ideia de infinito presente em Descartes. No pensamento cartesiano, o finito só é capaz de
pensar o infinito, uma vez que o próprio infinito concedeu-lhe esta condição, ou seja, o
infinito, que segundo Descartes é perfeito, introduziu a ideia de perfeição (infinito) na
imperfeição (finito), o que ocorre de forma inata
27
. O filósofo moderno lança mão deste
argumento para provar a existência de Deus
28
. Já para Lévinas (2002, p.94-95):
Não são as provas da existência de Deus que aqui nos interessam, mas a ruptura da
consciência, que não é um recalcamento no inconsciente, mas um desembriagar-se
ou um despertar que sacode o “sono dogmático” que dormita no fundo de toda
consciência que repousa sobre o objeto
29
.
Ruptura da consciência. Eis a contribuição de Descartes. Porém, como o ser prevalece
no horizonte de seu pensamento, esta ruptura mantém-se ligada ao cordão umbilical da
filosofia clássica. Lévinas aproveita esta contribuição, todavia propõe uma ruptura mais
radical que possa libertar a filosofia e, por consequência, a razão de sua simbiose com a
ontologia.
27
Veja-se s referência de Lévinas sobre a terceira Meditação Cartesiana, em De Deus que vem à ideia, na qual o
filósofo moderno expõe sua concepção de infinito (Deus) como ideia perfeita e inata. (LÉVINAS, 2002, p.97).
28
A tentativa de Descartes é a de provar que o infinito perfeito (Deus) deixa sua marca no finito imperfeito: o
homem. É o que se pode verificar no trecho a seguir na quarta de suas meditações: “[...] E quando considero que
duvido, isto é, que sou uma coisa incompleta e dependente, a idéia de um ser completo e independente, ou seja,
de Deus apresenta-se a meu espírito com igual distinção e clareza; e do simples fato de que essa ideia se
encontra em mim, ou que sou ou existo, eu que possuo esta ideia, concluo tão evidentemente a existência de
Deus e que a minha depende inteiramente dele em todos os momentos de minha vida, que não penso que o
espírito humano possa conhecer algo com maior evidência e certeza [...]”. (DESCARTES, 1999, p. 291).
29
Convém mencionar que Luiz Carlos Susin ((1984, p.224) descreve esta posição de Lévinas ao dizer que “[...]
De fato, não é a prova da existência de Deus que interessa... pois para ele, Deus e o homem que são antes de
provas, não entram no campo das provas. Mas interessa-lhe o ‘modo’, a articulação que implica
existencialmente tanto Deus quanto o homem [...]”.
22
Como se vê, mesmo considerando a contribuição de Descartes, o pensamento de
Lévinas vai além do cogito ergum sum e das decantadas provas da existência de Deus
presentes no pensamento cartesiano. Sua concepção projeta-se para o infinito enquanto
infinito que vem à ideia, mas que não pode ser contido, sintetizado ou reduzido a esta ideia.
Até porque, o cogito ergum sum, ao colocar-se como capaz de provar a existência do infinito
a partir de um eu superior, tende a considerar que não existe mais nada fora do pensamento, o
que de certa forma exclui o outro em sua alteridade e contradiz totalmente o pensamento ético
levinasiano.
Em Lévinas, “a revelação vem do outro: um eu separado que se põe em relação com
uma alteridade também absolutamente separada, absolvendo-se de qualquer totalização
[...]”. (SUSIN, 1984, p. 224). Isto, pois
Na ideia do infinito e que, por isso, é a ideia de Deus, se produz, precisamente, a
afecção do finito pelo infinito, para além da simples negação de um pelo outro,
para além da pura contradição que os oporia e os separaria ou que exporia o outro
à hegemonia do Uno entendido como um ‘Eu penso’. (LÉVINAS, 2005, p.278)
O infinito nesse caso vem à ideia sem poder ser sintetizado por ela, já que permanece
separado, livre das totalizações do pensamento; qual na condição de finito, apenas o acolhe
sem poder sequer resistir-lhe à presença, sem percebê-lo ou entendê-lo por si mesmo, já que
toda iniciativa vem do infinito e não do finito. Segundo Costa (2000, p.108):
O infinito como ente é anterior à ideia do infinito e sua infinição reside no fato de
ele não caber na ideia que dele se tem. O infinito é infinito não pelo fato de que
uma subjetividade transcendental o pensa como tal. É infinito em virtude do fato
de que a ideia que se tem dele pensa mais do que pode pensar, pensa um ente que
não cabe nela, que a excede.
Esta excedência do infinito é o que caracteriza sua dimensão de transcendência, ou
seja, desvela sua dimensão inabarcável pela razão e pelas sínteses que esta insiste em tentar
empreender, o que garante inclusive a primazia do infinito em relação ao finito. “[...] De fato,
a ideia de infinito não advém da passagem imediata da negação do finito, mas precede e
funda a possibilidade de pensar o próprio finito, a ideia de infinito é excedente [...]”.
(PAIVA, 2000, p.216-217). Todavia, será que esta condição do finito não o torna
demasiadamente passivo diante do infinito? Como o infinito excede o finito e,
consequentemente, a finitude da ideia que tenta pensá-lo, a existência do finito se constitui
exatamente pela sua passividade diante do infinito, conforme o descreveremos a seguir.
23
2.5. A passividade do finito diante do Infinito
Antes de discorrer sobre a passividade do finito diante da excedência do infinito é
preciso dizer que a passividade, conforme a propõe Lévinas, possui uma significação que não
deve “[...] ser entendida como área da incerteza humana, preocupada consigo mesma e
incapaz de abraçar o infinito [...]” (LÉVINAS, 2005, p.279), mas sim, como reconhecimento
por parte do finito de seus limites ante a transcendência do infinito. A passividade neste caso
é a condição do finito diante do infinito, que não se deixa enclausurar pelo pensamento finito.
Num trecho bastante esclarecedor sobre este assunto, Lévinas (2002, p. 97) assim
discorre sobre a passividade do finito diante do infinito:
Ora, na ideia do infinito descreve-se uma passividade mais passiva que toda
passividade atinente a uma consciência: surpresa ou suscepção do inassumível,
mais aberta que toda abertura – despertar – mas sugerindo a passividade do
criado
30
. A introdução em nós de uma ideia inabarcável derruba esta presença a si
que é a consciência, forçando assim a barragem e o controle, frustrando a obrigação
de aceitar ou adotar tudo o que entre de fora. Por isso, é uma ideia que significa,
mas por uma significância anterior à presença, a toda presença, anterior a toda
origem na consciência e, assim, an-árquica, acessível no seu vestígio; ideia que
significa por uma significância mais antiga que sua exibição, que não se esgota na
exibição, que não tira seu sentido de sua manifestação, rompendo assim com a
coincidência do ser e do aparecer em que, para a filosofia ocidental, reside o
sentido ou a racionalidade, rompendo a sinopse; ideia mais antiga que o
pensamento rememorável que a representação retém na sua presença.
Constata-se que, associada à significação da passividade do finito, outras palavras
como vestígio e an-árquica
31
aparecem com uma significância para além de seus significados
convencionais, o que caracteriza a ruptura com a sinopse e sentido ontológico da
racionalidade do ocidente. A passividade acompanhada pelo vestígio do infinito de forma an-
árquica demonstra a limitação do finito diante do infinito. Dessa forma, surge o que Lévinas
denomina exterioridade ou separação entre o eu e o outro, entre o finito e o infinito.
Diante desta excedência do infinito e da incapacidade do finito de conhecê-lo e até de
pensá-lo, uma pergunta aflora: como o finito pode ter a ideia do infinito? O próprio Lévinas
(1980, p.66) desta forma responde:
30
Vale dizer que a palavra criado aqui se refere ao homem na sua condição finita de criatura, o qual, diante do
infinito, resta-lhe apenas receber em sua passividade finita.
31
Esta também é uma prática muito comum na escrita levinasiana, ou seja, ele separa muitas palavras pelo hífen,
como é o caso de anárquica, exatamente para enfatizar a significância da palavra para além do significado que
lhe é normalmente atribuído.
24
Para ter a ideia do infinito, é preciso existir como separado. Essa separação não
pode reproduzir-se como apenas eco à transcendência do Infinito. Senão, a
separação manter-se-ia numa correlação que restauraria a totalidade e tornaria
ilusória a transcendência, o transbordamento de uma ideia adequada. Se a
totalidade não pode constituir-se é porque o Infinito não se deixa integrar. Não é a
insuficiência do Eu que impede a totalização, mas o Infinito de Outrem.
Eis nas palavras do filósofo o sentido da palavra separação, que sinaliza para a
dimensão do infinito enquanto exterioridade que vem à ideia e preserva, por assim dizer, a
dimensão do infinito. Ou seja, mesmo se dando à ideia, o infinito prossegue, separado desta
que, em sua finitude, revela toda a passividade do finito. É pela separação, ou seja, pela
exterioridade em relação à ideia presente no finito que se garante a incomensurabilidade e
espontaneidade do infinito e sua existência fora do pensamento. Segundo Lévinas (1980, p.
91):
O Infinito produz-se renunciando à invasão de uma totalidade numa contração que
deixa um lugar ao ser separado. Assim, delineiam-se relações que descerram um
caminho fora do ser. Um infinito que não se fecha circularmente sobre si próprio,
mas se retira do espaço ontológico para deixar um lugar a um ser separado, existe
divinamente; inaugura uma sociedade acima da totalidade. As relações que se
estabelecem entre o ser separado e o Infinito resgatam o que havia de diminuição
na contração criadora do Infinito.
Nesse ponto, evidenciam-se uma vez mais as diferenças entre os pensamentos de
Lévinas e de Descartes, desvelando toda a originalidade da proposta levinasiana no que tange
à ruptura com a solidão do cogito cartesiano, que ao fundamentar-se na ontologia, termina por
fechar-se em si mesmo e negar a alteridade. Ao contrário, Lévinas vislumbra pelas vias da
ética o outro separado do mundo do eu, ou seja, o infinito como alteridade aberta a outras
formas de saber e ser. Dessa maneira, o infinito se vê capaz de recolher o cogito de sua
solidão e fazê-lo abrir-se para a socialidade, para o outro. Instala-se a dimensão de excedência
do infinito que rompe com a solidão do cogito e extrapola os conceitos que tentam
enclausurá-lo.
Uma ilustração clara de como se processa esta passagem da solidão do cogito para o
encontro com a alteridade e, consequentemente, para a socialidade conforme a propõe
Lévinas, é descrita por Márcio Paiva (2000, p.217) conforme se pode verificar a seguir:
A solidão é sinal da centralidade do eu como única e verdadeira substância: o
sujeito-fundamento. É isso que permaneceria caso não se encontrasse alguma outra
ideia cujo conteúdo objetivo significasse uma substância que se apresenta com
mais ser do que o Cogito. A solidão é conseqüência inevitável se o inventário das
ideias não oferece pelo menos uma ideia que vá além das possibilidades do Eu,
25
dado que significa uma natureza superior e exige uma causa proporcional, diversa
e mais poderosa do que o Eu.
Por esta citação não restam dúvidas de que a abertura proposta por Lévinas à
alteridade como reconhecimento do outro é o que permite o encontro do finito com o infinito,
e que faz com que a solidão do eu se supere. Constata-se, logo, aquilo que a tradição do
ocidente acostumada ao retorno para o mesmo, numa espécie de círculo vicioso demonstra,
qual seja toda a incapacidade do eu de pensar para além do próprio mundo. Assim sendo,
separação à qual se refere Lévinas representa um movimento do eu em direção ao outro, em
sua alteridade; nunca a partir da identidade do eu.
2.6. Solidão e ruptura
A abordagem tratada até aqui sinaliza para a necessidade do eu sair de seu mundo para
no encontro com o outro, libertar-se do egoísmo fundamentado na ontologia como filosofia
primeira. Este movimento, entretanto, só terá sentido a partir da abertura do eu para o infinito,
ou seja, de uma abertura para o outro que se acha para além do si mesmo. Esta disposição de
abertura pressupõe um novo modo de pensar e de ser que não se fundamente na ontologia
como detentora da razão, mas que abra mão de seus argumentos para a socialidade em seu
movimento diacrônico. É sob essa ótica que se pode compreender como o infinito e o finito,
ainda que separados, podem manter uma relação capaz de formar sociedade.
É preciso, portanto, superar a noção cartesiana de infinito como ser, de forma a que a
relação com o finito se constitua a partir da ética como abertura para o outro e não para o
mesmo. Segundo Lévinas (1980, p.174-175):
A presença de um ser que não entra na esfera do Mesmo, presença que a extravasa,
fixa o seu ‘estatuto’ de infinito. Tal extravasamento distingue-se da imagem do
líquido que transborda de um vaso, porque a presença transbordante se efetua
como uma posição em frente do Mesmo. A posição em frente de, a oposição por
excelência, só se coloca como um pôr em causa moral. Esse movimento parte do
Outro. A ideia do infinito, o infinitamente mais contido no menos, produz-se
concretamente sob a aparência de uma relação com o rosto
32
. E só a ideia do
infinito mantém a exterioridade do Outro em relação ao Mesmo, não obstante tal
relação.
32
O Rosto possui uma significação que está para além da fisionomia ou da face de uma pessoa, sendo sempre um
clamor à justiça, à atitude ética e que revela a transcendência infinita do outro, como será descrito com mais
profundidade no terceiro capítulo.
26
Retoma-se aqui a condição em que, segundo Lévinas, permite-se a superação da
solidão do eu, retirando-o de seu mundo fechado e estéril. O eu precisa sair de si e, no
movimento de abertura para a relação com o outro, encontrar o infinito que lhe é exterior.
Contudo, como entender o papel da ética nesta relação com o infinito, tendo em vista a
atuação da ética na realidade finita? Inicialmente, deve-se lembrar que a ética não advém do
pensamento, mas sim, da relação em que o outro mantém primazia. Dessa maneira, a ética
deve ser entendida como o próprio infinito que se apresenta ao finito e forma a sociedade, na
qual se estabelece a relação por excelência em que não se avistam intermediários ávidos por
dominar o outro.
É o que Lévinas proclama em Totalidade e Infinito:
A ideia do infinito em mim, que implica um conteúdo que transborda o continente,
rompe com o preconceito da maiêutica sem romper com o racionalismo, dado que a
ideia do infinito, longe de violar o espírito, condiciona a própria não-violência, ou
seja, implanta a ética. O Outro não é para a razão um escândalo que a põe em
movimento dialético, mas o primeiro ensinamento. Um ser que recebe a ideia do
Infinito – que recebe, pois não a pode ter de si – é um ser ensinado de uma maneira
não maiêutica, um ser cujo existir consiste na incessante recepção do ensino, no
incessante transbordamento de si (ou tempo). Pensar é ter a ideia do infinito ou ser
ensinado. O pensamento racional refere-se a esse ensino. Mesmo se nos ativermos à
estrutura formal do pensamento lógico, que parte de uma definição, o infinito,
relativamente ao qual os conceitos se delimitam não poderia, por sua vez, definir-
se. (LÉVINAS, 1980, p.182).
Percebe-se que a sociedade que se opera na relação ética como ruptura da razão e
abertura para o infinito, enseja novas possibilidades para o finito, o qual não se restringe ao
círculo do si mesmo e reconhece o outro em sua qualidade de outro, sem reduzí-lo ao eu. A
consciência adquire nessa perspectiva a noção exata de como se posicionar diante do infinito,
que não é reduzido ao seu poder de saber, mas à sabedoria de se relacionar, acolher, servir,
enfim, amar
33
.
Delineia-se, assim, toda a abertura do infinito que se encontra na ética e transcende os
conceitos de ética presentes na tradição
34
. Por isso, ao se doar ao finito, o infinito possibilita
uma relação que, oriunda da ética, impõe-se livre das sínteses e conhecimentos que tentam
sempre apreender e enclausurar o outro. Até porque, pela ótica levinasiana, simplesmente não
é possível para o eu apreender o outro, tendo em vista sua dimensão infinita. Pergentino
33
No segundo capítulo esta inversão proposta por Lévinas em que o amor ao saber deve-se transformar em saber
amar será abordada mais detalhadamente.
34
Nilo Ribeiro Júnior (1999, p. 27), em A Gênese da ética e da teologia na filosofia de Emmanuel Lévinas
explicita a concepção de ética de Lévinas como uma ética que “[...] foge de apresentar-se como um modelo que
possa significar qualquer tentativa de uma síntese melhor que a dos conceitos desses modelos éticos clássicos
[...]”, em referência à ética ocidental, seguindo duas vertentes em especial: a da ética aristotélica e a da ética
kantiana.
27
Pivatto (2001a, p.305) ao comentar sobre esta impossibilidade de apreensão do outro por
parte do eu, afirma que:
Outrem é uma presença “mais íntima a mim que o meu próprio íntimo”, expressão
agostiniana que Lévinas adota, conferindo-lhe nova significação. Evidentemente
não se trata aqui de uma ideia que se tem de outro ou de um sentimento profundo
para com ele, mas do outro interpelante enquanto outro não ontologizado,
enquanto alteridade absolutamente separada.
Pode-se constatar que Pivatto sinaliza para o outro enquanto alteridade separada do eu
e livre dos conceitos ontológicos, ou seja, o outro em sua dimensão infinita se dá ao finito
(eu) sem se deixar enclausurar. Cabe ao eu, nesse caso, usar de toda sua hospitalidade para
acolher o outro enquanto outro, numa atitude de serviço e entrega total, para não sucumbir à
solidão provocada pelo egoísmo.
Entende-se, a partir desta análise, a significação dada por Lévinas à evasão como
saída do ser, ou seja, mais do que apenas libertar-se de si mesmo, o eu, ao projetar-se, do
circulo fechado do ser, abre-se para o infinito e rompe com a solidão que o ameaça
ininterruptamente. Numa resposta a Philippe Nemo sobre este assunto, Lévinas (1982b, p.49-
50) explicita sua proposta esclarecendo que
O meu esforço consiste em demonstrar que o saber é, na realidade, uma imanência,
e que não há ruptura do isolamento do ser no saber; que, por outro lado, na
comunicação do saber nos encontramos ao lado de outrem, e não confrontados
com ele, não na verticalidade do em frente dele. Mas, estar em relação direta com
outrem não é tematizar outrem e considerá-lo da mesma maneira como se
considera um objeto conhecido, nem comunicar-lhe um conhecimento. Na
realidade, o fato de ser é o que há de mais privado; a existência é a única coisa que
não posso comunicar; posso contá-la, mas não posso partilhar a minha existência.
Portanto, a solidão aparece aqui como o isolamento que marca o evento do próprio
ser. O social está para além da ontologia.
Destarte, ao romper com o isolamento do ser, delineia-se uma ruptura com a ontologia
enquanto mundo fechado do saber, tendo como conseqüência a abertura de possibilidades de
relação entre o infinito (outro) e o finito (eu), em que se constitui a socialidade que liberta o
eu de seu mundo fechado e solitário. Nesse sentido é que a ética assume sua dimensão infinita
e, consequentemente, transcendente.
28
2.7. Socialidade e transcendência
A partir da reflexão até aqui, de que a filosofia levinasiana busca romper com a
tradição, apontando possibilidades para o ser, de modo a que superem sua solidão é que se
constitui a ética como relação com o outro em sua alteridade. Eis o salto levinasiano para a
transcendência e o infinito, que se opera na socialidade do face-a-face entre o eu e o outro.
Estas possibilidades permitem um novo modo de se pensar não apenas a relação, mas a
própria filosofia, de forma a superar seus absolutismos.
Ora, por esse viés a ética, como a concebe Lévinas, reveste-se de uma verdade
sensível, humana, que reconhece no outro a condição de outro, e não de um alter ego, numa
abertura e espontaneidade relacional que testemunham a presença do infinito. Nos dizeres de
Lévinas (2003, p.224), “[...] Somente do infinito há testemunho
35
; estrutura única, exceção à
regra do ser, irredutibilidade da representação [...]”.
36
O outro, em sua alteridade separada do eu, constitui-se, assim, infinito, já que sua
presença clama pela ética em toda sua transcendência. Aliás, pela relação ética é que a
transcendência se faz presente sem perder sua exterioridade, conforme o descreve René Bucks
(1997, p. 108) “A relação ética realiza uma verdadeira transcendência, um salto para aquilo
que é exterior e que de forma alguma o sujeito possa prever ou antecipar pela razão. É no
contexto ético que ‘o transcendente, infinitamente Outro nos solicita (...)’[...]”.
Nessa abertura da ética para a transcendência e o infinito, o outro surge nos horizontes
da relação, livre dos condicionamentos ontológicos, sem conexão com a razão e suas sínteses
fechadas. Por isso, na relação com o outro é que se constrói a socialidade, a partir da ética e
não da ontologia, que tradicionalmente se utilizou do outro como mero objeto para suas
satisfações egoístas. Assim sendo, claro fica que, para Lévinas, o outro é o infinito, sem que
para isso sua exterioridade seja eliminada ou englobada pela consciência. Isto, pois, nos
dizeres de Marcelo Fabri (1997, p.83) “[...] A ideia de Infinito, colocada em mim a partir do
encontro com a alteridade – relação ética – provoca uma espécie de transbordamento da
consciência [...]”.
35
O testemunho contém, no contexto da filosofia levinasiana, uma dimensão profética, por isso, é de uma
significação que sinaliza a glória do infinito. No terceiro capítulo, tanto o testemunho quanto a glória do infinito
serão retomados com mais atenção.
36
“[...] Sólo del infinito hay testimonio; estructura única, excepción a la regla del ser, irreductible a la
representación[...]”.(LÉVINAS, 2003, p.224).
29
A consciência, neste caso, entendida como eu, é destituída do trono do mesmo, da
comodidade aparente de se transitar apenas no próprio mundo. Nesse sentido pode-se
afirmar a infinição do outro, pois tendo em vista sua exterioridade e transcendência
vislumbrar-se-á sempre uma separação entre o eu e o outro, a qual não permitirá ao eu,
enclausurar o outro, conforme se confere abaixo:
Em Lévinas, a consciência não se iguala ao ser através da representação (eidos).
A consciência busca ultrapassar o jogo de luzes em que a verdade é
englobamento ou redução do Outro ao Mesmo. Assim: A relação entre o Mesmo
e Outro nem sempre se reduz ao conhecimento do Outro pelo Mesmo, nem
sequer à revelação do Outro ao Mesmo, já fundamentalmente diferente do
desvelamento. Para Lévinas, ‘o absolutamente Outro é Outrem; não faz número
comigo’. (FABRI, 1997, p. 81).
Tendo em vista, portanto, esta dimensão do outro como infinito, faz-se mister
retomar a ideia de separação já abordada anteriormente no intuito de se explicitar a
concepção de que a relação entre infinito e finito é possível, exatamente, pelo fato de se
encontrarem separados. Ou seja, pela separação entre o eu e o outro é que se constrói a
relação ética e se desvela a dimensão de transcendência da socialidade.
2.8. A separação
A proposta de Lévinas aponta na direção do outro como infinito e transcendente, daí
separado do mundo do eu, que insistentemente, fecha-se no próprio saber de forma
egocêntrica. Nesse sentido a relação ética, consoante a concebe o filósofo lituano, visa a um
novo modo de ser que está para além da ontologia e que reconhece na separação do outro sua
dimensão de transcendência. Isto quer dizer que o outro, na sua infinição, encontra-se
separado do eu, o que lhe garante ser outro numa alteridade que não se confunde com a
identidade do eu assim
No contexto da separação, tomando-a agora do ponto de vista da alteridade,
enquanto o outro é total exterioridade, noumeno, kath’auto e que jamais pode ser
englobado pela retórica – em que o outro deixa de ser expressão de si mesmo, e
tampouco pelo discurso estético, que nasce normalmente no âmbito da felicidade
do ser separado enquanto vive da experiência das coisas – faz-se mister a
afirmação da relação do discurso para deixar o Outro ser Outro, isto é, deixá-lo
ser outro sem que seja desvelado ou violentado pela linguagem do Mesmo.
(RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p.258).
30
Dessa maneira desvenda-se a posição crítica de Lévinas ao pensamento, como aquele
que almeja pensar tudo e todos, sem reconhecer suas limitações intrínsecas ao finito que não
consegue pensar o infinito. A separação, nessa perspectiva, não significa afastar ou
distanciar o eu do outro, mas sim, garantir que o outro em sua alteridade se supra fora do
pensamento totalizante do eu. Eis a característica da separação que favorece o encontro entre
o infinito e o finito, permitindo conceber não apenas a ética, mas inclusive a filosofia para
além da ontologia. Isto, porque segundo Lévinas (1980, p. 36)
O infinito é característica própria de um ser transcendente, o infinito é o
absolutamente outro. O transcendente é o único ideatum do qual apenas pode
haver uma ideia em nós; está infinitamente afastado da sua ideia – quer dizer,
exterior – porque é infinito.
A distância da transcendência não equivale à que separa, em todas as nossas
representações, o acto mental do seu objecto, dado que a distância a que o
objecto se mantém não exclui – e na realidade implica – a posse do objecto, isto
é, a suspensão do seu ser.
Constata-se, pois, que o infinito, ao se apresentar ou se oferecer à ideia, não se deixa
captar pela mesma, mantendo sua exterioridade intacta e livre dos encantos da ontologia na
sua busca sedenta de a tudo conter. Dado que o infinito pressupõe a ética em sua relação com
o outro, eis que a separação, ao invés de representar distanciamento ou afastamento, é a que
proporciona o encontro do infinito com o finito na sua abertura para o outro, o qual, em sua
transcendência infinita realiza-se no face-a-face das relações. Em outras palavras, o outro
interpela o eu para a ação, ao mesmo tempo na imanência e na transcendência das relações,
sem fugas ou tematizações. A ética em sua transcendência está para além das sínteses
inteligíveis consideradas totalidade, numa dimensão separada, exterior ela.
A separação vem, pois, repleta de uma significação que supera o egoísmo do eu, num
movimento que se coloca a caminho para o outro na sua exterioridade. De acordo com Susin
(1984, p.45):
A separação em relação ao mundo é descrita por Lévinas como um movimento
no mundo, absolutamente diverso de um dado imóvel e cristalizado fora do
mundo. Ao movimento de ex-tensão e de desenrolamento corresponde (...) um
movimento contrário, centrípeto, de compreensão e retorno a si, que Lévinas
chama de “involução”. É assim, pela involução, que o eu é um ente autônomo no
ser, interioridade acima do ser. O egoísmo é um evento ontológico e uma
exaltação para além do reino circunscrito pela ontologia, rompimento efetivo.
Sua separação e sua subsistência autônoma são garantidas pelo movimento de ir à
exterioridade e de retornar a si, exatamente o que significa extensão e
compreensão. O mundo – o ser, o reino da ontologia, na concepção de nosso
autor – não contém inteiramente a subjetividade, nem forma com ela um todo
correlativo e adequado. A subjetividade se iden-tifica no retorno à sua origem
infinita e interior.
31
O movimento, nesse caso, significa sempre abertura para o outro na sua dimensão
infinita; por isso, nunca nos completa ou plenifica: somos esvaziados e postos em questão.
Trata-se de um desejo
37
que se alimenta de sua própria fome (FABRI, 1997, p.83). Neste
contexto, uma vez mais convém relembrar a crítica de Lévinas à filosofia de Descartes, que
não consegue romper com a totalização do infinito enquanto ser pensável pelo cogito, o que,
nas palavras de nosso autor (1980, p.66) denuncia uma continuidade dos pensamentos de
Platão e Aristóteles, conforme abaixo:
A impossibilidade para o ser transcendente e para o ser que dele está separado, de
participar no mesmo conceito, a descrição negativa da transcendência é ainda de
Descartes. Ele afirma de facto o sentido equívoco em que o ‘ser’ se aplica a Deus e
à criatura. Através da teologia dos atributos analógicos na Idade Média, esta tese
remonta à concepção da unidade apenas analógica do ser em Aristóteles, que se
encontra em Platão, na transcendência do Bem em relação ao ser. Deveria servir de
fundamento a uma filosofia pluralista em que a pluralidade do ser não se
desvaneceria na unidade do número, nem se integraria numa totalidade.
Em outras palavras, Lévinas pondera que Descartes teve uma grande oportunidade
para mudar os rumos da filosofia ao abrir-se para a ideia do infinito, todavia a tendo
desperdiçado ao tentar integrá-la à totalidade do ser. Nesse sentido, a ética estabelecida pela
relação com o outro se constitui em abertura para a transcendência e para o infinito, no desejo
que está para além das necessidades satisfeitas.
Como a ética pressupõe uma originalidade em relação à ontologia e, ao mesmo tempo,
um para além da ontologia, sua concretização exige muito mais que um simples pensamento
ou conceito formulado. Uma atitude tão gratuita e espontânea, na linguagem levinasiana,
desinteressada
38
, só se torna cabível e ao mesmo tempo provável se houver uma abertura que
transcenda qualquer possibilidade egoísta do eu. Isto porque o egoísmo enquanto
característica inerente à ontologia, por mais que busque a totalidade e o absolutismo do ser,
encontra-se sempre fechado para o outro, já que ele
é um acontecimento ontológico, uma dilaceração efetiva e não um sonho que
decorre à superfície do ser e que se poderia negligenciar como uma sombra. O
desmembramento de uma totalidade só pode produzir-se pelo estremecimento do
egoísmo, nem ilusório nem subordinado no que quer que seja à totalidade que ele
rasga. (LÉVINAS, 1980, p. 157).
37
O desejo conforme a interpretação presente na linguagem levinasiana é desejo metafísico, portanto, insaciável.
No segundo capítulo esta dimensão do desejo será explicitada de forma mais minuciosa.
38
Esta atitude desinteressada é denominada por Lévinas, com uma significação própria, de des-inter-essamento,
que será objeto de aprofundamento no segundo capítulo.
32
Levando em consideração que a ética é a filosofia primeira, então a transcendência se
encontra numa posição original e infinita sem se confundir com o pensamento que a tenta
conter. Trata-se de superação dos egoísmos que cerceiam o eu e as instituições políticas,
econômicas, religiosas, dentre tantas que têm a ontologia como alicerce. A relação com o
outro na qual a ética se dá por excelência, transforma-se na própria transcendência, que ao
invés de estar distante
39
, realiza-se aqui e agora na atitude de acolhida, de hospitalidade, de
responsabilidade, de proximidade e reconhecimento do outro por parte do eu destituído de seu
egoísmo. Assim, nos escritos de Lévinas (1980, p.155),
A relação com outrem, a transcendência, consiste em dizer o mundo a Outrem.
Mas a linguagem completa o pôr em comum original – que se refere à posse e
supõe economia. A universalidade que uma coisa recebe da palavra, que a arranca
ao hic et nunc, perde o seu mistério na perspectiva ética em que a linguagem se
situa. O hic et nunc remonta também à posse em que a coisa é captada e a
linguagem que a designa ao outro é um desapossamento original, uma primeira
doação. A generalidade da palavra instaura um mundo comum. O acontecimento
ético situado na base da generalização é a intenção profunda da linguagem. A
relação com outrem não estimula, não suscita apenas a generalização, não lhe
fornece somente o pretexto e a ocasião (o que nunca ninguém contestou), mas é
essa mesma generalização. A generalização é uma universalização – só que a
universalização não é a entrada de uma coisa sensível na ‘terra-de-ninguém’ do
ideal, não é puramente negativa como uma renúncia estéril, mas oferece mundo a
outrem. A transcendência não é uma visão de Outrem – mas uma doação original.
Constata-se que a relação com o outro consiste na própria transcendência “[...] que
não é uma óptica, mas o primeiro gesto ético[...]” (LÉVINAS, 1980, p.156), isto é, decorre no
chão da vida, nas atitudes cotidianas, no drama da existência. A transcendência olhada por
este prisma, separada do ser e das totalizações da razão possibilita, pela separação, a
realização tanto da identidade do eu quanto da alteridade do outro. A diferença é que pela
proposta levinasiana, assim como a ética é a filosofia primeira, o outro tem a primazia sobre o
eu. O encontro do infinito com o finito, portanto, só se torna possível a partir do outro, em sua
alteridade. Abrem-se, assim, as portas da filosofia para a transcendência da ética que se
realizem separado da ontologia.
39
Num mundo supra-sensível, conforme a filosofia aceita por diversos filósofos como Platão, Agostinho e o
próprio Descartes, que mesmo propondo uma realidade infinita separada do finito, identifica-a com a totalidade,
com um Ser estático.
33
2.9. A transcendência da ética
A transcendência se acompanha de uma abertura para o outro, tão radical, que exclui
qualquer possibilidade de concupiscência
40
, ou seja, de interesse que denote a necessidade de
reciprocidade e tomada de decisão por parte do outro. Por isso, Lévinas (1980, p.233) anuncia
que “[...] o acontecimento metafísico da transcendência – o acolhimento de Outrem, a
hospitalidade – Desejo e linguagem – não se cumpre como o amor [...]”, isto, porque o amor
pode estar à procura apenas de sua autorealização e da satisfação de seus interesses. “[...] O
amor como relação com Outrem pode reduzir-se a essa imanência fundamental, despojar-se
de toda a transcendência, procurar um ser conatural, uma alma irmã [...]”. (Lévinas, 1980,
p.233).
Logo, entende-se a insistência de Lévinas na proposta de saída do ser, do egoísmo do
mesmo, daquilo que ele denomina realidade baixa
41
(LÉVINAS, 1982a, p.95) ou ainda de Il
y a
42
como cansaço
43
que caracteriza a evasão do ser rumo ao infinito e que, para ele
representa a condição para que o eu se liberte do si mesmo, conforme se pode depreender do
trecho a seguir:
A evasão não procede somente do sonho do poeta que procuraria se evadir da
‘realidade baixa’; e nem, como para os românticos dos séculos XVIII e XIX, da
preocupação em romper com convenções e contratos sociais que falsificariam ou
aniquilariam nossa personalidade; ela tampouco é a procura do maravilhoso capaz
de quebrar a apatia de nossa existência burguesa; ela não consiste em se libertar
das servidões degradantes que nos impõem o mecanismo cego de nossos corpos,
pois não é somente a identificação possível do homem com a natureza que lhe faz
horror. Todos esses motivos constituem apenas variações sobre um tema cuja
profundidade são incapazes de atingir. Apesar de ocultarem-no, eles o transpõem.
Porque ainda não colocam em xeque o ser, e obedecem a uma necessidade de
transcender os limites do ser finito. Traduzem o horror de uma certa definição de
nosso ser e não do ser como tal. A fuga que comandam é uma busca de refúgio.
Não se trata somente de partir, mas também de ir a algum lugar. A necessidade de
evasão se encontra, ao contrário, absolutamente idêntica a todos os pontos de
40
Nilo Ribeiro Júnior (1999, P.26) chega a falar de “uma ética sem ontologia, mas que se afirma como uma
antropologia”. Mais adiante ele situa a ética levinasiana na perspectiva de um ‘amor’ sem concupiscência’
quando no ‘horizonte bíblico-talmúdico’, que marca muitos dos escritos do filósofo lituano, que segundo Ribeiro
Júnior (1999, p.27), “[...] dá uma transformação da semântica da palavra ‘amor’, uma vez que ela aparece
indissociável da responsabilidade e da justiça feita ao outro homem [...]”.
41
Basses réalités (LÉVINAS, 1982a, p.95).
42
Expressão bastante utilizada por Lévinas para significar a situação do ser que se prende a si mesmo, e se
assusta ao deparar-se com o vazio da existência. Para o filósofo o Il y a ou apenas “[...] é o fenômeno do ser
impessoal [...]”. (LÉVINAS, 1982b, p.39). O trecho em que Lévinas explicita ainda mais a condição do Il y a
vem logo após o trecho anterior, no qual ele diz que “[...] A minha reflexão sobre este tema parte das
lembranças da infância. Dorme-se sozinho, as pessoas adultas continuam a vida; a criança sente o silêncio do
seu quarto de dormir como ‘sussurrante’”. (LÉVINAS, 1982b, p.39).
43
Em Da Existência ao existente, Lévinas dedica um tópico da primeira parte do livro ao cansaço, na qual ele
explicita a condição deste cansaço como apego ou dependência do ser ao si mesmo. (Cf. LÉVINAS, 1998, p.36-
37).
34
parada para onde a conduz sua aventura, como se o caminho percorrido não
subtraísse nada à sua insatisfação.
44
(LÉVINAS, 1982a, p.95-96)
Verifica-se que, para o pensador lituano, a saída do ser representa uma necessidade do
próprio ser, sem a qual se torna impossível a transcendência da ética, que pressupõe a relação
entre o eu e o outro a partir do outro. Por isso, deve-se cuidar ao máximo para não se incorrer
nos riscos, por exemplo, de entregar-se ao amor sem concupiscência. Cuidado que também se
faz necessário em relação à liberdade que, pela tradição, quase sempre se determina pela
satisfação das necessidades do eu em detrimento aos interesses do outro. Nesse caso, ela é
revestida pela ontologia, o que destitui seu potencial transcendente.
Ora, a liberdade precisa ser pensada para além da ideia de liberdade, o que implica
uma mudança total nos paradigmas vigentes. Um exemplo, a relação entre liberdade e
responsabilidade que, tradicionalmente, existe a partir da liberdade do eu que procura, antes
de qualquer coisa, sua satisfação. Para depois pensar no outro. Para Lévinas, ao contrário, o
eu só é livre quando assume sua responsabilidade para com o outro. Partindo dessa
concepção, assim como a ética precede a ontologia, a transcendência precede a liberdade, o
que mantém, por assim dizer, a transcendência da liberdade que está no outro e não no eu. Em
consonância a Lévinas (1980, p.204),
Não é, pois, a liberdade que explica a transcendência de Outrem, a transcendência
de Outrem explica a liberdade; transcendência de Outrem em relação a mim, que,
infinita como é, não tem a mesma significação que a minha transcendência em
relação a ele.
Desse modo, a liberdade enquanto valor considerado imprescindível para a
humanidade - principalmente a partir do Iluminismo - é colocado em xeque no pensamento de
Lévinas. Como se pode constatar, o questionamento feito por ele à ontologia assume reflexos
em vários conceitos cristalizados na tradição que, a priori, acham-se acima de qualquer
44
L’évasion ne procede pas seulementd du rêve du poète qui chercherait à s’évader des ‘basses réalité’ ; ni,
comme chez les romantiques des XVIII et XIX siècles, du souci de romper avec les conventions et les contraintes
sociales qui fausseraient ou annihilerainet notre personalité ; elle n’est pas la recherche du merveilleux
susceptible de briser l’assoupissement de notre existence bourgeoise ; elle ne consite pas non plus à s’affranchir
des servitudes dégradantes que nous impose le mécanisme aveugle de notre corps, car ce n’est pas seulement
l’identification possible de l’homme et de la nature qui lui fait horreur. Tous ces motifs ne sont que des
variations sur un thème dont ils le recèlent cependant, mais le transposent. Car ils ne mettent pas encore en
cause l’être, et obéissent à un besoin de transcender les limtes de l’être fini. Ils traduisent l’horreur d’une
certaine définition de notre être et non pas de l’être comme tel. La fuite qu’ils commandent est une recherche de
refuge. Il ne s’agit pas seulement de sortir, mais aussi d’aller quelque part. Le besoin d’évasion se retrouve, au
contraire, absolument identique à tous les points d’arrêt où le conduit son aventure, comme si chemin parcouru
n’enlevait rien à son insatisfaction.
(LÉVINAS, 1982a, p.95-96).
35
suspeita como no caso da liberdade e do amor. Porém, dentro de uma proposta filosófica, na
qual a ética transcende o conhecimento ontológico afeito à síntese e à conceituação como
verdades inquestionáveis, espera-se que o pensamento transcenda o próprio pensar, o que
possibilita a manifestação da ética como reconhecimento do outro em sua alteridade,
rompendo com a totalidade que falseia a autonomia
45
do eu. No entendimento de Pergentino
Pivatto (2001a, p.307)
a autonomia e a separação do sujeito egoísta são igualmente condição da ruptura
da totalidade e da ontologia e, por aí, fonte da ética e seu refúgio. Tal ruptura se
verifica também porque é chamado e questionado pelo Outro. Por este caminho
abre-se a possibilidade da relação social, da transcendência, e só mediante esta
possibilidade pode surgir a ética.
Evidencia-se então, uma característica imprescindível da ética, qual seja, abertura para
o infinito através da relação com o outro enquanto outro. Por ela o outro se mantém separado
do eu. Garante assim sua alteridade e desvela toda a transcendência da ética, a qual, mesmo se
projetando para o infinito, não se transforma numa realidade abstrata.
A relação ética, portanto, em que o eu abre mão livre e espontaneamente ou, conforme
Lévinas, desinteressadamente, de seu autocentramento, constitui o meio mais viável para a
introdução de uma nova forma de se pensar a filosofia. Por isso a convicção levinasiana, de
que “[...] A relação com outrem é a única que introduz uma dimensão da transcendência e
nos conduz para uma relação totalmente diferente da experiência no sentido sensível do
termo, relativa e egoísta. (LÉVINAS, 1980, p. 172) uma relação que supõe a ética em sua
dimensão transcendente, já que o outro tem prioridade sobre o eu. Isto significa que,
transcendente, até mesmo a ética como o atesta a história da humanidade, corre o risco de cair
na circularidade do mesmo, ou do ser.
Por isso Lévinas concebe a ética dentro da socialidade das relações, na qual
concretamente o outro se faz presente mesmo estando separado em sua alteridade infinita. Ao
discorrer sobre esta dimensão da ética, Pivatto (2001a, p.309) sustenta que:
A transcendência realiza-se, portanto, na concretude da relação social. A relação
ética do eu ao outro torna-se a estrutura fundamental da economia geral do ser ou
sua ‘trema lógica’. Mantém o segredo do eu, sua originalidade (quebra da
totalidade da ontologia), e a transcendência do outro na diacronia da relação.
45
A esse respeito conferir Susin (1984, p. 288 a 292).
36
Vale enfatizar nas palavras de Pivatto a concepção de relação como diacronia, ou seja,
que não supõe reciprocidade por parte do outro, o que se encaminha para além da noção de
diálogo. Esta diferença, ou melhor, esta originalidade do pensamento levinasiano se opera,,
principalmente, em relação à compreensão do diálogo a partir da concepção filosófica do Eu-
Tu
46
. A diacronia da relação é o que permite, na ótica levinasiana, que o infinito enquanto
infinito esteja constantemente aberto para a relação que de forma ética transcende a
experiência
47
inclusive, do diálogo. De acordo com Lévinas (2003, p. 226):
O fato de que maneira o Infinito supera o finito, e vai além tenha um sentido ético
e não procede de um projeto de construir o ‘fundamento transcendental’ da
‘experiência ética’. A ética é o campo que esboça a paradoxalidade do infinito em
relação com o finito sem desmentir-se nesta apercepção transcendental; é dizer o
mais além da experiência
48
.
É a partir desta concepção de ética como abertura para a transcendência e o infinito
que a relação com o outro não apenas supõe uma responsabilidade para com ele, mas também
uma sujeição inaceitável e inadmissível ao pensamento ontológico acostumado à dominação.
Nesse sentido, pelo menos uma pergunta urge: levando em conta que a proposta de Lévinas se
volta para a inversão da ontologia pela ética e de superação do egoísmo e da violência do eu
em relação ao outro, esta responsabilidade e sujeição do eu ao outro não correria o risco de
apenas inverter a lógica do egoísmo e da violência, transformando o eu em objeto de
dominação pelo outro?
Como se trata de uma questão que suscita muitos questionamentos, ela demanda uma
abordagem mais minuciosa de aspectos da filosofia levinasiana, tais como a alteridade, a
responsabilidade, a substituição, a eleição, o desinteressamento, dentre outros, que vêm a
esclarecer a proposta do filósofo lituano como se pretende explicitar no próximo capítulo.
46
Filosofia defendida, especialmente, por Martin Buber (1878-1965) filósofo alemão que acredita estar no
diálogo Eu-Tu, o ápice das relações humanas. Para Lévinas, ao contrário, o diálogo visto por este prisma
permanece no logos e não no dia, portanto, mantendo o dito da ontologia com a palavra final. A esse respeito,
confira a descrição feita por Lévinas na terceira parte de De Deus que vem à ideia, p.188 a 202.
47
Até porque, como a “[...] ‘A ‘prova’ se relaciona à certeza, à evidencia e à ciência, exige a percepção de um
sujeito que acolhe sem transbordar o sujeito. O máximo que se pode conceder é a ‘correlação’. Por isso também
a ‘experiência’ fica desqualificada para Lévinas, passando para o lado das provas”. DPH 109. TI 20. 281.
(SUSIN, 1984, p.224, nota 91).
48
El hecho de que la manera en que el Infinito pasa lo finito y se pasa tenga un sentido ético e no procede de un
proyecto de construir el ‘fundamento trascendental’ de la ‘experiencia ética’. La ética es el campo que dibuja la
paradoja de un Infinito en relación con lo finito sin desmentirse en esta apercepeción trascendental, es decir, lo
más allá de la experiencia. (LÉVINAS, 2003, p.226).
37
3 ALTERIDADE E RESPONSABILIDADE
O outro que ser proposto por Lévinas não consiste em outro ser e muito menos em um
não ser, mas sim, na condição imprescindível para que o eu possa sair de si mesmo sem
possibilidade de retorno, conforme apresentar-se-á neste capítulo. Nesse sentido, a alteridade
do outro na sua exterioridade faz com que o eu assuma sua responsabilidade como
testemunho do infinito, manifestado na insaciabilidade do desejo. Eis a intriga ética presente
na relação, como exigência de que o eu reconheça o outro, servindo-o desinteressadamente.
Para isso, a subjetividade do eu só se constitui como tal na medida em que se torna ou se
coloca como ser-para-o-outro, disposto a substituí-lo incondicionalmente, em prontidão
profética capaz de inverter a lógica da filosofia enquanto amor à sabedoria para a sabedoria do
amor. Na linguagem levinasiana, a ética que se entende a partir do serviço profético alcança
sua transcendência sem com isso distanciar-se da realidade, já que sua dimensão
transcendente e infinita manifesta-se na justiça e igualdade social, estabelecidas na relação em
que o eu é sempre o primeiro a responder não apenas pelo outro, mas idem pela
multiplicidade de outros que formam a sociedade humana.
3.1. O desvelar da alteridade
A alteridade desvela-se assunto recorrente na filosofia de Lévinas, vista pelo prisma da
ética como filosofia primeira e para além das tematizações e conceitos que em geral, exigem
análise, comprovação e síntese de todos os fenômenos, no intuito de explicá-los lógico-
racionalmente. É nesse sentido que a ética constitui-se abertura para o infinito e desvela a
alteridade no face-a-face da relação e da socialidade em sua transcendência.
Lévinas vê na ética como abertura para o outro na sua dimensão infinita, a
possibilidade de saída da ontologia e a maneira para o eu se libertar das próprias correntes
49
,
já que pelo encontro com o outro – que o interpela e obriga à responsabilidade – o eu se
afirma como sujeito e não na verdade do ser que o aprisiona no mundo do mesmo. Ao
comentar sobre esta situação do ser no pensamento de Lévinas, Marcelo Fabri (1997a, p.30)
acresce-nos que “o ser é sinônimo de aprisionamento, de um encadeamento a si”, que além de
49
Para uma melhor compreensão do acorrentamento de si mesmo ao qual está submetido o ser, consultar Luiz
Carlos Susin, O Homem messiânico, uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas, páginas 161 a 163.
38
significar dependência do ser, impede a vida de transcorrer espontaneamente. Nas palavras de
Lévinas (1982a, p.97-98):
O cumprimento de um destino
50
é o estigma do ser: o destino não está
completamente traçado, mas seu cumprimento é fatal. Estamos na encruzilhada,
mas é preciso escolher. Estamos embarcados. No élan vital vamos rumo ao
desconhecido, mas vamos a algum lugar, enquanto na evasão só aspiramos à saída.
É esta categoria de saída, inassimilável pela renovação e pela criação, que é
preciso compreender em toda a sua pureza. Tema inimitável que nos propõe sair
do ser. Procura-se uma saída, mas ponto nostálgico da morte, pois a morte não é
uma saída nem uma solução. A base deste tema é constituída – para usar de um
neologismo –por uma necessidade de excedência
51
. Assim, na necessidade de
evasão, o ser não parece apenas obstáculo ao pensamento livre de transpor, nem a
rigidez que, convidando à rotina, exige um esforço de originalidade, mas um
aprisionamento do qual é preciso sair
52
.
Partindo deste pressuposto, portanto, de que é preciso sair, se evadir da prisão,
incutida ao eu pelo pensamento fechado na verdade do ser, o eu deve abrir-se para outras
possibilidades de ser, para um outro que ser
53
que questione o ser na sua irredutibilidade
ontológica. Nesse caso, a saída da ontologia possibilita o encontro com o outro enquanto
outro, ou seja, na sua alteridade. Segundo René Bucks (1997, p. 160), “o eu renasce libertado
onde se perde no outro”, ou seja, o outro que ser se revela a oportunidade para o eu sair de si
mesmo e ir em direção ao outro, para servi-lo como outro e não como um alter-ego,
superando, assim, sua autoprisão.
Para Marcelo Pelizzoli (2002, p.147):
50
Sobre a noção de destino consultar Marcelo Fabri (2001, p.73).
51
No original, excedance, um trocadilho com as palavras excéder e ascendance, que vem de ascension
(Ascensão, subida).
52
L’accomplissement d’une destinée est le stigmate de l’être : la destinée n’est pas toute tracée, mais son
accomplissement est fatal. On est au Carrefour, mais il faut choiser. Nous sommes embarqués. Dans l’élan vital
nous allons vers l’inconnu, mais nous allons quelque part, tandis que dans l’évasion nous n’aspirons qu’à sortir.
C’est cette catégorie de sortie, inassimilable à la rénovation ni à la création, qu’il s’agit de saissir dans toute sa
pureté. Thème inimitable qui nous propose de sortir de l’être. Recherche d’une sortie, mais point nostalgie de la
mort, car la mort n’est pas une issue comme elle n’est pas une solution. La fond de ce thème est constitué –
qu’on nous passe le néologisme – par un besoin d’exceendance. Ainsi, au besoin d’évasion, l’être n’apparaît pas
seulement comme l’obstacle que la pensée libre aurait à franchir, ni comme la rigidité qui, invitant à la routine,
exige un effort d’originalité, mais comme un emprisonnement dont il s’agit de sortir. (LÉVINAS, 1982a, p.97-
98).
53
Ao propor o Outro que ser, Lévinas não está em busca de uma pura e simples substituição do ser por outro ser.
Ao contrário, sua busca diz respeito à saída do ser como condição para outras formas de conhecimento que
estejam para além da ontologia, numa abertura para a transcendência e o infinito, que em sua proposta não são
um outro ser, mas sim um outro que ser. De acordo com o próprio filósofo: “Si la trascendencia tiene un
sentido, no puede significar otra cosa, por lo que respecta al acontecimiento del ser – al esse, a la esencia – que
el hecho de pasar a lo otro que o ser. Pero ¿qué quiere decir lo otro que o ser? Entre los cinco <<gêneros>>
del sofista falta el gênero opuesto al ser, a pesar de que a partir de la República se hace cuestión de lo más allá
de la esencia.¿Qué puede signifcar aquí el hecho de pasar que, abocando a lo otro que el ser, en el curso de este
paso no podría por menos de deshacer su facticidade? Pasar a lo otro que el ser, de otro modo que ser, no ser
de otro modo, sino de otro modo que ser [...]”. (LÉVINAS, 2003, p.45).
39
O ‘outro que ser’ deve acima de tudo, questionar – pondo a questão do pôr questão
– o poder que repousa na subjetividade ego-onto-lógica. Esta se colocou como
credora do ser, inter-essada e recorrendo ou re-fletindo a si – na mesmidade de seu
tempo, constituído e hipotecado junto ao ser e sua força – no Mesmo de seu espaço
e lugar concreto de outrem. Impõe-se deslocar na raiz a subjetividade ontológica,
de modo que o desafio do outro que ser mais que choque nadificante ou, ainda,
teologia negativa, signifique, para além do ser e do não ser. Por quê? Porque no
plano do ser/não ser, não só a subjetividade se encontra cooptada pelo tempo da
essência em sua manifestação e isonomia reunindo os entes, mas o Outro resta
mediado num processo de ‘panoramização’ sutil.
O outro que ser, pois, coloca em xeque o ser centrado em si mesmo que não
reconhece sua condição finita diante do infinito da alteridade do outro. Esta incapacidade,
porém, de reconhecer sua finitude diante do outro decorre exatamente de sua busca pelo
infinito, que, no entanto, se faz a partir de si mesmo através da razão que pretensiosamente
acredita poder pensar o infinito. Esta constatação revela as contradições do ser que busca o
infinito no finito, ou seja, em si mesmo; quando ele depara com suas limitações, sente-se
incomodado, mas ao mesmo tempo, irredutível na sua sede de ser. De acordo com Lévinas
(1982a, p.120):
A experiência que nos revela a presença do ser enquanto tal, a pura existência do
ser, é uma experiencia de sua impotência, a fonte de toda necessidade. Tal
impotência não surge então como limite do ser nem como expressão de um ser
finito. A imperfeição do ser não surge idêntica à sua limitação. O ser é imperfeito
enquanto ser e não enquanto ser finito. Se por finitude do ser entendemos o fato de
que ele pesa sobre si próprio e que aspira à evasão, a noção do ser finito é uma
tautologia. O ser é então essencialmente finito
54
.
Diante desta condição de resistência ao ser, a evasão sintetiza a possibilidade de
encontro entre o infinito e o finito, a qual se acompanha pela relação ética e não pela
ontologia. Caso contrário, corre-se o risco de desembocar novamente na totalidade do ser e
fechar as portas para o outro. Por isso, o outro que ser em sua abertura para o infinito é o que
permite o encontro do eu com o outro, o qual, por sua vez, revela a transcendência da relação
ética na sua dimensão para além do ser.
Observa-se que o outro que ser não consta no pensamento de Lévinas como outra
forma de conhecimento do outro, isto, não porque o filósofo lituano seja avesso ao
54
L’expérience qui nous révèle la présence de l’être en tant que telle, la pure exsitence de l’être, est une
expeérience de son impuissance, la source de tout besoin. Cette impuissance n’apparaît donc pas en tant que
limite de l’être ni en tant qu’expression d’un être fini. L’ ‘imperfection’ de l’être n’apparaît pas comme
identique à sa limitation. L’être est ‘imparfait’ en tant qu’être et non pas en tant que fini. Si par finitude de
l’être nous entendons le fait qu’il est pesant pour lui-même et qu’il aspire à l’évasion, la notion d’être fini est
une tautologie. L’être est alors essentiellement fini. (LÉVINAS, 1982a, p.120).
40
conhecimento, mas sim pelo fato de que ‘Conhecer equivale a captar o ser a partir do nada
ou a reduzi-lo a nada, arrebatar-lhe a sua alteridade’. (LÉVINAS, 1980, p.31). Dessa maneira,
o outro que ser consiste numa outra forma de se relacionar com o outro a partir de sua
alteridade o que abre as portas para que o eu através da relação ética reconheça a dimensão
transcendente do infinito sem precisar tematizá-lo. Daí a crítica feita por Lévinas (1980, p.74)
ao assegurar que
Para a tradição filosófica do Ocidente, toda a relação entre o Mesmo e o Outro,
quando deixa de ser a afirmação da supremacia do Mesmo, se reduz a uma relação
impessoal numa ordem universal. A própria filosofia identifica-se com a
substituição das pessoas pelas ideias, do interlocutor pelo tema, da exterioridade da
interpelação, pela interioridade da relação lógica. Os entes reduzem-se ao Neutro
da ideia, do ser, do conceito.
A partir desse contexto, Lévinas vislumbra o outro que ser, que não passa
necessariamente pela filosofia, mas sim pela ética, enquanto reconhecimento do outro em sua
alteridade. Esta abertura incondicional da ética para o outro desvela a alteridade a partir da
relação que se verte no dia a dia da vida vivida e não simplesmente pensada ou tematizada.
Vale enfatizar que é a ética e não a alteridade que norteia o pensamento do filósofo, ou seja, a
alteridade possui sem dúvida um lugar de destaque, mas que depende da primazia da ética. A
ênfase aqui é importante, de modo a se evitar a interpretação de que Lévinas apenas destitui o
ser do eu e o transfere para o outro, apenas invertendo o poder de dominação, ou seja,
levando-o do eu para o outro.
Lévinas (2005, p.27) discorre com precisão sobre esta matéria, ao questionar que
na nossa relação com outrem, a questão será deixá-lo ser? A independência de
outrem não se realiza na sua função de interpelado? Aquele a quem se fala é,
previamente, compreendido no seu ser? De forma alguma. Outrem não é o
primeiro objeto de compreensão e, depois, interlocutor. As duas relações
confundem-se. Dito de outra forma, da compreensão de outrem é inseparável sua
invocação
55
.
Não sem motivos, portanto, a proposta filosófica de Lévinas se reveste de uma
originalidade incomparável, pois como se pode constatar ele não nega a razão nem o ser,
apenas propõe um outro que ser, que encontre na relação ética e não na ontologia, sua pré-
originalidade. Esta primazia da ética faz com que ela não dependa dos pressupostos
ontológicos, e lhe permita encontrar na alteridade do outro, sua dimensão transcendente e
55
Um texto bastante elucidativo sobre esta questão encontra-se em Responsabilidade e culpa em Emmanuel
Lévinas, escrito por Pergentino Pivatto (2001a, p. 302-303).
41
infinita. Todavia, é preciso ressalvar que, não depender dos pressupostos ontológicos não
significa que a ética prescinda da razão ou do ser, daí a proposta levinasiana de saída para um
outro que ser e não, simplesmente, para outro ser ou não-ser
56
.
3.2. O outro que ser como Desejo
O outro que ser, como exposto até aqui, revela o paradoxo da razão a qual, ao tentar
satisfazer o Desejo
57
que a perturba constantemente, confunde seu desejo infinito com as
meras necessidades
58
humanas que não ultrapassam mais que as satisfações efêmeras que se
esvaem com o gozo
59
. Depreende-se, assim, que para Lévinas o desejo é infinito sendo,
portanto, insaciável, o que o torna metafísico. Serrano (1997, p.14), descreve esta dimensão
do desejo, nos seguintes termos:
O desejo é metafísico: tende para o totalmente Outro, o absolutamente
Outro. Contrariamente às necessidades, o desejo não se satisfaz: porque
deseja o que está além de tudo que pode satisfazer-lhe: e ademais, porque o
desejado não acalma o desejo, sim, o aprofunda. O que o desejo deseja é
como um pão, que, ao invés de acalmar, desperta mais a fome.
60
56
Em De otro modo que ser: o más allá de la esencia, Lévinas (2003, p.46), assim se pronuncia sobre a questão
do ser ou não ser:Ser o no ser; por tanto, la cuestión de la trascendencia no reside ahi. El enunciado de lo otro
que el ser – de lo de otro modo que ser – pretende enunciar una diferencia más allá de la que separa al ser y la
nada[...]”.
57
A opção por escrever a palavra Desejo com o D maiúsculo está de acordo com o significado que lhe é dado por
Lévinas, que vê na insaciabilidade do desejo, o próprio infinito. Luiz Carlos Susin (1984, p.265) discorre de
forma muito clara sobre esta significação do Desejo ao dizer que: “[...] Lévinas retoma o tradicional conceito de
desejo – que poderia se aproximar mas que se deve também diferenciar da “aspiração” em Platão, do ‘apetite’
na escolástica e, sobretudo, do ‘desejo’ em Hegel – e dá à palavra sua interpretação própria[...].
58
Segundo Susin (1984, p.265), “[...] é ‘em Totalité et infini que o desejo é contraposto à necessidade, o que em
De L’existence a l’existant aparece ainda sem diferenciação[...]. Porém, já em De L’évasion, Lévinas (1982a,
p.103) introduz assim, a questão da necessidade: “A necessidade parece, a princípio, aspirar apenas à sua
satisfação. A busca da satisfação torna-se a busca do objeto capaz de alcançá-la. A necessidade nos direciona
assim rumo a outra coisa que não nós mesmos. Ela também aparece, em uma primeira análise, como uma
insuficiência de nosso ser, impelido a buscar refúgio em algo que não ele próprio. Insuficiência habitualmente
interpretada como uma falta, ela indicaria uma fraqueza de nossa constituição humana, a limitação de nosso
ser, o mal-estar através do qual a necessidade inicia-se e que a preenche de certa forma; ainda que atinja
apenas uma intensidade mediana, seria a tradução afetiva desta finitude. Assim como o prazer da satisfação
traduziria o restabelecimento de uma plenitude natura”.
59
Nilo Ribeiro Júnior (1999, p.38) cita um trecho de De Deus que vem à ideia, em que Lévinas afirma que “[...] o
Desejo não pode orientar-se a fim que seja alcançado: no Desejo, a aproximação distancia e o gozo não é senão
a crescente fome [...]”.
60
El Deseo es metafísico: tiende hacia lo totalmente Otro, lo absolutamente Otro.Contrariamente a las
necesidades, el Deseo no se satisface: porque desea lo que está más allá de todo lo que puede satisfacerle; y
además, porque lo deseado no calma el Deseo, sino que lo profundiza. Lo que el Deseo desea es como un pan
que a la vez calma y despierta más hambre. (SERRANO
, 1997, p.14).
42
O desejo nesta perspectiva reveste-se de uma significância incomensurável, que vai
além das satisfações efêmeras de um eu egoísta. Isto faz com que o desejo mais que abertura
para o infinito seja o próprio infinito, já que em sua significância que ultrapassa as
necessidades, estabelece-se a relação com o outro em sua infinitude, o que torna esta relação
insaciável. Lévinas (1980, p.22) afirma que
O desejo é desejo do absolutamente Outro. Para além da fome que se satisfaz, da
sede que se mata e dos sentidos que se apaziguam, a Metafísica deseja o Outro
para além das satisfações, sem que da parte do corpo seja possível qualquer gesto
para diminuir a aspiração, sem que seja possível esboçar qualquer carícia
conhecida, nem inventar qualquer nova carícia. Desejo sem satisfação que,
precisamente, entende o afastamento, a alteridade e a exterioridade do Outro. Para
o Desejo, a alteridade, inadequada à ideia, tem um sentido. É entendida como
alteridade de Outrem e como a do Altíssimo.
Grosso modo, é assim que o outro que ser se constitui em desejo do infinito, ou, de
acordo com Lévinas, no próprio infinito que, ao não poder ser abarcado pela razão, deixa
transparecer sua dimensão de abertura para o outro, para a alteridade que se desvela a partir de
uma relação ética também infinita, e não de um conhecimento que tenta englobar e saciar
todos os desejos, como se pudesse satisfazê-los. Dessa maneira, a relação ética voltada para a
alteridade supõe um Desejo pelo outro, que excede as meras necessidades relacionais que
tendem a transformar o outro em meros objetos de prazer ou de gozo efêmeros. De acordo
com Costa (2000, p.112),
A relação com ‘o Outro’ é desejo ‘o mesmo’ parte e se move para o Outro por
causa do desejo metafísico. O desejo metafísico não é desejo de saciar-se de algo
que lhe falte, não é satisfação de alguma necessidade. O que caracteriza “o
mesmo” do ‘eu-mim é que está farto da saciedade do mundo. É um desejo de
outra ordem e de outro ‘quilate’.
Ora, o Desejo nesta perspectiva tende para uma coisa inteiramente diversa,
(NODARI, 2002, p. 198), que se dá ou está para além das satisfações e necessidades que
sucumbem aos feitiços da razão quando esta acredita bastar-se a sim mesma. Ao contrário, o
Desejo enquanto infinito sai do si mesmo para desvelar a alteridade. Assim confirma Lévinas
(2002, p.163):
A Questão, a Busca e o Desejo são privações da resposta, da posse, do gozo. Não
se pergunta se a questão paradoxalmente desigual a si mesma não pensa além, se a
questão, em lugar de nela carregar apenas o vazio da necessidade, não é a própria
modalidade da relação com o outro, com aquele que não pode ser abarcado, com o
Infinito.
43
O Desejo como se vê não deve ser confundido com a efemeridade do gozo e muito
menos com as necessidades que acompanham o ser humano sejam elas biológicas e/ou físicas,
psíquicas e/ou afetivas. Isto posto, o Desejo em sua dimensão infinita desvela a alteridade do
outro na sua dimensão transcendente, ou seja, está para além das necessidades.
O Desejo é movimento constante em busca de algo que se sabe, não será alcançado,
mas que mesmo assim, não cessa seu movimento em direção ao infinito. O desejo que vai ao
encontro do outro, de antemão, sabe que jamais o alcançará, mas mesmo sem satisfazer-se, ou
exatamente por não se satisfazer, prossegue em sua busca pelo absolutamente outro. Para
Lévinas (1980, p.21) “O termo desse movimento – o outro lado ou o outro – é denominado
outro num sentido eminente. Nenhuma viagem, nenhuma mudança de clima e de ambiente
podem satisfazer o desejo que para lá tende [...]”.
O Desejo enquanto movimento para o outro possibilita, desse modo, o outro que ser
proposto por Lévinas, uma vez que, ao romper com as necessidades não se submete ao ser e
muito menos ao não-ser, numa abertura que pressupõe a socialidade e, consequentemente,
num movimento em direção ao outro. Segundo Márcio Paiva (2000, p. 221):
O Desejo é então o movimento de infinitude da vontade que se relaciona com o
Outro não como o desejado (o que entra no caráter ontológico do conhecimento
racional que tematiza de modo sincrônico e assimilador), mas como o desejável, o
que foge continuamente da captura do Mesmo, e se mantém absolutamente outro,
heterogêneo, numa situação espaço-temporal onde atua continuamente uma
diacronia, uma impossibilidade de encontro de caráter inteligível, mas permanece
um nível de compreensão livre fora do esquema espácio-temporal e da memória,
na linguagem, no discurso, estruturado sobre a verdade como revelação e
expressão de um Rosto, que significa antes de qualquer significado, por isso foge
da significação do Mesmo, permanecendo na sua anterioridade, passado infinito.
Delineia-se, seja como for, outra forma de conceber a relação com o outro,
estabelecida não mais pela necessidade, pelos interesses do eu, pelo conhecimento e pelos
conceitos ou até preconceitos que o acompanham em suas relações, geralmente egoístas com
o outro. O Desejo em sua infinitude sinaliza para o outro, na sua dimensão infinita, que não
pode ser reduzido aos conceitos e tematizações da razão, nem sequer aos egoísmos do eu.
Assim sendo, o de outro modo que ser levinasiano é sinônimo do Desejo como abertura para
a alteridade desvelada no Rosto como mandamento ético de serviço e reconhecimento do
outro como infinito, e não como objeto finito das necessidades do eu.
44
3.3. Alteridade e reconhecimento
O Outro, assim como o Desejo, está para além das satisfações efêmeras e egoístas do
eu, ou seja, ele está para além de toda necessidade, de todo prazer, de toda e qualquer
tematização que tente enquadrá-lo. Assim como o Desejo, o Outro ostenta uma dimensão
metafísica que desperta a responsabilidade e o compromisso do eu reconhecendo seu valor de
outro. Tendo em vista que “[...] o desejo é posto em mim, como na ideia do infinito, como
revelação, palavra, mandamento do bem, como pobre, órfão, viúva e estrangeiro, e não como
consciência moral [...]” (SUSIN, 1984, p.266), é pelo reconhecimento do outro que a ética
deve ser entendida como pré-original ao pensamento – reconhecimento que desemboca na
relação de serviço do eu ao outro, na sua alteridade infinita. Nas palavras de Lévinas (1980,
p.26):
O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de uma alteridade
que não é um simples inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de
resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade anterior a toda iniciativa, a todo o
imperialismo do Mesmo; outro de uma alteridade que constitui o próprio conteúdo
do Outro; outro de uma alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse caso o
Outro não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria dentro
do sistema, ainda o Mesmo.
Observa-se que, ao considerar o outro na sua dimensão infinita, Lévinas supera a
ontologia e suas armadilhas que tentam aprisioná-lo no mundo do conhecimento e de suas
sínteses fechadas, destituindo-o de sua alteridade. Dessa maneira, sem poder conter e, ao
mesmo tempo, conhecer o outro, resta ao eu colocar-se a seu serviço reconhecendo sua
alteridade de outro. Nessa perspectiva, uma nova forma de relação se estabelece, tendo em
vista que o desejo, o infinito, a alteridade recuperam, por assim dizer, o valor que lhes é de
direito, para lançar mão de uma expressão contemporânea, quando se defende os direitos
daqueles que, historicamente foram desconsiderados no contexto social. Na concepção
levinasiana:
Se o outro deve ser acolhido como outro, é preciso que ele seja acolhido
independentemente de suas qualidades. Sem isto, sem uma certa imediatidade – é
precisamente a imediatidade por excelência, a relação com outrem é a única a
valer como imediata – o resto de minhas análises perderia toda a sua força. A
relação passaria por uma dessas relações tematizáveis que se estabelecem entre
objetos. Pareceu-me que o esquecimento de todas essas “incitações” à tematização
é a única maneira para o outro valer como outro. (LÉVINAS, 2002, p.116)
45
Esta abertura para o outro na sua alteridade demonstra como a evasão enquanto saída
da ontologia é condição sine qua non para que o outro se arvore em seus direitos
reconhecidos. Consciente da força da ontologia e do poder histórico exercido pelo saber
filosófico sobre o outro, Lévinas propõe em sua filosofia a busca pela libertação do outro, do
jugo pesado imposto a ele pelo eu. Eis o ponto em que se afirma, de acordo com o
pensamento do filósofo lituano, a transcendência da ética que não está num mundo distante ou
em outra realidade além, mas sim na relação com o outro, na sua alteridade. Por isso Lévinas
(1980, p.106) insiste em dizer que
A alteridade de Outrem está nele e não em relação a mim, revela-se, mas é a partir
de mim e não por comparação do eu com o Outro que eu lá chego. Tenho acesso à
alteridade de Outrem a partir da sociedade que mantenho com ele e não
abandonando essa relação para refletir sobre seus termos.
A relação se dá por ela mesma e nela mesma, de forma espontânea, sem tematizações
e reflexões que aprisionem o outro na razão. Isto é, não é pelo conhecimento e sim pela
socialidade que se deve estabelecer a relação com o outro, socialidade que supõe abertura para
o infinito e para as inúmeras possibilidades que envolvem a relação. O reconhecimento do
Outro como Infinito, portanto, representa no mundo fechado do eu, a libertação que advém da
alteridade enquanto dimensão que está fora do eu, ou seja, para além do pensamento finito do
Mesmo. Para que isso ocorra
O respeito da alteridade como alteridade exige que o eu seja como que atraído para
fora do seu pólo, que se quebre o esquema do sujeito intencional e se revele um
outro núcleo aí presente que, segundo Lévinas, é mais profundo, anterior, pré-
original e anárquico em relação ao esquema intencional. Ser atraído para fora de si
é ser animado pelo desejo, ser inspirado pela ideia do infinito, escutar e obedecer
antes de ver. (PIVATTO, 1992, p.335).
A alteridade, vista por este ângulo, apresenta uma significação nova e diferente, numa
perspectiva ética que está para além de qualquer conceituação lógica. Compreende-se, assim,
a importância da filosofia de Lévinas dentro de um contexto social, em que a violência do eu
tende a prevalecer soberanamente. Isto é, valorizar e reconhecer o outro na sua alteridade
significa quebrar os encantos do eu, sustentado pela hegemonia da razão como única
detentora do saber. Marcelo Fabri (1997, p.19) desta forma se expressa sobre este assunto:
Sem uma valorização do Outro enquanto Outro, enquanto alteridade que questiona
os direitos do Mesmo, o processo de encantamento do Ser e do Logos não teria
46
fim. O Ser é ele próprio uma esfera de ‘encantamento’, de violência e de negação
do Outro.
Como se percebe, a valorização e reconhecimento do outro, tal como ele se apresenta,
ou seja, sem conhecimento ou tematizações por parte do eu que possam limitá-lo, a relação
ética na sua dimensão transcendente supera a insistência do retorno ao Mesmo, já que “a
relação não neutraliza, ipso facto a alteridade, mas conserva-a” (LÉVINAS, 1982b, p.59),
ao contrário da razão quando esta se arvora em dona da verdade.
Expresso desta maneira, a saída da ontologia que se promove pelo Desejo, rompe os
grilhões da prisão em que se encontra a razão; esta através da sensibilidade social e do
reconhecimento do outro, em sua alteridade abre as portas para que o eu, na sua
responsabilidade desinteressada possa substituir o outro, assumindo sua eleição para servi-lo.
3.4. O ser-para-o-outro como sentido do humano
A dimensão transcendente da ética em sua abertura infinita para o outro, sustenta-se
pela relação de responsabilidade do eu para com o outro, que o convoca a servi-lo
incondicionalmente. Assim é que se estabelece a socialidade que rompe com a fixidez dos
argumentos ontológicos nos quais o eu conhece ou pensa o outro a partir de si mesmo. Esta
ruptura significa sair do interesse do eu para assumir o lugar do outro e constituir o que
Lévinas denomina desinteressamento. Tendo em vista, porém, a realidade social e econômica
vigente em que o eu não abre mão de seus interesses, não corre o risco de a filosofia de
Lévinas vir a se tornar tão-somente mais uma utopia
61
?
A resposta a esta questão é formulada pelo próprio Lévinas (2005, p. 296), quando ele
escreve sobre o sentido do humano
62
relacionando-o ao desinteressamento, como se pode
verificar a seguir:
61
Entre as obras que abordam a questão da utopia em Lévinas, vale conferir de forma especial Ética e Infinito, p.
92-93; Entre nós: ensaios sobre a alteridade, p. 295-296; Difícil Libertad, p. 129-132; além de Lévinas: a utopia
do humano, obra de Catherine Chalier toda dedicada aos muitos aspectos da filosofia levinasiana relacionados à
utopia. Na introdução de sua obra, Chalier (1993, p.11) discorre sobre a utopia em Lévinas como sentido do
humano. De acordo com a autora: “[...] a obra de Lévinas visa, sobretudo, dizer o sentido do humano num
mundo que proscreve essa ideia. Ora, a sua reflexão, atenta à inspiração profética, permanece constantemente
rebelde à ontologia porque, segundo ele, o ser não permite pensar o humano. Pelo contrário, enquanto o ser
significar o horizonte inultrapassável do homem, o humano não pode advir. Lévinas convida, portanto, a
desertar a morada do ser e a avançar, sem prudência, em direção ‘à clareza de uma utopia’ (NP, p.64), o lugar
onde o homem se mostra. (A sigla NP refere-se à obra de Lévinas, Noms propres, publicada em 1976.
62
Convém mencionar que em De Deus que vem à ideia, p. 220-222, Lévinas explicita sua concepção sobre o
sentido do humano.
47
Toda a vida de uma nação, para além da formal adição de indivíduos pondo-se
para si, isto é, habitando sua terra e lutando por ela, por seu lugar, por seu Da-sein,
dissimula ou revela – ou, pelo menos, deixa entrever – homens que, antes de
qualquer empréstimo, têm dívidas, devem servir ao próximo, são responsáveis –
eleitos e únicos – e nesta responsabilidade querem a paz, a justiça e a razão.
Utopia! Esta maneira de compreender o sentido do humano – o próprio
desinteressamento de seu ser – não começa com o pensar na preocupação que os
homens têm com os lugares onde eles fazem questão de manter-se-no-ser. Penso,
antes de tudo, no para-o-outro neles, em que o humano interrompe, na aventura de
uma santidade possível, a pura obstinação em ser e suas guerras.
Como se vê, aquilo que em geral é chamado de utopia, para Lévinas é o que constitui
o sentido do humano, já que em sua filosofia, o homem é ser-para-o-outro, ou seja, deve estar
sempre à disposição para servir ao próximo, inclusive, para além de seus interesses. É
importante dizer que próximo, para Lévinas, não se refere à distância espacial entre o eu e o
outro e muito menos do conhecimento que se tem do outro, mas sim, da sensibilidade e
responsabilidade que o eu deve ter para com o outro. Nas palavras de René Bucks (1997,
p.136):
A sensibilidade pelo outro é proximidade. A proximidade não supõe a consciência
de uma dimensão espacial neutra, na qual ela se dê. A proximidade do outro, que
não me é indiferente, é primordial. Ela não supõe uma tomada de consciência, ela
é o estado de vigília
63
do nosso espírito, a tal ponto, que afastar-se do outro não
parece possível sem alguma forma de embriaguez ou anestesia. Esta vigília é a
não-indiferença em relação ao outro, antes de qualquer tematização ou tomada de
posição frente a ele.
Entende-se assim, porque para Lévinas o próximo é aquele que, mesmo distante,
mantém uma proximidade que convoca à responsabilidade do eu, por isso, de forma
desinteressada, já que o eu pode nem mesmo saber quem é o próximo. Em consonância a
Lévinas (1982b, p.88-89)
A proximidade de outrem está apresentada no livro como o facto de que outrem
não está simplesmente próximo de mim no espaço, ou próximo como um parente,
mas que se aproxima essencialmente de mim enquanto me sinto – enquanto sou –
responsável por ele. É uma estrutura que, de modo algum, se assemelha à relação
intencional que nos liga, no conhecimento, ao objeto – a qualquer objeto, ainda
63
A vigília ou vigilância é uma condição do eu, que não o deixa nem mesmo cochilar diante da proximidade do
próximo. São termos relacionados ao sono, assim como a insônia e o despertar, utilizados por Lévinas para
representar o estado de alerta em que o eu deve estar, sempre pronto a servir ao outro. Eles demonstram a
condição do eu perante o outro, ou seja, constantemente vigilante, desperto, para não retornar ao si mesmo,
atenção de quem não pode se deixar pegar pelo sono profundo (ontológico/dogmático). A esse respeito,
consultar: De Deus que vem à ideia, p.33-55; Da existência ao existente, p.79-81.
48
que fosse um objeto humano. A proximidade não se reduz a esta intencionalidade;
em particular não se reduz ao facto de eu conhecer o outro
64
.
Nessa perspectiva, o eu deve estar sempre aberto ao outro que “[...] é sempre o
primeiro que chega
65
, o próximo, que não depende de escolha [...]”, (PIVATTO, 2001a,
p.310) e o expõe à relação com o outro, pois “[...] na subjetividade do eu se imiscui algo que
precede sua autoconsciência e, no entanto, lhe diz respeito. Antes de ser sujeito, ele vive a
absoluta passividade do estar exposto ao outro [...]”. (BUCKS, 1997, p. 135).
Por esse viés, a filosofia de Lévinas caminha na direção de uma ética que implica em
total responsabilidade do eu, pois o compromete no serviço incondicional para com o outro,
sem a possibilidade sequer de fugir ou negar esta condição, já que qualquer tentativa nesse
sentido resultaria em fuga ou negação da própria subjetividade. É, portanto, pela
responsabilidade desinteressada que o eu se torna sujeito, o que implica sair de si em direção
ao outro para serví-lo como forma de superar o desgaste das relações fundadas em meros
interesses pessoais. Lévinas (2003, p.58) chega a assegurar que “[...] A identidade do sujeito
leva aqui à impossibilidade de descarregar-se da responsabilidade, a fazer-se cargo do outro
[...]”
66
.
Pode-se verificar que, pelo pensamento levinasiano, o eu deve oferecer seus ombros
como suporte para o outro, sem nada esperar em troca, já que a responsabilidade inscreve-se
na trama da subjetividade como ser para (PIVATTO, 2001b, p.222), o que para Lévinas
(1982b, p.88-89)
não é um simples atributo da subjetividade, como se esta existisse já em si mesma,
antes da relação ética. A subjetividade não é um para si: ela é, mais uma vez,
inicialmente para outro. A proximidade de outrem está apresentada no livro como
o facto de que outrem não está simplesmente próximo de mim no espaço, ou
próximo como um parente, mas que se aproxima essencialmente de mim enquanto
me sinto – enquanto sou – responsável por ele. É uma estrutura que, de modo
64
Paulo César Nodari (2002, p. 206) discorre sobre esta característica da proximidade em Lévinas nos seguintes
termos: “[...] A proximidade não é um estado, um repouso, senão, precisamente, inquietude, não-lugar, fora do
lugar do repouso, que perturba a calma da não-localização do ser que se torna repouso em algum lugar. Logo,
a proximidade é sempre insuficiente, jamais demasiado próxima [...]”.
65
Em Responsabilidade e justiça em Lévinas, Pivatto refere-se ao próximo como o primeiro que chega,
aprofundando ainda mais a concepção de que a responsabilidade antecede a liberdade e a própria consciência.
Segundo ele: “[...] Eu sou responsável pelo outro antes de ter escolhido sê-lo. Em outras palavras, a
responsabilidade é primeira, antecede o próprio ato da consciência e da liberdade. Ela é constitutiva da
subjetividade. Mais, é a humanidade da subjetividade. Por conseguinte, não é uma conseqüência da
racionalidade consciente e livre. Além disso, a relação de responsabilidade é imediata, direta, volta-se para o
primeiro que chega, o próximo, para além de qualquer qualificação ou determinação [...]”. (Pivatto, 2001b,
p.223).
66
La identidad del sujeto lleva aquí a la impossibilidad de descargarse de la responsabilidad, a hacerse cargo
del otro. (LÉVINAS, 2003, p.58).
49
algum, se assemelha à relação intencional que nos liga, no conhecimento, ao
objeto – a qualquer objeto, ainda que fosse um objeto humano. A proximidade não
se reduz a esta intencionalidade; em particular não se reduz ao fato de eu conhecer
o outro.
É justo nesse ponto que a responsabilidade para com o outro exige do eu um
desinteressamento em relação a si mesmo, o que torna a relação propriamente ética, caso
contrário, esta apenas tomaria o lugar da ontologia, cristalizando-se como mais um conceito
ou tema. Para explicitar ainda mais tal afirmação, basta lembrar que uma das citações mais
recorrentes nos escritos de Lévinas – senão a mais – é a clássica frase de Dostoievsky, quando
diz: “[...] Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros
[...]”. (LÉVINAS, 1982b, p. 90). Nela fica nítido que o eu em Lévinas, cinge uma
característica que contrasta totalmente com a concepção ontológica, ainda mais evidente a
partir da modernidade que nos passos de Descartes
67
, centra-se no si mesmo como detentor do
saber transformado em poder de dominação.
Associada à ética, aliás, em sendo pressuposto da atitude ética, a responsabilidade é
anterior ao conhecimento, pois antecede ao saber e constitui de forma concreta a relação entre
o eu e o outro, a partir do desinteressamento por parte do eu. Nesse sentido é que, ao discorrer
sobre a responsabilidade como constituinte da subjetividade em Lévinas, Marcelo Pelizzoli
(2002, p.149) diz que
Se a responsabilidade é primeira, o estatuto da consciência ativa muda, porquanto
surge antes a figura de uma “má consciência”, do “não-intencional” precedendo o
inteligível que opera no ser, e a consciência vê-se inquietada pela alteridade;
pressupõe assim o enigma que faz o Eu ser assignado a outrem, tendo que
responder por ele. A intriga envia à relação social originária – ou pré-originária –,
exigindo neste ínterim ‘descrever a subjetividade e reconsiderar a ordem da
essência em função deste gesto primeiro esquecido’... significação como um-para-
o-outro.
Esta significação, nas palavras de Lévinas (2003, p. 59), reflete o próprio sentido da
humanidade, como se pode constatar a seguir:
A humanidade – terceiro excluído de origem, não-lugar – e a subjetividade
significam a explosão desta alternativa, significam um-no-lugar-do-outro
(substituição) significação na significância antes da essência, antes da identidade.
A significação antes do ser faz explodir a conjunção, o reconhecimento ou o
67
O Cogito ergum sum cartesiano abre as janelas da modernidade e da subjetividade como detentor do saber
provável apenas pela razão. O racionalismo de Descartes pauta-se pelos métodos lógico-matemáticos para se
chegar à verdade, o que acaba por reduzir o conhecimento à capacidade de demonstração, análise, síntese e
enumeração dos fenômenos. É o que se pode constatar na segunda parte do Discurso do Método nas páginas 49-
50.
50
presente da essência. Mais aquém ou além da essência, significação, sopro do
espírito expirando sem inspirar, desinteresse e gratuidade ou gratidão: a ruptura da
essência é ética
68
.
Nessa perspectiva, a responsabilidade deve ser desinteressada, ou seja, deve superar a
lógica interesseira do eu, o que pressupõe uma relação não simétrica entre eu e o outro, da
qual o eu não tem como escapar de sua responsabilidade, pois esta independe de toda e
qualquer resposta que porventura possa se esperar do outro. O eu deve estar a serviço, pois
esta é a sua condição. Isto porque é pelo desinteresse transformado em responsabilidade pelo
outro que se desfaz a supremacia ontológica e se constitui a subjetividade.
3.5. Substituição e eleição
A anterioridade da responsabilidade pelo outro, ou seja, a primazia da relação
responsável e ética sobre o conhecimento que se pretende do outro, aponta uma vez mais para
a transcendência da ética e, na leitura daqueles acostumados a supervalorizar as conquistas da
modernidade, coloca em xeque exatamente a maior destas conquistas: a liberdade. Qual seja,
pela ótica levinasiana, a responsabilidade antecede também a liberdade. Ora, a
responsabilidade, ao ser alicerçada pelo desinteresse e não pelo saber, pressupõe que o eu
sirva ao outro independentemente de toda e qualquer resposta que se possa esperar deste.
Dessa maneira, o desinteresse desfaz a supremacia da ontologia e a remete à responsabilidade.
Como fica, neste caso, a capacidade humana de escolher?
A resposta para esta questão se encontra no desinteressamento, que deve desembocar
na eleição do outro como aquele que deve ser substituído, inclusive nas suas dores e
sofrimentos, pelo eu. Para Susin (1984, p.324)
A eleição do outro incide sobre o Se – sobre minha corporeidade – antes ainda do
eu, antes de consciência, liberdade, vontade. Eleição antes de saber, de querer, de
escolher: a respeito da liberdade, nosso autor é taxativo: a liberdade não é o
supremo bem do homem, nem mesmo é a definição mais profunda do homem.
Mesmo que o desígnio do ex nihilo haja um primeiro momento existencial de
liberdade, há um despertar, e “realmente” então, o pensamento (o cogito), não é
projeto saído de si mesmo. e graças a isso poderá ser vocação que ultrapassa a
68
La humanidad – tercero excluido, excluido de raiz, no-lugar – y la subjetividad significan la explosión de esta
alternativa, significan uno-en-lugar-del-otro (substitución), significación en la significancia del signo antes de
la esencia, antes de la identidad. La significación antes de ser hace estallar la conjunción, el recogimiento o el
presente de la esencia. Más acá o más allá de la esencia, significación, soplo del espíritu expirando sin
inspirar, desinterés y gratuidad o gratitud: la ruptura de la esencia es ética. (LÉVINAS, 2003, p.59).
51
liberdade e o próprio projeto e o próprio querer. Para nosso autor, a ‘liberdade
finita’ é tão problemática que afinal termina somente em finitude. É necessário um
elemento que ultrapasse a liberdade: a eleição. A liberdade, por si mesma, é
vaidade e presunção, se não vier integrada em algo maior que ela: “raciocina-se
em nome da liberdade do eu como se eu tivesse assistido à criação do mundo e
como se eu pudesse ter encargo de um mundo saído de meu livre arbítrio.
Nessa perspectiva, o desinteressamento implica a responsabilidade do eu pelo outro,
colocando-se à disposição para servi-lo, sem que este serviço possa redundar-lhe em
benefícios, o que a princípio, pela lógica individualista e egocêntrica da contemporaneidade,
pode significar uma submissão e passividade do eu, inadmissíveis. O desinteressamento,
portanto, mais que um neologismo utilizado por Lévinas, constitui uma ruptura com o ser que
instaura o âmbito do ético, em detrimento ao âmbito ontológico do interesse, conforme quer,
por exemplo, Márcio Luis Costa, (2000, p.156):
O critério de fundamentação última da ética que se enuncia como ‘humanidade,
subjetividade e ser para o outro’ instaura o âmbito do ético (âmbito do des-inter-
esse) como originário e desloca o âmbito ontológico (âmbito do inter-esse) de sua
pretensa originariedade.
Por meio desta postura ética, de abertura e reconhecimento do outro, de substituição
ao seu sofrimento, de responsabilidade incondicional, o eu se torna livre. Liberdade, não de
uma prisão externa, imposta por outrem, mas prisão de si mesmo. Como se pode medir, o eu é
convocado a quebrar as correntes que o aprisionam no si mesmo e a responsabilizar-se pela
vida do outro, já que a maior ameaça à liberdade do eu vem do próprio eu, que, fechado em si
mesmo reduz o outro a mero objeto, instaurando a violência. Entretanto, não se constitui
também em violência, o fato de o eu ter de assumir totalmente a responsabilidade pelo outro,
o qual poderá submetê-lo a sofrimento?
Uma resposta no mínimo intrigante nos chega por Pivatto (2001a, p.311): “[...] Não
se trata de violência, mas de eleição... Se violência há em subordinar a liberdade à ética, esta
a resgata pela bondade como responsabilidade. Nisto está a humanidade do homem, seu
privilégio ou eleição: ser para o outro com responsabilidade infinita [...]”. Depreende-se da
leitura feita por Pivatto, que a filosofia levinasiana está voltada totalmente para a alteridade
como condição daquilo que se considera humano, ou seja, o eu só se constitui humano na
medida em que se responsabiliza pelo outro. Para Lévinas (1982b, p.92):
A humanidade no ser histórico e objetivo, a própria aberta do subjetctivo, do
psiquismo humano, na sua original vigilância ou acalmia, é o ser que se desfaz da
sua condição de ser: o des-inter-esse. É o que quer dizer o título do livro: ‘de outro
52
modo que ser’. A condição ontológica desfaz-se, ou é desfeita, na condição ou
incondição humana. Ser humano significa: viver como se não se fosse um ser entre
os seres. Como se, pela espiritualidade humana, se invertessem as categorias do ser;
num de outro modo que ser, na verdade, não tem verbo que designe o
acontecimento da sua in-quietude, do seu des-inter-esse, da impugnação deste ser –
ou do esse – do ente.
O desinteressamento, como se quer crer, destitui o eu de seu locus, estabelecido
historicamente sobre uma lógica de dominação do outro, para construir a partir da
responsabilidade uma alteridade originada no outro e não nos interesses do eu. Assim, a ideia
de substituição para Lévinas é o que garante ao eu a sua condição de humano, conforme
descreve, por exemplo, Catherine Chalier (1993, p.168),
ele pensa o sujeito humano segundo a estrutura do ‘Outro no Mesmo’, quer dizer,
como submetido a uma consignação a responder por outrem ao ponto de ‘se
esvaziar do seu ser’ por ele. O sujeito deseja certamente, muitas vezes, renunciar a
semelhante carga para preservar a sua identidade a respirar livremente, ao seu
próprio ritmo, mas é nessa altura, segundo Lévinas, que perde o sentido da sua
humanidade. Com efeito, apenas a inspiração para o outro, pelo outro, constitui o
vivo de um psiquismo humano e conduz à substituição, quer dizer, à ‘possibilidade
de qualquer sacrifício por outrem’.
A responsabilidade atinge, à vista disso, um grau tão elevado de comprometimento
com o outro, que possibilita ao eu ir para além de sua imanência, o que se reveste em abertura
ética para a transcendência. Nesse caso, a responsabilidade supõe uma substituição do eu pelo
outro, a qual não se restringe apenas ao outro, mas a todos os outros, sendo o eu, portanto, o
único responsável para com todos. Eis o que para Lévinas significa anterioridade da
responsabilidade em relação à liberdade. Nos dizeres de Souza (2001, p. 394) a “[...]
anterioridade absoluta à ideia de liberdade, a qual pressupõe uma identidade livre, expressa-
se em sua forma mais própria na anterioridade da responsabilidade que, enquanto responde,
responde não só a si, mas a todos os outros[...]”.
Confirma-se, assim, a importância da frase de Dostoievsky no contexto da filosofia
levinasiana, na qual o eu deve se responsabilizar por todos os outros e mais que todos os
outros, o que eleva a responsabilidade para “[...] fora do alcance do representável [...]”
(SOUZA, 2001a, p.394) o que, na linguagem levinasiana, transforma o eu em refém
69
do
outro, já que toda responsabilidade desinteressada deve partir do eu sem que este tenha direito
a exigir ou cobrar nada por parte do outro.
69
Refém para Lévinas supõe o serviço, a disposição gratuita do eu para com o outro, o que exatamente o liberta
do maior cativeiro possível: o egoísmo.
53
3.6. Responsabilidade e transcendência: a sabedoria do amor
Infere-se, pelo exposto até aqui, que a responsabilidade abrange características que
estão para além da simples noção de que todos devem se responsabilizar uns pelos outros. Ao
colocar sobre os ombros do eu toda a responsabilidade em relação ao outro e, por
conseqüência, a todos os outros, Lévinas sinaliza para outra dimensão da responsabilidade
que, ao anteceder a consciência e a liberdade, encontra através da relação de serviço para com
o outro a transcendência inerente à ética. Explica-se, pois, a condição de refém, que o filósofo
lituano atribui ao eu quando este, pela responsabilidade desinteressada, deve substituir o
outro, inclusive quando, porventura, este cometa algum ato irresponsável. Isto é, a
responsabilidade do eu é sempre maior e “[...] mais do que de todos os outros”. (LÉVINAS,
1982b, p.91).
Assim sendo, a responsabilidade do eu reveste-se de uma transcendência que, no
pensar de Lévinas (2002, p.28) se entende como
uma responsabilidade-pelo-outro, responsabilidade à qual de imediato fico exposto,
como um refém; responsabilidade que significa, no fim de contas, até o âmago de
minha ‘posição’ em mim, minha substituição a outrem. Trata-se de transcender o
ser sob as espécies do desinteressamento! Transcendência que chega sob as
espécies de uma aproximação do próximo sem retomada de fôlego, ao ponto de ser-
lhe substituição.
Esta radicalidade da filosofia de Lévinas, na qual o desinteressamento chega ao ponto
de o eu substituir o outro incondicionalmente – apesar de apontar para a transcendência da
responsabilidade – não evita um questionamento recorrente ao pensamento do filósofo: Como
garantir que haja o mesmo comprometimento por parte do outro em relação ao eu? Um
exemplo da recorrência deste questionamento encontra-se na entrevista concedida por Lévinas
a Philippe Nemo, que lhe dirige a seguinte pergunta: “[...] Mas o outro também não é
responsável a meu respeito?” (LÉVINAS, 1982b, p.90). Lévinas (1982b, p.90) esclarece que
Talvez, mas isso é assunto dele... a relação intersubjetiva é uma relação não-
simétrica. Neste sentido, sou responsável por outrem sem esperar a recíproca,
ainda que isso me viesse a custar a vida. A recíproca é assunto dele. Precisamente
na medida em que entre outrem e eu a relação não é recíproca é que eu sou
sujeição a outrem; e sou sujeito essencialmente neste sentido. Sou eu que suporto
tudo.
Fica evidente que a responsabilidade do eu para com o outro independe de sua
recíproca, até porque este outro, na maioria das vezes, pode estar fora do círculo de
54
convivência do eu. E mesmo assim, e talvez mais ainda, o eu é responsável por ele, pois é esta
responsabilidade que constrói a identidade do eu, sua subjetividade. Somente por esta ótica
pode-se compreender a eleição do eu como aquele que deve substituir o outro em suas
misérias, em suas dores e até em seus erros. Isto, porque o eu não tem como fugir de sua
responsabilidade que o expõe inevitavelmente ao outro. Caso contrário, a própria condição de
sujeito do eu fica comprometida, já que na concepção levinasiana:
Sou eu que suporto outrem, que dele sou responsável. Vê-se assim que no sujeito
humano, contemporânea de uma sujeição total, se manifesta a minha primo-
genitura. A minha responsabilidade não cessa, ninguém pode substituir-me. De
fato, trata-se de afirmar a própria identidade do eu humano a partir da
responsabilidade, isto é, a partir da posição ou da deposição do eu soberano na
consciência de si, deposição que é, precisamente a sua responsabilidade por
outrem. A responsabilidade é o que exclusivamente me incumbe e que,
humanamente, não posso recusar. Este encargo é uma suprema dignidade do
único. Eu, não intercambiável, sou eu apenas na medida em que sou responsável.
Posso substituir a todos, mas ninguém pode substituir-me. Tal é minha identidade
inalienável de sujeito. (LÉVINAS, 1982b, p.92-93).
Em nome, portanto, da manutenção da sua condição de sujeito, é que o eu deve estar
livre de todo e qualquer interesse para consigo mesmo, solícito em atender ao chamado que
significa uma prontidão profética
70
, que responde: “eis-me aqui, envia-me
71
(Is, 6,8), numa
resposta da qual o eu não pode fugir ou esquivar-se. E mais: nesta abertura para a alteridade
do outro, o eu é convocado a servi-lo, mesmo que este o desconsidere ou até lhe faça mal.
O eu, portanto, é chamado no sentido original da palavra vocação
72
, que não permite
outra resposta senão a de que se está à disposição para servir, pois
Trata-se de consciência de eleição como minha responsabilidade:
excepcionalidade de minha vocação como dever, como desigualdade de exigência
feita a mim, insubstituibilidade da minha missão e responsabilidade, que me torna
único comprometido com o bem como responsabilidade assimétrica. (SUSIN,
1984, p. 329).
Nessa perspectiva, a responsabilidade entendida a partir do desinteressamento
constitui uma guinada para a filosofia, que, precedida pela ética, deve colocar o humano
70
Para uma leitura mais aprofundada sobre a significação profética em Lévinas, ver em De Deus que vem à ideia,
(p.110-114) e, em De otro modo que ser o más allá de la esencia, (p.227-232). Neste trabalho, a significação
profética será abordada mais adiante.
71
Referência a Luiz Carlos Susin, que dedica um tópico de sua obra O homem messiânico: uma introdução ao
pensamento de Emmanuel Lévinas, a esta expressão bíblica, em que ele associa a estrutura profética à obediência
e responsabilidade irrecusáveis, na perspectiva do movimento profético para o infinito. Para mais detalhes,
consultar (SUSIN, 1984, p. 396-400), bem como Catherine Chalier (1993, p.108-109) que também aborda a
significância desta expressão na filosofia levinasiana.
72
Para uma melhor compreensão do sentido da vocação em Lévinas, ver Catherine Chalier p.81-90.
55
acima de tudo, já que pela proposta levinasiana, o sentido do humano está em ser-para-o-outro
condição para a ruptura que se deve cometer com o si mesmo. Eis a transcendência da
responsabilidade que se realiza não pelo conhecimento ou numa realidade suprasensível, mas
sim, na imanência das relações pautadas pela ética enquanto filosofia primeira. Em análise de
Ribeiro Júnior (2005, p.124)
É diante dessa preocupação de dizer a transcendência que o filósofo chega a
propor uma filosofia a serviço da transcendência irredutível do Outro, ou de uma
‘Sabedoria do amor’ antagônica ao “amor à Sabedoria” próprio da filosofia da
totalidade. Esta perspectiva filosófica deixa transparecer um dos pontos decisivos
de seu pensamento: para Lévinas a filosofia não tem a última palavra!
Como se vê, esta guinada proposta por Lévinas inverte a lógica do saber, na qual a
filosofia fundamentada-se numa busca que pressupõe que, desde sua origem, amor à
sabedoria se transforme em uma sabedoria do amor
73
, já que para o filósofo de Kaunas “[...] A
filosofia é esta medida proporcionada ao infinito do ser-para-o-outro próprio da
proximidade, algo assim como a sabedoria do amor
74
. (LÉVINAS, 2003, p.242).
Nessa ótica, a responsabilidade se reveste de outra significação, sem o temor
característico do eu em servir a outro, que neste caso é reconhecido em sua alteridade sem que
para isso o eu se sinta subjugado. Isto explica por que Lévinas propõe que a responsabilidade
anteceda a liberdade. Ou seja, não se é primeiramente livre para depois ser responsável, mas,
sendo responsável pelo outro é que o eu se torna livre. Da mesma forma não se é sábio
primeiro para depois amar, mas, é a partir do amor que se encontra a sabedoria. De acordo
com o filósofo
Esta anterioridade da responsabilidade com relação à liberdade significaria a
bondade do bem, a necessidade para o Bem de eleger-me o primeiro antes que eu
esteja em condições de eleger, ou seja, de acolher sua eleição. É minha originária
suspeição, passividade anterior a toda passividade, transcendente. Anterioridade
anterior a qualquer anterioridade representável, imemorial. O Bem antes do ser
75
.
(LÉVINAS, 2003, p.194).
73
Entre as obras que abordam esta inversão proposta por Lévinas merecem destaque: A Sabedoria de amar: a
ética no itinerário de Emmanuel Lévinas (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 123-125); A Bíblia e a ética. A relação
entre a filosofia e a sagrada escritura na obra de Emmanuel Levinas (BUCKS, 1997a, p.144); Lévinas: a utopia
do humano (CHALIER,1993, p.147-153).
74
“[...] La filosofia es esta medida aportada al infinito del ser-para-el-otro própio de la proximidad, algo así
como la sabiduría del amor”. (LÉVINAS, 2003, p.242).
75
Esta anterioridad de la responsabilidad con relación a la libertad significaria la bondad del bien, la
necesidad para el Bien de elegirme el primero antes de que yo esté en condiciones de elegir, es decir, de acoger
su elección. Es mi originaria suscepción, pasividad anterior a toda pasividad, transcendente. Anterioridad
anterior a cualquier anterioridad representable, inmemorial. El Bien antes del ser. (LÉVINAS, 2003, p.194).
56
Partindo desse pressuposto, torna-se possível dizer que a responsabilidade para com o
outro capaz de chegar ao nível da substituição é impulsionada pela transcendência da ética e,
como tal, também possui uma dimensão infinita. Responsabilizar-se pelo outro redunda então
no desinteressamento pelo ser, o qual, preso a seus interesses, acredita abarcar a
transcendência quando esta se lhe escapa na dinamicidade da vida e da socialidade das
relações, nas quais o amor tem a primazia sobre o saber.
Entretanto, vale frisar, a associação assumida por Lévinas entre responsabilidade e
amor como anteriores à liberdade, à consciência, ao saber e à própria filosofia, só ganha
sentido a partir da ética, que deve nortear as relações humanas no encontro entre o eu e o
outro. Isto vale dizer que até mesmo o amor, se dissociado da responsabilidade, perde sua
áurea e sentido ético. O próprio filósofo esclarece esta afirmação ao sustentar que
O encontro com Outrem é imediatamente minha responsabilidade por ele. A
responsabilidade pelo próximo é, sem dúvida, o nome grave do que se chama amor do
próximo, amor sem Eros, caridade, amor em que o momento ético domina o momento
passional, amor sem concupiscência
76
. Não gosto muito da palavra amor, que está gasta e
adulterada. Falemos duma assunção com destino de outrem. (LÉVINAS, 2005, p. 143).
A responsabilidade pelo outro, o desinteressamento pelo ser, a eleição do eu e a
consequente substituição são requisitos para o amor em sua dimensão transcendente e infinita.
Este se dá através da relação ética que exige uma responsabilidade desinteressada por parte do
eu que se torna assim, capaz de assumir sua eleição e substituir o outro – substituição que se
concretiza no serviço e na entrega total sem tematizações ou explicações conceituais.
Com efeito, a filosofia, enquanto sabedoria do amor precisa estar sempre desperta para
não sucumbir ao sono dogmático que constantemente ameaça as relações humanas através das
inúmeras instituições, sejam elas políticas, econômicas, religiosas ou acadêmicas, que nos
últimos mais de vinte séculos deixaram-se sucumbir pelos encantos da ontologia. Por isso, a
necessidade de uma disposição profética de serviço do outro, com vistas a manter o eu em
constante vigília e transformar a filosofia em sabedoria do amor a serviço do amor, na qual a
justiça prevaleça acima dos interesses pessoais.
76
Uma descrição bastante esclarecedora sobre a noção de amor sem concupiscência na ótica levinasiana foi
elaborada por Nilo Ribeiro Júnior (1999, p.25-39) na sua tese de doutorado, a gênese da ética e da teologia na
filosofia de Emmanuel Lévinas, quando o autor dedica várias páginas a este assunto.
57
3.7. Responsabilidade e justiça como serviço profético
A responsabilidade incondicional do eu por meio da eleição o torna refém até a
substituição do outro nas suas dores e sofrimentos, suscitando vários questionamentos, a
saber: como garantir a justiça social para toda a humanidade, sendo que esta não é formada
apenas pelo eu e pelo outro? Como fazer prevalecer a justiça perante a pluralidade de outros
presente na sociedade? E ainda: O eu também é responsável pela atitude do outro em relação
aos demais outros?
É preciso relembrar que Lévinas parte da premissa de que a responsabilidade do eu
não deve esperar reciprocidade por parte do outro. Diante desta assimetria da
responsabilidade, a teia de relações que amolda a complexidade social deve ser repensada
para além do eu, mas também para além do outro, uma vez que a sociedade não se forma
apenas pelo eu e pelo outro. Ou seja, deve-se levar em consideração a pluralidade de outros
que compõem a sociedade humana, conforme o descreve a seguir François Poirié (2007,
p.110):
Nós vivemos em uma multiplicidade humana; fora do outro, há sempre um
terceiro, e há um quarto, o quinto, o sexto... Estou, em minha responsabilidade
exclusiva para com o um, pensando acerca dos outros, e não posso negligenciar
ninguém. É então que sou obrigado a pensar o outro sob um gênero, ou no Estado.
É o fato de ser cidadão e não simplesmente uma alma. O cidadão é um senhor que
se colou um gênero, ou um senhor que deu a si um gênero, ou um senhor a quem
eu dei um gênero. É preciso julgar, é preciso fazer justiça.
Iniciando desta constatação sobre a multiplicidade ou pluralidade de outros, percebe-
se uma maior responsabilidade por parte do eu, que se torna responsável não apenas pelo
outro, mas por todos os demais outros, a quem Lévinas denomina terceiro
77
. Nele se revela a
complexidade social que sinaliza para a dimensão ilimitada da responsabilidade do eu para
com o outro, que desemboca na necessidade de sempre se fazer justiça, o que no âmbito social
constitui-se um problema considerável, consoante o defende o próprio Lévinas (2003, p.236-
237):
Se a proximidade me ordenasse somente ao outro ‘não teria tido problema’ em
nenhum sentido do termo, nem sequer no mais geral. Não haveria nascido o
77
A multiplicidade de outros, conforme descrita por Poirié, ou na linguagem levinasiana, pluralidade de outros, é
representada nos escritos de Lévinas, pelo terceiro, ou seja, quando Lévinas se refere ao terceiro ele se refere à
humanidade como um todo, que em sua pluralidade de outros clama por justiça social. Neste trabalho, tanto o
terceiro quanto a expressão pluralidade de outros, representam todos os outros que tecem a teia social, na qual se
exige justiça.
58
problema, nem a consciência, nem a consciência de si. A responsabilidade para
com o outro é uma imediatez anterior ao problema; é precisamente proximidade. É
agitada e se torna problema desde a entrada do terceiro
78
.
Observa-se por esta citação, que Lévinas toma os devidos cuidados ao anunciar que
as relações sociais não se tecem apenas entre o eu e o outro e que, desta forma, é crucial estar
preparado para que o eu possa responder por todos os outros que constituem a sociedade
humana. A responsabilidade do eu deve se volver, pois para todos, até porque “[...] não vivo
num mundo onde só há um ‘primeiro a chegar’; sempre há no mundo um terceiro: ele
também é meu outro, meu próximo, [...]” (LÉVINAS, 2005, p.143), pelo qual devo responder
sem ressalvas, sendo inclusive a presença ou existência do terceiro o que introduz a justiça na
sociedade, como se depreende claramente na citação abaixo:
É a proximidade do terceiro quem introduz com as necessidades da justiça a
medida, a tematização, o aparecimento e a justiça. É a partir do Si mesmo e da
substituição quando o ser terá um sentido. O ser será não-indiferente não porque
fosse vivente ou antropomórfico, sim porque, postulado pela justiça que é
contemporaneidade ou co-presença, o espaço pertence ao sentido da minha
responsabilidade para com o outro
79
. (LÉVINAS, 2003, p. 189, nota 22),
A presença do terceiro, como percebido, faz nascer a justiça enquanto
responsabilidade do eu para com o outro e com toda a pluralidade de outros, na qual o eu deve
responder por tudo e por todos. Um exemplo de como Lévinas concebe esta radicalidade da
responsabilidade do eu, é descrita por François Poirié (2007, p.94), que indaga Lévinas, sobre
este assunto nos seguintes termos: “Sou eu responsável pelo mal que outrem realiza?” A
resposta de Lévinas começa com uma pergunta, para em seguida apontar a condição ilimitada
da responsabilidade do eu perante não apenas o outro, mas, para com todos, conforme se pode
deslindar abaixo:
Até onde vai minha responsabilidade? Eu acredito que, em certa medida, eu sou
responsável pelo mal em outrem – tanto daquele mal que o atormenta como
daquele que ele faz. Jamais estou humanamente quite para com outro homem, eu
78
Si la proximidad me ordenase solamente al otro,’no habría habido problema’ en ningún sentido del término,
ni siquiera en el más general. No abria nacido o problema, ni la conciencia, ni la conciencia de sí.La
responsabilidad para con el otro es una inmediatez anterior al problema; es precisamente proximidad. Es
turbada y se torna problema desde la entrada del tercero. (LÉVINAS, 2003, p.237).
79
Es la proximidad del tercero quien introduce con las necesidades de la justicia la medida, la tematización, el
aparecer y la justicia. Es a partir del Sí mismo y de la substitución cuando el ser tendrá un sentido. El ser será
no-indiferente no porque fuese viviente o antropomórfico, sino porque, postulado por la justicia que es
contemporaneidad o con-presencia, el espacio pertenece al sentido de mi responsbilidad para con o el otro.
(LÉVINAS, 2003, p. 189, nota 22),
59
não poderia contentar-me com minha bem-aventurada perfeição e deixar o mal
prolongar-se ou somente pensar em puni-lo. Concretamente, a situação é
muitíssimo mais complexa porque eu jamais tenho de haver com uma única
pessoa, eu sempre tenho de haver com uma multidão de pessoas, e, por
conseqüência, essas relações entre pessoas e o conjunto da situação devem ser
levadas em conta. Isto que limita, não minha responsabilidade, porém minha ação,
modificando as modalidades de minhas obrigações. É isto que eu evocava como
problemática da justiça que parece renegar prima facie essa benevolência natural,
essa responsabilidade direta e simples com respeito a outrem, a qual é, entretanto,
o fundamento e a exigência de toda justiça. (POIRIÉ, 2007, p. 94).
Como representação da humanidade o terceiro faz surgir o clamor pela justiça que
concerne o eu à responsabilidade pelo outro, que em seu rosto personifica todos os seres
humanos. Ficar face-a-face com o outro, portanto, significa ter de responder por todos os
homens, naquilo que Lévinas denominou intriga ética, que soa como uma ordem. Ordem que,
na linguagem judaica, fortemente presente nas obras, mas principalmente na experiência de
vida do filósofo, significa o mandamento divino: ‘não matarás’! (Ex. 20,13) descrito assim
por Lévinas (2004, p.26) “[...] O outro é o único ao qual eu posso estar tentado de matar. A
tentação de assassinar e a impossibilidade de fazê-lo constituem a visão mesma do rosto. Ver
um rosto é já escutar ‘não matarás’, e escutar ‘não matarás’ é escutar ‘justiça social [...]”
80
.
Como se constata, Lévinas eleva a concepção de justiça social para além da aplicação
jurídica das leis promulgadas
81
com vistas à ordem no sentido de organização da sociedade.
Para o filósofo de Kaunas, a ordem advém do rosto do outro já que o “[...] O Outro ordena
antes das regras. O outro sem se impor põe as exigências da justiça [...]”. (RIBEIRO
JÚNIOR, 2005, p. 117), por isso o eu está impedido de matar
82
. Ou seja, a relação entre o eu e
o outro, tecida pela responsabilidade incondicional do eu, depara com o terceiro e, por
conseqüência com a justiça, pois a socialidade constitui-se de relações que extrapolam a
relação entre o eu o outro.
Eis o que evidencia o sentido da justiça, já que a presença do terceiro faz supor que
haja também por parte do outro a responsabilidade pelos demais outros. Com efeito, o que
não deve acontecer de acordo com Lévinas, é a acomodação do eu, à espera de uma tomada
de atitude por parte do outro. Pois o eu é quem deve sempre tomar a atitude,
80
“[...] El otro es el único ser al que yo puedo estar tentado de matar. La tentación de asesinar y la imposibilidad
de hacerlo constituyen la visión misma del rostro. Ver un rostro es ya escuchar ‘no matarás’, y escuchar ‘no
matarás’ es escuchar ‘justicia social[...]”. (LÉVINAS, 2004, p.26)
81
Isto não significa que Lévinas tenha como pretensão abolir, por exemplo, o Direito ou o Estado, como ficará
evidente mais adiante.
82
Convém reproduzir aqui um breve trecho escrito por Ribeiro Júnior (2005, p.163), em que ele explicita este
importante aspecto da filosofia levinasiana. Conforme o autor: “[...] O imperativo do Rosto ordena a justiça
social, pois encontrar-se com o outro é deparar-se com terceiro. Assim, a exigência da justiça se estende a todo
homem e não se restringe a um Rosto. Salienta-se, porém, nesse caso, que a justiça que provém da
responsabilidade pelo outro é anterior à justiça que advém da política ou do Estado [...]”.
60
independentemente do outro. Nesse sentido, no entanto, uma questão pelo menos se torna
essencial: Como garantir que o outro seja responsável pelos demais outros?
3.8. Justiça e igualdade social
A questão proposta acima remete para um dos aspectos mais complexos na filosofia de
Lévinas, que é a justiça
83
associada à responsabilidade a partir da entrada do terceiro
84
. Isto,
pois, como quer Pivatto (2001b, p.226),
o terceiro não pode ficar à deriva; é necessário fazer justiça, introduzindo
comparação, reflexão, pensamento, teoria – toda gama variada da obra da
consciência racional. Mais, é mister erigir instituições
85
que salvaguardem
medidas de equidade e que
conduzem à igualdade. Precisamente o termo
justiça convém muito mais à relação a partir
do terceiro que à relação com o
outro na responsabilidade assimétrica.
A responsabilidade e a justiça adquirem assim, uma dimensão para além dos
legalismos que norteiam os julgamentos feitos pelo Estado ou pelo Direito, o que implica a
necessidade de mudança na forma de se interpretar os julgamentos sociais. Sobre estas
mudanças, Pivatto (2001b, p.226) anuncia que
A relação de justiça, com a entrada do terceiro, introduz um fator desregulador na
relação de alteridade, matriz da ética. Nesta se privilegiava a univocidade de
sentido – um-para-outro – com sua incomensurabilidade, exterioridade, anarquia;
agora, a relação ética exige comparação, co-existência, reunião, produção de
consenso simétrico e igualitário em torno da justiça. Pode-se dizer que o espaço-
tempo ético originário sofre uma curvatura, uma inflexão em que a assimetria pode
traduzir-se em relações de reciprocidade, a altura em igualdade, a unicidade de
sentido em partilha de responsabilidade. Direito e Estado começam a ter sentido
para assegurar justiça e equidade.
83
Em De Deus que vem à ideia (2002, p.118-119), por exemplo, o próprio Lévinas quando questionado pelo
Prof.Dr.H.Heering sobre o termo ‘justiça’ usado para a relação com outrem e com o terceiro, reconhece que não
é fácil falar sobre o assunto. Pivatto (2001b, p.225), faz uma referência a esta complexidade usando o termo
ambiguidade para expressá-la. Segundo ele: “Lévinas na obra Totalidade e Infinito fez uso do termo justiça para
definir a relação primordial (sobretudo entre as p. 54-75). Mas a justiça faz apelo à equidade, portanto, à
comparação em vista de igualdade. Por isso, o termo justiça que aparece com freqüência nesta obra parece ser
usado como equivalente a responsabilidade, sem tomar em consideração as diferenças que intervêm. Melhor
convém o termo de responsabilidade, já que se trata de relação a dois, relação assimétrica não reciprocável. O
próprio autor reconhece a ambiguidade da expressão (Cf. DQVI, 132-133). Vale lembrar que as páginas
indicadas por Pivatto são da edição de 1986, por isso, diferentes das páginas indicadas neste trabalho que é da
edição de 2002.
84
Como para Lévinas, a justiça nasce a partir da entrada do terceiro, este que também possui uma ambiguidade.
Segundo Pivatto (2001b, p.226): “O estatuto do terceiro é, portanto, ambíguo; mas ambiguidade significante,
pois é, ao mesmo tempo, Outrem para meu próximo e o igual de outrem para mim. Ao nó de relações que se
estabeleceu entre eles convém o nome de justiça”.
85
Sobre a concepção levinasiana da importância de instituições que salvaguardam a justiça e a igualdade, confira
também Catherine Chalier, Lévinas: a utopia do humano, páginas 91 a 98.
61
Pela descrição de Pivatto, fica óbvio que Lévinas não desconsidera o papel das
diversas instituições políticas e jurídicas responsáveis pelos julgamentos sociais, que devem
se alinhar de forma a garantir a justiça e a igualdade nas relações. Dessa forma, o outro
também precisa se responsabilizar pela pluralidade de outros, apenas lembrando, que esta
tomada de decisão diz respeito a ele, ou seja, não compete ao eu esperar ou exigir que ele
tome esta iniciativa.
Quanto às instituições responsáveis pelos julgamentos sociais – dentro dos papéis que
lhe são reservados pela sociedade – elas devem fazer de forma a que a justiça e a igualdade
prevaleçam nas relações humanas, sem que haja privilégios, o que já configuraria uma
injustiça. Nas palavras de Lévinas (2005, p.145-146) “[...] se falamos de justiça, é necessário
admitir juízes, é necessário admitir instituições com o Estado [...]”; fica claro que Lévinas
não abomina o Estado. Pelo contrário, ele o considera importante, desde que seus julgamentos
processem de forma a proteger os cidadãos da violência que espreita o ser humano em todas
as suas relações.
Uma descrição bastante clara sobre a legitimidade do Estado, no pensamento
levinasiano, é feita por Márcio Paiva (2004, p.70):
a legitimidade do Estado e de suas instituições é obtida a partir da relação com o
Rosto de Outrem. ‘Um Estado em que a relação interpessoal é impossível... é um
Estado totalitário’. O Eu, precisamente enquanto responsável pelo outro, faz
eclodir o terceiro numa teia ética rumo ao Infinito. Não que o outro deva algo ao
eu, mas justamente porque na teia ética há para ele um outro, o terceiro. O eu não
se pode ater à unicidade incomparável de cada um, que o rosto exprime. Atrás das
singularidades únicas, é preciso entrever indivíduos do gênero, é preciso compará-
los, julgá-los e condená-los. É a hora da Justiça, da comparação dos incomparáveis
“juntando-se” em espécies e gênero humanos. É hora das instituições habilitadas a
julgar e a hora dos Estados em que as instituições se consolidam e a hora da Lei
universal que é sempre a dura lex e a hora dos cidadãos iguais diante da lei.
Nesta perspectiva, infere-se que a responsabilidade do eu em relação ao outro é
mantida integralmente, e que o terceiro como representação de toda a humanidade, é quem
possibilita a aplicação da justiça, sem, no entanto, dispensar o Estado e suas instituições do
exercício de suas funções sociais. Até porque, as relações sociais exigem que haja uma
igualdade de direitos entre os congêneres. A propósito deste assunto resta ainda uma questão
que pode parecer contraditória, pela abordagem feita até aqui: levando em consideração a
assimetria da relação entre o eu e o outro, bem como a relação entre o outro e o terceiro, como
entender a igualdade das relações em Lévinas?
62
As dificuldades para se responder a esta questão também não são ignoradas por
Lévinas, que sinaliza para a responsabilidade que, mesmo sendo uma prerrogativa do eu, não
isenta o outro e também o terceiro de ter que responder um pelo outro. Nos dizeres de Lévinas
(2003, p.237):
O terceiro é outro distinto do próximo, mas é também outro próximo, é também
próximo do Outro e não simplesmente seu semelhante. Que são o outro e o
terceiro, o um-para-o-outro? Que fizeram um ao outro? Quem tem precedência
sobre o outro? O Outro mantém-se numa relação com o terceiro – da qual não
posso responder inteiramente mesmo que responda sozinho – antes de toda questão
– por meu próximo
86
.
Inspirado por estes questionamentos e, por que não dizer, por esta proposição vinda de
Lévinas, Susin
87
discorre sobre este assunto, sinalizando para a proposta radical do filósofo
lituano, que sustenta a primazia da responsabilidade do eu que, para além da igualdade da
relação entre o outro e o terceiro deve se responsabilizar totalmente tanto por um quanto por
outro. Nesse sentido, retoma-se a dimensão da responsabilidade do eu como oriunda da ética
em sua transcendência infinita, considerando, pois, que o eu continua a ser o primeiro
responsável, mesmo diante da complexidade que envolve as relações humanas. De acordo
com Susin (1984, p.411):
Entre o outro homem e o terceiro há novas relações de proximidade e de
responsabilidade, relações que se complexificam numa pluralidade imensa de
proximidade e de responsabilidade, pois eles não são ‘semelhantes’, mas próximos
entre si e meus próximos. A relação por “semelhança” tornaria todo
relacionamento rígido e afinal terminaria na fixidez da imagem, englobaria todos
num ‘alter ego’ e numa totalidade. Mas uma relação de proximidade ‘plural’
fazendo justiça à singularidade de todos, introduz necessariamente a “igualdade”:
eles merecem igualmente toda minha responsabilidade. Trata-se de uma igualdade
ética, não de uma igualdade ontológica. A novidade da pluralidade exige, pois,
novos modos de relacionamento para fazer justiça, que incluam a igualdade a
todos sem diminuir a desigualdade em que sou o responsável por todos.
86
El tercero es otro distinto que el prójimo, pero es también otro prójimo, es también un prójimo del Otro y no
simplemente su semejante. ¿ Qué son, por tanto, el otro y tercero, el uno-para-el-otro? ¿ Qué es lo que han
hecho uno al otro? ¿ Cuál pasa antes del otro? El otro se mantiene en una relación con el tercero, de la cual yo
no puedo responder enteramente, incluso si respondo de mi prójimo solamente antes de toda
cuuestión.(LÉVINAS, 2003, p.237).
87
Na mesma direção, Pivatto também descreve sobre este assunto conforme reproduzido a seguir: “A partir do
terceiro surge nova gama de relações que se entrecruzam e que descrevem o cotidiano da vida. São relações de
verticalidade com lateralidade, de assimetria com simetria, de diferença radical com igualação. O Outro,
incomparável e incontornável, equipara-se com o terceiro, com todos os outros a seu redor. Por outro lado, o
terceiro, que não está na eira da responsabilidade direta do eu, é também o próximo para outrem [...]”.
(PIVATTO, 2001b, p.226).
63
Confirma-se, uma vez mais, a total responsabilidade atribuída ao eu, o que sinaliza
para uma concepção de justiça para além das leis do Estado, mesmo que este seja reconhecido
por Lévinas como agente eficaz para a aplicação da justiça social. Na perspectiva do filósofo
lituano, a justiça associa-se à responsabilidade muito mais do que às leis, daí sendo sua
referência a ética e não a ontologia, enquanto fundamento das leis. Logo, o eu, para fazer
valer a justiça, antes de julgar ou condenar o outro e o terceiro, deve ser responsável pelas
atitudes e sofrimentos que possam atingi-los – o que pressupõe que, antes mesmo de conhecê-
los, o eu é chamado a fazer-lhes justiça, impulsionado pela sua vocação profética.
3.9. Justiça e profecia
Nítido está até aqui que a ética deve nortear a responsabilidade do eu para com o
outro, fato que, além de aproximar a responsabilidade da justiça, concede a ambas a dimensão
transcendente oriunda da relação ética. Como na concepção do filósofo lituano, a ética
pressupõe uma relação assimétrica entre o eu e o outro, na qual o primeiro deve estar a
serviço do segundo de forma desinteressada, a responsabilidade e a justiça só podendo se
realizar na medida em que o eu, de forma profética, atenda a seu chamado para servir
incondicionalmente ao outro.
Realiza-se, então, por exemplo, aquilo que Souza (2001b, p.273) prediz sobre a justiça
na filosofia de Lévinas
A justiça, portanto, não é por este autor concebida como uma questão teorética,
nem ao menos como uma questão existencial, mas como uma questão, poderíamos
dizer, fundacional, sem a qual as restantes determinações do mundo e da realidade
não podem ser propriamente concebidas enquanto questões radicalmente humanas
-pelo menos não em sua plenitude.
Delineia-se, desta forma, o que, em Lévinas, é considerado prontidão profética, na
qual o eu responde a uma ordem que parte do outro sem que se possa, ao menos, desviar-se.
Nesse viés constitui-se o profetismo que se concretiza tão-somente no testemunho profético
de responsabilidade e justiça para com o outro, o que impossibilita qualquer tentativa de
desvio ou de fuga por parte do eu, conforme o desvela o próprio Lévinas (2002, p.111)
64
inspiração ou profetismo em que sou intermediário do que enuncio. “Deus falou,
quem não profetizará”? Diz Amós
88
, comparando a reação profética à passividade
do medo que invade aquele que ouve o rugido das feras. Profetismo como
testemunho puro; puro, pois anterior a todo desvelamento: sujeição à ordem
anterior à escuta da mesma. Anacronismo que, segundo o tempo recuperável da
reminiscência, não é menos paradoxal que uma predição do futuro. É no
profetismo que se passa – e desperta – o Infinito e que, transcendência, recusando
a objetivação e o diálogo, significa de maneira ética. Ele significa no sentido em
que se diz significar uma ordem; ele ordena.
O profetismo, nesse caso, assume a dimensão infinita da ética com toda sua carga e
ordena o eu ao serviço do outro, garantindo-lhe consolidar-se como sujeito – sem, no entanto,
reduzir-se ao si mesmo. Isto, posto que
O profetismo é, para Lévinas, uma condição inerente à subjetividade do homem.
Na medida em que a substituição se traduz por uma responsabilidade inalienável
pelo outro, o sujeito é aquele que testemunha o Infinito através de seu próprio
responder. O profetismo é, assim, a condição de uma subjetividade ordenada antes
da síntese do diverso na consciência tematizante. (FABRI, 1997, p.170).
Frente às injustiças, portanto, o eu é chamado a profetizar através do testemunho
enquanto responsabilidade para com o outro, já que
O eu responsável jamais pode omitir-se. É suplemento de responsabilidade. É
eleição, a qual, por sua vez, é possibilidade de ir contínua e concomitantemente ao
encontro do outro e a impossibilidade de saciar a responsabilidade que o eu tem
para o outro. Aos outros, eu não posso impor nada, mas a mim mesmo, ao
contrário, posso impor sempre mais. Isto é justiça, aquilo, injustiça. (NODARI,
2002, p.126).
Como se vê, não está em jogo ser ou não profeta. Esta é uma condição do humano,
especialmente do eu: estar à disposição do outro para serví-lo, fazer-lhe justiça ou impedir que
ele seja injustiçado, ser testemunha de uma dimensão que ultrapassa o próprio significado das
palavras que porventura sejam anunciadas, ou acontecimentos que sejam denunciados. Dessa
forma, ao considerar-se que à ética cabe uma dimensão infinita, então delineia-se uma
incomensurabilidade na ação profética que faz com que a responsabilidade pelo outro também
se abra para o infinito.
Constrói-se, assim, a responsabilidade desinteressada que, associada à ética visa à
justiça social para além dos conceitos, normas e leis, sejam estas do Estado, da Religião ou de
outras convenções sociais meramente ontológicas. “[...] A justiça, ou seja, a ética realizada e
88
Esta citação encontra-se na página 111 de De Deus que vem à ideia, edição traduzida de 2002, e aparece como
sendo Amós. 2,8. Porém, ela está em Amós. 3,8.
65
em realização, é a estrutura basilar do sentido humano e cosmológico, sem a qual a
realidade não é, a rigor, segundo esta linha de pensamento, nem ao menos pensável [...]”.
(SOUZA, 2001b, p.272).
Isto não quer dizer que Lévinas desconsidere a importância da razão e do pensamento
que dela é proveniente, mas sim, que
A unidade do ‘Eu penso’ não faz a humanidade do eu porque, segundo Lévinas,
não se deve procurar o humano num movimento reflexivo de si sobre si próprio, na
consciência de si, mas somente no movimento de uma resposta, desde já
consentida, ao apelo da alteridade. Semelhante apelo perturba necessariamente a
quietude do eu, proíbe-lhe todo o repouso numa essência bem definida como
qualquer enraizamento numa terra, significa que a sua pátria não é o ser, mas o
outro lado do ser. Ali, onde a inquietude pelo outro predomina sobre a
preocupação que um ser tem por si, ali onde a responsabilidade não sofre nem
contemporização nem discussão. (CHALIER, 1993, p.104).
Portanto, ao contrário da estaticidade da razão, a ética está em movimento constante,
pronta para outros passos e para percorrer caminhos vários, como exigência de abertura para o
outro, para o infinito, para as possibilidades das relações que se tecem cotidianamente, sempre
imprevisíveis e inacabadas. Delineia-se, é certo, a possibilidade de um outro que ser, capaz de
responder por tudo e por todos, seguindo as vias infinitas da ética, na qual a alteridade tem
primazia sobre a ontologia. Desse modo,
O ser fundado na justiça, a consciência fundada na responsabilidade, o
conhecimento fundado na sensibilidade são “acionados” pela proximidade e pela
fome de justiça. O ser não surge então sem significação ou, pior ainda, como um
trem de maldições, mas como um trem de recursos, e ganha um sentido para além
de si e de sua natural indiferença, na não-indiferença da justiça. (SUSIN, 1984,
p.418).
Assim sendo, a responsabilidade e a justiça, ao se projetarem para o infinito, revestem-
se de uma áurea transcendente que só faz aumentar a glória do testemunho que delas se
origina, pois que não as deixa se transportarem para um mundo irreal ou supra-sensível. Surge
nesse ponto o papel daquilo que Lévinas denomina insônia, vigília ou vigilância, aptas a não
deixar o eu sucumbir aos seus egoísmos e, ao mesmo tempo, a manter a ética sempre
desperta. Nessas condições, a responsabilidade como serviço profético abre as portas para que
a justiça seja reconhecida como ética, a que norteia as atitudes do eu para com o outro.
O exposto até aqui deixa visível que a premissa levinasiana de que a ética precede a
ontologia, perpassa toda a sua filosofia, o que a projeta para a transcendência infinita que se
dá pela responsabilidade para com o outro e pela consequente justiça social que daí se origina.
66
Com efeito, alguns aspectos importantes, mesmo que mencionados anteriormente, merecem
uma abordagem mais minuciosa, no intuito de se explicitar melhor a riqueza de sua proposta,
especialmente no que diz respeito à ideia de Deus e à religião, assuntos a serem abordados no
próximo capítulo.
67
4 A RELAÇÃO ÉTICA COMO RELIGIÃO

Como exposto até aqui, o pensamento levinasiano sinaliza para a importância de uma
guinada da filosofia como forma de se superar a noção de um pensamento que acredita pensar
mais do que pensa
89
. É nessa perspectiva que a proposta levinasiana ao apresentar a relação
ética como oriunda da socialidade e não da ontologia constitui-se em religião. Isto é, a
religião para o filósofo lituano não se confunde à filosofia, nem com a teologia fundada no
logos grego. Nesse viés, os sentidos desvelados pela alteridade têm origem na
responsabilidade como mandamento ético orientado para o outro que, em seu rosto, manifesta
a presença de Deus enquanto vestígio do infinito que se cede à ideia ou ao pensamento. Por
isso, a nudez característica do rosto é ao mesmo tempo ordem e mistério: ordem, que impede
o eu de matar o outro e mistério, que o impossibilita de absorvê-lo ou abarcá-lo no si mesmo.
É pelo rosto que a glória do infinito enquanto dimensão transcendente de Deus revela a
originalidade da religião e, neste caso, também da filosofia de forma que seu dito seja sempre
desdito por um constante dizer ético.
4.1. O sentido original da religião
A proposta filosófica de Lévinas, como evidente até aqui, apresenta uma originalidade
na história, ao apontar a ética como precedente à ontologia, mesmo sem prescindir da filosofia
e da razão, que passam a ser observadas sob novo sentido
90
. Nesse contexto, a ética concebida
como filosofia primeira amplia significativamente a noção que se construiu sobre a alteridade,
na tradição. Este reconhecimento garante ao outro o espaço que sistematicamente lhe foi
negado, subjugando-o ao eu e à razão. Pela concepção de Lévinas (2003, p.61)
A alteridade que conta aqui está fora de toda caracterização do outro mediante a
ordem ontológica e à margem de qualquer atributo; aparece como próxima numa
89
Vale conferir em Totalidade e Infinito, especialmente, na alínea B (Rosto e ética, p.173 a 183) da Seção III
(Rosto e exterioridade p.165 a 197), em que Lévinas discorre sobre o transbordamento do pensamento, ou seja, o
pensamento que pensa mais do que pensa. Ribeiro Júnior (2005, p.322) cita esta expressão de Lévinas ao se
referir à irredutibilidade do outro ao eu enquanto entes separados.
90
Sobre este novo sentido atribuído à filosofia e à razão e, por consequência, à ontologia na filosofia de Lévinas,
Pivatto (2001b, p.227) sublinha que “[...] A ontologia reaparece claramente, mas agora está como que
inseminada pelo sentido ético. Surgem as teorias, os ditos, as sistematizações, porém sempre criticáveis, sempre
atravessadas pela inquietude da proximidade, pois desde que uma medida se objetiva em lei ou código, o
humano trepida a perigar e começa a injustiça. Por isso, a inspiração da responsabilidade assimétrica deve
permanecer sempre como dizer frontal incontornável”.
68
proximidade que conta como sociabilidade que <<excita>> através de sua
alteridade pura e da simples relação que temos tentado analisar sem recorrer às
categorias que a dissimulam
91
.
Pela relação ética o outro não deve apenas ser respeitado e reconhecido, mas ter
prioridade em relação ao eu. A relação ética supõe, assim, uma relação com o outro enquanto
outro, e não apenas uma relação que não ultrapassa as teorias elaboradas filosófica, científica,
religiosa, enfim, ontologicamente, no curso da história. Tal salto é possível, pois ao inverter a
lógica da ontologia, o filósofo não apenas propõe o reconhecimento do outro através da
relação ética como outrossim possibilita outra forma de pensar, que permite conceber a
religião para além da ontologia. É o que confirma, por exemplo, Luiz Carlos Susin (1984,
p.247), na sua leitura sobre o pensamento de Lévinas, ao descrever que
A ética reúne em si o relacionamento social e o relacionamento religioso ‘justos’,
sem ideologia e sem mito, relacionamento que é excepcional por este paradoxal
caráter: sem comprometer a unicidade e a interioridade, coroa a subjetividade de
responsabilidade aprofundando sua unicidade com responsabilidade e bondade,
permitindo assim ser adulto, social e religiosamente.
A partir desse pressuposto fica manifesto que, por meio da ética ocorre uma ruptura
com a concepção de religião associada à ontologia, a qual, ao submeter acriticamente o outro
às suas tematizações, reduziu a relação, a socialidade ao pensamento. Esta ruptura sinaliza
para uma filosofia aberta a outras formas de saber, que ultrapassa a ontologia, ou seja, está
para além dos dogmas que tentam aprisioná-la – enfim, reduzi-la às amarras das leis, como
mais relevantes que o humano
92
. Dimensão infinita, por conseguinte, que significa
proximidade do outro que não se restringe ao eu. A proposta de Lévinas (2005, p.279-280) é
de que
a proximidade do infinito e a socialidade que ela instaura e comanda possam ser
melhores que a coincidência e a unidade, que a socialidade tenha, por sua própria
pluralidade, uma excelência própria e irredutível, que não se saiba dizê-la em
termos de riqueza sem recair no enunciado de uma miséria; que a relação ou a não-
in-diferença ao outro não consista, para o outro, em se converter ao mesmo; que a
religião não seja o momento de uma economia do ser.
91
La alteridad que cuenta aquí está fuera de toda cualificación del otro mediante el orden ontológico y al
margen de todo atributo; aparece como próxima en una proximidade que cuenta en tanto que sociabilidad que
‘excita’ a través de su alteridad pura y de la simple relación que hemos intentado analizar sin recurrir a las
categorías que la disimulan. (LÉVINAS, 2003, p.61).
92
A esse respeito confira Susin (1984, p.474), quando ele relaciona o pensamento levinasiano ao cristianismo
primitivo como demonstração clara do sentido de religião para Lévinas.
69
Assim, delineia-se a originalidade da religião conforme a propõe Lévinas, numa
ruptura com a ontologia e abertura para a socialidade, enfim, para a ética. François Poirié
descreve esta originalidade de forma a deixar claro como a relação ética constitui aquilo a que
Lévinas denomina religião. Isto, porque, ela é o
Ponto de partida da relação ética, ‘ponto’ que Lévinas situa ainda no espaço da
metafísica, o face-a-face em que Eu encontro Outrem, no qual ele me faz face na
impossibilidade de desvio, da esquiva, é esse momento primeiro, último e
irredutível, que Lévinas chama religião: ‘Face-a-face com o outro em um olhar e
em uma palavra que mantém a distância e interrompe todas as totalidades, esse ser
[estar em] – conjunto como separação precede ou ultrapassa a sociedade, a
coletividade, a comunidade’. (POIRIÉ, 2007, p.38)
É interessante observar que a religião compreendida como ética não se reduz às
sínteses racionais que tentam explicá-la, pois pela relação que se dá face-a-face entre o eu e o
outro, ela transcende à ontologia. Nesta ótica, a dimensão transcendente da ética se estende à
religião projetando-se para além dos conceitos. Logo, a alteridade oriunda da relação ética
pressupõe uma abertura da razão para novas possibilidades que a façam encontrar-se não mais
em si mesma, mas sim, na socialidade, sem se auto-anular.
Constata-se que a religião está para além das doutrinas institucionais de matriz
dogmática e ontológica, ao ponto de afastá-la da sua condição mais sagrada
93
: conduzir o eu
para o serviço ao outro, de forma a que este possa cumprir sua responsabilidade ética de amar
antes de conhecer, de viver antes de pensar. Eis, como a ética se constitui em religião na
filosofia levinasiana.
4.2. O sentido ético da religião
A religião concebida conforme a perspectiva de Lévinas desperta no movimento das
relações humanas, no acolhimento do outro, a partir do outro. Esta condição a torna livre das
totalizações que tendem a aprisioná-la nos conceitos e distanciá-la, ao mesmo tempo, do
93
Não interessa aqui, uma abordagem sobre o sagrado para Lévinas, entretanto, vale dizer que esta palavra tem
uma significação para além do sentido religioso que em geral lhe é atribuída, como fica implícito, por exemplo,
na apresentação do livro Do Sagrado ao Santo: cinco interpretações talmúdicas, conforme reproduzido a seguir:
“[...] O que pretendíamos nestas interpretações era fazer com que viesse à tona a catarse ou a desmitificação do
religioso que opera a sabedoria judaica e, assim, ir contra a interpretação dos mitos – antigos e modernos –
recorrendo a outros mitos, frequentemente mais obscuros e mais cruéis, que assim mais se propagam e que
passam por isso como profundos, sagrados ou universais. A Torá oral fala ‘em espírito e em verdade’, mesmo
quando parece triturar versículos e a literatura da Torá escrita. Ela libera o sentido ético como a última coisa
inteligível do humano e até do cósmico. Por isso é que intitulamos este livro com palavras que, em rigor, só tem
a ver com o tema tratado na terceira leitura da série: Do Sagrado ao Santo”. (LÉVINAS, 2001, p. 11-12).
70
Outro transcendente e do outro imanente, o que possibilita sua ruptura com a ontologia
conforme o descreve Lévinas (1980, p.27-28) em Totalidade e Infinito:
A ruptura da totalidade não é uma operação de pensamento, obtida por simples
distinção entre termos que se atraem ou, pelo menos, se alinham. O vazio que a
rompe só pode manter-se contra um pensamento, fatalmente totalizante e
sinóptico, se o pensamento se encontrar em face de um Outro, refractário à
categoria. Em vez de constituir com ele, como com um objeto, um total, o
pensamento consiste em falar. Propomos que se chame religião ao laço que se
estabelece entre o Mesmo e o Outro, sem constituir uma totalidade.
Dessa forma, a religião em Lévinas abrange uma dimensão que ultrapassa o
significado institucional que, ao longo da história, não apenas a transformou em conceito,
mas, principalmente, transformou-a em totalidade. Levando em consideração, igualmente, que
é pela relação ética que se revela a verdadeira face da religião, tanto sua condição imanente
quanto sua dimensão de transcendência são garantidas pela relação que se tece entre o eu e o
outro. Segundo o filósofo:
A relação ética define-se, contra toda a relação com o sagrado, excluindo toda a
significação que ela tomaria sem o conhecimento daquele que a mantém. Quando
mantenho uma relação ética, recuso-me a reconhecer o papel que eu desempenharia
num drama de que não fosse o autor ou cujo desfecho fosse conhecido por um outro
antes de mim, a figurar num drama da salvação ou da condenação, que se
representaria mesmo sem mim. Isso não equivale a um orgulho diabólico, porque
tal não exclui de modo algum a obediência. Mas a obediência distingue-se
precisamente de uma participação involuntária em misteriosos desígnios que se
figuram ou prefiguram. Tudo o que pode reduzir-se a uma relação inter-humana
representa, não a forma superior, mas a forma definitivamente primitiva da religião.
(LÉVINAS, 1980, p.65-66).
A religião vem da relação ética, do comprometimento com o outro, com a vida do
outro, sem subterfúgios, sem criar um mundo ideal, racionalizado e distante, desvinculado do
chão da vida. A ética e a religião estão, assim ligadas pela relação e pela alteridade, o que, a
partir da concepção de ética como filosofia primeira, supõe uma religião que não deve se
fundamentar na razão, na ontologia, mas sim na relação entre os homens. Porém, a crítica de
Lévinas à crosta conceitual acumulada historicamente na filosofia, dirige-se também à
maneira como a religião foi concebida na tradição, como se pode atestar a seguir:
Na Metafísica, um ser está em relação com o que ele não poderia absorver, com o
que não poderia compreender, no sentido etimológico do termo. A face positiva da
estrutura formal – ter a Idéia do Infinito – equivale no concreto ao discurso que se
precisa como relação ética. Reservamos à relação entre o ser cá em baixo e o ser
transcendente que não desemboca em nenhuma comunidade de conceito nem em
71
nenhuma totalidade – relação sem relação – o termo de religião. (LÉVINAS, 1980,
p.66).
Ora, para Lévinas (1980, p.65), a metafísica tem lugar nas relações éticas
94
e não nos
conceitos teológicos de matriz ontológica que paradoxalmente descaracterizou a religião,
tornando-a obsoleta ao transpô-la para uma realidade distante das relações sociais. Por isso a
religião para o filósofo lituano deve se dar na relação entre os homens, já que
Há o recurso à noção de uma religião horizontal, que permanece sobre a terra dos
homens e que deveria se substituir à vertical que aponta para o Céu, para se referir
ao mundo, porque é a partir do mundo que se continua a pensar os próprios
homens. (LÉVINAS, 2002, p.147).
Confirma-se, pois, que a relação ética pressupõe a originalidade da religião que, assim
como a ética, torna-se pré-originária ao pensar, pois se abre para o infinito e não se prende à
totalidade. Aliás, este talvez seja o maior equívoco da razão: acreditar que se possa reduzir o
infinito. Neste caso, o infinito deixaria de ser infinito, pois estaria enclausurado dentro da
consciência humana, que é quem pensa – ou, pelo menos, ousa acreditar que pode pensar e
conter o todo. A ética, ao contrário, está aberta para a transcendência e o infinito que se
revelam na alteridade, no rosto do outro, sem abarcar a totalidade.
Esta abertura transcendental da ética estendida à religião faz com que ambas se livrem
das amarras das doutrinas filosóficas revestidas por uma teologia racional. E, para Lévinas,
uma religião que não esteja associada à ética não deve assim ser denominada. A religião
encontra seu significado, sua representação mais pura, na relação ética e não na razão que
insiste em manter-se fechada para a exterioridade, como se detivesse o todo. Na proposta
levinasiana:
A totalidade e o amplexo do ser ou ontologia não detém o segredo último do ser. A
religião em que a relação subsiste entre o Mesmo e o Outro, a despeito da
impossibilidade do Todo – a ideia do Infinito – é a estrutura última. (LÉVINAS,
1980, p. 66).
Diante da mudança na qual a razão deve se abrir para outras possibilidades, a ética e a
religião se tornam originárias, o que, de certa forma, liberta a razão de suas próprias amarras
94
Ribeiro Júnior (2005, p.121) descreve assim este novo lugar da metafísica na filosofia levinasiana: “[...] Essa
nova concepção de metafísica, que se articula em torno da religião ética e da ética como religião, se opõe
àquilo que a filosofia clássica atribuía à metafísica, como se ela fosse o fundamento da religião, ou o sentido do
dever-se da ética. A metafísica será, antes de tudo, o lugar de uma relação com o Absolutamente Outro ou da
verdade segundo a qual ‘a ética é a via real’. Essa concepção de metafísica como ‘intriga’ do ético e do
religioso, explica a aversão de Lévinas por qualquer forma de pensamento filosófico que promova o sistema e a
totalidade.
72
conceituais, podendo estender esta libertação à linguagem, à moral, enfim, a todos os
elementos que porventura, também se acham presos pelas correntes racionais. Em Difícil
Libertad, Lévinas (2004, p.24) chega a afirmar que “[...] se a religião coincide com vida
espiritual é necessário que a religião seja essencialmente ética [...]”
95
.
Esta citação expressa de forma muito nítida a originalidade da filosofia levinasiana
que concebe a religião para além dos ritos, das superstições, mas, principalmente, dos
dogmatismos que a envolveram na tradição. Para isso, ela precisa se desvincular da ontologia
e da própria teologia como condição para cumprir sua função mais nobre: despertar o homem
para uma antropologia
96
, que considera o humano para além do logos, pois vê o antropo em
sua alteridade infinita. Uma demonstração desta mudança na forma de pensar proposta por
Lévinas é retratada por Susin (1984, p. 249) ao destacar que a
‘Religião’ entendida como relação ética e diaconia não tem a ética como corolário
e nem mesmo como condição – estágio que poderia ser superado – pois ética e
religião coincidem. A relação ética, relação entre ab-solutos e socialidade
autêntica, é a metafísica que cumpre a relação ao transcendente, meta-ontologia à
qual corresponde uma meta-antropologia – se entendermos por antropologia
97
o
ser do homem, – uma antropologia que começa pelo outro homem e que chamará a
sair da antropologia correlativa aos parâmetros do ser.
De forma a elucidar ainda mais a proposta de Lévinas conforme a descreveu Susin,
sobre o que o filósofo lituano considera, não apenas como função da religião, mas a religião
em si, em sua obra Difícil Libertad, ele faz referências aos cristãos (católicos) e muçulmanos
que ajudaram a salvar a vida de judeus durante os horrores da Segunda Guerra. Nesta
referência encontra-se nitidamente a concepção de religião presente no pensamento de
Lévinas, conforme se pode traduzir:
Israel se encontrou novamente no coração da história religiosa do mundo, fazendo
explodir as perspectivas nas que se haviam encerrado as religiões constituídas,
restabelecendo, nas consciências mais finas, o laço até então
incompreensivelmente dissimulado entre o Israel de nossos dias e o Israel da
Bíblia. No momento em que se temia esta experiência, cuja amplitude religiosa
terá marcado para sempre o mundo, alguns católicos – laicos, sacerdotes, monjes –
salvaram crianças e adultos judeus na França e fora da França; e sobre esta mesma
95
“[...] si la religión coincide con la vida espiritual es necesario que la religión sea esencialmente ética [...]”.
(LÉVINAS, 2004, p.24).
96
A esse respeito, Ribeiro Júnior (1999, p.34-35), escreve que “somente uma antropologia em que o homem
aparece como sensibilidade, afetividade, corporeidade ou como ‘amor não-érótico’ é que permite compreender
a nova semântica que a palavra ‘ética’ assume como ‘responsabilidade’ no pensamento ético de Lévinas [...].
Para mais detalhes, consultar Ribeiro Júnior p.31 a 36.
97
Convém mencionar que a obra de Luis Carlos Susin O homem messiânico: uma introdução ao pensamento de
Emmanuel Lévinas é toda dedicada à apresentação de uma nova antropologia, ou de um novo homem, a partir da
ética proposta pelo filósofo lituano.
73
terra, judeus ameaçados pelas leis raciais escutaram a voz de um príncipe
muçulmano que nos acolheu sob sua insigne proteção
98
. (LÉVINAS, 2004, p. 30).
Estes são, portanto, exemplos fortes de uma situação em que as diferenças étnicas,
religiosas, culturais, entre outras, dão prioridade à relação ética, em que o eu se arrisca para
salvar a vida do outro, na sua condição de estrangeiro e diferente. A religião atinge, assim, seu
significado mais elevado, sua verdadeira razão de ser, ou seja, sua transcendência e
originalidade numa abertura total para o infinito, através do serviço ao outro. Nesse sentido é
que se pode pensar que não há totalidade racional capaz de reduzir a ética e a religião ao todo,
já que a relação prevalece sobre qualquer tematização totalizante.
4.3. O sentido universal
99
da religião
Conforme a descrição desenvolvida até aqui, a originalidade da religião está na relação
ética de serviço ao outro, o que torna plausível a afirmação de que ela possui uma dimensão
infinita. Dimensão que não a distancia da vida, já que a responsabilidade para com o outro se
dá nas relações cotidianas, no face a face entre o eu e o outro que está próximo, numa
proximidade que se manifesta na socialidade não apenas daquele que está visível, mas de toda
a humanidade. A dimensão transcendente, assim, não distancia a religião da realidade.
Dessa maneira, Lévinas sinaliza para outro modo de compreensão das relações
humanas, marcadas por uma dimensão para além dos interesses pessoais. Por isso, para além
da razão totalizante que, por exemplo, ao representar o transcendente, acaba por acreditar que
o abarcou dentro de si, o filósofo lituano acrescenta que
A conjuntura entre o Mesmo e o Outro, em que já se mantém a sua proximidade
verbal, é o acolhimento de frente e de lado do Outro para mim. Conjuntura
irredutível à totalidade, porque a posição de ‘frente a frente’ não é uma
modificação do ‘ao lado de...’. Mesmo quando tiver ligado Outrem a mim pela
conjunção ‘e’, esse Outrem continua a fazer-me frente, a revelar-se no seu rosto. A
religião subtende esta totalidade formal. E se enuncio, como numa visão última e
98
Israel se encontró nuevamente en el corazón de la historia religiosa del mundo, haciendo estallar las
perspectivas en las que se habían encerrado las religiones constituidas, restableciendo, en las conciencias más
finas, el lazo hasta entonces incomprensiblemente disimulado entre el Israel de nuestros días y el Israel de la
Biblia. En el momento en el que se tenía esta experiencia, cuya amplitud religiosa habrá marcado para siempre
al mundo algunos católicos – laicos, sacerdotes, monjes – salvaban niños y adultos judíos en Francia y fuera de
Francia; y sobre esta misma tierra judíos amenazados por las leyes raciales escucharon la voz de um príncipe
musulmán que nos acogió bajo su insigne protección. (LÉVINAS, 2004, p. 30):
99
Vale dizer que universal aqui, não se refere à concepção de religião única e absoluta, mas sim da eleição como
serviço e responsabilidade para com o outro, de acordo com o sentido atribuído por Lévinas em Difícil
Liberdade p. 219-221. Sobre este assunto, vale conferir também a descrição feita por Ribeiro Júnior (2005,
p.209).
74
absoluta, a separação e a transcendência de que tratamos exatamente nesta obra,
tais relações, que assumo como a trama do próprio ser, estabelecem-se já no seio
do meu discurso presente mantido com meus interlocutores: inevitavelmente o
Outro faz-me frente – hostil, amigo, meu mestre, meu aluno –através da minha
ideia do Infinito. (LÉVINAS, 1980, p. 66-67):
Verifica-se que Lévinas não recua em sua proposta filosófica revestida de uma
ousadia incomum, já que, tradicionalmente, a religião está associada à moral e às leis que
buscam regular a conduta humana em sociedade, alicerçada pela ontologia. Ao contrário, sua
proposta alicerça-se nas relações inter-humanas constituídas na abertura para o infinito, no
qual a moral religiosa se sustenta no serviço e responsabilidade para o outro, de forma
desinteressada. A religião nesta perspectiva ultrapassa, por exemplo, as meras consolações
que a maioria das religiões oferecem a seus fiéis, afirmando-se referência da responsabilidade
que estes devem ter, uns pelos outros.
Em Ética e Infinito, Philippe Nemo propõe a seguinte questão a Lévinas sobre este
assunto: “A aproximação do Infinito é, pois, essencialmente, a mesma para todo o homem.
Contudo, só as religiões particulares proporcionam aos homens consolações. A exigência
ética é universal, mas a consolação, seria um assunto de família? (LÉVINAS, 1982b,
p.112). Ao responder-lhe, Lévinas sinaliza para a religião que não se confunde com o que
dizem ou fazem as diversas religiões. Eis sua resposta:
Com efeito, a religião não é idêntica à filosofia, a qual não proporciona
necessariamente as consolações que a religião sabe outorgar. A profecia e a ética
não excluem de modo algum as consolações da religião; mas repito ainda: só pode
ser digna destas consolações uma humanidade que pode passar sem elas.
(LÉVINAS, 1982b, p.112).
Sua resposta confirma o enorme apreço que ele mantém pela forma de compreensão
da religião judaica, na sua dimensão de escuta, acolhimento e serviço ao outro como reflexo
de uma atitude ética. Aliás, é nesse sentido que o filósofo lituano considera o judaísmo uma
religião de caráter universal
100
, conforme descrito a seguir:
O rol desempenhado pela ética na relação religiosa permite compreender o sentido
do universalismo judeu. Uma verdade é universal quando está aberta a todos.
Neste sentido, o judaísmo, ao vincular o divino à moral, tem pretendido sempre ser
universal. Porém, a revelação da moralidade, na qual se descobre uma sociedade
humana descobre também o lugar da eleição que nesta sociedade humana universal
100
Vale dizer, portanto, que o sentido dado por Lévinas, à universalidade do judaísmo, diz respeito ao seu caráter
de responsabilidade e serviço para com todos, e não de ser ele uma religião absoluta como única detentora da
verdade. Portanto, este caráter universal pode e deve ser atribuído a todas as religiões. Sobre este sentido da
universalidade do judaísmo confira Ribeiro Júnior (2005, p.209).
75
corresponde àquele que recebe esta revelação. Eleição que não está feita de
privilégios, sim de responsabilidades
101
. (LÉVINAS, 2004, p.41).
Confirma-se, portanto, a descrição feita sobre a eleição, no segundo capítulo, cujo
sentido religioso está impregnado pela ética enquanto pressuposto para a relação que se
estabelece com o outro, o que muito além do universalismo significa abertura para o infinito,
através da responsabilidade que o judeu, o cristão, o muçulmano, enfim, os seguidores de
qualquer religião devem ter para com o outro. Isto é, a eleição do eu ultrapassa o sentido
religioso meramente institucionalizado de que o eleito é um privilegiado a ponto de
desconsiderar o outro para elevar-se.
É nesse contexto que, para Lévinas, o sentido religioso universal do judaísmo só
encontra justificativa pela relação ética de responsabilidade e serviço ao outro. Segundo o
filósofo:
Possuímos a reputação de nos acreditarmos que somos o povo eleito, e esta
reputação prejudica muito nosso universalismo. A ideia de um povo eleito não
deve ser interpretada como um orgulho. Não significa a consciência de
excepcionais direitos, sim de excepcionais deveres. a prerrogativa da consciência
moral mesma. Esta consciência se sabe no centro do mundo e para ela o mundo
não é homogêneo: posto que eu seja sempre o único que posso responder ao
chamado, sou insubstituível para assumir responsabilidades. A eleição é um
adicional de obrigações pela qual o “eu” da consciência moral se profere
102
.
(LÉVINAS, 2004, p.221).
Entrementes, mesmo ante a resposta de Lévinas acerca do sentido universal do
judaísmo, é importante levar em consideração que a religião, conforme a concebe o filósofo,
não pode se restringir ao judaísmo. Nessa perspectiva é que, ao ser indagado por Philippe
Nemo sobre esta questão, ele aponta para toda a humanidade – o que inclui todas as religiões,
como aquela para a qual o eu deve exercer sua responsabilidade, conforme se pode captar:
101
El rol desempeñado por la ética em la relación religiosa permite comprender el sentido del universalismo
judio. Uma verdad es universal cuando está abierta a todos. En este sentido, el judaísmo, al vincular lo divino a
la moral, ha pretendido siempre ser universal. Pero la revelación de la moralidad, en la que se descubre una
sociedad humana descubre también el lugar de elección que en esta sociedad humana universal corresponde a
aquél que recibe esta revelación. Elección que no está hecha de privilégios, sino de responsabilidades.
(LÉVINAS, 2004, p.41)
102
Tenemos la reputación de creernos el pueblo elegido, y esta reputación perjudica mucho nuestro
universalismo. La idea de un pueblo elegido no debe ser interpretada como un orgulho. No significa la
conciencia de excepcionales derechos, sino de excepcionales deberes. Es la prerrogativa de la conciencia moral
misma. Esta conciencia se sabe en el centro del mundo y para ella el mundo no es homogêneo: puesto que yo
soy siempre el único que puede responder a la llamada, soy irremplazable para asumir responsabilidades. La
elección es un plus de obligaciones por el cual el “yo” de la conciencia moral se profiere. (LÉVINAS, 2004,
p.221).
76
As religiões positivas ou, pelo menos, as três grandes religiões do Livro que se
reconhecem no Ocidente, cada qual se define pela sua relação com um texto
definitivamente estabelecido, contendo a Revelação; ora, quando o senhor fala da
‘revelação’ trazida pelo ‘testemunho’, parece encontrar outra origem para a
verdade religiosa, e no próprio presente? (LÉVINAS, 1982b, p. 108).
Na resposta a Nemo, Lévinas explicita sua concepção de que a relação ética é o que
garante a originalidade da religião independentemente das religiões, como se pode constatar:
O que aí digo só a mim me compromete! É neste pressuposto que respondo à
pergunta. Que a Bíblia seja o resultado de profecias, que nela o testemunho – não
digo a ‘experiência’ - ético esteja declarado em forma de escrituras, estou disso
convencido. Mas isto harmoniza-se perfeitamente com a humanidade do homem
enquanto responsabilidade por outrem. (LÉVINAS, 1982b, p.108-109).
A visão de Lévinas, portanto, caminha na direção de uma abertura dos textos
sagrados. Neste caso, ele faz referência à Bíblia, para a relação ética que ela propõe e não para
as inúmeras interpretações dogmáticas da mesma, ou ainda das próprias significações
sagradas que a estas se concedem. A ética como filosofia primeira também consiste em uma
religião primeira, na medida em que esta cumpre o papel de reconhecer o outro homem como
aquele pelo qual o compromisso ou serviço religioso deve ser dirigido. Em suas palavras:
As Sagradas Escrituras não significam, pelo relato dogmático da sua origem
sobrenatural ou sagrada, mas pela expressão do rosto do outro homem antes de a si
mesmo ter conferido uma atitude ou posição, que elas esclarecem. Expressão tão
irrecusável como são imperiosas as preocupações do mundo quotidiano dos seres
históricos que somos, significam, para mim, por tudo o que despertaram ao longo
dos séculos nos seus leitores e receberam das suas exegeses e da transmissão
destas. Prescrevem toda a gravidade das rupturas em que, no nosso ser, se põe em
questão a boa consciência do seu estar-aí. É nisto que reside a sua própria
santidade, fora de toda a significação sacramental. (LÉVINAS, 1982b, p.111).
Outrossim, a ideia que perpassa o pensamento levinasiano sobre a religião, com todos
seus pressupostos éticos, o que a torna como já descrito antes, infinita – ao contrário do que se
pode imaginar – não a descaracteriza de suas prerrogativas sociais e culturais, ou seja,
imanentes. Estes pressupostos, ao ampliar a noção de religião, garantem a sua originalidade, o
que a liberta do logocentrismo que insiste em reduzí-la ao pensamento em detrimento das
relações humanas nela estabelecidas. Nessa perspectiva, surgem também as questões sobre a
ideia de Deus que perpassa a filosofia levinasiana, tendo em vista que esta historicamente
esteve ligada à ideia do Ser.
77
4.4. O pensamento impensado: a ideia de Deus
Na concepção segundo a qual a ética é o sentido original da religião percebe-se que o
outro em sua alteridade adquire uma dimensão transcendente, o que sem dúvida suscita
questionamentos, tais como: o outro é Deus? Se a religião é infinita e está para além da
ontologia, que lugar ocupa Deus no pensamento? E ainda, é possível pensar Deus fora da
ontologia?
As respostas para esses questionamentos ocupam um lugar de destaque, pois
representam uma proposta de saída da ontologia, conforme abordagem de Lévinas (1982a,
p.124) assim
o progresso não levou a filosofia ocidental a ultrapassar completamente o ser.
Apesar de ter descoberto, para além das coisas – modelo primeiro do ser – os
domínios do ideal, da consciência e do devir, ela foi incapaz de privá-los de
existência, pois todo o mérito de sua descoberta consistia precisamente em atribuí-
los a ela. O ontologismo, em sua mais abrangente significação, permanecia o
dogma fundamental de todo o pensamento. Não obstante toda a sua sutileza, ele
continuava prisioneiro de um princípio elementar e simples segundo o qual só
poderíamos pensar e experimentar aquilo que existe ou supõe-se existir
103
.
Esta citação aponta na direção daquilo que o filósofo considera aprisionamento de
Deus ao ser, como se Este pudesse ser contido dentro das categorias racionais. Mais adiante
fica clara sua crítica a esta pretensão da razão, ao dizer que
Para além do pensamento contemplativo, a teoria é no fundo o comportamento
daquele que carrega eternamente o estigma da existência: ela é essencialmente
submissa ao existente e, quando não parte do ser, vai ao seu encontro. É a
impotência diante do fato consumado. O conhecimento é precisamente aquilo que
resta a ser feito quando tudo foi consumado. Este comportamento da criatura
encantoada no fato consumado da criação não permaneceu estranho às tentativas
de evasão. O élan rumo ao Criador traduzia uma Saída do ser. Mas a filosofia, ou
aplicava a Deus a categoria de ser, ou o imaginava enquanto Criador; como se
fosse possível ultrapassar o ser em se aproximando de uma atividade, ou imitando
uma obra que consiste precisamente em realizá-lo. O romantismo da atividade
criadora é animado por uma necessidade profunda de sair do ser, mas ele
manifesta, apesar de tudo, um apego à sua essência criada e seus olhos estão
103
et cependant le progrès n’ a pás amené la philosophie occidentale à dépasser entièrement l’être. Lorsqu’elle
découvrit au-delà des choses – modèle premier de l’être – les domaines de l’idéal, de la conscience et du
devenir, elle fut incapable de les priver d’existence,car tout le bénéfice de sa découverte consistait précisément à
la leur attibuer. L’ontologisme sous sa signification la plus large restait le dogme fondamental de toute pensée.
Malgré toute sa subtilité, elle restait prisionnière d’un principe élémentaire et simple d’après lequel on ne
saurait ni penser, ni éprouver que ce qui existe ou est censé exister. (LÉVINAS, 1982a, p. 124).
78
fixados sobre o ser. O problema de Deus permanece para ele o problema de sua
existência
104
. (LÉVINAS, 1982a, p. 125-126).
Esse pensamento indica a ruptura que precisa acontecer, para que Deus não fique
cativo da razão, como se fosse apenas mais um ser ou ente finito. É nesse sentido que ele
inverte a lógica do pensamento, em que não é o pensamento quem pensa Deus, mas sim Deus
que vem ao pensamento. Nesse ponto, percebe-se que a concepção de Lévinas aproxima-se do
pensamento cartesiano, conforme ele mesmo descreve em Deus, a morte e o tempo:
Meditando sobre a idéia de Deus, Descartes desenhou com um rigor inigualável
este processo (em dois tempos) de um pensamento que vai até à ruptura do eu
penso. Pensando primeiramente Deus como ser, Descartes pensa-o como ser
eminente, como ente que é, eminentemente. Diante desta aproximação entre idéia
de Deus e idéia do ser, é preciso perguntar-se, ao qualificar o ser de Deus, o
“eminentemente” não se refere à altura, a qual significaria a altura do céu por cima
das nossas cabeças, o des-inter-essamento desta altura, e assim um transbordamento
da ontologia. (LÉVINAS, 1993, p.228).
Lévinas reconhece, como se pode constatar, o avanço dado por Descartes no que tange
à concepção de Deus, inclusive reforçando em outro trecho a contribuição do pai da filosofia
moderna nesse sentido. Segundo ele:
não é aqui que reside o contributo inultrapassável de Descartes. É antes na ruptura
da consciência, ruptura que não é recalcamento no inconsciente, mas
desembriaguez ou despertar. Despertar, se se quiser, do ‘sono dogmático’, mas é
preciso perceber que, ao empregar esta expressão, se comete um pleonasmo. Na
análise cartesiana da ideia do Infinito, encontramos sempre estes dois tempos: 1º.
Deus é cogitatum de uma cogitatio; há idéia de Deus; e, 2º. Deus é o que significa
o não-contível por excelência, o que ultrapassa toda a capacidade. (LÉVINAS,
1993, p.228).
Essa congruência de pensamentos entre os dois filósofos franceses aponta na direção
de uma resposta para os questionamentos anteriores em que, pela proposta levinasiana, a ideia
de Deus antecede ao próprio pensar. Chega-se assim, ao ponto chave da filosofia de Lévinas
104
D’ailleurs la pensée contemplative, la théorie est dans son fond le comportement de celui qui porte à jamais le
stigmate de l’existence : elle est essentiellement soumise à l’existant et quand elle ne part pas de l’être elle va
au-devant de lui. C’est l’impuissance devant le fait accompli. La connaissance est précisément ce qui reste à
faire quand tout a été accompli.Ce comportemement de la créature cantonnée dans le fait accompli de la
création n’est pas resté étranger aux tentatives d’évasion. L’élan vers le Créateur traduisait une sortie en
dehors de l’être.Mais la philosphie soit appquait à Dieu la catégorie de l’être soit l’envisaggeait en tant que
Créateur ; comme si l’on pouvait dépasser l’être en s’approchant d’une activité ou en imitant une oeuvre qui
consiste précisément à y aboutir. Le romantisme de l’activité créatrice est animé d’un besoin profond de sortir
de l’être, mais il manifeste malgré tout un attachement à son essence créé et ses yeux sont fixés sur l’être. Le
problème de Dieu est resté pour lui le problème de son existence. (LÉVINAS, 1982a, p.125-126).
79
sobre Deus, em que sua crítica à ontologia não se dirige apenas à razão enquanto fundamento
da filosofia, mas também à teologia que, ao se apropriar do pensamento filosófico, enclausura
Deus no Ser, ou transforma-O num simples ente restrito ao pensamento.
Em Lévinas, Deus ao mesmo tempo antecede ao pensamento como também está para
além da ideia concebida sobre Ele. Posição claramente contrária àquela concebida
tradicionalmente na filosofia e na teologia
105
, se é que nesta perspectiva as duas possam ser
separadas. O próprio Lévinas, ao interpretar a concepção heideggeriana de Ser, faz esta
constatação, dizendo que:
Para Heidegger, a compreensão do ser na sua verdade foi imediatamente recoberta
pela sua função de fundação universal dos entes por um ente supremo, por um
fundador, por Deus. O pensamento do ser, o ser na sua verdade, torna-se saber ou
compreensão de Deus: teo-logia. A filosofia européia do ser torna-se teologia.
Veja-se, neste sentido, a leitura que ele faz de Aristóteles: o problema colocado por
Aristóteles é bem o do ser enquanto ser (do ser na sua verbalidade), mas o ser é
imediatamente abordado em jeito de fundação dos entes, e, finalmente, acaba por
ser nomeado por Deus. O pensamento do ser, o ser na sua verdade, torna-se
teologia
106
. (LÉVINAS, 1993, p. 137).
Grosso modo, para Lévinas não basta uma ruptura com o pensamento voltado e votado
à ontologia, é preciso também romper com todos os pensamentos que assumiram o discurso
da ontologia, enclausurando-se em si mesmos, o que é denominado pelo filósofo de onto-teo-
logia
107
. Representativamente, Theo se vê entre onto e logos aprisionado como um ser ou um
105
Vale mencionar aqui, a descrição feita por Ribeiro Júnior (1999, p.15) que ao abordar a concepção de religião
de Lévinas, assim escreve, retomando a questão da religião como ética, ou seja, para além da teologia. “[...]
Lévinas elaborou uma ética em que a filosofia e a religião não se reduzem jamais a uma homogeneidade
sincrônica tal como sucedeu na filosofia e teologia da cultura ocidental. Trata-se sim, de uma homogeneidade
‘aquém do Ser’ como homogeneidade ética em que se abre a possibilidade de dizer um ‘Deus não contaminado
pelo Ser’”.
106
Vale mencionar também, um trecho de Totalidade e infinito, reproduzido por Paiva (2000, p.226): “A teologia
trata imprudentemente em termos de ontologia a ideia da relação entre Deus e a criatura. Supõe o privilégio
lógico da totalidade, adequada ao ser. Por isso, choca com a dificuldade de compreender que um ser infinito
caminhe lado a lado ou tolere alguma coisa fora dele ou que um ser livre mergulhe as suas raízes no infinito de
um Deus. Ora, a transcendência rejeita precisamente a totalidade, não se presta a um objetivo que a englobaria
a partir de fora... A noção de transcendente coloca-nos para além das categorias do ser... Na conjuntura da
criação o eu é para mim sem ser causa sui.
107
Este termo é de origem heideggeriana, conforme descrição do próprio Lévinas em Totalidade e Infinito: O
tema deste curso – Deus e a onto-teo-logia – é de origem heideggeriana. É sobretudo nas leituras
heideggerianas de Hegel (em particular em Die onto-theologische Verfassung der metaphysik) que o
encontramos. Começaremos, portanto, aqui, com Heidegger. Mas começaremos também assim com uma
primeira aproximação, quer dizer, com um dito que será necessário desdizer. Em Heidegger, o tema do caráter
onto-teo-lógico da metafísica vai a para caracterização de uma certa época. Época não significa aqui um
espaço de tempo, mas um certo modo de o ser mostrar. E em função deste ‘certo modo’ que o tempo se divide e
a história decorre. A época de aqui se trata (a época onto-teo-lógica) compreende toda a filosofia. (LÉVINAS,
1993, p.135). A esse respeito, vale conferir o tópico 1.1.2. Deus como o outro do ser: a crítica de Lévinas a
Heidegger. In: CAMPOS, Fabiano Victor de Oliveira (2008, p.12-19) (Dissertação de Mestrado). O
redimensionamento ético da questão de Deus em Emmanuel Lévinas. Citação completa nas referências.
80
ente qualquer. Como se percebe pela concepção levinasiana, a possibilidade de se pensar
Deus fora do ser traduz uma ruptura com a tradição da filosofia, o que historicamente a
teologia não conseguiu produzir, já que desde sua origem, o ser esteve presente como que
limitando o ilimitável, reduzindo o irredutível, de tal forma que o logos acabou por engolir
Theo.
4.5. Deus enquanto vestígio
A tradição fundada sob a égide da razão fez do conhecimento uma propriedade
particular, desconsiderando toda e qualquer outra possibilidade de se conhecer. É o que
aconteceu com a teologia que ao racionalizar a ideia Deus reservou à razão a capacidade de
pensar e falar sobre Deus. Lévinas rompe com este absolutismo e para além de toda síntese e
de todo enclausuramento conceitual, aponta para uma concepção de Deus que ultrapassa o
pensamento humano, inclusive a teologia. Para ele:
a realidade objetiva de Deus rompe com a sua realidade formal de cogitação – e tal é
talvez o que, avant la lettre, inverte a validade universal e o caráter original da
intencionalidade. Deus escapa à estrutura do cogito cogitatum e significa o que não
pode ser contido. É neste sentido que a idéia de Deus rebenta com o pensamento,
que permanece sempre sinopse ou síntese, que fecha sempre numa presença ou re-
presenta, que reconduz à presença ou deixar ser.
108
(LÉVINAS, 1993, p.228-229).
Percebe-se nesta citação que, mesmo reconhecendo a contribuição de Descartes, a
concepção levinasiana de Deus está para além desta. Lévinas mantém sua coerência filosófica
e, da mesma forma que a ética precede a ontologia e a religião precede a razão, Deus também
precede o pensamento. Isto é, Deus está para além de todas as representações e das idéias que
queiram pensá-Lo, já que não é o pensamento que pensa Deus, mas Deus que vem ao
pensamento.
Numa passagem intrigante em De otro modo que ser o más allá de la esencia, o
filósofo explicita sua concepção sobre Deus, da seguinte forma:
Pode-se propor a questão da divindade do Deus Uno como se propõe a questão da
humanidade do homem? O Uno tem um gênero? Pode-se pensar a divindade de
Deus independentemente de Deus, como o ser se pensa independentemente do
ente? Todo o problema consiste precisamente em se perguntar se Deus se pensa
108
Esta citação é tão significativa para Lévinas, que aparece em duas obras. Em Deus, a morte e o tempo,
conforme a nota anterior, e em De Deus que vem à Idéia,como se pode verificar na página 95, onde está escrito:
“[...] a idéia de Deus rompe o pensamento que – investimento, sinopse e síntese – nada mais faz do que
enclausurar numa presença , re-presentar, reconduzir à presença ou deixar ser”. (LÉVINAS, 2002, p.95).
81
como o ser ou como o mais além. Inclusive se a divindade de Deus se enuncia
graças à astúcia da linguagem, será preciso imediatamente acrescentar ao ser, que
designa a divindade, o advérbio de modo supremo. Bem, agora a supremacia do
supremo não é pensada no ser mais que a partir de Deus. Segundo uma expressão
de Malebranche, ainda não meditada suficientemente: ‘O Infinito é para si mesmo
sua ideia’.
109
(LÉVINAS, 2003, p.162).
Deus é a própria ideia de Deus, ou seja, não é o pensamento que detém esta ideia, mas
ela mesma, por si mesma que se oferece ao pensamento com toda sua infinitude, sem a
possibilidade deste, de enclausurá-la. O que é Deus então para Lévinas? Diante da
impossibilidade da filosofia, a teologia e as ciências em geral oferecerem uma resposta
plausível, o filósofo deixa uma pista para se responder a esta questão. A riqueza de sua
linguagem desemboca no sentido de Deus que é vestígio
110
, ou melhor, que se apresenta
apenas como vestígio ao pensamento, o que explica a impossibilidade deste de abarcá-Lo. De
acordo com Lévinas (2002, p. 97)
A introdução em nós de uma ideia inabarcável derruba esta presença a si que é a
consciência, forçando assim a barragem e o controle, frustrando a obrigação de
aceitar ou adotar tudo o que entre de fora. Por isso, é uma ideia que significa, mas
por uma significância anterior à presença, a toda presença, anterior a toda origem
na consciência e, assim, an-árquica, acessível no seu vestígio; ideia que significa
por uma significância mais antiga que sua exibição, que não se esgota na exibição,
que não tira seu sentido de sua manifestação, rompendo assim com a coincidência
do ser e do aparecer em que, para a filosofia ocidental, reside o sentido ou a
racionalidade, rompendo a sinopse; ideia mais antiga que o pensamento
rememorável que a representação retém na sua presença.
Como se vê, Deus, na sua dimensão infinita, apresenta-se à consciência apenas como
vestígio, sem a possibilidade de o pensamento sintetizá-lo ou explicá-lo. É nessa perspectiva
109
La cuestión de la divinidad del Dios-Uno¿ puede plantear-se como se plantea la cuestión de la humanidad
del hombre? ¿Tiene el Uno un gênero? ¿Puede pensarse la divinidad de Dios independientemente de Dios,
como el ser se piensa independientemente del Ente? Todo el problema consiste precisamente en preguntarse si
Dios se piensa como el ser o como el a más allá. Incluso si la divinidad de Dios se enuncia gracias a la astúcia
del lenguaje, será preciso inmediatamente anãdir al ser, que designa la divinidad, el adverbio de modo
supremo. Ahora bien, la supremacía del supremo no es pensada en el ser más que a partir de Dios. Según una
expresión de Malebranche, aún no meditada suficientemente: ‘El Infinito es para sí mismo su idea’.(LÉVINAS,
2003, p.162).
110
Convém mencionar a importância da significação do vestígio enquanto presença de Deus, que se manifesta já
se retirando. Márcio Paiva faz uma descrição bastante elucidativa sobre a significação do vestígio para a
compreensão desta presença-ausente de Deus, como se pode ler a seguir: “O momento em que Deus vem à ideia
é o encontro do Rosto do Outro que, enquanto enigma e mandamento, é o vestígio de Deus no homem. O
vestígio não é um símbolo nem um sinal, mas abertura de sentido que subverte a ordem do mundo. O vestígio é
a presença de um ausente, é um aqui de um então. Ser à imagem de Deus não quer dizer ser ícone de Deus, mas
encontrar-se no seu vestígio. Na ideia de vestígio, Lévinas sublinha a impossibilidade da manifestação como
fenomenalidade e, nesta, da representação e da compreensão. O Deus bíblico se revela não manifestando-se,
apresenta-se retirando-se, a sua passagem é sempre passado, a sua proximidade está no distanciamento: a sua
invisível visibilidade é o rosto do Próximo”. (PAIVA, 2000, p. 225).
82
que a transcendência de Deus é livre e se dá ao pensamento a partir daquilo que lhe é exterior,
que lhe vem de fora, do alto, enfim, de si mesma, sem que o pensamento possa entender as
razões, até porque não há uma razão. Luiz Carlos Susin explicita esta condição impotente da
razão e do pensamento sobre a transcendência de Deus, de forma que
o que fica da transcendência de Deus é tão somente um sinal enigmático de quem
já passou, um vestígio de uma ausência, nome impronunciável ao qual
graficamente se refere o impronunciável tetragrama, quase como um ‘pro-nome do
Nome’. Deus é somente “Ele”: “O infinito é alteridade inassimilável, diferença
absoluta em relação a tudo o que se mostra, ao que se sinaliza ou se simboliza, se
anuncia e se rememora (...) Seu passado imemorial não é extrapolação da
permanência (durée) humana mas a anterioridade original ou a ultimidade original
de Deus em relação a um mundo que não pode alojá-lo. (SUSIN, 1994, P. 456).
Visto por este prisma e levando-se em conta que a primazia da ética, conforme a
propõe o filósofo lituano, pressupõe o reconhecimento do outro em sua alteridade – o que
garante ao outro um lugar privilegiado – deve-se perguntar: a prioridade concedida por
Lévinas ao outro não o transforma em Deus? Esta pergunta aponta mais uma vez para a
incomensurabilidade da linguagem que ultrapassa as sínteses ontológicas. Nesse caso,
Lévinas sinaliza para Deus que, enquanto vestígio, não é apenas outro, mesmo que
absolutamente Outro, mas é Ele na sua eleidade, terceira pessoa que está para além da relação
eu – outro, pois está para além da própria linguagem.
4.6. A eleidade e o outro
De imediato é preciso assinalar que em Lévinas Deus não pode ser tematizado pela
razão. Por isso, a prioridade que o outro possui sobre o eu não se estende ao Outro infinito,
transcendente, que é Deus. Contudo, é pelo serviço ao outro enquanto responsabilidade que
perpassa a relação ética, que o eu pode encontrar-se com o infinitamente Outro. Dessa
maneira, somente quando o eu se torna totalmente responsável pela vida, pelo bem-estar, pela
existência do outro, sendo-lhe, inclusive submisso, é que Deus se torna acessível.
A partir desse pressuposto, a ideia de Deus presente em Lévinas está para além do
pensamento e da ontologia, ou melhor, da onto-teo-logia que, insistentemente, tenta explicar o
inexplicável. Nas palavras do filósofo:
o Deus da súplica – da invocação – seria mais antigo que o Deus deduzido a partir
do mundo ou a partir de uma irradiação qualquer a priori e enunciada em uma
proposição indicativa; o velho tema bíblico do homem feito à imagem de Deus
83
toma um sentido novo, mas é a partir do “tu” e não do “eu” que esta semelhança se
anuncia. O próprio movimento que conduz a outrem conduz a Deus. (LÉVINAS,
2002, p.199).
Ora, o movimento que conduz a outrem consiste na relação ética na qual o eu é
responsável pelo outro, sem poder reivindicar o mesmo por parte do outro em relação a si.
Esta disposição pressupõe uma gratuidade, um desinteressamento por parte do eu que, na
relação, é interpelado pelo outro a agir eticamente numa abertura infinita para servi-lo. É
assim que a relação ética constitui-se no movimento em direção ao outro que conduz o eu em
direção a Deus, ou seja, para além das limitações da própria consciência. Assim, para o
filósofo lituano, Deus é o Outro separado do eu, exterior ao pensamento, sendo acessível
apenas pela relação de serviço ao outro. Pode-se exprimir, portanto, que “A relação ética se
torna o lugar onde se faz a experiência de Deus, que não se pode demonstrar dentro de um
sistema cognoscitivo, porque está além, mas que se mostra e se revela na responsabilidade,
na solicitude e amor para com o Outro [...]”. (PAIVA, 2000, p.227).
Dessa maneira a relação ética, ao conduzir o eu a Deus, permite o movimento em que
Deus vem à ideia, e que o Infinito se faz presente no finito, sem se tornar com isso, objeto da
razão, do pensamento. Segundo Lévinas (1980, p.189), “A idéia de infinito não é para mim
objecto. O argumento ontológico jaz na mutação desse ‘objecto’ em ser, em independência a
meu respeito. Deus é o Outro. Está claro: Deus é o Outro, porém, o outro não é Deus,
mesmo que pela relação ética, pela socialidade, ele manifeste a presença de Deus. Em De
Deus que vem à idéia Lévinas (2002, p. 201-202) assim se expressa sobre este assunto:
Haveria uma desigualdade – uma dessimetria – na relação, contrariamente à
‘reciprocidade’ sobre a qual, sem dúvida de modo errado, insiste Buber. Sem
esquiva possível, como se fosse eleito para isto, como se fosse assim insubstituível
e único, o Eu como Eu é servidor do Tu no diálogo. Desigualdade que pode parecer
arbitrária; a não ser que ela seja, na palavra endereçada ao outro homem, na ética
do acolhimento, o primeiro serviço religioso, a primeira oração, a primeira liturgia,
a religião a partir da qual Deus poderia vir ao espírito e a palavra Deus ter feito sua
entrada na linguagem e na boa filosofia. Evidentemente, isso não significa que o
outro homem deva ser tomado por Deus ou que Deus, o Eterno, se encontre
simplesmente em algum prolongamento do Tu. O que importa aqui é que, a partir
da relação ao outro, do fundo do Diálogo, esta palavra incomensurável significa
para o pensamento, e não inversamente.
É nessa desigualdade da relação ente o Eu e o Tu como representação do outro que,
para Lévinas, Deus enquanto vestígio se apresenta e se torna acessível como terceira pessoa,
ou seja, como um Ele que não se confunde com o outro e, muito menos, se dá a conhecer a
partir do eu. Deus enquanto Ele mantém sua Eleidade separada do eu e do outro, ou seja, sua
84
transcendência continua transcendente, exterior e livre do pensamento, mesmo que em sua
dimensão infinita se faça presente no finito. Essa presença, no entanto, já é uma presença
ausente, visto que o finito não pode mensurá-la e nem captá-la no tempo e no espaço.
Uma descrição bastante elucidativa sobre a Eleidade é feita por Susin
111
, que num dos
trechos assim se manifesta:
Ele que não se recupera num Tu, mas Ele retirado irreversivelmente sem jamais se
fazer presente, não é uma ausência negativa. É ausência significativa: a sua
desmesura e o seu infinito, que o presente do mundo não contém, respeitam o eu
separado sem ocupar espaço neste mundo, mas não o deixam indiferente: na
eleidade, Ele envia o outro. A sua renúncia de si mesmo coincide assim com o bem
que não se exibe mas envia o outro na abundância à bondade. Embora Lévinas não
o faça explicitamente, é possível ligar eleidade e bondade: a ‘irretidão’ do
relacionamento – a impossibilidade de relacionamento direto com Ele – é fruto da
retidão do bem, que não satisfaz com seus bens, mas convoca à bondade e à
retidão do face-a-face com o outro. Por isso o infinito e o bem são ‘Ele’. (SUSIN,
1994, p. 244).
Pela relação ética, portanto, o eu se vê face-a-face com o outro, a eleidade se faz
presente mesmo não sendo o outro, por se manter, como já dito antes, separado do eu. Ora, o
outro é quem revela a presença de Deus para que o eu se coloque desinteressadamente a seu
serviço, sem, contudo, transformar-se em Deus. Assim sendo, “[...] O ‘movimento’ deve, pois
ser pensado “do além para cá”, e não de cá para o além, que coincide com o fato de que o
bem me amou antes que eu o amasse, e me deixou seu dom – o outro – para que eu possa
amar
. (SUSIN, 1994, p. 245).
Nesse sentido, em Lévinas, mais que falar de Deus ou pensar Deus, é preciso colocar-
se a serviço do outro desinteressadamente, já que esta é a condição para estabelecer a relação
com Deus. Nas palavras de Ribeiro Júnior (2005, p.117) “[...] A relação ética é o lugar da
revelação /palavra/lei de Deus. O único acesso à Deus passa necessariamente pela
responsabilidade pelo outro homem [...]”. Mària Serrano (1997, p.32-33) também aponta a
ética como a via que dá acesso a Deus, ao escrever que “[...] a espera da revelação em chave
ética é a única maneira de se ter acesso à transcendência. Assim, pois, não podemos falar de
Deus; só podemos dar testemunho d’Ele
112
. (SERRANO, 1997, p.32-33).
O testemunho, nesse caso, sustém-se no pleno comprometimento do eu para com o
outro, sem ressalvas ou interesses por parte do eu, já que o outro, pela relação ética, precede
111
Na II parte de sua obra O homem messiânico: uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas, o autor
dedica várias páginas à abordagem da Eleidade. Confira-se p.239-251.
112
“[...] la espera de la revelación en clave ética es la única manera de acceder a la trascendencia. Así, pues, no
podemos hablar de Dios; sólo podemos dar testimonio de El”. (MÀRIA SERRANO, 1997, p.33)
85
toda e qualquer racionalidade que tente manter a sua primazia. É o que revela Lévinas em
Deus, a morte e o tempo (1993, p. 213-214):
O testemunho não vem acrescentar-se como expressão, informação ou sintoma, e
não se refere a não sei que experiência do Infinito. Em momento algum o Infinito
foi tematizado. Não há experiência do Infinito que não seja tematizável. Mas
pode haver relação com Deus na qual o próximo é um momento indispensável. A
Bíblia deixa entendê-lo: conhecer Deus é fazer justiça ao próximo.
Verifica-se, então, que o outro pelo qual o eu é responsável sem mesmo saber quem
ele é, manifesta a presença de Deus transcendente e infinito na finitude humana, sem, por
isso, transformar Deus em um outro imanente, humano. Ou seja, a transcendência infinita de
Deus permanece preservada, já que Deus é o Outro, mas o outro não é Deus. Para
exemplificar uma vez mais a importância desta distinção, vale retomar os argumentos de Luiz
Carlos Susin (1984, p. 250-251), conforme descrito abaixo:
o equívoco entre Deus e o outro, que eu não posso desfazer intelectualmente por
causa da cumplicidade na alteridade que eu não alcanço com meu saber, é – como
já acenamos mais de uma vez – um equívoco que se desfaz na relação ética.
Lévinas o exemplifica pelo modo como se obtém o perdão de Deus e do outro
homem, que são modos diversos: “Deus é, em certo sentido, o outro por
excelência, o outro enquanto outro, o absolutamente outro (...) ao contrário, o
próximo meu irmão, o homem infinitamente menos outro que o absolutamente
outro, é, em certo sentido, mais outro que Deus. Para obter seu perdão no dia do
Kipur, eu devo antes obter sua pacificação". O perdão de Deus, na explicação de
Lévinas, Ele já o colocou inteiramente em minhas mãos e em meu poder, pelo
ritual do Kipur, mas a exigência maior está no perdão do outro que escapa do meu
poder e mesmo do poder de Deus. Nesta distinção ‘moral’, Deus – Ele e bem – não
tem exigências morais para si, é o outro homem a alteridade mais exigente que
Deus.
Por essa citação, fica claro o sentido da religião entendida como ética, já que Deus não
faz nenhuma exigência moral ao eu que esteja voltado para Si, até porque em sua infinitude
Ele não precisa desse serviço do eu. Ao contrário, o outro, na sua alteridade tradicionalmente
negada, precisa ser reconhecido e servido para além dos interesses do eu. Por isso Lévinas
concede-lhe a primazia em relação ao eu, e aponta o amor sem concupiscência por parte do eu
como condição para se alcançar o absolutamente Outro.
Assim sendo, a manifestação de Deus ocorre como descreve Lévinas, no rosto do
outro enquanto expressão da nudez e fragilidade de quem clama por justiça, por um pedaço de
pão, enfim, por um amor desinteressado da parte do eu. Na riqueza dessa linguagem o rosto
do outro constitui a revelação da presença de Deus, o que equivale a dizer que, mesmo o outro
86
não sendo Deus, em seu Rosto é que se manifesta a infinitude de Deus, como será narrado a
seguir.
4.7. A epifania de Deus e a glória do Infinito
A narração feita até aqui deixa claro que para Lévinas Deus está para além da idéia
de Deus e, consequentemente, para além da ontologia e sua pretensa capacidade de
representá-Lo, explicá-Lo e reduzi-Lo a objeto. Entretanto, na medida em que pela tradição o
que não passa pelo crivo da razão não é válido, um questionamento recorrente no pensamento
de Lévinas diz respeito à epifania de Deus, pergunta-se: como o homem consegue percebê-
Lo?
A resposta do ponto de vista de Lévinas confirma uma vez mais a originalidade e
radicalidade de sua filosofia como saída do eu em direção à ética, já que para o filósofo, a
epifania de Deus se dá pela relação face-a-face entre eu e o outro, especialmente o outro
pobre, desprotegido, que ele imagina biblicamente como o órfão, a viúva, o estrangeiro
(Isaías, 1,16-17). Isto significa que o desvelar do rosto do outro que se apresenta aos olhos do
eu, não retrata mera manifestação que pode ser apreendida como fenômeno ou pensada como
acontecimento. Isto, porque para Lévinas (1980, p.83), “a significação ou a inteligibilidade
não está ligada à identidade do Mesmo que permanece em si, mas no rosto do Outro que faz
apelo ao Mesmo [...]”.
Como entender então a epifania de Deus no pensamento de Lévinas? Uma descrição
bastante fiel ao pensamento do filósofo sobre esse assunto vem de Luiz Carlos Susin (1994, p.
207), conforme se lê a seguir:
A epifania do Olhar
113
deve ser entendida de modo inteiramente diverso da
manifestação (incluindo na “manifestação” todos as nuances de mostração,
aparecimento, exibição, etc. estabelecidas na fenomenologia), está em dimensão
diversa do fenômeno e do reino fenomênico: neste os fenômenos, como “realidade
na qual falta realidade” e como ‘quid sem quis’, são abandonados às possibilidades
de gozo, compreensão, posse. Mas o Olhar é ‘quis sem quid’, e por isso me atinge
diretamente porque penetra sem mediações e, no entanto, permanece
113
Luiz Carlos Susin utiliza a palavra Olhar, em maiúscula, como significação de ‘face’, ou ‘rosto’. O próprio
Susin explica sua preferência pela palavra ‘Olhar’ como se pode ler no trecho a seguir: “Nós traduzimos em
nosso texto a palavra ‘visage’ por ‘Olhar’, em maiúscula, para diferenciar do verbo. Esta palavra tem a
vantagem de denotar um centro em si mesmo, do qual parte a relação a mim. Além disso, tem caráter puramente
espiritual e está ligado aos olhos que não são meus, à visão que me vê desde a altura, que para Lévinas é a
dimensão desde onde o outro me visita. Parece-nos, por isso, melhor do que “face” ou “rosto” ou “semblante”,
que conservam maior ambigüidade enquanto é o que eu posso ver. É importante observar nesta noção, a
significação bíblica na qual Lévinas se inspira”. (SUSIN,1984. Nota 8, p.203.). Nesse trabalho, porém, será
utilizada a palavra ‘rosto’, conforme consta nas traduções das obras de Lévinas e em outras obras aqui
consultadas.
87
absolutamente exterior ao mundo, de exterioridade não espacial, como um
estranho não-mundo no mundo. As afirmações de Lévinas nos fazem pensar numa
realidade inteiramente espiritual, mas que se revela desde o pobre, o órfão, a viúva
e o estrangeiro que me visitam.
Nota-se que a epifania de Deus, em sua transcendência infinita, mesmo como vestígio,
apresenta-se ao olhar humano através do rosto do pobre, do órfão, da viúva, do estrangeiro.
Convoca o eu a servir e a responder por tudo que porventura aconteça ao outro. Pelo rosto
evidencia-se o sentido da relação ética como origem da religião na qual Lévinas concebe a
possibilidade de o eu transcender suas limitações para, em sua responsabilidade para com o
outro, ter acesso a Deus. René Bucks (1997, p.108) retrata este aspecto da filosofia
levinasiana ao salientar que
A relação ética realiza uma verdadeira transcendência, um salto para aquilo que é
exterior e que de forma alguma o sujeito possa prever ou antecipar pela razão. É
no contexto ético que “o Transcendente, infinitamente Outro nos solicita (...) O
outro não é a encarnação de Deus, mas precisamente pelo seu rosto em que está
desencarnado, a manifestação da altura em que Deus se revela”.
Pelas palavras de Bucks se confirma que o rosto revela a presença de Deus naquele
que está próximo e que solicita a responsabilidade do eu para com o outro em todas as suas
fragilidades. Daí a preferência para aqueles que se encontram em condições desfavoráveis no
âmbito social. Como para Lévinas o rosto não se restringe à face humana – a apenas uma
parte anatômica do corpo – mas sim a todo o corpo, a exigência ética existe para que o outro
seja respeitado de forma integral, o que concede ao rosto a dimensão daquilo que o filósofo
considera sagrado, já que “[...] o outro sempre precisa ser considerado rosto [...]”.
(PIVATTO, 2001b, p. 230). Em concordância a Lévinas (2004, p. 25)
O rosto não é o conjunto formado por um nariz, uma frente, uns olhos, etc. É tudo
isso certamente, porém adquire a significação do rosto pela nova dimensão que abre
a percepção de um ser. Pelo rosto, o ser não está instalado na profundidade e, num
modo irredutível, segundo o qual o ser pode apresentar-se em sua identidade
114
.
Na significação do rosto, verifica-se a exterioridade que permite a relação do eu com o
infinito a partir do infinito e não do pensamento. Nesse sentido o rosto, na sua dimensão
114
El rostro no es el conjunto formado por una nariz, una frente, unos ojos, etc. Es todo eso ciertamente, pero
adquiere la significación de rostro por la nueva dimensión que abre en la percepción de un ser. Por el rostro, el
ser no está únicamente encerrado en su forma y ofrecido a la mano, el ser no está instala en profundidad y, en
un modo irreductible según el cual el ser puede presentarse en su identidad. (LÉVINAS, 2004, p. 25).
88
transcendente – já que representa o outro em sua alteridade exterior à razão – é a epifania de
Deus que se dá ao mundo sem poder ser captado pelo mundo em sua finitude. De acordo com
Susin (1994, p.206), “a palavra ‘epifania’ significa de alguma forma uma entrada no mundo,
mas a partir de uma dimensão de ‘altura’[...]”, ou seja, ela é sempre exterior e superior ao
pensamento.
Em Totalidade e Infinito, Lévinas se ocupa com uma descrição minuciosa sobre o
rosto como expressão da obrigação do eu para com o outro, na qual Deus se faz presente no
mundo a partir de sua transcendência infinita – mas concreta – pois os desfavorecidos do
mundo, os pobres em especial, não cessam de eticamente convocar o eu à responsabilidade
desinteressada para servi-los. Eis o que profere Lévinas (1980, p.192-193):
A presença do rosto que vem de além do mundo, mas que me empenha na
fraternidade humana, não me esmaga como uma essência numinosa, que faz tremer
e temer. Estar em relação dispensando-se dessa relação equivale a falar. Outrem
não aparece apenas no seu rosto – como um fenômeno sujeito à acção e à
dominação de uma liberdade. Infinitamente afastado da própria relação em que
entra, apresenta-se aí de chofre como absoluto. O Eu desprende-se da relação, mas
no âmbito com um ser absolutamente separado. O rosto em que outrem se volta
para mim não se incorpora na representação do rosto. Ouvir a sua miséria que
clama justiça não consiste em representar-se uma imagem, mas em colocar-se como
responsável, ao mesmo tempo como mais e como menos do que o ser que se
apresenta no rosto. Menos, porque o rosto me chama às minhas obrigações e me
julga. O ser que nele se apresenta vem de uma dimensão de altura, dimensão da
transcendência onde pode apresentar-se como estrangeiro sem se opor a mim, como
obstáculo ou inimigo. Mais, porque a minha posição de eu consiste em poder
responder à miséria essencial de outrem, em encontrar recursos. Outrem que me
domina na sua transcendência é também o estrangeiro, a viúva e o órfão, em
relação aos quais tenho obrigações.
Eis aí a possibilidade do encontro com Deus, já que o rosto é epifania de Deus. Como
para Lévinas (1980, p.178) “[...] a epifania do rosto é ética”, então é pelo rosto personificado
nos pobres, nas viúvas, nos órfãos, e nos estrangeiros, que a verdadeira face de Deus se
apresenta ao pensamento, sem ser assimilado pelo mesmo, já que o outro é outro de uma
alteridade infinita, portanto, inassimilável. Assim sendo, é pelo rosto do outro que o eu entra
em contato com Deus, mesmo sem conhecê-Lo. Por isso, para Lévinas (1982b, p.79) “[...] a
relação com o rosto é, num primeiro momento, ética [...]”.
Diante dessa constatação, torna-se possível dizer que a filosofia levinasiana aponta
para a importância de se repensar as relações humanas para além das tematizações racionais.
Dessa maneira, o rosto sinaliza para a possibilidade de se fixar relações pautadas pela ética
como superação da violência que se pratica racionalmente contra o outro. O rosto, com toda
89
sua humildade, espontaneidade e abertura para o infinito expressa esta dimensão da ética,
como será dissertado na sequência.
4.8. O Rosto
O rosto possui uma dimensão que está para além da percepção do próprio rosto, por
isso, no rosto a epifania de Deus se torna acessível, mesmo que este não seja visto. Nesta
mesma direção o rosto se transforma em epifania da ética, já que em sua transcendência
infinita o eu é incumbido de uma obrigação anterior ao saber e ao seu próprio querer. Para
além dos argumentos cartesianos que visam às provas da existência de Deus, Lévinas (1982b,
p.83) diz a Philippe Nemo que “[...] no acesso ao rosto, há certamente também um acesso à
idéia de Deus [...]”. Isto é, o cogito não produz a ideia de Deus, todavia é esta que se reproduz
no cogito, vinda do infinito e sem fazer morada no finito, uma vez que o cogito não pode
contê-la.
Retoma-se assim, o sentido de religião como oriunda da ética, o que se confirma pela
epifania de Deus no rosto, com toda sua nudez e espontaneidade. Isto, porque mesmo sem ser
visto na sua plenitude, o rosto encontra-se sempre exposto, sujeito aos escárnios e
preconceitos, mas também à ordem ética que invoca a protegê-lo das armadilhas do eu. É
nessa perspectiva que o rosto clama por justiça e pela presença do sagrado como aquele que
não pode ser desrespeitado. Para Lévinas (1982b, p.77-78):
A pele do rosto é a que permanece mais nua, mais despida. A mais nua, se bem
que de uma nudez decente. A mais despida também: há no rosto uma pobreza
essencial; a prova disto é que se procura mascarar tal pobreza assumindo atitudes,
disfarçando. O rosto está exposto, ameaçado, como se nos convidasse a um acto de
violência. Ao mesmo tempo, o rosto é o que nos proíbe de matar.
Percebe-se que o rosto traz consigo certa ambigüidade, pois, ao mesmo tempo, ele é
um convite à violência como uma ordem que proíbe de matar. Ordem esta que se origina da
intriga ética, já que antes mesmo de sua aparição, ou seja, antes de ser visto e conhecido pelo
eu, a proibição já foi feita. Nas palavras de Ribeiro Júnior (2005, p.83): “[...] A nudez do
Rosto é a infinita resistência que não é biológica, mas, sobretudo, ética, afirma-se contra a
vontade assassina que ela mesma provoca porque, paradoxalmente, essa nudez tudo desnuda.
Ela não é figura de estilo. Ela significa por si mesma! [...]”.
Em De Deus que vem à ideia, Lévinas descreve esta ordem que vem do rosto como
condição original para que Deus se torne acessível, pois é por meio da responsabilidade do eu
90
para com o outro que se opera a excelência da ética como aquela que antecede o
conhecimento tematizável da razão. Segundo o pensar do filósofo:
o engajamento desse ‘profundo passado’ do imemorial me diz respeito como
ordem e súplica, como mandamento – no rosto do outro homem – de um Deus
que “ama o estrangeiro”, de um Deus invisível, não tematizável, que neste rosto
se exprime e do qual minha responsabilidade por outrem dá testemunho sem se
referir a uma prévia percepção. Deus invisível que relação alguma poderia atingir
porque ele não é termo de nenhuma relação, mesmo que fosse intencional,
precisamente porque ele não é termo, mas Infinito. (LÉVINAS, 2002, p.219-
220).
Nessa perspectiva, o rosto, na sua exposição sem máscaras e disfarces, revela a face de
Deus em toda sua humildade e pobreza, mas também em toda sua glória infinita, reflexo da
nudez que desvela a epifania da ética em sua transcendência. Como a ética não cessa de
convocar o eu à bondade e ao serviço para o outro “[...] a glória resplandece na exposição e
na expressão da exposição, ou seja, no gesto ético da imolação [...]”. (SUSIN, 1984, p.402).
A aparição do rosto, portanto, leva o eu a desfazer-se da sua condição egoísta, pois, ao se
deparar com a nudez do rosto do outro, efetiva-se um encontro do eu com o próprio infinito,
com a epifania de Deus. O outro se apresenta através do rosto como infinito que é visto sem
ser visto, aparece sem ser notado; por isso clama pela bondade, para além das tematizações.
Eis por que o rosto, enquanto epifania da ética, faz-se abertura para a transcendência e
o infinito. Epifania de Deus que, no rosto do outro, supõe uma proximidade do infinito sem
que este seja reduzido ao finito, ao eu. Pois, ao mesmo tempo em que o outro está próximo,
também está para além do eu que não consegue contê-lo, tematizá-lo. O outro escapa à razão
assim como o infinito escapa ao todo. É uma presença na ausência, uma transcendência na
imanência. Exatamente, por isso, infinita, já que ultrapassa as explicações lógicas.
Essa ambigüidade do ponto de vista lógico-racional é abordada por Lévinas (2005,
p.88) nos seguintes termos:
A figura conceptual que a ambigüidade delineia – ou o enigma – deste
anacronismo em que se efetiva uma entrada posterior ao retraimento e que, por
consequência, jamais foi contido no meu tempo e é, assim, imemorial, eu a chamo
vestígio. Mas o vestígio não é uma palavra a mais: é a proximidade de Deus no
rosto do meu próximo.
Retoma-se, assim, o sentido de Deus como vestígio, ou seja, como Aquele que não é
conhecido, pensado e visto – a não ser na nudez do rosto do próximo, que ao mesmo tempo,
está próximo e distante do eu, vez que também não pode ser assimilado pelo pensamento. Por
91
isso, para se entender a linguagem aparentemente ambígua de Lévinas, é mister uma abertura
para outras formas de pensar, que apontam para além do conhecimento que se pode ter do
outro – numa disposição para serví-lo na sua indigência e pobreza; e também na sua dimensão
infinita.
Para isso o eu deve desenraizar-se de si mesmo, pois, como sinaliza Lévinas (2005,
p.89):
A nudez do rosto é um desenraizamento do contexto do mundo, do mundo que
significa como contexto. O rosto é precisamente aquilo pelo qual se produz
originalmente o acontecimento excepcional do em-face, que a fachada do prédio e
das coisas não faz senão imitar. Mas esta relação do coram é também a nudez mais
nua, a própria “sem defesa” e o próprio ‘sem recursos’, a indigência e a pobreza da
ausência que constitui a proximidade de Deus – o vestígio. Pois, se o rosto é o
próprio em-face, a proximidade que interrompe a série, é porque ele vem
enigmaticamente a partir do Infinito e de seu passado imemorial. E que esta
aliança entre a pobreza do rosto e o Infinito se inscreve na força com a qual o
próximo é imposto à minha responsabilidade, antes de qualquer engajamento de
minha parte – a aliança entre Deus e o pobre inscreve-se na nossa fraternidade.
Chega-se, pois, ao ponto em que pela nudez do rosto a epifania da ética designa a
saída da ontologia proposta por Lévinas em direção à alteridade do outro, em meio à sua
abertura para o infinito. Porém, o risco de se retornar ao saber absoluto e ao fechamento da
ontologia sempre se impõe, o que implica a necessidade constante de perpetuar o processo da
evasão. Ante essa possibilidade, o filósofo lituano sugere a importância de sempre desdizer
aquilo que foi dito, como recurso para se evitar os absolutismos do saber, conforme se
entenderá na sequência.
4.9. O Dizer como glória do Infinito
A leitura e estudo dos escritos de Lévinas revelam uma constante preocupação do
autor com os dogmatismos da filosofia que, ao restringir o conhecimento à razão, fechou as
portas para outras possibilidades de saber. Esta preocupação se justifica na medida em que o
filósofo transfere sua atenção para o outro cuja alteridade é negada, sendo subjugado de forma
violenta em nome de uma verdade absoluta. Nesse contexto, o filósofo lituano, mais que
propor a precedência da ética sobre a ontologia, elabora sua filosofia com vistas ao infinito,
num afã de se evitar que também esta venha a ser enfeitiçada pelos encantos da razão.
É neste ponto que sua proposta demonstra toda a sua originalidade, numa guinada que
leva à abertura para a alteridade do outro na sua transcendência infinita, tendo como
pressuposto a relação ética, que se dá no movimento da própria vida e não no conhecimento
92
estático do ser. Em sendo assim, a ética enquanto exigência de responsabilidade do eu pelo
outro, deve estar aberta ao dizer constante da alteridade como forma de se superar o dito da
ontologia.
Marcelo Pelizzoli (2002, p.151) destaca que em Lévinas, “[...] o Dizer transido para a
temporalidade da alteridade traz à tona a diacronia inerente a uma “síntese passiva” –
“sentida” nos elementos da sensibilidade – da subjetividade, ou o Dizer [...]
115
. Para que
isto ocorra, é preciso levar em consideração que o dizer da alteridade, conforme proposto por
Lévinas, ultrapassa o diálogo Eu-Tu, numa abertura para a relação infinita entre eu e o outro.
Nas palavras de Lévinas (1993, p.204-205):
o Dizer não é compreendido como diálogo, mas como testemunho do infinito
àquele a quem infinitamente eu me abro. Na relação com outrem, significa esta
dimensão de testemunho, que não repousa num conhecimento prévio. (Limitar o
testemunho pelo conhecimento prévio far-nos-ia cair de novo na ontologia).
O dizer da alteridade, portanto, é o que em sua abertura ética torna possível a saída da
ontologia, rompendo com a sincronia do dito. Isto é, o dizer supõe a diacronia da socialidade
que deve pautar as relações humanas em sua dinamicidade, sem se submeter às explicações
sistemáticas da razão. Pelizzoli (2002, p.151) afirma que “[...] A diacronia do Dizer é
significância por excelência; ela viria antes do próprio enunciado do ser enquanto ser [...]”.
Nesse caso, a superação do dito por um dizer aberto à transcendência permite ao outro
se afirmar enquanto outro e não como mera repetição do eu. A condição pré-original do dizer
faz com que o dito seja desdito constantemente pelo dizer do outro, numa perspectiva
ilimitada, por isso, ética. Eis o papel do dizer como aquele que abre ao outro seu direito de
dizer para além do dito do ser. Marcelo Fabri (1997, p.125) ao comentar o papel do dizer na
filosofia de Lévinas, conjectura que
o Dizer é uma des-situação do sujeito. Por ele o sujeito cessa de ser o que é:
expõe-se ao Outro, arrancando-se de si mesmo nessa exposição. O Dizer é
115
Convém mencionar aqui um trecho de Marcelo Fabri, indicado por Pelizzoli (2002, p. 152), em que Etienne
Ferón faz uma descrição muito clara sobre a significação do Dizer, como se pode ler a seguir: o Dizer é a
instância original em que se tece a comunicação; ele é a possibilidade mesma da linguagem. “[...] O Dizer pode
1) extrair a significação fundamental e original da linguagem; ele não se reduz a uma mera transmissão de
mensagens; 2) o Dizer fornece a orientação, a profundidade e a transcendência da linguagem. Ele permite o
para - outrem, para além da relação do significante a um significado; 3) o Dizer é o pólo que condiciona a
função de significação do signo; ele anima a própria comunicação. Para Féron o Dizer é uma en-ergia, um
pneuma (souffle) que dá vida à linguagem. Daí poder-se dizer que a linguagem é uma tensão permanente,
permitindo falar-se em uma subjetividade como ser-para-o-outro e como passividade. No ato de falar, já vai
implícita uma passividade do e no próprio ato. Esta passividade do Dizer é exposição, é ruptura do sujeito sob a
forma da vulnerabilidade. Aqui, o conatus se inverte, pois o sujeito é precisamente aquilo que não coincide
consigo, isto é, uma não-coincidência”. (FABRI, 1997, p.121).
93
expulsão de toda morada, de toda habitação. Trata-se de uma verdadeira
extradição, de uma evasão de si como expulsão sem retorno. O Dizer é para nós
um permanente desencantar da Essência, é uma dessacralização do seu locus e do
sentido da linguagem como morada do ser. O sujeito é atravessado pelo Dizer. A
proximidade implica um não habitar, uma expulsão de todo lugar, uma
impossibilidade de apoiar-se sobre um solo. Daí poder-se dizer que a subjetividade
não se compreende unicamente a partir da ontologia.
Pela interpretação de Fabri, depreende-se que para Lévinas o dizer com toda sua
significância ética cumpre uma função clara de manter o dito desperto para não incorrer no
risco de retorno à ontologia. A vigilância, portanto, deve ser permanente numa evasão sem
retorno. Para a tradição tão afeita à posse e à morada como símbolos da segurança, sem
dúvida que a proposta levinasiana soe como estranha e até absurda, já que o dizer para além
dos conceitos do dito se acompanhe de uma linguagem que transcende a fixidez da morada
116
.
Por esse viés é que o dizer também deve ser desdito permanentemente como condição
sine qua non, de modo a não se cristalizar no dito e garantir ao eu sua saída em direção ao
outro – saída esta que implica riscos para o eu, tendo em vista as incertezas inerentes da
relação que compromete, pela ótica levinasiana, o eu a servir e responder pelo outro,
desinteressadamente. De acordo com Pelizzoli (2002, p.153):
o pré-original e ‘an-árquico’ da subjetividade enquanto Dizer deve correr o risco
da traição no Dito, a qual, porém, deve ser reduzida continuamente, em vista não
só da altura de seu sentido, mas da efetividade da exposição e oferecimento de si –
no encontro com a alteridade de outrem.
Tal atitude, sem dúvida, exige um desenraizamento de si e uma abertura alicerçada
pela ética e sua ordem de responsabilidade incondicional para com o outro, mesmo que esta
configure uma exposição arriscada do eu em relação ao outro. Isto, dado o risco que o eu
corre diante do outro equivalha exatamente ao principal aspecto que desvela toda a
originalidade do pensamento de Lévinas, conforme ele mesmo o ratifica em De outro modo
que ser:
Os elementos deste mosaico estão já colocados na prévia exposição do eu ao outro,
na não-indiferença frente ao Outro, que não se reduz à simples ‘intenção de dirigir-
me uma mensagem’. O sentido ético de tal exposição ao Outro, que supõe a
intenção de formar um sinal e inclusive a significância do sinal, resulta desde
então visível. A intriga da proximidade e da comunicação não é uma modalidade
do conhecimento. O descerramento da comunicação, irredutível à circulação de
informações que já a supõem, se cumpre no Dizer. Não depende dos conteúdos
que se inscrevem no Dito e que se transmitem para a interpretação e a
decodificação realizada pelo Outro. Reside no descobrimento arriscado de si
116
Convém dizer que a morada, tal como a concebe Lévinas, não faz parte da abordagem deste trabalho. Para
uma leitura sobre este assunto, conferir a letra D da Secção II (Interioridade e Economia) de Totalidade e
Infinito, p. 135 a 150, em que o filósofo discorre sobre a morada como lugar da posse e do mesmo.
94
mesmo, na sinceridade, na ruptura da interioridade e o abandono de todo abrigo,
na exposição ao traumatismo, na vulnerabilidade
117
. (LÉVINAS, 2003, p.101).
Constitui-se, assim, aquilo que Lévinas denomina como o de outro modo que ser, no
qual o eu deve romper com o mundo fechado da ontologia, expondo-se sem temores ao outro.
Igualmente, o dizer em seu constante desdizer rompe com o dito, o que lhe permite ir para
além da ontologia. É nesse sentido que o sujeito só se realiza na sua subjetividade, na medida
em que se coloca à disposição do outro, numa exposição sem ressalvas. Pois o outro é mestre,
é senhor, e o eu deve servi-Lo incondicionalmente. Nas palavras de Lévinas (2003, p. 87):
Se o homem não fosse mais que Dizer correlativo do logos, a subjetividade
poderia compreender-se indiferentemente como um valor de função ou como um
valor do argumento do ser. Porém, a significação do Dizer vai mais além do Dito;
não é a ontologia quem suscita ao sujeito falante. Pelo contrário, é a significação
do Dizer que vai mais além da essência reunida no Dito, a que poderá justificar a
exposição do ou da ontologia
118
.
Clareia-se a importância do dizer no contexto da filosofia levinasiana como aquele
que deve contribuir significativamente, de modo a que a razão não se autodestrua, reduzindo a
dimensão transcendente da linguagem aos encantos do dito em sua aparente segurança.
Responsável por desalojar o dito de sua morada, o dizer pode em sua abertura infinita
restituir, por assim dizer, aquela que deve se pautar como principal característica da filosofia,
isto é, sua busca pela sabedoria, a qual se refaz a cada novo dito através do desdito que
reconhece outras formas de saber, para além do próprio saber.
Nessa nova perspectiva de ser, o dizer aponta para a filosofia como sabedoria do amor
que não se reduz ao conhecimento racional, e que descortina para a glória do infinito. Este
aspecto da filosofia levinasiana, ao lado da ética entendida como anterior à ontologia – que
implica responsabilidade do eu para com outro – representa aspectos que possibilitam à
117
Los elementos de este mosaico están ya colocados en la previa exposición del yo al otro, en la no-
indiferencia frente al Otro, que no se reduce a la simple ‘intención de dirigirme un mensaje’. El sentido ético de
una tal exposición al Otro, que suponen la intención de formar un signo e incluso la significancia del signo,
resulta desde entonces visible. La intriga de la proximidad y de la comunicación no es una modalidad del
conocimiento. El descerrojamiento de la comunicación, irreductible a la circulación de informaciones que ya la
supone, se cumple en el Decir. No depende de los contenidos que se inscriben en lo Dicho y que se transmiten
para la interpretación y la decodificación realizada por el Otro. Reside en el descubrimiento arriesgado de sí
mismo, en la sinceridad, en la ruptura de la interioridad y el abandono de todo abrigo, en la exposición al
traumatismo, en la vulnerabilidad. (LÉVINAS, 2003, p. 101).
118
Si el hombre no fuese más que Decir correlativo del logos, la subjetividad podría comprenderse
indiferentemente como un valor de función o como un valor del argumento del ser. Pero la significación del
Decir va más allá de lo Dicho; no es la ontologia quien suscita al sujeto parlante. Por el contrario, es la
significación del Decir que va más allá de la esencia reunida en lo Dicho, la que podrá justificar la exposición
del ser o la ontologia. (LÉVINAS, 2003, p.87).
95
filosofia questionar-se a si mesma. Aliás, é tal capacidade originária da filosofia que propicia
a Lévinas não romper definitivamente com a mesma, conforme descrição de Luiz Carlos
Susin (1994, p.128):
A verdadeira linguagem é a que não absorve em si mesma e que “não pode calar”,
que evita, porém, tanto a violência do mutismo como dos gestos desarticulados,
prestando assim serviço a muitos no acolhimento e recondução à significância. É o
fato de muitos e de todos pesando sob minha responsabilidade que me obriga à
objetividade e à universalidade da linguagem, ou seja, aos conceitos claros e
distintos da filosofia, à sua elaboração e publicação. Disso nasce a estima de
Lévinas pela filosofia grega e pela razão como sede do pensamento e da linguagem
universal, mas sempre a razão suscitada por uma universalidade exterior – a
multiplicidade dos homens – e pela universalização da responsabilidade,
começando como apelo à compreensão, à reflexão e à luta pela expressão. A
recusa mesma da ultimidade do ser e do enclausuramento da significação no
pensamento e na filosofia, só é inteligível se expõe suas razões com filosofia.
Mas se o pensamento e a filosofia são estruturas de universalidade, somente
cumprem sua tarefa na obediência ao que lhes precede e não é absorvido no
pensamento e na filosofia. Por isso, Lévinas acena com bem maior frequência para
o papel diaconal da filosofia na recondução ou redução do Dito ao Dizer, através
da possibilidade do desdito, da crítica, da ruptura.
A importância dessa citação está no reconhecimento de que Lévinas não nega o valor
da filosofia e da linguagem, mas apenas aponta para outra forma de se concebê-las. Por sua
ótica, elas só cumprem seus papéis quando questionam a si mesmas e reconhecem suas
limitações, abrindo-se para o conhecimento que lhes é exterior. Eis a abertura que permite ao
dizer ir para além do dito para assumir a dimensão de altura que o associa à ética. O dizer
adquire, assim, a qualidade de excedente, já que não pode ser abarcado, sintetizado, enfim,
conceituado pelo dito.
Retoma-se, nesse ponto, o sentido de responsabilidade desinteressada que pela eleição
do eu o leva a substituir o outro até em seus erros e dores, numa exposição e disposição que
remetem à passividade de quem não visa a seus próprios interesses, visto que o eu jamais
consegue quitar sua dívida para com o outro. Lévinas se refere aqui à possibilidade de
abertura do sujeito para o infinito na sua condição de refém do outro. Por isso o excesso a que
se refere o filósofo diz respeito ao dizer, na sua dimensão infinita de desdizer o dito. Segundo
ele:
A abertura do eu exposto ao outro é a implosão ou o pôr a interioridade ao avesso.
Sinceridade é o nome desta extra-versão. Mas, que pode significar esta inversão ou
extra-versão senão uma responsabilidade para com os outros em que não retenho
nada para mim? Responsabilidade na qual tudo em mim é dívida e doação, na
qual meu ser-aí é o último ser-aí em que os credores alcançam o devedor. Nesta
responsabilidade, minha posição de sujeito no seu que lhe é próprio é já minha
substituição aos outros ou expiação pelos outros. Responsabilidade pelo outro –
96
por sua miséria e sua liberdade – que não remonta a nenhum engajamento, a
nenhum projeto, a nenhum desvelamento prévio em que o sujeito seria posto para
si antes de estar-em-dívida. Exagero de passividade na medida (ou no
desmesurado) em que a devoção pelo outro não se fecha em si à guisa de estado de
alma, mas desde já é votada ao outro. (...) Tal excesso é dizer. (LÉVINAS, 2002,
p. 108-109).
Como excedente, portanto, o dizer assume sua dimensão de transcendência na
responsabilidade que se deve ter para com o outro, o que lhe permite quebrar os encantos e
feitiços da razão. Nesse contexto, o dizer adquire uma significação que ultrapassa o sentido do
dito em seu dizer fechado, como se detivesse a verdade e a última palavra. Como quer
Marcelo Fabri (1997, p.123) “O Dizer é sinceridade, é testemunho e Glória do Infinito [...]”
119
. Todavia, o que a priori pode parecer um privilégio, no pensamento levinasiano torna-se
uma obrigação, uma responsabilidade incondicional, sem possibilidades de fuga por parte do
eu – o que explica sua passividade diante do outro.
A obrigação, neste caso, não surge no próprio eu. Ela é oriunda do infinito, da relação
ética que não permite ao eu fechar os olhos diante das necessidades do outro. Por isso o dizer
enquanto testemunho passa a glória do infinito, vez que o testemunho supõe uma resposta por
parte do eu que não se reduz ao tempo e ao espaço, mas sim, uma abertura infinita para o
serviço ao outro. Como propõe Lévinas (1993, p.207),
O que faz o aumento da obrigação é o Infinito, é uma glória, ou o acto de que
quanto mais percorrida for a distância, mais resta por percorrer. Se a aproximação
é uma tal marcha, para que a passividade não se inverta em actividade, para que a
subjetividade signifique sem reservas (quer dizer, em jeito de défice), é preciso
uma passividade da passividade, é preciso, sob a glória do Infinito, uma cinza da
qual o acto não possa renascer. Esta passividade da passividade, esta dedicatória a
outrem é uma sinceridade – e esta sinceridade é Dizer.
Ora, o dizer como testemunho e glória do infinito sinaliza para a abertura à
transcendência que em sua ausência e distância, faz-se presente na responsabilidade do eu
para com o outro e na impossibilidade de a ontologia conseguir explicá-lo e tematizá-lo. A
partir desse pressuposto, vale enfatizar que é pelo testemunho que o dizer rompe com o dito
da filosofia para abrir-se à glória do infinito, que concede ao sujeito sua autêntica
120
119
A esse respeito vale conferir também, Paiva (2000, p.224-227).
120
Convém mencionar que o termo autêntico não tem para Lévinas o mesmo significado dado, por exemplo, por
Heidegger, em que ser autêntico é ser si mesmo. Lévinas vê na abertura da subjetividade para o Outro, para o
Infinito, a busca pelo autêntico; aliás, é esta busca como saída de si que garante ao sujeito encontrar sua
subjetividade e não o aprisionamento em si. Para mais detalhes, consultar Marcelo Fabri (2001, p.67-79), em seu
artigo intitulado Lévinas e a busca do autêntico. In: (SOUZA, 2001, p.67-79).
97
identidade, ou seja, estar inteiramente à disposição para responder e servir ao outro como
outro modo de ser.
Aliás, em, De outro modo que ser, esta radicalidade do pensamento de Lévinas se
explicita por numerosas vezes, como no trecho reproduzido abaixo:
A glória do Infinito é a identidade na-árquica do sujeito desenvolvido sem possível
ocultamento, eu determinado à sinceridade, proporcionado sinal ao outro – do qual
sou responsável e ante quem sou responsável – desta mesma doação do sinal, é
dizer desta responsabilidade: ‘eis-me aqui’. Dizer anterior a todo dito que
testemunha a glória. Testemunho que é verdadeiro, porém com uma verdade
irredutível à do desvelamento e que não relata nada que se mostra. Dizer sem
correlação noemática dentro da pura obediência à glória que ordena
121
.
(LÉVINAS, 2003, p. 222).
Confirma-se, por esta citação e pela abordagem até aqui, que a proposta de Lévinas é
ousada, pois aponta para outras formas de saber que ultrapassam o saber ontológico, numa
valorização da vida e do outro que deixam o eu exposto e sem morada fixa. Exposição que
implica disposição para enfrentar continuamente o novo que se lhe apresenta no rosto do
outro, sem a possibilidade de esboçar nenhuma resposta pronta. Esta imprevisibilidade é o
que, para Lévinas, obriga o dizer a sempre desdizer-se, para atingir sua glória de infinito; caso
contrário, acaba por sucumbir aos encantos da razão.
Resta ainda pelo menos uma indagação acerca da glória do infinito que ressalta nos
escritos de Lévinas, a saber: o fato de o eu estar obrigado a responsabilizar-se pelo outro
como testemunho ético, não contradiz a significação da glória do infinito, tendo em vista sua
dimensão de altura? A resposta a esta questão certamente não se mostra definitiva, até porque,
exatamente, a glória do infinito garante ao dizer sua possibilidade de desdizer o dito,
podendo, portanto, qualquer resposta ser desdita por outro dizer.
Uma pista, entretanto, sobre como interpretar a glória do infinito nos escritos de
Lévinas é dada por René Bucks
122
(1997, p.142-143) quando diz que
121
La gloria del Infinito es la identidad an-árquica del sujeto desemboscado sin posible ocultamiento, yo
abocado a la sinceridad, aportando signo al otro – del cual soy responsable y ante quien soy responsable – de
esta misma donación del signo, es decir, de esta responsabilidad: ‘heme aqui’. Decir anterior a todo dicho que
testimonia la gloria. Testimonio que es verdadero, pero con una verdad irreductible a la del develamiento y que
no relata nada que se muestra. Decir sin correlación noemática dentro de la pura obediencia a la gloria que
ordena; (LÉVINAS, 2003, p.222).
122
Entre outros, convém mencionar aqui, Paiva (2000, p.224-227) e Susin (1984, p.400-403) que também
oferecem pistas muitas claras sobre o sentido da glória do infinito em Lévinas. Ainda a esse respeito, convém
conferir do próprio Lévinas, o capítulo 5 da segunda parte de De otro modo que ser: o más allá de la esencia
(2003), mais especificamente o tópico 2, intitulado La gloria del Infinito p.216 a 232.
98
Na relação ética, o eu não percebe primeiro uma ordem vinda do outro que em
seguida, é obedecida. É no compromisso ético que a ordem é percebida. Esta
estranha coincidência de autonomia e heteronomia é própria da inspiração e do
profetismo: eu sou “ o autor do que me foi, sem eu saber, insuflado”. Esta
ambigüidade faz parte da maneira como a glória do Infinito é essa ambigüidade no
sujeito, alternadamente começo e intérprete, ambivalência diacrônica, que a ética
torna possível. A transcendência ocorre na retidão sincera do Dizer que atende ao
apelo do outro.
Destarte, a glória do infinito desvela em sua transcendência toda a originalidade da
filosofia de Lévinas que ao propor a saída da ontologia pelas vias da ética como pré-originária
ao pensar, abre as portas da razão para um outro que ser, que reconhece, para além da razão, a
religião com seu significado ético, a alteridade do outro enquanto outro. E Deus, que na sua
dimensão de altura precede e está para além do pensamento. Nesse sentido, a proposta do
filósofo lituano de que a filosofia, mais que amor à sabedoria se transforme em sabedoria do
amor, sinaliza para a capacidade da própria filosofia de sempre desdizer-se rompendo com o
dito da ontologia.
99
5 CONCLUSÃO
A filosofia de Emmanuel Lévinas coloca em xeque não apenas a filosofia entendida a
partir da ontologia, como também a religião e a teologia. Nesse sentido, seu pensamento
suscita inúmeros questionamentos tratados nesse trabalho, apesar de que nem todos são
explicitados. Para isso se faz necessário um trabalho mais aprofundado do pensamento do
autor em outro momento. É preciso salientar tamm, que a conclusão aqui proposta é
provisória, tendo em vista exatamente uma das, senão a principal característica da filosofia
levinasiana, que é a importância do dizer como desdizer constante dos ditos que insistem em
cristalizar-se em verdades absolutas.
Feitas estas ressalvas, a primeira questão que pode ser levantada diz respeito à saída
da ontologia como condição para se encontrar o outro em sua alteridade. Ou seja, ao propor
esta saída, não se corre um risco grave de que se fuja da razão, o que poderia colocar a
humanidade em risco, tendo em vista que a razão é quem norteia, ou pelo menos deve nortear
os comportamentos humanos? A resposta é não, pois, conforme a abordagem levinasiana, a
ética como filosofia primeira representa a saída da ontologia, sem com isso significar fuga da
razão, mas sim, um outro modo de ser que está para além dos conceitos ontológicos. Pode-se
perceber que por esta proposta, a ética torna possível a dessacralização da Razão e do Ser que
levaram a humanidade a tantas formas de violência e totalitarismos, sem, no entanto, negar a
importância da razão. O que ocorre é apenas uma valorização da relação ética como anterior
ao pensamento e, como conseqüência à razão. A ética entendida como filosofia primeira
representa nesse caso um resgate do sentido do humano.
Outro questionamento importante que aparece nesse trabalho está ligado à concepção
levinasiana de sentido, a saber: como evitar que o sentido tradicionalmente relacionado ao ser
não faça com que o sentido ético ou humano também se determine pelo ser? A resposta pode
ser obtida na inversão entre o sentido e o ser, na qual o sentido e, neste caso, o sentido do
humano a partir da ética, é que determina o ser e não o contrário
123
. Aliás, o de outro modo
que ser enquanto sentido ético supõe que haja uma abertura para outras formas de sentido
124
,
123
Lévinas (2003, p.203) descreve assim esta mudança em seu pensamento: “[...] o sentido... não (é o que) se
mede pelo ser e pelo não ser, mas é o ser que, ao contrário, se determina a partir do sentido”.
124
Souza (2001a, p.412) denomina as outras formas de sentido de multiplicidade de sentidos. Segundo ele: “[...]
pensar seria: manter tal multiplicidade de sentidos à vista – e viver seria levar tal multiplicidade de sentidos
efetivamente a sério.
100
caso contrário corre-se o risco de um retorno ao fechamento ou absolutismo do ser que só
encontra sentido no si mesmo.
Nesse contexto é que, por exemplo, a religião adquire seu sentido ético, que se
concretiza na abertura para a alteridade do outro, inimaginável para a ontologia. Nesse caso,
um dos questionamentos que se pode fazer, diz respeito à relação entre filosofia e religião, ou
seja, levando-se em conta que para Lévinas, não é o ser quem as aproximam, como então, se
processa esta relação? A resposta a esta questão sinaliza exatamente para o outro que ser
levinasiano, quando a saída da ontologia encontra o outro na sua alteridade infinita, sem
tematizações ou conceituações por parte do eu. Esta nova maneira de se conceber a alteridade
é feita a partir da responsabilidade do eu que deve se colocar a serviço do outro de forma
desinteressada, quando pela relação face-a-face se garante a ‘sacralidade’ da religião para
além do pensamento racional que sempre a restringe às suas sínteses dogmáticas.
Esta nova maneira de se conceber a religião exige que a relação entre filosofia e
religião – e destas entendidas como ética – ocorra não a partir da ontologia como explicação
de Deus ou do Ser, mas sim, da relação entre eu e o outro, na qual o eu deve responder
totalmente pelo outro, pela sua condição de humano que convoca o eu ao seu serviço
125
. O
sentido do humano, portanto, está para além do ser numa manifestação possível apenas pela
proximidade do outro homem a partir de uma relação construída no âmbito da ética
126
e não
das sínteses racionais. Isto evidencia a alteridade do outro homem enquanto proximidade
revestida de uma transcendência infinita e constituída de uma dimensão capaz de fazer com
que a filosofia saia de sua situação cômoda para deparar-se com o outro que ser.
Depreende-se assim que, por este outro que ser Lévinas tece sua mais importante
contribuição para a filosofia e a humanidade, já que é o outro que ser que possibilita a ruptura
do ser com o si mesmo. A partir dessa nova compreensão, é que a religião deve ser entendida
como ética. No entanto, vale enfatizar que a religião não deve ser confundida com a ética, vez
125
É por isso que Lévinas (2002, p.220) diz que “[...] Não é certo que o sentido último e próprio do humano
esteja na sua exibição a outrem ou a ele mesmo, que esteja no manifestado ou na manifestação, na verdade
desvelada ou na noese do saber [...]”.
126
Convém mencionar que Lévinas não tinha como objetivo nem mesmo a construção de uma ética, conforme se
pode ler a seguir, em resposta a Philippe Nemo, quando ele afirma que: “A minha tarefa não consiste em
construir a ética; procuro apenas encontrar-lhe o sentido. Com efeito, não acredito que toda a filosofia deva ser
programática. Foi, sobretudo, Husserl quem teve a ideia de um programa da filosofia. Sem dúvida, pode
construir-se uma ética em função do que acabo de dizer, mas não é propriamente este o meu tema. (LÉVINAS,
1982b, p.82). O que o filósofo de Kaunas propõe é que “a proximidade do outro homem, na responsabilidade
por ele, significa, portanto, de outro modo bem diverso daquele que a ‘apresentação’, como saber, consegue
significar [...]”. (LÉVINAS, 2002, p.220)
101
que para Lévinas ambas mantêm-se separadas, sendo, portanto, distintas
127
. Eis o que permite
a Lévinas escrever sobre Deus sem temer que sua filosofia seja considerada apenas uma
extensão da teologia. Como a filosofia e a religião estão intrinsecamente ligadas, mas pela
ética e não pela ontologia, Deus se manifesta concretamente no rosto do outro e não como ser
ou conceito distantes. O rosto manifesta e revela a presença de Deus como vestígio do infinito
que não pode ser assimilado, explicado ou conhecido, mas sim revelado como sentido
ético
128
. Como se vê, o sentido da linguagem não se manifesta na consciência, mas no rosto
de outrem que transcende toda significação, então a religião só se concretiza enquanto tal na
medida em que o eu se coloca à disposição para servir profeticamente o outro em todas as
suas necessidades, o que possibilita a epifania de Deus estampada no rosto como convite e
invocação
129
.
Resta ainda, uma questão importante para a compreensão da filosofia levinasiana nos
aspectos tratados neste trabalho, a saber: diante da proposta do filósofo lituano, de que o dito
deve ser desdito de desdito em desdito constantemente, como assegurar que o sentido ético
e/ou humano não seja sucumbido pelo niilismo
130
contemporâneo, visto que muitos podem
interpretar o desdizer do dito como falta de sentido do próprio dizer? A pertinência desta
questão se faz valer exatamente no ponto em que Lévinas consegue romper com a ontologia
que, em sua tendência para o absolutismo, fecha-se no dito do ser como se a última palavra já
tivesse sido dita. Ou seja, a originalidade da filosofia levinasiana consiste na sua abertura para
que o dito possa ser desdito sempre por um dizer ético
131
.
127
Ribeiro Júnior (2005, p.327) descreve esta distinção entre ética e religião a partir da responsabilidade, como
se pode ler no trecho a seguir: “a não redutibilidade da religião à ética e da ética à religião. A ética continua a
ser o lugar do “contato e da proximidade de Deus”, do juízo de Deus a partir da responsabilidade pelo outro,
mas, por outro lado, é Deus mesmo que interrompe o discurso que se possa fazer sobre ele no contexto da
própria ética da responsabilidade.
128
Ribeiro Júnior (2005, p.322) ao discorrer sobre este sentido, diz que “[...] A proclamação do “nome de Deus”,
como “sentido”, depende da ética, ou da justiça feita ao Rosto do outro [...]”.
129
Sobre a invocação confira a breve, mas esclarecedora exposição de Susin (1984, p.269-271).
130
É preciso dizer que não é o objetivo deste trabalho abordar a noção de niilismo que na contemporaneidade
aparece muito fortemente associado ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche. No entanto, convém reproduzir aqui
um trecho escrito por Heidegger em que ele interpreta o niilismo segundo a concepção nietzscheana: “[...] o
niilismo não é de modo nenhum apenas uma manifestação de decadência, mas é, enquanto processo
fundamental da história Ocidental, ao mesmo tempo e antes de mais, a legalidade desta história. Daí também
que Nietzsche, nas suas considerações sobre o niilismo, se prenda menos a retratar historiograficamente o
decurso do acontecimento da desvalorização dos valores supremos e, finalmente, a calcular a partir daí o
declínio do Ocidente, mas pense o niilismo como a “lógica intrínseca” da história ocidental. (HEIDEGGER,
2002, p.258).
131
Vale reproduzir aqui um trecho de Marcelo Pelizzoli, (2002, p.151), no qual ele se expressa da seguinte forma
sobre o Dizer: “[...] falar do dizer é falar da referência da subjetividade numa significação primordial, como
responsabilidade ou como o drama da criatura assignada pelo Infinito. ‘Drama ético’, como excedente de
sentido a ser rastreado na diacronia que rompe o tempo da manifestação [...]”.
102
Percebe-se, pois, que é pela dimensão infinita do Dizer que o dito adquire seu sentido
como aquele que está sempre aberto para outro modo de dizê-lo, sem que assim ele perca sua
condição de dito. Da mesma forma, é pela alteridade do outro na sua exterioridade separada
do eu que este recebe o infinito que lhe vem à ideia, sem que para isso sua identidade seja
absorvida pelo outro, já que o movimento para o encontro parte sempre do outro e não do eu.
Nisso consiste o sentido ético da religião e da filosofia que, ao se abrirem para o infinito e
para Deus enquanto um modo diverso que o ser, assegura que a alteridade do outro seja
reconhecida e a subjetividade humana encontre seu sentido último: ser testemunha do infinito
no serviço de amor ao outro.
É neste aspecto em especial, que se torna possível afirmar que a filosofia de Lévinas,
possui no contexto da linha de pesquisa proposta neste trabalho, Razão, Religião e
Contemporaneidade
132
, uma importância significativa para a reflexão que se faz pertinente
sobre a relação entre razão e religião na contemporaneidade e, que contribui com a área de
concentração
133
desta pesquisa, principalmente, no que diz respeito à ênfase da dimensão
religiosa da pessoa humana e as funções éticas e sociais da religião. Como descrito no
decorrer do trabalho, ao propor uma nova maneira de se conceber a filosofia e a religião tendo
como pressuposto a ética, Lévinas sinaliza para outras possibilidades, não apenas de
compreender a filosofia e a religião, mas também de se constituir as relações humanas em que
o egoísmo característico do eu seja superado pelo reconhecimento do outro em sua alteridade.
Por fim, é preciso reconhecer que pela densidade da filosofia levinasiana, muitos
aspectos importantes não foram tratados como poderiam, o que, contudo, permite-se dizer que
a abordagem aqui proposta e, principalmente, a atualidade do pensamento do autor que
desenvolve assuntos muito caros à filosofia da religião, abre a possibilidade de continuidade
da pesquisa, levando-se em consideração a realidade da sociedade contemporânea em que o
sentido do humano precisa ser resgatado.
132
Para mais detalhes consultar: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS. Programa
de Pós-Graduação em Ciências da Religião <Disponível em: <http://www.pucminas.br/ppgcr/index_padrao.php?
pagina=2388> Acesso em: 28 mar. 2010.
133
Para saber mais, verificar: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS. Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião. <Disponível em: <http://www.pucminas.br/ppgcr/index_padrao.php?
pagina=2387> Acesso em: 28 mar. 2010.
103
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