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“Houve o militarismo, tiros, brigas, pancadas, governo que cai e que fica,
anistia, e nós ali, firmes. Com tempo bom ou ruim, ano após ano, não
deixamos nenhuma vez de sair para as ruas e cumprir nossa devoção”
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Essa imagem de São Jorge que aí está, (Pai Jamil aponta para a ilustração
de uma folhinha da União de Tendas), não é a primitiva:
A primeira, nós a usamos apenas durante uns anos e, com o crescimento da
homenagem, aumentamos também o tamanho do santo.
A imagem primitiva tinha também muito axé. Quando nossos irmãos do
Paraguai resolveram nos acompanhar nessa prática de fazer procissão, nós
a presenteamos e acredito que ainda seja a mesma que é utilizada nas
comemorações daquele país até hoje.
Nesse mais de meio século de procissão de São Jorge, não houve um único
ano em que a sua realização não fosse um enorme desafio. Ano após ano,
tivemos que enfrentar uma incrível burocracia dos órgãos públicos, cheias de
exigências, as mais descabidas. A cada vez cada vez foi maior o número de
exigências legais a serem cumpridas, surgindo taxas e mais taxas para o uso
do Ginásio do Ibirapuera. Era licença do Contru, do Corpo de Bombeiros, do
DSV, das Secretarias do Estado e da Prefeitura, providenciar isso e aquilo,
providenciar cordas, cavaletes para a sinalização do trânsito, tablado para o
piso do Ginásio, iluminação, som, palco, ambulância, enfermaria, serviços
médicos de emergência pessoas para ocupar as portarias, montagem e
desmontagem de todo esse aparato, tudo em função de uma atividade que
dura exatamente 12 horas de um único dia do ano.
Providências simples como pedir à Policia Militar cavalos e banda para a
abertura do cortejo, requer envio de ofício 4 meses antes. No entanto até à
véspera ficamos em suspense; será que virão os cavalos brancos como
prevê o cerimonial de São Jorge?
E quando muda a gestão... Até explicar quem nós somos e o que queremos é
um verdadeiro suplício. Falar, com o doutor tal, esperar a resposta da reunião
que ainda vai acontecer, mas não se sabe quando, e outras dificuldades,
davam vontade de se dizer: “este é o último ano, depois chega!”
Mas umbandista é teimoso. Só a felicidade de ver milhares de pessoas de
branco exaltando o Santo, a confraternização dos terreiros, o povo na rua,
renova nossas esperanças e mal termina uma cerimônia, começamos
preparar a do ano seguinte. Em 52 anos de Procissão de São Jorge, nunca
recebemos nenhuma subvenção para o custeio das despesas. Sempre
usamos nossos próprios recursos os quais são obtidos através do ritual de
cura, realizado sempre na Sexta-feira Santa que antecipa a procissão. O ritual
de cura corresponde ao chamado fechamento de corpo que tem por
finalidade recorrer ao campo mágico, invocando proteção para o devoto. Essa
é uma tradição que trouxemos da África e mantemos em nossa casa há mais
de 40 anos. É a única atividade por nós realizada em que se cobra algo do
participante; cada pessoa passa pelos cruzamentos e recebe como proteção
um cauri
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africano, mediante o pagamento de dez reais. Todo o dinheiro
arrecadado é destinado à feitura da procissão. Isso nos tornou
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Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
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Cauri, também conhecido por búzio, é uma conchinha proveniente do litoral africano, utilizada no
Jogo de Ifá para adivinhações ou preso a um cordão no pescoço, atua como um patuá de proteção.