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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA
INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA
ELISABETE ALERICO GONÇALVES
O IMPACTO DA VIOLÊNCIA FAMILIAR NO PROCESSO DE
DESENVOLVIMENTO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
São Leopoldo – RS.
2009
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2
ELISABETE ALERICO GONÇALVES
O IMPACTO DA VIOLÊNCIA FAMILIAR NO PROCESSO DE
DESENVOLVIMENTO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Trabalho Final de Mestrado Profissional para
obtenção do grau de Mestre em Teologia da
Escola Superior de Teologia - Programa de
Pós-graduação.
Linha de pesquisa: Educação Comunitária
com Infância e Juventude.
Orientador: Prof. Dr. Euclides Redin
São Leopoldo
2009
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3
RESUMO
Para tratar de violência familiar contra crianças e adolescentes é necessário
conhecer um pouco mais sobre o tema. Portanto, faz-se essencial que se conheça
sua estrutura conceitual, ou seja, os tipos de violência e suas causas e
conseqüências. No decorrer desta dissertação também serão abordados temas
sobre a cumplicidade existente entre o agressor e a tima e o que a leva a manter
relações de confiança e silêncio.
O tema será apresentado também frente ao olhar educacional, onde a
relação escola x comunidade passa por uma análise crítica, ressaltando o papel da
instituição de ensino e a importância das propostas pedagógicas. Essa visão será
fundamental, uma vez que é necessário saber como as crianças e adolescentes,
vítimas da violência familiar, estão sendo assistidas pela educação brasileira, sendo
que a educação é aspecto primordial para seu processo de desenvolvimento.
Prosseguindo sobre o assunto, apresento ainda os aspectos legais sobre a
violência familiar em crianças e adolescentes o posicionamento do Estatuto da
Criança e do Adolescente e do Ministério Público em relação às vítimas, os
procedimentos e as medidas adquiridas para a solução do problema.
Por fim, faz-se uma coletânea da realidade apresentada em toda a
dissertação com algumas propostas para que contribua de alguma forma para
amenizar o impacto da violência doméstica no processo de desenvolvimento da
criança e do adolescente vítimas do descaso, do desrespeito e do abandono.
Palavras-chave: Família. Violência doméstica. Criança e adolescente.
4
ABSTRACT
To deal with family violence against children and adolescents is necessary to
know a little more about the subject. Therefore, it is essential to know its conceptual
structure, ie, the types of violence and its causes and consequences. In the course of
this work also will discuss topics on the complicity between the aggressor and the
victim and what it takes to maintain relations of trust and silence. The theme will be
presented also look forward to education, where the relationship the school and
community goes through a critical analysis, emphasizing the role of the educational
institution and the importance of educational proposals. This view is crucial, since it is
necessary to know how children and adolescents, victims of family violence are being
assisted by the Brazilian education, and education is a key aspect to their
development process. Continuing on the subject, still present the legal aspects of
family violence on children and adolescents - the placement of the Child and
Adolescent and prosecutors towards victims, procedures and measurements
performed to solve the problem. Finally, it is a collection of facts presented
throughout the dissertation with some proposals to contribute in some way to mitigate
the impact of domestic violence in the development of child and adolescent victims of
neglect, disrespect and abandonment.
Keywords: Family. Violence. Child and adolescent.
5
SUMÁRIO
Introdução .............................................................................................................. 7
1. Os conceitos familiares numa abordagem contemporânea .............................. 9
1.1 As várias faces da família .......................................................................... 10
1.2 A cumplicidade das diferenças .................................................................. 17
2. Aspectos da violência familiar: fato ou conseqüência? .................................... 20
2.1 A violência doméstica na vida da criança e do adolescente ..................... 22
2.2. Múltiplas violências: o ciclo agressor x vítima .......................................... 28
2.3 A violência e as marcas deixadas em crianças e adolescentes: o medo como
pacto do silêncio ................................................................................................... 36
2.4 O impacto da violência familiar no processo de desenvolvimento de crianças
e adolescentes vítimas de agressão .................................................................... 39
3. A violência familiar no olhar da escola.............................................................. 43
3.1 Como a escola identifica crianças e adolescentes vítimas da violência
doméstica ............................................................................................................ 45
3.2 O posicionamento da escola em relação às vítimas da violência ............ 47
3.3 As propostas educativas oferecidas a crianças e adolescentes que sofrem
violência doméstica .............................................................................................. 49
4. Os direitos da criança e do adolescente .......................................................... 51
4.1 Aspectos legais ......................................................................................... 53
5. Considerações finais ........................................................................................ 59
6. Referências ....................................................................................................... 62
6
INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea apresenta a estrutura familiar e as relações da
família como sendo um dos maiores geradores da problemática de crianças e
adolescentes, principalmente pela falta dos valores necessários que dão subsídios à
sua educação. Essa desestruturação familiar e suas relações servem como base
para questionamentos referentes às conseqüências que isso gera, bem como quais
as oportunidades que oferecemos a eles visando seu desenvolvimento em uma
dimensão familiar, social e educacional.
A violência familiar cresce diariamente em nosso país. A todo momento nos
deparamos com telejornais noticiando o desrespeito pelo ser humano, inclusive às
crianças e aos adolescentes.
São torturas, trabalho escravo, drogas, criminalidade, pedofilia e
espancamentos que acabam por privá-los do direito de simplesmente serem livres
para se desenvolverem de acordo com sua etapa de vida, ou seja, de serem - elas
mesmas – crianças e adolescentes.
Essa onda de violência que ronda o Brasil está crescendo visivelmente,
abrindo caminhos à juventude para uma vida sem perspectivas e de total abandono.
A violência familiar contra crianças e adolescentes tornou-se uma questão
pública e na última década vem sendo enfrentada como problema de cunho social.
Essa mobilização teve início a partir da década de 90, quando a violência familiar foi
incluída na luta nacional e internacional pelos direitos humanos, preconizados na
Constituição Federal Brasileira (1988) e no Estatuto da Criança e do Adolescente
Lei 8.069/90. Foi nessa mesma década que se assegurou juridicamente à infância
brasileira a condição de sujeito de direito, comprovando-se as dificuldades de
garantir um ambiente justo e protetor para um desenvolvimento saudável da criança
e do adolescente.
Visando essa proteção foram criadas linhas de defesas nessa área, como é
o caso dos órgãos institucionais como Conselho Tutelar e Ministério Público, além
do desenvolvimento de toda uma legislação de proteção à família e às crianças e
aos adolescentes vítimas de violência.
7
Assim, o grande paradigma, tanto no âmbito social quanto educacional,
filantrópico ou não, é proporcionar uma reestruturação nos conceitos e valores
familiares e educacionais, voltando-os às necessidades da sociedade, para que se
consiga romper com os padrões antigos, exigindo a construção de uma nova cultura
de proteção e respeito aos direitos humanos da criança e do adolescente,
implicando no desenvolvimento de relações e respeito aos direitos humanos e nas
trocas afetivas em todos os ambientes: familiar, social e educacional.
A presente pesquisa vem desencadear a polêmica sobre a violência familiar
no contexto doméstico, trazendo para a sociedade, professores e profissionais da
educação conhecimentos sistematizados, no que se refere aos tipos de violência -
suas causas e conseqüências, contribuindo para um entendimento maior do que
isso acarreta no processo de desenvolvimento das crianças e dos adolescentes,
servindo como aprimoramento das habilidades desses profissionais, desencadeando
métodos e técnicas para que saibam lidar com esses problemas, inclusive no âmbito
escolar e social.
Portanto, visando atender às necessidades dessas famílias no que se refere
ao desenvolvimento das crianças e dos adolescentes e proporcionar um melhor
entendimento dessa problemática, abordarei os fatores que geram a violência
familiar, os principais tipos de violência e como é vista e tratada pela legislação
brasileira; também será apresentado a forma com que os ambientes educacionais
estão lidando com os alunos vítimas da violência.
Nesse contexto, os aspectos conceituais, legais e educacionais terão
enfoque maior no decorrer do texto, onde serão trabalhados na visão e no
pensamento de vários autores, sendo levantados os impactos gerados no campo
familiar, social e educacional, visando o surgimento de novas propostas que
solucionem ou pelo menos amenizem as conseqüências da violência familiar no
desenvolvimento das crianças e dos adolescentes.
Entretanto, o paralelo que faremos em relação a esses fatores será o
principal eixo norteador para suprir e assistir, de forma digna e humana, esses
menores que, em sua maioria, o desamparados e carentes, visando uma prática
educativa que consiga suprir suas dificuldades e propiciar uma visão de futuro a
eles.
8
1. OS CONCEITOS FAMILIARES NUMA ABORDAGEM CONTEMPORÂNEA
A concepção familiar vem sofrendo alterações várias décadas. Nas
décadas de 60 e 70, a família era formada a partir de uma união estável através da
monogamia, esse tipo de união era vista como um formato definitivo, mas acabou
por ser abalada pela modernização dos tempos.
nos anos 90, devido à queda nos índices de união oficial e ao aumento
de outras formas de casamento, sem ser através de registro civil, o discurso acerca
da crise nos casamentos voltou-se para a importância dos laços familiares,
principalmente no que diz respeito à importância das relações interpessoais. Nesse
sentido, “não hoje em dia ninguém quem deseje a morte da família, celebrando-
se, pelo contrário, a sua renovação na década de 90
1
.
Mesmo tendo modificações na concepção familiar, o que é idealizado ainda
são os modelos de família nuclear, mesmo que alguns autores discordem, por
acharem que, em pleno século XXI, essa idéia é ultrapassada devido às novas
definições de família; mas o que se é que essas mudanças ainda continuam
ocorrendo ao longo da história e não as famílias passaram por modificações,
como também outros setores sociais, o que acabou por refletir-se no
desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, principalmente no aspecto
escolar.
A família, como principal estrutura socializadora da criança e do
adolescente, é também responsável pelo desenvolvimento da personalidade de seus
integrantes, principalmente pelo fato de ser o principal eixo norteador durante sua
formação.
Geralmente o modo de agir da pessoa que é tida como eixo principal dentro
da família reflete na educação por ela imposta e isso pode gerar na criança ou a
rejeição ou o caminho a ser seguido.
1
DESLANDES, Suely Ferreira. ASSIS, Simone Gonçalves de. SILVA, Helena Oliveira da.(Coord.)
apud SEGALEN. Análise de serviços de atenção à famílias com dinâmica de violência
doméstica a crianças e adolescentes. UNICEF: 2004. p. 16.
9
A família, nesse contexto, representa o alicerce de toda a estrutura da
sociedade, as raízes morais e a segurança das relações humanas. É nela que a
criança e o adolescente tiram o exemplo para seu modo de vida.
Existe uma parcela muito significativa de pais que estão despreparados
para orientar seus filhos, pois em inúmeras famílias o modelo de educação sempre
inclui a violência física, moral, psicológica e cognitiva.
Este debate sobre a responsabilidade social da família traz uma reflexão
sobre o espaço das interações pessoais como produção e reprodução da realidade
social e a idéia de que há uma relação de mão dupla entre contexto social e
comportamento das pessoas, que será também apresentado.
1.1 As várias faces da família
“A família [...] sempre foi considerada uma das mais importantes instituições
[...]”
2
, diz Streck, e essa concepção ainda perdura em uma grande parte da
sociedade comum e científica até hoje, apesar de nem sempre ter sido assim.
De forma empírica, nossa tendência é definir a família imaginando a união
de duas pessoas e que, em decorrência dessa união, geram filhos.
Para Azevedo e Guerra, a família é muito mais complexa do que isso. A
família ainda passa por grande transformação histórico-social e nesse aspecto é
que,
[...] tanto no nível do senso comum quanto da própria reflexão científica,
que leva à identificação do grupo conjugal como forma básica e elementar
de toda família e à percepção do parentesco e da divisão de papéis como
fenômenos naturais, criou, durante muito tempo, obstáculos de difícil
transposição para sua análise
3
.
Por esse motivo é necessário que haja uma maior compreensão sobre os
conceitos de família.
2
STRECK, Valburga Schmiedt. Famílias em transição: desafios para a sociedade e a Igreja. Estudos
Teológicos, ano 47. nº 1, 2007. p. 26.
3
AZEVEDO, Maria Amélia. GUERRA. Viviane N. de Azevedo (Orgs.). Infância e violência
doméstica: fronteiras do conhecimento. São Paulo: Cortez, 1993. p. 50.
10
Resgatando um pouco da história, Ariès discute as diferentes configurações
da família ocidental ao longo da história e utiliza o termo “nuclear burguesa”
4
para
descrever as famílias formadas por pai, mãe e filhos, cujas relações eram um
emaranhado de autoridade e amor parental.
Durante os séculos XVI e XVII, as famílias aristocratas não tinham
privacidade, não viviam dentro de suas casas e, quando nelas, não mantinham a
privacidade. A preservação da família como algo privado, à parte da vida social, era
uma idéia tipicamente burguesa; as relações sociais e a vida blica eram tão
presentes que se mesclavam e por isso não desempenhavam o papel de instituição
afetiva e socializadora. Seu papel ficava praticamente restrito aos ensinamentos de
continuidade do trabalho e preservação dos bens da família.
Nesse período, a mulher era extremamente submissa. As crianças não
tinham importância até o séc. XVIII, aliás, segundo o francês Ariès, “a criança não
chegava a sair de uma espécie de anonimato”
5
e, por isso, “[...] quando conseguia
superar os primeiros perigos e sobreviver no tempo da ‘paparicação’, era comum
que passasse a viver em outra casa que não a da sua família.”
6
Aos 4 a 5 anos de
idade, começavam a ser preparados para o trabalho, por isso a preservação do
ofício do pai.
Pelas grandes dificuldades e pela falta de acompanhamento, morriam
muitas crianças e por esse motivo não havia apego a elas eram vistas como
bichinhos de estimação – onde morria uma, vinha outra no lugar. A criança não tinha
tanta importância e o significado de infância não existia.
Nesse mesmo período encontram-se relatos sobre as “rodas da
misericórdia”, das Santas Casas. Essas rodas serviam como depósitos de crianças
abandonadas que, em sua maioria, eram de moças burguesas que precisavam
garantir sua idoneidade sem manchar a reputação nem prejudicar um futuro
casamento onde poderiam ter filhos legítimos. Portanto, os conceitos e valores
familiares nessa época não eram tão ressaltados.
no século XVIII, a função da família muda. Neste século, as famílias
burguesas começam a desempenhar um pouco mais a função de socializadora, com
isso surgem alguns aspectos para a família moderna, como é o caso da educação
4
ARIÈS, 1979 apud AZEVEDO, Maria Amélia. GUERRA. Viviane N. de Azevedo (Orgs.). Infância e
violência doméstica: fronteiras do conhecimento. São Paulo: Cortez, 1993. p. 51.
5
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 10.
6
ARIÈS, 1978. p.10.
11
escolar para meninas, antes excluídas desse contexto. A partir do século XIX a
família muda seu sentido, torna-se mais restrita e acolhedora.
Mesmo com todas as mudanças pelas quais passamos no decorrer da
história e do alerta de que a “história da família é descontínua”,
7
ela ainda continua
sendo nosso alicerce e fonte de revigoramento e sustentação.
O novo perfil de família moderna, mesmo que em alguns aspectos seja
contraditório aos princípios básicos das famílias nucleares, ainda não caiu no
esquecimento e formula um modelo de padrão ideal.
Apesar das certezas e definições terem sido abaladas, no imaginário social
a família ocidental ainda é idealizada a partir do modelo de família nuclear.
Entretanto, faz-se necessário que olhemos a família em seu movimento de
organização e reorganização, evitando sua naturalização e o estigma em
relação às formas e arranjos diferenciados.
8
Atualmente, o novo conceito de família acaba por afetar muitos conceitos e
um dos maiores desafios é desvincular essa visão arraigada de que família é
imutável e padronizada. É necessário que se entenda que estamos em pleno século
XXI e que muitas transformações ocorreram desde a antiguidade.
Como “desde a última cada fala-se em famílias no plural”
9
, precisa-se
entender que, ao contrário do sistema patriarcal, onde o pai era o centro da família,
outras estruturas surgiram.
As características das famílias acompanharam as mudanças sociais,
econômicas, políticas e culturais ocorridas nas últimas décadas, atualmente não
mulheres, mas homens estão assumindo seus filhos sozinhos, o que acaba sendo
um ponto de evolução histórica do ser humano, pois contrapõe aos dogmas
machistas da sociedade.
Na Constituição Brasileira de 1988, em seu art. 226, § - “entende-se
como entidade familiar a comunidade formada por qualquer um dos pais e seus
descendentes”, traz a base legal do que se entende por família.
No Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 25, traz a seguinte
definição: “entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou
qualquer deles e seus descendentes”. Legalmente, o que isso implica é que
7
POSTER, 1979 apud AZEVEDO, Maria Amélia. GUERRA. Viviane N. de Azevedo (Orgs.). Infância
e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. São Paulo: Cortez, 1993. p. 51.
8
UNICEF, Fundo das Nações Unidas para a Infância. CLAVES, ENSP /IFF / FIOCRUZ. Famílias:
Parceiras ou usuárias eventuais? Análise de serviços de atenção a família com dinâmica de violência
doméstica contra criança e adolescente. Brasília, 2004. p. 17.
9
UNICEF, 2004. p. 16.
12
independente da família ser biológica, adotiva ou outras, o que vai importar é o
vínculo de filiação em que a criança estará inserida.
A ênfase no vínculo de parentalidade/filiação respeita a igualdade de
direitos dos filhos, independentemente de sua condição de nascimento,
imprimindo grande flexibilidade na compreensão do que é a instituição
familiar, pelo menos no que diz respeito aos direitos das crianças e
adolescentes. Torna-se necessário desmistificar a idealização de uma dada
estrutura familiar como sendo a natural”, abrindo-se caminho para o
reconhecimento da diversidade das organizações familiares no contexto
histórico, social e cultural. Ou seja, não se trata mais de conceber um
modelo ideal de família, devendo-se ultrapassar a ênfase na estrutura
familiar para enfatizar a capacidade da família de, em uma diversidade de
arranjos, exercer a função de proteção e socialização de suas crianças e
adolescentes.
10
Assim, a estrutura familiar, independente de qual seja sua formação, tem o
papel principal de promover o que lhe é instituído por Lei, respeitando a diversidade
e a dignidade da criança e do adolescente. Nesse caso, o papel da família
transcende os marcos legais e vai de encontro à moral, à ética e à cidadania que
formam e completam o ser humano.
Da mesma forma que a Lei fornece subsídios para uma nova estruturação
familiar dando direitos e deveres iguais aos das famílias biológicas, ou seja,
constituídas de forma natural, ainda impasses, no Brasil, referente à união civil
homossexual e às questões referente às adoções.
Com esse excesso de mudanças e em decorrência da modernidade, que
nem sempre trouxeram benefícios, muitas famílias se desestruturaram e perderam o
respeito uns pelos outros e com isso acarretou um grande prejuízo no
desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, inclusive no rendimento escolar.
Essa crise na identidade das famílias acontece por vários fatores, inclusive
pelo desprazer de algumas pessoas em estarem com sua família, pela falta de
tempo, pelo excesso de trabalho; fatores esses ligados à nossa vida cotidiana, como
diz Streck: “muitas pessoas se sentem mais felizes no emprego do que em casa com
seus filhos e cônjuges”
11
. Com isso, o número de casamentos formais é cada vez
menor ou, quando chegam a acontecer, duram um tempo mínimo. Outro fator que
isso desencadeia é das mulheres adiarem sua vontade da maternidade por não se
10
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho Nacional
dos Direitos da Criança e do Adolescente. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do
Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Secretaria Especial
dos Direitos Humanos. Brasília: DF: Conanda, 2006. p. 26.
11
STRECK, Valburga Schmiedt. Famílias em transição: desafios para a sociedade e a Igreja.
Estudos Teológicos, ano 47. nº 1, 2007. p. 40.
13
sentirem preparadas ou por acharem que não terão tempo para seus filhos. Quando
acontece ao contrário, em muitos casos, a família se reduz a filho e a mãe, a pai e a
filho, ou a filho e outros parentes (avô, avó, tios, tias), devido à separação e à
produção independente; quando não acabam em abrigos para menores ou nas ruas.
Em todas as situações as maiores vítimas ainda continuam sendo as
crianças e os adolescentes que, nesses casos, ficam sem a representação do pai ou
da mãe, chegando também a ficar sem nenhum dos dois.
Nos casos de desestruturação familiar, em especial nos moldes da família
nuclear, os pais não prestam atenção em suas atitudes e não entendem que a
situação demora a ser processada pela criança ou pelo adolescente. Durante a
separação ou até que os procedimentos judiciais pelo pátrio poder dos filhos sejam
definidos, toda a projeção da mágoa ou vingança do outro vai sendo descontada na
criança ou no adolescente, afetando todo seu processo de desenvolvimento; nesse
sentido, o primeiro indício disso aparece na escola. Professores garantem que esse
problema não acontece apenas com alunos da rede pública, mas também da
privada, ou seja, os problemas familiares não acontecem somente com famílias de
classe baixa, mas sim de todas as classes sociais.
A questão da separação afeta toda família, mas em especial as crianças e
os adolescentes, principalmente quando os pais separados querem compensar o
afeto que não deram quando ainda existia uma família. Assim, entra o fator material;
a compra do resgate do carinho e da afetividade é feita por meio de presentes ou
pela falta de imposição de limites. Atitudes como estas, de outra forma, são
reforçadas quando uma das partes encontra outro parceiro de imediato sem prévia
preparação ou conhecimento dos filhos.
Nesse sentido, existem situações, durante os novos relacionamentos, em
que as crianças e os adolescentes são obrigados, judicialmente, a conviver com
pessoas diferentes e em dois ambientes na casa do pai com seu(sua) novo(a)
parceiro(a) e na casa da mãe enfrentando a mesma situação. Com isso, as crianças
e os adolescentes acabam se acostumando e, por fim, se adaptam aos dois
ambientes, sendo compensados por isso.
Por outro ângulo, as mudanças não foram de todo ruins, quando a família
permanece unida os resultados acabam sendo positivos.
As mudanças fizeram com que os antigos moldes de que apenas o homem
era o centro da família fossem deixados de lado, dando lugar, em muitos casos, ao
14
respeito, à colaboração e ao compartilhamento entre pais filhos o que antes era
fechado, abriu-se para o diálogo.
As mudanças pelas quais a estrutura familiar passou ao longo da história
trouxeram mudanças e discussões também no campo religioso. A visão que se tinha
durante a Idade Média, citada por Streck, da imagem dos integrantes da família que
era como “[...] parte da criação de Deus: o amor do pai para com a sua família se
compara ao amor que Deus tem pela Sua criação, bem como o papel do rei em
relação ao seu povo”.
12
Após o fim da Idade Média o indivíduo começou a olhar para si próprio; as
relações mudaram e aconteceu uma reforma na Igreja. A família começa a ser vista
como uma família santa e sua função comparada com as criações de Deus. O papel
do homem é de governante e pai, mas continua o conceito da mulher obediente e
servidora.
Resgatando essa parte da história e comparando com a atualidade,
observa-se que as definições de família aparecem de outra forma, ou seja, a figura
do paternalismo, muito presente durante décadas, e a comparação da figura do pai
com Deus mudam totalmente.
Com os novos modelos sociais, o avanço tecnológico e educacional, o perfil
da sociedade brasileira mudou e com isso os conceitos de família também.
Como diz Lisboa, “estudar família é uma tarefa difícil, por ser um sistema
complexo, composto por subsistemas integrados e interdependentes, que se
relacionam continuamente num contexto sócio-histórico no qual está inserida.”
13
Com isso, entende-se que entre escritores clássicos ou contemporâneos o desafio
não é de apenas conceituar, mas entender as relações em que são construídas ou
(re)construídas essas famílias. Essa nova estrutura trouxe consigo uma nova visão,
inclusive às crianças;
Observa-se que, em famílias reconstituídas, as crianças deixam de ter a
imagem de pais que vivem juntos, e famílias para elas são as pessoas que
estão próximas como os avós, os tios e amigos. Assim, família é sempre
aquele grupo de pessoas que vivem juntos enquanto está junto.
14
12
STRECK, Valburga Schmiedt. Famílias em transição: desafios para a sociedade e a Igreja.
Estudos Teológicos, ano 47. nº 1, 2007. p. 30.
13
LISBOA, Vicentina Aparecida Veloso de Barros. O jogo e seus múltiplos olhares: perspectivas da
família e da escola e suas interações na prática educativa. Dissertação (Pós-graduação) Programa
de Pós-graduação em Economia Doméstica, Universidade Federal de Viçosa, MG: 2008. p. 51.
14
STRECK, Valburga Schmiedt. Famílias em transição: desafios para a sociedade e a Igreja.
Estudos Teológicos, ano 47. nº 1, 2007. p. 35.
15
Nesse sentido, a família pode ser considerada como um grupo de pessoas
que vivem juntos, onde se mantém uma intimidade e uma organização particulares,
fazendo o papel “intermediário entre indivíduo e sociedade.”
15
Portanto, nessa nova
composição, as relações interpessoais se formam de acordo com a convivência
entre as pessoas que fazem parte da estrutura familiar, independente de quem seja,
tornando-a “ideal” ou “real”, dependendo do padrão de normalidade adotado pela
sociedade.
Diante disso, pode-se afirmar que o melhor caminho ainda permanece na
confiança, na responsabilidade e na liberdade dentro de um patamar de re-
significação dos novos conceitos de família e da re-valorização dessa instituição tão
importante para todos s, que reafirma o quadro apresentado pela ONU
Organizações das Nações Unidas, em 1996
16
, sobre as diferentes formas de família
existentes, como segue:
Família nuclear Família extensa Família reorganizada
Biológica Trigeracional Novo casamento (a)
Social De parentela Vida comunitária
Monoparental Tribal Mesmo gênero (b)
Adotiva (c) Poligâmica (b)
In vitro (b)
(a) O divórcio é aceito por muitos países, inclusive o Brasil.
(b) Estatuto legal reforçado em um número limitado de países. Concepção in vitro e união civil
homossexual estão em discussão no Brasil, com projetos de lei tramitando.
(c) Nos países onde a adoção é reconhecida, como é o caso do Brasil.
Conforme o quadro apresentado, mesmo nas categorias de famílias
nucleares, extensas e reorganizadas, encontra-se uma escala de classificação que
acaba por especificar e resumir o que encontramos em nossa sociedade. Porém, a
temática sobre a família não ra somente no aspecto constitucional, mas também
na relação entre gênero, raça, etnia e cor.
Um dos fatores mais importantes é que, na maioria dos casos, as formas de
família são marcadas por contrastes e rivalidades históricos, que, em sua maioria,
15
RIBEIRO, Marisa Marques. MARTINS, Rosilda Baron. Violência doméstica contra crianças e o
adolescente. A realidade velada e desvelada no ambiente escolar. 3. tiragem. Curitiba: Juruá,
2006. p. 50.
16
NATIONS, United. Family challenges for the future. United Nations Publications. New York.
Geneva, 1996. In: UNESCO, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. Ministério da Justiça.
Direitos humanos no cotidiano. Universidade de São Paulo, 2001. p.180.
16
querem apenas passar a imagem de refúgio a ser mostrada à sociedade, mas em
seu interior o que se encontra são os conflitos que acabam por tirar a dignidade de
seus membros.
É evidente que a família patriarcal deixou na sociedade resquícios da sua
organização, o que não significa que possa ser considerada ainda como
único modelo institucional e válido que sirva para caracterizar a família
brasileira de modo geral.
17
Essas condições em que vivem as famílias acabam por resgatar esses
resquícios e, por esse motivo, muitas situações são ditadas pelos moldes
tradicionais como antes. Atualmente essa nova concepção de estrutura formada de
acordo com os interesses de quem vive dentro da própria família, ainda que não
para todos, tem consciência de que é a principal responsável pelo ensino do respeito
e da valorização da vida afetiva dos membros integrantes, cabendo a todos protegê-
la.
A família contemporânea, em nas diversas concepções, mantém sua
responsabilidade histórica.
1.2 A cumplicidade das diferenças
A família, quando tida e pensada como sendo um grupo de pessoas cujos
laços de consangüinidade, de aliança e/ou de afinidade, onde os vínculos
proporcionam obrigações recíprocas em torno das relações que são passadas por
gerações e gêneros, acaba por terminar com qualquer idéia de família normal ideal
ou tradicional, como vimos antes, mesmo que contraditórios em relação alguns
aspetos.
Nesse sentido, são também unidades nas quais os indivíduos maduros se
ressocializam a cada momento, revendo e rediscutindo seus valores e
comportamentos na dinâmica do cotidiano, em função das necessidades
do grupo, que se renova a cada etapa da vida familiar e também de acordo
com as possibilidades oferecidas pela sociedade na qual o grupo se
insere.
18
17
RIBEIRO, Marisa Marques. MARTINS, Rosilda Baron. Violência doméstica contra crianças e o
adolescente. A realidade velada e desvelada no ambiente escolar. 3. tiragem. Curitiba: Juruá,
2006. p. 41.
18
AZEVEDO, Maria Amélia. GUERRA. Viviane N. de Azevedo (Orgs.). Infância e violência
doméstica: fronteiras do conhecimento. São Paulo: Cortez, 1993. p. 77.
17
Nesses aspectos seria ver que essa família, pensada como núcleo básico
de criação, que deveria promover laços de afetividade capazes de proteger,
socializar e mediar as relações entre “indivíduo e sociedade”
19
, acaba gerando
tensões que interferem no relacionamento pessoal, comprometendo a estabilidade
dessa família de acordo com o grupo em que a criança e o adolescente está
inserido.
O núcleo familiar, que serve para a criança e adolescente como garantia de
sobrevivência, cuidado e desenvolvimento, torna-se um ambiente carregado de
incertezas e medos; isso porque vai depender das relações e dos papéis de cada
um dentro dessa estrutura. Quando não são definidos, acabam no abuso de poder
dos pais e, em conseqüência disso, o início dos conflitos.
Os componentes da família em que a criança, em sua dependência, e o
adolescente, em suas expectativas, depositavam total confiança, acabam por virar
atores principais de um ambiente agressivo e
A maior tragédia dessa história é que as crianças confiam nos adultos.[...]
Agarram-se a seus atos e palavras como a uma bóia no oceano
ameaçador de uma vida à qual recém foram apresentadas.[...] As crianças
confiam nos adultos quando eles as espancam, as violam, as torturam e as
matam.
A maior tragédia dessa história não se encerra na família.[...]
20
Com isso, a confiança transforma-se em tragédia. A história converte-se em
um drama que nem sempre mantém os personagens principais para viver as cenas
até o fim.
O cenário sombrio vivido por crianças e adolescentes também conta com a
cumplicidade de quem os deveria acolher com afeto e amor as mães, que em sua
maioria se calam diante do companheiro e se tornam cúmplices com sua indiferença
ou reforço ao abuso de poder.
Essas agressões, em geral descontroladas, são consideradas como
medidas de educar e disciplinar, próprias do poder dos pais. No entanto,
com freqüência, tais “medidas educativas” ultrapassam o razoável e
tornam-se atos violentos de abuso do poder parental.
21
19
RIBEIRO, Marisa Marques. MARTINS, Rosilda Baron. Violência doméstica contra crianças e o
adolescente. A realidade velada e desvelada no ambiente escolar. 3. tiragem. Curitiba: Juruá,
2006. p. 50.
20
BRUM, Eliane. Apresentação. In: Violência doméstica. Brasília: UNICEF, 2000. p. 5-6.
21
MALDONADO, Maria Tereza. Os construtores da paz. Caminhos da prevenção da violência. 2.
ed. São Paulo: Moderna, 2004. p. 18.
18
Em decorrência desses abusos de poder parental é que estatísticas
apontam que os locais mais comuns onde as crianças e os adolescentes sofrem
agressões é a própria casa, ao ponto que muitas preferem morar nas ruas.
Segundo as pesquisas de Ribeiro e Martins, “o agressor na maioria dos
casos é do gênero masculino”
22
, e a partir disso dizem que: “Cabe-nos refletir o
papel da mãe nesses momentos, uma vez que sabe-se que a omissão e a
conivência são fatores presentes.”
23
Nesse caso, a maior preocupação encontra-se no papel da mãe que “não
deixa de ser agressora”,
24
assim denominado por Ferrari, para os casos em que a
mãe não corrige a criança ou o adolescente no ato do erro, mas simplesmente os
denuncia para o pai quando volta do trabalho e este por sua vez acaba por
descarregar suas tensões e seu poder de forma abusiva.
Em outros casos a mãe torna-se vítima do medo, das ameaças, da
insegurança por causa da baixa estima ou por pensar que aquele ato não foi
intencional e que tem esperança de que aquilo não passou de um gesto de raiva,
mesmo que abusivo, que foi momentâneo e que não vai mais acontecer dessa
forma. E isso acaba por dificultar ainda mais o trabalho no combate à violência
doméstica.
Segundo Rodrigues e Carvalho, “uma das maiores dificuldades para
enfrentar a questão da violência na família é que as pessoas, em geral, e as próprias
vítimas, consideram as agressões como normais [...]”,
25
isso por entenderem que faz
parte da educação e por esse motivo se submetem ao silêncio.
Assim, o que conseguem encontrar nesse caminho é algo contrário ao
auxílio; se deparam com o julgamento e a rejeição e tornam-se mais uma vez
vítimas, nesse caso, dos (pré)conceitos arraigados na sociedade.
Por esse motivo há uma grande necessidade de que compreendamos o que
ocorre no fator violência, sem deixar que os abusos simplesmente aconteçam, pois
acarretam ainda mais agressividade. A vítima hoje, em um determinado momento,
22
RIBEIRO, Marisa Marques. MARTINS, Rosilda Baron. Violência doméstica contra crianças e o
adolescente. A realidade velada e desvelada no ambiente escolar. 3. tiragem. Curitiba: Juruá,
2006. p. 87.
23
RIBEIRO. MARTINS, 2006, p. 87.
24
FERRARI, 2002, apud RIBEIRO. MARTINS, 2006, p. 87.
25
RODRIGUES, Alessandra Alves. CARVALHO, Denise Bomtempo Birche de. A violência
doméstica contra crianças e adolescentes: análise do fenômeno no Distrito Federal. Violência e
exploração contra crianças e adolescentes. Ser Social 2. Revista do Programa de pós-graduação em
Política Social do Depto. De Serviço Social da Unb. Brasília. Janeiro a junho. p. 63, 1998.
19
pode tornar-se agressor amanhã, porque a tendência de resposta também é de ser
agressiva; além disso, a probabilidade da criança ou do adolescente criado em um
ambiente violento tornar-se um agressor quando adulto é muito grande.
Segundo Finkelhor, “[...] a violência familiar pode trazer comprometimentos
a crianças e a adolescentes que se diferenciam dos maus-tratos ocorridos fora da
família [...],
26
com isso observa-se que a responsabilidade em fazer da família uma
instituição de respeito e educação é imprescindível, até mesmo porque a rotina de
violência faz com que o agressor perca a sensibilidade, sendo que, à medida que
convive no ambiente violento, mais reforça esse comportamento, tornando-se
incapaz de tratar bem os outros. Como diz Ricotta:
Falta realmente a ele a percepção de como o outro se sente. Ele não
consegue se colocar no lugar de outra pessoa para poder avaliar a
extensão da violência que pratica.
27
Além da perda da sensibilidade, a agressão pode ser resultante da infância
ou da adolescência, então o diálogo, a criatividade e o bom-senso ainda tornam-se
fatores imprescindíveis aos relacionamentos familiares. Além do mais, a
cumplicidade nessas relações deve ser para o lado bom e não para medir forças
físicas ou psicológicas, até mesmo porque dessa forma a única coisa que restará
como herança familiar às crianças e aos adolescentes serão as seqüelas da
inconseqüência dos pais ou dos demais integrantes desse grupo.
Assumir e definir papéis dentro da estrutura familiar com respeito, não se
calando diante das atitudes do agressor e procurando repartições de proteção às
vítimas de agressão farão com que essa cumplicidade “forçada” acabe ou que pelo
menos diminuam os impactos negativos ocasionados.
O desafio de não manter segredo está lançado e, como diz Ricotta, “o
respeito a você é a única garantia de se livrar de algozes e de não ser vítima”
28
.
26
FINKELHOR, 1983, apud UNICEF, Fundo das Nações Unidas para a Infância. CLAVES, ENSP /IFF
/ FIOCRUZ. Famílias: Parceiras ou usuárias eventuais? Análise de serviços de atenção a família com
dinâmica de violência doméstica contra criança e adolescente. Brasília, 2004. p. 24.
27
RICOTTA, Luiza. Quem grita perde a razão: a educação começa em casa e a violência
também. São Paulo: Annablume, 1999. p. 51.
28
RICOTTA, Luiza. Quem grita perde a razão: a educação começa em casa e a violência também.
São Paulo: Annablume, 1999. p. 47.
20
2. ASPECTOS DA VIOLÊNCIA FAMILIAR: FATO OU CONSEQÜÊNCIA?
Permito-me, antes de iniciar este capítulo, citar um texto de Galeano, que
diz assim:
A extorsão,
o insulto,
a ameaça,
o cascudo,
a bofetada,
a surra,
o açoite,
o quarto escuro,
a ducha gelada,
o jejum obrigatório,
a comida obrigatória,
a proibição de sair,
a proibição de se dizer o que se pensa,
a proibição de fazer o que se sente
e a humilhação pública,
são alguns dos métodos de penitência e tortura tradicionais na
vida da família.
Para castigo à desobediência e exemplo de liberdade,
a tradição familiar perpetua uma cultura do terror,
que humilha a mulher, ensina os filhos a mentir e contagia tudo
com a peste do medo.
29
Apesar do texto acima ilustrar bem as características da violência,
complemento, para melhor compreensão, com a definição geral de Maldonado sobre
a violência como “sendo o uso de palavras ou ações que machucam as pessoas” e,
ainda,“o uso abusivo ou injusto do poder, assim como o uso da força que resulta em
ferimentos, sofrimento, tortura ou morte”.
30
Para o UNICEF, a violência apresenta várias ramificações, o que não deixa
de gerar o mesmo impacto e sentido:
A violência familiar pode se relacionar a outras denominações, a exemplo
da “violência conjugal”, “violência contra crianças e adolescentes” ou
“maus-tratos”. Contudo, vale lembrar que violência contra crianças e
adolescentes se expressa de várias formas e, em muitas delas, as
fronteiras entre a família e o seu contexto social nem sempre são tão
nítidas.
31
29
GALEANO, Eduardo. apud RICOTTA, 1999, p. 59.
30
MALDONADO, Maria Tereza. Os construtores da paz. Caminhos da prevenção da violência. 2.
ed. São Paulo: Moderna, 2004. p.10.
31
UNICEF, Fundo das Nações Unidas para a Infância. CLAVES, ENSP /IFF / FIOCRUZ. Famílias:
Parceiras ou usuárias eventuais? Análise de serviços de atenção a família com dinâmica de violência
doméstica contra criança e adolescente. Brasília, 2004. p. 22
21
A violência doméstica com crianças e adolescentes, não só a nível nacional,
mas também no âmbito mundial, apresenta-se com a mesma estruturação e em todo
seu contexto despreza os direitos e os cuidados necessários para uma vida
harmônica e saudável.
Assim, se traduz pelas formas estruturais quando seus direitos mais
básicos são muitas vezes violados, como o acesso à escola, à assistência
de sua saúde, bem como pela ausência de cuidados necessários para o
seu desenvolvimento. Ocorre também quando esses sujeitos são
vitimizados, ou seja, quando as formas interpessoais de violência os
atingem pelos maus-tratos que se materializam nos abusos físico,
psicológico, sexual e na negligência ou abandono.
A violência familiar é considerada a principal razão pela qual crianças e
adolescentes deixam as suas casas e passam a viver nas ruas.
32
Os vários tipos de manifestações de violência trazem um questionamento
polêmico para todos nós: Se que esses aspectos são fatos, conseqüências de
uma vida insatisfeita e cheia de problemas decorrentes do cotidiano, fatores sócio-
econômicos e políticos, ou de tensões resultantes das atitudes de pessoas mal
resolvidas? Assim, no decorrer deste capítulo estaremos abordando esses
questionamentos.
2.1 A violência doméstica na vida da criança e do adolescente
Como vimos anteriormente, vários aspectos levam as pessoas à violência,
mas o que realmente entendemos por violência?
Segundo Lorenz,
33
“encontramos o instinto de agressividade direcionado
para a sua própria espécie, levando à violência.” Para esse zoólogo, estudioso do
comportamento animal e humano, essa agressividade que normalmente é
comparada com o extinto animal, pode ser contida desde que seja redimensionada e
32
UNICEF, Fundo das Nações Unidas para a Infância. CLAVES, ENSP /IFF / FIOCRUZ. Famílias:
Parceiras ou usuárias eventuais? Análise de serviços de atenção a família com dinâmica de violência
doméstica contra criança e adolescente. Brasília, 2004. p. 22
33
LORENZ, Konrad. Laureado com o Prêmio Nobel em 1973, zoólogo, fundador da moderna
etologia, estudioso do comportamento animal e do homem, apud COSTA, Regina da. PIMENTA,
Carlos Alberto Máximo. A violência: natural ou sociocultural? o Paulo: Paulus, 2006. p. 12.
22
com isso sendo evitados os atos de violência.
34
Por outro lado, existem divergências
quanto a essa afirmação, como é o caso da filósofa Hannah Arendt, que diz ser:
[...] muito perigoso se deixar levar por essas metáforas biológicas, pois,
dentro dessa forma de pensamento, a ão coletiva violenta torna-se pré-
requisito, um fato natural, para a vida em sociedade, do mesmo modo que
entre os animais a agressividade está presente na luta pela sobrevivência
para garantir a manutenção da espécie.
35
A descrição de violência, conforme é conceituada ou pensada, acaba por
induzir comportamentos ou ideologias, principalmente entre jovens; nesse caso o
risco de que se internalize a violência como luta pela sobrevivência se muito
maior.
Com isso a violência demonstra atingir aspectos que vão além dos que se
apresentam e são visíveis, por esse motivo que, independente de qual seja sua
origem e como seja definida, está presente no cotidiano da maioria da população.
De acordo com Rosário:
A violência é uma marca constante nas relações sociais e individuais,
considerando desde a perda da qualidade de vida material e privações
impostas pelo desemprego e concentração de renda, até os sentimentos e
imposições culturais na relação entre pessoas, nas quais seres humanos
são condenados à vida em sacrifício e humilhação.
36
A definição apresentada faz parte da realidade vivida por inúmeras famílias
brasileiras. A violência doméstica, entre suas várias faces, faz com que pessoas,
principalmente menores, vivam nessa situação de submissão e falta de respeito à
dignidade humana. O que se apresenta são pessoas “coisificando”
37
umas às outras,
inclusive crianças e adolescentes. Os sentimentos de sofrimento e angústia não
têm mais importância; o colocar-se no lugar do outro foi esquecido e junto os
desejos de uma convivência de cumplicidade e felicidade.
Segundo Dimenstein, a pobreza é apresentada como uma das causas que
provoca a “desintegração familiar”
38
e junto com isso vem a violência. A afirmativa do
autor não significa que nas famílias de outras classes sociais não exista violência,
até mesmo porque várias formas de agressão e em todos os casos o agressor
34
LORENZ, Konrad. apud COSTA, Regina da Costa. PIMENTA, Carlos Alberto Máximo. A violência:
natural ou sociocultural? São Paulo: Paulus, 2006. p. 12.
35
ARENDT, Hanna. 1994, apud COSTA, Regina da Costa. PIMENTA, Carlos Alberto Máximo. A
violência: natural ou sociocultural? São Paulo: Paulus, 2006. p. 12.
36
ROSÁRIO, Maria do. In: Violência doméstica. Brasília: UNICEF, 2000. p. 12-17.
37
ROSÁRIO, Maria do. In: Violência doméstica. Brasília: UNICEF, 2000. p. 12-17.
38
DIMENSTEIN, Gilberto. O cidadão de papel. A infância, a adolescência e os direitos humanos
no Brasil. São Paulo: Ática, 2005. p.24.
23
não necessita de um motivo em especial para que o ato violento aconteça. Nesse
contexto, Reichel relaciona a violência e crimes contra crianças e adolescentes ao
“fenômeno sócio-cultural dinâmico [...]. Fruto do abandono das populações pobres à
própria sorte, da falta de infra-estrutura dos sistemas educacionais, de moradia, de
saúde, bem como da falta de políticas sociais comprometidas [...].”
39
Para outros, o abuso de poder dos pais ou responsável, no ambiente
doméstico, levam a comportamentos e atitudes que acabam em agressões verbais
chegando até a agressão física. O que é mais assustador é que quaisquer que
sejam os motivos, as vítimas, devido à rotina de agressões, preferem dormir ou
morar na rua a se submeterem novamente a qualquer tipo de violência.
Para que a situação seja ainda mais absurda aos olhos da sociedade, a
maioria dessas agressões não precisam de motivos específicos, ocorrem em
qualquer sociedade, “independente do nível de formação ou situação econômica da
família”, conforme coloca Ribeiro
40
.
Nem sempre a violência doméstica é conhecida desta forma devido a suas
classificações, mas, “atualmente, é considerada não somente por atos violentos
concretos, mas pelas percepções que se tem a seu respeito e às representações
que possui na sociedade”,
41
que normalmente deixam marcas e impactos para o
resto da vida.
A violência doméstica ou a agressividade nem sempre tornaram-se
conscientes dentro do relacionamento familiar e por esse motivo também tornou-se
caso de saúde. Mesmo que nem todas as situações de agressões sejam
denunciadas, os grandes hospitais registram um grande número de atendimentos,
tanto às crianças quanto aos adolescentes e também às mulheres. De acordo com a
quantidade de vítimas da violência mais uma vez constata-se que, em muitas
situações, o ambiente familiar nem sempre é o lugar mais seguro para viver.
Abordando essa visão, Rodrigues & Carvalho fazem referência à violência como
sendo:
39
REICHEL, Sigmar. Violência institucionalizada. In: Violência doméstica. Brasília: UNICEF, 2000.
p. 8-11.
40
RIBEIRO, Marisa Marques. MARTINS, Rosilda Baron. Violência doméstica contra a criança e o
adolescente. A realidade velada e desvelada no ambiente escolar. 3. tiragem. Curitiba: JurEd.,
2006. p. 85.
41
UNICEF, Fundo das Nações Unidas para a Infância. CLAVES, ENSP /IFF / FIOCRUZ. Famílias:
Parceiras ou usuárias eventuais? Análise de serviços de atenção a família com dinâmica de violência
doméstica contra criança e adolescente. Brasília, 2004. p. 21.
24
[...] toda ação danosa à vida e à saúde do indivíduo, caracterizada por
maus tratos ou cerceamento da liberdade ou imposição da força. A criança
e o adolescente, por sua maior vulnerabilidade e dependência, são as
vítimas mais freqüentes.
42
Para reafirmar essa citação, o UNICEF apresentou dados dos países que
fazem parte da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), relatando que o grupo classificado com maior índice de risco de morte por
homicídios está na faixa etária abaixo de 18 anos de idade; os bebês com até 1
ano ocupam o segundo lugar. Outra classificação refere-se às crianças com menos
de 1 ano, segundo esses dados, o risco de morte é de três vezes mais do que as
que têm entre 1 a 4 anos de idade.
O dado mais agravante é o que diz que, “quanto mais nova for a criança,
maior será a probabilidade de sua morte ser causada por um parente próximo.”
43
Outros dados de ocorrências de mortes não podem ter seus motivos
precisados devido à falta de registros oficiais e, por isso, são simplesmente
caracterizados como mortalidade infantil.
Nesse contexto, pode-se classificar a violência como sendo qualquer forma
que se apresente, seja ela força física ou moral, sexual, psicológica ou a própria
negligência. As “violências domésticas”, assim descrevo, sofridas pelas crianças e
pelos adolescentes ainda não são totalmente entendidas, mas o que se pode afirmar
é que uma grande disputa pelo poder dentro da família, independente de qual
seja o motivo do ato da violência e quem sejam as vítimas dela.
Retornando à história, a modernidade contemporânea serviu para colocar
em evidência o que tanto se criticava no século XVII, o “ignorar da infância”. Sabe-se
que as crianças são necessárias, mas qual é o preço do nascer, viver e conviver em
um país em que se abusa delas? Será que podemos culpar essa geração de instigar
a violência doméstica pelo fato da maioria pertencer a uma classe social menos
favorecida, ou se que os maiores culpados são os que procuram incentivar o
incesto, a pedofilia, a prostituição, os vários tipos de agressões, dentre outros atos
que acabam ferindo e deixando marcas, o apenas externas, mas muito mais
internamente?
42
RODRIGUES, Alessandra Alves. CARVALHO, Denise Bomtempo Birche de. A violência
doméstica contra crianças e adolescentes: análise do fenômeno no Distrito Federal. Violência e
exploração contra crianças e adolescentes. Ser Social 2. Revista do Programa de pós-graduação em
Política Social do Depto. De Serviço Social da Unb. Brasília. Janeiro a junho. p. 57-84, 1998.
43
UNICEF. Situação mundial da infância. Sobrevivência infantil. 2008. p. 21.
25
A vida da criança e do adolescente, vítimas da violência doméstica, tornou-
se rotina para a mídia que tenta, de alguma forma, fazer com que os casos de abuso
venham à tona para que alguém faça alguma coisa, mas os atos abusivos ainda
permanecem e os agressores continuam impunes e livres na sociedade.
É comum afirmar que as crianças e os adolescentes vivem constantemente
em situação de risco e isso sabemos décadas, mas o mais difícil de aceitar é
que os rótulos apresentam como eles próprios sendo o risco. São taxados como
delinqüentes, menores infratores, prostitutas, pedintes, meninos e meninas de rua;
enfim, pseudônimos não faltam e mesmo assim se calam diante de todo o
sofrimento vivido, porque confiam em alguém. E, como diz a jornalista Eliane Brum,
a criança e o adolescente “confia no juiz quando pede que limpe a cera do
preconceito e a escute. E confia nele também quando implora que preste atenção
em evidências invisíveis, mas que sangram, do que no laudo inconclusivo e estéril
do Departamento Médico Legal.”
44
Isso, após terem confiado o suficiente e terem se
deixado levar por uma carícia mais profunda ou se submeterem ao espancamento
imaginando que seria para seu bem.
Mesmo que ainda seja uma polêmica, a violência doméstica tornou-se uma
constante na vida de todos nós e, mesmo com as mudanças ocorridas durante todo
processo histórico social pelos quais a sociedade brasileira e a família passaram nas
últimas décadas, principalmente com a conquista das Leis nacionais e internacionais
como a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente,
realizada em 1989; a Constituição Federal; o Estatuto da Criança e do Adolescente
e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, dentre outras, ainda há muito o
que fazer em relação à infância e à juventude.
De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e do Programa de
Combate à Fome
45
, no ano de 2005, no Serviço de Enfrentamento ao Abuso e à
Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes oferecido nos CREAS Centros de
Referência Especial da Assistência Social, em 314 municípios brasileiros, foram
44
BRUM, Eliane. Apresentação. In: Violência doméstica. Brasília: UNICEF, 2000. p. 5-7.
45
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Serviço de Enfrentamento ao Abuso e à
Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, disponível em
www.mds.gov.br Acesso em: 3 set.
2009.
26
atendidos, aproximadamente, 28.000 casos, dentre eles, foram classificados alguns
dados que apontam o perfil das vítimas, conforme tabelas 1 e 2.
46
Tabela 1. – Incidência da violência por idade da vítima
47
IDADE 0 a 6 anos 7 a 14 anos 15 a 18 anos TOTAL
Violência Física 765 2.194 477 3.436
Violência psicológica 828 2.793 719 4.340
Abuso Sexual 2.383 8.674 2.193 13.250
Exploração Sexual 37 1.503 1.347 2.887
Negligência 923 2.574 576 4.073
TOTAL 4.936 17.738 5.282 27.986
Fonte: Ministério de Desenvolvimento Social e Combate á Fome. (www.mds.gov.br). Acessado em
11/12/2006. In BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do
Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Secretaria Especial dos Direitos
Humanos. Brasília: DF: Conanda, 2006. p. 55.
Como vimos, a Tabela 1 apresenta os dados sobre a violência por idade e o
que se apresenta é que os maiores índices, em todos os tipos de violência, estão na
faixa etária dos 7 aos 14 anos. A proporção entre a faixa etária de 0 a 6 anos para a
de 7 a 14 anos é de praticamente três a quatro vezes maior, além do mais, os
índices de abuso e a exploração sexual merecem destaque.
Na Tabela 2 foram pesquisados os mesmos tipos de violência apresentados
na Tabela 1, porém separados por gênero. Assim segue:
Tabela 2. – Distribuição da violência por gênero
48
GÊNERO Masculino
Feminino Total
Violência Física 1.719 1.717 3.436
Violência Psicológica 2.177 2.163 4.340
Abuso Sexual 3.092 10.158 13.250
46
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho Nacional
dos Direitos da Criança e do Adolescente. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do
Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Secretaria Especial
dos Direitos Humanos. Brasília: DF: Conanda, 2006. p. 55.
47
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho Nacional
dos Direitos da Criança e do Adolescente. 2006. p. 55
48
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho Nacional
dos Direitos da Criança e do Adolescente. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do
Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Secretaria Especial
dos Direitos Humanos. Brasília: DF: Conanda, 2006. p. 56.
27
Exploração Sexual 258 2.629 2.897
Negligência 2.145 1.928 4.073
TOTAL 9.391 18.595 27.986
Fonte: Ministério de Desenvolvimento Social e Combate á Fome. (www.mds.gov.br). Acessado em
11/12/2006. In BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do
Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Secretaria Especial dos Direitos
Humanos. Brasília: DF: Conanda, 2006. p. 56.
Observa-se que os tipos de violência que mais se destacam são: o abuso
sexual, sendo três vezes mais no gênero feminino; e a exploração sexual, sendo dez
vezes mais meninas do que meninos.
A partir desses dados constata-se o que diariamente a mídia mostra em
relação ao turismo sexual brasileiro, a prostituição infantil, a pedofilia, dentre outros
abusos e, ainda, o número de pessoas das mais variadas classes sociais envolvidas
com a violência contra crianças e adolescentes.
Outro fator que se destaca é a negligência, cujos números são praticamente
equivalentes em relação às violências físicas e psicológicas.
No resultado total dessa classificação, verifica-se que as violências em
relação ao gênero feminino são quase que o dobro do masculino, o que reafirma
que, além da faixa etária, os mais frágeis continuam sendo preferência nos atos da
violência.
Como vimos, “a violência contra a criança dentro do ambiente familiar é um
problema de proporções desconhecidas”,
49
mas as que ocorrem nas ruas nem
sempre são. Em inúmeros casos os pais forçam os menores a irem às ruas com o
intuito de levarem algum tipo de benefício para casa – e isso também é violência.
Independente da forma em que a violência aconteça e quais os motivos que
a levem a acontecer, sempre será “o abuso do poder do mais forte – o adulto contra
o mais fraco - à criança”
50
ou à mulher, ao idoso, enfim, acontecerá àqueles mais
vulneráveis e dependentes, restando aos expectadores não se calarem diante disso.
49
GIRADE. Halim Antônio; DIDONET. Vital (Coord.). O município e a criança de até 6 anos: direitos
cumpridos, respeitados e protegidos. Brasília: UNICEF, 2005. p. 103.
50
RIBEIRO, Marisa Marques. MARTINS, Rosilda Baron. Violência doméstica contra a criança e o
adolescente. A realidade velada e desvelada no ambiente escolar. 3. tiragem. Curitiba: JurEd.,
2006. p. 86.
28
2.2 Múltiplas violências: o ciclo agressor x vítima
Como os casos de violência doméstica ocorrem dentro de um ambiente
familiar, ou seja, “privado” - denominado assim por se entender que os
acontecimentos internos dizem respeito ao próprio grupo, dificilmente quem o faz
parte dela fará alguma coisa.
Descrevendo melhor o conceito de família privada, Chauí explica que essa
definição vem de Oikonomia que significa “o conjunto de normas de administração
da propriedade patrimonial ou privada, dirigida pelo chefe da família, o despotes.”
51
Desmembrando isso, entendemos que oikos é a casa ou família, entendida como
unidade de produção [...] e nomos como regra, acordo, convencionado entre seres
humanos e por eles respeitado nas relações sociais.”
52
As normas definidas no
grupo, no caso da violência doméstica, pelo chefe da família, não são respeitadas
dentro dessas relações e por esse motivo acontecem os sérios conflitos enfrentados
por seus integrantes. Além disso, a família, nesse caso, se apresenta como uma
instituição restrita e inviolável, marcada pelo traço da família nuclear e patriarcal
apresentada na Idade Média.
Partindo desse pressuposto, a figura do chefe da família, apresentando-se
como a figura do mais forte, continua fazendo com que a família fique isolada do
espaço público, como na sociedade grega. A família que deveria ser a primeira
instituição socializadora da criança tem um papel contrário, sendo restrita, egoísta,
cruel e negligente.
A criança e o adolescente nesse caso não são vistos como sujeitos de
direitos, mas apenas como objetos que podem ser utilizados conforme os interesses
do grupo, que acaba tendo a cumplicidade da figura materna.
Seguindo o princípio de que “as crianças não são naturalmente e
espontaneamente violentas, mas vão incorporando e interagindo com a violência
institucionalizada que se enraíza nos lares e retorna para a sociedade no futuro”
53
,
51
CHAUÍ. Marilena. Convite à filosofia. 12. ed. São Paulo: Ática, 1999. p. 409.
52
CHAUÍ, 1999, p. 409.
53
RIBEIRO, Marisa Marques. MARTINS, Rosilda Baron. Violência doméstica contra a criança e o
adolescente. A realidade velada e desvelada no ambiente escolar. 3. tiragem. Curitiba: JurEd.,
2006. p. 78.
29
verifica-se que, quanto mais essa interação for em um ambiente violento, mais
influência o agressor terá em relação à vítima.
Para que se entenda melhor essa relação é necessário que se conheça os
tipos de violência doméstica, principalmente para que se saiba as conseqüências
físicas e emocionais sérios que ela deixa.
Uma das produções elaboradas pelo Fundo das Nações Unidades para a
Infância – UNICEF, feita para distribuição e orientação dos municípios brasileiros em
relação aos direitos das crianças de até 6 anos e à obrigatoriedade dos mesmos em
relação às políticas de combate à violência, apresenta algumas formas de
classificação de violência contra crianças.
Os tipos de violência mencionadas pelo UNICEF foram as violências física,
psicológica, o abuso sexual, o abandono, a negligência e o bullying,
54
essa última,
em especial, é pouco conhecida nas famílias por acontecer com mais freqüência no
contexto escolar. Esse termo utilizado em inglês se refere à agressão de uma
criança contra outra criança, podendo ser pela força ou pelo poder de menosprezar,
ridicularizar ou abusar.
55
Em relação aos outros tipos de violência, alguns autores trazem conceitos
muito parecidos, principalmente em relação à violência física. Nesse tipo de
violência, normalmente os pais acreditam que podem educar os filhos através dos
abusos físicos, com isso conseguem demonstrar o poder que têm sobre eles.
Comparando com as definições apresentadas por Rodrigues & Carvalho, além da
força física utilizada no relacionamento com a criança e com o adolescente por parte
de seus pais no âmbito familiar, a violência física “baseia-se no poder disciplinador
do adulto e na desigualdade adulto-criança,”
56
para o UNICEF esse poder é feito
através de uma ação intencional de uma pessoa mais velha “que provoque na
criança conseqüências extremas, como a morte.”
57
Esse tipo de atitude, conforme
Maldonado, devido à convivência das crianças e dos adolescentes com essa rotina
54
GIRADE. Halim Antônio; DIDONET. Vital (Coord.). O município e a criança de até 6 anos:
direitos cumpridos, respeitados e protegidos. Brasília. UNICEF, 2005. p. 103-104.
55
GIRADE. Halim Antônio. DIDONET. Vital (Coord.), 2005, p.104.
56
GUERRA. (1997), apud, RODRIGUES. Alessandra Alves. CARVALHO, Denise Bomtempo Birche
de. A violência doméstica contra crianças e adolescentes: análise do fenômeno no Distrito
Federal. Violência e exploração contra crianças e adolescentes. Ser Social 2. Revista do Programa
de pós-graduação em Política Social do Depto. De Serviço Social da Unb. Brasília. Janeiro a junho. p.
57-84, 1998.
57
GIRADE. Halim Antônio; DIDONET. Vital (Coord.). O município e a criança de até 6 anos: direitos
cumpridos, respeitados e protegidos. Brasília: UNICEF, 2005. p. 103.
30
de violência, acaba sendo internalizada também pelos irmãos mais velhos. Ao
presenciar os atos dos pais sobre as crianças eles adquirem a “mesma idéia do
‘direito de bater’ [...], quando os pais batem neles porque bateram no irmão
‘pequeno’, não conseguem entender a lógica desse argumento [...].”
58
Normalmente
esse tipo de atitude acaba gerando um círculo vicioso dentro da família - quanto
mais os pais agridem seus filhos, mais os irmãos se agredirão entre si. Através do
ato de agressão do mais forte sobre o mais fraco, para eles, é entendida como
imposição de respeito.
Nos casos de violência física o maior agressor está na figura masculina, ou
seja, o agressor normalmente é o pai ou padrasto e por esse motivo as marcas
deixadas na vítima, devido à força física do homem sobre a criança ou o
adolescente, é bem maior do que se a agressora fosse a mãe, o que não a isenta de
ser agressora devido à cumplicidade com o agressor.
A mentira de que o braço quebrado ou as manchas roxas pelo corpo são
conseqüência de um tombo de uma árvore ou de uma brincadeira com os irmãos ao
invés da denúncia de que a criança foi espancada, faz com que a mãe seja cúmplice
do agressor; da mesma forma quando denuncia os atos de indisciplina ao pai para
que ele o “eduque” quando chegar em casa, e ele, por sua vez, abusa da força e do
poder.
O papel e a participação da mãe nesses casos ou o simples fato de
continuar no mesmo ambiente do agressor faz com que seja, mesmo que
indiretamente, agressora também, pelo fato de deixar marcas que nem sempre são
visíveis, como é o caso das psicológicas.
Ao contrário da violência física, a violência psicológica pode ser tão ou mais
grave do que as outras agressões.
As palavras, as atitudes, as ameaças, as humilhações, as rejeições sofridas
pelas crianças e os adolescentes como forma de censura ou pressão são
características da violência psicológica.
59
O reforço que a criança e o adolescente
sofre depois da violência física através de palavras que nem sempre partem do
próprio agressor, mas de quem presencia o ato, se tornam mais uma violência.
58
MALDONADO, Maria Tereza. Os construtores da paz. Caminhos da prevenção da violência. 2.
ed. São Paulo: Moderna, 2004. p.22.
59
GIRADE. Halim Antônio; DIDONET. Vital (Coord.). O município e a criança de até 6 anos: direitos
cumpridos, respeitados e protegidos. Brasília: UNICEF, 2005. p. 104.
31
Então a violência não se restringe em apenas algo visível, porque os ferimentos,
nesse caso, ficam registrados na mente.
A falta de carinho e de atenção dá lugar ao isolamento, ao medo, ao
menosprezo, fazendo com que a criança e o adolescente acabem por acreditar que
são incapazes de agradar alguém, que tudo o que fazem é errado e que realmente
precisam desse castigo e por isso acabam acreditando que são tudo aquilo que
ouvem de mais depreciativo.
As expectativas de uma vida de união e felicidade dão lugar à baixa estima
e à desvalorização de si próprio. Nesses casos, “evidencia-se como a interferência
negativa do adulto sobre a criança e sua competência social, conformando um
padrão de comportamento destrutivo,”
60
podem ficar arraigadas na criança e no
adolescente tornando-os, quando adultos, repetidores de tudo o que vivenciaram.
O abuso sexual, de acordo com Maldonado:
É a situação em que um adulto ou um adolescente mais velho, abusando
do poder de coação ou sedução, utiliza-se de um menor para sua própria
satisfação sexual. Considera-se como abuso sexual de crianças e jovens o
estupro, o incesto, a sedução, a prostituição ou qualquer outra forma de
exploração sexual em situações nocivas ao bem-estar da criança.
61
Essas situações de violência sexual não necessariamente se referem
somente ao ato sexual. Como vimos na definição, qualquer outro tipo de atitude do
agressor que tenha a intenção de utilizar a imagem da criança ou do adolescente
como é o caso das fotos, vídeos, filmes pornográficos, dentre outras formas de
veiculação que constantemente vimos na mídia, são considerados como violência,
que, segundo Maldonado, não precisa ser necessariamente cometida por um adulto
sobre a criança, mas, sim, por alguém mais velho. o UNICEF define somente o
abuso sexual “classificado como [...] qualquer ato, cometido por adultos, que tenha
por finalidade estimular a criança sexualmente ou utilizá-la para ter estimulação
sexual.”
62
Para Rodrigues & Carvalho, a violência sexual pode ser “todo o ato ou jogo
sexual relação hetero ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança ou
60
RODRIGUES. Alessandra Alves. CARVALHO, Denise Bomtempo Birche de. A violência
doméstica contra crianças e adolescentes: análise do fenômeno no Distrito Federal. Violência e
exploração contra crianças e adolescentes. Ser Social 2. Revista do Programa de pós-graduação em
Política Social do Depto. De Serviço Social da Unb. Brasília. Janeiro a junho. p. 57-84, 1998.
61
MALDONADO, Maria Tereza. Os construtores da paz. Caminhos da prevenção da violência. 2.
ed. São Paulo: Moderna, 2004, p.30.
62
GIRADE. Halim Antônio; DIDONET. Vital (Coord.). O município e a criança de até 6 anos: direitos
cumpridos, respeitados e protegidos. Brasília: UNICEF, 2005. p. 104.
32
adolescente, tendo por finalidade [...] obter uma estimulação sobre sua pessoa ou de
outra pessoa.”
63
Em síntese, pode-se observar que é considerado como violência sexual,
independente de como ocorra, qualquer ato que se utilize da criança ou do
adolescente para estimulação ou comercialização sexual, sendo de sua própria
pessoa ou da sua imagem. Lembrando da tabela que apresentamos anteriormente,
como dados do UNICEF, o número de abuso sexual e de exploração sexual é
extremamente alto, sendo que entre o gênero feminino acontece com mais
freqüência.
Independente da classe social, as pessoas que cometem esse tipo de
violência são encontradas facilmente. Com muita freqüência pessoas de grande
prestígio social e profissional aparecem envolvidas com a violência sexual com
crianças e adolescentes, além disso, também é comum que os agressores sejam da
própria família, normalmente o pai ou o padrasto, considerado como incesto.
As crianças e principalmente os adolescentes vítimas desse tipo de
violência ficam mais vulneráveis à utilização de algum tipo de droga ou de
engravidarem precocemente.
Mesmo que no art. 128, inciso II, do Código Penal, onde faz referência
sobre o aborto no caso de gravidez resultante de estupro, diga que “se a gravidez
resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando
incapaz, de se seu representante legal”
64
, não ser considerado crime, a maioria das
menores, por omissão devido ao constrangimento ou ameaças, não denunciam o
agressor e em conseqüência disso optam em ter os filhos convivendo junto com o
agressor.
Em outros casos, os abusos sexuais ocorrem com bebês e crianças
menores de 4 anos e são tão graves que, quando não deixam sérias lesões, chegam
à morte; por esse motivo vários órgãos se dedicam a criar leis que as protejam
contra a violência.
63
RODRIGUES. Alessandra Alves. CARVALHO, Denise Bomtempo Birche de. A violência
doméstica contra crianças e adolescentes: análise do fenômeno no Distrito Federal. Violência e
exploração contra crianças e adolescentes. Ser Social 2. Revista do Programa de pós-graduação em
Política Social do Depto. De Serviço Social da Unb. Brasília. Janeiro a junho. p. 57-84, 1998.
64
JÚNIOR, Romeu de Almeida Salles. Código penal interpretado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
p. 341.
33
Outras situações também consideradas como violência são o abandono,
onde a criança é exposta a situações de risco; e a negligência, que normalmente
acontece dentro da própria família.
No caso da negligência, ela acontece quando a criança ou o adolescente é
privado dos cuidados básicos e necessários para seu desenvolvimento saudável,
como é o caso da alimentação, dos cuidados com a saúde, com a educação, dentre
outros. Somente são considerados como negligência os atos de real omissão, ou
seja, quando for constatado que, mesmo que a família tenha condições de dar
alimentação, remédio, educação, enfim, o que é básico para suprir o que a criança
precisa para sua sobrevivência lhe é omitido, mesmo que tenham condições cio-
econômicas para isso.
No caso da negligência, ela pode subdividir-se em: “negligência física”,
nesse caso é quando a criança fica sem cuidados médicos; ou quando acontecem
os abandonos ou expulsões de casa por rejeição; quando “ausência de
alimentação, roupas e proteção às alterações climáticas e supervisão inadequada”,
ou seja, quando a criança fica sozinha em casa sem cuidados por longos períodos.
Há ainda a “negligência emocional”, que designa a falta de suporte emocional,
afetivo, atenção ou incentivo aos atos delinqüentes, ou a permissão de exposição
crônica à violência doméstica e até mesmo a recusa ou a falta de procura de apoio
psicológico quando recomendado. No caso da “negligência educacional”, ocorre
quando os pais ou responsáveis permitem a falta às aulas, ou quando não efetivam
matrícula. No caso das crianças e dos adolescentes especiais, quando não há
procura ou a recusa de matricular em escolas especializadas, também é
caracterizado como negligência.
65
Assim, mesmo com características evidentes desses atos é difícil obter
dados reais que registrem as estatísticas da violência, pois nem sempre são
denunciadas.
A vergonha, que sobressai em relação à omissão, faz com que a vítima
promova uma ligação de cumplicidade com o agressor, fazendo com que a violência
sofrida seja alimentada, permitindo sua continuidade; nesses casos quando
suspeita de que isso esteja ocorrendo, a ajuda deve ser ainda maior.
65
Conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente de Novo Gama. Ato infracional nas
escolas. Gama, DF: Graffbrindes, 2007. p. 9.
34
Normalmente o agressor o consegue ver o que está fazendo, não
consegue enxergar o que a vítima está sentindo, por ter perdido a sensibilidade.
Torna-se incapaz de se colocar no lugar do outro; ele se considera superior a sua
vítima, colocando-a em forma de subordinação. A vítima é obrigada a submeter-se
ao agressor sem ter o direito de contestação ou qualquer outra forma de
manifestação; para ele é preciso “demonstrar o seu tamanho, o seu poder.”
66
O ciclo de agressor e vítima é considerado uma das maiores incógnitas para
quem o faz parte do mesmo ambiente, principalmente porque cada um tem um
posicionamento em relação ao fato. A problemática decorre em relação à defesa da
vítima que, por causa do seu posicionamento dentro da relação, definida pelo
agressor como merecedora daquele sofrimento e permitida pela vítima, acaba
alimentando o círculo vicioso da violência e nem sempre aceita algum tipo de
interferência e não fazer mais parte dessa relação.
Segundo Ricotta, “a passividade da vítima faz crescer na figura do agressor
a motivação suficiente para um novo ataque, eliciando-se ainda mais para continuar
no mesmo padrão de relação.”
67
Essa passividade mencionada faz com que a
relação entre o agressor e a vítima vire um círculo vicioso, onde o comportamento
violento, a possessividade e a dominação que um exerce sobre o outro faz com que
cada vez mais aumentem os sentimentos de raiva, de culpa, de submissão e de
medo da vítima que acaba permitindo a ação do agressor.
Nesse contexto, o papel que cada um assume, ou de agressor ou de vítima,
vai motivar e reforçar os estímulos para que os ataques continuem ou não e isso vai
depender do que aconteça, se terá algum tipo de resposta ou reação.
O vínculo da relação vai de encontro à ética, a dignidade e ao respeito à
outra pessoa, senão acaba fazendo com que tanto um quanto outro se tornem
agentes da violência.
Conviver com alguém que é violento gera, não somente para a família, mas
para amigos, vizinhos e parentes, situações de inquietação e constrangimento,
fazendo com que também essas relações sejam abaladas e frustradas,
principalmente por terem que adotar um posicionamento ou interferir na relação do
66
RICOTTA, Luiza. Quem grita perde a razão: a educação começa em casa e a violência também.
São Paulo: Annablume, 1999. p. 53.
67
RICOTTA, Luiza, 1999, p. 57.
35
agressor e da vítima que muitas vezes preferem o isolamento à permissão de algum
tipo de interferência.
Assim, a decisão de continuar vivendo em um contexto violento depende do
controle de um sobre o outro, como foi mencionado. A permissão para que o
respeito aos limites de privacidade pessoal aconteça vai depender da escolha de
quem estiver na posição de vítima, o que não lhe dá direito de permitir que a criança
e o adolescente permaneçam nesse cenário.
2.3 A violência e as marcas deixadas em crianças e adolescentes: o medo e o
pacto do silêncio
O fundamento da vida é fazer com que as relações entre os seres humanos
se aperfeiçoem e se desenvolvam afastando os métodos primitivos, inclusive os de
agressividade.
A questão da violência familiar continuará enquanto perdurarem as
manifestações de agressividade, sejam elas físicas ou não. Até que se mude a
cultura de cumplicidade entre o agressor e a vítima, quebrando os segredos e as
omissões, exigindo-se respeito e dignidade, o ser humano não será tratado de
maneira desigual.
De acordo com Saffioti, uma simples explicação para entendermos essa
situação:
Não é difícil de compreender a conspiração do silêncio que se estabelece
em casos de violência, mesmo quando feitos por um agressor externo à
família e/ou casal. A divulgação do ato violento compromete a imagem da
vítima negativamente. Tendem a ser ocultos, seja porque são passíveis de
punição criminal, seja porque a descoberta do agressor provocaria o
desmoronamento de instituições, cuja gigantesca forma deriva do caráter
sagrado, como no caso da família. Dada a sacralidade da instituição
familiar, a sociedade marginaliza e estigmatiza aqueles que apontam suas
mazelas.
68
Partindo dessa questão pode-se fazer uma análise e refletir sobre aque
ponto o silêncio vai realmente preservar a imagem da vítima, uma vez que ela
deverá conviver com as marcas físicas, psicológicas ou morais para toda vida.
68
SAFFIOTI. 1987. In: RICOTTA, Luiza. Quem grita perde a razão: a educação começa em casa e
a violência também. São Paulo: Annablume, 1999. p. 38.
36
Assim, digamos que, devido ao medo da discriminação da própria família, quando o
fato envolve crianças e adolescentes, e o julgamento da sociedade até que a
maratona de procedimentos judiciais termine e os culpados sejam punidos, a vítima
passa por muitas situações de constrangimento e por isso resolve se calar.
Em muitas situações, principalmente nos casos de violência sexual, as
crianças e os adolescentes preferem a omissão à denúncia, primeiramente por
medo da reação do agressor devido às ameaças, em segundo lugar porque são
acusadas, em grande parte as meninas, de terem cometido insinuações para que o
agressor as abusasse.
Como afirma o autor, a família é considerada uma instituição sacra e esses
casos de violência eram omissos na antiguidade porque a figura do pai era
comparado com Deus e por interpretações errôneas dos homens, no período da
inquisição, é que mesmo Ele era visto como uma figura má, inclusive pelas crianças,
pois tanto elas quanto os adultos eram punidos e sacrificados em Seu nome.
Atualmente, pelo fato das famílias terem uma outra imagem e estruturação, o que se
espera delas é que tornem um ambiente propício para o desenvolvimento integral da
criança e do adolescente longe desse contexto violento, mas infelizmente em muitas
delas isso ainda não se tornou possível.
O que acontece é que em todos os casos de silêncio tem algum motivo, seja
ele medo, ameaça, falta de confiança nos outros, submissão ou por acreditar que
realmente precise de alguém para lhe apontar seus erros. Nesse último caso a
vítima, com sua baixa estima, se submete a pensar que não é capaz de nada e
que não é nada não conseguindo reagir. Para ela, os julgamentos que fazem de si
estão corretos e acaba por acreditar neles, que normalmente o cruéis e
causam a piora dos fatos.
A possibilidade da vítima inverter o papel e se tornar um agressor, quando o
relacionamento, seja ele familiar ou não, é constantemente submetido a atos
violentos, é muito grande, devido às variáveis que cercam esse relacionamento.
Essas variáveis, que podem estar ligadas, segundo Caminha, “a problemas
mentais, problemas com álcool e drogas, problemas neurológicos, genéticos até
variáveis sócio-econômicas [...],”
69
também podem propiciar os abusos. Outro fator é
a “multigeracionalidade, fenômeno pelo qual a criança fica exposta à violência
69
CAMINHA, Renato M. A violência e seus danos à criança e ao adolescente. In: Violência
doméstica. Brasília: UNICEF, 2000. p. 43-60.
37
doméstica, de modo repetitivo e intencional, tornam-se adultos que submeterão
crianças às mesmas experiências pelas quais passaram”,
70
fazendo com que o
círculo de violência não tenha fim e a busca por programas de auxílio fique cada vez
mais distante.
Nesse contexto, segundo pesquisadores do UNICEF que desenvolveram
entrevistas com famílias violentadas atendidas por ONGs, “a concepção de família
violentada e o fato de muitos pais terem histórias prévias de violência dificultam a
adesão, segundo a visão dos técnicos,”
71
quando referiam-se à busca a
atendimentos especializados, isso demonstra que a multigeracionalidade realmente
está presente na vida dessas pessoas. Além disso, constataram que “as mães
também mencionam o medo de culparem o familiar autor da agressão
(freqüentemente o parceiro ou alguém bastante próximo) como algo que pode
interferir na adesão ao tratamento,”
72
e é claro que isso decorre das questões
apresentadas anteriormente; com isso, podemos entender um pouco mais os
motivos do silêncio e da omissão.
Assim, esses fatores levam à constante disputa pela posição de dominação
dentro do relacionamento familiar, principalmente porque alguém tem que ceder às
vontades do outro, sendo que a criança e o adolescente são parte integrante e maior
prejudicada com isso. Contudo, aqui o respeito não deve ser esperado somente do
outro, mas, em decorrência dos medos, as pessoas são permissivas fazendo com
que essas variáveis se tornem motivos para que os limites sejam ultrapassados,
afetando a todos diretamente. Como diz Ricotta, isso “é uma questão de escolha
pessoal”
73
e somente quem é parte integrante desse processo é quem tem
autonomia para decidir ou permitir que a violência seja parte integrante de seu
cotidiano.
Romper o silêncio e impor limites ainda é um desafio que as vítimas da
violência precisam aprender.
70
CAMINHA, 2000, p. 43-60.
71
UNICEF, Fundo das Nações Unidas para a Infância. CLAVES, ENSP /IFF / FIOCRUZ. Famílias:
Parceiras ou usuárias eventuais? Análise de serviços de atenção a família com dinâmica de violência
doméstica contra criança e adolescente. Brasília, 2004. p. 91.
72
UNICEF, Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2004, p. 91.
73
RICOTTA, Luiza. Quem grita perde a razão: a educação começa em casa e a violência também.
São Paulo: Annablume, 1999. p. 39.
38
Desintegrar o esquema de proteção ao agressor e não ocultar seus atos é
também um desafio, não para a família, mas para os profissionais que devem ser
um dos pontos de apoio tão necessários e fundamentais para essas pessoas.
O repensar das atitudes e a importância que se dá às marcas que as
crianças e os adolescentes carregam no corpo e na mente também decorrem do tipo
de ajuda que buscam, como descreve a jornalista Eliane Brum:
A maior tragédia dessa história é que as crianças confiam nos adultos.[...]
Confia no médico e na enfermeira a quem abre as chagas de seu corpo a
um custo sem medidas. E confia na assistente social e no psicólogo a
quem escancara um coração até então encarcerado pelas chaves do
silêncio. E morre um pouco mais quando o sigilo “ético” é usado como
explicação para o zeloso profissional não levar o caso adiante.
74
Um dos maiores motivos para que esse rompimento ocorra é olhar pra
essas crianças e adolescentes. É preciso que os agressores indiretos,
principalmente a mãe, observem, escutem, tenham um maior contato com seu filho e
jamais deixem de confiar nele e não se submeter, junto com ele, às constantes
agressões que os ferem e matam a cada momento, fazendo com que, o que lhe
resta de uma infância ou juventude, acabe em perder o pouco de esperança que
resta de ter uma família que preza pelo respeito ao ser humano.
O maior de todos esses desafios é, portanto, não deixar as marcas de uma
falsa confiança que o adulto desperta nas crianças e nos adolescentes e nem deixá-
los se fecharem no seu mundo doloroso cheio de estresse físico e psicológico que
farão com que desenvolvam patologias que carregarão para o resto de suas vidas.
2.4 O impacto da violência familiar no processo de desenvolvimento de
crianças e adolescentes vítimas de agressão
A criança e o adolescente, vítimas de maus tratos, acabam sendo um
produto do meio em que vivem. De acordo com Silva, a família “constituída à luz de
princípios morais sólidos fará de seus membros cidadãos de primeira categoria, ao
passo que uma família destituída desses princípios legará aos seus integrantes
74
BRUM. Eliane. Apresentação. In: Violência doméstica. Brasília: UNICEF, 2000. p. 43-60.
39
vícios de toda a natureza.”
75
Portanto, os princípios de educacionais, morais ou
religiosos adotados pela família vão definir o tipo de indivíduo que vai se
desenvolver. Como vimos anteriormente, há comprovações de que as possibilidades
da criança e do adolescente se tornar um adulto violento em decorrência das
influências e dos estímulos recebidos durante a infância são intermináveis, é claro
que em alguns casos mesmo a família sendo dotada de nobres princípios o filho
opta por outro caminho, mas mesmo assim a importância dada ao núcleo familiar
para o desenvolvimento do ser humano é primordial. Quando a família não tem
estrutura para propiciar condições mínimas para o bom desenvolvimento de seus
integrantes, as conseqüências geralmente são graves, podendo levá-los a condições
obscuras, ilegais, imorais, violentas, tortuosas, tanto para quem vive quanto para
quem compartilha, levando-os muitas vezes à exclusão familiar e social.
O fato de uma pessoa ser capaz de agredir outra, por exemplo, acaba
ferindo todos os princípios de respeito, conduta, moral, ética, enfim, a torna
despreparada para viver em grupo, principalmente dentro de um núcleo familiar
onde o exemplo de conduta deve estar presente e à disposição da criança ou do
adolescente. Por esses e outros motivos é que Roudinesco aborda outra visão de
família especificando sua nova formação.
[...] o surgimento da noção “família recomposta”, que remete a um duplo
movimento de dessacralização do casamento e de humanização dos laços
de parentesco. Em lugar de ser divinizada ou naturalizada, a família
contemporânea se pretendeu frágil, neurótica, consciente de sua
desordem, mas preocupada em recriar entre os homens e as mulheres um
equilíbrio que não podia ser proporcionado pela vida social. Assim, fez
brotar de seu próprio enfraquecimento um vigor inesperado. Construída,
desconstruída, reconstruída, recuperou sua alma na busca dolorosa de
uma soberania alquebrada ou incerta.
76
Essa noção de família retrata a possibilidade de que mesmo que não seja
composta dentro dos padrões tradicionais não é mais desculpa para que seus
membros, independente do grau de parentesco ou não, digam não se acharem
capazes de proporcionar uma formação às crianças e aos adolescentes. Como diz a
autora, mesmo que consciente de sua desordem, ela é capaz de obter o equilíbrio
necessário, nem sempre encontrado na sociedade, ou seja, o enfraquecimento dos
padrões ideais gerou um novo modelo de família que tem condições de propiciar
75
SILVA, José Luiz Mônaco da. A família substituta no estatuto da criança e do adolescente. o
Paulo: Saraiva, 1995. p. 5.
76
ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003. p. 153.
40
algo de bom. O que demonstra que as discussões em relação à violência
intrafamiliar dependem daqueles que a integram; relembrando as palavras de
Ricotta, isso “é uma questão de escolha pessoal”
77
que deve ser bem pensada já que
não se têm o direito de fazer sofrer àqueles que tem menos culpa das escolhas
pessoais.
Se as escolhas forem erradas podem desencadear, em crianças e
adolescentes, submetidos a constantes situações de violência, o que é chamado de
“exposição traumática,”
78
ou seja, mesmo não sendo timas diretas, a observação
de atos violentos como o espancamento da mãe ou brigas violentas, dentre outros
fatores, pode fazer com que desenvolvam a “síndrome de estresse pós-traumático:
revivência das cenas chocantes, pesadelos, terror noturno [...], estado de hiperalerta
[...], além dos distúrbios no próprio processo de pensamento [...].”
79
Esse tipo de
síndrome pode fazer com que meninos fiquem mais agressivos gerando fugas de
casa e delinqüências, e as meninas podem apresentar sintomas como dores de
cabeça e de estômago, dependência, isolamento e insegurança.
80
De toda forma, todos os tipos de violência doméstica são pontos primordiais
para o desencadeamento de traumas nas vítimas, nesse caso nas crianças e nos
adolescentes que ficam, por inúmeras vezes, anos expostas a agressões.
No processo de desenvolvimento da criança os adultos servem como
modelos durante sua formação devido à convivência intensa na família. Segundo
Caminha, não “parâmetros comparativos comportamentais,”
81
onde, devido ao
constante estresse vivenciado pela criança e pelo adolescente, acaba por afetar sua
capacidade de discriminar o certo e o errado por causa da influência do ambiente
onde vivem. Nesse sentido, quando submetidos às constantes cenas de violência,
as adotam “como ‘verdades’ [...], serão mediadoras de suas relações sociais,”
82
e,
por isso, o modelo adotado é o adulto violento e dominador. Esse tipo de estímulo
vai fazer com que, quando adultos, suas atitudes representem aquele modelo tido na
77
RICOTTA, Luiza. Quem grita perde a razão: a educação começa em casa e a violência também.
São Paulo: Annablume, 1999. p. 39.
78
MALDONADO, Maria Tereza. Os construtores da paz. Caminhos da prevenção da violência. 2.
ed. São Paulo: Moderna, 2004, p.19.
79
MALDONADO, 2004, p.19.
80
MALDONADO, 2004, p.20.
81
CAMINHA, Renato M. A violência e seus danos à criança e ao adolescente. In: Violência
doméstica. Brasília: UNICEF, 2000. p. 43-60.
82
CAMINHA, 2000, p. 46.
41
infância e na juventude, ou seja, a representação da violência e da agressividade,
fazendo com que submetam as crianças às mesmas situações pelas quais viveram.
Segundo Vigotsky, “as propriedades das funções intelectuais do adulto são
resultado unicamente da maturação, ou, em outras palavras, estão de alguma
maneira pré-formadas na criança, esperando simplesmente a oportunidade de se
manifestarem.”
83
Nesse contexto, observa-se que a base do aprendizado está ligado
ao que receberam durante a infância, onde os estímulos do ambiente reforçam as
atitudes na vida adulta, por esse motivo a gravidade das conseqüências do ambiente
violento.
Outro fator que a violência doméstica desencadeia é o aspecto psicológico.
De acordo com Caminha, a “discriminação” é a principal função psicológica afetada
pelos abusos sofridos durante a infância. Com isso, ele descreve a “discriminação”
como sendo,
[...] a capacidade de discriminar, uma espécie de ‘elasticidade mental’, que,
quando afetada, reduz o repertório afetivo-cognitivo-comportamental dos
sujeitos expostos aos abusos intrafamiliares. É como se estivéssemos
produzindo sujeitos com ‘estreitamento mental’, que criam uma via na qual,
dados os estímulos tais, a resposta toma sempre o mesmo caminho.
84
Por esse motivo, as crianças e os adolescentes desenvolvem um sentido de
maximizar todos os fatos que ocorrem, tanto físicos quanto psicológicos.
Desenvolvem, com isso, um constante estado de alerta; se molestada à noite, não
consegue ter um sono constante, por exemplo, e assim acontece em outras
situações como um efeito cascata, ou seja, uma situação vai gerando outra e
prejudicando outra, inclusive o rendimento escolar, desenvolvendo sintomas
devastadores à formação da sua personalidade infantil.
O impacto desses sintomas pode ser o do estresse constante,
desencadeando o “transtorno dissociativo”
85
que, devido os abalos sofridos pelas
condições vividas pela criança dentro da família, acabam fazendo com que suas
funções psicológicas fiquem abaladas, podendo, em caso de permanência desse
transtorno, gerar algo definitivo como o “transtorno do estresse pós-
traumático”.
86
Nesse caso, quando a criança passa por essas situações de constante
83
VIGOSTKY, Lev Semenovich. A formação social da mente. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007. p. 24.
84
CAMINHA, Renato M. A violência e seus danos à criança e ao adolescente. In: Violência
doméstica. Brasília: UNICEF, 2000. p. 48.
85
CAMINHA, 2000, p. 49.
86
CAMINHA, 2000, p. 49.
42
estresse e permanece vivendo nessas condições por muito tempo, fazendo com que
surja o transtorno pós-traumático, poderá apresentar problemas no sistema
cognitivo, afetivo e comportamental.
Assim, uma das melhores formas, além do diagnóstico preciso de
especialistas, é fazer com que essas crianças e esses adolescentes sejam
afastados do ambiente violento, mas, para isso, é necessário que o pacto do silêncio
seja quebrado, fator fundamental para que o tratamento consiga ter êxito, segundo
terapeutas.
43
3 A VIOLÊNCIA FAMILIAR NO OLHAR DA ESCOLA
A conduta agressiva de crianças e adolescentes nas escolas é influenciada
por vários fatores, inclusive o familiar e o ambiental. Nesse sentido, a escola, que é
a continuidade do processo de socialização iniciado na família, deve oferecer, ao
contrário do ambiente conturbado oferecido pela família, um ambiente cujos valores,
expectativas e prática que desenvolvam realmente um processo educativo e
formativo.
Os aspectos relacionados aos vínculos familiares como a interação entre os
membros da família, ligados às condições do ambiente e à conduta e ao
comportamento dos pais, acabam ditando o modelo educacional doméstico.
Quando o ambiente familiar é conturbado e agressivo, esse modelo
educacional vai influenciar diretamente no comportamento da criança e do
adolescente, como vimos no capítulo anterior. Assim, lembrando um dos conceitos
apresentados, utilizo o de Chauí:
[...] a violência é percebida como exercício da força física e da coação
psíquica para obrigar alguém a fazer alguma coisa contrária a si, contrária
aos seus interesses e desejos, contrária ao seu corpo e à sua consciência,
causando-lhe danos profundos e irreparáveis, como a morte, a loucura, a
auto-agressão ou a agressão aos outros.[...]
Em nossa cultura, a violência é entendida como o uso da força física e do
constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário à
sua natureza e ao seu ser. A violência é violação da integridade física e
psíquica, da dignidade humana de alguém.
87
Essa violência que agride a dignidade humana, reforçada ou omitida no
contexto intrafamiliar, dificilmente é identificada na escola. Nem sempre o
comportamento da criança e do adolescente é visto como conseqüência do
ambiente doméstico. Nesses casos, as instituições de ensino têm um papel
fundamental em tentar buscar parceiros para identificar, apoiar e proteger seus
alunos.
Mesmo que se consiga torná-las resilientes, capazes de superar as
dificuldades relacionadas ao seu contexto, as crianças e os adolescentes
87
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 1999. p. 336-337.
44
necessitam de apoio constante, principalmente quando o problema está na família, e
a escola pode ser intermediária desse apoio, até mesmo porque por si não vão
conseguir tornar-se resilientes.
Para que se entenda melhor, resiliência “diz respeito à capacidade de
pessoas, grupos ou comunidades não de resistir às adversidades, mas de utilizá-
las em seus processos de desenvolvimento pessoal e crescimento social”
88
, ou seja,
é a capacidade que a pessoa tem de resistir a situações duras e continuar a lutar
contra elas.
A relação de autoconfiança que os alunos criam em relação à equipe
docente e à própria escola como um todo é imprescindível para que ela seja uma
espécie de tutora dessa resiliência, sem que as diversas situações enfrentadas no
cotidiano abalem essa relação de convivência.
Assim, verifica-se a necessidade das instituições de ensino possuírem um
diagnóstico da violência para desenvolverem programas de melhoria das relações
intraescolares, enfrentando a violência e garantindo os direitos dos educandos
vítimas da violência doméstica, ensinando-os e ajudando-os a serem resilientes. Ao
contrário disso, segundo Ricardo Henriques, representante do Ministério da
Educação, “a escola pública no Brasil ainda é uma máquina de exclusão”.
89
Diz isso
quando se refere à forma homogênea e subjetiva com que as escolas tratam esse
tipo de problema, ao discutir, em mesma redonda, com integrantes de outros órgãos,
sobre novos programas para combater a evasão escolar.
Nesse contexto, não podemos culpar apenas a escola, pois acabaríamos
sendo injustos. De acordo com o jornalista Gilberto Dimenstein, “o desempenho do
aluno tem a ver com ingredientes como envolvimento da família, nível
socioeconômico e os estímulos culturais.”
90
Portanto, as atitudes dos pais tem
ligação direta com os bitos dos filhos, por esse motivo a escola deve manter uma
relação constante e estreita com a comunidade para tentar compensar os déficits
afetivos e culturais desses alunos que em sua maioria querem apenas ser notados e
valorizados por alguém.
88
ANTUNES, Celso. Resiliência. A construção de uma nova pedagogia para uma escola pública
de qualidade. 2. ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2003. p.13.
89
HENRIQUES, Ricardo. Apud PINHEIRO, Luísa. Mesa Redonda II. Violência na Escola. Boletim:
UNICEF. Consulta Nacional contra a criança e o adolescente. 23 de agosto de 2005.
90
DIMENSTEIN, Gilberto. O cidadão de papel. A infância, a adolescência e os direitos humanos
no Brasil. São Paulo: Ed. Ática, 2005. p. 106.
45
Mas, não somente os alunos precisam desenvolver a resiliência porque,
com os inúmeros problemas da comunidade que a escola acaba por ter que ajudar a
resolver, ela também tem que ser uma escola resiliente em toda sua estrutura e não
ficar à parte disso.
O perfil da escola, para que possa atender esses alunos vítimas de violência
doméstica, dentre outros problemas, tem que ser fortalecido para cumprir seu papel
social e conseguir auxiliá-los de forma digna e não excludente, para isso não pode
simplesmente ficar “engessada por um ensino elitista, desenvolvido para algumas
classes sociais e que se mostra inadequado para a clientela que, de alguns anos
para esta parte e de forma irreversível, passou a acolher”,
91
mas sim ser atuante e
presente na vida de cada indivíduo que dela necessite.
3.1 Como a escola identifica crianças e adolescentes vítimas da violência
doméstica
A escola, no que diz respeito à violência doméstica, é muito pouco
preparada. uma grande confusão na identificação de crianças e adolescentes
vítimas de violência doméstica; o que ocorre, na maioria dos casos, é a identificação
das várias violências no âmbito social, tais como o seqüestro, os espancamentos, as
divergências entre gangues, as brigas com armas brancas dentro do ambiente
escolar, as drogas, dentre outras coisas que, em algumas situações, são
consideradas como pequenas delinqüências devido à influência sofrida no ambiente
social em que vivem, mas que são aparentemente visíveis.
Em outros casos, o encontro diário entre os profissionais da educação e os
alunos propicia o desenvolvimento de uma relação de afetividade e confiança que
acaba favorecendo para que revelem as situações de violência doméstica sofridas.
Quando os alunos não falam o que está acontecendo, as formas de
identificação se tornam mais difíceis e, por ser constatada essa dificuldade, um
grupo de professores e alunos da Faculdade de Psicologia da Universidade Camilo
Castelo Branco realizou uma pesquisa com 80 professores de escolas públicas da
91
ANTUNES, Celso. Resiliência. A construção de uma nova pedagogia para uma escola pública
de qualidade. 2. ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2003. p.35.
46
cidade de São Paulo, onde conseguiram, por amostragem, detectar outras formas
de identificação da violência doméstica. A partir dessa pesquisa foram mostrados
dados que servem de alerta para a práxis de qualquer educador.
Como fatores de identificação das vítimas da violência doméstica observou-
se que, quando os alunos não relatam o tipo de violência sofrida, a identificação é
feita através das marcas deixadas pelo corpo ou pela observação do comportamento
do aluno, além das faltas escolares. Outra forma levantada na pesquisa,
considerada em uma parcela mínima foi a identificação através de relatos da própria
família
92
.
No que diz respeito à identificação da violência por meio da observação do
aluno, o professor ou qualquer outro profissional da educação que esteja atuando
junto dele deve ser estar atento aos diferentes comportamentos que podem ser
fatores sinalizadores do abuso sofrido em casa. Nessa mesma pesquisa foram
apontadas algumas características que servem como manifestações às violências
sofridas como é o caso da “agressividade, a apatia, o retraimento, a timidez, as
marcas corporais, a tristeza e o medo”
93
; essas são as manifestações mais comuns,
sendo que a agressividade foi a que apresentou índice maior, seguida pela tristeza,
depois pelas marcas corporais, após o medo e em último lugar a apatia, o
retraimento e a timidez.
Como se observa, nem sempre o comportamento da criança e do
adolescente faz parte da sua personalidade, mas pode ser desenvolvido através das
conseqüências dos fatos vividos no ambiente doméstico. Por esse motivo é que a
escola deve estar sempre atenta e preparada para detectar e ajudar encaminhando
para um atendimento especializado, quando disponível pelo sistema.
3.2 O posicionamento da escola em relação às vítimas da violência
Sabemos que nem sempre a escola dispõe de profissionais especializados
para fazer o atendimento das vítimas da violência doméstica, que em sua maioria
92
VASGOSTELLO. Lucilena. Violência doméstica e escola: um estudo em escolas públicas de São
Paulo. Faculdade de Psicologia. Universidade Camilo Castelo Branco. Disponível em:
<V.D.eescola:umestudoemescolasdesão paulo/pdf/paidéia/v13n26/08.pdf.> Acessado em:
10.set.2009.
93
VASGOSTELLO. Lucilena. Violência doméstica e escola: um estudo em escolas públicas de São
Paulo. Faculdade de Psicologia. Universidade Camilo Castelo Branco. Disponível em:
<V.D.eescola:umestudoemescolasdesão paulo/pdf/paidéia/v13n26/08.pdf.> Acessado em:
10.set.2009.
47
necessitam principalmente do psicólogo. Com isso, a falta de preparação dos
professores para desenvolver uma prática pedagógica que envolva esses alunos
sem colocá-los em evidência diante dos demais colegas acaba por gerar altos
índices de evasão escolar.
Essa prática, que por inúmeras vezes acaba se tornando também uma
violência, é criada a partir do momento que se adota um padrão de alunos a serem
atendidos e com isso aqueles que não se enquadram nesse perfil acabam se
afastando da escola porque ela não traz nada que seja interessante. Por isso é que,
diante dos vários comportamentos que são desenvolvidos no decorrer da infância e
da juventude, por influência dos estímulos recebidos no ambiente familiar, é que a
escola, em especial o professor, deve estar analisando constantemente sua prática
sempre levado em consideração o histórico de vida de cada um.
Assim, um dos maiores desafios da escola e do professor é repensar e
mudar suas práticas, respeitando a individualidade e a diversidade dos alunos nela
atendidos, propiciando espaços de criatividade, de diálogo e de escuta.
Esse cuidado que se deve ter com as relações diárias no ambiente
intraescolar também vai influenciar no comportamento das crianças e dos
adolescentes, tanto no aspecto comportamental quanto no cognitivo, porque “cuidar
é mais que um ato; é uma atitude”
94
e essas atitudes vão ser definidas através das
formas do profissional de lidar com a heterogeneidade no ambiente escolar. “O
modo-de-ser cuidado revela de maneira concreta como é o ser humano. Sem o
cuidado, ele deixa de ser humano.”
95
Nesse sentido é que tanto a criança quanto o
adolescente que não recebem esse cuidado no ambiente familiar apresentam
características que estarão presentes pelo resto de suas vidas e vão definir o tipo de
ser humano quando adultos, por isso tamanha a importância e a responsabilidade
de se desenvolver um ambiente escolar agradável e acolhedor que dê segurança e
que seja capaz de compartilhar das angústias e aflições das crianças e dos
adolescentes que não dispõem dessas atitudes em casa.
Nesse sentido, a escola, mais do que qualquer outro segmento da
sociedade, desenvolve um vínculo de confiança que acaba se tornando um elo entre
o profissional e a vítima, mas que nem sempre é efetivado e com isso, como diz a
94
BOFF, Leonardo. Saber cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra. 12. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1999. p. 33.
95
BOFF, 1999, p. 34.
48
jornalista Eliane Brum, a criança ou o adolescente “morre um pouco mais quando o
sigilo ‘ético’ é usado como explicação para o zeloso profissional não levando o caso
adiante”
96
porque, pela falta de preparação ou pelo simples medo de estar se
envolvendo demais, se omite diante dos fatos. Mas, tanto a escola em geral quanto
os profissionais que nela atuam, devem se lembrar que o Estatuto da Criança e do
Adolescente, Capítulo II, Das Infrações Administrativas, artigo 245, diz que:
Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à
saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à
autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo
suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança e adolescente: Pena
multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso
de reincidência.
97
Assim, mesmo que nem sempre os profissionais saibam que podem ser
punidos, pela falta de preparação ou pela omissão, também têm suas
responsabilidades sobre a vítima.
O que nos abate e entristece é que a escola, quando mal preparada e
informada, pode desenvolver outras situações de violência contra crianças e
adolescentes, principalmente quando desconhece suas vítimas, sejam elas de
qualquer tipo de violência doméstica ou não sabendo identificá-las perante
comportamentos que podem apresentar a partir de algum tipo de agressão ou
quando as olham como se devessem continuar submissas à situação ou quando o
adulto que tem ligação direta com a violência, quando chamado na escola, diz que
ela é culpada pelo ocorrido. Outro fator muito encontrado nas pesquisas dessa área
é o preconceito que o profissional da educação tem em relação às crianças e aos
adolescentes vítimas da violência doméstica, efetivando a citação acima
mencionada, de que é preferível calar a denunciar e aí esse profissional cai no pacto
do silêncio em nome de uma ética que nem sempre existe, tornando-se um agressor
devido a negligência.
3.3 As propostas educativas oferecidas a crianças e adolescentes que sofrem
violência doméstica
96
BRUM, Eliane. Apresentação. In: Violência doméstica. Brasília: UNICEF, 2000. p. 5-6.
97
Ministério da Educação. Estatuto da criança e do adolescente. Assessoria de Comunicação
Social. Brasília. DF: MEC, 2004. p. 57.
49
Tornar a escola um ambiente propício ao enfrentamento à violência
doméstica é um grande desafio de todo sistema educacional brasileiro, seja ele
público ou privado.
Fazer com que a escola cumpra e assegure os princípios básicos que
descreve a Constituição Federal, no seu Capítulo III, Seção I, artigo 206, inciso I,
que diz: “igualdade de condições para o acesso e permanência nas escolas”
98
não
discriminando nenhuma pessoa, também faz parte do grande desafio.
Em consonância com a legislação federal, a escola deve ser capaz de
desenvolver uma proposta pedagógica prática que seja capaz de identificar e
encaminhar as vítimas da violência doméstica aos órgãos competentes para
acompanhamento.
Para que a escola esteja preparada para identificar essas crianças e esses
adolescentes, é preciso que seu corpo docente e administrativo passe por alguns
processos, como é o caso da sensibilização e da capacitação.
A sensibilização da equipe preparando-os para receber ou lidar com os
diversos tipos de situações e comportamentos apresentados pelos os alunos vítimas
da violência doméstica é o primeiro passo. Ainda que exista resistência por parte
dos profissionais, assim como os demais observadores, em estar envolvido com os
casos familiares, é preciso que haja uma conscientização das responsabilidades
sociais e educacionais da escola e, mesmo que se tenha medo, o profissional faz
parte desse processo e não pode simplesmente ficar omisso diante dos fatos.
O investimento, por parte dos órgãos ou instituições responsáveis, em criar
políticas de enfrentamento ou prevenção à violência doméstica se torna
imprescindível para que as capacitações profissionais sejam realizadas e que o
investimento em recursos humanos nas redes de ensino seja feito. Com isso,
ocorrerá um fortalecimento dessas redes através do conhecimento desses
profissionais que saberão como agir, fazendo com que se cumpra o Estatuto da
Criança e do Adolescente e respeitando-o integralmente, conforme o artigo a seguir:
Art. 17 O direito ao respeito consiste na inviolabilidade física, psíquica e
moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem,
da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e
objetos pessoais.
99
98
BRASIL. Constituição Federal. Brasília, 1996. p. 108.
99
Ministério da Educação. Estatuto da criança e do adolescente. Assessoria de Comunicação
Social. Brasília. DF: MEC, 2004. p. 13.
50
Assim, com a obtenção de conhecimentos, o profissional da educação
saberá como agir sem colocar a criança ou o adolescente em evidência,
resguardando seus direitos. Contudo, o papel do profissional da educação nesses
casos é de denunciar aos órgãos de atendimento e proteção e de propiciar práticas
de prevenção, através de diálogo com a família, desenvolvimento de projetos que
valorizem as relações pessoais e intrafamiliares e medidas de estreitamento das
relações entre escola x família, promovendo debates e grupos de estudo
relacionados aos assuntos que dizem respeito à violência doméstica contra crianças
e adolescentes.
Com isso, a escola, dentro do processo educativo, pode trabalhar com uma
forma maior de cuidado com a vida dessas crianças e desses adolescentes fazendo
com que o seu desenvolvimento se torne mais completo e saudável. A escola ainda
dispõe de recursos pedagógicos muito precários para lidar com as violências que
ocorrem fora do âmbito escolar, além de promover poucas reflexões e discussões
sobre o assunto, principalmente quando se refere ao seu projeto político-
pedagógico.
Nesse caso, a escola precisa acreditar que é capaz de viabilizar um
ambiente que propicie o cuidado e, para isso, pode contribuir para que os
educadores se sensibilizem e coloquem em suas ações pedagógicas valores que
abordem a violência doméstica, a fim de contribuir com o resgate da dignidade
dessas vítimas que ficam, em sua grande maioria, ocultas atrás dos muros da escola
ou retraídos em seus próprios sentimentos sem qualquer tipo de ajuda. Portanto,
vale lembrar de que uma das funções da escola é a sua proteção.
51
4 OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Desde a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, foi feita uma
definição do que seriam criança e adolescente dentro do contexto legal, assim Silva
a define como: Criança, de acordo com a definição do art. do Estatuto, é toda
pessoa até a idade de 12 anos incompletos, ao passo que o adolescente é aquela
entre 12 a 18 anos.”
100
Essa faixa etária ainda causa polêmica entre os legisladores
por não concordarem que o desenvolvimento biológico seja de acordo com a faixa
etária estipulada, mas acreditam que o mais importante é que o Estatuto não
margem a qualquer outra interpretação dentro dos procedimentos legais por ser
claro em sua redação quando aborda a passagem da infância para a adolescência,
que em muitos casos são tratados apenas como “menor”.
Nesse sentido, esse mesmo autor nos traz uma divisão do termo “menor”,
muito utilizado na legislação, onde apresenta duas faixas etárias: “a) de 0 a 11 anos,
a pessoa se considerada criança; b) de 12 a 18 anos, o jovem será tido como
adolescente.”
101
Talvez outros autores da educação não cheguem à mesma definição, mas
a inclusão da idade de 18 anos no Estatuto está de acordo com “a Convenção dos
Direitos da Criança que, como se sabe, em seu primeiro dispositivo, estabelece que,
para os efeitos da mesma, ‘se entende por criança todo ser humano menor de 18
anos’”.
102
Apesar de parecer confuso, esses conceitos são necessários para que se
possa compreender a legislação que visa a proteção integral da criança e do
adolescente, incluindo o aspecto familiar e garantindo seu desenvolvimento.
Nas situações que envolvem a violência doméstica, caracterizada como
agressão intrafamiliar, ocorre quando o agressor tem algum tipo de ligação com a
vítima e, como vimos anteriormente, se constitui através de atos ou omissões
100
SILVA, José Luiz Mônaco da. A família substituta no Estatuto da Criança e do Adolescente.
São Paulo: Saraiva, 1995. p. 4.
101
SILVA, 1995, p. 4.
102
CURY, Munir. SILVA, Antônio Fernando do Amaral e. MENDEZ, Emílio García. (Coords.). Estatuto
da criança e do adolescente comentado. Comentários jurídicos e sociais. 4. ed. São Paulo:
Malheiros Ed, 2002. p. 14.
52
praticados contra crianças ou adolescentes inseridos na faixa etária mencionada; a
legislação vem com o papel de fazer cumprir e ampliar a responsabilidade da família
ou responsável sobre o menor.
Atualmente, encontram-se vários instrumentos legais relacionados à
proteção aos direitos das crianças e dos adolescentes nos casos de violência
intrafamiliar que pretendem protegê-los e punir os pais ou responsáveis pelos
comportamentos desvirtuados de alguns; por esse motivo é que um
reconhecimento internacional dos direitos das crianças e dos adolescentes e, ao
contrário do que se imagina, esse tema vem sendo discutido e trabalhado desde
muito tempo:
a Declaração de Genebra de 1924 determinava a necessidade de
proporcionar à criança uma proteção especial”; da mesma forma que a
Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (Paris 1948)
apelava ao “direito a cuidados e assistência especiais”, na mesma
orientação, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de
São José, 1969) alinhava, em seu art. 19: “Toda criança tem direito às
medidas de proteção que na sua condição de menor requer, por parte da
família, da sociedade e do Estado”.
103
Claro que os conceitos que se tinha a respeito do menor nessa época não
eram tão nítidos como as definições legais atuais, mas fazendo referência aos
documentos que visam a proteção à infância e à juventude, outras regras e
diretrizes que fizeram parte da construção dessas normas, tais como:
[...] Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da
Infância e da Juventude – Regras de Beijing (Res. 40/33 da Assembléia
Geral, de 29.11.85); as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da
Delinqüência Juvenil Diretrizes de Riad (Assembléia Geral da ONU,
novembro/90); bem como as Regras Mínimas das Nações Unidas para a
Proteção de Jovens Privados de Liberdade (Assembléia Geral,
novembro/90), lançaram as bases para a formulação de um novo
ordenamento no campo do Direito e da Justiça, possível para todos os
países, em quaisquer condições em que se encontrem, cuja característica
fundamental é a nobreza e a dignidade do ser humano criança.
104
Esses documentos foram imprescindíveis, dentro do processo histórico-
social, para que surgisse uma nova visão sobre a importância da criança e do
adolescente no âmbito jurídico garantindo sua proteção integral, bem como sua
dignidade, especificados na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o
Estatuto da Criança e do Adolescente, e é sobre ele que veremos a seguir.
103
CURY, Munir. SILVA, Antônio Fernando do Amaral e. MENDEZ, Emílio García. (Coords.). Estatuto
da criança e do adolescente comentado. Comentários jurídicos e sociais. 4. ed. São Paulo:
Malheiros Ed, 2002. p. 12.
104
CURY, 2002, p. 12.
53
4.1 Aspectos legais
O Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 3º, trata dos direitos
fundamentais da criança e do adolescente, bem como sua proteção integral que lhes
assegura por lei ou outros meios oportunidades e facilidades para seu
desenvolvimento, inclusive em liberdade e dignidade.
105
Nesse caso, a família tem
como dever, por ser o primeiro agente socializador da criança, a responsabilidade
sobre ela, principalmente por saber quais são suas necessidades primordiais, uma
vez que estão mais próximos fisicamente.
A família é juridicamente responsável pelas crianças e pelos adolescentes,
mas também tem responsabilidades junto à comunidade, por esse motivo é que,
Se a família for omissa no cumprimento de seus deveres, ou se agir de modo
inadequado, poderá causar graves prejuízos à criança ou ao adolescente,
bem como a todos os que se beneficiariam com seu bom comportamento e
que poderão sofrer os males de um eventual desajuste psicológico ou
social.
106
No entanto, as famílias nem sempre se dão conta de que os prejuízos
acarretados às crianças e aos adolescentes podem trazer conseqüências para
todos, mesmo sabendo que é de sua competência protegê-los.
Embora haja toda uma legislação de proteção que trata das
responsabilidades e competências da família perante o menor, no que diz respeito à
violência doméstica que afeta um dos aspectos mais primordiais do ser humano
que o seus direitos humanos, ainda inúmeras ocorrências, mas poucos
registros e poucas punições aos agressores, fazendo com que as várias faces da
violência continuem sendo parte integrante do cotidiano dessas crianças e desses
adolescentes.
Mesmo o Estatuto reunindo alguns dispostos e normas presentes na
Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, garantindo a proteção sobre
qualquer tipo de violação dos seus direitos e também “o disposto nas normas
internacionais das Nações Unidas: Regras de Beijing e Convenção dos Direitos da
105
CURY, Munir. SILVA, Antônio Fernando do Amaral e. MENDEZ, Emílio García. (Coords.). Estatuto
da criança e do adolescente comentado. Comentários jurídicos e sociais. 4. ed. São Paulo:
Malheiros Ed, 2002. p. 23.
106
CURY, 2002, p. 23.
54
Criança”
107
no artigo, que se mencionado a seguir, parece-me que ainda não se
criou a cultura de colocá-lo em prática, inclusive no que rege o mesmo.
Art. - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,
punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais.
108
Essa falta de atitude, digamos assim, em fazer-se cumprir a Lei, por motivos
nem sempre aceitáveis aos olhos da sociedade, mas que, em inúmeros casos por
omissão ou negligência, acaba por deixar lacunas entre a redação e a prática
enquanto cumprimento dessa Lei, nos levando a refletir ainda mais sobre o preparo
das Instituições Educacionais e dos demais Conselhos como o Conselho Tutelar,
além de outros órgãos responsáveis pela execução e pelo cumprimento da mesma.
Apesar da legislação brasileira ser “a primeira legislação latino-americana a
ter incorporado em seu texto regras de proteção e garantia dos direitos do menor
infrator como as de proteção da criança vítima de abandono ou outra
violência”,
109
ainda muita confusão em relação a ela, tanto é que acaba sendo
comum as pessoas comentarem que, após sua criação, “não se pode mais nada”
comentários que partem de pais ou educadores que acreditam que a educação só é
efetivada através de métodos de punição.
O intuito da implantação dessa legislação era de despertar o desejo pela
diminuição das várias violências contra crianças e adolescentes e proporcionar uma
maior garantia ao acesso à educação, à saúde, ao bem-estar, além de garantir seus
direitos como sujeitos e sua proteção, mas, infelizmente, ainda há um percurso
muito grande para se fazer cumprir o especificado, por isso é necessário que se
repense, principalmente, o papel da família.
A família, independente de sua estruturação, seja ela natural ou substituta,
ainda é a principal responsável pela formação das crianças e dos adolescentes, e
estes, mesmos sendo titulares de direitos especiais, ainda sofrem diariamente com
as agressões, prejudicando assim seu bom desenvolvimento.
Contudo, essas agressões ainda são tidas e vistas, pela família, como
medidas para educar e disciplinar e, com grande freqüência, nos deparamos com
107
CURY, Munir. SILVA, Antônio Fernando do Amaral e. MENDEZ, Emílio García. (Coords.). Estatuto
da criança e do adolescente comentado. Comentários jurídicos e sociais. 4. ed. São Paulo:
Malheiros Ed, 2002. p. 29.
108
CURY, 2002, p. 29.
109
CURY. 2002, p. 31.
55
um excesso de medidas, mesmo sabendo que uma legislação que defende as
vítimas desses abusos e que poderão ser punidos.
Nesse contexto, o próprio ambiente doméstico ou lar são os principais locais
de agressões às crianças e aos adolescentes.
Embora perceba-se que esses casos sejam muitos, poucos são
denunciados para que possam ser caracterizados como violência, ficando apenas
entre as paredes do silêncio. Esses recursos que ferem e/ou matam, quando
ocultos, se tornam recursos de uma educação que possui um preço incomparável e
nem sempre eficaz, isso quando não as acusam de serem as provocadoras do
abuso, no caso da violência sexual.
Enfim, independente da classificação da violência, ainda é grande o número
de agressões que enfrentam a triste barreira do silêncio e dos expectadores que se
tornam coniventes com esses atos, que quase sempre são impostos pela própria
família.
Mesmo que a Constituição Federal, em seu artigo 227, e o Estatuto da
Criança e do Adolescente, artigo 19, determine que:
Art. 19 - Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no
seio da família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a
convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de
pessoas dependentes de substância entorpecentes.
110
Como a convivência da criança ou do adolescente é constantemente
privada desse direito, uma vez que em inúmeros casos as agressões estão ligadas
ao uso de algum tipo de entorpecente ou bebidas alcoólicas, os membros da família
de origem denominados agressores, parecem não se importar com o que está
previsto em Lei e, em casos extraordinários, são afastados da família
provisoriamente ou “far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção”.
111
Como impõe a Constituição Federal, é dever da família, sociedade e Estado
garantirem à criança e ao adolescente seus direitos e necessidades básicas no que
se refere ao acesso à saúde, à educação, à alimentação, além de proporcionar-lhes
a convivência em comunidade, assegurando-lhes proteção contra qualquer tipo de
negligência, crueldade ou quaisquer outras violências; sendo que têm direito de
110
CURY, Munir. SILVA, Antônio Fernando do Amaral e. MENDEZ, Emílio García. (Coords.). Estatuto
da criança e do adolescente comentado. Comentários jurídicos e sociais. 4. ed. São Paulo:
Malheiros Ed, 2002. p. 83.
111
Ministério da Educação. Estatuto da criança e do adolescente. Assessoria de Comunicação
Social. Brasília. DF: MEC, 2004. p. 15.
56
serem criados junto com sua família de origem ou, em casos extraordinários, em
família substituta.
No caso da “falta ou carência de recursos materiais, não constitui motivo
suficiente para a perda ou a suspensão do pátrio poder”, conforme o artigo 23, do
Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo necessário que a família seja
enquadrada nas medidas de acompanhamento e auxílio para que a criança ou o
adolescente permaneça na família de origem de forma assistida.
Como a família, independente de sua estruturação, é o lugar natural e ideal
para que os filhos sejam criados, o desenvolvimento de programas sociais e
assistenciais propicia auxílio através de medidas de prevenção da violência
doméstica ou preparando-os para que sejam reinseridos no lar. Por esse motivo que
a denúncia dos casos de agressão serve para que os órgãos responsáveis possam
acompanhar a vítima e a família, fazendo com que unam esforços para propiciar
uma vida harmônica e digna à crianças ou à adolescentes que necessitem desse
acompanhamento.
Quando os casos de violência não são denunciados, efetivando os rituais de
violência, acabam violando o artigo 98, que trata da aplicação das medidas de
proteção, mais especificadamente em seu “inciso II por falta, omissão ou abuso
dos pais ou responsáveis”,
112
as crianças e os adolescentes podem, através da
requisição ao Conselho Tutelar, da representação em juízo ao Ministério Público e à
autoridade judiciária, serem encaminhados a quaisquer das medidas previstas no
artigo 101 do Estatuto, ou serem designadas, provisoriamente, aos abrigos,
conforme redação do “parágrafo único o abrigo é a medida provisória e
excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família
substituta, não implicando privação de liberdade.”
113
Essas crianças são
encaminhadas aos locais de proteção e acolhimento, permanecendo até que seja
autorizado sua reinserção familiar ou encaminhamento para adoção. Nesse último
caso, inúmeras crianças e adolescentes acabam sendo separados de seus irmãos
porque geralmente as famílias preferem a adoção de bebês. Outro fator é a opção
112
CURY, Munir. SILVA, Antônio Fernando do Amaral e. MENDEZ, Emílio García. (Coords.). Estatuto
da criança e do adolescente comentado. Comentários jurídicos e sociais. 4. ed. São Paulo:
Malheiros Ed, 2002. p. 303.
113
CURY, Munir. SILVA, Antônio Fernando do Amaral e. MENDEZ, Emílio García. (Coords.). Estatuto
da criança e do adolescente comentado. Comentários jurídicos e sociais. 4. ed. São Paulo:
Malheiros Ed, 2002. p. 309.
57
por bebês brancos, o que de certa forma prolonga a permanência dos demais nos
abrigos até a maioridade.
Como observa-se, todo e qualquer tipo de mau-trato que é característica da
violência doméstica, seja ele de qualquer forma ou espécie, acaba deixando marcas
para toda uma vida.
Assegurando esse direito, o artigo 130, do Estatuto da Criança e do
Adolescente, diz que: “Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso
sexual imposto pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar,
como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.”
Além do Estatuto da Criança e do Adolescente o Código Penal Brasileiro
também tem a preocupação em ser eficaz no combate à violência principalmente ao
que se refere à exploração sexual. No artigo 223, especifica em quais casos são
constituídos a prática do abuso sexual: “presume-se violência se a vítima: a) não é
maior de 14 anos; b) é alienada ou débil mental (e o agente conhecia esta
circunstância); c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.”
114
Com
isso, se que qualquer pessoa tem responsabilidade pelo bem-estar dessas
crianças e desses adolescentes e que, quando enquadradas nessas condições,
ficam à mercê dos integrantes da família ou responsáveis, que em sua grande
maioria têm ligação direta como o abuso. Por isso, as questões ligadas à família,
como menciona a Constituição Federal, interessam não só aos pais, mas a qualquer
cidadão que veja algum ato de violência praticado contra elas porque se torna
inaceitável ser conivente com uma situação dessas.
Inclusive quem submete crianças ou adolescentes à prostituição ou à
exploração sexual, como se diariamente nos noticiários, pode ter uma pena de
reclusão de quatro a dez anos, além de multa, independente de quem seja.
115
Por tudo isso que vimos é que, ao tomarmos conhecimento dos casos de
violência contra crianças e adolescentes, a primeira coisa a se fazer é procurar
imediatamente o Conselho Tutelar para comunicar o fato, a partir disso as
providências junto aos agressores ou o encaminhamento ao Ministério blico será
efetivado e, se necessário, haverá o encaminhamento ao Instituto Médico Legal para
114
Código Penal Brasileiro, apud Prevenir é melhor do que remediar. A prevenção da violência
contra crianças e adolescentes na cidade do Recife. Prefeitura Municipal de Recife, PE, 2004. p.
29.
115
Ministério da Educação. Estatuto da criança e do adolescente. Assessoria de Comunicação
Social. Brasília. DF: MEC, 2004. Art. 244-A. p. 57.
58
perícia. Nos casos em que os municípios não possuam Conselho Tutelar, os casos
devem ser denunciados na Delegacia de Polícia para procedimentos cabíveis.
O mais importante é que devemos nos lembrar de que inúmeras crianças e
adolescentes estão em situações de risco diariamente e o que é mais grave é que o
risco está no próprio ambiente familiar, mas por trás disso tudo também temos
pessoas e órgãos públicos que são atores sociais fundamentais para combater esse
quadro, que são o Conselho Tutelar, o Juizado da Infância e da Juventude, o
Ministério Público e os parceiros das entidades governamentais e não-
governamentais que desenvolvem o trabalho de apoio e acolhimento às crianças,
aos adolescentes e às famílias.
Portanto, jamais podemos nos esquecer de que o trabalho integrado de
todos, reforçando esse apoio social a quem tanto necessita de ajuda, é que vai
facilitar o acompanhamento e o combate a essa vilã que está acabando com a
alegria da infância das crianças e destruindo as expectativas dos adolescentes que
é a triste realidade de ser vítima da violência doméstica.
59
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo que se tente, a conceituação da violência doméstica contra
crianças e adolescentes ainda não está concluída.
Apesar de existir muito tempo, apenas alguns anos está sendo
estudado cientificamente; a todo momento surgem novos conceitos que são refeitos
para tentar uma aproximação com a realidade vivida.
Apesar de todas as definições é difícil expressar o que se sente quando
nos deparamos com uma triste realidade que é mascarada para não manchar os
moldes de uma sociedade decadente. Parece-me que a família, com toda sua
evolução histórico-social, se perdeu durante o caminho. não se sabe mais qual é
seu papel em meio a tanta modernidade. Modernidade essa que deveria vir como
forma de evolução, mas confundiu-se em meio à falta de responsabilidade e à troca
de papéis entre o ato de educar, criar, respeitar a infância e a adolescência como
forma de dignificar o ser humano, com a simples tarefa de colocá-las no mundo.
A família, instituição mais importante para o desenvolvimento do ser
humano como foi apresentada, está desumanizada. Perdeu-se a noção das
conseqüências das atitudes em relação aos filhos a ponto de exceder nos métodos
de “educar” e nas formas de proporcionar “carinho, afeto, amor...”.
Em meio à incompreensão, às ameaças, os maus-tratos e até na
confiança depositada por crianças e adolescentes nos seus parentes ou nas
pessoas mais próximas nas quais confiavam, foram traídas e privadas de poderem
construir uma visão de mundo colorida e cheia de expectativas, e isso por atitudes
impensáveis e inconseqüentes de pessoas medíocres que deixaram linhas,
imagens, cheiros, sensações e dores marcadas na história de vida de cada uma
delas.
Mesmo com todas as pesquisas realizadas, definições, contextualizações,
índices e legislações descritas durante os capítulos deste trabalho, é praticamente
impossível descrever o que se passa na mente e no coração de cada uma dessas
crianças e desses adolescentes vítimas da violência doméstica.
60
O que é mais inquietante é ter que apresentar todos esses dados para
poder chamar a atenção sobre o assunto, que, apesar de alguns relatos da mídia,
está muito longe de ser solucionado.
Apresentar essas informações foi realmente um verdadeiro desafio,
porque seria muito mais fácil fazer como muitas pessoas ficar apenas como mera
expectadora e se calar diante da realidade. Assuntos sobre a educação e suas
problemáticas são inúmeros, que não deixam de ter importância, mas falar de
família, educação e propostas para crianças e adolescentes vítimas da violência
doméstica torna-se uma missão quase impossível porque o sistema sócio-
educacional ainda está arraigado a conceitos retrógrados que reforçam o velho
jargão de que “em vida de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Só que se
esquecem de olhar para a infância e a juventude que estão morrendo e familiares,
profissionais da educação e pessoas da comunidade ajudam a matá-los aos poucos
em nome da discrição, da ética profissional ou apenas pela negligência.
Nesse contexto e diante de toda realidade lida e observada, verificou-se
que a violência doméstica possui várias faces. Assim, no decorrer desses relatos,
foram mostrados os conceitos sobre violência e, mais especificadamente, a
doméstica, que apresenta várias classificações. Assim, independente de relatar os
conceitos e funções da família, defini os tipos de violência seus conceitos, causas
e conseqüências, e também a relação existente entre agressores e timas, além
dos gêneros e tipos de violência mais comuns de acordo com a faixa etária.
Em meio a tantas informações, apresentei de forma sucinta e clara o que
comumente se vê de forma ampla, como é o caso dos apontamentos sobre a
mortalidade infantil, simplesmente denominada assim, mas jamais especificada
como a criança sendo vítima de abuso ocasionado por uma pessoa com
determinado grau de parentesco.
Outra situação contrária ao que se imagina foi a classificação dos índices
de violência por idade, onde a violência sexual vem seguida da violência psicológica,
da negligência, da violência física e por último da exploração sexual, sendo que o
abuso e a exploração sexual ocorrem com mais freqüência no sexo feminino,
enquanto que a violência psicológica, a negligência e a violência física acontecem
mais no sexo masculino.
Diante desses dados, verifica-se que, mesmo a violência sexual ficando
em destaque, outros tipos de violência que não são tão visíveis apresentam
61
números altos de vítimas, com isso, as marcas e conseqüências deixadas acabam
sendo tão graves quanto as demais.
Portanto, mesmo que haja toda uma legislação de proteção integral à
criança e ao adolescente, é preciso entender que a família, mesmo sendo uma
instituição “privada”, deve ser cuidada por todos. Tanto a Constituição Federal,
quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente, entre outros órgãos, apresentam
medidas para que se reafirme a importância das relações intrafamiliares como forma
de prevenção das violências e das influências e conseqüências que traz.
Por outro lado, é preciso saber como a violência doméstica está sendo
vista no ambiente escolar, por esse motivo é que foi abordada no âmbito geral e no
olhar educacional, apresentando as principais idéias desse ambiente e as propostas
de identificação e forma de trabalho realizado com as crianças e adolescentes
vítimas da violência doméstica. Além disso, foram apontados alguns itens sobre o
perfil da escola e o posicionamento dos profissionais em relação a esse tipo de
trabalho e o que se é que a escola e seus profissionais também necessitam de
orientação.
Desse modo e como forma de orientação, as crianças e os adolescentes
foram apresentados como sujeitos de direito no que diz respeito aos aspectos legais.
Assim, foram abordados os deveres da família em relação à essas crianças e à
esses adolescentes e os prejuízos que traz quando a Lei é violada, prejudicando a
viabilização de suas necessidades básicas.
No entanto, é indispensável o estudo e a análise constante desse assunto,
uma vez que a legislação é um instrumento indispensável para consulta e orientação
no cotidiano social e educacional para o enfrentamento à violência.
Por fim, a problemática da violência doméstica continua fazendo parte do
cotidiano e por isso é necessário que haja uma atualização nos programas
assistenciais e educacionais visando permitir um atendimento voltado para as reais
especificidades da população infanto-juvenil. É preciso prevenir e punir os
agressores e orientar as vítimas; assim, aproveitando essa experiência espero que
novos meios de defesa surjam, pois ainda temos muito o que aprender e
aperfeiçoar.
62
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