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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Jose Dalmo Ribeiro Ribas
Sarava Ogum: a Umbanda em procissão
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
SÃO PAULO
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
José Dalmo Ribeiro Ribas
Saravá Ogum: A Umbanda em Procissão
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em Ciências da
Religião, sob orientação do Professor
Doutor Ênio José da Costa Brito.
SÃO PAULO
2010
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Banca Examinadora
______________________________________
____________________________________________
____________________________________________
Dedicatória
.
Em memória do meu irmão Antônio
Guilherme, morto na Guerrilha do Araguaia,
em defesa de todas as liberdades no Brasil.
RESUMO
Em meados do século passado em São Paulo a Umbanda viveu seu período mais
crítico em termos de perseguição religiosa. Estimulados por setores retrógrados da
sociedade, a repressão policial agia contra pais e mães de santo, invadindo terreiros
e efetuando prisões em nome da moral e dos bons costumes.
Para fazer frente a essa situação, em abril de 1957, seguindo a recomendação de
um guia espiritual denominado Exu ssaro Preto, um grupo de umbandistas
moradores do Jardim Buturuçu, Zona Leste da Capital, num gesto de desobediência
civil, deu início à realização da Procissão de São Jorge, Orixá Ogum, com o intuito
de clamar através dela o direito de livre expressão religiosa.
Essa cerimônia que em 2010 realiza-se pela 53ª vez, ampliou, ganhou projeção
nacional, adquirindo com o passar dos anos uma importância significativa para os
rumos da tradição religiosa em São Paulo, ao tornar a sua realização uma espécie
de eixo em torno do qual a Umbanda se estruturou, cresceu e adquiriu
reconhecimento institucional.
Este trabalho tem como objetivo resgatar através do testemunho do Babalorixá Jamil
Rachid, uma das lideranças de maior reconhecimento junto à Umbanda e ao
Candomblé em São Paulo, parte da história oral desse movimento, tendo em conta
que a sua participação se deu desde o seu início em meados dos anos cinqüenta.
Além do depoimento dado através de entrevistas, procurou-se estruturar as
informações existentes, organizando-se jornais, revistas e fotos alusivas a Procissão
de São Jorge, existentes em poder do entrevistado.
Palavras-chaves: Procissão de São Jorge; Orixá Ogum; Umbanda e Candomblé em
São Paulo; liberdade religiosa; sincretismo.
ABSTRACT
In the mid past century in São Paulo City, the Umbanda Religion had
experienced its most critical period concerning religious persecution. Encouraged by
very conservative sectors of the society, the police repression was merciless against
both male and female spiritualist ministers, braking into the terreiros (the sanctuary
place for their practices) and arresting them along with the faithful people around in
the name of moral and honest habits.
In order to face this situation, in April 1957, following the recommendations
from a spiritual head-guide called Exu Pássaro Preto, a group of Umbanda
performers living in Jardim Buturuçu neighborhood, in eastern São Paulo, as a
gesture of civil contumacy, had initiated the o Jorge (the Orixá Ogum) procession,
claiming through this act for their right of free religious expression.
This ceremony, that is taking place in 2010 for the very 53
rd
time, has widened
its projection throughout Brazil, bringing outstanding value for the trails of this religion
in São Paulo, by becoming a kind of central axis around witch the Umbanda has
been built, has raised and reached institutional recognition.
This paperwork aims to rescue by the testimony of Babalorixá Jamil Rachid,
one of the most recognized leaders of the Umbanda and Candomblé religions in São
Paulo, part of the verbal history of this activity, considering that he has been involved
since the early 1950s.
Besides the depositions caught from the interviews, the here-below
information were structured through the research of newspapers, magazines and
pictures concerning the São Jorge Procession and owned by the testimony’s focal
point.
Keywords: São Jorge; Orixá Ogum Procession; Umbanda and Candomblé in
São Paulo; religious free practice; religious liberty, religious tolerance; syncretism.
AGRADECIMENTOS
Agradeço:
à Obra Kolping na pessoa do Monsenhor Paulo Link, pela amizade e confiança
conferidos e pela colaboração financeira na primeira parte deste trabalho;
ao Enio José da Costa Brito, meu orientador firme e criativo no transcurso desta
caminhada;
à Vilma Pereira Rivero Vella pelo apoio e estímulo dados quando se fizeram
necessários;
à Ester Malka Broner pela suave presença em todos os momentos.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: ATALHOS E RETALHOS: APRESENTAÇÃO E
REPRESENTAÇÕES ................................................................................................. 9
CAPÍTULO I - LÁ VAI PASSANDO A PROCISSÃO ................................................ 19
CAPÍTULO II – DE INDUSTRIAL A BABALORIXÁ .................................................. 57
CAPÍTULO III OGUM BAIANO ABRE CAMINHOS PARA A UMBANDA EM
SÃO PAULO ............................................................................................................. 85
3.1 – Conjecturando a umbanda .............................................................................. 86
3.2 – Aruanda, porta-voz da umbanda ..................................................................... 87
3.3 – Bodas de prata para São Benedito ................................................................. 91
3.4 – Yemanjá mãe sereia, Yemanjá rainha do mar ................................................ 95
3.5 – Casamento na umbanda ................................................................................. 96
3.6 – Um vale para os orixás .................................................................................... 98
3.7 – Relações internacionais .................................................................................. 99
3.8 – “Aruanda” e “Brazilian Gazette” unidos pelos orixás ..................................... 101
3.9 – “Aruanda” – março de 1975: Candomblé agora é religião ............................ 102
3.10 – Sincretismo religioso e a formação do sentido: Umbanda, um sincretismo .104
3.11 – Procissão de Ogum se entroniza nas matas ............................................... 114
CAPÍTULO IV – UMBANDA: RELIGIÃO E ARTE .................................................. 117
Considerações finais .......................................................................................... 117
Conclusões ......................................................................................................... 117
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................... 126
APÊNDICES: SINOPSE DO JORNAL ARUANDA ................................................. 129
ANEXOS: CADERNO DE FOTOGRAFIAS ............................................................ 135
9
INTRODUÇÃO
ATALHOS E RETALHOS: APRESENTAÇÃO E
REPRESENTAÇÕES
Os três séculos de escravidão
1
no país deixaram profundas seqüelas na
sociedade brasileira como um todo.
A questão vai muito além das diferenças econômicas e desníveis sociais,
estando enraizada de múltiplas formas na própria maneira de ser da população. São
fortes as evidências de como persiste o preconceito
2
contra o remanescente da
senzala, principalmente no que concerne ao seu ideário religioso.
Após a assinatura da Lei Áurea e a ocorrência da Proclamação da República,
as práticas rituais que antes se limitavam aos negros, pelo fenômeno do
branqueamento étnico e cultural, difundiram-se em meio à população mais pobre,
principalmente na de origem rural, fazendo com que a percepção desse
desdobramento fosse analisada com apreensão por parte da elite conservadora,
principalmente no que dissesse respeito a um possível antagonismo latente contra o
credo católico.
Portanto, as devoções religiosas denominadas afro-brasileiras, e se
entenda umbanda, candomblé, macumba, batuque, quimbanda, xangô, tambor de
mina, entre outros, desde a abolição da escravatura, tornaram-se objeto de rancor
para certos setores supostamente mais cultos e educados da classe dominante, em
nome de uma pretensa erradicação de costumes atrasados no país que iniciava um
tipo de governo moderno, qual fosse, o regime republicano.
Mesmo após o término da República Velha (1930), durante os anos 40 e 50, a
Umbanda, a exemplo de outras manifestações religiosas afro-descendentes,
1
“A história dos africanos é a da maioria absoluta da população brasileira entre 1650 e l880, contudo,
é uma história difícil de ser reconstruída por causa dos numerosos preconceitos que ainda pesam
sobre nós”. (João Fagundes HAUCK, A História da Igreja no Brasil, p. 404)
2
Roger BASTIDE, As religiões africanas no Brasil.
10
conheceu, tanto no Rio de Janeiro
3
como em São Paulo
4
, um período de intensa
perseguição policial.
Nessa ocasião os terreiros atuavam quase sempre clandestinamente e
mesmo os que possuíssem uma titulação legal, procuravam esconder em sua
denominação societária, qualquer vestígio que desse pretexto às discriminações.
Essa prática, no entanto, acarretava discórdias de outra natureza como, por
exemplo, no caso de terreiros umbandistas, ao se auto-intitularem sociedades
espíritas, suscitarem com isso a censura de parte dos kardecistas, os quais
avaliavam sua imagem pública conspurcada pelos representantes do chamado baixo
espiritismo.
Mesmo assim, apesar dos expedientes maquiadores, eram constantes as
incursões dos agentes da lei nos locais em que se praticava a religião, acarretando
como conseqüência a prisão de pais e mães de santo e, como desdobramento do
ato coercitivo, a apreensão de objetos de culto, o que significava a subtração, aos
donos, de imagens, de atabaques e de maracás.
O material expropriado era arrolado como prova de delito, e os indiciados
nesse, ameaçados de processo por contravenções penais ou crimes catalogados
como vadiagem, abuso da fé ou ainda, estelionato, extorsão e roubo. Caso o
envolvido fosse considerado primário em seu suposto delito, seguido à admoestação
verbal, era o mesmo pressionado a assinar uma carta de arrependimento na qual se
comprometia ao afastamento do curandeirismo.
Mas as acusações não paravam por aí. Haviam outras mais disparatadas e
controversas do ponto de vista dos códigos civil e criminal, como perturbação do
sossego público pelo uso de atabaques, presença de menores nos terreiros, falta de
licença para funcionamento (expedida pela delegacia de polícia do bairro), uso de
bebidas alcoólicas, homossexualidade e atos que indicariam frouxidão moral dos
adeptos e freqüentadores.
3
Notícia de 1931 publicada no jornal O Estado de São Paulo informa sobre reforma na polícia do Rio
de Janeiro que criou a Inspetoria de Entorpecentes e Mistificações, a qual se dedicaria à repressão
do uso de tóxicos e da prática de magias e sortilégios. Assim, ficavam proibidos em todo o Distrito
Federal as práticas das “macumbas, candomblés, feitiçarias, necromancia, quiromancia e
congêneres, excetuando-se as experiências de telepatia, sugestão, ilusionismo e equivalentes,
realizados em espetáculos públicos fiscalizados pela polícia”. Lísias Nogueira NEGRÃO, Umbanda e
Questão Moral, p. 33.
4
Não nos esqueçamos que mesmo na Bahia, a questão da perseguição religiosa o foi mais
tolerante, como bem demonstra o romance de Jorge AMADO, Pai Jubiabá.
11
Remanescentes dessa época contam que no Departamento de Investigações
Criminais, DEIC, de São Paulo, havia uma sala na Delegacia de Costumes e Jogos
onde ficava lotada a equipe de investigadores especializada na prática de combate à
Umbanda.
Sobre esse assunto, Negrão, em sua tese de Livre Docência em Sociologia,
denominada Umbanda e questão moral, registra inúmeros episódios ilustrativos do
que ora é afirmado. Exemplificando, da supracitada publicação, transcrevo o
depoimento do pai-de-santo, Ismael Vicente, que em 1949 iniciou em São Paulo seu
terreiro de Umbanda:
Me intimaram na polícia. Na Delegacia de Costumes falei com o Dr.Armando
Correia Braga. ele queria que eu assinasse um compromisso: ”você vai
assinar um compromisso para deixar esse negócio de macumbaria, de
feitiçaria”. Eu disse: “Eu não vou assinar nada doutor” E ele, por que não
assina? Eu disse “Não assino porque não sou mentiroso”. “Eu não vou dizer
nem pro senhor, nem pra ninguém que vou deixar de trabalhar” Ele disse: ”Eu
ponho dois inspetores na sua porta”. Eu disse: não adianta. Ele “disse:” você
trabalha com eles lá na porta mesmo? “Eu “disse:” o senhor pode vigiar minha
casa, mas a mata o senhor não vigia: é muito grande”.
5
Mesmo se admitindo que um diálogo como este mencionado não tenha se
dado exatamente nos termos em que foram transcritos, minha convivência com pais
e es de santo me levam à aceitação de sua procedência. A relação do sacerdote
de Umbanda com sua crença é apaixonada, colocando-se acima do discurso
moderado que visa atender conveniências. É tal o envolvimento com as emoções
em seu compromisso religioso que mesmo diante de pressões, dificilmente ocorre
uma capitulação.
Trabalhar na Umbanda, ou deixar de trabalhar nela, representa no íntimo da
pessoa, algo que está diretamente ligado à maneira como ela se no mundo, seus
juízos de valores e de apegos afetivos mais essenciais, aos quais, resumidamente,
poderíamos chamar genericamente de fé.
5
Ismael VICENTE apud Lísias Nogueira NEGRÃO, Umbanda e questão moral, p. 36. NEGRÃO
credita esse diálogo a um trabalho de etnografia em História de Vida: recolhido por Marisa R.
S’Antanna.
12
Foi nessas circunstâncias, conforme relata Pai Jamil Rachid
6
, que no mês de
abril de 1956, um grupo de umbandistas se determinou comemorar mais uma vez a
efeméride de São Jorge, Orixá Ogum, o Santo Guerreiro do bom combate. As
condições para tanto eram precárias. Através da imprensa, uma série de
manifestações públicas das autoridades, advertia que a polícia estava firme no
propósito de reprimir a Umbanda.
No entanto, nas instalações de uma fábrica de móveis falida, à Rua Clélia, na
Lapa, um grupo de resistentes da religião, dentre os quais se encontravam Pai Jaú,
Pai Jamil e Pai Demétrio, entre outros, reuniu-se no porão do prédio e achou por
bem bater os atabaques em louvor ao Santo.
A cerimônia seguia seu curso quando o Preto Velho incorporado em Pai Jau,
Sr. Euclides Barbosa, pediu silêncio e o desligamento da luz, porque os canelas
secas, nome dado aos soldados da Força Pública, estavam em diligência próximos
ao local.
A atitude dos presentes face à advertência foi de acatamento e medo.
Passados quinze minutos, aproximadamente, a entidade incorporada sugeriu que a
comemoração prosseguisse, uma vez que o perigo já se afastara.
Assim tendo se passado, em seguida, o mesmo médium recebeu o Exu
Pássaro Preto
7
, guia pelo qual se deixava possuir quando atuava com
representações do chamado panteão da esquerda. Esse ser, tomando a palavra,
proclamou aos presentes que a Umbanda só seria reconhecida e tratada com
consideração quando, publicamente, saísse em procissão, tendo São Jorge Orixá
Ogum, à sua frente. No ano seguinte, 1957, foi executada a recomendação da
entidade, num gesto que poderíamos reputar como próprio daquilo que Thoreau
8
chamaria de desobediência civil.
Foi assim que em 21 de abril daquele ano, domingo, dia do Descobrimento do
Brasil, que um pequeno séqüito de 40 umbandistas do Templo São Benedito e de
6
Jamil Rachid, entrevista concedida ao autor, caderno de campo, São Paulo,10/10/2009.
7
Carl Gustav JUNG, no livro O homem e seus Símbolos, ao fazer varias considerações sobre o mito
do herói, apresenta a figura de Red Horne, tirada à mitologia dos índios norte-americanos
Winnebagos. Red Horne, em que pese suas limitações mágicas para um herói, cresce
substancialmente quando incorpora seu amigo e defensor astral nomeado “Pássaro Trovão”.
Fazendo uma amplificação ao gosto das abordagens junguianas, estabeleço um paralelo entre este e
o Exu “Pássaro Preto” incorporado pelo Babalorixá Euclides Barbosa-Pai Jau.
8
Henry David THOREAU, A desobediência civil, Lpm, Pocket., 1997.
13
dois outros terreiros localizados nas imediações do Jardim Buturuçu, o Miguel
Paulista, tendo à frente um andor cercado de flores e adornos de cetim, saiu às ruas,
determinado a executar a consigna dada pelo Exu Pássaro Preto: “a Umbanda
será respeitada quando sair às ruas tendo à frente o Orixá Ogum”
9
. Esse episódio se
constituiu no embrião de uma tradição religiosa que se mantêm ativa por mais de
meio século e que para explicar através dela a formação do campo umbandista em
São Paulo, se tornou objeto de pesquisa dessa dissertação de Mestrado.
Nesse meio século a Umbanda foi adquirindo foros de uma devoção religiosa
com seu próprio perfil, sua liturgia, suas devoções, suas histórias e tradições.
Concomitantemente à dimensão religiosa, foi a Umbanda se estruturando
funcional e administrativamente, organizando entidades federativas, realizando
palestras, encontros de estudo, seminários e conferências, daí auferindo projeção
social e representatividade junto à população. Rompendo com seu isolamento
chegou aos meios de comunicação, tornando-se visível aos olhos dos políticos e de
pesquisadores ligados às universidades e instituições de pesquisa. No entanto,
apesar dos esforços empreendidos, nesse período não conseguiu efetivamente
eleger como representante eleitoral nenhum dos seus candidatos, melhor sorte teve
no âmbito acadêmico, obtendo, desde 2002, na Vila Santa Catarina, São Paulo,
constituir uma Faculdade de Teologia Umbandista, a primeira do país, devidamente
registrada no MEC e apta a conferir o grau de bacharel aos seus alunos.
Para enriquecer a compreensão dessa abordagem endógena, ou seja, da
Umbanda debruçada sobre si em busca de um sentido, de seu auto-entendimento,
mencionarei matéria publicada pelo Jornal Aruanda, órgão informativo dos
umbandistas ligados à União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil. Essa
publicação, em sua edição de junho de 1975 traz matéria assinada pelo Professor
Norival Nogueira
10
, o qual se detém na explicação da origem da palavra umbanda,
remontando-a à África do século XVII.
A afirmação do autor da matéria, aparentemente óbvia, ganha importância
pelos dados que oferece ao salientar que o assunto da procedência do termo fora
objeto de considerações nos livros: O que é Umbanda
11
, de Cavalcante Bandeira,
9
Trabalho etnográfico, caderno de campo, São Paulo, 10/10/2009.
10
Cf. Norival NOGUEIRA, O Homem e o Universo, Jornal Aruanda.
11
Cf. Cavalcante BANDEIRA, O que é Umbanda.
14
publicado em 1941 e Umbanda em Julgamento
12
, de Alfredo D Alcantara, editado
em 1949 pela Editora Mundo Espírita. Antes mesmo que tivéssemos cogitado
procurar a fonte da bibliografia indicada no mencionado artigo, nos surpreendemos
agradavelmente com o aprofundamento da pesquisa etimológica do Professor
Norival nos explicando que a controvérsia sobre o termo já fora tratada pelo chefe da
missão inglesa em Angola, Mr. Helly Chantellay em 1894, no livro Folk Hales of
Angola
13
, o qual menciona na página nº. 268, as expressões mbanda e kimbanda,
creditando, portanto ao povo banto, uma das principais vertentes dessa prática
religiosa.
No âmbito dos conhecimentos mais estruturados e passíveis de verificações
melhor ajustadas à metodologia das ciências, em 1960 o sociólogo francês Roger
Bastide através de importante livro de sua autoria, As Religiões Africanas no Brasil
14
,
contribuiu consideravelmente para reforçar os argumentos mencionados de forma
extemporânea. Segundo o sociólogo francês, na detalhada fundamentação em que
exprime sua compreensão sobre o assunto, mencionando com destaque as obras
de Câmara Cascudo e Gilberto Freire, conclui que a Umbanda, com efeito, ter-se-ia
formada a partir de grupos religiosos freqüentados pelos povos Angola, Nagô,
Congo, Malê e Moçambique no Rio de Janeiro.
Ainda por iniciativa da Universidade, em l961, o sociólogo ndido Procópio
Ferreira de Camargo publica o livro Kardecismo e Umbanda
15
, no qual relata através
do crivo da interpretação sociológica, o surto das religiões mediúnicas no Brasil ao
longo dos anos 50.
A aludida pesquisa se constituiu numa preciosa fonte de informações aos
estudiosos do assunto, tendo o autor utilizado para chegar às conclusões, o
resultado da aplicação de mais de 200 entrevistas, uma dezena de histórias de vida
e a tabulação de 1500 questionários.
No início dos anos 70, a socióloga Maria Helena Vilas-Boas Concone
apresentou para a comunidade acadêmica sua tese de doutoramento denominada
Umbanda: uma Religião Brasileira
16
. O Brasil conhecia na época em que se deu
12
Cf. Alfredo D’ALCÂNTARA, Umbanda em julgamento.
13
Helly CHANTELLAY, Folk – Hales of Angola, p. 268.
14
Cf. Roger BASTIDE, As religiões africanas no Brasil, p. 451.
15
Cf. Cândido Procópio Ferreira de CAMARGO, Kardecismo e umbanda.
16
Cf. Maria Helena Villas Boas CONCONE, Umbanda: uma religião brasileira.
15
essa publicação, um dos mais delicados períodos de sua vida institucional; a
sociologia era vista com desconfiança, a profissão de sociólogo não era reconhecida
oficialmente e o discurso sociológico era confundido com a pregação ideológica da
esquerda, atraindo por conseqüência, a repressão política do Estado. Mesmo assim
sua contribuição foi inestimável sendo, ainda hoje, outra menção obrigatória para
todos que se dedicam ao entendimento da religião dos Orixás, notadamente no
concernente à visão Weberiana do problema.
Outra importante contribuição para formar este sucinto estado d´arte, surgiu
em l991, através dos argentinos Fernando Brumana e Elda Martinez. Autores do
compêndio denominado Marginalia Sagrada
17
, nele estudam de maneira rica e
original o campo religioso da Umbanda e decodificando o panteão umbandista tal
como o mesmo está representado na realidade dos terreiros. Este livro publicado
pela Editora da UNICAMP, ampliou de forma considerável todo o conhecimento
produzido sobre o assunto até então, mostrando a Umbanda através do relato de
seus sacerdotes e frequentadores.
Em 1993, Lísias Nogueira Negrão
18
, mencionado, através da tese
Umbanda e Questão Moral”, de forma original e meticulosa, a partir de matéria que
tem por título “Um negro que por aqui existe”, publicada em três de novembro de
1854 pelo jornal Correio Paulistano
19
, definiu e analisou numa linha de tempo todas
as publicações da imprensa nacional em que são mencionados, desde então a
Umbanda ou seus correlatos. Esta publicação de rara beleza, estruturada de forma
impecável nos moldes acadêmicos, está presente ao longo desta dissertação como
sopro de inspiração e interlocutor invisível.
A galeria de estudiosos da Umbanda é vasta e constituída por pessoas da
maior responsabilidade acadêmica como alguns outros exemplos que me ocorrem
nessa perquirição. Admitindo omissões involuntárias, citarei mais alguns
pesquisadores bastante conhecidos por suas contribuições para o campo do
conhecimento umbandista, como Liana Maria Salvia Trindade, Reginaldo Prandi,
Roberto da Matta, Patrícia Birman e Yvonne Maggie, os quais, cada um com o seu
17
Cf. Fernando BRUMANA; Ela MARTINEZ, Marginália Sagrada.
18
Cf. Lísias Nogueira NEGRÃO, Umbanda e questão moral.
19
Cf. Correio Paulistano, Um negro que por aqui existe.
16
perfil, vieram demonstrar que a Umbanda não é um caso de polícia como foi
tratada.
Curiosamente a Umbanda, enquanto objeto de pesquisa, tem deixado de ser
uma prerrogativa de antropólogos e sociólogos, abrindo-se para o interesse de
profissionais com outras formações, como é o caso de Brígida Malandrino,
psicóloga, que através de seu livro: Umbanda: Mudanças e Permanências
20
,
penetrou de forma rica e instigante no universo simbólico dos Orixás. Ao fazê-lo,
revelou aos olhos do leitor a silenciosa linguagem universal presente em suas
representações e o conhecimento científico advindo do enfoque psicológico utilizado
como farol para iluminar domínios pouco revelados. Outra experiência talentosa de
contribuição recente na seara dos autores umbandistas é Antônio Marques Alves Jr.,
o Gê, jornalista formado pela ECA-USP, sacerdote e dirigente do Santo Daime, que
através de dissertação de Mestrado intitulada: Tambores para a Rainha da
Floresta
21
, apresentada na PUC-SP em 2008, realiza um interessante ensaio sobre
as imbricações dos aiuasqueiros do Acre com a tradição religiosa da Umbanda,
chegada na selva através de origens provenientes do Maranhão, Ceará e Rio de
Janeiro.
No entanto, dada à vastidão do assunto e tomando por empréstimo as
palavras de Lísias Negrão na apresentação de sua tese:
na atualidade o campo religioso de pesquisa da Umbanda se recente da
ausência de projetos de médio alcance, formulados dentro dos cânones
acadêmicos, mas originados na própria religião, em suas fileiras, através de
pesquisadores que possuam a vivência religiosa, mas sejam ao mesmo
tempo comprometidos com a produção de novos saberes.
22
Chamando para mim a responsabilidade em aceitar esse desafio, me arvoro,
despretensiosamente, em possuir a qualificação expendida pelo autor.
Saúdo a perspectiva por ele esboçada, acreditando que no âmbito das
ciências, e em particular nas Ciências da Religião, não exista uma incompatibilidade
20
Cf. Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: Mudanças e Permanências.
21
Cf. Antônio Marque ALVES JUNIOR, Tambores para a rainha da floresta.
22
Lísias Nogueira NEGRÃO, Umbanda e questão moral, p. 11.
17
entre a intervenção epistemológica e a confessional de quem se propõe a realizá-
la.
Finalizando a apresentação, gostaria de enfatizar que o objeto de estudo da
Umbanda é rico de significados antropológicos, sociológicos, psicológicos e
culturais, gozando de boa envergadura para tantos quantos desejem ampliar o
conhecimento sobre a natureza humana em suas confluências com a religião.
Embora o campo seja profícuo, nesta dissertação de Mestrado pretendemos
resgatar apenas um pedacinho desse universo, contando como se estruturou a
Umbanda em São Paulo, através da Procissão de São Jorge, o Cavaleiro Ogum.
Narro de maneira supostamente inédita e recheada de fatos desconhecidos do
grande público, a importância que teve a criação da entidade federativa denominada
“União de Tendas Espiritualistas de Umbanda do Estado de São Paulo” em 1955,
como o fator integrador e tributário para restauração dessa devoção religiosa na
capital paulistana.
Para atingir esse objetivo, conferi ao primeiro capítulo denominado “Lá vai
passando a Procissão”, as características de um memorial. Nele procuro a “gestalt’,
o “fio de Ariadne”, que me conduza e confira sentido à obtenção dos objetivos
propostos no projeto. Como se costuma dizer, ao fazê-lo, dou o testemunho e
exponho a que vim.
No segundo capítulo, “De industrial à babalorixá”, enfoco a personalidade
instigante de Jamil Rachid, pessoa de origem pobre, filho de imigrantes libaneses,
que a despeito das agruras, suplantou os obstáculos postos pela vida, tornando-se o
principal responsável pela manutenção da Procissão de São Jorge por 52 anos.
A propósito, esse Babalorixá, comemorou em 2009, 60 anos de sacerdócio
na Umbanda e 50 no Candomblé, tendo sido agraciado como forma de
reconhecimento público pela sua luta em defesa da liberdade religiosa no Brasil,
com o Diploma de Cidadão Paulistano ofertado pela Câmara Municipal de São
Paulo, por iniciativa da bancada do PC do B.
No terceiro capítulo, “Ogum baiano abre caminhos para a Umbanda em o
Paulo”, circunstancio as condições em que se encontrava essa tradição religiosa na
década dos anos 50 e as transformações havidas com a mesma no último meio
século.
18
Dando foco para o assunto, destaco nessa oportunidade, ainda, a história do
Templo São Benedito, nicho da imagem de São Jorge, Padroeiro da Umbanda, que
com o passar dos anos converteu-se na casa de devoção mais antiga da cidade.
No quarto e último capítulo, “Umbanda: religião e arte” apresento as
conclusões chegadas e, especulativamente, formulo um ensaio do que será, no meu
entender o devir da religião.
Face às considerações feitas, por auto-identificação, destino à Umbanda a
paráfrase da poesia com a qual o poeta, Olavo Bilac, um dia se referiu ao idioma
pátrio: “flor (... rara) inculta e bela”
23
.
23
Olavo BILAC, soneto A língua portuguesa.
19
CAPÍTULO I: LÁ VAI PASSANDO A PROCISSÃO
“Para tanto conferi ao primeiro capítulo, as características
de um memorial. Nele procuro a “gestalt”, o “fio de
Ariadne” que me conduza e confira sentido à obtenção dos
objetivos propostos no projeto. Como se costuma dizer, ao
fazê-lo, dou o testemunho e exponho a que vim”.
Apresentação de fantoches, Paris, França. Alfred Eisenstaedt, 1963.
No Jardim das Tulherias um grupo de crianças assiste à apresentação da historia de São Jorge e o
Dragão. A imagem revela um extraordinário emaranhado de expressões. Do susto à euforia. Coleção
Folha Grandes Fotógrafos. Fascículo 1. Metrópoles. 2009.
20
A religiosidade da pessoa reflete em sua amplitude as características do ser
no mundo. Ao fazer tal afirmação digo que a profissão de fé adotada por alguém,
manifesta a sua subjetividade num grau paroxístico, se contemplando nesse,
valores, julgamentos, escolhas, o seu existir.
Dentro dessa compreensão, tratando-se de minha própria pessoa, quando
reflito sobre os fatores que contribuíram para a minha formação religiosa, atribuo sua
origem ao cristianismo praticado em família quando ainda eu era criança. Dele
decorreu minha maneira de ser, as escolhas que fiz, os conflitos entre desejo e
reparação de culpa, e o reconhecimento de que minha ascendência portuguesa,
católica por parte de mãe, prevalecera sobre o luteranismo professado nas raízes
austríacas paternas.
Nasci cristão e assim me mantive até os 15 anos, ocasião em que imbuído de
razões ideológicas enquanto aspirante à militância de esquerda, me auto-definia
como materialista dialético, seguindo as concepções filosóficas de Marx e Engels.
Assim foi no Partido Comunista do Brasil
24
, organização política à época na
clandestinidade, na qual me engajei durante o período do regime militar e nela
permaneço filiado por razões de natureza mais sentimentais do que políticas.
Minha adesão ao materialismo nunca foi sincera. Ateu novo, renegava tudo
que recendesse à profissão de fé, assumindo uma postura irreverente e arrogante
quando as coisas fluíam bem. nos momentos críticos, por exemplo, quando a
repressão mordia os calcanhares e castelos de areia vinham abaixo, meu íntimo
clamava aos céus numa súplica temerosa e devota. Nessa época, e nos tempos que
se seguiram, sem que houvesse de minha parte reciprocidade, Deus acreditava em
mim, protegia-me e oferecia o alento para que eu prosseguisse.
Situando-me espacial e cronologicamente, informo que nasci em São Paulo
em novembro de 1944, poucos meses antes das bombas atômicas em Hiroshima e
Nagasaki. Entre múltiplas e diferentes lembranças dos anos 50, minha memória
radiofônica mais antiga me remete à audição do Repórter Esso transmitindo na
Rádio Nacional do Rio de Janeiro, o noticiário da guerra na Coréia.
24
Vide no Caderno de Fotografias o fac-símile de Certificado exarado pela Casa Civil da Presidência
da República, Arquivo Nacional, em 18 de agosto de 2008, quanto aos assentamentos existentes em
nome José Dalmo Ribeiro Ribas nos arquivos do extinto Serviço Nacional de Informações-SNI e
Departamento de Ordem Política e Social-Dops, São Paulo, no período compreendido entre 22 de
março de 1968 e 30 de outubro de 1982.
21
Embora uma informação pessoal dessa natureza seja prosaica, me ocorre a
necessidade de sua menção como resgate das lembranças mais antigas; daquelas
que constituem o arcabouço da consciência.
Para fazer essa afirmação me respaldo em Jean Piaget, Edgard Morin e nos
neo-Darwinistas, para quem, tanto na epistemologia genética como na antropologia,
a construção do ser caminha do simples para o complexo e, por indução lógica, para
as hipercomplexidades, como bem o ensina a embriologia, a sociologia e se
quisermos, a metafísica.
Para as gerações que se seguiram à minha (me ocorre por livre associação
mencionar a invenção do transistor e posteriormente o surgimento da Internet), fica
difícil compreender de maneira vivencial, as transformações do mundo por mim
passadas em seis décadas e meia de existência.
Como imagem ilustrativa, recorro a uma situação imaginária em que um avô
religioso e seu neto, ambos diante de um aparelho de televisão em 11 de setembro
de 2002, presenciam a destruição das Torres Gêmeas em Nova York. Diante do que
assistiam, para a criança as cenas sugeriam um game de computador, ao avô se
cumpriam as palavras anunciadas no Apocalipse
25
.
Fui um dos milhões de espectadores (entre games e apocalipses) que
acompanhou com absoluto espanto os vinte minutos que separaram a colisão dos
aviões com os edifícios em Nova York. Concomitantemente chegavam imagens
fumegantes do Pentágono e notícias de que uma quarta aeronave fora abatida
quando rumava em direção à Casa Branca. o era uma reedição de Orson Wells
adaptada à linguagem televisiva: os marcianos eram reais. Ao contemplar o Word
Trade Center envolto em chamas, era como se, sem o querer, eu me tornasse
testemunha, mártir, do vaticínio de alguma sibila anônima nos antanho da região
toscana de San Geminiano, na Idade Média, profetizando o vaticínio de que o
capitalismo, tal como a simbologia expressa na carta XVI do Tarô, conheceria 700
anos depois, seu holocausto na ilha de Manhattam. Para mim estava demonstrado
de que a vida supera à ficção, e mais, uma convicção pessoal de que morreremos
sem termos visto tudo.
25
Cf. BÍBLIA SAGRADA, Apocalipse.
22
Mas, faço agora a confissão, um mea culpa: o mais intrigante para mim foi me
dar conta do antagonismo de sentimentos dos quais me vi tomado enquanto essas
coisas se passavam ao vivo e a cores. Era como se uma parte de mim se apiedasse
daquelas criaturas projetadas pelas janelas das torres, enquanto outra, nas
reentrâncias sombrias da alma, se congratulasse pelo acontecido, chafurdando feliz
num sentimento torpe.
Foi difícil entender o que comigo se passava. Durante as horas e dias que se
seguiram aos fatos, abstive-me de expender comentários de avaliação pessoal,
temendo transparecer o conflito interno que me induzia a cometer uma estultice de
opinião.
O estarrecimento e vertigem em mim produzidos decorrentes da ação
terrorista aumentaram minha surpresa frente à sincronicidade de um mesmo cenário
comportar de forma simultânea e integrada, as grandes contradições que assolam
este planeta girante.
A propósito, essa percepção diagnóstica da conjuntura mundial e a nomeação
de seus males, coisa que ocorreu a tantas pessoas de forma espontânea, a mim
se fez presente através da leitura de uma entrevista com JoSaramago
26
. Nela, o
literato português, de forma doutrinária como lhe é peculiar, foi categórico ao
abordar as mazelas do mundo em seus ensaios sobre a cegueira. Para ele, e eu
compartilho desse entendimento, os males da humanidade embora incontáveis,
poderiam ser resumidos a três categorias classificatórias. Falar delas conferindo-
lhes uma ordem, não significa estabelecer-lhes uma hierarquia de importância.
Dentro dessa percepção da realidade, primeiramente é apontado o problema
econômico-financeiro circunstanciado na distribuição das riquezas, decorrendo o
mesmo da atitude acumuladora das superpotências, as quais agem movidas pelos
interesses nacionais em detrimento da coletividade humana. Exemplo oportuno
dessa mazela se deu no recente cataclismo que afetou o Haiti em janeiro de 2010.
Foi necessário que morresse 170.000 pessoas para que o mundo se desse conta de
que o montante de atingidos em conseqüência do sismo teria sido bem menor, não
fossem as condições de precariedade em que vive a população daquele país. Os
esforços humanitários de ajuda se fizeram presentes, mas não se percebeu nos
26
Cf. José SARAMAGO, Entrevista nas paginas amarelas, Revista Veja.
23
encaminhamentos dados, uma proposta duradoura de auxilio capaz de transformar
de maneira profunda as condições de vida da população haitiana, respeitando-se em
sua concepção, seus valores culturais, religiosos e políticos. Seria esse um projeto
que conferiria cidadania, dignidade e autonomia para esse povo, deixando-se de
lado os apetites perversos de uma geopolítica de resultados que lembra de perto o
estrategismo simplório empregado num jogo de salão.
Prosseguindo nas considerações tomadas por empréstimo ao escritor
lusitano, segue-se à menção das reificações do dinheiro, a questão da
sustentabilidade e da ecologia para se atender aos desafios do meio ambiente.
Abordar o assunto remete ao modelo suicida de desenvolvimento pautado pelas
relações capitalísticas vigentes no globo, aquele em que sua dimensão perversa
produz em massa emissões de gás carbônico, com todas as conseqüências delas
decorrentes, como o desgelo dos pólos, a elevação dos oceanos e o efeito estufa na
atmosfera.
Por fim, temos a questão do contínuo da violência como mímesis de um
padrão de comportamento da nossa espécie, o qual se manifesta, por exemplo,
desde as pequenas agressões cometidas por menores de idade nos semáforos das
esquinas, até à forma de manifestação superlativa presente na guerra entre paises.
Como não é difícil de perceber, existe uma relação estrutural básica, formando a
imbricação interna entre a má distribuição das riquezas, as questões ecológicas e a
proliferação da violência.
Sou da geração urdida à época da carta e do telegrama. Minha militância
guerrilheira, hoje anacrônica face aos avanços tecnológicos da conspiração em
nossos dias, foi desenvolvida em pontos e aparelho, como eram denominados nos
tempos da repressão os encontros realizados em esquinas pouco iluminadas e nas
catacumbas clandestinas da política.
No entanto, dialético, impossível deixar de o ser, rendo minhas homenagens
ao Brasil e à nação brasileira por ter sobrevivido aos embates ideológicos da guerra
fria, da luta de classes e das idiossincrasias em geral, sem que delas tivéssemos
mergulhado na guerra civil e na fragmentação do território nacional. Rendo-me à
constatação de que o tempo põe fios de cabelos brancos nas pessoas e maturidade
em suas consciências: dos males, o menor.
24
Em meio a tantas iniqüidades e inquietudes, como diria Darcy Ribeiro, Aos
Trancos e Barrancos
27
, fênix renascida no limite de suas possibilidades, desde o
governo de Fernando Henrique, vem se reestruturando no Brasil o povo e, através
dessa migração ascendente do social, ressurge um sentimento novo de orgulho pela
questão da nacionalidade. Sou sabedor de que uma apreciação dessa natureza,
principalmente feita num período de articulações e posicionamentos pré-eleitorais,
se constitua numa heresia diante dos perfilamentos partidários mais ideologicamente
bem constituídos. Mas, repito, dos males o menor.
Sempre acreditei no descortino de horizontes amplos para o país. Anunciando
o amanhã, já nos anos sessenta me juntei aos poetas e otimistas, embora isso tenha
sido uma prática depreciada pelos futurólogos que se compraziam em prever para o
início do novo milênio, o Brasil inferiorizado, ocupando uma condição de
subalternidade ante as outras nações. Na atualidade, conferindo indicadores de
desenvolvimento econômico e social, me rejubilo com os progressos obtidos,
embora compreenda que a reparação dos 300 anos de colonialismo, requer outros
300 anos de transformações profundas, tanto aqui como no restante do mundo.
Certa feita no final dos anos 70, próximo à conquista da Anistia Ampla, Geral
e Irrestrita, recordo-me de pronunciamento do General Golbery do Couto e Silva,
falando aos seus pares na Escola Superior de Guerra, resumindo assim o confronto
da esquerda brasileira, com o regime do qual foi o principal idealizador: “ganhamos
todas as batalhas e perdemos a guerra”. Hoje, passado três décadas dessa
constatação, acrescentaria um pequeno adendo à avaliação proferido pelo militar:
“perdidas ou ganhas batalhas e guerras, entre mortos e desaparecidos venceu o
Brasil”. Entendo que a vitalidade da nação brasileira é bem maior que o simples
produto do embate entre uma circunstancial aliança de forças progressistas e o
conservadorismo reacionário que em 1964 se nucleou em torno da bandeira do
anticomunismo. O exercício da democracia requer entre incontáveis atributos,
tolerância, flexibilidade, desprendimento e todas as demais qualidades que estejam
representadas no arco das aspirações da Pátria, como bem o expressa o slogan de
propaganda do atual governo: ”Brasil, país de todos”.
Certamente como um resquício dos meus tempos de escotismo na infância,
guardei uma postura um tanto ingênua, ufanista e quiçá patrioteira, nos assuntos
27
Darcy RIBEIRO, Aos Trancos e Barrancos. Trata-se de obra literária de autoria do antropólogo.
25
que dizem respeito às questões nacionais. Como conseqüência, após o longo
período de privação dos direitos democráticos acarretada pelos governos de
exceção e do tempo de incerteza que se seguiu ao seu término, sem acanhamento
ao dizê-lo, reconheço que nos dias atuais me sinto como uma espécie de novo rico
da cidadania. Vibro com a opulência de fatos tais como, a melhoria das condições
de vida do povo de um modo geral, o funcionamento, ainda que precário, das
instituições constitucionais e se mais não fosse, a concretização para mim
inimaginável, de poder eleger um operário para Presidente da República. Feitas
minhas elegias a Fernando Henrique e Lula admito que são conhecidas as
distinções e divergências políticas existentes entre os dois, no entanto, pelo meu
sentimentalismo ideológico, em meu coração há lugar para ambos. O conjunto
desses acontecimentos chega a mim como sinais dos tempos; acordes da cantata
de uma nova realidade que contempla dias melhores para o Brasil e o mundo.
Agrada-me na Bolívia a liderança indígena de Evo Morales. É de triste
memória a lembrança da época em que naquele país sucediam-se quarteladas a
cada semana, enquanto o povo cismava mascando folhas de coca e trabalhando
nas insalubres minas de prata, estanho e chumbo, paradoxalmente as suas únicas
fontes de riqueza e miséria.
As questões internas, políticas, econômicas e culturais de paises como
Honduras, Guatemala, Costa Rica, Equador, Haiti e República Dominicana, na
atualidade, timidamente, vão aparecendo no noticiário de jornais e revistas
brasileiros, ocupando desta feita um espaço na opinião pública. O Brasil, embora
sempre tenha sido signatário do pan-americanismo, viveu por décadas com as
costas voltadas para os Andes e se quisermos, amplificando a imagem, debruçado
no Atlântico, mas com os olhos fechados para a África. Ainda no âmbito das
relações internacionais, acho divertido acompanhar as atuações de Hugo Chávez na
Venezuela, embora não tenha ainda identificado com clareza os rumos do seu anti-
imperialismo neo-bolivariano.
Estendendo-me na generalidade das considerações, agrada-me também,
observar a alternância democrática do poder no Chile e o fato da Argentina ter como
Presidente, uma mulher.
26
Quanto aos Estados Unidos, torço para que o governo de Obama se
consolide e possa dar conta dos compromissos assumidos na campanha eleitoral.
Militante defensor dos Direitos Humanos e da Livre Determinação dos Povos vejo
com apreensão a oposição da direita dentro da sociedade americana através de
suas representações no Congresso. Por fim, extrapolando os limites do território
brasileiro e das Américas, me congratulo com tudo quanto está acontecendo no
mundo em termos de ascensão e progresso da sociedade, embora esteja
convencido de que o esplendor almejado em minha utopia, repouse encantada num
futuro distante.
Gostaria que prevalecesse entre os povos a geopolítica que tem legitimidade
na fraternidade e no amor. Nela, por exemplo, os americanos devolveriam
imediatamente a base militar de Guantánamo aos cubanos e, quanto ao Brasil,
reparando a questão do Acre (ferrovia Madeira Mamoré), ofertaria para a Bolívia o
porto de Cananéia. E ainda, num rasgo de generosidade da minha fantasia,
pentecostalistas e macumbeiros, por que não, numa sociologia do afeto, dariam os
braços para caminharem juntos, enquanto as forças armadas do país
permaneceriam como estão, porque está muito bem assim.
Nessa perspectivas alvissareiras, onde prevalecem otimismo e bom humor,
tão logo se confirmou a escolha do Brasil como sede das Olimpíadas,
imediatamente afinei meus registros internos na consigna do mens sana in corpore
sano. Seguindo o preceito de que o melhor da festa é esperar por ela,
imediatamente vesti a camiseta pré-olímpica dos que encontraram um bom motivo
para estar vivo e bem, em 2016.
Vê-se, como é dado perceber, permaneço um heterodoxo sonhador
incorrigível. Ao fazer essas digressões, antes que eu me estenda em outros rumos
que me conduzam para novos quadrantes e sextantes, evoco um pouquinho de
Fernando Pessoa, quando diz: “Semiergo-me enérgico, convencido, humano, e vou
tencionar escrever estes versos em que digo o contrário”
28
.
Por isso, retornando às reminiscências das emoções vividas (o apelo é forte,
afinal reporto-me às décadas de 70 e 80), recupero de minhas lembranças pessoais,
outros pequenos fragmentos do meu discurso cívico.
28
Fernando PESSOA, O Eu Profundo e os outros Eus, p. 260.
27
Senti medo nos anos de chumbo. As prisões, as delações, a tortura, o
seqüestro; a morte de repente tão próxima e sem rodeios, me tornaram por décadas
uma pessoa cautelosa e angustiada.
No entanto, em que pesassem as agruras, foi nessa época que se
aperfeiçoou em mim gostar do povo, dos pobres, dos discriminados em geral. As
condições adversas reforçavam o exercício da humildade e da paciência. O
aprendizado foi generoso em todos os sentidos, indicando que se até então algo
melhor não acontecera, era porque não tinha que ser.
O manuseio de armas, sobrevivência na selva, conspiração, tudo foi
agradavelmente temperado pelos ativos
29
de formação de quadros proporcionados
pelos ideólogos do Partido à militância. Mestres iluminados de uma academia de
paredes invisíveis, Arruda Câmara, João Amazonas, Pedro Pomar, Maurício
Grabois, Armando Gimenez, Lincoln Cordeiro D’oest e outros de memorável
importância, faziam do PC do B uma escola de cidadania; nunca um clube de
diletantes
30
.
Ensinava-se marxismo, mas juntamente com a ideologia, aprendíamos a
raciocinar e fazer relações de pensamento, tornando-nos acima das questões
político-partidárias, filosofistas em filosofia.
A chamada formação da consciência crítica que poderia ter tido um caráter
extremamente conduzido e manipulado na cabeça da militância, a tal lavagem
cerebral que a direita tanto imputava à esquerda, acabou nos proporcionando o
melhor dos modelos liberais na atividade intelectiva, a percepção de que “livre
pensar é só pensar”, como diria Millôr Fernandes.
Na época, boa parte daquilo que poderia se chamar de mais elaborado, ou
melhor, culto, no meu raciocínio, provinha desses prolegômenos da razão.
Além de Lênin, tendo lido Georges Politzer, Gramsci , nas suas obras, e a
História da Riqueza do Homem, de Léo Huberman, era o suficiente para me sentir
alguém bem referendado em minhas opiniões.
29
Na militância clandestina eram chamadas de “ativos” as reuniões que integravam partidários
provenientes de diferentes setores da organização; por exemplo, um ativo para formação de quadros
com a participação de representantes dos operários, professores, estudantes, jornalistas etc..
30
No período da clandestinidade, os militantes referiam-se ao Partido, eufemisticamente, como o
“Club”. No entanto, a Direção, temendo o desrespeito aos princípios do “centralismo democrático”,
advertia: “tudo menos um club de debates”, temendo um diletantismo estéril.
28
Embora fossem poucos os livros lidos, grande era a vontade de aprender, de
fazer a Revolução, de mudar o mundo, embora fossem abstratos os contornos da
nossa utopia. Diante de propósitos tão ousados e de tantas conquistas futuras, no
entanto, somente o fato de não ter sido preso, de estar vivo por mais um dia, me
ensinaram que a vida é um bem precioso e de que por piores que sejam as
dificuldades, um dia elas passam.
De l964 a 1982
31
, comi o pão que o diabo amassou, mas, como diz o senso
comum, o capeta não é tão feio como o pintam.
Neste momento, antes de prosseguir, gostaria de informar ao leitor que o
texto sob sua apreciação, em que pese em alguns momentos se mostrar disperso,
teve de minha parte a intenção de não recorrer ao apoio bibliográfico das citações
extensas, memórias de outros autores, priorizando naturalmente a vasculhação
despretensiosa das idéias que me vão à cabeça e que, portanto, regem minha
interatividade com o objeto de estudo dessa dissertação: a umbanda, o imaginário
popular, a maneira silenciosa, anônima e, às vezes distraída de como se constrói a
história.
No fundo, sem a preocupação em estar certo, sinto a necessidade de
examinar meus filtros de raciocínio para que uma vez verificados, me habilitem de
forma satisfatória a dar conta do desafio de prosseguir na empreitada em que ora
me vejo envolvido.
Assim, buscando coerência com esse ponto de vista e balizado por esses
critérios, me posiciono quanto à natureza do método, sem o qual se torna inviável
enveredar nas questões teóricas e práticas que envolvem uma dissertação de
mestrado. Tendo como referência as questões do método, me ocorre que na
dimensão metódica da filosofia, as categorias da indução e dedução se constituem
na polaridade que orienta o sentido de direção dos caminhos através dos quais se
estabelece a produção do conhecimento.
Na indução, a linha de raciocínio do pensamento vai do particular para o
geral, enquanto que na dedução o processo se orienta de forma oposta.
31
Embora a Anistia tenha sido aprovada no final de 1979, a máquina da repressão política
permaneceu perseguidora e ativa até 1982.
29
Grosso modo, tomo para exemplificação a imagem da árvore e da floresta. Se
para chegar à compreensão da floresta tenho como ponto de partida a árvore, o
caminho percorrido é indutivo; caso contrário, se pela apreciação da floresta
presumo a árvore, sigo construindo com a marcenaria do pensamento, o método
dedutivo. O pomo da discórdia entre indutivistas e dedutivistas reside em saber se a
realidade é ou não cognoscível. René Descartes foi o indutivista por excelência.
Para ele a verdade sobre o mundo real é cognoscível, embora essa aquisição não
se verifique de forma espontânea e imediata, mas através da acumulação gradativa
de conhecimentos, os quais se articulam e se expressam através de domínios
provisórios da verdade. No entender do filósofo francês parte-se da tábula rasa, do
cogito primordial que se enuncia na constatação do penso, logo, existo.
O fio condutor para se percorrer tais labirintos está consubstanciado na
existência de um método. Este deve ser seguro, confiável pela averiguação dos
experimentos, consistente pela previsibilidade da repetição, contíguo pela
associação dos resultados. O desempenho de sua aplicação confere-lhe uma
linearidade de coerência co-validada pela lógica formal, embora ocorra à sua
sombra, no viés do empirismo, o tapete para o qual o varridas suas contradições
epistemológicas.
O sábio francês não está sozinho. Ele se ombreia com ilustres pensadores
como Aristóteles, São Tomás de Aquino, Auguste Comte, Émile Durkhein, Sigmund
Freud e a psicologia behaviorista.
No pólo oposto temos o filósofo alemão Emmanuel Kant. Posterior a René
Descartes, produziu uma vasta obra filosófica, na qual se destaca como a
contribuição mais edificante, o livro: Crítica da Razão Pura
32
.
No entender de Kant a realidade é incognoscível e aquilo que nos é dado
conhecer no âmbito dos fenômenos, o que se manifesta no tempo e no espaço, são
formas apreendidas pela nossa sensibilidade à verdadeira essência das coisas, os
noumenos, os quais são e serão irreconhecíveis por toda a eternidade.
Nossa consciência elaboraria a essencialidade das coisas através da
formulação de modelos denominados pelo filósofo coma paradigmas. A título de
32
Cf. Emmanuel KANT, A crítica da razão pura.
30
simples exemplo citaria um paradigma tirado à geometria: o axioma que explica a
menor distância entre dois pontos como sendo a reta.
Dentro da física clássica, o paradigma geométrico apresentado é verdadeiro,
embora segundo outro paradigma, esse obtido à Lei da Relatividade, o modelo
newtoniano é falso. Em razão das ampliações da nossa consciência os paradigmas
da ciência vão se tornando obsoletos, anacrônicos e geradores de antinomias,
impasses ou simplesmente crises de coerência no entender dos estudiosos.
Em tempo, que se considerar que os paradigmas não são inventados pelo
homem, mas descobertos e apreendidos pela ampliação da sua compreensão.
Tanto, que quando se postula a criação de novos modelos para a ciência devido à
exaustão dos anteriores, na realidade se está pedindo uma ampliação dos
entendimentos, a partir de novos olhares e novas compreensões.
Emmanuel Kant compartilha com seus pares de outra seleta galeria, na qual
se incluem, entre muitos, Platão, Santo Agostinho, Max Weber e a psicologia da
gestalt: todos dedutivistas.
Na condição de tertius, temos os dialéticos. Sua denominação vem do
significado da palavra discussão em grego, cujas origens remontam ao período pré-
socrático do pensamento humano.
Apologistas das contradições, os dialéticos vêem nelas integração e
complementaridade através do chamado princípio de unidade dos contrários.
O método dialético inclui categorias de análise tiradas tanto aos indutivistas
como aos dedutivistas, o que significaria no exemplo citado, buscar a verdade
segundo um ponto de vista que contemplasse ao mesmo tempo a árvore e a
floresta.
No passado os detratores dos dialéticos os chamavam de confusos e, na
contemporaneidade, os raciocínios reconhecidamente lineares, continuam a atribuir-
lhes incoerência e qualidades apenas retóricas.
Hegel e Marx são dialéticos embora a dialética de Hegel seja para Marx
matizada pelo viés do idealismo. Segundo o criador do materialismo dialético, Hegel
explicou o mundo de maneira correta, mas infelizmente o fez de cabeça para baixo.
31
Crítico por excelência, Marx sincretizou de maneira genial elementos tirados à
filosofia, fazendo a partir dos mesmos, incursões profundas no campo da sociologia,
antropologia, política e economia, creditando a esta última, condições especiais
como instrumento para a interpretação da sociedade de classes e sua revolucionária
transformação catártica.
Retirado o caráter doutrinário do marxismo, principalmente no que diz respeito
ao aspecto quase religioso do determinismo histórico que anuncia o devir de uma
sociedade sem classes, as formulações do pensador alemão produziram uma
enorme influência na forma de se ver o mundo, tanto na segunda metade do século
XIX, como em todo o século XX.
Assim, sua presença se fez manifestada como ideologia para os que o
apreciam e, como contestações severas, por parte dos adversários de suas
concepções; ninguém lhe ficou indiferente.
Alimentado por essas considerações, faço agora a afirmação crucial do texto,
certo de que a sua procedência ou o, me coloca na condição do jogador que
apostou na roleta todas as suas fichas; é o vale tudo do aplauso ou da vaia.
Mas vamos à materialidade do problema: quero crer, eis a minha afirmação,
que o antagonismo entre sacralização e secularização presente no estudo da
institucionalização da Umbanda em São Paulo através da realização anual da
Procissão de São Jorge, Orixá Ogum, representa um rico laboratório para
depreendermos de forma visível como se a acumulação de capital simbólico na
construção de uma tradição religiosa.
Acredito que a formulação do problema nesses termos, deixa clara a minha
opção metodológica entre indutivistas, dedutivistas e dialéticos; o lobo perde o pelo,
mas não perde o vício.
Certamente os que vêm na secularização do sagrado o fim da sacralidade do
mundo religioso, estão expressivamente concentrados entre os indutivistas.
Buscadores do Santo Graal na ciência, como o são, almejam descerrar os véus de
Isis e profanar o Templo.
No que concerne aos dedutivistas se o oposto. Sabedores da inefabilidade
da essência se sentiriam plenamente confortados na frase latina escrita por Jung na
32
soleira da porta de sua casa localizada às margens do lago de Zurique: ”vocatus
atque novocatus Deus aderit”
33
(invocado ou não, Deus está presente).
E os dialéticos, confusões à parte, como entenderiam o antagonismo
supracitado?
Tivessem um pé no estribo Weberiano, veriam como puramente aparente
essa contradição, uma vez que a secularização ao invés de extinguir o sentimento
religioso, forneceria aos sacerdotes a aquisição de um capital simbólico que os
tornariam fortes e poderosos, revigorando assim suas crenças.
Ao pensar nesses termos, por razões óbvias, me ocorrem as concepções de
Bourdieu
34
quando se refere à acumulação do capital simbólico pelas religiões,
transformado esse em instrumento de poder, ou seja, de dominação sobre os
devotos.
Ao trabalhar o conceito de capital simbólico e sua autonomia no campo das
representações sociais, parto do princípio que tal percepção possuiria similitude com
a maneira de Marx se referir ao dinheiro como um fetiche enquanto reificação da
mercadoria.
Existe por parte de Bourdieu uma omissão na autoria, ou a questão foi
construída por mera coincidência dentro do decalque marxista?
Mas voltando à metáfora do cavaleiro dialético e os estribos da sela de sua
montaria, estivesse seu apoiado em Durkhein, certamente diria que a realidade
muitas vezes é desconcertante pela sua surpreendência, mas que, agnosticismos à
parte, se vestígios da inteligência suprema de um criador fossem observáveis,
certamente seriam pelos pesquisadores reconhecidos.
Mas considerações dialéticas à parte, este trabalho contempla de diferentes
ângulos a saga da Umbanda em seu desiderato de legitimação pública e
institucional enquanto tradição religiosa na sociedade brasileira.
Na sua expressão sagrada enquanto sincretismo religioso, a Umbanda se
constela no panteão dos orixás africanos, cultua imagens do catolicismo santeiro
herdado à cultura religiosa portuguesa, é reencarnacionista nas conformidades do
33
Inscrição constante na porta de entrada da casa de Carl Gustav JUNG e registrada pela fotografia
de Tim GIDAL em Aniela JAFÉ (ed.), Jung, Word and Image, p.137.
34
Cf. Pierre BOURDIEU, A economia das trocas simbólicas.
33
espiritismo Kardecista e comunga com o ideário da nova era ao adotar valores éticos
e morais que recriminam, entre outras coisas, os exageros de uma sociedade de
consumo.
Em constante mutação, o ideário umbandista adotou ainda, elementos do
primado esotérico hindu e da medicina oriental da China, baseando a fisiologia da
alma na existência de chákaras e meridianos de energia. Como é fácil de perceber
todos esses preceitos se cingem naquilo que se entende como próprio do campo da
metafísica e das implicações disso decorrentes.
Mas voltando na linha do tempo, questões do método à parte, foi assim que
cheguei a 1982, ano em que conheci a Umbanda.
Com quase 40 anos, cansado de guerra, restaurou-se em meu íntimo o
interesse religioso e a busca de respostas abrangentes para as novas indagações
que eu fazia frente à vida. Na época, submetia-me à psicoterapia dentro de uma
abordagem Junguiana, o que me tornava mais sensível aos assuntos que atinassem
com questões da supra consciência e todo o restante daquilo que é invisível aos
olhos mas sensível ao coração; manifestava-se em mim a vocação tardia da qual se
faz referência na biografia de muitos místicos da igreja.
Naquele ano, dia 25 de janeiro, feriado comemorativo da Cidade de São
Paulo, visitei no município vizinho de Embu-Guaçu, o Templo de Umbanda Caboclo
das Sete Pedras. Foi meu caminho de Damasco. Curioso que era em conhecer a
ribalta do teatro umbandista fiquei sensibilizado com tudo que me foi dado
experimentar.
A percussão dos atabaques, a cortina de tafetá separando a assistência do
corpo mediúnico, a dança dos caboclos incorporados, as imagens de gesso, o
aroma dos perfumes baratos, o hálito de cachaça do ode porteira
35
, a fumaça de
cachimbos e charutos mesclados com a defumação de benjoim e alfazema, as
comidinhas dos santos, as saias rodadas e os pés descalços, tudo isso produziu,
como num fenômeno de conversão, uma alteração de consciência.
35
Nesse Terreiro a nomenclatura das funções religiosas da casa acompanhava o Candomblé, de tal
forma que os atabaques eram tocados pelos alabês, as yaôs eram cuidadas pela equéde, havia uma
yalorixá e o chamado trabalho de cambonagem (equivalentes os obreiros dos petencostalistas), era
realizado pelos ogáns.
34
Se mais não fosse, estava ali o povo; o mesmo para o qual eu enquanto
militante de esquerda, destinava meus cuidados mais atenciosos; o próprio que não
acorria às minhas concitações revolucionárias, que se mostrava alheio aos
“panelaços”
36
, que aplaudia a Seleção Brasileira enquanto os tiranos torturavam no
Doi-Codi; era o povo que nas passeatas não repetia comigo a palavra de ordem: ”o
povo unido, jamais será vencido
37
.
Tendo me consultado com um dos trabalhadores astrais daquela casa,
Caboclo das Sete Flechas, foi-me revelado o dom da mediunidade e que através
dele, cumpriria uma missão religiosa à frente de muitos seguidores. Era como se
essa qualidade pessoal proclamada, abrisse um imenso portal para novas e
insuspeitadas possibilidades, principalmente a que encurtava meus caminhos na
direção do meu ente mágico perseguido: o povo.
Desde então, estabeleceu-se em mim uma noção de compromisso, tornando-
me participante regular da programação de atividades realizada pelo terreiro. A
religiosidade umbandista enchia de satisfação a minha alma, me mostrando como
são tortuosos e surpreendentes os desígnio de Deus.
O terreiro do Caboclo das Sete Pedras, entidade espiritual pertencente à linha
de Xangô
38
, ocupava acomodações rústicas que originariamente foram destinadas à
cocheira de uma antiga propriedade rural. No entanto diziam as más-línguas que
anteriormente ao uso daquelas instalações pela nossa igreja, eram as mesmas
ocupadas por uma casa de moças.
36
No Movimento Contra a Carestia, frente ampla que unia a PC do B e a militância católica da
Teologia da Libertação, nos tempos da ditadura, nossa participação engajada se ressentia da frieza
da massa frente à determinadas palavras de ordem, como participar do “panelaço”.Essa atividade,
importada do peronismo portenho, consistia em se bater tampas e panelas as 18 hs, em datas pré
combinados, protestando contra a inflação e a alta do custo de vida.
37
Palavra de ordem da esquerda, sempre lembrada nos comícios e passeatas realizados em repúdio
ao estado autoritário.
38
Na Umbanda, para alguns setores de devotos, uma compreensão da arquitetura da
espiritualidade, muito próxima às representações religiosas trazidas de diferentes nações da África.
Por conta desse sincretismo, bebendo em várias fontes, prevaleceu em minha consciência a
explicação do universo que passo a narrar. O Deus criador, que reina em seu eterno presente é
denominado Olodumaré que, no idioma Yorubá, significa “Aquele que não se a conhecer”. No
entanto, mesmo Encoberto, mercê de sua generosidade, Ele se faz manifestado através dos Orixás.
Esses, por sua vez, se constituem em sub-aspectos da deidade superior, assumindo, cada Orixá,
uma propriedade, uma característica, uma qualidade, do Ser Central. Assim, o Orixá Xangô,
representa o princípio da Justiça. Cabe a ele o domínio sobre as grandes estruturas, a constituição
material de tudo que existe, o reinado na natureza através das pedreiras, das grandes elevações de
terra, das montanhas.
Nas atividades humanas, rege o comércio, as leis e as normas e princípios presentes na organização
das coisas. Sua cor é o marrom e o dia da semana é a quarta-feira.
35
Seus freqüentadores, meus contemporâneos, eram pessoas simples, quase
todos moradores das cercanias como os bairros do Cipó, Valflores e Valo Velho.
Profissionalmente ocupavam-se de atividades muito simples, como pintor, pedreiro,
vendedor ambulante, empregada doméstica, auxiliar geral ou mesmo zeladores em
chácaras da região.
Inspiradoramente localizado na Rua Brasil, 77, próximo à Prefeitura do
município, o templo realizava suas sessões nas sextas-feiras à noite sob a regência
da Yalorixá Clara Marques Guimarães, pessoa dotada de forte carisma na condução
dos trabalhos espirituais.
Para Mãe Clara, o lema que aprendera com a doutrina, consignava: “você
pode e você vai conseguir”. Esse dístico afirmativo empolgava os consulentes e, por
pior que fosse o caso, passado um tempo, a pessoa se aprumava.
Era adversária dos conhecimentos aprendidos nos livros. Ensinava também
aos seus filhos de santo: “religião não se entende lendo, mas sentindo-se no
coração”. E, continuava: “batemos para a direita e para a esquerda”
39
; se a pessoa
não melhorar, temos que ver o que está acontecendo”.
Foi com ela que me iniciei nos mistérios da Umbanda. Desenvolvi minha
mediunidade incorporando nas sete linhas dos Orixás, tendo ao final do processo de
formação, coroando como guia de frente
40
o Caboclo Pai Cacanji. Essa
representação pertence à tribo do Caboclo Pena Branca, falange essa formada por
entidades que trabalham na atividade de cura, ou seja, proporcionam bem estar
físico e espiritual às pessoas que a elas recorram.
Mãe Clara fez a passagem em 1985. Na cerimônia fúnebre estiveram
presentes além dos filhos e amigos, na qualidade de autoridade maior do município,
o Prefeito Sr. Antonio Carlos Cravo-Roxo que não poupou elogios para ela que
adormecera no sono dos justos. Enaltecendo sua militância em favor das boas
causas, resgatou para a memória dos presentes, diversos episódios por eles
39
Direita e esquerda, mais que referências de lateralidade, referem-se ao antagonismo dialético
presente em todas as formas de manifestações da natureza humana.Parte-se do princípio de que a
criação esta constituída em dois grandes âmbitos, quais sejam, o céu e a terra. Ao céu confere-se a
espiritualidade; à terra, a constituição material do mundo. Ao Orum refere-se o céu e ao Aye, a terra.
Luz e sombra. Bem e mal.
40
É permitido ao filho de santo desenvolver-se nas diversas linhas que compõem o campo da
mediunidade. Dele fazem parte, tanto as entidades da direita, como as da esquerda. Dentre todas,
uma se sobressai, assumindo a liderança das demais na condição de “guia de frente”.
36
compartilhados, dentre os quais, o fato de que menos de um mês fora ela quem
abençoara na cerimônia de inauguração, as instalações do velório recém construído,
tornando-se, naquela oportunidade, seu primeiro usuário.
Decorrido o período de luto, o terreiro do Caboclo das Sete Pedras
inviabilizou-se na parte religiosa, concomitantemente ocorrendo à dispersão dos
filhos de santo no quadro associativo.
Diferenças de outrora amainadas pela diplomacia enérgica da Mãe de Santo,
foram aumentadas; sua ausência gerou uma espécie de anomia no grupo tornando
a cizânia inevitável.
Face à situação criada, eu e a Mãe Pequena, Silvana de Yemanjá, acrescidos
de mais meia dúzia de filhos, entramos em contato com a União de Tendas,
entidade federativa de Umbanda e Candomblé citada anteriormente, sendo por
ela orientados a montarmos nossa própria casa de culto.
Ainda sem muita tarimba de comando religioso, iniciamos no bairro do
Piqueri, região da Zona Oeste próxima à Pirituba, o Templo de Umbanda das Sete
Ondinas, destinado aos seres encantados das águas do mar. Apesar dos esforços
empreendidos, no entanto, decorridos apenas sete meses, deram-se novas
frustrações motivadas por discordâncias na condução dos trabalhos e
incompatibilidades pessoais dentre os integrantes da corrente espiritual, repetindo-
se as divergências e também o insucesso.
A despeito das vicissitudes, foi no Piqueri que iniciei minhas
responsabilidades sacerdotais ao assumir as funções de Pai Pequeno, ou seja,
auxiliar e substituto do Pai ou Mãe Espiritual da casa, sua liderança maior. Ainda
ocupando essa função adjunta, num momento crítico das decisões, quando as
paixões e egoidades comprometiam o julgamento de algumas pessoas, fui orientado
pelo Caboclo Pai Cacanji, meu próprio guia, que devesse me retirar para constituir
uma casa própria.
O grupo sofreu nova divisão entre seus componentes. Uma parte, cerca de
oito pessoas, reconhecendo-me como liderança, acompanhou-me na formação do
Templo de Umbanda Estrela de Oxalá, o qual veio a se estabelecer à Rua Adherbal
Stresser nº.191, no Jardim Arpoador, bairro da periferia localizado na altura do km
20 da Rodovia Raposo Tavares. Sobre o assunto das sucessivas mudanças, cabe
37
considerar um pouco a respeito das implicações imobiliárias que tais providências
acarretam. Acho informativo para a compreensão do tema, explanar sobre a
dificuldade representada em se alugar um imóvel destinado a sediar um terreiro de
Umbanda. Além das burocracias inerentes a qualquer locação (cadastro, fiador,
contrato), existe o obstáculo dos preconceitos a ser superado. No episódio agora
relatado, após ter percorrido mais de 40 possíveis salas e garagens antes de atingir
o objetivo pretendido, no decorrer das buscas, fomos diversas vezes desestimulados
pelos possíveis locadores, no sentido de que melhor seria se estivéssemos
procurando montar um boteco de vender cachaça. Os pretextos dos senhorios para
a rejeição são inúmeros, mas, os repetidos com maior incidência alegam:
desconfiança quanto à adimplência dos locadores, uso impróprio do imóvel para
outras finalidades que não as comerciais, problemas com a fiscalização da
Prefeitura, uma suposta matança de animais, reclamações quanto ao uso de
atabaques, proximidade com igrejas ou moradia de crentes, fazer mal aos outros e
receio de receber algum feitiço caso o proprietário venha a solicitar a devolução do
bem locado. Essas objeções quando enfrentadas, tornam evidentes a necessidade
do sacerdote de Umbanda possuir um espírito aguerrido, caso contrário são
tamanhas as dificuldades, que melhor seria acomodar-se e não fazer nada.
Problemas dessa ordem são costumeiros dentro da religião e, procurando entender
a dificuldade através de uma reflexão provinda do astral, certa feita abordei o tema
com o Preto Velho Pai Joaquim das Almas. O guia, com serenidade, se expressando
com o vocabulário que lhe é peculiar, ponderou em suas palavras algo do seguinte
teor:
... meu filho, portas fechadas para a Umbanda, demonstram o quanto se
acham trancados os corações das pessoas. No entanto, quanto maior for a
dificuldade, maior o mérito ao se conseguir. Peça a Ogum e Oxalá. Que o
primeiro à frente abrindo os caminhos e Oxalá, pondo compaixão nessas
criaturas trevosas.
Foi dentro dessa consigna do Preto Velho que recebendo a orientação de
uma imobiliária de Pinheiros, chegamos no Jardim Arpoador. Ao nos apresentarmos
aos moradores com a intenção de nos instalarmos na região, fomos agradavelmente
bem recebidos. Na oportunidade ficamos sabendo que no mês anterior falecerá nas
38
adjacências uma senhora de nome Dona Branca, prestigiada mãe de santo local. Ao
fazermos contato com remanescentes de sua família, não fomos identificados
como sucessores da Yalorishá, como recebemos de herança as imagens, atabaques
e outros objetos de culto utilizados em seu terreiro. O imóvel alugado ficava a
poucos metros do terreiro de Dna. Branca formatando uma área útil de 300 m²,
praticamente adaptada ao uso que lhe destinaríamos.
Com mais espaço físico e usufruindo boa receptividade pela população, esse
terreiro foi bem sucedido em seus propósitos, chegando a comportar setenta
médiuns para atendimento ao público, em sessões realizadas semanalmente as
terças e sextas-feiras.
No Jardim Arpoador permanecemos cerca de quatro anos, encerrando
nossas atividades naquele local por conta da impossibilidade de continuarmos
pagando o aluguel do imóvel. O lema Kardecista, não se cobra pelo o que de graça
se recebe, contribuiu para um déficit financeiro que acarretou a transferência da
casa para acomodações improvisadas junto ao meu consultório de psicologia, no
bairro de Pinheiros.
Mesmo tendo mudado mantivemos a razão social, mas, do antigo terreiro,
foram poucos os sobreviventes. A clientela que passamos a atender era de outra
composição social e os trabalhos abertos ao público comportavam vinte pessoas
como participantes da assistência.
Nessas condições, trabalhamos por mais seis anos, encerrando as atividades
do Estrela de Oxalá, também por razões financeiras, no início do novo milênio.
Na condição de Pai de Santo, com filhos espirituais em processo de formação
na mediunidade, e sem espaço para a realização de sessões, fui pedir abrigo ao Pai
Jamil Rachid na Tenda São Benedito, casa de culto da qual esse Babalorixá é o
titular. Embora eu fosse participante das giras ali realizadas, a prerrogativa foi
ampliada para os meus Filhos de Santo. Concomitantemente Pai Jamil abriu espaço
para que eu fizesse uma atividade de acolhimento espiritual às sextas-feiras, na
parte da manhã, prática que desde então se mantém ano após ano.
Essa aproximação possibilitou-me uma gama de experiências enriquecedora,
entre outros motivos, pela oportunidade de contato com os inúmeros sacerdotes
freqüentadores da casa. Tal foi a minha intimidade com o Templo São Benedito, que
39
no ano de 2008, achei por bem me hospedar em suas dependências durante sete
meses. Nesse período monástico, tornou-se possível para mim o acesso ao
testemunho silencioso presente em objetos de culto, livros, jornais, fotografias, todos
esses guardados na casa desde 1950, ano de sua fundação.
Acredito que os fatos mencionados, tanto os de natureza religiosos, como os
políticos, sejam suficientes para justificar nas interfaces de sua subjetividade, meu
interesse em pesquisar a prática religiosa dos umbandistas e a própria história da
Umbanda.
No campo religioso da Umbanda, buscando em seu contexto um foco de
concentração para objetivar o estudo, escolhi a procissão destinada a homenagear
o Orixá Ogum, São Jorge, pela condição de guerreiro que lhe é reconhecida
enquanto intrépido defensor das boas causas.
Essa comemoração se tornou bandeira em São Paulo para que a Umbanda
se articulasse com a sociedade civil em condições de reciprocidade, legitimando e
conferindo para si, o estatuto de confissão religiosa social e legalmente reconhecida.
Tendo em conta que a programação de atividades da “União de Tendas”, pelo
seu caráter federativo, seja ampla e diversificada, nela, o evento da Procissão de
São Jorge se mantém em evidência durante todo o transcorrer do ano.
Podemos considerá-la, mesmo, como o momento de abertura e encerramento
do ano litúrgico umbandista, constituindo-se ainda na referência nucleadora de sua
programação institucional ao longo de 12 meses.
É tal a sinergia presente na realização da homenagem
41
a esse Santo, que
me ocorre reconhecer nela o esforço mais representativo empreendido
espontaneamente pelo povo em defesa da liberdade religiosa no país.
Qual a razão subjetiva, o que ia à sua alma, quando esse, usando uma forma
de expressão religiosa tão ao gosto da Idade dia, se dispôs partir para as ruas
em forma de procissão, clamando o reconhecimento dos terreiros sob a regência
dos Orixás?
41
Interessante constatar que durante a preparação da Procissão de São Jorge, existe um cuidado de
linguagem de não se referir a ela, denominando-a tratar-se de uma festa de festa ou comemoração.
Os organizadores são ciosos em lembrar que a mesma, trata-se de uma homenagem, um preito de
gratidão pelos trabalhos prestados pelo santo.
40
A resposta certamente encontra-se em explicações tiradas ao repertório do
inconsciente coletivo, ao caldeamento de culturas presente na civilização brasileira,
ao berço tupi-afro-português, o trigrama inferior no qual repousa o substrato étnico, a
memória mais cerebelar da população de São Paulo.
Anteriormente, em tempos remotos, no fim da Idade Média e começo da
Renascença, muito ao gosto dos devotos católicos da península ibérica, as
procissões traziam em sua formação uma série de costumes tirados ao
paganismo.
Tais deslizes considerados imorais pelo Movimento Reformador da Igreja,
como a venda de indulgências e outras condutas reprováveis praticadas pela
hierarquia católica, fortaleceram e deram munição às críticas de Lutero no cisma
Protestante.
Fazendo frente à ruptura havida, o Concílio de Trento (1545 a 1563)
procurou restaurar a disciplina na Igreja romana, recuperando-lhe o prestígio na
época bastante abalado.
Esses dados são relevantes para se entender a natureza do cristianismo
restaurador trazido ao Brasil pelos colonizadores portugueses na segunda metade
do século XVI, através dos padres jesuítas da Companhia de Jesus.
42
Católico por formação, é incomum encontrar-se o brasileiro que não tenha
presenciado ou mesmo participado de uma procissão como as que existiram em São
Paulo de outrora. Eram manifestações de devoção que integravam a comunidade,
conferindo ao cotidiano da Província um quê de pompa e religiosidade. Hoje, esta
forma de manifestação da fé persiste, embora cercada adaptações aos tempos, uma
vez que o momento é outro e a igreja romana não detém a hegemonia que
desfrutou no passado.
Minha proximidade com as procissões se deu no período da infância e
adolescência, quando o catolicismo estava mais presente no cotidiano das famílias e
o ofício dominical da missa era o ponto de encontro da vizinhança.
Nessa época, começo dos anos 50 do século passado, o catolicismo era
majoritário na população, e a procissão, como presença da igreja na rua, trazia
42
Cf. Eduardo HOORNAERT, A Evangelização do Brasil durante a primeira época colonial, História
da Igreja no Brasil.
41
consigo uma aura de legitimação institucional do seu poder. É de se imaginar que
essas apreciações sociológicas ao sabor de Max Weber, surgiram em minha
consciência bem mais tarde. À ocasião, era eu, apenas, o transeunte (mirim) que a
tudo assistia.
Retomando as lembranças, diria que qualquer paróquia melhor estruturada,
realizava pelo menos duas procissões no decorrer do ano. Uma, homenageava o
santo da casa, seu orago, as demais se cingiam ao calendário litúrgico da Diocese.
Como exemplo das primeiras, aos domingos e feriados, era comum a quem
visitasse os bairros, deparar-se com procissões dirigidas a São Francisco, Santo
Antonio, São José, Nossa Senhora da Saúde ou outros santos devocionados pela
população local. O motivo desses encontros poderia ser tanto a comemoração de
uma efeméride, como a arrecadação de recursos para a compra do sino da igreja.
nas datas religiosas consideradas maiores, casos como Corpus Christi
43
e
Semana Santa, a procissão perdia seu caráter local, assumindo a condição de um
evento que integrava diversas paróquias de uma mesma região.
Nessas oportunidades o número de devotos era expressivo, compreendendo
a participação de centenas de pessoas em preparativos que se estendiam ao longo
de vários meses.
A procissão de Corpus Christi era de exaltação e festejo, sendo montada com
os recursos obtidos nas quermesses organizadas pelas diversas ordens que
compunham a igreja.
Realizada no período diurno, em data de feriado nacional, tinha como
propósito a comemoração do sacramento da Eucaristia, o que revogava na prática, o
caráter laico do estado republicano no Brasil.
Sua preparação pelos fieis comportava o isolamento de ruas ao tráfego de
automóveis, a ornamentação do leito carroçável com o emprego de serragem
colorida e flores, chuva de pétalas, disparo de foguetes, bimbalhar de sinos e, a
43
A cerimônia de Corpus Christi surgiu na Bélgica, século XIII, na qual se incluiu na liturgia cristã a
realização de uma comemoração em honra do Sacramento da Eucaristia. Com o passar dos tempos
essa prática difundiu-se na Europa, atingindo seu esplendor na península hibérica, como a única
cerimônia da igreja em que o Santíssimo sai às ruas acompanhado de uma procissão. A importância
desse evento foi trazida ao Brasil pelos colonizadores, decorrendo daí sua aceitação junto à
população.
42
indefectível presença no séqüito, da ala de anjinhos vestida de túnica branca, tendo
às costas, um par de asas.
No desenrolar da caminhada, à frente, empunhado pelo pároco, era
transportada a relíquia do Santíssimo, a qual era protegida por um dossel sagrado,
erguido por integrantes ilustres da hierarquia paroquial. Seguiam-se aos mesmos, as
diversas corporações constituídas no interior da igreja, quais sejam: a Irmandade do
Sagrado Coração de Jesus, as Congregações das Filhas de Maria, Irmãos Marianos
e a Cruzada Eucarística, formada pelos meninos paroquianos.
A fumaça dos turíbulos, acompanhada pela repetição das orações e cantos
religiosos, proporcionavam seguramente o que se poderia chamar de uma alteração
nos sentidos da coletividade. Talvez por ser portador de um baixo limiar à
impressões deste teor, recordo-me de uma sensação de encantamento sonoro que
persistia em minha memória auditiva, mesmo passadas varias horas após o
encerramento do evento.
Quanto à Semana Santa, era na Procissão do Encontro que se manifestava
seu acontecimento mais imponente. Realizada noturnamente, sob a lua cheia, o que
é intrínseco à noite de quinta para sexta-feira Santa, a iluminação de velas e
archotes conferia um caráter lúgubre à cerimônia.
A indumentária das pessoas era dominada pelos tons de preto e cinza. As
mulheres de terço à mão portavam mantilhas negras, enquanto que os homens,
empunhando velas, seguravam respeitosamente o chapéu em uma das mãos.
Não era um oficio apropriado à participação de crianças, mas, caso algumas
delas se fizesse presentes, não seriam repelidas.
A Procissão do Encontro tinha uma configuração especial, sendo constituída
por duas comitivas que partiam concomitantemente da mesma igreja, mas dirigidas
em direções opostas dentro de um circuito pré-estabelecido.
Um dos segmentos tinha à sua frente o esquife com o corpo do Senhor Morto,
enquanto que o outro era precedido pelo andor de Nossa Senhora, a Mater
Dolorosa.
Outros andores, que porventura fizessem parte da comitiva sagrada,
portavam imagens de santos, todos cuidadosamente cobertos por panos de cor
43
roxa. Aliás, esse procedimento era mantido no interior das igrejas no decorrer de
toda a quaresma, período de resguardo iniciado na quarta-feira de cinzas e
encerrado festivamente no sábado de Aleluia.
Tanto um cortejo como o outro era precedido pelo bater das matracas,
instrumento sonoro de confecção rústica, com o intuito de anunciar a passagem do
séqüito e, ao mesmo tempo, impor uma atitude respeitosa dos observadores
postados nas calçadas e janelas das casas.
Aliás, o poder silenciador das matracas era utilizado durante todo o período
de tempo compreendido entre as quintas-feiras e sextas-feiras santas, através das
intervenções de coroinhas e noviços que fossem deslocados para admoestar
alguma residência das adjacências da igreja, que insistissem em manter o radio
ligado no seu interior. Esse recurso também era empregado para fechar algum
estabelecimento comercial, em geral botecos, que recalcitrassem em permanecer
abertos. Nessas oportunidades, ao que consta, não surgiam embates e, tal era o
poder disciplinador da matraca, que os infratores cessavam imediatamente suas
contravenções iconoclastas, sem manifestações de protestos.
Como estão consteladas em minha memória essas reminiscências?
Certamente, as fundamentais, fixadas nas vivencias mágicas de uma mente de
criança e, as acessórias, talvez, criadas pela imaginação da imorredoura criança que
subsiste na alma.
Fui nascido e criado na Vila Mariana, à Rua Joaquim vora, no. 558. Nosso
sobradinho era vizinho de parede com a sede da Igreja Batista do bairro; se o me
engano, a mais antiga de São Paulo. Ambas as construções sobreviveram ao
tempo. A Igreja prosperou, ocupando hoje, no mesmo lugar, um bonito edifício.
A minha ex-casa, por benesse do Criador, foi adquirida pelos batistas e hoje é
ocupada pelo Serviço Social desta igreja: Centro Beneficente Jardim das Oliveiras.
Nossa casa ficava na circunscrição eclesiástica da Paróquia de Santo Ignácio,
localizada à Rua França Pinto nº 115, paralela à rua em que morávamos
44
.
Padre Romano Gori, Paulino, italiano de Lucca, era o roco da igreja.
Homem bastante ativo, figura popular por conta dos inúmeros serviços que prestava
44
As ruas mencionadas, mais as ruas Domingos de Moraes, Major Maragliano e Humberto I,
compreendiam o trajeto da Procissão do Senhor Morto.
44
à comunidade (curso de datilografia, admissão ao ginásio, alfabetização de adultos e
corte- costura), era avesso à confraternizações ecumênicas e aproximações com
segmentos da população alheios ao seu credo.
Como diria Fernando Pessoa: “oh malhas que o Império tece...”
Minha moradia, mencionada como vizinha à Igreja Batista, de orientação
sabidamente protestante, era exatamente o local em que se dava o ápice da
cerimônia, ou seja, o momento do encontro.
À medida que ambas as colunas se aproximavam para o local de
convergência, cessavam os cantos e rezas, sendo o silêncio sepulcral quebrado
apenas pelo ruído das matracas e o pisar dos calçados de couro na rua de
paralelepípedos.
De um lado, precedido por alguns centuriões romanos, de elmo, lança e
capacete, caminhava, carregado por mãos piedosas, a urna mortuária de vidro, em
que se encontrava o Senhor Morto.
Na posição oposta, era trazido no ombro dos seguidores, o andor com a
imagem de Nossa Senhora, tendo a cabeça coberta por um funesto véu.
O momento era de intensa emoção. As pessoas choravam, cobriam o rosto
com as mãos, tentavam afastar as crianças para que o presenciassem a cena
chocante.
Silêncio e perplexidade.
De bito, quebrando o êxtase, ouviam-se os acordes de um violino,
acompanhado a seguir pelo som de uma tuba e os toques brandos e compassados
de um surdo. Dentre os personagens que compunham a cena, protagonizava
Verônica, encenada por uma soprano de nome Dona Elifas, proprietária de uma
casa de aviamentos no bairro, e responsável pelos ensaios do coro da igreja.
A antífona era cantada em latim, que traduzido significaria algo como: “Vinde
e vede se existe alguma dor igual à minha dor” (Venite e videte si est dolor sicut
dolor meus).
À afirmação, sempre em latim, era respondida pelos fiéis previamente
ensaiados, os quais recitavam os lamentos do profeta Jeremias. O povo contrito,
cabeça baixa, a tudo escutava. Passados alguns instantes, novo silêncio.
45
Repentinamente, ouvia-se o chocalhar das matracas tendo inicio a parte
doutrinadora da cerimônia, qual seja, o sermão. Proferido com veemência,
carregado pelo sotaque peninsular, a prédica de Padre Romano fazia-se ouvir em
todo o quarteirão. Falava da compaixão, da mãe que recebe em seus braços os
restos mortais de um filho querido. Falava da perfídia dos judeus, da traição de
Judas Iscariotes, e da presença do pecado no mundo. Censurava os protestantes
como falsos cristãos ao negarem em Maria, suas qualidades celestiais. Censurava
os japoneses por seguirem a Buda; os comunistas por seu ateísmo e execrava os
maçons pelo anticlericalismo de suas opiniões. Quanto à citação desses últimos,
meu pai sentia-se injuriado, dado ao seu vinculo com a irmandade da Loja do
Grande Oriente, na Rua São Joaquim, Bairro da Liberdade.
Resumidamente apresentei meu testemunho vivencial, quase corriqueiro, de
ex-participante de procissão na devoção católica, prática essa acumulada
majoritariamente em São Paulo, embora a mesma tenha ocorrido também em outras
localidades como Aparecida do Norte, Pirapora, Iguape, Campinas, São Lourenço,
Eldorado Paulista, Jacupiranga, Limeira, Ribeirão Preto, Curitiba, Santana de
Parnaíba, Macaé, Diadema e Rio de Janeiro. Sem exceção, todas as cerimônias por
mim presenciadas nessas localidades, possuíam características bastante
semelhantes entre si. Confio que a descrição por mim realizada sobre a Procissão
do Encontro, referende a qualificação do meu conhecimento sobre a matéria,
certificando-a como formadora religiosa do espírito cristão do povo brasileiro e do
meu próprio, ao revelar valores estéticos presentes em minha programação afetiva.
Sendo a procissão reivindicada historicamente como prerrogativa católica,
suponho, à época, o mal estar manifestado em suas fileiras ante ao surgimento da
devoção umbandista que levava para as ruas o Cavaleiro São Jorge, o mesmo que
fora proscrito do calendário oficial da Igreja sob o argumento de se tratar de mito
tirado ao imaginário pagão.
Era como se a Umbanda, aaquele momento voltada para si, subitamente
se abrisse para a comunidade, reivindicando possuir melhores condições em acolher
a devoção popular. No dizer dos umbandistas, há vários relatos nesse sentido
expressos por suas lideranças no cinqüentenário da comemoração, São Jorge
valorizou sua tradição religiosa, lhe deu comando, e após o ressurgimento de sua
procissão em o Paulo, foram inúmeras as conquistas obtidas tanto no
46
reconhecimento institucional da fé, quanto na codificação das celebrações litúrgicas¸
oficializando-se a realização de casamentos, batizados e a encomendação dos
mortos em ofícios fúnebres.
Como mencionamos anteriormente, a Procissão que trazia a imponente
imagem de São Jorge em terra paulistana, tem antecedentes nos séculos XVIII e
XIX, quando a cidade ainda era apenas a sede administrativa de uma Província.
No livro o Paulo de Outrora - Evocações da Metrópole, narra seu autor
Paulo Cursino de Moura um episódio de 1872 passado na Procissão de Corpus
Christi, em que se envolveu a imagem de São Jorge e os devotos que a
acompanhavam. Eis a narrativa:
A (tragédia) de São Jorge é igualmente dolorosa e produziu, no ambiente de
outrora, esse ar parado, estatelado, da população, esse oh! de bocas abertas
e olhos esbugalhados do povo sacudindo seu torpor. Se hoje ( o autor faleceu
em 1943) as ocorrências sensacionais , de sangue e de dor despertam o
sentimento público, muito mais na sociedade de antanho. É o fato de São
Jorge, cavaleiro e guerreiro, ter, em plena procissão, morto um soldado,
igualmente cavaleiro, da sua guarda de honra.
São Jorge, uma imagem enorme, colorida, de armação de madeira, ferro e
massa petrificada, colossalmente pesada montada em um também enorme e
fogoso cavalo branco, tinha seu nicho, o seu altar e sua seleta corte de
devotos no antigo Quartel do Campo Fixo, à rua do mesmo nome... hoje
demolido para nele ser construído o atual Palácio da Justiça.
permanecia todo o ano, estimado, venerado, distribuindo graças a todos
quantos a ele recorriam nas ocasiões de perigo, defensor que era, e dos mais
temíveis, instituído por Deus, da verdade contra o obscurantismo.
A sua atitude guerreira indicava, sem rebuços, a sua missão: vencer a hidra
do mal.Mas uma vez a cada doze meses, São Jorge saía à rua pela mão de
seus dignitários cavalheiros, à consagração pública em soleníssima
procissão.
45
Prosseguindo, na referida obra, o autor menciona o cronista Peçanha Póvoa,
historiador contemporâneo aos acontecimentos, o qual descreve de forma
expressiva as condições em que se passava a Procissão de São Jorge em São
Paulo de antigamente. A saber:
45
Paulo Cursino de MOURA, São Paulo de Outrora, p. 57-58.
47
Era costume todos os anos sair do quartel a procissão de São Jorge. Essa
procissão era feita pela respectiva irmandade, se realizava no mesmo dia em
que se comemorava a procissão de Corpus Christi, rompendo a marcha a
cavalgada de São Jorge, na ordem seguinte: três cavaleiros negros, vestindo
calções amarelos, coletes vermelhos e capas agaloadas da mesma cor, tendo
na cabeça chapéu com plumas, sendo que dois deles tiravam de dois clarins
sons descompassados e o outro tangia os dois timbales. Seguiam-se os
chamados cavalos de Estado pertencentes aos figurões da cidade, os
quais nada tinham de notáveis, nem pela estampa dos animais, sendo que
alguns deles eram verdadeiros sendeiros, nem pela riqueza dos jaezes,
suprida por uma grande quantidade de fita de várias cores. Depois vinham: o
Anjo da Guarda, ricamente vestido e montado num pequeno cavalo branco e
São Jorge, também montado num cavalo branco, trazendo de cada lado, um
soldado de cada lado que o segurava sobre a cela; era a figura de um grande
guerreiro, vestido de arnês de ferro, pintado sobre madeira, capa de veludo
carmesim guarnecida de galão, chapéu com pluma branca, e trazendo uma
lança em riste e um escudo com uma cruz branca no centro; por último vinha
o legendário Casaca de Ferro montado num cavalo preto e envergando
uma armadura de folha de Flandres pintada, hasteando uma bandeirola
vermelha com a cruz branca, e um escudo também com uma cruz branca no
centro.
46
Conclui em seu relato, Peçanha Póvoa:
A última vez que saiu à rua a referida procissão de São Jorge foi em 1872,
sendo provedor da referida irmandade o coronel Amador Rodrigues Lacerda
Jordão (Barão de São João Claro) .
Por que”? (retoma o autor Paulo Cursino de Moura)
Eis o fato delituoso do herói Santo Guerreiro.
Era natural depois disto, a reclusão.
Desequilibrando-se em sua sela, a imagem caiu pesadamente sobre a
cabeça de um dos soldados da sua guarda, matando-o.
É possível descrever-se o pânico dessa gente provinciana de outrora, à vista
deste terrificante acontecimento.
47
Com datação anterior a este episódio, relatado por Paulo Cursino de Moura,
baseando–se em Peçanha Póvoa, é a vez de Bastide em seu livro As religiões
Africanas no Brasil, reproduzir as anotações feitas pelo biólogo e historiador francês
Auguste de Saint Hilaire, quando de sua estada em São Paulo, em 1812. Assim
descreve o sábio francês:
46
Paulo Cursino de MOURA, São Paulo de Outrora, p. 56.
47
Peçanha Povoa apud Paulo Cursino de MOURA, São Paulo de Outrora.
48
Nas procissões, quando a cidade inteira desfila nas ruas, na procissão de
Corpus Christi em São Paulo, depois do Santo Sacramento, vem São Jorge
em seu cavalo curveteando; atrás as confrarias de negros, depois a dos
mestiços do Santo Elesbão, da Misericórdia e do Carmo; em seguida frades e
sacerdotes; as corporações de ofícios desfilam depois, numa ordem
determinada, que começa pelas escravas padeiras terminando por outras
escravas vendedoras de legumes.
48
Temos, portanto, como referências históricas na cidade de São Paulo, duas
datas importantes alusivas à Procissão de o Jorge, ambas representativas da
importância que lhe era conferida pelo povo enquanto um santo merecedor de
grande devoção. A primeira em 1872, trágica, quando na Procissão de Corpus
Christi a imagem de São Jorge se envolvida num homicídio involuntário que lhe
acarreta como punição o desterro para o acervo do Museu de Arte Sacra e a outra
em 1957, quando através da Umbanda, a representação da imagem do Santo
Guerreiro é reconduzida ao andor nos ombros dos fieis,restaurando-se um prestígio
que estava abalado.
Nos 85 anos que separam essas duas datas, mesmo sem procissão, o
Jorge não sucumbiu na memória do povo, antes, permaneceu vivo e milagroso em
seus rogos e preces. Sua devoção construída de gesso em forma de imagem
eqüestre, silenciosamente fluiu pelo veio subterrâneo da popular. Cultuado
clandestinamente em altares improvisados na casa do povo mais simples, viu-se
amparado pelos que a ele recorriam como força maior nos momentos das agruras,
as chamadas situações de demanda, como as ressignificam em sua cultura o povo
do axé.
Conforme relata Pai Jamil Rachid em entrevista
49
concedida para esta
pesquisa, muito antes da Procissão de São Jorge ser recuperada pela Umbanda
num contexto público, os terreiros permaneceram fiéis à comemoração de sua
efeméride, realizando sessões de incorporação nas quais os médiuns recebiam as
falanges do Senhor Ogum.
Procedente da tradição Yorubá, Ogum, Orixá que representa a metalurgia e a
atitude guerreira ante aos desafios, no sudeste e sul do Brasil é identificado na
imagem de São Jorge, enquanto na Bahia, o mesmo fenômeno de transposição de
48
Auguste de SAINT HILAIRE apud Roger BASTIDE, As religiões africanas no Brasil, p. 168-169.
49
J., entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/02/09, que integra o segundo
capítulo desta dissertação.
49
significado se em relação a Santo Antônio, o franciscano retórico que construiu
seu mérito pelo uso duro da pregação contra as heresias.
São Jorge, Santo Antonio ou simplesmente Ogum, marchando à frente da
Umbanda, abriu caminhos, enfrentou conflitos, amainou diferenças e através da
preparação anual de sua procissão pelos devotos, agiu como catalisador social
dando condições para que os terreiros se estruturassem com uma ordenação
religiosa.
A imagem de São Jorge é cultuada nas tradições de diversos países e
culturas e, nesse sentido, a referência mais antiga por mim localizada, encontra-se
no livro denominado La Índia Misteriosa, de Eugen Kusch, Ártico, Ediciones de Arte
e Color, Barcelona Madrid, 1962. Nele, em forma de reportagens, o autor,
mostrando a riqueza da cultura Hindu, visita os principais templos religiosos do país,
apresentando, dentre vários deles, o templo de Ragunataswani.
Este templo de exuberante beleza, como atestam as ilustrações fotográficas e
a narrativa do autor, data sua construção do século X DC, tendo sido erigido em
homenagem à Vishinu, a potestade espiritual protetora do mundo.
O templo, de forma retangular, possui grandes dimensões, quais sejam 750
metros de largura por 780 metros de comprimento. Neste espaço, sustentando o
teto, estão dispostas 940 colunas esculpidas em pedra, cada uma medindo 3,50
metros de altura, retratando cada uma delas, de formas idênticas, fielmente, a figura
de um ginete montado em seu cavalo. A montaria, por sua vez, mantém-se
empinada sobre as patas traseiras, tal como a expressão de combate presente na
imagem atribuída a São Jorge.
A distinção mais significativa presente entre as concepções artísticas de
ambas, refere-se ao ser para o qual o cavaleiro combate: na imagem hindu o
opositor trata-se de um tigre enquanto que na versão, digamos, ocidental, prevalece
a monstruosidade mítica do dragão.
50
Templo de Ragunataswani - século X – DC
Curiosamente a figura de Ragunataswani em posição de combate montado
em seu corcel, tal como a vemos na fotografia que ilustra o texto, é extremamente
semelhante à imagem do Cavaleiro São Jorge existente no pátio central do Quartel
General da Legião Estrangeira, no Marrocos, à época em que o país ainda era
possessão francesa. Consta, segundo relatos verbais, que era tradicional aos
legionários prestarem homenagens ritualísticas diante dessa estátua quando
retornavam de missões que tivessem derramamento de sangue. Esta informação me
foi prestada por um ex integrante da Legião Estrangeira, hoje cidadão francês, após
cinco anos de prestação de serviços militares na lendária corporação.
A propósito, esta mesma pessoa relatou que o edifício onde está localizado o
Batalhão Tobias de Aguiar, em São Paulo, ao lado do Museu de Arte Sacra, é uma
51
réplica do edifício sede da Legião Estrangeira e que a sua concepção arquitetônica
data da presença da Missão Francesa no Brasil
50
.
A exemplo, afinados com a mesma proposta dos Legionários Estrangeiros, os
soldados da Rota - Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, costumam render
homenagens à imagem de São Jorge existente no local, retribuindo, como é de se
supor, a proteção que lhes é proporcionada pelo Santo.
A única distinção entre a concepção artística da imagem francesa em relação
à nacional está no detalhe do oponente. Na versão francesa, São Jorge luta contra
um leopardo (como no templo de Ragunataswani), enquanto na brasileira prevalece
a concepção de um dragão. No entanto, em que pese a distância, a reverência
praticada por legionários e soldados da Rota é a mesma. Após participar de um
embate, o militar aproxima-se da imagem e, contrito, valendo-se da mão esquerda,
lança contra ela um punhado de terra apanhado ao chão. A seguir, com a outra mão
empunhando uma vasilha com água, lava na imagem a mácula deixada pela terra.
Comportamento ritualístico como o que foi narrado nos instiga a aumentar a
compreensão quanto ao potencial representado por o Jorge como símbolo
sagrado a incendiar o imaginário do ser humano.
No livro O Homem E Seus Símbolos
51
, Jung trabalha de forma bastante rica e
associativa a presença do mito do herói e suas amplificações na cultura da
humanidade através dos tempos.
O autor, mencionando diversos exemplos em que se configura a presença do
herói, recorre à lenda de o Jorge na batalha contra um dragão para salvar a
integridade da donzela que se achava sob seu jugo. Para ilustrar sua narrativa, Jung
recorre a uma pintura italiana do século XV, onde estão presentes os componentes
mencionados.
50
Com a derrota de Napoleão na França, por volta de 1815 aportou no Rio de Janeiro um grupo de
refugiados franceses, composto de artesãos, artífices, pintores e homens de ciência, os quais por um
decreto de D. João VI, passaram a ser identificados como Missão Artística Francesa. A contribuição
dessas pessoas constituiu os alicerces de uma civilização brasileira num país em formação.
51
Cf. Carl Gustav JUNG, O homem e seus símbolos, p. 122-123.
52
Na compreensão do médico psicanalista suíço, os heróis lutam contra os
monstros para salvar a donzela, representando essa, sua própria anima.
Ainda a propósito do mito do herói, Jung traça as seguintes considerações:
O mito do herói é o mais comum e o mais conhecido em todo o mundo.
Encontramo-lo na mitologia clássica da Grécia e de Roma, na Idade Média,
no Extremo Oriente e entre as tribos primitivas contemporâneas. Tem um
poder de sedução dramática flagrante e apesar de menos aparente, uma
importância psicológica profunda. São mitos que variam muito nos seus
detalhes, mas quando mais os examinamos mais percebemos o quanto se
assemelham na sua estrutura. Isto quer dizer que guardam uma forma
universal mesmo quando desenvolvidos por grupos ou por indivíduos sem
qualquer contato social entre si, como por exemplo as tribos africanas e os
índios norte-americanos e os gregos e esses com os incas do Peru.
52
No caso do objeto de nossa pesquisa envolvendo o sincretismo existente
entre São Jorge e o Orixá Ogum, ambos unificados na imagem do Santo Milagroso
que vai à frente da Umbanda abrindo-lhe os caminhos, dá-se um exemplo
representativo dessa apreciação feita por Jung.
52
Carl Gustav JUNG, O homem e seus símbolos, p. 122-123.
53
O mesmo Orixá Ogum que em o Paulo é reconhecido como o guerreiro
São Jorge, na Bahia está associado à imagem piedosa de Santo Antonio. A
explicação plausível para essa aparente contradição, qual seja, Ogum estar
associado a santos católicos tão distintos, deve-se a fatos procedentes do período
colonial e hábitos brasileiros de então, tirados à metrópole. Nessa época a Cidade
de Salvador, a exemplo de outros quadrantes do território nacional, era ocupada
pelas tropas do exército português. Tradicionalista, reproduzindo um costume
medieval, a arma da infantaria costumava levar para o campo de batalha um andor
com o santo patrono da companhia. Esse santo-guerreiro, escolhido em comum
acordo pelos soldados, participava dos embates mais severos e, na medida em que
ocorriam vitórias, recebia como forma de retribuição, galões que indicavam sua
promoção na hierarquia militar. Grosso-modo, é como se o santo se assentasse
praça, seguindo-se a essa condição as patentes de cabo, sargento, tenente etc.
Dentro desse contexto, aconteceu que numa determinada companhia
estacionada em território baiano, o santo de devoção era Santo Antonio. Daí, por
força do sincretismo, aos olhos do escravo negro, Santo Antônio era um santo
guerreiro, razão pela qual foi possível projeta-lo no Orixá Ogum. Certamente decorre
dessa explicação o emprego popular da expressão surrado como um Santo Antonio
de batalha quando alguém se refere à alguma pessoa com quem se pode contar por
pior que sejam as condições, graças à sua experiência.
Amplificando o que se passa com São Jorge, Santo Antônio, Ogum e o
poder arquetípico contido na representação das imagens, lembraria que o mesmo se
com outros Orixás, como é o caso de Oxossi no Rio de Janeiro e em São Paulo
ser reconhecido com São Sebastião, enquanto que no território baiano, o Rei das
Matas atende por São Benedito. No Rio Grande do Sul, terra em que a tradição dos
Orixás é reconhecida também pela denominação de Batuque, Exu está nas
tronqueiras
53
sincretizado em São Pedro, enquanto que em Cuba, nos ritos da
Santeria
54
, o Mensageiro, outra denominação que lhe é atribuída, está assentado na
manjedoura como o Menino Jesus.
53
Designação utilizada nos cultos afro-brasileiros para se referir ao espaço do terreiro destinado aos
Exus. O nome está associado ao tronco onde foram supliciados os escravos e nos quais eram por
eles “assentadas” essas entidades de esquerda, que lhe ofereciam em retribuição, força para resistir
aos castigos e poder para vingá-los.
54
Sincretismo religioso de origem afro-americana existente em Cuba, com muitas semelhanças com
a Umbanda no Brasil.
54
Esses ensinamentos me foram relatados em conversas mantidas com Pai
Jamil Rachid, o qual os recolheu através da tradição oral na época em que realizou
suas andanças pela Bahia. Certamente cada um dos sincretismos lembrados, a
exemplo dos que foram citados, possui sua explicação, sua razão de ser.
Vêem-me à lembrança o episódio em que indaguei ao Pai Jamil, sobre quais
seriam os argumentos para justificar São Pedro assentado na tronqueira como Exu,
algo que me parecia esdrúxulo num primeiro momento. Em resposta fui agraciado
com a seguinte explicação:
São Pedro, tradicionalmente é o porteiro do céu. No texto bíblico Jesus
entregou para ele suas chaves, afirmando que sobre essas, o demônio não
prevaleceria. Exu também é porteiro, cabendo a ele não somente a condição
de protetor do portal do Orum (céu, plano espiritual), como o portão dos
cemitérios, estando firmado à esquerda de quem atravessa seu limiar.
55
para entender o sincretismo de Exu com Menino Jesus
no Caribe, ocorreu-
me como referência um ponto cantado nas sessões de esquerda, do qual faz parte a
seguinte estrofe:
Exu, que tem duas cabeças
ele é Pomba–Gira de fé,
uma é Satanás no inferno,
outra é Jesus Nazaré.
Considerando até aqui o material apresentado, as informações coligidas e as
apreciações feitas, tenho a sensação de ter conseguido passar um pouco da
Umbanda que a mim faz sentido, enquanto devoto e pesquisador. A Umbanda
tradição religiosa que se constitui em amalgama das três principais etnias que
formam a racialidade brasileira. A Umbanda, esse sincretismo religioso marginal
56
,
como aludem Fernando Brumana e Elda Martínez, não com o sentido do julgamento
moral que se aplica ao crime e a contravenção, mas a tudo o que foi posto à
margem, por um pragmatismo utilitário, próprio do capitalismo na sua versão de
55
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 22/11/2009.
56
Cf. Fernando BRUMANA, Elda MARTINEZ, Marginalia sagrada.
55
sociedade excludente. Agrada-me na Umbanda, a simplicidade dos umbandistas. O
fato desses se constituírem de pessoas advindas de todas as procedências, de
todos os credos, prevalecendo como matriz de sua formação racial o negro. O
chamado povão está na Umbanda. Recentemente participava eu de uma
assembléia da União de Tendas, quando fui brindado pelo orador com um discurso,
mais ou menos nos seguintes termos: “os pastores da Universal estão enganados
quando imaginam que o queremos ser pobres. A pobreza não nos envergonha.
Tenho o maior respeito por quem deseje ter seu carrinho; mas não é com Deus que
vou fazer esse negócio. Deus está muito ocupado prá se meter em assuntos de
prestação”. Inflamando-se, prosseguiu o orador:
... o brasileiro é o povo mais religioso do mundo. Mas não basta ser religioso,
tem que ser inteligente para entender de Deus. Quem sabe das coisas que
vão ao coração D‘ele, já percebeu que não interessa pra natureza, as áreas
pretas, como são as estradas de asfalto, mas, sim as áreas verdes, aquelas
que são bonitas sem os enfeites de automóveis, fábricas e poluição.
E concluindo disse: “Não sei se vocês entendem do que estou falando... mas
agradeço e peço desculpas se ofendi alguém. Essas palavras não são minhas, mas
de algum guia que encostou em mim”. Foi aplaudido de pé.
Zélio de Moraes, o criador da Tenda Nossa Senhora da Piedade, tinha
dezessete anos, quando incorporado do Caboclo das Sete Encruzilhadas, fundou a
Umbanda tal como nós a conhecemos. Seus preceitos para uma nova religião,
foram bastante sugestivos. Devesse a mesma ser praticada por médiuns vestidos de
branco, representando essa cor a pureza de seus ideais. As casas de culto seriam
chamadas de tendas, tal a simplicidade prevista para uma arquitetura sem
ostentações. Os participantes se reconheceriam como irmãos, guardando entre si
os princípios de amizade e respeito. As imagens, qualquer que fosse o santo, seriam
produzidas em gesso como reconhecimento da impermanência da matéria face à
duração do tempo.
Basicamente são esses os preceitos que regem Umbanda. Através deles se
manifestam Orixás, caboclos, preto-velhas, baianos, boiadeiros, ciganos, crianças,
encantados e outros seres eventualmente menos conhecidos. O universo
umbandista é ilimitado, permanecendo aberto para manifestações de criaturas
56
jamais suspeitadas. Como exemplo dessa pluralidade, atente para o exemplo que
passo a contar.
Em certa oportunidade, conversando com um Pai de Santo, abordei-o quanto
à sua experiência mais exótica em matéria de presença em incorporação de seres
do astral. Puxando pela memória, lembrou-se de um terreiro seu conhecido, onde se
incorporava uma legião de esquimós. Fiquei surpreso, por jamais haver suposto a
presença de habitantes do Ártico no campo mediúnico brasileiro. Pensando sobre o
assunto, inadvertidamente comentei o fato com outras pessoas, as quais ficaram
igualmente curiosas por mais informações sobre o assunto. Num belo dia, ao acaso,
tornei-me a encontrar com a referido sacerdote e me aproveitei para obter
informações complementares. Qual não foi minha surpresa, tudo não passara de um
equívoco: na realidade tratava-se de pigmeus, e não esquimós como dissera por
engano.
Diante de equívocos dessa natureza, deixo consignada minha advertência:
fiquemos atentos à etnografia, mas nada poderá nos salvar de que pigmeus sejam
tomados por esquimós.
Para ampliarmos nossa compreensão sobre a Umbanda, as várias linhas que
compõem o seu brocado, a importância que exerceu a criação da União de Tendas
e a Procissão de São Jorge na construção da religião em São Paulo, no próximo
capítulo entrevistamos o Babalorixá Jamil Rachid, que ao longo de seis décadas de
sacerdócio, esteve presente em tudo que de significativo houve com a religião neste
pedaço do Brasil.
57
CAPÍTULO II: DE INDUSTRIAL A BABALORIXÁ
“Neste capítulo enfoco a personalidade instigante de Jamil
Rachid, pessoa de origem pobre, filho de imigrantes
libaneses, que a despeito das agruras suplantou os
obstáculos postos pela vida, tornando-se o principal
responsável pela manutenção da Procissão de São Jorge
por 52 anos.”
O ano de 2009 foi para Jamil Rachid uma data de jubileu. Em sua vida de
religioso desde moço, no decorrer dos tempos foi se consumando sacerdote até
chegar a nossos dias com farto repertório de experiências acumuladas em 60 anos
de Pai de Santo na Umbanda e cinco décadas como Babalorixá do Candomblé.
Nascido em 12 de janeiro de 1933 no Município de Nova Granada, Estado de
São Paulo, sua procedência árabe lhe foi herdada dos pais, imigrantes nascidos no
Líbano que para o Brasil vieram quando crianças, em meio a suas famílias.
Seu ambiente de infância foi compartilhado entre estrangeiros de várias
nacionalidades, principalmente espanhóis, o que no seu entender explica a vertente
do espírito alegre, extrovertido e brincalhão de que é detentor. Minha lembrança
mais antiga recorda Jamil, me leva para junto de meus pai e avô, dois mascates de
profissão, percorrendo de porta em porta, no lombo do burro, as ruas de São José
do Rio Preto. Nessa época, explica Pai Jamil
57
, Nova Granada era um povoado,
estando o grosso da clientela no município vizinho. O comerciante, filosofa, é amigo
de todos, não pode ter inimigos:
Meu avô e meu pai eram pessoas alegres, comunicativas, puxavam conversa
com todo mundo e tinham na ponta da língua o nome da freguesia. Só
vendiam a prestação e acredite, nunca tomaram um calote. Contavam casos
curiosos. Certa feita, quando retornavam de Santos onde foram buscar
mercadorias, depararam com o translado de um homem que morrera em
nossa cidade e era transportado para o cemitério de Barretos. Qual não foi o
espanto ao serem reconhecidos pela viúva, que interrompeu o cortejo para
57
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
58
que pudesse acertar com meu avô o pagamento de uma dívida que o falecido
recomendara como seu último desejo. Uma vez a cada dois meses meu avô
vinha de trem fazer compras na capital.
58
Lembra Pai Jamil como era penoso ver aquele homem franzino, carregado de
pacotes e malas, sozinho, dormido em cima das bagagens, para trazer para o
interior as encomendas que eram feitas:
A vida era difícil. mais tarde, quando mudamos para São José dos
Campos, no Vale do Paraíba, a família se estabilizou um pouco
financeiramente, ao montarmos um armazém de secos e molhados. Pequeno,
recorda, eu ajudava no balcão. Vendíamos de tudo: de azeitona à bala de
revolver, de anzol à cabide de roupa, mas o que mais saia eram os tecidos,
os aviamentos de costura e a venda de pães e doces, a especialidade de
minha mãe.
59
Mas essa não seria a última parada no trajeto dos Rachid. Depois de ter
conhecido tempos melhores, quando o avô chegou a se eleger Prefeito da cidade,
seu falecimento acarretou rapidamente o desmoronamento dos negócios e vieram
todos, de mãos vazias, para São Paulo residir no Bairro do Tatuapé.
Ali, juntamente com os seus, conheceu os desafios da cidade grande,
conviveu com a população mais pobre, aprendeu na própria pele o peso das
discriminações sociais e de crença. Talvez, diz Pai Jamil:
... minha paixão pelo desconhecido e o interesse na busca de novos
caminhos, veio de ter convivido com tantas coisas diferentes num período de
tempo tão curto. E prossegue: desde criança, os dias para mim eram sempre
uma novidade. Nunca fui de pensar muito pra tomar uma decisão. O que tinha
que ser, era... Espanta-me quando dizem que sou um defensor da liberdade
dos cultos afro-brasileiros em São Paulo, no Brasil. Quando lembro de tudo
que aconteceu, como aconteceu e continua acontecendo, eu penso: poderia
ter feito outra coisa? Nem consigo imaginar...
60
Como dizem os árabes ou os Orixás, está tudo escrito. Os zios mostram
para os homens os Odus, ou seja, os caminhos, e nós, peregrinos, caminhamos por
58
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
59
IDEM, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
60
IDEM, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
59
eles eternamente. Para exemplificar seu pensamento, faz uma menção aos
tuaregues no deserto; esse povo andarilho que vive em baixo de tendas e em cima
de camelos é sagrado. Vivendo no deserto sob o sol e as estrelas, são uma
reprodução da raça humana em busca do seu destino. Cada dia é um dia. Pouco
importa de onde viemos e para onde vamos, se o dia de hoje não for valorizado e a
criatura não for feliz; conclui.
No contato com Jamil Rachid a observação da forma como fluem as suas
idéias, dão-nos a percepção de que a vida é sua professora e o mundo a sala de
aula aonde vai se graduando. Sua biografia é instigante e povoada de
acontecimentos que denotam altruísmo, desprendimento e um imenso desejo de
auxiliar o país que acolheu seus antepassados e à sua descendência. Para melhor
ilustrar os passos dessa trajetória, datamos alguns episódios significativos que
possibilitam uma melhor compreensão da pessoa à qual nos referimos.
Em 1947 iniciou o desenvolvimento de sua mediunidade com Euclides
Barbosa, o querido Pai Jaú, craque de futebol do Corinthians Paulista que se
notabilizou não pela atuação nos esportes, mas principalmente, como divulgador
da Umbanda em São Paulo.
Pai Jaú foi o fundador do Templo Espiritualista São Lázaro, no Bairro do
Macedo, em Guarulhos, onde, desde 1930, mantinha em sua casa religiosa,
segundo o testemunho de seus descendentes, a mais rigorosa disciplina aos
ensinamentos da doutrina umbandista.
No mês de dezembro de 1950, com o consentimento de Pai Jaú que enaltecia
sua extraordinária mediunidade, jovem e investido da responsabilidade sacerdotal
no culto, fundou no Jardim Buturuçu, em São Miguel Paulista, o núcleo de
desenvolvimento mediúnico que viria a se transformar no Templo Espiritualista de
Confraternização de Umbanda São Benedito. Desde então, à frente dessa casa de
devoção, transferiu-a para o bairro de Pinheiros, inaugurando em 1957, suas
instalações definitivas à Rua Alves Guimarães nº 940.
Outra datação importante em sua caminhada de aperfeiçoamento pessoal
rumo ao compromisso sacerdotal, foi em 1960, ano em que tendo viajado para São
João do Meriti, na baixada fluminense, iniciou-se no Candomblé da nação Gege-
60
Marrin, com Doté Fomotinho, nome religioso adotado pelo baiano de Cachoeira de
São Felix, Sr. Antônio Pinto.
Considerando-se o valor atribuído no Candomblé à hierarquia e
ancestralidade de seus integrantes, é importante ressaltar que Tatá Fomotinho foi
criado e desenvolvido como Filho de Santo de Dona Maria Angorense, a Mãe
Gaiakú da roça do Ventura. Esse Babalorixá de nome Ventura, africano de
ascendência Gêge, antes de ser capturado como escravo e trazido para o Brasil,
segundo velhas histórias repetidas nos iles do Bonfim, era sacerdote em sua nação
de origem. Chegando ao Brasil, recusou-se à escravidão, fugido do cativeiro e se
instalado na referida localidade denominada Cachoeira de São Felix, onde ainda
residem descendentes do quilombo.
Mas retornemos a Jamil Rachid e aos fatos que consideramos relevantes
para melhor explicar seu protagonismo à frente da procissão de São Jorge. Tendo
participado desde o início do núcleo que constituiu em 1955 a entidade federativa
que viria a denominar-se União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil, com
o falecimento de seu idealizador, Dr. Luiz Carlos de Moura Accioly, Pai Jamil
assumiu a Presidência do órgão em 1967, mantendo-se no cargo 42 anos.
investido dessa responsabilidade de liderança, acreditando num jornalismo formador
e de divulgação dirigido às comunidades da Umbanda e do Candomblé, em 1972
criou o Jornal Aruanda, órgão de imprensa auto intitulado representante dos cultos
afro-brasileiros. Essa publicação teve regularidade na maior parte do tempo de sua
existência, mantendo-se ativa por nove anos. Nos anos setenta, sua fase de
incursão no mundo das letras, publicou ainda A Força Mágica da Mediunidade na
Umbanda
61
, livro que teve cinco edições e cujo conteúdo é bastante apreciado pelo
público umbandista em todo o Brasil.
No início do novo milênio, na qualidade de representante brasileiro dos cultos
afro-descendentes, em agosto do ano 2000, na sede da ONU em Nova York,
participou da Conferência Mundial da Paz para o Planeta, encontro inter-religioso de
lideranças promovido pela UNESCO. Apesar da importância do acontecimento e da
satisfação que lhe causou o fato de integrar a comitiva brasileira que participava de
um evento internacional dessa relevância, em sua vida nada se comparou ao
61
Cf. Jamil RACHID, A força mágica da mediunidade na Umbanda.
61
sentimento de realização experimentado em 2007, no Ginásio do Ibirapuera, quando
comemorou pela 50ª vez a realização da Procissão de São Jorge.
Os anos de muito trabalho não retiraram de seu estilo de agir o vigor e,apesar
de seus quase 80 anos, mantêm-se trabalhador ativo nas seguintes instituições:
- Vale dos Orixás, entidade de utilidade pública localizada no Município de
Juquitiba, que tem por finalidade acolher os devotos da Umbanda e do Candomblé
em suas atividades ritualísticas junto à natureza. Foi o fundador do Vale dos Orixás
juntamente com Demétrio Domingues, da Associação Paulista de Umbanda,
exercendo sua presidência desde então.
- Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo, entidade federativa
da qual foi um dos fundadores, ocupando atualmente a Presidência do Conselho
Consultivo.
- Parlamento Internacional Ecumênico da Fraternidade, entidade pública
criada pela Legião da Boa Vontade, aonde exerce a função de parlamentar
representante dos cultos afro-descendentes.
- União Municipal Umbandista de Guarulhos, Presidente desde 1986.
- Academia Maçônica de Letras, tendo assento na cadeira nº. 36, cujo patrono
é Allan Kardec.
Em face de todos os feitos realizados em prol da liberdade religiosa e em
defesa da cidadania em São Paulo, a Câmara Municipal de São Paulo, em Sessão
Solene, através de projeto apresentado pelos Vereadores Jamil Murad e Netinho de
Paula do PC do B, achou por bem conceder O Título de Cidadão Paulistano ao
Babalorixá Jamil Rachid. Ao fazê-lo, a Edilidade Paulistana ampliou suas
congratulações a todos os babalorixás, yalorixás e filhos de santo da Umbanda e do
Candomblé, no ano em que a Umbanda comemorou 101 anos de seu surgimento no
Brasil.
No âmbito da fé, Pai Jamil e eu mantemos uma convivência produtiva há mais
de 20 anos. Foi ele quem me recolheu na camarinha da Tenda São Benedito,
quando nas delicadezas da crença ofereci meu primeiro obí.
Como informação para o leitor menos familiarizado com a terminologia do
povo do santo, camarinha é a denominação dada às instalações de um terreiro
62
destinadas ao acolhimento do devoto em obrigações de ritual. Quanto ao obi, trata-
se de uma fruta produzida pela árvore da cola, de origem africana, considerada de
importância sagrada na nação Gêge-Marrin, à qual Pai Jamil está ligado pela
ancestralidade religiosa
62
.
Embora nossa convivência quase diária seja definida pela informalidade, para
a consecução desta entrevista, assumimos uma postura mais cerimoniosa que a
habitual.
Dei inicio ao diálogo anunciando meu interesse em esclarecer dados ligados
ao surgimento da procissão de São Jorge - Orixá Ogum, na Umbanda de São Paulo,
e a importância que este evento adquiriu na sua consolidação. Relembrei-o de
contatos anteriores que tivemos com esse objetivo, ressaltando ser este o objeto da
minha dissertação de mestrado no Programa de Ciências da Religião na PUC – SP.
Para efeito de contextualização da conversa, resumi em poucas palavras
minha hipótese de pesquisa, comentando como no meu entendimento observo a
relação intrínseca existente entre o surgimento e a manutenção da Procissão de São
Jorge, que dura 52 anos, e a estruturação da Umbanda como devoção religiosa
junto à população da cidade.
Para facilitar a coleta dos dados, eu portava além de papel e caneta, um
pequeno gravador. Ante a perspectiva do registro sonoro, Pai Jamil gracejou: “Ih...
vou ter que falar a verdade; baixou no Dalmo o caboclo Juruna
63
!”
Juruna, para quem não se recorda, é o nome de um cacique que se tornou
conhecido nos meios políticos de Brasília por carregar consigo um gravador de som.
A justificativa do índio para o uso constante desse aparato eletrônico era explicada
62
O fenômeno sócio-antropologico conhecido por diáspora africana trouxe para o território brasileiro
representantes de nações africanas distintas entre si. A falta de referência acarretada pela captura do
nativo transformado em escravo em seu território de origem produziu um sentimento de
desterritorialidade face à ruptura de seus laços bio-psico-sociais. Uma vez entregue à própria sorte, a
referência mais imediata presente na história do “viajante forçado”, era a embarcação, o navio
negreiro, no qual ele fora transportado. Vem daí o sentimento de irmandade estabelecido entre os
negros que viajavam para um país distante numa mesma embarcação. Nele, está contido o seu “DNA
histórico”, referência que por analogia foi transferida para a cerimônia de iniciação no Candomblé,
quando a aceitação de novos seguidores vem acompanhada da designação: formação de um barco.
Como ancestralidade considera-se a origem da nação à qual o filho esligado, suas tradições, sua
cultura, seu idioma, seu panteão de Deuses.
63
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009. Cacique
Juruna tornou-se figura popular no Rio de Janeiro quando se elegeu Deputado numa frente de
políticos que emergiu do anonimato em apoio a Leonel Brizola quando Governador do Estado.
63
como sendo um recurso por ele utilizado como proteção da verdade em face ao
“costume” dos homens brancos em se desdizerem ao que antes haviam afirmado.
Dada a consigna, talvez por um viés da minha formação como psicólogo,
deixei-me conduzir no diálogo como o observador participante que flutua ao sabor
das percepções. Assim procedendo, minha atenção recaiu inicialmente sobre o
exemplar do Jornal Aruanda, manuseado pelo entrevistado desde quando tomamos
assento para nos falar.
Tratava-se de um exemplar antigo, datado de Julho de 1975, da publicação
que durante nove anos foi o porta-voz do órgão federativo presidido por Pai Jamil,
qual seja, a já mencionada União de Tendas
Na página em que se encontrava aberto, divisei uma propaganda com o
seguinte título: Excursão à terra dos Orixás (Viagem à África Negra).
Seu texto está redigido na forma de um convite aos seguidores e/ou
apreciadores dos cultos afro-brasileiros, oferecendo-lhes, em resumo, uma viagem
cultural e recreativa ao continente africano.
Até nada de surpreendente. No entanto minha atenção voltou-se, tal como
estava anunciado, para a magnitude dos nomes envolvidos no empreendimento.
Para não me estender em maiores considerações, compartilho com o leitor o meu
encantamento, publicando a matéria tal como a mesma está apresentada na
mencionada publicação.
64
Respondendo à minha admiração frente ao anúncio, Pai Jamil foi direto ao
assunto dando as seguintes explicações:
Essa excursão teria sido formidável; pena que não aconteceu.
Foi idealizada em 1972, nos 27 de setembro daquele ano, data de “Cosme e
Damião”; estava eu na Bahia. O mês de setembro para mim é sagrado,
sempre que posso tenho que ir à Bahia. Em setembro tenho um encontro com
meus irmãos de barco na ilha de Itaparica e depois rumamos para Cachoeira
de São Felix, onde fica a roça de minha Madrinha. Somos uma família de
Santo muito unida e nesse ano eu completo 50 anos de feitura da cabeça no
Candomblé. São 50 anos no Candomblé e 60 anos na Umbanda.
Festejar Cosme e Damião” na Bahia, principalmente em Salvador, é mais
importante que a comemoração de um feriado nacional. Quem nunca foi á
Bahia, não tem consciência da alegria daquele povo.
Nesse dia, estávamos passeando no Mercado Central quando entrei na
“lojinha” do Camafeu de Oxossi
64
. Camafeu era uma criatura maravilhosa.
Nós nos conhecíamos da “roça” do meu Padrinho Espiritual, o Tata
Fomotinho.
65
A sala do escritório de Pai Jamil, local em que foi realizada esta entrevista,
tem na parede as fotografias dos principais decanos da Umbanda; dentre esses se
destaca um quadro pintado a óleo de TaFomotinho, ou Doté Fomotinho, nome
religioso de Antônio Pinto, o Babalorixá baiano que em 1960 o iniciou no
Candomblé. Apontando na direção do quadro ele comenta:
conhecer esse homem para mim foi um presente da Providência. O dia em
que eu o conheci era meu aniversário de 28 anos. Naquele dia eu fora para a
Baixada Fluminense, Município de São João do Meriti, em busca da minha
iniciação no Candomblé, o que acabou acontecendo na roça desse
Babalorixá. Era uma pessoa de elevada condição espiritual. Seu nome tinha
um grande prestígio nos iles do povo Gêge. em todo o Brasil. Tata Fomotinho
era natural da Bahia, tendo se iniciado no Santo sob os cuidados de Mãe
Gaiakú, cujo verdadeiro nome era Dona Maria Angorense.
Essa Yalorishá baiana é que vem a ser filha do Ventura de Cachoeira de São
Felix, aquele negro africano que se recusou a ser escravo, tornando-se uma
lenda enquanto viveu. Seus netos carnais, ainda hoje moradores no
Quilombola do Ventura, levam uma vida feliz, como se ainda morassem na
África. Os mais velhos contam que conheceram o velhinho quando ainda
eram crianças, e que o viram com boa saúde até os 110 anos de idade.
64
Segundo Pai Jamil, “Camafeu de Oxossi”, após sua subida”,passou a ser a denominação do
restaurante que serve a melhor moqueca de peixe de Salvador: justa homenagem.
65
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
65
Em meio a essa explanação, reflexivo, Pai Jamil prosseguiu falando:
... eram todos, seres muito iluminados, gente pura, ligados ainda às tradições
de um Brasil rural; daí a denominação de “roça”, para dar nome aos lugares
do Candomblé destinados á realização do culto.
No Candomblé é muito importante a observação das linhagens, de se saber
quem é filho de quem, nascido aonde, vindo de qual lugar, ligado a qual
nação etc.
Nele, o culto aos antepassados tem uma importância fundamental. Por conta
do respeito devido aos que se foram e à sua memória, em certa ocasião
tive a felicidade de ser presenteado, por este quadro aqui, que mostra bem a
pessoa de Tata Fomotinho; tenho por essa tela o maior carinho. O pintor,
quando a criou, conseguiu captar com toda a fidelidade, a melhor das
qualidades humanas, qual seja, a simplicidade. Mas, repare, simplicidade e
ingenuidade são coisas diferentes. Tata Fomotinho não é apenas um homem
simples, mas alguém de muita firmeza na expressão dos olhos e até na
maneira de se sentar. Não me recordo da idade que ele tinha quando fez a
passagem, mas até hoje é muito lembrado como pessoa trabalhadora, que de
tudo fazia pra ajudar aqueles que o procurassem.
Outra representação dos antepassados que me dá muita alegria, diz Pai
Jamil, é a foto que eu obtive na Bahia de Dona Maria Angorense, minha
Avó de Santo. Essa senhora dispensa apresentações quando se fala dela no
meio do povo do santo. Segundo consta, era a filha mais nova na
descendência do velho Ventura.
Se o velho foi Rei lá na África, herdou sua realeza para essa filha que veio ter
aqui no Brasil. Veja está foto. A imponência de mãe Gaiakú, não faz lembrar o
porte de uma rainha Africana? Pena que eu não possa lhe entregar essa foto
para publicação. Mostrá-la ainda é possível, mas em caráter reservado.
Publicar, nem pensar... é quizila do santo
66
.
Esses documentos que você são importantes: tanto a foto quanto a
pintura. Além desses elementos, existe o relato verbal; esse que vai
passando de geração em geração, através da boca para o ouvido. Assim é a
nossa tradição...
67
Como forma de exemplificar o que está sendo tratado, Pai Jamil chama a
atenção para o que acontece naquele momento em que dialogam entrevistado e
entrevistador. Diz:
... veja você como se passam essas coisas, aqui em nossa casa. Sendo você
meu filho de santo, vem a ser neto de Tata Fomotinho e bisneto da Mãe
Gaiakú, sem falarmos no velho Ventura e suas antiguidades na África.
66
Quizila do santo: espécie de idiossincrasia que cada Orixá tem a sua. Ao devoto cabe respeitá-las,
e pronto.
67
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
66
Você não imagina a força que tem uma corrente dessas no astral. É
importante que tudo isso que está sendo conversado e explicado aqui e
agora, seja registrado não no gravador, mas principalmente no
magnetismo de sua coroa, para que seja levado pra frente e não se percam
as tradições.
68
Nesse momento, entrevistado e entrevistador se dão conta de que o assunto
da viagem à África, precisa ser retomado (risos).
Mas, voltando ao nosso Cosme e Damião baiano, lembro-me, diz Pai Jamil,
que a nossa delegação de São Paulo em Salvador para o festejo dos erês,
era formada simplesmente por mim e o Toninho di Santi, o melhor Relações
Públicas que a “União de Tendas” teve. Entramos no Mercado Modelo e
fomos parar no estabelecimento do Camafeu de Oxossi.
Ao me reconhecer, Camafeu foi muito efusivo. Fazendo questão de nos
anunciar aos presentes, colocou-nos na roda dos convidados ilustres. Era
muita conversa, muita risada, barulho de copos e garrafas aumentando o
ruído do puxar das cadeiras no piso de vermelhão. Baianos e gente de fora,
formavam uma turma feliz, descontraída, de pessoas vindas de longe para se
confraternizarem na alegria do Axé.
Para acomodar os novos integrantes, juntaram-se as mesas e nos sentamos
em torno delas, onde, descontraídos, conversávamos e bebíamos cerveja.
Na distribuição dos lugares, coube-me sentar ao lado de Jorge Amado,
quem eu muito admirava, mas nunca fora apresentado. Foi atencioso
conosco, procurando logo de inicio nos entrosar nos assuntos, embora
advertisse que os mesmos, naquela altura do campeonato, davam mais
“cabeçadas que pipa na mão de menino”.
faltava o Dorival Caimi (risos), porque os demais eram todos pessoas de
muito destaque social. Éramos uns trinta, dentre os quais eu destacaria o
Carybé, Pierre Verger, Mestre Didi (filho de Mãe Senhora), Grande Otelo, o
Antonio Olinto da Academia Brasileira de Letras e muitas outras pessoas,
todos eles, personalidades interessantes, gente conhecida no Brasil inteiro.
Pierre Verger contava das viagens de navio que fazia nas costas da África
francesa, principalmente no antigo Dahomé. Lembrava-nos de que aquilo
tudo tinha sido possessão francesa e, ele, falando bem o idioma oficial, mais
as formas de expressões nativas, tinha facilidade para andar em todas
aquelas aldeias. Foi numa dessas viagens que obteve o titulo de Fatumbí,
que veio a acrescentar ao seu nome. Fatumbi quer dizer, se não me engano,
diz Pai Jamil, renascido, ou significa um titulo sacerdotal que lhe foi oferecido;
não me lembro bem.
Mas retornando ao assunto, falávamos sobre a África que alguns a
conheciam, enquanto outros expressavam um enorme desejo de vir a fazê-lo.
Como já disse, o ambiente era alegre e descontraído.
68
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
67
Enquanto contávamos casos, Jorge Amado, como um roteirista, teve a idéia
de construir o que seria uma “viagem dos sonhos”
69
à África. Ele mesmo
fazia os apontamentos no caderno, enquanto cada um de nós contribuía com
uma sugestão que era cuidadosamente anotada.
Em quase duas horas de conversas e risadas (já estávamos todos amigos), a
viagem já tinha navio, tripulação, programação de bordo, trajeto e claro,
nossos nomes como integrantes da comitiva (risos).
Concluindo o assunto, Jorge Amado com aquele jeitão de bom baiano, me
entregou os apontamentos, dizendo: isto aqui fica com o Jamil. Ele é de São
Paulo e lá é que sabem organizar essas coisas (risos).
Ao retornar de Salvador, conversando sobre o que passara com o Jaime
Alcântara, um irmão nosso muito querido (e muito preparado), ele
transformou aquele amontoado de anotações num projeto turístico; este que
você vê agora anunciado em “Aruanda”.
Na época, acredite, uma porção de pessoas ficou muito interessada, em ir à
excursão: telefonavam, deixavam o nome para uma inscrição futura etc. Pena
que não deu certo... Era todo mundo muito ocupado.
Nessa época eu havia estado na África. Estava desejoso para ir
novamente, o que depois graças aos Orixás, acabou acontecendo. Mas era
uma época de muita correria. “Nós ainda fazíamos a construção da igreja;
viajávamos para os muitos lugares em que criamos nossas subsedes da
“União de Tendas” e, coisas bonitas e importantes como essa ficaram
largadas para um dia...”.
70
Quem sabe se na eternidade, lá no astral, nós todos não faremos um dia essa
viagem? Já pensou? Aí eu incluiria você e a Lady (risos).
Lady é o nome da cadelinha de Pai Jamil que esteve presente em seu colo
durante toda a entrevista. Prosseguindo, Pai Jamil continuou seu relato:
Naquela ocasião eu viajava sempre com o Toninho di Santi. Ele era o
Relações Públicas e talvez por causa disso gostava muito de conversar com
as pessoas. Era alegre, brincalhão, comunicativo e tinha uma facilidade
incrível de se relacionar, fosse qual fosse a situação. Jorge Amado gostou
muito de conversar com ele. Na “escalação” das pessoas que integrariam a
viagem à África, referindo-se ao Toninho, comentou:
- Não podemos esquecer o comendador Antonio di Santi.
Toninho, que tinha sempre uma enorme presença de espírito, respondeu de
imediato:
- Calma; aqui na Bahia eu sou apenas um paulistano, “comentador” aqui, é
você. (todos riram).
Depois dessa conversarada toda, garrafas de cerveja e lulas fritas,
acompanhados de um bando de crianças fomos distribuir doces na praia
69
A adjetivação, ”viaje dos sonhos” foi sugerida por mim, o entrevistador.
70
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
68
em frente ao Hilton Hotel. Não me lembro se é o Hilton... na Bahia tem
Hilton?
na areia, frente ao mar, quem liderou a oferenda foi o Camafeu de Oxossi.
Os doces, que eram muitos, foram doação do Naim, um dos participantes da
roda. O Naim era engraçado. Tinha muita popularidade em Salvador.
Comerciante, ficou rico vendendo produtos que ele importava da África para
as lojas de materiais religiosos do Axé; sua distribuidora atingia o Brasil
inteiro.
Era um dos muitos turcos” que moravam em Salvador e, segundo Jorge
Amado, era o embaixador da “turcarada” na costa sul do Atlântico.
71
Sempre com sua memória ativa, Pai Jamil afirmou que esteve com Jorge
Amado apenas duas vezes. A primeira foi nesse Cosme e Damião e a outra foi
durante o Congresso Internacional dos Cultos Afro realizado pouco depois em
Salvador. Foi um congresso importante para projetar a Umbanda, recorda; tanto
Jorge Amado quanto eu fomos convidados a ocupar um lugar na tribuna.
Fotografaram-nos juntos e o assunto foi até matéria publicada no Jornal Aruanda.
Referindo-se a Jorge Amado afirma: “era uma pessoa muito boa. Ele foi
durante muito tempo o coração do Brasil. Tudo o que acontecia de sucesso: livros,
cinema, televisão, teatro, passava por dentro dele... Uma inteligência e, como
gostava do povo”
72
.
Retornando à minha narrativa de interlocutor (eu, Dalmo, o pesquisador)
gostaria de me justificar pela extensão conferida ao assunto ora tratado, tendo em
conta que ele foi apenas um despoletador da entrevista.
Ao me estender, tive como propósito revelar aos olhos do leitor um pouco da
riqueza inerente à personalidade do entrevistado, o qual, dono de mente irrequieta,
criativa e de prodigiosa memória, tem a capacidade de nos reportar a fatos
aparentemente corriqueiros, mas que no meu entender, se constituem nas muitas
linhas coloridas que tecem o brocado primoroso de que é formada a Umbanda.
Feitas essas considerações, retorno ao conteúdo da gravação da entrevista.
Nela peço informações quanto ao surgimento da Tenda São Benedito em 1950.
Esse terreiro, criado pelo Pai Jamil, na atualidade constitui-se no estabelecimento de
culto mais antigo da religião em São Paulo.
71
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
72
IDEM, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
69
Sobre o assunto Pai Jamil relatou uma quantidade farta de informações, as
quais certamente se constituem em novidades para a maioria dos umbandistas.
Vejamos:
Nosso primeiro endereço foi na Avenida Guarulhos no. 340. Estávamos
localizados bem no comecinho dela, no final da Rua da Penha, bairro da
Penha, ainda no município de São Paulo. Na mesma via, no número 325
ficava nossa indústria de aparelhos elétricos, empresa que eu tinha em
sociedade com o Décio Pereira da Silva. Décio também era da religião e
tornamo-nos sócios da Indústria de aparelhos elétricos Jaedec Ltda. Esta
sigla era a combinação de nossos nomes “Jamil e Décio”.
O Décio sempre foi um bom amigo; parece que Deus nos colocou de
propósito, um no caminho do outro. Mais velho do que eu, logo, mais
experiente da vida, nos conhecemos trabalhando na Industria de Aparelhos
Elétricos Vitor Ltda., empresa lá de Guarulhos.
A indústria fabricava chuveiros e nela éramos companheiros de trabalho. Eu
trabalhava na sessão de chuveiros automáticos e ele na de chuveiros
manuais. Embora fossemos colegas, nossa camaradagem teve inicio no
terreiro do Pai Jaú, lugar que comecei a freqüentar ainda com catorze anos
de idade.
Pai Jaú, cujo verdadeiro nome é Euclides Barbosa, antes de ser sacerdote foi
consagrado jogador de futebol. Começou na Portuguesa de Desportos, em
São Paulo, jogou no Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, e chegou a participar
da Seleção Brasileira nos anos 30. No entanto, a fase mais brilhante de sua
carreira em matéria de popularidade, se deu quando ingressou por fim no
Corinthians Paulista.
Nascido na Bahia, no inicio do século XX, comou sua vida de espiritualismo
primeiramente nos terreiros de Candomblé ligados a nação keto. Nessa
ocasião quem o iniciou nos Ariaxés do Santo foi Pai Bernardino, nome
lembrado com muito respeito nos terreiros de Salvador.
Embora apreciasse muito o Candomblé, veio a conhecer numa Gira de
Caboclo (acho que era gente de Angola) Mãe Firmina, que também era
baiana. Foi que ele passou a trabalhar com todas as linhas de entidades,
aderindo à Umbanda e se tornando o maior divulgador da religião em São
Paulo.
73
Nesse momento, Pai Jamil, de posse de uma caneta e papel, rascunhou o
que no seu entender, seria uma espécie de árvore genealógica da sua
espiritualidade. Referindo-se á ascendência de Pai Jaú, explicou que o povo de
Angola correspondia aos negros que primeiro chegaram ao Brasil, enquanto a nação
Keto seriam os últimos. Os primeiros, chegados ainda no século XVI, foram
perdendo sua identidade e se misturando com índios e brancos. Por conta dessa
73
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
70
miscigenação surgiu a Cabula e o chamado Candomblé de Caboclo, muito presente
no sul da Bahia. no caso do povo Keto, chegado por último, manteve-se mais
ligado às suas origens africanas. Aproveitando o assunto Pai Jamil cantarola um
ponto de Caboclo cantado no Rio de Janeiro em homenagem ao Seu Pelintra,
entidade mítica que entrelaçaria a Umbanda com o Candomblé.
Olha meu camarada,
Camarada meu,
Seu Zé Pelintra que chegou aqui agora,
Candomblé bate no Keto,
Umbanda bate em Angola.
Mas voltando a falar em Pai Jaú, Pai Jamil não consegue disfarçar sua
enorme admiração pelo responsável de seu ingresso na religião:
Jaú era fora de série, ninguém podia com ele. Tal era a sua popularidade, que
em São Paulo, nos anos 70, aos domingos, ao final das partidas de futebol,
na rádio Panamericana, o Estevan Sangirardi, um radialista e cômico muito
engraçado, tinha na figura do Pai Jaú, o personagem mais comentado do seu
programa chamado “Radio Camanducaia”. Sozinho, o Sangirardi fazia uma
serie de imitações de futebolistas, mas a parte mais importante do programa
se passava na “Tendinha do Pai Jaú”.
A chamada para a sua “entrada” no ar era sempre a mesma (Pai Jamil simula
uma locução radiofônica):
- “Mas enquanto isso, lá na Fazendinha (sede do Corinthians Paulista) na Rua
São Jorge, no Parque do mesmo nome (São Jorge), Pai Jaú conversava
com...” (ouviam-se atabaques, palmas ritmadas e uma espécie de conversa
sussurrada entre um “preto velho” e seu santo amigo e protetor São Jorge).
74
Apesar de todas as perseguições sofridas, Pai Jaú jamais se intimidava,
afirma Pai Jamil:
Sua casa estava sempre cheia de pessoas que o procuravam em busca de
uma palavra amiga ou mesmo de uma consulta com um dos seus guias
espirituais. Na linha dos Caboclos, ele tinha como entidade de frente um índio
maravilhoso chamado Caboclo Orundumba. Quando essa entidade se
74
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
71
manifestava, o chão tremia. Na esquerda ele trabalhava com o Exu Pássaro
Preto e seu Tiriri. Às terças e sextas feiras era impressionante o tempo em
que ele ficava incorporado dando consultas; começava de manhã e ia até à
noite. Nessas ocasiões sua entidade de consulta era um Caboclo chamado
Seu Davi de Congo. Pai Jaú abandonou o futebol em troca da Umbanda. Ele
estava no auge da carreira e de repente recebeu “instruções’ que
abandonasse tudo em nome da religião. Segundo minha opinião veio daí a
popularidade do Corinthians como clube das massas e de São Jorge como o
protetor dos “macumbeiros”, como somos tratados pelas torcidas rivais.
Pai Jaú era zagueiro, mas no campo religioso foi um verdadeiro atacante.
quem diga que foi ele quem trouxe a Umbanda para São Paulo. Não posso
afirmar com absoluta certeza, mas se não foi ele o primeiro foi um dos
primeiros. Era filho de Xangô. Suas palavras tinham muita autoridade. Sua
Tenda foi montada ao lado de sua casa, no bairro do Macedo, em
Guarulhos, ainda nos anos 30. Foi pelas mãos dele que vim parar na
Umbanda. Como filho de Xangô, Pai Jaú fazia muita cura, principalmente dos
males que afetam a cabeça.
Nessa ocasião, ainda mocinho eu padecia de uma incrível enxaqueca.
havia procurado médico, farmacêutico, benzedeira, e ninguém dava conta da
situação. Graças a uns vizinhos fui levado ao Pai Jaú. Assim que me atendeu
foi falando:
- Isso é força de mediunidade. Só cura trabalhando em terreiro.
75
E assim foi. A entrevista segue animada, agora acompanhada de café e
bolinho de chuva:
Mas retornando à minha sociedade com o Décio, posso dizer que ela
prosperou bastante.
Nossa indústria pequenina, quase fundo de quintal, fabricava aquecedores de
água, acendedores de fogão e principalmente ferros para soldar. Esses eram
muito procurados pelos fabricantes e consertadores de rádios, que estavam
vivendo em plena prosperidade de mercado. Em cada esquina havia um
consertador de rádios/ vitrolas e esses eram os nossos melhores
consumidores.
O rádio era a grande distração do povo e sem os nossos soldadores, não
haveria rádio (risos). Falo isso porque a tecnologia na época era muito restrita
e os aparelhos viviam dando problemas. Não existia transistor e os rádios
trabalhavam mesmo era com válvulas. Aquilo dava o maior problema e
agente tinha que ir lá na “Radiolândia” comprar uma reposição. A maior
expansão da indústria na guerra foi o rádio. Conheci gente que ficou rica em
plena guerra, graças à indústria de rádios.
Mas vamos deixar os eletrônicos de lado e falar de espiritualidade. Os
espíritos não precisam de antenas para se comunicar (riso).
76
75
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
76
IDEM, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009
72
Lembrei ao entrevistado onde havíamos parado; recomeçamos no assunto.
Certa tarde, trabalhando, Décio me contou o caso da menina Elisabete. Tinha
três anos de idade e estava muito doentinha. Seus pais, desolados com a
situação da criança, não tinham mais a quem apelar. Era freqüente criança
morrer naquela época. Os recursos da medicina não eram os que existem
hoje. Uma criança estava bem, de repente adoecia, e depois era aquela
tristeza. O índice de mortalidade infantil era elevado, e raramente naquela
época alguma família não perdia uma ou duas crianças. Décio tinha sido
abordado pela avó da criança. Ela sabia da nossa atividade religiosa no Pai
Jaú e pedia para que eu fosse atender a criança a domicilio. Eram pessoas
muito simples, moradores do outro lado da rua. A avó chamava-se Dona
Almerinda Navarro. Nas sessões de atendimento mediúnico, ela consultava-
se sempre com Pai Benedito, minha entidade de cura ligada à corrente do
Velho Obaluaiê.
Foi um desafio; era a minha primeira atuação fora do terreiro e me sentia
muito assustado pela responsabilidade. Naquela situação o Décio foi muito
importante para me incentivar. Ele atuava como cambono e eu era o “cavalo”
que incorporava o guia. Na casa, fomos recebidos pelo Mario e pela Ana, pais
da menina Elisabete.
Feitas as saudações, Pai Benedito foi chamado pelo ponto, chagando firme e
decidido. Cumprimentando os presentes, se encaminhou para o berço da
criança, aonde de joelhos, benzeu-a com água e alecrim. Não tínhamos vela
nem defumador, mas percebíamos uma energia de luz acompanhando a reza
de todos os presentes.
No dia seguinte, deu-se um milagre. A pequena Elisabete acordou sem febre,
alimentou-se e foi brincar no quintal. A suspeita do farmacêutico do bairro,
felizmente estava errada, a menina não tinha paralisia infantil.
A família ficou tão agradecida que ofereceu um cômodo da casa para que
iniciássemos ali um terreiro de Umbanda. Era 1950. Foi no dia 13 de
Dezembro, razão pela qual consideramos esta data como sendo a nossa
fundação como entidade de filantropia, caridade e religião. Logo após o
acontecido tudo o que se passou naquela noite, foi relatado ao Pai Jaú. Em
resposta fomos por ele incentivados:
- Vocês comecem devagarzinho, com as portas fechadas, atendendo primeiro
a família e depois vamos ver como é que fica...
Dona Almerinda era devota de São Benedito; para ela, fora o santo quem a
ajudou naquela situação desesperadora. Como retribuição pediu que o novo
terreiro levasse o nome do santo.
Foi aí que começou a missão. Eu freqüentando a casa do Pai Jaú, mas
dispondo de um lugarzinho aonde fazia meus atendimentos. Começamos na
maior simplicidade, com as consultas sempre realizadas sem nenhuma
cobrança.
Aí, surgiram as primeiras dificuldades. A notícia dos atendimentos foi se
espalhando e pessoas necessitadas começaram a chegar de cá e de lá.
Cresceu o movimento. Torno a lembrar, é o meu reconhecimento eterno, que
o Décio nessa hora foi muito importante. Entusiasmava-me dizendo que eu
era moço, mas que os guias que eu recebia eram velhos. “Falava:” confia na
“experiência deles que a sua chega depois”.
73
Em 1951, tínhamos quase 30 pessoas freqüentando a sala. As sessões
eram quase que diárias e não tínhamos tempo nem espaço para nada. De dia
trabalhávamos de um lado da rua, na indústria, de noite, do outro lado,
trabalhávamos na espiritualidade.
Era difícil?
Vou dizer que não foi fácil!
Não podíamos chamar a atenção. Era um tempo difícil para a Umbanda;
aquela coisa de ser proibido pela policia, fotografia no jornal, ”fofocaiada” de
vizinho... Ao mesmo tempo era estranha aquela sensação de estar me
transformando de industrial em Pai de Santo. A espiritualidade tem dessas
coisas: não é a gente quem manda, é o nosso destino.
Mas não era que crescia a Umbanda. Chegavam notícias de casas de
Umbanda aparecendo em toda São Paulo. Era lindo ver como a Umbanda
crescia. O povo gostava e a Igreja ficava “mordida” de inveja. A Igreja
estimulava a policia para vir “para cima” da gente. Diziam que éramos gente
ignorante, exploradores, que abusávamos da fé pública.
Pai Jaú era um dos mais perseguidos. Foi preso diversas vezes e inclusive
numa dessas ocasiões eu fui levado junto. Eu tinha dezessete anos e não
cheguei nem ser identificado.
Quando fazíamos nossas reuniões as pessoas vinham chegando de
mansinho, disfarçando pela calçada e aí... plump” entravam na casa. Não se
podia chamar a atenção. Na sala em que fazíamos os trabalhos, a janela
ficava bem fechadinha e na cozinha deixávamos ligado bem alto o volume do
rádio. O ruído do rádio disfarçava as nossas palmas. Não havia atabaques
nem nada e, a luz da frente da casa, apagada o tempo todo, era para não
despertar suspeitas. para os nossos códigos, luz apagada significava que
o trabalho já havia começado.
Um dia, era 27 de setembro, dia de Cosme e Damião, recebemos a noticia
mais terrível do que poderia acontecer. Lembro como se fosse agora. O rádio
estava ligado na Radio Nacional do Rio de Janeiro e era uma e vinte da
madrugada. De repente interromperam a programação para informar que o
cantor Francisco Alves havia morrido num desastre de automóvel na Via
Dutra. Acredite, na mesma hora, três ou quatro erês (crianças) que estavam
incorporadas na sala subiram imediatamente, deixando os médiuns aturdidos.
Foi estranho; eles estavam ali brincando, comendo doce, de repente, todos
subiram ficando na sala a maior tristeza.
Francisco Alves também era “fora de série”. Gostava das crianças e era um
irmão que vestia o branco quando ia para as macumbas. Foi uma desolação
total. Era ele o homem que mais chamou a atenção do povo para o cuidado
que se tinha que ter com as crianças do Brasil. Acho que isso se deu em
1952. Ele gostava tanto das crianças que dava parte de tudo que ganhava
para a Casa de São Lázaro, centro espírita de Umbanda que funcionava no
Rio de Janeiro.
Mas nem tudo são espinhos. Incrível como funciona a vontade das pessoas...
Quanto mais a polícia perseguia, mais estimulava o crescimento da
Umbanda.
Antigamente, o atual “DEIC”, chamava-se “D.I”, ou seja, “Departamento de
Investigações”. O órgão policial funcionava no centro, à Rua Brigadeiro
Tobias, onde ainda hoje está a sede da Segurança Pública do Estado. Nessa
ocasião, o delegado responsável pelo setor de capturas, chamava-se Dr.
74
Wanderico Arruda de Moraes. Pois imagine, que por iniciativa dele, foi criada
uma sala destinada a recolher todos os objetos de culto da Umbanda, os
quais eram apreendidos nas diligências policiais. Para realizar as
investigações, foram destacados três policiais. Conheci todos os três;
chamavam-se Índio, Moacir e Russo. Eles eram encarregados de investigar
as denuncias de onde havia terreiros.
A sala deles era engraçada. estava cheio de atabaques, imagens, objetos
de culto, que eles apreendiam naquelas perseguições. Imagine a energia
daquela sala. O medo dos umbandistas ficava todo impregnado naquele
material. E você sabe como funciona no astral, né? Tudo o que de ruim se faz
para os outros, tem a lei do retorno; aquilo acaba voltando.
Conheci os três porque naquela época minha esposa Laura, tinha uma
farmacinha de ervas na Rua Princesa Isabel, 7, ao lado do Largo da
Penha, e os três estavam sempre por ali, rondando para fazer as
investigações.
Certa vez o Índio, aquele que era o mais marrudo dos três, chegou até mim e
disse assim: Jamil, eu sei que você está metido com essa gente de
macumba. Você é moço, fique longe disso porque são todos aproveitadores e
ficam ricos inventando “trabalhos” e tirando dinheiro das pessoas.
Fiquei bem quietinho. Mas veja você como funciona a cabeça de uma pessoa
quando está obstinada por uma idéia de perseguição?! Ele só conseguia ver
crime e não percebeu que estava nascendo uma nova religião para os
brasileiros. Nós éramos Jesus e eles Herodes querendo nos jogar para os
leões. Pai Jamil fica introspectivo ao usar essa imagem. Pensa um pouco e
confabula: não é bom ficar falando dessas coisas. Passado um instante,
retoma à sua fala: (talvez mais comedido):
De certa forma a policia tinha um pouco de razão. Nessa época ainda não
havia a “União de Tendas” e as coisas aconteciam sem nenhuma disciplina;
cada um fazia o que queria.
Em 1954 as coisas começaram a melhorar.
Por iniciativa do Dr. Luiz de Moura Accioli, um engenheiro agrônomo
umbandista, foi criada a União de Tendas Espiritualistas de Umbanda do
Estado de São Paulo. Ficava na Rua Santa Ifigênia 756, bem no centro de
São Paulo.
Dr. Accioli, cuja fotografia você pode ver colocada na parede do escritório,
teve uma influência extraordinária para a organização da Umbanda no
Estado.
Sendo carioca, fixou residência em São Paulo, trazendo do Rio todo o seu
conhecimento na formação e administração de terreiros: fundação, papeladas
de cartório, estatutos, livros de atas etc.
Eu o conheci quando foi nos visitar num pequeno salão que eu havia
construído na Ponte Rosa e que se constituiu na primeira casa própria da
tenda São Benedito. Quando eu falo em ter construído, é construído mesmo.
Sou mestre de obras e foi nessa construção que fiz o meu doutoramento. Fiz
tudo: construí do alicerce até a colocação da laje no telhado. O salão ficou
uma graça, mas se deu uma coisa estranha. Algo me dizia que não era ali
o lugar de ficar. Consultei meus guias e a resposta confirmou minhas
suspeitas. Entreguei a direção da casa ao Décio e rumei para Pinheiros. Era
para lá que a cidade estava crescendo.
75
Vir para Pinheiros representou vida nova em todos os sentidos. Minha
primeira decisão foi alugar um imóvel que ficasse bem localizado e dentro das
nossas posses. Foi um pouco complicado. Apresentava-me aos proprietários
como espírita, espiritualista, mas era comum perguntarem: - não tem esse
negócio de batuque, né?!”
eu tinha que fazer a minha diplomacia; falava de caridade, de ajuda ao
povo e as pessoas acabavam confiando na minha sinceridade. Foi assim que
alugamos nossa primeira sala, localizada na Rua Teodoro Sampaio 774.
Ficava à esquerda de quem subisse, no lado oposto ao Hospital das Clínicas.
O bonde parava na porta.
Nessa sala, foi com orgulho que inauguramos nossa primeira placa “Tenda
Espiritualista de Confraternização de Umbanda São Benedito”. A princípio
pensamos em nos apresentar como centro espírita, mas os espíritas estavam
“ralhando” conosco; davam entrevistas na imprensa e diziam que éramos o
“baixo-espiritismo” e que não éramos científicos como eles. Para não
aumentarmos as discussões, nos apresentamos como espiritualistas e ainda
acrescentamos no nome a palavra confraternização”. Quer coisa mais
bonita?
Coincidência ou não, foi num “Cosme e Damião” que a casa foi inaugurada:
era 27 de setembro de 1955.
Logo após a inauguração, nos espantamos com a grande quantidade de
pessoas interessadas em nos freqüentar: as sessões de trabalhos eram
diárias. Eu e Laura, minha esposa e companheira de lutas, de quem fiquei
viúvo, fazíamos de tudo para darmos conta, e o número de participantes era
cada vez maior.
Estávamos localizados na sobreloja de um prédio que tinha os janelões
voltados para a calçada. De dentro do bonde as pessoas assistiam à sessão.
Aquilo despertava curiosidade. O proprietário do imóvel ficou incomodado
com o intenso movimento e nos aconselhou que procurássemos um lugar
maior. Foi a nossa sorte! Mudamos para um salão gigantesco localizado à
Rua João Moura nº778, atrás da panificadora “São Paulo da Cruz”. O salão
era imenso: tinha 33 metros de cumprimento por 13 metros de largura.
Acredite que apesar das dimensões enormes, recebíamos tanta gente que às
vezes fazíamos duas sessões num mesmo dia.
Ficamos tão conhecidos que o Dr.Accioly nos escolheu para representarmos,
como sub-sede, a “União de Tendas Espiritualistas de Umbanda do Estado
de São Paulo”.
Ficava tudo pertinho. Morávamos na própria Rua João Moura nº 993 e eu abri
uma lojinha de material de construção ao lado, na Rua Teodoro Sampaio,
quase esquina com a Rua Cristiano Viana.
Na Umbanda tem que ser assim. Quanto mais perto for a localização do
terreiro em relação ao trabalho e à moradia do Pai de Santo, melhor.
É importante ser conhecido no bairro e a vizinhança saber que você está
sempre ali para ajudar. Esse salão da João Moura é de 1959. Era bonito: o
povo chegando e eu preparando médiuns, preparando médiuns...
Mas havia uma limitação. O imóvel era alugado e nós queríamos um lugar
próprio para construir nossa casa definitiva. eu conheci o Dr. Paulo de
Oliveira, engenheiro da Prefeitura, que freqüentava nossa casa. Ele nos
sugeriu onde poderíamos adquirir um terreno que possuísse boa metragem e
estivesse ao alcance de nossas possibilidades.
76
Apresentou-nos o Sr. José Lerro, que possuía uma área de 1100 metros
quadrados e estava disposto a vendê-la barato. O terreno era localizado no
que seria futuramente, o prolongamento da Rua Alves Guimarães. Ali era
tudo mato. Nós fomos os primeiros a ocupar um pedaço de chão naquele
projeto de rua.
Seguimos o combinado. Ele localizou o terreno e nós iniciamos a construção.
Quando tínhamos tudo quase pronto, veio uma surpresa ruim: aqueles
terrenos estavam todos hipotecados junto ao Banco do Brasil.
O proprietário original era o Oswald de Andrade
77
. Segundo Pai Jamil, esse
proprietário havia sido um homem que apesar de muito rico, morrera na
miséria. Nesse momento interrompi o assunto e falei um pouco sobre a
pessoa de Oswald de Andrade, modernismo e sua importância na formação
da cultura no país. Tendo em conta que eu lera recentemente uma biografia
78
do cidadão envolvido nas inadimplências hipotecárias, ficou mais fácil
explicitar as condições em que as tais aconteceram. Pedi para conhecer a
escritura do terreiro, uma vez que os dados que me estavam sendo
oferecidos me pareceram relevantes. Essa consulta documental me foi
proporcionada e confesso que foi com emoção que li os termos da Escritura e
do Registro do Imóvel.
79
Pai Jamil prosseguiu:
... aí começou nossa demanda com o Banco do Brasil e a questão se
estendeu por vários anos na Justiça. Por fim, resolvido o problema,
recebemos a escritura definitiva. Pra você que gosta de histórias, disse-me
Pai Jamil, isso tudo está sendo um prato cheio, não é mesmo?
Hoje está tudo legalizado. Nosso terreiro foi a primeira construção da rua.
Fomos crescendo devagarzinho porque a topografia era muito acidentada.
Pronto, pronto mesmo, para funcionar, aconteceu no dia 27 de
Setembro de 1963.
Essa data de “Cosme e Damião” nos acompanhou a vida toda. Sempre
começamos nela nossas coisas importantes; mesmo sem intenção, vira,
mexe e lá estamos nós às voltas com as crianças.
A construção da nossa casa foi complicada por conta das fundações. O
terreno era muito instável e a região formada por aterros. Naquela época,
anos 40, 50, era pouco desenvolvida a Vila Cerqueira César, região de
Pinheiros em que viemos nos instalar. Praticamente a parte urbana da cidade
terminava na confluência da Consolação com a Paulista; do Araçá prá frente,
era praticamente zona rural. Aos domingos, naquelas encostas da Avenida
Sumaré, ficava cheia de passarinheiros. Alguns mais otimistas se
enveredavam na direção do Parque Antártica para a caçada de pacas e tatus.
77
Escritor paulista que participou da Semana de Arte Moderna de 1922: o próprio.
78
Cf. Maria Augusta FONSECA, Oswald de Andrade – Biografia.
79
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
77
Era tudo muito baldio e sujo. Ali, naquela confluência da Rua Oscar Freire
com Dr. Arnaldo, onde hoje está localizado o Centro Cultural Israelita, era um
depósito de lixo da Prefeitura.
Bem naquele lugar era depositado todo o lixo da cidade e funcionava nele
uma espécie de forno crematório que ficava incinerando montanhas de lixo
dia e noite. A área ocupada como depósito de lixo era extensa e chegava
quase que aqui na beirada do rio, onde hoje está localizada a Av. Sumaré.
Do outro lado, na outra margem, bem onde está o nosso terreiro, havia outro
lixo, considerado bem mais perigoso. O lixo orgânico das casas e mesmo o
lixo industrial, era depositado para o lado de lá, enquanto que no lugar em
que hoje nós estamos, ficava uma espécie de lixo religioso. A origem desse
lixo era muito esquisita. Para não misturar com o outro lixo, que talvez fosse
menos contaminado, aqui era lançado todo o lixo dos cemitérios da região.
Os cemitérios da Consolação, Araçá, São Paulo, juntavam tudo quanto eram
restos de exumações, flores, velas, pedaços de caixões de defunto, e
mandavam tudo para cá. Nessa ocasião, o Hospital das Clínicas fazia o
mesmo com o lixo produzido no hospital, de forma que despejavam nesse
local, restos de cirurgias, pedaços de gazes, lençóis usados e tudo aquilo que
sobra das operações.
Isso tudo ainda é do tempo em que o lixo era transportado em carroças
puxadas a burros. Com o progresso, principalmente porque o Radio e a
Televisão Tupi ficavam ali perto, Sumaré era a Cidade do Rádio, esse lixão
acabou sendo transferido para as margens do Rio Pinheiros. Aquelas
autopistas da Marginal ainda não existiam. Ali era tudo alagado, e com o
depósito do lixo mais a terra que era retirada do rio para a sua retificação e
desassoreamento, aterrou-se aquela extensa área transformada no Parque
Villa-Lobos. Aproveitando o assunto, Pai Jamil faz o seguinte comentário: o
problema do lixo em São Paulo deveria tirar o sono das autoridades. Não
adianta empurrar prá frente e fazer de conta que não existe. Mas retornando
ao nosso assunto, torno a dizer que tudo aqui era aterro e nem existia a
Avenida Sumaré.
Quando coloquei as brocas para fazer as fundações, precisei descer quase
18 metros. vinha de tudo que estava depositado em baixo. Pedaço de
crânio, tíbias, alça de caixão e tudo que se possa imaginar existir no subsolo
de um cemitério.
As pessoas tinham medo de passear por essa região aqui. Os terrenos iam
sendo comprados, mas ninguém queria construir no solo em que estava o
lixão do cemitério. nós. Por conta disso o preço que pagamos foi barato.
Durante a construção, em sinal de respeito aos que já se foram, preparei uma
caixa e fui guardando tudo o que pudesse fazer parte do esqueleto humano.
Essa caixa ainda está conosco, fica no terraço junto ao barracão do
almoxarifado. Um dia vou dar um destino melhor para aquilo. Levo para o
Vale dos Orixás, porque é um verdadeiro axé, você depositar na terra os
restos mortais de tanta gente que já passou por essa vida, aqui trabalhou, fez
família, fez a história do Brasil, não é mesmo?
80
Apresentada a Umbanda, explicado o surgimento da Tenda São Benedito,
nossa entrevista se direcionou para a Procissão de São Jorge. Pedi ao Pai Jamil que
80
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
78
ele buscasse, no “palácio da memória”, os antecedentes que circunstanciaram essa
devoção religiosa mantida com tanto vigor até os nossos dias. É dele essa narrativa:
Nos anos 50, a perseguição religiosa à Umbanda tornou-se insustentável.
Nas missas os padres atacavam a Umbanda. Nos jornais, muitos crimes eram
atribuídos à Umbanda. A polícia alegava que a Umbanda era responsável
pelo uso de ervas e dentre essas havia a famigerada Comigo ninguém pode,
planta que nós da Umbanda também sabíamos que era tóxica e venenosa.
Pois até isso tentaram fazer, proibir a Umbanda por difundir o plantio de
Comigo ninguém pode.
A imprensa sensacionalista estampava o caso de uma criança ou animal que
comera o Comigo ninguém pode e em seguida vinha a censura: isso é coisa
de macumbeiros.
Nesse ambiente hostil, em 1956, nós resolvemos comemorar no dia 23 de
Abril, a homenagem a São Jorge.
O maior número de terreiros, à época, ficava para os lados da Penha,
Guarulhos, São Miguel, justamente onde se concentrava o povo mais simples
da classe trabalhadora.
Percebendo que ali seria difícil a realização da sessão, um irmão nosso
ofereceu um lugar que, segundo ele, parecia seguro. Ficava do outro lado da
Zona Leste, nas adjacências da Lapa. Sábado á noite para seguimos. O
lugar era espaçoso, mas um pouco tenebroso. Ficava no porão de uma
fábrica de móveis falida, na Rua Clélia, perto daquele prédio da União
Fraterna.
Havia dentre os presentes, mais de 40 pessoas. Chovia. No ambiente um
pouco abafado, pelo calor do incenso e fumaça dos charutos, os atabaques
eram tocados bem de leve para não chamar a atenção.
Estávamos lá, os “rinocerontes”
81
da Umbanda. Rinoceronte não é aquele
bicho que tem a casca bem grossa? Era assim que brincando, nós nos
tratávamos: pode bater que não quebra.
A comemoração seguia animada quando num determinado momento, o preto-
velho que estava incorporado no Pai Jaú, pediu silêncio. Ele referia-se à
policia como os canelas-finas, talvez numa alusão aos coturnos usados pelos
soldados.
- “Silêncio, porque os canelas-finas estão nos farejando”, disse o preto-velho.
Sua recomendação foi prontamente acatada. Durante uns dez minutos, todos
ficaram quietos, aguardando o que poderia acontecer.
De repente, a ordem foi suspensa: “podem tocar agora porque eles forma
embora”.
“Em seguida, na seqüência à incorporação do Preto- velho (não me lembro o
nome dele agora), Pai Jaú recebeu o exu Pássaro-Preto. Esse exu era
danado. Quando se manifestava no Pai Jaú, o homem se transformava.
Falava com bastante autoridade e, embora o Pai Jaú tivesse um sotaque forte
81
Pai Jamil conta que o termo rinoceronte ficou de uso corriqueiro naquele tempo por conta da
“eleição” do rinoceronte Cacareco do zoológico de São Paulo, que com votos de protesto tornou-se o
vereador mais votado na cidade.
79
de Preto velho, quando incorporava esse guia ele até mudava de voz e falava
em um português cem por cento correto, com todos os erres e esses, como
se costuma dizer.
Pois foi do Exu Pássaro-Preto que veio a revelação da Procissão de São
Jorge.
Primeiro o Exu pediu união dos umbandistas e avisou que a Umbanda se
tornaria respeitada no dia que fosse para rua em procissão, levando São
Jorge à frente.
Aquilo nos soou como um desafio. Nos meses que se seguiram, eu não
conseguia pensar em outra coisa. Tínhamos uma imagem de São Jorge.
Aliás, tínhamos várias imagens de São Jorge. Com dragão; sem dragão; dava
para o freguês escolher (risos)
Foi que me veio a idéia. Conversando com o Pai Jaú, com o Décio, com
seu Joaquim e Dona Olga, que tinham um terreiro grande em São Miguel,
estabelecemos que em 1957 faríamos uma procissão.
O ponto de partida seria o terreiro do seu Joaquim, que ficava na estrada de
São Miguel, ali na curva da morte e o destino seria o Jardim Buturuçu, na
Ponte Rasa, onde ficava o nosso terreiro.
Temendo alguma represália da policia que porventura impedisse o cortejo,
pedi para um irmão nosso que era investigador ali na Delegacia do Belém,
que ele falasse com o delegado pedindo uma autorização. Passados dois
dias, veio a resposta:
- “Não pode. Não é permitido fazer procissão de particulares”.
Os preparativos continuavam. Alguém teve a idéia de que sair apenas com
São Jorge poderia parecer provocação. Deveríamos juntar ao cortejo uma
imagem de Santo Antonio, santo mais identificado com a Igreja católica e
mais fácil de obter simpatia das pessoas que nos vissem passar.
Preparamos dois andores. Um menor, armado numa tábua de bolo de
casamento, foi para Santo Antonio. São Jorge, considerando que a imagem
era maior, teve como andor a porta do quarto de um rapaz que era inquilino
do seu Joaquim.
Tudo pronto, enfeitado, domingo de sol, estávamos nós às 10 horas da
manhã, prontos para a “desobediência” às autoridades.
Na hora de sair a procissão, surge um debate entre os participantes.
Dona Maura, senhora do bairro que segundo algumas pessoas diziam que ter
sido freira, insistiu que a imagem de Santo Antonio fosse à frente. Logo se
formaram duas opiniões. Uma a favor de São Jorge, outra por Santo Antonio.
Como as opiniões estavam equilibradas, alguém, não me lembra agora,
contou um caso que se passara em Minas. Segundo essa pessoa, numa
cidade do interior mineiro, se dera a mesma coisa; deixaram Santo Antonio
em segundo lugar, precedido por Nossa Senhora da Escada. O resultado foi
terrível. Foi tanta confusão que a procissão, sem condições de avançar,
voltou para a Igreja. não bastasse, no dia seguinte o padre foi embora da
cidade e houve incêndio no prédio da Prefeitura.
O argumento em favor de Santo Antonio foi fulminante. Assim, a primeira
procissão realizada pela Umbanda em São Paulo, mesmo contrariando a
recomendação do Exu Pássaro-Preto, teve à frente, como batedor, abrindo os
caminhos para São Jorge, o bom e sempre lembrado Santo Antônio.
80
Mas no fim ficou tudo certo, comentou Pai Jamil, porque Santo Antonio na
Bahia é Ogum e, portanto foi o Ogum baiano que abriu os caminhos para a
Umbanda em São Paulo.
A procissão seguiu pelo acostamento da Avenida São Miguel, uma das
avenidas mais movimentadas da época. Era por ali que todo o tráfego de
automóveis e caminhões tinha acesso à Via Dutra, rodovia que ainda estava
começando a se tornar importante. Guarulhos tinha somente a base aérea de
Cumbica e o restante era tudo mato. Concluída a procissão, estávamos todos
eufóricos. Parecia que tudo estava resolvido e de que não precisaríamos
realizar outras tantas. Pelo o que eu me lembre, Pai Jaú não participou dessa
primeira procissão. Recordo-me que após sua realização, eu e o Décio fomos
até a casa dele informar o ocorrido como se fosse um relatório.
No ano seguinte, 1958, localizados à Rua Teodoro Sampaio, Pinheiros, as
condições para a procissão eram bem diferentes. No dia estabelecido para
a sua realização, domingo, até chegar o momento de inicio, não tínhamos
ainda o itinerário que ela devesse fazer.
Por iniciativa do Pai Jaú, juntando suas aptidões de Babalorixá com jogador
de futebol, propôs que fossemos em Procissão da Rua Teodoro Sampaio até
os portões do Estádio do Pacaembu, coisa que assim foi feita com muito
brilhantismo.
Lembro-me que neste dia, o número de participantes era bem maior do que
da primeira vez, tendo contribuindo para isso a mobilização de terreiros feita
pela “União de Tendas”, que tinha à frente o Dr.Accioly.
Vestidos de branco tendo nas mãos flores de palmas vermelhas e brancas,
cantamos, soltamos foguetes, e ninguém se intimidou quando nos demos
conta de que uma viatura da policia seguia o nosso cortejo.
No terceiro ano, fizemos o mesmo itinerário, mas, desta vez, partindo da Rua
João Moura, onde estávamos acomodados em novas instalações. Essa
procissão, estava bem mais organizada e como na vezes anteriores,
portávamos apenas um andor com a imagem de São Jorge, o qual era levado
nos ombros.
A quarta procissão de São Jorge foi em 1960. Fizemos um estudo da região e
descobrimos que era mais interessante, partindo de onde estávamos
descermos rua abaixo. E assim foi feito. O ato religioso teve inicio na Rua
João Moura, caminhou pela Cardeal Arcoverde, até a Avenida Brasil e de
até a marquise em frente à Avenida Pedro Álvares Cabral, no monumento dos
heróis de 1932.
No percurso, atraíamos a atenção dos passantes, dando vivas ao Senhor
Ogum. Saravá Ogum! Sarava Ogum!
Sob a marquise do Ibirapuera, realizamos uma espécie de sessão de
Umbanda pública. As pessoas se aproximavam meio ressabiadas, mas logo
após, estavam dançando conosco. Muitas pessoas, principalmente mulheres,
formavam filas para que fosse testado nelas a capacidade de incorporação,
sua mediunidade. Assim, batendo nossos atabaques, ao mesmo tempo
homenageamos São Jorge e descobríamos vários médiuns que depois
prosseguiram conosco.
No quinto ano, as coisas se passaram mais ou menos do mesmo jeito, mas
foi nessa oportunidade que eu me dei conta de que aquilo tudo iria bem longe
em termos de duração; não seria saindo pras ruas algumas vezes que a
Umbanda seria respeitada como tradição religiosa. Acho que foi nesse ano,
81
ou no seguinte, que a nossa procissão coincidiu com o dia em que o
Presidente Jânio Quadros estava em São Paulo. Nós rumávamos na direção
do Parque do Ibirapuera e exatamente ali havia uma comemoração do
Governo. As ruas estavam policiadas pela Força Pública e pelo Exército, mas
não era ocupação por motivos de revolução nem nada; era apenas alguma
solenidade pública ali naquele Mausoléu do Soldado Constitucionalista de
1932 e que contava com a presença do Presidente da República.
No percurso, quando nos aproximávamos da Brigadeiro, cruzamos com um
caminhão cheio de bóias-frias, que nos saudaram levantando as ferramentas
e pedindo reforma agrária.
Pelo que percebemos, eles estavam sem rumo; tentaram chegar até o
Presidente, mas foram “recomendados” a ir embora.
Ficamos numa sinuca. Precisávamos de apoio popular, mas não queríamos
nos encrencar com a polícia e o exército logo naquela situação(risos). Aí, não
tivemos dúvidas... Lembrando de que São Jorge é o patrono dos militares,
passamos a dar vivas ao Exército brasileiro e à Polícia Militar. Nessa época
nós tínhamos muitos militares que eram nossos aliados. O tenente Aguirre,
por exemplo, veio desses tempos. Começou na Guarda Civil, passou para a
Polícia Militar, e nos dias de hoje, na reserva, é um dos mais antigos
Babalorixás de São Paulo. Seu compromisso com a religião sempre foi muito
forte. Mocinho, ele tocava a sua Tenda de Umbanda e na atualidade é
Presidente do Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo.
Antigamente tivemos também a figura incrível do General Nelson Braga
Moreira. Umbandista e patriota soube utilizar com ninguém suas influências
políticas para tornar a Umbanda bem aceita no meio das autoridades,
isolando assim a influência danosa da Igreja Católica. Foi um homem que
prestou um serviço imenso no reconhecimento da nossa religião no conjunto
da sociedade. Mas voltando ao incidente da procissão, no fim acabou tudo
bem. Foi nessa oportunidade que aparecemos pela primeira vez na imprensa
de São Paulo, com fotografias nos jornais Ultima Hora e Diário da Noite.
Nesse dia, eu fiz minha promessa: enquanto eu tiver forças, não desprezarei
a ajuda que Ogum está nos dando através dessas procissões. Avaliei o que
estava acontecendo e percebi que a atividade devesse prosseguir pelo
menos por mais dez anos.
Mal sabia, sobre o tempo de duração e de todo o restante que nos estava
reservado. A Umbanda cresceu em São Paulo e em todo o Brasil. Foi
reconhecida como uma religião entre as outras e alguns anos depois
daqueles tempos de ilegalidade, foi convidada pela Secretaria de Esportes e
Turismo do Estado para ocupar o Ginásio do Ibirapuera nas comemorações
de Ogum. Foi como num sonho, deixamos de ser uma procissão proibida de
“particulares”, para virmos figurar no Calendário Oficial de Eventos de um
órgão público do Estado.
82
Nesse meio século tudo mudou não para a Umbanda como para o próprio
Brasil, comenta Pai Jamil emocionado.
82
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
82
“Houve o militarismo, tiros, brigas, pancadas, governo que cai e que fica,
anistia, e nós ali, firmes. Com tempo bom ou ruim, ano após ano, não
deixamos nenhuma vez de sair para as ruas e cumprir nossa devoção”
83
.
Essa imagem de São Jorge que está, (Pai Jamil aponta para a ilustração
de uma folhinha da União de Tendas), não é a primitiva:
A primeira, nós a usamos apenas durante uns anos e, com o crescimento da
homenagem, aumentamos também o tamanho do santo.
A imagem primitiva tinha também muito axé. Quando nossos irmãos do
Paraguai resolveram nos acompanhar nessa prática de fazer procissão, nós
a presenteamos e acredito que ainda seja a mesma que é utilizada nas
comemorações daquele país até hoje.
Nesse mais de meio século de procissão de São Jorge, não houve um único
ano em que a sua realização não fosse um enorme desafio. Ano após ano,
tivemos que enfrentar uma incrível burocracia dos órgãos públicos, cheias de
exigências, as mais descabidas. A cada vez cada vez foi maior o número de
exigências legais a serem cumpridas, surgindo taxas e mais taxas para o uso
do Ginásio do Ibirapuera. Era licença do Contru, do Corpo de Bombeiros, do
DSV, das Secretarias do Estado e da Prefeitura, providenciar isso e aquilo,
providenciar cordas, cavaletes para a sinalização do trânsito, tablado para o
piso do Ginásio, iluminação, som, palco, ambulância, enfermaria, serviços
médicos de emergência pessoas para ocupar as portarias, montagem e
desmontagem de todo esse aparato, tudo em função de uma atividade que
dura exatamente 12 horas de um único dia do ano.
Providências simples como pedir à Policia Militar cavalos e banda para a
abertura do cortejo, requer envio de ofício 4 meses antes. No entanto até à
véspera ficamos em suspense; será que virão os cavalos brancos como
prevê o cerimonial de São Jorge?
E quando muda a gestão... Até explicar quem nós somos e o que queremos é
um verdadeiro suplício. Falar, com o doutor tal, esperar a resposta da reunião
que ainda vai acontecer, mas não se sabe quando, e outras dificuldades,
davam vontade de se dizer: “este é o último ano, depois chega!”
Mas umbandista é teimoso. a felicidade de ver milhares de pessoas de
branco exaltando o Santo, a confraternização dos terreiros, o povo na rua,
renova nossas esperanças e mal termina uma cerimônia, começamos
preparar a do ano seguinte. Em 52 anos de Procissão de São Jorge, nunca
recebemos nenhuma subvenção para o custeio das despesas. Sempre
usamos nossos próprios recursos os quais são obtidos através do ritual de
cura, realizado sempre na Sexta-feira Santa que antecipa a procissão. O ritual
de cura corresponde ao chamado fechamento de corpo que tem por
finalidade recorrer ao campo mágico, invocando proteção para o devoto. Essa
é uma tradição que trouxemos da África e mantemos em nossa casa mais
de 40 anos. É a única atividade por nós realizada em que se cobra algo do
participante; cada pessoa passa pelos cruzamentos e recebe como proteção
um cauri
84
africano, mediante o pagamento de dez reais. Todo o dinheiro
arrecadado é destinado à feitura da procissão. Isso nos tornou
83
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
84
Cauri, também conhecido por búzio, é uma conchinha proveniente do litoral africano, utilizada no
Jogo de Ifá para adivinhações ou preso a um cordão no pescoço, atua como um patuá de proteção.
83
independentes, permitindo que a cerimônia crescesse e ficasse cada vez
mais representativa.
A procissão de Ogum funciona como se fosse a sala de visitas da Umbanda.
É nela que podemos mostrar a força da nossa religião, receber as
autoridades, as comitivas de outros estados e de outros países, recepcionar
os representantes de outras religiões e proporcionar um pouco de alegria
para esse povo sacrificado da Umbanda.
A história da Umbanda é muito bonita e fala do quanto o brasileiro é um povo
de devoção a Deus. Quando foi no ano 2000, a ONU, através da UNESCO,
promoveu uma reunião juntando chefes religiosos de todas as partes do
mundo, para que se confraternizassem no surgimento do 3º. Milênio.
Qual não foi nossa honra, quando fomos convidados, enquanto uma tradição
religiosa, a estarmos presentes nesse grande encontro.
Sem fazer poesia, eu diria a Umbanda em cinqüenta anos, graças ao Orixá
Ogum, saiu das catacumbas e foi parar em Nova York.
Quanto ao futuro, a Deus pertence. Acredito muito na mediunidade e acho
que ela ainda vai ser ensinada em escolas de terapia, como se faz hoje com a
Yoga. No entanto não podemos nos esquecer do sentido religioso que existe
acumulado em toda a tradição dos Orixás.
O futuro da humanidade é de paz e de congraçamento. Um dia o homem vai
perceber que a guerra é uma ignorância e que o amor é o valor maior. Pode
ser que leve duzentos anos, mas o que significa esse tempo diante da
eternidade?
85
Eis o perfil é do meu entrevistado. Gostaria que a exemplo das palavras de
Paulo no Evangelho, se considerasse não a letra que mata, mas o Espírito que
vivifica. Como se costuma dizer na Umbanda, essa é uma religião em que não se
faz proselitismo. Nos contatos que tenho tido com os freqüentadores de terreiros é
freqüente a presença de católicos, espíritas, budistas e representantes de vários
outros segmentos religiosos participando dos trabalhos, sem que ocorram conflitos
de natureza confessionais. Acredito ser essa porosidade o que lhe confere o
sincretismo, estando o mesmo muito bem representado nas posturas sacerdotais de
Pai Jamil, como um de seus Babalorixás mais antigos. Acompanhando-o como
formador de quadros religiosos para a Umbanda, ou seja, futuros sacerdotes que
terão aos seus cuidados a condução de novos terreiros,quando por parte desses
ocorrem deslizes, trata os incidentes de forma generosa, dizendo: “desta vez, passa;
da próxima... passa também”. Aquilo que para alguém com um julgamento mais
rigoroso possa parecer uma tolerância permissiva, no meu entender se mostra como
uma estratégia pedagógica da melhor qualidade em matéria de resultados.
85
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
84
Como revela a etimologia da palavra, mestre é aquele que mostra, e nada é
tão edificante como a pedagogia do exemplo, em substituição aos discursos longos
que não raras vezes se vale apenas das palavras, as mesmas que o vento leva
como bem ensina o ditado na sabedoria do senso comum.
No próximo capítulo, analisaremos as condições em que se encontrava a
Umbanda em São Paulo nos anos cinqüenta, trazendo informações sobre a
importância do surgimento do Templo São Benedito, da União de Tendas, do Jornal
Aruanda e da Procissão de São Jorge na consolidação do movimento umbandista.
85
CAPÍTULO III: OGUM BAIANO ABRE CAMINHOS PARA A
UMBANDA EM SÃO PAULO
“Neste capítulo abordo as condições em que se
encontrava a Umbanda nos anos cinqüenta e as
transformações havidas com a mesma no último meio
século em São Paulo.”
Quando os cientistas tentam nos fazer entender a importância real da
raça humana, costumam dizer coisas do tipo: “Se a história da terra pudesse
ser resumida num dia, a humanidade ocuparia o ultimo minuto daquelas vinte
quatro horas”. Em se tratando do relato de uma vida, isso se estiver sendo
feito com fidelidade absoluta à vivencia que se teve do tempo, eu diria que
setenta por cento do livro nos levariam aos dez anos de idade. Com oitenta por
cento das paginas teríamos chegado aos quinze anos. Aos noventa e cinco por
cento, estaríamos na casa dos trinta. O resto é uma corrida rumo à
eternidade.
86
86
Dóris LESSING, Debaixo da minha pele, p. 122.
86
3.1 - CONJECTURANDO A UMBANDA
Considerando a analogia feita por Dóris Lessing entre a idade da terra e a de
uma criatura humana, me pergunto se essa relação de proporções não se aplicaria
também às entidades sociais, à história dos grupos, das corporações, das agências
de serviços e mesmo ao fundamentalismo das tradições religiosas? Como imagem
poética, minha resposta é afirmativa.
Agrada-me a idéia de imaginar a Umbanda como um segmento religioso que
tem duração no tempo, estando seus primórdios localizados no começo do século
passado e, na atualidade, ao comemorar 101 anos de existência
87
, viva apenas mais
um estágio de sua trajetória rumo ao devir. Se assim fosse, em que momento ela
estaria agora? Seria ainda um bebê recém saído das fraldas ou uma criatura
vivida prestes ao desenlace?
Agrada-me igualmente imaginar que a história, toda ela, é construída por
instantes tão delicados e incertos como aquele momento da procissão de São Jorge,
conforme narra Pai Jamil no capítulo anterior, em que se tornou crucial para o futuro
da religião o debate em torno de quem iria à frente: São Jorge ou Santo Antônio?
Certamente essa é a compreensão quântica da história, que nos permite
perceber que nada acontece aleatoriamente e que a somatória de múltiplos e
incontáveis episódios como esse, em sua totalidade, é a expressão do momento
presente. “Quem poderá contar a história do que poderia ter sido... talvez fosse essa
a verdadeira história da humanidade”
88
: indagava e por ele mesmo era dada a
resposta, o poeta Fernando Pessoa.
Ainda tendo como suporte os dados do capítulo anterior, indago: Pai Jamil
seria a referência que é na Umbanda, não tivesse adoecido a menina Elisabete?
É dentro dessa perspectiva, que poderia ser desdobrada ao infinito, que
elenquei os fatos selecionados neste capítulo, tendo em conta a coleção de
fragmentos que compõem o discurso amoroso da Umbanda.
A leitura da subjetividade da história, as representações contidas no relato
oral, a possibilidade de caminhar nas transversalidades do tempo, a desconstrução
87
Segundo consideráveis setores da Umbanda, essa comemorou oficialmente seu centenário em 15
de novembro de 2008, tendo sido fundada em Niterói RJ, na casa de Zélio de Moraes, através da
incorporação do “Caboclo das Sete Encruzilhadas”.
88
Fernando PESSOA, Tabacaria, O Eu Profundo e outros Eus, p. 256.
87
do imaginário, as linhas duras e os horizontes de fuga da sociedade de controle, o
beijo da dialética com a poesia, o inefável, tudo isso se coloca à disposição da
Umbanda para que ela possa falar dela mesma, com a mesma autonomia com que
fez a sua história.
No entanto, deixando elucubrações de lado e apelando para um raciocínio
linear que privilegia a média aritmética à ponderada, sinto-me provocado a
mergulhar na linha do tempo e averiguar o que estaria ocorrendo com o Templo São
Benedito, com a União de Tendas e a própria Umbanda no período em que
corresponderia à meia vida desse movimento. Para que essa incursão fosse
realizada, adotei como fonte de informações o Jornal Aruanda, incluindo as noticias
em que dei destaque, elementos tirados à memória oral do movimento. Sendo
assim, vamos aos fatos.
3.2 - “JORNAL ARUANDA”
89
, PORTA-VOZ DA UMBANDA
Como mencionei na apresentação deste trabalho, no período compreendido
entre junho de 1975 e meados de 1982, a União de Tendas de Umbanda e
Candomblé do Brasil, à época denominada apenas União de Tendas Espíritas de
Umbanda do Estado de São Paulo
90
, publicou o jornal denominado Aruanda, o qual
teve nesse período certa regularidade em suas edições. Coincidentemente essa
fase corresponde ao tempo em que a Umbanda conheceu seu momento mais
próspero, a se considerar indicadores como o número de templos, de filiados, de
projeção na imprensa,
91
entre outros.
Assim, feitas as contas, teríamos do ano de fundação do Templo São
Benedito (1950) ao início da publicação de Aruanda (1975), 25 anos, e do término
da referida publicação (1982) até a presente data, exatamente 27 anos. Nesse
tempo, como diz o velho aforismo, muita água passou por debaixo da ponte.
89
Leia a Sinopse do Jornal Aruanda nos anexos ao final da dissertação.
90
No final de 1975 a União de Tendas Espíritas de Umbanda do Estado de São Paulo modifica sua
denominação para União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo,
preparando-se para em 1982 tornar-se a União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil.
91
Lísias Nogueira NEGRÃO, em sua tese, Umbanda e questão moral, p. 59-71, identificou o período
de 1974 a 1976 como o auge da Umbanda e, 1980 a 1982 como o momento em que se o seu
arrefecimento.
88
Dessa maneira, tendo a procissão de São Jorge como núcleo da pesquisa, e
o Jornal Aruanda como amostra do tempo, uni o conhecimento dos registros
jornalísticos do que precedeu ao meu ingresso na Umbanda, com a acumulação das
experiências vividas nela, após.
No entanto, em que pese o critério adotado, vacinei-me contra um eventual
empirismo, aprofundando a leitura de outros autores sobre o assunto, obtendo daí
minhas triangulações balizadoras.
A coleção do jornal Aruanda obtida por mim não é completa, mas dos 41
números publicados, considero que a inexistência de oito exemplares, não torna
minha amostra menos representativa a ponto de comprometer a análise dos
resultados.
Mas, consumando a proposta, vamos à verificação da matéria em que a
Umbanda fala dela mesma, sem a necessidade de interlocutores.
No ano de 1975, no período compreendido entre os meses de junho e
dezembro, foram publicados quatro exemplares do jornal Aruanda. Nos três
primeiros, o destaque para as atividades realizadas pela União de Tendas, foi
dirigido à procissão de São Jorge, enquanto que o exemplar correspondente ao mês
de dezembro é alusivo à Festa de Iemanjá, embora a comemoração de São Jorge
seja mencionada, como em todos os números que serão publicados.
É interessante perceber-se como o Templo São Benedito, cujo Babalorixá é
Jamil Rachid, não é citado de forma explícita nas edições de Aruanda, sendo que os
enaltecimentos e destaques quando ocorrem o dirigidos à Umbanda como um
todo, sobressaindo-se palavras de ordem que pedem unidade, comunidade religiosa
e a formação de um exercito de branco
92
, obviamente fazendo alusão à cor da
indumentária ritual dos umbandistas.
Uma explicação para o fato, certamente está relacionada à possibilidade de
que fosse o Templo São Benedito apontado como modelo, ou mesmo exaltado
92
Oxalá, em idioma Yoruba é um Orixá Fun Fun, o que significa numa tradução literal, Rei do Pano
Branco. O branco indica pureza e, portanto é a cor de oxalá. Costuma-se dizer que em seu Exército
Branco, a hierarquia militar está posta ao contrário. Nesse exército as pessoas se alistam como
general, são promovidas a coronel, que por sua são seguidas de outras promoções até atingir o posto
mais elevado que é a condição de soldado raso. Esta aparente quebra de modelo, oferece uma
medida do quanto a pessoa necessita despir-se de pretensões, vaidades e outros apegos para se
tornar um bom soldado e travar o bom combate.
89
como o mais produtivo, ou ainda, o mais antigo, poderia ser entendido como
privilegio ante outros pais e mães de santo, acarretando ciumeiras e
incompatibilidades. Parece-me que essa habilidade diplomática, mesmo que
manifestada intuitivamente, é inerente à maneira de proceder de Pai Jamil ao longo
de sua carreira de sacerdote. Sem desmerecer a si, procura sempre enaltecer os
demais, reconhecendo- lhes atributos dos quais muitas vezes as pessoas não
haviam se dado conta.
Procedendo a leitura de Aruanda, percebe-se que a maneira de ser de Pai
Jamil está presente na tônica das notícias, às vezes baluartista, mas nunca sectária,
seja em relação à própria Umbanda ou outros segmentos da sociedade. No texto
não aparecem vestígios de um discurso magoado que fizesse a elegia do leite
derramado ou o pranteamento dos tempos de perseguição. Pelo contrário, há júbilo
de que finalmente a Umbanda receba o reconhecimento que lhe é devido e, antigos
preconceitos tão arraigados, sejam postos de lado.
Logo no primeiro exemplar, constam necrológios referentes ao falecimento de
dois ex-presidentes do Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo,
respectivamente, Dr. Estevão Montebelo, ocorrido em abril de 1975 e do General
Nelson Braga Moreira, acontecido em fevereiro de 1973. Ambos são reverenciados
pelos serviços prestados à Umbanda, cabendo ao primeiro a honra de ter
estruturado a entidade com a integração do maior número de terreiros associados e
o outro, pelo fato de haver tornado a Umbanda respeitada diante das autoridades
93
.
Curiosamente em meio à notícia do Dr. Montebelo, aparecem números
referentes à quantidade de umbandistas existentes no Estado de São Paulo:
650.000 adeptos e 8.000 templos, sendo 2000 na capital e 6.000 no interior o que
possibilita o conhecimento do nível de estruturação da Umbanda no Estado de São
Paulo.
Embora à primeira vista os meros possam parecer inflacionados,
considere-se que em sua tese de Livre Docência, Lísias Negrão
94
, referindo-se ao
número de associações espiritualistas registrados em cartórios em 1975 no Estado
de São Paulo, identificou 948 terreiros de Umbanda, correspondendo a 87% dos
93
Lembraria que à época da ditadura no Brasil foi prática usual por parte das empresas, dos clubes
esportivos e de muitas entidades em geral, terem à frente,como Presidente de honra um militar de
patente elevada,de preferência um Coronel ou General.
94
Cf. Lísias Nogueira NEGRÃO, Umbanda e questão moral.
90
registros efetuados, num universo de 1090 unidades, cabendo no restante, ao
Candomblé 10.9% e 2,1% aos centros espíritas.
Considerando-se os 650.000 adeptos do umbandismo, de acordo com o
informado, dividido por 8.000 terreiros, temos um número aproximado de 80 pessoas
por terreiro, o que representa um cálculo bastante realista da quantidade de
integrantes que compõe um templo de Umbanda, ainda na atualidade.
Sobre essa questão gostaria de fazer duas considerações sobre a natureza
constitutiva desses terreiros.
A primeira é um destaque para o número de registros em cartório verificado
num único ano. Sabe-se que um terreiro quando adquire foros para aspirar um nível
de institucionalização em cartório, o que ocorre via de regra através de uma
entidade federativa, certamente possui um corpo mediúnico bem estruturado, um
salão para a realização das giras, uma diretoria constituída e uma receita
proveniente das mensalidades dos associados.
No entanto, pelo que se conhece no meio religioso da Umbanda, para cada
terreiro que atenda esses requisitos, existem pelo menos dez outros que sobrevivem
de forma mais simples, precária, às expensas de uma mãe ou pai de santo que
trabalhem num cômodo da casa ou num quartinho de quintal. Nesses casos o
número de participantes é visivelmente inferior, embora não seja de se desprezar a
quantidade de pessoas que se valem dos serviços religiosos desses sacerdotes com
menos reconhecimentos. Embora a prática de atendimento ao blico por essas
pessoas seja bastante heterodoxa
95
, a maioria delas ao se referir à sua afiliação
religiosa, menciona a condição de serem umbandistas.
Outro aspecto que me parece considerável é a forma de estruturação quase
tribal dos terreiros de Umbanda. Seu desenho religioso é bastante diferente do que
costuma acontecer com outros credos na forma de se conduzir. Vejamos como
exemplo a questão ligada à prática do proselitismo.
Faz parte do discurso umbandista a aceitação com naturalidade de que um
devoto participe de outras formas de expressões religiosas, sem que o fato tenha
95
É freqüente na periferia a existência da “senhora” ou do tiozinho” que presta serviços de oráculo
com o uso de cartas ezios, retira “mal olhado”, espinhela caída” e eventualmente prepara
“garrafadas” e banhos de descarrego”. Essas pessoas, com certa regularidade, promovem sessões
de umbanda em sua casa, integrando de forma coletiva a comunidade que às cercam.
91
que ser omitido dos demais. Desta maneira, temos umbandistas que vão à missa,
outros que freqüentam centros espíritas, os que recebem a impostação de mãos na
Igreja Messiânica e os que eventualmente participem de um culto evangélico. O
devoto, geralmente, não costuma fazer a cabeça, mesmo de alguém que pertença
às suas relações pessoais mais próximas; ao contrário, limita-se a repetir alguns
motes como, por exemplo: “só acontece na hora certa”, referindo-se à busca da
Umbanda, ou mesmo, “só se vai à busca de Deus, pelo amor ou pela dor”. No
entanto, mesmo sendo assim pouco dogmática, algo mal aceito é o filho de santo
freqüentar mais de um terreiro, fazendo uma aproximação consultiva de orientação
ou aconselhamento junto a outro sacerdote que não seja seu próprio pai ou mãe
espiritual. Admite-se que a pessoa freqüente tantos quantos terreiros queira, desde
que a sua participação não além da condição de assistente. O contrário é tido
como uma conduta que enfraquece a liderança do Babalorixá ou da Yalorixá,
acarretando freqüentemente os chamados rachas, os quais por sua vez darão
origem às expulsões e, não raramente, à criação de novos terreiros.
3.3 - BODAS DE PRATA PARA SÃO BENEDITO
O ano de 1975 foi de festividades para a Umbanda, comemorando-se nele, ao
mesmo tempo, o Jubileu de Prata do Templo São Benedito e os vinte anos de
existência da União de Tendas. Como parte das comemorações, o Superior Órgão
de Umbanda do Estado de São Paulo, desde então sob a Presidência de Jamil
Rachid, promoveu nos próprios da Câmara Municipal de São Paulo, a realização do
III Simpósio de Chefes de Terreiros Umbandistas
96
.
O encontro, que contou com 324 lideranças, teve por objetivo a codificação da
doutrina da Umbanda, necessidade de muito sentida pelos sacerdotes da religião
e lembrada com insistência nos documentos produzidos à época.
O temário, previamente elaborado através de consulta junto às lideranças
97
,
contou com os seguintes assuntos: “... organização dos Templos de Umbanda, a
96
1975 corresponde ano em que Jamil Rachid assumiu o Superior Órgão de Umbanda do Estado de
São Paulo na qualidade de Presidente.
97
Nas diversas oportunidades em que são mencionadas as lideranças de então, Pai Jamil sempre
nomeou-as como estando localizadas na União de Tendas Espíritas de Umbanda do Estado de São
Paulo, na Associação Paulista de Umbanda, no Superior Órgão de Umbanda do Estado de São
Paulo e na Federação “ Caboclo Tupinambá” de Santo André, sob a direção de Ronaldo Linhares.
92
abolição de usos incivis, combate ao alcoolismo e à violência, organização dos ritos
de casamento e batizado, assistência médica, odontológica e judiciária para os
umbandistas e suas famílias”.
Dada à diversidade dos temas, ocorreu-me a curiosidade de enveredar em
cada um deles para saber como foram debatidos, como se processou o
encaminhamento de propostas e a forma de votação utilizada para se chegar a uma
deliberação.
Buscando essas explicações, ainda uma vez, recorri ao Pai Jamil,
considerando que foi ele quem presidiu o encontro e, com Demétrio Domingues da
Associação Paulista de Umbanda, outra entidade federativa, esteve presente em
todas as fases de execução da atividade.
Conforme Pai Jamil explica, esse ciclo de encontros composto de cinco
etapas, correspondeu ao esforço dos umbandistas em superar uma situação em que
as questões doutrinárias eram tratadas de forma aleatória.
A propósito, ainda segundo ele:
de fato, o marco de mudança da Umbanda em São Paulo, e isso teve
repercussão em todo o Brasil, foi a fundação da “União de Tendas Espíritas
de Umbanda do Estado de São Paulo, acontecida no dia 30 de outubro de
l.955, na Rua Santa Ifigênia, 176”. Nessa data, com a presença do Dr. Luiz
Carlos de Moura Accioly, Ttes. Eufrásio Firmino Pereira e José Vareda e
Silva, Srs. Benedito Chagas, Geraldo Clemente da Silva, Luiz Freitas Vale,
Abromglio Wainer, Fernando Kazitas, José Gabriel da Rocha Mina, jornalista
Francisco Sinésio e dele próprio
98
, construiu-se a “trincheira” que permitiria à
Umbanda se fazer respeitada pela polícia, pela igreja e por todas as mentes
atrasadas que ainda existem no Brasil.
99
Para ele: “esses homens se entregaram à luta pelo direito de, como
brasileiros livres, terem seu próprio Deus de acordo com a sua vontade, para amá-lo
de acordo com a sua consciência”
100
.
98
Para auxiliar sua lembrança na enumeração desses nomes, Pai Jamil valeu-se do Livro de Atas
que constituiu a “União”; nessa oportunidade conheci o documento e tive acesso também à fotografia
realizada na ocasião, onde figuram os referidos fundadores..
99
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
100
IDEM, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
93
Pai Jamil, reportando-se hoje aos tempos passados, faz a reflexão de que
sem a União de Tendas, certamente Ogum o teria se manifestado para ajudar a
Umbanda quando se realizou em 1957 a primeira Procissão de São Jorge.
Ainda rememorando esse ano, complementa dizendo que certamente o
cosmo não teria se aberto como aconteceu na oportunidade. Prossegue Pai Jamil:
1957 foi um ano muito importante para nós. Em abril fizemos a Procissão e
em 20 de setembro aprovamos um livreto que iria transformar a Umbanda. A
finalidade dele era orientar dirigentes espirituais de templos, para a
organização da religião em suas casas. Não era mais possível admitir-se que
alguns exploradores invadissem nosso meio e deturpassem a religião. Assim
nunca teríamos credibilidade e o que um fizesse de bom, o outro ia e
destruía.
Quando concluímos o livreto, Dr. Accioly imprimiu uma grande quantidade
deles, mandando um exemplar para cada Delegacia de Polícia do Estado de
São Paulo. Não eram eles que prendiam, indaga Pai Jamil; então eram eles
que deveriam saber em primeiro lugar que nós estávamos nos organizando.
A seguir, visitamos terreiro por terreiro entregando na mão de cada Pai de
Santo um exemplar; pedíamos aos interessados colaboração, críticas e
outras idéias que devessem ser trazidas para as reuniões mensais da
entidade federativa.
No dia 6 de setembro de 1958, Dr. Accioly subiu para a eternidade”, vindo a
assumir a direção da União de Tendas, Dona Almerinda Fraga Abarassú,
esposa do Dr. Acciolly, a qual deu continuidade durante certo tempo à luta de
seu companheiro.
101
Prosseguindo em suas informações, Pai Jamil narra que logo após o
falecimento do Dr. Accioly, os proprietários do imóvel na Rua Santa Ifigênia, pediram
a devolução da sala, providência que acarretou por alguns meses a desarticulação
da entidade.
Desde então a União de Tendas se estabeleceu em outros endereços, tais
como Rua do Gasômetro, Osasco (num conjunto de prédios populares do qual não
se lembra da localização), Rua João Moura e, até que em 1967 instalou-se
definitivamente na Rua Alves Guimarães, 940, quando ele assume a sua
Presidência e nela permanece até a presente data.
Diante dessas informações alusivas ao surgimento da entidade federativa dos
umbandistas em São Paulo, é interessante de se observar os níveis de estruturação
101
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
94
que a mesma foi conseguindo nos tempos que se seguiram. Pelo que se pode
observar, a religião vai se legitimando por si só, num processo de crescimento auto-
sustentável.
vai longe o tempo em que os terreiros existiam apenas na zona leste, mais
precisamente em Guarulhos e adjacências, atestando que essa prática religiosa,
com vertentes na Bahia, seguiu o curso da estrada Rio - São Paulo, num traçado
depois ocupado pela via Dutra, vindo a se espraiar na denominada Grande São
Paulo.
Desta forma, a Umbanda que no Rio de Janeiro estava localizada na periferia
da cidade (zona norte), na capital paulistana ingressa igualmente pela periferia,
(zona leste), justamente onde se localizava o maior contingente populacional de
trabalhadores.
Esse período corresponde ao início da explosão demográfica da cidade, com
a chegada do migrante nordestino, baiana
102
em sua maioria, que veio contribuir
com sua força de trabalho e com sua cultura, para que São Paulo se consolidasse
como pólo industrial da metalurgia
103
, além de cidade metropolitana.
Mas retornando ao material jornalístico de Aruanda, me detenho no temário
que norteou o III Encontro de Chefes de Terreiros, promovido pelo Superior Órgão
de Umbanda do Estado de São Paulo. Realizado em 1975 na Câmara
104
da
edilidade paulistana, teve como Coordenador Jamil Rachid, Presidente da entidade
promotora do evento. Do temário discutido escolho para se trabalhar o conceito, o
tema que diz respeito ao combate das práticas incivis.
Buscando ampliar meu entendimento do que vinha a ser essa questão e quais
as suas implicações no entendimento geral das coisas, reportei-me a Pai Jamil, que
sobre o assunto assim se posicionou:
102
As “Casas Bahia”, distribuidora líder do comércio varejista de eletrodomésticos no Brasil, em 2009
comemora seu cinqüentenário. Abordando o assunto, Sr. Samuel KLEIN, criador do empreendimento,
em entrevista dada à imprensa fez a seguinte declaração: “comecei com apenas uma loja no ABC.
Como comerciante avaliei o potencial de compras da migração nordestina e me veio a inspiração de
homenagear o povo baiano. Somente agora, passados 50 anos, posso retribuir o que me foi
proporcionado, inaugurando de uma só vez, em Salvador, quatro lojas da minha rede”.
103
A propósito reza a tradição que Ogum é o Orixá da metalurgia; seus filhos de santo são bravos
guerreiros capazes de realizar coisas incríveis por não saber que eram impossíveis.
104
O Brasil à época estava sob o regime do bi-partidarismo e a Câmara Municipal de São Paulo tinha
como Presidente o Vereador João Brasil Vita, da ARENA e Samir Uchoa, do MDB.
95
Naquele tempo os terreiros estavam muito dispersos uns dos outros e a
comunicação entre eles era praticamente nula. Como não havia uma diretriz,
as coisas iam acontecendo na base da criatividade individual, e aí havia muita
gente se dispersava e fazia o que desse na cabeça.
Tínhamos poucas coisas para oferecer e a Procissão de Ogum era
praticamente a única atividade realizada conjuntamente por um número maior
de terreiros. Em meio a sacerdotes de Umbanda que eram corretos no
cumprimento de suas obrigações, surgiam oportunistas e desonestos, criando
um ambiente de desmoralização e descrédito junto ao público. não
tivéssemos uma atitude firme diante de certas situações, certamente não
poderíamos nos considerar uma entidade normatizadora de princípios.
Quando recebíamos uma queixa ou uma denúncia contra um terreiro
federado, íamos imediatamente nos inteirar do que estava acontecendo.
Dependendo da situação, orientávamos, mas em diversas oportunidades não
tivemos dúvidas em levar o caso para a diretoria e fazer o desligamento do
faltoso.
105
3.4 - YEMANJÁ MAMÃE SEREIA, YEMANJÁ RAINHA DO MAR
E prosseguindo na entrevista realizada, relata Pai Jamil:
Aos poucos, inspirados com a mobilização que fazíamos para arregimentar
público na comemoração de Ogum, a Festa de Yemanjá foi adquirindo
importância cada vez maior. No início, ali na Praia das Vacas, em São
Vicente, havia pouca disciplina e os ônibus das caravanas estacionavam em
qualquer lugar. A área era de propriedade da Marinha e nela estava
localizada a maior parte dos cabarés da cidade, tornando-se insegura para
nós freqüentadores ocasionais que éramos.
Na descida da serra pela Via Anchieta, as pessoas paravam para fazer
oferendas de velas acesas junto à mata e ao acostamento. Aquela prática era
perigosa não pelo risco de incêndio, mas também pela possibilidade de
atropelamentos na beira da estrada. Foi aí que começamos a dar o exemplo e
orientar nossos terreiros filiados a não se deterem na serra gerando confusão.
Explicávamos que o lugar da comemoração era embaixo; de que era bom
que algumas pessoas chegassem antes para localizar e preparar o terreiro na
praia; de que não se usasse bebidas alcoólicas; que não fizesse matanças;
que se cuidasse para não perder as crianças; que houvesse cuidado para não
acontecer afogamentos; e mais uma série de providências que aos poucos
iam educando o povo dentro dos princípios da religião.
Para nossa alegria, era cada vez maior o número de pessoas que participava
das comemorações. Em 1972, de surpresa, vieram trezentas mil pessoas,
sem que houvesse nenhuma infra-estrutura para recebê-las.
Somente em 1975 as coisas começaram a mudar. Trocamos o local da festa
para a Praia Grande e em colaboração com a Prefeitura do Município as
coisas ficaram mais organizadas. Orientamos a identificação das crianças
105
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
96
com um bracelete no pulso; criamos um serviço de atendimento de
emergências médicas; montamos banheiros com cabines para homens e
mulheres; pedimos policiamento; fizemos campanha para coleta do lixo; e
muitas outras providências que agora não me ocorrem. Segundo minha idéia,
esse, também é o combate das práticas incivis, ensinando o povo a se
organizar de forma civilizada.
Agora, o povo quando erra não tem culpa se não ninguém para orientá-lo.
Não que coisa interessante tem acontecido no Brasil, depois que o
Presidente Lula começou a conversar com o povo? Antes os Presidentes
sabiam fazer discursos e dar entrevistas. O Lula inaugurou um jeito novo de
se relacionar com o povo. Ele vai e conversa com as pessoas, explica. Fala
de uma maneira que se entende e aí o povão vai caindo na realidade e
mudando seus comportamentos. É preciso saber conversar com o povo e foi
assim que a Umbanda foi se organizando.
Atualmente, na Praia Grande, os terreiros estão divididos em dois grandes
grupos; aqueles que fazem seus rituais no primeiro fim de semana mais
próximo da data de oito de dezembro, Dia de Yemanjá, e os que participam
no fim de semana seguinte. Pela tradição
106
, a Associação Paulista de
Umbanda faz a abertura da festa e a União de Tendas realiza o
encerramento. Nosso entrosamento com a Associação Paulista de Umbanda
vem de muitas décadas. Sempre foram nossos parceiros em tudo: da
Procissão de Ogum no Ibirapuera até a aquisição do Vale dos Orixás
107
.
Mas voltando à questão dos comportamentos incivis, vou contar uma coisa
que à primeira vista pode parecer um comportamento incivil, mas não é. Veja
você: apesar de todos os apelos que fazemos para que mulheres grávidas
evitem participar da Festa de Yemanjá, não tem jeito e elas continuam indo.
Pois acredite que aconteceu por três vezes de nascer criança na água do
mar. O parto foi feito dentro d’água e os bebês que nasceram estão firmes
e fortes. Deve ser a força do Orixá, afinal Yemanjá é a mãe da natureza.
108
3.5 - CASAMENTO NA UMBANDA
A realização de casamento é um acontecimento comum nas práticas
religiosas em geral; no entanto até 1975 o devoto umbandista não dispunha dessa
cerimônia em sua liturgia. Foi a partir de 18 de dezembro daquele ano, como informa
Aruanda em seu exemplar de janeiro de 1976, que no Templo São Benedito
consagrou-se o primeiro casamento umbandista. O acontecimento foi cercado de
grande pompa e segundo a notícia, estiveram presentes mil pessoas. Os noivos
106
Pai Jamil referiu-se à União de Tendas e à Associação Paulista de Umbanda, mas salientou que o
número de entidades federativas e terreiros independentes que comparecem à Festa de Yemanjá é
numeroso e todos participam dos preparativos da comemoração com entrosamento e harmonia.
107
O Vale dos Orixás é uma área de 40 alqueires localizada na Mata Atlântica, no Municio de
Juquitiba-SP, destinada à prática dos rituais de Umbanda e Candomblé, em meio à natureza
108
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
97
chamavam-se Pedro Alcides e Rita dessia enquanto que o celebrante, como não
poderia deixar de ser era Jamil Rachid.
O jornal não perde a oportunidade para lembrar seus leitores de que a prática
do casamento se insere numa das maiores ambições dos umbandistas e que a sua
realização a partir de agora se com o respaldo da lei. Após a consumação do
evento, seguiram-se várias manifestações de entusiasmo, com um dos presentes
pronunciando-se de que “a Umbanda conseguira quebrar todas as barreiras e reunir
em seu seio, pessoas de todas as religiões”. Dentre as pessoas ilustres que se
fizeram presente, estavam alguns diretores da maçonaria e o Vereador Samir
Achoa, Presidente do MDB.
Saliente-se que à época o Vereador Samir Achoa era presidente do MDB
paulista, agremiação partidária que se constituía no último resquício institucional que
restara em termos de oposição ao governo. A esquerda fora silenciada e o
presidente Geisel era visto como um aceno de liberdade no cenário político de uma
ditadura que já durava 12 anos.
Face aos dilemas da pátria, vejamos como é possível identificar-se a maneira
como a macro política influenciava na Umbanda em seu primeiro casamento.
Pelo texto da reportagem não menção de que o vereador presente tenha
se valido da palavra (o que é difícil imaginar, sabendo-se de quem se tratava), no
entanto, deu-se destaque ao discurso do chefe maçônico, que declarou entre outras
coisas, “que a família será sempre o repouso da sociedade e da pátria, e que o
Brasil, que será o coração do mundo, jamais adotará figurinos de países estranhos à
nossa formação democrática e à nossa nacionalidade”.
Considerando o conteúdo da fala maçônica, é de se supor que essa estava
perfeitamente alinhada ao discurso oficial, donde se conclui que os figurinos de fora
se referiam inegavelmente à famigerada ameaça comunista.
Acredito que essas ponderações são pertinentes, em decorrência de
acusações que pesam contra a Umbanda por um suposto adesismo político durante
o período de exceção no país. No meu entender, a religião emergia de um
prolongado período de repressão, o qual foi suplantado à custa de sacrifícios e
persistência. Considero que as lideranças umbandistas desenvolveram uma sensível
98
habilidade de lidar com as contradições, tornando-se intuitivamente pragmáticas em
sua política de alianças
109
.
3.6 - UM VALE PARA OS ORIXÁS
Em janeiro de 1976, o Jornal Aruanda noticia que a necessidade da Umbanda
e do Candomblé em possuir um local próprio para a realização de suas celebrações,
estava prestes a deixar de ser um sonho. Para tanto, em breve, a “União de Tendas”
pretendia adquirir uma gleba de terra nos arredores da cidade, consagrando-a ao
culto da natureza, como é do gosto nas tradições afro-brasileiras. Segundo ainda o
texto da reportagem, esse local deveria se constituir num verdadeiro santuário,
oferecendo em suas dependências, meios para que os devotos tivessem acesso a
um ambiente de preservação ecológica.
Numa época em que o discurso ambientalista não tinha ainda a expressão
dos nossos dias, é possível considerar tal manifestação como sendo de vanguarda.
A aquisição e o início das obras do Vale dos Orixás, equivocadamente
chamado por muitos como Cidade dos Orixás (o que seria um contra-senso), no
Município de Juquitiba, ocorreram em 1982, sendo que em 2009, vinte e sete anos
após, o empreendimento, devidamente implantado, tornou-se o destino da Procissão
de Ogum a partir de sua 52ª comemoração.
A criação do Vale dos Orixás reuniu os esforços de duas entidades
federativas, a saber, União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil e
Associação Paulista de Umbanda.
Jamil Rachid, Presidente da primeira e Demétrio Domingues, falecido em
2007, Presidente da segunda, constituíram uma nova entidade denominada
Associação Vale dos Orixás, da qual se tornaram, respectivamente, Presidente e
Vice-Presidente de sua Diretoria.
109
A propósito o General Ernesto GEISEL, para a insônia das patrulhas ideológicas” que operavam
na época, foi saudado pelo cineasta Glauber ROCHA como o único fato promissor que despontava
no horizonte da pátria. Usando a imagem surrada “de uma vela para Deus e outra para o Diabo”,
destaco que o Presidente Lula em polêmica entrevista publicada pelo Jornal Folha de São Paulo em
22 /10/ 09, aludindo à necessidade da consolidação nacional, disse que se fosse no Brasil, para se
atingir esse objetivo, Jesus se uniria a Judas.
99
A propriedade se constitui num sítio de 40 alqueires, com serra, rio e
cachoeira, localizados na Mata Atlântica, no primeiro (para quem viaja ao Paraná
pela BR116) dos catorze municípios que compõem o Vale da Ribeira. O local,
visitado por terreiros das mais distantes localidades de São Paulo, e também de
outros estados, se constitui numa verdadeira escola de convivência com a natureza,
ensinando aos seus freqüentadores cuidados básicos como, o destino do lixo
religioso, preservação de mananciais e cachoeiras, combate ao incêndio nas matas,
entre outros.
O calendário religioso é extenso, cobrindo com uma atividade mais
expressiva, cada um dos meses no ano. Desta maneira, comemoram-se as
efemérides tradicionais da Umbanda e do Candomblé, acrescentadas de outras
menos divulgadas como é o caso da celebração de Santa Sara pelos terreiros que
trabalham com a linha de ciganos, as festas dos Baianos e Boiadeiros e a
celebração litúrgica da Semana Santa na denominada Sexta-feira Maior.
3.7 - RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Nova noticia do jornal Aruanda, mês de janeiro de 1976, informa que no dia
23 dezembro do ano anterior, uma delegação da União de Tendas viajara para o Rio
de Janeiro com o intuito de oferecer boas vindas ao Embaixador do Senegal, Exmo.
Sr. Mamadou Sevai Mibengue e sua esposa a embaixatriz Fatou Mibengue.
Na oportunidade foi narrada ao diplomata a história da Procissão de Ogum na
Umbanda e oferecida uma coleção de jornais Aruanda constando desses, o relato
dos antecedentes africanos dessa tradição.
Segundo a reportagem, ainda, o embaixador sensibilizou-se com a visita,
convidando o Babalorixá Jamil Rachid a conhecer seu país, fato que veio a se
concretizar no ano seguinte.
A convivência com representações estrangeiras aconteceu em várias
oportunidades, mas me ocorre, dentre essas, o episódio situado em 2002 no
Ibirapuera, quando a Cônsul de Cuba em São Paulo, Exma. Srª Sonia Milanez,
acompanhava a exibição de um grupo de danças caribenhas, vindo de seu país, na
interpretação de coreografia alusiva a Ogum. A manifestação artística teve excelente
100
acolhida pelo público, ocasião em que a representante diplomática discursou
salientando a amizade dos dois países e ressaltando as semelhanças existentes
entre a Umbanda brasileira e a Santeria cubana.
Curiosamente, conferindo um caráter supra-ideológico para o evento,
estavam no mesmo palanque, juntamente com as autoridades da Umbanda, Dona
Silvia Maluf representando o esposo, o Coronel Edson Ferrarini, os Deputados
Federais Aldo Rebelo e Jo Genoino, o Deputado Estadual Nivaldo Santana, o
Sheik Mohamed Benizzan e o humorista da televisão Sr. Pedro de Lara.
Essa aparente profusão de interesses que a Umbanda sensibiliza, reunindo
em torno de si pessoas de procedências tão distintas, representa um laurel para um
movimento que teve seus primórdios nas catacumbas do Jardim Buturuçu, na zona
leste em São Paulo.
Ainda considerando o aspecto diplomático das relações internacionais, no
jornal várias menções ao fato de que a União de Tendas possui escritórios de
representação na Argentina, Paraguai, Bolívia e Portugal, oferecendo para esses
países uma atividade de suporte religioso na execução do calendário litúrgico, o qual
contempla entre outras similaridades com o nacional, as comemorações de São
Jorge, Yemanjá, Oxossi e “Cosmo e Damião”. A interação com devotos de outros
países acontece com regularidade, ocorrendo através do envio de delegações às
comemorações brasileiras ou à realização de obrigações religiosas junto aos filhos
de santo que ao Brasil recorrem. Na mesma edição, consta com destaque a
realização do III Festival de Música de Umbanda de Montevidéu, promovido pela
União Umbandista do Uruguai.
Lembrando que no Uruguai existiam à época, 1600 terreiros de Umbanda,
surge a informação de que a canção vencedora chamava-se nada menos do que:
Ogum é o Rei do Brasil.
Em 2008, no mês de abril, realizou-se em Lisboa o Primeiro Congresso de
Umbanda e Candomblé de Portugal, que contou com a presença de uma comitiva
brasileira representando a União de Tendas. Fez parte do temário, além de assuntos
específicos da fé, a discussão sobre o estreitamento de laços culturais entre Brasil e
Portugal.
101
No entanto, em matéria de diplomacia, nada se comparou ao fato de que no
ano 2000, Pai Jamil foi convidado a participar na ONU, da Conferência Inter-religiosa
promovida pela UNESCO, na qualidade de representante dos cultos de ascendência
afro existentes no Brasil. O encontro foi participado por sacerdotes vindos de várias
partes do mundo, com vistas à discussão da Paz no milênio que se iniciava.
3.8 - “ARUANDA” E “THE BRAZILIAN GAZETTE” UNIDOS PELOS
ORIXÁS
A Umbanda às vezes surpreende pela sua capacidade despertar simpatias
nos seguimentos mais cultos e porque não dizer, eruditos da população. O
enunciado desta matéria é uma demonstração da questão a que nos referimos.
Antonio Olynto e Zora Seljan
110
são referências na cultura brasileira. Ele
integrou a Academia Brasileira de Letras e a sua carreira de intelectual literato,
compreende poesia, romance, ensaio, crítica literária e análise política. Foi adido
cultural do Brasil em Lagos na Nigéria e em Londres. Ela por sua vez, reunia
qualidades de boa escritora, brilhando como ensaísta, dramaturga, romancista e
autora de ficção científica. Casados, além da paixão que os unia, em ambos havia
um segundo grande amor em comum, qual fosse a cultura afro-brasileira.
Nas voltas que o mundo acabaram conhecendo em 1974 Pai Jamil Rachid
em suas atividades de Babalorixá em São Paulo. A aproximação, mediada por
Jaime Alcântara, qualificado anteriormente, foi cercada de muito afeto e
admiração recíproca pelas partes. Conversaram sobre a Bahia, Rio de Janeiro e
África. Falaram de Umbanda, Candomblé e das muitas formas que assumira a
cultura negra em nossa terra, decorrendo dela a vitalidade da civilização brasileira.
Morando boa parte de suas vidas entre Brasil e Inglaterra, em Londres, em
1973, criaram o jornal The Brazilian Gazette, que tinha como intuito levar para
Europa as notícias da nossa terra.
Jornalista por profissão, Zora entusiasmou-se com as perspectivas da criação
de um jornal umbandista de nome Aruanda, como lhe informara Pai Jamil,
prontificando-se de imediato em ser sua colaboradora, juntamente com seu esposo,
110
Zora SELJAN foi primeiramente casada com o escritor Rubem BRAGA, tornando-se conhecida no
Rio Janeiro como ativista político do Partido Comunista.
102
fornecendo matérias enquanto correspondentes em Londres. Por outro lado, Antonio
Olynto estimulou Pai Jamil a aprofundar seus conhecimentos sobre a África,
lembrando-o que para se conhecer os cultos africanos, que se aprofundar na
diáspora negra acarretada pelo escravagismo.
Mercê da generosidade dos dois, o jornal Aruanda
111
, desde o seu primeiro
número, publicou excelente material formativo sobre a história da Umbanda.
Em contrapartida, Pai Jamil forneceu à Zora as informações que viriam a
estruturar seus personagens no romance: “As três mulheres de Xangô”.
No exemplar de Aruanda de novembro de 1975, na coluna social aparece foto
de Antônio Olynto no lançamento de seu romance “Copacabana” ocorrido no “Museu
de Imagem e do Som”, em São Paulo, enquanto na reportagem que tem por título:
“20 mil pessoas saúdam Ogum no Ibirapuera”, aparece o mesmo, acompanhado de
Zora, em meio às autoridades presentes.
3.9 - ARUANDA” - MARÇO DE 1975: CANDOMBLÉ AGORA É
RELIGIÃO
Noticia vinda de Salvador, informava que o Governador Roberto dos Santos
assinara um decreto liberando o Candombdo controle policial. A partir de 15 de
janeiro as casas de toque deixaram de figurar ao lado de bilhares, cinemas,
dancings, como organizações sujeitas ao pagamento de taxas, para serem
reconhecidas como religião.
A cerimônia de assinatura contou com a participação do próprio Governador,
do Prefeito da cidade, Secretários de Governo e inúmeros Babalorixás e Yalorixás
do Candomblé, atendendo à antiga reivindicação dos cultos afro-brasileiros que
possuem, só em Salvador, mais de mil terreiros cadastrados, sendo impossível
calcular o número de fiéis.
111
Segundo consta, a palavra aruanda, freqüentemente interpretada como o céu para onde iam os
escravos depois de mortos, na realidade é uma corruptela da palavra Luanda, local de onde
procediam boa parte dos negros que tinham a esperança de retornarem á sua origem quando
renascessem.
103
O Candomblé que na atualidade recebeu seu tombamento como patrimônio
cultural do Brasil, até recentemente na Bahia, era tolerado como uma excrescência
social.
Fatos como o mencionado nessa notícia publicada em Aruanda, dão uma
medida da importância assumida pela União de Tendas quando ampliou sua
designação para União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil.
Se na própria Salvador, berço do fervor religioso do Brasil, terra de Jorge
Amado da Tenda dos Milagres e do Pai Jubiabá, o Candomblé, até recentemente
era alinhado com outros tipos de serviços, que dirá em São Paulo e outras
localidades mais preconceituosas?
Comentando esse episódio com Pai Jamil, ouvi sua opinião sobre quanto e
como é velada, em São Paulo, a discriminação religiosa promovida pela Prefeitura
Municipal, baseada em interpretações insensíveis do Código de Posturas Urbanas
do Município. Assim agindo, a municipalidade tem fechado dezenas de templos de
Umbanda, cerceando dessa forma a expressão da liberdade religiosa na cidade; sob
a alegação de uso irregular do imóvel, a prefeitura se vale de expedientes
autoritários para o fechamento de terreiros.
Denunciados por certos vizinhos evangélicos que vêem nos cultos afro uma
manifestação demoníaca, o fiscal municipal se apresenta e solicita o alvará
de funcionamento da casa. Essa licença raramente é conseguida, dado ao
rigor burocrático que envolve a sua obtenção. Ante a ausência da titulação
legal, ocorrem elevadas multas e o conseqüente fechamento do terreiro.
Para fazer frente a essa situação, o Departamento Jurídico da “União de
Tendas” tem agido, mas os resultados ainda são incertos. A sujeição das
casas de culto de Umbanda e Candomblé em São Paulo estão sob as
mesmas normas disciplinares e requisitos burocráticos exigidas para os
bilhares, cinemas, dancings, como outrora ocorreu em Salvador, afirma pai
Jamil. Ainda segundo ele, a questão da liberdade religiosa prevista pela
Constituição da República, somente existe como uma meta a ser
conquistada.
112
Dentro dessa perspectiva, Pai Jamil lamenta o insucesso da Umbanda em ter
sua própria bancada na política:
112
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11/10/2009.
104
Em geral os políticos se aproximam da Umbanda com propósitos eleitorais, e
falta neles uma compreensão daquilo que de fato é importante para o povo do
axé. Não temos nada contra nossos irmãos crentes, mas nós temos uma
forma diferente de viver a religião. Não é do nosso feitio ficar pedindo
dinheiro, cobrando zimo. A Procissão de Ogum sempre foi realizada com
nossos recursos e jamais recebemos qualquer verba oficial para o custeio.
Isso não é lamentação, afirma Pai Jamil, mas uma questão de Justiça!
113
3.10 - SINCRETISMO RELIGIOSO E FORMAÇÃO DE SENTIDO NA
UMBANDA
Produzir a leitura comentada do Jornal Aruanda tendo em vista o
entendimento das transformações ocorridas no movimento umbandista em São
Paulo, é uma tarefa extensa e trabalhosa, razão pela qual me na contingência de
me limitar diante dos muitos assuntos publicados, selecionando apenas aqueles que
pela sua natureza o mais sugestivos e reveladores
114
. No entanto, no meu
entender,o aspecto mais importante a ser considerado na leitura das noticias e seus
respectivos comentários, referem-se à intenção subjacente à cada uma delas, de
quem as gerou com a preocupação de produzir sentido numa tradição religiosa
identificada sociologicamente como um sincretismo.
Dentro dessa perspectiva abordo o tema que enseja o título da matéria, qual
seja, o que é o sincretismo religioso aplicado ao caso da Umbanda, que diferentes
maneiras existem de interpretá-la, qual é a necessidade da formação de sentido no
discurso do qual ela se apropria.
Muito se falou da etiologia sincrética da Umbanda, o que tem lhe valido
elogios e criticas. Os primeiros reconhecem nela componentes da envergadura
universal presente em qualquer religião, reconhecendo como intrínseco a todas elas
a origem multifacetária. No que diz respeito às criticas, nega-se à Umbanda uma
nobreza epistemológica, associando-se ao seu sincretismo um valor secundário
decorrente de um sistema de idéias e valores precário e destituído de coerência. No
entanto, para o devoto do culto a questão tratada é percebida de outra maneira.
Para ele, quando recebe seu aprendizado religioso, realiza sua iniciação, uma
confiança da procedência do que lhe é ensinado, afinal quem transmite o
113
Jamil RACHID, entrevista concedida ao autor, gravação em áudio, São Paulo, 11 de outubro de
2009.
114
Nos anexos desta dissertação consta uma sinopse das matérias mais sugestivas publicadas no
Jornal Aruanda, tendo em conta os objetivos almejados.
105
conhecimento é supostamente quem tem maior experiência, está a mais tempo no
santo. Nesta condição formadora, tivesse a Umbanda uma Bíblia, um livro de
fundamentos, eventuais duvidas e questionamentos poderiam ser dirimidos, no
entanto a Umbanda se auto constrói gerando uma profusão de informações que não
podem ser averiguadas na medida em que pertencem ao plano inobservável das
comprovações. Desta maneira o mergulho na subjetividade é inevitável e para
muitas cabeças existem muitas sentenças.
Não fosse isso suficiente em termos de profusão, como dissemos, existem
ainda as imbricações da Umbanda com o Candomblé, e nesse sabemos da
existência de várias nações, o que impede muitas vezes de que a simples referência
ao mesmo não signifique algo, como se pretenda dizer.
A titulo de exemplo, menciono uma situação corriqueira nas conversas de
terreiro, mantidas pelos filhos de santo nos momentos extra-religiosos de interação
social, ou seja, nos intervalos das sessões. É sabido dentre os devotos do saravá, a
importância que há para si, conhecer seu pai de cabeça. Tal conhecimento equivale
a uma hierofania, uma vez que significa se apropriar da sua matriz de identidade
cósmica, revelando-se através dela, a natureza essencial no instante da criação.Pois
bem, em meio à conversa, quando alguém indaga ao seu par, qual é o seu orixá de
cabeça, a resposta dada pode ser desconcertante, mesmo considerando-se a
pergunta como delicada uma vez que boa parte dos filhos não aceita como de bom
tom ( e seguro) responder a esse tipo de interpelação, muitas vezes a resposta é
uma outra pergunta: “Você deseja saber minha filiação na Umbanda ou no
Candomblé”?
Qual o motivo dessa distinção, gostaria de saber? Por ventura o mundo dos
Orixás comporta divisões de território entre Umbanda e Candomblé de tal maneira
que num a linhagem filial é diferente daquela manifestada no outro?
Certamente a explicação para a divergência prende-se ao fato de que a
mesma pessoa consultou sacerdotes diferentes, obtendo em decorrência, respostas
diferentes para a sua inquirição. Como recurso de acomodação da consciência,
mesmo contrariando o bom senso, a pessoa racionaliza o seu desconforto,
assumindo um comportamento compatível com o dos aficionados do futebol quando
106
se pronunciam que “em São Paulo é torcedor do São Paulo e no Rio de Janeiro é da
torcida pó de arroz do Fluminense”.
Ainda dentro da temática temos outras variações, como me ocorre no caso do
debate presenciado por mim entre dois sacerdotes de Umbanda. Um era taxativo em
afirmar de que apesar das sucessivas reencarnações, a pessoa renasce sempre
com os mesmos pais de cabeça. O outro tinha uma opinião oposta e era categórico
em reiterar que a riqueza das reencarnações está em proporcionar à cada
nascimento, a possibilidade de novos pais de cabeça e com isso novas
experiências.
Muitas vezes para se aplacar contra-sensos dessa natureza, surge uma
engenhosa resposta mediadora: “de fato o dois os Orixás, e a disputa está
acirrada entre ambos pela posse de minha cabeça”.
Mas saindo dos exemplos e retomando à questão do sincretismo e à
formação de sentido para o discurso religioso, constata-se que ao longo da
existência da Umbanda, surgiram autores de livros que à sua maneira foram
formulando elementos que viriam a se constituir numa Doutrina da Umbanda,
embora essas obras sejam, pelo menos as mais conhecidas, psicografadas de
Mestres ou Guias que habitam o astral.
O recurso da psicografia coloca o médium psicógrafo numa posição
confortável, uma vez que aufere para si, quase sempre, o prestígio de receber seres
excepcionais de luz, ao mesmo tempo em que o isenta de citar a fonte dos seus
conhecimentos apresentados e as referências bibliográficas pesquisadas no plano
superior
115
.
No meu entender esse é um sincretismo perigoso porque desconhece os
princípios de autoria e os direitos reservados de publicação. Se ao menos houvesse
um ganho social na distribuição de conhecimentos, estaria muito bom; mas não é o
que ocorre, contribuindo tais publicações para a disseminação da ignorância, da
acomodação intelectual, favorecendo a proliferação de mentalidades supersticiosas.
115
A título de exemplo, “invento” uma situação extravagante. Alguém, movido sabe-se por que
forças recebe a revelação das correspondências e relações existentes entre as 7 Pragas do Egito,
quando da Diáspora Mosaica, com as 7 maravilhas do mundo e as 7 linhas da Umbanda. Isto posto,
publica um livro de Teologia Umbandista e pleiteia a autoria da matéria para seu guia espiritual. De
certa forma isso ocorreu, quando alguém dissidente da teosofia achou por bem receber de seu
caboclo a revelação das linhas da Umbanda, baseando-se na cosmogenese de Madame
BLAVATSKY.
107
Esse filamento da literatura religiosa da Umbanda é forte e bem remunerado,
contando com editoras lucrativas e com outros equipamentos de disseminação de
idéias igualmente lucrativos (pesquise o leitor). Nesse universo sub-literário se
ombreiam o volume massudo, de muitas páginas e título pretensioso, com
publicações ligeiras mais discretas, mas não menos equivocadas, que se sobressai
por outro tipo de originalidade.
Como exemplo de ingenuidade literária versando sobre a doutrina, citarei o
caso do autor (babalorixá bastante conhecido num estado do sudeste) que se
propôs a escrever sobre os fundamentos da Umbanda. Mal começara o livro, o
escritor se empolgou com a sua condição de literato e, numa manobra
metalingüística de conivência com o leitor, pediu licença para publicar algumas notas
fiscais da compra de material de construção para a reforma de seu terreiro, as quais
haviam sido objeto de maledicências e calunias por parte de alguns dos seus
inúmeros detratores.
Procedimentos controversos como esse, não é o que ocorre com o Jornal
Aruanda e com a União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil no exercício
de sua cidadania; nota-se em ambos, o ritmo de muito trabalho e uma inconfundível
sinceridade de propósitos.
Ao acessar um exemplar de Aruanda, chega a ser cansativo para o leitor a
leitura de tantas atividades realizadas num único mês, onde se destacam
inaugurações, recebimento de visitas, realizações de cursos, entrega de diplomas,
viajem de Pai Jamil pelo Vaticano, Egito, Líbano, Turquia, Nigéria, Grécia, Paraguai,
Uruguai, Argentina, Portugal, Espanha, Itália, Peru, Bolívia, Estados Unidos, além da
comemoração de nascimentos, casamentos e o obituário da casa.
Em meio à multiplicidade de realizações, tudo nomeado e fotografado, a
menção indefectível à Procissão de São Jorge acompanhada de manifestações de
júbilo pelo seu crescimento ano após ano.
Mas ampliando a explanação sobre Aruanda é importante destacar as
peculiaridades de sua formatação, e também da originalidade editorial.
A publicação era impressa em 4 cores, papel craft, reunindo muitas fotos,
texto de leitura agradável e artigos interessantes assinados, entre outros, por
108
Antonio Olynto
116
e Zora Seljan. Com formato tablóide, desde o início teve circulação
nacional, vendendo nas bancas seus 30.000 exemplares mensais, com a
distribuição da Fernando Chinaglia Distribuidora.
Embora fosse uma publicação jornalística de procedência amadora, que o
trabalho de todos os envolvidos acontecia de forma não remunerada, ela tinha seu
estilo próprio e esse impressionava pela capacidade de inovação. Durante toda a
sua existência, o jornal teve como Diretor Presidente a pessoa de Jamil Rachid,
embora tivesse conhecido como Chefes de Redação: Helio Fabbri, professor Norival
Nogueira, Iracy Potiguara Novazzi e o jornalista Alexandre Kadunk. Dos quatro,
inegavelmente a pessoa do último, é suficiente para despertar interesse quanto
aos resultados jornalísticos obtidos.
117
Alexandre Kadunc é considerado o grande
inovador do radio jornalismo brasileiro, quando nas décadas de 60 e 70 criou na
Radio Bandeirantes o noticiário denominado “Titulares da Notícia”. Sua vida,
totalmente dedicada à imprensa, permitiu que trabalhasse nos grandes jornais e
revistas de São Paulo, fazendo a cobertura de acontecimentos políticos de
relevância.
No jornal Aruanda, assumiu o posto de Redator-Chefe a partir do nº 17,
permanecendo à sua frente até o término do jornal no exemplar 43. Foi
responsável pela dinamização de Aruanda no âmbito político-social, incluindo junto
aos assuntos filosóficos e teológicos publicados, questões como: direitos das
empregadas domésticas, denúncia vazia na Lei do Inquilinato, aposentadoria,
questões trabalhistas e outras informações de interesse da classe trabalhadora
118
.
No âmbito da sócio antropologia, trouxe para o jornal matérias assinadas por
116
No número de abril de 1978, Jornal Aruanda, através de Alexandre KADUNC, entrevista Antonio
OLYNTO pela ocasião do lançamento de sua 22ª obra, denominada “Para onde vai o Brasil?” Na
conversa havida entre ambos, o autor menciona que em seu novo livro, entre as páginas 78 e 79,
“que a Umbanda ecumenizou, transformando-se num retrato da mistura racial brasileira”. Exaltando
ainda a importância do negro no Brasil, Antonio OLYNTO menciona as grandes festas umbandistas,
destacando principalmente a Procissão de Ogum. Generoso em seus elogios, menciona
explicitamente a organização da União de Tendas” e a liderança de um Babalorixá de origem árabe,
Jamil RACHID, na linha de frente desse movimento. Para da 30 anos, o entrevistado via “o Brasil
como um modelo de democracia para o mundo, um paraíso tropical, com seus filhos transformados
em sementes da civilização do futuro”. N/A: Antonio OLYNTO morreu no Rio de janeiro em 12 de
setembro de 2009. Feliz?
117
Em “editorial do jornal Aruanda de abril de 1977, Alexandre KADUNC menciona SHAKESPEARE e
num dado momento conclui enfático,” não posso discordar de um grande homem, eu também sou de
saravá”.Concluindo a matéria, brinca: “sem o jornalista, como se saberá do fim do mundo?”
118
Recorde-se que tudo isso ocorreu em plena ditadura; na vigência do AI-5, com a imprensa
dominada por uma Lei de exceção das mais rigorosas.
109
Câmara Cascudo e Gilberto Freire, provocando de maneira instigante o interesse
das pessoas para os assuntos de religião.
E assim vai se fiando o brocado colorido no tecido da Umbanda, integrando
práticas religiosas chegadas a ela de múltiplas formas e agregando um discurso com
representações simbólicas de diferentes origens, tudo isso conferindo-lhe um
sentido dentro do que se convencionou chamar de sincretismo religioso. Dessa
construção participam tanto as ações estabelecidas de forma mais intencional e
dirigida, como, de repente, o gesto ocasional que porventura se tenha por acaso.
Como exemplo das interveniências aleatórias, citarei um episódio passado
comigo numa sessão de acolhimento espiritual, da qual participo na condição de
sacerdote de umbanda todas as sextas-feiras na parte da manhã, ocupando as
dependências do Templo de Umbanda São Benedito em Pinheiros. Nessa prestação
de serviços aberta à comunidade, realizo um atendimento de várias pessoas
concomitantemente, em grupos que se sucedem no período das 8 às 13 h. Não se
trata de um atendimento mediúnico no sentido clássico do termo, com incorporação
de guias, inclusive, mas respondo indagações que me são formuladas pelos
presentes e aplico os chamados passes de imantação.
Movido, sabe-se por qual inspiração, passei a cumprimentar as pessoas
com as mãos postadas na altura do chákara
119
cardíaco, pronunciando em sânscrito
a saudação “namaste”
120
. Tendo em conta que eu participo das sessões de
desenvolvimento mediúnico da casa, da qual estão presentes, igualmente, alguns
freqüentadores do acolhimento espiritual, qual não foi minha surpresa ao constatar
que vários dos guias dos médiuns presentes, adquiriram o hábito de se
cumprimentarem entre si e ao público, com a saudação “namaste”. Com isso, os
sincretismos existentes na interface da Umbanda com o povo da Índia e do Tibet,
foram aprimorados.
Eis como acontece na capilaridade do cotidiano a estruturação da Umbanda
baseada em diferentes matrizes culturais e vertentes religiosas diversas, segundo
119
Chákara significa em sânscrito: roda. O chákara cardíaco é o centro de energia dos sete
centros existentes no corpo da criatura humana, correspondendo à sede do equilíbrio na fisiologia da
alma.
120
Namassignifica numa tradução literal, algo com a representação de: “O Budha que habita meu
coração, saúda o Budha que habita o seu coração”
110
critérios aceitos pela universidade e pesquisadores em geral, os quais a classificam
como uma profissão de fé constituída a partir de um sincretismo religioso.
Com o propósito de subsidiar em mim a construção operacional do termo
sincretismo religioso, consulto o “Michaelis, Moderno Dicionário da Língua
Portuguesa”, publicado pela Editora Melhoramentos, em sua edição de 1998, nele
encontrando o seguinte verbete:
sincretismo, SM (gr sygkretismós) Filos. Sistema que combinava os
princípios de diversos sistemas. 2 Amálgama de concepções heterogêneas:
ecletismo. 3 Fenômeno de uma forma lingüística ou de uma desinência
acumular várias funções. 4 Sociol. Fusão de dois ou mais elementos culturais
antagônicos num elemento, continuando, porém, perceptíveis alguns
sinais de suas origens diversas.
Procurando consorciar minhas apreciações empíricas com a reflexão teórica
de um pesquisador que tem dado uma contribuição substantiva para o entendimento
do assunto, recorro ao antropólogo Sérgio Fernandes em sua tese de doutoramento
denominada “Repensando o Sincretismo”, que assim se expressa:
Como alguns mencionam, apesar de vasta literatura, curiosamente o
sincretismo religioso até hoje tem sido tratado com certo “desinteresse” e
mesmo com menosprezo por diversos autores. Apesar de abordado e de ser
muito encontrado na realidade, nota-se que existe certo tabu contra este
fenômeno. Parece que se procura negá-lo ou ocultá-lo, embora se reconheça
que todas as religiões são sincréticas. O sincretismo é um tema confuso,
contraditório e amguo. Muitos não gostam, recusam-se abordá-lo e evitam
mesmo o uso da palavra.
121
Continuando a discorrer sobre o tema, e o especializando, o referido autor
identifica quais seriam as cinco fases que se estabeleceram no decorrer dos debates
sobre o sincretismo religioso afro-brasileiro.
A primeira teria sido a teoria evolucionista, liderada por Nina Rodrigues.
Seguiu-se a ela a teoria culturalista, tendo à frente, Artur Azevedo e seus
seguidores. A terceira fase expressou-se em Roger Bastide e discípulos. A quarta
fase, conforme ainda o autor, aconteceu na década dos anos 70, quando
121
Sérgio FERRETTI, repensando o sincretismo, p. 87.
111
antropólogos e sociólogos, analisando o mito da pureza africana, pregavam quase
que certa “negrocracia” na constituição dos terreiros. Por último, teríamos uma
quinta fase iniciada nos anos 80, a qual perdura até nossos dias. De um modo
geral, os que se encontram inseridos nela propõem que o termo deva ser mais bem
definido e que o seu emprego se dê em situações específicas.
Para se ter a dimensão do debate suscitado pelo assunto, e suas
controvérsias, citarei alguns dos nomes mencionados por Ferretti em seu esforço
classificatório: Herskovits, Juana Elbein, Peter Fry, vy-Strauss e Gramsci, autores
que apesar de distintos entre si pelos seus posicionamentos, não pouparam o
sincretismo, de recomendações depreciativas como bricolagem, colcha de retalhos e
mesmo aglomerado indigesto.
Observando os méritos do autor em distinguir sua concepção de outras tantas
existentes, guardadas as distinções que nos diferenciam em termos de erudição e
aprofundamento etnográfico sobre o tema, verifico um princípio de identidade entre o
enfoque metodológico presente nas pesquisas empreendidas por Ferretti
122
e o
nosso, ao buscar compreender o processo sincrético existente entre a Umbanda em
sua Procissão de São Jorge, Orixá Ogum e o catolicismo santeiro da população da
cidade de São Paulo no século XIX.
Na busca pelas raízes da Civilização Brasileira, não basta a explicação de
que a sincretismo existente entre os santos católicos e os Orixás africanos,
ocorreram apenas e tão somente como uma forma de resistência do negro à
escravidão. que se considerar igualmente limitada a justificativa de que a
catequese religiosa proporcionava pela submissão do escravo, o batismo, a troca de
nome e a eleição de novos deuses.
Na realidade o sincretismo religioso é mais arrebatador, transcende os
circunstacialismos históricos e tem a haver com algo intrínseco à natureza humana,
como filosofa Mircea Eliade
123
, ao preconizar a função religiosa como um atributo da
alma.
122
Em Repensando o Sincretismo, Sérgio FERRETTI a conhecer uma bem elaborada pesquisa
que realizou ao longo de 20 anos, buscando nos interstícios do culto afro-brasileiro denominado
Tambor de Mina, no Maranhão, suas imbricações com o catolicismo e seus significados
antropológicos.
123
Cf. Mircea ELIADE, O Mito do Eterno Retorno, p. 19.
112
De certo, pensou o negro: “não preciso abdicar dos meus Orixás quando
tenho a possibilidade de tê-los entronizados na constituição do meu ser, podendo,
ao mesmo tempo, projetá-los nas águas do mar, nas nuvens, na chuva, nas
trovoadas, nas imagens da Virgem da Conceição, Santo Antonio, São Benedito e
São Jorge”.
A função religiosa o conhece limites e como sabiam os gregos, a hibris
surgiu com a humanidade. Diferentemente do que informa o verbete do dicionário,
realizar sincretismos não é algo conjugado no particípio passado, pelo contrário,
perpassa o tempo, está presente e acontece no cotidiano das pessoas sem que
disso elas se dêem conta.
Ao contrário do que possa parecer em princípio, ecletismo e sincretismo não
significam palavras sinônimas; o sincretismo é eclético, mas o que lhe confere
sentido e o diferencia, é a intenção, e está decorre de algo que transcende os limites
imediatos da compreensão cognitiva, adentrando em esferas que respondem ao
oceano sem praias em flutua a coletividade humana
124
.
A realidade se insere em círculos concêntricos e a percepção desta natureza
é fundamental para se entender o recorte que fazemos ao delimitarmos num campo
de pesquisa nosso objeto de estudo. A título de ilustração, para tornar mais
compreensível a afirmação desse raciocínio, proponho a intenção de conhecer a
história num planisfério e nele circunscrevo do tema alusivo à Procissão de São
Jorge, o momento do processo em que ela efetivamente se consuma, saindo em
cortejo do Templo o Benedito, em direção ao Ginásio do Ibirapuera. Em termos
de geometria espaço-temporal, tracei a circunferência em que está contido meu
primeiro círculo. No entanto, ao traçar a circunferência para abarcar círculos mais
amplos, inclui o momento em que as pessoas estão realizando os preparativos para
a consumação do evento, e aquele tempo que se segue ao seu termino, com a
procissão desfeita e os participantes rumando para suas casas.
Dentro dessa linha de entendimento das coisas, ampliando
consideravelmente o raio da circunferência, abarco no círculo por mim delimitado, o
território tempo-espaço em que está compreendida a Procissão de Corpus-Cristi na
São Paulo do culo XIX, aonde observo logo após ao Santíssimo-Sacramento,
124
Cf. Joseph CAMPBELL, O Herói de Mil Faces, p. 257.
113
resoluta, a imagem de São Jorge em seu cavalo curveteante, segundo expressão
arcaica citada anteriormente neste texto por Peçanha Póvoa; seguida pelas
confrarias de negros; depois a dos mestiços de Santo Elesbão; da Misericórdia e do
Carmo; em seguida frades e sacerdotes; as corporações de ofícios desfilavam
depois, numa ordem determinada, que começava pelas escravas padeiras, as
escravas vendedoras de legumes e finalmente o povo
125
.
Nos 52 anos em que se cumpriu a Procissão de São Jorge, a energia, o axé,
se assim preferirmos, que esteve presente na mesma, foi de igual procedência
daquele que esteve presente ao longo dos muitos anos em que se consumou a
cerimônia na São Paulo de outrora. Qual a origem dessa imantação em comum? A
resposta, no meu entender é apenas uma: o povo.
A classificação e o ordenamento das pessoas, o ambiente de festa, a
contrição dos devotos, a emoção dos que participaram postados às janelas, o
espanto dos fogos, os hinos entoados a pleno pulmões, as salvas de palmas, a
guarda pretoriana, tudo, tudo, que esteve presente antes, inquietantemente
permaneceu através dessa presença que transcende ao tempo: o povo.
Conforme tive a oportunidade de narrar no capítulo (Lá vai passando a
Procissão), referi-me ao episódio dramático ocorrido na Procissão de Corpus-Cristi
em 1872, quando a imagem de o Jorge, ao cair do cavalo, acarretou a morte de
um dos integrantes da guarda. Ainda nesse relato, comentei o fato de que a partir de
então surgiu uma interdição à imagem do Santo em eventos dessa natureza, ficando
seu culto restrito a uma semi-clandestinidade confinada à moradia dos fiéis.
Nos 85 anos de demanda reprimida ao culto público do Santo, ou seja, de
1872 a 1957, especulativamente eu afirmo que a energia, o axé, decorrentes da
devoção interrompida, ficaram diluídos em preces, promessas, escapulários,
súplicas, pequenas imagens postadas no alto da porta de entrada das casas e, para
amplificarmos, em cerimônias proibidas como aquela narrada em que o Orixá Exu,
se manifesta e proclama o retorno de Ogum às ruas, para defender a Umbanda
126
.
125
Descrição da procissão de Corpus-Cristi escrita por SAINT-HILAIRE apud Roger BASTIDE, As
Religiões Africanas no Brasil.
126
O autor dessa dissertação ,desde o início declinou a condição de umbandista ao se propor
apresentar o tema á universidade. Embora o tenha realizado tendo como referência a metodologia
das ciências, reconheço que em momentos de empolgação não conseguiu esconder o colorido
teológico do texto.
114
Ogum baiano abrir caminhos para a Umbanda em São Paulo, expõe que o
seu sincretismo em Santo Antônio, tal como ele é reconhecido na Bahia, vem em
auxilio da comunidade religiosa paulistana do axé, permitindo que através de São
Jorge, se garanta a liberdade de manifestação religiosa, tal como está expresso na
Constituição da República do Brasil.
3.11 - PROCISSÃO DE OGUM SE ENTRONIZA NAS MATAS
Em meio a grandes comemorações, em 22 de abril de 2009, domingo de sol e
calor, a Umbanda de São Paulo orgulhosamente completou no Ginásio de Esportes
do Ibirapuera, o 50º aniversário da Procissão de São Jorge, Orixá Ogum.
Satisfação e entusiasmo eram visíveis nos presentes, sendo bem
documentados pela equipe de filmagem que registrou o acontecimento. Jamil
Rachid, Babalorixá da Umbanda e do Candomblé, em tom de brincadeira prometia
que a partir daquele momento dava início à caminhada rumo ao centenário.
O comando da procissão, que tão diligentemente acompanhara a realização
da cerimônia desde seu início no Jardim Buturuçu, estava desfalcado pelas perdas
que se deram ao longo dos anos. Dos presentes, apenas Pai Jamil Rachid
sobrevivera ao desgaste do tempo, seguido de Pai Demétrio Domingues, Presidente
da Associação Paulista de Umbanda, que completava naquela oportunidade, 49
anos de participação
127
com determinação e afinco. Os dois, Jamil e Demétrio,
respectivamente Presidente e Vice-Presidente do Vale dos Orixás, estavam
extenuados.
A comemoração crescera de forma gigantesca ao longo dos anos e, segundo
o discurso pronunciado por Pai Jamil, numa imagem poética, ela tornara-se o mastro
em torno do qual a Umbanda erguera sua tenda.
Fazendo uso da palavra, Pai Demétrio, que também era bom orador, contou
que segundo deliberação tomada por ambos, aquela seria a última ocasião em que
a procissão se realizaria nas dependências daquele Ginásio. Razões de ordem
esotérica informavam que o momento era de reorientação na órbita; buscando-se
127
O conteúdo exato do discurso de Jamil RACHID e Demétrio DOMINGUES foram gravadas em
vídeo rodado no decorrer da cerimônia. Este documento encontra-se à disposição para consulta na
sede da União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil.
115
novos caminhos, consolidando-se novos objetivos, a ave ergueria vôo para pousar
em outro ninho (sic). Para que ficasse bem registrada a orientação, Pai Jamil
recomendou que doravante, a procissão seguiria em cortejo motorizado até o Vale
dos Orixás, município de Juquitiba, consagrando na Mata Atlântica o axé daquele
Orixá.
Aparentemente tudo estava acertado em termos de programação para o ano
seguinte, no entanto, passados dois meses, a vida se encarregou de transportar
Demétrio Domingues para o outro plano, em decorrência de déficit renal que o Velho
Guerreiro desenvolvera nos últimos 18 meses.
Apesar das recomendações, tão logo se encerrou a comemoração, irrompeu
um movimento articulado por algumas lideranças umbandistas que acharam por
bem contestar o que fora acertado no tocante ao rumo da Procissão nos próximos
tempos.
Segundo o grupo descontente, em meio século a Umbanda conquistara um
espaço no ginásio do Ibirapuera representando um desperdício deixar de usá-lo em
troca de Juquitiba. A contestação era bem pragmática e dizia que uma
comemoração no Vale dos Orixás certamente não atrairia público, devido à distância
em que o mesmo se localizava. Resumindo, tinha-se a impressão que por detrás
dos argumentos, havia outra intenção que não estava explicitada.
Pai Jamil, acompanhado por alguns membros da Diretoria da União de
Tendas, participou da reunião que decidiria efetivamente a preparação daquela que
seria a 51º Procissão de São Jorge, a realizar-se em abril de 2008.
Nesse encontro ficou acertado que após tanto tempo, era justo que o pessoal
do Pai Jamil, tivessem um ano de jubileu, transferindo-se para o sangue novo, os
cuidados com os preparativos. No conjunto da distribuição de responsabilidades,
coube aos veteranos apenas a incumbência de ceder na data combinada a imagem
do Santo, transportando-a até o Ibirapuera.
Como se pode depreender pelo tom do meu relato, as coisas não
funcionaram como seria de se desejar. A procissão, compreendida pelo cortejo, o
séquito que acompanha o andor, não houve, chegando São Jorge para o início da
“festa”, transportado na caçamba em um veículo utilitário. Não havia cavalos, banda,
foguetes, logo a procissão estava descaracterizada de sua verdadeira identidade.
116
Para ampliar as diferenças, o grupo organizador, sabe-se por qual precaução, levou
outra imagem de São Jorge, menor e sem os adornos que enfeitam a tradicional.
Resultado, apareceram em cena dois São Jorge, dando uma medida da cisão
que ali se manifestava.
Para agravar a situação que se tornara constrangedora, os novos
organizadores, ao final da festa, improvisaram um sorteio que distribuiu além de
meia dúzia camisetas e uma lata de biscoitos, a própria imagem de Ogum.
Em 2009, 52ª Procissão de São Jorge, o grupo cindiu. Esgotadas as
possibilidades de negociação, A União de Tendas de Umbanda e Candomblé do
Brasil, a Associação Paulista de Umbanda, o Superior Órgão de Umbanda do
Estado de São Paulo, acompanhados por uma grande quantidade de terreiros da
capital e do interior, marcharam juntos para o Vale dos Orixás em carreata, tendo à
frente a imagem de São Jorge.
A cerimônia foi de grande beleza. O caráter urbano das vezes anteriores foi
deixado de lado, com os filiados dos terreiros se distribuindo pelas várias
dependências do sítio que compreende o Vale dos Orixás. Havia terreiros
trabalhando na cachoeira de Oxum, na pedreira de Xangô, na capelinha de
Obaluaiê, na cabana dos Pretos Velhos, na tronqueira dos Exus, na estátua de
Padim Ciço, no parquinho dos Ibejis, no capão de mato de Oxossi
128
e em vários
outros lugares que me fogem à lembrança. Num dado momento, foi tocado o sino e
as pessoas se organizaram em forma de Procissão, seguindo o cortejo, que tinha à
frente São Jorge, e abrindo caminhos para ele, Pai Jamil.
Começava ali, efetivamente, uma nova caminhada, lembrando-nos que, como
diria Confúcio, os caminhos são antigos e nós é que somos sempre novos a
caminhar por eles.
128
Veja no álbum de fotografias, os demais registros realizados durante os acontecimentos ora
relatados.
117
CAPÍTULO IV: UMBANDA: RELIGIÃO E ARTE
“Apresento as conclusões chegadas e, especulativamente, formulo um ensaio
do que seria, no meu entender, o devir da religião.”
4.1 - Considerações Finais
Quando me propus estudar a Umbanda no “Programa de Ciências da
Religião” da PUC, me vi dominado por um sentimento ambíguo decorrente de dois
pensamentos que se opunham entre si. O primeiro me trazia a sensação de legislar
em causa própria, afinal sendo eu um sacerdote da religião por mim mesmo
escolhida como tema de pesquisa, me fazia sentir privilegiado por conta de abordar
um assunto muito próximo da minha realidade cotidiana. De outro lado, o fato de me
encontrar numa universidade católica, por mais desvinculada de dogmatismos
ideológicos que a PUC o fosse, colocava-me num certo desconforto teológico
traduzido pelo receio de que afinal de contas, o que será que os mestres da casa
iriam pensar de tudo isso? Logo nas primeiras semanas de aula, a controvérsia da
consciência estava aplacada. Tanto uma conjectura como a outra, mostraram-se
falsas, daí surgirem as condições que possibilitaram o cumprimento do currículo de
matérias enfeixadas pelo Programa, bem como a realização desta dissertação como
exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião.
4. 2 - Conclusões
“Por mais distante o errante navegante, quem jamais te
esqueceria”
129
.
Ao início desta dissertação, quando apresentei de forma resumida um pouco
da contribuição dada por cada um dos autores estudiosos da Umbanda por mim
mencionados, fui suficientemente sensato em reconhecer que uma dimensão
social na produção dos conhecimentos e que, na realidade, os pontos de vista, e na
129
Refrão da composição de Caetano Veloso denominada TERRA.
118
ciência eles existem, ainda que sejam mutuamente excludentes, numa dimensão
maior da razão eles se complementam formando um precioso mosaico ou, se mais
quisermos, a visão em tunelamento de um caleidoscópio. No entanto, guardando
como certo o que aprendi na dialética dos Orixás, onde há luz, sombra, e uma
confiança absoluta que elimine as sombras da dúvida nos identifica com a bula
dos cegos que levados pelo guia para conhecerem através do tato o que é um
animal chamado elefante, cada um se deu por satisfeito em sua curiosidade tendo
apalpado apenas uma parte do animal. Aprimorando o humor da história, imaginei
que o guia pudesse ser um pesquisador dotado de sólida formação acadêmica, o
que lhe permitiria alertar os ceguinhos de seu viés empirista, lhes aconselhando:
considerem a cauda e tromba como polaridades, e de que existe entre uma e outra,
um continuum.
Ao estudioso da Umbanda é imediata a percepção de que ela é constituída de
uma extrema complexidade, e de que ao nos referirmos a ela, temos que ter em
conta, por exemplo, as diferenças existentes entre uma tenda de Umbanda
localizada na periferia de Taboão da Serra, de outra instalada em Tupi Paulista, que
por sua vez será diferente de um terreiro do Jardim América, e assim por diante.
Embora todos esses templos mencionados especulativamente estejam
localizados no Estado de São Paulo, isso não lhes confere nenhuma identidade
territorial que os torne mais homogêneos se comparados a outras casas de toque
constituídas no sul da Bahia, nas florestas do Acre ou em latitudes que transcendam
os limites do Brasil.
Ao se dar conta dessa diversidade profusa, digamos que a própria Umbanda
se espanta ao não se auto-reconhecer em determinadas situações que envolvam
julgamento. Foi por essa razão que desde o início do movimento umbandista, nas
primeiras décadas do culo passado, por ocasião do surgimento das primeiras
entidades federativas no Rio de Janeiro e São Paulo, realizaram-se encontros mais
amplos de seguidores do culto. Nessas oportunidades, estruturados em congressos
ou simpósios, as preocupações dos dirigentes sempre estiveram voltadas para a
legitimação de suas próprias lideranças, bem como para a questão da codificação
dos rituais e demais preceitos religiosos. Em conseqüência dos esforços havidos, se
nem tudo foi solucionado, é notório, todavia, que alguns ganhos foram auferidos,
princípios foram estabelecidos, determinados cerimoniais se constituíram, no
119
entanto nada que sugira dentro da religião, no plano da institucionalização, a
existência de algo comparável à figura de um Papa ou uma instância consultiva
assemelhada à Congregação para a Doutrina da Fé
130
.
Feitas essas considerações, me parece importante que para prosseguir deva
salientar, ainda uma vez, de que o ponto de partida das minhas observações ao
longo de todo o processo de execução deste projeto, teve e tem como núcleo das
atenções, o Terreiro do Pai Jamil, sua pessoa, e o estudo da narrativa de sua
história oral, que, pelo tratamento que lhe foi conferido, permitiu amplificações tão
extensas como a linha do horizonte e reduções tão limitadas como a presença de
um universo fractal
131
contido na casca de uma noz.
Pai Jamil em sua entrevista reconhece com tendo sido de crucial importância
para a construção da Umbanda em São Paulo e a subjacente consecução da
Procissão de São Jorge em seu apôio, ter sido criada em 1955, por iniciativa do
Engenheiro Civil Dr. Luiz Carlos de Moura Accioly, a entidade federativa União de
Tendas Espíritas do Estado de São Paulo, localizada na Rua Santa Ifigênia, no
centro. A partir de 1967, essa mesma entidade, ocorrido o falecimento de seu
fundador, foi assumida e desde então permanece à sua frente no cargo de
Presidente, o próprio Jamil Rachid. Para obter uma aproximação religiosa e uma
integração administrativa com sua casa de culto, a entidade foi instalada ao lado do
Templo São Benedito, em Pinheiros, e desde 1975 mudou sua denominação social
para União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil.
Conforme foi informado pela já mencionada entrevista, Pai Jamil tem iniciação
tanto na Umbanda quanto no Candomblé, condição religiosa que ao longo do tempo,
manteve-o próximo de umbandistas e candomblistas.
Embora, tanto em um grupo como em outro existam diferenças entre si que
não se restringem apenas ao campo religioso, certamente essa formação nos dois
segmentos afro-descendentes, contribuiu para Pai Jamil alterar a razão social da
130
Designação atribuída pela Igreja Católica na atualidade ao Tribunal do Santo Ofício, localizada em
Roma.
131
Para ser grande, sê inteiro: nada
teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa: Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Fernando PESSOA, Poesias, p.115.
120
União, ampliando seu raio de ação, e definindo pela sua composição societária, o
que seria uma estratégia bem sucedida em termos de conciliação inter-religiosa.
Ainda uma vez, o que aos olhos de muitos parecia algo improvável, na União
de Tendas adquiriu uma funcionalidade orgânica entre os dois cultos, permitindo que
Umbandistas e Candomblistas se considerassem mutuamente como filhos
integrantes de uma mesma casa. Segundo a determinação dos Orixás, e as
escolhas de cada um, existem pessoas que freqüentam apenas as atividades
daquilo que lhes diz respeito, de tal forma que o Umbandista participa da
programação da Umbanda e o Candomblista daquela que lhe é afeita. No entanto,
dotados de versatilidade, existem também os devotos participantes de ambas as
programações e ainda uma outra categoria de afiliados de uma das tradições, que
em ocasiões especiais participa da atividade da outra. Para exemplificar minha
explicação, reporto-me a algumas informações que me parecem sugestivas.
Na primeira segunda-feira de cada mês, a casa presta uma devoção aos
Orixás Obaluaiê e Exu. A cerimônia conhecida por Reza embora siga o toque de
tambores do Candomblé, é participada por seguidores de ambas as tradições e
pessoas da assistência que para se dirigem em busca de solução para problemas
ligados às questões financeiras e de saúde. na primeira sexta-feira de cada mês,
realiza-se a sessão de Umbanda com atendimento dos consulentes pelo corpo
mediúnico da casa, sendo a atividade aberta ao público. De outra forma, no mês de
agosto comemora-se a cerimônia do Alubajé, destinada ao Orixá da casa e
formatada segundo os preceitos do Candomblé; trata-se de uma comemoração que
conta com a participação prioritária dos barracões
132
filiados e a duração do evento
são três dias de duração. Chegado o mês de dezembro, a atenção é prioritariamente
dedicado às santas das águas, despontando dentre elas a Mamãe Yemanjá, que
para a Umbanda é comemorada em oito de dezembro e no Candombem dois de
fevereiro, seguindo os costumes do povo baiano. Na terceira sexta-feira de cada
mês, acontecem as sessões de desenvolvimento para os médiuns da casa que
buscam o aprimoramento na experiência mediúnica: eis um trabalho essencialmente
de Umbanda. Os sábados à tarde são destinados à consagração dos banhos de
ervas e eventualmente para a entrega de alguma oferenda que um filho da corrente
ofereça para seu Orixá, seja ele de Umbanda ou de Candomblé. Ao rmino do ano,
132
Barracões e roças são designações genéricas utilizadas pelos participantes do Candomblé para
nomear seus Yles, ou seja, seus locais destinados à prática de sua fé.
121
trinta e um de dezembro, dentro da orientação do Candomblé, tambores são batidos
em homenagem às Águas de Oxa, com a participação de umbandistas,
candomblistas e os amigos da casa que compõe a assistência. Na quaresma, mais
precisamente na sexta-feira santa, é feito o ritual de Cura, também conhecido por
fechamento de corpo, que se no feriado santo, das seis às dezoito horas; é
aberto para umbandistas, candomblistas e público freqüentador do templo, seja esse
adepto da Umbanda ou do Candomblé. Nas manhãs das sextas feiras, das oito às
treze horas, pratica-se o Acolhimento Espiritual, atendimento que consiste na
execução de passes, impostação de mãos, descarrego e orientação, tudo
indistintamente aberto a qualquer público. Fazem parte também do calendário anual,
outras comemorações como a homenagem às crianças da Umbanda e Erês do
Candomblé, o Dia dos Pretos Velhos, festejado em treze de maio e a devoção a
Oxossi, realizada no mês de janeiro.
O elenco de oportunidades de contato entre os associados do Templo o
Benedito e da União de Tendas entre si e com o público é vasto, tornando a casa
sempre ativa e movimentada. Pelo menos à cada seis meses o realizados os
cursos de preparação de sacerdotes, destinados aos Pais e Mães espirituais que
estejam em processo de filiação de seus terreiros à União de Tendas, os quais uma
vez aprovados, são festivamente recebidos pelos seus pares da casa. Diariamente,
das nove às dezoito horas, funciona o expediente da secretaria, resolvendo
problemas e dando atendimento aos terreiros e yles federados, não do Estado
São Paulo, como do país e do exterior, envolvendo esta prestação de serviços no
fornecimento de orientação jurídica, encaminhamentos administrativos etc. Mas é no
primeiro domingo de cada mês, que a casa torna-se mais representativa de seus
associados, entendendo-se como tal a presença dos Babalorixás e Yalorixás, que
para ela acorrem para participar da reunião mensal da União de Tendas, encontro
que tradicionalmente, desde a sua fundação, é realizado entre a diretoria e os
chefes de terreiros.
Todo o elenco de atividades apresentado, não incluiu, entretanto, a
programação do Vale dos Orixás, bastante extensa, que a propósito oferece aos
freqüentadores, entre outros interesses temáticos, duas casas de Exus, uma na
tradição do Keto e outra na forma de tronqueira como as existentes nos terreiros de
Umbanda.
122
No entanto, de todas as atividades apresentadas, aquela que ficou para ser
citada por último, a Procissão de São Jorge, a comemoração do Orixá Ogum, é a
que mais mobiliza as atenções gerais durante todo o ano envolvendo as energias
tanto do povo do saravá, como do motubá e do colofé
133
. Realizada no mês de abril,
o tempo que precede sua realização é de muita ação organizativa, e aquele que se
segue ao seu acontecimento é destinado aos preparativos do ano seguinte.
Considerando que neste ano se realizara a 53º Procissão de São Jorge, seria de se
supor que a festividade pudesse perder em parte seus atrativos, tomada pela rotina.
Todavia, lembrando-se que em 2009, a procissão sofreu uma transformação na sua
proposta, deixando de se realizar no Ginásio do Ibirapuera, a intenção vigente é
conferir-lhe um extensão intermunicipal, partindo de São Paulo, na sede da União de
Tendas e se estendendo até o Município de Juquitiba, no Vale dos Orixás.
Diante do exposto, a partir do que nos é dado concluir em nossa pesquisa,
concordamos que a criação da União de Tendas em 1955, pelo Dr. Luiz Carlos de
Moura Accioly, se constituiu num marco de referência para o movimento umbandista
em São Paulo, gerando as condições subjetivas que possibilitaram em 1956, através
de Euclides Barbosa, o Pai Jaú, a manifestação do Exu ssaro Preto, concitando
os umbandistas, com São Jorge à frente, saírem em procissão às ruas, defendendo
a liberdade religiosa no país. Tal apelo foi interpretado de forma audaciosa por Jamil
Rachid, tendo o mesmo em 1957, corajosamente liderado a primeira Procissão de
São Jorge no Jardim Boturuçu, na Zona Leste, dando origem a uma comemoração
que se mantém sob a sua liderança a mais de meio século.
Entendemos a procissão de São Jorge realizada pelo chamado povo do Axé,
quais sejam, os seguidores dos cultos afro-descendentes, como um típico fenômeno
de representação inscrito naquilo que se entende por sincretismo religioso.
A imagem eqüestre de São Jorge, o guerreiro destemido que enfrenta o
dragão da maldade, como diria Glauber Rocha, é suficientemente arquetípica para
possibilitar nela, pelo povo, a projeção do Orixá Ogum, o deus da guerra no panteão
africano.
Na década dos anos cinqüenta, quando tudo teve início, correspondeu a um
período de intensa movimentação política, econômica e social no Brasil. Ocorre-nos
133
Sarava é a saudação geralmente utilizada pelos umbandistas, enquanto que motubá e colofé o
são pelos candomblistas.
123
lembrar como parte do cenário, o fim da era Vargas, o período de vazio político que
se seguiu a ela, a intensa atividade parlamentar no Congresso Nacional para
garantir a normalidade das instituições na democracia, a instabilidade nas Forças
Armadas, o governo Juscelino na construção de Brasília e, principalmente, a
mudança havida no modelo econômico do país, que deixava de ser essencialmente
agrícola, passando à condição de produtor industrializado.
Todos esses fatores, do ponto de vista macro social, despertaram as
populações, urbana e rural, para uma atitude mais contestadora e reivindicativa,
tendo sido esse um estímulo importante para os umbandistas protestarem contra a
intolerância religiosa e o reconhecimento de seus direitos constitucionais.
De qualquer forma, entendemos ser esse tipo de contestação, algo inusitado
no panorama da conscientização do povo brasileiro, uma vez que estamos
habituados a presenciar o protesto com motivação econômica, parecendo-nos quase
um luxo, pessoas simples do povo reclamar o direito de se expressar em sua
religiosidade. Quero crer que desde a senzala, essa foi a primeira vez.
Interessante também é observar a forma “brasileira” como se deu essa
revolução. Nada de protestos massivos, holocaustos, barricadas e homens-bomba.
Embora existisse incutido na cabeça das lideranças um projeto de ação, a forma
como ele foi executado, no melhor estilo de Gandhi, valeu-se apenas da prática do
convencimento, da persuasão e de uma incrível paciência. Bem ao gosto dos
apreciadores de Gramsci, diria que a Umbanda também teve e deve ter seus
intelectuais orgânicos. Mantê-los no anonimato, no meu entender, é uma forma de
protegê-los, bem como à Umbanda.
Finalmente, me ocorre o compromisso de apresentar no meu entender, o que
seria o devir da Umbanda. Em se tratando das previsões de um Babalorixá, como é
o meu caso, diria ser essa a maior das responsabilidades, afinal é prerrogativa do
título, ter acesso ao Ifá, o Orixá do jogo de zios, da peneirinha, da esteira e dos
cauris. Ifá é a denominação dada ao único dos Orixás que não possui filhos na terra,
uma vez que ele representa o vir a ser, sincretizado na Umbanda como a pombinha
do Espírito Santo.
Creio no futuro da raça humana, na superação das diferenças entre as
criaturas, na supressão das fronteiras, tanto políticas como ideológicas. Como
124
Mircea Eliade e Jung, considero a religiosidade como uma função da consciência e,
portanto algo que existe intrínseco à essência da condição do ser.
Acredito que daqui a doze mil anos, as condições ambientais do planeta
serão bem superiores àquelas que hoje dispomos. A autosustentabilidade seo
princípio em torno do qual estarão firmadas todas as regras do viver, o que significa
que o homem estará mais feliz e mais próximo da natureza.
As pessoas de então, nossos descendentes, embora pertencendo a uma
espécie mais qualitativa e numericamente bem inferior à quantidade das hoje
existentes, continuarão nascendo e morrendo como fazem as flores e as estrelas.
A ciência e a tecnologia serão bem mais refinadas. Como 120 séculos são
pouco tempo diante da eternidade, não estará o homem ainda livre de todo o desejo,
o que significa a possibilidade da ocorrência de viagens espaciais muito prolongadas
em termos de duração. Especulativamente imagino que nesses programas
espaciais, o módulo mais delicado dirá respeito á preparação do astronauta em
viagens intergalácticas, uma vez que o tempo despendido será tão extenso que
possibilitaria uma perda da identidade humana, levando-o a desintegrar-se numa
síndrome que grosso modo poderíamos chamar de Matrix. Para fazer frente a essa
mazela, constará do treinamento exercícios de mediunidade, assim como hoje se
ensina na NASA a prática de ioga para os astronautas. Ministrados pelos sacerdotes
de então, um misto de psicólogos e antropólogos, tais aulas envolverão a
incorporação de pretos velhos, índios, crianças, guerreiros e de outros personagens
arquetípicos.
Numa dessas embarcações, num dianoite sabe-se de quando, numa
dependência ambientada em forma de terreiro, o astronauta, nosso descendente,
dormirá o sono reparador de uma jornada de trabalho e, em sonho terá a impressão
de estar caminhando em meio a uma multidão de desconhecidos, numa Procissão
de São Jorge.
125
FINAL
37 Foram essas coisas que aconteceram com Nicanor. Desde aquele
tempo até hoje, a cidade de Jerusalém continua nas mãos dos hebreus. E aqui eu
vou terminando a minha história. 38 Se ela estiver certa e bem escrita, é justamente
o que eu queria. Mas, se for imperfeita e sem graça, fiz o melhor que pude. 39 A
gente sabe que faz mal beber somente vinho ou somente água; mas vinho
misturado com água é uma delícia e agrada ao paladar. Assim também o estilo
variado de uma história bem escrita encanta os leitores.
Portanto, aqui termino.
2 MACABEUS15
134
134
BÍBLIA SAGRADA, Macabeus, 2: 15, p. 585.
126
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128
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129
APÊNDICE: SINOPSE DO JORNAL ARUANDA
Resumo dos principais destaques publicados no Jornal Aruanda
1
tendo como critério
de seleção a relação existente entre a criação da Procissão de São Jorge e a
formação da Umbanda em São Paulo.
Ano I – Nº 1 – junho – 1975
1- A Umbanda perde um baluarte; necrológio do General Nelson Braga Moreira
2- 20 anos da União de Tendas Espiritualistas de Umbanda do Est. São Paulo
3 - A Procissão de Ogum no Ibirapuera
Ano I – Nº 2 - julho – 1975
1 - Os caçadores de Deus; artigo de Zora Seljan
2 - I Congresso Mundial de Ciências Ocultas no Haiti
3 - A Cabula; um culto afro- brasileiro; artigo de Antonio Olynto
Ano I – Nº3 – novembro – 1975
1 – Nigéria: a terra dos Orixás; artigo de Zora Seljan
2 – São Jorge um Orixá guerreiro desde sua origem. 20.000 pessoas no Ibirapuera
3 – O teísmo. Reportagem sobre Jamil Rachid no Dahomey
Ano I Nº4 – dezembro – 1975
1 – Iemanjá, Rainha do mar. Artigo sobre o sincretismo do Orixá feminino no Brasil
2 - Mitologia e História de Keto: artigo de Zora Seljan
3 - O homem e o Universo: estudo sobre o Karma: artigo do Prof. Norival Nogueira
Ano I Nº 5 – janeiro -1976
1 – 500 mil umbandistas homenageiam iemanjá; 2000 terreiros na Praia Grande
1
Jornal Aruanda Expediente: Propriedade da Empresa Jornalística Aruanda; Diretor Presidente:
Jamil Rachid; administração Geral: Rua Alves Guimarães nº940 São Paulo.Coleção composta de
41 exemplares, editados entre junho de 1975 e data não determinada de 1986.
130
2 – Glóbulos vivos nas múmias; artigo sobre preservação e arqueologia
3 – Realizados na Umbanda os dois primeiros casamentos da religião
Ano I Nº6 - fevereiro – 1976
1 – “Seu Sete da Lira” em São Paulo; entrevista com Cacilda de Souza- (Médium)
2 – Formação e aperfeiçoamento dos fiéis. Artigo abordando conduta na Umbanda
3 - Oxossi na Umbanda; artigo explanando sobre o Orixá
Ano I – Nº7 – março – 1976
1 – Mãe Senhora, a primeira mãe preta do Brasil; reportagem
2 – Psicanálise e religião; artigo
3 – A influências dos Candomblés na Umbanda
Ano I – N
º 8 – abril - 1976
1- Montevidéu: Festival de Musicas de Umbanda
2- Superstição e Ciência do Zodíaco
3- II Seminário de Umbanda: Novas diretrizes
Ano I – Nº9 – maio -1976
1- Umbanda é tese de pós-graduação
2- Oficializados batismo – casamento e funeral
3- Uma nova era após a abolição
Ano I – Nº 10 – junho – 1976
1- Africanos homenageiam Ogum no Ibirapuera
2- Jorge Amado “falando dos Orixás “ ( entrevista )
3- Cônsul do Senegal apóia Umbanda em São Paulo
Ano I – Nº 11 – julho – 1976
1- Xangô: religião ou folclore
2- Umbanda homenageia o Presidente Ernesto Geisel
131
3- Festa Iansã no Pia
Ano I – Nº 12 – agosto – 1976
1- A origem da palavra Umbanda
2- Um leigo pensa o Universo.
3- A escola de Umbanda do Caboclo Mirim
Ano II – Nº 13 – setembro – 1976
1- Olubajé de Abaluaê
2- Oxum, a deusa das águas
3- Santos comemorou Iemanjá em agosto.
Ano II – Nº 14 – outubro – 1976
1- Umbandistas de todo o Brasil saudaram Cosme e Damião
2- Os deuses ditam o destino
3- Melhora a posição dos candidatos da Arena
Ano II – Nº 15 – novembro -1976
1- Grandes solenidades umbandistas em Mato Grosso
2- Maias, os homens feitos de milho.
3- Homenagem a Osanha
Ano II – Nº 16 – dezembro - 1976
1- Orixás africanos no Brasil
2- A historia da Umbanda no sul do Brasil
3- Índios conheciam a cura do Câncer.
Ano II – Nº 17 – janeiro/fevereiro – 1977
1- Sexo e Misticismo
2- Catedral do Espaço recebe Norival Nogueira
3- Sugestões contra raiva, ódio e ressentimento
132
Ano II – Nº 18 – março – 1977
1- Nossa Senhora dos Navegantes também é Iemanjá
2- Os homens e os anjos: uma relação possível
3- Superstição sobre a arruda no século XIX
Ano II – Nº 19 – abril – 1977
1- Nossa Senhora do Caacupé – Padroeira do Paraguai
2- Sou de Saravá – Alexandre Kadunc
3- Na esfinge – o templo de iniciação
Ano II – Nº 20 – maio/junho -1977
1- São Jorge – Ogum: 20 anos de comemorações
2- 89 anos sem escravidão
3- O que é o campo astral
Ano II – Nº 21 – julho – 1977
1- Chico Xavier – 50 anos de mediunidade
2- A maçonaria e o mistério do bode
3- Qual o futuro da Umbanda?
Ano II – Nº 22 – agosto/setembro – 1977
1- O encontro dos Orixás em Rondônia
2- Um psicólogo fala da Umbanda
3- O fim do mundo, nas profecias
Ano II – 23 (ausente)
Ano II – 24 (ausente)
Ano III – Nº 25 – abril - 1978
1- Orixás e Voduns no Candomblé
2- Para onde vai o Brasil? Antonio Olynto
3- Rio Grande do Sul nos braços de Iemanjá
133
Ano III – Nº 26 – junho – 1978
1- Karma coletivo – o drama de todos nós
2- Umbanda é espiritismo?
3- O culto afro na maçonaria baiana
Ano III – Nº 27 – agosto/setembro - 1978
1- A juventude descobre os Orixás
2- A umbanda é sagrada e divina
3- Mãe Menininha do Gantóis na Revista Vogue
Ano III – Nº 28 (ausente)
Ano III – Nº 29 – novembro – 1978
1- A mística da Nação Corinthiana
2- Umbanda em expansão preocupa Igreja.
3- Os milagres bíblicos e a parapsicologia
Ano III – Nº 30 – dezembro/janeiro - 1979
1- O mau-olhado existe?
2- Mironga de Preto Velho
3- III Semana Nacional de Filosofia Religiosa
Ano III – Nº 31 – fevereiro/março – 1979
1- Uma nova bandeira para o 3º Milênio
2- II Congresso Catarinense de Umbanda
3- Zarur – Jubileu de Ouro no rádio
Ano III – Nº 32 (ausente)
Ano III – Nº 33 (ausente)
Ano III - Nº 34 –novembro- 1979
1- “Mensageiros de Aruanda” entra no canal 11
2- As influencias dos negros Bantu no Brasil
134
3- Cubanos deixam de ir à missa
Ano III – Nº 35 – março – 1980
1- Kadunc na África Negra
2- Águas de Oxalá – o ritual da paz
3- Princesa de Oiocá = Mamãe Iemanjá
Ano III – Nº 36 – junho – 1980
1- Argentina e Uruguai presentes na Procissão de São Jorge
2- Aruanda revive os anos 70
3- O Egito através dos séculos
Ano IV – Nº 37 – dezembro/janeiro – 1981
1- Oxum é festejada em Barra Bonita
2- Atabaques na visita do Papa em Salvador
3- Festa do Divino : folclore do nosso país
Ano VII – Nº 38 – abril – 1984
1- Astrologia, Psicanálise e Maçonaria
2- Vale dos Orixás já é uma realidade
3- Bahia de todos os Orixás – Jorge Amado
Ano IX – Nº 39 – (não definidos )
1- Umbandistas do Nordeste fazem 1ª Convenção
2- Formação de Médiuns recebem certificados
3- Psicanálise educacional: a criança e seus problemas
Ano IX – Nº 40 – (ausente)
Ano IX – Nº 41 - (último)
1- Imprensa divulga os cultos Afros
2- O último barco de Tata Fomotinho
3- Umbandistas se reúnem no Amazonas
ANEXOS: CADERNO DE FOTOGRAFIAS
Foto de Pai Jaú tirada na 30º Procissão de São Jorge no Ibirapuera em 1987, quando lhe
foi prestada homenagem como decano da Umbanda. Foto de Paulo César Lima, 2009.
Mães de santo na 52º.Procissão de São Jorge no Vale dos Orixás Juquitiba. Foto de
Paulo Cesar Lima, 2009
Cortejo na 52º. Procissão de São Jorge no Vale dos Orixás – Juquitiba. Foto de Paulo
Cesar Lima, 2009.
Caminhão circulando na Rodovia Régis Bittencourt, no dia da Procissão de São Jorge.
Foto de Paulo Cesar Lima, 2009.
Imagem de São Jorge mantida durante o ano na Tenda São Benedito São Paulo. Foto
de Paulo Cesar Lima, 2009
Peji de Oxalá no Congá do Templo São Benedito – São Paulo. Foto de Paulo Cesar Lima,
2009.
Homenagem a Ogum na 52º. Procissão de São Jorge no Vale dos Orixás – Juquitiba.
Foto de Paulo Cesar Lima, 2009
Homenagem a Ogum no Ginásio Ibirapuera – Jamil Rachid, Sonia Milanêz – Cônsul de
Cuba em São Paulo e Demétrio Domingues. Ano 2000
Delegação da Federação de Umbanda do Paraguai em visita à São Paulo - 1998
Título de Cidadão Paulistano ofertado a Jamil Rachid – SP. 2009
Sessão solene para entrega de Titulo de Cidadão Paulistano a Jamil Rachid- Palácio
Anchieta. 2009
Jamil Rachid na Academia Paulista Maçônica de Letras – 1994.
Sessão solene de fundação do Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo
SOUESP- Jamil Rachid, General Nelson Braga Moreira e Dr. Estevan Montebello – 1961
Lançamento do programa na televisão de SP, Umbanda em Revista, Canal 11. Jamil
Rachid, seu pai, José Rachid, filha Yara Rachid e suas irmãs. 1972 .
Placa comemorativa de Fundação do Templo de Umbanda São Benedito
São Jorge está aqui,
São Jorge aqui está,
Com seu cavalo branco,
Guerreiro melhor não há!
Viva o REI OGUM!
Ele veio anunciar,
Que as linhas estão abertas,
Que é prá se trabalhar!
( Ponto recebido por Alex Polaris)
Pai Jamil Rachid. Homenagem a Ogum na 52º. Procissão de São Jorge no Vale dos
Orixás – Juquitiba. Foto de Paulo Cesar Lima, 2009.
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