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KARINA LUIZA DE FREITAS ASSUNÇÃO
A CAVERNA, DE JOSÉ SARAMAGO: LUGAR DE ENFRENTAMENTO
ENTRE O SUJEITO E O PODER
Uberlândia-MG
2010
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KARINA LUIZA DE FREITAS ASSUNÇÃO
A CAVERNA, DE JOSÉ SARAMAGO: LUGAR DE ENFRENTAMENTO
ENTRE O SUJEITO E O PODER
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação
em Estudos Lingüísticos: Curso de Mestrado em Estudos
Lingüísticos do Instituto de Letras e Lingüística da
Universidade Federal de Uberlândia, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em Estudos
Lingüísticos.
Área de concentração: Estudos em Lingüística e
Lingüística Aplicada.
Linha de pesquisa: Linguagem, texto e discurso.
Orientador: Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes.
Uberlândia-MG
2010
FICHA CATALOGRÁFICA
A851c
Assunção, Karina Luiza de Freitas, 1977-
A caverna, de José Saramago [manuscrito] : lugar de enfrentamento
entre o sujeito e o poder / Karina Luiza de Freitas Assunção. - Uberlândia,
2010.
118 f.
Orientador: Cleudemar Alves Fernandes.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Uberlândia,
Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos.
1. Análise do discurso - Teses. 2. Saramago, José, 1922- – Crítica e
interpretação – Teses. I. Fernandes, Cleudemar Alves. II. Universidade
Federal de Uberlândia. Programa de Pós-graduação em Estudos
Lingüísticos. III. Título.
CDU: 801
Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e Classificação
KARINA LUIZA DE FREITAS ASSUNÇÃO
A CAVERNA, DE JOSÉ SARAMAGO: LUGAR DE ENFRENTAMENTO
ENTRE O SUJEITO E O PODER
Data da defesa: 26 de março de 2010
Banca Examinadora:
______________________________________________
Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes (Orientador - UFU)
______________________________________________
Prof. Dr. Nilton Milanez (UESB)
______________________________________________
Profª Drª Simone Tiemi Hashiguti (UFU)
Ao Jair, pela compreensão e amor ...
Enfim ... por fazer minha
vida mais completa.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes, pela paciência, dedicação,
profunda honestidade e considerações proferidas no decorrer da pesquisa que foram de
fundamental importância para a sua realização.
Ao Prof. Dr. Nilton Milanez, por vir de tão longe para participar da banca de defesa, meu
eterno agradecimento.
À Profª Drª Simone Tiemi Hashiguti, pelas considerações de suma importância na banca de
qualificação e pela honra de ter retornado para a defesa.
À Profª Drª Marisa Martins Gama-Khalil, pelas considerações feitas acerca de Michel
Foucault na banca de qualificação.
À Profª Drª Fernanda Mussalim, pela autoridade com que encaminhou a disciplina de Teorias
Lingüísticas.
Aos demais professores da Universidade Federal de Uberlândia que, em algum momento,
estiveram presentes na minha caminhada acadêmica, o meu muito obrigada.
Aos funcionários da Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos que prontamente solucionavam
minhas dúvidas.
Ao casal amigo Janeci e Danglei, exemplos de dedicação, sabedoria e autoridade no fazer
acadêmico. Sinto falta de nossas feijoadas e churrascos, sempre regados de muito saber
lingüístico e literário.
À amiga Jaquelinne pelas conversas e compartilhamento de informações nos meses que
antecederam o processo seletivo para ingresso nesta pós-graduação, meu eterno
agradecimento. Pela sua companhia no decorrer das disciplinas e na vida.
Aos amigos Cida, João de Deus e Janaína, o meu muito obrigada pelos diálogos recheados de
saber científico.
À amiga Jaciane, pelas leituras e considerações feitas no decorrer da elaboração dessa
dissertação e de outros trabalhos desenvolvidos e pelas conversas construtivas que temos.
Aos meus pais, minha infindável gratidão.
Aos tios Naim e Maria José, pelo apoio e carinho.
À minha tia Sueli, pelas palavras de incentivo nos momentos difíceis.
Ao meu tio Nilo, pela companhia nas viagens realizadas de Frutal-MG até Uberlândia-MG
que foram de suma importância para a realização da presente pesquisa, pois facilitaram meu
deslocamento e pelas histórias cheia de encanto e graça contadas no decorrer das viagens.
Ao meu cunhado Adilson que prontamente se dispôs, quando precisei, me acompanhar nas
viagens até Uberlândia.
Aos meus gatos Pandi e Diana, cúmplices silenciosos nas horas de estudo.
A Deus, força criadora que rege o universo, pela oportunidade de estar aqui!
RESUMO
Tendo em vista o profícuo campo de pesquisa na área dos Estudos Lingüísticos, elegemos
para a realização da presente pesquisa a Análise do Discurso de linha francesa, com
recorrência aos estudos foucaultianos sobre poder e subjetividade. Assim, esta pesquisa
destinou-se a análise do romance A Caverna (2000), de José Saramago; mais
especificamente, analisamos a constituição do sujeito discursivo Cipriano Algor, atentando
para a relação de poder estabelecida entre ele e o “Centro de Compras”. Propomos como
objetivo geral deste trabalho discutir como o sujeito discursivo Cipriano Algor se inscreve
nesta relação de poder. Para melhor estabelecer um recorte visando à realização de nosso
estudo, elencamos dois objetivos específicos: a) analisar a relação de poder como meio de
subjetivação do sujeito (Cipriano Algor), mapeando no interior da obra como essa relação é
construída; b) mostrar como os discursos que emergem em Cipriano possibilitam a
constituição de sua subjetividade e fogem aos padrões tidos como “normais” para a época.
Fundamentados na questão do sujeito e de como as relações de poder, perpassadas pelos
discursos, corroboram para a sua constituição, defendemos a hipótese de que o sujeito
discursivo Cipriano Algor constitui sua subjetividade a partir da relação de poder que é
instaurada entre ele e o “Centro de Compras”. Mostramos ainda que no discurso de Cipriano
Algor afloram elementos vindouros de outros espaços enunciativos, para sermos mais
específicos, os discursos bíblico e filosófico. Em nossa análise, observamos que o sujeito da
Modernidade sofre movências instauradas por lutas e embates que integram seu cotidiano.
Esses conflitos são permeados pelo poder, que está imbricado em todas as relações, formando
uma teia que o difunde em todas as camadas sociais. Com isso, as identidades não são fixas,
havendo o que Stuart Hall (2005) denomina de “mudança estrutural”, o que consiste na
desestabilização da imagem que o sujeito tem de si, aspecto verificado em Cipriano Algor,
enquanto sujeito discursivo.
Palavras-Chave: 1.Discurso; 2. Sujeito; 3. Subjetividade; 4. Memória; 5. Análise do
Discurso
ABSTRACT
Having in perspective the proficuous research field in the area of Linguistic Studies, the
French Discourse Analysis was elected for the making of this project, using the Foucaultian
Studies about power and subjectivity as reference. Thus, this project has the objective of
analyzing the novel A Caverna (2000) (The Cavern), by José Saramago; more specifically,
the constitution of the discursive subject Cipriano Algor is analyzed, paying close attention to
the relation of power established between him and the “Shopping Center”. The proposed
general objective of this project is to discuss how the discursive subject Cipriano Algor fits
into this relation of power. In order to better establish a cutout so as to do our study, two
specific objectives are enhanced: a) to analyze the relation of power as a means of
subjectivation of the subject (Cipriano Algor), mapping out how this relation is built
throughout the book; b) to show how the discourses which emerge in Cipriano make the
constitution of his subjectivity possible and differ from the standards held as “normal” at the
time. Based on the matter of the subject and how the relations of power, shown by the
discourses, corroborate to their constitution, the hypotheses that the discursive subject
Cipriano Algor constitutes his subjectivity starting from the relation of power which is created
between him and the “Shopping Center” will be defended. Another detail which is shown is
that in Cipriano Algor’s discourses, elements that come from other enunciative spaces come
up, to be more specific, the biblical and philosophical discourses. In our analysis, we observe
that the subject of Modernity suffers changes because of fights and arguments which integrate
his everyday life. These conflicts are permeated by power, which is present in all relations,
forming a web that diffuses it into all social levels. Hence, identities are not fixed, having
what Stuart Hall (2005) calls “structural change”, which consists in the destabilization of the
image that the subject has of himself, aspect which is verified in Cipriano Algor, as a
discursive subject.
Key-Words: 1.Discourse; 2. Subject; 3. Subjectivity; 4. Memory; 5. Discourse Analysis.
Fui ao cemitério, dei um cântaro a
uma vizinha e temos um
cão lá fora, acontecimentos de
grande importância todos eles.
(SARAMAGO)
Não tinha pensamentos nem sensações,
Era apenas o maior daqueles pedacinhos de barro,
um torrãozito seco que uma leve pressão dos dedos
bastaria para esfarelar, uma pragana que se soltara da
espiga e era transportada pelo acaso de uma formiga,
uma pedra aonde de vez em quando se acolhia um ser
vivo, um escaravelho, ou uma lagartixa, ou uma ilusão.
(SARAMAGO)
... mas se fôssemos simples não
seríamos pessoas.
(SARAMAGO)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 17
CAPÍTULO I: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA .............................................................. 21
1.1. História, discurso, sujeito e memória: um entrelaçamento teórico na
constituição da AD .................................................................................................................. 26
1.1.1 Breve olhar sobre a relação entre AD e a história .......................................................... 26
1.1.2 A constituição do discurso: espaço de múltiplos olhares, múltiplos sentidos ................ 35
1.1.3 A constituição do sujeito: um caleidoscópio a ser observado ........................................ 39
1.1.4 Memória e AD ................................................................................................................ 48
Uma breve conclusão .............................................................................................................. 51
CAPÍTULO II: MICHEL FOUCAULT: O PODER E A CONSTITUIÇÃO DO
SUJEITO ................................................................................................................................ 53
2.1 O sujeito e o poder em Michel Foucault ........................................................................... 53
2.2 O sujeito e a constituição de sua identidade ...................................................................... 72
Algumas considerações conclusivas ........................................................................................ 76
CAPÍTULO III: CIPRIANO E A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE: UM “NÓ
EM UMA REDE” DISCURSIVA ........................................................................................ 79
CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 111
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 115
INTRODUÇÃO
Ocupar se consigo é um previlégio;
é a marca de uma superioridade social,
por oposição aos que devem ocupar-se com os
outros para servi-los ou então ocupar se com um
ofício para poder viver. (Foucault)
Ao adentrarmos o campo dos estudos lingüísticos, encontraremos vários aportes
teóricos, cada qual apresentando suas particularidades específicas. Particularidades essas que
vão, ao longo dos tempos, sofrendo mudanças de acordo com aspectos que surgem no
decorrer das pesquisas realizadas. Tendo em vista esse profícuo campo, elegemos para a
realização do presente trabalho a Análise do Discurso de linha francesa (doravante AD), que
considera o discurso efeito de uma dada exterioridade sócio-histórica.
A presente pesquisa apresenta como corpus o romance A Caverna (2000) de José
Saramago. Tendo em vista que a obra em questão apresenta vários aspectos que poderiam ser
analisados sob o prisma da AD, elegemos como ponto central em nosso trabalho o sujeito
discursivo Cipriano Algor. Mais especificamente, a constituição de sua subjetividade,
instaurada a partir da relação de poder estabelecida entre ele e o “Centro de Compras”.
Foucault (2007a) afirma que o poder não é encontrado em uma posição ou pessoa, ele
espraia por toda a sociedade através das microrrelações e em pequenos detalhes para os quais
muitas vezes não damos à devida importância. Assim, a partir dessa breve consideração,
ressaltamos, acerca do poder, que no romance em questão há outras relações que poderiam ser
analisadas, como a estabelecida entre Cipriano, sua filha, seu genro e o cachorro Achado, mas
que não serão objetos de investigação tendo em vista o recorte estabelecido para a presente
pesquisa.
Cipriano Algor, personagem central da trama, é um oleiro, morador de uma aldeia e
fornecedor de louça de barro para o “Centro de Compras”, que, em determinado momento,
vê-se diante de uma crise não apenas financeira, mas também existencial. O “Centro de
Compras” recusa sua mercadoria, porque uma outra entra no mercado, mudando assim, a
preferência dos consumidores, os quais passam a comprar as peças de plástico. Cipriano
encontra-se diante de um dilema: a desvalorização mercadológica do trabalho artesanal pela
supervalorização do trabalho industrial. De um lado, o mundo do barro, que provém da terra,
18
da natureza; de outro, o plástico, que a tecnologia oferece como meio de facilitar a vida dos
sujeitos inseridos em um mundo capitalista. Atrelado a isso, seu genro Marçal, segurança do
“Centro”, é promovido à guarda residente, sendo convidado a morar no “Centro” junto com a
esposa, filha de Cipriano e sua ajudante na olaria. Inicialmente, Cipriano não aceita a idéia de
morar no Centro, porém termina por concordar, pois sua profissão, e conseqüentemente suas
mercadorias, tornaram-se obsoletas. A partir desse momento, sogro e genro vão descobrir as
mazelas do “Centro”, e Cipriano, principalmente, reflete e questiona a modernidade e tudo o
que ela implica.
Notamos que Cipriano Algor, protagonista de A caverna (2000), contrapõe-se aos
padrões sociais vigentes, uma vez que não aceita as normas ditadas pelo poder representado
pelo “Centro de Compras”. A constituição desse sujeito decorre das inter-relações com
diferentes discursos, que trazem em si marcas próprias do lugar social e histórico no qual está
inserido.
As obras de José Saramago têm merecido uma atenção especial dos críticos visto que
seus romances abordam aspectos inerentes à constituição dos sujeitos. Seus romances
suscitam aos leitores a possibilidade de terem um novo olhar sobre o que os cerca, bem como
sobre si, pois eles trazem questões bem atuais acerca da constituição das subjetividades.
Notamos que muitos estudos acerca do romance em questão já foram realizados,
abordando questões relativas a alegoria, a relação entre o romance e o mito da Caverna,
ideologia e outros. Tivemos acesso a um trabalho desenvolvido por um pesquisador,
Leonardo (2008), da Universidade Estadual de Maringá, vinculado ao Programa de Pós-
Graduação em Letras, que aborda a questão do poder no romance. Entretanto, seu olhar é
sociológico bem como literário, ele aborda as seguintes questões: romance e ambivalência,
ações dos personagens, tempo, espaço e a relação de poder instaurada no romance. Apesar de
trabalhar a questão do poder, há uma diferença entre a sua análise e a proposta no presente
trabalho, pois ele estuda a relação de poder de forma geral, representando todos os integrantes
da sociedade, e nós propomos analisar a constituição da subjetividade de Cipriano frente a
relação de poder instaurada entre ele e o “Centro de Compras”. Assim como Leonardo (2008),
apontaremos como essa relação faz uma analogia com as relações vividas pelos sujeitos pós-
modernos; entretanto, nosso foco central é analisar como esse sujeito constitui seu discurso
através de enunciados vindouros de outros momentos históricos.
Saramago publicou A caverna em 2000, ao atentarmos para a sua produção notamos
que ele é um escritor de suma importância, pois além de trazer questões inerentes ao sujeito,
ele também aponta outras acerca da constituição histórica de Portugal. Sua obra não se
19
restringe a romances, ele também produziu peças teatrais, contos, poemas, crônicas, diário e
memória, viagens e um texto para o público infantil.
Cipriano, ao longo do romance, através de um discurso reflexivo e questionador,
marcado por diferentes formações discursivas que remetem a outros lugares sócio-históricos,
posiciona-se de forma contrária ao que é determinado pelo “Centro de Compras”. A partir
dessa situação, esse sujeito sente-se deslocado, sem uma identidade fixa, sofrendo o que Hall
(2005) denominou de descentralização do sujeito. Esse estudioso analisa a constituição das
identidades, destacando a da modernidade, uma vez que o sujeito passa por transformações
substanciais, dentre elas a do processo de “descentramento”. Ressaltamos que não são apenas
as identidades tidas por “individuais” que sofrem modificações, mas também as identidades
culturais/nacionais que estão igualmente deslocadas pela globalização.
Segundo Fernandes (2007, p.38), “o sujeito e o discurso resultam da interação social
estabelecida com diferentes segmentos em um mesmo ou diferentes âmbitos sociais; daí o
entrelaçamento de diferentes discursos na constituição do sujeito.” Fundamentados na questão
do sujeito e de como as relações de poder corroboram para ou nesse processo, defenderemos a
hipótese, na presente pesquisa, de que o sujeito discursivo Cipriano Algor constitui sua
subjetividade a partir da relação de poder que é instaurada entre ele e o “Centro de Compras”.
Notamos que em seu discurso emergem elementos provenientes de outros espaços
enunciativos. Com isso, é travado um embate entre o sujeito do início do romance e o outro
sujeito que surge no decorrer dessa relação. Cipriano, em conseqüência das movências e
deslocamentos que vai sofrendo no decorrer da obra, deixa de apresentar uma identidade
supostamente fixa e passa, após muitos conflitos, a apresentar uma outra, deslocada e
fragmentada, encontrando-se assim num entre - lugar. Notamos ainda que não somente a
fragmentação chama a atenção, mas também o fato de ela não seguir as regras ditadas pelas
relações de poder que são instauradas em uma sociedade capitalista e consumista.
Tendo como fio condutor a questão de como o poder, a partir de inumeráveis pontos,
constitui as formas de subjetivação do sujeito, propomos como objetivo geral deste projeto
discutir como o sujeito discursivo Cipriano Algor se inscreve nesta relação de poder. Para
melhor estabelecer um recorte dentro de nossa pesquisa, elencamos dois objetivos específicos:
a) analisar a relação de poder como meio de subjetivação do sujeito (Cipriano Algor),
mapeando no interior da obra como essa relação é construída; b) mostrar como os discursos
que emergem em Cipriano possibilitam a constituição de sua subjetividade e fogem aos
padrões tidos como “normais” para a época.
20
Para o desenvolvimento da pesquisa, realizamos um estudo minucioso das fontes
básicas e complementares referentes ao tema proposto. Em um primeiro momento, nossa
atenção voltou-se para aspectos relacionados à questão da subjetivação do sujeito e de como o
poder colabora nesse processo. Nesse momento da pesquisa utilizamos como principal
alicerce teórico/crítico as obras de Foucault que tratam dessa questão.
Posteriormente, fizemos uma análise da obra A caverna (2000), tomada como corpus
para este estudo, observando atentamente os discursos que possibilitam a subjetivação de
Cipriano, levantando suas atitudes e reações diante da reconfiguração de sua subjetividade
frente à relação de poder instaurada entre ele e o “Centro de Compras”. Analisamos ainda os
discursos que são enunciados no decorrer do romance e que corroboram para uma visão
abrangente do personagem principal, e assim, possibilitam a constituição de sua subjetividade.
A pesquisa apresenta três capítulos: o primeiro consistirá na discussão sobre os
conceitos de história, discurso, sujeito e memória discursiva; o segundo trará considerações
sobre o sujeito, poder e identidade; e por último, teremos o capítulo de análise.
CAPÍTULO I
Fundamentação Teórica
Duas pessoas podem dizer ao mesmo
tempo a mesma coisa, já que são duas,
haverá duas enunciações distintas. Um
único e mesmo sujeito pode repetir várias
vezes a mesma frase; haverá igual número de
enunciações distintas no tempo. A enunciação
é um acontecimento que não se repete, tem uma
singularidade situada e datada que não se pode
reduzir. (Foucault)
Ao atentarmos para os estudos lingüísticos na contemporaneidade, precisamos olhar o
passado para entendermos a forma como a língua(gem) é compreendida nos dias de hoje.
Segundo Lyons (1979), o campo de estudo lingüístico é muito vasto e rico, construído “sobre
o passado”; partindo de doutrinas tradicionais, os lingüistas, aceitam-nas, ou as condenam,
sendo o pensamento teórico sempre centrado em um ir e vir.
Quando atentamos para a construção do pensamento lingüístico a respeito da “língua”,
notamos que o interesse sobre ela sempre esteve em pauta, seja em nossos dias, ou na
antiguidade clássica. Nos estudos gregos sobre as línguas, observamos dois aspectos a serem
elencados: não consideravam a fala, o importante era a escrita; baseavam suas análises na
escrita dos escritores áticos do século V a.C., pois, segundo eles, era a única forma correta de
escrever a língua (LYONS, 1979). Além do que: “na medida em que percebia alguma
diferença entre a língua falada e a língua escrita a tendência era sempre considerar a primeira
como dependente da segunda.” (LYONS, 1979, p.9). Segundo Weedwood (2002, p. 17), “as
pessoas vêm estudando a linguagem desde a invenção da escrita e, sem dúvida, muito antes
disso também.”
Em seguida, temos os estudos da gramática na Idade Média. De acordo com
Weedwood (2002), os estudiosos desse período preocupavam-se com o ensino do latim
escrito, pois esse era o idioma oficial da igreja ocidental, a fala também não era considerada.
Segundo ela, a contribuição dessa forma de olhar para a linguagem ofereceu aos estudos
lingüísticos foi:
22
a passagem de uma gramática primordialmente semântica e taxionômica para uma
gramática descritiva, baseada na forma [...] o objetivo do jovem aluno romano fora
apropriar-se dos textos mais prestigiados de sua época; o jovem monge irlandês ou
anglo-saxão considerava a gramática como uma ferramenta para a compreensão
Bíblica (
WEEDWOOD, 2002,
p.51).
Já no século XIX, temos os estudos da Gramática Comparada, que estabelecem uma
relação comparativa entre as línguas buscando semelhanças, diferenças entre elas, ou mesmo
a evolução que as mesmas foram sofrendo ao longo dos tempos. A marca desses estudos foi a
descoberta do sânscrito, pois possibilitou a comparação dessa língua com o latim e o grego. A
partir desses estudos, os pesquisadores observaram algumas semelhanças entre elas, com isso
concluíram que provavelmente tinham a mesma origem.
No início do século XX, teremos os estudos de Ferdinand de Saussure (1857-1913),
fundador da Lingüística Moderna. Sua pesquisa é de suma importância para os estudos
lingüísticos. Suas proposições foram compiladas em um livro apenas após sua morte, e isso
foi possível somente a partir das anotações de seus alunos. Segundo Faraco (2005, p.27), a
lingüística moderna é responsável pelos “estudos sincrônicos praticados intensamente durante
o século XX em contraste com os estudos históricos, que predominaram no século anterior.”
O mesmo estudioso aponta que, a partir de Saussure, não houve mais motivos para não
considerar o estudo da linguagem como uma disciplina autônoma.
Para os estudiosos o que chamou mais a atenção nos estudos de Saussure foi o fato de
considerar a língua uma forma constituída a partir de um “jogo sistêmico de relações de
oposições – funcionando este jogo de tal modo que nada é um sistema lingüístico senão uma
teia de relações de oposições” (SAUSSURE, 1983, p.28).
De acordo com Saussure (1983
)
, as unidades da língua são definíveis não pela sua
descrição isolada, como era feito até o momento, e sim a partir de seu lugar e suas relações no
interior do sistema. Ele aponta que “a língua é um sistema que conhece somente sua ordem
própria” (SAUSSURE, 1983, p.31). Para elucidar a afirmação, ele apresenta como exemplo o
jogo de xadrez, nele podemos substituir as peças de madeira por marfim, sem alteração
nenhuma para as regras do jogo. Porém, se aumentarmos ou diminuirmos a quantidade de
peças, teremos problemas, pois essa mudança “atingirá profundamente a gramática do jogo”
(SAUSSURE, 1983, p.32).
23
O legado saussuriano é importante, pois muitos pesquisadores o tomam, até nossos
dias, como referência. Alguns concordam com seu posicionamento, outros não, mas muitos o
trazem para suas pesquisas.
Na aparição do CLG, as resenhas abundam. O acontecimento é para os lingüistas,
sem dúvida, a ocasião de marcar sua posição no campo teórico, sublinhando por
quais temas eles se aproximam ou se distanciam das concepções preconizadas por
Saussure (PAVEAU, SARVATI, 2006, p.85).
Um aspecto importante de Saussure é fato de mencionar a fala, percebe sua existência,
mas pontua que seu trabalho terá como foco a língua. Essa consideração abre caminho para
que os próximos construtos teóricos se posicionem e considerem a fala, bem como o sujeito.
Segundo Weedwood (2002, p.91),
Também é no século XX que, ao lado dos estudos que chamamos de
microlingüísticos [...] surgiram grandes campos de investigação em níveis que
ultrapassam o chamado “núcleo duro” da lingüística e avançam em direção a uma
nova interdisciplinaridade crescente, a uma intersecção com a filosofia e com outras
ciências humanas como a sociologia, a antropologia, a psicologia, a neurociência, a
semiologia etc.
Um desses novos campos de investigação é a gramática gerativa (GG). Sendo uma
teoria americana, seu nascimento está vinculado com a publicação, em 1957, do livro
Syntactic Strutures, de Noam Chomsky. Segundo Neto (2005, p. 97): “o que a GG pretende
é a construção de um mecanismo computacional capaz de formar e transformar
representações, que ‘simule’ o conhecimento lingüístico de um falante de uma língua natural
‘registrado’ em sua mente/cérebro”. A gramática gerativa ocupa-se do conhecimento que o
falante possui da língua, a competência lingüística, segundo Chomsky (2002). Esse
conhecimento mesmo não sendo usado está guardado no cérebro. O uso que cada indivíduo
faz dele no dia-a-dia é chamado de desempenho. Chomsky (2002, p.30) afirma que a
linguagem é de suma importância para os sujeitos em todos os aspectos, dentre eles: “ela é
grande responsável pelo fato de apenas no mundo biológico os humanos terem uma história,
uma evolução cultural e uma diversidade muito complexa e rica, e até mesmo um sucesso
biológico, no sentido técnico da enormidade de seus números”.
24
A partir do mencionado acima, podemos considerar que Saussure destacou a língua e a
fala e, Chomsky buscou entender a relação entre língua e fala, mas a partir de duas
perspectivas: o desempenho e a competência.
Outra tendência dos estudos lingüísticos é o funcionalismo, que apresenta uma
concepção de língua a qual difere dos outros construtos teóricos mencionados anteriormente.
A língua é vista como um instrumento de comunicação, (mais do que isso, como instrumento
de interação verbal) podendo ser considerada como um objeto autônomo, mas essa autonomia
é submissa às influências provenientes das situações comunicativas que exercem grande
domínio sobre a estrutura lingüística.
Mais do que uma teoria ou um conjunto de teorias, o funcionalismo é um modo de
pensamento, um olhar sobre a linguagem, e suas relações com a organização do
mundo. Nascidos dos trabalhos, das partilhas e dos exílios dos membros do Círculo
de Lingüística de Praga, a partir dos anos 20, o pensamento funcionalista encontrou
seus acabamentos mais notáveis nas teorias de alcance geral (PAVEAU, SARVATI,
2006, p.115).
O funcionalismo considera a estrutura gramatical, mas toma como referência em suas
pesquisas o objetivo da comunicação, ou seja os participantes e o contexto que envolvem o
ato comunicativo, sendo assim, sua atenção não está centrada no discurso. Segundo Neves
(1997, p. 3
)
, “a língua (e a gramática) não pode ser descrita como um sistema autônomo, já
que a gramática não pode ser entendida sem parâmetros como cognição e comunicação,
processamento mental, interação social e cultural, mudança e variação, aquisição e evolução”.
O fato lingüístico deve ser compreendido levando em conta o sistema ao qual ele pertence.
Para a realização do estudo de uma língua levaram-se em conta as várias funções lingüísticas,
bem como os modos de realização do caso observado. De acordo com Pezatti (2005, p. 174):
O enfoque da linguagem como instrumento de interação social tem por objetivo
revelar a instrumentalidade da linguagem em termos de situações sociais. [...] a
interação verbal é uma forma de atividade cooperativa estruturada, em torno de
regras sociais, normas ou convenções. As regras propriamente lingüísticas devem
ser consideradas instrumentais em relação aos objetivos comunicativos da interação
verbal. Desse modo, o compromisso principal do enfoque funcionalista é descrever
a linguagem não como um fim em si mesmo, mas como um requisito pragmático da
interação verbal.
No enfoque funcionalista, o uso permeia todo o estudo do sistema lingüístico. A língua
passa a ser vista como algo que podemos moldar de acordo com o contexto no qual o produtor
25
do discurso está inserido. As escolhas efetuadas no ato comunicacional estão intimamente
interligadas ao papel que assumem na interação verbal. Sendo assim, a escolha efetuada pelo
falante depende de sua intenção. Pezatti (2005, p.175) considera:
a forma dos enunciados é entendida independentemente de sua função, já que uma
descrição completa inclui referências ao falante, ao ouvinte e a seus papéis e
estatuto na situação de interação determinada socioculturalmente. A expressão
lingüística é uma mediação entre a intenção do falante e a interpretação do ouvinte
.
Uma outra contribuição para a ciência da linguagem que não poderíamos deixar de
mencionar foi a do francês Émile Benveniste. Segundo Flores e Teixeira (2008),
provavelmente ele tenha sido o primeiro lingüista a pensar a enunciação, a partir dos estudos
saussurianos. Sua presença merece destaque, pois suas considerações abriram novos caminhos
para os estudos lingüísticos. “Esta é a inovação de seu pensamento: supor sujeito e estrutura
articulados” (FLORES; TEIXEIRA, 2008, p.30).
Segundo Benveniste (2005, p.82), “a enunciação é este colocar em funcionamento a
língua por um ato individual de utilização.” Assim, ele estabelece o campo de atuação da
lingüística da enunciação, que é o ato. Flores e Teixeira (2008, p.35) apontam que:
enunciar é transformar individualmente a língua – mera virtualidade – em discurso. A
semantização da língua se dá nessa passagem. A enunciação, vista deste prisma, é produto
de um ato de apropriação da língua pelo locutor, que, a partir do aparelho formal da
enunciação, tem como parâmetro um locutor e um alocutário. É a alocução que instaura o
emprego da língua
.
A abordagem enunciativa da linguagem implica também uma teoria do sujeito, uma
vez que as marcas de inscrição desse sujeito no enunciado constituem o objeto de trabalho do
lingüista. Enquanto as abordagens estruturalistas e gerativistas não focalizavam o sujeito, o
ponto de vista enunciativo coloca-o no centro dos estudos. Neste novo olhar, observamos que
o sujeito é trazido para o cenário lingüístico, considerando os postulados estruturalistas.
Paveau e Sarfati (2006, p.173) consideram que “as lingüísticas enunciativas têm por
fundamento comum uma crítica à lingüística da língua e um desejo de estudar os fatos de
‘fala’: a produção de enunciados por locutores na situação real de comunicação.” Portanto, a
partir do interior do enunciado é possível ser apreendido o sujeito e a condição de produção
que permeia a sua constituição.
26
1.1 História, discurso, sujeito e memória: um entrelaçamento teórico na constituição da
AD
Fizemos esse breve percurso para introduzirmos a perspectiva teórica a partir da qual
analisaremos a constituição discursiva do sujeito Cipriano Algor. Observamos que os sujeitos,
bem como o discurso produzido por eles, foram desconsiderados por muito tempo tendo em
vista os objetos de estudo da lingüística, mas ganharam uma atenção merecida dentro da AD.
No próximo tópico, faremos uma relação entre a história e AD, relação essa possível
graças à mudança de paradigmas da história tradicional que passou a observar mais
atentamente a historicidade dos sujeitos sem ascensão social.
1.1.1 Breve olhar sobre a relação entre AD e a história
Na constituição da Análise do Discurso como um campo teórico de estudo, o
entendimento acerca da história é de fundamental relevância, pois o sujeito
deve ser considerado sempre como um ser social, apreendido em um espaço
coletivo, portanto, trata-se de um sujeito não fundamentado em uma
individualidade, em um “eu” individualizado e sim em um sujeito que tem
existência em um espaço social e ideológico, em um dado momento da história e
não em outro (FERNANDES, 2005, p.34).
Observar esse “sujeito histórico” é algo muito instigante, porque geralmente pensamos
em sujeitos que atuam na história, mas não paramos para analisar os sujeitos constituídos pela
história. No prefácio da segunda edição do livro A escrita da história (2007, p.9), Michel de
Certeau descreve a descoberta da América, para sermos mais claros, o olhar do colonizador
sobre o colonizado e após essa breve descrição, o autor faz algumas observações que
chamaram nossa atenção: “neste limiar marcado por uma colunata de árvores, o conquistador
irá escrever o corpo do outro e nele traçar a sua própria história. Fará dele o corpo historiado
o brasão
de seus trabalhos e de seus fantasmas”.
Essa passagem é relevante, pois leva-nos a refletir como todos nós, sujeitos que
somos, temos a nossa participação na história. Primeiramente porque somos subjetivados a
27
todo o momento por ela, além disso, somos participantes e atuantes em sua constituição, não
importando a profissão ou o nível socioeconômico. Segundo Certeau (2002, p.56), “o discurso
histórico explicita uma identidade social, não como ‘dada’ ou estável, mas enquanto se
diferencia de uma época anterior ou de uma outra sociedade”.
Segundo Burke (1992), a história tradicional apresenta uma visão concentrada em
grandes feitos históricos, destacando sempre os grandes homens, generais e estadistas,
limitando, assim, o restante da população ao esquecimento. Os historiadores tradicionais
utilizam como fonte para a sua pesquisa apenas os documentos, a história é vista como algo
objetivo, que deve relatar os fatos como realmente aconteceram, delegando ao esquecimento
os acontecimentos que não se relacionavam com esse ambiente. De acordo com Certeau
(2007, p.23):
Inicialmente a historiografia separa seu presente de seu passado. Porém, repete
sempre o gesto de dividir. Assim sendo, sua cronologia se compõe de “períodos”
(por exemplo, Idade Média, História Moderna, História Contemporânea) entre os
quais se indica sempre a decisão de ser outro ou de não ser mais o que havia sido até
então (o Renascimento, a Revolução)
.
Vários sentidos foram apontados para a história ao longo dos tempos, causando em
muitos casos definições simplistas reduzindo-a ao relato de fatos que tivessem uma
“determinada” importância para o cenário político e social. De acordo com Burke (1992),
segundo o paradigma tradicional, a História é objetiva. A tarefa do historiador nessa
perspectiva é apresentar aos leitores os fatos, ou, como aponta Ranke, citado por Burke (1992,
p.15), dizer “como eles realmente aconteceram” (p.15).
Esse panorama altera-se no século XX, quando o conceito de historicidade ganha uma
nova configuração, abrindo, assim, as portas para uma “renovação epistemológica”. (LE
GOFF, 2006, p.19). Segundo Certeau (1970, p.484), “há uma historicidade da história que
implica o movimento que liga uma prática interpretativa a uma práxis social.” Portanto, a
história não pode ser considerada algo estanque ou fechada em si, há uma interligação entre
acontecimentos do presente, passado e futuro, muito maior do que acreditamos. Le Goff
aponta em seu livro História e Memória (2006, p.25) como essa relação se constitui:
Novas leituras de documentos, frutos de um presente que nascerá no futuro, devem
também assegurar ao passado uma sobrevivência – ou melhor, uma vida –, que
28
deixa de ser “definitivamente passada”. À relação essencial presente-passado
devemos, pois, acrescentar o horizonte do futuro. Ainda aqui os sentidos são
múltiplos.
Mais à frente, no mesmo texto, o autor incita nossa atenção para essa dependência,
entre presente-passado, afirmando que a mesma é “inevitável e legítima, na medida em que o
passado não deixa de viver e de se tornar presente” (LE GOFF, 2006, p.26). De acordo com
ele ainda, essa relação é estabelecida a partir de leituras do passado, que apresentam “perdas e
ressurreições, falhas de memórias e revisões” (p.28).
Esse posicionamento frente ao fato histórico rompe com o olhar tradicional. O
cotidiano
1
dos sujeitos passa a fazer parte da história, além de haver uma quebra da
linearidade dos acontecimentos. O mérito “é mostrar como ele de fato faz parte da história,
relacionar a vida cotidiana aos grandes acontecimentos, como a Reforma ou a Revolução
Francesa” (BURKE, 1992, p.24). Com isso, observamos o surgimento de uma história do
trabalho, história urbana, história econômica etc.
Surge na França, no século XX, com o grupo reunido em torno da revista Annales, a
seguinte base filosófica: “a idéia de que a realidade é social ou culturalmente constituída.”
(BURKE, 1992, p. 18). Esse autor aponta ainda que “está claro o que é a nova história: uma
história made in France [...] Mas exatamente, é a história associada à chamada École dos
Annales, agrupada em torno da revista dos Annales: économies, societés, civilisations” (p.9).
De acordo com Burke (1992, p.11), “a nova história começou a se interessar por virtualmente
toda atividade humana. ‘Tudo tem uma história’, como escreveu certa ocasião o cientista
J.B.S. Haldene; ou seja, tudo tem um passado que pode em princípio ser reconstruído e
relacionado ao restante do passado”. Le Goff (2006, p.37) assevera que:
A história nova ampliou o campo do documento histórico; ela substitui a História de
Langlois e Seignobos, fundada essencialmente nos textos, no documento escrito, por
uma história baseada numa multiplicidade de documentos: escritos de todos os
tipos, documentos figurados, produtos de escavações arqueológicas, documentos
orais, etc. Uma estatística, uma curva de preços, uma fotografia, um filme, ou, para
1
Segundo Burke (1992, p.23), “a noção de cotidiano é menos precisa e mais complicada do que parece. Elias
distingue oito significados atuais para o termo, desde a vida privada até o mundo das pessoas comuns. O
cotidiano inclui ações
Braudel o define como o reino da rotina e também atitudes, o que poderíamos chamar
de hábitos mentais. Pode até incluir o ritual, indicador de ocasiões especiais na vida dos indivíduos e das
comunidades, e com freqüência definido em oposição ao cotidiano. Por outro lado, os visitantes estrangeiros
muitas vezes observam rituais cotidianos na vida de toda sociedade
modos de comer, formas de saudação, etc.
que os habitantes locais não encaram de forma alguma como rituais”.
29
um passado mais distante, um pólen fóssil, uma ferramenta, um ex-voto são, para a
história nova, documentos de primeira ordem.
O grande desafio do historiador, naquele momento, de acordo com Burke (1992) era
relacionar a vida cotidiana aos grandes acontecimentos. Para isso, tiveram que buscar novas
fontes, como, por exemplo, registros judiciais.
Tinha-se, então, não uma única verdade, pronta e acabada; e sim, várias verdades, que
faziam com que o histórico tornasse fragmentado e diluído em todas as instâncias sociais. De
acordo com Burke (1992), a idéia de que o relato abarcaria todas as verdades de um dado
acontecimento histórico cai por terra, pois assim como os fotógrafos, os historiadores só
apresentam representações da realidade. Segundo Certeau (2002, p.32), os discursos “são
históricos porque ligados a operações e definidos por funcionamentos. Também não se pode
compreender o que dizem independentemente da prática de que resultam”.
O que era inicialmente considerado imutável passa a ser visto como uma “construção
cultural”, podendo sofrer variações, provenientes do tempo e do espaço. Sendo assim, o que
fundamenta a nova história é o fato de olhar para a “realidade” como algo construído no
social ou culturalmente. Os novos estudiosos passaram a preocupar-se com a “história vista de
baixo”, isso quer dizer que a opinião das pessoas “comuns” passou a ser considerada e
estudada.
Com isso, houve uma mudança nos paradigmas, trazendo para o interior da história a
interdisciplinaridade. Observamos assim que “antropólogos, economistas, críticos literários,
psicólogos, sociólogos,” etc. passaram a contribuir para os estudos históricos (BURKE, p.16,
1992). Mais adiante o autor tece as seguintes considerações:
Os sociólogos do século XIX, como Auguste Comte, Hebert Spencer – sem
mencionar Karl Marx – eram extremamente interessados pela história, mas
desprezavam os historiadores profissionais. Estavam interessados nas estruturas,
não nos acontecimentos, e a nova história tem um débito para com eles, que
freqüentemente não é reconhecido (BURKE, 1992, p.19).
Instiga-nos analisar a constituição de uma nova forma de olhar para um determinado
objeto, ou melhor, a construção de uma nova teoria, pois ela é formada de um ir e vir da
própria teoria. No século XIX, temos estudos históricos que não privilegiavam os grandes
acontecimentos militares e políticos, mas sim as leis, o comércio, a forma de pensar de uma
30
determinada época. Segundo Burke (1992, p.19), “o que é novo não é sua existência, mas o
fato de seus profissionais serem agora extremamente numerosos e se recusarem a ser
marginalizados”.
Partindo das considerações acima, podemos destacar que a história não é considerada
cronologicamente, mas sim apenas um retalho, um fragmento de acontecimentos. De acordo
com a proposta da Nova História:
o que é um acontecimento senão aquilo que é preciso supor para que a organização
dos documentos seja possível? Ele é o meio pelo qual se passa da desordem à
ordem. Ele não explica, permite uma inteligibilidade. É o postulado e o ponto de
partida – mas também o ponto cego – da compreensão. Deve ter acontecido alguma
coisa aí, mediante o que é possível construir séries de fatos, ou transitar de uma
regularidade para outra. Bem longe de ser o alicerce ou a marca substancial na qual
se apoiaria uma informação, ele é o suporte hipotético de uma ordenação sobre o
eixo do tempo, a condição de uma classificação. Algumas vezes ele não é mais que
uma simples localização da desordem: então, chama-se acontecimento o que não se
compreende. Através deste procedimento, que permite ordenar o desconhecido num
compartimento vazio, disposto antecipadamente para isto e denominado
“acontecimento” torna-se pensável em “razão” da história. Uma semantização plena
e saturada é, então, possível: os “fatos” a enunciam, fornecendo-lhe uma linguagem
referencial; o acontecimento lhe oculta as falhas através de uma palavra própria, que
se acrescenta ao relato continuo e lhe mascara os recortes (BURKE, 2002, p.104).
Burke (2002, p.58) pontua que “o discurso histórico é ao mesmo tempo sua
representação e seu reverso”, pois a relação estabelecida entre ele com seu fazer é interna e
externa. É interna no sentido de que o discurso histórico traz em seu interior tensões, redes de
conflitos e jogos de força. Externa ao objeto, pois o discurso será determinado por elementos
socioculturais. Para sermos mais claros, nas sociedades estáveis deparamos com a
continuidade histórica, “uma ordem solidamente estabelecida”. Já em momentos de
movimento e revolução, “as rupturas de ação coletiva ou individual se tornam o princípio de
inteligibilidade histórica” (BURKE, 2002, p.58).
Seguindo essa linha de pensamento, destacamos os estudos de Michel Foucault, que
problematizam o tratamento dado ao acontecimento histórico pela história tradicional. Ele não
é historiador e temos dificuldades em enquadrá-lo em um único campo do conhecimento, pois
suas reflexões foram muito importantes em vários estudos de áreas distintas. Segundo
Foucault (2004, p.70):
31
Eu sou um pirotécnico. Fabrico alguma coisa que serve, finalmente, para um cerco,
uma guerra, uma destruição. Não sou a favor da destruição, mas sou a favor do que
se possa passar, de que se possa avançar, de que se possa caírem os muros.
Um pirotécnico é inicialmente, um geólogo. Ele olha as camadas do terreno, as
dobras, as falhas. O que é fácil cavar? O que vai resistir? Observa de que maneira as
fortalezas estão implantadas. Perscruta os relevos que podem ser utilizados para
esconder-se ou lançar-se de assalto. Uma vez tudo isto bem delimitado, resta o
experimental, o tatear. Enviam-se informes de reconhecimento, alocam-se vigias,
mandam-se fazer relatórios. Define-se em seguida, a tática que será empregada.
Seria ardil? O cerco? Seria a tocaia ou bem o ataque direto? O método, finalmente,
nada mais é que esta estratégia.
Em seu livro A arqueologia do saber (2007), Foucault observa que a história
tradicional sempre descreveu longos períodos, utilizando recursos focando o crescimento
econômico, demográfico e outros. Mas esta maneira de tratar a história só possibilitou a
mesma ser considerada homogênea e linear.
Em suma, a história do pensamento, dos conhecimentos, da filosofia, da literatura,
parece multiplicar as rupturas e buscar todas as perturbações da continuidade,
enquanto a história propriamente dita, a história pura e simplesmente, parece
apagar, em benefício das estruturas fixas, a irrupção dos acontecimentos
(FOUCAULT, 2007, p.6).
A arqueologia do saber (2007) foi publicado em 1969 com o objetivo de sanar
algumas dúvidas quanto ao método utilizado nos dois livros anteriores, O nascimento da
clínica, de 1963, e As palavras e as coisas, de 1966. Segundo Gregolin (2004), “a partir de
Nietzsche, Foucault (1971) propõe uma história ‘genealógica’, que problematiza o passado a
fim de desvelar suas camadas arqueológicas e se volta para uma aguda crítica do presente”
(p.21).
Foucault (2007) afirma que a ruptura entre a História tradicional e o método
Arqueológico (que coaduna com a História Nova) tem algumas conseqüências, ele apresenta
quatro. A primeira, é a ruptura com a análise de períodos longos da história, não há uma
preocupação com a linearidade dos acontecimentos. O objetivo é construir séries, propiciar
relações entre elas, estabelecer as regras que possibilitaram determinadas séries surgirem.
Segundo Foucault (2007, p.9):
32
daí a necessidade de distinguir não apenas acontecimentos importantes (com uma
cadeia de conseqüências) e acontecimentos mínimos, mas sim tipos de
acontecimentos de nível inteiramente diferente (alguns breves, outros de duração
média, como a expansão de uma técnica, ou de uma rarefação da moeda, outros,
finalmente, de ritmo lento, como um equilíbrio demográfico ou o ajustamento
progressivo de uma economia a uma modificação do clima); daí a possibilidade de
fazer com que apareçam séries com limites amplos, constituídas de acontecimentos
raros ou de acontecimentos repetitivos.
A segunda conseqüência é a importância que a descontinuidade tem para esse novo
olhar para a história. Na História Clássica, o descontínuo não era considerado algo positivo, o
que realmente importava era a continuidade. Se a continuidade não aparecesse entre os
acontecimentos, poderia haver o apagamento ou a redução deles para que efetivasse a
continuidade entre eles. Foucault (2007) destaca que “o historiador se dispõe a descobrir os
limites de um processo, o ponto de inflexão de uma curva, a inversão de um movimento
regulador, os limites de uma oscilação, o limiar de um funcionamento irregular de uma
causalidade circular” (p.10).
A terceira modificação é responsável pelo apagamento da história global, com isso, a
homogeneidade, causalidade, relações de analogias, grandes unidades e princípio de coesão
são substituídos por “determinar que forma de relação pode ser legitimamente descrita entre
essas diferentes séries” (FOUCAULT, 2007p.11).
A última conseqüência está relacionada com alguns problemas metodológicos que há
muito incomodavam, mas só neste momento ganham destaque. Citaremos a seguir alguns
apontados por Foucault (2007, p.12):
a constituição de corpus coerentes e homogêneos de documentos (corpus abertos ou
fechados acabados ou indefinidos): o estabelecimento de um princípio de escolha
(conforme se queira tratar exaustivamente a massa documental, ou se pratique uma
amostragem segundo métodos de levantamentos estatísticos, ou se tente determinar,
antecipadamente, os elementos mais representativos).
Foucault afirma a esse respeito que um dos traços que mais se destaca da História
Nova é o “deslocamento do descontínuo”, pois o pesquisador não tem mais a preocupação em
organizar os acontecimentos obedecendo a uma dada ordem e sim deixar aflorarem de acordo
com sua singularidade para com isso validar sua análise.
Foucault (2007, p.75) aponta a relevância da história para sua pesquisa, “em nossa
cultura, pelo menos há vários séculos, os discursos se encadeiam sob a forma da história”.
33
Temos acesso às coisas que foram faladas, mas não como realmente foram ditas, há uma
reconfiguração, pois elas “se sucederam, se opuseram, se influenciaram, se substituíram, se
engendraram e foram acumuladas,” ao longo dos tempos.
A forma como a sociedade industrial capitalista se dividia determinava o que era
considerado história, desta maneira até o século XX seu foco era recontar “o passado dos
grandes conjuntos nacionais” (FOUCAULT, 2007, p. 286). Neste momento, ela tinha como
objetivo mostrar a “estrutura” de fundamental importância para o capitalismo, além de
destacar o quanto à mesma estava presente há muito tempo e, apesar da evolução, manteve
uma unidade.
A burguesia simultaneamente justificava seu direito de ocupar o poder e conjurava
ameaças de uma revolução em ascensão, e a história era certamente o que Michelet
chamava de “ressurreição do passado.” A história se atribuía a tarefa de tornar viva
a totalidade do passado nacional (FOUCAULT, 2007, p.286).
A história tradicional tinha como objeto a memorização dos monumentos, para
transformá-los em documentos, deixando, assim, lacunas que não eram preenchidas com este
método. A nova história preocupa-se em ocupar essas lacunas que ficavam silenciadas.
Segundo Foucault (2007, p.8), “a história em nossos dias, se volta para a arqueologia
para a
descrição intrínseca do monumento”.
De acordo com Foucault (2007), o olhar tradicional sobre a história estava embasado
na crença de que a sociedade, quanto à evolução, sempre seguia o mesmo percurso, havendo
assim uma regularidade. As regras de casamento, ou as técnicas agrícolas bem como as
mudanças que sofriam ao longo dos tempos, também seriam regidas pelo mesmo princípio
descrito acima.
O objeto da história tradicional é definido a partir de um leque de documentos
agrupados previamente em períodos, “épocas, nação, continentes, formas de cultura”
(FOUCAULT, 2000, p.290). Um pouco mais a frente, segundo ele:
A história social permite de qualquer forma fazer aparecer diferentes estratos de
acontecimentos, dos quais uns são visíveis, imediatamente conhecidos até pelos
contemporâneos, e em seguida, debaixo desses acontecimentos que são de qualquer
forma a espuma da história, há outros acontecimentos invisíveis, imperceptíveis
para os contemporâneos, e que são de um tipo completamente diferente
(FOUCAULT, 2000 p.291).
34
Um aspecto interessante em seu trabalho é o lado positivo da História Tradicional.
Segundo ele, a partir dela foi instaurado o sujeito. Esse sujeito, segundo Foucault (2007) tinha
a ilusão de tudo o que lhe escapasse poderia ser recuperado ou restaurado. De acordo com ele,
“fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito
originário de todo o devir e de toda a prática são as duas faces de um mesmo sistema de
pensamento” (FOUCAULT, 2007, p.14).
Precisamos romper com o “fabricado” que é aprovado antes de uma análise prévia.
Não podemos fazer distinção entre os discursos, nem entre as “formas ou gênero (ciência,
literatura, filosofia, religião, ficções), etc.” (FOUCAULT, 2007, p.88).
Foucault (2007) afirma que devemos descobrir o que está oculto nos acontecimentos
espalhados, e isso se efetivará se observarmos as séries
2
que fazem parte dos documentos
3
geralmente esquecidos. O tempo para a história é considerado como “uma multiplicidade de
tempos” que se atravessam, não havendo uma duração linear. Deparamos com uma história
descontínua, “um emaranhado de descontinuidades sobrepostas” (FOUCAULT, 2007, p.
293). De acordo com Gregolin (2006, p.77):
A arqueologia foucaultiana opta por romper o fio da continuidade, (tão cara aos
historiadores tradicionais) e assume deliberadamente, as brechas descobrindo o
descontínuo. A análise arqueológica busca o emaranhado de fatos discursivos
anteriores a um acontecimento que ao mesmo tempo, o explicam e o determinam.
Pêcheux, em Semântica e discurso (1995), faz algumas considerações acerca da
história quando analisa a produção dos acontecimentos. Segundo ele, “não é o homem que
produz os conhecimentos científicos, são os homens em sociedade e na história, isto é a
atividade humana social e histórica” (PÊCHEUX, 1995, p.190). Comparando suas
considerações sobre a história com as de Foucault mencionadas anteriormente, notamos que
2
“Tal projeto está ligado a duas ou três hipóteses: supõe-se que entre todos acontecimentos de uma área espaço-
temporal bem definida, entre todos os fenômenos cujo rastro foi encontrado, será possível estabelecer um
sistema de relações homogêneas: rede de causalidade permitindo derivar cada um deles relações de analogias
mostrando como eles se simbolizam uns aos outros, ou como todos exprimem uma única e mesma forma de
historicidade compreenda as estruturas econômicas, as estabilidades sociais, a inércia das mentalidades, os
hábitos técnicos, os comportamentos políticos, e os submeta ao mesmo tipo de transformação; supõe-se, enfim,
que a própria história possa ser articulada em grandes unidades
estágios ou fazer que detêm em si mesmas
seu princípio de coesão.” (FOUCAULT, 2007, p.11)
3
Na História Tradicional o documento é considerado um portador de verdade, autentico ou falso, fechado em si.
Já a proposta de Foucault olha o objeto como: “ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis,
estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, difere unidades, descreve
relações.” (FOUCAULT, 2007, p.7)
35
há diferenças, apesar de ambos pensarem uma história que corrobora para a constituição do
sujeito, para Pêcheux a construção do conhecimento está intimamente ligada à história,
porém, permeada pela luta de classes.
Isso significa, para tomar o exemplo das ciências da natureza, que as condições de
aparição destas últimas estão ligadas às novas formas de organização do processo de
trabalho impostas pela instauração do modo de produção capitalista bem como às
novas condições da reprodução da força de trabalho correspondente a essas formas
de organização (PÊCHEUX, p.1995, p.190).
Em ambos os pesquisadores, observamos que a produção de um dado acontecimento é
regida por algo exterior a ele, mas para Pêcheux essa “força” produtora está relacionada com
a questão política, a luta entre uma classe dominante e uma classe dominada, essa afirmação
será desenvolvida no tópico 1.1.3. Já para Foucault, o que possibilita o surgimento do
acontecimento discursivo são as relações de poder e saber que permeiam os sujeitos, isso será
tratado mais à frente neste trabalho.
1.1.2 A constituição do discurso: espaço de múltiplos olhares, múltiplos sentidos
A constituição do pensamento científico acerca do discurso sofreu, ao longo do tempo,
algumas modificações, provenientes da forma de analisar esse objeto. Robin (1997, p.20)
traça a relação estabelecida entre a História e a Lingüística, pontuando o que inicialmente
buscavam os historiadores quando pediam a ajuda da lingüística: “o que ele solicita ao
lingüista é que o ensine a ler o que está no texto, e esta questão é menos ingênua do que
parece à primeira vista. Ele lhe pede que o ajude a desbastar o texto e a ordená-lo”.
Essa citação chamou nossa atenção, pois a partir dela podemos refletir acerca da
relação estabelecida entre o texto e a forma como o leitor analisava-o, porque o seu sentido
era considerado fechado em si. Ele poderia ser esgotado e organizado de forma tal que a
compreensão do texto era totalmente eficaz, enfim, poderiam apreender todos os sentidos do
texto. Segundo Robin (1997), foi somente na década de 1960 que houve uma modificação
significativa na forma de tratar o texto, ela observa “que ultrapassando a dicotomia
36
tradicional, desde Saussure (língua/fala), estava em processo de elaboração uma Lingüística
do discurso” (p.88). De acordo com Gaspar (2006, p.47):
Desse modo expandiram-se os estudos além das análises sistêmicas da
morfologia, da sintaxe e da semântica, já que várias análises apontavam que a
significação e os sentidos textuais extrapolavam esses limites, fazendo-se
necessário, na época, considerar também na análise os sujeitos que formulavam os
textos (autores, fotógrafos, cineastas), as condições de produção dos
pronunciamentos textuais que, certamente, são da ordem da língua, mas também
da ordem histórica, psicanalítica, filosófica.
O discurso implica uma exterioridade à língua, pois as palavras ao serem pronunciadas
carregam em si aspectos que remetem para o lugar social, histórico e ideológico no qual o
sujeito está inscrito; sendo assim, os discursos estão sempre em movência, pois sofrem a todo
o momento alterações decorrentes das mudanças históricas e das transformações sociais.
Como aponta Pêcheux (1990, p.28) discursivamente, portanto, na relação entre a língua e seu
exterior, a questão teórica a ser colocada é, pois: “a do estatuto das discusividades que
trabalham um acontecimento, entrecruzando proposições de aparência logicamente estável,
suscetíveis de resposta unívoca (é assim ou não, e x ou y, etc.) e formulações
irremediavelmente equívocas.”
Notamos que a forma de tratar o discurso sofreu mudanças expressivas, trazendo para
seu interior aspectos significativos que até aquele momento não tinham sido considerados.
Para Robin (1997, p.102), “o discurso é, contraditoriamente, esta transparência que basta
percorrer para ver surgir um sentido, e esta opacidade que é preciso atravessar para se
encontrar outra coisa, que se chamará ‘estruturas mentais’ ou ‘mentalidades coletivas’”
.
Pêcheux (2007) pontua que em um determinado acontecimento discursivo
aparentemente estável, temos, em seu interstício, uma discursividade trabalhando, que não
tem nada de estável. Deparamos, assim, com lutas e embates que corroboram para a sua
constituição. Constituição essa que não permite uma leitura linear e imanentista.
Mencionaremos ainda, o sentido que, em um primeiro momento, poderia ser analisado
como sendo a interpretação realizada de um dado discurso. Segundo Gregolin (2007, p.63),
“os efeitos de sentido que circulam nos discursos produzidos em uma sociedade, constroem,
com as formas discursivas típicas de cada um desses diversos gêneros, as representações do
imaginário de uma certa época”.
37
Para Pêcheux, o sentido não está na palavra em si, pois é estabelecido pela posição
ideológica do sujeito. Embasado em Foucault
4
, Pêcheux chama de formação discursiva aquilo
que, em uma dada formação ideológica, apontado pela luta de classes, determina o que pode e
deve ser dito em um dado discurso.
Essa forma de analisar a constituição dos discursos difere de outras perspectivas mais
comuns à lingüística tradicional, pois, quando enunciamos algo não devemos nos preocupar
com significado/significante, e sim com o que possibilitou determinado enunciado emergir e
não outro, instaurando assim uma discursividade que produz sentido. A construção sintática,
chamada de materialidade lingüística, determina algo na produção de sentido, mas não é tudo,
imbricado ao enunciado existe um emaranhado de outros dizeres que subjazem sua
materialidade.
O sentido para a AD não é fechado em si, nem somente lingüístico, vai além, em uma
exterioridade trazendo marcas profundas do social e histórico que estão imanentes na
materialidade lingüística. Tomemos, como exemplo, o enunciado “on a gagné” (ganhamos),
que Pêcheux destaca em Discurso: estrutura ou acontecimento (1990). Segundo ele, esse
enunciado geralmente surge vinculado a uma partida de futebol, mas no dia 10 de maio de
1981 é retomado em um novo cenário, o político. Dessa maneira, observamos que a
materialidade lingüística é a mesma para ambas as comemorações, mas o acontecimento que
possibilitou emergir tal enunciado não é o mesmo. Assim, os sentidos produzidos nos dois
acontecimentos não serão os mesmos, pois
uns e outros vão começar a “fazer trabalhar” o acontecimento (o fato novo, as cifras,
as primeiras declarações) em seu contexto de atualidade e no espaço de memória
que ele convoca e que já começa a reorganizar: o socialismo francês de Guesdes a
Jaures, o Congresso de Tours, o Front Popular, a Liberação ... (PÊCHEUX, 1990,
p.19).
Segundo Foucault (2004), o discurso carrega em seu interior um “tesouro” fecundo
apresentando sempre a possibilidade de, a cada nova leitura, encontrarmos interpretações
imprevisíveis, que possuem regras de aparecimento, bem como, de apropriação e de
utilização. Ele menciona ainda que o discurso é uma dispersão de elementos, “com suas
4
Foucault (2004) compreendia a formação discursiva como: “no caso em que se puder descrever, entre um certo
número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações,
posições e funcionamentos, transformações) diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva
evitando assim, palavras demasiado carregadas de condições e conseqüências, inadequadas, aliás, para designar
semelhante dispersão, tais como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio de objetividade”.
38
lacunas, falhas e desordens e superstições, incompatibilidades, trocas e substituições – podem
ser descritas em sua singularidade” (FOUCAULT, 2004, p.82). Enfatiza que isso só será
possível se compreendermos as regras que determinam sua formação. Foucault (2007, p.28)
traz a seguinte consideração:
É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de
acontecimentos, nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal
que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado, apagado até os
menores traços, escondido bem longe de todos os olhares, na poeira dos livros.
Não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem; é preciso tratá-
lo no jogo de sua instância.
A análise de um dado discurso deve levar em conta o que possibilitou determinado
enunciado
5
emergir na materialidade discursiva e em dada condição de produção, e não outro.
Devemos estar atentos às relações instauradas entre os enunciados presentes no discurso e
outros os quais não estão ali, mas que dizem muito na constituição de seu sentido. Foucault
(2007, p.31) chama atenção para a seguinte questão: “deve-se mostrar por que não poderia ser
outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado a eles, um
lugar que nenhum outro poderia ocupar”.
Devemos estar atentos quanto à constituição dos discursos, pois por mais
aparentemente inexpressivo que seja um dado enunciado, não conseguiremos abarcar todos os
sentidos que margeiam sua constituição. Foucault assevera (2007, p.31) que “um enunciado é
sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente”.
O discurso deve ser considerado como um lugar do não-estável, do não-lógico, do
não-aparente. Isso pode ser verificado no seu próprio funcionamento. Ele é produzido
historicamente e disperso ao mesmo tempo, é peculiar no sentido de que sua historicidade é
única e não se repete. O acontecimento que permeia a produção discursiva também não é algo
factual, datado cronologicamente, mas disperso e descontínuo.
Segundo Pêcheux (1990, p.56), o próprio discurso possibilita a “desestruturação-
reestrutaração” da teia de sentidos que é produzida a sua volta. Para Robin (1997, p.88
), o
discurso está
5
Segundo Foucault (2007, p.108), “se uma proposição, uma frase, um conjunto de signos podem ser
considerados “enunciados”, não é porque houve, um dia, alguém para proferi-los ou para depositar, em algum
lugar, seu traço provisório; mas sim na medida em que pode ser assinalada a posição do sujeito. Descrever uma
formulação enquanto enunciado o consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse (ou quis
dizer, ou disse sem querer), mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser
sujeito.”
39
sempre relacionado a suas condições de produção – o que, aliás autoriza toda
escolha de corpus a analisar. Esta lingüística do discurso integra ao seu objeto
tudo o que ultrapassa a simples lógica da comunicação denotativa. Pretende estar
atenta ao universo conotativo da linguagem, ao jogo das implicações e das
pressuposições, a tudo enfim que está no campo da enunciação.
Outro aspecto do discurso que também merece destaque, por ser de fundamental
importância para seu entendimento, encontra-se em A ordem do discurso (1996), quando
Foucault parte do princípio de que, em toda a sociedade, a produção do discurso é controlada
e selecionada ao mesmo tempo, pois tem por função incitar seus poderes e perigos, dominar
seu acontecimento, eximir sua materialidade. O discurso deve ser estudado como um conjunto
de acontecimentos discursivos, tendo como princípio norteador a descontinuidade. Portanto,
nem todo sujeito tem autorização para ter seu discurso veiculado. Como exemplo, podemos
mencionar o discurso do louco no século XIX que era interditado de circular, pois não seguia
as “normas” vigentes (FOUCAULT, 2007).
1.1.3 A constituição do sujeito: um caleidoscópio a ser observado
Foucault aponta em As palavras e as coisas (2002) que o sujeito nem sempre esteve
em evidência, ou melhor, houve épocas em que ele não existia para a ciência. No período
clássico, o sujeito não era visto como um produtor, mas sim um produto de Deus. Seu
objetivo, no caso do sujeito, era explicar aquilo que o cercava por meio de formulações claras
e específicas. A representação era a ordem do momento, tudo deveria ser analisado buscando
uma verdade absoluta. Por meio da análise do quadro “As Meninas”, de Velásquez, Foucault
(2002, p.21) explica como o sujeito era considerado na época clássica.
Talvez haja, neste quadro de Velásquez, como que a representação da representação
clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se
a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela
se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa
dispersão que ela reúne e exibe um conjunto, por todas as partes um vazio essencial
é imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a funda –
daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhares ela não passa de
semelhança. Esse sujeito mesmo – que é o mesmo – foi elidido. E livre, enfim,
40
dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura
representação.
Ao analisar essa obra-prima, Foucault (2002) enfatiza o fato de que o sujeito não
existia na era Clássica, não havia um lugar para ele. O pintor ao se retratar em sua pintura não
tinha a consciência que ele é produto e produtor em seu trabalho. O objetivo da linguagem era
traduzir o mundo, como se isso fosse possível, pois
a relação da linguagem com a pintura é imperfeita e esteja, em face do visível, num
déficit que em vão se esforçaria por recuperar. São irredutíveis um ao outro: por
mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por
mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o
lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele
que as sucessões de sintaxe definem (FOUCAULT, 2002, p.12).
Foucault (2002) comenta alguns pontos daquilo que denomina de “representar”, que
seria, segundo ele, o momento que finaliza a era da semelhança. Esse momento é marcado
pela publicação do Dom Quixote, uma vez que “seu ser inteiro é só linguagem, texto, folhas
impressas, história já transcrita. É feito de palavras entrecruzadas, é a escrita errante no
mundo em meio à semelhança das coisas” (FOUCAULT, 2002, p.63).
Em Dom Quixote, nós não temos mais a preocupação em copiar o mundo e sim de
trabalhar a linguagem de forma que o decifre. Foucault (2002, p.64) assevera que o
importante não é copiar o mundo e sim “transformar a realidade em signo”. Não há mais uma
semelhança entre a escrita e as coisas. Nesse momento, morre a era da semelhança, em
contrapartida, emerge a era das identidades e das diferenças, de acordo com o estudioso. Esse
período vai do século XVII até a segunda metade do século XVIII. No final do século XVIII,
entra em cena a era da história ou da interpretação, que perdura até nossos dias.
A passagem da representação para a história pode ser identificada quando a segunda
passa a ser considerada parte da vida dos sujeitos, o que possibilita o surgimento de três novas
ciências: a biologia, a economia e a filologia. Os sujeitos passam a ter uma história e são
conhecidos através dela.
Essa breve tomada da obra foucaultiana tem como objetivo refletir um pouco sobre o
sujeito como objeto das ciências, que ficou apagado por um longo período como conceito,
vindo à tona por meio das ciências, que têm como objetivo estudar como ele pensa, fala e
trabalha. Os pesquisadores, quando tentaram apreender tudo aquilo que diz respeito ao sujeito,
41
perceberam que não tinham como expor todos os pontos inerentes a sua constituição. Araújo
(2001, p.53) afirma que “o grande projeto de As palavras e as coisas é esta denúncia contra o
quietismo e o conforto de chegar ao saber do que é o homem mesmo”.
Neste momento de nosso percurso investigativo, nossa atenção está voltada para a
constituição do sujeito e, além dos estudos foucaultianos, para os estudos realizados por
Pêcheux, que corroboraram para a constituição da Análise do Discurso. Não podemos deixar
de observar as condições de produção no qual essa disciplina emergiu, pois, segundo Gadet
(1997, p.8), a AD era “portadora de uma crítica ideológica apoiada em uma arma científica,
que permitia um modo de leitura cuja objetividade seria insuportável”. Partindo da filiação
teórica entre Althusser, Lacan e Saussure, Pêcheux propõe uma intervenção no discurso
político, baseando-se na lingüística e na psicanálise. Para Courtine (2006, p. 22):
a análise do discurso político se desenvolveu na França em uma conjuntura
dominada pelo “acontecimento discursivo” que constitui a assinatura do Programa
Comum da União da Esquerda. A opacidade discursiva deste texto – e sua
ambigüidade política –, produziu da fusão de dois discursos em um, reforçou a
“tendência naturalista” da AD, conduzindo-a a privilegiar as descrições tipológicas
contrastivas dos discursos do Partido Socialista e do Partido Comunista.
É de grande importância a releitura de Marx feita por Althusser, pois foi considerada
uma renovação do marxismo. Althusser traz um sujeito reconfigurado, interpelado pela
ideologia, relacionando, assim, o marxismo à psicanálise. Segundo Courtine (2006, p.10), a
leitura realizada por Althusser de Marx “abriu, sem dúvida, a via para uma análise do
discurso”. Ainda no mesmo texto, destaca que esse novo olhar sobre o marxismo teve um
ponto positivo: “colocar, a respeito do discurso a questão crucial das condições de
legibilidade ligado à existência mesma de sua estrutura como texto” (COURTINE, 2006,
p.10).
Pêcheux (1995, p.77) observa duas formas de exploração regressiva das ciências pelo
idealismo, e aponta a relevância dos objetivos do “processo sem-sujeito”, de Althusser, na
constituição da “forma-sujeito”:
Acabamos de encontrar, pela primeira vez a categoria filosófica processo sem
sujeito, que constitui o “fio vermelho” deste estudo. Reencontraremos essa
categoria, após um desvio bastante longo e inevitavelmente “especializado”, pelo
qual munidos das teses materialistas que acabamos de enunciar, caminharemos da
evidência (lógico-lingüística) do sujeito – inerente a filosofia da linguagem
42
enquanto filosofia espontânea da Lingüística – até o que permite pensar a “forma-
sujeito” (e, especificamente, “o sujeito do discurso” como efeito determinado do
processo sem sujeito.
Esse aspecto foi de fundamental importância para Pêcheux, pois possibilitou a ele
pensar a prática político-marxista próxima da forma sujeito. Segundo Zandwais (2007, p.148),
“o deslocamento, a transformação da forma sujeito pode ser ilustrada pela prática política
proletária, por configurar-se como um corte na história”.
Pensando nessa questão da instauração do sujeito em Pêcheux, trazemos para o
presente trabalho uma citação de Althusser (1996, p.134) que tem uma grande relação com a
proposta de sujeito pecheutiana:
a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos. Já que a ideologia é eterna,
devemos agora eliminar a forma temporal em que expusemos seu funcionamento e
dizer: a ideologia sempre já interpelou os indivíduos como sujeitos, o que equivale a
deixar claro que os indivíduos são sempre já interpelados como sujeitos, o que nos
leva, necessariamente, a uma última proposição: os indivíduos são sempre já
sujeitos. Daí os indivíduos serem “abstratos” em relação aos sujeitos que eles
sempre já são.
Partindo dessas considerações sobre a interpelação ideológica dos sujeitos, Pêcheux
pensa em uma teoria na qual os sujeitos têm sua subjetividade constituída pela e na ideologia.
Pêcheux (1995, p.162) assevera que:
Concluiremos esse ponto dizendo que o funcionamento da Ideologia em geral como
interpelação dos indivíduos em sujeitos (e, especificamente, em sujeitos de seu
discurso) se realiza através do complexo das formações ideológicas (e,
especificamente do interdiscurso intricado nesse complexo) e fornece “a cada
sujeito” sua “realidade” enquanto sistema de evidências e de significações
percebidas-aceitas-experimentadas.
Ainda de acordo com o autor, quando o sujeito identifica-se com uma formação
discursiva dominante, tem-se a produção de sentidos que se finaliza com a forma-sujeito, que
é nada mais nada menos, que o sujeito interpelado pela ideologia em inter-relação com outros
sujeitos também ideologicamente interpelados. Essa relação não é tranqüila, pois ele observou
que a contradição, os enganos e conflitos emergem dessa forma-sujeito.
A partir dessas poucas considerações acerca da proposta pecheutiana, para sermos
mais específicos, de uma teoria do discurso que o considera constituído a partir de uma dada
43
exterioridade, que implica a interpelação dos sujeitos pela ideologia, observamos que sua
proposta vem permeada pela política, ou melhor, pelo marxismo que desemboca na luta de
classes.
Desse modo, é a ideologia que, através do “hábito” e do uso, está designando, ao
mesmo tempo, o que é e o que não deve ser, e isso, às vezes, por meio de “desvios”
lingüisticamente marcados entre a constatação e a norma e que funcionam como um
dispositivo de “retomada de jogo”. É a ideologia que fornece as evidências pelas
quais “todo mundo sabe” o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica,
uma greve, etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado
“queiram dizer o que dizem” e o que mascaram, assim sob a “transparência da
linguagem”, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos
enunciados (PÊCHEUX, 1995, p.160).
Pêcheux reflete sobre uma teoria do discurso na qual o sujeito é interpelado pela
ideologia. Por outro lado, Foucault, a quem recorremos para a sustentação deste estudo, não
tem como objetivo criar uma teoria do discurso e sim “criar uma história dos diferentes modos
pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos” (FOUCAULT, 1995,
p.231). Considerando o tratamento dispensado ao sujeito por Foucault, destacamos que a
presente pesquisa terá como alicerce essa perspectiva, uma vez que a constituição do sujeito,
segundo ele, é permeada por relações de saber e poder.
A obra desse estudioso está dividida em três momentos: o Arqueológico, o
Genealógico e a Ética/Estética da Existência. Considerando que a História Tradicional
preocupa-se em descrever longos períodos da história, estabelecendo relações entre
acontecimentos díspares, além de tentar organizar uma seqüência entre eles, uma das
propostas da Arqueologia consiste em um outro olhar sobre os acontecimentos históricos.
Nesse método, há uma mudança de paradigmas, uma ruptura com a linearidade dos
acontecimentos. A história passa a ser vista como um espaço de lutas, um embate constante
por meio das relações que são instauradas, não como algo factual, mas sim através das
problematizações, posições que podem ser assumidas frente às questões sociais. A
descontinuidade passa a ter fundamental importância para as pesquisas realizadas a partir
deste monumento.
Em A arqueologia do saber (2007, p.18), observamos que a preocupação não é com a
estrutura “confrontada com a gênese do devir”, mas sim com o emaranhado de aspectos, que
envolvem os sujeitos, como sua origem, além de relacionar as práticas discursivas com as
relações econômicas, sociais e jurídicas. Foucault (2007, p.163) aponta que a arqueologia tem
como objetivo:
44
revelar a regularidade de uma prática discursiva que é exercida do mesmo modo,
por todos os seus sucessores menos originais, ou por alguns de seus predecessores;
prática que dá conta, na própria obra, não apenas das afirmações mais originais (e
com as quais ninguém sonhara antes deles), mas das quais eles retornaram, até
recopiaram de seus predecessores.
O que interessa para o arqueólogo não é descobrir o que há de verdadeiro ou falso em
uma dada proposição, mas sim destacar o que possibilitou seu surgimento.
O segundo momento de suas pesquisas é a fase Genealógica que traz à tona a
constituição dos sujeitos a partir de uma dada historicidade, que é instaurada em nossa
sociedade, através de estratégias de poder-saber
6
. Foucault (1995) aponta que para
compreendermos os mecanismos de poder é necessário observarmos as práticas discursivas
que surgem a partir das relações instauradas entre a ciência e as posições dos sujeitos. Assim
deparamos não com um sujeito e suas características à parte das relações sociais instauradas
na sociedade, mas sim um sujeito inserido nessas lutas, embates e tensões surgidas no
decorrer das relações estabelecidas. Segundo Araújo (2001, p.94):
O sentido encontra-se na superfície. Como entender que a genealogia seja
interpretação? Trata-se, de acordo com Dreyfus e Rabinow, “de uma interpretação
histórica orientada em direção à análise pragmática.” Quer dizer, pensamos que há
conceitos e significados permanentes, valores eternos, verdades assentadas. Mas
estas são interpretações impostas que acabaram produzindo efeitos em termos de
poder e saber institucionalizados ou não. Estes efeitos serão descritos pelo
genealogista. Ele sabe que não há interpretação, pois tudo foi ou é interpretação. A
essência última ou a palavra final acabou servindo como interpretação
predominante: mas não passam de interpretação.
A genealogia tem como principal objetivo estudar na história e historicamente os
mecanismos, forças, dispositivos, aparelhos, instituições, que sobre os corpos originam
efeitos. Sendo eles analisados na sexualidade, nas doenças, no direito, na medicina entre
outros. De acordo com Foucault (2005), através das relações instauradas nesses espaços,
6
O saber para Foucault não é aquele apreendido nas escolas, o do conhecimento, e sim, um saber posto pelos
sujeitos que não fazem parte dos grandes acontecimentos históricos. É a condição para exercer o poder e para
que se instaurem as relações de poder, condição para agir e mover minimamente, é o que possibilita que os
sujeitos façam coisas. Segundo Revel (2005, p.78): “A articulação poder/saber(es) será, portanto, dupla: “poder
de extrair dos indivíduos um saber sobre esses indivíduos submetidos ao olhar e já controlados.” Tratar-se-á, por
conseqüência, de analisar não somente a maneira pela qual os indivíduos tornam se sujeitos de governo e objetos
de conhecimento, mas também a maneira pela qual acaba-se por exigir que os sujeitos produzam um discurso
sobre si mesmos
sobre suas existência, sobre seu trabalho, sobre seus afetos, sobre sua sexualidade etc. a fim
de fazer da própria vida, tornada objeto de múltiplos saberes, o campo de aplicação de um biopoder.
45
podemos compreender o sujeito inserido na sociedade disciplinar, normalizado e dividido. A
partir da instauração do sujeito como uma instância social, podemos problematizar a
estruturação da sociedade.
O corpo: superfície de inscrições dos acontecimentos (enquanto que a linguagem os
marca e as idéias se dissolvem), lugar de dissociação do Eu que supõe a quimera de
uma análise da proveniência, está portanto no ponto de articulação do corpo com a
história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história
arruinando o corpo (FOUCAULT, 1995, p.22).
Partindo dos estudos realizados sobre o poder, Foucault problematiza sua terceira fase
que é a Ética/Estética da existência. Nesse momento de seu trabalho, procura estudar as
escolhas dos sujeitos, sobre a repressão, questionando não o porquê da repressão, mas sim o
motivo que nos leva a afirmar com tanto afinco que somos reprimidos. Pesquisa ainda o
regime de poder-saber-prazer que sustenta o funcionamento do sexo. Segundo Foucault,
somos reprimidos sexualmente e buscando uma verdade
7
sobre o sexo nos libertaríamos de tal
repressão:
A causalidade do sujeito, o inconsciente do sujeito, a verdade do sujeito no outro
que sabe, o saber, nele, daquilo que ele próprio ignora, tudo isso foi possível
desenrolar-se no discurso do sexo. Contudo, não devido a alguma propriedade
natural inerente ao próprio sexo, mas em função das táticas de poder que são
imanentes a tal discurso (FOUCAULT, 2007, p.80).
Os modos de subjetivação consistem na maneira com a qual o sujeito estabelece
relação com tais regras de constituição. Pensando nessa questão, Foucault embasa sua
pesquisa na elaboração de um trabalho ético sobre si. Em sua proposta, observamos a
preocupação com a moral, destacando que sua constituição apresenta dois aspectos
fundamentais: os códigos de comportamentos e as formas de subjetivação.
7
Em nossas sociedades, a economia política da verdade tem cinco características importantes: “‘a verdade’ é
centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem; está submetida a uma constante
incitação econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o poder
político); é o objeto, de várias formas, de uma intensa difusão e imenso consumo (circula nos aparelhos de
educação ou de informação, cuja extensão do corpo social é relativamente grande, não obstante algumas
limitações rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de algumas
limitações rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes
aparelhos políticos e econômicos (universidade, exército, escritura, meios de comunicação); enfim, é objeto de
debate político e de confronto social (as lutas ideológicas)” (FOUCAULT, 2002, p.19).
46
Ao dividir a obra de Foucault em três épocas, temos alguns problemas e dúvidas, pois,
segundo Rabinow
(1991, p.352)
:
Três domínios da genealogia são possíveis. Primeiro, a ontologia histórica de nós
mesmo ou mesmos? na relação com a verdade através da qual nos constituímos
como sujeitos do conhecimento, segundo, a antologia histórica de nós mesmos em
relação ao campo de poder através do qual nos constituímos como agentes morais.
São possíveis, então, três eixos para a genealogia. Todos os três estiveram presentes,
ainda que de forma confusa, na “História da loucura”. O eixo da verdade foi
estudado no “Nascimento da clínica” e nas palavras e as coisas. O eixo do poder foi
estudado em “Vigiar e punir”, e o eixo ético na História da sexualidade.
Nosso objetivo ao trazer essas considerações para este trabalho não foi problematizar
as fases da pesquisa de Michel Foucault. Retomamo-las com o objetivo de pontuar que a
questão do sujeito espraia por toda obra de Foucault bem como a relação instaurada entre esse
sujeito e o poder. Observamos que, em alguns momentos, essas considerações aparecem em
seu trabalho de forma velada, mas nunca deixaram de ser estudadas. Sendo assim, os textos
foucaultianos são essenciais para o nosso estudo, pois nossa atenção terá como foco o sujeito
discursivo Cipriano Algor e a constituição de sua subjetividade a partir da relação de poder
instaurada entre ele e o “Centro de Compras”.
O sujeito não é idealizado, individualizado, nem fonte absoluta de seus dizeres e não o
reconhecemos por meio dos elementos gramaticais. Sua fala se constitui por um conjunto de
vozes sociais, bem como do entrecruzamento de diferentes discursos que remetem para o
lugar sociocultural e histórico no qual está inserido. O sujeito tem a ilusão de que possui o
domínio sobre seus dizeres, mas isso não passa realmente de uma ilusão, pois quem determina
o que pode e vai ser dito é o lugar sócio-histórico no qual o sujeito está inserido.
Para a AD, o que se tem é um sujeito descentrado, clivado, heterogêneo, apreendido
em um espaço coletivo, não sendo constituído por uma individualidade e sim a partir de uma
coletividade que o subjetiva. De acordo com Fernandes (2005, p.34):
Com isso, afirmamos que o sujeito, mais especificamente o sujeito
discursivo, deve ser considerado sempre como um ser social, aprendido em
um espaço coletivo, portanto, trata-se de um sujeito não fundamentado em
uma individualidade, em um “eu” individualizado, e sim em um sujeito que
tem existência em um espaço social e ideológico, em um dado momento da
história e não em outro.
47
O sujeito não é dado a priori, mas sim constituído a partir de uma exterioridade que
está margeada por relações de saberes e poderes. Essas relações são observadas enquanto
elementos constitutivos de uma exterioridade e não com o objetivo de serem analisadas por si.
Em As palavras e as coisas (2002), deparamos com algumas considerações que
servirão como exemplo para o mencionado anteriormente. De acordo com Foucault (2002), os
sujeitos ao ordenarem determinadas coisas têm a ilusão de que conseguem abarcar todos os
sentidos. Sendo assim, ao observarmos a constituição de Portugal, verificamos que por muito
tempo essa nação teve a hegemonia das navegações; é um país que conquistou inúmeros
territórios. Até esse ponto não temos problemas, pois essas considerações são aparentemente
organizadas, a história tradicional traz de maneira detalhada os grandes feitos portugueses.
Mas ao determos um pouco mais a nossa atenção, observaremos alguns detalhes que não
aparecem nesses enunciados, mas estão presentes por conta da historicidade a qual os
constitui. Nessa direção, destacamos algumas considerações de Foucault (2002, p.XVI) sobre
a ordem:
A ordem é ao mesmo tempo aquilo que se oferece nas coisas como sua lei interior, a
rede secreta segundo a qual elas se olham de algum modo uma às outras e aquilo
que só existe através do crivo de um olhar, de uma atenção, de uma linguagem; é
somente nas casas brancas desse quadriculado que ela se manifesta em profundidade
como já presente, esperando o momento de ser enunciadas.
A
citação acima abre caminhos para buscarmos no exemplo mencionado “as casas
brancas” que possibilitam um determinado enunciado não ser mais aparentemente organizado.
Quem é o povo português? Eles são independentes? O que eles conquistaram? Vamos além
ainda, como conquistaram outros territórios, se há dúvidas com relação ao próprio território?
Saramago (1998, p.32) traz algumas considerações que nos dão uma dimensão da
complexidade que envolve a constituição dos portugueses:
Desde que fez o sermão aos peixes, desde o Menino Jesus da Cartolinha, o viajante
preocupa-se com a possibilidade de incidentes fronteiriços: “Como é isso aqui?
Dão-se bem com os espanhóis?” A informante é uma velha de grande antiguidade
que nunca dali saiu, e por isso sabe do que fala: “Sim senhor. A gente até tem terras
do lado de lá”. Confunde-se o viajante com esta imprecisão de espaço e
propriedade, e torna a ficar confundido quando outra velha menos velha acrescenta
tranquilamente: “E eles também têm terra do lado de cá.” Aos seus botões, que lhe
não respondem, o viajante pede auxílio de entendimento. Afinal de contas, onde está
48
a fronteira? Como se chama este país, aqui? Ainda é Portugal? Já é Espanha? Ou é
só Rio de Onor, e nada mais do que isso?
Nessas questões, observamos emergirem outros aspectos que são constituídos a partir
das relações estabelecidas. Elementos vindos de vários pontos que mostram que a colonização
portuguesa e a constituição do povo português vão além do que é relatado na história
tradicional, pois são permeadas pelo poder e saber, subjetivando os sujeitos envolvidos.
Partiremos desse exemplo e das considerações de Foucault para refletirmos sobre a
constituição do sujeito Cipriano Algor. Geralmente, temos a ilusão de que os sujeitos são
constituídos como sujeitos através de uma dada “ordem” e quando posicionam frente a
determinadas situações, aquilo enunciado por eles é proveniente somente de si.
Portanto, o sujeito é constituído por diversas vozes sociais, que marcam a relação
conflituosa que é estabelecida por meio da linguagem. Temos, assim, elementos provenientes
da história e da memória permeando o espaço discursivo.
1.1.4 Memória e AD
Cunhado por Courtine em 1981 a partir dos estudos realizados por Foucault, o
conceito de memória discursiva é compreendido como o que possibilita a toda formação
discursiva produzir e reproduzir formulações anteriores, que em algum momento histórico já
foram enunciadas. Segundo Gregolin (2007, p.71):
As redes de memórias, sob diferentes regimes de materialidade, possibilitam o
retorno de temas e figuras do passado, os colocam intensamente na atualidade,
provocando sua emergência na memória do presente. Por estarem inseridos em
diálogos interdiscursivos, os enunciados não são transparentes legíveis, são
atravessados por falas que vêm de seu exterior – a sua emergência no discurso vem
clivada de pegadas de outros discursos.
A memória discursiva está associada às condições de produção dos discursos. Segundo
Paveau (2007, p.241):
49
A memória no discurso (a expressão é nossa) sob forma discursiva ou
interdiscursiva está, com efeito, estritamente ligada às condições sócio-históricas e
cognitivas de produção dos discursos, que participam da elaboração e da circulação
das produções verbais de sujeitos social e culturalmente situados.
O sujeito tem seu discurso constituído pela memória discursiva, pois ele traz em seu
discurso marcas de algo já vivenciado. Segundo Pesavento (2007, p.41):
É sempre um sujeito que rememora, como aponta Bérgson, um indivíduo que evoca
o tempo do vivido, que resgata lembranças, de forma seletiva, e que também
esquece e exclui, de forma consciente ou inconsciente. Mas, pondera Fernando
Catroga, mesmo a memória individual é formada pela coexistência, tensional e nem
sempre pacífica, de várias memórias (pessoais, familiares, grupais, regionais,
nacionais, etc.) em permanente construção devido à incessante mudança do presente
em passado e as conseqüentes alterações ocorridas no campo das re-presentações do
pretérito.
A noção de memória discursiva exerce, portanto, uma função ambígua no discurso, na
medida em que recupera o passado e, ao mesmo tempo, o elimina com o apagamento que
opera.
Ela repete um deslocamento não-conhecido, não reconhecido, que desloca no
enunciado, uma repetição que é simultaneamente presente/ausente nas séries de
formulações, ausente porque funciona como um modo de não – reconhecimento e
presente em seu efeito, a repetição na ordem de uma memória lacunar (COURTINE,
2006, p.81).
A memória apresentada por Courtine (2006, p.79) é uma memória coletiva, segundo
ele, uma “memória de todos”. Ela está muito próxima do conceito de interdiscurso,
compreendido como o que “permite ao sujeito o retorno e o reagrupamento de enunciados
assim como seu esquecimento e apagamento” (COURTINE, 2006, p.79).
Para compreendermos melhor essa relação precisamos ir aos estudos realizados por
Pêcheux, mais especificamente em Semântica e discurso (1995), quando trata do
interdiscurso. Essa questão está relacionada com o pré-construído, apresentado como o que
fornece aos sujeitos, enunciados variados provenientes de espaços enunciativos diferentes. De
acordo com Pêcheux (1995, p.162), o “todo complexo com dominante” das formações
discursivas – submetido à lei de desigualdade e contradição-suborninação – caracteriza o
complexo das formações ideológicas. O interdiscurso é um espaço no qual os sentidos se
50
contradizem, pois temos uma relação de semelhança e dessemelhança entre eles. Assim,
quando analisamos determinado discurso não podemos deixar de atentar para a historicidade
que o permeia.
Partindo da afirmação de Pêcheux, Courtine (2006, p.18) amplia o conceito
estabelecendo um elo com a proposta foucaultiana. Designando assim como interdiscurso:
série de formulações marcando, cada uma, enunciações distintas e dispersas,
articulando-se entre elas em formas lingüísticas determinadas (citando-se,
repetindo-se, parafraseando-se, pondo-se entre si, transformando-se ... ) É nesse
espaço interdiscursivo, que se poderia denominar, seguindo M. Foucault, domínio
de memória, que constitui a exterioridade do enunciável para o sujeito enunciador
na formação dos enunciados “pré-construídos”, de que sua enunciação se apropria.
Ao propor o interdiscurso como uma função domínio de memória, Courtine (1999)
traz à tona a seguinte questão: quando escolhemos um dado enunciado, não somos nós que o
elegemos, a nossa escolha é oriunda de um domínio de memória que apresenta em seu interior
uma historicidade marcada pela descontinuidade. Gregolin (2003, p.26) assegura que:
A condição essencial da produção e da interpretação de uma seqüência não é
inscritível na esfera individual do sujeito psicológico: ela resiste, de fato, na
existência de um corpo sócio-histórico de traços discursivos que constitui o espaço
de memória de seqüência. O termo interdiscurso caracteriza esse corpo de traços
como materialidade discursiva, exterior e anterior à existência de uma seqüência
dada, na medida em que essa materialidade intervém na sua construção. O não-dito
da seqüência não é então, reconstruível na base de operações lógicas internas; ele
envia a um já-dito, a um dito alhures: por isso, a noção discursiva de “pré-
construído” deve ser distinguida da noção de lógica de “pressuposição”, da mesma
maneira que a noção discursiva de “discurso-transverso” deve ser distinguida da
noção de lógica de implicação.
Portanto, ao olharmos para o sujeito discursivo, devemos considerá-lo constituído por
uma exterioridade que traz elementos do sócio-histórico que constituem o sentido. Sendo
permeados, de acordo com Foucault, por relações de poder e saber.
51
Uma breve conclusão
Neste momento da pesquisa, atentamos para o fato de que o sujeito não é fonte de seus
dizeres, ele vai construindo seu discurso retomando elementos anteriores e exteriores a ele;
contrapondo discursos produzidos em diferentes momentos sócio-históricos, ideologicamente
marcados, produtos de uma dada exterioridade que corroboram para a constituição discursiva
do sujeito.
Retomando a questão do sujeito discursivo Cipriano Algor, bem como as relações
estabelecidas entre ele e as condições de produção de seu discurso, não podemos deixar de
fazer uma breve incursão pelo momento histórico no qual está inserido.
Atualmente, por conta dessa sociedade pós-moderna capitalista, observamos que os
sujeitos estão, a cada dia que passa, apresentando novas e variadas dificuldades para
constituírem sua identidade. A sociedade dita normas que fazem com que os sujeitos tornem-
se escravos do consumo exagerado e sintam simultaneamente, por conta dos altos índices de
violência, uma necessidade exacerbada de “proteção”. Com isso, atentamos para o fato de que
a procura de lugares que possibilitem a oportunidade de consumirem e sentirem protegidos
aumentou muito nos últimos tempos. Em A caverna (2000), o lugar eleito para saciarem
essas duas necessidades foi o “Centro de Compras”.
As relações sociais tornaram-se fragmentadas e efêmeras, há uma instabilidade
pairando no ar a todo instante; os sujeitos estão a cada dia mais envoltos por essa
instabilidade. Tendo em vista essa insegurança, notamos que há uma busca por uma “suposta”
segurança, nem que para isso tenhamos que abrir mão de determinados valores. Cipriano, em
meio a essas dúvidas, prefere ter uma existência instável a ficar no “Centro de Compras” onde
teria essa suposta segurança.
Segundo Bauman (2000, p.37): “ser moderno passou a significar, como significa hoje
em dia, ser capaz de parar e ainda menos capaz de ficar parado.” E isso ocorre, pois não
somos capazes, ou melhor, nunca teremos condições “de atingir a satisfação: o horizonte da
satisfação, a linha da chegada do esforço e o momento da auto-congratulação tranqüila
movem-se rápido demais”.
Cipriano Algor é um sujeito que foge aos padrões de “normalidade” em nossa
sociedade, pois ele questiona a atitude dos demais sujeitos frente ao exagerado consumismo.
Bauman (2000, p.30) chama a atenção com a seguinte colocação:
52
O que está errado com a sociedade em que vivemos, disse Cornelius Castoriadis, é
que ela deixou de se questionar. É um tipo de sociedade que não mais reconhece
qualquer alternativa para si mesma e, portanto, sente-se absolvida do dever de
examinar, demonstrar, justificar (e que dirá provar) a validade de suas suposições
tácitas e declaradas.
Vivemos em uma sociedade na qual os sujeitos acreditam em uma liberdade, mas essa
“suposta” liberdade camufla vários aspectos que mostram que ela está envolta por relações de
poder que demonstram a não liberdade dos sujeitos. Apesar de depararmos com essa situação
observamos que os sujeitos não às questionam, aceitam “as verdades” ditadas por uma
sociedade capitalista e consumista. Cipriano Algor interroga e não aceita essas “normas”
ditadas pelo poder e é isso que o faz diferente dos demais sujeitos.
CAPÍTULO II
Michel Foucault: o poder e a constituição do sujeito
Afinal, somos julgados, condenados, classificados,
Obrigados a desempenhar tarefas e destinados a
um certo modo de viver ou morrer em função dos
discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos
específicos de poder. (Foucault)
2.1 O sujeito e poder em Foucault
Segundo Foucault (2007), toda experiência que concretiza uma subjetividade envolve
modos historicamente peculiares, sendo os saberes e os poderes responsáveis por constituir os
processos de subjetivação. Milanez (2004, p.184), a partir dos escritos de Foucault, tece o
seguinte comentário:
É, então, possível destacar três balizas no processo de subjetivação: a) um ser-saber,
determinado pelas duas formas que assumem o visível e o enunciado num momento
marcado; b) o ser-poder, determinado nas relações de força, variável de acordo com
a época; c) o ser-si, determinado pelo processo de subjetivação.
Nos escritos de Foucault, observamos que a questão do poder nunca foi retratada em
um livro específico, entretanto esse assunto se espraia ao longo de sua escritura. Nesse
sentido, em seus estudos sobre as prisões, sobre os asilos e sobre o sujeito, a questão do poder
esteve sempre presente. No apêndice do livro Michel Foucaultpara além do estruturalismo
e da hermenêutica (1995a), nos deparamos com um artigo de Foucault intitulado O sujeito e o
poder, no qual sucintamente retoma a questão do poder e enfatiza que suas pesquisas tinham
como objeto o sujeito e como as relações de poder corroboram para a sua constituição. Para
descobrir como essas relações são constituídas, observou-as na criminalidade, na loucura, na
família, no sexo, etc., buscando responder a seguinte questão: quais foram as estratégias de
poder empregadas nesses meios com o objetivo de constituir a subjetividade dos sujeitos?
Foucault (1995a, p.231) aponta qual foi seu objeto de estudo ao longo dos seus vinte anos
dedicados à produção acadêmica: não foi analisar o fenômeno do poder nem elaborar os
54
fundamentos de tal análise. Meu objetivo, ao contrário, foi criar uma história dos diferentes
modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos.” Segundo
Machado (1995, p.X):
O que significa dizer que suas análises não consideram o poder como uma realidade
que possua uma natureza, uma essência que ele procuraria definir por suas
características universais. Não existe algo unitário e global chamado poder, mas
unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder
não é objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída
historicamente. Esta razão, no entanto, não é suficiente, pois, na realidade, deixa
sempre aberta a possibilidade de se procurar reduzir a multiplicidade e a dispersão
das práticas de poder através de uma teoria global que subordine a variedade e a
descontinuidade.
O poder sempre ocupou um lugar de destaque na reflexão sobre o sujeito, uma vez que
esteve freqüentemente presente nas atitudes dos homens de todos os tempos, apresentando
características peculiares, mas nunca deixando de ser um território de conflitos, lutas e
embates, não sendo uma coisa enrijecida e estável. O poder no discurso é sempre resultado de
processos dinâmicos, incessantes e instáveis, o sentido nunca se fecha, esse é um princípio
fundamental. Foucault (2006, p.10) pontua que:
Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o
atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e o poder. Nisto não
há nada de espantoso, visto que o discurso - como a psicanálise nos mostrou – não é
simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo, é também, aquilo que o
objeto do desejo; e visto que – isto a história não cessa de nos ensinar - o discurso
não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual não queremos apoderar.
Nesse mesmo estudo, Foucault (2006, p.89) esclarece que o poder não mantém
nenhum contato com conceitos de estado, soberania, lei e dominação, para ele, o poder deve
ser visto como uma relação de forças que se chocam e se embatem a todo o momento, criando
“cadeias ou sistemas, ou ao contrário, as defasagens e contradições que isolam entre si”.
O poder para Foucault (1982, p.243) é “uma ação sobre outra ação possível”. Isso quer
dizer que o poder não pode ser encontrado em uma substância, pois não o temos, exercemo-
lo. Ele é efetivado somente entre sujeitos, não temos um poder localizado em um ponto
específico na sociedade, o que encontramos é uma rede de mecanismos que envolvem todos
55
os sujeitos, não havendo, assim, limites para a sua disseminação. Foucault (1995, p.8) afirma
que alguns estudiosos cometem um erro:
o de supor, no fundo, o que o sujeito humano, o sujeito do conhecimento, as
próprias formas do conhecimento são de certo modo dado prévia e definitivamente,
e que as condições econômicas, sociais e políticas da existência não fazem mais do
que depositar-se ou imprimir-se ou se imprimir nesses sujeitos definitivamente
dados.
Atentando para a constituição das relações de poder ao longo dos tempos, observamos
que elas sofreram algumas modificações, assim como a sociedade. Como exemplo,
mencionaremos a relação de poder no período feudal e outros. Foucault (1999, p.116)
assevera que “o poder feudal se exerce sobre os homens na medida em que pertencem a uma
certa terra. A inscrição geográfica local é um exercício de poder”. Ele é exercido sobre os
homens através de sua localização.
Foucault (1995a, p.236) apresenta três tipos de lutas inerentes ao sujeito e ao poder,
são elas:
Contra as formas de dominação (étnica, social e religiosa); contra as formas de
exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem, ou contra aquilo
que liga o indivíduo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a sujeição,
contra as forças de subjetivação e submissão). Acredito que na história podemos
encontrar muitos exemplos destes três tipos de lutas sociais, isoladas umas das
outras ou misturadas entre si. Porém, mesmo quando estão misturadas, uma delas,
na maior parte do tempo, prevalece. Por exemplo, nas sociedades feudais as lutas
contra as formas de dominação étnica ou social prevaleciam, mesmo que a
exploração econômica possa ter sido muito importante como uma das causas de
revolta.
Foucault (1995a) pontua que o Estado Moderno Ocidental agregou juntamente com
suas técnicas de poder o pastoral. Essa forma de poder tem como objetivo possibilitar a
salvação do indivíduo no outro mundo, exigindo assim, alguns sacrifícios em benefício da
salvação e da vida eterna. Há uma preocupação individual com cada sujeito e para exercê-lo
faz-se necessário um conhecimento íntimo da mente humana, pois é preciso explorar os
segredos mais escondidos de cada indivíduo. De acordo com ele:
56
E isto implica que o poder do tipo pastoral, que durante séculos __ por mais de um
milênio __ foi associado a uma instituição religiosa definida, ampliou-se
subitamente por todo o corpo social; encontrou apoio numa multiplicidade de
instituições. E, em vez de um poder pastoral e de um poder político, mais ou menos
ligados um ao outro, mais ou menos rivais, havia uma “tática” individualizante que
caracterizava uma série de poderes: da família, da medicina, da psiquiatria; da
educação e dos empregadores (FOUCAULT, 1995a, p.238).
De acordo com Foucault (2007), o poder do soberano se constitui a partir da relação
entre o rei e seus súditos, apresentando como objetivo central o direito sobre a vida ou a morte
de seus vassalos. Essa forma de governar teve como fundamento a “velha pátria potestas que
concedia ao pai de família romano o direito de ‘dispor’ da vida de seus filhos e de seus
escravos; podia retirar-lhe a vida, já que tinha dado” (FOUCAULT, 2007a, p.147). O
soberano tinha o direito sobre a vida de seus súditos, podendo expô-la em uma guerra ou
matando-o caso desejasse descartá-lo. “Encarando nestes termos o direito da vida e morte já
não é um privilégio absoluto: é condicionado à defesa do soberano e à sua sobrevivência
enquanto tal” (FOUCAULT, 2007, p.147).
A partir da época clássica, esse tipo de relação, que até então era referência, passou a
ser mais uma dentre as novas técnicas que surgiram com o objetivo de incitar o poder sobre os
sujeitos. Neste momento, deparamos-nos com “um poder destinado a produzir forças, a fazê-
las crescer e a ordená-las mais do que barrá-las, dobrá-las ou destruí-las” (FOUCAULT,
2007, p. 148). O direito que o soberano detinha sobre a vida de seus súditos desloca para “o
direito do corpo social de garantir sua própria vida, mantê-la ou devolvê-la” (FOUCAULT,
2007, p.149). Ele considera que, apesar dessa mudança, as guerras ocorridas a partir do século
XIX foram mais sangrentas que qualquer outro período que as antecedeu.
A situação atômica se encontra hoje no ponto de chegada desse processo: o poder
de expor uma população à morte geral é o inverso do poder de garantir a outra sua
permanência em vida. O princípio: poder matar para poder viver, que sustentava a
tática dos combates, torna-se princípio de estratégia entre Estados; mas a
existência em questão já não é aquela
jurídico
da soberania, é outra
biológica
de uma população (FOUCAULT, 2007, p.149).
Quando comparamos o poder da soberania com o poder disciplinar, notamos algumas
diferenças que devem ser mencionadas. No primeiro caso, o poder se materializa na pessoa do
rei, que se apropria e desfruta dos bens e das riquezas dos súditos; já o poder disciplinar não
57
se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade. Para Foucault (2001,
p.143): “o poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e retirar, tem
como função maior adestrar; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e
melhor”. Essa modalidade disciplinar de poder aumenta a utilidade do indivíduo, uma vez que
crescem suas habilidades e aptidões e, conseqüentemente, seus lucros e rendimentos,
promovendo o aumento da produção e do desenvolvimento econômico.
As disciplinas, organizando as celas, os lugares e as fileiras criam espaços
complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços
que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e
estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a
obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos
gestos [...]. A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de
“quadros vivos” que transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em
multiplicidades organizadas (FOUCAULT, 2007a, p.135).
Segundo Foucault (2007), para haver o exercício da disciplina
8
sobre os sujeitos será
necessário utilizar uma série de mecanismos. Deparamos com técnicas sutis, mas que têm sua
relevância, “porque definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo,
uma nova “microfísica” do poder, e porque não cessaram, desde o século XVII, de ganhar
campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro”
(FOUCAULT, 2007b, p.120).
Apresentaremos neste momento algumas considerações foucaultianas acerca da
constituição do poder disciplinar. Para analisar a constituição desse poder, Foucault (2001,
p.79) toma como exemplo a Inglaterra.
8
De acordo com Foucault (2007, p.120), “não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições
disciplinares, no que podem ter cada uma de singular. Mas de localizar apenas uma série de exemplos algumas
das técnicas essenciais que, de uma a outra, se generalizam mais facilmente. Técnicas sempre minuciosas, muitas
vezes íntimas, mas que têm sua importância: porque definem um certo modo de investimento político e
detalhado do corpo, uma nova “microfísica” do poder; e porque o cessaram, desde o século XVII, de ganhar
campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro. Pequenas astúcias dotadas de
um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos
que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza, são eles entretanto que
levaram à mutação do regime punitivo, no limiar da época contemporânea. Descreve-los implicará na demora
sobre o detalhe e na atenção às minúcias: sob as mínimas figuras, procurar não um sentido, mas uma percepção;
recolocá-las não apenas na solidariedade de um funcionamento, mas na coerência de uma tática. Astúcias, não
tanto de grande razão que trabalha até durante o sono e da sentido insignificante, quarto da atenta
“malevolência” que de tudo se alimenta. A disciplina é uma anatomia política do detalhe.”
58
A formação da sociedade disciplinar pode ser caracterizada pelo aparecimento, no
final do século XVIII e início do século XIX, de dois fatos contraditórios, ou
melhor, de um fato que tem dois aspectos, dois lados aparentemente contraditórios:
a reforma, a reorganização do sistema judiciário e penal nos diferentes países da
Europa e do mundo. Esta transformação não apresenta as mesmas formas, a mesma
amplitude, a mesma cronologia nos diferentes países.
Segundo o autor, a partir da segunda metade do século XVIII, constituíram-se naquele
país, na camada mais baixa da sociedade, grupos de pessoas que não possuíam nenhum tipo
de poder, mas que tinham a tarefa de manter a ordem. Para isso, criaram mecanismos que a
asseguravam. O autor aponta como exemplo a Sociedade para a Reforma das Maneiras, que
tinha por objetivo “impedir a classe mais baixa e mais vil de se aproveitar dos jovens em
experiência e lhes extorquir seu dinheiro” (FOUCAULT, 1999, p.90).
Por volta do final do século XVIII, esses grupos foram substituídos por outro,
denominado Sociedade da Proclamação. Em 1802, há uma modificação em sua estrutura
recebendo o nome de Sociedade para a Supressão do Vício cuja meta era “fazer respeitar o
domingo, impedir a circulação de livros licenciosos e obscenos, introduzir ações na justiça
contra a má literatura e mandar fechar as casas de jogo e de prostituição” (FOUCAULT,
1995, p.91).
Para finalizar, aponta as sociedades propriamente econômicas, que consistiam na
união das grandes sociedades comerciais formando uma polícia privada. O objetivo era
“defender seu patrimônio, seu estoque, suas mercadorias, os barcos ancorados no porto de
Londres, contra os amotinadores, o banditismo, a pilhagem cotidiana, os pequenos ladrões”
(FOUCAULT, 1995, p.92).
Foucault (1995) afirma que esses grupos surgiram, pois a sociedade, naquele
momento, estava passando por algumas modificações tais como: a população trocou o campo
pelas cidades, uma nova forma de acumular riquezas, as mercadorias passaram a ser
armazenadas e as máquinas também. Com isso, notou-se que havia a necessidade de guardar
esses bens, através de uma vigilância que garantisse sua segurança. Outro aspecto que
menciona é o surgimento das revoltas urbanas, populares e camponesas, conseqüência da
mudança política pela qual passava aquele período.
Observando a história da evolução desses movimentos, o pesquisador observou que
houve três deslocamentos ao longo de suas constituições, conforme pontuaremos a seguir:
* o objetivo do grupo era manter a ordem, mas na verdade esse objetivo omitia um
outro que era fugir do poder político que tinha como apoio o poder penal. Inicialmente, quem
59
comandava esses grupos eram sujeitos populares, mas no decorrer do século XVIII, quem
assume são os sujeitos pertencentes à classe alta;
* o segundo deslocamento está associado com a troca acima, pois a partir dela o
objetivo que até então era de manter a ordem, passa a “obter do poder político novas leis que
ratificaram esse esforço moral. Tem-se assim um deslocamento da moralidade à penalidade”
(FOUCAULT, 1999, p.93);
* o poder passa da classe mais baixa para a alta, de acordo com Foucault (1995), a
classe mais rica passa a exercer um poder sobre a mais pobre. Com isso,
podemos observar nesta estatização progressiva, neste deslocamento das instâncias
de controle das mãos dos grupos da pequena burguesia tentando escapar ao poder
para as do grupo social que detém efetivamente o poder, em toda essa evolução,
como se introduz e se difundi em um sistema penal estatizado
que ignorava por
definição a moral e pretendia cortar os laços com a moralidade e a religião
uma
moralidade de origem religiosa. A ideologia religiosa, surgida e fomentada nos
pequenos grupos quakers, metodistas, etc., na Inglaterra no final do século XVII,
vem agora despontar, no outro pólo, na outra extremidade da escala social, do lado
do poder, como instrumento de controle de cima para baixo. Auto-defesa no século
XVII, instrumento de poder no início do século XIX (FOUCAULT, 1999, p.95).
Foucault (1999
),
no mesmo texto, afirma que, na França, a constituição do poder foi
diferente, apesar de ambos serem regidos pela monarquia, pois:
Esse forte aparelho do estado monárquico na França estava apoiado em um duplo
instrumento: um instrumento judiciário clássico
os parlamentares, as cortes, etc.
e um instrumento para judiciário
a polícia
cuja invenção é privilegio da França.
Uma polícia montada, os tenentes de polícia; que era dotada de instrumentos
arquiteturais como a Pastilha, Bicêtri, as grandes prisões, etc., que possuía também
seus aspectos institucionais como a curiosa lettres-de-cachet.
A lettres-de-cachet não era uma lei ou decreto, mas uma ordem do rei que concernia
a uma pessoa, individualmente, obrigando-a a fazer alguma coisa. Podia-se até
mesmo obrigar alguém a se casar pela lettres-de-cachet. Na maioria das vezes,
porém, ela era um instrumento de punição (FOUCAULT, 1995, p.95).
As lettres-de-cachet eram um grande instrumento do poder monárquico da França.
Através delas os sujeitos podiam ser presos, exilados e outras condenações podiam ser
praticadas. Foucault (1995) examinou uma quantidade numerosa delas e observou que na
maioria dos casos as cartas não eram enviadas por causa do interesse da monarquia e sim por
60
conta dos interesses de sujeitos comuns que por algum motivo sentiam-se prejudicados. Elas
caracterizavam-se por um “poder que vinha de baixo e que permitia aos grupos, comunidades,
famílias ou indivíduos exercer um poder sobre alguém” (FOUCAULT, 1995, p.97).
Esse tipo de punição também foi utilizado para condenar a conduta imoral; para
sermos mais claros, interditar o sujeito que fugisse ao que a igreja determinava. Nesse caso,
os condenados eram os “feiticeiros”. As cartas serviam ainda para resolver problemas entre
patrões e empregados. Foucault (1995, p.98) assevera que “a prisão, que vai se tornar a grande
punição do século XIX, tem sua origem precisamente nesta prática para-judiciária da lettres-
de-cachet, utilização do poder real pelo controle espontâneo dos grupos”.
Foucault (1995, p.102) elabora a seguinte questão: “por que o poder ou aqueles que o
detinham retomaram esses mecanismos de controle situados ao nível mais baixo da
população?” Ele a responde logo a seguir afirmando que por conta das mudanças que
ocorreram e a instauração do sistema capitalista, essa modificação foi necessária, pois “na
verdade, o que surge na Inglaterra do fim do século XVIII, aliás também na França, é o fato
da fortuna, da riqueza se investir cada vez mais no interior de um capital que não é mais pura
e simplesmente monetário” (FOUCAULT, 1995, p.100).
Essa nova maneira de acumular a riqueza abre precedente para a sua depredação, e é
isso que acontece: os sujeitos de baixa renda passam a atacar essas formas de conservar a
riqueza. Isso ocorreu, pois esses sujeitos têm “uma espécie de contato direto, físico com a
fortuna, com a riqueza” (FOUCAULT, 1995, p.101). Nesse momento, tem-se a necessidade
de criar mecanismos de controle que inibam ou punam quem ameaçar a riqueza que está nas
mãos de poucos. “É justamente o grande problema do poder na Inglaterra nesta época, é o de
instaurar mecanismos de controle que permitam a proteção dessa nova forma material da
fortuna” (FOUCAULT, 1995, p.101).
Uma outra mudança ocorrida tanto na Inglaterra quanto na França é a relacionada com
as propriedades rurais. Antes, havia grandes propriedades que ficavam sob a responsabilidade
de poucos. A partir daquele momento, elas passam a ter uma pequena extensão, não existindo
grandes áreas sem cultivo, havendo assim, uma fragmentação das mesmas. Com isso, houve a
necessidade de protegê-las contra a depredação. A sociedade disciplinar, segundo Foucault
(1995), surge a partir dessas mudanças. De acordo com ele, “esses novos sistemas de controle
social agora estabelecido pelo poder, pela classe industrial, pela classe dos proprietários foram
justamente tomados dos controles de origem popular ou semi-popular, a que foi dada uma
versão autoritária e estatal” (FOUCAULT, 1995, p.102).
61
Em outro momento de sua pesquisa, a partir das considerações de Bentham sobre o
Panóptico, Foucault (2007a) assevera alguns pontos sobre o poder; por exemplo, como a
arquitetura corrobora para a constituição dos sujeitos. O dispositivo panóptico, como ele
denomina, é a forma como os lugares (prédios), que têm por objetivo disseminar o poder, são
construídos. Partindo de uma estrutura em forma de anel, na qual temos no centro uma torre, e
cujas janelas são dispostas de forma que apenas uma pessoa observe e vigie várias outras ao
mesmo tempo. Essa forma de construção difere das demais, pois não necessita de grades,
correntes, muros altos, fechaduras. Basta apenas iluminação e uma boa organização das
aberturas. “O Panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos,
fabrica efeitos homogêneos de poder” (FOUCAULT, 2007a, p. 167). Sendo, segundo ele, um
produto “da sociedade moderna, industrial, capitalista” (FOUCAULT, 2007a, p.107).
Para haver uma efetiva atuação do poder disciplinar no panóptico, de acordo com
Foucault (2007a), faz-se necessária uma vigilância constante e isso pode ocorrer por
intermédio de três dispositivos disciplinares: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora
e o exame.
O olhar hierárquico é responsável pela produção de efeitos homogêneos de poder,
através do “jogo de olhar” que tem como objetivo fazer-se visto por aqueles que devem
receber as técnicas de coerção, para com isso generalizar a disciplina, expandindo-a para além
das instituições fechadas. A mais importante mecânica de poder que a vigilância traz é, sem
dúvida, aquilo que Foucault (2007a, p.154) considerou uma espécie de “ovo de colombo”.
Esses observatórios têm um modelo quase ideal: o acampamento militar. É a cidade
apressada e artificial, que se constrói e remodela quase à vontade; é o ápice de um
poder que deve ter ainda mais intensidade, mas também mais discrição, por se
exercer sobre os homens de armas. No acampamento perfeito, todo o poder seria
exercido somente pelo jogo de uma vigilância exata; a cada olhar seria uma peça no
funcionamento global do poder. O velho e tradicional plano quadrado foi
consideravelmente afinado de acordo com inúmeros esquemas. Define-se
exatamente a geometria das aléias, o número e a distribuição das tendas, a
orientação de suas entradas, a disposição das filas e das colunas; desenha-se a rede
de olhares que se controlam uns aos outros.
A partir desse momento, a arquitetura não é apenas utilizada na construção de palácios
exuberantes, ela passa a ser uma aliada na constituição de dispositivos que propaguem o
poder. De acordo com Foucault (2007a), o que era usado antes, o velho esquema simples de
62
manter as pessoas encarceradas em espaços que os impedem de entrar ou sair, é substituído
por uma arquitetura que tem como principal função a transformação dos indivíduos. Essas
instituições disciplinares construíram “uma maquinaria de controle que funcionou como um
microscópio do comportamento; as divisões tênues e analíticas por elas realizadas formaram,
em torno dos homens, um aparelho de observação, de registro e treinamento” (2007a, p.146).
O olhar disciplinar é responsável por dois aspectos importantes para a divisão do
poder. O primeiro possibilita que ele se espalhe de forma que não haja lacunas, ou espaços
vazios; e o segundo aspecto é de ser tão discreto que não se tornará um fardo para quem está
recebendo.
De acordo com Foucault (2007b), as oficinas, as escolas, os orfanatos, o exército e
outros são sistemas disciplinares, aplicadores de regras, ou melhor, de mecanismos penais.
Cada um apresentando suas próprias leis com o objetivo de julgar os delitos cometidos pelos
sujeitos inseridos nesses grupos, funcionando assim, “como um pequeno mecanismo penal”
(FOUCAULT, 2007b, p.149). Portanto, a sanção normalizadora é essa forma de vigiar atenta
aos menores detalhes, mas de forma muito discreta.
Essas punições, segundo o autor, são na verdade uma “arte de punir”, não têm como
objetivo a expiação nem muito menos a repressão, na verdade elas efetivam cinco operações
bem claras:
relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto,
que é ao mesmo tempo campo de comparação, um espaço de diferenciação e
princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros
e em função dessa regra de conjunto
que se deve fazer funcionar como base
mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto.
Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o
nível, a “natureza” dos indivíduos. Fazer funcionar, através desta medida
“valorizadora”, a coação de uma conformidade a realizar. Enfim, traçar o limite que
definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal
(a “classe vergonhosa” da Escola Militar). A penalidade perpétua que atravessa
todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara,
diferencia, hierarquiza, homogeneíza, exclui. Em suma, ela normaliza
(FOUCAULT, 2007b, p.153).
Foucault (2007a), mais adiante, comenta que a norma para realmente funcionar precisa
de um sistema igualitário e homogêneo, pois é somente assim, nesse espaço, que as diferenças
vão surgir e o poder atingirá seus propósitos.
63
A combinação das técnicas de hierarquia, do “jogo do olhar” com o controle
normalizante faz com que tenhamos o exame. Por meio da visão que há sobre os sujeitos, eles
são diferenciados e sancionados. Nesse momento, em que deparamos com uma certa
ritualização, é que o poder aflora, mostrando, assim, a dimensão de sua força. Como
exemplos, são apontados os hospitais do século XVIII, quando a visita dos médicos aos
pacientes era muito restrita, até que começa a haver uma modificação, os médicos passam a
visitar mais os doentes, de forma gradativa até chegarmos à presença constante de um médico.
O que era inconstante torna-se constante, assumindo um papel fundamental para o exame.
Destaca que, “nesta técnica dedicada estão comprometidos todo um campo de saber, todo um
tipo de poder” (FOUCAULT, 2007a, p.154).
De acordo com Foucault (2007a, p.157), “o exame supõe um mecanismo que liga
certo tipo de formação de saber a uma certa forma de exercício de poder”. O primeiro
mecanismo é o exame, nele há uma inversão, o poder até então era visto por todos, não havia
uma preocupação em escondê-lo, agora o poder não é visto, ele passa a ser invisível. O que
importa para a disciplina é a atenção dispensada à visão dos sujeitos submetidos a ela, a
atenção é centrada na visibilidade que temos dos sujeitos, a partir dela é que o poder se
manifestará objetivando, organizando e alinhando os sujeitos.
A partir do exame e da vigilância, relatórios, anotações, uma rede de elementos que
possibilitam a criação do que Foucault chama de “poder da escrita” (2007a, p.157), são
organizados seguindo os modelos convencionais da documentação administrativa. Com a
organização e a acumulação dessa documentação, bem como a comparação que há entre ela,
foi possível “classificar, formar categorias, estabelecer médias, fixar normas” (2007b, p.158).
O terceiro mecanismo é o que diz respeito à transformação, por meio de técnicas
documentárias de cada indivíduo, em um caso à parte. O caso passa a ser considerado, não
como era até então, um conjunto de circunstâncias, mas sim “é o indivíduo tal como pode ser
descrito, mensurado, medido, comparado a outros e isso em sua própria individualidade; é
também o indivíduo que tem que ser treinado ou retreinado, tem que ser classificado,
normalizado e excluído” (FOUCAULT, 2007a, p.159).
Foucault analisa a constituição dos sujeitos a partir das relações de poder ao longo dos
tempos e afirma que o poder no Panóptico foi elaborado com o objetivo de vigiar os sujeitos,
principalmente aqueles que tinham cometido algum tipo de crime ou que estavam
trabalhando. As situações evoluem e as técnicas utilizadas para exercer o poder também
sofreram modificações ao longo dos tempos.
64
Observando a forma como o “Centro de Compras”, no romance A caverna (2000),
foi construído, verificamos que há uma grande semelhança entre ele e o Panóptico. A
disposição das janelas, os mecanismos de vigilâncias corroboram para a constituição da
subjetividade dos sujeitos. Porém notamos uma grande diferença entre ambos, no primeiro
caso os sujeitos eram vigiados, pois tinham cometido algum tipo de crime, ou estavam
trabalhando ou estudando e teriam que submeter-se a esse tipo de vigilância. No caso do
“Centro de Compras”, os sujeitos o procuram, querem estar lá, não se importam com a
vigilância, até preferem-na, pois estarão mais “seguros”, uma vez que a violência aumenta
cada dia mais e com isso os sujeitos sentem a necessidade de ter algo que lhes transmita uma
sensação de segurança. A própria propaganda do “Centro” comprova essa afirmação com o
seguinte enunciado: “
VIVA EM SEGURANÇA, VIVA NO CENTRO” (SARAMAGO, 2000,
p.92).
9
A partir do que mencionamos, e do que ainda encontraremos na obra de Michel
Foucault, não poderíamos deixar de destacar as suas palavras que serão reproduzidas logo a
seguir, pois elas dão a dimensão de como as relações de poder estão imbricadas em nossa
existência.
O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação “ideológica” da
sociedade, mas é também uma realidade fabricada por essas tecnologias específicas
de poder que se chama a “disciplina”. Temos que deixar de descrever sempre os
efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”, ”reprime”, “recalca”, “censura”,
“abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade o poder produz; ele produz realidade;
produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que
dele se pode ter se originam nessa produção (FOUCAULT, 2007b, p.161).
As palavras supracitadas chamam a atenção, pois no decorrer dos tempos, segundo
Foucault, multiplicaram-se, em nossa sociedade, instituições que têm como objetivo central
propagar a disciplina, tais como as oficinas, as fábricas, as escolas e as prisões que passam a
constituir seu objeto de estudo em Vigiar e Punir (2007a). Mas essas instituições não podem
ser consideradas fontes ou essências, na realidade são práticas operatórias que têm como
função a reprodução, não existindo um Estado e sim apenas uma estatização. Considerando
seus escritos, a disciplina é responsável por:
9
A análise do enunciado será ampliada no capítulo 3.
65
corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do
corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em
termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz
dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ele procura aumentar, e
inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela
uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força do
produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo
coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada (FOUCAULT,
2007, p.127).
Em um outro momento, na mesma obra, Foucault (2007b) comenta sobre as formas de
sujeição do indivíduo no interior destas práticas disciplinarizantes e das redes discursivas
constituídas pelo poder disciplinador, com o objetivo de direcionar os gestos e
comportamentos dos sujeitos. Segundo ele, é no século XVIII que a preocupação com o corpo
humano aflora, e ela tem como objetivo não o aumento de sua capacidade, mas sim a
constituição de uma relação que faz com que os sujeitos tornem-se mais obedientes, pois
assim serão mais úteis. O poder penetra o corpo humano desarticulando os sujeitos, pois
deparamos com “a mecânica do poder”. “A disciplina fabrica assim corpos submissos e
exercitados, corpos “dóceis”. Ela aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de
utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)” (2007a, p.127).
Foucault (2007a) afirma que o sujeito em qualquer sociedade está exposto ao poder, e
essa exposição limita-o. Ele denomina essas relações – que são constituídas a partir dessa
exposição – como sendo responsáveis pela instauração da docilidade-utilidade dos corpos.
Essa transformação dos corpos instaura-se por intermédio das disciplinas que “dissociam o
poder do corpo; fazem dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ele procura
aumentar; e invertem por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e fazem
dela uma relação de sujeição estrita” (FOUCAULT, 2007a, p.119).
A disciplina é responsável pela distribuição dos sujeitos em um dado espaço, essa não
é articulada de forma aleatória, obedecendo algumas técnicas. Segundo ele, primeiramente
precisamos delimitar o espaço físico que será fechado em si. Como exemplo, aponta os
colégios, os quartéis e outros espaços que são fechados em si e protegidos por muralhas. O
segundo aspecto mencionado por Foucault é que nesses espaços, os sujeitos não têm
totalmente a necessidade de ficar trancafiados, há espaços que podem ser utilizados por todos,
mas obedecendo sempre a máxima de “cada indivíduo em seu lugar” (FOUCAULT, 2007a,
p.123). Com isso, tem-se que tomar alguns cuidados com os seguintes objetivos:
66
Evitar as distribuições por grupos; decompor as implantações coletivas; analisar as
pluralidades confusas, maciças ou fugidias. O espaço disciplinar tende a se dividir
em tantas parcelas quando corpos ou elementos há que repartir. É preciso anular os
efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos,
sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antiserção, de
antivadiagem de aglomeração. Importa estabelecer as presenças e as ausências,
saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis,
interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um,
apreciá-lo, sanciona-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimentos, portanto,
para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico
(FOUCAULT, 2007a, p.124).
Um outro aspecto a ser mencionado é que a disciplina objetiva não deixar nenhum
espaço vazio, espaços que antes estavam desocupados passam a ser ocupados. Como
exemplo, cita o hospital, que mantém sempre a vista os medicamentos.
Registro de sua utilização, um pouco mais tarde, é estabelecido um sistema para
verificar o número real dos doentes, sua identidade, as unidades de onde procedem;
depois regulamentam-se suas idas e vindas, são obrigados a ficar em suas salas; a
cada leito é preso o nome de quem se encontra nele, todo indivíduo tratado é
inscrito num registro que o médico deve consultar durante a visita; mais tarde virão
o isolamento dos contagiosos, os leitos separados (FOUCAULT, 2007a, p.125).
Foucault (1995) assevera que a disciplina é uma técnica remota, sendo encontrada na
antiguidade e na Idade Média, como exemplo, destaca os mosteiros. Por muito tempo ela era
desarticulada e fragmentada, foi somente nos séculos XVII e XVIII que ganhou uma nova
configuração constituída a partir de uma técnica com o objetivo de gerir os sujeitos. Foucault
(1995) aponta como exemplo dessa mudança a escola e o exército. Observa que havia uma
preocupação em distribuir os indivíduos de acordo com os objetivos a serem alcançados, “a
disciplina exerce um controle, não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu
desenvolvimento” (FOUCAULT, 1995, p.106). Na disciplina é de fundamental importância
haver uma vigilância constante, além de exigir um registro contínuo de todos os aspectos que
envolvem os sujeitos. De acordo com Foucault (2007b, p.127):
As disciplinas, organizando as “alas”, os “lugares” e as “fileiras” criam espaços
complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços
que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e
estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a
67
obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos
gestos. São espaços mistos: reais pois que regem a disposição de edifícios, de salas,
de móveis, mas idéias, pois projetam-se sobre essa organização, caracterização,
estimativas, hierarquias. A primeira das grandes operações da disciplina é então a
constituição de “quadros vivos” que transformam as multidões confusas, inúteis ou
perigosas em multiplicidades organizadas.
O poder disciplinar, segundo Foucault (2007b), é conseqüência de um emaranhado de
aspectos que apontam para a vigilância constante dos sujeitos e a sua permanência em um
determinado local.
Foucault (2007b) afirma que no século XIX foi instaurado o espaço da exclusão, pois
deparamos com uma separação entre o ser “normal” e o “anormal”. Os leprosos, mendigos,
doentes loucos e outros eram excluídos, pois não estavam de acordo com a “normalidade”.
Normalidade essa ditada por uma minoria que classificava os sujeitos de acordo com seus
interesses. Segundo Foucault (2007b, p.165), “todos os mecanismos de poder que, ainda em
nossos dias, são dispostos em torno do anormal, para marcá-lo como para modificá-lo,
compõem essas duas formas de que longinquamente derivam”.
O poder está totalmente imbricado em nossas vidas, entretanto nem sempre o
percebemos. Geralmente presenciamos determinadas situações sem nos darmos conta de que
somos constituídos por algo que está além de nós. Um exemplo de como não atentamos para
esse fato é apontado em A verdade e as formas jurídicas (1999), em que Foucault destaca
que suas pesquisas não se preocuparam com a estrutura, mas sim em fazer brotar da história,
que até então estavam escondidas, no caso, as relações de poder.
As questões levantadas nessa obra refletem sobre o que realmente permeia, segundo
ele, a tragédia de Édipo de Sófocles. Afirma que a psicanálise se apropria da tragédia para
explicar o complexo de Édipo. Por meio de uma análise atenta, Foucault vai mostrando que
no decorrer da tragédia o que temos realmente não é um filho apaixonado pela mãe, mas sim
um sujeito que tem como objetivo principal o poder.
No fundo, Édipo representa na peça de Sófocles um certo tipo do que eu chamaria
saber-e-poder, poder-e-saber. É porque ele exerce um certo poder tirânico e
solitário, desviado tanto do oráculo dos deuses que ele não quer ouvir, quanto no
que diz e quer o povo, que, em sua sede de poder e saber, em sua sede de governar
descobrindo por si só, ele encontra, em última instância, os testemunhos daqueles
que viram (FOUCAULT, 1999, p.48).
68
Seguindo esse raciocínio, mas analisando uma outra situação, Foucault (2005) tece
algumas considerações acerca do direito que teve Guilherme sobre o trono da Inglaterra por
volta do final do século XVI. De acordo com o autor, Guilherme teve o direito de assumi-lo,
apesar de não ter lutado por ele, mas o ganhara por indicação. Foucault (2005) questiona
como uma “invasão” funcionou tão bem na Inglaterra, e, em suas considerações, deparamos
com o seguinte questionamento: “Como vocês quereriam __ dizem eles __ que algumas
dezenas de milhares de infelizes normandos, perdidos nas terras da Inglaterra, possam ter-se
mantido nelas e assegurado efetivamente um poder permanente?” (FOUCAULT, 2005, p.122)
Logo a seguir Foucault (2005) assevera que essa “conquista” se concretizou somente
por que o povo daquela região aceitou a “dominação”.
Ora, ao menos num primeiro tempo, não houve grandes revoltas, o que prova bem
que, no fundo os vencidos não se consideram tanto como vencidos e ocupados por
vencedores, mas reconheciam efetivamente nos normandos homens que podiam
exercer o poder. Assim, com essa aceitação, com esse não massacre dos normandos
e com essa revolta, eles validam a monarquia de Guilherme. (FOUCAULT, 2005,
p.122)
Por traz desse “acontecimento” histórico, Foucault (2005) afirma que há muitos
aspectos que devem ser observados, pois não é uma simples tomada de um trono, há um
conjunto de interesses, de relações de poder permeando sua constituição. Foucault (2005,
p.127) assevera que: “as leis são armadilhas: não são de modo algum limites de poder, mas
instrumentos de poder; não são meios de fazer reinar a justiça, mas meios de fazer servir aos
interesses.”
As revoltas não tiveram sucesso neste período, pois havia muitos interesses em jogo,
não era simplesmente uma “guerra” ganha, mas uma propagação de relações de poder que
envolviam interesses da alta sociedade.
Portanto a revolta não vai ser a ruptura de um sistema pacífico de leis por uma causa
qualquer. A revolta vai ser o reverso de uma guerra que governo não pára de travar.
O governo é a guerra de um contra os outros, a revolta vai significar a guerra dos
outros contra uns. É claro, as revoltas até agora não obtiveram resultado __ não só
porque os normandos ganharam, mas também por que as pessoas ricas se
beneficiaram, por conseguinte do sistema normando, e deram, por traição, sua ajuda
ao “normandismo”. Houve a traição dos ricos, houve a traição da Igreja.
(FOUCAULT, 2005, p.129)
69
Trouxemos essas considerações sobre Édipo e o reinado de Guilherme com o objetivo
de atentarmos para o fato de que as relações que aparentemente não têm uma afinidade com a
analítica do poder, na verdade, estão muito mais maculadas por ele do que imaginamos.
Portanto, acontecimentos aparentemente “estabilizados” omitem uma cadeia de micro
relações que estão articuladas com jogos de interesses, enfim o poder. Para percebermos
devemos atentar para os detalhes, pois, como o próprio Foucault (1995, p.248) aponta,
O poder não existe. Quero dizer o seguinte a idéia de que existe em um determinado
lugar, ou emanando de um determinado ponto, algo que é um poder, me parece
baseado em uma análise enganosa e que, em todo caso, não dá conta de um número
considerável de fenômenos. Na realidade, o poder é um feixe de relações mais ou
menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado.
A repressão é disseminada com facilidade em nossa sociedade, pois o poder tem uma
visão global de todas as relações. Atualmente, temos várias categorias profissionais que
passam a exercer certo poder, havendo assim um esforço das estruturas de repressão. Através
do sistema panóptico todos os sujeitos envolvidos têm a impressão de possuir uma parcela –
ao menos – do poder. Como exemplo, destacaremos a seguinte passagem do romance A
caverna (2000, p.23): “Teve de parar no princípio da rampa de saída, o regulamento manda
que o cartão seja apresentado também a este guarda, são coisas da burocracia, ninguém sabe
porquê.” Essa passagem chama atenção, pois os fornecedores, ao entrarem no subterrâneo do
“Centro”, apresentam um cartão de identificação e ao saírem novamente tem que apresentá-lo
a um guarda que o confere. Esse guarda tem a “ilusão” de que possui um “certo poder” dentro
desse sistema que é o “Centro”, mas o poder está além desse guarda, ele está diluído em todo
o espaço do “Centro”.
Não se trata de analisar o poder pensando em uma racionalidade interna, mas sim
olhando as relações entre homens e mulheres, entre pais e filhos, da psiquiatria sobre os
doentes mentais e outras. Nessas situações, temos um poder exercido nas relações cotidianas
dos indivíduos que produzem o confronto das estratégias de poder/resistência, e esse poder é
da ordem do desejo.
Como você diz, as relações entre desejo, poder e interesse são mais complexas do
que geralmente se acredita e não são necessariamente os que exercem o poder que
têm interesse em exercê-lo, os que têm interesse em exercê-lo não o exercem e o
70
desejo do poder estabelece uma relação ainda singular entre o poder e o interesse
(FOUCAULT, 1995, p.77).
O século XVII, para Foucault, foi o início da repressão, que é própria das sociedades
burguesas. Aplicando o dispositivo da sexualidade, o clero, a medicina, a família e a escola
criaram discursos que condenavam e classificavam o que deveria ser considerado como
normal ou anormal. Foram criados mecanismos para que os sujeitos, por meio da confissão,
relatassem todos os detalhes de sua atividade sexual, os detalhes mais íntimos, os carinhos e
os olhares deveriam ser confessados.
A causalidade no sujeito, o inconsciente do sujeito, a verdade do sujeito no outro
que sabe, o saber, nele, daquilo que ele próprio ignora, tudo isso foi possível
desenrolar-se no discurso do sexo. Contudo, não devido a alguma propriedade
natural inerente ao próprio sexo, mas em função das táticas de poder que são
imanentes a tal discurso (FOUCAULT, 2007a, p.80).
Os dispositivos
10
da sexualidade não são apenas disciplinares, não atuam apenas como
função de modificar os sujeitos por meio do controle do tempo, do espaço e do emprego de
mecanismos de exame e vigilância. Sua abrangência vai além, pois controlam as populações,
os nascimentos, as mortes, enfim a vida. Temos o que Foucault (2005) denomina de biopoder,
uma espécie de poder que se exerce sobre as populações, tendo como objetivo gerir a vida do
corpo social. Foucault (2007a, p.152) menciona que:
10
De acordo com Foucault (1995), “através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto
decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões
regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode
estabelecer entre estes elementos. Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que pode existir
entre estes elementos heterogêneos. Sendo assim, tal discurso pode aparecer como programa de uma instituição
ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda
funcionar como reinterpretação desta prática, dandolhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma,
entre estes elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de
funções, que também podem ser muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de
formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O
dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. Este foi o caso, por exemplo, da absorção de uma
massa de população flutuante que uma economia de tipo essencialmente mercantilista achava incômoda: existe
ai um imperativo estratégico funcionando como matriz de um dispositivo, que pouco a pouco tornouse o
dispositivo de controledominação da loucura, da doença mental, da neurose” (p.244).
71
As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em
torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida. A instalação
durante a época clássica, desta grande tecnologia de duas faces
anatômica e
biológica, individualizante e especificamente, voltada para os desempenhos do
corpo e encarando os processos da vida
caracterizava um poder cuja função mais
elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo .
Os sujeitos deveriam dizer tudo que envolvia sua vida sexual, pois
É preciso, nas narrativas, o maior e mais extenso detalhamento; só podemos julgar o
que a paixão que contais tem de relativo aos costumes e às características do
homem, na medida em que não disfarceis nenhuma circunstância; as menores
circunstâncias servem, aliás, infinitamente, ao que esperamos de vossas narrativas
(FOUCAULT, 2007a, p.25).
Pensar o poder, viver o poder são coisas que envolvem muitos detalhes que passam
geralmente despercebidos pelos sujeitos. Os sujeitos apresentam determinadas atitudes frente
às questões que os constituem sem atentar para detalhes que geralmente não são notados. Um
exemplo é a “obrigação” que os sujeitos tinham, em suas confissões, de falar sobre sexo,
contar detalhes íntimos inerentes a cada sujeito auxiliava o exercício do poder, pois a partir
dos relatos conheciam o que estava escondido no interior de cada um. Assim, poderiam
exercer com mais eficácia o poder, uma vez que tinham conhecimento daquilo que deveriam
condenar. De acordo com Foucault (2007a, p.43):
Através de tais discursos multiplicaram-se as condenações judiciárias das
perversões menores, anexou-se a irregularidade sexual à doença mental; da infância
à velhice foi definida uma norma do desenvolvimento sexual e organizaram-se
controles pedagógicos e tratamentos médicos; em torno das mínimas fantasias, os
moralistas e, também sobretudo, os médicos, trouxeram à baila todo o vocabulário
enfático da abominação: isso não equivaleria a buscar meios de reabsorver em
proveito de uma sexualidade centrada na genitalidade tantos prazeres sem fruto?
Em função desse discurso produzido sobre o sexo foi possível pensar “a causalidade
do sujeito, o inconsciente do sujeito, a verdade do sujeito no outro que sabe, o saber nele
daquilo que ele próprio ignora” (FOUCAULT, 2007a, p.55). Tudo isso foi possível graças às
táticas de poder que são próprias desse tipo de discurso.
72
Para Foucault (2007a), o poder é compreendido como uma multiplicidade de
correlações que se sustentam através de lutas e afrontamentos que estão em constante
mudança. “Os apoios que tais correlações de força encontram uma nas outras, formando
cadeias ou sistema ou contrário, as defasagens e contradições que a isolam entre si”
(FOUCAULT, 2007a, p.4). Portanto, o poder está diluído em toda a parte, provendo não de
um lugar fixo, mas sim de vários lugares. Observamos, assim, que essas forças não são
homogêneas e sim heterogêneas, instáveis e desequilibradas.
2.2 O sujeito e a constituição de sua identidade
Atualmente, a questão da identidade tem sido muito debatida por pesquisadores de
vários campos teóricos, pois notam no sujeito moderno uma fragmentação, as velhas
identidades estão sendo diluídas, fato esse que tem promovido a modificação estrutural das
sociedades. Apesar de a presente pesquisa ter como aporte teórico a AD de linha francesa, as
considerações de alguns estudiosos como Hall, Bauman e Woodward são de grande
relevância, pois apresentam um sujeito constituído pela fragmentação. De acordo com
Fernandes e Júnior (2009, p.106):
Para Hall (2003) e Bauman (2005), o sujeito está deslocado de seu espaço
sociocultural e também de si mesmo. A identidade do sujeito se encontra em crise,
pois a estabilidade e a segurança que ancorava o sujeito em uma identidade, ou
lugar fixo, esfacelaram-se, uma infinidade de identidades novas passou a povoar o
sujeito. As múltiplas identidades que passaram a constituir fizeram com que, em
diferentes momentos, esse sujeito assumisse diferentes identidades. No interior dos
discursos, o sujeito assume diferentes posições, portanto, a identidade do sujeito
nunca será a mesma em diferentes momentos e diferentes lugares por onde se
encontre. O sujeito, assim como sua identidade, está sempre em movimento,
desloca-se constantemente de um lugar para outro, e a cada lugar ocupado por ele o
faz mostrar-se outro, diferente de si, atestando o caráter contraditório e inacabado da
identidade.
Traremos a seguir algumas considerações, efetuadas pelos autores mencionados no
primeiro parágrafo, acerca da identidade. Com isso, teremos uma noção de como esse
conceito é articulado por eles e de como o mesmo corrobora com a AD.
73
Stuart Hall em Identidade Cultural na Pós-Modernidade (2005), indica três
concepções de identidade: a primeira seria a do sujeito do Iluminismo, indivíduo totalmente
centrado e unificado; a do sujeito sociológico, no qual o núcleo do sujeito não é independente
e nem auto-suficiente, sendo formado pelas relações estabelecidas na sociedade; e, para
finalizar, o sujeito pós-moderno, fruto das transformações estruturais e institucionais, que
produz uma identidade não fixa muito menos permanente, em alguns momentos contraditória
ou não resolvida. “O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente” (HALL, 2005, p.13).
Essa mudança ocorrida no sujeito pós-moderno, segundo o autor, é uma conseqüência
da globalização, decorrente da facilidade de contato com produtos e acontecimentos que são
produzidos em qualquer região. Sendo assim, a identidade não é unificada e muito menos bem
delimitada, sofre mudanças rápidas e constantes, sendo a todo instante deslocada por forças
advindas do exterior. Segundo Hall (2005, p.75), “com o advento da globalização notamos
que a vida social ganha um novo status, pois somos a todo o momento bombardeados por
oportunidades de interação”.
A partir das reflexões de Hall (2005) acerca dos postulados de Freud e das releituras
feitas por Lacan e outros que problematizam a constituição dos sujeitos, podemos observar
que somos constituídos por inter-relações com outros sujeitos desde a primeira infância.
“Observamos que a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de
processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do
nascimento” (HALL, 2005, p.38). Nessa perspectiva, quando afirmamos que somos de um
dado país ou região não nascemos com essa afirmação incutida em nosso inconsciente ou algo
constituído a partir da nossa formação biológica, ela é construída pelas transformações que
ocorrem no interior de sua representação:
outro efeito desse processo foi o de ter provocado um alargamento do campo das
identidades e uma proliferação de novas posições-de-identidades, juntamente com o
aumento de polarização com elas. Esses processos constituem a segunda e terceira
conseqüências possíveis da globalização, anteriormente referidas __ a possibilidade
de que a globalização possa levar a um fortalecimento de identidades locais ou a
produção de novas identidades (HAAL, 2005, p.84).
A identidade é compreendida por Hall (2000) como:
74
o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos
“interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os
sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado,os processos que nos
constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”. As identidades são, pois, pontos
de apego temporário às posições-de-sujeitos que as práticas discursivas constroem
para nós (p.172).
Para Bauman (2005), outro pesquisador do assunto, o “pertencimento” e a
“identidade” não são sólidos, muito menos fixos, pois dependem das escolhas efetuadas pelo
próprio indivíduo dos caminhos que decide percorrer e da maneira como age perante
determinadas situações vivenciadas no dia-a-dia. O estudioso afirma ainda que certos aspectos
que eram considerados estáveis como organizações políticas ou econômicas, novidades que
eram consideradas maravilhosas, carreiras promissoras e outros, não são mais estáveis, pois
passam a ser considerados obsoletos e substituídos por outros rapidamente.
Essa incerteza com relação à questão do pertencimento deixou muitos sujeitos em
situação de extrema dificuldade, porque trazem em sua constituição a dúvida,
conseqüentemente, sentem-se confusos com relação a que caminho seguir.
Para pessoas inseguras, desorientadas, confusas e assustadas pela instabilidade e
transitoriedade do mundo que habitam, “a comunidade” parece uma alternativa
tentadora. É um sonho agradável, uma visão do paraíso: de tranqüilidade, segurança
física e paz espiritual. Para pessoas que lutam numa estreita rede de limitações,
preceitos e condenações, planejando pela liberdade de escolha e auto-afirmação, a
mesmíssima comunidade que exige lealdade absoluta e que guarda estritamente as
suas entradas e saídas é, pelo contrário, um paralelo: uma visão do inferno e da
prisão (BAUMAN, 2005, p.68).
Em um outro trabalho do mesmo pesquisador, Vida líquida (BAUMAN, 2007, p.47),
há o levantamento de aspectos relevantes acerca da identidade, dentre os quais, destacamos:
“a liberdade das pessoas em busca de identidade é parecida com a de um ciclista; a penalidade
por parar de pedalar é cair, e deve-se continuar pedalando apenas para manter a postura
ereta”. Essa busca é permeada por sentimentos contraditórios, há uma necessidade de
liberdade, mas ao mesmo tempo de segurança, “assombrado pelo medo da solidão e pavor da
incapacidade” (BAUMAN, 2007, p.44).
Woodward (2000) faz algumas considerações interessantes acerca da identidade. Ela
assevera que a identidade é marcada pela diferença, sendo que sua construção está no âmbito
75
simbólico, como no social, além de estabelecer suas reivindicações por intermédio de
antecedentes históricos.
A identidade é, na verdade relacional, e a diferença é estabelecida por uma
marcação simbólica relativamente a outras identidades (na afirmação das
identidades nacionais, por exemplo, os sistemas representacionais que marcam a
diferença podem incluir um uniforme, uma bandeira nacional ou mesmo os cigarros
que são fumados) (WOODWARD, 2000, p.14).
Essas mudanças globais, que estão ocorrendo nas estruturas políticas no mundo
moderno, destacam a necessidade de manutenção e lutas em favor das identidades nacionais e
étnicas, pois no mundo contemporâneo vivenciamos a decadência das antigas concepções e a
elaboração de novos posicionamentos.
A partir dessas considerações acerca da identidade, que nos levam a concluir que sua
constituição se dá por intermédio da instabilidade e da fragmentação, podemos aferir que ela
está em constante mudança, inacabada, enfim, constituída pela pluralidade. Sendo assim, ela
permite reavaliar a noção de sujeito discursivo, uma vez que possibilita olharmos mais
atentamente para os processos que envolvem a constituição de sua identidade, bem como de
subjetividade, através de uma exterioridade. Enfim, “os estudos culturais atestam a
pluralidade, a fragmentação e a mutabilidade da identidade, e possibilitam-nos pensá-la como
integrante das relações discursivas, uma identidade de natureza discursiva.” (FERNANDES e
JÚNIOR, 2009, p.106)
As identidades são construídas no/pelo discurso e para compreendê-las precisamos
levar em consideração os locais históricos e institucionais nos quais elas são produzidas; elas
emergem de relações de poder, pois são produzidas a partir do embate da diferença e da
exclusão. São justamente esses aspectos que explicitaremos com a análise do sujeito Cipriano
Algor, em A caverna (2000), de José Saramago. Observamos que o poder permeia todas as
instâncias sociais fazendo com que os sujeitos se constituam por intermédio dessas relações,
marcando um espaço no qual ecoam diversas vozes sociais, bem como embates e conflitos
manifestados por meio da linguagem, marcando, assim, não uma homogeneidade do sujeito,
mas uma heterogeneidade que lhe é constitutiva.
76
Algumas considerações conclusivas
O que expusemos até o momento, bem como outras considerações elencadas por
Foucault no decorrer de suas pesquisas sobre o poder, a instauração da psiquiatria, a história
da sexualidade, a normalidade/anormalidade estão intimamente ligadas à constituição dos
sujeitos. Sujeitos esses que ao longo dos tempos sofreram com as mudanças de paradigmas
que ocorreram na sociedade.
Somos constituídos por uma exterioridade que nos subjetiva. Sentimos a todo instante
a necessidade de estarmos inseridos em uma sociedade e para que isso ocorra não medimos
sacrifícios. Temos a necessidade de pertencer a um lugar, não importa que lugar seja esse,
precisamos ser aceitos e nos sentirmos confortáveis perante os outros sujeitos. Neste
momento, paramos e questionamo-nos: por que somos assim? O que nos torna sujeitos? São
perguntas que já foram feitas por muitos pesquisadores, mas que ainda não obtiveram, e nem
obterão, uma resposta definitiva. E o que é ser definitivo em uma sociedade que sofre
movências a todo instante?
Notamos que houve uma modificação, mas não foi na forma de exercer o poder e sim
em como esses sujeitos significam essa forma de poder. Antes os sujeitos tornavam-se
“corpos dóceis” não porque queriam, mas por causa das dificuldades que enfrentavam.
Tal fato chama a atenção, pois percebemos que a modernidade trouxe várias
mudanças, mas as relações de poder continuam as mesmas, o que mudou foi a maneira de os
sujeitos receberem essa vigilância. No século XVIII, os sujeitos não queriam ser vigiados,
atualmente eles se sentem mais “seguros” quando vigiados. Isso causa certo estranhamento e
desconforto, pois percebemos que estamos sendo mais vigiados hoje do que em qualquer
outro momento de nossa história. Essa mudança de comportamento foi prevista na ficção no
livro 1984 de Jorge Orwel.
Existem algumas “verdades” que não são nossas, mas as aceitamos. Somos
constituídos por relações de poder, como Foucault afirma, e sabemos tão pouco a respeito
delas. Em Microfísica do poder (1995, p.179), o estudioso inicia o XII capítulo pontuando o
que estudou de 1970 até aquele momento, em seguida faz a seguinte reflexão:
De que regras de direito as relações de poder lançam mão para produzir discursos de
verdade? Em uma sociedade como a nossa, que tipo de poder é capaz de produzir
discursos de verdade dotados de efeitos tão poderosos? Quero dizer que em uma
sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer sociedade, existem relações de
poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que
77
estas relações de poder não podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem
uma produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso.
A sociedade determina o que é normal ou anormal e nós aceitamos sem refletir se
aquilo pode ser considerado uma “verdade” absoluta. É justamente esse aspecto que chamou
nossa atenção no sujeito discursivo Cipriano Algor. Observamos que ele é constituído por
relações de poder instauradas entre ele e o “Centro de Compras”. Ao atentarmos para essa
questão, observamos que Cipriano tem um diferencial, pois ele a questiona, não a aceita e
segue sua vida contrariando a grande maioria que acredita em uma “felicidade” vinculada às
questões capitalistas, ele resiste ao poder, e é justamente isso que determina uma relação de
poder. De acordo com Foucault (2007a), exercemos o poder somente sobre pessoas livres que
podem resistir à suas investidas. As questões levantadas por Cipriano Algor ao longo do
romance levam o leitor a refletir sobre sua constituição. Quem somos? Qual é a relação
existente entre os sujeitos e o capitalismo?
A relação entre Cipriano Algor e o “Centro de Compras” não é constituída facilmente,
o sujeito discursivo sofre com o deslocamento que é construído ao longo do romance. Quando
iniciamos a leitura de A caverna (2000), logo na primeira página encontramos as seguintes
considerações acerca de Cipriano:
O homem que conduz a camioneta chama-se Cipriano Algor, é oleiro de profissão e
tem sessenta e quatro anos, posto que à vista pareça mais idoso [...] O mais provável
será sentirem-se desgostosos se alguma vez vierem a saber que aquele algor
significa frio intenso do corpo, pronunciador de febre. [...] O mais velho traja um
casaco civil e umas calças mais ou menos a conduzir, leva a camisa sobriamente
fechada no colarinho, sem gravata (SARAMAGO,2000, p.11).
Nesta cena, temos a definição do nome “Algor” que é “frio intenso pelo corpo”, este
enunciado é um prelúdio do que Cipriano vai sofrer ao longo da narrativa. O sujeito
discursivo, tendo em vista a recusa do “Centro de Compras” em comprar sua mercadoria, vai
sofrer um deslocamento.
No decorrer da narrativa, Cipriano passa por diversas situações que mostram
claramente como essa relação é estabelecida. No próximo capítulo, faremos a análise
atentando para como é constituída a subjetividade de Cipriano a partir da relação estabelecida
entre ele e o “Centro de Compras”, e para isso elegemos quatro momentos da narrativa, são
78
eles: a perda do emprego, a fabricação dos bonecos, a mudança para o “Centro de Compras” e
o encontro com “os habitantes da caverna”. Observaremos nesses quatro momentos a reação
de Cipriano perante os acontecimentos e a constituição de seu discurso, que retoma, a todo
instante, enunciados advindos de outros momentos sócio-históricos.
CAPÍTULO III
Cipriano e a constituição da subjetividade: um “nó em uma rede”
discursiva
Temos, portanto, todo um conjunto de
técnicas cuja a finalidade é vincular a
verdade e o sujeito. Mas é preciso bem
compreender: não se trata de descobrir
uma verdade no sujeito nem de fazer
da alma o lugar em que, por um parentesco
de essência ou por um direito de origem, reside
a verdade; tampouco trata-se de fazer da alma
o objeto de um discurso verdadeiro. [...] Trata-se,
ao contrário, de dotar o sujeito de uma verdade
que ele não sabia e que não residia nele; trata-se de
fazer desta verdade aprendida, memorizada,
progressivamente aplicada, um quase-sujeito que
reina soberanamente em nós. (Foucault)
Neste momento da pesquisa, procederemos à análise da constituição discursiva do
sujeito Cipriano Algor observando como a relação de poder instaurada entre ele e o “Centro
de Compras” constitui sua subjetividade. A partir dela, seu discurso sofre algumas alterações
substanciais emergindo enunciados provenientes de vários momentos históricos. Como já
mencionamos nos capítulos teóricos, os sujeitos trazem em seu discurso aspectos que
remetem para o lugar social e histórico no qual estão inseridos. Neste primeiro fragmento do
romance A caverna (2000), observamos como a exterioridade constitui a subjetividade dos
sujeitos e como isso emerge em seus discursos. Ressaltamos que neste momento Cipriano
ainda é fornecedor do “Centro”:
Estava em número treze. Contou novamente, não havia dúvidas. Embora não fosse
pessoa supersticiosa, não ignorava a má reputação deste numeral, em qualquer
conversa sobre o acaso, a fatalidade e o destino sempre alguém toma a palavra para
relatar casos vividos da influência negativa, e às vezes funesta, do treze. [...] As
pessoas não são coisas, as pessoas querem estar sempre nos primeiros lugares,
pensou o oleiro, E não só querem estar neles, como querem que se diga e que os
demais o notem, murmurou (SARAMAGO, 2000, p.22).
80
Nesta cena, Cipriano Algor chega no “Centro de Compras” e entra na fila juntamente
com os outros fornecedores que aguardam para descarregar seus produtos. Ele é o décimo
terceiro da fila e esse fato causa um estranhamento, pois lhe evidencia um “conhecimento”
proveniente da crença popular, que acredita ser o número treze portador de má sorte. Isso o
incomoda, pois segundo Cipriano “sempre alguém toma a palavra para relatar casos vividos
da influência negativa, e as vezes funestas, do treze”. Portanto, o número treze está carregado
de influências negativas, apesar de Cipriano não ter tido problemas com o numeral.
Um outro aspecto a ser pontuado nesse fragmento são os enunciados “as pessoas não
são coisas”, “as pessoas querem estar sempre nos primeiros lugares” e além de estar neles
querem que comentem onde estão. Retomando Gregolin (2007, p.71), “as redes de memórias,
sob diferentes regimes de materialidades, possibilitam o retorno de temas e figuras do
passado, os colocam intensamente na atualidade, provocando sua emergência na memória do
presente.” Analisaremos o primeiro enunciado, “as pessoas não são coisas” que nos diz muito
a respeito dos sujeitos pós-modernos inseridos no sistema capitalista, pois são bombardeados
a todo instante por regras que tem como objetivo transformar seus comportamentos. Segundo
Bauman (2007, p.76), “os membros da sociedade de consumidores são eles próprios
mercadorias de consumo, e é a qualidade de ser mercadoria de consumo que os torna
membros autênticos dessa sociedade”. Os sujeitos, ao longo dos tempos, sempre sentiram a
necessidade de serem aceitos pela sociedade, mas isso atualmente tem se tornado uma
obsessão. Os sujeitos estão dispostos a fazer qualquer sacrifício com o objetivo de fazer parte
do meio. Mesmo que para isso passem a ser tratados como “coisas” ou “objetos”.
Os sujeitos, tendo em vista a configuração da pós-modernidade, sentem a necessidade
de serem aceitos e notados pelos outros sujeitos, enfim, terem destaque no meio no qual estão
inseridos. Essa afirmação pode ser confirmada no seguinte enunciado: “querem estar sempre
nos primeiros lugares”.
Um outro aspecto a ser mencionado é a preocupação que Cipriano tem consigo. Isso é
interessante, pois podemos estabelecer um paralelo com Foucault (1982). De acordo com ele,
o objeto de seu estudo é o sujeito e como o mesmo constitui o conhecimento de si. Foucault
(1982) dividiu esse conhecimento de si em quatro grupos, destacaremos a seguir o último que
buscou estudar: “as técnicas de si, que permitem aos indivíduos efetuarem, sozinhos ou com a
ajuda de outros, um certo número de operações sobre modos de ser, de transformarem-se a
fim de atender um certo estado de felicidade, de pureza, de sabedoria, de perfeição ou de
imortalidade” (FOUCAULT, 1982, p.2).
81
A preocupação de Cipriano com o número treze se enquadra nesse cuidado de si
estudado por Foucault (1982). Cipriano preocupa-se com o seu lugar na entrega das
mercadorias, pois ele se ocupa de si. Ele é um sujeito que quer estar bem, o estar bem é no
sentido de ter um trabalho, pois sente a necessidade de ser produtivo.
A “superstição” do número treze está tão arraigada em Cipriano que após a reflexão
mencionada ele tira a furgonete da fila, espera que outro tome seu lugar, para em seguida
retornar e ser o número quatorze.
Depois de algum tempo aguardando na fila, ele é atendido, mas infelizmente, mesmo
mudando de lugar, passando a ser o número quatorze, o “Centro” recusa suas mercadorias.
Ele mudou de lugar, mas o que tinha para acontecer se concretizou independente da sua
recusa em ser o número treze.
Vejam esta situação, um homem traz aqui o produto do seu trabalho, cavou o barro,
amassou-o, modelou a louça que lhe encomendaram, cozeu-a no forno, e agora
dizem-lhe que só ficam com metade do que fez e que lhe vão devolver o que está no
armazém, quero saber se há justiça neste procedimento. os condutores olharam uns
para os outros, encolheram os ombros, não tinham a certeza do que seria melhor
responder nem a quem conviria mais a resposta, um deles puxou mesmo de um
cigarro para tornar claro que se desligava do assunto, logo lembrou-se de que não
podia fumar ali, então virou as costas e foi acolher-se à cabina do camião, longe dos
acontecimentos (SARAMAGO, 2000, p.23).
Cipriano fica indignado, chama a atenção de todos que também aguardam na fila, mas
não adianta, pois os outros fornecedores ignoram seu sofrimento e indignação. Característica
inerente aos seres humanos, que em muitos casos preferem se calar perante uma injustiça, a
falar e correr o risco de perder algo do seu interesse.
Os enunciados “o produto de seu trabalho, cavou o barro, amassou-o, modelou a
louça” e “cozeu-a no forno” merecem ser olhados com mais atenção, pois trazem a tona uma
questão atual: a não mecanização demanda tempo e muita dedicação, por outro lado, em uma
sociedade regida pelo sistema capitalista visando uma substituição constante dos produtos, é
inviável esse tipo de produção, pois requer muito tempo. Os produtos de Cipriano tornam-se
obsoletos, não ficam com seu carregamento e ainda pedem para retirar, do estoque do
“Centro”, os produtos que ainda não foram consumidos e nem serão. De acordo com Bauman
(2007, p.45):
82
A instabilidade dos desejos e a insaciabilidade das necessidades, assim como a
resultante tendência ao consumo instantâneo e à remoção, também instantânea, de
seus objetos, harmonizam-se bem com a nova liquidez do ambiente em que as
atividades existenciais foram inscritas e tendem a ser conduzidas no futuro possível.
De acordo com Bauman (2007a), há uma união entre a “instabilidade dos desejos”,
“instabilidade das necessidades” e uma “renovação” muito rápida dos produtos. Os sujeitos
vivem, atualmente, cercados pela rápida substituição dos produtos a serem consumidos,
objetos que até algum tempo eram úteis, passam a não ser. Produtores que tinham seus
produtos aceitos pelo mercado não os têm mais, ou fabricam outros produtos ou são
“obrigados” a abandonar sua profissão.
Segundo Bauman (2007a), essa mudança de hábito dos consumidores ainda causa
outro problema: a produção de uma grande quantidade de lixo, causando muitos problemas
para os grandes centros.
O sujeito Cipriano Algor tem sua subjetividade marcada pela contraposição ao que
está em vigência na sociedade pós-moderna; logo apresenta resistência, não aceitando as
normas ditadas pelo poder (Centro de Compras), as quais ele questiona:
Só me ficaram com a metade do carregamento, dizem que passou a haver menos
compradores para o barro, que apareceram à venda umas louças de plástico a imitar
e que é isso que os clientes preferem, Não é nada que não devêssemos esperar, mais
tarde ou mais cedo teria de suceder, o barro racha-se ao menor golpe, ao passo que o
plástico resiste a tudo e não se queixa (SARAMAGO, 2000, p.33).
Nesse fragmento, observamos os comentários de Cipriano quando recebe a primeira
negativa em relação à venda de seus produtos. Eles estão interligados com a exterioridade que
constituiu a subjetividade desse sujeito, marcado por sua inscrição em dadas formações
discursivas permeadas por relações de poder. Segundo Foucault (2004, p.43) identificaremos
uma formação discursiva:
no caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,
semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos
de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma
regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e
83
conseqüências, inadequadas, aliás, para analisar semelhante dispersão, tais
como “ciência” ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio de objetividade”.
Chamaremos a regras de formação as condições a que estão submetidos os
elementos dessa repartição (objetos, modalidade de enunciação, conceitos,
escolhas temáticas). As regras de formação são condições de existência, mas
também de coexistência, de manutenção, de modificação e de
desaparecimento em uma dada repartição discursiva.
Esse sujeito discursivo inscreve-se, inicialmente, em uma formação discursiva que
retoma a existência simples e valoriza os hábitos rotineiros, na qual os sujeitos têm a
necessidade de efetivarem a manutenção da tradição.
A partir do que vai sendo produzido e divulgado pela sociedade capitalista e
consumista, os sujeitos vão trocando os produtos consumidos até então por outros. Com isso,
sofrem a todo o momento deslocamentos em decorrência do que surge a sua disposição, isto é,
daquilo que os constitui como sujeitos inscritos em uma sociedade de consumo, na qual estão
incluídos somente aqueles que aceitam as novidades, e as consomem.
Nesse fragmento destacamos ainda os enunciados “barro”, “louça de plástico”, “o
barro racha-se” e “plástico resiste a tudo e não se queixa”, pois há uma relação instaurada,
pela memória, com o relato da criação do homem que encontramos nos preceitos bíblicos. O
“barro”, bem como “louças de barro”, estaria associado com o momento da criação, o ser
humano é criado puro, inocente e perfeito, transforma-se em “louças de plástico”, deixando as
qualidades até então apresentadas para tornar-se um sujeito com qualidades duvidosas, pois a
partir de então tem o direito de escolher o caminho a seguir. De acordo com a B
íblia Sagrada
(1989):
Fez também o Senhor Deus a Adão e à sua mulher uma túnicas de peles, e os vestiu.
E disse: Eis que Adão se tornou um de nós, conhecendo o bem e o mal; agora, pois,
(expulsemo-lo do paraíso), para que não suceda que ele estenda a sua mão, e tome
também da árvore do conhecimento, e viva eternamente. E o Senhor Deus lançou-o
fora do paraíso de delícias, para que cultivasse a terra, de que tinha sido tomado. E
expulsou Adão, e pôs diante do paraíso de delícias querubins brandindo uma espada
de fogo, para guardar o caminho da árvore da vida.
Notamos ainda a fragilidade e as mudanças na constituição identitária dos sujeitos
consumidores. Refletindo sobre a constituição da identidade, estabelecida a partir das relações
que mantidas com os outros e nas relações de poder instauradas no cotidiano dos sujeitos e no
84
sistema capitalista, podemos apreender que essa mudança no comportamento dos
consumidores afetará diretamente o sujeito Cipriano Algor.
No fragmento em análise, destacamos a utilidade de ambos os materiais: o “barro
racha-se” em detrimento do plástico que “resiste a tudo” e “não se queixa”. Cipriano Algor,
inicialmente constituído por uma aparente solidez – “barro” – é desarticulado pelo enunciado
“racha-se”, mostrando a fragilidade, a sua não aceitação perante uma situação que foge ao seu
controle. Entretanto, essa solidez é substituída por uma resistência que, na verdade, é apenas
uma máscara escondendo um sujeito sócio-historicamente constituído. Há assim, uma falsa
estabilidade e um não conhecimento de si, inicialmente fazendo com que se torne instável,
buscando a todo o momento situações que proporcionem estabilidade.
O que foi mencionado acima ainda leva-nos à reflexão acerca das movências e
deslocamentos que os sujeitos sofrem a todo instante. O sujeito Cipriano, até aquele
momento, tinha uma existência muito organizada, com a inserção das peças de barro no
mercado e a conseqüente impossibilidade de vender seus produtos, perde o direcionamento e
com isso sua identidade se torna o que Hall (2004) denominou de descentralizada, sofrendo
modificações que são frutos da globalização. Isso será observado mais claramente no próximo
fragmento.
Desde que mandaram para trás com metade da louça, que, entre parêntesis se diga,
ainda não foi retirada da furgonete, Cipriano Algor passou, de uma hora para outra,
a desmerecer a reputação de operário madrugador ganhada numa vida de muito
trabalho e poucas férias (SARAMAGO, 2000, p.55).
Após a negativa do “Centro de Compras” em adquirir sua mercadoria, Cipriano sofre
algumas modificações substanciais e repentinas. Não retira as louças da furgonete e com isso
passa a “desmerecer” o elogio de “operário trabalhador”. Ele desloca-se de uma dada
formação discursiva caracterizada pela necessidade do trabalho, bem como para a sua
regularidade – “muito trabalho e poucas férias” –, para outra, na qual cumprir o trabalho é
algo sem sentido.
A partir desses deslocamentos, podemos refletir sobre como as relações de poder
permeiam todos os sujeitos. Quando Foucault (2007b) discorre sobre o poder disciplinador,
em princípio, poderíamos pensar somente nas instituições, que têm por função disciplinar os
corpos, mas isso vai muito além, pois está presente em todos os momentos, nas relações mais
simples do dia-a-dia. Basta observarmos atentamente a relação que Cipriano mantém com o
85
trabalho até o momento para percebermos que os sujeitos são constituídos a partir dessas
relações. No instante em que o “Centro” não tem mais o interesse em manter essa relação de
fornecedor e comprador, notamos que Cipriano muda suas atitudes, perdendo a estabilidade
que acreditava ter. Com isso, observamos claramente como o poder permeia todas as relações,
e como elas são constituídas pelas lutas, embates e movências.
Cipriano, frente às dificuldades enfrentadas, dirige-se ao cemitério não com o objetivo
de fazer uma prece ou pedir para a esposa interceder por ele perante o criador, mas sim para
questionar o que está acontecendo.
Cipriano Algor irá estar alguns minutos diante da campa da mulher, não para rezar
umas orações que já esqueceu, nem para pedir-lhe que, lá na empírea morada, se a
tão alto a levaram as suas virtudes, interceda por ele junto de quem alguns dizem
que pode tudo, apenas protestará que não é justo, Justa, o que me fizeram, rirem-se
do meu trabalho e do trabalho da nossa filha, dizem eles que as loiças de barro
deixaram de interessar, que já ninguém as quer, portanto também nós deixámos de
ser precisos, somos uma malga rachada em que já não vale a pena perder tempo a
deitar gatos, tu tiveste mais sorte enquanto viveste (SARAMAGO, 2000, p.45).
Neste fragmento notamos alguns enunciados que devem ser olhados com mais
atenção. O primeiro é “não é justo, Justa”, pois faz essa “brincadeira” entre o “justo” e o
nome da esposa “Justa”. Ela morre antes, não enfrenta as mesmas dificuldades vividas por
Cipriano, seu nome “Justa” fala por si, há um diferencial entre ela e os demais sujeitos na
narrativa, pois a ela foi dada a oportunidade de não sofrer com a não mais aceitação das
mercadorias produzidas na olaria. Ao atentarmos para o enunciado “justo”, observamos que
há uma historicidade trabalhando em seu interior, pois ele sofreu algumas transformações ao
longo dos tempos. O que é “justo” em um determinando momento passa a ser uma injustiça
em outro. Cipriano era fornecedor exclusivo do “Centro de Compras” agora não é mais, isso
mostra a modificação de sentido do enunciado.
Em várias passagens da Bíblia Sagrada (1989) são mencionados os enunciados
“justo” e “justiça” com o sentido de que para o ser humano atingir a “perfeição” deve ser
justo. A seguir apontaremos alguns desses enunciados: “vale mais o pouco com justiça / do
que muitos bens com iniqüidade Pr 16:8”, “o rei justo faz florescer seu país; / o homem
avarento distruí-lo-á Fr 29:4”, “abri as portas e entra o povo justo, que observa a verdade Is
26:2”, e “a senda do justo é direita, direito é o atalho do justo para por ele se andar Is 26:7”.
Esses enunciados apontam, no discurso religioso, para a importância dos sujeitos serem justos
86
com o seu semelhante. Mas isso nem sempre ocorre, pois há outros discursos que constituem
esses sujeitos. Cipriano, no diálogo com a esposa falecida, cobra essa “justiça” que ainda não
faz parte da existência dos sujeitos.
Nessa posição não compreende como podem tirar seu trabalho, pois para ele é de suma
importância o homem exercer uma atividade remunerada, pois só assim será respeitado. Para
o sistema capitalista, o relevante não é o trabalho do sujeito, mas sim sua capacidade de
produção, quanto mais produzir melhor. As louças de plástico que substituíram as de barro
podem ser produzidas em larga escala, exigindo pouca mão de obra, por outro lado as de
barro são produzidas em baixa escala e demandam certo tempo para ficarem prontas.
Percebemos um Cipriano fragilizado e fragmentado que questiona as dificuldades enfrentadas
e não as aceita.
A decadência da profissão de Cipriano é enfatizada no enunciado “riram-se do meu
trabalho e do trabalho da nossa filha”, “riram-se” inicialmente poderia ser um pretexto para
felicidade e bem estar. Neste caso, o “riram-se” é trazido no sentido de deboche, não levam
mais o trabalho dele a sério, ele passou a ser motivo de piada e de graça. Esse enunciado
conduz-nos à seguinte reflexão: o que era até um dado momento tratado com seriedade, passa
a ser algo que não mereça mais a devida atenção, refletindo a instabilidade constante que
permeia a constituição dos sujeitos na modernidade. Deparamos, assim, com um “poder”,
manipulador, que aponta o importante, direcionando assim, a vida dos sujeitos.
Os enunciados “loiças de barro deixaram de interessar” e “nós também deixamos de
ser precisos, somos uma malga rachada”, trazem em seu interior marcas da fragilidade que
permeia as relações entre produtores e consumidores. Atualmente as relações comerciais estão
envolvidas em constantes deslocamentos que fazem com que determinadas mercadorias
passem a ser obsoletas. Segundo Bauman (2007a, p.31), “a sociedade de consumidores é
impensável sem uma florescente remoção de lixo. Não se espera dos consumidores que jurem
lealdade aos objetivos que obtêm com a intenção de consumir.” A inconstância pode ser
apreendida no enunciado “somos uma malga rachada”, malga é uma tigela para tomar sopa,
isso quer dizer que um dia já foi útil, agora não é mais, pois está envelhecida e antiquada.
Produtos “novos” passam a ser “velhos” em nossa sociedade rapidamente, portanto o que rege
as relações é a inconstância. Essa inconstância afeta a constituição da subjetividade de
Cipriano, pois ele também passa por uma modificação a partir da relação estabelecida entre
ele e o “Centro de Compras”. Inicialmente ele era útil, sua identidade lhe parecia fixa, no
momento que passa a não ser mais útil, notamos a fragmentação de sua identidade, tal frágil
ele percebe ser a louça que produzia.
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Em uma leitura superficial, poderíamos asseverar que é o “Centro de Compras” que
determina as regras do que vai ser consumido, para sermos mais claros, seria ele uma
instância que deflagra o poder. Mas como mencionamos anteriormente, o poder não emana
apenas de um lugar ou sujeito, ele está diluído em toda a sociedade. Sendo assim, o “Centro”
não é quem determina as regras, mas sim, um intermediário de relações bem mais complexas.
No fragmento abaixo Cipriano está em sua casa observando o cão “Achado” que havia
aparecido há poucos dias. Ele questiona se deve ou não prender o cão.
Ponho-lhe uma corrente, perguntou-se inquieto o oleiro, e depois, ao observar as
manobras do cão, que farejava e marcava o território com urina. ora aqui, ora ali,
Não, não creio que seja preciso tê-lo atado, se quisesse já teria
fugido.(SARAMAGO, 2000, p.65).
Os enunciados “corrente”, “preciso tê-lo atado” e “se quisesse já teria fugido”
merecem atenção, apesar de serem empregados para um cão, refletem os sentimentos de
Cipriano, frente às transformações que margeiam sua existência, pois ele sente-se preso a
esses acontecimentos. A “corrente” que o prende é a necessidade de manter suas raízes, no
caso ser oleiro, uma tradição familiar que o acompanha há três gerações. A “corrente” prende-
o a uma situação incômoda, a qual, em princípio, não tem forças para fugir, “se quisesse já
teria fugido.” Podemos estabelecer uma relação entre Cipriano e o Cão; este seria um reflexo
daquilo que constitui Cipriano, como se ele fosse um espelho que refletisse a subjetividade do
dono. De acordo com Foucault (2001, p.415):
O espelho, afinal, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho, eu me vejo
lá onde não estão, em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da superfície,
eu estou lá longe, lá onde não estou, uma espécie de sombra que dá a mim mesmo
minha própria visibilidade, que me permite me olhar lá onde estou ausente: utopia
do espelho.
Cipriano olha para si, mas esse si é um reflexo daquilo que o constitui, não é ser eu
“real”, mas sim uma refração daquilo que o subjetiva. Nesse momento, Cipriano se vê através
de um outro ser.
Outro aspecto a ser pontuado acerca do enunciado “corrente” é a sua relação com o
mito da Caverna de Platão que pode ser encontrado em A República: livro XVII (1981). O
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mito narra basicamente a história de algumas pessoas acorrentadas no fundo de uma caverna.
Elas estão presas e sentadas em frente a uma parede, ficando assim de costas para a entrada.
Do lugar onde estão, enxergam apenas as sombras das imagens que são projetadas na parede.
Cipriano, assim como os moradores, está preso e enxerga somente uma parte de sua vida.
Notamos que o enunciado é retomado em um outro momento, com uma outra historicidade,
mas seu sentido não é muito diferente do proposto por Platão, que enfatiza a necessidade de o
filósofo buscar o conhecimento da ciência e do bem. Por conseguinte, poderão ajudar os
outros que ainda encontram-se na escuridão e enxergando somente as sombras da realidade.
Cipriano tem a necessidade de romper com as amarras que o prendem a “verdades” que não
são verdades absolutas e sim relativas as condições de sua produção.
Reiterando Bauman (2005), para quem tanto o pertencimento como a identidade são
móveis, notamos que Cipriano não consegue, nesse momento, estabelecer a mesma relação
com o lugar de pertencimento de até então, pois é estabelecida, a partir dos últimos
acontecimentos, uma ruptura com a regularidade que sua existência apresentava, remetendo-o
a uma situação na qual a dúvida se instaura.
Na situação que nos encontramos, não vejo que mais se possa fazer, Tenho uma
opinião diferente, E que opinião diferente é essa, que mirífica idéia te ocorreu, Que
fabriquemos outra coisa, Se o centro vai deixar de comprar-nos umas, é mais do que
duvidoso que queira comprar outras, Talvez não, talvez talvez, De me estás a falar,
mulher, De que deveríamos pôr-nos a fabricar bonecos, Bonecos, exclamou
Cipriano Algor em tom de escandalizada surpresa, bonecos, nunca ouvi uma idéia
mais disparada, Sim, senhor meu pai, boneco estatuetas, manipanços, monos,
bugigangos, sempre-em-pés, chama-lhes como quiser, mas não comece já a dizer
que é disparate sem esperar pelo resultado dele, Falas como se tivesses a certeza de
que o Centro te vai comprar essa bonecagem, Não tenho certeza de nada, salvo que
não podemos continuar aqui parados, à espera de que o mundo nos caia em cima,
sobre mim já caiu (SARAMAGO, 2000, p.69).
Na passagem acima, temos uma cena na qual pai e filha – Cipriano e Marta – estão
dialogando sobre o que vão produzir, pois não podem ficar mais naquela indecisão. A filha
sugere que produzam “bonecos”, o pai em princípio recusa, mas logo aceita. Marta justifica
dizendo que é um pouco improvável que haja duas recusas do “Centro de Compras”. Eles
sentiam a necessidade de produzir algo, isso os difere da sociedade na qual estão inseridos,
uma vez que os sujeitos no lugar de produzir preferem consumir, reiterando o fato de que
nossos ancestrais eram criados para reproduzir e nós somos constituídos para consumir.
Segundo Bauman (2005), há dois aspectos de suma importância que devem ser considerados,
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o primeiro está relacionado aos nossos ancestrais, que eram treinados por suas sociedades
para serem produtores, e isso se inverte atualmente, uma vez que os sujeitos são
condicionados, acima de tudo, para serem consumidores. Porém, quando o assunto é
identidade, “nos deparamos com uma luta simultânea ‘contra a dissolução e a fragmentação’;
uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa absoluta a ser devorado” (BAUMAN,
2005, p.84).
Um outro aspecto que demonstra a perda da estabilidade são os enunciados “outra
coisa”, “não tenho a certeza de nada”, “não podemos continuar aqui parados”, pois enfatizam
a necessidade de buscar algo que sirva como referência, um ponto de apoio. Esse apoio
novamente vai se estabelecer por meio das relações de poder que permeiam a sociedade. O
“Centro de Compras” é que irá determinar se o produto é viável ou não, na verdade, são os
consumidores que determinam se o produto deve continuar a ser fabricado. Essa relação deixa
claro o funcionamento do poder na acepção de Foucault, visto que não há um lugar fixo que
exerça o poder sobre os sujeitos, mas sim uma rede que os envolvem sem distinção.
Há um outro aspecto nesse fragmento que merece nossa atenção, é a escolha pelos
bonecos: por que bonecos? Podemos estabelecer um paralelo com os preceitos bíblicos no que
tange ao momento da criação do homem, ele foi criado sem defeitos, mas por conta do pecado
original – ter comido o fruto proibido da árvore do conhecimento, podendo escolher entre o
bem e o mal – perdeu o direito à perfeição, passando a ser simplesmente homens e com isso
várias dificuldades foram acarretadas. De acordo com a Bíblia Sagrada (1989):
ora, o senhor Deus tinha plantado, desde o princípio, um paraíso de delícias, no qual
pôs o homem que tinha formado. E o senhor Deus tinha produzido da terra toda a
casta de árvores formosas à vista, e de frutos doces para comer; e a árvore da vida
no meio do paraíso, e a árvore da ciência do bem e do mal.
Com o passar dos tempos, essas dificuldades foram modificando-se, até chegar aos
dias atuais, o pós-moderno, momento em que os sujeitos perdem sua individualidade em favor
do que está sendo ditado pela sociedade na qual estão inseridos. Os sujeitos passam a
reproduzir aquilo que os constituíam e com isso passam a ser “bonecos” a todo tempo
manipulados por poderes, que não estão instituídos em uma dada pessoa, mas se encontram
presentes e diluídos em toda a sociedade. Todo esse percurso foi efetuado para afirmar que os
“bonecos” que serão fabricados por Marta e Cipriano representam todos esses sujeitos que são
a todo tempo manipulados, “bonecos” que não apresentam vontade própria, sendo fáceis de
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modelar por uma sociedade que tem como base fundadora o sistema capitalista. A produção
dos bonecos é também uma forma de materializar a resistência de Cipriano frente as normas
ditadas pelo sistema capitalista, pois ao modelar os bonecos Cipriano teria a impressão que
poderia manipular os compradores de seus produtos.
No próximo fragmento, Cipriano está do lado de fora do “Centro de Compras” e tece
algumas observações que são um exemplo do mencionado na fundamentação teórica da
presente pesquisa acerca do poder. Os sujeitos são constituídos através das relações
instauradas ao longo de sua vida e elas estão permeadas pelo poder.
Ao fundo, na altíssima parede cinzenta que cortava o caminho, via-se um enorme
cartaz branco, rectangular, onde, em letras de um azul brilhante e intenso, se liam de
um lado a outro estas palavras, VIVA EM SEGURANÇA, VIVA NO CENTRO.
Por baixo, colocada no canto direito, distinguia-se ainda uma breve linha, só duas
palavras, a preto, que os olhos míopes de Cipriano Algor não conseguem decifrar a
esta distância, e no entanto elas não merecem menos consideração que as da
mensagem grande, poderemos, se quisermos, designá-las por complementares, mas
nunca por meramente sobrevenientes, PEÇA INFORMAÇÕES, era o que estavam a
aconselhar. O cartaz aparece ali de vez em quando, repetindo as mesmas palavras,
só variáveis na cor, algumas vezes exibe imagens de famílias felizes, o marido de
trinta e cinco anos, a esposa de trinta e três, um filho de onze anos, uma filha de
nove, e também, mas não sempre, um avô e uma avô, de alvos cabelos, poucas
rugas e idade indefinida, todos obrigando a sorrir as respectivas dentaduras,
perfeitas, brancas, resplandecentes (SARAMAGO, 2000, p.93).
Atentamos inicialmente para o seguinte enunciado: “VIVA EM SEGURANÇA, VIVA
NO CENTRO”. Ele dá a impressão de que fora daquele espaço, de toda a vigilância e de
todos os dispositivos existentes para transformar os sujeitos em “corpos dóceis”, não haverá
mais segurança, as pessoas só estarão realmente seguras e felizes se forem morar ali. Isso fica
mais claro quando Cipriano descreve como os moradores aparecem na foto “exibem famílias
felizes” e que ainda são jovens. Todos, pais, filhos e avôs (quando aparecem) são bonitos e
bem cuidados. Atualmente, os sujeitos têm necessidade de se sentirem belos e perfeitos. Para
atingirem esse público, as empresas investem em propagandas com o objetivo de persuadir o
consumidor. Bauman (2007a, p.60) tece as seguintes considerações:
O valor mais característico da sociedade de consumidores, na verdade seu valor
supremo, em relação, ao que todos os outros são instados a justificar seu mérito, é
uma vida feliz. A sociedade de consumidores talvez seja a única na história humana
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a prometer felicidade na vida terrena, aqui e agora e a cada “agora” sucessivo. Em
suma a felicidade instantânea e perpétua.
Cipriano ao se deparar com esta situação fica incomodado, ele olha para o cartaz e
reflete sobre o que esta enxergando e lendo. Os sujeitos só serão felizes se consumirem, e essa
necessidade é imposta a eles a todo o momento, nos pequenos detalhes, através de nuanças
que nem sempre são apreendidas. Fica claro neste momento como a historicidade constitui a
subjetividade dos sujeitos e como ela é permeada pelo poder. Poder esse que aparece
sutilmente, mas que produz resultados, já que os sujeitos tornam-se consumidores vorazes
buscando uma satisfação ilusória, não atentando para o limite de suas necessidades.
Destacaremos ainda o seguinte enunciado: “que os olhos míopes de Cipriano Algor
não conseguem decifrar a essa distância”. Apesar do problema físico de Cipriano, ele
consegue enxergar o que está acontecendo, sendo assim, ele deve ser olhado mais
atentamente, pois quando buscamos no dicionário o significado da palavra miopia, deparamos
com duas definições: “1 Med Anormalidade visual que só permite ver os objetos a pequena
distância do olho; vista curta. 2 Falta de inteligência” (MICHAELIS, 1998, p.1384).
Atentando para os sentidos encontrados, observa-se que Cipriano foge a essas duas
definições, ele, apesar do problema, enxerga o cartaz e vai além do que está escrito, pois
critica a cena apresentada. Quanto ao segundo significado, a diferença ainda é maior, pois
deparamos com a “falta de inteligência”, algo que não se aplica a Cipriano, uma vez que passa
por problemas e dificuldades, entretanto não deixa de buscar outras opções, além das
apresentadas.
Como mencionamos anteriormente, o sentido de um dado enunciado vai além da sua
materialidade lingüística, isso fica muito claro no enunciado acima, pois, para o
compreendermos, precisamos ir além do seu sentido dicionarizado. Cipriano seria um sujeito
que apresenta dificuldades físicas para enxergar e também teria problemas de inteligência.
Mas essa leitura não se confirma, Cipriano, apesar da deficiência visual, enxerga melhor que a
maioria dos sujeitos pós-modernos, ele percebe o que acontece a sua volta, questiona e não a
aceita.
Logo a seguir teremos:
A Cipriano Algor afigurou-se-lhe de mau agoiro o convite, já estava a ouvir o genro
a anunciar, pela centésima vez, que iriam viver para o Centro logo que alcançasse a
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sua promoção a guarda residente, Ainda acabaremos os três num cartaz daqueles,
pensou, para casal jovem já têm a Marta e o marido, o avô seria eu se fossem
capazes de convencer-me, avó não há, morreu há três anos, e por enquanto faltam os
netos, mas no lugar deles poderíamos pôr o Achado na fotografia, um cão sempre
fica bem nos anúncios de famílias felizes, por muito estranho que pareça, tratando-
se de um irracional, confere-lhes um toque subtil, porém facilmente reconhecível,
de superior humanidade (SARAMAGO, 2000, p.93).
Aquela imagem de “família feliz” incomoda Cipriano, ele imediatamente sente
naquele convite má sorte, pois lembra que a qualquer momento o genro irá anunciar a ida
deles para o “Centro”. Com isso, poderiam ser a próxima família a aparecer no cartaz, mas
faltariam, segundo ele, membros, no caso ele e os netos. Ele não estaria presente, pois já
haveria morrido e os netos poderiam ser substituídos pelo cão Achado. Cipriano quando
afirma que não estaria ali anuncia sua não adequação à vida nova, preferindo a morte ao invés
do “Centro”. Seu desejo difere da maioria dos sujeitos, os quais dariam qualquer coisa para
morarem no “Centro”. Outro aspecto a ser pontuado é a maneira como ele trata o cão
“Achado”. Cipriano afirma que um cão sempre fica bem quando colocado em fotos de
famílias felizes.
Foucault (1982) afirma que desenvolveu seus estudos a partir de quatro grandes
grupos. Mencionamos anteriormente o quarto grupo que envolve o cuidado de si. Logo após
enumerar os grupos, ele afirma que “cada um desses tipos implica em certos modos de
educação e de transformação dos indivíduos, na medida em que se trata não somente,
evidentemente, de adquirir certas aptidões, mas também adquirir certas atitudes (Foucault,
1982, p.2)”.
Cipriano com o objetivo de resguardar-se contra a “padronização” que rodeia os
freqüentadores do “Centro”, apresenta uma opinião concernente à sua mudança para aquele
local. De acordo com Foucault (1982), no momento que olhamos para nós, buscamos o nosso
conhecimento, enfim o melhor para nós, faz-se necessário tomar atitudes. Essas atitudes nem
sempre estão de acordo com a grande maioria, é o que acontece com Cipriano. Morar no
“Centro” era o sonho de muitos, mas não o dele, sendo assim, ele já tinha uma decisão tomada
para aquela situação.
O fato de Cipriano ser diferente dos demais freqüentadores causa algumas mudanças
em sua subjetividade, ele perde sua “centralidade”, passa a não saber quem realmente é, enfim
qual sua função. Isso não quer dizer que os sujeitos aceitando ser iguais a grande maioria têm
uma centralidade. Na verdade, aceitando ser como todos os sujeitos, sentem-se confortáveis,
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com isso tem a ilusão que sua subjetividade é independente e apresenta uma centralidade.
Atentemos para o fragmento abaixo:
Cipriano Algor afastou-se em direcção ao forno, ia murmurando, como uma
cantilena sem significado, Marta, Marçal, Isaura, Achado, depois por ordem
diferente, Marçal, Isaura, Achado, Marta, e outra ainda, Isaura, Marta, Achado,
Marçal, e outra, Achado, Marçal, Marta, Isaura, enfim juntou-lhes o seu próprio
nome, Cipriano, Cipriano, Cipriano, repetiu-o até perder a conta das vezes, até sentir
que uma vertigem o lançava para fora de si mesmo, até deixar de compreender o
sentido do que estava a dizer, então pronunciou a palavra forno, a palavra alpendre,
a palavra barro, a palavra amoreira, a palavra eira, a palavra lanterna, a palavra
terra, a palavra lenha, a palavra porta, a palavra cama, a palavra cemitério, a palavra
asa, a palavra cântaro, a palavra furgoneta, a palavra água, a palavra olaria, a
palavra erva, a palavra casa, a palavra fogo, a palavra cão, a palavra mulher, a
palavra homem, a palavra, a palavra, e todas as coisas deste mundo, as nomeadas e
as não nomeadas, as conhecidas e as secretas, as visíveis e as invisíveis, como um
bando de aves que se cansasse de voar e descesse das nuvens, foram pousando
pouco a pouco nos seus lugares, preenchendo as ausências e reordenando os
sentidos (SARAMAGO, 2000, p.127).
Cipriano está passando por muitas dificuldades, tanto emocionais como financeiras.
Isso explicita a fragmentação de sua subjetividade. Essa instabilidade é uma característica da
pós-modernidade. Suas dificuldades são tão acentuadas que começa a falar os nomes de
vários objetos e pessoas de forma aleatória, confirmamos essa afirmação com o seguinte
enunciado: “cantinela sem significado”.
Ele precisa saber quem é, ele tinha um referencial até o momento em que o “Centro”
recusa seus produtos, mas agora não tem. Cipriano é um exemplo daquilo que está ocorrendo
com a sociedade pós-moderna, que passa de uma sociedade de produtores para uma de
consumidores, causando, assim, algumas mudanças substancias. De acordo com Bauman
(2007a, p.42):
A sociedade de produtores, principal modelo societário da fase “sólida” da
modernidade, foi basicamente orientada para a segurança. Nessa busca, apostou no
desejo humano de um ambiente confiável, ordenado, regular, transparente e, como
prova disso, duradouro, resistente ao tempo e seguro. Esse desejo era de fato uma
matéria-prima bastante conveniente para que fossem construídos os tipos de
estratégias de vida e padrões comportamentais indispensáveis para atender à era de
fábricas e exércitos de massa, de regras obrigatórias e conformidades às mesmas,
assim como de estratégias burocráticas e panópticas de dominação que, em seu
esforço para evocar disciplina e subordinação, basearam-se na padronização e
rotinização do comportamento individual.
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Cipriano, por vir de uma sociedade de produtores, necessita de segurança e
estabilidade, aspectos que não importam para a sociedade de consumidores. Sendo assim, na
ânsia pela organização ele produz os enunciados destacados anteriormente. Tal constatação se
confirma de forma explícita no seguinte enunciado: “preenchendo as ausências e reordenando
os sentidos”. Ele precisa de um sentido, de algo que devolva sua instabilidade, necessita de
segurança, de um norte. Essa repetição é uma forma que encontrou para sua reorganização.
Sua vida é pautada em algumas crenças que lhe foram retiradas rapidamente, seu ser foi
recoberto por um vazio, lacunas a serem preenchidas através da repetição desses enunciados.
A seguir temos as seguintes considerações:
Cipriano Algor sentou-se num velho banco de pedra que o avô fizera colocar ao
lado do forno, apoiou os cotovelos nos joelhos, o queixo nas mãos juntas e abertas,
não olhava a casa nem a olaria, nem os campos que se estendiam para lá da estrada,
nem os telhados [...] Não tinha pensamentos nem sensações, era apenas o maior
daqueles pedacinhos de barro, um torrãozito seco que uma leve pressão de dedos
bastaria para esfarelar, uma pragana que se soltara da espiga e era transportada pelo
acaso de uma formiga, uma pedra aonde de vez em quando se acolhia um ser vivo,
um escaravelho, ou uma lagartixa, ou uma ilusão (SARAMAGO, 2000, p.127).
Cipriano sente necessidade de retomar as tradições familiares, essa busca faz parte
desse processo de descentralização, como afirma Bauman (2005). Seu avô é resgatado não
somente nessa cena, mas em muitas outras, como busca de um refúgio daquilo que o sujeito
Cipriano não tinha mais como evitar.
Quando afirma “não tinha pensamentos nem sensações” e “era apenas o maior
daqueles pedacinhos de barro”, notamos que o sujeito sente-se muito fragilizado perante a
situação a qual não tem mais como reverter. Situação essa que, desorganizou todo o seu ser,
passando a ser um sujeito constituído pela modernidade, ele está sem direção, sua
subjetividade está permeado pela desorganização. Deixa para trás um sujeito uno, centrado
em si como o do Iluminismo, para tornar um sujeito pós-moderno que perde-se no
emaranhado de informações, posicionamentos, bem como na decadência de antigas
civilizações, transformando-o em algo sem uma identificação, passando a ser uma simples
“ilusão”.
Os questionamentos de Cipriano só aumentam no decorrer na narrativa, ele reflete
sobre sua vida, bem como as mudanças ocorridas nos últimos tempos, isso pode ser observado
no diálogo estabelecido entre ele e sua filha.
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Às vezes penso que talvez fosse preferível não sabermos quem somos, disse
Cipriano Algor, Como o Achado, Sim, imagino que um cão sabe menos de si
próprio do que do dono que tem, nem sequer é capaz de reconhecer-se num espelho,
Talvez o espelho do cão seja o dono, talvez só nele lhe seja possível reconhecer-se,
sugeriu Marta, Bonita ideia, Como vê, até as ideias erradas podem ser bonitas,
Criaremos cães se o negócio da olaria falir, No Centro não há cães, Coitado do
Centro, que nem os cães o querem, É o Centro que não quer os cães, Esse problema
só poderá interessar a quem lá viver, cortou Cipriano Algor com voz crispada.
Marta não respondeu, percebia que qualquer palavra que dissesse poderia servir de
pé para uma nova discussão (SARAMAGO, 2000, p.151).
O enunciado “fosse preferível não saber quem somos” é muito instigante, pois
Cipriano neste momento da narrativa pergunta-se e em várias outras passagens, quem é ele e o
que será dele a partir daquele momento. Ter o conhecimento de si muitas vezes incomoda,
pois deparamos com falhas e limitações. Pensando nessa questão do conhecimento de si,
novamente podemos estabelecer uma relação com o mito de Platão (1981), pois ele apresenta
dois níveis da realidade: o primeiro seria o inferior, no qual teríamos a sombra, e outro é o
superior, permeado pela realidade verdadeira. Porém, para chegar nesse segundo precisamos
romper as amarras. Essa mudança de paradigma não é instaurada de forma tranqüila, demanda
tempo e uma observação atenta sobre o que deve ser mudado. Cipriano encontra-se nesse
estágio, ele está passando por movências e deslocamentos provenientes da relação de poder
instaurada entre ele e o “Centro”, mas isso não ocorre tranqüilamente, é instaurado um embate
constante em seu interior, permeado por uma reflexão acerca da sua identidade.
Logo a seguir, atentamos para a seguinte afirmação: “Sim, imagino que um cão sabe
menos de si próprio do que do dono que tem, nem sequer é capaz de reconhecer-se num
espelho”. O cão tem algumas limitações quanto ao próprio conhecer, não podendo identificar-
se em um espelho. Mas essa limitação não é tão significativa, pois logo a seguir afirma
“Coitado do Centro nem os cães o querem”, Marta lembra-o quem não quer os cães e o
“Centro”. De acordo com Cipriano nenhum cão que se preze gostaria de morar em um lugar
no qual a liberdade é monitorada a todo o momento, apesar de ser o “Centro” a afirmar que
não quer os cães.
De acordo com Foucault (2004a, p.602): “a prática de si deve permitir desfazer-nos de
todos os maus hábitos, de todas as opiniões falsas que podemos receber da multidão ou dos
maus mestres, como dos pais e dos que nos cercam.” O cuidado de si não é fácil e tranqüilo de
ser assimilado. Demanda um desprendimento de algumas “verdades” que os sujeitos têm
arraigados em seu ser.
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Foucault (2004a) retoma os grandes pensadores da Era Clássica que se ativeram no
cuidado de si. Um aspecto interessante acerca desses estudiosos é o fato de destacarem a
importância dos sujeitos pararem o que estavam fazendo, ou melhor, as vezes nem iniciarem
uma determinada atividade para poderem preocuparem com si.
Os sujeitos da Era Clássica tinham mais tempo livre para se preocuparem com si, já
agora os sujeitos têm pouco tempo livre, pois trabalham muito e as preocupações são
variadas. Sendo assim, pode ser mais fácil e cômodo buscar idéias prontas, pensadas por
outros sujeitos. As subjetividades podem ser adquiridas através das mercadorias que são
oferecidas pelo sistema capitalista. A felicidade estará presente no momento da aquisição de
um carro moderno, roupas, eletroeletrônicos, no cuidado excessivo com o corpo e outros. A
satisfação do sujeito pós-moderno será proporcional ao seu poder de compra. Foucault (1982,
p.7) tece o seguinte comentário:
Alcebíades tenta encontrar a si através de um movimento dialético. Quando se cuida
do corpo, não se cuida de si. O si não é reduzível a uma vestimenta, a uma
ferramenta ou a posses. Deve ser procurado no principio que permite utilizar tais
ferramentas, um princípio que não pertence ao corpo, mas à alma. É preciso
inquietar-se com a alma __ essa é a principal atividade do cuidado de si. O cuidado
de si é o cuidado com a atividade, e não a preocupação com a alma enquanto
substância.
Portanto a satisfação está, antes de mais nada, ligada à forma como nós tratamos a
nossa “alma”, para sermos mais claros, nossa subjetividade. Cipriano é um sujeito diferente,
pois ele se preocupa com seu “eu”. Inicialmente, Cipriano fica perdido e desorientado frente a
transformação que ocorre em sua existência, mas com o passar do tempo ele ganha mais
segurança e começa a analisar criticamente o que está acontecendo a sua volta.
Nessa mudança, observamos que, no discurso de Cipriano, emergiram enunciados
vindouros de outros momentos históricos, mas que ganham novos sentidos, visto que, como
afirmamos anteriormente, o que é dito por determinado sujeito já foi enunciado em um outro
lugar, em outra historicidade.
Este foi o primeiro dia da criação. No segundo dia o oleiro viajou à cidade para
comprar o gesso cerâmico destinado aos moldes, mais o carbonato de sódio, que foi
o que encontrou como desfloculante, as tintas, uns quantos baldes de plástico,
teques novos de madeira e de arame, espátulas, vazadores (SARAMAGO, 2000,
p.154).
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Neste fragmento, deparamos com a descrição do momento da criação dos bonecos.
Chama à atenção a seriedade como Cipriano trata essa situação e também os enunciados “este
fora o primeiro dia da criação” e “no segundo dia”, pois observarmos uma semelhança com o
discurso bíblico. Para sermos mais específicos, com o momento da criação relatado na
Gênese. Porém, esses enunciados ganham novos sentidos, pois como já mencionamos, a
historicidade que os permeia é outra. Cipriano cria os bonecos, assim como Deus criou o
planeta, as plantas, os animais e o homem, mas para Cipriano o sentido da criação dos
bonecos não é simplesmente produzir um novo produto para ser consumido, mas sim uma
tentativa do próprio Cipriano em se recriar. Ele perdeu seu referencial, está sofrendo por isso,
e sente necessidade de reformular e reconstruir aquilo perdido no momento da recusa de seu
produto. Cipriano precisa de uma ordem, de uma direção que possibilite a reconstrução de sua
subjetividade. A fragmentação de sua subjetividade pode ser também notada no seguinte
fragmento:
Sou como uma estátua de pedra sentada num banco de pedra olhando um muro de
pedra, pensou, embora soubesse que não era rigorosamente assim, o muro, pelo
menos, como os seus olhos de entendido em matérias minerais podiam perceber,
não tinha sido construído com pedras, mas com tijolos refractários (SARAMAGO,
2000, p.154).
Cipriano sente-se atado a uma situação que não pode mudar. Essa afirmação está
embasada no seguinte enunciado: “uma estatua de pedra sentada num banco de pedra olhando
um muro de pedra”, que já teve lugar em outro momento histórico, mas aflora novamente. Ao
atentarmos para os momentos em que esse enunciado foi produzido, deparamos com um texto
de Platão (1981, p.46):
imagina uma caverna subterrânea, com uma entrada ampla, aberta à luz em toda a
sua extensão. Lá dentro, alguns homens se encontram, desde a infância, amarrados
pelas pernas e pelo pescoço de tal modo que permanecem imóveis e podem olhar
tão somente para a frente, pois as amarras não lhes permitem voltar a cabeça.
Há uma grande relação entre os enunciados proferidos por Cipriano e os que
encontramos no mito de Platão (1981). Mas a historicidade que permeia a produção de ambos
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difere, pois o mito foi proferido na Grécia, a milhares de anos atrás, já Cipriano vive na
sociedade pós-moderna, com outros valores. De acordo com Piettre (in: PLATÃO, 1981):
Que significado possui esta alegoria no contexto de A República e da descrição do
projeto de uma Cidade ideal? Ela representa as diferentes etapas da educação e da
progressão do filósofo no sentido da ciência do Bem. Tendo-a alcançado, deverá ele
orientar com sua sabedoria a conduta dos homens e assumir uma vez que se tiver
outra vez habituado à obscuridade, estará em melhores condições de reconhecer os
verdadeiros modelos das imagens e das sombras que ali dentro vê perfilar, e, assim
de instaurar não a sombra de Cidade, mas um modelo de Cidade perfeita.
O mito foi escrito com o objetivo de elucidar os governantes acerca da importância do
conhecimento de si para que fossem bons dirigentes. Esses enunciados ao emergirem em uma
outra historicidade têm também seu sentido vinculado à importância do conhecimento de si, é
dirigido a todo o sujeito independente da função que ocupam.
Na cena abaixo, Cipriano tem um sonho que difere da realidade vivida por ele:
Cipriano Algor sonhou que estava dentro do seu novo forno. Sentia-se feliz por ter
podido convencer a filha e o genro de que o repentino crescimento da actividade da
olaria exigia mudanças radicais nos processos de elaboração e uma pronta
actualização dos meios e estruturas de fabrico, começando pela urgente substituição
do velho forno, remanescente arcaico de uma vida artesanal que nem sequer como
ruína de museu ao ar livre mereceria ser conservado (SARAMAGO, 2000, p.154).
Cipriano sonha que seus produtos estão tendo uma boa aceitação, tanto que consegue
convencer a filha e o genro da necessidade de ter um forno novo. Para sermos mais
específicos, refere-se à necessidade de implementar “mudanças radicais”, “uma actualização
dos meios estruturais de fabrico”. Ele não se importa em mudar as técnicas empregadas na
fabricação das peças de barro, mas ele precisa continuar a produzi-las. Cipriano é constituído
de forma que sente a necessidade de produzir, enfim, ser um produtor. Isso faz com que haja
uma grande diferença entre ele e a sociedade na qual está inserido, pois nela os sujeitos são
condicionados a serem consumidores.
As dificuldades enfrentadas por Cipriano são tão acentuadas, pois há uma mudança
repentina em seus sentimentos, isso fica claro nos fragmentos anteriores e nos próximos.
“Pensou em muitas coisas, pensou que o seu trabalho se tornara definitivamente inútil, que a
99
existência da sua pessoa deixara de ter justificação suficiente e medianamente aceitável, Sou
um trambolho para eles” (SARAMAGO, 2000, p.154).
As dúvidas e incertezas tomam conta de Cipriano, ele se sente perdido frente ao fato
de não poder mais trabalhar, ele acredita que passou a ser um incômodo para a filha e o genro.
Essas mudanças na subjetividade de Cipriano demonstram claramente como a relação
instaurada entre ele e o “Centro de Compras” altera a maneira como compreende sua
existência, passa de um sujeito centrado em si, para um outro fragmentado e descentrado. É
muito interessante atentarmos para essas mudanças, pois elas têm uma grande relação com as
sofridas pelos sujeitos “reais” da pós-modernidade. Elas interferem em vários setores da vida
de Cipriano, no fragmento abaixo observaremos um desses:
A olaria era como um campo de batalha onde uma só pessoa tivesse andado durante
quatro dias a pelejar contra si mesma e contra tudo o que a rodeava. Isto está um
bocado desarrumado, desculpou-se Cipriano Algor, não é nada como antes, quando
fazíamos louça tínhamos uma norma, uma rotina estabelecida, É apenas uma
questão de tempo, disse Marta, com o tempo as mãos e as coisas acabam por se
habituar umas às outras, a partir desse dia nem as coisas atrapalham nem as mãos se
deixam atrapalhar, À noite sinto-me tão cansado que me caem os braços só de
pensar que deveria pôr uma arrumação neste caos, Com todo o gosto me
encarregaria eu da tarefa se não estivesse proibida de aqui entrar, disse Marta
(SARAMAGO, 2000, p.214).
A fabricação dos bonecos foge à normalidade à qual Cipriano estava acostumado, faz
com que se sinta desorganizado, isso reflete na própria organização da olaria. Ele afirma
“quando fazíamos louça tínhamos uma norma, uma rotina estabelecida”. Cipriano sente falta
da ordem, precisa ter algo que o direcione. O sujeito discursivo precisa organizar o forno, mas
não tem vontade, sente-se desanimado “me caem os braços só de pensar que deveria por uma
arrumação neste caos”. Esse desânimo é fruto não só do fato de ter que reorganizar o forno,
mas também o fato de ter que dar um norte para a sua vida. A desorganização externa reflete a
desorganização interna, podemos, assim, estabelecer uma relação entre o forno e a
subjetividade de Cipriano, o forno seria um “espelho” refletindo o seu interior, sendo assim,
ele pode se olhar a partir do reflexo que é estabelecido com o forno.
Neste momento da análise, atentaremos para o “Centro” e como ele se organiza, com o
objetivo de fazer com que os sujeitos sintam a necessidade de morar ou freqüentá-lo.
O “Centro de Compras” apresenta uma estrutura muito próxima da apontada por
Foucault (2007b) no Panóptico, temos paredes muito altas, não apresentando janelas na
100
fachada, mas somente na lateral e são poucas as voltadas para o exterior. Notamos, assim,
uma grande semelhança entre o “Centro” e a forma com as prisões são construídas. A
diferença está no público freqüentador do “Centro”, pois ele não cometeu nenhum tipo de
crime. Os detentos permanecem nesse espaço, pois são vigiados constantemente, se tivessem
oportunidade, fugiriam. Por outro lado, os sujeitos moradores ou freqüentadores do “Centro”
são vigiados, talvez mais do que os presos, entretanto continuam a freqüentar ou morar neste
lugar. Isso chama atenção, pois há uma troca da liberdade sem monitoramento por uma
vigilância constante.
Para haver uma efetiva atuação do poder disciplinar no panóptico, de acordo com
Foucault (1999), faz-se necessária uma vigilância constante e isso pode ocorrer por
intermédio de três dispositivos disciplinares: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora
e o exame.
A partir desse momento, a arquitetura não é mais apenas utilizada na construção de
palácios exuberantes, ela passa a ser uma aliada à constituição de dispositivos propagadores
do poder. De acordo com Foucault (2007a), o que era usado antes, o velho esquema simples
de manter as pessoas encarceradas em espaços impedindo-os de entrar ou sair, é substituído
por uma arquitetura que tem como principal função a transformação dos indivíduos.
Passamos por um período no qual os sujeitos estão sendo vigiados como nunca foram
em nenhum outro. Os corpos estão sendo monitorados a todo instante e em vários lugares
freqüentados por todos indistintamente. Para que isso ocorra, de acordo com Foucault
(2007b), há vários dispositivos empregados. Atentaremos para os recursos utilizados pelo
“Centro” com o objetivo de vigiar os “corpos”. Essa organização se inicia na própria estrutura
do “Centro de Compras”, podendo ser observado na seguinte passagem do romance:
A Organização do Centro fora concebida e montada segundo um modelo de estrita
compartimentação das diversas actividades e funções, as quais, embora não fossem
nem pudessem ser totalmente estanques, só por canais únicos, não raro difíceis de
destrinçar e identificar, podiam comunicar entre si (SARAMAGO, 2000, p. 40).
O “Centro de Compras” apresenta uma estrutura extremamente organizada. Os setores
ou departamentos responsáveis pela vigilância dos corpos, obedecem a uma ordem com o
objetivo de vigiar e monitorar os sujeitos. Como Foucault (2007b) afirma, é através de uma
vigilância constante e organizada que produzirão os “corpos dócies”. Os sujeitos freqüentam
101
lugares vigiados, entretanto não param para observar ou não têm tempo de notar todos os
mecanismos empregados na vigilância de seus corpos.
O olhar disciplinar é responsável por dois aspectos importantes para a divisão do
poder. O primeiro possibilita a ele se espalhar sem deixar lacunas, ou espaços vazios; e o
segundo aspecto é de ser tão discreto que não se tornará um fardo para quem está recebendo.
Observe a seguinte cena do romance em questão:
A quem teve de dar prontas e completas explicações foi a um guarda que, atraído
pelo ruído ou, mais provavelmente, guiado pelas imagens do circuito interno de
vídeo, lhe foi perguntar quem era e o que fazia naquele local. Cipriano Algor
explicou que morava no trigésimo quarto andar e que, andando por ali a passear,
sentira a sua atenção despertada pelo letreiro da porta, Simples curiosidade, senhor,
simples curiosidade de quem não tem mais nada que fazer. O guarda pediu-lhe o
cartão oficial de identidade, o cartão que o acreditava como residente, comparou a
cara ao retrato incorporado em cada um, examinou à lupa as impressões digitais
apostas nos documentos, e, para terminar, recolheu uma impressão do mesmo dedo,
que Cipriano Algor, após ter sido devidamente industriado, premiu contra o que
seria um leitor do computador portátil que o guarda extraíra de uma bolsa que
levava a tiracolo (SARAMAGO, 2000, p.312).
O “Centro de Compras” é um espaço no qual os sujeitos vão e têm a ilusão de serem
livres para ir e vir de acordo com sua vontade. Mas isso não passa de uma simples impressão,
os sujeitos têm seus corpos monitorados e vigiados a todo o momento. Foucault (2007b)
afirma que no século XVII os sujeitos já eram vigiados, mas a forma dessa vigilância foi, ao
longo dos tempos, ganhando novos aparatos tecnológicos, essa afirmação é confirmada no
fragmento acima, pois mostra alguns desses mecanismos. Cipriano, por ser curioso, é
investigado e examinado assim como um prisioneiro que cometeu um crime muito grave.
Cipriano, após mudar com sua filha e genro para o “Centro”, passa o tempo livre passeando.
Em um desses passeios ele encontra algo que o deixa curioso: uma porta que não poderia ser
aberta por ele. Sua curiosidade chama a atenção de um guarda que o submeteu a um
interrogatório sobre o motivo de sua presença naquele lugar. A forma como o policial aborda-
o é muito instigante, pois, como afirma Foucault (2007), há vários dispositivos, táticas e
técnicas de dominação empregadas com o objetivo de construir “corpos dócies”, o autor
estuda-as em algumas instituições, principalmente nas prisões. Observamos que os
dispositivos usados nas prisões passaram a ser utilizados pelo “Centro de Compras”, com o
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objetivo de vigiar todos os detalhes relacionados com a vida dos sujeitos residentes ou que
estão simplesmente de passagem.
Os enunciados “um guarda”, “imagens do circuito interno de vídeo”, “cartão oficial de
identidade”, “comparar a cara com o retrato”, “examinar à lupa as impressões digitais”,
“recolher uma impressão do mesmo dedo” e “são formalidades” dão uma dimensão da
vigilância constante a que estão submetidos os moradores. O objetivo é fazer com que os
sujeitos sejam monitorados a todo instante, dessa maneira, suas mínimas ações serão
controladas e qualquer desvio de conduta que fugir à “normalidade” poderá ser combatido.
Essa normalidade está associada ao consumo, para sermos mais claros, os sujeitos estão ali
para consumir, qualquer atitude suspeita deve ser investigada.
A partir de todo o aparato utilizado, concordamos que há certo exagero, pois quando
os sujeitos vão a lugares equivalentes ao “Centro” são vigiados, mas não com tamanha
intensidade. Entretanto, quando vão viajar de avião, no momento do embarque há uma série
de procedimentos, os quais são muito próximos dos mencionados. A bagagem é checada e o
corpo também, atualmente existem máquinas que deixam os corpos nus (sem despi-los), com
o objetivo de saber se algum dos passageiros representa algum risco para os demais ou se
estão transportando, internamente em seus corpos, algo ilícito. Portanto, o que é apontado no
romance como dispositivo de vigilância não está fora da realidade em que estamos inseridos.
De acordo com Foucault (2007a), a norma para realmente funcionar precisa de um
sistema igualitário e homogêneo, pois é somente assim, nesse espaço, que as diferenças vão
surgir e o poder atingirá seus propósitos. Podemos observar como se articula a norma quando
atentamos para o seguinte enunciado presente na última citação do romance: “lhe foi
perguntar o que fazia naquele local”. No “Centro” há lugares abertos a visitação de todos,
outros não. Cipriano tem sua atenção voltada para um desses lugares, sendo assim, ele foge ao
padrão de normalidade dos outros visitantes e moradores. A “normalidade” dos outros sujeitos
dá abertura para o guarda identificar a não “normalidade” de Cipriano. Portanto, a vigilância
se efetivará apenas em espaços nos quais predomine a “normalidade”.
Como exemplo para o mencionado acima, há ainda outro momento da narrativa:
Alguém que ande a passear lá dentro de mãos a abanar pode estar certo de que não
tardará a ser objecto de atenção especial por parte dos guardas, podia dar-se até a
cómica situação de ser o seu próprio genro a interpelá-lo, Pai, o que é que está aqui
a fazer, se não compra nada, e ele responderia, Vou ao sector das louças para ver se
ainda têm exposta por lá alguma peça da Olaria Algor, saber quanto custa aquela
bilha com decoração de pedacinhos de mármore incrustados (SARAMAGO, 2000,
p.99).
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O fato de o sujeito andar pelo “Centro de Compras” sem consumir produtos chama
atenção dos guardas que logo vem interrogar com o objetivo de saber as causas de não
estarem consumindo os produtos oferecidos pelo “Centro”. Os sujeitos acreditam serem donos
de suas escolhas, mas isto é apenas uma “ilusão”, os corpos estão sendo vigiados a todo
instante e essa vigilância constante faz com que tomem determinadas atitudes acreditando que
são suas, mas não são, pois são levados a tomá-las.
De acordo com Foucault (2007a, p.157), “o exame supõe um mecanismo que liga
certo tipo de formação de saber a uma certa forma de exercício de poder”. O primeiro
mecanismo é o exame, nele há uma inversão, o poder até então era visto por todos, não havia
uma preocupação em escondê-lo, agora o poder não é visto, ele passa a ser invisível. O
importante para a disciplina é a atenção dispensada à visão dos sujeitos submetidos a ela, a
atenção é centrada na visibilidade dos sujeitos, a partir dela o poder se manifestará
objetivando, organizando e alinhando os sujeitos.
De acordo com Foucault (2007a), por meio do exame e da vigilância foi instaurado o
“poder da escrita”. A partir de relatórios foi possível estabelecer relações e comparações entre
os elementos. Essa forma de exercer o poder se expandiu para vários setores. Atentaremos
para essas considerações no fragmento abaixo:
O guarda esperou que Cipriano Algor se afastasse uma dezena de metros, depois
seguiu-o até que encontrou um colega, a quem, para evitar ser reconhecido, passou a
missão, Que fez ele, perguntou o guarda Marçal Gacho, disfarçando a preocupação,
Estava a chamar à porta secreta, Não é grave, isso acontece várias vezes todos os
dias, disse Marçal, com alívio, Sim, mas a gente tem de aprender a não ser curiosa, a
passar de largo, a não meter o nariz aonde não foi chamada, é uma questão de tempo
e de habilidade, Ou de força, disse Marçal, A força, salvo em casos muito extremos,
deixou de ser precisa, claro que eu podia tê-lo detido para interrogatório, mas o que
fiz foi dar-lhe bons conselhos, usar a psicologia, Tenho de ir atrás dele, disse
Marçal, não seja que se me escape, Se notares algo de suspeito, informa-me, para
anexar ao relatório, assinaremos os dois. (SARAMAGO, 2000, p.312).
A curiosidade de Cipriano acarreta uma série de atitudes tomadas pelos guardas, uma
delas é fazer um relatório do ocorrido e ambos assinarem. A curiosidade incomoda, uma vez
que Cipriano foge à normalidade exigida aos freqüentadores do “Centro”. Essa atitude pode
causar problemas, pois temos nela a resistência, isso quer dizer que podemos ter falhas nos
dispositivos empregados na constituição dos “corpos dóceis”.
No fragmento abaixo, temos o diálogo de Cipriano e o gerente de compras do
“Centro”. O gerente de compras do “Centro” liga para avisar Cipriano que pode buscar o
104
dinheiro dos bonecos que foram utilizados na pesquisa realizada pelo “Centro”. Nós
trouxemos para a análise apenas uma parte do diálogo, mas que possibilita termos uma boa
dimensão de como encaminhou a discussão.
Nos tempos de hoje vai dar praticamente no mesmo, não exagerarei nada afirmando
que o Centro, como perfeito distribuidor de bens materiais e espirituais que é,
acabou por gerar de si mesmo e em si mesmo, por necessidade pura, algo que, ainda
que isto possa chocar certas ortodoxias mais sensíveis, participa da natureza do
divino, Também se distribuem lá bens espirituais, senhor, Sim, e nem pode imaginar
até que ponto, os detractores do Centro, aliás cada vez menos numerosos e cada vez
menos combativos, estão absolutamente cegos para o lado espiritual da nossa
actividade, quando a verdade é que foi graças a ela que a vida pôde ganhar um novo
sentido para milhões e milhões de pessoas que andavam por aí infelizes, frustradas,
desamparadas, e isto, quer se queira quer não, acredite em mim, não foi obra da
matéria vil, mas de espírito sublime (SARAMAGO, 2000, p.293).
Esse diálogo é muito importante, pois permite que comprovemos algumas inferências
acerca da abrangência do poder que o “Centro” exerce sobre os sujeitos. Há uma troca de
espaços, o divino que até então era difundido através dos templos e igrejas passa a ser função
do “Centro de Compras”. Ele é um espaço no qual os sujeitos encontram a solução para todos
os seus problemas materiais e também espirituais. De acordo com Foucault (2001, p.411):
A época atual seria talvez de preferência a época do espaço. Estamos na época do
simultâneo, estamos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a
lado, do disperso. Estamos em um momento em que o mundo se experimenta,
acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do
que uma rede que realiza pontos e que entrecruza sua trama. Talvez se pudesse dizer
que certos conflitos ideológicos que animam as polêmicas de hoje me dia se
desencadeiam entre piedosos desentendes do tempo e os habitantes encarniçados do
espaço.
Foucault, acima, afirma que os sujeitos estão passando por um período no qual tudo é
possível, tem-se uma liberdade muito grande de justapor o que quiserem. É isso que acontece
com o “Centro de Compras”, há uma justaposição de funções em um único espaço.
De acordo com ele, ainda, houve um momento na história do espaço que cada coisa
tinha seu devido lugar. Isso ocorreu na Idade Média, nesse momento temos:
Um conjunto hierarquizado de lugares: lugares sagrados e lugares profanos, lugares
protegidos e lugares, pelo contrário, abertos e sem defesa, lugares urbanos e lugares
rurais (onde acontecia a vida real dos homens); para a teoria cosmológica, havia os
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lugares onde as coisas se encontravam colocadas porque eles tinham sido
violentamente deslocadas, e depois os lugares, pelo contrário, onde as coisas
encontravam sua localização e seu repousos naturais. (FOUCAULT, 2001, p.412)
Portanto, havia uma distinção entre espaços, eles eram bem demarcados. Atualmente
isso mudou, Foucault (2001, p.413) afirma que essa transformação não atingiu todos os
espaços, há alguns que ainda são preservados: “por exemplo, entre o espaço privado e espaço
público, entre o espaço da família e o espaço social, entre o espaço cultural e o espaço útil,
entre o espaço do lazer e o espaço do trabalho; todos são ainda movidos por certa
sacralização.” De acordo com ele ainda:
O espaço no qual vivemos, pelo qual somos atraídos para fora de nós mesmos, no qual
decorre precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo, de nossa história, esse
espaço que nos corroi e nos sulca é também em si mesmo um espaço heterogêneo. Dito de
outra forma, não vivemos em uma espécie de vazio, no interior da qual se poderiam situar
os indivíduos e as coisas. Não vivemos no interior de um conjunto de relações que
definem posicionamentos irredutíveis uns aos outros e absolutamente impossíveis de ser
sobrepostos (FOUCAULT, 2001, p.414).
Os espaços de fora são heterogêneos, eles corroboram para a constituição das
subjetividades dos sujeitos. O “Centro de Compras” é um desses espaços que constituem os
sujeitos. Ele tem a função de fornece-se alimento material e espiritual. Atualmente, por vários
motivos, dentre eles a fragmentação nos relacionamentos, a instabilidade dos empregos e a
agitação do dia-a-dia, os sujeitos estão desorientados. Essa afirmação pode ser comprovada
com o seguinte enunciado: “andavam por aí infelizes, frustradas e desamparadas.” O “Centro”
tem como objetivo acalentar o sofrimento desses sujeitos, só que para isso ele emprega como
artifício o consumo exagerado. A felicidade está atrelada à quantidade do que está sendo
consumido, quanto mais consumirem, mais serão felizes. Causa estranhamento considerar o
“Centro” responsável não só pelo material, mas também o espiritual. De acordo com Foucault
(2001, p.415), essa mudança é denominada heterotopia, isso quer dizer:
Esses lugares, por serem totalmente diferentes de todos os posicionamentos que eles
refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de
heterotopias; e acredito que entre as utopias e estes posicionamentos absolutamente
outros, as heterotopias, haveria sem dúvida, uma espécie de experiência mista,
mediana, que seria o espelho.
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Foucault (2001) afirma que nas sociedades denominadas “primitivas” tínhamos as
heterotopias de crise, isso quer dizer que havia lugares reservados, sagrados ou proibidos,
destinados a alguns sujeitos que, houvesse, por algum motivo, a necessidade de ficar afastado
dos demais. Como exemplo, apontamos os adolescentes do século XIX encaminhados aos
colégios internos para estudar, eles eram afastados de suas famílias e da sociedade.
Atualmente, essas heterotopias estão desaparecendo, pois estão sendo substituídas, de
acordo com Foucault (2001, p.416), pelas heterotopias de desvio: “aquela na qual se localiza
os indivíduos cujo o comportamento desvia em relação à média ou a norma exigida”. Como
exemplo aponta as casas de repousos, prisões e outros.
A partir do que mencionamos o “Centro de Compras” pode ser considerado uma
heterotopia, pois não só tem a função de comercialização de produtos, como também passa a
exercer a função de um espaço “mítico”, uma vez que sua preocupação vai além do material,
abrange o espiritual.
Cipriano, em seus passeios pelo “Centro”, descobre uma porta secreta, a qual o deixa
muito curioso. Descobre que seu genro irá vigiá-la durante a noite, aproveita a oportunidade
para descobrir o que estava sendo escondido.
Que faz aqui, repetiu, Vim ver, disse Cipriano Algor, E não pensou nos problemas
que me cairão em cima se se chega a saber, não pensou que isto pode custar-me o
emprego, Dirás que o teu sogro é um idiota chapado, um irresponsável que deveria
estar internado numa casa de doidos, metido numa camisa-de-forças
(SARAMAGO, 2000, p.330).
Cipriano encontra o genro e ele fica com medo de ser despedido do trabalho por causa
da façanha do sogro. Mas, entretanto, Cipriano diz para o genro, caso descubram, é só ele
dizer que o sogro “é um idiota chapado, um irresponsável que deveria estar internado em uma
casa de doidos, metido numa camisa de forças”. Esse enunciado merece ser observado com
mais atenção, pois Foucault (1982) afirmou que no século XVI quando uma pessoa
apresentava algum desvio de conduta, como um comportamento contrário ao da família era
encaminhado para o sanatório, essa maneira de tratar a “diferença” ainda é empregada nos
dias atuais. Cipriano fundamenta sua curiosidade no fato de não ser “normal”, isso é muito
estranho, pois ao observarmos Cipriano, atentaremos para o fato de ele ser muito mais
“normal” que a grande maioria dos freqüentadores. Cipriano percebe a padronização dos
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sujeitos, enquanto os demais não. Ele enxerga, questiona o comportamento, o tratamento, a
estrutura do “Centro”. Após algumas confusões, forma uma opinião consistente acerca de sua
permanência neste espaço. Cipriano atenta para a constituição da sua subjetividade, busca
esse conhecimento de si.
Nesse momento, Cipriano encontra o que tanto buscava, fica surpreso e emocionado
pela descoberta:
Com o choque a luz oscilou, diante dos olhos surgiu-lhe, num instante, o que
parecia um banco de pedra, e logo, no instante seguinte, alinhados, uns vultos mal
definidos apareceram e desapareceram. Um violento tremor sacudiu os membros de
Cipriano Algor, a sua coragem fraquejou como uma corda a que se estivessem
rompendo os últimos fios, mas dentro de si ouviu um grito que o chamava à ordem,
Recorda, nem que morras. (SARAMAGO, 2000, p.332).
Cipriano, que até esse momento estava com sua identidade desestabilizada, sem um
ponto de referência que oferecesse sustentabilidade para suas escolhas, leva um choque com
sua descoberta, fazendo-lhe tremer todo o corpo. Logo a seguir a imagem que tem a sua
frente, “a luz” e “uns vultos mal definidos” chama-o para a “realidade”, aspectos de grande
relevância na constituição de sua subjetividade “que chamava de ordem”. Não se importava
com os próximos acontecimentos, poderia até morrer, entretanto ele sentia a necessidade de
mudar. Cipriano morre realmente, todavia não perde a vida, o que não existe mais é aquela
identidade fixa, nem a fragmentada. Cipriano é um novo sujeito que não se enquadrava no que
era, menos ainda no que se tornou, ele precisa saber quem realmente é, e o que é realmente
importante para sua existência. O fragmento abaixo é continuação do citado acima:
A luz trémula da lanterna varreu devagar a pedra branca, tocou ao de leve uns panos
escuros, subiu, e era um corpo humano sentado o que ali estava. Ao lado dele,
cobertos com os mesmos panos escuros, mais cinco corpos igualmente sentados,
erectos todos como se um espigão de ferro lhes tivesse entrado pelo crânio e os
mantivesse atarraxados à pedra. A parede lisa do fundo da gruta estava a dez palmos
das órbitas encovadas, onde os globos oculares teriam sido reduzidos a um grão de
poeira. Que é isto, murmurou Cipriano Algor, que pesadelo é este, quem eram estas
pessoas. Aproximou-se mais, passou lentamente o foco da lanterna sobre as cabeças
escuras e ressequidas, este é homem, esta é mulher, outro homem, outra mulher, e
outro homem ainda, e outra mulher, três homens e três mulheres, viu restos de
ataduras que pareciam ter servido para lhes imobilizar os pescoços, depois baixou a
luz, ataduras iguais prendiam-lhes as pernas. (SARAMAGO, 2000, p.332).
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Nesse fragmento, mais do que em qualquer outro momento da narrativa, percebemos
emergirem enunciados provenientes de outros momentos históricos, como O mito da caverna
de Platão. Atentaremos para os seguintes enunciados: “viu restos de ataduras que pareciam ter
servido para lhes imobilizar os pescoços, depois baixou a luz, ataduras iguais prendiam-lhes
as pernas.” No mito, os sujeitos estavam acorrentados, já no romance eles estão atados, em
ambos os casos estão presos. Esses enunciados foram produzidos em momentos históricos
diferentes, mas o sentido não difere muito, pois estão relacionados com a necessidade que os
sujeitos têm de romper as amarras que os prendem às normas ditadas pela sociedade, no caso
de Cipriano o sistema Capitalista. O próximo fragmento dá continuidade aos dois anteriores:
Então, devagar, muito devagar, como uma luz que não tivesse pressa de aparecer,
mas que viesse para mostrar a verdade das coisas até aos seus mais escuros e
recônditos desvãos, Cipriano Algor viu-se a entrar outra vez no forno da olaria, viu
o banco de pedra que os pedreiros lá tinham deixado esquecido e sentou-se nele, e
outra vez escutou a voz de Marçal, porém estas palavras agora são diferentes,
chamam e tornam a chamar, inquietas, lá de longe, Pai, está a ouvir-me, responda-
me. A voz retumba no interior da gruta, os ecos vão de parede a parede,
multiplicam-se, se Marçal não se cala por um minuto não será possível ouvirmos a
voz de Cipriano Algor a dizer, distante, como se ela própria já fosse também um
eco, Estou bem, não te preocupes, não me demoro. O medo havia desaparecido
(SARAMAGO, 2000, p.332).
Cipriano fica surpreso com a descoberta, são pessoas que estão sentadas em bancos de
pedras, de costas para a entrada e acorrentadas. Cipriano é tomado por um súbito
estranhamento, quer saber quem são esses sujeitos. Nesse momento da narrativa, percebemos
como a memória discursiva funciona, permitindo a retomada de enunciados vindouros de
outros momentos históricos, mas com outros sentidos.
Essa descoberta causa certo desconforto – “que pesadelo é este” –, faz Cipriano
perceber que aquelas pessoas atadas “representam” ele e todos os outros sujeitos presos às
“normas” ditadas pelo sistema capitalista. A sociedade pós-moderna está atada ao
consumismo exagerado e à artificialidade dos relacionamentos, há uma inconstância nas
escolhas dos sujeitos, causando, assim, o que Bauman (2005) denomina de descentralização
do sujeito. Há, dessa maneira, uma incerteza acerca do pertencimento, muitos sujeitos estão
enfrentando dificuldades, pois são constituídos pela dúvida.
Para Cipriano o “Centro” é um lugar que não serve para ser seu lar, pois lá existe um
tipo de prisão, a vigilância é exercida constantemente. Isso fica mais claro na seguinte cena:
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Lá em baixo há seis pessoas mortas, três homens e três mulheres, Não me
surpreende, era exactamente o que eu calculava, que deveria tratar-se de restos
humanos, sucede com frequência nas escavações, o que não compreendo é por que
foram todos estes mistérios, tanto segredo, tanta vigilância, os ossos não fogem, e
não creio que roubar esses merecesse o trabalho que daria, Se tivesses descido
comigo compreenderias, aliás ainda estás a tempo de ir lá abaixo, Deixe-se de
ideias, Não é fácil deixar-se de ideias depois de se ter visto o que eu vi, Que foi que
viu, quem são essas pessoas, Essas pessoas somos nós, disse Cipriano Algor, Que
quer dizer, Que somos nós, eu, tu, o Marçal, o Centro todo, provavelmente o
mundo, Por favor, explique-se, Dá-me atenção, escuta. A história levou meia hora a
ser contada. Marta ouviu-a sem interromper uma única vez. No fim, apenas disse,
Sim, creio que tem razão, somos nós. Não falaram mais até chegar Marçal. Quando
ele entrou, Marta abraçou-se-lhe com força, Que vamos fazer, perguntou, mas
Marçal não teve tempo de responder. Em voz firme, Cipriano Algor dizia, Vocês
decidirão a vossa vida, eu vou-me embora (SARAMAGO, 2000, p.335).
Cipriano encontra seis pessoas mortas, três homens e três mulheres petrificadas e
acorrentadas. Isso o incomoda significativamente fazendo com que tome a decisão de ir
embora do “Centro”. O enunciado “tanto segredo, tanta vigilância, os ossos não fogem”, dão a
dimensão da importância da descoberta e o seu significado. Mesmo acorrentados e
petrificados, aquelas pessoas ainda são vigiadas, isso mostra o grau de vigilância a permear o
“Centro”. Cipriano Algor logo a seguir afirma para sua filha que “essas pessoas somos nós...
que somos nós, eu, tu, o Marçal, o Centro todo, provavelmente o mundo”, essa descoberta faz
com que não queira ficar ali.
Ao atentarmos para a historicidade que permeia a produção desses enunciados,
deparamos com uma sociedade centrada no consumismo, enfim é o sistema capitalista que
determina as regras. Os sujeitos tornaram-se prisioneiros da necessidade de fazer parte do
grupo e para alcançar esse objetivo estão constantemente procurando algo novo para ser
adquirido. Não percebem, assim, que a cada dia estão mais presos às regras determinadas por
esse sistema.
Cipriano prefere a instabilidade, a uma não certeza no futuro, a ficar ali, parado,
sentado e esperando o tempo passar. Nesse momento da narrativa, fica ainda mais evidente a
retomada da Caverna de Platão, seis pessoas foram encontradas petrificadas e presas a
correntes. Assim como no mito, os sujeitos freqüentadores ou moradores do “Centro” não
tiveram coragem de sair das sombras, preferem-na em vez da luz.
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Os preparativos ocuparam todo o dia seguinte. Primeiro de uma casa, logo da outra.
Marta e Isaura escolheram o que achavam necessário para uma viagem que não tem
destino conhecido e que não se sabe como terminará (SARAMAGO, 2000, p.348).
Cipriano passa, assim, a necessitar de algo não encontrado no local onde vive, precisa
mudar, pois está totalmente descentralizado. Mesmo sendo essa mudança sem um destino
prévio, ou que venha a ser descoberto em seguida, prefere essa instabilidade a ficar
condicionado às relações de poder existentes no “Centro de Compras”. O romance é
concluído com o seguinte acontecimento:
Havia um cartaz, daqueles grandes, na fachada do Centro, são capazes de adivinhar
o que ele dizia, perguntou, Não temos ideia, responderam ambos, e então Marçal
disse, como se recitasse, BREVEMENTE, ABERTURA AO PÚBLICO DA
CAVERNA DE PLATÃO, ATRACÇÃO EXCLUSIVA, ÚNICA NO MUNDO,
COMPRE JÁ A SUA ENTRADA (SARAMAGO, 2000, p.349).
Cipriano juntamente com sua família passa próximo ao “Centro” e se depara com os
enunciados acima, mas o que chama mais atenção entre eles é: “CAVERNA DE PLATÃO,
ATRACÇÃO EXCLUSIVA, ÚNICA NO MUNDO”, pois os sujeitos estão, atualmente,
acorrentados em cavernas como os encontrados na caverna do “Centro”. Novamente podemos
estabelecer uma relação entre esse enunciado e um espelho, esses sujeitos encontrados são o
reflexo de toda a sociedade que está presa ao sistema capitalista.
Não queremos afirmar que o sistema capitalista é o responsável por todas as
dificuldades enfrentadas pelos sujeitos na pós-modernidade, essas dificuldades estão
associadas ao próprio sujeito, ele aceita, sem questionar, as normas ditadas pelo sistema. O
que falta para a grande maioria dos sujeitos, e temos em Cipriano, é a busca pelo
conhecimento de si, pois se todos estivessem realmente preocupados consigo não aceitariam
tantas regras que beneficiam uma pequena parte da sociedade. Cipriano é um sujeito diferente
dos demais, pois se desloca da posição ocupada pela grande maioria, com isso prefere ir para
um lugar indeterminado a ficar atado a “verdades” que não são suas.
CONCLUSÃO
Como um bom lutador, devemos
aprender exclusivamente aquilo que
nos permitirá resistir aos acontecimentos
que podem produzir-se; devemos aprender
a não nos deixar perturbar por eles, a não
nos deixar levar pelas emoções que poderiam
suscitar em nós. (Foucault)
A constituição discursiva dos sujeitos é algo instigante e revelador. Instigante, pois
encontramos no discurso de um sujeito do século XXI enunciados que já foram empregados
em outros momentos históricos, entretanto com sentidos outros; e revelador, uma vez que nos
deparamos com marcas presentes em seu discurso que remetem à formação discursiva na qual
se inscreve.
A presente pesquisa possibilitou que visualizássemos como se articula esse sujeito, seu
discurso e a historicidade que o permeia. Atentamos para a constituição discursiva de
Cipriano Algor, personagem central do romance A caverna, de José Saramago, partindo da
relação de poder estabelecida entre ele e o “Centro de Compras”. Notamos que em seu
discurso emergiram enunciados vindouros de outros momentos históricos, mas que ganharam
novos sentidos tendo em vista a historicidade que os permeiam.
Enfatizamos que a relação de poder não pode ser entendida como uma relação na qual
existe uma “instituição” superior que detém o poder. Segundo Foucault (2005), o poder é
exercido em rede, pois os sujeitos recebem, mas também o exercem. O poder não é algo a ser
aplicado a alguns sujeitos, ele na verdade transita entre eles. Procuramos analisar não o
“centro” do poder, mas a modificação que essa relação causa em Cipriano Algor. Atentamos
para a constituição de sua subjetividade a partir dessa “rede” de poder, que acumula, circula e
faz funcionar um discurso “verdadeiro”, pois, segundo Foucault (2005, p.29), “somos
submetidos à produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção de
verdade.”
Essa “produção de verdade” não pode ser relacionada com a produção de algo
realmente verdadeiro, pois ela está interligada com os interesses que permeiam a sociedade de
forma geral. Foucault (2007b) emprega como exemplo a criação do sistema punitivo, que
passou, tendo em vista os interesses de uma minoria, a condenar no final do século XVI e
112
início do século XVII certos crimes que até aquele momento eram aceitos. Essa mudança é
decorrente da instauração da burguesia e consequentemente da forma de acumular o capital
que corroborou para o aumento da quantidade de roubos. Sendo assim, a produção de uma
verdade está relacionada com a historicidade que a permeia.
Tendo em vista o que destacamos acerca do sujeito Cipriano Algor, reiteramos que ele,
por ser constituído a partir de uma exterioridade, sofre movências que são constituídas a todo
o momento por lutas e embates. Esses conflitos são permeados pelo poder, que está imbricado
em todas as relações, formando uma teia que o difunde em todas as camadas sociais.
Com isso, as identidades não são fixas. Segundo Stuart Hall (2005), neste período da
pós-modernidade, as identidades sofrem deslocamentos ou fragmentações, havendo o que o
autor denomina de “mudança estrutural”, consistindo na desestabilização da imagem que o
sujeito tem de si. Com isso, sua identificação se deslocará a todo instante e o sujeito passará a
se encontrar em um entre-lugar, ou seja, nem o que era antes, nem o que a sociedade pós-
moderna oferece.
O direcionamento apontado pela pós-modernidade faz com que o sujeito Cipriano
Algor se desestabilize, ou seja, torne-se descentrado, e passe a buscar (forçadamente) uma
nova identidade, pois sua profissão passou a ser obsoleta. Cipriano Algor sofre deslocamentos
e suas movências são vislumbradas por meio de sua inscrição em diferentes formações
discursivas, sócio-historicamente produzidas e transformadas.
Tendo em vista o embate travado entre Cipriano e o “Centro”, notamos que em seu
discurso surgem enunciados provenientes de outros momentos históricos; destacamos o
discurso bíblico e o filosófico com o mito de Platão. O sujeito discursivo em questão reflete e
questiona o fato do “Centro” não comprar mais seus produtos, nesses momentos de
questionamentos percebemos que no interior de seu discurso emergem enunciados que
apontam para a constituição de uma subjetividade contrária ao que é proposto pelo sistema
capitalista que está fundamentado na transformação dos sujeitos em consumidores vorazes,
enfim devem ser constituídos pela inconstância.
A partir do mencionado no decorrer da presente pesquisa, notamos que ao apontarmos
uma verdade como sendo absoluta estamos encobrindo o fato de não a termos concretamente.
O que temos são “jogos” de poder ditados por uma minoria com o objetivo de manipular uma
maioria, levando-a pensar que suas atitudes e escolhas são provenientes de si. Cipriano
através dos questionamentos constituídos no decorrer da narrativa “foge” a essa modulação,
pois ele questiona a padronização dos sujeitos, sua inconstância, bem como o fato de
aceitarem a “verdade” dos outros como sendo constitutiva da sua subjetividade.
113
Acreditamos que a presente pesquisa possibilitou atentarmos não só para a
constituição discursiva de Cipriano, mas também para a nossa própria constituição, pois assim
como ele, estamos inseridos na sociedade pós-moderna. Com isso, devemos observar com
outros olhos o que está a nossa volta, uma vez que muitas “verdades” que são ditas como
“reais” são produzidas com o objetivo de privilegiar uma minoria.
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