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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA
FABIANA GARAFINI
CARNAVALIZAÇÃO E MALANDRAGEM EM
A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO DÁGUA:
UM RETRATO DO BRASILEIRO PELO OLHAR
DE JORGE AMADO
Frederico Westphalen
2010
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1
FABIANA GARAFINI
CARNAVALIZAÇÃO E MALANDRAGEM EM
A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO DÁGUA:
UM RETRATO DO BRASILEIRO PELO OLHAR DE JORGE AMADO
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do Título de Mestre em Letras na
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e
das Missões, Campus de Frederico Westphalen,
pelo Departamento de Linguística, Letras e Artes.
Orientador: Prof. Dr. Robson Pereira Gonçalves
Frederico Westphalen
2010
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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
PRÓ-REITORIA DE ENSINO
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
MESTRADO EM LETRAS - ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertação de Mestrado
CARNAVALIZAÇÃO E MALANDRAGEM EM
A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO DÁGUA:
UM RETRATO DO BRASILEIRO PELO OLHAR DE JORGE AMADO
elaborada por
FABIANA GARAFINI
como requisito para obtenção do grau de
Mestre em Letras
COMISSÃO EXAMINADORA
___________________________________________
Prof. Dr. Robson Pereira Gonçalves – URI/FW
(Orientador)
___________________________________________
Membro Prof Dr. Orlando Fonseca – UFSM/SM
___________________________________________
Membro Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari – URI/FW
Frederico Westphalen, 27 de Agosto de 2010.
3
À Deus, a meus pais, Vilson e Julia
Garafini, a minha irmã Leda e ao meu
namorado, Jacso Dellai.
4
AGRADECIMENTOS
À Deus, pela minha vida e pelo apoio e coragem nos momentos difíceis.
Aos meus pais, Vilson Garafini e Julia Campos Garafini, pelo apoio diário,
amor e compreensão.
Ao meu namorado, Jacso Dellai, pelo amor, dedicação, carinho, compreensão
e apoio incondicional em todos os momentos.
A minha irmã, Leda Garafini e meu cunhado, Éder Trentin, pelo incentivo e
apoio.
À equipe de professores do Mestrado em Letras, Área de Concentração em
Literatura, pelos ensinamentos recebidos.
À professora Denise A. Silva, pelas constantes e firmes exigências e
incentivos.
Ao professor Lizandro Calegari, pela preocupação com minha pesquisa,
indicação de bibliografias e amizade dispensada.
À professora Maria Tereza Veloso, pelas motivações, constantes desafios,
amizade e carinho.
À Magali, pelo pronto atendimento sempre.
A todos os colegas, em especial à Gabriela C. dos Santos pela parceria de
viagens, trabalhos, divisão de dúvidas e bons momentos.
Um agradecimento especial ao professor Robson Pereira Gonçalves que me
acompanhou ao longo desta dissertação, pela compreensão, pelos conhecimentos,
pelos ensinamentos, pelas constantes provocações, pela confiança e pela amizade
construída.
5
RESUMO
A presente dissertação tem como objetivo reconhecer traços da identidade cultural
brasileira a partir da análise dos comportamentos dos personagens e suas relações
sociais. A pesquisa volta-se às manifestações do protagonista malandro,
considerando-o como um símbolo da identidade cultural brasileira, investigando as
características do mesmo. A análise dar-se-á em um corpus formado pela novela A
morte e a morte de Quincas Berro Dágua de Jorge Amado. Busca-se estudar a
fortuna crítica do autor e da novela, bem como reconhecer os traços malandros e as
características reconhecidas da teoria da carnavalização. Foi conduzido um estudo,
embasando-se nos conceitos do antropólogo Roberto DaMatta, nas definições da
teoria da carnavalização literária apresentadas por Mikhail Bakhtin e os termos
ressaltados por Antonio Candido na dialética da malandragem.
Palavras-chave: Carnavalização. Identidade cultural brasileira. Perfil malandro.
6
ABSTRACT
This dissertation aims to recognize traits of Brazilian cultural identity by analyzing the
character´s behavior and their social relations. The research makes reference to
manifestations of the malandro protagonist considering it as a symbol of Brazilian
cultural identity, investigating its characteristics. The analysis will be on a corpus
formed by the novel A morte e a morte de Quincas Berro Dágua of Jorge Amado. It
will be attempt to study the critical fortune of the author and novel, and recognize the
malandro traits and the characteristics of the carnivalization theory. It was conducted
a study basing on the concepts of the anthropologist Roberto DaMatta, on the
definitions of the carnivalization theory presented by Mikhail Bakhtin and the
concepts highlighted by Antonio Candido in the malandro´s dialectic.
Keywords: Carnivalization. Brazilian cultural identity. Malandro profile.
7
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1 VANDA (MARIANA XIMENES) VESTE SEU PAI,
DESCARACTERIZANDO-0.......................................................................................60
FIGURA 2 MOMENTOS DE “SUCESSO” DO PERSONAGEM ANTES DA
BOEMIA.....................................................................................................................61
FIGURA 3 QUINCAS (PAULO JOSÉ GOMEZ DE SOUZA) E A
BEBEDEIRA...............................................................................................................66
FIGURA 4 QUITÉRIA (MARIETA SEVERO) DESESPERADA COM A MORTE DE
QUINCAS...................................................................................................................80
FIGURA 5 - QUINCAS (PAULO JOSÉ) SAI DO CAIXÃO.........................................89
FIGURA 6 – QUINCAS (PAULO JOSÉ) ENTRE SEUS AMIGOS E FAMILIARES...92
FIGURA 7 QUINCAS (PAULO JOSÉ) SE DESLOCANDO À CASA DE MESTRE
MANUEL.....................................................................................................................93
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................9
Capítulo 1 - CRÍTICAS: AUTOR E OBRA................................................................12
1.1 Definições críticas de Jorge Amado.................................................................13
1.1.1 O autor Jorge Amado e as definições da realidade social.........................16
1.1.2 Jorge Amado e seu olhar malandro..............................................................21
1.1.3 O destacado personagem popular nos textos de Jorge Amado................22
1.2 OBRA E SEUS CRÍTICOS..................................................................................25
1.2.1 Quincas Berro Dágua: tentativa de definir traços da identidade
brasileira...................................................................................................................25
Capítulo 2 - A BUSCA DE UMA IDENTIDADE CULTURAL....................................35
2.1 Cultura e diversidade: identidade brasileira....................................................36
2.2 O carnaval e a teoria da carnavalização no olhar literário.............................42
2.3 A malandragem como ícone da carnavalização.............................................49
Capítulo 3 - O ROMANCE MALANDRO, ANTI-HERÓICO NA SOCIEDADE
BRASILEIRA.............................................................................................................54
3.1 Ambientação da novela.....................................................................................55
3.2 A família de Quincas e suas ambientações.....................................................58
3.3 Quem foi Quincas?............................................................................................61
3.4 Quincas: transformação de Barnabé em malandro........................................67
3.5 Carnavalização da novela.................................................................................75
3.6 As mortes de Quincas Berro Dágua.................................................................87
CONCLUSÃO............................................................................................................99
REFERÊNCIAS........................................................................................................103
9
INTRODUÇÃO
A proposta desta pesquisa é realizar uma análise, à luz da Teoria da
Carnavalização, dos elementos, malandragem e espírito carnavalesco, em A morte e
a morte de Quincas Berro Dágua. Para essa finalidade, os personagens de Jorge
Amado na novela serão considerados como representações do brasileiro em sua
condição de protagonista da sociedade que integra. Assim, estes possuem
características singulares que os definem como portadores de identidade
sociocultural própria. Buscar-se-ão nesses personagens traços de caráter do homem
brasileiro, cidadão que o senso comum qualificou como portador de características
que o identificam especialmente com o carnaval e a malandragem.
Ao deparar-se com mudanças e distinto desempenho social, busca-se
verificar uma identidade cultural que auxilie na definição do que é ser brasileiro.
Embasa-se nos conceitos sociais de representantes significativos na Literatura
Sociológica como Roberto DaMatta, Darcy Ribeiro e Sérgio Buarque de Holanda,
que, em suas obras, tentam mostrar as origens e possíveis motivos de ser assim.
Eles apontam alguns elementos que ajudam a formar os costumes, maneiras
pacíficas, mitos, cordialidades, entre outros. Com base nesses discursos,
principalmente em DaMatta, entende-se que a novela aqui analisada é definida
como carnavalizada. Sobre a teoria da carnavalização, estuda-se também o conceito
de Mikhail Bakhtin, remetendo a aspectos como polifonia, sátira menipeia,
malandragem e anti-heroismo.
Para os objetivos da proposta da pesquisa, o trabalho sedividido em três
capítulos. No primeiro, serão abordados aspectos relacionados ao autor do
romance, situando-o no contexto histórico-social e cultural do país, por se considerar
que Jorge Amado reflete a sociedade nacional em suas obras, justamente por ter
sido como cidadão e como escritor um homem que viveu seu tempo e seu país,
conhecendo-lhe as características que o individualizam e o caráter do homem
simples das regiões interioranas e das periferias. Para dar forma a esta primeira
parte, será realizada uma pesquisa bibliográfica recolhendo a visão de críticos
10
literários, como Antonio Candido, Lígia Militz da Costa, Ilana Goldstein, Silvio Castro
e Luiz Gustavo Freitas Rossi. Críticos esses que estudam as manifestações de
Jorge Amado, desde o início de suas publicações. Entre os aspectos destacados por
Antonio Candido, cita-se a oposição de ambientes apresentados nos romances
amadianos: ambiente autoritário e da ordem versus ambiente da igualdade e da
desordem. Os demais autores consideram relevante a variedade de temáticas
refletidas por Jorge Amado; várias áreas do conhecimento, sentimentos e
relacionamentos humanos, assim as críticas sociais e as características da teoria da
carnavalização.
Na sequência, um estudo bibliográfico busca visões críticas sobre a obra aqui
estudada, a partir dos textos de: Dorine Cerqueira, MD Magno e Cleonice de Oliveira
Pereira. Os autores citados comentam a novela do protagonista, Quincas,
destacando a carnavalização das suas mortes. MD Magno reporta-se também aos
desejos de liberdade manifestados ao longo da narrativa.
No segundo capítulo, considerando-se os pressupostos teóricos que
embasarão a pesquisa, será realizada a respectiva revisão teórica. Será feita a
leitura de textos de Mikhail Bakhtin, Antonio Candido e Roberto DaMatta sobre
aspectos relacionados às definições da identidade cultural brasileira e à teoria da
carnavalização literária que permitam auxiliar a entender o carnaval como
manifestação da cultura popular e da compreensão de mundo que ela possibilita.
A identidade cultural aponta para as diversidades culturais brasileiras que
definem o país; quanto às raças, miscigenações, aos padrões sociais e às tradições
das celebrações. Porém, um fator que parece perpassar a cultura brasileira é o
malandro; o típico personagem caracterizado nessa análise. O outro fator é o mundo
da teoria da carnavalização e respectivas manifestações.
Mundo este apresentado nos ambientes e atitudes demonstrados por Quincas
Berro Dágua. Assim, ressaltam-se as características da teoria da carnavalização e
do personagem malandro, como o “jeitinho.” Aliada a esses aspectos uma visão
individual das atitudes do sujeito protagonista com seus respectivos sentimentos. Há
também uma visão sociológica sobre o povo brasileiro e suas relações com a
realidade. Encontram-se, ainda, as atitudes particulares, “às avessas”, que teriam
constituído o povo brasileiro, tendo o carnaval, o cômico e o riso como formas de
manifestação e definição identitárias.
11
O terceiro capítulo conterá a análise da novela literária representativa das
características da carnavalização inseridas na obra A morte e a morte de Quincas
Berro Dágua, de Jorge Amado, bem como tentar-se-á reconhecer em que medida o
personagem protagonista contribui para reforçar o ícone do malandro com suas
influências sociais de negatividade e anti-heroicidade no imaginário da sociedade
brasileira.
Os traços da figura malandra ressaltados no personagem protagonista e nas
relações com os demais personagens definirão Quincas em suas ações de acordo
com o conceito de malandro apresentado por Antonio Candido no texto Dialética da
malandragem. O estudo da novela quanto aos ambientes frequentados pelo
protagonista e personagens; a transformação da vida normal para a boêmia, fatores
que causam e que foram decisivos; a novela e suas características da
carnavalização e a reflexão sobre as mortes do Quincas, tentando definir uma
sequência de fatos e as respectivas celebrações.
12
Capítulo 1
CRÍTICAS: AUTOR E OBRA
Quando um homem morre, ele se reintegra
em sua respeitabilidade a mais autêntica,
mesmo tendo cometido loucuras em sua vida.
A morte apaga, com sua mão de ausência, as
marcas do passado e a memória da morte
fulge como diamante.
Jorge Amado
13
1.1 Definições críticas de Jorge Amado
Jorge Amado é um autor reconhecido pela sua vasta produção na Literatura
Brasileira. Desta forma, busca-se neste primeiro capítulo mostrar aspectos
relacionados às definições que os críticos consideraram característicos dos textos
do autor. As fontes para tal procedimento serão monografias, dissertações, teses e
livros; no entanto, o principal interesse a ser investigado nestas ferramentas não é
comentar toda a sua produção, mas verificar alguns elementos que perpassam em
grande parte de seus escritos e as representações de protagonistas em ambientes
públicos e familiares que servem para destacar traços construtores da identidade
nacional.
A preocupação com a sociedade é um aspecto presente em todas as obras
de Jorge Amado. Desse modo, ele vai criando diversas representações para retratar
os indivíduos a partir de suas características particulares hereditárias, paralelas às
que o meio em que vive oferece e institui. Ilana Seltzer Goldstein cita aspectos
estudados pelo autor aqui analisado:
O intento foi analisar a representação do Brasil em sua produção e em suas
declarações, por meio de recortes específicos, mas relevantes: a
mestiçagem, o sincretismo religioso, a festa e a malandragem como
elementos acionados na construção da identidade nacional. Tais aspectos
se tornam mais presentes a partir da publicação de Gabriela, em 1958,
quando a utopia política parece dar lugar a uma utopia cultural alegre e
mestiça que persistiu até os últimos dias mas cujo prenúncio se
encontrava já nos primeiros romances.
1
A citação aponta alguns aspectos relevantes para esta pesquisa e se busca
aqui situar as obras de Jorge Amado para definir aspectos da identidade do Brasil: a
mistura de raças (branca, mulato e negra), as classes sociais (alta, média e baixa) a
malandragem (o jeitinho brasileiro de facilitar as dificuldades) e as influências
políticas identificados nos textos do autor.
1
GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. O Brasil Best Seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional.
São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998. p. 22.
14
Na sua obra inaugural, País do carnaval
2
, Jorge Amado, ainda jovem,
apresenta o protagonista Paulo Rigger com suas dúvidas e desafios. O protagonista
estudou na Europa, voltou ao Brasil e, na chegada ao Rio de Janeiro, se deparou
com o carnaval. Nesse momento, Paulo Rigger tem a intenção de descobrir a
felicidade. Em seguida, ele conviveu com várias personalidades, escritores, poetas,
deputados e fez amizades. Todos dizem que a verdadeira felicidade e o sentido da
vida são alcançados de maneira diferente. Para uns é na calma do casamento, para
outros é na religião e sua fé, outros dizem que é pela filosofia e meditação. Nesta
obra, Jorge Amado mostrou um protagonista indeciso, com opiniões distintas sobre
a felicidade, ou seja, as diversas vozes sobre um mesmo assunto.
No livro País do carnaval, Jorge Amado mostrava uma visão social da
nação brasileira utilizando-se da oposição base (na definição de Antonio Candido)
3
entre o ambiente autoritário e repressivo da lei e das instituições, do capital e da
ordem. Por outro lado, mostrava o ambiente da igualdade, público, desreprimido, da
liberdade e da desordem.
O primeiro ambiente é onde os personagens estão identificados com o poder,
o autoritarismo, regras familiares, repressões sociais e econômicas. Ambiente este
em que os indivíduos são condicionados a conviver e a se submeter. Na família
estima-se viver o perfil normal que o senso comum considera bem-sucedido,
constituída de pai e e que se respeitam e trabalham rigorosamente, cumprem
ordens dos chefes, são pontuais, servindo de modelo, exemplo para que os filhos
sigam esse caminho.
O segundo ambiente é a luta pela liberdade, descontrole, exageros e
malandragem nos locais públicos, a manifestação dos desejos reprimidos em casa,
entre eles a embriaguez e a prostituição (descontrole e exageros). A malandragem
remete a mais um aspecto na criação dos filhos, a proteção dos pais de que tudo em
suas vidas terá solução. E isso também influencia nesta busca de acordos formais;
jeitos malandros para que tudo possa ser resolvido.
Os personagens deste romance enfrentam conflitos existenciais, cada um
tentando desvendar o sentido da própria vida e, assim, tentam entender essa vasta
mistura cultural, com um pouco de coerência e incoerência na mesma vida. um
2
AMADO, Jorge. País do carnaval. 49. ed. São Paulo: Record: 1999. 171p.
3
CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de
milícias). In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, USP, n. 8, p. 67-89, 1970.
15
universo de personagens que apresentam suas dúvidas e dificuldades cotidianas, as
tentativas de compreensão de valores a serem preservados em meio a essa cultura.
Os personagens disputam seus espaços sociais e seus desejos de liberdade. O
povo também pode ser considerado caldeado nos aspectos sociais, culturais e
étnicos, assim como nas definições e configurações da população brasileira. Em
relação a essa suposta variedade de identidades presentes no país, Schmidt
destacou algumas qualificações, comentadas por Rossi:
Em 1931, na ocasião do prefácio ao romance O país do carnaval, Augusto
Frederico Schmidt assim qualificaria a estreia de Jorge Amado. É antes de
tudo um forte documento do que somos hoje. [...] seus personagens estão.
E procuram. Não procuram apenas o sentido de pátria, da terra, mas
procuram o sentido de si próprios. Com estas poucas palavras de uma
apresentação de um escritor, Schmidt consegue expressar muitas das
angústias que alimentariam o campo intelectual brasileiro no decorrer de
toda aquela década. Se, por um lado, os personagens os intelectuais?
procuram: um sentido de pátria, de nação, uma ideologia para agarrar-se,
por outro, cabe à literatura documentar esta busca, as aflições de um povo
ainda incerto e confuso na sua configuração social, cultural e étnica.
4
Desde o início da carreira, Jorge Amado é reconhecido pelas suas obras que
representam o que as pessoas são, desejam e procuram no meio em que vivem.
Voltou-se a aspectos como os sentimentos e os relacionamentos humanos:
angústias, aflições, ideologias, tanto pessoais quanto sociais e culturais.
A partir dessa diversidade de aspectos, Rossi
5
, mostra a vastidão dos textos
de Jorge Amado, considerando que eles podem ser estudados por diversas áreas
do conhecimento, antropologia, história, sociologia e, em especial, pela crítica
literária, cada um enfocando de acordo com o seu interesse. Os historiadores, por
exemplo, estudam os reflexos do momento histórico como: marxismo, comunismo.
Os sociólogos, a noção de uma identidade social nacional contida em seus textos. E
ainda são analisados quanto à linguagem, qualidade estética e contribuições para a
literatura brasileira. Sua produção abre uma vasta gama de possibilidades de
análises. Confirma-se assim que, por meio de todos esses aspectos, é possível
avaliar e considerar a obra de Jorge Amado um provável motivo da popularidade do
autor em toda a América Latina.
4
ROSSI, Luiz Gustavo Freitas. As cores da revolução: A literatura de Jorge Amado nos anos 30.
Disponível em: http:// www.google.com.br. Acesso em: 28 fev. 2009. p. 55 e 56.
5
Ibidem, p. 13.
16
1.1.1 O autor Jorge Amado e as definições da realidade social
Os romances do autor empenham-se em apresentar a realidade social do
Brasil envolvendo a participação da política e das classes populares. Em suma,
Coutinho
6
ressalta que todo o sistema de produção de Jorge Amado está centrado
em uma adesão do real, com liberdade na escolha dos fatos e maneiras de relatá-
los. Esse estilo é remetido à ideologia da comunicação popular, conduzido a partir
da oralidade dos indivíduos. Ou seja, essas características encontram-se nas
palavras, nas livres expressões dos personagens, mostram o mundo, os homens.
Dessa forma, definiu-se um retrato social e ideológico, com os personagens como
panos de fundo da apresentação para a sociedade.
Na maior parte dos romances, novelas, teatros na Literatura Brasileira, a
gente popular (pobre) não tem sido um dos objetos privilegiados. Devido à influência
das classes dominantes, os elementos populares eram excluídos das manifestações
artísticas. Jorge Amado, porém, surgiu logo após a Revolução de 30, em meio a
essa transição de muitas reformas modernistas, momento em que os autores deste
período estavam mesclando os traços do antigo senhor dos escravos e também a
ambição da nova burguesia. O autor, aqui analisado, dedica-se a definir a região do
cacau e valores capitalistas; a suposta realidade brasileira em que o poder centra-se
em poucos e a pobreza existe em grande quantidade.
Cacau
7
foi um romance que demonstrou a dura realidade enfrentada pelo
personagem José Cordeiro: ele trabalhou para os grandes fazendeiros. Voltado para
as questões sociais, o escritor Jorge Amado relatava como viviam os diversos
trabalhadores deste período. Assim, nesse protagonista, demonstração nítida de
repressão da classe dominante, patrões sobre os subordinados, que deveriam
ser obedientes e realizar todas as atividades impostas.
Desta forma, houve o interesse de expor a situação de penúria da classe
pobre nas mãos de patrões não generosos e de tiranos. Nessas retratações, o autor
deixa transparecer a sua preocupação em denunciar aos leitores leigos as
dificuldades e humilhações que os operários enfrentavam, refletir a ganância e a
6
COUTINHO, Carlos N. O povo na obra de Jorge Amado. In: Um grapiúna no país do carnaval.
Salvador: FCJA/EDUFBA, 2000, p. 57-62.
7
AMADO, Jorge. Cacau. 5. ed. São Paulo: Record, 1996. 131p.
17
brutalidade excessiva dos senhores latifundiários e plantadores de cacau, e ainda a
perseverança e o poder autoritário que mantinham a ordem. Sobre isso, Coutinho
comenta:
É também no interior dessa problemática que se situa a produção literária
inicial de Jorge Amado. Em seus primeiros romances, particularmente nos
dedicados à região cacaueira, ele nos mostra - sempre através da
construção de destinos humanos típicos como a introdução de valores
capitalistas no universo social, através, sobretudo do acirramento do
individualismo, faz-se em estreita combinação com a permanência do
ethos autoritário da velha ordem. Ao mesmo tempo, e com uma
intensidade que talvez não encontremos em nenhum dos seus
contemporâneos, Jorge Amado se empenha na construção de tipos
populares alternativos, que apontem para a superação daquela peculiar
modalidade de capitalismo que ia se implantando em nosso país.
8
A citação mostra a maneira diversificada dos textos escritos por Jorge
Amado, apesar da ordem autoritária, de apontar tipos populares alternativos de
superação e liberdade. Na obra Terras do sem fim
9
, ainda se refere à “dominação”
do poder econômico centrado na terra e nas plantações de cacau. Em relação a
essa obra, porém, Lígia Militz da Costa
10
destaca em seu texto os aspectos terra,
dinheiro, cacau e morte, considerados fatores que resultaram em um jogo entre o
poder econômico e o poder erótico. Assim, a autora expôs como a realidade do
desejo erótico se conflituadamente com a realização do desejo econômico. Na
base disto tudo estão as dificuldades sociais em conciliar amor e trabalho, liberdade
e progresso.
Costa
11
apresenta uma análise dos tipos de personagens presentes na obra
Terras do sem fim: uns defendem os interesses econômicos e outros os interesses
eróticos. Ela exemplifica isso na análise das ações dos personagens e suas
equivalências de interesses. Nota-se que o autor, Jorge Amado, fez um paralelo
desses dois aspectos (econômicos e eróticos) já nesta primeira fase das obras
iniciais. Possivelmente pode ter acontecido de ele ter enfocado mais um dos
aspectos em determinado período, mas já mostrava nessa época o desejo de
liberdade e paz, bem como o dinheiro, cacau, coronéis e a presença marcante da
8
COUTINHO, Carlos N. O povo na obra de Jorge Amado. In: Um grapiúna no país do carnaval.
Salvador: FCJA/EDUFBA, 2000, p. 59.
9
AMADO, Jorge. Terras do sem fim. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2008. 280p.
10
COSTA, Lígia Militz. O condicionamento telúrico-ideológico do desejo em Terras do sem fim
de
Jorge Amado. Porto Alegre: Movimento, 1976.
11
Ibidem.
18
ideologia dominante. Ou seja, a variedade cultural e identitária da sociedade
brasileira.
A autora ressalta que as visões dos personagens são de acordo com as
condições econômicas e os ambientes vividos. Eles comentam que desejam
liberdade e poder de expressar seus sentimentos emocionais que até então haviam
sido banidos pelas fortes repressões enfrentadas, e almejam, também, crescimento
econômico com suas aspirações de riqueza, poder, etc. Não há vantagens de
engrandecimento de desejos ou maior relevância para um ou outro. Jorge Amado
destaca as manifestações dos personagens, mas não apresenta sua opinião
explicitamente, não remete relevância maior ou menor para determinado aspecto. A
partir disso, Lígia M. da Costa afirma:
A classe menos favorecida realmente não recebe a qualificação de herói,
nem na estória, nem no discurso. Se isto acontecesse, poderia a obra
recair na pregação de uma ideologia inversa àquela que denuncia, pois
apenas trocaria a posição das peças, passando o poder das mãos de uns
para as de outros. Como o teor do conteúdo prende-se à realidade social,
certamente, e tivemos ocasião de referir antes, a obra recairia numa
pregação ideológica socialista, fechando-se naqueles postulados
limitados, e restringindo a eles a literatura enquanto criação. Mas isto não
ocorre. No entanto a posição contra-ideológica não só é latente, como
manifesta. Neste quadro contra-ideológico ainda vamos encontrar, ao lado
da denúncia social e a exploração do mito, a valorização de uma série de
elementos ou situações que envolvem valores opostos aos pretendidos
pela ótica do poder.
12
Na obra Terras do sem fim, Jorge Amado não definiu como heroica a classe
menos favorecida. Acredita-se que Costa, nesta citação, se refere a uma diferença
nos textos de Jorge Amado, posto que, a partir de 1958, a classe popular menos
favorecida teve um enfoque maior na narração de suas histórias. Isso aconteceu
com o livro A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, em que o protagonista foi
central em toda a novela, com ênfase a sua vida junto aos bêbados e prostitutas.
Outro aspecto ainda destacado pela autora é o telurismo, no qual os trabalhos
com a terra e a relevância do plantio do cacau são vistos como fatores
12
COSTA, Lígia Militz. O condicionamento telúrico-ideológico do desejo em Terras do sem fim de
Jorge Amado. Porto Alegre: Movimento, 1976. p. 39.
19
influenciadores nas atividades latifundiárias dos personagens. Eles conseguem com
essas atitudes conhecer, com detalhes, o que acontece no inverno e verão com as
plantações. A partir disso, representaram-se os fortes e dominantes, sendo eles os
únicos privilegiados; a aparência que o poder econômico tem de manipular as
pessoas, a subordinação. Portanto, constata-se que, depois de as pessoas entrarem
nesse meio, é difícil conseguirem sair.
O telúrico transpassa o econômico e o contrário também ocorre. Assim,
juntam-se e formam um conjunto único pela lei do mais forte. Integram a lei do gatilho
com a lei do cacau, Lígia M. da Costa assim expõe: “Lei do gatilho homem
ideologia = lei do cacau terra telurismo
13
. Mediante esta lógica, explica que a lei
do gatilho é a lei dos homens e ela está acima do promotor e da justiça. O poder do
mais forte sobre o mais fraco. Por isso a lei do cacau é mostrada na obra de Jorge
Amado com o personagem Horácio, que, por influência política, econômica e da
Igreja, é um dos maiores proprietários de terra. Ainda referente a essa obra, a autora
comenta a afirmação de que “tudo dá nesta terra” (nasce assassino, caxixe, cabaré,
colégio, etc.). Cita a ironia, a denúncia, o desequilíbrio social e econômico
relacionados ao equilíbrio do progresso.
A autora cria dois conjuntos “a” e “b” para definir os personagens: “a” desejo
econômico e “b” desejo erótico. Explica como foi a vida dos personagens centrados
no poder econômico, na terra, política, dinheiro... e o desejo erótico centrado na
liberdade e amor. Costa constatou, ainda, que:
Nesta análise/amostragem centrada no quadro descritivo de cada
personagem, ficaram estabelecidas as relações que se mantêm entre
eles e os significantes ideológicos, quer sejam de fundo econômico ou
erótico. Confirma-se a proposição de que cada personagem é uma
duplicidade, não no equilíbrio do modelo, onde cada elemento é
acrescentado a outro e surge uma realidade acabada, mas como forma
de composição binária, em que cada um deseja e expressa isto e aquilo,
simultaneamente, numa rede de variações que não qualifica o primeiro
como negativo, simplesmente, e nem o segundo como positivo. Trata-se
de um esquema binário que se atualiza na configuração e articulação
dos personagens, a partir das relações de dominância entre elementos
que envolvem certa complexidade. O esquema básico funcional para
todos os personagens é: Personagem = “a” e “b”.
14
13
COSTA, Lígia Militz da. O condicionamento telúrico-ideológico do desejo em Terras do sem fim de
Jorge Amado. Porto Alegre: Movimento,1976. p. 43.
14
Ibidem. p. 74.
20
Entende-se que os personagens vivem essa referida duplicidade citada, ou
seja, paralelamente o econômico e o erótico, mas um com maior intensidade que o
outro. Surge a ideia de binarismo, que tem duas forças paralelas de suportes
distintos opostos que atuam sobre um mesmo corpo.
A partir de 1956, Amado revê essas concepções adotando uma nova visão e
a utiliza juntamente com sua experiência de mundo, retratando inclusive as
opressões sofridas pelos personagens populares de uma maneira nova, satírica, em
que a carnavalização com suas respectivas características são centrais. Sobre esse
retrato popular, Coutinho demonstra sua visão:
As primeiras denúncias do stalinismo, em 1956, levam Jorge Amado a
rever radicalmente suas concepções estéticas e ideológicas, como o
completo abandono dos dogmas do realismo socialista. Ao mesmo tempo
que deixa de ser um stalinista ferrenho, para usar sua própria auto
caracterização, Amado conserva sua visão do mundo humanista e
socialista, enriquecendo-a agora com uma explícita e consciente adesão
ao valor universal da democracia. Com isso, fortaleceu-se a sua incomum
capacidade de criar tipos populares autenticamente realistas. As
alternativas ao capitalismo autoritário, àquela ordem cujos valores ele
continua a denunciar duramente, são cada vez mais buscadas na própria
vida cotidiana das camadas populares, nos múltiplos recursos éticos e
culturais de que se dispõe o povo para enfrentar, com astúcia e
sagacidade, as situações de opressão e humilhação a que é submetido
pelos de cima, pelas classes dominantes.
15
Assim, na sequência, remete-se a atenção para um aspecto diferente
destacado por Jorge Amado. Ele enfatiza em suas obras a vida da classe popular;
os protagonistas demonstram os desejos que a sociedade de massa tem de viver a
vida a partir do que necessita e não do que a classe dominante impõe. Dessa forma,
cada protagonista mostra a revolução pessoal de suposta idealização, enquanto
indivíduo dessa sociedade.
15
COUTINHO, Carlos N. O povo na obra de Jorge Amado. In: Um grapiúna no país do carnaval.
Salvador: FCJA/EDUFBA, 2000. p. 60 e 61.
21
1.1.2 Jorge Amado e seu olhar malandro
Veríssimo
16
comenta a divisão da obra de Jorge Amado convencionada em
duas fases, a da crítica social e a do picaresco, a partir da consideração de que as
críticas sociais foram feitas na sátira de costumes e os personagens ganharam
atrativos particulares que perderam em significado político. O autor não concorda
com essa suposição, então afirma que Quincas, Gabriela, entre outros desta
suposta segunda fase, são personagens emblemáticos do universo de Jorge
Amado. Dessa forma, esses retratam também maneiras de sobreviver a uma
sociedade opressiva, conforme fizeram os heróis sérios da fase considerada
engajada. Afirma que Quincas é um exemplo de resistência, de não aceitação da
realidade, tanto em relação à vida quanto à morte, que lhe é condicionada pela
sociedade dominante.
Ilana Goldstein
17
, também refletindo o discurso literário e extra-literário de
Jorge Amado, considerou a presença de aspectos eleitos como símbolos nacionais,
entre eles o candomblé como uma religião alegre, que não esmaga as pessoas, na
qual o pecado não existe
18
; é vida e alegria. Também a cultura por intermédio do
samba, considerada um ícone da alegria e da malandragem, presente desde a
juventude do autor. Goldstein comenta que, em uma resenha escrita ainda no ano
de 1931, o autor aqui estudado elogiou o colega Marques Rebelo, conhecedor da
malandragem do Rio (das favelas e do samba), considerando como fatores culturais
louváveis a capoeira e o futebol, sendo eles manifestações culturais em que
liberdade de expressão. Assim, Goldstein asseverou:
A capoeira é louvada nos manuscritos pessoais de Jorge Amado, os heróis
dos romances são capoeiristas, e o jogo é definido por ele como “a mais
bela luta do mundo, em Bahia de todos os Santos. O escritor revelou ainda
à imprensa ser um eterno apaixonado pelo imprevisível futebol brasileiro...
Entre os motivos para tal paixão, alega que nos dois existe palavrão, onde
nos expressamos mais autenticamente. [...] O romancista baiano traçou
uma representação de identidade nacional brasileira, que não apenas por
razões mercadológicas, mobiliza o público tanto no Brasil como no exterior,
dando margem ora à idealização de um exotismo tropical-sensual-mestiço,
ora a críticas a essa idealização.
19
16
VERÍSSIMO, Luis Fernando. O sorriso de Quincas. In: Um grapiúna no país do carnaval. Salvador:
FCJA/EDUFBA, 2000. p. 51-53.
17
GOLDSTEIN, ILana. O Brasil Best Seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
18
Ibidem.
19
Ibidem. p. 50 e 51.
22
Nesta citação, a autora menciona aspectos destacados por Jorge Amado,
considerados maneiras livres de expressar os talentos culturais da população
brasileira. Na capoeira, a maneira sensual e bem-preparada dos movimentos
corporais expressando sentimentos e sensações, alegria, vibração, ritmo, etc. O
futebol conta com a mistura de várias características: agilidade, raciocínio rápido e
esforço físico. Estas manifestações são consideradas pelo autor como expressões
autênticas deste país.
1.1.3 O destacado personagem popular nos textos de Jorge Amado
A obra Gabriela, cravo e canela
20
é caracterizada por empregar uma
linguagem satírica e de formas humorísticas, mas não deixando de realizar críticas
sociais. E enfocaram-se, porém, como destaque principal, os personagens, a sua
existência perante a sociedade e as sensações que sentiam de acordo com os
ambientes frequentados. Comentando a mudança da primeira para a segunda fase,
Castro ressalta:
A passagem do sistema amadiano de uma possível primeira fase
tipicamente em empenho sócio-ideológico a uma outra de empenho sócio-
existencial não modifica a natureza dos valores característicos de sua
poética. Muda-se tão somente de uma maior fixação do significado do
discurso narrativo para um maior equilíbrio deste mesmo significado com
os seus elementos significantes [...] uma nova maneira de confrontar-se
com o mundo, agora visto através de um processo de carnavalização da
vida, nos levará ao confronto com uma escritura plena de criatividade.
21
Jorge Amado, nesse período, se apoia principalmente na teoria da
carnavalização. Os protagonistas vivem em diversos ambientes, convivem com
ricos, pobres, podem ter dois maridos, duas ou três mortes. Os personagens têm o
poder de realizar os desejos reais de muitos indivíduos: viver de festas e bebidas,
sem trabalhar, com os amigos que escolher a hora que quiser; maneira essa
desejada na malandragem. Também na obra Gabriela, cravo e canela mostrou os
20
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2008.
21
CASTRO, Sílvio. Jorge Amado e a recepção crítica. In Um grapiúna no país do carnaval. Salvador:
FCJA/EDUFBA, 2000. p. 47.
23
problemas sociais e políticos daquele período, a beleza feminina e a sensualidade
da mulher brasileira com a protagonista Gabriela. Ela não gostava de
relacionamentos sérios, como casamento. Coutinho
22
acrescenta que as
oportunidades de denunciar o autoritarismo tornam-se ainda maiores a partir das
vidas cotidianas de protagonistas reveladores, ambiciosos em realizar seus sonhos.
Destacam-se, nessa protagonista, autenticidade e sagacidade. Ela sabe
como utilizar a modernizadora proposta de fazer revolução pessoal antes que o
povo faça; associa a isso os novos costumes relacionados ao moralismo vigente;
usa as mudanças em seu favor; vai buscando seu espaço nesse processo. É essa
resistência de Gabriela que perpassa todo o romance; tenta reagir às imposições de
maneira carnavalizada, porém mostrando o poder e a força dos indivíduos perante
suas opções.
Bourjea
23
afirma a possibilidade de o livro Jubiabá ser analisado pelo
pensamento de Roberto DaMatta, em seu grande ensaio Carnavais, malandros e
heróis, uma vez que todo esse texto é confirmado na obra de Jorge Amado. Neste
romance, a primeira fase apresenta a figura do menino de rua como malandro; a
segunda mostra Baldo jovem renunciando às oportunidades escondido na mata; na
terceira o herói se reencontra com ele mesmo, conquistando o lugar e a posição
social desejada, exaltada no protagonista de Jorge Amado.
A afirmação de Bourjea mostra um exemplo típico de como Jorge Amado é
visto pelos demais escritores. Fragmentos de suas obras na carnavalização são
analisados por DaMatta e mostram as estruturas utilizadas em seus romances, bem
como as características descritas pelo autor: mestiçagem e identidade cultural
voltadas claramente ao carnaval, como definição da gente popular brasileira. A
traição é um dos tantos afetos, aspectos que envolvem os sentimentos. O mito é
também identificado nos textos de Amado, nos orixás e seus misticismos.
Em A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, por exemplo, retrata a revolta
do protagonista com as exigências familiares e também a busca de se realizar para
ser o centro na família, com os bêbados e as prostitutas. Procura mais claramente
denunciar o autoritarismo, bem como as regras impostas no ambiente familiar e no
trabalho, as devidas imposições de normas criadas pelos chefes, pelo Estado e que
22
COUTINHO, Carlos N. O povo na obra de Jorge Amado. In: Um grapiúna no país do carnaval.
Salvador: FCJA/EDUFBA, 2000. p. 61.
23
BOURJEA, Serge. Amado: um Zola na Bahia? In: Um grapiúna no país do carnaval. Salvador:
FCJA/EDUFBA, 2000. p. 89-96.
24
devem ser executadas pelos funcionários, de modo que essas autoridades podem
limitar as liberdades individuais e democráticas. A partir do protagonista Quincas, o
autor Jorge Amado cria situações em sua novela ao mostrar os reflexos causados
pelas ordens da classe dominante sobre a classe popular. De acordo com as
características da carnavalização, Antonio Candido aponta uma visão básica do
pícaro:
um traço básico do pícaro: o choque áspero com a realidade, que leva à
mentira, à dissimulação, ao roubo, e constitui a maior desculpa das
‘picardias’. Na origem o pícaro é ingênuo; a brutalidade da vida é que aos
poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase como defesa.
24
A atitude típica do pícaro mostra em seus protagonistas a possibilidade de
cada pessoa escolher seus feitos sociais, políticos e culturais. Acredita-se que a
teoria da carnavalização, assim como suas características satíricas, picarescas,
espírito carnavalesco e malandragem, foram essenciais para exemplificar essas
manifestações na segunda parte das obras de Jorge Amado. ausência de
manipulação das classes dominantes, bem como a realização do que se aproxima
dos desejos e os valores dos personagens.
Além da justiça social, Jorge Amado dedica um espaço para manifestar a
liberdade desejada pelos personagens de viver sentimentos expressados no riso e
nos sonhos. Uma maneira cômica de mostrar o desprendimento humano da ordem.
Estes refletem relatos da conduta humana a partir de desejos, muitas vezes
reprimidos. Assim, a comicidade é característica nos textos de Jorge Amado, que
também atrai a atenção dos leitores, conforme comenta Fábio Lucas:
um momento, na obra de Jorge Amado, em que a força de atração
ideativa deixa de ser a justiça social para se concentrar na aspiração da
liberdade. E o fermento dessa visão de mundo se transpõe do
romantismo sentimental e visionário para a explosão do riso e do sonho
como atributos desrepressores do ser humano. Assiste-se, então, ao
ocaso da certeza apodítica ou da verdade doutrinária, para ingressar-se
na esfera do relativismo quanto à conduta humana.
25
24
CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (caracterização das Memórias de um Sargento de
Milícias). In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8, São Paulo, USP, 1970, p. 67.
25
LUCAS, Fábio. Estética do riso e do sonho em Jorge Amado. In: Um grapiúna no país do carnaval.
Salvador: FCJA/EDUFBA, 2000. p. 63.
25
Quincas é um exemplo de busca de liberdade, uma vez que apresenta os
desejos sentimentais que possivelmente a vida repressiva lhe causou. Ele busca,
então, a ilusão de sensações a partir da bebida, das prostitutas, demonstrando a
procura pela realidade almejada naquela época, tendência esta de renovação,
atentando para a vida celebrada no carnaval. Lucas afirma: “Jorge Amado sabe
dosar o arsenal temático, de tal sorte que motivos como a vida, a morte, o tempo, o
espaço e a fama recebem tratamento sob uma luz adequada”
26
.
A partir das obras de Jorge Amado foi escolhida a novela A morte e a morte
de Quincas Berro Dágua para se analisar mais detalhadamente, bem como a sua
fortuna crítica. Com base nisto, será desenvolvido o estudo das teorias de Bakhtin e
DaMatta, entre outros estudiosos, que abordam a teoria carnavalizada e, ainda,
serão observadas as características da malandragem no protagonista.
1.2 OBRA E SEUS CRÍTICOS
1.2.1 Quincas Berro Dágua e a busca da opção existencial
Uma das tantas obras de Jorge Amado a fazer sucesso foi A morte e a morte
de Quincas Berro Dágua, que relata a história da morte de um homem chamado
Joaquim Soares da Cunha. O protagonista foi funcionário blico durante muitos
anos, casado, bom pai. A partir da sua aposentadoria, transformou-se, deixando de
lado a família e responsabilidades para se tornar um malandro, dependente de
álcool e jogos. Sua convivência passou a ser com os bêbados, prostitutas e
marinheiros de Salvador. Tornou-se líder desse povo, que o chamava de “paizinho.”
O foco desta narrativa foi a morte ou (mortes) do personagem também
chamado de Quincas Berro Dágua. Ele morreu a primeira vez renunciando à família
e seus costumes, depois, curtindo uma bebedeira final e, a última vez, caindo no
mar. Na segunda morte, houve uma celebração mortuária convencional, ou seja,
carnavalizada, de modo que o morto teve as roupas de rua trocadas, pelas roupas
da família, decentes; mostrando a troca de comportamentos entre as diferentes
classes sociais. Baseado nesse aspecto da interação e alterações entre as classes
populares e dominantes, Paes afirma:
26
LUCAS, Fábio. Estética do riso e do sonho em Jorge Amado. In: Um grapiúna no país do carnaval.
Salvador: FCJA/EDUFBA, 2000.p. 67.
26
A abolição da linha demarcatória põe em xeque os comportamentos
convencionais, a começar da compunção e seriedade de rigor nas
cerimônias mortuárias, abrindo caminho para a transgressão
carnavalesca. Significado parecido tem a troca das roupas do morto.
Antes de levá-lo a passeio, os companheiros não só lhe vestem os
andrajos habituais para restituí-lo à sua personalidade boêmia como
dividem entre si as roupas “decentes” em que a família o enfatiotara. É
mais do que justificado ver, nessa troca vestuária, uma reminiscência da
fantasia carnavalesca através da qual se efetua a troca simbólica de
personalidades e papéis sociais.
27
Na obra A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, encontram-se dois
aspectos considerados fundamentais: a crítica social e o picaresco. O personagem
pícaro, em geral, ao longo das narrativas, tem um atrito com a realidade, cansa do
cotidiano e passa a criar um ambiente para suas picaretagens, suas chocarrices.
Começa então a dissimular, a beber. Para Antonio Candido
28
na origem “o pícaro é
ingênuo; a brutalidade da vida é que aos poucos o vai tornando esperto e sem
escrúpulos, quase como defesa”. Dessa forma, entende-se que não se nasce pícaro,
mas, a partir das dificuldades e experiências da vida, pode tornar-se um. O
vocabulário do pícaro, inclusive, é composto de expressões obscenas, gírias e
elevada construção do pessimismo da vida.
Outro fator esquecido no personagem pícaro são as histórias amorosas, o
sentimento, amor, posto que se desloca para o social, para uma vida de revoluções
interiores inclusive contra a sua anterior posição social. Nessa nova vida, tenta
aproveitar o máximo, realizar tudo o que idealizar, vivendo diversas situações e
conhecendo lugares diferentes.
Quincas apresenta, entretanto, por um lado, a família burguesa como
exigência a ser seguida, respeitada, e, de outro, o pícaro da vida nas ruas, a
satisfação de viver na popularidade. Por trás de toda essa estrutura criada, pode-se
ver um inconformismo com a realidade imposta.
O anti-herói também é destacado nesta novela, e ele é considerado um herói
às avessas, rebelde. Ele o é tido como um personagem mau, mas sim
carismático, mediante seus objetivos normais ou anormais. A malandragem
27
PAES, José Paulo. Quincas Berro Dágua ou a morte carnavalizada. In: Um grapiúna no país do
carnaval. Salvador: FCJA/EDUFBA, 2000. p. 37.
28
CANDIDO, Antonio. A dialética da malandragem”. In: Memórias de um sargento de milícias de
Manuel Antonio de Almeida. Edição crítica de Cecília de Lara. Rio, Livros técnicos e científicos
Editora: 1978. p. 319.
27
característica é excluída pelos heróis, porém utilizada pelos anti-heróis, pois essa
artimanha pode ser fundamental na facilitação e execução de desejos reprimidos.
Assim afirma-se sobre essa característica anti-heróica do personagem:
Se opõe ao de herói, numa dupla acepção. Enquanto protagonista da
história narrada ou encenada, o anti-herói reveste-se de qualidades opostas
ao cânone axiológico positivo: a beleza, a força física e espiritual, a
destreza, dinamismo e capacidade de intervenção, a liderança social, as
virtudes morais. Uma vez que a avaliação do herói, feita pelo
leitor/espectador, assume sempre aspectos subjetivos, uma vez que, no
quadro da apreciação humana das situações de vida e dos acontecimentos,
a ambiguidade dos pontos de vista é uma constante, que se inscreve no
caráter dialético da condição humana, qualquer reação do protagonista é
sempre susceptível de interpretações antagônicas.
29
O sorriso é outro aspecto exaltado nas manifestações do protagonista, que
pode ser julgado como uma vitória de Quincas ao final dos fatos, comprovando
resistência às imposições e superação destas, tanto da família quanto da sociedade
burguesa. Inclusive na morte pode sorrir, uma vez que ela também se difere dos
padrões impostos. Veríssimo afirma: “De certa maneira a obra de Jorge Amado é
sobre a vitória desse sorriso”
30
.
Em relação à morte, mortes, no livro Percurso do aprendiz, Gonçalves faz
vários apontamentos. Entre eles ressalta algumas definições sobre o tema da morte
na novela. De acordo com isso, nota-se a morte como um dos temas centrais da
novela, acompanhada da água. A suposta modificação que interfere na ordem de
celebrar uma morte vem causar a construção de consciências dialógicas, ou seja, a
imaginação da cultura popular na realização ficcional de três mortes de um mesmo
personagem. Sobre esse aspecto o autor comenta:
Reside, então, nessa tentativa de superação da história o cerne da
passagem e do deslocamento do personagem Quincas, na visão de
Jorge Amado como relativização dos polos contrários e em atrito, para
um espaço mítico social. Essa receptividade dos elementos ficcionais
determina, na novela, o encontro com o imaginário popular,
principalmente pelas suas ritualizações. Nesse ponto, o tema da morte,
que é o centro da narrativa, aponta para a mudança e a extinção daquele
29
CEIA, Carlos. Anti-herói. E Dicionário de Termos Literários. Disponível em: <http:
www.edtl.com.pt/verbetes/anti-heroi.html>. Acesso em: 13 jan. 2010.
30
VERÍSSIMO, Luis Fernando. O sorriso de Quincas. In: Um grapiúna no país do carnaval. Porto
Alegre: FCJA/EDUFBA, 2000. p. 53.
28
antagonismo social, propondo um retorno. Retorno cíclico que resulta
da efemeridade.
31
Gonçalves refere-se ao deslocamento do personagem Quincas que circula no
espaço entre os dois polos em atrito: o popular e o dominante. Espaços em que
celebram o mítico social, o encontro com o popular, principalmente pelos rituais que
realizavam. O motivo de todo esse deslocamento e encontro entre as diferentes
classes sociais foi a celebração da morte do protagonista.
A morte de Quincas, na visão de Paes
32
, no texto Quincas Berro Dágua ou a
morte carnavalizada, perante a concepção religiosa catequética da época, é
assustadora. Na cultura popular aparece transfigurada pelo riso e definida como
uma morte alegre. A autora comenta que Bakhtin cita vários exemplos: mudar a
ordem do mundo de todos os dias; o carnaval instaura, por meio de símbolos, um
mundo de utopia, possibilita alegria, liberdade, igualdade a todas as pessoas. Além
do riso, em seu ensaio sobre Rabelais, Bakhtin chama a atenção para a oposição
de espaço fechado do quarto, velado pela família, com o espaço aberto na rua,
paisagem popularesca do porto velado pelos amigos (bêbados e prostitutas), em
meio à lei e à sociedade popular.
Gonçalves considera que as mortes do protagonista podem ser analisadas
como três: a primeira é a morte moral (abandono da família); a segunda é a morte
social, do porre em público (amigos e família participam do ritual); a terceira é a
morte no mar, caracterizada por um falta simbólica, (a castração); o objeto é o
imaginário, é um desejo do próprio personagem de morrer no mar, causando a
integração imaginária da ilusão com a satisfação. Assim há também algumas
considerações psicanalíticas destacadas por MD Magno (1985), descritas na
sequência.
A exaltação da bebida está presente desde o início da novela, principalmente
na passagem em que, servindo-se enganosamente de uma garrafa posta sobre o
balcão da venda Lopez, a constatar trata-se de água, advém o berro memorável,
considerado ironicamente duplo: de um lado, a vontade do herói de beber a cachaça
representando a boêmia, e, de outro, o desejo de morrer na água. Toda essa
31
GONÇALVES, Robson Pereira. Percurso do aprendiz: literatura & psicanálise. Santa Maria: Editora
UFSM, 1997. p. 115.
32
PAES, José Paulo. Quincas Berro gua ou a morte carnavalizada. In: Um grapiúna no país do
carnaval. Salvador: FCJA/EDUFBA, 2000. p. 35-39.
29
mudança de classe social do protagonista é considerada uma opção existencial.
Quincas optou pelo populismo ao invés do proletarismo. Assim Paes considerou: “é
o itinerário que vai da utopia ideológica posta no futuro – revolução como tomada do
poder pelos que dele foram desde sempre excluídos à utopia lírica voltada para o
aqui e agora do povo como fonte permanente de todos os valores”
33
.
Ainda sobre o alcoolismo, cita-se a obra O porre e o porre de Quincas Berro
Dágua
34
, que retoma a obra de Amado, porém em uma visão psicanalítica. Intercala
entre a cisão de pai ideal na dupla face de um pai obsessivo, pai Bedel, em trânsito
para o histérico pai herói. No texto, também se refere às várias mortes,
caracterizando Quincas como obsessivo, personagem que planeja sua própria
morte. Por outro lado, no entanto, comenta-se a frase que abre como epígrafe o
livro, contando o mito de Quincas
35
: “Me enterro na hora que resolver. Podem
guardar seu caixão pra melhor ocasião. Não vou deixar me prender em cova rasa no
chão”. Ou seja, nessa fala, assume a posição de pai herói, que menciona de
maneira histérica. Inicia a frase com obsessão e acaba com heroísmo.
O autor citado também comenta o berro dágua, considerado memorável e
duplamente irônico: representa o fervor do herói na cachaça, boemia, liberdade e
desejo de morrer na água. O grito lança o mito carnavalesco, passagem e o
retorno no campo da poesia.
A segunda morte também registrou um retorno do Quincas para o Joaquim
Soares da Cunha, em que a família o transformou. Em seguida, os amigos do
protagonista começam a beber e oferecem cachaça para o defunto. O significante
é a bebida (a cachaça), que o faz se transformar novamente em Quincas Berro
Dágua, passando, assim, de um lado para o outro. Passagem que facultou cumprir
seu destino e desejo.
Essa é uma possibilidade de arte, realização do destino, transpondo pela
sociedade, pela lenda, pelo mito, mostrando a invenção da novidade, diferença na
vida das pessoas. O desejo do sujeito em buscar a realização inclusive na morte e
buscar a satisfação. Na morte, retornar à vida, para poder reinventar a própria
morte. Utilizou-se da malandragem para satisfazer suas vontades, o tão famoso
jeitinho brasileiro.
33
PAES, José Paulo: Quincas Berro gua ou a morte carnavalizada. In: Um grapiúna no país do
carnaval. Porto Alegre: FCJA/EDUFBA, 2000. p. 40.
34
MD MAGNO. O porre e o porre de Quincas Berro Dágua. Rio de Janeiro: A Outra, 1985, p. 65.
35
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. Companhia das Letras, 2008. p. 102.
30
MD Magno (1985) apresentou uma visão diferenciada do que se
comentava anteriormente, relacionado ao personagem, Quincas, para assim
considerar a obra, afirmando que não nada de fantástico nesse texto, e o
protagonista é um bêbedo em último grau, carregado com manejos, balanços de
corpo; o verossímil está nisso, não na fantasia. Definiram-se dois modos: Quincas
morto que é carregado pelos outros e o movimento do Outro em torno dele.
Cumpriu-se o mito de que vai morrer como herói, navegador; MD Magno
considerou estar a grande ironia de Jorge Amado, e ainda acrescentou
explicando:
Era preciso que eles fizessem reviver, não mais o sujeito Quincas mas, o
mito de Quincas Berro gua, sobre o cadáver, para sustentarem o mito
até o fim. Podemos ver então, que, no meio dessa ironia toda, Jorge
Amado vai despejar tudo irrisório: Quincas está morto, fazem cumprir o
mito ao redor dele, levam-no para dentro do barco, por um acidente de
tempestade ele cai na água e se “ouve” o que ele antes dizia como se
fosse um cumprimento daquilo: o que foi produzido pelo Outro em função
do que ele dissera.
36
O texto citado mostra que Quincas estava morto, mas todo esse ritual foi
feito para cumprir o mito. Pode-se considerar que foi ironia do destino; aconteceu
um acidente devido à tempestade e ele caiu na água e cumpriu o seu desejo.
Quincas relacionado ao álcool fracassou no encaminhamento que faz para o
Outro, no regime de Baco. Joaquim Soares da Cunha tentou passar para o Outro
lado, mas, por causa do álcool, não conseguiu. Houve apenas a alternância de
imagem paterna de um Pai Bedel e um Pai herói.
A ironia também está presente nas três mortes. No primeiro caso, se
configura como uma tradução do social. Na segunda morte, a ironia é integrante
do ambiente público e serve mais como uma maneira de observar a consciência
popular. A terceira morte também foi ironizada pelo fato de morrer na água que
perpassou desde o berro memorável. Essa caracterização permaneceu na novela,
em especial no modo debochado, irônico do protagonista; procurou sua verdadeira
identidade, sua relação com o social e sua família.
36
MD MAGNO. O porre e o porre de Quincas Berro Dágua. Rio de Janeiro: A Outra, 1985. p. 70.
31
No texto A ironia e a ironia trágica em a morte de Quincas Berro Dágua,
Dorine Cerqueira menciona a ironia trágica. Considera esta como uma análise de
tragédia da solidão, do desgaste físico e psíquico cansado daquele mundo,
quando o protagonista da novela resolve viver longe da família de maneira
deplorável, isolado de seus parentes. Afirma que esse tipo de ironia destaca o
caráter da situação trágica. A pessoa pode ser designada pela família, pela sorte,
mas, seja como for, não merece esse destino.
A partir do momento em que a ironia se fixa no trágico cotidiano, então
aparecem os traços do personagem assim caracterizado. Quincas é um exemplo
de cotidiano trágico, tragicômico que ocasionam a farsa. Quanto à composição da
novela de Amado, Cerqueira afirma:
Este fabuloso pequeno romance contém ironia, humor, comicidade toca o
grotesco, o carnavalesco e o picaresco; atinge a ironia trágica, o
existencialismo kafkaesco e o mito nietzschiano do eterno retorno. Diz
Eduardo Portella que o humor empregado conduz um fim: auxilia as
caracterizações, exerce função crítica, além de provocar a reação de
resultado puramente humorístico. Há também detalhe cômico e satírico
que aprofunda o tom picaresco de tal modo que chega a atingir o grotesco
[...] Em vista de Quincas Berro Dágua ser melhor enquadrado no gênero
tragicômico, que admite a farsa.
37
O autor refere-se também no texto citado à farsa mencionada diante de
situações absurdas, nos diversos ambientes, como, por exemplo, homens de rua.
Atitudes travessas na farsa equivalem às ações de um vilão no melodrama.
Quincas constrói a farsa ao passar pela morte várias vezes, considerando como
segunda morte a que o encontram sozinho, a única que na verdade aconteceu.
Depois, seus amigos da vida boêmia fantasiam mais uma morte. Farsa que traz
mais uma característica: o cômico. Assim, ao ler a novela, imagina-se um morto
que não morreu, trocando de roupa, desfilando em praça pública e escolhendo o
mar para ser o lugar de sua “última” morte.
O grotesco também foi figura tragicômica de Quincas. Depois de mudadas as
vestes do protagonista, ele utilizou colcha rasgada, calças velhas, remendadas e
ainda sorria como se estivesse a se divertir. O realismo grotesco transforma tudo o
37
CERQUEIRA, Dorine. A ironia e A ironia trágica em a morte de Quincas Berro Dágua. Rio de
Janeiro: Razão Cultural, 1997. p. 81.
32
que é elevado (cerimônia) para um novo renascimento. A tia Marocas é um
símbolo disso: come o tempo todo, rindo e bebendo, traz a ideia de bufão em
relação à celebração da morte que é um ato sério. Quincas foi também uma
espécie de metamorfose (de morte para o renascimento), de Joaquim Soares da
Cunha para Quincas Berro Dágua.
A ironia trágica, com seu tom de deboche, e a tragédia, estão presentes em
todo o romance. Atitudes como o sorriso de Quincas, danças durante o velório e as
próprias ações do protagonista, são causa de ironia em que o contraste das
classes sociais. Houve, assim, características de ambas as classes sociais
presentes: a família tentando manter a ordem e a decência de um velório normal
(com velas, roupas novas), e os amigos de rua introduzindo cachaça, sanduíches
e charutos. Cerqueira também comenta o contraste entre as pessoas no velório:
Quincas Berro Dágua, vencendo a morte, opõe vida e morte; morte e vida.
Por outro lado, ao afastarem-se do caixão os amigos, pobres vagabundos,
aproximavam-se os parentes burgueses, opondo assim riqueza e pobreza:
‘Vanda, seu vestido de dia de festa, sua limpeza, os sapatos altos...’.
38
A autora refere-se à oposição de morte e vida, ou vida e morte. Entende-se
que para o protagonista morrer para uma vida nasce para outra. Ou seja, morre
para a família quando sai de casa, mas nasce para os amigos. Assim também se
opõem ricos e pobres. ainda o poder de, depois de morto, escolher a morte no
mar. Quincas causa também o riso carnavalesco, une povos diferentes, todos
riram com seu renascimento, todos bebem e cantam. Cerqueira define a história
de Quincas Berro Dágua como uma vida dupla, complexa, contraditória, imagem
que cria suas forças e o seu realismo histórico (neo-realismo). Ainda existe a
presença cômica e burguesa paralelamente na celebração de sua morte.
Cerqueira comenta que (ficcionalmente) Quincas teve três mortes.
Considerou a primeira morte para a família, a segunda para os amigos e a terceira
para si mesmo. Acredita-se que a autora refere-se à morte para si mesmo pelo fato
de o protagonista fazer escolhas em sua vida, mudar de realidade, inclusive
38
CERQUEIRA, Dorine. A ironia e A ironia trágica em a morte de Quincas Berro Dágua. Rio de
Janeiro: Razão Cultural, 1997. p. 98.
33
definindo a melhor maneira para ter sua morte definitiva, assim argumentando:
“Quincas não aceitava viver naquele mundo povoado de apáticos e negativistas,
amarrados às convenções sociais, presos ao círculo vicioso dos rituais sociais e
religiosos”
39
. Ele criou a sua liberdade de ser e realizar os seus desejos reprimidos
durante vários anos de convivência na família burguesa, realizou-se enquanto
satisfação pessoal e sentimental.
O homem não é predeterminado, ele é livre. Tenta distinguir a diferença de
existir e ser. Todos existem e têm o direito de serem livres, porém apenas alguns
buscam realizar seus desejos. O homem é o que ele consegue realizar. Os atos
definem o ser humano; o homem é condenado a ser livre, pois não se criou a si
próprio. Assim, o eu é definido como liberdade; quanto mais consciência mais o eu
existirá. Em suma, a autora afirmou sobre a liberdade:
Enfim, fica a liberdade de escolher entre duas possibilidades: opor-se à
história, o que faz uma limitada minoria (e neste caso tem a liberdade de
eleger entre o suicídio e o desterro); ou refugiar-se numa existência sub-
humana ou na evasão. Estas duas alternativas foram buscadas por
Quincas, num esforço, pretendendo o Ser Absoluto.
40
A citação indica a coragem de Quincas em se aventurar, arriscar, para
realizar suas vontades. Essas atitudes mostram o desejo de ser único em suas
decisões pessoais, sem influenciar-se. Escolher entre as duas classes sociais que
conhece, e decidir em qual deseja permanecer.
Ainda em relação à desvinculação de Quincas de sua família, Pereira
comenta que o personagem, ao passar a conviver com a classe marginalizada,
esquece totalmente a família, o que viveu anteriormente, ignorando os valores
burgueses. Assim, ocorre a desierarquização na literatura carnavalizada. O
protagonista apresenta-se em duas situações: o sério e o cômico.
Esse aspecto de se apresentar de duas maneiras também desencadeia outra
característica carnavalesca, uma vez que, a partir de distintos comportamentos e
várias pessoas, existem, inúmeras vozes, a polifonia sobre Quincas, seu caráter e
posicionamentos: visões do que ele representa para cada pessoa. diferença de
39
CERQUEIRA, Dorine. A ironia e A ironia trágica em a morte de Quincas Berro Dágua. Rio de
Janeiro: Razão Cultural, 1997. p. 122.
40
Ibidem, p. 138.
34
opiniões entre a família que viveu “vergonhas” com Quincas, e os amigos de beber
em bares e praça pública, parcerias. Pereira acrescenta:
O espírito de congraçamento popular, no carnaval tem seu espaço
caracterizado. Observadas diversas vezes na obra analisada, verifica-se a
multiplicidade de espaços (e de vozes por ser uma narrativa polifônica), à
medida que o personagem vai se delineando, a casa, a rua, bares...
41
Outra característica que a autora destaca é a coroação e sequente
destronamento. No carnaval, o rei é considerado essencial na festa e depois é
destronado desta caracterização. Isso aconteceu com Quincas, no momento em
que foram tirados os seus trajes carnavalescos e trocados por outros que não se
identificavam com sua condição atual.
O trabalho da funerária foi em vão praticamente, pois Quincas foi revestido
novamente. Ou seja, trocou todas as roupas adequadas de um “funeral normal” e
se vestiu com suas roupas velhas. Retoma, assim, seu lugar de rei às avessas.
Desfilou triunfalmente com os amigos, comemorando; trouxe alegria e realização
para seu povo.
Pereira (1984) chama a atenção para outro aspecto na novela de Jorge
Amado. O discurso bivocal, natureza dialógica em que a fala direta dos heróis.
As relações dialógicas, os estilos de linguagens, os dialetos sociais entre outros,
não destacados. “Ela afirma que Amado lança mão de figuras estilísticas podendo
causar um duplo sentido na narrativa.” As metáforas citadas circulam entre o
ridículo e o grotesco até o lirismo.
Diante da situação brasileira, de ser composta por uma sociedade indefinida,
variável, a novela de Amado apresenta a história de Quincas como uma maneira
de reconhecimento de uma possível sociedade brasileira. A partir dessas
características, estuda-se na sequência a teoria da carnavalização com seus
conceitos, concepções e influências na vida dos personagens em análise.
Considerar-se-ão as atitudes malandras, anti-heróicas, de negatividade e
singularidades do protagonista para realizar suas vontades no desenvolvimento da
novela.
41
PEREIRA, Cleonice de Oliveira. A teoria da carnavalização na obra de Jorge Amado A morte e a
morte de Quincas Berro Dágua. 1984. p. 22.
35
Capítulo 2
A BUSCA DE UMA IDENTIDADE CULTURAL
O carnaval é a festa do tempo
que tudo destrói e
tudo renova.
Bakhtin
36
2.1 Cultura e diversidade: identidade brasileira
A identidade brasileira é um aspecto de estudo necessário para que se
compreenda o ser, a formação de miscigenação, a identificação que se tem de país
diversificado perante o senso comum. De acordo com DaMatta
42
, a antropologia
social proporciona uma visão da sociedade aberta e relativizada pela comparação
de aspectos da sociedade brasileira que o povo enfrenta. Porque aqui como lá, o
Brasil está em toda a parte. Assim, remete a presença da identidade do país tanto
nas leis, quanto no jeitinho malandro. Tanto em um quanto no outro, as ações são
praticadas por indivíduos brasileiros.
O Brasil que se almeja popularmente é um país do povo e de suas coisas, ou
seja, uma pátria formada por leis da emoção, da amizade e que as pessoas possam
realizar seus “desejos” no meio social, conforme os realizam em casa. Ao empregar
essas leis (emoção e amizade), é possível participar de jogos espertos, vantajosos e
vivos da malandragem e do carnaval, e sem ser criminoso, experimentar a
marginalidade que tem hora para acabar. Assim, surge um Brasil relacional que
acumula riqueza e pobreza, ordem e desordem, hino sagrado com samba. Dessa
forma, pessoas que vivem no ambiente da ordem e também da desordem, e
outras que tentam se manter sempre em um único meio social, por exemplo, a
riqueza. Em suma, constata-se que um dos traços identitários dos brasileiros é a
busca pelo “bem estar" individual.
O antropólogo brasileiro Roberto DaMatta fala sobre tradições do país,
mostra definições de quem são e que identidade está sendo construída, apresenta
fatores que diferenciam a construção identitária, como experiências vitais,
necessidades básicas do ser humano e também por influências do ambiente em que
vivem. Assim ele expõe a cultura preservada pelos indivíduos no país:
Sei, então, que sou brasileiro e não norte-americano, porque gosto de
comer feijoada e não hambúrguer; porque sou menos receptivo a coisas de
outro país, gestos e relações sociais; porque vivo no Rio de Janeiro e não
em Nova York; porque falo português e não inglês; porque, ouvindo música
popular, sei distinguir imediatamente um frevo de um samba; porque o
42
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed.
Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
37
futebol, para mim, é um jogo que se pratica com os pés e não com as mãos;
porque vou à praia para ver e conversar com os amigos, ver as mulheres e
tomar banho de sol, jamais para praticar um esporte; porque sei que no
carnaval trago à tona minhas fantasias sociais e sexuais; porque sei que
não existe jamais um “não” diante de situações formais e que todas
admitem um “jeitinho” pela relação pessoal e pela amizade; porque entendo
que ficar malandramente “em cima do muro” é algo honesto, necessário e
prático no caso de meu sistema; porque acredito em santos católicos e
também nos orixás africanos; porque sei que existe destino e, no entanto,
tenho fé no estudo, na instrução e no futuro do Brasil; porque sou leal a
meus amigos e nada posso negar à minha família; porque, finalmente, sei
que tenho relações pessoais que não me deixam caminhar sozinho neste
mundo, como fazem os meus amigos americanos, que sempre se vêem e
existem como indivíduos!
43
O antropólogo apresenta nesta citação maneiras de definir o povo brasileiro,
características desta sociedade e mostra a realidade de algumas tradições culturais:
o carnaval, evento capaz de unir várias classes sociais em um único lugar,
oportunidade de utilizar a fantasia que desejar; a falta do não, fenômeno causado
pelo jeitinho brasileiro, pelo amigo, parente, ajeitação para privilegiar alguém que
depois possa lhe retribuir vantagens.
O referido jeitinho brasileiro serve para definir um traço identitário da nação
brasileira, e essa expressão é reconhecida dentro e fora do país. Por um lado, essa
atitude pode ser considerada uma virtude que usa criatividade e jogo de cintura para
resolver e superar dificuldades, mas, por outro, entende-se como um traço
lamentável do caráter brasileiro. O autor afirma que os cidadãos desta nação estão
dispostos a burlar as regras e leis para adquirir vantagens sobre os outros e
instituições. Na maioria das situações, o “jeitinhoé considerado uma solução para
amenizar as dificuldades, transformando-as em fatos solucionáveis. Esse jeito é
brasileiro, faz parte da identidade cultural de um ser que foi criado em uma casa, na
qual a família lhe ensina que é um ser especial e que para tudo solução. Por
maiores que sejam as dificuldades “na rua”, conseguirá superá-las, mesmo que para
isso, em alguma situação, sejam facilitadas as regras.
Sérgio Buarque de Holanda
44
, em seu texto, conceitua o homem cordial. O
autor situa essa definição em um homem que possivelmente ainda está presente na
atual sociedade brasileira. A primeira classificação remete à oposição entre Estado e
família, e afirma que não refletem às mesmas atitudes e comportamentos nos dois
ambientes, mas sim contrárias.
43
DAMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil . Rio de Janeiro: Rocco, 1984. p.16-17.
44
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympo, 1973. p. 56.
38
A definição de homem cordial não se baseia no sentido de ser gentil, mas
sim, conforme o vocábulo cordial: cordae coração voltado aos sentimentos. Dessa
forma, essa figura tenta resolver as dificuldades considerando o afetivo, sendo estes
bondosos ou maldosos. O cordial pode agir tanto na violência quanto na
solidariedade.
Esse autor ainda cita os resquícios herdados dos portugueses que buscavam
riquezas neste país, bem como trabalhos que fossem do seu agrado. Sobre este
aspecto, Sérgio B. de Holanda define: o que diferenciava a colonização portuguesa
era a "ética do aventureiro", que se caracterizava pela audácia, imprevidência,
irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem, indolência: "Na obra da conquista
e colonização dos novos mundos, coube ao trabalhador papel muito limitado, quase
nulo". Isto em contraponto à "ética do trabalhador", observada nas colônias
espanholas, que se caracterizava por atribuir valor moral positivo às ações as
quais se sente ânimo de praticar. E ainda lembra que a miscigenação foi importante
por herdar culturas de países diferentes como Portugal e Inglaterra.
Nesse sentido, o tempo e o espaço são invenções sociais. Sendo que, com o
passar dos dias e locais diferentes, são construídos pela sociedade dos indivíduos.
Para Roberto DaMatta
45
, a sociedade brasileira é individual quanto a esses aspectos,
pois nela há vários espaços (casa, rua e Outro mundo), em tempos diferentes,
ocasionados por situações distintas.
Da Matta define que a casa e a rua, acrescentadas pelo lugar do Outro
Mundo, formam os espaços fundamentais para compreender as vivências do país
brasileiro. Considerou os dois fatores como maneiras de avaliar esta sociedade,
posto que as normas, regradas em casa, são diferentes das da rua. A casa não é
regida pelas leis escritas do Estado, que podem modificar de acordo com os
governantes e rapidamente, mas sim por emoções e sentimentos, desejos. As
instituições públicas, a rua, sim, são controladas pelo Estado, mas os indivíduos
precisam viver nos dois ambientes adequando o apoio da família ao descaso do
Estado. O protagonista analisado nesta pesquisa é um exemplo de circulação nestes
dois ambientes, de sua maneira particular, de acordo com os desejos de ações que
alternam em áreas públicas, sociais e particulares.
45
DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
39
O Brasil é composto de uma vasta diversidade cultural, por isso estudam-se
tentativas de definir a identidade brasileira para compreender a cultura peculiar
deste país Laraia afirmou: “A natureza dos homens é a mesma, são seus hábitos
que os mantêm separados’’
46
. As diferenças de comportamentos, portanto,
distinguem os atributos de cada história, ressaltando a estrutura familiar como uma
influência nos comportamentos. Os diferentes comportamentos de acordo com os
ambientes físicos frequentados. Pode-se considerar que os determinismos sociais,
biológicos e geográficos não são suficientes para definir os comportamentos dos
indivíduos, que formam a cultura brasileira. Acredita-se que os fatores sociais e
econômicos também contribuem nessa definição, bem como as experiências que
adquirem cotidianamente.
A partir disso, todos os seus atos dependem de um processo de aprendizado,
pois “tudo o que o homem faz, aprendeu com os seus semelhantes e não decorre de
imposições originadas fora da cultura’’
47
a herança que as gerações anteriores
deixam a seus descendentes, as visões de mundo e das coisas que o rodeiam, os
valores morais; os traços culturais que identificam modos de agir, vestir, comer, falar,
caminhar no comportamento dos indivíduos, determinando os padrões aos quais vai
pertencer. Com base nisso, o sistema cultural depende da compreensão das
diversidades vivenciadas: princípios de juízos e raciocínios presentes na linguagem
ou nos hábitos de uma determinada cultura, pois a condição humana propõe que
todos os indivíduos podem alimentar-se, reproduzir-se, comer, beber, dormir, etc.,
porém não é definido o modo como cada um deverá fazê-lo. E é exatamente nessa
indefinição que surgem as diferenças, os estilos, os jeitos de cada um, de cada
família, comunidade ou do grupo, constituindo aquilo que se define de identidade
constituída de miscigenações.
Outro aspecto influente na diversidade cultural brasileira são as raças que
compõem o país. A partir da história, cada raça carrega as mudanças que
classificam e definem de acordo com as divisões raciais. Isso remete também à
miscigenação de raças, com ordens que as graduavam de maneira hierárquica.
Quanto à miscigenação, ela está presente em tudo, inclusive na comida em que
se mistura o “feijão” brasileiro, de uma determinada tradição étnica como a “massa”
46
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
p. 10.
47
Ibidem, p. 51.
40
italiana. Uma mistura cultural na culinária que auxilia na definição da existência de
três raças brasileiras (o branco, o mulato e o negro). Apesar da mistura de raças,
indícios de que o preconceito racial existe, fator confirmado, é um racismo “light”.
DaMatta acrescenta:
Na nossa ideologia nacional, temos um mito de três raças formadoras
originais. Não se pode negar o mito. Mas pode-se indicar que o mito é
precisamente isso: uma forma sutil de esconder de nós mesmos um sistema
de múltiplas hierarquias e classificações sociais. Assim, o “racismo à
brasileira” paradoxalmente, torna a injustiça algo tolerável e a diferença,
uma questão de tempo e amor. Eis, numa cápsula, o segredo da fabricação
de três raças.
48
Nesta citação, o autor refere-se às ideologias nacionais, bem como à relação
de união que essas três raças originais podem apresentar em celebrações culturais,
como o carnaval, os jogos de futebol e também em velórios, onde se apresentam
vários indivíduos juntos por um mesmo motivo. Nessas celebrações, parecem ser
esquecidas, superadas as diferenças raciais e os preconceitos. Outros fatores que
podem ser incluídos na miscigenação são os espaços que a sociedade frequenta:
casa, rua e Outro mundo. Sobre isso DaMatta argumenta:
Nós brasileiros, marcamos certos espaços como referências especiais da
nossa sociedade. A casa, onde moramos, comemos e dormíamos
vivemos enfim... A rua, onde trabalhamos e ganhamos a luta pela vida. A
cada um desses espaços, onde convivemos com parentes, amigos e
colegas de trabalho, devemos somar um outro, não menos referencial e
crítico. Quero referir-me ao espaço do outro mundo, essa área demarcada
por igrejas, capelas, ermidas, terreiros, centros espíritas, sinagogas,
templos, cemitérios e tudo aquilo que vemos e esse “outro mundo” onde,
um dia, também iremos habitar.
49
A casa, a rua e o Outro mundo representam três espaços frequentado pelas
pessoas. Assim, pode-se afirmar que no espaço da casa encontram-se o descanso,
o consolo das tristezas com o apoio dos familiares; apesar de que, com a evolução
tecnológica (uso da informática e celulares), o tempo para o diálogo familiar vem
diminuindo. O espaço da rua apresenta vários ambientes, em alguns casos,
conforme o de Quincas Berro Dágua, que frequentou locais desconhecidos para ele
até então que lhes despertaram curiosidade: festas, bares, casas noturnas.
48
DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p. 26-27.
49
DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p.109.
41
O Outro mundo remete a um ritual expresso na maioria das famílias
brasileiras, e que se refere à religiosidade, à fé, esperanças, súplicas, desejos e
também agradecimentos. Pedidos e agradecimentos feitos a seres superiores não
conhecidos, que vivem em outro mundo no qual um dia também se viverá. Esse é
um grande mistério que permite imaginá-los supostamente em sua constituição,
assim como a morte.
De acordo com DaMatta
50
, as celebrações realizadas no Brasil o da ordem
e da desordem, da junção de riqueza com ostentação, conforme as rebuscadas
fantasias e a liberdade de comportamento no caso do carnaval; e também da
renúncia, pobreza e sacrifício, no caso das ritualísticas procissões e festividades da
Igreja; o amor à pátria, expresso nos desfiles de sete de setembro, posses de cargos
públicos e também as celebrações mais familiares como casamento, batizado,
aniversário. São essas opções de ambientes e possibilidades de frequentar que
auxiliam na definição da cultura do país e também na construção identitária dos
indivíduos.
Outra celebração cultural é o carnaval, festa realizada pelo povo brasileiro
como um ritual, remetendo a uma segunda “vida” dos indivíduos. Nela os
participantes usam fantasias, uma desconstrução da oficialidade que, transpostas ao
conceito da teoria da carnavalização literária, remetem aos conceitos de Bakhtin
51
,
fazendo alusão à paródia, polifonia (as várias vozes), o picaresco, e elevando estes
como elementos fundamentais para a construção da identidade brasileira.
O estudo da carnavalização faz-se necessário para que seja possível
identificar as características desta teoria na narrativa de Jorge Amado, considerando
que o protagonista representa traços como anti-heroísmo, malandragem, cômico,
negatividade, que contribuem na construção da identidade e representações na
cultura de massa. Para entender melhor a representação da sociedade nesses
aspectos, estuda-se a seguir o carnaval, enquanto rito, e a teoria da carnavalização.
50
DAMATTA, Roberto. A Casa & A Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5. ed. Rio de
Janeiro: Rocco, 1997. p.108.
51
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005.
42
2.2 O carnaval e a teoria da carnavalização no olhar literário
O ritual do carnaval é conhecido pelo senso comum, um traço definidor da
identidade brasileira, rito que celebra uma festa livre, dispensando aspectos da
ordem. Festa em que se corporifica justamente o oposto da realidade do cotidiano
de cada indivíduo, podendo os pobres viver a fantasia de que não miséria, nem
dívidas, e os ricos podem celebrar uma festa sem serem identificados. No carnaval
livra-se também do trabalho e os excessos são permitidos: a festa, a dança, a
música, a bebedeira, que possibilitam realizar as fantasias reprimidas ou não.
Assim, o carnaval é uma festa popular conhecida como a celebração de
inversão e o momento em que as desigualdades sociais e as hierarquias
estabelecidas pela ordem da sociedade brasileira são desconsideradas, esquecidas.
As regras do mundo diário são nesse momento transformadas ao avesso; as
hierarquias são eliminadas, considerando que a ordem é a “desordem”.
O realismo grotesco de acordo com Bakhtin
52
, situado no sistema cultural por
intermédio dos princípios que celebram o cósmico totalizante de cada indivíduo, e
representam alegrias, sendo o porta-voz dessa manifestação o povo, que cresce e
se renova continuamente nesse ambiente de caráter alegre e festivo (não cotidiano)
que expressa um renascimento das manifestações desejadas e esperanças
renovadas.
Considera-se que também o rebaixamento do que é elevado por meio de
transferência ao plano material e corporal. “No realismo grotesco, a degradação do
sublime não tem caráter formal ou relativo. O alto e o baixo possuem um sentido
absoluta e rigorosamente topográfico’’
53
. Ou seja, não acessos formais, relativos
às degradações, ocorrem de acordo com os desejos interiores e exteriores.
Os universos estabelecidos pela competição, como a individualidade, também
são esquecidos no carnaval, e nesse período os cidadãos desfilam em praças
públicas aparentemente sem medo de violência. A inversão permanece no carnaval
inclusive na competição do concurso das escolas de samba, em que as escolhas
são de acordo com as competências e desempenho; não marcas de
sobrenomes, “jeitinhos”. Sobre esses aspectos, Bakhtin explica que o carnaval é
52
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. 2008. p. 17.
53
Ibidem, p.18.
43
“inversão, competição, troca de posição social, inversão do mundo em direção à
alegria, liberdade e igualdade de todos perante a sociedade.
54
Acredita-se que essas caracterizações definem as celebrações ritualísticas
do carnaval no Brasil. Sendo ele uma manifestação cultural com aspectos
“desejados” também em outros âmbitos do país, como, por exemplo, direitos iguais
para todos. DaMatta
55
considera o carnaval um espaço que une a cultura brasileira,
com suas diversas realidades, sem reconhecê-las. Ele cita a ordem versus a
desordem como fatores presentes na sociedade e no carnaval.
O ambiente também é um fator relevante no carnaval, uma vez que a praça
pública é um espaço onde todos os indivíduos têm liberdade de frequentar. Os
termos empregados são reconhecidos popularmente, ambíguos, havendo coroação
e destronamento. A festa é constituída também da morte e nascimento; morte da
identidade real para o nascimento, fictícia fantasia que representa. Sobre isso
Bakhtin diz: “O vocabulário da praça pública é um Jano de duplo rosto. Os louvores
como já vimos, são irônicos e ambivalentes no limite da injúria: os elogios são cheios
de injúrias, e não é possível traçar uma delimitação precisa entre eles”.
56
No carnaval uma sociedade transformada, unindo forças para celebrar
fantasias e festejar. o é um fenômeno literário, mas uma forma sincrética de
espetáculo ritualístico cuja linguagem de formas concreto-sensoriais simbólicas
exprime uma cosmovisão carnavalesca una e complexa. Essa linguagem pode não
ser adequada à linguagem verbal, entretanto é possível fazer uma transferência de
conceitos por meio de imagens sensoriais, a carnavalização da literatura.
Antigamente surgiram e se desenvolveram os gêneros literários. Os gêneros
literários antigos eram compostos de campos como o sério-cômico, contrários aos
gêneros elevados, que o: epopéia, tragédia e a retórica clássica. o diálogo
socrático, os simpósios, a poesia bucólica e a sátira menipeia pertenciam ao gênero
sério-cômico.
A carnavalização é uma teoria que tem uma longa história. No rito
carnavalesco manifestam-se desejos escondidos, revestidos de dança, risos. Em
relação à carnavalização enquanto rito do carnaval, uma definição clara deste
evento no texto Macunaíma: carnaval e malandragem, Gonçalves assevera:
54
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. 2008. p. 42-43.
55
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.
ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 32.
56
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. 2008. p. 142.
44
O carnaval se constitui como um dos rituais onde o Congregamento
popular expressa suas raízes, seus mitos, numa forma social de alegria e
congraçamento. O carnaval sendo, pois, uma manifestação lúdica coletiva,
descarta o realismo e a seriedade como normas sociais. Tanto quanto o
universo lúdico, o espaço da literatura carnavalizada se situa num plano
onde o riso, o êxtase, o espaço onírico, o grotesco, o picaresco, a ótica
visionária convivem lado a lado.
57
Partindo deste âmbito, o carnaval teve sua origem há muitos anos com
diversas manifestações em distintas partes do mundo, permitindo que seja pensado
como acontecimento simbólico. Tratando-se, porém, do carnaval como objeto de
análise, podem ser encontrados posicionamentos variados: opiniões afirmando a
permanência de alegria e festa, entretanto sofreu algumas transformações.
opiniões de que o carnaval moderno modificou-se tanto que em nada se relaciona
com as manifestações de outros tempos. Assim se analisada a carnavalização
enquanto fenômeno estético da literatura. Dessa forma, também encontra-se na
novela de Jorge Amado, investigando a sua narrativa a partir do gênero sério-
cômico inserido nesta, suas várias vozes, a polifonia.
Bakhtin intitula Dostoievski “criador do romance polifônico.” A polifonia é um
conceito emprestado da música, é o encontro de várias vozes, músicas que têm
duas ou mais partes (ou vozes) soando de forma simultânea. No conceito literário,
polifonia é a multiplicidade de vozes desprendida de um texto. Essas vozes não são
pronunciadas em diálogo representado por discurso direto, elas são pontos de vista,
são modos de presença no mundo.
Para o filósofo russo Bakhtin, no discurso de Dostoievski, os personagens
são ideólogos, defendem vozes que não necessariamente são a do autor. Os
personagens possuem sua autonomia e espaço para a exposição de opiniões,
porém entre eles mesmos são conflitantes, discordam uns dos outros, mas sem ter o
poder de anular ou negar o discurso do outro.
De acordo com os argumentos que são defendidos em cada opinião,
ressaltam-se alguns teóricos que defendiam a elucidação desse fenômeno
carnavalizado, tanto na linguagem quanto na prática social e cultural, repletas de
57
GONÇALVES, Robson Pereira. Macunaíma: carnaval e malandragem. Santa Maria: Imprensa
Universitária UFSM, 1982. p. 21.
45
motivações e sentidos, que foram se reformulando e sendo melhorados com o
passar dos anos. Com essa base, recorre-se aos trabalhos de Mikhail Bakhtin sobre
carnavalização:
O carnaval criou toda uma linguagem de formas concreto-sensoriais
simbólicas, entre grandes e complexas ações de massa e gesto
carnavalescos. Essa linguagem exprime de maneira diversificada e pode-
se dizer, bem articulada (como toda linguagem) uma cosmovisão
carnavalesca una (porém complexa), que lhe penetra todas as formas. Tal
linguagem não pode ser traduzida com menor grau de plenitude e
adequação para a linguagem verbal, especialmente para a linguagem de
conceitos abstratos, no entanto é suscetível de certa transposição para a
linguagem cognata, por caráter concretamente sensorial das imagens
artísticas, ou seja, para a linguagem da literatura. É essa transposição do
carnaval para a linguagem da literatura que chamamos carnavalização da
literatura.
58
O fenômeno da carnavalização literária se estrutura de alguns gêneros
menores e populares, e também o gênero cômico-sério que remonta à sátira
menipeia. Este gênero não apresenta exigências, como diz Bakhtin, quanto à
verossimilhança externa. Homens e ideias separados por séculos se encontram
para se confrontar. São apresentadas situações que provocam a experimentação da
ideia, representam-se inusitados estados psíquicos morais, e, frequentemente, a
loucura. O gênero refere-se à polêmica social midiatizada e do cotidiano.
Na tira menipeia, encontra-se o elemento cômico, totalidade de invenção
filosófica e temática, aventuras das ideias, suicídios, sonhos, loucuras, morte e vida.
De acordo com a teoria de Bakhtin, a sátira menipeia apresenta algumas
singularidades. Sumariando-as, a primeira peculiaridade é o aumento do peso
específico do elemento cômico que pode variar para mais ou para menos,
dependendo do autor.
A sátira menipeia é composta do diálogo filosófico, da aventura, do
fantástico, do sagrado e do profano. Entende-se que quanto mais elementos
diferentes ela tiver, com mais intensidade ocorre, bem como na relação de pesar,
raiva e riso, em conversas de mortos com vivos. Sobre essa característica peculiar
58
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 122.
46
que é a menipeia, Bakhtin
59
refere-se às combinações feitas entre fantástico livre e
simbolismo, os misticismos religiosos com o naturalismo de um submundo, e ainda
ressalta que essas manifestações, aventuras, ocorrem nos bordéis, feiras, prisões,
nos covis, etc.
Outra característica é a excepcional liberdade filosófica e de invenção do
enredo, sem compromisso algum com a verossimilhança; a fantasia torna-se mais
desejada. O fantástico assume caráter de aventura, muitas vezes simbólica ou
místico-religiosa. A invenção e o fantástico combinam-se pela capacidade de ver o
mundo. A sátira menipeia é o gênero das últimas questões, das palavras derradeiras
e dos atos do ser humano em sua totalidade. Há também, nesta característica, o que
Bakhtin denomina experimentação moral e psicológica, a representação de insólitos
estados psicológico-morais anormais do homem: loucura, devaneio, sonhos
extraordinários e paixões no limite da loucura.
Bakhtin, em seu estudo sobre Dostoievski, considera a polifonia na teoria em
análise como própria dos gêneros cômico-sérios, como diálogo socrático, sátira
menipeia e a própria paródia. As pesquisas feitas por ele partem do plurilinguismo
para chegar à carnavalização da linguagem. Essa organização ocorre nos livros
humorísticos, e vem a determinar o grupo social ao qual os personagens pertencem.
O autor mencionado analisa, ainda, o carnaval como uma festa popular, estando
especificado na carnavalização literária. Ele afirma a importância de todos obterem o
mesmo valor em uma ação carnavalesca:
O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divio entre atores e
espectadores. No carnaval todos são participantes ativos, todos participam
da ação carnavalesca. Não se contempla e, em termos rigorosos, nem se
representa o carnaval, mas vive-se nele, e vive-se conforme as leis
enquanto estas vigoram, ou seja, vive-se uma vida desviada de sua ordem
habitual, em certo sentido uma “vida ás avessas”, um mundo invertido.
60
Dessa forma, o carnaval é considerado como uma festa em que não
distinções. Todos são iguais (espectadores, atores, secundários, protagonistas) e
participam da mesma realização. Não ordem social a ser seguida; é celebrada
por todos. Na carnavalização não regras, normas ou proibições que venham
59
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 131.
60
Ibidem, p. 122 e 123.
47
determinar ou ordenar o sistema. Elimina-se a distância entre os indivíduos e o
destronamento, com ênfase nas mudanças e renovações.
A teoria da carnavalização apresenta em seus textos, em geral, mais de um
discurso, de maneira até contraditória. Fatores que causam o riso cômico, uma vez
que é engraçado ler uma afirmação e, logo adiante, no mesmo texto, a contradição
daquela opinião. Esse fator aponta para uma característica comum do povo
brasileiro: as diferentes opiniões que são costumes no país. O diferente, porém, é
que os textos não carnavalizados geralmente apresentam apenas uma visão dos
fatos. Mesmo que outras fiquem subentendidas, não há manifestações explícitas:
Quando o discurso se constrói de dois textos que se apresentam na forma de
uma disjunção total, de tal modo que um deles surge como a inversão jocosa,
paródica do outro, o resultado é uma típica inversão, ridícula ou risível da
visão de mundo habitual, essência do procedimento que Bakhtin batiza de
carnavalização.
61
A ação carnavalesca da coroação-destronamento é contemplada pelas
seguintes categorias carnavalescas: do contato familiar-livre (principalmente no
destronamento); das “mésalliances” carnavalescas da profanação (jogos com
símbolos do poder supremo e da excentricidade), as imagens possuem uma
natureza ambivalente, sendo biunívocas e englobam os dois lados: nascimento das
fantasias e mortes do cotidiano.
O destronamento também está presente na obra aqui analisada, posto que há
a imagem de uma morte como criadora. Este fator, por sua vez, faz com que toda a
teoria carnavalizada seja analisada nesta obra. A carnavalização não é só o riso, por
meio dela permite aos escritores fazerem denúncias sociais e críticas que
provavelmente levam os homens à conscientização e a melhorar em suas posturas.
A coroação-destronamento pode ser notada de várias maneiras em todos os
festejos do tipo carnavalesco, uma vez que o carnaval tem elementos de destruição
e também de renovação. Na coroação os momentos de alegrias, euforias. No
destronamento ocorre o oposto à coroação; enfatiza a mudança e a renovação.
O riso possui papel relevante na estrutura carnavalesca de mudanças e de
renovações. Na sua gênese o riso está relacionado às formas antigas do riso ritual,
61
LOPES, Edward. Discurso literário e dialogismo em Bakhtin. In: BARROS, D. L. P. de; FIORIN, J. L.
(Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 2003. p. 76.
48
pois ridiculariza de um modo para induzir a renovação por outro. A função da
ridicularização e do júbilo dá-se mediante esse ritual em forma de reação de todos
os tipos de crises, nos diversos modos de vida, quer seja na vida do sol, da
divindade, do universo ou do homem.
No livro de Roberto DaMatta, Carnavais, malandros e heróis, uma frase que
foi retirada da obra País do carnaval, de Jorge Amado
62
: “Só me senti brasileiro duas
vezes. Uma, no carnaval, quando sambei na rua. Outra quando surrei Julie, depois
que ela me traiu. A citação mostra que em outras obras o autor Jorge Amado
lembra o carnaval como uma característica típica dos brasileiros. Assim, na novela
aqui observada, a expõe de forma que é possível verificar as várias marcas de
carnavalização. Nessa frase o autor afirma condizer com o período histórico vivido
na época, porém também a ideia de certa tragédia de ser brasileiro, pelo fato das
traições.
Por outro lado, mostra o carnaval como um ritual brasileiro conhecido
mundialmente, de modo que caracteriza o país em um acontecimento que envolve
todas as classes sociais em um único evento. Ainda que, geralmente, o carnaval
seja realizado em lugares públicos como nas ruas, praças, utilizados também por
todos os tipos de pessoas, representa uma festa de integração, com música, danças
e principalmente fantasias que, ao usá-las, proporciona ao público se sentirem os
próprios personagens de suas vestes.
No rito carnavalesco há presença marcante da malandragem, de heróis
malandros, pícaros, configurados na representação da alma brasileira. A partir
desse “herói” investigam-se traços característicos como o riso e o satírico expressos
por traços como as espertezas do “jeitinho,” da malandragem, nos mais altos e
baixos níveis de elevação grotesca. E, assim, tudo isso pode auxiliar na concepção
da identidade nacional.
62 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.
ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 89.
49
2.3 A malandragem como ícone da carnavalização
O principal aspecto identitário estudado no anti-herói malandro é o caráter,
bem como a ideologia do conceito de carnavalização. Assim, analisam-se os
discursos e atitudes deste anti-herói relacionado ao meio em que vive, com a
manifestação de jeitos, arranjos e facilitações representando a identidade
predominante na carnavalização desta cultura. Para comprovar este traço cultural
brasileiro, DaMatta cita outros países como distintos daqui:
Nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra, somente para citar três
bons exemplos, as regras ou são obedecidas ou não existem. Nessas
sociedades, não nenhum prazer em escrever normas que aviltam o bom
senso e as práticas sociais estabelecidas, abrindo caminhos para a
corrupção burocrática e ampliando a desconfiança no poder público. Em
face da expectativa de coerência entre a regra jurídica e as práticas da vida
diária, o inglês, o francês e o norte-americano param diante de uma placa
de trânsito que diz ‘parar’ o que - para nós - parece um absurdo mágico.
Ficamos sempre confundidos e fascinados com a chamada disciplina
existente nesses países.
63
A cultura nacional brasileira se mostra diferente dos demais países. A
disciplina existente no exterior perante um sinal de trânsito obedecido causa
estranhamento; as regras são criadas e executadas. O anti-herói mostra em seus
discursos, suas relações com o conceito de intertextualidade definido por Julia
Kristeva
64
. Assim, o dialogismo designa a escritura ao mesmo tempo como
subjetividade e comunicatividade ou, melhor dizendo, como intertextualidade; ante
esse dialogismo, há a noção de “pessoa-sujeito da escritura”. Desse modo há
representação da identidade nacional com a carnavalização. Os anti-heróis
remetem aos “heróis” de baixo escalão, da gente popular caracterizado por definir
tipos como: trapaceiro, fundador e guerreiro.
Na teoria da carnavalização, os anti-heróis fundamentam-se como seres
picarescos, que superam as dificuldades utilizando-se de comportamentos como o
riso e a trapaça da malandragem. De acordo com essas características, citamos
também o jeitinho brasileiro definido por DaMatta:
63
DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p. 46.
64
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
50
Nesse sentido, o “jeitinho” é um modo simpático, muitas vezes desesperado
e quase sempre humano, de relacionar o impessoal com o pessoal,
propondo juntar um objetivo pessoal (atraso, falta de dinheiro, ignorância
das leis, vontade do agente da norma ou do usuário, injustiça da própria
lei, rigidez das normas etc.) com um obstáculo impessoal. O ‘jeito’ é um
modo pacífico e socialmente legítimo de resolver tais problemas,
provocando uma junção casuística da lei com a pessoa.
65
O anti–herói caracteriza-se como um ser que encontra maneiras de resolver,
solucionar todos os problemas e obstáculos enfrentados. Assim, em alguns casos,
utiliza-se de recursos facilitadores, por intermédio de um amigo, parente ou colega
que consiga auxiliar na aplicação da lei, excluir ou então acrescentar um artigo que
beneficia exatamente a condicionalidade de que o amigo precisa. E esse jeito, em
geral, diminui a carga de dificuldades, libertando os indivíduos das pressões
impostas pela sociedade.
Dessa forma, esse recurso anti-heroico remete à definição de um ser cultural
do país brasileiro, o malandro. Ao pensar nesse indivíduo rememoram-se situações
cotidianas, reais, em que essas características foram fundamentais e resolveram a
situação. A literatura teoriza esses comportamentos no conceito da carnavalização,
pois ela é um traço presente na identidade da nação brasileira. Essas ações
remetem ao passado, presente e possivelmente futuro dos indivíduos em seus
trabalhos, na lei de trânsito, na escola. Destaca-se aqui que, na educação escolar,
as facilitações não são solicitadas somente pela classe dos alunos, mas também
dos pais para proteger os filhos, tentando diminuir o sofrimento das crianças e
jovens brasileiros.
Os anti-heróis são picarescos e, assim, conseguem superar as adversidades
se utilizando do riso, da trapaça, da malandragem. Eles têm relação com as
narrativas que originaram os povos e que constroem perfis da nação brasileira.
Como se afirma no neo-colonialismo, as relações entre as pessoas são objeto de
investigação. Inclusive nesse aspecto comentado, a dominação dos centros sobre
as periferias ainda é identificada, e possibilidade de aumentar no cenário em que
vivemos de globalização econômico-cultural. Assim, essa relação eu/outro é
necessária para esclarecer a construção dos discursos identitários e desde a crítica
pós-colonial não se evita esse confronto de alteridade em que todo o homem social
interage e interdepende de outros indivíduos.
65
DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p. 48.
51
O suposto início do romance malandro foi com o protagonista Leonardo no
livro Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antonio de Almeida. O
sequente reforço deste romance foi, como afirma Antonio Candido, com Macunaíma,
o herói sem nenhum caráter
66
de Mário de Andrade, em que cria as raízes
necessárias para a definitiva introdução do ícone no imaginário brasileiro e,
consequentemente, no romance nacional. Dessa forma, o personagem malandro
teve sua origem ainda na sociedade de comandos escravocrata, porém essa
tipologia permanece ultrapassando vários períodos históricos, bem como
adequação desses personagens com os diferentes contextos brasileiros. Esta
pesquisa, entretanto, terá como foco de análise um malandro que viveu em um
período após a escravidão, e as características deste herói/anti-herói podem ser
identificadas em A morte e a morte de Quincas Berro Dágua de Jorge Amado
publicada em 1959, no s-modernismo, carregada de ironia e humor. O malandro
Quincas é caracterizado como um personagem que é capaz de definir o rito
carnavalesco, bem como representar o dilema brasileiro.
Desde o descobrimento do Brasil, tenta-se definir uma identidade nacional, a
pluralidade e a mestiçagem permanecem como características que se identificam
definidoras do caráter dessa sociedade. Para concretização de tentativas acessíveis,
de realização e superação vital, a figura do malandro direciona-se para ambientes
ou indivíduos diferentes dos que convivia. contato com aglomerações, favelas,
que exemplificam detalhadamente as artimanhas facilitadoras de executar atitudes
malandras.
Ao se fazer referência aos espaços em que o indivíduo malandro vive,
percebe-se que geralmente este não tem um local definido. Circula da casa de um
amigo na periferia até uma vila popular, e assim os malandros frequentam locais
marginais.
Outro fator que se modifica na figura do malandro é o trabalho. Mesmo em
contextos diferentes, o malandro vive em busca da felicidade. Seu foco é esse; não
se preocupa e não almeja o trabalho, mas, sim, volta sua atenção às amizades
convenientes que sempre precisa conservar. No amor sempre busca novidades do
66
ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
52
que viveu na realidade normal, inclusive em ambientes diferentes. Em relação à
definição dessa figura, Milton explica:
Desse quadro, emerge a figura do malandro e a sistemática da
malandragem como práxis alternativa à superação dos obstáculos,
fundamentando-se na consciência de que o trabalho não é conduto eficiente
para a promoção social. Deslocados das esferas de prestígio, os seres à
margem da dinâmica social redesenham a cidade com seu deslocamento
para áreas periféricas que comporão arremedos urbanos do universo
burguês, tais como os subúrbios, os bairros afastados, os conglomerados
coletivos que originaram, no caso do Rio de Janeiro e posteriormente no de
outros centros urbanos, a vida no morro e na favela.
67
O malandro também é considerado a partir de sua representação simbólica,
que é uma amostra de ordem que viveu e conhece e a desordem que encontra
nessa vida da malandragem. Essa figura é constituída de características que
facilitam a solução de seus problemas. Eles têm senso de humor, espírito festivo,
jeito calmo, acessível, vivendo na ajeitação, porém sem ser extremamente maldoso
e assassino. Também sobre esse aspecto Milton complementa:
Apesar desse vetor, o malandro, como representação simbólica seguirá
instalado no mundo da ordem/desordem condensando em si ambiguidade,
humor, festa, além dos anseios populares de inversão das normas
estabelecidas. Continuará protagonizando letras de samba e enredos de
carnaval, cingindo-se plenamente aos modelos vivos presentes na realidade
social, modelos que tanto não se ajustam aos padrões do trabalhador
comum, quanto o se inserem no universo do banditismo. Vertente
importante na literatura brasileira reflete, em sua poética e nas formulações
críticas, tal tensão.
68
Em suma, o herói do romance é geralmente caracterizado pelo senso comum
por atitudes de coragem, fidelidade, verdade, justiça e história amorosa. Esse herói
se opõe às dificuldades de frente, com persistência, buscando realização. É um
protagonista simpático, honesto, defende sempre a verdade. No amor é romântico,
gentil e fiel, contido, dentro de uma história com sentimentos amorosos. Assim o
malandro pode mesmo ser considerado um anti-herói, herói ao contrário, às
avessas, características inversas das citadas anteriormente. Acredita-se que a
malandragem permanece ao longo dos séculos e se aprimora, pois antigamente
67
MILTON, Heloisa Costa. O malandro. In: BERND, Zilá. Dicionário de figuras e mitos literários das
Américas DFMLA. Porto Alegre: Tomo Editorial Editora Universidade, 2007. p. 397.
68
Ibidem, p. 397.
53
existiam menos malandros ou com menos intensidade, fator que aumentou e
dificultou inclusive a caracterização dessa figura; não se distingue a necessidade
da suposta verdade da trapaça, entre outros.
Em Carnavais, malandros e heróis
69
, Roberto DaMatta, comenta e/ ou
estabelece uma estrutura das celebrações da realidade social brasileira. Destacou
os ritos como: carnavais, paradas e procissões; cada um desses apresenta seus
dilemas sociais. Assim, a malandragem serve como um recurso mediador de viver a
vida. A malandragem é um recurso relacional que se representa em meio às atitudes
de caráter sagrado, generoso e, por outro lado, individualista. Com base nessas
duas representações encontra-se a cultura social brasileira, bem como suas divisões
de tipos de indivíduos.
O Brasil é conhecido pelo senso comum como o país do carnaval, samba e
futebol. Assim, poderia acrescer-se a malandragem com suas características
aguçadas na sociedade, bem como, na música, na literatura e no folclore. Roberto
DaMatta
70
, criou uma maneira de referir a malandragem como: a sociologia da
malandragem, as atitudes dessa figura na sociedade.
69
DAMATTA. Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed.
Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
70
Ibidem,1997.
54
Capítulo 3
O ROMANCE MALANDRO, ANTI-HEROICO NA SOCIEDADE
BRASILEIRA
O carnaval é um espetáculo sem ribalta e
sem divisão entre atores e espectadores.
No carnaval todos são participantes
ativos, todos participam da ação
carnavalesca.
Bakhtin
55
3.1 Ambientação da novela
No segundo capítulo falou-se sobre a teoria da carnavalização, bem como
suas características e supostas definições da identidade brasileira. Aqui, neste
terceiro capítulo, busca-se analisar a obra de Jorge Amado. Para isso leva-se em
consideração a morte e vida do protagonista.
Dessa forma, ressaltam-se aspectos como os ambientes frequentados por
Quincas: a transformação de Barnabé em malandro; a carnavalização da novela
(família x amigos); e as mortes. Busca-se entender de que maneira esses aspectos
podem ter auxiliado na definição identitária de um suposto caráter brasileiro como o
de Quincas Berro Dágua.
De acordo com a orelha do próprio livro analisado, A morte e a morte de
Quincas Berro Dágua foi publicado, pela primeira vez, em 1959, na Revista Senhor.
O contexto histórico deste período foi um momento de transição no país, logo após a
Guerra Mundial, e a expansão do processo industrial brasileiro com o então
presidente Juscelino Kubitschek.
Assim, historicamente, Juscelino governou o país de 1956 a 1961, período
reconhecido por modernização e desnacionalização. Juscelino foi eleito, mas logo
em seguida houve um golpe dos udenistas inconformados com a derrota, tentando
impedir a posse de Juscelino e Goulart. As forças do Ministério da Guerra reagiram
desmontando essa conspiração e a posse foi garantida
71
. O lema desse governo
foram os grandes feitos, “fazer o Brasil crescer 50 anos em 5.’’ Ocorreram
construções de usinas, instituição da indústria automobilística, ampliação da
produção de petróleo e construção de rodovias, porém, toda essa modernizadora
política de Juscelino, torna-se desnacionalizadora e desigual.
Possivelmente por estar acontecendo essas mudanças, a população
enfrentava dificuldades para participar e acompanhar as novidades. Assim, acredita-
se que, as várias exigências no empreendimento podem ter influenciado Jorge
71
COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e geral. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 549.
56
Amado nos seus textos. Ao criar, o protagonista da novela aqui analisada, Quincas
Berro Dágua o qual pode mudar de vida e ambiente de convívio.
Vinham ocorrendo mudanças e oposição entre o socialismo e o
capitalismo. O Brasil era um país extremamente capitalista e burguês, no qual os
poderosos e governantes tentaram banir as ideias “ilegais” dos comunistas que
buscavam liberdade e igualdade. A partir desses impedimentos, o grupo dos
comunistas enfrentou várias repressões impostas pela classe burguesa dominante.
Jorge Amado apresenta as ideias comunistas, socialistas e as capitalistas
nessa novela, pois junta a classe dominante e a popular no mesmo enredo, fazendo-
as frequentar o mesmo local. O protagonista é o causador dessa mistura de classes,
pois este circulou de um ambiente para outro: do ambiente de casa, trabalho e
familiar, para o das ruas, da boêmia com os amigos.
A oposição básica, de acordo com Antonio Candido
72
, é feita das instituições
da ordem e do capital versus liberdade e desordem. Assim, a família e vizinhos, e
os chefes do trabalho de Quincas, representam a ordem, ligados diretamente ao
autoritarismo burguês e ao poder hierárquico. Os amigos e as prostitutas
representam a desordem manifestando a luta pela liberdade e a vida na
malandragem.
Roberto da Matta
73
sobre essa oposição diferencia os ambientes: a casa e a
rua, afirmando ser um fator sico para a análise do mundo social brasileiro e os
rituais celebrados. A rua representa o mundo, imprevistos, acidentes, paixões, ação
e novidade. A casa remete a um universo controlado, onde as coisas estão no seu
devido lugar (harmonia e calma). Acredita-se que Jorge Amado utiliza-se desses
ambientes para poder mostrar um panorama da sociedade brasileira, formada de
uma vasta diversidade cultural, classes sociais diferentes, vinculado com destaque
ao popular e apontando para uma figura típica deste país: o malandro representado
por Quincas Berro Dágua.
Para poder entender o percurso e caracterização “malandra” traçados pelo
protagonista, todavia, citam-se alguns ambientes e situações percorridas por ele. Os
ambientes da novela são diversos, entre estes destaca-se o local em que Quincas
supostamente morreu pela segunda vez. Esse é um quarto pequeno em que não
72
CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de
milícias). In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, USP, n. 8, p.67-89, 1970.
73
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.
ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 90.
57
havia espaço nem para a sua família sentar-se. Vanda, sua filha, teve de frequentar
esse local
74
: “Procurou onde sentar. Tudo que havia, além do catre, era um caixão
de querosene vazio. Vanda o pôs de pé, soprou a poeira, sentou-se. Quanto tempo
demoraria o médico a chegar?.”
O protagonista viveu a maior parte de sua vida com a família, então na classe
dominante. Os últimos dez anos ele vive ao lado da classe popular em ambientes
pequenos e sujos. Esses são espaços que para ele representavam liberdade; tinha
opções de escolha de locais a frequentar e amigos para conviver.
Quincas é o elemento central na construção dos espaços opostos na novela.
Nessa perspectiva surge a rememoração do passado e o deslocamento para a vida
presente que tem seus resquícios anteriores.
Parece que Berro Dágua relativiza os ambientes opostos para um local
mítico da sociedade brasileira. O ambiente mítico em que se celebram rituais
imaginados popularmente. Dessa forma, um dos temas principais celebrado
miticamente é a morte que permite a consciência dialógica imaginária popularmente.
A ambientação da praça pública mostra na novela uma tradição marcada
pela devoção à natureza, à terra e ao mar, vistos como locais sagrados. A praça
pública é um ambiente popular em que se expressam os rituais pagãos. Assim, o
paganismo é representado pelo dialógo circular da renovação do protagonista. Ainda
remete a uma morte carnavalizada, em um ritual que tentava firmar o infinito de
acordo com a falibilidade do tempo.
No ambiente da casa de Quincas, a família e o santeiro acreditavam na
salvação cristã, de modo que os familiares tentam organizar um velório ritualístico
da Igreja católica, com acessórios adequados. Do confronto oposicional entre a casa
e a rua, Jorge Amado construiu a novela representando os diversos discursos de
maneira paralela, igualitária, pois apresenta as diferentes opiniões, com
neutralidade, enfatizando a caracterização da vasta índole brasileira, com a
possibilidade de misturar as consciências na tentativa de definir um traço comum
nos personagens; o jeitinho brasileiro de se comportar, adequado ao ambiente casa
ou rua, transpassado como traço definidor da identidade brasileira. Assim
apresentam-se a seguir os locais frequentados pelos amigos de Quincas e a família:
74
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 27.
58
Os patifes que contavam, pelas ruas e ladeiras, em frente ao mercado e
na feira de Água dos Meninos, os momentos finais de Quincas (até um
folheto com versos de pé-quebrado foi composto pelo repentista Cuíca de
Santo Amaro e vendido largamente), desrespeitavam assim a memória do
morto, segundo a família. E memória de morto, como se sabe, é coisa
sagrada, não é para estar na boca pouco limpa de cachaceiros, jogadores
e contrabandistas de maconha. Nem para servir de rima pobre a
cantadores populares na entrada do Elevador Lacerda, por onde passa
tanta gente de bem, inclusive colegas de repartição de Leonardo Barreto,
humilhado genro de Quincas.
75
Os amigos de Quincas tentam espalhar a notícia da morte do ente querido
em todos os locais públicos a que tiverem acesso, possivelmente na intenção de
dividir a sua dor, sentimento de perda, comportamento considerado normal na
cultura popular. A família, no entanto, sente vergonha da morte de Quincas e por
isso se opõe à sua divulgação, ainda mais em ambientes frequentados por eles,
como o elevador - mbolo - da cidade de Salvador também usado pela classe
dominante, ambiente público, opondo-se assim aos “patifes”.
Para esclarecer melhor os ambientes frequentados pela família de Quincas,
apresenta-se a seguir a composição familiar, bem como os antecedentes deste
protagonista e suas relações nos diferentes ambientes de que fazem uso. A família
representa a classe social dominante e burguesa, espaço de repressões, de
acomodação e não desejo.
3.2 A família de Quincas e suas ambientações
Os membros da família de Quincas são representados por Vanda, a
filha; a mulher, Otacília, os netos, a tia Marocas, o tio Eduardo, o genro Leonardo, o
padre Roque e o santeiro. No que se refere aos antecedentes familiares, pode-se
afirmar que o protagonista pertenceu a um grupo de família que defendia valores
morais e éticos com a instituição de repressões e poderes.
A família de Quincas na presença da filha, genro e tio Eduardo,
discutiram o destino do velório do protagonista em um restaurante. O mesmo
75
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo:
Companhia das Letras,
2008. p. 17.
59
localizava-se na Baixa dos Sapateiros, um ambiente situado próximo das casas
noturnas e bares. Assim, para providenciar o funeral, eles utilizam um “jeitinho”, uma
facilitada, desconto nos gastos, uma vez que o proprietário da funerária é um amigo,
conhecido de Eduardo o irmão de Quincas. Jorge Amado, deste modo, demonstrou
na novela:
O conselho de família não durou muito tempo. Discutiram na mesa de um
restaurante na Baixa dos Sapateiros. Pela rua movimentada passava a
multidão. Álacre e apressada. Bem em frente, um cinema. O cadáver
ficara entregue aos cuidados de uma empresa funerária, propriedade de
um amigo do tio Eduardo. Vinte por cento de abatimento. Tio Eduardo
explicava: - Caro mesmo é o caixão. E o automóvel se for
acompanhamento grande. Uma fortuna. Hoje não se pode nem morrer.
76
A família verdadeira de Quincas sentia-se incomodada nessa situação de
escolha do funeral. Os comentários demonstram o desinteresse em gastar com ele,
lembrando a economia. Outro fator destacado é a praticidade com que os familiares
tratam de uma morte, pois em momento algum houve choro ou exclamação de
tristeza; pelo contrário, sensações de alívio.
A decisão tomada pela família foi de que a celebração do velório do
protagonista seria no quarto em que ele viveu os últimos dez anos. Aos olhos dos
familiares esse local estava rodeado de prostitutas e malandros. Eles, portanto,
apresentam um cronograma para não cansar muito no velório:
Haviam estabelecido uma espécie de turnos de revezamento: Vanda e
Marocas pela tarde, Leonardo e tio Eduardo pela noite. A ladeira do
Tabuão não era lugar onde uma senhora pudesse ser vista à noite, ladeira
de má fama, povoada de malandros e mulheres da vida. Na manhã
seguinte toda a família se reuniria para o enterro.
77
O velório de Quincas foi todo celebrado de maneira diferente do que o senso
comum conhece. Uma das poucas atitudes reconhecidas nas celebrações de
velórios populares foram as vestes novas escolhidas pela filha. Ela tentou
descaracterizar o pai do ambiente atual, eliminando todos os traços de vagabundo.
Vanda o vestiu como se o tornasse novamente Joaquim Soares da Cunha, seu pai,
com quem ela conviveu, conforme mostra a imagem a seguir retirada do filme
76
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 31.
77
Ibidem, p. 37.
60
Quincas Berro Dágua, em que Quincas no caixão representado pelo personagem
Paulo José, Mariana Ximenes interpreta a filha Vanda, Vladimir Brichta interpreta o
genro Leonardo, Germano Haiuti representa tio Eduardo e Walderez de Barros
representa a tia Marocas.
FIGURA 1 – VANDA-(MARIANA XIMENES) VESTE SEU PAI, DESCARACTERIZANDO-O
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=Ph14cRyrS3o.
site oficial:http://www.quincasberrodagua.com.br
Porque se impunha finalmente sua vontade, a filha devotada restaurara
Joaquim Soares da Cunha, aquele bom, tímido e obediente esposo e pai:
bastava levantar a voz e fechar o rosto para tê-lo cordato e conciliador. Ali
estava de mãos cruzadas sobre o peito. Para sempre desaparecera o
vagabundo, o “rei da gafieira”, o patriarca da zona do baixo meretrício.
78
A citação aponta para a necessidade que a família sentia de vê-lo
transformado, reconstituído como era antes. Assim, junto com a morte, apagavam-
se os traços de malandro e rei daquele povo “alegre e popular”. Diante disso, tenta-
se a seguir definir a índole do protagonista, Quincas Berro Dágua, antes de
abandonar a sua família.
Os comportamentos de Joaquim Soares da Cunha foram recordados pela sua
família, principalmente pela filha, Vanda. Percebe-se que ela não consegue se
conformar com a mudança de vida do pai. A imagem a seguir, retirada do filme
Quincas Berro Dágua, mostra a vida do protagonista anterior à boemia. Seus
momentos de “sucesso” no trabalho e na família, aos olhos dos familiares tinha
78
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 40.
61
sucesso profissional, conforme observa-se na imagem do filme, em que o
protagonista interpretado por Paulo José se reúne com colegas de trabalho:
FIGURA 2 – MOMENTOS DE “SUCESSO” DO PERSONAGEM ANTES DA BOEMIA
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=Ph14cRyrS3o.
site oficial:http://www.quincasberrodagua.com.br
O ambiente familiar parece ter resquícios do capitalismo burguês, os
interesses em aquisições materiais, trabalho excessivo e que se distanciam da vida
que o protagonista deseja viver. Pensa-se, pois, que sente falta de dialogar com a
família, planejar a vida com ênfase no lazer, distrações esquecidas naquele período
pela maior parte da população brasileira da classe dominante. Em síntese, acredita-
se que todos esses fatores influenciaram nas alterações de comportamento de
Joaquim Soares da Cunha.
3.3 Quem foi Quincas?
Ao tentar definir quem foi Joaquim Soares da Cunha, depois transformado em
Quincas Berro Dágua, utilizam-se algumas definições de DaMatta
79
sobre as
diferenças entre pessoa e indivíduo. A pessoa pode-se afirmar que se reveste de
79
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.
ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 222.
62
máscaras, influências a partir da família, associação, como se a sociedade atingisse
a totalidade sobre esse ser.
o indivíduo recebeu duas formas distintas. Uma enfatizando o eu
individual com base nos sentimentos, emoções e desejos, pretendendo a liberdade
e a igualdade e que a sociedade deve estar a serviço do indivíduo. A outra refere-se
à elaboração do polo social individual, a complementaridade de cada indivíduo
formando uma totalidade que precisa de todas as partes. Afirma-se, então, que o
protagonista define-se da seguinte maneira:
Quincas Berro Dágua Joaquim Soares da Cunha
Indivíduo Pessoa
Livre, tem direito a um espaço
próprio.
Presa à totalidade social à qual se
vincula de modo necessário.
Igual a todos os outros. Complementar aos outros.
Tem escolhas, que são vistas como
seus direitos fundamentais.
Não tem escolhas.
Tem emoções particulares. A
consciência é individual.
A consciência é social (isto é, a
totalidade tem precedência).
A amizade é básica no
relacionamento = escolhas.
A amizade é residual e juridicamente
definida.
O romance e a novela íntima,
individualista (obra do autor), são
essenciais.
A mitologia, as formulações
paradigmáticas do mundo são
básicas como formas de expressão.
A partir da apresentação dos dois tipos de personagens, percebe-se que o
protagonista da novela viveu a caracterização de ambos. Primeiramente, enquanto
pessoa, foi influenciado pela sociedade e pela família em suas escolhas. Na
descrição de indivíduo faz suas escolhas; a amizade é relevante e destacada.
Atenta-se para as opções que indivíduos e pessoas podem encontrar, pois há
na identidade nacional brasileira os dois perfis de cidadãos. Em outros países não
existe essa mistura de caracterizações sociais. Nos Estados Unidos, por exemplo,
63
excluem a definição pessoa; somente indivíduos. Na Índia, ao contrário, excluem
os indivíduos.
No Brasil, além de existirem os dois tipos de seres humanos, indivíduos e
pessoas, a ficção literária pode mostrar a possibilidade de mesclar as duas
caracterizações. Foi o que fez o protagonista, Quincas Berro Dágua, que conseguiu
experimentar as duas opções, mudando de comportamento e alertando para o poder
que se tem sobre a vida individual.
Possivelmente a vida para Quincas parecia banal; vivia a vida sem
entusiasmo, sem comemorações e desejava algo mais. É o que se pensa que a
maioria da sociedade brasileira busca viver: a diversidade e a novidade.
Dessa forma, referem-se às necessidades que os indivíduos m de aprender
mais, acrescentar o novo, adquirindo experiências de vida. No ambiente profissional,
a rotina de fazer todos os dias exatamente o mesmo trabalho pode desanimar,
portanto necessita-se de desafios, alterações de atividades, inclusive para reforçar a
dedicação e o aprendizado dos funcionários, principalmente sabendo valorizar e
reconhecer os esforços destes.
Acredita-se que Quincas cansou da mesmice de seus dias na classe
dominante, trabalhando excessivamente sem reconhecimento. Resolveu, então,
frequentar novos ambientes, como os bailes, as casas noturnas, os jogos de bicho e
de cartas, que disponibilizam novas oportunidades de expressar traços escondidos e
reprimidos de sua índole. Ainda sobre esse desejo de Quincas mudar de vida,
supõe-se que a esposa tenha sido um fator influente, pois aparentemente não o
incentivava a viver uma vida “mista”, composta de trabalho e diversão, mas somente
queria ver resultados financeiros.
Vanda, durante o velório, descreve o pai, rememorando-se à imagem dele
antes de abandoná-las. Ela o considerava um bom pai, apesar de meio ausente.
Ressaltou que as vitórias profissionais do pai eram geralmente comemoradas pela
mãe e reforçando a falta de “amor,” presente somente as intenções, interesses de
riqueza. Dessa forma, parece que o protagonista sempre demonstrou uma
insatisfação pessoal com a vida. Então Vanda lembrou-se:
Ali deviam estar somente ela, o pai morto, o saudoso Joaquim Soares da
Cunha e as lembranças mais queridas por ele deixadas. Arranca do fundo
da memória cenas esquecidas. O pai a acompanhá-la a um circo de
cavalinhos, armado na Ribeira por ocasião de uma festa de Bonfim. Talvez
nunca o tivesse visto tão alegre tamanho homem escarranchado em
64
montaria de criança, a rir às gargalhadas, ele que tão raramente sorria.
Recordava também a homenagem que amigos e colegas lhe prestaram, ao
ser Joaquim promovido na Mesa de Rendas. [...] Nesse dia quem estourava
de contentamento era Otacília no meio do grupo formado na sala. [...]
Parecia ela a homenageada.
80
A filha continua a lembrar o pai na sua infância. Afirma que ele foi um bom
pai. A passagem citada demonstra que uma das poucas vezes em que Joaquim
Soares da Cunha saiu para a diversão, para o lazer com a filha, demonstrou
satisfação e alegria; porém, no dia que foi promovido, não manifestava realização,
parece que desejava sucesso nas relações familiares em primeira instância. O pai
sempre ajudou a cuidar da sua saúde e de sua mãe, trabalhava e sustentava a
casa:
De novo regressou à infância, era ainda ali que encontrava mais precisa a
figura de Joaquim. Por exemplo, quando ela, menina de cinco anos, de
cabelos cacheados e choro fácil, tivera aquele febrão alarmante. Joaquim
não abandonara o quarto, sentado junto ao leito da pequena enferma, a
tomar-lhe as mãos, a dar-lhe os remédios. Era um bom pai e bom esposo.
81
Essa lembrança da filha, Vanda, rememorou-se a Quincas antes da vida
boêmia, considerando-o um bom pai. Os comentários dela apresentam um pai
dedicado, preocupado com a filha, que vivia em um ambiente de família da classe
dominante, tendo uma “boa índole”, um comportamento normal aos olhos do senso
comum.
O santeiro, que é um grande amigo da família e vivia visitando Joaquim
Soares da Cunha, reconhece-o como um bom homem. Ele admira uma foto do
protagonista, descrevendo-o em: “um colorido retrato de Quincas, antigo, de uns
quinze anos, senhor bem-posto, colarinho alto, gravata negra, bigodes de ponta,
cabelo lustroso e faces róseas.”
82
Toda essa “boa aparência” descrita se desconsidera em um determinado
momento da vida de Quincas. O santeiro, ao ver o protagonista em situações
adversas a essa descrição, se pergunta: O que levaria um homem a mudar de vida
80
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 41.
81
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo:
Companhia das Letras,
2008. p. 42.
82
Ibidem, p. 21-22.
65
dessa forma? Momento de uma possível explosão de sentimentos e desejos não
realizados, quando se transforma em um malandro típico de um mundo burlesco,
vasto de novidades.
Nesse momento da análise, tenta-se definir quem foi o protagonista, ou
seja, alguns comportamentos que serviram de base para identificá-lo com traços
típicos do malandro brasileiro; que vive sem trabalhar, de jogos de cintura (jogo de
cartas), bebedeiras, ele está despreocupado com a aparência e os bens materiais.
Assim, esses traços, podem ser considerados alguns aspectos traçados por uma
determinada parte da sociedade brasileira. Para iniciar essa busca lança-se mão de
uma das frases marcantes ditas pelo protagonista
83
: “O importante é tentar, mesmo
o impossível.” Essa afirmação vem esclarecer a falta de fé de Quincas nos valores
da ordem familiar, da Igreja católica, hierarquia e repressões impostas. Quincas
aponta para a possibilidade de realizar desejos reprimidos como: beber
exageradamente, visitar as prostitutas e jogar desenfreadamente com os amigos na
intenção de sair vitorioso. Dessa forma, representa uma imagem de deslocamento
de vida (de um mundo para outro). O poder de confrontar imposições e ultrapassar
limites.
Pode-se dizer que a bebida é um fator que transita em toda a vida boêmia
de Quincas. Pois é ela um aspecto central e alegórico na vida do protagonista,
inclusive no berro memorável que se sentiu ferido, pois tiveram a “coragem” de
apresentar-lhes água ao invés da cachaça:
E ai sobre o balcão viu uma garrafa, transbordando de limpídas cachaça,
transparente, perfeita. Encheu um copo, cuspiu para limpar a boca, virou de
uma vez. E um berro inumano cortou a placidez da manhã no mercado,
abalando o próprio Elevador Lacerda em seus profundos alicerces. O grito
de um animal ferido de morte, de um homem traído e desgraçado: -
Águuuuuuua!
84
A bebida é um aspecto central na sua mudança de vida e na celebração do
velório também. É certo que morre bebendo momento ilustrado na imagem abaixo. A
boemia apresentada passa a modificar todas as suas ações sequentes causando
um morto carnavalizado. A cachaça parece acompanhá-lo em suas escolhas
83
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo:
Companhia das Letras,
2008. p. 15.
84
Ibidem, p. 51.
66
Imagem do filme Quincas Berro Dágua, protagonista Paulo José representando o
personagem da novela de Jorge Amado - Quincas Berro Dágua:
FIGURA 3 – “QUINCAS (PAULO JOSÉ GOMEZ DE SOUZA) E A BEBEDEIRA”
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=Ph14cRyrS3o.
site oficial:http://www.quincasberrodagua.com.br
Notou-se, portanto, a vontade de mudar de vida, buscar a liberdade e a
diferença na celebração de suas ações. O protagonista, desde o início da
novela, tenta fazer a diferença, inclusive usando de dois nomes: quer a
mudança de vida para buscar a realização. Ainda se destacam as mortes que
tenta realizar em três etapas...
De acordo com as definições de DaMatta
85
, o autor Jorge Amado, desde
o início de sua carreira, ressaltou o carnaval e as diferentes relações entre os
indivíduos brasileiros. Os aspectos identitários reconhecidos no personagem
Paulo Riger, que enfrentava uma crise de identidade, busca a essência daquilo
que realmente significa ser brasileiro. Nos traços de Quincas Berro Dágua, o
autor apresenta características da teoria da carnavalização e também destaca
uma celebração ritualística que une várias classes sociais e etnias no seu
velório. Há, ainda, uma possível definição do perfil típico brasileiro - o malandro.
85
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.
ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 89.
67
A seguir apresentam-se distinções entre algumas figuras típicas da teoria da
carnavalização: o trickster, pícaro, anti-herói e malandro.
3.4 Quincas: transformação de Barnabé em malandro
Ao pontuar as quatro figuras típicas da ficção literária: trickster, anti-
herói, pícaro e malandro, e diferenciar as particularidades de cada definição,
busca-se esclarecer que semelhanças entre esses, porém também
diferenças. Possivelmente Quincas Berro Dágua se encaixa mais
completamente em um dos quatro, descritos a seguir.
De acordo com a definição em dicionário, nota-se que esse personagem não
aprende lições com suas perversões e também pode ser algum animal, o que é
único do trickster:
Os tricksters são descritos como figuras ambíguas e amorais que pregam
peças e podem ser humanos e animais, criadores e destruidores, heróis e
anti-heróis, mas também podem se tornar vítimas de suas próprias
trapaças.[...] subvertem regras e pregam peças em humanos e deuses.
86
De acordo com o Dicionário de termos literários, o anti-herói caracteriza-se
como:
anti, oposição, contra-heros, chefe, nobre semideus, pelo lat. heros, ois.
Designa o protagonista de romance que apresenta características opostas
às do herói do teatro clássico ou da poesia épica. O anti-herói não se define
como o personagem que necessariamente carrega defeitos ou taras, ou
comete delitos e crimes, mas como o que possui debilidade ou
indiferenciação de caráter, a ponto de se assemelhar a muita gente. É o
homem sem qualidades.
87
O pícaro é definido como pica, lança, picardo (habitante da picardia). Outras
etimologias têm sido propostas, remontando a vocábulos arábicos, como bikaron
86
MILTON, Heloisa Costa. O Malandro. In: BERND, Zilá. Dicionário de figuras e mitos literários das
Américas DFMLA. Porto Alegre: Tomo Editorial Editora Universidade, 2007. p. 641-646.
87
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004. p. 28-29.
68
(madrugador), bocaron (mentiroso), baycara (vagabundo), bacara (arrancar), ou ao
espanhol bigaro (vago, vicioso). Pode-se admitir como traços definidores que o
pícaro do século XVII é um moço nascido quase sempre de pais pobres e de baixa
extração, raramente honrados, o qual, por causa de más companhias ou por falta de
instrução, ao ver-se lançado na confusão da vida, entregue a si mesmo, cai na
vagabundagem, afasta-se do trabalho e luta pela vida como pode, com ousadia e
falta de escrúpulos, com enganos, malícias e más artes.
O malandro é definido como uma figura emblemática e original. O antigo e o
moderno, nas dependências e autonomia, ordem e desordem, ociosidade e
trabalho, acomodação e rebeldia, licensiosidade e liberdade, produtividade e
improdutividade, paixão e razão dentre outras contradições que modelam a
identidade nacional. Todos esses aspectos nas representações culturais podem ser
voltados às identitárias; o malandro ocupa lugar central, manifesta-se Heloisa Costa
Milton, falando sobre a definição que foi incluída no Dicionário de Figuras e Mitos
Literários das Américas DFMLA organizado por Zilá Bernd
88
. O malandro é uma
figura que incide sobre um campo cultural de longo alcance. Velho conhecido em
canções, obras literárias, danças e no teatro e também objeto de estudo da
Sociologia, História, Filosofia e Antropologia, ele se articula a partir de uma realidade
social e se imortaliza especialmente nas letras de samba.
A definição do malandro brasileiro surgiu na primeira metade do século XX. O
malandro não o trabalho como uma forma confiável de ganhar a vida,
escolhendo, portanto, outros caminhos mais práticos para a sua sobrevivência. Ele é
boêmio, sensível, sentimental, e se configura como um bom amante.
O malandro é um ser deslocado por excelência e se instala nos espaços de
carnavalização dos valores comunitariamente aceitos. Avesso ao trabalho, ele é um
tipo individualizado que possui um modo próprio de falar, andar e se vestir. Para
Roberto DaMatta
89
, no mundo da malandragem, o que conta é a voz, o sentimento e
a improvisação. Nesse universo, quem inventa as regras é o coração, o sentimento.
Para o malandro, a palavra de ordem é a sobrevivência. Definir o malandro em seus
vários aspectos não é, na verdade, uma tarefa muito simples, pois ele se constitui
88
MILTON, Heloisa Costa. O malandro. In: BERND, Zilá. Dicionário de figuras e mitos literários das
Américas DFMLA. Porto Alegre: Tomo Editorial Editora Universidade, 2007. p. 395-401.
89
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.
ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
69
em um personagem múltiplo: não é um trabalhador bem-comportado, mas também
não é o ladrão, o marginal; não pertence ao mundo da ordem, nem ao mundo da
desordem; é visto como um ser esperto, porém, se escorregar, pode tornar-se
marginal.
Para entender a criação e a permanência dessa figura na sociedade
brasileira, é preciso conhecer sua trajetória, cuja história na formação cultural
brasileira está ligada à criação das cidades brasileiras, em especial o Rio de Janeiro
– primeiro grande centro urbano. Com a vinda da família real para o Brasil, em 1808,
a provinciana Rio de Janeiro passa a ser sede da Coroa Portuguesa, tornando-se
depois sede do Império, originando novas formas de vida, novos hábitos, outros
valores, em virtude da organização de uma nova sociedade. São criados na Corte os
cafés, o teatro, o museu, a biblioteca, a livraria, a imprensa e outras instituições,
responsáveis por tirar a cidade do ostracismo cultural, no qual vivia.
Ao instituir novos hábitos no Rio de Janeiro, atendendo às necessidades de
uma população formada, em grande parte, por indivíduos pertencentes à nobreza
portuguesa e que se instalam na cidade, acabam surgindo as diferenças sociais. A
corte de D. João VI conta com, basicamente, duas classes de indivíduos: os nobres
e os não-nobres. Por outro lado, a sociedade carioca também agrega um
contingente de indivíduos sem reconhecimento social: os mulatos, negros libertos,
brancos não nobres, todos lutando pela sobrevivência em uma sociedade que
valoriza a fortuna, a herança nobre e as aparências. É nesse contexto que surge o
malandro, figura brasileira que talvez possamos entender melhor nas palavras de
Heloísa Costa Milton:
Desse quadro, emerge a figura do malandro e a sistemática da
malandragem como práxis alternativa à superação dos obstáculos,
fundamentando-se na consciência de que o trabalho não é conduto eficiente
para a promoção social. Deslocados das esferas de prestígio, os seres à
margem da dinâmica social redesenham a cidade com seu deslocamento
para áreas periféricas que comporão arremedos urbanos do universo
burguês, tais como os subúrbios, os bairros afastados, os conglomerados
coletivos que originaram, no caso do Rio de Janeiro e posteriormente no de
outros centros urbanos, a vida no morro e na favela.
90
No esclarecimento de Milton, as modificações nas cidades, as tendências e a
mistura de raças são propícias para o surgimento do malandro, figura que deseja o
90
MILTON, Heloisa Costa. O malandro. In: BERND, Zilá. Dicionário de figuras e mitos literários das
Américas DFMLA. Porto Alegre: Tomo Editorial Editora Universidade, 2007. p. 397.
70
anonimato e estar em ambientes populares, conforme Quincas ao viver na rua,
frustrado com sua falta de realização profissional, pois trabalhou muito tempo e a
sua premiação foi uma “caneta”. O malandro foi um personagem que permaneceu
no país desde sua origem. O jeitinho brasileiro de agir que facilitou a realização de
seus desejos reprimidos, apesar do grande poder dos governantes que tentam o
disciplinar. Quincas viveu em meio à ordem e à desordem, podendo inverter os
valores já vividos, mas os novos costumes adquiridos na boemia estão à margem da
sociedade, mas não são violentos.
Dessa forma, o malandro é a condensação das diferentes ideias, imagens,
costumes, comportamentos e ideologias advindas da tradição histórico-social e
cultural. Essa definição enfatiza o brasileiro como um ser alegre, com jogo de cintura
e eficaz no uso do “jeitinho” nas tentativas de solução de seus problemas.
O “jeitinho” e a malandragem compõem um conjunto de artimanhas utilizadas
para se obter vantagem em determinadas situações, as quais podem ser lícitas ou
ilícitas. Para o sucesso da malandragem, é necessário carisma, destreza, lábia,
sutileza ou quaisquer outros recursos que possibilitem a manipulação de pessoas no
sentido de obter destas o que se deseja.
O malandro é um tipo social que caminha em busca da felicidade e tem
desgosto ao trabalho. A sua ética consiste na lógica do prazer, sua regra é “levar
vantagem em tudo”. Assim, dispõe da malandragem como um recurso utilizado
também por outros membros da sociedade.
A intenção deste estudo, portanto, é analisar a manifestação e a
permanência de algumas características identitárias que se firmam na sociedade
brasileira e na ficção literária como um ícone: a figura do malandro. Para tanto, a
pesquisa verificará as características constituintes do personagem malandro na
novela aqui analisada com base nas definições do texto de Antonio Candido,
relacionando-a à teoria da carnavalização.
Na década de 70, Antonio Candido publica o ensaio Dialética da
malandragem,
91
que consiste em consagrar a obra Memórias de um sargento de
milícias como um romance capaz de promover a representação arquetípica da
sociedade brasileira contemporânea à narrativa, por meio do personagem Leonardo
definindo a figura do malandro.
91
CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São
Paulo: USP, n.8, 1970. p. 67-89.
71
Tenta-se, então, definir Quincas no perfil de malandro apontado por Antonio
Candido. O autor apresenta a dialética da ordem e da desordem como o princípio
formal das Memórias de um sargento de milícias. Na novela de Jorge Amado,
também se encontram os ambientes da ordem e da desordem. Analisando, assim,
um setor da sociedade que nem trabalha regularmente, nem acumula ou manda,
que é a camada social intermediária. Além disso, o crítico diz que a Dialética da
Malandragem está no centro de uma grande tradição literária brasileira, que vem da
Colônia e chega às obras do Modernismo Brasileiro.
De acordo com a ilustração da tese, Antonio Candido organiza as
personagens das Memórias nos polos por ele sugeridos: assim, utiliza-se dessa
separação para esclarecer os polos da novela de Jorge Amado: polo positivo e
negativo, colocando Quincas o personagem central - no plano, reservando a ele o
espaço central. Ao lado esquerdo da posição ocupada pelo protagonista, localizam-
se os que vivem segundo às normas estabelecidas pela sociedade, representados,
no caso, pela família. Ao lado direito do personagem central, situam-se os que vivem
em oposição às regras burguesas, ou seja, fora da ordem ou em conflito com a
ordem. Esta sociedade poderia ser representada com o seguinte esquema:
POLO POSITIVO
QUINCAS
POLO NEGATIVO
MUNDO DA ORDEM
MUNDO DA DESORDEM
FAMÍLIA DE
QUINCAS – OTACÍLIA,
VANDA, LEONARDO,
EDUARDO, SANTEIRO,
NETOS E TIA MAROCAS
OS AMIGOS DA
BOEMIA
Ainda para Antonio Candido, o polo positivo da ORDEM é atraído pelo polo
negativo da DESORDEM, o que confere à narrativa um movimento de alternância.
Como exemplo dessa oscilação entre ordem/desordem, o autor cita as ações em
torno dos personagens. No que se refere a Quincas, por exemplo, ora faz parte do
72
mundo da ordem de justiça –, ora ele escorrega para o polo da desordem
abandona a mulher, envolve-se com as prostitutas, o que o atrai para tentações
proibidas. Mais tarde, entretanto, no velório volta a conviver com a família, pois
Quincas é um personagem de rupturas pessoais, profissionais e inclusive na
celebração da morte.
O protagonista da novela de Jorge Amado viveu durante anos em uma família
burguesa bem constituída com sua esposa e a filha. Um homem trabalhador, que
não frequentava bares, mas não era reconhecido e valorizado pelos familiares.
Dessa forma, não o consideravam como alguém importante no ambiente familiar.
Acredita-se que essa falta de atenção frustrou Quincas. A dureza das dificuldades
cotidianas enfrentadas sem um suporte familiar podem ser aspectos causadores
para o desleixamento e a desistência dessa vida.
A falta de apoio da família, a suposta rudeza da esposa e o isolamento
profissional ou pessoal particular de Quincas o excluem das decisões do ambiente
em que vive diariamente. Todos esses aspectos podem causar uma transformação
vital, um abandono e uma mudança de estilo de vida, substituindo o ambiente de
ordem do trabalho e da família, pela liberdade dos ambientes públicos (festas,
bares, casas noturnas), desse modo convivendo com indivíduos de classe social e
realidade diferente da habitual.
As atividades realizadas passam a ter outro foco. Ao invés de Quincas
centrar-se no trabalho, centra-se nos jogos, nas diversões, no excesso de bebida;
parece tentar recuperar o tempo, viver as possibilidades de um mundo livre, boêmio
e malandro que ainda não conhecia, podendo já ter sempre desejado esse meio. No
relato do personagem, Vanda, ela recorda o provável momento da transformação
vivida por Quincas de Barnabé em malandro:
Era curioso: não se recordava de muitos pormenores ligados ao pai.
Como se ele não participasse ativamente da vida da casa. Poderia passar
horas a lembrar-se de Otacília, cenas, fatos, frases, acontecimentos onde
a mãe estava presente. A verdade é que Joaquim começara a contar
em suas vidas quando, naquele dia absurdo, depois de ter tachado
Leonardo de “bestalhão”, fitou a ela e a Otacília e soltou-lhes na cara,
inesperadamente: - Jararacas! E, com maior tranqüilidade desse mundo
como se estivesse a realizar o menor e mais banal dos atos, foi-se
embora e não voltou. Nisso, porém, não queria Vanda pensar.
92
92
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 42.
73
As expressões pronunciadas pelo protagonista para a filha e a esposa
denominando-as como “Jararacas,” vêm a confirmar suposições de culpa na
transformação de vida de Quincas. Assim, a acusação de “bestalhão” para o genro,
Leonardo, parece ter um tom de aviso para se cuidar com esposa e a sogra, ou seja,
que não se propusesse a suportar aquela vida de subordinação imposta por elas.
A transformação em Quincas trouxe o desleixo, avesso ao trabalho. De
acordo com Antonio Candido e suas definições sobre alguns personagens
malandros, conclui-se que Berro Dágua é um alguém igualmente revestido destas
características. O protagonista vive em bebedeiras, jogos e festa, arranjando-se nos
jogos com “jeitinhos” para se manter sem trabalho.
Roberto Schwarz, por sua vez, ao se referir ao conceito de malandro,
acrescenta a ideia de que essa figura, historicamente original, poderia sintetizar:
uma dimensão folclórica e pré-moderna o trickster; um clima cômico datado a
produção satírica do período regência e uma intuição profunda do movimento da
sociedade brasileira”
93
. Ressalta-se disso o movimento da sociedade brasileira, a
ideia de que os fatores centrais na novela são esses: os movimentos que são
capazes de diversificar personagens, classes sociais e ambientes; um
acontecimento encadeia-se ao outro e mais outro, o que faz assinalar que o livro
termina “quando efetivamente Quincas morre no mar, realizando um desejo,” então,
não são mais possíveis peripécias e as malandragens do “herói e do malandro”.
A novela de Jorge Amado é um retrato da realidade social de anos atrás, mas
que ultrapassa épocas por apresentar comportamentos como a malandragem,
hierarquias, diversidade nos valores sociais e que permanecem nesse país. Não se
pode deixar de enfocar, todavia, a revolução de buscar liberdade pessoal,
enfatizando as visões de viver a vida de maneira supostamente correta, melhor.
O Quincas Berro Dágua, depois da sua transformação em malandro, adotou
algumas atitudes, principalmente voltadas às dissimulações e espertezas. Dissimula
com a sua família e se torna esperto nos jogos, nas festas, com atitudes malandras,
facilitando o acesso, usando do jeitinho brasileiro. A transformação resultou também
nos aspectos físicos e não somente nos psicológicos, nos ambientes que passa a
93
SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de Dialética da Malandragem. In: LAFER, C.
(Org.). Esboço de figura: homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Duas Cidades, 1979. p. 133-
151.
74
frequentar e nas roupas que passa vestir
94
: “No catre, Quincas Berro Dágua, as
calças velhas e remendadas, a camisa aos pedaços, num seboso e enorme colete,
sorria como se estivesse a divertir-se”.
A citação chama a atenção para a falta de importância da aparência física
para o protagonista. Acredita-se que necessidade de refletir a relevância que as
vestimentas têm na vida das pessoas, podendo classificá-las e defini-las, avaliando-
se uma pessoa pelas roupas que usa. O que se pode ressaltar é o sorriso de
Quincas, a possibilidade de contentamento e realização de desejos sentimentais,
não somente valorizando os bens materiais e as máscaras de aparências que se
encontram na vasta sociedade brasileira.
Outra atitude típica de malandragem em Quincas é esse desejo antigo que
tinha de viver essa vida. Isto leva a questionar se ele é um indivíduo maldoso, pois
nota-se que está na sua índole a vontade de liberdade, de atitude malandra para
superar seus problemas. Pode-se dizer, portanto, que ele não é do mal, mas
também não é o que a sociedade burguesa e a família esperavam dele. A partir
disso, Tia Marocas tenta, na citação a seguir, explicar que Quincas sempre quis
libertar-se, fugir da vida familiar. Ele tinha o instinto, a índole de malandro, pois,
como afirma, ele tinha graça:
- Coitado do Joaquim... Tinha bom gênio. Não fazia nada por mal. Gostava
dessa vida, é o destino de cada um. Desde menino era assim. Uma vez, tu
lembra, Eduardo?... quis fugir com um circo. Levou uma surra de arrancar o
pêlo bateu na coxa de Vanda a seu lado, como a desculpar-se.- E a tua
mãe, minha querida, era um bocado mandona. Um dia ele arribou. Me disse
que queria ser livre como um passarinho. A verdade é que ele tinha graça.
95
Em suma, pensa-se que o essencial é ter liberdade para expressar o que se
almeja, valorizando os indivíduos pelo seu caráter e não pelo cargo, condições
financeiras e roupas que usa. Estabelecer esse olhar, no entanto, é um ato quase
inexistente na sociedade em que se vive, pois o que ocorre o olhos avaliando os
indivíduos por sua aparência, sendo um traço identitário vários anos. Acredita-se
que o próprio Quincas, personagem criado em 1959, é um exemplo ao ser rejeitado
94
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 23.
95
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo:
Companhia das Letras,
2008. p. 33-34.
75
e excluído pela própria família, ao tentar mudar seu comportamento. A família não
respeita e não aceita a escolha de Quincas de sair de casa para a vida na boemia. A
partir disso, a filha, Vanda, se preocupava com os comentários dos colegas de seu
marido, Leonardo, quando soubessem notícias de como seu pai vivia, local,
companhias e onde ele morreu:
O pior seria se a notícia se espalhasse entre os colegas, murmurada de
mesa em mesa, enchendo as bocas de risinhos maledicentes, de piadas
grosseiras, de comentários de mau gosto. Era uma cruz aquele pai.
Transformara suas vidas num calvário, estavam agora no cimo do morro,
era ter um pouco mais de paciência. Com o rabo do olho, Vanda espiou o
morto. estava ele sorrindo, achando tudo aquilo infinitamente
engraçado.
96
A citação mostra a excessiva preocupação de Vanda quanto às aparências e
à opinião das outras pessoas; o que vão pensar dela e de seu marido? No próprio
ambiente familiar era incentivada por sua mãe que dizia tudo iria dar certo em suas
vidas. Diante disso, evita tudo o que possa prejudicar sua imagem. No subtítulo a
seguir abordam-se as oposições apresentadas na novela pela família de Quincas e
seus amigos.
3.5 Carnavalização da novela
Após a transformação de Quincas e o abandono da família, a cada notícia
que estes recebiam dele sentiam-se envergonhados. Ressalta-se nesse momento a
intenção deste estudo de analisar a manifestação e a definição de um personagem
da literatura brasileira: a figura do malandro. Dessa forma, a pesquisa verifica as
características constituintes do personagem malandro em um corpus constituído
pela novela A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, em seu contexto histórico e
social. Busca-se analisar, portanto, os traços de Quincas que o definem como um
personagem malandro. Além da figura malandra, estudam-se também as
características da teoria da carnavalização, definindo aspectos identitários da cultura
popular brasileira.
96
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. P.27-28.
76
A representação social é um fator que marca a novela e a percepção de que,
aparentemente, não limites definidos para a dignidade, a ordem e a decência,
pois apresentou-se um Quincas trabalhador da Mesa de Rendas, bom pai, mas que
se transformou em um vagabundo, jogador e beberrão. Em alguns momentos
parece preso aos valores da ordem, porém, em seguida, revela-se pelo polo da
desordem.
Destaca-se, porém, um aspecto entre a ordem e a desordem que são as
mediações para que alcancem seus objetivos. As mediações podem ser
consideradas as ações facilitadoras que ajudam Quincas a realizar sua morte no
mar posto que isso ocorre pelo apoio dos amigos. A amizade foi uma fonte
mediadora utilizada inclusive pela família do protagonista que, ao comprar seu
caixão, usa da amizade do tio Eduardo com o dono da funerária para receber
desconto. Presume-se, então, que, em geral, todos utilizam-se de alguns recursos
do personagem pico malandro para realizar suas vontades, necessidades.
Consideram-se, por isso, as mediações um traço destacado na identidade do
brasileiro.
O personagem protagonista parecia tentado a essa mudança de vida. Algo o
distanciava do mundo da ordem. Neste cenário citam-se as provocações que
Quincas viveu: as oportunidades de tomar porres, viver com prostitutas e em mesas
de jogos, distanciado da rigidez de Otacília, sua esposa, e das exigências do
trabalho. Desse modo, fica explícita a livre movimentação entre os dois polos, pois,
no momento em que Quincas desce das alturas para o polo inferior, sucumbindo à
sedução da vida na rua, há a fusão dos hemisférios e Quincas se revela aos
malandros, que inconscientemente buscava.
O mundo hierarquizado de repente vem abaixo, ocorrendo a decadência da
suposta consciência ética, deixando à mostra que a chave para o mundo da ordem e
da desordem condena, mas também recupera o personagem e, às vezes, até o
promove aos olhos populares. Dessa forma, acredita-se que ressalta entre as
oposições, as repressões morais na sociedade relatadas em Quincas, fora da
consciência do protagonista. Ou seja, não arrependimento ou remorsos por parte
dele, mas sim relevância das vantagens que adquire.
Dessa forma, prevaleceram na novela as representações sociais entre o
confronto da norma e a conduta expressa pelo protagonista, traduzida como
“jeitinho,” traço esse que colaborou para a exclusão do trabalho na vida de Berro
77
Dágua. Com o fim do trabalho em sua vida, Quincas passa a ser visto como um ser
do mal pela família, porém entre os amigos de rua que convivem diariamente em
bares e praças é considerado um ser do bem.
Nesse ínterim, é difícil estabelecer uma definição sobre o que é um e outro,
pois uma grande mudança e circularidade de polos. Há, portanto, um princípio
moral que oscila entre o bem e o mal, com um compensando o outro, remetendo à
equivalência de que, numa sociedade como a brasileira, se restabelece a posição
normal de cada personagem, pois, à medida que os extremos se anulam, a moral
dos fatos é tão equilibrada quanto às relações dos homens adquiridas ao longo da
vida.
O humor e a linguagem oral apresentam o estilo descontraído que Jorge
Amado descreveu no jeito malandro de ser de Quincas, com expressões como:
vagabundo, canalha. Uma malandragem que pode ser definida como alegre, versátil
e criativa, característica de certos tipos de brasileiros e que dialeticamente se move
entre dois universos: o da ordem (o casamento, o trabalho e a família) e o da
desordem (a vida desregrada, as trapaças e as algazarras populares). Mostra,
portanto, uma sociedade que nunca encontrou efetivamente os caminhos da ordem
e, por isso, as formas espontâneas das relações da sociedade brasileira servem
para tornar flexíveis os choques entre a norma e a conduta, sendo menos
dramáticos os conflitos de consciência. Assim, ao mesmo tempo em que o Brasil é
formado por uma sociedade acessível, também uma sociedade incoerente,
sempre em busca de liberdade e realização de desejos, onde geralmente não
satisfação e realização. Em suma, parece que o acesso existe para facilitar a
realização total, mas esta nunca é alcançada, pois, a cada desejo adquirido, deseja-
se mais um.
A morte e a morte de Quincas Berro Dágua pode ser considerada uma novela
de ruptura: rompe com os modelos narrativos de tempo, espaço e composição de
personagem; rompe com os padrões linguísticos; o personagem principal é Quincas,
um típico malandro que busca liberdade. O personagem foi composto para
representar o desejo de uma variedade de pessoas que viveram naquela época e
possivelmente não tiveram a coragem do protagonista de manifestar suas
aspirações. Os espaços da novela o vários: catre, rua, casa, mar, bares, casas
noturnas. O tempo parece rememorar-se ao passado de Quincas, mas destacou-se
78
o tempo de seu velório, as mortes. O vocabulário também é popular, diferente do
falado pela burguesia daquela época.
Quincas pode ser considerado um protagonista moralmente neutro - amoral,
mas não sem moral. Ele, portanto, está na classe daqueles seres nem culpados,
nem inocentes, nem alegres, nem tristes, indiferente aos valores familiares. O
protagonista pode ser definido como uma síntese e um símbolo popular do que
muitos são e outros desejam. Pode-se considerá-lo um esperto ingênuo, capaz de
pequenas malvadezas e, por isso, o narrador, assim como o leitor, cria um estranho
carinho por ele.
O narrador apresenta as opiniões severas dos familiares, mas também a
defesa dos amigos. Pensa-se que os leitores ficam tentando julgar até que ponto ele
é bondoso ou maldoso, pois, apesar do tom irônico e engraçado do personagem, ele
também parecia ter sofrido quando a filha esteve doente ainda pequena e ele não a
deixava sozinha. Esses tipos de sentimento dele, e o olhar da composição de sua
família, despertam no leitor uma mistura de ternura e simpatia, pois, mesmo que o
malandro trapaceie e não trabalhe parecem existir justificativas para determinadas
ações, isso sempre ocorre de maneira acidental, “sem querer”, como justifica o
personagem , o herói é bom. Seus gestos e ações são todos gratuitos; é o fazer
pelo prazer de fazer e, por isso, beira mais o rivel do que a condenação de
Quincas.
Os personagens da família, todavia, não o condenam totalmente (Vanda e
Leonardo são os que mais ressaltam os “erros” do protagonista); para todos os
demais prevalece na definição a ironia, a graça e a resposta de sofrimento passado.
Há também a possibilidade de leitores e personagens que se identifiquem com
Quincas em alguns traços, talvez por já terem mentido, trapaceado ou se aventurado
em situações semelhantes às dele. A semelhança e reconhecimento pode ser um
dos fatores da aceitação do personagem malandro na sociedade e na literatura.
Ainda sobre o malandro, destaca-se que é um personagem com origem em
uma sociedade de ordem escravagista, mas que perpassa culos, permanece
como um dos estilos de vida vivido pelos brasileiro. Demonstra-se, com isso, a
capacidade de adaptação desse personagem a novos contextos históricos e sociais
que a população brasileira viveu. Desde 1808, com o personagem Leonardo, em
Memórias de um Sargento de Milícias, mais de um culo que se apresentou o
79
primeiro malandro e este, juntamente com Quincas, publicado em 1959, são
reconhecidos e lidos atualmente.
A novela, além de apresentar o personagem central malandro, possui
também uma estrutura carnavalizada. Na carnavalização literária juntam-se o
fenômeno do carnaval e a arte literária. Assim, Bakhtin afirma que nos dias de
carnaval as pessoas vivem um mundo às avessas do cotidiano, vivem um conjunto
carnavalesco formado por vários personagens e com temas diversos. Assim, unem-
se às características do personagem malandro os traços dos personagens
carnavalizados como a novela classificada nos gêneros sério-cômicos, no
dialogismo, coroação bufa e o mundo às avessas em A morte e a morte de Quincas
Berro Dágua.
No mundo da ordem, da família e da hierarquia, não a possibilidade de
Quincas abandonar esse universo para frequentar outro. Esse abandono de Quincas
seria realmente a morte dele como Vanda afirmou ao ver o pai sair de casa? De
acordo com as definições da ordem sim, pois Quincas saiu de casa e nunca mais
voltou, apagando de sua memória a família e o trabalho. Essa vida na rua, portanto,
é o mundo às avessas, invertido, proposto por Bakhtin.
No momento em que o protagonista sai de casa pode-se afirmar que nasceu
um novo homem. Ou seja, morreu o Joaquim Soares da Cunha e nasceu o Quincas
Berro Dágua. Apresenta-se, então, mais um traço carnavalesco, o nascimento de
Quincas, pois do nada surge um homem, considerando que, no mundo da família,
seria impossível nascer com alguns anos de idade.
Sobre isso Bakhtin
97
afirma que o mundo carnavalesco tem relação com a
cultura popular, em que surge a sátira menipeia, sendo os objetivos dessa
característica apresentar o irônico, o cômico, o riso e o grotesco. Estabeleceu-se,
contudo, a paródia, uma técnica de gênero-sério cômico em que bivocalidade a
voz do parodiado e a do parodiante.
A partir disso, entretanto, apresenta-se a contradição entre a voz da FAMÍLIA
e a voz dos AMIGOS. O título da novela também é contraditório, pois se conhece e
se celebra uma única morte e não duas como apresentou o título, voltado, assim, ao
primeiro traço da teoria da carnavalização na novela amadiana. Reconhecem-se
paródias porque uma intenção irônica na segunda voz a do parodiante em
97
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005.
80
relação à primeira a do parodiado. Assim, zomba-se da voz séria os gêneros
textuais e se afirma uma alegria com a outra voz a imitação, a possibilidade
ficcional de tais fatos.
A literatura carnavalizada vem ao encontro das ideias estéticas da literatura
que aflorava nos anos 70, momento no qual se retratam de forma direta os dramas
das camadas subalternas a prostituta, o operário, o excluído utilizando-se do
vocabulário popular. Jorge Amado retrata na novela que o protagonista vive em meio
à camada subalterna, mostrando como é essa vida popular com linguagem também
informal. A citação a seguir mostra um pouco da linguagem dessas personagens, a
maneira como Quitéria chamava Quincas e outros termos referentes às prostitutas, a
seguir citação com as expressões da personagem, bem como imagem Marieta
Severo representando o desespero de Quitéria quando soube da morte de Quincas:
Quincas Berro Dágua ficou ele sendo desde então, e Quitéria do Olho
Arregalado, nos momentos de maior ternura, dizia-lhe “Berrito” por entre os
dentes mordedores. Também naquelas casas pobres das mulheres mais
baratas, onde vagabundos e malandros, pequenos contrabandistas e
marinheiros desembarcados encontravam um lar, família e amor nas horas
perdidas da noite, após o mercado triste do sexo, quando as fatigadas
mulheres ansiavam por um pouco de ternura...
98
FIGURA 4 – QUITÉRIA (MARIETA SEVERO) DESESPERADA COM A MORTE DE QUINCAS
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=Ph14cRyrS3o.
site oficial:http://www.quincasberrodagua.com.br
98
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 51.
81
Um fator a se ressaltar é que, em momento algum, a família foi até o
protagonista para saber o que estava acontecendo com ele, quais motivos tinham
modificado sua vida. Dessa forma, surge a pergunta: Sabiam o porqda alteração
na vida do familiar? Poderiam saber e inclusive serem os causadores, mas isso não
lhes interessava. A família julgava e definia Quincas como um vagabundo, conforme
descrito a segui:
Infelizmente, porém, de quando em vez algum vizinho, um colega qualquer
de Leonardo, amiga faladeira de Vanda (a filha envergonhada), encontrava
Quincas ou dele sabia por intermédio de terceiros. Era como se um morto
se levantasse do túmulo para macular a própria memória: estendido
bêbado, ao sol em plena manhã alta, nas imediações da Rampa do
Mercado ou sujo e maltrapilho, curvado sobre cartas sebentas no átrio da
igreja do Pilar ou ainda cantando com voz rouquenha na ladeira de São
Miguel abraçado a negras e mulatas de má vida. Um horror!
99
A citação descreve os comportamentos de Quincas Berro Dágua, após sua
transformação, aos olhos da filha, Vanda. Nota-se que toda essa descrição é uma
maneira de ilustrar criticamente o que a repressão pode fazer na vida das pessoas,
pois toda a mudança do personagem, Quincas, revela também a perseverança e
coragem que ele teve heroicamente de enfrentar a família, de acordo com a
realidade social daquele período.
Jorge Amado mostrou nas caracterizações dos personagens uma
possibilidade de inovação, a partir de atitudes malandras, com alegria, bebedeiras,
jogos. Tudo isso define Quincas enquanto indivíduo brasileiro que não se contenta
com as imposições sociais e tenta superar o passado mudando o presente. Dessa
forma, definem-se as atitudes de vida popular de Quincas como um exemplo de que,
para o malandro brasileiro, o existe situação sem saída; ele busca as tentativas
de liberdade, superação, utilizando alguns artifícios para chegar ao seu objetivo,
pois, como fez o protagonista, escolhendo outro mundo.
Com base nessas descrições, pergunta-se: Que identidade é buscada,
representada por Quincas? Acredita-se que seria uma projeção de exposição de
seus desejos particulares, mas também coletivos da classe popular. Assim, toda
99
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 18.
82
essa transformação em ações malandras vem a auxiliar na realização dos planos de
Quincas, pois ele é um e outro ao mesmo tempo: para a família Joaquim Soares da
Cunha e para os amigos Quincas Berro Dágua.
Destarte, a novela de Jorge Amado define-se como carnavalizada por
apresentar a percepção de mundo diversificado na trama do texto. De acordo com
Bakhtin
100
existem no texto quatro categorias essenciais do mundo carnavalizado: a
familiaridade, a excentricidade, “as mésalliances” e a profanação.
A familiaridade é apresentada na novela com o vocabulário usado em praça
pública, popular, que remete à suspensão das regras de comportamento social.
intenções de ser livre, de se ajeitar na vida utilizando-se de jogos e palavrões, a
perda da “decência”, como afirma a filha.
Os amigos de Quincas, ao descrever a família, usam um vocabulário bem
informal, sem rebuços. O amigo Pastinha inicia afirmando
101
: “Parentes dessa
espécie eu prefiro não ter. Os homens uns bestalhões. As mulheres umas jararacas
- o próprio Quincas completou. Olha paizinho a gorducha até que vale uns trancos...
tem uma padaria que gosto. Um saco de peidos, afirmou Quincas.” Assim
confirma-se o palavreado usado publicamente.
A excentricidade na condição da conduta do herói protagonista é considerada
não repressiva, sem censura, ações que desrespeitam os padrões estabelecidos
socialmente. Pensa-se que, nesse sentido, até se pode dizer que Quincas foi anti-
herói, um personagem negativo, contrário à conduta exigida pela classe dominante.
Apresenta-se a definição de Quincas perante a mídia daquele período, ou seja,
jornais e meios de comunicação já subornados aos valores da burguesia:
Dez anos levara Joaquim essa vida absurda. Rei dos vagabundos da
Bahia’, escreviam sobre ele nas colunas policiais das gazetas, tipo de rua
citado em crônicas de literatos ávidos de fácil pitoresco, dez anos
envergonhando a família, salpicando-a com a lama daquela inconfessável
celebridade. O cachaceiro-mor de Salvador o esfarrapado da Rampa do
Mercado, o senador das gafieiras, Quincas Berro Dágua, o vagabundo por
excelência, eis como o tratavam nos jornais, onde por vezes sua sórdida
fotografia era estampada...
102
100
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal: para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos
Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
101
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo:
Companhia das Letras,
2008. p. 78.
102
Ibidem, p.39.
83
“As mesálliances” apresentam-se na novela por meio de várias aproximações
antagônicas: o sublime do grotesco, o sagrado do profano e o sério do cômico.
Acredita-se que foram sublimados os poderes da classe dominante e também as
atitudes de porres, jogos, com os elementos sagrados como a família, a casa,
contrariados pelos amigos da rua, espertezas. Os fatores sérios, como a morte do
protagonista, são celebrados, porém, comicamente. Com base nessas
aproximações notou-se que perpassam na novela misturas de valores e atitudes.
Para ilustrar essas misturas, um momento cômico ocorre no velório de
Quincas, quando debocha da filha na celebração do ato ritualístico sério, mas
juntado com a graça, riso e comicidade de um morto que fala, ri e debocha depois
de estar no caixão. A própria personagem Vanda, comenta:
Naquela hora do crepúsculo, do misterioso começo da noite, o morto
parecia um tanto cansado. Vanda dava-se conta. Não era para menos:
passara ele a tarde a rir, a murmurar nomes feios, a fazer-lhe caretas. Nem
mesmo quando chegaram Leonardo e tio Eduardo, por volta das cinco
horas, nem mesmo então Quincas repousou. Insultava Leonardo
Paspalhão!, ria de Eduardo.
103
Bakhtin apresenta como a principal ação carnavalesca a coroação bufa e o
posterior destronamento do rei do carnaval. Esse ritual acontece das mais variadas
formas nos festejos carnavalescos e é nele que se apresenta a base da cosmovisão
carnavalesca: a ênfase das mudanças e transformações, da morte e da renovação,
quando Quincas é coroado pelos amigos como “paizinho” e destronado pela família
como um vagabundo; ou quando Vanda corou-o como bom pai e, em seguida,
destronou-o como uma vergonha para a família. A carnavalização também está
presente pelo fato de que depois da morte vem o renascimento deste homem.
Quincas morre para a família, mas renasce em outro contexto social para os amigos
da boemia.
A partir da coroação de Quincas, cria-se a inversão da ordem, revelando a
alegre relativização das estruturas sociais do sistema e da hierarquização
institucional. Quincas é coroado rei, “paizinho,” por parte do mundo às avessas, que
por ser às avessas, permite os mais extraordinários acontecimentos. Como se
103
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 53 e 54.
84
constatou, Quincas é um personagem indescritível, uma vez que não possui uma
imagem bem-definida, aliás a dificuldade está no fato de ele ter várias imagens em
função de representar diversos traços em sua personalidade e participar de múltiplas
aventuras e fantasias. Isso tudo torna o protagonista um personagem extremamente
carnavalizado, sem uma imagem, um caráter, um tipo ou temperamento bem-
definido. Quincas assume vários papéis e, principalmente, adquiriu-os, numa
demonstração de que está disponível para tudo: a boemia, os jogos, os atos amigos
com as prostitutas como um amante conselheiro, a escolha da “morte”.
A profanação reside essencialmente nas atitudes malandras do protagonista,
apresentadas nos universos opostos, ora de um ora de outro, com relações
paradoxais. Assim, com base nessas aproximações, citam-se aqui as palavras do
autor ao confirmar essas atitudes como gentileza do povo e união de opostos, uma
vez que o protagonista viveu entre os dois
104
: “Cumpriram-se os ritos de gentileza do
povo da Bahia, o mais pobre e o mais civilizado.” A junção citada perpassa na maior
parte da narrativa. A partir dessas características da carnavalização exemplificadas
na novela de Jorge Amado, a seguir faz-se menção a algumas opiniões sobre o
protagonista e seu comportamento.
oposição de comportamento destacado também entre pai e filha; Quincas
tomava cachaça, vivendo em meio à pobreza, à miséria, era debochado e risonho.
Vanda estava sempre bem vestida, vivia em uma família de classe média, morava
em uma boa casa, tinha roupas de festa e usava roupas limpas.
Outro aspecto da malandragem presente na narrativa é o fato de o herói
encontrar-se em constante busca por algo, desencadeando um espírito do tipo
inquieto e aventureiro; busca a novidade e o diferente. Quincas compara-se a um
pássaro, afirmando à Tia Marocas que sempre teve vontade de voar e cuja gaiola
seria a casa da família, e os alimentos, vestes e conforto a ele chegavam pelas
mãos dos amigos da rua, por meio dos jogos, bebedeiras.
Quincas, entretanto, é um pássaro do tipo que não se apega à prisão,
metáfora do tipo malandro, o qual não vive no espaço da Casa (na teoria de
DaMatta) ou ao lado da ordem (na teoria de Antonio Candido). Quincas precisa
libertar-se e partir para um espaço mais adequado a ele o espaço da Rua, o
104
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 57.
85
espaço da desordem, o lugar onde as coisas acontecem, onde são possíveis as
aventuras. E deixa bem claro que pássaros – metáfora de malandro – não são fiéis.
Outra característica da teoria da carnavalização são as várias vozes,
diferentes opiniões sobre um mesmo ser, a polifonia. Interessante a opinião do
santeiro, um amigo da família de Quincas, conhecido há anos, e que convivia com o
protagonista. Ele apresentou uma visão oposta à da família (de Leonardo e Vanda
sobre Quincas). Leonardo, seu genro, o definia como causador de barbáries;
Eduardo, seu irmão, não o perdoava; tia Marocas considerava Quincas uma pessoa
de bom gênio; os netos o veneravam; Vanda queria uma funerária descente para o
pai.
O santeiro, ao ver a foto do amigo antes da transformação em malandro, bem-
vestido e cuidado, passa a procurar um culpado para tal revolução para a imagem
atual, contrária a que se na foto. O santeiro lembra da dureza, da fisionomia
azeda da esposa Otacília, considerando esse um fator da possível infelicidade do
protagonista, um dos motivos da mudança de vida
105
: “Na sala, o santeiro admirava
um colorido retrato de Quincas, antigo, de uns quinze anos, senhor bem posto,
colarinho alto, gravata negra, bigodes de ponta, cabelo lustroso e faces róseas.”
No quadro com a esposa, Quincas, um senhor bem-cuidado. Percebe-se que
estava vivendo em um ambiente familiar “bem” constituído que demonstrava o
cuidado e a preocupação com a aparência, conforme afirmou o santeiro. Tempos
depois, ele passa a viver burlescamente em ambientes como a rua, mas mesmo
assim é valorizado pelos amigos e demonstra realização nesse meio de sujeira:
Quincas Berro gua, as calças velhas e remendadas, a camisa aos
pedaços num seboso e enorme colete, sorria como se estivesse a divertir-
se. [...] o rosto de barba por fazer, as mãos sujas, o dedo grande do
saindo da meia furada.
106
A família, ao ver Quincas, conforme se afirmou na citação, não tinha mais
forças para chorar, somente sentia tristeza e desprezo, pois tinham feito esforços
para levá-lo para casa e ele não quis. Os amigos da boemia, no entanto, sentiam-se
à vontade com o amigo caracterizado como era o costume da “gente da ladeira”.
105
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 21-22.
106
Ibidem, p. 23.
86
Vanda, além de não conseguir chorar pelo pai, também o considerava
maluco. Jorge Amado consegue em um mesmo parágrafo opor duas opiniões com o
comportamento do protagonista. Aos olhos da família, era um morto pouco
apresentável. Para seus amigos, porém, ele ria cinicamente, possivelmente da
fisionomia dos familiares.
Em suma, acredita-se que as características do malandro são estratégias de
sobrevivência em uma sociedade competitivista e globalizada. A malandragem
torna-se um modo de agir comum, pois, no Brasil, com sua falta de definição
objetiva e sucinta entre ordem e desordem, permite-se a circulação de um
facilitador, mediador, que busca, a seu jeito malandro, realizar seus desejos.
Para ressaltar os traços malandros, no momento do velório, Quincas encanta e
conquista todos os amigos do local, pois ele parece um sujeito de vastas
experiências de vida, principalmente com suas amizades e sequentes
comportamentos. Quincas se encontra bem mais à vontade na rua, nos bares em
que fez vários amigos:
Numerosos admiradores e amigos possuía Quincas Berro Dágua, mas
aqueles quatro eram os inseparáveis. Durante anos e anos haviam-se
encontrado todos os dias, haviam estado juntos todas as noites, com ou
sem dinheiro, fartos de bem comer ou morrendo de fome, dividindo a
bebida, juntos na alegria e na tristeza. Curió somente agora percebia como
eram ligados entre si, a morte de Quincas parecia-lhe uma amputação,
como se lhe houvessem roubado um braço...
107
O trecho revela o verdadeiro malandro: que vivia o momento, sem planejar o
futuro, sem projeto, e, principalmente, sem demonstrar preocupação alguma. Como
se percebe não há preocupação nenhuma com bens materiais, ter ou não dinheiro.
Além disso, o personagem se revela cumprindo sua sina, ao sabor da sorte,
chegando ao seu final. Assim, parece que somente um fator chocou, assustou os
amigos de Quincas que foi a notícia da morte inesperada do protagonista.
A seguir tentam-se definir as supostas mortes de Quincas, como
aconteceram, quais foram, quem participou da celebração do velório. Dessa forma,
apresentam-se as características carnavalizadas manifestas nesse ritual, uma vez
107
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 55.
87
que foi mais de uma morte, fator esse destacado como primordial na carnavalização
literária da novela.
3.6 As mortes de Quincas Berro Dágua
Um dos aspectos identificados ao ler a novela, é o poder que a morte teve, de
apagar, a imagem constituída pelo protagonista nos últimos anos. Os familiares
e vizinhos defendiam a ideia de que Quincas voltara a ser aquele antigo e
respeitado Joaquim Soares da Cunha, de boa família, funcionário exemplar da Mesa
de Rendas Estadual.
Outro fator curioso é como foi instaurada uma espécie de paganismo no
ambiente público, ao contrário do ambiente familiar. Em suma, a praça pública, vista
como um ambiente de rituais pagãos (pessoas pagãs); na casa da família
decente, bem-formada, junto das beatas, caracterizava uma salvação. É essa
duplicidade factual que proporciona ainda mais esclarecimento de que a novela, em
especial a morte, é carnavalizada; diferentes visões, crenças, ambientes. Duas
visões e ambientes diferentes, de um lado, o poder da ordem institucional, do outro,
a liberdade, a igualdade de um mesmo personagem. Este, por sua vez, é o ponto
em comum entre as classes sociais, os dois polos da novela. Transita de um lugar
para outro, convivendo com diferentes tipos de pessoas e classe social.
O autor da obra Percurso do aprendiz definiu as mortes de Quincas em
três
108
: “Morte moral, é representada como causa da repressão familiar e social... A
segunda morte é a social. É a morte do porre em público... A terceira morte, que
acontece no mar, se caracteriza por uma falta simbólica, idilicamente realizando os
desejos inconscientes do protagonista.” Ao ler o artigo do autor ficam esclarecidas
as vidas, concordando-se com ele de que foram três mortes. Essa definição torna
clara a novela de acordo com sua estrutura, seus temas e aspectos centrais.
Logo no início da obra o autor relata a primeira morte do protagonista, a
morte moral, em que Quincas abandona a família, morrem suas atividades de
funcionário público, de pai, de marido, para entrar numa vida imaginária, tendo um
108
GONÇALVES, Robson Pereira. Percurso do aprendiz: literatura & psicanálise. Santa Maria:
Editora UFSM, 1997. p.120, 121 e 122.
88
objeto de satisfação que não se realiza, e a possibilidade de efetivar o desejo de
liberdade. Dois aspectos fundamentais nessa primeira morte: abandonar suas
funções de homem da classe média e a frustração de não ter ainda alcançado a
liberdade, assim cita-se a seguir o momento em que supostamente Joaquim Soares
da Cunha morreu para a família que condena os amigos de Quincas como culpados
dessa opção de vida:
Cometendo uma injustiça, atribuem a esses amigos de Quincas toda a
responsabilidade da malfadada existência por ele vivida nos últimos anos,
quando se tornara desgosto e vergonha da família. A ponto de seu nome
não ser pronunciado e seus feitos o serem comentados na presença
inocente das crianças, para as quais o aJoaquim, de saudosa memória,
morrera muito, decentemente, cercado da estima e do respeito de todos.
O que nos leva a constatar ter havido uma primeira morte, se não física pelo
menos moral, datada de anos antes, somando um total de três, fazendo de
Quincas um recordista da morte.
109
Nessa citação parece haver uma manifestação contrária à família por parte
do narrador. Sendo que afirmou ser injusto culpar os amigos de Quincas pela sua
mudança de comportamento. Assim, entende-se que a família não admitiu a
mudança e possível culpa, escondendo inclusive das crianças, passando a ideia de
mundo e família perfeita, em que tudo tem solução, dessa forma, remetendo à
primeira morte – a moral.
A segunda morte foi no momento do porre em público, suposta satisfação de
um dos desejos de Quincas, de beber exageradamente. Assim, sendo, a morte da
apresentação do atestado de óbito. Nessa celebração do velório, que a nova família
de amigos, diferente da de casa que, sofreu, comemoram a sua morte com um
porre. Essa segunda morte em praça pública, também não impulsionou os desejos
do protagonista, teve um prejuízo imaginário, pois sempre desejou morrer no mar.
Os amigos de festa, das bebedeiras, vêm ao velório do amigo. Durante a sua
realização ritualística, porém, os familiares de Quincas se retiram. Nesse momento
somente os amigos continuam presentes no evento. A partir disso, começa uma
longa conversa dos amigos e também com o “morto”, que toma cachaça, troca as
roupas, inclusive saiu do seu próprio velório para acompanhar os amigos numa
109
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 15
89
festa. Como mostra a imagem a seguir, em que Paulo José representa Quincas
saindo do caixão para acompanhar os amigos para a festa:
FIGURA 5 – QUINCAS (PAULO JOSÉ) SAI DO CAIXÃO
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=Ph14cRyrS3o.
site oficial:http://www.quincasberrodagua.com.br
Tal festa ocasionou a terceira morte de Quincas, no mar. Destaca-se o
desespero dos companheiros de festas, e a tristeza da família por não poder
devolver ao funeral as roupas, caixão, velas comprados. A terceira morte ocorreu no
mar, considerada uma falta simbólica, porque aqui o objeto é imaginário, é o
encontro que faltava com o pai. A novela indica um suposto desejo de Quincas de
morrer no mar, pois seu avô era marinheiro. Houve então uma suposta satisfação
imaginária. Acredita-se que Jorge Amado teve a intenção de apresentar as três
mortes, mas a última considerou como uma provocação final aos familiares
conforme se afirma a seguir
110
: “seu mergulho no mar uma farsa montada por ele
com o intuito de mais uma vez atazanar a vida dos parentes, desgostar-lhes a
existência, mergulhando-os na vergonha e nas murmurações da rua.”
Resgatando a definição de Bakhtin, pode-se dizer que o carnaval, como a
representação máxima da carnavalização, conjuga uma pluralidade de vozes tal que
o caracteriza, fundamentalmente, como polifônico, dada sua heterogeneidade
constitutiva, que relaciona extravagância e simplicidade, cenários exóticos e banais,
aspectos eruditos e populares, mesclando uma significativa variedade de estilos e
110
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008, p. 15.
90
contemplando a junção de pessoas de diferentes classes sociais, etnias e idades. E
é isso que sintetiza, por excelência, a estrutura carnavalesca
111
. É inegável,
portanto, que o carnaval como fenômeno festivo pode ser mais bem compreendido a
partir da leitura das obras de Bakhtin, que lançam luz sobre o imaginário popular e
sua manifestação, especialmente no que diz respeito à carnavalização, como estilo
ou gênero artístico e seus resquícios na festa popular que recorrentemente se
celebra no Brasil e em outras partes do mundo.
O narrador da obra em análise se coloca na condição de observador que
redige na terceira pessoa, como quem colhe os fatos e suas interpretações sem
neles interferir, de modo que não aparece a sua opinião, mas sim as várias vozes
dos personagens sobre a personalidade do protagonista. Todos os personagens têm
a oportunidade de demonstrar as suas ideias, ou seja, os familiares com uma visão,
considerando-o desleixado, envolvido com a baixa sociedade, os amigos o tinham
como um mestre, “paizinho”, exemplo a ser seguido:
Cada um sabia uma história de Quincas e a contava entre as gargalhadas.
Ele próprio, Leonardo, nunca imaginara que o sogro houvesse feito tantas e
tais. Cada uma de arrepiar... Sem levar em conta que muitas daquelas
pessoas acreditavam Quincas morto e enterrado ou bem vivendo a
memória do estado. E as crianças? Veneravam a memória de um avô
exemplar, descansando na santa paz de Deus...
112
O fragmento citado comprova algumas das vozes sobre o protagonista,
distintas, uma vez que o genro, Leonardo, considera o sogro uma pessoa ruim, que
havia aprontado várias bebedeiras e malandragens, as crianças o veneravam,
com o amor de netos pelo avô que tinha “morrido”. Também a filha, Vanda, rejeitava
seu pai, porém os amigos idolatravam o parceiro das noites de farra e bebedeira. O
foco narrativo é a verdadeira morte de Quincas: na pocilga em que morou durante
sua vida boêmia. Sendo a morte aspecto que juntou os familiares e os amigos no
mesmo ambiente, assim superando as diferenças, unidos por um motivo em comum,
a celebração do velório.
111
PACHECO, Enilda. Carnavalização: um fenômeno da cultura popular. Disponível
em:<http://www.grupouninter.com.br/revista/anteriores/index.php@edicao_id=2&menu_id=4&id=35>.
Acesso em: 31 jan. 2009.
112
Ibidem, p. 32-33.
91
Deste fato, retrospectivamente, desenrola-se a existência passada do
protagonista, desenvolvida em duas etapas distintas: junto da família, como pessoa
"normal" e junto dos vagabundos, como um marginal voluntário e assumido. Do
mesmo modo, prospectivamente, se acompanha o velório e o passeio do morto, até
cair no mar.
Em A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, nota-se que no momento em
que foi narrado o velório de Quincas houve um diálogo entre a família do
personagem com os amigos dele. Ou seja, uma conversa em que participam
juntos, num mesmo local, que é considerado um evento, um lugar público, onde a
família não poderia impedir as outras pessoas de participarem. Nota-se a presença
de uma representação de estado de espírito, filosófico, descritivo, denominado
carnavalizado, em que estão reunidas as várias classes sociais e tipos de pessoas,
em que todos participam do mesmo acontecimento. Nesse momento da história,
esqueceu-se a raça, classe social, costumes, as considerações de superioridade ou
inferioridade. O próprio narrador usa a expressão de junção entre o mais pobre e o
mais civilizado:
Cumpriram-se os ritos de gentileza do povo da Bahia, o mais pobre e o
mais civilizado. Calaram-se as bocas. As abas do fraque de Curió
elevavam-se ao vento, sobre sua cara pintada começaram a correr as
lágrimas. Três vezes abraçaram-se, ele e Negro Pastinha, confundindo
seus soluços. [...]
Agora estavam ali em silêncio, de um lado a família de Joaquim Soares da
Cunha, filha, genro e irmãos, de outro lado os amigos de Quincas Berro
Dágua.
113
113
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 57, 58, 64.
92
FIGURA 6 – QUINCAS (PAULO JOSÉ) ENTRE SEUS AMIGOS E FAMILIARES
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=Ph14cRyrS3o.
site oficial:http://www.quincasberrodagua.com.br
Quanto à sátira menipeia, observa-se que o autor localiza o riso ao relatar o
velório de Quincas; o elemento cômico, as cenas de escândalo, exagero, com as
diversas violações das regras as quais as pessoas estão acostumadas, modificando
a ordem normal dos fatos como deveriam ter acontecido. No velório de Quincas,
este abandona o caixão, e, em praça pública sai caminhando com seus amigos para
uma última festa. De modo que um morto conversa com os amigos vivos, em seu
próprio enterro. A caminhada até a casa dos amigos para festejar também pode ser
considerada um desfile de bloco carnavalesco, em que esse ritual é feito geralmente
por uma turma de amigos, de uma mesma escola, de uma mesma classe social, que
ao realizar esse desfile entram em contato com os demais blocos carnavalescos,
juntando-se e festejando. Assim, aconteceu com o protagonista e seus amigos, no
momento de deslocamento até a casa de mestre Manuel, quando encontram outras
pessoas, e, juntas, festejam, conforme citação e imagem a seguir:
doidinho pela moqueca.- E por que a gente não vai? Mestre Manuel é
até capaz de ficar ofendido. Entreolharam-se. estavam um pouco
atrasados pois ainda tinham de ir buscar as mulheres. Curió expôs suas
dúvidas:- A gente prometeu não deixar ele sozinho.
- Sozinho? Por quê? Ele vai com a gente.- Tou com fome- disse Negro
Pastinha.
93
Consultaram Quincas:- Tu quer ir? Tou por acaso aleijado, pra ficar
aqui?..
Vambora paizinho.
114
FIGURA 7 – QUINCAS (PAULO JOSÉ) SE DESLOCANDO À CASA DE MESTRE MANUEL
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=Ph14cRyrS3o.
site oficial:http://www.quincasberrodagua.com.br
A partir do conceito da tira menipeia mencionado na teoria da
carnavalização, também o elemento cômico em vários momentos do velório,
inclusive quando o personagem, Vanda, começa a ver seu pai sorrir no caixão,
falava com ela e a chamava de jararaca, sente-se mal, pensando estar ficando
louca
115
: “– Jararaca! - disse de novo, e assoviou gaiatamente. Vanda estremeceu na
cadeira, passou a mão no rosto Será que estou enlouquecendo?” (O autor
comprova a presença do cômico na obra, pois é engraçado imaginar um velório em
que o morto fala, faz careta). A própria Vanda julga estar enlouquecendo por
acontecer isso com ela, Considerando como uma loucura, devaneio entre a vida e a
morte. dúvidas em relação ao que está acontecendo e o que foi narrado? Este é
um argumento encantador da ficção que, apesar de não ser real, parece realidade,
verossímil.
O riso-ritual, nas suas mais variadas manifestações, relaciona-se com a
morte e o renascimento, como aparece na obra em análise em que houve o
114
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 80.
115
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo:
Companhia das Letras,
2008. P.44.
94
processo de ridicularização por parte da família e o júbilo através das manifestações
dos amigos. O processo de coroação-destronamento pode ser visto na obra
analisada, de acordo com as opiniões distintas que tinham do protagonista. A
família, destronando-o, considerando-o um malandro, bêbado, farrista e a coroação
por intermédio dos amigos e das prostitutas que o endeusavam, considerando-o
chefe, “paizinho”, exemplo de bondade. Nota-se, então, que a mudança de atitudes
na vida de Quincas causou também modificações em relação à visão que sua
família tinha dele, anterior a essa vida mundana.
Os gêneros do cômico-sério possuem peculiaridades comuns, decorrentes
de sua vinculação com a teoria carnavalesca; possibilitam enquadramento nesse
campo, ainda que apresentem algumas variações nos aspectos exteriores. A
influência da cosmovisão carnavalesca determina que a imagem e a palavra
estabeleçam uma relação especial com a realidade. Bakhtin identifica três
importantes peculiaridades exteriores do gênero cômico-sério que provêm da
cosmovisão carnavalesca e encontram-se interiormente inter-relacionados; a
atualidade, a experiência, a livre fantasia e a pluralidade de estilo e vozes.
Assim o protagonista Quincas Berro Dágua encerra a novela com uma frase
derradeira, como afirma Jorge Amado, e em meio à confusão e ao barulho do mar,
parece que disse, em forma de versos as palavras a seguir:
Me enterro como entender
Na hora que resolver.
Podem guardar seu caixão
para melhor ocasião.
Não vou deixar me prender
Em cova rasa no chão.
116
Os versos traduzem os desejos malandros, carnavalizados que
perpassaram em toda a novela a vontade do protagonista de morrer
definitivamente no mar. Parece, então, que de tantas tentativas de liberdade de
escolhas, nesse momento final consegue morrer livremente, sem repressões ou
impedimentos, a escolha da maneira de morrer.
116
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 92.
95
também em A morte e a morte de Quincas Berro D'água, manifestações
do cômico e do sério. Ou seja, essa história parte de um fato real acontecido que é
reescrito e incrementado com elementos fantásticos e momentos cômicos.
De acordo com o posfácio do livro A morte e a morte de Quincas Berro
D'água, escrito pelo autor Affonso Romano de Sant’Anna, a história de Quincas é
real. Ou seja, foi vivenciada por uma pessoa na realidade e adaptada por Jorge
Amado na ficção:
Quincas existiu de fato. Existiu, claro, com outro nome, que vou logo
revelando - cabo Plutuarco. Esse nome verdadeiro, no entanto parece um
trejeito literário. ...Jorge Amado, em seu livro, enganando ficcionalmente o
leitor, diz que o nome do batismo de Quincas era Joaquim Soares da
Cunha. Era, mas não era. Posso lhes afiançar que o nome do cartório de
Quincas, ou melhor, do cabo Plutuarco, era Wilson Plutuarco Rodrigues
Lima.
117
O trecho supracitado comprova ainda mais o que vem aqui sendo analisado,
considerando a novela como carnavalesca, visto que, ao esclarecer os relatos, nota-
se o quão sigiloso o autor foi com a história real. Ao relatar as mortes de Quincas,
cria também um nome ficcional o personagem chamando-o de Joaquim Soares da
Cunha, para que o leitor não o reconheça. Modificou até o estado onde disse que a
personagem vivia, ao invés de baiano, Plutuarco é cearense.
Acredita-se que essas modificações foram feitas, para revelar as várias
opiniões sociais, mostrando o preconceito da família do personagem da classe
média, preocupada com suas posições sociais, empresas, com chefes, percebe-se
tudo isso, somente por interesses materiais (manter a classe), para não passar
vergonha com os amigos da sociedade, mostrando que compraram roupas, caixão
para o morto. a humildade da classe baixa, os verdadeiros amigos, nota-se de
acordo com seus comentários que estão entristecidos com a morte desse amigo
querido. Assim, o autor demonstrou como, desde aquela época, havia várias
visões acerca de um mesmo assunto, (distintas opiniões sobre o protagonista), de
acordo com o contexto social em que o indivíduo está inserido.
Affonso Romano de Sant’Anna
118
esclarece com seu posfácio que apesar
de revelar fatos desconhecidos e inovadores sobre a novela de Jorge Amado,
117
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Posfácio. In: AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas
Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 96.
118
Ibidem, p. 96.
96
presença constante de características da teoria da carnavalização nas obras desse
citado. Assim, Sant’Anna listou algumas: inversão de costumes, o mundo avesso,
a ficção vira realidade, e o cotidiano e a fantasia se acoplam tanto quanto a vida e a
morte. Entronização do marginal e do reprimido; diálogo entre grotesco e sublime; o
chamado diálogo dos mortos, fundamental tópico da literatura carnavalizada.
Sobre essa última característica, destaca-se que ela é central na novela ao
passo que o protagonista morto conversa com os vivos. Dessa forma, essa mistura
de vida e morte são fatores essenciais para classificar essa novela como
carnavalizada, com elementos que causam o riso indispesado. O posfácio também
esclarece e enriquece a novela a partir da revelação da real existência do
protagonista; pois, juntando a novela de Jorge Amado e o posfácio de Affonso R. de
S. Anna, há uma mistura de realidade e ficção explicadas.
Outro fator apontado no posfácio é que a caminhada feita por Quincas
(morto/vivo) e seus amigos não foi em Salvador, mas sim em torno da Praça da
República, no Rio de Janeiro, em abril de 1950. Essa nova revelação do lugar
atinente à cena referida vem comprovar ainda mais a obra como carnavalizada, visto
que a Praça de República é um lugar público em que toda e qualquer pessoa
poderia caminhar ao seu redor. Nota-se que o autor com suas potencialidades
consegue modificar a história. Primeiro ouviu, depois redistribuiu, principalmente
reescrevendo-a, utilizando-se de vários recursos para transformá-la em ficção,
porém sem perder as raízes da história que serviu como base.
A partir do depoimento de Jorge Amado, dado pelo romancista em 1981,
portanto, 22 anos depois que a figura de Quincas existiu no mercado, neste mundo
de vivos e mortos. Esse depoimento ocorreu durante o seminário sobre o romance
de 30 no Nordeste, em 1981, em que Jorge Amado recebeu o título de doutor
honoris causa:
Homem de muitos amigos, tenho aqui em toda a parte do Brasil mesa posta
em muitas casas e um copo à minha espera na confraria noturna dos
últimos boêmios. Foram esses amigos que ainda vivem a aventura e o riso
que me forneceram a ideia de uma das minhas histórias mais divulgadas e
melhor consideradas. Refiro-me a A morte e a morte de Quincas Berro
Dágua. Esse vagabundo dos becos e ladeiras da cidade da Bahia, que hoje
trafega mundo afora em mais de vinte línguas, em trinta países, que virou
peça de teatro, balé, programa de televisão. Quincas Berro Dágua foi
gerado em Fortaleza, onde brotou a ideia deste pequeno romance. Deram-
me notícia de caso acontecido quando da morte de um boêmio, contaram-
97
me como a solidariedade dos amigos na hora da ausência transformou a
dor da despedida em festa.
119
A citação acima vem comprovar todo o reconhecimento da obra de Jorge
Amado, tanto nacionalmente como internacionalmente. Percebeu-se que o próprio
autor assume o vasto reconhecimento que a obra conquistou por possuir elementos
cômicos que provocam o riso, visto que a despedida do amigo é celebrada de forma
distinta, geralmente é um momento de silêncio, aqui manifestam sua dor ao terem
perdido o amigo, celebrando uma festa. O que provoca no leitor o riso, visto que
tudo o que difere da normalidade chama a atenção das pessoas.
Outro recurso utilizado pelo autor são as diversas versões que podem ser
consideradas jogos de espelho em relação a como aconteceu a morte, mortes de
Quincas. Esses relatos de indecisões, boatos e suposições é o que vai despertando
no leitor ainda mais interesse, curiosidade, em como vai ter continuidade, como
aconteceu a morte definitiva. A história vista de forma intrigante, assim apresentado
no início do livro:
Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro
Dágua. vidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no
depoimento das testemunhas, lacunas diversas. A família, apoiada por
vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tranquila
morte matinal, sem testemunhas.
120
Logo na primeira página do livro, o próprio narrador expõe que várias
dúvidas sobre a morte de Quincas. Espaços entre as versões dos personagens, que
proporcionam ao leitor neste vazio de definições, imaginarem a constituição da
personagem protagonista a partir de sua visão enquanto observador, levando em
consideração as versões da história e do posfácio. Isso é que proporciona uma
interpretação detalhada. Podendo assim surgir uma versão ainda distinta das
existentes, visto que o leitor tem a visão do todo conjunto, de todas as versões
narradas na obra. Nota-se que o avesso toma lugar do certo, a ficção vira realidade
119
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Posfácio. In: AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas
Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 98.
120
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo:
Companhia das Letras,
2008. p. 13.
98
e o cotidiano e a fantasia se acoplam tanto quanto a vida e a morte. Em suma, na
literatura carnavalizada, mistura-se vida e morte.
É inegável também que a obra A morte e a morte de Quincas Berro D'água
é definida pela via da carnavalização, uma vez que o autor recorre ao evento festivo
popular para elaborar a trama e seus personagens. Após a análise minuciosamente
elaborada, notou-se que Jorge Amado montou sua novela de modo que é possível
considerar que aconteceram três mortes do protagonista, porém no título da
narrativa não revela detalhadamente três mortes. Ao analisar essa novela, aparecem
vários detalhes da teoria carnavalizada, encontrando nela a caracterização dessa
teoria, composta de várias vozes, apresentando uma história mítica, utilizando-se da
sátira menipeia, união das diferentes classes, entre outros.
Em suma, constata-se que o malandro pertence ao grupo do herói
carnavalizado, ou seja, ele é o avesso de um herói clássico e por isso conhecido
como o anti-herói. O anti-herói, Quincas, é definido como um personagem anti, com
traços de negatividade por contrariar os valores sociais e a ordem das celebrações,
modificando rituais como fez em sua, (s) morte, (s), enfrentando sua família. Dessa
forma, a partir do estudo do malandro e as características carnavalizadas
identificadas na novela, reflete-se o poder dos traços malandros que perpassa
anos e em várias obras, parecendo uma característica típica da cultura identitária
brasileira. Pergunta-se, ainda, se as características da teoria da carnavalização
também definem alguns comportamentos típicos da sociedade brasileira.
99
CONCLUSÃO
A obra de Jorge Amado, A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, é
exaltada nesta pesquisa especialmente em dois aspectos: características da teoria
da carnavalização e da malandragem na tentativa de definir traços da identidade
cultural brasileira. Sendo que a carnavalização foi uma teoria abordada por Jorge
Amado em diversas obras da sua produção.
Ao estudar as obras e críticas sobre esse autor constatou-se ser um de
seus maiores objetivos a preocupação com a definição da sociedade brasileira.
Assim, definem-se traços citados em meio a essa diversa mistura de raças e
classes. Os protagonistas de Jorge Amado, definidos como personagens
carnavalizados, apresentam-se de acordo com os ambientes que frequentam,
podendo alternar os comportamentos bem como o caráter que os classificam como
“indivíduos” portadores de uma característica própria da identidade brasileira.
Essa identidade preserva também as celebrações ritualísticas do país, fator
identificado no velório do protagonista, Quincas Berro Dágua, no qual participam as
várias classes sociais, unidas em um único local, pelo mesmo motivo, assim como
ocorre nas festas de carnaval e jogos de futebol. A identidade cultural apresentada
pelo protagonista mostra características como a sátira menipeia, “mésalliances,”
profanação, coroação, destronamento, dialogismo, cômico, riso e comportamento às
avessas, entre outras. Traços reconhecidos, definidores de um perfil típico da
carnavalização.
Os autores Roberto DaMatta e Mikhail Bakhtin, em suas teorias sobre o
dilema brasileiro e a carnavalização, respectivamente, buscam constituir oscilação
entre duas unidades sociais distintas: o indivíduo e a pessoa. De igual forma, o
estudo centra-se na definição do triângulo ritual, também do antropólogo DaMatta,
pela qual ele esclarece que o Brasil é verdadeiramente uma sociedade formada pela
relação entre três espaços - a casa, a rua e o Outro Mundo - e que os rituais da festa
são muito importantes na sociedade brasileira, pois é pelos ritos que os três espaços
distintos podem ser reunidos e relativizados e que servem de campo para as
manifestações das características da carnavalização apresentada por Bakhtin.
100
Antonio Candido, em seu estudo, Dialética da malandragem, traçou aspectos
do personagem malandro, identificados nas atitudes do protagonista Quincas. O
autor citou as limitações entre ordem e desordem, os dois ambientes apresentados
na novela. E ainda parece que se cria um terceiro espaço entre os extremos ordem
e desordem pode-se dizer o intermediário, malandro que circula de um ambiente
para outro, tentando ajeitar, facilitar a resolução de seus problemas particulares,
como Quincas fez ao sair de casa para buscar liberdade.
Roberto DaMatta, por sua vez, publicava Carnavais, malandros e heróis, obra
que pode ser considerada um marco nos estudos do pensamento social no Brasil -
na tentativa de entender o país, ou, como diz o próprio autor, na introdução da obra,
“saber o que faz o Brasil, Brasil”: “discutir os caminhos que tornam a sociedade
brasileira diferente e única, muito embora esteja, como outros sistemas, igualmente
submetida a certos fatores sociais, políticos e econômicos comuns”
121
.
Dessa forma, temos de um lado Antonio Candido tentando entender a
sociedade brasileira e definir o Brasil como uma nação por meio da literatura, e do
outro, Roberto DaMatta, um antropólogo que tenta descobrir o Brasil, fazendo uso
da dramatização do carnaval e de todos os elementos que integram essa festa
popular, um traço identitário do país. Ressalta-se, também, que o primeiro malandro
brasileiro surgiu em 1808, com o protagonista Leonardo, de Memórias de um
Sargento de Milícias, o que ultrapassa mais de 100 anos aa publicação de Jorge
Amado. Ícone do malandro brasileiro, portanto, perdura através dos tempos,
mantendo as mesmas características do arquétipo apresentadas pela mudança de
vida, o avesso, o jeitinho, o desvio do trabalho.
Constata-se que o malandro adapta-se ao solo brasileiro, pois, gerado em
navios portugueses, ele surgiu no tempo do rei, permaneceu pelo século XX
enfrentando as mudanças históricas e sociais da época; sobreviveu e resistiu,
inclusive, aos tempos ditatoriais do período 30 a 45 e da cada de 70. É bem
provável que essa adaptação aconteça porque o tipo é capaz de manter ltiplas
éticas ou uma ética híbrida, cuja essência é a mistura e a relação e, por isso, ele
sabe ser um ou ser outro, quando se portar desta ou daquela forma. E é por meio de
sua postura e dessa ética híbrida que o malandro transita livremente entre os polos
121
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.
ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 15.
101
da ordem e da desordem, garantindo a sua sobrevivência e resistência, fazendo as
adaptações necessárias para que isso se concretize.
Roberto DaMatta mostra que o carnaval é a festa da desordem que celebra o
riso, as inversões, a liberdade, a igualdade e a ausência do trabalho, acrescentando
que o rito carnavalesco é perfeito para representar a sociedade brasileira. Remeter
aos diversos ambientes: a casa, a rua e o Outro Mundo, que exigem
comportamentos diferentes, aproximados porém, pelas festas carnavalescas, por
exemplo, em que elas tornam-se um ritual em que o personagem central é o
malandro, com suas malandragens e jeitinhos ressaltados na sociedade. Em suma,
conclui-se que tanto a teoria da carnavalização com suas características, quanto a
malandragem o traços identitários da cultura brasileira e vêm permanecendo
anos no país.
Quincas Berro Dágua e suas manifestações foram centrais para compreender
algumas intenções de Jorge Amado, pois, somente analisando-o, entende-se toda a
novela, bem como os relatos de sua vida antes da boemia, voltados para um homem
normal, aparentemente bem sucedido. Mas que vem se transformar em um
malandro provavelmente por alguns motivos ressaltados; os costumes burgueses da
família, os tratos ásperos da esposa e os desejos de liberdade e da bebedeira. A
bebida parece ser um fato decisivo que caminha ao lado do protagonista em suas
opções importantes. Ao transformar-se em malandro, o berro foi um marco
memorável assim como a cachaça que perpassou toda sua existência malandra até
a morte.
Assim, destacam-se as possibilidades de escolha apresentadas pelo
protagonista tanto de estilo de vida como da celebração de sua morte inventada,
escolhida aos seus desejos imaginários com a presença da bebida como uma
espécie de fuga e solução para amenizar seus problemas e necessidades pessoais.
Ressalta-se que Quincas sobrevive vários anos na arte cultural brasileira,
inclusive nesse ano foi lançado um filme referente a ele. Sinal de que atualmente
precisa-se de alguns comportamentos de “Quincas” que apontem para a liberdade,
mas ser livre, da imposição de fatores como consumismo, maldades e tristezas;
optando, como fez o protagonista, por valorizar seus desejos interiores.
Sendo que, o personagem malandro é negativo, pois o quer trabalhar, vive
de bebedeiras, jogos de cinturas, jeitinhos e facilitações. Assim, acredita-se, que, em
determinados casos o comportamento malandro de alguns, pode inclusive prejudicar
102
outras pessoas “não malandras”, pois são estes, que acabam enfrentando as
consequências que, o contexto e as atitudes destes causam, (trabalho excessivo,
altos impostos e etc).
103
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