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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA
GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS
REVISITANDO CALIBAN:
UMA LEITURA DE “BRAZIL”, DE PAULE MARSHALL
Frederico Westphalen
2010
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1
GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS
REVISITANDO CALIBAN: UMA LEITURA DE “BRAZIL”, DE PAULE
MARSHALL
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
em Letras como requisito parcial e último à
obtenção do grau de Mestre em Letras da
Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões, Campus de Frederico
Westphalen. Área de Concentração: Literatura.
Orientadora: Profª. Dra. Denise Almeida Silva
Frederico Westphalen
2010
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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertação de Mestrado
REVISITANDO CALIBAN: UMA LEITURA DE “BRAZIL”, DE PAULE
MARSHALL
Elaborada por
GABRIELA CORNELLI DOS SANTOS
como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Letras
COMISSÃO EXAMINADORA
________________________________________
Profª. Dra. Denise Almeida Silva – URI
(Presidente/Orientadora)
________________________________________
Membro Profª. Dra. Heloisa Toller Gomes – UFRJ
______________________________________
Membro Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari - URI
Frederico Westphalen, 26 de Agosto de 2010.
3
A minha filha Eduarda.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço, inicialmente, à professora-orientadora Denise, pelo incentivo desde a
graduação para que eu me inscrevesse no Mestrado, e pelas suas orientações ao longo da
execução da dissertação; também pela compreensão que teve comigo, pois em algum
momento tive que pausar o andamento da pesquisa e retomar somente um mês depois; por seu
jeito atencioso e preocupado em saber como a maternidade estava me modificando quanto ao
tempo e sentimentos e pela prioridade que teve comigo quando, na reta final da gestação, nos
preparávamos para o exame qualificatório. A você, Profe Denise, minha eterna gratidão.
A meu esposo, pelo apoio, liberdade e amor que me proporcionou durante todo o
Curso.
A minha família, pai, mãe e irmão, que almejaram junto comigo a conclusão do
Mestrado.
À professora Ada (in memoriam), primeira coordenadora do Mestrado, por me
incentivar a fazer a prova de seleção e acreditar na minha capacidade.
À Magali, secretária do Mestrado, pelo auxílio e boa vontade que sempre teve em
resolver problemas que, porventura, surgiam.
A todos os meus colegas, em especial, Fabiana, Rejane e Tere.
Ao professor André Mitidieri, que me proporcionou sabedoria ao longo do Curso, e
pela companhia em nossos almoços.
E a todos os professores doutores, pela dedicação em transmitir conhecimentos a toda
nossa turma e, aos professores que estiveram em meu exame qualificatório, por suas
contribuições, as quais foram relevantes ao prosseguimento da pesquisa.
Enfim, às pessoas que acreditaram ou contribuíram de alguma forma por meio de
conhecimento, alegria e amizade. Muito obrigada.
5
RESUMO
A presente dissertação tem como objetivo estudar a figura de Caliban, tanto na peça A
tempestade de William Shakespeare, como no conto “Brazil” de Paule Marshall, levando em
consideração a teoria do pós-colonialismo. A pesquisa volta-se ao conflito identitário pelo
qual Caliban passa, e que reflete os resultados do encontro colonial entre a Europa e seus
outros. Foram necessários alguns conceitos teóricos como pós-colonialismo, identidade
cultural e espaço geográfico, elaborados por estudiosos como Stuart Hall (1996), Thomas
Bonnici (2000, 2009), Yi-Fu Tuan (2008), Dirce Suertegaray (2000), a fim de proporcionar
cientificidade à pesquisa. A dissertação compõe-se de quatro capítulos. No primeiro, estudam-
se as principais fontes que originaram o Caliban de Shakespeare e comentam-se algumas
reescritas e releituras pós-coloniais da peça; no segundo, elabora-se uma leitura de A
tempestade, e descreve-se o grotesco em Caliban. No terceiro capítulo enfoca-se Brazil” e a
crise de identidade do protagonista, e no último capítulo analisam-se os espaços citados na
narrativa, visto que são influenciadores na identidade dos sujeitos. Verificou-se que o Caliban
de Shakespeare sofre com a escravização imposta por Próspero, enfatizando relações de
conquista e poder, e a discriminação daqueles que o sujeitos ao poder imperial, enquanto
que o de Marshall sofre o conflito identitário advindo da colonização da mente. O espaço
geográfico definiu-se como essencial para interpretarmos “Brazil”, pois o conto discute a
própria identidade dessa nação, enquanto símbolo de outros territórios colonizados.
Palavras-chave: A tempestade. “Brazil”. Caliban. Espaço. Pós-colonialismo.
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ABSTRACT
This thesis aims at studying the character Caliban, both as it appears in Shakespeare´s The
Tempest and as it is pictured in Paule Marshall´s short story “Brazil”. Analysis relies on
postcolonial theory; the research centers, especially, on the identitary conflict undergone by
Caliban, which reflects the outcomes of the colonial encounter between the European and its
others. This research demanded the study of some concepts, such as postcolonialism, cultural
identity, geographical space, and relied, mostly, on the research of Stuart Hall (1996), Thomas
Bonnici (2000, 2009), Yi-Fu Tuan (2008), Dirce Suertegaray (2000). The thesis is divided in
four chapters. In the first of them, Shakespeare´s Caliban´s main sources are studied and some
of the rereadings and rewritings of the play are commented; the second chapter corresponds
to a reading of the play from Caliban´s perspective; the character´s grotesque is described.
The third chapter analyses “Brazil” and the protagonist´s identitary crisis; finally, in the last
chapter, the spaces mentioned in the narrative are analyzed, once they influence subject
identity. Whereas Shakespeare´s plays seems to dwell on the slavery imposed by Prospero,
emphasizing territorial conquest and rule, and the discrimination of the one thus subjected to
imperial power, Marshall´s Caliban emphasizes the identitary conflict that arises from the
colonization of the mind. Geographical space played an essential role in the analysis of
“Brazil”, once this short story discusses the nation´s identity, as a symbol of other colonized
territories.
Keywords: “Brazil”. Caliban. Post-colonialism. Space. The Tempest.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8
1 CALIBAN: DA RENASCENÇA AO PÓS-COLONIALISMO.......................................11
1.1 Possíveis origens....................................................................................................11
1.2 Reescritas e releituras da peça A tempestade .....................................................16
1.3 O “outro” como princípio nas reescritas e releitura em A tempestade.............19
2 CALIBAN, EM A TEMPESTADE: UMA RELEITURA ............................................. 25
2.1 Europa encontra América ................................................................................. 25
2.2 A tempestade e suas relações com o colonialismo ............................................. 26
3 CALIBAN, EM “BRAZIL”: CRISE IDENTITÁRIA................................................... 38
3.1 Identidade cultural: fixa ou mutante? .............................................................. 38
3.2 O Grande Caliban e a Pequena Miranda: evidências de identidade em crise 40
4 O ESPAÇO EM “BRAZIL” .............................................................................................. 51
4.1 Espaço e identidade ............................................................................................ 51
4.1.1 O espaço e suas categorias ....................................................................51
4.1.2 Lugar e identidade................................................................................. 54
4.2 O espaço: formador de identidade em “Brazil”, de Paule Marshall ...............55
CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 67
REFERÊNCIAS......................................................................................................................70
8
INTRODUÇÃO
Escolhemos, para a elaboração da pesquisa, dois textos: uma peça canônica e um
conto intertextual àquele drama. A peça é a famosa A tempestade, de William Shakespeare,
dramaturgo inglês do século XVI, a qual possui possibilidades para uma leitura subversiva
pós-colonial. A relação Próspero-Caliban representa a posição hierárquica do colonizador
frente ao colonizado, explorador-explorado. Ao se apossar da ilha que era de Caliban e ter-lhe
ensinado sua língua a fim de conseguir informações que o ajudariam a assumir o poder sobre
aquele território e seus ocupantes, objetifica o negro, humilhando-o e tornando seu servo.
Através de sua extrema vontade em tornar-se o dono da ilha, colonializa Caliban, e o deixa
sob seu jugo, sem nenhuma possibilidade de defesa. Apesar de que na peça não haja nenhuma
menção à América, podemos relacionar as ações de Próspero com as ações colonialistas, e a
dominação de Caliban, com a exploração sofrida pelos povos americanos.
O segundo texto, que receberá maior atenção, é o conto “Brazil”. Essa narrativa é
intertextual à Tempestade, visto que faz alusão a dois de seus personagens, Caliban e
Miranda. Esta última, no texto de Shakespeare, é a filha de Próspero, sendo que este não faz
parte da narrativa curta. “Brazil” está contido na coletânea Soul Clap Hands and Sing,
composta por quatro contos da escritora negra Paule Marshall, nascida em 1920, em
Brooklyn, Nova York, de pais oriundos do Caribe inglês. Na visão de Coser, Marshall é uma
cidadã híbrida, novaiorquina-caribenha (COSER, 2001). Podemos perceber, então, que a
autora participou de uma experiência colonial e, ao elaborar a trama de “Brazil”, certamente
retrata algumas das consequências sofridas no processo de colonização do Caribe, como a
crise de identidade dos sujeitos colonizados.
O Grande Caliban, protagonista do conto, sofre com o apagamento de sua identidade
essencialista ao tornar-se famoso comediante. Era, inicialmente, conhecido Heitor Baptista
Guimarães. No momento em que o conto inicia, fazem já trinta e cinco anos que passara em
um concurso no Teatro Municipal que lhe abriria as portas para se tornar O Grande Caliban.
Percebendo que seu corpo não mais o obedece, devido à idade, resolve aposentar-se. Na
tentativa de voltar a ser um indivíduo comum, sem fama, como o Heitor que uma vez tinha
sido, busca incessantemente informações com aquelas pessoas que tinham tido contato com
ele enquanto garçom de um restaurante na favela do Rio. No entanto, absolutamente ninguém
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mais o reconhece como Heitor, apenas como Caliban, o Grande Caliban! Torna-se, então, um
sujeito desencontrado e em crise com sua identidade cultural. Não sabe quem fora, nem que é.
E nesta busca pelo passado, acaba por posicionar-se em uma nova identidade, pois a
identidade também é produto histórico e, como tal, sujeita à transformação.
As relações entre esses dois textos realizam-se não somente por haver personagens em
comum, mas por ambos tornarem possível uma releitura pós-colonial. Tanto o drama como o
conto expressam consequências sofridas pelas nações colonizadas, ou seja, a escravização do
outro e o conflito de identidade.
O objetivo geral desse trabalho é estudar a figura de Caliban, tanto na peça como no
conto, levando em consideração a teoria do pós-colonialismo, expressão utilizada para
descrever toda a cultura produzida desde o início da colonização até os dias atuais. A teoria
pós-colonial, aplicada à literatura, analisa a literatura produzida pelos povos colonizados
desde antes do período de independência e as influências que o processo colonial trouxe para
tais regiões e povos colonizados (ALVES, 2006).
A literatura produzida por estes povos estigmatizados pelo poderio centralizador
tende a desmistificar o cânone europeu, pois no colonialismo ele era usado como referência
do belo, do poder, do ideal. Enquanto isso acontecia, o ser colonizado era visto como inferior,
sem cultura e insignificante. As escritas pós-coloniais, no entanto, surgem com a intenção de
desmascarar o cânone, mostrando a relação intrínseca deste com o poder, e utilizando-se do
discurso para manifestarem sua oclusão. Dessa forma, o colonizado subverte a voz do
colonizador em favor da cultura própria.
Dada a existência desta forma de revide a tudo o que se refere às explorações
coloniais, pressupomos ser interessante e relevante elaborar um estudo que privilegie o
discurso dos povos ditos subalternos à Europa, pois somos adeptos à ideia de que estes não
devam ser vistos como meros componentes do mundo, mas sim construtores. O processo
colonial trouxe influências na identidade destes seres, posto que a identidade cultural é um
produto histórico. Sendo assim, os seus “eus” foram constantemente alterados e recriados
levando-os, em alguns casos, à chamada crise identitária.
Dessa forma, este trabalho esassim estruturado: o primeiro e o segundo capítulos
centram-se em A tempestade; o terceiro e quarto, em “Brazil”. No primeiro capítulo,
buscaremos as principais fontes literárias, históricas e lendárias (nas quais Shakespeare teria
se baseado na construção de seu Caliban), a fim de torná-las conhecidas ao leitor e reforçarem
visões do personagem construídas ao longo dos séculos. Ainda nesta parte, falaremos de
10
algumas reescritas e releituras que autores do pós-colonialismo empreenderam dessa peça e
também como esses textos percebem o “outro” em relação ao poderio do império.
No segundo capítulo, apresentaremos nossa releitura da peça A tempestade, analisando
as ações dos personagens em relação à teoria apresentada. Também falaremos da figura
grotesca que Caliban comporta e de sua objetificação e exploração exercida por Próspero.
O terceiro capítulo apresentará a obra “Brazil”, de Paule Marshall. Descreveremos a
crise de identidade enfrentada pelo mundo pós-colonial devido ao processo de colonização.
Utilizaremos conceitos de estudiosos da identidade cultural como Stuart Hall (1996) e
Kathryn Woodward (2000). Em seguida, mostraremos que O Grande Caliban está em conflito
com sua identidade e explicaremos os motivos que contribuíram para isso.
O quarto e último capítulo tratará dos espaços citados na narrativa. Buscaremos os
conceitos de espaço geográfico e suas categorias como lugar, território e paisagem. Este
aporte teórico será necessário, visto que o lugar influencia na construção da identidade dos
sujeitos assim como o inverso também se realiza, isto é, a relação espaço-identidade é
dialética como veremos na análise. Sendo assim, os cenários da narrativa participam na
construção da identidade artística de Caliban e na sua consequente crise. Por fim, a conclusão,
sintetiza o percurso do estudo e comenta as conclusões alcançadas ao longo da pesquisa.
Vale ressaltar que os textos literários analisados nessa dissertação são oriundos da
literatura inglesa; no entanto, optamos por utilizar suas traduções para o português, pois
pretendemos valorizar o trabalho de tradução de brasileiros como Diego Rodrigues e Carlos
Alberto Nunes, e facilitar a difusão dessas obras ao leitor não familiarizado com a língua
inglesa. Todavia, utilizamos também os textos em inglês, bem como diversas obras teóricas
estrangeiras, cuja consulta tornou-se indispensável ao longo da construção da pesquisa.
11
1 CALIBAN: DA RENASCENÇA AO PÓS-COLONIALISMO
1.1 Possíveis origens
Um personagem histórico ou ficcional pode passar por profundas transformações
quanto a suas interpretações e percepções ao longo dos séculos. Até mesmo pode ter
interpretações extremamente contrárias, conforme a sociedade e seus sistemas vão se
transformando.
Analisar uma figura literária num intervalo de tempo enormemente distante ainda é
válido pois, como reflete Jauss a respeito da produtividade da compreensão progressiva da
obra de arte (1994, p. 35-45), o leitor tem o poder de conservar viva uma criação artística,
renovando-a e atualizando-a. Assim, um passado literário retorna quando uma nova recepção
o traz de volta ao presente, seja porque uma postura estética modificada se reapropria de
coisas passadas, seja porque a evolução literária lança luz inesperada sobre uma obra. Vale
destacar que o essencial não é saber as razões do escritor, numa obra ficcional, mas o que seu
personagem representa para o leitor em dada época.
Significativo exemplo de personagem que tem sofrido alterações ao longo dos séculos
em suas reinterpretações ou releituras é Caliban, nascido da famosa peça teatral A tempestade
(1611), de William Shakespeare. Na América Latina, foi primeiramente evocado como
símbolo no discurso modernista do fim do século XIX e começo do XX, em El Triunfo de
Calibán (1898), El Crepúsculo de Espãna (1898) e Edgar Allan Poe (1905). Ruben Darío,
que foi o primeiro a ressignificar Caliban nas terras latino-americanas, identifica-o com os
Estados Unidos, em relação ao seu nascente imperialismo econômico; reivindica a
espiritualidade de Ariel como metáfora das virtudes da América hispânica. Adepto a esta
ideia, também foi o argentino Paul Grousac, em El Triunfo de Calibán (1905).
Em segundo lugar, Caliban aparece como representação no discurso anticolonialista
dos anos de 1970. em 1960, The Pleasures of Exile, de George Lamming e Calibán:
Apuntes sobre la Cultura de Nuestra América (1971), de Fernández Retamar apresentam-no
como produto do colonialismo. No discurso dos estudos culturais, pós-coloniais e subalternos
do fim do século XX, o personagem associa-se à representação das nações colonizadas. Esta
12
questão será amplamente estudada no decorrer do capítulo, que este estudo priorizará tal
contexto histórico.
O enredo da peça é bem conhecido. Inicia com uma tempestade. A bordo do navio
encontram-se Alonso (rei de Nápoles), seu irmão Sebastião, seu filho Ferdinando, Antônio e
outros. O navio naufraga próximo a uma ilha onde moram Próspero, sua filha Miranda, o
escravo Caliban e o espírito Ariel, juntamente com outros espíritos.
Miranda, ao ver tal tragédia, lamenta-se pelos possíveis mortos do naufrágio. Seu pai,
no entanto, afirma que ele mesmo planejara tudo, mas que ninguém morrera: apenas haviam
se extraviado uns dos outros. Ele passa a explicar para Miranda seus motivos. Retrocede doze
anos e conta que fora traído pelo irmão Antônio. Próspero, então o legítimo duque de Milão,
transfere seu cargo ao irmão, que não se como substituto, mas como o titular do cargo, e
pactua com o rei de Nápoles, que lhe pagará tributos e lhe prestará homenagens, algo que
Próspero o fazia, por serem inimigos. O rei, então, aceita a proposta de Antônio e expulsa
Próspero de seu ducado. O exército coloca-o junto com Miranda em um precário navio, que
aporta à ilha.
Após a chegada de Próspero, Caliban perde sua autoridade naquele lugar, onde
anteriormente fora, juntamente com sua mãe, Sicorax, o único habitante. Próspero lhe ensina
sua língua para depois explorá-lo e se apoderar da ilha e dos espíritos que perambulavam
pelos ares. Caliban, no princípio, é bastante generoso e bondoso para com ele: mostra-lhe o
lugar e seus recursos, e permite que deles se aproprie livremente. Contudo, mais tarde,
revolta-se com o domínio que Próspero passa a ter sobre ele, e se utiliza da língua que
aprendeu para amaldiçoar seu dominador.
Caliban é descrito como tendo um aspecto grotesco. Os náufragos se dirigem a ele
com espanto, preconceito e zombaria. Chamam-no de “monstrengo manchado” (I, i, In:
SHAKESPEARE, 2005, p. 31); “bezerro da lua” (II, ii, p. 60); “metade peixe e metade
monstro” (III, ii, p. 70); “bloco de escuridão” (V, i, p. 103). Esses apelidos sugerem que
Caliban é diferente dos náufragos europeus em sua cor e aspecto físico. Ao lermos estas
definições, Caliban aparenta ser uma criação diabólica, sem cultura, sem língua,
diferentemente dos habitantes da Europa. Já Ariel é um espírito-escravo obediente, e os
demais personagens não o vêem com tanta estranheza.
Como escravo, Caliban tem de servir a Próspero; no início da peça, este lhe ordena
que carregue lenha e acenda-lhe o fogo, e esta atividade deve ser feita com rapidez. Próspero,
ao pedir isso, tem em mente a objetificação de Caliban: quer que seja seu escravo ou será
13
amaldiçoado pelos poderes de sua arte. Sujeitando-o, Próspero se apodera da ilha,
colonizando-a.
O ódio de Caliban por Próspero é declarado. Ilude Trínculo e Estéfano, dizendo que
eles podem se tornar os donos da ilha e que ele será seu escravo se matarem o ex-duque.
Todavia, não obtêm êxito, pois este descobre a trapaça. No final da peça, Próspero vai embora
com os náufragos e sua filha. Liberta Ariel e perdoa pela “traição” a Caliban, que volta a ser,
merecidamente, o rei da ilha.
O filho de Sicorax é um personagem complexo, não somente quanto à sua
interpretação como também no que se refere às suas fontes, que são discutidas, e sem que haja
certeza absoluta sobre elas. Vaughan & Vaughan (1991, p. 23-85) apresentam várias
possibilidades a partir das quais Shakespeare teria se baseado para a construção de seu
personagem ficcional. Os autores traçam um panorama tanto das possíveis fontes históricas
como literárias. Entretanto, para que este trabalho não seja mera repetição daquele, faremos
um panorama menos detalhista, escolhendo algumas das fontes que foram mais bem aceitas
segundo esses autores, visto que o objetivo primordial é selecionar apenas as que melhor
satisfaçam o propósito da pesquisa.
Desde o século XVIII, a mais popular explicação é de que Caliban tem sido um
anagrama intencional de “canibal”. Há indícios de que a prática do anagrama era comum entre
poetas e dramaturgos no século XVII. O anagrama aqui pode ser evidente, mas importa saber
se existia a prática do canibalismo anterior àquela época ou se o canibalismo, no contexto da
obra, consistiu em uma metáfora. Disso incumbiram-se diversos autores. Alguns dizem que
por volta de 1492 amigos nativos relataram a presença de canibais a Colombo: “Prior to
Columbus’s return to Spain in 1493, Europeans had described man-eating humans and
semihuman creatures with similar appetites as ‘anthropophagi’” (Ibid., p. 28).
O estudioso holandês Albert Kluyver indica outra fonte possível: Shakespeare pode ter
tido contato com a linguagem cigana, que teria florescido na Inglaterra um século antes de
1611, na qual Cauliban (ou Kaliban) significava negro ou coisas associadas à negritude.
Caliban, então, estaria relacionado à negritude cigana. Vaughan & Vaughan descrevem
algumas características em comum entre os ciganos e Caliban: “slovenly appearance, ‘savage’
behavior, deceitful character and […] a language unintelligible to the island’s dominant
population” (Ibid., p. 36).
Vaughan e Vaughan (1991), falam da possibilidade de Shakespeare ter tido contato
(visto e conversado) não somente com ciganos, mas com índios. A partir disso, ele pode ter se
inspirado na construção de seu personagem Caliban. Também há a possibilidade de haver lido
14
um ensaio do filósofo francês Montaigne, Os Canibais (1580), que consiste em desmascarar a
barbárie de seu povo e enaltecer os índios brasileiros, os quais são chamados de bárbaros
pelos seus compatriotas, por serem canibais: “Podemos, pois, achá-los bárbaros em relação às
regras da razão, mas não a nós, que os sobrepassamos em toda a espécie de barbárie”
(MONTAIGNE, 2007). A barbárie de seu povo se refere a todas as práticas advindas da
vontade humana e não de sua natureza, como corrupções, riqueza e desigualdade. Em
contraste, o que fazia dos índios brasileiros canibais, mas não bárbaros, eram suas
necessidades sicas: “encontram-se ainda nesse estado feliz de o desejar senão o que as
suas necessidades naturais reclamam; o que for além disso é para eles supérfluo” (Ibid.).
numerosas fontes literárias que Shakespeare possivelmente teria lido, e nas quais
teria se baseado para a elaboração de sua figura polissêmica. Uma delas, do final do século
XVI, seria Faerie Queene (1590; 1596), de Edmund Spenser, que incluiu em seu texto dois
“homens selvagens”. O dramaturgo também pode ter se inspirado na Odisseia de Homero, na
qual a presença de Polyphemus, filho de Poseidon, que possui algumas características que
se assemelham às do Caliban do dramaturgo: “Polyphemus is a prototype of the wild man; he
lives apart from civilized society and embodies barbaric qualities in opposition to the polis
(VAUGHAN & VAUGHAN, 1991, p. 58).
Caliban pode ter sua origem no mito céltico de Merlin, que se tornou uma figura
importante no folclore europeu. Era considerado um homem selvagem, “the wild man”. Os
autores o definem como “a borderline figure in a borderline environment, the body of a man
with the habits of an animal living in an animal’s world: humankind at its most primitive”
(Ibid., p. 63). Esse wild man, também conhecido como green man ou wodewose, até o século
XVII, foi descrito como oposto à civilidade. Teria se desenvolvido na bestialidade, não
conhecia Deus, não possuía nenhuma linguagem verdadeira. Porém, o “selvagem” tinha
algumas qualidades que os humanos civilizados não possuíam como, por exemplo, proeza no
sexo e conhecimento de segredos da natureza.
No século XVI, o wild man foi representado no teatro elizabetano com o propósito de
entreter e regrar: “In spectacles designed to celebrate the monarch’s power, wisdom, and
beauty, the wild man represented the natural forces she controlled” (Ibid., p. 65-66). Notamos
que o green man, então, representava a submissão do povo diante das leis da rainha Elizabeth.
E nisso Caliban se assemelha a ele, por deixar-se ser controlado por Próspero. Nesse período,
Caliban passou a ser representado na pintura, escultura, em ilustrações de livros e na
tapeçaria. Além do material literário exposto aqui, Shakespeare pode ter se baseado nas
narrativas orais em circulação. O homem selvagem foi amplamente representado nos séculos
15
anteriores a Shakespeare, tornando-se uma fonte inegável ao considerar Caliban como
selvagem.
Entre outras tradições que podem ter influenciado na concepção de Caliban do
dramaturgo, mencionamos a fascinação europeia pelos monstros e criaturas não-humanas.
Embora essencialmente humano, o escravo de Próspero possui características típicas de
monstro. Vaughan & Vaughan (1991) o definem como primo literário do wild man. Pode ser
gentil, curioso, porém o que o torna diferente é sua forma: um monstro tem cabeça de animal
em corpo de homem. Alternativamente apresenta-se sem cabeça com a face no tórax; parte
homem, parte diabo; parte homem, parte leão; parte peixe, parte galo. Logo, estas bizarras
fusões de elementos seriam aceitáveis na obra de Shakespeare. Em A tempestade, Trínculo e
Estéfano por vezes chamam a Caliban de monstro, pois este se apresenta como uma figura
que compartilha aspectos humanos e animais: “É homem ou peixe? [...] As pernas são como
as de gente; as barbatanas parecem braços” (II, ii, p. 58). Mais tarde os bados avaliam:
“Quatro pernas e duas vozes, é um monstro primoroso” (II, ii, p. 60).
Caliban pode, ainda, ter advindo de figuras carnavalescas representadas na Commedia
dell’arte da Renascença italiana. Assemelha-se à figura do harlequin da comédia, pela sua
grotesca aparência, lascívia e ares de um palhaço, que tem por função fazer rir. Por outro lado,
é também considerado produto do conhecimento que Shakespeare tinha das masques, peças
que eram representadas em duas formas. A primeira, a antimasque, era atuada por
profissionais e representava um mundo de vícios e desordem. Suas figuras eram tipicamente
selvagens, índios, fantasmas, pigmeus. A outra forma, a masque propriamente dita, era
representada pelos membros da corte Stuart e associava-se ao triunfo de sua comunidade
aristocrática e da crença na hierarquia.
A criatura de Shakespeare associa-se a uma figura antimasque, por parodiar seu herói,
Próspero, e inverter a ordem natural da masque. Em vez de ser domado ou desaparecer, é ele
que provoca o desaparecimento do entretenimento de Próspero quando Ceres, Iris e Juno se
evadem. Cheirando mal por terem caído no poço de imundície, Caliban, Estéfano e Trínculo
tornam-se sujeitos de seu próprio espetáculo, que burla o produto da arte” de Próspero
(VAUGHAN & VAUGHAN, 1991).
Todas essas possíveis fontes nos remetem ao caráter polissêmico do personagem.
Caliban, assim como as outras figuras arroladas a aqui, compartilham uma ou outra
característica, o que leva a crer que Shakespeare reproduziu em seu personagem muito de seu
conhecimento literário, histórico e lendário. A certeza, aqui, é de que todas essas figuras
selvagem, monstro, harlequin ou antimasque simbolizaram a inversão das hierarquias
16
dominantes e a marginalização desses personagens em relação à civilização. Por este modo é
que Caliban vem passando por constantes ressignificações ao longo dos séculos,
metaforicamente representando o outro, o dominado, o esquecido, o explorado.
1.2 Reescritas e releituras da peça A tempestade
Antes de partimos para a exposição do que o subtítulo acima propõe, é interessante
que façamos uma distinção entre reescrita e releitura de um texto. Thomas Bonnici traz as
duas definições de uma forma muito clara, de fácil compreensão:
A reescrita é um fenômeno literário [...] que consiste em selecionar um texto
canônico da metrópole e, através de recursos da paródia, produzir uma nova obra
escrita do ponto de vista da ex-colônia. [...] A reescrita tem por finalidade a quebra
da ocultação da hegemonia canônica e o questionamento dos vários temas,
enfoques, pontos de vista da obra literária em questão, os quais reforçam a
mentalidade colonial. A reescrita desemboca na subversão dos textos canônicos e
na reinscrição dentro do processo subversivo (BONNICI, 2009, p. 271).
a releitura é uma estratégia para ler textos literários ou não-literários e, dessa
maneira, garimpar suas implicações imperialistas e trazer à tona o processo colonial” (Ibid., p.
269). No ato da releitura, é possível enxergar o que está por detrás do texto, à sua sombra e
trazer evidências de respostas subversivas ao que está no primeiro plano do texto: a ideologia
do colonizador.
Reescrita e releitura são atos literários que se complementam. No momento em que
um autor reescreve uma obra canônica, obviamente busca uma nova interpretação. Não
sentido em apenas substituir um texto clássico por outro moderno. intenções, que buscam
alguma transformação. Almejam a reflexão do leitor perante o texto shakespeariano em
contraste com o novo texto, que ele seja capaz de perceber as nuanças do colonialismo nas
entrelinhas e possa subvertê-las.
Desde o século XVII até por volta da década de 1960, as reescritas de A tempestade
não dão muita importância ao escravo Caliban. Em muitas delas, ele é esquecido ou
marginalizado. A peça é também adaptada por outros dramaturgos, que burlam em demasia
seu enredo e, consequentemente, suas interpretações. O que acontece em seguida é que muitos
críticos literários se utilizam dessas adaptações como se fossem a peça original de
Shakespeare, e isso traz sequelas ao texto.
Um exemplo é The Tempest: Or, Enchanted Island (1670), de John Dryden e William
Davenant, que retêm apenas uma pequena parte do texto original de A tempestade. Inventam
17
personagens e alteram o caráter de outros. Por exemplo: Caliban tem uma irmã gêmea,
Sicorax, e ambos são monstros; Sicorax casa-se com Trínculo e Caliban torna-se escravo
deste; Miranda tem uma irmã, Dorinda, e Próspero um filho estrangeiro, Hippolito, que
permanece escondido numa rocha na ilha por doze anos sem nunca ter visto uma mulher. É
um selvagem, mas, diferentemente de Caliban, é educado, porém insensível aos tesouros da
natureza, diferenciando-se por isso novamente de Caliban (VAUGHAN & VAUGHAN,
1991).
Como Vaughan & Vaughan (1991, p. 89-117) descrevem, durante todo o século XVII,
Caliban é visto como um monstro. no século XVIII, passa-se a discutir a força da
imaginação de Shakespeare, evidenciada pela incomum figura grotesca que cria e, com isso,
sua linguagem passa a ser discutida. Quanto ao primeiro dos assuntos, citamos Joseph
Addison, em The Spectator (1712), Lewis Theobald, em seu prefácio para The Tragedy of
King Richard II (1720) e Nicholas Rowe, em Some Account of the Life of Mr. Shakespeare
(1948). Essas obras comentam da profundeza da imaginação e da maravilhosa invenção do
dramaturgo inglês. Quanto à linguagem, as opiniões estão divididas. Rowe afirma que não é
apenas um personagem novo, mas que sua linguagem também é algo novo. William
Warburton concorda com Rowe, e acrescenta que a linguagem de Caliban tem um certo grau
grotesco, assim como ele o é.
Por outro lado, John Holt, em Some Remarks on The Tempest (1750), diz não ver nada
de tão excepcional na linguagem, nem no personagem Caliban. Na época de Shakespeare,
havia a crença em bruxas e, naturalmente, a figura de Caliban não seria absurda e nem
incomum. Por conseguinte, sua linguagem seria compatível com sua origem. Benjamin
Heath, em A Revisal of Shakespeare’s Text (1765), tem ainda outra visão da linguagem do
escravo: Shakespeare teria adaptado a linguagem para a brutalidade de seus modos e a
grosseria de seus sentimentos.
A visão de que a linguagem serviria apenas para enaltecer a monstruosidade exterior
do personagem acaba sendo substituída no final do culo XVIII, quando uma grande
reviravolta nas interpretações sobre A tempestade. Agora, os críticos não ignoram Caliban
e, em vez disso, começam a vê-lo com mais simpatia e com menos preconceito. Essas
releituras partem da perspectiva de Caliban e não mais da de Próspero, que até esse momento
é tomada automática e unicamente entre os críticos.
Caliban passa a ser visto como um ser poético, pois não é completamente animal
marcado pela aparência do vício), e nem homem (não possui senso moral, tornando-se como
18
um animal bruto). É um ser que tem deformidade no corpo e na mente. Tem aspecto físico de
um monstro, mas com vícios humanos.
No início do século XIX, Hazlitt interpreta a peça nos termos do imperialismo.
Caliban como um nativo desapropriado; Patrick MacDonnell encanta-se por ele. Afirma
que ele atrai a simpatia dos seus leitores e causa pena devido a sua forte resistência à tirania
de Próspero, do qual se torna escravo. Não há como detestar Caliban, mas sim torcer por ele.
A condição de escravo é bastante discutida nos meados do século XIX em algumas
partes do mundo anglo-americano. Aquela velha concepção de que a escravidão de Caliban
era produto de sua depravação agora é revista sob forte negação dessa mentalidade.
Movimentos abolicionistas fervorosos surgem no início do século e o compactuam com
atos de exploração. Para muitos críticos ingleses e americanos, a escravidão tornara-se uma
árdua realidade. Caliban converte-se, então, em um símbolo antiescravagista e numa luz que
traria menos injustiças.
Uma reescrita satírica elaborada por Robert e William Brough, The Enchanted Isle
(1848), gira em torno do tema da escravidão. Nela, Caliban aparece como um escravo
selvagem, com a negritude de um bondsman. Ele é tratado simpaticamente pelo escritor. A
partir dessa obra, surgem outras, e também caricaturas que associam Caliban a escravos
negros.
Ainda no século XIX, a noção de Caliban transforma-se. Robert Browning, poeta
famoso por suas críticas à era vitoriana, reenfatiza as qualidades físicas do escravo de
Próspero. Para ele, Caliban é meio homem, meio peixe, mas tem qualidades essencialmente
humanas, como o egoísmo e o pessimismo. Esse mesmo pessimismo é a representação dos
vitorianos, na opinião de Browning. Apesar de reaparecer na figura de um monstro, no século
XIX, Caliban é mais humano e simpático. Christopher Pearse Cranch, em Ariel e Caliban
(1887), mostra o escravo evoluindo moral, intelectual e também fisicamente. Difere, assim, do
Caliban de Ernest Renan, Caliban: Suíte de “La Tempête, surgido em 1878, no qual o autor
ainda o vê como antissocial.
Porém, essas transformações e tratamento suave do personagem não são generalizadas.
No século XIX, por exemplo, Oscar Wilde concebe-o como deformado, escravo-besta que
representa a depravação humana. Percebemos, nesse momento, a presença do monstro do
século XVIII, representando o lado negro das pessoas, o qual não podemos ver nem evitar.
no início do século XX, Caliban é denominado o “outro” pela falta de governo, cultura e
educação, em comparação às civilizações modernas.
19
Durante o período das Grandes Guerras Mundiais, alguns críticos escrevem sobre ele.
Influenciado pelos estudos psicanalíticos de Freud sobre o lado escuro da natureza humana,
Wilson Knight afirma que o personagem é o símbolo do mal da psique humana: Caliban pode
ser percebido como um aspecto da psique de Shakespeare, representando a anômala ascensão
do mal com a ordem criativa.
O século XX foi bastante controverso em relação aos demais no tocante às
interpretações da condição metafórica do personagem de Shakespeare. As Guerras, a
Psicanálise e a independência de nações que muito tempo sofriam com o processo de
colonização contribuíram para esta virada radical, que vem ganhando cada vez mais interesse
nos espaços acadêmicos no século XXI. Devido à relevância para esta pesquisa dessa era, que
reinterpreta Caliban por outra perspectiva teórica, pensamos ser necessária a abertura de um
novo subcapítulo, já que é nessa leitura que centraremos toda a análise posterior deste estudo.
1.3 O “outro” como princípio nas reescritas e releitura em A tempestade
Por muito tempo, as releituras de A tempestade idealizaram Próspero como o sujeito
que possuía valores humanos compatíveis com as regras da sociedade: um homem exemplar,
que não comete injustiças e vive para o bem de todos. Próspero era descrito como um pai
bondoso, um orientador de sua filha Miranda e de seu futuro genro Ferdinand, um homem que
castiga apenas quando a necessidade urge, um cavalheiro que sabe perdoar os inimigos e
esquecer o mal que lhe fizeram” (BONNICI, 2009, p. 270). Consistia em uma visão fechada,
que não abria possibilidade de vê-lo de forma contrária. Caliban, opostamente, era visto
sempre como o escravo selvagem, o rebelde, deformado e antissocial.
Entretanto, a partir da década de 1960, e mais sistematicamente na de 1970, a crítica
pós-colonial torna-se evidente e passa a tratar Próspero como o colonizador, o dominante, e
Caliban como o colonizado, o dominado. O colonialismo europeu submeteu vários povos e
nações a seu poder, levando-os à negação de seus direitos frente a um panorama de domínio
total exercido pelo poder econômico e político dos brancos, cristãos e ricos em países
industrializados. Mesmo com todo este contexto de exploração e omissão, esse século
também mostrou que esses povos excluídos adquirem consciência dessa condição de
objetificação e começam a resistir através de movimentos que buscam promover a cultura e a
literatura dessas nações colonizadas.
Como Bonnici define, “A crítica pós-colonial [...] abrange a cultura e a literatura,
ocupando-se de perscrutá-las durante e após a dominação imperial europeia, de modo a
20
desnudar seus efeitos sobre as literaturas contemporâneas” (2009, p. 267). As literaturas
oriundas destas ex-colônias europeias surgem da prática do colonialismo juntamente com a
negação dos pressupostos do centro imperial. O colonialismo fez das nações recém
colonizadas sociedades oprimidas, silenciadas e reprimidas. No entanto, a literatura pós-
colonial busca, através de recursos como a paródia, subverter essa condição e recuperar a voz
do colonizado, revelando assim sua resistência.
A leitura pós-colonial de um texto implica desmistificar o cânone literário ocidental,
que representa a utilização do poder em fixar superioridade do colonizador perante o outro”
e liquidar com o primitivismo desse mesmo subalterno. Para Bonnici (2000), essa
desmistificação do cânone é algo recente, pois se desenvolveu principalmente com as
literaturas pós-coloniais, tanto as de língua espanhola, nos países latino-americanos e
caribenhos, como as em português, no Brasil, Angola, Cabo Verde e Moçambique, em inglês
na Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Índia, Malta, Gibraltar, ilhas do Pacífico e do Caribe,
Nigéria, Quênia, África do Sul e em francês, na Argélia, Tunísia e vários países da África.
Como mencionado anteriormente, Próspero era analisado, na visão eurocêntrica, como
retendo a “exclusividade da condição humana” (BONNICI, 2000, p. 44) e Caliban como um
“ser na periferia da civilização” (Id., ibid.). Nas releituras pós-coloniais, este poder que
Próspero detém perante Caliban retrata o fenômeno do colonialismo ou imperialismo,
revelando a ânsia de conquistar cada vez mais poder frente aos povos marginalizados ou
periféricos, os quais não tinham força suficiente de fazer valer sua voz num contexto de
dominação. Caliban vem nos mostrar, nessas releituras, que o oprimido pode revidar ao
cerceamento de sua autonomia pelo poderio imperial. Este revide não quer dizer luta armada,
mas uma luta discursiva. Apesar de ser uma forma de resistência mais sutil que a primeira, é
mais eficaz por ser mais difícil de ser combatida pelo poder imperial:
a resistência que opera no campo discursivo mostra-se muito mais efetiva, na
medida em que a oposição se faz mediante a apropriação e a transformação das
formas imperiais de representação e domínio para o uso subversivo da voz
colonizada (ALVES, 2006, p. 64).
Caliban também revida discursivamente, ou seja, recupera a voz e denuncia a sua
própria outremização Além de revidar através da denúncia da usurpação e da percepção das
estratégias utilizadas por Próspero para tal intento, Caliban tenta ainda resistir através da força
física, unindo-se a outros excluídos para tentar reverter a situação que lhe foi imposta (Ibid.,
p. 67).
21
O primeiro indício de que algo estava mudando nas interpretações sobre a figura de
Caliban foi através da publicação do livro Humanismo Burgués y Humanismo Proletario
(1938), de Anibal Ponce. Nesta obra, o ensaísta argentino adverte sobre a questão do
colonialismo e pensa ser, frente a tamanha injustiça de Próspero, um exagero conceber
Caliban como um monstro. Segundo González (2007), essas reflexões de Ponce serviriam,
posteriormente, para o interesse em uma nova leitura do personagem, que se firmaria por
volta dos anos 60.
Segundo González (2007), dois dos grandes responsáveis por tornarem a leitura pós-
colonial de Caliban uma prática foram os escritores George Lamming e Fernández Retamar,
com as obras The Pleasures of Exile (1960) e Calibán: Apuntes sobre la Cultura de Nuestra
América (1971). Retamar tenta colocar em crise as bases do colonialismo como sistema.
Ressalta a contradição entre colonizador-colonizado e fixa a oposição Caliban-Próspero, que
expressa o drama da colonização na América.
Retamar o constrói um discurso antiocidental, mas um discurso pós-ocidental,
recuperando a imagem de uma América Latina que surge brida e multicultural frente aos
que lhe deram suas línguas; uma América que no ato de apropriação do outro reverte à própria
colonização, e cujo ato de assimilação revela sua resistência ao domínio. Logo, Retamar
desconstrói as noções colonialistas do Ocidente para definir a América (GONZÁLEZ, 2007).
Lamming, por sua vez, Caliban como o representante fiel dos caribenhos. Identifica
Próspero com o primeiro comerciante de escravos que foi para a África em busca de
exploração e domínio. Como Joseph comenta a esse respeito, “Like others who came after
him he first used force and then his culture to encompass both physical and spiritual captivity
of the Africans (1992, p. 10). Ainda de acordo com Lamming, Caliban é um ser colonizado e
excluído pela linguagem, e roubado de sua linguagem ancestral, religião e história pela
exploração que produziu o sistema escravocrata.
The Pleasures of Exile consiste em uma reflexão em busca de um futuro mais positivo
para os caribenhos. Caliban is the symbol of the colonized inhabitant of the Caribbean”
(JOSEPH, 1992, p. 11). Lamming interpreta a peça de Shakespeare sob a ótica do
colonialismo, e sugere que o uso de Caliban como um conceito pode contribuir para a
ampliação de horizontes.
Outro exame de A tempestade como crítica do discurso colonial pode ser encontrado
em ‘This Thing of Darkness I Acknowledge Mine’: The Tempest and the Discourse of
Colonialism. Paul Brown (1989) descreve o tipo de força que é exercido pelo colonizador.
Ressalta ainda que o dramaturgo talvez tenha atentado para os perigos da expansão britânica
22
assim como Próspero se refere ao lado escuro de sua natureza quando diz a Caliban “This
thing of darkness I acknowledge mine” (V, i).
Brown percebe um discurso ambivalente e contraditório em A tempestade, que
também reflete sobre as práticas colonialistas. Bonnici (2000) igualmente concorda com essa
ideia. Para ele, Próspero discursa até o final da peça demonstrando seu poder, ordem e
dominância. O ex-duque, ao abandonar a ilha, não renuncia a posse que tem sobre ela, e nem
devolve o título de dono da ilha a Caliban. O poder do europeu em relação aos nativos e
colônias é irrevogável:
O recolhimento de Calibã em seu arrependimento exige uma conclusão favorável
ao colonizador, corroborada pela última fala indiscutivelmente predominante de
Próspero, na qual não deixa dúvida de que é ele, o europeu, o senhor e o dominador
do espaço e das pessoas que se encontram na alteridade e fora do ambiente
eurocêntrico (BONNICI, 2000, p. 58-59).
Bonnici ainda explica como se esta inversão de poder, ou melhor, a ambivalência
do poder na peça. No epílogo do texto, Próspero afirma o ser mais o o poderoso dono da
ilha, mas sim um simples habitante que deseja voltar a sua terra. Sob a sombra deste discurso,
ainda há resquícios de dominação, aparentemente ilusórios, porém reais:
Embora a apropriação das terras e do nativo na época colonial não tenha nada de
ilusório e o projeto inglês de espoliação do Novo Mundo seja marcante em sua
história, o eurocentrismo, a objetificação e a divisão binária têm fatores ilusórios,
facilmente detectáveis pelos nativos, mas mantidos à força pelos europeus para a
sua perpetuação (Ibid., p. 59).
Portanto, em A tempestade, uma ambivalência do triunfo do colonialismo e o relato
de estratégias que subvertem o poder colonial. Bonnici (Ibid., p. 59) conclui suas reflexões
sobre a ambivalência do discurso analisando: “Quando é reduzido ‘ao próprio estado’, sem a
‘magia’ colonizadora, Próspero torna-se o outro diante da declaração de seu projeto,
exatamente a posição equivalente à de Caliban”
1
.
Meredith Skura também fala do discurso do colonialismo em A tempestade. Comenta
sobre os artigos escritos recentemente acerca da relação Próspero-Caliban e junta-se aos seus
autores para defender a presença desse discurso colonialista na obra. Já no início de seu texto,
define sua compreensão de colonialismo:
1
As expressões entre aspas nesta citação referem-se às ditas no epílogo da peça: Meu encanto terminado,/
reduzi-me ao próprio estado,/ que é precário, em verdade. [...] Por isso,/ o queira que vosso feitiço/ que eu
nesta ilha permaneça/ tão estéril e revessa (V, i, In: SHAKESPEARE, 2005, p. 106).
23
Though the term ‘colonialism’ may allude to the entire spectrum of New World
activity, in these articles it most often refers specifically to the use of power, to the
European’s exploitative and self-justifying treatment of the New World and its
inhabitants – and I shall use it in that sense (SKURA, 1989, p. 44).
Para Skura, é inegável a presença de semelhanças entre o enredo da peça com certos
eventos e atitudes ocorridos na história colonial inglesa: “Caliban is the center of the play [...]
because Europeans were at that time exploiting the real Calibans of the world, and The
Tempest was part of the process” (1989, p. 44-45). A autora ressalta a representação da
infantilidade de Caliban como símbolo de subalternidade, de sujeito colonizado; a inocência
de uma criança é uma dimensão deste sujeito. Skura analisa:
Caliban’s childish innocence seems to have been what first attracted Prospero,
whose life has been spent learning a self-discipline in which he is not yet totally
adept, Caliban can seem like a child who must be controlled, and who, like a child,
is murderously enraged at being controlled (p. 65).
Em conclusão, a autora afirma que Shakespeare não apenas participa indiretamente de
uma ideologia de exploração política do colonialismo, mas também diretamente, dos efeitos
psicológicos daqueles que têm experimentado essa exploração, considerando o texto do
dramaturgo o primeiro exemplo inglês de um discurso ficcional colonialista.
Lisa Laframboise, por sua vez, enumera algumas reescritas pós-coloniais desse drama
shakespeareano, porém sob outro foco. Inicialmente reafirma que as reescritas de A
tempestade frequentemente revelam as relações entre as nações colonizadas e o centro
imperial: Rewritings of Shakespeare’s The Tempest, particularly from Africa and the
Caribbean, have privileged the figure of Caliban as the native made Other by Prospero’s
imperialist rule” (1991, p. 36). A autora ainda analisa algumas reescritas canadenses que
tendem a privilegiar Miranda, como produto da oclusão imperialista da mulher ou do
patriarcalismo presente na relação Próspero-Miranda de A tempestade.
Para a crítica, “there is, of course, no rule that Caliban must be Native; in The Tempest
he is an unspecified Other” (LAFRAMBOISE, 1991, p. 37). A partir da afirmação de que
Caliban adquire várias formas, revê tais reescritas também sob a ótica pós-colonial, mas
analisando Miranda e sua relação de revide ao patriarcalismo exercido pelo pai. No entanto,
afirma ser este redirecionamento de foco um risco, pois pode ignorar a interpretação da
marginalização do nativo e, por conseguinte, a marginalização da mulher nativa.
Nessas reescritas, não é o discurso racial que predomina, mas o discurso do gênero.
Ou seja, não é mais a relação do europeu com o nativo em evidência, mas a relação homem -
24
mulher: Caliban e Miranda se aliam como sujeitos colonizados e lutam contra Próspero. Isso
ocorre, por exemplo, no poema “Snapshots of Caliban”, de Suniti Namjoshi. Apesar da
aparente hierarquia de Caliban sobre os outros personagens que o título sugere, a Miranda de
Namjoshi escapa “the position of Prospero’s daughter, as defined by the imperialist discourse,
to estabilish a relationship of equality with Caliban” (LAFRAMBOISE, 1991, p. 48).
No que se refere ao teatro, Aimé Cesáire contribui com sua peça Une Tempête (1969),
que consiste em uma adaptação ou reescrita de A tempestade, de Shakespeare. Conforme
Joseph (1992), Cesáire a adapta para a situação do negro exilado, ou seja, nela reivindica a
figura de Caliban como a metáfora da redenção negra em terras latino-americanas e como a
representação dialética do colonialismo.
Para González (2007), essas reescritas e releituras que a literatura pós-colonial faz dos
cânones que representam o poderio imperial e o domínio deste perante as nações colonizadas
são pertinentes no contexto dos anos 70, mas perdem seu lugar nas atuais circunstâncias pós-
modernas, pela incapacidade de um símbolo unitário (Caliban) sintetizar a multiplicidade
cultural da América. Logo, o monopólio simbólico deixa de ser relevante. No entanto, como
as fronteiras temporais deste trabalho estão bem marcadas, a nossa meta de trabalhar com o
pós-colonialismo continua a ser o foco, não nos interessando o porquê de Caliban perder sua
representatividade no contexto pós-moderno.
25
2 CALIBAN, EM A TEMPESTADE: UMA RELEITURA
2.1 Europa encontra América
Na época dos Descobrimentos, o europeu que viajava por distantes lugares nunca
antes visitados se deparava com seres distintos de sua aparência física e de seus costumes. A
primeira nação europeia a entrar em contato com o continente que receberia o nome de
América é a Espanha, e as ilhas caribenhas são os primeiros lugares a serem descobertos.
Cristóvão Colombo, com o desejo de expandir o mundo e conhecer rotas lucráveis de
comercialização, viaja àquelas terras desconhecidas e se depara com relatos sobre a existência
de criaturas grotescas e com hábitos nada convencionais. No seu Diário, Colombo reproduz o
que os índios lhe relatam: “Diziam [...] que havia uma gente que tinha um olho na testa, e
outros que chamavam de canibais, de quem demonstravam ter muito medo” (COLOMBO,
1991, p. 64). E acrescenta: Não queriam falar, por receio de serem comidos, e não podia
tirar-lhes o medo, pois diziam que só tinham um olho e cara de cachorro” (p. 65). O
imaginário europeu, a partir daí, cria inúmeras definições para aqueles habitantes do Novo
Mundo. Os americanos tornam-se, nessas concepções, selvagens, nus, ferozes e canibais ou
antropófagos.
A tempestade, de Shakespeare, vem a evocar esta concepção europeia da existência de
canibais em América. A Inglaterra Elizabetana, no período correspondente aos séculos XVI e
XVII, vive a Renascença, ligada diretamente ao movimento artístico e filosófico que reflete as
intensas transformações sociais pelas quais todo o continente europeu passa. A nação possui
uma das melhores economias do mundo, o que inevitavelmente repercute na educação e no
desenvolvimento cultural.
Caliban, anagrama de Canibal, é o personagem grotesco da peça. Releituras pós-
coloniais vêem, sob as falas dos personagens Próspero e Caliban, clara evidência de um
discurso colonial. Próspero representa o europeu que coloniza violentamente Caliban, o
representante da América. Para Peter Hulme, é inegável a existência “of The Tempest’s links
with this decisive phase of English colonial activity” (1986, p. 91). É o que veremos no
subcapítulo a seguir.
26
2.2 A tempestade e suas relações com o colonialismo
O primeiro ato de A tempestade é composto por duas cenas: uma breve e outra mais
longa. A primeira resume-se à tempestade propriamente dita e aos apuros que seus tripulantes
enfrentam até o naufrágio. Transparece o estado de nervosismo e pavor nas falas alteradas dos
personagens e nas evocações a Deus para que os salvem.
a segunda cena consiste em um longo diálogo entre Próspero e Miranda, na qual ele
lhe explica o porquê da tempestade que, pouco, tinha evocado e revela que tivera em
suas os um ducado poderoso. Findo o relato, Próspero provoca uma certa sonolência em
Miranda, o que a leva a adormecer. Chama então Ariel, o espírito obediente, a fim de saber
sobre o sucesso da tempestade. Este é o momento em que Ariel entra em cena pela primeira
vez. Ele é introduzido pelo chamamento de seu dono, que confirma o status de posse do
espírito. Em sua fala, percebemos a autoridade de um senhor e a pressa com que seu escravo
deve atender ao seu chamado: “Servidor, estou pronto novamente! Vem, meu Ariel! Aqui!”
(I, ii. In: SHAKESPEARE, 2005, p. 27)
2
.
Ariel é um espírito prestativo e bajulador. Submete-se a todas as ordens com honra e
rapidez, embora veremos mais adiante as razões para tanta presteza. Ariel, ao chegar até seu
dono diz: “Meu grande mestre, salve! Salve grave senhor! Vim para em tudo te obedecer, ou
seja, para voar, nadar, no fogo mergulhar, ou montar nas nuvens densas. Tua vontade forte é
que domina Ariel e seu poder” (I, ii, p. 27). Próspero, por sua vez, continua a interrogá-lo com
autoridade: “Executas-te, espírito, direito a tempestade, conforme te ordenei?” (I, ii, p. 27). E
após Ariel confirmar que tudo saiu como o planejado, Próspero elogia a bravura de Ariel
embora utilize um pronome possessivo para fazer isso, evidenciando novamente a posse do
escravo: “Meu bravo espírito!”; “Muito bem, meu espírito!” (I, ii, p. 28).
Próspero, sentindo que ainda precisaria completar seu plano, ordena a Ariel mais
algumas ões. O espírito alado, no entanto, lembra da promessa que Próspero fizera: libertá-
lo. Para isso, Ariel recorda a fidelidade e presteza que sempre demonstrou para com o ex-
duque: “Lembra-te que te prestei serviços importantes, nunca menti, não descuidei de nada,
nem me mostrei queixoso ou rabugento. Prometeste abater-me um ano inteiro” (I, ii, p. 30).
Nesta queixa, podemos perceber que, para convencer Próspero de sua merecida liberdade,
compara-se, indiretamente, com outro escravo da ilha, que não é tão dedicado como ele o é.
2
Todas as citações em português desta obra foram retiradas desta mesma edição. As citações posteriores de A
tempestade serão indicadas apenas pela referência ao ato, cena e número de página.
27
Próspero fica atônito com tanto atrevimento. Lembra a Ariel do favor que lhe fizera
quando chegou à ilha, ao libertá-lo do tronco no qual a bruxa Sicorax o tinha aprisionado, por
ter-se apresentado com pouca dedicação a ela. Agora, Próspero o repreende, chamando-lhe de
“coisa maligna” (I, ii, p. 30). Apesar de Próspero estimar o bom comportamento de Ariel, ele
objetifica-o, escravizando-o. Ariel deve sempre cumprir com habilidade o que ordena, sem
resmungar. Sua intenção é de que ele intermedeie as suas ações mágicas ou as execute;
Próspero é apenas o mentor: “Adquire logo a forma de uma ninfa, a mim e a ti visível, tão
somente, a ninguém mais. Assume essa postura e volta para cá. Vamos! Depressa!” (I, ii, p.
32).
Essa qualidade de Próspero reforça a ideia de explorador versus explorado - exposta
no capítulo anterior deste estudo-, especialmente quando ele mesmo chama Ariel de seu
escravo; o conceito fica também patente pelo uso frequente de pronomes possessivos. O rigor
dos castigos de Próspero também mostra a hierarquia de poder naquela ilha: “Caso venhas de
novo a murmurar, fendo um carvalho e como cunha te comprimo dentro de seu nodoso corpo,
até que tenhas ululado durante doze invernos” (I, ii, p. 31). Próspero impõe medo a Ariel,
tornando-o submisso. Isso faz com que Ariel logo se mostre arrependido da aparente
ingratidão ao pedir-lhe a liberdade: “Perdão, mestre; mas hei de conformar-me a quanto me
ordenares, perfazendo de grado minha obrigação de espírito” (I, ii, p. 31).
No momento em que Próspero relembra a Ariel de que tinha sido o responsável pela
sua libertação do tronco no qual Sicorax o tinha deixado, faz questão de falar da ascendência
da bruxa, como se isso a fizesse mais terrível. Vejamos o diálogo entre Próspero e Ariel:
P: o te lembras da repelente bruxa Sicorax, que a idade e a inveja em arco
recurvaram? Já te esqueceste dela?
A: Não, senhor.
P: Só parece que sim. Se não, dize-me: de onde era ela? Onde nasceu? Responde.
A: Na Argélia, meu senhor.
P: Ah, sim? Preciso todos os meses repetir quem foste, coisa de que te esqueces a
toda hora (I, i, p. 30).
Argélia é um país africano. Na concepção de Próspero, sendo a bruxa de origem
africana, isso a torna mais temível e perigosa. Em seguida, comenta que ela possuía olhos
azuis e que seu filho era um monstrengo manchado. Notamos uma fusão de elementos de
raça e preconceito. Sicorax seria então um produto da miscigenação de culturas entre o
europeu e o africano e, consequentemente, Caliban, seu filho, herdaria essas “manchas”
daquela mistura racial. Para Próspero, ser descendente da África e ter a pele negra é algo que
não se coaduna com o status de ser humano, que, nesse caso, assemelhar-se-ia mais aos
28
monstros e bruxos, como os epítetos pelos quais se refere à bruxa demonstram: repelente
bruxa” (I, ii, p. 30); “bruxa maldita” (I, ii, p. 30); “megera de olhos azuis” (I, ii, p. 31);
“monstrengo manchado” (I, ii, p. 31).
Sendo filho de uma bruxa e com origem africana, Caliban pode ser comparado com
um monstro, na perspectiva de Próspero. Essa característica vem ao encontro da concepção
que o imaginário europeu tinha do personagem no século XVI, em que o definia como wild
man. Vimos no capítulo anterior que os europeus eram fascinados por monstros e criaturas
não-humanas. A forma física de Caliban estava propensa a ser encarada como a de um ser
inumano, pois além de “monstrengo” era “manchado”.
Caliban, quando mencionado pela primeira vez no texto, imediatamente é adjetivado
com inferioridade e estranheza. É pelo discurso de Próspero que tomamos conhecimento de
sua presença na ilha. É quando Próspero relembra a Ariel sua sorte por ter sido salvo por ele,
mencionando Sicorax e seu filho, que se refere a Caliban como monstrengo manchado. É tão
importante para Próspero apresentar essa caracterização de Caliban a Ariel, que usa a
intercalação de uma oração e de um aposto a fim de ressaltar a insignificância do escravo:
“Então, esta ilha se excetuarmos o filho que ela teve, um monstrengo manchado forma
humana nenhuma a enobrecia” (I, ii, p. 31).
O uso abusivo dos pronomes possessivos e do imperativo nas falas de Próspero
quando se dirige tanto a Caliban como a Ariel reflete a sua vontade de mostrar o seu poder em
relação àquela ilha. Quando Próspero fala com Miranda sobre Caliban, faz questão de dizer
que ele é sua propriedade: “Vamos ver o meu escravo Caliban, que só tem palavras duras para
minhas perguntas” (I, ii, p. 32). Miranda, então, mostra seu descontentamento com o escravo,
dizendo a seu pai que ele lhe repugna. Todavia, Próspero reconhece a utilidade de Caliban nos
serviços considerados mais pesados, como acender o fogo, carregar lenha: “Contudo, não
podemos dispensá-lo” (I, ii, p. 32). Mesmo sabendo da importância de Caliban para que se
sinta mais confortável na ilha, Próspero o se importa em tratá-lo com respeito. Os
xingamentos tornam-se contínuos nos diálogos que tem com o escravo: “Bloco de terra”,
“Tartaruga” (I, ii, p. 32); “Vem para fora, escravo venenoso, pelo próprio diabo gerado em tua
mãe maldita” (I, ii, p. 33).
Quando Caliban aparece pela primeira vez na peça, ouve-se, inicialmente, apenas sua
voz. O escravo se encontra oculto, organizando as lenhas que carregara a pedido do amo.
Próspero anuncia ao público sua presença com palavras extremamente depreciativas: Olá!
Escravo! Bloco de terra! Calibã! Responde!” (I, ii, p. 32). Caliban replica: “Há muita lenha
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em casa”. E Próspero continua: “Vem! disse. Vou dar-te outro serviço. Tartaruga, vem
logo! Vens?” (I, ii, p. 32).
Até o momento deste diálogo o leitor/espectador cria uma imagem de Caliban,
como sendo um escravo, monstro horrível, antissocial, deformado, uma coisa horrenda. Sua
primeira fala confirma seu estado de servidão. Sem mesmo aparecer fisicamente para o
público, demonstra estar trabalhando para Próspero. Ocorre que até o momento da aparição de
Caliban, o discurso de Próspero é bastante operante sobre a imagem de quem ele fala. Afirma
com convicção e sem receios, levando o leitor a concordar e talvez nem desconfiar de uma
possível outra versão ou concepção a respeito do caráter de Caliban.
Quando o suposto monstro realmente entra em cena, sua fala é carregada de ódio e
desprezo para com Próspero e Miranda: “Que em vós dois caia orvalho tão nocivo como o
que minha mãe tinha por hábito colher nos charcos pútridos com uma asa negra de corvo. Em
vós sopre o sudoeste e vos deixe cobertos de feridas” (I, ii, p. 33). Isso ainda demonstra ser
Caliban um rebelde, que até aquele momento Próspero é o dono do discurso e o leitor o
conhece por intermédio de sua fala.
É no instante em seguida a esta fala que os leitores, no entanto, são surpreendidos por
uma explicação de Caliban, que faz com que toda aquela ideia de ingratidão, de intransigência
do escravo passe a ser vista como consequência da exploração, astúcia e intenções maldosas
de Próspero:
Esta ilha é minha; herdei-a de Sicorax, minha mãe. Roubaste-me; adulavas-me,
quando aqui chegaste; fazias-me carícias e me davas água com bagas, como me
ensinaste o nome da luz grande e da pequena, que de dia e de noite sempre
queimam. Naquele tempo, tinha-te amizade, mostrei-te as fontes frescas e as
salgadas, onde era a terra fértil, onde estéril... Seja eu maldito por havê-lo feito!
Que em cima de vós caia quanto tinha de encantos Sicorax: besouros, sapos e
morcegos. Eu, todos os vassalos de que dispondes, era nesse tempo meu próprio
soberano. Mas agora me enchiqueirastes nesta dura rocha e me proíbes de andar
pela ilha toda (I, ii, p. 33).
Caliban, ao proferir tal discurso, revela ter sido injustamente traído, pois a ilha era sua
e ele era provido de liberdade até a chegada de Próspero. Seu lamento causa comoção ao
leitor, pois demonstra ter sofrido injustiça e parece ser difícil sair dessa situação. Não se
conformando em ter-lhe sido tirado o que era seu (a ilha), e transformado-se em objeto de
posse de um europeu, sua aparente solução é rebelar-se e praguejar contra Próspero. Sua
condição de “trapaceado” explica a sua revolta. Assim, sua atitude é uma resistência do
colonizado frente ao colonizador, segundo os termos da teoria pós-colonial. Revidar, para
Caliban, significa adquirir consciência dessa objetificação e, a partir daí, começar a resistir ao
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cerceamento de sua autonomia e poder por parte de Próspero. Caliban revida discursivamente,
denunciando sua outremização. Ao reclamar a usurpação da ilha por Próspero e perceber as
estratégias utilizadas por este para escravizá-lo, logo se rebela, almejando ser ouvido e, dessa
forma, voltar à posição de destaque que tinha na ilha antes da chegada do europeu.
Próspero aporta à ilha e, aos poucos, vai se servindo da inocência de Caliban para em
seguida tornar-se dono de tudo e de todos que se encontram ali. Essa atitude de Próspero pode
ser comparada com as práticas colonialistas que estavam em voga com a expansão marítima e,
por conseguinte, com as Descobertas. Próspero chega cauteloso e vai colonizando aquela ilha
onde Caliban vive harmoniosamente. Isto assemelha-se à chegada dos europeus em nações
africanas a fim de colonizar aquelas terras e a exploração que isto causou aos habitantes do
Novo Mundo.
Nesse momento, Caliban aparece por ele mesmo na peça e não mais mencionado pelo
outro como um ser insignificante. É através da explicação de que fora traído, que Caliban
adquire autoridade e se sobressai no enredo em relação a Próspero. A atenção do leitor volta-
se a este personagem até então encoberto e desprezado. Todavia, Próspero se defende, diz que
se não tivesse aparecido e ensinado Caliban a falar, este continuaria apenas emitindo
gorgorejos. agora suas intenções podem ser conhecidas através das palavras. O escravo,
porém, uma vantagem nisso: amaldiçoar seu dono, utilizando-se dessa língua: “learning
how to curse in the master’s tongue” (I, ii. In: SHAKESPEARE, 1957, p. 33).
Mas o que fica à sombra do discurso de Próspero o os questionamentos: para que
Caliban necessita de palavras, se naquela ilha não formas humanas? Caliban não realiza
suas intenções com seus gorgorejos? Apesar de Próspero tentar convencê-lo de que é o grande
responsável por sua “melhor condição de vida”, notamos claramente sua intenção de utilizar-
se do escravo em benefício próprio. Ele ensina a sua língua para o escravo com a intenção de
conhecer a ilha, aprender onde e o que cultivar e obter ótimos rendimentos; assim
sobreviveria naquele reino como se fosse seu.
O discurso de Próspero é eloquente, mas desmorona quando Caliban fala por si.
um descompasso entre o que Próspero argumenta sobre Caliban com as atitudes deste. O
leitor, ao ver agir o escravo, percebe um contraste em relação a quando ele é mencionado
pelos outros. Outros, porque o Próspero o define como monstro, depreciando-o.
Miranda, filha do ex-duque, também o como um palerma e repugnante. Ainda antes de
Caliban entrar em cena, Miranda o chama de velhaco, alguém cuja vista lhe repugna, devido
ao fato de ele ter tentado desonrá-la em tempo anterior, com a finalidade de povoar aquela
ilha.
31
Caliban retorna na segunda cena do segundo ato. Abre essa cena com um monólogo,
no qual amaldiçoa Próspero e relata alguns dos castigos que sofre com os espíritos da ilha: “É
verdade que eles só me beliscam, me amedrontam com visagens de duendes, só me atiram nos
lodaçais, ou do caminho certo, no escuro, me desviam, sob a forma de tições movediços,
quando Próspero os manda assim fazer” (II, ii. In: SHAKESPEARE, 2005, p. 57). Surgem
outros personagens que insistem em menosprezá-lo. Trínculo, um bufão, em um longo
discurso, o insulta, reforçando, no imaginário do leitor, a caracterização física de um monstro.
Caliban enquanto trabalha, queixa-se das maldades exercidas pelos espíritos de Próspero. Ao
perceber a presença de Trínculo – que imagina ser um deles - pensa em se esconder e resolve
deitar-se rente ao chão. No entanto, o outro percebe e ainda zomba do negro:
Olá! Que temos aqui? É homem ou peixe? Está vivo ou morto? É peixe, o cheiro é
de peixe, esse velho cheiro de ranço, que lembra muito a peixe, no jeito de bacalhau
meio passado. [...] As pernas são como as de gente; as barbatanas parecem braços...
E está quente, por minha fé! Abandono minha primeira idéia; não é peixe, mas um
insulano que a trovoada derrubou (II, ii, p. 58).
Esta caracterização de uma figura estranha ao convencional foi especialmente utilizada
na Commedia dell’arte, surgida na Itália, na Renascença. O harlequin era quem simbolizava o
grotesco e provocava o riso no público. Vimos que o Caliban de Shakespeare pode ter sido
fruto da fascinação do autor por este tipo de espetáculo. Caliban, assim como o harlequin da
Commedia, apresenta-se como uma figura grotesca à plateia, devido à forma e movimentos
corporais.
Trínculo, ao considerar Caliban uma mistura de elementos humanos - “as pernas são
como as de gente- e animais - as barbatanas parecem braços”, acaba por lhe instituir a
qualidade de grotesco ou burlesco, situando-o em um estado fronteiriço entre o humano e o
animal:
O grotesco não se define pura e simplesmente pelo monstruoso ou pelas aberrações.
É preciso que, no contexto do espetáculo ou da literatura, estas produzam efeitos de
medo ou de riso nervoso, para que se crie um estranhamento’ do mundo, uma
sensação de absurdo ou de inexplicável, que corresponde propriamente ao grotesco
(SODRÉ E PAIVA, 2002, p. 57).
Caliban apresenta-se como uma figura grotesca pela sua aparência física; torna-se
difícil de perceber se se refere a um humano ou a um animal. Quanto ao “riso nervoso”, é
presenciado também pelo público leitor/espectador em A tempestade no momento em que o
escravo aparece febril e, após tomar do “licor celestial”, transformar-se num ser cômico. Esta
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é a prova que a equação Grotesco = Homem # Animal + Riso” (SODRÉ E PAIVA
, 2002, p.
62) é passível de resolução.
Ainda na segunda cena do segundo ato, Caliban nos surpreende com sua atitude. Até
outrora amaldiçoava Próspero por ter-se apropriado dele. Detestava cumprir-lhe as ordens e
quando as cumpria resmungava pelos cantos, mostrando-se infeliz pela sua alienação. Tendo
sido apanhado falando frases desconexas, devido à febre que tomava seu corpo, Estéfano lhe
um “fortificante” (II, ii. In: SHAKESPEARE, 2005, p. 59), que nada mais é do que uma
garrafa de vinho, bebida muito estimada por Estéfano. Ao beber do vinho, Caliban embriaga-
se e agradece-lhe por lhe dar “licor celestial” (II, ii, p. 61). A partir desse momento Caliban
propõe que Estéfano aceite-o como seu vassalo. Os argumentos são muitos:
Todas as polegadas vou mostrar-te de terra fértil da ilha. Os pés te beijo. me
deus, por favor./ Beijo-te os pés e quero vassalagem permanente jurar-te (p. 62). /
Hei de mostrar-te as fontes mais saudáveis, pescarei para ti, colherei bagas, trarei
lenha bastante./ Permite que te traga maçãs bravas, com minhas unhas grandes vou
tirar-te da terra belas túbaras... (II, ii, p. 63).
Todas essas ões propostas por Caliban, caso Estéfano aceite ser seu dono, foram
realizadas anteriormente por Próspero. Caliban havia reclamado por isso no ato anterior:
“Naquele tempo, tinha-te amizade, mostrei-te as fontes frescas e as salgadas, onde era a terra
fértil, onde estéril...Seja eu maldito por havê-lo feito” (I, ii, p. 33). Caliban, agora, parece não
se importar que toda a exploração exercida por Próspero retorne pelos mandos de Estéfano.
Essa troca de dono funciona como um motim, que Caliban pretende promover em protesto ao
seu explorador. Já que deveria continuar a ser escravo, que fosse escravo de outro, mas não de
Próspero.
Caliban, que detestava ser propriedade de alguém, agora propõe sê-lo. Percebemos,
inclusive, que irá fazer muito mais pelo seu novo dono do que fazia para Próspero. Promete
desempenhar todas as funções possíveis na ilha a fim de agradecer e de continuar provando da
bebida celestial, já que Estéfano lhe contara que possuía uma adega.
A alegria advinda da bebedeira é tanta que ele até brinca com a língua que aprendeu.
Expressa sua felicidade através de rimas: “Já não farei barragem para peixe, nem fogo irei
buscar, quando ele me mandar. Não lavo prato nem carrego feixe. Bã, bã, bã, Calibã! Outro
mestre amanhã! Liberdade! Viva! Liberdade! Liberdade!” (II, ii, p. 64).
Devemos dizer, pois, que o momento da peça em que Caliban aparenta ser para o
leitor um incorrigível rebelde, ele na verdade não o é. Suas ações estão sendo executadas o
por ele mesmo, mas pelo efeito de uma droga que lhe deixou sem juízo. Caliban é guiado por
33
algo externo, que lhe tira a noção de quem ele é deveras. Sua cabeça está tumultuada e age
desta forma.
Estéfano, um permanente embriagado, também se dirige a Caliban como um ser
estranho e monstruoso, utilizando-se do deboche em suas ofensas. Ambos, Trínculo e
Estéfano, sentem-se superiores ao escravo e notamos um ar de menosprezo quando o acusam
pelo seu comportamento. Estéfano ironiza:
Que será isso? Teremos demônios por aqui? Pregais-nos peças, fantasiando-vos de
selvagens e homens da Índia? Ah! o escapei de morrer afogado, para ter medo
desses quatro pés. [...] Deve ser um monstro da ilha, com quatro pernas, que
provavelmente apanhou febre. Mas onde diabo terá aprendido nossa linguagem? (II,
ii, p. 59).
Além da figura grotesca novamente enfocada aqui, surge a presença do pré-conceito
que os europeus possuíam acerca dos habitantes africanos. Estéfano se dirige a Caliban como
sendo um ser insignificante e selvagem, assim como todos os habitantes da Índia seriam.
Falando assim, ele expressa a mesma concepção dos europeus em relação aos habitantes das
nações periféricas, que buscavam colonizar. Pela fala de Estéfano subentende-se que: se
Caliban fosse um homem da Índia e, por conseguinte, selvagem, seria também um demônio. E
ao dizer: Não escapei de morrer afogado, para ter medo desses quatro pés. Deve ser um
monstro da ilha...” aparenta ter, sim, sentido pavor da aparência de Caliban. Finazzi-Agrò, ao
descrever sobre a chegada dos europeus em terras desconhecidas, comenta do pavor que
tinham de encontrarem seres com hábitos selvagens. E essa descrição pode ser aplicada aqui,
ao explicarmos do pavor de Estéfano em relação ao negro Caliban, como Finazzi-Agrò
descreve, o receio do europeu fundamenta-se no medo de ser completamente absorvido por
aquela espantosa wilderness, de ser ‘devorado’ por aquele desmedido espaço selvagem, de ser
despido não somente do corpo como também da alma” (2003, p. 619). Para o viajante europeu
que se aventurava por terras desconhecidas, era dificultoso pensar em deparar-se com os
costumes canibalescos (não comprovados) dos povos americanos.
Na segunda cena do terceiro ato, retornam as especulações a respeito de Caliban
livrar-se de Próspero e passar a ser vassalo de Estéfano. Na verdade, o futuro dono da ilha (na
proposta de Caliban) já o tem como propriedade e dirige-se a ele com imperativos e
autoridade: “Bebe, monstro-criado, quando eu mandar” (III, ii, p. 69). Além disso, Estéfano
insiste em declarar a monstruosidade de Caliban por meio de adjetivos como “servo-monstro”
(III, ii, p. 69) e bezerro da lua” (III, ii, p. 70). Caliban, por sua vez, se mantém obediente e
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extremamente submisso às ordens de seu novo mestre: “Como passa tua Honra? Deixa-me
lamber a sola de teus sapatos. Não hei de continuar no serviço dele” (III, ii, p. 70).
Embora Estéfano despreze Caliban com termos pejorativos, ele lhe dá ouvidos quando
o escravo resolve contar-lhe seu plano para livrar-se de Próspero e ser seu súdito e,
consequentemente, torná-lo dono da ilha e de Miranda. Diferentemente de Trínculo que
zomba e não dá créditos à inteligência de Caliban – Estéfano presta atenção e ainda o defende
das implicâncias do outro: Trínculo, não enfrentes outro perigo. Se interromperes mais uma
vez o monstro com uma única palavra, por esta mão, mandarei embora a minha misericórdia e
te farei virar bacalhau” (III, ii, p. 72). No folclore europeu, o wild man era considerado besta,
sem inteligência; apesar de chamado de monstro, para arquitetar um plano de morte, o servo
de Próspero deveria ter, no mínimo, capacidade de raciocínio.
Caliban, então, descreve o seu plano:
Ora, como eu te disse, ele tem o hábito de dormir toda tarde. Aí, te fora possível
asfixiá-lo, após o teres privado de seus livros. Ou, munido de um pau, lhe partirás
em dois o crânio, se não, o estriparás com qualquer vara, ou a garganta com faca
lhe seccionas. Mas, primeiro, é preciso que te lembres de lhe tomar os livros, pois,
sem eles, é um palerma como eu, o dispondo de espírito nenhum sobre que
mande. Todos, como eu, lhe têm ódio entranhado. Basta queimar-lhe os livros.
Utensílios valiosos tem assim lhes chama para enfeitar sua futura casa. Mas o
que é sobretudo de estimar-se é a beleza da filha, que ele próprio considera sem par.
[...] Há de enfeitar-te o leito, posso jurar-te, e dar-te bela prole (III, ii, p. 73).
Neste relato, é perceptível o ódio entranhado de Caliban para com Próspero. A morte
parece ser-lhe a vingança mais adequada e a frieza das ações propostas é de espantar qualquer
leitor. Entretanto, Ariel, o espírito-espião, impede a realização de tal projeto, pois se tornara
invisível e escutara o plano, e resolve contar a seu amo sobre o destino cruel que o aguardava.
Percebemos que a relação de Ariel com Caliban é semelhante à de Próspero com
Caliban, que Ariel executa maldades para com ele, e protege Próspero das intenções do
escravo. Entretanto, Ariel é um escravo assim como o outro, e somente serve a seu dono com
fidelidade e dedicação, pois em troca almeja a sua liberdade.
Quando Próspero toma conhecimento da trapaça arquitetada pelo escravo, logo planeja
um revide. Com a ajuda de Ariel, solta alguns espíritos em forma de cachorros, que
perseguem Caliban, Estéfano e Trínculo. Próspero, nesta cena, revela-se violento e deseja
mostrar com suas ações que quem manda naquela ilha é ele, e que não pretende deixar seu
posto de dono da ilha. “Vai, incumbe os meus duendes de torcer-lhes com secas convulsões
todas as juntas, de com cãibras os nervos repuxar-lhes, com beliscões deixar-lhe mais
manchados que os gatos selvagens e as panteras” (IV, i, p. 91). Neste momento, o pai de
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Miranda ressalta seu poder, pois dominou a ilha e seus habitantes. Todos estão à mercê de
sua autoridade. Na cena I, quinto ato, Próspero sente-se realizado com tal situação:
“Concretizam-se, enfim, meus planos todos. Meus feitiços não falham, meus espíritos me
obedecem e o tempo segue em linha reta com sua carga” (V, i, p. 93). Novamente, torna-se
evidente o discurso colonial em Próspero, ao impor dominação ao escravo e à ilha e o enorme
prazer que isto lhe causa.
Predominam, ainda nesta cena, intenções de reconciliação de Próspero em relação aos
tripulantes náufragos que agora chegam frente a sua cela - e aos três traidores: Estéfano,
Trínculo e Caliban. A tripulação se encanta com a ilha: “É o mais estranho labirinto que os
homens já pisaram. Ultrapassa tudo isso a natureza no seu curso normal. Será preciso buscar a
explicação nalgum oráculo” (V, i, p. 102) e, Caliban se encanta com aqueles humanos com
belas vestes: “Oh, Setebos! Que espíritos notáveis, em verdade! Quão belo está meu amo!
Temo que me castigue” (V, i, p. 102).
Próspero, ao entregar Estéfano e Trínculo aos seus, faz questão de reafirmar que é
dono do terceiro, de Caliban. E novamente usa termos pejorativos sobre o escravo na
presença, agora, dos tripulantes:
Esse tipo disforme que ali vedes teve por mãe uma terrível bruxa, e de poder o
grande que até mesmo na lua tinha influência e provocava marés e baixa-marés,
realizando da lua o ofício, sem o poder dela. Esses três indivíduos me roubaram; e
aquele meio-diabo pois é filho bastardo, se - tramou com eles assassinar-
me. Dois desses marotos são vossos conhecidos; este bloco de escuridão é minha
propriedade. [...] É tão disforme nos costumes como no feitio exterior (V, i, p. 103;
104).
Caliban, admirado ao ver tantos homens, pede perdão à Próspero e propõe servir-lhe
novamente, mas com dedicação e gosto: “e de ora avante quero mostrar-me mais razoável e
obter graça. Mas que asno reforçado eu fui, tomando por um deus este bêbado e inclinando-
me diante deste imbecil” (V, i, p. 104).
É estranho para o leitor pensar que Caliban tenha se arrependido e resolvido
permanecer como propriedade de alguém após tantas reclamações e relatos de insatisfação.
Entretanto, nas entrelinhas do seu discurso, a esperança de reaver seu posto de imperador
da ilha. É inegável a inteligência de Caliban, pois, quando percebe a presença dos
conterrâneos de Próspero, provavelmente imagina a volta do ex-duque a Milão. O seu
deslumbramento ao ver a tripulação pela primeira vez naquela ilha simboliza, em curto prazo,
sua liberdade e poder.
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Ao dizer “esses três indivíduos me roubaram” (V, i, p. 104), Próspero se refere ao
roubo de suas vestimentas, das quais tinha se utilizado como armadilha para atordoar Caliban,
Trínculo e Estéfano. Como havia descoberto que os três sujeitos queriam matá-lo, Próspero
decide importuná-los aque desistam do plano. Assim, enquanto seguiam o caminho para
executar o plano de morte contra Próspero, deparam-se com um varal com roupas brilhantes
dependuradas. Trínculo e Estéfano se encantam e começam a provar as roupas com imensa
alegria, pois o brilho das vestes simboliza riqueza e poder: Ó Rei Estéfano! Ó par! Ó digno
Estéfano, que belo guarda-roupa aqui está para ti! / Tira esse manto, Trínculo. Por esta
mão, quero esse manto para mim” (IV, i, p. 89). Caliban tenta apressá-los, pois Próspero pode
acordar e, por conseguinte, o plano não se realizar. E de fato, o concretizam o crime, pois
são expulsos da área por cães bravos surgidos pela arte do amo.
Próspero não admite ser roubado e, ao relatar o fato para os tripulantes que surgiram
na ilha, parece sentir-se injustamente traído. No entanto, demonstra estar esquecido que quem
realmente cometera um roubo fora ele próprio, quando se apossou da ilha e seus espíritos. A
pilhagem das roupas não deve ser considerada como um “roubo”, visto que fazia parte do
plano de Próspero instigá-los ao crime. A verdadeira vítima de roubo era Caliban, que perdera
a ilha para um intruso e desconhecido.
Próspero, ao agir dessa maneira, acaba por demonstrar seu mau caráter. Planeja um
roubo sobre si mesmo e ainda finge ter sido injustiçado perante seus conterrâneos recém-
chegados. O mau caráter do ex-duque pode ser também visto em seu discurso no epílogo da
peça. Quando diz: “Mas é certo que alcancei meu ducado, e perdoei quem mo roubara. Por
isso, não queira vosso feitiço que eu nesta ilha permaneça tão estéril e revessa, mas dos
encantos malsãos livrai-me com vossas mãos” (V, i, p. 106). Próspero acha-se digno de voltar
à Nápoles e tornar-se duque novamente, pois ele foi capaz de perdoar quem lhe usurpou o
trono. Seu modo de pronunciar tais palavras indica que, apesar de achar imperdoável o crime
de seu irmão, foi compreensivo e optou por perdoá-lo, já que seu coração assim o quis. No
entanto, o perdão ao irmão não é concedido por compadecimento, mas por interesse em sair
daquele lugar deserto e longínquo, e assim retornar à Itália, como duque, juntamente com a
tripulação.
No entanto, Próspero, ao invés de recolocar Caliban na posição inicial de dono da ilha,
não o faz. Caliban simplesmente é esquecido por ele e sua última aparição na peça é ainda
como escravo, trabalhando sob suas ordens: “Ide, maroto, para minha cela, acompanhado
de vossos dois amigos. Se quiserdes ser perdoado, arrumai-a com bom zelo” (V, i, p. 104).
37
Após Caliban se dispor em cumprir tal tarefa, ele não é mais mencionado, ficando sob o jugo
de Próspero para quando ele precisasse novamente.
Próspero, ao pensar que merecia voltar a ser duque por perdoar seu irmão, não pensa
que deveria ser perdoado por Caliban por tê-lo roubado. Próspero é ganancioso, pois reclama
o que é seu (o posto de duque) e não devolve o que não é seu (a ilha). Além disso, despreza o
que tanto lhe causava prazer, ou seja, ser dono da ilha. Agora, que algo que o famais
feliz, desdenha a ilha, chamando-a de “estéril e revessa”.
Apesar de aparentar desistir do poder que “conquistara” na ilha e de querer apenas
voltar à Itália de onde viera, no seu discurso ainda há resquício de dominação. A não
devolução da propriedade a Caliban representa o desejo de continuar imperando sobre os
moradores da ilha, para assim tornar-se o possuidor de lá” e daqui”. Isso pode ser
comparado ao desejo que os europeus tinham em conquistar novas terras, aumentando cada
vez mais seu império. Esse anseio do europeu em perpetuar seu poder em ambos os territórios
(Europa e África) pode ser melhor explicado nas palavras abaixo:
Embora a apropriação das terras e do nativo na época colonial não tenha nada de
ilusório e o projeto inglês de espoliação do Novo Mundo seja marcante em sua
história, o eurocentrismo, a objetificação e a divisão binária têm fatores ilusórios,
facilmente detectáveis pelos nativos, mas mantidos à força pelos europeus para a
sua perpetuação (BONNICI, 2000, p. 59).
Logo, Próspero representa o colonizador que explora Caliban, o colonizado. Vimos
também que cada fala dos personagens que representam a Europa (Próspero, Trínculo,
Estéfano, Miranda), segundo esta releitura, ostentam características que simbolizam a
dominação de Caliban, o qual simboliza a África. Tais falas estão imbuídas do desejo de
objetificação, domínio e exploração do continente europeu sob o Novo Mundo. Caliban é a
maior vítima desse colonialismo ferrenho; no entanto, ele tenta revidar discursivamente,
embora na peça não obtenha grande sucesso. Porém, esta tentativa é um começo e nos
ensina que é possível as nações estigmatizadas pelo poderio obterem sua autonomia e
conquistarem seu lugar em meio aos exploradores do Velho Mundo.
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3 CALIBAN, EM “BRAZIL”: CRISE IDENTITÁRIA
A colonização, segundo Fanon (apud HALL, 1996, p. 69), além de não se satisfazer
em manter um povo assujeitado e de declarar a deformidade na forma e na mente do nativo,
acaba por distorcer e destruir o passado dos povos oprimidos. Isso nos permite pensar que
dilacerar a história destes povos faz com que sua identidade também seja abalada.
Neste capítulo, propomos analisar a perda de identidade do personagem O Grande
Caliban em Brazil”, de Paule Marshall. Este conto se utiliza dos nomes Caliban e Miranda,
da peça shakespeariana A tempestade, mas ressaltamos que não consiste em uma reescrita
nem em uma releitura do drama, conceitos definidos no primeiro capítulo deste estudo. O
enredo é outro. Personagens da peça inexistem no conto, como Próspero, Ariel, Trínculo,
Estéfano, etc. Há uma aproximação do conto com a peça, por meio do uso do nome de dois de
seus personagens, e da evocação das ideias que a eles se tornaram associadas a partir da
leitura da peça do dramaturgo inglês. Assim, o drama de Shakespeare atua como um pré-texto
a partir do qual Marshall constrói sua própria narrativa, ou melhor, é um intertexto literário
clássico que apoia à trama da escritora.
Para entendermos melhor no que consiste a identidade, será feita uma síntese do
assunto a partir dos conceitos de estudiosos Stuart Hall e Kathryn Woodward. Em seguida,
partiremos para a análise do texto de Marshall, expondo as associações das ações e falas dos
personagens com o fenômeno da perda ou crise de identidade.
3.1 Identidade cultural: fixa ou mutante?
A identidade cultural tem sido amplamente discutida, especialmente nas sociedades
pós-coloniais, devido à transformação pela qual os seus sujeitos tiveram que passar após a
grande pressão que o colonialismo impôs ao tratá-las como sociedades estigmatizadas e
inferiores às ocidentais. No entanto, após adquirirem sua independência política, essas nações
começaram a ir em busca do que supostamente haviam perdido: sua identidade.
Hall, ao dedicar-se ao estudo da identidade cultural, ressalta que essa busca da
identidade “perdida” não se resume a isso. Ao ir ao encontro de sua identidade legítima” ou
essencial, o sujeito pós-colonial produz nova identidade e não redescobre ou exuma o que a
experiência colonial enterrou e cobriu, apenas. A identidade cultural “não é jamais uma
essência fixa que se mantenha imutável, fora da história e da cultura” (HALL, 1996, p. 70),
39
pois provém de algum lugar e tem história. E como tudo o que tem história sofre
transformação constante, assim é com a identidade cultural, ou seja, ela tem fluidez,
movimento e poder de reconstruir e transformar as identidades históricas, herdadas de um
suposto passado comum.
Kathryn Woodward (2000) fala de dois tipos de identidades: a essencialista e a não
essencialista. A primeira define-se por não se transformar ao longo do tempo, e engloba
características que todos de um grupo partilham, tornando-o autêntico. O essencialismo da
identidade pode fundamentar suas afirmações tanto na história quanto na biologia:
Algumas vezes essas reivindicações [essencialistas] estão baseadas na natureza; por
exemplo, em algumas versões da identidade étnica, na ‘raça’ e nas relações de
parentesco. Mais freqüentemente, entretanto, essas reivindicações estão baseadas
em alguma versão essencialista da história e do passado, na qual a história é
construída ou representada como uma verdade imutável (Ibid., p. 14-15).
Já a identidade não essencialista focaliza as diferenças entre um mesmo grupo ou entre
este grupo e outros grupos étnicos. Nesta concepção, a identidade é fluida e mutante. Para
Hall (1996), a segunda visão de identidade cultural é bem menos familiar e causa mais
turbulência, pois a identidade não procede aqui, em linha reta e ininterrupta, de uma origem
fixa, mas procede da diferença.
Para que não reste dúvida sobre a relação da identidade cultural com o que vínhamos
falando a respeito do colonizador e colonizado, Rutherford explica que “a identidade é a
intersecção de nossas vidas cotidianas com as relações econômicas e políticas de
subordinação e dominação” (apud WOODWARD, 2000, p. 19). Nas desigualdades sociais,
advindas de sistemas políticos e econômicos rígidos, as identidades são contestadas. Dessa
forma, estes povos que ficam à mercê de dominação veem-se obrigados a posicionar-se de
maneira diferenciada e buscar o que agora lhes falta e, nesta busca, como dissemos, criam-
se novas identidades.
No entanto, todo este processo de redescoberta e criação de uma nova identidade e o
fato de que ela é instável e mutável demonstra haver uma crise de identidades. Para
Woodward (2000, p. 25), “as identidades em conflito estão localizadas no interior de
mudanças sociais, políticas e econômicas, mudanças para as quais elas contribuem”. No
mundo pós-colonial, as transformações globais nas estruturas da política e economia colocam
em relevo as questões de identidade e as lutas pela afirmação e manutenção das identidades
nacionais e étnicas.
40
Por fim, podemos afirmar que sempre haverá uma crise identitária, pois nesta fase de
pós-independência percebemos cada vez mais uma fusão, que origina as culturas híbridas; isto
faz com que a identidade cultural seja sempre vista como mutante e flexível. Enquanto isto
acontecer haverá um problema de identidade, ou uma crise: “A identidade se torna um
problema quando está em crise, quando algo que se supõe ser fixo, coerente e estável é
deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza” (WOODWARD, 2000, p. 19).
Levando em consideração a crise de identidade que se faz sentir, especialmente, nas
sociedades pós-coloniais, pela sua persistência em quererem se reencontrar consigo mesmas
ou com sua identidade de origem - supostamente perdida pelo processo de colonização e,
consequentemente, dominação -, percebemos por que o sujeito, em tais contextos, é um ser
cuja identidade é profundamente fragmentada. É esta busca desenfreada pelo que fomos e a
nova posição que assumimos frente à identidade produzida que analisaremos no conto
“Brazil”, de Paule Marshall. A escritora, nascida em Nova York, de raízes caribenhas, através
de seu personagem Caliban ficcionaliza, o problema da identidade. Também, na medida em
que acharmos relevante ao tema da pesquisa, serão feitas algumas comparações entre o enredo
da peça e o do conto.
3.2 O Grande Caliban e a Pequena Miranda: evidências de identidade em crise
O conto de Paule Marshall, “Brazil”, começa aludindo à primeira cena de A
tempestade, de Shakespeare. Como vimos, a peça inicia com uma tempestade e com muito
barulho, tanto do fenômeno natural como dos seus tripulantes, que gritam de pavor. No conto,
a “tempestade” é de sons de instrumentos musicais. A Casa Samba, lugar de grandes shows
de piadas e humor, abre suas portas com uma exuberante apresentação, com intensos ruídos e
música:
Três trompetes, dois saxofones, um trombone; um piano, a bateria e um
contrabaixo. Juntos na obscuridade da boate eles davam forma a um monumento de
sons resplandecendo com notas e oscilando ao ritmo da bateria, como um edifício
oscila imperceptivelmente ao vento, quando, de repente, um dos trompetes
derrubou aquele monumento com um acorde alto e estridente que parecia ir além do
som e atingir o silêncio. Foi um sinal que os outros instrumentos rapidamente
seguiram: a bateria explodindo na erótica batida do samba, o baixo se
transformando em uma forte vibração sob as cornetas de grito agudo
(MARSHALL, 1988, p. 1)
3
.
3
Todas as citações seguintes da obra “Brazil” foram tiradas da tradução de Diego Rodrigues. Somente
mencionaremos o número da página, nas próximas citações.
41
O número chama-se O Grande Caliban e a Pequena Miranda”. Desde muitos anos
os dois artistas apresentam, juntos, o espetáculo; no entanto, vendo que não conquista mais a
simpatia do público, isto é, que o o faz mais rir com suas piadas, Caliban resolve se
aposentar.
Miranda é uma mulher branca que provém do Rio Grande do Sul; o é mais tão
jovem, pois seu rosto o tem mais o viço de outrora. Mas é bela e cativante. Marshall, ao
apresentar ao leitor esta personagem por meio do narrador, indicações sobre a nação que
escolheu para ser o espaço de sua obra ficcional, o Brasil. No conto, por mais de uma vez o
narrador comenta sobre a miscigenação que aflora no território brasileiro: “E era mesmo parte
alemã, uma dessas brasileiras do Rio Grande do Sul com sangue misturado de alemão,
português, índio e, às vezes, africano. Nela o alemão triunfara” (p. 2).
Caliban, por sua vez, é negro e velho: “O cabelo, debaixo da peruca emaranhada que
usava, estava branco vários anos; e os olhos, sob as pálpebras enrugadas, estavam quase
opacos com a reuma e inocentes com a idade” (p. 2). Todavia, ainda possui agilidade em seu
corpo; seus movimentos são precisos e soltos, e isso lhe fornece ares de jovem.
O espetáculo se inicia com Miranda no palco. Em seguida, entra em cena Caliban,
com modos grosseiros, proferindo palavrões a sua partner: ‘Ei, deixa eu entrar, sua estúpida!’
(p. 2). Não como negar aqui, semelhanças do personagem com a concepção europeia dos
séculos circundantes ao ano da criação do Caliban de Shakespeare, de que o nativo seria um
bruto, selvagem, com comportamentos antissociais. No conto, ele também se apresenta como
um ser disforme, negro, desprovido de educação e beleza:
...quando uma figura escura e diminuta irrompeu ao redor da sua coxa, usando uma
camisa escarlate com mangas estufadas e um grande C bordado no peito, como um
brasão de casa real; um calção de boxeador que era grande demais para ele, no
mesmo tom escarlate, descendo abaixo do joelho; e sapatos de lutador de boxe,
enlaçados até o alto (p. 2).
Esta descrição do personagem O Grande Caliban é a primeira indicação de que algo
está fora do lugar. Seu corpo é desproporcional às suas vestes, tudo lhe é grande demais. A
descrição faz-nos imaginar uma figura em que o corpo parece acessório, e a roupa, a estrutura
principal. Há, assim, uma inversão da ordem normal das coisas. E assim como O Grande
Caliban está em descompasso com suas vestes, ele também está com sua identidade.
O principal número da noite consiste em uma comédia onde Caliban representa a força
e Miranda a fraqueza; daí os adjetivos O Grande Caliban e A Pequena Miranda. O astro do
humor
42
usava Miranda de alvo para suas ameaças e abusos. Essa relação incongruente e
contraditória força de Caliban, o jeito autoritário apesar da idade e do corpo
enrugado, e a fraqueza de Miranda, que não combinava com sua altura imponente e
enormes braços e pernas – isto era a essência do show (p. 4).
Os movimentos de Caliban também são mais ousados em relação aos de Miranda,
assim como sua voz é mais imponente. E é pela enorme ousadia que Caliban acaba
distendendo um músculo e a partir desse momento Miranda assume o espetáculo com
exuberância. No final do espetáculo Miranda inverte os papéis, e assume a posição que
sempre tinha sido de Caliban: “levantando Caliban com uma das mãos e marchando
triunfalmente para fora do palco, com ele chutando e agitando os pequenos braços bem acima
da cabeça dela” (p. 5). Esta cena conduz o espectador a uma reversão de expectativas, visto
que não se espera que a tímida e fraca Miranda tenha forças para carregar o rei do espetáculo.
O Grande Caliban, em toda sua carreira de artista, já tinha imitado vários tipos
brasileiros e estrangeiros, como, por exemplo, um roceiro admirando pela primeira vez os
prédios do Rio de Janeiro; um americano que perdera o voo; uma matrona da alta sociedade
brasileira. Porém, o Grande Caliban é seu personagem mais importante e sua apresentação
inicial o tinha tornado famoso. Na verdade, a abertura do seu show consistia em uma
imitação de um famoso pugilista, Joe Louis: “Ele fez pose de campeão de boxe, o corpo se
agachando em posição de alerta, ameaçadora, a cabeça desviando e dando voltas, e os
pequenos punhos erguidos ao fazer uma dança rápida e impressionante, na ponta dos pés” (p.
3).
Mas, por ter representado inúmeros tipos e situações ao longo de sua vida artística, e
por se envolver emocionalmente com os papéis que representava, ele começa a sentir-se meio
confuso e já não sabe até que ponto ele é o Heitor e o personagem:
Ele fora Todomundo, tanto que se tornara difícil, após seus trinta e cinco anos no
show business, separar o número caótico de faces que podia assumir com seu rosto
e dizer onde terminava O Grande Caliban e ele, Heitor Baptista Guimarães,
começava. Tinha começado a refletir nebulosamente sobre isso e se sentir
vagamente perturbado desde a noite em que decidira aposentar-se (p. 3).
No decorrer da narrativa de Marshall, ficam evidentes características do povo
brasileiro, como a lealdade e o afeto. Enquanto Caliban faz suas imitações e piadas antigas,
que não tiram mais o sorriso do público, a plateia ainda assim sorri e aplaude, a fim de ajudar
o conterrâneo: “O público riu mas por razões outras que não as piadas: os brasileiros, por uma
questão de afeição e lealdade” (p. 4).
43
O público não se restringe aos brasileiros; os americanos estão presentes. E com eles o
preconceito racial. O narrador relata o choque dos americanos ao ver Caliban pela primeira
vez, devido a sua negritude. Assim como em A tempestade, em que os tripulantes se assustam
com a cor de Caliban, e Próspero o chama de “bloco de escuridão”, aqui também podemos
visualizar o preconceito de cor. Os brasileiros riram por lealdade; os americanos:
... por uma questão de bem estar e alívio alívio porque no começo, quando a face
negra de Caliban aparecera por entre as coxas brancas de Miranda, eles tinham
ficado tensos, momentaneamente insultados e alarmados, até que, com o riso saindo
fora de hora, lembraram um ao outro que, afinal de contas, isto era o Brasil, onde
branco nunca era totalmente branco, não importa quão puro parecesse (p. 4-5).
Percebemos também uma identificação dos americanos dos EUA - com Miranda,
por possuir a pele branca e olhos azuis como a eles. Miranda não causa espanto e desprezo a
eles, até porque sua ascendência alemã sobressai à indígena ou à africana. Por outro lado, o
Grande Caliban é descendente africano e isto lhes causa menosprezo. Embora a África e a
América tenham uma história de colonização semelhante exercida pelos europeus no
conto de Marshall, os seus americanos provavelmente devem ter ascendência europeia, por
apresentarem cor clara, e isso lhes dá o direito de se sentirem superiores ao negro Caliban.
O desprezo é tanto que, a princípio, pensam que talvez o espetáculo tenha sido
planejado para insultá-los. Ao se depararem com a figura negra no palco, ficam assustados e
tensos, demonstrando despreparo e desrespeito para encararem a cultura brasileira. depois
de uma pausa para reflexão é que percebem o engano e se lembram que o Brasil é, de fato,
intenso e multirracial.
espaço também para deboche dos americanos em relação à língua oficial do Brasil.
Além de zombarem da imagem escura de Caliban, riem da língua que o negro utiliza: “Não
sei por quê estou rindo. Não entendo nenhuma palavra em espanhol! Ou será este o lugar onde
falam português?” (p. 5). Ao desprezar uma língua, a ponto de não reconhecê-la ou de
confundir os idiomas, os americanos dão a entender que o inglês é superior ao português e ao
espanhol. Debocham da língua por ela não lhes ser reconhecível.
Não nos distanciando do assunto identidade, retomemos o enredo do conto. Naquela
noite de shows, em meio às performances de Caliban e Miranda, algo não acontece da melhor
maneira. Caliban, ao fazer acrobacias extravagantes, sente uma fisgada em seus músculos e
isto lhe causa muita dor, que se torna insuportável. Nos bastidores, insulta Miranda, dizendo
que é sua culpa, mas não lhe maiores explicações. Trocam insultos e se dirigem aos
camarins a fim de se despirem e tirarem a maquiagem. Em frente ao espelho, Caliban sente
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uma perturbação sem causa aparente. Depois de uma reflexão, percebe que tal desassossego
está “dentro de si mesmo, uma preocupação que não conseguia definir e que se soltava, saía
junto com sua respiração e assumia uma forma vaga, indefinível, fora de seu corpo“ (p. 7). Ao
declarar que a desarmonia está em seu eu, percebemos que O Grande Caliban passa por um
período conturbado, e não se sente plenamente feliz. Há, pois, uma incongruência entre quem
Caliban representa e quem ele realmente é: “uma vez removida a maquiagem, seu rosto ficava
sem expressão, indistinto, como se somente no palco, como Caliban, com a camisa escarlate e
os calções largos, ele tivesse certeza de quem ele era. Caliban se tornara, talvez, a sua
realidade” (p. 7).
A sua memória também não o ajuda. Para Hall, um dos elementos que pode
reconstituir o passado é a memória (1996, p. 70). Se Caliban pudesse se lembrar de quem ele
era fora do teatro ou de quem ele era antes de tornar-se O Grande Caliban, teria menos
dúvidas e perturbações. O personagem que criara ao longo de sua carreira tornara-se a sua
própria vida, a sua realidade no cotidiano. Ao ser perguntado por Henriques, que atua como
porteiro e seu camareiro, sobre seu verdadeiro nome, o comediante para e hesita. Em seguida,
responde: ‘Heitor. Heitor Guimarães. Heitor Baptista Guimarães.’ E acrescenta: ‘Tem tanto
tempo que não uso que tive que parar pra pensar’ (p. 10).
Em contraste com o tratamento que Caliban recebe na peça de Shakespeare,
percebemos que no conto de Marshall dispensam-lhe respeito. Henriques serve-o com
respeito e dedicação até exageradamente, e sempre utiliza o pronome senhor, demonstrando
fidelidade e subalternidade. São dezenas as ocorrências: “‘Tenho uma confissão a fazer,
senhor [...] Eu pessoalmente não acreditava. Sabe, senhor, como às vezes a gente fala em se
aposentar mas... bem, sabe como é. Mas agora, com esses cartazes e anúncios...’” (p. 9).
A relação de Caliban com Miranda também é diferente nos textos mencionados. Na
peça shakespeariana, o contato destes personagens é bem sutil. O drama A tempestade não
privilegia tanto as cenas que envolvem ambos. Miranda detesta-o por ele ter quisto no passado
desonrá-la, e evita contato com ele. o conto contempla várias cenas entre esses
personagens. Miranda mantém uma relação extraconjugal com Caliban, visto que ele é
casado.
Sua mulher tem apenas vinte e cinco anos e espera um filho seu. O caso com Miranda
é antigo e ele sempre a sustentou financeiramente, até mesmo com coisas supérfluas:
‘Você não vai acreditar, Henriques, mas ainda dou pra ela tudo o que ela quer,
mesmo estando casado. No mês passado ela viu uma daquelas camas redondas de
luxo em uma revista de Hollywood e mandei fazer uma pra ela. Um tempo atrás,
45
tirou todas as lâmpadas e colocou lustres até na cozinha. [...] Comprei os lustres
para ela, é claro’ (p. 12).
No entanto, Caliban não suporta mais conviver com sua colega de profissão. Acha-a
sem talento e a insulta momentaneamente: “‘Você ouviu ela me xingar ainda agora, e xingar
minha esposa e o filho que estamos esperando? Ficou louca neste último ano. Tudo porque
me casei’. [...] ‘O problema é meu se eu me casei, sua vaca, não seu’ (p. 12). Miranda
retribui todas as ofensas, utilizando o mesmo tom vingativo: “‘Seu baixote! Ladrão de
mocinhas!’” (p. 6).
Após fecharem as portas da Casa Samba naquela noite mal sucedida, Caliban encontra
um táxi com um grupo de americanos que para e lhe pergunta uma informação sobre a cidade.
Após fornecer-lhes a informação desejada, começa uma longa especulação sobre o próprio
Caliban:
‘Ei, você o é o comediante do clube? Qual o seu nome mesmo?’. Queria jogar
o título todo O Grande Caliban na cara do homem e sair andando, mas nem
sequer conseguiu dizer Caliban. Por alguma razão, sentiu-se de repente destituído
daquele título e de sua distinção, sem direito a usá-lo. O homem cochichou para os
outros no carro. ‘Qual era o nome dele mesmo? Vocês sabem, o coroa contado
piadas. Com a loira’. O nome é Heitor Guimarães’, disse Caliban subitamente.
‘Não, eu estava falando do seu nome artístico’. Ei, espera aí, eu me lembro’, disse
alguém de dentro do carro. ‘Era de Shakespeare. Caliban!’. ‘Heitor Baptista
Guimarães’, ele exclamou, a voz alta e severa dirigida o a eles mas também à
montanha e à noite. Virando-se, caminhou em direção ao carro (p. 16).
Nesta longa conversa entre Caliban e o americano, percebemos evidências de que o
comediante estava tentando voltar a ser o que era antes da fama. Sua primeira tentativa é
assumir o seu nome de nascimento, pois o quer ser o que representava até aquela noite, e
busca reafirmar-se numa identidade que, um dia, tinha sido sua, mas que supostamente
perdera ao construir a de Caliban.
Caliban, agora, almeja reencontrar-se com a história de vida que possuía antes de
tornar-se O Caliban, pois não suporta mais ser aquele que a fama construíra. Prefere tornar-se
um ser entre tantos, sem fama, e ter uma vida simples, sem ser ofuscado pelas luzes dos
shows. Quando torna-se famoso e reconhecido pelas piadas que apresenta na Casa Samba, sua
identidade se transforma, ou melhor, a identidade de Caliban, seu eu artístico, se sobrepõe à
do cidadão Heitor Baptista Guimarães. Para Coser, “quando Caliban resolve descartar a
fantasia de cetim e o papel de bobo da corte para voltar a ser ele mesmo, perde-se entre o ser
fantasiado e o outro diluído no tempo” (2001, p. 225).
46
A cada avanço na narrativa de Marshall fica evidente a dificuldade de Caliban em
reconhecer-se como Heitor Guimarães: “Embora repetisse até a língua pesar, aquele nome não
parecia real. Era o nome de um estranho que tinha vivido em outra época” (p. 17). E é esse
“estranho” que ele pretende reencontrar; é um outro eu que agora lhe perturba. E essa relação
entre os “eus” é bastante conflituosa, porque lhe causa tensão, vazio e solidão. Não se acha
mais no direito de usar seu nome artístico e força a reutilização do seu nome original.
Em uma conversa com sua jovem esposa, Clara, Caliban exige ser chamado por
Heitor; no entanto, ela se surpreende como se não lembrasse deste nome, pois, também para
ela, assim como para seus fãs, ele se chama O Grande Caliban. Ao tentar anular em que a
fama o tinha transformado, Caliban propõe a sua esposa irem embora, de volta para Minas
Gerais, pois o Rio não seria um bom lugar para seu filho nascer. Ser chamado de carioca seria
penoso ao pai Caliban; este local poderia tumultuar a identidade do filho (assim como
aconteceu com ele), pois se não tivesse vindo para a capital, seria ainda o mesmo Heitor
Baptista Magalhães:
‘Não, eu não quero ver meu filho nascer no Rio e ser chamado de carioca’.
‘Está bem, Caliban’.
‘Heitor’, ele disse categoricamente, assustando-a.
‘Heitor?’ Ela franziu a testa.
‘Você não sabe o meu nome verdadeiro?’
‘Claro que sei’.
‘Bem, então pode começar a usar’ (p. 19).
A tentativa de Caliban em redescobrir sua identidade esquecida começa logo após a
cena acima, quando ele repentinamente pede para Clara: “‘Me fala [...] ‘sua e alguma vez
falou de mim? Ou sua avó? Elas alguma vez falaram de mim quando eu era jovem? Falaram
sobre Heitor? ’” (p. 20). A resposta de Clara é ainda mais perturbante a Caliban, visto que ela
não entende sua intenção: “‘Sei que elas contavam como você era famoso... ’” (Ibid.) O
contador de piadas insiste com interesse: “‘Eu disse quando eu era jovem. Antes de vir para o
Rio. Naquela época eu era diferente... ’” (Ibid.). E ela o decepciona totalmente: “‘Sei que
falavam, mas não consigo lembrar de tudo que diziam. sei que quando você ficou famoso
sempre procuravam seu nome no jornal’” (Ibid.).
Era como se ele quisesse se infiltrar no seu passado por intermédio das lembranças
dos outros. Entretanto, isso se torna impossível, pois ninguém consegue se lembrar dele antes
de ser famoso. Suas fantasias e ões nas apresentações diárias na Casa Samba tinham se
fixado no imaginário das pessoas, até mesmo no de sua esposa: ‘Estou tão acostumada com
você sendo Caliban’” (p. 20).
47
Em um relance de memória, Caliban lembra da Rua da Glória e do restaurante onde
trabalhou antes de se tornar O Grande Caliban. Vai até lá, na tentativa de saber mais sobre si
mesmo. No entanto, é reconhecido pelo seu nome artístico por um grupo de meninos que o
seguem, extasiados, por estarem tão próximo à estrela do humor. As crianças o levam até o
restaurante, que não por acaso, se chama ‘RESTAURANTE O GRANDE CALIBAN’ (p. 23).
O recinto retrata a vida do personagem de Heitor. “fotos suas tiradas de jornais e
amareladas que se espalhavam pelas paredes, e por uma pintura a óleo espalhafatosa
retratando-o em sua camisa escarlate” (p. 24).
Dentro do restaurante está um homem gordo, sentado. Ele é o dono daquele lugar.
Assim como o grupo de meninos, reconhece Caliban por seu nome artístico e contempla-o
com imensa alegria: “Quando reconheceu Caliban, os olhos cor de ágata brilharam como um
dos anéis dele, e um sorriso admirado abriu caminho ao redor de sua boca. ‘Senhor
Caliban...?’” (p. 24). Extremamente contente com a presença do seu ídolo, mostra a Caliban
todos os detalhes das paredes, o seu retrato. No entanto, o ídolo já não quer ser reconhecido
como tal e tenta evadir-se do local, mas é retido pelos meninos: “Desejava escapar porque o
restaurante profanara o seu passado com cromo e couro sintético, e o retrato, as fotos
desbotadas e o seu nome na janela apagaram o Heitor Guimarães que tinha esfregado aquele
piso” (p. 25).
O dono ainda explica que havia encontrado as fotos ali quando comprara o lugar, e
que, o retrato grande na parede, ele mesmo tinha pintado: “‘Fiz em sua homenagem’” (p. 25).
Caliban quis saber quem as tinha colocado na parede e o homem lhe disse ter sido ‘o velho
Nascimento, aquele, Senhor Caliban, que deve ter sido o dono do lugar quando o senhor
trabalhava aqui. Talvez o senhor tenha se esquecido dele’” (p. 25). Aqui, vemos que o
pronome senhor também é utilizado pelo dono do bar assim como Henriques, o camareiro, o
usava ao falar com Caliban, assegurando-lhe respeito e honra, pois, na concepção de ambos,
Caliban lhes era superior.
O comediante pede ao homem o endereço do velho Nascimento e sai apressadamente
em direção à favela, onde mora seu antigo patrão. Sobe o morro sofregamente, sob os olhares
fixos e curiosos dos moradores, pois está muito bem vestido e portando anéis brilhantes. Um
garoto lhe a informação do lugar onde o velho reside. Depara-se com um barraco pobre e
resolve entrar. Percebe que Nascimento está cego e chama-o pelo nome. O velho, na incerteza
de que alguém estivesse ali, pergunta: “‘Tem alguém aí?’” (p. 28). E Caliban responde
prontamente, esperançoso de que ele lembrasse de seu antigo empregado: “‘Tem, é Heitor
Guimarães’” (p. 28). O diálogo segue:
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‘Quem é essa pessoa?’, disse o velho formalmente, virando-se agora.
‘Heitor’.
‘Heitor?’
‘Sim, do restaurante, anos atrás. O senhor se lembra? Ele...eu era o garçom...’
‘Heitor...’, o velho falou devagar, como se buscasse o rosto ao qual o nome
pertencia. [...]
‘O senhor costumava me chamar de Heitorzinho de Minas. Lembra...’
‘Não conheço Heitor nenhum’ (p. 29)
Acreditamos estar neste diálogo a frase mais emblemática da crise de identidade pela
qual passa Caliban. Ao balbuciar “‘Ele... eu era o garçom’” Caliban expõe sua incerteza de
quem realmente é. Ao corrigir-se após perceber que estava falando de si mesmo, entendemos
que Caliban ainda se encontra numa fase de transição do que é para o que deseja ser. Não
convém aqui falarmos em transição do que é para o que era ou para voltar a ser. Pois como
vimos nos parágrafos iniciais deste capítulo ao buscar por uma identidade “perdida” acaba-se
por produzir uma nova identidade e não reproduzir a antiga, embora nesta nova produção
estejam presentes os fatos da identidade primeira. Tais fatos não se anulam, mas intervêm
nesta nova posição identitária.
Caliban, o contente com a resposta do velho, faz um relato cheio de pormenores,
tentando lembrar-lhe de que tinha trabalhado no seu bar anos atrás. Como se quisesse
repetir insistentemente para si mesmo o seu verdadeiro nome, Caliban declara-o a cada
instante:
‘Era eu, Heitor Guimarães, que às vezes contava umas piadas de noite para fazer os
clientes ficarem bebendo. [...] foi quem me fez entrar naquele concurso de artista
amador no Teatro Municipal. [...] Nós choramos no ombro um do outro quando me
disseram que eu tinha vencido o concurso e que me colocariam no show regular
com o nome de Caliban...’ (p. 29).
Inesperadamente, o velho responde com entusiasmo: ‘O Grande Caliban’”. Somente
quando ele ouve a palavra Caliban é que lembra quem era aquele que estava a sua frente.
Enquanto Caliban diz que se chama Heitor Guimarães nenhuma reminiscência floresce na
mente do homem. A decepção daquele comediante é visível, mas mesmo assim ele pretende
convencê-lo de que Heitor Guimarães tem mais significação que Caliban, visto que o primeiro
é a sua realidade e o último apenas produto de sua arte:
‘É, mas eu era Heitor Guimarães quando trabalhava para o senhor, e não Caliban’.
‘O Grande Caliban. Foi o melhor que já passou pelo Teatro Municipal. Eu disse pra
ele que ganharia e que era o melhor...’
‘Mas nessa época eu era Heitor!
49
‘Não conheço Heitor nenhum’ (p. 30).
Caliban, ao perceber que nada de sua história como Heitor Guimarães subtrairia
daquele senhor, desiste tristemente da empreitada e volta com seu carro para a cidade a
procura de Miranda. O narrador de Marshall descreve minuciosamente o percurso de volta, da
favela a Copacabana, e faz uma comparação de um detalhe da arquitetura do prédio onde
Miranda mora com os próprios cariocas. Neste momento, uma reafirmação que o Brasil é
multirracial:
O piso do saguão em grandes quadrados em preto e branco sugeria não só os
austeros prédios brancos, erguidos contra os morros negros, e as calçadas de
Copacabana um mosaico cuidadosamente elaborado de pequenas pedras brancas
e negras -, mas também os rostos dos próprios cariocas, combinações sem fim de
preto e branco (p. 31).
Na busca incessante de Caliban em obter reconhecimento das outras pessoas pelo que
fora no passado e não pelo o que a fama transformara-o, ele tenta encontrar em Miranda a paz
que meses lhe falta, desde sua decisão em se aposentar. Pensando em obter um “sim” de
resposta, pergunta se ela conhecia algum Heitor Guimarães. Para sua surpresa, além dela não
conhecer nenhum Heitor, o interpreta mal, pensando que ele estava desconfiando dela por
possuir um caso amoroso com a pessoa que portava tal nome:
‘Vem aqui, quem é esse Heitor Guimarães? Eu fico aqui sozinha o dia inteiro, a
noite toda sozinha, sempre sozinha, e você chega me acusando por conta de
alguém que não conheço. Idiota! E se eu conhecesse alguém com esse nome? Seria
problema meu. Você não é meu dono. o sou aquela sua mãezinha medrosa.
Heitor Guimarães! Quem é ele? Alguém vem enchendo sua cabeça de mentiras’ (p.
35).
Para a pergunta “‘Heitor Guimarães! Quem é ele?’”, o humorista responde: ‘Eu sou
Heitor Guimarães’” (Ibid.), deixando Miranda aliviada por entender que ele não está
desconfiando de sua fidelidade. No entanto, ela retruca convicta, por infelicidade de Caliban:
“‘Você? Não, senhor, você é Caliban. O Grande Caliban!’” (Ibid.). A partir disso, podemos
captar que tanto a sua esposa, os garotos da Rua da Glória, o homem do restaurante e o velho
Nascimento como Miranda não reconhecem a identidade essencialista de Caliban, ou seja,
Caliban como Heitor Baptista Guimarães. O narrador onisciente do conto, ao mesmo tempo
em que relata a busca agonizante de Caliban por seu outro eu, analisa a crise identitária pela
qual passa. Por vezes, faz uma análise das ações dos personagens:
50
Caliban se tornara a sua única realidade, e qualquer outra coisa que ele pudesse ter
sido estava perdida. A imagem que Miranda criara para ele era tudo o que tinha
agora e uma vez que isso lhe fosse tirado como seria amanhã, quando os cartazes
anunciando sua aposentadoria fossem pregados -, seria deixado sem um eu (p. 35).
Esta análise do narrador já basta para entendermos definitivamente o estado turbulento
na alma de Caliban. Ao ouvir sua amante e colega de palco afirmar com todas as letras “‘você
é Caliban. O Grande Caliban!’”, uma fúria se apossa do grande astro e ele destrói todo o
apartamento que construíra para Miranda. Lustres, cortinas, tapeçarias, móveis, espelhos
não embelezam aquele lugar, mas sim representam um cenário de um campo de guerra.
Após a destruição, o comediante pega o elevador para sair do prédio e ouve a amante
lamentar-se. Esta é a última ação do personagem no conto, como se a violência que
incorporara funcionasse como a panaceia da sua derrota. O conto fica em aberto para
reflexões de seus leitores. Não sabemos o que acontece com Caliban após esta cena, se
continua a ser O Grande Caliban, conformado com o mundo da fama ou se continua com sua
busca ilusória do ser Heitor Baptista Guimarães. Mas temos uma certeza: se Caliban não é
mais Heitor também não é mais O Grande Caliban; agora é um outro eu que reside no seu
interior, um novo eu produzido.
O conto termina com o questionamento de Miranda em relação ao que acabara de
acontecer. Ela diz: “‘O que foi que eu fiz? Fui eu, Caliban? Caliban, meu neguinho, fui
eu...?’” (p. 37). Talvez tenha sido Miranda que o tornara confuso. Mas não só isso. O velho
Nascimento, a fama, o Rio, seus fãs e ele mesmo foram, sem dúvida, os responsáveis pela sua
transformação ao longo dos anos. As pessoas que cruzaram pelo seu caminho e as atitudes
que tomou levaram-no a construir novas posições de identidade, visto que a identidade
cultural é construída através da história e, por conseguinte, está em constante movimento. E
este movimento abala, positiva ou negativamente, o sujeito que participa dessa identidade.
51
4 O ESPAÇO EM “BRAZIL”
4.1 Espaço e identidade
4.1.1 O espaço e suas categorias
Após a sequência dos capítulos até aqui apresentados, envolvendo a pesquisa das
possíveis fontes de A tempestade, a explanação do que consiste a teoria pós-colonial, a análise
da peça sob essa perspectiva e a apresentação e análise do conto “Brazil”, considerando as
posições identitárias do personagem Caliban, pensamos ser necessária a elaboração de um
capítulo que enfoque a questão do espaço nesse conto. Em “Brazil”, o espaço tem grande
relevância, pois está intimamente associado ao personagem, influenciando-o quer em suas
atitudes, quer em seus pensamentos, e participando, dessa forma, da criação da sua identidade
cultural. Veremos, no decorrer deste capítulo, que os lugares são intensamente descritos,
chamando a atenção do leitor para que visualize não só o personagem, mas também o que se
apresenta ao redor dele. O debate sobre o espaço no conto é indispensável, pois o próprio
título tem presente a noção de espaço/território. O conto poderia ser chamado talvez
“Caliban”, mas percebemos que a autora quis enfatizar o espaço, denominando-o de “Brazil”.
Antes de procedermos à análise, faremos, a modelo dos demais capítulos, uma
exposição do quadro teórico, agora enfocando o espaço e algumas de suas categorias, como
lugar, território e paisagem. Veremos que as fronteiras entre tais categorias são nues, mas
existem. Explicá-las-emos uma a uma, e em seguida, aplicaremos seus conceitos ao conto
“Brazil”, especialmente às passagens que tratam dos espaços.
Comumente, costumamos pensar que o espaço é meramente algo físico e material, e
não o associamos às relações sociais. Diferentemente das palavras social, político, econômico
e cultural, que evocam relações humanas, a expressão espaço geográfico é, por vezes, vista
apenas como algo independente do humano. Essa visão fisicalista tende a nos levar por um
caminho errôneo, pois a geografia entende a construção do espaço como algo inerente à
sociedade, isto é, “o espaço geográfico é [...] um produto histórico” (CARLOS, 1999, p. 32),
um produto social.
O espaço é central para a Geografia, posto que é sempre a partir dele que surgem as
demais categorias. É flexível e instável, e se transforma conforme as ões sociais se
52
estabelecem. Luís Otávio Cabral argumenta sobre este dinamismo espacial: “ao longo do
tempo, as formas ou objetos e as ações ou comportamentos mudam e propõem diferentes
geografias” (2007, p. 147).
Milton Santos afirma que “o espaço é a síntese, sempre provisória,
entre o conteúdo social e as formas espaciais” (1999, p. 88). Logo, a relação natureza-
sociedade é a base para a existência do espaço. Yi-Fu Tuan, por sua vez, o espaço como
um elemento do mundo vivido: “We live in space” (2008, p. 3). Percebemos que todos estes
estudiosos compartilham a ideia de que o espaço existe em relação às ações humanas e não se
constitui, exclusivamente, por sua natureza, ou “pelo espaço em si”.
A maior confusão se faz com relação em torno dos termos espaço e lugar, muitas
vezes tomados por sinônimos. No entanto, o similares e complementares. O espaço, ao ser
dotado de valor, torna-se lugar, que se manifesta por meio de um cotidiano compartido entre
as mais diversas pessoas, firmas, instituições-cooperação e conflito (SANTOS, 1999). O
conceito de lugar sugere uma relação do ser humano com o mundo. Doreen Massey reafirma
esta necessidade de indivisibilidade ao dizer que o local “is also a product of interactions”
(2009, p. 120). Para Cabral,
O lugar permite focalizar o espaço em torno das intenções, ações e experiências
humanas [...] e [...] sua essência é ser um centro onde são experimentados os
eventos mais significativos de nossa existência: o viver e o habitar, o uso e o
consumo, o trabalho e o lazer
(2008, p. 148).
Maria Isabel da Cunha, ao responder a indagação sobre o que transforma o espaço em
lugar, responde: “a dimensão humana”. E acrescenta: “o lugar se constitui quando atribuímos
sentido aos espaços, ou seja, reconhecemos a sua legitimidade para localizar ações,
expectativas, esperanças e possibilidades” (2008, p. 184). Cita um exemplo a fim de
podermos visualizar a distinção entre o espaço e o lugar: “minha gaveta pessoal de pertences é
um espaço; porém, quando coloco minhas coisas e reconheço a propriedade dessa
organização, defino um lugar” (Ibid., p. 184).
A definição de lugar enfatizando que, para a sua existência, há a necessidade de haver
interação entre o homem e o espaço é reiteradamente afirmada pelos estudiosos. Cunha ainda
define que “uma dimensão política e cultural nos lugares, pois eles extrapolam uma base
física e espacial para assumir uma condição cultural, humana e subjetiva” (2008, p. 184).
Outra categoria que subjaz ao espaço é o território, definido como produção social a
partir do espaço (HAESBAERT (2009); KOGA (2004); SUERTEGARAY (2000)). Na visão
de Haesbaert, contemporaneamente, tanto o território como o espaço o vistos como
53
produção social, “não se tratando em hipótese alguma de um ‘a priori’ (uma espécie de
‘primeira natureza’)” (2009, p. 104).
Suertegaray, ao falar sobre o conceito de território em uma perspectiva histórica,
explica que este “norteou, na Geografia, perspectivas analíticas vinculadas à ideia de poder
sobre um espaço e seus recursos; poder em escala nacional o Estado-nação”, embora, “mais
recentemente, este conceito indica possibilidades analíticas que não deixam de privilegiar a
ideia de dominação / apropriação de espaço” (2000, p. 24). Assim, por mais que as estratégias
utilizadas pelas sociedades em delimitar e afirmar o controle sobre uma área geográfica
denominadas territorialidades expressem uma realidade social, ainda assim, representam a
dominação política de territórios.
Em síntese, a noção de território se constrói a partir da relação entre o território e as
pessoas que dele se utilizam. Dissociando esses dois elementos não como existir o
primeiro. Por conseguinte, a concepção de território se efetiva entrelaçando sua materialidade
com as ações dos sujeitos que o utilizam (KOGA, 2003, p. 36).
Logo, tanto o espaço, o lugar e o território têm vinculação com o humano. No entanto,
o território diferencia-se daqueles por possuir uma dimensão política, que envolve relações de
poder. Ao conceituarmos o território não devemos, todavia, lhe atribuir apenas o caráter
político que lhe está inerente, mas também sua carga de simbolismo, isto é: “o território pode
ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material
das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais
estritamente cultural” (HAESBAERT, 2004, p. 79).
A terceira categoria espacial que propomos explicar é a paisagem, especificamente a
paisagem urbana. Segundo Ana Carlos, “enquanto forma de manifestação do urbano, a
paisagem urbana tende a revelar uma dimensão necessária da produção espacial, o que
implica ir além da aparência” (1999, p. 36). A autora ainda ressalta que esse modo de
interpretação introduz os elementos da discussão do urbano como processo e não somente
como forma. Tais elementos seriam: os prédios, casas, ruas, bairros, favelas, muros
protegendo mansões, supermercados, prédios industriais, etc. Por ser constituída através da
ação dos homens, a paisagem urbana tem caráter histórico, isto é, por ser representação das
relações sociais que a sociedade cria em cada momento do seu processo de desenvolvimento
torna-se um processo, e não algo fixo e imutável.
Percebemos então que a visão tradicionalista de paisagem, que consiste apenas na
“possibilidade visual” (SUERTEGARAY, 2000, p. 20), passa por uma repaginação ao longo
54
dos anos ao considerar fatores extra-visuais, e ao tornar o conceito de paisagem operacional,
considerando sua funcionalidade.
4.1.2 Lugar e identidade
Após entendermos o espaço geográfico e algumas de suas categorias como
caracterizadas por sua relação dinâmica com o ser humano, é necessário refletirmos a
interrelação desse tema com a formação identitária, pois o sujeito, ao nosso entender, torna-se
elemento imprescindível para a constituição dessas classes espaciais. Por meio de intervenção
e apropriação, os sujeitos constituem seu território, no qual passam a conviver com seus
demais ocupantes. Por outro lado, a mudança do espaço físico em suas relações com os
aspectos individuais e coletivos determina novas dinâmicas ao entorno, ao ambiente social.
Através da diferença trazida pelos novos moradores, a cidade, por exemplo, constrói
uma alma própria, baseada em processos singulares de apropriação do espaço, transformando-
se em um lugar pleno de significação, que segundo Mourão e Cavalcante influi
decisivamente sobre a construção da identidade de seus habitantes” (2006, p. 144).
Logo, o que trataremos neste subcapítulo é a associação da identidade a um espaço
físico e social. O indivíduo, ao apropriar-se de um entorno, torna-se “dono” dele, assim como
o próprio sujeito torna-se pertencente a este meio: “o sujeito age sobre o meio, modifica-o e,
neste processo, vai deixando sua marca e sendo igualmente marcado por ele(Ibid., p. 145).
Sendo assim, concluem: “esse processo de pertencimento e apropriação associado a um lugar
é formador da identidade dos sujeitos tanto quanto suas relações familiares e sociais” (Ibid.).
Como veremos nessa análise do conto “Brazil”, de Paule Marshall, os lugares pelos
quais o protagonista vive são decisivos na formação da sua identidade; por outro lado, esses,
são marcados pelo contato humano. A crise identitária pela qual ele passa - analisada no
capítulo anterior é fruto de sua não-consciência de que a identidade é mutável, assim como
o lugar o é, por ser composto por significados, ou por relações sociais. Ao falarem do
dinamismo da identidade e do meio social, as autoras finalizam:
O ser humano o simplesmente se adapta ou introjeta o ambiente, mas ele se
apropria ou não, conforme sua individualidade e aquilo que lhe é oferecido ou dado
como possibilidade, dentro do seu contexto histórico e social. Através da
apropriação, o ser humano dialoga com o ambiente e sua identidade vai se
construindo ao mesmo tempo em que ele contribui para a construção ativa do
contexto (MOURÃO; CAVALCANTE,
2006, p. 146).
55
Em suma, o entorno físico e social vivido pelo sujeito pode influenciar, sem dúvida, na
construção de sua identidade. Ademais, quando os cenários físicos se transformam, os sujeitos
que habitam esses cenários também se modificam. É isto que faz com que um indivíduo se
identifique com o lugar que escolheu para viver, pois ele passa a projetar nele suas ideias,
sentimentos, valores, preferências, a fim de, a cada dia, sentir-se feliz com sua identidade e
construir sua história.
4.2 O espaço: formador de identidade em “Brazil”, de Paule Marshall
Como previamente ressaltamos, o conto “Brazil” está repleto de indicações e
descrições dos lugares nos quais os personagens executam suas ações. A vivência dos
personagens nesses espaços faz com que se acostumem com o cotidiano e a cultura desses
lugares, produzindo novas posições identitárias. A exemplo disso, citamos a Casa Samba e o
seu palco, o Rio de Janeiro, a Rua da Glória, a favela, a casa de Caliban e de sua esposa e o
apartamento de sua amante, Miranda, que funcionam como formadores da identidade de
Caliban, em crise no momento da narração.
No decorrer dessa análise, mostraremos como os espaços podem ter influenciado
Caliban na formação de sua identidade cultural e, inversamente, como os lugares sofreram
influências de Caliban, que a relação entre ambos é dialética. Após isso, conduziremos o
leitor aos fatores que desembocaram na crise identitária do protagonista de “Brazil”. Ao viver
intensa e diariamente o seu personagem no palco da Casa Samba, sob as luzes coloridas e
sons estridentes, passa a ser reconhecido apenas pelo que é artisticamente, e nunca pelo que
fora antes de ser comediante. As pessoas se referem a Caliban sempre imaginando-o dentro da
casa de espetáculos, com suas vestes e atitudes exageradas e cômicas. A Casa Samba torna-se
um lugar considerando as categorias espaciais -, pois está localizada em um espaço
geográfico amplo, mas que tem significação ou sentido no seu interior. O teatro ou a
encenação, por si só, são representações do vivido e seus espectadores concretizam a troca de
emoções, que dão sentido ao lugar. A Casa de shows, para ter sucesso e vida, necessita de
atores e espectadores e, estes necessitam de um espaço físico para atuarem, transformando
este espaço em um lugar.
A primeira indicação de espaço no conto é o próprio título. O Brasil é o território onde
se passam as ões da narrativa. A autora imprime extrema relevância ao espaço quando o
considera ser mais emblemático ao texto que o personagem Caliban. Percebemos que a sua
intenção é enfatizar o Brasil como um lugar (pois tem significação) intenso em relação às
56
culturas, remetendo o leitor para as possíveis construções de novas posições de identidade
advindas dessa heterogeneidade. A crise de identidade enfrentada por Caliban é resultado
tanto dos lugares nos quais ele frequenta como da nação multicultural em que vive. Outro
motivo que a escritora pode ter levado em consideração ao nomear o conto de “Brazil” talvez
tenha sido o desejo de homenagear esse país, onde residiu por um período de tempo, quando
era correspondente da revista de cultura negra Our World.
A segunda referência ao lugar, no conto, e talvez a mais importante e decisiva na
construção identitária do protagonista do conto, é a Casa Samba, um lugar pleno de
significados, e o cenário onde Caliban e Miranda se apresentam todas as noites a fim de levar
ao público alegria e descontração. A Casa Samba é composta por cômodos típicos de casa de
shows: dois camarins, corredores, uma sala dividida em palco e plateia. Nos camarins,
espelhos e penteadeiras constituem a mobília do pequeno espaço. A vivência diária de
Caliban tanto no camarim como no palco ajuda a construir sua identidade artística. Dentro da
Casa ele é o Grande Caliban; absolutamente tudo o que compõe aquele lugar, as luzes, os
sons, a maquiagem, as roupas, os espectadores, os instrumentos musicais, a fumaça, os
músicos são elementos instigadores para a formação de cultura e identidade.
A Casa Samba, por outro lado, também em Caliban suporte para sua constituição e
permanência como local famoso por seus shows. A exuberância de sons, luzes e clima de
alegria que proporciona à plateia é, em grande parte, advinda da fama de Caliban. A Casa,
pelas descrições da narradora, demonstra ser local de sucesso, o point daquela cidade.
O Rio de Janeiro é também referido no conto. Seus principais bairros, pontos
turísticos, ruas e favela são amplamente descritos a partir da segunda metade do conto.
Quando Caliban resolve se aposentar, em conversa com Henriques, o camareiro, é
surpreendido por uma frase que o faz pensar sobre o Rio de Janeiro. Henriques diz: ‘Está se
aposentando no tempo ideal, senhor, com dignidade. Colocar os cartazes sobre a cidade
mostra estilo. Está dando adeus pro Rio de forma apropriada, bem certa, que foi aqui que
ficou famoso. Afinal de contas, foi o Rio que fez o senhor’” (MARSHALL, 1988, p. 11)
4
. E
Caliban responde secamente: “ ‘Claro’ ” (p. 11).
Ao dizer “foi o Rio que fez você” é possível levantar um debate acerca do lugar como
construtor de identidades. O Rio, com seu crescimento espantoso e consequente turbulência
na vida social, faz com que seus habitantes passem a agir conforme a velocidade de seu
4
Todas as citações seguintes da obra “Brazil” foram tiradas da tradução de Diego Rodrigues. Somente
mencionaremos o número da página, nas próximas citações.
57
crescimento. Portanto, obrigam-se a se movimentar rapidamente para darem conta de suas
obrigações enquanto cidadãos.
Essa reflexão torna-se necessária visto que Caliban também sente a urgência de estar
sempre pronto para seu público. Sua intenção é arrancar sorrisos e gargalhadas de seus
espectadores, através de suas piadas. Ao dedicar-se quase que exclusivamente a sua vida
artística ou ao seu trabalho, Caliban incorpora seu personagem com tanta fidelidade que acaba
confundindo ficção e realidade. Heitor transforma-se em O Grande Caliban e a sociedade
carioca e seus amigos, familiares e colegas também passam a reconhecê-lo como aquele que
vive para alegrar as pessoas, o famoso Caliban. A fim de ressaltar tal prestígio do comediante
perante o Rio de Janeiro, Henriques declara convictamente: “‘o Rio todo vai chorar se
lembrando de sua grandeza...´” (p. 11). Essa declaração, novamente, aponta para a ideia, que
viemos pautando de que o lugar também sofre influência de seus habitantes. Ao dizer que o
Rio choraria pela ausência de Caliban percebemos que, na concepção de Henriques, Caliban é
tão vital à Casa Samba e ao Rio de Janeiro que a sua estrutura emocional do Rio será abalada
ao perder o astro do humor. Ainda que exagerada, reafirma-se, nessa declaração, a
reciprocidade entre identidade e lugar, pois ambos modificam-se mutuamente.
Quanto à paisagem urbana, evidenciamos alguns trechos de descrições sobre ela,
especialmente ao falar de pontos turísticos famosos, como o Pão de Açúcar e as calçadas de
Copacabana, as favelas e os morros. Em uma noite, quando Caliban sai da casa de shows para
ir a sua casa, antes de entrar no carro, para e observa a paisagem ao seu redor, pensando na
despedida dos palcos nos próximos dias. Essa pausa torna-se para o leitor uma possibilidade
de tomar conhecimento sobre a paisagem do Rio, especificamente do ponto onde está
construída a Casa e seus arredores:
A Casa Samba fora construída na ladeira que levava ao Pão de Açúcar e, ao
caminhar na direção do carro, Caliban estava consciente, como se fosse a primeira
vez, do cone sólido e alto da montanha negra erguida contra o escuro menor do céu,
benevolente, protegendo a cidade adormecida. Conseguiu distinguir o cabo do
bondinho suspenso por uma linha frágil entre o Pão de Açúcar e o Morro da Urca
(p. 15).
O Corcovado também é mencionado no texto como a montanha do Cristo” (p. 17). É
próximo a ele que Caliban constrói a sua moderna casa de vidro. Ao chegar em casa, após a
pausa para observar a paisagem que cercava a Casa Samba, ele se dirige ao quarto e sua
esposa, grávida, dormindo. Prefere, então, deixá-la sozinha e vai até outro quarto,
denominado por ele mesmo seu refúgio, a fim de descansar dos problemas, que neste
58
momento da narrativa o a tentativa de reafirmação de sua identidade como Heitor
Guimarães e a aposentadoria, a qual vem tumultuando seus pensamentos. Todas as suas
ações, desde chegar a sua casa, dirigir-se ao isolado quarto, e a sequência até o momento em
que acorda no outro dia são minuciosamente descritas. Além disso, a localização dos cômodos
da casa pelos quais ele passa também é referida. Por tais motivos, torna-se necessária a
transcrição destas passagens, pois, como afirmamos anteriormente, a casa de Caliban também
é um lugar onde, também, se concretiza a relação dialética entre espaço e identidade. O
interior da casa encontra-se revestido de vida e sentido, constituindo-se tanto em refúgio,
como lugar de interação com a esposa e, relicário, onde guarda as imagens que provam seu
sucesso artístico, reforçando sua identidade como Caliban:
Foi andando pelo pátio interno, passou pela sala e pegou o corredor na direção dos
quartos [...]. Parou em frente à porta aberta do quarto principal. o podia ouvir a
respiração da mulher mas conseguia vê-la, sob a pequena e firme luz da vela que
ficava diante da Madona, no oratório perto da cama. [...] Fechou a porta e foi até o
pequeno cômodo no final do corredor, que usava como um refúgio, e esticou-se na
pequena cama que mantinha, sem se despir. Sempre como ocorria quando havia
algum problema, dormiu rápido [...]. De repente, a luz jorrou sobre ele vinda de um
lado da mina e ele acordou com o sol da tarde que invadira o cômodo. Igual a um
boêmio, o sol foi dançando alegre pelas fotos emolduradas nas paredes (eram todas
de Caliban, uma com o Presidente do Brasil durante o carnaval de 1946 e outra com
Carmem Miranda, um ano antes da morte dela), nas lembranças e prêmios sobre a
mesa; a luz saltou sobre o chão e pousou bem nos braços de sua esposa, quando ela
abriu a porta (p. 18).
A casa de Caliban e Clara constitui-se em testemunho do convívio de ambos. As
paredes ostentam fotos de Caliban enobrecido pela fama. O domicílio é de vidro, e reflete a
fragilidade dos sentimentos pela qual ele está passando, bem como a transparência dessa
fragilidade aos seus amigos, pois é percebida por todos. O quarto, que o comediante
denomina seu refúgio, é pequeno”, no “final do corredor” e possui uma “pequena cama”.
Através desses adjetivos, que descrevem o ambiente como sendo privado de conforto e
alegria, podemos perceber que também Caliban sente-se angustiado, por encontrar-se em
desequilíbrio. Dessa forma, o lar do casal reflete seu estado emocional; como todo reflexo, é
uma relação mútua, de trocas.
É na casa de Caliban que podemos analisar também a categoria espacial território.
Vimos que o território diferencia-se do lugar por nele apresentarem-se relações de poder.
Caliban comporta-se com Clara como um patriarca, chefiando a casa e as decisões familiares.
Quando Clara sugere ficarem no Rio aa chegada do bebê, ele responde que não, pois o
quer ver seu filho ser chamado de carioca. Sabendo que ele não cederia - pois conhece seu
59
marido -, ela concorda submissamente: ‘Está bem, Caliban’ (p. 19). O seu poder, no
entanto, às vezes transforma-se em violência, quando é retrucado e não compreendido.
Quando ela afirma não saber quem é Heitor Guimarães e procurará a pessoa que atende por
esse nome, Caliban desespera-se e a agride:
Não ficou claro se ele arremessou a xícara nela ou no chão, mas não acertou a
mulher. A luz do sol correu da sala quando a xícara se quebrou no chão e o café
derramado espalhou uma mancha negra entre eles. ‘E quem você vai procurar?’. O
grito estridente dele tinha a mesma raiva abstrata da noite anterior. Quem? Fala!!
Um garoto da sua idade, talvez? Um garotão alto, bonitão, hein, algum carioca que
vai dançar o Carnaval e sacudir você na minha cama, pelas minhas costas? É ele
que você vai procurar?’ (p. 20).
Clara permanece em silêncio, tentando proteger o filho no ventre. Torna-se evidente
que Caliban tem o poder na casa e usufrui dele. No lar da amante também ele age dessa
maneira. Ao compor todo o apartamento com móveis de luxo e ter o passe livre para entrar à
hora em que quiser, torna-se alguém com poderes em relação ao lugar e à Miranda. Chega a
impor seu poder até mesmo sobre a empregada da casa, Luiza. Esta fazia as unhas de Miranda
para o show daquela noite na Casa Samba, quando Caliban chega, depois da busca infrutífera
pela identidade de Heitor, e ordena-lhe que para casa. Vejamos, no diálogo a seguir, como
Caliban chega a se sobrepor às ordens que Miranda dá à empregada:
‘Vai para casa, Luiza’, ele disse em voz baixa.
Miranda deu um grito que fez balançar e derramar o vidro de esmalte da sua mão,
manchando de vermelho a colcha rosa. ‘Não, Luiza...’. Esticou o braço tentando
segurar a garota. ‘Espera, Luiza..’.
‘Vai para casa, Luiza’, ele repetiu.
A garota se levantou então como se tivesse sido jogada em e, segurando a bacia
de água, olhou dele para Miranda durante um instante agoniado e correu em
direção à porta, a água derramando no tapete. Quando ela passou por ele, Caliban
disse gentilmente, ‘Boa noite, Luiza’, e fechou a porta.
Luiza!’ (p. 33).
No início do conto, entretanto, percebemos a inversão de poder entre Miranda e
Caliban. Ao perceber que Caliban sentira uma fisgada em um movimento corporal, e
pressentindo que o poderiam terminar a apresentação como de costume, ela improvisa e
assume a posição de “mais forte” em relação à Caliban. A cena que eles dramatizam tem a
comicidade baseada nessa inversão de poder:
Miranda retornou para um finale breve e glamoroso e inverteu os papéis bem na
hora de acabar, levantando Caliban com uma das mãos e marchando triunfalmente
60
para fora do palco, com ele chutando e agitando os pequenos braços bem acima da
cabeça dela (p. 5).
Caliban também a agride, pois não admite perder a posição de estrela da noite para sua
colega que, segundo ele, sempre fora menos talentosa. Ele gosta do poder, da fama e dos
aplausos. Sentindo-se inferior à Miranda, e respondendo à pergunta de Miranda sobre
possíveis erros durante a performance do personagem, percebemos insatisfação e raiva:
‘Agora o quê é que eu fiz de errado?’ [...]
‘Tudo’, ele disse calmamente. ‘Você fez tudo errado. Você estava horrível’.
‘Você também’.
‘É, mas foi só por sua causa’.
‘Safado, sempre que tem algo preocupando ou você se sente mal, joga culpa em
mim. Juro que você é que nem mulher querendo mudar de vida. Ninguém mandou
você forçar tanto as pernas naquele número. Você está velho demais. Devia se
aposentar. Você já era’.
‘Cala a boca!’ [...]
‘Sua vaca’, disse ele, e abriu a porta do camarim. [...]
‘Sua cachorra estéril!’ (p. 5; 6).
Retornando às indagações sobre o Rio de Janeiro e Caliban, podemos notar que,
apesar de o Rio ter sido o lugar onde construiu seu sucesso, o ator mantém com a cidade uma
relação ambivalente. Agora, quando se vê na iminência de perder os vínculos com o lugar que
forjou sua identidade como Caliban, culpa o Rio de Janeiro pela sua infelicidade e
desencontro. O desprezo pelo Rio é tamanho que propõe a sua esposa, Clara, que seu filho
nasça em Minas Gerais, sua terra natal, pois não quer ver o filho “nascer no Rio e ser
chamado de carioca” (p. 19). Clara sente-se feliz no Rio e não gosta da ideia de retornar a
Minas. Aqui cabe ressaltar, que o lugar interfere de forma diferente na construção da
identidade das pessoas. O mesmo ambiente tanto pode influenciar positiva como
negativamente seus habitantes, pois cada um tem seus desejos e preferências, e se identifica
ou não com o lugar onde reside.
Para Caliban, o Rio lhe trouxe a fama, mas lhe trouxe também um vazio e o não
reconhecimento de quem ele é. Seu desassossego torna-se cruel, pois a cada dia que passa se
martiriza em perceber que se distanciou imensamente do Heitor Guimarães. O Grande
Caliban torna-se a sua realidade e talvez nem Minas Gerais consiga lhe trazer a paz que
almeja. Tudo dependeria da afinidade que Caliban empreenderia com aquele lugar e como o
próprio lugar o receberia para viver em sociedade. para sua esposa, o Rio lhe trazia, acima
de tudo, conforto e prestígio, por ser a esposa do famoso artista. Antes de vir para esta cidade
tinha uma vida humilde, e a fama do marido lhe trouxera bens materiais que, agora, sente
61
medo de perder. Quando percebe que Caliban lhe garante uma vida tão confortável em Minas
como tem no Rio, muda a estratégia, fala do carnaval, que segundo ela faz do Rio de Janeiro
um lugar bom de morar, e do filho que nascerá.
Percebemos, então, que Clara não é tão ingênua como Caliban pensa. Primeiramente
tenta convencê-lo com argumentos racionais, que pretendem enfatizar a importância em
valorizar o trabalho e a bela casa de Caliban; em seguida, parte para argumentos emocionais,
usando o filho que está por nascer para conseguir a sua permanência na cidade do Rio: ‘É.
Mas tem o nosso filho. Seria bom se nascesse no Rio. Talvez depois do filho a gente podia
voltar para Minas’ ” (p. 19). No entanto, ele responde categoricamente: “‘Não’” (p. 19).
Na busca incessante em saber como era antes de tornar-se o famoso Caliban resolve
procurar seus amigos de outrora. Mas a única referência é a Rua da Glória, também no Rio de
Janeiro. Ao descer o morro onde mora a fim de alcançar à Rua, eis mais um relato da
paisagem urbana:
À medida que o carro descia as estradas da montanha, o mar foi aparecendo, vasto e
benigno, refletindo a lividez do u e partindo a imagem do sol em fragmentos;
depois as enseadas na baía as curvas firmes e graciosas, formando um arabesco
entremeado por morros e, finalmente, a própria cidade branca, opulenta,
lânguida sob as carícias do sol, tirando agora a sesta da tarde em preparação para a
noite (p. 22).
A paisagem, o positivamente descrita, contrasta com os sentimentos que Caliban
experimenta. Sente-se em conflito, triste, agoniado e desencontrado. Enquanto isso, a
paisagem continua bela, especialmente à noite, quando se prepara em clima de romantismo,
próprio dos amantes, e de festa. Os adjetivos utilizados para qualificar a cidade, como “curvas
firmes graciosas”, “branca”, opulenta”, lânguida” também nos induzem a pensar em
amantes que se preparam para um encontro. Pela descrição acima, fica implícito que é à noite
que a cidade do Rio converte-se plenamente em amante, oferecendo-se em sua plenitude aos
cariocas.
Quando chega à Rua da Glória, que fica na parte mais antiga do Rio, Caliban encontra
a casa em que morava em ruínas, mas segue ao reencontro do restaurante onde trabalhou
anos atrás. Mais ao fim da rua encontra-o, embora bastante modificado:
O piso de cerâmica brilhante na entrada [...] todo quebrado, e a soleira de pedra na
porta com os velhos arranhões ainda mais profundos. No lugar onde estivera o
toldo, um enorme cartaz dizia BEBA COCA COLA e logo abaixo, na moderna
62
fachada de vidro, estava o nome do restaurante: RESTAURANTE O GRANDE
CALIBAN (p. 23).
O restaurante também é um lugar, considerando as categorias espaciais, pois é
formado a partir de marcas pessoais ou intervenções humanas. Pode-se dizer que este lugar
teve importância na fase de transição do trabalho de garçom para a carreira de artista de
Caliban; o restaurante tem uma parcela maior de contribuição na formação da identidade d’O
Grande Caliban na sua fase inicial, pois foi por intermédio de seu patrão que foi levado a
prestar o concurso no Teatro Municipal. A partir da ida de Caliban para a Casa Samba, é este
o lugar que passa a influenciá-lo, e não mais o restaurante. Portanto, O GRANDE CALIBAN
- o bar - tem maior influência na vida e na identidade de Heitor Guimarães, pois quando
trabalhava lá, era assim chamado. Por esse motivo, Caliban pensa poder recuperar a
identidade do cidadão Heitor Guimarães através da visita ao local. A história, porém, havia
interferido tanto em sua história pessoal como na daquele lugar, rendendo a busca infrutífera.
O Restaurante, pelo próprio nome, demonstra ter sofrido influências de Caliban. Não
somente o local abalara a identidade de Heitor e Caliban como também o local fora
constituído, mantido e nomeado pela passagem de Caliban ali, anos atrás. O simples bar
que se apresentava enquanto Caliban trabalhava torna-se, após a fama do comediante, local
de reconhecimento nas redondezas da Rua da Glória.
Caliban observa as paredes com fotos suas pregadas por todos os lados e um retrato
enorme pintado à mão. O senhor gordo que agora é o proprietário do bar afirma ter sido o
velho Nascimento, tio-avô do dono anterior, que colocara as fotos na parede. Após conseguir
o endereço do velho, vai até lá. Sua casa localiza-se em uma favela atrás de Copacabana.
Caliban esforça-se ao subir a ladeira, entre buracos e olhares curiosos, pois está vestido com
roupas de luxo e porta anéis brilhantes. O aspecto visual da favela ou o seu caráter
paisagístico estão bem descritos na passagem abaixo, e contrastam com a visão romântica
daquela cidade, a de um cartão-postal luxuoso:
Podia ver, logo acima, o começo da favela um viveiro vasto e imundo para os
pobres do Rio se agarrarem ao morro sobre Copacabana, um ninho de barracos
construídos com os dejetos da cidade. Caixas de papelão e caixotes descartados,
pedaços de zinco e latão, tábuas carcomidas e cascalho tudo isso empilhado em
confusas fileiras ao longo do morro, os pedaços de madeira desbotados pelo sol. A
favela era outra cidade sobre o Rio e, atrevida, roubava a eletricidade da cidade de
baixo de forma que, à noite, as montanhas ficavam cobertas de luz e repelia os
esforços do governo em retirá-la dali (p. 26).
63
Deparamo-nos, aqui, com algo digno de comparação. No relato acima, o narrador
sugere uma sobreposição da favela sobre a cidade; também acontece com a questão identitária
uma sobreposição, ou seja, o personagem Caliban se sobrepõe à identidade do Heitor
Guimarães ao longo dos anos. Tal como a favela se agarra ao morro sobre Copacabana,
Caliban apega-se ao corpo de Heitor, sufocando-o e confundindo-o.
Com a ajuda de alguns meninos, Caliban consegue chegar ao velho Nascimento. Ele
mora em um casebre que exala miséria e degradação por todos os lados; um coqueiro
morto plantado ao lado do barraco, que é de tábuas velhas, zinco e sapê. Ainda antes de entrar
nesse lugar, Caliban lembra-se do velho, quando lhe mandava todos os dias abaixar o toldo
para proteger o restaurante do sol, e quando, à noite, ordenava-lhe contar piadas a fim de fazer
os clientes beberem até tarde.
Tanto a favela como o casebre são lugares que, no momento da narrativa, influenciam
Caliban na sua nova posição de identidade, pois ao querer ser Heitor e deixar de ser O Grande
Caliban, outra identidade parece surgir. Diferentemente da Casa Samba e do Rio de Janeiro,
que impulsionaram a criação de sua identidade artística, a favela e o casebre do Nascimento
consistem em lugares que, imagina, facilitarão a recuperação da identidade de Heitor.
Para desespero de Caliban, o velho Nascimento também o conhece nenhum Heitor,
apenas O Grande Caliban. O comediante desce o morro de volta, em disparada, pois percebe
que sua busca foi inútil: O dia parecia estar se fechando sobre ele, espremendo sua vida, e o
pânico que sentiu foi como uma agulhada no corpo ao correr para fora, esquecendo de fechar
a porta atrás de si” (p. 30). O pânico sentido por ele, neste momento, é causado pela noite que
está se aproximando e que lhe faz lembrar que todos os dias, nessa hora, o seu personagem
Caliban se apresenta na Casa Samba. Mesmo sabendo que nesta noite não se apresentaria, o
fantasma do personagem lhe aflige, desconcertando-o. Todos os dias cumpria-se este ritual: a
noite se aproxima, as luzes são acesas, as pessoas saem às ruas, Caliban e Miranda se
apresentam e encerram sobre aplausos, completando a festa. Tal clima de folia e alegria lhe
custara a imposição de uma máscara que agora luta para retirar.
Na descida do morro há, novamente, descrição da paisagem urbana: “quando Caliban
passou pelo túnel e entrou na estrada que faz a grande curva da Baía de Copacabana, viu luzes
surgirem nos apartamentos e hotéis empilhados como rochedos brancos e angulares contra o
fundo de morros negros” (p. 31). A claridade da cidade em oposição à escuridão da favela
revela-nos os contrastes entre ambos os lugares: econômicos, visuais e identitários. Enquanto
a cidade é descrita como a favorita, por exalar beleza e harmonia, ornada com belos prédios e
iluminada por luzes, a favela representa a pobreza, a desordem e os problemas.
64
Em seguida, o narrador expõe ao leitor a angústia de Caliban em viver naquela cidade
que de alguma forma “o fizera”. Quando chegou ao Rio, Caliban se apaixonou por aquele
lugar e passou a amá-lo até o dia em que resolve se aposentar. Em meio a tantas reflexões que
florescem ultimamente em sua mente, pensa que todo aquele amor devoto só lhe servira para
tumultuar a sua vida. Percebe que todo o seu sucesso em nada tinha favorecido aquele lugar,
que tudo foi ilusão, tanto sua fama como o amor que pensara ter adquirido pelos cariocas.
Tinham sido amantes, ele e o Rio, no entanto, agora o Rio parece desprezar-lhe. Talvez
sempre o desprezara, sem que percebesse. A cidade é agora, para ele, amante indiferente, e
quer deixar de amá-la, torná-la sua ex-amante:
Caliban tinha sido um de seus amantes, mas ao cruzar a cidade de carro sentiu a
indiferença dela à sua confusão, à sensação de ter perdido algo que permanecera
sem nome; além do mais, suspeitava que ela, a cidade, fora inclusive indiferente ao
seu sucesso. [...] Caliban odiou-a de repente...(p. 31).
Enquanto ainda é possuído pela raiva à cidade, lembra-se de Miranda, sua colega e
amante, e transfere todo o ódio a ela. A fim de descontar aquele sentimento de fúria, dirige-se
ao apartamento em que Miranda mora, em Copacabana, que fora totalmente decorado por ele.
Pela tristeza ainda maior de Caliban, aquele lugar reflete o Rio de Janeiro:
O piso do saguão em grandes quadrados em preto e branco sugeria não só os
austeros prédios brancos, erguidos contra os morros negros, e as calçadas de
Copacabana um mosaico cuidadosamente elaborado de pequenas pedras brancas
e negras -, mas também os rostos dos próprios cariocas, combinações sem fim de
preto e branco. O tapete verde na sala de estar poderia ser uma amostra recortada de
um dos morros, enquanto o resto da decoração – as peças antigas muito elaboradas,
com acabamento de marfim, mesas de mármore repletas de estatuetas, sofás
estofados em seda branca, com penas de ganso, cortinas brancas e espelhos de
moldura dourada – repetia a opulência, a falta de controle, a brancura exuberante da
cidade. E os lustres com as lanças faiscantes de cristal [...] capturavam a
luminosidade do Rio à noite (p. 31 e 32).
O apartamento de Miranda é, para Caliban, um lugar que também o reflete, bem como
ao Rio de Janeiro, e, dessa forma, torna-se um lugar formador de sua identidade: “pela
primeira vez Caliban tomou consciência de quanto a sala representava a cidade e ele próprio”
(p. 32). O local não remete às lembranças do antigo garçom, mas às do famoso comediante. A
decoração é fruto de seu trabalho como O Grande Caliban e, portanto, nada pode fazer
ressurgir o passado, que é longínquo. Torna-se difícil restabelecer, ali, a identidade de Heitor.
Mesmo a relação com Miranda reafirma sua identidade artística: afinal, veio dela a sugestão
do nome Caliban, que tantos aplausos arrancou do público, mas que agora é nome que ele
65
despreza; sua relação com ela, não interrompida após o casamento, faz com que continue
visitando assiduamente esse apartamento, tão ligado à memória de sua vida artística.
Caliban, nervoso, pergunta a Miranda se ela conhece algum Heitor Guimarães. Ela
fica perplexa, pois imagina que esteja acusando-a de infidelidade. Caliban então diz: ‘Eu
sou Heitor Guimarães’ (p. 35). Miranda afirma estar louco, porque ‘você é Caliban. O
Grande Caliban’ (p. 35). O nome Heitor torna-se irreconhecível naquela casa, pois nem o
próprio Caliban tem certeza de quem realmente é. Então, destrói todo o apartamento que tinha
adquirido e montado com o dinheiro proveniente de sua identidade artística.
O conto termina com a fúria do comediante: quebra o apartamento de sua amante e
foge, após, em direção ao elevador. Sem perceber, repele a Miranda, assim como o Rio, sua
amante, o rejeitara, segundo suas próprias palavras. Talvez, nesse momento, Caliban tenha se
lembrado do que dissera Henriques, quando lhe confessara, logo no começo do conto, que iria
abandonar Miranda. Henriques o tranquilizara, dizendo que o Rio e Miranda eram iguais, pois
sempre teriam alguém para gostar deles. Então, Caliban não necessitaria ficar com remorso.
Dessa maneira, tanto o Rio como Miranda não mereciam mais sua atenção, pois o enganaram
ao pensar que era importante para eles. Na sequência, Miranda chora e insiste em chamá-lo
de Caliban, pois para ela, assim como para todas as outras pessoas que ele havia tentado
convencer de que era Heitor Guimarães, ele sempre foi O Grande Caliban e assim continuará
sendo.
A paisagem urbana, no conto, vem a revelar as contradições daquela cidade, ou seja,
em um lugar internacionalmente reconhecido pela beleza, comparado a um paraíso,
também a presença da favela. De forma análoga, sob a máscara alegre e irreverente de O
Grande Caliban, oculta-se um homem triste, atormentado e confuso com relação a sua própria
identidade.
Reportando-nos à teoria do pós-colonialismo e fazendo um comparativo entre paraíso
versus favela, percebemos que o primeiro elemento assemelha-se à Europa, tida como
símbolo majoritário da cultura e poder e, a favela, equivale à ambiência do oprimido,
emblema das minorias, à margem da história, representado pelas nações africanas e
americanas. Assim como o Rio de Janeiro nos revela, através do conto, suas disparidades, a
teoria pós-colonial revela-nos os contrastes das formas de poder entre a metrópole e a colônia.
Ao findar a análise do conto, reafirmamos que o espaço geográfico é dinâmico, e que
nenhuma das suas categorias se constituem por si só, mas, como diz Suertegaray (2000, p.
31), “cada uma dessas dimensões está contida em todas as demais”. Assim, paisagens contêm
territórios que contêm lugares, valendo para cada uma dessas conexões, todas as conexões
66
possíveis. A Casa Samba e o apartamento de Miranda, por exemplo, consistem tanto em lugar
como território, assim como outros casos analisados neste subcapítulo, fazem também parte
da paisagem humana. Essa interconexão e dinamismo refletem, também, a dinâmica do
próprio processo identitário, em que um sujeito pode vir a responder de acordo com diversas
posições, de acordo como é interpelado em diferentes contextos. Ocorre, porém, que a
supressão dos contextos mais intimamente associados ao cidadão Heitor Guimarães,
trabalhador o pertencente ao mundo do espetáculo, levam ao apagamento dessa posição
identitária. Dessa forma, evidenciam-se, no conto, a relevância das categorias espaciais e as
relações entre estas e o processo de formação identitária através da qual o sujeito tanto deixa
sua marca no lugar por ele ocupado, como é marcado por ele.
67
CONCLUSÃO
Nossa pesquisa, inicialmente, propôs-se a estudar a figura de Caliban no conto
“Brazil” de Paule Marshall, dando relevância ao conflito identitário pelo qual o personagem
passa. Tornamos necessário revisitar o personagem no texto em que primeiro apareceu, a peça
A tempestade, de William Shakespeare. Chamava-nos a atenção, desde as primeiras leituras, o
desequilíbrio identitário e emocional por que passa o Caliban de Paule Marshall, e nos
propusemos, como alvo norteador desta pesquisa, a identificar o que leva a tal processo.
Através do estudo das releituras e reescritas do personagem criado por Shakespeare,
ao longo dos anos, percebemos que a alteridade tem se constituído o núcleo gerador dos
debates. O personagem tem sido descrito como um ser grotesco e desprovido de inteligência
em relação à Próspero, detentor de cultura e poder. Nos séculos seguintes à criação de A
tempestade de Shakespeare, mais especificamente nos XVII e XVIII, Caliban é designado
como selvagem, monstro, deformado, despertencente à civilização. Chega a ser comparado
aos defeitos humanos ou, ao lado obscuro das pessoas, pela sua negritude e pelo seu não-
enquadramento às virtudes humanas. Seu próprio nome, anagrama de canibal, sugere hábitos
alimentares que contribuem para aumentar ainda mais o desprezo e pavor. Fica evidente o
preconceito contra aquele que contrasta, em aparência e cultura, do colonizador.
Mesmo quando, nos séculos seguintes, Caliban passa a obter mais aceitabilidade entre
os críticos literários, é visto como cômico, e começa a ser interpretado sob os termos do
imperialismo. A condição de escravo e de nativo desapropriado torna-se amplamente descrita,
tanto em estudos de crítica como em reescritas literárias da peça. No século XX, iniciam-se as
releituras da peça sob a ótica pós-colonial, quando a dita inferioridade de Caliban é associada
ao discurso e poderio do colonizador. Surgem reescritas e releituras, promovendo o Caliban-
monstro para o Caliban-vítima, estigmatizado pelo poder do império, representado por
Próspero.
É dentro dessa vertente pós-colonialista que se enquadra o texto de Marshall. Vimos
que reescrita e releitura são atos literários que corroboram a teoria pós-colonial, por revidarem
discursivamente o cânone ocidental. Apesar do conto não ser considerado uma reescrita nem
releitura da peça A tempestade, ele é intertextual àquele. Uma das questões norteadoras que,
inicialmente, alicerçavam a pesquisa era a possibilidade de se fazerem comparações
68
sistemáticas entre os enredos. No entanto, no decorrer do estudo, pensamos que tais
comparações não se sustentariam, e não trariam contribuições significativas.
Verificamos que há, porém, relações possíveis entre A tempestade e o conto. Além de
possuírem personagens com nomes em comum, encontramos em ambos os textos problemas
decorrentes do processo de colonização: o encontro colonial, a outremização do sujeito, o
revide discursivo do mesmo, o conflito identitário. Entretanto, na peça shakespeareana estes
problemas efetivam-se como demonstração de poder, como ilustrado através da relação
Próspero-Caliban, enquanto que no conto, apresentam-se, especialmente, como forma de
colonização da mente, algo mais indireto, mas não menos cruel.
Contudo, em “Brazil” as assimetrias de poder não estão completamente ausentes,
como prova o relacionamento patriarcal com Miranda e Clara. A imposição de seus desejos e
mandos sobre essas mulheres reflete relações de poder, poder patriarcal. Dessa forma, remete
à categoria espacial da territorialidade, associada à apropriação e manutenção de poder sobre
um dado espaço social. Em Caliban, a ambivalência do personagem em amar e violentar
emocional e fisicamente suas amantes torna-se uma maneira de dar vazão na angústia que
sente no seu interior. Assim, podemos afirmar que também em Brazil” a crise identitária
pode ser advinda do ato de colonizar, pois essas relações relembram a maneira como Próspero
tratava seus outros na peça.
O Caliban de Marshall situa-se em crise devido à scara que construíra ao longo de
sua vida artística. O seu personagem dos palcos incorporou-se à identidade de Heitor e se lhe
sobrepôs. Na busca em retomar a identidade supostamente perdida, tardiamente vê que é
inútil, pois a história interviera naquela identidade, que pensava estar intacta, em algum lugar.
Detectamos que tal conflito deve-se ao apagamento de sua identidade essencialista, quando
passa a incorporar o famoso personagem da Casa Samba.
Enfatizamos, no último capítulo, a indissociabilidade de lugar e identidade, posto que
produção desta a partir de um lugar. O espaço e suas categorias, presentes na narrativa,
foram instigadores do processo de (des)construção identitária do personagem O Grande
Caliban; de forma análoga, ele marcou os lugares por que passou. A cidade e seus contrastes,
e a noite e sua magia misteriosa contribuíram para o distanciamento da identidade do cidadão
Heitor Baptista Guimarães e a afirmação da de Caliban. Inicialmente percebida em seu
encanto de amante, a cidade e suas luzes, incluindo-se a Casa Samba, fascinam a Caliban,
arraigam-se no centro de seus afetos e acabam por definir a maneira como se concebe a si
mesmo. Ao sentir-se despertencente a esse entorno, e por ele traído, modifica-se também sua
própria percepção identitária, e em vão sai à busca saudosa de posições identitárias passadas.
69
Através dessa pesquisa esperamos ter contribuído, em meio a outros estudos literários
que privilegiam a teoria do pós-colonialismo, para que “Brazil” obtenha reconhecimento entre
o meio acadêmico brasileiro. Reconhecemos que é uma obra rica em possibilidades
interpretativas, e que diferentes olhares e embasamentos críticos produzirão interpretações e
conclusões outras. Fica, pois, o convite a outras leituras desse conto, ainda tão pouco
conhecido entre nós, mas que tão de perto discute a própria identidade do Brasil, enquanto
símbolo de outros territórios colonizados.
70
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