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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SONIA REGINA LYRA
NICOLAU DE CUSA:
VISÃO DE DEUS E TEORIA DO CONHECIMENTO
DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
São Paulo
2010
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SONIA REGINA LYRA
NICOLAU DE CUSA:
VISÃO DE DEUS E TEORIA DO CONHECIMENTO
DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Tese apresentada ao curso de Pós-Graduação
em Ciências da Religião da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação do Prof. Doutor Luiz Felipe de
Cerqueira e Silva Pondé como requisito à
obtenção do título de Doutor.
São Paulo
2010
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SONIA REGINA LYRA
NICOLAU DE CUSA:
VISÃO DE DEUS E TEORIA DO CONHECIMENTO
Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Ciências da
Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como
requisito à obtenção do título de Doutor.
Prof. orientador: Dr. Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé (Presidente)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
_________________________________________________
Prof. Dr. Afonso Maria Ligório Soares
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
_________________________________________________
Prof. Dr. José J. Queiroz
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
_________________________________________________
Prof. Dr. Rafael Ruiz
UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo)
_________________________________________________
Prof. Dr. Dante Marcello Claramonte Gallian
UNIFESP
_________________________________________________
Suplentes:
_________________________________________________
Profa. Dra. Maria José Caldeira do Amaral
_________________________________________________
Prof. Dr. Ênio José da Costa Brito (PUCSP)
3
À minha mãe
com amor.
Ao meu pai,
in memoriam.
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AGRADECIMENTOS
Como um ato de carinho e gratidão, quero dedicar essa tese à minha mãe,
Aulores Ferreira Lyra, que, desde sempre, encorajou-me para a busca do
conhecimento, dando tudo de si para que essa experiência me fosse possível.
Também ao meu pai (1931-2009), que trazia sempre consigo uma profunda
curiosidade filosófica, tentando entender o que chamamos de Deus. Com isso, ele
desafiava meu pensamento em busca de respostas.
Quero agradecer a presença dos professores: Dr. Luiz Felipe Pondé; Dr. José
J. Queiroz; Dr. Afonso Maria Ligório Soares; Dr. Rafael Ruiz; Dr. Dante Marcello
Claramonte Gallian; MS. Maria José Caldeira do Amaral e Dr. Enio José da Costa
Brito por aceitarem o convite para compor esta banca, assim como, a todos os
professores do programa de ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo. Especialmente ao Prof. Ponde, pela sua acolhida ao meu tema e pelo
incentivo que deu para esta aventura. Aos colegas do NEMES e todos os que
partilharam a trajetória pelas disciplinas.
Agradeço aos Cusanos, especialmente aqueles que conheci pessoalmente no
II International Cusanus Congresso of Latin América, realizado em Buenos Aires,
Argentina, quando apresentei em 2008 à convite da Profa. Dra. Claudia D´Amico e
do Prof. Dr. Jorge Machetta a comunicação: Maximidade Finita: Identidade e
Alteridade em Nicolau de Cusa. Também pelo carinho e incentivo dados pelo Prof.
Dr. Klaus Reinhardt e Harald Schwaetzer da UNITRIER; ao Prof. Dr. João Maria
André; Dr. Jean Marie Nicolle e todos os demais.
Quero agradecer ao meu amigo Dom Bernardo, Johannes Balmann, bispo de
Óbidos e frei franciscano que com muito carinho e cuidado intermediou com um
excelente alemão, meus diálogos com o prof. Dr. Harald Schwaetzer.
Minha eterna gratidão ao Prof. Frei Hermógenes Harada (1928-2009) com
quem aprendi a pensar e aprendi a amar a filosofia e a sua essência: a sabedoria.
Também quero agradecer ao meu editor o Prof. Dr. Enio Paulo Giachini,
também editor da Revista Scintilla, por sua minuciosa correção do texto e dos
ajustes nele necessários.
Meu agradecimento às irmãs Marcelinas com quem convivi por quatro dias
em cada semana durante o primeiro ano que estive em o Paulo para cursar as
5
disciplinas propostas pelo programa, com quem tive ótimos momentos, que
propiciaram a elaboração dos primeiros escritos desta tese.
Aos amigos, amigas e todos aqueles que não citei aqui mas que estiveram e
estarão sempre presentes em minha vida e que, de algum modo, contribuíram para
que este trabalho fosse realizado.
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“Non in solo pane vivit homo,
sed et in omni verbo quod procedit de ore Dei”
(Cusa, Sermo CLXXIV, Cod. Vat. Lat. 1245, fol. 71va)
Nicolau de Cusa
7
RESUMO
Deus é o alvo e a busca da teoria do conhecimento proposta por Nicolau de
Cusa. A disjunção e a conjunção constituem o muro da coincidência dos opostos,
para além do qual Deus existe desvinculado de tudo aquilo que pode ser dito ou
pensado. A ousadia da proposta cusana está em propor o enigma fortemente
especulativo, que é ver o invisível, através das coisas criadas visíveis, o qual é
buscado de modo invisível especialmente em suas obras De docta ignorantia e A
visão de Deus. O não-outro, um dos nomes mais precisos segundo Nicolau de Cusa
para denominar o inominável, tinha sido prenunciado por Dionísio Areopagita no
final da sua De mystica theologia. Todo conceito, toda definição é, pois, conjectural
em torno do primeiro princípio. Definir é dar limites e acima de tudo, conhecer ainda
que a própria definição não possa ser definida por coisa alguma em virtude de sua
anterioridade. Uma vez que é a definição que permite a excelência do
conhecimento, dando limites e determinações, a busca da douta ignorância que
acompanha a tragetória da teoria vai circunscrevendo o conhecimento e deixando de
fora tudo aquilo que ele não é, seguindo por uma teologia negativa. Considerada
como autodefinidora de si mesma em seu princípio ontológico a definição se
diferencia dela mesma enquanto enunciado da razão e como princípio gnoseologico.
É então que o discurso permite impor um limite conceitual à respeito da coisa e
daquilo que ela não é. Sendo o primeiro princípio, princípio intelectual, o pode ter
como objeto do pensamento, outro que não a si mesmo, e, com isso, é princípio
único do ser e do conhecer – principium essendi et cognoscendi. A dimensão mística
dessa teoria do conhecimento pode ser vista no A visão de Deus onde o Cusano
prepara e indica a trajetória a ser percorrida desde o sensível até o salto
transsumptivo para além do muro da coincidência dos opostos. Entendido como
imago Dei o homem tem em paralelo com a mente divina a humana mens ainda que
essa noção implique em apontar para a insuficiência da imagem com relação ao seu
exemplar.
Palavras-chave: Nicolau de Cusa, docta ignorantia, mística, ciências da religião,
teoria do conhecimento, visão de Deus.
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ABSTRACT
God is the target and the quest of Nicholas of Cusa’s theory of knowledge.
Disjunction and conjunction constitute the wall of coincidence of opposites beyond
which God exists, unlinked of everything that can be said or thought. The daring
characteristic of the Cusan proposal is in putting forward the enigma, highly
speculative, of seeing the invisible through the created visible things, which is sought
in an invisible way especially in his works De Docta Ignorantia (Of Learned
Ignorance) and De visione Dei (On the Vision of God). The non-other one of the most
accurate names according to Nicholas of Cusa to denominate the unnamable had
already been predicted by Dionysius the Areopagite at the end of his De Mystica
Theologia (Mystical Theology). Every concept, every definition is, therefore,
conjectural about the first principle.
Defining is setting limits and, above all, knowing, even though the definition
itself cannot be determined by anything due to its anteriority. Once it is the definition
that allows the excellence of knowledge, setting limits and determinations, the search
for learned ignorance, which accompanies the path of theory, goes on circumscribing
knowledge and leaving aside everything that it is not, following a negative theology.
Considered as self-defining of itself in its ontological principle, the definition
differentiates itself as a statement of reason and as a gnosiological principle.
It is then that the discourse allows imposing a conceptual limit in relation to the
thing and to what it is not. Being the first principle, intellectual principle, it is not
possible to have as an object of thought anything other than itself and, with this, it is
the sole principle of being and of knowing - principium essendi et cognoscendi. The
mystical dimension of this theory of knowledge can be seen in De visione Dei (On the
Vision of God), where Cusa prepares and indicates the path to be traveled from the
sensitive point to the transumptive jump beyond the wall of coincidence of opposites.
Understood as imago Dei, man has in parallel with the divine mind the humana
mens, even though this notion implies in showing the inadequacy of the image in
relation to its specimen.
Key words: Nicholas of Cusa, theory of knowledge, vision of God, mystic.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................11
1 BREVE APRESENTAÇÃO HISTÓRICA ................................................................16
2 RETROSPECTIVA CONTEXTUAL ........................................................................18
3 NICOLAU DE CUSA E O RENASCIMENTO..........................................................23
CAPÍTULO I – VIDA, OBRAS E SITUAÇÃO HISTÓRICA......................................28
1 NICOLAU DE CUSA ..............................................................................................28
2 OBRAS FUNDAMENTAIS......................................................................................34
3 HISTÓRICO ...........................................................................................................46
CAPÍTULO II – A MÍSTICA DE NICOLAU DE CUSA: FUNDAMENTOS E
CARACTERÍSTICAS ................................................................................................48
1 MÍSTICOS E FILÓSOFOS QUE EMBASARAM O PENSAMENTO DE
NICOLAU DE CUSA .................................................................................................48
2 PECULIARIDADES DA MÍSTICA DE NICOLAU DE CUSA: DE COMO
SABER É IGNORAR .................................................................................................72
3 A MATEMÁTICA COMO SÍMBOLO .......................................................................75
3.1 A unidade ............................................................................................................78
3.2 Os símbolos matemáticos ...................................................................................83
3.3 O nível intelectual................................................................................................90
4 O CONHECIMENTO INTELECTUAL DA TRINDADE NA UNIDADE
ULTRAPASSA TUDO ..............................................................................................91
4.1 Da eternidade trina e una....................................................................................93
4.2 Da douta ignorância ............................................................................................95
4.3 Da coincidência dos opostos...............................................................................97
CAPÍTULO III – VISÃO DE DEUS E TEORIA DO CONHECIMENTO ....................99
1 NICOLAU DE CUSA E SEUS COMENTADORES.................................................99
10
1.1 A interpretação cusana da teoria do conhecimento ..........................................104
2 UNITRINO: AMÁVEL, AMANTE E NEXO ............................................................116
3 A MÍSTICA COMO EXPLICATIO E IMAGO DEI DE NICOLAU DE CUSA .........119
4 A DOUTA IGNORÂNCIA.....................................................................................125
4.1 A douta ignorância como teoria do conhecimento.............................................128
4.2 A dimensão interpretativa da douta ignorância .................................................132
5 ALGUNS DESDOBRAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS IMPORTANTES............137
5.1 Desdobramentos históricos...............................................................................143
CAPÍTULO IV – DOUTA IGNORÂNCIA E VISÃO DE DEUS COMO
PENSAMENTO RELIGIOSO E FILOSÓFICO........................................................149
1 JESUS CRISTO DEUS E HOMEM ......................................................................151
2 A FORÇA DA PALAVRA......................................................................................155
3 A DEFINIÇÃO QUE TUDO DEFINE ....................................................................162
CONCLUSÃO .........................................................................................................165
REFERÊNCIAS ......................................................................................................178
ANEXOS .................................................................................................................188
1 CRONOLOGIA DAS OBRAS DE NICOLAU DE CUSA .......................................188
2 EDIÇÃO DE HEIDELBERG..................................................................................190
3 REFERÊNCIAS DE TODOS OS TRABALHOS JÁ ESCRITOS SOBRE
NICOLAU DE CUSA AO LONGO DE MAIS DE DOIS SÉCULOS,
ATÉ O PRESENTE .................................................................................................191
4 IMAGENS.............................................................................................................209
11
INTRODUÇÃO
alguns anos, enquanto eu era professora de psicologia na formação de
franciscanos, participei com eles de seminários de filosofia coordenados pelo frei
Hermógenes Harada
1
. Entre outros autores, foram estudados: Mestre Eckhart,
Ditrich Bonhoffer, J. E. Erígena, S. Boaventura e Nicolau de Cusa. Tenho na
memória que entrava e saia dos seminários sem entender nada. Mas nem
tempestades me impediam de ir e saborear aquelas delícias que eram as reflexões
filosóficas propostas pelo frei. Quando me propus a este doutorado, comentei com
meu orientador, Prof. Dr. Luiz Felipe Ponde, que se chegasse a entender o
pensamento do Cusano teria chegado ao ápice do conhecimento que sempre
busquei, e que esta tese seria uma aventura intelectual.
Tomei então como ponto de partida as elucubrações filosóficas e teológicas
do Cusano, esse autor tão essencial na virada da idade média para a moderna, cuja
obra é uma das “raízes” da experiência mística. E como ele associa mística e teoria
do conhecimento, percebi também a sua importância para pensar alguns aspectos
das ciências da religião. Nicolau de Cusa postula um sujeito concreto como o ponto
central e como ponto de partida para toda a atividade verdadeiramente criadora.
Esse ponto não poderá se manifestar senão no espírito do homem e, segundo
Cassirer, a partir desse ponto de vista, resulta “uma nova virada na teoria do
conhecimento” (CASSIRER, 2001, p. 69). Pensava comigo mesma o que poderia
haver de tão interessante na nessa teoria e se, de fato, ela propunha essa nova
virada na teoria do conhecimento. Foi então que, na construção desta tese, percebi
que para Nicolau de Cusa, não pode haver uma ciência de Deus, como ciência
positiva, mas esta sapiência é possível superando os conceitos tradicionais de Deus,
indo além do plano da razão e dos sentidos com a docta ignorantia. Segundo o
autor, este conhecimento é experiencial e pressupõe um método para atingi-lo. Para
acessar tal método, quer-se reconstituir algumas etapas do seu pensamento,
embasadas especialmente nas obras De docta ignorantia e De visione Dei, bem
como investigar em que medida o método Cusano se reflete na mística e na teoria
do conhecimento.
1
Filósofo e pesquisador do Instituto de Filosofia São Boaventura (IFSB), Curitiba PR. Pelos seus 80
anos foi dedicada a Revista Scintilla, Volume Especial, n. 6.3 de 2009.
12
A expressão docta ignorantia, contida na mística de Nicolau de Cusa, bem
como a sua relação com a visão de Deus apontam para repercussões
epistemológicas na história do pensamento e da teoria do conhecimento, sendo
necessário desenvolver o conceito de visão de Deus e analisar como e qual pode
ser esse novo tipo e essa nova forma de conhecimento, que se desdobra através da
visio intellectualis, um dos conceitos fundamentais para Nicolau de Cusa, uma vez
que esta “pressupõe um movimento espontâneo do espírito, pressupõe uma força
primordial, que reside nele mesmo, e seu desenvolvimento num trabalho mental
contínuo” (CASSIRER, 2001, p. 25).
O conhecimento da docta ignorantia aparece como fundamento e base para a
construção desta teoria. Através desse, pode-se tentar ver se, pelo menos, existe
essa verdade, da qual ele diz ser “como ela é” (CUSA, 2001, p. 105), revelada na
relação existente entre o mundo do condicionado e do que é indefinidamente
condicionável, de um lado, e o mundo do incondicionado, de outro, como sendo a
relação da total exclusão mútua, cuja “única predicação possível, válida para o
incondicionado, nasce da negação de todos os predicados empíricos” (CASSIRER,
2001, p. 36).
Termos como contração e explicação (contractum e contractio, explicatio) são
investidos de significados específicos. Como por exemplo: contração, cujo sentido é
determinação, ou seja, “concretização, individuação ou restrição do comum ou geral
num indivíduo concreto” (CUSA, 2001, p. 122). Múltiplas nomenclaturas, como
transsumptio e concórdia, símbolo e uno serão revistos ao longo deste trabalho.
Reconstituir algumas etapas do pensamento de Nicolau de Cusa prepara
nosso entendimento para o essencial da teoria, porque a docta ignorantia proposta
por ele não é um não-saber simplesmente, mas um conhecimento que sabe do grau,
extensão e causa do não-conhecimento. Trata-se de “uma ignorância resultante do
conhecimento das limitações do entendimento humano” (CUSA, 2001, p. 63), diz ele,
e, neste sentido, assemelha-se com a linguagem moderna, quando esta expressa
que o “drama presente na experiência dos limites de nosso aparelho cognitivo (e
insuficientes) formas de transmissão dos conteúdos produzidos por este aparelho
isto é, hoje, praticar epistemologia” (PONDÉ, 2001, p. 11-12).
Ao falar de Deus, Nicolau de Cusa identificou-o com o Uno, ali onde tudo se
concentra e pode ser explicado como “multiplicidade e diferenciação” (CUSA, 2001,
p. 26) e ao mesmo tempo como uma coincidentia oppositorum de unidade e
13
multiplicidade. Afirma que “toda investigação cifra-se numa proporção comparativa
fácil ou difícil” (CUSA, 2001, p. 46), sendo esta a razão por que o infinito, enquanto
infinito,se subtrai a qualquer proporção, sendo portanto desconhecido. Mas o que é
fundamental nesta teoria é saber que não se sabe, pois, “se conseguirmos isso
plenamente, alcançaremos a docta ignorantia (CUSA, 2001, p. 43), devendo para
penetrar no sentido ali contido elevar o intelecto “acima da força e sentido das
palavras” (CUSA, 2001, p. 46). Além disso, é preciso compreender
incompreensivelmente os conceitos de máximo e de mínimo como termos que
“transcendem absolutamente todo significado” (CUSA, 2001, p. 50), o que faz com
que se comece a pensar em proporções e, simultaneamente, numa transcendência
de sua compreensão matemática, uma vez que, para o autor, a unidade não pode
ser um número.
Em se tratando da matemática proposta por Nicolau de Cusa, a unidade não
é número. “A unidade é, antes, o princípio de todo número, porque é o mínimo, e é o
fim de todo número porque é o máximo” (CUSANO, 1991, p. 67). O desdobramento do
pensamento do Cusano quer conduzir ao entendimento de que a unidade máxima
de nenhum modo pode ser entendida corretamente, se não é entendida como trina,
isto é, “a unidade do intelecto não é outra coisa senão inteligente, inteligível e
inteligir” (CUSA, 2001, p. 60).
Sendo a unidade entendida como trina, a palavra unidade passará a exprimir
indivisão, distinção e conexão, ou seja, eternidade, como princípio sem princípio,
como princípio desde o princípio e como processão de ambos, pensamento pelo o
qual deverá a filosofia, por necessidade, “renunciar a todas as coisas imagináveis e
razoáveis, se quer compreender, com intelecção simplíssima, que a unidade máxima
não é senão trina” (CUSA, 2001, p. 61).
O modo de perceber essa unidade xima e sua expressão como trindade
implica em inserir a obra A visão de Deus de Nicolau de Cusa em paralelo com A
douta ignorância, uma vez que ele quer conduzir “com mão firme e tornar mais sutil
o intelecto” (CUSA, 2001, p. 61), desde que se parta do signo e se eleve à verdade,
entendendo as palavras em sentido metafórico. Desta forma, afirma o Cusano, isto
conduzirá a uma “estupenda felicidade” (CUSA, 2001, p. 61), e que “não se nos abre
outro caminho de acesso às coisas divinas senão mediante símbolos” (CUSA, 2001,
p. 64). Ele mesmo usará vantajosamente as matemáticas, devido “à sua inalterável
certeza” (CUSA, 2001, p. 64).
14
Outro fator relevante na teoria do Cusano é o fato de que, em assuntos
divinos, não se pode conceber distinção e indistinção, como duas coisas que se
contradizem, mas é preciso antes concebê-las como são em seu princípio
simplíssimo, “onde a distinção não é outra coisa que indistinção” (CUSA, 2001, p. 81),
o que aponta para a questão da identidade, pois, em Deus, “toda diversidade é
identidade” (CUSA, 2001, p. 85).
Através desses desdobramentos (explicantia) e seus efeitos sobre a
humanidade, pode-se pensar que os homens adoraram e adoram ídolos,
“venerando-os ali onde observavam suas obras divinas” (CUSA, 2001, p. 98), e os
repetem quando são fascinados pela ciência, ou dizendo na linguagem do Cusano,
“que não tomaram a explicatio como imagem, mas como verdade” (CUSA, 2001, p.
98). Em se tratando da imagem, diz o filósofo medieval que “tudo é imagem dessa
única forma infinita” e que, com efeito, “a forma infinita não é recebida senão de
forma finita” (CUSA, 2001, p. 116).
Assim, por exemplo, “o repouso é a unidade que contém o movimento, o qual
é repouso disposto em sucessão”, ou ainda, o movimento é, pois, o desdobramento
do repouso. Seguindo um exemplo semelhante, nota-se que “o ‘agora’ ou o
‘presente’ contém o tempo, posto que ‘o passado foi presente’ e ‘o futuro será
presente’, o que indica que ‘no tempo não se acha nada senão o presente
ordenado’” (CUSA, 2001, p. 118). Eis a unidade! Afirma o cardeal. Esse presente “é a
unidade mesma” (CUSA, 2001, p. 118).
A hermenêutica cusana permite reler a interpretação simbólica das duas
obras principais escolhidas para esta tese, que são De docta ignorantia (1440) e De
visione Dei (1453). Sendo Nicolau de Cusa um autor de grande envergadura para os
estudos em filosofia da religião, usar-se-á como método de pesquisa a sua própria
obra, bem como as de seus comentadores, priorizando as traduções de João Maria
André
2
e, com a experiência que parece estar implícita na teoria, reconstituir os
passos da teoria do conhecimento nela inserida.
O primeiro capítulo apresenta o autor, sua obra e a contextualização histórica,
enquanto que o segundo capítulo irá tratar dos fundamentos e características da
mística para Nicolau de Cusa. Uma vez que o problema de fundo que perpassa a
2
João Maria André traduz para o português pela Fundação Calouste Gulbenkian; é um dos
comentadores a quem dar-se-á prioridade ao lado de Ernst Cassirer, por abordarem a obra pela
perspectiva da teoria do conhecimento.
15
história, sob expressões conceptuais diversas, é a questão da unidade e da
multiplicidade, serão abordados alguns filósofos, teólogos e místicos que
embasaram o pensamento do Cusano. Entre eles Rotta (1942) pontua alguns, cujas
obras encontram-se na Biblioteca em Cusa, com notas marginais e observações
feitas pelo Cusano: Plotino (205-270); Diógenes Laércio (0-250); Santo Agostinho
(354-430); Proclo (410-487); Pseudo Dionísio (450-535); Scotus Erígena (810-877);
Avicena (980-1037); Pedro Lombardo (1095-1160); Alberto Magno (1193-1280); São
Boaventura (1221-1274); Tomás de Aquino (1225-1274); Raimundo Lullio (1232-
1316); Guilherme de Ockham (1285-1347); Duns Scotus (1265-1308); Ruysbroeck
(1293-1381); Guilherme D´Alvernnia (1180-1249); Mestre Eckhart (1260-1327);
Enrique Suso (1293/95-1366); João Tauler (1300-1361).
Ao retomar os paradigmas do passado e suas variações, nossa proposta é
conhecer a história do conhecimento essencial do autor, para fundamentar o porquê
de o ápice da sua teoria culminar no conhece-te a ti mesmo. Citar-se-ão brevemente
também alguns místicos que sucederam o Cusano, entre eles: Marcilio Ficino (1433-
1499); Pico della Mirandola (1463-1494); Giordano Bruno (1548-1600) e Jacob
Boehme (1575-1642), como um modo de acompanhar o antes e o depois do
pensamento de Nicolau de Cusa. Depois deles, a filosofia de Nicolau de Cusa
voltará à baila apenas no século XIX.
A pesquisa objetiva ainda retomar uma das peculiaridades fundamentais
dessa mística que é como saber é ignorar. Para tal, seguem-se alguns subcapítulos
que tratarão especialmente da matemática como símbolo; a unidade e os símbolos
matemáticos; o que o cardeal entende por nível intelectual; o que leva o
conhecimento intelectual da trindade a ultrapassar tudo; o que determina a
eternidade como trina e uma; a douta ignorância e a coincidência dos opostos.
Num terceiro capítulo será abordada amplamente a visão de Deus e a teoria
do conhecimento, pelo autor e seus comentadores. Ampliar-se-á a interpretação
cusana da teoria do conhecimento, assim como serão pontuados alguns
desdobramentos epistemológicos importantes.
No quarto e último capítulo propomo-nos a abordar a douta ignorância como
pensamento religioso e filosófico, agregado a outras definições, sendo a definição,
ela mesma, um outro conceito a ser tratado. Para tal, queremos entender o porquê
de Jesus Cristo ter-se tornado homem, bem como o significado da força da palavra
contida no Verbo divino.
16
Com isto pode ser que seja possível concluir pela experiência o sentido de
visão de Deus e de douta ignorância e, em última instância, ver se é possível, enfim,
saborear esta teoria do conhecimento.
1 Breve apresentação histórica
Uma breve apresentação histórica do desenvolvimento do conhecimento até a
contemporaneidade provavelmente permitirá ao nosso entendimento acompanhar o
modo como se desdobrou o pensamento humano até chegar aos conceitos
fundamentais dessa filosofia. Uma vez que a noção de douta ignorância parece
apoiar-se sobre um desejo do intelecto, que tende naturalmente para a verdade (a
qual se revela como inalcansável), surge o tema da proporção e do número como
elementos imprescindíveis do conhecimento, o que supõe uma doutrina da mens.
Essa doutrina torna-se um fio condutor para todo o pensamento filosófico e
religioso, o que torna o homem sujeito constituidor do real, enquanto a mens se
torna “consciência" do "ego", e essa, por sua vez, aparece como "subjectum", isto é,
como fundamento do mundo. O mundo é produto da objetivação do sujeito, de suas
representações e das ações que seguem essas representações.
Do ponto de vista de Jean Beaudrillard, o que vivemos na contemporaneidade
é um modo de ser característico da civilização, resultado da modernidade, que se
opõe ao modo de ser da tradição, isto é, a todas as outras culturas anteriores ou
tradicionais: face às suas diversidades geográficas e simbólicas, o que foi
denominado modernidade se impõe como uma homogeneidade irradiada a partir do
Ocidente. Ainda que não esteja sendo tratada explicitamente nesta tese, a
modernidade insere-se neste modo de conhecimento que se desdobra até o
presente, dando-nos uma noção confusa que conota globalmente toda uma
evolução histórica e uma mudança de mentalidade.
Mito e realidade, a modernidade se especifica em todos os domínios: idade
moderna, técnica moderna, música e pintura modernas bem como idéias modernas
como uma sorte de categoria geral e de imperativo cultural, isto é, numa figura
caricatural do modernismo. É como uma “tradição do novo” (ROSENBERG, 1977). A
modernidade está mais propriamente ligada a uma crise histórica e de estrutura, não
sendo, portanto, mais que um sintoma.
A gênese desta modernidade pode ser designada Renascimento. É
sucessora da Idade Média e ocorre no período do descobrimento das Américas por
17
Cristóvão Colombo (1492) e é onde Nicolau de Cusa está inserido quase como uma
ponte de passagem entre a tradição e a contemporaneidade.
A invenção da imprensa e as descobertas de Galileu inauguram o humanismo
moderno do Renascimento. Nas artes e especialmente na literatura um
desenvolvimento que culmina no século XVII e XVIII. Também no campo religioso a
modernidade se faz presente com o movimento da Reforma feita por Lutero (1517),
tanto no mundo protestante, quanto por sua repercussão no catolicismo (Concílio de
Trento, 1545-1549; 1551-1552; 1562-1563).
Durante os séculos XVII e XVIII surgem os fundamentos filosóficos e políticos
desses novos modos de pensar, entre eles o pensamento individualista e
racionalista de Descartes e a filosofia das luzes. Culturalmente, um período da
secularização total das artes e das ciências que culmina na revolução industrial do
século XX.
O desenvolvimento gigantesco dos meios de comunicação e de informação
marca definitivamente a transformação instaurada como prática social e como modo
de vida secularizado e articulado na mudança, na inovação, mas ao mesmo tempo,
sobre a inquietação, a instabilidade, a mobilização contínua, a subjetividade instável,
a tensão, a crise, e como representação ideal ou mitológica.
O denominador comum desse novo tempo é a produtividade, a intensificação
do trabalho humano e de seu domínio sobre a natureza. Também aparece na
emergência do indivíduo com um status de consciência autônoma, com uma
psicologia de conflitos pessoais, interesses privados, visão do inconsciente; assim
como na alienação, abstração, perda de identidade no trabalho e no laser, a
incomunicabilidade interpessoal e a priorização dos meios eletrônicos etc.
A tendência fundamental é superativada após o século XX pela difusão
industrial dos meios culturais, pela extensão de uma cultura de massa e pela
intervenção gigantesca das mídias: jornal, rádio, cinema, televisão, publicidade etc.
A característica efêmera dos conteúdos e das formas é acentuada pelas revoluções
de estilos da moda e da escrita.
Para Lefebvre (1977), o novo tempo é marcado pelo jogo permanente da
atualidade, a universalidade dos fatos diversos através das mídias. uma
desestruturação de antigos valores, bem como uma ambigüidade respectiva sob o
aspecto de uma combinação generalizada. Ela acontece sob a forma de uma
18
revolução permanente das formas que perpassam a arte, a moral, as ideologias ou
ainda significando: abundância, mobilidade e liberação de toda sorte.
Mediando essa contextualização histórica, o pensamento de Nicolau de Cusa
desponta outra vez nas mãos de seus comentadores que saem à caça de um
resgate do que possa haver ainda de essencial nele, querendo com isso, ver se é
possível a sua repercussão nesse novo tempo.
2 Retrospectiva contextual
A partir de um breve olhar sobre a história que marcou a passagem da
escolástica latina medieval percebe-se que esta pode ser dividida em três períodos,
sendo o último o que vai do século XIV ao fim da Idade Média, marcado pelo ano de
1453, quando da queda de Constantinopla.
A Idade Média, em seu terceiro e último período, embora tenha ocupado
praticamente todo o século XIV, tem seu acento mais forte, sobretudo, a partir de
1325. Entre as características do século XIII, todo ele situado no segundo período da
filosofia escolástica, está a escolástica de ouro. Embora, sob alguns aspectos,
apontado como um período de declínio, não se lhe pode tirar todo o mérito. Apesar
de agitado pela Guerra dos Cem Anos e pelas lutas do Papado, empenhado em
manter suas anteriores prerrogativas, o período final da Idade Média evoluiu sob
muitos outros aspectos, e ainda preparou a Idade moderna.
A Escolástica Latina do período final da Idade Média trouxe consigo mestres
nominalistas como Ockham e a corrente científica; mestres escotistas do fim da
Idade Média; mestres Tomistas do fim da Idade Média; místicos, com especial
destaque para Eckhart e Nicolau de Cusa. Fatores extrínsecos, capazes de influir
nos resultados da investigação filosófica, novas situações políticas e sociais em
geral passaram a operar no período final da Idade Média, o mesmo acontecendo
com os fatores intrínsecos, até porque o último período herdava do anterior (século
XIII) os resultados de uma grande efervescência mental e dispôs também de
notáveis pensadores, todavia de outra feição mental.
As universidades se multiplicaram no fim da Idade dia, de onde surgiram
mudanças de ordem geral. Em decorrência da multiplicação das universidades,
cresceram as oportunidades para o nível de preparo das elites. Novas áreas
geográficas eram conquistadas para a cultura, como resultado da distribuição das
universidades pelas mais diversas cidades, ao mesmo tempo em que estas cresciam
19
em um mundo cada vez menos feudal. No ambiente do Império germânico e
arredores surgiram universidades em: Heidelberg, em 1316; Praga, em 1348; Viena,
em 1365; Colônia, 1389; Erfurt, 1392; Cracóvia, 1397; Lovaina, 1425. Na península
ibérica tomou impulso a universidade de Salamanca, fundada em 1248; e se
criaram outras mais em Bourges, Valência e Coimbra. O nível cultural do fim da
Idade Média foi certamente progressivo e preparou a vastidão crescente da
civilização européia, que passou a se estender também à burguesia em formação.
No campo político, Espanha e Portugal iam se libertando paulatinamente do
domínio árabe, então de caráter islâmico. O feudalismo declinava, enquanto a
burguesia prosperava. As grandes complicações se davam na França, Inglaterra e
Roma. Evidentemente, foi tudo se refletindo nas respectivas universidades. Novas
idéias políticas comandam os povos europeus no final da Idade Média, devendo-se
neste particular advertir para as relações entre a Igreja e o Estado, que por sinal,
levam Nicolau de Cusa a escrever no início de sua produção filosófico/religiosa o De
concordantia catholica.
Governou a França nesse tempo, Felipe IV (1285-1314), o Belo, que pela
primeira vez convocou os Estados Gerais e criou o Ministério Público; na Alemanha,
Luiz IV da Baviera, rei a partir de 1314 e depois imperador (1283-1347), conflitado
com o Papa. Foram Papas, na transição para o novo período, Bonifácio VIII (1294-
1303), Clemente V (1305-1314), João XII (1316-1334). Anti-Papa Nicolau V (1328-
1330). Desde 1309 passou o papa a residir em Avignon (Sul da França), o que
aprofundou a influência francesa sobre o Pontificado. Esforçou-se a Igreja em
manter o velho esquema do Sacerdotium et Imperium. Atribuía-se a Igreja o direito
de julgar sobre interesses políticos e até de depor príncipes e mesmo o Imperador.
Este, presuntivamente o Imperador da Alemanha (depois com sede em Viena,
Áustria), seria o sucessor de uma linha ininterrupta, desde o Império Romano-
cristão, fundado por Constantino. Felipe o Belo, da França, se mobilizou no sentido
de lançar tributos sobre a poderosa classe do clero. Bonifácio VIII declarou ilegal o
dispositivo do rei, emitindo a Bula Clericis laicos, de 1296.
A favor do poder pontifício, se destacou Egídio Colonna (Gil de Roma), autor
de De ecclesiastica potestate, 1302. Contra, por sua vez, se destacou o dominicano
francês João de Paris em seu De potestate regia et papale (1302-1303). Também
contra, mas menos incisivo, escreveu o franciscano inglês Guilherme de Ockham,
cuja obra está entre as citadas por Nicolau de Cusa, na construção de sua teoria.
20
Ainda sobre o assunto, concluiu em 1324, Marsílio de Pádua, seu famoso Defensor
Pacis, em que a atuação do Pontífice Romano, o Papa, foi descrita como
perturbadora da harmonia européia.
Despedaçou-se no fim da Idade Média parte do rijo controle eclesiástico sobre
o pensamento, que o papa perdeu importância ao se deslocar para Avignon, em
1309, onde os sucessores permaneceram a 1376. Dividiram-se mesmo os seus
eleitores cardinalícios, em consequência do que houve em certos momentos até três
papas, apoiados por diferentes partidos, sobretudo na França, Alemanha, Itália.
Mesmo depois, continuou a haver aqueles aos quais se denominou antipapas.
Bonifácio VIII (1294-1303), apesar de haver sido ainda um grande Papa, no estilo do
século XIII, não teve a suficiente habilidade de encaminhar os interesses, em
declínio, da Igreja, num momento em que declinava o poder autocrático desta sobre
assuntos civis. Sua intervenção na França, contra Felipe IV, o Belo, não teve os
resultados pretendidos.
O rei da França logrou ainda, à época do Concílio de Viena, 1311, a
condenação da Ordem dos Templários, conseguindo assim rendimentos para as
arcas reais. O papa, ao passar a residir em 1309 em Avignon, parecia estar
encerrando o poder papal que Gregório VII havia estabelecido em 1085, quando a
criação de um poderoso Colégio Cardinalício houvera substituído a influência do
Imperador na eleição dos papas. De outra parte, em consequência do Colégio
Cardinalício, elitizou-se a cúpula da Igreja. Avignon, onde os papas permaneceram
quase 70 anos, até 1377, foi taxada, por isso mesmo, o cativeiro de Avignon,
referência aos 70 anos do cativeiro judeu na Babilônia. A influência francesa sobre
os destinos da Igreja não agradou na Alemanha, e a ela resistiu Luiz da Baviera (†
1347) o qual pensou ser possível que a jurisdição papal fosse algo a restaurar.
Acolheu em seu território aqueles que buscavam moderar as prerrogativas
pleiteadas pelos Papas, e eram por isso perseguidos, Guilherme de Ockham,
Marcílio Ficino, Nicolau d’Autrecourt.
Mesmo na ausência do Papa, Luiz da Baviera fez-se coroar Imperador, em
Roma, 1328. Quem o coroou foi o Capitão do Povo, conforme a teoria de que o
poder procede do povo. E como atribuía ao povo a derivação do poder eclesiástico,
depôs o Papa João XXII (ausente em Avignon), substituindo-o por Nicolau V. De
outra parte, João XXII excomungou o Imperador Luiz da Baviera. Em 1356, as
disposições dos eleitores do Império simplesmente omitiram a confirmação do novo
21
Imperador pelo Papa. A decadência do poder anterior do papado sobre o poder civil
se precipitou depois de 1377, quando o papa Gregório IX decidira retornar à cidade
Romana. Havendo falecido logo no ano seguinte, formaram-se dois conclaves, um
em Roma, outro em Avignon, elegendo-se em consequência dois papas. Dali
resultou o assim chamado Grande Cisma do Ocidente, 1378-1417. Não demorou e
eram três os papas, ditos um obediente a Roma, outro a Avignon e outro ainda a
Pisa. Em 1409 ocorrera o ruidoso e agitado Concílio de Pisa, sem que se houvesse
chegado a resolver o grave e escandaloso conflito, porque eram fortes as ambições,
quer dos eclesiásticos, quer dos governos nacionais.
Em 1414 se reuniu mais um Concílio, desta vez em Constança, na fronteira
alemã, convocado por João XIII, papa obediente a Pisa, sob o empenho do
Imperador Segismundo. Compareceram 29 cardeais, 32 arcebispos, 150 bispos e
delegados dos demais papas, Gregório XII e Bento XIII. As dificuldades começaram
a ser superadas em 1417, com a renúncia de Gregório XII. Quanto à Bento XIII, foi
deposto pelos conciliares, como herege e cismático. João XXIII, ainda que
considerado verdadeiro papa no referido Concílio, também renunciou. Elegeu-se
como novo papa a Martinho V. A igreja Romana não era a mesma do século XIII.
Continuou sem o anterior prestígio e após mais cem anos, em 1517, aconteceria a
Reforma Protestante. Mas agora já se está para mais além do fim da Idade Média.
A revolta dos fraticelos, ou espirituais, com base em doutrinas dos séculos
anteriores, sobre o reino do Espírito Santo, caracteriza também o fim da Idade
Média. O abade italiano cisterciense Joaquim de Fiore († 1202) divulgara a doutrina,
condenada depois pela Igreja. Aderiram religiosos, sobretudo franciscanos, como
Pedro Olivi, Miguel de Cezena, Guilherme de Ockham. É muito relativo querer
designar a filosofia escolástica do século XIV e XV como decadente. Efetivamente é
decadente em relação a algumas posições abandonadas. Mas nem estas o foram
totalmente. Para os que aderem aos novos pontos de vista, ocorreu o progresso, a
modernização. Como revelam os resultados da moderna história da filosofia, que
levantou e publicou as obras dos pensadores do fim da Idade Média, muitos são os
méritos.
Em decorrência desse histórico e de seu desenvolvimento houve uma
tendência evidente para a especialização no final da Idade dia, semelhante
àquela que se dera no pensamento posterior a crates ou helênico-romano. A
experimentação e a matemática foram crescentemente prestigiadas. Na
22
especialização se arrola também a ocupação com a arte, quer de expressão, quer
de construção, que logo irrompeu nos sucessos do Renascimento. Quanto à
tendência de tratar a filosofia em separado da fé, este particular se tornou crescente,
em contraste com o século XIII. Duns Scotus, na transição de um período para o
outro, surpreendeu com a dimensão dada à filosofia. A divisão ou distribuição
didática dos movimentos filosóficos no Ocidente europeu, no decurso do período
final da Idade dia, usa advertir em primeiro lugar para a novidade gnosiológica
principal o nominalismo , cujo inspirador foi Guilherme de Ockham. Segue-se
depois para as filosofias remanescentes, como o tomismo, escotismo, o misticismo,
que nesse período final da Idade Média contaram com expressivos representantes.
No espaço de 1320 a 1453 término da Idade Média surgiram importantes
mestres tomistas.
O platonismo que fundamentou o pensamento de Nicolau de Cusa, ligado ao
movimento da mística, pôde também ser transferido ao temário da filosofia da
Renascença, enquanto que o nominalismo, frente às outras denominações
remanescentes, tem o caráter de ser uma escolástica dissidente. As idéias
universais, antes interpretadas pelos racionalistas como representando alguma
realidade, passam agora a ser apenas conceitos vazios. Faltava apenas criar um
sistema para tudo isto. Foi o que fez Ockham, enfatizando o conhecimento singular
e reduzindo o resto a tão-somente uma linguagem da mente. Ockham foi avaliado
pelos historiadores como precursor do empirismo moderno, ao mesmo tempo em
que do racionalismo kantiano. Muitos foram os defensores do escotismo e do
tomismo desse período, mas, aqui, trata-se apenas de pontuar a mística do período
final da Idade Média, com especial ênfase para Mestre Eckhart (1260-1327), João
Ruysbroeck (1293-1381), João Tauler (c. 1300-1361), Henrique Suso (1300-1365) e
do próprio Nicolau de Cusa (1401-1464).
Agora, no período final da Idade Média, as limitações criadas pelo vácuo
aberto pelo nominalismo de Ockham tendem a ser preenchidas pelo élan profundo
da intuição em que acreditam os místicos, e que interpretam assim também, até
certo modo, a revelação. Nicolau de Cusa, por exemplo, encontra-se ao mesmo
tempo na linha ockhamista e mística, penetrando ligeiramente no espaço
cronológico moderno. Não obstante, há também místicos, cuja fonte é o tomismo, de
que Eckhart é um exemplo. Sensível ao seu tempo, Nicolau de Cusa foi um grande
nome para encerrar o último período da Idade Média. Sua influência inicial foi
23
principalmente religiosa. A filosofia foi ganhando terreno, a seu modo, através de
Bruno, Paracelso, Leibniz, Bobillus, Sanchez, Gassendi.
No Ocidente fechou-se a Idade Média, em 1453, com os humanistas e
helenistas do Renascimento. Os representantes da Escolástica de Ouro iniciada no
século XIII e início do século XIV, cedem lugar aos pensadores de Renascença,
ainda que não se extinguindo. Alguns dos renascentistas entram em cena, como que
antes do tempo: Lourenço Valla (1407-1457), amigo pessoal de Nicolau de Cusa;
Jorge Ghemistos, também denominado Plethon (1370-1452), vindo do Oriente para
Florença. Com isso passou a cultura a se desenvolver com quadros mais amplos da
sociedade, e também das artes, surgindo então grandes literatos. Foi a oportunidade
de Petrarca (1304-1374) e de Boccacio (1313-1375). Também a pintura se
humaniza paulatinamente a partir de Giotto (1266-1337), cujas tintas foram
apagando a fisionomia dura do ascetismo medieval. A Escolástica latina não
desapareceu, apenas passou a um novo tempo.
3 Nicolau de Cusa e o Renascimento
Nicolau de Cusa traz uma forma de mística experienciada e teorizada no
que se denominou mística do logos ou mística especulativa, cujo caráter
"matemático" supõe uma pergunta básica: o que é mística, afinal? A mística é
aparentada com a gnoseologia, a teoria do conhecimento, a epistemologia,
expressões que são usadas quase como sinônimas, embora tenham nuances de
significado diversas? Do modo como hoje se entende ontologia, como variante da
teoria do conhecimento, é possível ainda supor uma afinidade mais originária entre
mística e ontologia no pensamento Cusano? Existe esta possibilidade de uma
linguagem condizente com o divino como parece ser a proposta da douta ignorância,
uma vez que na mística fala-se em apelo ao inefável, ao silêncio fecundo e
profundo? Estas e outras questões se interpõem, dando indícios de uma busca da
teoria do conhecimento pela própria teoria do conhecimento, em que o sujeito da
busca é o próprio sujeito que é também objeto.
Pelo menos assim parece quando se relê no conceito de douta ignorância
algo equivalente à expressão de Sócrates, o qual dizia saber que não sabe.
aqueles que não sabem e, todavia, não sabem que não sabem. O cego, depois de
ouvir falar sobre o Sol, sabe que não sabe do Sol como ele é visto pelos que
efetivamente o vêem; diferentemente, o cego que nunca ouviu falar sobre o Sol
24
simplesmente não sabe que não sabe. Nicolau de Cusa trouxe do passado o
platonismo do feitio de Proclus e do pseudo-Dionísio, filtrado através do espírito
crítico do nominalismo em vigor no final da Idade Média. Admitiu duas modalidades
de conhecimento, o da pura inteligência, ou intelecto, que confere a noção mística
mais exata de Deus; e o conhecimento raciocinativo, ou razão, que nasce da ordem
sensível, procedendo por conceitos e análise. Este dualismo das fontes de
conhecimento, peculiar aos místicos, é o fundo platônico do Cusano, e lembra os
pensadores agostinianos. A visão sintética do mundo e de Deus oferecida por
Nicolau de Cusa lhe trouxe a acusação de monista e de panteísta, por conta do que,
quase foi para a fogueira, denunciado por João Wenke.
A nova lógica trazida à luz por Nicolau de Cusa está centrada no princípio da
coincidência dos opostos falando do Absoluto e do universo, da Unidade e da
multiplicidade, tendo sempre como referência Deus e as coisas, apontando sempre
para a douta ignorância. O Cusano remete o leitor à De coniecturis, como aquele
pelo qual o objeto da busca não é mais o real, mas, sim o conhecimento mesmo
uma vez que a mente humana conhece as coisas enquanto as mede, aplicando a
sua medida a cada objeto e constatando com isso uma certa proporção que acaba
por não levar nunca a uma verdade intrínseca das coisas.
De acordo com Markus Riedenauer
3
(2005) as implicações dessa
epistemologia cusana não têm sido suficientemente reconhecidas, isto é, “que toda
conjectura é uma perspectiva definida” (2005, p. 281) sendo que, de um ponto de
vista, obtém-se um certo aspecto das coisas e, de outro, vê-se outros aspectos da
mesma coisa. Desse modo, todos os pontos de vista têm sua verdade, ainda que
não sejam iguais, uma vez que a verdade para nós “é gradual”
4
(2005, p. 281). O
comentário de Riedenauer nos interessa para a compreensão da mística do Cusano,
especialmente por propor a análise de três aspectos essenciais da sua teoria, diante
da pluralidade de perspectivas que abre:
1. Normalmente o pensamento perspectivístico é atribuído à Friedrich
Nietzsche, como indicam os filósofos pós-modernos. Por outro lado o pensamento
prospectivo parece próximo a um relativismo, pensamento este que parte de uma
3
Markus Riedenauer, membro da Österreichisce Akademie der Wissenschaften, através do programa
APART (Austrian Programme for Advanced Reserch and Technology) de Viena, em seu artigo
Pluralità di prospettive finite nell´orizzonte dell´infinito Conseguenze della epistemologia nuova de
Cusano. Primer Congreso Internacional Cusano de Latinoamérica, 2005.
25
versão mais popular. Sobretudo no campo das diferenças religiosas e culturais
encontramos uma diversidade de opiniões que se misturam às muitas perspectivas
particulares, a ponto de não ser possível aceitar uma e rejeitar a outra, porque os
relativos sistemas e pontos de referência são incomensuráveis.
2. O construtivismo tem conseqüências semelhantes, e compará-lo à
epistemologia conjectural pode ser muito interessante. Hoje, isto está associado aos
resultados da neurologia e da física quântica (o observador determina o observado).
3. Além disso, o debate sobre a racionalidade, a qual se nutre do debate
filosófico de Gadamer, da interpretação dada por Heidegger da verdade e da razão
5
,
assim como da “dialética do iluminismo”, da crítica do “logocentrismo” no Ocidente
etc.
A questão é se realmente diversos tipos de racionalidade e se se deve
realmente dizer adeus à pretensão de uma verdade universal e onde se pode chegar
com uma razão limitada e com um discurso racional.
Questiona-se se é possível um pluralismo epistemológico sem relativismo. De
acordo com Nicolau de Cusa a resposta é sim, desde que se parta da conjectura
para o perspectivismo e a discursividade do conhecimento humano. As disciplinas
que podem apontar para isso além da epistemologia são: a metafísica, a
antropologia filosófica e a teoria da arte, sem a qual não se pode compreender bem
a força do perspectivismo filosófico.
Num primeiro esboço de sua epistemologia, Nicolau de Cusa escreve ao
cardeal Juliano no De docta ignorantia:
Mas todos os que investigam julgam o incerto, comparando-o, em termos
proporcionais, com pressupostos certos. Toda a investigação é, pois,
comparativa e recorre à proporção (CUSA, 2003, p. 3)
6
.
O que se demanda agora é como se chega a esse novo princípio, “pelo qual a
vis do intelecto intui para além do discursus racional” (ROTTA, 1942, p. 256), e como
o espírito pode encontrar a plenitude de um tal poder. Os sentidos e a razão
deverão chegar aos limites de sua natureza. Mas como isso se dá? Como conceber
que no conhecimento efetivo ocorra em linha histórica a superação do múltiplo
4
De docta ignorantia 1,3: aequalitatem reperimus gradualem (h I n. 9).
5
Conforme a teoria de “Wahrheitsgeschehen” e sua ligação comVernunft” e “Vernehmen”.
6
Omnes autem investigantes in comparatione praesuppositi certi proportionabiliter incertum iudicant;
comparativa igitur est omnis inquisitio, medio proportionis utens (h I n.2) (CUSA, 2007, p. 38).
26
sensível, em prol da razão, e do ltiplo racional em prol da unidade intelectual, e
“como o intelecto poderá explicar-se em relação a sua função sintetizadora?”
(ROTTA, 1942, p. 256).
Sentidos e razão encontram em Nicolau de Cusa a sua unidade na
individualidade inalienável, que lhe assegura a participação no divino e cuja
individualidade “não é uma mera limitação; ao contrário, ela representa um valor
singular” (CASSIRER, 2001, p. 48). Essa idéia parece vir ao encontro de uma
teodicéia das formas e dos usos religiosos, pois, graças a ela, a multiplicidade, a
diferença e a heterogeneidade dessas formas não mais são vistas como contradição
à unidade e à universalidade da religião, mas sim como expressão necessária dessa
mesma unidade(CASSIRER, 2001, p. 48), conhecendo-se dessa forma a unidade da
verdade inatingível na alteridade conjectural.
O próprio conteúdo da fé adquire uma compreensão totalmente nova, uma
vez que é sempre, necessariamente, fruto da compreensão humana, transformando-
se em conjectura. É dessa forma que para Nicolau de Cusa, segundo Cassirer, “o
cosmos das religiões apresenta a mesma proximidade e a mesma distância em
relação a Deus, a mesma identidade inviolável e a mesma alteridade insuprimível, a
mesma particularidade e a mesma unidade” (CASSIRER, 2001, p. 51).
Harald Schwaetzer (2005) no Compendium a obra cusana que conjectura
especialmente sobre a questão da ciência, a qual pergunta sobre a capacidade do
conhecimento humano. Abordando, sem entrar em detalhes, a controvérsia entre
Kant e Goethe, a discussão se faz sobre a ciência quantitativa e a qualitativa e
“reside na capacidade do homem para a intuição intelectual” (SCHWAETZER, 2005, p.
192). Segundo Schwaetzer, Nicolau de Cusa sustentou, tratando-se desse assunto,
posturas que estão explicitamente próximas do idealismo alemão e de Goethe. O
cusano conhece uma visio intellctualis e é ela a via e o instrumento do
conhecimento.
Um exemplo da visio intellectualis, que reúne em si a unidade de uma
intuição, pode ser encontrado na explicação que Nicolau de Cusa dá aos monges do
Tegernsee em sua obra De visione Dei no terceiro capítulo. O Cusano utiliza-se de
um quadro em que a figura, à qual denomina “ícone de Deus”, olha tudo ao seu
redor. Pede aos monges que se coloquem em diferentes lugares, de modo que
todos possam olhar para o quadro e que percebam como cada um deles é o único a
ser olhado. Percebe-se que o ícone está fixo e imóvel, mas que, ao mesmo tempo,
27
olha para todos e para cada um. Assim, dois monges que caminhem em direção
contrária perceberão que o olhar se move estando completamente com cada um
deles, experimentando que “aquele rosto não abandona todos aqueles que se
deslocam, ainda que com movimentos contrários” (CUSA, 1998, p. 137).
Experiencia-se com isso que o rosto imóvel olha tanto para um lugar como para
todos os lugares simultaneamente e tanto para um movimento como para todos os
movimentos e, contudo, permanece desvinculado de qualquer contração.
28
CAPÍTULO I – VIDA, OBRAS E SITUAÇÃO HISTÓRICA
1 Nicolau de cusa
*
Nicolau de Cusa é um pensador místico medieval que se situa no contexto
cultural do fim da Idade Média. O pensamento escolástico, que chegara à sua
plenitude no século XII, está nessa época em crise. Nesse tempo de crise e
decadência da cristandade ocidental, Cusano aparece como um dos pensadores
pré-modernos de maior envergadura em entrever um novo início (Renascimento) no
historiar-se do pensamento. Nele prenuncia-se o rigor próprio do pensamento de
uma nova configuração de mundo: a Modernidade. Nicolau Chrypffs ou Nikolaus
Krebs
7
nasceu em 11 de agosto de 1401 (CUSANO, 1998) em Cusa, um vilarejo de
fronte à pequena cidade de Berncastel, sobre a enseada do Mosela. Hoje
Bernkastel-Kues. De uma família modesta, composta pelo pai, João Krebs (ROTTA,
1942, p. 1)
8
, vinhateiro e barqueiro, a mãe, Catarina Roemer, duas irmãs, Margarida
e Clara, e um irmão, João (CUSANO, 1998, p. 5). Crebs em latim quer dizer ncer e
significa caranguejo.
Mais tarde, Nicolau “adotará precisamente a imagem do caranguejo para seu
escudo episcopal” (CUSA, 2007, p. 12). É o único dos quatro irmãos que “manifesta
logo cedo o interesse pelo estudo” (CUSA, 2007, p. 12). Bem jovem ainda foi enviado
*
A cronologia das obras do autor encontra-se em anexo.
7
JASPERS, Karl. Nikolaus Cusanus. München: R. Piper & Co. Verlag, 1964. Ou ainda sua
autobiografia original datada de 1449: Autobiographia 1449. Acta Cusana. Quellen zur
Lebensgeschichte des Nikolaus von Kues. Bd. I: Lieferung 2: 17. Mai 1437 - 31. Dezember 1450
Hamburg: E. Meuthen, 1983. Die 21. octobris anno 1449.
Vir Cryfftz Iohan nomine, qui fuit nauta, ex Catharina Hermanni Roemers, quae decessit anno domini
1427, genuit in Cusa dioecesis Trevirensis dominum Nicolaum de Cusa. Qui parum post 22. annum
aetatis doctor studii Paduani anno 37. aetatis suae missus fuit per papam Eugenium quartum ad
Constantinopolim et adduxit imperatorem Graecorum et patriarcham cum 28 archiepiscopis
ecclesiae orientalis, qui in concilio Florentino sanctae Romanae ecclesiae fidem acceptarunt. Et hic
Nicolaus defendit Eugenium, qui per conciliarem congregationem inique fuit Basileae depositus
Amadeo antipapa duce Subaudiae in papatum intruso, qui Felicem quintum se nominavit. Hic
dominus Nicolaus fuit per papam Eugenium in cardinalem assumptus secrete et statim mortuo
Eugenio ante eius publicationem fuit iterum per Nicolaum papam quintum in presbyterum cardinalem
tituli sancti Petri ad vincula assumptus et publicatus anno domini 1449 in proxima angaria post diem
cinerum, quo anno Amadeus antipapa cessit nomini papatus. Et ut sciant cuncti sanctam Romanam
ecclesiam non respicere ad locum vel genus nativitatis, sed esse largissimam remuneratricem
virtutum, hinc hanc historiam in dei laudem iussit scribi ipse cardinalis anno 1449 die 21. octobris eo
tunc in Cusa existente ad valedicendum decrepito patri suo et fratri suo Iohanni sacerdoti et Clarae
sorori suae uxori Pauli de Brysig scabini et sculteti Trevirensis, iter de proximo arrepturus ad
apostolicam sedem, apud quam constitui proposui in principio anni sequentis scilicet iubilaei. Et ad
hoc per praecepta apostolica necessitabatur, licet diu cardinalatum acceptare recusasset.
8
Todas as citações de Rotta são traduções livres feitas do italiano pela doutoranda.
29
pelo Conde de Manderscheid, com quem trabalhava, para ser educado pelos Irmãos
da Vida Comum de Deventer. Esta Congregação foi fundada por Gerard Grotte,
“considerado pai da devotio moderna” (CUSA, 2007, p. 12); essa pode ter sido uma
das primeiras influências sentidas por Nicolau, uma vez que era um cultuador do
caminho e do mundo interior, assim como de uma intensa busca do divino. Essa
pertença é questionada por alguns comentadores
9
.
Devido à sua gratidão ao conde, mais tarde mandou construir às suas
expensas, um hospital em Cusa “reservando um quarto à disposição do
Manderscheid” (ROTTA, 1942, p. 1).
Em 1416 estuda em Heidelberg indo para Pádua no ano seguinte estudar
direito canônico, ciências naturais, matemática e filosofia. Em Pádua conhece a
filosofia grega e os antigos mestres. Vansteerberghe (1920), comentado por Rotta
(1942, p. 7), fala de um encontro entre Nicolau de Cusa e o Papa Martinho V,
sugerindo que pode ter sido em virtude desse encontro o fato de o Cusano ter
abandonado a carreira de direito para dedicar-se exclusivamente à Igreja. Após seis
anos, retorna à Mogúncia indo para Colônia, onde é ordenado sacerdote em 1430,
sendo investido como “cônego de Nossa Senhora de Ober-Wessel e decano de S.
Florino de Coblenza” (ROTTA, 1942, p. 7).
Nessa mesma época apropria-se o Cusano de um “tesouro inestimável: a
biblioteca do Duomo de Colônia, que contava com cerca de oitocentos manuscritos
antigos” (ROTTA, 1942, p. 7). É dessa biblioteca que virão as influências diretas feitas
pelos místicos anteriores.
Em 1432 Nicolau de Cusa vai ao Concílio de Basiléia, presidido pelo Papa
Martinho V e por Juliano Cesarini, os quais chegam a Basiléia em 7 de setembro. O
Papa celebra a primeira cessão solene do Concílio em 14 de dezembro, e o Cusano
toma parte no Concílio como advogado, nuncius et orator(ROTTA, 1942, p. 19) do
conde Ulrico Manderscheid, por uma questão pessoal deste. Logo em seguida entra
9
Parece haver hoje total concordância acerca da não pertença de Nicolau à escola dos Irmãos da
Vida Comum. Essa pertença já havia sido colocada em dúvida por Wansteerberg, em Le Cardinal de
Cues páginas (6-7). G. Santinello, ao repassar o itinerário cusano, nem sequer menciona essa
pertença (p. 7ss). Por outro lado, esta não é uma questão fechada. Vemos aparecer e desaparecer
este dado alternadamente. Marco Vannini, por exemplo, na Introdução à recente edição italiana do
De visione Dei (Milão, 1998) menciona-a sem nenhuma dúvida. Sobre este tema, torna-se
imprescindível o trabalho de Erich Meuthen, Cusanus in Deventer (in: G. Piaia, Ed., Concórdia
discors), que realiza uma reconstrução histórica desta legenda que remonta a poucos anos depois
da morte de Nicolau e que é sustentada com muita força durante a modernidade (CUSA, 2007, nota
de rodapé, citada por Claudia D´Amico, p. 12/13).
30
nos debates que dividiam as opiniões, isto é, a respeito da supremacia do Concílio
sobre o Papa. Nicolau de Cusa primeiramente coloca-se ao lado do Concílio para
em seguida, mudando de opinião, colocar-se ao lado do Papa. A questão era se o
poder pleno devia ser atribuído à Igreja e consequentemente ao Concílio que a
representa ou ao Papa que seria um seu executivo. A primeira opção tornaria o
Concílio superior ao Papa. Se tal ocorresse o Concílio teria poder para depô-lo.
Entre os tratados que daí surgiram, para a reforma da Igreja, se sobressai o
De concordantia catholica
10
de Nicolau de Cusa. Nessa obra, o Cusano começa
“descrevendo o que é a Igreja” (ROTTA, 1942, p. 22), como sendo: “A união das
almas com Cristo em uma doce harmonia, em uma fraternidade tida juntamente com
uma ordem de conexões, de uma hierarquia, a qual engatando-se nas suas partes
singulares, transmite por cada uma delas a virtude emanada de Cristo, fazendo do
todo uma unidade misticamente incindível” (ROTTA, 1942, p. 22-23)
11
.
O que Nicolau de Cusa apontou em sua obra não foi apenas a questão da
supremacia do Papa, mas o problema, “não menos urgente, das reformas a serem
feitas, o mais breve possível, para o bem da Igreja” (ROTTA, 1942, p. 25). Apontou as
causas da decadência, entre elas: o abandono inveterado dos sinodos
12
provinciais;
abusos de poder; questões da vida interna da Igreja como ordenações e eleições; e
especialmente, em se tratando da hierarquia, sugere que “em torno do Papa estejam
delegados de diversas províncias eclesiásticas, formando em torno dele e com ele a
representação efetiva e permanente da Igreja universal, uma espécie de Concílio
Geral” (ROTTA, 1942, p. 27). No segundo e terceiro livros do De concordantia
catholica o Cusano aborda a questão do Papa como autoridade suprema da Igreja, e
10
Nicolau de Cusa abre o prefácio do De concordantia catholica do seguinte modo:
Iesus Praefatio in collectionem Nicolai de Cusa de catholica concordantia.
Exposcunt agitata sacri huius Basiliensis concilii, quae forte novitate quadam facile apud eos, qui
modernioribus scribentibus in dubiam fidem in voluntariis praebent, diiudicarentur, aliqua peritiora
veterum ingenia vetustate iamdudum abolita ob eorum, qui hoc aevo dies graves ad finem ducunt, et
priscorum illuminatissimorum naturam disparem palam facere. Et eo haec res dissonantior videtur,
quo minus a teneris annis imbibita minusque praevisa quodam excitativo superno influxu ex
conquassatione ingeniorum ob exortam discordiam diffinita est. (1)
11
De catholica concordantia tractaturus investigare necesse habeo ipsam unionem fidelis populi, quae
ecclesia catholica dicitur, et illius ecclesiae partes unitas, silicet animam et corpus. Unde erit prima
consideratio de toto composito, scilicet ipsa ecclesia, secunda de anima ipsius, scilicet sacratissimo
sacerdotio, tertia de corpore, scilicet sacro imperio. Et in qualibet investigabo ex antiquis approbatis
litteris, quae fuerint necessaria ad intelligendum subsistentiam, naturam, com pagines et iuncturas
cum membris, ut sic dulcis harmonica con cordantia sciri possit, per quam salus aeterna et rei
publicae terrenae consistit. (30, 5, 10).
31
também da sociedade civil, em particular, do Sacro Império e, por conseqüência, das
relações entre o Estado e a Igreja. Aponta os dois como “solos independentes entre
si, diretamente criados por Deus, a Igreja para o domínio espiritual e o Império para
o domínio temporal” (ROTTA, 1942, p. 28). Como dizem alguns comentadores
13
do
Cusano, nesse momento se está em pleno medievalismo. De concordantia catholica
é dedicado ao Imperador e ao Cardeal ligado ao Papa, a Sigismundo d’Asburgo e a
Juliano Cesarini.
Por ocasião do Concílio de Basiléia, o Cusano pôde encontrar-se com
notáveis humanistas da época: “O Cardeal Albergati com o seu secretário Tommas
Parentucelli (o futuro Papa Nicolau V), Aurispa, Landriani, Traversari, Francisco
Piccolpasso, então bispo de Padua e depois arcebispo de Milão, amicíssimo de
Piccolomini, Pier Donati, bispo de Padua, Eneas Silvio Piccolomini, Bartolomeo della
Capra, então arcebispo de Milão e outros” (ROTTA, 1942, p. 9). Valla, com quem o
Cusano manteve correspondência, foi encorajado por este em sua crítica ao Novo
Testamento, assim como um dos “mais conscientes críticos da autenticidade das
obras da tradição atribuídas a Dionisio Areopagita” (ROTTA, 1942, p. 11). Percebe-se
nos textos do Cusano a influência direta do pensamento de Dionísio Areopagita,
conforme será constatado na apresentação de alguns textos desse místico, no
capítulo II desta tese.
Em relação à questão da autenticidade dos textos, pode-se citar o De
concordantia catholica como a primeira obra escrita pelo Cusano. De acordo com
Sabbadini (1914), citado por Rotta (1942, p. 13), Nicolau de Cusa era conhecedor de
grego e de hebraico, possuindo manuscritos gregos “anteriores à sua viagem a
Constantinopla no ano de 1437” (ROTTA, 1942, p. 15). Entre esses manuscritos,
encontram-se alguns denominados: Provérbios gregos, de autores ignorados pelos
humanistas, a saber, “Mario Plozio, Porfirio ad Horat. Carisio, Cicero pro Fonteio
(ROTTA, 1942, p. 15), assim como obras clássicas: Lettere familiari di Cicerone, as
Suaoriae e as Controversie de Seneca, as sentenças de Publilio Siro, as obras
12
Sinodo quer dizer reunião, concílio, assembléia regular dos padres, convocada pelo bispo local.
Desde 1967, passou a ser a assembléia dos bispos do mundo inteiro, que se reúne periodicamente
sob a presidência do Papa (Novo Dicionário Aurélio, Ed. Nova Fronteira).
13
Entre os biógrafos de Nicolau de Cusa, Rotta cita: 1. FERRI, L. “Il Cardinale di Cusa e la filosofia
della religione”, in: Nuova Antologia, Vol. XX, 1872; 2. BATTAGLIA, F. Il significato dell’opera politica di
N. de C. in Studi in onore di Fillipo Virgili. Roma, 1935. 3. POSCH, A. Die Concordantia catholica des
Nikolaus von Cues, Paderborn, 1930; 4. KALLEN, G. “Die politische Theorie in philosophischen
System des Nikolaus von Cues”, in: Hist. Zeitschift, 1942, entre outros.
32
astronômicas de Arato e de Manilio, fragmentos de Hipócrates e Galeno. Dos
autores cristãos, têm-se: S. Agostinho, S. Isidoro, Sidônio Apolinário, Salviano, bem
como importantes glossários, dentre os quais, um greco-latino do século VII, de
origem francesa, contendo os sinônimos de Cicero” (ROTTA, 1942, p. 13/14).
A tudo isso, podem ser acrescentadas as descobertas feitas por Nicolau de
Cusa no Monte Athos e nos antigos monastérios da península calcídica, durante sua
estadia no Oriente, onde buscou material para discussões dogmáticas que seriam
feitas em breve nos concílios de Ferrara e de Florença.
Além disso, o Cusano intuía toda a grandeza dos novos meios de cultura,
tanto que, no dizer de “Andrea de Bussi, que foi seu secretário por muito tempo”
(ROTTA, 1942, p. 15), o Cusano “deseja aquela ut haec sancta ars (aquela santa arte
da imprensa)” (ROTTA, 1942, p. 15) para poder dar andamento às publicações. A
esta arte primeira chamava-se: incunábulo, isto é, escritos anteriores ao ano de
1500, sendo que “os primeiros incunábulos italianos saíram em 1465 do mosteiro
beneditino de Subiaco” (ROTTA, 1942, p. 15). Nicolau de Cusa incentivou esta arte
da impressão através de Conrado Sweynhem e Arnaldo Pannatz, conforme ele
mesmo disse ter tido familiaridade em sua Apologia Doctae Ignorantia. Rotta (1942)
comenta que, segundo Vansteerberghe (1920), “o Cusano pensava não só em
imprimir suas obras, como em publicar, com o novo meio da sancta ars, todos os
manuscritos gregos que trouxe consigo do Oriente” (ROTTA, 1942, p. 16).
De acordo com os biógrafos, o único ato que parece destoar da seriedade de
propósitos e do modo de pensar de Nicolau de Cusa foi sua indicação de Lorenzo
Valla a secretário do Papa Nicolau V, ainda que Valla fosse “um dos espíritos mais
agudos do humanismo” (ROTTA, 1942, p. 17). O que parece destoar dessa indicação
é Valla, ao mesmo tempo, ter criado controvérsias morais, por exemplo, em seu De
voluptate.
Em 1437, Cusano com mais outros dois embaixadores, Pedro de Versailles,
bispo de Dégne, e Antonio Martinez, bispo de Oporto, foram enviados pelo Papa
Nicolau V a Constantinopla para “convidar oficialmente os gregos a um novo
Concílio que seria em Udine ou em Florença” (ROTTA, 1942, p. 34). Nessa missão
surgiram fortes obstáculos, especialmente resolvidos por Nicolau de Cusa. Em “27
de novembro de 1437, o imperador do oriente partiu juntamente com os três
embaixadores e com um grande séquito, contando entre eles o arcebispo de Nicea e
o monge Bessarion [...], desembarcando em Veneza no dia 18 de fevereiro de 1438”
33
(ROTTA, 1942, p. 35). Um decreto de 25 de junho de 1439 declarava o Papa Eugenio
IV definitivamente deposto em Basiléia, e dez diz depois, pela influência de Nicolau
de Cusa, foi proclamada “a união das Igrejas grega e latina, sob a cúpula de Santa
Maria das Flores” (ROTTA, 1942, p. 37).
Ainda em 1438 Cusano participou da embaixada à corte imperial grega cuja
missão era estabelecer a união desta com a Igreja Ocidental. Manifesta-se partidário
“de uma unidade dialética entre a unidade e a multiplicidade, que satisfaria aos
direitos de ambas as partes” (HIRSCHBERGER, 1966, p. 254).
Essa data é muito significativa, pois é na volta dessa missão que lhe vem a
idéia da docta ignorantia, o pensamento da união dos contrários no infinito, que lhe
surgiu no espírito “como uma iluminação” (HIRSCHBERGER, 1966, p. 254).
Nos anos seguintes Nicolau de Cusa é designado como legado pontifício nas
dietas (assembléias) de Mogúncia, Nuremberg e Frankfurt. Tommas Parentucelli
assume o papado com a morte do então pontífice, com o nome de Nicolau V, o que
favoreceu a pacificação dos ânimos, ou seja, finalmente é estabelecida a paz no
cristianismo em meados do século XV.
Em 2 de dezembro de 1448, Cusano foi eleito Cardeal pelo Papa Nicolau V.
Em 1450, ano do jubileu, Nicolau de Cusa é enviado por Nicolau V à Alemanha
Ocidental, nos Países Baixos e na Boemia com o intuito de reforçar a paz recém
conquistada, mas estando o Papa consciente de mandá-lo “a uma frente de batalha”
(ROTTA, 1942, p. 75).
Foi também nomeado Bispo de Bréscia, e, juntamente, visitador e reformador
dos conventos alemães. Teve controvérsias com o Duque Sigismundo do Tirol,
razão pela qual o duque o manteve preso por algum tempo. Isso se deve ao
episódio de Sonnenburg onde a abadessa Verena di Stuben entrou em conflito
aberto com o bispo de Brixen. O conflito extrapolou seus limites a ponto de o Papa
Pio II tomar “em suas próprias mãos a administração da diocese de Brixen” (ROTTA,
1942, p. 94). Após quatro longos anos, chegou-se a uma conciliação que nem o
Cusano nem o Papa Pio II puderam testemunhar, por terem, ambos, morrido poucos
dias depois do pacto feito em agosto de 1464. Sigismundo, por sua vez, em 1469
teve que renunciar aos seus direitos de conde do Tirol a favor do Imperador
Maximiliano.
Retomando sua caminhada, em 1453, em sua plena maturidade, o Cusano
descobre um escrito de Moisés Maimônides (1135-1204) na abadia de Egmont, o
34
qual ele “fez copiar às suas expensas para dar de presente ao Papa” (ROTTA, 1942,
p. 14).
O Cusano reagiu especialmente contra a tão difundida aquisição das
indulgências, conseguidas com dinheiro, pregando que o que salva verdadeiramente
é “a prática de boas obras, o sentido de contrição íntima, a confissão sincera dos
pecados, o propósito convicto de uma nova direção de vida segundo o Evangelho”
(ROTTA, 1942, p. 50). Esses, sim, são os meios eficazes das santas indulgências.
Era seu propósito purificar a fé de toda incrustação, fruto do interesse ou da
ignorância, exigindo que se “promovesse a instrução religiosa” (ROTTA, 1942, p. 53).
Foi profunda a sua obra de renovação moral, iniciada por Dionisio de Rykell e
continuada por ele mesmo, especialmente no que diz respeito à vida monástica,
combatendo a simonia
14
e o concubinato, frutos, segundo ele, da avareza e da
luxúria.
Após toda tensão vivida em Brixen, Cusano foi a Roma, onde esteve doente
em Orvieto, tomado de gota, a mesma doença de Pio II. Também foi acusado de
heresia por Heimburg, conselheiro de Sigismundo. “A heresia consistia na tentativa
de demonstrar os mistérios da com superstições matemáticas” (ROTTA, 1942, p.
101).
Morreu em Todi, na Úmbria em 11 de agosto de 1464 e foi sepultado em
Roma, em São Pedro, in Vincoli; conforme seu testamento e seu desejo, seu
coração foi transportado para a Alemanha e depositado na capela do hospital
fundando e construído por ele em Cusa. Três dias após sua morte, em 14 de agosto
de 1464, morre também Pio II. “Não é sem significado a dupla sepultura do Cusano,
em Roma e em Cusa” (ROTTA, 1942, p. 116), diz Rotta.
2 Obras fundamentais
Após esta visão panorâmica de sua vida ativa junto à Igreja e algo do que
dela fez parte, será importante ater-se agora especialmente aos seus anos de
estudos e sua obra filosófica e teológica.
Sem dúvida, foi profunda a influência sofrida pelos Irmãos da Vida Comum,
no ano em que Nicolau de Cusa estudou com eles, assim como o foi, cinqüenta
14
Simonia é o trafico de coisas sagradas ou espirituais, como sacramentos, dignidades, benefícios
eclesiásticos etc., ou a venda ilícita de coisas sagradas (Novo Dicionário Aurélio, Ed. Nova
Fronteira).
35
anos depois, para “Erasmo de Roterdam também saído daquela escola (ROTTA,
1942, p. 121). Deixando Deventer, sabe-se que Nicolau de Cusa matriculou-se na
Universidade de Heidelberg, “plena do espírito de Marsilio de Inghen, filósofo e
teólogo holandês, entusiasta de Ockam, defensor do nominalismo. Este estava em
oposição ao assim chamado realismo moderado, o qual era aprovado com base em
Aristóteles e São Tomás” (ROTTA, 1942, p. 121). Naturalmente um espírito
antiaristotélico. Mais tarde, na Universidade de Pádua, em 1423 o Cusano obtém
licenciatura e encontra o cardeal Cesarini. Em 1425 foi a Roma por ocasião do
jubileu e teve oportunidade de ouvir Bernardino de Siena, capaz, como dirá mais
tarde o próprio Cusano, em um sermão seu de 23 de janeiro de 1457, “de provocar
ex mortibus carbonibus ignes” (ROTTA, 1942, p. 122).
Até então, parece ter absorvido algo do platonismo (Deventer), do
aristotelismo (Heidelberg) e do averroísmo (Padova). Dados estes confirmados pelo
acervo de sua Biblioteca no hospital de Cusa, conforme o inventário mencionado em
Le cardinal de Cues por Vansteerberghe (1920).
Dois autores estão particularmente representados em suas anotações: Santo
Agostinho e Dionisio Areopagita, sendo que, quem o estimulou a estudar Santo
Agostinho foi seu grande mestre, Juliano Cesarini. Ao falar de Santo Agostinho pela
primeira vez, no De docta ignorantia, Cusano refere-se a ele como il doctor
platonicus por excelência” (ROTTA, 1942, p. 123), através do qual valorizou o contato
com Platão. O Fedro (que trata da Beleza) e o Fédon (que trata da imortalidade da
alma) são apontados em seus manuscritos.
Quanto a Dionisio Areopagita, muitos dices o referem, sendo várias as
notas feitas pelo Cusano, especialmente com referência aos comentários de Alberto
Magno, “nas quais se evidencia a presença de todos os motivos essenciais que
formam a obra do Areopagita, e especialmente o De mystica theologia, a espinha
dorsal” (ROTTA, 1942, p. 124). O nome do Areopagita consta em obras tardias de
Nicolau de Cusa como o De beryllo e o De venatione sapientiae. Mais tarde observa-
se ainda em seus escritos que fez contato com Plotino e Proclo, em sua obra De
theologia Platonis, assim como com Expositio in Parmenidem, que se encontram na
biblioteca de Cusa. Referências ainda a Proclo, com relação ao Uno, e ao
Areopagita, com relação a Deus, encontram-se principalmente nas obras De li non
aliud e De venatione sapientiae. Também os padres da Igreja, especialmente os
36
gregos, contribuíram para a formação de seu pensamento, nos escritos do De
concordantia catholica.
Na biblioteca de Cusa encontra-se outro elemento importante para a
formação do seu pensamento, que é De divisione naturae, de Scotus Erígena, o qual
na Apologia doctae ignorantia de Cusano é colocado no mesmo grau de importância
Hugo de S. Vítor. Esse texto de Scotus Erígena é comentado por Hermógenes
Harada (2006) e é muito significativo o fato de que “na mesma Apologia, pouco
antes, foram condenados Begardi e Almerico de Bena pelo seu panteísmo explícito”
(ROTTA, 1942, p. 126).
Para Rotta (1942), elementos da docta ignorantia se encontram
organicamente fundidos no sistema de Erígena, tais como a “superinteligibilidade de
Deus com relação ao nosso poder cognoscitivo e a necessidade, porém, da
remoção de cada conhecimento intelectivo para produzir aquela divina noite que é a
incompreensibilidade” (ROTTA, 1942, p. 127). A própria palavra ignorância, enquanto
“virtude de afeto supramental” (ROTTA, 1942, p. 127) se encontra em Erígena,
como já se encontrava antes em Santo Agostinho e mais tarde em São Boaventura.
Outro autor que provavelmente deu muitos elementos a Nicolau de Cusa foi
Raimundo Lullo, cuja presença na biblioteca de Cusa é più che mai viva e copiosa
(ROTTA, 1942, p. 127). Acrescente-se que, em 1449, “o bispo de Pádua, Fantino
Dandolo deu ao Cusano a obra de Lullio: Lectura super artem investivam et tabulam
generallem” (ROTTA, 1942, p. 127). Lullio também é explicitamente citado a partir das
leituras de Ars generalis (1308), quando Cusano anota: “Deus somente, ato puro, é
sem contradição e diminuição; o ser e o pensar repousam sobre o mesmo princípio”
(ROTTA, 1942, p. 127).
De acordo com Rotta, em Ars Magna (1271-4), Lullio descreve a fé e a
inteligência como análogas a água e ao óleo
15
.
Assim também serão vistos por Nicolau de Cusa a fé e o conhecimento
intelectual, numa “estreita correlação metafísica de atividade e identidade do objeto
com o conhecimento intelectual” (ROTTA, 1942, p. 128/129), ainda que o óleo
permaneça sempre acima da água. Certo é, diz Rotta, que a rmula do Cusano “a
15
A água é a inteligência e o óleo é a numa relação tal entre si que não pode haver avanço de
conhecimento sem que não seja elevada também a fé, bem como esta ultrapassará aquele sempre
como a mais imediata e lida certeza que mais inteiramente apaga, exalta e magnifica o intelecto,
37
complica todo o inteligível” (ROTTA, 1942, p. 129)
16
é idêntica ao que se encontra
no espírito do lullismo.
Também estão na biblioteca de Cusa nomes de grandes escolásticos como:
Pier Lombardo, Guglielmo d’Alvernia, Santo Alberto Magno, São Tomás de Aquino,
São Boaventura, Duns Scotus e outros. Estes e outros serão apresentados
individualmente no segundo capítulo desta tese. Notas feitas pelo Cusano estão às
margens da obra de São Boaventura, especialmente no Commentario delle
Sentenze. Pier Lombardo e São Boaventura pensam como que pela órbita da
doutrina das imediações da alma com Deus.
Também a Summa theologica de São Tomás está na biblioteca de Cusa, na
qual o consta nenhuma nota marginal. Por outro lado, tal era seu respeito pela
obra que tornou obrigatória a leitura do opúsculo: Summa de articulis fidei et
Ecclesiae sacramentis nos concílios provinciais diocesanos” (ROTTA, 1942, p. 133).
Em todas as notas do Cusano, porém, prevalece a filosofia de Santo Alberto Magno.
Provavelmente, diz Rotta, “pelo grande incremento dado por este à pesquisa e aos
estudos científicos” (ROTTA, 1942, p. 135).
Outro grande escolástico presente na biblioteca de Cusa é Duns Scotus, o
que dá indícios de uma corrente de pensamento agostiniano-franciscana. Duns
Scotus tem como tema central de sua especulação “o problema de Deus como
síntese viva de ser e de criar, em relação aos dois princípios, o absoluto de
identidade e o contingente da causalidade” (ROTTA, 1942, p. 136). Partindo de tais
princípios, chega ao conceito de infinito que é o Standpunkt do Cusano” (ROTTA,
1942, p. 137).
Outras duas obras importantes, presentes em sua biblioteca, e que
certamente influenciaram o pensamento de Nicolau de Cusa, são: Opus
tripartitum de Eckhart e Horologium sapienciae de Suso. Trata-se de dois místicos, o
primeiro de um século e meio anterior, e o segundo apenas uma geração anterior ao
Cusano. A questão que surge na relação da obra de Eckhart com o Cusano é de
ordem histórica e especulativa. No aspecto histórico é importante a defesa que
Nicolau de Cusa faz da ortodoxia de Eckhart, por exemplo, diante da “acusação de
infundindo-lhe um ímpeto de vigor tal que excede toda sua capacidade natural (ROTTA, 1942, p.
128).
16
Fides complicans omne intelligibile.
38
heresia feita por Wenk
17
, com a sua invectiva De ignota litteratura(ROTTA, 1942, p.
137), sob a acusação de panteísmo.
Della Volpe, em sua obra Il misticismo speculativo di maestro Eckhart nei
suoi rapporti storici (1930), aponta a influência de Eckhart sobre Nicolau de Cusa na
“doutrina que concebe Deus como coincidência dos opostos” (ROTTA, 1942, p. 139),
mas que outros autores precedentes teriam tido esta intuição, como, por exemplo,
o Parmenides de Platão. Outra possibilidade para a influência do pensamento do
Cusano é o místico Ruysbroeck, cujo discípulo Dionisio o Cartusio foi amigo pessoal
de Nicolau de Cusa. Entre outros pensadores influentes, encontram-se Platão,
Aristóteles, Proclo, Apuleio, cuja obra mais importante foi a tradução de Asclepius
(ou pelo menos tradução a ele atribuída). Hermes Trimegisto é outro nome ao qual o
Cusano faz constantes referências, de acordo com as notas marginais do Asclepius.
Avicena deixou para o Cusano sua contribuição com a obra Fons vitae, de grande
ressonância na filosofia medieval. Outra obra muito estudada por Nicolau de Cusa
foi a de Diógenes Laércio, provavelmente chegando até ele mais tarde, uma vez que
atribui-se ao seu secretário Andrea de Bussi tê-la copiado em 1462 de um
manuscrito de Pedro Balbo. Estes estudos de Diogenes Laerzio aparecem em De
venatione sapientiae, uma das últimas obras escritas pelo cardeal, confirmando seu
pensamento: “A Santa Escritura e os filósofos, por o poucos argumentos,
disseram as mesmas coisas, porém, com termos diferentes” (ROTTA, 1942, p. 142).
Para Johannes Hirschberger (1966, p. 256), a porta de entrada da filosofia do
Cusano é a sua epistemologia. Seu elemento principal é a conjectura seguida do
apriorismo. Considerações ontológicas levaram-no à concepção de que o
entendimento, “com a sua multidão de regras e determinações conceptuais, tem o
seu ponto de desdobro na unidade infinita da razão” (HIRSCHBERGER, 1966, p. 261).
A razão passa a ser a fonte de toda a vida espiritual, “aquela derradeira unidade, de
17
Esse texto é conhecido por referências feitas por Nicolau de Cusa. Foi descoberto e publicado
por Wansteenberghe, in: BGPhM VIII,6, Munique, 1910 (cf. D´AMICO, 2007, p. 21). Também
mencionado por G. Santinello, esse aspecto polêmico do confronto entre Nicolau de Cusa e Wenck
surge em sua Apologia doctae ignorantiae. “L´atteggiamento político del Cusano fra il 1435 – quando
egli cominciò ad avvicinarsi alla curia papale e il 1449 dovette sembrare al Wenck un voltafaccia
contro il concilio, non essere da interessi personal: prebende e benefici, ed ora il premio finale del
cappello cardinalizio. Ma di queste cose il Wenck non parla; è il Cusano che sospetta non a torto,
forse l´animosità politica nella polemica teologico-filosofica dell´avversario, sentendosi apostrofare
con epiteti di pseudoprofeta e pseudoapostolo, nell´ato in cui il suo pensiero veniva condannato
come analogo a quello dei Valdesi, di Eckhart, di Wycliffe, dei Begardi e delle Beghine” (D´AMICO,
2007, p. 21).
39
cuja virtude criadora deriva e toma forma a multidão da multiplicidade”
(HIRSCHBERGER, 1966, p. 261). O conceito de assimilatio (De mente, cap. 4, p. 59s)
18
fala sobre a admirável virtude da mente, que, por sua força, complica a força
assimilativa (da semelhança) da complicação do ponto, por meio da qual encontra
em si a potência. É daí que se assemelha a toda a magnitude. Devido a essa
mesma força assimilativa (de semelhança) da complicação, tem em si a potência da
unidade, com a qual pode assemelhar-se a toda multiplicidade e a todo tempo. Da
mesma forma, pela força da quietude pode assemelhar-se a todo movimento e
assim sucessivamente.
Na obra De venatione sapientiae, escrito antes da Páscoa de 1463, Nicolau
de Cusa faz referência à sua obra De li Non Aliud, onde no capítulo XIV aponta
Dionisio como o máximo dos teólogos. Este pressupõe que é impossível que o
homem ascenda até a inteligência espiritual, sem ter em conta a guia das formas
sensíveis. Com isso, ele julga a beleza visível como sendo imagem da divindade
invisível. Chama então o sensível de semelhança ou imagem do inteligível. E isso,
mesmo que, como princípio, Deus preceda todo inteligível e que ele mesmo saiba
que é nada de tudo o que possa ser sabido ou concebido. Mas, Dele, pode-se dizer
que antecede todo intelecto
19
. A mente é então a única imagem de Deus,
pressupondo-se que “no espírito divino preexista exemplarmente o mundo (Idiota de
sap. II, p. 30, Meiner)” (HIRSCHBERGER, 1966, p. 261).
No entanto, a questão que perpassará toda a obra de Nicolau de Cusa surge
numa conversa de barbearia diante de um ativo mercado: “Como se conta, se mede
e se pesa? Distinguindo, diz o retórico. Mas como é que se distingue?”
(HIRSCHBERGER, 1966, p. 256).
É aqui que o Cusano verá derivar-se da unidade todos os números.
Questiona: “Não é por meio da unidade que se conta (per unum numeratur),
18
Ex hoc elice admirandam mentis nostrae virtutem. Nam in vi eius complicatur vis assimilativa
complicationis puncti, per quam in se reperit potentiam, qua se omni magnitudini assimilat. Sic etiam
ob vim assimilativam complicationis unitatis habet potentian, qua se potest omni multitudini
assimilare, et ita per vim assimilativam complicationis nunc seu praesentiae omni tempori et quietis
omni motui et simplicitatis omni compositioni et identitas omni diversitati et aequalitatis omni
inaequalitati et nexus explicationi (Idiota. De Mente, IV, 75).
19
Dionysius, theologorum maximus, impossible esse praessuponit ad spiritualium intelligentiam
praeterquan sensibilium formarum ductu hominem ascendere, ut visibilem scilicet puchritudinem
invisibilis decoris imaginem putet, hinc sensibilia intelligibilium similitudines seu imagines dicit, Deum
autem principium asserit intelligibilia omnia praecedere, quem scire se dicit nihil omnium esse, quae
sciri possunt aut concipi. Ideo hoc solum de ipso credit posse sciri, quem esse inquit omnium esse,
quod scilicet omnem intellectum antecedit (De li Non Aliud, XIV, 54).
40
tomando-a uma, duas, três vezes, e assim por diante?” (HIRSCHBERGER, 1966, p.
256). Dirá em seguida que o mesmo se com a unidade de peso e medida sendo
pela unidade “que contamos, medimos e pesamos tudo” (HIRSCHBERGER, 1966, p.
256). Ao pensar como conceber esta unidade última, conclui que o sabe, mas
que, de qualquer forma, esta não pode ser concebida mediante o número, pois,
“este lhe é posterior (quia numerus est post unum)” (HIRSCHBERGER, 1966, p. 257).
Seguindo este pensamento, o Cusano intui que:
O princípio de todas as coisas é aquilo em razão do qual, no qual e a partir do
qual se deduz o derivado; ora esse ser não pode ser concebido mediante nenhum
outro, mas, ao contrário, é a razão de se compreender tudo o mais assim como
aconteceu com o número (HIRSCHBERGER, 1966, p. 257).
A douta ignorância será, pois, “um discurso sobre o sentido do discurso
filosófico” (CUSA, 1998, p. 88) e, portanto, um discurso propedêutico, no sentido que
abre horizontes justamente ali onde parece fechá-los, sendo simultaneamente um
ponto de chegada e um ponto de partida.
Segundo Erich Meuthen (1929), historiador alemão e um dos biógrafos de
Nicolau de Cusa mais importantes da atualidade, citado por Claudia D´Amico, O
Cusano é um homem de seu tempo, “que levou o seu próprio tempo tão longe
quanto pode” (CUSA, 2007, p. 11).
Adentrando mais especificamente em suas obras filosóficas percebe-se que,
dentre seus primeiros escritos, está o De concordantia catholica (1433), considerado
“sua grande obra político-eclesiológica” (CUSA, 2007, p. 16), vista pelos estudiosos
do conciliarismo como o fruto mais maduro do movimento conciliar que transitava
três gerações. Em 1436, regressando a Basiléia, o cusano é designado juiz na
comissão de do Concílio, onde tenta manter-se à margem das decisões tomadas
contra Eugenio, pois, desejava acima de tudo a união das Igrejas do Oriente e do
Ocidente.
Sua obra principal, porém, é o De docta ignorantia (1440), escrita durante a
viagem que fez para o Oriente (1437-1438)
20
, quando foi enviado a Creta com a
missão de reunir um sínodo entre a Igreja Grega e a de Roma, no qual, segundo
20
In mari me ex Graecia redeunte, credo superno dono a Patre luminum ... ad hoc ductus sum, ut
incomprehensibilia incomprehensibiliter amplecterer in docta ignorantia (HAUBST, 1952).
41
expressão sua, ele teve a revelação filosófica e a intuição da coincidência dos
opostos.
O De Deo Abscondito é um pequeno diálogo no qual Nicolau de Cusa tenta
convencer um gentio de que, a partir das criaturas, não se pode conhecer a natureza
de Deus nem seu nome. É uma espécie de demonstração, pela negação, da
necessidade de conjecturas.
Na sequência, escreveu De Coniecturis (1440-1445). Nicolau de Cusa recorre
a uma enigmática figura P para esclarecer o sentido da participação do intelecto
divino. Discorrerá sobre dois modos de ser da ratio: uma denominada ratio
phantastica ligada à variedade das imagens sensíveis e distinta da ratio em seu
sentido superior, que é definida como ratio apreensiva. A proposta é a de que
quanto mais nos elevarmos em aproximação ao Logos divino, tanto mais o
intellectus, recolhendo-se das alteridades diversas, alcançará sua plena atualidade,
unificando-se naquele ato cognoscitivo simplíssimo, que é a Visio intellectualis,
podendo entender e pensar a coincidência dos opostos (super rationem). Também
escreve A conjectura sobre os últimos dias (1452), quando apresenta uma
especulação sobre o fim do mundo. Quer com isso abordar o significado da vida de
Cristo, pois ele é a finalidade da obra de Deus, sendo em seu filho que Deus
repousa. Os sete dias da criação s´expliquent em sete vezes, sete anos, isto é,
quarenta e nove anos. Por isso, o cinqüenta é o ano do Senhor, o ano jubilar que a
Igreja festeja. Cinqüenta anos correspondem, pois, a um ano da vida de Cristo. Esta
conjectura é redigida em 1445 e toda uma matemática é conjecturada aqui.
Em 1445 ele escreve o De quaerendo deum, como uma resposta à questão
colocada sobre o nome de Deus. Nicolau de Cusa mostra que Deus é como a luz da
inteligência. É uma graça dada somente àqueles que a desejam. A contemplação
das criaturas pode fazer nascer o desejo de amar e de conhecer a Deus. Por outro
lado, pode-se dirigir a ele pela via da teologia negativa.
Outras obras do Cusano são: De filiatione dei (1445); De dato Patris luminum
(1446); De genesi (1447); Apologia doctae ignorantia (1449); Dialogus de Deo
abscondito (1450) e De visione Dei (1453-1454). Este último obedece ao duplo
escopo de traçar as condições de legibilidade de um escrito filosófico e teológico,
nascido nas fronteiras que dividem a Idade Média e a Moderna e é apontado como a
sua obra mística por excelência.
42
As demais obras são por assim dizer um comentário ou um aprofundamento
dessa sua obra maior. De sapientia (I e II), De Mente (III) e De staticis experimentis
(IV) são três dos seus escritos que vão compor a série conhecida como Idiota. De
mente (1450). O Cusano publica De pace fidei (1453), onde aponta o mundo como
um amplo fórum de discussões sobre a pluralidade das religiões. Segundo ele,
Cristo será o mediador entre Deus e os homens, assim como é a referência
religiosa. Essa busca de reconciliação universal religiosa é uma abertura para as
divergências e um grande ato de tolerância.
Em seguida vem De beryllo (1454 ou 1458). Nesse livro Nicolau descreve o
intelecto como uma lente através da qual a razão a coincidência dos opostos
máximo e mínimo, no princípio. Na seqüencia encontram-se ainda: De principio e De
possest (1460), quando escreve acerca do fundamento do uno de toda a
diversidade, e “a partir da coincidência entre potência e ato se produz este
neologismo para nomear o criador” (CUSA, 2007, p. 22); e Cribatio Alcorani (1460)
que é uma hermenêutica do Alcorão. No artigo escrito por Gianluca Cuozzo,
dedicado ao tema do pecado original, Nicolau de Cusa enfatiza a divisio como a
separação do homem de Deus. “O pecado traz divisão entre Deus e o homem
(dividere inter Deum et hominem), como diz o profeta: ‘Os vossos pecados vos
afastam de vosso Deus’ (Is. 59,2)’” (Crib. II, 114; 810). Entre as criaturas intelectuais,
o homem tem um ínfimo posto, possuindo um intelecto somente potencial, o que o
faz necessitar de um ato que o faça passar da potência ao ato. Desse modo, o
intelecto necessita da “graça criadora” (donum gratiae creantis) para poder realizar-
se no ato de entender (De dato patris lumini, I, 69; 135). Mortal e ignorante e
trazendo consigo o “estado de separação” (HAUBST, 1956, p. 63) diabólico, raivoso,
ciumento e luxurioso. “A criatura racional escreve o Cusano foi criada para que
conheça o sumo bem; e conhecendo-o o ame, e amando-o o possua, e possuindo-o
o desfrute” (HAUBST, 1956, p. 121A).
No Idiota. De mente Nicolau de Cusa se detém sobre vários poderes
cognoscitivos da alma, onde busca uma espécie de transcensus que vai da ratio ao
intellectus. Procede do mundo dos sentidos, ligados estes, indissoluvelmente, à
exterioridade e à matéria. A razão, em relação aos sentidos, tem a prerrogativa de
entender as formas como elas são para construir sobre elas as ciências e as artes
matemáticas. No entanto, sendo parte das ciências, a matemática e a geometria são
43
também de ordem comparativa, não podendo, portanto, atingir um grau de precisão
absoluto ou a absoluta quidditas das coisas.
Sobre essa quidditas falará o Cusano mais especificamente em sua obra De li
Non Aliud, composta antes de abril de 1463. Essa obra foi traduzida para o espanhol
por Jorge M. Machetta, como Acerca de lo no-otro o de la definición que todo define
(2008). Segundo D´Amico (CUSA, 2007, p. 22), essa obra é a “mais audaz de suas
propostas filosóficas, pois propõe uma terminologia original a partir do caráter
negativo e também relacional do princípio” (CUSA, 2007, p. 22).
Diante da ciência comparativa, se se permanecer no nível das figuras finitas
da razão, as figuras serão diferentes entre si, mas é somente através do
conhecimento intelectual, onde a mente intui todas as coisas em unidade e intui a si
mesma como semelhança daquela unidade, que se chega à forma suprema do
saber, isto é, a apreensão unitiva que todas as formas complicadas na unidade
simplíssima da mesma forma (incontracta et absoluta), a Sabedoria divina “ipsa
omnem conceptum excedens ineffabilis forma” (CUOZZO, 2008, p. 9).
Segundo a figura P mencionada, razão e inteligência não são faculdades
rigidamente distintas, mas fluem constantemente uma na outra, sendo, portanto,
copertencentes ao espírito humano, chegando ao ponto da ratio aproximar-se do
lume da inteligência até dissipar-se imperceptivelmente na intuição intelectual.
Isto significa que a ratio fica ciente de que “todos os procedimentos da
pesquisa racional não são suficientes para alcançar a substância tão desejada”
(CUSA, 2008, p. 181)
21
e compreende com efeito que o obiectum último da sua
pesquisa é “a medida não mensurável de tudo, como és o fim infinito de tudo” (CUSA,
2008, p. 184) immensurabilis omnium mensura (De visione Dei XIII, 48; 316); ela é,
ao mesmo tempo “medida máxima” (da qual não pode existir uma maior) e “mínima”
(da qual não pode existir uma menor). A verdade absoluta é, portanto, quantidade
infinitamente grande e infinitamente pequena, ao mesmo tempo o maximum e o
minimum absolutos, algo, portanto, que pela razão é uma pura contradição lógica,
absolutamente impensável e conceitualmente indeterminável. Por isso, com a
finalidade de conhecer embora somente naquela forma sui generis de
conhecimento que é a docta ignorantia –, a razão deve afinal renunciar a si mesma,
21
Vidit enim, quod omnis rationalis venandi modus ad capiendum ipsam tantopere desideratam et
sapidam scientiam minime sufficit” (CUSA, 2008, p. 180-185).
44
vale dizer, aos próprios instrumentos lógico-conceituais, o mais importante dos quais
é o princípio aristotélico de não contradição (CUSA, 2003, p. 74).
De li non aliud (1462); De ludo globi (1462); De venatione Sapientiae (1463);
Compendium (1463) e De ápice theoriae (1464). Estas últimas obras são
consideradas como seu “testamento filosófico” (CUSA, 2007, p. 22).
Outras obras menores ou opúsculos são: Epistula ad Ioannem de Segobia
(da qual não se sabe o ano em que foi escrita); Responsio de intellectu Evangeli
Johannis; Trialogus de possest; Directio speculantis seu de non aliud ; Epistula ad
Rodericum Sancium de Arevalo; Reformatio Generalis; e De correctione calendarii
(CUSA, 2007, p. 22) esta, em 1437, quando Nicolau de Cusa apresenta ao Concílio
de Basiléia uma reparação do calendário, baseada em cálculos entre as festas da
Páscoa, que ocorria após o plenilúnio no equinócio da primavera. Era preciso para
tal conhecer as diferenças entre ano solar e ano lunar. A conseqüência é que esta
reforma foi suficiente para não ter dia complementar em anos bissextos.
E por fim uma Espistula ad Nicolaum Albergatum (CUSA, 2007, p. 23). Após
todos esses trabalhos, ainda uma lista de sermões e pregações que vão
enumerados desde o sermão I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, [....] XXIV (1), XXIV
(2), pregação XXIV, sermão XXV, [...] XXXVII A, XXXVII B, XXXVII C, XXXVII,
XXXVIII, [...] pregação LXXVI, sermão LXXVII, [...] sermão LXXIXB, LXXIXA, [...] C,
[...] CL, [...] CLXXXII B, CLXXXIIA, CLXXXIII, [...] CXCVA, CXCVB, CXCVI, CXCVIIB,
CXCVIIA, CXCVIII, [...] CCL, [...] CCXCIII. Toda a obra está escrita em latim, no
original.
Finalmente, além das obras acima citadas, encontra-se um pequeno número
delas que foi denominado de obras científicas. Entre elas, encontram-se: Reparatio
calendarii (1437, por ocasião do Concílio de Basiléia), mencionada; De
transmutationibus geometricis (1450), cujo objetivo é demonstrar a fecundidade do
princípio da coincidência dos opostos em geometria. Graças a este princípio, ele
quer demonstrar que se apóia sobre a demonstração da infinitização das figuras a
arte de converter direita em esquerda e, com isso, encontrar a solução para o
problema da quadratura do círculo.
ainda o De quadratura circuli, do qual faz parte De sinibus et chordis
(1451). O que se pode denominar “a primeira quadratura” do círculo foi escrita em
1450. Nesse mesmo ano, Nicolau de Cusa escreve O Idiota, no qual a parte mais
importante é o De Mente. É onde elabora os conceitos centrais de sua teoria do
45
conhecimento. Estabelece a ligação entre o problema matemático (como ver a
quadratura do círculo) e o problema teológico (como ver a Deus). O que aparece é
uma questão de medida (onde está o ponto?) e uma questão da existência (este
ponto existe?). São discutidas proporções e não proporções, buscando diferentes
estratégias para demonstração. Surge então uma “segunda quadratura” após
estudos das proposições de Arquimedes, com uma nova tabela de proporções que
os comentadores entendem como errônea. Num diálogo com seu amigo Toscanelli,
o Cusano reconhece que há pontos obscuros em suas demonstrações.
O De mathematicis complementis (1453-54) (De Arithmeticis complementis)
surge em 1450, sendo uma resposta à questão proposta por Paulo Toscanelli
sobre a primeira questão levantada em De transmutationibus geometricis. Segundo
Nicolle, esse texto não apresenta nenhuma conotação explicitamente metafísica. Ele
ajusta seu método matemático dos polígonos isoperimétricos, inventando um
instrumento visual para comparar os raios dos círculos inscritos e circunscritos a
diversos polígonos regulares e que vai se tornar uma regra para medir as
proporções entre os polígonos.
Esse tratado matemático é um dos mais volumosos de Nicolau de Cusa. Ele
começa por denunciar a insuficiência teórica de Arquimedes com relação ao método
das espirais e aponta uma solução por meio da coincidência dos opostos.
De mathematica perfectione (1458) é considerada como seu melhor tratado
matemático, sendo nessa obra que Nicolau de Cusa introduz sua noção de visio
intellectualis, partindo da idéia de que a dimensão mística da visão interfere no
desenvolvimento da matemática, onde a finalidade é conduzir de uma certa maneira
à Deus.
De una recti curvique mensura (1460) é também um texto curto que resume
em três proposições todo o trabalho desenvolvido, aentão, sobre a quadratura do
círculo, quando então finalmente escreve De figura mundi (1462).
Também trata de argumentos científicos o quarto livro do Idiota, que surgiu
com o título de De staticis experimentis. Essa distinção não tem um valor absoluto
porque as obras filosóficas são também científicas. Ao publicar a obra de Nicolau de
Cusa, Klibansky e Hoffmann incluíram o texto Dies sanctificatus (1439), uma prédica
que provavelmente inspirou a redação do De docta ignorantia.
46
3 Histórico
Por iniciativa da academia de Heidelberg (LIPSIAE, D. Meiner, 1937), foram
publicados comentários ao códice contido nas obras do Cusano, no prefácio do
primeiro volume. No entanto, a primeira publicação das obras do cardeal saiu em
1488 em Estrasburgo, a qual “se encontra sob o código 218, na biblioteca do
hospital de Cusa” (ROTTA, 1942). Uma segunda edição, chamada de milanesa, saiu
em 1502 por iniciativa do Marquês Rolando Pallavicini, constando de dois livros em
um volume. Uma terceira edição foi traduzida e redigida por Jacque Lefévre
(Jacobus Faber Stapulensis) e saiu em Paris (1514). Em 1565 saiu uma edição de
Basiléia ex officina heiricpetrina, dividida em três tomos, porém em um só volume.
Do conteúdo, do valor e do porquê de tais edições foi falado no prefácio de
De docta ignorantia, escrito Paulo Rotta em 1913, traduzido por B. Croce e G.
Gentile. Essa tradução também foi feita por Rotta (1929). Em 1930 foi feita a
primeira tradução francesa do Cusano.
A edição completa conta com 14 volumes sendo que os volumes XIII e XVI
estão destinados ao De concordantia catholica. Os primeiros dois volumes saíram
em 1932, traduzidos por E. Hoffmann e R. Klibansky, e L´apologia doctae
ignorantiae por Klibansky.
no século XXI encontram-se entre os comentaristas e tradutores das
obras:
João Maria André (1954) tradutor para a língua portuguesa (Portugal) do De
visione DeiA visão de Deus (1998, Fundação Calouste Gulbenkian) e do De docta
ignorantia A douta ignorância (2003, Fundação Calouste Gulbenkian) e no Brasil A
douta ignorância foi traduzida para o português por Reinholdo Aloysio Ullmann
(2002).
O grupo de pesquisadores da Argentina, do Circulo de Estúdios Cusanos vem
fazendo edições bilíngües (latim/castelhano) de algumas obras de Nicolau de Cusa.
Como o próprio título sugere, o próximo capítulo está destinado a um
reconhecimento dos místicos que influenciaram o pensamento de Nicolau de Cusa,
abordando, mais de um modo geral e especialmente, três deles: Eckhart, Suso e
Tauler. A ordem das apresentações é proposta seguindo-se as indicações de Rotta,
devido ao seu grau de influência e à quantidade de citações feitas por Nicolau de
Cusa em suas notas marginais, bem como da presença de tais autores em suas
obras.
47
Para outras edições, e uma grande variedade de publicações, veja-se o
anexo desta tese: todos os trabalhos são escritos sobre Nicolau de Cusa ao longo
de mais de dois séculos, até o presente.
48
CAPÍTULO II - A MÍSTICA DE NICOLAU DE CUSA: FUNDAMENTOS E
CARACTERÍSTICAS
O objetivo deste capítulo é pesquisar as bases místico-filosóficas que
fundamentaram o pensamento do Cusano e, para tal, far-se-á uma breve
apresentação dos principais místicos e/ou filósofos por ele estudados. Esses autores
foram citados por Rotta (1942) como sendo os principais, presentes na biblioteca de
Cusa. Às margens das páginas de obras desses autores foi encontrado um sem-
número de anotações feitas por Nicolau de Cusa. Vem daí a escolha de seus nomes
para compor as bases de sua teoria. Outro ponto a ser abordado aqui é a citação
destes pilares da obra do Cusano em ordem cronológica, principiando pelos mais
antigos e culminando naqueles que são contemporâneos do autor.
Em seguida serão apresentados os principais conceitos que caracterizam a
mística do próprio Nicolau de Cusa, desdobrados em subtítulos.
1 Místicos e filósofos que embasaram o pensamento de Nicolau de Cusa
Como um dos primeiros fundamentos de sua teoria sobre a douta ignorância,
Nicolau de Cusa toma o pensamento de Plotino (205-270, Licópolis, Egito), o qual
diz que, se e para pensar em Deus, para se fazer uma só realidade, Uma com Ele, a
alma nada deve pensar, então o conhecimento se fundamenta num não-saber. Em
Plotino a realidade suprema é o Uno, o qual não é o conhecimento uma vez que
este supõe a dualidade do sujeito cognoscente e do objeto cognoscível – nem o Ser,
mas antes a fonte inefável de todo ser e de todo pensamento.
Todavia, a obra de Plotino possui uma tônica da mística que é nova. Sente-se
aí, como até então não se sentira ainda, o desejo e o esforço de uma alma que quer
se encontrar e ao mesmo tempo se perder no Uno universal e inefável. Esse
arrebatamento da alma, esse êxtase, foi o que impressionou Bergson ao ler as
Enéadas. O que explica o fato de o autor das Duas fontes ter colocado Plotino acima
de todos os filósofos. De acordo com Antônio Henrique Campolina Martins (2005),
em Plotino, a interioridade, o aprofundamento do eu em si mesmo, ultrapassa
imediatamente a sua própria realidade e atinge uma esfera que o torna esquecido, a
saber, o Uno transcendente que se situa para além de toda determinação. Este
transcendente se torna ainda uma categoria habitual do pensamento moderno.
Tanto para Plotino quanto para Schelling, o real é essencialmente polaridade de
49
termos que se sustentam mutuamente. Na metafísica da transcendência, existe uma
verdadeira afinidade entre Plotino, Nicolau de Cusa, Leibniz e Hegel.
É a unidade que se articula tanto em Plotino como em Nicolau de Cusa. A
unidade, através da articulação entre liberdade e infinito, se traduz na questão do
ser, exigindo, por isso mesmo, por parte de quem reflete sobre esse tema, em
Plotino, a fidelidade de um diálogo sem fim.
Para esse autor, o fim supremo da filosofia racional é a volta da alma para o
seu princípio, e nisso se encontra o ápice da liberdade enquanto capacidade de
escolha. O homem é o artífice de sua própria divinização. É voltando sobre si
mesmo, retornando à sua própria identidade, sendo o que ele sempre foi, que ele
chega a Deus.
Entre os filósofos estudados pelo Cardeal, encontra-se Diógenes Laércio
(200-250), historiador e biógrafo dos antigos filósofos gregos. A sua maior obra é
Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, composta de dez livros, que contêm
relevantes fontes de informações sobre o desenvolvimento da filosofia grega.
de Santo Agostinho (354-430, Tagaste, Argélia-África), Nicolau de Cusa
herda a densa frase: “Não sai de ti, mas, entra em ti mesmo, é no homem interior
que habita a verdade”
22
. Em Santo Agostinho, a criação “é uma original, gratuita e
absoluta posição da diferença e constitui o centro das Confissões, onde se torna
visível como a explicitação, a geração, o desenvolvimento do mundo a partir do Uno
são ambíguos e não traduzem com rigor a realidade nova, livre e não necessária da
criação” (CUSA, 1998, p. 59). De acordo com Miguel Baptista Pereira, tradutor e
comentador do Cusano, “em Agostinho, a verdade como principium só se pode
encontrar no homem interior, intus in domicilio cogitationis”, onde o pensamento é
falado, é verbum cordis”, e a palavra é a visão articulada da verdade, que reenvia
para a sua Origem. Interrogar-se é interrogar o principiumdivino no homem e, por
isso, é dialógica a iluminação augustiniana” (PEREIRA, 1988, p. 59-60).
De acordo com Jean Marie Nicolle, comentador de Nicolau de Cusa, os seus
apontamentos sobre Santo Agostinho o numerosos. Entre eles encontram-se A
Trindade é realmente unidade; Dar-lhe um número é engano; do Deus uni-trino tem-
se uma imagem em três faculdades da alma, que são a memória, a inteligência e a
22
"Ne va point au-dehors, rentre en toi-même, c'est dans l'homme intérieur qu'habite la vérité" (SAINT
AUGUSTIN).
50
vontade; O número é o principal exemplar das coisas; Compreender é o movimento
e o repouso da inteligência; há três modos de conhecimento: o sensível, o intelectual
e o inteligencial (l´intelligentiel); O Espírito de Deus é único e opera em todas as
coisas; deve-se admirar a bondade, a ordem, o número e a medida no universo
como em cada uma das obras de Deus; a alma nada sabe de Deus, senão que ela
ignora etc.
pouca influência de Santo Agostinho nas questões de matemática, uma
vez que este não tinha senão conhecimentos básicos, mas, por outro lado, há
algumas reflexões sobre a função simbólica do número em teologia. Em De Libero
arbitrio (I, 2, C.8. Saint Augustin), toma-se por essencial a teoria plotiniana do
número como o inteligível: Deus colocou em nossa alma a inteligência do número e
de cada noção numérica como um reflexo do número não-sensível. Sem o número,
nada existe, e Nicolau de Cusa sustenta essa mesma ideia: “Nenhuma coisa de
entre as que são nomináveis que não possa dar-se, em relação a ela, algo maior ou
menor, porque os nomes são atribuídos por um movimento da razão às coisas que
admitem, em alguma proporção, um excedente ou um excedido” (CUSA, 2003, p. 11),
uma vez que, subtraído o número, “cessam a distinção das coisas, a ordem, a
proporção, a harmonia e a própria pluralidade dos entes” (CUSA, 2003, p. 11). Como
Santo Agostinho, Nicolau de Cusa busca não um número exato, mas uma proporção
que o conduza para Deus.
Proclo (412-486, Constantinopla), por sua vez, vem fazer parte dos místicos e
filósofos amplamente citados pelos comentadores contemporâneos, e uma das
frases de Nicolau de Cusa que parece advir dele é: “Sendo o uno outro que o não-
uno, de modo algum dirige ao primeiro princípio de tudo, o qual seja por outro seja
por nada, não pode ser outro, o qual assim mesmo a nenhum é contrário” (CUSA,
2008e, p. 55)
23
.
A relação entre o pensamento de Proclo e Nicolau de Cusa foi profusamente
tratada em diversos estudos (CUSA, 2008e, p. 361)
24
. A leitura direta que Nicolau de
23
Siendo lo uno otro de lo no-uno, de ninguna manera dirige hacia el primer principio de todo, el cual
sea por otro sea por nada no puede ser lo otro, el cual asimismo a ninguno es contrario (CUSA,
2008e, p. 55).
24
KLIBANSKY, R. Ein Proklos-Fund und seine Bedeutung, in: Sitzungsberichte der Heidelberger
Akademie der Wissenschaften. Heidelberg, 1929, especialmente p. 25-29; KLIBANSKY, R. Plato´s
Parmenides in the Middle Age and the Renaissance. London, 1943, especialmente p. 304-310;
FLEIGL, M.; KOCHE, J. Nikolaus von Cues. Über den Ursprung (De principio), Heidelberg, 1949;
BEIERWALTES, W. “Cusanus und Proklos. Zum neuplatonischen Ursprung des non-aliud”, in: AA.VV.
51
Cusa fez dos textos de Proclo é justificada pelas notas marginais encontradas “na
biblioteca do Hospital de Bernkastel-Kues: Procli De theologia Platonis Libri VI (Cod.
Cus. 185), Procli Espositio in Parmenidem Platonis (Cod. Cus. 186) e Procli
Elementatio theologica (Cod. Cus. 195)” (CUSA, 2008e, p. 361).
Em notas marginais, Jorge Machetta (2005) afirma que Nicolau de Cusa fez
observações a respeito da obra de Proclo, da qual o Cardeal conclui: “O não
múltiplo, portanto, princípio de tudo, tudo complica, assim como se diz que a
proposição negativa é geradora da afirmação, isto é, assim como o não ser diz o não
ser de tal maneira, que seja significado pelo ser, porém o ser melhor” (MACHETTA,
2005, p. 174)
25
.
A unidade é para Proclo o objeto mais simples. Nicolau de Cusa se apropria
também desse conceito e fala da simplicidade do Uno. Da mesma forma, tanto para
Proclo quanto para Nicolau de Cusa, o ponto é algo da razão, pois existe um único
ponto do qual todos os pontos são o desdobramento. A influência de Proclo sobre
Nicolau de Cusa é de primeira grandeza. Exceto alguns pontos relativamente
secundários, o essencial da filosofia das matemáticas do Cusano foi tirado de
Proclo, sendo a busca pela matemática um movimento de conversão do
pensamento para o Uno.
Uma referência ao Pseudodionísio (450-535), o mesmo Dionísio Areopagita, é
feita pelo Cusano com o seguinte teor: “O Criador nem é algo que possa ter nome
nem que seja algo outro” (CUSA, 2008, p. 358)
26
. Citação feita por José Gonzáles
Ríos no comentário: Sentido de la presencia del Dionísio en el Non Aliud (2002).
Nicolò Cusano agli inizi del mondo moderno. Firenze, 1971, p. 137-140; FLASCH, K. Die Metaphysik
des Einen bei Nikolaus von Kues. Leiden, 1973; SENGER, H.G. Erster Teil: Untersuchung, in:
Cusanus Texte III. Marginalien 2. Die Exzerpte und Randnoten des Nikolaus von Kues zu den
lateinischen Übersetzungen der Proclus-Schriften 2.1. Theologia Platonis. Elementatio theological.
Heidelberg, 1986; KREMER, K. Gott in Allem Alles, in Nichts Nichts. Bedeutung und Herkunft dieser
Lehre des Nikolaus von Kues, in: Mitteilungen und Forschungsbeiträg der Cusanus-Gesellschaft, 17,
1986, especialmente p. 199-201 e 205-211; BEIERWALTES, W. Das Seiende Eine. Zur
neuplatonischen Interpretation der zweiten Hypothesis des platonischen Parmenides: das Beispiel
Cusanus, in: BOSS G.; SEEL G. (eds.). Proclus et son influence (Actes du colloque de Neuchatel, Juin
1985). Zürich, 1987, p. 287-297; FLASCH, K. Nikolaus von Kues. Geschichte einer Entwicklung.
Frankfurt/M., 1998, especialmente p. 500-516; BEIERWALTES, W. “Centrum tocius vite”. Zur
Bedeutung von Proklos “Theologia Platonis” im Denken des Cusanus, in: SEGONDS, A. Ph.; STEEL, C.
et al. (eds.). Proclos et la theologie platonicienne. Actes du Colloque international de Louvain (13-16
de maio de 1998). Louvain, 2000, p. 629-651.
25
“Lo no múltiple, por lo tanto, principio de todo, complica todo, asi como se dice que la proposición
negativa es generante de la afirmación, es decir, así como el no ser, de tal manera dice el no ser, de
modo que sea significado por el ser, pero el ser mejor” (MACHETTA, 2005, p. 174).
26
El creador ni es algo que pueda tener nombre ni que sea algo otro(n. 5; Flor. N. 71) referência de
Nicolau de Cusa a uma citação de Dionísio em De mystica theologia.
52
As suas obras proporcionaram uma importante contribuição ao estudo da
filosofia da religião, também no Ocidente, onde circularam em versão latina.
Destacaram-se até pelos títulos: Sobre os nomes divinos (De divinis nominibus, na
tradução latina); Sobre a teologia mística (De mystica theologia, na versão latina);
Sobre a hierarquia celeste (De coelesti hierarquia, na titulação latina); Sobre a
hierarquia eclesiástica (De ecclesiastica hierarquia). Em seu universo construído sob
a influência filosófica de Plotino e, sobretudo, de Proclo, se sobressai o tratado dos
nomes divinos, “que concernem à essência de Deus e implicam a pergunta pela
relação interna em Deus e pela relação de Deus com a criação” (CUSA, 1998a, p.
56).
Para o Dionísio Areopagita,
Deus é, ao mesmo tempo, identidade e diferença, é e não é, porque está
para além do ser, é unidade triádica e, para além da unidade, tem muitos
nomes e é sem nome, de acordo com a lógica da primeira e da segunda
hipótese de Parmênides. Enquanto idêntico, Deus é imutável, sempre igual
a si mesmo, infinito na sua perfeição, é o repouso ou a permanência em si
mesmo, sendo-lhe atribuídos predicados do Uno e do nous neoplatônicos.
Enquanto diferente, Deus age externamente, põe os outros, transcendendo-
se livremente a si mesmo, é saída e êxtase sem deixar de permanecer em
si mesmo, pois a diferença é um momento interno da unidade absoluta de
Deus, que é identidade de repouso e de movimento, é o movimento criador
em repouso, é a unidade do repouso, da saída e do regresso, que se reflete
em todos os degraus da hierarquia do ser. A alteridade não é distinção
ativa que põe a exterioridade do mundo, mas é também a diferenciação
interna pela qual Deus, permanecendo em si, é Pai, Filho e Espírito Santo.
Por este diferir trinitário na intimidade do Uno com a implicação da
identidade e da diferença, o Pseudodionísio distinguiu-se de Plotino e de
Proclo, pois a pluralidade de diferenças já não é deficiência a eliminar, é no
Uno e não posterior ou inferior ao Uno. No conceito paradoxal de Deus, que
é ser e super ser, é identidade e diferença e transcende a identidade e a
diferença, não o os Comentários de Parmênides que coagem o
Pseudodionísio mas a necessidade de pensar o Deus cristão como grego
(ANDRÉ, 1998a, p. 56-57).
A idéia da coincidência dos opostos, que Nicolau de Cusa apresenta como
uma revelação, ele a teve sem dúvida pela leitura de Dionísio Areopagita (1943, p.
53
156) que, na obra Os nomes divinos, opõe a teoria positiva e a teologia negativa,
para ultrapassar sua oposição na teologia mística.
Para Nicolau de Cusa, a contradição é um princípio da dialética, que ele
considera simplesmente como uma técnica verbal. Pode-se dizer que o que faz é um
jogo de palavras em que se cultiva o paradoxo. Pode-se dizer ainda que o conceito
de paz de Dionísio influenciou profundamente a Nicolau de Cusa: “A paz perfeita
encontra, de fato, a sua plenitude através de todos os seres, graças a imanência
perfeitamente simples e sem mistura do seu poder unificador. Ela unifica todas as
coisas, ligando através dos meios os extremos aos extremos, submetendo-os à
unidade numa ligação que os torna homogêneos” (GANDILLAC, 1943, p. 166)
27
.
Do mesmo modo, o Areopagita parece insinuar a concepção de símbolo, que
será tomada pelo Cusano, aludindo ao que se a sua douta ignorância. O
Areopagita quer conhecer a Deus, a quem nem o entendimento nem os sentidos
chegam, e que não é nada do que existe. Pois bem, todas as coisas falam de Deus,
e nada fala bem dele, se o conhece por ciência e por ignorância ou pelo que seja
acessível ao entendimento, à razão e à ciência; se o discerne pela sensibilidade,
pela opinião, pela imaginação, enfim se o nomeia; por outra parte, ele é
incompreensível, inefável, sem nome. Não é nada do que existe, e nada do que
existe faz com que o entenda. É tudo em todas as coisas e não está essencialmente
em nenhuma.
Nesta frase encontra-se a polêmica contínua que condenou muitos místicos à
fogueira e à exclusão por seu “panteísmo”. Deus é tudo em tudo. O modo como
falam os místicos, inclusive Nicolau de Cusa, é de afirmar e imediatamente negar a
afirmação, porque não é possível falar de um paradoxo senão por metáforas.
Dionísio prossegue dizendo que tudo o revela a todos, e nada o manifesta a nada:
estas locuções diversas se aplicam muito bem a Deus e se lhe podem designar por
todas as realidades em que se pode fazer alguma analogia com ele.
Há, porém, um conhecimento mais perfeito de Deus, que resulta de uma
sublime ignorância e se cumpre em virtude de uma incompreensível união. É
quando a alma, deixando todas as coisas e esquecendo-se de si mesma, é
27
"La Paix parfaite répand, en effet, sa plénitude à travers tous les êtres, grâce à l'immanence
parfaitement simple et sans mélange de sa puissance unificatrice. Elle unifie toutes choses en liant à
travers les moyens les extrêmes aux extrêmes, en les soumettant à l'unité d'une amitié qui les rend
homogènes" (L'ARÉOPAGITE, 1943, p. 166).
54
submergida nas águas da glória divina e se ilumina entre esses esplêndidos
abismos da sabedoria insondável. Não obstante, pode-se conhecer a Deus pela
criação; pois, segundo as Escrituras, foi ele quem criou todas as coisas e
estabeleceu invioláveis relações. Quem fundou e quem mantém a ordem e a
harmonia universal; quem une a extremidade inferior de um lugar mais elevado e a
extremidade de um subalterno leva todas as criaturas a uma maravilhosa unidade e
a um acordo perfeito. Aqui está a chave para a douta ignorância de Nicolau de Cusa.
Outra vez o Cusano se inspira em Dionísio, quando este apresenta Deus
como Uno. É Uno porque, dentro da excelência de sua singularidade absolutamente
indivisível, compreende todas as coisas e porque sem sair da unidade é o criador da
multiplicidade; pois nada está desprovido de unidade. Mas como todo número
participa na unidade, de modo que se diz um par, uma dezena, uma metade, um
terço, um décimo, assim todas as coisas e cada coisa, e cada parte de uma coisa,
têm algo da unidade. E não é mais que em virtude da unidade que tudo subsiste. E
esta unidade, princípio dos seres, não é porção de um todo. Mas, anterior a toda
universalidade e multiplicidade, tem determinado ela mesma toda multiplicidade e
universalidade. Pois não existe pluralidade que não seja una. O que é múltiplo em
suas partes é uno em sua totalidade, o que é múltiplo em seus acidentes é uno em
sua substância; o que é múltiplo em número, ou pelas faculdades, é uno pela
espécie; o que é múltiplo em suas espécies é uno pelo gênero; o que é múltiplo
como produção é uno em seu princípio. E não nada que não entre em alguma
participação com este uno absolutamente indivisível e encerrado em sua
simplicidade perfeita. Cada coisa individualmente, e todas as coisas juntas, ainda
quando estão mutuamente opostas. A pluralidade não existiria sem a singularidade;
mas a singularidade pode existir sem a pluralidade, como a unidade pode todo
número múltiplo. E se forem consideradas as diversas partes do universo como
unidas inteiramente entre si ter-se-á então a unidade na totalidade.
Ninguém como o Pseudodionísio Areopagita e seu comentador medieval João
Escoto Erígena (AREOPAGITA, 1997; CAP-PUYNS, 1993) teorizou sobre a teologia
simbólica, pois Deus, o grande artista do universo, é a única verdadeira realidade.
Scotus Erígena (810-877, Escócia) comenta que o mundo ou o ser em geral é
aparecimento de Deus, que não aparece ou aparecimento da Origem no outro de si
mesma. Ou, enquanto Outro, é trânsito da Negatividade Absoluta (nihil omnium)
para os seres determinados e positivamente cognoscíveis ou, ainda, na sua síntese
55
lapidar é “aparição do que não aparece, manifestação do oculto, afirmação do
negado... de-finição do infinito, circunscrição do incircunscrito. Na teofania como
permanência, êxodo e regresso, está o percurso dialético da imagem” (ANDRÉ, 1998,
p. 64-65).
Vindo da rsia, surge Avicena Abu-Ali al-Husain ibn Abdullah Ibn Sina
(980-1037), para contemplar a filosofia e a mística de Nicolau de Cusa. Avicena
considerava o universo formado por três ordens: o mundo terrestre, o mundo celeste
e Deus. Do mundo terrestre, a inteligência, através de uma intuição mística,
estabelece contato com o mundo celeste. Deus, além de ser ato puro e o “Primeiro
Motor” (como no pensamento de Aristóteles), representa o Ser necessário, cuja
essência se equipara à sua própria existência e que constitui a base de todas as
possibilidades. Influenciou filósofos posteriores, como Duns Scotus, Alberto Magno e
Tomás de Aquino, que nutriam grande admiração por ele.
A cura da ignorância (Kitab al-Shifa) é o seu texto filosófico mais importante.
É onde aborda temas como física, matemática, geometria, aritmética, música e
astronomia. Os filósofos islamicos conceberam o homem como um microcosmos ao
refletir em sua realidade a estrutura do universo. Essa estrutura diz que há no
homem “um corpo, uma alma e um intelecto” (BERTELLONI Y BURLANDO, 2002, p. 59).
Segundo Avicena, o homem é visto fundamentalmente “como uma alma unida a um
corpo que, constitui o “eu”, a verdadeira natureza do homem” (BERTELLONI Y
BURLANDO, 2002, p. 59). Enquanto o estudo da alma limita-se ao processo de
conhecimento, o intelecto surge como “o mais especificamente humano”
(BERTELLONI Y BURLANDO, 2002, p. 60), sendo a faculdade que aperfeiçoa a alma e
permite alcançar a felicidade. Para Gilson (1970) algumas bases do pensamento de
avicena tiveram por síntese as doutrinas de Agostinho e Pseudo-Dionisio.
Entre as anotações de Nicolau de Cusa, está o nome de Pedro Lombardo
(1095-1160, Lombardia), teólogo italiano e bispo. A sua principal obra foi Libri
quattor Sententiarum, o que lhe valeu o título de magister sententiarum. Trata-se de
uma compilação sistemática dos ensinamentos dos Padres da Igreja e dos muitos
teólogos medievais importantes, tratando sobretudo da questão dos sacramentos:
Pedro Lombardo foi um dos primeiros a insistir em enumerá-los como sete, para
distingui-los dos sacramentais.
No entanto, um dos grandes pilares do pensamento de Cusano está em
Santo Alberto Magno (1193-1280), frade dominicano e Doutor da Igreja, considerado
56
um dos maiores filósofos da Alemanha. Citado continuamente por Nicolau de Cusa,
diz: “Inferimos que o princípio do ser é, portanto, o princípio do conhecer” (CUSA,
2008, p. 43)
28
. É considerado o grande responsável pela coexistência pacífica entre
ciência e religião; esse é também o ponto “X” da sua questão filosófica, segundo
Alain de Libera (2003). É “o estilo filosófico de Avicena, para além do Grande
Comentário averroísta” (DE LIBERA, 2003, p. 83).
Alberto Magno dominava a filosofia e a teologia, matérias em que teve Tomás
de Aquino como discípulo, e também estendia seu saber às ciências naturais. De
sua teoria, ressalta-se a primazia absoluta do ser, à qual se atribui o caráter de
primeiro princípio e que traz como consequência a especulação acerca da doutrina
da analogia, amplamente estudada por Nicolau de Cusa, como também a
prevalência da negação frente à afirmação, ainda que o Cardeal desde o começo de
sua obra De docta ignorantia evidencie o propósito de superar toda dialéctica que
se circunscreva na afirmação e na negação” (DE LIBERA, 2003, p. 170).
No capítulo II de Raison et Foi (2003), De Libera desenvolve amplos estudos
sobre O projeto filosófico de Alberto Magno. Mas, para Nicolau de Cusa, o que
prevalesce é propriamente o seu manifesto sobre De intellectu et intelligibili.
Segundo De Libera, o De intelllectu tem essa prevalência por ser «o ponto para o
qual tendem todas as filosofias, sendo também onde se articulam natureza e
pensamento ; isso porque, implicitamente, para o teólogo Alberto, natureza é graça,
se é verdade que, para ele (mas isto não é desenvolvido no De intellectu), o
intellectus dininus de onde falam os filósofos é uma teofania, isto é, teologicamente,
uma luz infusa, princípio, para o cristão, da teologal. Ele exerce a função
anagógica de atrair para a plenitude prometida, para “a outra via”, pela Revelação: a
visão “beatifica” (DE LIBERA, 2003, p. 301). A proposta de Alberto é percorrer todas
as etapas de ascensão para Deus ou os degraus supremos de santidade, de
semelhança e de divinização, sendo a última perfectio do filósofo atingida pela
contemplação e pelo não-ver e não-conhecer do místico” (DE LIBERA, 2003, p. 330).
Mais tarde, essa questão será retomada por Mestre Eckhart, ao identificar o
intellectus sanctus albertiniano, isto é, “o estado profético, segundo Avicena” (DE
28
Ita quidem conicimus principium essendi esse et principium cognoscendi (ALBERTUS M., Super
Dion. De div. Nominibus p. 28, marg. Cus. N 164 (CT III 1p. 98): Nota quomodo sunt eadem
principium essendi et cognoscendi” (CUSA, 2008, p. 42).
57
LIBERA, 2003, p. 330) como o que Mestre Eckhart denomina de o homem nobre, o
homem pobre ou o homem desapegado.
Entre tantas bases, surge para fomentar o pensamento de Nicolau de Cusa
São Boaventura (1221-1274, Itália).
São Boaventura é citado por Peter Casarella (2005) como tendo sido
intensamente lido por Nicolau de Cusa, especialmente sua obra Itinerarium mentis in
deum, mas também, o Breviloquium, o Comentário ao Evangelho segundo Lucas, as
Collationes in Hexaemeron e os Comentários às sentenças de Pedro Lombardo.
Como imagem é um conceito continuamente usado por Nicolau de Cusa, é possível,
segundo Casarella, reconhecer em certos textos da obra filosofica de São
Boaventura “que toda produção das imagens criadas é um ato de Deus trinitário e
uma semelhança da imagem do Deus invisível na pessoa de Cristo” (CASARELLA,
2005, p. 58).
Ora, as criaturas do mundo visível são os sinais das perfeições invisíveis de
Deus (Rm 1,20): seja porque Deus é a sua causa, seu exemplar, e seu fim (pois
todo efeito é sinal de sua causa, toda cópia é sinal de seu exemplar e todo meio é
sinal do fim ao qual conduz), seja por meio de sua própria representação, seja como
figura profética, seja pelo ministério dos anjos, seja por uma instituição divina.
Todas as criaturas são, de fato, por sua natureza, uma imagem ou uma semelhança
da Sabedoria eterna.
Logo surge, porém, para o Cusano, o mais sábio dos santos e o mais santo
dos sábios, como foi chamado São Tomás de Aquino (1225-1274, Nápoles, Itália).
Tomás tornou-se discípulo de Santo Alberto Magno, que o "descobriu" e se
impressionou com a sua inteligência.
Na parte 2 do artigo de Klaus Reinhardt (2005) Conocimiento simbólico:
acerca del uso de la metáfora en Nicolás de Cusa sobre La problemática de las
metáforas bíblicas según Santo Tomás, encontram-se passagens que o de nosso
interesse, especialmente no que se refere a Nicolau de Cusa como aquele que
valoriza positivamente as metáforas. Para Reinhardt, é claro como Santo Tomás
está consciente do uso que faz a Sagrada Escritura das metáforas ao falar de Deus,
por parábolas e imagens. Para Santo Tomás, isso é um grave problema, uma vez
que entende as metáforas como constituintes da poesia e com isso de uma ciência e
de uma arte inferior. Por outro lado, ele quer elevar a teologia ao nível de ciência
verdadeira, mas esta baseia-se nas Sagradas Escrituras, que por sua vez utilizá-se
58
de metáforas. Conclui o santo que a “Sagrada Escritura se utiliza de metáforas, a fim
de poder conduzir as pessoas rudes e simples do sensual ao espiritual” (REINHARD,
2005, p. 430). Santo Tomás quer substituir, na medida do possível, as metáforas
“por conceitos análogos” (REINHARD, 2005, p. 430).
Após esse profundo conhecimento, agrega-se à teoria de Nicolau de Cusa o
pensamento de Raimundo Lullio (1232-1316, Palma de Maiorca, Espanha), que foi o
mais importante escritor, filósofo, místico, poeta, missionário e teólogo da língua
catalã. Do ponto de vista de escola filosófica e teológica, Lullio é agostiniano. Por
isso, no final do século XIV, o tomista Nicolau Eymerie escreveu contra ele um
Dialogus contra lulistas e um Directorium inquisitionum, denunciando, entre outras
teses agostinianas, a sua intenção de fundar a fé sobre razões necessárias.
Seu objetivo central era levar a efeito a religião universal, a qual, no seu
entender, era a religião de Cristo e o fazia tentando mostrar metodologicamente a
racionalidade da visão cristã de mundo. Uma vez exposta adequadamente, essa
devia convencer a todos, inclusive aos que ainda não cressem. O que Lullio buscava
era a harmonia entre Deus, o homem e o mundo. Sua arte lógica despertou
interesse, e novas tentativas, nessa mesma direção, vão ser feitas por Nicolau de
Cusa, Giordano Bruno, Agripa e Leibniz.
De acordo com Vega (2007), Nicolau de Cusa era conhecer de “pelo menos
68 manuscritos lulianos autênticos” (VEGA, 2007, p. 146), tendo feito notas marginais
em manuscritos e poesias. Por exemplo: “Disseram ao amigo: De onde vens?
Venho de meu Amado. Para onde vais? Vou para meu Amado. Quando voltarás?
Estarei com meu Amado. Quando estarás com teu Amado? Tanto tempo quanto
estejam nele meus pensamentos” (VEGA, 2007, p. 191)
29
. E mais adiante completa:
“Desde que vi meu Amado em meus pensamentos, nunca esteve ausente de meus
olhos corporais, pois todo o visível a mim representa meu Amado” (VEGA, 2007, p.
191), pois: “Entre o amigo e o Amado é a mesma proximidade e distância” (VEGA,
2007, p. 192). Na continuidade do diálogo ainda parece haver pistas disso, quando o
amigo pergunta ao Amado: “O que é maior: amor ou amar”. Respondeu o Amado e
disse que, “na criatura, amor é a árvore e amar é o fruto e os trabalhos e as fadigas
são as flores e as folhas; e em Deus, amor e amar são uma mesma coisa, sem
nenhum trabalho nem nenhuma fadiga” (VEGA, 2007, p. 193). E, quando ausentou-
29
Tradução livre do espanhol pela doutoranda.
59
se o Amado, o amigo que o buscava com sua memória e seu entendimento, a fim de
poder amá-lo, ao tê-lo encontrado perguntou: “Onde esteve?” Ao que respondeu:
“Na ausência de tua memória e na ignorância de tua inteligência” (VEGA, 2007, p.
193).
Em nota de rodapé, na introdução à tradução do Douta Ignorância, Claudia
D´Amico (2007) indica o catalão Eusebio Colomer como aquele que mais estudou as
relações entre o pensamento de Lullio, Heimerico e Nicolau de Cusa. Além de
numerosos artigos editados no tempo do Instituto Cusano, do qual foi membro,
pode-se consultar a obra, em castelhano: De la Edad Media al Renacimiento,
Barcelona, 1975, na qual dedica alguns capítulos para a relação entre estes
pensadores. Uma das observações que Colomer apresenta é a dificuldade da
mediação feita por Heimerico de Campo com respeito a Nicolau de Cusa e sua
aproximação com a obra de Lullio (COLOMER, 1975, p. 95). Que o mestre flamengo
conheceu Lullio pode-se provar com certeza para os anos 1432-1435, mas somente
com pouca probablidiade para os anos anteriores a 1432. Todavia, o Cardeal
começou a tomar notas do Liber contemplationis em 1428.
Encontramo-nos, pois, diante do paradoxo de que o conhecimento das
fontes lulianas é comprovado documentariamente antes no discípulo que no
mestre! Não haverá pois que inverter os termos da nossa hipótese e dizer
que foi a insaciável curiosidade intelectual de Nicolau de Cusa que colocou
seu mestre e amigo Heimerico sobre a pista de Lullio? (D´AMICO, 2007, p.
15).
Pelos comentários de Jean Marie Nicolle (2010), nota-se que em Les
Transmutations Géométriques, de 1445, Nicolau de Cusa faz referências à alquimia.
Na primavera de 1428 o Cardeal se encontra com Heimerico de Campo, com quem
passa algumas semanas, em Paris, para recompilar os textos alquímicos atribuídos
a Lullio (na realidade por Arnaud de Villeneuve).
Guilherme de Ockham (1285-1347, Londres, Inglaterra) vem somar-se aos
grandes pilares de sustentação do conhecimento Cusano. Considerado como o
representante mais eminente da escola nominalista, principal corrente das escolas
tomista e escotista, ingressou na Ordem Franciscana, onde estudou filosofia e
matemática. Teve contato com outro franciscano, o filósofo e teólogo, Duns Scotus,
do qual se tornou discípulo. Escreveu vários ensaios sobre as Sententiarum Libri
(Sentenças) do teólogo Pedro Lombardo.
60
Ao realizar a separação entre razão e fé, entre filosofia e teologia, através de
sua doutrina científica, e ao defender que só a experiência permite conhecer a causa
das coisas, Ockham foi o precursor do empirismo inglês, do cartesianismo, do
criticismo kantiano e da ciência moderna. Em função dessas ideias, provocou
reações que o obrigaram a sair de Oxford antes do doutoramento de teologia.
A sua abordagem aponta, ao lado do conhecimento sensível dos seres
singulares, o conhecimento do intelecto intuitivo. Uma vez que parte do sensível,
interessa particularmente para os estudos de Nicolau de Cusa. Por conseguinte, o
objeto específico da inteligência é o existente. Declara-o Ockham expressamente: "A
notícia intuitiva é aquela em virtude da qual se pode saber se a coisa existe ou não;
se existe a coisa, prontamente o intelecto julga que a coisa existe, e evidentemente
conclui que ela existe" (Quodl. I, q.15). É d que surge a enfática tese inicial de
Ockham: "Não se pode saber com evidência se Deus existe" (Quodl. I, q.1).
Envolvido, como os de sua ordem franciscana, com a questão dos fraticeli, ou
espirituais, abordou mais uma vez a questão dos poderes do papa, amplamente
presente na obra de Nicolau de Cusa. Seu posicionamento teórico coincide com a
situação histórica do declínio do prestígio papal nesse final de Idade Média.
Avançando no tempo, no que diz respeito aos pensadores que influenciaram
o pensamento de Nicolau de Cusa, encontra-se o filósofo escocês Duns Scotus
(1265-1308), outro franciscano. Em sua obra De Primo Principio, “ao tratar dos
atributos divinos, depois de analisar a simplicidade, a inteligência e a vontade do
Primeiro Principio, na nona conclusão a mais importante Duns Scotus se dedica
ao estudo da infinitude de Deus” (DE BONI, 2002, p. 195). O conceito de Deus
eminentíssimo, de Scotus, segundo De Boni, está muito próximo do conceito
anselmiano, quando este diz que Deus é aquele “maior do que o qual nada pode ser
pensado” (DE BONI, 2002, p. 195), pensamento este que mais tarde será fundamento
para a obra de Nicolau de Cusa.
Em 2007, no artigo escrito por Giovanni Lauriola, ofm, do Centro Duns
Scotus, para a Scintilla - Revista de filosofia e mística medieval, Duns Scotus
aparece como aquele que influencia a Cristologia de Nicolau de Cusa especialmente
assim como ela se encontra no III Livro de A douta ignorância. Essa influência de
Duns Scotus surge principalmente como uma “voz crítica de Aristóteles, da nova
61
relação entre Filosofia e Teologia e também da síntese entre cristianismo e
aristotelismo” (2007, p. 66)
30
.
O novo modo adotado pelo Cusano, quer pela novidade metodológica, quer
pela novidade expositiva assim como pelo comportamento crítico, apresenta o “novo
modo de proceder do seu pensamento de modo alusivo e simbólico, assim como
conjetural” (2007, p. 67). Nesse novo método, ele não procede mais do modo
escolástico, mas de modo matemático e simbólico, dando grande importância ao
conceito de homem como microcosmos.
É assim, de probabilidade em probabilidade, que Nicolau de Cusa traduz o
“crevit”
31
scotista da busca pela verdade, “à qual o homem sempre mais se
aproxima, sem nunca possuí-la completa e definitivamente” (2007, p. 68). Com a
finalidade de traduzir metafisicamente essa busca escotista da verdade, Nicolau de
Cusa introduz o método da docta ignorantia, recorrendo ao neoplatonismo e às
matemáticas. Da matemática, ele utiliza o conceito de conjectura e do
neoplatonismo, a elevação do plano da experiência para o plano da transcendência.
Utilizando-se do antigo tema socrático-platônico que Santo Agostinho havia
cristianizado e que o Pseudodionísio havia chamado de teologia negativa, o Cardeal
indica que a condição para atingir a douta ignorância está em “servir-se de modo
preciso dos conceitos matemáticos aplicados àquilo que é ximo, ou seja, ao que
é infinito e não ao que é finito” (2007, p. 68).
O método utilizado se em de três etapas: 1) Partir de uma figura finita; 2)
estender essa propriedade ao infinito; 3) passar do infinito quantitativo ao infinito
simples.
Na terceira etapa verifica-se uma contradição que o intelecto como
necessária, mas que para a razão é inconcebível. É então que se vê que se sabe
que não se sabe e que os opostos coincidem. O infinito quantitativo torna-se símbolo
e aponta para o infinito qualitativo, absoluto e divino, ou seja, “solto de toda
quantidade, como havia dito Duns Scotus com o atributo infinito próprio de Deus”
(2007, p. 69).
De acordo com Lauriola, o uso da expressão “douta ignorância”, de Nicolau
de Cusa, é sinônimo da relação fé-razão, “identificando os termos com douta e
30
Tradução livre do italiano para o português pela doutoranda.
31
Crevit, como sinônimo de crescer, aumentar, medrar, avultar (Dicionário de Latim-Português, 1991).
62
razão com ignorância” (2007, p. 87). Apropriando-se da passagem de Isaias que diz:
“Se não crerdes, não compreendereis” (Is 7,9), aceita como princípio-base a
prioridade da sobre cada expressão racional e busca o conhecimento intelectual
dos valores essenciais da existência. É assim que o Cardeal afirma: “A fé é o
começo do conhecimento intelectual” (2007, p. 87), porque complica em si cada
inteligível e não há mais perfeita que a verdade mesma que é Cristo. Por isso, a
expressão “douta ignorância” não se prende à esfera do finito, mas principalmente a
do infinito, porque por definição este é inacessível e inominável. Desse modo, o dom
mais precioso de Deus é uma reta, “formada da união com a caridade” (2007, p.
90), sem a qual a fé não é uma fé viva, mas uma fé morta.
O Cardeal aprecia também o místico belga Ruysbroeck (1293-1381,
Bruxelas). Em seus escritos, Ruysbroeck expôs uma espiritualidade que abandona o
formalismo intelectualista da escolástica de até então, enveredando por uma mística
mais acentuada e por uma linguagem simbólica.
Ruysbroeck diz que, enquanto se vive nas sombras, não é possível ver o
próprio sol, pois como disse São Paulo se obscuramente através de um espelho.
Mesmo assim, a sombra é iluminada pelo sol, de modo a se perceberem as
distinções entre todas as virtudes e toda a verdade que é de valor para a condição
mortal do homem. Mas, se se de tornar uno com a luz do sol, deve-se seguir o
amor e esquecer-se de si mesmo no "sem-caminho", e então o sol atrairá o atraído,
ainda que com os olhos cegos, para dentro de seu fulgor, onde se possuirá a
unidade com Deus. Em Sua benevolência, diz o místico, “Ele quer ser todo nosso: e
por isso nos ensina a viver nas riquezas das virtudes. Ao Seu toque interno todos os
nossos poderes nos abandonam, e então sentamos sob Sua sombra, e Seu fruto é
doce para nossos sentidos, pois o fruto de Deus é o Filho de Deus, a quem o Pai faz
nascer em nosso espírito. Esse fruto é tão infinitamente doce aos nossos sentidos
que não podemos nem engoli-lo e nem assimilá-lo, mas antes é Ele quem nos
absorve em Si mesmo e nos assimila em Si mesmo”
32
.
32
Quem se serve desse autor é o escritor João Guimarães Rosa. Cf. para isso o texto de Francisco
Faus (FAUS, s.d.): “No transparente contemplador”, encabeçando as sete novelas que constituem
Corpo de Baile, de João Guimarães Rosa, vão-se escalonando sete citações de Plotino e do místico
flamengo Ruysbroeck, como degraus de acesso a essas surpreendentes narrações. Vede
exclama Ruysbroeck, citando o Apocalipse –, eis a pedra brilhante dada ao contemplativo; ela traz
um nome novo, que ninguém conhece, a não ser aquele que a recebe’” (FAUS, 2009). Francisco
Faus é Licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canônico pela
Universidade de São Tomás de Aquino de Roma.
63
O triplo advento do Cristo na alma, que faz parte do Livro II de Ruysbroeck
–, L´Ornement des Noces spirituelles (RUYSBROECK, 1891), é muito significativo para
a compreensão desse místico.
No capítulo V De la première venue du seigneur en l´home intérier, -se
que: “Mesmo que os olhos sejam claros e a vista sutil, se o objeto amável e gracioso
faz falta, isto não é suficiente para ver e não serve para nada ou para quase nada.
Também Cristo vem mostrar ao olhar claro da inteligência o objeto que ela deve
contemplar, a saber, seu esposo, que nela surge interiormente”
33
.
Assim como São Boaventura e Nicolau de Cusa, Ruysbroeck vê a
aproximação do homem com Deus, através das coisas sensíveis.
Guglielmo D´Alvernnia (1180-1249, Aurillac, França) também faz parte das
anotações de Nicolau de Cusa. De acordo com o pequeno artigo de Brenno
Boccadoro, La musique et les passions l´âme et le corps (2005) e da escassa
literatura a respeito de d´Alvernnia, a sua obra encontra-se nas entrelinhas de um
vastíssimo e bem articulado sistema filosófico, compreendido entre teologia, moral,
psicologia e filosofia natural, bem como nas digressões musicais presentes no
imponente in folio filosófico de Guglielmo D´Alvernnia. Como ilustração do pecado
musical, o De universo se conclui com um amplo afresco sobre o demoníaco e a
quantidade inimaginável da música dos beatos: o anátema culpa a música “lúdica”
dos brincalhões, o teatro cômico e a dança, expressões por excelência da linguagem
não verbal do corpo: espetáculo no qual a condescendência da vontade que se
fascinava pelos sentidos é interpretada ontologicamente como trágica e quotidiana
atualização do pecado original (VECCHIO, 1984)
34
.
Quanto a Mestre Eckhart (1260-1327, Turingia, Alemanha), Nicolau de Cusa o
elogia profundamente: “Laudans ingenium et studium eius” (Apologia Doctae
33
Alors même que les yeux sont clairs et la vue subtile, si l'objet aimable et gracieux fait défaut, cela
ne suffit point pour voir et ne sert de rien ou à peu près. Aussi le Christ veut-il montrer aux yeux
éclairés de l'intelligence l'objet qu'elle doit contempler, c'est-à-dire son Époux qui vient em elle
intérieurement (Tradução livre do francês pela doutoranda).
34
A bibliografia citada que acompanha esse pequeno artigo é: VECCHIO, Silvana. Passio Affectus
Virtus: Il sistema delle passioni nei trattati morali di Guglielmo d’Alvernia”, in: MORENZONI, Franco;
TILLIETTE, Jean Yves (eds.). Autour de Guillaume d’Auvergne, Turnhout, Brepols, 2005. MOTTONI,
Barbara Faes de. Guglielmo d’Alvernia e l’anima rapita”, in: Ibid., p. 55-74. BOCCADORO, Brenno.
La musique les passions l’âme et le corp, in: Ibid. pp. 75-92. PAGE, Christopher. The Owl and the
Nightingale: Musical Life and Ideas in France, 1100-1300, London, 1989. BROOK, H. Der
Tugendbegriff des Wilhelm von Auvergne. München, 1979. LOTTIN, O. Psychologie et morale au
XIIe et XIIIe siècle. Louvain-Gembloux, 1957-1960. SOLIGNAC, A. Passions et vie spirituelle, in:
(orgs.) Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et Mystique, t. 3/1 Paris: 1984.
64
Ignorantiae; Ba71). Estando em Paris de 1311 a 1313, Eckhart se encontra em uma
situação turbulenta, devido à inquisição que conseguiu condenar Margherita Poreto
à fogueira por sua obra Spechio delle anime semplici annientate.
Em meio a esse conflito, Eckhart escreveu a famosa obra Opus Tripartitum,
bem como vários comentários bíblicos. No livro Études sur le mysticisme allemand
au XIVe siécle (1847, p. 13), o autor Ch. Schmidt afirmou que Eckhart “foi
condenado pelo bispo no ano de 1317, devido a seu relacionamento com os
beghards”, mas não se tem nenhuma comprovação científica dessa afirmação. No
entanto, as verdadeiras dificuldades começam em 1325 e no início de 1326, com
algumas frases do seu Libro della consolazione divina (DECROIX, 1908, p. 222), que
são questionadas. A sentença da Santa veio em março de 1329 com a Bula do
Papa João XXII In agro dominico
35
, condenando as 28 proposições dos textos do
Mestre Eckhart. Diz um trecho da sentença:
O pensamento de Eckhart é modelado pelo círculo paradigmático icônico,
cujo núcleo é formado pela imanência e transcendência do Uno, que está
em tudo e, ao mesmo tempo, acima de tudo, age sobre o universo dos
seres que dele dependem e, contudo, permanece intocável na sua
eminência “autárquica”. Da tensão dialética da identidade e da diferença
em toda a realidade, que é imagem (similitudo dissimilis) e, como tal,
afirmação e negação “coniunctium” (ANDRÉ, 1998, p. 62).
A instituição religiosa assentada particularmente sobre segurança, que “exige
controle ou mecanismo de controle, dificilmente convive com as experiências dos
místicos. Ela possui pouca flexibilidade para entender a linguagem ousada dos que
experimentam o inefável mistério (HARADA). Uma das questões mais controversas na
história da espiritualidade é a “difusão das ideias eckhartianas entre o povo,
predicação esta que será retomada graças a Suso, Tauler e os ’amigos de Deus’”
(DE Libera, 1999, p. 33). Entre as suas obras encontram-se: Sermões (Predigten),
em número de 110, em alemão; Sermões em latim; Tratados (Traktate), em vários
volumes, em alemão; Obra tripartite (Opus tripartitum), principal tratado,
fragmentário, com as seguintes partes: Obra das questões (Opus quaestionum),
uma suma teológica; Obra das proposições (Opus propositionum), tratados de
ontologia; Obra das exposições (Opus expositionum), sermões, comentários;
35
A Bula “In agro dominico” se encontra em Eckhart (1963, p. 89).
65
Questões parisienses (Quaestiones parisienses), obra de destaque: Comentários
bíblicos. Fizeram-se várias edições modernas das obras latinas e alemãs, bem
como traduções para outras línguas.
Aspectos apropriados por Nicolau de Cusa são apresentados por Klaus
Reinhardt (2006)
36
, o qual vem lembrar que foi pela Apologia doctae ignorantiae
(1449) que Nicolau de Cusa pôde conhecer e apreciar Mestre Eckhart, consciente
do caráter perigoso de muitas de suas teses. A influência de Mestre Eckhart sobre o
Cardeal é atestada pelas inumeráveis notas marginais feitas em Opus tripartitum,
Comentário do evangelho de São João e do Pai Nosso, assim como dos Sermões.
Uma passagem de Mestre Eckhart aponta para o mesmo ápice da
experiência apresentado por Nicolau de Cusa:
Eis, portanto, como procedem erradamente os que se preocupam com a
questão se Deus opera através da natureza ou mediante a graça. Basta que
Ele opere; e tu, queda-te quieto! Pois na medida em que estás em Deus,
estás na paz, e na medida em que estás fora de Deus, estás fora da paz.
Quanto estejas em Deus, ou quanto não, é algo que podes saber pelo fato
de estares em paz ou não. Pois quando estás descontente e quando te falta
a paz, acontece isto necessariamente, pois a falta de paz vem das criaturas
e o do Criador. Nada existe em Deus que temer se deva. Tudo quanto
está em Deus é amável (ECKHART, 1983, p. 145).
Nos Sermoni Tedeschi encontra-se outra passagem em que os dois
pensadores místicos coincidem:
“Se me perguntassem o que cada criatura procura em cada tendência e
movimento natural, eu responderia: a serenidade” (1985, p. 153)
37
.
No capítulo quinto da obra de Alain De Libera: Eckhart, Suso e Taulero o la
divinizzazione dell´uomo (1999), encontra-se uma comparação interessante entre
esses três místicos sobre o tema do intelecto e o fundo da alma (1999, p. 117s).
Depois de uma crítica fortemente restritiva às possibilidades da ontologia, no
que se refere aos seus recursos de ascensão a Deus, Eckhart destacou a suma
transcendência e sublimidade inefável de Deus. Deus o se reduz a nenhuma
categoria, como fazem os que o conceituam superficialmente. Deus se faz conhecer
36
Klaus Reinhardt é diretor do Institut für Cusanus-Forschung, Universidade de Tréves.
37
Se mi si domandasse, cosa cercano tutte le creature in ogni loro naturale tendenza e movimento,
risponderei: la quiete (1985, p. 153). La quiete pode ser traduzida como serenidade ou como
apathéia.
66
em função do conceito de conhecer, e não do ser. É próprio da criatura haver-se
tornado ser. Deus é em substância o mesmo conhecimento. Advertiu Eckhart: Deus
não conhece porque é, mas é porque conhece. Em termos latinos:
“Como vejo, não é assim que porque seja conhece, mas porque conhece é;
eis que Deus é o intelecto e o inteligir, e o mesmo inteligir é o fundamenteo do
próprio esse”
38
. Este pensamento está calcado no dizer inicial do Evangelho de João
"No princípio era o Verbo” (1,1-3), o Logos.
Não é que Deus não seja ser, mas nele tudo é diferente, tudo é a negação do
que é o ser limitado da criatura. Dali em diante, de negação em negação, Eckhart vai
tentando estabelecer o que é Deus. De um lado, o absoluto, a transcendência de
Deus. De outro lado, a nulidade da criatura, que nada é, nada sabe, nada quer. Ao
reconhecer-se, contudo, imagem de Deus, gera a Deus. No fundo da alma, diz
Eckhart, uma centelha da alma (Selenfuenklein), com a qual se vê a Deus,
dispensando as imagens. Esta expressão pode ser vista apenas como a face
superior da razão humana, a qual dispõe de recursos para a capacidade metafísica
de alcançar Deus. Eckhart tem em mente aqui a doutrina agostiniana da iluminação
divino-natural. O sentido geral da criatura é o retorno a Deus praticado pela alma. O
retorno a Deus se por duas vias, a via negativa da pobreza e a via positiva da
divinização. Uma encaminha à outra. Pela via negativa da pobreza, a alma se afasta
das criaturas, que em si mesmas nada são, pois o que são, o são somente por
Deus. Na medida em que a alma se apega a si mesma, se afasta de Deus.
Despojando-se de si mesma, a alma entra no estado de perfeita pobreza.
Pela via positiva da divinização, a alma passa a receber a graça. Não mais
opera somente a alma, mas também a ação de Deus, ou seja, do Espírito Santo (no
contexto da Trindade cristã). Nessa via positiva da divinização ocorrem elementos
teológicos, onde podem diferir as opiniões, sem que as divergências afetem a
filosofia. Mas, do ponto de vista meramente epistemológico, poderá o filósofo
advertir para o rigor das argumentações, sem as quais tudo dispara no mundo da
fantasia.
Quanto à via negativa da pobreza, pode ser reavaliada dentro do conceito de
que cabe à criatura ver a si mesma como tendo finalidade interna e finalidade
38
"Non ita videtur mihi modo, ut quia sit intelligat, sed quia intelligit, ideo est, ita quod Deus est
intellectus et intelligere, et est ipsum intelligere fundamentum ipsius esse".
67
externa. Então, a finalidade interna poderá ser apreciada como prevista pelo criador;
em consequência, a expressão "pobreza" fica inadequada, ainda que utilizável com
a devida cautela. E a finalidade externa, chamada de a glória de Deus, poderá não
ser senão a finalidade interna vista pela sua outra face; quanto mais se realiza a
finalidade interna, mais se efetiva a externa. Esta finalidade externa, em que a
criatura se diz a glória de Deus, não é senão a via positiva da divinização. Sua
doutrina sobre Deus é globalmente tomista, acentuando, todavia, a teologia
negativa. Eckhart tomou esse “negativo” como ponto de partida do acesso
supraconceptual e místico da alma ao Uno primitivo, Deus.
Para tratar de razão e
39
, se encontram como numa grande encruzilhada as
obras de Dionísio, Alberto e Avicena, autores estudados por Nicolau de Cusa e que
“desembocam” na obra de Eckhart.
Segundo De Libera, mestre Eckhart identifica o santo intelecto albertiano”,
isto é, “o estado profético segundo Avicena” como “o homem nobre” (DE LIBERA,
2003, p. 330) ou alternativamente o que ele chama de homem pobre ou ainda
homem desapegado (détaché). Eckhart reformula a teoria de Avicena do estado
profético por Eckhart como o poder do desapego (le puvoir du tachement) ou
abgescheidenheit, como um poder de elevação da alma (estado designado por
Alberto Magno como divinização do homem). Em outras palavras, esse estado é
descrito como contemplação (cf. LYRA, 2010)
40
.
Da conjunção albertiana ao desapego eckhartiano: “tal é a transformação
conceitual que acompanha a ideia de intelecto adquirido pela escola dominicana
alemã” (DE LIBERA, 2003, p. 333). Discípulo de Alberto, Eckhart continuou em
teologia a obra desenvolvida por seu mestre, em filosofia. Eckhart convida seus
interlocutores e críticos a ultrapassar todos os conceitos, inclusive o de beatitude.
Quando ele fala do homem nobre, quer dizer que este deve ter transposto toda
dimensão idólatra e especulativa para encontrar o conhecimento que não conhece
para além de toda representação la connaissance inconnaissante, en deçà et au-
delà de toute représentation” (DE LIBERA, 2003, p. 335). Aqui se encontra o modelo
da douta ignorância de Nicolau de Cusa.
39
Far-se-ão algumas referências à obra Raison et Foi (2003), de Alain de Libera, que serão
traduzidas livremente do francês pela doutoranda.
40
Ver artigo: Coincidência dos opostos em Nicolau de Cusa:Vida ativa e contemplativa escrito por
Sonia Regina Lyra para a Revista Scintilla, Curitiba, 2010.
68
Somente o que satisfaz a alma, diz Eckhart, “é o nascimento de Deus na alma
e o nascimento da alma em Deus” (DE LIBERA, 2003, p. 336) e não a ideia de
contemplação das inteligências separadas (das abgescheidenen geisten)
mencionadas no sermão 15, ou ainda a imagem ou representação “per medium
creatum, du Dieu créateur de la nature(DE LIBERA, 2003, p. 336). Essa é a mística
da filosofia eckhartiana, que completa e ultrapassa a aristocracia intelectualista de
uma teologia da graça
41
.
uma necessidade de ultrapassar o saber pelo Verbo, uma vez que o
modelo da vida bem-aventurada é cristológico. Para tal, Eckhart cita Lucas (19,12)
42
,
cujo verdadeiro sentido não é uma apologia da visão reflexiva, “mas a da inabitação
interior do Verbo, anunciada por Ezequiel (17,3-4), que não é senão a graça da
Encarnação continuada em cada cristão” (DE LIBERA, 2003, p. 336). Cristo é o
protótipo do “homem desapegado (detaché)” (DE LIBERA, 2003, p. 336) pois, tanto na
Encarnação como na inabitação, Deus une a natureza humana no desapego
(détachement):
Nosso Senhor disse pela voz do Profeta Oseias: “Eu conduzirei a alma
nobre para um deserto e eu falarei ao seu coração” (Os 2,14). O Um com
o Um, o Um do Um, o Um no Um, e no Um, eternamente Um! (DE LIBERA,
2003, p. 337).
Para Eckhart, encontrar esse Um é de certa forma perdê-lo
43
. O homem
verdadeiramente nobre é então aquele que “retorna” para Deus e que também não
“sai” de Deus, “aquele que resta depois do Verbo, que se faz “advérbio” (bîwort) do
Verbo (wort), aquele que não conhece a queda mística, no momento o mais sublime
de união deificante in via” (DE LIBERA, 2003, p. 337).
Em seguida surge Enrico Suso (1293/95-1366, Constanza) como outro dos
grandes pilares do pensamento Cusano. Torna-se famoso pela sua vida penitente,
junto ao Mestre Eckhart e a João Tauler. Foi um dos mestres da escola de
41
Para De Libera, La signification du terme mystique appliqué à Eckhart reste donc idiosyncrasique.
La ‘mystique’ eckhartienne est la philosophie continuée par la grâce(2003, n. 65, p. 491). Para uma
releitura do tema da mística, ele convida a uma série de títulos, entre eles: Nichts und Negation.
Meister Eckhart und Nikolaus Von Kues, in: MOJSICH, B.; PLUTA, O. (eds.). Historia philosophiae
Medii Aevi. Stueien zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters. Amsterdam/Philadelphie: Grüner
Verlag, 1991, p. 675-693.
42
Disse, pois: Certo homem nobre partiu para uma terra remota, a fim de tomar para si um reino e
voltar depois (Lc 19,12).
43
“Revenir” c´est d´une certaine manière perdre l´Un (DE LIBERA, 2003, p. 336).
69
espiritualidade dominicana dos místicos renanos. Aos 18 anos, teve uma visão da
sabedoria eterna, da qual se tornou fervoroso apóstolo, e, por isso, foi chamado de
Amandus. Começou assim uma vida de intensa oração, penitencia e união com
Deus, quando mandou queimar sobre o peito (tatuou) o monograma IHS, como sinal
de pertença total a Cristo.
Esteve envolvido no processo por heresia que foi levantado contra Eckhart e
precisou desculpar-se também ele diante de um capítulo da Ordem Dominicana tido
em Anversa em 1327. Episódio extremamente doloroso, este consta de sua
autobiografia:
Com o coração trêmulo, ele foi submetido a julgamento. Foi acusado de
muitas coisas, entre as quais a de ter composto livros que continham uma
falsa doutrina, que contaminava todo o país com a sua doutrina herética.
Por isso, foi muito maltratado, tocando-lhe um discurso muito duro (DE
LIBERA, 1999, p. 51)
44
.
Enrico Suso disse que o altíssimo grau da vida espiritual consiste na união
com Deus em visão, amor e alegria inexprimível, e compreendia assim a única via
que conduz a Deus: depor a forma criada, conformar-se a Cristo, transformar-se em
Deus. Escreveu o Livrinho da verdade, o Livrinho da sabedoria eterna, O relógio da
sabedoria, o Livro das cartas, com 11 epístolas e outras obras ascéticas e religiosas.
Do seu colóquio íntimo com A eterna sabedoria, restam testemunhos nas
suas obras, que – como o Livro da Vida, o Livro da Eterna Sabedoria e o Relógio da
Sabedoria – deixaram uma notável marca na espiritualidade cristã.
A obra de Suso está essencialmente compilada a partir de um material que na
época foi chamado de Exemplar e que compreende: autobiografia; o livro da
Sabedoria Eterna; o livro da verdade e o pequeno livro das cartas. O prólogo do
Exemplar, segundo De Libera (1999), apresenta a fisionomia intelectual dos quatro
bons livros que o compõem:
“O primeiro trata, acima de tudo, sob forma de imagens, do início de uma vida
e ensina de maneira velada em qual ordem, segundo quais regras, aquele que
começa deve dirigir o homem exterior e o homem interior, segundo a amabilíssima
vontade de Deus [...]. O segundo livro contém um ensinamento de caráter geral: tem
44
Con il cuore tremante egli fu messo sotto giudizio. E lo si accusò di molte cose, tra le quali di aver
composto libri contenenti una falsa dottrina, che insozzava l´intero paese con la sua impurità eretica.
Per questo lo si trattò molto male, tenendogli discorsi molto duri (DE LIBERA, 1999, p. 51).
70
como tema a contemplação de Nosso Senhor e indica de que modo se deve dar
início a viver interiormente, a morrer santamente e outras coisas análogas [...]. O
terceiro livrinho [...] responde ao aspecto seguinte: dato que no nosso tempo certas
pessoas ignorantes, e todavia espirituais, interpretaram falsamente os pensamentos
antigos contidos nos santos escritos dos mestres, segundo a sua própria doutrina
desordenada, transcrevendo-os a seu modo e não segundo aquilo que queriam dizer
tais santos escritos, este livro mostra de que maneira dedicar-se a esses
pensamentos antigos seguindo um caminho reto e a verdade simples, como esse
caminho pode ser encontrado por inspiração divina e no sentido do pensamento
cristão. Quanto ao quarto [...], a filha espiritual [= Elsbet Stagel] reuniu todas as
cartas que ele [= Suso] lhe escreveu, bem como a outros filhos espirituais, tendo,
com estes, compilado um livro. Ele pegou uma parte destas mesmas cartas e as
resumiu como aqui se encontra. A intenção deste livrinho é de dar alguma distração
e consolo a um espírito destacado”
45
.
Segundo De Libera, o centro organizador da obra de Suso se encontra na
definição do verdadeiro abandono: “Um homem desprendido não deve mais ter
imagem da criatura, [deve] estar conformado [formado] com Cristo e sobremaneira
[isto é, formado de maneira eminente] na deidade” (DE LIBERA, 1999, p. 61). Hass,
seu tradutor para o italiano, entendeu isso da seguinte forma: “Um homem
destacado não deve mais ter imagens da criatura, [deve] estar “immaginato”
[formado] com Cristo e “supraimaginado” [isto é, formado de modo eminente] na
deidade”
46
.
45
Il primo tratta dappertutto, sotto forma di immagini, degli inizi di una vita e insegna in maniera velata
in quale ordine, secondo quali regole colui che comincia deve dirigere l´uomo esteriore e l´uomo
interiore secondo l´amabilissima volontà di Dio [...]. Il secondo libro contiene un insegnamento di
carattere generale: há come tema la contemplazione di Nostro Signore e indica in qual modo si deve
imparare a vivere interiormente, a morire santamente e altre cose analoghe [...]. Il terzo libretto [...]
risponde al seguente disegno: dato che nel nostro tempo certe persone ignoranti, e tuttavia spirituali,
hanno interpretato falsamente gli alti pensieri contenuti nei santi scritti dei maestri, secondo la loro
propria dottrina disordinata, trascrivendoli a modo loro e non secondo ciò che volevano dire tali santi
scritti, questo libro mostra in qual modo impegnarsi tra questi alti pensieri seguendo la retta via e la
semplice verità, come essa via vi si trova ispirata da Dio e nella accezione del pensiero cristiano.
Quanto al quarto, [...] la figlia spirituale [= Elsbet Stagel] raccolto tutte Le lettere che egli [=Suso]
scritto a lei e ad altri figli spirituali e ne compilato um libro. Egli preso uma parte di queste
stesse lettere e le compendiate come le si trova qui. L´intenzione di questo libretto è di dare
qualche svago e consolazione a uno spirito distacato (DE LIBERA, 1999, p. 53). Cf. Tb. SUSO, H.
Prologue de l´Exemplaire, trad. J. Ancelet-Histache, in: SUSO, Oeuvres completes, op. cit., pp. 151-
152.
46
“Ein gelassener mensch muss entbildet werden von der creatur, gebildet werden mit Cristo, und
überbildet in der gotheit. Hass, o seu tradutor para o italiano, entendeu isso da seguinte forma: Un
71
Essere immaginato, isto é, con-formado à imagem de Cristo constitui a sua
palavra-chave. Essa palavra significa uma mudança de paradigma na mística
renana, ao passar da mística da essência à mística do sofrimento e do amor, que se
verifica entre Suso e Eckhart. Em Eckhart a superação das imagens e o desapego,
entendido como conhecimento que não conhece (conoscenza non conscente) ou
pobreza de espírito, são os caminhos reais do abandono.
Em Suso o sofrimento é tomado como sinal e como meio exclusivo de uma
total abnegação da própria vontade. O significado de gelâzenheit, reivindicado por
Eckhart, é diferente do entendido por Suso. Para Eckhart é um lasciare”, deixar, em
sentido próprio, que é tomado juntamente com laszen e sein laszen e para Suso é
aquilo que se entende propriamente por “abandono” (DE LIBERA 1999, p. 61).
Quando Eckhart fala de “conformar-se a Cristo” (DE LIBERA, 1999, p. 61), pensa na
sua divindade, enquanto que Suso pensa na sua humanidade na cruz.
Para Eckhart, trata-se de abandonar a si mesmo, deixando o Verbo nascer no
fundo na alma, enquanto que para Suso trata-se de “tornar-se uma imagem
expressa do crucificado” (DE LIBERA 1999, p. 62), que, segundo São Boaventura, é
tomada de são Francisco de Assis (1181/1182). Eckhart tem por fim a deificação do
cristão e a graça da impetuosidade (inabitazione), que prolonga a graça da
encarnação. Ainda que tenha em mente, no Pequeno livro da verdade, a deificação,
Suso fala apenas da Paixão, que é o “único tesouro dos pobres” citado na carta
XXVIII.
Tratando ainda das diferenças entre ambos, De Libera cita J. Ancelet-
Hustache, que sublinha como Mestre Eckhart estava, acima de tudo, preocupado
com a doutrina, enquanto Suso dizia ter tido ele mesmo a experiência mística da
qual falava. Parece justo, diz de Libera, que o que se passa são dois modelos
diferentes de teologia: um centrado na deificação e o outro na paixão. O fato é que,
para além dessas diferenças, ainda está o ponto crítico frisado por outros autores de
que não é a gelânzenheit, mas sim a imitação de Jesus Cristo uma condição
suficiente para a deificação.
Outro dominicano que vem embasar o pensamento de Nicolau de Cusa é
João Tauler (1300-1361, Strasburg). O fundo da alma e o nascimento do filho, o
uomo staccato non deve più avere immagini della creatura, [deve] essere “immaginato” [formato] con
Cristo e “sovraimmaginato” [cioè formato in maniera eminente] nella deità” (DE LIBERA, 1999).
72
Verbo de Deus, constituem o tema principal da predicação de Tauler. No seu
sermão n. 1, Tauler explica que “Deus nasce espiritualmente através da graça e do
amor em cada instante e incessantemente em nós” (DE LIBERA, 1999, p. 67)
47
.
Essa ideia que prepara o nascimento e a morada do Verbo surge como um
eco possante da teoria de Eckhart sobre a divinização da alma. De acordo com De
Libera, essa divinização, tal como é descrita por Tauler, é como “a divina e
sobrenatural unidade de união através da qual a alma é atraída e absorvida no
abismo do próprio princípio [Sermão 70, § 6]“ (DE LIBERA 1999, p. 67)
48
. Essa união é
descrita em termos de graça, no duplo registro da conversão ou do retorno operado
no abandono do criado e da passividade. Pode-se falar também, nesse caso, de
dois tempos diferentes, mas, de um mesmo processo. O lugar do retorno, onde
nasce o Verbo, é o lugar ao qual a alma acede, penetrando em si mesma, através
de todas as imagens e operações; é o lugar da interioridade absoluta onde reside o
mistério do Uno, o deserto onde, segundo Oseias 2,16
49
, “Deus fala ao coração do
homem” (DE LIBERA 1999, p. 68). Para Tauler, a prática ascética que conduz ao
deserto, onde soa a Palavra, é o abandono (distacco), vivido como um verdadeiro
itinerário, como um processo que requer tempo, esforço e progresso. Assim como
Suso, também Tauler diferencia os estágios evolutivos do processo ascético entre o
principiante, o proficiente e o perfeito. De sua obra restam 83 Sermões
50
, reeditados
durante a Renascença e a Modernidade. Para sintetizar a sua doutrina, surge um
escrito denominado Instituições. A mística de Tauler se manteve na linha de
pensamento de Eckhart, ainda que seguindo o pensamento tomista, mas com
ressonâncias do neoplatonismo de Porfírio e Proclo.
2 Peculiaridades da mística de Nicolau de Cusa: de como saber é ignorar
“Só sei que nada sei” é o dito de Sócrates
51
que Nicolau de Cusa parece
acompanhar. O processo que conduz a este conhecimento é um caminho indefinido,
47
Dio nasce spiritualmente attraverso la grazia e l´amore ad ogni istante e incessantemente in noi (DE
LIBERA, 1999, p. 67).
48
La divina e soprannaturale unità di unione attraverso la quale l´anima è attratta e assorbita
nell´abisso del próprio principio (DE LIBERA, 1999, p. 67).
49
“Por isso a atrairei, conduzi-la-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração” (Os 2,16).
50
Tradução dos sermões do latim, por Surius, Colônia, 1603. Edição em Francês, de acordo com
Surius, Noel, 8 vols., Paris, 1912-1913.
51
O filósofo grego Sócrates (470 a.C.–399 a.C.), inventor da maiêutica, não deixou escritos. As
citações a ele atribuídas estão, em geral, presentes nos trabalhos de Platão.
73
permeado por conjecturas (De coniecturis), onde o lema é tentar sempre outra vez
captar novos pontos de vista. Este conhecimento conjectural, de acordo com
Hirschberger (1966), “é uma ciência dos arquétipos” (HIRSCHBERGER, 1966, p. 258).
Diz ainda este autor que é “a teoria das ideias e o pensamento da participação que
permitem ao Cusano fazer uma crítica dos limites do nosso conhecimento, sem cair
no ceticismo” (HIRSCHBERGER, 1966, p. 258). É essa ideia o pressuposto de tudo, e
tudo dela participa abrindo caminho assim para uma teoria do conhecimento.
Para Hirschberger (1966), a docta ignorantia assume para o Cusano “um
sentido místico” (HIRSCHBERGER, 1966, p. 259), referindo-se com isso “a uma
intuição do Deus invisível, pela qual nos despimos de todo conceito e de toda
imagem e fazemos calar tudo o que de ordinário fala em s: Mystica theologia ducit
ad vacationem et silentium, ubi est visio... invisibilis Dei (CUSA, 2008a, p. 7). Cai-se
assim na escuridão. Mas esta é a luz e a ignorância é o caminho, “que trilham todos
os sábios, antes e depois de Dionísio” (HIRSCHBERGER, 1966, p. 259).
Rotta (1942) aponta para uma nova lógica estabelecida por Nicolau de Cusa
com a docta ignorantia e sua aplicação para os grandes problemas: o teológico e o
cosmológico. Essa nova lógica, “ou dir-se-ia melhor, Dialética do Cusano começou a
existir na substituição fundamental do conceito de infinito e do conceito de finito”
(ROTTA, 1942, p. 171). Ao partir do conceito de infinito, “vinha desvalorizar o
significado da lógica tradicional, enquanto essa era processo para dividir e unir, para
análise e para síntese, sempre no âmbito dos distintos” (ROTTA, 1942, p. 171).
Nicolau de Cusa parte, não da multiplicidade para o Uno, mas do Uno para além de
toda distinção para a multiplicidade, porque é “matriz de tudo que o se anula
totalmente” (ROTTA, 1942, p. 171). Segundo Rotta, a docta ignorantia do Cusano
“teve presente tanto o problema da relação entre o uno e os muitos, entre infinito e
finito, quanto a valorização dos primeiros princípios” (ROTTA, 1942, p. 172).
O que diferencia imediatamente a docta ignorantia de Nicolau de Cusa de
Santo Agostinho e de São Boaventura é que, para ele, essa “não é um estado de
ânimo, como o era geralmente para os místicos, mas uma tentativa de
demonstração racional da incompreensibilidade necessária ao homem” (ROTTA,
1942, p. 172).
Um dado interessante é que em Nicolau de Cusa, para Rotta, não se pode
falar de analogia “porque a analogia, postula sempre um processo de afirmação, que
parte dos finitos para aproximar-se do infinito” (ROTTA, 1942, p. 174). Desse modo,
74
enquanto no aristotelismo “a indefinibilidade do Uno é o ponto de partida e a
analogia é o único modo de remediar isso até certo ponto” (ROTTA, 1942, p. 175),
para Nicolau de Cusa, segundo Rotta (1942), “o conhecer não é mais que
explicação de uma virtualidade que está toda contida no intelecto, de um fazer-se,
que no seu valor formal de conhecimento racional, tudo deve à mente que faz; tudo
isto está em função de uma atividade que está em nós e apenas em nós, e que
tocando, por assim dizer, com o seu sigilo isto que é a matéria bruta incoerente dos
sentidos, a transforma, mediante a função do juízo, em conteúdo do nosso saber”
(ROTTA, 1942, p. 176).
Pensar é para o Cusano “conjecturar, estabelecer relações, dei nexus, como
ele diz; intelligere est assimilare, eis a sua rmula” (ROTTA, 1942, p. 176). Não se
trata então de criar no intelecto aquilo que não existe em nós, mas sim de
desenvolver em nós aquilo que está em nós virtualmente. A partir dessa
virtualidade, o Cusano pensará o conceito de Trindade de Deus como uma
necessidade do intelecto: a posse, que é a virtualidade intrínseca e indeterminada
do intelecto, o outro da pura posse, elemento esse com função de determinante, o
nexus que é a relação que se estabelece entre aquela e este no ato concreto do
conhecer. “Este, no fundo, se resolve sempre na identidade da posse, enquanto se
resolve em consciência que o indeterminado tem de si mesmo por aquela parte da
sua indeterminação que lhe é determinada” (ROTTA, 1942, p. 178).
A proposta lançada por Nicolau de Cusa e que acompanha a busca da
compreensão pela douta ignorância é conhecer a “natureza da própria maximidade”
(CUSA, 2003, p. 5), por ser ela a máxima doutrina da ignorância. Quer-se com isto
alcançar o nível mais alto possível do conhecimento e, simultaneamente, descobrir
tal maximidade no nível da ignorância, isto é, do não saber.
Assim, observa-se existir dentro das coisas, pelo divino desempenho, um
certo desejo natural de ser, pelo qual a condição de cada natureza é passível. Além
do que, observa-se que as coisas têm instrumentos oportunos a se perfazer para
esse fim. Ao propósito de conhecer, convém que aconteça ao intelecto como
acontece com o apetite, ao qual precede a sensação de fome. É por isso, diz o
Cusano, “que dizemos que um intelecto são e livre conhece a verdade que
insaciavelmente deseja atingir, explorando todas as coisas com um processo
discursivo que lhe é inerente, e a apreende num amplexo amoroso” (CUSA, 2003, p.
3).
75
A precisão, porém, das combinações nas coisas corporais e a adaptação
côngrua do conhecido ao ignoto avançam por sobre e para além da razão humana,
de tal forma que a Sócrates foi dado ver que ele “nada sabia, a não ser que
ignorava” (CUSA, 2003, p. 4), e o Salomão sapientíssimo assevera que “todas as
coisas são difíceis e inexplicáveis pela linguagem” (CUSA, 2003, p. 4); um certo outro
homem de espírito divino disse serem ocultos a sabedoria e o lugar da inteligência
aos olhos de todos os viventes. Se, portanto, isto é assim, como afirma também
Aristóteles, profundíssimo, na Prima Philosophia, que tal dificuldade nos sucede nas
coisas as mais manifestas pela natureza, como sucede à coruja que tenta ver o sol;
e certamente porque o apetite em nós não é em vão, “o que desejamos é saber que
ignoramos” (CUSA, 2003, p. 4/5).
Se pudermos alcançar isto em plenitude, alcançaremos a douta ignorância,
pois ao homem, também ao mais empenhado na doutrina, nada lhe advém de mais
perfeito do que se achar doutíssimo (doctissimum) na própria ignorância que lhe é
própria. E quanto mais douto for alguém, tanto mais se saberá ignorante.
Esta tão famosa quanto paradoxal afirmação de Nicolau de Cusa quer
conduzir à investigação do alcance e do sentido do conhecimento humano, sendo
este aspecto um dos mais originais do seu pensamento.
3 A matemática como símbolo
A exatidão da matemática é buscada por Nicolau de Cusa não por ela
mesma, mas para criar uma ciência da natureza. Mais que isso, para fundamentar o
conhecimento de Deus. Este conhecimento se constitui inicialmente através da
comparação, o que implica levar em conta a proporção através da qual se pode
perceber o modo de se relacionar dos termos envolvidos no conhecimento. Tal
processo “não pode ser levado a cabo, nem entendido sem o número” (CUSA, 2007,
p. 130). O número provém da unidade e termina na diversidade. Segundo Ernst
Cassirer (1965)
52
, essa perspectiva pode ser o indicador do Cusano como marco
para a modernidade, uma vez que: “O pensamento de Nicolau de Cusa, nos diz,
desempenha um rol precursor da modernidade, porque com o apelo ao
conhecimento matemático é gerada a inversão da relação medieval de sujeito-
objeto” (CASSIRER, 1993, p. 71ss).
52
Citado por Machetta (2007).
76
É assim que no conhecer passa-se do conhecido ao desconhecido e o
progresso nesse conhecimento depende de se encontrar um ponto ou algum
aspecto que lugar para uma comparação, uma medição ou uma proporção entre
ambos os pólos. Nota-se no comentário de Machetta que “é imprescindível que haja
algo que seja comum a cada um dos pólos de comparação” (CUSA, 2007, p. 130)
caso contrário não poderia se estabelecer uma relação entre eles. Suprimindo o
número “cessam a distinção, a ordem, a proporção, a harmonia das coisas e, além
disso, a mesma pluralidade dos entes” (CUSA, 2007, p. 131). Desse modo o
progresso no exercício do conhecimento não é senão “explicitar uma relação” (CUSA,
2007, p. 131). Essa relação pode ser entendida como símbolo.
Os símbolos, segundo o Cardeal, contêm uma plenitude e uma força sensível
e, acima de tudo, um rigor e uma certeza intelectual. A função da matemática como
símbolo é propedêutica, isto é, convém utilizá-la como introdução, como condição da
possibilidade de aproximação do absoluto, divino e eterno.
O que é procurado através do símbolo é Deus. O método utilizado é a
teologia dialógica ou teologia negativa, pela qual se superam as limitações do
discurso por negações, assim como, por uma teologia e filosofia do símbolo e da
interpretação embasadas por uma forma de symbolica investigatio, que, aplicada ao
divino, surge como uma aenigmatica scientia.
De acordo com Klaus Reinhardt (2005), o Cusano “utiliza indistintamente os
termos imago, similitudo, signum, exemplum, symbolum, figura, aenigma,
paradigma, parabola, speculum, umbra(REINHARDT, 2005, p. 423). O uso frequente
dessas figuras retóricas está de acordo com o fato de que nessa teoria do
conhecimento a verdade precisa é inalcançável. Mesmo que os símbolos tenham um
valor meramente transitório, constituindo apenas a primeira etapa do caminho que
conduz ao conhecimento intelectual da verdade, que, por fim, aparecerá sem a
mediação de imagens nem de símbolos, o objetivo é utilizá-los como parte das
conjecturas necessárias à busca.
As figuras matemáticas ocupam um posto mais elevado que os nomes de
Deus como símbolos, pois “ocupam um lugar superior ainda que estejam
determinadas pelo qualitativo, porque são entidades incorruptíveis, livres da
caducidade do material” (REINHARDT, 2005, p. 426). Num nível ainda mais alto,
encontram-se os nomes que comparam Deus com uma perfeição espiritual do
77
mundo, “como, por exemplo, Deus é espírito, amor e onipotência” (REINHARDT, 2005,
p. 426).
Assim como para Santo Tomás de Aquino as imagens e os símbolos
pertencem ao campo da predicação e da meditação devota, encontra-se em Nicolau
de Cusa uma valoração muito positiva das metáforas e das imagens. Para
Reinhardt, “essa visibilidade do invisível não contradiz de modo nenhum a teologia
negativa” (REINHARDT, 2005, p. 432); muito pelo contrário, essas tendências se
condicionam mutuamente, sendo que o mesmo ocorre com outros autores, como
São João da Cruz.
A filosofia de Nicolau de Cusa, de acordo com o pensamento contemporâneo
é tida como uma “filosofia da mente ou do espírito” (REINHARDT, 2005, p. 432), sendo
que o espírito tende a representar-se, “comunicar-se ou expressar-se a si mesmo”
(REINHARDT, 2005, p. 432), realizando-se a si mesmo enquanto “se reproduz e se
reflete por imagens e autorepresentações” (REINHARDT, 2005, p. 432). Nicolau de
Cusa na autorepresentação “precisamente a essência do espírito” (REINHARDT,
2005, p. 432). Para o Cusano, além de ser o trampolim para níveis mais elevados de
uma visão intelectual, os símbolos têm um valor em si “como objetos de prazer do
seu criador” (REINHARDT, 2005, p. 433), dizendo com isso que o ser infinito do
espírito criador aparece nas coisas e não apenas para além delas.
Essa reflexão cusana acerca da essência da mente e do espírito como
autorepresentação constitui um novo modo de valorar as imagens e os símbolos,
apontando para uma das novidades que marcam a passagem entre a mística
medieval e a mística moderna.
Assim pensando, o Cardeal propõe que, ainda que todas as coisas tenham
entre si uma certa proporção oculta e incompreensível, pode-se por isso mesmo,
através da comparação, apreender o criador, que pode ser “cognoscivelmente visto
pelas criaturas como num espelho e por enigmas” (CUSA, 2003, p. 22-23). Citando a
Carta aos Romanos 1,20, do Apóstolo Paulo, o Cusano indica que “as coisas
visíveis são verdadeiramente imagens do invisível” (CUSA, 2003, p. 22)
53
querendo
com isso dizer que as coisas espirituais, embora inatingíveis, podem ser
investigadas simbolicamente.
53
Invisibilia enim ipsius a creatura mundi per ea quae facta sunt intellecta conspiciuntur, sempiterna
quoque eius virtus et divinitas” (Rm 1,20).
78
Uma vez que o caminho para o incerto é pressuposto através do que é e se
tem como certo, então a investigação através da imagem exige que não se tenha
sobre esta nenhuma dúvida, uma vez que nessa “proporção transsumptiva se
investiga aquilo que é desconhecido” (CUSA, 2003, p. 23).
Para Nicolau de Cusa foi Boécio quem indicou esse caminho, ao afirmar que
“ninguém que fosse totalmente privado da prática das matemáticas poderia atingir a
ciência das coisas divinas” (CUSA, 2003, p. 24); foi ele, por sua vez, que apresentou
Pitágoras como o primeiro filósofo a colocar nos números toda a investigação da
verdade. Do mesmo modo, recorrem às matemáticas Santo Agostinho, ao dizer que,
“no espírito do criador, foi o número o principal modelo” (CUSA, 2003, p. 24) e
também Aristóteles, em seu dito: “Tal como o triângulo está no retângulo, assim o
superior está no inferior” (CUSA, 2003, p. 24).
O número é, porém, um ente da razão, forjado pela faculdade de distinguir
através de comparações, pressupondo necessariamente a unidade como seu
princípio, “de tal maneira que sem ele seria impossível haver número” (CUSA, 2003,
p. 12). O número inclui, pois, “todas as coisas susceptíveis de proporção” (CUSA,
2003, p. 4), sem o qual cessariam todas as distinções das coisas, assim como a
ordem ou a harmonia ou a pluralidade dos entes, sendo por isso que o infinito
enquanto infinito escapa a toda e qualquer proporção.
Diante dessa busca de Deus, o que se deseja é saber que se ignora. Se for
possível chegar a isso plenamente, então, diz o Cusano, “atingiremos a douta
ignorância” (CUSA, 2003, p. 5).
3.1 A unidade
Diz-se unidade àquilo que une todas as coisas, sendo a unidade infinita a que
“é a complicação de tudo” (CUSA, 2003, p. 75) e, por isso mesmo, a própria
complicação do número. O número por sua vez é o que explica a unidade, “não se
encontrando senão na unidade” (CUSA, 2003, p. 76). Assim diz o Cardeal, em todas
as coisas que são “não se encontra senão o máximo” (CUSA, 2003, p. 76). Entenda-
se, diz Nicolau de Cusa, que quando se diz máximo e quando se diz mínimo, fala-se
de “vocábulos transcendentes de significação absoluta, de modo que, por sobre toda
contração à quantidade de um corpo ou de uma força, abracem tudo em sua
simplicidade absoluta” (MACHETTA, in: CUSA, 2007, p. 133). A essa unidade, que não
coincide com nenhum número, e que deve ser considerada como princípio de onde
79
o número provém e simultaneamente fim, termo, meta na qual se conclui, o Cusano
denominou unidade absoluta.
A partir dessas considerações enunciadas por Nicolau de Cusa, pensa-se
que:
Somos levados pelo número a isto: que possamos entender que a Deus
inominável convém como o mais próximo da unidade absoluta e que Deus é
de tal maneira uno que é em ato tudo aquilo que é possível. Devido a isso, a
mesma unidade não recebe mais nem menos, nem tampouco é
multiplicidade. Em consequência a deidade é a unidade infinita (MACHETTA,
in: CUSA, 2007, p. 133).
O círculo, segundo o Cardeal, “é a figura perfeita da unidade e da
simplicidade” (CUSA, 2003, p. 47). Como tal, ele é utilizado para indicar a
transsumpção ou transposição do círculo infinito à unidade, expressão esta com a
qual inicia o capítulo XXI do livro I da douta ignorância.
Uma linha infinita é uma reta: Mais um círculo é grande, menos sua
circunferência é curva e mais ela é uma reta. Conclusão: a curvatura da linha
máxima é uma retitude.
As quatro proposições seguintes apresentam os paradoxos do infinito:
a) A linha infinita é um triângulo, um círculo e uma esfera.
b) A linha infinita é um triângulo máximo.
c) O triângulo máximo é um círculo.
d) A linha infinita é uma esfera.
Ou seja:
A linha infinita é um triângulo, um círculo e uma esfera.
80
a) A linha infinita é mais longa e a mais reta.
b) Uma linha em rotação parcial forma um triângulo.
c) Uma linha em rotação completa forma um círculo.
d) Um meio círculo em rotação sobre o seu diâmetro forma uma esfera.
Conclusão:
O infinito é triângulo, círculo e esfera.
A linha infinita é o triângulo máximo: demonstra-se isso denominando-os de
lados.
a) Não existe senão um máximo infinito único.
b) A soma dos dois lados de um triângulo é superior ao terceiro lado
(ab+bc>ac).
c) Uma parte do infinito é infinito. Se um lado é infinito, então os outros dois
também o são.
d) Existe um único infinito. Por isso, o triângulo infinito não tem senão uma
única linha infinita.
e) O triângulo infinito é o mais verdadeiro. Por isso, ele tem três lados e a
linha infinita é uma em três.
f) Acontece o mesmo com os ângulos.
81
Conclusão: Linha infinita e ângulo infinito são a mesma coisa.
Desse modo, a linha infinita é o triângulo máximo, demonstrado pela medida
dos ângulos.
a) A soma dos ângulos de um triângulo é igual aos dois direitos. Por isso,
quanto mais um ângulo aumenta, mais os outros diminuem.
b) Um triângulo, do qual um ângulo perfaz 180º, tem um só ângulo que de fato
é três.
c) A soma dos dois lados de um triângulo é portanto superior ao terceiro lado
onde seu ângulo é agudo.
d) Corolário
54
: Quanto mais o ângulo é obtuso, mais a soma dos dois lados é
igual ao terceiro lado (a superfície diminui).
Conclusão: A linha infinita é o triângulo máximo.
O triângulo máximo é um círculo:
Isto se deve ao fato de:
a) Uma linha ab forma por rotação um triângulo abc. Se ab é infinita, forma
pela rotação completa um círculo infinito.
b) A porção do arco BC é uma linha reta.
c) Uma parte do infinito é infinita. Por isso, bc é a circunferência do círculo
máximo.
d) Portanto, o triângulo abc é o círculo máximo.
e) bc é uma linha reta. Por isso, ab não é maior que bc.
f) Não podem existir dois infinitos. Por isso, ab e bc são uma única linha.
54
1. Lóg. Proposição que é inferida a partir de uma proposição anterior demonstrada, sem ser
acompanhada de demonstração ou comprovação adicionais. 2. P. ext. Fato ou situação decorrente
de outro, resultante deste; aquilo que é consequência ou desenvolvimento natural ou ocasional de
82
Conclusão: a linha infinita é um triângulo e é um círculo.
A linha infinita é uma esfera, pois:
a) ab é a circunferência do círculo máximo.
b) ab forma o triângulo abc.
c) bc é a linha infinita e é o círculo máximo.
d) Por isso, ab recomeça em c pelo retorno completo sobre si mesmo.
e) O círculo infinito forma, pelo retorno sobre si, uma esfera.
Conclusão: abc é um círculo, é um triângulo, é uma linha infinita e é uma
esfera.
Ainda que aparentem ser razoáveis, essas demonstrações devem ser
entendidas mais intuitivamente do que por sua própria demonstração.
Seguindo as intuições matemáticas do Cardeal, entre as matemáticas pode-
se pensar ainda o ponto.
Com relação à quantidade que explica a unidade, pode-se usar o ponto como
exemplo. Em toda quantidade, tudo que há, segundo Nicolau de Cusa, é o ponto,
pois, em qualquer parte da linha está o ponto e onde quer que ela seja dividida
está apenas o ponto, ocorrendo o mesmo com toda superfície e corpo. A linha é,
então, a primeira explicação do ponto. Nesse sentido o ponto não é diferente da
própria unidade infinita, que é o termo, a perfeição e a totalidade tanto da linha
quanto da quantidade.
Da mesma forma, “o repouso é a unidade que complica o movimento, que é o
repouso seriadamente ordenado” (CUSA, 2003, p. 76), assim como “o movimento é a
explicação do repouso” (CUSA, 2003, p. 76). Igualmente o tempo pode ser assim
entendido: “o agora ou o presente complica o tempo” (CUSA, 2003, p. 76), enquanto
que o próprio tempo desdobrado em passado e futuro é a explicação seriada do
tempo “não se encontrando nele senão o presente” (CUSA, 2003, p. 76). Sendo esse
presente a própria unidade, é também a complicação de todos os tempos. Em outros
termos, é Deus mesmo quem tudo complica pelo fato de que “tudo está nele” (CUSA,
2003, p. 77), sendo ainda o que tudo explica pelo fato de que “ele está em tudo”
(CUSA, 2003, p. 77). A questão que Nicolau de Cusa deixa em aberto é que “o modo
da complicação e da explicação excede a nossa mente” (CUSA, 2003, p. 77).
algo anterior; Resultado: Nem sempre a dedicação tem por corolário o sucesso. 3. Continuação ou
prosseguimento de um raciocínio, de um argumento [F.: Do lat. corolarium.]
83
Machetta (2007, p. 138) destaca na Revista Scintilla a diferença fundamental que
deve ser observada entre unidade contracta e unidade absoluta.
Pelo que a unidade absoluta está desvinculada de toda pluralidade. Porém,
a unidade contracta, que é o universo uno, ainda que seja o uno máximo,
posto que é contracto, não está desvinculado da pluralidade, ainda que não
seja senão o máximo contracto (2007, p. 138).
Isto quer dizer que, sempre que se pensar em contração deve-se pensar
também em pluralidade e, por conseguinte, também no máximo como contracto.
3.2 Os símbolos matemáticos
A partir da ideia desenvolvida anteriormente sobre o ponto como complicação
(complicatio) e a linha como explicação (explicatio) do ponto, tomar-se-á agora
como base da investigação como a linha enquanto infinita é triângulo, como já
proposto no modelo exposto.
De acordo com Nicolau de Cusa, se queremos usar elementos finitos como
exemplos para ascender ao máximo simples, “é necessário considerar primeiro as
figuras matemáticas finitas com as suas paixões e razões, transferir
correspondentemente estas razões para figuras infinitas e depois, em terceiro lugar,
transpor as próprias razões das figuras infinitas para o infinito simples, totalmente
liberado de qualquer figura” (CUSA, 2003, p. 25).
Para o Cardeal, se houvesse uma linha infinita, ela seria também reta, seria
triângulo, seria círculo e seria esfera. Tome-se, por exemplo, uma linha infinita reta
AB. Nela “o diâmetro do círculo é uma linha reta e a circunferência é uma linha curva
maior que o diâmetro” (CUSA, 2003, p. 27). Se a linha curva diminui na sua curvatura
tanto quanto uma circunferência em um círculo menor, então a circunferência de um
círculo máximo é minimamente curva e maximamente reta. É quando o máximo
coincide com o mínimo.
84
Olhe-se agora para o arco CD e perceba-se que se afasta mais da curvatura
que o arco EF, enquanto este se afasta mais que o arco GH do círculo mais
pequeno. É devido a isso que a linha AB “será o arco do círculo ximo que não
pode ser maior” (CUSA, 2003, p. 27). Note-se então que a linha máxima e infinita é
reta, não se opondo à curvatura, mas sim, que a própria curvatura na linha máxima é
retitude.
Para demonstrar como a linha é triângulo, Nicolau de Cusa convida a que se
pense a linha AB rodando, enquanto o ponto A permanece imóvel, até que B chegue
a C. Tem-se então um triângulo. Se o movimento for consumado até que B chegue a
C, tem-se então um círculo.
O infinito é, pois, em ato o que o finito é em potência
Todo triângulo quantitativo tem três ângulos iguais e dois retos. Mas, para
ascender das figuras quantitativas às não quantitativas, tome-se inicialmente um
triângulo quantitativo, sendo que aquilo que é impossível nas figuras quantitativas é
necessário para as não quantitativas.
(CUSA, 2003, p. 30).
85
Nesse caso, quanto maior é um ângulo, tanto menores são os outros dois.
Admitindo-se que um ângulo qualquer “possa ser aumentado até ficar ligeiramente
aquém de dois retos e não maximamente segundo o nosso primeiro princípio”
(CUSA, 2003, p. 30) e admitindo-se ainda que possa ser aumentado até os dois
ângulos retos, mantendo-se ainda o triângulo, fica claro, segundo o Cardeal, que “o
triângulo tem um só ângulo, que é três, e que os três são um só” (CUSA, 2003, p. 30).
Com base nessa hipótese, quanto maior for o ângulo BDC, tanto menos as
linhas BD e DC excedem a linha BC e tanto menor será a superfície. Por isso, “se
pela sua posição, o ângulo fosse equivalente a dois retos, todo o triângulo se
resolveria numa simples linha” (CUSA, 2003, p. 30).
Sendo essa afirmação impossível no “âmbito de figuras quantitativas” (CUSA,
2003, p. 30), pode-se ascender agora às figuras não quantitativas onde é totalmente
necessário aquilo que nas quantitativas parece impossível.
Outro exemplo do símbolo matemático é que o triângulo é círculo e esfera.
Primeiro construa-se um triângulo pela rotação da linha AB até que B coincida
com C a partir de um ponto fixo A.
Se a linha AB fosse infinita e B rodasse completamente até voltar ao ponto de
partida, ter-se-ia construído o círculo máximo de que BC é uma parte.
“E porque é uma parte do arco infinito, então BC é uma linha reta. E porque
toda a parte do infinito é infinita, logo BC não é menor do que todo o arco da
circunferência infinita” (CUSA, 2003, p. 31).
Percebe-se agora que BC deixa de ser apenas uma parte, mas, a
circunferência na sua total completude, sendo então, o triângulo ABC o círculo
máximo.
Para a compreensão de que a linha infinita é esfera, toma-se a linha AB como
circunferência do círculo ximo, a qual é também o próprio círculo. No triângulo
conduz-se a linha de B a C. “Mas BC é uma linha infinita” (CUSA, 2003, p. 32) e
devido a isso AB volta a C quando dá uma volta completa sobre si própria. Dessa
revolução do círculo sobre si mesmo, o que resulta é uma esfera. Agora a linha
infinita além de círculo, triângulo e linha é também esfera.
86
Segundo Nicolau de Cusa, fica evidente agora que a linha infinita “é
infinitamente em ato todas as figuras que a finita é em potência” (CUSA, 2003, p. 32)
e a partir disso pode-se ver como o ximo comporta-se translativamente em
relação a todas as coisas, assim como a linha máxima relativamente às linhas.
É possível ver então que “tudo aquilo que é possível é-o em ato
maximamente o próprio máximo, não enquanto possível, mas do modo ximo, tal
como a linha se extrai do triângulo e a linha infinita não é o triângulo como ele se
extrai da linha finita, mas é em ato o triângulo infinito que é idêntico à linha” (CUSA,
2003, p. 32).
Aplique-se por fim a nossa especulação, “transsumptivamente ao máximo,
acerca da sua simplíssima e infinitíssima essência” (CUSA, 2003, p. 34) e ver-se-á
como ela é a essência mais simples de todas as essências, e como “todas as
essências das coisas que foram, são ou serão são nela, sempre e eternamente em
ato, essa mesma essência e assim todas as essências de todas as coisas” (CUSA,
2003, p. 34). Do mesmo modo, em comparação, a linha infinita é a medida mais
adequada de todas as linhas.
Quem entender isso, diz o Cardeal, “entende tudo e supera todo o intelecto
criado” (CUSA, 2003, p. 33).
Deixando agora a douta ignorância como referência e tomando como guia o
diálogo entre o ignorante e o filósofo do Idiota. De mente (1450) de Nicolau de Cusa,
parte-se do momento em que ele aponta o número como aquilo que foi chamado
pelos sábios de exemplar de todas as coisas.
Inicia o filósofo perguntando acerca do uno e de como, a partir dele,
produzem-se as coisas. Em seguida questiona como a proporção é a região da
forma e o lugar da proporção é a matéria.
87
O ignorante leva o filósofo a pensar que o número por si mesmo não é
princípio de alguma coisa, mas, sim, que simbolicamente os antigos falaram que o
número procede da mente divina, da qual o número matemático é imagem.
Para o Cusano, “quando no número não observo senão a unidade, vejo a
composição não composta do número e a coincidência da simplicidade e da
composição, ou melhor, da unidade e da multiplicidade” (CUSA, 2005, p. 75).
Estabelece-se, portanto, como o primeiro é aquele principiado, cujo tipo gera
o número. Simbolicamente chama-se o primeiro princípio de número porque o
número é o sujeito da proporção
55
. Nota-se que sem o número não pode haver
proporção, enquanto a proporção por sua vez é o lugar da forma, pois, sem a
proporção adequada, a forma não pode emergir e nem mesmo permanecer.
Simbolicamente “a proporção é como a aptidão da superfície própria do
espelho para o resplendor da imagem” (CUSA, 2005, p. 75); sem a proporção, deixa
de haver representação, a qual está no número.
O Cardeal considera a mente como “a igualdade da unidade” (CUSA, 2005, p.
77), devido à que ela entende “o uno e o mesmo singular e separadamente” (CUSA,
2005, p. 77). Surge então uma nova questão proposta pelo filósofo: “Como a
pluralidade das coisas é o número da mente divina”? (CUSA, 2005, p. 77). Para o
ignorante, a resposta é clara: “a pluralidade das coisas não é senão o modo de
entender da mente divina” (CUSA, 2005, p. 77), sendo, pois, o número o “principal
vestígio que conduz à sabedoria” (CUSA, 2005, p. 77).
Sem o número, não poderia haver proporção e também não haveria
semelhança, nem noção, nem discernimento, nem medição. Sendo então o número
o modo de entender, nada pode ser entendido sem ele, assim como, sendo imagem
da mente divina, o número da nossa mente é o exemplar das noções, enquanto que
o número divino é ele próprio o exemplar das coisas.
A mente “ela mesma é imagem de Deus” (CUSA, 2005, p. 91), isto é, Deus
que é tudo reluz nela de tal modo que, com todo empenho, ela quer se assemelhar
ao seu exemplar. A mente entende quando se move e o seu mover-se pode ser
chamado de entendimento. Entender e conceber, embora não sejam idênticos,
ocorrem simultaneamente, isto é, “tudo quanto se entende também se concebe”
55
Primum enim principiatum vocamus symbolice numerum, quia numerus est subjectum proportionis
(CUSA, 2005, p. 74).
88
(CUSA, 2005, p. 93). Daí que o início do movimento é chamado paixão, e fala-se em
paixão dos números, enquanto que a perfeição do movimento é chamada intelecção.
Também é dito que a força da mente, com a qual ela intui e considera as coisas fora
da matéria, pode ser chamada inteligência.
A mente então é a que mede e a que faz com que “o ponto seja o final da
linha e a linha seja o término da superfície e que seja a superfície do corpo” (CUSA,
2005, p. 101). O ponto é o término da linha ou a junção da linha. Sempre onde a
mente juntar duas metades da linha, a linha passará a ter três pontos. Se a cada
uma das duas partes da linha a mente atribuir um término próprio, então à linha
serão atribuídos quatro pontos e assim sucessivamente por quantas vezes a mente
quiser dividir a linha. Fora da mente, a linha existe em ato, sendo o ponto final
indivisível. “Se fosse divisível, não seria término porque teria término” (CUSA, 2005,
p. 103), diz o ignorante ao filósofo.
É por isso que, nessa matemática como símbolo, não na linha senão o
desdobramento do ponto, como se a linha fosse o ponto estendido. O ponto é então
aquilo que complica em si a linha, assim como a linha explica o ponto. Explicar é
levar a linha do ponto A até B e, por meio dos pontos A e B, designa-se a totalidade
da linha, ou seja, que a linha não deve ir além. “Donde o que é em ato e na
intelecção, por ele e nele inclui a totalidade das coisas, e isto é complicar a linha no
ponto” (CUSA, 2005, p. 105).
É deste modo que a linha explica a complicação do ponto. Aplica-se esse
modelo simbólico agora a todas as coisas. Por exemplo, o movimento passa a ser a
explicação da quietude, “porque nada se encontra no movimento senão a quietude”
(CUSA, 2005, p. 105) e do mesmo modo o agora se explica pelo tempo, “porque
nada se encontra no tempo senão o agora” (CUSA, 2005, p. 105).
Assim, nada se move senão a quietude e, com isso, passar da quietude à
quietude é mover de tal modo que mover seja a própria quietude ordenada em série.
Percebe-se então que todas as complicações são imagens de complicação da
simplicidade infinita e não suas explicações, mas imagens que o são devido à
necessidade de complexão.
A mente é então a primeira imagem da complicação da simplicidade infinita,
“complicando com sua força a força dessas complicações; é o lugar ou a região da
necessidade da complexão, porque o que é verdadeiramente é separado da
89
variabilidade da matéria e não é materialmente senão mentalmente” (CUSA, 2005, p.
107).
Surge então nova pergunta do filósofo ao ignorante: “Posto que a mente toma
seu nome da medida como dizes tu, ignorante –, porque é levada tão avidamente
até a medida das coisas” (CUSA, 2005, p. 107)? E a resposta é: “Para que alcance a
medida de si mesma” (CUSA, 2005, p. 107).
Aqui é onde a mente geralmente se equivoca, pois pode encontrar a
medida de si mesma ali onde todas as coisas são o uno, e não ao buscar nas coisas
a sua medida. É apenas no seu exemplar que encontrará a sua própria medida. A
mente também medirá simbolicamente, por modo de comparação, como quando
utiliza os números ou as figuras geométricas e se translada a tais semelhanças.
Deduz-se então que a mente é “a viva e não contrata semelhança da igualdade
infinita” (CUSA, 2005, p. 109).
De qualquer forma, qualquer que seja o enigma, sua finalidade é conduzir a
mente para a coincidência dos opostos e em seguida para além deles. O processo
do conhecimento inicia-se quando a mente compara o conhecido com o
desconhecido e, por isso, afirma o Cardeal: “Todos os que investigam julgam
proporcionalmente o incerto em comparação com um pressuposto certo. Por
conseguinte toda investigação é comparativa, aplicando o instrumento da
proporção”
56
(RUSCONI, 2005, p. 177).
Constituindo o número o princípio do conhecimento humano e se todo novo
conhecimento só pode ser produzido em termos de uma relação de proporção
referente a algo conhecido, então não se pode chegar a conhecer o infinito pelo fato
de que este escapa a toda e qualquer proporção.
A proporção, como tal, implica “por uma parte a conveniência em algo uno e,
por outra, a alteridade, e esta é a razão de que não pode ser entendida sem o
número” (RUSCONI, 2005, p. 177).
Em resumo, o número constitui o modo de compreensão da mente “já que é
por ele que se realiza o assemelhar-se, a medição, a noção e a separação entre as
coisas comuns, as quais não poderiam ser compreendidas como singulares sem a
ação do número” (RUSCONI, 2005, p. 178). A concepção cusana do número traz
56
Omnes autem investigantes in comparatione praesuppositi certi proportionabiliter incertum
iudicant” (CUSA, 2008b, C, 1, h I n. 2).
90
consigo então duas questões de primeira importância. A primeira delas é que o
número é o elemento principal e exclusivo do âmbito racional, “enquanto ‘ratio
explicata’ (RUSCONI, 2005, p. 178) e a segunda é que é justamente esta
característica a que possibilita o seu papel simbólico.
Na mente divina o número do qual o primeiro é apenas uma imagem
simbólica é assim chamado inapropriadamente, uma vez que é anterior a toda a
quantidade. Isto se deve ao fato, diz o Cusano, de que “o único que possui a
característica de ser infinitamente simples é o Primeiro Princípio” (RUSCONI, 2005, p.
179).
A partir dessas primeiras operações simbólicas, Nicolau de Cusa propõe a
elevação da mente para além da imaginação e da razão, as quais constituem seu
âmbito próprio, para que se possa ascender ao nível intelectual por meio do que é
denominado pelo Cusano como transumptio in infinitum.
3.3 O nível intelectual
O procedimento para ascender ao nível intelectual e mais elevado, para além
do símbolo, requer três passos:
Assim como já foi dito, considera-se primeiro a figura finita, abstraída do
sensível. Por exemplo, a figura do triângulo é imaginada como composta de três
lados e três ângulos, cuja soma é igual a duas retas.
O segundo passo é transferir (transferre) as propriedades observadas na
figura finita para uma figura infinita correspondente. Neste segundo momento é
preciso ver, na passagem da figura finita para a figura infinita, desvanecer-se a
imagem finita na imaginação, e, com isso, também a razão que constitui o âmbito no
qual os opostos não podem coincidir. Então se abre o caminho “para a iluminação
do intelecto negativo, no qual a contradição racional torna-se unidade necessária”
(D´AMICO, 2007, p. 163).
A razão que até então seguia distinguindo, separando e limitando os opostos
é auxiliada a passar ao intelecto, no qual todos os opostos coincidem. Essa
passagem para onde todos os opostos coincidem “possibilita a ascensão enigmática
até o infinito desvinculado de toda figura, como coincidentia oppositorum(D´AMICO,
2007, p. 163). É então que, não restando nenhuma figura, transcende-se toda figura
possível. Diz o Cardeal que aquele que quiser apreender o máximo deverá superar
as diferenças das coisas, bem como a diversidade de todas as figuras matemáticas.
91
É, pois, quando a mente, através de um ato reflexivo, remonta para além de si
mesma, ou seja, para o intelecto, para a contemplação da coincidência de todas as
oposições, que ocorre a transumptio onde não resta nenhuma figura geométrica,
nenhum número ou qualquer outra imagem.
De acordo com Nicolau de Cusa, por nenhuma outra via que não seja a dos
símbolos é possível aceder às coisas divinas. Para tal os signos matemáticos
apresentam-se como os mais convenientes, devido à sua incorruptível certeza.
Investigar os símbolos matemáticos requer primeiramente reconhecê-los como
exemplos finitos para se ascender ao máximo simples, isto é, após considerar as
figuras matemáticas com suas razões e paixões, transferir correspondentemente
essas razões para figuras infinitas e então para o infinito simples, liberto de qualquer
figura.
Donde se conclui que o matemático é o que se pode apreender na estrutura
relacional do uni-verso. Nesse caso a linguagem simbólica por excelência é a
matemática. O caminho segue das figuras sensíveis às figuras matemáticas e
dessas às figuras teológicas, para, enfim, após a coincidentia oppositorum
abandonar toda figura na "visio intellectualis". Enquanto que a mente é autopresença
que se presentifica como consciência (autorepresentação), o mundo é produto da
capacidade imaginativa da mente. Kant fala da imaginação transcendental, criadora.
A mente é igualdade da unidade. Ela tem o mesmo modo de ser da unidade
absoluta e simples (A se - Anselmo; Abgeschiedenheit: Eckhart). Imago Dei =
Igualdade = Filho de Deus. Figura finita > figura infinita: coincidentia oppositorum >
sem figura: a visão de Deus.
4 O conhecimento intelectual da Trindade na unidade ultrapassa tudo
É peculiar na filosofia e mística de Nicolau de Cusa o método dialético. Nele,
a questão posta por Ferdinando ao Cardeal Nicolau de Cusa na obra Acerca de lo
no-otro o de la definición que todo define (CUSA, 2008b), é sobre de onde se deve
tomar o argumento de que “Deus trino e uno é significado pelo não-outro, posto que
o não-outro antecede a todo número” (CUSA, 2008b, p. 61)
57
.
57
In primis quaerit scientiae avidus, ubi sumi debeat ratio, quod Deus trinus et unus est per li non-
aliud significatus, cum non-aliud numerum omnem antecedat (CUSA, 2008b, I, c. 7, h I, p. 15).
92
De acordo com o Cusano tudo é visto com uma única razão, pela qual o
princípio designado por não-outro é aquele que se define a si mesmo, do mesmo
modo como a própria definição se define a si mesma. Sugere, portanto, que se deva
intuir nessa explicação que o “não-outro é não outro que o não-outro” (CUSA, 2008b,
p. 63), isto é, que ele o seria o primeiro se não se definisse a si mesmo. É assim
que o mesmo repetido trinitariamente é definição do primeiro, não podendo tal
trindade ser numerada, “posto que esta trindade não é outra que a unidade” (CUSA,
2008b, p. 63). Do mesmo modo, pois, tanto a trindade quanto a unidade não são
outras que o princípio simples significado pelo não-outro.
Nicolau de Cusa propõe que os nomes de Pai, Filho e Espírito Santo dados à
Trindade, ainda que se aproximem da verdade, fazem-no inapropriadamente, posto
que, o mistério da Trindade deve ser captado pela fé e “com a graça de Deus”
(CUSA, 2008b, p. 65), superando com isso todo sentido que a preceda.
O modo mais próximo para o entendimento do mistério da Trindade, segundo
o Cardeal, é provavelmente a denominação de “unidade”, “igualdade” e “nexo”, pois,
“são aqueles nos quais claramente brilha o não-outro” (CUSA, 2008b, p. 65).
Essa questão pode vir a aclarar toda polêmica levantada diante de possíveis
“panteísmos” propostos pelos acusadores dos místicos, quando, mais uma vez, se lê
que “Deus é em tudo ainda que nada de tudo” (CUSA, 2008b, p. 71)
58
. Parte desta
explicação é que, ao cessar o não-outro, cessará necessariamente tudo aquilo que é
e o que não é. É então que se percebe como nele mesmo tudo é anteriormente ele
mesmo e ele mesmo é tudo em tudo. Por exemplo, pode-se ver como por meio dele
mesmo “não cria o céu a partir de outro, senão por meio do céu que é nele, o
mesmo, à maneira como se chamássemos a ele mesmo espírito intelectual ou luz e
considerássemos nele mesmo o intelecto que a razão de tudo é ele mesmo” (CUSA,
2008b, p. 71)
59
.
Ou seja, a razão no céu é céu, pois o céu sensível não é aquele que é por
outro, ou bem algo outro do u, senão que é pelo não-outro mesmo. É assim do
mesmo modo como o inominável não é privado de nome, mas sim, é antes de todo
58
Deum in omnibum omnia, licet omnium nihil(CUSA, 2008b, I c.16, h I, p. 31, n. 43; 2008a, h II, p.
31/32, n. 46); De visione Dei c. 12 (h VI n. 48, 3).
59
Non enim creat caelum ex alio, sed per caelum, quod in ipso ipsum est; sicut si ipsum
intellectualem spiritum diceremus seu lucem et in ipso intellectu rationem omnium esse ipsum
consideraremus” (Cusa, 2008b, p. 70).
93
nome. É este o modo como a mente opera: “por meio da forma o informe” (CUSA,
2008b, p. 91)
60
.
O não-outro precede as essências e precede todo o nominável, do mesmo
modo como as essências precedem a mutabilidade e a fluidez, que está fundada na
matéria alterável. Certamente, diz o Cusano, “não-outro não é a essência, mas
porque é a essência nas essências é chamado essência das essências” (CUSA,
2008b, p. 101). Para explicitar essa passagem, o Cardeal cita o Apóstolo: O que se
vê é o temporal; o que não se vê é o eterno”
61
(CUSA, 2008b, p. 101).
Para Alexandre Ganoczy (2003)
62
, a Trindade tematizada pelo Cardeal não é
outra que puramente criadora de possibilidades. “Este Deus não produz tanto seres
“completos e finitos”, mas, mais que isso, seres em fase de devir, com a finalidade
de induzi-los a um modo bem determinado de autorealizar-se, autoexpandir-se e
auto-aperfeiçoar-se. Dito com outras palavras: ele demonstra ser um criador de
possibilidades, o autor da criação contínua” (GANOCZY, 2003, p. 152). Se, pois, este
criador trinitário se comunica criando, isto significa que ele ao homem aquilo que
ele mesmo “é eternamente e atualmente” (GANOCZY, 2003, p. 153). No capítulo IV do
A visão de Deus (1998), Nicolau de Cusa expressa essa experiência:
Deste-me, Senhor, um ser tal que se pode tornar cada vez mais capaz de
receber a tua bondade e a tua graça. E esta força, que recebo de ti, na qual
tenho a imagem viva da virtude da tua omnipotência, é a vontade livre pela
qual posso ampliar ou restringir a capacidade de receber a tua graça... e
porque me abraças com uma visão contínua, quando volto o meu amor
para ti, porque tu és caridade, estás voltado para mim (CUSA, 1998, p.
144).
4.1 Da eternidade trina e una
No capítulo VII da Docta Ignorantia o Cusano diz que não houve jamais uma
nação que não cultuasse Deus e que não cresse nele como o absolutamente
máximo. Pitágoras também afirmava ser trina aquela unidade. Investigando a sua
verdade, e elevando mais alto no nosso pensamento pode-se dizer que “ninguém
60
Ita facit mens per formam videns informatum” (De li non aliud, p. 90).
61
“Não atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se vêem
são temporais, e as que se não vêem são eternas” (Cor 4,18).
62
Alexandre Ganoczy é um teólogo húngaro que anos vêm desenvolvendo uma teologia que
dialogue com as ciências naturais. Em um de seus últimos livros, Il Creatore Trinitario: Teologia della
Trinità e Sinergia, traduzido para o italiano, ele elabora uma teologia da Trindade criativa e criadora,
baseado principalmente na filosofia de Heinrich Rombach e Nicolau de Cusa.
94
duvida de que aquilo que precede toda a alteridade seja eterno” (CUSA, 2003, p.15).
Alteridade, pois, é o mesmo que mutabilidade. Mas, tudo que precede naturalmente
a mutabilidade, é imutável, logo, eterno. A alteridade, porém, consta de um e outro
e, por isso, a alteridade, assim como o número, é posterior à unidade. A unidade,
portanto, é “por natureza, anterior à alteridade e, porque precede naturalmente, é
unidade eterna” (CUSA, 2003, p. 15).
Ademais toda a desigualdade se constitui do igual e do excedente. A
desigualdade, portanto, é por natureza, posterior à igualdade, o que se pode provar
pela resolução, pois, toda a desigualdade é resolvida para dentro da igualdade. Pois,
o igual é entre mais e menos. Se, portanto, tirar o que é mais, será igual. Se, porém,
for menos, faça-se descer, tirando do resto o que é mais, e se tornará igual e, em se
fazendo descer, chegue-se ao simples.
Assim, se torna patente que, toda a desigualdade, pela subtração é reduzida
à igualdade. Logo, “a igualdade naturalmente precede a desigualdade” (CUSA, 2003,
p. 15). Mas desigualdade e alteridade são por natureza simultâneas. Onde, pois,
desigualdade, ali necessariamente há a alteridade, e vice-versa. Entre duas coisas,
pois, haverá ao menos alteridade. Elas constituem uma para a outra uma
duplicidade. Assim, se dará desigualdade. A alteridade, portanto, e a desigualdade,
por natureza, serão simultâneas, principalmente porque o binômio é a primeira
alteridade e a primeira desigualdade. Mas está provado que a igualdade precede,
por natureza, a desigualdade, e assim também a alteridade. Logo, a igualdade é
eterna.
Ademais, se forem duas as causas, das quais uma seja, por natureza,
anterior à outra, o efeito da anterior será, por natureza, anterior ao efeito da
posterior. Mas a unidade é conexão ou é causa da conexão. Daí, pois, algumas
coisas são ditas serem conexas, porque simultaneamente são unidas. O binário
também ou é divisão é causa da divisão, pois o binário é a primeira divisão. Se,
portanto, a unidade é causa da conexão, o binário, porém, o é da divisão, logo,
assim como a unidade é por natureza anterior ao binário, assim também a conexão
é, por natureza, anterior à divisão. Mas “a divisão e a alteridade são por natureza
simultâneas” (CUSA, 2003, p. 16). Por isso, também a conexão, assim como a
unidade, é eterna, por ser anterior à alteridade.
Provou-se, portanto: Porque a unidade é eterna, a igualdade é eterna,
semelhantemente também a conexão é eterna. Mas as coisas eternas não podem
95
ser plurais. Se, pois, as coisas eternas fossem plurais, então, que a unidade
precede toda a pluralidade, algo seria, por natureza, anterior à eternidade, o que é
impossível. Além disso, se as coisas eternas fossem plurais, uma faltaria à outra e
assim nenhuma delas seria perfeita. E assim, seria eterno algo que não fosse
eterno, porque não seria perfeito, já que isto não é possível, daí as coisas eternas
não poderem ser plurais. Mas, porque a unidade é eterna, a igualdade é eterna, de
modo semelhante também a conexão, daí a unidade, a igualdade e a conexão
serem um. E esta é aquela unidade trina, a qual ensinou a adorar Pitágoras.
Mas, a tudo isso, acrescente-se mais expressamente algo acerca da geração
da igualdade a partir da unidade.
Na eternidade simples todas as coisas podem ser contempladas
trinitariamente, isto é, antes da sua existência temporal todas as coisas são o nexo
que procede do poder ser feito absoluto e do poder fazer absoluto. Portanto, o poder
fazer absoluto, o poder ser feito absoluto e o nexo absoluto não são senão o uno
infinitamente absoluto e uma deidade. Pela ordem, é primeiro o poder ser feito,
que o poder fazer, pois, este pressupõe o poder ser feito, e o poder ser feito tem do
poder ser feito aquilo que tem, isto é, o poder fazer. Entre ambos está o nexo.
Conclui-se então que o poder ser feito precede e a ele se atribui a unidade, a qual
lhe é inerente o preceder, e ao poder fazer se atribui a igualdade, a qual pressupõe
a unidade, dos quais procede o nexo. Desde essa eternidade simples, é que tudo
pode ser contemplado trinitariamente.
4.2 Da douta ignorância
Segundo Nicolau de Cusa o conceito de douta ignorância está baseado em
uma teoria que reconhece ser a verdade exata impossível. Isto se deve ao fato de
que o espírito humano não pode acessar a sua medida por ser impreciso, limitado e
insuficiente
63
. A possibilidade humana é buscar essa verdade e apreendê-la sem
jamais possuí-la, pois “o que desejamos é saber que ignoramos” (CUSA, 2003, p. 5).
A douta ignorância é a aceitação e o reconhecimento dessa impossibilidade. Essa
verdade é entendida pelo Cardeal como Deus ele mesmo, por ser ele “unidade
infinita” (CUSA, 2003, p. 12) ainda que, ao dizer unidade infinita, não se diga Deus
63
Leia-se PONDÉ. L. F. O homem insuficiente. Comentários de Antropologia Pascalina. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2001, onde o autor diz que “falar de desproporção é falar de
insuficiência” (p. 127).
96
propriamente, uma vez que, mesmo tendo em consideração a infinidade, ele “não é
nem uno nem múltiplo” (CUSA, 2003, p. 64).
Para J-M. Nicolle, comentador de Nicolau de Cusa, a expressão “douta
ignorância” lhe ocorreu da leitura de Santo Agostinho (Carta 130,71), que, falando
do espírito divino, afirma que Deus torna douta nossa ignorância. Esta expressão é
definida precisamente pelo Pseudodionísio Areopagita e mais tarde retomada sob a
denominação daquilo que não se sabe, que se ignora (nescience), por João Scotus
Erígena. Ela agora faz parte do vocabulário de teologia negativa, e designa a forma
da contemplação mística para além da afirmação e da negação dos atributos de
Deus
64
.
O conhecimento de Deus requer essa inacessibilidade, por ser ele um
mistério impenetrável o que nos leva a concluir que “a precisão da verdade
resplandece de modo incompreensível nas trevas da nossa ignorância” (CUSA, 2003,
p. 64).
Mas, ainda que seja assim, Deus se reflete nas criaturas, como a verdade se
reflete em suas imagens. Naturalmente que aquele que pensar buscá-lo em seus
reflexos vai se perder. O acesso a Deus será possível através do total
desconhecido, do inacessível. Se a visão de Deus é possível, é possível por ter ele
mesmo revelado que não outra via para acessá-lo “senão aquela que a todos os
homens, mesmo aos filósofos mais doutos, parece completamente inacessível,
porque tu me mostraste que não podes ser visto senão onde se depara e se nos
opõe a impossibilidade” (CUSA, 1998a, p. 166). É por isso, diz ainda o Cardeal, que é
“para da coincidência dos contraditórios que poderás ser visto e nunca aquém
dela” (CUSA, 1998a, p. 167).
Essa visão é uma visão intuitiva e instantânea e traz como condição que Deus
se deixe ver. Além disso, Nicolau de Cusa distingue para além da razão uma outra
faculdade humana que é o intelecto.
A ideia da douta ignorância, segundo Jean-Marie Nicolle, tem sua raiz nas
leituras dos diálogos de Platão
65
. Ela é encontrada na definição de sabedoria
64
L’expression «docte ignorance» lui serait venue de la lecture de saint Augustin (Lettre 130,71) qui,
parlant de l’esprit divin, affirme qu’il rend docte notre ignorance. Cette expression est précisée par le
pseudo Denys l’Aréopagyte, puis reprise sous le terme de «nescience» par Jean Scot Erigène. Elle
fait alors partie du vocabulaire de la théologie négative, et désigne la forme de la contemplation
mystique au-delà de l’affirmation et de la négation des attributs de Dieu. J-M. Nicolle.
65
http://pagesperso-orange.fr/jm.nicolle/jmn/philomaths/cues-pasc.htm.
97
socrática como ignorância consciente de si mesma. Entre Sócrates e Nicolau de
Cusa, porém, a ignorância muda de status. Enquanto em Sócrates ela se referia a
uma atitude de busca do saber, em Nicolau de Cusa ela se torna, ela mesma, o
saber.
Os diálogos cusanos apresentam essa teoria especialmente no Idiota. De
Mente (CUSA, 2005) onde o idiota expõe as suas elaboradas teorias através de
conjecturas com o filósofo questionando a natureza da mente.
Nicolau de Cusa faz da douta ignorância uma incomparável fonte de saber e
fala dela como um dom divino.
Para Jean-Marie Nicolle, Blaise Pascal retoma esse tema em seus Pensées
ao comentar que nas ciências as extremidades se tocam. A primeira é a pura
ignorância natural na qual os homens se encontram desde o nascimento. A outra
extremidade é aquela a que chegam os sábios que já percorreram todo caminho que
pode ser percorrido e sabem tudo que poderiam saber, entendendo que eles nada
sabem e que se encontram agora na mesma ignorância da qual partiram. A
diferença é que esta ignorância sabe e se conhece a si própria. Segundo Pondé
(2001), para Pascal, “a impossibilidade humana de conhecer sua origem e seu fim,
sua insuficiência epistemológica ou cognitiva é indicação de um tipo de saber”
(PONDÉ, 2001, p. 144) sendo que para ele, “Deus tem lugar quando pensado fora
do reducionismo racionalista humanista, recolhido na abertura humana para o
Sobrenatural, na douta ignorância, na insuficiência redentora” (PONDÉ, 2001, p. 144).
Essa ignorância é douta na medida em que uma conversão da alma, que se
contrai e se retira das ciências e se volta para Deus.
4.3 Da coincidência dos opostos
Nicolau de Cusa fala da coincidência dos opostos como de uma revelação
que lhe foi dada ao retornar de sua viagem à Grécia. Na sua obra A visão de Deus
(1998) diz experienciar que é necessário entrar na escuridão para
admitir a coincidência dos opostos, sobre toda a capacidade racional, e
procurar a verdade aí onde se depara a impossibilidade e acima dela, acima
também de toda compreensão intelectual mais elevada, quando chegar
àquilo que é desconhecido de todo o intelecto e que todo o intelecto julga
sumamente afastado da verdade; e é aí que tu estás meu Deus, tu que és a
necessidade absoluta (CUSA,1998A, p. 166).
98
Esse princípio traz consigo uma significação mística, indicando a passagem
de uma atividade racional para uma visão intelectual, para então encontrar a
verdade em Deus. Para tal, supõe-se que Nicolau de Cusa se utilize de certas
leituras, como por exemplo, Dionísio Areopagita em seu Os nomes divinos, onde o
autor opõe a teologia afirmativa à negativa para ultrapassar a sua oposição na
teologia mística.
Com a coincidência dos opostos, surge um novo método, e uma nova lógica é
instaurada por Nicolau de Cusa. Sejam questões sobre a origem da linguagem (a
coincidência dos opostos permite ultrapassar a alternativa do naturalismo e do
convencionalismo); seja na estética (a coincidência dos opostos permite analisar a
harmonia dos contrários como a luz e a sombra, o som e o silêncio); seja nas
matemáticas (a coincidência dos opostos permite transpor o círculo inscrito no
circunscrito); assim como a coincidência dos opostos pode ainda colocar-se a
serviço da interpretação das Escrituras. Para o Cusano, a coincidência dos opostos
não é uma negação do princípio de não-contradição, mas a ultrapassa quando
necessário.
Essa ultrapassagem, de certo modo, pode ser de três ordens, como de três
faculdades da alma, segundo Nicolau de Cusa: a inteligência (intellectus), a razão
(ratio) e os sentidos (sensus). Entre essas faculdades, se intercalam a sombra e a
luz, o conhecimento e a ignorância. A passagem dos sentidos para a razão e da
razão para o intelecto se faz, segundo o Cardeal, numa relativa continuidade. É na
sua doutrina da coincidência dos opostos que Nicolau de Cusa ultrapassa o principal
obstáculo que perpassa o princípio de não contradição, o qual por sua vez impede a
razão de compreender certos objetos difíceis, como Deus, o infinito, a criação etc.,
uma vez que eles sempre conduzem a antinomias.
99
CAPÍTULO III - VISÃO DE DEUS E TEORIA DO CONHECIMENTO
1 Nicolau de Cusa e seus comentadores
A proposta deste capítulo é examinar o tema da visão de Deus em Nicolau de
Cusa à luz do entendimento da teoria do conhecimento, incluindo alguns
comentadores contemporâneos.
Para a tradição do Ocidente, o conhecimento (veritas) é adaequatio rei et
intellectus, isto é, uma adequação da sentença (intelecto) com a coisa (verdade).
Desse modo, as reflexões filosóficas se lançam imediatamente em busca de saber
de que trata a coisa, uma vez que na sua essência parece conterem propriedades.
Segundo essa definição de conhecimento como verdade, o conhecimento deve
reproduzir, espelhar, refletir, imitar a estrutura, a constituição interna da coisa, isto é,
adequar-se.
Para alcançar tal objeto de saber, “têm necessariamente que participar o
número e sua essência, que sem ele o é possível compreender nem entender
nada” (CASSIRER, 1993, p. 36). De acordo com Cassirer, a natureza do número
infunde conhecimento, guia e instrui a todos em qualquer coisa que lhe pareça
duvidosa ou desconhecida. Para esse autor, a partir dos fragmentos de Filolau,
proclamava-se o número como premissa necessária para toda a dissociação entre o
ser e o pensar. Em Platão, o que se denomina ciência passa a ser “a delimitação
conceptual da matéria das percepções, em si ilimitada e indeterminada, por meio da
função e o veículo do número” (CASSIRER, 1993, p. 54), pois, investigando a ideia de
unidade pode-se perguntar se não é possível “desdobrá-la de novo em uma
pluralidade” (CASSIRER, 1993, p. 54), até que possamos compreender que o uno não
é uno apenas enquanto tal, mas, “múltiplo e infinito” (CASSIRER, 1993, p. 54),
enquanto é uno.
Pensar é, pois, recolher e reproduzir as determinações que por si mesmas
existem de modo originário no mundo da realidade, e, com isso, todo o problema do
conhecimento consiste, “pura e simplesmente, em marcar o caminho pelo qual se
opera a transformação dessas qualidades das coisas em qualidades do espírito
(CASSIRER, 1993, p. 57).
Ao mencionar os primeiros escritos de Nicolau de Cusa, na obra El problema
del conocimiento (vol. I), Cassirer diz que, à primeira vista, esses apresentam como
100
que “entrelaçados de um modo negativo o conceito de Deus e o conceito de
conhecimento” (CASSIRER, 1993, p. 65).
Todo conhecimento finito do finito é uma conjectura da mente, isto é, ao se
perguntar sobre a essência da coisa, pergunta-se também pela essência do homem.
A mente estabelece nexos entre as coisas finitas. Tudo no universo é relação. O uni-
verso é um todo relacional: ordem. Isso é a matriz do conhecimento científico
contemporâneo, que tem o privilégio de, olhando para o passado, buscar a
compreensão da substância e, olhando para o presente, perguntar pela energia-
matéria pontualizada no espaço e no tempo da ordenação quantitativo-extensional.
Ao perguntar pelo conhecimento, Cassirer pontua que o problema fundamental com
que se depara inicialmente é a “crítica do aristotelismo” (CASSIRER, 1993, p. 20) e
que na filosofia do Cusano, “negando e abolindo toda a determinabilidade própria do
saber e de seu objeto finito, chegamos com ele ao ser e à determinação do
conteúdo do absoluto” (CASSIRER, 1993, p. 65).
Uma vez que o infinito, o absoluto, como tal, escapa a toda proporção, ele é
inacessível à função do conceito. Todo pensamento e toda denominação ou
definição tem por função a distinção e a separação pelo que não pode jamais
alcançar a suprema unidade. Só é possível aproximar-se do uno “saltando por sobre
toda proporção, toda comparação e todo conceito” (CASSIRER, 1993, p. 66).
A falta de proporção e de comparação entre o finito e o infinito, presentes
no pensamento de João Duns Scotus, Nicolau de Cusa e Pascal, diz que não
passagem do finito ao infinito: salto. Salto é transcendência: ultra-passagem
transsumptio, transcensus, translatio –, no sentido de metá-fora. Salto para dentro
de quê? O salto retorna para lá onde já sempre estamos, o aqui. Não este ou aquele
"aqui", mas o aqui que nos possibilita estabelecer um aqui e um lá. O in-finito (não
como extensão indefinida do finito), mas como o simples e absoluto, o abismo do
silêncio (o in do finito).
Para o conhecimento propriamente dito, então, não basta elaborar teorias ou
quadros teóricos, mas deve haver um apelo constante de trans-posição, desse abrir-
se ou revelar-se de uma participação num interesse que se define como um con-
crescimento.
A ciência moderna nasce da mística medieval através de Eckhart e Nicolau de
Cusa (tese de Rombach). O conhecimento ab-soluto do ab-soluto (solto, sem peias,
simples = sine plex = sem dobras) é salto para dentro do abismo do silêncio. O
101
conceito de salto é desenvolvido profundamente na origem da teoria do
conhecimento, proposta por Fogel (2003), como sendo “resultante” da conexão ou
da passagem do “fora” para o “dentro”, do “sujeito” para o “objeto”, que era visto
como um conhecimento que separa o próprio conhecimento em sujeito conhecedor
e objeto conhecido. Nicolau de Cusa propõe uma ultrapassagem dessa dualidade na
“relação” entre visão de Deus e visão humana. Fogel expõe essa ultrapassagem no
conceito de salto e o descreve da seguinte forma:
A mesma atitude que criou o res cogitans e res extensa gera uma outra
questão que, no fundo, é a mesma da teoria do conhecimento, mas que
ganha status de maior dramatismo filosófico-especulativo, a saber, o
problema da síntese, ou seja, a necessidade de responder pela integração,
junção ou justaposição do interno com o externo, do sujeito com o objeto,
do homem com o mundo drama que leva o entendimento humano a um
“escândalo” ... Isso, porém, é um falso, um pseudoproblema, decorrente de
uma formulação ou de um encaminhamento inoportuno, inadequado da
questão, a saber, do modo de ser ou da natureza da relação homem-mundo
(FOGEL, 2003, p. 26).
Para Fogel, a questão é que esta síntese já sempre se deu quando se
percebe que nela está presente um interesse. Este interesse é levado então à
condição de princípio e de fundamento, que é apreendido num salto, isto é, sem
mediação, sem intermediação.
Salto é a dimensão do acontecer ou do fazer-se, segundo a qual isto que
acontece ou se faz, constato, sempre se fez e aconteceu. O salto é cedo
demais para nele “a tempo” se entrar e tarde demais para, dele “a tempo” se
sair! (FOGEL, 2003, p. 27).
É desde essa experiência de salto que se define rculo ou começo circular,
uma vez que, no círculo, como no salto, não há fora, “não ponto exterior a ele, ou
seja, ele abarca, circun-screve e, por isso, eu estou sempre dentro e desde
dentro(FOGEL, 2003, p. 27). É este o âmbito deste circunscrever-se, deste fundar-
se que, em alemão, se diz Ursprung, a saber, princípio e origem (Ur proto; Sprung
salto). A representação conceitual então é aquela que sempre chega tarde demais
para a captura desse fenômeno que é uma “instância caracterizadora de um modo
de ser” (FOGEL, 2003, p. 28).
102
Assim, o discurso místico não deixa de ser também um discurso filosófico, um
discurso gerado na experiência do silêncio que se des-dobra, se ex-plica, num
discurso filosófico à procura de si próprio, “nas fronteiras entre o dizível e o indizível.
Que se explica no Verbo inefável complicativo de todos os verbos e que em tal
discurso se explica na sua inefabilidade” (CUSA, 1998, p. 130).
Nesse explicar-se não é o homem (sujeito-eu) que tem interesse ou em
determinada perspectiva, mas, “ao contrário, é a perspectiva ou o interesse que o
tem, isto é, que o faz, que lhe ser, que lhe outorga consistência, têmpera, teor,
textura substância!!” (FOGEL, 2003, p. 29). Desse modo o que se abre não é
alguém pronto e acabado, mas a possibilidade, a disposição do tornar-se, assim
como se pode dizer: “cada um é feito pelo que faz” (FOGEL, 2003, p. 31) ou, em
outras palavras, cada um é filho de suas obras. A ação, o agir é, pois, um entregar-
se à obra que do indivíduo se apropria “antes” “para fazer com que ele venha a ser o
que pode, respectivamente o que precisa vir a ser” (FOGEL, 2003, p. 32). Nesse ir se
tornando vai crescendo, aparecendo, tornando-se visível. Assim, por exemplo,
escrever esta tese passa a ser entendido não mais como um sujeito (eu) que
escreve sobre um sujeito outro (Nicolau de Cusa) e todos os outros sujeitos
(comentadores) e (orientadores), mas sim, um abrir-se para a abertura, para um ter-
se deixado apropriar por essa “outra dimensão”, por esse outro modo de ser, que é o
escrever.
A vida então passa a ter a forma de uma teoria do conhecimento que é a
aventura, o chamado para um desafio íntimo e individual, para uma atividade que
quer, que busca a si própria no conhecer. E, em conhecendo se conhece a si
própria, em buscando as medidas do conhecimento se mede a si própria. É nesse
interesse que espera, que provoca e chama há muito tempo, pela sua concretização,
que a vida se per-faz. Nicolau de Cusa é literalmente pré-texto. Tese é literalmente
con-strução. Literalmente, agora, quer dizer é interesse vivo no instante, do instante
que é vida, é paixão, é escrever com sangue como diz Nietzsche. Ao escrever, ao
pesquisar, sou eu mesma ali me derramando a mim mesma, me vendo a mim
mesma numa visão que já antes me viu.
Então o olhar de Deus é o olho que me pelo meu próprio olho, que é visto
como eu também vejo. Sou eu o finito que dialogicamente “fala”, perscruta, e
escreve o infinito num movimento de “superação dialógica” como dirá em seguida a
teoria do Cusano. A essa transposição o Cardeal denominará transssumptio, pois é
103
quando o infinito (Deus) se inscreve no finito (eu) que na igualdade consigo própria
ela pode se realizar numa conexão amorosa. É paixão! Interesse e perspectiva
apontam para a ação, para a forma da vida, do real que aberta, se revela como
transcendência, porque ultrapassa o homem. Fogel (2003) faz desta reflexão sobre
o problema do conhecimento uma obra de arte. Ele diz que se a “abertura é o lugar
da ntese” (FOGEL, 2003, p. 36) sujeito/objeto, ela é participação, “é a instância, a
hora ou o instante da relação arcaico-originária, que precede a todos os relata”, a
todos os termos, que os possibilita e os põe como co-pertinência ou como partícipes,
e não como termos ou pólos opostos, contrapostos, pré e “subexistentes” ou em si”
(FOGEL, 2003, p. 37). Em síntese, não nenhum sujeito fora do seu objeto, da sua
ação. É por isso que, para Nicolau de Cusa, Deus é ato puro e é, simultaneamente,
tudo em tudo e nada em tudo. É paradoxo, é para além do paradoxo.
E assim, para os não iniciados nos segredos da mística, usa-se uma
linguagem múltipla, surpreendentemente paradoxal, incluindo nela as metáforas e
analogias dos princípios lógicos que lhes correspondem, servindo de base para a
assim chamada vida ativa, uma vez que procedem de um modelo teórico-
contemplativo. No entanto, segundo a tradição zen, essa mesma linguagem,
oportunamente, deverá ser deixada, tal qual o barco, que não deverá ser carregado
nas costas por aquele que atravessou o rio. Mas, antes que sejam deixados,
enquanto se atravessa o rio, os termos teoria do conhecimento e visão de Deus
podem ir sendo usados alternativamente, mas entendidos como sinônimos e
apontando para o ápice da teoria: a mística.
A dimensão mística do pensamento Cusano supõe, como dito acima, um
movimento de superação dialógica e reassumptiva das diferenças em que o infinito
se inscreve no finito “por um processo de infinitização do próprio finito rumo à
unidade simples e absoluta que na igualdade consigo própria se realizará
absolutamente como conexão amorosa” (ANDRÉ, 2001, p. 214), cujo percurso
místico-especulativo recebe o nome de transsumptio, também dito transcensus ou
translatio. Assim como a transsumptio aponta características que definem o caminho
para o divino, segundo André, é a concórdia o nome que se a esse mesmo
movimento no caminho para os homens.
Nesse percurso do conhecimento, nesse trans-por-se para o movimento do
con-crescer do conhecimento que não é somativo, nem aglutinante como diz o
Fogel, mas sim de uma intensificação, pensa-se que, através da obra A visão de
104
Deus (CUSA, 1998), é possível encontrar uma via oportuna para entender e
apreender a mística de Nicolau de Cusa. Entendido que esta mística não trata de
nenhuma instância fora da própria vida e da própria coisa (objeto) a ser visto no aqui
e agora do instante. Ao contrário, trata-se de integrar a vida cada vez mais a si
mesma no modo da visão de Deus, ou seja, da teoria do conhecimento.
1.1 A interpretação cusana da teoria do conhecimento
Ocorre que em duas cartas de 22 de setembro de 1452 e de 14 de setembro
de 1453, esclarecendo uma polêmica entre a interpretação afetiva e a interpretação
intelectual da visão contemplativa, Nicolau de Cusa envia à comunidade dos
monges beneditinos de Tegernsee uma reprodução do rosto de Cristo. “Seu olhar
parecia fixar-se no espectador, qualquer que fosse a sua posição, e acompanhá-lo
em todas as suas deslocações” (CUSA, 1998, p. 103). Junto com aquela, remete
também a obra De visione Dei, com o intuito de guiá-los nas suas reflexões e com
isso levá-los a experimentar a “escuridão sagrada e luminosa da teologia mística e
da douta ignorância” (CUSA, 1998, p. 103).
A obra composta de 22 capítulos, baseados no quadro motivador da reflexão,
converte a meditação mística num profundo solilóquio com Deus, gerando uma
densidade especulativa e metafísica que parecem contrastar com a dimensão
dialógica do escrito. No limiar da luz com as trevas, o discurso pode ser inscrito entre
religião, mística e filosofia. Procurando seguir o seu próprio método, formado de três
etapas, o Cardeal propõe que se inicie com a primeira delas, que parte da
apreciação de um objeto concreto.
É do modo mais simples e comum, diz o Cusano aos monges, que isso lhes
dará acesso à teologia mística. Antes, porém, de iniciar, roga a Deus que lhe “as
palavras mais elevadas e o discurso que a si próprio pode revelar” (CUSA, 1998,
p. 133), querendo com isso que a experiência seja de acordo com a capacidade de
compreensão de cada um, e possa ver assim “as coisas admiráveis que se mostram
acima de toda visão sensível, racional e intelectual” (CUSA, 1998, p. 133).
Desse modo, tentará o Cardeal, também a nós, conduzir “até a mais sagrada
obscuridade” (CUSA, 1998, p. 133), quando então caberá a cada um tentar por si
“e do modo que Deus lhe conceder” aproximar-se cada vez mais do “festim da
felicidade eterna à qual somos chamados na palavra da vida” (CUSA, 1998, p. 133),
pelo evangelho de Jesus Cristo.
105
Primeiramente, diz Nicolau de Cusa, para conduzir às coisas divinas, é
necessário que se recorra às comparações. Para tal, ele usará a imagem que lhe
pareceu, entre as obras humanas, a mais conveniente, que é o rosto que “por sutil
arte de pintura se comporta como se tudo olhasse em seu redor” (CUSA, 1998, p.
135), figura essa que chamou de ícone de Deus.
Sugere aos monges que o coloquem numa parede onde seja possível que
todos se coloquem em volta, à mesma distância dele, quando cada um
experienciará que “é o único a ser olhado por ele” (CUSA, 1998, p. 136).
Perceber-se-á que, olhando nas diferentes direções, o olhar estará olhando,
ao mesmo tempo, todos e cada um. Os monges deverão mudar de lugar para
experienciar que, estando o ícone fixo e sem se mover, “admirar-se-á com a
mudança do olhar imóvel” (CUSA, 1998, p. 136), e ainda que cada um se mova,
percebe que o olhar do ícone se move com ele, sem o abandonar, admirando-se
pelo fato de ele “se mover permanecendo imóvel” (CUSA, 1998, p. 136), acontecendo
o mesmo com outros monges que se movam em direção contrária. Com base nos
relatos dos outros monges, perceber-se-á que “aquele rosto não abandona todos
aqueles que se deslocam, ainda que com movimentos contrários” (CUSA, 1998, 137).
Percebe-se então que o rosto imóvel move-se simultaneamente tanto para um
lugar como para outro e “tanto para um movimento como para todos” (CUSA, 1998, p.
137). Compreender-se-á que aquele olhar não abandona nenhum dos olhares que o
olham, tendo “tanto cuidado como se se preocupasse com aquele que
experiencia ser visto e com nenhum outro” (CUSA, 1998, p. 137), tendo, portanto, um
cuidado diligentíssimo “com a mais pequena criatura, como se se tratasse da maior
de todo o universo” (CUSA, 1998, p. 137).
É a partir deste fenômeno sensível (apparentia) que Nicolau de Cusa convida
à teologia mística, “através de uma prática de devoção” (CUSA, 1998, p. 137) sendo
que, para que tal efeito ocorra, três coisas deverão ser observadas:
Primeiro, a perfeição do que aparece verifica-se em relação a Deus
perfeitíssimo, isto é: Deus, que é a própria sumidade de toda a perfeição e maior do
que se pode pensar, “recebeu o nome de theos exatamente porque tudo vê” (CUSA,
1998, p. 138). Constata-se que o olhar abstraído está contraído “relativamente ao
tempo, às zonas do mundo, aos objetos singulares etc. (CUSA, 1998, p. 139), sob
tais condições que não pertence à essência desse olhar, “olhar mais para um do que
para outro objeto” (CUSA, 1998, p. 139). Deus, porém, “na medida em que é o olhar
106
verdadeiro, não contraído” (CUSA, 1998, p. 139) não é inferior àquilo que o intelecto
pode conceber sob o olhar abstrato, mas “improporcionalmente mais perfeito” (CUSA,
1998, p. 139).
O olhar absoluto abraça todos os modos e, por isso, deve-se considerar que o
olhar é diferente em cada um, “consoante a diversidade da sua contração” (CUSA,
1998, p. 140), diferindo de acordo com os estados de ânimo, as paixões ou as
etapas da vida, seja criança, adulto ou velho. Contudo, “o olhar desvinculado
(Absolutus) de qualquer contração abraça simultaneamente e de uma só vez todos e
cada um dos modos de ver como se fosse a medida mais adequada e o modelo
mais verdadeiro de todos os olhares” (CUSA, 1998, p. 140), de tal modo que
permanece totalmente desvinculado de toda a diversidade.
No olhar absoluto estão, “duma forma não contraída, todos os modos de ver
das contrações” (CUSA, 1998, p. 140), isto é, sendo incontraível, a mais simples das
contrações coincide com o absoluto. “Assim, a visão absoluta está em cada olhar,
porque é através dela que é toda a visão contraída, e, sem ela, de modo algum pode
ser” (CUSA, 1998, p. 140). Em todo olhar significa que essa teoria do conhecimento
em seus múltiplos desdobramentos está sempre ali, no agora do tempo.
Assim, pois, todas as coisas que se afirmam de Deus não diferem realmente.
Ainda que por razões diferentes se atribua a Deus nomes diferentes, deve-se
considerar, segundo o Cardeal, que “todas as coisas que se afirmam de Deus não
podem, devido à suprema simplicidade de Deus, diferir realmente” (CUSA, 1998, p.
141), pois Deus, que é a medida absoluta de todas as razões formáveis, “complica
em si todas as razões” (CUSA, 1998, p. 141). Em Deus “o ato de ver não é diferente
do ato de ouvir, gostar, cheirar, tocar e de compreender” (CUSA, 1998, p. 141),
dizendo-se por isso que toda a teologia tem uma “natureza circular” (CUSA, 1998, p.
141), dado que um dos atributos se afirma de outro. Porque ele é “a razão absoluta
na qual toda a alteridade é unidade e toda diversidade identidade, então a
diversidade das razões, que não é a própria identidade de acordo com a qual nós
concebemos a diversidade, não pode existir em Deus” (CUSA, 1998, p. 141). A visão
de Deus é dita providência, graça e vida eterna.
Segundo, Nicolau de Cusa sugere então aos monges que se aproximem
agora do ícone de Deus e, “percebendo que o olhar da imagem te olha igualmente
em todo o lado e não te abandona para onde quer que te dirijas” (CUSA, 1998, p.
142), poder-se-á intuir a sua providência, estando ele “com todos e com cada um, tal
107
como em todos e em cada um está presente o ser sem o qual não podem ser”
(CUSA, 1998, p. 142).
Num solilóquio com Deus, o Cardeal roga-lhe que não permita, “por qualquer
imaginação” (CUSA, 1998, p. 143), que este possa amar mais que a si, qualquer
outro diferente de si “porque só a mim o teu olhar não abandona” (CUSA, 1998, p.
143).
Aqui o ver de Deus é seu amar, porque “onde estão os olhos está o amor”
(CUSA, 1998, p. 143) e porque “o teu ser, Senhor, não abandona o meu ser” (CUSA,
1998, p. 143), então “eu sou na medida em que tu és comigo” (CUSA, 1998, p. 143).
nesta passagem vai sendo respondida a carta que deu início a todo o movimento
de compreensão dialógica e transsumptiva proposta por Nicolau de Cusa, onde
conhecer é amar e amar é conhecer.
Porém, aqui surge um detalhe que parece de extrema importância e que está
nessa semelhança: “Jamais poderás abandonar-me enquanto eu for capaz de te
receber” (CUSA, 1998, p. 143), cabendo então a cada um “fazer quanto puder”
(CUSA, 1998, p. 143) que possa torná-lo capaz de o receber. Isso porque é sabido
que “a capacidade de recepção, que preside a união, não é senão semelhança”
(CUSA, 1998, p. 144). No entanto, é pela vontade livre que se pode “ampliar ou
restringir a capacidade de receber a tua graça” (CUSA, 1998, p. 144), voltando, cada
um, todo o seu esforço na sua direção, porque todo o seu esforço está voltado na
direção de cada um, com a máxima atenção, quando é dado por Deus a cada um,
um “ser tal que se pode tornar cada vez mais capaz de receber a tua bondade e a
tua graça” (CUSA, 1998, p. 144).
Quanto à Vida Eterna, sendo ela “o máximo absoluto de todo o desejo
racional, o qual não pode ser maior” (CUSA, 1998, p. 145), é contemplada “no
espelho, na imagem, no enigma” (CUSA, 1998, p. 145), porque é através dela que o
olhar de Deus não é “senão vivificar, não é senão infundir continuamente um
dulcíssimo amor por ti, inflamar-me de amor por ti pela infusão do amor, e
inflamando-me alimentar-me, e alimentando-me acender desejos, e acendendo-os
beber o orvalho da alegria, e bebendo-o introduzir-me na fonte da vida, e
introduzindo-me crescer e permanecer eternamente” (CUSA, 1998, p. 145). É ai,
afirma Nicolau de Cusa, que “reside a origem de todas as delícias que puderam ser
desejadas” (CUSA, 1998, p. 145).
108
Ver é saborear, procurar, ter misericórdia e atuar. Aqui, dando continuidade
ao solilóquio, o Cardeal completa dizendo que “Ninguém pode ver-te senão na
medida em que concedes que sejas visto” (CUSA, 1998, p. 146), e esse ver é
apreender “num contato experimental” (CUSA, 1998, p. 146), isto é, saborear a
própria sabedoria
66
. Aqui invocar é procurar e procurar é “voltar-se para ti” (CUSA,
1998, p. 148) e, ninguém pode voltar-se para Deus se ele não estiver presente. O
ver de Deus, afirma o Cardeal, é a sua misericórdia, assim como esse mesmo ver é
atuar. “E é assim que tudo atuas” (CUSA, 1998, p. 148), pois, “és aquele que tudo
provê, cuida e conserva” (CUSA, 1998, p. 148).
Em terceiro lugar, surge a visão frontal como o próximo aspecto a ser
abordado por Nicolau de Cusa. Contemplando a face do ícone e com ele
dialogando, Nicolau de Cusa propõe que, sendo a sua verdadeira face desligada de
qualquer contração, por isso, não pertence ao domínio da quantidade e nem da
qualidade, nem do tempo ou do lugar. Percebe-se que aos poucos começa a
introduzir a noção de proporção e medida e, com isso, a noção de símbolo. Tudo
isso por perceber que uma face não pode ser pintada sem cor “e a cor não existe
sem quantidade” (CUSA, 1998, p. 149). Não sendo do domínio da quantidade, a
verdadeira face “não pode ser maior nem mais pequena; nem é, porém, igual a
nenhuma, porque não é do domínio da quantidade, mas absoluta e sumamente
exaltada” (CUSA, 1998, p. 149).
É desse modo que o Cardeal compreende que o rosto divino é “anterior a
todas as faces formáveis” (CUSA, 1998, p. 150), sendo o modelo do qual todas as
faces são imagens. Toda face, então, que pode olhar para a sua face nada vê senão
a si mesma, ainda que a imagem não seja o próprio modelo. O seu olhar é, pois, a
sua face sempre voltada simultaneamente para todas as direções.
Essa face é concebida por cada um segundo seu próprio julgamento, isto é,
“o homem não pode julgar senão humanamente” (CUSA, 1998, p. 151). Assim como
os olhos corpóreos vêem que tudo é vermelho, quando olha através de um vidro
66
Na obra Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 151, encontra-se uma nota de rodapé onde o
cusano fala acerca de Un ignorante discurre acerca de la sabiduría, I, n. 1: “De esta manera,
entonces, aquello que te he expuesto de esta forma en este breve lapso, sea suficiente para que
sepas que la sabiduría no reside en el arte oratorio o en grandes volúmenes, sino en el alejarse de
estas cosas sensibles y en volverse a la forma más simple e infinita”. (Deste modo, então, aquilo
que expus para ti, neste breve lapso, é suficiente para que saibas que a sabedoria não reside na
arte da oratória ou em grandes volumes, senão no distanciar-se dessas coisas sensíveis e em
voltar-se para a forma mais simples e infinita).
109
vermelho ou verde, através de um vidro verde, assim também os olhos da mente,
“velados na contração e na paixão” (CUSA, 1998, p. 150). Segundo o Cusano,
conceber o modelo único da face divina requer que se transcenda “as formas de
todas as faces formáveis e de todas as figuras” (CUSA, 1998, p. 151). E questiona
como seria concebida então essa face, “uma vez transcendidas todas as
semelhanças e figuras de todas as faces, todos os conceitos que podem ser
formados sobre a face, toda a cor, ornamento e beleza de todas as faces?” (CUSA,
1998, p. 151).
É por isso, diz o Cusano, que “quem se resolve a ver a tua face, enquanto
concebe algo, permanece longe da tua face” (CUSA, 1998, p. 151), pois, a face
divina, não aparece a descoberto enquanto “se não penetra, para além de todas as
faces, num secreto e oculto silêncio, onde nada resta da ciência ou do conceito de
face” (CUSA, 1998, p. 152).
Aproxima-se então o buscador das trevas ou da ignorância semelhante
àquele que quer ver a luz do sol e que precisa transcender a luz visível, sabendo
“que é necessário que aquilo em que mergulha careça de luz visível” (CUSA, 1998, p.
152), pois, estando os olhos nas trevas que são escuridão, “se sabem que estão na
escuridão, sabem que se aproximam da face do sol” (CUSA, 1998, p. 152). Tanto
mais atingem a luz/escuridão, tanto mais se aproximam da luz invisível. , no
entanto, um modo todo próprio para a aquisição desse fruto da visão frontal.
Na síntese desse capítulo diz Nicolau de Cusa que o fruto da visão frontal é
ser de si mesmo. Mas o que significa ser de si mesmo e como adquirir esse fruto?
Primeiro, usar-se-á de comparações e por serem tão agradáveis e inspiradas
por Deus. Sendo Deus a força e o princípio a partir do qual “todas as faces são o
que são” (CUSA, 1998, p. 154). O Cardeal usará como exemplo uma árvore e
descreverá como se pode ver nela esse mesmo princípio e essa mesma força.
Com os olhos sensíveis uma árvore grande, extensa, colorida e carregada
de ramos. Com os olhos da mente na semente essa mesma árvore não como
agora, mas apenas virtualmente. Considere-se então, sugere o Cusano,
“atentamente a admirável virtude (Virtutem) daquela semente, na qual se encontrava
toda aquela árvore, todas as nozes, toda a força da semente das nozes e todas as
árvores virtualmente [existentes] nas sementes das nozes” (CUSA, 1998, p. 154).
Percebe-se então, como essa força da semente, “embora inexplicável, está, contudo
contraída porque não tem a sua virtude senão nessa espécie de nozes” (CUSA,
110
1998, p. 155). É por isso que, vendo a árvore na semente, essa visão é a de uma
“virtude contraída” (CUSA, 1998, p. 155).
Chega-se então a visão que deve transcender “toda a virtude seminal
susceptível de ser sabida ou concebida e entrar naquela ignorância na qual não
resta absolutamente nada da virtude ou do vigor seminal” (CUSA, 1998, p. 155). Vê-
se então na escuridão a “admirabilíssima virtude inacessível a qualquer virtude que
possa ser pensada” (CUSA, 1998, p. 155). Complicatio e explicatio se desdobram
outra vez na visão do Cusano.
Sendo a virtude absoluta quem “o ser a toda virtude seminal” (CUSA, 1998,
p. 155), tal virtude é a face ou o modelo de toda face da árvore, que é quando se
pode ver a nogueira não na sua virtude seminal contraída, mas “como ela é na
causa fundadora da sua virtude” (CUSA, 1998, p. 155). É por essa razão que tal
árvore pode ser agora entendida como uma “explicação da virtude seminal e que a
semente é uma certa explicação da virtude omnipotente” (CUSA, 1998, p. 156).
Sintetizando esse desdobramento (explicatio), diz o Cardeal: “E vejo que
assim como a árvore na semente não é árvore, mas força seminal, e que essa força
seminal é aquela a partir da qual se explica a árvore de tal maneira que nada se
pode encontrar na árvore que não proceda da virtude seminal –, assim também a
virtude seminal na sua causa, que é a virtude das virtudes, não é virtude seminal,
mas virtude absoluta” (CUSA, 1998, p. 156). Assim, a árvore é em Deus ele mesmo e
nele, a virtude e o modelo de si própria. Deus é, pois, a verdade e o modelo sendo a
força da semente, “que está contraída” (CUSA, 1998, p. 156), a força da natureza da
espécie e que “está contraída na espécie” (CUSA, 1998, p. 156) e que lhe é inerente
como princípio contraído.
Mas, com isso, diz o Cardeal: “Ninguém pode apoderar-se de ti se tu não te
lhe deres” (CUSA, 1998, p. 156), o que parece contraditório com a passagem
seguinte que diz: “Colocaste na minha liberdade a possibilidade de eu ser, se quiser,
de mim próprio. Por isso, se eu não for de mim próprio, tu não serás meu” (CUSA,
1998, p. 157). Essa liberdade necessária, também ela, impõe que Deus não possa
ser meu se eu não for de mim próprio e, no entanto, me essa escolha em que
espera que eu seja de mim próprio. E conclui o Cusano com a questão: “De que
modo serei de mim próprio, se tu, Senhor, não me ensinares?” (CUSA, 1998, p. 157)
e como resposta entende que os sentidos devem obedecer à razão e esta deve
dominar, ainda que, mais tarde, venha submeter a razão ao intelecto, que se
111
encontra para além dela, como veremos. Por isso, “quando os sentidos servem à
razão, eu sou de mim próprio” (CUSA, 1998, p. 157). Mas quem dirige a razão é
Deus, que é o Verbo e a “razão das razões” (CUSA, 1998, p. 158). Desse modo, a
visão de Deus é amar, causar, ler e conservar em si todas as coisas. A visão de
Deus é intelectual.
Para Nicolau de Cusa, o ver de Deus é amor tanto quanto é causar.
Provavelmente seja nessa perspectiva que Nietzsche escreve “em lugar da teoria do
conhecimento uma doutrina perspectivistica dos afetos(FOGEL, 2003, p. 46). Mas
deixemos essa questão e retomemos o ícone e a visão de Deus de Nicolau de Cusa.
O Cardeal também entende que enquanto o homem uma página, letra por
letra e linha por linha, Deus simultaneamente toda a página e sem qualquer
demora temporal” (CUSA, 1998, p. 161). O olhar de Deus, “sendo olhos e espelho
vivos, em si todas as coisas. Ele é antes causa de tudo o que é visível” (CUSA,
1998, p. 162). Enquanto em nós os olhos se voltam para o objeto e com isso vemos
sob um ângulo quantitativo. O olhar de Deus não sendo quantitativo, mas infinito, é
círculo e esfera infinita, por isso tudo em redor e simultaneamente em cima e em
baixo.
A visão de Deus é igualmente universal e particular e a via que a ela conduz é
a coincidência dos opostos. Aqui, para Nicolau de Cusa, coincide o universal com o
singular. É quando, “considerando a humanidade contraída e, através dela, a
absoluta, isto é, vendo no contraído o absoluto como no efeito a causa e na imagem
o modelo, vens ao meu encontro” (CUSA, 1998, p. 164). Da mesma forma, quando se
volta para todas as espécies, “para a forma das formas, em todas vens ao meu
encontro como ideia e modelo” (CUSA, 1998, p. 164). Percebe-se então que Deus
está “em todas as coisas, ao mesmo tempo e de uma vez e no que quer que
seja” (CUSA, 1998, p. 165), estando completamente presente, e, contudo, “não te
moves nem repousas, porque é sobrexaltado e desligado (Absolutus) de tudo o que
pode ser concebido ou denominado” (CUSA, 1998, p. 165). Por exemplo, se eu me
movo, Deus move-se comigo enquanto a um outro que fica parado olhando o
mesmo ícone de Deus, parecerá imóvel com o que está imóvel. Estando, porém,
“acima de toda a imobilidade e movimento na sua infinitude profundamente simples
e absoluta” (CUSA, 1998, p. 166).
A experiência insinuada é a da douta ignorância, onde, na escuridão, “admitir
a coincidência dos opostos sobre toda a capacidade racional [...], acima também de
112
toda ascensão intelectual mais elevada” (CUSA, 1998, p. 166), é que Deus está. A
via para aceder a Deus é então aquela “completamente inacessível” (CUSA, 1998, p.
166), podendo ser visto ali onde se depara com a impossibilidade, para da
coincidência dos contraditórios, quando então o ver de Deus é o seu ser.
Nesse momento, que é por assim dizer o segundo movimento, a sequência
da proposta global da teoria, Nicolau de Cusa, estando diante do quadro e vendo a
imagem da face de Deus com os olhos sensíveis, tenta intuir com os olhos interiores
a verdade que está representada na pintura.
Ocorre-lhe o pensamento que o olhar ali pintado fala, porque entende que o
falar de Deus não é diferente do seu ver. Diz experienciar então com clareza que
Deus vê ao mesmo tempo todas as coisas e cada uma delas. Analogicamente
percebe que, sendo um sacerdote, fala para toda a igreja congregada e ao mesmo
tempo a cada um dos indivíduos que lá está. “Digo uma só palavra e com essa única
palavra falo a cada um dos indivíduos” (CUSA, 1998, p. 168). Entende que aquilo que
para si é a igreja é para Deus todo esse mundo e cada uma das criaturas, tanto as
que são quanto as que podem ser. Do mesmo modo, sendo um indivíduo e tendo
uma única face é visto por todos aqueles a quem prega simultaneamente enquanto
o seu discurso é ouvido por cada um e entendido nos limites do conhecimento de
cada um. Mas ele mesmo não pode ouvir de modo distinto e simultâneo todos os
que falam, mas “um depois do outro” (CUSA, 1998, p. 168), enquanto que, em Deus,
entendem que coincide ver e ouvir simultaneamente todos e cada um dos
indivíduos.
Isso se dá no agora, nessa porta da coincidência dos opostos, que ele chama
de “porta do paraíso” (CUSA, 1998, p. 169), pois na verdade é o mesmo o ver todas
as criaturas que o ser visto por elas, porque as criaturas são pela visão de Deus.
“O ser das criaturas é simultaneamente o teu ver e o ser visto” (CUSA, 1998, p. 169).
Louva então o Cusano a Deus, pois, o seu “conceber é falar” (CUSA, 1998, p. 170).
Mas, em seguida, questiona: como é que partindo de um único conceito, de uma
única concepção, todas as coisas não são simultaneamente, mas uma depois da
outra?
A resposta que ouve estando na porta do paraíso é que “a duração infinita,
que é a eternidade, abraça efetivamente toda a sucessão” (CUSA, 1998, p. 170), pois
tudo aquilo que para nós é sucessão no conceito divino é a eternidade simples. É o
conceito único que complica todas as coisas e cada uma delas.
113
Assim, entende também que a palavra eterna que é a eternidade simples não
pode ser ltipla nem diferente, nem variável e nem mutável. Nessa eternidade
simples em que Deus concebe, “toda a sucessão temporal coincide, no mesmo
momento, com a eternidade. Por isso, nada de pretérito ou de futuro onde o
futuro e o pretérito coincidem com o presente” (CUSA, 1998, p. 171).
Entende agora o Cardeal que Deus, por ser omnipotente, está dentro do muro
do paraíso, porque o muro é a coincidência dos opostos, ali onde o antes coincide
com o depois e o fim coincide com o princípio, em que “alfa e ômega são o mesmo”
(CUSA, 1998, p. 171). Na verdade, insiste Nicolau de Cusa “o agora e o então são
depois do teu verbo. E assim aqueles que se aproximam de ti deparam-se com o
muro que circunda o lugar em que habitas na coincidência (CUSA, 1998, p. 171),
enquanto Deus fala para além do agora e do então, para além do muro da
coincidência dos opostos.
Em Deus vê-se a sucessão sem sucessão. Um exemplo simples é o do
relógio, que complica em si toda a sucessão temporal. Apascentado com o leite das
comparações até que lhe seja concedido por Deus um alimento mais forte, o Cusano
apropria-se do relógio em analogia com o conceito para então explicar a sucessão.
O faz do seguinte modo: A eternidade complica e explica a sucessão. Por exemplo:
se o relógio fosse o conceito “ainda que ouçamos o som das seis horas primeiro que
o das sete, não se ouve o som das sete senão quando o determina o conceito”
(CUSA, 1998, p. 172).
Desse modo as seis horas, no conceito, não são antes das sete e nenhuma
hora é antes ou depois da outra, ainda que o relógio nunca bata uma hora que não
tenha sido determinada pelo conceito. Passa-se a ver então que o que quer que se
experimente na sucessão sai do conceito e, com isso, a sucessão é a explicação do
conceito “porque o conceito o ser a qualquer coisa” (CUSA, 1998, p. 173). Por
isso, se o conceito do relógio é como que a própria eternidade, então o movimento
do relógio é a sucessão. Fica claro que o conceito do relógio, que é a eternidade,
complica e explica igualmente todas as coisas.
Confia o Cardeal que possa encontrar a Deus para lá do muro da coincidência
dos opostos, para da coincidência da complicação e da explicação. Parte “das
criaturas para o criador, dos efeitos para a causa” (CUSA, 1998, p. 174) e sai partindo
de Deus o criador para a criatura, “da causa para o efeito (CUSA, 1998, p. 174),
pois, “com efeito, a disjunção e simultaneamente a conjunção são o muro da
114
coincidência para além da qual existes desligado de tudo o que pode dizer-se ou
pensar-se” (CUSA, 1998, 174). Onde se vê o invisível vê-se o criador incriado.
Como o ser da criatura é o ver de Deus, a visão preexiste ao ato, porque a
visão de Deus é a sua essência. Assim, Deus é visível e simultaneamente invisível.
É visível enquanto a criatura é, pois esta é na mesma medida em que o vê, e é
invisível enquanto é. Deus invisível então é visto em qualquer visível “por todos e em
todo olhar” (CUSA, 1998, p. 175). Percebe agora o Cusano a necessidade de
transpor o muro da visão invisível em que Deus se encontra, pois, enquanto
concebe um criador que cria, ainda está para do muro do paraíso e, enquanto
concebe um criador criável, ainda não está dentro do muro, mas apenas no muro.
Começa-se apenas a ver com mais clareza quando se pode ver que à
infinidade absoluta não convém nem “o nome de criador que cria e nem o de criador
criável” (CUSA, 1998, p. 177), porque Deus “nunca é nada de semelhante ao que
pode ser dito ou concebido” (CUSA, 1998, p. 178), mas infinitamente mais que
criador, ainda que nada possa ser feito sem ele. Deus aparece como infinidade
absoluta. O Cardeal nesse momento apenas sabe que não sabe, pois qualquer
conceito ou qualquer nome não pode dizer ou nomear Deus. Sabe que vê, porque
nada do mundo visível. Desse modo, se alguém descrever ou comparar Deus a
algo, querendo oferecer um modo pelo qual Deus possa ser compreendido,
permanecerá longe dele. Por isso, diz Nicolau de Cusa, “enquanto me elevo o mais
alto possível, vejo-te como infinidade, sendo por isso inacessível, incompreensível,
inominável, imultiplicável e invisível” (CUSA, 1998, p. 180).
Mas a questão é: como chegar a Deus, como elevar-se para além do fim,
ultrapassando a coincidência dos opostos? A resposta é que o intelecto se coloque
na sombra, que se torne ignorante.
Quando o intelecto sabe que não pode captar a Deus, quando se sabe
ignorante, é quando dele pode se aproximar. “Entender a infinidade é, pois,
compreender o incompreensível. Sabe o intelecto que te ignora, porque sabe que
não podes ser conhecido, salvo se souber o que não é susceptível de se saber e se
vir o que não é visível e se tiver acesso ao que não é acessível” (CUSA, 1998, p.
180). Essa afirmação escapa a qualquer razão, porque quando se afirma um fim
sem fim admite-se que “a treva é luz, a ignorância ciência, o impossível necessário”
(CUSA, 1998, p. 181). Admite-se ainda que na infinidade “a oposição dos opostos é
115
oposição sem oposição” (CUSA, 1998, p. 182) e, como a infinidade absoluta tudo
abraça, nada há fora dela, não podendo ser maior nem menor.
A infinidade então está acima de tudo, ainda que não seja o todo a que se
opõe a parte, nem a parte do todo, pois não é grande nem pequena, nem o que quer
que seja. A infinidade não é maior, nem menor, nem igual a nada, sendo, ainda
assim, a medida de todas as coisas. Dessa forma é concebida pelo Cusano a
igualdade do ser. “Tal igualdade, porém, é infinidade e, assim, não é igualdade do
modo pelo qual à igualdade se opõe o desigual, mas aqui a desigualdade é
igualdade” (CUSA, 1998, p. 183). Permanecendo absoluto, o infinito não é contraível.
Por exemplo, a linha deixa de ser linha se não tiver quantidade nem fim e, por isso,
na infinidade a linha infinita não é linha, mas infinidade. A infinidade é, pois,
infinidade absoluta que não é nem princípio, nem fim. Sendo Deus, porque é infinito,
a medida imensurável de tudo, sendo princípio por ser fim e sendo fim por ser
princípio.
Deus tudo complica sem alteridade. Nicolau de Cusa percebe que em Deus
todas as coisas não são diferentes de Deus. Não podendo a alteridade ser em si, e
não sendo em Deus, como então procurar a alteridade que “não é em ti nem fora de
ti” (CUSA, 1998, p. 185), pergunta a Deus o Cusano. Sem a alteridade, pensa o
Cardeal que a diferença entre o u e a terra não pode ser concebida. A alteridade
então, “não podendo ser princípio de ser porque se diz a partir do não ser” (CUSA,
1998, p. 186), não é alguma coisa. Diz o Cardeal agora que “a razão pela qual o céu
não é a terra está em que o céu não é a própria infinidade que abraça todo o ser”
(CUSA, 1998, p. 186). A infinidade é, pois, a unidade, e nela a representação é a
verdade. Ainda diante do ícone de Deus, Nicolau de Cusa diz ver na face pintada a
representação da infinidade.
Não sendo o olhar limitado diante de algum objeto ou lugar, e, por o estar
mais voltado para este que para outro lugar, é infinito. Porém, para quem o olha
parece limitado, pois quem o olha olha de modo determinado. Entende, então, que a
potência absoluta, a infinidade, está para além do muro da coincidência, “em que o
poder ser feito coincide com o poder fazer” (CUSA, 1998, p. 188/189) da mesma
forma como a potência coincide com o ato.
Sendo Deus a forma das formas, “espelho vivo da eternidade” (CUSA, 1998, p.
190), quando alguém intui a si ao olhar para esse espelho, o faz porque Deus
mesmo o dá. Ele a sua forma na forma das formas que é o espelho e pensa que
116
o que vê é a representação da sua forma, mas “aquilo que vê no espelho da
eternidade não é a representação, mas a verdade da qual o próprio sujeito que é
a representação” (CUSA, 1998, p. 190). Finalmente, entende o Cardeal que a
representação em Deus é a verdade e o modelo de tudo e de cada coisa que é ou
que pode ser.
O Cardeal percebe que a imagem da face do ícone muda à medida de suas
próprias mudanças. Com isso, entende que a face de Deus não abandona a verdade
da face do homem, mas, da mesma forma o acompanha a mudança da imagem
alterável. Deus então é a sua imagem ou de um outro qualquer, por ser o modelo, e
cada face é a imagem que não é a própria verdade absoluta, mas a imagem da
verdade absoluta. Ainda que Deus não possa abandonar a face mutável do homem
Nicolau de Cusa, a sua face é imutável. Deus então, simultaneamente, não
abandona e não acompanha as criaturas. É por isso que amamos aquilo que
participa do nosso ser e o acompanha, abraçando a nossa semelhança enquanto
nos representamos a nós próprios na imagem em que nos amamos a nós próprios.
Se Deus não fosse infinito, não seria o fim do desejo.
Forma desejável e verdade desejada, como um tesouro inumerável e
inesgotável, Deus atrai a si, assim, as criaturas. O Cardeal explica que quanto mais
incompreensível, mais é compreendido Deus que é a infinidade. Atingi-lo é atingir o
fim do desejo, pois o próprio desejo rejeita tudo que é finito e compreensível, o
podendo descansar nas coisas finitas, justamente por ser atraído pelo próprio Deus
ao que é infinito. É, pois, o desejo conduzido ao fim sem fim, ao princípio sem
princípio que é de onde recebe o próprio desejo. Por isso é que “aquilo que o
intelecto entende não o sacia nem é o seu fim” (CUSA, 1998, p. 196). Da mesma
forma, não pode saciá-lo aquilo que não entende apenas, mas que, “não
entendendo entende” (CUSA, 1998, p. 196), como uma fome insaciável não é
saciada com pouco pão nem com o pão que não chega até ela, mas somente com o
pão que aela chega e que, embora comendo-o continuamente, jamais pode ser
plenamente engolido, de tal modo que essa fome não diminui à medida em que o
pão é engolido, “por ser infinito” (CUSA, 1998, p. 196).
2 Unitrino: amável, amante e nexo
Deus não pode ser visto plenamente a não ser como unitrino. Não sendo o
infinito multiplicável e podendo ser a sua amabilidade que é simultaneamente o seu
117
poder ser infinitamente amado, Deus ama infinitamente. Do poder ser amor e do
poder ser infinitamente amado “surge o nexo infinito do amor entre o amante infinito
e o infinito amável” (CUSA, 1998, p. 197). Deus é amor. É amor amante e amor
amável, assim como é o nexo entre eles. Essas coisas que ocorrem como sendo
três, o amante, o amável e o nexo são o que o Cardeal chama de “essência mais
simples absoluta” (CUSA, 1998, p. 198), que não são três mas uma só. Não aqui,
portanto, a distinção numérica de três, porque a essência trina é sumamente
simples. O exemplo a seguir é sumamente esclarecedor:
Se alguém disser um, um, um, diz um três vezes, não diz três, mas um e
este um três vezes. Não pode, todavia, dizer um três vezes sem três, ainda
que não diga três. Na verdade, quando diz um três vezes, repete o mesmo
e não numera. Numerar é alterar o um, mas repetir o um e o mesmo três
vezes é plurificar o número. Daí que a pluralidade que é vista em ti, Deus
meu, é alteridade, porque é uma alteridade que é identidade (CUSA, 1998, p.
199/200).
Admitindo que seja possível que eu veja, diz o Cardeal, em mim mesmo o
amor, porque me vejo como o amante e, na medida em que amo a mim próprio, me
vejo como o amável. Nesse caso vejo também que sou o nexo entre ambos. “Eu sou
o amante, eu sou o amável e eu sou o nexo” (CUSA, 1998, p. 201).
Um só é o amor sem o qual não pode haver nenhum três, mas, eu sou um
e não três. Sou um do qual brota o amor com que me amo a mim mesmo. Se o
meu amor puder ser entendido como a minha essência, então na minha essência
existe a unidade das três coisas referidas: “a unidade da essência” (CUSA, 1998, p.
201).
Essa trindade que é a unidade da essência é, contraidamente na minha
essência, aquilo que em Deus é verdadeira e absoluta essência. Outro exemplo do
próprio Nicolau de Cusa não poderia ser mais claro:
Em virtude do amor amante, que estendo a outra coisa para além de mim,
como se o fizesse a algo de amável exterior à minha essência, segue-se o
nexo, pelo qual sou ligado a essa coisa tanto quanto isso pode resultar em
mim. Essa coisa não está unida a mim por tal nexo porque me não ama. Daí
que ainda que eu a ame a tal ponto de o meu amor amante se estender
sobre ela, o meu amor amante não arrasta consigo o meu amor amável.
Não me torno, pois, amável para ela. E de mim não cuida, ainda que a ame
fortemente, assim como o filho, por vezes, não cuida da mãe que com tanta
118
ternura a ama. E assim experimento que o amor amante não é o amor
amável, nem o nexo, mas vejo que se distingue o amante do amável e do
nexo (CUSA, 1998, p. 201).
Essa distinção, no entanto, afirma Nicolau de Cusa, não pertence à essência
do amor, “porque não posso amar-me a mim, ou a outra coisa diferente de mim, sem
amor” (CUSA, 1998, p. 202). É, pois, o amor de uma essência ternária. Por isso, se
Deus não fosse trino, não haveria felicidade, pois, assim como o amável é o objeto
do amante, da mesma forma é o inteligível que é o objeto do intelecto. Porque Deus
é entendido como “o intelecto inteligente, o intelecto inteligível e o nexo de ambos,
pode então o intelecto criado atingir em ti, Deus, seu inteligível, a união contigo e a
felicidade” (CUSA, 1998, p. 205). Entendido ainda como o próprio amor amável, diz o
Cardeal que, “pode a vontade amante criada obter em ti, Deus, seu amável, a união
e a felicidade” (CUSA, 1998, p. 205).
A proposta do Cusano agora é que, sendo as almas racionais, lhes é dada a
liberdade de amar ou não a Deus. Ainda que Deus esteja unido pelo nexo a todas as
coisas, “nem todo o espírito racional” (CUSA, 1998, p. 205) está unido a ele, pelo fato
de não projetar o seu amor na sua amabilidade, mas, “em outra coisa a que está
unido e ligado” (CUSA, 1998, p. 205). Embora tenha desposado toda alma racional
com o seu amor amante, estas não amam a Deus como esposo, mas mais
frequentemente a um outro com o qual estão ligadas.
É desse modo que Nicolau de Cusa naquele que possa receber a Deus, a
luz receptível racional, como que pode chegar a uma tal união que seja semelhante
à união do pai com o filho, suscetível de unir-se ao Deus amável do mesmo modo
que ao inteligível, pois é o amável que é o objeto do amante assim como é o
inteligível o objeto do intelecto. O nexo então é uma união máxima, maior do que a
qual não pode haver, significando com isso a união mais perfeita, sendo esta a que
complica em si toda a filiação possível, “pela qual todos os filhos alcançam a última
felicidade e perfeição” (CUSA, 1998, p. 206). Para Nicolau de Cusa, no filho altíssimo
a filiação é como a arte no mestre ou a luz no sol, enquanto que, nos outros filhos a
filiação é como a arte nos discípulos ou a luz nas estrelas. Jesus é a união de Deus
e do homem que Nicolau de Cusa desenvolverá em sua mística a partir do capítulo
XIX desta obra A visão de Deus.
119
3 A mística como explicatio e imago Dei de Nicolau de Cusa
Um princípio metodológico permeia toda a obra de Nicolau de Cusa, do
qual se desdobra um pensamento único e fundamental. É desse pensamento
nuclear que será desenvolvido o conceito de douta ignorância e, a partir dele, uma
orientação intelectual que trará como ponto de partida a oposição entre o ser
absoluto e o ser empiricamente condicionado, do finito e do infinito. Essas oposições
ele as designará como: complicatio e explicatio, as quais constituirão o problema do
conhecimento que culminará na coincidentia oppositorum.
Nicolau de Cusa não rechaça o mundo da natureza, da história e da nova
cultura secular e humana e, sim, os inclui em sua esfera de pensamento, à medida
que avança mais e mais em sua direção. Tal processo desemboca numa
participação que se revela o ápice de sua teoria, onde a verdade antes definida em
oposição a toda diversidade, agora se manifesta “no interior deste mesmo domínio
da diversidade empírica” (CASSIRER, 2001, p. 61). Como para Nicolau de Cusa
qualquer tipo de teologia racional é rejeitado e substituído pela teologia mística,
então um novo tipo de lógica, que não a medieval, é instalada, exigindo um novo tipo
e uma nova forma de conhecimento
67
, denominada: visio intellectualis. Nicolau de
Cusa quer levar, com essa compreensão, para um ponto “anterior a toda e qualquer
divisão, a toda e qualquer oposição, para além de todas as diferenças empíricas do
ser e de todas as suas divisões meramente conceituais” (CASSIRER, 2001, p. 24). Ao
fazer essa referência, Cassirer aponta para a temática da mística da contemplação,
especialmente pelo pensamento especulativo, tratando de estabelecer e conduzir a
uma oposição incondicionada a toda e qualquer comparação possível entre “mais” e
“menos”, o que também é proposto pela mística.
Em Nicolau de Cusa, essa pluralidade representa o desdobramento
(explicatum) do que se encontra “concentrado” (complicatum) numa unidade. Diz-se
que da unidade procede a igualdade e de ambas, a conexão. Ainda assim, o próprio
Nicolau de Cusa fala de uma processão eterna da conexão que não é gerada nem
pela unidade, nem pela igualdade da unidade, por não resultar da unidade, nem por
repetição, nem por multiplicação. “E, conquanto a igualdade da unidade seja
engendrada pela unidade, e a conexão proceda de ambas, a unidade e a igualdade
67
Visio intellectualis” Cusanus und Schelling. Conceito desenvolvido no artigo do Dr. Harald
Schwaetzer (Trier).
120
da unidade bem como a conexão procedente de ambas são uma e a mesma coisa”
(CUSA, 2002, p. 58) Efetivamente não será desenvolvida aqui a ideia da trindade,
mas, sim, a ideia de que “ninguém é capaz de amar o que não tenha conhecido
em algum sentido” (CUSA, 2002, p. 23), pois, a esse respeito, comenta Nicolau de
Cusa: “em meu sermão sobre o Espírito Santo (...) vós haveis descoberto como, por
ex., o conhecimento coincide com o amor” (CUSA, 2002, p. 23).
O tema da mística por excelência é desenvolvido por Nicolau de Cusa, como
o nascimento de Deus na alma, inseparável de uma antropologia e de seu conceito
central da vivante image de Dieu (SCHWAETZER, 2006, p. 101)e da liberdade
criadora do indivíduo humano. No entanto, tratando da imago Dei, Schwaetzer H.
revela como Nicolau de Cusa evoca uma diferença entre o homem e o resto do
mundo. Este designa o mundo como explicatio, déploiementdesdobramento –,
entendido como sendo o homem imago, “imagem”. A diferença mencionada é que,
para Nicolau de Cusa, “uma pluralidade realizada se encontra a priori no mundo,
enquanto que o homem é uma imagem da potência criadora capaz de
desenvolvimento e, pois, ele reafirma em si as possibilidades de desdobramentos
criativos” (SCWAETZER, 2006, p. 102). Para Schwaetzer, Nicolau de Cusa chegou a
essa antropologia pela leitura de Mestre Eckhart com a visão da filiatio como uma
verdadeira similitudo.
Toda explicatio é desdobramento – da complicatio: O segundo livro da
docta ignorantia é dedicado a uma explicação e definição do universo e do mundo,
essencialmente com base nos conceitos fundamentais do pensamento do Cusano:
complicatio-explicatio. É com o conceito de explicatio que ele explicará a criação,
ainda que na sua última obra “prefira substituir o termo explicatio pelo de ‘intenção’
da onipotência divina” (VESCOVINI, 1998, p. 26). Nicolau de Cusa procura associar o
geral e universal ao individual e acrescenta que o indivíduo não constitui uma
oposição ao universal e, sim, sua verdadeira realização. Essa associação consiste
fundamentalmente num processo que, embora pareça dissociado, deve se unir
neste pensamento, pois a essência de tal pensamento implica expor as oposições
para depois conciliá-las pelo princípio da coincidentia opositorum.
Por exemplo, a unidade infinita entendida como ponto desdobra-se em toda
parte numa linha, que não é mais que um ponto, que não é outra coisa que a própria
unidade infinita, “porque ela é o ponto que é o limite, a perfeição e a totalidade da
linha e da quantidade, a qual ele abrange. O primeiro desdobramento dele (do
121
ponto) é a linha, na qual não se acha senão o ponto” (CUSA, 2002, p. 117). Dessa
mesma forma pode-se entender o repouso como sendo a unidade que contém o
movimento, “o qual é repouso disposto em sucessão” (CUSA, 2002, p. 118), sendo
pois o movimento, desdobramento do repouso. Também se pode entender o tempo
como contido no presente, sendo o passado e o futuro desdobramentos do presente.
Portanto, no tempo não se acha nada senão o presente ordenado. E esse presente
é a unidade mesma, sendo, portanto, um só presente a síntese de todos os tempos.
Essa síntese é entendida por Nicolau de Cusa como complicatio, sendo Deus
mesmo a síntese de tudo, pelo fato de tudo estar nele; ele é o desdobramento de
tudo, porque ele mesmo está em tudo.
Para aclarar essa idéia, é preciso entender a expressão Deus em tudo, não
como panteísmo, o que pode ocorrer facilmente num primeiro olhar. Para isso, o
Cusano diz que “a maneira de conter e de desdobrar excede nossa compreensão”
(CUSA, 2002, p. 119), mas, ainda assim, pode-se tentar pensar o conceito através
dos números: “O número é o – desdobramento – explicatio da unidade” (CUSA, 2002,
p. 119) e implica num conceito que procede da mente. Mas tanto o número quanto a
pluralidade não m outro ser do que o depender da unidade. A unidade do
universo, no entanto, existe contraidamente na pluralidade: “A pluralidade, porém,
em que está contraído de fato o universo, não pode, de maneira alguma,
harmonizar-se com a máxima igualdade, porque, nesse caso, deixaria de ser
pluralidade” (CUSA, 2002, p. 169). É por essa razão que todas as coisas são distintas
umas das outras, em graus, para nenhuma coincidir com a outra. Ainda assim, todas
as coisas contraídas situam-se entre o máximo e o mínimo, havendo entre os vários
indivíduos da mesma espécie diversidade de graus de perfeição. Todas as coisas
são o que são do melhor modo possível, entre o máximo e o mínimo, pois, sendo
Deus o princípio, o meio e o fim do universo e de cada coisa singular, tudo, quer
ascenda, quer desça, quer tenda para o meio, se dirige para Deus. “Dá-se por ele a
conexão de tudo, de modo que tudo, embora diferenciado, também esteja conexo”
(CUSA, 2002, p. 1).
De acordo com Nicolau de Cusa, no diálogo travado entre o ignorante e o
filósofo, no seu livro Idiota. De mente, “os modos divinos não são alcançáveis com
precisão; no entanto fazemos deles conjecturas, algumas mais obscuras e outras
mais claras” (CUSA, 2005, p. 67), querendo dizer com isso que conjecturas são feitas
122
com a razão. A mente, por sua vez, é a forma da razão, motivo pelo qual é
necessário entender o conceito de mente.
Diz o Cardeal que assim como a mente “é a forma descritiva das razões”, a
razão “é a forma descritiva dos sentidos e das imaginações” (CUSA, 2005, p. 69).
Desse modo pode-se ter uma razão confusa ou uma razão informada pela mente.
Pensa-se que o exemplar de tudo, que é Deus, reluz ou reflete-se na mente, “como
a verdade na imagem” (CUSA, 2005, p. 69), sendo então a mente “a viva descrição
da eterna e infinita sabedoria” (CUSA, 2005, p. 69). A mente humana passa a ser o
modo de articulação entre Deus e o mundo, metafísica esta que conduz a uma
necessária distinção entre complicatio, imago e explicatio.
A criação, enquanto explicativa, pode ser exemplificada quando se recorre à
dimensão didática do discurso estabelecido entre um mestre e seu discípulo. Nessa
metáfora, o mestre pela sua bondade e amor quer transmitir ao discípulo o
conhecimento a fim de que este o assimile e apreenda. É preciso, porém, que a
unidade e plenitude do pensamento do mestre se diversifique em múltiplos
pensamentos mediados pela palavra pronunciada, isto é, pelo seu aparecer como
sinal sensível. Ao explicar, o mestre desdobra seus pensamentos em frases que
permitam o acesso ao seu saber. Do mesmo modo pode ser entendida a atividade
criadora divina, que é uma projeção da unidade na multiplicidade, funcionando como
um símbolo de acesso à unidade. É então, de acordo com essa metáfora, que no
discurso divino se radica a possibilidade de o discurso humano ser um retorno à
plenitude de sentido do discurso divino.
A doutrina apresentada aqui enuncia que Deus ou a unidade divina “contém
em si absolutamente todas as coisas atuais e possíveis, as complica em sua
simplicidade e identidade” (CUSA, 2005, p. 165). No discurso proposto evidencia-se a
pergunta feita pelo filósofo: Por que a mente sai tão avidamente em busca de todas
as coisas? Para o que, o ignorante responde: “Para que alcance a medida de si
mesma” (CUSA, 2005, p. 107), pois tudo o que ela faz é uma tentativa de conhecer-
se a si mesma. Mas não é indo em busca de todas as coisas que ela vai encontrar a
medida de si mesma; irá encontrá-la “onde todas elas são um” (CUSA, 2005, p.
107), porque somente nesse lugar está seu exemplar adequado. Compreender esse
modo de medir-se da própria mente é sabê-la nem maior, nem menor que nada,
posto que não é contraída. Vê-se que tal medida é viva, de modo que pode medir
123
por si mesma como se fosse um compasso vivo, então se tem alguma noção do que
seja essa medida exemplar, para que se meça a si mesma em todas as coisas.
O ignorante, referido na obra mencionada, propõe ao filósofo que a mente é o
intelecto, ainda que a mente não seja única em todos os homens. Isso ocorre pelo
fato de uma de suas funções, que se chama alma, exigir uma atitude conveniente
em relação ao corpo. Essa atitude de modo nenhum é igual de um corpo para outro.
Por exemplo: “Como a vista de teu olho não poderia ser a vista de qualquer outro,
ainda quando a separasse de teu olho e fosse colada ao olho de outro, porque a
proporção dela que se encontra em teu olho não poderia ser encontrada no olho de
outro, da mesma maneira nem o discernimento que em teu ver poderia ser o
discernimento do ver de outro. Assim, tampouco, a intelecção do discernimento de
um poderia ser o discernimento da intelecção de outro” (CUSA, 2005, p. 127). Dessa
forma, de modo nenhum o intelecto é o mesmo em todos os homens, assim como,
em uma sala iluminada por muitas velas, a luz de cada vela permanece distinta uma
da outra. Assim, se uma delas for tirada dessa sala, e aos poucos cada uma, ocorre
uma diminuição da iluminação.
Outro exemplo do que o Cardeal chama de complicatio é o ponto. O ponto é,
com relação à linha, “sua perfeição e totalidade” (CUSA, 2005, p. 105), porque por
um ponto é dar fim à coisa mesma. Porém, ali onde se termina, ali se aperfeiçoa, e,
por outro lado, sua perfeição é a totalidade dela mesma. Tem-se então que o ponto
é o final da linha e, portanto, sua totalidade e perfeição, o qual complica em si a
própria linha, assim como a linha explica o ponto. Esse modo de ser do ponto com
relação à linha, Nicolau de Cusa sugere que se aplique a todas as complicações.
Assim, com outro exemplo, o movimento é a explicação da quietude, “porque nada
se encontra no movimento senão a explicação da quietude” (CUSA, 2005, p. 105), ou
ainda, a hora explica o tempo, porque nada se encontra no tempo senão a hora, pois
o movimento é a separação do uno. Todas as complicações são imagens de
complicação da simplicidade infinita e não suas explicações, mas, sim, imagens. A
mente é então “a primeira imagem da complicação da simplicidade infinita,
complicando com sua força a força dessas complicações; é o lugar ou a região da
necessidade de complexão, porque o que é verdadeiramente é separado da
variabilidade da matéria e não materialmente, mas sim, mentalmente.
Uma questão que acompanha essa reflexão é: Por que a mente é levada tão
avidamente para a medida de todas as coisas? E a resposta que a acompanha é:
124
“Para que alcance a medida de si mesma” (CUSA, 2005, p. 107). Isto porque a
mente, enquanto uma medida viva, quer alcançar sua própria capacidade medindo
todas as coisas, embora não seja nelas que a encontrará. Apenas encontrará sua
medida ali onde “todas elas são um” (CUSA, 2005, p. 107). É então que encontra sua
verdadeira medida, quando encontra o seu exemplar adequado, quando percebe
que é “a viva e não contracta semelhança da igualdade infinita” (CUSA, 2005, p. 109),
pois, além disso, ela mede simbolicamente, isto é, por meio de comparações, como
quando se utiliza dos números e das figuras geométricas.
De modo geral, essa doutrina da complicatio/explicatio enuncia que Deus, ou
a unidade divina, contém em si absolutamente todas as coisas atuais e possíveis, as
complica em sua simplicidade e identidade” (CUSA, 2005, p. 165). Nicolau de Cusa
vai da unidade para a multiplicidade. Não podendo haver “senão um máximo de
todos os ximos” (CUSA, 2003, p. 75), então a unidade infinita “é a complicação de
tudo” (CUSA, 2003, p. 75). Nesse máximo que complica tudo em si, coincide o
mínimo “em que a diversidade explicada não se opõe à identidade complicante”
(CUSA, 2003, p. 76). Portanto, Deus tudo complica, pois tudo está nele e é da
mesma forma o que tudo explica, “pelo facto de que ele está em tudo” (CUSA, 2003,
p. 77).
Embora o modo da complicação e da explicação exceda nossa mente, é
possível pensá-lo através dos números: “o número é a explicação da unidade”
(CUSA, 2003, p. 77), e ao número também se chama razão. A razão tem a sua
origem na mente, que “é o intelecto” (CUSA, 2005, p. 127), ainda que a mente não
seja a mesma em todos os homens, assim como o ver de um não pode ser o mesmo
ver de outro, porque a proporção que se encontra em um não é a mesma que se
encontra em outro. Da mesma forma, o discernimento que há em um não é o mesmo
que há em outro.
O número então ou a pluralidade “não tem outro ser senão o ser devido à
própria unidade” (CUSA, 2003, p. 77).
Contração significa, pois, “relativamente a uma coisa, o ser isto ou aquilo”
(CUSA, 2003, p. 83). Nicolau de Cusa diz que o máximo contraído é o universo, o
qual é imagem do absoluto. “Efectivamente esse máximo contraído ou concreto,
tendo do absoluto tudo que é, imita então quanto pode este máximo maximamente
absoluto” (CUSA, 2003, p. 80), não estando, portanto, desligado da pluralidade como
o está o máximo absoluto.
125
A visão de Deus (genitivo subjetivo) é Deus, e Deus é o ver originário.
A visão de Deus é também o Uni-verso criado (o olhar de Deus é um olhar
criativo e toda criatura é uma concreção de uma imagem ideada na mente do
criador).
A visão de Deus é ainda a alma (a "mens", o "intellectus"). Conforme Eckhart:
tudo é uma imagem da imagem (ideia na mente de Deus). O homem, no entanto, é
imagem direta de Deus! quer dizer: Filho no Filho... Contemplação: a mirada do
olhar de Deus que nos fita. A evidenciação de que tudo é esse mesmo olhar. A
evidenciação de que eu mesmo sou esse olhar. O encontro de olhares, onde "dois
olhares" se tornam um "olhar" (unio mystica). Monadologia: o uni-verso no
indivíduo. Cada indivíduo é todo o uni-verso. Individuação: perspectiva em que todo
o uni-verso é evidenciado. Essa perspectiva surge como uma história – eu.
4 A douta ignorância
Tendo já emergido como figura de relevo no panorama político-religioso,
devido às suas intervenções no Concílio de Basileia por sua obra De concordantia
catholica, foi em viagem diplomática a Constantinopla “como representante do Papa
Eugenio IV” (CUSA, 1998, p. 85) que o Cardeal se apercebeu do significado profundo
da docta ignorantia. Em sua viagem por mar, que, a partir da coincidência dos
contrários, é possível ter acesso a uma visão, “ainda que incompreensível, do
fundamento principal de todas as coisas” (CUSA, 1998, p. 85). É em uma carta ao
Cardeal Juliano que início à apresentação de sua obra. Esta carta está assim
escrita:
Ao reverendíssimo Padre e Senhor Juliano, querido por Deus, digníssimo
Cardeal da Santa Apostólica, e seu mestre venerável (CUSA, 2003, p.
1)
68
.
68
Tractatus de docta ignorantia. Nicolai de Cusa ad dominum Julianum cardinalem prologus, N1.
D e d i c a t i o Deo amabili reverendissimo patri domino Iuliano sanctae Apostolicae Sedis
dignissimo cardinali, praeceptori suo metuendo Admirabitur et recte maximum tuum et iam
probatissimum ingenium, quid sibi hoc velit, quod, dum meas barbaras ineptias incautius pandere
attempto, te arbitrum eligo, quasi tibi pro tuo cardinalatus officio apud Apostolicam Sedem in publicis
maximis negotiis occupatissimo aliquid otii supersit et post omnium Latinorum scriptorum, qui
hactenus claruerunt, supremam notitiam et nunc Graecorum etiam ad meum istum fortassis
ineptissimum conceptum tituli novitate trahi possis, qui tibi, qualis ingenio sim, iam dudum notissimus
existo. Sed haec admiratio, non quod prius incognitum hic insertum putes, sed potius qua audacia ad
de docta ignorantia tractandum ductus sim, animum tuum sciendi peravidum spero visendum alliciet.
Ferunt enim naturales appetitum quandam tristem sensationem in stomachi orificio anteire, ut sic
natura, quae se ipsam conservare nititur, stimulata reficiatur. Ita recte puto admirari, propter quod
126
Admirar-se-á com razão o teu engenho tão elevado e experimentado que
eu, ao pretender incautamente apresentar as minhas ideias bárbaras e
frívolas, te escolha como juiz, como se, a ti, ocupadíssimo com os maiores
afazeres blicos, devido às tuas funções de Cardeal junto da
Apostólica, te restasse algum tempo de ócio, e como se, com tão grande
conhecimento de todos os escritos latinos que brilharam até hoje e agora
também os gregos, pudesses ser atraído, com a novidade do título. Às
minhas concepções decerto tão deficientes, tu que conheces muito bem
algum tempo quais possam ser as minhas capacidades. Mas esta
admiração determinará, espero, o olhar do teu ânimo sempre ávido de
saber, não tanto pelo facto de julgares aqui inserido algo de desconhecido
antes, mas mais pela audácia com que sou levado a tratar da douta
ignorância. Afirmam, pois os filósofos da natureza que uma certa sensação
desagradável precede, à boca do estômago, o apetite, de tal maneira que a
natureza, que se esforça por se conservar sã em si própria, assim se refaça
uma vez estimulada. Do mesmo modo julgo, com razão, que o admirar-se,
causa do filosofar, precede ao desejo de saber, para que o intelecto, cujo
ser é entender, se realize no estudo da verdade. Com efeito, as coisas
raras, ainda que monstruosas, costumam mover-nos. Que julgues, único
entre os mestres, de acordo com a tua benevolência, estar aqui contido algo
de digno, e recebe de um alemão um certo modo de raciocinar sobre as
coisas divinas, que o trabalho dedicado me tornou particularmente precioso
(CUSA, 2003, p. 1 e 2)
69
.
Recebe agora, venerável padre, o que eu desejava atingir muito por vias
diversas, mas que antes não consegui, até que, ao regressar da Grécia,
por mar, fui levado – segundo creio, por um dom altíssimo do Pai das Luzes
de quem deriva todo o dom excelente a abraçar incompreensivelmente o
incompreensível na douta ignorância, transcendendo o que é humanamente
cognoscível das verdades incorruptíveis... Mas todo o esforço do nosso
espírito humano deve situar-se nestas profundezas para se elevar à
simplicidade em que coincidem os contraditórios (CUSA, 2003, p. 86).
philosophari, sciendi desiderium praevenire, ut intellectus, cuius intelligere est esse, studio veritatis
perficiatur. Rara quidem, etsi monstra sint, nos movere solent. Quamobrem, praeceptorum unice, pro
tua humanitate aliquid digni hic latitare existimes, et ex Germano in rebus divinis talem qualem
ratiocinandi modum suscipe, quem mihi labor ingens admodum gratissimum fecit.
69
Optou-se nessa apresentação pela tradução de João Maria André, publicada pela Fundação
Calouste Gulbenkian.
127
A De docta ignorantia então apresentada é composta por três livros. A
primeira parte diz que a verdade é Deus. A segunda parte fala do Universo e a
terceira parte diz que Jesus Cristo é Deus, portanto, fala da humanidade.
Neste primeiro livro Nicolau de Cusa começa a sua reflexão fazendo uma
rigorosa crítica ao saber humano. O conhecimento se reduz apenas a uma
aproximação da verdade, que ele denomina de conjectura. A verdade é
fundamentalmente um lugar inacessível, uma vez que o espírito humano não pode
medi-la. Comenta que a razão não é a única faculdade do conhecimento humano,
além dela a inteligência. Ainda aqui, o Cusano apresenta Deus como o máximo
absoluto, além do qual nada pode ser maior, retomando a definição anselmiana de
Deus. A razão, quando tenta inquirir sobre objetos metafísicos como Deus ou o
infinito, cai em antinomias que a impedem de ir mais longe. Para tal, é preciso que a
razão aceite uma ruptura que ocorre (a modo de salto) entre a inteligência e a lógica.
Deus está para o Cusano para além do princípio de toda lógica, pois o próprio logos
é Deus quem o dá. No infinito, em Deus, os contrários se unem e, a isso, o Cardeal
denomina coincidência dos opostos. É aqui que intervirão as matemáticas, tema de
controvérsias, na obra do Cusano, a ponto de ser acusado de heresia. Mas, para
ele, a própria matemática sofre uma transmutação quando se aborda o infinito.
Enquanto permanecem diante de figuras finitas, as matemáticas são racionais e se
apoiam num princípio de não contradição, mas, desde que se infinitizem as figuras,
as matemáticas tornam-se intelectuais, isto é, são elevadas para a coincidência dos
opostos e, depois, para além deles. Nicolau de Cusa retomará a teologia negativa,
tentando se aproximar de Deus por negações.
O segundo livro está consagrado à cosmologia. Nicolau de Cusa afirma a
infinitude do universo não no sentido de uma infinitude positiva, mas, de uma
infinitude indeterminada. Por sua natureza material, o universo não pode ser maior
do que ele é, embora Deus, por seu poder possa fazê-lo maior. Como infinito
reduzido, o universo traz em si a pluralidade dos mundos, e Nicolau de Cusa propõe
pela primeira vez que se transponha a antiga rmula da esfera infinita de Deus ao
universo. Desse modo o mundo terá, por assim dizer, seu centro em toda parte e
sua circunferência em parte alguma, porque Deus é esta circunferência e seu centro.
O terceiro livro trata de uma união para de toda inteligência, a coincidência
do criador e da criatura, fazendo desta um universo em miniatura, um microcosmos.
Esse ser máximo é o filho de Deus sem deixar de ser homem: Jesus Cristo, homem-
128
Deus, no qual se realizam a perfeição divina e a perfeição humana. É a e não a
razão o começo da inteligência, pois a razão não pode conduzir à compreensão dos
mistérios de Deus. Ninguém pode se manter na sem a união com Cristo, e esta
união é a Igreja. É ela o corpo místico do Cristo, isto é, a união de todos os crentes.
4.1 A douta ignorância como teoria do conhecimento
Nicolau de Cusa começa por rejeitar o conceito tradicional de lógica ou de
teologia racional e usa a expressão teologia mística, querendo com isso ultrapassar
os limites do conceito tradicional de mística, o qual pensava a mística
exclusivamente como afetiva, excluindo o conhecimento. Para o Cusano, o
verdadeiro amor de Deus é amor Dei intellectualis (CASSIRER, 2001, p. 23), pois
este abarca o conhecimento como momento e condição necessários, uma vez que
“ninguém é capaz de amar o que não tenha conhecido em algum sentido”
(CASSIRER, 2001, p. 23). Desta forma o conhecimento não exclui a dimensão afetiva,
mas a ultrapassa.
Esse parágrafo de abertura aponta para o divino, incondicionado aquele que
se furta ao conhecimento discursivo pelo simples conceito e que exige uma nova
forma de abordar o conhecimento. Este é para Nicolau de Cusa a visão intelectual, a
visio intellectualis, “na qual todas as oposições de gênero e espécie deixam de
existir, porque nos vemos transportados à sua origem simples, a um ponto anterior a
toda e qualquer divisão, a toda e qualquer oposição, para além de todas as
diferenças empíricas do ser e de todas as suas divisões meramente conceituais”
(CASSIRER, 2001, p. 24). Esse tipo de visão, segundo Cassirer, era o que a teologia
escolástica acreditava não poder alcançar e através da qual, Nicolau de Cusa
mudará todo o enfoque acerca da relação entre absoluto e finito, ou entre finito e
infinito. A visio intellectualis pressupõe “um movimento espontâneo do espírito”
(CASSIRER, 2001, p. 25), uma força primordial que nele mesmo reside, na qual o
homem se coloca numa relação direta com Deus num trabalho mental contínuo.
A lógica escolástica era regida pela lógica das categorizações orientadas pelo
princípio da contradição e do terceiro excluído, quando com Nicolau de Cusa
postula-se uma nova lógica que é a lógica matemática e que não exclui a
coincidência dos opostos, mas que a usa como princípio constante e necessário
para a evolução do conhecimento.
129
O objetivo é ultrapassar as fronteiras do modo de pensar medieval, exigência
essa que o coloca diante de uma tarefa objetiva, uma vez que terá que expressar,
dentro dos limites da linguagem conceitual filosófica dominante, um pensamento que
aponta para além dos limites da Escolástica.
O que surge com esse novo pensamento é uma nova relação entre o sensível
e o suprassensível, entre o mundo empírico e o intelectual. Retomando a palavra de
Platão, segundo a qual “o bem está além do ser” (CASSIRER, 2001, p. 34), Nicolau de
Cusa conclui que “nenhuma sequência de conclusões, que comece por um dado
empírico e que alinhe e relacione um dado empírico a outro num processo contínuo,
é capaz de levar até ele, que todo pensamento dessa natureza opera no âmbito
da mera comparação, ou seja, na esfera do “mais” e do “menos”” (CASSIRER, 2001,
p. 34). É o que se pode denominar como uma ontologia do número, o que está
presente, pois é a unidade que constitui seu princípio e seu fundamento. A grande
descoberta de Nicolau de Cusa é a de ter encontrado um espaço que “está para
além da impossibilidade de superar a falta de proporção com relação ao infinito,
porque encontrou na unidade, princípio e fim do número a ‘des-vinculação’, isto é, o
absoluto enquanto contraposto à limitação e à determinação do concreto” (CUSA,
2007, p. 135).
Nicolau de Cusa usará o conceito de máximo com o intuito de tentar
apreender por meio das comparações aquilo que se eleva para além de toda e
qualquer comparação e, para isso, quer estabelecer uma oposição incondicionada a
toda e qualquer comparação possível. Oximo, assim postulado, “não é um
conceito de grandeza, mas um conceito puramente qualitativo: ele é o fundamento
absoluto do ser, assim como o fundamento absoluto do conhecimento” (CASSIRER,
2001, p. 35).
Na sua obra o Cusano também retoma o tema da diferença entre ciência e
sapiência: a primeira é humana e a segunda é divina, trazendo como implicação
central a dimensão da mística, que “aparentemente nos reconduz ao âmbito da
subjetividade individual no seu contato quase direto e imediato com a divindade”
(ANDRÉ, 2001, p. 214), caminho esse ao qual tenta se aproximar através da douta
ignorância e da ascensão que esta implica. Para esclarecer sua fala sobre a
sapiência, ele pontua que são três as regiões que esta abrange: “a primeira é aquela
na qual se encontra assim como é na eternidade; a segunda é aquela na qual se
encontra na semelhança perpétua e a terceira, na qual resplandece de longe no
130
fluxo temporal da semelhança” (VESCOVINI, 1998, p. 61) concluindo que aquilo que
nos move é o desejo de saber que ignoramos. A partir dessas três regiões, adverte o
Cardeal sobre a necessidade de buscá-las através de dez campos maximamente
adaptados para tal, sendo que ao primeiro desses campos ele denomina: douta
ignorância; ao segundo poder-ser; ao terceiro não outro; ao quarto denomina campo
da luz; ao quinto campo do louvor; ao sexto campo da unidade; ao sétimo campo da
igualdade; ao oitavo campo da conexão; ao nono campo do fim; ao décimo campo
da ordem. Dentre estas categorias, o principal foco será dado à douta ignorância.
Partindo do primeiro campo da busca, isto é, da docta ignorantia, precisa-se
saber primeiramente que não se sabe e que a verdade como precisão absoluta e
infinita é inatingível porque o conhecimento que aponta para o finito se por
comparação e por proporção. Isso porque “não proporção entre finito (a mente
humana) e infinito (Deus, que é a precisão absoluta)” (VESCOVINI, 1998, p. 17).
Ainda que a categoria principal da dimensão mística tenha como referência a
coincidentia oppositorum, tentando-se ser fiel ao pensamento de Nicolau de Cusa,
este em seu De visione Dei situa Deus para lá do muro da coincidência. No Capítulo
XI desta obra, quando o Cusano é apascentado e alimentado “com o leite das
comparações” (CUSA, 1998, p. 173), até que lhe seja concedido um alimento mais
forte, busca encontrar “para do muro da coincidência da complicação e da
explicação” (CUSA, 1998, p. 173) esse infinito mencionado. É este o modo pelo qual
diz entrar e sair pela porta do Verbo divino: “entro quando te descubro como virtude
complicante de todas as coisas, saio quando te descubro como virtude explicante e
entro e ao mesmo tempo saio quando te descubro como virtude simultaneamente
complicante e explicante” (CUSA, 1998, p. 173/174). Entrar aqui é partir das criaturas
para o criador, da causa para o efeito e sair é partir do criador para a criatura, da
causa para o efeito. Mas entrar e sair simultaneamente é como que complicar e
explicar a um tempo. Diz o Cardeal que, com efeito, “a disjunção e
simultaneamente a conjunção são o muro da coincidência para além do qual existes
desligado (Absolutus) de tudo o que pode dizer-se ou pensar-se” (CUSA, 1998, p.
174).
É deste modo que as considerações em torno da docta ignorantia, que
permeia a presente tese, mantêm como sua finalidade principal resgatar a sabedoria
presente na mística medieval de Nicolau de Cusa. Isso implica em discorrer sobre
essa e outras obras do autor, buscando evidenciar a originalidade de sua proposta,
131
a qual inicialmente parece especular sobre a expressão bíblica que enuncia da parte
de Deus: “Façamos o homem a nossa imagem, segundo nossa semelhança” (Gn
1,26)
70
e atinge seu grau de otimização quando propõe: “E a Palavra se fez carne e
habitou entre nós” (Jo 1,14)
71
, propostas estas que apontam para a deificação do
homem.
Nessa mesma linha de pensamento Alberto Magno ao pensar em Deus como
princípio, pensa acerca do entendimento:
Digamos, portanto, que quando se diz que o intelecto agente é como a luz,
se tem em conta nesta semelhança três aspectos, dos quais o primeiro é
que o primeiro agente é o ser intelectual, o segundo que é universalmente
agente intelectual, o terceiro que é ininterruptamente ser inteligível (CUSA,
2005, p. 14)
72
.
Este é o mesmo princípio que Nicolau de Cusa traz como pano de fundo de
todas as suas obras, ou seja, como princípio fundamental que orienta todas as
explicações acerca da mens e seu paralelismo entre a mente divina, fonte de todas
as entidades, e a mente humana, fonte de todas as semelhanças.
Na busca desse princípio, a noção de docta ignorantia se baseia sobre o
desejo de um intelecto que tende naturalmente para a busca da verdade, a qual,
como se dirá muitas vezes, se revela inalcançável. Nesse sentido o tema da
proporção e do número surge como elemento imprescindível do conhecimento
humano, supondo uma doutrina da mens.
Em seu dinâmico modo de operar surge o espírito humano querendo ver
ignorantemente o absoluto através dos símbolos, especialmente os geométricos, e
de sua “transumptio ad infinitum” (De docta ignorantia, I, XII, n. 33)
73
. Nessa
dinâmica, Nicolau de Cusa estabelece que “a mente é origem de toda conjectura
(origo coniecturae), forma conjectural do mundo (forma coniecturarum mundi) e
entidade mesma de suas conjecturas (entitas coniecturarum suarum)” (CUSA, 2005,
70
1:26 et ait faciamus hominem ad imaginem et similitudinem nostram. Latin Vulgate Genesis 1,
encontrada em: http://www.sacred-texts.com/bib/vul/gen.htm, pesquisada em: 30.04.2010.
71
1:14 et Verbum caro factum est et habitavit in nobis. Latim Vulgate.
72
Citado de MAGNUS, A. De intell. et int. II trac. un.c. 3 (Borgnet, 9, 506): Dicamus igitur cum dicitur
quod intellectus agens est sicut lux, tria in ipsa attenduntur similitudine, quorum et primum est, quod
sit primum agens esse intellectuale; secundum est quod est universaliter agens intellectuale, tertium
est quod est incessanter agens esse intelligibile (Un ignorante discurre acerca de la mente. Idiota.
De mente, 2005, p. 14).
73
Transsumere ad infinitum simplex absolutissimum etiam ab omni figura (DI, I, XII, 33).
132
p. 23)
74
. Todo o esquema desenvolvido culmina então em quatro unidades, através
das quais a mens se contempla a si mesma, ao mesmo tempo em que tudo abarca.
À primeira destas unidades denomina unidade simplíssima, Deus; à segunda
denomina inteligência; à terceira denomina alma, e por fim à quarta denomina corpo.
O paralelismo entre os intelectos divino e humano apontará para o caráter
intelectual do princípio de todas as coisas, enquanto caráter criador da mente
humana “ela mesma princípio de entes racionais números, figuras, noções e
formas artificiais” (CUSA, 2005, p. 26), ela mesma sendo chamada de vários modos,
entre eles, medida de todas as coisas
75
, imagem viva de Deus. Esta pretende ver em
si mesma, em seu próprio modo de operar e em todas as coisas a intenção “do
escritor oculto do livro do mundo” (CUSA, 2005, p. 26)
76
.
4.2 A dimensão interpretativa da douta ignorância
No Livro Idiota de sapientia, citado por André (2001), Nicolau de Cusa
identificou e aprofundou a possibilidade do discurso que surge para além de
qualquer afirmação ou negação, bem como para além da própria conexão, no
contexto do reconhecimento da eficácia das palavras nos seguintes termos: “Por
isso, a teologia sermocional é aquela pela qual me esforço por te conduzir a Deus
através da força da palavra do modo mais fácil e verdadeiro que posso” (Idiota de
sapientia L. II, H. V, n. 33, linhas 9-11- cf. ANDRÉ, 2001, p. 221). Para tal, o conceito
de transsumptio, a propósito da extensão da linguagem humana às coisas divinas, é
dado no De docta ignorantia, “servindo de base metodológica para a interpretação
dos símbolos matemáticos” (ANDRÉ, 2001, p. 221), cuja correta interpretação surge
num conjunto de observações feitas no capítulo XI, retomando-se o tema do
conhecimento de Deus in speculo et aenigmate (CUSA, 1998, p. 92). A dimensão
interpretativa torna-se assim o modus discursandi da filosofia cusana:
Todos os nossos doutores mais sábios e divinos estiveram de acordo em
que as coisas visíveis são verdadeiramente imagens do invisível e que,
74
Capitulum I, Unde coniecturarum origo. [...] Coniecturalis itaque mundi humana mens forma exstitit
uti realis divina. [...] ita et mentis humanae unitas est coniecturam suarum entitas. De con. I c. I (h.
III, n. 5).
75
Tertio notabis dictum Protagorae hominem esse rerum mensuram. Nam cum sensu mensurat
sensibilia, cum intellectu intelligibilia et quae sunt supra intelligibilia in excessu attingit. De Beryllo, (h.
XI, n. 6).
76
Mens vero est ut liber intellectualis in se ipso et omnibus intentionem scribetis videns. De apice
theoria V, (h. XII, n. 21).
133
assim, o criador pode ser cognoscivelmente visto pelas criaturas como que
num espelho e por enigmas (CUSA, 1998, p. 92).
A dinâmica do símbolo e o processo interpretativo ascensivo, entendidos
transsumptivamente (verba transssumptive intelligendo) (ANDRÉ, 2001, p. 219),
apontam para o reencontro do sentido “que os signos verbais traduzem
contraidamente e que na verdade se pode captar em toda a sua plenitude”
(ANDRÉ, 2001, p. 219). Segundo André, pode-se dizer que a transsumptio é um
movimento de infinitização do sentido contraído, ou seja:
De transcendência do sentido finito das palavras e dos discursos a partir
das suas próprias características em ordem à fonte donde jorra esse sentido
e que, por isso, é condição de possibilidade de toda linguagem e de todo
discurso (ANDRÉ, 2001, p. 219).
Como metáfora, essa perspectiva é iluminada pelo símbolo do mundo como
livro escrito pelo criador, mas, como perspectiva ontológica, nos projeta
Numa autêntica relação de participação (mais de sentido que
verdadeiramente de ser) em que a identidade absoluta não nega a
diferença, mas, assumindo-a, por um lado, em si própria, por outro lado nela
se explica harmoniosamente. Aliás, assim o símbolo é verdadeiramente
símbolo (CUSA, 1998, p. 93),
pois, para que
as coisas espirituais, em si por nós inatingíveis, possam ser investigadas
simbolicamente, tem a sua raiz naquilo que acima se disse, ou seja, que
todas as coisas têm entre si, reciprocamente, uma certa proporção, embora
oculta e incompreensível para nós, de tal maneira que de todas surge um
único universo, e que todas são o máximo uno, o próprio uno (CUSA, 1998,
p. 93).
Compreende-se assim que a docta ignorantia, em sua necessidade de uma
correta interpretação dos conceitos de máximo e mínimo “no âmbito da sua
coincidência” (ANDRÉ, 2001, p. 219), refira-se continuamente a eles com as
expressões transsumptio, transcensus ou translatio. É a via simbólica para o infinito,
cujo último passo é a transsumptio, segundo Miguel Batista Pereira
77
.
77
PEREIRA, Miguel Batista. Hermenêutica e desconstrução. In: Revista Filosófica de Coimbra, III/6
(1994), p. 249-255; Cf. André (2001, p. 223).
134
Traduz-se assim numa infinitização do finito, que não é a sua negação, mas
a sua potencialização no regresso ao simples que é de tudo a complicatio,
mais do que propriamente a reductio, e num processo que, pela positividade
que comporta, se aproxima tanto da Entbildung eckartiana [...] quanto da
aphairesis
78
do Pseudo-Dionísio (ANDRÉ, 2001, p. 219).
No entanto, como para Nicolau de Cusa parece ser evidente por si mesmo
que “não há proporção entre o infinito e o finito” (CUSA, 1998, p. 46) (Quoniam ex
se manifestum est infiniti ad finitum proportionem non esse) , quer-se precisar bem
o significado de infinito. Numa primeira interpretação pode-se considerar infinito
como um tempo e um espaço ilimitado, sem fim. O infinito é uma expansão do finito
ao infinito. Um tal infinito projetado pelo intelecto finito, não é a maximidade
absoluta. Isso porque, afirma Nicolau de Cusa, “onde se encontra algo que excede e
algo excedido, o se chega ao máximo como tal, pois as coisas que excedem e as
excedidas são finitas” (CUSA, 1998, p. 46). Ou seja, onde pode haver um maior e um
menor, ainda não foi atingido o limite da douta ignorância, pois aqui ainda existe
proporção entre o finito e o infinito.
Numa segunda interpretação pode-se conceber o infinito como o
simplesmente máximo que escapa a toda proporção, cuja divergência é
radicalmente outra do infinito como finito ilimitado. Dele podemos saber que é
incompreensível, incomensurável, inominável e inefável. Aqui uma absoluta
desproporcionalidade entre o finito e o infinito, cujo ponto crítico é, por assim dizer,
um ponto de salto de uma dimensão para a outra, “um salto ‘transsumptivo’, de
superação reassumptiva, em que do infinito matemático e ainda ‘figurado’ se passa
ao infinito simples e absoluto” (CUSA, 1998, p. 95), ao qual se chega intensificando a
própria proporcionalidade como uma espécie de salto para dentro de si, cuja
impossibilidade é a única possibilidade da precisão. Essa é a causa de nosso saber
com relação ao infinito. Deduz-se que o oposto dessa precisão não é a imprecisão e
78
O conceito de aphairesis foi interpretado por Mário Santiago de Carvalho, Série Mediaevalia,
Textos e Estudos, n. 10, Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1996, p. 16 e 1999, pp. 799-
825, esp. p. 816, Teologia Mística do Pseudo-Dionísio, nas seguintes palavras: “Não se trata de
negar no erro plano da predicação, trata-se de libertar com o intuito de fazer destacar uma silhueta,
que de outra forma passaria despercebida, escondida, oculta, invisível, desconhecida. Não aqui
qualquer destruição, mas restauração, por assim dizer. O que se restaura não pode ser vazio nem
silencioso. Pelo contrário: é o que transcende tudo e que em tudo se mostra além de todo o
conhecimento” (Cf. ANDRÉ, 2001, p. 223).
135
sim a semelhança e a proporcionalidade, pois tem-se daí a analogia assim como o
conhecimento do símbolo.
O movimento da transsumptio desdobrado em três etapas não é usado
somente para a interpretação de símbolos geométricos e matemáticos como
exigência para a aproximação da unidade divina, mas, também para a interpretação
de outros símbolos resultantes da atividade artística do homem.
Os três níveis, segundo André (2001), podem ser assim resumidos:
Se queremos usar elementos finitos como exemplos para ascender ao
máximo simples, é necessário considerar primeiro as figuras matemáticas
finitas com as suas paixões e razões, transferir correspondentemente estas
razões para figuras infinitas e depois, em terceiro lugar, transpor
(transsumere) as próprias razões das figuras infinitas para o infinito simples
totalmente liberto de qualquer figura (CUSA, 2003, p. 24).
Não se trata de modo algum de abandonar as coisas finitas e sim de
introduzir, de “captar, dentro do finito, a presença dinâmica (ainda que oculta) do
infinito” (ANDRÉ, 2001, p. 222), nele nos envolvendo e nos movendo, sendo este o
movimento da realização da docta ignorantia e que, ao mesmo tempo, é o
movimento em que se descobre a convergência ou a concórdia “dos espíritos mais
elevados; espíritos (elevatissimi ingenii) que, partindo de diferentes símbolos, se
reencontram no pensamento do máximo, numa e idêntica opinião” (ANDRÉ, 2001,
p. 222).
O máximo absoluto, “que na de todos os homens é acreditado sem dúvida
como Deus” (CUSA, 1998, p. 90), constitui o motivo fundamental do primeiro livro da
Docta Ignorantia; enquanto o máximo contraído, o universo, o qual “não tem
subsistência fora da pluralidade em que é, não existindo sem contração, da qual não
se pode separar” (CUSA, 1998, p. 90), constitui o segundo livro da Docta Ignorantia e
o Máximo “que é simultaneamente de modo contraído e absoluto e ao qual
chamamos Jesus sempre bendito” (CUSA, 1998, p. 90-91) constitui o terceiro livro da
Docta Ignorantia.
Fica assim definido o método da via interpretativa para a filosofia e
privilegiados os elementos matemáticos, escolha essa radicada na sua “incorruptível
certeza” (CUSA, 1998, p. 94), por estar indissociavelmente ligada “à sua origem e à
sua natureza, como ressalta da comparação feita com as coisas sensíveis: estas
aparecem na sua contínua mutabilidade e, por isso, o conhecimento que delas
136
podemos ter será sempre marcado pela contingência que as atinge” (CUSA, 1998, p.
94).
Mais do que a escolha dos símbolos a utilizar, porém, o que conta é a
definição do uso do método simbólico da matemática, que constitui a marca
profunda da originalidade do Cardeal. Nicolau de Cusa propõe uma espécie de salto
triplo para sintetizar a passagem de um estágio para outro na via interpretativa:
1º) As figuras matemáticas são tomadas com as características e
propriedades que as definem na sua finitude;
2º) Estas características e propriedades são transpostas para as mesmas
figuras não já na sua finitude, mas projetadas numa dimensão de infinitude (nessa
fase, o princípio da coincidência dos opostos manifesta toda a sua força operatória);
3º) Exige-se um salto transsumptivo, de superação reassumptiva, em que do
infinito matemático e ainda figurado se passa ao infinito simples e absoluto.
Trata-se portando, segundo André (2001), de não abandonar o finito que, num
primeiro passo se traduz como uma concentração nas características próprias das
figuras finitas; o segundo passo exige uma transferência dessas características para
figuras infinitas e o terceiro passo a transposição das propriedades das figuras
infinitas para o máximo simples e absoluto.
Percebe-se desse modo que a chave de acesso ao máximo absoluto
encontra-se no conceito de transsumptio, compreendido também no De theologicis
complementis e assim sintetizado:
Aquele que intui o próprio infinito unitrino, ascendendo das figuras
matemáticas às teológicas, ao acrescentar a infinidade às figuras
matemáticas, libertando-se das figuras teológicas para contemplar com a
mente exclusivamente o infinito unitrino, este, na medida em que lhe for
concedido, que o uno é tudo complicativamente e que todas as coisas
são explicativamente o uno. Porque, se intui o infinito sem o considerar em
relação aos finitos, não aprende nem se as coisas finitas são, nem a sua
verdade ou medida (ANDRÉ, 2001, p. 224 De theologicis complemnentis,
H. X, 2, nº 3, linhas 75-82).
É então que a partir da experiência da finitude, que é aquela na qual o homem
pode se movimentar, se remete continuamente para a experiência intuída da
infinitude, “adivinhada nos limites da razão, onde as trevas deixam pressentir a
137
plenitude da fonte luminosa de que jorram as condições de possibilidade de toda e
qualquer visão intelectual” (CUSA, 1998, p. 99).
Essas três etapas esboçadas no De docta ignorantia encontram-se no olhar
omnividente do quadro através do qual emerge a teologia mística com todo o seu
vigor, o De visione Dei.
5 Alguns desdobramentos epistemológicos importantes
A obra de Nicolau de Cusa De visione Dei foi entregue em setembro de 1452,
quando o Cardeal inicia uma troca de correspondência com irmãos do Mosteiro de
Tegernsee: Gaspar Aindorffer e Bernard de Waging. Este teria assumido a Abadia
em 1426 e permanecido neste posto até sua morte em 1461. Tendo sido escrita
propositadamente a pedido dos monges, a obra veio responder à polêmica entre
Vicente de Aggsbach, segundo André
79
, “defensor de uma mística mais afetiva”
(ANDRÉ, 2001, p. 3), e Gerson, o qual defendia uma mística baseada na ascensão
intelectual e cognoscitiva, que apontava para a mística. Numa articulação entre
teologia negativa e mística do logos é que surge esta obra, fomentando, segundo
este comentador, um modelo de linguagem e de discurso que sobredeterminam toda
a sua filosofia, constituindo um autêntico paradigma de seu discurso filosófico.
A pergunta enviada para Nicolau de Cusa em nome de toda a comunidade
beneditina pelo Abade foi: “Uma alma devota, sem conhecimento intelectual (...)
pode, somente pela afecção, isto é, por este apex mentis que se chama synderesim,
alcançar Deus e ser movida ou levada para Ele de maneira imediata”?
80
A
interpretação de Gerson estava em jogo, uma vez que este propunha o
conhecimento de Deus através do intelecto, ao interpretar a Mystica theologia do
Pseudo-Dionísio.
Numa outra carta de 1453 o Prior Aindorffer pergunta a Nicolau de Cusa
sobre qual o seu pensamento acerca da ordem que o Pseudo-Dionísio dá a
79
Artigo escrito por João Maria André: O problema da linguagem no pensamento filosófico-teológico
de Nicolau de Cusa. Conferência proferida em Salamanca em fevereiro de 1993, a convite do Prof.
Mariano Alvarez Gomes, no âmbito de um seminário especialmente dedicado a Nicolau de Cusa.
80
Est autem hec quaestio utrum anima devota sine intellectus cognicione, (...) solo affectu seu per
mentis apicem quam vocant synderesim Deum attingere possit, et in ipsum immediate moveri aut
ferri” (VANSTEENBERGHE, op. cit. p. 110).
138
Timóteo
81
na sua Mystica theologia, quando lhe pede para elevar-se até a teologia
pela via da douta ignorância.
Nicolau de Cusa tratará essa teoria do conhecimento, relacionando à
dimensão intelectiva a afetiva e apontando a apreensão de Deus no livreto composto
de vinte e cinco capítulos não escritos em forma de diálogo, mas cujo caráter
didático prepara para a experiência. O De visione Dei é tanto a visão que os homens
têm de Deus, quanto a visão que Deus tem dos homens. O desenrolar do texto
culmina em um solilóquio revestido de um caráter místico-religioso, que alude desde
o início a uma experiência (experimentare). Esse conhecimento inicia-se, segundo o
Cusano, “por vias humanas” (CUSA, 1998, p. 135), isto é, pelo sensível, para então
conduzir às coisas divinas, o que o Cardeal faz recorrendo a uma comparação. A
comparação, como foi visto, é o quadro denominado Ícone de Deus, e o sentido
humano privilegiado para tal apreensão é a visão. A ascese ao divino encontra-se,
portanto, ainda no âmbito do sensível. É quando o Cusano intui nesse olhar a
providência divina que diz: “Senhor, nesta tua imagem intuo agora, numa
experiência sensível, a tua providência” (CUSA, 1998, p. 142). Intui ainda que “onde
estão os olhos está o amor” (CUSA, 1998, p. 143) e, nisso, experiencia o amor de
Deus. Essa experiência leva a uma profunda especulação, isto é, leva a
interpretação a ultrapassar a experiência do sensível ao deduzir a providência divina
no olhar que tudo e tudo prevê. No entanto, no que poderia parecer uma adoção
da mística do afeto, surge a aparente contradição:
Contemplo agora no espelho, na imagem, no enigma, a vida eterna porque
ela não é senão a visão bem aventurada na qual jamais deixas de me olhar
com o máximo amor, até o mais profundo da minha alma. [...] reside a
origem de todas as delícias que puderam ser desejadas, nada melhor
podendo ser inventado por nenhum homem ou por nenhum anjo, nem existir
de nenhum modo de ser. Ela é o máximo absoluto de todo o desejo
racional, o qual não pode ser maior (CUSA, 1998, p. 145).
81
“Para mim, realmente, é isto que eu suplico; quanto a ti, amigo Timóteo, dedica-te à contínua
exercitação nas maravilhas místicas e renuncia às percepções sensoriais e às atividades
intelectivas, deixa tudo que pertence ao sensível e ao inteligível e todas as coisas que são e as que
não são; despojado de conhecimento, avança, na medida do possível, até a união com aquele que
está acima de toda a substância e de todo o conhecer. No distanciamento irresistível e absoluto de ti
mesmo e de tudo, uma vez arredado e liberto de todas as coisas, elevar-te-ás em plena pureza até
o brilho, que é mais que substancial, da obscuridade divina” (PSEUDO-DIONÍSIO, 1996, p. 10,12).
139
Contradição aparente porque o desejo racional surge como aquele que o
pode ser maior. Da experiência do sensível ao desejo racional vai surgindo uma
gradação que se impõe como necessária.
Nicolau de Cusa sugere agora nesse solilóquio que ver é saborear. Mas um
saborear mental onde saborear é apreender num contato experimental a suavidade
“de todos os bens desejáveis na tua sabedoria” (CUSA, 1998, p. 146), onde ver torna-
se “a razão absoluta, que é a razão de todas as coisas” (CUSA, 1998, p. 146), porque
então Deus se mostra como a suavidade da vida, do ser e do intelecto.
Afeto e intelecto, enquanto experiência de ser vida e intelecto, não podem ser
vividos em termos disjuntivos e excludentes, pois isto implicaria na incapacidade de
experienciar o uno proposto pela mística.
Em seguida observa-se a passagem da experiência racional para a
intelectual, onde o Cusano propõe a imagem da nogueira, partindo do olhar sensível,
elevando-o para uma imagem mental, chegando finalmente ao ultrapassar
necessário e próprio do intelecto.
Por isso, experiencio como é necessário entrar na escuridão, admitir a
coincidência dos opostos sobre toda a capacidade racional e procurar a
verdade onde se depara a impossibilidade e acima dela, acima também
de toda a ascensão intelectual mais elevada, quando chegar àquilo que é
desconhecido de todo o intelecto e que todo o intelecto julga sumamente
afastado da verdade; e é aí que tu estás meu Deus” (CUSA, 1998, p. 166).
É nessa absoluta ignorância, para lá da coincidência dos contraditórios que se
pode então ver a Deus e nunca aquém dela. A proposta dessa teoria do
conhecimento é então ver com os olhos sensíveis e “intuir com os olhos interiores a
verdade que está representada na pintura” (CUSA, 1998, p. 168).
É desse mesmo modo que o Cardeal propõe que se olhe para a nogueira,
aquela cujo princípio ele mesmo procurava ver, desde que percebe ser Deus aquela
força ou princípio “de que tudo depende” (CUSA, 1998, p. 154), a partir da qual todas
as faces são o que são.
A teoria do conhecimento, desse modo, toma o sujeito (eu) como que olhando
para o objeto (representação), como se estivesse fora dele, no início. E o faz
discursando sobre ele, como por exemplo, a nogueira citada, para em seguida,
tornar-se o próprio instrumento, isto é, tornar-se a própria visão gradativamente
elevada da experiência. Desse modo, mais do que a relação de um sujeito com um
140
objeto, a teoria do conhecimento “passa a responder pelas possibilidades e pela
natureza do conhecimento” (FOGEL, 2003, p. 25). “Nada há, pois, que seja concebido
na mente que não seja marcado de algum modo na face e sobretudo nos olhos,
mensageiros do coração” (FOGEL, 2003, p. 218).
Nessa possibilidade evidenciam-se três passagens, isto é, a capacidade
sensível de perceber o objeto pela visão, a capacidade racional de descrever o
objeto, seguido das comparações e, abstraindo destas imagens, as características
que as acompanham, se aproximar do olhar absoluto.
Chegar à visão intelectual que não mais compara e separa é chegar ao lugar
da impossibilidade da linguagem, onde habita Deus, que abraça em si todas as
diferenças; isso implica em elevar-se acima de toda capacidade intelectiva.
É este o momento da entrada na escuridão, possível somente pela via do
intelecto, pois a afecção não se eleva sob o modo da ignorância, uma vez que ela
mesma não pode elevar-se pelo modo da ciência se ela não recebe sua ciência do
intelecto”
82
.
O ver a Deus passa a ser experienciado “num certo arrebatamento mental”
(CUSA, 1998, p. 196), porque se a própria visão não se sacia com o olhar, diz o
Cardeal, nem o ouvido com o ouvir, menos ainda se saciará o intelecto com o
entendimento. É devido a isso que o intelecto não pode se saciar com o que
conhece, mas apenas com aquilo que, “não entendendo, entende(CUSA, 1998, p.
196).
Do mesmo modo, Deus que é amor, é amor amante, amor amável e nexo do
amor amante e do amor amável.
Por isso és o amor infinito que, sem o amante, o amável e o nexo de
ambos, não pode ser visto por mim como amor perfeito e natural. Com
efeito, como posso conceber o amor sumamente perfeito e natural sem o
amável e a união de ambos? No amor contraído experiencio que o facto de
o amor ser o amante, o amável e a união de ambos deriva da essência do
amor perfeito. Mas aquilo que pertence à essência do amor perfeito
contraído não pode faltar ao amor absoluto, do qual o amor contraído
recebe o que de perfeição comporta. (...) Aquelas coisas que ocorrem como
sendo três, ou seja, o amante, o amável e o nexo, são a essência mais
simples absoluta. Por isso não são três, mas uma só (CUSA, 1998, p. 198).
82
Ignote enim consurgere non potest dici nisi de virtute intellectuali, affectus autem non consurgit
ignote, quia nec scienter nisi scienciam habeat ex intellectu” (VANSTEENBERGHE, 1915, p. 115).
141
Insinua-se na obra do Cusano a presença da trindade na unidade e da
unidade na trindade. Antes, porém, de apresentar essa ampliação da teoria do
conhecimento aqui desdobrada, Nicolau de Cusa introduz o conceito de essência.
Ele diz:
Daí que em ti, como amor, não seja uma coisa o amante, outra o amável, e
outra o nexo de ambos, mas o mesmo, que és tu próprio, Deus meu. E é
porque em ti coincide o amável com o amante e o ser amado com o amar,
que, então, o nexo da coincidência é o nexo essencial. Com efeito, nada em
ti que não seja a tua própria essência (CUSA, 1998, p. 198).
As metáforas são o ponto de partida do processo de conhecimento, ainda
que, de fato, não haja na trindade nenhuma distinção numérica de três, “porque ela
é essencial” (CUSA, 1998, p. 199). Na verdade, diz Nicolau de Cusa, “a essência é
trina e, contudo, nela não são três coisas, porque é sumamente simples” (CUSA,
1998, p. 199).
Na visão do Cusano a teoria do conhecimento que se desenvolve no texto e
que parece ser uma continuidade do solilóquio com Deus, agora com Jesus, diz na
sua linguagem que “a natureza intelectual é absoluta em relação à sensível, e que
nunca é finita e ligada a um órgão como a força visual sensível está ligada aos
olhos, mas improporcionalmente mais absoluta, acima da intelectual, é a força
divina” (CUSA, 1998, p. 221).
Para esta teoria, “uma coisa é a força discursiva, que, raciocinando, discorre e
procura, outra a que julga e entende” (CUSA, 1998, p. 221). Assim, por exemplo,
pode-se ver o cão discorrer e procurar o seu senhor, distingui-lo e ouvir o seu
chamado. Esse discurso pode ser mais lúcido segundo outras espécies animais
mais perfeitas, mas, no homem, “este discurso aproxima-se muito da virtude
intelectual como ponto supremo da perfeição sensível que contém muitos graus
inumeráveis de perfeição sob a intelectual” (CUSA, 1998, p. 222), ainda que a
natureza intelectual tenha inumeráveis graus abaixo da divina.
Fica claro então que, para o Cusano, em Jesus, está unido o intelecto à
virtude racional ou discursiva “que é o ponto mais alto da [virtude] sensitiva” (CUSA,
1988, p. 222). Da mesma forma, o intelecto é visto pelo Cardeal em Jesus, na razão,
como que no seu lugar. Finalmente, o intelecto em seu ponto supremo é visto como
que unido ao verbo divino e que “o intelecto é o lugar em que o verbo é captado”
142
(CUSA, 1988, p. 223) do mesmo modo que é o lugar onde é captada a palavra do
mestre.
O intelecto é então iluminado pelo verbo de Deus como a luz do sol ilumina o
mundo e tanto mais capaz quanto “mais puros e perfeitos forem os sentidos, mais
clara a imaginação e melhor o discurso, tanto menos impedido e mais perspicaz
será o intelecto nas suas operações intelectuais” (CUSA, 1998, p. 232). E, para
completar esses graus de ascensão para Deus, o Cusano propõe ao intelecto
humano que se submeta pela a ouvir o mestre, realizando-se ao ouvir o que nele
diz o Senhor. O influxo da virtude divina, então, se faz presença “de acordo com o
grau da fé” (CUSA, 1998, p. 233).
É quando então “pela o intelecto se aproxima do verbo” e, pelo amor, se
une a ele” (CUSA, 1998, p. 233). Nessa visão de Deus, ou, o que é mesmo, nessa
teoria do conhecimento, se experiencia que o espírito de Deus
é captado de múltiplos modos na sua virtude infinita. Na verdade, é captado
de um modo em um [espírito] em que atua o espírito profético, doutro modo
em um outro em que actua o intérprete especialista e em um outro no qual
ensina a ciência. E assim em outros doutros modos diferentes. Vários são,
com efeito, os seus dons, os quais são perfeições do espírito intelectual,
assim como o mesmo calor do sol realiza em várias árvores diferentes frutos
(CUSA, 1998, p. 235/236).
Nicolau de Cusa conclui que todas as criaturas não fazem outra coisa senão
procurar a Deus e revelá-lo e, todos os espíritos intelectuais não se exercitam senão
em procurá-lo para então revelarem as suas descobertas. Deste modo os homens
que buscam a Deus são manifestações dele, guiados pela experiência que, unindo
os contraditórios, se encontram em amor e conhecimento ou em afeto e intelecto.
“Revelam-se mutuamente os seus segredos os espíritos cheios de amor. E com isso
aumenta o conhecimento do amado, o desejo dele e inflama-se a doçura da alegria”
(CUSA, 1998, p. 237).
Na tentativa de buscar a Deus o homem constroi um percurso de elevação
gradativa sem que, no entanto, consiga chegar a vê-lo sem véus. A única
possibilidade de ver a Deus face a face é o mergulho nas trevas da ignorância, em
que toda ciência seja superada, assim como todo conceito, todo discurso. Ainda que
a experiência obtida por esse conhecimento termine onde começa, isto é, na
143
capacidade que cada um tem de ver o criador e de querer vê-lo, está na liberdade
de cada um ser de si mesmo quando então pertencerá a Deus.
No aprofundamento dessa teoria do conhecimento, configurada pela mística
do logos, a dimensão trinitária ganha especial importância a partir do segundo
elemento da trindade, ou seja, o verbo ou logos, assim como no Evangelho de São
João: “No princípio era o Verbo”. Ao se fazer carne, o verbo, como princípio fundante
de todas as coisas, é concebido como trino e entendido como sujeito de discurso, e
representa a exploração permanente dos limites da linguagem, bem como, um
exercício permanente de transgressão de suas fronteiras.
Nessa teoria, o conhecimento o é apenas conceitual-representativo, sendo
este, apenas um e o primeiro modo do conhecer. Segundo Fogel (2003) o
conhecimento em seu sentido de ciência positiva se pelo conceito. Enquanto
conceito num sentido amplo, entende-se com “um índice geral, melhor, universal,
isto é, que vale igualmente para cada um dos indivíduos ou dos elementos de um
conjunto, de uma totalidade (de uma “espécie”) e ao qual todo indivíduo (particular) é
reduzido ou reconduzido, quer dizer, através do qual a realidade (sempre o concreto
ou o individual) é captada e apresentada e, então, através dele representada, de
modo que se passa a ter uma determinação, um “valor” comum, único e igualmente
válido (verdadeiro) para todo e cada um dos indivíduos do conjunto em questão”
(FOGEL, 2003, p. 54).
Em síntese, o conceito é aquilo que “sempre se tem, o que sempre se
sabe em relação àquilo que cabe apreender ou saber isto é, conhecer” (FOGEL,
2003, p. 54). Em outras palavras, esse tipo de conhecimento é aquele cujo conceito
se conhece para poder conhecer. Fogel cita uma frase de Fernando Pessoa que
exemplifica o conhecimento que não é positivo: “conhecer é como nunca ter visto
pela primeira vez(FOGEL, 2003, p. 55). O conhecimento positivo, não espanta, não
surpreende, pois ele é aquele sobre o qual sempre se ouviu falar ou contar. É um
sabe-se porque se sabe. Como Jó, quando disse: “eu ouvia falar de Ti com os meus
ouvidos, mas agora eu sei”. É um saber habitual que enquadra o in-habitual.
5.1 Desdobramentos históricos
O Cusanus Institut, de Trier, o Hospice de Bernkastel-Kues e a American
Cusanus Society são pontos de referência contemporâneos para o estudo da obra
de Nicolau de Cusa. Intimamente ligados a eles, estão pensadores do porte de H.
144
Lawrence Bond, Jasper Hopkins, Morimichi Watanabe e Edward Cranz. O método
de sua abordagem gera ensaios exaustivos da estrutura da obra cusana, de sua
temática, de sua datação, de suas fontes, dos pensadores que a influenciaram e dos
pensadores por ela influenciados. Todos os recortes e inter-relações possíveis são
lembrados, descendo a minúcias que iluminam com a mesma intensidade a
biografia e a bibliografia do pensador. O resultado de tais empreendimentos e
preocupações, em que pese a enorme quantidade de informações acumuladas, é
limitado. Talvez porque exagere a seriedade com que Cusa tenha recorrido ao
pensamento filosófico da tradição, talvez pela crença que conceitos filosóficos
vindos da Antiguidade mantenham sua estrutura quando apropriados pela
Renascença, talvez porque acredite na referência feita pelos steros ao nome de
Cusa como fonte real de problemas filosóficos. O fato é que a sensação final do
leitor é a de que Nicolau de Cusa estruturou os grandes temas da filosofia ocidental,
como por exemplo Jacob Boehme (1575-1642), um místico luterano para quem
Deus era o Ungrund, ou Abismo, um absoluto indiferenciado que “nem é luz nem
trevas, nem amor nem ira, mas o eterno Uno”. Disse ter visto isso em uma visão
mística. A ideia do mistério do abismo pode ter sido derivada de Paracelso (1493-
1541), que, estranhamente, combinava prática médica e teoria filosófica com
alquimia e astrologia, além de opiniões teológicas místicas. Sempre que
mencionado, Jacob Boehme é lembrado como sapateiro, um artesão do século XVI.
Mas enquanto exercia ativamente sua profissão como sapateiro e, mais tarde, como
comerciante, teve uma experiência mística profunda aos 25 anos de idade que, com
o tempo, levou-o a uma marcante carreira independente de erudição e escrita.
Embora censurado por heresia e silenciado por sete anos pelo Conselho da
cidade de Görlitz, ele produziu cerca de 30 livros e tratados sobre Teologia Filosófica
e ganhou muitos seguidores entre a nobreza e as classes profissionais. No prefácio
do livro de J.J.Stoudt, intitulado Sunrise to Eternity: A Study of Jacob Boehme’s Life
and Thoughts”, P. Tillich escreve:
Embora os pensamentos de Jacob Boehme tenham mudado durante suas
escritas de um estágio nada refinado até um estágio de clareza
comparativa, eles são sempre expressos em uma linguagem que reflete
visão especulativa, experiência mística, insight psicológico e tradição
alquímica. É frequente a dificuldade de descobrir o elemento racional nesta
mistura, mas ele está lá e ele teve uma assombrosa influência sobre a
história da filosofia ocidental. Necessita-se apenas mencionar o famoso livro
145
de Schelling sobre A liberdade humana que é profundamente dependente
da visão de Boehme sobre a gênesis de Deus, mundo e o homem. Daí a
influência indireta de Boehme atingir Hegel e Schopenhauer, Nietzsche e
Hartmann, Bergson e Heidegger
83
.
As ideias de Boehme do processo da criação e sobre a divindade
pressagiaram a teologia de Alfred N. Whitehead do século XX. Ele foi também
frequentemente citado por C.G.Jung nas ilustrações da dinâmica transformativa do
processo individual alquímico da psychè. Boehme aparentemente tinha consciência
que estava usando simbolismo alquímico de uma maneira psicológica. Cartas de
Jung sugerem influências de Boehme sobre seu próprio ponto de vista religioso.
Albert Schweitzer parece especialmente estar fiel ao espírito de Boehme, de seu
espírito protestante independente, consistente com os conhecimentos modernos.
A palavra, a partir de então, tem sido vagamente usada para os tipos de
"conhecimento" esotérico e teosófico, não suscetíveis de verificação. A essência do
misticismo é a experiência da comunicação direta com Deus. No precio de sua
última obra, o Mysterium Magnum, escrita em 1623, Jacob Boehme declara que
recebeu, realmente, da graça divina, o poder e a capacidade de falar do Grande
Mistério, ou do começo e origem de todas as coisas; e, "desde que somos capazes,
pelo funcionamento da alma, de compreender o conhecimento real, a palavra
inspirada da ciência divina", expôs nessa obra, até onde lhe foi possível, o seu
fundamento ou Grund, não apenas para seu Memorial, mas para o leitor se exercitar
no conhecimento divino.
Cite-se também a figura de Marcilio Ficino (1433-1499), representante
máximo do platonismo renascentista e do humanismo florentino juntamente com
Nicolau de Cusa. Como Pico della Mirandola retoma os grandes sistemas de
pensamento do Renascimento da filosofia pensada por Giordano Bruno e
Campanella. Foi chamado (por si mesmo) de “segundo pai,” reportando-se à
tradição platônica. São fundamentais os seus comentários, quando por ocasião das
traduções, com numerosos argumentos e comentários, com os quais explica o
Timeo e o Parmênides.
83
Disponível em:
http://www.hermanubis.com.br/Artigos/BR/ARBRAPrincipiosfundamentaisdopensamentodeJACO%2
0BOEHME.htm Acessado em: 20.04.2010.
146
No entanto, é o De amore a sua obra destinada a exercer uma influência
definitiva em toda a literatura. Para Ficino, a função essencial do pensamento
humano é aceder através de uma iluminação imaginativa (spiritus e fantasia),
racional (ratio) e intelectual (mens) à autoconsciência da própria imortalidade através
dos signos e símbolos, sinais cósmicos e astrais tomados dos hieróglifos universais
de origem celeste.
Todo o agir humano artístico, técnico, filosófico e religioso exprime no fundo a
presença divina de uma mente (mens) infinita na natureza, no interior de uma visão
cíclica da história, tomada do mito do grande retorno platônico. Marcilio Ficino morre
em outubro de 1499 em Florença.
Outro nome entre os mais influenciados por Nicolau de Cusa e que pode ser
mencionado como parte dos desdobramentos da teoria do conhecimento cusana é
Giordano Bruno (1548-1600), que acabou preso pela Inquisição e foi queimado na
fogueira em Roma. Suas opiniões foram evidentemente julgadas heréticas, como
também, claro, as de Galileu, mais tarde, embora por motivos diferentes. Bruno, tal
como Ficino, fora muito influenciado pelos escritos herméticos mas também talvez
estranhamente, nas circunstâncias por Copérnico, indo realmente além dele na
rejeição da tese geocêntrica do universo. Ele considerava isso, no entanto, uma
confirmação das opiniões de Hermes Trismegisto e desprezava Copérnico por ser
um mero matemático. Seus diálogos sobre causa, princípio e unidade pregam o
princípio da unidade do Todo no Uno. O mundo é infinito e a seu respeito utiliza a
ideia de Nicolau de Cusa sobre a coincidência de opostos. O mundo é a expressão
de um mundo-alma, e sua teoria neste particular é uma estranha mistura do
atomismo epicurista com essa ideia de mundo-alma. Disto deriva ele a doutrina de
mônadas (átomos animados) que se antecipa de certa forma à doutrina posterior de
Leibniz. De outras maneiras como, por exemplo, em sua ideia de Deus como
inteiramente transcendente e, ainda assim, manifesto no mundo e como natureza
encontramos antevisões do “Deus ou Natureza”, de Spinoza. A filosofia de Bruno é
evidentemente uma mistura, mas, como em outras do período, misticismo e
hermetismo são grandes ingredientes da mesma.
Além da ideia de imanência divina, trazida por Nicolau de Cusa, o tema da
dignidade do homem reaparece na Renascença. Este tema havia ocorrido na
Antiguidade em Sófocles e na sofística grega. Se na antiguidade o elogio era sobre
a capacidade humana de teorizar e contemplar, agora, na Renascença, ela
147
reaparece como elogio à capacidade humana de transformar o mundo, a capacidade
humana de agir, o que denota a superioridade humana em relação aos demais
animais. A partir do resgate da dignidade surge uma consciência da humanidade
enquanto universalidade abstrata. O horizonte estreito da cristandade medieval é
dilatado, tanto pela ampliação geográfica, devido às descobertas, como pelo
encontro com novas culturas humanas. Nesse contexto, surge o problema da
unidade e igualdade da natureza humana, a partir da experiência do chamado
pluralismo antropológico que, a partir de então, ocupará um lugar sempre mais
importante na reflexão sobre o homem. O sábio, propõe Bruno, “se torna o seu
próprio criador e mestre, conquista e possui a si mesmo, enquanto o homem
meramente ‘natural’ sempre pertence a uma força estranha, de quem é eternamente
devedor” (CASSIRER, 2001, p. 162), pois não é na condição de receptáculo que o
homem deve entender o divino, e sim “como artista e como causa influente”
(CASSIRER, 2001, p. 163).
Focando a liberdade humana surge Pico de la Mirandolla (1463-1642), que
disse de Nicolau de Cusa:
Deste-me Senhor, o ser e um ser tal que se pode tornar cada vez mais
capaz de receber a tua bondade e a tua graça. E esta força, que recebo de
ti, na qual tenho a imagem viva da virtude da tua onipotência, é a vontade
livre pela qual posso ampliar ou restringir a capacidade de receber a tua
graça (CUSA, 1998, p. 125)
84
.
Essa definição da essência da liberdade humana, segundo André (1998),
antecipa significativamente a concepção que Pico della Mirandola virá a desenvolver
na sua Oratio
85
. Com essa realização da liberdade humana é que se radica a
efetivação da presença oculta de Deus no íntimo do homem. Pico volta-se para
Marcilio Ficino, então a maior figura do neoplatonismo florentino, para receber
conselhos e ensinamentos. Será, pois, um discípulo fiel de Ficino, vendo nele um
iniciador que poderá ajudá-lo a ultrapassar uma nova etapa da sua formação
84
“Dedisti mihi, Domine, esse et id ipsum tale, quod se potest gratiae et bonitatis tuae continue magis
capax reddere. Et haec vis, quam a te habeo, in qua virtutis omnipotentiae tuae vivam imaginem
teneo, est libera voluntas, per quam possum aut ampliare aut restringere capacitatem gratiae tuae”
(VD / LG, III, cap. IV, os. 104-106). Citação feita por João Maria André, na introdução ao A visão de
Deus.
85
É com Pico della Mirandola que a definição de homem pela sua liberdade ganhará relevo na
concepção renascentista de homem. De hominis digitate, Heptaplus, De ente et Uno. Ed. De E.
Garin, Firenze, Valléchi Editore, 1942, os. 101-165. Citado por André (1998), p. 126.
148
intelectual. Será iniciado à Cabala em 1486, a qual servirá de paradigma para a
compreensão do judaísmo e do cristianismo. Estas duas religiões, para Pico,
deverão ser ligadas por um terceiro elemento que é a Cabala, a fim de que
apareçam as suas esplêndidas identidades. na Cabala princípios que aplica ao
Evangelho, sendo por isso, suspeito de heresia. Estudos do célebre livro Oratio de
hominis dignitate, a liberdade do homem, embora não seja ele o criador de valores,
mas sim, Deus que os diretamente. Em síntese, os valores são um dom que
podem ser ou não acolhidos pelo homem, mas que ele não pode, de modo algum,
modificar ou remodelar.
O discurso de Pico, no entanto, vem acrescentar um elemento novo, comenta
Cassirer (2001). O seu discurso está marcado por aquela transformação
característica do motivo do microcosmos, que havia se processado em Nicolau de
Cusa e, depois dele, em Ficino (CASSIRER, 2000, p. 140). O pathos retórico da obra
encerra, ao mesmo tempo, um pathos intelectual especificamente moderno
(CASSIRER, 2000, p. 140), ou seja, a dignidade do homem não pode residir no seu
ser, mas decorre do seu agir; e este agir não se manifesta unicamente na energia
da vontade, mas compreende a totalidade de suas forças criadoras (CASSIRER,
2000, p. 141).
Isto significa que, o que se entende por ser do homem, deve ser
continuamente retomado, assim como o seu valor, não podendo ser definidos ou
determinados como algo estático, mas, sim, dinâmico. Classificado como um dos
mais nobres legados da cultura do renascimento, por Buckhardt, o discurso de Pico
resume com grandiosa simplicidade e concisão a totalidade do querer e do
conhecimento de toda uma época. Vontade e saber se desdobram na especulação
sobre liberdade e necessidade e concluem que a sabedoria está naquele que mede
as oposições que jazem na essência do homem; aquele que as reconheceu e que,
por isso mesmo, as superou (CASSIRER, 2000, p. 151). O problema da liberdade
entrelaça-se com e determina os novos conceitos do conhecimento assim como a
concepção de conhecimento determina o conceito de liberdade.
149
CAPÍTULO IV - DOUTA IGNORÂNCIA E VISÃO DE DEUS COMO PENSAMENTO
RELIGIOSO E FILOSÓFICO
A ciência da ignorância se erige, então, num princípio de tolerância religiosa e
de ilustração. Nicolau de Cusa se esforça por manter de os dogmas
fundamentais do cristianismo e por acomodá-los numa religião unitária, numa
religião do logos e na “transmutação simbólica do dogma, não como pauta
incondicional, pela qual se mede, mas, simplesmente como objeto medido”
(CASSIRER, 1993, p. 74).
Nos primórdios de sua filosofia, Nicolau de Cusa pensava, sobretudo, no
problema fundamental das relações entre Deus e o mundo. Mais tarde este
problema é renomeado e substituído pelo conceito de espírito. A alma no sentido
mais elevado é símbolo do criador, e todas as demais coisas participam da essência
divina “enquanto se representam e se refletem nela” (CASSIRER, 1993, p. 80). Desse
modo, o intelecto humano sendo imagem do intelecto divino é ao mesmo tempo
modelo e protótipo de todo ser empírico. Desse modo o ser simples e
incondicionado “não nos é diretamente acessível, mas, se oculta e envolve diante de
nós sob múltiplos nomes e símbolos de que necessariamente temos que nos valer
para captá-lo” (CASSIRER, 1993, p. 83).
Surge um novo conceito de magnitude, que expressa simultaneamente uma
concepção distinta e uma nova definição do ser. A própria percepção que
permanece na esfera do extenso e do complexo é entendida como não podendo
abarcar nem medir o ser. Por exemplo:
Do mesmo modo que a virtude do diamante, que lhe permite refratar a luz,
está igualmente contida em um diamante maior e num menor, pois
independe da extensão, assim também a substância do corpo, em geral,
nada tem a ver com a sua “massa” (CASSIRER, 1993, p. 86).
Uma vez que a percepção capta as coisas em sua extensão no espaço, o
intelecto “capta o princípio e o fundamento originário de sua atividade(CASSIRER,
1993, p. 86). Esse problema do conhecimento vai se desdobrando e se ampliando
constantemente, enfocando novos grupos de problemas, a fim de que sejam
submetidos a uma distinção sistemática fundamental. Nessa distinção proposta pela
ratio, o conhecimento matemático se instala como possibilidade radicada no
150
princípio de contradição para, mais tarde, transcender ao pensamento meramente
discursivo quando se invoca a visão intelectual (visio intellectualis).
O que se busca com a visão intelectual não é saltar sobre as fronteiras da
consciência, buscando um objeto para além dela, mas, sim, “representar e justificar
o conceito de limite” (CASSIRER, 1993, p. 88). Nesta teoria do conhecimento
desenvolvida pelo Cusano, no início como uma teologia negativa, em que se
conjectura por negações, percebe-se num período posterior “que o conhecimento é
a cópia perfeita e a fecunda reprodução do divino” (CASSIRER, 1993, p. 89).
Enquanto num primeiro momento o movimento do pensamento é conjecturar
por negações, “extinguindo e superando todas as categorias do pensamento
(CASSIRER, 1993, p. 89), num segundo momento o que se encontra é um “firme
ponto de apoio que nos permite chegar a compreender por analogia e esclarecer
diante de nós mesmos a suprema essência” (CASSIRER, 1993, p. 89). Assinalar as
diferentes fases do desenvolvimento do pensamento filosófico de Nicolau de Cusa,
no entanto, não é suficiente e nem resolve as questões propostas pela busca do
conhecimento. O fato é que nenhum conceito concreto, nenhum dado fixo da
representação ou do pensamento do Cusano é suficiente, mas, tão-somente, o
modo como ocorrem as operações e as atividades do intelecto, de cujas bases
emergem as formas concretas.
Deus e a visão de Deus passam a ser entendidos como uma atividade pura e
ilimitada da visão, “desprendida de todo objeto” (CASSIRER, 1993, p. 90) e como a
capacidade fundamental do conhecer, que não se limita a nenhum de seus
resultados.
É nesse pensamento religioso e filosófico que desaparece a antítese entre
sujeito e objeto, entre o processo do conhecer e do objeto do conhecimento. “Deus é
tudo em tudo e não é, apesar disso, nada de tudo: nessa antinomia desemboca a
metafísica do Cusano” (CASSIRER, 1993, p. 90).
Segundo Nicolau de Cusa, a base de todo o problema do conhecimento e
suas implicâncias filosófico-religiosas é a unidade suprema e incondicional, para a
qual o que se pode é propor e indagar sobre as suas relações. É quando, pelo
conceito de docta ignorantia, com a consciência do não saber, “se nos revela a
pauta incondicional e o ideal positivo do saber” (CASSIRER, 1993, p. 94).
A colocação do problema se radica na Idade Média, porém, sua solução
desemboca nos umbrais da nova filosofia, do pensamento cartesiano. Apoiado pela
151
filosofia grega e em sua idéia de antítese entre o Uno e o múltiplo, o Cusano
enfrenta a dificuldade implícita no conceito de Trindade. “Nicolau de Cusa se
remonta para além da limitação dos problemas teológicos, para outra vez elevar-se
aos problemas do logos e de sua validade geral” (CASSIRER, 1993, p. 96).
Na obra A visão de Deus deixa explícita a concepção fundamental de sua
teologia mística, descrevendo e determinando o ser divino como “o ato absoluto da
visão” (CASSIRER, 1993, p. 96). Mas o modo como essa atividade incondicionada se
revela sob uma forma concreta depende do olhar do sujeito finito e concreto
projetado sobre ela. Diz o Cusano que “toda a face que pode olhar para a tua face
nada vê que seja diferente ou diverso de si própria, porque vê a sua verdade” (CUSA,
1998, p. 150), e por isso, quem olha com visão amorosa encontrará a face divina a
olhá-lo amorosamente e quem olhá-lo com ira encontrará a sua ira etc.
Cassirer (1993) comenta a esse respeito que “o ser incondicionado reflete
sobre nós nosso próprio ser, que voltamos a contemplar nos objetos finitos como
algo dividido e limitado: o absoluto, do modo como se apresenta diante de nós é ao
mesmo tempo o mais subjetivo” (CASSIRER, 1993, p. 96). E o Cardeal complementa:
“E não te encontrarás a ti próprio a não ser nele” (CUSA, 2003, p. 128), isto é, “faz,
diz a nossa douta ignorância, de modo que te encontres nele” (CUSA, 2003, p. 128).
No modo douto da ignorância e, invocando o caminho que é o próprio Jesus
Cristo para ele próprio, segue-se pela e pela participação, que Jesus Cristo é
Deus, criador e criatura sem confusão nem composição” (CUSA, 2003, p. 137). Só
mesmo se elevando acima de todo intelecto pode-se conceber a diversidade na
unidade e a unidade na diversidade.
1 Jesus Cristo Deus e homem
Elevando o intelecto na douta ignorância, sobre toda a compreensão
intelectual é que se pode considerar que “em Jesus, a humanidade encontra o seu
suposto
86
na divindade, porque de outro modo não poderia ser na sua plenitude
máxima” (CUSA, 2003, p. 146). O intelecto de Jesus é considerado pelo Cardeal
como sumamente perfeito e existente em ato e, por isso, não pode encontrar o seu
86
Suppositatur do verbo suppositare que significa “subsistir em”, sendo aquilo em que algo subsiste,
a hipóstase em sentido ontológico-metafísico. No sentido filosófico, hipóstase é um engano que
consiste em tomar como real, concreto e objetivo o que só existe como ficção ou abstração. Em
152
suposto pessoal; ele só pode encontrá-lo no intelecto divino, enquanto que em todos
os homens o intelecto cresce gradualmente da possibilidade para o ato.
Também para o Cusano as coisas corporais estão a serviço do intelecto e,
por isso, “o homem perfeito ao máximo não deve ser eminente nas coisas acidentais
a não ser por referência ao próprio intelecto” (CUSA, 2003, p. 146). Isso significa que
o corpo deve estar sumamente adaptado à natureza intelectual e afastado dos
extremos como um instrumento que obedeça ao intelecto sem resistência, fadiga ou
murmurações. Crê-se que em Jesus houve um corpo sumamente “apto e perfeito”
(CUSA, 2003, p. 147), a serviço de sua elevadíssima natureza intelectual.
O Cardeal propõe um exemplo que, acredita, pode instruir nossa ignorância,
nessa teoria do conhecimento. Quando um douto quer “mostrar o seu verbo
intelectual” (CUSA, 2003, p. 148) para que alimente espiritualmente a outros, faz com
que seu verbo mental se revista de voz, revestindo-o de uma figura sensível, sem o
que não seria manifestável. Assim, os ouvintes atingem o verbo através da voz.
Ainda que remota, essa comparação pode ser útil para meditar como o Pai eterno,
“compadecido de nossa fragilidade” (CUSA, 2003, p. 14) e uma vez que poderia
ser percebido sensivelmente por nós, revestiu Jesus da natureza humana através do
Espírito Santo, que lhe é consubstancial, pois “é o amor de modo absoluto” (CUSA,
2003, p. 148).
Em outras palavras, não dúvida de que o homem é dotado de intelecto e
dos sentidos, e entre eles está a razão. A razão une sentidos e intelecto. O intelecto,
por sua vez, não é do âmbito do tempo e do mundo “mas desligado deles” (CUSA,
2003, p. 151), enquanto que os sentidos são do âmbito do mundo e estão sujeitos
aos movimentos do tempo. A razão encontra-se como que no horizonte do intelecto,
mas, no zênite com relação aos sentidos, coincidindo nela as coisas que estão no
tempo e acima do tempo” (CUSA, 2003, p. 151).
Assim, não é possível aos sentidos perceber as coisas que são de Deus, as
coisas sobretemporais e espirituais, “posto que Deus existe como espírito e mais do
que espírito” (CUSA, 2003, p. 151). No entanto, pelo fato de participar da natureza
espiritual, a razão pode reger as paixões do desejo, moderá-las e reduzi-las à justa
medida, a fim de que “o homem que estabelece o fim nas coisas sensíveis não se
sentido teológico, é cada uma das pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo) que compõem a Santíssima
Trindade.
153
veja privado do desejo espiritual do intelecto” (CUSA, 2003, p. 152). De toda a lei aqui
proposta pela razão, a maior delas, segundo o Cusano, é a que diz: “Não se faça ao
outro o que não se quer que seja feito a si” (CUSA, 2003, p. 152) e que as coisas
eternas sejam antepostas às temporais. É então que o intelecto, num vôo mais alto,
pode ver que a razão é arrastada para baixo pelos sentidos, quando não pode
dominá-los, é afastada de Deus e privada da fruição do supremo bem, “que é
intelectualmente mais elevado e eterno” (CUSA, 2003, p. 153). Mas, ainda que a
razão domine os sentidos, deverá ser dominada pelo intelecto, para que, “acima da
razão, pela actuada (fides formata)” (CUSA, 2003, p. 153), possa ser atraída por
Deus Pai à glória.
A maximidade da natureza humana faz com que “qualquer homem que adira
a Cristo com uma fé actuada” (CUSA, 2003, p. 154) e, quanto mais se elevar nas
virtudes imortais, “mais semelhante a Cristo se torne” (CUSA, 2003, p. 155).
Jesus Cristo é, pois, o Deus Filho amável, gerado pelo Deus Pai amante, na
verdade, completa o Cusano, “o teu conceito é o te filho e todas as coisas são nele”
(CUSA, 1998, p. 208). Concluindo que a união de Deus Pai e do seu conceito, o Deus
Filho, é o “acto e a operação que deles brotam, nos quais se dão o acto e a
explicação de todas as coisas” (CUSA, 1998, p. 208). Assim como do Deus amante é
gerado o Deus amável, “sendo essa concepção geração” (CUSA, 1998, p. 208),
assim procede de Deus amante o seu conceito. Então, o ato e o conceito, que “são o
nexo que liga e que é Deus” (CUSA, 1998, p. 208), a este nexo chama-se espírito. O
espírito é, pois, como o movimento que procede do movente e do móvel, sendo o
movimento a explicação do conceito do movente. Todas as coisas são então em
Deus, como na razão, no conceito, na causa ou no modelo, “assim como o teu filho
é o centro de todas as coisas por ser a razão” (CUSA, 1998, p. 208).
Jesus Cristo é o Deus mediador que é o inteligível, sem o qual nenhum
homem pode se entender, pois entender-se é “unir-se a ti” (CUSA, 1998, p. 209).
Jesus Cristo “é o meio de união de todas as coisas” (CUSA, 1998, p. 208), como
mediador absoluto. O Cardeal afirma ver na natureza humana ou racional o espírito
racional humano “estreitissimamente unido ao espírito divino” (CUSA, 1998, p. 212),
que é a razão absoluta, vendo da mesma forma o intelecto divino e todas as coisas
no intelecto de Jesus. Jesus é então aquele que entende todas as coisas, e esse
entender “é ser todas as coisas” (CUSA, 1998, p. 213). Entende que ser homem é ser
semelhança de todas as coisas, pois toda coisa é entendida pelo homem na
154
semelhança. Jesus é visto como estando “dentro do muro do Paraíso” (CUSA, 1998,
p. 213), porque nele o intelecto é a verdade e ao mesmo tempo a imagem; sendo
simultaneamente Deus e criatura, infinito e finito.
É assim que, no que diz respeito ao entender, o que é inteligível pelo homem
o intelecto de Jesus o entende em ato, porque nele a natureza humana é
perfeitíssima e está sumamente ligada ao seu modelo. Jesus é a via “para a verdade
e ao mesmo tempo a própria verdade. É a via para a vida do intelecto e ao mesmo
tempo a própria vida” (CUSA, 1998, p. 214). Jesus é a árvore da vida, onde está
oculta “toda doçura do desejo” (CUSA, 1998, p. 215), cujos frutos podem ser
saboreados tendo o homem se despido do homem velho da presunção, e se
revestido do homem novo da humildade. Jesus é, pois, aquele sem o qual “é
impossível que alguém atinja a felicidade” (CUSA, 1998, p. 217) sendo feliz aquele
que se une a Jesus, vendo o Deus invisível captando o incompreensível “numa
fruição eterna” (CUSA, 1998, p. 217).
Jesus, para o Cardeal, enquanto caminhava neste mundo sensível, via nos
indícios o interior da alma do homem como nenhum outro jamais viu; “com efeito, a
partir de um sinal, por menor que fosse, vias todo o pensamento (conceptum)”
(CUSA, 1998, p. 219), do mesmo modo que um homem douto prevê com base em
poucas palavras todo um discurso previamente concebido ou como quando percorre
com os olhos rapidamente um livro inteiro, expondo as intenções do autor como se o
tivessem lido. Mas, para Nicolau de Cusa, em Jesus, à sua visão humana
perfeitíssima, esta unida a visão absoluta infinita, pela qual como Deus,
“simultaneamente todas as coisas e cada uma delas” (CUSA, 1998, p. 220), vendo
com os olhos humanos os acidentes visíveis e as substâncias das coisas com o
olhar divino e absoluto.
No homem, a força intelectiva está unida à sua virtude animal visual para que
este, além de ver, julgue e discorra, para que aplique o conhecimento da sua força
discretiva. Certamente, nesse jogo de forças, uma é força que discorre, outra a que
julga e entende, daí que a natureza intelectual tem inúmeros graus abaixo da divina.
Nessa visão filosófico-religiosa, Nicolau de Cusa tem em Jesus o homem
perfeitíssimo, porque nele estão unidos “o intelecto à virtude racional ou discursiva,
que é o ponto mais alto da [virtude] sensitiva” (CUSA, 1998, p. 222). É então que se
pode ver, nessa teoria do conhecimento que é a visão de Deus, que ao intelecto, no
seu ponto supremo, “está unido o verbo divino e que o intelecto é o lugar em que o
155
verbo é captado, tal como experimentamos em nós que o intelecto é o lugar em que
é captada a palavra do mestre, como se a luz do sol se unisse à candeia” (CUSA,
1998, p. 223) no centro de uma sala.
É o verbo de Deus que ilumina o intelecto, assim como a luz do sol ilumina
esse mundo, sendo, porém, necessário que todo intelecto se submeta pela ao
verbo de Deus e ouça com a maior atenção a doutrina pregada pelo mestre Jesus.
Pela , o intelecto aproxima-se do verbo; pelo amor, une-se a ele. Para o Cardeal,
Deus é aquele que opera todas as coisas por si mesmo, tendo criado o universo “por
causa da natureza intelectual” (CUSA, 1998, p. 236), semelhante a um pintor que
mistura as muitas cores a fim de poder pintar a si próprio, “com o objetivo de ter uma
imagem de si, na qual se deleita e repousa a sua arte” (CUSA, 1998, p. 236). Conclui
o Cusano: “Tudo me impele a voltar-me para ti. Todas as escrituras não tentam fazer
outra coisa senão revelar-te, e todos os espíritos intelectuais não se exercitam
senão a procurar-te e a revelarem o que de ti descobrem” (CUSA, 1998, p. 237).
Cristo é, pois, o centro e a circunferência da natureza intelectual e, porque
abraça todas as coisas, está para além de tudo. “Contudo, nas almas racionais e
santas e nos espíritos intelectuais, que narram a sua glória, descansa como se fosse
no seu templo” (CUSA, 2003, p. 163). É assim que, em Cristo, subir ao u é estar
para de todo o lugar e de todo o tempo, para de tudo o que possa ser dito,
simultaneamente ele está no meio de nós. Ele diz: “Este reino dos céus está entre
os homens” (CUSA, 2003, p. 164). E, assim como os que amam estão no amor,
assim os amantes da verdade estão em Cristo; sendo impossível que alguém
conheça a verdade se não estiver em Cristo, sendo saciado apenas na glória da
união. Esta é a ascensão para o saber. É esta que complica todo o inteligível,
enquanto que o conhecimento intelectual é a explicação da fé. Sendo conduzidos
das coisas conhecidas às desconhecidas, através dos símbolos, apreendemos pela
ali onde cessam as persuasões, para de toda a razão e de toda a inteligência,
contemplando incompreensivelmente no corpo de modo incorpóreo, atingimos a
docta ignorantia.
2 A força da palavra
A epígrafe de abertura desta tese diz: Não de pão vive o homem, mas de
toda palavra proferida pela boca de Deus. De acordo com o acima exposto, Jesus
Cristo é o logos que, segundo ele mesmo, é “o pão da vida” (Jo 6,35), o pão que,
156
quem comer “viverá eternamente” (Jo 6,51). Este pão não é como aquele que os
pais comeram e pereceram, mas o pão da palavra. O mesmo Cristo ainda disse:
“Por que não reconheceis minha linguagem? É porque não podeis escutar minha
palavra” (Jo 8,43), e completa dizendo que “quem é de Deus ouve as palavras de
Deus” (Jo 8,47). Destas passagens, segue-se o porquê da vinda da palavra, pois
disse ainda Jesus: “para um discernimento é que vim a este mundo” (Jo 9,39). O
discernimento é passado inicialmente, como propõe Nicolau de Cusa por imagens
sensíveis, continuando a proposta de Jesus: “Disse-vos essas coisas por figuras.
Chega a hora em que não vos falarei em figuras, mas claramente vos falarei do
Pai” (Jo 16,25). É quando Jesus diz aos discípulos que a vida eterna está em que
conheçam “o único Deus verdadeiro” (Jo 17,3), pois as palavras que de Deus
recebeu ele as deu aos homens cumprindo-se a profecia: no princípio era o Verbo
(In principio erat verbum) (ANDRÉ, 2006, p. 8), no qual subjaz o poder criador da
palavra. A proposta do Cusano é que nesta teoria do conhecimento se reconheçam
as limitações da palavra e do discurso, inscrevendo-se a sua dialética no
conhecimento intelectual da trindade, o qual, na unidade, ultrapassa tudo.
O Verbo divino, ao se plurificar nas suas expressões, que são o mundo das
criaturas, em seus sinais e palavras sensíveis, é confirmado por Nicolau de Cusa
quando ele afirma:
De acordo com esta comparação, o nosso princípio unitrino, pela sua
bondade, criou o mundo sensível como matéria e uma espécie de voz, na
qual fez resplandecer de modo vário o verbo mental, a fim de que todas as
coisas sensíveis sejam o discurso de várias elocuções do Deus Pai,
explicadas através do Verbo, seu Filho, tendo como fim o espírito dos
universos, para que a doutrina do sumo magistério transborde, através dos
sinais sensíveis, para as mentes humanas e as transforme perfeitamente
num magistério semelhante, de modo a que todo o mundo sensível esteja
em função do intelectual, o homem seja o fim das criaturas sensíveis e
Deus glorioso seja o princípio, o meio e o fim de toda a sua actividade”
(ANDRÉ, 2006, p. 9).
Segundo André, no De filiatione Dei, o Cardeal aponta o uno como o pai ou o
gerador do Verbo, querendo dizer com isto que “tudo aquilo que é dito em qualquer
palavra, significado em qualquer sinal e assim sucessivamente” (ANDRÉ, 2006, p. 9),
exprime em forma de palavra humana o verbo divino, sendo que na sua força se
fundamentam a força da palavra do homem e, simultaneamente, os seus limites. “A
157
sua força, porque ela é a expressão do verbo divino, os seus limites, porque é
sempre uma expressão contraída e limitada pela finitude humana que dista
infinitamente de plenitude de sentido da infinitude divina” (ANDRÉ, 2006, p. 9).
Independente da possibilidade de morrer, devido à sua natureza mortal, pode
o homem chegar à experiência da vida do espírito imortal em virtude do Verbo
Encarnado no homem Jesus Cristo, in virtute verbi dei(ANDRÉ, 2006, p. 10). Nele a
humanidade é o nexo de ligação entre a natureza inferior e a superior, isto é, da
temporal e da eterna, e que se experimenta, em semelhança, pela fé e pelo amor. É
quando a sabedoria encarnada revela, com o seu exemplo, o caminho para a vida,
pelo qual ainda que se morra se experimenta a ressurreição da vida, “que é tudo o
que se busca” (VESCOVINI, 1998, p. 132).
Tudo o que se busca, filosoficamente, é considerar a força da palavra quase
como se o nome fosse a representação precisa da coisa. Mas, se os nomes foram
impostos às coisas segundo a razão concebida pelo homem, então os nomes não
são precisos, pois uma coisa pode ser denominada com outros nomes talvez mais
precisos. É por isso que os desacordos não estão na razão que substância às
coisas, mas nos vocábulos que são atribuídos diferentemente às diversas razões
das coisas. É em virtude da virtus ou força da palavra, cujo conceito coincide com
sapientia, que se transfere o verbo divino para os verbos humanos, sendo estes
então explicationes da sapientia na sua unidade mais profunda e absoluta” (ANDRÉ,
2006, p. 10).
Nicolau de Cusa desenvolve essa “dinâmica expressiva e manifestativa das
palavras” (ANDRÉ, 2006, p. 13) em várias de suas obras, entre elas no De pace fidei;
De principio; De mente e Compendium. O Cusano, da mesma forma que Agostinho,
afirma que a palavra que soa exteriormente “é um sinal da palavra que brilha no
interior, à qual melhor convém o nome de verbo. Na verdade, a palavra que os
lábios pronunciam é a voz do verbo e chama-se também verbo porque aquele a
assume para que apareça exteriormente” (ANDRÉ, 2006, p. 12). Como falar é
manifestar, o Cardeal quer traduzir em teoria a palavra interior que, por si mesma,
é uma tradução no “nome preciso e indizível” (ANDRÉ, 2006, p. 13), do qual a
linguagem humana é a explicatio.
Da mesma forma, Platão diz que “a verdade é anterior aos vocábulos, aos
discursos, ou seja, às definições dos vocábulos e às imagens sensíveis, e ele traz
como exemplo, o desenho do círculo, do seu nome, da sua definição verbal e do seu
158
conceito” (VESCOVINI, 1988, p. 133), ainda que Dionísio Areopagita recomende que
se “mais atenção à intenção que à força da palavra” (VESCOVINI, 1988, p. 134).
De qualquer modo, para Nicolau de Cusa, tudo que pode ser dito é o verbo, é a
manifestação de um verbo único, que se constitui na arte da fala, “uma arte infinita,
não no seu resultado, mas no seu processo e no seu dinamismo” (ANDRÉ, 2006, p.
14), quando então a sua limitação a transforma na busca pela palavra infinita, que,
oculta no silêncio de sua plenitude, é a fonte de todas as palavras. No entanto, no
segundo capítulo do De docta ignorantia, o Cusano chama a atenção num
esclarecimento preliminar para o fato de que, aquele que quer atingir o sentido do
que está para ser dito deve elevar o intelecto “para lá da força das palavras, mais do
que insistir nas propriedades dos vocábulos que não podem adaptar-se
convenientemente a tão elevados mistérios intelectuais” (CUSA, 2003, p. 6). Os
exemplos dados, ele os utilizará como guias para a elevação do plano das coisas
sensíveis para o intelectual.
O uso das matemáticas, por exemplo, tem como finalidade confrontar as
etapas metodológicas necessárias, partindo de uma lógica conjectural, edificada,
segundo André, “sobre o princípio de não-contradição” (ANDRÉ, 2001, p. 321);
seguindo para uma dialética coincidencial, edificada “sobre o princípio da
coincidência dos opostos” (ANDRÉ, 2001, p. 321) e finalmente desembocando numa
dialógica transsumptiva, edificada “sobre a consciência da distância, mas também
sobre a natureza dialógica do movimento pelo qual nos sentimos chamados a
transpor essa distância” (ANDRÉ, 2001, p. 321), reflexão esta que conduz para a
experiência do infinito em que já não há figuras.
Uma vez que se pode considerar a questão sobre a nomeação de Deus ou de
se saber o que Deus é e como é possível experimentá-lo como o centro ou o
princípio da coincidência, como o lugar a partir do qual se pode compreender toda a
filosofia de Nicolau de Cusa, pode-se também deduzir que essa teoria do
conhecimento proposta pelo Cusano surge na introdução do De docta ignorantia
como uma hermenêutica dos nomes divinos, profundamente influenciada pela obra
do Pseudo-Dionísio, como já foi referido, e que só terminará com a última obra, o De
ápice theoriae” (ANDRE, 2003, p. XXI).
No ápice da teoria, experiência (afeto, humor) e método (compreensão da
realidade), próprios da dinâmica de realização da realidade, co-incidem numa
transsumptio cusana, que, para Fogel (2003), se constitui num pôr-se no mesmo
159
tônus, no mesmo “tom”, ou seja, na mesma experiência, na mesma origem; trata-se
assim de um sintonizar-se, de um sincronizar-se com a “coisa” assim se é co-
originário e co-partícipe (FOGEL, 2003, p. 49). O conhecimento torna-se então
simpatia, paixão. É a experiência do logos, o sentido e a força da palavra nela
contida e por ela perpassada.
É o momento em que a força da palavra se torna conhecimento, em que o
problema do conhecimento e da palavra é o mesmo que o problema do real. “É
nessa hora, nesse contexto de intensidade máxima do pensamento, nessa hora de
radical concretização da essência do homem, que é preciso ouvir aquela afirmação:
viver, existir, ser homem, no modo mais radical ou essencial possível, é conhecer”
(FOGEL, 2003, p. 52). É transpor-se para este ou aquele humor “o necessário da
ocasião, da ‘hora’ para então ajustar-se, ‘adequar-se’ com ele, isto é, com as
coisas” (FOGEL, 2003, p. 53). Vê-se então que ser simpático é ajustar-se, supondo-
se que verdade seja mesmo a adequação, a correspondência, a consonância com
as coisas.
Sem essa força presente na palavra, esta é apenas conceito, mas um
conceito daquilo que se conhece, ou assim se pensa conhecer, como
esquematização lógico-categorial ou conjectural.
No entanto, segundo Vescovini, na obra La Caccia della sapienza (1998), o
Cusano afirma que ninguém esteve mais atento a essa questão do que Aristóteles,
para quem “aquele que forjou todos os nomes sabia perfeitamente ter expresso isto
que sabe nos seus nomes e, como desenvolver esta ciência, fosse encontrar a
perfeição do saber” (VESCOVINI, 1998, p. 134). Mas, apesar de tudo isto, chega o
momento em que o buscador da sabedoria precisa negar todos os nomes que o
homem impôs a Deus. Negar os nomes é diferente de interpretá-los. A interpretação
requer alguns princípios; assim como fez Nicolau de Cusa em De genesi, ao partir
da idéia de que todos os que falaram da Gênese fizeram-no de modos diversos.
Usando o tema da Gênese como base a interpretação aponta inicialmente para “a
necessidade de contextualizar o discurso bíblico na capacidade humana de
compreensão e de apreensão” (VESCOVINI, 1998, p. 322); em seguida aponta para “a
transformação do movimento interpretativo num movimento de assimilação ao idem,
ou seja, de confluência para o idem indizível, por um processo de relativização das
formas contraídas da expressão humana” (VESCOVINI, 1998, p. 322), e finalmente
entendendo que “a percepção de que as interpretações dos sábios e Padres da
160
Igreja não são senão modos diversos de apreensão do idem absoluto” (VESCOVINI,
1998, p. 322), que cada qual procura representar de modo assimilativo.
É desse modo que a interpretação dos textos bíblicos, filosóficos, teológicos
ou místicos, funciona igualmente para todos, segundo esses princípios. Mesmo as
expressões religiosas, ainda que permeadas “pela força da sabedoria inefável”
(VESCOVINI, 1998, p. 325), não são senão conjecturas. Presente já no De intellectu et
intelligibili de Alberto Magno
87
, está a afirmação de que “o intelecto é o ponto para o
qual tendem todas as filosofias” (VESCOVINI, 1998, p. 301). É onde, para o teólogo
Alberto, se articulam a natureza do pensar com a natureza da graça, apontando para
uma visão beatífica do intelecto divino que é a partir de onde falam todos os
filósofos, isto é, de uma teofania – manifestação ou revelação de Deus.
Na medida em que, para Alberto, as figuras do filósofo e do profeta tendem a
se sobrepor, esse homem pode se elevar pelo pensamento ao intelectus divinus
(VESCOVINI, 1998, p. 308). Citando Avicena, Hermes e Homero, Alberto continua
dizendo ousadamente que o filósofo é nexus dei et mundi, tendo uma função na
liturgia cósmica. Instrumento de uma espécie de palingenesia
88
, o filósofo aparece
em Scotus Erigena e Mestre Eckhart numa imensa lista de citações, operando como
que uma fusão da abstractio filosófica e da ablatio místico-teológica” (VESCOVINI,
1998, p. 312). Naturalmente surgem críticos, como Gerson, que preferem a visão de
Agostinho, Dionísio e São Boaventura, que, a seus olhos, por não serem filósofos,
têm mais direito de falar da ablatio por serem cristãos. O conteúdo de toda essa
busca filosófico-teológica e mística é definido por al-Farabi como “a união do filósofo
com o intelecto absoluto [séparés]” (VESCOVINI, 1998, p. 329), em outras palavras,
como uma via que se adquire, objeto de um trabalho que se supõe seja progressivo.
Mestre Eckhart denominou esse homem da busca de “homem nobre” (VESCOVINI,
1998, p. 330), “homem pobre” (VESCOVINI, 1998, p. 330) ou “homem desapegado”
(VESCOVINI, 1998, p. 330). Discípulo de Alberto, Eckhart “continuou em teologia a
obra compilada por seu mestre na filosofia” (VESCOVINI, 1998, p. 333).
O modelo do homem desprendido (l´home détaché) é Jesus Cristo, que na
exegese de Lucas (19,12) aparece como um homem de nobre origem que parte
para uma região distante a fim de ser investido da realeza e então voltar. Essa
87
Obra citada no capítulo VII do Raison et Foi (DE LIBERA, 2003).
88
Renascimento, regeneração. Fil. Rel. O mesmo que metempsicose. Fil. Entre os estoicos, retorno
periódico e incessante dos mesmos fenômenos; eterno retorno.
161
metáfora aponta para a necessidade de superação, de “ultrapassamento do saber
em direção ao Verbo” (VESCOVINI, 1998, p. 336), quando então o modelo da vida
bem-aventurada é cristológico. Encontrar esse fundo sem imagens, onde a ética e a
filosofia estão para lá de todos os nomes de Deus, é a verdadeira pobreza, é quando
filosofar e contemplar “consistem em “reentrar” em seu próprio fundo e, estando lá,
“agir” “sem porque”, “nem por Deus, nem por sua própria felicidade, nem por quem
esteja fora de si, mas unicamente em consideração disto que é em si seu ser próprio
e sua própria vida” (VESCOVINI, 1998, p. 341).
No fundo, afirma De Libera, “Eckhart não diz nada além do que disse
Orígenes: toda a filosofia está na Escritura” (VESCOVINI, 1998, p. 350),
especialmente no Novo Testamento, mais especialmente ainda, no Evangelho
segundo São João.
A partir do momento em que se transpõe a dialética dos símbolos, rumo à
experiência mística, é a força da palavra devidamente potencializada o que vai
poder mover o ouvinte, uma vez que há uma força oculta por detrás de cada palavra.
A força das palavras aparece, diz André: “Assim como uma contracção da força da
mente, que se ‘explica’ nas múltiplas palavras que são, no mais fundo delas
próprias, núcleos energéticos discursivos e que só podem ser entendidas nesse jogo
dinâmico” (ANDRÉ, 2006, p. 18), que se estabelece entre as coisas do mundo externo
e seu referente interno, isto é, a mente.
É assim que em seu desdobramento, o Verbo, Jesus Cristo, “não sendo
cognoscível neste mundo onde, no âmbito da razão, da opinião, da doutrina, somos
conduzidos, através de símbolos, pelas coisas desconhecidas ao desconhecido,
é apreendido onde cessam as persuasões e começa a fé” (CUSA, 2003, p. 173).
Uma vez que o conhecimento intelectual é dirigido pela fé, visto ser uma explicatio
da , onde a não for sã, também não é possível um conhecimento intelectual
verdadeiro, conduzindo nesse caso à debilidade dos princípios e fundamentos. Esta
fé é o próprio Jesus Cristo, uma vez que como diz São João, é a própria encarnação
do Verbo, a douta ignorância. E o Cusano finaliza dizendo que, “quando nos
esforçamos por olhar com os olhos intelectuais, caímos na escuridão, sabendo que
dentro dessa escuridão está o monte no qual só é permitido habitar àqueles que são
dotados de intelecto” (CUSA, 2003, p. 173). São estes os capazes de compreender
incompreensivelmente que “toda palavra corporal é sinal do verbo mental” (CUSA,
162
2003, p. 174) e que todas as coisas criadas são, da mesma forma, “sinais do Verbo
de Deus” (CUSA, 2003, p. 174).
Esse conhecimento se manifesta gradualmente através da fé, pela qual se
ascende a Cristo, isto é, Cristo é a causa de todo verbo mental corruptível, pois ele é
a razão, o verbo incorruptível. Cristo é a própria razão encarnada de todas as
razões, porque “o verbo se fez carne” (CUSA, 2003, p. 175).
3 A definição que tudo define
De acordo com Nicolau de Cusa, todo conceito humano é “conceito de algo
uno” (CUSA, 2008, p. 197), isto é, toda definição que tudo define é não outro que o
definido. É a definição que, acima de tudo, nos faz saber. Em outras palavras, “a
razão é a definição” (CUSA, 2008, p. 29). O Cusano diz que, talvez, seja Dionísio
quem mais se aproximou desse entendimento, quando, ao chegar ao fim da
Teologia stica, afirma que “o criador nem é algo que possa ter nome nem é algo
outro” (CUSA, 2008, p. 35). Sendo Deus princípio de todos os nomes assim como
das coisas, e ainda que o próprio princípio possa receber muitos nomes, nenhum
nome lhe pode ser adequado. Não se podendo constatar que nenhum outro
vocábulo dirige melhor a visão humana até o primeiro princípio, é denominado, por
isso, li no-outro(CUSA, 2008, p. 37). É quando se pode ver que “Deus é não-outro
que Deus e que algo é não-outro que algo, e que nada é não-outro que nada, e que
não-ente é não outro que não-ente” (CUSA, 2008, p. 39). É quando se vê então que
não-outro é a definição que antecede toda definição, sendo, pois, o significado de li
o que mais se aproxima do inominável nome de Deus.
Experimenta-se assim que o olhar sensível, sem a luz, nada pode ver, e que a
cor não é senão a determinação ou a definição da luz sensível, sendo então que “a
luz sensível é o princípio do ser e do conhecer o visível sensível” (CUSA, 2008, p.
43); da mesma forma, o som é o princípio do ser e do conhecer o audível. Suprimido
o não-outro, segundo o Cardeal, nada resta da realidade nem do conhecimento.
Tal conhecimento somente pode ser entendido por meio de si mesmo, não
podendo ser expresso de outra maneira. Não pode ser afirmação nem negação, e
pode ser percebido pela coincidência dos opostos, sendo visto “antes de todo
acréscimo e de toda supressão” (CUSA, 2008, p. 51), isto é, o não-outro de modo
nenhum pode ser alterado ou mudado pelo que quer que seja.
163
Nessa teoria do conhecimento, que, por assim dizer, desemboca no conceito
de não-outro, o não-outro, ele mesmo,
é a razão mais adequada e o discernimento e a medida de tudo o que é,
para que seja; e o que não é para que não seja; e o que pode ser para que
possa ser; e o que é assim para que assim seja; e o que é movido, para que
se mova; e o que está em pé, para que permaneça em pé; e o que vive,
para que viva; e o que entende, para que entenda; e do mesmo modo, tudo
(CUSA, 2008, p. 59).
É, pois, necessário que o não-outro defina a si mesmo como, da mesma
forma, conceituando e nomeando tudo aquilo que pode ser nomeado.,Antes do
conceito está portanto o não-outro, o que significa que o conceito é “não-outro que
conceito” (CUSA, 2008, p. 197). Em consequência disso, o não-outro é denominado
de conceito absoluto, o qual pode somente ser visto com a mente, ainda que não
possa ser conceituado. O não-outro, não conceituável, no entanto, ao definir-se a si
mesmo, se mostra trino. Denominar a trindade como “unidade”, “igualdade” e “nexo”
é um modo de aceder ao uno, pois são esses os termos nos quais “reluz o não-
outro” (CUSA, 2008, p. 65) de modo mais claro. Tratando-se de definições, os termos
“isto”, “isso” e “o mesmo”, segundo o Cusano, “imitam de modo mais brilhante e mais
preciso o não-outro” (CUSA, 2008, p. 66-67), embora sejam termos menos usados. É
quando, ao definir-se a si mesmo, o primeiro princípio, significado por meio do não-
outro, nesse movimento definido a partir do não-outro, se origina do não-outro e
também a partir do não-outro e é originado o não-outro, no não-outro termina a
definição” (CUSA, 2008, p. 67). Qualquer apreensão somente poderá ser intuída para
além da capacidade humana, através da contemplação, pois de outro modo não
seria possível dizê-la.
Sendo, portanto, outro que o não-outro, Deus “é em tudo, ainda que nada de
tudo” (CUSA, 2008, p. 71), o que significa um cessar de tudo que é e que não é, caso
cesse o não-outro. A proposta de Nicolau de Cusa é que se veja no inominável o
a privação do nome, mas, antes, o “antes de todo nome” (CUSA, 2008, p. 73). É este
o modo como o desconhecido reluz no conhecido cognoscitivamente, do mesmo
modo que a claridade do sol reluz sensivelmente e que com a visão da mente se
alcança por sobre ou fora de toda compreensão.
Tratando-se, porém, do fato de que não se pode explicar nada sem a palavra
e podendo fazê-lo através do termo “ser”, deve-se assim proceder para que os
164
que ouvem compreendam. Convém, diz o Cusano, que aquele que especula opere
“como o que a neve através de um vidro vermelho, o qual a neve e atribui a
aparência do vermelho não à neve, mas ao vidro; da mesma maneira opera a
mente; por meio da forma vê a não-forma” (CUSA, 2008, p. 91). O não-outro é, então,
tanto princípio do ser, “através do qual a alma tem o ser, como princípio do
conhecer, pelo qual conhece e, como princípio do desejar, pelo qual não somente
tem o querer, senão que, especulando seu princípio unitrino naqueles princípios,
ascende à sua glória” (CUSA, 2008, p. 95). Pode-se ver então que toda criatura é
manifestação do mesmo criador, que se define a si mesmo, ou “da luz que é Deus,
que se manifesta a si mesma; como se fosse a exibição da mente que se define a si
mesma; que para os presentes se faz pela elocução viva e para os distantes por
meio da mensagem ou da escrita” (CUSA, 2008, p. 233). Dialogar é a metáfora mais
precisa para designar o projeto filosófico de Nicolau de Cusa. Os nomes impostos
pela razão são sempre passíveis de um excedente, de um mais e de um menos, ou
seja, de proporção e de comparação e, consequentemente, partem das oposições
relativas entre os contrários.
A preferência de Nicolau de Cusa pela teologia negativa ocorre para que
possa negar a adequação de todo nome criatural para com Deus e com isso evitar a
idolatria, empurrando, por assim dizer, o intelecto no sentido de situá-lo para além
da afirmação e da negação, tentando captar formulações “que expressem a
captação de Deus como coincidência dos opostos” (CUSA, 2008, p. 251). O Cusano
propõe ainda, através da negação e pelo conceito de não-outro, a negação da
disjunção comparativa, bem como a negação da própria conjunção. Nega não
que o primeiro princípio seja ou não seja, como se poderia fazer por meio da
linguagem intelectual da coincidência, mas chega ao ponto de negar essa mesma
linguagem que afirma que o primeiro princípio é e não é. Isso faz com que eleve o
intelecto, que é a raiz da razão, e dos termos intelectuais que são a raiz dos
racionais, para a busca do primeiro princípio que é anterior à coincidência dos
opostos.
Conclui que, nessa teoria do conhecimento, os nomes intelectuais onde os
contrários coincidem, são menos inadequados, uma vez que uma linguagem divinal
que supere tanto a razão quanto o intelecto pode ser apenas reconhecível, não,
porém, praticável.
165
CONCLUSÃO
“Non in solo pane vivit homo,
sed et in omni verbo quod procedit de ore Dei”
(Cusa, Sermo CLXXIV, Cod. Vat. Lat. 1245, fol. 71va).
O problema que impulsionou a construção desta tese foi que, segundo
Nicolau de Cusa, não poderia haver uma ciência de Deus como ciência positiva,
mas que superando os conceitos tradicionais de Deus, indo além do plano da razão
e dos sentidos com a docta ignorantia, esta sapiência seria possível como um
conhecimento experiencial. Como ele mesmo propõe em uma de suas obras, La
caccia della sapientia, sair em busca dessa resposta é como lançar-se numa
caçada. Caçam-se conceitos, definições, autores, comentadores, textos em várias
línguas. É o intelecto a arma e o alvo dessa caçada. Na linguagem, na teoria está
oculto o segredo escancarado para quem busca, e o pensamento é o farol que
ilumina a escuridão onde a caça espera para ser caçada. Pobre da razão! Tão
confundida e maltratada, crucificada entre a vertical e a horizontal do Verbo.
De fato, no capítulo XII do A visão de Deus (CUSA, 2003), Nicolau de Cusa
diz que todo aquele que meditar profundamente esse conhecimento intelectual, do
modo como ele é, terá seu espírito inundado de uma admirável doçura e saciado do
alimento imortal que é a própria vida. Cada vez mais, cresce nele o desejo de
viver, pois aquele que come do alimento imortal terá transformada sua natureza,
transformando-se ele mesmo naquele que o alimenta. O desejo que move tal anseio
é de natureza intelectual e nele se saciam os famintos e sedentos como quem bebe
“da fonte da vida” (CUSA, 2003, p. 182).
Esta sede e este apetite não mudam, uma vez que, de fato, nunca são
totalmente saciados no tempo, mas apenas quando “apreende-se a si próprio como
imortal para do tempo corruptível” (CUSA, 2003, p. 183), com base no anseio
insaciável no tempo e que só pode ser saciado com a vida intelectual desejada.
Falando desse pão de modo metafórico, o Cusano usa um exemplo
relacionado ao corpo, do seguinte modo: é como se,
Alguém com fome se sentasse à mesa de um grande rei, onde lhe fosse
ministrado o alimento desejado, de um modo tal que o tivesse apetite por
outro, sendo esse alimento de natureza que, saciado, aguçasse o apetite
166
se este alimento nunca faltasse, é evidente que aquele que o come sempre
se saciaria continuamente, que teria continuamente apetite por aquele
alimento e sempre seria levado, pelo desejo, a esse alimento (CUSA, 2003,
p. 183).
A virtude do alimento é levar quem o busca a alimentar-se dele de modo que
a sua natureza seja a da capacidade intelectual, do mesmo modo que é da natureza
de um raio de sol converter-se em luz. O intelecto é por natureza convertível ao
inteligível, isto é, o seu objeto é a verdade incorruptível, à qual ascende de modo
intelectual.
É este o pão do qual se alimenta aquele que, pela visão de Deus, que “é o
complemento de toda beleza mental” (CUSA, 1998, p. 218), através dos olhos
humanos, os acidentes visíveis, mas, com o olhar divino, a substância das
coisas, com cuja capacidade discorre e julga esta teoria do conhecimento.
É o Verbo de Deus que ilumina o intelecto, assim como o sol ilumina o
mundo; o que é também nomeado pelo Cardeal como substância una (suppositum),
acima de qualquer intelecto.
Palavras de vida são espírito. Espírito intelectual que “no acto da perfeição
não depende do corpo” (CUSA, 1998, p. 231), mas que está unido a ele através do
que se entende por virtude sensitiva. Por sua vez, quanto mais puros e perfeitos
forem os sentidos, “mais clara a imaginação e melhor o discurso, tanto menos
impedido e mais perspicaz será o intelecto nas suas operações intelectuais” (CUSA,
1998, p. 232), estando o influxo da virtude divina presente de acordo com o grau da
de cada um. É pela que o intelecto se aproxima do Verbo e é pelo amor que se
une a ele.
Como foi proposto no problema desta tese, a pesquisa exigiu que se fosse
além do plano da razão e dos sentidos com a docta ignorantia. Essa proposta levou
à investigação de termos como mística, visão de Deus e de teoria do conhecimento,
conceitos estes que gradualmente conduziram ao limite da palavra. Aali onde é
impossível transpô-la numa experiência de total impotência da razão. Palavras que
foram até onde as metáforas podem levar a e detiveram-se mudas diante do abismo
da ignorância, o que confirma a grandiosidade do pensamento de Nicolau de Cusa.
Percebeu-se que a tradição vai do múltiplo ao Uno, enquanto o Cusano parte
do Uno para o múltiplo, afirmando o homem como imagem de Deus, embora nisso
167
pareça não haver muita originalidade, que essa concepção do homem perpassa
toda a história do pensamento cristão, patrístico e medieval. Pôde-se entender a
atividade criadora divina como uma projeção da unidade na multiplicidade, isto é, de
modo que essa multiplicidade possa funcionar como símbolo de acesso à unidade.
O homem também é afirmado como co-criador do mundo, o que sugere um
pensamento sui generis, fundamentando o que no período dos culos XII e XIII
constituía-se na mística especulativa ou mística do logos. É a linguagem e o
discurso proposto e fundamentado por esta mística do logos que dão forma à teoria
do conhecimento de Nicolau de Cusa, o que ele deixa claro na sua obra De visone
Dei. O que nos levou a concluir que é nessa relação entre o pensamento e a
linguagem que se abre e se alcança a douta ignorância. Em outras palavras, que é
nessa relação do mundo sensível criado que surge como uma espécie de voz do
verbo mental, onde todas as coisas são criadas que o discurso revela seu
magistério.
O discurso das várias locuções de Deus Pai, explicadas através do Verbo,
seu Filho, tendo como fim o espírito dos universos, para que a doutrina do
sumo magistério transborde, através de sinais sensíveis para as mentes
humanas e as transforme perfeitamente num magistério semelhante, de
modo que todo o mundo sensível esteja em função do intelectual, o homem
seja o fim das criaturas sensíveis e Deus glorioso seja o princípio, o meio e
o fim de toda a sua atividade” (ANDRÉ, 2003, p. 380).
Segundo essa teoria, a Trindade é pensada a partir da linguagem; a criação é
concebida a partir do modelo discursivo-linguístico, e o conhecimento também é
visto a partir do modelo linguístico. Enquanto Verbo, Deus mesmo é pensado como
sujeito do discurso, mas, acima de tudo, como aquele do qual esse pensamento e
esse conhecimento emana, ainda que na filosofia cusana não apareça
explicitamente o problema da linguagem. No entanto, momentos em sua obra,
citados por comentadores como André
89
, como no Compendium e no capítulo do
livro II do Idiota de mente, em que o Cusano parece apontar para uma “teoria sígnica
do conhecimento” (ANDRÉ, 2003, p. 374), ou seja, onde o conhecimento é visto
especialmente na sua conjecturalidade simbólica, isto é, a própria criação e o
universo são pensados como discurso, enquanto Deus é o sujeito desse discurso.
168
Nessa teoria do conhecimento cusana é o Verbo que aparece como ratio e
como segundo elemento da Trindade, o qual por sua vez se identifica com definição,
uma definição que se define a si própria sendo por isso denominada igualdade.
Nisto, como num enigma, a alma vê que na eternidade o princípio eterno da
criação cria todas as coisas criáveis, através da razão da sua noção. Assim
como, se a entidade fosse o princípio da criação, criaria pela razão da sua
entidade todos os entes, assim o teólogo João o exprime acerca do logos,
ou seja, do verbo racional do princípio, através do qual afirma que todas as
coisas foram feitas (ANDRÉ, 2003, p. 377).
Afirma-se, com isso, mais uma vez a identificação do logos com a razão,
tendo como base que este é tanto o princípio fundante como a definição, isto é,
como a de-limitação e a de-terminação em seu sentido próprio.
Visão de Deus então passa a ser uma dialética do finito com o infinito, onde o
in-finito tudo define, inclusive a si próprio, não podendo por isso ser definido por algo
que lhe seja estranho. Essa dialética também se evidencia nos conceitos de
explicatio e complicatio, conforme foi visto no capítulo III desta tese, onde Deus é
entendido como aquele que tudo complica, na medida em que tudo está nele e que
tudo explica na medida em que ele mesmo está em tudo.
Essa doutrina torna-se um fio condutor para todo o pensamento
contemporâneo, que torna o homem sujeito constituidor do real, enquanto a mens se
torna “consciência" do "ego", e essa, por sua vez, aparece como "subjectum", isto
é, fundamento do mundo. O mundo é produto da objetivação do sujeito, de suas
representações e das ações que seguem essas representações.
A nova lógica trazida à luz por Nicolau de Cusa está centrada no princípio da
coincidência dos opostos, falando do absoluto e do universo, da unidade e da
multiplicidade, tendo sempre como referência Deus e as coisas, especialmente em
referência à douta ignorância. O objeto da busca não é propriamente o real, mas,
sim, o conhecimento mesmo, uma vez que a mente humana conhece as coisas
enquanto as mede, aplicando a sua medida a cada objeto e constatando com isso
certa proporção, que acaba por não levar nunca a uma verdade intrínseca das
coisas.
89
O problema da linguagem no pensamento filosófico-teológico de Nicolau de Cusa, esboço
desenvolvido para uma conferencia em Salamanca (1993).
169
Num primeiro esboço de sua epistemologia, Nicolau de Cusa escreve ao
Cardeal Juliano no De docta ignorantia:
Mas todos os que investigam julgam o incerto, comparando-o, em termos
proporcionais, com pressupostos certos. Toda a investigação é, pois,
comparativa e recorre à proporção (CUSA, 2003, p. 3)
90
.
O que se percebeu é como este novo princípio, “pelo qual a vis do intelecto
intui para além do discursus racional” (ROTTA, 1942, p. 256), é como o espírito
realmente pode encontrar a plenitude de um tal poder. Os sentidos e a razão
chegam aos limites de sua natureza. Sentidos e razão encontram em Nicolau de
Cusa a sua unidade na individualidade inalienável que lhe assegura a participação
no divino e cuja individualidade “não é uma mera limitação; ao contrário, ela
representa um valor singular” (CASSIRER, 2001, p. 48) que permite realizar uma
teodicéia das formas e dos usos religiosos, pois, graças a ela, a multiplicidade, a
diferença e a heterogeneidade dessas formas não mais são vistas como contradição
à unidade e à universalidade da religião, mas sim como expressão necessária dessa
mesma unidade(CASSIRER, 2001, p. 48), conhecendo-se dessa forma a unidade da
verdade inatingível na alteridade conjectural. Penso que esta é a mensagem-chave
para as ciências da religião que permitem à pesquisa uma abertura em todo grau
de diversidade, sem que isso leve à contradição na universalidade da religião.
Aqui, o próprio conteúdo da adquire uma compreensão totalmente nova,
uma vez que é sempre, necessariamente, fruto da compreensão humana
transformando-se em conjectura. É dessa forma que para Nicolau de Cusa, segundo
Cassirer, “o cosmos das religiões apresenta a mesma proximidade e a mesma
distância em relação a Deus, a mesma identidade inviolável e a mesma alteridade
insuprimível, a mesma particularidade e a mesma unidade” (CASSIRER, 2001, p. 51).
Entre outros objetivos que se buscou atingir, num breve debruçar-se sobre a
história do pensamento pôde-se desenvolver o conceito de mística, tendo como
base filósofos e místicos que fundamentaram o pensamento de Nicolau de Cusa e
pôde-se ainda apresentar a vida e a obra do autor, a fim de situá-lo no tempo e no
espaço histórico, bem como captar alguns desdobramentos de sua epistemologia
hoje.
90
Omnes autem investigantes in comparatione praesuppositi certi proportionabiliter incertum iudicant;
comparativa igitur est omnis inquisitio, medio proportionis utens (h I n.2) (CUSA, 2007, p. 38).
170
Não foi possível detectar nenhuma “nova forma de religião” ou de “sentimento
religioso”, como pensamos ser possível inicialmente, mas sim, a necessidade de um
retorno conjectural contínuo para o conhecimento do princípio fundante de toda
conjectura, ou seja, a visão de Deus ou o que se denomina na atualidade, a teoria
do conhecimento.
Quanto ao sentido da docta ignorantia, chegou-se, com grande surpresa, ao
conhecimento que se obtém pelo limite do conhecimento e de como os estudiosos e
comentadores desdobram esse conhecimento retornando a ele, sempre e cada vez,
em novas cojecturas, desafiados a ultrapassá-lo através do salto transsumptivo.
Quem sabe num eterno retorno do mesmo nietzscheano.
De fato, é possível perceber que, de acordo com o Cusano, “toda
investigação cifra-se numa proporção comparativa fácil ou difícil” (CASSIRER, 2001, p.
42), sendo esta a razão por que o infinito, enquanto infinito, se subtrai a qualquer
proporção, sendo portanto desconhecido, conhecimento este que faz com que nos
aproximemos da docta ignorantia. É essencial, porém que, para penetrar no sentido
aí contido, se eleve o intelecto acima da força e do sentido das palavras, pela fé.
Com isto, foram retomados os paradigmas do passado e suas variações,
onde se buscou partilhar a história do conhecimento essencial do autor, levando
gradativamente o pensamento a consumar-se num esforço de ascensão, cujo ápice
é o conhece-te a ti mesmo. É quando se atinge pelo pensamento o Uno presente na
sua explicatio, que é a multiplicidade dos seres, pois o fim do método ou percurso é
dado de antemão no começo como complicatio.
Complicatio e explicatio compõem uma coincidência dos opostos. Admitir a
coincidência dos opostos sobre toda a capacidade racional e procurar a verdade
onde se depara a impossibilidade é querer transpô-la, necessidade esta que faz
parte do processo da busca. Do mesmo modo, toda compreensão intelectual mais
elevada, quando chega àquilo que é desconhecido de todo intelecto e que todo
intelecto julga sumamente afastado da verdade, é ai que Deus, a necessidade
absoluta, pode ser encontrado.
A coincidência dos opostos, como um novo método e uma nova gica
instaurados por Nicolau de Cusa, trazem outra vez à baila questões sobre a origem
da linguagem (a coincidência dos opostos permite ultrapassar a alternativa do
naturalismo e do convencionalismo); na estética (a coincidência dos opostos permite
analisar a harmonia dos contrários como a luz e a sombra, o som e o silêncio); nas
171
matemáticas (a coincidência dos opostos permite transpor o círculo inscrito no
circunscrito); assim como a coincidência dos opostos pode ainda colocar-se a
serviço da interpretação das Escrituras. Para o Cusano, a coincidência dos opostos
não é uma negação do princípio de não-contradição, mas a ultrapassa quando
necessário.
Essa ultrapassagem, de certo modo, pode ser de três ordens, como de três
faculdades da alma, segundo Nicolau de Cusa: a inteligência (intellectus), a razão
(ratio) e os sentidos (sensus). Entre essas faculdades, se intercalam a sombra e a
luz, o conhecimento e a ignorância. A passagem dos sentidos para a razão e da
razão para o intelecto se faz, segundo o Cardeal, numa relativa continuidade. É na
sua doutrina da coincidência dos opostos que Nicolau de Cusa ultrapassa o principal
obstáculo que é o princípio de não contradição, o qual por sua vez impede a razão
de compreender certos objetos difíceis como Deus, o infinito, a criação etc., uma vez
que eles conduzem sempre a antinomias.
Em relação à caça da compreensão da visio intellectualis, que estava entre
nossos objetivos específicos, percebeu-se que Nicolau de Cusa abordou-a de
muitas formas; entre essas, discorreu sobre dois modos de ser da ratio, isto é, a ratio
phantastica, que está ligada à grande variedade das imagens sensíveis, e a ratio
apreensiva, definida como uma ratio superior. A visio intellectualis é, pois, a
unificação plena do ato cognoscitivo, que é atingida na medida em que nos
elevamos em aproximação ao Logos divino, quando o intelecto vai se recolhendo
das alteridades diversas, podendo então entender e pensar a coincidência dos
opostos (super rationem) no desenvolvimento de um movimento mental contínuo. A
condição para se entender essa verdade como ela é, segundo Cassirer (2001),
nasce da negação de todos os predicados empíricos.
A investigação desdobrou-se especialmente no capítulo III, ao abordarmos a
matemática como símbolo, quando o Cusano propunha que todo o conhecimento
cifra-se numa comparação fácil ou difícil. É quando se percebe que o infinito,
enquanto infinito, se subtrai a qualquer proporção, permanecendo, por isso,
desconhecido. A unidade da qual fala matematicamente o Cusano não é número. O
número um é, simbolicamente, a representação do uno, isto é, a unidade é antes o
princípio de todo número, da qual o número é a explicatio. Ainda que se pensem as
matemáticas e suas representações, este é apenas o primeiro estágio para a
elevação do intelecto humano para o intelecto divino. Mas, de qualquer forma, é a
172
partir dos números vistos com os olhos sensíveis que se pode pensá-los, abstraindo
do sensível.
A palavra unidade, por sua vez, passa a ser entendida como trina, quando
exprime simultaneamente indivisão, distinção e conexão. Nicolau de Cusa sugere
que, para pensar essa unidade simplíssima, se requer a renuncia de todas as coisas
imagináveis e razoáveis. Aqui distinção e indistinção não são coisas que se
contradizem; aqui distinção não é senão indistinção, paradoxo. Essa idéia parece vir
de encontro àquela teodicéia das formas e dos usos religiosos, proposta na
introdução desta tese, pois, graças a ela, a multiplicidade, a diferença e a
heterogeneidade dessas formas não mais são vistas como contradição à unidade e
à universalidade da religião, mas sim como expressão necessária dessa mesma
unidade, quando o conhecimento da unidade da verdade inatingível pode ser
experimentado na alteridade conjectural.
A nova virada na teoria do conhecimento que acompanha essa reflexão é
proposta por Cassirer, tendo como ponto central e como ponto de partida um sujeito
concreto, a partir do qual pode se desenvolver toda a atividade verdadeiramente
criadora. Essa atividade criadora não poderá se manifestar senão no espírito do
homem, o qual já é entendido como co-criador do mundo.
Quanto aos capítulos desenvolvidos, no primeiro capítulo apresentou-se o
autor investigado, sua obra e a contextualização histórica, enquanto no segundo
capítulo tratou-se dos fundamentos e características da mística de Nicolau de Cusa.
Uma vez que o problema de fundo, que perpassa a história, sob expressões
conceptuais diversas, é a questão da unidade e da multiplicidade, foram abordados
alguns filósofos, teólogos e místicos que embasaram o pensamento do Cusano.
Entre eles, Rotta (1942) pontuou alguns, cujas obras encontram-se na Biblioteca em
Cusa, com notas marginais e observações: Plotino (205-270); Diógenes Laercio (0-
250); Santo Agostinho (354-430); Proclo (410-487); Pseudo Dionísio (450-535);
Scotus Erigena (810-877); Avicena (980-1037); Pedro Lombardo (1095-1160);
Alberto Magno (1193-1280); São Boaventura (1221-1274); Tomás de Aquino (1225-
1274); Raimundo Lullio (1232-1316); Guilherme de Ockham (1285-1347); Duns
Scotus (1265-1308); Ruysbroeck (1293-1381); Guilherme D´Alvernnia (1180-1249);
João Eckhart (1260-1327); Enrique Suso (1293/95-1366); João Tauler (1300-1361).
O desdobramento da teoria do conhecimento proposta foi amplamente
desenvolvido no capítulo III, quando procuramos seguir de perto o pensamento do
173
Cusano na sua obra A visão de Deus. Ali ficou muito claro o seu método que
comporta três etapas para a ascensão à douta ignorância, e, consequentemente, à
experiência mística, a partir do uso que ele faz do quadro que denomina ícone de
Deus. Foi a pedido do Abade do monastério beneditino de Tegernsee, que Nicolau
de Cusa escreveu esta obra em 1454. A questão era esclarecer uma polêmica entre
a interpretação afetiva e a interpretação intelectual da visão contemplativa. Com o
intuito de esclarecê-la, Nicolau de Cusa enviou àquela comunidade uma reprodução
do rosto de Cristo. “Cujo olhar parecia fixar-se no espectador, qualquer que fosse a
sua posição, e acompanhá-lo em todas as suas deslocações” (CUSA, 1998, p. 103),
juntamente com a obra De visione Dei, com o intuito de guiá-los nas suas reflexões
e com isso levá-los a experimentar a “escuridão sagrada e luminosa da teologia
mística e da douta ignorância” (CUSA, 1998, p. 103). É nessa articulação entre
teologia negativa e mística do logos que surge um modelo de linguagem e de
discurso que sobredeterminam toda a filosofia cusana, constituindo um autêntico
paradigma de seu discurso filosófico.
A pergunta enviada para Nicolau de Cusa em nome de toda a comunidade
beneditina pelo Abade foi: “Uma alma devota, sem conhecimento intelectual, (...)
pode, somente pela afecção, isto é, por este apex mentis que se chama synderesim,
alcançar Deus e ser movida ou levada para Ele de maneira imediata”?
91
A
interpretação de Gerson estava em jogo, uma vez que este propunha o
conhecimento de Deus através do intelecto, ao interpretar a Mystica theologia do
Pseudo-Dionísio.
Nicolau de Cusa propõe, então, que se inicie a primeira etapa da
contemplação, partindo da apreciação de um objeto concreto.
E, do modo mais simples e comum, diz o Cusano aos monges, se pode
acessar à teologia mística. Antes, porém, de iniciar, roga a Deus que lhe “as
palavras mais elevadas, e o discurso que a si próprio pode revelar” (CUSA, 1998,
p. 133), querendo com isso que a experiência seja de acordo com a capacidade de
compreensão de cada um, alcançando “as coisas admiráveis que se mostram acima
de toda visão sensível, racional e intelectual” (CUSA, 1998, p. 133). É o modo como
abrirá a compreensão de cada um através da palavra, do conhecimento intelectual,
91
Est autem hec quaestio utrum anima devota sine intellectus cognicione, (...) solo affectu seu per
mentis apicem quam vocant synderesim Deum attingere possit, et in ipsum immediate moveri aut
ferri” (VANSTEENBERGHE, op.cit. p. 110).
174
que está em jogo. Embora ele tente conduzir a cada um “até a mais sagrada
obscuridade” (CUSA, 1998, p. 133), cabe também a cada um tentar por si “e do
modo que Deus lhe conceder” aproximar-se cada vez mais do “festim da felicidade
eterna, à qual somos chamados na palavra da vida” (CUSA, 1998, p. 133), pelo
evangelho de Jesus Cristo. Ou seja, os limites desse conhecimento são
proporcionais à capacidade de conhecer de cada um, sendo necessário que se
recorra inicialmente às comparações para ascender às coisas divinas.
Chegou-se então a alguns desdobramentos epistemológicos importantes,
onde foram abordados muito rapidamente autores como Marcilio Ficino (1433-1499),
Pico della Mirandola (1463-1494), Giordano Bruno (1548-1600) e Jacob Boehme
(1575-1642). Retomar esses paradigmas do passado e suas variações teve a
intenção de fundamentar o porquê de o ápice da teoria cusana culminar no conhece-
te a ti mesmo.
Finalmente, na medida em que avançamos para o IV capítulo, buscamos
apreender o pensamento religioso e filosófico implícitos na douta ignorância e na
visão de Deus do Cusano. Esse pensamento está bastante desdobrado no início
desta conclusão, com a metáfora do pão. Não só de pão vive o homem, mas de toda
palavra proferida pelo Verbo divino. Nesta teoria do conhecimento desenvolvida pelo
Cusano, no início como uma teologia negativa, em que se conjectura por negações,
percebe-se num período posterior “que o conhecimento é a cópia perfeita e a
fecunda reprodução do divino” (CUSA, 1998, p. 89). No entanto, nota-se que
assinalar as diferentes fases do desenvolvimento do pensamento filosófico de
Nicolau de Cusa não é suficiente e nem resolve as questões propostas pela busca
do conhecimento. O fato é que nenhum conceito concreto, nenhum dado fixo da
representação ou do pensamento do Cusano é suficiente, mas, tão-somente, o
modo como ocorrem as operações e as atividades do intelecto, de cujas bases
emergem as formas concretas.
Segundo Nicolau de Cusa, a base de todo o problema do conhecimento e
suas implicâncias filosófico-religiosas é a unidade suprema e incondicional, para a
qual o que se pode é propor e indagar sobre as suas relações. É quando, pelo
conceito de docta ignorantia, com a consciência do não saber, “se nos revela a
pauta incondicional e o ideal positivo do saber” (CUSA, 1998, p. 94). É quando Deus
e a visão de Deus passam a ser entendidos como uma atividade pura e ilimitada da
175
visão, “desprendida de todo objeto” (CUSA, 1998, p. 90) e como a capacidade
fundamental do conhecer que não se limita a nenhum de seus resultados.
É nesse pensamento religioso e filosófico que desaparece a antítese entre
sujeito e objeto, entre o processo do conhecer e do objeto do conhecimento. “Deus é
tudo em tudo e não é, apesar disso, nada de tudo: nessa antinomia desemboca a
metafísica do Cusano” (CUSA, 1998, p. 90).
Quando se avança por esse capítulo IV, fica muito difícil de sintetizar, devido
a que, em cada palavra parece estar inserida a força da palavra e, retirá-las numa
síntese é quase como empobrecer a abordagem. De qualquer forma tentemos.
Nicolau de Cusa afirma que Verbo divino se plurifica nas suas expressões,
que são o mundo das criaturas, em seus sinais e palavras sensíveis. Ele diz:
De acordo com esta comparação, o nosso princípio unitrino, pela sua
bondade, criou o mundo sensível como matéria e uma espécie de voz, na
qual fez resplandecer de modo vário o verbo mental, a fim de que todas as
coisas sensíveis sejam o discurso de várias elocuções do Deus Pai,
explicadas através do Verbo, seu Filho, tendo como fim o espírito dos
universos, para que a doutrina do sumo magistério transborde, através dos
sinais sensíveis, para as mentes humanas e as transforme perfeitamente
num magistério semelhante, de modo que todo o mundo sensível esteja em
função do intelectual, o homem seja o fim das criaturas sensíveis e Deus
glorioso seja o princípio, o meio e o fim de toda a sua actividade” (CUSA,
1998, p. 9).
O Uno é entendido como o Pai ou aquele que gera o Verbo, isto é, toda
palavra humana exprime o verbo divino, sendo que na sua força se fundamenta a
força da palavra do homem e simultaneamente os seus limites. A sua força, porque
é expressão do verbo divino, e os seus limites, porque é sempre limitada pela
finitude humana. É nesse Verbo que a humanidade surge como o nexo da ligação
entre as naturezas ditas inferior e superior. O conceito de virtus ou força da palavra
coincide com o de sapientia, que se transfere do verbo divino para os verbos
humanos, sendo estes então explicationes da sapientia na sua unidade mais
profunda e absoluta. O que o Cusano afirma em sua teoria é que a palavra que soa
exteriormente é um sinal da palavra que brilha no interior, isto é, aquilo que é
proferido pela boca é a voz do verbo, não no seu resultado, mas, no seu processo e
no seu dinamismo. No entanto, o Cardeal esclarece que aquele que quer atingir o
sentido do que está para ser dito deve elevar o intelecto “para da força das
176
palavras, mais do que insistir nas propriedades dos vocábulos que não podem
adaptar-se convenientemente a tão elevados mistérios intelectuais” (CUSA, 2003, p.
6).
Mas, embora pareça tão simples, na medida em que se adentra no
conhecimento da teoria, percebe-se que o uso das matemáticas, por exemplo, tem
como finalidade confrontar as etapas metodológicas necessárias, partindo de uma
lógica conjectural, edificada segundo André “sobre o princípio de não-contradição”
(ANDRÉ, 2001, p. 321); seguindo para uma dialética coincidencial, edificada “sobre o
princípio da coincidência dos opostos” (ANDRÉ, 2001, p. 321) e finalmente
desembocando numa dialógica transsumptiva, edificada “sobre a consciência da
distância, mas também sobre a natureza dialógica do movimento pelo qual nos
sentimos chamados a transpor essa distância” (ANDRÉ, 2001, p. 321); essa reflexão
conduz para a experiência do infinito em que já não há figuras.
É quando, no ápice da teoria, experiência (afeto, humor) e método
(compreensão da realidade), próprios da dinâmica de realização da realidade, co-
incidem numa transsumptio, que para Fogel (2003) é o mesmo que um pôr-se no
mesmo tônus, no mesmo “tom”, ou seja, na mesma experiência, na mesma origem;
trata-se, desse modo, de um sintonizar-se, de um sincronizar-se com a “coisa”
assim se é co-originário e co-partícipe” (ANDRÉ, 2001, p. 49). O conhecimento torna-
se então simpatia, paixão. É a experiência do logos, o sentido e a força da palavra
nela contida e por ela perpassada.
Entendo que a paixão pelo conhecimento revela no conhecimento a força da
palavra. “É nessa hora, nesse contexto de intensidade máxima do pensamento,
nessa hora de radical concretização da essência do homem, que é preciso ouvir-se
aquela afirmação: viver, existir, ser homem, no modo mais radical ou essencial
possível, é conhecer” (ANDRÉ, 2001, p. 52). É uma consonância que, quando
ausente, torna a palavra apenas conceito, mas um conceito daquilo que já se
conhece, ou assim se pensa conhecer, como esquematização lógico-categorial ou
conjectural.
A interpretação das palavras nos textos bíblicos, filosóficos, teológicos ou
místicos, devido ao nível de entendimento humano, pode não captar a força da
palavra, da sabedoria inefável e transformá-los apenas numa “ciência positiva”, isto
é, morta! E aqui parece estar o problema central de toda essa pesquisa, isto é, que,
segundo Nicolau de Cusa, não pode haver uma ciência de Deus, como ciência
177
positiva. Mas que esta sapiência é possível, superando os conceitos tradicionais de
Deus, indo além do plano da razão e dos sentidos com a docta ignorantia.
A força da palavra opera como que uma fusão da abstractio filosófica e da
ablatio místico-teológica” (ANDRÉ, 2001, p. 312), definida ainda como “a união do
filósofo com o intelecto absoluto [séparés]” (ANDRÉ, 2001, p. 329), em outras
palavras, como uma via que se adquire, objeto de um trabalho que se supõe seja
progressivo, quando então o modelo da vida bem-aventurada é cristológico.
No entanto, é a partir do momento em que se transpõe a dialética dos
símbolos, rumo à experiência mística, que a força da palavra, estando devidamente
potencializada, vai poder mover o ouvinte, uma vez que uma força oculta por
detrás de cada palavra, que soa como núcleo energético discursivo.
Mas, uma vez que o conhecimento intelectual é dirigido pela fé, uma vez que
esse é uma explicatio da , onde a não for sã, aí também não é possível um
conhecimento intelectual verdadeiro, conduzindo assim à debilidade dos princípios e
fundamentos. Esta é o próprio Jesus Cristo, que, como diz São João, é a própria
encarnação do Verbo, ou seja, a douta ignorância. Este conhecimento se manifesta
gradualmente através da fé, pela qual se ascende a Cristo, sendo Cristo a causa de
todo verbo mental corruptível, pois ele é a razão, o verbo incorruptível. Cristo é a
própria razão encarnada de todas as razões, porque “o verbo se fez carne” (CUSA,
1998, p. 175).
A caça fugidia se esconde na escuridão. Na escuridão está o monte no qual
é permitido habitar àqueles que são dotados de intelecto. São estes os capazes
de compreender incompreensivelmente que toda palavra corporal é sinal do verbo
mental e que todas as coisas criadas são, da mesma forma, sinais do Verbo de
Deus.
178
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trier.de/~leicht/suche/index.php?action=txt_show&id_work=21&id_nr
De docta ignorantia
Apologia doctae ignorantiae
De Coniecturis
Dialogus de deo abscondito
De quaerendo deum
De filiatione dei
De dato patris luminum
Coniectura de ultimis diebus
Dialogus de genesi
180
Idiota de Sapientia
Idiota de Mente
Idiota de Staticis Experimentis
De visione Dei
De pace fidei
Epistula ad Ioannem de Segobia
Cribatio Alkorani
Dialogus de Ludo Globi
De aequalitate
Responsio de intellectu Evangelii Johannis
De theologicis complementis
De principio
De Beryllo
Trialogus de posses
Compendium
De venatione sapientiae
De ápice theoriae
Directio speculantis seu de non aliud
De concordantia catholica
Epistula ad Rodericum Sancium de Arevalo
Reformatio Generalis
181
Sermo I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, [....] XXIV (1), XXIV (2), Predigt
XXIV, Sermo XXV, [...] XXXVII A, XXXVII B, XXXVII C, XXXVII, XXXVIII, [...]
Predigt LXXVI, Sermo LXXVII, [...] Sermo LXXIXB, LXXIXA, [...] C, [...] CL, [...]
CLXXXII B, CLXXXIIA, CLXXXIII, [...] CXCVA, CXCVB, CXCVI, CXCVIIB,
CXCVIIA, CXCVIII, [...] CCL, [...] CCXCIII.
De correctione kalendarii
Epistula ad Nicolaum Albergatum
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http://pagesperso-orange.fr/jm.nicolle/cusa/bibliographie/pageauteurs.htm
188
ANEXOS
1 Cronologia das obras de Nicolau de Cusa
Obras político-religiosas e filosóficas
Obras científicas
1434
De Concordia Catholica
1436
Reparatio calendarii
1440
De Docta Ignorantia
De Conjecturis
1444
De Deo abscondito
1445
De quaerendo Deum
De Transmutationibus geometricis
1447
De Genesi
1449
Apologia doctae ignorantiae
1450
De Idiota:
L.I: De sapientia
L.II: De Mente
De Arithmeticis complementis
189
De Staticis experimentis (L.III du De Idiota)
De circuli Quadratura
De Quadratura circuli
1452
Conjectura de ultimis diebus
1453
De Visione Dei
De quadratura circuli (Magister Paulus ad Nicolaum Cusanum)
De Mathematicis complementis
Declaratio rectilineationis curvae
1454
De Pace Fidei
Complementum theologicum
De Una recti curvique mensura
1457
De sinibus et chordis
De caesarea circuli quadratura
1458
De Beryllo
De mathematica perfectione
1459
De Principio
De Aequalitate
De mathematicis aurea propositio
1460
De possest
190
1461
Cribatio Alchoran
1462
De Non Aliud
1463
De Venatione Sapientiae
De Ludo globi
1464
De apice theoriae
Cusa, Nicolaus Khryppfs, dit Nicolas de, Opera omnia, éd. Heidelberg. [Edition
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NICOLAI DE CUSA, OPERA OMNIA,
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Hamburgi, in Aedibus Felicis Meiner.
I DE DOCTA IGNORANTIA, 1932
II APOLOGIA DOCTAE IGNORANTIAE, 1932
III DE CONIECTURIS, 1972
IV OPUSCULA I: DE DEO ABSCONDITO, DE QUAERENDO DEUM, DE
FILIATIONE DEI, DE DATO PATRIS LUMINUM, CONIECTURA DE ULTIMIS
DIEBUS, DE GENESI, 1959
V IDIOTA DE SAPIENTIA, IDIOTA DE MENTE, IDIOTA DE STATICIS
EXPERIMENTIS, 1937
191
VI DE VISIONE DEI, 2000
VII DE PAGE FIDEI, 1970
VIH CRIBRATIO ALKORANI, 1986
IX DIALOGUS DE LUDO GLOBI, 1998
X OPUSCULA II: DE AEQUALITATE, RESPONSIO DE INTELLECTU EVANGELII
IOANNIS, DE THEOLOGICIS COMPLEMENTIS, TU QUIS ES <DE PRINCIPI>,
REPARATIO KALENDARII CUM HISTORIOGRAPHIAE ASTROLOGICAE
FRAGMENTO, 1988, 1994, 2001
XI DE BERYLLO, TRIALOGUS DE POSSEST, COMPENDIUM, 1940, 1964, 1973
XII DE VENATIONE SAPIENTIAE, DE APICE THEORIAE, 1982
XIII DIRECTIO SPECULANTIS SEU DE NON ALIUD, 1944
XIV DE CONCORDANTIA CATHOLICA, 1941, 1959, 1964, 1965
XV OPUSCULA III: ECCLESIASTICA: DE MAIORITATE AUCTORITATIS, DE
AUCTORITATE PRAESIDENDI, DIALOGUS CONCLUDENS AMEDISTARUM
ERROREM, OPUSCULA BOHEMICA, EPISTULA AD RODERICUM SANCIUM,
REFORMATIO GENERALIS
XVI SERMONES I
XVII SERMONES II
XVIII SERMONES III, 2003
XIX SERMONES IV, 2003
XX SCRIPTA MATHEMATICA
XXI INDICES
XXII INDICES
3 Referências de todos os trabalhos já escritos sobre Nicolau de Cusa ao
longo de mais de dois séculos, até o presente
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