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UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA
DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES
MESTRADO EM LITERATURA E INTERCULTURALIDADE
MYRNA AGRA MARACAJÁ MAIA
OBSCENIDADE DO ABANDONO: A DEVASTAÇÃO FEMININA EM
MARILENE FELINTO
Campina Grande-PB
2010
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1
MYRNA AGRA MARACAJÁ MAIA
OBSCENIDADE DO ABANDONO: A DEVASTAÇÃO FEMININA EM
MARILENE FELINTO
Dissertação apresentada ao Mestrado em
Literatura e Interculturalidade da Universidade
Estadual da Paraíba, área de concentração
Teoria da Literatura, na linha de pesquisa
Estudos sócio-culturais pela literatura, em
cumprimento à exigência para obtenção do
grau de mestre.
Orientador(a):Dr. Antônio de Pádua Dias
da Silva
CAMPINA GRANDE - PB
2010
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2
MYRNA AGRA MARACAJÁ MAIA
OBSCENIDADE DO ABANDONO: A DEVASTAÇÃO FEMININA EM
MARILENE FELINTO
Aprovada em _____/_____/ _____
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Prof. Dr. Antônio de Pádua Dias da Silva
Orientador (Presidente da banca)
___________________________________________
Profª. Drª. Liane Schneider - UFPB
Examinadora
___________________________________________
Prof. Dr. Sebastien Joachim - UEPB
Examinador
3
A Jader, meu homem, com quem me invento Mulher.
4
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Eneida Agra Maracajá, que se faz mulher de coragem, paixão e ousadia,
inspirando minha existência;
A meu pai, Robério Maracajá Henriques, de quem herdei o gosto pela literatura, que assiste a
mais essa vitória no firmamento da infinitude de sua alma;
A meu marido Jader e minha filha Manon, que, com amor, souberam suportar minhas
ausências;
Ao meu estimado orientador, também amigo, Dr. Antônio de Pádua Dias da Silva, por apostar
em mim e me abrir o caminho para os estudos de gênero, respeitando e acolhendo meu desejo
decidido pela psicanálise;
À professora Drª. Liane Schneider, que aceitou prontamente o convite para participar da
banca examinadora;
Ao grande mestre Dr. Sebastien Joachim, pela inestimável contribuição ao meu trabalho e
pelas adoráveis provocações psicanalíticas deixadas em sala de aula, na disciplina Psicanálise
e cultura;
À professora Drª. Sudha Swarnakar, que participou da banca de qualificação, trazendo
importantes considerações para este trabalho;
Às queridas professoras, Drª. Goretti Ribeiro e Drª. Geralda Medeiros, que encheram de
ternura e encantamento a minha passagem pelo MLI;
Aos colegas de turma, que trilharam comigo essa longa jornada, especialmente Álisson de
Albuquerque, Romualdo Correia e Ivon Rabêlo, com quem pude dar boas risadas;
Ao secretário do mestrado, Roberto Santos, disponibilidade afetuosa sempre presente;
À psicanalista Cassandra Dias, que fez cuidadosa revisão dos conceitos psicanalíticos
utilizados nesta pesquisa;
À psicanalista e amiga de todas as horas, Cristina Maia, que disponibilizou grande parte da
bibliografia, aqui utilizada, sobre o feminino na psicanálise.
5
Um livro precisa do leitor, mais do que o leitor imagina. Talvez
seja o livro a mais solitária das existências materiais. Este que
se constrói num caminho de aparente excessivo egoísmo,
precisa do leitor que acredite na raiva como uma possibilidade
amorosa; e que tenha paciência de atravessar com ele esse
caminho cheio de pedras. Do contrário, ele não serve para nada
(FELINTO, 1992, p.10).
6
RESUMO
A literatura de ficção tem emergido como um lugar de observação das representações
construídas acerca das relações de gênero, sendo sobre a personagem que melhor se pode
sentir as modificações sofridas pelos sujeitos reais. Estudos sobre a representação do feminino
na literatura têm problematizado o comportamento de algumas personagens mulheres na
contemporaneidade que, mesmo após as conquistas do movimento feminista e da revolução
sexual, continuam revelando uma extrema dependência psíquica e afetiva do masculino.
Apostando-se, assim, que a linguagem literária pode aproximar-se da complexidade da
realidade, este trabalho propôs-se, através de uma obra brasileira contemporânea, intitulada
Obsceno Abandono: amor e perda (2002), cuja autoria é de Marilene Felinto, a discutir essa
constância na representação da posição feminina na relação amorosa, a partir de um conceito
advindo da psicanálise o de devastação. A fim de cumprir com esse objetivo, utilizou-se as
contribuições freudo-lacanianas, assim como alguns autores que pensam sobre o mal-estar
contemporâneo. Para a psicanálise, homens e mulheres assumem posições diferenciadas no
amor, havendo um modo de gozar masculino e outro feminino. No caso da mulher, a demanda
de amor que dirige ao seu parceiro é infinita, o que impossibilita uma reciprocidade por parte
deste, podendo levá-la à devastação. Na obra analisada, a narradora-personagem repete o
traço de devastação que vem sendo observado nas atuais obras de autoria feminina. Através
da análise das falas desta personagem pôde-se refletir sobre essa constância, não como um
sujeitamento ao masculino, mas como algo que resiste na questão do feminino e que emerge
no sujeito mulher, denunciando algo de sua subjetividade. Concluiu-se que não importa muito
se a mulher é contemporânea ou não, seja na realidade ou na ficção, ela não quer renunciar ao
desejo de ser amada, podendo submeter-se, para lograr êxito em seu intuito, a toda sorte de
coisas, devastando seu ser e aniquilando-se enquanto sujeito. No entanto, o amor não oferta à
mulher apenas essa posição de devastada, podendo ser o meio para atingir uma felicidade
extrema, desde que ela possa consentir com o ato de amor, prestando-se a funcionar como
objeto causa de desejo para um homem.
Palavras-chave: Literatura. Feminino. Devastação
7
ABSTRACT
The literature of fiction has emerged as a place of study on representations built on gender
relations, being the character who can best feel the changes suffered by the real subjects.
Works about feminine´s representation in literature have questioned the behavior of some
female characters in contemporaneousness that even after the gains of the feminist movement
and sexual revolution, still show an extreme mental and emotional dependence on male. So,
betting that literary language can get closer to the complexity of reality, this work proposes,
by a brazilian contemporary work entitled Obsceno Abandono: amor e perda [Naughty Early:
love and loss (2002)], authorship of Marilene Felinto, the discussion about the constancy in
representation of feminine's position in love relationship, from a concept originated from
psychoanalysis - devastation. To reach this aim, freudo-lacanian contributions were used, as
well as some authors who think about the contemporary discontent. For psychoanalysis, men
and women assume different positions in love, there are male and female ways of enjoying. In
the case of woman, the demand of love that she drives to her partner is infinite, what makes
impossible his reciprocity and can take her into devastation. In the work considered, the
narrator-character repeats the trace of devastation that has been observed in the current works
authored by women. By analyzing the statements of this character it was possible to reflect
about this constancy, not as a submission towards the male but as something that resists on
the feminine question and emerges from the subject woman denouncing something of her
subjectivity. From this work it´s possible to conclude that it doesn´t matter how contemporary
the woman is, whether it´s reality or fiction, she doesn´t want to renounce the desire to be
loved, possibly being submitted to all sorts of things to achieve success in her order,
destroying her being and annihilating herself as a subject. However, love does not only offer
this devastated position to the woman, but can be the way to achieve extreme happiness, as
long as she consents to the act of love, letting herself to serve as object cause of desire for a
man.
Key-words: Literature. Feminine. Devastation
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 9
1 Da catástrofe à devastação: que lugar para a mulher na relação
amorosa? ....................................................................................................... 20
1.1 O sexual é traumático ...................................................................................................... 26
1.2 A mulher freudiana: um continente obscuro ................................................................ 30
1.3 A mulher não existe: o que Lacan diz sobre as mulheres ............................................ 36
1.4 A devastação feminina: a outra face do amor ............................................................... 55
2 Devastação: um gozo fora-da-lei .................................................................. 69
2.1 Abandono: maldição que aniquila mais que a morte .................................................. 74
2.2 Obsceno: a impossibilidade de ser a única .................................................................. 103
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 125
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 145
9
INTRODUÇÃO
É flagrante o esforço, por parte de pesquisadores das mais diversas áreas do
conhecimento, em teorizar e promover profícuas discussões sobre a cena contemporânea.
Uma série de novos significantes têm sido utilizados para nomear o momento atual: a pós-
modernidade de Lyotard (2002), a alta modernidade ou modernidade tardia de Giddens
(2002), a hipermodernidade de Lipovetsky (2004) e a modernidade líquida de Bauman
(2004), para citar alguns exemplos.
O que perpassa esses significantes é a constatação de que o mundo está em constante
trânsito e de que as identidades não são mais tão fixas. Para Melman (2003), estamos diante
de uma “crise de referências”, onde os sujeitos encontram-se sem balizas, desnorteados,
desbussolados.
Lipovetsky (2007) sustenta a tese de que, na sociedade do hiperconsumo em que
vivemos, a felicidade é paradoxal, pois ao lado de tantos avanços tecno-científicos e de uma
liberdade tão excessiva, está uma sociedade depressiva e medicalizada. O cenário
contemporâneo tem sido o cerne de reflexões diversas e, entre elas, podemos destacar as que
têm sido promovidas pelos estudos de gênero. O binarismo sexual tem sido questionado e
redefinido. Fala-se em diversidade sexual, em sexualidades e performatividades,
redimensionando as fronteiras entre os sexos. Na obra de Butler (2003), por exemplo,
podemos encontrar uma fervorosa crítica ao modo como a diferenciação entre sexo e gênero
foi construída, como resultado de teorizações naturalistas e essencialistas.
Dentre os muitos discursos utilizados pelos estudos sobre as relações de gênero,
localizamos a literatura de ficção como um lugar de verificação das representações
construídas acerca dessas relações. De acordo com Abreu (2001), o eixo central da ficção está
10
na sua relação com a realidade, pois a linguagem ficcional funciona como um duplo da
linguagem da realidade.
Os estudos de gênero têm encontrado, na literatura, uma ampla possibilidade de
debate, fato este que é amplamente observável no que se denomina de literatura gay e
literatura de mulheres. Sem adentrar na problemática pertinente a essas nomeações, as obras
que versam sobre temáticas pertinentes às minorias sexuais e as que são de autoria dessas
minorias, têm sido tomadas como referencial para as discussões de gênero.
Dalcastagnè (2005, p.63) afirma que o conceito de representação sempre foi crucial
para os estudos literários, mas que, agora, possui maiores ressonâncias políticas e sociais. Não
se trata de postular que a literatura funciona como um “espelho da realidade”, mas que nela e
através dela podemos apreender algo das dinâmicas que permeiam a sociedade: “[...] algumas
lutas por direitos civis desembocaram também na literatura, fazendo com que mulheres,
negros, homossexuais, índios começassem, timidamente, a se revelar na condição de
escritores”.
Nesse sentido, destacamos a pesquisa empreendida por Silva (2009), sobre a
representação do feminino na literatura, a partir de textos de autoras brasileiras
contemporâneas. No referido trabalho, o autor discute sobre um “equívoco” encontrado no
comportamento das personagens mulheres estudadas, que, longe de admitirem uma plena
emancipação política e sexual, permanecem sujeitadas às estruturas patriarcais, ou seja, essas
personagens demonstram um “elevado grau de dependência psíquica” em relação ao homem.
O que o autor problematiza é a constatação de um paradoxo. Se, como conseqüência do
movimento feminista e da revolução sexual, as autoras até então silenciadas, ou então
acusadas de fazer uma literatura açucarada – ganham liberdade para escrever, o que aparece é
uma escrita ainda muito marcada por relações assimétricas de gênero.
11
Lipovetsky (2000), ao analisar a mulher que emerge na cena social da segunda metade
do século XX, denominada por ele de “terceira mulher”, faz a seguinte observação:
Mas o advento da mulher-sujeito não significa aniquilação dos mecanismos de
diferenciação social dos sexos. [...] Ainda pouco, o mais estimulante era pensar o
que mudava radicalmente na condição feminina; em nossos dias, de alguma maneira
a situação se inverteu. É a continuidade relativa dos papéis de sexo que aparece
como fenômeno mais enigmático, mais rico de conseqüências teóricas, mais capaz
de nos fazer compreender a nova economia da identidade feminina nas sociedades
da igualdade
(LIPOVETSKY,2000, p. 12)
.
Essa idéia de uma “continuidade relativa dos papéis de sexo”, defendida por
Lipovetsky (2000), vem corroborar a constatação a que Silva (2009, p.49) chega, em sua
pesquisa sobre a representação da personagem mulher na ficção contemporânea de autoria
feminina: “O que ocorre é uma espécie de reprodução parcial do esquema ou da lógica
masculinista que interfere no cotidiano das mulheres, fazendo-as dependentes dos homens,
esmolando um afago, implorando um acesso [...]”. Para o referido autor, essas personagens
aparecem, de um lado, extremamente dependentes de um homem, de outro, entregues à
solidão, à vingança e ao ódio.
Essas personagens mulheres representadas na literatura de ficção contemporânea
também fazem parte do mundo em que vivemos. Sabemos que uma determinada realidade
impulsiona uma determinada representação, mesmo que não a reflita fidedignamente.
Apostando, assim, que a linguagem literária pode nos aproximar da complexidade da
realidade, propomo-nos, através de uma obra brasileira contemporânea, intitulada Obsceno
abandono: amor e perda (2002), cuja autoria é de Marilene Felinto, discutir o conceito de
devastação, a partir de como a representação da posição feminina na relação amorosa aparece
no romance escolhido.
Reconhecendo, ainda, que os dramas vividos pelas personagens são muito próximos
dos experimentados pelas mulheres reais, adotamos como referencial teórico para análise da
obra pressupostos teórico-conceituais da psicanálise, especificamente as contribuições
12
freudianas e lacanianas acerca do feminino. O conceito de devastação, aqui tomado como
foco principal da análise, assume uma significação especial quando abordado pelo viés
psicanalítico. Devastação é a tradução do termo francês ravage, derivado do verbo ravir, que
significa arrasar, fazer estragos. Em português tem o mesmo sentido, sendo utilizado no
vocabulário geográfico com o significado de: “destruir, assolar, danificar, arruinar, tornar
deserto, despovoar” (FERREIRA, 1975, p. 471). De acordo com o psicanalista francês
Jacques Lacan, a devastação é o que recai sobre a mulher, como retorno de sua demanda
infinita de amor.
Para a psicanálise, as dessimetrias entre os sexos e suas conseqüências são passíveis de
serem melhor observadas na relação amorosa. Homens e mulheres assumem posições
diferenciadas no amor, havendo um modo de gozar masculino e outro feminino. No caso da
mulher, a demanda de amor que ela dirige ao seu parceiro é infinita, “[...] a tal ponto que o
limites às concessões que cada uma faz a seu homem: de seu corpo, de sua alma, seus
bens” (LACAN, 1993, p. 70).
Na literatura de ficção atual, de autoria feminina, podemos perceber esse traço de
devastação. Em Obsceno Abandono: amor e perda (OA)
1
, por exemplo, encontramos uma
mulher devastada, que, entregue ao abandono pelo homem amado, vinga-se através de um
desabafo enlouquecido e voraz, fenômeno percebido por Silva (2009), ao elencar uma série de
escritoras brasileiras contemporâneas cuja representação de personagens mulheres são
estudadas a partir do que ele chama de “traço de dependência físico-psicológica”.
Acreditamos que, sobre esse traço que se repete, sem cessar, não para as mulheres,
mas também para os homens, a psicanálise tem muito a dizer. O tema do amor e de como
amam homens e mulheres é fundamental para a psicanálise, que denuncia, desde Freud
(1996), em seu artigo sobre “O mal-estar na civilização” (1930[1929]), que uma
1
A partir de agora, utilizaremos a abreviação OA para referirmo-nos à obra analisada no presente estudo.
13
impossibilidade radical que impede o sujeito de alcançar a felicidade e que há pelo menos três
razões para isso: a fragilidade do corpo; os poderes superiores da natureza; as dificuldades
inerentes às relações com os outros seres humanos. Assim, o amor aparece como uma
possibilidade de se atingir a felicidade. Mas, Lacan (1972-73), em seu Seminário 20 (1985)
situa o amor como uma ilusão, uma tentativa imaginária de fazer Um. É essa ilusão que
permite o laço social, retirando os sujeitos da solidão. Nesse Seminário, Lacan (1985), ao
dizer que não há relação sexual, no sentido de uma complementaridade, localiza o amor como
algo que vem em suplência dessa relação que não existe. Ele afirma que entre um homem e
uma mulher há um muro, que ele chama amuro, ou seja, o que há é um artifício que
possibilita o sujeito saltar esse muro.
Através das contribuições psicanalíticas sobre o amor e de como homens e mulheres
assumem posições assimétricas na relação amorosa, destacaremos como isso se do lado da
mulher:
As mulheres são as que sustentam a necessidade do discurso amoroso. Para as
mulheres o amor é condição para o gozo. O modo de gozar dos homens é
predominantemente silencioso, ao contrário do modo das mulheres que desejam que
se fale com elas e também as escutem (
SOLANO, 2006, s/p)
.
O homem sabe o caminho do gozo, a mulher sabe o do amor. A mulher tem por
premissa que se faz amor falando, para ela o amor está enlaçado no gozo. Enquanto, para o
homem, o gozo tem sempre algo de limitado, circunscrito, localizado e contabilizável, para a
mulher, uma ilimitação de gozo. Lacan (1985), para falar dessa dessimetria, elabora as
fórmulas quânticas da sexuação, apontando o que está do lado masculino e o que aparece do
lado feminino. A partir dessas fórmulas, iremos discutir o papel que a demanda de amor
desempenha na sexualidade feminina, comportando um caráter absoluto, ou seja, uma visada
ao infinito. Essa demanda infinita de amor incide sobre o ser do parceiro e é isso que desnuda
14
a forma erotomaníaca de amar. Pela impossibilidade de que essa demanda seja atendida, em
sua totalidade, o que ocorre é o retorno desta sobre a mulher, na forma de uma devastação.
Para ser amada, a mulher pode se submeter a toda uma sorte de coisas, sacrificando-se
em nome do seu homem. A perda desse amor, o abandono, é vivido como uma devastação. Se
Lacan (1985), no Seminário 20, afirma que o amor está do lado do ser, quando a mulher perde
o amor de um homem, ela perde-se toda. A personagem da obra escolhida para análise mostra
bem o que é uma mulher devastada pelo abandono do homem amado. De acordo com
Siqueira (s/d, p. 2): “[...] o abandono, como signo da perda desse amor, é sentido como uma
ameaça de morte, já que o que mais quer da vida é ser amada. O único que conta para ela é ser
o objeto do ser amado, mesmo que ele a devaste”.
A perda de um amor pode, para uma mulher, provocar uma errância, uma
despersonalização, constituindo uma ameaça de auto-desaparecimento. De acordo com
Vicente (s/d), a psicanálise demonstra que a trilogia amor, ódio, ignorância, reúne paixões
capazes de fazer o sujeito, nelas mergulhado, adoecer.
Utilizando-nos da discussão psicanalítica sobre as dessimetrias entre os sexos e
reconhecendo que a representação da posição feminina na relação amorosa, presente na ficção
de autoras contemporâneas brasileiras, parece permanecer a mesma da literatura de ficção
clássica, como atesta o estudo de Silva (2009), o objetivo do presente estudo é investigar por
que essa posição se mantém, mesmo pós-revolução sexual e movimento feminista.
Procuraremos refletir, a partir do texto literário escolhido, como essa representação reproduz a
forma de comportamento dos gêneros em sociedade, principalmente, na hipermodernidade.
Adotamos neste estudo o conceito de hipermodernidade, do filósofo francês Gilles
Lipovetsky, por ser a nomenclatura mais utilizada, na psicanálise, pelos teóricos da orientação
lacaniana. De acordo com Lipovetsky (2004), o termo pós-modernismo é problemático
porque sugere uma grande ruptura na história do individualismo moderno, embora seja
15
adequado para marcar uma mudança de perspectiva nessa história. A pós-modernidade
representa o momento em que todos os “freios institucionais” que se opunham à emancipação
individual desapareceram:
As grandes estruturas socializantes perdem a autoridade, as grandes ideologias já
não estão mais em expansão, os projetos históricos não mobilizam mais, o âmbito
social nada mais é que o prolongamento do privado instala-se a era do vazio – mas
‘sem tragédias e sem apocalipse’ (LIPOVETSKY, 2004, p. 23).
Para o autor citado, a expressão pós-moderna é vaga e ambígua, porque o que estamos
vivendo é, na verdade, uma modernidade de novo gênero e não uma superação da anterior. A
modernidade não deixou de existir, assistimos ao seu remate: “Trata-se não mais de sair do
mundo da tradição para aceder à racionalidade moderna, e sim de modernizar a própria
modernidade [...]” (LIPOVETSKY, 2004, p. 56). Assim, temos a modernidade na era do
hiper: hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência, hiperterroriamo, hiperindividualismo,
hipermercado, hipertexto. A hipermodernidade caracteriza-se, então, por uma exacerbação
dos grandes princípios estruturantes da modernidade, que têm se adaptado ao ritmo
hipermoderno. Uma vez justificada a escolha pelo termo “hipermodernidade” neste trabalho,
continuamos a explanação de nosso objetivo.
Acreditamos que, através das contribuições psicanalíticas para a literatura, poderemos
pensar essa constância, na representação da posição feminina na relação amorosa, não como
um sujeitamento ao masculino, como se refere Silva (2009), mas como algo que resiste na
questão do feminino e que emerge no sujeito mulher, denunciando uma especificidade de sua
estruturação subjetiva. Pretendemos, assim, demonstrar como a teoria psicanalítica pode sair
do lugar de propagadora de um discurso “falocêntrico” para trazer contribuições ao estudo das
relações de gênero na contemporaneidade, onde, como nos lembra Gurgel (2006), o sujeito,
para suportar o mal-estar do existir, busca com as novas parcerias amorosas, fundar uma
harmonia impossível com o objeto.
16
Optamos em adotar como referencial teórico as construções freudianas e lacanianas
buscadas diretamente nas suas respectivas obras. Não deixamos de reconhecer que, na crítica
feminista, temos um vasto e importante rol de autoras que se utilizam da abordagem
psicanalítica como aporte teórico para as discussões de gênero através da literatura. No
entanto, em nossa pesquisa, não encontramos nenhum estudo específico sobre o conceito de
devastação, no qual centramos a presente análise. Pudemos também constatar que a
psicanálise, em grande parte desses trabalhos (não em todos, evidentemente), é utilizada,
ainda, dentro de uma visão falocêntrica, que emperra as discussões dos estudos de gênero.
Como pretendemos fazer um uso diferenciado, dos preceitos psicanalíticos, que possa fugir às
tradicionais interpretações, optamos por utilizar os textos originais dos referidos pensadores
Para discutir o conceito de devastação na obra de Marilene Felinto, iremos nos centrar
na personagem, que também é narradora, ao mesmo tempo que conta, vive a dor obscena de
ter sido abandonada. Justificamos a escolha desta categoria literária por acreditarmos que foi
sobre a personagem que, ao longo da história da literatura, melhor se pôde sentir as
modificações sofridas pelos sujeitos reais (DALCASTAGNÉ, 2005). A personagem do
romance contemporâneo interessa-nos, particularmente, por representar as identidades
líquidas da hipermodernidade:
Desde o começo do século XX, a personagem se tornou, a um só tempo, mais
complexa e mais descarnada. Deixou de ser descrita; perdeu, como disse Nathalie
Sarraute, ‘todos os seus atributos e prerrogativas’, incluídos suas roupas, seu
corpo, seu rosto’; e, sobretudo, o bem mais precioso de todos, a personalidade que é
só sua. Muitas vezes, perdeu até seu nome (DALCASTAGNÉ, 2005, p. 27).
A autora acima citada, ao empreender um diagnóstico sobre o campo literário
brasileiro atual, fornece-nos importantes dados sobre o fazer literário contemporâneo. De
acordo com sua pesquisa, intitulada “A personagem do romance brasileiro contemporâneo:
1990-2004”, 7,5% das personagens identificadas são anônimas, o que também se passa com a
17
personagem-narradora de OA. Um outro dado, encontrado na referida pesquisa, é de extrema
importância para o tema deste trabalho e diz respeito às relações estabelecidas pelas
personagens, dentro das narrativas estudadas. O resultado a que a referida autora chega é o de
que o romance brasileiro contemporâneo privilegia as relações amorosas e familiares,
independentemente do sexo da personagem, embora essa característica seja acentuada do lado
das mulheres, pois 89,6% das personagens femininas pesquisadas mantêm relações amorosas
e familiares.
Assim, é importante destacar que, no romance brasileiro contemporâneo, as
personagens mulheres continuam privilegiando o espaço privado, ou seja, os laços que
mantêm com a família e com o parceiro. Mesmo inseridas na vida pública, ocupando
importantes cargos e funções no mercado de trabalho, são, ainda, as relações afetivas e
domésticas que são privilegiadas. Este dado vem corroborar o ponto de vista que, aqui,
objetivamos defender, a saber o de que, se a mulher contemporânea ainda se devasta nas
relações amorosas, é mais devido a sua singular estruturação subjetiva do que a uma
subordinação perpétua ao masculino.
No primeiro capítulo, intitulado Da catástrofe à devastação: que lugar para a
mulher na relação amorosa?, realizamos um percurso teórico-conceitual pela psicanálise,
que consideramos indispensável para a introdução de nossa categoria de análise o conceito
de devastação. Iniciamos nosso trajeto reconhecendo que a psicanálise tem trazido
importantes contribuições para o campo literário, principalmente para os estudos promovidos
pela crítica feminista. Em seguida, situamos como a psicanálise aborda o sexual e suas
conseqüências para os sujeitos, fazendo uma interlocução com os discursos biológico e
cultural. Tomando a dessimetria entre os sexos como algo fundamental para nosso estudo,
abordamos como a partilha sexual se organiza. Prosseguindo com nossas elaborações,
adentramos nas elaborações freudianas e lacanianas sobre o feminino e suas peculiaridades
18
estruturais. Aproximando-nos de nosso principal objetivo, discutimos as posições ocupadas
pelo homem e pela mulher, na relação amorosa, a partir de seus modos de gozo específicos.
Finalizamos o capítulo introduzindo e discorrendo sobre o conceito de devastação, analisando,
a partir dele, algumas obras artísticas, fatos da vida cotidiana e alguns recortes da análise de
mulheres.
No segundo capítulo, intitulado Devastação: um gozo fora-da-lei, fizemos uma
análise das falas da personagem da obra OA, adotando como referencial teórico o conceito de
devastação, introduzido no capítulo que o precede. O objetivo deste capítulo foi perceber de
que forma a personagem mulher da referida obra repete esse traço de devastação, que vem
sendo observado nas atuais obras de ficção de autoria feminina. Para atingir esse intuito,
analisamos as falas da personagem, que também é narradora de seu próprio infortúnio,
ressaltando como o seu ser é tomado pela devastação, apagando-se como sujeito e emergindo
como um objeto desvitalizado, vazio e semimorto. Seguindo os dois capítulos do livro,
intitulados de Abandono e Obsceno, respectivamente, discutimos como esse abandono é
experimentado, desde o emudecimento inicial da personagem, passando pelo arrependimento,
desequilíbrio, medo da loucura, pela dor da rejeição, injúrias, desejos de vingança, solidão,
necessidade de ressarcimento, até chegar ao que ela conclui como sendo uma obscenidade a
recusa do amor do homem amado. Para a psicanálise, o obsceno como aquilo que está fora da
cena, remete à ausência de um enquadramento fantasmático que sustenta o sujeito em sua
existência, ideia trabalhada na análise a que nos propomos. Destacamos também que, na
relação amorosa, a mulher deve ser tomada como objeto causa de desejo por um homem e
que, quando isso não se sustenta mais, ela pode se devastar, sendo invadida pelo fora-da-lei de
seu gozo, prestando-se a todas as concessões, a todas as loucuras, vivenciando um profundo
abalo no seu ser.
19
Ainda no segundo capítulo, além das contribuições lacanianas, utilizamos também
outras categorias teórico-conceituais de autores do campo freudiano e lacaniano, como
Jacques Alain Miller, Collete Soler e Éric Laurent. Nas considerações finais, discutimos, a
partir da obra analisada sob o viés psicanalítico, o que assegura a repetição desse traço de
devastação da personagem mulher, nas obras contemporâneas de autoria feminina, mesmo em
um cenário social onde as mulheres já obtiveram inúmeros avanços. Refletimos como a
representação da mulher na literatura focaliza a forma de comportamento dos gêneros na
sociedade atual, enfatizando um momento onde emerge o que Lipovetsky (2000) nomeia de
uma “terceira mulher”. Nesse sentindo, abordamos como o discurso psicanalítico pode
assumir um outro lugar nas discussões sócio-culturais, promovidas pela literatura.
Finalizando, objetivamos deixar algumas contribuições sobre como a relação homem/mulher
pode ser redimensionada na hipermodernidade, onde os amores são líquidos e nômades.
20
1 Da catástrofe à devastação: que lugar para a mulher na relação amorosa?
A relação entre literatura e psicanálise está presente desde Freud, que se utilizava dos
textos literários para explicar parte de seus conceitos. Alguns termos psicanalíticos foram
buscados na Mitologia, como o Complexo de Édipo e o Narcisismo, por exemplo. Há, na obra
de Freud, importantes artigos onde ele se entrega a análises de textos literários, como A Dama
das Camélias, A Divina comédia, Dom Quixote, Fausto, A Eneida, Macbeth, Édipo Rei, Os
Irmãos Karamazov. Em Outros escritos um artigo de Lacan (2003) intitulado
“Lituraterra”, que aborda a “intrusão” da psicanálise na crítica literária, posicionando-se
contra a redução dessa relação a uma mera psicobiografia.
De acordo com Brandão (1996), é inegável que a psicanálise tem servido de suporte
teórico a diversas questões da literatura, indo muito além da fase de uma “psicanálise
selvagem” do texto literário, onde as personagens eram deitadas no divã. Um exemplo desse
outro uso do discurso psicanalítico são as contribuições trazidas pela crítica literária feminista.
A partir da década de 60 surgem questionamentos sobre a experiência da mulher
enquanto leitora e escritora, marcando uma diferença da experiência masculina. Funck (1994)
destaca três diferentes fases da produção intelectual e acadêmica da crítica feminista: a
primeira, foi marcada por uma análise das imagens estereotipadas da mulher na prática
literária; a segunda, deixou de lado o texto masculino como objeto de estudo e voltou-se para
a investigação de uma literatura feita por mulheres; a terceira fase propôs uma revisão dos
conceitos básicos do estudo literário, onde foi introduzida a análise da construção do gênero e
da sexualidade dentro do discurso literário. Assim, o modo pelo qual a atividade literária está
marcada por diferenças de gênero passou a ser uma prioridade dos estudos promovidos pela
crítica feminista.
21
Os questionamentos em torno da literatura feita por mulheres colocam em cena uma
aferrada polêmica sobre a possibilidade de se considerar as mulheres escritoras como um
grupo literário distinto. Haveria uma forma especificamente feminina de escrever? A escrita
tem sexo? Essa é uma questão que divide muitas opiniões. Longe de adentrarmos nessa
polêmica, situamos que é no rol dessas discussões que a psicanálise é utilizada como aporte
teórico, seja para ser rechaçada, seja para servir de fundamento teórico.
Showalter (1994) afirma que as teorias da escrita das mulheres, atualmente, utilizam-
se de quatro diferentes modelos: biológico, lingüístico, psicanalítico e cultural. Segundo a
autora, o modelo psicanalítico vem situar a diferença da escrita feminina na psique do autor e
na relação do gênero com o processo criativo, ou seja, apoia-se na ideia psicanalítica da
dessimetria entre os sexos e de como isso reflete na escrita do texto literário. De um lado,
critica-se a abordagem psicanalítica, acusando-a de ser reducionista e essencialista. A
interpretação equivocada de alguns aforismos lacanianos no que diz respeito à mulher leva a
conclusões “selvagens”, como a de que a psicanálise considera a mulher um ser inferior. De
outro lado, utilizam-se essas elaborações sobre o feminino como uma forma de ler melhor o
texto de autoria da mulher, como o fazem Lúcia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão, em
muitos dos seus estudos.
No presente trabalho o recorremos à psicanálise para deitar a personagem da obra
estudada no divã a fim de enquadrá-la em um diagnóstico qualquer, nem muito menos para
defender a ideia da existência de uma escrita verdadeiramente feminina. Como dito
anteriormente, a perspectiva adotada é a de analisar o traço que se repete na literatura
contemporânea de autoria feminina, quando a temática destina-se às relações amorosas. Não
estamos afirmando, aqui, que os homens não escrevem sobre o amor e, tampouco, que apenas
as mulheres o fazem. Fugindo de qualquer reducionismo ingênuo dessa natureza, buscamos,
na psicanálise, um suporte para podermos pensar sobre a constância na forma como as autoras
22
têm representado a mulher na literatura de ficção contemporânea, tomando como categoria de
análise o conceito de devastação.
O objetivo deste primeiro capítulo é o de fazer um encadeamento lógico-conceitual
para que possamos chegar ao conceito de devastação. Veremos que a devastação está
diretamente articulada aos conceitos de: complexo de Édipo, castração, falo e gozo. É a
maneira como a criança atravessa o Édipo e a forma como o falo circula nesse período
edípico, que a forma de gozar masculina e feminina vai ser organizada. Chegando ao conceito
de gozo, poderemos, então, discutir o de devastação, uma vez que esta é resultado do gozo
feminino e de seu caráter de não-todo submetido ao falo.
Com o intuito de introduzir e discutir o referido conceito iremos fazer um breve
percurso teórico-conceitual, que se faz imprescindível para a compreensão das dessimetrias
entre os sexos defendidas por Freud e Lacan. Inicialmente, veremos como esses dois autores
definem o sexual e as conseqüências deste para o sujeito. Em seguida, será problematizada
como se a partilha entre os sexos, ou seja, como a psicanálise define as posições masculina
e feminina. Posteriormente, veremos como os dois autores escolhidos abordam o feminino.
Por fim, entraremos no conceito de devastação, situando-o como um fenômeno presente do
lado feminino. Para discutirmos essa idéia, iremos contextualizá-lo não no âmbito da
literatura, mas também no de outras artes, como o cinema, televisão, artes plásticas, música e
dramaturgia.
Na abordagem do conceito de sexualidade, encontramos uma multiplicidade de visões,
algumas delas completamente dissidentes, outras complementares. Dentre essas formas
diversas de conceituar o sexual, destacamos a biológica, a culturalista e a psicanalítica. Na
visão biológica ou naturalista, o que define o sexo dos sujeitos é a anatomia. Do ponto de
vista culturalista, os atributos físicos e anatômicos recebem significados culturais, são
interpretados a partir de referenciais históricos, políticos e religiosos. Hoje, essa abordagem
23
tem sido bastante privilegiada, a partir dos recentes estudos sobre gênero e sexualidades,
tendo em Butler (2003) um de seus expoentes. Essa autora faz uma crítica às categorias de
identidades produzidas e naturalizadas pelos discursos do poder, afirmando que o gênero não
está escrito no corpo anatômico. Assim, os corpos podem apenas reproduzir os significados
pré-estabelecidos ou então transgredir e subverter as regras de gênero. Percebemos, então, que
o viés culturalista retira a ênfase do biológico e a transfere para o cultural. No entanto, ao
formular essa ideia, aposta na capacidade de subversão do sujeito, quando afirma que tanto as
normas biológicas como as culturais podem ser transgredidas. Essa aposta aproxima-se muito
da abordagem psicanalítica, que coloca o sujeito desejante em conflito com o lugar que lhe é
ofertado pelo discurso pré-existente.
Adams (1997), ao fazer uma severa crítica ao modo como a psicanálise trata as
questões vinculadas ao sexual, acusando-a de apenas reproduzir o discurso patriarcal, admite,
contraditoriamente, que a psicanálise pode contribuir com os novos debates sobre a política
sexual, podendo teorizar sobre novos fenômenos, sem se transformar numa sociologia ou
psicologia. Essa aposta nós também fazemos na presente investigação.
Se, para a biologia, o masculino e o feminino são definidos por atributos anatômicos e
pelas células sexuais, para a psicanálise, não se pode escrever uma lei universal para a
sexualidade, pois cada sujeito inventa uma solução particular diante do sexual. A realidade
sexual que a psicanálise descobre, a partir do inconsciente, implica a ausência de uma visão
instintiva e naturalista.
A anatomia não determina a sexualidade do sujeito, mas deixa conseqüências
psíquicas. Organizada através do complexo de Édipo e do complexo de castração, a
sexualidade freudiana está centrada na identificação e na escolha de objeto.
24
Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
2
(1905a), Freud (1996) faz uma
ampla descrição de como a vida sexual infantil é decisiva para a configuração definitiva da
sexualidade adulta, ou seja, para a diferenciação dos seres sexuados em masculino e feminino.
As disposições masculinas e femininas começam a se desenhar na primeira infância,
mas apenas na puberdade se estabelece uma separação nítida entre os caracteres masculinos e
femininos. Longe de uma visão puramente determinista, como a da biologia, Freud (1996, p.
223), nos seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, esclarece que: “[...] o processo de
determinação prossegue e surgem outras possibilidades, conforme as vicissitudes por que
passam as correntes tributárias das sexualidades provenientes das diversas fontes.
Obviamente, é essa elaboração ulterior que decide em termos definitivos [...]”.
Essa elaboração ulterior compreende uma série de fatores internos e externos que
podem vir a perturbar o desenvolvimento sexual do sujeito. É o que é ratificado por Lacan
(1999), no Seminário 5 (1957-58), quando traz, ao longo de seu ensino, a noção de
“sexuação” para falar de uma implicação subjetiva do sexo, ou seja, o que o sujeito vai fazer
com o seu sexo, se vai aceitá-lo ou rechaçá-lo, ponto esse que dialoga com a visão dos estudos
culturais
Alguns sujeitos cruzam as fronteiras de gênero e de sexualidade, assumindo a
inconstância e a transição entre as identidades, implicando no fato de que:
Por certo os próprios sujeitos estão empenhados na produção do gênero e da
sexualidade em seus corpos. O processo, contudo, não é feito ao acaso ou ao sabor
de sua vontade. Embora participantes ativos dessa construção, os sujeitos não a
exercitam livres de constrangimentos
(LOURO, 2004, p. 17)
.
2
Na primeira vez que o texto freudiano for citado, será identificado pelo ano da publicação e da edição utilizada
nesta pesquisa. A partir da segunda citação, será referido apenas pela edição.
25
Pensamos que a psicanálise pode trazer uma importante contribuição ao entendimento
desses processos, quando introduz a noção de que o sexo biológico precisa ser subjetivado
pelo sujeito.
Segundo Drummond (s.d./a), pode-se destacar três tempos nesse processo de
sexuação: o primeiro tempo é o mítico, em que a anatomia é um real que se impõe ao sujeito,
mas que não desempenha um papel no processo de sexuação deste, embora lhe traga
conseqüências psíquicas, como Freud previu; o segundo tempo é o discurso sexual, da cultura,
que transmite ao sujeito a interpretação do seu sexo, identificando-o como sendo de um
determinado sexo; o terceiro tempo é aquele em que o sujeito pode ou não estar de acordo
com o sexo que o discurso que o circunda designou, constituindo-se como um momento de
eleição que implica modos de gozo
3
do sujeito e sua relação com o outro sexo.
Em Freud, o sexo verdadeiro de um sujeito é definido pela identificação edipiana. Em
Lacan, a definição vem pelo modo de gozo do sujeito. Para melhor esclarecer o que o sexual
impõe aos sujeitos e de quais artifícios os sujeitos laçam mão para tentar dar conta dele, faz-se
necessário um breve percurso sobre as contribuições freudianas e lacanianas acerca de como
um sujeito vem ocupar uma posição masculina ou feminina. Posteriormente, a questão será
centrada no feminino e suas particularidades, priorizando a discussão no conceito de
devastação.
1.1 O sexual é traumático
Antes de apresentarmos como a psicanálise pensa o sujeito feminino, iremos abordar o
status que o sexual ocupa nas formulações freudianas, uma vez que as conseqüências dele
para os sujeitos denunciam uma dessimetria entre as posições masculina e feminina.
3
Esse conceito, fundamental no ensino de Lacan, será desenvolvido mais adiante. Aqui, adiantamos que: “O que
pertence ao gozo não é de modo algum redutível a um naturalismo, trata-se, ao contrário, do ponto em que o vivo
compactua com a linguagem” (KAUFMANN, 1996, p. 221).
26
Nas suas escutas, Freud surpreende-se ao constatar que o que se constituía como
traumático era algo vinculado, sempre, ao sexual do sujeito e que estava localizado na
primeira infância. Em “A psicoterapia da histeria” (1895), anuncia:
[...] fui obrigado a reconhecer que, na medida em que se possa falar em causas
determinantes que levam à aquisição de neuroses, sua etiologia deve ser buscada em
fatores sexuais. Seguiu-se a descoberta de que diferentes fatores sexuais, no sentido
mais geral, produzem diferentes quadros de distúrbios neuróticos (FREUD, 1996, p.
273).
O que as histéricas lhe traziam eram lembranças de cenas com um forte conteúdo
sexual, vividas de maneira bastante precoce e traumática. No relato delas sempre havia uma
cena onde vivenciavam algo semelhante a um abuso sexual, por parte daqueles responsáveis
pelos cuidados infantis, como pais, professores e babás. Assim, Freud formula a teoria da
sedução, que localiza a causa da neurose em uma experiência sexual precoce e desprazerosa,
provocada por um adulto sedutor.
No entanto, Freud começa a ficar insatisfeito com a sua teoria das neuroses e desabafa
com seu amigo, o médico Fliess
4
, na Carta 69 (1897):
[...] confiar-lhe-ei de imediato o grande segredo que lentamente comecei à
compreender nos últimos meses. Não acredito mais em minha neurótica [teoria das
neuroses]. [...] veio a surpresa diante do fato de que, em todos os casos, o pai, não
excluindo o meu, tinha de ser apontado como pervertido [...] (FREUD, 1996, p.
310).
Constatando que, no inconsciente, não há indícios de realidade, não se podendo
distinguir entre verdade e ficção, Freud confidencia a Fliess seu descrédito na teoria da
sedução. Afinal, todos os pais teriam que ser perversos e todas as crianças teriam que ter
vivido uma cena de sedução. É, então, a partir do conceito de fantasia, que Freud vem
4
Fliess: médico especialista em nariz e garganta, com quem Freud manteve uma correspondência volumosa e
íntima, entre 1887 e 1902.
27
abandonar a sua teoria da etiologia traumática das neuroses, sustentada durante os cinco anos
anteriores.
Com a plena compreensão de que as fantasias podem atuar com a mesma força das
experiências reais, Freud continua afirmando que o sexual é traumático para o sujeito, mas
que esse trauma não é necessariamente vivido na realidade, mas produto das fantasias do
sujeito. Percebemos que, desde muito cedo, Freud tira o acento da realidade e o transfere para
o espaço da subjetividade.
O que Freud estava tentando elaborar era que o inconsciente tem uma dificuldade
estrutural para responder à excitação e às sensações corporais que invadem o sujeito desde a
infância. O sexo é algo que precisa ser interpretado pela criança, o que não é um trabalho
fácil, que as primeiras sensações genitais da criança são perturbadoras. Podemos notar que,
mais de um século, Freud tratava a sexualidade de uma forma muito próxima a das
atuais abordagens da teoria de gênero, pois recusa qualquer determinismo, seja ele biológico
ou cultural, embora não deixe de reconhecer que ambos deixam conseqüências psíquicas no
sujeito.
É no texto “A organização genital infantil uma interpolação na teoria da
sexualidade” (1923b), apontado por Freud como um acréscimo aos “Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade” (1996), que encontramos uma melhor descrição sobre a diferença entre
a organização genital infantil e a organização genital final do adulto, o que se impõe como de
grande importância para a compreensão de como a masculinidade e a feminilidade se fundam,
que, no estágio da organização pré-genital sádico-anal, não existe ainda questão de
masculino e feminino; a antítese entre ativo e passivo é a dominante:
No estádio seguinte da organização genital infantil, sobre o qual agora temos
conhecimento, existe masculinidade e não feminilidade. A antítese aqui é entre
possuir um órgão genital masculino e ser castrado. Somente após o desenvolvimento
haver atingido seu completamento, na puberdade, é que a polaridade sexual coincide
com masculino e feminino (FREUD, 1996, p. 161, vol. XIX).
28
Nesse trabalho, Freud afirma que a principal diferença entre a sexualidade infantil e a
adulta, é que, na primeira, o que entra em consideração é apenas o falo
5
. O menino percebe a
distinção entre homens e mulheres, mas não a vincula a uma diferença nos órgãos genitais
dele, presumindo que todos têm um pênis. É importante observar que Freud, aqui, não
descreve o que acontece na menina, afirmando que desconhece o processo corresponde nas
crianças do sexo feminino. Aliás, essa é uma dificuldade sempre presente na obra freudiana, o
que nos será permitido notar e discutir ao longo deste trabalho.
O menino, ao perceber e aceitar a ausência de pênis na menina, passa a ter muito medo
de também perder o seu próprio pênis (angústia de castração). Assim, para preservar o seu
pênis deve renunciar ao seu primeiro objeto de amor, que é a mãe. O ego da criança, guiado
pelo seu interesse narcísico, volta as costas ao complexo de Édipo. No lugar das catexias
objetais dirigidas à mãe, surgem as identificações. O complexo de Édipo é, então, destruído
pela ameaça de castração. O menino identifica-se a seu pai, tomando-o como modelo de
masculinidade.
No caso da menina, ainda no artigo sobre “A dissolução do complexo de Édipo”
(1924), encontramos, mais uma vez, a dificuldade de Freud em descrever o que ocorre:
“Deve-se admitir, contudo, que nossa compreensão interna (insight) desses processos de
desenvolvimento em meninas em geral é insatisfatório, incompleto e vago” (FREUD, 1996, p.
198, Vol. XIX). No entanto, Freud faz uma tentativa de descrever o que ocorre na menina,
afirmando que, inicialmente, o clitóris comporta-se como um pênis e que a expectativa de
que mais tarde terá um pênis tão grande quanto o do menino. Ao ter essa expectativa
frustrada, a menina aceita a castração como um fato consumado e acusa a mãe de ter lhe feito
castrada. Volta-se para o pai, na crença de que este lhe o substituto do pênis, ou seja, um
filho. A mãe torna-se objeto de ciúme e a menina transforma-se em uma mulher.
5
Esse conceito será melhor trabalhado mais adiante, quando introduzirmos as conceituações lacanianas, que
ampliam a concepção freudiana de falo. Neste momento de suas elaborações, Freud faz coincidir falo e pênis.
29
O Édipo da menina culmina com o desejo de receber do pai um filho. Percebemos que
o menino sai do Édipo pela ameaça de castração. Já na menina, é a constatação da castração
que a faz entrar no Édipo. É no artigo “Algumas conseqüências psíquicas da distinção
anatômica entre os sexos” (1925) que Freud enfatiza ainda mais a importância do Édipo na
partilha sexual:
[...] o complexo de castração sempre opera no sentido implícito em seu conteúdo:
ele inibe e limita a masculinidade e incentiva a feminilidade. A diferença entre o
desenvolvimento sexual dos indivíduos dos sexos masculino e feminino no estádio
que estivemos considerando é uma conseqüência inteligível da distinção anatômica
entre seus órgãos genitais e da situação psíquica envolvida; corresponde à
diferença entre uma castração que foi executada e outra que simplesmente foi
ameaçada (FREUD, 1996, p. 285, Vol. XIX).
É a maneira como os sujeitos atravessam o complexo de Édipo que vai estruturá-los
psiquicamente. A alusão que fazemos, aqui, ao fato de que Freud enfatiza uma dessimetria em
como o menino e a menina circulam pelo Édipo é fundamental, pois isso nos servirá de base,
mais adiante, para a compreensão de que homens e mulheres ocupam posições distintas na
relação amorosa.
Até aqui, nosso percurso foi o de verificar como Freud situa a questão do sexual,
dando-lhe o lugar de algo vivido como traumático e estruturante para os sujeitos. Agora,
passamos a discutir como Freud problematiza o feminino, foco de nossa análise nesta
investigação.
1.2 A mulher freudiana: um continente obscuro
No início da psicanálise está a mulher. Freud introduz esta “ciência” a partir de uma
escuta às histéricas. Aliás, são as histéricas que lhe revelam o seu objeto maior de
investigação: o inconsciente. Além disso, é uma mulher que o conduz à criação da técnica da
30
associação livre a Srª. Emmy Von N. pedindo-lhe que não a tocasse, que não a fizesse
dormir sob hipnose, mas que a deixasse falar.
Em todo o seu percurso psicanalítico, Freud faz parceria com a mulher, que lhe obriga
sempre a avançar em suas investigações. Em nota de rodapé, no artigo “Algumas
conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1996), um registro feito
por Ernest Jones de uma frase que Freud disse, certa vez, a Marie Bonaparte: “A grande
questão que jamais foi respondida e que ainda não fui capaz de responder, apesar de meus
trinta anos de pesquisa da alma feminina, é: ‘O que quer uma mulher?’” (FREUD, 1996, p.
274, Vol. XIX).
De acordo com Strachey (1996, p. 273, vol. XIX): “Desde muito cedo Freud queixou-
se da obscuridade que envolvia a vida sexual das mulheres”. Ao percorrer toda a sua obra,
deparamo-nos com essa dificuldade, que é traduzida na voz do próprio Freud (1996, p. 212),
no artigo “A questão da análise leiga” (1926): “[...] sabemos menos sobre a vida sexual das
meninas que sobre a dos meninos. Mas não precisamos nos envergonhar dessa distinção;
afinal de contas, a vida sexual das mulheres adultas constitui um ‘continente obscuro’ para a
psicologia”.
Inicialmente, nos trabalhos em que explica como o complexo de Édipo ocorre nos
meninos e nas meninas, Freud faz uma descrição análoga, supondo existir um paralelo
completo entre os dois sexos. A descrição sobre o complexo de Édipo feminino ou é omitida
ou, como temos visto, é equiparada ao que ocorre no menino. Strachey (1996) nos chama
atenção para o fato de que, depois do caso Dora
6
(1905b), Freud passa quinze anos sem
publicar material clínico que tratasse de uma mulher. Após esse período, surgiu um caso de
paranóia feminina, em 1915, e um caso de homossexualismo feminino, em 1920. No entanto,
6
Caso relatado e discutido por Freud, em “Fragmento da análise de um caso de histeria(1905 [1901]). É um
caso considerado paradigmático, por Lacan, porque é onde Freud introduz importantes questões sobre a
feminilidade.
31
nesses dois casos, era a relação dos pacientes com a mãe, e não com o pai, que se sobressaia,
o que começava a deixar Freud insatisfeito com a hipótese de uma simetria entre os sexos.
No artigo “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”
(1996), Freud avança no que diz respeito a uma não equivalência entre o Édipo masculino e o
feminino. É nesse texto onde ele faz uma reavaliação de suas opiniões sobre o
desenvolvimento psicológico das mulheres, a partir da ênfase que começa a dar ao período
pré-edipiano.
Nas meninas, o complexo de Édipo levanta um problema a mais que nos meninos.
Em ambos os casos, a mãe é objeto original, e não constitui causa de surpresa que os
meninos retenham esse objeto no Complexo de Édipo. Como ocorrem, então, que as
meninas o abandonem e, ao invés, tomem o pai como objeto? Perseguindo essa
questão pude chegar a algumas conclusões capazes de lançar luz exatamente sobre a
pré-história da relação edipiana nas meninas (FREUD, 1996, p. 280, Vol. XIX).
Ao constatar a ausência do pênis em seu corpo, a menina entrega-se à esperança de,
algum dia, vir a possuí-lo. Esse desejo é chamado, por Freud, de inveja do pênis, que traz uma
série de conseqüências importantes para a constituição ou não da feminilidade.
Em “Sexualidade Feminina” (1931), Freud diz que o desenvolvimento da sexualidade
feminina é complexo e credita isso a duas razões: uma delas é que a menina tem que
abandonar o clitóris sua principal zona genital, a outra é que troca de objeto original, ou
seja, afasta-se da mãe e volta-se para o pai.
É, então, no artigo citado, que ele rompe definitivamente com a noção de uma
equivalência entre os sexos:
Temos aqui a impressão de que o que dissemos sobre o Complexo de Édipo se
aplica de modo absolutamente estrito apenas à criança do sexo masculino, e de que
temos razão ao rejeitarmos a expressão ‘complexo de Electra’, que procura dar
ênfase à analogia entre a atitude dos dois sexos. É apenas na criança do sexo
masculino que encontramos a fatídica combinação de amor por um dos pais e,
simultaneamente, ódio pelo outro, como rival
(FREUD, 1996, p. 257)
.
32
É quando Freud volta-se para a pré-história do Édipo na menina, que ele consegue
avançar nas suas elaborações sobre a feminilidade. Ele centra sua atenção na relação da
menina com a mãe: “[...] fica-nos a impressão de que não conseguimos entender as mulheres,
a menos que valorizemos essa fase de sua vinculação pré-edipiana à mãe” (FREUD, 1996, p.
120, Vol. XXII). Essa nova forma de abordar o Édipo, na menina, é de grande importância
para o entendimento do conceito de devastação, o que nos impõe, aqui, um maior
detalhamento de como isso ocorre.
Investigando sobre a natureza das relações libidinais da menina para com sua mãe,
Freud interessa-se em saber o que pode pôr fim a essa poderosa vinculação com esta última,
fazendo com que a primeira volte-se para seu pai. Como resposta, encontra a castração, já que
a mãe é tomada como responsável pela falta de pênis na menina. Nessa transição do objeto
materno para o paterno, a menina renuncia uma determinada soma de atividade e o que
predomina é a passividade.
De acordo com Freud, então, a vida sexual da menina é dividida em duas fases: a
primeira possui um caráter masculino e a segunda é feminina. Assim, ele afirma que algumas
meninas jamais tornam-se mulheres, permanecendo homens no plano psíquico.
Para que a menina torne-se mulher é necessário que ela supere duas dificuldades, com
as quais os meninos não se deparam: trocar de objeto primário de amor (da mãe para o pai) e
trocar de sexo (do clitóris para a vagina). Essas dificuldades emergem quando a menina
apercebe-se de sua própria castração, ou seja, é a inscrição da falta que desencadeia a
problemática da trajetória da menina em busca da feminilidade.
É fato inquestionável que Freud, ao longo de sua obra, sempre apresenta a sexualidade
feminina através de um caráter masculino, que faz sombra no feminino, afirmando que a
menina é um homenzinho, até que a vagina seja descoberta:
33
Com seu ingresso na fase fálica, as diferenças entre os sexos são completamente
eclipsadas pelas suas semelhanças. Nisto somos obrigados a reconhecer que a
menininha é um homenzinho. [...] na fase fálica das meninas, o clitóris é a principal
zona erógena. Mas naturalmente, não vai permanecer assim (FREUD, 1996, p. 118-
119, Vol. XXII).
A noção de bissexualidade está presente em toda a obra freudiana, designando uma
oposição entre atividade e passividade. Ao utilizar esse termo, Freud não objetiva uma divisão
dos sexos: “Ele designa uma polaridade que assume o lugar da diferença entre os sexos”
(ANDRÉ, 1998, p. 19).
O que fica claro é que a divisão anatômica entre dois sexos não significa, no
inconsciente, uma divisão entre dois sexos. No inconsciente, a oposição não é entre
masculino-feminino, mas entre castrado/não-castrado. Assim, a diferença sexual deve ser
menos procurada entre dois sexos do que entre duas posições do sujeito. O que importa é
como o sujeito posiciona-se diante do falo e da castração. Para o menino, a castração é uma
ameaça, mas, para a menina, ela é uma constatação. No Édipo, o menino encontra uma
identificação onde apóia seu ser masculino, mas a menina não a encontra em sua mãe e é por
isso que Freud se detém ao período pré-edipiano.
O pensamento freudiano sobre a feminilidade pode ser apreendido na famosa frase de
Simone de Beauvoir: “não se nasce mulher, tornar-se mulher”. Na concepção freudiana, a
feminilidade aparece como algo nada “natural”. É desejando receber do pai o que falta a sua
mãe, que a menina pode tornar-se mulher. Lamentavelmente, esse tornar-se mulher em Freud,
fica completamente submetido à inveja do pênis. Essa inveja é, inclusive, colocada como um
ponto intransponível no final de análise com mulheres, ou seja, seria algo jamais possível de
ser superado. Esse ponto foi extremamente repudiado pela crítica feminista, que viu nas
elaborações freudianas um discurso falocêntrico, que cristalizou a mulher como um ser
inferior. Esse argumento pode ser constatado, por exemplo, em Brennam (1997, p. 14), ao
34
afirmar que: “[...] a posição feminina, como oposta à oposição fálica masculina, é considerada
desprovida de conteúdo, nada mais do que a diferença em relação ao masculino”.
Apenas com a atenta leitura de Lacan da obra freudiana é que equívocos dessa
natureza puderam ser melhor esclarecidos, o que será observado em seguida, quando
tratarmos dos avanços trazidos pela psicanálise lacaniana às questões do feminino.
Neste breve percurso que fizemos sobre o que é a mulher freudiana, fica evidente a
dificuldade que o pai da psicanálise encontrou em adentrar no universo feminino, dificuldade
tantas vezes explicitada por ele mesmo, que chegou a atribuí-la a uma peculiaridade de sua
relação transferencial como as mulheres:
Mas talvez tenha ficado com essa impressão porque as mulheres que estavam em
análise comigo podiam aferrar-se à própria ligação com o pai em que tinham se
refugiado da fase primitiva em questão. [...] Tampouco alcancei sucesso em divisar
completamente o caminho em qualquer caso [...] (FREUD, 1996, p. 234, vol. XXI).
Aqui, Freud (1996) reconhece alguns avanços conseguidos pelas analistas femininas,
como Jeanne Lampe-de Groot e Helene Deutsch, que teriam conseguido funcionar como
substitutas maternas adequadas.
Freud reconhece que a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher, o que seria
uma tarefa difícil de cumprir, tão difícil que admite que suas elaborações são incompletas e
fragmentadas. Na sua Conferência XXXIII (1933 [1932]), intitulada “Feminilidade”, Freud
(1996, p. 134, Vol. XXII) passa a tarefa adiante: “Se desejarem saber mais a respeito da
feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores, ou consultem os poetas,
ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais profundas e coerentes”.
Nesse breve trajeto sobre como Freud pensa a feminilidade, chamamos atenção para
um fato que é de extrema importância para a discussão futura sobre o conceito de devastação.
É que, como vimos, Freud consegue avançar na elucidação do Édipo feminino quando
volta seu olhar para o período pré-edípico, detectando nele um ponto fundamental: a peculiar
35
relação da menina com a mãe. Na Conferência XXXIII (1933 [1932]), acima citada, Freud
(1996) afirma que nesse período o pai é apenas um rival incômodo, estando em jogo uma
poderosa vinculação libidinal entre a menina e a mãe. Uma série de queixas e acusações
contra a mãe aparecem nesse período, justificando um futuro sentimento de hostilidade
dirigido à mãe, o que acarretará o afastamento desta e a aproximação do pai, marcando o
complexo de Édipo feminino. A lista de acusações dirigidas à mãe, pela menina, é grande:
foi-lhe dado pouco leite; foi-lhe retirado o seio para dá-lo a outra criança e, por fim, esta
mulher fez-lhe castrada. Essa fase de ligação afetuosa pré-edipiana é decisiva para o futuro da
mulher:
A hostilidade que ficou para trás segue na trilha da vinculação positiva e se alastra
ao novo objeto. O marido da mulher, inicialmente herdado, por ela, do pai, após
algum tempo se torna também o herdeiro da mãe. Assim, facilmente pode acontecer
que a segunda metade da vida da mulher venha a ser preenchida pela luta contra seu
marido, do mesmo modo como a primeira metade, mais breve, fora preenchida pela
rebelião contra a mãe (FREUD, 1996, p. 132, vol. XXII).
O que Freud está afirmando é que a problemática relação da menina com a mãe
reproduz-se, em algumas mulheres, na relação que estas mantêm com um homem. Em
“Sexualidade feminina” (1931), Freud (1996) denomina esse laço mãe-filha como uma
catástrofe. Essa idéia será retomada por Lacan, que irá introduzir o termo devastação, para
falar dessa poderosa ligação e das suas conseqüências para as parcerias amorosas femininas.
Drumond (s.d./b) cita alguns exemplos de mulheres devastadas na relação com a mãe e com
os homens, estudados pela psicanalista Marie-Magdeleine Lessana. Um dos exemplos é o de
Maria Riva, filha de Marlene Dietrich, que passa toda a sua vida servindo de suporte para o
sucesso da imagem de artista de sua mãe, abandonando-se como mulher. Camille Claudel
também é citada pela referida autora, pois, apesar de seu enorme talento, ela era hostilizada
pela mãe, tendo com ela uma relação de devastação, que será reproduzida no relacionamento
com Rodin.
36
Passamos, agora, às reformulações e inovações que Lacan traz ao discurso
psicanalítico sobre a mulher, destacando entre suas principais contribuições ao feminino o
conceito de devastação.
1.3 A mulher não existe: o que Lacan diz sobre as mulheres
Até aqui, temos observado que Freud convoca o Complexo de Édipo para explicar o
tornar-se homem ou mulher. Desnaturalizando o sexo, ele faz do complexo de castração o
agente da partilha sexual. Um homem é produzido renunciando seu objeto primordial a mãe
a fim de preservar o seu pênis, identificando-se, por fim, ao seu pai, que lhe servirá como
modelo de virilidade.
Mas, o próprio Freud (1996), em “Algumas conseqüências psíquicas da distinção
anatômica entre os sexos” confessa que o Édipo produz o homem e não a mulher. Até onde
Freud consegue ir, define a mulher unicamente a partir da parceria desta com um homem, ou
seja, quando espera o pênis-bebê do pai. Posição esta extremamente protestada pelas
feministas, que denunciaram a injustiça freudiana em fazer da inveja do pênis a essência do
ser feminino.
Não sem causar menor escândalo, Jacques Lacan introduz novidades no que diz
respeito à feminilidade. Também suas teses e aforismos, como os que dizem que “A mulher
não existe” e que “Não há relação sexual”, provocaram euforia e protestos entre as feministas.
É na década de 20 que Lacan começa a se inscrever na história da psicanálise francesa,
como médico psiquiatra e fiel leitor da obra freudiana. A partir da década de 30, começa a
efetuar uma ntese de três domínios do saber – a clínica psiquiátrica, a psicanálise e o
surrealismo, apoiados em um notável conhecimento filosófico, que culmina com a sua grande
37
obra da juventude, em 1932, intitulada “Da psicose paranóica em suas relações com a
personalidade” (ROUDINESCO, 1994).
Chama-nos a atenção o fato de que, se Freud criou a psicanálise na escuta das
mulheres histéricas, Lacan fez sua entrada também pelas mulheres, não as histéricas, mas as
paranóicas. Os casos Aimée (1931) e o das irmãs Papin (1933), ambos casos de paranóia,
marcaram a introdução de Lacan no universo psicanalítico.
Nos anos 50, Lacan aproxima a psicanálise da lingüística, com o intuito de descobrir
as leis estruturais que regulam a vida psíquica, chegando a afirmar que o inconsciente é
estruturado como uma linguagem, ou seja, que o inconsciente obedece a leis formais,
semelhantes às que o linguista constata a partir dos significantes puramente linguísticos. A
ordem do inconsciente, formalmente idêntica à ordem da linguagem, Lacan designa pelo
nome de ordem do significante (ou ordem simbólica) e confere-lhe o encargo de construir o
sujeito humano. Assim, inconsciente no ser falante
7
, e é a linguagem a condição do
inconsciente. A linguagem espera o sujeito em uma anterioridade gica, pois até mesmo os
pensamentos que se realizam na fantasia dos pais são determinantes no “destino” do sujeito.
Por isso, Lacan diz que o sujeito ex-siste, pois ele nasce afetado pela linguagem. Em
“Função e campo da fala e da linguagem”, encontramos uma referência poética sobre essa
anterioridade lógica:
Os símbolos efetivamente envolvem a vida do homem numa rede tão total que
conjugam, antes que ele venha ao mundo, aqueles que irão gerá-lo em ‘carne e osso’;
trazem em seu nascimento, com o dom dos astros, senão com o dom das fadas, o
traçado de seu destino; fornecem as palavras que farão dele um fiel ou renegado, a lei
dos atos que o seguirão até ali onde ele ainda não está e para além de sua própria
morte (LACAN,1998a, p.280).
No que diz respeito à partilha sexual, Lacan vai além do Édipo freudiano. Ele não o
refuta, mas o questiona e critica. Ele logiciza o Édipo, reduzindo o seu alcance. A lógica do
7
Quando Lacan afirma que inconsciente no ser falante, está referindo-se ao homem, que diferentemente
dos demais animais, é afetado pela linguagem e dela apropria-se para significar sua existência.
38
Édipo, como o próprio Freud o disse, produz o homem a partir da grande lei da castração,
deixando-lhe o gozo fálico. Mas, a mulher é situável em uma outra lógica, não-toda submetida
ao gozo fálico.
Guiado por essa outra lógica, para-além do Édipo, Lacan traz importantes
contribuições no que diz respeito à sexualidade feminina:
[...] os deslocamentos operados por Lacan sobre a questão da sexualidade feminina
em relação a Freud, constituiram verdadeiramente uma revolução conceitual ou, ao
contrário, seriam apenas reformulações de sugestões teóricas freudianas? Um modo
de tentar responder a essa questão é, por exemplo, buscar em Freud o traço ou as
premissas de uma fórmula choque de Lacan: A mulher o existe’ (SILVESTRE,
2002, p. 72).
Reconhecendo que essa revolução conceitual introduzida por Lacan promove um
considerável avanço para a temática do feminino, faremos, a partir de agora, um breve trajeto
sobre as suas contribuições à sexualidade feminina. Como sugere Silvestre (2002), essas
formulações lacanianas tomam Freud como ponto de partida. Na Conferência “Feminilidade”
(1996), encontramos a seguinte passagem:
Mas não se esqueçam de que estive apenas descrevendo as mulheres na medida em
que sua natureza é determinada por sua função sexual. É verdade que essa influência
se estende muito longe; não desprezamos, todavia, o fato de que uma mulher possa
ser uma criatura humana também em outros aspectos (FREUD, 1996, p. 134, Vol.
XXII).
De acordo com Silvestre (2002), essa passagem seria uma amostra do aforismo
lacaniano de que A mulher não existe”. Freud (1996) afirma que a natureza da mulher é
humana, ainda que sua inscrição como ser sexuado seja outra, diferente da dos homens. A
feminilidade, tanto para Freud como para Lacan, ultrapassa a referência ao falo.
Mas, para chegar ao entendimento desse polêmico aforismo lacaniano, iremos seguir
as elaborações de Lacan sobre essas questões em dois momentos: o primeiro momento,
considerado mais freudiano, situado em torno de 1958, momento em que encontramos os
39
textos “A significação do falo” e “Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade
feminina”; o segundo é onde estão as teses mais inovadoras, entre 1972 73, que, aqui, serão
discutidas a partir do Seminário 20 – Mais, ainda.
Seguindo o nosso intuito de fazermos um percurso lógico-conceitual, veremos como
Lacan, a partir de Freud, faz sua própria leitura do Édipo, da castração e do falo. De posse da
visão lacaniana desses conceitos freudianos, centraremos a discussão no conceito de gozo, a
fim de que possamos compreendê-lo como o que alicerça a devastação. É devido ao particular
do gozo feminino, em seu caráter de ilimitação, que a personagem de OA nomeia o abandono
de obscenidade. A partir de agora, o conceito maior, que nos conduzirá à devastação, será o
de gozo, admitindo que há um para os homens e outro para as mulheres.
Em “A significação do falo” (1958), podemos constatar o remanejamento que Lacan
(1998b) faz dos termos freudianos. Nessa conferência, ele reforça a diferença entre falo e
pênis, introduzida desde Freud, situando o primeiro como algo em torno do qual giram as
relações entre os sexos. Iniciamos, então, uma rápida introdução sobre esse conceito, uma vez
que ele é crucial para podermos discutir a partilha sexual. Como dito anteriormente, a posição
que o sujeito ocupa diante do sexual depende de como o falo circula na dinâmica edipiana.
Na conferência acima citada, Lacan (1998b) afirma que o complexo de castração tem
uma função de nó, tanto na estruturação dinâmica dos sintomas como:
[...] na instalação, no sujeito, de uma posição inconsciente sem a qual ele não
poderia identificar-se com o tipo ideal de seu sexo, nem tampouco responder, sem
graves incidentes, às necessidades de seu parceiro na relação sexual, ou até mesmo
acolher com justeza as da criança daí procriada (LACAN, 1998b, p. 692).
Então, Lacan também toma as consequências da castração como algo estruturante para
o sujeito, assim como o fez Freud, ao constatar que a castração revela uma dessimetria entre
homens e mulheres. No entanto, ao tomar o falo como um significante do desejo - definição
introduzida no Seminário 5, intitulado “As formações do inconsciente “[1957 – 1958]) e, mais
40
adiante (no Seminário 20), como o significante do gozo - essa dessimetria toma outras
configurações, indo além do complexo de Édipo. Em “A significação do falo”, Lacan
(1998b) esclarece que:
O falo é aqui esclarecido por sua função. Na doutrina freudiana, o falo não é uma
fantasia, caso se deva entender por isso um efeito imaginário. [...] E é menos ainda o
órgão, pênis ou clitóris, que ele simboliza. [...] o falo é um significante, um
significante cuja função, na economia intra-subjetiva da análise, levanta, quem sabe,
o véu daquela que ele mantinha envolta em mistério
(LACAN, 1998b, p. 696)
.
O falo, em Lacan, é o significante da falta, ele representa a falta-a-ser gerada pela
linguagem para todo e qualquer sujeito. E, ainda na conferência acima citada, Lacan esclarece
que não se trata da relação do homem com a linguagem como fenômeno social, mas dos
efeitos que essa relação produz no inconsciente, efeitos determinados pelo duplo jogo da
combinação e da substituição no significante.
O falo é, então, um significante do desejo. Como o homem não pode visar a ser
inteiro, que o jogo de deslocamento e condensação a que está fadado, no exercício de suas
funções, marca sua relação de sujeito com o significante, o falo é o significante privilegiado
dessa marca (LACAN, 1998b).
Essa função significante, segundo Lacan (1998b), é confirmada na gênese psicológica,
ou seja, na dialética da demanda de amor e da experiência do desejo que se apresenta no
Édipo, em que a criança anseia ser o falo da mãe para satisfazê-la.
Se a criança é tomada como o falo da mãe, noção que Lacan desenvolve a partir de
Freud quando este afirma que um filho é o substituto do pênis o ponto nodal do Édipo é
ser ou não ser o falo. No Seminário 5 (1957-58), Lacan (1999) afirma que essa é uma fase a
ser atravessada pelo sujeito, para, mais adiante, chegar a uma outra fase, que é a do ter ou não
ter o falo. Lacan (1999) nos fala em três tempos para o Édipo: no primeiro tempo, a criança
funciona como o falo da mãe; no segundo tempo, com o pressentimento de que um para-
41
além dela no desejo materno (o pai), a criança entra na incerteza psíquica de ser ou não o falo
da mãe; no terceiro tempo, a criança percebe que não é o falo, mas entra na incerteza de ter ou
não ter o falo momento em que o pai precisa dar a prova de que é ele quem tem o falo. Este
terceiro tempo finda com o complexo de castração, momento em que a criança renuncia seu
objeto de amor primordial (a mãe), desalienando-se do desejo materno e sendo inaugurada
como sujeito desejante.
Se a criança permanece alienada ao desejo materno, funcionando como o falo, a falta
não é instaurada e nem tampouco o desejo. Então, essa castração simbólica é estruturante para
os sujeitos: “Aquilo de que se trata no complexo de castração nunca é articulado e se faz
completamente misterioso. Sabemos, no entanto, que é dele que dependem estes dois fatos:
que, de um lado, o menino se transforme em homem, e de outro a menina se transforme em
mulher” (LACAN, 1999, p. 192).
O falo é, então, o pivô do complexo de castração, é o suporte indispensável da
construção subjetiva. E, Lacan (1999) adverte que ao se falar de falo não é simplesmente do
pênis que se trata. O pênis, tanto no sujeito feminino como no masculino, vem em suplência
ao falo. Nesse momento, Lacan recorre, inclusive, à Antiguidade grega, indo aos textos de
Aristófanes, Heródoto, Luciano e outros, em cujos escritos o falo não aparece como idêntico
ao órgão. Ele aparece como um simulacro, uma insígnia. Nos cultos antigos, tudo o que se
relaciona com o falo é objeto de amputações, de marcas de castração, principalmente, quando
se trata das manifestações significantes do poder fecundo da Grande Deusa.
Lacan (1999) segue afirmando que o falo é sempre coberto pela barra colocada ao seu
acesso significante. Ao afirmar que o significante é um vazio, por atestar uma passagem
passada, e que ele se apresenta como anulado e marcado pela barra, define o falo como um
42
significante do desejo, que se encontra de forma barrada onde tem lugar como indicando o
desejo do Outro
8
.
A primeira pessoa a ser castrada, na dialética intersubjetiva do Édipo, é a mãe. Então,
a castração é inicialmente encontrada no Outro, ou seja, o desejo do Outro é marcado pela
barra significante. O sujeito, assim, tem que encontrar seu lugar de objeto desejado em relação
ao desejo do Outro, situando-se como aquele que é e que não é o falo, encontrando sua
identificação de sujeito, sendo ele também um sujeito marcado pela barra.
Lacan (1999) afirma que isso é muito claro na mulher que, por não ter o falo vê-se
ligada à exigência de ser o falo, na medida em que ele é o signo do que é desejado. O fato de a
mulher se exibir e se propor como objeto do desejo, a identifica, secretamente, com o falo
desejado, significante do desejo do Outro: “Esse ser a situa para além do que podemos chamar
de mascarada feminina, que, afinal, tudo o que ela mostra de sua feminilidade está ligado,
precisamente, a essa identificação profunda com o significante fálico, que é o que está ligado
à sua feminilidade” (LACAN, 1999, p. 363).
Veremos que, para a personagem de OA, toda a dificuldade encontra-se nessa
identificação com o objeto de desejo que falta ao parceiro. Por não conseguir sustentar-se na
mascarada feminina, o que recai sobre ela é a devastação. Ela não consegue identificar-se ao
objeto causa de desejo, ficando identificada a um objeto-dejeto, impossibilitando-lhe uma
posição de dignidade diante do homem amado, restando-lhe, apenas, a devastação.
O homem também é apanhado em outro dilema: “Não pensem que a situação é melhor
para o homem. É até mais cômica. O falo o infeliz o tem, e é justamente saber que sua mãe
não o tem que o traumatiza pois, sendo assim, que ela é muito mais forte, onde é que
vamos parar? (LACAN, 1999, p. 363). No homem, um perigo constante que ameaça
8
O Outro é um termo lacaniano que designa: “[...] linguagem, é Código, é Cadeia significante, é o Inconsciente
enquanto estruturado como linguagem, é Discurso, é Sede do desejo, é Sede do tesouro significantes”
(PAVONE, 2000, p.31).
43
aquilo que ele pensa ter, o que é resolvido pela identificação deste com aquele que tem o falo
– o pai.
A mulher, “bancando” ser o falo, encontra o significante de seu próprio desejo no
corpo daquele a quem endereça sua demanda de amor. Em “A significação do falo” (1958),
Lacan (1998b) diz que a mulher pretende ser desejada e amada pelo que ela não é. Esse ser o
falo designa a mulher como aquela que, na relação sexuada, é convocada ao lugar do objeto
causa de desejo.
Se o seu parceiro a deseja é porque a ele também falta alguma coisa, pois o homem
também vai à procura do falo, já que também é castrado:
O problema do amor é o da profunda divisão que se introduz no interior das
atividades do sujeito. A questão de que se trata, para o homem, segundo a própria
definição do amor dar o que não se tem −, é dar aquilo que ele não tem, o falo, a
um ser que não o é (LACAN, 1999, p. 364).
A mulher, então, dá o que falta ao homem. Mas, quando ela o faz, dá o que não tem. O
homem, “bancando” ter o falo para dá-lo à mulher, também o que não tem. Vemos que a
falta é condição sine qua non para o amor:
[...] comporta imposição para quem nela ingressa. Em especial, dirige o que bem
poderíamos chamar de comédia dos sexos, que obriga cada um dos parceiros a
‘bancar o homem’ ou ‘bancar a mulher’ [...]. No baile do Outro, a mascarada
feminina e a parada [parade] viril respondem uma à outra com passos marcados. Em
benefício do riso, sem dúvida mas sem simulação. O recalcamento do falo, que
ordena a relação entre homem e mulher cava o lugar em que o parecer é mestre
(SOLER, 2005, p. 31)
.
É a partir da função do falo que as estruturas a que são submetidas as relações entre os
sexos são apontadas por Lacan. Essas relações giram em torno de um ser e um ter, seja
parecendo ter para protegê-lo, seja parecendo sê-lo, para mascarar sua falta no outro,
projetando as manifestações picas do comportamento de cada um dos sexos. Essa função do
falo nas dinâmicas da vida amorosa será mais compreensível no capítulo de análise da obra,
44
em que poderemos “visualizar” como se dá esse jogo de fazer parecer, tanto para o homem
como para a mulher.
O falo, nas elaborações lacanianas, é um significante que tem por função significar
tudo o que depende da dimensão sexual (NASIO, 1993). É, então, a partir desse significante,
que Lacan define as posições masculina e feminina.
Como vimos, Freud defende a idéia de uma única libido para homem e mulher, que se
divide de acordo com seu modelo de satisfação em ativo e passivo. Ao retomar essa questão,
Lacan (1985), no Seminário 20 (1972-73), fala em uma divisão entre dois tipos de gozo:
“Com isso Lacan cria um momento que, desloca a questão da feminilidade do campo do sexo
para o campo do gozo: a bissexualidade se torna bi-gozo [...]” (ANDRÉ, 1998, p. 27).
No Seminário citado, Lacan (1985) reconhece que a questão do gozo sexual da mulher
permanece praticamente intocada, tanto em Freud como nos pós-freudianos, dando lugar aos
debates mais escabrosos (ANDRÉ, 1998). Assim, no referido Seminário, ele acentua mais a
questão do gozo feminino, do que a de uma identidade feminina. Ele volta-se mais para a
divisão que o significante fálico introduz na menina, do que a castração e a inveja do pênis.
Reconhecendo a importância do Seminário 20 para o presente estudo, centraremos
nossa discussão sobre a feminilidade em Lacan, a partir dele e das conseqüências que dele
podemos tirar. Embora a articulação entre significante e gozo esteja presente desde cedo,
em alguns textos como “A significação do falo” (1958) e “Subversão do sujeito e dialética do
desejo” (1960), é no Seminário 20 que Lacan melhor discute sobre a intersecção desses dois
campos. Ele esclarece, logo de início, que o termo gozo não é sinônimo de prazer e nem de
satisfação.
Lacan (1985) afirma que o gozo não serve para nada e que ele se coloca como uma
instância negativa, não se deixando reduzir às leis do princípio de prazer e nem à
autoconservação. Em “Subversão do sujeito e dialética do desejo” (1960), Lacan (1998c)
45
afirma que o falo dá corpo ao gozo, pois é graças à castração que o registro do gozo sexual
nos é aberto. Assim, ele distingue dois tipos de gozo: o gozo do ser (gozo em geral) e o gozo
sexual (ou fálico). O gozo sexual é uma limitação do gozo em geral, ele tem o efeito de nos
interditar, pois está articulado ao significante fálico, que é quem introduz a dimensão do
sexual no ser humano.
Ao introduzir uma inversão entre o ser e o significante, Lacan (1998) afirma que o ser
não pré-existe ao significante, mas é produzido por ele. A linguagem é quem modela e
determina o ser e o faz efeito da linguagem (ou seja, o significante do falo), ela separa o
sujeito do gozo do ser. Ela abre o registro do gozo sexual, mas torna o gozo do ser inacessível,
que é um gozo que não corresponde a desejo algum do sujeito e resiste a qualquer apreensão e
raciocínio significante (ANDRÉ, 1998).
O gozo do ser não pode ser dito, está fora-da-linguagem, é um lugar vazio de
significantes. É, então, no Seminário 20, que Lacan (1973-73) discute a dialética desses dois
gozos: “O significante do falo é retomado aí em seu duplo valor, de causa final para o gozo do
ser ou gozo do Outro, como Lacan o denomina a partir de então, e de causa original para o
gozo sexual ou gozo fálico” (ANDRÉ, 1998, p. 216).
Então, o gozo fálico ou gozo sexual é bem determinado pela linguagem, que é
tributário do significante do falo. É um gozo extracorpo, autorizado pelo significante. Já o
gozo do ser ou do Outro, é indizível, escapa ao domínio do significante, é fora-da-linguagem.
Assim, no Seminário 20, Lacan (1985) situa o gozo masculino do lado do gozo fálico, e o
gozo feminino do lado do gozo do Outro. Esse dizer lacaniano traz uma grande mudança no
que diz respeito à abordagem da sexualidade feminina, pois lhe é atribuído um gozo mais
além da função fálica, também denominado de suplementar.
Reinterpretando a noção de bissexualidade freudiana, Lacan (1985) traz a noção de
posição masculina e posição feminina, reunindo suas elaborações em algumas fórmulas
46
matematizadas, que ele chama de “fórmulas quânticas da sexuação”. Não é nosso objetivo,
aqui, adentrar em todos os desdobramentos possíveis dessas fórmulas quânticas da sexuação,
pretendemos apenas extrairmos as conseqüências trazidas para a sexualidade feminina sob a
ótica lacaniana.
O que essas fórmulas apontam é que todos os sujeitos estão submetidos à castração, ou
seja, que não há sujeito para quem a função fálica não funcione. No entanto, isso é
totalmente válido para o lado masculino, pois, segundo Lacan (1985), a mulher é não-toda
submetida à ordem fálica. Assim, os sujeitos que se alinham do lado feminino, têm que
escolher entre duas vias: ou recusam essa falta de fundamento, posicionando-se do lado
masculino, que é a via da inveja do pênis quando evolui para o complexo de masculinidade
(idéia desenvolvida por Freud); ou escolhem a outra via, introduzida por Lacan, que consiste
em uma saída para além daquelas apontados por Freud. É desta via que parte a constatação de
que A mulher não existe, pois elas não formam um conjunto aberto, devendo ser contadas
uma a uma. Assim, existe uma mulher e não A mulher. Elas não se agrupam, como o
fazem os homens, em torno de um elemento comum. Elas se inscrevem parcialmente na
norma fálica, ou seja, a mulher é não-toda submetida à função fálica
9
.
Ao enunciar o aforismo “A mulher não existe”, Lacan (1985, p. 19) o aplica ao mito
de Don Juan, que sabe tomar as mulheres uma a uma: “Das mulheres, a partir do momento em
que os nomes, pode-se fazer uma lista, e contá-las. Se mille e tre é mesmo porque
podemos tomá-las uma a uma, o que é essencial. E é coisa completamente diferente do um da
fusão universal”. Na obra O amor nos tempos do cólera, Márquez (1987, p. 334), através do
personagem Florentino Ariza, ilustra a artimanha do homem que sabe tomar as mulheres no
um a um: “[...] pode-se estar apaixonado por várias pessoas ao mesmo tempo, por todas com a
mesma dor, sem trair nenhuma. [...] o coração tem mais quartos que uma pensão de putas”.
9
Ao longo deste trabalho essa formulação será repetida algumas vezes e isso se dará por dois motivos: primeiro,
porque se trata de um aforismo lacaniano e, segundo, porque é o ponto chave do conceito de devastação.
47
Como é não-toda submetida à função fálica, a mulher não forma conjunto, ela não
existe. Uma outra consequência disso recai sobre o gozo feminino, que Lacan (1985) chama
de “gozo do Outro” ou “gozo do corpo”. O falo provoca uma cisão na posição feminina, o que
faz com que a mulher sinta que uma parte de si está presa ao gozo fálico. A outra parte, sobre
ela, as mulheres nada sabem dizer:
[...] desse gozo, a mulher nada sabe, é que tempos que lhe suplicamos, que lhes
suplicamos de joelhos eu falava da última vez das psicanalistas mulheres que
tentem nos dizer, pois bem, nem uma palavra! Nunca se pôde tirar nada. Então a
gente o chama como pode, esse gozo, vaginal, fala-se do pólo posterior do bico do
útero e outras babaquices, é o caso de dizer
(LACAN, 1985, p.101)
.
Esse gozo para além do gozo fálico aparece ilustrado na fala de algumas mulheres,
quando tentam, em vão, dizer algo sobre a maneira como conseguem gozar no ato sexual.
Aliás, esse é um ponto enigmático até para a própria medicina, que tenta localizar o gozo
feminino em uma parte do órgão anatômico, daí onde aparecem o ponto G, H e tantos outros.
Sobre isso, Miller (1998, p. 108) ressalta que: “Os testemunhos femininos não faltam sobre a
estranheza de um gozo habitando o corpo, com os efeitos de limitação que são, no fundo,
prescritos pelo Não-Todo”. Lacan (1985, p. 103), no Seminário 20, lembra o gozo dos
místicos e cita a estátua de Bernini, localizada em Roma, intitulada O Êxtase de Santa Tereza,
que, inclusive, ilustra a capa do referido Seminário: “[...] ela está gozando, não dúvida. E
do que é que ela goza? É claro que o testemunho essencial dos sticos é justamente o de
dizer que eles o experimentam, mas não sabem nada dele”.
O enigma que uma mulher representa para um homem está ligado ao fato, certamente,
de que o homem lhe supõe um gozo outro, diferente do seu, não podendo defini-lo. Essa
estranheza do gozo feminino coloca-se até para ela mesma, como atesta Lacan (1998d) em
“Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina” (1960) ao afirmar que a mulher
é Outra até para ela mesma.
48
Lacan não faz desse gozo do Outro o traço feminino por excelência, até mesmo porque
ele não cessa de dizer que não existe uma essência feminina. Quanto a isso, Lacan (1985, p.
103) é cuidadoso: “Eu creio no gozo da mulher, no que ele é a mais, com a condição de que
esse a mais vocês lhe coloquem um anteparo antes que eu o tenha explicado bem”.
Interessa-nos, aqui, apropriarmo-nos dessas fórmulas da sexuação para introduzir a
posição feminina na relação amorosa. Sobre as conseqüências dessas fórmulas, Miller (2003)
nos diz que elas indicam, de acordo com cada uma das duas estruturas, o que um sexo vai
procurar no Outro.
Essas formulações não dão a fórmula do casal, mas de cada posição separada. Elas
permitem articular o gozo próprio a cada sexo. Do lado masculino, vimos que o gozo é finito
e localizável, enquanto do lado feminino ele é infinito e não localizável. Sobre essas duas
formas de gozo, Miller (2003, p. 27) afirma que elas: “[...] dão conta das duas formas de amor
distinguidas por Lacan, a forma fetichista e a forma erotomaníaca e por trás dessa palavra
amor é preciso escutar o Liebe freudiano, ou seja, amor, desejo e gozo numa única palavra”.
É no Seminário 20 (1972 1973) que Lacan (1985) introduz essa duas formas de
amor, a partir do que cada um dos seres sexuados vai impor aos seus parceiros. Do lado
masculino, o objeto eleito toma a forma do fetiche pequeno a
10
, ou seja, de um objeto
invariável, que tem o caráter da unidade e da uniformidade. Esse objeto se faz reconhecer pelo
fato que ele apresenta traços uniformes, respondendo sempre a uma mesma condição. Isso não
quer dizer que Lacan toma todos os homens como perversos. É fato que a perversão está do
lado masculino, mas o que ele quer dizer é que no amor, o homem toma seu objeto, ou seja, a
mulher, como um fetiche pequeno a. Na relação amorosa, a mulher se fetichiza, ela fica no
lugar de objeto causa de desejo para um homem, o que é diferente da estrutura perversa, onde
o homem toma mulher como objeto de gozo.
10
Termo introduzido por Lacan, que faz referência ao objeto perdido de Freud. Lacan o define com objeto causa
de desejo.
49
Essa forma fetichista de amor pode ser facilmente observada na “comédia dos sexos”,
que é do lado masculino que encontramos a exigência e imposição de certas condições,
como, por exemplo, a exigência que o outro se vista de uma certa maneira, ou seja, são os
homens que mais se ocupam em saber como deve se apresentar o corpo do outro. O modo de
gozar masculino exige que seu parceiro responda a um modelo, às vezes, chega até à
exigência de um pequeno detalhe. É na escuta clínica que melhor se pode perceber essa
condição do gozo masculino. Miller (1998) cita o caso de um analisante que buscava, em uma
mulher, uma dobra entre a base do nariz e a boca; cita também um outro analisante que exigia
uma certa forma das nádegas que só poderia ser conferida depois de estar na cama e se essa
condição não se presentificava, ele não conseguia fazer sexo. No artigo “O fetichismo”
(1927), Freud (1996) traz o caso de um homem que persegue encontrar em uma mulher um
“certo brilho no nariz”. Na literatura também encontramos exemplos, como o que Lacan
(1993) traz em Televisão (1974), onde evoca o encontro de Dante com Beatriz:
Um olhar, o de Beatriz, ou seja, um tantinho de nada, um batimento de pálpebras e o
dejeto delicioso que disso resulta: e eis que surge o Outro que devemos identificar
tão somente como o gozo dela, o qual ele, Dante, não pode satisfazer, porque dela
ele pode obter esse olhar, somente esse objeto, mas com o qual, nos enuncia ele,
Deus a satisfaz, e ele nos provoca ao receber a segurança disso justamente de sua
boca
(LACAN, 1993, p. 45)
.
Nessa passagem, Lacan (1993) sustenta a tese de que no batimento de pálpebras de
Beatriz algo como um objeto a que cai para Dante. É o piscar de olhos que produz para
Dante o objeto a mais-de-gozar. Trazendo a discussão para o campo da literatura brasileira,
não funcionariam também como objeto a mais-de-gozar os olhos de ressaca e dissimulados de
Capitu, aos quais Bentinho sempre se refere?
A disponibilidade feminina, segundo Miller (2003), é colocada à prova diante do que
se faz sentir como a necessidade de uniformizar, de colocar o “uniforme do desejo” sobre o
corpo do outro. É a perversão normal do macho, que não se confunde com a estrutura
50
perversa: “Isso não adquire o ar perverso senão quando essas exigências são absolutamente
rígidas e marcadas por uma certa extravagância misturada com humilhação” (MILLER, 2003,
p. 17).
Lacan (1986), no Seminário 20, prossegue afirmando que essa forma fetichista se
satisfaz com um objeto que curto-circuita a fala. O objeto fetiche é um objeto que não fala, é
um objeto objetificado, coerente com a exigência de gozo que admite que a fala permaneça
fora do jogo.
Miller (2003) coloca como exemplo muito nítido, dessa forma de objeto fetiche, a
homossexualidade masculina, onde o “acordo” para que o gozo possa se fazer por uma
troca de signos que curto-circuita totalmente o blablablá do amor. O parceiro pode ser
seduzido sem palavras, o que também se realiza com a prostituta e com a masturbação
masculina. Mas, quando o homem relaciona-se com a mulher, a coisa é bem mais complexa e
aí se instala a comédia dos sexos, ou seria a tragédia?
O gozo masculino pode ser sustentado no silêncio. O objeto pequeno a condiciona
uma erótica do silêncio. Do outro lado, do lado feminino, está a forma erotomaníaca de amar.
Lacan foi buscar o termo “erotomania” na psiquiatria, em um caso estudado pelo seu mestre
De Clérembault, em cujo relato o termo aparece, pela primeira vez, definido como um delírio
no qual o amor fica sob a forma de paixão desenfreada (GORSKI, 2007).
O que serve de fundamento nesse tipo de delírio, típico da paranóia, é que o “Outro me
ama”:
O conceito de erotomania é parte do legado da clínica psiquiátrica e neste campo foi
utilizado especificamente para se referir à existência deste fenômeno na psicose.
Lacan, no entanto, lança mão deste conceito para aprofundar as reflexões de Freud
sobre o modo masculino e o modo feminino de amar
(Gorski, 2007, p. 182)
.
Em Freud (1996), no artigo “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914),
encontramos uma referência à dessimetria entre a posição masculina e feminina, em relação à
51
forma de amar, afirmando que existem diferenças fundamentais entre os sexos no tocante a
seu tipo de escolha. Freud (1996), então, localiza a escolha objetal da mulher como narcisista:
“Rigorosamente falando, tais mulheres amam apenas a si mesmas, com uma intensidade
comparável à do amor do homem por elas. Sua necessidade não se acha na direção de amar,
mas de serem amadas; e o homem que preencher essa condição cairá em suas boas graças”
(FREUD, 1996, p. 95, VOL. XIV).
Lacan (1986), então, localiza a erotomania do lado feminino, onde a exigência de
que o objeto seja um Outro que fale. O modo de gozar feminino exige que seu parceiro fale e
que a ame. Para a mulher, o amor é tecido no gozo e, para que ela goze, é preciso que seu
parceiro lhe fale.
Do lado feminino, como vimos, o não-todo, o gozo do Outro, ou seja, uma
ilimitação do gozo. Assim, a demanda de amor, para a mulher, possui um caráter absoluto e
uma visada ao infinito:
[...] que é manifestada no fato de que o Todo não está formado, o Todo não faz um,
e isso se abre para o infinito, além de tudo o que se pode trocar de material, tudo que
pode se oferecer como prova. É uma demanda que incide sobre o ser do parceiro, e é
isso que desnuda sua forma erotomaníaca – que o Outro me ame (MILLER, 1998, p.
111).
Essa demanda de amor ilimitada recai sobre o parceiro, na exigência de ser amada e
que esse amor seja falado. A exigência aparece sob a fórmula de que, para gozar, é preciso
amar. Do lado da mulher, não se pode gozar senão da fala, mas não só da fala de amor, pois
Miller (1998) nos lembra que mulheres que se satisfazem muito bem, mesmo se o parceiro
as critica, porque o importante é que ele lhes fale. Para ilustrar essa afirmação, ele relata o
caso de um casamento que se sustentava vinte anos, em que os parceiros viviam em
cidades diferentes, mas o relacionamento se mantinha porque o marido telefonava todos os
dias para a mulher. Outro caso trazido por Miller (1996) é o de uma mulher que se queixava
52
que seu marido fazia pouco sexo com ela, mas o laço se mantinha porque ele sempre falava
bem dela.
Este psicanalista diz que o homem pode gozar sem palavras e sem amor e, por isso, é
sempre um “monstro”; já a mulher é uma “chata”, que a todo o tempo coloca para o parceiro a
questão: você me ama? No homem, o desejo passa pelo gozo, enquanto que na mulher, o
desejo passa pelo amor. Lacan (1985) adverte que há uma diferença entre o amor e o fetiche:
o primeiro não está do lado do múltiplo, enquanto o segundo tem suportes múltiplos.
Na obra analisada neste estudo, a forma de gozar masculina e feminina é bastante
evidenciada nas falas da personagem. O que ela esperava de seu homem era ser amada, não
suportava o fato desse homem invadir seu sexo e depois ir embora. para ele, estar com ela
era muito bom e era isso que esperava da relação que fosse “boa”. Percebemos que o
amor é uma exigência da personagem, ao passo que o sexo era suficiente para o seu parceiro.
Para que haja amor, uma necessidade de castração: “[...] para o homem, a menos
que haja castração, quer dizer, alguma coisa que diga não à função fálica, não nenhuma
chance de que ele goze do corpo da mulher, ou, dito de outro modo, de que ele faça o amor”
(LACAN, 1985, p. 97, Sem. 20). É no Seminário 7 que Lacan (1992) afirma que amar é dar o
que não se tem. No amor, o que se oferece é a falta e só se pode dar a falta-a-ser falando. Para
amar é preciso falar e as mulheres sabem disso muito mais que os homens.
No entanto, Lacan (1985) segue lembrando que isso não impede que o homem possa
desejar a mulher de todas as maneiras, fazendo com ela toda sorte de coisas que
“espantosamente” se parecem com o amor. O homem aborda a mulher: “Só que, o que ele
aborda, é a causa de seu desejo, que eu designei pelo objeto a. está o ato de amor. Fazer o
amor, como o nome o indica, é poesia. Mas um mundo entre a poesia e o ato. O ato de
amor é a perversão polimorfa do macho, isto entre os seres falantes” (LACAN, op. cit., p. 98).
53
Para Solano (s/d), quando se ama, se está em falta e é justamente por isso que os
homens se defendem do amor. Um homem apaixonado está em falta, é castrado, se feminiza,
pode, inclusive, ser mais homem, porque o verdadeiro homem não retrocede diante do desejo
de uma mulher nem diante de sua demanda de amor.
É no Seminário 20 que Lacan discute sobre a não existência da relação sexual, dizendo
que é o amor que vem em suplência a ela. Ele argumenta que em tudo que diz respeito à
relação entre os homens e as mulheres, “a coisa não vai” (LACAN, 1985, p. 62). A relação
sexual não existe porque não há, no inconsciente, significantes que signifiquem o gozo
masculino e o gozo feminino. O gozo é um lugar vazio de significantes. Isso não quer dizer
que não haja a união genital entre o homem e a mulher. Ele nos lembra que a idéia do amor
parte da noção de que “nós dois somos um só”, e que essa seria a maneira mais grosseira de
dar um significado à relação sexual: “Entre dois, qualquer que eles sejam, há sempre o Um e o
Outro, o Um e o a minúsculo, e o Outro não poderia, em nenhum caso, ser tomado por Um”
(LACAN, 1895, p.67).
O que torna possível o ato de amor? Como vimos, é preciso que o homem tome a
mulher como causa de seu desejo e que a mulher se preste à condição de objeto na fantasia de
um homem. Essa parceria, que se funda ao nível do gozo, Miller (1998) nomeia de “parceiro-
sintoma”, que a relação do parceiro supõe que o Outro torna-se um meio de seu gozo. A
partir do aforismo lacaniano de que não há relação sexual, ele afirma que o ser sexuado, por
não fazer parceria no nível do significante puro, a faz no nível do gozo e que essa ligação é
sempre sintomática. Então, anuncia que o parceiro-sintoma do homem tem a forma fetiche,
enquanto que o parceiro-sintoma da mulher tem a forma erotomaníaca.
No lugar de haver relação de um homem com uma mulher, há encontro dos sintomas:
“[...] isso indica que o sintoma é o nosso parceiro de todo dia, gerando satisfação onde a
54
satisfação falta. [...] é dessa forma que o parceiro do falasser
11
é algo dele próprio; é, antes de
tudo, aquilo que ele conhece melhor, o seu ‘parceiro-sintoma’” (VICENTE, 2003, p. 73).
De um lado, o desejo passando pelo gozo. Do outro, o desejo passando pelo amor. De
um lado, a erótica do silêncio. Do outro, a exigência das palavras:
O verdadeiro problema do lado feminino é forçar o homem a falar, ao invés de olhar
a televisão, ler o jornal, ou ir ao jogo de futebol, mas, enfim, as mais inteligentes vão
com eles ao jogo de futebol; aliás, para o homem, é melhor falar, porque, se ele não
fala, vai ser ela quem vai falar, e para reclamar que ele não fala
(Miller, 1998,
p.112)
.
Essa demanda de amor feminina, que possui um caráter ilimitado e absoluto, retorna
sobre ela sob a forma de devastação. Assim, um homem é, para uma mulher, seu parceiro
devastação:
O que é ser devastado? Poderíamos dizer, é ser devastado. Falamos de devastação
quando uma pilhagem que se estende a tudo, que não termina, que não conhece
limites, e é em função dessa estrutura que um homem pode ser o parceiro-
devastação de uma mulher, para o melhor e para o pior (MILLER, op cit, p. 115).
Um homem pode ser o modo como acontece o deslumbramento para uma mulher,
conduzindo-a a um estado de felicidade extrema. Mas, ele também pode levá-la ao pior.
Vicente (2003, p. 73) afirma que, ao encontrar o Outro da falta, ou seja, ao experimentar essa
vivência extrema de ausência do Outro, de destituição subjetiva, o corpo se reduz a um objeto
inanimado, momento onde o falasser sente a dor de ser objeto: “Tal experiência faz ocorrer
uma mirada que vai ao coração da estrutura, ao traumatismo mesmo da relação do falasser
com o significante que o determina [...]”.
É por isso que Lacan (1993), em “Televisão”, afirma que todas as mulheres são
loucas, não loucas-de-todo, pois não limites às concessões que fazem para um homem.
11
Lacan distingue o sujeito falta-a-ser (que é o sujeito da linguagem, que fala), do sujeito falasser sujeito
dividido do inconsciente, que só a análise pode acessar.
55
Uma mulher devastada pode até abrir mão de seus próprios filhos, como o faz Medeia, ao
perder a reciprocidade do amor de Jasão.
Em OA, veremos como a narradora-personagem faz concessão de seu próprio ser, na
relação que estabelece com seu homem. Toda a narrativa é centrada nos “estragos” que esse
homem faz em sua vida, constituindo-se, para ela, como uma verdadeira devastação.
Todo o percurso teórico-conceitual até aqui trilhado, coloca-se como imprescindível
para a compreensão do conceito maior, sobre o qual iremos nos debruçar a partir de agora – o
de devastação. Como dito antes, esse conceito será adotado como norteador da presente
análise.
Retomando a construção lógica de nosso caminho conceitual, vimos que, no Édipo, é a
maneira como a criança sofre os efeitos da castração que a faz situar-se do lado feminino ou
masculino. É a circulação do falo entre os três protagonistas do Édipo mãe, pai e criança
que assegura uma posição na partilha sexual. Entre ser ou não ser o falo, ter ou não ter o falo,
saber quem é e quem tem o falo, a criança estrutura-se subjetivamente, assumindo modos de
gozo diferentes. Então, articulamos Édipo castração falo gozo devastação. Se ela se
inscreve a partir do gozo fálico, situa-se do lado masculino. Se ela se inscreve a partir do gozo
do Outro, que é não-todo submetido ao significante fálico, localiza-se do lado feminino.
Dentre as muitas consequências desse gozo do Outro e de seu caráter ilimitado, está a
devastação, que emerge como algo singular da posição feminina. No entanto, se um homem
posicionar-se do lado feminino, pode experimentar algo semelhante a uma devastação.
1.4 A devastação feminina: a outra face do amor
Vimos que, desde cedo, Freud declara sua dificuldade em abordar a vida sexual das
mulheres. Pudemos observar, no percurso até aqui trilhado, o movimento que vai da
56
concepção de uma simetria na estruturação sexual do menino e da menina, até que Freud
volta-se para a fase pré-edípica e se depara com a forma muito peculiar do vínculo entre a
menina e sua mãe. A partir daí, ele passa a afirmar que muitos fenômenos da vida sexual
feminina, antes não compreendidos, podem ser explicados com referência a essa fase.
O menino mantém intacta a sua relação com a mãe, porque desloca seus sentimentos
ambivalentes para o pai, ou seja, vai rivalizar com o pai, durante toda a fase do Édipo. Para a
menina, esse vínculo é algo bem mais complexo, a ponto de algumas mulheres permanecerem
nele detidas e nunca alcançarem uma mudança em direção aos homens.
Essa conclusão a que Freud chega, parte de sua prática clínica, pois era comum ouvir
de suas pacientes uma ladainha de queixas direcionadas ao relacionamento dessas com suas
mães, o que ele vai apontar como uma queixa tipicamente histérica. Essa constatação é refeita
sempre que uma histérica é aceita em análise, quando boa parte de suas sessões versa sobre
um enorme ressentimento para com a mãe, que nunca a amou o suficiente. É também no
contexto das sessões de análise de uma mulher, que observamos o quanto a sua relação com
os homens reproduz a relação que ela manteve ou mantém com sua mãe.
Sobre essas mulheres, Freud (1996), no artigo “Sexualidade feminina”, esclarece que:
O marido de tal mulher destinava-se a ser o herdeiro de seu relacionamento com o
pai, mas na realidade, tornou-se o herdeiro do relacionamento dela com a mãe. [...]
Com muitas mulheres, temos a impressão de que seus anos de maturidade são
ocupados por uma luta com os maridos, tal como suas juventudes se dissiparam
numa luta com suas mães (FREUD, 1996, p. 239).
Em Lacan, essa ênfase no vínculo mãe-criança também foi destacada anteriormente,
pois vimos que ele, ao definir o falo como significação e, depois, como significante, localiza-
o como aquilo que responde ao desejo da mãe. A criança funciona como um falo para a mãe,
posição essa que precisa ser renunciada por essa criança e que poderá lhe custar muito caro,
mais adiante. A mulher faz do seu filho um objeto “tampão” do seu não-toda. No Seminário
57
17 (1969-70), Lacan (1992, p.105) afirma que o desejo da mãe é devastador para todo sujeito:
“O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia
sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão – a mãe é isso. Não se sabe o
que lhe pode dar na telha, de estalo fechar sua bocarra. O desejo da mãe é isso”. O menino,
segundo este teórico e psicanalista, escapa dessa “bocarra de jacaré”, pois encontra no pai um
ponto de identificação viril correspondente a seu sexo. Mas, a menina não encontra na e
um signo para a sua própria identidade sexuada. Assim, a mãe pode tornar-se uma devastação
para uma filha.
Essa visão sobre a maternidade, na abordagem psicanalítica, rompe com uma série de
idealizações que povoam o imaginário coletivo. Em oposição a um lugar sagrado e pueril, a
psicanálise nos mostra que uma mãe pode impedir que a criança se estruture como sujeito
desejante, podendo deixá-la alienada ao seu desejo, numa posição de objeto.
O que Freud nomeou como catástrofe, Lacan chamou devastação termo que aparece
nas construções lacanianas, no texto O aturdito (2003b, p. 465), também em relação ao
vínculo mãe - filha: “[...] a elocubração freudiana do complexo de Édipo que faz da mulher
peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida, contrasta dolorosamente com a
realidade da devastação que constitui na mulher, em sua maioria, sua relação com a mãe”.
Posteriormente, no Seminário 23, O sinthoma (1975-76), Lacan (2007, p. 101) utiliza o termo
devastação para a posição que uma mulher pode ocupar diante de um homem: “[...] o homem
é para uma mulher tudo o que vos agradar, a saber, uma aflição pior que um sinthoma [...].
Uma devastação mesmo”. Essa idéia lacaniana é uma retomada do que Freud constata no seu
artigo “Feminilidade” (1996), que, como fizemos referência anteriormente, aponta para o
fato de que a forte ligação da menina com a mãe se repete em sua vida amorosa. Na
literatura, temos, nos romances de Lya Luft, vários exemplos de como essa relação é
conflitante, principalmente, em As parceiras (2004), onde a personagem narradora, Anelise,
58
luta contra o fardo que herda de várias gerações de mulheres da sua família, entre elas sua
mãe e avó materna.
Obviamente, nossa discussão não será centrada na devastação que emerge na relação
da menina com a suae, interessa-nos o que dela se reproduz na relação entre uma mulher e
um homem, fenômeno este que se encontra presente na personagem da obra escolhida para
análise. No entanto, a fim de introduzirmos a origem do conceito, não poderíamos deixar de
situá-lo como algo que emerge da relação mãe-filha. Tanto em um caso como em outro, é
importante percebermos que a devastação aparece como um efeito desse gozo feminino
ilimitado, que escapa à lei simbólica, constituindo-se como um gozo fora-da-lei. No caso da
mãe, esse gozo incide sobre a criança, mas no caso da mulher, incide sobre o parceiro e
retorna para esta última sob a forma de devastação.
Retomamos, agora, alguns posicionamentos lacanianos que foram trabalhados no
tópico anterior do presente capítulo, quando falávamos sobre a forma de amar feminina, ou
seja, sobre a erotomania. No Seminário 20 (1972-73), Lacan (1985) teoriza as fórmulas da
sexuação, que não correspondem à divisão entre homens e mulheres, mas à partilha entre a
parte masculina e a feminina do ser falante. Vimos que do lado masculino está o Um, o
universal, o que forma conjunto, está o gozo que pode ser quantificado e localizado o gozo
fálico. Do lado feminino, localiza-se o que está para além do significante, que não admite
universalidade um gozo não todo submetido ao significante fálico. Esse gozo a mais da
mulher, a coloca ao lado dos poetas e místicos. No Seminário acima citado, Lacan (1985)
afirma que esse gozo feminino é enigmático até para a própria mulher, que nada sabe dizer
sobre ele, apesar de experimentá-lo.
É importante salientar, aqui, que há sujeitos de anatomia feminina que se inscrevem do
lado masculino e vice-versa. Lemoine (1995) distingue posição feminina de condição
feminina. Ela afirma que a condição é fornecida no nascimento, pelos caracteres sexuais, que
59
são secundários, pois são apenas marcas simbólicas inscritas no corpo, que aguardam ser
assumidos subjetivamente. a posição depende de como o sujeito interpreta esses caracteres
sexuais, podendo assumi-los ou rechaçá-los.
Lacan (1985) afirma que o homem tem a forma fetichista de amar e que a mulher tem
a forma erotomaníaca. A partir dessa enunciação, Miller (1998, p. 110) introduz o termo
parceiro-sintoma, para desenvolver a ideia de que o parceiro se funda sobre a relação no nível
do gozo. Isso quer dizer que um homem e uma mulher, ao se relacionarem, fazem uma
parceria sintomática: “Da mesma maneira que a Bíblia diz que o homem terá Sodoma e a
mulher terá Gomorra, poderíamos crer que há uma maldição que diria que o homem terá o
fetiche, e a mulher a erotomania”.
Como dito anteriormente, o modo de gozo da mulher exige que seu parceiro fale e que
a ame, por isso Lacan utiliza o termo erotomania, retirado da psiquiatria, para designar essa
exigência feminina de ser amada. No homem, o seu modo de gozo exige que seu parceiro
responda a um modelo, chegando até à exigência de um pequeno detalhe, o que leva Lacan a
designar essa forma de amar como fetichista.
O grande problema é que o gozo do homem pode ser sustentado pelo silêncio e, isso, a
mulher não suporta. O personagem Benigno, do filme Fale com ela (2002), de Almodóvar,
representa o homem ideal, pois realiza tudo que uma mulher espera de um homem: que ele
fale com ela. No filme, Benigno fala com sua amada, que se encontra em coma, deitada em
uma cama por muitos anos. Benigno é um verdadeiro homem, no sentido de que ele não tem
receios em dar a sua falta-a-ser, pois quando um homem ama, ele se feminiza, está em falta, é
castrado.
As análises de mulheres mostram o quanto elas estão preocupadas com o que seus
homens falam sobre elas. Não importa muito se a fala é de elogio ou de insulto, desde que se
fale dela ou que se fale com ela. Prova disso é que algumas mulheres o conseguem deixar
60
seus parceiros, por mais que estes lhe maltratem, pois o que está em jogo é a parceria-
sintomática, regida pelo gozo de um e de outro. A maneira como o homem aborda uma
mulher, também se constitui como motivo de queixa. Ela diz: “ele me usa para fazer sexo,
para cozinhar, para cuidar dos filhos”, “não quero que ele goste de mim porque tenho um
corpo bonito”. As mulheres confundem o fato de ter que se fazer objeto causa de desejo para
um homem, com se fazer objeto de gozo. Elas querem ser amadas pelo que não são.
No texto “A significação do falo” (1958), Lacan (1998b) coloca a relação entre os
sexos como o que gira em torno do ter ou ser o falo. Do lado do homem, encontramos todo o
seu esforço para ter o falo, e no lado da mulher, no seu faz-de-conta, trata-se de ser o falo: “O
homem faz semblante de ter o falo, que ele tem o suporte imaginário, o pênis, e a mulher
como não o tem é mais acessível a sê-lo” (MIRANDA, 1995, p. 141). É, então, com o intuito
de ser o falo, que surge a mascarada. Para agradar o homem e causar o seu desejo, a mulher
se faz o falo, ela se mascara, ela se faz semblante.
Mas, como o gozo feminino escapa à ordem do ser e do ter o falo, ou seja, quando o
significante fálico falha e a máscara cai, os semblantes não se sustentam e a mulher é
devastada. A devastação surge quando a mulher sai da mascarada, quando não vela a falta e
nem se identifica a ela, o que a deixa em um gozo aniquilante. Esse gozo devastador é muito
bem descrito pela personagem de OA, que, em suas falas, mostra-se, após sofrer o abandono,
identificada com um “nada”, um “cisco”, um “molambo”.
Um homem, ao remeter a mulher ao laço primordial com a e, lugar este onde a
função fálica não a reabsorveu totalmente, pode ser uma devastação. Esse gozo que resta
dessa relação primordial com a mãe, é o que torna a mulher louca, perdida em si mesma, pura
dor. A personagem estudada é invadida pelo medo da loucura, teme ficar como os doidos da
rua de sua infância, teme enlouquecer pela dor de amor perdido.
61
Vimos em Lacan (1985) que, exatamente pelo fato de a mulher ser não-toda submetida
ao gozo fálico, sua demanda de amor assume um caráter ilimitado e que a devastação é o
retorno dessa demanda sobre o sujeito feminino. Na impossibilidade de haver reciprocidade
dessa demanda, por parte do parceiro, ela retorna à mulher sob a forma de devastação.
O termo devastação inscreve um valor erotomaníaco na própria etimologia:
O termo devastação (ravage) é derivado de arrebatar (ravir). O próprio verbo
arrebatar (ravir) é originado do latim popular rapire, um verbo que quer dizer
'apreender violentamente' e que derivou a palavra 'rapto': que se pega à força, que se
arranca.[...] O verbo arrebatar é também um termo da mística, assim como o
deslumbramento (ravissement). Isso quer dizer que se é transportado para o céu, na
língua clássica. E, no horizonte do arrebatar, o êxtase
(MILLER, 2003, p.
20)
.
Maya (s/d) lembra o fato de que ao mesmo tempo em que a mulher pode ser devastada
pelo retorno de sua própria demanda insaciável de amor, ela pode também se transformar
numa figura devastadora para o marido:
[...] a tendência que na mulher para a devastação revela-se nas parcerias que
estabelece, não só como um sofrimento de que padece, mas também como um
sofrimento que pode causar no homem, mesmo porque, quando alguém dirige a
outrem uma demanda infinita de amor, isso pode se transformar numa experiência
devastadora para os dois personagens envolvidos (MAYA, s.d., p. 195).
Temos, nos crimes passionais, um exemplo extremo do sem limites a que uma mulher
devastada pode chegar, pois de acordo com Vicente (2003), um dos aspectos do gozo
evidenciado na devastação é a vivência extrema de ausência do Outro, de uma destituição
subjetiva, onde o sujeito se objetifica. Muitas mulheres, tal qual Medeia, ao se perceberem
abandonadas ou substituídas por outra mulher, chegam à passagem ao ato violento, contra si
próprias ou contra os parceiros, ou até mesmo contra os próprios filhos.
Em “O aturdito” (2003b) Lacan coloca a fidelidade como sendo uma exigência do
lado feminino. Freud (1996), em “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica
62
entre os sexos” (1925), situa essa exigência como uma possessividade, reflexo da inveja do
pênis. Em Lacan, esse desejo de ser a única não é decorrente de uma falta, como acredita
Freud, mas apoia-se em uma positividade - a do gozo feminino. Ao fundamentar a exigência
da fidelidade sobre o gozo da mulher, Lacan a faz algo bem mais terrível que um traço de
caráter, pois esse gozo é fora-da-lei, ou seja, não regulado pela castração: “[...] por um
descumprimento do homem à exigência da fidelidade, o gozo feminino fora-da-lei, até então
contido pelo amor, pode se revelar em todos os seus excessos, aqueles mesmos cantados
pelos poetas trágicos ou descritos pela clínica dos estados passionais” (LAGACHE apud
MOREL, 1996, p.165).
Essa exigência de fidelidade será amplamente discutida na análise da obra OA, que
o que mais devasta a personagem é a impossibilidade de ser a única para o homem amado,
pois ele é casado e nada mais quer lhe oferecer, além de algumas noites de sexo. Ela quer que
esse homem deixe a esposa e, é quando ele afirma que não o fará, que a devastação atinge seu
ponto crítico.
O abandono pelo homem amado é uma das maiores angústias experimentadas pela
mulher. Na voz da personagem a ser analisada neste estudo, que sequer tem nome, o que
mostra sua destituição subjetiva, a dor do abandono é como: “Crateras e rombos e vazios e
fisgadas de dores profundas [...]” (FELINTO, 2002, p. 58).
Freud (1996, p. 144), em “A pulsão e suas vicissitudes” (1915), afirma que o amor e o
ódio são, comumente, dirigidos simultaneamente para o mesmo objeto, sendo essa
coexistência o exemplo mais importante da ambivalência de sentimento: “Se uma relação de
amor com um dado objeto for rompida, frequentemente o ódio surgirá em seu lugar, de modo
que temos a impressão de uma transformação do amor em ódio”. Assim, diante do abandono,
o ódio pode tornar-se puro, livrando-se de sua ambivalência com o amor.
63
Citamos, mais uma vez, a pesquisa empreendida por Silva (2009) sobre os textos
contemporâneos de autoria feminina, destacando que o referido autor depara-se com o fato de
que:
O que mais marca essa dependência nas personagens que aparecem nesse cenário
ficcional é o fato de elas terem outra mulher com quem dividir o homem de quem
gostam, padecer a agonia de vê-lo conscientemente não se furtar ao prazer de ir ao
encontro da outra, deixando-as em casa sempre esperando pela volta dele (SILVA,
2009, p. 51).
Nas obras a que o autor faz referência, as personagens desabafam enlouquecida e
vorazmente a dor do abandono, da não reciprocidade, utilizando-se da vingança, seja através
de palavrões e xingamentos, seja de atos violentos. O desabafo raivoso é também o tom de
OA, cuja análise será feita no próximo capítulo, a partir do conceito de devastação. Nesse
sentido, transcrevemos o conto “Receita para comer o homem amado”, em Falo de mulher
(2002), obra de Ivana Arruda Leite:
Pegue o homem que te maltrata, estenda-o sobre a tábua de bife e comece a sová-lo
pelas costas. Depois pique bem picadinho e jogue na gordura quente. Acrescente os
olhos e a cebola. Mexa devagar até tudo ficar dourado. A língua, cortada em
minúsculos pedaços, deve ser colocada em seguida, assim como as mãos, os pés e o
cheiro-verde. Quando o refogado exalar o odor dos que ardem no inferno, jogue
água fervente até amolecer o coração. Empane o pinto no ovo e na farinha de rosca e
sirva como aperitivo. Devore tudo com talher de prata, limpe a boca com
guardanapo de linho e arrote com vontade, pra que isso não se repita nunca mais
(LEITE, 2002, p. 5).
Neste conto, cujo desabafo raivoso aproxima-se dos insultos da personagem de OA,
podemos perceber os efeitos que a não reciprocidade pode trazer a uma mulher apaixonada. O
homem que maltrata deve ser punido com requintes de crueldade: deve ser atacado pelas
costas, como o fazem quando traem a mulher vitimada; a língua, que pouco fala, deve ser
cortada; o coração tem que ser amolecido na água quente; o órgão sexual, devorado, para que
64
não tenha serventia a mais nenhuma outra mulher. Essa fala é a de uma mulher devastada,
cujo ódio emerge como a outra face do amor.
No cinema, vários filmes que representam a vida devastada de grandes nomes do
mundo da arte. Entre elas, destacamos três filmes: Edith Piaf um hino ao amor (2007),
Camille Claudel (1988) e Frida (2002). No filme sobre Edith Piaf, vemos o quanto essa
grande intérprete da música francesa foi abalada pela perda de seu amor, o pugilista Louis que
era casado e levava uma vida dupla. Chamamos atenção para o fato de que a relação de Piaf
com sua mãe também era marcada pela devastação, o que é acentuado durante todo o filme,
no abandono que sua mãe lhe deixava. A mãe da intérprete tentava ganhar a vida cantando nas
ruas, o que só lhe rendia alguns tostões, que eram gastos com a bebida. Em contrapartida, Piaf
conseguiu fama e dinheiro, tornando-se uma grande intérprete no cenário musical de todo o
mundo. No entanto, não conseguiu se desvencilhar do fantasma do abandono materno, que é
ressiginificado em todas as outras perdas que teve, inclusive, a morte de Louis, em um trágico
acidente de avião. A partir dessa perda Piaf entrega-se à toxicomania, única alternativa que
encontra para “ancorar” seu ser devastado.
Em Camille Claudel (1988), a relação tumultuada com a mãe é transferida para a
relação com Rodin, que a devasta a tal ponto de anular seu potencial artístico e levá-la a uma
internação num hospício. A biografia da artista revela os inúmeros atritos vividos com a mãe,
Louise-Athanaïse Claudel, que não reconhecia a importância do ofício da filha nem seu
esforço para fazer valer o próprio talento. Rodin também tinha outra mulher, a quem se
dedicava. A escultura de autoria de Camille, chamada A suplicante (1898), ilustra a posição
que ocupou diante deste homem.
Frida Khalo, grande artista plástica mexicana, retratou em suas telas o romance
conflituoso com o também pintor Diogo Riviera, mulherengo e donjuanesco. A relação de
Frida com a mãe é mostrada no filme como muito problemática também, que não aceitava
65
sua postura de mulher revolucionária, rejeitando também a arte a qual a filha entregava-se.
Frida fica ao lado desse homem durante toda a vida e, inclusive, no leito de morte. Vale
lembrar, aqui, a grande Dalva de Oliveira, que teve sua vida mostrada na recente minissérie
Dalva e Herivelto, uma canção de amor (2010), veiculada pela Rede Globo de Televisão. No
caso de Dalva, vemos a intérprete se confundir com a personagem representada em suas
músicas, que eram sempre dirigidas a Herivelto, deixando transparecer a devastação que
marcou seu relacionamento com ele.
Lacan (1985), no Seminário 20 (1972-73), afirma que, do ser amado, nunca se
consegue obter mais do que alguns signos, o que aumenta a exasperação do amante, a tal
ponto de fazer aparecer a função mortal do amor e sua capacidade em se transformar em ódio.
A conjunção entre amor e morte é inerente à paixão, o que traduz André (1998, p.257), ao
fazer as seguintes questões, sobre a inapreensão do ser amado: “Como, então, melhor capturá-
lo senão reduzindo-o a estado de cadáver, ou bem devorando-o, ingurgitando-o realmente?
Como melhor possuir o amante senão perdendo-o?”.
Para uma mulher, a perda do amor ultrapassa a dimensão fálica a que Freud a reduzia,
pois o que ela perde, ao perder o amor, é ela mesma (SOLER, 2005). As transgressões
praticadas em nome do amor demonstram a peculiar relação deste com a Lei. Ao discutir essa
questão, André (1998) afirma que os amantes se situam em uma posição de fora-da-lei, o que
constitui o tema constante da literatura, fundando sobre isso o caráter fatal do amor. Seja em
Tristão e Isolda ou Romeu e Julieta, tem-se sempre o mesmo desafio e o mesmo drama:
uma proibição, uma impossibilidade, que finda com uma tragédia.
Essa posição de fora-da-lei que os amantes ocupam, com incidência muito maior nas
mulheres, é perceptível em OA, pois a narradora-personagem reivindica a existência de uma
Lei que garanta a reciprocidade entre os amantes e que impeça o abandono, reparando todo e
qualquer dano que possa ser causado. Quando se apercebe diante do fora-da-lei de seu próprio
66
gozo, o medo da loucura invade a personagem, demandando uma Lei que possa enquadrar e
barrar esse gozo devastador.
De acordo com Drumond (s.d/b), a devastação toca os confins da marca simbólica,
fazendo emergir algo de muito primordial, que passa pela palavra do Outro materno. Ela
afirma que essa emergência se faz de três formas distintas: o insulto, a rejeição e o
imperatismo do silêncio o que pôde ser constatado por Silva (2009) em seu trabalho,
citado anteriormente, assim como na personagem da obra que iremos analisar no próximo
capítulo.
Percebemos que a devastação, tal como trazida por Lacan, pode ser interpretada como
uma dificuldade estrutural própria à existência do não-todo feminino. Um homem pode,
então, inscrever-se como uma devastação para uma mulher a partir do que para ela se coloca
como engano do amor. Miller (2003) define a devastação como a outra face do amor, pois é
um gozo que se substitui à resposta do amor. Isso não quer dizer que a mulher não possa
construir um amor mais digno, onde a parceria sintomática com um homem não precise passar
pela devastação.
Segundo Miller (1998), um homem pode ser uma devastação para uma mulher, mas
também pode ser o meio como acontece seu deslumbramento, ou seja, um estado de
felicidade extrema, pois pode ser o significante que a faliciza e a torna desejável. Para mostrar
esse estado de deslumbramento, o livro de Duras (1986), intitulado O deslumbramento de Lol
V. Stein, foi trazido ao campo psicanalítico por Lacan, que chegou a publicar na obra Outros
escritos (2003), um texto intitulado “Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de
Lol V. Stein” (1965). Nesta obra, ele anuncia: “Foi precisamente isso que reconheci no
arrebatamento de Lol V. Stein, onde Marguerite Duras revela saber sem mim aquilo que
ensino” (LACAN, 2003c, p. 200).
67
A mulher, na relação com o homem, não está condenada à devastação. Se o homem
nela vai provocar uma devastação ou um deslumbramento, dependerá da parceria-sintomática
que se firmará entre os dois. Se a mulher se identifica ao objeto causa de desejo, fazendo
semblante do pequeno a e, se o homem a aborda também como esse a, a parceria pode
conduzi-los a uma extrema felicidade.
Até aqui, fizemos um breve percurso sobre os principais conceitos psicanalíticos que
se articulam ao conceito de devastação. Pudemos constatar que não uma simetria entre
homens e mulheres, sendo a relação amorosa o palco onde melhor se encenam essas aporias.
Vimos que, diante do não universalizável da condição feminina, Freud não avançou muito e
condenou às mulheres a eterna inveja do pênis. A mulher permaneceu, para ele, um continente
obscuro. Lacan não responde a questão deixada sobre o que é a mulher, mas afirma que A
mulher não existe, enquanto conjunto e categoria, porque está não-toda submetida à ordem
fálica. Ele chega a afirmar que à mulher não falta nada, em contrapartida às queixas das
feministas, que sempre acusaram a psicanálise de abordar a mulher como um ser faltoso e
menor. Se Freud condena a mulher à inveja do pênis, isso não implica dizer que a condena a
uma posição de inferioridade, pois essa afirmação está articulada à dinâmica desejante
inconsciente e não às posições ocupadas pelos gêneros na sociedade.
De fato, ao elevar o falo à condição de significante que ordena a partilha entre os
sexos, podemos pensar em um falocentrismo. No entanto, se ele existe, recai tanto sobre a
problemática feminina como sobre a masculina. O homem também não tem o falo, ele tem o
seu suporte imaginário. Como vimos, na comédia dos sexos, o faz-de-conta emerge dos dois
lados: o homem “bancando” ter o falo e a mulher “bancando” sê-lo.
Nesse faz-de-conta estão os pequenos dramas cômicos do cotidiano. De um lado a
chata erotômana e, de outro, o bruto que não fala. Mas, nesse jogo de semblantes, também
estão os grandes dramas, ou melhor, as tragédias. Se, do lado do homem, o gozo esbarra em
68
um limite. Do lado da mulher, o que há é o ilimitado, o fora-da-lei, o excesso. Esse é o núcleo
da devastação, o encontro com um gozo que aniquila o sujeito: “Os efeitos subjetivos desse
eclipse nunca faltam. o da mais leve desorientação até a angústia profunda, passando por
todos os graus de extravio e evitação” (SOLER, 2005).
Quando o faz-de-conta se desfaz, o homem vira-se a partir da base identitária que é
constituída pelo gozo fálico. Mesmo diante de uma experiência de fracasso ou impotência, o
homem recorre ao seu órgão, seja na relação seriada com outras mulheres, seja no gozo
autístico da masturbação. Na mulher, uma absolutização do amor, que a empuxa para uma
busca insaciável do amor do outro.
O caminho percorrido neste primeiro capítulo teve o objetivo, como explicitado, de
fazer um encadeamento conceitual para que pudéssemos chegar à compreensão da
devastação. Após introduzir e discutir este conceito, partimos, agora, para o segundo capítulo,
onde iremos adentrar na ficção de Marilene Felinto, “ouvindo” atentamente o desabafo louco
e voraz de sua personagem-narradora, sem-nome, sem-senso, devastada pela obscenidade do
abandono.
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2 Devastação: um gozo fora-da-lei
Todo sábado é assim/Eu me lembro de nós dois/É o dia mais difícil sem você/Outra
vez os amigos/Me chamam pra algum lugar/Outra vez eu nem sei direito/O que vou
falar/ Quero explodir por dentro/Inventar uma paixão/Qualquer coisa/ Que me
arranque a solidão/Um motivo pra não ficar/Outra noite assim/Sem saber se você
vai/Voltar pra mim. Eu tentei,/Fiz de tudo pra te esquecer/Eu até encontrei
prazer/Mas ninguém faz como você/Quanta ilusão/Ir pra cama sem emoção/Se o
vazio que vem depois/Só me faz lembrar de nós dois. (AUGUSTO; VALLE, 1987).
Depois do percurso teórico-conceitual até aqui trilhado, enfatizando as contribuições
freudianas e lacanianas sobre as peculiaridades subjetivas do feminino, indispensáveis para o
entendimento do conceito de devastação, partimos, agora, para a análise da obra OA.
Através da fala da narradora-personagem pretendemos perceber como essa
personagem mulher repete o traço de devastação que vem sendo observado, por alguns
pesquisadores, como uma continuidade, em parte das obras de ficção de autoria feminina, na
atualidade. A partir do referido texto literário e das reflexões psicanalíticas adotadas para a
presente análise, discutiremos o que assegura essa repetição, mesmo em um contexto onde as
mulheres conseguiram inegáveis avanços. Centrando-nos, assim, no conceito de devastação,
objetivamos deixar contribuições para o estudo das relações de gênero pela literatura, pois
concordamos que, como atestam alguns pesquisadores, a representação da mulher no campo
literário reproduz a forma de comportamento dos gêneros na sociedade.
A pernambucana Marilene Felinto tornou-se bastante conhecida através da coluna
semanal que escrevia no jornal Folha de São Paulo até o ano de 2002, quando foi desligada
sob o argumento de divergências contratuais. Considerada a “metralhadora giratória da Folha
de São Paulo”, era “frequentemente chamada de cáustica, rancorosa, amarga, virulenta,
racista, sexista” (ROQUE, 2003, s/p.). Autora de três romances As mulheres de Tijucopapo
(1982), O lago encantado de Grongonzo (1987) e Obsceno abandono: amor e perda (2002) -
70
do livro de contos Postcard (1991) e de Jornalisticamente incorreto (2000), uma coletânea de
suas crônicas publicadas na Folha de São Paulo, Marilene Felinto também escreveu um
ensaio biográfico sobre Graciliano Ramos e traduziu algumas obras. Seu primeiro livro, As
mulheres de Tijucopapo (1982) , ganhou o Prêmio da União Brasileira dos Escritores (1981) e
o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, em 1982. Também foi colunista da Revista
Caros Amigos.
Apontada como escritora que levanta bandeira a favor do movimento negro e
feminista, Marilene sempre deixa claro, nas entrevistas que concede, que não milita em favor
de nenhum movimento. No entanto, assume que escreve com indignação:
[...] acho que essa revolta aparece na minha literatura e no que escrevo no jornal. [...]
quando publiquei meu primeiro livro, um romance que conta uma história fictícia
mas que é minha história pessoal, de uma mulher que veio do Nordeste para São
Paulo etc., é um livro que tem um tom de uma revolta e indignação absurdas, que
envolvem minha família. [...] E no jornal é assim também, alguma coisa me comove,
fico puta e vou escrever puta, e não sai de outro jeito (FELINTO, 2001, p. 33).
Nos três romances da referida autora, a indignação é marca evidente nas falas das
protagonistas, todas mulheres, carregando histórias de revolta, raiva, solidão e desejo de
vingança. quem reconheça em sua obra uma influência forte de Graciliano Ramos, como
atesta Queiroz (s/d): “[...] também sua obra deixa ler a herança, sobretudo, de Graciliano
Ramos, na busca de um discurso ficcional marcado pela aspereza, secura, sintaxe econômica,
parataxes”.
Em As mulheres de Tijucopapo (2004), a narradora-personagem chamada Rísia
retorna de São Paulo para suas raízes nordestinas, chegando a sua cidade natal, a lendária
Tijucopapo, onde busca encontrar um traço identificatório com as mulheres do lugar, que no
passado expulsaram os holandeses a paneladas. O seu retorno é impulsionado pela perda do
homem amado, perda que atualiza em Rísia tantos outros abandonos. Ela, então, põe-se a
praguejar contra a mãe, as irmãs, as mulheres da cidade grande e, principalmente, contra o
71
pai. Enquanto narra sua desgraça, a personagem implora amor, demanda que dirige a todos
contra quem esbraveja. Em O lago encantado de Grongonzo (1992), a protagonista, Deise,
enquanto aguarda a visita de seus amigos da época da escola, rememora seu passado,
expressando sua insatisfação e angústia com a vida. No desfilar de sua história, o ódio, as
lamentações e rancor o ganhando a cena. Deise não acredita que possa haver algo nela que
alguém quisesse para si próprio. Acredita haver dentro dela um monstro que a mata
suavemente. Acha-se ninguém, uma farsa, compara-se aos cágados que “[..] andam devagar
mas é porque estão cansados da própria infinita história” (FELINTO, 1992, p. 99).
Em OA, a indignação com a vida, com o ser mulher e com o masculino é flagrante. Se,
nos romances acima citados, o desencanto amoroso não parece estar em primeiro plano, na
obra escolhida para análise, tudo o mais, na história da personagem, inclusive o nome, apaga-
se diante da dor do abandono. Obra encomendada pela Editora Record com a finalidade de
integrar a coleção Amores Extremos – que tem nove volumes, todos compostos por narrativas
de autoras brasileiras contemporâneas, com a temática do amor, sob aspectos diferentes – traz
um desesperado monólogo de uma mulher abandonada, que, enquanto narra sua desgraça,
entrega-se a um misto de sentimentos como arrependimento, medo da loucura, injúrias, desejo
de vingança e ressarcimento.
A narrativa versa em torno do fim do relacionamento com Charles, que durou cinco
anos, de quem a narradora-personagem era a amante. Esse abandono, que se inscreve como
obsceno, atualiza nessa mulher uma série de outras rejeições pelas quais passou desde a
infância, revelando um estado de mais pura devastação. O que chama atenção na obra é que:
Antes de tudo, é preciso dizer que Marilene Felinto, em Obsceno Abandono, escreve
nos limites do dilaceramento, do esgotamento físico e psíquico do ser. Escreve
rasgando/cortando “com tesoura cega e bruta”, como nos versos do poeta Armando
Freitas Filho. Escreve com ódio, expondo as entranhas da personagem (LIMA,
2005, s/p.).
72
Esse extravasamento do ódio da personagem é de particular interesse para nossa
análise, pois além de ser considerado das uma peculiaridades da escrita de autoria feminina
contemporânea, revela a devastação como a outra face do amor. Sabemos que se o silêncio e a
invisibilidade da personagem mulher foi um marco na literatura do século XIX e início do
século XX, na contemporaneidade, essa personagem fala, grita, esbraveja e vinga-se. Para
Machado (2007), as mulheres têm conseguido nomear e expressar seus mal-estares utilizando-
se de uma linguagem da violência. Não estamos afirmando que a expressão da raiva feminina
na literatura é algo novo, pois sabemos que ela está presente em muitas das lendas gregas,
épicas e dramáticas. O que consideramos novo é que a expressão dessa raiva tem sido feita
pelo pulso de uma autora mulher.
A revolução sexual, encabeçada pelo movimento feminista, promoveu uma revisão da
organização social patriarcal. Nascida nos anos 30 e 40 do século XIX, embora gestada no
século XVIII, pretendia o fim das inibições e tabus sexuais, colocando em questão as
estruturas políticas vigentes e efetuando reformas significativas no que diz respeito aos
direitos cívicos e legislativos.
Assim, nas últimas três décadas do século XIX, bem como nas três primeiras décadas
do século XX, houve uma crescente e intensa liberdade sexual para ambos os sexos. No seu
livro Política Sexual, Kate Millet (1970), uma das mais importantes teóricas do movimento
feminista, registra o impacto que a revolução sexual provocou nos mais diversos setores da
sociedade, bem como na produção científica e intelectual.
Uma das primeiras concessões feita às mulheres foi o acesso à educação.
Anteriormente, os códigos do patriarcado não autorizavam a atuação da mulher fora do
âmbito doméstico, a contribuição que lhe era permitida dar à sociedade era cuidar e educar os
filhos. No início do século XIX, reconheceu-se que os serviços de uma esposa pouco instruída
eram melhores do que os de uma analfabeta: “E, na maior parte dos casos, esta educação
73
acentuava, de modo cínico e deliberado, a virtude – palavra que significava obediência,
servilismo, e inibição sexual, perigosamente próxima da frigidez” (MILLET, 1970, p. 28).
No entanto, mesmo revestidos de superficialidade, esses estudos começaram a levar as
mulheres a uma tomada de consciência e ao desejo por uma formação. Surgiram, então, os
primeiros colégios femininos, por volta de 1837. Com a possibilidade de uma educação
superior, as mulheres foram tendo acesso ao professorado.
Para Neri (2005, p. 230): “Foi longo o caminho percorrido pelas mulheres para chegar
à literatura que até o século XVIII foi domínio exclusivo do mundo masculino”. Foi o advento
da Revolução Francesa que marcou a conquista do espaço cultural pelo feminino. o século
XIX foi marcado por uma literatura feminina muito próxima da masculina, cuja idéia era
centrada no escrever como homem. De acordo com Silva (2006), as mulheres, até o século
XIX, não ousaram, no plano da ficção, subverter a ordem estabelecida, confinando sua escrita
ao trivial, até mesmo porque o silêncio e a resignação eram as suas maiores virtudes. A
mulher deveria guardar seus infortúnios para o travesseiro, que lhe acolhia as lágrimas. Sofrer
resignada e em silêncio era sinônimo de heroísmo e santidade:
A impossibilidade de falar de si mesma acaba por abolir o seu próprio ser, ou ao
menos, o que se pode saber dele. Como aquelas velhas mulheres fechadas em um
mutismo de além-túmulo, que não se pode discernir se ele é uma vontade de se
calar, uma incapacidade em comunicar-se ou uma ausência de um pensamento que
foi destruído de tanta impossibilidade de se expressar (PERROT, p.10-11, 2005).
A conquista do espaço literário pelas mulheres vem marcar a emergência de uma
escrita de autoria feminina, em que as mulheres escrevem e se inscrevem nas suas obras,
superando dificuldades e preconceitos advindos de uma sociedade cujas relações entre os
sexos são, acima de tudo, relações de poder. A partir da segunda metade do século XX, é
possível encontrarmos obras de valor subversivo, até mesmo porque as reivindicações das
mulheres pelo direito de uso do corpo foi possível a partir da década de 60. na literatura
74
da década de 70 é possível perceber uma mudança quanto a esse aspecto: “O acelerado
processo de desrepressão sexual convidou escritoras a falar do tema do corpo e da sexualidade
para que novos valores anunciados pudessem, para efeito de poder, ser representados”
(SILVA, 2006, p. 22).
A partir da década de 80, quando se começa a falar de uma literatura contemporânea
brasileira, percebe-se, nas obras de autoria feminina, não uma ruptura com o silêncio e a
resignação, mas uma escrita do ódio, da violência e da vingança. É nesse contexto que
inserimos a obra analisada, valendo-nos do conceito psicanalítico da devastação, com o
intuito de promovermos uma discussão sobre a representação da personagem mulher
contemporânea.
2.1 Abandono: maldição que aniquila mais que a morte
Em dois capítulos, intitulados Abandono e Obsceno, a obra conta a saga de uma
mulher sem nome, ferida no coração de seu ser pela perda do homem amado. Desde a
infância, a rejeição dos homens pesa-lhe como uma sentença. Nas brincadeiras com os
meninos, havia ruídos de comunicação no telefone com duas latas de leite vazias e um pedaço
de cordão amarrado de uma ponta para outra, impondo sempre um abismo, que será uma
constante nas relações que estabelecerá com os homens na sua futura vida amorosa. Chorava,
caía doente de tanta rejeição a cada vez que Valmir seu colega de infância fingia não
escutá-la e se escondia no oitão da casa. Queimava de febre, delirava e concluía que os
homens não a queriam e, no dia seguinte, armava uma vingança contra Valmir: encurralava-o
em um canto de parede, baixava-lhe as calças e manipulava-lhe o pênis, que endurecia,
murchava e voltava a endurecer. Ela dizia para si mesma: “[...] a coragem era minha, a vida
era minha, quando eu crescesse seria uma grande mulher, uma mulher monstruosa, dessas
75
mulheres grandes e monstruosas como os cavalos de corrida” (FELINTO, 2002, p. 24). A
rejeição dos homens ratificava a sua incompetência para o amor, dando-lhe o destino de
fracassar sempre diante do masculino.
na infância, os homens, para ela, eram todos iguais, eram “assassinos” que
magoavam suas vítimas. Reconhece:
Toda minha vida foi desperdiçada em criar vínculos que não existiam, que nunca
existiram nem poderiam existir no tempo e no espaço são vínculos de elástico, o
destino esticando de um lado uma ponta, e eu esticando do outro a outra ponta, feito
crianças que brincam. Em algum momento o destino soltava a sua ponta, e então o
vínculo ricocheteava e vinha bater na minha cara, deixando o vergão vermelho, a
marca, o ardor. [...] Toda a minha vida foi a de uma anormal. A vida de um
funcionário cuja ficha não cabia nos registros da empresa, de um amante que não se
casava nos cartórios (FELINTO, 2002, p. 28-29).
Do inventário que faz de sua própria história, só é permitido ao leitor conhecer a
rejeição e o abandono. Não sabemos sequer o nome dessa mulher. Os povos orientais
acreditam que o nome de uma pessoa tem que ser coerente com a função que ela vai
desempenhar na vida. Para a psicanálise, a escolha do nome carrega o particular do desejo
inscrito nos pais de uma criança. O sujeito tem uma pré-existência, pois antes de nascer é
falado pelo Outro. Quando nasce, ocupa um lugar no desejo desse Outro, que lhe impõe um
“destino”, que deverá ser aceito ou rechaçado pelo sujeito. Os pais de uma criança idealizam
um lugar e uma posição no mundo para ela: “vai ser inteligente, vai ser médico, vai ser
jogador de futebol”. De acordo com o pensamento de Lacan, os sujeitos nascem com uma
dívida, que não é sua, mas do Outro. Algumas pessoas passam a vida tentando responder ou
refutar o que o Outro espera delas. A escolha do nome nunca é aleatória. Sabemos que toda
escolha é guiada pelo próprio sujeito, seja de forma consciente ou inconsciente. Ainda quando
pensamos ter escolhido um nome sem motivo algum, sabemos que o inconsciente está
presente. Não é difícil que alguém com o nome de Mozart possa interessar-se pela música ou
76
que outra pessoa, com o nome de Jesus possa ser ateu, ou ainda que alguém de nome Maria
das Dores passe boa parte de sua vida peregrinando em hospitais.
O fato é que o nome de uma pessoa é o que a identifica, é o que marca seu lugar em
um determinado espaço e a torna conhecida. Ele pode ser fonte de alegria ou de incômodo,
fazendo com que algumas pessoas até desejem mudar de nome. O nome é um direito
garantido pela Constituição Brasileira, que consagra o princípio da dignidade da pessoa
humana. Ninguém está obrigado a carregar um nome, pelo resto de sua vida, se ele não reflete
a sua identidade é o que rege a Constituição. Uma pessoa deve ser chamada pelo nome que
a identifica, que a individualiza, ou seja, o nome pelo qual ela é conhecida, tanto no meio
social, familiar e profissional. Se o nome, por qualquer motivo, causa constrangimento e
prejuízo moral, a Constituição garante a sua troca.
A narradora-personagem de Felinto, ao esconder seu nome, evidencia o esvaecimento
do seu ser. A sua identidade apaga-se diante da dor da perda. O que é possível saber de sua
história está vinculado aos abandonos sucessivos que experimentou, desde os que
experimentou na infância até Charles – o que, para ela, foi o mais cruel. Quem é essa mulher?
Ao leitor é permitido responder que é uma mulher devastada desde o primeiro encontro
com um homem. Alguns fatos da infância, as viagens que fez, os lugares que freqüentou, tudo
emerge como secundário a sua posição de mulher devastada. Não sabemos de onde veio, mas
sabemos que mora em São Paulo, cidade que, com seus prédios altos e esmagadores, fazem-
na lembrar de sua insignificância perante o masculino. Para ela, os homens conseguem se
equilibrar, mas ela não, seu corpo é fragilizado pelas dores e feridas abertas pelos homens que
a rechaçaram. O seu inventário é o da dor, da amargura, da desmesurada frustração de nunca
ter sido amada ou, quem sabe, de nunca ter sabido deixar-se amar.
Em meio a tantos fracassos amorosos, chega-lhe mais um: Charles o pior de todos
aqueles que não a quiseram. Charles era casado, ela sabia, mas o aceitou. Sua fala evidencia já
77
saber que não seria amada, que aquele homem não poderia ser seu, mas ela ignorou esse saber
antecipatório, o que lhe rendeu um arrependimento pior que a morte: “Mas em que lugar do
cérebro fica, afinal, o arrependimento? Em que válvula, em qual espaço vazio se aloja o
arrependimento?” (FELINTO, 2002, p. 13). Compara-se à Madalena, não a bíblica, pois seu
arrependimento é outro, é o de ter aceitado um homem que não a queria. Ela não suporta que
Charles divida-se entre ela e a mulher, quer exclusividade. Certo dia, fica sabendo que ele irá
viajar com a mulher e os filhos. Não aguenta ser deixada de lado mais uma vez. Estava
mesmo cansada de muitas coisas, como ligar para casa dele no meio da noite e ser atendida
pela mulher dele. Pressiona-o para que deixe a mulher, ele recusa e inicia-se, assim, a via
crucis do seu dilaceramento. Ela se isola, emudece. Cobre o telefone com um pano-mortalha,
desliga o som, as luzes, o celular: “Eu estava afastada do mundo como bicho que se esconde e
se protege dentro da copa de uma árvore” (FELINTO, 2002, p. 79). Não consegue sequer
atender ao interfone, quando sofre fica muda, foi assim desde criança: “Quando estou
sofrendo, acontece isso: eu não falo. A fala não sai, ou vem truncada, ronco, gemido, muxoxo,
soluço, gagueira involuntária e obtusa” (FELINTO, 2002, p. 21)”. Quando Valmir a rejeitava,
caía doente na cama e emudecia. A mãe queria saber o que se passava, mas ela não falava,
perdia fala.
Passados dez dias, o telefone toca e a secretária eletrônica atende. Era Charles: “– Vai
continuar agindo desse jeito? [...] atende logo essa droga, que eu sei que você está ...
(FELINTO, 2002, p. 77). Mas, não adianta, ela não quer mais registros desse homem em sua
vida. Apaga todas as mensagens, cartas, documentos. Depois de explodir sua raiva, xingando
e esbravejando contra Charles e todos os homens que a rejeitaram, ela, finalmente, emudece.
Não atende os telefonemas, nem o interfone. Enquanto cala sua voz, seus pensamentos
ganham vez e é, naquele sábado à noite, que estes desabafam sua dor. É quando emudece que
consegue tirar Charles de sua vida, mas isso lhe é possível depois de “[...] cavoucar minha
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memória, lavrar até arrancar Charles dali. Esquecer, lembrar e esquecer são maldições da
mesma linha de se arrepender” (FELINTO, 2002, p. 37). A narrativa dá-se no emudecimento
da personagem, cuja fala ganha vida pela sua rememoração. Assim, o leitor é levado a “ouvir”
seus pensamentos.
A narrativa não é linear, embora tudo seja narrado em um sábado à noite. A obra inicia
com a personagem, sozinha, no auge do arrependimento, pondo roupa no varal. Ela
interrompe essa tarefa, telefona e pede que Charles venha buscar as “coisas” dele, ao que ele
responde que pode jogá-las fora. Volta ao varal, aos prantos e, então, começa a descrever o
estado em que se encontra, “nesse mês da sua desgraça”, ao passo em que vai “cavoucando”
sua memória, fazendo um inventário de seus fracassos amorosos, desde a infância, até chegar
a Charles.
Os fins de semana, geralmente, são reservados para o descanso e lazer. É comum que
as pessoas, aos sábados e domingos, se cerquem de familiares. Para os solitários, os finais de
semana são, muitas vezes, insuportáveis. Sem familiares e sem uma companhia, esses dias
podem ser atravessados com muita dureza. Para os abandonados, a situação é bem mais
complexa, pois a falta daquele se foi é sentida com maior intensidade. Durante a semana, os
sujeitos solitários e abandonados conseguem “esquecer” a dor da ausência através do trabalho
e de outros compromissos. Mas, no final de semana, essa ausência é mais difícil de ser
contornada. Em OA, a personagem encontra-se em uma sábado à noite, sozinha, fazendo
tarefas domésticas, aos pratos, tomada pelo arrependimento. É sábado, mas ela não tem
companhia, não tem nenhum encontro, a não ser o encontro com a sua própria dor, pois o
arrependimento que sente chega a ser sentido fisicamente. Está sem Charles e dele,
restaram-lhe algumas cuecas e lembranças torturantes de um relacionamento que durou cinco
anos.
79
Na segunda parte da obra, a narradora-personagem centra sua fala na relação com
Charles, nas situações e diálogos que mostram a falência do relacionamento, até o momento
“estanque”, onde o abandono se faz inevitável: “De um dia para o outro tudo muito súbito e
sem ordem , terminaram os planos de amor, as combinações os encontros. Fiquei eu ,
parada numa esquina da vida esperando por ele, ainda esperando” (FELINTO, 2002, p. 49). A
obra finaliza com a personagem voltando ao ponto inicial da narrativa, no sábado à noite,
diante do varal, tomada pelo arrependimento e solidão. Assim, toda a reflexão da personagem
dá-se nesse sábado à noite, embora o leitor esteja sempre sendo conduzido para o passado e
trazido de volta para a noite do sábado, em um vai-e-vem que traduz o próprio movimento de
repetição da toada de amor e desamor na vida da personagem.
Após essa breve apresentação da personagem e do estado em que se encontra, vamos,
agora, acompanhar o seu desabafo, partindo para a análise da primeira parte da obra –
Abandono.
A personagem inicia a narrativa de sua “desgraça” termo usado para nomear o
abandono em que se encontra – afirmando que o arrependimento é a pior de todas as palavras:
“[...] tem erres que se arrastam no tempo, fazem ruído, rangem como dentes na casa silenciosa
de meus ouvidos de noite. É uma espécie de maldição” (FELINTO, 2002, p. 11). Esse
arrependimento é algo que a acompanha por toda a narrativa, arrependimento de não ter
aceitado a solidão, de ter insistido na procura por um complemento. Os “erres” desse
arrependimento, na verdade, ecoam desde a infância, a cada vez que, mesmo sabendo-se
rejeitada, continuava a demandar que lhe quisessem. Estranha-se: “Minha pergunta é: como é
que eu vim dar nisso? Não me reconheço em nenhum dos amores que perdi. Arrependimento
é uma espécie de não-reconhecimento de si mesmo, uma espécie de loucura” (FELINTO,
2002, p. 38).
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É típico do estado de apaixonamento esse perder-se no outro. Quando apaixona-se, o
sujeito deseja fundir-se com o objeto amado e poder fazer Um. No entanto, quando o outro se
vai, o sujeito se esvai, não se reconhece, perde-se de si mesmo. O arrependimento dessa
mulher é o de amar e querer ser amada, mesmo sabendo que o fracasso sempre lhe aguarda
em cada esquina. Há, nela, uma certeza do desencontro, da impossibilidade. Sua história é
feita de evidências que se antecipam às suas escolhas, como uma maldição. Mas, essas
certezas são falseadas por influxo da fantasia: “E eis que aqui estou remoendo um
arrependimento, como quem mastiga grãos de pipoca e só escuta isso: sua própria ruminação.
Eu só me arrependo de não ter tido mais amor de mim” (FELINTO, 2002, p. 50).
O eu de quem ama fica empobrecido, pois sua libido dirige-se para o objeto amado.
Quem ama, muitas vezes, avilta-se, coloca-se em posição de desvalido, para poder enaltecer o
outro, como demonstra a personagem na seguinte fala: “Hoje eu me olhei no espelho, me
achei velha, gorda e feia e me chamei de velha, gorda e feia. Eu não tive nenhuma piedade de
mim. Vi todos os defeitos de quem, como eu, diz: eu sou uma coitada” (FELINTO, 2002, p.
43). Esse sentir-se nada sem o outro é um sentimento freqüente no estágio que se segue ao
rompimento de uma relação. É comum os amantes dizerem um ao outro, ao rmino do
romance, que se sentem como tendo uma parte de si arrancada. Nesse perigoso jogo de dar o
que não se tem, ou seja, de dar tudo ao outro, emerge a posição sacrificial, muito mais
presente do lado feminino que do masculino.
Sozinha, em um sábado à noite, como se fosse um dia qualquer, ela telefona para
Charles e pede que ele venha recolher suas roupas, pois lhe é muito doloroso ter que se
deparar, principalmente, com as cuecas desse homem, que, de todos que a abandonaram, foi o
pior. Um dia qualquer, como outro qualquer, sem encontros, programas, sem romance. O
sábado, era para ela, agora, um dia qualquer. Pior, era um dia onde o abandono deixava de ser
latente para se presentificar como uma sentença. Queria encontros, mas a vida reservava-
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lhe desencontros, dissabores e, principalmente, arrependimento. Na letra da sica de José
Augusto utilizada como epígrafe deste capítulo o sábado é o dia mais difícil, é o dia das
recordações, em que a solidão pesa mais. É em um dia de sábado que suas desilusões são
narradas, não as que Charles deixou-lhe, mas as que foram acumulando-se ao longo dos
sucessivos abandonos sofridos, desde a infância.
na primeira página do livro, podemos constatar que a rejeição é algo que se repete
na vida dessa mulher, o que nos aponta para uma posição de devastada que ela ocupa na vida
amorosa. Essa repetição é algo que vai ficando cada vez mais claro, tanto para o leitor, como
para a própria personagem, que vai se dando conta de algo enigmático em sua posição nas
relações amorosas, chegando a “[...] aceitar a solidão como quem aceita uma marca de
nascença, uma vergonha estampada na testa” (FELINTO, 2002, p. 28).
Vimos que a devastação, como um fenômeno da subjetividade feminina, emerge no
relacionamento entre mãe e filha, nas parcerias amorosas e na relação das mulheres com o
corpo e com sua perda, trazendo um estado de aniquilamento para o ser da mulher, como a
personagem descreve: “Outro dia, sem motivo que justifique, vesti uma das cuecas. Dormi
vestida com ela, único pano-mortalha sobre meu corpo vazio, semimorto” (FELINTO, 2002,
p. 12). Em vários momentos da narrativa, a dor do abandono recai sobre o corpo, é uma dor
física: “Eu temo é pelo meu corpo pelas dores agudas, pelas feridas, pelas chagas incuráveis
[...]” (FELINTO, 2002, p. 14). Essa destituição subjetiva vivida pela personagem evidencia o
gozo presente na devastação, que reduz o corpo a um objeto inanimado, desvitalizado,
momento em que o sujeito sente a dor de estar na posição de objeto (VICENTE, 2003).
Charles a aniquila, é considerado um assassino:
Eu me sinto como uma pessoa fuzilada, que tivesse um buraco aberto, um vazio
violento não um orifício destes como o da minha vagina, não. Uma dor. É seco o
buraco, é a perfuração de um tiro, tiro de bala, bala de arma, de fuzil. Não, repito,
não o orifício da minha vagina (hoje, aliás, amortecido,amafanhado e mofino como
uma cadela doente) (FELINTO, 2002, p. 17).
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Os signos dos quais a personagem serve-se para descrever o estado em que se encontra
remete-nos ao universo bélico, que é dominado pelos homens. Os tiros de bala, as fuziladas
que lhe abrem buracos e descortinam vazios, advêm de Charles, um homem-assassino. Os
homens ameaçam sua frágil existência de mulher. Essa é uma das muitas passagens em que a
personagem remete o leitor à disparidade que marca o abismo entre homens e mulheres. Ela
se apercebe dessa dessimetria presente na relação amorosa entre homens e mulheres: “Tornar-
se homem, manter esse equilíbrio de gente... Como conseguir esse equilíbrio de ser homem,
criatura humana que se segure sobre duas pernas fracas como as minhas? fracas para o meu
corpo pesado e sozinho” (FELINTO, 2002, p. 14). De fato, como acompanhamos no capítulo
anterior, o homem consegue se arranjar a partir da base identificatória garantida pelo gozo
fálico, ou seja, nas experiências de fracasso e de impotência ele recorre ao seu órgão. Como
essa base identificatória falta às mulheres - pois, de acordo com Lacan (1985) A mulher não
existe o fracasso no amor, diante da não reciprocidade, conduz a uma profunda
desorientação e extravio de si mesmas. Afirmar que a mulher não possui uma base
identificatória implica dizer que ela não está incluída em uma lógica universal, como os
homens estão. Os homens agrupam-se, formam um conjunto ordenado pelo falo. As mulheres
não formam conjunto, são tomadas no um a um, devido ao fato de não estarem toda
submetidas ao gozo fálico. Na voz da personagem estudada:
Meus amores não têm base de sustentação, são como prédios de alicerces mal-feitos
com o tempo, acabam ruindo por inteiro. Meus cálculos são de engenharia
chinfrim, entendo pouco da resistência dos materiais humanos. sei que tem dias
que acordo com cara de louca (FELINTO, 2002, p. 14).
Aqui, mais uma vez, a voz da personagem personagem traz signos que se alocam no
universo masculino. Os prédios, alicerces, cálculos e a engenharia são compatíveis com o
mundo viril. A sua “engenharia é chinfrim”, o se sustenta. O equilíbrio está do lado do
homem, pois a justa medida, como atesta o imaginário popular, parece poder ser pensada
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no masculino. De um lado, está o equilíbrio, a razão, a unidade, a agressividade. Do outro, a
interpidez, a tagarelice, a fragilidade e a irracionalidade. Essa “psicologia do sexual”
encontra-se muito difundida no discurso do senso comum, que estereotipa o que é da
“essência” masculina e da feminina. Ainda que, como vimos no capítulo anterior, de acordo
com a psicanálise, essas posições sejam bastante relativizadas, a maneira como são
interpretadas pela cultura, faz parecer que a fragilidade e fraqueza são atributos exclusivos da
mulher.
No cenário público, a mulher contemporânea tem conseguido refutar essa imagem do
sexo frágil. No lugar da interpidez tem emergido o bom senso, tão bem valorizado por
algumas empresas que o reconhecem agora como algo característico da mulher. No líquido
cenário atual, as identidades não são tão rígidas. Mas, no que tange ao amor, parece mesmo
que a mulher ainda continua sendo visualizada como mártir. No campo da literatura, as
personagens mulheres, como atesta o estudo de Dalcastagné (2005), privilegiam as relações
amorosas e familiares. Ainda que emancipadas, as mulheres, sejam na literatura ou na vida
real, ainda padecem no amor, o que pode repercutir na cultura como uma subserviência ao
masculino. No presente trabalho, defendemos que essa dependência é de uma outra ordem.
A personagem é tomada, constantemente, pelo medo da loucura. Teme enlouquecer
por amor perdido e ficar como os doidos da rua de sua infância: “[...] os médicos de loucos
vão se aproveitar do intervalo da sinapse e me entupir de remédio bem ali, para que eu
esqueça, me acalme e repouse” (FELINTO, 2002, p.12). Lacan (1985) afirma, no Seminário
20, que um homem pode ser uma devastação para uma mulher e, esta, um sintoma para o
homem (isso nem sempre ocorre, pois pode haver outra saída para a mulher, ao passo que
nem todo homem consegue fazer da mulher um sintoma). Ele deixa claro que a devastação é
mais danosa que o sintoma, pois este último conhece limites, é localizado, enquanto que a
primeira é marcada pelo índice de infinito da estrutura do não-todo. Assim, ele explica a
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aproximação da mulher com a loucura, pois ela se confronta com um gozo enigmático e
ilimitado, abolindo-se como sujeito, sentindo-se fora de si, tomada por uma grande força.
Esquecer, acalmar, repousar, nada disso lhe é possível, agora. o insulto, a raiva, a
injúria movem seu ser devastado. Para ela, é um questão de se revoltar, rebelar ou matar,
como fez Macsuel – o doido da sua rua. Mas também:
É preciso esquecer, tirar a pessoa da cabeça, da memória. [...] É uma tarefa
monstruosa, porque a pessoa está instalada lá, como uma raiz instala e filtra seus
tentáculos no mais profundo da terra, esparramando-se a perder de vista, numa rede
sem começo nem fim, numa meada sem ponta de fio, em nós que não desatam,
como uma árvore de grande caule, de tronco poderoso e áspero e antigo, que é
preciso arrancar pela raiz ou esperar a eternidade que vai levar até que ela apodreça,
tombe e caia. É preciso cortar pela raiz (FELINTO, 2002, p. 36).
Charles instalou-se em sua vida, esparramou seu sexo dentro do sexo dela. Apossou-se
do seu corpo e da sua alma.
A imagem da
árvore de tronco poderoso que finca suas raízes no
solo é trazida pela personagem como uma metáfora do ato sexual. Charles penetrou-lhe o
sexo, enfiou-lhe o dedo, a língua e, de repente, anuncia sua saída como se fosse possível
arrancar as raízes que se fixaram nas entranhas de seu sexo de mulher torturada e infeliz. Não,
isso não era suportável, isso era obsceno.
Seguindo com o tom enlouquecido e voraz, a personagem voz ao seu ser de mulher
devastada, dirigindo-se a Charles, autor de tamanho estrago em sua alma e em seu corpo,
agora, desvitalizado:
Eu preciso é arranjar um novo macho, Charles, para enfiar o pau nas minhas pernas
– devagar, é verdade. Porque às vezes você me machucava! (Mas até isso, até
mesmo toda essa profundidade, essa dor, era bom). Eu estou tão ferida, tão ferida de
amor recusado [...]. Eu sou um urro só, uma dor inteira. estou aqui para que
alguém me mate, me livre da minha dor animal. Estou perdida. [...] Eu me sinto uma
mulherzinha com um sexozinho que você abriu, foi abrindo, cada dia mais um
pouco, às vezes machucando, para achar o grelozinho recolhido e murcho dentro
(a lema dentro do caracol), uma pontinha amafanhada de músculo em que você bulia
e bulia num chamego que o fazia todo teso, todo inchado, todo cheio de lábios
grandes e pequenos (FELINTO, 2002, p.35).
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Localiza-se diante desse homem como uma “mulherzinha” insignificante, cujo corpo
está mortificado. O seu sexo está murcho, amafanhado e um homem é capaz de devolver-
lhe a vitalidade, ainda que isso lhe traga dor. Às vezes, Charles a machucava e até essa dor era
experimentada com prazer. Percebemos que o gozo da personagem está articulado ao
sofrimento, que, para a psicanálise, o gozo possui uma dupla vertente: de ganho e de
desprazer. O gozo trabalha a favor do inconsciente e lhe atende as exigências, mas o que isso
acarreta para o sujeito é sempre algo da ordem do sofrimento. Essa dupla vertente do gozo
fica explícita na fala acima, em que a personagem confessa que até a dor sentida com Charles
era boa. Aliás, essa posição de gozo está presente em todo o inventário amoroso da
personagem.
Desfaz-se da camiseta de Charles, com a qual dormia, na tentativa de arrancá-lo de si.
Aquele sábado, noite, escura, como escura era sua solidão, era o dia de: “[...] revirar este solo,
então, antes cheio de você como de um sistema de raízes adventíceas, fasciculadas, antes
cheio de seu feixe, as gramíneas que protegem qualquer solo da erosão. Foi hoje o dia da
minha ruína” (FELINTO, 2002, p. 37). Retiradas as gramíneas, como não cair em erosão?
Como não devastar-se? Era preciso tirar os vestígios desse homem-assassino. Tira as roupas
de Charles como quem arranca uma raiz do solo. Seu solo não pode dar mais flores nem
frutos: “Este buraco de raiz arrancada, esta erosão, em que vai se transformando aos poucos a
minha vida, à medida que você me abandona” (FELINTO, 2002, p. 37).
Perdida na dor, nomeia o efeito desse abandono de “erosão”, processo que, na
geografia, assemelha-se à devastação. Recorrendo a Ferreira (1976), encontramos que erosão
é um desgaste causado pelas águas, vento, geleiras e mares, que carcome e corrói o solo,
enquanto que devastar é arruinar, destruir, danificar, tornar deserto. Esse é o papel dos
homens em sua vida: arruinar. Diante deles, ela era uma mulherzinha. Sentia-se como:
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[...] uma mulherzinha-cachoeira, uma pedra, uma queda-d’água, um pedaço de lodo
esverdeado e escorregadio, um escorregão, um cisco no olho, um argueiro, uma
insignificância, amor. Eu fui essa várzea alagada, esse mangue por onde você abriu
caminho aos solavancos, entrando e saindo [...] (FELINTO, 2002, p. 35).
Podemos perceber o quanto essa mulher apoiou seu ser em Charles: “Eu queria não
depender de ninguém. Mas não – sou toda mediana, toda feia e mediana” (FELINTO, 2002, p.
14). Com a perda desse homem, ela volta ao desequilíbrio que experimentara em toda sua
vida. O que ela busca, em suas parcerias, é um homem-bússola, que possa dar consistência ao
seu ser, ao seu corpo. Sem um homem, ela se esvai, não tem solidez, é escorregadia,
deslizante, inconsistente. Para ela, o homem é o edifício com alicerce perfeito, é a árvore de
raiz profunda, o caracol que abriga a lesma. Na sua infância, perseguia as lesmas, até que as
achava protegidas nos seus caracóis, quando, então, as matava a pedradas, pisões e pontapés.
Inveja das lesmas, talvez, que tinham onde ancorar sua débil existência.
O desequilíbrio experimentado com o abandono faz com que uma viagem à Paris seja
rememorada. Reconhecendo Paris como uma cidade romântica, a personagem esforça-se para
trazer à memória bons momentos, mas a única coisa que consegue lembrar é de um homem
que cai da plataforma nos trilhos da estação de metrô: “Só me lembro da poça de sangue se
formando imediatamente sob sua cabeça depois do choque. De Paris, me lembro desse
homem em desequilíbrio” (FELINTO, 2002, p. 15).
A imagem desse homem cambaleante que
cai e se esvai em sangue é a imagem dela mesma, de seu desespero por não encontrar em
Charles o suporte, a âncora de que precisava:
Estava bêbado, balbuciava coisas. [...] Impressionou-me o tamanho de suas pernas
longas, sobre as quais ele mal se segurava, andando de um lado para outro à nossa
frente. Impressionou-me que um corpo pese tanto às vezes para o suporte frágil das
pernas. Não era melhor que andássemos de novo de quatro, como antes, como
bichos? (FELINTO, 2002, p. 16).
No momento da queda deste homem, ela estava discutindo com Charles: “- Você não
quer ficar comigo, não é, Charles?Ao que ele, irritado, respondeu: “- Olha, eu cansei de
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você viver perguntando isso. Não estou aqui com você agora?”. Ela retrucou: “- Isso não
significa nada. Por que você não se separa dela?” (FELINTO, 2002, p.15). Charles não mais
suportava as exigências de exclusividade advindas dela. Para ela, não bastava que Charles
estivesse ali, era necessário que ele não fosse de outra, que fosse inteiramente seu exigência
erotômana que irá precipitar o fim do relacionamento.
Poucos segundos se passaram e o homem posicionou-se além da linha amarela de
segurança riscada no chão. Ficou muito impressionada com esse homem que, como ela, não
se sustentava nas pernas frágeis. O homem caiu e todos que estavam na estação, inclusive ela
e Charles, gritaram e gesticularam para que o trem parasse: “O trem parou, pesado e
silencioso, a poucos metros do homem caído, como um monstro de ferro observando sua
vítima feita de carne e ossos moles, como um monstro dócil e compreensivo” (FELINTO,
2002, p. 17). Viu-se nesse homem-vítima, frágil, de carne e ossos moles. Ela era como esse
homem, deixava-se cair diante de Charles com toda a sua fragilidade. E Charles era como o
“monstro de ferro”, frio, silencioso, seguro e equilibrado.
A conversa continuou no quarto de hotel e prolongou-se noite adentro: “- Nunca
pensei que fosse virar essa pessoa desprezível que me sinto. Então, algo eserrado. Ou você
se separa dela, ou...”. Ele respondeu com convicção: “- Eu não vou me separar dela”
(FELINTO, 2002, p. 20). Nesse momento, a personagem afirma que o mundo desabou sobre
sua cabeça e a imagem do homem morto tomou conta dela. Concluiu que o assassino era
Charles. Sentiu-se como o homem caído no chão, diante do trem monstruoso. Era Charles o
monstro, ele era o assassino.
Homens caídos no chão impressionavam-lhe, como mostra a seguinte fala da
personagem, sobre o que viu um outro dia: “Eu vi um homem caído hoje na rua, no asfalto
negro e quente da língua da rua. E os olhos do homem se viravam exibindo obscenos apenas
as partes brancas. Não poderia ser eu aquele homem caído, devorado pela língua quente e suja
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do asfalto?” (FELINTO, 2002, p. 37, 38). A personagem identifica-se, como será visto ao
longo da análise, a tudo que não tem consistência, ao que cai e despenca, ao que não tem
equilíbrio. Pensa que se o destino de todos é mesmo o chão, para quê a ousadia de amar:
“Viver sem Charles é como um corte que não pára de sangrar de cima a baixo do meu corpo”
(FELINTO, 2002, p. 38).
Os pedidos de amor são uma constante na relação com Charles, pedidos que sempre
vêm em tom de uma exigência erotômana: “Não é em mim que ele faz carinho de manhã, não
é em mim que ele faz carinho de noite. Não foi comigo que ele dormiu ontem. Não foi
comigo que ele acordou hoje. Não será comigo que ele vai dormir hoje. Não será comigo que
ele vai acordar amanhã” (FELINTO, 2002, p. 28). Essa exigência permeia todo o
relacionamento com Charles. São constantes as cobranças de mais amor, mais presença e de
exclusividade. Aliás, desde Valmir, essas exigências estavam presentes, quando perguntava,
insistentemente, se ele queria ficar com ela, chegando ao extremo de encurralá-lo contra a
parede para tê-lo em suas mãos.
Sabemos que, do lado da mulher, é necessário que o ser amado fale, sendo as palavras
uma condição de gozo, como nos lembra Laurent (2007, p. 29): “Há toda uma dessimetria
responsável pela comicidade das dificuldades do amor, o famoso ‘fale comigo’ ou o ‘você não
fala comigo o suficiente’”. O “ele me ama” é a eterna pergunta da mulher, que é sempre
assaltada pela dúvida. Essa demanda de se saber amada é o que lhe garante o gozo, que o
gozo feminino é tecido na fala. Lembramos, aqui, o que Miller (1998) diz em O osso de uma
análise:
O homem, por seu turno, pode gozar sem palavras e sem amor, mas enfim, é um
pequeno coto de gozo. O resultado é que o homem é sempre um monstro, e que a
mulher é sempre uma chata, pelo menos são estas as recriminações que cada sexo
faz ao outro, a chata erotômana é aquela que não pode se impedir de colocar a
questão: você me ama?, não pode deixar de perscrutar o amor do outro, porque ela
goza por amor (MILLER, 1998, p. 112)
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No Seminário 20, Lacan (1985) diz que entre um homem e uma mulher o amuro, o
amódio, e que as mulheres almam a alma, porque com o amor visam buscar uma resposta
para o seu ser. É, então, no amor que se centram as demandas dirigidas por uma mulher a fim
de se certificar do amor de um homem, demandas que nunca cessam, pois não há uma palavra
definitiva que possa fixar seu lugar e nem seu ser, uma vez que é não-toda (NUNES, 2008).
Vimos que, para a psicanálise, o amor faz semblante à relação sexual que não existe. O
semblante é tomado como algo que recobre o vazio e a impossibilidade. Se o muro que existe
entre um homem e uma mulher é intransponível, o amor é uma invenção que faz parecer
possível o encontro: “O muro que separa o sexo masculino e o sexo feminino é um buraco que
leva a um mal-entendido entre homens e mulheres” (HORNE, 2007, p. 53-54). Sobre esse
mal-entendido, a literatura se valeu para criar as grandes histórias de amor, sempre trágicas.
Para evitar e burlar o total desencontro sexual, homens e mulheres constroem aparelhos de
gozo, cada um a sua maneira.
A não aceitação desse desencontro entre os sexos é algo expresso, o tempo todo, nas
falas da personagem estudada, que reivindica o “[...] direito humano inalienável e
incontestável de ser amado pela pessoa amada” (FELINTO, 2002, p.13). A rejeição, o
abandono, o desencontro não lhe são suportáveis. Ela confessa:
Meu erro foi a insistência, a procura incessante por um complemento, por um
encontro, por uma companhia que fosse. Meu único caminho teria sido aprender
isto: que na vida tem gente que não quer a gente. A pessoa devia nascer sabendo que
ninguém a quer de fato, que ninguém salva ninguém. [...] A gente devia ter aulas de
solidão na escola. [...] Vamos lá, conjuguem comigo: ninguém te quer, ninguém te
quis, ninguém te quererá, ninguém te quereria [...] (FELINTO, 2002, p. 29).
Mesmo cônscia de que poderia ter tomado outro caminho, ela foi adiante na relação
com Charles. Mesmo depois de aprender que “tem gente que não quer a gente”, ela insistiu.
Essa lição, ela já havia aprendido desde cedo, pois os vínculos que manteve com os homens
foram frágeis, feitos de cordão e lata. Recorda-se das rejeições vividas na infância, quando
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brincava de telefone com Valmir, com duas latas vazias e um pedaço de cordão. havia
ruídos na linha de cordão: “- Valmir? Você quer ficar comigo?”/ “- Não estou ouvindo
nada!”/ “- Eu queria saber se vo quer ficar comigo!”/ “- Brincar de amigo?! O quê?”
(FELINTO, 2002, p. 23). O fato é que Valmir se escondia dela, fingindo não escutá-la: “Um
dia eu chorei de pura rejeição, experimentando caírem dos meus próprios olhos as marolas
salgadas. Interrompi a comunicação com as latas, saí correndo pelos quintais e desapareci
montando numa árvore alta” (FELINTO, 2002, p. 23).
Os ruídos se intensificavam em sua vida, não entre as latas, mas também entre
ela e os homens. Ela insistia: “– Valmir?! Você quer namorar comigo?/ - Ã? Você fala pra
dentro! Fala mais alto!” (FELINTO, 2002, p. 24). Era difícil entender: “[...] por que um
homem não gostaria de mim, por que não seria eu a escolhida” (FELINTO, 2002, p. 23).
Não era aquele telefone que era de mentira, dá-se conta que sua vida era um faz-de-conta.
Com um destino de desencontros já traçado, de que adiantava insistir? Mas, ela fazia-de-conta
que valia a pena, embora, intimamente soubesse que fracassaria.
No outro dia: “[...] eu me salvava armando uma vingança contra Valmir. [...] eu o
rendia no canto do muro e abaixava seu short até o joelho. Valmir ficava mudo. Nunca
respondia. Eu abaixava a cueca e tocava no talo daquela flor entre as pernas dele” (FELINTO,
2002, p. 25). Valmir fica mudo e imóvel, enquanto ela se deliciava com aquele “pinto” duro
na sua mão espalmada. Não se recorda sequer se Valmir a tocava. No outro dia, morria de
vergonha “[...] de ter sido descoberta na minha fraqueza de menina rejeitada e sujeita a febres,
coqueluches e feridas” (FELINTO, 2002, p. 27).
Ou ela vingava-se de Valmir ou caía doente, o podendo encontrar, diante de um
homem, uma outra posição, que não a de mulher devastada: “E naquele tempo os homens
para mim eram todos iguais, me faziam sofrer, me magoavam como os assassinos magoam
suas vítimas” (FELINTO, 2002, p. 26). Foi assim com todos eles: Valmir, Ricardo, Cláudio,
91
Siegfried. Recorda-se de um ex-namorado que lhe escreveu uma mensagem no seu
aniversário, reminiscência que não lhe agrada: “Ex-namorados são a lembrança da minha dor,
a espetada na ferida. Mas eles agem como se ignorassem isso, como se nada tivesse
acontecido, como se esquecessem do que me causaram – e foram sempre eles que me
causaram, pois se sou a primeira a não querer me separar nunca!” (FELINTO, 2002, p. 40).
A sua comunicação com os homens era repleta de mal-entendidos. Conseguia
estabelecer uma comunicação com eles, mas esta era sempre ruidosa, faltosa, lacunosa e
truncada. O que pedia aos homens, não recebia e, ao invés de desistir, insistia, forçava um
lugar para si no desejo dos homens que não a queriam. O resultado era sempre a rejeição, a
dor e o abandono.
Que espécie de mulher seria ela? Uma mulher que, para ter um homem, precisava
emparedá-lo, rendê-lo e tirar-lhe as vestes. Sem dúvida, seria uma mulher monstruosa.
Aproximar-se de um homem era como caminhar para a própria morte, pois para ela, o amor
vem sempre com a perda.
Seria essa mulher uma masoquista? O que dizer de uma mulher que se submete a
relacionamentos extremamente aviltantes? Na psicanálise, a problemática do masoquismo
feminino, desde Freud, tem provocado profícuas discussões e muitos pontos de divergência:
A pergunta em que Freud tropeçou, ‘que quer a mulher?’, continua a assediar os
discursos, e correu uma resposta que dizia: ela quer sofrer. Assim, os psicanalistas
com dificuldade de captar a essência da feminilidade forjaram a tese do masoquismo
feminino. Como se lhes parecesse inconcebível que um sujeito pudesse oferecer-se
como objeto caso da mulher, em sua relação com o desejo do homem sem ser
masoquista! (SOLER,
2005, p. 58).
Leituras equivocadas sobre a obra freudiana fizeram alguns pós-freudianos
enxergarem, em Freud, a afirmação de que a mulher seria masoquista. É preciso esperar pela
inserção de Lacan, na cena analítica, para melhor esclarecer as coisas. Em seu retorno a
Freud, contra os desvios que vinham sendo feitos, Soler (2005, p. 61) afirma que Lacan
92
conclui que: “[...] a tese da ‘mulher masoquista’ não é a tese freudiana; ela a introduziu, mas
soube reconhecer que essa não era A resposta”. Para Lacan, a mulher realmente sofre com a
falta fálica, mas não mais que os homens sofrem com a ameaça de castração. Homens e
mulheres estão em pé de igualdade por sua referência comum ao falo, já que as vicissitudes da
castração colocam-se para ambos.
Somos todos masoquistas e é disso que Freud (1996) fala em seu texto Além do
princípio do prazer (1920), quando constata que os sujeitos também buscam o que lhes
maltratam, trazendo o conceito de pulsão de morte. Na personagem estudada, esse desejo pelo
que maltrata é elucidado em sua fala, principalmente, quando ela interpreta que o abandono e
a rejeição são como uma marca de nascença em sua vida. Esse gozo que envolve a
personagem é pura pulsão de morte, empurrando-a para a devastação.
Todo o relacionamento com Charles obedece a esse princípio e isso é percebido pela
própria personagem, em muitos momentos de lucidez, quando ela se arrepende de insistir
tanto em querer quem não a quer. O arrependimento vem desse saber o de que sempre
incorre no mesmo erro. Quanto a Charles, sabia desde o início que esse homem não poderia
ser seu, mas mesmo assim foi adiante, pois obedecia a essa condição de gozo como quem
carrega uma condenação.
Claro que os masoquistas de estrutura, que perfilam-se entre os perversos, mas
estamos falando, aqui, do masoquismo presente nos sujeitos neuróticos. O que há, então, em
comum entre o masoquista e a mulher? Em Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade
feminina (1960), Lacan (1998) afirma que o masoquismo feminino é uma fantasia do desejo
do homem, que se produz pelo cruzamento de dois fatores: a forma erotomaníaca do amor
feminino e as condições do desejo do homem, que requerem que o objeto tenha a significação
da castração.
93
pontuamos, anteriormente, no capítulo teórico-conceitual, que a característica da
castração imaginária do objeto é uma das condições da escolha objetal no homem. Freud
(1996), em Contribuições à psicologia do amor (1910), fala-nos de algumas das fantasias que
povoam o imaginário masculino: a escolha de uma mulher comprometida; a escolha de uma
mulher de reputação, ou seja, de integridade sexual questionável; a ânsia em salvar a
mulher amada. Ao comentar sobre essas tendências à depreciação do objeto sexual, presente
mais nos homens do que nas mulheres, Freud (1996), nesse texto, discute sobre a fantasia da
mulher pobre, a quem falta alguma coisa que só o homem pode dar. Para as mulheres, então, é
como “[...] se a advinhação do inconsciente impusesse um quase calculismo: se ele gosta dos
pobres, banquemos a pobre” (SOLER, 2005, p. 64).
Lacan (1993), em Televisão (1974), registra sobre as concessões ilimitadas que uma
mulher pode fazer em prol do seu homem, o que demonstra uma complacência das mulheres
para com a fantasia masculina. É a partir dessa constatação, então, que ele traz a idéia da
“mascarada masoquista”, ou seja a idéia de que a mulher se submete às condições do amor do
Outro para responder à fantasia do homem. As mulheres, de modo algum, são masoquistas, a
mascarada feminina é uma complacência para com os semblantes: “No fundo, imputar as
concessões das mulheres à mascarada é marcar o caráter condicional de seus sacrifícios, que
não passam do preço pago por um benefício muito precioso” (SOLER, 2005, p. 66). Que
benefício seria esse? O de ser amada.
A partir das considerações lacanianas podemos concluir que a mulher, às vezes,
assume “ares de masoquista”, isso implica dizer que ela é complacente com os semblantes, ou
seja, com o fazer parecer (SOLER, 2005). No entanto, nem todas as mulheres conseguem
sustentar esse jogo de “fazer parecer”, como é o caso da personagem de OA, que não
consegue utilizar-se do recurso da mascarada, identificando-se mesmo ao dejeto.
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Se o homem visa o ter, a mulher visa o ser e é pelo amor que ela consegue chegar a
isso. É no amor que a mulher assenta o seu ser, ainda que ao preço de muitas concessões.
Vimos que uma mulher precisa consentir ser causa de desejo para um homem, o que é
diferente de ser um objeto de gozo para ele. Então, o masoquismo feminino é uma fantasia
masculina com a qual a mulher se identifica. Na mascarada, a mulher faz parecer ser o falo.
No entanto, se a mulher se identifica com a posição de objeto-dejeto, ela se devasta. Ela pode
identificar-se como objeto causa de desejo para encontrar um lugar de ser ou pode identificar-
se como objeto-dejeto. Para Holck (2009, p. 42), a cada fracasso da precária identificação,
uma queda em um abismo ilimitado: “Podemos considerar que, na expectativa de se fazerem
amadas, as mulheres se identificam ao objeto da fantasia masculina, mas ao fazê-lo, tornam-se
objeto-dejeto, por isso, a depreciação do desejo masculino”. De um lado o amor-semblante,
que traz à mulher satisfação, de outro, o amor-devastação, que a deixa em uma posição de
profunda angústia, que é o que encontramos na obra OA.
A personagem, ao narrar sua dor de amor, descreve a angústia na qual se encontra: “A
casa vazia minha atmosfera é a dos enterros, do silêncio dos velórios, cortados por soluços
súbitos, por urros que eu não ouso dar e que morrem abafados dentro de mim (FELINTO,
2002, p. 28). O que acontece com ela? Por que sempre fracassa nas tentativas de se fazer
amada por um homem? Ela não consegue sustentar o recurso da mascarada, não consegue se
fazer um objeto causa de desejo para nenhum homem, por isso, devasta-se. A personagem,
assim como tantas mulheres, não consegue fazer semblante de objeto a.
De acordo com Laurent (2000), do ponto de vista do amor, para uma mulher, existe
uma zona que se apresenta como “placa giratória”, onde ela vai sempre mais longe no dar
tudo ao ser amado e tenta transformar todo seu ter em ser. Ao avançar por essa via, o sujeito
feminino se conta que ele não é mais nada para o outro, que é um dejeto, que se encontra
95
vazio, como o faz a personagem ao longo da obra. Quando fracassa nesse jogo de parecer ser,
o que é uma constante em sua vida, sente-se um nada, um cisco, uma mulherzinha:
[...] não sou senão um cisco, um molambo que o vento atira para e para cá, um
argueiro no olho, uma febre: eu que despenco na vida como um limpador de
vidraças despenca do alto dos edifícios amarrado a uma única corda; eu que sou uma
aranha e somente um fio me liga ao mundo (FELINTO, 2002, p. 28).
Essa posição de objeto-dejeto pode ser identificada sempre que a personagem faz
referência à desfalicização do seu corpo, como fez acima. Aqui, mais uma vez, identifica-se
com um corpo que despenca. O homem na estação de trem, o homem caído na rua, o limpador
de vidraças que despenca do edifício, todos esses corpos que caem remetem-na à sua posição
de rebotalho, de dejeto, de resto caído do Outro.
As mulheres fazem um grande alarde do preço que pagam para alcançar seus
objetivos, enquanto que os homens são mais discretos e pudicos: “[...] a queixa, sem dúvida,
embora não caia bem no desfile viril, é propícia à mascarada feminina” (SOLER, 2005, p.
67). Essa posição sacrificial que algumas mulheres adotam é um engodo, porque o sacrifício
nunca é desinteressado. A mulher se sacrifica para poder ser reconhecida. Ela cobra, com
juros e multa, tudo o que ao outro, exigindo ser amada. É nesse momento que a mulher
entra no processo reivindicatório, como o faz a narradora-personagem da obra analisada: “É
como uma insônia, um pensamento constante, a ausência. Um dia acorda-se e: Ah, então foi
isso? Como é que pode? Como é que pôde? Não existe mais nada entre nós” (FELINTO,
2002, p. 37).
A personagem vai além da queixa, indigna-se, revolta-se, alardeia sua inconformidade
com o fim da relação. A raiva, traço sempre presente nos romances de Marilene Felinto, é
ponto forte em OA. A injúria, os xingamentos, a revolta e indignação tomam conta desse ser
devastado. É preciso gritar, é preciso se rebelar:
96
Uma pessoa não pode enfiar a língua profundamente no sexo da outra um dia
(inaugurando gostos, despertando sensações, provocando arrepios de pura vida) e
desaparecer depois! Uma pessoa não pode hospedar assim toda a sua língua no
sensível aconchego do sexo da outra e depois deixar ali aquele vazio de lembranças
úmidas e quentes (FELINTO, 2002, p. 31).
É a essa inconformação que ela nomeia de obscenidade. O prefixo ob significa por trás
de, oculto por. Obsceno é o que deve ser mantido fora da cena. Segundo Perissé (2004), no
teatro greco-romano, as cenas mais cruéis ou grotescas ficavam fora de cena, fora do palco.
Na psicanálise, esse fora da cena está relacionado com o não enquadramento fantasmático do
sujeito. Diante do real da castração, o sujeito tenta negá-lo lançando um véu sobre a falta. O
fantasma, ou fantasia, é um véu que tenta encobrir a castração, é um artifício inconsciente que
o sujeito utiliza para rearranjar a realidade. Todo sujeito neurótico possui um enquadramento
fantasmático e é a partir dele que julga o que é bom e o que é mal para ele. Determinadas
circunstâncias fazem com que o sujeito se precipite para fora da cena, saindo do seu
enquadramento fantasmático. Nessa situação, o sujeito não fala e nem pensa, é puro ato. O
que estava em nível fantasístico realiza-se em ato. Essa revelação do seu fantasma ao sujeito é
feita de forma traumática e de modo ofensivo aos seus ideais. Para algumas mulheres, o
abandono pode ser experimentado de forma semelhante a essa revelação traumática do
fantasma ao sujeito.
A devastação surge quando a mulher sai da mascarada, quando o artifício da
mascarada de ser ou ter o falo não é mais suficiente, ou seja, quando os semblantes não se
sustentam. Isso é aniquiliante para uma mulher e, para a personagem de Marilene Felinto, é
obsceno: “Uma pessoa não pode fazer isso com a outra deveria haver uma lei, um decreto
cheio de artigos, parágrafos, itens e subitens que proibissem esse tipo de usurpação das
ilusões, de fraudes amorosas. Do direito humano e incontestável de ser amado pela pessoa
amada” (FELINTO, 2002, p. 31). Percebemos, aqui, que o não atendimento à sua demanda
infinita de amor, retorna-lhe como uma devastação.
97
O esboço de um Estatuto é feito pela personagem, sob a Lei 000/Do início dos
tempos, cujo art. diz o seguinte: “Se, como os animais, temos necessidades, somente como
humanos temos desejo. A essência dos seres humanos é desejar. Somos seres desejantes. Não
apenas desejamos, mas sobretudo desejamos ser desejados por outros” (FELINTO, 2002, p.
32). O caráter erotômano da personagem revela-se de forma manifesta.
Retomando Freud (1996, p. 95), em Sobre o narcisismo: uma introdução,
encontramos que, nas mulheres, “Sua necessidade não se acha na direção de amar, mas de
serem amadas; e o homem que preencher essa condição cairá em suas boas graças”.
A Lei é uma obrigação imposta pela consciência e pela sociedade. É um princípio,
uma regra, uma condição imposta pelas circunstâncias. No âmbito das ciências naturais, a Lei,
segundo, Ferreira (1976, p. 833), “[...] é uma fórmula geral que enuncia uma relação constante
entre fenômenos de uma dada ordem”. Encontramos, ainda, que a Lei pode ser material,
moral, processual, orgânica, espiritual. Nesse contexto, que lei estaria reivindicando a
personagem?
Para a psicanálise o amor tem um caráter de fora-da-lei. O amor não quer reconhecer
limites. A fala de amor é a de que “dure para sempre”. A lei do inconsciente é a de que o
encontro seja sempre faltoso, mas o amor sustenta uma negação desse princípio. Como
discutido anteriormente, o amor faz semblante à relação sexual que não existe.
André (1998) lembra-nos que o amor é um significante que produz toda sorte de
efeitos de significado, que vai da bobagem ao assustador. Uma das mais reveladoras
contribuições freudianas sobre a temática do amor é a de que este tem a força de restabelecer,
entre os amantes, os desejos mais perversos. O amor carrega algo da ordem do desafio. As
declarações de amor são fundadas sob o imperativo do “mais, sempre mais”. Isso vale para
homens e mulheres, mas é do lado destas últimas que o amor assume todo o seu caráter de
fora-da-lei.
98
O que uma mulher demanda, em nome do amor, a Julieta de Shakespeare anuncia
muito bem: ela quer que Romeu renegue o pai e abdique de seu nome. Mas, a literatura nos
ensina que, nos casos puros de paixão amorosa, algumas vezes, o que pode fazer limite às
exigências do amor é a morte, ou então, a loucura como em alguns romances de Marguerite
Duras. Temos percebido que, em OA, a personagem também fica encurralada, nas suas falas,
entre a morte e a loucura.
Como dito antes, a posição sacrificial que algumas mulheres adotam não é
desinteressada. O que é ofertado, deve ser retribuído. Ao demandar o enquadramento do amor
em uma Lei, a personagem quer a certeza de ser amada. A Lei elaborada visa disciplinar o
amor, como regido pelos art. 208º: “Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de
responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados ao amante, referentes ao não
oferecimento ou oferta irregular: I de amor; II de atendimento sexual amoroso aos que se
entregam por puro amore pelo art. 116º: “Em se tratando de ato de abandono com reflexos
no abandonado, a autoridade poderá determinar que o outro restitua a coisa, promova o
ressarcimento do dano ou compense o prejuízo da vítima (o abandonado)” (FELINTO, 2002,
p. 33).
Nos capítulos e artigos da Lei idealizada por ela, o caráter ilimitado da sua demanda
de amor fica explícito: o desejo não deve suportar o tempo, mas ser satisfeito de imediato; o
direito de ser amado deve ser incontestável; deve haver uma proteção judicial aos direitos dos
amantes. O desejo de uma Lei que garanta a reciprocidade e o ressarcimento nada mais é do
que a expressão do gozo ilimitado que porta a mulher. Não-toda regida pelo significante
fálico, a mulher tem um “plus” de gozo, um gozo que visa o infinito e que não é
complementar, mas suplementar. Assim, para uma mulher, pode não haver limites no amor, o
que aproxima o gozo feminino da loucura.
99
Esse gozo é fora-da-lei, pois não pode ser todo submetido à Lei da castração,
escapando. Diante desse desmesuramento de gozo, que é vivido como uma ameaça à própria
existência, a personagem devastada demanda uma Lei, um limite, algo que possa fazer
barreira a esse estado de “quase” loucura. A mulher é, então, invadida por um imperativo de
gozo superegóico que a ordena a ultrapassar todas as barreiras e ir além do prazer, da dor e do
pudor, pura pulsão de morte (HOLCK, 2009).
A invasão desse gozo, que recai sobre o sujeito devastado, é algo insuportável. Por
essa razão, a personagem faz sempre referência ao seu estado, identificando-se com o que não
tem consistência (como as lesmas e o lodo), com o que está em queda (como os homens
estendidos no chão), com um solo em erosão (como a terra semi-morta que resta após a
retirada de uma árvore e suas raízes). Identifica-se com um cisco, um molambo, um nada.
uma Lei pode domar esse gozo desvairado. De fato, no capítulo anterior, referimo-nos ao fato
de que o que faz lei para o sujeito é a sua inscrição fálica. O falo regula o gozo do sujeito.
André (1998, p. 263) afirma que: “É o ordinário da castração que torna o amor tão
extraordinário”. Todas as loucuras de amor advêm de nossa submissão ao limite imposto pela
castração. O amor sempre demanda uma Lei particular, que possa prevalecer sobre a Lei
comum. Mas, sabemos que a mulher é não-toda regulada por essa Lei comum. A
particularidade do seu gozo, a deixa, no amor, em uma posição bastante diferenciada do
masculino. Homens e mulheres, no amor, pedem “sempre mais”. A mulher vai além desse
mais, mas um ponto onde isso se torna insuportável: quando esse mais infinito retorna
sobre o seu ser, devastando-a. A lei da castração faz barreira ao mais do homem, mas não é
suficiente para fazê-lo na mulher. Se as mulheres estão para-além do falo, o que pode fazer
obstáculo ao desmesuramento do seu gozo? É onde, cada mulher, precisa inventar uma
saída, que pode ser digna ou devastadora. Aliás, os sujeitos encontram saídas diferentes para
100
fazer com que o amor se conforme ao protocolo de um contrato, quer seja o contrato do
casamento ou um contrato sado-masoquista (ANDRÉ, 1998).
Nesse estado de pura dor e humilhação, a mulher pode entregar-se a atos de vingança
extrema. Lacan, em algumas passagens do seu ensinamento, toma Medeia como a verdadeira
mulher, a mulher que está pronta para tudo. Ela é a verdadeira mulher porque incorpora esse
gozo fora-da-lei, que não conhece limites, pois: “[...] se o amor anula por um tempo o efeito
castração, mais ainda quanto mais absoluto é, ele esvazia correlativamente de valor os objetos
que lhe são correspondentes” (SOLER, 2005, p. 68). Medeia mata seus próprios filhos para,
assim, melhor atingir Jasão e saciar sua raiva. Lacan (1998e), em Juventude de Gide (1958),
traz à lembrança, ao lado da Medeia de Eurípedes, a esposa de Gide - Madeleine, que
queimou as cartas de amor que o marido escreveu-lhe, ao descobrir que ele havia apaixonado-
se por um jovem:
Desde então, o gemido de André Gide, o de uma fêmea de primata ferida no ventre,
com o qual ele pranteia a extirpação do desdobramento de si mesmo que eram suas
cartas razão pela qual as chamava de seu filho -, faz parecer que preenche com
exatidão o vazio que o ato da mulher quis abrir em seu ser, longamente escavado por
uma após a outra das cartas atiradas ao fogo de sua alma flamejante (LACAN,
1998e, p. 772).
Em OA não temos um ato comparável ao de Medeia ou ao de Madeleine, temos uma
mulher que manifesta, através das palavras, a sua raiva. Como já dito anteriormente, essa
“literatura da raiva” tem sido observada nas ficções contemporâneas de autoria feminina. Na
pesquisa de Silva (2009), a qual nos referimos no capítulo anterior, a partir das obras
estudadas
12
, ele percebe que:
12
Embora o pesquisador tenha centrado seu trabalho nas autoras Dôra Limeira e Ivana Arruda Leite, suas
conclusões passaram pela cuidadosa leitura das obras de outras escritoras como: Adélia Prado, Arriete Vilela,
Hilda Hilst, Olga Savary, Bruna Lombardi, Marilena Felinto, Nilza Resende, Patrícia Melo, Bernadette Lyra,
Márcia Denser, Elisa Lucinda, Lygia Fagundes Telles, Augusta Faro, Patrícia Bins, Arlete Nogueira da Cruz,
Lucila Nogueira, Thelma Guedes, Marietta Telles Machado, Vera Romariz, Izabel Brandão, Raquel Jardim,
Lélia Almeida, Helena Parente Cunha, Sonia Coutinho, Luzilá Gonçalves Ferreira e Haidée Nóbrega Simões.
101
As mulheres representadas que optam pela não dependência às estruturas arcaicas do
patriarcado, na ficção estudada, passam por dois estágios básicos de existência: o
primeiro, já discutido, é a vingança contra o sistema/discurso que a oprimiu,
lançando sobre o homem um “esporro” comportamental que varia desde a busca
pela igualdade de tratamento no interior do lar (e mesmo, corrobora para a prática
do adultério como forma igualitária de viver a relação de gênero) até o ato mais
violento, que culmina com o assassinato do marido (SILVA, 2009, p. 24).
Embora sempre posicionada como vítima, vez por outra, a personagem tem breves
lampejos de lucidez, reconhece seu pouco esforço em se fazer gostar pelo outro: “[...] eu
também posso estar no mundo para não gostarem de mim; aliás, eu não estou no mundo para
agradar a ninguém, pelo contrário” (FELINTO, 2002, p. 41). Desde a infância, sabia, em seu
íntimo, que seria uma mulher “monstruosa”. Não há, nesta mulher, como foi dito, uma
disponibilidade em se fazer objeto causa de desejo para um homem, restando-lhe a
identificação com um objeto dejeto, caído do Outro. Essa dificuldade estende-se do seu
passado ao futuro: “Não sou mais uma menina que tem o resto da vida a perder sou uma
mulher, tenho o resto da vida perdido” (FELINTO, 2002, p. 39).
Nesta noite de sábado, em que escavouca” a memória, enquanto se desfaz das peças
de roupa de Charles, sua vida revela-se como um grande abandono. Que sentença tão
irrevogável é essa, a de perder sempre? Por que amou? Por quê, se sabia que a solidão está em
seu ser como uma marca de nascença?
amor e perda, nunca um ganho sequer: “A cabeça embotada, os sentimentos em
frangalhos, fujo, organizo uma lembrança que me tire do momento de dor e silêncio”
(FELINTO, 2002, p. 13). Não consegue, todas as lembranças são amargas. Até Paris veio-lhe
à cabeça, cidade dos amantes. Mas, de Paris, só conseguiu a recordação de um homem morto,
estendido na estação. De Paris, o que ecoa é o dito de Charles no hotel “eu não vou me
separar dela”. Veio o Valmir de sua infância, fazendo-a perceber que o nculo que faz com
os homens é fraco, é de cordão e lata. Veio a lembrança do desejo perverso infantil de pisar os
caracóis, que ela-lesma não conseguia se abrigar nos braços de homem nenhum. Vieram
102
Macsuel e Maria Doidinha, os sem-senso de sua infância, aproximando-lhe de sua loucura
eminente. Vieram Ricardo, Cláudio e Sigfried, o que a fez constatar que os homens, para ela,
eram todos iguais, faziam-na sofrer. Vieram o insulto, a raiva, a revolta, o emudecimento.
Mas, o que ficou mesmo foi o arrependimento: “Onde fica o arrependimento? É uma sensação
de areia nos olhos, um zunzum na cabeça, uma insônia [...]” (FELINTO, 2002, p. 17).
Finalizando a primeira parte da obra, intitulada “Abandono”, a narradora-personagem
faz uma equivalência entre a morte e o abandono: “Abandonar alguém é um ato de covardia.
É de uma brutalidade típica da morte. Somente a morte pega as pessoas assim desarmadas, de
pernas abertas, nuas” (FELINTO, 2002, p. 38). Sempre almejou um vínculo eterno com um
homem que a amasse, por isso, a cada abandono, uma morte instalava-se dentro dela. Certa
noite Charles disse que não a queria mais: “Tudo como a morte é tudo que mudou de um
minuto para outro, inesperado como aquilo que cabe nos décimos de segundo, tudo que
mudou de um instante para outro, de uma hora para outra, de um dia para outro” (FELINTO,
2002, p. 44). Sabemos que, na verdade, esse abandono havia sido previsto desde o início, mas
ela insistiu, seguiu adiante. Ainda assim, o fim foi como a morte.
Abriu-se toda para Charles, entregou-se como se fosse a primeira vez e, de repente, ele
se foi. Suspeita que ele possa ter encontrado outra amante: “– Quem foi, Charles, a última
pessoa que enfiou a cara entre suas pernas e meteu na boca o talo duro que você oferece, o
talo doce-amargo do seu sexo? Quem foi essa pessoa?” (FELINTO, 2002, p. 43). Será que
haveria uma “usurpadorado seu território? Será que Charles chegou mesmo a ser território
dessa mulher? Ele nunca deixou a mulher com quem estava casado, nunca foi de todo e
inteiro para essa mulher. Mas, essa suspeita rondava-lhe os pensamentos: Deveria haver uma
lei contra esta espécie de invasão do amor dos outros, do desejo dos outros, da felicidade
alheia” (FELINTO, 2002, p. 43). Felicidade? Nunca foi feliz. Precisava do exercício constante
de olhar-se no espelho, bem de perto, e “[...] perguntar-se se estou feliz, e responder-se que
103
não estou e fazer-se outra pergunta, se algum dia já esteve diferente: e dizer-se que não”
(FELINTO, 2002, p. 44).
Tudo é como a morte desde a noite em que Charles disse-lhe que era melhor não a
querer mais. Lembra que no dia anterior a este sábado de solidão, arrumou-se toda, trocou
várias vezes de roupa e de sapato, mas não foi a lugar algum: “Eu até me fiz eu mesma um
carinho, o carinho que você deixou de fazer, o toque, a sua mão” (FELINTO, 2002, p. 44).
Agora, sente-se como as borboletas que se estraçalham contra o pára-brisa dos carros, em
suicídio involuntário. Será mesmo involuntário?
Do alto de sua solidão, expressa um desejo tipicamente feminino: “Eu queria fazer
sexo hoje com alguém que me amasse e quisesse dormir comigo depois. (Eu sou a ‘dona
Baratinha’, que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha. Eu sou Maria Doidinha)”
(FELINTO, 2002, p. 45). Para a mulher, o amor é condição de gozo. Não basta que um
homem “enfie” seu sexo na vagina de uma mulher, é preciso que ele fique, que a ame: Uma
pessoa não pode enfiar seu sexo, seu dedo, seu membro no sexo da outra e depois ir embora!”
(FELINTO, 2002, p. 30).
Durante todo o relacionamento com Charles, o que mais devastou essa mulher foi a
impossibilidade de ser a única. O amor exclusivo não lhe foi dado, algo que é tão precioso
para uma mulher a fantasia de ser a única. É o que será tratado na segunda parte da obra,
chamada “Obsceno”.
2.2 Obsceno: a impossibilidade de ser única
Nesta segunda parte, a personagem narra com mais detalhes a dinâmica da relação que
manteve com Charles, dando-lhe, inclusive, o direito à voz em sua narrativa. Ela nos a
chance de conhecermos o que, de fato, precipitou o abandono: a sua exigência em ser a única.
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É invadida, na rememoração a que se entrega naquela noite de sábado, por uma série de
diálogos com Charles, em que o tom da exigência manteve-se como um “samba de uma nota
só”.
O arrependimento continua guiando seu desabafo. Recorda-se do nome da estação em
Paris “MADELEINE”. Mas, ela não é como a Madalena bíblica, seu arrependimento é
outro:
[...] meu arrependimento é tanto que é físico, é dor nos pavilhões desertos dos meus
ouvidos, areia rangendo nos meus olhos. Eu me arrependo de ter aceitado um
homem que não me queria. [...] Eu só me arrependo de ter me iludido, me enganado,
contra todas as evidências (FELINTO, 2002, p. 49).
Evidências, é isso o que vamos encontrar, a partir de agora, em suas falas. A areia que
lhe faz ranger os olhos foi a mesma que lhe cegou todas as evidências de que o amor iria
fracassar. De alguma maneira, ela sabia que Charles não a queria. Evidências que, como
observamos, fizeram-se perceber desde a infância dessa mulher. Essa certeza, uma espécie de
premonição ou de maldição? É algo que talvez possamos nomear de sintomático na posição
que ocupa nos seus inventários amorosos. É um saber que se antecipa e que aparece nas suas
escolhas. Uma mulher que, desde a infância, se sabia monstruosa e que carregava a solidão
como uma marca de nascença, uma mulher cujo resto da vida estava perdido: “Eu me
arrependo de ter deixado minha vida assentar-se no mesmo erro de sempre: o de perder tudo,
sempre” (FELINTO, 2002, p. 50).
De todas as pessoas que não a quiseram, afirma, veementemente, que Charles foi a
pior, ele se foi e “Restou eu, sobrei eu na esquina da vida, cara a cara com a bofetada deste
abandono pior que o da morte” (FELINTO, 2002, p. 49). Mais uma vez, a personagem faz
equivaler abandono e morte. Se um homem a faz nascer, a perda dele a deixa mortificada.
Ainda na tentativa de se livrar desse homem, que lhe invade o pensamento da mesma forma
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que invadiu seu corpo e sua vida, volta-se para os defeitos dele. É preciso ressaltar todos os
defeitos desse homem para que não se sinta tão vilipendiada:
[...] mãos grossas, que parecem lixas, dessas lixas de raspar paredes. Seu cabelo é
ralo tomara que caia todo em breve, e que ele fique ridiculamente calvo como um
homem que tem barriga e é calvo. [...] eu preciso reduzi-lo a nada, aumentar suas
pequenas manias. Eu preciso esquecer (FELINTO, 2002, p. 51).
Quando um relacionamento se desfaz, é comum aquele que foi abandonado elencar os
defeitos do “carrasco”. Se, no início da relação, o outro aparece como perfeito, como sendo a
“alma gêmea”, quando o encantamento se desfaz, os defeitos emergem. No amor, idealizamos
o objeto amado, projetamos nele o que sonhamos encontrar. Quando essa idealização cai,
apercebemo-nos que o outro não era nada daquilo que havíamos pensado. É que o insulto
ganha vez, pois é preciso reduzir o outro a nada, como nada o rejeitado sente-se. A
personagem parecia saber, desde o início, que Charles não seria dela, que não era amor o que
ele poderia e desejaria dar. Ele gostava de estar com ela, era “bom”, mas não era amor.
É preciso esquecer, mas tudo que lhe vem, agora, são as lembranças: da primeira noite,
da primeira carta, do primeiro encontro e do primeiro jantar. Na primeira noite do dia em que
se conheceram, ela dormiu nua e não se masturbou, guardou-se “[...] para que se houvesse
amor, que fosse com você, se houvesse gozo, que escorresse com você na hora certa da nossa
primeira noite de sexo no ritmo obsedante e frenético em que se faz sexo quando se está
apaixonado” (FELINTO, 2002, p. 51). Passou o dia seguinte sozinha, preservando-se para
entregar-se como se fosse a primeira vez. Desejo de ser tudo para o outro, como destaca
Laurent (2000, p. 10): “Há mulheres que se colocam na posição de ‘ser tudo’ para um homem,
pouco importando qual seja a indignidade do homem em questão”.
Logo no primeiro dia apaixonou-se por Charles, desejou até ouvir Mendelssohn e,
como uma noiva, sonhou com a “marcha nupcial” coisa que, antes, era-lhe detestável. Não
queria que nada interferisse nessa sua “inauguração pessoal”. Amou à primeira vista. Não
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houve tempo para conhecer esse homem, entregou-se como quem se atira em um precipício.
Aliás, essa imagem de um corpo que cai e se estatela no chão é sempre evocada pela
personagem, como pudemos constatar na primeira parte desta análise.
Na primeira carta endereçada a Charles, a exposição de seus medos: “Tenho medo de
você. De que você me magoe muito um dia. Tenho medo de que você não me responda, não
me corresponda e me traia” (FELINTO, 2002, p. 52). Vemos o quanto a demanda de ser
amada é um ponto central na vida dessa mulher, mas isso não lhe basta: é preciso, também,
ser a única. Sabia da imensidão do gozo que lhe tomava e enchia-se de receios,
principalmente, o de ser abandonada. Charles era casado e, esse desejo de tomá-la como a
única mulher de sua vida, ele não quis atender. O risco era uma verdade que lhe acalentava os
medos.
No primeiro encontro, aproximou-se de Charles e, de imediato, disse-lhe que as
pessoas são seres “graves”, ao que ele não concordou e pediu que ela usasse outra palavra,
porque “grave” era demais para ele. Corrige-se e esclarece que “grave”, na verdade, era ela.
Podemos compreender que grave era a sua urgência em ser amada, grave era o estado em que
sempre ficava diante de um homem. Nesse dia, ele a beijou e, partir desse momento, desejou
colar seu rosto na boca aberta dele, como se fosse nascer da sua boca, como se a boca de
Charles fosse uma vagina dando-lhe à luz. Percebemos que era de um homem que ela se fazia
mulher, que ela nascia. Mas, infelizmente, não sabia manter-se como mulher causa de desejo
para nenhum homem, arruinava tudo e, depois, dizia que os homens eram os assassinos.
No primeiro jantar: “Comi somente um pouco mesmo, para não desmaiar na hora da
minha ginástica amorosa o contrair e descontrair de músculos que é meu sexo, esta vontade
de enfraquecer, me entregar e morrer” (FELINTO, 2002, p. 55). A comida atrapalhava o
paladar e ela queria degustar Charles. Houve um momento em que, naquele jantar: “[...] a
gente trocou um olhar fuzilante, a gente ficou minutos inteiros se comendo com os olhos, com
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uma intensidade de raio atravessando um ser [...]” (FELINTO, 2002, p. 56). E foi mesmo
assim que Charles entrou em sua vida, fuzilando, atravessando, cortando seu ser de mulher
frágil e carente. Charles foi a sua morte.
Ela nunca havia se entregado tanto e se inaugurado tanto para uma pessoa, fez até
promessas, mas “[...] fui atropelada pela vida, caí, do alto de minhas pernas fracas e no lugar
errado sou uma imigrante, uma imigrante nunca se recupera da perda” (FELINTO, 2002, p.
56). Ela era mesmo uma imigrante, não de lugar, mas de amor. Migrava de uma perda para
outra, sempre, não conseguia um vínculo com um homem, uma raiz, nem mesmo obteve êxito
com o vínculo de cordão e lata, nas brincadeiras com o Valmir de sua infância. Migrava, mas
era sempre a mesma, sua condição de mulher devastada permanecia. Migrava em busca de um
lugar onde pudesse amparar seu ser.
Era uma imigrante, dessas que: “[...] amadurecem no trauma dos lugares grandes para
onde são um dia transplantadas feito árvore, a raiz pendurada, arrastando no chão, procurando
vínculo com um monturo qualquer de terra onde possa reviver” (FELINTO, 2002, p. 56). Seu
dilaceramento era tão grande que precisava de um lugar qualquer onde pudesse apoiar sua
existência. Vivia assim, na eterna busca de um homem que lhe servisse de alicerce. Ora
coloca-se como um solo em erosão, de onde todas as raízes foram arrancadas, ora é a raiz
arrancada, pendurada, sem vida, que precisa escorar-se em um “monturo” qualquer.
Vimos que a mulher busca, no amor, um lugar para ancorar o seu ser. Mas, esse
ancorar não implica em fazer Um com o outro, como faz a personagem estudada: “Ontem
vesti seu short e sua camiseta, uma que você me deu na praia. Passei o dia assim, parecida
com você, e sentindo na minha pele a pele da sua roupa [...]” (FELINTO, 2002, p. 52).
Quando perde o amor, uma mulher perde-se toda. Jimenez (1995, p. 24) elenca algumas das
conseqüências desse sentimento de errância: “Percepção de falta de identidade, sensações de
despedaçamento corporal, de falta de consistência, medo de perda de controle, de
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enlouquecer, temor de perder o domínio do corpo, queixas de ser nada”. Os homens também
falam de experimentar sensações semelhantes, mas isso é mais claro do lado das mulheres e a
experiência clínica nos atesta isso. Quando os homens experimentam algo parecido é porque,
na partilha sexual, localizam-se mais do lado direito das fórmulas da sexuação, ou seja, do
lado feminino. Vimos que, quando um homem ama, verdadeiramente, ele se feminiza.
O amor é um jogo de semblantes, onde o homem “banca” ter o falo e a mulher
“banca” sê-lo. É o falo que entra em jogo fazendo suplência à falta de relação sexual, ou seja,
à falta de complementaridade entre os sexos. É importante, aqui, não confundir falo com
pênis, pois a psicanálise não adota uma visão biológica do sexo. Ribeiro (1995) nos lembra
que uma anterioridade lógica da relação do sujeito com o falo, que gira em torno do ser
frente à demanda e ao desejo do Outro. O pênis, como já discutido anteriormente, apenas se
presta a encarnar a máscara da falta-a-ser, deslocando o problema para o campo do ter. Assim,
o falo é um semblante com o qual os sujeitos fazem de conta que a relação sexual existe,
promovendo um jogo de parecer.
No deslizamento do ter para o ser, que a mulher não o tem, mascara-se como o
sendo. A mulher oferece-se ao parceiro como o falo que lhe falta. O homem vai, então, tomá-
la para superar sua própria castração. Isso é que consiste, para uma mulher, tornar-se causa de
desejo para um homem. Vemos na personagem de Felinto essa ânsia em se dar a Charles,
inteira, inaugurando-se, como se fosse sua primeira vez. Mas, essa identificação ao semblante,
como temos visto até aqui, não é desprovida de riscos, o que é atestado pela devastação.
Quando essa identificação fracassa, a mulher se devasta. Até mesmo porque a personagem
não consegue sustentar o lugar de mulher desejável, temos visto que ela se identifica ao cisco,
ao molambo, ao nada, ou seja, identifica-se ao dejeto.
A perda de amor é uma ameaça particular, que marca a vida feminina, deixando-a
presa à presença de angústia (LAURENT, 2007). O título do livro sugere bem essa ameaça -
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Obsceno abandono: amor e perda. Depois do amor, a perda aparece como inevitável na vida
dessa mulher colecionadora de perdas. Depois de abandonada, ela se descreve pura dor:
“Neste mês da minha desgraça, às vezes acordo com cara de homem, às vezes com cara de
bicho, outras com cara de monstro – outras vezes com simples cara de palhaço louco. Deveria
haver uma lei que proibisse a obscenidade do abandono” (FELINTO, 2002, p. 57). Os
significantes com o quais se identifica (homem, cara de bicho, mostro, palhaço louco)
mostram os estágios do seu estado pós-abandono. Às vezes, acorda com cara de homem, esse
ser de quem ela tanto admira o equilíbrio, um ser com cálculo de engenharia perfeita. Mas, se,
ao acordar, sua face parece ensaiar um pouco de equilíbrio, ao longo do dia o que emerge são
figuras inumanas, animalescas, extravagantes. dias que fica com cara de bicho, que não é
racional, que é dominado pelos instintos. O homem, o macho, é o ser da razão, mas o “ser” do
bicho está mais próximo dela, da sua impulsividade. Também acorda com cara de monstro,
significante com o qual sempre identificou o seu ser de mulher, pois se sabia, desde cedo, uma
mulher monstruosa. Por fim, acorda, às vezes, com cara de palhaço, expressão comumente
utilizada para aquelas pessoas que são enganadas, feitas de bobas. Mas não é um palhaço
qualquer, é um palhaço fora de si, louco, fora da razão. A devastação é algo que provoca um
complexo sentimento de despersonalização, em que o fantasma da loucura se faz uma ameaça
constante.
Seria mesmo preciso uma lei que pudesse tirar-lhe desse gozo estranho, enigmático,
excessivo, ilimitado, que está do lado feminino. Ela quer ser ressarcida: “[...] quem vai me
ressarcir do dano, restituir-me a coisa, compensar o prejuízo de abandonada?” (FELINTO,
2002, p. 57-58). Quando nos sentimos lesados, recorremos às instâncias jurídicas. Se
adquirimos uma mercadoria defeituosa, podemos contar com o prazo de garantia, trocá-la por
outra ou até mesmo pedir indenização. E no amor? Quem pode dar garantias? Como
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compensar o prejuízo. Aqui, cabe muito bem o aforismo lacaniano, citado anteriormente:
amar é dar o que não se tem. Como seria possível restituir a falta?
O amor está do lado da mulher é uma constatação estrutural que se manifesta na
análise de mulheres, mas também é algo que emerge na cultura, pois, no senso comum, às
mulheres é atribuído o amor, enquanto que, aos homens atribui-se o sexo. Quando as
mulheres perdem o amor, até tentam formar conjunto, como no conhecido grupo MADA
mulheres que amam demais. Nesse grupo, essas mulheres, devastadas, trocam experiências
dolorosas das insanidades cometidas em nome do amor. É grande o número de mulheres que
demandam uma análise quando temem perder o amor, o que reafirma o fato de que a mulher é
perseverante na busca por um parceiro permanente. A personagem de OA deixa essa sua
perseverança muito explícita: “E eu, toda vez que a gente se encontra e é bom, eu fico
desesperada depois, por perceber o quanto eu quero mais e mais e sempre mais” (FELINTO,
2002, p. 64).
Em Psicologia de grupo e análise do eu (1921), Freud (1996) indicava que o estado
amoroso, principalmente para uma mulher, pode conduzir ao rompimento de seus laços, por
implicar "fascinação ou servidão". Constatamos isso na personagem, que, no primeiro
encontro, fascina-se e ama à primeira vista, para depois ficar em uma absoluta servidão a
esse homem: “Ter alguém nesse papel de trouxa em que eu me coloquei, agüentando por mais
tempo do que eu deveria suas exigências absurdas, suas condições etc.” (FELINTO, 2002, p.
74).
Os amantes descobrem, rapidamente, que o prazer do amor não dura mais que um
instante e percebem que pesa sobre eles o risco de ficarem mortalmente atingidos, ao invés de
fascinados. A paixão é uma promessa de vida que vai além da felicidade e do sofrimento. Mas
os sujeitos levam em consideração o apaixonamento, subtraindo a possibilidade de
sofrimento e esquecendo que amar é se arriscar. As mulheres se dispõem mais a correr os
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riscos do amor. Mas, para os homens, que apóiam-se no suporte imaginário da virilidade,
correr riscos é uma grande ameaça. Na fala de Charles, narrada pela personagem, podemos
observar como homens e mulheres adotam posicionamentos diferenciados frente ao amor:
“Então amor é essa coisa ruim? Esse risco eterno de abandonar ou ser abandonado? Não
quero! Não vivo assim! É muito mais difícil talvez. Mais complicado... e daí? O amor tem que
ser bom. Tudo de bom. Só. E aí, é contigo” (FELINTO, 2002, p. 64).
Os enamorados amam o próprio fato de amar. Já que o amor está apoiado em uma
falta, demanda-se sempre mais. Essa absolutização do amor aproxima-o da morte. Vicente
(s.d.) lembra que, em francês, diz-se la petit mort, para se referir ao orgasmo. A mulher, na
posição de devastada, pode ser conduzida, por não se sentir reconhecida por um homem, à
privação extrema, à morte. A devastação, assim, torna-se a outra face do amor, fora do
sentido, fora do sexo, não conhecendo limites.
Vai ao dentista, quase chora na cadeira por causa do jeito manso que o homem lhe
fala, causando-lhe arrepios. O doutor pergunta-lhe se está doendo, se quer ser anestesiada.
Ela, então, pede que a anestesia não lhe seja aplicada: “Se ele soubesse o que é dor. Crateras e
rombos e vazios e fisgadas de dores profundas era o que não me faltava, é o que não me falta”
(FELINTO, 2002, p. 58). Mais uma vez, a personagem utiliza-se de termos da geografia e
geologia. A dor do abandono abre crateras no seu solo desvitalizado, de raízes arrancadas.
Queria mesmo era sentir uma dor física: “Dessas de quando se abrem as crateras e se expõem
os nervos inflamados dos dentes. Quero ver se, desse modo, me curo da outra, uma dor
abstrata que estou sentindo não sei onde” (FELINTO, 2002, p. 58).
Diante de tamanha dor, beirando a loucura, recorda-se que Macsuel, o doido da sua
rua de infância, matou a mulher que o traiu. Ninguém ressarciu o dano de Macsuel e o
resultado foi que ele matou, depois enlouqueceu. Desde então, andava na rua sem falar coisa
com coisa. Mas ela não recorre a esse recurso, não iria matar Charles, ela fala ao leitor de sua
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dor: “[...] porque falar, muitas vezes, é mais penoso, muito mais penoso, do que matar”
(FELINTO, 2002, p. 59).
Começa a recordar seus diálogos conflituosos com Charles, como se fosse para poder
ver melhor, com mais clareza, o que de fato aconteceu, o que levou seu romance às ruínas. De
um dia para o outro, a comunicação ficou truncada no diálogo do “não”: “- Eu não quero mais
viver isso... ./ - Não quer?/ -Não, não quero. Adeus!” (FELINTO, 2002, p. 57). No lugar das
juras de amor, surgiram as cobranças, as demandas infinitas, que Charles não conseguia e nem
desejava atender.
No final, sua comunicação com ele ficou reduzida às máquinas eletrônicas: “[...]
não nos falávamos; só havia o ruído de nosso lixo amoroso, somente o nosso
desentendimento” (FELINTO, 2002, p. 59). Foram as mensagens deixadas na secretária
eletrônica e as enviadas por e-mail que guardaram os últimos diálogos, ou melhor, os
monólogos de cada um. Recorda-se de uma mensagem enviada quando Charles comunicou-
lhe que viajaria com a esposa:
Fiquei a noite toda pensando nesse círculo vicioso em que a gente se encontra: de
tarde é bom; de noite, ruim pra mim ou pra você, sempre depois que um de nós dois
diz algo que ofende ou magoa. Por exemplo: você me dizer da sua viagem em
setembro, você me excluir disso por antecipação e justamente ontem de noite! Pra
mim, isso parece uma coisa: você, depois que me amor, me pune
inconscientemente por isso (ou pune você mesmo, não sei). Vose sente culpado
por estar traindo tua mulher (FELINTO, 2002, p. 59-60).
Ora, ela sabia que Charles tinha uma vida conjugal. Sabia que ele tinha filhos e que
cumpria toda uma rotina de homem casado. Como poderia pensar que Charles a levaria junto
para uma viagem com a mulher? O que ela queria desse homem, estava fora de cogitação. A
essa demanda, Charles respondeu-lhe: “Estamos caindo em uma armadilha, esta expectativa
de enquadrar nosso encontro em uma ‘relação’. Podemos ter um encontro especial, diferente
[...]. Não tenho nome para isso, você me entende?(FELINTO, 2002, p. 60). Ele quer uma
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relação diferente, sem nome, mas ela quer amor: “Pro inferno com essa conversa fiada! Quem
quer duas histórias tem dois telefones, duas camas, duas casas, dois tempos, no mínimo! Tem
vida própria, disponibilidade. Você não tem. Não quer ter. me disse que não vai se separar
dela” (FELINTO, 2002, p. 60). É interessante observar que, nesta fala, a personagem
demanda que Charles assuma “duas vidas”− uma com a mulher e outra com ela,
demonstrando aceitar dividi-lo, no entanto, logo em seguida queixa-se por ele não se separar
dela.
Ele tenta ponderar, encontrar um lado bom no que estão vivendo, mas ela não aceita:
[...] não quero mais ser um caso seu. Quero viver o que sinto por você com
liberdade, sem esses limites que você impõe, sem condições. Quero tudo: quero
mais tempo, quero viajar com você de férias, quero que você durma comigo aqui às
vezes. Sem isso, não me procure mais (FELINTO, 2002, p. 62).
A relação que Charles gostaria de manter com a personagem caracteriza o modelo de
amor líquido, proposto por Bauman (2004). Uma relação sem nomeações, baseada no bem-
estar momentâneo, era o que ele desejava, sem estabelecer um nculo sólido. No entanto, ela
não queria ser apenas um “caso”, desejava ser amada, sem limites, sem condições. O limite
que havia era o de Charles ser casado e não poder dar-lhe tudo. Embora não admitisse, ela não
se satisfazia com o “às vezes” que Charles podia ofertar-lhe.
Para Freud (1996, p. 128), em Algumas consequências psíquicas da distinção
anatômica entre os sexos , o ciúme feminino nada mais é do que uma derivação da inveja do
pênis: “Realmente, o ciúme não é apanágio de apenas um sexo, e baseia-se sobre fundamento
maior, mas penso que exerce papel bem maior na vida psíquica da mulher, pois recebe
enorme esforço do descaminho da inveja do pênis”. Lacan (1998), em Diretrizes para um
congresso sobre a sexualidade feminina (1960), não fala de ciúme feminino, mas de algo que
o precede e que, para nossa análise é de grande importância: a exigência de fidelidade, ou
seja, de querer ser a única. Para ele, essa exigência de unicidade não se fundamenta em uma
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falta, mas sobre uma positividade, a do gozo feminino. Vimos que Lacan (1985) situa o gozo
feminino como ilimitado, ou seja, como suplementar. É, então, a especificidade do gozo
feminino, não-todo, que fundamenta essa exigência e, por conseqüência, leva ao ciúme.
É essa exigência que vemos tomar a cena nas discussões com Charles:
Você age como se não tivesse a menor noção do que provoca em mim quando me
telefona de noite e me alerta, me adverte de que vai viajar em setembro (porque já
estava combinado) e que esse plano não me inclui. Que crueldade. Não entendo por
que eu não sirvo para viajar de férias com você, por que não sirvo para você dormir
comigo, para você namorar também comigo. Não sirvo. [...] E qual é o crime de
querer mais amor, mais carinho, mais companhia? (FELINTO, 2002, p.p 63-64).
Charles era casado, ela sabia, mas o escolheu. Não pensou nos percalços do amor, nas
armadilhas. Talvez tivesse achado que suportaria dividir esse homem ou que o arrancaria da
mulher com quem era casado. São especulações nossas, mas em qualquer uma das hipóteses,
o fato é que ela não suportou ir adiante. Em muitas de suas falas deixa transparecer uma certa
conformidade com o fato de ser a outra, exigindo, apenas, mais tempo ao lado de Charles.
Mas, logo se contradiz e se recusa a ser apenas um caso, queria muito “mais”, queria tudo.
Sentia-se usada, apenas mais uma e isso é intolerável para uma mulher: “Já me disse
que não quer ter duas vidas. me quer como uma espécie de lucro supérfluo e dispensável
na sua contabilidade amorosa” (FELINTO, 2002, p. 64). Acusa Charles de não querer ter duas
vidas, mas era exatamente isso que ele tinha. Sempre que possível estava com ela, algumas
vezes dormia em sua cama, até viajou com ela à Paris. Tenta enganar a si mesma, mas o que
estava pedindo a esse homem era que ele a tomasse como única. Ela não se apercebia que o
que a devastava era Charles não poder dar-lhe mais, era ter que suportar as duas vidas que ele
levava.
Quando a mulher identifica-se ao objeto-dejeto durante uma relação e quando esta se
desfaz, o que ela experimenta é a sensação de ter sido usada e descartada. Se a mulher
transforma-se apenas em um objeto de gozo para o homem, coisifica-se e sente a dor de ficar
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na posição de objeto. A mulher-objeto, tão trazida à cena nas reivindicações feministas, nada
mais é do que esse lugar que a mulher devastada ocupa na relação amorosa. É da observação
dessa mulher devastada que se presta a toda sorte de coisas diante de um homem, que a
cultura formula os estereótipos da mulher como um ser eternamente subordinado ao
masculino.
O descumprimento da exigência de fidelidade é algo avassalador para a mulher, pois
seu gozo é fora-da-lei, não é todo regulado pelo falo como o do homem. É aí onde se revela a
outra face do amor, que, livrando-se da ambivalência que o acompanha, transforma-se em
puro ódio. Quando esse gozo vem como suplemento ao gozo fálico, graças à relação com um
homem, ficando enquadrado pelo fantasma, ele é retido. Mas, se esse enquadramento é
quebrado por um descumprimento do homem à exigência de fidelidade, o gozo fora-da-lei,
que estava contido no amor, revela-se em todos os excessos (MOREL, 1996). Esse gozo
revela-se para personagem, que o descreve, como “[...] um gozo que se prolonga pelo meu
corpo na tua ausência; esse é o lado bom do terrível, o que há de terrível no amor; mas terrível
também por uma mistura de amor e perda [...]” (FELINTO, 2002, p. 68). Esse gozo descrito
na fala acima é o gozo contido, domado, enquadrado. Mas, quando Charles se vai, ele a
invade de forma catastrófica, como se percebe na seguinte fala:
Tivessem descoberto a minha doença, o meu vício, a minha dependência, a minha
falta de lucidez, recomendariam logo um médico de loucos, um tratamento médico
que jogasse um remédio no lugar do meu cérebro onde haja o arrependimento. [...]
Faz dias que decretei uma espécie de morte a mim mesma, dez dias sem atender
telefone cobri com um pano, como quem cobre um defunto [...] (FELINTO, 2002,
p. 76-77).
Repartir esse homem é uma realidade cada vez menos suportável: “Porque você não se
separa dela? Você parece não enxergar nem teus próprios movimentos nessa história. Você se
fechou num monólito impossível de transpor” (FELINTO, 2002, p. 71). Mais uma vez a
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personagem trai seu próprio discurso, pois, ao mesmo tempo em que pede que Charles tenha
duas vidas, também pede que ele se separe da mulher.
Algumas vezes, chegava a ligar para casa de Charles, mas desligava quando a mulher
dele atendia: “Eu ligo para a sua casa, tenho que atravessar a parede com quem você dorme a
noite toda, tenho que ser maltratada por você e por ela, e ainda tenho que ‘ser superior’. Pro
inferno!” (FELINTO, 2002, p. 68). Outro dia, a mulher de Charles ligou para ela, demarcando
território. Não fica muito claro no livro, mas parece que houve uma tentativa, por parte de
Charles, em fazer com que elas se encontrassem e conversassem, como podemos inferir a
partir do seguinte trecho:
Eu nunca sentei para ‘conversar’ com a tua mulher não por falta de coragem, mas
porque eu simplesmente não quis. Isso você não engole até hoje. Não resolvo meu
afeto a três, em mesa de bar, não fico amiga de mulher de caso meu, não quero
saber. [...] Esse ‘sentar para conversar’ de que você tanto fala até hoje era apenas um
desejo teu de, por pura covardia, por não saber como fazer, jogar a história toda na
mesa, para que ela (a idiota da tua mulher) e eu resolvêssemos por vo(FELINTO,
2002, p. 74).
Acredita que Charles nunca tinha se sentido tão casado com a mulher, acha até que foi
usada para fortalecer a “transa” deles dois. Ela o pode, como Medeia, vingar-se nos filhos,
porque não os tem: “Jamais vou ter um filho. Filhos fazem duas exigências básicas, a que sou
incapaz de corresponder. Primeiro: amor. Filhos exigem amor. Segundo: dinheiro”
(FELINTO, 2002, p. 72). Ela denuncia sua incapacidade: “Duvido até hoje da minha
capacidade de dar, de receber. Dane-se!” (FELINTO, 2002, p. 72). Reconhece o amor como
uma exigência e não como um dom. sabe amar por exigência e o amor do outro lhe vem
também sob o signo da exigência.
De todas essas cobranças que ela fazia, Charles entendia o que lhe interessava:
[...] que de agora em diante não vai mais fazer ameaça boba, que não vai cumprir e que
descobriu que a vida pode ser bem melhor se relaxar e lembrar das coisas bem boas que
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acontecem entre os seres” (FELINTO, 2002, p. 62). Mas, não adiantava Charles tentar
apaziguar o furacão que lhe embaralhava os sentimentos, ela não queria saber das coisas boas,
queria saber das coisas eternas: “[...] preciso me entregar a outra pessoa que me queira de
verdade, preciso de paz” (FELINTO, 2002, p. 63). Ele mudava de assunto, protestava,
ponderava, mas ela continuava insistindo, acusando, pedindo o que Charles não queria ofertar.
Os mal-entendidos eram freqüentes. Certa vez, em uma mensagem, ele escreveu, no
final, “peitos pra que te quero” e “beijos pra que te quero”. Ela se ofendeu: “Preferia que elas
dissessem o que eu gostaria que elas dissessem: ‘eu quero teus peitos’, ‘eu quero teus beijos’.
Mas como transformar o que você disse no que eu gostaria de ouvir” (FELINTO, 2002, p.
66). Acompanhamos, no capítulo teórico-conceitual, a importância dos ditos de amor que um
homem profere a uma mulher. Como o gozo feminino é tecido na fala, é preciso que o homem
fale e, de preferência, que ele lhe fale de amor. Esse é, inclusive, um dos grandes pontos de
desentendimento de um casal. A mulher, na sua erotomania, assume o selo da exigência e,
nada do que o homem diga, parece ser suficiente. O silêncio do homem devasta a mulher,
que a essa demanda infinita do amor feminino, o homem não pode atender. Os ruídos de
comunicação continuavam. De Valmir a Charles nada havia mudado. Os homens não
respondiam aos apelos da personagem.
Queria exclusividade, embora não admitisse: “Eu não quero mais amor do que você
acha que pra tua mulherzinha. Eu quero apenas amor de namoro, companhia de namoro
apenas isso que você tem e sempre disse que não poderia me dar” (FELINTO, 2002, p. 75).
Achava mesmo que poderia suportar reparti-lo, mas, quando suas demandas frustradas
retornavam sobre seu ser, a devastação tomava-lhe por completo, deixando-a em uma
constante insatisfação. Se ele sempre disse que não poderia dar esse “amor de namoro”, por
que era justamente isso que ela queria? Por que encurralar esse homem, como fazia com
118
Valmir, quando o empurrava contra a parede. Não conseguia abordar os homens de outra
maneira, afinal, era uma mulher monstruosa.
As cobranças ficaram insuportáveis também para Charles: “Mais uma vez, eu tenho
que me arrepender de tentar te ter por perto. Você não quer! Não quer, não quer e não quer! É
você que não quer. OK! Foda-se tudo! De novo...” (FELINTO, 2002, p. 69). Às vezes,
admitia para ele e para si mesma que era ela quem queria se separar: “Na verdade, eu vou me
separar de você. Eu ligo para a sua casa, tenho que atravessar a parede com quem você dorme
toda noite, tenho que ser maltratada por você e por ela, e ainda tenho que ser ‘superior’. Pro
inferno!” (FELINTO, 2002, p. 68). Cada vez mais, a impossibilidade de exclusividade torna
insuportável essa relação para ela. Charles a queria por perto, era bom estar com ela. Mas, não
podia estar com ela “o tempo todo” como ela lhe demandava. Esse homem não poderia ser
dela.
Achava-se uma mulher corajosa, mas a coragem que gabava-se de ter nada lhe servia:
“Você nunca esteve de fato interessado em mim, em você mesmo. Você não se enxerga,
quanto mais a mim. Eu não entrei por acaso na sua vida. Fui eu que escolhi você (porque eu
tenho coragem para escolher)” (FELINTO, 2002, p. 70). Ele ironizava: “– Por que você se
gaba tanto de ter coragem?”/ “- Não me gabo. Eu tenho. Coragem não serve mesmo pra nada.
para fazer gente como eu cair em armadilhas do destino com gente como você e insistir
por tantos anos” (FELINTO, 2002, p. 70).
A sua coragem era a de insistir no que já estava perdido. Era uma coragem monstruosa
que lhe fazia sentir superior, como quando encurralava Valmir e sentia-se vitoriosa de ter
aquele “talo” duro em suas mãos. Mas, essa coragem dela não dava para Charles: “Seja assim
mesmo, exatamente do jeito que você é. Deve ser bom. Não para mim... Para mim não dá”
(FELINTO, 2002, p. 71). Ela sabia que não dava para Charles e deixava claro que :”[...]
não vou mudar o meu jeito de ser para ‘dar para você’” (FELINTO, 2002, p. 71). Esperava
119
que Charles mudasse sua “essência”, mas ela não mudava um milímetro, pois não conseguia
manter o “caso” com Charles, assumindo a escolha que fez. Se tinha guardado-se tanto,
inaugurando-se tanto, como poderia abrir mão de ser a única?
Ele ironizava mais uma vez: “O que você quer comigo? Filhos?” (FELINTO, 2002, p.
72). Não, ela queria amor, queria poder viajar com ele, passear de mãos dadas, sentar numa
mesa de bar. Queria esse homem na sua cama, ao acordar e deitar: “Quero ficar com você o
máximo que for possível, o máximo que você quiser que eu fique, que você deixar que eu
fique, o máximo que eu quiser te amar e você me deixar te amar” (FELINTO, 2002, p. 68). O
que poderia satisfazer essa mulher? Queria estar com Charles o máximo que fosse possível,
mas já não era isso o que acontecia? Viagens, passeios. Até as cuecas ele já havia deixado nas
gavetas da casa dela. O que era possível para Charles não lhe bastava. Ele demandava uma
coisa e ela, outra. O ruído já havia tomado conta do diálogo, ou, como a personagem disse em
outro momento, do monólogo de um e de outro. Ela não “dava” para Charles e ele também
não podia atender-lhe as demandas. Ela, então, anuncia ao leitor sua decisão:
Mandei apagar do computador, do disco rígido, das partes todas, dos arquivos e
esconderijos, toda essa troca de mensagens, todos os documentos. Melhor que não
haja registros de Charles na minha vida – cartas, bilhetes, presentes − melhor apagar,
para sempre (FELINTO, 2002, p. 76).
Apagou os registros de Charles de todos os lugares, mas nas suas lembranças ele
continuava lá, fazendo eco à sua solidão de mulher abandonada e mal-amada. É sábado à
noite e ela está só, como se o sábado fosse um dia qualquer, naquele mês de sua desgraça:
Hoje vou dormir sem calcinha. Estou toda sexual, puramente sexual. Outro dia fui a
um cinema desses do centro da cidade desses pornográficos, ver gente fodendo
gente na tela grande. Só me interessava ver isso: gente fodendo gente. Homens
arregaçando mulheres que arreganhavam outras mulheres que procuravam outros
homens que se penetravam uns aos outros (FELINTO, 2002, p. 76).
120
A fala acima deixa transparecer que o que ela queria mesmo era poder se desvencilhar
dessa necessidade de ser amada. Por que não conseguia fazer sexo como os estranhos fazem
uns com os outros? Por que não poderia ter uma “foda”? Por que não podia, simplesmente,
arreganhar-se para alguém? Por que tinha que ter amor? Por que tinha que ter exclusividade?
Por que tinha que ter palavras de amor? O filme do cinema não cabia em suas idealizações:
“Eu estava disposta a arranjar um amante que me quisesse” (FELINTO, 2002, p. 76). Não
tratava-se de sexo, mas de amor. Queria um amante que a amasse e que a tomasse como
única.
A narrativa vai chegando ao fim e, com ele, após o longo desabafo, a personagem vai
conseguindo extirpar sua raiva. Nem a morte, nem a loucura: No momento, a tristeza
profunda, como eu senti poucas vezes na minha vida. Nem raiva eu consigo sentir”
(FELINTO, 2002, p. 75). Fez dez dias que Charles abandonou-lhe: “Dez dias sem ouvir o
telefone tocar. Dez dias na mais funesta constatação de que não me procurariam” (FELINTO,
2002, p. 77). Mas, certo dia, o telefone tocou, era Charles, deixou que a secretária eletrônica
atendesse. Desligou a máquina, apagou as gravações. Não queria vestígios e foi, a partir desse
momento, que lhe veio o emudecimento:
Eu já não ajo nem reajo. Afogado no seu egocentrismo, Charles nem percebeu que
tempos eu nem ajo. Não percebeu que eu perdi a fala na verdade estou aos
poucos esquecendo seu corpo, não me lembro da cor dos seus olhos, da curva de
seu pênis, do sabor doce-amargo que tinha (FELINTO, 2002, p. 79).
Laurent (2007, p. 30) lembra que “Há um ponto em que, do lado feminino, a palavra
se cala, e que é ao mesmo tempo o ponto onde isso goza da palavra. É o ponto do qual não se
pode dizer nada e todas as palavras desfalecem. [...] É onde as mulheres encontram o
silêncio”. Durante a narrativa, em vários momentos, a personagem fala de seu emudecimento,
especificamente no início e no final, afirmando que quando sofre, não fala. Depois da
121
explosão da raiva, vem o mutismo. Foi assim com Valmir, Charles e com todos os homens
que não a quiseram. Depois da raiva e do arrependimento, a solidão revela que:
O que nasceu e morreu fui eu eu sozinha, eu sem ninguém. [...] Sobre esta ‘eu’
preciso nunca me iludir de que tem companhia, de que está acompanhada porque
não está, simplesmente nunca esteve. Todas as vezes foram ilusões. Quem fará o
favor? Quem fará o favor de olhar para minha cara feia? Quem fará o favor de se
apaixonar por mim? (FELINTO, 2002, p. 80).
Será que esta mulher poderá encontrar um amor mais digno? Será que poderá
consentir com o ato de amor, que implica em se deixar fazer objeto causa de desejo? Não
para a personagem da obra estudada, mas para as mulheres, consentir com esse semblante não
é algo fácil. Algumas mulheres o conseguem depois de levarem ao final suas próprias
análises. Tarefa árdua, mas possível. Tarefa, aliás, que não precisaria ser tão árdua, que,
como visto, o homem pode conduzir uma mulher a um estado de felicidade extrema.
A narradora-personagem de OA depara-se com a devastação muito cedo em sua vida.
Desde a infância, nas brincadeiras nada inocentes com os meninos, sentia a rejeição tocar-lhe
a alma e o corpo, chegando até a cair doente. Fica explícito, em suas falas, que a posição
ocupada nas relações amorosas é problemática, não conseguindo sair do círculo vicioso da
rejeição. Essa sua incapacidade de dar e receber é reconhecida e declarada em muitos
momentos da narrativa. Desejava o amor, queria ser amada, mas não sabia usar de nenhum
artifício para lograr êxito no seu intuito de “ser a mulher de um homem”.
A força da sua impotência é algo fatídico, tanto que chega a carregá-la como uma
marca de nascença. A personagem não consegue se desvencilhar desse destino, traçado por
ela mesmo, de dor e abandono. Não percebemos nenhum esforço nítido em romper com essas
convicções aniquiladoras. Ela não desistia dos homens, entregava-se sempre, mas a cada
encontro, a certeza do fracasso antecipava-se. Ela dizia se inaugurar para Charles, como se
122
fosse uma virgem, mas, na verdade, ela era sempre a mesma mulher, monstruosa e convicta
do destino de ter que “perder sempre”.
Essa constatação é tão forte em sua vida que, em todas as suas falas, o arrependimento
aparece, repetidamente, como maior até do que a dor de ter sido abandonada. Os significantes
dos quais se utiliza para nomear o que decorre do arrependimento estão no âmbito do
patológico e da mística: maldição, doença, desequilíbrio. O arrependimento dói, até
fisicamente, dilacera, provoca náuseas, insônia, medo de enlouquecer, é maldição pior que a
morte. É interessante perceber que o arrependimento não é o de ter tentado fazer e ser
diferente. Arrepende-se, unicamente, de não ter aceitado que a sua sentença era perder
sempre, que os homens eram todos iguais, que eles nunca a amariam, que nunca existiriam
vínculos, nem os de cordão e lata.
Vimos que a mulher, segundo Freud (1996), em Psicologia de grupo e análise do eu
na relação amorosa, parece ficar entre a fascinação e a servidão. Visão bem próxima à
lacaniana, que afirma ser o homem, para uma mulher, uma devastação para o pior ou o
melhor, ou seja, pode ser também o causador de uma felicidade extrema, de um
deslumbramento. A personagem estudada, devido a sua impossibilidade de se fazer amada,
não consegue ocupar uma posição de dignidade diante do homem, ficando identificada ao
dejeto. Estar com um homem não lhe traz ganho algum. Ela perde e se machuca - é
invadida, arregaçada, fuzilada. Despenca, arrasta-se, estatela-se no chão. Sente-se uma
mulherzinha, um cisco, um molambo, uma raiz arrancada. Não como sustentar um lugar
desejante e desejável diante de um homem.
O gozo aniquilante da devastação alimenta o insulto, as injúrias e a raiva da
personagem. A sua raiva maior não é de Charles, mas de si mesma, uma raiva que finda em
arrependimento. Sabia, desde o primeiro dia, que aquele homem não a amaria. Havia
escolhido um homem casado. de início, escolheu para melhor fracassar. Para a psicanálise,
123
onde o sujeito não pensa, isso
13
fala. No seu íntimo, sabia não poder contrariar a convicção de
ser uma mulher sozinha e monstruosa. Escolhia o homem certo, o parceiro-sintoma, aquele
que poderia reforçar seu lugar de mulher rejeitada. Escolheu Charles, justamente um homem
que não poderia dar o que ela tanto queria. Entre querer e desejar há um abismo. Segundo a
psicanálise, quase sempre desejamos o que não queremos, é onde se instala o gozo dos
sujeitos.
A devastação investe-se de um gozo mortífero e enlouquecido duas imagens sempre
trazidas pela personagem: a loucura e a morte. Esse gozo, como abordado, advém do
caráter fora-da-lei que assume o gozo da mulher. Nenhum homem pode dar conta das
demandas ilimitadas de uma mulher. Brinca-se dizendo que a mulher é uma eterna
insatisfeita. O senso comum percebe de forma quase precisa o que a psicanálise revela. Na
relação com o homem, a mulher precisa encontrar algum enquadramento, algo que tenha a
função de pára-gozo.
Charles, ainda que desejasse, não poderia atender às cobranças dela. Além de não
poder dar-lhe amor, não podia tomá-la como única. Essa demanda ilimitada retorna sobre ela,
devastando-a e revelando algo que se repete desde o seu primeiro encontro com um homem.
Convém chamarmos atenção para o fato de que, na personagem, a devastação não aparece
apenas após o abandono, mas, como pudemos acompanhar, está presente já antes. O abandono
apenas revela essa posição, que, antes, parecia velada.
Na análise das falas da personagem, situamos o que se constitui como peculiar no
modo de gozo feminino e na posição que ocupa na relação amorosa. Encontramos, na voz da
própria personagem, o reconhecimento e a anunciação das dessimetrias que regem a não-
relação entre os sexos. Enfatizamos como o gozo fora-da-lei mostra sua face, através das
sensações, não psíquicas, mas também corporais, descritas pela personagem. Ressaltamos,
13
isso – tradução do termo alemão das Es, utilizado por Freud, em sua segunda tópica do aparelho psíquico, para
designar os conteúdos recalcados, ou seja, inconscientes. Esse termo não coincide exatamente com o
inconsciente da primeira tópica, já que o eu e o supereu também são, em grande parte, inconscientes.
124
ainda, as múltiplas identificações com o objeto-dejeto, assim como, estivemos chamando
atenção para as exigências erotômanas da narradora-personagem. Enfim, objetivamos
elucidar, nas falas, a devastação e suas implicações para o sujeito mulher, evidenciado esse
fenômeno como um dos destinos da mulher no encontro com um homem.
Acreditamos termo-nos munido de argumentos para responder à questão que moveu o
presente estudo, a saber: por que esse traço de devastação ainda se encontra presente nas
narrativas contemporâneas de autoria feminina, quando se esperava que ficasse para trás, vez
que, hoje, algumas mulheres tentam se mostrar independentes do desejo masculino. É o que
discutiremos nas nossas considerações finais, pretendendo refletir sobre a interpretação de um
fenômeno literário à luz das conjecturas psicanalíticas, não deixando de fora a maneira como
isso repercute nas relações de gênero em sociedade.
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso trilhado neste trabalho foi guiado pela narração da dor experimentada pela
personagem, ao ser abandonada pelo amado. Abandono que é passível de ser contestado, já
que a narração é feita em primeira pessoa e todas as falas de Charles são “filtradas” pela
personagem para fazer dele o algoz do estado em que se encontra. Pudemos constatar que o
abandono foi precipitado por ela mesma, pela sua incapacidade de levar adiante a escolha que
fez. Por mais que se esforçasse para demonstrar suportar ser a “outra”, essa posição não foi
sustentada sem angústia, fazendo-a sucumbir à devastação.
É fato incontestável que a ruptura de um laço amoroso provoca um estado de choque
para os sujeitos, masculinos e femininos, embora nem sempre leve à devastação. Em O
narcisismo: uma introdução (1996) e em Luto e melancolia (1917), Freud (1996) discute
sobre o quão pobre fica o eu da pessoa que ama, pois investe grande parte de sua libido no
objeto amado, que passa a ser exaltado. Quando esse objeto amado se vai, a libido volta-se
para o eu do sujeito, em um trabalho que ele chama de elaboração do luto. Em outros casos,
como na melancolia, o eu do sujeito se esvai com o objeto perdido. Pudemos identificar, na
personagem de OA, um alto grau de empobrecimento de seu “eu”, desde a infância, quando
Valmir a rejeitava. A sua fala ressalta sempre o quanto era uma mulher monstruosa, cujo resto
da vida já estava perdido.
Em Inibições, sintoma e ansiedade (1926), Freud (1996) afirma que a dor é uma
reação à perda efetiva e a angústia é a reação à ameaça de uma perda. A personagem estudada
vivenciou os dois extremos, pois desde a infância a angústia de ser rejeitada a perseguia. Com
a perda de Charles, a dor tomou conta do seu ser, pois:
126
O eu ama o objeto que continua a viver no psiquismo, ele o ama como nunca amara,
e, no mesmo momento, sabe que esse objeto não voltará mais. O que dói não é
perder o ser amado, mas continuar a amá-lo mais do que nunca, mesmo sabendo-o
irremediavelmente perdido. [...] O eu fica esquartejado entre um amor que faz o ser
desaparecido reviver, e o saber de uma ausência incontestável (
NASIO, 1997, p.
30)
.
A dor de amor não é provocada pelo desaparecimento físico da pessoa, mas o
transtorno gerado pela desarticulação da fantasia que ligava o sujeito ao seu objeto amado.
Isso é verdadeiro tanto do lado masculino como feminino. Não defendemos a idéia que as
mulheres sofrem com a perda do objeto amado. No entanto, como a psicanálise acredita em
uma dessimetria entre os sexos, as coisas são experimentadas de modo diferente para homens
e mulheres.
A palavra paixão vem do latim pathos, que designa sofrimento. O amor como
sofrimento ocupa uma posição de destaque na história da humanidade, principalmente no
âmbito do catolicismo, através da Paixão de Cristo, em que um mártir, por amor, entrega-se
ao sofrimento e à morte. A literatura também expressa interesse pelo tema da paixão, pelas
histórias de amor e morte, combinação fascinante que tem agradado os leitores de várias
gerações.
Segundo Vicente (s/d), o real sentido da paixão é inconfessável, pois ninguém deseja
confessar o aniquilamento do seu ser, lançar-se ao prazer total, alcançar a completude, algo
muito próximo da morte. A articulação da paixão com a morte, pela via do sofrimento
amoroso, está presente em muitas obras da literatura, desde a clássica até a contemporânea,
inclusive, na obra escolhida para a presente análise. O sofrimento amoroso alimenta-se de
uma falsa reciprocidade, é a máscara de um duplo narcisismo, deixando transparecer o amor-
ódio pelo objeto amado. O que se ama, na paixão louca e cega, é também o que se odeia,
porque é identificado como fonte de sofrimento.
A indissociação entre amor e sofrimento é algo como uma sentença na vida da
personagem estudada. A convicção de que o amor, para ela, não pode estar desarticulado da
127
dor, é tão firme que a carrega como um “marca de nascença”, uma “vergonha estampada na
cara”.
Para Laurent (2007, p. 22): “Estamos em um momento fecundo no que diz respeito à
revisão dos ditos sobre o amor, com certo embaraço que se faz sentir na literatura em suas
mais diversas variantes [...]”. Segundo o psicanalista, esse embaraço se deve a diferentes
sintomas, como a multiplicação ou refração de clichês sobre o amor estabelecidos pela
literatura. Para ele, a literatura de nossa época recicla clichês de forma mecânica e irônica.
Como não mais se crê na modernidade, nem nas velhas soluções, o resultado é a ironia ou a
citação. Para ele, o fim das ideologias implica o fim das histórias de amor.
Se há, na literatura contemporânea, uma dificuldade em se contar histórias de amor e
essa afirmação é proferida por um psicanalista como Laurent, é porque a psicanálise tem algo
a dizer sobre a desordem amorosa contemporânea. Como estamos analisando uma narrativa
contemporânea à luz de um conceito psicanalítico, essa temática interessa à nossa pesquisa.
Antes da inserção da mulher autora na literatura, segundo Laurent (2007), não se
tematizava sobre a oposição da forma de escrever, em homens e mulheres, no que concerne ao
amor. Esse tema foi trazido pelos autores feministas franceses e americanos:
Há, nas letras, uma dessimetria na perspectiva do amor que poderia facilmente
reduzir-se à ideia de que apenas as mulheres falam de amor. Toda uma temática da
literatura feminina, ou da literatura de mulheres, escrita pelas mulheres, a escrita
feminina, estaria centrada precisamente sobre a exploração sistemática do amor, de
seus impasses, de seus sofrimentos, sendo a partir daí que se interrogaria mais
profundamente a invenção de uma forma de amor moderna (LAURENT, 2007, p.
23).
No início de nosso trabalho deixamos claro que não iríamos centrar nossa discussão
em torno da existência ou não de uma escrita feminina, até mesmo porque, do ponto de vista
psicanalítico, a distribuição dos sexos se deve mais a uma posição tomada pelo sujeito, do que
uma determinação biológica. No entanto, essa problemática nos interessa, na medida em que a
128
psicanálise está de acordo com o fato de que uma dessimetria na forma como homens e
mulheres falam de amor e de como o experimentam. No primeiro capítulo, a partir de Freud e
Lacan, foi essa a constatação que fizemos. Chegando ao conceito de devastação, discutimos
que ela não pode ser entendida desarticulada do caráter não-todo do gozo feminino, por isso,
está do lado da mulher. É importante frisar que se tratam de posições e não lugares fixos e
pré-determinados biologicamente. A psicanálise acredita que a sexuação é feita em três
tempos: um que diz respeito ao sexo biológico; outro que se refere ao modo como a cultura
interpreta esse sexo anatômico; por último, está o mais importante, que é como o sujeito vai
subjetivar tudo isso. Assim, sujeitos de anatomia feminina que se posicionam do lado
masculino e vice-versa. Pode até ser que um homem experimente algo semelhante a uma
devastação, desde que ele esteja mais do lado feminino, de acordo com as fórmulas da
sexuação propostas por Lacan.
No segundo capítulo, nosso objetivo maior foi o de, a partir da fala da personagem,
localizar a devastação feminina, pontuando como a personagem chega a esse estado,
apagando-se como sujeito e emergindo como um objeto desvitalizado e semimorto. Tivemos
o cuidado de abordar a devastação no âmbito de uma posição do ser feminino e não como um
quadro patológico, que pudesse ser interpretado como uma doença ou um quadro de psicose.
Existe a devastação na psicose, mas a sua configuração é diferente, pois, nela, a erotomania
aparece sob a forma de delírios e alucinações, ficando atrelada aos casos de paranoia.
Também não objetivamos afirmar que a devastação é uma condenação a qual nenhuma
mulher escapa, mas que é preciso um saber fazer, no amor, para se chegar à dignidade e isso
serve tanto para homens como para mulheres.
Estabelecemos como objetivo principal do presente trabalho investigar por que a
representação da posição feminina na relação amorosa, presente em grande parte das obras de
ficção, de autoras contemporâneas brasileiras, como atesta a pesquisa de Silva (2009),
129
mantém-se a mesma da literatura de ficção clássica, ou seja, por que, nessas obras, a
personagem mulher permanece dependente psíquica e afetivamente do desejo masculino. Para
cumprir esse objetivo, utilizamo-nos de uma obra contemporânea de autoria feminina, onde a
personagem-narradora, mulher de nosso tempo, devasta-se diante do abandono sofrido. A
partir da análise desenvolvida até aqui, compreendemos que a mulher, na verdade, ocupa
posições. O que são posições femininas e não uma única posição, pois a mulher, sob o
artifício da mascarada, pode identificar-se como objeto causa de desejo ou como objeto-
dejeto, sendo essa última posição a que leva à devastação.
É certo que, se fizéssemos um levantamento sobre todas as obras de ficção
contemporâneas ou não, escritas por mulheres, encontraríamos a personagem mulher
ocupando posições diversas na relação amorosa. No entanto, é flagrante que, a partir de
diversas pesquisas e estudos desenvolvidos (alguns citados ao longo desse trabalho, sob a
forma de artigos, dissertações e teses), a maioria dessas personagens encontra-se na posição
de devastada. O que chama atenção, para os estudiosos que adotam essa temática em seus
trabalhos, é que essa posição não deveria mais aparecer nas narrativas contemporâneas, já que
as autoras são mulheres de um novo tempo, pós-revolução sexual.
Recorremos ao discurso psicanalítico para chegar ao porquê dessa inquietante questão.
Não pretendemos afirmar que a psicanálise pode responder a esse questionamento, pois
estaríamos incorrendo no famoso equívoco de que Freud tudo explica”. A visão que
oferecemos aqui não é a única e nem a mais verdadeira, é apenas uma das formas de tratar o
problema, forma na qual acreditamos e que defendemos no presente trabalho.
Ora, as consequências a que podemos chegar, a partir do caminho seguido, é que se as
representações da personagem mulher, no amor, parecem ser mantidas, é porque estamos
falando de traços estruturais. É importante que não se confunda o que é de estrutura com o
determinismo biológico. Para a psicanálise, no processo de sexuação, levam-se em
130
consideração tanto o biológico como o cultural. No entanto, o sujeito precisa interpretar o
sexo anatômico que possui e o discurso que a cultura elabora sobre ele para, finalmente,
encontrar sua posição na partilha sexual. A psicanálise, ao falar de estruturas, leva em conta a
dimensão do sujeito desejante e não um mero objeto, passivo, influenciável, determinado
pelos gens e pelo meio em que vive. O viés psicanalítico resgata o sujeito, na particularidade
de seu inconsciente, que não é coletivo, é único. O que estrutura um sujeito é a sua
interpretação do social, do cultural e do biológico, interpretação única, solitária,
intransmissível.
Assim, não importa muito se essa mulher é contemporânea ou não, o que importa é
que é sempre muito difícil para uma mulher, de todos os tempos, fazer do amor um lugar onde
possa apoiar o seu ser sem sucumbir à devastação.
O sexual e a maneira como o sujeito localiza-se na partilha sexual tem a ver com uma
posição que o sujeito ocupa na vida, levando em conta o que lhe é ofertado e a interpretação
que ele faz em torno dessa oferta. É claro que dentro da diversidade da subjetividade humana,
existem traços estruturais que são comuns e são esses traços que permitem a um psicanalista
fazer um diagnóstico e identificar a que estrutura pertence um sujeito. O fato de cada sujeito
pertencer a uma estrutura não implica dizer que a sua subjetividade e unicidade não estão
presentes. Freud afirma que a psicanálise se faz no um a um, critica a psicologia das massas e
qualquer outro saber que desconsidere o particular de cada sujeito.
Existem, então, traços estruturais para o sujeito mulher e para o sujeito homem, ainda
que não possamos formar um conjunto de mulheres, uma classe, um todo, como se pode fazer
do lado masculino. Assim como não existe A mulher, também não existe uma única posição
feminina, mas com Lacan se pôde saber algo mais sobre uma mulher. Nosso trabalho, guiado
por esse algo mais, que ainda é tão pouco, buscou lançar alguma luz sobre as questões que
131
envolvem a manutenção da representação da personagem mulher na literatura contemporânea
de autoria feminina.
A partir das considerações teórico-conceituais e da análise da obra AO concluímos
que, a constância na representação da posição feminina, na relação amorosa não deve ser
atribuída a um sujeitamento ao masculino, mas como algo que emerge no sujeito mulher,
demarcando uma especificidade de sua estruturação subjetiva.
Essa condição subjetiva não restringe-se, do ponto de vista psicanalítico, à
subordinação e dependência, mas é interpretada como uma dificuldade do sujeito feminino,
que advém da especificidade de sua forma de gozo. O fato de ser não-toda submetida à ordem
fálica, como o homem o é, faz com que a mulher seja Outra para si mesma, ou seja, que seu
gozo seja enigmático até para ela mesma, invadindo-a de maneira avassaladora e até mesmo
aniquilante, podendo levá-la à devastação. Esse traço estrutural contribui para que se desenhe
uma imagem caricatural da mulher, explorada enormemente pela literatura. O fato de a
mulher, quando ama, colocar-se, facilmente, em uma posição sacrificial diante do outro, fez o
sucesso de muitas obras literárias. Vimos que o amor, em nossa cultura judaico-cristã, está
associado ao sofrimento e é a mulher que carrega em si o símbolo maior daquela que se
sacrifica por amor, assim como o Cristo. O homem também pode se sacrificar, pois quando
ama, fica em falta e se feminiza, como já discutido anteriormente. Nos casos de paixão
extrema, vimos que o que impera é o fora-da-lei que o amor carrega em seus atos.
A maneira como esse fenômeno repercute e é interpretado no social margem a
diversas interpretações. Entre elas, destacamos a de que a mulher vive sempre coagida ao
sujeito masculino, estando perpetuamente submetida ao patriarcado. O discurso da mulher
vitimada foi se fortalecendo cada vez mais, até mesmo porque os homens não se dispuseram a
jogar tão bem o jogo da igualdade e continuaram sendo os culpados: “O ‘viriarcado’
substituiu o patriarcado. Todos os homens são suspeitos e sua violência é exercida em toda
132
parte. A mulher-criança tem de recorrer à justiça, como criança que pede proteção aos pais”
(BADINTER, 2005, p. 41).
A identificação da mulher como grande vítima apaga, inclusive, os atos violentos
cometidos pelas mulheres. Do lado masculino, a violência é uma forma de dominação; do
feminino é uma contraviolência. Esquece-se das mulheres revolucionárias, das matricidas, das
que matam por amor. Aliás, entre as mulheres, o homicídio passional lidera as estatísticas.
Não se pode esquecer também da violência velada, que incide sobre os homens,
principalmente nas cobranças de uma virilidade inabalável. A vítima da violência doméstica
pode ser o homem, especificamente o homem contemporâneo, também em crise.
É fato que, mesmo depois de tantas conquistas econômicas, políticas, jurídicas e
sexuais, as mulheres ainda se fixam na posição de vítima. Dizem-se vítimas porque são
incompreendidas, porque têm tripla jornada de trabalho, porque são escravas do mercado da
estética, porque se sentem culpadas de deixar seus filhos para trabalhar, mas, ao mesmo
tempo, sabem que tudo isso é fruto de suas próprias escolhas.
Em Lipovetsky (2000, p. 73) também encontramos referência a isso, no que ele chama
de “obsessão vitimária”, afirmando que as mulheres humilhadas e martirizadas é que são
ovacionadas: “O espírito apocalíptico do neo-feminismo constrói, no mesmo movimento, a
vitimação imaginária do feminino e a satanização do masculino”.
Se o feminismo levou as mulheres a um rumo equivocado, também deixou os homens
perdidos em suas certezas viris. O abismo insondável entre homens e mulheres não pára de se
inscrever. Na hipermodernidade, o uso dos semblantes, ou seja, o parecer ser, assume
importância inegável. que não se sabe muito o que se é, empenha-se em parecer ser. As
mulheres parecem fálicas e os homens mais servis.
Bauman (2004) chama atenção para o fato de que, no líquido mundo moderno, as
relações tornam-se efêmeras e os parceiros objetos descartáveis. A lógica é não se
133
comprometer, pois o compromisso fecha todas as portas para outras possibilidades mais
satisfatórias. Os laços são superficiais, respondem aos interesses imediatos, promovendo
satisfações instantâneas. Em OA, é esse tipo de laço que é mantido, por Charles, com a
narradora-personagem, o que faz com que ela não possa ter a sua demanda de amor atendida.
A descartabilidade deve ser uma garantia: os relacionamentos se iniciam com data
de validade. A “líquida razão moderna” considera as relações duradouras como opressoras.
Ser livre é gozar “aqui e agora”, sem limites, a qualquer preço. Liberdade essa que a
personagem não desejava, que estava sempre migrando de um fracasso amoroso a outro,
buscando um “monturo” qualquer onde pudesse apoiar suas raízes” de galhos arrancados.
Desejava encontrar a alguém que a amasse e em quem pudesse apoiar seu ser.
Para a psicanálise, novas formas de discurso amoroso, marcadas pelo fenômeno do
individualismo de massa e por uma queda na crença em um sentido para as relações entre os
sexos. A figura do “nômade” emerge como um dos nomes do amor ou do desamor, na
atualidade. Assim, esses “amores nômades” possuem um caráter não sedentário,
experimentando um “turbilhão de gozo” que faz passar velozmente de um objeto a outro,
camuflando uma dificuldade na aproximação com o outro, ocorrendo, inclusive a supressão
da palavra em detrimento das práticas de puro gozo.
Essa inibição da vida amorosa, como uma característica dos tempos atuais, não é sem
efeitos para os sujeitos, que passam a se deparar com novas formas de gozo e de mal-estar.
Giddens (2002) afirma que nos contextos pré-modernos, a fragmentação da experiência não se
constituía como uma fonte significativa de ansiedade, em oposição ao que acontece com a
ordem pós-tradicional. Estamos vivendo uma epidemia de desbussolamento, uma vez que os
ideais que organizavam as identidades ruíram. Passamos de um mundo organizado em um
eixo vertical das identificações (onde o Pai reinava absoluto) para um eixo horizontal em
que os sujeitos têm uma outra relação com a autoridade, o que é perceptível de forma muito
134
clara nas novas configurações familiares, em que as famílias não mais se organizam em torno
de uma única figura de autoridade. Aliás, a ciência prescindiu do pai muito tempo.
Nossa sociedade não é mais Pai-orientada, passamos do homem traumatizado para o homem
debussolado (FORBES, 2005).
As implicações desse “mundo líquido” e “desbussolado” para a mulher contemporânea
muito nos interessa, aqui, uma vez que é essa mulher que tem sido representada nas atuais
obras de ficção. O que dizer dela? Será que ela existe? Qual a sua máscara?
Não podemos deixar de reconhecer que o feminismo, enquanto movimento
reivindicatório de direitos igualitários no campo político, trouxe contribuições inegáveis. No
entanto, fracassou na sua pretensão de uma igualdade universalizável no campo sexual. Para
Lipovetsky (2000, p. 11): “[...] o advento da mulher-sujeito não significa aniquilação dos
mecanismos de diferenciação social dos sexos”.
De fato, o que tem se colocado como enigma, na contemporaneidade, é que, mesmo
com a emancipação feminina, essa “nova economia da identidade feminina” parece ser uma
farsa. Se a mulher parece ser livre e viril, por que ainda aparece, pelo menos do ponto de vista
sócio-cultural, na dependência afetiva do homem? Se, ainda hoje, deparamo-nos com
argumentos de que as mulheres continuam submetidas à Ordem do Pai, ao falocentrismo e ao
patriarcado, não é mais pela simples pressão social, mas talvez tenhamos que pensar no
próprio desejo da mulher, que hoje, mais do que nunca, pode escolher.
Quando uma mulher sofre por amor, submetendo-se a toda sorte de coisas como
vimos na personagem de OA não está nada preocupada com a repercussão disso no social.
Ela pode ter a sua disposição todo um aparato jurídico que a defenda, mas não é disso que se
trata. Todos esses recursos jurídicos e até político-ideológicos que garantem os direitos da
mulher, apesar de extremamente importantes, não são suficientes para libertá-la da condição
de amante devastada, até mesmo porque não são apenas as questões conscientes que a
135
prendem ao seu homem. Discutimos, aqui, que, entre um homem e uma mulher, uma
parceria fundada ao nível do sintoma, onde cada um é tomado como parceiro de gozo. Além
do mais, como dito, o amor tem um caráter de fora-da-lei, resistindo sucumbir aos
interditos.
Como perceber, então, o que se passa com a mulher contemporânea? Vimos que, com
o feminismo, houve uma mutação no sentido de uma igualdade, garantida pelo discurso
jurídico, que é o discurso da repartição do gozo: “[...] o gozo é hoje passível do discurso sobre
a justiça distributiva. Agora, cada um e cada uma pode reivindicar seu orgasmo, às vezes até
nos tribunais!” (SOLER, 2005, p. 130). Essa reivindicação que se faz ao aparato jurídico
aparece durante toda a obra aqui analisada, vez que a personagem demanda uma lei que lhe
garantia de um gozo sem percalços. Ela exige uma lei que proíba o abandono e garanta a
reciprocidade no amor.
Hoje, todas as conquistas fálicas estão acessíveis às mulheres contemporâneas
autônomas, multifacetadas, multimídias e independentes. Mas, o que a psicanálise se pergunta
é quais os efeitos no nível da economia das pulsões para as mulheres? De acordo com
Lipovetsky (2000), uma terceira mulher, que é capaz de inventar seu próprio destino de
acordo com as necessidades internas, ao contrário da primeira mulher (que correspondia à
Eva, ser nefasto e diabólico, agente da infelicidade do homem) e da segunda mulher (em cena
a partir da Idade Média, glorificada em verso e prosa pelos homens).
De acordo com o autor acima citado, a primeira mulher é a mulher depreciada,
afastada das funções nobres, que perdurou até o início do século XIX. Se essa mulher tinha
algum valor, ele estava na maternidade, pois até as intermináveis tarefas domésticas eram
desprestigiadas. O que imperava era a exaltação do universo viril, ficando a mulher excluída
da esfera pública.
136
A segunda mulher é enaltecida, cantada em verso e prosa no amor cortês. Esse
modelo, que surgiu na Idade Média, apesar de não anular a hierarquia social dos sexos,
promovia um culto da Dama amada, mulher inatingível, que servia para ser adorada à
distância. Esse enaltecimento difunde-se muito a partir do século XVIII: Força civilizadora
dos costumes, senhora dos sonhos masculinos, ‘belo sexo’, educadora dos filhos, ‘fada do
lar’, ao contrário do que ocorria no passado, os poderes específicos do feminino são
venerados, colocados num pedestal” (LIPOVETSKY, 2000, p. 236). Se o destino da mulher
era traçado previamente por outros, a mulher da segunda metade do século XX pode escolher.
Se as primeira e segunda mulher estavam subordinadas ao homem, a terceira mulher é
“indeterminada”, ou seja, é uma autocriação feminina, sujeita de si mesma, capaz de se auto-
inventar e projetar seu futuro.
Essa terceira mulher usufrui de todos os direitos conquistados pelo movimento
feminista, no entanto, não deseja abrir mão de sua relação com os homens. Ela quer ser mãe,
mulher, multi-profissional. Ela tem conseguido manejar as tensões decorrentes da vida
profissional e da vida afetiva. No entanto, Soler (2005, p. 132) coloca-nos a seguinte questão:
“Com certeza podemos falar do sujeito moderno, do sujeito cartesiano, condicionada pelo
cogito, mas, no que concerne à mulher contemporânea, saber se ela é moderna é outro
problema [...]”.
O que esta conceituada psicanalista problematiza é a relação homem-mulher na
contemporaneidade, pois algumas dessas “novas mulheres” são militantes da igualdade,
adotam o modelo masculino de se relacionar e tentam fazer de seus parceiros apenas um meio
de gozo. Fazem questão de bradar: “Não preciso de homem!”. Adotam uma postura fóbica
diante do estado de apaixonamento, utilizando-se de uma máscara que a fazem parecer
independentes do desejo masculino.
137
Mas, tudo isso faz parte da máscara da feminilidade. Rejeitando uma parcela essencial
dessa feminilidade, essas mulheres se mascaram. Essa nova identidade feminina é um engodo,
não produz o efeito esperado: “Isso porque a máscara da feminilidade contemporânea não se
ergue como o falo mas, bem precisamente, como uma multiplicação de falos, a própria
Cabeça da Medusa” (GUIMARÃES, 2005, p. 69-70).
Essa imagem da Cabeça da Medusa é trazida por Freud (1996), no seu artigo
homônimo, escrito em 1922. Neste artigo, ele comenta que a Cabeça da Medusa é um símbolo
de horror, usado pela deusa virgem Atena, para que se tornasse uma mulher inabordável,
repelente de todos os desejos sexuais.
Na psicanálise, as discussões em torno da problemática da feminilidade na
contemporaneidade têm recorrido ao mito da Cabeça da Medusa para ilustrar o engodo que
faz essa “nova mulher” ao revestir-se de atributos fálicos. A mulher contemporânea é a
própria Cabeça da Medusa, diante da qual os homens, muitas vezes, têm recuado.
Na verdade, essas mulheres-medusas estão sempre prestes a cair nas garras da paixão.
E a questão que se coloca, então, é se a mulher hipermoderna existe ou não. Miller (1998) nos
diz que ela tenta existir, mas não consegue, pois uma mulher tem sempre um ponto de
devastação. Mesmo com seu comportamento fóbico ao estado de apaixonamento, essa mulher
está sempre prestes a ser desmascarada, pois a posição que ocupa, em relação ao amor, é a de
uma lógica de absolutização que a empurra para uma busca insaciável do outro. A demanda
de amor da mulher, a psicanálise nos diz: é infinita.
Em contrapartida a essa máscara da feminilidade contemporânea, surge um novo
homem: “vestindo uma nova roupagem do homem pós-moderno faz surgir o homem metro-
sexual, que tenta se feminizar com os adereços estéticos propostos pelas histéricas
contemporâneas que fazem do seu homem o seu novo brinquedo” (GUIMARÃES, 2005, p.
70).
138
Assim, nasce uma das configurações de casal da contemporaneidade, formado pela
mulher super-potente e seu homem feminilizado. Parece ser essa a única via para que esse
homem, assim como Perseu, possa chegar a essa mulher. No mito, para aproximar-se da
Medusa e matá-la, Perseu utiliza-se de ferramentas, como o capacete de Hades e as sandálias
aladas.
Afirmar que a mulher hipermoderna não existe, no nível das relações denero,
significa dizer que ela não quer renunciar ao desejo de ser amada. É claro que algumas
mulheres “optam” pela solidão, mas acreditamos que seja muito mais por uma dificuldade
sintomática em consentir com ato de amor. Assim, essa mulher super-potente não consegue
sustentar sua farsa sem cair nos excessos: cometendo todas as “loucuras” e sacrifícios,
devastando-se, ou, então, entregando-se à solidão.
Voltando ao ponto principal de nossa discussão, pensamos que essa mulher que se
espera ver representada na literatura atual está mais para a mascarada fálica. Parece que o que
se espera da mulher e da personagem contemporâneas é que não amem, que não sofram pela
falta de reciprocidade, que não dependam do desejo masculino.
Constatamos que para as mulheres, assim como para as personagens femininas,
uma dificuldade em relação ao amor. Mesmo diante de todas as satisfações advindas das
conquistas alcançadas em vários âmbitos, elas ainda se centralizam no amor. Concordamos
que as mulheres de hoje querem muitas coisas diferentes das que eram almejadas pelas
mulheres de ontem, mas o desejo de serem amadas permanece, sempre, como uma condição
na parceria com os homens. E quando essa demanda é frustrada, não se espere indiferença,
seja na realidade ou na ficção, a raiva, a loucura e a morte tomam conta do seu ser. Não se
trata de subordinação, trata-se do desejo de ser amada, isso a contemporaneidade não roubou
das mulheres.
139
Não entendemos que o fato de a mulher, mesmo a hipermoderna, continuar tomando o
amor como um ponto central de sua existência, seja indicativo de que ainda continuam
submetidas, como vítimas, ao desejo masculino. Quando a psicanálise afirma que a mulher
precisa submeter-se à condição de objeto causa de desejo, isso não implica em apagar-se
como sujeito, mas corresponder a uma fantasia, fazendo-se semblante de a.
Concordamos que a mulher fálica é uma farsa e, com isso, não estamos afirmando que
a mulher contemporânea é a mesma da que se viu até o início do século XX, obrigada a
responder ao ideal de feminino imposto pelos homens. É uma farsa porque pretende mostrar-
se como independente do desejo masculino, tentando prescindir, sexual e afetivamente, do
homem.
Se essa mulher ainda se devasta, nas parcerias amorosas, é pelo caráter de seu gozo.
Diferentemente de antes, se o homem a oprime, ela tem inúmeros recursos jurídicos para
recorrer. Mas, se o que a oprime é a sua própria devastação, não instância legal que a faça
sair disso, a não ser seu próprio esforço em buscar um lugar mais digno no amor, o que
implica em fazer uma parceria-sintomática com um homem, em que não precise estar
identificada ao dejeto. A devastação, enquanto posição subjetiva peculiar do feminino, está
condicionada ao modo de gozo, não podendo ser interpretada fora dessa lógica. Não estamos
excluindo os importantes fatores sócio-políticos e econômicos que fazem com que uma
mulher submeta-se às exigências de seu parceiro, estamos enfatizando que, se essa submissão
dá-se via devastação, a questão precisa ser tratada à luz dos fenômenos inconscientes, a partir
das posições de gozo que cada sujeito assume na vida.
O que vemos na personagem de Marilene Felinto é uma mulher cujo desejo
erotomaníaco toma toda a sua existência. Nada, além de seus dissabores amorosos e sua
posição de devastada, podemos saber. Não sabemos de sua vida familiar, profissional ou
social. Como foi ressaltado, até o seu nome é desconhecido. Se a devastação implica em
140
uma objetificação da mulher, a obra consegue deixar isso muito evidente ao apagar todas as
outras esferas da vida da personagem, centralizando a narrativa na esfera amorosa.
O que se esperou da literatura de autoria feminina, dita contemporânea, que emergiu
na década de 80, era que as personagem mulheres se centralizassem na vida profissional e
social. No entanto, como atesta a pesquisa de Dalcastagnè (2005), a esfera privada, ou seja, as
relações amorosas e familiares, continuam prevalecendo nas obras de ficção.
Em OA, podemos acompanhar um gradual processo de apagamento” do ser da
personagem, uma mulher sem senso, sem nome, identificada ao nada. Essa mulher, como as
da realidade, é livre, do ponto de vista cultural e social, para sair do estado em que se
encontra. Ainda que do ponto de vista econômico uma mulher possa justificar sua
subordinação ao homem, a parceria-sintomática não deixa de impor suas condições.
O sujeitamento da personagem estudada é outro, não é ao masculino, mas à exigência
erotomaníaca de um gozo absolutista, traço que pertence ao sujeito feminino. Encontrar uma
posição, que não seja a da devastação, diante de um homem, é um desafio perene para todas
as mulheres, de todas as épocas. A devastação constitui-se, para a mulher, como um engano
do amor. Para amar e ser amada, a devastação não é condição, é apenas uma das posições
femininas do ser.
Nas falas da personagem, a dificuldade com o masculino é evidente, mas também fica
claro que toda a responsabilização disso recai sobre ela mesma. Não é à toa que o
arrependimento é o “mote” do seu desabafo e da sua dor. O arrependimento chega a ser físico,
e é, inclusive, pior que a morte. Arrepende-se de cair no mesmo erro sempre. Reconhece ser
uma mulher monstruosa, incapaz de dar e receber. A personagem é refém das exigências de
seu próprio gozo e padece por não conseguir encontrar uma outra via para estar diante de um
homem, que não seja a da mostruosidade.
141
Assim, a mulher representada na literatura, carrega consigo o que emerge na mulher
da realidade. Se uma continuidade na forma como as mulheres são representadas, pela
literatura, na relação amorosa, isso se deve, do ponto vista psicanalítico, muito mais a algo da
subjetividade feminina do que a uma eterna e infindável subordinação ao masculino.
Acreditamos que as reflexões aqui deixadas podem colaborar com os estudos das
relações de gênero pela literatura, em especial os estudos sobre a mulher, seja como autora ou
personagem. Pensamos que a relevância do presente trabalho está em oferecer uma
perspectiva teórica que se utiliza do discurso psicanalítico de uma maneira diferenciada. Em
parte de nossas pesquisas, o uso que encontramos da psicanálise, em alguns escritos da crítica
literária e em algumas discussões das teorias de gênero, pareceu-nos perpetuar equívocos e
preconceitos. Em razão disso, evitamos trabalhar com algumas referências sacralizadas,
preferindo utilizar diretamente as contribuições deixadas por Freud e Lacan, fazendo uso
delas para chegarmos a nossa própria leitura. Pensamos que a psicanálise pode sair do lugar
de propagadora de ideias falocêntricas para colaborar com os estudos de gênero pela
literatura, o que vem sendo feito por algumas autoras, como já citamos na introdução desta
pesquisa.
Defendemos que a abordagem psicanalítica não se opõe radicalmente à culturalista,
afinal, ambas rechaçam com vigor a ideia de que o homem é determinado pelo biológico.
Quando Lacan introduz o conceito de Outro, afirmando que o inconsciente é o discurso do
Outro, reconhece a inserção do sujeito na cultura, dando a esta um lugar importante na
estruturação subjetiva. Afirmando que o sujeito é um ser linguagem e que o inconsciente é
estruturado como uma linguagem, Lacan diz que o sujeito ex-siste, ou seja, ela tem um
lugar no discurso do Outro.
Freud utiliza-se da teoria da cultura para elaborar a sua teoria das pulsões. Ele opõe,
claramente, em toda a sua obra, natureza à cultura. Para ele, a noção de civilização é sinônimo
142
de renúncia pulsional, sendo esta última condição para a passagem da animalidade à
humanidade. É a civilização que impõe proibições ao sujeito, que serão internalizadas, em
cada indivíduo, no contexto do complexo de Édipo. Embora os efeitos da cultura sejam
particularizados nos sujeitos, Freud reconhece a sua importância na fundação do homem
enquanto sujeito desejante.
Quanto à partilha sexual, as abordagens culturalistas confluem para o fato de que a
genitália não determina a sexualidade. Como dito anteriormente, a anatomia precisa ser
interpretada pelo sujeito e, nesse processo, o discurso cultural é levado em consideração. O
sujeito precisa estruturar-se a partir do biológico e do cultural, encontrando um lugar para
expressar sua própria subjetividade.
A psicanálise nasce no final do século XIX, que as primeiras manifestações do
feminismo se perfilar na Inglaterra ainda vitoriana. Para esse movimento, a psicanálise se
transformou em uma corrente profundamente conservadora quanto à família e à sexualidade
feminina. De fato, a interpretação do falo como pênis permite ainda ver na psicanálise uma
doutrina machista e o feminismo como um movimento impulsionado pela reivindicação
fálica.
Muitos pontos desenvolvidos por Lacan o separam definitivamente da perspectiva pós-
freudiana tradicionalista sobre a questão feminina. Lacan introduz uma diferença entre o pênis
e o falo, concebido como significação e, mais tarde, como significante do desejo. Se o falo
não é o pênis, os dois sexos se caracterizam por uma relação ao falo que certamente pode
diferir, mas ambos o abordam a partir de uma primeira substituição simbólica, e então, não é
pelo órgão. No Seminário 10, A Angústia (1962-63), Lacan (2005) afirma que a uma mulher
não falta nada, em contraponto com a falta de pênis e com a teoria pós-freudiana da relação
das mulheres com a falta. A falta é condição estrutural de todos os sujeitos. Muito pelo
contrário, a mulher é dotada de um “plus” de gozo, que vai além do gozo fálico.
143
Outro golpe lacaniano foi transformar o pai em uma função simbólica, que não
depende do pai de carne e osso. Essa função paterna se coloca a partir do discurso materno
e, para completar, na contemporaneidade, essa função está em declínio. Essa forma de abordar
o pai implica um afastamento em relação à crença na qual as feministas se encontraram e da
qual elas têm sido, não obstante, as últimas defensoras. A psicanálise, desde Freud, atesta o
fracasso da função paterna.
Outro argumento das feministas é o da recusa da “mulher objeto”. Mas, será que esse
argumento ainda tem sentido, em um período no qual tudo é susceptível de vir no lugar do
objeto? Assim, podemos dizer que a psicanálise lacaniana é um mais-além do feminismo. Os
últimos ensinamentos de Lacan ultrapassaram os pontos sobre os quais tomavam apoio as
feministas dos anos 70 e 80.
De fato, se existe uma mulher contemporânea ou hipermoderna, ela se aproxima do
conceito de “terceira mulher” introduzido por Lipovetsky (2000). É uma mulher que está mais
livre do peso social, cujo comportamento não precisa mais ser interpretado a partir de um viés
vitimista, sendo o algoz sempre o masculino. Está longe de podermos afirmar que não existe
mais relações de poder entre os sexos, porque elas também continuam existindo em todas as
outras esferas.
Vivemos um momento em que o social perde espaço para o individual. O julgamento
social começa a perder força e os sujeitos ousam sustentar seus desejos e vicissitudes mais
íntimos. Há, hoje, uma nova economia psíquica, sendo uma das principais características
dessa nova forma de organização psíquica, a liberdade e a extinção das fronteiras e limites. A
psicanálise atribui esse fenômeno à “morte” do Pai, que era o grande interditor dos desejos do
sujeito. Hoje, o imperativo não é mais “não goze”, mas o “goze sem limites”.
É verdade que Freud, na questão do feminino, foi até onde pôde e não foi muito
chegando a comparar as mulheres a um continente escuro. Mas Lacan avança bastante nessa
144
questão, quando lança seu aforismo “A Mulher não existe” – que foi bastante contestado pelas
feministas, que não puderam e nem tentaram compreendê-lo:
Com o feminismo contemporâneo, reabriram-se as questões. É uma brincadeira
feminista americana standard dizer: ‘É formidável! Com Freud, ao menos sabíamos
o que não tínhamos, enquanto, com Lacan e sua idéia de que, de toda maneira, o falo
não é para nenhum dos dois, não podemos nem mais queixar-nos do que não tem
(
Laurent, 2007, p. 25-26)
.
Quando Lacan (1985) diz que “Não relação sexual”, é porque para que haja sexo
não é preciso que haja relação. É o amor que faz relação, o amor é uma ilusão de que pode
haver uma complementaridade entre homens e mulheres. o amor pode dar conta de um
impossível. E a literatura que sempre nos abasteceu de palavras de amor, fala-nos de amores
fracassados, de desencontros e desencantos da vida amorosa. Mas, a verdade é que nosso
mundo líquido e hipermoderno não é muito propício para as parcerias amorosas, pois sob o
ideal narcisista e individualista, as parcerias se dão com os novos objetos oferecidos pela
ciência e pelo mercado. Vivemos sob a égide de um gozo auto-erótico, que exclui o outro e
que impossibilita o encontro amoroso. Convivemos com aparições ferozes da pulsão de
morte, deixando-nos em uma posição fóbica até mesmo diante do amor. Mas, por causa da
mulher o amor precisa existir, porque no amor ela se inventa. A mulher é um eterno
convite para que falemos de amor, hoje e sempre.
145
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Filmografia
Fale com ela. Direção e roteiro de Pedro Almodóvar. Drama. Espanha, 2002. Distrubuidora:
Fox Film.
Piaf um hino ao amor. Direção: Oliver Dahan. Roteiro: Olivier Dahan e Isabelle Sobelman
Drama. França/ Reino Unido/ República Tcheca, 2007.
Camille Claudel. Direção: Bruno Nuytten. Drama. França, 1988.
Frida. Direção: Julie Taymor. Biografia/Drama. EUA, 2002.
Dalva e Herivelto: uma canção de amor. Direção: Denis Carvalho. Drama. Brasil, Rede
Globo, 2010.
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