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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Claudio Santana Pimentel
HUMANIZAÇÃO DO DIVINO, DIVINIZAÇÃO DO HUMANO
Representações do imaginário religioso no teatro de Ariano Suassuna
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
São Paulo
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Claudio Santana Pimentel
HUMANIZAÇÃO DO DIVINO, DIVINIZAÇÃO DO HUMANO
Representações do imaginário religioso no teatro de Ariano Suassuna
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Ciências da Religião, na área de
concentração “Religião e Campo Simbólico”, sob
orientação do Professor Doutor Ênio José da Costa
Brito.
São Paulo
2010
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Banca Examinadora
_____________________________
_____________________________
_____________________________
Em memória de meu pai.
À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal Superior, Capes;
À Coordenação e ao Corpo Docente do Programa de Estudos Pós-
Graduados em Ciências da Religião;
Ao Prof. Dr. Ênio José da Costa Brito, a quem tenho a honra e o
privilégio de ter como orientador;
Às leitoras do primeiro esboço desta dissertação, quando do exame de
Qualificação: Prof. Dra. Jerusa de Carvalho Pires Ferreira e Prof. Dra.
Rosangela Ferreira de Carvalho Borges, por sua generosidade e sugestões ao
criticar o texto;
Ao Jeferson Betarello, caro amigo, o primeiro a me chamar a atenção
para a importância das religiões brasileiras;
Aos colegas do Programa, especialmente aqueles com os quais
freqüentei as disciplinas A diáspora e as religiões: matrizes culturais e
religiosas africanas e O imaginário religioso popular e sua lógica: a
religiosidade popular;
À secretária do Programa, Sra. Andréia Bisuli de Souza, por sua
presteza e paciência;
À Ordem Primeira do Carmo, que afetuosa e pacientemente me recebeu
e hospedou em Recife;
Aos companheiros do Magistério Público Paulista;
Aos meus familiares;
Meus sinceros e insuficientes agradecimentos.
RESUMO
Esta dissertação analisa a obra teatral de Ariano Suassuna, enfocando as
reinterpretações e ressignificações do imaginário religioso popular nordestino
para compreender como as representações religiosas permitem a elaboração
de formas de identidade e significação do mundo. Para tanto, fundamentamo-
nos em um instrumental analítico interdisciplinar, próprio da pesquisa em
Ciências da Religião. Inicialmente, investigamos os pressupostos do autor
sobre a relação entre arte e religião, para em seguida discutirmos sua
concepção do mundo e da humanidade. Essas idéias constituem a base sobre
a qual o autor desenvolve sua visão religiosa. Considerando isto, discutimos a
importância das categorias de tragédia e comédia para o desenvolvimento da
temática religiosa por Suassuna. Dessa maneira, reunimos os subsídios
necessários para a análise da representação das personagens religiosas
encontradas no teatro suassuniano. Concluímos que a ressignificação de
elementos religiosos na obra dramática de Suassuna explicita a tentativa
permanente do ser humano de elaborar uma significação para a vida, a partir
de um diálogo entre o local e o universal. Consideramos também que essas
representações oferecem elementos que permitem melhor compreender o
imaginário religioso brasileiro, inclusive no presente contexto urbano.
Palavras-chave: Ariano Suassuna; imaginário religioso; representação.
ABSTRACT
This dissertation analysis the theatrical works of Ariano Suassuna; focusing
reinterpretations and re-significations from the popular religious imagery, to
understand how religious representations allow the development of identity and
meaning forms. For both, we based in an interdisciplinary analytical instrument
own researches on Religious Studies. Initially, we investigated the author's
assumptions about the relationship between art and religion, then to discuss his
conception of the world and humanity. These ideas form the basis on which the
author develops his religious vision. Considering this, we discussed the
importance of the categories of tragedy and comedy to the development of
religious themes by Suassuna. We conclude that the redefinition of religious
elements in the theatrical works of Suassuna explains the continuing efforts of
humans to develop a meaning for life, from a dialogue between local and
universal. We also believe that such representations provide elements for better
understanding of the Brazilian religious imagery, even in this urban context.
Key-words: Ariano Suassuna; religious imagery; representation.
Ni, pues, el anhelo vital de inmortalidad humana halla
confirmación racional, ni tampoco la razón nos da aliciente y
consuelo de vida y verdadera finalidad a ésta. Mas eh aquí que en
el fondo del abismo se encuentran la desesperación sentimental y
volitiva y el escepticismo racional frente a frente, y se abrasan
como hermanos. Y va a ser de este abrazo, un abrazo trágico, es
decir, entrañadamente amoroso, de donde va a brotar manantial
de vida, de una vida seria y terrible. El escepticismo, la
incertidumbre, última posición a que llega la razón ejerciendo su
análisis sobre sí misma, sobre su propia validez, es el fundamento
sobre que la desesperación del sentimiento vital ha de fundar su
esperanza.
Miguel de UNAMUNO, sobre o “homem de carne e osso”, aquele
que vive e sofre.
Gostaria de crer em Deus como as crianças crêem, mas crê com
angústia, fervor e perguntas.
Hermilo BORBA FILHO, sobre Ariano Suassuna.
Sumário
INTRODUÇÃO 11
CAPÍTULO I ARIANO SUASSUNA, UM INTÉRPRETE DO SERTÃO 21
1.1 A Modernidade, a religião e alguma Pós-Modernidade 22
1.1.1 A crítica estética à religião 25
1.1.2 A possibilidade da representação artística da religião segundo Suassuna 27
1.1.3 O discurso poético como possibilidade de resistência 30
1.2 Um olhar sobre o sertão 33
1.2.1 O sertão no palco suassuniano 34
1.2.2 Os pícaros de Suassuna: uma representação do sertanejo 38
1.2.3 Os pícaros de Suassuna: uma ética dos afetos 42
1.4 A dramatização de uma estética e de uma ética 44
CAPÍTULO II TRAGÉDIA, COMÉDIA E RELIGIÃO 46
2.1 A tragédia no palco suassuniano 46
2.1.1 Cristianismo e sentimento trágico: Unamuno 47
2.1.2. A cisão ontológica 49
2.1.3 A condição humana: o pecado 50
2.2 A comédia no palco suassuniano 58
2.2.1 A valorização do elemento lúdico 61
2.2.2 O barroco como projeção estética de uma tensão existencial 62
2.3 Aproximações entre uma estética dramática e uma visão religiosa 65
CAPÍTULO III AS REPRESENTAÇÕES DO TRANSCENDENTE 67
3.1 As representações do mal 67
3.1.1 Mal físico e naturalização 68
3.1.2 A representação do diabo, a moralidade e o destino humano 70
3.2 As representações da divindade 83
3.2.1 As representações de Cristo e de Nossa Senhora 85
3.2.2 Cristo e Nossa Senhora no Auto da Compadecida 86
3.2.3 Cristo em A pena e a lei 94
3.2.4 Cristo na Farsa da boa preguiça 98
3.3 O humano e o divino no palco suassuniano 102
CONCLUSÃO 104
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 107
Obras de Ariano Suassuna 107
Dramaturgia 107
Romance 107
Estética 107
Coletâneas 107
Obras sobre Ariano Suassuna 108
Livros 108
Dissertações e teses 109
Periódico 111
Outras mídias 111
Obras gerais 112
Livros 112
Tese 114
Artigos 115
11
Introdução
Poeta, dramaturgo, filósofo, professor, artista plástico, político, mediador
cultural. Tantas são as faces de Ariano Suassuna, tantas as perspectivas, tão
rica em possibilidades é a sua obra que dificilmente se poderia, de uma mirada,
abarcar a sua produção. Suassuna se destacou, por sua atividade artística e
acadêmica, por sua ação como secretário de cultura da cidade do Recife e do
Estado do Pernambuco, como um dos grandes promotores da cultura
nordestina e brasileira no século XX, e, ainda hoje, permanece comprometido
com a afirmação da originalidade da arte brasileira.
O projeto estético de Suassuna tem sua origem no desejo de criar uma
arte brasileira erudita, não como reprodução da arte européia ou norte-
americana, mas a partir das raízes populares e sertanejas da cultura
nordestina; a partir de 1970, esse desejo se objetiva no Movimento Armorial,
que resulta do esforço para reunir artistas que m em comum o diálogo com a
arte popular: músicos, artistas plásticos, escritores; recusa-se a ter um
“manifesto”, pois emerge da práxis do artista em meio ao universo histórico-
cultural em que está inserido: afirma a atenção e o comprometimento deste
com a sua circunstância.
A interação entre artistas, meio acadêmico e público, favorecida
institucionalmente devido à atuação do Movimento Armorial
1
, realça a função
mediadora de Suassuna na produção cultural nordestina, atividade que vem
exercendo desde a década de 1940 até os dias de hoje. Mais do que o
favorecimento à atividade artística, a realização de eventos ou ainda a
polêmica, por meio da imprensa, em artigos e entrevistas, contra aqueles que
recebem com desconfiança a defesa de sua concepção de cultura popular e
nacional, permanece em Suassuna a preocupação de levar os artistas e seu
público a se tornarem conscientes das vozes populares que ressoam na arte
nordestina, sobretudo aquela que se pretende erudita.
1
Sobre o Movimento Armorial, ver, além da bibliografia que referimos, em muito coincidente
com a formada sobre o próprio Suassuna, o CD-ROM Movimento Armorial.
12
Tendo rompido a barreira dos oitenta anos, Suassuna está empenhado
em reescrever sua extensa obra, popularizada no Brasil, devido, sobretudo, às
diversas adaptações de seus textos para o cinema e a televisão. Seus poemas,
autos e romances se alimentam da vida árida do sertanejo, colocando-nos
diante do confronto entre o homem e a terra, essa Esfinge ensolarada que
ameaça devorá-lo, a terrível e sensual Onça Caetana. Confronto que
transcende a circunstância espaço-temporal do semi-árido, ganha dimensão
universal: a luta contra a terra, a luta consigo mesmo, traz em si a possibilidade
do homem realizar-se ou de se deixar ser destroçado; enfim, a luta de todos
nós.
Inicialmente, Suassuna era, para mim, como para a maioria dos
brasileiros o autor do Auto da Compadecida. Era também o professor da
Iniciação à estética, que acompanhou minhas primeiras meditações sobre a
Beleza e a Arte na licenciatura em Filosofia. Ao refletir sobre a continuidade de
meus estudos superiores, considerava a possibilidade de ater-me a algo que
permitisse conciliar a arte e a religião, as dimensões mais profundas do
Espírito humano mediadas por uma interpretação filosófica. A leitura do Auto
da Compadecida me apresentava um caminho para concretizar essa intenção.
No entanto, devido a meu desconhecimento da profundidade do autor,
perguntava-me se aquele seria apenas um momento isolado em sua
dramaturgia ou se realmente se poderia justificar esse empreendimento a partir
da totalidade de sua visão de mundo. Quando, entre a intencionalidade e o
acaso, encontro em um “sebo” no Centro de São Paulo um exemplar de A pena
e a lei, obra que não somente confirma a concepção religiosa do Auto, como
pretendemos demonstrá-lo a completa dialeticamente. Abria-se ali também o
longo fio dos estudos críticos sobre sua obra, em um artigo de Sábato Magaldi
“Auto da esperança”
2
em que o crítico teatral discute a relação entre a
realização dramática da peça e a reflexão teológica nela presente, ambas
resultantes do esforço de conciliação entre as fontes populares e o
conhecimento erudito do autor. Esse breve estudo, feito desde o ponto de vista
da crítica teatral, convidava a adentrar esse universo simples e profundo,
síntese de mamulengo e metafísica, capaz de unir e harmonizar a dimensão
2
Cf. Sábato MAGALDI, Auto da esperança. In: Ariano SUASSUNA, A pena e a lei, p. 9-20.
13
lúdica e a reflexão mais exigente sobre o sentido da vida humana, as quais se
encontram atualmente isoladas e hierarquizadas em detrimento do riso
nesta cinzenta época em que vivemos e que insistimos em chamar, com
eventuais e imprecisas variações, Modernidade.
A riqueza de perspectivas que indicamos acima pode ser encontrada
nas diferentes abordagens existentes nos estudos acadêmicos sobre
Suassuna: desde o ponto de vista literário e/ou histórico-cultural, em suas
relações com o Movimento Armorial e sua proposta estética; sobre as
adaptações de suas peças e romances para cinema e televisão; ou sobre as
mediações e fronteiras, nem sempre claras e distintas, entre cultura popular e
cultura de massas
3
.
Os estudos acadêmicos sobre Suassuna e o Movimento Armorial
iniciam-se ainda na década de 1970, a princípio em universidades européias,
principalmente da França. Lamentavelmente, esses estudos permanecem na
sua quase totalidade inacessíveis ao estudioso brasileiro, exceção feita, em
parte, ao mais abrangente deles, Em demanda da poética popular, de Idelette
Muzart Fonseca dos Santos; ntese e tradução de sua tese de Doutorado
4
,
referência incontornável para quem pretenda compreender a “poética da
recriação” expressão da autora que caracteriza a recepção e reelaboração
da cultura popular pelos artistas armoriais. Inicialmente, Idelette Santos procura
as origens medievais do romance de Suassuna, em dissertação de Mestrado
inédita
5
o que a leva a perceber não apenas a erudição do autor em sua
elaboração poética, mas, sobretudo, a relação deste com a arte popular
nordestina, herdeira da tradição ibérico-medieval. Desenvolvendo essa
hipótese, na Demanda, analisa as condições de formação do Movimento
3
Conferir na seção Referências bibliográficas desta dissertação o elenco das dissertações e
teses inéditas sobre Ariano Suassuna; basta atentar para a variedade de títulos, campos de
pesquisa e assuntos relacionados para se ter idéia da variedade de investigações e
interpretações que a obra suassuniana tem provocado.
4
Idelette Muzart Fonseca dos SANTOS. Littérature savante et littérature populaire au Brésil:
Ariano Suassuna et le Mouvement Armorial. Thèse pour le doctorat ès-lettres. Paris: Université
de la Sorbonne Nouvelle, 1981, 3v.
5
Idelette Muzart F. Dos SANTOS, Le roman de chevalerie et son interprétation par un écrivan
brésilien contemporaine: A pedra do reino de Ariano Suassuna. Mémoire de máitrise. Paris:
Université de Paris III, 1974.
14
Armorial, em torno de Suassuna e examina a presença da arte popular nas
diferentes produções do movimento (teatro, música, artes plásticas).
Consideramos ainda, entre os estudiosos brasileiros, Sonia Ramalho de
Farias, que em O sertão de José Lins do Rego e Ariano Suassuna investiga as
relações entre o messianismo e o cangaço a partir da noção de espaço
regional,
6
elaborada literariamente por esses autores; considera-os como
modelo de uma literatura comprometida com as estruturas tradicionais (diga-se,
retrógradas) da sociedade brasileira, opondo-lhes às transformações
modernizadoras representadas pela literatura elaborada no Sudeste,
supostamente menos retrógrado. Maria Thereza Didier de Moraes, historiadora
que em Emblemas da sagração armorial investiga a atuação deste movimento
cultural, detendo-se no período entre 1970-76; analisa-o a partir de sua
afirmação de uma identidade nacional, popular e dionisíaca; a autora identifica
no universo mágico e onírico armorial uma forma legítima de resistência
cultural. Seu estudo é importante também por oferecer elementos que
permitem situar as disputas intelectuais daquele período no Nordeste, entre as
tendências “nacionalistas”, como os armorialistas, e as “modernizadoras”, como
os tropicalistas, abertos para a recepção dos valores culturais e estéticos norte-
americanos. No entanto, apoiando-nos em Idelette Santos, discordamos da
tendência à univocidade que Didier de Moraes crê encontrar na estética
armorial; comprometida especificamente com a circunstância nordestina, e
pretendendo, desde essa circunstância, um caminho para uma arte nacional, a
arte armorial nos “incentiva a uma viagem dentro das culturas brasileiras”
7
plurais, polifônicas, atenta à multiplicidade cultural e a diferença que constituem
a realidade cultural brasileira.
Estes podem ser considerados exemplos de uma tendência
interpretativa que põe em primeiro plano a obra, o texto e suas relações com a
cultura e a sociedade; passamos agora a uma segunda tendência
interpretativa, em que predomina a intenção de compreender a obra de
Suassuna e sua relação com o universo popular sertanejo privilegiando-se a
6
Sobre o desenvolvimento da noção de espaço regional e a crítica da construção de uma
“identidade” nordestina, cf. Durval Muniz de ALBUQUERQUE JÚNIOR, Nos destinos de
fronteira.
7
Idelette Muzart Fonseca dos SANTOS, Em demanda da poética popular, p. 285.
15
história pessoal do autor. A antropóloga Maria Aparecida Lopes Nogueira, em
O cabreiro tresmalhado pretende restabelecer as relações entre o homem e a
obra; na leitura cuidadosa dos textos, na conversação com o autor e com as
pessoas próximas a ele, tenta compreender o emaranhado dialético por meio
do qual obra, autor e vida se condicionam mutuamente; percebe que o drama
nordestino, embora determinado social, histórica e geograficamente, tem na
dimensão simbólica a abertura para a universalidade da cultura. O Cabreiro
tresmalhado, tendo a dimensão mítica e utópica como fio condutor, pode ser
considerado uma das obras que mais oferecem subsídios para a discussão da
religiosidade no universo de Suassuna. Carlos Newton Júnior, em O pai, o
exílio e o reino analisa a poesia de Suassuna, gestada a partir de uma visão
trágica da vida, onde a relação com o mundo familiar, especialmente com o pai,
assassinado na infância do artista, ocupa lugar central. Abre-se ali o caminho,
extremamente proveitoso a nosso ver, de aproximar-se Suassuna do
sentimento trágico da vida, categoria seminal elaborada pelo poeta basco
Miguel de Unamuno, que reinsere o cristianismo dentro de uma compreensão
radical da existência, muitas vezes negligenciada devido à atenção concedida
ao domínio institucional da religião. Também a Carlos Newton nior devemos
esse romance de tese armorial intitulado Vida de Quaderna e Simão;
interpretação do Romance d’A Pedra do Reino, a partir da homologia buscada
entre sua personagem condutora, Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, e seu
criador, Suassuna; pretende ousadamente se filiar à estética armorial, estética
da integração dos gêneros e recursos artísticos, ao tentar integrar obra literária
e reflexão intelectual, que os manuais de metodologia tão ciosamente isolam,
como se a Beleza pudesse ser um impedimento para a compreeno da
Verdade; manuais que prudentemente ignoram Platão, Agostinho, o
mencionado Unamuno, e, digamos logo, o próprio Suassuna, entre tantos
outros pensadores que não descuidaram do vigor intelectual e da beleza na
exposição das idéias.
Podemos perceber que, nessas leituras, o elemento religioso muitas
vezes aparece, sendo considerado o somente como um dos constituintes da
visão de mundo de Suassuna, mas também em sua relação com a trama
poética desenvolvida pelo autor; tendo sido examinado, privilegiando-se os
16
aspectos literários, simbólicos e históricos, sobretudo nas análises do Romance
d’A pedra do Reino. Para Idelette Santos, Suassuna, ao interpretar os conflitos
de Canudos e Pedra Bonita, associando-os à situação política regional e
nacional, na retomada do mito sebastianista, a possibilidade de levar a
justiça e a ordem para o Nordeste; Sonia Ramalho de Farias tende a identificar
a temática regionalista do messianismo e do cangaço com o comprometimento
e o desejo de preservação de um modelo de sociedade historicamente
superado; Lígia Vassallo, ao buscar as origens medievais do teatro de
Suassuna, analisa a presença de motivos, personagens e estruturas teatrais
vindas da religião, mediadas pela literatura popular e pela formação erudita do
dramaturgo; Maria Aparecida Lopes Nogueira, em sua leitura, realça os
aspectos míticos e simbólicos do Romance d’A pedra do Reino, relacionando-
os a acontecimentos da vida e história familiar do autor.
Sob essa perspectiva, messianismo e sebastianismo tornam-se
categorias quase obrigatórias para a interpretação da presença religiosa no
texto de Suassuna. No messianismo aparece a necessidade de um mediador
entre o povo e o transcendente (Conselheiro, Dom Sebastião, os reis da Pedra
do Reino) que tem a missão de transformar a realidade, oferecendo os meios
para a superação da pobreza da terra e da injustiça dos homens. Este aspecto
da religiosidade popular, muitas vezes associado à situação social e política
nordestina, ao seu reiterado e aparentemente insuperável atraso, parece ser o
que mais tem chamado a atenção dos estudiosos da obra de Suassuna.
É preciso salientar que esses intérpretes, ao se depararem com a
presença do fenômeno religioso na obra de Suassuna, o examinam sob o
ponto de vista metódico de suas disciplinas, “reduzindo-o” conforme seus
interesses de pesquisa. Aqui, acompanhamos Hans-Jürgen Greschat, que, ao
discutir a especificidade da ciência da religião, afirma que “o cientista da
religião é apenas um especialista capaz de associar suas investigações
especiais à religião como totalidade”
8
, ou seja, a religião, neste sentido, não é
um elemento acidental com o qual o pesquisador se depara, e que
8
Hans-Jürgen GRESCHAT, O que é ciência da religião?, p. 24.
17
eventualmente pode exigir a sua atenção, mas constitui o eixo norteador de
nossa reflexão.
Afirmamos, no entanto, que o messianismo não é a única mensagem
religiosa significativa em Suassuna. Se trouxermos a religiosidade do fundo
onde ela tem sido mantida nos estudos realizados, considerada como
simplesmente mais um dos componentes da trama poética criada pelo autor, e
a examinarmos mais proximamente, em primeiro plano, poderemos perceber
em uma face significativa da obra o teatro voltada para a encenação
pública, das manifestações artísticas encontráveis em Suassuna a mais ligada
ao cotidiano do povo, e mais próxima dos folhetos e cordéis populares,
proximidade que se deve, em muito, à atualização propiciada pela
performance
9
teatral uma visão da religiosidade que, ao ressignificar a
tradição católica, afirma até mesmo certa “intimidade” entre o ser humano e a
divindade, por meio da qual a vida, que a princípio se mostra absurda e
incompreensível, ganha sentido, tornando possível ao homem resistir à
violência e à morte que ameaçam aniquilá-lo.
Entendemos que o teatro suassuniano oferece a possibilidade de refletir
a respeito da visão religiosa de mundo do povo nordestino, fundamentada em
uma tradição cristã que remonta aos primeiros séculos da colonização
brasileira, organizada a partir de mbolos e imagens que tem sido, no decorrer
do tempo, ressignificados pela cultura popular; assim, acreditamos contribuir
para uma melhor compreensão de um aspecto importante do modo de ser
brasileiro, a partir da interpretação da obra de um artista que encontra em suas
raízes populares e nordestinas sua motivação mais profunda.
O projeto estético armorial, desenvolvido e assumido por Suassuna,
propõe a realização de uma arte brasileira erudita consciente de suas raízes
nordestinas e populares. A cultura popular nordestina se fundamenta em uma
atitude religiosa que permeia e estrutura a obra de Suassuna, elaborada a
partir de um constante diálogo com a religiosidade popular, por meio de seu
romanceiro, constituído, segundo o dramaturgo, por diversas expressões
9
O conceito de performance, que nesta dissertação refere-se sempre a atualização do discurso
propiciada devido à representação teatral, é tomado a Paul ZUMTHOR. Leia-se, do autor, A
letra e a voz, Introdução à poesia oral e Performance, recepção, leitura.
18
artísticas, como o mamulengo, o cordel, as disputas orais dos cantadores. A
religiosidade popular se manifesta na obra de Suassuna, de maneira
privilegiada, nos textos teatrais, destinados à exibição pública, e que apenas
por meio dela se realizam plenamente; duplamente próximos da vida cotidiana,
por levá-la, transfigurada, para o palco; e por dirigir-se, novamente, ao público,
atualizada por meio da performance teatral. Em princípio, nos concentraremos
nas peças Auto da Compadecida, A pena e a lei e Farsa da Boa Preguiça,
referindo-nos às demais conforme a análise o exigir. Entendemos que estas
oferecem elementos para a compreensão da realidade sob a perspectiva de
uma antropologia religiosa, onde o ser humano errante e insuficiente, somente
se realiza, encontra a verdade, tornando-se quem realmente é após a morte,
diante da divindade; são nessas peças, também, que as representações das
personagens transcendentes são desenvolvidas pelo dramaturgo.
Considerando o exposto, procuraremos responder às seguintes
questões: quais as condições que propiciam o tratamento da temática religiosa
na obra teatral de Suassuna? Quais as respectivas contribuições que as
categorias estéticas de tragédia e comédia, com as quais o autor
freqüentemente dialoga, trazem para o desenvolvimento dramático da
representação religiosa? Como as personagens religiosas levadas à cena,
ressignificadas e representadas por Suassuna, permitem compreender
determinados aspectos do imaginário religioso brasileiro?
Nossa suposição preliminar, a ser demonstrada, é que no teatro
suassuniano a humanidade sertaneja e, nela pretende ser representada toda
a humanidade, num jogo permanente entre o local e o universal se encontra
em um mundo constantemente ameaçado pela perda de sentido, pela negação
do ser, devido à violência que marca as relações entre os homens e entre
estes e a terra; ausência de sentido que, em última instância, se manifesta
diante da morte. Contudo, a representação ali proposta da religiosidade
popular, superando o formalismo da tradição católica introduzida no Brasil
pelos colonizadores, buscando uma relação viva e mesmo íntima com o divino,
permite resistir à violência que constitui a condição humana no mundo e
superar simbolicamente a ameaça do absurdo da existência por meio da utopia
religiosa.
19
Na concepção teatral de Suassuna, ao apropriar-se da tradição religiosa
católica, humanizando o divino, trazendo-o para perto de si, e,
conseqüentemente, divinizando-se, aproximando-se de Deus, o povo sertanejo
tem a possibilidade de reconstituir, mediante a esperança religiosa, a
significação da realidade.
O teatro de Suassuna tem como um de seus fundamentos uma opção
estética e religiosa que pretende se legitimar desde a recepção da cultura
popular nordestina; a arte e a religiosidade popular oferecem, na visão do
dramaturgo, a possibilidade de resistir, por meio de um discurso poético, mítico
e utópico, aos discursos dominantes na sociedade contemporânea.
Buscaremos compreender a representação da religiosidade popular
especialmente do imaginário religioso católico que caracteriza a visão de
mundo do povo sertanejo no teatro de Suassuna, e demonstrar que, embora
possa ser muitas vezes identificada como “tradicional” e “conservadora”, esta
pode também oferecer a possibilidade de crítica e resistência social,
fundamentada em sua posição diante da existência.
Trataremos desde a perspectiva do teatro suassuniano, do absurdo que
a condição humana parece manifestar; condenando o homem ao insucesso, à
violência e à morte, e como a religiosidade popular, buscando a humanização
do divino e a divinização do humano, permite ao povo sertanejo a
ressignificação da realidade e a superação simbólica da injustiça social e do
absurdo da existência.
Pretendemos contribuir para o esclarecimento de um aspecto que
entendemos ser fundamental, mas ainda insuficientemente discutido, apesar da
extensa bibliografia que tem se constituído sobre a obra de Suassuna: sua
relação com a religiosidade popular.
Embora proponhamos uma abordagem interdisciplinar, que acreditamos
ser a mais coerente com a vocação das Ciências da Religião, onde
empregamos conceitos buscados em disciplinas como a Antropologia, a
Filosofia e a Teoria Literária, devemos reconhecer que a obra de Idelette
Muzart Fonseca dos Santos se constitui em nossa principal referência teórica
20
para compreender as relações entre a obra dramática de Suassuna e sua
recepção e ressignificação do imaginário religioso sertanejo. No decorrer do
texto, conforme exigir a necessidade da análise, diversos outros autores serão
elencados, contribuindo para esclarecer aspectos específicos da pesquisa.
Esta dissertação encontra-se organizada em três capítulos:
No primeiro capítulo, Ariano Suassuna, um intérprete do sertão,
discutimos inicialmente as relações entre arte e religião, situadas, sobretudo, a
partir do debate contemporâneo a respeito da autonomia da arte e da
legitimidade da representação de sentimentos e valores religiosos por meio da
arte; considerando o posicionamento do próprio Suassuna diante desse
debate, abrimos o caminho para a análise de suas representações do sertão e
do povo sertanejo, pois entendemos que essas representações fundamentam a
concepção religiosa que pretendemos compreender.
No segundo capítulo, Tragédia, comédia e religião, passamos a
examinar a importância dessas categorias estéticas na elaboração da
dramaturgia suassuniana, para compreender a contribuição específica que
trazem para as representações do imaginário religioso realizada pelo autor.
Inicialmente, a tragédia, categoria que oferece ao autor a possibilidade de
explicitar a ausência de sentido que parece condenar a vida humana ao
absurdo; em seguida, a comédia, categoria por meio da qual se abre, na
perspectiva suassuniana, o caminho para o encontro e a conciliação entre o ser
humano e a divindade.
No terceiro capítulo, As representações do transcendente, analisamos a
representação das personagens religiosas por Suassuna; em um primeiro
momento, discutimos a representação do mal, enfatizando as personagens
demoníacas e sua importância para a compreensão dos aspectos éticos e
escatológicos desenvolvidos pelo autor em sua dramaturgia; no segundo
momento, as representações da divindade, enfatizando as personagens de
Jesus Cristo e de Nossa Senhora, que ocupam posição privilegiada no teatro
de Suassuna, permitindo a explicitação da proximidade entre o humano e o
divino que, entendemos, seja o ponto central da compreensão suassuniana da
religião.
21
CAPÍTULO I ARIANO SUASSUNA, UM INTÉRPRETE DO SERTÃO
O teatro de Ariano Suassuna propõe ao público expectador, leitor, e,
mais recentemente, também telespectador e cinéfilo uma interpretação do
real apresentada sob a perspectiva pessoal do autor. Essa realidade
transfigurada tem por palco o sertão, colocado como metáfora do mundo e da
vida, e, desde essa representação, o autor procura, por meio da escritura
teatral, conciliar-se consigo mesmo, o que passa de alguma maneira por uma
harmonização com o mundo, ante as forças opressoras da morte e a ameaça
do absurdo da existência
10
.
Em nossa hipótese inicial de trabalho consideramos que o sertão-
mundo
11
transfigurado de Suassuna assenta-se sobre uma concepção religiosa
da vida, onde a situação absurda, a ausência de sentido que ameaça às
personagens no palco, se amplia, dirigindo-se a cada espectador, e ao próprio
autor, na medida em que estes constituem uma comunidade moral e
ontológica
12
. No entanto, ao realizar um teatro da esperança
13
e não do
absurdo, abre a possibilidade de recuperar o seu sentido, devido ao
reconhecimento da tradição religiosa cristã, e, sobretudo, católica. A
significação do mundo dada pelo catolicismo, decorrente das opções religiosas
pessoais do autor, provém, no entanto, de diversas fontes de que este se
apropria na feitura de sua dramaturgia, tais como as narrativas populares
nordestinas que servem de matriz para algumas de suas peças e entremezes,
nestas adotando, por vezes, a dinâmica do teatro popular de bonecos
nordestino, o mamulengo. Recebe também a tradição erudita do teatro e da
literatura ocidental, dialogando, de maneira explícita ou implícita, com autores
como Plauto, Gil Vicente, Calderón de la Barca, Lorca, Dostoievski. Parece
aceitar de bom grado a angústia da influência de que fala Harold Bloom
14
,
crítico norte-americano que está sempre a lembrar a precedência da dimensão
estética sobre qualquer outro aspecto na poesia. De acordo; mas precedência
10
Cf. Albert CAMUS, Le mythe de Sisyphe.
11
A expressão sertão-mundo é tomada ao tulo do documentário realizado por Douglas
MACHADO, O sertãomundo de Ariano Suassuna.
12
Cf. Ariano SUASSUNA, O casamento suspeitoso, p. 124-125.
13
Cf. Sábato MAGALDI, Auto da esperança. In: Ariano SUASSUNA, A pena e a lei, p. 9-20.
14
Cf. Harold BLOOM, A angústia da influência.
22
não implica exclusividade. A dramaturgia suassuniana e em cena alguns
aspectos da matriz religiosa brasileira
15
, como a relação pessoal com o
transcendente, o agir humano e o problema do mal, a idéia de salvação.
O presente capítulo encontra-se dividido em dois momentos, distintos,
mas complementares; no primeiro, procuramos recuperar sinteticamente as
relações entre a modernidade e a religião, estendendo, também brevemente,
esta discussão ao contexto pós-moderno; considerando estes elementos,
pretendemos repensar a crítica estética à religião, gestada na modernidade,
acrescentando-lhe a contribuição do próprio Suassuna, uma vez que o
dramaturgo também se ateve à discussão da legitimidade de representar, por
meio da arte, ideais e valores em princípio não estéticos, como a política, a
filosofia e a própria religião. No segundo momento, procuramos situar e
analisar a interpretação que Suassuna faz do sertão; ao discutir sua
compreensão da vida e do povo nordestino, reuniremos subsídios para nossa
discussão central, sobre as representações do imaginário religioso em seu
teatro. Partimos da dramaturgia suassuniana, uma das interpretações literárias
do sertão brasileiro elaboradas no século XX, para discutirmos a concepção
antropológica do autor, determinada por sua visão do povo sertanejo.
Encerraremos o capítulo retomando as relações entre o sertão e o sertanejo,
mediados pelos espetáculos populares; estes o compreendidos por
Suassuna respectivamente como modelo de representação (arte popular),
modelo de humanidade (sertanejo) e modelo de mundo (sertão).
1.1 A Modernidade, a religião e alguma Pós-Modernidade
Não é possível ignorar que a Modernidade tem como uma de suas
características a crítica ao discurso religioso sobretudo ao cristão
dominante na constituição do Ocidente. Relembrando brevemente o
desenvolvimento dessa crítica, entendemos que a mesma é marcada por uma
ambigüidade; em sua origem, encontra-se o pensamento iluminista, tendo este
15
Sobre o conceito de matriz religiosa brasileira, cf. André DROOGERS, A religiosidade
mínima brasileira; José BITTENCOURT FILHO, Matriz religiosa brasileira.
23
por objetivo a emancipação do ser humano de qualquer forma de tutela, e,
nele, o nascedouro de uma tradição de história comparada da religião que ao
mesmo tempo procurava identificar a religião “primordial” e estabelecer as
condições de “evolução” do pensamento religioso; desta maneira, alguns
buscavam a confirmação do cristianismo como a única religião verdadeira,
outros, contrariamente, procuravam elementos que lhes permitissem afirmar o
porvir de uma era irreligiosa, em que o ser humano estivesse liberado de todos
os seus antigos mitos, liberação proporcionada pela racionalidade científica
16
.
No século XIX, esse desejo de uma completa autonomia do Espírito humano
alcança sua forma plena na “consciência absoluta” de Hegel, este que é muitas
vezes considerado o último grande pensador metafísico, o último elaborador de
sistemas, apesar das restrições à especulação estabelecidas pela Crítica
kantiana e não se pode esquecer que Kant toma como modelo de
conhecimento a física newtoniana, paradigma da ciência moderna
17
embora
Hegel proponha uma compreensão da realidade em sua totalidade, em que,
conforme a fórmula consagrada, realidade a objetividade do mundo e
racionalidade a subjetividade do pensamento se identifiquem em um mundo
completamente claro à razão humana, conforme a proposta hegeliana a arte e
a religião seriam negadas, por ainda possuírem algo de alienante, por não
permitirem ainda, à consciência, a sua emancipação plena; mas também
estariam conservadas como momentos necessários do desenvolvimento dessa
consciência absoluta. Mais uma vez temos a ambigüidade de um pensamento
que nega, mas o faz porque deseja conservar; talvez por isso, são de matriz
hegeliana muitas das críticas que pretendem a superação do pensamento
religioso, entre as quais se encontram Feuerbach, Engels e Marx, e mesmo
Nietzsche
18
. No entanto, a proposta moderna de organização racional da vida,
resultado desse paradigma da autonomia da razão, que encontra uma de suas
maiores expressões no capitalismo, pode ser compreendida não simplesmente
como o resultado histórico do desenvolvimento dos meios de produção e da
16
Cf. Giovanni FILORAMO; Carlo PRANDI, As ciências das religiões, p. 59-62; Eduardo Basto
de ALBUQUERQUE, A história das religiões. In: Frank USARSKI (org.), O espectro disciplinar
da ciência da religião, p. 23-28.
17
Cf. Mário Ariel González PORTA, A filosofia a partir de seus problemas, parte, capítulo I,
O problema da Crítica da razão pura.
18
Sobre o desenvolvimento do modelo filosófico hegeliano, ver a discussão realizada por
Henrique C. de Lima VAZ, Escritos de filosofia III, capítulo I, Filosofia e cultura, p. 44-76.
24
luta entre as classes que controlam esses meios e às quais estão submetidas
aquelas primeiras, como pretendiam Engels e Marx, mas pode essa proposta
ocultar, como bem percebeu Roger Bastide, a crença nos velhos deuses,
podendo ser a moderna sociedade capitalista interpretada como resultante de
uma profunda crise de consciência religiosa, entre os valores das antigas
religiões pagãs, fundamentalmente festivas o que a modernidade traduziu e
apequenou na necessidade e no desejo de consumo e os valores do
cristianismo “moderno”: objetivados na ética puritana, nos meios protestantes,
e na ética franciscana, nos meios católicos, que ofereceram ao capitalismo sua
outra metade, o empenho no trabalho
19
. Também segundo Bastide, o homem
continua a ser uma “máquina de fabricar deuses”, empregue para isso o barro
das ciências e das técnicas, da organização social, ou da pretensão individual
à auto-suficiência
20
.
Estendendo nossa reflexão ao tempo presente, à chamada Pós-
Modernidade, esta pode ser interpretada como a crise do paradigma
epistemológico dominante durante a Modernidade: o modelo de representação
matemática, pretensamente racional (pretenso, por durante muito tempo ter
sido considerado a única forma de racionalidade aceitável). Mais do que
simplesmente a contestação do paradigma dominante, aspecto que tem levado
alguns de seus críticos a vê-la como uma crise de irracionalidade, a Pós-
Modernidade colocaria a humanidade diante da emergência de um novo
paradigma, onde a objetividade e a especialização do conhecimento, que
implicavam a fratura entre o sujeito conhecedor e a realidade a ser conhecida,
e também a ignorância desse mesmo sujeito em relação à totalidade do real,
tendem a dar a lugar à subjetivação, mas também à ampliação do ato de
conhecer, num resgate do “conhece-te a ti mesmo” socrático, contribuindo para
uma epistemologia re-humanizada, em que se supere a hiper-especialização
própria da Modernidade (saber tudo sobre, por exemplo, as funções do
sculo cardíaco, e quase nada sobre o ser humano); oferecendo, mais do
que a simples justaposição ou mesmo a convergência de métodos, a
19
Cf. Roger BASTIDE, O sagrado selvagem, p. 82-86.
20
Cf. IBID, capítulo 5, O homem, essa máquina de fabricar deuses, e capítulo 6, A mitologia
moderna.
25
integração e a revitalização do saber, voltado para a existência e a convivência
humana
21
.
Nesta perspectiva, analisar a representação dramática do imaginário
religioso propicia, ao estudioso das religiões, certo exercício de transgressão
metodológica
22
, no qual uma disciplina que, em princípio, se pode pensar como
estritamente empírica, se projeta para a dimensão simbólica, e, desamarrando-
se dos limites impostos por uma epistemologia reducionista e explicativa,
pretende compreender a significação do discurso religioso em suas implicações
existenciais.
Considerando isto, para prosseguir em nossa análise, acreditamos que a
relação entre o ser humano e a religião, no contexto moderno, está permeada
por essa ambigüidade a qual nos referimos, sendo que, mesmo naqueles
setores de atividade pretensamente mais desencantados ou secularizados,
como a atividade econômica, a política, a pesquisa científica e a organização
da vida social, a mentalidade religiosa permanece atuante, ainda quando
ignorada ou mesmo negada. E o discurso poético um objeto inevitável, se
nós pretendemos analisar a representação teatral também se encontra
permeado por essa ambigüidade, em que a religião é negada e conservada.
Tentando dar um passo para além da Modernidade, para além da oposição
dialética entre negação e conservação, faz-se necessário estar atento para a
condição predominante na humanidade contemporânea ou pós-moderna: sua
fragmentação, seu despedaçamento, e também sua tentativa de reintegrar-se,
por vezes, para tanto, procurando recuperar formas tradicionais de
compreensão de mundo, inclusive, ou principalmente, religiosas.
1.1.1 A crítica estética à religião
Entre as críticas modernas ao discurso religioso, encontra-se a crítica
estética à religião. O poeta, outrora tido como inspirado pelas Musas, aquele de
quem a divindade se servia para anunciar verdades aos mortais, torna-se
21
Cf. Boaventura de Sousa SANTOS, Um discurso sobre as ciências.
22
Cf. IBID, p. 78-79.
26
iconoclasta, rejeitando a transcendência religiosa. A poesia, tida como o último
refúgioo instrumentalizado do espírito humano, passa a ver na tradição
religiosa uma concorrente. Encontramos algumas das mais importantes
páginas desta disputa, pode-se dizer, pela hegemonia simbólica na transição
da Modernidade à Pós-Modernidade, acompanhando a leitura que o teólogo
Karl-Josef Kuschel faz de algumas das principais objeções dos poetas alemães
da primeira metade do século XX à religião. Kuschel nos mostra Gottfried Benn
afirmando o apenas a independência da poesia em relação à religião, mas
pretendendo que a poesia seja a única forma legítima de transcendência,
entendida agora como realização da atividade artística e como prazer criador.
Para Benn, poetizar é atribuir forma ao que não a possui; cabe, portanto, ao
poeta realizar por meio da linguagem aquilo que antes era considerado
privilégio do Deus judeu-cristão. Segundo este poeta, a religião tende a
desaparecer, sendo esmagada pela crítica estética; esta reconhece na palavra
Deus, um péssimo “princípio estilístico”: convicções religiosas geram maus
poetas; aquele que aderiu à religião conciliou-se com o mundo, abrandou a
expressão, renunciou ao ato criador do artista, que nasce de seu dilaceramento
interno e de sua oposição ao mundo
23
. Ainda seguindo Kuschel, agora em sua
interpretação de Bertolt Brecht, percebe-se, na reação do dramaturgo, perplexo
diante da profissão de religiosa de Alfred Döblin, a radicalidade do
distanciamento moderno entre arte e religião: ao anunciar sua conversão em
um palco, Döblin o teria profanado; para Brecht, aquele que submete a arte a
sentimentos religiosos a trai, tornando-se indigno de ser considerado
seriamente como artista
24
. Na interpretação de Antonio Magalhães, a reação de
Brecht explicita a necessidade de preservar a autonomia da arte, não
permitindo que esta seja apropriada como mediadora, ou como instrumento, de
qualquer discurso ideológico
25
.
No entanto, ampliando o conceito de transgressão metodológica a que
nos referimos, pensamos que este não deve se limitar estritamente às ciências
(“exatas” e “humanas”), mas pode ser estendido às interrelações entre as
diferentes formas de conhecimento, incluindo a arte e a religião. Por isto,
23
Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 13-19.
24
Cf. IBID, p. 19-22.
25
Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 46.
27
entendemos que o apenas como exclusão e rivalidade, mas também como
diálogo, ou, ao menos, afinidade temática, torna-se possível aproximar discurso
poético e discurso religioso. Consideramos que essa aproximação não pode
deixar de ser tensa, sendo muitas vezes marcada por desconfianças mútuas,
mas possível. A obra poética pode ser objeto de interpretação teológica
26
para ira dos defensores da “pureza” na arte, que vêem nessa atitude mais uma
tentativa de sua “domesticação” e também oferecer a possibilidade de
reflexão não doutrinal sobre categorias teológicas presentes no discurso
poético
27
para não menor ira de muitos teólogos, por seu potencial crítico e
heterodoxo. Ou ainda, como propõe Waldecy Tenório, aproximando-se desde a
poesia até a teologia, pode-se falar em níveis de leitura, onde se parte de um
degrau poético e se pretende chegar a uma transposição teológica, possível
devido à opção antropológica presente na poesia: pois o que torna uma
afirmação teológica não é o referir-se a Deus como sujeito, mas a tentativa de
expressar o sentido último de nossa existência pessoal
28
.
1.1.2 A possibilidade da representação artística da religião segundo Suassuna
Entendemos que o teatro de Suassuna possibilita a oportunidade de
uma reflexão, desde a representação teatral, sobre categorias religiosas e,
especialmente, o imaginário religioso. Encontra-se em sua dramaturgia uma
indagação sobre o sentido da vida e a condição final do ser humano, que se
resolve por meio de categorias teológicas vindas da tradição católica, sendo o
questionamento e a resolução reinterpretados por sua recepção do catolicismo
popular que se estabeleceu no Nordeste brasileiro, tão presente ao
pensamento do dramaturgo. Antes de explorar esses caminhos, é necessário
compreender como Suassuna se coloca no debate aqui exposto entre arte e
religião.
26
Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 209-230; Antonio MAGALHÃES,
Deus no espelho das palavras, p. 188-194.
27
Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 195-198.
28
Cf. Waldecy TENÓRIO, A bailadora andaluza, p. 47-48.
28
Suassuna, professor de Estética, discute a questão que fundamenta o
problema das tensões e mediações entre arte e religião; a questão da
autonomia da arte. No capítulo “Arte gratuita e arte participante” da Iniciação à
estética, expõe a polêmica entre aqueles que consideram a arte um fim em si
mesmo, sem qualquer outra finalidade que não a realização da Beleza entre
os defensores dessa posição encontram-se, entre outros, Oscar Wilde e André
Gide e aqueles que condicionam a existência da arte a algum tipo de
interesse ou condição social por exemplo, a interpretação marxista que na
arte um instrumento ideológico das classes hegemônicas, a ser apropriado e
transformado pela classe proletária em um instrumento para a revolução
29
.
Suassuna entende haver excessos nas duas posições: o exclusivismo da arte
gratuita conduziria à desumanização da arte, terminando por esterilizar a
própria arte; a arte considerada tão somente a partir de seu papel social corre o
risco de reduzir-se a mero instrumento de propaganda
30
. Tendo em vista os
ritos e os riscos das duas posições, propõe uma solução conciliadora: a
Beleza não é a preocupação exclusiva da arte, mas constitui sua preocupação
fundamental. Idealmente, o discurso poético pode ser isento de qualquer
preocupação “não-estética”. No entanto, sendo a arte a objetivação do universo
interior do artista, este pode legitimamente abordar, em perspectiva estética,
suas preocupações existenciais, sejam estas de natureza política, filosófica ou
religiosa. O mais freqüente é que traga essas preocupações de maneira
implícita, ou mesmo faça delas seu tema fundamental, e que isto não se
constitua em impedimento para que seja bem sucedido em seu fazer artístico.
De maneira extrema, pode-se ter algo como a teatralização de um sermão, ou
de um comício, sem outro nculo efetivo com a arte além do empréstimo da
forma. A arte não é algo desvinculado da vida, que exista por si mesmo, nem o
artista alguém completamente estranho ao seu próprio mundo. O mérito do
artista, um deles, está em recriar, mediante a Beleza, as inquietações
existenciais do ser humano, que recebe as influências das circunstâncias
sociais existentes, circunstâncias essas às quais o próprio artista não se
encontra imune
31
.
29
Cf. Ariano SUASSUNA, Iniciação à estética, p. 249-251.
30
Cf. IBID, p. 251-253.
31
Cf. IBID, p. 253-260.
29
A Arte parte do homem, é expressão do homem, isto é, de um ser total
que, ao empreender a criação da obra, lhe imprimirá necessariamente a
marca de sua pessoa inteira marca erótica ou obscena se isso é coisa
importante no mundo do autor; religiosa, se se trata de um homem cujas
idéias são fundamentalmente assinaladas por preocupações religiosas;
política ou social se suas preocupações fundamentais são essas. O que
interessa é que a Beleza seja criada a partir do mundo real e do mundo
particular de cada um. Para isso, é preciso que essas tendências
particulares surjam na obra e com a obra, e não justapostas
artificialmente a ela: de outra forma, terminam prejudicando a Beleza,
que é seu objetivo essencial
32
.
Dessa maneira, torna-se possível compreender como a preocupação
religiosa se concilia com a elaboração artística no teatro de Suassuna. E aqui
nos parece importante atentar para a análise que Sábato Magaldi faz de A
pena e a lei
33
. Nela, o crítico reconhece que o dramaturgo conseguiu articular o
funcionamento da representação teatral e suas intenções religiosas de maneira
harmônica, sem prejuízo da realização artística:
[...] de nada adiantariam as excelentes idéias se, como estrutura
dramática, A pena e a lei o funcionasse. E, no talento para unir a
mais tradicional história de burlas a um signo teológico exigente se
percebe a força do grande ficcionista Ariano Suassuna. O espectador
que desejar a diversão desabrida da farsa encontrará na peça um
motivo inesgotável de comicidade. Cada diálogo encerra uma sugestão
para o riso, as histórias narradas contêm uma graça espontânea e
explosiva. Subjacente a esse encadeamento natural de vidas simples e
primárias ganha vigor, no terceiro ato, a indagação ontológica, uma das
mais profundas já realizadas pela dramaturgia brasileira
34
.
Considerando isto, podemos afirmar que no teatro de Suassuna o
discurso poético e a realização dramática têm como motivação dominante a
inquietação religiosa, propiciando ao dramaturgo desenvolver e expressar,
mediante a representação teatral, uma reflexão existencial e religiosa sobre a
vida e a destinação do ser humano; essa reflexão nasce de uma opção social,
cultural e estética pelo povo sertanejo, o que implica dizer: a) que seu
fundamento encontra-se na solidariedade para com aqueles que são social e
32
Cf. Ariano SUASSUNA, Iniciação à estética, p. 257.
33
Cf. Sábato MAGALDI, Auto da esperança. In: Ariano SUASSUNA, A pena e a lei, p. 9-20.
34
IBID, p. 11-12.
30
politicamente oprimidos, manifestando-se sob a forma de denúncia da condição
de opressão e de elaboração simbólica das condições de sua superação; b)
que, ao se apropriar da poesia popular, reelaborada em seu teatro, o
dramaturgo promove o resgate e a reabilitação da cultura e do imaginário
popular, e que esta se caracteriza por sua capacidade criadora em meio à
adversidade social e, principalmente, existencial; c) que a recepção dos valores
estéticos e culturais presentes na arte popular, reinterpretados em sua
dramaturgia, se deve a uma escolha pessoal do autor; d) que a reinterpretação,
no teatro suassuniano, de elementos religiosos presentes na arte popular, se
deve a adesão do autor ao catolicismo.
Enquanto representação artística que se alimenta de referências
populares, colocando um questionamento social e também existencial,
fundamento em uma opção religiosa, a dramaturgia suassuniana pode ser
pensada em termos de resistência perante a lógica dominante.
1.1.3 O discurso poético como possibilidade de resistência
Situada entre o desejo e a reelaboração mágica da realidade, a arte
suassuniana pode ser compreendida como um desses discursos poéticos que
permanecem paralelos aos discursos dominantes nas sociedades modernas,
nas quais, conforme a interpretação de Alfredo Bosi, o poeta foi destituído de
seu poder criador, de nomear os seres e, assim, instituir realidades; não mais a
poesia, mas a ideologia, e, sobretudo, a vontade de consumo, apresenta-se
para o indivíduo contemporâneo como a principal geradora de sentido
35
. Para o
crítico, a poesia moderna, tendo se tornado um discurso marginal, elabora
estratégias de resistência por meio das quais esta procura permanecer,
opondo-se à lógica da ideologia reinante e sua pretensão de uma totalidade,
que, para sua conveniência, pareça isenta de contradições
36
: por vezes, a
poesia o faz voltando-se para si mesma, recorrendo à metalinguagem
37
;
35
Cf. Alfredo BOSI, O ser e o tempo da poesia, p. 163-165.
36
Cf. IBID, p. 168-170.
37
Cf. IBID, p. 165-166; 170-173.
31
noutras, persegue a “recuperação do sentido comunitário perdido”
38
, propõe o
retorno às origens, alimentando-se da tradição mítica
39
; ainda outras formas
de resistência da poesia, como a biografia, a sátira e a utopia; destas, ver-se-á
a sátira e a utopia presentes no teatro suassuniano, mas, em nossa
interpretação, encontra-se no mito seu eixo condutor.
A poesia mítica se faz em desacordo com o presente, sendo a
expressão da incompatibilidade existente entre o poeta e seu tempo; ao voltar-
se para a tradição, o poeta pretende encontrar, no resgate simbólico do tempo
das origens, a possibilidade de “ressacralização da memória mais profunda da
comunidade”
40
; na escritura dramática suassuniana, persegue-se essa
memória no diálogo com a cultura local, como na recepção das narrativas
populares nordestinas
41
; alimentando-se dos mitos locais, o exilado pretende
afirmar o seu pertencimento a essa comunidade e, desde essa pertença,
legitimar suas opções pessoais:
Acredito assim que, por uma inclinação que me é natural e que não
forço, minhas peças reflitam o ambiente de minha região, ou, pelo
menos, os aspectos desta região que penso ver e que formam o cerne
do que tenho a contar. Minha arte procura se alimentar dessa luz que
parte do real e a ele retornar, oferecendo uma resposta domada a sua
solicitação fascinante e feroz
42
.
Os caminhos da memória coletiva e individual encontram-se, portanto,
franqueados ao poeta
43
. Suassuna explora ambas as perspectivas: a infância e
o mundo familiar são fontes recorrentes, como vemos nos poemas “Fazenda
38
Alfredo BOSI, O ser e o tempo da poesia, p. 167.
39
A recuperação da tradição mítica comunitária pela poesia permite compreendê-la não como
uma narrativa pré-lógica, a ser superada por formas mais perfeitas de racionalidade que se
encontrariam na filosofia e na ciência (ocidentais), mas como um discurso elaborado a partir de
uma racionalidade própria, capaz de enxergar o mundo desde outra perspectiva que não mais
aquela dominante nas sociedades capitalistas atuais. A este respeito, a obra de Claude Lévi-
Strauss continua sendo seminal.
40
Alfredo BOSI, O ser e o tempo da poesia, p. 174.
41
Segundo Idelette Santos, o texto popular manifesta-se no teatro suassuniano de três modos:
modo constitutivo, por meio da reescritura do folheto; modo ilustrativo, como citação ou
interpretação do texto popular; modo participativo, quando uma personagem de folheto é
levada ao palco por Suassuna. Cf. Idelette Muzart Fonseca dos SANTOS, Em demanda da
poética popular, p. 235.
42
Ariano SUASSUNA, Teatro, região e tradição. In: Almanaque armorial, p. 49.
43
Cf. Alfredo BOSI, O ser e o tempo da poesia, p. 173-176.
32
Acauhan”
44
, “Infância”
45
e “A morte do touro mão-de-pau”
46
; interessa-nos
aqui, no entanto, a dimensão comunitária, que encontra, conforme
entendemos, no drama teatral, sua mais adequada forma de expressão.
Porém, encontramo-nos também diante de uma ameaça; a ideologização da
poesia, a procura de justificação do presente, o risco de sua transformação em
defesa dos interesses de classe
47
; a mesma memória coletiva que oferece ao
poeta elementos para o enfrentamento do drama da existência tem permitido à
ideologia “„resolver‟ verbal e emocionalmente as contradições de uma dada
formação histórica”
48
. Contudo, insiste Bosi, não coincidência entre o
discurso ideológico e o discurso poético, mesmo quando estes se valem dos
mesmos termos
49
; se a ideologia procura simplesmente a preservação da
ordem estabelecida, encobrindo as suas mazelas, a poesia reage ao
“desencantamento do mundo”
50
; procurando resistir às imposições do
presente, reafirma seu compromisso com uma existência mais humana:
O mito, quando cruza o limiar do poema, recupera a inocência que
perdera no compromisso com esta ou aquela ideologia abstratamente
considerada. Daí a regra de ouro, hoje tão difícil de seguir: deve-se ao
grande poeta uma suma indulgência em relação a seus equívocos
ideológicos. Esses equívocos podem e devem ser objeto de nossa
recusa, mas quando tomados fora do contexto mitopoético onde são
redimidos pela paixão, pelasica e pela festa livre das palavras
51
.
No trabalho da imagem poética encontra-se a possibilidade de
conciliação, simbólica, daquilo que, nas relações objetivas, encontra-se mesmo
destroçado; o sertão-mundo representado dramaticamente por Suassuna
constitui a tentativa de reelaborar, simbolicamente, os valores culturais,
estéticos, morais e também religiosos que o autor acredita encontrar no povo
sertanejo, e entende formarem a resposta, também simbólica, desse povo às
44
Ariano SUASSUNA, Seleta em prosa e verso, p. 168.
45
IBID, p. 171.
46
IBID, p. 179-182.
47
Cf. Alfredo BOSI, O ser e o tempo da poesia, p. 175-176.
48
IBID, p. 176.
49
Cf. IBID, p. 176.
50
IBID, p. 177.
51
IBID, p. 178.
33
dificuldades e, principalmente, ao sofrimento que a vida impõe.
Provavelmente venha daí a força que a imagem do exílio tem, não apenas na
arte suassuniana, mas também em grande parte da arte nordestina ou que tem
por objeto o sertão nordestino. Há que se diferenciar duas condições: por um
lado o sertanejo exilado o retirante representado na arte; o povo pobre que
mais do que procurar melhores condições de vida, parece, por vezes,
simplesmente pretender postergar a morte; por outro o artista e o intelectual
que constroem essas representações. Em meio a este cenário, encontramos a
Morte e vida Severina de João Cabral de Melo Neto, os retirantes anônimos de
Cândido Portinari, e, ainda, os “amarelos” de Ariano Suassuna, heróis, como
pretendemos demonstrar, que representam no palco o próprio povo sertanejo,
dos quais o mais famoso é, sem dúvida, João Grilo. Trata-se, nos diferentes
casos, de representações, nas quais os artistas se aproximam afetivamente
daqueles que são por eles representados. É como intelectual e artista erudito
que Suassuna, para resolver simbolicamente o seu próprio exílio, reelabora o
sertão e o sertanejo retirado; estamos no campo das interpretações. Nas
páginas seguintes, analisamos a maneira como Suassuna elabora sua
compreensão do mundo e da humanidade sertaneja.
1.2 Um olhar sobre o sertão
O olhar que Suassuna lança ao sertão se projeta desde o exílio; é da
cidade de Recife, onde se educou e construiu sua vida, e sua carreira como
artista e professor, que recria o sertão-mundo, de uma maneira radicalmente
pessoal, como percebeu Rachel de Queiroz:
Lembremo-nos de que Suassuna olha para esse mundo com a visão do
exilado, ainda na adolescência arrancado ao seu sertão natal; por isso
sempre o descreve muito belo e mágico; por isso tem recuo suficiente
para descobrir o mistério onde os da terra naturalmente vêem o
cotidiano
52
.
52
Rachel de QUEIROZ, Um romance picaresco? In: Ariano SUASSUNA, Romance d’A Pedra
do Reino, p. 17.
34
Exílio que se tornou categoria analítica freqüente nos estudos sobre
Suassuna
53
, realçando um distanciamento não apenas temporal e físico, mas,
sobretudo, existencial, que se pretende resgatar simbolicamente, recorrendo à
memória e à imaginação. Lemos em Idelette Santos, referindo-se a Suassuna e
outros artistas nordestinos: “a desconfortável posição de exilados torna-os
expectadores, mais do que atores olham como adultos suas descobertas
infantis; como citadinos que passaram a ser, o mundo rural; como intelectuais,
a literatura oral e popular”
54
. Atentamos para os pares: adulto/infantil;
urbano/rural; intelectual/popular. Opostos em constante tensão, condicionando
sua visão de mundo e sua obra, sem, contudo, encontrarem sua síntese ideal,
permanecendo uma consciência infeliz, marcada pelo descontentamento de
não se integrar plenamente ao mundo adulto, urbano e intelectualizado, e de
não poder recuperar, objetivamente, o “reino desejado”
55
; este se encontra
fadado ao não-lugar do desejo, do sonho e da memória.
1.2.1 O sertão no palco suassuniano
O sertão constitui-se no palco por excelência da dramaturgia
suassuniana. Nele, o povo nordestino vivencia sua luta constante contra uma
terra pobre e opressora, como em Uma mulher vestida de sol, em que os
dramas da terra e do sangue se misturam, expondo a fratura entre o natural e o
simbólico, onde o ser humano encontra-se constantemente ameaçado de
reduzir-se ao animal.
A tragédia dos infelizes amantes Francisco e Rosa coloca o espectador
diante de uma das preocupações constantes do teatro suassuniano: a
denúncia da miséria e a crítica social. Crítica que se manifesta na
representação da disputa armada pela posse de terras; no rebaixamento de
pequenos proprietários empobrecidos à condição de jagunços; no sofrimento
cotidiano dos retirantes e no apelo destes à religião como tentativa de lidar com
53
Como nos estudos de Carlos NEWTON JÚNIOR, O pai, o exílio e o reino, e de Maria
Aparecida Lopes NOGUEIRA, O cabreiro tresmalhado.
54
Idelette Muzart Fonseca dos SANTOS, Em demanda da poética popular, p. 108.
55
Cf. Maria Aparecida Lopes NOGUEIRA, O cabreiro tresmalhado, especialmente o capítulo
Um reino imaginoso.
35
a permanente aflição e insegurança propiciadas devido à onipresença da
morte, que está sempre à espreita, podendo aparecer em qualquer lugar ou a
qualquer instante; em Uma mulher vestida de sol a morte pode ser considerada
como mais uma personagem, que emprega a linguagem da seca, da fome, dos
animais peçonhentos e, principalmente, da violência humana para revelar-se
no palco. nesta peça o autor apresenta sua intencionalidade religiosa; os
acontecimentos e ações não são justificados simplesmente pela conjuntura
sócio-econômica, o que permitiria explicar uma personagem como o beato
Cícero, reduzindo-lhe à ideologia, entendida como falsa consciência que
inverte a realidade, impedindo os sujeitos de compreendê-la e,
conseqüentemente, de modificá-la
56
; nem mesmo em termos estritamente
existenciais, do confronto trágico e da inevitável derrota do ser humano diante
de um mundo absurdo, onde todas as paixões e ões perdem o sentido, a
bondade e a razão sendo corroídas pela certeza da mortalidade
57
; para além
da constatação da injustiça social e da consciência existencial, embora
reconheça suas respectivas importâncias, em Uma mulher vestida de sol
encontra-se a idéia da fundamentação transcendente da vida humana,
sintetizada na referência bíblica que não apenas dá título, mas abre e encerra a
peça, e, principalmente, na cena final, em que o corpo de Rosa parece
amparado por Nossa Senhora; temos aqui, em germe, as concepções
religiosas que serão posteriormente desenvolvidas e explicitadas nas demais
peças do autor.
No entanto, para além da aridez que caracteriza o sertão em Uma
mulher vestida de sol, encontra-se no palco suassuniano o desejo de um
universo mágico, em muito devido à reinterpretação dos espetáculos
populares, como o circo, no Auto da Compadecida, o mamulengo, em A pena e
a lei e as apresentações de feira, na Farsa da boa preguiça, onde também se
deve ressaltar o elogio ao poeta popular. Assim, a natureza hostil presente em
Uma mulher vestida de sol sede lugar a uma realidade transfigurada, em que a
56
Sobre a concepção de ideologia como inversão do real, cf. Paul RICOEUR, L’ideologie et
l’utopie, capítulo 2, Marx: La critique de la philosophie du droit de Hegel et les Manuscrits de
1844.
57
A discussão sobre o absurdo da existência e o esforço do ser humano para legitimar sua
vida apesar do absurdo, é recorrente na obra de Albert Camus, ficcional e ensaística. Aqui,
referimo-nos especificamente aos ensaios reunidos em Le mythe de Sisyphe.
36
própria vida humana pode ser compreendida como uma tentativa imperfeita de
representar a si mesmo. Os infortúnios sociais e existenciais nos quais as
personagens estão envolvidas não se restringem ao palco, mas pretendem
ampliar-se e abranger a humanidade, sendo esta representada pela
comunidade formada por atores, autor e espectadores, o que se torna evidente
nos momentos em que uma personagem que representa o autor em cena se
dirige ao público, caso do Palhaço do Auto da Compadecida e dos diálogos
entre Cheiroso, o dono do mamulengo, e sua companheira Cheirosa no início
dos atos de A pena e a lei. A respeito da representação da vida por meio da
arte lemos em um de seus artigos:
O Circo é, portanto, uma das imagens mais completas da estranha
representação da vida, do estranho destino do homem sobre a terra. O
Dono-do-Circo é Deus. A arena, com seus cenários de madeira, cola e
papel pintado, é o palco do mundo, e ali desfilam os rebanhos de
cavalos e outros bichos, entre os quais ressalta o cortejo do rebanho
humano os reis, atores trágicos, dançarinas, mágicos, palhaços e
saltimbancos que somos nós
58
.
Pretende-se, portanto, no circo, e também no teatro, representar um
mundo em pequena escala, pleno de significado, que lhe é dado pelo autor;
este se constitui de certa forma em um Deus menor, um demiurgo. Conforme a
concepção cristã em que Suassuna se fundamenta, a significação do mundo é
clara e perfeitamente conhecida para Deus, mas o mesmo dificilmente poderia
ser dito em relação ao conhecimento que o autor humano tem de sua própria
obra. Mas, no tocante a esta homologia pretendida entre a obra de arte e o
mundo e entre Deus e o artista, pode se afirmar que o autor deve se
representar como se tivesse pleno conhecimento de seu pequeno mundo,
característica que acreditamos encontrar no teatro suassuniano. Sobre a
maneira como esta concepção aparece em sua própria obra, afirma Suassuna:
58
Ariano SUASSUNA, O teatro, o circo e eu. In: Almanaque armorial, p. 209-210.
37
Já declarei várias vezes que sou um Palhaço e Dono-de-Circo frustrado.
Meu trabalho de escritor, de professor, de falso profeta fraco e
pecaminoso, de cangaceiro sem coragem, de organizador de
espetáculos armoriais de música e de dança, de cavaleiro sem cavalo e
de criador de cabras sem terra, não passa da tentativa de organizão
de um vasto Circo. [...] esse espetáculo meio circense e desarrumado
ao qual se dedicam minha vida e minha imaginação meio extraviadas,
tentando imprimir-lhe alguma ordem e beleza, para colocá-lo como um
espelho, diante do Circo do Mundo
59
.
O dramaturgo pretende representar um pequeno Deus, capaz de
estabelecer ordem e significado a um mundo que, em princípio, não o possui.
O espetáculo realizado pelo autor deve ser como um espelho, e refletir o “Circo
do Mundo”. Neste circo-mundo sertanejo, a representação teatral pretende
colocar diante do espectador, e mesmo incluí-lo, não somente em uma
cosmologia, mas, principalmente, em uma antropologia do sertanejo.
Cosmologia e antropologia fundamentadas em uma concepção de mundo na
qual se encontram uma recepção e uma interpretação criativa do cristianismo;
no teatro suassuniano, o mundo é o palco em que o ser humano, errante,
procura, sem encontrar, amparo e sentido em sua vida, esforça-se para fugir ao
absurdo que pode a qualquer instante esmagá-lo, devido à violência e à morte.
Amparo e sentido que se encontram na abertura para o transcendente, que
muitas vezes se manifesta somente após a morte, quando o ser humano se
diante da divindade,
60
como no Auto da Compadecida e em A pena e a lei, ou
ainda, permanecendo como interrogação e expectativa, em O santo e a porca e
O casamento suspeitoso.
A dramaturgia suassuniana, ao eleger como paradigma de sua
elaboração artística, e mesmo de sua cosmologia, a arte popular nordestina,
propicia uma revalorização e recuperação da tradição popular. Ao colocar em
cena sua representação dos pícaros, dos “amarelinhos”, estes permitem
explicitar sua compreensão do povo sertanejo, mas também a condição de
alienação em que o ser humano se encontra em relação ao transcendente.
59
Ariano SUASSUNA, O teatro, o circo e eu. In: Almanaque armorial, p. 210.
60
Quanto a este aspecto, a exceção encontra-se na Farsa da boa preguiça, em que as
personagens divinas (e demoníacas) intervêm ao longo de toda a peça.
38
1.2.2 Os pícaros de Suassuna: uma representação do sertanejo
Os pícaros no teatro suassuniano estão entre as personagens que mais
elementos oferecem para a discussão das concepções antropológicas do autor,
atendendo ao duplo propósito que estabelecemos neste momento:
compreender a maneira como Suassuna, por meio dessas personagens,
recupera e valoriza em sua dramaturgia a imagem do sertanejo, resgatando-a
positivamente; buscar nos pícaros uma representação da própria condição
humana, em seus esforços por melhores condições, materiais e existenciais,
de vida, mas, no entanto, permanecendo alheios à dimensão transcendente, ao
menos até o momento em que esta se manifesta.
Colocamo-nos diante do pícaro, ou pícaro-malandro conforme a
expressão empregada por Idelette Santos
61
; João Grilo no Auto da
Compadecida e Cancão de Fogo em O casamento suspeitoso, personagens
provenientes dos folhetos da literatura popular; desenraizados, valem-se da
astúcia para viver em um ambiente hostil; subversivos, enganam e humilham
os poderosos:
Ao transportar essas personagens do folheto para suas peças,
Suassuna transforma alguns aspectos do tipo e privilegia outros. A
personagem caracteriza-se, em primeiro lugar, como um ser errante
cujas andanças iniciam-se após uma ruptura prematura da estrutura
familiar morte do pai e da mãe, separação do irmão , que nunca será
substituída ou reconstruída. O herói está só no mundo. Se tem um
amigo ou um cúmplice, esta associação não significa dependência: é
objetiva, prática e limitada. Seus contínuos deslocamentos espaciais
permitem a passagem de um episódio para o outro, sem ruptura. A
construção da maioria das peças de Suassuna retoma esse modo de
criação, suíte linear de episódios distintos, articulados em torno da
presença de uma ou várias personagens. Evidente no que se refere ao
entremez, essa construção é dissimulada pela reescritura (e,
freqüentemente, pela total reelaboração) da peça, graças a recursos
como a interpenetração das narrativas, no Auto da Compadecida, por
exemplo, ou à unidade introduzida pela perspectiva moralizadora
62
.
61
Cf. Idelette Muzart Fonseca dos SANTOS, Em demanda da poética popular, p. 251.
62
IBID, p. 252.
39
Por vezes a personalidade do herói se desdobra, nas duplas formadas
por João Grilo e Chicó, Cancão e Gaspar; “o esperto que sobrevive graças a
sua inteligência e vivacidade, por um lado e, por outro, o herdeiro da sabedoria
popular que se expressa em provérbios e adivinhações”
63
. A esse respeito,
Suassuna esclarece que João Grilo e Chicó têm sua origem em Mateus e
Bastião do Bumba-meu-boi e nas duplas de palhaços do circo, assim como
seria possível aproximá-los em termos de linhagem literária e personalidade,
e não de grandeza a Dom Quixote e Sancho, porque o mundo cervantino
também receberia a marca do romanceiro hispânico:
Mas, refletindo sobre a dupla cervantina, vi que Dom Quixote é um
sonhador, como Chicó (mentiroso lírico, alucinado pelo sol do sertão), e
que Sancho Pança é um pícaro, como João Grilo. Estas são as
aproximações que poderíamos fazer entre os quatro tipos. A diferença
entre eles seria que, no Dom Quixote, o corajoso é o Cavaleiro
sonhador, enquanto que, no Auto da Compadecida, acontece o
contrário: João Grilo, o pícaro, é que tem arrancos quixotescos de
coragem e Chicó, o mentiroso sonhador e lírico, é que tem a covardia,
tocada de bom senso, de Sancho
64
.
Personagens que apresentam uma conceão de mundo utópica, um
desejo profundo de transformação da realidade, mas também um pragmatismo
na resolução dos problemas, características que buscam conciliar a atenção
para as necessidades materiais, para o agora, mas deixam em aberto o porvir
e a esperança. Estas se unem na não aceitação do presente e da ordem
estabelecida, seja ao procurar uma solução prática para a questão imediata da
subsistência, seja ao imaginarem um mundo isento de privações
65
.
Ampliando a imagem, em certo sentido os pícaros suassunianos podem
ser considerados como uma representação de determinados aspectos do povo
sertanejo. O pícaro caracteriza-se por sua constante luta contra as dificuldades
impostas por uma terra inóspita, agravadas por viver em uma sociedade
63
Idelette Muzart Fonseca dos SANTOS, Em demanda da poética popular, p. 252.
64
Ariano SUASSUNA, A Compadecida e romanceiro nordestino. In: Almanaque armorial, p.
182-183.
65
Essa utopia encontra, no folheto popular, uma expressão eminentemente social, quando o
herói pretende estabelecer uma nova sociedade, isenta de conflitos e de sofrimentos, liberta,
enfim, do mal. Cf. Jerusa Pires FERREIRA, Fausto no horizonte, p. 56-59.
40
desigual e injusta
66
; encontra-se diante da necessidade, a cada estação de
seca, de retirar-se e, com isso, ver desarranjar-se definitivamente a família,
precariamente mantida; um ponto central de sua luta para viver está no
relacionamento com aqueles que estão em situação social privilegiada,
principalmente os patrões
67
; todas essas dificuldades parecem superadas
quando se realiza a reversão, por meio da picaresca, das humilhações e
ofensas a que os simples são submetidos em seu cotidiano. Principalmente, se
representa com o pícaro a possibilidade da efetivação da utopia, que se
manifesta no desejo e na expectativa de transformação das condições de
existência, antes de tudo materiais; essa preocupação, que se encontra em
muitas das artimanhas de João Grilo e de Cancão de Fogo, mas que também
pode encontrar-se expressa poeticamente, como nos devaneios de Chicó, ou
mesmo diretamente representada na própria arte popular, quando esta
consegue, ainda que muitas vezes tenha que se opor a condições
precaríssimas, imprimir alguma beleza e muito de sonho à crua realidade;
capacidade descrita por Suassuna da seguinte maneira:
O povo do Nordeste sabe, com uma arte estranha e poderosa, criar a
beleza a partir da miséria, e consegue manter sua grandeza no meio da
maior degradação. As moças vestem-se de dianas, princesas, damas e
rainhas; os homens, de reis mouros, cruzados, príncipes e cavaleiros,
com máscaras de couro e coroas de lata, espadas de madeira e
chapéus de formas estranhas, cravejados de pedrarias, que parecem
templos asiáticos. São os pobres e belos sonhos do povo que se veste
assim para sonhar com o poder e a glória, cujas portas, na vida, lhe são
trancadas
68
.
66
“A errância do malandro, este incessante movimento, é também uma busca permanente de
meios de existência, de sobrevivência, em condições econômicas difíceis. Ganhar a vida torna-
se equivalente a „ter que se mexer‟, ou seja, deixar sua casa em busca de trabalho. O pão
cotidiano ganha-se „na luta‟”. Idelette Muzart Fonseca dos SANTOS, Em demanda da poética
popular, p. 253-254.
67
Em sua análise da picaresca, Idelette Santos, apoiando-se na interpretação dos folhetos
populares realizada por Roberto DaMatta, chama a atenção para a denúncia que o folheto traz
da violência existente nas relações de trabalho, e que o antropólogo identificara em Pedro
Malazarte, o protótipo dos pícaros brasileiros, o mito do trabalhador brasileiro, a saga daquele
que parte sempre em demanda do que não possui”. IBID, p. 254.
68
Ariano SUASSUNA, Cinema e sertão. In: Almanaque armorial, p. 193-194. Num certo sentido
corroborando essa afirmação de Suassuna, lemos em Stanislávski: quem diga que
camponeses e operários poderão apreciar peças versando sobre a vida que eles levam.
Puro engano. Geralmente, essa gente prefere ver coisas „mais bonitas‟ que as que se passam
no meio estreito em que vivem. Apud Sábato MAGALDI, Iniciação ao teatro, p. 76.
41
Neste fragmento estão presentes algumas idéias importantes, e de certo
modo correlatas àquelas expostas sobre a personagem picaresca. De início,
encontramos a arte popular compreendida como vetor da utopia, ao “criar a
beleza a partir da miséria”; elemento formador de identidade, a arte permite ao
povo “manter sua grandeza no meio da maior degradação”. A arte permite
inverter simbolicamente as relações sociais, quando as classes subalternas
representam uma nobreza que, se há muito perdeu sua importância, ou mesmo
deixou de existir, continua, no entanto, presente ao imaginário como expressão
da excelência humana. Especialmente importante no texto de Suassuna é a
descrição das vestes e adereços, feitos com materiais encontrados no
cotidiano; surpreendemo-nos diante da bricolage, da lógica selvagem
69
,
empregada pelos “primitivos” para reelaborar o mundo a partir dos elementos
que se m a disposição; trata-se, entendemos, da mesma lógica empregada
na representação da picaresca. Tenhamos em mente que o pícaro é, antes de
tudo, alguém que, tendo perdido suas referências, estando desenraizado,
precisa organizar sua vida e, para tanto, conta apenas com aquilo que vai
encontrando em seu caminho. O fragmento se encerra reafirmando a
importância da dimensão utópica da arte popular, que permite ao povo
apropriar-se simbolicamente daquilo que lhe é negado na vida.
69
Claude Lévi-Strauss, em La science du concret, p. 3-47, primeiro capítulo de La pensée
sauvage, supera o entendimento tradicional (e preconceituoso) que via no pensamento
selvagem um estágio imperfeito de conhecimento a ser superado pela racionalidade científica
moderna, e passa a considerá-los formas distintas e igualmente legítimas de organização
intelectual do mundo. Especialmente interessante para nossa discussão é a seguinte
passagem: O bricoleur está apto a executar um grande número de trabalhos diversificados,
mas, diferentemente do engenheiro, o subordina cada um deles à obtenção de matérias-
primas e instrumentos, concebidos e procurados em razão de seu projeto: seu universo
instrumental é fechado, e a regra do seu jogo é a de sempre se arranjar com „os meios à
disposição‟, diga-se, uma reunião sempre finita de instrumentos e materiais, heteróclitos e
excedentes, porque a composição dessa reunião não está relacionada ao projeto do momento,
nem doutra parte com algum projeto particular, mas é o resultado contingente de todas as
ocasiões que são apresentadas para renovar ou enriquecer o estoque, ou de conservar com os
resíduos de construções e de destruições anteriores. A reunião dos meios do bricoleur não é,
portanto, definível por um projeto, [...] ela se define somente por sua instrumentalidade, ou, dito
de outra maneira e para empregar a linguagem mesma do bricoleur, porque os elementos são
recolhidos ou conservados em virtude do princípio que „isto pode sempre servir‟”. Claude LÉVI-
STRAUSS, La pensée sauvage, p. 27 (tradução nossa).
42
1.2.3 Os pícaros de Suassuna: uma ética dos afetos
Interessa, sobretudo, atentar para a dimensão ética da personagem
picaresca. A este respeito, Idelette Santos considera, a nossa ver
corretamente, que, para a literatura popular, assim como para Suassuna, as
relações sócio-econômicas encontram-se sempre submetidas à dimensão
moral (cujo fundamento para o autor, é religioso). A atitude da personagem é
justificada pela negatividade do trabalho: este não traz satisfação, alegria ou
felicidade, nem ao menos a perspectiva de progresso material, mas é, na
maioria das vezes, instrumento de exploração e opressão
70
. A conquista da
prosperidade depende não do trabalho, mas das relações sociais, da proteção
de um “padrinho”
71
. A honestidade está condicionada ao respeito mútuo, e,
assim sendo, enganar um mau patrão torna-se praticamente um dever, como,
por exemplo, na relação de João Grilo com o padeiro no Auto da Compadecida.
Seguindo Roberto DaMatta, a intérprete chama a atenção para a
caracterização das personagens subalternas em razão de suas capacidades,
como a esperteza ou a honestidade, ou seja, de algo que não lhe pode ser
tirado ou roubado, enquanto o patrão ou o rico é caracterizado por suas posses
materiais. Por fim, considera que a reescritura das narrativas picarescas por
Suassuna em perspectiva moralizante é coerente com a concepção de mundo
encontrada na literatura popular, onde, como dito inicialmente, a ordem sócio-
econômica tende a ser explicada e submetida à concepção moral
72
.
Portanto, podemos dizer que a concepção moral presente na narrativa
picaresca, reescrita por Suassuna, privilegia o afeto, em detrimento da
impessoalidade e da objetividade dos acordos, aproximando-se, dessa
maneira, da cordialidade que Sergio Buarque de Holanda
73
considerava a
noção fundamental da ética brasileira, sendo também, segundo o historiador, o
70
Na Farsa da boa preguiça, esta concepção é levada ao seu extremo, quando o poeta
Joaquim Simão denuncia em seus versos o trabalho como ocasião de morte.
71
Baste como exemplo o apadrinhamento de Joaquim Simão por São Pedro na Farsa da boa
preguiça.
72
Idelette Muzart Fonseca dos SANTOS, Em demanda da poética popular, p. 254.
73
A esse respeito ver o clássico ensaio, avant la lettre, sobre a formação da mentalidade
nacional: Sergio Buarque de HOLANDA, Raízes do Brasil, especialmente o capítulo 5, O
homem cordial. Embora não possamos, aqui, analisar o texto de Buarque de Holanda em
comparação às idéias de Suassuna, saliente-se a radical oposição entre os dois autores.
43
principal empecilho ao desenvolvimento de uma racionalidade burocrática, em
que não mais os afetos, mas a lei, a norma estabelecida, passa a constituir o
elemento determinante das relações sociais. Na leitura de Idelette Santos, para
Suassuna essa ética dos afetos tem seu paradigma na misericórdia divina: é a
proteção e a benevolência de Deus para com a humanidade do mais forte
para com o mais fraco o modelo proposto para as relações humanas.
Contrariamente, o formalismo é identificado com o mal; por exemplo, quando o
patrão “faz prevalecer as obrigações limitadas e impessoais do contrato,
desvalorizando assim a relação pessoal, em benefício da legalidade e da
universalidade”
74
. No Auto da Compadecida, o apego às formas exteriores é
identificado como uma das características do diabo
75
.
O malandro nunca é condenado por Suassuna ganha uma segunda
oportunidade no Auto da Compadecida, quando a maioria das
personagens vão ao Purgatório. Sua vida e seus atos são explicados e
justificados pela necessidade de sobreviver. Este modelo de
sobrevincia não o leva jamais a integrar-se à estrutura social, não
procura poder nem prestígio; diferencia-se, neste ponto também, do
herói dos contos maravilhosos: não recompensa nem
reconhecimento final. Se tal ou tal folheto encenou uma recompensa do
pícaro-malandro por exemplo, Cancão tornou-se rico, conselheiro e
juiz foi uma simples peripécia, e o uma transformação do caráter do
herói. O malandro permanece uma personagem intermediária e
ambígua, subversivo que não pretende substituir uma dominação por
outra; tenta, como Macunaíma, relativizar as leis e as morais que
perpetuam a injustiça. Suassuna propõe-lhe uma outra via para escapar
ao jugo do homem: a aceitação da lei divina
76
.
A ética do afeto permite a Suassuna salvar estética e religiosamente a
figura do pícaro, seja ao conceder a João Grilo uma nova oportunidade na vida,
seja quando Cancão de Fogo, juntamente com as demais personagens de O
casamento suspeitoso, ao final da peça reconhecem seus erros e pedem a
misericórdia divina
77
. A não conciliação da personagem picaresca com a
estrutura social vigente, sua recusa a “substituir uma dominação por outra” traz
consigo, implicitamente, um dos pressupostos do autor: a incompatibilidade do
74
Idelette Muzart Fonseca dos SANTOS, Em demanda da poética popular, p. 255.
75
Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 145.
76
Idelette Muzart Fonseca dos SANTOS, Em demanda da poética popular, p. 255.
77
Ariano SUASSUNA, O casamento suspeitoso, p. 124-125.
44
ser humano com a própria existência, e a expectativa da plena realização de
sua vida mediante o encontro com a divindade.
1.4 A dramatização de uma estética e de uma ética
É possível afirmar, considerando o exposto até o momento, que, embora
Suassuna preserve o pressuposto da autonomia da arte, o dramaturgo entende
que o artista, em sua práxis criativa, reelabora simbolicamente as inquietações
que o afligem; nesse sentido, a dramaturgia de Suassuna pretende dentro
dos limites que o palco oferece envolver o público em uma representação da
vida humana em busca de seu significado; contudo, esse significado somente
se realiza, na concepção do autor, considerando a relação que o ser humano
estabelece com o transcendente. Por isso, se o sertão levado à cena por
Suassuna representa, em sua aridez e nas dificuldades àquela terra impostas,
o exílio e a errância que marcam a aventura humana, permanentemente
ameaçada pelo absurdo que, a qualquer momento, pode se manifestar e
arrasar a precária significação que se vai tentando construir e preservar, o
sertão pode também, devido ao desejo humano que encontra na arte sua
realização ideal , revelar-se mais belo e mais pleno, por meio das
reinterpretações dos espetáculos populares realizadas no teatro suassuniano;
é o elemento mágico propiciado por esses espetáculos que permitem a
Suassuna explicitar o desejo de uma existência que não mais esteja sujeita ao
absurdo introduzido pela violência e pela morte. De modo análogo, ao
representar a humanidade sertaneja, e identificamos na personagem
picaresca o paradigma desse modo de ser ; o pícaro pretende vencer as
dificuldades que a vida ime; dificuldades que, embora sejam em princípio de
razão material, servindo, portanto, a malandragem e a sabedoria popular do
pícaro para denunciar e criticar as injustiças e os abusos daqueles que detêm
alguma forma de poder, suas características permitem também explicitar a
situação absurda em que a existência humana parece se encontrar, até o
momento em que se realiza o encontro definitivo com a divindade, e o pícaro,
que havia sido mantido a parte da ordem social e existencial vigente, injusta e
45
absurda, tem no reconhecimento e na aceitação da lei divina a expectativa de
uma nova vida, expectativa que, segundo a posição adotada pelo autor, é
partilhada por todos os seres humanos.
Ao nos referirmos à dramatização de uma estética e de uma ética,
acreditamos que, na dramaturgia suassuniana, a representação teatral explicita
uma compreensão do mundo e do ser humano, a qual se encontra sintetizada
na reinterpretação dos espetáculos populares e de seus temas (modelo de
representação), no sertão (modelo do mundo) e na personagem picaresca
(modelo da conduta humana). No entanto, esses modelos correlatos somente
se articulam e alcançam plenamente seu sentido em referência ao modelo
religioso proposto pelo autor. Daí a importância, a nosso ver, da análise que
empreendemos no segundo capítulo desta dissertação, das categorias de
tragédia e comédia presentes no teatro de Suassuna, para melhor
compreender os caminhos que possibilitam suas representações do imaginário
e das personagens religiosas.
46
CAPÍTULO II TRAGÉDIA, COMÉDIA E RELIGIÃO
Dedicamos este capítulo à análise das relações entre tragédia, comédia
e religião existentes no teatro suassuniano. No entanto, é necessário
esclarecer que não se trata, no presente caso, de discutir a tragédia e a
comédia enquanto gêneros teatrais, mas considerá-las como categorias
estéticas que permitem ao dramaturgo elaborar, de maneiras distintas, as
representações religiosas em seu teatro. Pretendemos demonstrar que a
categoria trágica, na dramaturgia de Suassuna, permite por em questão a
incompatibilidade entre o desejo humano e o absurdo de uma existência que
parece condenada pela inevitabilidade da morte. Momento em que a
religiosidade encontra-se implícita, sem ainda se revelar plenamente; em
seguida, demonstrar como a categoria da comédia relacionada ao elemento
lúdico e a uma concepção estética e existencial barroca permite ao autor
explicitar o imaginário religioso, devido à maior empatia existente entre a
representação mica e o espectador, oferecendo assim a possibilidade de
uma aproximação e, até mesmo, de uma intimidade que o autor considera
existir entre o povo sertanejo e a divindade. Dessa maneira, por meio das
representações das personagens religiosas que analisaremos no terceiro
capítulo, torna-se para a dramaturgia suassuniana possível realizar a
aproximação entre o humano e o divino, propiciando a ressignificação e a
apropriação de um sentido para a vida humana.
2.1 A tragédia no palco suassuniano
A discussão da tragédia como categoria estética no teatro suassuniano
deve, necessariamente, considerar a diferenciação entre a tragédia como ritual
mítico, político e religioso, característico da sociedade ateniense do século IV
a.C., e a tragédia como categoria estética, que subsiste independentemente
daquela estrutura social e política que propiciou a tragédia grega. Uma vez que
essa estrutura desapareceu, e que sua reconstrução somente é possível,
parcialmente, como empreendimento teórico de pesquisadores, a tragédia,
47
enquanto ritual cívico-religioso tornou-se algo forçosamente irrecuperável. No
entanto, se o interesse pela tragédia grega permaneceu, deve-se não apenas
por esta ser documento de uma manifestação artística de matriz religiosa e
política irrecuperável, mas sim à capacidade que a tragédia possui de colocar o
ser humano diante de sua radical e constitutiva fragilidade frente a um mundo
que permanece indiferente ao seu sofrimento
78
. Faz-se necessário considerar o
trágico, portanto, naquilo que ele diz ao humano e do humano, em seu
inevitável confronto com o que Albert Camus designou “o absurdo da
existência”.
2.1.1 Cristianismo e sentimento trágico: Unamuno
Buscamos o primeiro indício de uma presença trágica no teatro
suassuniano no confronto com esse absurdo da existência que acreditamos se
encontrar em suas peças. Entretanto, o encaminhamento dado à condição
trágica do ser humano é, em Suassuna, mediado pela presença do
cristianismo, e, especificamente, da interpretação da tradição religiosa católica
realizada por sua leitura do catolicismo popular. Tragédia e cristianismo que se
encontram em Miguel de Unamuno, em sua mais conhecida obra, o ensaio Del
sentimiento trágico de la vida, cuja proximidade com a visão de mundo de
Suassuna foi pela primeira vez assinalada por Carlos Newton Júnior
79
. O
sentimento trágico da vida radica na absoluta concretude do humano, no
homem de carne e osso, naquele que vive e sofre
80
. Esse sentimento, afirma
Unamuno, não apenas se encontra em indivíduos, mas pode ser percebido
também em povos inteiros. Não surge da reflexão, não é um produto do
pensamento, mas o determina. Pode advir de uma enfermidade, ser, portanto,
uma reação acidental às dificuldades que a vida ime; mas, outras vezes, é
constitutivo do humano; para o poeta, parece ser a enfermidade intrínseca do
ser humano, ontologicamente enfermo devido à consciência de si, ao saber-se
78
Cf. Rachel GAZOLLA, Para não ler ingenuamente uma tragédia grega, em que nos
apoiamos nesta passagem. Ver também a análise que Suassuna faz da tragédia como
categoria da Beleza em Iniciação à Estética, capítulo 12, O trágico.
79
Cf. Carlos NEWTON JÚNIOR, O pai, o exílio, o reino.
80
Cf. Miguel de UNAMUNO, Del sentimiento trágico de la vida, capítulo 1, El hombre de carne
y hueso.
48
ser e saber-se perecer
81
. O cristianismo, interpretado por Unamuno, surge
como resposta à fome de imortalidade que determina o humano
82
; e, o que
entendemos ser fundamental em nossa interpretação da recepção da
religiosidade popular por Suassuna: o cristianismo fundamenta-se na crença da
ressurreição e imortalidade de Cristo e do homem em Cristo:
E em torno ao dogma, de experiência íntima paulina, da ressurreição e
imortalidade de Cristo, garantia da ressurreição e imortalidade de cada
crente, se formou a cristologia toda. O Deus homem, o Verbo
encarnado, foi para que o homem, ao seu modo, se fizesse Deus, isto é,
imortal. E o Deus cristão, o Pai de Cristo, um Deus necessariamente
antropomórfico, é o que, como diz o Catecismo da doutrina cristã que
na escola nos fizeram aprender de memória, criou o mundo para o
homem, para cada homem. E o fim da redenção foi, apesar das
aparências por desvio ético do dogma propriamente religioso, salvar-
nos da morte mais que do pecado, ou deste enquanto implica morte. E
Cristo morreu, ou, melhor, ressuscitou, por mim, por cada um de nós. E
estabeleceu-se uma certa solidariedade entre Deus e sua criatura. Dizia
Malebranche que o primeiro homem caiu para que Cristo nos redimisse,
mais que nos redimiu porque aquele havia caído
83
.
Segundo Unamuno, o desenvolvimento da na imortalidade foi levado
a efeito por Atanásio “um homem de poucas letras, porém de muita fé, e,
sobretudo, da popular, cheio de fome de imortalidade”. Atanásio opôs-se ao
arianismo, que via em Cristo um mestre de moral, o homem que por sua
esmerada perfeição mostrava que o humano poderia, por si, elevar-se à
divindade. É devido à divindade do Cristo que o ser humano pode divinizar-se,
acreditava Atanásio, pois o Cristo não poderia divinizar-nos se não fosse antes,
essencialmente e não por participação, Deus. Assim, enfatiza Unamuno, o
Cristo de Atanásio ou de Nicéia, “que é o Cristo católico, não é o cosmológico,
nem sequer em rigor o ético; é o eternizador, o deificador, o religioso”
84
.
O cristianismo oferece ao ser humano, na perspectiva adotada pelo
poeta basco, uma possibilidade de saciar a fome de imortalidade que o
constitui, por meio da mediação dialética entre o humano e o divino, realizada
81
Cf. Miguel de UNAMUNO, Del sentimiento trágico de la vida, p. 37.
82
Cf. IBID, capítulo 3, El hambre de inmortalidad.
83
IBID, p. 81 (tradução nossa).
84
IBID, p. 81-82.
49
por Cristo, que é ao mesmo tempo divino e humano. Podemos antecipar que, o
que desenvolveremos a partir daqui, pretende, em grande parte, demonstrar a
presença dessa fome de imortalidade na recepção e interpretação do
catolicismo popular e das mediações que este estabelece com a divindade,
conforme a interpretação realizada na dramaturgia suassuniana.
Na representação do catolicismo popular empreendida no teatro por
Suassuna essa dimensão trágica se explicita por meio da cisão encontrada no
próprio ser humano, representado como uma criatura permanentemente
dividida entre a precariedade das relações estabelecidas na vida presente, a
qual acaba sendo muitas vezes sentida pelas personagens como se esta fosse
a única vida, o que as leva a agir como se todo o sentido se encerrasse no
imediato, ao procurar, inconseqüentemente, apegar-se a seus desejos e
paixões, confundindo o relativo e mundano com o absoluto e divino; por outro
lado, temos, ora de maneira discreta, ora de modo explícito, a abertura para a
dimensão religiosa, mediante o chamamento que a divindade dirige às
personagens; no entanto, a maior parte do tempo essa divisão ontológica
permanece ignorada do próprio ser humano, que, às cegas, tateia em meio à
hostilidade e ao absurdo do mundo, deixando-se guiar pelo medo, que
terminaria o fosse, como veremos mais atentamente, pela graça divina
por levá-lo à destruição, entregue à violência e finalmente à morte.
2.1.2. A cisão ontológica
O pressuposto fundamental dessa condição trágica do ser humano na
dramaturgia suassuniana está, como antecipamos, na natureza cindida do ser
humano, que, ao mesmo tempo em que se dirige para o mais elevado, para o
divino, também participa do que há de mais baixo e mundano; é, portanto, essa
dualidade ontológica do ser humano que impõe o problema existencial e
religioso da sua salvação-perdição. Essa cisão é indicada, pelo próprio
dramaturgo, por exemplo, na abertura de A pena e a lei, ao explicar e justificar
as mudanças acontecidas na maneira como os atores devem representar no
decorrer dos três atos:
50
O primeiro ato de “A pena e a Leidenomina-se “A Inconveniência de
Ter Coragem”. Deve ser encenado como se se tratasse de uma
representação de mamulengos, com os atores caracterizados como
bonecos de teatro nordestino, com gestos mecanizados e rápidos. No
segundo ato que se chama O Caso do Novilho Furtado” os atores
representam num meio-termo entre boneco e gente, com
caracterização mais atenuada, mas ainda com alguma coisa de trôpego
e grosseiro, que sugira a incompetência, a ineficiência, o desgracioso
que, a despeito de sua condição espiritual, existe no homem. Somente
no terceiro ato é que os atores aparecem com rostos e gestos
teatralmente normais isto é, normais dentro da poética teatral para
indicar que então, com a morte, é que “nos transformamos em nós
mesmos”
85
.
Na Farsa da boa preguiça, completando aquilo que já havia sido
indicado na rubrica de A pena e a lei, é apresentado, na fala inicial de Manuel
Carpinteiro, um novo elemento que justifica a condição dual do ser humano:
Os homens nesse meio, sepultados
e ligados às Cobras pelo Mundo,
pela desordem do Pecado,
e ligados ao Lume, ao claro, ao solar,
por um Santo de carne, um Anjo de Fogo
e por aquele que é carne e fogo e se chamou Jesus!
Vai começar! Comecem! Luz!
86
2.1.3 A condição humana: o pecado
O que é importante, neste momento, salientar dessas duas passagens, é
a presença do pecado como elemento causador de desordem entre os
homens, “sepultados e ligados às Cobras pelo Mundo”; estando, portanto, a
imperfeição humana explicada por sua dimensão terrena, como se vê na
referência ao “Mundo”, na Farsa, e pela corporeidade, como se vê na rubrica
de A pena e a lei: onde a condição humana, estilizada por meio dos gestos dos
85
Ariano SUASSUNA, A pena e a lei, p. 29.
86
IDEM, Farsa da boa preguiça, p. 54-55.
51
atores, é considerada em processo de desenvolvimento, que somente se
realiza plenamente após a morte. Apesar da “condição espiritual [que] existe no
homem” o agir humano, sendo marcado pelo pecado, traz em si algo de
imperfeito, imperfeição que aparece com maior força no último termo
empregado pelo autor para indicá-la, “desgracioso”, ou seja, desprovido da
graça divina.
Não acreditamos, no entanto, e cremos que os elementos que surgirão
no decorrer do texto corroborem esta afirmação preliminar, que se possa
atribuir a Suassuna uma concepção demasiadamente “angélica” da condição
humana; entenda-se, uma compreeno absolutamente negativa da
corporeidade. O mundo e o corpóreo não são considerados maus em si
mesmos, mas devido ao pecado o mundo e a corporeidade passam a ser o
meio onde é possível o exercício da maldade.
Consideramos necessário, antes de prosseguirmos em nossa análise da
condição humana na perspectiva da dramaturgia suassuniana, explicitar a idéia
de pecado e suas implicações. Para tanto, é preciso considerar a reflexão de
Santo Agostinho sobre o problema do mal. A distância e a dessemelhança que
separam o ser humano de Deus que é a distância e a dessemelhança que
separam o finito e relativo daquilo que é infinito e absoluto, acentua-se após a
experiência do pecado identificado por Santo Agostinho como o orgulho e a
pretensão de auto-suficiência da criatura racional indo além da própria
diferença ontológica; o ser humano continua desejoso do bem (desejo que o
fez cair), mas, debilitado pelo pecado, torna-se incapaz de conhecer o bem que
deve buscar e de praticar o bem que deseja. No entanto, essa situação de
debilidade em que o ser humano se encontra não corresponde ao seu modo de
ser original, mas resulta de sua queda, da punição pelo primeiro pecado.
Atingido em sua inteligência perda da capacidade de compreender o bem e
em sua vontade incapacidade de realizá-lo por si mesmo o
aprofundamento da diferença entre o ser humano e Deus; o reestabelecimento
dessa relação exige a presença de uma mediação que permita à criatura o
reencontro com o Criador; nesse momento, é preciso salientar que a
semelhança entre o ser humano e Deus não se deve somente à razão e à
vontade, mas também à humildade; fazendo-se humilde, como Deus se fez por
52
meio da encarnação, torna-se possível ao ser humano reencontrar o caminho
para Deus. Por isso, para Santo Agostinho, Cristo é o único mediador entre
Deus e os homens, por sua origem divina que, em um ato de humildade e
compaixão, torna-se homem, abrindo caminho para o resgate da criatura
pecadora. Se fosse apenas homem, Cristo, ainda que um homem moralmente
extraordinário, não poderia exercer essa função mediadora, posto que a
distância entre Deus e qualquer criatura é uma distância infinita; se fosse
apenas Deus, mas não humano, também não poderia estabelecer essa
mediação, porque a divindade está além da capacidade de compreensão
humana. Dessa maneira, em resposta ao orgulho que provocou a queda do ser
humano, Deus oferece-lhe a humildade, motivada por seu amor à criatura. O
que não se reduz a um exemplo, pois se poderia alegar ser impossível para o
ser humano fazer-se humilde como Deus se fez, mas Deus também oferece ao
homem sua graça, para que este se torne capaz de imitar o exemplo de Cristo
e com isso passe a reconhecer sua condição miserável e limitada, admitindo a
necessidade de uma mediação que o conduza à beatitude, por uma nova via
de conhecimento, que não é mais exclusivamente da ordem da razão, o que
levou a criatura ao orgulho e à queda, mas da ordem da humildade,
fundamentada no exemplo e na graça de Cristo
87
.
Levando em conta a contribuição agostiniana, neste capítulo
priorizaremos a análise do ser humano em sua existência precária,
contaminado pelo pecado, e como o elemento cômico permite-lhe se abrir para
o transcendente, reservando para o próximo capítulo o estudo das mediações
entre o divino e o humano que permitem sua redenção. Afirmamos que a
condição humana, cindida entre o chamamento para o espiritual e o divino e o
rebaixamento atribuído ao mundano e ao corpóreo em conseqüência do
pecado, exige que resgatemos a categoria de exílio, que discutimos no início
deste trabalho. Se, naquele momento, o elio soava primeiramente como uma
categoria histórico-geográfica afastamento do lugar de origem,
distanciamento temporal, tentativa de recuperação por meio da memória do
tempo primordial perdido e mesmo sociológica o exílio exige, do exilado,
uma nova relação com o seu “paraíso perdido”: passagem da infância rural à
87
Cf. Joel GRACIOSO, A relação entre Deus e o mal segundo Santo Agostinho, p. 91-100.
53
atividade intelectual citadina, como Idelette Santos percebeu em sua leitura do
Movimento Armorial ali se apresentava também a sua possibilidade
metafísica, pois, como dizíamos, o exilado não apenas precisa encontrar um
lugar, mas encontrar-se desde esse lugar. Afirmamos que o exílio não se limita
à situação histórico-social do retirante nordestino, ou mesmo do artista, mas,
no teatro de Suassuna, o ser humano dividido entre o mundano e o divino é
representado como uma criatura ontologicamente exilada. Exílio que se
encontra implícito na passagem que mencionamos de A pena e a lei, que
termina com a indicação de que somente com a morte “nos transformamos em
nós mesmos”, e que é enfrentado abertamente pelo autor em sua
caracterização da personagem Euricão Árabe, de O santo e a porca; a partir de
um árabe, ou seja, de alguém que no sertão nordestino é considerado sempre
um estrangeiro, um desenraizado, alguém que nunca se integra plenamente à
sociedade local
88
, Suassuna nos coloca a questão da incompatibilidade que
parece existir entre o ser humano e a própria vida, e que se exprime por meio
da categoria de traição:
O santo e a porca apresenta a traição que a vida, de uma forma ou de
outra, termina fazendo a todos nós. A vida é traição, uma traição
contínua. Traição nossa a Deus e aos seres que mais amamos. Traição
dos acontecimentos a nós, dentro do absurdo de nossa condição, pois,
de um ponto de vista meramente humano, a morte não só não tem
sentido como retira toda e qualquer possibilidade de sentido à vida
89
.
A vida é traição. “Traição nossa a Deus e aos seres que mais amamos”,
o que implica dizer traição do ser humano a si mesmo, isso, de um ponto de
vista, digamos, subjetivo; objetivamente, a vida se apresenta como “Traição
dos acontecimentos a nós”; os acontecimentos escapam absolutamente ao
controle humano e às suas contínuas tentativas de manipulação dos mesmos.
Em O santo e a porca o suposto controle que a riqueza parecia oferecer ao rico
e avaro Euricão mostra-se completamente ilusório, quando este, após
todos os esforços para recuperar a fortuna acumulada ao longo de anos,
88
Cf. Ariano SUASSUNA, Nota do autor. In: O santo e a porca, p. 24.
89
IBID, p. 23.
54
cuidadosamente protegida em uma porca de madeira, afastada daqueles a
quem considerava potenciais pedintes e ladrões todos que dele se
aproximavam descobre que seu dinheiro não tem valor, tendo sido
muito tempo recolhido pelo governo; chega à conclusão de que nada tem valor,
de que não há qualquer segurança ou garantia, seja no amor ou na fortuna, e
que aquilo que possuímos e amamos pode nos ser retirado de um golpe, a
qualquer instante; Euricão toma consciência do absurdo que caracteriza a vida;
absurdo que tem sua máxima expressão na morte e da condição de
escravos em que se encontram os homens, cegados por suas paixões:
Estão ouvindo? É a voz da sabedoria, da justiça popular. Tomem seus
destinos, eu quero ficar só. Aqui hei de ficar atomar uma decisão.
Mas agora sei novamente que posso morrer, estou novamente colocado
diante da morte e de todos os absurdos, nesta terra a que cheguei
como estrangeiro e como estrangeiro vou deixar. Mas minha condição
não é melhor nem pior do que a de vocês. Se isso aconteceu comigo,
pode acontecer com qualquer um, e se aconteceu uma vez pode
acontecer a qualquer instante. Um golpe do acaso abriu meus olhos,
vocês continuam cegos! Agora vão, quero ficar só!
90
O exílio, a condição de estrangeiro, não é mais a do imigrante oriental
em uma terra desconhecida e desfavorável; é o estranhamento que permeia a
vida de cada ser humano. A confiança que Euricão tinha no poder da fortuna
revelou-se falsa; a confiança que seus interlocutores têm no amor romântico
parece-lhe não menos enganosa; hoje, acreditam-se felizes, mas Euricão,
nisso lembrando Brás Cubas, vê em toda felicidade presente “uma gota da
baba de Caim”
91
: nada mais é o ser humano que um enorme rebanho de
cegos, mantidos escravos por seus desejos e paixões, que serão
inevitavelmente destroçados; por isso, Euricão não se considera em melhor ou
pior condição que qualquer outro; ele simplesmente compreendeu que vivemos
em engano, e que todas as expectativas humanas são desprovidas de sentido
devido ao absurdo, sendo que os desenganos e revezes que sofremos são
90
Ariano SUASSUNA, O santo e a porca, p. 152.
91
MACHADO DE ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 23.
55
ridículos e insignificantes quando comparados com o radical absurdo que a
morte introduz na realidade.
A Euricão, sentindo-se abandonado por seus familiares e pela fortuna
representada na porca, esta última, a única em que a infeliz personagem
sempre havia confiado, restam o isolamento e a reflexão, ali dirigida a Santo
Antônio, sobre o significado possível da vida:
Bem, e agora começa a pergunta. Que sentido tem toda essa
conjuração que se abate sobre nós? Será que tudo isso tem sentido?
Que quer dizer isso Santo Antônio? Seque só votem a resposta?
Que diabo quer dizer tudo isso, Santo Antônio?
92
Embora a condição absurda da existência humana permaneça ignorada
pela maioria dos homens, seria equívoco e contraditório em relação ao que
temos exposto acreditar que se possa fazer, a partir da tomada de consciência
de Euricão em O santo e a porca, uma leitura exclusivamente psicológica,
subjetivista e mesmo existencialista dessa questão no teatro de Suassuna; o
absurdo da vida atinge não somente a cada ser humano individualmente, mas
à comunidade humana. A tragédia humana é percebida e compreendida, na
dramaturgia suassuniana, desde o ponto de vista da representação da cultura
popular realizada pelo autor, e, portanto, da dimensão comunitária da
experiência do sofrimento.
A experiência do sofrimento e o absurdo provocado pela morte, na
representação suassuniana da religiosidade popular do sertão nordestino,
parecem inseparáveis da vivência coletiva do povo. Dessa maneira, o orgulho e
a pretensão de auto-suficiência, que, como visto em nossa análise, constituem
o núcleo da noção de pecado, encontram-se, no teatro suassuniano, traduzidos
em elementos presentes no cotidiano sertanejo, e, porque não dizer, do ser
humano em geral tais como a opressão que os poderosos impõem aos mais
pobres, ou ainda as disputas amorosas, que podem ser muitas vezes
92
Ariano SUASSUNA, O santo e a porca, p. 153.
56
frustrantes
93
, situações que exemplificam a confusão do bem supremo com
algum bem particular, denunciada pelo autor. Esses elementos, ainda quando
inicialmente referidos a uma personagem específica, se ampliam, permitindo ao
espectador compreender que a ignorância que caracteriza a vida humana,
levando-o ao sofrimento e colocando-o diante da possibilidade de sua
destruição, envolve igualmente todos os seres humanos. Por essa razão, em A
pena e a lei, explicita-se a idéia segundo a qual os seres humanos são levados,
uns pelos outros, em direção à morte
94
:
A vida [...] trai a todos nós,
quando vamos, ela vem,
quando se acorda, adormece,
quando se dorme, estremece,
que a vida é morte também
95
.
O terceiro ato da peça nos mostra as personagens que estiveram em
cena, seguindo-se uma após a outra, como causadoras de suas mortes;
Vicentão, um fazendeiro, morre “de desgosto”, “por causa de seis balas que
levou no pé-do-ouvido e de uma facada no coração”
96
em uma disputa de
terras; Benedito, seu vaqueiro, morre “de raiva”, quando ia buscar o advogado
para realizar o inventário de seu patrão:
93
Tal como no primeiro ato de A pena e a lei, em que Benedito disputa com dois valentões o
amor de Marieta, e, após seus esforços para ridicularizá-los diante dela, quando pensa -la
conquistado, ela o deixa e segue Pedro, o caminhoneiro; e no desenlace infeliz dos amantes
Francisco e Rosa em Uma mulher vestida de sol.
94
Algo semelhante acontece no Auto da Compadecida, em que as mortes das personagens
que serão julgadas por Manuel no terceiro ato acontecem não simplesmente em seqüência,
mas parecem se entrelaçar; iremos nos ater à peça A pena e a lei, neste momento de nossa
análise, por esta tratar de modo mais explícito a questão que colocamos.
95
Ariano SUASSUNA, A pena e a lei, p. 85.
96
IBID, p. 148.
57
Pois foi essa pedra mesmo que desgraçou você: o cavalo tropeçou e
você caiu de cara nela. Sua cara lascou-se pelo meio, rasgou-se o pano
dos fígados, os peitos se abriram, a espinhela arriou. O sangue, que
alimentava os tecidos epiteliais, refluiu, vermelhando, para as
concavidades interiores, que ressoaram cavamente, num eco
terrificante e atroador. A barriga estufou, as tripas explodiram, o
espinhaço torou-se, isso tudo foi lhe dando aquela raiva, aquela raiva, e
você morreu
97
.
E o mesmo se com as demais personagens, todas relutando em
aceitar a própria morte vendo como natural” somente a morte do outro
procurando manter-se, enquanto possível, firme em sua negação da finitude e
da limitação humana; o que muda apenas com a entrada em cena de João, o
cantador, único ali a reconhecer-se e aceitar-se morto:
Mas é claro que eu sei que estou morto! Sabe quantas vezes eu
encarei minha morte? Vocês pensam que poeta é homem pra afracar
com esse risco? Eu convivi a vida inteira com a minha morte. Vocês
passam a vida dando as costas para ela: é por isso que, quando a
morte aparece, não sabem nem o que está acontecendo! É por isso que
eu sabia, e vocês, não!
98
Mas a situação é definitivamente esclarecida quando Cheiroso, o
dono do mamulengo, que no terceiro ato está representando o Cristo, entra em
cena. Em uma atualização sertaneja da paixão, Cristo será mais uma vez
entregue para ser julgado pelos homens, que, embora não o saibam, estão, na
verdade, julgando a si mesmos
99
.
Vamos nos deter neste momento, e recolher o que encontramos até
agora. Os homens vivem na ignorância de sua condição de ser contingente e
finito, e, conseqüentemente, vivem como se a morte não existisse, como
alertou o poeta João, e como antes havíamos visto com Euricão Árabe; de
onde o ridículo das situações que conduzem à morte, como ridícula e sem
qualquer sentido parece ser a própria vida humana. Morte a que os próprios
97
Ariano SUASSUNA, A pena e a lei, p. 158.
98
IBID, p. 186-187.
99
Cf. IBID, p. 196.
58
humanos se encaminham, não de maneira individual, mas coletivamente,
contaminados que estão pelo pecado. O último trecho que citamos anuncia o
julgamento de Deus pelos homens, julgamento este que é, na verdade, o
julgamento do valor da vida, oscilante entre a fome de imortalidade, de que fala
Unamuno, e o absurdo existencial identificado por Camus. Faz-se necessário,
portanto, examinar pormenorizadamente, no teatro suassuniano, as mediações
estabelecidas entre o divino e o humano, entre o humano e o divino, o que
realizaremos no próximo capítulo. Antes, no entanto, é necessário
compreender como a comédia permite à dramaturgia suassuniana essa
aproximação entre o humano e o divino no palco.
2.2 A comédia no palco suassuniano
Se a tragédia permite a Suassuna exibir a condição cindida em que o ser
humano se encontra, devido ao pecado e à sua alienação em relação ao
divino, é por meio da comédia que o dramaturgo irá propor a possibilidade da
conciliação do ser humano consigo mesmo e com a divindade. Sobre a
importância do cômico para Suassuna, salienta Carlos Newton Júnior que é
“como se o autor tivesse finalmente encontrado, no riso, uma possibilidade real
de apaziguar o sentimento trágico da vida que desde cedo o dominava”
100
. A
comédia permite ao autor, e, também, em sua perspectiva, convida aos
espectadores, para a reelaboração das suas inquietações existenciais e
religiosas.
Assim como a tragédia, a comédia, enquanto modelo de representação
teatral, tem sua origem na Grécia clássica. No entanto, como observa Ivo
Bender, este gênero jamais gozou do mesmo interesse por parte dos críticos
que o primeiro. A esse respeito, salienta, deve-se considerar que a comédia
quase sempre foi considerada, pela crítica, umnero menor. No entanto,
enquanto a tragédia clássica dificilmente tem espaço no palco, a comédia
conseguiu conservar o interesse do público em diferentes épocas e até os dias
100
Carlos NEWTON JÚNIOR, O circo da onça malhada, p. 72.
59
de hoje
101
. Ou seja, estamos diante de uma antítese: de um lado, interesse da
crítica e desprestígio do blico (tragédia); de outro, desinteresse da crítica e
prestígio do público (comédia).
Reiterando que não nos preocupa aqui analisar pormenorizadamente a
tragédia e a comédia enquanto gêneros dramáticos, mas considerá-las como
categorias estéticas presentes à dramaturgia suassuniana, o estudo de Bender
nos traz algumas importantes contribuições. A principal delas, talvez, está em
sua afirmação de que a comédia somente se realiza plenamente no palco,
mediante a reação do público à encenação dos atores, a qual se reage
ruidosamente, principalmente por meio do riso
102
. Relembrando o ensaio
filosófico de Rachel Gazolla sobre a tragédia, onde a autora nos diz que o
interesse permanente pela tragédia se deve ao fato desta colocar o ser
humano diante do problema fundamental de existir
103
, corremos o risco de nos
ver em meio a uma contradição, ao aceitar as afirmações do teórico do teatro e
da filósofa. Bender afirma que a tragédia se realiza antes de tudo
intelectualmente, bastando, para tanto, a leitura do texto trágico;
diferentemente da manifestação ruidosa do público exigida pela comédia, na
tragédia o público, ainda que se compadeça, se mantém passivo, ou, ao
menos, em silêncio
104
. O que se questiona é a eficácia da realização teatral da
tragédia para o público contemporâneo, mas não a capacidade do argumento
trágico de dizer algo a este público o que, portanto, não invalida a tese de
Gazolla, que acolhemos. Diferentemente, a permanência do sucesso histórico
da comédia, em relação ao público, se deve ao fato de que este pode, segundo
Bender, mais facilmente se identificar e se disponibilizar para a ação cômica, e,
mesmo havendo ali, em certo sentido, um movimento catártico, em que o (anti)-
herói é punido, ou redimido, este, contrariamente ao que se presencia na
tragédia, não é aniquilado pelo destino. A comédia permite, portanto, ao
espectador, uma identificação e uma salvação que não o possíveis na gica
101
Cf. Ivo C. BENDER, Comédia e riso, p. 17-18.
102
Cf. IBID, p. 17-19.
103
Cf. Rachel GAZOLLA, Para não ler ingenuamente uma tragédia grega, p. 12-15.
104
Cf. Ivo C. BENDER, Comédia e riso, p. 18-19.
60
trágica. “O espectador vê-se, pois, a salvo do necessário partilhamento da dor
do herói, que a tragédia propõe”
105
.
Considerando isso, podemos inferir duas conseqüências a respeito do
valor que a comédia possui na dramaturgia suassuniana. A primeira, mais
ampla, nos leva a crer que a opção de Suassuna pela comédia e a atenuação
em sua dramaturgia do elemento trágico se deve à maior eficácia da
representação cômica no palco contemporâneo, de acordo com Bender. A
segunda, mais especificamente interessante para o estudioso das religiões,
nos autoriza a dizer que, devido à maior empatia que a comédia estabelece
com o espectador, esta se torna, quando levada à cena, a categoria
privilegiada para a manifestação das intenções religiosas do autor e também da
aproximação e até mesmo da intimidade que este acredita existir entre o povo
sertanejo e a divindade.
Cabe ainda acrescentar, quanto a este segundo aspecto, a presença,
anteriormente assinalada, do elemento catártico na comédia. Diferentemente
da tragédia, em que a catarse se realiza mediante a vivência, no palco, dos
sentimentos e reflexões que a personagem trágica suscita, os quais são
partilhados pelo espectador
106
, ou, conforme a sugestão de Bender, esta
contemporaneamente se alcança mediante a leitura na comédia é o riso que
permite, ao espectador, a catarse: “ela se mostra pelo alívio de tensões
previamente suscitadas que, esvaziando-se, dão lugar ao riso”
107
, exigindo,
portanto, para que haja o efeito catártico na comédia, não simplesmente a
leitura do texto teatral, mas sua performance em cena.
O componente cômico presente na dramaturgia suassuniana encontra-
se vinculado ao elemento lúdico e a uma concepção estética barroca; portanto
interessa-nos, neste momento, analisar os dois seguintes aspectos: a presença
do dico na dramaturgia suassuniana e a concepção artística e existencial
barroca a esta associada.
105
Ivo C. BENDER, Comédia e riso, p. 10.
106
Cf. Rachel GAZOLLA, Para não ler ingenuamente uma tragédia grega, p. 38-42.
107
Ivo C. BENDER, Comédia e riso, p. 52.
61
2.2.1 A valorização do elemento lúdico
A presença do elemento lúdico na dramaturgia suassuniana está
intimamente relacionada à recepção e reinterpretação, pelo autor, das formas
nordestinas de arte popular. Além da reescritura dos folhetos e da apropriação
de seus temas, Suassuna leva ao palco a magia do circo, no Auto da
Compadecida, os conflitos do teatro popular de bonecos, o mamulengo, em A
pena e a lei, e a eloência dos artistas de feira, na Farsa da boa preguiça. A
estes elementos se somam os provérbios da sabedoria popular, presentes nas
vozes de diferentes personagens, em muitas de suas peças.
Esses elementos da arte popular, os quais são objeto de constantes
ressignificações por Suassuna em sua dramaturgia, encontram-se no
arcabouço mítico a que o autor recorre, conforme anteriormente mencionamos,
ao nos referirmos à poesia mítica; dessa matriz, a dramaturgia suassuniana se
apropria não somente do conteúdo das narrativas e das formas populares da
arte nordestina, mas, podemos afirmar que, principalmente, recebe dela a
dimensão lúdica; resgatando algo do clássico ensaio de Johan Huizinga,
observamos que o lúdico rompe o utilitarismo das ações cotidianas, transcende
as necessidades impostas pela busca da subsistência a que as pessoas são
constrangidas no seu dia-a-dia. Ao elaborar uma nova ordem de significado,
representa um modo de ser (mais) autenticamente humano
108
. Suassuna,
como observamos, percebeu a existência desse elemento lúdico na arte
popular ao assinalar que, ao representar reis e princesas, o povo sertanejo
apropria-se, simbolicamente daquilo que lhe tem sido negado na realidade
cotidiana
109
; por meio do jogo simbólico tornado possível devido à linguagem,
diz Huizinga, o ser humano “cria [...] um mundo poético”
110
. Huizinga também
assinala que o elemento lúdico está na origem do mito e do culto, de onde
surgem os constituintes estruturantes da vida civilizada, como o direito, o
comércio, as artes, as ciências; todos esses elementos se referindo, em
108
Cf. Johan HUIZINGA, Homo ludens, p. 3-31.
109
Cf. Ariano SUASSUNA, Cinema e sertão. In: Almanaque armorial, p. 193-194. Comentando
a realidade da representação, a partir do comportamento infantil, afirma Huizinga: “Mais do que
uma realidade falsa, sua representação é a realidade de uma aparência: é imaginação‟, no
sentido literal do termo”. Homo Ludens, p. 17.
110
Johan HUIZINGA, Homo ludens, p. 7.
62
primeira instância, ao lúdico
111
. O nexo entre o dico e o religioso, e tamm
entre este e a arte, ainda segundo Huizinga, encontra-se na representação de
uma realidade desejada, no estabelecimento de uma ordem simbólica,
contraposta à ordem (ou, ainda, à desordem) natural
112
. A dramaturgia
suassuniana pretende cultivar o vínculo existente entre lúdico, arte e religião, o
que se deve, por um lado, à sua recepção das formas nordestinas populares de
arte e de religião pensamos, por exemplo, nas representações dos
espetáculos populares que servem de base para a elaboração de algumas de
suas peças, como o Auto da Compadecida e A pena e a lei e, por outro, às
concepções religiosas pessoais afirmadas pelo dramaturgo, explicitadas e
defendidas em seu teatro. Portanto, arte e religião se encontram na
representação de uma ordem simbólica, que se deseja e que se pretende
capaz de superar a ausência de sentido a que a ordem natural parece
condenar o ser humano, arrastado em meio ao “jogo” natural da violência e do
sofrimento que culmina na morte, precariedade e por fim ausência de todo
sentido. O esforço do ser humano para construir esse sentido por meio do
lúdico, da arte e da religião, para Suassuna, no que se refere à sua
reinterpretação da humanidade sertaneja, nordestina e brasileira, fundamenta-
se em uma poética e uma estética barroca, que passamos a analisar e discutir.
2.2.2 O barroco como projeção estética de uma tensão existencial
Em sua obra Barroco e modernidade, Irlemar Chiampi propõe uma re-
avaliação onde procura superar o “conflito das interpretações” existentes em
torno ao barroco e às tentativas de ressignificação dessa estética por artistas
modernos e pós-modernos. De um lado, afirma a autora, coloca-se a
compreensão que considera o barroco indissociável da estrutura sócio-histórica
que o havia gestado, e que, portanto, lega as reinterpretações do barroco ao
reacionário e ao esforço para deter e negar a modernidade. De outro, uma
compreensão que considera o barroco exclusivamente como uma categoria
estética, capaz de emergir ou reemergir em qualquer tempo ou momento, “para
111
Cf. Johan HUIZINGA, Homo ludens, p. 7.
112
Cf. IBID, p. 18-19.
63
negar o espírito clássico”
113
. As duas posições coincidiriam, portanto, ao
identificarem, na visão do artista que pretende atualizar em sua práxis a
estética barroca uma negação da história, e divergiriam ao considerarem as
reinterpretações do barroco ou como retrógradas ou como manifestações de
um espírito atemporal. Procurando situar-se além desse debate, a autora
reconhece a dificuldade que, em geral, o imaginário latino-americano teve e
ainda tem em lidar com uma concepção linear de história, que conduziria a um
progresso irreprimível, não podendo, portanto, ser contido na primeira tese; e,
também, a recusa desse imaginário em deixar-se fixar em categorias imutáveis,
rejeitando, portanto, a segunda tese. Diferentemente, Chiampi entende que:
Em vez de pretérito perfeito ou da negação da temporalidade, o barroco
dinamiza-se para nós na temporalidade paralela da meta-história: é o
nosso devir permanente, o morto que continua falando, um passado que
dialoga com o presente por seus fragmentos e ruínas, quem sabe para
preveni-lo de tornar-se teleológico e conclusivo
114
.
A visão de Suassuna encontra-se, no entanto, mais próxima do segundo
modelo interpretativo; considera o dramaturgo que, enquanto posição diante da
arte, o Barroco pode ser legitimamente retomado, por ser o artista livre para
adotar o estilo que melhor permita expressar seu universo interior
115
. Entende
que o Barroco, tendo por característica a procura do equilíbrio entre os
opostos, pode dizer muito ao artista brasileiro contemporâneo, permitindo-lhe
expressar esteticamente o conflito existencial que se apresenta em sua vida. A
esse respeito, Affonso Ávila afirma que as aproximações possíveis entre o
artista do presente e o artista barroco se devem não somente a uma “sintonia
de sensibilidade, motivada pelo uso de formas afins de expressão estética”,
mas refletem “uma bem semelhante tensão existencial”, que emerge do
antagonismo que estes encontram em suas respectivas épocas, nas quais a
consciência e a abertura para o novo “ontem revelado pelas grandes
navegações e as idéias do humanismo, hoje pela conquista do espaço e os
113
Irlemar CHIAMPI, Barroco e modernidade, p. XVI.
114
IBID, p. XVII.
115
Cf. Ariano SUASSUNA, Teatro, região e tradição. In: Almanaque armorial, p. 45.
64
avanços da técnica”, se confrontam com a estrutura alienante que determina a
práxis objetiva, “ontem a contra-reforma, a inquisição o absolutismo, hoje o
risco de guerra nuclear, o subdesenvolvimento das nações pobres, o sistema
cruel das sociedades altamente industrializadas”
116
. De maneira semelhante à
proposta por Suassuna, considera que a tensão existencial desses momentos
históricos distintos se projeta na elaboração artística:
Vivendo aguda e angustiosamente sob a ótica do medo, da
insegurança, da instabilidade, tanto o artista barroco quanto o moderno
exprimem dramaticamente o seu instante social e existencial, fazendo
com que a arte assuma formas agônicas, perplexas, dilemáticas
117
.
Retomando Chiampi, vemos que a excentricidade barroca, diante de um
historicismo evolucionista e teleológico gestado nos centros intelectuais
hegemônicos, permite a recolocação da América Latina frente à modernidade
européia e norte-americana, e, acrescente-se, diante de si mesma; ao dialogar
com a estética barroca o artista demonstra que a continuidade e a linearidade
do modelo iluminista não podem ser plenamente admitidas estética e
existencialmente no contexto latino-americano. O Barroco, sendo um
movimento artístico e cultural europeu em sua origem, torna-se matéria de
constantes e múltiplas ressignificações, possibilitando ao artista a expressão do
inacabado e do contraditório que se encontra em si e em seu mundo
118
. O
Barroco, diz a autora em sua interpretação da literatura moderna latino-
americana, ao ser apropriado pelo artista, confere legitimidade e identidade ao
mundo latino-americano, em ruptura com o paradigma europeu
119
. Afirma ainda
que, na pós-modernidade, o chamado neobarroco se mostra “um instrumento
privilegiado de crítica (latino-americana) do projeto (eurocêntrico) do
iluminismo
120
.
116
Affonso ÁVILA, O lúdico e as projeções do mundo barroco I, p. 26.
117
IBID.
118
Cf. Irlemar CHIAMPI, Barroco e modernidade, p. 3-4.
119
Cf. IBID, p. 4-6 e seguintes.
120
IBID, p. XVI.
65
Se a ressignificação do Barroco pelo artista moderno latino-americano
insere-se no processo de formação de uma identidade local e também na
tentativa de resposta às suas tensões existenciais, especificamente na
perspectiva suassuniana, deve-se ao Barroco e à sua capacidade de realizar a
união de contrários a síntese de elementos populares e eruditos existente na
arte brasileira
121
; ao projetar na arte popular da qual recebe, inegavelmente,
temas e influências sua própria visão de mundo, pretende, subjetivamente, a
conciliação desses opostos que se encontram nele mesmo, e, objetivamente,
formar, fora de si, como em um espelho, talvez, uma imagem harmoniosa do
mundo. Uma imagem barroca em que os contrários são mantidos em equilíbrio,
devido, justamente, à tensão que os elementos distintos mantêm uns contra os
outros:
Os artistas e escritores parece (sic) que sentem em sua carne os fatos
que ferem seu Povo. É por isso que o escritor brasileiro sempre foi
dividido e dilacerado. Tendo sofrido, desde os começos da vida cultural
brasileira, a herança européia, uma herança que era vestida
artificialmente noutro clima e noutras condições, somente agora tudo
começa a se unificar, a se assimilar; e somente agora começa ele a se
afirmar como intérprete, em consonância com os gritos, as aspirações,
os anseios e murmúrios de sua terra e de seu Povo
122
.
2.3 Aproximações entre uma estética dramática e uma visão religiosa
Avaliando o que recolhemos até agora, é possível afirmar que a
dramaturgia suassuniana, ao dialogar com as categorias do trágico e do
cômico, oferece duas maneiras distintas de lidar com a inquietação religiosa.
Primeiramente temos a tragédia, categoria que coloca o ser humano diante do
inevitável e incontrolável, o destino. Por isso, nos momentos em que predomina
121
Cf. Ariano SUASSUNA, A arte popular no Brasil. In: Almanaque armorial, p. 153-154.
Convém ressaltar que, ao analisar a obra de Gilberto Freyre, Ricardo Benzanquen de Araújo
considera a iia de “antagonismos em equilíbrio” a noção interpretativa fundamental de Casa-
grande e senzala; cf., do autor, Guerra e paz, p. 71
122
Ariano SUASSUNA, Nota sobre o romanceiro popular do Nordeste. In: Seleta em prosa e
verso, p. 250.
66
o trágico
123
, como na primeira peça de Suassuna, Uma mulher vestida de sol, o
religioso permanece implícito, mantendo-se como uma expectativa, da qual se
espera o restabelecimento da ordem existencial tornada precária devido à
cisão ontológica que caracteriza o ser humano e à incapacidade deste de, por
si mesmo, resistir ao pecado. O desenvolvimento da escritura teatral por
Suassuna revela uma preferência cada vez maior pela comédia; a lógica
cômica permite ao dramaturgo a melhor elaboração da temática religiosa,
tornando possível a explicitação, no palco, da relação entre o humano e o
divino. Para tanto colabora a presença do lúdico, devido á recepção dos
modelos populares de representação, os quais também permitem a recepção e
reinterpretação da religiosidade popular, uns e outros ressignificados a partir
das convicções estéticas e religiosas do próprio autor. Mediando esses
elementos tão distintos, encontra-se a compreensão suassuniana da estética
barroca, esta também resultante de suas ressignificações; Barroco que, como
pensamos ter demonstrado, permite ao artista latino-americano a elaboração
de uma auto-imagem cultural local, não somente contraposta, mas crítica ao
paradigma hegemônico europeu, imagem por meio da qual pretende legitimar
suas opções pessoais e elaborar suas tensões existenciais.
À luz dos elementos que temos elencado nestes dois primeiros
capítulos, acreditamos estar suficientemente preparados para empreender a
análise das representações do imaginário religioso que constitui o núcleo desta
dissertação, porque entendemos que, mediante essa análise, torna-se possível
compreender as mediações entre o humano e o divino propostas no teatro de
Suassuna.
123
Embora seja possível caracterizar na obra suassuniana peças em que predomina o
elemento trágico e peças onde predomina o elemento cômico, seria equivocado se fazer um
corte radical entre essas. Por exemplo, em O santo e a porca e O casamento suspeitoso,
embora o modelo de representação dominante seja cômico, o reconhecimento da insuficiência
humana no encerramento dessas duas peças se aproxima da perspectiva trágica; assim
como em Uma mulher vestida de sol, elaborada fundamentalmente como tragédia, cenas
explicitamente cômicas.
67
CAPÍTULO III AS REPRESENTAÇÕES DO TRANSCENDENTE
A dramaturgia suassuniana revela um ser humano que se encontra
dilacerado, uma criatura atormentada pela consciência de saber-se finita. E,
desde essa condição, justificam-se e tornam-se compreensíveis as atitudes
humanas, o seu constante trair, a si e aos outros, como aspecto da traição
radical que a vida impõe a cada ser humano. No capítulo anterior, as
categorias estéticas de tragédia e comédia encaminharam essa compreensão
do humano, em que o sentimento trágico da vida, sua fome de imortalidade, se
deteria ante ao absurdo da existência, introduzido pela morte e pela aparente
ausência de um sentido para a vida. Perdido, imerso em ocupações ilusórias,
como revela, iconoclasta, o riso, que não apenas castiga os costumes, mas
convida à reflexão e à conversão, encontra-se a tradição religiosa católica
abrindo a possibilidade de escapar ao absurdo. Mas, como conciliar o infinito e
o absoluto com o finito e o precário? As representações teatrais do
transcendente, que nós analisamos neste capítulo, discutem o rebaixamento e
a ameaça de perdição do humano sintetizada nas representações do mal e,
especificamente, na figura do diabo , mas também se mostra desejosa de sua
salvação, mediante a representação de uma divindade que se faz humana para
divinizar o ser humano, em Jesus Cristo e Nossa Senhora.
3.1 As representações do mal
Ao concluir, na Iniciação à estética, o capítulo sobre o feio na arte,
Suassuna diz que:
[...] com a transfiguração do mal e do feio, atinge-se o subterrâneo da
alma humana e o fundamento de desordem do real, assim colocados
diante de nós como uma visão integral do nosso destino, no que tem de
belo e bom; mas também no que possui de falhado, de cruel e de
infortunado
124
.
124
Ariano SUASSUNA, Iniciação à estética, p. 238.
68
A compreensão do ser humano em sua totalidade inclusive na arte
passaria, necessariamente, por aquilo que este possui de desordenado e
imperfeito; por isto, considerando o mal e o feio enquanto aspectos da
desordem, privações e chagas do ser, mas não negligenciando sua importância
na realidade e na arte
125
, o autor, em seu teatro, discute o problema do mal e
suas implicações na vida humana. Para tanto, parte da manifestação física e
cotidiana do mal, da ameaça às condições elementares de vida o mal está
presente na fome, na seca, na violência e na morte para lançar a discussão
do mal nas relações humanas mal como egoísmo? e chegar ao fundamento
religioso do problema, ao mal como pecado e ameaça de perdição eterna da
alma humana.
3.1.1 Mal físico e naturalização
Uma primeira representação do mal no teatro suassuniano se encontra
na representação da terra e das dificuldades que esta impõe à vida. Mas
Suassuna procura afastar-se da interpretação naturalista encontrada na
literatura brasileira, segundo a qual o comportamento humano seria explicável
em continuidade com o ambiente físico e também social, a terra em sua
dramaturgia não se encontra representada como princípio de negatividade,
como em si mesma, mas como espaço em que o mal tem lugar, em que o
agir mal se torna possível.
Dessa maneira, em Uma mulher vestida de sol, a terra se torna um
espaço permanente de confronto, onde a morte é onipresente; os conflitos pela
posse da terra não são causa da violência, mas seu pretexto. São nos
interesses humanos que se encontra o mal, ainda que em uma humanidade
demasiadamente nesse momento “naturalizada”; próxima da natureza em
sua irracionalidade, como na descrição da personagem Joaquim Maranhão:
“Ele esquece tudo por causa da terra. Joaquim é como um desses bichos
125
Ariano SUASSUNA, Iniciação à estética, p. 239; Dostoievski e o mal. In: Almanaque
armorial, p. 273.
69
venenosos que moram nas pedras, da cor da pedra e cujo veneno mata”
126
. É
a dimensão simbólica do ser humano que está posta em risco na conduta
dessa personagem que transita entre o humano e a animalidade, não se
considerando obrigado a respeitar os compromissos firmados
127
, não
reconhecendo os vínculos familiares, e mesmo favorecendo a destruição
destes em seu desejo incestuoso
128
. Sobre sua palavra, diz Joaquim
Maranhão: “Se fui eu que dei, eu mesmo posso tirar. Não tenho palavra quando
se trata de ver minha filha transformada em égua!
129
. Ao animalizar a filha,
permanece aquém do comprometimento moral
130
.
Voltaremos a discutir a animalização quando analisarmos as
representações dos demônios. Por enquanto, precisamos salientar que a
relação entre a terra e o mal, no teatro de Suassuna, se encontra
principalmente no drama da seca e em suas conseqüências. Vemo-la na
personagem Cícero, retirante, a quem a morte, segundo suas próprias
palavras, transformou em “homem de paz e religião”
131
:
Por mim, estou habituado. Vi minha mulher e meus filhos morrerem
de fome na estrada, quando vim para cá. Já faz muitos anos e é sempre
assim. Uma bala, o sol, cobra, uma doença, uma briga, a velhice, e,
seja gado ou gente, tudo tem de morrer um dia
132
.
126
Ariano SUASSUNA, Uma mulher vestida de sol, p. 62.
127
IBID. Do ponto de vista ético, podemos dizer que o terceiro ato da peça é construído em
torno da honra e da confiança, que parte do respeito ou desrespeito à palavra empenhada.
128
O tema do incesto, que Suassuna busca em uma narrativa da tradição popular, “A noiva
filha do pai”, reconduz o humano ao animal, ao por em suspensão as interdições parentais, que
pertencem à ordem simbólico-cultural. Em sua análise dos causos de Grande sertão: veredas,
Kathrin Rosenfield percebe a redução do humano à bestialidade, em meio à negação da
dimensão simbólica, nas narrativas do casamento dos primos carnais e na deformidade física
dos filhos destes e da união incestuosa entre mãe e filho, os quais, na mutilação do padre
pai simbólico da comunidade que se recusa a reconhecer a união ilícita, efetivam a
separação radical entre o natural e o espiritual. Cf. Kathrin H. ROSENFIELD, Os descaminhos
do demo, p. 43-44; os causos comentados se encontram em João Guimarães ROSA, Grande
sertão: veredas, p. 77 e 90.
129
Ariano SUASSUNA, Uma mulher vestida de sol, p. 159.
130
Por outro lado, o mesmo movimento em direção à natureza, por parte de Rosa, conserva o
caráter ambíguo e aquém do bem e do mal da ordem natural. Rosa, naturalizando-se,
procurando a companhia dos animais, procura escapar às investidas do pai.
131
Ariano SUASSUNA, Uma mulher vestida de sol, p. 55.
132
IBID, p. 62.
70
A morte aparece como algo inevitável e está à espreita, a todo o
momento. As suas possíveis causas, naturais ou motivadas pelo agir humano,
igualam-se e confundem-se no discurso, não parecendo haver entre essas
qualquer hierarquia. A morte iguala a tudo em um mesmo destino encontra-
se rompido, mais uma vez, o limite simbólico entre o humano e o natural
porque “tudo tem de morrer um dia”. Para Cícero, que representa no palco a
lógica cotidiana dos beatos e das rezadeiras, a religião aparece como a única
possibilidade de sentido em um mundo que parece condenado.
No entanto, se não diferença qualitativa entre os modos possíveis de
morrer, a fome parece ser a mais freqüente. É a fome que leva a família de
Cícero; a seca obriga Inácio, Joana e o filho destes a se retirarem; o menino,
ao encontrar mel na cerca que limita as terras de Joaquim Maranhão, é morto
pelo proprietário
133
; de fome, também, morre o retirante Joaquim, em A pena e
a lei, propiciando o seguinte comentário do cantador João Benício “Você viu
retirante morrer de outra coisa?”
134
; não tivesse morrido de fome, Joaquim
poderia mesmo ter se acostumado com ela, “virava mandacaru”, conforme
novo comentário de João Benício: “Você não vê esses tabuleiros por aí, cheios
de mandacaru? Aquilo tudo é gente que anoiteceu gente e amanheceu
mandacaru: o cabra é muito ruim ou passa muito aperto, da noite para o dia,
sem saber como nem porque, vira mandacaru”
135
. A transformação do retirante
em mandacaru, denunciando uma morte em vida, mais uma vez pelo recurso à
redução do humano ao natural.
3.1.2 A representação do diabo, a moralidade e o destino humano
Não menosprezando a importância do que temos chamado
manifestação física do mal, no teatro suassuniano este se demonstra,
sobretudo, nas relações humanas. Por vezes, o mal ainda se encontra
demasiadamente próximo das dificuldades impostas pelo ambiente, como na
disputa de terras que conduz a ão em Uma mulher vestida de sol, que ainda
133
Ariano SUASSUNA, Uma mulher vestida de sol, p. 70-75.
134
IDEM, A pena e a lei, p. 187.
135
IBID, p. 190.
71
permitem sentir certa proximidade entre essa primeira experiência dramática e
o positivismo do “romance de 1930”, rejeitado pelo autor
136
. Ao longo de sua
dramaturgia, o elemento físico tende a ser secundado, deslocando-se o
problema do mal para a vontade humana e o âmbito moral.
Se, por um lado, rejeita o naturalismo e sua justificativa das ações de
suas personagens a partir de condicionamentos externos, rejeita também a
crença na subjetividade autônoma moderna, a noção do agente moral como
criador de seus próprios valores. No artigo “Dostoievski e o mal” diante do
dilema de Ivan Karamazov, “Se Deus não existe, tudo é permitido”, afirma:
“Descobri, na mesma hora, que as normas morais ou tinham um fundamento
divino, absoluto, ou não tinham qualquer validade, porque ficariam dependendo
das opiniões e paixões da (sic) cada um
137
; convencendo-se do erro da
posição de Sartre, que transforma em afirmão aquilo que o romancista russo
mantém condicionalmente, como possibilidade, “Deus o existe, e, portanto,
tudo é permitido”, posição que Suassuna considera escapatória; sua arte passa
a ser determinada pela crença na existência de Deus e em sua colocação
como fundamento das ações humanas
138
; encerra o texto que citamos, da
seguinte maneira:
[...] cheguei mais uma vez à conclusão de que Hegel tinha razão ao
considerar a arte, a religião e a filosofia como etapas no caminho do ser
humano em direção a Deus, fundamento de qualquer norma moral que,
por não depender do arbítrio individual, não se veja obrigada a
considerar legítima até mesmo a realidade monstruosa do crime
139
.
São estes os pressupostos que possibilitam nossa leitura desde a
ciência da religião da obra dramática de Suassuna. Sua afirmação da
existência de Deus, por antítese, diante da existência do mal e da exigência de
uma norma moral absoluta; a arte, para o artista religioso, como meio legítimo
de explicitar e compartilhar com o público sua crença e convidá-lo à conversão.
136
Relembre-se que o texto publicado de Uma mulher vestida de sol é de uma segunda versão,
permanecendo inédito o original de 1947.
137
Ariano SUASSUNA, Almanaque armorial, p. 273.
138
IBID, p. 273-274.
139
IBID, p. 274.
72
A correção ou não do agir humano estará condicionada ao
reconhecimento e à aceitação desse fundamento religioso, como se percebe,
de modo explícito, na oposição encontrada na Farsa da boa preguiça entre as
personagens Aderaldo e Clarabela, e Joaquim Simão e Nevinha; enquanto
estes espelham um modelo de e esperaa, os primeiros usam do ateísmo
para justificar seu comportamento reprovável. Para o rico Aderaldo “Pecado é
coisa superada!
140
”; o poeta Joaquim Simão entende que “O homem, para
viver certo, tem que respeitar três coisas: a mulher, o que é certo, e Deus!”,
obtendo a seguinte resposta de Clarabela, a esposa do rico:
Deus! Agora, sim! Era o que faltava! Ora Deus!
Isso é coisa superada, Simão!
Deus é uma idéia superada e obscurantista,
inventada pelos impostores e exploradores
141
.
Ao retirar a questão do mal dos estreitos limites das conveniências e
opiniões humanas, e atribuir-lhe uma fundamentação transcendente, Suassuna
faz de seu teatro um convite à reflexão e à conversão, o que fora percebido
por outros críticos. Idelette Santos pergunta se a dramaturgia suassuniana
pode ser considerada catequética
142
; o autor, em diversas passagens, dirige-se
ao espectador/leitor em termos que deixam clara sua intenção, não apenas de
conduzi-lo a uma mudança de comportamento, mas a uma transformação do
ser humano, possível devido à aceitação da dimensão religiosa
143
. Além das
diversas passagens que indicamos em nota, significativo é o encerramento de
O casamento suspeitoso, no discurso que a personagem Geraldo dirige ao
público:
140
Ariano SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p. 79.
141
IBID, p. 113.
142
Cf. Idelette Muzart Fonseca dos SANTOS, p. 244. Mais do que recolocar o problema,
discutido por s, da legitimidade da representação da temática religiosa por meio da arte, a
autora acentua o vínculo cultural da dramaturgia suassuniana com a arte popular que tem na
religião um de seus temas fundamentais.
143
Veja-se Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 15 e 117; A pena e a lei, p. 29,33,
87-89, 139-143; Farsa da boa preguiça, p. 44-46; 331-334.
73
Espectadores, o autor é um moralista incorrigível e gostaria de acentuar
a moralidade de sua peça.
[...]
Por isso lanço um olhar melancólico a nosso conjunto e convido todos a
um apelo. É uma invocação humilde e confiante, a única que pode
brotar sem hipocrisia desse pobre rebanho que é o nosso. E assim,
juntando-me aos outros atores e ao autor, peço que digam comigo:
Que o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo, tenha
misericórdia de todos nós!
144
Esta longa digressão, tocando alguns pontos importantes da relação
entre o mal e a moralidade no pensamento de Suassuna, tem por objetivo
introduzir o que consideramos o núcleo da representação do mal em seu
teatro; esta passa, necessariamente, pela objetivação do mal na personagem
do demônio. Ao introduzir o demônio, um “agente” que permanece exterior à
vontade humana, o dramaturgo se permite, de alguma maneira, isentar o
agente humano pelo mal que este realiza; opção que terá conseqüências em
sua soteriologia.
No Auto da Compadecida o diabo aparece, pela primeira vez, no palco
suassuniano; é chamado Encourado, em referência ao seu traje de vaqueiro,
que se justificaria em razão de “uma crença do sertão do Nordeste”
145
; em
cena, é introduzido por um assistente, um diabo menor e subserviente,
chamado apenas Demônio; seriam, portanto, a antítese das duplas formadas
por “besta e sabido”, como João Grilo e Chicó? A atuação do diabo na peça, as
funções por este desempenhadas, seu “caráter”, permitem esclarecer certos
aspectos da concepção religiosa nela existente.
Entra em cena no terceiro ato, no “julgamento das almas”; em rubrica, o
autor aponta para seu aspecto caricatural, em que o diabo esforça-se para
fazer-se reverenciado, tentando obter, mediante a intimidação, o que Cristo
receberá espontaneamente; “insinua o fato de que o maior desejo do diabo é
imitar Deus, resultado de seu orgulho grotesco”
146
; imediatamente, ordena que
144
Ariano SUASSUNA, O casamento suspeitoso, p. 124-125.
145
IDEM, Auto da compadecida, p. 119.
146
IBID, p. 119; ver o diálogo entre o Encourado e o Demônio à p. 120.
74
sejam, todos, carregados para o inferno, negando compaixão e apelação,
sendo então chamado por João Grilo “pai da mentira”
147
. Ressalta-se seu
aspecto hediondo, o que é reconhecido pelo próprio diabo, quando o
Encourado lamenta ver sua imagem refletida no Demônio, “uma imagem
profundamente repugnante
148
. Caricatura da imagem e semelhança de Deus
no ser humano? O “caráter” do diabo, no drama suassuniano, parece reduzir-
se a um simulacro. Pelo expediente da mentira e da confusão, procura fazer
perder as almas. Porta a máscara da seriedade, atendo-se sempre à letra em
sua visão, fria e desprovida de espírito da lei, pois, diz a Compadecida, “o
diabo é muito apegado às formas exteriores”
149
. Em momento algum aparece
como concorrente de Deus, mas lhe é submetido, de certa forma auxiliando no
julgamento das almas. Exerce a função de promotor, enumerando os pecados
dos mortos e procurando acusá-los
150
, ou, conforme a expressão de João Grilo,
“promotor, sacristão, cachorro e soldado de polícia. Esse é uma mistura
disso tudo
151
; em sua fala, Grilo ressalta a semelhança entre o diabo e
aqueles que, cotidianamente, são dados ao abuso dos seus pequenos
poderes
152
. Não se pode dizer que haja na Compadecida efetivo conflito entre
Deus e o diabo; seus esforços para danar as almas parecem frustrados de
antemão, como se depreende da afirmação de Manuel, ao anunciar a salvação
de Severino e do Cangaceiro: “Você não entende nada dos planos de Deus”
153
; sua condição subalterna é reafirmada nas pilhérias que o próprio Manuel
dirige ao Encourado
154
, assim como na incapacidade do diabo de mirar e
147
Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 122.
148
IBID, p. 120.
149
IBID, p. 145.
150
Ao discutir a iconografia do diabo, Luther Link afirma que o principal papel em que este
aparecia era o do dragão combatido e vencido por Miguel no Apocalipse. Em seguida, nas
representações do Juízo Final. “Neste, o Diabo não é o inimigo: está fazendo o trabalho de
Deus, castigando os pecadores. Longe de ser um rival, o Diabo tem seu próprio lugar e
trabalha em perfeita harmonia com os poderes santos. Nem adversário nem ameaça, o Diabo
torturando os condenados reforça o sistema”. Luther LINK, O diabo, p. 47.
151
Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 128.
152
Associação encontrada nas narrativas populares que tem por tema o logro do diabo pelo
homem. Cf. Jerusa Pires FERREIRA, Fausto no horizonte, p. 59-60.
153
SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 153.
154
IBID, p. 131-132 e 134.
75
colocar-se, diretamente, diante de Manuel, mantendo-se de costas
155
, e,
sobretudo, em sua submissão pela Virgem, ao sair de cena
156
.
Depois do Auto da Compadecida, apenas na Farsa da boa preguiça o
diabo volta à cena. Nesta peça, o demônio é levado ao palco sob outra
perspectiva; não mais na condição de acusador dos homens por seus pecados,
procurando, na condenação destes, o que acredita tratar-se de um ato de
justiça, mas mostra-se explicitamente como causa e agente da perdição
humana. Se o diabo, no Auto da Compadecida, tem reforçado o seu aspecto
grotesco, sendo o vestuário de vaqueiro que traja a única referência a uma
possível humanidade, na Farsa da boa preguiça sua participação, sob formas
que transitam entre o humano e o animal
157
, se dá ao longo de toda a peça. Se,
no Auto da Compadecida, a situação do diabo era de submissão a Deus, a
Farsa da boa preguiça convida o espectador/leitor a testemunhar uma disputa
cósmica entre a luz e as trevas, em que o diabo tem como objetivo apossar-se
da alma humana:
O cavalheiro pode ver aqui
inteligente e culto como é
O Fogo escuro, o enigma deste Mundo
e o rebanho dos Homens em seu centro!
Que palco! Quantos planos! Que combates!
Embaixo, o turvo, as Cobras e o Morcego.
No meio, o que esta Terra tem de cego e esquisito.
Em cima, a Luz angélica esta Luz mensageira
Com seu vento de Fogo puro e limpo!
Embaixo, três demônios que aqui passam
158
.
155
Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 124, 127, 135.
156
IBID, p. 158.
157
O trânsito do ser humano entre a animalidade e a divindade parece ser uma elaboração
comum a muitas das religiões populares no Brasil, o aparentemente distintas quanto o
pentecostalismo e a umbanda; afastando-se de Deus o ser humano se rebaixa, se animaliza;
aproximando-se de Deus, alcança a unidade e consegue integrar-se consigo mesmo. Cf.
Vagner Gonçalves da SILVA, Concepções afro-brasileiras e neopentecostais, p. 155-158.
158
Ariano SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p. 44.
76
Para atingir seu intento, o diabo emprega disfarces humanos; um deles,
Andreza, representa uma vizinha alcoviteira, que procura, sem sucesso,
convencer Nevinha, a mulher do poeta Joaquim Simão, a traí-lo com o rico
Aderaldo
159
; Fedegoso, outro diabo, que entra em cena dizendo “Agora, aqui,
convém / que o Mal assuma a roupa e o tom do Bem!
160
; trajando hábito de
frade, traz consigo um peru, que usa para enganar Clarabela, a mulher do rico,
e roubar-lhe a fortuna, convencendo-a a lhe entregar o cheque que o marido
lhe confiara pelo animal
161
; por fim entra em cena o último diabo, Quebrapedra,
que, se dizendo enviado do delegado, recupera o peru, deixando Aderaldo e
Clarabela sem nada
162
; castigado o rico, tem-se o fim do primeiro ato.
Da atuação do diabo no primeiro ato da Farsa, pode-se inferir o
seguinte: o diabo, ainda que motivado pelo desejo de levar o humano ao erro, e
perdê-lo, implicitamente acaba sendo um instrumento dos planos de Deus; por
meio da mentira e de seus sucessivos malogros, o diabo colaborou para o
castigo da soberba do rico, e a demonstração de “que é preciso temperar
sabiamente o trabalho com a contemplação e o descanso”
163
. Disfarçado,
assumindo formas e afazeres humanos, torna-se terrivelmente próximo.
Embora num outro contexto, diz o poeta Joseph Brodsky:
A estrutura da vida é tal que aquilo que vemos como o Mal é capaz de
uma presença bastante difundida, mesmo porque tem a tendência de
aparecer sob o disfarce do bem. Vocês nunca irão vê-lo atravessando a
soleira de suas portas e se anunciando: “Olá, eu sou o Mal!”. Isto, é
claro, indica sua natureza secundária, mas o consolo que poderíamos
extrair desta observação é obliterado pela freqüência com que se
manifesta
164
.
O mal tende a aparecer sob o disfarce do bem. Para o poeta russo, que
viveu sob o regime soviético, essa tendência parece se encontrar,
principalmente, em governos que empregam a promessa da justiça e da
159
Ariano SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p. 55-68.
160
IBID, p. 107.
161
IBID, p. 107-111.
162
IBID, p. 123-124.
163
IBID, p. 126.
164
Joseph BRODSKY, Um discurso inaugural. In: Menos que um, p. 147.
77
felicidade coletiva para, empregando toda sorte de abuso e violência,
conservarem e ampliarem seu poder. Suassuna nos mostra esse mal sob uma
familiaridade inquietante. Ele pode estar no conselho de uma vizinha, que, sob
a promessa de uma condição melhor, esconde a palavra do diabo. Em seu
discurso, Brodsky insiste na atuação social e na completa humanidade do mal,
e que noções como “justiça social, consciência cívica, um futuro melhor”
podem, sem dificuldade, serem pervertidas e apropriadas em função do mal
165
.
Na Farsa, Suassuna, por meio da personagem Aderaldo, expõe essa mesma
perversidade, quando o trabalho em si bom, e criador acaba desvirtuado
pela ganância e sede lugar à exploração
166
. O mal, ainda segundo Brodsky,
tende a se organizar e a se burocratizar, procurando a uniformidade, a
massificação, o silêncio do indivíduo na concordância geral. Por isso, a
criatividade e a espontaneidade constituem a única forma de resistir ao mal,
por meio daquilo que não pode ser imitado, não pode, portanto, ser
instrumentalizado pelo mal
167
. Em sua análise do primeiro ato, Idelette Santos
diz: “O poeta chega e, com algumas piadas, espanta Andreza o poeta, alma
pura, consegue espantar o Diabo?”
168
. O poeta consegue espantar o diabo?
Mantenhamos a interrogação. De alguma maneira, a espontaneidade do poeta
parece alertá-lo, e, conseqüentemente, protegê-lo, do mal; expondo-lhe,
arrancando-lhe a máscara, como ao descrever Andreza:
Que é isso? Que cara, Ave!
Andreza parece um bicho,
um desses bichos malignos,
uma mistura de cobra,
morcego e sapo hidrofóbico!
169
165
Joseph BROSDKY, Um discurso inaugural. In: Menos que um, p. 147-148.
166
Ver, além de diversas passagens da Farsa da boa preguiça, a introdução de Suassuna a
essa peça, A farsa e a preguiça brasileira.
167
Joseph BRODSKY, Um discurso inaugural, In: Menos que um, p. 148.
168
Idelette Muzart Fonseca dos SANTOS, Em demanda da poética popular, p. 267.
169
Ariano SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p. 66-67.
78
A fala do poeta expõe o caráter grotesco do diabo, ao evidenciar sua
situação intermediária entre o humano e a animalidade, a que nos referimos
anteriormente. A animalidade está presente também quando o poeta percebe o
esforço do diabo para se legitimar, pelo recurso à imitação: “Tá, eu nunca tinha
visto uma cobra assim, vestida de Frade: agora, posso dizer que vi!”
170
.
Principalmente, o discurso do poeta afirma o valor da alma ao denunciar a
ameaça de perdição, como ao responder ao ateísmo declarado por Clarabela:
“A senhora pegue com essas coisas, vá se fiando, / que quando der fé, está no
Inferno das Pedras, / no terceiro caldeirão, chiando!
171
.
O orgulho expõe à tentação do diabo; encontra-se na pretensão de auto-
suficiência representada no apego ao dinheiro de Aderaldo e no intelectualismo
de Clarabela, continuamente contrapostos à simplicidade de Joaquim Simão e
Nevinha. Entretanto, isso não quer dizer que os simples não estejam expostos
ao mal, como podemos inferir desta fala de Miguel Arcanjo:
Mas, se amamos mais os pobres,
não vamos idealizá-los!
Vamos amá-los sabendo
dos seus defeitos e qualidades!
172
.
Os pobres também estão sujeitos aos cios, como vemos na discussão
realizada pelas personagens celestes a respeito do comportamento de
Joaquim Simão, quando este prospera
173
; apenas quando reconduzido à
pobreza, o poeta reconcilia-se com a família e a
174
. Perspectiva semelhante,
em termos bem mais duros, encontra-se na fala do demônio Fedegoso: “O
povo é como todo mundo, o Povo é duro!
175
.
170
Ariano SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p. 107.
171
IBID, p. 113.
172
IBID, p. 52.
173
IBID, p. 224-225.
174
IBID, p. 225-226.
175
IBID, p. 247.
79
Empobrecido, Joaquim Simão se reencontra com Clarabela e Aderaldo,
agora não mais com a preguiçosa altivez do poeta vista no primeiro ato e sim
na humilíssima condição de empregado destes. Refeito do prejuízo sofrido no
primeiro ato, Aderaldo torna-se cada vez mais rico, ambicioso e avarento,
enquanto Clarabela entrega-se ainda mais à luxúria. A conduta das duas
personagens favorece a aproximação e a atuação dos demônios que parecem
sentir-se cada vez mais à vontade em cena. Os diálogos destes com Clarabela
encaminham a tese suassuniana da descrença como princípio da perdição
humana e preparam a revelação das personagens demoníacas. Em um
primeiro momento, quando Fedegoso, disfarçado de vaqueiro, com quem
Clarabela trai o marido, diz querer possuir-lhe não somente o corpo, mas
também a alma, a que esta responde:
Mas você, querido, quer uma coisa impossível!
Não existe a nossa alma!
Isso que você chama de alma
é uma região solitária e vazia!
Ninguém pode se apossar dela:
nem mesmo nós! Alma não compensa!
176
Negação da alma que se completa por outra negativa, adiante, quando
Clarabela é acusada pelo próprio Fedegoso por seu comportamento vicioso;
novamente, procura justificar-se Clarabela:
Viciosa? Como, se não há mais pecado?
Meu raciocínio é claro e calculado:
se não há Deus não há pecado:
se não há pecado, não há virtude!
Se não há virtude, não há vícios reais
176
Ariano SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p. 245.
80
e, se não há vícios, não há mulheres viciosas!
177
Paralelamente às justificativas de Clarabela para seu comportamento,
que se baseiam na negação de Deus, da alma e do pecado, os diálogos que a
personagem estabelece com Fedegoso e Quebrapedra associam o sexo à
brutalidade, retomam os temas do incesto e da animalização, sugerindo mais
uma vez a presença do mal na ruptura dos limites simbólicos existentes entre o
humano e o natural. Em seguida, entram em cena Aderaldo e Andreza,
demônio-fêmea que ajuda Clarabela a enganá-lo, enredando-os
definitivamente nos planos demoníacos; neste momento, a ação é interrompida
para que Aderaldo, efetivando Joaquim Simão como seu mordomo, o faça
expulsar três mendicantes, sem ainda saberem tratar-se de Miguel Arcanjo,
São Pedro e Jesus Cristo. Esta última situação serve como deixa para que os
demônios finalmente se revelem e sua intenção de arrastar o rico e sua mulher
para o inferno; ainda mais, revela-se aos atores humanos que permaneciam na
ignorância, e enfatiza-se ao público o que lhe havia sido anunciado desde o
início da peça, a feição do mundo, entre o divino e o infernal, interagindo no
palco terreno, mas permanecendo, no entanto, ignorados pelos seres
humanos, sintetizada nesta fala de Quebrapedra:
Este mundo é assim: tem a cara
que todo mundo vê e outra diferente!
É porta do sagrado luminoso
e porta do sagrado que é demente!
E assim também é o homem,
estrada doida e pouso da viagem,
por onde passam Anjos e Demônios,
sem que ele se dê conta da passagem!
178
177
Ariano SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p. 248.
178
IBID, p. 301.
81
O cósmico e o antropológico se confundem, e o interior do ser humano
se estabelece como palco do confronto entre o bem e o mal. Na perspectiva
suassuniana, em que a ignorância de sua condição de criatura cindida entre o
bem e o mal caracteriza o ser humano, não se encontra na gnose, mas na fé,
e, especialmente na dos mais simples, como Joaquim Simão e Nevinha, o
caminho para a realização do bem. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que
os demônios prenunciam a condenação de Aderaldo e Clarabela, deixam, por
meio da fé, ainda que no momento final, aberta a possibilidade de sua
salvação:
Como chefe desta patrulha do Inferno,
vim avisá-lo: você, e sua mulher, Clarabela,
só têm sete horas de vida!
Dentro de sete horas,
venho buscar você e ela!
Se, daqui até lá, você achar
quem reze, por vocês dois,
um Pai-Nosso e uma Ave-Maria,
apesar de todos os nossos feitiços e encantos
vocês escapam, por causa
da comunhão dos Santos!
Se não acharem, vão para a infâmia da solidão,
do sofrimento no fogo
queimoso e amaldiçoado!
179
Os demônios reconhecem na compaixão manifesta na oração e na
comunhão dos Santos o limite de suas ações. A disputa cósmica entre as
forças transcendentes é neste momento atenuada, e, a exemplo do que
constatamos no Auto da Compadecida, o mal parece se reduzir a um
instrumento conforme aos propósitos divinos. Outra interrupção se realiza, com
179
Ariano SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p. 305-306.
82
a inserção de outra narrativa buscada na literatura popular, permitindo que
transcorra o tempo concedido pelos demônios aos condenados. Fedegoso e
seus companheiros os carregam; os demônios tentam levar também o poeta e
sua esposa, que, com a intervenção de São Miguel, se livram destes aos socos
e pontapés, recurso cômico trazido do teatro de bonecos. São Pedro revela o
destino dos infelizes Aderaldo e Clarabela, e justamente Joaquim Simão e
Nevinha, os mais prejudicados pela inconseqüência dos ricos, rezam o Pai-
Nosso e a Ave-Maria exigidos, obtendo para os dois o purgatório.
O encerramento da peça procura reforçar o caráter humano de sua
elaboração. O espetáculo não pretende oferecer ao público nenhum modo de
revelação divina, mas tratar das expectativas humanas em relação à divindade.
Por isso, Suassuna, por meio de Manuel Carpinteiro que preside a encenação,
insiste que não cabe ao poeta julgar
180
, e, embora reconhecendo que devido a
seu comportamento condenável sua salvação pareça inverossímil, os ricos
escapam ao inferno.
Podemos dizer que nas representações do mal no teatro suassuniano
este se inicia identificado com as dificuldades impostas pela natureza na terra
áspera do sertão: materializa-se na seca, na fome, na doença, convergindo
sempre para a morte, desfecho cruel que alcança o ser humano a qualquer
momento, xima expressão da precariedade de sentido que parece condenar
o vivente a uma existência absurda. Nessas condições, os mais pobres são
aparentemente as vítimas primeiras, e sim, encontramos no texto suassuniano,
reiteradas vezes, a crítica à profunda desigualdade social que ainda existe em
nosso país. Contudo, o fundamento religioso que preside a argumentação do
autor pretende universalizar a experiência do sofrimento e a ameaça do
absurdo; o mal alcança a todos, indiferentemente de méritos pessoais ou
condição social, e essa percepção cresce quando o mal alcança formas mais
humanas, e a proximidade, discreta, mas terrivelmente próxima entre as
personagens humanas e demoníacas que vemos na Farsa da boa preguiça.
Isto permite ao autor situar na descrença e no pecado a abertura para o mal e
a morte, e agora nos coloca diante de uma morte não mais apenas física, mas
180
Observe-se que Manuel Carpinteiro, que representa o Cristo, ao desfechar a peça, insiste
que esta é uma elaboração do poeta Joaquim Simão.
83
da ameaça de uma morte total, que pode destruir o ser humano em seu corpo
e sua alma. Por outro lado, a representação do mal permite ao dramaturgo não
eximir, mas abrandar a responsabilidade humana por suas más ações, e inserir
o próprio mal dentro de uma lógica mais ampla, que pretende resgatar a
positividade da vida ao repensar o mal, submetendo-o aos planos divinos,
como momento de um processo educativo, por meio do qual o ser humano é
amparado pela divindade, ou, em termos teológicos, este, ao se abrir para a
graça, tem a possibilidade de encontrar ou recuperar o sentido da existência.
Na dramaturgia suassuniana, esse sentido revela-se plenamente na mediação
estabelecida entre as personagens humanas e as representações da
divindade.
3.2 As representações da divindade
Em nossa leitura, a presença das personagens transcendentes no teatro
suassuniano, sejam estas personagens demoníacas ou divinas, advém das
expectativas humanas, do desejo de atribuir à realidade uma ordem que parece
não se encontrar na brutalidade da vida. Se os demônios tornam em alguma
medida explicável o que acontece de violento e cruel na existência humana, e
estes também permitam ao autor atenuar a responsabilidade moral do ser
humano por suas ações, sua presença seria insuficiente para compreendermos
a cosmologia e, sobretudo, a antropologia religiosa existente no teatro
suassuniano. A experiência negativa propiciada pela atuação dos demônios
ruma a sua positividade, a sua redenção, o que somente é possível, na lógica
dramática e religiosa suassuniana, devido à pressuposição do desejo que o ser
humano pelo divino e a expectativa de sua intervenção na vida humana. Como
fora visto, a representação do transcendente no teatro suassuniano pode se
realizar pela referência a um santo, quando uma personagem humana se dirige
a este, caso do Santo Antônio em O santo e a porca. A personagem se coloca
diante da imagem do santo, que é, em muitos lares brasileiros, tida como se
fosse o próprio, permitindo-lhe dirigir-se e conversar com este. Também
encontramos o santo representado, transformado em personagem, como São
84
Pedro e São Miguel Arcanjo na Farsa da boa preguiça, intervindo e atuando
junto às personagens humanas. Realiza-se na Farsa a expectativa de que o
transcendente organize e ofereça sentindo ao ser humano, presente em O
santo e a porca. No entanto, acreditamos que as representações de Jesus
Cristo e de Nossa Senhora por Suassuna sejam de especial interesse para as
Ciências da Religião, ao menos nesta perspectiva de análise que optamos
realizar, das representações religiosas presentes em uma obra literária, por
permitirem discutir como o imaginário religioso brasileiro elabora suas
representações da divindade.
Nossa interpretação das representações da divindade no teatro
suassuniano encontra, no início do Auto da Compadecida, uma importante
chave de leitura:
Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua
igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que
sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de
insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema,
mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque
acredita que esse povo sofre e tem direito a certas intimidades
181
.
O autor se dirige ao público e expõe a motivação religiosa de sua peça.
A igreja que deseja preservar não é, como se poderia a princípio pensar, a
instituição, mas a comunidade humana, vitimada pelo mundanismo que será
denunciado e combatido no palco, ao qual está exposta devido à insensatez e
a solércia que se encontram na alma. Do autor? Sim, mas também em cada
um daqueles que compõem essa comunidade. O autor e a comunidade a que
este se dirige se identificam na fragilidade do espírito humano; essa mesma
identificação faz com que o autor ouse buscar “no espírito popular de sua
gente” os elementos que julga necessários para elaborar essa representação e
procurar de certo modo expurgar, por meio da representação teatral, a
pequeneza humana; se o faz é devido ao sofrimento que reconhece em seu
povo, e que, segundo o autor, permite a esse povo “certas intimidades” em
181
Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 16.
85
relação ao divino. Estas estão presentes no tratamento humano e pessoal que
o povo dirige aos santos, no amparo maternal e paternal com que espera ser
acolhido.
3.2.1 As representações de Cristo e de Nossa Senhora
Cristo
182
, como personagem, está representado em três peças de
Suassuna: Auto da Compadecida, A pena e a lei e Farsa da boa preguiça. Na
Compadecida, preside o julgamento das almas no terceiro ato, sendo chamado
simplesmente Manuel; em A pena e a lei, onde, também no terceiro ato,
Cheiroso, o dono do mamulengo, “sugere o Cristo”, sendo novamente entregue
para ser julgado pelos homens nesta representação da Paixão; na Farsa,
Manuel Carpinteiro se apresenta como “camelô de Deus”, conduzindo a peça
desde seu início. A rigor, estamos diante de três personagens que podem ser
consideradas distintamente; síntese de referências populares e eruditas que
permitem pensar o imaginário brasileiro sobre Cristo. Note-se a sua presença
em diferentes momentos da obra dramática de Suassuna; abre o ciclo das
representações religiosas realizadas pelo autor na Compadecida, atinge o seu
amadurecimento em A pena e a lei e desfecha a obra dramática suassuniana
na Farsa da boa preguiça.
Nossa Senhora encontra-se de maneira ainda mais discreta no teatro
suassuniano, estando representada em duas de suas peças. Em Uma mulher
vestida de sol, nós a vemos na última cena, quando Rosa encerra o ciclo de
violência e morte suicidando-se; conforme indica o autor: “Junto ao corpo de
Rosa, aparece a figura de Nossa Senhora, com os braços abertos como se
estivesse a envolvê-la em sua infinita piedade”
183
. Naquela que é certamente a
peça mais próxima à terra de Suassuna, este é, talvez, o único momento de
abertura para o transcendente, a intervenção de Nossa Senhora, anunciada no
título e no início do drama pela citação, feita por Cícero, o beato, dos versos do
182
O leitor interessado na representação teológica de Cristo e sua importância para a
experiência religiosa latino-americana consultará com imenso proveito as seguintes obras: de
Leonardo BOFF, Jesus Cristo libertador; de Orlando O. ESPÍN, A do povo, especialmente o
capítulo 1, O Deus dos derrotados.
183
Ariano SUASSUNA, Uma mulher vestida de sol, p. 194.
86
Apocalipse, versos retomados em seu encerramento. Uma imagem, um
único gesto, de acolhimento, misericórdia e esperança, condensando de
maneira impressionante as qualidades que serão explicitadas no terceiro ato da
peça que leva o seu nome, o Auto da Compadecida. Por que, diferentemente
das três representações distintas de Cristo, Nossa Senhora o retornará ao
palco suassuniano após a Compadecida? Entendemos que os aspectos
distintos elaborados nas representações de Cristo, como juiz na Compadecida,
em sua Paixão em A pena e a lei, e divulgador da mensagem cristã na Farsa
da boa preguiça, talvez não pudessem ser contidos no palco em um mesmo
momento, em uma mesma representação, enquanto a representação mariana
como mãe misericordiosa e intercessora junto a Cristo
184
, apenas indicada em
Uma mulher vestida de sol, teria encontrado na Compadecida, ousamos dizer,
sua forma definitiva.
3.2.2 Cristo e Nossa Senhora no Auto da Compadecida
O Auto da Compadecida se inicia como um circo que chega à cidade,
convidando as pessoas para prestigiarem seu espetáculo. O ator que vai
representar Manuel é o único que o saúda o público na abertura, tendo sua
ausência justificada pelo Palhaço, “porque sua aparição constituirá um grande
efeito teatral e o público seria privado desse elemento de surpresa”
185
.
Precisamos considerar que se trata, recordando a apresentação feita
pelo Palhaço, de “Uma história altamente moral e um apelo à misericórdia”, fala
complementada por João Grilo: “Ele diz „à misericórdia‟, porque sabe que, se
fôssemos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada”
186
. Evidencia-
se novamente o apelo à conversão, mas também a insuficiência do ser humano
para alcançá-la. D a grande questão teológica que o drama pretende
representar: como, sendo, por seus méritos, indigno, ainda assim o ser humano
pode ser salvo? E como a salvação pode se realizar sem que a justiça e a
184
Sobre o desenvolvimento histórico da imagem de Maria, consulte-se a obra de Jaroslav
PELIKAN, Maria através dos séculos; para um enfoque teológico, Leonardo BOFF, O rosto
materno de Deus.
185
Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 16
186
IBID.
87
misericórdia se contradigam? conhecemos a posição do diabo, para quem
justiça e misericórdia seriam inconciliáveis; seu desejo é concretizar o temor do
Grilo, o temor humano da condenação de todos. Questão insolúvel, não fosse
pela maneira como o drama elabora o imaginário sobre a divindade, levado ao
palco nas representações de Cristo e de Nossa Senhora.
A peça, no primeiro e no segundo atos, transcorrerá sem a participação
das personagens divinas ou demoníacas. As personagens humanas
encontram-se entregues aos seus excessos e paixões, evidenciadas nas
diversas situações micas. O riso permite expor a injustiça, a luxúria, o abuso
de autoridade, a exploração, a violência.
Entregue a si mesmo, o ser humano vivencia o sofrimento, sendo
arrastado em direção à morte: primeiramente, a morte física, no segundo ato,
na seqüência de mortes deflagradas com a chegada de Severino de Aracajú e
do Cabra; em seguida, a ameaça de morte e destruição integral, não apenas
do corpo, mas também do espírito, devida ao desejo do Encourado de arrastá-
los para o Inferno. Errante, o ser humano caminharia cegamente para sua
aniquilação. Mas não a aceita, e, em meio ao reconhecimento de seus enganos
e de mútuas acusações, dirige à divindade um último apelo. É o apelo humano
que possibilita a intervenção da divindade
187
. Tem início a representação de
Cristo no palco.
Sua entrada em cena modifica completamente o sentimento das
personagens que eram ameaçadas de condenação; estas passam da angústia
e do desespero a uma humilde tranqüilidade. O Encourado esforça-se para
evitá-lo
188
. Na rubrica, o autor descreve Cristo como “um preto retinto, com uma
bondade simples e digna nos gestos e nos modos”
189
. Na Compadecida, Cristo
é representado por um ator negro, conforme indicação do autor, reagindo a um
caso de discriminação racial acontecido nos Estados Unidos à época da
escritura da peça, em que um ator negro fora impedido de representar
187
Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 121-123.
188
Cf. IBID, p. 124.
189
IBID.
88
Cristo
190
. Discriminação que, ainda hoje, não é estranha à realidade brasileira;
tema que Suassuna abordou por outras vezes, por exemplo, com o negro
Benedito de A pena e a lei. Indagado pelo demônio se é Manuel, este se
apresenta como Manuel, o Leão de Judá, o Filho de Davi” e anuncia que irá
julgar as almas. Surpreso, mas ainda assim reconhecendo estar “diante de
uma grande figura”, João Grilo questiona-o sobre o nome Manuel, obtendo
deste o seguinte esclarecimento:
Esse é um de meus nomes, mas você pode me chamar também de
Jesus, de Senhor, de Deus... Ele [o Encourado] gosta de me chamar
Manuel, ou Emanuel, porque pensa que assim pode se persuadir de
que eu sou somente homem. Mas você, se quiser, pode me chamar de
Jesus
191
.
Ao saber estar diante de Cristo, não menor é a surpresa de João Grilo e
das demais personagens; este acreditava “que o senhor era muito menos
queimado”. O bispo o repreende; subserviente, procura ocultar o seu próprio
espanto e preconceito. Manuel o critica por ter sido um bispo indigno de sua
Igreja, tendo abusado de seu poder, lhe faltaram generosidade, humildade e
virtude. Ao comportamento do bispo, Manuel contrapõe a sinceridade
manifesta por João Grilo. Adverte ao bispo: “Seu tempo passou”. “O tempo da
mentira já passou”
192
. Está começado o julgamento.
Manuel adverte João Grilo por seu preconceito de raça e ao Padre por
sua preocupação com a posição social e o dinheiro. O julgamento prossegue; o
demônio acusa as almas e reitera a gravidade de suas atitudes em vida,
exigindo sua condenação. Manuel exerce sua autoridade de maneira serena,
não sendo contestado em momento algum, nem mesmo pelo denio. Procura
não apenas julgar, mas também educar e converter. No entanto, a exposição
das acusações, sua gravidade, parece exigir da justiça divina uma atitude
190
Nas narrativas populares sobre o diabo, a personagem demoníaca é freqüentemente
associada ao negro, indicando a negatividade e o preconceito cultural e historicamente
sedimentados. Cf. Jerusa Pires FERREIRA, Fausto no horizonte, p. 55. Faz-se necessário
notar o caráter contestador de Suassuna ao representar o Cristo negro no Auto da
Compadecida.
191
Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 125.
192
IBID, p. 126.
89
implacável, ao menos é isto que deseja e espera o diabo. Neste momento, é
como se o pecado estabelecesse uma distância infinita entre o ser humano e
Cristo, instaurando-se novamente o desespero entre as almas. Se o diabo
chama a Cristo por Manuel, procurando persuadir-se de que ele é apenas
homem, as almas parecem convencidas da absoluta transcendência de Cristo
e da impossibilidade de que ele as perdoe; a distância infinita entre a criatura
pecadora e o Criador tornaria inevitável a perdição daquela. Ainda que Manuel
procure atenuar esta distância enfatizando sua humanidade, a conciliação
entre o humano e o divino parece incompreensível na perspectiva humana,
como vemos nesta fala de João Grilo: “O senhor quer saber de uma coisa? Eu
vou lhe ser franco: o senhor é gente, mas o é muito, não! É gente e ao
mesmo tempo é Deus, é uma misturada muito grande. Meu negócio é com
outro”
193
. O “outro” a quem João Grilo se refere é a misericórdia, sendo
lembrado pelo Padre que “Em Deus o existe contradição entre a justiça e a
misericórdia. Já fomos julgados pela justiça, a misericórdia dirá a mesma coisa”
194
. João Grilo lhe diz que eles ainda não foram julgados, e aos demais que é
preciso ter coragem, a coragem daqueles que passaram por toda sorte de
dificuldade em vida. A misericórdia é, para João Grilo, “mãe da justiça”, seu
princípio; misericórdia que é desdenhosamente ignorada pelo diabo, explicitada
por Manuel e desconhecida por Severino. Recitando os versos do poeta
popular Canário Pardo, João Grilo a invoca:
Valha-me Nossa Senhora, / Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite, / a braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada, / a braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio, / mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem, / só me falta ser mulher!
195
193
Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 140.
194
IBID, p. 142.
195
IBID, p. 144.
90
Nossa Senhora entra em cena, e tal como na entrada de Cristo, a
angústia e o desespero cedem lugar à tranqüilidade. Recebe afetuosamente os
versos citados, considerando-a uma oração alegre, e lembrando a João Grilo
que a tristeza é coisa do diabo.
Desde o início, coloca-se como intercessora junto a Cristo, apesar dos
protestos do Encourado. A fala de Cristo, “Discordar de minha mãe é que eu
não vou”
196
, implica a não contradição, em Deus, entre a justiça e a
misericórdia. Os diálogos se seguem, incluindo a oração da Ave Maria,
colocando em evidência a maternidade e a humanidade da Compadecida,
como nesta fala de João Grilo, dirigindo-se ao Encourado: “Está vendo? Isso
é gente e gente boa, não é filha de chocadeira não! Gente como eu, pobre,
filha de Joaquim e de Ana, casada com um carpinteiro, tudo gente boa”
197
.
João Grilo insiste na maior proximidade de Nossa Senhora às pessoas,
por sua completa humanidade: “A distância entre nós e o senhor é muito
grande. Não é por nada não, mas sua mãe é gente como eu, que é gente
muito boa, enquanto eu não valho nada”
198
.
Ao interceder pelas almas, a Compadecida reconhece os atos
reprováveis cometidos por estas em vida, mas alega que:
[...] é preciso levar em consideração a pobre e triste condição do
homem. A carne implica essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo
o que eles faziam era por medo. Eu conheço isso, porque convivi com
os homens: começam com medo, coitados, e terminam por fazer o que
não presta, quase sem querer. É medo
199
.
Medo que é reconhecido pelas almas, em suas diferentes
manifestações: medo da morte, da fome, da solidão. Medo que coloca o próprio
Cristo diante de sua humanidade: “E é a mim que vocês vêm dizer isso, a mim
196
Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 146.
197
IBID, p. 148.
198
IBID, p. 148.
199
IBID, p. 149.
91
que morri abandonado até por meu Pai!
200
. A humanidade de Cristo que se
encontra acentuada na fala de Nossa Senhora:
Era preciso, e eu estava a seu lado. Mas não se esqueça da noite no
jardim, do medo por que você teve de passar, pobre homem, feito de
carne e sangue, como qualquer outro, e, como qualquer outro,
abandonado diante da morte e do sofrimento
201
.
Nossa Senhora nesse momento pede, a Cristo, que este, por ter
vivenciado o sofrimento, se compadeça com os que são fracos. É a fraqueza
humana que a Compadecida alegará em sua intervenção pelas almas, mas
também a solidariedade e a compaixão que o ser humano, ainda assim,
mostra-se capaz de demonstrar, como no perdão do padeiro à esposa adúltera
e na absolvição que o frade lhes concedera
202
.
Recebidas as alegações, é chegado o momento da sentença.
Primeiramente, temos, sob os já esperados e, mais uma vez, não atendidos
protestos do Encourado, a absolvição de Severino de Aracajú e do cangaceiro,
que ganham o paraíso. Na explicação de Cristo para o veredito, a justificativa
recorrente para a fúria dos cangaceiros, o assassinato de seus pais pela
polícia, é subordinada à insondável sabedoria divina
203
.
As demais almas aguardam a decisão. Quando Cristo está para
anunciar a sentença, João Grilo, ciente da gravidade das acusações, pede-lhe
que conceda o purgatório, solução que é aceita por Nossa Senhora: “Dá pra
eles pagarem o muito que fizeram e assegura a sua salvação”
204
e ratificada
por Cristo, para maior descontentamento do demônio
205
.
Mais uma vez, temos a atuação de João Grilo, de certa forma
conduzindo as ações. Indagado por Cristo por que não se incluíra na proposta
para o purgatório, responde: “Porque, modéstia à parte, acho que meu caso é
200
Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 149.
201
IBID, p. 150.
202
IBID, p. 150-152.
203
IBID, p. 152-153.
204
IBID, p. 154.
205
IBID, p. 155.
92
de salvação direta”
206
. A acusação contra João Grilo é ainda mais grave do
que as acusações levantadas contra os demais, por este ter planejado a morte
da mulher do padeiro; mas o pícaro espera, por meio da esperteza que
empregava em vida, sair-se bem no julgamento final. Relembrando as
dificuldades que João Grilo enfrentara em vida, muito próximas das que eles
próprios passaram, Nossa Senhora pede por ele: “João foi um pobre como nós
meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre
como a nossa. Não o condene, deixe João ir para o purgatório”
207
.
Ampliando-se a imagem, pode-se dizer que, na perspectiva assumida
pelo autor, essa fala da Compadecida evidencia a proximidade de Deus para
com a humanidade, e, no caso, especialmente, com o povo sertanejo, em sua
opção de viver e sofrer como os pobres. Aqui, é possível aproximar a
interpretação suassuniana de um Deus que se faz pobre e vivencia o
sofrimento e a humilhação à interpretação que o teólogo Orlando Espín faz do
cristianismo popular latino-americano. Para este autor, a legitimidade da
experiência religiosa popular latina está fundamentada na analogia existente
entre o fracasso histórico de Jesus Cristo, crucificado na Palestina, e o
fracasso que as classes subalternas latino-americanas, em sua história e em
seu cotidiano, m vivenciado. Desta maneira, é possível identificar, parcial e
analogicamente, os cristãos latino-americanos derrotados com Jesus, o Deus
derrotado, e sua promessa de redenção. Estes projetam e representam em
Jesus suas vivências sofridas, mas também sua solidariedade
208
. A
representação teatral que Suassuna realiza de Cristo e de Nossa Senhora,
enfatizando sua humanidade e aproximando-os, pela vivência da pobreza e do
sofrimento, ao povo sertanejo, pode ser considerada, cultural e historicamente,
como um exemplo da possibilidade dessa analogia.
Voltando a João Grilo, este insiste em tratar com Nossa Senhora como
se sua salvação fosse um negócio, um negócio em que se mostra necessário
lograr um negociante desonesto, no caso, o diabo
209
; sendo, por isto,
repreendido: Isso dá certo no sertão, João! Aqui se passa tudo de outro
206
Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 155.
207
IBID, p. 156.
208
Cf. Orlando O. ESPÍN. A fé do povo, capítulo 1, O Deus dos derrotados.
209
Cf. Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 156-157.
93
jeito! Que é isso? Não confia mais na sua advogada?”
210
. Neste momento,
parece que o autor pretende contrapor a relatividade das normas humanas,
que muitas vezes, para poder viver, o pícaro teve de romper, à lei divina,
absoluta, e, portanto, irreduvel a qualquer forma de barganha. A
Compadecida pede a Cristo que não condene João Grilo. A fala de Manuel
opõe, mais uma vez, a relatividade do mundo ao absoluto da transcendência:
“O caso é duro. Compreendo as circunstâncias em que João viveu, mas isso
também tem um limite. Afinal de contas, o mandamento existe e foi
transgredido”
211
. Pede, enfim, uma nova oportunidade para João. Cristo aceita
a proposta, mas impõe a João Grilo uma condição; que este lhe faça uma
pergunta que ele não possa responder. A esperteza, único instrumento que
possuía em vida, é exigida por Cristo para que João Grilo possa recuperá-la.
Recordando-se das lições de catecismo, João lhe pergunta a data de sua
segunda volta; data que, segundo o Evangelho, seria desconhecida de todos,
até mesmo do Filho. Manuel lhe diz que sabe, mas que não pode responder,
pois ele não compreenderia
212
. Conclui o diálogo assim:
Eu sei, mas pra que você não fique cheio de si, vou lhe confessar que já
sabia que vo ia sair-se bem. Minha mãe tinha combinado tudo
comigo, mas você estava precisado de levar uns apertos. Estava
ficando muito saído
213
.
A esperteza do pícaro não apenas humilha e vence o diabo como recebe
sua legitimação, reconhecendo e sendo submetida à onisciência e à autoridade
divina e, também, sendo acolhida em sua misericórdia.
210
Ariano SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 157.
211
IBID.
212
Cf. IBID, p. 157-160.
213
IBID, p. 160.
94
3.2.3 Cristo em A pena e a lei
Em A pena e a lei se representa, mais uma vez, a condição humana: no
primeiro ato, sob a máscara da vaidade, que faz com que os homens
representem aquilo que não são caso do Cabo Setenta e de Vicentão, que,
apenas após sua desmoralização pelo pícaro Benedito revelam seus
verdadeiros sentimentos: criar passarinhos e cuidar das flores. E o herói, tão
humano quanto seus rivais, não é menos vítima das paixões do que estes:
quando finalmente os vence, Marieta o abandona, partindo com o caminhoneiro
Pedro. No segundo ato, a verdade e a mentira se convertem mutuamente,
conforme a situação e os interesses, exibindo a relatividade dos valores
humanos; a exemplo do primeiro ato, e de diversos outros momentos na
dramaturgia suassuniana, enganar aqueles que se encontram numa posição
social superior, por sua injustiça ou avareza, parece ser a única norma
absoluta.
Ao nos referirmos no capítulo anterior ao terceiro ato desta peça,
iniciamos por uma discussão sobre a morte. Os homens, devido ao pecado,
arrastam-se uns aos outros em direção à morte, e esta é a primeira das
acusações dirigidas contra Cristo nesta representação da Paixão. Neste
momento temos Cheiroso, o dono do mamulengo, representando Cristo,
entregue para ser julgado pelos homens; pode-se dizer que, de certa maneira,
inverte-se e complementa-se a perspectiva adotada no Auto da Compadecida;
naquele momento, era o ser humano levado diante de Deus para ser julgado
por seus pecados; agora, Deus se entrega aos homens para que estes julguem
o valor da vida. Relembrando Bastide, este diz que os deuses morrem quando
os homens deixam de acreditar em si mesmos
214
; no último ato de A pena e a
lei, ao receberem a oportunidade de julgar a (obra de) Deus, as personagens
devem julgar a si mesmas, julgar se vale ou não a pena a vida humana.
Ao entrar em cena, Cheiroso anuncia às personagens mortas que
representa o Cristo, e, como tal, deverá julgá-las, sendo escarnecido e
ridicularizado, até que, ainda em tom de zombaria, Benedito diz:
214
Roger BASTIDE, O sagrado selvagem, p. 250.
95
Então, Vossa Excelência vai me desculpar, mas, antes disso, quem
deve ser julgado é Vossa Excelência, Vossa Eminência, Vossa
Mamulenguência! Antes de nós fazermos qualquer coisa, o senhor criou
a gente e inventou o mundo! Foi o senhor quem inventou a confusão
toda, de modo que deve ser julgado primeiro!
215
Benedito obtém de Cheiroso a seguinte resposta:
Está certo, Benedito, em nome do Cristo vou aceitar o que você diz, se
bem que veja que, mais uma vez, não estou sendo levado ario. Serei
então julgado por vocês, que farão um inventário de seus infortúnios e
dirão se valeu a pena ter vivido ou não. Será assim julgado o ato que
Deus praticou, criando o mundo. Vou eu mesmo servir de acusador,
formulando as perguntas fundamentais do processo, tudo aquilo que se
pode lançar no rosto de Deus, mais uma vez exposto à multidão
216
.
Cheiroso interroga as almas; padre Antônio morreu de “susto”, atingido
por uma viga de madeira, ao ir confessar Marieta; Marieta, nervosa devido à
ausência de Pedro, morreu de “besta” no posto de saúde; Pedro ao tentar
socorrer Benedito, acidentou-se, morrendo de “edema de caminhão”; Benedito
caiu do cavalo, morrendo de “raiva”, quando ia buscar o advogado de Vicentão,
seu patrão, que havia morrido de “desgosto”, atingido pelas balas dos Nunes,
em uma disputa de terras. Joaquim morreu de “fome”, por causa do padre, que
lhe dera comida o corpo do retirante havia se desacostumado de receber
alimento; João morreu de agonia”, surpreendido pela onça Caetana, sob o sol,
embriagado pela cachaça que havia bebido no enterro de Joaquim. Conclui:
Em suma, cada um de vocês morreu por causa do outro. É a primeira
acusação do processo, porque os homens morrem do convívio dos
demais. Se vocês não herdassem o pecado e a morte, se o fossem
obrigados às injúrias de um rebanho, não morreriam, e Deus não
seria acusado nesse ponto. Será que o Cristo vai ter que morrer
novamente, por isso? Ou será que alguém tem coragem de morrer em
seu lugar? Você teria coragem, Pedro?
217
215
Ariano SUASSUNA, A pena e a lei, p. 196.
216
IBID.
217
IBID, p. 198-199.
96
E Pedro o nega, por três vezes, até que Benedito canta como galo.
Três vezes! O galo acaba de cantar. O Cristo está novamente a
caminho de sua Paixão. João, poeta, e Maria Madalena, ex-prostituta,
estão a seu lado. Primeira pergunta do Acusador: vale a pena fazer
parte da vida, sabendo que a morte é inevitável? O Cristo é levado
diante de Pilatos!
218
Vicentão, ainda em tom de escárnio, passa a representar Pilatos, e diz:
“Não vejo nele mal algum”; novo comentário de Cheiroso, lançando a segunda
acusação:
No Cristo, Pilatos não viu nenhum mal. De que homem se poderia dizer
a mesma coisa? Segunda pergunta do Acusador: vale a pena ser
mergulhado nesse espetáculo turvo e selvagem, sabendo que o mal
assim marca o sol do mundo? O Cristo é levado diante de Herodes!
219
Herodes, representado por Benedito, também escarnecendo, pede a
Cristo um prodígio, uma demonstração que o convença de seu poder e de sua
divindade. Cheiroso profere a terceira acusação:
Herodes queria um sinal, para ter a prova de que alguma coisa de
grave e de sério por trás da enganosa aparência de farsa da vida. Mas
o Cristo calou-se, por que muita coisa é preciso deixar em segredo.
Terceira pergunta do acusador: vale a pena viver, sabendo que a vida é
um dom obscuro, que nunca seinteiramente entendido e captado em
seu sentido enigmático?
220
218
Ariano SUASSUNA, A pena e a lei, p. 199-200.
219
IBID, p. 200.
220
IBID, p. 201.
97
Não tendo sua curiosidade satisfeita, Herodes encaminha Cristo de volta
a Pilatos, que o entrega à multidão. Jesus ou Barrabás? A multidão aclama
Barrabás. Cristo é entregue para ser crucificado. É pronunciada a última
acusação.
Então o Cristo foi entregue aos homens para ser crucificado. Era
naquele instante quase a hora sexta, e toda a terra ficou coberta de
trevas até a hora nona. E Jesus, dando um grande brado, disse: “Pai,
nas suas mãos encomendo meu espírito. Tudo está consumado”. E,
dizendo estas palavras, inclinou a cabeça e rendeu o espírito. Assim,
terminou o maior de todos os acontecimentos. E diz a última pergunta
do Acusador: estão vocês dispostos a aceitar o mundo, sabendo que o
centro dele é essa Cruz? Que a vida importa em contradição e
sofrimentos, suportados na esperança? Que diz você, Joaquim, você
pobre retirante que morreu de fome e que tem o nome do avô de Deus?
Você acha que valeu a pena? Se pudesse escolher viveria de novo?
221
Um por um, Joaquim e os demais reiteram o desejo de continuar a viver
e a esperança na vida. A morte, o mal e a incompreensibilidade do mundo se
dissipam ante a virtude da esperança. Ao aceitarem a vida, as personagens
aceitam, finalmente, a Deus. Esperança que se manifesta, sobretudo, na
crença de que, ao aceitar o Cristo, o absurdo, o não-sentido que ameaça a vida
humana, ceda lugar à maternidade e à paternidade divina. Acolhimento.
Pois, uma vez que julgaram favoravelmente a Deus, assim também ele
julga vocês. Erros, cegueiras, embustes, enganos, traições,
mesquinharias, tudo o que foi a trama de suas vidas, perde a
importância de repente, diante do fato de que vocês acreditaram
finalmente em mim e diante da esperança que acabam de manifestar.
Como zombaria disseram isso de você, Madalena [Marieta], mas todos
vocês nasceram na fé, viveram na esperança, foram agora salvos pela
caridade que é um dos nomes divinos do Amor. [...]. O Cristo foi mais
uma vez julgado e crucificado. Os homens comeram mais uma vez sua
carne e beberam seu sangue, esse fruto da videira que ele afirmou que
não beberia mais, até que viesse o Reino de Deus. Tudo foi
consumado. A carne do homem também seglorificada e o espetáculo
terminou. [...]. Mas, agora mesmo, recomeça. E eu termino dizendo
como Inocêncio Bico-Doce:
221
Ariano SUASSUNA, A pena e a lei, p. 201-202.
98
Ai meu Deus que vida torta
a findar e a começar!
Por que ninguém nunca perde
vergonha pra ela achar?
Ah, mundo doido, esse mundo
cujo mistério sem fundo
só Deus pode decifrar!
222
3.2.4 Cristo na Farsa da boa preguiça
Na Farsa da boa preguiça, redigida originalmente em 1960, encerra-se o
ciclo das obras teatrais de Suassuna, iniciado em 1947, quando da feitura da
primeira versão de Uma mulher vestida de sol. Encerram-se, também, as
representações das personagens transcendentes realizada pelo dramaturgo.
Nela encontramos Manuel Carpinteiro, representando um camelô, oferecendo
àqueles que passam ao público o seu produto; misto de feira e teatro, a
Farsa da boa preguiça é a única das peças de Suassuna em que a intervenção
do transcendente no palco se realiza desde o início do espetáculo, indicando a
condução divina na vida humana; após convidar o público para o espetáculo
que irá se representar, a batalha cósmica e vital entre o bem e o mal
223
, Manuel
apresenta a si e a seus companheiros, desde se colocando como diretor do
espetáculo:
De cima, entramos nós, dirigindo o espetáculo!
Um dos santos: São Pedro, o Pescador!
Um arcanjo: Miguel, guerreiro Fogo!
E eu, o lume de Deus, o Galileu!
Dirá o cavalheiro: “É impossível!
O Cristo, um camelô?”
Mas não será verdade que o Cristo é o camelô de Deus, seu Pai?
224
222
Ariano SUASSUNA, A pena e a lei, p. 205.
223
Cf. IDEM, Farsa da boa preguiça, p. 44.
224
IBID, p. 45.
99
A alusão a animais ferozes e exóticos, excitados e colocados para lutar,
serve para aguçar o interesse do espectador, um recurso buscado nas práticas
das feiras nordestinas; a representação de Cristo como “camelô de Deus”
entreabre as intenções religiosas do autor; diferente do que se teria na feira,
em que o espectador é mantido à parte do espetáculo, as falas de Manuel
Carpinteiro procuram realçar o envolvimento do público no confronto que se irá
presenciar; trata-se de levar ao palco, representação em menor escala do
mundo, o conflito universal em que cada ser humano está envolvido
225
. Esse
conflito se realiza em cena, como discutido, por meio da atuação dos
demônios, em geral disfarçados, mas, no momento decisivo em que estes se
propõem arrastar a alma humana, revelando sua verdadeira natureza. Naquele
momento, expusemos sucintamente como a graça divina, intervindo por meio
de São Pedro e São Miguel, permitiu a Joaquim Simão e Nevinha escaparem
aos diabos, que pretendiam carregá-los para o inferno; como o poeta e sua
esposa, nisso seguindo o exemplo da misericórdia divina, se dispuseram a
rezar pela alma dos ricos, que, dessa maneira, escaparam ao fogo eterno, indo
parar no purgatório, para receber o castigo de “trezentos anos de tapa e mais
cinqüenta de beliscão, queimaduras e puxantes de cabelo”
226
.
Nesta seção enfocamos a representação de Cristo como Manuel
Carpinteiro, para, dessa maneira, completarmos nosso quadro das
representações suassunianas de Cristo; embora a idéia de que Deus, mediante
Jesus Cristo, presida o espetáculo que é a vida humana, esteja presente desde
o Auto da Compadecida, naquele momento esse pressuposto somente se
explicita para o público na cena do julgamento das almas; em A pena e a lei,
quando Cheiroso, dono do mamulengo, assume o papel de Cristo, estamos
diante da fusão da imagem de Cristo com a do realizador dos espetáculos
populares; naquela peça, Cheiroso, agindo sempre como humano, indicava
que, no terceiro ato, representaria o Cristo; diferentemente, na Farsa da boa
preguiça, Manuel representa, desde o início, como se fosse Cristo.
No primeiro ato, a partir da discussão entre São Pedro e Miguel Arcanjo
sobre o que é melhor, a preguiça do pobre Joaquim Simão ou o trabalho do
225
Ariano SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p. 54-55.
226
IBID, p. 325-326.
100
rico Aderaldo, onde, inicialmente, o apóstolo coloca sob sua proteção o poeta e
o arcanjo valoriza o esforço do rico, criticando Joaquim Simão por manter a
família na miséria, o desenrolar das ações se realiza sem a intervenção direta
das personagens divinas, apenas com a atuação, ainda discreta, dos
demônios, para que, no fim do ato, se alcance a conclusão moralizante. Mesmo
os santos demonstram, em sua conduta, não conhecerem integralmente os
planos de Deus, conforme indicado em diversas passagens da peça; ao fim do
primeiro ato, quando as personagens divinas voltam à cena e São Pedro
conclui “que a preguiça compensa”
227
, é imediatamente corrigido por Manuel,
que enfatiza a necessidade da justa medida entre o descanso e o trabalho,
para em seguida afirmar que “Existe um ócio corruptor, / mas também existe o
ócio criador”
228
; o ato se encerra com a entrega do “produto espiritual
229
ao
público, e a afirmação de que outros (os demônios) embora ofereçam produto
semelhante, não têm a garantia da “Fábrica original”
230
, em pouco tempo se
estragando; temos uma atualização, para a linguagem comercial e industrial,
do caráter imitador do mal, indicado inicialmente no Auto da Compadecida e na
própria Farsa da boa preguiça, em nossa referência a Brodsky. A última fala de
Manuel no primeiro ato explicita as intenções do autor:
Assim, procuro, não impor, mas colocar
meu produto Providencial:
moralidade, religião,
fidelidade, esperança, obediência,
tragédia, drama e comédia,
amor de Deus e da Igreja,
poesia e diversão
231
.
227
Ariano SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p. 126.
228
IBID.
229
IBID.
230
IBID, p. 127.
231
IBID. Note-se a aproximação entre elementos lúdicos e religiosos.
101
No segundo ato a intervenção das personagens divinas no palco se
acentua, e, embora São Miguel e São Pedro tenham se comprometido a não
interferir na trama, assim que Manuel Carpinteiro se afasta eles entram
disfarçados em cena, junto às personagens humanas. Dessa maneira é
possível ao dramaturgo enfatizar a onisciência divina, até mesmo em relação
às ações e intenções dos santos, para que o sentido das ões venha a ser
esclarecido por Cristo, no fim do ato
232
. A roda da fortuna gira, e, com a ajuda
de São Pedro, que o apadrinha, Joaquim Simão enriquece. São Miguel se
preocupa com as conseqüências que o enriquecimento repentino possa ter; os
efeitos da riqueza sobre o poeta somente serão conhecidos pelo público ao se
iniciar o terceiro e último ato; por hora, Manuel Carpinteiro conclui o ato,
enfatizando qual é a verdadeira riqueza, aproximando, mais uma vez, a religião
e o lúdico:
Quando aqui se fala em bens
não é somente em dinheiro.
Eu penso é nos dons de Deus,
fortes, puros, verdadeiros.
Sobre o sangrento do mundo,
todo o cantar da alegria,
tendo o sol como roteiro!
233
No terceiro ato o poeta, tendo se deixado levar pelos vícios propiciados
pela riqueza, encontra-se novamente reduzido à pobreza; a encenação se
inicia com Joaquim Simão e sua família na condição de retirantes. A perda da
riqueza é vista positivamente por Manuel Carpinteiro:
232
Ariano SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p. 136-139.
233
IBID, p. 219.
102
Isso lhe foi salutar:
deixou a amante de lado,
a mulher o perdoou,
ele voltou à Igreja,
à segurança da Casa que o Cristo que eu represento
fundou para todos nós!
234
Não pela pobreza em si, mas porque, ao perder os bens, sempre
provisórios, que o mundo proporciona, pôde o poeta conciliar-se com a
verdadeira riqueza, encontrada na família e, por meio dela, com a família
universal que se encontra na Igreja fundada por Cristo “para todos nós”. O
restante é conhecido: a exacerbação dos pecados dos ricos, abrindo
caminho para a aproximação dos demônios; a luta de São Pedro e São Miguel
derrotando os demônios, impedindo que Joaquim Simão e Nevinha fossem
arrastados para o inferno; a oração dos pobres pela alma dos ricos, que,
apesar de seus pecados, conseguem o purgatório.
Desfechada a ação, Manuel Carpinteiro volta à cena, reforçando a
intenção moralizante e religiosa que conduz a peça; não por acaso, a peça se
encerra com uma saudação à Virgem Maria.
3.3 O humano e o divino no palco suassuniano
As representações do imaginário religioso por Suassuna, em seu teatro,
resultam de um longo processo de reinterpretações e ressignificações
realizadas pelo autor, em que muito pesam as opções pessoais do dramaturgo.
Essas reinterpretações conforme nossa interpretação visam uma
reconstituição do sentido da existência, constantemente ameado devido à
violência e à morte que podem, a todo instante, reduzir a vida ao absurdo. Por
meio das representações do mal, Suassuna oferece uma interpretação do
problema do mal que permite torná-lo compreensível, atenuando, devido à
234
Ariano SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p. 225-226.
103
personificação do mal na figura do demônio, a responsabilidade do ser humano
pelo pecado. A debilidade da vontade e da ação humana, características do
pecado, tem na representação do demônio um elemento provocador, isentando
parcialmente o ser humano por seus equívocos. É como se dissesse: não
sendo completamente culpado por todos os seus erros, o ser humano pode ser
elevado e salvo, ainda que se trate de Aderaldo e Clarabela, e sejam
necessários muitos tapas e beliscões para redimi-los. No entanto, é mediante a
presença divina, sobretudo nas representações de Jesus Cristo e de Nossa
Senhora, que o ser humano encontra a possibilidade de sua redenção; na
perspectiva adotada por Suassuna, a ênfase nos aspectos humanos da
divindade permite a proximidade entre o humano e o divino, sobretudo em seus
aspectos femininos e maternos, evidenciados na Compadecida; acentua-se a
humildade divina pois, como diz Manuel Carpinteiro “E o Cristo sempre foi
pobre
235
. Por meio do sofrimento que os pobres enfrentam em vida, descobre-
se, na pobreza também enfrentada pela família divina, o ponto de aproximação
entre o povo sertanejo e o Deus cristão. Dialeticamente, temos o momento em
que o povo sertanejo também se diviniza, ou seja, a identificação simbólica
com as personagens divinas levadas ao palco por Suassuna torna-se geradora
de identidade e sentido. Por essa abertura existencial e religiosa o teatro
suassuniano pode mais que fazer rir, pode comover.
235
Ariano SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p. 52.
104
Conclusão
Tendo nos aproximado da obra teatral de Suassuna, sobretudo daquelas
peças que entendíamos oferecer mais elementos para a interpretação da
religião realizada pelo autor, acreditamos ter cumprido satisfatoriamente o
objetivo desta pesquisa, compreender as reinterpretações e ressignificações da
religiosidade popular realizadas pelo autor; em nosso trajeto, tornou-se
possível esclarecer as implicações entre opções estéticas, religiosas e o fundo
cultural sobre o qual a dramaturgia suassuniana está assentada, permitindo
uma visão mais refinada tanto da obra quanto de seus pressupostos
existenciais e religiosos.
O Capitulo I permitiu compreender como Suassuna se posiciona no
debate contemporâneo a respeito das relações entre discurso poético e
discurso religioso; embora arte e religião se dirijam à totalidade do ser humano,
diversas razões levaram a uma tentativa de autonomia compreendida como
negação do outro discurso. A reflexão suassuniana sobre a arte permite afirmar
que pode haver lugar, na práxis artística, para as diferentes questões que o
inquietam, incluindo a questão religiosa. Em seguida passamos a examinar
como isso se realiza na própria obra suassuniana: em um primeiro momento,
mediante a representação do sertão, compreendida pelo autor como palco que
simboliza o mundo, e a representação do sertanejo, síntese da humanidade.
Buscávamos, ali, os fundamentos cosmológicos e antropológicos que
permitiriam compreender sua concepção religiosa.
O Capítulo II examinou a importância das categorias estéticas de
tragédia e comédia para a explicitação da concepção religiosa de Suassuna em
sua dramaturgia. Por meio da tragédia evidencia-se a incompatibilidade entre o
ser humano e o mundo em que se vive, devido às diversas situações em que o
sentido da existência parece se desfazer. No entanto, se nos detivéssemos no
momento trágico, em que o religioso permanece como uma expectativa, não
seria possível compreender a “intimidade” que Suassuna acredita existir entre o
povo sertanejo e o divino; daí a importância da comédia, possibilitando a
proximidade entre o divino e o humano, analisada no capítulo seguinte.
105
O Capítulo III, voltado para a análise mais detida das peças em que a
relação entre o humano e o divino se explicita: o Auto da Compadecida, A pena
e a lei, e a Farsa da boa preguiça, se abre com a análise das representações
do mal, e a tentativa de interpretar a importância, principalmente das
personagens demoníacas, para a concepção religiosa desenvolvida por
Suassuna; por meio da análise das representações de Jesus Cristo e de Nossa
Senhora, como se torna possível, mediante o imaginário religioso re-significado
pelo autor, a reelaboração do sentido da existência que havia sido ameaçado
pela violência e pela morte.
Entendemos que ao reinterpretar o imaginário religioso nordestino em
seu teatro, Suassuna oferece importantes subsídios para pensar sobre as
características desse imaginário; sobretudo, nos oferece a possibilidade de
pensar sobre a relação pessoal e íntima que caracteriza a relação dos sujeitos
religiosos com a divindade, nas formas de sociedade mais tradicionais. Pode-
se pensar se, nas modernas sociedades urbanas, esse “modelo religioso
ainda tem algo a dizer. Ao longo da pesquisa, sempre nos inquietou a seguinte
questão: ao nos voltarmos para uma obra que se propõe ressignificar o
catolicismo popular nordestino, nós não estaríamos, portanto, lidando com as
relíquias de antigas tradições, que nada mais tivessem a dizer ao tempo
presente? Mas, se atentarmos, por exemplo, para o pentecostalismo, veremos
que as formas mais afetivas de religião ainda significam muito
236
. Lembramos,
também, que nas periferias urbanas a afetividade no tratamento religioso
permanece importante também nos meios católicos. A leitura atenta de uma
obra como a de Suassuna ainda pode, como acreditamos, oferecer muito para
a reflexão dos pesquisadores em ciências da religião. A separação estanque
entre pesquisa “empírica” e “bibliográfica”, como se os dois campos o se
esclarecessem mutuamente, traz prejuízos práticos e teóricos ao
reafirmar e nutrir antigos, mas recorrentes, preconceitos.
Em relação aos possíveis desdobramentos futuros sobre a pesquisa em
religião referida à obra de Suassuna, alguns caminhos se oferecem; a
236
Não sendo possível aqui tratar essa questão, indicamos as seguintes obras: João Décio
PASSOS. Teogonias urbanas o renascimento dos velhos deuses; e a coletânea organizada
pelo mesmo autor, Movimentos do espírito.
106
importância do feminino nas representações religiosas existentes na obra
suassuniana, não apenas em sua dramaturgia, mas em outros lugares da sua
produção literária, questão esta que discutimos pontualmente, ao nos
referirmos, principalmente, à representação de Nossa Senhora; noutra direção,
se pensamos, por exemplo, no Romance d’A pedra do Reino, além da questão
do messianismo, que, conforme indicado, muito ocupou a atenção de seus
intérpretes, reconhecemos que se encontra no romance uma rica mitologia,
tendo por base o imaginário religioso indígena; além disso, pode-se pensar em
uma leitura da obra ensaística de Suassuna, o que nos foi sugerido pela Dra.
Jerusa Pires Ferreira; em relação a isto, encontra-se nos textos suassunianos
uma interpretação sobre a religião como forma de legitimação e formação da
identidade do povo nordestino, do sertanejo especialmente, e, também,
entende-se a religião como forma privilegiada por meio da qual as classes
subalternas procuram denunciar as injustiças sofridas e elaborar
simbolicamente sua futura superação, aspecto que também abordamos em
nossa análise de sua dramaturgia, mas que deve ter seu desenvolvimento
ampliado, sobretudo em um diálogo, que acreditamos ser muito proveitoso,
com as contribuições trazidas pela Teologia da Libertação, e que aqui pudemos
somente indicar.
107
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