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Uma coisa curiosa foi o fato de eu ter terminado o primário com dezesseis
anos e minha puberdade só chegar nessa idade. É como se meu organismo se
recusasse a crescer antes que eu completasse o período escolar.
Mudando de um lado para outro, minha família mantinha-se unida e muitos
outros parentes e amigos que vieram de Minas conosco se mantinham por perto. Um
desses era um primo meu, Agostinho. Ele era fantástico. Foi o primeiro contador de
histórias com quem eu tive contato. Nós marcávamos o dia para ele contar histórias e
esperávamos como quem espera um acontecimento grandioso.
Nós ficávamos sentados e ele de pé. Ele gesticulava, fazia caras e caretas,
imitava as vozes dos personagens e falava de um jeito como se os fatos fossem reais.
De vez em quando, colocava a mão no ombro de um de nós, olhava dentro dos olhos
e dizia: “Sabe, fulano, você não vai acreditar no que aconteceu, mas foi assim desse
jeito”. E descrevia as cenas, com detalhes, com riqueza de imagens, preparava o
suspense e sempre dava ao final um sabor triunfal.
Hoje, quando conto minhas histórias, tenho certeza que utilizo muitos dos
modos que aprendi com ele.
Em 1975, terminei o 4º ano ginasial, que corresponde à 8ª série hoje. Minha
família mudou-se para Pérola, no Oeste paranaense e eu resolvi vir embora para São
Paulo e fui morar em São Bernardo do Campo, numa favela.
Durante todo o tempo em que morei no campo eu jamais conheci a miséria.
Conheci a pobreza, mas não a miséria. Pobreza e miséria são diferentes. Na pobreza
as pessoas se unem e se ajudam, na miséria as pessoas se dispersam e se destroem.
A pobreza é ausência de recursos, a miséria é estrutural. A pobreza mantém as
pessoas em harmonia com o grupo e com o meio, a miséria promove a destruição dos
sentimentos nobres.
Curiosamente, vivendo por vinte anos nos lugares mais distantes e tirando da
terra o sustento, sem recursos, sem escolas, sem assistência médica, sem transporte
e morando em casas muito simples eu jamais me sentia miserável, porque tinha uma
relação harmoniosa com a família, com a comunidade e com a natureza.
Por mais humilde que a casa fosse, podíamos contar com um quintal, um
pasto, um rio, um pomar. Fazia parte da relação com o grupo os animais e as árvores.
E a gente sabia acompanhar o crescimento das plantas e aguardar a colheita.
Decididamente aquilo não era pobreza era um estado natural do acontecer das coisas.
Miséria de Verdade eu fui conhecer mesmo em São Paulo. Foi ali que eu vi
mendigos, drogados, prostitutas, travestis, bandidos, menores abandonados e tudo
isso misturado a prédios suntuosos, riquezas e produções gigantescas, como os
carros das montadoras Volkswagen, Ford, Scania, Mercedes Benz e tantas outras
fábricas de bens e serviços. Foi por esse tempo que eu cheguei à dedução de que a
periferia é o mangue do capitalismo.
Também foi por esse tempo, que eu me senti totalmente desnorteado em
relação ao mundo. Aquele modo de ser e de viver não tinha nada a ver comigo. Eu me
recusava a fazer parte daquela sociedade descartável e descartante; vazia de
significado e procurando, desesperadamente, encontrar sentido nas coisas para
responder ou preencher suas necessidades internas.
O sonho de recuperar a identidade que eu havia perdido era voltar para o
interior. Aqui, parafraseando o Bentinho de “Dom Casmurro”: Não consegui recompor
nem o que foi nem o que fui, se voltar para o interior era uma possibilidade, lá também
eu não encontraria mais a mesma relação de sentido que havia deixado. O mundo
mudara depressa demais.
Fui, contudo, ficando por ali. De 1976 a 1980 eu morei com um sobrinho, o
Dalmo, até que minha família veio embora e fixamos residência em São Bernardo do
Campo.
Há certas escolhas na vida da gente que não se explica. Todos os lugares em
que morei e foram mais de uma dezena, eu sempre gostei. Quando cheguei em São