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Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Comunicação e Expressão
Pós
-
Graduação em Literatura
A INTERATIVIDADE NA POESIA DIGITAL
Otávio Guimarães Tavares
Florianópolis
2010
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2
Otávio Guimarães Tavares
A INTERATIVIDADE NA POESIA DIGITAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós
-
graduação em Literatura da Universidade
Federal de Santa Catarina, como requisito para
obtenção do título de Mestre em Teoria
Literária.
Orientador: Alckmar Lui
z dos Santos
Florianópolis
2010
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3
AGRADECIMENTOS
à
minha família pelos apoios estratégicos
à
Elba pelas
Cent Mille Milliards
de dúvidas respondidas e apoios
à
Enrique pela
constante crítica
e diálogo
(e pelo exemplo absoluto de estudo
ilimitado e
determinado)
à
Cláudia Grijó Vilarouca, revisor
a, amiga, companheira, mi corazó
n e chama presente em
todas as artes...
à
Alckmar Luiz dos Santos, amigo
e orientador
acima de tudo
ao CNPq pelos dois anos de bo
lsa
4
yet, now
that I recall all the circumstances I think I can see a little
into the springs and motives which being cunningly presented to me
under various disguises, induce me to set about performing the part I
did, besides cajoling me into the delusion that it was
a choice
resulting from my own unbiased freewill and discriminating judgment.
Ishmael,
Moby Dick
de
Herman Melville
5
RESUMO
Esta
dissertação tem como objetivo
compreender
a interatividade
na
obra
de arte
digital
, sob a
perspectiva
da fenomenologia
de
Ma
urice
Merleau
-
Ponty
. Para tanto, conjugo
um objetivo
geral
mapear mecanismos e estratégias de interatividade no poema digi
tal
e um objetivo
específico
ler
a obra
Amor de Clarice
,
de
Rui Torres
com o intuito de poder entendê
-
los
melhor
através de um
constante diálogo entre
esses
obje
tos
de estudo
, no como se cruzam,
para, finalmente, buscar
a compreensão
d
os processos de interativ
idade na obra
de arte
digital
.
Logo
, faço um recuo cronológico e
lanço mão
de
poemas
do Barroco ibérico e
brasileiro
, do
E
xperimentalismo português e do OuLiPo francês
;
criações impressas
que propõem a sua
construção material e s
ua disposição
no
meio
(suporte)
como elementos significantes da obra
,
como parte da construção de
sentido,
que propõem ao leito
r um programa a ser ca
ptado para
o
/no
ato da leitura, em que
o caráter procedural da escrita e da leitura se torna evidente
.
A fim
de mostrar como tal ocorre
,
utilizei como apoio os textos de
escritores
-
críticos
tais
como
Ana
Hatherly, Italo Calvino, Georges Perec e Raymond Q
ueneau
, em cujas obras
se percebe
esse
caráter procedural
.
Na etapa final
, volto ao meio digital e sua
s
técnica
s
para averiguar
, através
da fenomenologia,
a proximidade entre a criação e a interação enquanto atos expressivos no
mundo, como um encontro de h
orizon
tes de sentido, como atos que solicitam a
habitar o meio,
permitindo
trazer aquele objeto par
a meu corpo e
torná
-
lo parte de meu ser no mundo.
PALAVRAS
-
CHAVE:
Interatividade.
Ato expressivo.
Poema p
rocedural.
Obra de a
rte
digital.
Amor de Clarice
.
6
ABSTRACT
Th
is dissertation aims at comprehending interactivity in the digital work of art, through the
perspective of Maurice Merleau
-
Ponty’s phenomenology. For such, I combine a general
objective
that of mapping mechanisms and strategies of interacti
vity in digital poetry
and
a specific objective
that of reading Rui Torres’ work
Amor de Clarice
with the intention of
better understanding both through their constant dialogue, on how they intercross, as to finally
comprehend the process of interact
ion in digital work of art. For this purpose I return to
poems from the Iberian and Brazilian Baroque, Portuguese Experimentalism and French
OuLiPo; being these, printed creations in which material construction and medium (physical
support) are held as sig
nifying elements of the work, as parts of the construction of meaning,
which proposes to the reader a program to be understood for and in the act of reading, in
which the procedural aspect of writing and reading become evident. To show how this occurs
I ut
ilized texts from writer
-
critics such as A
na Hatherly, Italo Calvino, Geor
ges Perec, and
Raymond Queneau, in whose works one may perceive this procedural aspect. In the final
stage, I return to the digital medium and its techniques to examine, through phen
omenology,
the proximity between creation and interaction as expressive acts in the world, as the
encountering of horizons, as acts that solicit us to inhabit the medium, allowing us to bring
objects to our bodies and allowing them to participate in our be
ing in the world.
KEYWORDS
: Interactivity. Expressive act.
Procedural poem. Digital work of art.
Amor de
Clarice
.
7
LISTA DE IMAGENS
Imagem 01:
poema visual
Asas de E
ros.
___
_____________
________________________
1
8
Imagem 02:
labirinto poético.
___________
___________________________________
___1
9
Imagem 03:
Bismillah
em forma de tigre.
_____________________________________
__
1
9
Imagem 04:
Labyrintho
de Manuel de Faria e Sousa.
________________________
___
___33
Imagem 05:
Palavrador
diante do labirinto de haikais
.
___________________________
_
_35
Imagem 06:
anagrama aritmético de Alonso de Alcalá y Herrera.
__________________
___
40
Imagem 07:
figuração de potência e resultados.
________________________________
___
44
Imagem 08:
poema de Jerónimo Tavares Mascarenhas de
vora.
__________________
_
_45
Imagem 09:
exemplo dos caminhos de leitura possíveis explicitado por Hatherly.
_____
___46
Imagem 10:
tela inicial do poema.
_____________
_______________________________
_
56
Imagem 11:
versos.
_______________________________________
_______________
___
61
Imagem 12:
exemplo do trabalho visual do poema.
_____________________________
___62
Imagem 13:
página antes e depois com versos rearranjados pelo leitor.
_______________
_
63
Imagem 14:
sobreposição verbal.
__________________________________
__________
_
_68
Imagem 15:
nebulosidade entre frente e fundo.
_______________________________
_
___6
9
Imagem 16:
índice do poema.
_________________________________________________
70
Imagem 17:
exemplo simplificado de rumos por tela.
____________________________
_
_
72
Imagem 18:
poema de Salette Tavares como impresso nos cadernos do PO
-
EX.
________
_
78
Imagem 19:
uma imagem estática da releitura em
flash
.
__________________________
_
_
79
Imagem 20:
Computador (o corpo físico recebendo energia elétrica para operar) => OS
(tem
nos seus códigos a possibilidade de um programa) => programa (tem no seu código a
possibilidade de criar pequenos aplicativos como actionscript) => poema digital/obra (poema
potencial que tem margem para interação do leitor) => texto (um caminho efet
ivado pelo
leitor).
____________________________________________________________________
83
Imagem 21:
esquema das possibilidades permutativas dentro de permutações.
_
___
_______
93
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
___
_____________________________________________________
_
__
10
CAPÍTULO 01
POEMA PROCEDURAL
_________________________________
___1
4
1.1 POEMA D
IGITAL?
__
____________________
_____________________________
_14
1.1.
1
A Tradição do poema
-
visual__
___________________________________________
_1
7
1.1.2
Craft
__
_____________
________________________________________________
_2
2
1.2
INTERAÇÃO (MECANISMOS E ESTRATÉGIAS)
__
___
_
__________________
_25
1.2.1 Um toque no tato livresco__
_____________________________________________
_26
1.2.2 Um corpo padrão__
_______________________________
_____________________
_28
1.2.3 Interação efetiva__
____________________________________________________
_28
1.2.4 Programa autor (construção do espaço para interação)__
_______________________
_29
1.2.5
Contraintes
__
____________________________________________
____________
_37
1.2.6 No meio das
contraintes
(texto no meio do caminho)__
_______________________
_48
1.2.7 Leitor de
contraintes
__
_________________________________________________
_49
CAPÍTULO 02
UM
POEMA DIGITAL
AMOR DE CLARICE
__
_____________
_53
2.1
A
MOR DE CLARICE
__
___________
______________________________________
_5
3
2.2
AMOR DE CLARICE
ENQUANTO OBJETO PALIMPSÉSTICO
__
___________
_56
2.2.1 Elementos__
_________________________________________________________
_57
2.2.2 Poema
_
_______________________________
______________________________
_57
2.2.3 Palimpsesto__
____________________________
_
___________________________
_5
8
2.2.4 Transposições__
______________________________________________________
_60
2.3 NARRATIVA
ALTERADA
__
________________________________________
___
_64
2.3.1 Constituição Estranha__
________________________________________________
_65
2.3.2
Dizer
-
ver
-
ouvir__
_____________________________________________________
_67
2.3.3
Obra manipulável__
___________________________________________________
_69
2.3.4 Pal
impsesto de telas___
________________________________________________
_73
2.4
FINIS
M
ATERIAL
_
___________________________________________________
_74
CAPÍTULO 03
CÓDIGO FONTE__
_______________________________________
_76
3.1
CÓDIGO
-
FONTE
__
____________________
_______________________________
_76
3.1.1 Necessário?__
________________________________________________________
_76
9
3.1.2
EFE
um breve exemplo__
_____________________________________________
_77
3.1.3 Mostrar
-
se___
____________________________________________
____________
_
80
3.1.4 Programa dentro de programa dentro de...__
________________________________
_
81
3.1.5 Código é tudo?__
_____________________________________________________
_8
3
3.1.6 Programação de possibilidades__
________________________________________
_
_85
3.2 GIRAR DAS
RESTRIÇÕES
_____________________________________________
_87
3.2.1 Técnica nova__
_______________________________________________________
_89
3.2.2 Um breve exemplo__
__________________________________________________
_
92
3.2.3
LUTHIER
Digital
__
___________________________________________________
_
95
3.2.4 Nova sensibilidade___
_________________________________________________
_
97
3.3
RESPOSTA
___________________________________________________________
_
98
3.4 BALANÇO
_________________________________
__________________________
_
99
CAPÍTULO 04
INTERATIVIDADE E CRIAÇÃO
... EXPRESSÃO_
__________
_
_
100
4.1
SOLICITAÇÃO
__
_______
______________________________________________
100
4.2
H
ÁBITO
___
______________
____________________________________________
10
4
4.3
CRIA
ÇÃO
___
______________
___________________________________________
10
5
4.4
HABITAR
AMOR DE CLARICE
___
______________________________________
108
4.5
DE SIGNIFICAÇÕES
____
__________________________________________
111
4.6
ORIGINALIDADE DO ATO
___
_______
__________
________________________
112
CONSIDERAÇÕES FINAIS
___
____________________________________________
113
REFERÊNCIAS BIBILIOGRAFICAS___
____________________________________
116
GLOSSÁRIO
de termos informáticos
__
_____________________________________
_
120
10
INTRODU
ÇÃO
O presente trabalho tem dois propósitos: conjugar
um objetivo geral
mapear mecanismos e
estratégias de interatividade no poema digi
tal
e um objetivo específico:
ler
a obra
Amor de
Clarice
,
de
Rui Torres
com o intuito de poder entendê
-
los melhor
através de um constante
diálogo entre esses objetos, no como se cruzam, e buscar compreender os processos de
interativ
idade na obra digital
.
1
No primeiro capítulo desse trabalho, me concentrei em delinear alguns conceitos e estabelecer
um fundo/base par
a pensar a poesia digital. Para tanto, não seria adequado permanecer apenas
nas obras da contemporaneidade, pois isso significaria permanecer atado a certos preconceitos
e amarras que tendem a obscurecer e limitar nosso campo de visão através de euforias
t
ecnológicas ou
reivindicações positivistas as quais
pretendem
que
nossa época e suas
criações sejam
insuperáveis e absolutamente originais, ou seja, incomparavelmente diversas
das épocas e criações que as antecederam. Nada mais distante da verdade. Existe
algo de novo
e de diferente nas criações e técnicas de nossa época, é fato, mas isso não nos impossibilita de
perceber pontos de convergência entre nossas criações e as que nos antecederam. Por esta
razão, volto meus olhos para criações “antigas”, principa
lmente para as obras visuais e de
engenho do Barroco ibérico, mas também as do Experimentalismo português e as do OuLiPo
francês
conjunto que será englobado pelo termo proposto de poemas
p
rocedurais
, sem
deixar de fora obviamente as obras digitais de n
ossos tempos.
Entretanto,
voltar o olhar ao
passado não implica
uma saída para poder legitimar as criações
atuais, pois isso significaria apenas uma utilização das obras
sem as olhar enquanto criações,
seria uma desculpa para fundar qualquer coisa com pre
textos alheios a elas. Minha atenção se
volta a essas criações para
-
las, para aprender com elas, sendo possível assim traçar certas
proximidades entre os modos de ser da poesia antiga e o que atualmente se está criando como
poesia digital. É possível ve
r em suas técnicas, processos e modos de operar
,
pontos de
convergência com a arte atual, algo que ainda permanece e pode nos ajudar a entender as
possibilidades e limitações das criações digitais da atualidade.
11
2
No segundo capítulo leio o poema digital
de Rui Torres,
Amor de Clarice
(2005)
, atento ao
processo de recriação presente em sua concepção. Lanço mão do livro
Palimpsestes: la
lit
rature au second degré
do crítico francês Gérard Genette, por se tratar de uma análise
exaustiva e minuciosa das poss
ibilidades e características de transposições e transcriações
literária que, apesar de não ser tema abordado pelo crítico francês, permitem
-
me pensar a
transposição para outros meios.
Ainda nesse segundo capítulo, a leitura de
Amor de Clarice
será feita a
través das solicitações
da própria obra, de como ela se à fruição. Não recorro, como é de costume nas análises de
arte e mídia, aos anseios da semiótica (que às vezes pode parecer um caminho quase que
obrigató
rio a quem adentra tais obras
em nosso país)
. Se assim o faço, não o é por
desconhecer tal bibliografia, mas por optar por uma leitura que tenha como fundo outra base,
exatamente a que me possibilita o
bservar como a obra se porta n
um estado nascente, que me
permita ler o
poema
digital
como uma obra
de arte. Porém,
não a vejo como uma obra
declarada por convenções ou críticos, mas como arte por via da própria experiência estética,
pelo próprio contato de vivência que ela proporciona a quem a lê. Eis o motivo pelo qual optei
pela fenomenologia, acima d
e tu
do da fenomenologia como concebida
pelo filósofo francês
Maurice Merleau
-
Ponty, que ainda
permite seguir o preceito de seu fundador e mestre
Edmund Husserl, qual seja, ir às coisas mesmas.
Essa tentativa de ler
Amor de Clarice
como arte significa tent
ar olhá
-
la enquanto objeto
estético, verificar se a obra de arte digital apresenta qualidades para essa fruição e como essa
fruição se dá. Nesse sentido, vou pelo caminho oposto ao de tentar ler as obras digitais como
simples comunicação digital ou como ma
nifestações de cunho antropológico no meio digital.
A
arte transcende isso; mesmo sendo
inegável que e
sses elementos estão
incorporados
nela, a
arte os ultrapassa.
3
Todavia, na realidade, o
lhar a poesia digital como arte
não significa estar desatualizad
o
com
relação a suas tecnologias; muito pelo contrário, isso implica pensar a obra de art
e digital um
pouco mais próximo do
como se pensava a arte renascentista, em que a divisão explícita entre
artesão e artista não era algo presente no pensamento da época
(diferente do modo como se
tem tentado
-
las até os dias de hoje). Com isso, no terceiro capítulo, inicio uma reflexão
12
sobre o meio digital e seus aparatos técnicos, seu modo de operar. Vou ao código fonte, esse
outro local da escrita, esse outro lado de
uma visualidade que se mostra na tela, essa escrita de
potencialidades que constrói a possibilidade de uma obra, que restringe para se abrir e criar
uma obra.
Nesse capítulo, também abordarei as relações do criador e do leitor com a técnica digital,
como
eles podem tocar aquele espaço que inicialmente interpõe tantas camadas entre eles e a
obra.
4
O último capítulo é dirigido
diretamente, através da fenomenologia, à interação na poesia
digital. Com base no que foi exposto nos capítulos anteriores, tento
compreender, por meio da
filosofia de Merleau
-
Ponty, como se nossa interação com a obra de arte digital. Para isso
será necessário esclarecer os conceitos de expressão e hábito na obra de Merleau
-
Ponty. Tais
conceitos permitiram algum entendimento das
possibilidades de minha ação dentro da obra,
de minha escolha e de minhas ações dentre inúmeras possibilidades ao tocar aquele objeto,
sem cair nas análises matemáticas de probabilidade ou estatísticas de possibilidade (que
tendem a apontar quantas possibi
lidades podem haver, não porque efetivamente elas se
concretizem). Questiona
-
se nesse capítulo como se interage com aquele objeto fruto de uma
construção, da condensação de um horizonte de sentido. Tento compreender o encontro de um
eu e de um outro atravé
s da obra, através da interação com aquela materialidade.
Se essa parte teórica se encontra no final da dissertação é porque não parti da teoria para
chegar a suas manif
estações na obra literária; li
ambos, um
a
ao lado
da outra
, fui construindo
um entendi
mento que necessitava das duas instâncias par
a constituir minhas leituras n
um
espaço solidário entre crítica e reflexão teórica.
Pode parecer estranho que eu tenha optado ler a fenomenologia de Merleau
-
Ponty para falar
da poesia digital, utilizando um aut
or que fala de estética, porém sem ter propriamente uma
obra sobre a questão. Mas é justamente por essa razão que sua obra me serve. Por abordar a
arte como um todo, ele permite pensar meu contato com o objeto de arte, minha percepção
desse objeto antes de
segregá
-
lo em diferentes subcategorizações, antes de
-
lo
como
um
objeto propriamente estético. Logo, com a aprendizagem pela filosofia de Merleau
-
Ponty é
possível olhar a obra de arte no seu estado bruto, olhar como entramos em contato com ela
13
antes de
a analisarmos. É possível assim, tentar entender a obra e a interação com ela, através
do que ela nos diz, de como nos comportamos diante da obra, sem nos limitarmos a uma
experiência pessoal. E acima de tudo, por se voltar a essa percepção do objeto, é po
ssível
também olhar a criação daquela obra, olhá
-
la enquanto ato expressivo no mundo.
14
CAPÍTULO 01
POEMA PROCEDURAL
1
.
1
P
oema
digital
?
[
a
arte
digital se insere no tempo, n
uma tradição]
O
poema digital é uma forma de expressão
artística
1
recente se comp
arad
a
às outras formas de
expressão artística
como a pintura ou a literatura
,
porém não é algo tão novo se considerarmos
as experimentações com vídeo
-
poemas, poemas
-
processo entre outras criações
contemporâneas que têm buscado utilizar os aparatos de comun
icação
as
novas tecnologias
na expressão artística.
Existem experimentos com criações feitas utilizando o computador já
nas décadas de 60 e 70. E não
podemos entend
er a criação artística digital
como uma criação
sem precedentes
, como algo que surge esp
ontaneamente
, pois ela
, como toda forma de
expressão,
se in
s
ere dentro de um contexto histórico
-
cultural e dialoga com outras obras que a
antecederam
.
E, no caso dessas artes que utilizam tecnologias comunicativas, temos a
convergência de diferentes meios
de expressão, como obras que contêm som, texto, e imagem,
simultaneamente.
[o que é um meio]
P
arto do pressuposto que de fato existe
diferença entre dois meios de expressão artística: entre
o que se tende a chamar de meio impresso e o meio digital (esquec
endo
-
se propositalmente
que existe também o meio sonoro
2
). Entende
-
se por meio o local em que a obra se dá, onde
está sua materialidade, a matéria no mundo que permite sua existência física, enquanto a
materialidade mundana (aquilo que é mundo) que permite
a existência daquela obra e, desse
modo, a fruição dela por outro indiv
íduo ou grupo de indivíduos. No entanto,
não devemos
pensar no meio como um mero transmissor da obra, pois tenderemos a cair na concepção da
obra de arte como uma ideia que o autor con
cretiza ou transpõe em matéria no meio. Isso nos
levaria à obra pensada como uma ideia encarnada (ou seja, a obra enquanto ideia, antes de ser
1
Entende
-
se por obra de arte um objeto sensível pelo qual aquele que interage atinge um texto, e que pode abrir
ao leitor o fluxo de fruição
estética. A obra de arte, considerada como um objeto no mundo, como um trabalho
sobre o mundo, um objeto trazido à luz por um ato de moldar o mundo ou elementos do mundo. Pode
-
se objetar
aqui que haveria uma pretensa definição do que é arte, mas percebo c
omo necessário tal
explicitação inicial, sem
definições absolutas (jamais teremos uma), servindo como um ponto de partida mais claro para tentar
compreender o objeto em questão.
2
Meio pelo qual antigamente a literatura era transmitida, basta lembrarmos o
s cantos dos trovadores ou as
epopéias.
15
matéria, o que cairia
n
um platonismo redutor). Nada mais distante do que quero dizer. Penso
o meio como uma mater
ialidade média entre dois seres, um espaço que toca a ambos e
permite que ambos se toquem, uma materialidade/local comum, um local em que ambos são e
estão. E penso a obra como gerada nesse local, gerada nesse meio, tendo ali vida no mundo,
na mesma existê
ncia que o autor e o fruidor, e não sendo idealizada fora do mundo para
depois ser “transcrita” a uma materialidade.
[exemplos de meios e convergência deles]
Mais explicitamente, posso dizer que uma obra literária que
foi composta n
um livro está
escrita n
o meio impresso; assim como um quadro, pintado sobre uma tela; um grafite, no
muro; uma canção sendo cantada
está no meio sonoro; um poema declamado também. Logo,
uma criação artística que é fruída no computador está no meio digital. Claro que esta distinç
ão
pode se tornar mais complexa, visto que o próprio objeto literário além de um caráter sonoro
ao ser recitado
também tem um caráter visual com suas letras, especia
lmente se pensarmos
em alfabetos como o árabe, hebraico e o chinês, todos
aqueles
que c
arregam uma g
rande
carga visual. Isso inclui
nosso próprio alfabeto
,
ou até exemplos mais antigos de escrita como
os caracteres góticos ou as caligrafias cursivas antigas.
[meio e modo de operar]
Partimos então do pressuposto de que uma arte digital é aqu
ela que se no meio digital e
não em outros meios, que essa é a mudança substancial entre a arte impressa e a arte digital.
Contudo, a mera diferença com respeito ao
meio
em que
a criação se
, ou seja,
onde ela se
,
não pode ser tratado como diferenç
a completa entre uma arte e outra. Pretendo
dizer
, na
verdade, que a distinção
entre o objeto artístico digital e o
artístico impresso é o fato de que a
obra digital, por ser criada com e no meio digital,
perm
ite a utilização de recursos e
potencialidades
desse meio, possibilitando outros tipos de construções
que anteriormente não
eram possíveis ou, se possíveis, em diferente grau quantitativo e qualitativo. Eu podia, como
foi feito em vários poemas inventivos do Barroco, permutar versos de um poema; com o
meio
digital posso criar um algoritmo que faça isso para mim com várias obras e compute os
resultados com uma velocidade absurda quando comparado com épocas anteriores (claro que
existem limites, bem mais restritos do que tendemos a imaginar, sendo muito f
ácil
sobrecarregar um computador doméstico).
16
[novos velhos modos de leitura]
Com este tipo de mudança de meios e modos se tornam necessárias outras estratégias de
construção e leitura das obras
.
Anteriormente eu disse que a arte digital
e aqui será
nece
ssário focarmos na literatura digital, e mais especificamente no que se pode chamar de
poesia digital, poesia eletrônica, poesia hipermediática ou qualquer outro nome semelh
ante a
esses
está inserida n
um contínuo de expressão artístico
-
his
tórica, numa tr
adição, ou melhor,
n
uma linha de manifestações. Justamente pelo fato de podermos ir buscar características na
composição e nos modos de leitura dessas obras que vêm a ser chamadas de
poesia
inventiva
ou
poesia
visual (presentes no barroco ibérico) é que po
deremos chamar o objeto deste estudo
de
poesia
digital.
[poesia de invenção visual barroca]
Isso que chamamos de poesia de invenção ou visual englobaria criações que se denominam de
poemas
-
visuais, poemas
-
permutativos, labirintos
-
textuais, anagramas, cent
ões e toda uma
tradição poética que preza por certas artimanhas de criatividade lúdica no seu fazer poético,
apostando também na visualidade da obra poética. Temos uma tradição que tem sua
presença marcada em vários locais e e
m várias épocas,
cuja manif
estação mais relevante, em
quantidade e qualidade,
está no Barroco ibérico, per
apareceram inúmeras obras que fundiam
a matéria verbal com o visual em jogos de artimanhas, cada um mais complexo e sofisticado
que o outro
3
.
[Gênesis digital]
P
ode
a
pare
ntar
um pouco estranho ou
contraditório tentar
identificar
as criações poéticas
digitais
com a
tradição
de
poesia
-
visual
4
antiga, porém
isso
consiste
n
uma tentativa de
aprender com a leitura e a constituição material dos poemas
-
visuais, suas similaridades e
dif
erenças com os digitais
. Tal atitude consiste ainda
n
um processo de leitura e análise que
permite uma convergência entre meios e também nos permite fugir de uma euforia de
novidade
que parece retomar muitos d
os entusiasmos positivistas do século XIX
3
Essa tradição de poesia
-
visual e poesia de invenção está muito bem estudada nas obras
:
A Casa das Musas
(1995) e
A Experiência do Prodígio: Bases teóricas e antologia de textos
-
visuais portugueses dos séculos XVII
e
XVIII
(1983) da poeta e pesquisadora portuguesa Ana Hatherly; também no livro
Poesía e Imagem: formas
difíciles de ingenio literario
(1991) do espanhol Rafael de Cózar.
4
Irei utilizar o termo de poesia
-
visual para me referir às formas de poesia
-
visual,
poesia de invenção, labirintos
textuais e todas as criações desse tipo, quando estiver falando na sua generalidade para simplificar. Quando for
me referir a um tipo individual, assim o farei explicitamente, como o faz Ana Hatherly em seus livros (e também
porque o valor visual tende a aparecer em todos os tipos de poemas inventivos acima mencionados, sendo ele
necessário para as leituras destes).
17
co
nstantemente presente quando lidamos com o meio digital. E se falamos desses poemas
-
visuais é porque eles levam ao limite as potencialidades do seu meio, levam ao limite o que
entendemos por poema, torcendo e alterando as possibilida
des ditas “limitadas” d
o meio
impresso. Ou seja, são criações que foram geradas levando em consideração seu meio
impresso enquanto possibilidade criativa. Isso nos remete a uma distinção importantíssima:
não devemos pensar as criações artísticas digita
is
enquanto transposiç
õe
s
das
criações
do
meio impresso, mas enquanto criações no digital,
ou seja,
criações que nascem nesse meio
e
que podem alterá
-
lo
, que o levam a
o
seu extremo, que tem sua concepção entran
h
ada no
digital, nas técnicas
digitais
, e não
podem ser entendidas
como
uma versão digital de uma arte
anterior (como
s
e fosse
um
upgrade
de
outra arte).
Logo, façamos a distinção entre uma arte
gerada no meio digital (isto é, criada naquele meio) e uma arte criada com o meio digital (ou
com auxílio do meio digital). A di
ferença básica seria uma obra como o
Palavrador
5
,
criado
no meio digital por um grupo interdisciplinar no
38º
Festival de Inverno da UFMG
em julho
de 2006
, e uma obra como o
Crisantempo
de Haroldo de Campos
(
ARAÚJO
, 1999)
, criada
em papel e depois transpos
ta ou recriada utilizando recursos de vídeo
6
.
1.
1.1
A
T
radição do poema
-
visual
7
A tradição dita de poemas
-
visuais
perpassa as criações gregas de
Símias de Rodes (325 b.c.) e
seus poemas pictóricos (ou
technopaegnia
) com suas asas
8
, altar, ovo, entre ou
tros (que, para
explicar grosseiramente, têm a imagem daquilo de que falam):
5
Palavrador
: <http://www.ciclope.art.br/?p=37> e <http://1maginari0.blogspot.com/2009/03/palavrador.html>.
6
De
ssa forma, não devemos ignorar o fato de que em nossa época o meio digital não é mais explicitamente
submetido ao impresso, mas que ambos se encontram em um estado de referência mútua. Melhor será pensar
como o poema digital e o poema impresso se relaciona
m por meio do verbal, do visual, do sonoro e de certos
aspectos e construções que estão presentes em ambos, que os constituem, considerando então um intercâmbio
maior entre os dois meios, no que diz respeito ao poema. Passemos a pensar que há uma gênesis p
oética no meio
digital que não necessariamente deve a cada instante pagar tributo ao impresso. Na verdade, o meio digital é
mais um meio de manifestação artística que está livre para dialogar com qualquer outr
o meio, e no qual
estamos
livres para utilizar
e
para criar. Talvez seja necessário uma maturidade das criações digitais para que possamos
passar a
-
las por si próprias, como hoje podemos ver o meio impresso sem constantemente fazer referência a
sua ligação com o meio verbal sonoro.
7
Entendamos aqu
i “tradição” no sentido de uma espécie de recorrência de tipo de criação poética, e não no de
uma linhagem ciente de si mesma enquanto continuidade. Não queremos dizer que um autor de um poema visual
turco do século XIX estava ciente das criações portugues
as do século XVII, mas que ambas mantinham em sua
construção imagética inventiva uma linha de convergência.
8
Que terá uma imitação famosa no poema
Easter Wings
de George Herbert (1593
-
1633).
18
Imagem 0
1: poema visual
Asas de Eros
9
.
Têm forte presença, nos
poe
mas
-
visuais barrocos, os labirintos textuais.
Um exemplo do
barroco brasileiro é este
Labirinto Cúbico
de Ana
stácio Ayres de Penhafiel da Academia dos
Esquecidos
10
encontrado na antologia de poemas barrocos brasileiros de Pericles Eugenio da
Silva Ramo
s
(1967
, p.
161
)
:
9
Wings of Eros:
<http://www.ubu.com/historical/early/early02.ht
ml>.
10
Aqui a frase latina
in utroque Cesar
”, que significaria algo como “nos dois sentidos de César”, é a chave para
entender a multiplicidade de caminhos possíveis a trilhar através do labirinto. O leitor pode ler a mesma frase de
várias maneiras. A cad
a letra o leitor pode optar por seguir entre dois caminhos, continuar reto ou virar
(imaginando mesmo as letras como caminhos de um labirinto). sempre dois caminhos a seguir da letra em
que ele se encontra para a próxima; formando uma diversidade de cam
inhos a escolher.
19
LABIRINTO CÚBICO
I N U T R O Q U E C E S A R
N I N U T R O Q U E C E S A
U N I N U T R O Q U E
C E S
T U N I N U T R O Q U E C E
R T U N I N U T R O Q U E C
O R T U N I N U T R O Q U E
Q O R T U N I N U T R O Q U
U Q O R T U N I N U T R O Q
E U Q O R T U N I N U T R O
C E U Q O R T U N I N U T R
E C E U Q O R T U N I N U T
S E C E U Q O R T U N I N
U
A S E C E U Q O R T U N I N
R A S E C E U Q O R T U N I
Imagem 02: labirinto poético.
Entre estes também podemos mencionar os
pictogramas latinos
(conhecidos como
carmina
figurata
)
e os
jogos textuais de
influênci
a
árabe e hebraica. Como este exemplo de
Bismillah
11
de tigre encontrado no livro de Rafael de
Cózar
(
1991,
p
.
449)
12
:
Imagem
03
:
Bismillah
em forma de tigre.
Um pouc
o
mais próximo do nosso tempo
,
temos o famoso
Coup de Dés
de Mallarm
é, e
sua
obra inacabada que é o
Livre
.
Também devemos lembrar os jogos das vanguardas dadaístas e
surrealistas
rec
ordando sobretudo o manifesto daqueles
, que sugere picotar um jornal e
e
m
baralhar todas suas palavras n
um saco, retirando os pedaços para criar um poema; ou no
caso do surrealismo, jogos como o
cadavre
exquis
, em que cada membro de um grupo iria
11
Bismillah
é uma formula árabe para a frase
bismi
-
llāhi r
-
ra
māni r
-
ra
īm
, significando: “Em nome de Deus, o
Clemente, o Misericordioso”. É o primeiro verso do Alcorão, e de quase tod
as a
s suras que seguem.
12
Cózar retira o exemplo de um
livro de J. Peignot, mas a imagem pode ser facilmente encontrada online.
20
adicionando uma palavra dentro de uma categoria gramatical proposta sem saber as
a
dicionadas pelos outros membros, a fim de criar um poema composto da
s palavras de cada
um deles. A
inda mais recentemente, existem
as vanguardas
C
oncretistas
brasileiras e
Experimentalista portuguesa (Po
-
Ex)
dos anos 50 e 60
13
.
Es
s
as tradições
considera
m o
poema como um ato expressivo,
com mais amplitude com
relação às possibilidades de criação e também com relação às formas e modos de construção
de sua materialidade.
A criação poética
est
á
mais livre para brincar com a m
atéria verbal, para
intercalá
-
la com
a
matéria visual,
para expor a matéria sonora do poema através de jogos
fonéticos. A criação está mais livre para mesclar esses elementos
de formas inusitadas,
para
propor ao processo de leitura construções e caminhos
pouco explorados
,
para criar programas
permutativos e
propor
jogos e enigm
as que se impõem ao leitor como
necessidades
integrais
para
o ato de leitura. Em outras palavras, trata
-
se de uma tradição da experiência e de engenho,
uma tradição procedural
14
.
Se
isso
,
no primeiro momento
,
pode
se
apre
sentar como um
problema ou uma dificuldade para “definir” um poema
,
dada a variedade de criações
spares
que se
mostram nesses tipos de criação
, ao mesmo tempo
pode
nos ajuda
r
a
compreender
o
poema digital como algo não inédito e inexplicável dentro da tr
adição poética
,
mas
sim
enquanto poema que se insere nesse
continu
u
m
.
Afinal, t
emos
igualmente no meio digital uma
proposta de criação e leitura que passa por uma multiplicidade de
mídias
elementos visuais,
sonoros e textuais
e, acima de tudo, propõe a
o leitor um modo de ler diferente, em que ele
deve conceber a materialidade da obra na qualidade de doadora de sentido, ele deve decifrar o
objeto para poder ler, ele necessita entender aquele processo que se dispõe diante dele.
O Experimentalismo po
rtugu
ês (Po
-
Ex), em especial com
Ana Hatherly e E.M. de Melo e
Castro, em seus percursos de criação poética, revisaram criticamente as obras barrocas,
relacionando
-
as ao desenvolvimento poético contemporâneo; mais do que um espírito
“antologizador”, pretenderam
renovar a poesia de sua época. Ana Hatherly
(1995, p. 9)
afirma
ter se deparado com uma “surpreendente afinidade técnica” entre os poemas
-
visuais barrocos
13
Pode parecer um tanto estranho o pulo do poema
-
visual para poemas permutativos ou brincadeiras poéticas
vanguardistas, mas é que a visualidade dos poemas e o engenho de leitura (no
caso de jogos permutativos) têm
uma forte associação e acabam se confundindo. É o caso dos labirintos, que são visuais, porém apresentam sua
leitura através de diferentes modos. E é por isso que escolhi denominar esses tipos de criação de poemas
procedura
is, pois tanto a visualidade quanto os jogos permutativos apontam para um processo de escrita e leitura.
14
Entende
-
se por procedural o que se por procedimentos, por um processo.
O termo poesia procedural nos
permite entender tanto os poemas
-
visuais quan
to os poemas de engenho ou permutativos (que nunca se
encontram distantes, nem no barroco nem na nossa época) como part
e de um mesmo tipo de obra, aquela na qual
se valoriza
o processo, ou seja, aquelas em que existe um ato procedural de escrita e leitura.
21
e medievais e suas próprias criações, tendo por isso se decidido pela pesquisa dessas criações,
para
melhor compreender suas raízes e fundamentos. Nas palavras da autora:
[existe] um
continuum
que estabelecia uma ligação entre o antigo e o moderno, que
o era confrontação,
mas antes uma espécie de reconhecimento, de uma
identificação de laços de famíli
a. O
continuum
[...]
era o
continuum
do acto criador
como processo, de que é preciso tomar
-
se consciência a fim de se jogar eficazmente
(HATHERLY, 1995
, p.
12).
O que Hatherly fez foi traçar esse
continuum
entre as criações dessas duas épocas (como
também
o fez Rafael de Cózar em seu livro
Poesia e imagem:
formas difíciles de ingenio
literário
). Podemos ir um pouco mais além e sugerir que, em nossa época, a poesia digital, em
suas diversas formas e manifestações, também está situada neste mesmo
continuum
.
Tal
parece ser também o ponto de vista de alguns dos membros do Po
-
Ex. Basta olharmos
rapidamente alguns dos textos disponíveis em seu sítio
15
, onde encontraremos seus antigos
trabalhos em versões digitais. Ou talvez nos serviria navegar no sítio vizinho:
P
ortal da
Ciberliteratura
16
. Como também poderíamos lembrar os trabalhos de vídeo
-
poemas e
infopoemas de E.M. de Melo e Castro, que apontam rumo ao meio digital.
Por conseguinte, são
justamente essas criações
, poemas de arte e engenho,
muitas vezes
ignorada
s ou colocadas de lado
,
que nos
apresentam
similaridades
para propor
ferramentas
por meio de seu valor imagético, de seus jogos de leitura
, seus sistemas permutativos
e suas
construções de engenho
s
mecâni
co
s procedurais
, e nos dão base para ler as cria
ções digitais
contemporâneas e seus modos operatórios como poemas
17
.
Assim, não procuremos usar essas
obras como justificativa causal para o surgimento da poesia digital. Elas são, isso sim, um
horizonte de aprendizagem e reflexão, ou seja, referentes próxi
mos da criação digital.
Tenho tentado explicitar o que entendo por p
oema digital
evitando cair
n
uma definição
absoluta
, esboçando o
modo de ser e de operar
do poema digital
,
tentando inicialmente
entrever alguns de seus mecanismos de operação,
pergunt
ando como podemos tocá
-
lo
e ser
tocado
por ele, enfim, erguendo um pano de fundo para sua figura poder se apresentar ao
palco.
Porém,
esse modo de definir que não define explicitamente, não resulta de uma aversão
15
POESIA EXPERIMENTAL PORTUGUESA: <http://po
-
ex.net>.
16
PORTAL DA CIBERLITERATURA: <http://po
-
ex.net/ciberliteratura/>. o fato deste sítio estar hospedado
no domínio do Po
-
Ex já nos diz muito.
17
Para melhor descrição e apreciação minuciosa dessa longa
tradição poética sugiro os trabalhos já mencionados
de Hatherly e Cózar (presentes na bibliografia).
22
total à mesma
,
nem de tentar
simplesmente f
ugi
r
do ato de fazê
-
lo e até mesmo de discutir a
questão.
M
uito pelo contr
á
rio,
o ato de se colocar diante da questão sobre o que é aquele
objeto ajuda a entendermos seus pontos obscuros e nos mostra que toda definição é
inevitavelmente provisória. Ademais
, ao mesmo tempo, nos faz entender melhor aquele
objeto (quando posta em conjunto com a leitura constante do mesmo objeto).
1.1.2
Craft
18
Um poema digital não pode ser reproduzido em outro meio, ou melhor, não pode ser impresso
(modo simples de se dizer
).
I
sso não se deve a uma pretensa exclusividade superficial para
ligá
-
lo ao computador ou
a um suporte qualquer
19
.
O poema digital é
aquele que utiliza as
capacidades que o meio digital possibilita, os recursos e potencialidades
que este
pode
permitir àque
le objeto
(tanto na sua composição quanto no momento da fruição)
. Entre esses
recursos estão: a interação, a capacidade de conexão entre uma massa de pessoas, a
reprodutibilidade em vários e diversos
tipos de
aparelhos simultâneos, a convergência
m
e
diática
, a geração aleatória de resultados, a capacidade quantitativa de processamento,
entre outros fatores bastante úteis no meio artístico como a rápida
manipulação de imagens,
sons, e outros mais,
bastante conhecidos. É por causa desses dispositivos e cara
cterísticas
do meio que o poema digital não poderia ser impresso,
porque essas potencialidades não
podem seguir identicamente para o impresso.
Tal intransponibilidade se refere a um ponto específico da obra literária digital, qual seja, a
sua materialidad
e, seu corpo físico e, consequentemente
, seu
modo de operar. Os poemas
-
visuais mencionados logo acima tinham uma característica importante, dentre as quais se
destaca o
continuum
mencionado por Hatherly. A obra, tanto de invenção barroca quanto
digital, tr
ansforma sua materialidade em parte significante da obra, ela usa seu próprio meio
como um signo artístico. Sua forma e seu lugar de existir (o meio) tornam
-
s
e parte
s
integrante
s
do conteúdo. Basta voltarmos ao exemplo das
Asas
de Símias de Rodes e percebe
r
18
Palavra em língua inglesa, usada seja como substantivo, seja como
verbo intransitivo que significa: fazer,
produzir algo, a técnica e habilidade necessár
ia para se criar algo, uma ocupação que cria algo.
19
A arte dita digital não se restringe apenas ao computador, ou melhor, o computador hoje não é apenas aquele
doméstico sobre a mesa de um escritório, mas também existe em outros formatos, como no celular
(que já
atingiu também a categoria de objeto artístico, como mostram alguns trabalhos recentes da artista Giselle
Beiguelman, Um exemplo disso é: QaRtCode <http://www.desvirtual.com/qartcode/>).
23
que de uma forma básica (
que
, no entanto,
afeta a leitura)
ele tornou a matéria escrita n
um
significante. Ou, no meio digital, algo como o poema
Sweet old etcetera
20
de Alison Clifford
(2009)
que, utilizando os poemas de e
.
e
.
cummings
poeta que
aposta
na
visualidade do
caractere impresso
, vida e movimento aos caracteres do poema, ilustrando com eles o
que dizem (de uma forma direta e um po
uco simples: as letras pulam n
um poema que fala de
gafanhotos, as letras caem lentamen
te quando n
um poema sobre
as folhas do outono, e assim
por diante).
Além de tudo isso que está sendo exposto, para melhor entender a criação artística em questão,
e melhor discuti
-
la, devemos propor a distinção entre artístico e estético. Esta é proposta de
Roman Ingarden (1979),
também utilizada p
or Wolfgang Iser (1981). O artístico se refere ao
objeto material, à obra de arte como construção; o estético, a esse objeto que surge diante da
recepção de um fruidor. Ou seja, um trata do objeto enquanto obra; o outro, enquanto texto
(
para usar termos mais comuns). Ou ainda como nos diz Alckmar L. dos Santos, a distinção
seria “a
obra tomada como objeto em si e como objeto para um l
eitor” (SANTOS
,
2010
,
p
. 5).
Trazemos essa distinção porque as obras em questão têm como característica
um molde do
artístico para alterar ou criar outros modos de leitura. E é justamente o artístico que
pretendemos olhar nesse momento. Ele é a camada de arte enquanto técnica, uma tecnologia.
Porém, é imprescindível lembrarmos que apesar de falar de técnica
e
craft
não podemos
limitar a arte a apenas a eles. Como nos adverte Alckmar Santos:
as técnicas das artes não podem ser reduzidas, simplistamente, às técnicas de
produção de bens de consumo ou de serviços, que lhes são externas (mesmo quando
intensamente
utilizadas, como é justamente o caso das artes digitais)
(SANTOS
,
2010).
Existe algo na técnica da arte que a diferencia da técnica meramente produtiva. De certa
forma podemos dizer que a arte digital (e aqui realmente me refiro a toda criação artística
digital) subverte os recursos do meio digital e suas funções primárias para criar um objeto
estético. Temos então a subversão de um modo de comunicação, de processamento ou de
cálculo, todas as funções mais comuns ao meio digital
e mesmo aquelas presente
s no
cotidiano contemporâneo
, e, ademais, temos a subversão de um
craft
21
,
sub
versão de um
20
Sweet old etcetera
:
<http://www.sweetoldetc.org/>.
21
Nesse
sentido não podemos esquecer que a arte é um
craft
, é uma técnica de fazer, não que seja apenas isso,
mas que o trabalho técnico é uma parte primária de seu desenvolvimento necessário. Como nos diz Raymond
24
fazer, de um modo de criação técnica com fins utilitários, alterados para fins estéticos,
levando esse meio ao seu limite. Temos com isso uma recriação das gicas
técnicas de um
fim utilitário (consumos e serviço), uma apropriação que vem alterar os funcionamentos
daquela técnica. Ou seja, me aproprio de uma técnica para alterá
-
la. Como exemplo temos o
flash
, programa que, em geral, tem a função de criar pequenas vi
nhetas para sítios ou
mesmo
para
criar sítios. Esse programa, ou tipo de arquivo, é entã
o apropriado e transformado nu
ma
ferramenta para criar poemas
;
tenta
-
se explorar ao máximo o programa e alterar o
propósito
de suas funções originais, algo provavelment
e desconsiderado por seus criadores. De uma
forma ampla, quem diria, no começo do uso dos computadores, que eles seriam utilizados em
algum momento para permutar poemas aleatoriamente, ou criar obras artísticas?
O
computador co
nsiste
n
uma máquina com propr
iedades para isso, mas sua criação não tinha
esse propósito, nem suas técnicas de produção eram intencionadas para isso. O seu fim
utilitário teve que ser subvertido para um fazer artístico.
Esse fato
não
é nada
nov
o nas manifestações artísticas.
Lembremo
s das pinturas de M. C.
Escher criando uma precisão arquitetônica ambíg
ua que deixa nossa visão n
um
loop
paradoxal
;
d
as experimentações vocálicas do
músico
alexandrino Demetrio Stratos
,
utilizando
os próprios limites do aparelho vocálico do corpo humano
;
o
u
d
o poem
a
Coup de Dés
de
Mallarmé
, mexendo com o espaço da leitura, expondo sua visualidade, entre muitos outros. O
que vale ser ressaltado dessas manifestações é justamente esse caráter de alterar o
funcionamento, de transformar a técnica, de compreender
as engrenagens comuns àquele tipo
de
construção e alterá
-
las de acordo com a vontade de quem cria. Para isso
,
torna
-
se
necessário
a apoderação de um procedimento técnico e do objeto de tal modo que as
possibilidades dele sejam apreendidas e possam ser sub
vertidas; é preciso captar as regras do
jogo para que se possa brincar e moldá
-
lo, inserir naquele funcionamento especificamente
utilitário um caráter lúdico e criativo
22
.
Queneau: “The litterateur has a craft, and the art
ist is an artisan”[o literato tem um fazer e o artista é um
artesão](QUENEAU, 2007, p. 37), e ainda, “it [art] must know before it can work” [ela deve saber antes que
possa funcionar](QUENEAU, 2007
,
p. 36); sendo necessário ao artista o conhecimento técnic
o da arte que ele
pretende trabalhar, para que a criação possa “funcionar”.
(traduções do autor)
22
A obra no meio digital não é algo restrito a uma pequena instalação em que os visitantes podem interagir,
mas existe nos poemas disponibilizados online a
vantagem de serem legíveis para todos que os acessam (claro
que existe as limitações da máquina, processador, vídeo, etc.) Considero tal acesso uma grande vantagem, uma
saída para certo elitismo solipsista das galerias (e também para o clássico acontecimen
to da obra ser vista por
poucos que a registram e que, depois de desmontada, resta somente os relatos sobre ela... criando uma espécie de
discurso sobre a obra, mas sem que se tenha a possibilidade de experienciá
-
la como interação perceptiva, estando
lá, t
ocando, vendo, interagindo efetivamente).
25
Dessa forma, acredito que parte do processo criativo é um
craft
um fazer
, porém,
um criar
que altera as técnicas e faz transbordar aquele modo de produção em algo novo
uma criação
artística
propriamente dita. Por conseguinte, podemos dizer que o ato de criar necessita que
criador se entranhe nas técnicas para poder alterá
-
las e cria
r com elas um objeto artístico.
Agora, se olharmos as criações artísticas digitais notaremos que elas também, em muitos
casos, operam dessa forma internamente. Ou seja, esse ato de ir até um objeto ou um modo
operatório e mexer com seu modo de ser e seus p
ropósitos, faz parte do modo de ser da arte e
pode ser pensado não com a interação com os meios e técnicas para criar um objeto
artístico (macro), mas também um mod
o d
e
os objetos artísticos se darem à fruição
através
da interação com o fruidor (micro
) que deve ir até o objeto da mesma forma que se vai a um
fazer para poder lê
-
lo e compreendê
-
lo
.
1.2
I
nteração
(mecanismos e estratégias)
Abrimos então para o foco geral dessa dissertação: a
interação no poema digital. Ess
a, entre as
características c
itadas acima, é talvez uma das que mais se potencializou e se tornou aparente
na literatura digital. Ao mesmo tempo essa
interabilidade
se dá de forma discreta ou, diríamos,
de forma natural, porquanto é uma característica presente em toda navegação
online
, tendendo
a se tornar sempre mais comum em nossa vivência
no meio digital
. No entanto, ao mesmo
tempo, ela é muitas vezes vista como uma novidade em meio à criação artística, como algo
que se tornou possível apenas com o advento do meio digital, esquecend
o toda uma tradição
literária impressa que já trabalhava amplamente com a interatividade
23
.
N
ecessitamos então explorar tal característica, ter conhecimento dela
e criar mecanismos e
estratégias de interatividade no poema digital, ou seja, aprender a lidar
com esse estrato da
obra digital, entender seus limites, seus modos de se dispor diante do leitor e suas implicações
para o contato entre autor
-
obra
-
leitor.
23
Não afirmo que a interação caracterize todo poema digital, mas certamente os poemas que fazem uso dela
aproveitam uma característica do meio digital, pois se atentar
mos bem
, veremos que é ela que diferencia o
poe
ma digital do vídeo
-
poema, que não permite nenhuma interação física.
26
1.2.1
Um toque
no tato livresco
Ergo minha mão até a estante, pego um livro mais ou menos à al
tura de meus olhos sem
prestar precisamente atenção para quais letras se encontram escritas na coluna. Abro
-
o, passo
os olhos sobre folhas, páginas, pequenas figuras inseridas que ainda nada me dizem sobre
aquele livro, aquela obra feita de papel e tinta,
até parar na página indicada por um velho
marcador de livros. Antes mesmo de perceber, leio as primeiras palavras, sentenças,
parágrafos e vou virando cada folha a perder
-
me sentado sobre a cama lendo aquele livro.
Cada figura, descrição ou jogo de palavr
as vai se tornando para mim um caminho com
incontáveis bifurcações em que, ora mais conscientemente, ora menos, vou construindo minha
leitura, interpretando os movimentos sutis dos personagens, tentando ler as minuciosas
escolhas do autor para cada mobília
que descreve, para cada cômodo que ele sutil e
milimetricamente constrói no seu texto.
Ao mesmo tempo, aquele objeto livro, manipulo
-
o, toco
-
o e movo
-
o com minhas mãos. Vou
adequando o ângulo da página para dosar
precisamente a quantidade de luz necessár
ia para
evitar qualquer cansaço por parte de minha visão, que deve constantemente varrer aos pulos
as letras e formas negras impressas na página sem sair daquele estado imersivo que é a leitura.
Posso, na leitura, distinguir dois movimentos sobre aquele o
bjeto. Um diz respeito a um
movimento físico de tocar e manipular aquela materialidade, de intervir fisicamente com
aquela substância que se encontra diante de mim. O outro, diz respeito a um ato de leitura que
questiona, pula partes, volta a outras, preen
che espaços indeterminados, cria a partir da leitura
um texto através do contato com a obra, do encontro do horizonte de sentido do leitor com
aquele da obra.
Façamos aqui uma necessária distinção epistêmica, nem que seja para depois mesclar
novamente (co
m mais proveito) as partes separadas (porém ainda relacionadas). Se vemos
uma diferença entre o modo de lidar com a obra, um
a
intervindo em sua materialidade e
a
outr
a
no que ela nos diz, não poderemos dizer que todo ato de interação se da mesma
forma.
Toda interação tem em seu seio um movimento nosso em direção
ao mundo
logo,
está enraizado
no mesmo âmago expressivo
, porém, existe a necessidade de distinguir entre
27
os modos de interagir com relação ao que eles intencionam, ou ao artístico ou ao estét
ico.
Portanto, devemos distinguir entre dois tipos de interação: a material e a interpretativa
(imaterial
,
poderíamos dizer).
A material consiste n
uma relação do fruidor com a obra física em questão. É com seu corpo,
suas mãos, que o leitor irá alcançar a
quela obra, tocá
-
la e alterá
-
la. E ao mesmo tempo, se
deixar ser tocado, guiando as possibilidades que aquele objeto lhe dispõe materialmente,
aprender com o toque os caminhos possíveis daquele objeto, ler com seu corpo.
A interpretativa consiste no compl
exo ato de leitura, em que o leitor ainda utiliza seu corpo
para perceber aquele objeto; porém os caminhos a serem eleitos, as indeterminações a serem
preenchidas, as possibilidades a serem efetivadas, todas elas ocorrerão fora do âmbito
propriamente físic
o. Ou seja, sua ação sobre aquilo que lê terá lugar em outro plano que não o
material.
Essa distinção se torna necessária para evitar alguns equívocos e para esclarecer as
possibilidades do meio digital, pois neste é a interação material que ganha força c
omo
característica constante, que possibilita o clique a cada momento em páginas e hiperlinques,
que escolhamos um rumo e não outro, que movamos as janelas para um lado e deixemos os
vídeos aparecerem em outro. E também porque a interação interpretativa es
presente em
todo ato de leitura literária, enquanto a interação material, apesar de estar sempre presente no
ato de leitura, não está de forma a constituir sempre um sentido na obra, a ser parte da
constituição de um texto proporcionado pela obra
mate
rialidade pensada enquanto
constituinte de sentido
24
.
No momento em que distinguimos essas duas interações, abrimos caminho para uma
problemática com relação ao movimento das duas: a interação material afeta a interpretativa,
a interpretativa é necessária
para a material? A material, em outras palavras
,
é uma interação
também interpretativa, ou posso interagir materialmente sem interpretar nada? O ponto de
convergência das duas formas de interação com a obra se torna uma questão que necessitará
de maiores i
nvestigações e o olhar sobre temas ainda a serem abordados nessa dissertação.
Voltarei a essa questão no quarto capítulo.
24
Tais problemas foram discutidos por vários teóricos do meio digital, como Espen Aarseth em seus estudos
sobre a literatura dita ergódica.
28
1.2.2
Um corpo padrão
A descrição dada acima (
Um toque no tato livresco)
traz a leitura de uma obra impressa com o
corpo físico qu
e pode ser chamado de “padrão” (ou seja, o formato em que maioria dos livros
se encontram). Existe uma interação com a obra, mas essa interação não afeta a matéria física
verbal, não causa nenhuma mudança significativa naquilo que está escrito nas páginas,
não
imprime minha ação e meu horizonte na obra, materialmente, de forma a constituir uma
escolha dentro dessa obra. Apesar de haver uma ação sobre o corpo daquele objeto (obra), ela
não afetará o texto, tanto que pouco impor
tará se leio a obra n
um formato
impresso ou na tela
de um
e
-
reader
, ou ainda se a ouço
n
um arquivo de áudio (como há vários disponíveis no sito
do
Project
Gutenberg
25
)
. Para fins da matéria verbal ali inscrita
26
, poderíamos dizer que
minha interação com a obra possibilita a leitura, mas a
interação não se torna parte atuante do
texto.
1.2.3
Interação efetiva
Agora, se me coloco a ler um livro como
Cent Mille Milliards de Poèmes
de Raymond
Queneau
(1961)
27
(que é ainda uma obra impressa), a interação física se torna necessária para
poder
efetivar as possibilidades de leitura da obra. Ela me chama a interagir, tomar escolhas
para poder intervir em sua materialidade, escolher cada filete que irá compor um soneto. Nela,
não altero
completamente
a materialidade
que está disposta diante de mim
para além do que
ela foi prevista em sua construção.
Minha intervenção está na escolha, em como selecionar e
25
Project Gutenberg <http://www.gutenberg.org/>
, com alguns textos lidos por computadores, outros por
humanos.
26
A minha interação com o corpo de uma obra “padrão” o
bviamente tem algum impacto n
a minha recepção
daquela obra, porém o que quero frisar aqui é que esse impacto não é pensando na gênese da o
bra como parte da
obra; a interação existe, mas não é intencionado enquanto obra para um sentido textual (pode ser criado com a
intenção de um sentido por parte do editor, mas não foi criado como a obra).
27
Livro maquinal, consiste em dez sonetos, formalme
nte precisos (métrica e rima iguais para todos os sonetos),
dispostos em dez páginas em que cada verso é uma tira separada dos outros, podendo ser virado como uma
página independente. Logo, pode
-
se permitir que um verso de qualquer dos sonetos permute com
qualquer outro
da mesma posição. A partir disso, temos a absurda quantia de 10
14
(100,000,000,000,000) sonetos possíveis.
29
dispor aqueles versos.
O livro permanecer
á
integral na minha frente
sem ultrapassar as
manipulaç
ões
prevista
s
pelo autor
.
O poema também tem versõ
es disponíveis
online
, entretanto, até mesmo nessas versões da
obra
28
, a interação material
29
é um fator necessário para a construção de sentido. Poderíamos
dizer que a efetiva manipulação do leitor faz parte de um programa
série de regras
proposto na ob
ra, um modo de ler que está previsto na estrutura daquele objeto e sem o qual o
leitor não conseguirá ler a obra.
1.2.4
Programa autor
(construção do espaço para interação)
[
o que é um programa
programa sem máquina]
Hoje a palavra programa remete qua
se que instantaneamente aos programas
de computador,
porém não é para esta
definição
que
pretendo dirigir inicialmente o olhar. Penso no programa
como um sistema de regras lógicas a ser ou não aplicado, e a computação como processo de
aplicação das regras
programadas (basta lembrarmos que computar também quer dizer
calcular). Esse processo não está explicitamente ligado a uma materialidade; as regras lógicas
e o processo podem ser desvinculados de um suporte físico (pode estar na mente do
programador, por e
xemplo), necessitando do mesmo para uma aplicação ao mundo ou uma
interação com outros (um le
itor, por exemplo). Pensemos
n
um exemplo simples: tenho uma
rie de quatro letras O
-
V
-
T
-
C, a regra será ligar cada par possível de duas letras
, não
podendo est
as se repetir
. Terei uma s
é
rie de resultados: ov, to, co, ot, e assim por diante. Todo
este processo po
de facilmente ocorrer sem o auxí
lio de um suporte físico (
no entanto,
o
suporte será necessário para representação).
28
Existem vá
rias versões digitais da obra de Queneau: uma
na qual
cada verso é um menu
dropdown
em que, ao
clicar, abrem
-
se todas as
possibilidades de verso para aquela posição; uma versão bilíngue que me permite ver
os versos em francês ou em inglês, escolhendo cada verso em uma pequena tabela
<http://www.bevrowe.info/Poems/QueneauRandom.htm
>; ou ainda outra versão em que ao passar o
cursor por
uma posição o verso começa a girar como uma roleta até que eu tire meu cursor de cima e a roleta pare em um
verso aleatório <http://www.growndodo.com/wordplay/OuLiPo/10%5E14sonnets.html>.
29
Ainda considero a interação com um computador um ato m
aterial (toda interação com a máquina ainda passa
por uma materialidade e poder
-
se
-
ia até mesmo falar de uma corporeidade do objeto digital, considerando, por
exemplo, os atos de clicar e arrastar dentro de um espaço físico que é a tela ou de qualquer outr
a área disposta
para o usuário).
30
O
exemplo
mais clássico é a Máquina
de Turing
30
.
Esta
é uma
máquina
teórica (ou
máquina
lógica) descrita por Alan Turing
, que
opera sobre um algoritmo simples,
lê,
escreve e apaga
dados n
uma fita. A ação
a ser tomada pela máquina
se baseia no estado atual da
máquina
, o
que está escrito na po
sição da fita em que a
máquina
se encontra e no programa algorítmico.
Essa
máquina
é considerada a base para a criação do computador.
[programa
e jogo
na literatura]
Na literatura o programa adquire um valor estético e lúdico. O autor cria uma obra em que
o
programa esteja configurado c
omo parte de sua composição. Ess
e programa aparece como
certas regras ou procedimentos de operação do ato de leitura que o leitor terá que apreender
para poder interagir; n
ão necessariamente tendo que compreender
as regras e
engenhos do
autor, mas se apoderando d
e
como operar e aplicar as regras e elementos dentro da obra. O
programa assim disposto pelo autor se torna uma camada estética, se torna parte do texto. Um
exemplo é o poema
Tudo
p
ode ser dito
n
um p
oema
:
TUDO PODE S
ER DITO NUM POEMA
1) propõe
-
se o seguinte modelo
acaso A é B em presença/na ausência de A (ou de B, ou de C etc.)
2) A e B são um par de contrários
exemplos:
tudo
nada
bem
mal
alto
baixo
belo
feio
preto
branco
etc. etc.
3) A e B são s
ubstantivos ou pronomes
exemplos:
homem
deus
arma
braço
casa
fogo
amor
vento
eu
tu
tu
ele
etc.
-
etc.
30
Para informações mais completas veja: <http://plato.stanford.edu/entries/turing
-
machine/>, como também os
exemplos
online
: <http://ironphoenix.org/tril/tm/> e <http://www.turing.org.uk/turing/scrapbook/tmjava.html>.
31
4) C é aleatório
5) escolha as suas palavras e desenvolva o modelo segundo uma regra combinatória,
6) estude atentamente as propos
ições resultantes
7) não suspenda a sua pesquisa: tudo pode ser dito num poema
EXEMPLOS
acaso tudo é nada em presença de tudo
acaso nada é tudo em presença de tudo
acaso tudo é nada em presença do nada
acaso nada é tudo em presença do nada
acaso tudo é
tudo em presença de tudo
acaso tudo é tudo em presença do nada
acaso nada é nada em presença de tudo
acaso nada é nada em presença do nada
acaso tudo é nada na ausência de tudo
acaso nada é tudo na ausência de tudo
acaso tudo é nada na ausência do nada
a
caso nada é tudo na ausência do nada
acaso tudo é tudo na ausência de tudo
acaso tudo é tudo na ausência do nada
acaso nada é nada na ausência de tudo
acaso nada é nada na ausência do nada
acaso tu és tu em presença de ti
acaso tu és tu na ausência de ti
acaso tu és ele na presença de ti
acaso tu és ele na ausência de ti
acaso ele é tu na presença de ti
acaso ele é tu na ausência de ti
acaso ele é ele na presença de ti
acaso ele é ele na ausência de ti
acaso tu és tu na presença dele
acaso tu és tu na ausê
ncia dele
etc.
(
CASTRO
,
1977
, p.
98
-
99
)
Nesse poema de Melo e Castro temos um sistema permutativo que irá construindo aforismos à
medida que vai sendo alimentado por um xico. Ou seja, temos a delimitação de um
algoritmo e uma série de exemplos da efet
ivação (computação) do programa proposto. O
s
resultados gerados pelo pr
ograma, apesar de um valor aforístico
-
filosófi
co (resultado do
léxico proposto), não apresenta
m
muita qualidade literária
ou estética
, mas se olharm
os com a
devida atenção percebe
mos qu
e o “poema” propriamente dito não consiste nos exemplos
resultantes e sim no programa. O poema de Melo e Castro se dispõe enquanto as regras
propostas
e os resultados potenciais. O poema é uma máquina de gerar poemas/aforismos
.
Não como dizer onde termi
na o programa e onde começa o poema, as duas coisas estão
32
intrinsecamente ligadas, ou ainda, são a
s
duas uma
coisa
única
. O poema é o programa e o
programa é o poema.
O poe
ma de Melo e Castro consiste
n
uma construção material que propõe um processo de
lei
tura e de efetivação para o leitor. Este deve entender o programa para poder “ler” a obra, ou
seja, efetivá
-
la. O ato de leitura é então um ato de atualização que necessita da interação do
leitor que apreende as regras e as atualiza (no caso, até providenc
iando um léxico). Tal
também é o caso do
Cent Mille Milliards de Poèmes
de Raymond Queneau. A única diferença
é que o
Cent Mille
traz um léxico fechado e uma interação com a materialidade do poema (o
leitor tem que tocar e mexer na matéria física do livro)
. De resto, o processo de criação da
obra enquanto programa e do modo de apreender a leitura são similares. O
Labirinto Cúbico
de Anastácio Ayres de Penhafiel, exposto acima, também se encaixa nesse modo operatório
procedural: a frase que compõe o poema ex
plicita o programa a ser efetivado para trilhar o
poema.
[apreender as regras e entender como o poema é e opera]
A leitura se apresenta como um ato que necessita reapre
nder os seus limites e caminhos
e
captar as possibilidades do objeto. Não podemos inici
ar nossa leitura interpretando o texto,
mas constituindo um modo de leitura. Ou como diz Alckmar Santos ao falar do cultismo
barroco: “no barroco o primeiro papel do leitor é dotar
-
se de um texto a ler, não interpretá
-
lo”.
(SANTOS
,
2003
, p.
69). Segundo el
e, quando um poeta como Góngora utiliza a palavra neve,
imbuindo
-
a de várias imagens, o leitor deve mapear essas utilizações antes de tentar
interpretá
-
las. O ato de leitura, segundo tal concepção, deve primeiro dar conta de tocar o
objeto artístico, deve
conceber o texto enquanto fenômeno.
[
Obra aberta
]
A capacidade de interagir e reorganizar a obra se enquadra no que Umberto Eco
(2003)
denomina de obra aberta.
Eco, para exemplific
á
-
la
, fala de composições musicais
cuja
exe
cução do arranjo final é deixada
às mãos do intérprete
indo além da liberdade concedida
pela música tradicional
, podendo
o intérprete
alterar a duração de notas ou a ordem e a
combinação de trechos. Na música tradicional, o compositor a
o intérprete uma anotação
especí
fica do que h
á de ser tocado. A
intervenção deste seria mínima, ou pelo menos
fica
subentendida a
noção de
que ele deve tentar chegar o mais próximo d
a
ideia
do compositor,
tendo este,
em grande parte,
determinado o que
os
ouvintes deve
m receber
. No caso
33
explicitado
por Eco, temos um objeto artístico que deve ser constituído por um intérprete, e a
este
lhe
é dada a liberdade de jogar com a compo
sição sem um resultado final
pre
determinado.
O que ocorre com a potencialidade da obra apresentada por Eco pode parecer um
pouco
deslocada se nos voltarmos para a literatura, que geralmente é tida como inacabada somente
com relação aos espaços abertos e não ditos do texto para a interpretação
(INGARDEN,
1979)
. Contudo, nos exemplos citados tal não é o caso, pois são obras q
ue necessitam da
interação do leitor para serem lidas, necessitam do mesmo tipo de ação de que Eco fala. Um
poema próximo ao exemplo musical de Eco seria o
Labyrintho al modo de el juego de el
axedrez, que trata de el nacimiento de christo nuestro señor
de
Manuel de Faria e Sousa
exposto no livro de Hatherly (1995
, p.
97)
:
Imagem
04
:
Labyrintho
de Manuel de Faria e Sousa
.
Eis um p
oema em que o leitor constrói seu percurso de leitura indo de quinteto em quinteto,
seguindo movimentos de peças de xadrez
ou seja, seguindo reto, movendo
-
se nas diagonais
ou ainda pulando casas como o movimento do cavalo. Assim como no exemplo de Eco, o
34
leitor do labirinto vai construindo seu percurso de leitura no poema, exercendo um trabalho de
ordenar os elementos.
[eleme
ntos]
Podemos dizer ent
ão que a obra aberta consiste
n
um grupo de elementos que o leitor tem o
direito de manipular de acordo com um programa proposto pelo autor. Uma obr
a dess
e tipo
seria então uma obra potencial, pois sua materialidade permite um arranjo
do
leitor. Ou seja,
ela é
uma série de elementos que devem ser atualizados por um conjunto de regras, ou como
vimos no poema de Melo e Castro, ela
se equivale
às regras. Isso talvez nos leve
a dizer que o
poema é apenas um conjunto de regras, os elementos
ou o processo, o que resultaria
n
uma
redução do poema a apenas uma de suas partes.
[todo poema tem um grau de processo que não pode ser
nivelado ao iní
cio ou
ao
fim do
mesmo]
O filósofo alemão
H
ans
-
G
eorg
Gadamer
, em seu liv
ro
Verdade e Método
(1999)
, pro
põe que
a poesia é uma arte transitória ou um processo, como o é a música, a dança ou o teatro; ela se
efetiva quando é executada por um “intérprete” ou leitor
31
. A obra que Eco apresenta, como
também os poemas de Queneau e Melo e Castro, entre outros muito
s, são obras potenciais que
não devemos reduzir nem ao início, nem ao result
ado fim de seu processo. Sua constituição
somente poderá ser percebida como um ato procedural em que o
fruidor deve
se propor a
jogar
, ou habitar aquele objeto artístico para pod
er fruí
-
lo
.
[O Palavrador]
Um exemplo, agora digital, é o
Palavrador
. Es
s
a obra se assemelha muito a um jogo, não
como toda obra de arte se assemelharia, mas também por seu modo de propor a
interação,
por
meio de
um personagem
(o cubo de faces com asas
de Caos e Eros) que o fruidor controla em
terceira pessoa
32
através de um
joystick
, ou de comandos no teclado
n
um pequeno mundo em
3D.
31
Gad
amer faz referência a poemas ditos “normais” e não especificamente ao tipo de exemplos que propomos
aqui. Mas até mesmo nesse caso, de poemas dito normais” a metrificação pode ser entendida como um
programa para o ato de execução do poema, como regras par
a a leitura rítmica deste, um programa presente no
modo de dispor a materialidade das palavras (lembrando que a leitura em voz alta foi por muito tempo o modo
de se ler o poema. Até hoje, quando lido em voz alta o poema esboça o ato de fala, ainda chama a
expressão
vocal).
32
Refiro
-
me ao que se denomina em jogos normalmente como jogo em primeira pessoa: aqueles em que o
jogador não seu personagem (como
Doom
,
Hexen
,
Wolfenstein 3D
, etc); e os de terceira pessoa, em que o
jogador fica bem atrás de seu pers
onagem (como
Syphon Filter
,
Legacy of Kain: Soul Reaver
, etc.).
35
Imagem 05
:
Palavrador
diante do
labirinto de haikais
.
Nessa criação o fruidor tem que se propor a apreender os comand
os e os movimentos
possíveis daquele novo objeto dentro do mundo
3D
como se fossem os de seu corpo. Ele
precisa apreender as capacidades e limites que o cercam naquele ambiente. É necessário
passar por isso para poder participar da obra. É necessário aceit
ar aquelas regras de
movimentação, de vôo ou de se arrastar com os personagens
, para poder habitar aquele local e
fruí
-
lo esteticamente
33
.
Da mesma forma que a leitura de um labirinto barroco consiste em aprender um modo de
trilhar um labirinto (as regras
para poder encontrar palavras ou frases no quadrado de letras) e
efetivamente trilhá
-
lo, no
Palavrador
,
a leitura consiste, no primeiro momento, em apreender
as regras de movimento e depois, efetivamente, explorar o mundo proposto ali; lembrando o
que foi
citado por Alckmar Santos mais acima, que existe a necessidade de primeiro constituir
um texto antes de interpretar. É necessário tornar a obra presente para manipulação, entrar no
jogo.
33
Esse ato de se apoderar dos controles e comandos como se fossem seus não será igual para todos que tentem
utilizar o
Palavrador
. Alguém que não está acostumado a usar um
joystick
pode levar
algum tempo para
aprender (colidindo com paredes e ficando enroscado), enquanto que alguém com frequentação em jogos de
computador pode simplesmente sentar na frente do computador, saber que tecla faz o quê e logo interagir como
se houvesse experimentad
o aquela obra. Tal
foi o testemunhado n
uma SEPEX (Semana de pesquisa, ensino e
extensão), realizada na UFSC em 2008, em que o
Palavrador
foi exposto para que os frequentadores do evento
“brincassem”. Jogadores jovens de videogame sentavam e instantaneament
e já tinham total controle da obra,
enquanto outros frequentadores do evento (a maioria, pessoas mais velhas), que não tinham uma frequentação de
jogos não conseguiam nem se movimentar direito (nem o seu personagem, nem ele com os comandos do
teclado).
36
no ato de aceitar o jogo, de tentar efetivar um programa,
o que p
odemos chamar de uma
consciência da encenação, uma consciência do jogo que está sendo jogado e do papel que
cada interagente/participante te
m dentro do jogo. Engajar
-
se n
um jogo é, de acordo com o
Homo Ludens
de Johan Huizinga
(
1980
)
, um ato de liberdade
34
,
visto que consinto me
submeter a um conjunto de regras
, conscientemente aceito como não
-
sério ou desinteressado.
Entretanto, a
não
-
seriedade não deve ser
tomada
como piada ou comicidade; é o entendimento
do jogo como um ato de representação fora das amarr
as imediatas da vida cotidiana, fora das
necessidades imediatas da vida. O jogo cria ordem e é ordem”
(HUIZINGA, 1980
, p.
13).
Ele é um conjunto de normas e delimitações que criam um universo restrito em termos
espaço
-
temporais dentro do mundo real
um m
icrocosmo no macrocosmo
35
. No caso do
Palavrador
mais especificamente falando, e também no caso de um poema como o
Labirinto
Cúbico
, estou restrito a ações dentro daquelas que me permitam uma leitura da obra, o que
não quer dizer que não posso jamais sair d
o previsto, mas sim que eu tenho limitações
impostas pela materialidade da obra
36
.
Ao me limitar desta forma e aceitar as regras de ser da
obra eu entro no microcosmo.
A obra tem assim a
capacidade de absorver os jogadores tão
completamente que é
considerad
o
por Huizinga e Gadamer
um ato, dentre outros,
de imersão
e êxtase (1980
;
1999
)
. Ou como nos diz o filósofo francês Maurice Merleau
-
Ponty na sua
Prosa do Mundo
(1974)
, um esquecer do material, uma imersão no sentido em que não
vejo mais nem as letras n
em as ginas à medida
que leio
.
E ao mesmo tempo, a
pesar de o
jogo criar um cosmo fechado, ele transcende a si
, ele faz constante referência ao mundo;
ele
é
movimento e fluxo constante
como o
teatro ou
a
dança
, quando terminado ele permanece
como cria
ção e sentido.
[obra procedural]
Até agora falei do poema procedural com relação ao leitor, este que decifra e joga. Mas o que
dizer do autor, esse que compõe as regras? Ana Hatherly, falando de seus estudos sobre a
relação
do Barroco e do Experimentalism
o
português nos diz o seguinte:
34
A
ssume
-
se que, se
o indiví
duo estiver forçado no jogo ou, por qualquer razão, não quiser entrar, o ato não
será verdadeiro. O jogo deve ser um ato de liberdade diante do mundo e podem
os entender o mesmo com relação
à
interação na obra de arte.
35
Qualquer t
entativa de quebrar ou torcer as regras é punido com a exclusão do infrator de dentro do jogo.
36
No caso de um labirinto, posso trilhar caminhos que não gerem palavras, mas tal ato o consiste bem
n
uma
leitura. Enquanto que no
Palavrador
não é bem possíve
l fugir
d
as regras, já que a existência da obra manipulável
na tela do computador é determinada por essas regras (seria necessário mexer no código de programação da obra
para poder alterar ou não seguir as regras
)
.
37
consegui não ter uma
ideia
do conjunto das princi
p
ais formas do
texto
-
visual
praticadas no Barroco português [...] mas até encontra
r
para elas denominadores
comuns, sendo um deles
e o mais imediatamente
interessante
pa
ra mim
o facto
de se tratar de composições em que o
programa
era um factor determinante, e outro,
o facto de que esse
programa
, além de um valor estético, tinha
um valor experiência
,
tanto para o autor do tex
to como para o seu destinatário
(HATHERLY, 199
5
, p.
10)
.
Como em grande parte das correntes experim
entalistas, o valor da obra está
no processo
(muitas vezes ignorando os resultados). Tomada como regra, ou como o modo “correto” de
preceder, a valorização do processo sobre o resultado pode levar a gra
ndes equívocos, como a
sobrevalorização da obra de arte enquanto resultado também o pode. Porém, o
experimentalismo tem o valor de chamar atenção para essa etapa da criação que muitas vezes
fica por detrás da obra sem
ser
questionada: o modo d
e
o autor se
relacionar com a própria
obra:
um dos princípios basilares de todo o Experimentalismo é o da concepção e
aplicação de
um programa
, que valida e fundamenta todo o processo criativo, desde
a concepção à execução. Mas também pode ser ao contrario
da execuç
ão à
conceptualização
porque a obra experimental é uma forma particular de descoberta
que
ensina o seu autor
(HATHERLY
,
1995
, p.
10)
.
Temos um autor que cr
ia uma obra que é composta de
uma série de elementos e um programa,
ou apenas o programa (com os e
lementos a serem providos pelo fruidor). O leitor teria que se
entranhar na obra (programa e materialidade) para poder dispor dos elementos e saber como
interagir e fruí
-
la. Mas com essa rude explicação tendemos a erguer um véu simplificador
sobre a figura
do autor. Compartilhamos com Ana Hatherly
de
que o próprio ato de erguer um
programa demanda certa participação ou atividade de leitura no autor, que o processo pode vir
a alterar aquele que o cria, ou talvez, que o próprio ato de criar seja um jogar,
de antepor
o
programa ao ato criativo, n
uma mistura de criar o programa e se submeter a ele enquanto o
vou criando.
1.2.5
Contraintes
Podemos encontrar essa proposta de programa aplicado ao ato criativo do autor
de uma
literatura procedural
nas pro
postas de Raymond Queneau para o grupo OuLiPo (
Ouvroir de
Littérature Potentiel
), em que ele propunha um modo de criação através de
contraint
es
ao
38
processo criativo.
Contraintes
são
regras impostas pelos oulipianos
, erigindo certas restrições
ao processo d
e criação. Ou seja, um programa criado pelo autor ao qual ele mesmo se
submete.
Existe
uma variedade de regras criadas ou utilizadas pelo
OuLiPo: o S+7, que
trata de
substituir os substantivos de um texto por
aquele encontrado sete definições
abaixo
n
um
d
icionário
qualquer (essa restrição origem a outras que começam a criar complexos
cálculos matemáticos para a substituição de palavras em textos pré
-
existentes); o lipograma,
que consiste em escrever um texto sem uma letra de toda obra (como o fez George
s Perec em
seu romance
La Disparition
de
1969
, como também Alonso de Alcalá y Herrera, escritor do
Barroco português, no seu livro de novelas, em que ele supostamente exclui uma vogal de
cada novela);
a
l
ittérature définitionnelle
: cada palavra significati
va de um texto (substantivos,
verbos, adjetivos, etc.) é substituída
por sua descrição encontrada n
um dicionário (depois
utilizando o texto resultante e aplicando novamente esse processo quantas vezes quiser); o
oblique
: para definir uma palavra, esta é de
smembrada e colocada mais ou menos como uma
charada dentro da própria definição; como também foram criados complexas restrições para a
criação de romances específicos, como é o caso do
La
Vie mode d’emploi
de
Georges Perec,
no qual existem, supostamente, l
istas de tipos e categorias de elementos que aparecerão em
cada cômodo do apartamento onde ocorre o romance; ou o
Se um viajante numa noite de
inverno
de Italo Calvino, obra na qual os diferentes inícios de romance que fazem parte do
livro seguem em sua te
mática e estilo de composição a forma da dialética negativa platônica
37
.
Segundo Italo Calvino (que se filiou ao grupo a partir do ano de 1974), Queneau afirmava que
por se sub
meter a regras no processo criativo o autor estaria mais livre do que na escrita
automática surrealista (da qual Queneau havia participado
e eventualmente rompido por
e último processo,
por se deixar governar pelo fluxo
inconsciente” de escrita,
o autor
perderia sua liberdade e estaria submetido a todos
os
influxos subconscientes, psico
lógicos, econômicos, entre outros.
Une autre bien fausse idée qui a également cours actuellement, c'est l'équivalence
que l'on établit entre inspiration, exploration du subconscient et libération, entre
hasard, automatism
e et liberté. Or, cette inspiration qui consiste à obéir aveuglément
à toute impulsion est en alité un esclavage. Le classique qui écrit sa tragédie en
observant un certain nombre de règles qu'il connaît est plus libre que le poète qui
37
Existe uma grande variedade de
contrain
tes
, algumas delas (junto com definições e exemplos de sua
utilização) podem ser encontradas no sitio do OuLiPo
:
<http://www.
oulipo
.net/contraintes>.
39
écrit ce qui lui p
asse par la tête et qui est l'escla
ve d'autres règles qu'il ignore
(QUENEAU apud CALVINO
,
2007, p.137
38
)
.
Es
s
e indivíduo estaria preso a inúmeros fatores sem tomar conhecimento disso
, ignoraria
todos os elementos que agem sobre ele procurando a liberdade,
e
o
que pareceria absoluta
liberdade não passaria de uma submissão passiva ao desconhecido.
Através
das
contraintes
,
o indivíduo se submeteria às regras que ele
mesmo elegeria
, estando
ciente de suas amarras, e
mais livre do que alguém em escrita automáti
ca.
A
s
contraintes
são
então consideradas como estí
mulo e não prisão. Ou
,
como Merleau
-
Ponty nos diz sobre um
morro como obstáculo a nossa liberdade: “é a liberdade que faz aparecer os obstáculos à
liberdade, de forma que não pod
emos opô
-
los a ela como lim
ites
(1999, p.588). O morro
se torna obstáculo quando tento tr
anspô
-
lo. Ele não representa uma restrição para alguém que
não o deseja transpor. Da mesma maneira que a
s
contraintes
se tornam obstáculos ao
processo de escrita quando me proponho a util
izá
-
los, ou seja,
quando
tenho a
liberdade de
tentar transpô
-
los. Criar uma restrição ao processo criativo é um exercício de liberdade. Eles
nada limitam a liberdade, pois foi por ela que vieram a ser.
[programa para o autor]
O que acontece com o tipo de
proposta do OuLiPo é que o autor aplica o programa a si
mesmo. O autor se submete a regras para escrita tendo duas escolhas básicas: ou ele cria as
restrições e não compõe os resultados, ficando como um jogo literário para o leitor; ou ele cria
um conjunto
de regras e compõe uma obra com base naquelas regras, exibindo somente o
resultado do processo todo (não necessariamente dando visibilidade às regras e restrições de
sua criação). O primeiro caso seria como o
Cent mille milliards de poème
de Queneau, em
q
ue a materialidade é dada ao leitor para ser efetivada, ou o
Tudo pode ser dito num poema
de
Melo e Castro. O segundo caso seria o da
La Vie mode d’emploi
de Georges Perec, em que a
obra foi composta com base em vários tipos de restrições e sistemas de reg
ras, porém que
foram
criadas por Perec e aplicadas em
seu processo criativo sem que possamos acessar
diretamente tais regras.
38
Uma outra idéia bem errônea que vige atualmente, é a equivalência que se estabelece entre inspiração,
ex
ploração do subconsciente e liberação, entre acaso, automatismo e liberdade. Ora, essa inspiração que consiste
em obedecer cegamente à todo impulso é, na realidade, uma escravidão. O autor clássico que escreve sua
tragédia observando certo número de regras
conhecidas por ele é mais livre que o poeta que escreve aquilo que
lhe passa pela cabeça e que acaba sendo escravo de outras regras que ele ignora. (tradução do autor)
40
Ainda dois exemplos em que o autor aplica o programa a si mesmo, um do Barroco ibérico e
outro do Experimentalismo português: o a
nagrama aritmético de Alonso de Alcalá y Herrera
39
e
A Máquina de Emaranhar Paisagens
de Herberto
Helder. O anagrama feito de
um pequeno
texto sobre o Apostolo São Pedro, e depois outro texto que se diz “EM METÁFORA DE
UMA QUEDA” apresentado por Hatherly (1
995
, p.
18):
Imagem
06
:
a
nagrama aritmético de Alonso de Alcalá y Herrera
.
O processo é explícito
pois o autor trata de explicar que coisa é um anagrama deste tipo no
início de sua obra
, consiste em contar a ocorrência de cada letra no primeiro tex
to e utilizar
a mesma quantidade de letras para compor o segundo texto. Este, além de conter a mesma
quantidade referente a cada letra do primeiro
um anagrama perfeito
, também é uma
39
Autor nascido em Lisboa de família espanhola que publicou em Lisboa no ano de 1654 a
obra
Jardim
Anagramático de Divinas Flores Lusitanas, Hespanholas e Latinas
. Para mais informações sobre as obras do
autor, veja o livro de Ana Hatherly:
A Casa das Musas
.
41
metáfora para os eventos da vida do apostolo Pedro
40
. Todo esse process
o foi feito pelo autor,
sem que o leitor tome parte na interação material da obra. Porém, ao leitor, existe ainda a
tarefa de compreender o jogo, a quantidade de letras (exposto
,
mas não explícito), e o jogo
metafórico entre os dois textos
41
(HATHERLY
,
1995
).
No que diz respeito ao poema de He
r
berto Helder, temos uma espécie de permutação manual
que se intitula explicitamente de máquina:
A MÁQUINA DE EMARANHAR PAISAGENS
E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez
-
se a tarde, e fez
-
se a manhã,
dia primeiro.
... e fez a separação entre as águas que estavam debaixo do firmamento e
as águas que estavam por cima do firmamento.
(Gênesis).
... e eis que havia um grande terramoto: e o sol tornou
-
se negro um como
saco de silício: e a lua tornou
-
se como
sangue.
E as estrelas do céu caíram na terra, como quando a figueira lança os seus
figos verdes, abalada de um grande vento:
E o céu retirou
-
se como um livro que se enrola: e todos os montes e ilhas
se moveram dos seus lugares.
E vi os mortos, pequenos e
grandes, ... e foram abertos os livros.
(Apocalipse).
Irmãos Humanos que depois de nós vivereis, o nos guardeis ódio em
vossos corações. (François Villon).
Ah, como custa falar desta selvagem floresta tão áspera e inextricável, cuja
simples lembrança bas
ta para despertar o terror.
Denso granizo, águas negras e neves caíam do espaço tenebroso.
(Dante).
Maravilha fatal da nossa idade. (Camões).
Rasgou os limbos a antiga luz das fábulas, luz terrível que os homens e as
mulheres beijavam cegamente e a que fic
avam presos pela boca, arrastados,
violentamente brancos
mortos. E essa colina subia gira e girava, puxando pelos
lábios os seres deslumbrados e aniquilados. E dentro desta luz e desta morte, os
sons amadureciam. Em baixo, vermelhas, estalavam as cúpulas
. (Autor).
E as estrelas do céu caíram na terra, como quando a figueira lança os seus
figos verdes, abalada de um grande vento. E eis que havia um grande terramoto, e o
sol tornou
-
se negro como um saco de silício e a lua tornou
-
se como sangue. E fez
-
se
a separação entre as águas que estavam debaixo do firmamento e as águas que
estavam por cima do firmamento. E o céu retirou
-
se como um livro que se enrola e
todos os montes e ilhas se moveram dos seus lugares. Denso granizo, águas negras e
neves caíam do e
spaço tenebroso. Rasgou os limbos a antiga luz das fábulas, luz
terrível que os homens e as mulheres beijavam cegamente e a que ficavam presos
pela boca arrastados, violentamente brancos
mortos. E essa colina subia e girava,
puxando pelos lábios os seres
deslumbrados e aniquilados. E dentro desta luz e desta
morte, os sons amadureciam. Em baixo, vermelhas, estalavam as cúpulas. E vi os
40
Não é muito estranho pensar na possibilidade de que ambos os textos tenham sido co
mpostos já com esse jogo
em mente, ou que o autor foi alterando um para encaixar o outro. Em todo caso, a criação deste texto envolve
tanto um ato de leitura quanto um de escrita, ou até mesmo um ato de constante mudança entre leitura e escrita.
41
O que ch
ama a atenção é o hábito barroco de deixar o leitor encontrar as regras do jogo, deixar com que o
leitor se dê conta do complexo engenho em utilização.
42
mortos, pequenos e grades, e foram abertos os livros. Ah, como custa falar desta
selvagem floresta tão áspera e inextricá
vel
maravilha fatal da nossa idade
, cuja
a simples lembrança basta para despertar o terror. Irmãos Humanos que depois de
nós vivereis, não nos guardeis ódio em vossos corações.
... E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; fez
-
se a tarde, e
fez
-
se a manhã, dia primeiro...
Ah, como custa falar desta selvagem floresta tão áspera e inextricável, cuja
simples lembrança basta para despertar o terror.
E vi os mortos, como quando a figueira lança os seus figos verdes, entre as
águas que estavam deb
aixo do firmamento, águas negras, e a lua como sangue,
denso granizo e neves do espaço tenebroso. E as estrelas do céu e as águas que
estavam por cima do firmamento caíram na terra, e eis que havia um grande
terramoto, erasgou os limbos a antiga luz das
bulas, e foram abertos os livros. E
dentro desta luz e desta morte, os sons amadureciam. Os homens e as mulheres
caíam cegamente pela boca, e o sol tornou
-
se negro como um livro que se enrola, e
todos os pequenos e grandes montes e ilhas se moveram dos seu
s lugares. Abalada
de um grande vento, a luz terrível subia e girava, puxando violentamente os mortos
brancos que ficavam presos pelos deslumbrados e arrastados lábios ao céu que se
tornou como um saco de silício. E os seres aniquilados beijavam essa colin
a, e em
baixo o céu retirou
-
se, e fez
-
se a separação, e estalavam as cúpulas vermelhas.
Maravilha fatal da nossa idade.
... E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez
-
se a tarde, e
fez
-
se a manhã, dia primeiro...
Irmãos Humanos que depois d
e nós vivereis, não nos guardeis ódio em
vossos corações.
Na maravilha desta luz inextricável, vi os homens e as mulheres que
estalavam como estrelas, como figos deslumbrados. E o sol negro e a lua de sangue
caíram no vento, nas águas, na terra, caíam da s
elvagem figueira por cima do
firmamento que subia e girava como um livro terrível, uma colina que se enrola. E
eis que se rasgou um grande terramoto das águas verdes no céu de silício
violentamente baixo. E os seres moveram
-
se dos seus lugares pelo granizo
tenebroso,
puxando as cúpulas, os sons, os mortos abertos. E havia águas negras na luz abalada,
na áspera floresta dos limbos, e as ilhas vermelhas e os montes arrastados
amadureciam no terror da nossa idade. No espaço das fabulas os mortos, cegamente
pre
sos, estavam aniquilados pelos lábios e beijavam a grande luz, a grande morte. E
fez
-
se a separação entre a boca e os livros. E quando as águas e as neves estavam
dentro do céu, de cuja antiga lembrança custa falar, eu vi os mortos brancos
despertar debaix
o do céu fatal e, ficavam pequenos e grandes. E estavam todos
mortos. Denso granizo, águas negras e neves caíam do espaço tenebroso.
... E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez
-
se a tarde, e
fez
-
se a manhã, dia primeiro...
... presos pel
a boca violentamente brancos os mortos amadureciam
e
dentro desta luz ficavam as mulheres puxando as fábulas vermelhas
e
a terrível colina subia pelos sons deslumbrados
e
os limbos estalavam
e
a luz rasgou cegamente os seres aniquilados
e
cúpulas beijavam
os lábios arrastados na luz
e
a morte antiga girava em baixo com homens...
43
... E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez
-
se a tarde, e
fez
-
se a manhã, dia primeiro...
... luz selvagem... e terramoto que se enrola de estrelas... e água abal
ada...
inextricável... o sol num saco de vento... e a lua debaixo das ilhas que se moveram...
e livros em silício dentro dos mortos verdes... e coração dos figos abertos...
maravilha nos grandes lugares por cima... e montes como dentro das águas negras...
espaço... separação... e mulheres vermelhas com cúpulas... a antiga colina do
firmamento... e homens violentamente... sons cegamente... e seres arrastados do céu
da boca para... luz selvagem...
... E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez
-
se a tarde, e
fez
-
se a manhã, dia primeiro...
(HELDER, 2006, p.
215
-
219)
No texto, o autor propõe seis trechos (Gênesis, Apocalipse, François Villon, Dante, Camões e
um do próprio autor), e propõe também escrever cinco textos a partir da crescente mistura
destes. O autor nada nos diz de qual deles provém seu processo de criação, ou de como irá
misturar os textos, somente nos uma dica através do título do seu poema. Todavia, ao
mesmo tempo, existe a possibilidade de o leitor entrever as regras no resulta
do final sem que
o autor as torne evidentes. Isso me parece difícil, porém não impossível. Da mesma forma,
será um ato de análise, ou seja, uma leitura posterior à primeira, pois nesta apenas
conseguimos ir fisgando os trechos, ou as alterações feitas a ca
da pedaço. Notamos a iteração
dos trechos, que eles começam a se misturar e que, à medida que o poema progride, os trechos
vão sendo alterados e misturados cada vez mais, tornando a intervenção do autor cada vez
mais presente. Somente com uma leitura analí
tica (sem pretensões estéticas) nos tornaremos
capazes de mapear algumas das permutações e
fetuadas pelo autor, somente
n
um ato de
apreensão intelectual posterior a leitura estética. Entretanto, devido ao tipo de construção, será
quase impossível mapear tod
as as regras utilizadas, ou o completo percurso de como as
permutações foram feitas.
Temos então diferentes níveis de obra procedural. Ou melhor, podemos parar o processo em
pontos distintos. Posso, na qualidade de autor, executar o processo todo eu mesmo
e
apresentar o resultado, ou posso deixar o ato de manipular os elementos na mão do leitor. O
que essa reflexão nos mostra é que existe um grau de similaridade entre o ato de manipulação
do autor e do leitor, com a diferença de que o ato de manipulação, q
uando deixado ao leitor,
estará contido nas regras criadas pelo autor
na obra por ele criada
; já o ato criativo de
manipular elementos do autor não será restrito pela própria obra, ou
se o for, será em menor
grau em relação a
do leitor.
44
[pot
ê
ncia]
,
entre os membros do
OuLiPo
mais
próximos da matemática,
um esforço para
anular o
acaso, de criar um sistema em que todas as possibili
dades estejam prescritas dentro de um
quadro proposto pelo autor. uma tentativa para controlar o aleatório, o imprevi
vel, da
construção textual. Por exemplo, como diz
Jacques Bens, um dos membros fundadores do
OuLiPo: “la potentialité est incertaine, mais pas hasardeuse.
On sait parfaitement tout ce qui
peut se produire, mais
on ignore si cela se produira.”(OULIPO
,
1988
,
p.
25)
42
.
De acordo com
Alexandra Seammer, comentando a frase de Jacques Bens, no seu livro
Matières textuelles
sur support numérique
(2007)
,
os oulipiano
s pouco se importam com a qualidade do resultado
(entendido aqui como obra que será gerada pelas
contr
aintes
), ou se o programa proposto irá
se realizar de fato,
visto que
todos os resultados possíveis
estão contidos
enquanto
possibilidade ou potência
dentro do programa criado. Ou seja, tenho uma obra potencial, na
qual o valor e a atenção do autor est
ão voltados para um processo criativo que tenha a
capacidade de criar possibilidades, e não necessariamente para os resultados. Logo, o
programa/obra se configura como um ponto de onde podem surgir inúmeros resultados
materiais.
Imagem 07: figuração de
pot
ê
ncia e resultados.
Esse foco da obra como potencialidade é próximo do que é exposto por Hatherly com relação
aos poemas visuais barrocos, em que o que importa é a obra enquanto um engenho. No
entanto,
-
la desse modo significa entrever ou pensar o se
u ato de leitura (ou o ato de
decifrar os engenhos e artes da obra). Outra diferença que podemos notar é que no barroco
42
“a potencialidade é
incerta, mas não aleatória. Sabe
-
se
perfeitamente tudo que se pode produzi
r, mas
ignoramos se será produzido” (tradução do autor).
45
uma importância dada ao aspecto visual da obra, ao modo de ela se expor, muitas vezes
criando obras de grande beleza visual e de gran
de complexidade de leitura. Ela não se
restringia ao programa. É o caso dos poemas
-
visuais barrocos, como o de Jerónimo Tavares
Mascarenhas de Távora
43
, apresentado
n
uma das antologias de Ana Hatherly (1995
, p.
122):
Imagem
08
:
p
oema de
Jerónimo Tavares
Mascarenhas de Távora
.
O poema é uma homenagem às núpcias de Luiz de Castro e Joana Perpetua de Bragança.
Pode
-
se notar que o nome de ambos emana da figura do sol. uma primeira série de versos
mais próxima do sol, formando um semi
-
círculo, no qual as d
uas últimas letras do nome Luiz
(aqui alteradas para J e S, o J podendo também ser um I) servem para ligar o começo e o fim
dos dísticos. Na segunda série, os nomes (em maiúsculo) se encontram entrelaçados por
vários versos, que criam um labirinto de pe
rcu
rsos e unem ambos os noivos
n
uma espécie de
rede solar. A primeira e segunda série estão unidas pelo nome de Luiz. aqui uma temática
de união abençoada que está presente tanto nos versos como na forma. Nele, como em muitos
labirintos, existe uma matéria
disposta que pode ou não vir a ser efetivada. Posso trilhar
43
Intitulado:
Parabem Epithalamico que nas felicissimas Nupcias do Illmo. E Exmo. Marquez o Senhor Dom
Luiz de Castro e a Illma e Exma. Dunqueza a Senhora D. Joana Perpetua de Bragança, Recitão as Villas de
seus Estados.
Publicado em 1738.
46
inúmeros versos dentro dele, mas não necessariamente hei de fazê
-
lo. Ana Hatherly desenha
um esquema para demonstrar as possibilidades de caminhos (1995
,
p.
125):
Imagem
09
: exemplo dos caminh
os de leitura possíveis
explicitado por Hatherly.
Podemos notar que a leitura de uma grande quantidade de obras opera por permutação dos
elementos “soltos”
44
palavras, versos etc.
, tanto no exemplo mais elaborado de Jerônimo
Tavares quanto nos labirint
os mais simples, como o
Labirinto Cúbico
. Existe um mapa ou teia
de possibilidades, muitas vezes tão ampla, que não serão todas efetivadas ou: “Em suma,
numa direção ou noutra, o objetivo é o da multiplicação, ramificação ou proliferação das
obras possívei
s a partir de uma impo
s
tação formal abstrata” (CALVINO
,
1998
, p.
269).
Novamente temos a figura da Máquina de Turing, ou grupo de regras abstratas que podem
gerar resultados computados, com a diferença de que aqui elas estão submetidas ao estético.
Um bom
exemplo disso é o poema de Melo e Castro, que se propõe enquanto conjunto de
regras para uma quantidade infinda de resultados; a partir de algumas simples especificações
tenho uma pequena máquina de criar aforismos.
É o caso do citado
Labyrintho al mod
o de
el juego de el axedrez, que trata de el nacimiento de christo nuestro señor
, em que as
redondilhas podem ser lidas em diferentes ordens.
44
‘Soltos’ aqui se refere ao fato de que, apesar de estarem em um lugar fixo na página, eles têm certa
maleabilidade com relação ao ato de leitura, sendo que precisamente a manipulação deles é que consistirá na
interativida
de do leitor.
47
É justamente a grande multiplicidade do possível proporcionado pelas obras que impedem a
de tentativa de juntar t
odos os resultados calculáveis para considerá
-
los “a obra”. Isso quer
dizer que não é viável tentar mapear todas as
alternativas
da obra, seus resultados vão
permanecer sempre um horizonte de possibilidade a partir daquela interseção de regras e
elementos.
Não é a função da leitura levar as obras à exaustão de seus resultados, pois a obra
não é apenas seus resultados. Cria
-
se uma espécie de máquina estrutural (e aqui nos
aproximamos teoricamente do computador), de textos potenciais, que aguarda a interação
do
leitor para sua efetivação, ou fruição
45
.
As palavras de Calvino nos lembra que:
A estrutura é liberdade, produz o texto e ao mesmo tempo a possibilidade de todos
os textos virtuais que podem substituí
-
lo. Esta é a novidade que se encontra na ideia
da
multiplicidade "potencial" implícita na proposta de uma literatura que venha a
nascer das limitações que ela mesma escolhe e se impõe. Convém dizer que no
método de "Oulipo" é a qualidade dessas regras, sua engenhosidade e elegância que
conta em primeiro l
ugar; se ela corresponderá logo a qualidade dos resultados, das
obras obtidas por essa via, tanto melhor, mas de qualquer modo a obra é apenas um
exemplo das potencialidades alcançáveis somente por meio da porta estreita dessas
regras. O automatismo por me
io do qual as regras do jogo geram a obra se contrapõe
ao automatismo surrealista que apela para o acaso ou para o inconsciente, isto é,
confia a obra a determinações não controláveis, às quais só resta obedecer. Em suma,
trata
-
se de opor uma limitação esc
olhida voluntariamente às limitações sofridas
impostas pelo ambiente (linguisticas, culturais etc.). Cada exemplo de texto
construído segundo regras precisas abre a multiplicidade "potencial" de todos os
textos virtualmente passíveis de escrita segundo aqu
elas regras e de todas as
leituras
virtuais desses textos
(CALVINO
,
1998, p.
270).
O que nos importa aqui é que a
obra mostra através de suas regras
,
o que é possível dentro
dela (
o que nos mostra simultaneamente a impossibilidade frequente de efetivar to
das as
possibilidades
).
Voltemos ao
Cent mille milliards de poèmes;
todos os poemas possíveis do
livro são perfeitamente previsíveis
, mas não necessariamente iremos efetivá
-
los todos. Tal ato,
além de ser temporalmente absurdo, não é o propósito da obra
.
45
Todavia, vale ressaltar que em muitas obras a interação necessária do leitor é muito lim
itada. São ess
as
interações que não propiciam ao leitor um ato de verdadeira intervenção, são ações que poderiam ser executadas
pelo próprio programa (c
omo seria, por exemplo, se o leitor tivesse apenas que clicar em um botão para o poema
continuar, como um simples “ir para a próxima página”). Não há aí a necessidade de uma ação propriamente dita
ou engenhosidade do leitor, nem mesmo uma tentativa de ente
nder a engenhosidade do autor para decifrar o
processo. Um dos pontos que torna os textos
-
visuais barrocos interessantes para leitura, é que neles, como na
maioria das obras literárias daquela época, o maior grau de complexidade para a decifração era tido
como um
maior grau de valor da obra. Logo, neles a proposição de um engenho complexo que não deixa o leitor se
entediar com o jogo a ser jogado.
48
1.2.6
N
o meio da
s
contraintes
(texto no meio do caminho)
De qualquer modo, não generalizemos, pois este não é o modo de escrita de todos os
membros do OuLiPo. Olhemos rapidamente o caso de Italo Calvino e a composição de seu
livro
O Castelo dos D
estinos
Cruzados
(1991)
e o que ele nos conta nas notas finais do
mesmo, sendo um membro crítico do OuLiPo e do
pro
cesso criativo procedural.
N
A
Taverna dos Destinos Cruzados
46
uma construção muito mais complexa do que
“um
a
contraint
e
sendo aplicada
. A princ
ipal, porém não única, fonte de angústia que
Cal
vino encontra diante da
escrita da
Taverna
está na vontade de “construir também com os
tarôs marselheses aquela espécie de ‘contentor’ das narrativas cruzadas que havia construído
com o
Castelo
(CALVINO
,
199
1, p. 154). Porém, sua tarefa na
Taverna
se apresenta como
mais infeliz (de primeiro momento). Calvino se forçado a criar e recriar seu contentor,
mudar as histórias pré
-
existentes, adicionar outras, retirar cartas, colocá
-
las, romper e
remontar:
passa
va dias inteiros a compor e a recompor o me
u quebra
-
cabeça, imaginava novas
regras do jogo, traçava centenas de esquemas, em quadrado, em losango, em estrela,
mas sempre havia cartas essenciais que permaneciam fora e cartas supérfluas que
ficavam no meio,
e os esquemas se tornaram tão complicados (adquirindo às vezes
até mesmo uma terceira dimensão, tornando
-
se cubo
s e poliedros) que eu próprio
acabava me perdendo nel
es
(CALVINO
,
1991, p.
155).
Ele não se encontra filiado a um
a
contraint
e
, ele cria e recri
a as regras de acordo com
movimento constante da escrita, que, como ele mesmo
afirma
acima, acabava engolindo
-
o e
transfigurand
o
-
o. Sendo assim, Calvino recusa entregar
-
se
a uma escrita “livre”:
sentia que o jogo tinha sentido se submetido à imposição
de regras ferrenhas: ou
arranjava uma necessidade geral de construção que condicionasse o encaixe de cada
história no conjunto das outras, ou então era tudo gratuito (CALVINO
,
1991, p.
155).
uma necessidade de manter o jogo, de não se render a uma escr
ita livre”, nem que as
próprias regras do jogo sejam encontrar uma regra para o jogo (um constante devir em que as
cartas têm que ser sempre embaralhadas, ou que estejam sempre na iminência da própria
46
Falo aqui especificamente d’
A Taverna
(publicado como a segunda parte d
’O Castelo
), pois é na criação da
T
averna
que Calvino alega estar sua angústia, ao contrário d’
O Castelo
que segundo ele fluiu adequadamente e
encontrava
-
se completo em uma semana (CALVINO, 1991).
49
efemeridade do jogo).
O seu comportamento diante
d
as c
artas e seu
percurso
de escrita
lembra
m
-
nos do argumento de
H.
-
G. Gadamer, em
Verdade e Método
, sobre a obra de arte
ser
como jogo, que
todo
jogar é
um
ser
-
jogado”
(GADAMER
,
1999,
p.
181)
; o jogo exerce
sobre o jogador uma atração que o imerge num mundo/j
o
go. Calvino cria e recria as regras do
jogo que não é mais apenas seu, é uma configuração de todos os fatores
que ele mesmo enseja
controlar. Em vez de anular o acaso, como pretendem alguns membros do
OuLiPo
,
Calvino
parece indicar que a interligação entr
e autor e
obra torna tal pretensão incabível diante de um
diálogo complexo entre aquele que cria e o que é criado
, pois a obra é, para ele:
“arquivo dos
materiais acumulados pouco a pouco, ao longo de estratificações sucessivas de interpretações
iconológic
as, de humores temperamentais, de intenções ideoló
gicas, de escolhas estilísticas
(CALVINO
,
1991, p.
156).
1.2.7
Leitor de
contraintes
As
contraintes
são aplicadas sobre o processo criativo do autor, porém essas mesmas
contraintes
transbordam para o
processo de leitura. Se lembrarmos o
Cent mille milliards
,
em
que as possibilidades do processo de leitura, dos sonetos possíveis, são ditadas pelo programa
,
ou se pensarmos no caso recém citado de Calvino, em que o leitor i ler o resultado da
construção
de cartas do autor, veremos que as restrições
os programas
são uma camada da
obra que transpassa todo processo da criação artística; de sua concepção até sua leitura, da
gênesis com o autor, até sua efetivação com o leitor.
Podemos considerar dois ex
tremos (e, logo, todas as variações que possam existir entre eles)
da visibilidade das restrições: elas podem ser imediatamente visíveis, como é o caso do poema
de Melo e Castro em que elas estão explicitadas, ou qualquer outro poema cujas regras
estejam d
ispostas claramente para o leitor (isso geralmente é o caso de criações em que o
leitor terá que efetivar a obra e necessitar saber as regras exatas para poder jogar
47
); ou elas
podem ser ocultas, como é o caso das restrições da obra de Perec
temos todos
os resultados
das
contraintes
presente diante de nós, mas não
explicitamente
(cas
o em que o leitor menos
47
Curioso que nos po
emas barrocos, apesar de haver
sistemas de regras complexas para a leitura
, elas
geralmente não são expostas tão claramente quanto em alguns experimentos de vanguarda, que parecem preferir
o caráter didático sobre o enigmático, tão presente no barroco.
50
informado poderá passar pela obra sem jamais saber que houve uma série de regras e
restrições impostas pelo próprio autor para a confecção daquela obra
). Em ambos os casos o
programa se tornará uma camada da obra, uma estrutura textual, que poderá ter di
ferentes
níveis de visibilidade para o leitor
48
.
Tanto nos exemplos que explicitam o programa, quanto os que não o fazem, tanto nas obras
em que o autor
efetiva o próprio programa, quanto nas obras em que a efetivação é dada ao
leitor temos um fato em comum com a obra procedural: o programa que a atravessa na
qualidade de um ato procedural. Para o autor, a interação com um grupo de elementos e um
grupo de
regras ocorre em todos os casos. O autor tem que constituir um programa, até para
aplicá
-
lo ou ao leitor ou a si mesmo. Para isso, pode
-
se dizer que ele tem que ler o próprio
programa. Ou, se lembrarmos que a obra procedural é também para o autor uma obra
potencial que pode efetuar uma série de virtualidades, podemos afirmar que o ato de
composição para o autor também é um ato da criação e interação com um texto “provisório”,
um ato de constante atualização das possibilidades
ou previsão e esboço
da obr
a antes dela
ser concluída (pelo autor e entregue ao leitor). Seria como, mesmo deixando sua obra aberta,
o autor, no momento da criação, fosse esboçando as possibilidades que a obra dele mesmo
poderá efetivar quando em contato com um leitor.
Logo, apesar
da relação de interação ocorrer entre leitor e obra, ou autor e obra, em algum
momento houve a intera
ção autor
-
obra
-
(potê
ncia de leitor) duran
te um ato de escrita,
m
omento em que o autor teria que esboçar o contato de sua obra (talvez ainda incompleta)
co
m um leitor possível. Seria esboçar a situação de encontro e efetivação da obra.
Seria como
dizer que, Herberto Helder, ao criar sua
Máquina de Emaranhar Paisagens
cria também, em
seu ato de escrita, a intriga do leit
or. Este
percebe que, a cada novo texto
, houve alterações,
mas que
estas
não estão explicitas durante a leitura; plantando a semente que leva o leitor a
voltar aos trechos iniciais e tentar mapear, ou criar alguns marcadores
de, como os trecho
s
intercalados e alterados ao longo do percurso.
48
Mesmo com
contraintes
que tenham como resultado um texto padrão acabado, o
leitor ainda tem a
possibilidade de tentar refazer o caminho e captar as regras que geraram aquele texto, um ato que se pode
comparar ao de fazer o caminho inverso de um cálculo matemático. Não que seja possível encontrar regras
exatas, mas é possível tent
ar intuí
-
las enquanto aspectos gerais, e ainda ler o processo de criação escrito no corpo
do texto, mesmo que precariamente.
51
P
odemos compreender esse ato como uma espécie de proposta para percorrer caminhos,
construindo uma materialidade aberta para o toque do leitor, montando caminhos e
possibilidades de interação, ou construindo uma espécie de
puzzle
, intervindo no acaso, como
nos aponta Georges Perec no preâmbulo de seu
La
Vie mode d’emploi
:
L'art du puzzle commence avec les puzzles de bois découpés à la main lorsque celui
qui les fabrique entreprend de se poser toutes les questions que le joueur devra
résoudre lorsque, au lie
u de laisser le hasard brouiller les pistes, il entend lui
substituer la ruse, le piège, l'illusion: d'une façon préméditée, tous les éléments
figurant sur l'image à reconstruire
tel fauteuil de brocart d'or, tel chapeau noir à
trois cornes garni d'une p
lume noire un peu délabrée, telle livrée jonquille toute
couverte de galons d'argent
serviront de départ à une information trompeuse:
l'espace organisé, cohérent, structuré, signifiant, du tableau sera découpé non
seulement en éléments inertes, amorphes,
pauvres de signification et d'information,
mais en éléments falsifiés, porteurs d'informations fausses: deux fragments de
corniches s'emboitant exactement alors qu'ils appartiennent en fait à deux portions
très éloignées du plafond, la boucle de la ceintu
re d'un uniforme qui se vèle in
extremis être une pièce de métal retenant une torchère, plusieurs pièces coupées
de façon presque identique appartenant, les unes à un oranger nain pose sur une
cheminée, les autres à son reflet à peine terni dans un mir
oir, sont des exemples
classiques des embûches rencontrées par les amateurs.
On en déduira quelque chose qui est sans doute l'ultime vérité du puzzle: en dépit
des apparences, ce n'est pas un jeu solitaire: chaque geste que fait le poseur de
puzzle, le f
aiseur de puzzle 1'a fait avant lui; chaque pièce qu'il prend et reprend,
qu'il examine, qu'il caresse, chaque combinaison qu'il essaye et essaye encore,
chaque tâtonnement, chaque intuition, chaque espoir, chaque découragement, ont été
décidés, calculés,
étudiés par l'autre
49
(PEREC
,
1978
,
p.
19)
Existe uma linha que atravessa a relação entre estas três partes: autor, obra, leitor. Algo de um
jogo de criação em que alguém cria e ao mesmo tempo se joga para dentro do espaço da obra,
uma atenuação das funçõ
es em que esse autor criou as regras, tendo
-
as criado
,
todavia
,
n
um
constante ato de leitura,
n
um vai
-
e
-
vem, tendo como resultado um texto (uma espécie de texto
49
“A arte do puzzle começa com os puzzles de madeira cortados à mão, quando a pessoa que os fabrica se
propõe apresentar a si mesma
todas as questões que o jogador deverá resolver; quando, em vez de deixar o acaso
enredar as pistas, decide interferir pessoalmente para criar a astúcia, o ardil, a ilusão; de maneira premeditada,
todos os elementos que figuram na imagem a ser reconstruíd
a
aquela poltrona de brocado dourado, aquele
tricórnio negro enfeitado com uma pluma negra um tanto amarfanhada, aquela libré amarelo
-
clara recoberta de
galões prateados
servirão de partida para uma informação enganadora: o espaço organizado, coerente,
estruturado, significativo, do quadro será cortado não apenas em elementos inertes, amorfos, pobres de
significado e informação, mas também em elementos falsificados, portadores de informações falsas: dois
fragmentos de cornijas que se encaixam perfeitame
nte, embora na verdade pertençam a duas porções bastante
distintas do teto; a fivela do cinturão de um uniforme que acaba sendo afinal a braçadeira que envolve a base de
um tocheiro; várias peças cortadas de maneira quase idêntica que pertencem, umas, a um
a laranjeira
-
anã que está
colocada sobre o consolo da lareira e, outras, a seu reflexo um pouco esmaecido num espelho são exemplos
clássicos das ciladas que encontram os cultores do gênero.
Podemos deduzir daí algo que é, sem dúvida, a verdade última do p
uzzle: apesar das aparências, não se trata de
um jogo solitário
todo gesto que faz o armador de puzzles, o construtor o fez antes dele; toda peça que
torna e retoma, examina, acaricia, toda combinação que tenta e volta a tentar, toda hesitação, toda i
ntuição, toda
esperança, todo esmorecimento foram decididos, calculados, estudados pelo outro”
(
2009
-
tradução de Ivo
Barroso)
.
52
no meio do caminho). Ao mesmo tempo, o caráter de interativ
idade da obra coloca o leitor
n
uma p
osição de escrita, porém, sempre dentro de um limite criado pelo autor. Gera
-
se um
plano de possibilidades regradas, coloca
-
se a mão nas possibilidades do acaso, brinca
-
se com
os dados do aleatório (coloca
-
se chumbo nos dados do acaso), cria
-
se um mundo (u
ma
contingência limitada), uma total
idade, e se colocam a jogar,
n
uma espécie de diálogo através
do corpo da obra.
Ainda devemos explorar as possibilidades desse cenário que Perec nos propõe, a fim de
apreender os limites da possibilidade de interação com
relação às regras impostas por um
autor, tentar compreender através de que modo de ação o leitor se coloca em jogo. Até que
ponto jogar é jogar com as regras propostas, sem agredir a obra? Acima de tudo, necessitamos
ter conhecimento do que a interação di
spõe na relação entre autor, obra e leitor, no seu modo
de interagir nos limites um do outro. Mas não podemos tomar um passo adiante sem olhar o
digital e sem nos entranharmos no objeto específico dessa leitura.
53
CAPÍTULO 02
UM
POEMA DIGITAL
AMOR DE CL
ARICE
A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A
rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer
com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao
redor. O m
al estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a
sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do
acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O
mundo se tornara de nov
o um mal
-
estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas
escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia
-
lhe que as pessoas da rua eram
periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão
e
por um momento a falta de sentido deixava
-
as tão livres que elas não sabiam para
onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da
frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas
com a mesma calma com que não o eram.
Amor
, Clarice
Lispector
2.1
Amor
d
e Clarice
Passamos então ao objetivo específico dessa pesquisa: ler a obra
Amor de Clarice
, do
português Rui Torres. Assim, conjugaremos um objetivo geral
mapear mecanismos e
estratégias de interatividade no poema digital
e um
objetivo específico
ler o
Amor de
Clarice
com o intuito de poder entender melhor ambos através de um constante diálogo
entre esses objetos, no como se cruzam, e buscar compreender os processos de interatividade
através dessa obra digital.
Falamos ante
riormente a respeito de uma interatividade material, de obras em que a matéria
física e o modo de dispor esta materialidade à leitura são partes integrais da constituição de
um texto. São obras em que
a maneira como a materialidade se a construir na lei
tura
é
proposta
como
um significante na obra. O
Amor de Clarice
é uma obra digital que comporta
tais características, cuja
construção material é uma parte atuante e geradora de sentido no todo
da obra. Com isso, não podemos nos esquivar de voltar nossos ol
hos para a sua materialidade,
sua composição e seu modo de operar. O
Amor de Clarice
, como toda obra literária digital, é
uma composição técnica
um aparato, uma máquina, um engenho
que expõe uma
visibili
dade,
ao mesmo tempo
em que
guar
da uma camada de
sua escrita,
permanece
ndo
por
detrás da visibilidade da obra, que fica por detrás do que o leitor pode acessar, mas que é
necessária
para que haja tal visibilidade
. Logo, por se tratar de uma criação téc
nica
54
lembrando
que a técnica aqui é uma técnica su
bmetida a esquemas estéticos
, como em toda
arte
não podemos entender a obra somente pelo domínio da literatura; ela se vale de um
programa (efe
tivamente escrito em código)
n
uma máquina, outro corpo que não o de um livro
padrão.
Proponho
-
me a ler
Amor d
e Clarice
, tentando perceber as movimentações dos elementos e
seus jogos uns com os outros dentro do poema
nomenclatura que
será
justificada
logo mais
adiante
, pensando aqui que cada elemento, de alguma forma, altera e é alterado pelos outros
movimento
s.
Quero t
entar entender as possibilidades da materialidade da obra, entender o que
pode ser feito e como é possível
ao leitor interagir com ela. Porém
,
acima de tudo, ler a obra
enquanto uma totalidade
, p
ois, como nos diz Merleau
-
Ponty
(2006)
, a unidade p
recede a si
mesma. Nossa percepção de uma unidade nos permite posteriormente analisar uma
contiguidade das coisas. A unidade entre as coisas na percepção é a condição para a
associação entre as coisas no mundo. A percepção da totalidade, segundo Merleau
-
Po
nty,
precede sempre a reflexão intelectual, a análise não encontra nada que ela não tenha
colocado em seu objeto. Ao ver o poema
Amor de Clarice
,
percebo
-
o como uma totalidade
(seu horizonte, seus periféricos e seus meios tecnológicos de manipulação em
que ele “vive”
ou se dá). O que pretendo nesse momento é explicitar as contig
u
idades, ou seja, os
movimentos e relações entre as partes da obra, olhando a totalidade desta. E, se seguirmos
Merleau
-
Ponty, entenderemos que até esse ato analítico não pode que
brar a totalidade do
poema porque
é justamente essa totalidade primordial que permite que possamos fragmentá
-
lo
e ainda encontrar nele pontos de movimento, fricções entre as partes e não em cada parte um
mundo distinto e indissociável.
Tendo dito isso, ad
entremos a obra.
Amor de Clarice
é uma obra programada em
flash
(linguagem de programação
actionscript
)
,
contendo texto, voz, som e vídeo; criado por Rui Torres e com a participação de Carlos
Morgado (som), Luis Aly (som), Ana Carvalho (vídeo) e Nuno M. C
ardoso (voz)
50
.
50
Normalmente o leitor terá acesso à obra
online <
http://telepoesis.net/amorclarice/index.html
>
, que consiste
apenas no poema
A
mor de Clarice
; também existe uma versão em CD, que vem
acompanhada de
outro disco
com as trilhas de áudio do poema e um livreto que
informações técnicas e conté
m o poema impresso de Rui
Torres baseado no conto
Amor
, de Clarice Lispector
(1974)
.
55
Ao iniciar a
leitura
, há uma tela que os devidos créditos aos outros participantes da obra e
as instruções básicas para
a
navegação e, depois, uma página com uma espécie de índice
contendo uma série de linhas de texto flutuando uma em ci
ma da outra sobre um fundo de
várias palavras sobrepostas e quase ilegíveis. A
o ser clicada a
área em volta de cada linha
,
uma tela
se abre
. À direita os linques levam a uma série de telas do poema; à esq
uerda, os
linques levam à
outra (então qualquer lug
ar que o leitor clique irá levá
-
lo para uma tela nova).
São duas séries do poema (iguais em termos dos elementos verbais escritos
palavras
, mas
com várias outras diferenças, incluindo disposição do texto, layout de página etc.). Cada série
tem 26
telas
que podem ser trilhadas
n
uma ordem ou aleatoriamente, através dos botões no
canto superior direito da tela (no caso, um botão
seguir
,
voltar
e o de tela
aleatória
que
leva o leitor para qualquer tela de um
a das
ries
). A série que se quando se clic
a na
esquerda da frase é
uma em que o fundo consiste
n
um
emaranhado de palavras, composto
por
excertos do conto de Clarice Lispector (algumas pulsam em cores, outras se mexem e ainda
algumas apenas ficam estáticas), e c
om uma trilha sonora musical constitu
indo outro
fundo; a
série que se vê quando se clica na metade direita da tela é uma em que o fundo é um filme em
loop
51
(26 diferentes filmes de Ana Carvalho), tendo a leitura do conto de
Amor
(com um som
um pouco abafado) por fundo. Ao entrar em cada tela,
frases ou palavras vão
-
se
formando/aparecendo/movimentando de maneira diferente para cada tela e, no momento do
seu surgimento, uma voz as declama, enquanto uma ou ma
is trilha sonoras tocam
concomitantemente
. O leitor tem a possibilidade de fazer com que
essas frases e palavras
sejam declamadas, a qualquer instante, até mesmo antes de
e
las terminarem seu movimento,
clicando nelas. Também há total liberdade de clicar e arrastar os versos para onde se quiser na
tela, moldando as linhas de texto ao gosto do l
eitor. A cada tela, tem
-
se a escolha de
posicionar as palavras em outras localidades, em outros locais daquele espaço; a
possibilidade de decidir a ordem em que os versos serão lidos (clicando neles na ordem
desejada).
A
lém disso, há a possibilidade de
ver as outras posições possíveis (a tela é aberta, o
leitor pode posicionar as frases e palavras onde bem desejar e constantemente alterar a sua
posição)
nunca se termina de testá
-
las. Pode
-
se adiar constantemente uma versão final da
tela (pois uma versã
o final nunca foi o propósito). A cada escolha (espacial e sonora)
,
sei que
tenho inúmeros movimentos e ações, inúmeras combinações daqueles elementos que foram
dispostos diante de mim.
51
Efeit
o de ficar se repetindo.
56
2.2
Amor de Clarice
enquanto objeto palimpséstico
Amor de Clarice
é
, assim,
uma obra literária digital, contendo texto, voz, som e vídeo, criada
pelo português Rui Torres, inspirada no conto “Amor” de Clarice Lispector. Trata
-
se de uma
transcriação de uma obra impressa brasileira
para
um poema
em
hiperm
eios,
não apenas n
o
sentido de uma releitura do objeto verbal, mas
como
uma recriação que transborda o meio
impresso para constituir um novo objeto verbal, vi
sual e sonoro.
Imagem
1
0
: t
ela inicial do poema.
Obviamente a leitura desse novo objeto não pode se dar da mesma
forma que se dava no meio
impresso. Existe a necessidade de procurar novos modos e métodos de interação com a obra
digital, uma necessidade de entender o funcionamento dessa recriação para que possamos
vivenciá
-
la.
57
2.2.1
Elementos
Poderíamos descr
ever aqui todas as páginas do
Amor de Clarice
, poderíamos descrever as
várias maneiras como os fundos pulsam, mudam de cores, mexem
-
se ou aparentam mexer, as
palavras se movimentam na tela, sobrepõem
-
se umas às outras, aparecem e somem e dançam
diante da t
ela, mas nunca
seria possível
descrever todas as possibilidades que o l
eitor/a tem
diante da obra, toda
s as posições em que ele/a poderia alocar os versos, todos os rumos que
ele/a poderia tomar de tela em tela, entre caminhos de um ir e vir aleatórios. To
das essas
possibilidades existem, todas elas podem vir a ser
;
porém, prevê
-
las, compor um mapa de
caminhos trilháveis ou de escolhas a serem tomadas pelo leitor
seria mesmo
um
a tarefa para
loucos ou perfeccioni
stas
ávidos
por compor uma falsa totalidade de
rumos.
O que me
interessa é, ao contrá
rio,
investigar
o que faz
com que
a obra funcion
e
, o catalogar todas as
possibilidades
em que, por exemplo,
encontra
m
-
se
os ponteiros
do relógio, mas entender as
engrenagens e molas que possibilitam
o movimento dos
ponteiros,
e que o relógio
potencialmente
nos conte
todas as horas do dia. Assim, mapeamos uma série de elementos da
obra:
Fundos de tela composto por palavras (móveis e estáticas)
Fundos de tela de filmes em
loop
Palavras na tela (móveis/estáticas/
clicáveis)
Recitação das palavras clicáveis
Recitação de fundo (integrada à trilha sonora)
Trilha sonora (música eletrônica)
2.2.2
P
oema
Apesar de todos esses elementos heterogêneos comporem a obra, AdC
52
ainda pode ser
chamado de um poema, e não
digo isso simplesmente por causa de seu subtítulo, paratexto
estrategicamente posicionado no encarte: Poema Hipermídia, mas justamente por escolher ler
AdC como parte da poesia
-
visual
i
bérica,
tradição
muitas vezes
vista como periférica ou
secundá
ria
.
Esco
lho ler AdC dentre os
jogos visuais barrocos, n
uma tradição poética que se
52
Doravante, o título da obra será mencionado pelas suas iniciais AdC.
58
deixou permear por
traços
árabes e hebraicos,
e que permite pensarmos o objeto poema como
algo mais abrangente, como já foi exposto no primeiro capítulo.
Dessa maneira, se dou impo
rtância a
nomear algo de poema é porque esse ato não é apenas
uma categorização, mas reflete um modo de olhar esse objeto, de impor e dispor do seu local
diante nós. Podemos pensar no que Merleu
-
Ponty
(2006)
fala a respeito da percepçã
o com
relação ao obje
to e a
quem o percebe: que perceber não é apenas se adequar ao objeto (não
posso ler a criação enquanto poema apenas porque ela assim foi categorizada), nem uma
projeção total sobre o objeto (não posso impor na criação características de poema se ela não
a
s te
m). Parece um tanto simples, todavia,
o que se quer dizer aqui é que não se pode
identificar algo como poema e esperar uma leitura da obra enquanto tal meramente por
questões de nomenclatura. O que
se
deve
fazer é
uma an
á
lise das características do obj
eto
para averiguar se estas o colocam a dialogar com outras criações que podem ser lidas dessa
forma (poema). Ou seja, nomeá
-
lo poema é submetê
-
lo a uma leitura dentro de um espe
c
tro
de possibilidades e articulações. Também representa uma escolha, aquela d
e ler AdC ao lado
de toda tradição poética
; e
isso significa não transformá
-
lo
n
um mer
o fruto do passado, mas
em algo com o qual se pode
aprender
, por exemplo, como AdC se conjuga
com a tradição
poética anterior a ela.
Ou seja, significa também t
entar comp
reender em que medida as
técnicas utilizadas em AdC dialogam com técnicas já utilizadas em outros expoentes desta
tradição.
Logo, ao escolher
ler o AdC
como um
poema,
lanço mão de
uma nomenclatura para que ele
possa ser melhor descrito. Uma página é compo
sta por
versos, o conjunto de versos n
uma
página é uma estrofe. O termo página se refere a todos os elementos que estão naquele
conjunto visual, sonoro, textual, mas não carrega a conotação de a
parato tecnológico. Para me
referir ao aparato tecnológico com
putacional propriamente dito utilizarei a palavra
tela
.
2.2.3
Palimpsesto
Entre o conto de Clarice e o poema de Rui Torres um ato de transposição e transformação
que não pode ser limitado a uma mera cópia ou transferência do meio impresso ao digital
.
Podemos chamar essa relação entre as obras de hipertextual, não como é proposta por Ted
59
Nelson e George Landow, mas como é conceitualizado por Gérard Genette no seu livro
Palimpsestes: La littérature au second degré
(1982)
, com seu par de relação: o hipo
texto.
No início de seu livro, Genette introduz cinco tipos de relações textuais
ou aspectos da
textualidade
que ele denomina de transtextualidade: intertexto (a presença efetiva de um
texto no outro como por via de citações, plágios e alusões)
;
parat
exto
(vários elementos
periféricos à
obra como títulos, prefácios, epígrafes, imagens e capas,
até mesmo rascunhos
ou esboços);
metatexto (quando um texto fala de outro sem necessariamente citá
-
lo
,
como ao
fazer crí
tica literária);
arquitexto (uma espécie
de textualidade do texto literário) e
,
finalmente
,
hipertexto.
Sobre a hipertextualidade
,
Genette nos diz:
J’entends par toute relation
unissant um text B (que j’appellerai hypertexte) à un text antéri
e
ur A (que j’appellerai, bien
sûr, hypotext)
”(1982,
p.
9)
53
.
Trata
-
se de uma derivação por via de uma transformação ou
imitação, formal e/ou temática, que evoca o hipotexto de uma forma relativamente indireta,
sem
que seja
obrigatoriamente citado ou que dele se faça alusão, mas atado a ele, não
de um
modo h
ierárquico (GENETTE
,
1982). Ess
es cinco tipos de transtextualidade
s
não são
categorias separadas e absolutas. entre elas um constante contato e imbricação em que
mais de um tipo se conjugará na mesma obra.
Com relação à hipertextualidade, Genette o
exemplo da
Eneida
de Virgilio e do
Ulysses
de
James Joyce como hipertextos da
Odisséia
de Homero (hipotexto); sendo que,
grosso modo
, a
primeira obra conta outra
matéria
do mesmo modo que a
Odisséia
e a segunda
,
a mesma
matéria, porém
de um modo diferente.
Poderíamos falar que uma mantém o esquema formal
de um poema épico (e ce
rtos traços do estilo homérico)
e a outra mantém uma temática.
Obviamente que não se trata de
estabelecer
limites tão claros entre o aspecto formal e o
aspecto temático,
no entanto,
a
simplificação servirá para a compreensão das possibilidades
da hipertextualidade.
Genette
segue
adiante
, mencionando
uma série de tipos de hipertextualidade
paródia,
pastiche, caricaturas, falsificaçõe
s etc.
para eventualmente chegar
à
s transposições
, quais
sejam:
tradução, transestilizaçã
o, prosificação, expansão, entre outras,
que representam, em
comparação aos tipos iniciais de hipertextualidade,
além de
uma grande complexidade e
alcance estético, a possibilidade de criar
obras de largo fôlego (por
não terem
uma
total
53
“Eu entendo por isso [hipertextualidade] toda relação unindo um texto B (que denominarei de hipertexto) a um
texto anterior A (que denominarei, é claro, de hi
potexto)”
(tradução do autor).
60
dependência do hipotexto). Nesse último caso, a amplitude textual pode
ofuscar até
completamente o caráter hipertextual da obra por via da diversidade de procedimentos
empregados
em conjunto
na transposi
ção. U
m exemplo seria o
Ulys
ses
de Joyce
(GENETTE
,
1982).
2.
2.4
Transposições
54
Em
Amor de Clarice
a primeira característica aparente na relação entre o conto e poema
digital é a transposição de uma obra em prosa para uma obra em verso, uma transposição dos
significantes da obra.
A versificação é uma prática incomum, nos diz Genette
(1982)
,
enquanto a prosificação, ao contrário, é uma pr
á
tica muito difundida, especialmente enquanto
tradução (muito utilizado com poemas que seguem uma linha narrativa como a
Odisséia
ou a
Divina Coméd
ia
)
. Mas existe na prosificação uma diferença entre desversificar
simplesmente anular os versos e tirar rimas
, e prosificar enquanto reescrita do texto em
outro formato,
como prosa, o que representaria
uma mudança na modalidade textual enquanto
tran
sfi
guração do hipotexto
.
54
Existe uma versão do poema digital que é vendida como CD. Esta versão
vem acompanhada de um CD que
possui
a trilha sonora
do poema e um livreto contendo
um poema impresso também intitulado
Amor de Clarice
,
baseado no conto.
Tal poema impresso está presente no poema digital
Amor de Clarice,
entretanto,
sob a
forma
de palavras que flutuam na tela. Temos então três obras compostas em ordem:
Amor
(conto de Clarice)
[
A
mor de Clarice
(poema impresso) ]
Amor de Clarice
(poema di
gital)
O
poema impresso de Rui Torres estaria no meio dessa relação entre o conto e o poema digital e seria um
hipertexto do conto também. Todavia, não é muito difícil imaginar que o poema impresso
Amor de Clarice
foi
escrito para ser utilizado no poema di
gital, com a intenção de ser um elemento deste. Assim, o poema impresso
pode ser considerado equivalente a um esboço, um rascunho, uma cópia não publicada de um poema (ainda não
constituído completamente), mantendo uma relação paratextual com a obra digita
l (lembrando que esse poema
impresso só aparece no livreto da versão em CD da obra, logo o leitor normalmente não terá acesso a ele). Não é
precisamente claro que o poema impresso tenha vindo antes do poema digital. As duas coisas podem
ter se
desenvolvido
simultaneamente e após o término da criação digital; o autor pode ter transcrito os versos
para o
impresso pa
ra seguir no encarte do CD. Por essa razão
, não devemos considerar o poema impresso como anterior
ao digital, mas sim
como uma espécie de anotação
a qual tivemos acesso
, como uma espécie de parate
xto do
poema digital.
61
Imagem
11
: versos.
O mesmo pode ser levado em consideração para a versificação: não se trata, no
Amor de
Clarice
, de simplesmente recortar pequenos trechos do texto de Clarice, misturá
-
los e chamar
o resultado de um poema (prática
próxima aos antigos centões
55
). Se fosse esse o processo
não haveria muito da mão de Rui Torres, e estaríamos mais próximos a falar de uma versão da
obra impressa no meio digital (como é o caso de muitas outras obras como o poema
Bomba
56
de Augusto de Campo
s ou
Poemas em
Efe
57
,
versão digital de uma parte do
Brin cadeira
de
Salette Tavares, ambos levados ao meio digital sem muito trabalho de construção a partir da
obra impressa).
55
Centões são poemas compostos com versos de outros poemas (geralmente de outros autores). Um exemplo
seria o do brasileiro Antônio de Oliveira da Academia dos Esquecidos, que traz a l
egenda: Achado no Poema do
Príncipe dos Poetas Espanhóis, ou seja: é um soneto tecnicamente perfeito composto com os versos d
Os
Lusíadas
(RAMOS
,
1967
, p. 154
). Existem também exemplos de centões compostos com versos da Eneida,
Bíblia, entre vários outros
textos. Mais contemporaneamente E. M. de Melo e Castr
o compo
s centões com versos
de Fernando Pessoa e Camões (CASTRO
,
2000
, p.
148).
56
Bomba
:
<
http://www2.uol.com.br/augustodecampos/bomba.htm
>.
57
Poemas em
e
fe
:
<
http://po
-
ex.net/index.php?option=com_content
&task=view&id=92&Itemid=35&lang=
>.
62
Imagem
12
: exemplo do trabalho visual do poema.
Não é o caso, mesmo se
,
n
um
primeiro momento ou num
a leitura mais superficial, os versos
aparentam ter sido recortados d
iretamente do texto de Clarice.
U
ma leitura e comparação mais
apurada
s
irão revelar que o cenário é outro. Se procurarmos exatamente os versos de
Amor de
Clarice
no
conto
,
teremos um pequeno espanto, pois entre os recortes exatos e os trechos
totalmente criados há uma grande quantidade de verso
s que não se encontram no conto,
compostos muitas vezes por alterações de trechos do conto (por exemplo: “olha ana
profundame
nte como se olha o que nos vê” do trecho do conto “Inclinada, olhava o cego
profundamente, como se olha o que não nos vê”); frases ou pequenos pedaços condensados
em algumas palavras para criar um verso, eliminando palavras (por exemplo: “este menino
igual
a ana” de “O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas c
ompridas e rosto
igual ao seu”); junção de
duas palavras que não tinham contato precisamente na mesm
a frase,
mudando o tempo verbal; adição de
palavras antes não encontradas e assim por d
iante
58
.
58
Não importa qual o processo empreendido para a apropriação do conto para criar um verso, sempre uma
mudança no sentido, até mesmo se pensarmos a utilização
de trechos exatos, visto que est
es são retirados de seu
text
o original, das palavras e significados que o cercavam e são transpostos para outro ambiente, outra
possibilidade de leitura.
63
Imagem
13
: página antes
e depois
com versos rearranjados pelo leitor.
Estas são relações trazidas à luz por nosso ato de leitura
. Contudo
,
as frases do conto não
podem ser vistas como
geradoras automáticas d
os versos. É de uma frase que se cr
iou o verso,
mas é algo externo à frase que vem recompô
-
la. Existe um processo de criação que absorve o
texto lido e cria a partir dele. Basta lembrarmos o que nos diz Haroldo de Campos
a
respeito
do ato de tradução (aqui valemos dele tam
bém para a transcr
iação), que
é um ato de crítica e
criação “autônoma, porém recíproca”
(CAMPOS
,
1976, p.
24). Existe uma relação entre o
hipertexto e o hipotexto,
mas
a tradução não desponta
através de uma autogênese. A
proximidade dos trechos não pode ser vista como uma s
uperioridade ou uma genealogia em
64
que o hipotexto
produziria
a
quele hipertexto específico. A quantidade de versos que poderiam
ter surgido daquela frase são inúmeras. Bastaria submetê
-
las a um processo de permutação e
poderíamos ter milhões de versos. O qu
e escolhe e monta justamente aquele verso é a leitura e
escrita de Rui Torres. A criação de cada verso se com o encontro de dois horizontes de
sentido, o do conto com o de Rui Torres.
2.3 Narrativa
alterada
Os recortes, tanto os alterados quanto os
exatos, representam uma escolha de Rui Torres sob
re
o texto de Clarice Lispector,
representam um ato de leitura e escrita do hipotexto que gera
outro texto (de reduzido volume em comparação ao de Clarice
),
escolha essa que opera
uma
rie de mudanças sobre
o hipotexto, dentre
as
quais uma concisão dos eventos apresentados
no conto. É verdade que ainda podemos encontrar um traço da linha narrativa no poema,
todavia
uma geral diluição da ordenação e precisão objetiva dos fatos através da
construção midiáti
ca. O poema parece
assumir um olhar narrativo limpo (
sem adjetivos),
calcado mais n
uma descrição substantivada (substantivo+verbo) dos atos de Ana
que se
difere muito bem do conto “Amor”. Os versos consistem em
sua
maioria de pequenas
unidades lexicais q
ue parecem ser sequencialmente postas uma depois da outra como se
fizessem parte de uma linha de m
ontagem rítmica, que concatenam
as ações de Ana. Na
escolha das palavras e imagens o poema desordena uma sequência que é própria da
narrativa
descritiva, poré
m
optativa na composição de um poema
.
Ademais, te
mos ainda
a presença dos
elementos midiáticos que ajudam a construir uma atmosfera sensorialmente
caótica e
fragmentá
ria, e
que ao mesmo tempo parece submetida a uma geração quase que maquinal ou
automática
dentro de um computador
devido ao
s ritmos sonoros e visuais que a compõem. O
conto parece beirar quase a um esquecimento diante de um mundo mecânico e confuso em
que o leitor tem que reaprender o objeto de leitura.
Temos a figura de Ana diante do seu
mundo
quebrado e selvagem.
65
2.
3.
1
Constituição Estranha
Se existe no poema digital uma atenuação narrativa pela fragmentação midiática e pela
multiplicidade de caminhos possíveis também existe uma vivificação da experiência do que
antes era narrado. Os ritmo
s
sonoros, visuais e verbais
do poema criam outra possibilidade
de leitura. Temos o som eletrônico com batidas constantes, temos a movimentação da matéria
verbal que pode ser posicionada, lida e recitada na ordem que o leitor quiser, temos a opção
semp
re presente de ir para uma tela aleatória. Todos esses elementos na obra não permitem
que fiquemos restritos a uma leitura linear ou cronológica para tentar seguir o conto
reconstituindo a cronologia (perdida) da mesma forma que Ana não tem como reconstitu
ir seu
mundo antigo, ou
,
caso consiga,
será como um mero pastiche do que realmente era. Pois até
mesmo para Ana não se pode reverter o mundo, ou ainda, não mundo a ser revertido. O
caos que Ana no mundo é o estado atual das coisas fora da segurança d
e seu lar. Qualquer
tentativa de recomposição de um suposto “original” se quando conscientemente nos
interpomos às propostas da obra e nos colocamos a procurar a obra de Clarice (no seu formato
de conto hipotexto) dentro do poema de Rui Torres. Então
o que de ser feito?
E
ntender a
obra, entender suas possibilidades de le
itura e tentar lê
-
la de
rias formas possíveis. No caso
de AdC
,
a leitura passa sim por um ato de construção
, n
ão de uma re
criação de algo anterior,
mas a
co
nstrução de algo difere
nte, dado que
a obra de Rui Torres desmancha o conto e cria
outra obra que permanece enquanto uma margem de potenciais a serem “lidos” pelo leitor.
Todavia
,
voltando um pouco à
hipertextualidade, podemos falar
de uma constituição estranha
no poema digital
AdC
que
nos faz retomar com frequência
o
conto de Clarice se por ele já
tive
r
mos passa
do.
P
orém
,
se tentarmos reconstruí
-
lo ou encontrá
-
lo nos fragmentos
individuais
do poema digital nos
depararemos com peças que não mais se encaixam no
quebra
-
cabeça
anti
go do conto
,
mas
que
,
de alguma forma, em sua totalidade
de
poema, nos
fa
rão
constantemente reencontrar
alguma coisa
que
relembre a generalidade do conto
, ou
ainda, nos apontarão para algum traço da história de Ana
. Talvez haja algo a ser
compreendido a re
speito desse jogo de
elementos
com o que Georges Perec diz ao falar sobre
os
puzzles
de madeira:
l’objet visé
qu’il s’agisse d’un acte perceptif, d’un apprentissage, d’un
système physiologique ou, dans le cas qui nous occupe, d’un puzzle de bois
n'est
pas une somme d'éléments qu'il faudrait d'abord isoler et analyser,
66
mais un ensemble, c'est
-
à
-
dire une forme, une structure: l'élément ne
préexiste pas à l'ensemble, il n'est ni plus immédiat ni plus ancien, ce ne sont
pas les éléments qui déterminent l'e
nsemble, mais l'ensemble qui termine
les éléments: la connaissance du tout et de ses lois, de l'ensemble et de sa
structure, ne saurait être déduite de la connaissance séparée des parties qui le
composent: cela veut dire qu'on peut regarder une pièce d'u
n puzzle pendant
trois jours et croire tout savoir de sa configuration et de sa couleur sans avoir
le moins du monde avancé: seule compte la possibilité de relier cette pièce à
d'autres pièces [...]
59
(PEREC
,
1978
,
p
.
17)
.
Não podemos então considerar apen
as a parte verbal do poema como a releitura do conto
Amor
.
Isso porque
é apenas em sua totalidade que a hipertextuali
dade se
mostra
, na relação de
elementos heterogêneos que constituem a obra e no jogo dessa totalidade diante do leitor no
seu ato de leitur
a. O que quero dizer é que
,
enquanto n
uma obra verbal
,
a hipertextualidade
se
encerrava no texto
(apesar de levar em consideração elementos parat
extuais), no meio
digital ou
n
uma obra com múltipl
o
s m
eio
s
,
é a totalidade de elementos verbais e extraverba
is
que devem ser
considerados para uma hipertextua
lidade. Isso já nos apontava Genette quando
dizia que
uma aná
lise da hipertextualidade não poderia ignorar ou se dar sem olha
r
os outros
tipos de transtext
u
a
lidades. Os elementos não verbais, no caso de AdC
, também são uma
forma de releitura qu
e irão dar essa característica à
totalidade da obra.
A hipertextualidade,
como
relação textual, não pode ser compreendida
como
uma
essencialidade do hipotexto no hiper
texto. A construção se por via
de um espaço de
leitura
efetivado pelo leitor. Nossa leitura liga os dois textos associados, percebe a possibilidade de
uma hipertextualidade proposta e a efetiva enquanto um campo de relação de leitura. Essa
proposta de leitura existe no texto
,
contudo
poderíamos perfeit
amente ler AdC sem jamais ter
lido uma linha de Clarice Lispector
60
.
59
“o objeto visado
seja um ato perceptivo, seja uma aprendizagem, seja um sistema fisiológico, seja, no caso
presente, um quebra
-
cabeça de peças de madeira
não é uma soma de elementos que teríamos inicialmente de
isolar e analisar, mas um conjunto, ou seja, uma forma, uma estrutura; o elemento não preexiste ao conjunto, não
é nem mais imediato nem mais antigo; não são os elemento
s que determinam o conjunto, mas o conjunto que
determina os elementos; o conhecimento do todo e de suas leis, do conjunto e de sua estrutura, não é passível de
ser deduzido do conhecimento separado das partes que o compõem; isso quer dizer que se pode obs
ervar urna
peça de puzzle durante três dias e achar que se sabe tudo sobre sua configuração e cor, sem que com isso se
tenha avançado um passo sequer; a única coisa que conta é a possibilidade de relacionar essa peça a outras peças
[...]”
(
2009;
tradução d
e Ivo Barroso).
60
Foi o meu caso. Trilhei o caminho inverso. O primeiro contato com Clarice foi por meio do poema de Rui
Torres e, posteriormente, cheguei à autora mesma.
67
2.3.2
Dizer
-
ver
-
ouvir
Se voltarmos agora à
longa
epígrafe
:
A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A
rede perdera o sentido e estar num bonde er
a um fio partido; não sabia o que fazer
com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao
redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a
sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que e
xistiam antes do
acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O
mundo se tornara de novo um mal
-
estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas
escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia
-
lhe que as pessoas da rua era
m
periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão
e
por um momento a falta de sentido deixava
-
as tão livres que elas não sabiam para
onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da
frente,
como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas
com a
mesma calma com que não o eram
(LISPECTOR
,
1974
, p.
24
-
25)
.
p
oderemos notar algo que foi meramente insinuado em suas linhas: a possibilidade de ler o
funcionamento do poema
AdC
através da experiência de Ana e, ao mesmo tempo, falar do
poema como uma construção de sentido que torna aparente a fragmentação do mundo de Ana
.
Por exemplo,
propor ao leitor um modo de leit
ura que sofra a desestabilização da personagem
(
ao ter as bases
de seu mundo abaladas pelo cego
). Em outras palavras
,
pensar
a transcriação
de Rui Torres
como um trazer à
materialidade da obra algo próximo da experiência de Ana.
No poema AdC
,
torna
-
se necessário ler o processo de leitura, ler a construção da
materialid
ade enquanto significante.
A apresentação do mundo no poema consiste na construção de uma obra em que os elementos
tendem a ap
ontar para uma fragmentação através de um enxame de estímulos
sensoria
is
, em
que a definição explícita das coisas no mundo se tor
na nublada
,
ao mesmo tempo em que cada
coi
sa se torna mais viva, pulsante
e se expande para além das suas fronteiras comuns. Existe
uma convivência dos elementos
verbais, sonoros e visuais
que
faz
com que eles se
sobreponham e
se misturem na nossa leit
ura do poema. Isso lembra o que n
os disse Perec
(
1978
)
, qu
e a totalidade da obra determina
suas partes, ou seja
,
que a leitura o
corre
c
omo uma
totalidade com relação à
contaminação dos elementos uns pelos outros.
Um exemplo é a recitação de versos. Há uma
sobreposição
um verso é lido enquanto o outro
ainda não terminou de ser, e enquanto uma trilha sonora soa ao fundo, e ainda po
r trás
de tudo
68
isso o vídeo ou fundo de letras se movimenta
,
sobrepondo ainda outro plano de ritmos a nossa
leitura que se mist
ura com aquela proposta por esses ritmos, ou melh
or, a nossa que somente
se dá
misturando
-
se
e trilhando por todos esses ritmos.
Imagem
14
: sobreposição verbal.
Assim,
podemos diz
er que a nossa leitura oscila entre o imagético e o sonoro das palavras,
não deixando que optemos por nenhum
em absoluto
(pois tanto as palavras escritas quanto as
recitadas estão sempre presentes a chamar nossa percepção). Existe a transparência das
palavras entre si que permite que vários vers
os se sobreponham visualmente e,
simultaneamente
, um fundo composto também de palavras meio transparentes empilhadas
umas sobre as outras (
fazendo com
que nossa leitura do fundo se confunda com a da frente ou
que a frente se torne próxima ao fundo). Quando pensamos ler os versos
,
estam
os a ler, ver e
ouvir uma composição única. Não se pode pretender somen
te ler verbalmente o poema porque
se tento observar ou ler qualquer elemento na página sou arrastado por todos os outros
,
como
se uma corrente levasse a totalidade de elementos.
69
Imag
em
15
: nebulosidade entre frente e fundo.
Podemos então dizer que a fragmentação não significa uma quebra com relação
à
totalidade
dos elementos (muito pelo contrário,
eles
permanecem muito bem articulados
n
a construção
de cada página do poema). A fragmen
tação significa uma desarticulação de uma continuidade
presente no conto, com relação a uma narrativa cronológica e a possibilidade de leitura e
manipulação da obra. A fragmentação
de que trato aqui
concerne à
materialidade da obra que
pressupõe a necessid
ade de uma interação e reconfiguração no modo de fruir a obra, no modo
de apreender o mundo. Em outras palavras: os elementos materiais ou sens
oriais
dentro da
obra se dizem fragmentados porquanto
podem ser manipulados dentro da obra,
afinal,
estão
“soltos
” de dentro dos limites da obra.
2
.
3.3
Obra manipulável
A
o momento
vimos
que AdC é composto
por
vários elementos
. D
evemos agora olhar um
pouco como esses elementos podem ser manipulados.
Nessa obra,
não indicação de que caminho o leitor está a t
om
ar (nem existe qualquer
menção de qual ele deve tomar, apenas àquele
que ele pode vir a tomar). Pode
-
se saber por
onde entrou (e ainda assim é um pouco difícil que os limites de linque entre cada frase no
70
índice não estão à mostra)
,
mas nunca se saber
á onde se está após alguns cliques de tela em
tela.
Imagem
16
: índice do poema
.
É como adentrar
um labirinto
no qual
o caminho
trilhado vai se apagando à medida que
andamos,
resta
ndo
-
nos apenas
a lembran
ça de nossa passagem por ele e d
es
s
e caminho
mesm
o
, enquanto espaço próximo àquele em que nos encontramos.
Tal
caminho pode
eventualmente voltar a p
ô
r
-
se diante de nós
.
Entretanto,
apesar de sua constituição material
ser a mesma, a sua relação com o nosso percurso
será outra. Da mesma forma que
n
um jogo
de tarô a interpretação das cartas é afetada pela posi
ção de cada uma em comparação àquelas
que vêm antes e depois de sua posição (nunca se julga uma carta comp
letamente sozinha,
sobretudo n
um jogo de relações, basta lembrarmos a narrativa de Italo Calvino
)
,
também em
AdC a construção de sentido não se dá na individualidade das telas.
Podemos nos apropriar mais um pouco da similaridade entre a construção das páginas e a
disposição para leitura do baralho de tarô, lembrando
ainda
a proposta do
puzzle
de Per
ec, e
pensar que o modo d
e
o poema digital
AdC
se
colocar
a nós pode ser aproximado a uma
estrutura relacional entre cada tela, como também entre cada palavra
, a partir da qual
precisamos construir uma leitura da totalidade dos elementos dispostos diante n
ós.
71
Olhemos primeiro as palavras. Em cada tela temos uma série de palavras que se conjugam e
se dão a nossa leitura de uma forma movente,
aparentemente di
ssociadas, um pouco incerta
diante de nossa visão (apesar de que a nossa incerteza não é a do poema q
u
e tem muito bem
estipulado
onde cada verso irá ou pode ir). Devemos moldar a ordem dos versos e de sua
recitação para criar novos sentidos naquela obra. Criamos uma ordem visual e sonora para os
versos (eleme
ntos diretamente manipuláveis)
com relação a um
fundo sonoro (trilha sonora de
fundo) e visual (fundo de p
alavras ou filme) que não se oferecem
diretamente a nossa
manipulação material
61
. Moldamos a matéria verbal. Podemos
,
é claro
,
ler aquilo que criamos
ou construímos enquanto um resultado acabado ou
como
parte de uma construção maior,
como
um processo de leitura que se estende por toda obra
como
um movimento.
Ou seja, os
elementos verbais se relacionam de diferentes modos na página na medida em que os
mani
pulamos e de como o fazemos
com relação aos ou
tros elementos ali presente. Criamos
outras estruturas de sentido quando alteramos sua posição dentre as outras palavras na página,
do mesmo modo que as cartas n
um jogo de tarô, ao serem alocadas em posições diferentes,
adquirem outros significados ou tem
seu significado original modulado pela disposição total
das outras cartas em jogo; elas têm seu significado alterado com relação
à
totalidade do jogo.
Manipulá
-
las quer dizer construir significações diferentes para o jogo total das cartas ou
elementos do p
oema.
Da mesma forma em que isso ocorre
como uma microestrutura em cada tela ao posicionarmos
e propormos uma ordem de
leitura dos versos, também ocorre
na macroestrutura do poema
como uma totalidade de telas
a serem trilhadas pelo leitor.
61
É interessante notar que os elementos que podemos manipular são tanto as palavras e
scritas quanto recitadas,
ou seja, somente o que diz respeito à linguagem verbal e não as imagens de fundo ou a trilha sonora (existem
palavras que fazem parte da trilha sonora, umas abafadas, outras que são trechos do conto recitadas, que não
podem ser ma
nipuladas).
72
Imagem
17
: e
xemplo simplificado de rumos por tela.
Essa capacidade de manipular as palavras, a constante chamada delas
para
a manipulação
quase tátil do leitor,
realça
a
materialidade da obra,
torna mais aparente a
espacialidade
existente
entre as telas, em que o
percurso e decisões do leitor são efetivados materialmente
através de sua manipulação daqueles elementos
verbais e visuais
com o uso do mouse.
Essa fisicalidade da interação digital pode se tornar ainda mais tátil se tenta
r
mos manipular as
palavras n
um
computador
touch
-
screen
62
. Nessa situação
,
o poema se tornará explicitamente e
diretamente tocável
enquanto palavras n
uma superfície. Cada escolha de palavra ou forma de
estrofe se construída diretamente com os dedos de quem as
63
. Essa materialidade do
s
significantes ajuda
a
construir uma obra que se oferece
a nós por via da audição,
da
visualidade e
do
tato
a todos os sentidos
,
jog
a
ndo
com o nosso corpo e sua totalidade
perceptiva
64
.
62
Tipo de computador que, como muitos modelos de celulares, permite manipular os elementos da tela com o
toque do dedo, disponibilizando o acesso a sites e qualquer das funções comuns via toque físico na tela.
63
Não que a manipulação via mouse
não seja uma man
ipulação direta, mas a distâ
ncia do mouse
em relação à
tela geralmente pode levar a pensar n
uma mediação entre quem manipula e o manipulado, enquanto que com o
touch
-
screen
há uma aparência de manipulação direta (mais próxima aos objetos do
mundo físico).
64
Isso acontece com as obras impressas, porém
,
em outro grau. Em um livro impresso eu manuseio o livro
materialmente e fisicamente, escrevo em suas margens, dobro sua
s folhas, sublinho palavras, entretanto,
essa
intervenção na materialid
ade do livro não é explicitamente planejada pelo autor, ela não é uma interação
proposta como parte significante do texto, é uma intervenção minha independente das propostas da obra.
Também vale lembrar que apesar da obra impressa não ter um recurso sonoro
como no digital não significa q
ue a
obra não acarretar numa proposição de
sonoridade, basta lembrarmos as obras de um Guimarães Rosa ou
Paulo Leminski. E, que falamos de corporeidade sensível do livro impresso, vale também ch
amar atenção que
o impre
sso traz
com ele o elemento olfativo (não que este seja um fator proposto pelo autor, mas é uma aspecto
sensorial muito característico que o digital não pode por enquanto emular).
73
2.3.4
Palimpsesto de telas
Temos então em AdC
,
com a sobreposi
ção de elementos na tela e de telas sobre telas
,
o que
Alckmar Santos chama em seu livro
Leitura de Nós
(2003) de um palimpsesto conc
reto e
imediato
se remetendo à
construção material de um palimpsesto em que um texto é escrito
por cima de outro ligeiram
ente apagado
,
em que a leitura de cada página
é posta por
de
trás
da atual como uma construç
ão de sentido
.
O que Alckmar Santos
(2003)
nos diz é que existe nas páginas da web um palimpsesto
concreto, em que pulo de uma página para a outra através de um
linque
criando
uma
sedimentação significante das ginas. Esse tipo de relação
hipertextual
pode gerar uma gama
de possibilidades de leituras
que tanto podem gerar novas significações, quanto
podem
ser
infrutíferas por reduzir a obra
. Ess
as leituras infrut
íferas
vão
desde leituras movidas pelo
impulso de velocidade em que lemos apenas o
produto final e
o o percurso das ginas
(
ignorando
, dessa forma,
a sedimentação de sentido)
, até leituras maniqueístas em que nos
achamos forçados a optar pela página de
partida ou a página de chegada
enquanto
predominante de sentido
, excluindo de nossa leitura a outra
página e dando prevalência a uma
das páginas
.
Alckmar Santos parece nos propor
uma leitura que não opte por nenhuma
das
páginas em especí
fico
, mas
que
tente
construir uma
terceira textualidade através da presença
de ambas as páginas, construída da interação de
ambos os textos, sem opô
-
los e sem
erguer a
primazia de uma das partes
65
.
Isso pode se tornar mais claro se levado ao caso de AdC em que as telas são c
onstantemente
sobrepostas como uma construção palimpséstica
de sentido
. Em AdC
,
temos o constante
movimento entre ginas, estamos n
um
constante di
á
logo não apenas de uma para outra, mas
sempre de uma página que tem em seu horizonte uma anter
ior e uma por
vir, sempre um
diá
logo a três que se movimentará, nos forçando a uma constante construção de sentido diante
d
esse fluxo de significantes. Estaremos sempre a exercitar esse ato de leitura sobreposta,
constituindo um texto das telas que lemos. Sempre
de
form
a provisória já que existe uma
constante movimentação de telas. E apesar desta movimentação constante, nunca poderemos
65
O que não deve ser confundido com tentar ler ambas as páginas simultaneame
nte em sua integridade, com
uma espécie de desejo onisciente, como muitas vezes pode parecer aquele de uma euforia tecnológica que cai
num quase misticismo exacerbado.
74
ter a obra toda, ter todas a
s posições e caminhos possíveis, haja vista que
o texto não se dá
todo de uma ve
z, e sim
por pontos de vista
e ângulos sempre moventes, esses ângulos que
construí
mos pela leitura (SANTOS, 2003
).
2.4
Finis
m
aterial
Temos
uma manipulação de telas, a partir das quais
criamos nosso caminho de leitura
sedimentando tela sobre tela, palavra sobre palavra.
Rearranjo
uma espacialidade da leitura
que está presente nos versos que manipulo e ordeno (com sua leve transparência que permite
que as palavras se embaralhem sobre o fundo imagético,
consistindo
até mesmo na
sobreposição maciça de palavras,
na sono
ridade que se so
brepõe
entre versos recita
dos, fundo
com leitura do conto
e trilha sonora
)
. Ainda nessa sobreposição
,
temos as telas, a estrutura
disposta a nossa manipu
lação labiríntica
da qual
quase poderíamos dizer
que
se coloca
a nossa
frente como uma
corporeidade de
telas e, por conseguinte,
construímos o sentido nesse espaço
significativo deixando
pouco a pouco
que uma ceda seu lugar à outra.
Nesse movimento constante
,
apenas
a tela do computador permanece. O local
onde
alguns
minutos eu lia uma página, agora é o
cupada por outra. Os sons que eu ouvia, os versos que lia
ao mesmo tempo em que
os ouvia sendo
recitados, até a minha construção de ordem dos
versos
, tudo isso vai
lentamente ficando ao fundo dessa nova página a minha frente. Essas
telas
,
em sua totalidade
,
solicitam constantemente
uma recomposição daqueles
elementos que
estão dispostos nela, chamam à
composição e
à
manipulação dos elementos, verbais, sonoros
e visuais. Existe uma efemeridade do caminho a ser seguido, das páginas trilhada
s
pelo fato
de
qu
e nada irá permanecer materialmente após nossa leitura terminar e o computador se
desligar
que nos faz constantemente buscar a reconstituição desse espaço, faz com que
constantemente atualizemos o ato de interação e criação dentro dessa obra; que sejamos
sempre tentados a escrever dentro das possibilidades da obr
a, sempre tentados a interagir e
a
interpor nosso horizonte de sentido para ler aquele objeto digital.
A recriação de Rui Torres extrapola a obra de Clarice, ela entrega ao leitor um mundo em que
a complet
ude e possibilidade de arranjo são
materialmente
dele
. Rui Torres cria um pequeno
mundo digital, regido por um código de regras ou p
ossibilidades e o deixa aberto para a
75
inte
ração do leitor,
uma necessidade para fruir a obra. Assim, devemos brinc
ar e nos jogar
para dentro desse espaço textual, montar e desmontar os versos, reconstruir a sonoridade e nos
deixar mover pelas possibilidades de caminhos e visualidades que nos são apresentadas, tendo
consciência
de
que nossas construções não estarão
materialmente
na nossa próxima
passagem pelo poema, resta
ndo
-
nos a tarefa de ler e reler e construir
a cada passo uma nova
imagem de mundo. Rui Torres
desmontou
a obra de Clarice e compôs
com
as
peças
uma outra
obra
cuja completude é deixada para
nós. Uma
obra potencial que nasce a cada momento de
um código qu
e vai sendo computado por uma
quina, uma obra que necessita de nossa
interação para se concretizar, uma obra não inacabada, mas aberta ao nosso toque.
Notamos que em AdC a materialidade é um fator s
ignificante da obra, ele representa uma
camada estética da obra. Se
tais
processos de materialidade são um fator significante na obra
,
não podemos permanecer alheios a
os meios e processos técnicos dos quais
ele faz par
te, não
podemos renegar a técnica, mas
, como sugere Alckmar Santos (2010),
devemos
tentar
compreendê
-
la com relação à obra e concomitantemente a obra com relação à
técnica.
76
CAPÍTULO 03
CÓDIGO FONTE
3
.1
C
ódigo
-
fonte
Até agora olhamos a face externa da obra digital, ou melhor, olhamos com
o ela se apresenta
ao leitor da mesma forma que se observa um quadro. Porém, outro modo de olhar um
objeto artístico
que obviamente não deve ser confundido com uma apreciação estétic
a
que
deve ser empreendido n
um trabalho de análise. Isso seria olha
r a obra
quanto a
sua construção,
não seus elemen
tos explicitamente visíveis, e sim
sua composição
no que diz respeito à parte
técnica
. Seria com
o analisar a tinta utilizada n
uma pintura
, ou o material de que são feita
s as
cordas de um violão para averigua
r como operam e soam. No caso presente, será olhar e
pensar o código fonte do poema. Não se trata de tentar entender como o poema foi construído,
vendo o que cada linha quer dizer em termos de uma correspondência entre o que se escreve
no código e o que ap
arece na tela, e sim como se comporta uma obra que é criada através de
um modo aparentemente “indireto” e como esse código afeta a leitura e interatividade da obra
(logo, o código com relação à criação e à leitura).
falamos de programação enquanto um a
to processual em que o autor propõe um modo de
leitura, agora passaremos à programação concebida como uma escrita
código fonte
que
ordena o que é possível na obra digital.
3.1
.1
N
ecessário?
Antes mesmo de empreender uma tarefa que remonte a um olha
r sobre a técnica de
composição de uma obra digital, devemos pôr duas questões que tendem a pairar sobre
qualquer tentativ
a de observar o código fonte n
um contexto de estudos artísticos. A primeira:
porque tentar olhar o código fonte se este está por detrá
s da obra de tal forma que ele não é
visto ou tocado pelo leitor? Segundo, não será o código um domínio fora da composição
explícita da obra, sendo que até vários autores digitais não programam a suas obras, mas
recorrem a um programador para a tarefa (evi
denciando um afastamento do autor com relação
77
à técnica de composição ou seria a complexidade que distancia o autor de um conhecimento
de uma técnica tão específica e complexa)?
3.
1.
2
EFE
um breve exemplo
Para começar a responder a primeira questão v
ejamos um exemplo: a releitura criada por
Rodrigo Melo e Pedro Reis intitulada
Poemas em ef
e
66
d
e uma das partes do
Brin cadeira
67
d
e
Salette Tavares. O hipotexto consiste de uma série de palavras com a letra F escritas em
pequenas estrofes, com diferentes f
ontes, de vários ângulos na folha. Es
s
as escolhas da autora
formam versos, estrofes e relações textuais dentro do espaço da folha.
66
Poemas em efe:
<http://po
-
ex.net/index.php?option=com_content&task=view&id=92&Itemid=3
5&lang=>.
67
Poema que foi editado no
Cadernos de Poesia Experimental 1
em 1964. Pode
-
se acessar a versão digital do
periódico, como também a de outras publicações do PO
-
EX, em <http://po
-
ex.net/>.
78
Imagem
18
:
p
oema de Salette Tavares
como impresso nos cadernos do PO
-
EX.
Na versão digital, essas relações acabam se perd
endo. Tanto os tipos de fontes quanto a
micro
-
relação de certos grupos de palavras em versos e estrofes poderiam ter sido transpostas,
de forma a relacionar palavras com outras na movimentação. Ao invés disso, na versão digital
tudo é simplesmente submetid
o a um
script
de movimento aleatório.
79
Imagem
19
: um
a
imagem estática
da releitura
em
flash
.
Na versão impressa, existe a liberdade do leitor de vagar e escolher percursos dentro da
página, de se mexer ou mover o papel fisicamente para conseguir ler, de
colocar seu corpo de
alguma forma ativa na leitura, mexer
interagir com
a obra material ou a si mesmo para o
ato de leitura, e não ficar apenas observando palavras dançando na tela, o que eventualmente
tende a se tornar um ruído amorfo e entediante. O
problema que vejo aqui não é a leitura no
computador, mas o ato
de passar de um texto que levava
o leitor a pensar o ato de leitura,
forçando
-
o a sair da condição costumeira, para um que não tem força em propor essa revisão
de hábito. Enquanto o impresso
dava margem a uma interação física, o digital é apenas uma
série de palavras flutuando aleatoriamente.
Constatamos que a releitura não deu conta de criar algo com a obra, mas funciona apenas
como uma transferência do meio impresso para o digital sem levar
em consideração certos
fatores do hipotexto. O
detalhe que
está mais
aprofundado
na breve análise desse poema
digital é,
mais do que a simplicidade do código utilizado na
programação dessa releitura do
poema de Salette
(e que
poderia passar despercebido
)
, é o fato de que o código usado é um
template
padrão que está disponível em vários locais da rede e pode ser aplicado com um
rápido Ctrl+c Ctrl+v para qualquer léxico, adicionando a ele quaisquer palavras que agradem
o programador, resultando num
flash
pa
recidíssimo com a “releitura” aqui vista.
80
Isso nos leva inevitavelmente à pergunta: será que temos aqui realmente um esforço de
releitura? Temos aqui um ato de criação artística? Um esforço criativo? Ou simplesmente um
copiar e colar que acaba destituind
o o poema original de elementos que eram de extremo
valor e importância?
Tal questionamento pode ser feito através de um conhecimento sobre a programação
68
.
Esse exemplo permite
evidencia
r
a importância de conhecer minimamente algo sobre
a
mesma
e os
pr
incipais tipos de mídia utilizados para as criações digitais
. Desse modo, é
possível fazer uma leitura a fundo do objeto em questão, que, como vimos anteriormente, o
meio digital traz o suporte como parte integrante da construção de sentido
(
o conhecime
nto da
programação
muitas vezes
é
deixado de lado pelos teóricos e crítico
s
do meio digital, talvez
por se tr
atar de um conhecimento técnico
e
,
como tal
,
visto
muitas vezes
como inferior por
nós
da área das Humanidades
).
3.
1.
3
M
ostra
r
-
se
O código não s
e mostra imediatamente, nem sempre ele está acessível por meios “lícitos”. E
não é necessário
conhecê
-
lo
para fruir a obra, porém,
ele
pode ser trazido à vista. Eu posso
fazê
-
lo aparecer, manipulá
-
lo, e logo manipular a obra. Contudo, apesar de falar aqui
de
código fonte, não temos uma homogeneidade absoluta entre eles, os códigos. Existem
milhares de linguagens de programação, desde coisas como o
B
ASIC
,
até linguagens mais
complexas como a
Python
, cada uma com suas características e peculiaridades, fins e
utilidades.
Na
maioria dos casos
apresentados aqui
, os poemas digitais são construídos usando a
linguagem
actionscrip
, utilizando o programa
Flash
, que tem como uma de suas
características a possibilidade de integrar vários tipos de mídias de uma forma le
ve e simples
e de ser amplamente distribuído e usado numa grande quantidade de máquinas e sítios. Outras
68
Observem que aqui digo “sobre” e não “da”, pois
,
nesse ca
so
,
alguém pode chegar a de
scobrir sobre a
programação dess
a releitura sem ter que abri
-
lo ou
sem possuir conhecimento especí
fico de programação, basta
procurar uns poucos exemplos de movimento aleatório em algum motor de busca na internete, para encontrar
outros arquivos
flash
do mesmo tipo que a releitura. Eu mesmo o fiz em 2007 para montar a capa da revista
Texto Digital
: <http://www.textodigital.ufsc.br/num05/num05.html>.
81
linguagens também utilizadas são, por exemplo, o
html
,
lingo
, entre outros.
também
toolkits
que são utilizados para criação de obras digitais
intera
tivas, como o
Vvvv
e o
Arduino
,
sendo que
alguns
desses são
até mesmo desenvolvidos
explicitamente com esse propósito,
como é o caso do
Pure Data
e
o
openFramework
(todos de código
livre
).
O ma
is importante é
saber que,
com algumas exceções
, os códigos são
geralmente fec
hados
para acesso de quem
está fruindo a obra
(o fruidor não tem como abrir o código naquele momento)
. O autor cria
sua obra n
um programa que possibilita a escrita com aquela linguagem e quando termina ele
fecha o arquivo (que será disponibi
lizado na internete ou em qualquer outro meio acessível)
69
.
Logo, eu, enquanto leitor, não posso ver como um ou outro poema foi construído, não tenho
acesso a essa face da obra
70
, ela resta subscrita nas entrelinhas do visual, ela apenas permeia
aquilo que
se mostra, e ao mesmo tempo subjaz por trás de toda materialidade ali exposta. A
minha possibilidade de ver aquelas linhas que estão por detrás da materialidade exposta irá
depender do meu entendimento do código, não um que seja “livresco
-
enciclopédico”
es
pecífico, mas um entendimento enquanto potencialidade de funcionamento, como
possibilidade de ação visível, um conhecimento do código em funcionamento.
3.
1.
4
P
rogra
ma dentro de programa dentro de...
Após termos tratado de um código fonte, uma camada da
obra digital, é importante estarmos
atentos para o fato de que essa relação
código e obra
está contida em o
utra, porquanto a
obra opera n
um OS
sistema operacional
(como Windows, linux, Mac, etc.). E este OS
também foi programado, utilizando outra
linguagem e, como a obra digital, ele também tem
sua face visível e outra oculta
71
. A obra digital é programada usando certo código
fonte
(linguagem específica) n
um programa, rodando depois
como um aplicativo. Tudo isso num
69
Por exemplo, quando o autor trabalha no programa
Flash
, no momento em que está t
rabalhando o arquivo é
um
.fla
e, assim que ele encerra seu trabalho, ele o exporta para o formato
.swf
(devidamente lacrado).
70
Claro que existem programas que facilmente quebram a trava do objeto em
flash
,
permitindo acesso ao seu
código. N
o entanto, iss
o não é o “normal” do código,
é uma violação de um lacre , o que muitas vezes é
visto
como uma quebra de direito do autor do arquivo, sendo esses programas de quebra distribuídos com o propósito
de permitir que o usuário abra a trava de um de seus próprios
arquivos.
71
O “avanço” de um sistema operacional Macintosh ou Windows com relação ao DOS era justamente o layout
visual que dispensava o usuário da necessidade de conhecer os códigos operacionais do DOS, tornando a
navegação algo mais fácil para o usuário
. E com relação à face oculta é bom ter em mente que os códigos de
sistemas operacionais são muito mais difíceis de abrir ou de serem alterados, podendo
-
se aqui realmente falar de
oculto.
82
sistema operacional que também fo
i programado e possui um código fonte. A programação de
uma obra está submetida a fatores operacionais de um programa que está submetido a fatores
mais
baixos
pertencentes ao OS. Na maioria dos poemas as regras do OS permanecem
inalteradas pelo autor e o p
oema continua sendo uma operação dentro de um mundo maior, ou
como nos diz Philippe Bootz:
At a technical level, author and reader are only users of the computer. Notably, the
author does not manage in his engagement the totality of the rules that are use
d
by
the computer while running
(BOOTZ
,
2005)
.
72
Tanto a programação do programa quanto as regras gerais do OS
impõem certas limitações e
delimitam
fatores n
o modo de operar da obra
(e ao mesmo tempo permitem que ela opere e
exista)
.
A obra não subverte o
OS
73
; algumas podem operar em tela cheia, como o
Amor de
Clarice
, o que não significa anular os outros aparatos que existem no computador, tais como
dicionários, calculadoras e os navegadores de internete. O que isso quer dizer é que o
computador não opera
apenas a obra: esta não toma a totalidade da máquina (me restrinjo aqui
ao
caso de poemas que aparecem n
um computador doméstico
74
), pois opera simultaneamente
com vários outros objetos. A obra é um código específico dentro de um mundo de regras
muito maior.
O que nos interessa é o nível de programas que operam dentro um do outro. Temos um
computador que opera um OS, que tem um programa, que permite criar um pequeno
aplicativo que será o poema digital, que é uma obra interativa, que permite a interação do
le
itor e que com sua leitura chega a um texto. Pensemos assim:
72
“Num nível técnico, autor e leitor são apenas usuários do computad
or. Notavelmente, o autor não comanda em
seu emprego a totalidade das regras utilizadas pelo computador enquanto este opera” (tradução do autor)
.
73
Não tenho conhecimento de alguma obra que o faça, porém não é difícil de imaginar uma que opere tal feito.
74
Pois existem obras digitais que são criadas para operar em instalações ou exposições e que são a única coisa a
operar na máquina. Máquina estas que são preparadas justamente para aquela criação. Por exemplo: a versão de
livro físico do
Palavrador
, em que
o suporte foi até mesmo desenvolvido para a interação daquela obra, como
pode ser vista nesse linque <http://1maginari0.blogspot.com/2009/03/palavrador.html>.
83
Imagem
20
: Computador (o corpo físico recebendo energia elétrica para operar) =>
OS (tem no
s
seus códigos a
possibilidade de um programa) =>
programa
(tem no seu código a possibilidade de cri
ar pequenos aplicativos
como
actionscript) => poema digital/obra (poema potencial que tem margem para interação do leitor) => texto
(um caminho efetivado pelo leitor)
.
De um computador com um OS abrimos as possibilidades de criar outras coisas dentro de
s
uas regras. Temos sistemas de regras dentro de outros sistemas de regras, até finalmente
encontrarmos o leitor que se propõe a interagir com o sistema de regras chamado obra para
sua leitura
75
.
3.
1.
5
C
ódigo
é tudo?
Mas então diríamos que o código é a ob
ra? Afinal, ele é a base de toda operação da obra e
tudo que nela acontece está escrito em suas linhas. Logo, ele é a obra? Ele é o objeto em
questão? Não, o código não é a obra em si, da mesma forma que a tinta de
Le
s
Baigneuses
de
Paul Cézanne não é a ob
ra, mas sim parte da obra, do processo que podemos chamar a obra de
arte. É uma face da obra, um estágio de sua criação que perdura ao longo do tempo. A obra é
75
Claro que nenhuma das etapas ou momentos citados acima podem existir sem a i
nteração humana, ca
da
estágio se desenrola
pela interação de um ser humano com a máquina.
84
um processo do qual a programação faz parte. Não que ela seja apenas processo, ao modo das
vangu
ardas do culo XX que colocavam todo o valor da obra de arte no seu caráter
processual, ignorando os resultados e renegando
-
os como algo dispensável ou sem
importância para
o ato criativo
76
. Não. Quando digo que a obra é um processo, me refiro à
totalidade
de um processo que englobe tanto o ato de criação quanto o resultado final.
Philippe Bootz
parec
e chamar a atenção rapidamente para a
obra enquanto processo, da
programação enquanto um ato criativo que gera um código que irá ser efetivado pela máquina
a
ser exposta como uma obra e ao mesmo tempo o ato de programar enquanto um de criação
artística
:
we consider programming (and not the program) the material of this art, that the
multimedia event that appears on screen is only a transient observable state (
a
“tran
sitoire observable” in French) that occurs while running (BOOTZ
,
2005).
77
Olhemos a questão da programação como uma obra potencial, lembrando aqui justamente as
obras impressas mencionadas anteriormente que se faziam valer desse mesmo aspecto
progra
mático e processual.
Entretanto, a parte potencial está na sua materialidade e será
efetivado pelo computador. É como se o programa fosse o plano de obra, o que poderá vir a
ser, o conjunto de regras do que será possível, uma vez que ela seja colocada para
operar.
Assim, realmente podemos conceber a obra enquanto processo, pois ela existe em
movimento, sendo um operar, um trabalhar, um ato; e será nesse operar que o leitor terá
contato com ela.
Porém, na verdade, não nos convém pensar
o programar como
a
matéria da arte digital, visto
que se trata de
uma etapa de uma arte processual
;
não pode
mos, contudo,
esquecer o resultado
final
, nem nenhum outro momento de
seu processo. Talvez
seja de grande ajuda
pensarmos o
ato de programação e o modo de efetivação
da obra digital ao lado das artes performáticas,
como a recitação de um poema (que teve por muito temp
o o propósito de ser
recitado)
e
ainda
a encenação de uma peça teatral. Os versos escritos e memorizados pelos atores não é a
totalidade da peça
,
ela é o
conjunto dest
es no ato de
ser encenada, ao se tornar ação e ser
efetivada;
em outras palavras, não se pode ignorar alguma parte
do processo. Deve
-
se
olhá
-
lo
76
Não cabe aqui entrarmos a fundo nessa discussão que faria nos distanciar do objeto em questão.
77
“nós consideramos o programar (e não o programa) a matéria dessa arte, do qual o event
o multimídia que
aparece em tela é apenas o estado transitório observável (“transitoire observable” em francê
s) que ocorre
enquanto operando
” (tradução do autor)
.
85
como um todo. Hans
-
Georg Gadamer
(1999)
caracteriza a obra de arte como pura mediação,
em que não p
odemos entendê
-
la
como
obra se não
for
no mundo, no seu processo de existir.
Um poema ao ser declamado está de alguma forma unido
ao ato de confecção primária, em
todos os mom
entos de sua existência. A obra é mais do
que
um texto ou um objeto,
ela é
todo
u
m movimento que aponta para um ou
mais sentidos, para sua existência como experiência.
3.
1.
6
P
rogramação de possibilidades
Da mesma forma que uma peça teatral shakespeareana não especifica todas as ações e suas
configurações no palco, cada expressão pe
rfeita que um personagem terá que portar em sua
face, também o código não necessariamente diz com precisão o que acontecerá. Existem
códigos fixos cuja programação diz exatamente o que irá ocorrer com cada variável possível,
porém, estes são
mais limitados
, estão fixados
numa
rie de el
ementos e não em
possibilidades. Em outros, não se programa algo, se programam possibilidades de algo. No
AdC não temos programadas todas as posições em que cada palavra pode ser movimentada
pelo leitor. Não temos
explicit
amente
programado como cada som irá se sobrepor um ao outro.
Temos a possibilidade de movimentar cada elemento (palavra) dentro o eixo X e Y, temos a
possibilidade de fazer as palavras soarem. A efetivação total da obra não está toda escrita no
código. Nes
se sentido, podemos falar do código como uma série de regras que possibilita a
existência de um mundo no qual o leitor i adentrar e interagir dentro das possibilidades
programadas.
A programação de possibilidades fica ainda mais clara quando falamos de
algoritmos, de uma
regra que será permutada com outros elementos possíveis e com outras regras, permitindo
uma gama de resultados variados. Quando olhamos uma obra como o
Palavrador
em que
percebemos efetivamente a construção de um ambiente digital, podemo
s notar melhor esse
tipo de programação em aberto. Nessa criação não se programam todas as possibilidades de
ângulos e visões que o seu cubo poderá ter no mundo, programa
-
se o mundo, as
possibilidades de espaço habitáveis pelo seu
personagem/cubo,
programa
-
se um mundo em
potencial, programa
-
se o que ao usuário será permitido fazer. Existem programas que criam
possibilidades dentro de possibilidades,
e assim por diante, entrando n
um grau de abstração
enorme, a tal ponto que nós não podemos efetivamente ver t
udo o que será possível. Como
86
também existem algoritmos genéticos, que seriam sistemas programados para estar em
constante mudança (ou melhor, permutação), para se alterar e ir proliferando essas mudanças
com o intuito de ser uma mera réplica de um process
o vivo.
O que temos com tudo isso é de certa forma um processo de criação que, como a programação
literária, propõe elementos e regras de operação entre estes elementos a serem efetivados e
utilizados pelo computador e depois pelo leitor; programando
-
se u
m campo de possibilidades,
deixando em aberto. Mas temos dois estágios: o primeiro, em que o código fonte será
efetivado pela máquina (colocado para operar ou tocar); o segundo, que será a interação do
leitor com relação ao que é exposto pela máquina. Logo
, podemos entender a obra visual que
abrimos no computador como a efetivação de um cruzamento de possibilidades em
computação pela máquina, e nossa interação como movimentos dentro do possível, nossa
interação como efêmera efetivação de um caminho possível
dentre os possíveis trazidos pelo
código.
Ou como nos diz Bootz:
The program written by the author does not totally manage the physical process of
running. That is, the algorithmic level of the program is not completely responsible
for the functioning of
the transient observable. We can say that the author is the
author of the program and data, but only the co
-
author of the physical process that
appears to the reader while the machine is running. Using more traditional literary
language, we can say that t
he author's program contains a large level of the "non
-
said". But this non
-
said does not play the same role as the non
-
said of the classical
printed text: this non
-
said will be interpreted by the machine and not by the reader to
produce the observable sign
. Thus it is necessary to consider that program
(algorithmic level) and physical process while running are two different and
complementary parts of the work. Adaptive generation uses this unsaid
as a
constraint for programming
(BOOTZ
,
2005)
.
78
No entanto,
não devemos
pensar
que o autor seja um co
-
autor, como quer Bootz, sendo o
computador o outro autor.
Tal afirmação corre sempre o risco de dar ao computador um
estatuto de autor, de recair na
ideia
, proveniente da ficção científica, de um computador
intelig
ente e consciente, o que está obviamente muito longe de ser o caso atual. A co
-
autoria,
da qual fala Bootz, seria concernente ao fato de o computador calcular e preencher certas
78
O programa escrito pelo autor não coordena completamente o processo físico de operar. Isto
é, o nível
algorítmico do programa não é inteiramente responsável pelo funcionamento do transitório observável. Podemos
dizer que o autor é o autor do programa e dos dados, mas somente o co
-
autor do processo físico que aparece ao
leitor enquanto a máquina
está operando. Usando uma linguagem mais tradicionalmente literária, podemos dizer
que o programa do autor contem uma grande quantidade de "não
-
ditos". Mas esses não
-
ditos não têm a mesma
função que os clássicos não
-
ditos do texto impresso: esses não
-
ditos
serão interpretados pela máquina, e não pelo
leitor, para produzir o signo observável. Logo, é necessário considerar que o programa (nível algorítmico) e
processo físico enquanto operam são duas partes diferentes e complementares da obra. A geração adaptá
vel usa
esses não
-
ditos como uma restrição para a programação.
(tradução do autor)
87
lacunas, todavia, tal feito se encontra no ato de criar do autor. O autor d
igital pressupõe
esse ato computacional, seu movimento criativo se apropriou do que irá ser feito pelo
computador. As ações do OS não são impensadas dentro da obra, mas ao contrário, se tornam
tão naturais quanto o efeito de acú
stica para um músico toca
ndo n
uma capela. Não co
-
autoria por parte da capela ou do computador, mas um elemento que vem ao encontro com o
ato criativo do autor, mais um elemento do mundo que seu ato criativo levará em conta sem
qu
e seja necessário estar
conscientemente pensando
todos os aspectos daquela interação ao
criar.
*
* *
3.
2 G
irar das
restrições
Com o que vimos a respeito da programação e do código fonte, podemos falar de duas
restrições ao ato criativo do autor: a da criação (como as mencionadas no pri
meiro ca
pítulo
com relação ao Ou
L
i
P
o
e outros processos de criação literária que irão afetar e alcançar o
leitor) e a restrição técnica (a linguagem de programação utilizada, o programa, a tinta, ou
qualquer outra restrição física do meio).
Claro que as duas estã
o imb
ricadas. Não tenho como criar
certo jogo de leitura sem levar em
consideração os meios físicos para conseguir arquitetar aquilo que pretendo. Não como
ignorar a programação no ato de criar no meio digital da mesma forma que não se pode
ignorar as v
igas ao erguer uma catedral gótica. Sempre haverá elementos a serem moldados e
alterados pelo ato criativo, há sempre uma ferramenta, há sempre uma interação, um moldar o
mundo. Não criação sem restrição da técnica e dos objetos e elementos utilizados (
a não
ser uma criação
ex
-
nihil
,
se é que tal coisa existe). Todo ato criativo irá ao encontro do mundo.
É justamente essa interação com o mundo a minha volta que me permite criar. Criar é estar
imerso no mundo.
88
O autor digital deve se apropriar
79
da ferram
enta digital, pois as restrições que a ferramenta
impõe ao objeto final também aparecem para o criador como limites para o ato criativo. Pintar
um quadro utilizando tinta a óleo ou giz de carvão representa diferentes restrições ao ato de
pintar
ou seja,
o que é possível fazer com aquele objeto
e às possibilidades da obra final;
restrições essas que irão transparecer ao observador do quadro de uma forma ou de outra.
No meio digital podemos falar desse tipo de restrição como sendo a linguagem de
programa
ção e o programa utilizado para criar uma obra. Normalmente não se cria uma
linguagem de código para criar um poema, o que é análogo à linguagem verbal/escrita,
apesar de que, tanto em nossa linguagem quanto na linguagem de programação, isso é
possível
(principalmente se pensarmos não em criar algo totalmente novo, mas em alterar
profundamente aquilo que existe), especialmente no digital em que a linguagem de
programação não transparece completamente (são mais seus efeitos ou processamentos). Isso
se
torna ainda mais possível se pensarmos que a li
nguagem de programação é similar
a uma
ferramenta, e em qualquer arte é possível encontrar autores que alt
eram ou moldam sua
ferramenta a
seu gosto para atingir um certo objetivo, para experimentar ou simplesm
ente
para tornar aquela ferramenta mais sua. Lembremos de Leonardo da Vinci preparando tinta a
óleo, para ter outro efeito na tela, em vez do processo mais comum na época com têmpera
feita com ovos, ou um guitarrista alterando os
pick
-
ups
e a grossura das
cordas ou até mesmo
os pedaços inteiros de sua guitarra para atingir o
utro som, ou ainda o trompete (
à primeira vez,
acidentalmente) torto a quarenta e cinco graus de
Dizzy Gillespie
. E se quisermos pensar na
linguagem, pensemos no
Livre
de Mallarmé e sua
estranha forma de construção que parece
querer reorganizar o ato de escrita.
Desse modo, a ferramenta utilizada acarretará restrições ao processo criativo. A criação em
inglês e português é diferente, não com relação ao ato de criar propriamente dito, mas
às
possibilidades que tenho diante de minha escolha. Por exemplo,
no léxico da língua
portuguesa temos uma variedade vocálica maior que na inglesa, que tem predominância do
fonema vocálico
schwa
ə
80
, logo uma cer
ta pobreza vocálica em comparação ao português.
Com isso, podemos notar que, na versificação de língua inglesa, acaba sendo menos comum
encontrar (e mais difícil criar) versos com variação vocálica maior do que na língua
79
Nesse momento a tecla A quebrou no meu computador e caiu... tive que arrumar meu instrumento antes de
continuar.
80
Som vocálico de palavras como: the, about, supply, eloqu
ent.
89
portuguesa. E, c
onsequentemente, com relação à versificação portuguesa, é mais comum
encontrar a repetição consonantal (muito utilizado no inglês antigo e por poetas co
mo W. H.
Auden e
por Ezra Pound) no que vem a ser denominado verso aliterado.
Assim, todo o aparato esc
olhido para criar no meio digital acarretará alguma restrição ao
processo criativo. Mais especificamente, no meio digital são as linguagens de programação e
os respectivos programas que são utilizados para compor nesses códigos. Podemos inclusive
pensar em
questões estilísticas da obra digital com base na escolha do aparato de produção,
vislumbrar um estilo por meio das restrições de programa. O que é possível em
flash
difere
um pouco do que é possível em
shockwave director
e é ainda totalmente diferente do
que é
possível ou intencionado com um
VRML
(que é feito para criar objetos em 3D)!
Cada programa apresenta seu propósito inicial, suas funções e suas possibilidades. O autor
terá que escolher e jogar com estes programas e, em outros momentos, alterá
-
los,
trazer
para
eles elementos estranhos
como
,
por exemplo
,
vídeos criados com outros programas, ou sons
construídos em editores de som. Terá que tentar de algum modo alterar o funcionamento deles
ou explorá
-
lo para atingir seus objetivos de criação e, ao mes
mo tempo, deixar que certas
possibilidades do programa influenciem, mas não contaminem involuntariamente seu ato
criativo.
3.2.1
T
écnica nova
Temos no meio digital um distanciamento aparente entre o ato de programar
criar
e o
resultado final de nos
so ato. Também temos, aparentemente, um deslocamento considerável
entre o que foi efetivamente feito e construído e o que se mostra ao leitor no final do caminho.
Este talvez seja o fato mais marcante da criação em meio digital, uma mediação entre o eu
que
cria e o objeto que crio, parece que cada gesto, cada traço que pretendo fazer, apenas o
tenho a uma distância elevada. Para criar uma letra sobre uma tela devo apertar uma pequena
tecla de plástico e, como se por milagre, uma
letra aparece diante de mim
n
um monitor.
Quando desejo que uma linha apareça sobre a tela devo escolher uma ferramenta para isso,
clicar e arrastar utilizando um
mouse
até que a linha seja feita n
uma tela que eu não toquei. E,
90
com o mais simples gesto, tudo que criei pode deixar de e
xistir, se desfazer rapidamente com
a ausência de eletricidade alimentadora daquela máquina a minha frente.
Logo, se algo que diferencia a criação digital daquela no meio impresso, é a mediação
entre meu ato e o que crio. São os zeros e uns
como o qu
er
Maria Clara Paixão de Sousa
em
seu ensaio
Conceito material de “texto digital”
(2009)
, os milhares de códigos que se
empilham uns sobre os outros, decifrados e codificados infinitamente através de uma máquina
movida por impulsos elétricos que s
e antep
õem a meu movimento, se antepõem ao meu ato de
criar, ao que eu pretendo criar. Pois esta é justamente a diferença entre o meio impresso e o
digital: a interposição de um código binário entre eu e o que crio. A técnica ou a ferramenta se
interpõe no meu at
o de criar.
Entretanto, se paro um segundo e penso em todos os materiais que estão sobre a minha mesa,
todos os lápis e canetas, e ainda um violão que descansa ali ao lado, posso afirmar que minha
vontade criativa não é mediada por eles? Será que em algum
deles posso dizer que não
uma mediação entre meu ato e o resultado final? Posso dizer que meu intuito em criar não
levaria em consideração o lápis ou o violão que ali repousam? Será mesmo que o que difere
o
meio
digital é realmente o fato de el
e
ser “m
ediado
” por zeros e uns? Não posso encontrar um
ato criativo que não seja “media
do” ou que o tenha no mundo
outro elemento que
se
interponha
se coloque entre o eu que crio e o mundo
, nem mesmo traçar desenhos sobre a
areia com meus próprios dedos est
á livre de um efeito que não é meu, de uma outra força
trabalhando aquilo que crio. Talvez apenas o canto possa escapar a ser mediado por algo, mas
ao mesmo tempo ele pode ser considerado uma modulação da minha expressão diária (e
poderia ainda dizer o mes
mo da dança enquanto uma modulação da minha movimentação
espacial, ambas que devem ser aprendidas por mim)
(MERLEAU
-
PONTY
,
2006), e o modo
que ele se dará ao ouvido dos espectadores não será
o mesmo que ouço dentro de meu próprio
corpo, cercado por mim mes
mo, eles ouvirão o canto com relação a uma distância espacial,
rebatido por paredes, alterado pelo espaço que os cerca. Sempre haverá outro fator
em jogo,
nunca crio com base n
uma ideia pré
-
criada em algum lugar do meu
cogito
. Não tenho e
transfiro uma cri
ação perfeita e acabada de um
res cogit
ans
para uma
res extensa
como um
ato de mágica. A criação está no mundo, está imersa nele e conta com os utensílios
utilizados
81
.
81
Apontar a criação digital como uma criação que tem seu diferencia
l
na mediação parece remontar àquela
clássica visão platônica dos graus de distanciamento de uma criação terrena com relação à Ideia.
91
Se percebo o escrever com um lápis sobre uma folha de papel
algo que costumo
fazer
como um ato direto é porque ignoro toda uma gama de fenômenos físico
-
químicos que ali têm
seu lugar. Estou tão acostumado com o ato de traçar que ele não pode mais me parecer
distante. O meu criar ou desenhar sobre uma folha com um lápis apenas
será uma “mediação”
algo se interpondo entre meu corpo e o mundo
se olhar aquele ato objetivamente,
enquanto duas exterioridades, enquanto dois objetos
tanto o lápis e meu corpo; ignorando
que todo movimento que faço sobre o papel é pressuposto pelo
meu corpo, ele sabe como ele
acontecerá, ou sabe esboçar seu acontecimento, compreende como ele mesmo e o lápis se
comportarão e como os traços sairão sobre a folha. Mas todo esse hábito se desmancha se
pego entre os dedos um giz de carvão ou um pincel de
bambu que nunca manuseei. Existe
uma similaridade, logo o ato de traçar não se estranho, porém ele será outro, e aquele
utensílio que porto entre meus dedos me distanciará do que pretendo, borrarei a tinta, farei
traços mais grossos ou desproporciona
is, ou ainda, não saberei exatamente o que posso
conseguir com aquela ferramenta, terei que reaprender meus gestos, reaprender o que pode vir
a ser de minha interação com ele.
Acredito que o mesmo ocorre com a criação no meio digital. Meu traçar é o digit
ar um código,
meu movimento sobre o papel, minha escolha de cores e sons, tudo is
so acontece por meio de
outros caminhos, mas que não são um abismo entre
mim
e minha criação
82
. Esse abismo de
mediação só aparece se aquele objeto é estranho para mim, se ele
ainda não faz parte de meus
movimentos, se ainda não consigo ter ele enquanto uma parte do meu corpo. E isso acontecerá
com qualquer ferramenta utilizada, até mesmo minha própria voz no canto
:
não terei domínio
dela até aprender suas nuanças, aprender como
operá
-
la e utilizá
-
la para soar do modo que
almejo. Dançar, que talvez pareça tão simples para um espectador, se m
ostrará como um ato
de extrema complexidade para aquele que tente a primeira vez. Seu corpo parecerá quase
estranho e aqueles movimentos tão
simples e precisos, impossíveis.
O código binário de zero
s e uns que se interpõe e medeia minha criação representa
um
invisível que não pode ser utilizado como fonte única para caracterizar uma criação digital.
Podem, enquanto descrição técnica, material,
objetiva e
empiricista
, servir
para caracterizar o
82
O que existe de diferença é o caráter do ato: en
quanto antes um gesto sico explícito levava o pincel a traçar
aquela linha que desejava, agora isso se por meio de um código lógico, mas que não deixa de ser uma técnica
a ser aprendida.
92
objeto, mas se formos estudar a poesia digital através de uma perspectiva fenomenológica, ou
em qualquer outra linha em que a apreensão do fruidor esteja em jogo, essa diferenciação do
impresso e do digit
al por meio de zeros e uns é inviabilizada. Ora, essa mesma mediação
ocorre sempre, de uma forma ou de outra. A combinação química que ocorre numa tela com a
tinta recém espalhada altera sua cor, sua textura, e o tempo vai lentamente alterá
-
la; existem
eve
ntos ali que não vemos e que alteram o resultado, mudam as cores e a totalidade ali
exposta. Existe sempre o jogo entre dois ou mais elementos que se alteram
tudo afeta tudo.
O criador se apropria dessas alterações, ele as conhece “instintivamente” atrav
és do constante
contato com aquele meio/ferramenta/objeto, as alterações entre seu contato e o resultado final
passam a ser esperadas e compreendidas de certo modo por ele, não são um fator estranho que
vem intervir no processo de interação, são parte do p
rocesso de interação.
3.2.2
U
m breve exemplo
Permitam
-
me exemplos de minha própria lavra. O
Sintext
é o que vem a ser chamado de
gerador de texto automático, criado pelo português Pedro Barbosa
83
. No caso, um gerador de
texto automático faz bem o que o
nome diz: gera textos automatica
mente no computador com
base n
um código pré
-
programado. Geralmente isso é feito no cód
igo por via da permutação de
certa quantidade de variantes. É o caso do
Poetry Creator2
, de
Jeff Lewis e Erik Sincoff
, que
gera um pequeno
poema automaticamente (inserindo nele algumas palavras que o leitor pode
preencher)
84
. Ou também é o caso do
Postmodernism Generator
85
,
que gera ensaios “pós
-
modernos” automaticamente, ou o
Adolescent Poetry Generator
86
,
que gera poemas de estilo
“adolescent
e” a partir da pe
rmutação de certos elementos n
um banco de dados, ambos são
criações de
Josh Larios
. Mas no caso especí
fico do
Sintext
,
é o leitor que determina tanto o
programa permutativo (a estrutura e como ela será permutada) quanto o léxico a ser
perm
utado (o que será efetivamente permutado). Para fazer isso o leitor deve manipular um
código simples (pertencente ao programa) que basicamente envolve escrever algo
denominando caracteres (sejam eles palavras ou frases e por adiante) de elementos fixos ou
83
BARBOSA, Pedro.
Sintext
. Disponível em: <http://www.pedrobarbo
sa.net/SINTEXT
-
pagpessoal/SINTEXT.HTM>.
84
LEWIS, Jeff; SINCOFF, Eric.
Poetry creator2
.
Disponível em: <http://www
-
cs
-
students.stanford.edu/~esincoff/poetry/jpoetry.html>.
85
LARIOS, Josh.
Postmodernism
g
enerator.
Disponível em: <http://www.elsewhere.org/pom
o/>.
86
LARIOS, Josh.
Adolescent
p
oetry
g
enerator
. Dispon
í
vel em: <http://www.elsewhere.org/hbzpoetry/>.
93
variáveis. Os fixos permanecem na permutação e os variáveis são permutado
s
entre o léxico.
Essa estrutura pode ser aplicada de parágrafos variantes até letras variantes dentro de
estruturas maiores:
Imagem
21
: esquema das possibilidades permutativas den
tro de permutações do
Sintext
.
Na primeira tentativa de utilização desse programa, tentei simplesmente criar versos
permutáveis (algo como um gerador de centões automático). Tentei fazer isso por algum
tempo, que havia constantes erros meus na escrita
do código que travavam o programa.
Eventualmente comecei a olhar os três exemplos de geradores que vêm com o
Sintext
(pode
-
se acessar três exemplos e seus códigos) e percebi que a complexidade poderia ser aumentada.
Dai, comecei a jogar mais com as possibi
lidades, comecei a tentar permutar ainda coisas
94
dentro de coisas, números em vez de letras e assim por diante, até que consegui perceber o
que seriam os resultados de um programa com base no que via do código, ou seja, conseguia
escrever já pensando na per
mutação que ocorreria. De alguma maneira, ela se tornara parte da
minha escrita, eu podia criar textos em que os parágrafos eram permutáveis entre si, como
também as frases desses parágrafos, e até palavras dentro dessas frases, sem necessidade de
ficar el
aborando tudo previamente
87
.
A minha experiência de aprendizagem com o
Sintext
também é próxima da minha
aprendizagem em programação
88
. Em 2005, quase nada sabia ainda sobre programação.
Através de v
á
rias tentativas próprias, e curiosidade acima de tudo, fu
i aprendendo a lidar com
html
,
flash
e
lingo
. No primeiro momento em que comecei a utilizar o
flash
, vinha ao
computador com uma ideia pré
-
estipulada de uma criação digital a fazer. Com algum tempo
de utilização, verificava que
aquele programa não poderia
fazer aq
uilo que eu desejava, ou eu
não tinha conhecimento suficiente para fazê
-
lo. Como resultado, eu acabava brincando com o
programa e aprendendo seus mecanismos (tanto o
flash
quanto o
Director
tem uma s
é
rie de
efeitos ou possibilidades facilmente aces
síveis a quem os usa). Então, acabava fazendo
criações que uti
lizavam estas ferramentas especí
ficas como suas funções básicas, ou seja,
deixava que o programa determinasse minhas escolhas na criação. À medida que o tempo
passava, comecei a “torcer” as poss
ibilidades dessas ferramentas e me aprofundar nas
possibilidades do programa. Comecei a programar com o programa, e não mais ser
guiado por
ele. Em algum instante
, surgiu o que posso chamar de familiaridade: eu conseguia ler o
código olhando
-
o sem necessit
ar de referência externa. Não isso: era possível ver as
relações ali programadas, entrever o resultado que aquelas linhas teriam. Ou seja, aquele ato
de programar e criar não me era estranho. O programa passara a ser uma ferramenta minha
como o lápis
ou o pincel, se tornou comum a meu corpo. Ao criar com aqueles programas,
87
Algumas dessas minhas brincadeiras mais simples podem ser encontradas em:
TAVARES, O
távio
G
uimarães
.
Algum ritmo algorítmico: possíveis ligações entre
o sintext e a poética de
E
. M.
de
Melo e Castro.
Texto Digital
,
Florianópolis, ano 3, n. 1, Julho 2007.
ISSN 1807
-
9288
. Disponível em:
<
http://www.textodigital.ufsc.br/num04/otavio.html
>
. Como também em: SANTOS, Alckmar Luiz dos
.
Algumas Notas Sobre as Le
itu
ras de Literárias Digitais.
O EIXO E A RODA: revista de literatura brasileira
(Dossiê 50 anos de poesia Concreta)
, UFMG, n.13, v.1, p. 171
-
191, 2006. ISSN 0102
-
4809.
88
É interessante pensar que o
Sintext
traz o código
-
fonte (apesar de se tratar de um
digo próprio e
relativamente simples) para frente do leitor, ele propõe que este tenha que aprender algo das maquinações do
meio digital para poder criar. O
Sintext
acaba indo no caminho oposto dos vários programas
user
-
friendly
que
interpõem uma interface
amigável entre o usuário e o seu objeto de trabalho, ele chama o leitor a olhar mais
diretamente o nu e o cru do digital.
95
havia incorporado aquelas regras (restrições a criação) a meu campo de possibilidades de
expressão
89
.
3.2.3
LUTHIER
Digital
Esse contato com o meio digital traz à tona uma pergun
ta simples: até que ponto o autor de
um poema digital necessita conhecer o código fonte (no sentido de ter comando sobre sua
ferramenta)? Talvez seja adequado pensar em diferentes manifestações artísticas, como por
exemplo: um músico não necessariamente é
um
luthier
; todavia, ele sabe até
certo limite o
modo de operar seu instrumento, um violonista sabe como as cordas tencionam e como tirar
de seu instrumento o som que deseja, conhece os limites de seu instrumento, conhece aquele
objeto, se não os detalhes
minuciosos de sua construção, pelo menos os efeitos produzidos por
certas interações dele com o objeto. Da mesma forma que um pintor tem um conhecimento
necessário das tintas e suas composições e como irão reagir em contato com outras tintas, a
tela e ar.
Não que ele tenha um conhecimento de sua precisa composição química, mas um
conhecimento de como ela opera ou pode vir a operar, e daí sim a química, no sentido de ter
conhecimento de que uma tinta é ácida ou que não se mescla com tal outro tipo de tinta e
assim por diante (a partir disso, temos a química na medida em que ela é observável ou gera
efeitos no ato de pintar).
Um leitor ou ouvinte de música ou literatura não precisa
indispensavelmente conhecer a
técnica para fruir aquele objeto estético. Se co
nhecer, melhor ainda, pois terá a capacidade de
perceber e fruir outros elementos na obra que não os diretamente perceptíveis. Sabemos que a
percepção de um músico com relação a uma melodia tocada é diferente daquela que possui
um leigo, e no caso
de um po
ema, poderíamos falar o mesmo daquele que possui
uma maior
percepção rítmica com relação ao poema que tem uma metrificação.
Por outro lado
, uma percepção mais aguçada do objeto não é imprescindível para fruí
-
lo.
Contudo, no momento em que passo para um lu
gar de criador, podendo criar ou participar da
89
É interessante frisar que a aprendizagem dessa generalidade do código também afetou meu modo de lidar com
computadores
entendendo
mais a fundo a sua estrutura geral e comportamento possível
e, mais importante, o
meu modo de ler os poemas digitais que agora pareciam mais próximos ou mais palpáveis para a interação.
96
construção da obra, eu necessito conhecer parte do seu funcionamento para poder fruir. Não
que isso queira dizer um conheci
mento necessariamente da técnica
(apesar de poder ser), mas
sim em termos dos elemento
s em jogo na obra e como podem operar naquela dada situação,
suas possibilidades e limitações.
E está uma das questões que vem à tona com uma arte participativa no meio digital. Se o
leitor agora tem que participar da obra
para fruí
-
la, aproximando
-
se
do lugar de um autor, até
o ponto de certos críticos falarem de “escrileitor
(BARBOSA, 1996)
ou co
-
autoria, então se
torna necessário que o leitor também se aproxime de certas atividades do autor
. P
orém
,
devemos pensar que isso não ocorrerá da mesma manei
ra
como
ocorre com o autor, p
ois ao
autor ainda são reservado
s certos
privilégios
de concepção e de criação (por sua posição
privilegiada em ser aquele que decide os passos iniciais da obra) aos quais o leitor não
terá
acesso
exat
amente. Logo, não poderia
haver um nivelamento da obra como criação de ambos
,
autor e leitor, mas é necessária
uma aproximação do modo de operar do leitor ao do autor
tendo em mente que ambos não são a mesma coisa e que existem diferenças procedurais da
possibilidade de cada um c
om relação à obra.
Existe no ato de criação e de leitura uma confluên
cia, mas elas não são a mesma coisa. O
criador tem uma infinitude de possibilidades diante de si, o leitor tem um mundo em
miniatura, regido pelo horizonte e vontade (distanciada) do cri
ador. A confluência está no
“tornar parte de si”, de aprender as regras e se tornar parte daquilo e tornar aquilo parte de si
para poder interagir com aquele mundo.
Torna
-
se necessário ao leitor se apropriar do funcionamento da obra da mesma forma que o
a
utor se apropriou do funcionamento das ferramentas que utilizou para criar, porém o
conhecimento do leitor em relação
à técnica que o autor utilizou
pode mudar ainda sua
apreensão do objeto.
Ainda que eu não mexa
no código da obra como leitor, o conhecimen
to
da programação (da dada lingu
agem) pode afetar minha leitura;
d
a mesma forma que um
relojoeiro mesmo sem abrir um relógio pode dizer coisas sobre este
, prever defeitos, ou
entender do que se trata,
apenas pelos
sons e movimentos dele. Seria um i
nternali
zação do
conhecimento de
seu funcionamento que passa a dialogar com as manifestações externas
(inseparáveis).
Falo de compree
nder a sua o
peração externa, olhar o objeto de outra forma e
vislumbrar como foi construído, olhar e saber julgar a qualidade dos g
ráficos utilizado
s
, que
97
tipo de programa foi utilizado, se aquilo foi “pré
-
renderizado”
90
, se ele pode se mover, se
alguém o desenhou.
P
odemos pensar na capacidade de, ao o
lhar uma pintura, sabermos o que era possível com
aquela tinta, entender melhor a pi
ntura, como um conhecimento do corpo, não em termos de
uma dicotomia, corpo e mente, e sim no sentido de uma sensibilidade ao que é percebido. Isso
significa um esboço do que seria possível com meu corpo naquela obra, o que inevitavelmente
acarreta a neces
sita de uma nova sensibilidade.
3.2.4
N
ova sensibilidade
A fabricação de um novo objeto estético, produzido em outro meio, implica o nascimento de
uma nova sensibilidade em quem cria e na necessidade de uma nova sensibilidade em que
m
frui. Essa nova se
nsibilidade não pode apenas se dar no âmbito distanciado, ela implica um
novo modo de construir, outro modo de olhar o mundo, com relação tanto às obras
imediatamente produzidas naquela nova sensibilidade, tanto quanto nas que a antecederam.
Seria algo com
o a mudança estrutural causada por um novo conhecimento que acarreta uma
alteração no que foi e será experienciado (MERLEAU
-
PONTY
,
2006).
Com a mudança de meios, nasce um novo modo de leitura, outro horizonte do que seja leitura,
outras técnicas. Deve hav
er um acompanhamento
técnico, se a escrita digital mudou
,
a leitura
também de mudar. Se aproximo o autor e
o leitor
,
não posso manter uma interação de
primeiro plano. A obra digital é produzida no código (
mas
não
apenas
nele
, obviamente!
)
;
logo, se pret
endo me aproximar do autor
,
tenho também que ir até ele, não permanecendo
apenas no que o autor propôs como labirinto
91
. É preciso que se faça a tentativa de
compreender a construção do labirinto. Não no sentido de saber o código, mas sim como os
códigos fu
ncionam, entende
ndo
como a má
quina é.
90
Pre
-
rendered
em inglês, em especial com relação a jogos de vídeo
-
game, se refere a gráficos.
91
Como um rato que, em princípio, teria escolhas dos caminhos a seguir dentro de um labirinto. No entanto,
todos foram previstos pelo autor...
98
Es
t
e tem sido meu modo de operar até o momento, tentar entender as criações no meio digital,
lançando
-
me nele, também me lançando nas criações antigas
barrocas e experimentais
para nelas tentar apreender as possib
ilidades do que podemos chamar poema digital. Mas, ao
mesmo tempo, entranhar
-
me no código e nos antigos poemas não se torna um modo de ler o
presente. Na verdade, isso aponta para uma situação de reciprocidade, em que o presente
ensina a ler os poemas anti
gos, ensina a ver neles um funcionamento que não seria possível se
não partisse do ponto em que me encontro. Se posso falar de programa, de interação, no meio
impresso tanto quanto no digital é porque tentei olhá
-
los ao mesmo tempo, deixei que o
presente m
e ensinasse a ler os poemas impressos e os digitais, deixei que uma técnica de
criação me mostrasse o que havia de tão comum entre ambos, me fizesse perceber que o
digital não representa uma experiência alienígena como algo de uma ficção científica, mas
al
go presente no mundo e convergente com tantas outras criações que a precederam.
3.3
R
esposta
Voltemos àquelas duas perguntas postas no início do segundo capítulo. A primeira:
por
que
olhar o código fonte se este
se encontra
por
de
trás da obra de tal fo
rma que não é visto ou
tocado pelo leitor?
Bem, um leitor realmente não precisa conhecer o código, mas existe uma
nova sensibilidade que aflora e se este se propuser a conhecer os novos meios que a cercam,
tanto o código, quanto a máquina e seus funcioname
ntos, ele terá uma sensibilidade maior
com relação aos objetos ali produzidos e pensados. O crítico precisa conhecer o código, a
máquina, o mundo no qual a obra ganha vida, ou ele irá sempre se ater a uma leitura do que é
mostrado (o que não é inválido, ma
s é certamente limitado), estará sempre preso ao que seria
uma análise “conteudista daquele objeto, estará a criticar o que ele não conhece. O criador
precisa saber o código, o meio, tudo que ali se insere, precisa se lançar de
ntro daquele meio,
sem se de
ixar absorver totalmente por ele, ele precisa conhecer nem que seja pra saber o que é
possível. Existem programas que permitem criar sem olhar o código (
o
que seri
a
uma
tentativa de dizer que “isso é fácil, qualquer um pode fazer”, tentando afastar o usuár
io da
parte complicada, interpondo interfaces “amigáveis” entre o usuário e o código, ou seja
,
entre
ele e a matéria bruta que permite com que ele crie e faça o que deseja), porém, compreender
seu funcionamento implica entrar naquela linguagem, significa
c
onhecer e manipular os
elementos.
99
A segunda pergunta:
não será o código um domínio fora da composição e
xplí
cita da obra,
dado
que até
mesmo muitos
autores digitais não programam
suas obras, mas recorrem a um
programador para a tarefa (evidenciando um afas
tamento do autor com rela
ção à técnica de
composição ou à
complexidade que distancia o autor de um conhecim
ento de uma técnica tão
específica
)?
Bem, por tudo que foi mostrado não podemos acreditar que o código seja algo
fora da composição da obra. O fat
o de muitos autores digitais recorrerem a programadores
para a composição da suas obras não implica uma desvinculação entre o ato de criar e o de
programar. Na verdade, isso parece uma espécie de retorno aos tempos renascentistas, em que
um ateliê de pintu
ra não estava segregado de uma oficina de engenharia, em que criar uma
obra de arte não era considerado uma inspiração pertencente a um gênio fora desse mundo,
mas um trabalho próximo ao do artesão, um trabalho que necessita de uma técnica que não
poderia
se especializar. O que temos hoje com o artista que trabalha ao lado do técnico não é
um trabalho criativo ao lado de um técnico, e sim a evidência de que a criação artística não
foge à técnica. O erro estará em pensar o técnico como menos artístico” do q
ue o autor, de
pensar que um poderia existir sem o outro. Logo, o código ainda é parte da composição da
obra, nunca deixou de ser, e não poderia ser de outro modo.
3.4
B
alanço
Tentei até o momento pensar a criação da obra digital ao lado das obras impr
essas e como
ambas são por mim consideradas no quesito leitura. Tentei limpar certos preconceitos a
respeito da criação no meio digital para poder em seguida olhar a interação tanto de quem cria
quanto de quem frui a obra. Agora resta
-
nos realmen
te olhar o
ato de interação, alcançar a
obra, tocá
-
la e ser tocado por ela,
jogar
-
se em seu mundo
.
100
CAPÍTULO 04
INTERATIVIDADE E CRIAÇÃO
... EXPRESSÃO
Nos capítulos anteriores abordei três temas:
o programa enquanto um conjunto de regras
propostas pelo autor que
atravessa a obra procedural para se dispor materialmente diante do
leitor que deve interagir com a obra para fruí
-
la
; a obra
Amor de Clarice
como um poema
digital que necessita da interação do leitor com sua corporeidade para poder ser lida; a
programação
digital enquanto mais uma camada de construção da obra que aponta para outro
plano de potencialidade, nesse caso, tendo a potencialidade da obra e do programa.
As discussões precedentes nos colocam diante de dois atos distintos
,
porém convergentes:
criar
e fruir (ler). Criar é erigir algo no mundo,
é
levantar e r
eorganizar um pedaço do mundo,
ir construindo algo e interagindo com ele e o mundo para continuar criando. Ler é interagir
com aquele objeto já criado, mas ainda com possibilidades a serem efetuada
s. Criar é criar um
programa, propor um mundo, se entranhar nele elaborando enquanto se cria, deixar que o
mundo criado dialogue com quem cria e interfira no ato de criar. Ler é se jogar naquele
mundo, preencher espaços, interagir com ele e dialogar com el
e dentro das
possibilidades/regras propostas. O ato de leitura é um ato de encontro entre o horizonte de
sentido do autor e do leitor, é um habitar aquele pedaço do outro. O ato de criar é o ato de
moldar a existência e ser moldado por ela. O programa func
iona como um conjunto de regras
que propõem um mundo, que instaura algo ali, que molda elementos que se dispõem no
mundo. Torna
-
se impossível falar de leitura interativa sem falar também do ato criativo.
4.1
S
olicitação
No seu livro,
A Prosa do Mundo
(
1974)
, Merleau
-
Ponty nos conta de um experimento feito
com Henri Matisse em que ele era filmado enquanto pintava. Posteriormente, o vídeo lhe foi
mostrado em câmera lenta e, este,
ao se ver pinta
ndo
, via sua mão dançar sobre um ponto na
tela, como que come
ça
sse
dez ações possíveis e finalmente executa
sse
o único traço
necessário. A e
xperiência sugerida pela câmera
lenta poderia então nos propor que Matisse
calculara cada uma das dez possibilidades, tendo olhado atentamente e analisado as
possibilidades e ef
eitos de cada pincelada que ele poderia ter dado, terminando por executar a
101
mais perfeita dentre elas. Mas Merleau
-
Ponty nos alerta a esse respeito. Nesse modo
demiúrgico de ser e criar, em que Matisse disporia e analisaria as dez possibilidades,
estendend
o diante
de
si todos os resultados possíveis e suas conseq
u
ências na obra, dentro de
segundos antes de traçar o derradeiro gesto, existe um engano fundamental. Segundo
Merleau
-
Ponty:
ele
[Matisse]
não é um demiurgo, é um homem. Não teve, sob o olhar de se
u
espírito, todos os gestos possíveis, não teve que eliminar todos menos um, dando
razão à sua escolha. É a mera e sua lentidão que explicitam todos os possíveis.
Matisse, instalando num tempo e uma visão de homem, olhou o conjunto atual e
virtual de sua
tela e levou a mão para a região que chamava o pincel para que o
quadro fosse enfim o que ele se tornava. Ele resolveu por um gesto simples o
problema que, diante da analise e depois, parece comportar um número infinito de
dados
(MERLEAU
-
PONTY
,
1974
, p.
5
8
-
5
9)
.
Existe algo de similar entre o ato de traçar de Henri Matisse, a efetivação de uma
possibilidade por suas mãos, e o ato de um leitor que tenta interagir com o poema digital
Amor de Clarice
; este que agarra as palavras e move
-
as para onde deseja, cr
ia e recria a
estrofe dos versos na página. Claro que existe a diferença de que Matisse é o criador de sua
própria obra, foi ele quem a compôs por inteira, não havia outro pintor que decidiu como o
quadro seria pintado antes, ou que tenha intervindo no seu
ato de criação, enquanto que o
leitor de AdC está preso a certas possibilidades que foram dispostas diante dele antes mesmo
de ele começar a tocar a obra
92
. No entanto, apesar dessa diferença marcante entre tais atos,
ambos ainda podem ser caracterizados c
omo uma ação intencional expressiva que remete a
uma materialidade no mundo, uma ação que visa a expressão de um sentido.
Todavia, a questão que se pode colocar com relação ao ato de Matisse é o quanto o seu ato
expressi
vo de pintar
criar
não estaria r
estrito ou guiado por outras delimitações. O quadro
solicita aquele gesto de Matisse, ele chama aquela única pincelada possível. Existe algo além
de Matisse que o leva àquele traço. Ou seja, existe algo no pintar de Matisse
que pode ser
estendido a todo
ato criativo
que interage com ele, algo que torna a ideia de uma liberdade
absoluta no
ato criativo uma utopia. Lembre
mos o que argumentava Raymond Queneau com
relação à liberdade da escrita automática do Surrealismo, que esta seria um ato de expressão
s
ubmetida a todas as influências possíveis
econômicas, psicológicas, emocionais, etc
ou
seja, Queneau afirma que sempre havia algo além do criador em ação no ato criativo.
92
Matisse também se encontra ligado a uma vivência que está como fundo de seu ato cri
ador, porém
,
isso não é
a mesma coisa que ter os elementos pré
-
dispostos a sua frente como o leitor de AdC, que também possui todo
um fundo de vivência que o constitui.
102
Ao mesmo tempo, o que solicita a pincelada de Matisse não é algo totalmente exte
rno ao
diálogo entre ele e a obra, da mesma maneira como seria a economia ou psicologia; segundo
Queneau é algo mais, como o jogo de cartas e contos d’
O
Castelo
de Italo Calvino. O que
solicita os gestos de Matisse é precisamente aquele objeto ao qual ele
se dirige, é o objeto
para a qual está voltada sua intencionalidade, seu ato de expressão, é o objeto que é parte de
seu ato de expressão
quase como se quadro, pintor e pincel não fossem coisas
completamente distintas, mas coisas interligadas pela expres
são. Se podemos falar de
influências externas como queria Queneau, também podemos falar de um chamado que vem
do quadro, vem da própria expressão.
[expressão]
93
Existe então um fundo que solicita, um horizonte de sentidos sedimentados sobre nós. São
percep
ções, atos, lugares, pensamentos, que são como uma estrutura de fundo ao nosso existir.
Porém, estes não são como imagens absolutas do que foi, mas fagulhas
estruturas
que,
para permaneceram, devem ser trazidas à tona por nossa vivência no mundo.
A ex
pressão seria, segundo Merleau
-
Ponty
(1974)
, aquilo que está por detrás de todo ato
criativo, ato que nos lança em direção ao mundo. Para explicar isso, Merleau
-
Ponty recorre à
primeira palavra de uma criança e, depois, à primeira palavra da humanidade. A
primeira
palavra da criança tem o modelo da fala adulta como fundo, nela existe o esboço de um
sistema total, no qual cada novo elemento irá reconfigurar a totalidade desse sistema. Para o
humano em geral, a prime
ira palavra já está inserida n
um cont
exto de comunicação entre eu e
outrem, no contexto de um eu que percebe o outro no mundo. Ali, eu e outrem visamos os
mesmos objetos no mundo
o mesmo sentido. A comunicação existe a partir do momento em
que percebo outrem no mundo, quando existe eu e
outro no mundo. Assim:
o mistério da primeira palavra não é maior que o mistério de qualquer expressão
conseguida. Em um como em outro invasão de um espetáculo privado por um
senso ágil, indiferente às trevas individuais que vem habitar” (MERLEAU
-
PONTY
,
1974
, p.
57).
93
É na expressão que temos um campo comum para falar das diferentes obras e estágios do
ato criativo; tanto de
diferentes tipos de interação como pintura e literatura, como da expressão em diferentes momentos da
constituição da obra, tanto no próprio ato de gênesis da obra quanto em uma interação posterior. O que Merleau
-
Ponty mostra é algo
que está por trás tanto do ato de escrita quanto o da pintura ou de outra arte
a expressão.
103
Ou seja, uma solicitação à interação feita pelo quadro de Matisse, ou pelo poema AdC em
execução. O gesto que é chamado é um gesto expressivo que tem por detrás dele o fundo
dessa expressão e de toda sedimentação vivida, e ainda o
outro
(e seu horizonte de sentido).
[eu outrem]
A interação de Matisse com o quadro, com aquela materialidade do mundo, também pode ser
relacionada a um diálogo com outro ser humano. Existe na conversa, na interação, um ato de
me instalar no outro, de se proje
tar em outrem, de permitir que o outro, através de suas
palavras, se instale em mim, até o ponto em que o diálogo não possa ser tido como apenas
meu ou dele, mas um entrelaçamento
que é constituído por ambos n
um jogo constante de
reviravoltas e investidas.
Não tenho como dizer o que foi puramente meu ou de outro, as
palavras, as construções, o aglomerado de linguagem em que nós nos tornamos solicita de
cada um as palavras, as ações necessárias (MERLEAU
-
PONTY
,
1974).
Se posso me instalar no outro e ele em m
im é porque não sou um monólito fechado ao mundo.
Se posso interagir com o mundo é porque este para mim é algo do qual jamais terei uma
apreensão total, jamais o terei
como qualquer objeto
em sua completude
94
. O mundo
também não se encontra fechado ou t
erminado, mas é sim uma estrutura aberta que permite
minha intervenção, que permite que eu
o
alcance
com
minha mão e o altere. Essa abertura do
mundo é minha abertura ao mundo que pede movimentos, solicita ações (MERLEAU
-
PONTY
,
2006).
Da mesma forma que o
mundo está sempre aberto, existe uma abertura em mim. É essa
abertura que permite o contato de um e outro, permite que um toque e seja tocado pelo outro
através de nossos atos expressivos. Apesar disso, sempre haverá uma falta, pois não posso
embrenhar
-
me
por completo no outro. Segue então que a abertura do mundo, essa
incompletude também é a da expressão, pois nem ela é total no seu ato de expressar, nem é
possível expressar tudo. Contudo, é justamente isso que permite
que se crie
, por exemplo, a
linguage
m, que se interfira nela e que ela reorganize nossa
expressão (MERLEAU
-
PONTY,
1974
).
94
O que não significa que o objeto não esteja completo, por exemplo, falando de uma obra de arte. A
incapacidade de apreender o objeto em sua totalidade diz resp
eito a nossa localização no mundo, nosso limite
perceptivo das coisas. Basta pensarmos que nunca veremos um cubo por todas as suas faces simultaneamente.
104
A expressão é então uma sedimentação que, porém, se altera: “a vontade de expressão ela
mesma é ambígua e contém um fermento que trabalha para modificá
-
la” (MERLEAU
-
PONTY
,
1974
, p.
49). Podemos dizer que a expressão, opera da seguinte forma: existe uma
parte fixada como fundo, entretanto, essa parte é alterada por outra que nasce de si mesma e
altera a totalidade do fundo expressivo. Ora, tal rearticulação não é um privilé
gio apenas da
linguagem, também é o modo do nosso corpo ser no mundo, tanto do corpo enquanto
motricidade, quanto do corpo enquanto percepção.
4.2
H
ábito
Pensemos em AdC. Ali nos encontramos diante um mundo que nos chama e nos
cerca.
Propomo
-
nos a habi
-
lo
e
,
para isso
,
precisamos apreendê
-
lo, para que nosso corpo aprenda
como estar diante
d
aquele objeto. Precisamos, no primeiro momento, torná
-
lo parte de nós e
tornar
-
nos parte dele, substituindo um estar
diante
da obra para estar
na
obra, sem que isso
signifique uma anulação de nossa corporeidade, mas sim um alargamento do nosso corpo
fenomenal. Pensamos no que Merleau
-
Ponty fala a respeito do hábito, como uma apropriação
do corpo, como um tornar parte do corpo. Mas, ao mesmo tempo em que torna algo pa
rte de si,
não o faz de uma forma pensada e calculada objetivamente por uma síntese intelectual. O
hábito é uma apropriação de uma forma de situação, é um ser afetado por, um ser tocado por.
Similarmente ao que acontece com a reconfiguração da totalidade d
a expressão em nós, ele é
um remanejamento e renovação do esquema corporal, do nosso estar no mundo (MERLEAU
-
PONTY
,
2006).
O hábito é a maneira com que um cego torna parte de si sua bengala. O cego não toca a
bengala que daí toca o chão, não faz ligeiros
cálculos de onde estará o objeto
através
da
bengala e a pressão que esta exerce sobre seus dedos, a bengala é uma extensão do seu corpo,
é
com
ela que ele toca: “A bengala do cego deixou de ser para ele um objeto, ela não mais é
percebida por si mesma, su
a
extremidade transformou
-
se n
uma zona sensível [...] tornou
-
se
análogo de um olhar [...] não intervém expressamente e como meio termo”, a bengala não
105
possui um caráter mediador, ela é parte do cego da mesma forma que seu braço o é
(MERLEAU
-
PONTY
,
2006
, p.
198)
95
.
O
hábito
compreende a capacidade do corpo de ampliar nosso ser no mundo, de expandir
nosso corpo fenomenal, de a
nexar instrumentos, ou melhor,
coisas ao nosso corpo. O hábito é
um compreender do corpo, um compreender que se entende como
“experiment
ar o acordo
entre aquilo que visamos e aquilo que é dado, entre a intenção e a efetuação
e
o corpo é
nosso ancoradouro n
um mundo.” (MERLEAU
-
PONTY
,
2006
,
p.
200).
Através do corpo se
nossa comunicação com o mundo
ele é nosso estar no mundo
, é atrav
és dele que
visamos o mundo, ele é nosso ponto de passagem em direção ao mundo; é por ele ser um
sistema aberto ao mundo, correlativo d
o mundo, que podemos alcançar
nosso horizonte e
trazer até nós o que encontramos, reconfigurando nosso estar no mundo
da mesma forma
que a linguagem pode reconfigurar nossa expressão (MERLEAU
-
PONTY
,
2006).
*
* *
4.3
C
riação
Podemos entender de Merleau
-
Ponty que eu me instalo no outro por via da linguagem, que
me instalo no outro por via da expressão e, ainda, que
me instalo no outro por meio de minha
obra. Ao criar uma obra condenso meu horizonte
de sentidos, minha vivência, n
um ato
expressivo. Crio algo no mundo.
Tenho a capacidade de me instalar em outro, porque somos abertos um ao outro (como o
mundo também o é
). Essa instalação de eu em outro (ou vice
-
versa) é feita pela expressão
(lembremos que a interação também é uma expressão). No meio digital, é necessário o hábito
para que eu possa manipular os utensílios que me permitem interagir, logo expressar (é
neces
sário habitar os aparatos técnicos não só para criar, mas também para fruir). Esse habitar
diz respeito às ferramentas e aos programas (enquanto limites e possibilidades na obra). Logo,
95
Quando falava no capítulo anterior sobre a constante mediação, em qualquer ato nosso no mundo, que s
e
tornava uma ausência de mediação, me referia ao hábito.
106
o ato de interagir na obra de arte digital é um ato (envolvendo o hábi
to) de me instalar no
criador e no seu processo criativo (novamente podemos falar de uma obra procedural).
Fundamentalmente, a interação deve ser compreendida como um ato de expressão, porém
,
uma expressão limitada materialmente às amarras da obra já cons
tituída
96
.
[me instalar no outro, outro se instalar em mim]
Quando leio e interajo com a obra, me lanço e tento entender as amarras e jogos propostos
pelo autor, habito de cert
o modo seu lugar de criador e tento estar
em domínio daquele objeto
que manuseio
, seja ele um romance contando a história de um marinheiro atrás de uma baleia,
seja de um poema engenhoso que me faça decifrar um
programa para poder lê
-
lo. A
o mesmo
tempo, se tal coisa me acontece, se me projeto no lugar do autor e sinto que participo do
desdobramento da obra, da interação completa daquele objeto, é porque, como nos diz
Merleau
-
Ponty, em algum momento o autor se projetou em mim:
Crio Stendhal, sou Stendhal lendo
-
o, mas é porque primeiro ele soube instalar
-
me
nele. A realeza do leitor é s
ó imagin
á
ria, já que ele tira toda sua pot
ê
ncia dessa
máquina infernal que é o livro, aparelho de criar significações.
[...] O momento da
expressão é aquele em que a situação se inverte, quan
do o livro toma posse do leitor
(MERLEAU
-
PONTY
,
1974
, p.
28).
Se
Stendhal, ou melhor, o Stendhal entranhado na obra, que falará, que alterará todo o
sistema de expressão do leitor, que irá reconfigurar aquilo que o leitor achava estável e
sacramentado. São aquelas linhas de letras e seu novo modo de l
eitura dos labir
intos barrocos
que reconfigurará minha apreensão do objeto literário
97
. O autor, ao criar, permite que outro o
habite. Ele, como disse Georges Perec, prevê os ardis da leitura, projeta as possibilidades
do leitor, os caminhos que ele poderá trilhar, os e
ngano
s que ele de sofrer. O autor
prevê,
ou esboça, os locais que o leitor irá tocar, as palavras que ele irá tentar mover. No caso digital,
o autor abre uma potencialidade de ação que o leitor poderá tomar. Ele se faz leitor e autor
quase simultaneamen
te, se coloca a esboçar caminhos e possibilidades, se permite cair nas
solicitações da própria obra enquanto a cria.
96
Lembrando que constituída não quer dizer fechada. Uma obra constituída, ou terminada, quer dizer que quem
a criou a completo
u em termos de sua intenção de
criá
-
la e a dispô
-
la para a fruição.
97
No
primeiro momento pode parecer que Stendhal reconfigura meu modo de ver o mundo social ou cultural,
não necessariamente a linguagem, pois esta nada me mostraria de novo em seus romances. E um poema barroco
reconfiguraria nossa apreensão da materialidade li
nguística, pois é nisso
que ele inova inicialmente. Contudo,
um
poema barroco pode reconfigurar nosso modo de ver o mundo, pois o linguístico não é uma camada diferente da
do mundo, o que vejo nas letras pode me servir para meu viver, afinal, o que está po
r trás dos jogos barrocos é
justamente uma visão de mundo em que o mundo é uma peça teatral, um grande jogo de Deus.
107
[previsão e esboço]
Todavia, não podemos assumir que isso se enquanto um ato objetivamente planejado ou
intelectualmente calculado. O a
to de prever aqui está contido no modo de habitar a obra que é
criada, de se projetar no outro que irá ler. Consiste
e aq
ui basta lembrarmos Matisse
n
um ato de diálogo com a obra. As linhas que o olho do leitor irá seguir ao olhar uma tela
como
La Dess
erte
de Matisse não foram friamente previstas, mas estão contid
a
s no seu modo
de pintar e de olhar o mundo, no seu ato motor e seu ato perceptivo. Quando Perec fala de
prever os ardis, podemos compreender isso como uma tentativa de ir escrevendo e lendo
re
versivamente, sem necessariamente impor uma d
istância entre os dois atos; ao contrário,
tenta
-
se
grudá
-
los, apesar de suas diferenças. Quase como se o ato criativo compreendesse
em sua expressão o olhar escrutinador
que vai
fruí
-
lo depois
98
.
Um exemplo
simples ou reduzido seria um labirinto como é o
Labirinto
Cúbico
de Anastácio
Ayres de Penhafiel apresentado no primeiro capítulo. Nele
,
o programa criado é uma
limitação do que o leitor poderá atingir materialmente; consiste em nivelar as possibilidades
d
e leitura a poucas escolhas. São possíveis um número X de caminhos e resultados. Logo,
pensando a criação desse labirinto, podemos dizer que o ato de criar é um ato de propor uma
materialidade trilhando
-
a, compreendendo
-
a enquanto limite. E, ao mesmo
tempo, não
podemos esquecer que esse limitar caminhos e possibilidades também é um propor caminhos
e possibilidades. Por criar um jogo como o labirinto, ele criou a possibilidade de uma leitura.
Limitar é também propor a existência de algo.
N
uma obra com
o AdC
no ato de interação
as limitações e possibilidades de leitura e
interação se sobrepõem, temos as posições das palavras, as ordens de leitura dos versos, os
caminhos entre as telas, todas elas elegem uma gama de possibilidades que não poderão mais
ser simplificadas a um ou outro caminho. Cria
-
se uma confluência de potências a serem
98
Para melhor compreendermos essa proximidade entre escrita e leitura poderíamos pensar no exemplo das
mãos que se tocam, ilustrado por Me
rleau
-
Ponty (2006): não posso ter, em uma mão que toca a outra, a
experiência de tocar e ser tocada simultaneamente, não posso sentir e ter a experiência de ser sentido
simultaneamente. Existe uma relação ambígua de constante reversão entre os dois atos
, em que uma mão
esboça o ato de se sentir sentindo. Talvez este seja o modo de entender o ato criati
vo: como um ato que não pode
ser
criar e ler ao mesmo tempo. Devemos pensar primeiro que ler é se dotar inicialmente de um texto a ser lido,
como o sugeriu
Alckmar Santos. Esse ato sim deve ser constante, mas à medida que me doto de um texto
,
esboço uma alteração nele, e daí devo atentar para a sua nova constituição novamente, pois um traço, uma letra,
altera todos os elementos que existem ao seu lado como também a estrutura total da obra.
108
efetivadas pelo leitor. Todas criadas por um autor que ao criá
-
las entreviu no seu ato
expressivo a leitura ou interação.
4.4
H
abitar
A
mor de
C
larice
[
interação
A
dC]
Em uma obra literária me instalo e dialogo pelas palavras, pelo significado para o qual elas
apontam. Porém, não se pode separar o ato da fala ou do gesto expressivo das demais ações
motores do corpo. As palavras são também gestos do meu corpo. E todo
gesto do meu corpo é
também um ato expressivo:
n
osso corpo não é apenas um espaço expressivo entre todos os outros.
[...]
Ele é a
origem de todos os outros, o próprio movimento de expressão, aquilo que projeta as
significações no exterior dando
-
lhes um lu
gar, aquilo que faz com que elas
comecem a existir como coisas, so
b nossas mãos, sob nossos olhos
(MERLEAU
-
PONTY
,
2006
, p.
202).
Nosso corpo está fundamentalmente na base de qualquer de nossos gestos expressivos. Não
podemos separar os diferentes atos de
expressão porquanto pertencem ao mesmo movimento
em direção ao mundo. Nem é possível olhar cada gesto separado da totalidade corpórea que
os compreende. Quando me movo para dizer algo é to
do meu corpo que se move em direção a
dizê
-
lo, todo ele se faz falan
te (MERLEAU
-
PONTY
,
2006). Em uma obra como AdC, em
que as palavras e os gestos se misturam, em que
minha interação se de forma a moldar
palavras com gestos motores
movendo versos e escolhendo caminhos e combinações
possíveis
, a suposta segregação en
tre palavras e gestos se desfaz na expressão.
Não faço, quando interajo com AdC, uma tradução do que vejo e do que devo mexer nas
teclas e mouse para conseguir criar uma certa disposição das palavras na tela. A separação
entre a visão e o ato motor é uma
concepção de uma análise intelectual posterior. Não é
necessário que eu interprete o que ocorre na tela para tomar uma ação. Meu corpo toma os
atos de leitura e movimento como imediatos, não é necessário instaurar um processo e pensar
todas as possibilidad
es de movimentação:
109
Assim, a conexão entre os segmentos de nosso corpo e aquela entre nossa
experiência visual e nossa experiência tátil não se realizam pouco a pouco e por
acumulação. Não traduzo os “dados do tocar” para “a linguagem da visão” ou
inversa
mente; não reúno as partes de meu corpo uma a uma; essa tradução e essa
reunião estão feitas de uma vez por todas em
mim: elas são meu próprio corpo
(MERLEAU
-
PONTY
,
2006
, p.
207)
.
O ato de interação com o poema digital não passa então por uma tradução vis
ual
-
motora ou
vice
-
versa. Não preciso pensar as teclas e o mouse como se nunca os tivesse tocado e ainda
manter em vista uma conjugação entre esses atos motores e o que vejo e acontece na tela. Não
preciso planejar o quanto e onde irei mover o mouse fisica
mente sobre a mesa para que o
cursor chegue até o verso desejado e daí, ao alcançá
-
lo, eu possa movê
-
lo
-
levando em
consideração mais uma ação motora que será a de manter meu dedo pressionado sobre a tecla
esquerda do mouse enquanto observo também o percu
rso visual do verso, mantendo a ação
motora da mão sobre o instrumento. Eu os habito, eles se tornam, através da utilização, parte
do meu corpo, é por eles que interajo, é por eles que toco o poema. O movimento que faço no
mouse para alterar uma estrutura
de versos visualmente na tela não necessita de uma tradução,
não preciso ficar constantemente atualizando uma relação entre tela visual e os movimentos
de minha mão sobre os periféricos do computador.
Quando falava no capítulo dois a respeito de uma confl
uência de mídias em AdC, de um
enxame sensorial, da sobreposição de diferentes mídias, e ainda de uma interação com essas
mídias visuais, sonoras e táteis, tinha em mente que a ligação entre nossos movimentos
motores e a materialidade digital passa por um
suporte computacional de mouse, tela e outros
periféricos, que apenas se a nosso mundo através desses objetos. O ato de interagir com
aqueles elementos sensoriais midiáticos não é um ato de distância entre o eu que manipula o
objeto manipulado. O ato de
ler e de interagir são ações vizinhas. Posicionar as palavras e ver
onde posso mexer no poema é um ato de leitura da obra tanto quanto ler as palavras. Ambos
consistem em se dotar de um texto para ler, como nos mostrou Alckmar Santos
(2003)
. E para
ambos
é necessário compreender a obra; adotando “compreender” no sentido mais amplo
sugerido por Merleau
-
Ponty
(2006)
quando este fala do hábito, mencionado anteriormente
nesse capítulo, ou seja: experimentar o acordo entre a intenção e a efetuação.
[Habitar o
computador
a ferramenta]
Manusear um objeto no computador é também manusear o computador. Estendo minha mão e
toco esses aparatos que descansam sobre minha mesa, toco essas materialidades que me
110
possibilitam interagi
r com o meio digital. No entanto,
para
manuseá
-
los de modo a
verdadeiramente conseguir viver o digital é necessário que eu os habite, que eles passem a
integrar meu corpo como a bengala é para o cego, ou seja, sem um distanciamento. É preciso
que eu me deixe tocar por aqueles adereços essencia
is para que eu possa tocar a materialidade
da obra.
Esses objetos
,
como mouse ou teclado
,
devem se integrar ao meu corpo, se tornar parte do
meu esquema corporal, se tornar como que minhas mãos enquanto os uso. O que quer dizer
efetivamente integrar meu e
squema corporal. Com isso, quando interajo, não precisarei olhar
para coordenar as minhas ações e o que
ocorre no poema. Compreender
através do hábito, é
,
como foi di
to, experimentar o acordo entre a intenção e a efetuação.
É entender
imediatamente o qu
e meu corpo faz e o que vejo sem necessitar interpretar meus gestos ou o
que vejo para depois tomar uma ação, é experimentar as ferramentas como parte da minha
síntese corporal.
O
esquema corporal opera como uma síntese imediata da totalidade do meu corpo
. Não
preciso, no meu corpo, procurar meu braço ou minha perna objetivamente, eu sei
instantaneamente onde eles se encontram, até mesmo se estão ocultos por alguma obstrução
de
minha visão, como de baixo de uma mesa ou dentro de um sapato.
N
um lance
instan
tâneo
tenho as localidades de cada parte do meu
corpo dadas a mim sem precisar de uma
constatação visual. Com isso também não preciso pensar objetivamente minhas ações no
mundo para executá
-
las, não preciso traduzir a minha percepção para uma ação motora.
Assim, o hábito motor é também um hábito perceptivo (MERLEAU
-
PONTY
,
2006).
[Hábito e programa]
Ao mesmo tempo em que posso falar do hábito com relação ao computador, também o posso
com relação ao programa que manipulo. Ao mesmo tempo em que posso tornar p
arte de
minha existência esses periféricos tecnológicos que se dispõem diante de mim, também posso
tornar parte do meu corpo fenomenal os processos que operam na máquina.
O hábito, segundo Merleau
-
Ponty, “reside, entre a percepção explícita e o movimento
efetivo,
nesta função fundamental que delimita ao mesmo tempo nosso campo de visão e nosso campo
de ação.”
(2006
, p.
210). Ele nos mostra o quanto estão profundamente enraizadas uma na
outra nossa percepção do mundo e nossas possibilidades de ação dentro d
ele. Não posso
111
dissociar os dois, da mesma forma que não posso dissociar o que percebo da obra, tanto
visualmente, quanto em termos de funcionamento, das possibilidades expressivas que posso
exercer nela.
No primeiro capítulo dei ênfase ao ato de apreende
r o programa para poder ler a obra. O ato
de apreender o programa
significa
um ato de ent
ender o funcionamento da obra,
dando
margem a uma leitura. Para poder interagir efetivamente com a obra é necessário tanto habitar
o computado
r como
materialidade, qua
nto o computador como programa, como conjunto de
regras e restrições mencionados no terceiro capítulo.
Com efeito, deve
-
se
compreender
também o programa do poema, não “o programa
Macromedia Flash
ou
actionscript
que uso
para compor tal e tal poema”
,
mas si
m o programa como as regras de operação efetivas
materialmente dispostas ao meu toque e olhar
que estão vivas no poema.
Ressalta
-
se que h
abitar o computador, ou habitar o programa não são coisas absolutamente
diversas. Adquirir um hábito, como nos mos
tra Merleau
-
Ponty, é quando o sujeito:
adquire
o poder de responder por um certo tipo de soluções a uma certa forma de
situações, as situações podendo diferir amplamente de um caso ao outro, os
movimentos de resposta podendo ser confiados ora a um órgão e
fetuador, ora a
outro, situações e respostas assemelhando
-
se nos diferentes casos muito manos pela
identidade parcial dos elementos do que pela comunidade de seu sentido
(MERLEAU
-
PONTY
,
2006
, p.
197)
.
Logo, se apreende uma generalidade da interação com a
máquina. Porém, da mesma forma, o
poema não é apenas um aparato no computador, ele é esse aparato, esse programa alterado e
levado a um fim estético. Pode
-
se saber utilizar o computador e seus programas
,
mas não
saber como interagir com AdC, pois esta aind
a é um objeto estético que não se deixa nivelar a
propósitos utilitários para os quais a máquina foi originalmente projetada.
4.5
N
ó de significações
Ficou claro que é necessário habitar o computador e o programa para poder interagir com a
obra. Que o
ato mesmo de interação é um ato de ex
pressão que permite que o autor e o
leitor
se instalem um no outro.
É um ato próximo ao de criar, é uma intencionalidade.
A ob
ra, essa
112
modulação do mundo, é parte do mundo de onde foi criada, não pode
ndo
ser d
i
ssociada
de
sua materialidade
e
de seu meio.
Ela é esse ponto de cruzamento de mídias e possibilidades
ainda abertas. Ela é uma modulação do mundo.
O poema digital é esse de significações que não pode se anular na leitura, não pode sumir
gentilmente ao fundo de
no
ssa percepção quando lemos, visto que
ele torna tanto sua
materialidade quanto seu meio em significantes. Ele torna sua especialidade um fator, um
significante que não pode ser ignorado no ato de leitura e interação. Ele se faz coisa material e
viva. O
poema digital é uma expressão que atravess
a quem cria, o que é criado, e aquele
que a
frui.
4.6
O
riginalidade do ato
O que tentei aqui foi compreender alguns fatores da interatividade do poema digital. Interação
essa que se mostrou não apenas necessári
a par
a leitura, mas um ato
primordialmente
necessário
ao poema digital para que es
t
e possa ser lido. Qualquer ato interpretativo
direcionado a um poema digital te que levar em consideração a interação. Ou ainda, a
interpretação só pode se dar após uma le
itura que pressupõe a interação.
O ato de interação é um ato de
originalidade
na obra
originalidade entendida como aquilo
que origem, como o início do movimento do leitor na obra
, ou seja, como um ato de
criação no microcosmo que é a obra. Concerne
nte
a
o que governa esse ato, u
ma an
á
lise
posterior diria que
infinitas possibilidades, mas na realidade
,
como para Matisse,
havia
apenas uma,
apenas uma que era requisitada pela obra,
apenas uma que poderia ser executada,
e assim o
é
. Existe uma infinid
ade de dados que estão presente
s para uma análise posterior
do
ato criativo
, pois, como Merleau
-
Ponty o disse, somos um nó de significações.
Ou ainda como
o diz T. S. Eliot
na primeira parte de seu poema
Burnt Norton
: What might have been and
what has been
/
Point to one end, which is always present (ELIOT
,
1962
, p.
117)
99
.
99
“O que poderia ter sido e o que foi / Apontam par
a um fim, que é sempre presente” (tradução do autor).
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Existem algumas considerações a serem feitas nesse fim de trabalho. Uma diz respeito ao
modo de abordagem do objeto dessa pesquisa, e as outras dizem respeito dire
tamente ao
objeto da mesma.
Continuum
A primeira questão a se considerar diz respeito ao
continuum
que engloba a poesia digital.
Olhei nesse trabalho poemas de épocas diferentes que vieram à tona muito antes de qualquer
poema digital, mas que convergem c
om a poesia digital quando se trata dos métodos e modos
de se proporem enquanto obra, ou seja: no modo de se
dispor materialmente e de se oferecer à
leitura, enquanto obras procedurais que não focam exclusivamente no objeto final nem
unicamente no processo
.
Quis salientar com esse tipo de abordagem, embasado nas leituras de vários autores
apresentados ao longo desse estudo, que não podemos encarar a criação digital como
totalmente nova. Existe nas criações desse meio, aspectos e potências inovadoras que nã
o
podem ser ignorados, mas que ao mesmo tempo não surgem
ex
-
nihil
, elas se inserem n
um
continuum
que faz parte de construções
poéticas já em jogo no mundo.
Se somos tomados por um instinto de novidade, de pensar a arte digital como absolutamente
nova, est
e se deve em grande parte, na arte como em todas nossas vidas, a um imaginário
tecnológico, ideologia enraizada em nossos dias, sempre a nos incentivar a adquirir o mais
novo aparelho celular, o mais novo computador com o mais potente processador (muitas
v
ezes para que possamos apenas desfrutar de suas funções básicas), e ainda pior: a nos
impulsionar sempre a modismos, ou de criarmos obras subjugadas pela novidade dos
dispositivos disponíveis no meio
100
.
100
Para um estudo mais completo sobre a questão de um imaginário tecnológico veja: CABRERA, Daniel H.
Lo
tecnológico y lo imaginário
.
Las nuevas tecnologías como creencias y esperanzas colectivas. Buenos
Aires:
Editorial Biblos, 2006.
114
Obviamente, da arte não pode se excluir a alteração e
inovação,
entretanto,
o que não pode
ocorrer é que as mudanças e inovações tanto na criação quanto na crítica sejam derivadas de
uma ideologia de consumo tecnológico, filho distante do positivismo tão bem criticado por
um Conrad ou um Dickens.
Assim, sal
ientamos que as
cnicas mudaram, todavia,
continuam a existir algumas
características básicas que permanecem nos atos de criar e de ler.
Ver o
continuum
E se ainda olhamos as criações digitais como algo completamente novo dentro da arte, isso se
deve a
dois outros fatores: uma falta de conhecimento das obras do meio digital (digo mesmo
uma falta de leitura digital, de vivência crítica do meio), e uma falta de conhecimento das
obras antigas
do
continuum
histórico das criações artísticas e seus modos de
ser
que
podem nos ensinar algo tanto da configuração m
aterial das obras digitais quant
o do nosso
próprio ato de leitura (sem dizer do objeto artístico).
Devemos ler a criação digital na linha do tempo que lhe pertence, com toda a história. Isso
não diz
respeito a um trabalho simplesmente arqueológico de ler todas as nuanças do passado,
mas a de entender a criação digital na totalidade expressiva que a engloba. O que significa
entendê
-
la como ato expressivo visando um mundo que se aproxima d
e
outras const
ruções
que a antecederam, tanto na poesia quanto na arte em geral. No caso específico
, um mundo
que conté
m o digital (mas não olha apenas para o digital).
Devemos ler a criação digital não apenas como digital, mas antes de tudo como criação, como
expressã
o artística.
Arte digital
Este foi um dos meus propósitos nesse trabalho: verificar e el
enc
ar
elementos que permitem
pensar estética (“bela criação”) e literariamente (“literária”) uma criação digital
(
Amor de
Clarice
). Perceber a
existência de uma arte
digital
e
,
acima disso
,
de uma literatura digital.
-
la, fruí
-
la esteticamente e, depois, analisá
-
la. Entender porque essa obra
pode ser chamada
de literatura,
e ainda mais, de poema. Quis fazer isso sem me apoderar de termos literários e
11
5
sem alocá
-
los di
retamente à criação digital, mas procurei compreender o que certos elementos
da obra apontavam e, a partir disso, aliar o conceito à medida que ele realmente servia à
leitura da obra. Ou seja, quis explorar a obra, lê
-
la e entendê
-
la através do que ela ped
ia, olhá
-
la, e tocá
-
la, repetidamente, até aprender com a obra como ela mesma se daria à leitura.
Expressão
Com isso, foi também possível ler a interação como uma das características fundantes da
poesia digital. A interação como um ato expressivo, um pas
so de contato entre horizontes por
meio de um programa na materialidade da obra. Tal programa se na materialidade,
transcendendo
-
a, per
mitindo ao leitor tocar o autor,
que a obra altere a estrutura de mundo, o
fundo de expressão e o estar no mundo do le
itor.
Hábito
Desejo esclarecer que a
construção dessa dissertação
não foi movida
por uma aplicação do
hábito merleaupontiano na poesia digital ou na poesia
-
visual barroca. Nada mais distante.
O
que houve foi uma aprendizagem das obras, uma frequentação e
vivência daqueles objetos e
uma tentativa de habitar aquele mundo, aquelas possibilidades. O que, inevitavelmente,
implica, daí sim, uma absorção da filosofia de Merleau
-
Ponty. Houve então a possibilidade de
entender Merleau
-
Ponty e as consequências de su
a filosofia para a leitura daqueles objetos e
de seu modo de operação, houve também, inversamente, a aprendizagem dos objetos, um
entender de seu funcionamento. Ou seja, houve uma aprendizagem e leitura contínua e
ambivalente
no sentido de utilizar a fil
osofia para iluminar aspectos da literatura e vice
-
versa.
No fim desse percurso, posso dizer que essa dissertação não foi apenas um caminho de
aprendizagem metodológica de pesquisa no sentido meramente intelectualista, ela representou
uma experiência e a
reflexão dessa vivência, uma reconfiguração do meu estar no mundo, de
estar entre as coisas. Ela, enquanto esse processo de dúvida e de habitar o mundo, não pode se
restringir a dois anos previstos, pois com ela está o percurso de todos os caminhos
possíve
is
encerrados n
um presente, apreendidos n
um agora que ainda permanece em movimento.
116
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120
GLOSSÁRIO
de termos informáticos
Actionscript
linguagem de programação utilizada na criação de arquivos flash.
C
ódigo fonte
tipo de escrita, com u
m tipo linguagem de programação específica, utilizada
para criar um aplicativo ou arquivo. Por exemplo: o código fonte de um sítio é escrito em
html
.
Director
programa originalmente criado para criação de sequências de animação, pequenos
filmes ou até m
esmo pequenos aplicativos interativos, tendo capacidade de trabalhar tanto
com objetos em 2D quanto 3D.
Exemplo de criações:
Le livre des Morts
Xavier Malbreil e Gérard Dalmon
http://www.livresdesmorts.com/
Palavrador
Franscisco Marinho et all
-
http
://www.ciclope.art.br/?p=37
Flash
plataforma multimídia leve usada especialmente para animações, vídeos e
interatividade. Criada em programa de mesmo nome, é um dos arquivos mais usados na
criação de poemas digitais.
Exemplo de criações:
Amor de Clarice
Rui Torres
http://www.telepoesis.net/amorclarice/index.html
Oratório
André Vallias
http://www.andrevallias.com/oratorio/
Fla
tipo de arquivo de trabalho flash que ainda não foi compilado e fechado.
Html
tipo de arquivo mais comum para confec
ção de páginas na web que pode conter
vários outros tipos de arquivos (como flash, imagens, etc.).
Exemplo de criações:
Grammatron
Mark Amerika
http://www.grammatron.com/
Lingo
linguagem de programação utilizada para criar arquivos no Directo.
Scri
pt
parâmetro de ações a serem executadas por um aplicativo ou arquivo.
Swf
tipo de arquivo do flash compilado e pronto para publicação, não podendo mais ser
editado.
Template
palavra inglês que designa um modelo. É utilizada no meio digital para
nomear
algum código semi
-
pronto, sendo apenas necessário que o usuário preencha alguns dados
(geralmente concernente às especificações que ele deseja dar ao objeto) para ser utilizado. Por
Exemplo: um template visual de uma página na web, em que o usuário
necessita apenas
adicionar suas próprias informações (como é comum em blogs); template para um cubo
tridimensional em flash; ou o template para movimento aleatório de flash, em que o usuário
apenas preenche com os objetos que ele queira que se mexam, velo
cidade dos mesmos, tempo
inicial do movimento etc.
Vrml
tipo linguagem e arquivo utilizado para criação e modelagem de objetos em 3D
(substituído pela pelo X3D).
Exemplos de criações:
Cubo
Alckmar Santos e Gilbertto Prado
http://www.cce.ufsc.br/~nup
ill/hiper/cubo.wrl
Soneto 2
Alckmar Santos e Gilbertto Prado
http://www.cce.ufsc.br/~nupill/hiper/soneto2.wrl
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
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