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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ - UFC
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
DAVID MORENO MONTENEGRO
(RE)LIGANDO OS FIOS INVISÍVEIS DA ESPOLIAÇÃO: trabalhadores do lixo
e a ativação dos limites da precariedade do trabalho
Fortaleza – CEARÁ
Junho, 2010
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DAVID MORENO MONTENEGRO
(RE)LIGANDO OS FIOS INVISÍVEIS DA ESPOLIAÇÃO: trabalhadores do lixo
e a ativação dos limites da precariedade do trabalho
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade Federal
do Ceará, elaborada sob orientação da Profa. Dra.
Maria Neyára de Oliveira Araújo, como requisito
para a obtenção do grau de Mestre em Sociologia.
Fortaleza – CEARÁ
Junho, 2010
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DAVID MORENO MONTENEGRO
(RE)LIGANDO OS FIOS INVISÍVEIS DA ESPOLIAÇÃO: trabalhadores do lixo
e a ativação dos limites da precariedade do trabalho
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do
Ceará, elaborada sob orientação da Profa. Dra. Maria Neyára de Oliveira Araújo, como requisito para a
obtenção do grau de Mestre em Sociologia.
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________
Profa. Dra. Maria Neyára de Oliveira Araújo
Universidade Federal do Ceará - UFC
(Orientadora)
_________________________________
Profa. Dra. Alba Maria Pinho de Carvalho
Universidade Federal do Ceará – UFC
(1ª examinadora)
_________________________________
Prof. Dr. José Meneleu Neto
Universidade Estadual do Ceará – UECE
(2º examinador)
Fortaleza – CEARÁ
Junho, 2010
4
À minha avó, Maria Honorina Montenegro, in memoriam, por uma vida inteira dedicada à
educação.
Ao Gabriel, cujos passos, cada dia mais largos, fazem-me crer em dias melhores que virão. Meu
filho, com amor!
5
AGRADEÇO...
Aos meus pais, cujo apoio incondicional sempre se manifestou de forma bela e sincera,
seja na forma de palavras de incentivo ou mesmo no compartilhar do silêncio, às vezes
tão necessário.
À Virna, companheira, pela paciência em suportar ausências que não poderão ser
recuperadas, e pela confiança transmitida nos momentos mais difíceis.
À profª. Maria Neyára de Oliveira Araújo, orientadora, que mesmo em face das
dificuldades e limitações desse pesquisador, foi capaz de apontar caminhos
fundamentais a serem percorridos para a construção desse trabalho.
Ao prof. Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes, mestre e amigo, a quem devo muito dos
novos olhares com que investigo o mundo.
Ao Pedro Neto, presidente da ASRECE (Associação de Sucateiros e Recicladores do
Estado do Ceará), responsável por me abrir as portas da intrincada cadeia produtiva da
reciclagem, mostrando-me a cruel face desse circuito produtivo quando ao abandono
dos discursos vazios do “ecologicamente correto” confrontamos os olhares e vidas dos
trabalhadores que ela integram.
À Dona Maria Zadir e seu filho Paulo, guerreiros, que compartilharam suas vidas
comigo, além das angústias, dúvidas e esperanças de existências que se tecem por
caminhos incertos. De tudo resultou nossa sincera amizade.
À profª. Alba Maria Pinho de Carvalho, pelo carinho com que acolheu esses escritos e o
aceite do convite para participar da banca examinadora. Pela sensibilidade, apoio e
críticas que muito colaboraram para o resultado final.
Ao prof. José Meneleu Neto, que me honrou em participar da banca examinadora, que
com o cuidado e profundidade analítica que lhe são peculiares, contribuiu para o
aprimoramento da pesquisa e das reflexões desenvolvidas.
A todos (as) que fazem o CETROS (Centro de Estudos do Trabalho e Ontologia do Ser
Social), com os quais tenho o privilégio de compartilhar sonhos e ideais
transformadores que me enchem de certeza de que um outro mundo é possível.
Ao Aimberê Amaral e Socorro Martins, secretários do programa de pós-graduação em
Sociologia, pela presteza e prontidão nos momentos em que precisei lidar com a
burocracia acadêmica.
A todas amigas e amigos feitos nas salas de aula e no caminhar pelos corredores da
universidade, com a certeza de termos compartilhado significativos momentos de nossas
vidas.
Ao financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
– CNPQ, sem o qual esta pesquisa não apresentaria viabilidade.
6
RESUMO
Segundo pesquisa do IMPARH (2006), estima-se que existam entre 6 (seis) e 8 (oito)
mil catadores de materiais recicláveis nas ruas de Fortaleza. Sujeitos que inscrevem sua
existência nas migalhas da margem, vivendo e confundindo-se com rejeitos, expurgos
da sociedade do consumo, marcados pelo estigma da superfluidade. Uma verdadeira
legião de trabalhadores que garimpam formas de sobrevivência por entre resíduos e que,
a cada dia, redescobrem a cidade, estabelecem relações as mais diversas com o meio
urbano e vários outros atores sociais com os quais interagem, numa busca contínua em
rebentar as cadeias mórbidas da invisibilidade pública. Num contexto de crise,
desemprego estrutural de longa duração e reconcentração de capital, essas atividades
laborais, extremamente degradantes, alastram-se e ganham maior visibilidade em
função do agravamento da “questão social”, pois, embora representem atividades
indispensáveis para a sobrevivência daqueles que as desempenham, por outro lado,
cumprem papel significativo no processo de produção de sobretrabalho, valorização e
acumulação do capital, mergulhando esses trabalhadores numa situação crescente de
degradação, espoliação e miséria. Desse modo, considero que grande parcela dos
sujeitos que integram a cadeia produtiva da reciclagem dormita nos limites da
precarização do trabalho, da informalidade e da exploração, possuindo pouca margem e
possibilidades de reação ou ascensão social. Pretendo, portanto, apreender as formas de
manifestação do trabalho de homens e mulheres inseridos na catação de resíduos
sólidos, e as sociabilidades produzidas no contexto da intensificação da precarização do
conjunto das condições sociais de existência dos trabalhadores do lixo, investigando as
formas e condições em que se desenvolvem as relações de trabalho no interior da cadeia
produtiva da reciclagem, considerando, ainda, o processo de trabalho precário da
catação e as relações constituídas a partir da comercialização dos resíduos como
interfaces objetivas das transformações capitalistas ocorridas no mundo do trabalho, nas
últimas décadas.
Palavras-Chave: trabalho, trabalhador catador, resíduos recicláveis, precarização.
7
ABSTRACT
According to IMPARH (2006)´s research, it is estimated that there are between 6 (six)
and 8 (eight) thousand collectors of recyclable materials on the streets of Fortaleza.
Individuals who subscribe their existence in the margin crumbs, living and mingling
with tailings, purging of the consumer society, marked by the stigma of superfluity. A
true legion of workers who pan forms of survival through residuos which, each day,
rediscover the city, establish several relations in the urban environment and among
other social actors with whom they interact, in a continual quest to break the morbid
chains of public invisibility. In a crisis context, long term natural unemployment and
capital reconcentration, these labor activities, extremely degrading, spread and gain
greater visibility due to the worsening of the "social issue" because, although they
represent essential activities to the survival of those who exert them, on the other hand,
they play a significant role in the process of labor surplus production, appreciation and
accumulation of capital, plunging the workers in a situation of increasing degradation,
dispossession and misery. Thus, I consider that a large proportion of the individuals
who comprise the productive chain of recycling lay on the verge of precarious
employment, informality and exploitation, having little room and opportunities for
social mobility or reaction. I intend, therefore, seize the work manifestation forms of
men and women working immersed in the scavenging of solid waste, and the
sociabilities produced in the context of growing precariousness of all social and living
conditions of workers in the trash. Investigating the ways and conditions under which
they develop working relations within the productive chain of recycling, considering
also the process of precarious work of grooming and relationships built through the
marketing of waste as the interfaces with its capitalist transformations occurring in the
world of work in recent decades.
Key-words: work, worker collector, waste recycling, precarious.
8
“Aqui estamos nós! Eles ali chegando!
Olhai os bichos acossados pela miséria!
Vejam como ela os força a descer!
Vejam como eles vêm descendo!
Daqui ninguém volta: aqui estamos nós!
Bem-vindos! Bem-vindos! Bem-vindos!
Bem-vindos cá embaixo entre nós!”
(BERTOLT BRECHT, A Santa Joana dos Matadouros, 1929-31)
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Foto 1 Paulo puxa a carroça conduzindo-a pela rua auxiliado por D. Maria ................ 33
Foto 2 Enquanto Paulo se prepara para cruzar a Av. Antônio Sales, D. Maria recolhe
materiais encontrados pela rua ...................................................................................... 33
Foto 3 Paulo espera o melhor momento para cruzar a movimentada avenida Antônio
Sales ............................................................................................................................... 38
Foto 4 Paulo, com dificuldades, cruza a movimentada rua Padre Valdevino .............. 38
Foto 5 D. Maria procura por materiais na lixeira condominial sem qualquer proteção
........................................................................................................................................ 44
Foto 6 D. Maria e Paulo procuram juntos resíduos sólidos recicláveis na lixeira do
condomínio .................................................................................................................... 44
Foto 7 Paulo amassa a lata de alumínio para em seguida armazená-la na carroça ....... 53
Foto 8 Materiais plásticos sendo dispostos em grandes sacos plásticos e amarrados nas
laterais da carroça ......................................................................................................... 53
Foto 9 “Setor”, ponto de encontro dos catadores, localizado no Bairro Aldeota ....... 60
Foto 10 O cruzamento destacado com a elipse de cor vermelha corresponde ao “setor”,
visto do alto, local estratégico onde vários catadores se reúnem, conversam, descansam,
organizam o material recolhido ..................................................................................... 62
Foto 11 Bem ao centro da imagem é possível ver o enorme morro formado em vinte
anos de funcionamento do aterro Jangurussu ................................................................ 64
Foto 12 Jair, 25 anos. No canto superior esquerdo de sua carroça pode-se ver a cadeira
que encontrou no lixo. Em breve seria recuperada e vendida na feira de São Cristóvão ..
........................................................................................................................................ 66
Foto 13 Adriano, 11 anos, dorme ao lado do lixo recolhido ......................................... 66
Foto 14 Paulo dorme ao lado da lixeira de um condomínio enquanto aguarda a
passagem do veículo coletor de lixo .............................................................................. 68
Foto 15 Paulo desce do caminhão para recolher o material que atirou ao chão ........... 68
Foto 16 Paulo rasga sacos plásticos e retira o material reciclável que encontra enquanto
a prensa do caminhão está em funcionamento .............................................................. 70
Foto 17 Concluído o processo de prensagem do material, espaço é liberado para receber
nova quantidade de lixo. Paulo se prepara para a chegada dos resíduos ....................... 70
10
Foto 18 D. Maria auxilia Paulo na organização dos materiais no interior da carroça
........................................................................................................................................ 71
Foto 19 Paulo utiliza o próprio corpo como prensa para acomodar melhor os materiais
encontrados e, assim, ganhar mais espaço na carroça ................................................... 71
Foto 20 Sentada ao chão, D. Maria aguarda o lixo ser colocado do lado de fora do
restaurante ...................................................................................................................... 73
Foto 21 Paulo puxa a carroça auxiliado por D. Maria, ambos em busca de local onde
pudessem se proteger da chuva ..................................................................................... 74
Foto 22 Catadores enfrentam as dificuldades do tráfego .............................................. 77
Foto 23 Da Aldeota verticalizada para a comunidade carente do Lagamar .................. 77
Foto 24 Mãe e filho começam a descarregar a carroça para iniciar a separação do
material .......................................................................................................................... 78
Foto 25 Paulo se encarrega da separação e organização final do material que é colocado
em grandes sacos ........................................................................................................... 78
11
SUMÁRIO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
1.
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 12
2.
VIDAS QUE SE ERGUEM DOS DEJETOS: [des]caminhos que se cruzam
no rastro do “lixo”..................................................................................................
27
2.1.
Caminhos opostos que se cruzam .................................................................. 48
2.2.
Da catação na rampa ao trabalho nas ruas ..................................................... 63
2.3.
À caminho de Casa ........................................................................................ 80
3.
RECICLAGEM E PRODUÇÃO DESTRUTIVA – a expansão do capital na
era do descartável ..........................................................
84
3.1.
O fenômeno da reciclagem frente ao triunfo da produção generalizada do
desperdício .....................................................................................................
84
3.2.
O imperativo da diminuição da vida útil das mercadorias............................. 96
4.
RASGANDO O VÉU: (re)ligando os fios invisíveis da espoliação................... 114
4.1.
A acumulação capitalista e o excedente estrutural de mão-de-obra – o
trabalho supérfluo e seus sujeitos na sociedade capitalista............................
114
4.2.
Trabalhadores do lixo que dormitam nos limites da precariedade do
trabalho...........................................................................................................
120
4.3.
Os Depósitos: os atravessadores e o comércio dos resíduos sólidos..............
134
5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................
144
A [im]produtividade da atividade da catação como pilar de sustentação do circuito
econômico da reciclagem .................................................................................................
144
6.
REFERÊNCIAS .................................................................................................... 153
ANEXOS..........................................................................................................................
12
1. INTRODUÇÃO
Os discursos de quem o viu, são discursos; os discursos de quem
viu, são profecias (...) Não lume de profecia mais certo no mundo
que consultar as entranhas dos homens. E de que homens? De todos?
Não. Dos sacrificados. (...) Se quereis profetizar os futuros, consultai
as entranhas dos homens sacrificados: consultem-se as entranhas dos
que se sacrificaram e dos que se sacrificam; e o que elas disserem, isso
se tenha por profecia. Porém consultar de quem não se sacrificou, nem
se sacrifica, nem se há-de sacrificar, é não querer profecias
verdadeiras; é querer cegar o presente, e não acertar o futuro.
(PADRE ANTÔNIO VIEIRA “Sermão da Terceira Dominga do
Advento”, 1669)
Prolegômenos de uma pesquisa sociológica: em busca dos fundamentos materiais da
práxis
Na vida social contemporânea, um enorme abismo parece separar o homem
comum da história por ele mesmo escrita cotidianamente, tornando-o apêndice, mero
adorno de uma temporalidade e espacialidade vivenciados e transformados por esses
mesmos sujeitos no palco das relações sociais, transformando-os coadjuvantes do
inexorável desenrolar histórico das relações interpessoais e sociais no sentido mais
amplo. Malgrado sujeitos submetidos a uma cada vez mais complexa teia de relações,
estas parecem se desenvolver no terreno insólito do mundo moderno, confrontando seus
partícipes com problemas e desafios de variadas naturezas sejam elas econômicas,
psicológicas, sociais, existenciais etc. Essa condição de marcada insegurança mergulha
esses indivíduos numa profunda situação de instabilidade social e psicológica, que
requer um enorme esforço analítico das ciências sociais com o fim de compreender, de
modo mais aprofundado, os fenômenos sociais que emergem dessas novas
determinações e impostações da fragmentária realidade sócio-histórica contemporânea,
patenteando-se a oferecer, em não raros casos, um plantel de considerações propositivas
em relação à prática social dos diversos agentes em interação na tessitura social.
Vale ressaltar que, muito embora seja difícil ou mesmo nebuloso identificar com
precisão de que males padece, de forma mais aguda, uma determinada sociedade num
dado momento histórico, não raras vezes encontramos discursos que, atribuindo uma
dinâmica de causa e efeito entre os mais diversos fenômenos sociais, buscam explicá-
13
los de modo a condená-los a análises parciais, limitadoras e reduzidas a esquemas pré-
fabricados que, muitas vezes, não se apresentam lastreados na realidade social da vida
prática. Assim, deparamos com o complexo fenômeno da violência sendo explicado
simplesmente pela insuficiência econômica de parte significativa da população; o
sofrimento do sertanejo pela falta d’ água; o desemprego tão somente pela deficiente
qualificação profissional de nossos trabalhadores, suposta indolência etc.
Essas modalidades discursivas que se empenham em estabelecer uma espécie de
sentido único aos fenômenos da vida social inscrevem-se, por certo, nos escombros dos
matizes teóricos positivistas e estruturalistas, imbricados numa concepção histórica
teleológica e racionalista, que a Modernidade e, hoje, o alardeado mundo “pós-
moderno”
1
ainda não conseguiram remover por completo do campo reflexivo das
ciências sociais de modo a superá-los.
Entretanto, tais concepções explicativas da vida, que se ancoram em percepções
fragmentárias do universo social, tendem a não ressonância nas esferas de reflexão
subjetivas dos indivíduos que parecem sentir um tipo estranho de descompasso entre o
ritmo das transformações e conflitos travados no ambiente social exterior (plano
concreto) e aqueles de auspícios subjetivos, de ordem interior, que penetram na
dimensão dos sonhos, desejos, aspirações e anseios. Uma cada vez mais aparente
apartação entre indivíduo (aqui compreendido em sua dimensão subjetiva) e sociedade
parece permear o pensamento e a percepção daqueles que, ao tentarem reconstruir em
nível mental as experiências vivenciadas cotidianamente, defrontam-se com lacunas e
falhas no fluxo de pensamento reflexivo que busca compreender o sentido (Weber,
1967), descortinar relações fundamentais maquiadas pela imediata aparência reificada
(Marx, 2004), atribuir e identificar a funcionalidade (Durkheim, 1978) dos fenômenos
observados no tecido social, ou mesmo superar as tendências destrutivas e, portanto,
anti-sociais e anticulturais presentes em todos os indivíduos da sociedade numa
dimensão instintiva a fim de se assegurar um sólido desenvolvimento civilizatório
(Freud, 1997).
Dessa forma, mesmo frente às mais esdrúxulas e inconsistentes manifestações
discursivas que, muitas vezes de forma enviesada, tentam instituir novas bases
1
Vale destacar que o termo “pós-modernidade”, que representa certo movimento de idéias
contemporâneo, corresponde uma nomenclatura cunhada pela intelectualidade francesa, sendo mais
conhecida no mundo anglo-saxão como pós-estruturalismo.
14
paradigmáticas através de uma pretensa sofisticação teórico-discursiva - mas que, ao
fim e ao cabo, permanecem confinadas aos limites do idealismo -, não se pode
desconsiderar, sob pena de incorrer em análises descoladas da realidade concreta, a
importância de se investigar e compreender que as manifestações sociais em suas mais
diversas facetas, erigem-se histórica e necessariamente sobre algo e por meio dele (base
material concreta e objetiva) o conjunto das “relações de produção que correspondem
a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais” (Marx,
1983, p. 24) - que se lhe apresenta como sua condição de ser e estabelece com ela
alguma relação objetiva e determinada, que essas representações não podem existir
socialmente apenas como ideia ou virtualidade descolada do mundo, com “um
desenvolvimento histórico autônomo” (Engels apud Mehring, 1976, p.135) ou mero
“fato de consciência” (Lukács, 1981), da maneira como não raro se supõe. Assim,
importante se faz considerar que a dramaticidade e a tragédia diária vivida pelos sujeitos
sociais em suas relações interpessoais e institucionais na cotidianidade possuem uma
inegável e insuplantável materialidade concreta, na medida em que, “por meio de sua
própria atividade, os indivíduos humanos entram assim em relacionamentos
determinados, que são os relacionamentos sociais (...). Assim, os relacionamentos que o
ser humano necessariamente trava, porque não se pode isolar, constituem o ser social de
cada indivíduo” (Lefebvre, 2009, p.63), e, portanto “é o ser social que determina a
consciência, e não a consciência que determina o ser social” (idem). Compreender as
características fundamentais da experiência humana na contemporaneidade me faz
aproximar da necessidade de empreender uma investigação profunda dos elementos que
caracterizam seus fenômenos.
Trata-se, portanto, de extrair da dimensão pessoal da experimentação humana
subjetiva e concreta, das relações institucionais verificadas hodiernamente sem perder
de vista seu caráter histórico, bem como do escrutínio das relações sociais estabelecidas
sob o julgo da globalização dos fenômenos sociais, os fragmentos que, quando
destacados da caótica realidade, possam em conjunto nos revelar quais os significados
do existir nas sociedades modernas, destacando o quão necessário e impreterível é a
busca por uma investigação que prime pelos fundamentos materiais da práxis humana -
síntese das ações e representações sociais objetivas que, como complexo de valores e
práticas, medeia os atos singulares de escolha dos indivíduos - sem, no entanto, incorrer
no erro de não conferir ao estudo da dimensão subjetiva humana fundamental
15
importância, haja vista os novos e complexos fenômenos no campo do trabalho, do
desejo e da linguagem, dimensões que integram o que Safatle (2008) denominou de
formas de vida
2
.
Partir da dimensão humana, ou seja, dos “homens realmente ativos” é partir do
“concreto”, tal como prescreve o método científico de apropriação do real (Marx, 1983,
p. 218), em que o fenômeno concreto, neste trabalho, corresponde às formas do trabalho
da catação no universo da cadeia produtiva da reciclagem. Essa inclinação investigativa
constitui, porém, apenas um primeiro passo - o caminho de ida -, que implica em
proceder a um processo de abstração que busca identificar, frente às múltiplas formas de
manifestação do real, elementos para análise por meio dos quais “chegaríamos a
conceitos cada vez mais simples; do concreto figurado passaríamos a abstrações cada
vez mais delicadas até atingirmos as determinações mais simples” (ibidem.). É preciso
notar, entretanto, que “o concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas
determinações, logo, unidade da diversidade. É por isso que ele é para o pensamento um
processo de síntese, um resultado, e não um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro
ponto de partida [...] (idem., p. 219). Desse modo, partindo daqui, seria necessário
caminhar em sentido contrário”, fazer o caminho de volta, “até se chegar finalmente de
novo [ao concreto], que não seria, dessa vez, a representação caótica de um todo, mas
uma rica totalidade de determinações e relações numerosas” (ibidem.). Assim, se “o
primeiro passo reduziu a plenitude da representação a uma determinação abstrata; pelo
segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pela via do
pensamento” (idem.). Com efeito, “o método que consiste em elevar-se do abstrato ao
concreto é para o pensamento precisamente a maneira de se apropriar do concreto, de o
reproduzir como concreto espiritual [ou concreto pensado]” (ibidem.).
Esta pesquisa busca apreender as formas de manifestação do trabalho de homens
e mulheres inseridos na catação de resíduos sólidos nas ruas da cidade e as
sociabilidades produzidas, ao longo de sua jornada laboral, nos depósitos e sucatas,
responsáveis pela compra dos rejeitos retirados das ruas pelos catadores e destinação
dos materiais recolhidos, relações informadas ainda pela lógica de mercado e mediadas
pela “mercadoria lixo”. Consiste, dessa maneira, em investigar as formas e condições
2
O autor definiu esta estrutura categorial como sendo “um conjunto socialmente partilhado de sistemas
de ordenamento e justificação da conduta [...] Pois toda forma de vida funda-se na partilha de um padrão
de racionalidade que se encarna em instituições, disposições de conduta valorativas e hábitos” (Safatle:
2008, p. 12).
16
em que se desenvolvem as relações de trabalho no interior da cadeia produtiva da
reciclagem, considerando o processo de trabalho da catação e as relações constituídas a
partir da comercialização dos resíduos. O objetivo é desvendar as condições concretas
sobre as quais se desenvolvem essas atividades, as condições de vida dos agentes
envolvidos, seus discursos e representações sobre suas atividades.
Numa sociedade em que a produção é voltada inexoravelmente para a troca, isto
é, onde a relação de troca é dominante, as pessoas existem na medida em que
personificam relações econômicas, na condição, portanto, de proprietárias de
mercadorias. Entretanto, essas relações, quando pensadas no gradiente da lógica de
mercado, acabam por revelar um encontro entre indivíduos que, embora no plano formal
(ponto de vista da jurisprudência, por exemplo) apareçam como iguais - ambos
considerados proprietários -, o que percebemos é o desnudamento de uma relação entre
desiguais, na medida em que aqueles que possuem maior poder econômico, material e
simbólico, podem exercer uma dominação mais efetiva sobre outros em condição
inferior.
Torna-se imperativo fazer alusão às relações estabelecidas entre catadores e
deposeiros (pensados, aqui, enquanto representantes de interesses diversos daqueles no
mercado) no circuito produtivo da reciclagem, em que estes exercem uma influência
flagrantemente mais incisiva sobre aqueles, estabelecendo relações de troca (na
comercialização de resíduos recicláveis). As singularidades desse “encontro”,
mediatizado por uma sociabilidade informada pela lógica mercadológica, constituem o
foco. Tratou-se de enfocar e analisar as miúdas e fragmentárias manifestações do agir
cotidiano desses trabalhadores no universo das relações que ordenam a precarização, o
desemprego estrutural, a informalidade no capitalismo contemporâneo, apontando para
uma totalidade plasmada no circuito produtivo da reciclagem.
17
A todo caminhar se impõe o primeiro passo
Caminhantes, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar.
(ANTÔNIO MACHADO, poeta espanhol)
Nas migalhas da margem
3
foi onde encontrei os sujeitos destas páginas e com
eles dei os primeiros passos. Juntos, avançamos pelas ruas e avenidas, onde testemunhei
o arrastar da carroça, a qual à medida que galgava mais e mais metros de asfalto, via-se
reduzir seus espaços vazios que se preenchiam dos rejeitos descartados por outros,
alhures, mas que, agora, tornavam-se ressignificados e ressemantizados pelos catadores,
incorporando a forma de sua sobrevivência. E assim vivenciei a construção daquela
intrigante contradição do universo urbano, um profundo descompasso que se estabelecia
entre os carros, motos e automotivos de grande porte, como caminhões e ônibus, o
transitar de pessoas no fazer de suas rotinas diárias e o deslizar das carroças
precariamente erguidas sobre duas pequenas rodas pelo asfalto e arrastadas por aqueles
que dos restos extraíam seu sustento diário que, tal como água e óleo, não se
misturavam na composição estética da paisagem urbanística. Estes constituíram o
material humano em que mergulhei. Uma verdadeira legião de trabalhadores que
garimpam formas de sobrevivência por entre os resíduos outrora descartados pela
sociedade do consumo, que, a cada dia, redescobrem a cidade, estabelecem relações as
mais diversas com o meio urbano e vários outros atores sociais com os quais interagem,
numa busca contínua em rebentar as cadeias mórbidas da invisibilidade pública,
expressão que resume diversas manifestações de um sofrimento
4
político-social que fere
de morte os catadores de materiais recicláveis: a humilhação social
5
.
3
Tomo de empréstimo a expressão do sociólogo José de Souza Martins (2008), quando assim se referiu
aos espaços segregados do subúrbio fabril da área metropolitana de São Paulo nos idos de 1950, onde
habitava a grande maioria da força operária, que constituía em sua análise um fragmento marginal da
história da sociedade brasileira, uma vez que vivenciou os estertores de uma modernidade incompleta, um
processo de desenvolvimento às avessas que sofreu os efeitos colaterais da industrialização e da formação
da classe operária à margem dos efeitos espetaculares da acumulação do capital.
4
Sofrimento longamente aturado e ruminado principalmente por pessoas das classes mais pobres. A
humilhação marca a personalidade por imagens e palavras ligadas a mensagens de rebaixamento, estas
lançadas, em geral, em cena pública: a escola, o trabalho, a cidade. São gestos ou frases dos outros que
penetram e não mais abandonam o corpo e a alma do rebaixado, invadindo a mente destes indivíduos de
dores e afetos inomináveis, estes em psicanálise chamados de angústia, o mais desqualificado dos afetos,
18
Mãe e filho foram meus interlocutores e caminhantes acompanhados na primeira
parte do trabalho. Nossos caminhos já haviam se cruzado algumas vezes, e essa situação
se repetiria até que este pesquisador tomasse a iniciativa de fazer convergir caminhos
que teimavam em seguir em direções opostas. Minha primeira aproximação se deu
repleta de anseios que foram logo dissipados a partir do momento que verifiquei com
que franqueza conversávamos sobre trabalho, sobre o calor que fazia naquele início de
tarde e as dificuldades que cercavam a lida diária dos trabalhadores da reciclagem, para
eles, luta contínua em busca de assegurar a sobrevivência. Logo percebi que nada
entenderia daquela realidade se não os acompanhasse em sua rotina
6
, seguisse passo a
passo aqueles que tanto falavam sobre suas vidas, às vezes mais com os olhos, posturas
curvadas, mãos calejadas, roupas sujas e maltrapilhas, do que propriamente com
palavras, estas incapazes de exprimir a totalidade do que sentimos ou pensamos.
E foi assim que começou essa viagem pelas ruas, aparentemente aleatória e sem
sentido, porém que seguia o rastro deixado pelo refugo, afinal o percurso seguia o lastro
dos resíduos, do lixo. Esse primeiro momento, em que busquei captar as complexidades
do cotidiano destes catadores em sua atividade diária de trabalho, orientou-se por um
esforço em captar as minúcias dessa experiência a partir da valorização da história oral
de vida daqueles sujeitos. Os diálogos estabelecidos nos momentos de caminhada ou
mesmo descanso não seguiram um roteiro pré-estabelecido que fosse capaz de
(des)orientar os rumos tomados. A história se fez ao caminhar, para lembrar o poeta,
pois foi nas ruas que foi possível perceber as peculiaridades que informam essa
moeda dos afetos traumáticos, como tão bem caracterizou Jean Laplanche. Consultar LAPLANCHE,
Jean. Novos Fundamentos para a Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
5
Entendemos a humilhação social como fenômeno sócio-histórico, construído e reconstruído ao longo de
séculos e determinante no cotidiano dos indivíduos, sobretudo daqueles espoliados e pertencentes às
classes subalternas. No campo psicossocial é expressão da exclusão intersubjetiva de toda uma classe do
âmbito público da iniciativa e da palavra, do âmbito da ação fundadora e do diálogo, do governo da
cidade e do governo do trabalho, constituindo um problema que se manifesta politicamente através de
processos reificantes (Costa, 2004, p. 63).
6
Entendo, dessa maneira, que concerne ao pesquisador inserir-se no meio estudado e estabelecer contato
com os nativos, porém sem converter-se num deles, evitando “tornar-se cego para muitas questões
importantes cientificamente” (CICOUREL, 1990, p. 93), adotando, por outro lado, uma postura
consciente dos papéis representados no campo de pesquisa de modo a permitir a si mesmo momentos de
reflexão e revisão do que foi coletado no andamento da diligência científica. Não por outro motivo, o
trabalho do pesquisador que se vale de uma imersão no campo de pesquisa deve estar atento para o fato
que a investigação de campo representa uma ótima oportunidade para o teste de determinadas teorias,
comprovação da aplicabilidade de outras ou mesmo a verificação de como estas e aquelas penetram ou
influenciam nossos conhecimentos produzidos em áreas afins, fugindo, no entanto, do fantasma da
construção de um relato pretensamente científico que não consiga livrar-se das amarras do senso-comum.
19
atividade laboral, as maneiras como esses indivíduos conquistam sua sobrevivência a
partir do recolhimento do lixo, os perigos que correm em jornadas que, não raro,
ultrapassam dezesseis horas de trabalho, como dormem, os efeitos do trabalho sobre
seus corpos. Mas, também, falamos de família, da vida, compartilhamos sonhos,
esperanças... E com outros nos encontramos. Percebi, então, que formavam grupos que
nas ruas se cruzavam, interagiam. E tinham histórias diferentes. E foi assim que outros
caminhos cruzaram o nosso. Eram sujeitos que, como a família que acompanhava,
também se submetiam a jornadas extenuantes de trabalho em busca dos rejeitos da
sociedade, também viam nessa atividade primeiramente a oportunidade de se manterem
vivos, e com criatividade buscavam debelar as dificuldades impostas por uma
“sensação” de desigualdade que não bem sabiam explicar, mas sentiam.
Não obstante a natureza itinerante e móvel, características que marcam o
trabalho do catador de resíduos sólidos, vez que desenvolve suas atividades nas ruas, há
o momento em que retornam para algum lugar. Moram, em geral, em habitações
situadas em bairros periféricos da cidade que carecem de infraestrutura urbana e
sanitária (IMPARH, 2006, p. 32), o que os obriga a protagonizarem significativos
deslocamentos urbanos sempre que saem para o trabalho, atravessando com suas
carroças vários bairros de Fortaleza em busca do “lixo bom”, bairros habitados por
classes de altos padrões de consumo e, consequentemente, constituindo os maiores
produtores de resíduos da metrópole.
Conheci ainda a casa onde vivem mãe e filho que acompanhei pelas ruas, e
constatei o que já havia diagnosticado a pesquisa realizada pela Prefeitura de Fortaleza
em parceria com o IMPARH (2006), quando aponta a enorme precariedade das
habitações dessa categoria de trabalhadores. Observar as condições de reprodução da
vida desses sujeitos e as características de seu trabalho, permitiu- me constatar a dupla
dimensão da vulnerabilidade sofrida pelos trabalhadores do lixo: por um lado,
desenvolvem uma atividade de risco sem qualquer espécie de proteção legal ou social
(esfera da produção), por outro, vivem em péssimas condições de moradia (esfera da
reprodução), em regiões da cidade desassistidas pelo poder público, privados de
estruturas básicas como espaços de lazer, creches e escolas para os filhos, postos de
saúde, boas condições de higiene das ruas e logradouros do entorno onde vivem,
obrigando-os a conviverem com a violência, com as doenças, com o abandono.
20
Laplantine (2004) traz à tona profunda reflexão sobre a particularidade do olhar
do pesquisador quando proposto a compreender a totalidade da dimensão do ser e do
fazer humanos em suas mais diversas apreensões possíveis no universo social. Construir
esse saber exige do pesquisador um profundo e complexo envolvimento sensorial que
encontra seu momento predominante no olhar, este que busca captar as minúcias, as
entranhas, as sceras dos fenômenos sociais, reconstruindo as teias significantes das
relações observadas, vividas e partilhadas a partir duma linguagem descritiva, ou
melhor, linguagem que se inscreve no método da descrição etnográfica. Trata-se,
portanto, de descobrir o outro por meio da emancipação sensorial do pesquisador, do
envolvimento da totalidade de sua inteligência e sensibilidade, considerando os gostos,
as cores, os sons como elementos indispensáveis para uma recomposição, reconstrução
linguística dos fenômenos captados inicialmente em seus contornos imagéticos. Para
tanto, é imperioso ao pesquisador desenvolver uma profunda vivência dos modos de
vida do grupo observado, captando as minúcias cotidianas, os detalhes das relações
entre indivíduos e entre estes e o meio em que vivem, muitas vezes, imperceptíveis a
um olhar desatento, num mergulho total rumo ao universo simbólico e semântico
construído pelos próprios sujeitos a respeito de seus comportamentos e práticas as mais
diversas.
Embora o trabalho que desenvolvi, sobretudo no primeiro capítulo, não se trate
propriamente de uma pesquisa que se utilize do método da observação participante,
considero fundamental destacar a importância do método descritivo (ou etnográfico),
muito caro ao pensamento antropológico (também largamente utilizado pela psicologia
social), utilizado em minha pesquisa, que me municiou de ferramentas valiosas na
observação e construção teórica das experiências vivenciadas no campo da pesquisa.
Nesse sentido, não entendo constituir pecado a aproximação entre as dimensões micro e
macro da realidade
7
, pois “isso possibilita conferir ao pensamento uma maior
abrangência, ao mesmo tempo que se pode enxergar a realidade social e política com
7
A revisão de algumas tentativas para "cercar" a especificidade da etnografia pode ser reveladora:
Peirano (1995), por exemplo, fala em "resíduos" certos fatos que resistem às explicações habituais e
vêm à luz em virtude do confronto entre a teoria do pesquisador e as idéias nativas; Goldman (2000)
refere-se à "possibilidade de buscar, através de uma espécie de ‘desvio etnográfico’, um ponto de vista
descentrado"; que lembrar ainda os "anthropological blues" de Da Matta (1974) e a expressão
"experience-near versus experience-distant" usada por Geertz (1983). Em comum, encontramos
posicionamentos que destacam a atitude de estranhamento do pesquisador quando confrontado com as
formas de vida reveladas pela coletividade estudada.
21
novos olhos” (ORTIZ, 1994 p. 10) desde que com isso “o objetivo do pesquisador seja
“buscar o entendimento da sociedade dentro de uma perspectiva global” (idem).
Portanto, eis a contribuição do método descritivo para a construção do
argumento desta investigação: trata-se da natureza, da especificidade do conhecimento
proporcionado pelo modo de operar da descrição etnográfica e que em consonância
com o sentido da pesquisa permitiu-me captar determinados aspectos da dinâmica teia
de relações estabelecidas pelos sujeitos de meu estudo que passariam despercebidos, se
enquadrados exclusivamente pelo enfoque das visões macro e dos grandes números.
Procedendo assim, entendo operar uma aproximação da pesquisa do que definiu Marx
como necessidade imperiosa a todo processo de investigação, no posfácio da segunda
edição de O Capital: “a pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as
suas várias formas de evolução e rastrear a sua conexão íntima. depois de concluir
esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento do real.” (Marx apud
Teixeira, 1995, p. 37). Por fim, acrescento minha convicção de que o método da
descrição etnográfica significa bem mais que um conjunto de técnicas para se utilizar de
variadas maneiras em pesquisas sob circunstâncias diversas. Antes, constitui um
importante instrumento analítico que permite ao pesquisador promover um maior
acercamento e apreensão dos fenômenos definidos para estudo, a partir de um
diferenciado enfoque conferido aos detalhes, fragmentos que abrem o campo das
possibilidades para arranjos e rearranjos num todo que pode vir a oferecer pistas de
novas interpretações e entendimentos.
Tal procedimento metodológico foi responsável por revelar alguns significados e
elementos constitutivos da realidade socioeconômica, vivenciadas pelos
catadores/recicladores dentro e fora do circuito econômico da reciclagem. Seguindo a
lógica de Oliveira (2000) que nos ensina a “olhar, ouvir e escrever”, as experiências
passadas no campo, a metodologia, nessa perspectiva, representou um mergulho no
campo, garantindo a aproximação com as narrativas, pontos de vista e conhecimento das
representações, além de elucidar experiências dos trabalhadores catadores (carroceiros)
em estudo e de outros agentes que circundam e exercem influências sobre suas ações,
aprofundando, ampliando e qualificando o entendimento acerca do trabalho e seus
sentidos em nossa sociedade.
22
no segundo momento, a tentativa foi compreender a atividade da catação na
medida em que está inserida num contexto produtivo mais amplo, o que denomino de
economia política dos resíduos, ou, talvez, dizendo de modo mais contundente e claro,
economia política do lixo, do refugo. Entendo que não se pode compreender de modo
mais apropriado as atuais formas de manifestação do trabalho destes indivíduos
[catadores] se não considerarmos as significativas transformações ocorridas tanto no
plano formal – refiro-me aos discursos e “novos” encaminhamentos teóricos ao se
discutir o meio ambiente e a questão do trabalho – como no plano material – as
mudanças nas legislações nacionais e internacionais, a adoção de políticas públicas,
parcerias entre setor público e privado com o escopo de promover o “desenvolvimento
sustentável”, novas formas de manifestação do trabalho nas sociedades contemporâneas
e o papel desempenhado pelo setor da reciclagem e sua significância diante dessas
dimensões. O esforço maior, porém, foi tentar desanuviar o debate em torno da
importância da reciclagem e de todo esse setor para a “preservação” do meio ambiente.
Tentei apontar os limites desses entendimentos na medida em que essas iniciativas não
rompem com a lógica produtora de mercadorias que caracteriza a sociedade capitalista
do desperdício.
Na terceira parte do trabalho, dediquei-me a conhecer o “outro”, o oposto que
estabelece relações comerciais com os catadores e funciona como uma espécie de
“atravessador”, homem que medeia o encontro do lixo recolhido pelos catadores e o
grande capital corporificado em forma de indústria, que se incumbirá de permitir o
retorno daqueles “restos”, num “novo” corpo, para o sacro reino das mercadorias. A
jornada de trabalho do catador se encerra no momento em que este vende o material que
recolheu das ruas no depósito. A partir daí, todo aquele material receberá novo
tratamento e destino. O objetivo central foi compreender as particularidades da
atividade desenvolvida por estes outros trabalhadores do lixo, o deposeiro e
funcionários do depósito
8
, queo estão nas ruas com as próprias mãos revirando
lixeiras para recolher resíduos, mas deles também retiram seu sustento. Embora do lixo
se acerquem, aqui o discurso da sobrevivência cede lugar ao discurso do
empreendedorismo. Para tanto, observei como se estrutura a rotina de trabalho no
8
O depósito escolhido foi o depósito de propriedade de Valdeci Filho, local onde mãe e filho (catadores)
que acompanhei na jornada de trabalho venderam seu material recolhido. O proprietário, de modo muito
cortês, autorizou a realização da pesquisa sem me fazer nenhuma consideração ou restrição. Seu depósito
situa-se no bairro Aerolândia, região que abriga a comunidade do Lagamar, em Fortaleza.
23
depósito, o movimento de catadores que vendem seu material diariamente, a forma
como se desenvolvem as relações entre os trabalhadores que operam os negócios do
depósito e os trabalhadores que vêm das ruas, as condições físicas do local e formas de
acondicionamento dos resíduos. Confrontar essas visões de mundo, essas racionalidades
de trabalho criaram as condições para que pudesse empreender uma discussão mais
ampla, de modo a situar os vários agentes num plano maior que envolve a atividade da
reciclagem e os trabalhadores que dela fazem parte num contexto de produção e
reprodução de mercadorias e acumulação de capital orientado pela lógica do mercado,
proporcionando para uns (industriais e grandes investidores do setor) lucrativos ganhos
e, para outros a grande maioria -, numa outra ponta da cadeia produtiva da reciclagem
(os catadores), o ostracismo e a reprodução de precariedades de vida e trabalho. É neste
capítulo onde procuramos compreender melhor a funcionalidade do trabalho do catador
na sustentação da estrutura produtiva da cadeia da reciclagem, buscando desvelar a
natureza do fenômeno da extrema precariedade em que se desenvolve a atividade e
mostrar sua dupla importância para a manutenção do retorno lucrativo dos
investimentos industriais do setor, uma vez que são os responsáveis por trazer de volta,
ao circuito mercadológico, resíduos outrora descartados, mas que muito valiosos são
para a indústria da reciclagem possuindo trabalho humano materializado -, além de
suportarem enorme exploração, reduzindo custos de mão-de-obra, barateando o
processo produtivo da cadeia, proporcionando maior extração de sobretrabalho.
Fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa mostraram-se os contatos
que estabeleci com a organização não-governamental IDER (Instituto de
Desenvolvimento Sustentável e Energias Renováveis), através de Humberto Leite,
assessor de comunicação. Por meio deste, obtive acesso a matérias jornalísticas,
relatórios de atividades de capacitação
9
desenvolvidas junto aos catadores e associações,
assim como pesquisas socioeconômicas sobre a situação dos catadores de resíduos
sólidos e a atual situação do universo da reciclagem na cidade de Fortaleza, realizadas
9
As atividades de capacitação realizadas abrangem desde uma formação que objetive despertar a atenção
do catador para a questão ambiental e a reciclagem dos resíduos sólidos, passando pela possibilidade de
constituição de cooperativas até ões de empreendedorismo no setor. Objetivam instrumentalizar os
catadores para que estes possam se organizar e assim criar condições para aumentar seus rendimentos. “A
gente não tem a esperança de que eles saiam daqui e formem cooperativas, mas que, pelo menos, possam
se sensibilizar para a necessidade de se organizar para gerar melhores rendas” (Massilon, O Povo, 11 de
maio de 2006, p. 7).
24
por essa instituição e outras como a Cáritas Arquidiocesana de Fortaleza e o Fórum
Lixo e Cidadania
10
.
Ainda nesse mesmo sentido, foi imprescindível a análise do documento
Diagnóstico da situação socioeconômica e cultural do(a) catador(a) de materiais
recicláveis de Fortaleza-CE, pesquisa realizada pelo Instituto Municipal de Pesquisas,
Administração e Recursos Humanos IMPARH, em parceria com a Secretaria
Municipal do Meio Ambiente SEMAM e a Prefeitura Municipal de Fortaleza - PMF,
publicada no ano de 2006. A pesquisa traça um panorama geral da situação do catador
de resíduos sólidos na cidade de Fortaleza, indo além dos tradicionais elementos
socioeconômicos comumente pesquisados como renda, habitação, situação familiar,
considerando, além dos elementos citados, também indicadores como diversidade de
gênero, sexo, crença, visões de mundo, motivações pessoais, ações e políticas
desenvolvidas pela sociedade civil e o poder público, etc. Isso permitiu o
desenvolvimento de uma análise qualitativa em certos momentos da publicação. A
pesquisa no universo virtual foi bastante proveitosa uma vez que me forneceu dados e
me informou sobre a realidade da reciclagem no Brasil, permitindo estabelecer
parâmetros comparativos entre a realidade encontrada em Fortaleza e em outras cidades
e estados brasileiros quando se trata de trabalho da catação, processos de produção,
destino e reciclagem do lixo.
A farta documentação, os levantamentos estatísticos, as pesquisas quantitativas e
os diagnósticos socioeconômicos sobre a atividade da catação e o setor da reciclagem
em geral permitiu-me dedicar mais tempo a desenvolver uma pesquisa de cunho mais
qualitativo, investigando outros aspectos que integram o universo da reciclagem, seus
trabalhadores, suas realidades. Compreender a teia de significados que envolve os atores
que se relacionam na cadeia produtiva do lixo impôs:
10
Este Fórum trata-se de uma articulação de instituições governamentais e não governamentais, criada em
1998 por estímulo e sob a coordenação do UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância, tendo
objetivos principais os seguintes pontos: 1. Retirar todas as crianças e adolescentes do trabalho com lixo
nos lixões ou nas ruas, promovendo sua inclusão educacional; 2. Promover a inclusão social e econômica
dos catadores de materiais recicláveis, especialmente por meio de apoio à sua organização e de programas
de coleta seletiva; 3. Erradicar os lixões, implantando sistemas de gestão integrada e sustentável dos
resíduos sólidos, com participação de todos os envolvidos, especialmente os catadores. No ano de 2007 já
participavam aproximadamente 15 OG (organizações governamentais) e 06 ONGs (organizações não-
governamentais), dentre estas 14 organizações de catadores de materiais recicláveis.
25
Mergulhar no fenômeno, mostrar suas entranhas, estudar suas vísceras
e beber o seu sangue. Somente após visitar suas cavernas sombrias
estaremos aptos a entender sua realidade, feia e formosa, escura e
clara, mediata e imediata simultaneamente. A complexidade do
conhecimento científico implica, pois, a decomposição do concreto-
intuitivo e sua reconstrução como concreto pensado (Malaguti, 2001,
p. 18).
Ademais, pensar a realidade desses agentes frente a uma situação social eivada
de cambialidades e elementos contraditórios me colocou frente ao desafio imperioso de
ir além das representações tradicionais que se fazem a respeito dos trabalhadores que se
revestem do perfil estudado, para investigar as mais fundas representações que possuem
de si mesmos, sua experiência concreta, atividade de trabalho, visão de mundo,
aspirações e desejos, considerando, para tanto, não somente a trajetória de sua atual
atividade laboral, mas sua trajetória e experiência de vida e trabalho. Identificamos
indivíduos que em nossa sociedade são estigmatizados com a chaga da rejeição,
expurgos da sociedade do consumo, marcados pela superfluidade, absorvendo, ainda
mais intensamente, as consequências das contemporâneas formas precarizadas de
inserção dos trabalhadores no universo das práticas laborativas, ancoradas na gica
inexorável da expansão sem limites do capital. Este processo desumanizante não
reconhece rostos humanos, mas tão somente braços e pernas capazes de fazer girar seu
moinho satânico condenado, enquanto vivo, à auto-reprodução cada vez mais ampliada
e totalizante.
26
Los caminos
Los caminos,
Los caminos no se hicieron solos
Cuando el hombre,
Cuando el hombre dejó de arrastrarse.
Los caminos,
Los caminos fueron a encontrarse
Cuando el hombre, cuando el hombre,
Ya no estuvo solo.
Los caminos,
Los caminos que encontramos hechos
Son desechos,
Son desechos de viejos vecinos.
No crucemos no crucemos
Por esos caminos
Porque solo, porque solo
Son caminos muertos
(PABLO MILANÉS)
27
2. VIDAS QUE SE ERGUEM DOS DEJETOS: [des]caminhos que se cruzam no
rastro do “lixo”
“E apesar de nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa
universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa
não participamos: o amilhoramento político-social do homem”
(MÁRIO DE ANDRADE, 1943)
Aproximei-me daqueles dois quando passava do meio dia. Ambos
encontravam-se sentados ao lado do portão de entrada duma casa residencial, o que
sugeria que esperavam por algo, mistério logo solucionado no momento em que a
moradora abriu o portão e entregou um saco plástico contendo “lixo” reciclável, na
outra mão trazia um recipiente plástico que continha um punhado de comida, tratava-se
de certa quantidade de arroz com dois pedaços do que parecia ser peixe frito. A refeição
estava posta. Após rápidos agradecimentos e um “Deus lhe recompense em dobro”, o
saco plástico foi logo atirado no interior da carroça o que fez com que a atenção se
voltasse apenas para a refeição que tinham em mãos, e com as próprias fizeram uma
rápida partilha e puseram-se a comer, levando os alimentos à boca apressadamente com
os próprios dedos já que a doação não incluía talheres.
Com certo constrangimento, interrompi a refeição que faziam e apresentei-me,
iniciando uma conversa de cunho informal e descontraída que me proporcionou o
estabelecimento de um bom contato inicial. Tinha à minha frente dois carroceiros numa
condição bem particular de trabalho: mãe e filho que, juntos, percorriam as ruas da
cidade no trabalho da catação. O jovem, de nome Paulo, parecia bem disposto, e
mostrou-se animado frente ao gravador e à possibilidade de poder contar-me sobre a
dureza de seu trabalho, a quantidade de material que eram capazes de catar por dia, e o
fez, apressando-se por me explicar o porquê da carroça ainda estar vazia àquela hora,
mas garantindo-me que antes das quatro da manhã estaria toda preenchida. Chamou-me
atenção sua pouca idade, apenas dezesseis anos
11
, o que contrastava frontalmente com
11
Aqui, cabem algumas considerações sobre o que versa a legislação brasileira sobre o trabalho juvenil.
Nossa legislação proíbe todo e qualquer tipo de trabalho para menores de 14 anos salvo na condição de
aprendiz (vide art. 60 da lei n. 8069 de 13 de julho de 1990). O trabalho a partir dos 14 anos é permitido
apenas na condição de aprendiz, em atividade relacionada à qualificação profissional. E acima dos 16
anos o trabalho é autorizado desde que não seja no período da noite, em condição de perigo ou
insalubridade e desde que não atrapalhe a jornada escolar (vide caput do art. 67 e incisos). Entretanto, se o
28
sua larga experiência no trabalho da catação, afinal, já eram mais de cinco anos
dedicados a essa atividade, sempre ao lado da mãe.
Enquanto conversávamos, a animação de Paulo foi bruscamente interrompida
pelas duras palavras que saíram da boca de sua mãe “eles sabem é roubar a gente”.
A frase foi proferida em tom ríspido, manifestando ainda certa revolta e indignação.
Dona Maria estava sentada na calçada próxima à carroça, os ombros curvados, as mãos
sobre os joelhos e os olhos fixos no chão. Falávamos sobre o destino dos materiais
coletados e os valores auferidos pela venda nos depósitos. Ficou claro uma relação
conflituosa entre os catadores e o deposeiro que compra o material, mormente quando
falamos em valores remunerados ao carroceiro em troca do material colhido. Os valores
não passam de trinta reais por dia, orbitando na maioria das vezes entre quinze e vinte
reais diários, assegurou-me Dona Maria.
Outro elemento que vinha corroborar com a insatisfação desses catadores em
relação ao deposeiro era o fato deste inspirar desconfiança ao fazer a pesagem do
material quando entregue, conforme nos asseverou Paulo “a gente entrega o material
se ele não roubar na balança ele rouba na caneta, a gente tem que ficar de olho”.
Aqui, Paulo se refere a uma prática que ele julga comum entre alguns deposeiros que
consiste em alterar os números encontrados na pesagem do material quando colocado na
balança, transcrevendo na planilha, instrumento de controle do material que entra e sai
no depósito diariamente, bem como o volume de pagamento realizado aos catadores,
peso inferior ao realmente verificado. Esta seria uma forma de ludibriar os catadores
menos atentos. A insatisfação era ainda maior em razão da dramática situação que
estavam passando desde a noite anterior. Relataram-me que durante o descanso em casa,
é de praxe a carroça ser posta do lado de fora da residência em razão da falta de espaço,
por outro lado, facilitando a ão de ladrões que furtam algum material coletado
remanescente, pois, como me alertou Paulo, “existem catadores bons como a gente e
catadores maus que roubam as pessoas”. Importante salientar que a desconfiança da
autoria dos furtos recai sobre os próprios pares.
jovem com mais de 16 anos não tiver carteira assinada ou desenvolver a atividade laboral em condições
precárias, ele entra nos meros de trabalho infantil e ilegal. No Brasil, quase 90% dos jovens de 16 e 17
anos que estavam trabalhando como empregados ou trabalhadores domésticos em 2007 não tinham
carteira de trabalho assinada, sendo que 46,6% deles cumpriram jornada de 40 horas semanais ou mais.
Os dados fazem parte da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) divulgada em setembro
de 2008 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e engordam as estatísticas da
exploração infantil no Brasil. Nosso jovem Paulo vem desde tenra idade sofrendo uma brutal exploração
de sua força de trabalho.
29
Porém, o que ocorreu na noite anterior foi deveras mais grave do que o furto de
material que ainda estava por ser vendido no depósito, dessa vez o objeto furtado fora a
própria carroça. Explicaram-me, ainda, que a carroça pertencia ao dono do depósito no
qual comercializavam o material recolhido das ruas, sendo extremamente comum o fato
de os carroceiros não serem os proprietários de seu principal instrumento de trabalho: a
carroça. Esse tipo de acontecimento é imperdoável, recaindo sobre os ombros dos
catadores o peso da dívida orçada pelo deposeiro em R$ 300,00. “E eu tava alegre e
satisfeito porque ia comprar uma bicicleta pra mim, mas agora num vai dar. Vou ter que
pagar a ele aí vou ficar sem a minha bicicleta” – lamentou Paulo.
Havia certa revolta e insatisfação naquelas palavras em razão do baixo valor
pago pelos materiais, sobretudo nos últimos meses, pois o trabalho continuava sendo
realizado com forte intensidade, envolvendo uma longa caminhada, tendo em vista que
moram numa pequena habitação com três cômodos no bairro Barroso, localidade onde
também se encontra o depósito em que, na maioria das vezes, vendem o material
coletado, sendo necessário, portanto, longas caminhadas a fim de encontrar material
suficiente para encher a carroça e vender por um valor que possa atender suas
necessidades básicas.
Em relação à jornada de trabalho, esta se inicia por volta das cinco da manhã,
horário em que começam uma longa caminhada diária. Em geral, seguem uma rota
estabelecida pela rotina diária, sem grandes variações. Aos poucos a carroça vai
enchendo de diversos materiais que são encontrados no caminho ou mesmo doados,
uma vez que também chegam a bater em portas de residências perguntando sobre a
existência de materiais que tenham sido separados para reciclagem. São poucas as casas
que adotam a prática de separar o lixo, mas esses momentos são importantes porque,
além da possibilidade de conseguir algum material reciclável, é também a chance que
possuem para pedir água para matar a sede ou alimento para aplacar a fome, da maneira
como faziam quando os encontrei.
Assim são feitas as refeições, e não poderia ser de outra maneira diante da
escassez de recursos. Mostrando-me espantado com o extenso número de horas de
trabalho diário, perguntei sobre o necessário descanso. Na resposta, foi dito que os
intervalos para descanso são feitos em locais estratégicos encontrados pelo caminho, em
geral costumam parar em postos de gasolina, onde se deitam em cantos longe do
30
movimento dos carros, sempre próximos à carroça, evitando, assim, os perigos da rua,
como os assaltos. Quando passam dias fora de casa ocorre de encher a carroça mais de
uma vez, momento em que chegam a comercializar o material em outros depósitos
localizados geralmente no centro da cidade. E, assim, chegaram a passar até uma
semana fora de casa, catando e vendendo materiais, dormindo e se alimentando pelas
ruas.
Após o primeiro contato que mantive com mãe e filho por um acaso qualquer, ao
vê-los num momento de interrupção do trabalho para garantirem uma refeição, confesso
que senti um misto de angústia e ansiedade após nossa despedida. Angústia por ter tido
a oportunidade de ouvir de modo tão dramático e, ao mesmo tempo, carregado
emocionalmente, o relato sobre o cotidiano de vida e de trabalho daqueles dois que, ao
se somar a mais um casal de filhos de Dona Maria, formavam uma família, que vivia as
agruras e incertezas de um trabalho, que somente se via por completo quando a carroça
se encontrava repleta dos restos e rejeitos do consumo permitido a uma pequena parcela
de nossa população, produtora do “lixo bom”, descartável. Inevitavelmente se seguiu
certo sentimento de ansiedade ao se manifestar em mim o desejo de conhecer o
desfecho das muitas histórias abertas em nossa conversa. Queria saber como fariam para
pagar a dívida com o deposeiro em razão da “perda” da carroça, se Paulo, mesmo assim,
compraria sua bicicleta, se a renda auferida ao fim da jornada de trabalho teria sido
compensatória e como iriam passar aquela noite, vez que conversamos apenas no início
do expediente, e vivíamos naquele período noites chuvosas.
Essas dúvidas levaram-me a empreender um esforço em tentar reconstruir
mentalmente um esboço do possível trajeto daqueles dois, reconfigurando rotas por
mim mesmo feitas cotidianamente, na esperança de, repentinamente, encontrá-los
novamente e poder aplacar minhas inquietações. Inusitadamente o reencontro ocorreu
algumas semanas mais tarde bem próximo ao local de nosso primeiro contato. Minha
profunda satisfação em reencontrá-los parece ter surtido efeito contagioso, ou talvez,
por motivos desconhecidos a mim, da outra parte esse sentimento também se
manifestara com ares de sinceridade. Decerto, evitei comentar sobre nossa conversa
passada como se reservasse para mim mesmo o momento mais apropriado para
conhecer o “capítulo final”, o desfecho daquelas apreensões em mim plantadas semanas
atrás, mesmo convencido da inesgotabilidade dos rumos e possibilidades infinitas de
31
caminhos e descaminhos possíveis de serem seguidos por qualquer alma que habite este
“mundo dos homens”.
Para além das palavras, a maneira mais adequada, metodologicamente, para
empreender um processo de desvelamento e compreensão mais aprofundada da
realidade vivida por aqueles trabalhadores não poderia ser outra senão acompanhá-los
em seu trajeto, observando para além dos elementos que compõem a rotina diária de
trabalho, a construção do universo simbólico que confere sentido às práticas laborais
cotidianas desses sujeitos, elementos denunciados em seus corpos, gestos e discursos,
no bojo das relações estabelecidas no desenrolar de sua atividade de trabalho
propriamente dita. Os catadores que se afiguram como sujeitos de nossa investigação
evocam como característica imanente a seu trabalho o caráter itinerante e móvel.
Desenvolvem sua atividade tendo como palco as ruas da cidade, fazendo do espaço
urbano o locus por excelência de sua atividade laboral.
Entender esses trabalhadores e as características de sua atividade de trabalho e
situação de vida pressupõe considerar os contraditórios processos que caracterizam e
configuram as formas de interações entre esses agentes e a materialidade concreta e
contraditória de estruturação dos [des]caminhos que engendram o fenômeno urbano do
trabalho precário. Para tanto, na ocasião do encontro, tratamos de agendar data em que
nos encontraríamos, mas, dessa vez, para que eu pudesse acompanhá-los em seu trajeto
diário, como forma de vivenciar presencialmente a consumação, ou não, daquelas
palavras ouvidas por mim semanas antes. É importante salientar que em nenhum
momento houve qualquer resistência por parte de meus interlocutores à proposta que fiz
que pudesse obliterar ou frustrar meus planos. Pelo contrário, mostraram-se surpresos
pela minha decisão e trataram logo de advertir-me das dificuldades que enfrentaria,
tendo em vista a dureza própria ao trabalho e a longa distância que percorriam pelas
ruas, porém, revelando ao mesmo tempo prontidão e acolhimento.
Na data marcada (23/08/2009) nos encontramos por volta das 13h de uma
quarta-feira, com rigorosa pontualidade. O local era o cruzamento da Avenida Pontes
Vieira com a Rua Joaquim Nabuco, no bairro Pio XII. Ali iniciaríamos uma jornada que
se encerraria no dia seguinte. Sem cerimônias, pusemo-nos a subir a ladeira em direção
ao bairro Aldeota (sentido sertão praia), pois é onde Paulo e Dona Maria Zadir
encontram a maior parte do material que coletam. “Tá vendo essa carroça vazia? Tu vai
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ver como ela vai tá cheia quando a gente voltar”, essa foi a promessa feita por Paulo que
logo se pôs a me explicar qual seria a estratégia de coleta, que consistia em dirigir-se ao
bairro “dos ricos” para catar o material que era encontrado principalmente nas lixeiras
condominiais.
Ao passarmos por vários condomínios e perceber que Paulo não manifestava
interesse em procurar material naquelas lixeiras, perguntei qual o critério de seleção das
lixeiras a serem vasculhadas, indagação a respeito da qual logo obtive resposta. Disse-
me que a maioria daquelas lixeiras condominiais com as quais cruzamos havia os
carroceiros que as vasculhavam em busca dos materiais, contando, inclusive, com a
confiança dos porteiros que abriam as lixeiras para que tivessem acesso ao que fora
descartado pelos moradores. Paulo chegou a fazer menção a certo cadastro o qual não
soube me precisar bem, mas afirmou que se tratava de um registro feito pelo
condomínio do catador responsável por retirar das lixeiras o material que poderia ser
reciclado. Temos a manifestação clara da percepção espacial dos carroceiros que
operam, não obstante de forma absolutamente informal, uma espécie de loteamento de
certos locais onde se encontram materiais recicláveis. O respeito aos “territórios” parece
ser algo significativo na construção das boas relações no “local de trabalho” desses
sujeitos.
Em nosso percurso, os olhos atentos de ambos voltavam-se, mãe e filho, sempre
para os cantos das calçadas onde poderiam encontrar algum material nas lixeiras
residenciais, atenção que se dividia entre conduzir a carroça em meio a ruas com intenso
tráfego de veículos e os resíduos recicláveis que poderiam ser encontrados no caminho.
33
: Paulo puxa a carroça conduzindo-a pela rua
auxiliado por D. Maria. Fonte: foto do autor, 2009.
Foto 2
: Enquanto Paulo se prepara para cruzar a Av.
Antônio
Sales, D. Maria recolhe materiais encontrados
pela rua. Fonte: foto do autor, 2009.
Durante as caminhadas, reflete- se a divisão de tarefas entre mãe e filho. Dessa
maneira, D. Maria fica encarregada de recolher os materiais encontrados pelo caminho,
isso inclui abrir caixas, revirar sacos plásticos que contenham lixo, tudo feito com
enorme atenção para conseguir juntar o máximo material reciclável possível. A seu filho
cabe ocupar-se de conduzir a carroça: “num tem como deixar a mãe puxar a carroça, é
pesada e ela tem mais de 50 anos”, explica o filho. “Eu venho com ele porque num
quero que ele venha só, tem muito vagabundo na rua, tenho que cuidar do meu filho”,
justifica-se a mãe. Com essas palavras, Dona Maria apresentava as razões últimas que a
motivavam a enfrentar aquele trabalho. Disse ainda que realiza trabalhos, como
lavadeira, para complementar a renda nos dias em que não sai para recolher material.
Não hesitou em acrescentar que, entre os catadores, é recorrente o uso de drogas e
ocasiões em que ocorrem situações em que a violência física se torna recurso utilizado
para assegurar vantagem nas ruas. Em relação ao uso de drogas, esse aspecto do
universo da catação de materiais recicláveis nos foi apresentado em entrevista realizada
anteriormente com o catador Reginaldo, 32 anos, que desempenha a atividade desde os
sete anos de idade. Quando indagado sobre a questão dos cuidados com a saúde e a
ocorrência de acidentes de trabalho em sua atividade esta foi sua resposta:
Trabalhando catando não. Nunca tive acidente com negócio de carro.
Até porque eu tô acostumado, né? Também nunca peguei doença
porque se eu vejo um papelão ali aí eu vou, pego e boto no carro. Se o
saco tiver fechado eu num rasgo o saco do pessoal não. Mas, tem
vários casos assim do cara pegar doença. Tem gente que até comer a
comida do lixo come. Tem vários e vários que a gente comendo as
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coisas do lixo. Mas, geralmente esses são os caras viciados em
pedra. O dinheiro que eles ganham pra comer, mas o cara viciado
em crack vai comprar a droga e não comida. (Reginaldo, entrevista
realizada em 24/06/2009).
Embora o direcionamento do questionamento não suscitasse de forma explícita
uma reflexão direta sobre o universo das drogas e seus usos pelos catadores, Reginaldo
nos revela um quadro de intensa tragicidade ao nos lançar luz sobre as teias que ligam o
trabalho extremamente precário do catador, realizado sob condições flagrantemente
insalubres, em que este revira todo e qualquer lixo com as próprias mãos e sem proteção
alguma, e o drama pela busca de sobrevivência através desse trabalho brutalmente
aprofundado em razão da utilização recorrente de drogas que os impele a buscar no lixo
formas de aplacar a fome, vez que praticamente o dinheiro apurado na atividade
funciona como mola motriz de sustentação do vício. Isso sem contar que, pelo
depoimento, o uso do crack parece ser algo não anormal nesse universo. E acrescenta:
Geralmente esse problema é entre os que andam à noite. É muito
comum esse problema de droga. o que acontece, se eles passassem
aqui e tivesse a cadeira de uma casa do lado de fora, eles pegariam,
joga dentro do carro deles porque é grande e aí quem é que vai ver?
Reginaldo acaba por sugerir que uma diferença entre os catadores que catam
durante o dia e aqueles que trabalham à noite. Parte dos últimos, atormentados pelo
fantasma real da dependência química e pela busca da sobrevivência, estariam mais
sujeitos a cometerem delitos como furtos e roubos. O caso desse meu entrevistado é
diferente, pois realiza a catação apenas durante o dia, realizando como forma de
complementação de renda outras atividades, tais como limpar quintais, varrer calçadas,
retirar entulhos e outras. Convém salientar que todas as demais atividades
desempenhadas por Reginaldo inscrevem-se dentro dos limites do setor informal, ou
seja, desenvolvem-se sem as formalidades prefiguradas pela legislação trabalhista em
vigor serem atendidas, configurando ainda uma situação de descobrimento desse
trabalhador em relação aos direitos sociais e do trabalho prescritos em nossa
Constituição Federal bem como em nossa legislação trabalhista, a CLT. No entanto, a
possibilidade de desempenhar essas outras funções se torna factível na medida em
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que seu trabalho de catação ocorre durante o dia sendo, portanto, relatado como
vantagem dos “catadores do dia” em relação aos “catadores da noite”
Dessa forma, aqueles catadores possuem uma menor “dependência do lixo”,
coletando a maioria de seu material nas casas de pessoas conhecidas que separam
previamente o material reciclável. aos trabalhadores da noite, que “dependem
inteiramente do lixo”, resta-lhes procurar em todo e qualquer lugar, abrir sacos e revirar
tambores de lixo não importando as condições em que o trabalho é feito. A questão que
me vem à mente nesse momento é se seria possível delinear formas diferenciadas de
conduta entre esses catadores (da noite e do dia) em razão das condições materiais de
execução da atividade de trabalho e da natureza das relações de sociabilidade
estabelecidas no cotidiano, questão que, certamente, extrapolaria em muito os objetivos
deste escrito, porém, que reconheço, da maior importância.
Sobre a incidência de casos de violência física, Paulo contou-me fato ocorrido
algumas semanas antes de nosso encontro, quando chegou a brigar com o filho de outro
catador que acompanhava o pai. Segundo Paulo, o garoto, nos momentos em que
separavam juntos os materiais nas lixeiras, “só pensava nele” e “brigava por causa de
uma latinha”. Disse ainda que o comportamento do catador fora reprovado até mesmo
pelo pai que não interferiu na desavença. “Nunca mais ele veio trabalhar. Fica em
casa e o coitado do pai dele trabalhando sozinho”.
É possível auferir que as preocupações de Dona Maria em relação ao seu filho
Paulo possuem fundamentos concretos. Talvez isso a faça pensar em outras
possibilidades de ocupação. Em nossa caminhada, Dona Maria manifestou seu interesse
em conhecer o projeto desenvolvido pela Coelce (Companhia Energética do Ceará),
mais conhecido como programa Ecoelce. Afirmou que ouvira falar de pessoas que
trabalham nesse projeto e estão em boas condições de vida, talvez mais confortáveis que
a deles, porém não manifestou conhecimento mais concreto sobre o tema. Embora não
extrapole os limites da categoria de trabalho do catador, essa manifestação não deixa de
cumprir uma função importante no discurso de Dona Maria, qual seja, dar vazão a uma
manifesta insatisfação em relação a sua atividade de trabalho.
O grupo empresarial Servis, com sede em Fortaleza (CE), lançou no segundo
semestre de 2007 a Ultrambiental. Sua concepção empresarial surge como forma de
mostrar um exemplo propositivo de desenvolvimento de uma “cultura” de reciclagem
36
de materiais, aliada à sustentabilidade econômica e geração de empregos. Entretanto a
notoriedade viria apenas após o estabelecimento de parceria com a Coelce (Companhia
Energética do Ceará). A aproximação das duas empresas possibilitou a viabilização do
Programa Ecoelce que consiste no incentivo por parte das empresas para que a
população desenvolva a prática de separar o lixo em suas residências, doando-o,
posteriormente, para alguma das unidades de coleta espalhadas pela cidade de Fortaleza
e região metropolitana.
Posteriormente, os resíduos arrecadados seguem para empresas cadastradas e
capazes de receber e operar a triagem dos materiais, que seguirão para as indústrias de
modo a cumprir a função de matéria-prima. Como exemplo, cito o caso das garrafas pet,
que figuram entre os materiais mais doados. Depois de irem para a prensa, são
separadas por cor e encaminhadas para indústria local que as transforma em pó. Logo
após o material vai em contêineres para a China, onde é novamente transformado em
garrafa. Até o fim do ano de 2008, o programa contava com 31 pontos de coleta de
materiais recicláveis na Capital, 11 na Região Metropolitana e 20 no Interior,
totalizando 62 locais de coleta.
A maioria dos pontos de entrega do material encontra-se sob administração das
empresas, porém alguns se valem das instalações de associações de recicladores para
desenvolver suas atividades, como no caso da Associação Reciclando, situada no bairro
Tancredo Neves, zona sul de Fortaleza. A contrapartida está na distribuição de bônus
que serão abatidos na conta de energia dos doadores. Em entrevista ao jornal Diário do
Nordeste, em 12/03/2008, Albert Gradvohl,
professor de Gestão Econômica Ambiental da Unifor e um dos idealizadores do
programa, assim caracterizou o projeto que estava em via de completar seu primeiro
ano:
É um projeto de desenvolvimento sustentável. A mola mestra é o
bônus, mas seu efeito integra aspectos econômico, social e ambiental.
O econômico é a atividade de reciclagem. O social e o ambiental são
educação e saúde preventiva, principalmente quando se leva em conta
o perigo da exposição de embalagens descartáveis no lixo doméstico.
Após 48 horas, o material na rua é mais perigoso do que lixo
hospitalar.
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Entretanto, suponho que não é movido pelos melhores sentimentos de
solidariedade e consciência ambiental que esses empresários encabeçam programa tão
ambicioso. Um dos objetivos certamente foi inscrever as empresas em questão no seleto
rol dos empreendimentos eco-eficientes. Entre outos prêmios e benefícios, o programa
“já rendeu considerações até da Organização das Nações Unidas (ONU), que incluiu o
programa como um dos projetos de Responsabilidade Social mais relevantes para o
Pacto Global das Nações Unidas. Por isso foi um dos 20 escolhidos pelo organismo para
fazer parte de uma série televisiva que será apresentada nos Estados Unidos, Europa,
Ásia e América Latina” (Diário do Nordeste, 12/03/2008).
Esses reconhecimentos implicam maior valorização da empresa frente a um
mercado cada vez mais competitivo e em expansão; o ecobusiness. Proporcionam ainda
um maior fortalecimento e consolidação da empresa além de assegurar substanciais
incentivos fiscais por parte do poder público. Assim, o que temos é uma empresa que
opera nesse ramo do mercado na medida em que este se mostra rentoso e capaz de
possibilitar uma lucratividade aceitável em razão dos investimentos diretos e indiretos
feitos na atividade. Dessa maneira, não é de se admirar a forma contraditória e dividida
como o projeto vem repercutindo entre os catadores.
O fato é que existe uma importante contradição nesse processo: ocorre que na
mesma medida em que aumenta o número de populares que realizam a coleta seletiva de
seu próprio lixo, e por conta própria fazem a permuta deste por bônus em sua conta de
energia elétrica, temos, por outro lado, a potencializada possibilidade de diminuição do
material disponível nas ruas para serem coletados pelos catadores, o que pode gerar uma
significativa redução de renda dos carroceiros em razão do escasseamento dos resíduos
bem como, falando em termos de organização da categoria de trabalhadores, uma
desmobilização e desarticulação dos integrantes da categoria quando pensamos em sua
totalidade, considerando os membros de associações e “trabalhadores avulsos”.
Ao passo que, juntos, avançamos pelas ruas, mais elementos chamam-me
atenção. Um deles diz respeito à perícia que é necessária ao condutor da carroça para
vencer as complicações impostas pelo trânsito de veículos ao seu trafegar, haja vista que
à estrutura estreita de certas vias da cidade nem sempre corresponde um fluxo reduzido
de veículos, o que gera descompassos entre os carros, motos e automotivos de grande
porte como caminhões e ônibus e o deslizar das carroças precariamente erguidas sobre
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duas pequenas rodas pelo asfalto, que tal como água e óleo não se misturam na
composição estética da paisagem urbana.
Foto 3
: Paulo espera o melhor momento para cruzar a
movimentada avenida Antônio Sales. Fonte: foto do
autor, 2009.
Foto 4
: Paulo, com dificuldades,
cruza a movimentada
rua Padre Valdevino. Fonte: foto do autor, 2009.
Avançar pelas ruas arrastando nas costas essas carroças não constitui tarefa das
mais simples. Em razão de suas formas quadradas (fato que dificulta a realização de
curvas), do peso armazenado e de seus deslocamentos dependerem unicamente da força
aplicada pelo “puxador”, seus movimentos ocorrem de forma marcadamente mais lenta
do que os demais veículos, estes automotores. Para a realização da travessia de avenidas
e ruas com intenso tráfego, o condutor das carroças deve possuir considerável
determinação e ousadia ao lançar-se frente aos carros, contando, muitas vezes, com a
necessária redução de velocidade dos motoristas que passam pelas vias - “Pensei que o
carro tava longe, mas ele vinha voado e freou bem pertinho de mim” - palavras usadas
por Paulo que relatou evento em que por poucos metros não fora atropelado quando
trabalhava.
A situação torna-se particularmente dramática quando observamos que um dos
vetores privilegiados de investimento da política econômica brasileira é a indústria
automobilística. O Brasil alcançou, no primeiro semestre do ano de 2008, o sexto lugar
entre os países que mais produzem automóveis, ocupando o lugar da França. O número
de veículos fabricados não tem parado de crescer, constituindo fato muito comemorado
pelos condutores de nossa política econômica e agentes econômicos envolvidos nesse
lucrativo setor. A cidade de Fortaleza convive diariamente com engarrafamentos,
39
tráfego lento, filas duplas de carros, barulho de buzinas, estresse, discussões nas ruas
envolvendo condutores, graves acidentes de trânsito, problemas antes verificados
apenas em mega metrópoles.
A frota de automóveis da capital cearense já ultrapassa 600 mil veículos
12
,
número que representa um crescimento da ordem de 35% nos últimos sete anos. Por
outro lado, a oferta de transporte coletivo não cresceu sequer 10%, segundo dados
apresentados por Fernando Bezerra, presidente da Autarquia Municipal de Trânsito
(AMC), ao jornal Diário do Nordeste (08/07/2009). Contemplando os números
apresentados não é difícil evidenciar o desprivilégio dos investimentos em transportes
públicos em relação à demanda por transporte da população de uma metrópole em
expansão, que vem fazendo do transporte individual privado seu principal meio de
deslocamento pelos espaços e vias públicas. Como não bastasse o descompromisso do
poder público em garantir melhorias no transporte público, por outro lado, o
planejamento urbano não vem sendo capaz de acompanhar a demanda por transporte
individual, redundando na conservação de vias, em sinalizações precárias, na falta
de investimentos em vias de escape e de desafogamento do trânsito como viadutos,
túneis etc.
Assim, a convivência entre catadores e motoristas no trânsito de Fortaleza não se
de forma sempre harmoniosa. Não foi incomum no percusso perceber a insatisfação
de vários motoristas em ter que realizar manobras de desvios da carroça que se
deslocava vagarosamente pelas vias e, por vezes, era posta parada ao lado de carros
estacionados enquanto mãe e filho catavam materiais nas calçadas, ocupando uma faixa
da via, fato que tornava mais lento o tráfego naqueles locais e formava alguns
congestionamentos, porém que rapidamente se dissipavam. A insatisfação dos
motoristas muitas vezes era manifestada através de palavras ofensivas, que pareciam ser
ignoradas por Paulo e Dona Maria, que continuavam a caminhar e a observar as latas de
lixo e os canteiros.
Após mais alguns quarteirões caminhados, paramos por volta das 14h e 30min,
no entroncamento das ruas Nunes Valente com Catão Mamede. Importante ressaltar que
12
Conforme informações fornecidas pelo Departamento Estadual de Trânsito (Detran) ao jornal Diário do
Nordeste, edição do dia 08/07/2009, dados contabilizados até o fim de maio deste ano mostram que a
cidade de Fortaleza possui uma frota de 604.790 veículos emplacados até o fim do mês aludido, onde
destes 62,29% são carros, 19,20% são motos e 6,98% são caminhonetes.
40
estávamos no bairro Aldeota, área nobre da cidade, possuidora do metro quadrado
mais valorizado de Fortaleza. A presença de grandes empreendimentos comerciais,
habitacionais e de uma intensa verticalização garantem esse bairro como um dos mais
populosos da região metropolitana, além de abrigar setores de alta renda de nossa
sociedade, o que sem dúvida representa para os trabalhadores do lixo a garantia de
trabalho recompensado com uma volta para casa com suas carroças repletas do refugo
rejeitado por aqueles cidadãos-consumidores que residem naquela área.
Essa primeira parada, entretanto, não significou tempo para descanso. Pelo
contrário, tratava-se de estratégia já integrada à rotina de trabalho. A carroça era
deixada no cruzamento das ruas próxima à portaria de um prédio situado na esquina.
Enquanto Paulo organizava o material já recolhido no trajeto até então, D. Maria
dirigiu-se à portaria e travou diálogo com o porteiro que aparentemente os conhecia.
Logo em seguida, D. Maria retornou ao local onde a carroça foi deixada com as chaves
que abrem o depósito do lixo condominial. “Agora a gente vai casquerar a lixeira deles.
Fica ali embaixo”, informou-me Paulo, apontando para a lixeira do condomínio que
ficava a apenas alguns poucos metros de onde estávamos. O que me chamou atenção em
sua curta frase, que não foi imediatamente compreendida por mim, foi o emprego da
palavra casquerar. Ao que parece se trata de termo utilizado por eles, carroceiros, para
designar a atividade ou ato de revirar e separar do lixo comum os materiais que podem
ser recicláveis. Relaciona-se à ação de, com as próprias mãos, retirar dos tambores e
demais recipientes ou invólucros que armazenam os dejetos, os resíduos que serão
reapropriados por eles e vendidos nos depósitos. A palavra, porém, não está no
dicionário da língua portuguesa, está na vida do catador.
Essa forma peculiar de interação e comunicação constitui fenômeno importante
na compreensão dos sentidos e significados construídos por esses indivíduos em sua
atividade diária, impossível de serem apreendidos sem a devida atenção dispensada aos
processos de construções simbólicas no terreno material da vida cotidiana. De acordo
com o psicólogo Alexis N. Leontiev (1978), o psiquismo humano funda suas bases a
partir da atividade social e histórica dos indivíduos, por meio da apropriação
13
da
13
O psicólogo Leontiev ao se referir à experiência histórica, característica que marca a generidade do
homem, destaca sua dimensão imbricada na objetivação da práxis social dos homens, tratando-se, desta
maneira, de uma realidade fixada exteriormente e não como algo dado a priori na consciência dos
indivíduos. Entretanto, ao tratar de como esta experiência se realiza no plano subjetivo, Leontiev lança
mão do mecanismo da apropriação. Para tanto, destaca que esta apropriação das forças genéricas pelo
41
cultura humana material e simbólica, produzida e acumulada objetivamente no decorrer
do tempo histórico pela humanidade. Os mais variados objetos desse processo de
apropriação, a saber, as objetivações produzidas pelo gênero humano, apresentam-se
como trabalho humano materializado, condensando em si faculdades e aptidões
desenvolvidas ao longo da história da humanidade, constituindo-se, dessa maneira,
numa síntese dessa própria história. Assim, a uma determinada estrutura objetiva da
atividade do ser social corresponde uma dada estrutura subjetiva. Em outras palavras, a
uma determinada realidade social, tanto material como simbólica, corresponde uma
dada forma de consciência e personalidade que corpo ao psiquismo humano,
constituído sempre de forma mediatizada pela relação do homem com outros homens,
cuja linguagem é uma das formas de expressão verificadas.
No mesmo sentido, Heller (2004) entende que a vida social humana divide-se
em dois grandes âmbitos: a vida cotidiana e a esfera das atividades não-cotidianas,
compreendendo esta toda a atividade humano-genérica dos indivíduos, possuindo sua
gênese histórica na esfera da cotidianidade. A dimensão humano-genérica constitui-se a
partir de objetivações humanas superiores (objetivações genéricas para-si), isto é, mais
complexas, encontrando sua forma nas artes, nas ciências, na filosofia, na moral e na
política.
Tratando de forma mais específica a dimensão cotidiana da vida social, a autora
identifica como partes orgânicas de sua composição “a organização do trabalho e da
vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a
purificação” (Heller, 2004, p. 18). Essas dimensões da interação social humana são
ativadas através de três tipos de objetivações do gênero humano (objetivações genéricas
homem constitui processo ativo, seja quando se trata de atividades exteriores do homem para com seus
objetos -, seja no que respeita ao processo de interiorização, portanto, no âmbito das atividades
intelectuais. Neste sentido, a passagem a seguir mostra-se elucidativa: “Cada geração começa, portanto,
sua vida num mundo de objetos e de fenômenos criado pelas gerações precedentes. Ela apropria-se das
riquezas deste mundo participando no trabalho, na produção e nas diversas formas de atividade social e
desenvolvendo assim as aptidões especificamente humanas que se cristalizaram, encarnaram nesse
mundo. Com efeito, mesmo a aptidão para usar a linguagem articulada só se forma, em cada geração, pela
aprendizagem da ngua que se desenvolveu num processo histórico, em função das características
objetivas desta língua. O mesmo se passa com o desenvolvimento do pensamento ou da aquisição do
saber. Está fora de questão que a experiência individual de um homem, por mais rica que seja, baste para
produzir a formação de um pensamento lógico ou matemático abstrato e sistemas conceptuais
correspondentes. Seria preciso não uma vida, mas mil. De fato, o mesmo pensamento e o saber de uma
geração formam-se a partir da apropriação dos resultados da atividade cognitiva das gerações
precedentes.” (Leontiev, 1978, pp. 265-66). Sobre essa discussão consultar: MACÁRIO, Epitácio.
Trabalho, reprodução social e educação. Fortaleza: UFC, 2005, pp. 84 – 88. (Tese de Doutorado).
42
em-si), que constituem a matéria-prima para a constituição dos indivíduos: a linguagem,
os objetos (utensílios, instrumentos) e os usos (costumes) de uma sociedade.
Na medida em que as relações humanas seguem uma tendência de
complexificação ao longo da história, esses níveis qualitativamente distintos da
objetivação das atividades humanas que produzem e reproduzem a sociedade passam
por um constante processo de transformação, ocorrendo um aprimoramento dos
produtos materiais e simbólicos dessas atividades. Esses produtos capitanearão
processos de elevação do grau de desenvolvimento tanto material como psíquico, ou
seja, tanto no que se refere aos elementos mais objetivos da existência social humana
quanto no que diz respeito às aptidões e funções psíquicas dos indivíduos.
Para Heller, a formação dos indivíduos começa sempre nas esferas da vida
cotidiana. Esse processo de formação se inicia no momento de seu nascimento e
inserção no universo cultural humano e se estende por toda a vida. E, como lembra
Leontiev, trata-se, necessariamente, de um processo mediado, direta ou indiretamente,
por outros indivíduos. Segundo Heller, a vida cotidiana é parte inerente à existência de
todo e qualquer indivíduo. Nessa esfera do ser social, o indivíduo apropria-se da
linguagem, dos objetos e instrumentos culturais, bem como dos usos e costumes de sua
sociedade. Sem a apropriação dessas objetivações seria impossível a sua existência e
convivência em qualquer sociedade humana, independentemente do nível de
desenvolvimento dessa mesma sociedade. Na verdade, seria inviável a existência do
indivíduo como ser humano.
Nesse sentido, a filósofa húngara afirma que a esfera da vida marcada por
relações que se espraiam no universo da cotidianidade é composta pelo conjunto das
atividades voltadas para a reprodução da existência do indivíduo e a vida não-cotidiana,
sendo esta a dimensão configurada pelas objetivações humano-genéricas composta por
aquelas atividades voltadas para a reprodução da sociedade. Assim, a cotidianidade
consiste no espaço de satisfação das necessidades essenciais do indivíduo e, portanto, as
atividades cotidianas são basicamente determinadas por motivações de caráter
particular. Por sua vez, as atividades não-cotidianas são determinadas por motivações
genéricas, isto é, que aludem à universalidade do gênero humano, a qual também não
pode ser considerada um dado natural já existente no início da história humana, devendo
ser vista como um dos resultados possíveis do processo.
43
Ainda segundo Heller, o indivíduo que vive a sua cotidianidade deve aprender a
manipular os objetos, os instrumentos e utensílios de sua cultura. Deve se apropriar, por
exemplo, do uso e do significado social do garfo, da faca, de um lápis, de um relógio, de
uma carroça etc. Em função do caráter necessariamente mediado do processo de
apropriação que ocorre de modo direto ou indireto por outro indivíduo, esse processo
pressupõe, por sua vez, a apropriação de certas relações sociais, bem como a
apropriação da linguagem como forma básica de comunicação ou intercâmbio entre os
indivíduos de um determinado grupo.
A utilização da palavra casquerar revela, portanto, uma apropriação particular
da língua por esses trabalhadores, no intuito de criar códigos próprios que revelam
sentido apenas quando confrontados com a atividade real de seu trabalho, no interior das
relações sociais estabelecidas cotidianamente. Curioso para saber de que estrutura
linguística havia derivado aquela palavra, empregada como verbo, indicando-nos ação a
ser realizada constatei que esta não está prescrita formalmente em nosso vocabulário, o
que me leva a crer que se trate de certo neologismo empregado com frequência entre os
trabalhadores que laboram nessa atividade.
O termo mais próximo que encontrei e que talvez guarde alguma proximidade de
sentido foi casquento, adjetivo utilizado para qualificar aquilo que tem casca grossa.
Ora, tomando as latas repletas de lixo como significante de tal estrutura, o que teríamos
seria um escrutínio, um trabalho de verdadeira escavação, minuciosa, em busca do
conteúdo que estivesse além da aparência, da superficialidade. Para isso, torna-se
necessário abrir as caixas, rasgar os sacos, revirar seu conteúdo para, com muita atenção
e perícia, retirar o que de fato confere sentido e significado a sua atividade, os resíduos
que ainda conservam certa quantidade de valor e aguardam serem descobertos e
transportados para os locais apropriados para que se realizem plenamente, uma
verdadeira negação da aparência de inutilidade, duma superficialidade que insiste em
afirmar a ausência de valor, a negação da casca que pretende tornar todos os dejetos
igualmente imprestáveis. “Isso aqui é tudo dinheiro e o povo num sabe, né?”, assim
resumiu D. Maria ao abrir o tambor de lixo (retirando sua casca), onde verificou a
existência do que julgou boa quantidade de material possível de ser aproveitado.
44
Foto 5
: D. Maria procura por materiais na lixeira
condominial sem qualquer proteção. Fonte: foto do
autor, 2009.
Foto 6
: D. Maria e Paulo procuram juntos resíduos
sólidos recicláveis na lixeira do condomínio. Fonte: foto
do autor, 2009.
O fato de terem obtido as chaves para abrir o recinto destinado a armazenar o
lixo do condomínio, reservado à coleta pública, revelou que estávamos numa área em
que Paulo e D. Maria gozavam de certa confiança. Ao receberem as chaves do porteiro
do edifício, rapidamente dirigiram-se ao local onde estava o lixo, afinal, tinham que ser
rápidos pois ainda teriam outras lixeiras para vasculhar material naqueles arredores.
Importante notar que, enquanto se dirigem à lixeira, a carroça, carregada de materiais, é
deixada na esquina, ao alcance da vista. Levam consigo apenas um enorme saco plástico
que chamam de bergue - o qual utilizam para abrigar e conduzir até a carroça os
materiais retitrados dos tambores de lixo do condomínio. A utilização do saco é de
grande valia, vez que livra o catador da necessidade de deslocar sua carroça para todos
os locais onde pode encontrar resíduos, poupando-o fisicamente e tornando o trabalho
mais dinâmico, na medida em que permite que se vasculhe outras lixeiras até preencher
todo o volume do saco, motivo que o leva a retornar à sua carroça para depositar o
material já encontrado.
Quando a porta foi aberta por Paulo, imediatamente um forte odor espalhou-se
por entre nós. Com incrível naturalidade, fruto de anos de trabalho nessa atividade, e
ignorando por completo o mau cheiro, Paulo e Dona Maria adentraram ao local e
começaram o processo de procura pelos materiais que os serviam. O olhar treinado não
os traiu e logo encontraram boa quantidade de material que poderia ser negociado
posteriormente. O trabalho de procura pelos materiais é todo feito com mãos nuas, sem
proteção de qualquer tipo durante a execução do trabalho. A naturalidade com que o
lixo é revirado revela a ausência de pudores em relação a certos hábitos de higiene que
45
são sumariamente negligenciados em nome da consecução do objetvo do trabalho, qual
seja, retirar a maior quantidade de materiais recicláveis.
Dessa forma, o contato direto com o lixo é algo que não se encerra ao abrir ou se
fechar tambores e sacos plásticos, permanece incrustado na pele e é denunciado pelas
mãos e roupas maculadas pelo manuseio do refugo, assim como no cheiro que passa a
exalar seus corpos como se recobertos por um manto espectral que se manifesta na
realidade sensível através do odor exalado, acompanhando-os a cada passo. Importante
ressaltar que o fato de manusearem o lixo, sem proteção, torna-os mais vulneráveis a
adquirirem enfermidades em função do contato com possíveis materiais contaminados.
Quando indagados se foram acometidos de alguma doença que atribuíam a razão ao
contato com o lixo, responderam-me que não. Paulo, entretanto, chegou a fazer algumas
considerações sobre coceiras e manchas na pele, mas que rapidamente passavam. Não
demorou muito até ele me confidenciar que sentia dores nas costas. Tal fato
apresentava-se como segredo pelo fato de Paulo não aceitar que sua mãe tomasse
conhecimento do fato.
“Acho que esse osso mais crescido do que o outro. É por causa do barrete da
carroça, eles têm tamanhos diferentes, quem me disse foi um chapa meu do depósito.
E tem o peso também. Minha tia vive dizendo que é pra eu deixar de trabalhar com
sucata, ela disse que ia arranjar um trabalho pra mim de entregar panfleto. Parece que
ganha meio salário” (Paulo). É notório que Paulo possui algum tipo de desvio de
coluna, pois ao observá-lo frontalmente percebemos flagrante assimetria entre os
ombros. Claro que diagnosticar a condição estrutural do corpo de Paulo seria trabalho
para um especialista mediante rigoroso procedimento de análise clínica. No entanto,
tomando as palavras de Paulo acerca das dores sentidas e sua aparente condição física,
podemos supor que Paulo possui algum problema relacionado à sua estrutura óssea que
pode ter causas diversas, porém, que mereceria certo grau de atenção. Ter sido advertido
por um colega do depósito revela que as queixas sobre as dores foram compartilhadas
por lá também, demonstrando certa recorrêncoia do incômodo, que “foi resolvido”
apenas com o acerto do tamanho dos barretes (barras que servem de apoio para o
catador puxar sua carroça). Vale ressaltar que nenhuma outra atitude foi tomada após
uma das barras ter sido serrilhada, ou seja, em se eliminando o sintoma imediato por
relativo período de tempo as dores volta-se ao trabalho sem se saber ao certo que
46
efeitos nefastos podem ter sido causados à saúde. O segredo quanto às dores se devia ao
fato de Paulo evitar preocupar a mãe.
“Eu venho pra poder olhar meu filho. Se eu num olhar quem é que vai?
Quando ele vem ou com o primo dele ele fuma muito. E isso eu num deixo!”.(D.
Maria). Fica clara a preocupação de Dona Maria com a integridade física de seu filho,
permitindo-se trabalhar naquelas condições, segundo ela, para ampará-lo. Também é
possível perceber outra preocupação que remete novamente ao universo dos vícios,
dessa vez relacionado ao cigarro que D. Maria associa diretamente a algo nefasto, que
faze parte do universo da catação.
A respeito das questões relacionadas à saúde dos catadores, é fundamental
mencionar o documento “Diagnóstico da situação socioeconômica e cultural do(a)
catador(a) de materiais recicláveis de Fortaleza-CE”, pesquisa realizada pelo Instituto
Municipal de Pesquisas, Administração e Recursos Humanos IMPARH, em parceria
com a Secretaria Municipal do Meio Ambiente SEMAM e a Prefeitura Municipal de
Fortaleza - PMF, publicada no ano de 2006. Essa pesquisa traça um panorama geral da
situação do catador de resíduos sólidos na cidade de Fortaleza, indo além dos
tradicionais elementos socioeconômicos comumente pesquisados como renda,
habitação, situação familiar, considerando, além dos elementos citados, também
indicadores como diversidade de gênero, sexo, crença, visões de mundo, motivações
pessoais, ações e políticas desenvolvidas pela sociedade civil e o poder público, etc., o
que permitiu, inclusive, o desenvolvimento de uma análise qualitativa em certos
momentos da publicação. Ao abordarem o tema da saúde junto aos catadores, quando
indagados sobre os tipos mais comuns de doenças sofridas, depararam-se com mais da
metade dos entrevistados (53,1%) afirmando o sofrer de nenhum tipo de doenças,
enquanto 46,5% afirmaram que sofreram de doenças como: problemas na coluna
(19,1%), problemas dermatológicos (11,8%), doenças respiratórias (6,8%), gripe (8,8%)
etc.
Entretanto, ao deparar com número tão expressivo que denota a ausência de
doenças entre aqueles que desempenham a atividade da catação, é possível fazer alvo de
análise esse indicador. Dessa forma, impõe-se indagar: qual a concepção de doença para
o catador? Qual a relação entre o conhecimento da doença em si e sua manifestação
sintomática no campo dos problemas que afetam a saúde? A falta de informações
47
básicas sobre as formas de contração de doenças e seus sintomas, inclusive, em relação
a problemas mais crônicos, como dermatites e alergias, encarados em muitos casos
como algo natural e corriqueiro pelos trabalhadores, bem como a falta de consciência
sobre os “sinais” do corpo que revelam a chegada de determinadas enfermidades, são
elementos fundamentais que condicionam as respostas dos entrevistados. Portanto,
levando em consideração a insalubridade da atividade de catador, podemos apontá-lo
como um indivíduo extremamente vulnerável a vários tipos de doenças, mesmo
constatando a falta de consciência dos mesmos em relação a isso.
Por certo são inumeráveis os perigos de graves contaminações a que estes
trabalhadores estão sujeitos, uma vez que mantêm contato direto com lixo orgânico, o
que aumenta exponencialmente os riscos de adquirirem doenças, principalmente se por
ventura seus organismos apresentarem um quadro de reduzida resistência imunológica.
No caso de partes do corpo que entram diretamente em contato com o lixo, bastaria
possuir leves escoriações para se abrir uma enorme janela para moléstias diversas. Em
relação aos problemas de coluna, mencionados por 19,1% dos entrevistados na pesquisa
referida, estes revelam-se dados preocupantes uma vez que tais problemas estão
diretamente relacionados ao peso carregado pelo catador na carroça bem como às horas
de caminhada por extensos percursos. Tais problemas poderão provocar a invalidez do
catador ou mesmo afastamento definitivo da atividade de catação.
Ainda sobre as questões relacionadas à saúde dos trabalhadores da catação e às
barreiras que precisam vencer todos os dias para desenvolverem suas atividades,
apresento um pouco da história de um outro Paulo, este Alves do Nascimento, que
assim como tantos Severinos, que é santo de romaria, também é filho de Maria.
48
2.1. Caminhos opostos que se cruzam
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de
emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia (de fraqueza e
de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até
gente não nascida). (João Cabral de Melo Neto Morte e Vida
Severina)
A tradicional forma em vista da qual se desenvolvem as pesquisas de campo,
que conferem ao pesquisador, por vezes extremamente delicada, a missão de
“abordar” os sujeitos estudados em sua investigação, nesse caso, foi totalmente
subvertida, tendo sido o pesquisador abordado. Ao cruzar na rua comigo, fitou-me e se
dirigiu a mim pedindo algum trocado. Disse que tinha fome. Auxiliando-o, abri de vez a
porta que permitiu uma aproximação. Ao iniciar nossa conversa, uma primeira
constatação; ao ser indagado por sua idade, Paulo não soubera me responder, sendo
necessário revirar um saco plástico que estava amarrado na lateral de sua carroça
para encontrar sua cédula de identidade, a qual foi entregue a mim para que conferisse
e encontrasse a resposta para minha pergunta. Esta foi a data que vi: 09/02/1986. Do
outro lado, um carimbo que confirmava a condição de analfabeto de meu interlocutor.
Confessou-me que não lembrava um dia ter freqüentado a escola e que muito já
trabalhava com a reciclagem de materiais, dizendo, ainda, que sempre “trabalhou em
sucata”. Acrescentou que seu trabalho sempre foi como catador que recolhe seu
material nas ruas, mostrando-me os calos de suas mãos adquiridos após anos puxando
aquelas pesadas carroças.
Não se demorou em falar da razão de seu extremo cansaço naquele fim de tarde,
pois estava catando sozinho naqueles dias. Sua companheira, que o auxilia na catação
dos materiais recicláveis, estava impossibilitada de trabalhar devido a cortes profundos
nos pés, causados quando esta subiu na carroça para utilizar seu peso como prensa,
com o objetivo de comprimir o volume do material coletado, possibilitando, dessa
forma, a liberação de mais espaço para outros materiais serem armazenados. Acontece
que ao subir na carroça não se deu conta da existência de cacos de vidro espalhados
por entre as folhas de papelão.
49
Importante destacar que constitui prática comum entre alguns catadores
trabalhar em parcerias. Enquanto um puxa a carroça o outro vai à frente revirando o
lixo e identificando materiais passíveis de serem recolhidos e comercializados. Tal
procedimento torna o trabalho mais rápido e eficiente, cria uma sensação de maior
segurança ao catador frente à ameaçadora violência urbana além de promover um
desgaste menor do catador, que reveza com o parceiro a tarefa mais dura, qual seja:
puxar a carroça carregada de materiais pelas ruas da cidade, suportando todo o peso e
a conduzindo por subidas e descidas. Essa prática, no entanto, por vezes revela uma
dimensão extremamente cruel, já que não constitui fato raro encontrarmos crianças
que auxiliam os pais nessa atividade, revirando latas de lixo, puxando as carroças, cujo
peso pode causar danos irreversíveis a estes jovens ainda em fase de desenvolvimento e
maturação corporal, uma imersão desde tenra idade num mundo de degradação e
precariedade do trabalho.
Os acidentes na catação do “lixo” são comuns. Eis, portanto, outra revelação:
a falta de assistência e o desamparo desses trabalhadores, mormente no que tange a
maioria deles não gozar de condições salubres e seguras de trabalho assim como de
proteção social. Isso os torna extremamente suscetíveis a acidentes e contração de
enfermidades. Nesses momentos, resta-lhes o ócio forçado, constrangidos pela
impossibilidade física a prostrarem-se na inatividade, uma situação dramática para
aqueles que ficam à espera de recuperação para voltarem às ruas e assegurarem sua
sobrevivência a partir da catação dos rejeitos e dejetos de nossa sociedade. Importante
salientar que esses indivíduos dependem do trabalho diário e da renda auferida a partir
da comercialização dos resíduos para garantir o sustento da família e de si próprios,
dia por dia. Quando são acometidos de alguma enfermidade ou se vêem
impossibilitados de trabalhar por motivo de acidente, a situação assume contornos
trágicos uma vez que imersos em relações de trabalho que orbitam no gradiente da
informalidade, esses trabalhadores são postos numa condição de total desamparo
social
14
.
14
É a partir da década de 1990 que se observa a intensificação do crescimento da economia informal nas
médias e grandes cidades do país. Junto a este processo desenvolve-se também o crescimento de outras
formas de trabalho não regulamentado pela legislação trabalhista que podem ser compreendidas, numa
apreensão mais ampla, como participantes de um contexto largo de precarização do trabalho. Junto à
expansão das atividades informais difunde-se um forte apelo ideológico no sentido de legitimar tais
práticas laborativas, camuflar os conflitos de classe e o aguçamento do processo de exploração da força
de trabalho através da cunhagem do termo “empreendedorismo”. Até mesmo questões como o
50
Dessa forma, desprotegidos social e legalmente, inscrevem sua existência nas
migalhas da margem, vivendo e confundindo-se com rejeitos, expurgos da sociedade do
consumo, marcados pelo estigma da superfluidade, sentindo, ainda mais intensamente,
as conseqüências das contemporâneas formas precarizadas de inserção dos
trabalhadores no universo das práticas laborativas no capitalismo contemporâneo.
Paulo reside no bairro Barroso, localidade onde também está situado o depósito
com o qual negocia o material fruto de sua coleta diária. Divide o espaço doméstico
com sua irmã e seus pais. A mãe (Maria) desenvolve o ofício de lavadeira, também
fazendo trabalhos de faxina para aumentar os rendimentos da família. O pai é pedreiro.
Mesmo com três integrantes da família desempenhando atividades remuneradas, ainda
assim passam momentos de grande dificuldade e privações materiais todos os meses. O
caso é exemplar do que discutíamos anteriormente. Uma família inteira que tem como
base de seus rendimentos relações de trabalho que compõem o universo da
informalidade e dividem momentos de intensa privação e precariedade de vida.
Paulo confessou-me que consegue levar para casa cerca de R$ 20,00 por dia
com a venda do material coletado. Sua rotina inicia-se pela manhã e encerra-se por
volta das oito horas da noite. Quando encurta o caminho consegue chegar mais cedo
em seu bairro e vender o material ainda no fim da tarde. Entretanto, isto não é o mais
comum. Normalmente, ao chegar à noite em casa, e encontrando-se o depósito com
suas atividades encerradas, descarrega o material coletado em algum
compartimento da casa, geralmente na própria sala. O problema com esta prática sem
dúvida está mais ligado à questão da higiene.
“O acúmulo desses materiais pode provocar a atração de ratos e insetos”,
afirmou. Revelou-me ainda que é relativamente comum alguns catadores guardarem o
material recolhido em suas residências, às vezes, em razão do fim de expediente do
depósito, obrigando-os a esperar o dia seguinte para comercializar o material
recolhido, ou mesmo com o objetivo de acumular uma quantidade de material mais
significativa que garanta o recebimento de uma importância em dinheiro maior.
desemprego, que revela uma impossibilidade estrutural de ser enfrentado por limites da própria lógica
capitalista, são tomadas pelas personificações do capital que buscam justificá-lo a partir de fatores
externos como a falta de qualificação dos trabalhadores, resgatando antigas formas de trabalho precário,
mas, dessa vez, sob o invólucro da autonomia e independência, movimento ainda corroborado pelo recuo
do aparato jurídico que imprime legalidade a formas de trabalho precário que, sob vários aspectos
(clandestinidade, segurança, ausência de proteção social, etc.), montam um quadro de ilegitimidade
(Tavares e Alves, 2006).
51
O carro fica do lado de fora da casa, situação que não o deixa confortável, vez
que roubos de material, inclusive da carroça utilizada no trabalho da catação, não são
tão incomuns. Assim como no caso de muitos outros catadores, sua carroça pertence ao
deposeiro que, segundo ele, a cede para que os catadores realizem a atividade sem
pedir nada em troca. Disse que nunca foi pressionado pelo deposeiro a manter uma
relação de fidelidade no momento da venda de seu material, acontecendo, por vezes, de
comerciar o material com outros depósitos.
Paulo aparenta ser um jovem extremamente tímido, transmitindo-me, em alguns
momentos, inclusive, certa desconfiança e receio ao responder minhas indagações,
sempre de forma lacônica. A certa altura, informou-me de sua impossibilidade em
prolongar nossa conversa, pois pretendia, ainda no início da noite, vender o material
que havia coletado. E após a venda?, perguntei – “descanso, amanhã caminho” .
Assim, da mesma forma casual como nos encontramos despedimo-nos e seguimos
nossos caminhos, opostos. Dirijo-me ao outro Paulo.
----------
No fim da tarde e após vasculhar cerca de cinco lixeiras condominiais em busca
de seus resíduos, chegou o momento de retornar à carroça trazendo o material
encontrado a fim de organizá-lo. O processo, agora, consistia no seguinte: abrir o
enorme saco plástico utilizado para receber o material coletado nas lixeiras
condominiais e proceder a uma espécie de triagem preliminar, separando os diversos
tipos de material, dispondo-os de forma organizada na carroça. As latas de alumínio e
demais metais eram colocados dentro da carroça de forma solta e aleatória. Mas,
adotava- se uma estratégia para permitir um maior alocamento de latinhas de alumínio
na carroça; utilizava-se o próprio corpo como prensa, no caso, os pés. Prensava-se cada
uma das latas com utilização da própria força e peso corporais, achatando-as para
possibilitar um armazenamento maior do material na carroça, além de ser importante
também na hora da pesagem na balança do depósito que receberia este material,
proporcionando uma maior concentração do peso.
Após a organização das latas de alumínio, era a vez dos demais materiais
garrafas pet, papéis, outros objetos que passavam por um processo semelhante de
52
organização. No caso das garrafas plásticas, estas também eram achatadas e
armazenadas em grandes sacos plásticos que eram posteriormente amarrados nas
laterais da carroça. Entretanto, havia certa peculiaridade no modo de armazenar as
garrafas plásticas, tratava-se do seguinte: embora encontradas descartadas, muitas ainda
eram recolhidas com certa quantidade de líquido em seu interior, ignorando isso Paulo
não aplicava a estas o mesmo procedimento de achatá-las para melhor acomodá-las no
saco plástico. Pelo contrário, arremessava-as parcialmente preenchidas de seu conteúdo.
Claramente incomodado pelo fato de eu estar observando tão próximo embora sem que
me desse conta exatamente do que ocorria, Paulo apressou-se em dizer:
Está vendo? A garrafa ainda está cheia, mas eu coloco assim mesmo
na carroça. Se ele [deposeiro] quiser que esvazie lá [no depósito]. Eles
também sempre num roubam a gente na balança? A gente tem que ser
esperto senão num dá pra ficar nesse negócio.
Da mesma forma como o inferno de Sartre ergue-se livre dos estereótipos
cristãos como o enxofre, as fornalhas e as grelhas... O inferno de Paulo emergiu das
profundezas e manifestou-se em mim
15
ao lançar meu olhar sobre o suposto “pecado”
que cometia, algo que, talvez, não pretendesse revelar enquanto prática recorrente em
seu trabalho, mas que buscara rapidamente legitimá-la frente aos olhos estranhos que a
observava como forma de pleitear certa redenção simbólica. Assim evocou a imagem do
deposeiro enquanto algoz sempre preparado para exercer seu poder de dominação sobre
os catadores, capaz de realizar injustiças em benefício próprio. Sua atitude, contudo,
aparece como ação que busca assegurar seus interesses particulares, mas numa posição
defensiva, de revide, como marca de resistência.
15
“O inferno são os outros”. Talvez esta seja a frase mais conhecida de Jean Paul Sartre e, certamente, é a
frase que pontua a obra Entre Quatro Paredes, escrita em 1944 e encenada no mesmo ano no Teatro do
Vieux-Colombier. A obra dramatúrgica mergulha três personagens numa “vida sem interrupções” que se
desenrola num salão sem janelas, iluminado permanentemente, onde, enclausurados, são condenados a
conviverem eternamente, o que torna a sobrevivência insuportável. A frase aludida é proferida por uma
das personagens e possui uma forte significação. O criminoso viverá sem sossego diante do eterno
tribunal, sempre obrigado a conviver com seu lado mais obscuro, movediço, cambiante. Sendo o inferno a
lucidez, a claridade infinita, jamais poderá o criminoso fugir da presença perversa do outro necessário,
que tal qual um espelho força a travessia do mim para o mim mesmo num caminho permeado por
fantasmas interiores. Ver: SARTRE, Jean-Paul. Entre Quatro Paredes. Tradução de Alcione Araújo e
Pedro Hussak. – 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
É importante notar, no entanto, que tais tentativas de ludibriar seu oposto na
relação comercial ocorrem de ambos os lados. O catador busca garantir algum
sobrepeso na pesagem de seu material no depósito apostando no resíduo líq
contido nas garrafas e, por outro lado, os deposeiros buscam reduzir ao máximo o valor
pago aos catadores pelo material recolhido através do falseamento do real peso auferido
no ato da pesagem. Ora, temos, portanto, atitudes que esvaziam de sent
ética das relações comerciais em nome do asseguramento de vantagens particulares no
momento da troca, vale lembrar que es
peculiar a relações que se desenvolvem no solo do mercado.
F
OTO 7
: Paulo amassa a
lata de alumínio para em
seguida armazená-
la na carroça. Fonte: foto do autor,
2009.
Quando o
mercado passa a se constituir como locus privilegiado onde se gesta a
integração social, “todos os vínculos morais da sociedade”, diz Engels, “são destruídos
pela transformação dos valores humanos em valores de troca; todos os princípios éticos
são destruí
dos pelos princípios da concorrência e todas as leis existentes até este
momento (...) são suplantadas pelas leis da oferta e da demanda. A humanidade mesma
se converte numa mercadoria” (Friedrich ENGELS
Por conta dess
a dimens
em que o mercado se erige como fundamento e terreno onde se desenvolvem
excellence
toda e qualquer ação humana. Assim, valores como a igualdade e a liberdade
passam a ter como base o mercado, ou se
quando assevera que não se trata, pois, de que a liberdade e a igualdade são
É importante notar, no entanto, que tais tentativas de ludibriar seu oposto na
relação comercial ocorrem de ambos os lados. O catador busca garantir algum
sobrepeso na pesagem de seu material no depósito apostando no resíduo líq
contido nas garrafas e, por outro lado, os deposeiros buscam reduzir ao máximo o valor
pago aos catadores pelo material recolhido através do falseamento do real peso auferido
no ato da pesagem. Ora, temos, portanto, atitudes que esvaziam de sent
ética das relações comerciais em nome do asseguramento de vantagens particulares no
momento da troca, vale lembrar que es
s
as práticas ocorrem informadas por uma lógica
peculiar a relações que se desenvolvem no solo do mercado.
lata de alumínio para em
la na carroça. Fonte: foto do autor,
FOTO 8
: Materiais plásticos sendo dispostos em
grandes sacos plásticos e amarrados nas laterais da
carroça. Fonte: foto do autor, 2009.
mercado passa a se constituir como locus privilegiado onde se gesta a
integração social, “todos os vínculos morais da sociedade”, diz Engels, “são destruídos
pela transformação dos valores humanos em valores de troca; todos os princípios éticos
dos pelos princípios da concorrência e todas as leis existentes até este
momento (...) são suplantadas pelas leis da oferta e da demanda. A humanidade mesma
se converte numa mercadoria” (Friedrich ENGELS
apud Teixeira, 1995, p. 58)
a dimens
ão todos os valores humanos são coisificados na medida
em que o mercado se erige como fundamento e terreno onde se desenvolvem
toda e qualquer ação humana. Assim, valores como a igualdade e a liberdade
passam a ter como base o mercado, ou se
ja, o valor de troca. Isto é o que revela Marx
quando assevera que não se trata, pois, de que a liberdade e a igualdade são
53
É importante notar, no entanto, que tais tentativas de ludibriar seu oposto na
relação comercial ocorrem de ambos os lados. O catador busca garantir algum
sobrepeso na pesagem de seu material no depósito apostando no resíduo líq
uido ainda
contido nas garrafas e, por outro lado, os deposeiros buscam reduzir ao máximo o valor
pago aos catadores pelo material recolhido através do falseamento do real peso auferido
no ato da pesagem. Ora, temos, portanto, atitudes que esvaziam de sent
ido uma suposta
ética das relações comerciais em nome do asseguramento de vantagens particulares no
as práticas ocorrem informadas por uma lógica
: Materiais plásticos sendo dispostos em
grandes sacos plásticos e amarrados nas laterais da
mercado passa a se constituir como locus privilegiado onde se gesta a
integração social, “todos os vínculos morais da sociedade”, diz Engels, “são destruídos
pela transformação dos valores humanos em valores de troca; todos os princípios éticos
dos pelos princípios da concorrência e todas as leis existentes até este
momento (...) são suplantadas pelas leis da oferta e da demanda. A humanidade mesma
apud Teixeira, 1995, p. 58)
.
ão todos os valores humanos são coisificados na medida
em que o mercado se erige como fundamento e terreno onde se desenvolvem
per
toda e qualquer ação humana. Assim, valores como a igualdade e a liberdade
ja, o valor de troca. Isto é o que revela Marx
quando assevera que não se trata, pois, de que a liberdade e a igualdade são
54
respeitadas, no intercâmbio baseado nos valores de troca, senão que o intercâmbio de
valores de troca é a base produtiva, real, de toda igualdade e liberdade. Estas, como
idéias puras, são meras expressões idealizadas daqueles [valores de troca] ao
desenvolverem-se em relações jurídicas, políticas e sociais, estas são somente aquela
base elevada a outra potência (...). A igualdade e a liberdade, nesse sentido, constituem
precisamente o contrário da liberdade e igualdade na antiguidade, que não tinham como
base o valor de troca desenvolvido; pelo contrário, foram arruinadas pelo
desenvolvimento daquele” (idem).
Quanto à igualdade é importante considerar que Marx a coloca no campo das
determinações formais, representações que informam aos indivíduos, em suas relações
sociais, uma condição de igualdade no “encontro” que estabelecem no solo alicerçado
pelas relações mercadológicas, na medida exata em que desenvolvem uma relação de
intercâmbio, que se torna indicador de sua função social ou de sua relação social mútua.
Assim, “cada sujeito é um comerciante, isto é, tem com o outro a mesma relação social
que este tem com ele. Considerado como sujeito do intercâmbio, sua relação é, pois, de
igualdade” (idem).
Assim como a igualdade se funda no terreno dominado pelas coisas, a liberdade
também possui sua gênese na troca de mercadorias. Na medida em que os indivíduos
buscam satisfazer suas necessidades e desejos através da aquisição de coisas, e nesse
movimento encontram necessariamente o outro nessa relação, ocorre o reconhecimento
desse outro como proprietário, que aprisiona na mercadoria que está sob seu domínio a
vontade daqueles que a querem possuir. Nesse ponto aparece a noção jurídica de pessoa,
e enquanto medida contida nesta, a noção de liberdade. Temos então que igualdade,
liberdade e reciprocidade constituem relações entre pessoas, mas no preciso sentido em
que possuem como bases fundamentais comuns a troca de mercadorias.
Portanto, “o poder que cada indivíduo exerce sobre a atividade dos outros ou
sobre as riquezas sociais, ele o possui enquanto é proprietário de valores de troca, de
dinheiro. Seu poder social, assim como seu nexo com a sociedade, ele o leva consigo no
bolso” (ibidem, p. 59). Transparece, dessa forma, uma característica intrínseca ao
processo de relações sociais travadas à luz da lógica do mercado: as relações entre as
pessoas somente encontram efetividade na medida em que ocorrem sob a forma de
relação entre as coisas. É nesse sentido, então, que as relações sociais são tidas como
55
relações coisificadas, isto é, relações mediatizadas pelas coisas. Nisso consiste também
o fetichismo da mercadoria
16
. Fica evidenciado, no entanto, que numa sociedade em que
a produção é voltada inexoravelmente para a troca, isto é, em que a relação de troca é
dominante, as pessoas existem na medida em que personificam relações econômicas, na
condição, portanto, de proprietárias de mercadorias. Entretanto, essas relações, quando
pensadas no gradiente da lógica de mercado, acabam por revelar um encontro entre
indivíduos que, embora no plano formal (ponto de vista da jurisprudência, por exemplo)
apareçam como iguais - ambos considerados proprietários -, o que percebemos é o
desnudamento de uma relação entre desiguais, na medida em que aqueles que possuem
maior poder econômico podem exercer uma dominação mais efetiva sobre outros em
condição inferior. Torna-se ilustrativo fazer alusão às relações estabelecidas entre
catadores e deposeiros no circuito produtivo da reciclagem, em que os últimos exercem
uma influência flagrantemente mais incisiva sobre o outro (catador) que estabelece com
ele relações de mercado (na comercialização de resíduos recicláveis).
Por outro lado, não se pode negar que existe um determinado compartilhamento
intersubjetivo de valores e práticas de condutas entre esses atores, que se encontram no
ambiente de mercado para realizar suas transações econômicas (marcadas pela troca de
mercadorias). Esses valores e princípios são elementos que compõem certa lógica do
trabalho que busca orientar as ações práticas desses sujeitos, operando segundo
determinada lógica de racionalidade informada por sociabilidades mediadas pela
produção e circulação de mercadorias, algo que nos informaria sobre uma lógica do
mercado.
Pensar as particularidades do “encontro” desses sujeitos no espectro de ações
orientadas pela lógica de mercado implica reconhecer que significativas mudanças
ocorridas nas últimas décadas no mundo do trabalho têm operado uma substancial
reorientação de tais práticas de condutas. No campo do trabalho, temos um verdadeiro
esgotamento da ética do trabalho com suas noções de ascetismo, repressão do prazer
polimórfico e de estabilidade de funções, responsável pela produção de uma fixidez
identitária no interior do mundo do trabalho. Encontramos como marcas desse novo
16
Não cabe a este ponto de nossa exposição proceder a uma discussão aprofundada desta categoria
cunhada por Marx que integra o capítulo primeiro do Vol. I de sua obra máxima, O Capital. Por enquanto
é suficiente que tenhamos clara a noção de que o fetichismo da mercadoria não se trata de um fenômeno
meramente ilusório da consciência das pessoas. Trata-se, muito pelo contrário, de um fenômeno da
consciência e da existência social dos indivíduos.
56
cenário uma desregulamentação enorme dos direito do trabalho, que o eliminados
cotidianamente em quase todas as partes do mundo onde produção industrial, e de
serviços; aumento da fragmentação no interior da classe trabalhadora; precarização e
terceirização com perda de direitos da força humana que trabalha; aumento exponencial
do fenômeno da informalidade no mercado de trabalho; cooptação e até mesmo
destruição do sindicalismo de classe e sua conversão num sindicalismo dócil, de
parceria (partnership), ou mesmo em um “sindicalismo de empresa”. Vivemos a era da
flexibilidade, tornando claro o argumento.
A flexibilidade não altera apenas o comportamento dos indivíduos ao realizarem
atividades de trabalho ou estabelecerem elos de organização. Também estende seus
tentáculos sobre as formas contemporâneas de regulagem e fruição do tempo de
trabalho e tempo “livre” (ócio) e o estabelecimento de referências identificatórias (estas
apresentando cada vez maior fragilidade), num contexto marcado por uma aceleração
sem precedentes da produção e circulação de mercadorias, consuma-se o mundo do
consumo”. Encontra-se, pois, instituições normativas próprias de uma sociedade
disciplinar, mas trazendo em seu bojo dispositivos de controle que absorvem a
multiplicidade e a flexibilização. “A aspiração à flexibilidade de identidade e à
multiplicidade de atividades acopla-se perfeitamente à plasticidade dos modos de ser
disponibilizados pela mercadoria” (Safatle, 2008, p. 24). Dessa forma, ao passo que
assistimos à construção de sujeitos cada vez mais comprometidos com uma
racionalidade construída sob a ótica do trabalho, vê-se, por outro lado, uma espécie de
processo em curso de anulação paradoxal de contradições e amaciamento de conflitos
que se alinham a uma racionalidade dual característica das sociedades capitalistas
contemporâneas.
Trata-se do fenômeno social em que a cada estrutura normativa enunciada
corresponde sempre outro sistema de regras, implícito, que regula os processos efetivos
de interação no campo social. Assim: “Sem prejuízo de existir, o antagonismo se desfaz
em fumaça e os incompatíveis saem de mãos dadas”
17
. Além disso, verifica-se um
espraiamento dessas estruturas normativas duais que informam as condutas cotidianas
no gradiente dos modos de racionalização e modernização impostos pelo
17
Roberto Schwarz, “As idéias fora de lugar”, in Ao vencedor as batatas (São Paulo, Duas Cidades,
Editora 34, 200, p. 18).
57
desenvolvimento capitalista contemporâneo que extrapolam os limites dos países
periféricos.
Estaríamos, por assim dizer, diante de certa patologia social presente no interior
de nossas formas de vida e ligada a um processo de generalização de estruturas
normativas duais? Tentando encontrar resposta a essa indagação, nos diz Safatle (2008):
“Talvez estejamos tão acostumados a compreender racionalidade como normatividade
que nos espantamos com situações nas quais o acordo intersubjetivo em relação a
critérios e valores não nos leve a um acordo em relação aos modos de aplicá-los ou, ao
menos, a maneiras de retirar a ambigüidade de sua aplicação” (Id., p. 79). É nesse
terreno em que a racionalidade cínica passa a constituir forma fundamental de
exteriorização das estruturas normativas, que integram as dinâmicas de racionalização
em operação nas múltiplas esferas de interação social no capitalismo contemporâneo.
Assim, o cinismo torna-se “um problema geral referente à mutação nas estruturas de
racionalidade em operação na dimensão da práxis. um modo cínico de
funcionamento dessas estruturas que aparece normalmente em épocas e sociedades em
processo de crise de legitimação, de erosão da substancialidade normativa da vida
social” (p. 13).
Nesse sentido, o cinismo enquanto elemento enunciativo que orienta a práxis age
desestabilizando a tão buscada integração coerente entre os critérios normativos que
aspiram à validade universal e às situações e casos concretos que pareceriam não se
submeter a tais valores e critérios na dimensão do real cotidiano. Com o cinismo
tomado enquanto estrutura racionalizadora de certa práxis social, temos a possibilidade
de demonstrar que condições transcendentais normativas de julgamento podem ser
seguidas, mesmo quando suas designações “normais” possam ser invertidas sem,
contudo, apresentar contradição entre julgamento e ato. Dessa forma, o cinismo opera
certa torção da lei sem que isso inviabilize a aplicação em última instância do poder
normativo.
Essa estrutura analítica possibilita desvelar alguns impasses relacionados a certas
assimetrias constatadas nos discursos dos agentes da reciclagem e suas práticas
cotidianas na ordem das relações de trabalho. No caso citado anteriormente, quando nos
referíamos ao fato de Paulo armazenar garrafas pet nos “bergues” sem estarem
devidamente esvaziadas de seu conteúdo, foi interessante notar que com naturalidade
58
nos disse que essa prática é comum entre os catadores, constituindo inclusive certa
forma de defesa de interesses frente ao deposeiro que ostenta, em sua visão, vantagem
na negociação. Acaba por se tornar uma maneira de auferir certa vantagem no momento
da pesagem do material, uma vez que o líquido pode fazer alguma diferença, embora
não tão significativa. Entretanto, essa prática apresenta certo deslocamento em relação
ao que afirmou nosso sujeito quando sem reservas se disse alguém que preza pela
honestidade, considerando-se um catador bom.
Ora, quando levamos em consideração que a prática de tentar ludibriar também
se apresenta como realidade comum entre deposeiros, quando tentam estabelecer
vantagem ao pesar o material, registrando na balança – no ato da pesagem dos materiais
- um peso menor do que o realmente apresentado pelo catador no depósito (queixa
comum entre os catadores) e, mais ainda, tais investidas de ambos os lados não
implicam em rompimento dos laços estabelecidos no mercado, podemos constatar que
mesmo embora a prática desses indivíduos negligencie alguns preceitos fundamentais
das estruturas normativas e valores intersubjetivamente partilhados, que buscam
informar as ações em vel de mercado dos indivíduos, não apresenta força suficiente
para representar contradição capaz de dissolver as relações estabelecidas no corpo social
orientadas por critérios normativos gerais de conduta.
Ocorre uma espécie de torção dos valores orientadores da práxis desses agentes
sem, contudo, operar uma transgressão daqueles mesmos critérios normativos de
enunciação e justificação de suas ações. Ou seja, o catador pode continuar contando
com o “empréstimo” da carroça por parte do deposeiro para que trabalhe, e o deposeiro
pode seguir contando com certa lealdade em receber o material coletado nas ruas pelos
carroceiros, não havendo, dessa forma, indisposição entre ambos que prejudique suas
relações enquanto indivíduos que representam papéis comerciais.
Dessa forma, observa-se que a relação estabelecida pelos indivíduos observados,
não obstante inscreva-se nos moldes do que vem a ser prescrito como relações com fins
comerciais previstas em lei com possíveis sanções àqueles que das prescrições legais se
desviarem, manda pelos ares o princípio normativo formal mais geral, incorporado em
nossa legislação vigente, qual seja: boa-fé objetiva
18
. Para além da fixidez das relações
18
Segundo o professor Á
LVARO
V
ILLAÇA DE
A
ZEVEDO
, o princípio da boa-fé “assegura o acolhimento do
que é lícito e a repulsa ao ilícito”. Eis que, perante a vigência de nossa legislação aquele que contraria a
boa-fé comete abuso de direito, respondendo no campo da responsabilidade civil, conforme previsão do
59
que se pautam na observação estrita de comportamentos prescritos em princípios ético-
normativos
19
que intentam orientar as práticas, quer negociais ou não, dos sujeitos
pertencentes à modernidade capitalista, encarnada no discurso da vigência do Estado
democrático de direito, no campo das relações concretas, encontramos práticas
reveladoras de contradições que estranhamente se legitimam no terreno das relações
negociais no campo do comércio de mercadorias.
A maior preocupação dos dois que acompanhava naquele momento não se ligava
ainda a questões da ordem de como ocorreria a negociação dos materiais com o depósito
comprador, mas sim com o avançar da hora e o cair da noite. O trabalho de separação
do material foi concluído e seguimos nossa caminhada por mais alguns quarteirões. Em
determinado ponto, mais precisamente no cruzamento das ruas Nunes Valente com
Padre Quinderé, paramos mais uma vez. Ao observar o ambiente, pude logo perceber a
presença de outra carroça. Paulo explicou que aquele era uma espécie de ponto onde os
carroceiros, que por aquelas áreas buscavam seu material, se reuniam. No local era
comum aparecerem três, quatro, cinco carroças, garantiu-me. O fato de haver apenas
uma no momento em que chegamos foi comemorado por D. Maria, que viu assim uma
menor concorrência na procura pelos materiais recicláveis. ”Setor”, este foi o termo
usado pelos catadores para designar o local onde estávamos, ponto de concentração de
trabalhadores e carroças. É também local onde descansam e estabelecem contato uns
com os outros.
artigo 187 da codificação emergente. Ademais, conforme o enunciado número 37 do Conselho Superior
da Justiça Federal (CSJF), aprovada na Jornada de Direito Civil realizada no ano de 2002, a
responsabilidade decorrente do abuso de direito independe de culpa (responsabilidade objetiva). Ver:
AZEVEDO, Álvaro Villaça de. Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos. São Paulo: Editora
Atlas, 2002, p. 26.
19
Quanto ao princípio da eticidade, adotado pela codificação emergente, cumpre transcrever as palavras
do Ministro J
OSÉ
D
ELGADO
, do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que “o típico de Ética buscado
pelo Novo Código Civil é o defendido pela corrente kantiana: é o comportamento que confia no homem
como um ser composto por valores que o elevam ao patamar de respeito pelo semelhante e de reflexo de
um estado de confiança nas relações desenvolvidas, que negociais, quer não negociais. É, na expressão
kantiana, a certeza do dever cumprido, a tranqüilidade da boa consciência” (A Ética e a Boa-Fé no Novo
Código Civil. In Questões Controvertidas do Novo Código Civil. São Paulo: Editora Método, 2003, p.
177).
FOTO 9:
localizado no Bairro Aldeota. Fonte: foto do autor, 2009.
Mais uma vez paramos.
havia de fora do
lugar na carroça. passava
me em que consistiriam os próximos passos. Tratava
20h
, horário conhecido da passagem, por aquelas áreas, do caminhão que recolhia o
lixo domiciliar, para somente então, seguindo
Somente aos poucos foi ficando mais claro o que aconteceria nas próximas horas. A
passagem do caminhão do lixo significava um maior acesso dos catadores a materiais
que antes estavam fora do raio de ação dos mesmos; situados em lixeiras condominiais
onde n
ão fossem autorizados a vasculhar o lixo, em ruas não percorridas durante o
trajeto, em estabelecimentos comerciais que somente depositam o lixo em suas calçadas
ou lixeiras quando do momento exato da passagem do caminhão recolhedor (às vezes
para evitar a
ação dos próprios catadores) etc.
Aguardávamos agora a passagem do caminhão encarregado de recolher o lixo
urbano. Paulo indicou-
me
aproximadamente a trezentos metros. Sua mãe encarregou
caminho e revisitar algumas lixeiras de condomínios que haviam prometido abrir as
portas das mesmas àquela altura da noite. Tratava
condomínios depositam seu lixo em horário noturno, o que exigia certa negociação por
parte dos catadores junto ao(s) porteiro(s) (todos que encontramos pelo caminho eram,
curiosamente, do gênero masculino) pela exclusividade de acesso, o que impl
sua vez, comprometimento em voltar às portas do condomínio na hora marcada.
Voltando o olhar para o “setor” percebi que as carroças ficavam “abandonadas” no
FOTO 9:
“Setor”, ponto de encontro dos catadores,
localizado no Bairro Aldeota. Fonte: foto do autor, 2009.
Mais uma vez paramos.
Paulo e sua mãe puseram-
se a organizar o que ainda
lugar na carroça. passava
das sete da noite quando Paulo exp
me em que consistiriam os próximos passos. Tratava
-
se de aguardar até por volta das
, horário conhecido da passagem, por aquelas áreas, do caminhão que recolhia o
lixo domiciliar, para somente então, seguindo
-
o, tentar conseguir mais material.
Somente aos poucos foi ficando mais claro o que aconteceria nas próximas horas. A
passagem do caminhão do lixo significava um maior acesso dos catadores a materiais
que antes estavam fora do raio de ação dos mesmos; situados em lixeiras condominiais
ão fossem autorizados a vasculhar o lixo, em ruas não percorridas durante o
trajeto, em estabelecimentos comerciais que somente depositam o lixo em suas calçadas
ou lixeiras quando do momento exato da passagem do caminhão recolhedor (às vezes
ação dos próprios catadores) etc.
Aguardávamos agora a passagem do caminhão encarregado de recolher o lixo
me
a
onde deveríamos ir, apontou para uma lixeira que estava
aproximadamente a trezentos metros. Sua mãe encarregou
-se de volt
ar um pouco no
caminho e revisitar algumas lixeiras de condomínios que haviam prometido abrir as
portas das mesmas àquela altura da noite. Tratava
-
se exatamente dis
condomínios depositam seu lixo em horário noturno, o que exigia certa negociação por
parte dos catadores junto ao(s) porteiro(s) (todos que encontramos pelo caminho eram,
curiosamente, do gênero masculino) pela exclusividade de acesso, o que impl
sua vez, comprometimento em voltar às portas do condomínio na hora marcada.
Voltando o olhar para o “setor” percebi que as carroças ficavam “abandonadas” no
60
se a organizar o que ainda
das sete da noite quando Paulo exp
licou-
se de aguardar até por volta das
, horário conhecido da passagem, por aquelas áreas, do caminhão que recolhia o
o, tentar conseguir mais material.
Somente aos poucos foi ficando mais claro o que aconteceria nas próximas horas. A
passagem do caminhão do lixo significava um maior acesso dos catadores a materiais
que antes estavam fora do raio de ação dos mesmos; situados em lixeiras condominiais
ão fossem autorizados a vasculhar o lixo, em ruas não percorridas durante o
trajeto, em estabelecimentos comerciais que somente depositam o lixo em suas calçadas
ou lixeiras quando do momento exato da passagem do caminhão recolhedor (às vezes
Aguardávamos agora a passagem do caminhão encarregado de recolher o lixo
onde deveríamos ir, apontou para uma lixeira que estava
ar um pouco no
caminho e revisitar algumas lixeiras de condomínios que haviam prometido abrir as
se exatamente dis
to; alguns
condomínios depositam seu lixo em horário noturno, o que exigia certa negociação por
parte dos catadores junto ao(s) porteiro(s) (todos que encontramos pelo caminho eram,
curiosamente, do gênero masculino) pela exclusividade de acesso, o que impl
icava, por
sua vez, comprometimento em voltar às portas do condomínio na hora marcada.
Voltando o olhar para o “setor” percebi que as carroças ficavam “abandonadas” no
61
local, todos se retiravam, uns em busca de lixeiras deixadas pelo caminho, como D.
Maria, que seguia caminhando carregando os enormes sacos plásticos (bergues) para
recolher os materiais encontrados, outros se deslocavam para pontos estratégicos de
passagem do caminhão recolhedor do lixo, caso de Paulo.
O “setor”, assim denominado pelos catadores que encontramos nessa área da
cidade, corresponde a um local aparentemente determinado de forma espontânea onde
os catadores se reúnem enquanto aguardam, em geral, a passagem do caminhão de
limpeza urbana. Também se torna interessante para os trabalhadores na medida em que
passam a dispor de um “ponto de encontro” onde deixam suas carroças para procurar
material em outras lixeiras do entorno, carregando apenas o bergue, o que permite
maior celeridade no trabalho. Enquanto isso, as carroças ficam juntas no mesmo local, o
que confere uma relativa segurança aos catadores. Existem vários desses pontos de
encontro entre catadores que podem ser percebidos pela cidade e em locais
extremamente variados, sendo difícil, portanto, identificar características que
condicionam com mais ou menos força a escolha dos locais. Encontram-se próximos a
canais, postos de gasolina, embaixo de viadutos, às vezes, em cruzamentos de avenidas.
São nesses locais onde se pode encontrar alguns catadores reunidos, raros momentos em
virtude do caráter itinerante do trabalho, e onde podemos ouvir histórias, lamentações,
piadas. Foi nesse local que encontramos Jair, um jovem homem, porém com larga
experiência na atividade da catação.
62
Foto 10
: O cruzamento destacado com a elipse de cor vermelha corresponde ao “setor”, visto
do alto, local estratégico onde vários catadores se reúnem, conversam, descansam, organizam o
material recolhido. Fonte: Google – imagens, 2010.
63
2.2. Da catação na rampa ao trabalho nas ruas
“O sistema é doido, tem que ralar mesmo” (Jair Ribeiro, catador)
Ao contrário do que se pode esperar da dimensão lúdica e mágica que envolve o
universo da vida infantil, Jair, aos oito anos, não fazia ideia que aquela atividade
que ocupava todo seu dia, sem bem saber se se tratava dum passatempo ou outra coisa
qualquer - posteriormente descobriria ser trabalho -, iria acompanhá-lo pelos próximos
anos de sua vida. Muito cedo se confrontou com a intimidante tarefa de ganhar ao lado
dos pais, diariamente, os meios necessários para assegurar sua sobrevivência
biológica. Nesse tempo, passava todo o dia caminhando por sobre uma impressionante
montanha de lixo, que era despejado por imensas carretas no aterro Jangurussu
20
,
então local de destino dos rejeitos do consumo da população da região metropolitana
de Fortaleza. Cabia-lhe ficar atento e recolher a maior quantidade possível de certos
materiais que haviam lhe dito ser possível de comercialização.
20
O aterro sanitário do Jangurussu entrou em operação no ano de 1978 e esteve oficialmente em atividade
até 1986, período aproximado do inicio de seu funcionamento como Lixão que durou até o ano de 1998.
O Bairro do Jangurussu, onde foi construído o aterro, fica localizado à beira da estrada do Itaperi, às
margens do rio Cocó, no lado leste da cidade e pertencente à zona urbana regional mais populosa de
Fortaleza. Esta região da cidade abrigou em décadas anteriores os imigrantes do interior do Estado
fugidos da seca e inúmeros trabalhadores, em sua maioria desempregados. No período de sua desativação,
em março de 1998, a quantidade de lixo enterrada numa faixa de cerca de 20 hectares chegou a medir
impressionantes 41 metros, de acordo com Cury (2004) apud Gonçalves (2006), gerando um grave
problema socioambiental. O aterro empregava cerca de 1500 catadores entre adultos e crianças que
viviam em condições sub-humanas.
64
Foto 11
: Bem ao centro da imagem é possível ver o enorme morro formado em vinte anos
de funcionamento do aterro Jangurussu. Fonte: Google – imagens, 2010.
Os últimos dez anos de sua vida foram intensos... Largou a escola antes de
concluir os estudos básicos. Estudava à noite, o cansaço do dia de trabalho não
permitia a disposição corporal e intelectual necessária para enfrentar a sala de aula.
Assistiu à separação de seus pais, passou a morar com sua mãe, o pai, recusando-se a
sair de casa e após muitos e violentos conflitos com a família, acabou por construir um
pequeno quarto junto ao barraco que abrigava Jair, sua mãe e seus seis irmãos.
Desceu a rampa com seu irmão mais velho e ganhou as ruas. Passou a puxar uma
carroça alugada de uma sucata e a recolher materiais recicláveis. Lavou e guardou
carros, pintou muros, foi servente em obras, empacotador, cozinhou... Fez de tudo um
pouco, mas por motivos que não sabe explicar sempre “voltou” ao lixo. Com sua
companheira teve sua primeira filha hoje com dois anose está à espera do segundo
filho, em relação ao qual demonstrou excitação e ansiedade em descobrir o sexo...
“Agora tem que ser um homem, pra um dia me ajudar a sustentar a casa”. Mas
enganam-se aqueles que pensam que no lixo somente se encontra o que é desprezível,
inútil, advertiu-me Jair. O ofício o ensinou que muitas daquelas coisas que são
encontradas por eles [catadores] podem ser recuperadas, e não se refere aos materiais
que rumam aos depósitos e indústrias para serem utilizados como matérias-primas, diz,
65
sobretudo, sobre o que pode ser consertado e reutilizado. E foi assim que passou a
desenvolver a atividade de feirante. Muitos são os objetos encontrados e recuperados,
são cadeiras que precisam apenas que se troque o estofado, ventiladores,
liquidificadores, mesas etc. Aquilo que não é utilizado em sua própria casa é levado à
feira do São Cristovão, onde negocia aos Sábados o que conseguiu recolher e
recuperar durante a semana.
Essa outra destinação que Jair confere ao lixo que recolhe tem modificado
bastante seu olhar sobre os materiais que encontra, mas não somente os que ele
próprio coleta. Todas as madrugadas de trabalho, após a caminhada e recolhimento
dos materiais encontrados nas lixeiras e nas ruas, Jair conversa com seus colegas
catadores e negocia a compra de alguns objetos que ele julga possível de recuperar e
revender na feira. Essa negociação não necessariamente se mediante troca dos
objetos por dinheiro, às vezes a permuta ocorre por favores, comida, promessas, mão-
de-obra etc. E é assim que Jair busca garantir o sustento de sua família, reconhecendo,
no entanto, as dificuldades que passa pela jornada excessiva de trabalho, pela ausência
de uma maior segurança tanto no exercício diário de sua atividade como no universo
jurídico, vez que não conta com o resguardo do aparato dos direitos sociais ainda
presentes em nossa legislação trabalhista. “Emprego difícil. Fui ao emprego e o
cara queria que eu estagiasse [pizzaiolo]. Num voltei mais lá. Num posso perder dia de
trabalho”. Assim, acredita que mesmo na informalidade consegue garantir de forma
mais efetiva o provimento material da vida de sua família e sua própria.
A noite em que conversamos era especial, pois Jair estava recebendo ajuda no
trabalho de um parente que vivia no interior do estado, na cidade de São Luis do
Curu
21
, e estava passando suas férias escolares de dezembro em Fortaleza. Segundo
Jair, é algo comum alguns de seus parentes passarem curtas temporadas na capital
onde buscam alguma ocupação que lhes renda algum dinheiro. A ele, no entanto,
quando possível, cabia fornece-lhes abrigo ou mesmo trabalho. O garoto possuía
apenas onze anos incompletos, talvez por isso Jair tratou logo de explicar-me qual o
papel que seu primo desempenhava ali - ele num trabalha porque eu não vou
explorar. Ele é o segurança de minha carroça” (disse-me em tom jocoso). Na
21
Cidade da região Norte cearense, microrregião do Médio Curu, situada a 79 km da Capital Fortaleza.
Desmembrada de Uruburetama em 22/11/1951, fica na margem direita do rio Curu, está a 38m de altitude
e, em 2007, o IBGE estimou sua população em 12.052 habitantes.
perspectiva de Jair, por não ser encarregado do “serviço pesado”, não se poderia
considerar que o garoto estava trabal
julgada por ele mesmo como altruísta, concedia ao jovem uma parte do rendimento do
trabalho diário, pois “com este dinheiro ele pode comprar as roupas dele do Natal”,
que as festividades natalinas se aproximavam.
Foto
12
: Jair, 25 anos. No canto superior esquerdo de
sua carroça pode-
se ver a cadeira que encontrou no lixo.
Em breve seria recuperada e vendida na feira de São
Cristóvão. Fonte: foto do autor, 2009.
Àquela hora,
Adriano, primo de Jair, já dormia. Estava a uns trezentos metros
de distância, ao lado da carroça do catador que ficou estacionada perto da lixeira de
um condomínio. O garoto dormia no chão
lixo. A escuridão e o fato do garoto estar totalmente encolhido tornaram difícil
enxergá-lo, dando-
nos a incômoda sensação de confundir seu corpo com o próprio lixo.
Adriano acordou, olhou em volta e pareceu sentir
Suas palavras se resumiram em dizer do quanto era difícil dormir sob o frio da noite.
Durante cerca de trinta minutos
aproveitado por Paulo para deitar e
que faria a coleta. O local não poderia ser mais estratégico, deitara
próxima lixeira condominial que seria aberta naquela rua. Vale ressaltar que o acesso
perspectiva de Jair, por não ser encarregado do “serviço pesado”, não se poderia
considerar que o garoto estava trabal
hando de fato, mesmo assim, numa atitude
julgada por ele mesmo como altruísta, concedia ao jovem uma parte do rendimento do
trabalho diário, pois “com este dinheiro ele pode comprar as roupas dele do Natal”,
que as festividades natalinas se aproximavam.
: Jair, 25 anos. No canto superior esquerdo de
se ver a cadeira que encontrou no lixo.
Em breve seria recuperada e vendida na feira de São
Cristóvão. Fonte: foto do autor, 2009.
Foto 13
: Adriano, 11 anos, dorme ao lado do
recolhido. Fonte: foto do autor, 2009.
Adriano, primo de Jair, já dormia. Estava a uns trezentos metros
de distância, ao lado da carroça do catador que ficou estacionada perto da lixeira de
um condomínio. O garoto dormia no chão
, próximo à carroça,
ladeado por sacos de
lixo. A escuridão e o fato do garoto estar totalmente encolhido tornaram difícil
nos a incômoda sensação de confundir seu corpo com o próprio lixo.
Adriano acordou, olhou em volta e pareceu sentir
-se alivi
ado por reencontrar o primo.
Suas palavras se resumiram em dizer do quanto era difícil dormir sob o frio da noite.
----------
Durante cerca de trinta minutos
,
esperamos pela passagem do caminhão, tempo
aproveitado por Paulo para deitar e
cochilar enquanto aguardava a chegada do veículo
que faria a coleta. O local não poderia ser mais estratégico, deitara
próxima lixeira condominial que seria aberta naquela rua. Vale ressaltar que o acesso
66
perspectiva de Jair, por não ser encarregado do “serviço pesado”, não se poderia
hando de fato, mesmo assim, numa atitude
julgada por ele mesmo como altruísta, concedia ao jovem uma parte do rendimento do
trabalho diário, pois “com este dinheiro ele pode comprar as roupas dele do Natal”,
: Adriano, 11 anos, dorme ao lado do
lixo
recolhido. Fonte: foto do autor, 2009.
Adriano, primo de Jair, já dormia. Estava a uns trezentos metros
de distância, ao lado da carroça do catador que ficou estacionada perto da lixeira de
ladeado por sacos de
lixo. A escuridão e o fato do garoto estar totalmente encolhido tornaram difícil
nos a incômoda sensação de confundir seu corpo com o próprio lixo.
ado por reencontrar o primo.
Suas palavras se resumiram em dizer do quanto era difícil dormir sob o frio da noite.
esperamos pela passagem do caminhão, tempo
cochilar enquanto aguardava a chegada do veículo
que faria a coleta. O local não poderia ser mais estratégico, deitara
-se ao lado da
próxima lixeira condominial que seria aberta naquela rua. Vale ressaltar que o acesso
67
dos catadores a essa lixeira era proibido pelo condomínio, segundo os próprios
afirmavam. Tão logo o caminhão apontou na curva, Paulo postou-se de pé e preparou-se
para o trabalho. Os lixeiros vinham correndo à frente do caminhão, rapidamente
receberam as chaves do porteiro e abriram o recinto que armazenava o lixo. Antes
mesmo do caminhão se aproximar estavam com os tambores postados à rua
aguardando o momento de depositar seu conteúdo na máquina devoradora de lixo. Foi
surpreendente perceber que aquele ainda não era o momento de Paulo, havia de esperar
mais um pouco, sua aproximação dos tambores de lixo era contida pelos lixeiros que o
ordenavam aguardar, entretanto, seu olhar estava fixo no interior daquelas enormes
latas azuis, como se já pudesse visualizar e antecipar quais seriam seus próximos
movimentos.
Quando o caminhão encostou-se ao local e o conteúdo das latas foi depositado
no interior do veículo, repleto de outros resíduos, foi “autorizada” a intervenção de
Paulo, a partir daquele instante era como se o trabalho realizado pelos lixeiros houvesse
sido consumado, pois corriam rapidamente para outra lixeira que se situava a uns tantos
metros, com o intuito de adiantar o trabalho antes da chegada do caminhão que engoliria
aqueles dejetos. Ao ver o material ser despejado no caminhão, Paulo, sem hesitar,
saltou, agarrando-se nas barras de apoio, e tal como um lixeiro às avessas, lançava para
fora do caminhão o que antes havia sido atirado para dentro, como se retirasse da boca
do inferno as almas ainda passíveis de serem salvas, não sem antes penitenciarem-se nos
campos purgatoriais (depósitos, sucatas indústrias) para, só então, merecerem nova vida
no mundo das mercadorias.
Atirava os materiais que encontrava e que julgava bons para se negociar ao chão,
ato que se repetia mesmo com o carro em movimento. Depois, saltava e juntava com a
máxima destreza e velocidade os que estavam espalhados pela rua, atirando-os dentro
do saco plástico que carregava para esse fim e vendo, no entanto, o afastar do caminhão
que seguia seu inexorável itinerário. Assim que recolhia tudo, iniciava nova corrida que
findava ao chegar à outra lixeira, onde os lixeiros aguardavam com os camburões
para despejar no interior do devorador de restos. Em vários momentos, Paulo auxiliava
os trabalhadores do caminhão a despejar o material, o que despertava a solidariedade de
alguns deles (que estavam em número de três) que quando encontravam algum material
dentro do caminhão que por ventura pudesse interessar ao jovem que os ajudava,
devolviam-no à rua. “Tem que ser rápido, num é fácil não”, afirmava Paulo no
68
interlúdio entre uma e outra lixeira de condomínio, no momento em que corríamos para
alcançar a próxima a ser devassada pelos trabalhadores do lixo. Esse ritual repetiu-se
várias vezes, suficientes para preencher totalmente o espaço do saco plástico com
materiais recicláveis por duas vezes. Um aspecto interessante, dentre vários, foi
perceber o conhecimento por parte dos catadores de todo o itinerário do caminhão da
coleta pública de lixo, desde seus horários de passagem por determinadas ruas, até que
locais valeria a pena seguir o caminhão para coletar materiais e quais as ruas que não
seriam proveitosas para percorrer ao lado do veículo, vez que um conhecimento prévio
dos locais que seriam visitados pelo caminhão da coleta (lixeiras condominiais e
residenciais de determinadas ruas) os informava se já haviam sido percorridos por
outros catadores. Esses locais eram evitados, em parte para não favorecer conflitos com
outros catadores em razão de “invasões” territoriais, por outro lado, porque não faria
sentido vasculhar lixeiras que haviam sido casqueradas por outros trabalhadores.
Assim, em determinados momentos, o caminhão se distanciava e os catadores tomavam,
por vezes, rumos contrários, aguardando em pontos estratégicos a passagem do
caminhão, o que revela certa racionalidade do trabalho, orientando a prática laboral
cotidiana desses sujeitos.
FOTO 14
: Paulo dorme ao lado da lixeira de um
condomínio enquanto aguarda a passagem do veículo
coletor de lixo. Fonte: foto do autor, 2009.
FOTO 15:
Paulo desce do caminhão para recolher o
material que atirou ao chão. Fonte: foto do autor, 2009.
As imagens ilustram bem, mais uma vez, as condições precárias de como se
desenvolve esse trabalho. Deitado sobre a calçada para descansar uma exaustiva
jornada, ao lado de um local específico para a disposição de dejetos, restos do consumo
69
que trazem consigo o estigma do inútil, do desprezível, revela uma atividade que não
permite uma regularidade quanto aos momentos de descanso e trabalho, estendendo-se
para uma estrutural impossibilidade de escolha por parte dos carroceiros por opções que
os tragam o mínimo de conforto e segurança.
Exatos treze minutos separam as duas ações refletidas nas imagens dispostas
acima. Ao deitar-se e calcular que teria vinte minutos para descansar (eram 19h e
36min), Paulo foi surpreendido pela chegada do caminhão com cerca de onze minutos
de antecedência - pois previa sua passagem por volta das 20h – de forma que obrigou-se
a preparar-se para executar o trabalho de retirar de seu interior o que fosse possível. É
de fundamental importância registrar, no entanto, que Paulo não foi despertado pela
chegada do caminhão. Antes disso, ao ser percebido deitado sobre a calçada pelo que
julgamos morador do edifício, uma vez que se postara ao lado da guarita da portaria,
esta situada num nível elevado em relação à calçada, e na presença do porteiro que
trabalhava uniformizado, foi sumariamente despertado pelo mesmo morador, utilizando-
se da sola dos sapatos para fazer pressão sobre as pernas de Paulo que, depois de
desperto, recebeu a ordem de se retirar, atravessando a rua onde ficou por alguns
minutos até a chegada do caminhão. A manifestação de desprezo do morador ao utilizar
os pés para acordar o catador e sua posterior atitude de expulsá-lo da calçada do
edifício, impôs- me uma inevitável reflexão: não seria esta atitude de expulsão de um
corpo que se colocara indevidamente sobre a calçada, maculando-a, cujo único toque
que recebeu foi dado com a sola dos pés, um procedimento semelhante ao adotado em
relação ao lixo que estava sendo descartado por aquele condomínio, que da mesma
forma causava repulsa e impunha a necessidade imperiosa de ser retirado? Seria Paulo,
aos olhos daquele morador, um indivíduo déclassé, a sobra, o refugo
22
que deveria,
assim como o lixo, ser afastado, descartado?
Chama ainda a atenção que os trabalhadores formalmente aptos e designados
para desenvolver essa atividade, refiro-me aos lixeiros que acompanham o caminhão
fazendo a coleta pública, são amparados por instrumentos mínimos e indispensáveis
para o desempenho com certa segurança da profissão, afinal podem contar com
22
Bauman elabora o conceito do que vem a chamar de refugo humano. Este corresponderia às sobras
humanas não contempladas pelos efeitos “extraordinários” do progresso econômico, indivíduos que não
consumaram sua inserção enquanto consumidores num mundo cada vez mais infestado por mercadorias
que demandam por fruição, ostentando estes, ao inverso daqueles que imersos nestas relações através do
poder de consumir, a inglória condição de superfluidade, desprezibilidade, refugo. A esse respeito
consultar: BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, pp. 53,
54, 76, 77, 98, 99.
70
uniformes, botas e luvas que evitam o contato direto com o lixo. Longe é minha
intenção de asseverar que esses trabalhadores estão devidamente amparados e que não
carecem de mais apoio no que diz respeito a seus instrumentos de trabalho e proteção na
realização de suas atividades, mas, tão somente, tornar mais visível, através da
comparação, o quão grotesca torna-se a imagem de um jovem que se lança com extrema
voracidade sobre materiais cuja condição, procedência e natureza são desconhecidas,
sem qualquer tipo de proteção que o garanta contra possíveis contaminações ou mesmo
acidentes de outra ordem.
Destaco, por exemplo, a perícia com alta dose de coragem que é exigida do
catador quando este revira o lixo já no interior do caminhão mesmo quando este, que
dotado de dispositivo mecânico específico, inicia um processo que consiste em amassar
e triturar os dejetos, despejando-os no interior da caçamba fechada do veículo. Vale
lembrar que a máquina faz movimentos bruscos, fato que representa perigo aos
coletores que mantêm-se afastados até que se encerre o processo e, novamente, o espaço
seja liberado para a colocação de mais lixo em seu interior. Na ânsia de não perder a
oportunidade de recolher o material, os catadores atiram-se com voracidade, e mesmo
em face dos perigosos movimentos de prensa da máquina esticam mãos e braços,
rasgam sacos e retiram o que podem antes que os restos sejam tragados para o interior
da máquina e tornem-se, dessa forma, inacessíveis.
FOTO 16:
Paulo rasga sacos plásticos e retira o material
reciclável que encontra enquanto a prensa do caminhão
está em funcionamento. Fonte: foto do autor, 2009.
FOTO 17:
Concluído o processo de prensagem do
material, espaço é liberado para receber nova quantidade
de lixo. Paulo se prepara para a chegada dos resíduos.
Fonte: foto do autor, 2009.
71
Registramos em fotografias os momentos aos quais nos referíamos. A primeira
imagem possui em primeiro plano os coletores que executam seu trabalho, recolhendo o
lixo contido nos camburões que são dispostos em recintos específicos nos condomínios.
Em segundo plano, é possível ver Paulo que segura um saco plástico, o qual seria
rasgado para que conhecendo seu conteúdo pudesse tomar em mãos algo que possa ser
levar aos depósitos. Tudo acontece ao passo que o caminhão realiza a prensagem do
material, fato constatado na imagem seguinte direita), em que podemos perceber a
ausência de resíduos à frente de Paulo, rapidamente repostos pelos trabalhadores da
coleta que despejam mais na caçamba do veículo. Várias foram as ruas que percorri ao
lado de Paulo, sempre em busca de dejetos que eram lançados no interior do caminhão
de coleta de lixo urbano até que nossa perseguição findasse. Isso se deu devido ao
percurso que seria traçado pelo caminhão não interessar mais ao catador. Mas um
reencontro estava marcado, com hora e local para acontecer. Ocorreria às 3h da
madrugada, quando esse mesmo carro estaria cobrindo uma área que compreende um
grande supermercado na Av. Barão de Studart. Enquanto isso, ainda tínhamos cerca de
três horas pela frente, era necessário acomodar o material recolhido até aquele momento
na carroça, procedendo a mais um processo de arrumação e organização.
Com a juda de D. Maria, Paulo iniciou o processo de separação e organização do
material. Enquanto este postava-se no interior da carroça, sua mãe o entregava os
resíduos para serem separados.
FOTO 18:
D. Maria auxilia Paulo na organização dos
materiais no interior da carroça. Fonte: foto do autor,
2009.
FOTO 19:
Paulo utiliza o próprio corpo como prensa
para acomodar melhor os materiais encontrados e,
assim, ganhar mais espaço na carroça. Fonte: foto do
autor, 2009.
72
Primeiro era necessário revestir as laterais da carroça com papelão, este era
seguro por vergas de madeira que eram colocadas na posição vertical. Este
procedimento era uma forma de possibilitar a acomodação de um maior volume de
resíduos na carroça, vez que as frestas das laterais eram fechadas, o que permitia
amontoar o material até que este superasse a própria altura da carroça onde seria
transportado. O detalhe da imagem é que, para garantir um maior espaço para
disposição dos materiais, o próprio peso do corpo do catador, nesse caso, Paulo, era
utilizado como espécie de “prensa” para reduzir o volume dos resíduos dispostos na
carroça. Entretanto é importante considerar que entre os vários materiais coletados
haviam garrafas de vidro, latas de alumínio amassadas, metais de diversas natureza,
inclusive, de restos de resíduos orgânicos que de alguma maneira acabavam por se
misturar aos outros materiais. Temos, portanto, um risco potencial de contaminação e
infecções que podem ser causados por qualquer acidente, mormente em casos em que
haja ferimentos ou perfurações provocadas por algum desses materiais cortantes, como
Paulo havia confirmado que acontecera. Não havendo outro modo de fazer esse
trabalho, segundo Paulo, o que restava era concluir essa etapa o mais rápido possível
para que pudéssemos empreender nossa caminhada de volta.
O retorno, no entanto, não se tratava de um típico encerramento de jornada de
trabalho. A volta ainda foi por inteiro marcada pela procura de materiais pelas ruas, que
contava ainda com mais uma parada antes de seguirmos para a Av. Barão de Studart,
local onde se pretendia encontrar o caminhão de coleta de lixo. Paramos ao lado duma
pizzarria, onde esperaríamos a colocação do lixo na calçada. Fiquei sabendo que essa
parada já era premeditada, constituindo uma espécie de rotina quando retornam do
“setor”, desde que em tempo de chegar no momento da disposição do material no
exterior do estabelecimento, evitando que seja apropriado por outros catadores que
eventualmente passem pelo local. Ao chegarmos, não havia mais ninguém, o que
representou um bom sinal, afinal, não seria necessário “dividir”o que fosse encontrado
com mais outros.
73
FOTO 20:
Sentada ao chão, D. Maria aguarda o lixo ser
colocado do lado de fora do restaurante. Fonte: foto do
autor, 2009.
A espera torna-se angustiante, em parte devido ao cansaço que àquela altura
era imenso, por outro lado, pela natureza contraditória daquela situação que
presenciava, extremamente desconfortável. Tratava-se de através de um único olhar ser
possível ver a mais clara manifestação da apartação social reinante em nossa cidade. De
um lado, os privilegiados que possuem acesso a um nível de consumo que os permite
angariar para si certas regalias como jantar fora com os amigos, ou mesmo com a
família. De outro, uma família (refiro-me, sobretudo, à imagem de D. Maria sentada à
calçada) que não se alimentava horas (calculei em torno de oito horas), e quando o
fez foi de forma precária e em função do que fora doado, em busca do que por aqueles
fosse rejeitado para garantir sua sobrevivência.
Não se trata aqui de proceder a uma verdadeira verborragia que nos lembre o
melhor dos mundos traçado pela crítica humanista, mas, tampouco fechar os olhos para
a gritante crueldade que acompanha a erupção do real, quando este rompe o véu
cotidiano que distorce sua percepção, e apresenta-se com toda sua força aos olhos do
observador mais atento, demonstrando que mais elementos a serem considerados
nessa realidade que não pendam na balança nem para o lado daqueles que vêem o
mundo do mercado como a mais perfeita evolução dos padrões de sociabilidade
humana, promovendo igualdade de oportunidades para os indivíduos, nem para aqueles
que assumem um discurso de fetichização da pobreza e vitimização desses sujeitos
desfavorecidos, que sofrem as agruras da exclusão.
74
Uma das mais marcantes características que integram o universo laboral da
atividade da catação chama-se contingência. A imprevisibilidade aliada a certa
insegurança -, uma vez que desde a expectativa de conseguir coletar uma significativa
quantidade de material até a própria integridade física dos trabalhadores estão ao sabor
das vicissitudes que marcam cada trajeto, embora estes possuam uma racionalidade e
lógica pré-estabelecida dão o tom do desenrolar de boa parte das ações desses
indivíduos em sua jornada. Em nossa caminhada, a marca do inesperado foi deixada
pela torrencial chuva que repentinamente passou a cair dos céus. Esse imprevisto, além
de impedir a continuidade de nossa espera pelos dejetos que seriam dispensados pelo
restaurante, impôs- nos uma caminhada frenética em busca de um abrigo. Ficou patente
que a primeira preocupação era com o material que estava na carroça, pois além de estar
desprotegido da chuva, esta poderia acabar por estragar boa parte do que havia sido
conseguido bem como elevar consideravelmente o peso da carroça devido ao acúmulo
de água, o que tornaria ainda mais penoso seu arrastar pelas ruas da cidade, agora pela
madrugada. Os passos agora eram apressados, haveríamos de encontrar um lugar. D.
Maria lembrou de um local próximo de onde estávamos que poderia funcionar de
abrigo, pois possuía um toldo grande o suficiente para nos proteger da chuva, lembrou
ainda que o local já havia servido de abrigo por outras vezes. Quando sentíam-se
cansados e decidiam não mais seguir catando materiais, abrigavam-se naquele local e
dormiam até o amanhecer, momento em que poderiam retomar a caminhada rumo ao
depósito.
FOTO 21:
Paulo puxa a carroça auxiliado por D. Maria,
ambos em busca de local onde pudessem se proteger da
chuva. Fonte: foto do autor, 2009.
75
A primeira dificuldade que se apresentava era o peso da carroça, mesmo estando
próximos ao local onde nos abrigaríamos, o aumento de peso da carroça em razão de um
dia e uma noite de trabalho não mais permitia uma movimentação tão ágil, não sendo
possível para Paulo conduzí-la com a celeridade necessária para evitar que o material
fosse completamente molhado, e é onde entra mais uma vez D. Maria, que vendo a
dificuldade de Paulo, posicionou-se na traseira da carroça e a impulsionou de modo a
ajudar seu filho a superar os passos trôpegos que ditavam o ritmo da caminhada. Não
tardou muito até que chegássemos, encharcados, ao local onde passaríamos o resto da
madrugada. Essa foi a decisão tomada após uma breve análise das condições do tempo
que fez com que os catadores não nutrissem esperanças mais para aquelas horas que
antecederiam o dia. Chegamos ao local onde permaneceríamos pelo restante da
madrugada. Tratava-se de um estabelecimento comercial que possuía uma larga calçada
com um amplo recuo de estacionamento. Além do mais, o toldo que cobria a entrada do
local era bastante largo, o suficiente para que todos encontrassem um canto para se
deitar sem que se molhasse em razão da chuva.
Devido à chuva forte que se abatera sobre a cidade não seria mais viável irmos
ao encontro do caminhão de coleta de lixo em busca de mais material, muito menos
voltarmos até o restaurante casquerar a lixeira, o que comprometia de certa maneira o
desempenho daqueles trabalhadores naquela noite, algo que certamente se refletiria nos
ganhos auferidos após a venda do material coletado no depósito ou sucata. Fomos
obrigados a permanecer ali, e dormir durante algumas horas. Nossa despedida se deu ao
me informarem que não iriam comercializar aqueles materiais naquela manhã, isso
devido a não terem conseguido uma quantidade satisfatória de resíduos recicláveis A
estratégia seria retornar para casa e guardar a carroça como estava, ou mesmo deixá-la
no próprio depósito no fim daquela manhã (algo que consideravam temerário, pois
tinham receio de terem os materiais furtados), para com ela voltar às ruas no fim da
tarde daquele mesmo dia. Dessa forma, poderiam completar seu volume, podendo
receber em troca da venda dos materiais quantia mais significativa.
Assim foi nossa despedida, no raiar do Sol, sob uma leve garoa que ainda caía
sobre a cidade, e com uma sensação de imcompletude, como se faltasse um pedaço para
que se completasse o enorme quebra-cabeças que fora aquela viagem. Olhando para a
carroça, - repleta de rejeitos que outrora continham o tão buscado valor-de-uso,
abandonadas por algo misterioso que despertava paixões e desejos, inertes, como que à
76
espera por um milagre que as devolveriam ao mundo sagrado (ou profano?) das
mercadorias, capaz de torná-las novamente possuidoras do poder de encantar e despertar
desejos -, fui tomado por um sentimento que dizia que ainda estávamos no início de um
longo percurso, cujo próximo passo seria dado no destino último dos catadores em sua
peregrinação em busca dos dejetos: o depósito, réquiem último daqueles corpos sem
vida, o lixo, e daqueles que buscam agarrá-la, os catadores.
Alguns dias depois de nosso percurso, foi a vez de nos encontrarmos no início da
manhã. Seria uma forma de testemunhar o “fechamento do ciclo” iniciado dias atrás,
quando acompanhei por diversas ruas e por horas a fio os catadores em busca de
resíduos recicláveis. Vinham de mais uma jornada de trabalho extensa, que, pela
segunda vez, tinha seu trajeto iluminado pela luz do Sol. O destino era conhecido:
tratava-se, agora, de vender todo o material conseguido após cerca de dezoito horas de
trabalho para o depósito ou sucata que se encarregaria, a partir desse momento, dos
destinos daqueles materiais recolhidos das ruas e lixeiras de vários bairros da cidade. O
encontro ocorreu no cruzamento das avenidas Pontes Vieira com Desembargador
Moreira, bairro Dionísio Torres, por volta das oito da manhã de Sábado. Ambos
retornavam do “setor”, local onde dormiram por volta das quatro horas da madrugada.
Antes mesmo de completarem quatro horas de descanso estavam novamente nas ruas
caminhando, pois após a venda do material no depósito ainda caminhariam por mais uns
quinze quilômetros até chegarem em casa, no bairro Barroso. Àquela hora, embora já
fosse fim de semana, o trânsito se mostrava intenso. Ignorando esse complicador, mãe e
filho iniciaram a descida da avenida Raul Barbosa em direção ao bairro Aerolândia,
mais precisamente comunidade do Lagamar, localidade onde se situa o depósito onde
venderiam o material.
No caminho, conversamos sobre a escolha do depósito para a venda do material.
Mais uma vez a justificativa obedece a razões de cunho extremamente objetivas e
circunstanciais, pois o depósito ao qual nos dirigíamos estava, segundo meus
interlocutores, melhor remunerando na compra dos materiais. No entanto, não demorou
muito até que elencassem mais algumas razões. Disseram ainda que o dono do depósito
era alguém honesto pois “ele nunca tentou roubar a gente não. E ainda teve uma vez que
a nossa carroça tava quebrada e ele guardou e ainda deixou a gente em casa de carro.
Depois ele emprestou outra carroça pra gente trabalhar e pagar o conserto” explicou
Paulo. Embora busquem o melhor pagamento pelo material que vendem, existem outras
77
características que também condicionam a permanência, embora muitas vezes
temporária, dos catadores em determinado depósito. A cordialidade manifestada pelo
dono do depósito em socorrê-los quando da quebra da carroça, foi fundamental porque a
carroça não pertencia a eles, mas a outro depósito que ficava no Barroso, próximo à
casa dos catadores. Com a ajuda, os catadores puderam consertar a carroça e devolvê-la
sem maiores prejuízos.
Foto 22
: Catadores enfrentam as dificuldades do
tráfego. Fonte: foto do autor, 2009.
Foto 23
: Da Aldeota verticalizada para a comunidade
carente do Lagamar. Fonte: foto do autor, 2009.
Através das imagens acima podemos mais uma vez constatar a dificuldade dos
catadores em trafegar nas ruas e avenidas da cidade, principalmente em horários com
grande movimentação de veículos. O deslocamento fica ainda mais complicado devido
ao peso da carroça, que nesse momento da manhã estava completamente cheia, o que
torna movimentá-la um trabalho ainda mais difícil. A imagem hostil dos carros que
passam sempre muito próximo dos catadores e de sua carroça contrasta quando estes
tomam um rua secundária e adentram à comunidade do Lagamar. Além da não
movimentação de veículos podemos logo perceber a significativa mudança da paisagem
urbana que passa a não mais ser dominada por intensa movimentação de carros,
empreendimentos comerciais, prédios e condomínios. O que vemos é a predominância
de habitações de menor porte, em geral pequenas casas que pela própria ausência do
reboco e tinta nas paredes que recubra os tijolos, dão uma coloração avermelhada ao
horizonte, o que pode revelar que estamos adentrando numa área caracterizada por
habitações precárias.
78
Naturalmente o percurso da “volta” torna-se mais lento do que a “ida”, situação
anteriormente comentada devido ao peso da carroça, entretanto, não é somente em
relação ao tempo do percurso ou à dificuldade de movimentação em que podemos
perceber mudanças significativas. Também na própria disposição dos catadores, que a
essa altura aparentam beirar a exaustão. No caminho, Paulo me repetia “depois é
tomar um banho, almoçar em casa e deitar na minha cama”. O corpo reclama por
descanso contra as longas horas de caminhada, a intensidade do trabalho, o peso
carregado, a noite mal dormida, a falta do desjejum... À medida que nos aproximávamos
do depósito, percebi o aumento da ansiedade dos caminhantes catadores, entretanto
ainda teriam de cumprir um último ritual.
Ao chegarmos, devido à hora, ainda não passávamos das nove horas do sábado,
o depósito ainda tinha pequena movimentação. Paulo tratou logo de postar a carroça no
centro do terreno, onde dispunha de bastante espaço, suficiente para descarregar sua
carroça e separar mais uma vez todo o material. A pesagem é feita tomando em
separado cada tipo de material, aos quais correspondem valores diferentes que, ao final
da pesagem, são somados e pagos aos catadores.
Foto 24
: Mãe e filho começam a descarregar a carroça
para iniciar a separação do material. Fonte: foto do
autor, 2009.
Foto 25
: Paulo se encarrega da separação e organização
final do material que é colocado em grandes sacos. Fonte:
foto do autor, 2009.
O trabalho de separação dos resíduos, já feito sob o sol escaldante da manhã,
requer um olhar minucioso para pôr cada coisa em seu lugar. Os vários tipos de resíduos
são acondicionados em grandes sacos que são conduzidos um a um para a balança. Na
79
segunda imagem, é possível ver certa concentração de pessoas junto à janela de um
compartimento. Ali fica a balança. No interior do recinto, um funcionário anota o peso
total do material, faz a conversão e efetua o pagamento aos catadores. Quando chegada
a hora de Paulo e D. Maria pesarem o material e receberem o pagamento, o valor que
conseguiram apurar após uma jornada de trabalho de cerca de vinte horas foi
exatamente R$ 33,75. Fazendo um cálculo rápido temos uma remuneração por hora
trabalhada de aproximadamente R$ 1,69. Se considerarmos esse valor a média do que
conseguem a cada jornada e considerando que se lançam às ruas a cada dois dias -
afinal, por uma questão de pura resistência física, facilmente é possível entender por que
não o fazem diariamente -, chegamos ao valor que se aproxima de R$ 410,00 por mês,
ou seja, ainda inferior ao salário nimo praticado no país. Claro que essa projeção
meramente formal desconsidera os vários fatores que podem afastar os catadores das
ruas, como problemas de saúde, problemas domésticos, acidentes, problemas com a
carroça etc.
Aos catadores resta agora retornar às ruas ou a suas casas. Chega nesse momento
ao fim a jornada diária que atravessou dia, noite e madrugada. Agora Paulo e D. Maria
tinham uma longa caminhada, mas desta vez até sua casa. Discutiam se valeria à pena ir
de condução coletiva, chegaram à conclusão que não. Despedimo-nos caminhando.
Mas, ainda voltaríamos a nos encontrar outras vezes, muitas vezes.
80
2.3. À caminho de Casa
“Habitualmente, as ruas não são planas nem calçadas, são sujas,
tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgotos ou canais de
escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos. A ventilação na
área é precária, dada a estrutura irregular do bairro e, como nesses
espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade
do ar que se respira onde, ademais, quando faz bom tempo, as ruas
servem aos varai que, estendidos de uma casa a outra, são usados para
secar roupa” (ENGELS, Situação da Classe Trabalhadora na
Inglaterra, 2008).
O caminho para casa ainda seria longo. Seriam necessários percorrer não
menos que quinze quilômetros até se começar a sentir a proximidade de casa. O
cansaço em decorrência de uma extenuante jornada de trabalho e da noite mal dormida
se fazia perceber no semblante dos caminhantes. Visivelmente abatidos, mãe e filho
seguem seus passos num trajeto que nos informa um adentrar em outros espaços da
cidade, não mais marcados pela presença onipotente de enormes prédios, intensa
presença de estabelecimentos comerciais e tráfego de veículos, mas uma área cujas
principais construções não ultrapassam, em muitas vezes, o segundo pavimento, as
habitações predominantes se tratam de pequenas casas com quase inexistente distância
entre elas. Visivelmente se podia perceber a significativa mudança na qualidade das
condições de habitação que predominava naquela região.
O bairro é o Barroso, uma rua de precário calçamento nos leva às imediações
do antigo aterro do Jangurussu. Na encosta do morro, frente a um lago que, devido ao
despejo do lixo e esgoto das casas e barracos que se enguem em seu entorno – fato que
denuncia a inexistência de rede de esgoto e tratamento bem como qualquer tipo de
saneamento - exala um forte odor malcheiroso, algo que parece já não incomodar as
pessoas que vivem no local, encontra-se a residência de D. Maria. A casa fora
comprada, segundo ela própria, oito anos pelo valor de R$ 1.000, negociação que
possui como único registro um recibo deixado pelo antigo dono e morador.
A casa não possui acesso fácil, vez que para chegar a sua porta deve-se seguir
por um caminho estreito, de terra batida, que margeia a lagoa e o muro de casebres
construídos próximos às águas, sendo necessário ainda vencer o acúmulo de
81
excrementos humanos liberados por canos que saem de residências vizinhas que não
possuem fossas, porém que não alcançam o lago e acabam por despejar seu conteúdo
mal-cheiroso no chão de terra, impregnando-a de seu odor fétido. Isso, porém,
representa apenas um dos vários obstáculos que esses catadores enfrentam, sobretudo
quando, por variadas razões, são obrigados a voltar com as carroças (às vezes ainda
cheias de material coletado nas ruas) para suas residências. O estreito portão de ferro
não permite que a carroça seja guardada no interior da casa, obrigando-os a
deixarem-na à frente de seu portão, o que não reduz o temor de ter o material recolhido
furtado, eventualmente, por algum outro catador que esteja passando pelo local, vez
que essa é a ocupaçào laboral de muitos por aquelas bandas, e essas ocorrências não
são estranhas ou incomuns.
Adentrando a casa, após superar um exagerado degrau de cimento
23
, logo se é
recebido por dois cães, de magras carnes, cujo cheiro impregna todo o primeiro
compartimento da casa, um estreito corredor, que além de abrigar alguns objetos como
armário, pequena mesa improvisada recostada sobre a parede, trouxas de roupas,
algumas lascas de madeira, butijão de gás, vasilhames contendo água e comida para os
bichos etc. serve de abrigo para os animais, que despertaram a sensibilidade de D.
Maria que não resistiu ao vê-los passando fome na rua, situação que a forçou a
“adotá-los”, levando-os para dentro de sua própria casa.
O chão não possui revestimento, sendo este de terra batida que conserva uma
estranha e incômoda umidade, aguçando os odores que disseminam-se pelo local com
facilidade, seja pela falta de janelas que favoreçam o arejamento do ambiente, seja
pela baixa altura do teto não forrado, que deixa perceber as telhas de frágeis
aparências. Esse pequeno compartimento, que possui menos de um metro de largura e
não mais que dois de comprimento, acesso ao segundo cômodo da casa, separados
por uma porta quebrada que, desprendida da parede, é colocada na posição horizontal,
alcançando a altura dos joelhos, permitindo que se veja o restante da casa. É nesse
espaço onde dorme Paulo. Diz que gosta dessa parte porque é mais ventilada, na
medida em que é mais próxima do portão de entrada da casa. Embaixo dele, dormem os
cães, segundo ele mesmo disse em tom jocoso, seus guarda-costas.
23
Posteriormente descobri que a razão da desproporcionalidade do degrau de cimento logo na entrada da
casa se tratava de estratégia para evitar, em tempos de chuva e subida do nível de água da lagoa, a invasão
da casa pelas águas.
82
Da mesma forma que o primeiro cômodo, o chão deste também não possui
revestimento, sendo extremamente irregular, possuindo como ponto de iluminaçào
apenas uma única lâmpada que um tom amarelado ao recinto. Esse segundo
compartimento é o quarto” de D. Maria, que ao mesmo tempo funciona como sala da
casa, local onde é possível ver algumas cadeiras de madeira retiradas do lixo por D.
Maria que, ao vê-las, não hesitou, trouxe-as para casa e as restaurou. No canto da
parede, próximo a uma estrutura de madeira que parece funcionar como um armário
improvisado está a rede onde dorme, enrolada sobre si e presa ao armador também
improvisado, pois é amarrada numa lasca de madeira presa à parede.
Atravessando o “quarto-sala”, chega-se a um último compartimento que se
divide entre cozinha e banheiro. uma pequena mesa disposta ao centro, a qual
disputa espaço com uma infinidade de materiais cuja utilidade é difícil de se perceber
num primeiro momento, em geral encontrados durante a atividade da catação e
recuperados, e um banheiro, cuja privacidade do usuário é mantida apenas pela
existência de uma espécie de cortina plástica, translúcida, que arrasta-se por uma
haste de metal que a sustenta. Disse-me animada a anfitriã que, recentemente,
conseguira construir a fossa de sua casa, afirmando que antes disso todos os
excrementos eram jogados na lagoa próxima, prática ainda comum para a maioria dos
que ali vivem.
Diversos são os elementos que compõem a totalidade de forças sociais,
econômicas, políticas e culturais que, quando em processo de interação e disputa,
produzem formas diversificadas de relações e interações sociais no espaço urbano.
Assim, a segregação de áreas marginais, a dotação diferencial e a qualidade dos
serviços construídos atuam distribuindo social e espacialmente a deterioração
ambiental de forma desigual. Analisando o que ocorre no caso das metrópoles
brasileiras e, mais especificamente, pensando a situação de moradia dos catadores de
resíduos sólidos em nossa cidade, o primeiro e, talvez, mais importante mecanismo
dessa distribuição desigual consiste na exclusão e na marginalização. Excluídos do
mercado formal de trabalho e impossibilitados de possuir moradia digna, esses
trabalhadores do lixo são “expulsos” para áreas de menor valorização, em geral, com
limitações sicas para a construção de habitações adequadas, fraca dotação de
serviços e carência de equipamentos públicos.
83
É nesse sentido ainda que a apropriação privada dos gastos públicos com
serviços urbanos constitui outro mecanismo de exclusão e marginalização. Estes se
destinam, em sua maioria, aos setores de alta renda, através de procedimentos
diversos, tais como a justificação de recuperação comercial dos investimentos, ou
mesmo em razão da maior condição material da classe média e alta em controlar os
fundos públicos
24
, determinando onde e como os recursos públicos serão alocados.
Resta salientar que o esgotamento das capacidades assimilativas do meio pode levar a
alguns fatores de deterioração ambiental que atingiriam o conjunto da população
urbana (Gutman, 1982).
Importante dizer que ao tempo em que foi comprada, a casa possuía apenas um
cômodo, e é com orgulho que D. Maria conta que foi com muito trabalho que conseguiu
construir os outros dois espaços. Disso tratara Francisco de Oliveira quando
destacou em seu escrito intitulado “O Ornitorrinco”, que essa massa de trabalhadores
que se ocupam de atividades informais e vivem as agruras da exclusão não se tratam
apenas de lúmpen proletariado, mas que ao assumirem a construção de suas próprias
residências, principalmente em caráter de mutirão, acabam por operar um
rebaixamento do custo monetário da reprodução de sua própria força de trabalho, na
medida em que “desobrigam”o poder público e o empresariado dessa incumbência, ou
seja, garantir moradia digna para os trabalhadores. É nesse sentido que se pode ver a
dupla dimensão da precariedade de vida dos catadores: por um lado, desenvolvem uma
atividade de trabalho sem as mínimas garantias sociais capazes de assegurar dignidade
e, por outro, encontram-se limitados a habitar determinadas áreas da cidade, em geral,
desprovidas da infra-estrutura necessária para lhes proporcionar segurança, saúde,
lazer, ou seja, que lhes possibilitem gozar dos direitos básicos tão caros à ideologia
liberal.
24
O sociólogo Francisco de Oliveira (1998) faz profunda análise sobre a natureza e funcionalidade dos
fundos públicos no processo de acumulação capitalista. Para ele os fundos públicos representam
pressuposto fundamental da reprodução de cada capital particular, da força de trabalho e das condições de
vida, sendo responsável direto pela sinalização das possibilidades de reprodução, variável indispensável
na formação da taxa de lucro decorrente da reprodução ampliada do capital, o que o torna componente
estrutural insubstituível.
84
3. RECICLAGEM E PRODUÇÃO DESTRUTIVA a expansão do capital na era
do descartável
3.1. O fenômeno da reciclagem frente ao triunfo da produção generalizada do
desperdício
As atividades organizadas do trabalho para a recuperação dos mais diferentes
tipos de resíduos voltada para o reaproveitamento dos diversos materiais dos quais são
compostos, através de complexas transformações físico-químicas que visam conferir a
determinados materiais qualidades outrora perdidas na ão de utilização ou de
consumo, processo conhecido como reciclagem, tem, seguramente, ganho notoriedade
nos círculos de debates acadêmicos e midiáticos nas últimas décadas no Brasil e no
mundo, na esteira da crescente preocupação com a preservação do meio ambiente e com
o esgotamento dos recursos não renováveis.
O que vemos é um movimento que envolve certos setores organizados da
sociedade civil e do poder público que engendram ações no sentido de coibir ou
remediar, através de ações muitas vezes paliativas, atividades consideradas predatórias
ao meio ambiente. Para tanto, valem-se de legislações e outros instrumentos legais
fiscalizadores de atividades infratoras, ou ainda por meio de incentivos fiscais, subsídios
e medidas educativas
25
, quando se trata de empreendimentos que preservem ou
busquem melhorar as condições ambientais.
Tem-se um complexo quadro que nos reporta a dimensões de interesses
socioambientais, políticos e econômicos que parecem apontar para uma tendência que
confere lugar de destaque a discussões que versem sobre a produção, a disposição e o
destino dos resíduos sólidos industriais e domésticos. Tal abordagem temática inscreve-
25
Sobre os programas de educação ambiental implementados nas escolas, o papel ideológico que
cumprem bem como seus limites quando confrontados na realidade social assevera Layargue: “muitos
programas de educação ambiental na escola são implementados de modo reducionista, que, em função
da reciclagem, desenvolvem apenas a Coleta Seletiva de Lixo, em detrimento de uma reflexão crítica e
abrangente a respeito dos valores culturais da sociedade de consumo, do consumismo, do industrialismo,
do modo de produção capitalista e dos aspectos políticos e econômicos da questão do lixo”. E mais: “Essa
prática educativa, que se insere na lógica da metodologia da resolução de problemas ambientais locais de
modo pragmático, tornando a reciclagem do lixo uma atividade-fim, ao invés de considerá-la um tema-
gerador para o questionamento das causas e conseqüências da questão do lixo, remete-nos de forma
alienada à discussão dos aspectos técnicos da reciclagem, evadindo-se da dimensão política”.
LAYARGUES, Philippe. O cinismo da reciclagem: o significado ideológico da reciclagem da lata de
alumínio e suas implicações para a educação ambiental. LOUREIRO, F.; LAYARGUES, P.; CASTRO,
R. (Orgs.) Educação ambiental: repensando o espaço da cidadania. São Paulo: Cortez, 2002, 179-220.
85
se num momento em que as questões relacionadas ao meio ambiente ganham destaque
em detrimento da negligência com que foram tratados esses temas até duas décadas
atrás, uma vez que as discussões sobre degradação ambiental versavam sobre outros
temas como a destruição das florestas tropicais e as grandes alterações climáticas que,
embora revestidos de enorme importância, manifestam a estreiteza com que eram
tratados os temas relacionados à dimensão ambiental.
Com efeito, percebe-se uma verdadeira guinada nos temas e debates acerca dos
impactos causados pela ação humana sobre o meio-ambiente. Até a década de 1970, o
que se pode observar foi a afirmação do poder político e econômico das grandes nações
industrializadas até mesmo na configuração da pauta a ser debatida, em âmbito
internacional, sobre as questões pertinentes à problemática ambiental, bem como os
termos em que essas questões eram encaminhadas. Naquele momento, o tema que
dominava os círculos de discussões e que “explicava” as mazelas vivenciadas pelas
sociedades, em virtude do agravamento da questão ambiental, era a falta de controle
social sobre o crescimento demográfico. As nações periféricas, consideradas, em geral,
subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, eram apontadas como as responsáveis pela
explosão demográfica mundial por se mostrarem incapazes de gerenciarem o
crescimento de suas populações, ocasionando uma forte pressão sobre a produção de
alimentos e sobre os recursos naturais do planeta. a partir dos anos de 1970, pode-se
verificar certa inflexão na forma de encaminhamento da questão.
Mormente após a Conferência de Estocolmo
26
, o discurso hegemônico sofre uma
significativa mudança ao apontar não mais a questão demográfica como responsável
pelos males ambientais, sendo esta superável “com a adoção de normas e medidas
apropriadas” uma vez que “(...) com o progresso social, o avanço da produção, da
ciência e da tecnologia, a capacidade do homem para melhorar o meio aumenta a cada
dia” (DECLARAÇÃO SOBRE O AMBIENTE HUMANO, proclamação N. 05). O
documento final da conferência identifica as nações marcadamente industrializadas
como o epicentro irradiador da crise ambiental, que ganhava novos e mais complexos
contornos, na medida em que seu modo de produção requeria uma cada vez maior
quantidade de recursos e energia do planeta, gerando uma enorme poluição e
26
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Humano, reunida em Estocolmo de 05 a 15 de junho de
1972 objetivou o estabelecimento de critério e princípios comuns que orientassem os povos do mundo
inteiro para a preservação e melhoramento do ambiente humano.
86
aprofundando os impactos ambientais. Entretanto, ao se referir às nações em
desenvolvimento assevera que nestas “a maioria dos problemas ambientais é motivada
pelo subdesenvolvimento. Milhões de pessoas continuam vivendo em um nível muito
abaixo do mínimo necessário para uma existência humana decorosa, por se acharem
privados de alimentação, vestuário, moradia, educação, saúde e higiene adequados”
(proclamação N. 04, idem). Com base nessas constatações, afirmam que os países em
desenvolvimento devem “dirigir seus esforços em direção ao próprio desenvolvimento”
(idem) e, com o mesmo fim, os países industrializados deveriam “esforçar-se para
reduzir a distância que os separam daqueles”
27
(idem). Assistiu-se, portanto, nesse
período, ao aprofundamento de “um processo gradual de internacionalização da pauta
ambiental nos meios de produção capitalistas, seja por pressão governamental, através
do estabelecimento de novas normas e exigências ambientais, seja por pressão dos
movimentos ambientalistas, através de denúncias, manifestações e boicotes, seja ainda
através das próprias iniciativas empresariais que se apropriaram do discurso ambiental”
(Portilho, 2005, p. 26).
Foi, entretanto, a partir dos anos 1990, sobretudo após a Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em 1992
28
, e da
Conferência Habitat II, ocorrida em Istambul, em 1996, que o meio ambiente urbano e
os dilemas e desafios representados pelos grandes assentamentos humanos ganharam
relevo nos cenários político e científico mundial. Verifica-se, naquele período, a
intensificação da percepção do impacto ambiental dos altos padrões de consumo das
27
Importante acrescentar, que a declaração de Estocolmo impunha um enorme peso à dimensão do
desenvolvimento econômico, prescrevendo que “o desenvolvimento econômico ou social é indispensável
para assegurar ao homem um ambiente de vida e trabalho favorável e criar na Terra condições adequadas
para melhorar a qualidade de vida” (princípio 08). No entanto, nesse processo de desenvolvimento, o
Estado cumpriria papel fundamental ao garantir a implantação de um “planejamento racional” como
“instrumento indispensável para conciliar as diferenças que possam surgir entre as exigências do
desenvolvimento e a necessidade de proteger e melhorar o meio” (Princípio 14). Para tanto, o
planejamento racional deveria ser aplicado “tanto na ocupação do solo para fins agrícolas, como na
urbanização, com vistas a evitar efeitos prejudiciais sobre o meio e a obter o máximo de benefício social,
econômico e ambiental para todos” (Princípio 15). A respeito da tentativa de se garantir um efetivo
controle dos processos de desenvolvimento socioeconômicos, recordo as palavras proferidas por Paul
Baran, junto com Paul Sweezy, direcionadas a Celso Furtado, por ocasião do conhecimento do trabalho
desempenhado pela SUDENE no Nordeste: “Não é o planejamento que planeja o capitalismo, mas é o
capitalismo que planeja o planejamento” (OLIVEIRA, 2008, p. 69).
28
Em setembro de 2002, ocorreu, em Johanesburgo (África do Sul), a Conferência RIO+10 sobre o Meio
Ambiente Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, onde representantes governamentais
e de organizações não-governamentais (ONGs) de todo o mundo fizeram um “balanço” avaliativo da
Agenda 21 documento firmado pelos participantes da ECO-92, no Rio de Janeiro, que tem como
escopo oficial incentivar a adoção de medidas globais de preservação e recuperação do meio ambiente e
de desenvolvimento sustentável, incluindo-se a gestão urbana e problemas envolvendo a destinação
final do lixo.
87
sociedades e classes afluentes, o que permitiu a emergência de um novo discurso no
interior do pensamento ambientalista global. Opera-se um processo de redefinição da
questão ambiental, em que seu eixo desloca-se das discussões que se centravam nos
desequilíbrios provocados pelo acréscimo da produção e industrialização e passa a ser
identificado com os altos padrões de consumo perdulário e estilos de vida, fenômeno
que coincide com os processos de financeirização da riqueza, como forma dominante
de produção e realização do valor. Por conta disso, cria-se uma crescente instabilidade
da moeda, com consequências imprevisíveis, reduzindo substancialmente a margem de
autonomia das políticas públicas, o predomínio crescente da produção de
descartáveis, o que significa não um monumental problema sobre o que fazer com o
lixo, mas, acima de tudo significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de
vida, relacionamentos estáveis, apego às coisas, pessoas e modos adquiridos de agir e
ser.
As preocupações referentes ao meio-ambiente manifestadas em encontros
internacionais e nacionais, que mobilizaram diversas instituições e entidades ligadas a
governos ou não, têm encontrado ressonância de algumas de suas reivindicações na
esfera jurídica, sobretudo na última cada. Na medida em que a reciclagem e outros
processos relacionados ao tratamento e disposição de resíduos sólidos vêm adquirindo
maior relevância nos debates que buscam encontrar saídas para a questão ambiental, é
possível verificar um esforço legislativo no sentido de definir termos e elaborar
conceitos ligados às atividades que se estruturam em torno da atividade de
gerenciamento, tratamento e destinação de resíduos sólidos. Esse esforço de
normatização busca, por outro lado, assegurar a atribuição de responsabilidades à
sociedade, instituições públicas e privadas bem como reunir toda uma legislação sobre o
tema que se encontrava dispersa pelo ordenamento jurídico brasileiro para propiciar
uma maior aplicabilidade das normas, inclusive das penalidades previstas em casos de
desobediências ao prescrito em lei.
Pode-se considerar que, no Ceará, a primeira manifestação clara, em âmbito do
poder público, no sentido de reconhecer a relevância social e vinculação das atividades
ligadas à coleta seletiva de lixo com ações orientadas de modo a considerar o equilíbrio
ambiental como princípio fundamental orientador da conduta dos indivíduos, foi a lei N.
12.225, de 06 de dezembro de 1993 (DOE 10.12.93), assinada pelo então governador
do Estado Ciro Ferreira Gomes. Em seu artigo 1º, reconhece explicitamente como
88
“atividades ecológicas de relevância social e interesse público” a coleta seletiva e a
reciclagem de lixo. Esse mesmo dispositivo normativo, em seu parágrafo único, assim
dispõe sobre os conceitos de coleta seletiva e reciclagem de lixo: “são entendidas como
atividades que compreendem a classificação e o aproveitamento dos resíduos urbanos,
desenvolvidas de forma organizada, pela sociedade com apoio do Estado, com o
objetivo de: reduzir os custos e os danos ambientais decorrentes do armazenamento de
lixo, poupar o uso de recursos naturais utilizados com matérias-primas e propiciar a
geração de renda para a população desempregada”. Importante notar que, pela primeira
vez, surge uma clara manifestação da autoridade estadual máxima com o escopo de dar
cabo da problemática do lixo urbano com especial ênfase à coleta seletiva e reciclagem.
Ainda segundo a referida lei, a responsabilidade pela implementação das ações relativas
ao destino do lixo deve ocorrer por meio de ações integradas e cooperadas entre o
governo estadual e municipal, destacando ainda diretrizes como a necessidade de
promover a “acessibilidade dos serviços de coleta de lixo a um número maior de
habitantes” (inc. I), reconhecimento da “obrigatoriedade de controle dos aterros
sanitários pelo setor público” (inc. IV), bem como definindo como prioridades os
“incentivos às empresas privadas para adotarem a reciclagem” (inc. VI), além da
tentativa de viabilizar a “utilização de campanhas educativas no sentido de sensibilizar a
sociedade sobre a importância, do ponto de vista sócio-econômico-ambiental, da coleta
seletiva e da reciclagem de lixo” (inc. VIII).
No entanto, embora se manifeste como um avanço em termos legislativos, essa
lei ainda deixou muito a desejar em termos de especificidades fundamentais para uma
melhor caracterização e regulamentação das atividades de trabalho que surgiam em
torno da reciclagem e coleta seletiva, constituindo, portanto, não mais do que uma
espécie de “carta de interesses e volições” do poder público no que tange a esses
assuntos. Para se ter uma ideia, somente após quase uma década é que surgiu, prescrito
em lei estadual, o conceito de resíduos sólidos. E é na lei N. 13.103, de 24 de janeiro de
2001, na qual encontramos a instituição da Política Estadual de Resíduos Sólidos, com a
definição de atribuições e diretrizes, além de normas de prevenção e controle da
poluição. Em seu artigo 2º, é possível conferir a definição do que se considera resíduos
sólidos: “qualquer forma de matéria ou substância, no estado sólido e semi-sólido, que
resulte de atividade industrial, domiciliar, hospitalar, comercial, agrícola, de serviços, de
varrição e de outras atividades humanas, capazes de causar poluição ou contaminação
89
ambiental” (inc. I). A peculiaridade dessa definição é que vincula diretamente o
conceito de resíduos a tudo aquilo que, de alguma maneira, pode causar prejuízos ao
meio ambiente e, consequentemente, às relações estabelecidas pelos homens em
sociedade. A legislação busca articular outros dois conceitos: padrão de Produção e
Consumos Sustentáveis, que segundo redação do inciso V do artigo supracitado os
define como sendo: “o fornecimento e o consumo de produtos e serviços que otimizem
o uso de recursos naturais eliminando ou reduzindo o uso de substâncias nocivas, a
emissão de poluentes e o volume de resíduos durante o ciclo de vida do serviço ou do
produto, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida e resguardar as gerações
presentes e futuras”.
Além de definições conceituais, princípios, objetivos e diretrizes - elementos que
orbitam num campo mais programático do universo jurídico -, é possível encontrar,
nessa legislação, disposições normativas que buscam regulamentar a exploração
econômica do setor, as competências do poder público e demais agentes que lidam com
essas atividades econômicas, as responsabilidades, bem como prevê penalidades em
caso de descumprimento do disposto em lei. A lei N. 26.604, de 16 de maio de 2002,
traz novas disposições incluindo alguns itens negligenciados pela norma anterior,
dispondo, inclusive, sobre a questão dos incentivos fiscais proporcionados pelo Estado
às indústrias verdes bem como unidades receptoras de resíduos que atenderem às
determinações legais. Inclui em seu texto, pela primeira vez, a palavra lixo
29
, com o
intuito de diferenciar esses materiais dos resíduos especiais, quando antes se
consideravam todos resíduos sólidos.
Sem embargo, um significativo avanço no campo jurídico
30
foi a inclusão das
atividades relacionadas aos resíduos sólidos na Lei federal N. 11.445, de 05 de janeiro
29
A lei N. 26.604, de 16 de maio de 2002 prevê em seu artigo 2º Para os efeitos dessa regulamentação,
considera-se: IV lixo: os resíduos sólidos produzidos, individual ou coletivamente, pela ação humana,
animal, ou por fenômenos naturais, nocivos à saúde, ao meio ambiente e ao bem estar da população
urbana, não enquadrados como resíduos especiais.
30
Considera-se avanço, pois, a gestão de resíduos sólidos, em termos legais, sempre esteve dispersa em
vários diplomas federais. Na forma de lei, somente a Lei 9.605 de 1998, Lei de Crimes Ambientais
LCA fazia menção à área de resíduos sólidos. No entanto, o dispositivo, ainda assim, encontra-se mais
associado ao resíduo industrial. Vejamos o que dispõe esta legislação: Art. 54. Causar poluição de
qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que
provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena reclusão, de um ano
a quatro anos, e multa. & 1 Se o crime é culposo; Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa. & 2
Se o crime: V ocorrer por lançamentos de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou
substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos: Pena
90
de 2007, que dispõe e estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico. Para
tanto, define em seu artigo 3, inciso I, que saneamento básico corresponde ao “conjunto
de serviços, infra-estruturas e instalações operacionais de : c) limpeza urbana e manejo
de resíduos sólidos: conjunto de atividades, infra-estruturas e instalações operacionais
de coleta, transbordo, tratamento e destino final do lixo doméstico e do lixo originário
da varrição e limpeza de logradouros e vias blicas”. Temos, pois, o amparo de lei
nacional que situa as atividades ligadas aos resíduos sólidos como de interesse público,
na medida em que se enquadram na esfera das políticas de saneamento básico. Esse
breve percurso por entre as disposições normativas que se relacionam à temática dos
resíduos sólidos e às atividades perpetradas pelo poder público, ou não, funciona, nessa
exposição, como elemento capaz de captar a dimensão do que vem se tornando as
discussões relativas a esses assuntos, peremptórios na medida em que se instalam de vez
nas discussões formais acerca de sua problemática.
Entretanto, deve-se considerar que existe um enorme abismo a ser suplantado
quando nos referimos às leis em sua concepção formal e sua aplicabilidade no
terreno social assim como sua recepção e eficácia quando considerados seus efeitos. A
vida cotidiana, a contraditoriedade e complexidade dos fenômenos sociais, os conflitos
entre os diversos interesses, e vários outros elementos conferem singularidades aos
extratos e classes sociais que, muitas vezes, não são contemplados pelos efeitos reais da
aplicação das leis. Como exemplo, basta observarmos o que dispõe a lei N. 26.604, de
16 de maio de 2002, em seu art. 12: Ficam proibidas as seguintes formas de destinação
e utilização de resíduos sólidos: I lançamento in natura a céu aberto. Aqui podemos
ponderar que em muitas comunidades situadas, em geral, em áreas com péssima infra-
estrutura urbana, onde predominam habitações precárias, possuindo ainda coleta
irregular de lixo ou ausência desta, constitui prática recorrente o lançamento de dejetos,
sem qualquer tipo de tratamento, em córregos, bueiros, terrenos baldios, casas
desabitadas e outros locais inapropriados. Em detrimento dessas práticas, nenhum tipo
de fiscalização ou penalidade é aplicada aos que cometem esses atos. No inciso VIII,
temos que é proibido a utilização para alimentação humana. Ora, logo podemos
entender que é vetado, por exemplo, a qualquer estabelecimento comercial, que lide
com gêneros alimentícios, reutilizar material ou alimentos outrora destinados ao lixo.
reclusão, de um a cinco anos. A LCA em nenhum momento se preocupou em criminalizar, por exemplo,
a destinação final inadequada do resíduo urbano/doméstico.
91
Porém, alimentar-se do lixo é algo não estranho aos catadores que
contemplamos em nossa pesquisa. Em vários momentos, ingerem alimentos
encontrados no trajeto, em lixeiras vasculhadas pelo caminho. Às vezes, levam inclusive
o alimento para casa, para servir-se dele noutro momento. Em alguns casos, no trajeto
em que acompanhei D. Maria e seu filho Paulo, percebi que separavam alguns
alimentos que encontravam no lixo revirado, alegando que se destinaria ao cão
Sebástian, animal que criam em casa. Logo o argumento desmoronou quando Paulo
confessou-me que aquela comida era para que eles próprios se alimentassem, e disse
ainda que escondiam esse fato devido ao constrangimento em assumir que às vezes se
alimentavam do lixo. Fica então uma amarga sensação da inoperância da lei ou de sua
pouca abrangência ou poder de causar efeitos, uma vez que não raro o legislador parece
negligenciar em suas palavras a consideração de elementos concretos da realidade dos
sujeitos que concorrem diretamente para a aplicabilidade, efetividade ou distribuição de
justiça das normas como a condição de classe dos indivíduos ou coletividades, as
relações que estabelecem com o poder público, as condições de higiene, moradia etc.
Levantamento da UNICEF do ano de 2000 (Abreu, 2001, p. 33) indica que
catadores de materiais recicláveis em cerca de 3.800 municípios brasileiros.
Considerando o número total de municípios do Brasil ser da ordem de 5.561, estima-se,
portanto, que essa categoria esteja presente em cerca de 68% das cidades do país. Desse
percentual, os dados revelam ainda que 64% dos catadores se encontram em municípios
com mais de 50 mil habitantes. Ainda segundo o levantamento mencionado, 45 mil
crianças e adolescentes brasileiros vivem da garimpagem do lixo. São filhos de famílias
muito pobres que ajudam os pais a catar embalagens plásticas, papéis, latinhas de
alumínio, a separar vidros e restos de comida. Os meninos e meninas de todas as idades
ganham míseros R$ 1,00 a R$ 6,00 diários, mas que ajudam a aumentar a renda de suas
famílias (idem). Nessa perspectiva, encontramos, nas relações que se estabelecem no
interior da cadeia produtiva da reciclagem, indivíduos
31
que se lançam às ruas
caminhando por horas à procura de resíduos que possam ser comercializados em
31
O trabalho de catador surge como alternativa frente ao estado de desemprego e pela falta de opções de
ingresso no mercado de trabalho formal como atestam 82,8% dos trabalhadores do setor, segundo
pesquisa do IMPARH (Instituto Municipal de Pesquisas, Administração e Recursos Humanos, 2006,
mostrando-nos que a “escolha” da atividade foi o último recurso frente à escassez de possibilidades de
sobrevivência.
92
depósitos ou sucatas. Trabalhadores à deriva, tendo sua força de trabalho transformada
em supérflua, desprotegidos da legislação trabalhista, pois não possuem vínculos
empregatícios formais ou qualquer forma de proteção social, sofrendo total degeneração
e precarização de sua força de trabalho.
Por outro lado, também deparamos com mega investidores que aplicam enorme
capital em fábricas que se utilizam da mercadoria lixo como insumo e matéria-prima
para o que se tornará, em outro momento, nova mercadoria a ser lançada no mercado.
Uma das particularidades desse circuito produtivo reside no fato de relações diversas
entre atores tão díspares estabelecerem-se no espectro do mercado, e tendo como
elemento unificador dos agentes a mercadoria lixo. Entretanto, que processos
socioeconômicos podem ser apontados como fomentadores duma produção cada vez
mais crescente de lixo em nossa sociedade que retroalimenta essa cadeia econômica em
expansão? Outra questão impõe-se como fundamental: estaríamos vivendo em meio a
novas relações econômicas e de consumo que provocam, por sua vez, o surgimento de
novos contornos nas práticas cotidianas e coletivas verificadas na sociedade
contemporânea?
Segundo diversos pensadores contemporâneos
32
, vivemos momento de
afirmação das relações de consumo como elemento estruturador de um novo paradigma
inter-relacional entre os membros da sociedade, que passa a informar novos padrões de
sociabilidade e possui o ambiente urbano como ambiente privilegiado por onde se
espraiam suas representações fenomênicas. Essa problemática constitui ponto nodal nas
reflexões de Sennett (2008). Para ele, a paixão autoconsumptiva
33
(Sennett, 2008, p.
128) constituiria o cerne das relações de consumo, espécie de impulso irrefreável ao
consumo fugaz, ato que encerra a realização do desejo do indivíduo ainda nos primeiros
momentos de fruição do objeto adquirido. O ato de consumir uma quantidade cada vez
maior e mais variada de produtos mesmo admitindo o fato de não aproveitar
utilitariamente o objeto de gozo por completo, porém atraído pelas potencialidades
manifestadas superficialmente (estas divorciadas da realidade material) atribuídas ao
32
Para relacionar algumas obras que se alinham nesta perspectiva teórica: Giddens (1991), Baudrillard
(1995), Canclini (1996), Sousa Santos (1999), Bauman (2004), Rifkin (2001), entre outros.
33
Para Sennett “Na linguagem poética, uma paixão consumptiva pode ser uma paixão que se extingue na
própria intensidade; em termos menos sensacionais, equivale a dizer que, utilizando coisas, nós as
estamos consumindo. Nosso desejo de determinada roupa pode ser ardente, mas alguns dias depois de
comprá-la e usá-la, ela já não nos entusiasma tanto. Nesse caso, a imaginação é mais forte na expectativa,
tornando-se cada vez mais débil com o uso. A economia de hoje reforça essa espécie de paixão
autoconsumptiva, tanto nos shopping centers quanto na política” (Sennett, 2008, p. 128).
93
produto por um intenso trabalho publicitário, estaria por colocar à margem das relações
de consumo o sentimento de possessividade que os indivíduos poderiam manifestar em
relação aos produtos apropriados no mercado, tornando a intemperança e o desperdício
elementos indispensáveis na constituição da paixão autoconsumptiva.
Os produtos encontrados no mercado recebem um tratamento cada vez mais
agressivo do marketing publicitário de modo que se crie uma atmosfera do diferente -
estímulo capaz de alavancar o consumo de produtos cada vez mais homogeneizados -
em mercadorias fundamentalmente iguais em sua natureza e funcionalidade. Esse
processo que diferencia abstratamente (no campo imaginativo dos consumidores)
objetos de mesma plataforma com objetivo de gerar um aumento do consumo, Sennett
chamou de laminação a ouro
34
(idem, 2008, p. 150). Assim, essas relações obedeceriam
a padrões informados pela lógica do mercado sob os auspícios do marketing
publicitário, responsável por uma “produção” de mercadorias cada vez mais
diversificadas em sua aparência, que se destinariam a “realizar” todos os sonhos e
desejos dos cidadãos, agora reduzidos à condição de consumidores, tornando-se eles
próprios mercadorias (Bauman, 2008, p. 20).
A produção crescente para atender um tipo de consumo cada vez mais exigente e
efêmero alimentado pelo desenvolvimento sem precedentes das técnicas publicitárias
e de marketing - em sua satisfação exige, por outro lado, o descarte e rejeite daquelas
mercadorias tornadas obsoletas num ambiente mercadológico de relações cada vez mais
fluidas e superficiais (Bauman, 2005). Nesse sentido, torna-se visível o fenômeno da
produção do lixo e do desperdício. Fenômeno que alimentará com seus rejeitos a
indústria da reciclagem que enxerga nos dejetos descartados pelo consumo,
principalmente de segmentos mais abastados da sociedade, oportunidades de negócio.
Com efeito, tais análises possuem enorme valor no que concerne ao desvelamento
fenomênico dos processos em curso. Desvendar sua natureza mais profunda é o desafio
que se apresenta na ordem do dia. Adentrar as entranhas do processo de
desenvolvimento e aprofundamento da acumulação do capital e suas determinidades
torna-se fundamental para a compreensão do fenômeno. A respeito da apologética
34
O eleitor tornou-se espectador-consumidor que inebriado pela indiferença, vício da política do novo
capitalismo, consome projetos políticos alicerçados em plataformas comuns, laminados a ouro e
diferenciados pela atuação cada vez mais decisiva do marketing político, mergulhando os indivíduos
numa passividade mórbida capaz de dar um rumo contrário ao que o autor considera políticas
progressistas.
94
adesão das personificações do capital e seus ideólogos à crença no inabalável e
venturoso desenvolvimento do capital que desconsidera os potenciais riscos e
negatividades, diz Mészáros:
(...) deve-se ignorar por completo o fato de que, em sua tendência
geral, o modo capitalista de produção seja inimigo da durabilidade e
que, portanto, no decorrer de seu desdobramento histórico, deve minar
de toda maneira possível as práticas produtivas orientadas-para-a-
durabilidade, inclusive solapando deliberadamente a qualidade. Ao
contrário, as manifestações dessa tendência devem ser justificadas em
função da necessidade de competição, da utilização racional dos
recursos de trabalho – ambas tratadas como necessidades (ideais)
inteiramente benéficas – e coisas do tipo. (p. 636).
Nesse mesmo sentido, Antunes acrescenta que “quanto mais ‘qualidade total’ os
produtos devem ter, menor deve ser seu tempo de duração. A necessidade imperiosa de
reduzir o tempo de vida útil dos produtos, visando aumentar a velocidade do circuito
produtivo e desse modo ampliar a velocidade da produção de valores de troca, faz com
que a ‘qualidade total’ seja, na maior parte das vezes, o invólucro, a aparência ou o
aprimoramento do supérfluo, uma vez que os produtos devem durar pouco e ter uma
reposição ágil no mercado.” (Antunes, 1999, p. 50). O fato de a produção capitalista
tender a um decréscimo constante da taxa de utilização das mercadorias
35
no ato do
consumo encontra-se umbilicalmente ligado a um aumento exponencial da geração de
resíduos, mormente nos lugares onde há grande concentração de consumidores.
O fenômeno do consumo na contemporaneidade deve ser compreendido,
portanto, no gradiente da ampliação sem precedentes da produção destrutiva do capital.
Esse processo, quando aliado a outros como a financeirização (valorização fictícia),
forma as vias per excellence encontradas pelo capital para superação das crises de
sobreacumulação vivenciadas desde a década de 1970. Uma constitui a via “concreta”
da produção descartável de valores de uso (e também da produção bélica) e a outra a via
35
No capítulo XV, do livro Para Além do Capital, Istiván Mészáros (2002), realiza uma profunda
discussão sobre a taxa de utilização decrescente das mercadorias no capitalismo, ligando o fenômeno às
próprias transformações e avanços realizados pela própria produtividade (p. 640). Segundo o autor, essa
taxa se revela na proporção variável, sob a qual determinada sociedade utiliza a sua capacidade produtiva
para a produção de bens de consumo rápido em variação à produção de bens de consumo duráveis ou
reutilizáveis, ou seja, ao diminuir a vida útil das mercadorias acelera-se o ciclo reprodutivo do capital.
Não cabe aqui considerações mais aprofundadas sobre a relação entre o descarte cada vez mais volumoso
de mercadorias consumidas, gerando lixo, e a taxa de utilização decrescente das mercadorias. Entretanto,
pretendo retomar este tema no capítulo IV.
95
“abstrata” da valorização meramente contábil, fictícia, da riqueza patrimonial (das
grandes empresas, fundos e fortunas). Cabe ressaltar que, junto ao crescimento da
produção e consumo relacionado à financeirização e ampliação das margens de crédito
das economias, emerge, também, a preocupação com o que fazer com os detritos
produzidos por sociedades que conferem papel cada vez mais fundamental às relações
de consumo. É nesse contexto que emergem as mais variadas atividades que se erguem
a partir dos dejetos, estabelecendo encontros e desencontros entre diversos sujeitos
mediados por uma mercadoria comum: o lixo. E os catadores são considerados os
agentes que mais próximo dele estão sendo, portanto, de fundamental importância
conferir cuidadosa atenção a essa categoria de trabalhadores e a atividade que
desenvolvem. Antes, porém, cabe um maior aprofundamento sobre os mecanismos de
produção do descartável, sua perdularidade e destrutividade possíveis de serem
observados na sociedade contemporânea.
96
3.2. O imperativo da diminuição da vida útil das mercadorias
Segundo Miziara (2001), a primeira atividade industrial ligada à reciclagem no
Brasil foi a da indústria de trapos, que teve suas atividades iniciadas em 1896, com
forte crescimento a partir de 1918, tendo como principal motivo para esse aumento a
Primeira Guerra Mundial, que gerou uma oferta grande do material que poderia ser
recuperado. A recuperação se baseava na desfiação e posterior reaproveitamento dos
fios. Nasce também naquele momento um circuito econômico que passa a envolver o
trabalhador conhecido como “trapeiro”, que fazia a recolha e o enfardamento desse
material para os depósitos de trapo e para as indústrias da cidade. Atualmente, o
reaproveitamento, através da reciclagem, dá-se com vários tipos de materiais, como o
papel, os plásticos, os metais etc.
A atividade da reciclagem adentra o novo século como uma das “grandes
novidades” do setor produtivo industrial, promovendo significativa mobilização de
vários setores da sociedade, angariando apoios e simpatizantes na medida em que, em
sua defesa, convergem argumentos que apontam para uma maior redução dos gastos
com energia e impactos negativos causados ao meio ambiente em razão da produção e
descarte do lixo, bem como redução dos males causados em função da destinação
inadequada, do mal acondicionamento e tratamento dos resíduos, uma vez que muitos
desses materiais podem ser reaproveitados ou transformados mediante processos
industriais.
O crescimento da atividade fabril voltada para o reaproveitamento dos mais
diversos resíduos sólidos ocorre de forma concomitante à expansão de toda uma
estrutura que suporte e viabiliza esse circuito econômico, envolvendo diversos
agentes econômicos que integram essa cadeia produtiva, sejam os comerciantes de
pequena ou grande quantidade de resíduos sólidos recicláveis, também conhecidos
como deposeiros, sucateiros ou atravessadores, sejam os trabalhadores catadores,
envolvidos de diversas formas nessa atividade, atuando nas ruas, nos depósitos e
sucatas, nas centrais de triagem
36
, organizados de forma independente, ou em
cooperativas, associações etc.
36
Esses centros constituem empreendimentos de investimentos vultosos. Em geral possuem grandes
instalações e atuam comprando enormes quantidades de material reciclável dos coletores e deposeiros
para realizar a triagem, a prensagem e o enfardamento desses materiais. Possuem ainda moderno
maquinário (como máquinas de prensa) bem como dispõem de mão-de-obra empregada no trabalho
realizado nos armazéns. Boa parte dos materiais tem como destino o abastecimento das indústrias locais e
as situadas fora do estado do Ceará como as indústrias de São Paulo (onde temos como caso emblemático
97
Toda essa estrutura social e econômica espraia-se pelos centros urbanos
brasileiros, tornando-se atividade econômica, como aludimos em momento anterior, que
passa a fornecer ocupação laboral a um expressivo contingente de trabalhadores em
condições precárias de trabalho, envolvendo uma complexa estrutura de compra-venda,
transporte e armazenamento e pré-processamento de mercadorias (papel desempenhado
pelas indústrias do setor), que conforma uma complexa trama de relações, composta por
trabalhadores que são, ao fim e ao cabo, os maiores responsáveis pelo crescimento dos
índices de recuperação dos resíduos e da reciclagem dos materiais no Brasil, e, por outro
lado, também pelo aumento substancial dos lucros obtidos anualmente por esse setor.
Para um maior entendimento de toda essa complexa organização que envolve o
circuito econômico da reciclagem, que prescinde da produção crescente do descartável
na sociedade contemporânea, torna-se necessário apresentar uma questão primordial, ou
seja, a taxa de utilização decrescente das mercadorias e sua funcionalidade no sistema
do capital na medida em que está fundada na diminuição da vida útil dessas
mercadorias, sejam elas bens duráveis ou não duráveis. Assim, acelera-se o consumo
das não duráveis, procurando torná-las cada vez mais descartáveis.
Pensados em perspectiva histórica, os avanços na produtividade alteram o
padrão de consumo e os instrumentos que produzem os objetos de consumo, do mesmo
modo modificam também a própria natureza da atividade produtiva, “determinando ao
mesmo tempo, a proporção segundo a qual o tempo disponível total de uma sociedade
será distribuído entre a atividade necessária para o seu intercâmbio metabólico básico
com a natureza
37
e todas as outras funções e atividades nas quais se engajam os
indivíduos da sociedade em questão
38
” (Mészáros, 2002, p. 639).
a venda de latas de alumínio). Alguns desses armazéns possuem caminhões próprios que utilizam para
realizar o transporte dos materiais comercializados até as indústrias compradoras.
37
Para Mészáros, o intercâmbio do homem com a natureza é caracterizado pela incidência das mediações
de primeira ordem, cuja finalidade é a preservação das funções vitais da reprodução individual e societal,
que apresenta as seguintes características: “1) os seres humanos são parte da natureza, devendo realizar
suas necessidades elementares por meio do constante intercâmbio com a própria natureza; 2) eles são
constituídos de tal modo que não podem sobreviver como indivíduos da espécie à qual pertencem
(...)baseados em um intercâmbio sem mediações com a natureza como fazem os animais), regulados por
um comportamento instintivo determinado diretamente pela natureza, por mais complexo que esse
comportamento instintivo possa ser”(Mészáros apud Antunes, 1999, p. 20).
38
Essas outras funções desempenhadas pelos sujeitos humanos se inscrevem com o advento das
mediações de segunda ordem que correspondem a um período específico da história humana, que acabou
por muito influenciar a funcionalidade das mediações de primeira ordem na medida em que elementos
fetichizadores e alienantes de controle social foram introduzidos nas relações entre os homens. “A família
nuclear, os meios alienados de produção e suas personificações, o dinheiro (com suas formas enganadoras
e cada vez mais dominantes ao longo do desenvolvimento histórico, os objetivos fetichistas da produção,
o trabalho (estruturalmente separado da possibilidade de controle), as variedades de formação do Estado
98
A taxa de utilização decrescente está implícita nos constantes processos de
avanço da produtividade, pois à necessidade de produção de bens de consumo rápido,
como os alimentos, se contrapõem os bens de maior durabilidade, tendencialmente
predominantes e imprescindíveis à sustentação de um possível processo emancipatório
(ibid., p. 639-640). Nesse exato sentido, torna-se questionável postulações que apontem
como solução para a problemática trazida pelo processo intenso de produção de bens de
consumo rápido, no capitalismo avançado, o aumento da velocidade e da artificialidade
no consumo, inclusive, pela descartabilidade prematura dos bens duráveis. Assim seria
equivocado afirmar que:
A sociedade dos descartáveis encontre equilíbrio entre produção e
consumo, necessário para a sua contínua reprodução, somente se ela
puder ‘consumir’ artificialmente e em grande velocidade (isto é,
descartar prematuramente) imensas quantidades de mercadorias que
anteriormente pertenciam à categoria de bens relativamente duráveis.
Desse modo, a sociedade se mantém como um sistema produtivo
manipulando até mesmo a aquisição dos chamados ‘bens de consumo
duráveis’ que necessariamente são lançados ao lixo (ou enviados a
gigantescos ferros-velhos, como os ‘cemitérios de automóveis’ etc.)
muito antes de esgotada sua vida útil (Mészáros, 2002, p. 640).
No ‘capitalismo avançado’, o exemplo clássico e, talvez, mais representativo de
investimento pesado na produção de consumo destrutivo é o complexo industrial-
militar, com uma utilidade apenas marginal e um desperdício de recursos materiais e
humanos, que visa apenas à auto-reprodução ampliada do capital. De modo oposto, os
avanços que podem ser considerados positivos no campo da produtividade se
caracterizam por permitir a possibilidade da predominância da utilização de recursos
naturais na produção dos bens reutilizáveis, em vez dos descartáveis. Do mesmo modo,
essa produção dos bens duráveis mede, de maneira apropriada, a riqueza e o nível de
desenvolvimento econômico de uma sociedade (Ibid.).
Não obstante a taxa decrescente de utilização apresente-se como um dos
aspectos positivos nos avanços históricos da produtividade e constituir uma das
consequências da predominância produtiva de bens duráveis nesse processo, “o mesmo
não pode ser dito sobre a taxa de utilização decrescente em sua variante capitalista”
(Ibid., p. 641). A taxa de utilização decrescente quando apreendida em sua variante
capitalista não pode ser considerada como o reflexo do avanço produtivo em si, “uma
do capital no cenário global e o incontrolável mercado mundial” (Mészáros, 2002, 180) são os elementos,
segundo Mészáros, que podem resumir as mediações de segunda ordem.
99
vez que uma série de condições muito especiais precisa ser satisfeita como, acima de
tudo, a separação dos produtores dos meios e dos materiais de sua atividade produtiva e
sua forçosa alienação das condições objetivas de sua auto-reprodução antes que ela
possa ser plenamente ativada sob a dinâmica expansionista do capitalismo” (Ibid.). A
taxa decrescente de utilização é muito problemática quando considerada sob a ótica do
capitalista, e, mais ainda, sob o prisma do ‘capitalismo avançado’. Constata-se,
portanto, o caráter contraditório do desenvolvimento histórico da produtividade frente à
taxa de utilização decrescente que, durante muito tempo, manteve-se de modo a
equilibrar a proporção entre bens utilizados e reutilizáveis, sem graves implicações para
seu desenvolvimento posterior, porém com alcance social bastante limitado. Em
oposição a essa tendência, a taxa de utilização decrescente atinge seu pleno escopo na
medida em que se desenvolvem as potencialidades produtivas do capital, que busca em
seu movimento de expansão suprimir a condição contraditória da tendência (Ibid.).
Ignorando a impossibilidade estrutural em suprimir essas contradições, a dinâmica de
desenvolvimento capitalista tornou progressivamente mais problemáticas as novas
manifestações da taxa de utilização
Como resultado da absurda reversão dos avanços produtivos em favor
dos produtos de ‘consumo’ rápido e da destrutiva dissipação de
recursos, o ‘capitalismo avançado’ impõe à humanidade o mais
perverso tipo de existência que produz para o consumo imediato [hand
to mouth economy]: absolutamente injustificada com base nas
limitações das forças produtivas e nas potencialidades da humanidade
acumuladas no curso da história (Ibid.).
Assim, a taxa de utilização decrescente predomina na reprodução
sociometabólica do sistema capitalista marcado pela altíssima produtividade, sem
considerar, por outro lado, a produção astronômica de desperdício imposta à sociedade e
todos os seus impactos sociais e ambientais fortemente agravados desde a cada de
1970. Nesse sentido, é possível apreender que o atual sistema sociometabólico de
desenvolvimento, que encontra sua forma no modo capitalista avançado, possui como
imperativo inafastável de seu processo de expansão a busca pela lucratividade em
detrimento de quaisquer impedimentos estruturais ou consequências sociais ou mesmo
ambientais. Pouco importa seu caráter perdulário e destrutivo, mas sua capacidade de
proporcionar um aumento constante e ascendente do lucro.
100
Quanto ao processo de obsoletização prematura dos objetos que leva a sua
substituição, observa-se a geração, por exemplo, duma enorme expansão de ferros-
velhos, utilizados para a acumulação dos materiais presentes nesses deferentes objetos
para que possam vir a ser reutilizados. Em alguns casos formam-se verdadeiras
montanhas de sucata, como no caso dos ferros-velhos que recebem os automóveis,
produtos eletrônicos ou móveis “envelhecidos”, nos países de economia avançada, para
que, através de outros processos industriais, possam vir a ser convertidos ou
transformados em outras mercadorias.
No Brasil, a obsoletização precoce, aliada a uma forte expansão do crédito, tem
levado, no caso dos automóveis e eletrônicos em geral, a outro fenômeno: o acesso da
camada mais pobre às mercadorias que anteriormente não estavam a seu alcance, do
ponto de vista econômico. Assim, assistiu-se à popularização do videocassete a medida
que avançou o comércio dos aparelhos e locadoras de DVDs, um aumento na
comercialização de carros semi-novos na esteira do crescimento da venda de carros
novos. Nesse caso os carros velhos passam para a propriedade daqueles que não tem
renda suficiente para adquirir um veículo novo.
O avanço da taxa de utilização decrescente das mercadorias amplia também o
descarte e a geração de resíduos sólidos, especialmente nos lugares onde grande
concentração de consumidores. Sem contar que esse processo está inscrito numa lógica
de consumo que induz à aquisição de objetos que muitas vezes se mostram sem
utilidade para aqueles que os adquirem, como acontece com grande parte das
embalagens.
Aqui Mészáros também é muito esclarecedor ao constatar que, ao comprar ou
consumir determinados produtos que serão ou não, de imediato, utilizados para a
satisfação de alguma necessidade, adquirem-se, também, os invólucros que os protegem
ou os tornam mais atrativos, a(s) sua(s) embalagem(s), que não constituem o principal
interesse do sujeito que os adquire, que diante da sua “inutilidade”, os descarta.
Entretanto, todo esse aparato utilizado como embalagem faz parte da composição
estética do produto, integra o preço final da mercadoria, que é a materialização de uma
imensa gama de forças produtivas organizadas socialmente e que ali estão
concretamente expressas. Em alguns casos, como na compra de certos cosméticos, cerca
de 90% do produto são descartados (embalagem, rótulo etc.), e apenas 10% de fato
utilizados, transformando-se, assim, em benefício de valor de uso (Mészáros, 2002, p.
663).
101
Não é de difícil constatação que grande parte dos resíduos descartados, nos dias
de hoje, seja resultado do consumo rápido (como as embalagens de cosméticos), ou do
consumo de um bem de vida útil relativamente longa (carros, eletrodomésticos), foi,
em algum momento, objeto do trabalho industrial, passou por um processo de
transformação industrial mais ou menos complexo, dependendo, claro, do tipo de bem
que se consome, sendo parte de uma lógica de produção e reprodução que envolve
diretamente a utilização/exploração e a organização do trabalho humano. Essa é a lógica
da reprodução do próprio sistema produtor de mercadorias, que apresenta, ainda, a
característica de prescindir, em seu processo produtivo, de qualquer racionalidade que
busque a eliminação do desperdício por se tratar duma dimensão da produção que pode
acarretar perigos às formas de sociabilidade:
O problema é que, na estrutura desse sistema, não pode haver critérios
objetivos quanto ao tipo de metas produtivas a serem adotadas e
perseguidas, e quais outras poderiam, a longo prazo, revelar-se
bastante problemáticas. Além disso, a ausência de tais critérios não é
de modo algum acidental, pois, enquanto os limites do sistema do
capital não foram atingidos, a questão de divisar uma alternativa ao
aumento das Necessidades da Vida sem qualquer Necessidade parece
ser totalmente desprovida de qualquer significado prático (Mészáros,
2002, p. 656).
O crescente desperdício indica o aprofundamento da separação entre o esforço
produtivo que objetiva atender às necessidades humanas e àquele que tem como
finalidade a reprodução do capital por si mesmo. E as consequências destrutivas desse
processo são potencializadas à medida que aumenta também a concorrência entre os
capitais. O maior exemplo disso está na destruição e na precarização das condições de
vida da força humana que trabalha e na expansão do processo de degradação do meio
ambiente na atualidade. Dessa forma, tanto os trabalhadores como as matérias-primas
utilizadas para produção das mercadorias são meios de reprodução do próprio sistema
destrutivo do capital. (Antunes, 1999).
O fato de que a atual organização social para a produção demanda e utiliza um
esforço conjunto, que consome/explora energia e vida humana, não significa um
consumo coletivo e igualitário dos frutos dessa mesma produção, não estabelece como
prioridade do que foi produzido a satisfação das necessidades humanas. A lógica do
capital, sob a qual essa mesma sociedade está organizada, define que o objetivo da
produção das mercadorias é satisfazer a necessidade de reprodução do próprio sistema.
102
Para Marx:
A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa
que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual
for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia.
Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana,
se diretamente, como meio de subsistência, ou indiretamente, como
meio de produção. Cada coisa útil, como ferro, papel etc., pode ser
considerada sob duplo aspecto, segundo qualidade e quantidade. Cada
um desses objetos é um conjunto de muitas propriedades e pode ser
útil de diferentes modos (
Marx, 1998, p. 57).
Fundamental considerar que a mercadoria da qual trato de forma mais específica
neste trabalho e que faz parte de um determinado circuito econômico (os resíduos
compostos por materiais recicláveis) serve de matéria-prima para a indústria da
reciclagem e tem características muito peculiares, se pensarmos o modelo de produção
vigente, pois utiliza como substrato para movimentar e reproduzir o capital nessa cadeia
produtiva, algo que outrora já fora industrializado, consumido e depois descartado,
considerado refugo, transformado em resíduo sólido, ou como se conhece
popularmente, em lixo.
Marx, em momento posterior, destacará a importância da economia do capital
constante em seu emprego produtivo como forma de maximizar a produção de mais-
valia e os lucros advindos do processo produtivo. Nesse sentido, Marx antecipara a
utilização dos resíduos como novos elementos da produção da mesma ou de outra
indústria, proporcionando, através desses processos, o retorno desses resíduos ao ciclo
da produção e, por conseguinte, do consumo produtivo ou individual (Marx, 2008).
Até mesmo essa ordem de economia resulta do trabalho social em grande escala, na
medida em que “a massa correspondente de resíduos é tão grande que os torna objetos
de comércio e assim novos elementos de produção. por serem resíduos, de produção
coletiva e, por conseguinte, em grande escala, adquirem essa importância para o
processo de produção e ainda possuem valor-de-troca” (Marx, 2008, p. 112).
Assim, o que foi mercadoria, com determinadas qualidades em um circuito especifico,
assume, na condição de resíduo reciclável, outras qualidades, novamente como
mercadoria, mas agora dentro de outro circuito econômico, que se estrutura e conta com
a participação de outros atores, mas tudo dentro da mesma lógica do capital, na medida
em que será tratada, nesse novo circuito econômico, como insumo, ou matéria-prima
que será empregada em algum momento na produção de novos valores de uso. Dessa
103
forma, a geração da matéria-prima, o resíduo reciclável, está ligada diretamente o
consumo de outras mercadorias, que satisfazendo, ou não, as necessidades daqueles que
a consumiram, geraram sobras, resíduos. A satisfação de necessidades não é o objetivo
primeiro de nenhuma mercadoria produzida sob a égide do capital. Para Mészáros:
Como resultado, útil torna-se sinônimo de vendável, pelo que o cordão
umbilical que liga o modo de produção capitalista à necessidade
humana pode ser completamente cortado, sem que se perca a
aparência de ligação. Simultaneamente, as formas de troca
anteriormente praticadas -, até então diretamente relacionadas à
necessidade humana, quaisquer que fossem suas limitações sob outros
aspectos são superadas pelo domínio do valor de troca, de tal modo
que, depois disso, não se pode mais conceituar a troca em si a menos
que seja definida em termos das transações formalmente equalizadas
de mercadorias que ocorrem na estrutura estritamente quantificadora
das relações-de-troca reificadas (Mészáros, 2002, p. 659).
Nesse sentido, a produção capitalista não visa primordialmente à satisfação da
necessidade dos produtores diretos, ou de qualquer outro membro da sociedade que dos
produtos do trabalho se apropria. O seu fim é garantir o ímpeto de reprodução do capital
através do consumo, assegurando taxas seguras de lucratividade, e esta é a razão que lhe
sentido. Daí pouco interessar a utilidade ou o desperdício das mercadorias por quem
as adquire, desde que elas cumpram sua função no sistema do capital. Insistindo nesse
aspecto, assevera Mészáros:
Se baixarmos o valor de uso de uma mercadoria, ou criarmos
condições para que ela possa ser consumida parcialmente e com
menos proveito, esta prática, não importa o quanto seja censurável de
qualquer outro ponto de vista (...) o afetará seu valor de troca. Uma
vez que a transação comercial tenha ocorrido auto-evidenciando a
utilidade da mercadoria em questão por meio do seu ato de venda,
nada mais com que se preocupar do ponto de vista do capital. De
fato, enquanto a demanda efetiva do mesmo tipo de utilização é
reproduzida com sucesso, quanto menos uma mercadoria é idealmente
usada e reusada (em vez de rapidamente consumida, o que é
perfeitamente aceitável para o sistema), melhor é do ponto de vista do
capital: que tal subutilização torna vendável outra peça da
mercadoria. (Mészáros, 2002, p. 661).
E é de acordo com essa lógica de desperdício que o que era mercadoria, ou
suporte de realização de outra mercadoria – sabemos, por exemplo, que não se compram
refrigerantes sem embalagem, mesmo que esta não seja o seu objeto de interesse - passa
a ser no momento do seu descarte, lixo, perdendo totalmente a sua função, passando
104
então, nesse contexto, a ser entendido como dispensável. Assim, a produção capitalista,
além de revelar “a maior prodigalidade com o material humano, dilapidando-o. Em
virtude do método de distribuir o produto pelo comércio e da maneira como realiza a
concorrência, também desperdiça em demasia meios materiais” (Marx, 2008, p. 120)
O que se vê, portanto, é o cumprimento de um destino previamente traçado.
Tanto considerando as mercadorias produzidas e pensadas como apoio ou atrativos para
a realização do consumo de outras mercadorias, quanto as que serão diretamente objeto
do desejo do consumo na sociedade, participam de um imenso sistema que pressupõe a
garantia da reprodução ampliada do capital, sendo o consumo o momento de realização
final de todo esse processo (Mészáros, 2002).
Nesse ato de consumo, é que se efetiva o objetivo de todos os capitais
envolvidos na fabricação, transporte e comercialização daquela mercadoria, composta
não pelo que será de imediato ou posteriormente consumido, mas também pelo que
será rejeitado. Um rejeito que poderá vir a alimentar outro circuito econômico, como no
caso dos resíduos recicláveis. É nesse contexto, em que a massificação do consumo
enquanto prática do desperdício na sociedade do capital, que os efeitos decorrentes da
taxa de utilização decrescente do capital tornam-se vitais para o sistema metabólico na
medida em que produz também resíduos recicláveis que interessam a determinados
setores da indústria e comércio, alimentando toda uma complexa trama de relações que
vai envolver catadores, comerciantes intermediários e a indústria, a qual se aproveita
dos resíduos produzidos na medida em que “além de úteis como novos elementos da
produção, sendo por sua vez vendáveis, barateiam os custos das matérias-primas nos
quais sempre se inclui a perda normal delas, isto é, a quantidade que necessariamente se
desperdiça quando são objetos de transformação. A redução dos custos dessa parte do
capital corresponde a acréscimo da taxa de lucro” (Marx, 2008, p. 112).
Para Mészáros:
A taxa de utilização decrescente assumiu, na atualidade, uma posição
de domínio da estrutura capitalista do metabolismo socioeconômico,
não obstante ao fato de que, no presente, quantidades astronômicas de
desperdício precisem ser produzidas para que se possa impor à
sociedade algumas das suas manifestações mais desconcertantes
(Mészáros, 2002, p. 665)
O desperdício é expressão da taxa decrescente de utilização, que abrevia a vida útil das
mercadorias e gera uma grande quantidade de resíduos, de coisas que não servem mais
105
para quem as dispensa. No entanto, sabemos que esses objetos, agora sem utilização,
não perderam as suas características físico-químicas, nem sua forma corpórea deixou de
ser fruto de trabalho humano socialmente organizado. O que acontece é que o resíduo
está no momento de seu descarte, posto fora de um contexto social e econômico que lhe
dava sustentação enquanto objeto útil e ingressa em outro contexto socioeconômico e
político. Esse mesmo objeto que mantém suas qualidades físico-químicas, contém em si
trabalho humano incorporado, mas é considerado, no momento do descarte, sem valor
de uso, e, portanto, sem valor de troca. Por outro lado, traz, pela qualidade inerente ao
material do qual foi produzido e pelo avanço da técnica de reaproveitamento, a
qualidade de ser recuperado, seja para cumprir a mesma função, ou mesmo para
desempenhar outras. É nesse sentido que Marx destaca:
Quando a produtividade do trabalho num ramo da produção aparece
noutro, com o barateamento e melhorias dos meios de produção,
elevando a taxa de lucro, essa interdependência geral do trabalho
social se apresenta como algo inteiramente estranho ao trabalhador e
que de fato diz respeito apenas ao capitalista, o único que compra
esses meios e deles se apropria. Compra os produtos dos trabalhadores
de outra indústria com o produto dos trabalhadores de sua própria
indústria, só dispõe dos produtos dos trabalhadores de outro ramo por
ter se apoderado gratuitamente do produto dos seus trabalhadores,
mas, para sua ventura, o processo de circulação dissimula essa
interdependência (Marx, 2008, p. 112).
Mas caracterizar esse movimento não é o suficiente, pois uma questão
importante deve ser enfrentada: afinal, que estímulo promove esse movimento de
reaproveitamento de resíduos de modo a reinserir esses materiais como matéria-prima
em outro circuito produtivo, trazendo novamente à vida materiais que outrora foram
considerados sem valor, retroalimentando a cadeia de reprodução ampliada do capital?
Como forma de encaminhar essas reflexões é importante constatar que os
resíduos sólidos reaproveitados no circuito econômico da reciclagem não podem ser
encontrados na natureza in natura, embora muitos desses materiais sejam formados a
partir de elementos encontrados diretamente na natureza como, por exemplo, o aço, que
não pode ser elaborado sem o ferro, ou mesmo o alumínio sem a bauxita. Na medida em
que derivam, necessariamente, de um consumo anterior, esses resíduos são compostos
em boa medida de certa heterogeneidade de materiais, o que por um lado pode garantir
um variado suporte de matéria-prima para a indústria, considerando-se, por outro lado,
106
que nem todos os materiais descartados possuem essa potencialidade ou possibilidade
de serem reaproveitados (os limites impostos pelo avanço tecnológico do setor podem
significar uma barreira), ou mesmo não despertem no momento interesse econômico.
Todo processo de produção, inevitavelmente, produz resíduos, ou, em outras
palavras, não processo sem ineficiência trata-se de uma lei da Termodinâmica. O
que implica que parte das matérias primas aplicadas em um processo industrial sempre
será emitida como resíduo: menos lucros, mais poluição. Por outro lado, com o aumento
do consumo e a diversificação dos produtos, atrelados ao desperdício que obedece à
taxa de utilização decrescente das mercadorias, estabelece-se o aumento da quantidade
de resíduos sólidos gerados. Temos nesse processo a ampliação da quantidade/qualidade
de materiais que podem ser reciclados.
Em tempos de crise de valorização do capital e crise ecológica, que desborda
seus efeitos pelos quatro cantos do planeta, atingindo populações e afetando o equilíbrio
ambiental de diversos ecossistemas do globo, não é incomum se perceber a
disseminação de propostas de investimento empresarial e industrial que busquem
assegurar a garantia de uma intervenção econômica de modo sustentável, de forma que
não se acarrete danos ao meio ambiente. Entretanto, por mais que a reciclagem
industrial assuma posição de vanguarda neste ínterim e se vincule a um discurso político
e ambientalmente correto de preservação ambiental, a atividade industrial, seja ela qual
for, se realiza ou se estimula com a garantia do lucro e da reprodução ampliada do
capital. Não revelando a finalidade última, mas destacando a possibilidade duma
intervenção “limpa” no meio, é isso o que promete a chamada Produção Mais Limpa
(P+L), muito popular entre engenheiros, cnicos e gerentes no meio industrial e tema
de estudos em congressos e cursos de mestrado. Segundo a CETESB (Companhia de
Tecnologia de Saneamento Ambiental, ligada à secretaria do meio ambiente do Estado
de São Paulo),
Produção mais Limpa (P+L) é a aplicação contínua de uma estratégia
ambiental preventiva integrada, aplicada a processos, produtos e
serviços, para aumentar a eficiência global e reduzir riscos para a
saúde humana e o meio ambiente. A Produção mais Limpa pode ser
aplicada a processos usados em qualquer indústria, a produtos em si e
a vários serviços providos na sociedade.
107
Para processos produtivos, a P+L resulta em medidas de conservação
de matérias-primas, água e energia; eliminação de substâncias tóxicas
e matérias-primas perigosas; redução da quantidade e toxicidade de
todas as emissões e resíduos na fonte geradora durante o processo
produtivo, de modo isolado ou combinadas;
Para produtos, a P+L visa reduzir os impactos ambientais e de saúde,
além da segurança dos produtos em todo o seu ciclo de vida, desde a
extração de matérias- primas, manufatura e uso até a disposição final
do produto;
Para serviços, a P+L implica em incorporar a preocupação ambiental
no projeto e na realização dos serviços
39
.
A CETESB apresenta uma listagem de “casos de sucesso” de produção mais
limpa
40
. Por meio dessa comunicação, fica-se sabendo, por exemplo, como foi a
“identificação da oportunidade” na empresa Elekeiroz:
Durante o processamento contínuo do anidrido maleico, há uma etapa
intermediária de pré-destilação, onde se verifica a deposição de um
resíduo que se acumula ao longo do tempo, exigindo paradas para
limpeza a cada cinco dias. Essa limpeza é feita com água, por meio de
uma lavagem automatizada, gerando efluente líquido. No passado,
esse efluente era desidratado em um filtro-prensa e o resíduo sólido
enviado para co-processamento em fornos de cimento. Isso implicava
em custos e impactos ambientais relativos aos procedimentos de
manuseio, armazenamento, transporte e co-processamento do resíduo
gerado. Após avaliação analítica do efluente líquido, foi vislumbrada a
oportunidade de reutilizá-lo como matéria-prima na unidade de
fabricação de ácido fumárico.
Quanto às medidas tomadas:
Após a conclusão da viabilidade do processo, a empresa procedeu a
adequação de um sistema de transporte do efluente gerado no
processamento de anidrido maleico para a unidade de ácido fumárico,
a fim de ser utilizado como matéria-prima.
Quanto custou?
39
http://www.cetesb.sp.gov.br/Tecnologia/producao_limpa/o_que_e.aspc, acessado em 15/04/2010.
40
http://www.cetesb.sp.gov.br/Tecnologia/producao_limpa/casos_geral.asp, acessado em 15/04/2010.
108
A adequação da unidade de fabricação do ácido fumárico consumiu
recursos da ordem de R$300.000,00 e a adequação do tanque de
transporte do efluente, cerca de R$ 20.000,00.
Enfim os resultados são apresentados:
O novo procedimento permitiu a produção de 15 kg de ácido fumárico
para cada tonelada produzida de anidrido maleico, correspondendo a
135 toneladas de ácido fumárico/ano. Os ganhos ambientais foram a
eliminação do efluente gerado no processamento de anidrido maleico
e o uso direto desse efluente sem necessidade de tratamento prévio.
A receita com o ácido fumárico, assim obtido, foi da ordem de R$
255.000/ano e a economia com a eliminação dos custos relacionados
ao co-processamento do resíduo sólido foi de aproximadamente R$
25.000,00/ano.
Seria no mínimo uma temeridade abordar as razões que motivariam significativa
parcela do capital industrial a manifestar interesse pelos resíduos sólidos produzidos na
sociedade, organizando o circuito produtivo da reciclagem, sem considerar, contudo,
que toda essa cadeia produtiva obedece à gica dum sistema produtor de mercadorias
em que toda e qualquer produção ou ato de consumo deve ocorrer mediado pela
mercadoria dinheiro, e que objetive a reprodução do capital. Nesse sentido, o interesse
pelos resíduos pressupõe um adequado aporte técnico que possibilite a utilização de
determinados materiais como matéria-prima, a tecnologia disponível pelo setor, bem
como a abertura de mercado para a reinserção dos materiais transformados ou
recuperados pela cadeia da reciclagem.
Portanto, em última instância, investir no setor da reciclagem deve ocorrer de
forma a se assegurar um retorno rentável, em forma de lucro, ao capital investido,
expectativa que supera qualquer boa intenção altruísta mais ingênua que entenda esses
investimentos meramente como uma tentativa em se preservar o meio ambiente,
emitindo menos poluentes nos processos produtivos.
Desse modo, não se trata aqui de considerar as atividades recicladoras
encerradas em si mesmas, mas, por outro lado, entendê-las como dimensões do processo
mais geral de expansão do sistema capitalista, que por meio de sua fórmula fundamental
de através da mediação da produção de mercadorias, que promove o necessário
consumo de matéria e energia - incluindo o trabalho humano -, multiplica-se por meio
da conversão de dinheiro em capital (D-M-D’), num ciclo que deve tender para a
expansão constante, para a acumulação continuada. O lucro gerado em uma atividade
109
volta-se novamente para a produção, como produção ampliada. O sistema só se mantém
se o ciclo D-M-D’ expandir-se infinitamente é condição sine qua non do sistema
capitalista, que está contida em seu próprio conceito. Entretanto, é correto o raciocínio
de que é possível produzir reduzindo a geração de resíduos, de forma mais otimizada,
utilizando menos insumos e matérias-primas.
Do mesmo modo, também é possível produzir subutilizando mão-de-obra,
explorando e precarizando a força de trabalho, ou mesmo intensificando o ritmo da
produção, em detrimento de outros fatores. Equivocado seria supor que o ganho em
decorrência desses processos de otimização e intensificação do trabalho em nada se
relaciona com a expansão do processo produtivo considerado ou até de outros ramos da
indústria. O processo de constante retroalimentação do capital em expansão promove
uma reaplicação do dinheiro poupado em insumos e/ou mão-de-obra no processo
produtivo de onde surgiu, em novos processos ou no mercado financeiro, na medida em
que o entesouramento o promove expansão e crescimento do capital. Portanto, o que
antes fora poupado no processo produtivo, poderá retornar na forma de novos
investimentos na produção, não garantindo uma real diminuição da produção de
resíduos. A lógica de expansão do capital chega ao extremo da produção de mercadorias
para a destruição.
Temos exemplos na história contemporânea nesse sentido, como o caso do café
no Brasil no início do séc. XX, em que mercadorias que não conseguiram, - por motivos
mercadológicos, seja devido à queda de preços ou mesmo em virtude da diminuição do
lucro por parte dos seus detentores -, se realizar no mercado de consumo foram
simplesmente destruídas, queimadas ou enterradas. (Foladori, 2001). Uma interação
dialética de cariz positiva está distante de ocorrer entre as esferas da produção e do
consumo, na medida em que a expansão da primeira não possui como horizonte
norteador o atendimento das reais necessidades humanas, mas a garantia do imperativo
abstrato da realização do capital (p. 667). É nesse sentido que a atual dimensão
estrutural do ciclo de reprodução do capital é caracterizada pelo deslocamento radical da
‘produção genuinamente orientada’ para o ‘consumo destrutivo’ como forma de aplacar
o processo de saturação dos mecanismos de reprodução e realização do capital, assim
“tornou-se necessário adotar a forma mais radical de desperdício isto é, a destruição
direta de vastas quantidades de riqueza acumulada e de recursos elaborados como
110
maneira dominante de se livrar do excesso de capital super-produzido”. (Mészáros,
2002, pp. 678-679). Segundo Mészáros:
A razão pela qual tal mudança é absolutamente viável, nos parâmetros
do sistema de produção estabelecido, é que consumo e destruição vêm
a ser equivalentes funcionais do ponto de vista perverso do processo
de realização ‘capitalista’. Desse modo, questão de saber se
prevalecerá o consumo normal – isto é, o consumo humano de valores
de uso correspondentes às necessidades – ou o ‘consumo’ por meio da
destruição é decidida com base na maior adequação de um ou de outro
para satisfazer os requisitos globais da auto-reprodução do capital sob
circunstâncias variáveis. [...]. Mesmo nas piores circunstâncias,
encontramos na prática uma combinação de ambos. No entanto,
podemos perceber claramente uma tendência crescente a favor do
último – a saber, do pseudo consumo destrutivo no curso dos
desdobramentos capitalistas nos países ocidentais dominantes do
século XX. (Mészáros, 2002, p. 679. Grifos do autor).
Frente ao imperativo inexorável de sua contínua reprodução em escala cada vez
mais ampliada, o capital possui uma tendência a seguir uma ‘linha de menor
resistência’, ou seja, inclina-se a um movimento que busca um equivalente funcional
capitalisticamente viável ou fácil, mais de acordo com sua configuração estrutural
global, perpetuando, assim, o controle que exerce, de modo que não seja necessário o
abandono de práticas bem estabelecidas no corpo social. Tudo isso demonstra a
importância da taxa de utilização decrescente para o desenvolvimento do capitalismo do
último século, cuja importância é bem definida quando verificamos a cada vez maior
intensificação dos lucros decorrentes da taxa de utilização decrescente, entretanto de
modo extremamente concentrado, ou seja, uma expansão baseada no aumento de
transações em círculos restritos e bem definidos de consumo, sem arriscar, por outro
lado, ‘ampliar a periferia da circulação’. “Portanto, em princípio, enquanto for verdade
que o desenvolvimento da produção capitalista ‘exige que o círculo de consumo, no
interior da circulação, se expanda como o fez previamente o círculo produtivo’, um
equivalente funcional preferível estaà disposição do capital na forma de aceleração
da velocidade de circulação do próprio círculo de consumo (aumentando o número de
transações no círculo existente), em vez de embarcar na aventura mais complicada e
arriscada de alargar o próprio círculo”. (Idem, p. 680).
111
Assim, como forma de aplacar as nocivas consequências potencialmente mais
destrutivas da tendência de redução das taxas de lucros em razão da priorização de
nichos restritos de consumo, o capital lança mão de estratégias que englobam uma
inclinação à intensificação da circulação dentro das esferas de consumo estabelecidas
em detrimento da ampliação da ‘periferia da circulação’, - sendo esta considerada a
linha de menor resistência para o capital em seu processo de auto-expansão – bem como
uma considerável ampliação da exploração da mais-valia absoluta como forma de
garantir ganhos estratosféricos e vida longa aos processos reprodutivos da lógica
capitalista onde “no que diz respeito a seus objetivos auto-expansivos de produção, é
totalmente desprovido de um quadro de referência e de medida humanamente
significativa, a passagem da produção orientada-para-o-consumo, ao consumo’ pela
destruição pode se dar sem qualquer dificuldade importante no campo da própria
produção” (Idem, p. 692). Assim, para Mészáros:
O resultado, sob o impacto dessas determinações, não é a ampliação
dos contornos da circulação que se constitui em tendência inexorável
do desenvolvimento do capitalista, mas, ao contrário, a restrição
artificial do círculo de consumo e a exclusão dele das massas
‘desprivilegiadas’(isto é, a esmagadora maioria da humanidade), tanto
nos países avançados como no ‘Terceiro Mundo’, graças às perversas
possibilidades produtivas abertas ao sistema capitalista pela taxa de
utilização decrescente. (Idem, p. 685).
O entendimento dessa questão passa, portanto, pelo desvendamento da lógica
que movimenta (funda) o capital, qual seja: a da produção voltada para o atendimento
da necessidade de se auto-reproduzir ampliadamente, não estando em questão as
condições sociais, políticas, econômicas e ambientais sob as quais esse processo se
realiza (Antunes, 1999). Mais grave, coloca-se uma contradição potencialmente
destrutiva e perigosa quando pensado o processo de expansão do capital: o uso ou não-
uso da força de trabalho que assegure, portanto, a empregabilidade dos trabalhadores, é
um aspecto fundamental a ser considerado na medida em que “o trabalho não é apenas o
‘fator de produção’, em seu aspecto de força de trabalho, mas a ‘massa consumidora’
tão vital para o ciclo normal da reprodução capitalista e da realização da mais-valia”
(Mészáros, 2002, p. 672).
112
Por um lado, encontramos uma necessidade do capitalista em elevar
sistematicamente o poder de compra dos trabalhadores, porém, por outro lado, esse
processo de melhoria das condições materiais da classe trabalhadora não pode afetar a
lucratividade, assegurada por meio do financiamento do crescimento da produtividade
da dinâmica da reprodução ampliada. Dessa maneira, “a taxa de utilização decrescente
da força de trabalho (que se manifesta na forma de desemprego crescente) não pode ser
revertida por fatores e medidas conjunturais” (Ibid.), ou mesmo tratando o trabalho
indefinidamente como mero ‘fator de produção’, muito menos “explorando
ideologicamente a oposição fictícia entre trabalhador e consumidor, de modo a submeter
o trabalhador em nome da mítica do ‘Consumidor’, com maiúscula. Pois, em última
análise (e apesar de todos os clichês apologéticos produzidos pela chamada ciência
econômica’ sobre a proclamada ‘maximização das utilidades marginais’ em base
estritamente individualista), ambos são basicamente o mesmo” (Ibid. P. 672-673).
Considerando ainda que a taxa decrescente do valor de uso das mercadorias,
implica na subutilização dos potenciais produtivos empregados e na desvalorização da
força de trabalho, que passa também a ser, como a mercadoria, considerada descartável
- isso porque todo o potencial desenvolvido e empregado na produção de determinada
mercadoria será descartado, inutilizado, assim que esta cumprir a sua função enquanto
valor de troca - todas as horas de vida aplicadas e voltadas para a sua produção irão
também para o lixo. Todo um potencial criativo humano, aliado à técnica, é capturado e
aplicado na produção de algo que acabará descartado (Gonçalves, 2006). Ao passo que
a produção de mercadorias atinge graus elevadíssimos de tecnologia empregada em seus
processos produtivos, e em quantidades e qualidades diversas dos itens criados, por
outro lado, verifica-se um aumento substancial da exclusão de camadas cada vez
maiores da sociedade do acesso aos bens produzidos.
Portanto, a forma mais adequada encontrada pelo capital para promover a
continuidade de sua expansão foi a produção destrutiva, dimensão que está bem de
acordo com a incontrolabilidade do metabolismo social do sistema do capital, apontado
por Mészáros. O elemento determinante dessa produção destrutiva é a taxa de utilização
decrescente da mercadoria, na medida em que determina processos como a
obsolescência programada, a descartabilidade prematura e no limite, a não reutilização
das mercadorias. A redução da vida útil das mercadorias e a descartabilidade precoce
abre espaço para mais produção, o que alimenta o ciclo reprodutivo do capital. Cresce,
portanto, o desperdício.
113
E como forma de lucrar e amenizar o desperdício das mercadorias nota-se o
crescimento dos ramos industriais que se especializam na recuperação daquilo que, após
o consumo, torna-se lixo. A reciclagem e o reaproveitamento de diversos materiais que
compõem os resíduos se apóiam, contraditoriamente, em um discurso de preservação
ambiental. Ou seja, reaproveitamos o que desperdiçamos. Esse fato permite perceber
que o processo produtivo/destrutivo do capital envia para o lixo uma grande quantidade
de energia passível de ser recuperada, ou seja, energia em forma de objeto que não foi
totalmente utilizada, ou não se exauriu com consumo da mercadoria. A indústria da
reciclagem se estrutura para recuperar e colocar no mercado o que foi descartado, claro
que nesse processo recuperando o seu valor de troca. É fato que com isso diminuição
do desperdício dos materiais recuperados, porém, somente nos setores e até o momento
em que o capital empregado estiver sendo reproduzido ampliadamente. O beneficio
ambiental, nesse caso, é uma causa menos importante. A consequência é a prevalência
da descartabilidade, da efemeridade, do consumo imediato, destrutivo, ampliado e
artificial do supérfluo. E essa superfluidade transcende o mundo das coisas para atingir
o mundo dos homens.
114
4. RASGANDO O VÉU: (re)ligando os fios invisíveis da exploração
4.1. A acumulação capitalista e o excedente estrutural de mão-de-obra – o
trabalho supérfluo e seus sujeitos na sociedade capitalista
Em seu capítulo sobre a Lei geral da acumulação capitalista, Marx, em O Capital,
desenvolve um estudo da composição do capital e das modificações que ela sofre ao
longo do processo de acumulação. Nesse sentido, constrói a ideia de composição
orgânica do capital, que representa a composição valor do capital (compreendida por
uma perspectiva de valor capital constante + capital variável) que é determinada pela
composição técnica (compreendida por uma perspectiva de matéria proporção entre
volume de meios de produção utilizados e volume de trabalho necessário ao emprego
desses meios) e reflete suas modificações (Marx, 2005, p. 715)
Ao observar o funcionamento da economia capitalista, Marx desenvolve sua
construção teórica, segundo a qual o volume de mão-de-obra demandado no capitalismo
é determinado pelo montante da parcela variável (isto é, de força de trabalho) que
compõe o capital global. E essa parcela variável (quantidade de trabalho empregada),
pela própria gica do processo de avanço da acumulação capitalista que modifica a
proporção entre a parte constante e a parte variável do capital - tende a crescer com o
aumento do capital global, porém, em proporções continuamente decrescentes, ou seja,
“a intensificação do processo de acumulação caminha pari passu com o
empobrecimento absoluto da classe trabalhadora” (Teixeira, 1995, p. 181).
Um aspecto específico da produção capitalista é que a força de trabalho é comprada
não como outra mercadoria qualquer, para satisfazer as necessidades pessoais do
comprador, mas sim, para valorizar o seu capital, através da produção de mercadorias
que consubstanciem mais trabalho do que ele paga. Com isso, as reflexões sobre os
níveis de mão-de-obra demandada e o consequente nível de emprego da força de
trabalho em um dado momento devem manter esse aspecto em vista. Conforme Marx,
“a força de trabalho é vendável quando conserva os meios de produção como capital,
reproduz seu próprio valor como capital e proporciona, com o trabalho não-pago, uma
fonte de capital adicional”. (Marx, 2005, p. 721-722).
115
O que Marx pretende deixar claro em suas formulações é que o modo de produção
capitalista tem sempre, nos seus mecanismos de engrenagem, instrumentos originários
de sua natureza de funcionamento que reagem a qualquer decréscimo no grau de
exploração do trabalho ou a qualquer elevação no seu preço que possam ameaçar a sua
reprodução continuada e ampliada.
Partindo então dessa possibilidade permanente de acumulação e do processo
desconcentração que o acompanha, essa construção teórica explora a inevitabilidade do
decréscimo relativo do componente variável do capital para explicar a existência de um
excedente estrutural de mão-de-obra, característico do modo de produção capitalista. É
nesse contexto que se insere o conceito de produtividade do trabalho social, no qual,
pelas leis em que está alicerçado esse sistema, haverá sempre no seu processo de
acumulação um momento em que ela (a produtividade) será o instrumento mais
poderoso para impulsionar essa acumulação. E é justamente no volume relativo dos
meios de produção que um trabalhador, com a mesma quantidade de força de trabalho
despendida, irá transformar em produto o nível de produtividade social do trabalho. Nas
palavras de Marx:
O aumento desta [produtividade] se patenteia, portanto, no decréscimo
da quantidade de trabalho em relação à massa dos meios de produção
que põe em movimento, ou na diminuição do fator subjetivo do
processo de trabalho em relação aos seus fatores objetivos. Essa
mudança na composição técnica do capital, o aumento da massa nos
meios de produção, comparada com a massa da força de trabalho que
os vivifica, reflete-se na composição do valor do capital, com aumento
da parte constante à custa da parte variável (Marx, op. Cit., p. 726).
Assim, a alteração na composição em valor do capital pelo aumento da parcela
constante em detrimento de sua parcela variável será o reflexo da mudança na
composição técnica do capital, ou seja, do acréscimo no volume de meios de produção
frente ao volume de força de trabalho empregada.
Marx vai lembrar ainda que, com o desenvolvimento do modo de produção
capitalista, cresce o tamanho mínimo de capital individual exigido para constituição de
um negócio. O processo de concorrência – com a falência dos pequenos e o crescimento
dos grandes – e o sistema de crédito representam, segundo o autor, as duas mais
116
poderosas alavancas do processo de centralização
41
do capital. Elas se desenvolvem na
medida em que também se desenvolvem a produção e a acumulação capitalista. E a
centralização, por sua vez, complementa o processo de acumulação ao possibilitar aos
capitalistas industriais condições de expandir suas escalas de operações. Nesse processo,
a centralização - ao reforçar e acelerar os efeitos da acumulação - vai também,
consequentemente, ampliar e acelerar, simultaneamente, as alterações na composição
técnica do capital, ao expandir seu componente constante em maior proporção que seu
componente variável, e ao reduzir, dessa forma, a demanda relativa de trabalho.
Assim, o sistema capitalista mantém uma reserva de força de trabalho que
constitui uma superpopulação relativa, que não representa um excedente absoluto de
população em função de alterações demográficas, mas sim um excedente populacional
formado pelo próprio processo de acumulação de capital e ligado às suas necessidades.
Teixeira (1995, p. 199), ao analisar a construção teórica de Marx sobre as
funções básicas do exército industrial de reserva, ressalta que a criação e a perpetuação
dessa superpopulação relativa no sistema capitalista tem diferentes implicações: 1)
libertar o capital das barreiras do crescimento natural da população trabalhadora. Uma
vez constituindo produto necessário do modo de acumulação e desenvolvimento da
riqueza produzida sob a égide do capital, esse excedente torna-se, por sua própria
natureza intrínseca ao capitalismo, alavanca da economia capitalista e condição para a
viabilidade de seu modo de produção; 2) regular os movimentos dos salários. Em
detrimento do movimento do número absoluto da classe trabalhadora, os salários são
regulados pela própria variação em que essa classe se divide em exército ativo e
exército de reserva, pelo acréscimo e decréscimo da dimensão relativa da
superpopulação, pelo grau em que ora ela é absorvida, ora liberada.
Em relação ao crescimento da composição orgânica do capital, Miglioli (1982)
interpreta que esse crescimento, junto à acumulação ao longo do tempo, constitui, na
verdade, uma alteração nas técnicas de produção, em que a força de trabalho é
crescentemente substituída por máquinas. Mas porque esse progresso técnico no
41
“Não se trata mais da concentração simples dos meios de produção e do comando sobre o trabalho, a
qual significa acumulação. O que temos agora é a concentração dos capitais formados, a supressão de
sua autonomia individual, a expropriação do capitalista pelo capitalista, a transformação de muitos
capitais pequenos em poucos capitais grandes [...] O capital se acumula aqui nas mãos de um só, porque
escapou das mãos de muitos noutra parte. Esta é a centralização propriamente dita, que não se confunde
com a acumulação e a concentração”. Idem, op. Cit., p. 729.
117
processo de produção se traduz em acréscimo da composição orgânica do capital, e não
em decréscimo? Em parte, ele está associado ao processo de concorrência entre os
capitalistas, mas isso ocorre principalmente devido à competição existente entre o
capital e a força de trabalho, isto é, entre capitalistas e trabalhadores. Dessa forma, essa
característica do crescimento da composição orgânica permite que a acumulação de
capital aconteça intensamente sem provocar fortes aumentos de demanda por força de
trabalho e nem, por consequência, de salários, contribuindo, assim, para a ampliação da
superpopulação relativa.
E, segundo Marx, essa superpopulação constitui um exército industrial de
reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta, como se ele o
tivesse criado a sua própria custa. Quanto à contribuição do próprio sistema de salários
a esse processo, Marx ressalta que seus movimentos gerais são exclusivamente
regulados pelos movimentos de expansão e contração desse exército industrial de
reserva, que correspondem à mudança periódica do ciclo industrial
42
. Assim, os salários
não são determinados pelas alterações absolutas da massa trabalhadora, mas sim pela
proporção variável em que a classe trabalhadora se divide em exército ativo
(empregados) e exército de reserva (desempregados). Ou seja, pelos acréscimos e
decréscimos da dimensão relativa da superpopulação, representando o grau em que ela é
ora absorvida, ora liberada (Marx, 2005, p. 743).
Essa existência de um exército ativo e um de reserva de trabalhadores faz com
que, em períodos de baixo crescimento ou estagnação, esse último pressione o exército
ativo de trabalhadores e, durante fases de superprodução, contenha suas pretensões. Isto
quer dizer, nas palavras de Marx, que “a superpopulação relativa é, portanto, o pano de
fundo sobre o qual a lei da oferta e da procura de mão-de-obra se movimenta” (Marx,
2005, p. 741).
O que podemos observar é o crescimento desse exército industrial de reserva
mesmo nos países de capitalismo mais avançado, fazendo cair por terra argumentos que
42
“A superficialidade da economia política evidencia-se, entre outras coisas, na circunstância de ela
considerar causas do ciclo industrial a expansão e a contração do crédito, simples sintomas das
alternativas do ciclo industrial. Os corpos celestes, lançados num determinado movimento, repetem-no
sempre, e do mesmo modo se comporta a produção social, uma vez projetada nesse movimento de
expansão e contração alternadas. Efeitos se tornam, por sua vez, causas, e as alternativas de todo o
processo, que reproduz sempre suas próprias condições, assumem a forma de periodicidade. Uma vez
estabelecida esta, a própria economia política compreende que a produção de uma população excedente
em relação às necessidade médias de expansão do capital é condição vital para a indústria moderna”.
Idem, op. Cit., p. 736.
118
afirmavam ser esse problema enfrentado apenas por áreas mais “atrasadas” ou
“subdesenvolvidas” do planeta. Na verdade, essa ideologia é ainda largamente utilizada
pelas personificações do capital para acalmar o operariado dos países mais “avançados”,
como se por uma intervenção divina estes ocupassem postos superiores imunes a tais
intempéries do mercado. Entretanto, como uma grande ironia da história, a dinâmica
interna antagonista do capital agora se afirma no seu impulso para reduzir
globalmente o tempo de trabalho necessário a um valor mínimo que otimize o lucro
“como uma tendência devastadora da humanidade que transforma por toda parte a
população trabalhadora numa força de trabalho crescentemente supérflua” (Mészáros,
2002, p. 341).
Até bem pouco tempo atrás, os apologistas da ordem do capital propagavam aos
quatro cantos do planeta que esse processo fosse natural na “periferia do Terceiro
Mundo”. Todavia, quando a mesma devastação passa a ser a regra nas partes idealmente
“avançadas” do universo social, ninguém mais pode fingir que está tudo bem nesse
melhor de todos os mundos possíveis. “De fato, ao ver a forma como se realizam as
tendências intrínsecas da concentração e da centralização do capital sob o imperativo
da reprodução auto-ampliada -, não é difícil perceber que a multiplicação incontrolável
da “força de trabalho supérflua” representa não apenas uma drenagem enorme de
recursos do sistema, mas também uma carga potencialmente explosiva extremamente
instável” (Idem, 2002, p. 342).
Estamos testemunhando, portanto, um perigoso ataque do capital aos
trabalhadores, dessa vez, não reconhecendo limites espaciais, atingindo tanto o “mundo
subdesenvolvido” como as economias mais avançadas do sistema do capital, com
implicações extremamente perigosas para a viabilidade continuada do modo
estabelecido de reprodução sociometabólica. Segundo Mészáros, estamos
testemunhando:
1) um desemprego que cresce cronicamente em todos os campos de
atividade, mesmo quando é disfarçado como ‘práticas trabalhistas
flexíveis’ um eufemismo cínico para a política deliberada de
fragmentação e precarização da força de trabalho e para a máxima
exploração administrável do trabalho em tempo parcial; e 2) uma
redução significativa do padrão de vida até mesmo daquela parte da
população trabalhadora que é necessária aos requisitos operacionais
119
do sistema produtivo em ocupações em tempo integral (Idem, 2002:
342).
É importante observar ainda que o desemprego crônico, dentro da estrutura do
sistema do capital, tende a produzir desequilíbrios cada vez mais crescentes da ordem
capitalista, abalando a estabilidade social e trazendo consequências que vão desde o
crescimento da criminalidade (especialmente entre os jovens) até denúncias violentas de
agravos econômicos e formas de ação direta (como paralisações de trabalhadores ou
manifestação de massa contra abusos como aumento excessivo de impostos).
Assim, a expansão do exército industrial de reserva, que culmina com o
crescimento dos níveis de desemprego, carrega consigo uma transformação radical
desse exército de reserva em uma “explosiva força de trabalho supérflua” ainda assim
mais necessária do que nunca para possibilitar a reprodução ampliada do capital –
entendida como composta por seres humanos vivos e possuidores de capacidades
produtivas socialmente úteis, porém capitalisticamente redundantes ou inaplicáveis
(Mészáros, 2002, p. 620).
120
4.2. Trabalhadores do lixo que dormitam nos limites da precariedade do trabalho
Qui berce longuement notre esprit enchanté,
Et le riche métal de notre volonté
Est tout vaporisé par ce savant chimiste.
C'est le Diable qui tient les fils qui nous remuent!
Aux objets répugnants nous trouvons des appas;
Chaque jour vers l´Enfer nous descendons d’un pas,
Sans horreur, à travers des ténèbres qui puent
43
.
(CHARLES BAUDELAIRE)
O Ministério do Trabalho (2005), na Classificação Brasileira de Ocupações
(CBO)
44
, descreve o catador de materiais recicláveis como aquele que cata, seleciona e
vende material reciclável, assim como materiais ferrosos e não-ferrosos além de outros
reaproveitáveis. Os locais onde atuam são extremamente variados, podem trabalhar a
céu aberto buscando os materiais nas ruas e latões de lixo encontrados pelo caminho,
nas calçadas, muitos ainda recolhem os materiais nas rampas de lixo que se situam em
aterros sanitários, ou mesmo trabalham em galpões de reciclagem que podem se
organizar sob a forma de associações ou cooperativas de trabalho. Nas ruas, dimensão
onde se espraiam as relações do trabalho sobre as quais tenho enfatizado ao longo da
exposição, as principais atividades desenvolvidas por essa categoria de trabalhadores
são: puxar a carroça, estabelecer roteiro de coleta, pedir material reciclável nas
43
“No travesseiro do mal é Satã Trismegisto / Quem embala longamente nosso espírito encantado, /
E o rico metal de nossa vontade / É totalmente vaporizado por esse sábio químico. // É o Diabo
quem dirige os fios que nos movem! / Nos objetos repugnantes nós encontramos atrativos; /
Cada dia para o Inferno descemos um passo,/ Sem horror, através das trevas que fedem.” Tradução de
Cláudio R. Duarte.
44
Segundo a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), várias são as atribuições dos catadores de
materiais recicláveis. Entre elas encontramos: A coletar material reciclável e reaproveitável; B dar
entrada no material; C separar material coletado; D preparar o material para expedição; E realizar
manutenção do ambiente e dos equipamentos de trabalho; F divulgar o trabalho de reciclagem; G
administrar o trabalho; H – trabalhar com segurança; Z – demonstrar competências pessoais. Aqui,
podemos perceber claramente o enorme abismo existente entre a representação formal das atribuições
“necessárias e esperadas” do trabalhador da catação e as formas concretas de desenvolvimento dessas
atividades de trabalho na cotidianidade, uma abstração das complexas particularidades que envolvem a
atividade de trabalho, as condições sobre as quais se estruturam as relações entre os trabalhadores bem
como os elementos que condicionam a reprodução da força de trabalho desses indivíduos. Não sem razão
ao se contemplar essa lista, tem- se uma amarga sensação de se estar diante de um cabedal de informações
deslocadas da realidade material concreta, substrato das relações sociais, beirando um irresponsável
idealismo, desconsiderando, portanto, a dimensão humana da qual é feita a vida.
121
residências e condomínios, estabelecer parcerias com estabelecimentos comerciais e
industriais
45
, procurar material nas caçambas de rua e identificar novos pontos de coleta.
A grande maioria dos catadores trabalha de forma autônoma, recolhendo seu
material e revendendo para os donos de sucatas ou depósitos. No mais das vezes esses
são os sujeito mais próximos, do ponto de vista comercial, dos catadores. Em muitos
casos são proprietários das carroças utilizadas pelos carroceiros em sua atividade de
reciclagem, o que cria uma relação de relativa dependência destes para com aqueles.
Armazenam e estocam o material em galpões ou terrenos (embora estes nem sempre
atendam as exigência sanitárias e ambientais mínimas previstas na legislação)
posteriormente negociando-os com empresas recicladoras. Em alguns casos o deposeiro
dispõe de veículos grandes que utiliza para realizar o transporte dos materiais para
outras estruturas maiores de armazenamento e triagem. Encontram-se no exercício dessa
atividade adultos homens e mulheres malgrado não seja incomum cruzarmos com
crianças, jovens e idosos nas ruas da cidade buscando no lixo seu sustento.
O Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis MNCR (2005)
acredita existir cerca de 500 (quinhentos) mil trabalhadores desenvolvendo a atividade
da catação em todo o Brasil. Segundo pesquisa do IMPARH (2006), estima-se que
existam entre 6 (seis) e 8 (oito) mil catadores de materiais recicláveis nas ruas de
Fortaleza. Sujeitos que convivem diariamente com os rejeitos humanos, com as sobras e
tudo aquilo que é expurgado, retirando dos dejetos - frutos do consumo da sociedade
46
-,
os materiais que, por um lado garantirão seu sustento e, por outro, alimentarão a
indústria da reciclagem. O catador é considerado o elo mais frágil da corrente que une o
setor da reciclagem, integrando uma massa de trabalhadores sem unidade significativa,
45
Essas parcerias são firmadas no mais das vezes de maneira informal. Entretanto, podem definir rotas a
serem percorridas pelos catadores ou até abrir novas possibilidades de coleta de materiais. Como exemplo
disso, cito o caso de D. Maria e Paulo que acompanhei, conforme narrativa na primeira parte deste
trabalho. Durante, no mínimo, três dias da semana, seguiam um percurso predeterminado que os levavam
até o “setor”, onde as principais lixeiras vasculhadas encontravam-se nos condomínios e comércios locais.
nos fins de semana, fazem uma rota que denominam “rota das praias”. Consiste em dirigirem-se, ao
fim da tarde, aos hotéis da orla de Fortaleza (principalmente os situados na Av. Beira-Mar) para
recolherem os materiais recicláveis que podem ser encontrados em suas lixeiras. Vale ressaltar que a
atuação dos catadores nessas lixeiras é consentida pela administração dos hotéis, vez que contam
inclusive com a ajuda de funcionários para terem acesso ao lixo, além de não terem enfrentado maiores
problemas no que se refere a qualquer tipo de proibição a sua atuação.
46
Importante notar que o lixo assume uma dimensão possuidora de diferentes contornos quando nos
referimos àqueles que dele extraem seu sustento. Ao contrário de ser percebido como aquilo que está
fadado ao descarte, por aqueles que integram as fileiras dos consumidores, pois carrega consigo o estigma
da inutilidade, quando nas os dos catadores inaugura “uma nova fase de seu itinerário de circulação
social, passando a ser valor-de-uso” (Rodrigues, 1995, p. 107).
122
organização coletiva ainda incipiente para o trabalho além de suportar uma extrema
exploração de sua força de trabalho uma vez que confere corpo ao enorme exército de
subempregados que busca assegurar as condições mínimas de sobrevivência através da
realização diária de formas de trabalho, em geral, extremamente precarizadas.
A atividade de trabalho da catação até agora descrita e analisada corresponde aos
pilares de todo o circuito econômico e social da reciclagem dos resíduos sólidos, pois
são esses trabalhadores os responsáveis por cerca de 89% de toda a matéria-prima
derivada de resíduos sólidos recicláveis que abastecem as indústrias do setor, segundo
dados do MNCR (2005). A partir dessas constatações e considerando o estudo que
desenvolvi junto aos catadores, acompanhando sua rotina de trabalho, analisando as
condições em que desenvolvem a atividade da catação bem como outros aspectos
ligados a dimensões não visíveis, ou melhor, não tão evidentes da realidade social,
pertencentes ao campo das expectativas, desejos etc., não podemos olvidar que essas
atividades são enlaçadas por poderosas forças de coerção social e econômicas presentes
em nossa sociedade, que constrangem esses trabalhadores a se submeterem a formas de
trabalho extremamente degradantes em nome da conquista da sobrevivência diária.
Constata-se isso ao se observar as razões que fizeram muitos dos catadores a buscarem a
ocupação como atividade de trabalho. Nesse sentido, D. Maria, mãe de Paulo, catadora
do “setor” diz:
Se Deus quiser, o Paulo num vai mais trabalhar aqui ano que vem. Vai
estudar pra trabalhar, comprar uma casa, botar uma mulher direita
dentro de casa, porque essa carroça é pra animal, cavalo, jumento. Isso
num é pra gente não. A gente trabalhando com isso porque num
tem trabalho. Mas ele vai conseguir um emprego na firma e vai parar.
Para Reginaldo, 32 anos, catador:
A gente tem que sustentar a família, emprego tá difícil de encontrar
por aí, então fica difícil, tem que vir todo dia.
Jair, 25 anos, catador do “setor”:
123
O sistema é doido, tem que ralar mesmo. A gente vem trabalhar com
isso aqui é porque precisa mesmo, não vou mentir. Mas também num
tem nada fácil.
Mostra-se recorrente nos discursos dos catadores(as) o argumento de que
desempenham a atividade da catação devido à falta de outras oportunidades de trabalho,
às dificuldades em se conseguir outro emprego e a necessidade em se garantir o sustento
da família. São bastante sintomáticas as palavras de D. Maria Zadir que assemelha o ato
de puxar a carroça a atividades executadas por animais de tração e, ainda, deixa
transparecer em suas palavras lamentosas o desejo de ver o filho galgar uma melhor
condição no futuro próximo, excluindo de seu discurso sua própria pessoa, como se a
ela não lhe fosse mais possível assumir um discurso que apontasse para uma mudança
significativa de sua condição.Vincula ainda a noção de estudo ao ato de conseguir
trabalho, como se aquilo que desenvolvessem agora não se tratasse exatamente de
trabalho, na medida em que não poderia proporcionar um melhoramento de vida
significativo para seu filho e ela própria. Os discursos apresentados alinham-se com o
que diagnosticou a pesquisa realizada pela Prefeitura de Fortaleza em parceria com o
IMPARH, atestando que 82,8% dos catadores entrevistados apontam como causas
motivadoras de seu ingresso no universo da catação o desemprego e a falta de
oportunidades de ingresso no mercado de trabalho. Portanto, demonstrando que esses
trabalhadores não tiveram grandes chances de “escolha”, sendo a atividade da catação o
último recurso frente à escassez de possibilidades e condições para assegurar sua
sobrevivência.
Considerando as condições de inserção dos trabalhadores no atual estágio de
desenvolvimento das forças produtivas, tem-se o desenrolar e a atual consolidação da
mais extraordinária e abrangente forma de controle sociometabólico: o capital. Uma
poderosa estrutura totalizadora de controle que expandiu seus domínios para
praticamente todos os recantos do planeta. Seus imperativos impõem a todos a
necessidade de se ajustar ou mesmo adaptar-se a seu poder “totalitário” de modo a
assegurar a viabilidade produtiva de seu processo de expansão total. Não obstante
mostre-se em um avançado estágio de desenvolvimento, o capital (entendido aqui
124
enquanto relação social) carrega em seu ventre contradições que expõem a natureza
própria de seu caráter expansionista. De acordo com Mészáros (2002):
O ter domina o ser em todas as esferas da vida. Ao mesmo tempo, o
real dos sujeitos produtivos é destruído por meio da fragmentação e da
degradação do trabalho à medida que eles são subjugados às
exigências brutalizantes do processo de trabalho capitalista. Eles são
reconhecidos como sujeitos legitimamente existentes apenas como
consumidores manipulados de mercadorias (p. 611).
O autor destaca o caráter desumanizador do processo de trabalho no sistema
capitalista, pois este converte os indivíduos em sujeitos úteis ao processo de acumulação
capitalista na medida em que se tornam subservientes à expansão da riqueza
utilitária/mercantilizada como fim último da produção. No entanto, ao passo que se
verifica o desenvolvimento cada vez mais complexo de processos de trabalho
concomitante à sofisticação dos processos produtivos ocorre certo afrouxamento das
amarras do sistema em relação à sua dependência de trabalhadores ligados
umbilicalmente à produção, proporcionando o crescimento da esfera não-produtiva e
parasitária da sociedade. Como resultado “o funcionamento dos constituintes
genuinamente produtivos se torna cada vez mais dependente da manutenção e do
crescimento posterior dos setores parasitários – dos quais um número crescente de
pessoas depende para seu sustento, enquanto outros dependem destes na qualidade de
consumidores dos seus produtos” (idem, p. 618). A liberação de certa parcela dos
trabalhadores da necessidade imperiosa de inserirem-se diretamente no setor da
produção, garantidor da contínua expansão do sistema produtor de mercadorias gera, na
sociedade, a criação do tempo supérfluo, entretanto esse tempo não é reconhecido no
conjunto das sociabilidades estabelecidas na ordem do capital como tempo disponível
potencialmente criativo. “Ao contrário, deve assumir uma atitude
negativa/destrutiva/desumanizadora para com ele. De fato, o capital deve dolorosamente
desconsiderar o fato de que o conceito de trabalho supérfluo na realidade se refere a
seres humanos vivos e possuidores de capacidades produtivas socialmente úteis
mesmo que capitalisticamente redundantes ou inaplicáveis” (idem, p. 620). Assim,
acrescenta Mészáros, que a expansão cada vez mais constante dos níveis de produção
125
capitalista bem como a extração mais intensa de ganhos para o capital somente pode
ocorrer:
Graças à desumanização do próprio trabalho vivo, transformado em
uma mercadoria que pode funcionar (como uma força produtiva) e
biologicamente se sustentar (como um organismo vivo) adentrando a
estrutura e se submetendo às exigências materiais e organizacionais
– de acordo com as exigências da auto-reprodução ampliada do capital
(Mészáros, 2002, p. 622, grifos do autor).
Desse modo, observa-se, num primeiro momento, a separação radical dos
trabalhadores dos meios e do material de sua atividade produtiva e da auto-reprodução
de suas vidas o que, por outro lado, impõe-lhes a necessidade imperiosa de entrar na
relação de troca do capital por uma questão de mera sobrevivência, subjugando
totalmente as dimensões da necessidade e do valor-de-uso às determinações reificantes
do valor-de-troca. Ademais, como uma grande ironia da história, a dinâmica interna
antagonista do capital agora se afirma no seu impulso inexorável para reduzir
globalmente o tempo de trabalho necessário a um valor mínimo que otimize o lucro
“como uma tendência devastadora da humanidade que transforma por toda parte a
população trabalhadora numa força de trabalho crescentemente supérflua” (Idem, 2002,
p. 341).
Não é difícil identificar grandes contingentes de “trabalhadores supérfluos” ao
pensar a realidade dos catadores de materiais recicláveis das ruas em Fortaleza, afinal,
basta considerar os indicadores sociais mais básicos referentes à saúde, escolaridade e
moradia para perceber que grande parte desses trabalhadores está condenada a orbitar às
margens do sistema capitalista, sem serem de modo algum contemplados pelas
“maravilhas do progresso econômico”. Daí o porquê da questão do desemprego assumir
contornos tão trágicos quando atingem essa categoria de trabalho, pois esses sujeitos
muitas vezes não possuem o mínimo de qualificação, ou condições para adquiri-la, para
ingressar no cada vez mais concorrido mercado de trabalho, para assim garantir
condições mínimas de sobrevivência e existência digna. Por outro lado, muito embora
esses trabalhadores estejam flagrantemente desenvolvendo suas atividades numa
situação de extrema precariedade e vivenciem o assombro do fantasma do desemprego
que constantemente espreita à porta, esse quadro geral não constitui elemento motivador
126
da tomada de consciência no sentido de apontar para a possibilidade de organização da
classe trabalhadora que aponte concretamente para a superação dessa condição de
espoliação e miséria. Mesmo sendo alvo direto dos efeitos das transformações e
metamorfoses do trabalho verificadas nos últimos anos, sobretudo no aprofundamento
dos processos de subproletarização e desemprego, “podemos afirmar que os
desdobramentos para o universo simbólico dos trabalhadores particularmente dos
desempregados são seriamente afetados (...), pois, na prática, os trabalhadores
desempregados são proletários que vivem a radicalidade da despossessão, no entanto a
fragilidade dessa radicalidade se expressa no fato de que, a partir da sua exclusão da
ordem do capital, são incapazes de articular um movimento emancipatório para além do
capital. Os trabalhadores desempregados afirmam a sociedade do trabalho, mesmo
sendo a materialização da negação do trabalho” (Thomaz Júnior, 2002, p. 18).
Aos rejeitados pelo mercado formal de trabalho e compelidos à luta por
sobrevivência a qualquer custo não resta alternativa a não ser se submeterem a alguma
forma de auto-exploração do trabalho ou venda da sua força de trabalho, engrossando as
fileiras dos trabalhadores informais e terceirizados. A energia dos trabalhadores deverá
ser canalizada e concentrada a qualquer custo em algo útil frente ao processo de
reprodução do próprio sistema que o renega. Mas essa manifestação não pode ocorrer na
sociedade de qualquer forma, deve, por outro lado, obedecer aos critérios normativos
orientadores das condutas dos indivíduos materializados em lei, além de obedecer aos
valores intersubjetivamente partilhados na sociedade do capital que consagra o respeito
aos códigos e, sobretudo, à propriedade privada. É neste contexto em que trabalhadores
largamente experientes no desenvolvimento de atividades laborais precárias ou que
vivem as angústias do desemprego de longo prazo, sem esperança de encontrar novas
ocupações no mercado de trabalho, ainda mais tendo seus direitos garantidos e cobertos
pela legislação trabalhista (ou o que dela restou), lançam-se às ruas e ao lixo,
encontrando na catação de resíduos sólidos a garantia da sobrevivência. Para Bihr:
A experiência mostra enfim que, passado certo tempo, o desemprego
provoca verdadeiros fenômenos de exclusão e de auto-exclusão em
relação ao mercado de trabalho, ainda que seja simplesmente pelo fato
da desvalorização de uma qualificação profissional já fraca
inicialmente. Os desempregados de longa duração são assim
progressivamente encerrados em um verdadeiro gueto social e
institucional (Bihr, 1998, p. 86).
127
A catação de materiais recicláveis, mais do que uma atividade que garante
alguma remuneração aos trabalhadores, corresponde à única forma que resta para
garantir sua sobrevivência e de sua família, tendo em vista uma constatada
impossibilidade de encontrar outra ocupação que garanta uma renda fixa, muito embora
o trabalho da catação corresponda a uma atividade laboral que atenta contra a saúde, a
moral e a dignidade dos trabalhadores da reciclagem. Não obstante isso, essas formas de
trabalho parecem perfeitamente integradas ao rol de ocupações aceitas pela sociedade,
incluindo poder público, que operam uma espécie de naturalização das condições sobre
as quais esses sujeitos devem desempenhar suas atividades, embora flagrantemente à
margem da sociedade no sentido de subverterem totalmente os preceitos sociais que
visem a garantir a todos a dignidade, a saúde, as condições para que desenvolvam suas
potencialidades enquanto seres humanos. A situação de miséria, a pobreza e a condição
de inferioridade econômica que atinge grande parte dos desempregados e trabalhadores
ocupados em atividades precárias e informais, aqui menciono os catadores de materiais
recicláveis, parecem ser normalizados não somente para o conjunto dos trabalhadores da
catação, mas para toda a sociedade. Nas palavras de Santos:
Ser pobre não é apenas ganhar menos do que uma soma
arbitrariamente fixada; ser pobre é participar de uma situação
estrutural, com uma posição relativa inferior dentro da sociedade
como um todo. Essa condição se amplia para um número cada vez
maior de pessoas. O fato, porém, é que a pobreza tanto quanto o
desemprego agora são considerados como algo “natural”, inerente a
seu próprio processo (Santos, 2000, p.59).
Essa espécie de naturalização e normalização da pobreza, em que a sociedade se
manifesta de modo a aceitar tacitamente a exclusão e a miséria como dimensões
legítimas da realidade social inserem-se num mais amplo processo de precarização de
vida ao qual são submetidos esses trabalhadores, e representam de alguma maneira uma
espécie de camisa de força que aprisiona, inclusive, as mentalidades dos trabalhadores
que se formam a partir da percepção dessa realidade, na medida em que as próprias
explicações para essas situações de desemprego e de precarização do trabalho são
produzidas recorrendo a argumentos construídos a partir de um referencial valorativo
128
que engendra a própria ordem social que os renega e condena. Nesse sentido, torna-se
bastante recorrente encontrar, nos discursos dos trabalhadores da catação, justificativas
elaboradas para justificar sua situação social e de trabalho ancoradas em argumentos
que se constroem em torno da noção de “falta de qualificação”, “falta de estudos
suficientes”, “indolência”.
Lançado em 1992, pelo cineasta Eduardo Coutinho, o documentário Boca de
Lixo
47
demonstra bem a dimensão do trabalho da catação e os rebatimentos das
condições de sua execução enquanto atividade de trabalho precarizada no universo
simbólico daqueles que a fazem e legitimam. A câmera de Coutinho passeia pelo lixo e
vai encontrar sobre montanhas de resíduos urubus e outros animais que fazem dele
alimento. E é através do lixo, ainda, que as histórias e visões de mundo das pessoas que
fazem dos resíduos encontrados seu material de consumo e sustento são apresentados
aos expectadores. Da imensidão do campo repleto de detritos e bichos os mais variados,
o expectador é confrontado com a aterradora imagem de seres humanos disputando
avidamente o mesmo alimento que poucos instantes era privilégio dos animais. Sim,
o que se não são bichos, mas homens comendo lixo, para lembrar as palavras do
poeta. O caminhão despeja os rejeitos, mostrando rudemente o objeto de disputa
daquelas pessoas: materiais recicláveis, mas também sobras de frutas, legumes, carnes
etc. desaproveitados.
Muitos catadores demonstram claramente insatisfação e incômodo com a
presença do cineasta, inclusive, escondendo os rostos, desconfiam da presença daquela
câmera e, talvez, num ímpeto de justificar aquela atividade tão desprezada
socialmente
48
, tão alvo do preconceito da sociedade, alguém se apressa em dizer “todo
47
COUTINHO, Eduardo. Boca de Lixo, vídeo documentário, 48min. 1992. O cenário onde são filmadas
as cenas do documentário corresponde a um ponto de escoamento de lixo em São Gonçalo, município do
Rio de Janeiro, espaços conhecidos comumente como “lixão”.
48
Em reunião realizada pela Cáritas Diocesana de Fortaleza, em junho de 2006, junto a organizações de
catadores de resíduos sólidos, em ocasião da semana do meio ambiente, após realização de dinâmicas de
grupo que objetivavam captar as percepções dos catadores em relação à imagem que acreditam que a
sociedade faz da atividade, os aspectos contraditórios mostraram-se patentes. Nessa ocasião os catadores
apontaram que: 1. A sociedade olha com critica e preconceito; 2. A sociedade tem preconceito e o
catador como pessoa desonesta e sem valor; 3. A comunidade tem respeito pela atividade desenvolvida
pelos catadores(as) e participa doando materiais. Ao mesmo tempo em que apontam uma manifestação
de preconceito da comunidade frente aos catadores, vendo-os como pessoas desonestas e sem valor,
respeitam a atividade desenvolvida eles, inclusive colaborando com o trabalho do recolhimento do
material reciclável.
129
mundo aqui trabalhando, não tem ninguém roubando aqui dentro, todo mundo
trabalha, ninguém rouba… todo mundo aqui porque depende…”, logo em seguida
ouvem-se aplausos...
A narrativa através das imagens e depoimentos situa o expectador até certo
momento num lugar comum, na apresentação dessa realidade, da catação, da forma
mais crua possível, levando a reflexões que, sem o impacto das imagens, talvez não
pudessem ser elaboradas. O ponto onde quero chegar está um pouco além da metade da
película, quando Coutinho monta dois depoimentos de duas catadoras de lixo que
afirmam estar ali por opção, que preferem o lixo, no dizer de uma delas, a trabalhar em
casa de família, segundo outra, “tem uma porrada de mulher aqui, uma porrada de
homem… que trabalha aqui porque é relaxado, porque prefere comer fácil, porque aqui
cai batata, porque aqui cai de tudo pra se comer, muita gente come porque quer”, e
acrescenta ainda, “trabalhar aqui… Eu tenho orgulho de trabalhar aqui!, porque não
tenho que ir na casa de ninguém pedir…”
A preferência pelo trabalho no lixo pela primeira justifica-se, sabe-se depois,
pelo fato dela também ter a intenção de ajudar o marido, situação que a permite ter uma
renda superior se caso estivesse trabalhando em casa de família Há, portanto, uma
dimensão profundamente contingencial que a impele aos resíduos. No caso da segunda,
o impacto de suas declarações são maiores na medida em que justifica a presença de
vários catadores no lixão devido a uma suposta indolência, acomodação, além de
possuírem certas “facilidades” como o abastecimento de alimentos garantido.
Interessante notar que, embora esses catadores desenvolvam sua atividade mesmo em
face de múltiplas carências, condições extremamente degradantes e insalubres de
trabalho, toda essa condição ainda não se faz elemento suficiente para impeli-los à
contestação de suas condições de vida e de trabalho. A cada hora e dia passados no
meio do lixo parece mover uma engrenagem que funciona como uma espécie de
amortizador do ímpeto transformador que poderia gestar-se no interior desses
indivíduos, que veem suas horas e dias obedecerem à expectativa gerada pelo entrar e
sair de caminhões repletos de restos despejados no lixão onde trabalham e vivem a
maior parte de suas vidas.
Não é demais admitir que nas condições precárias e extremamente adversas em
que vivem e trabalham esses catadores, mostra-se ainda mais difícil para esses
130
compreender mais profundamente as causas que podem condicionar em muito sua
situação, principalmente quando esses elementos pertencem a uma ordem de eventos
que nem sempre se mostram tão claros na forma como se ligam aos acontecimentos
cotidianos que envolvem suas rotinas. As explicações encontradas para a situação
vivenciada é buscada geralmente em argumentos que promovem um tipo de
autopunição, evocando questões que vão desde a senilidade, falta de estudo ou
capacitação, até o fato de serem jovens demais para realizarem outras atividades.
Contudo, ao fim e ao cabo, são argumentos que reforçam um pensamento de que estão
inaptos para conseguirem outros tipos de trabalho, conquistar condições melhores de
trabalho e vida. O interessante é que a categoria de trabalhadores que sobrevivem da
catação de resíduos sólidos não é composta em sua totalidade por analfabetos, idosos,
crianças etc., o que torna questionável, portanto, argumentos que busquem dar conta
dessa complexidade, ancorando-se tão somente em questões relacionadas à idade, à falta
de estudos, à ausência de formação/qualificação. Não obstante, a inaptidão pessoal é o
elemento nodal que conforma as consciências desses trabalhadores, fato que encobre a
percepção desses quanto à dimensão de sua formação como categoria de trabalho numa
apreensão histórico-social, que leve em consideração as condições materiais das quais
dispuseram para reproduzir suas vidas, elementos que poderiam favorecer, ou não, a
construção de condições diferentes de inserção no mercado de trabalho bem como de
reprodução de suas próprias vidas.
A fragilidade dos trabalhadores da catação é uma dimensão que merece
destaque. O trabalho dos catadores de resíduos sólidos insere-se numa complexa rede de
captação e comercialização de resíduos recicláveis. Um circuito produtivo que se
estabelece por meio de relações informalizadas de trabalho, dispersas pelo universo
urbano e que possuem o lixo como elemento cimentador, mediador das relações entre os
vários agentes que estruturam essa cadeia produtiva. Em artigo publicado no jornal O
POVO, 26/07/2008, intitulado “A riqueza que vem da cadeia produtiva do lixo”, Wânia
Caldas traz instigante reflexão sobre as dimensões que integram o circuito produtivo da
reciclagem partindo da seguinte constatação:
É fato: o lixo que é produzido em residências e empresas e é
devidamente separado gera emprego e renda para todos os que
131
compõem a cadeia produtiva da reciclagem. São milhões de reais que
circulam entre catadores que vivem de vender metal, plástico, papel e
vidro, pequenos sucateiros que lucram comprando e revendendo esses
materiais e empresários que enxergaram na reciclagem um bom
negócio. Isso sem contar com o enorme benefício que o
reaproveitamento representa para o meio ambiente (O POVO,
26/07/2008).
Após destacar os possíveis aspectos positivos da economia da reciclagem para os
trabalhadores que integram essa cadeia econômica bem como para a sociedade como
um todo, mais visível quando se considera a questão ambiental, a jornalista, numa
passagem que não ultrapassa dez palavras, revela que os catadores que reviram o lixo
retirado das ruas no aterro do Jangurussu convivem com condições subumanas de
trabalho. Essa dimensão do trabalho dos catadores fica mais clara quando a jornalista
apresenta as palavras de Ricardo Pereira, presidente do Sindicato das Indústrias
Metalúrgicas Mecânicas e de Materiais Elétricos do Estado do Ceará (Simec), em que
este afirma “É uma cadeia que reúne o milionário e o miserável e em que o milionário
precisa do miserável”. Para a jornalista “Eles compõem a cadeia produtiva da
reciclagem que cresce a cada ano sem atravessar crises(grifos meus). Pouco mais de
um ano após essa publicação, em novembro de 2009, e negando o entendimento
manifestado, o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis MNCR
lança artigo intitulado “A Crise Financeira e os Catadores de Materiais Recicláveis”, na
publicação Mercado de Trabalho, Conjuntura e Análise”, sob os auspícios do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA.
Esse interessante artigo demonstra como a crise financeira internacional que teve
seu epicentro na mais poderosa economia mundial, a norte-americana, provocou
rebatimentos no setor produtivo da reciclagem em todo o mundo, afetando de forma
mais intensa os catadores de materiais recicláveis, indivíduos que integram o ele mais
frágil da corrente. A despeito de a crise ter sua razão fundamental nas matrizes de
operações financeiras e, embora no Brasil esse tipo de operação não seja predominante
em nosso sistema financeiro, os setores da reciclagem foram duramente atingidos pelo
rebaixamento internacional das commodities, na medida em que
132
A crise generalizada afetou o setor da reciclagem, que em todo o
mundo tem preços ditados pela Bolsa de Valores de Londres. As
commodities de materiais recicláveis (aparas de papel, sucata de ferro
e plásticos) são classificadas como mercadorias primárias, ou
matérias-primas, que têm seu preço cotado e negociado de forma
global. Isto significa que os materiais coletados pelos catadores têm
preços, são negociados em vários países e estão sujeitos às variações
que as indústrias praticam ao redor do mundo, cotadas em dólar (p.
55).
Entre as várias razões que podem ter motivado a queda geral dos preços,
destacou-se uma tendência observada no mercado a cortar custos e, consequentemente,
operar uma significativa redução na produção. Junto a isso se observou certa preferência
dos setores produtivos por utilizar matérias-primas virgens ao invés de material
reciclável, pois houve certo aproveitamento do rebaixamento dos preços destas que se
encontravam estocadas, como foi o caso da utilização de enormes estoques de madeira
em detrimento do papel reciclável, fato que fez despencar os preços do papel reciclável
em todo o país. Ainda em janeiro de 2009, a Câmara de Dirigentes Lojistas do Ceará
CDL organizou um evento, em sua sede, que se propôs a discutir a crise financeira e
seus efeitos no Brasil. Na ocasião, conheci Pedro Neto, presidente da Associação de
Sucateiro e Reciclador do Estado do Ceará - ASRECE. Em sua participação no debate,
Pedro se deteve em expor o agravamento da situação socioeconômica dos catadores e
demais atores que fazem parte da cadeia produtiva do lixo, incluindo os deposeiros e
sucateiros, revelando as enormes perdas assimiladas pelo setor desde a eclosão da crise
financeira mundial. Apontou ainda para a emergência em se pensar um novo modelo de
desenvolvimento que tome como um de seus pilares a sustentabilidade. Numa entrevista
concedida a mim (07/02/2009), na sede da ASRECE, Pedro manifestara a
preocupação com o rebaixamento de preços que estava verificando na cadeia produtiva
da reciclagem e afetando todo o setor no Ceará:
Hoje o mercado da reciclagem chegou a cair 70% com essa crise
mundial. Alguém pode falar que não tem crise. Claro, o funcionário
público hoje que recebe o governo do estado ou do município não está
nem pra crise, porque ele sabe que chova ou faça Sol seu
dinheirinho está garantido, já o catador que vive da reciclagem vai pra
batalha. Há dois três meses antes da crise o catador juntava cem quilos
de papelão e conseguia apurar R$ 20, hoje consegue com a mesma
133
quantidade entre seis e oito. no Sudeste já fecharam seis indústrias
que compravam materiais nosso.
Não obstante o caráter real da crise e seus rebatimentos terem sido sentidos em
todas as esferas da cadeia produtiva da reciclagem, os mais prejudicados foram os
catadores de resíduos sólidos, na medida em que correspondem à categoria de
trabalhadores mais explorada do circuito produtivo tendo em vista a natureza
brutalmente precarizada de sua atividade, a falta de proteção social, ausência de
vínculos empregatícios e constituir um grupo de trabalhadores ainda com fraca
representação e poder de barganha frente aos setores empresariais e ao poder público.
Assim arcam com os maiores ônus, como atesta, em entrevista divulgada no documento
do IPEA, Mário Sérgio, diretor-presidente da RFR Reciclagem, empresa de
processamento de sucata e ferro: “essa queda se reflete mais rápido para o carrinheiro,
porque é onde conseguimos repassar imediatamente a redução do preço”.
134
4.3. Os Depósitos: os atravessadores e o comércio dos resíduos sólidos
A produção crescente para atender um tipo de consumo cada vez mais exigente e
efêmero alimentado pelo desenvolvimento sem precedentes das técnicas publicitárias
e de marketing - em sua satisfação exige, por outro lado, o descarte e rejeite daquelas
mercadorias tornadas obsoletas num ambiente mercadológico de relações cada vez mais
fluidas e superficiais, e marcadas pelo advento da produção destrutiva. Nesse sentido,
torna-se visível o fenômeno da produção monumental do lixo e do desperdício.
Fenômeno que alimentará com seus rejeitos a indústria da reciclagem que enxerga nos
dejetos descartados pelo consumo, principalmente de segmentos mais abastados da
sociedade, oportunidades de negócio e lucro.
Fortaleza, capital do estado do Ceará, configura uma metrópole com população
estimada de aproximadamente 2,4 milhões de habitantes, sendo a quinta mais populosa
do Brasil. Seus parques industriais, sediados em Maracanaú e Horizonte, além de outros
de menor porte, concentram 15.466 indústrias ativas, chegando a 66% dos
estabelecimentos registrados no Ceará (IBGE, 2000). Possui um centro comercial com
um número de oito mil lojas de pequeno, médio e grande porte que geram cerca 22 mil
empregos diretos, arrecadando recursos que representaram, em 2003, 14,5% do Produto
Interno Bruto (PIB) do estado, segundo dados da organização Ação Novo Centro
49
.
Com a formação de outros subcentros, no início da década de oitenta, a descentralização
de Fortaleza proporcionou a distribuição de atividades comerciais em vários outros
bairros.
Esses dados atestam o grande potencial da cidade no consumo de bens,
mercadorias e serviços. Entretanto, junto ao crescimento da produção e consumo das
economias industriais emerge também a preocupação com o que fazer com os detritos
produzidos por sociedades que conferem papel cada vez mais fundamental às relações
de consumo. A Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, (PNSB), realizada pelo
IBGE, informa que, em 2000, o total do lixo produzido diariamente no Brasil
correspondia a 228.413 toneladas, das quais 36% tinham como destino final aterros
sanitários, 37% iam para aterros controlados, 21% para lixões a céu aberto, 3% para
estações/usinas de compostagem e 1% para estações/usinas de triagem e reciclagem. Se,
49
Dados apresentados na 2ª reunião do Fórum sobre o centro de Fortaleza, realizado em 19/03/2004.
135
por um lado, isso significa que quase 80% de todo o lixo gerado no País tinha uma
destinação “adequada”, por outro, tomando-se os dados por municípios, verifica-se um
resultado diverso, que 64% dos municípios brasileiros ainda utilizavam vazadouros a
céu aberto (lixões) para disporem seus resíduos sólidos, 32% usavam aterros adequados,
e os restantes não informaram. De qualquer maneira, isso representa um avanço, que,
na mesma pesquisa realizada pelo IBGE em 1989, o percentual de municípios que
dispunha “corretamente” o lixo era de apenas 11% (Pesq. Nac. Saneam. Básico, 2002).
Por sua vez, em Fortaleza são coletados 90 mil toneladas de lixo por mês
50
,
desse montante cabe à reciclagem número da ordem de 15 mil toneladas de lixo
reciclável produzidos mensalmente, mas apenas 4,9 mil são reciclados atualmente, de
acordo com dados do Projeto Reciclando
51
. Esse quadro indica que existe um enorme
potencial econômico no setor ainda não explorado da indústria da reciclagem,
entretanto, traz à tona questões que são desconsideradas pelas indústrias do setor,
segmento mais privilegiado da cadeia produtiva, como, por exemplo, analisar sob que
condições ocorre o emprego da força de trabalho dos indivíduos envolvidos nessa
cadeia produtiva em constante expansão.
Quanto ao défcit habitacional no Brasil, este chega a nada menos que 5,5
milhões de moradias, das quais 3,9 milhões na zona urbana, computando-se o déficit
qualitativo e quantitativo. A necessidade de novas unidades habitacionais, com base no
crescimento vegetativo da demanda, chega a 600 mil por ano. As estatísticas mostram
ainda que, desse déficit, nada menos de 65% correspondem à população mais pobre, isto
é, com renda familiar de até três salários mínimos, na zona urbana, e nada menos de
80% do déficit na zona rural atinge as famílias que vivem com até dois salários
mínimos
52
.
Nossa cidade possui um déficit habitacional que atinge cerca de 164.000 pessoas
somente na região metropolitana e possui uma população de 700 mil pessoas vivendo
em favelas (IBGE, 2000). É nesse quadro de pobreza que se encontram os catadores de
materiais recicláveis. Saem em sua maioria dos bairros mais pobres e periféricos da
50
Segundo dados da EMLURB – Empresa de Limpeza e Urbanização e da ABRELP (Associação
Brasileira de Empresas de Limpeza Pública).
51
Projeto implementado pelo Governo do Estado em parceria com o SEBRAE (Serviço Brasileiro de
Apoio à Média e Pequena Empresa) e o Sindicato de Resíduos Sólidos do Estado do Ceará (Sindiverde).
52
Fonte: Projeto Moradia. Instituto Cidadania, Brasil, 2000; Prefeitura de São Paulo e Centro de
Estudos da Metrópole, 2002.
136
cidade. De modo geral é possível encontrar catadores espalhados por toda a cidade,
entretanto, a maior parte deles provém de bairros como Jangurussu, Serrinha, São
Cristóvão, Antônio Bezerra, Quintinho Cunha. De acordo com pesquisa realizada pelo
Instituto Municipal de Pesquisas, Administração e Recursos Humanos IMPARH, em
parceria com a Secretaria Municipal do Meio Ambiente – SEMAM e a Prefeitura
Municipal de Fortaleza - PMF, publicada no ano de 2006, a área metropolitana coberta
pela Regional VI
53
concentra aproximadamente 35% dos catadores de Fortaleza. O
trabalho dos catadores das ruas de Fortaleza que exploramos de forma mais detida até
agora, insere-se em uma complexa rede de captação e comercialização de resíduos
recicláveis. Um circuito econômico composto precipuamente de relações informalizadas
de trabalho e que se manifesta de maneira dispersa pelo espaço urbano, sendo as ações
de seus principais agentes percebidas na medida em que se observa o trabalho dos
catadores nas ruas e os depósitos que acumulam resíduos recicláveis instalados nas
cidades.
Os compradores de resíduos recicláveis apropriados pelos catadores espalhados
pela cidade, conhecidos por esses por deposeiros, sucateiros, ou simplesmente
compradores, participam do circuito econômico da reciclagem como espécie de
“receptadores” dos resíduos recolhidos por aqueles nas ruas da cidade, ou com qualquer
outro que queira comerciar pequena quantidade desses materiais como, por exemplo, as
pessoas que separam o próprio lixo doméstico e dirigem-se aos depósitos ou sucatas
para efetuar a venda dos materiais.
Os depósitos e sucatas estão instalados, em geral, nos centros urbanos onde
compram e acumulam os resíduos recicláveis, constituindo-se, dessa maneira, no ponto
principal de uma cadeia de comércio local que se alimenta dos resíduos produzidos pela
sociedade. Armazenam e estocam o material em galpões ou terrenos - embora estes nem
sempre atendam às exigências sanitárias e ambientais mínimas previstas na legislação.
Em certa manhã de sábado, na sede da ASRECE (Associação de Sucateiro e
Reciclador do Estado do Ceará), entidade legalmente registrada, mantive longa conversa
com seu presidente, Pedro Neto. O local se trata de um galpão que possui uma dupla
53
A Regional VI é considerada uma das mais populosas de Fortaleza. Possui em volta de 436.204
habitantes (IBGE, 2000) e compõe-se dos bairros: Jangurussu, São Cristóvão, Castelão, Barroso, Ancuri,
entre outros. Esses bairros são caracterizados pela ausência de infra-estrutura sanitária e urbana, com
áreas de habitação extremamente precárias, englobando ainda diversas áreas de risco de alagamento que
tem trazido sérios danos à população residente.
137
função: constituir escritório da associação ao mesmo tempo em que faz as vezes de um
depósito de materiais recicláveis.
O espaço não possui paredes divisórias, a não ser no local destinado ao único
banheiro, possuindo uma escrivaninha disposta ao centro, e mais ao fundo é possível ver
certa concentração de latinhas de alumínio, papelão e outros tipos de materiais, bem
como uma balança para pesagem dos materiais. Investigar o universo dos depósitos que
integram a cadeia produtiva da reciclagem implica direcionar o olhar investigativo para
os elementos que condicionam as formas de atuação e inserção destes indivíduos, os
deposeiros, no circuito produtivo bem como as formas de relacionamento que
estabelecem com os demais trabalhadores, aqui, representados pelos catadores de
resíduos sólidos. É nesse emaranhado de relações informais de comércio onde o que
saiu dos centros urbanos como lixo, refugo, rejeito do consumo e levado para o local de
disposição e confinamento, retorna novamente como resíduo reciclável, mercadoria. O
que foi expelido dos centros urbanos com custos para os poderes públicos municipais,
retorna, agora, como propriedade dos intermediários da reciclagem.
Um primeiro aspecto que me chamou muito a atenção foi perceber que ao
conversar com os deposeiros, a natureza do discurso mostrava-se radicalmente
deslocada do universo do discurso da miséria, em que o que mais se destaca na fala dos
interlocutores é a necessidade do asseguramento das condições nimas de existência
caso dos catadores -, para um discurso que entendo como empreendedor, na medida em
que busca dar relevo às possibilidades de crescimento dos investimentos feitos nesse
ramo dos negócios, “os investimentos no lixo” e nas vantagens em se operar com os
resíduos recicláveis discurso dos deposeiros. Essa perspectiva fica bem patente
quando Pedro apresenta sua visão sobre o comércio de recicláveis:
Ela [a reciclagem] deve ser vista como um negócio, como uma oficina
que pinta carros, como uma oficina mecânica. Quando se passar a ver
como esse processo vai ser muito melhorado.
Essa frase talvez resuma bem a visão de Pedro a respeito da reciclagem. Longe
de perceber seu trabalho apenas como elemento mediador que lhe possibilita acesso aos
bens materiais necessários para sua sobrevivência, como atesta a grande maioria dos
catadores de resíduos sólidos
54
, Pedro enxerga nessa atividade uma oportunidade de
54
Segundo pesquisa do IMPARH (Instituto Municipal de Pesquisas, Administração e Recursos Humanos,
2006).
138
negócio com franco potencial de desenvolvimento. Dessa feita, é possível se perceber
certo espírito empreendedor em Pedro, não afastando de seu discurso em nenhum
momento a dimensão empresarial do negócio que empreende. Afinal o interessante
não é o material reciclável ir para o lixo, melhor é ele ser reaproveitado, girar e gerar
renda pra quem trabalha com ele”. Segundo Pedro, o comprometimento com o trabalho
é algo que deve ser presente em todos que lidam com a reciclagem de modo a
proporcionar uma maior qualificação de mercado aos trabalhadores envolvidos, criando
um mercado mais competitivo e seguro para todos os envolvidos. Nesse sentido, ao
catador cabe especial importância:
Eu conversei com o responsável pelo lixo do shopping Dom Luís e ele
tava com uma ideia boa. Ele me pediu uma lista de 21 carroceiros para
serem cadastrados, treinados para catar o lixo dos condomínios
próximos e do shopping. Quando eu fui nos depósitos atrás, o
deposeiro me indicou três, mas disse que o problema é que eles
tomavam uma cachacinha. Eu disse que num me importava não, mas
que fosse depois do expediente dele. Nesse meio aqui a gente tá
preocupado é com o carroceiro. No fim ia ser bom porque ele ia
continuar vendendo o material no depósito dele e, assim, aumentaria o
movimento de material, o que vai haver é uma qualificação de
mercado.
Em relação aos catadores, identifica ainda que o alcoolismo e a droga são os
grandes problemas do meio”. O consumo dessas substâncias por parte dos catadores,
segundo Pedro, são nefastas na exata medida em que impede que os mesmos
desempenhem adequadamente suas atividades, assim “se ele consegue vinte, trinta reais
por dia e compra uma cachacinha pra tomar, no dia seguinte ele está sem força pra
puxar o carro. Como o trabalho dele é solto num pra controlar o que produz todo
dia, diferente de uma empresa, que tem que ter o compromisso”. Portanto, a falta de
disciplina para o trabalho seria um dos fatores que impediria os catadores de galgar
condições mais satisfatórias de vida. Assim, a falta de profissionalismo e
comprometimento com o trabalho pode prejudicar seriamente o andamento de toda a
cadeia de comércio que envolve os resíduos sólidos. Quanto à suposta condição de
vantagem dos deposeiros ao negociar os materiais coletados pelos catadores diz Pedro:
O dono do depósito é massacrador? Não, ele é sofredor igual aos
outros. É pesquisar por quanto ele compra e por quanto ele vende.
A diferença é que ele não vai catar o lixo, mas ele paga imposto.
139
E acrescenta ainda que o grande problema do deposeiro é a prefeitura, que
fiscaliza e proíbe a maior parte dos depósitos de funcionar porque entende que o
depósito é degradante, e não pode funcionar em área residencial”. Do lado dos
deposeiros, entende que encontram enormes dificuldades em legalizar os depósitos
devido às rígidas exigências legais. Dessa forma, acabam por manter seus
estabelecimentos funcionando à revelia da lei (sem as devidas licenças ambientais e
autorizações legais previstas na legislação em vigor). Daí resulta enormes conflitos com
a fiscalização da Prefeitura Municipal. A associação que preside tem como uma de suas
frentes de luta pressionar, sobretudo os órgãos fiscalizadores da prefeitura, que
ameaçam a continuidade da atividade da reciclagem a não fazerem valer o rigor da lei.
Acrescentou, ainda, que a situação irregular de vários depósitos é realidade conhecida
da esfera pública, argumentando que se a legislação fosse seguida à risca os prejuízos
seriam incalculáveis.
Os frutos do trabalho dos catadores são primeiramente apropriados pelos
deposeiros e, de maneira indireta, pelas indústrias, sem que isso, contudo, gere a
celebração de qualquer vínculo contratual de trabalho ou qualquer outro tipo de
formalização do negócio. De acordo com Calderoni (2001):
Segundo indicações de mercado, os sucateiros prestam à industria um
“serviço especial”: contratam carrinheiros sem pagar os encargos que
a legislação estabelece e os custos assim economizados são repassados
à industria sob a forma de preços baixos, por ela estabelecidos de
modo que os benefícios derivados de tal prática não venham a
redundar em ampliação da margem de ganho dos sucateiros
(Calderoni, 1997, p. 297).
As negociações estabelecidas entre deposeiros e catadores assumem inúmeras
formas no espaço urbano, entretanto, de modo a preservar algumas características
peculiares, como a necessidade dos sucateiros em controlar, de certa forma, o trabalho
dos catadores de modo a afastar concorrentes e garantir relativo monopólio no
recebimento dos materiais recolhidos das ruas pelos últimos, obtendo um negócio
sempre lucrativo e hierarquizado na medida em que se reproduzem relações de
dominação.
Essa dominação é exercida, em geral, pelos sucateiros sobre os catadores, que é
garantida não só pelo estado de miséria vivenciado pela maioria dos trabalhadores
catadores, mas também pelo “isolamento” e limitações com relação às possibilidades de
140
deslocamentos, o que não permite uma efetiva movimentação por parte dos catadores
que lhes possibilite romper com um sucateiro para negociar com outro em áreas
diversas da cidade, de forma a buscar o melhor preço. O sucateiro apresenta-se, ao fim e
ao cabo, como o “benfeitor” único, afinal o que o catador pode fazer com aquilo que
recolheu e está amontoado, se não vender? Além do mais, a necessidade imediata de
obter o dinheiro com a venda é mais um elemento de pressão.
Outro elemento que vem corroborar com essa situação é o fato de, na maioria
dos casos, os deposeiros serem os donos das carroças utilizadas pelos catadores em seu
trabalho, o que configura a despossessão dos catadores de seu principal instrumento de
trabalho, o que gera, mesmo que de modo indireto e não explícito, o dever de voltar e
negociar o material recolhido ao fim da jornada de trabalho com o depósito que cede a
carroça. Num primeiro momento, se é levado a crer que toda a negociação é feita em
comum acordo, um negócio que envolve duas partes que estão em igualdade de
condições para manifestar seus interesses e realizar a relação comercial, existindo até
mesmo certo “companheirismo” entre os envolvidos.
Não obstante não constitua fato incomum encontrar catadores insatisfeitos com o
tratamento e condução da negociação dos materiais feita por deposeiros, por outro lado,
também se percebe que existe uma ideia de fidelidade, baseada no fato de que aquele
deposeiro que detém a carroça e que sempre compra e comprou seus materiais deve ter
a preferência da compra. Esse vínculo fica mais claro quando algum problema acontece
com a carroça durante o expediente de trabalho do catador que a utiliza. Em caso de
pneu furado, peça quebrada, ou mesmo furto, cabe ao catador arcar com o ônus,
devendo, portanto, devolvê-la nas condições anteriores. No caso de Paulo e sua mãe, D.
Maria, logo em nosso primeiro contato manifestaram extrema angústia pela “obrigação
de pagar” a carroça que dias atrás havia sido furtada. Na ocasião, o dono do depósito
exigiu um ressarcimento de R$ 300,00 (trezentos reais). Embora a inexistência de
qualquer documento ou contrato que comprove que essa carroça fora cedida para que os
dois trabalhassem, a obrigação do pagamento pela perda é imposta pelo deposeiro de
forma inexorável. Formas alternativas de pagamento são possíveis como abatimentos
constantes e sucessivos nos valores a serem remunerados pelo depósito aos catadores no
ato da venda dos materiais recolhidos nas ruas. Em situações como essas, o nível de
dependência dos catadores é sensivelmente aprofundado.
Ao contrário do que ocorre na relação dos catadores para com os deposeiros, na
medida em que preservam os primeiros certos laços de fidelidade e, em geral, destinam
141
todo o material recolhido aos últimos, o sucateiro não é obrigado a comprar tudo o que
o catador recolhe, não se estabeleceu nenhum acordo no sentido da obrigação daquele
para com este. Se não demanda por parte da indústria a compra não acontece. Se o
preço pago por ela cai, imediatamente essa diminuição é repassada para o catador, que
tem sua renda diminuída e entra em dificuldades ainda maiores. Nesse sentido, Pedro
destacou que “devido ao preço do papelão está muito baixo, ninguém quer mais
trabalhar com ele, não compensa. E vai tudo pro lixo, é material que poderia ser
aproveitado e não é”. Obedecendo à lógica econômica definida, em geral, pela indústria,
os deposeiros, que cumprem papel de intermediários, acabam diversificando as formas e
os ritmos das compras, os preços pagos, e o tipo de material a ser coletado, isso tudo
variando de acordo com a situação de cada região ou localidade em proporcionar o
descarte de materiais lucrativos para o setor, e dependendo, ainda, considerando esse
setor econômico de forma mais ampla, da demanda do mercado nacional que pode
sofrer variações. Em última instância, algumas alterações nos preços e nas preferências
pelas mercadorias podem resultar da conjuntura econômica do mercado mundial.
Em alguns casos o depósito ou sucata dispõe de veículos grandes, como
caminhões, que utiliza para realizar o transporte dos vários materiais para outras
estruturas maiores de armazenamento, triagem e processamento dos resíduos. Portanto,
dependendo da capacidade de compra, de armazenamento e estrutura para transporte,
podem também atuar regionalmente. Entre os deposeiros, os empreendimentos de maior
vulto são denominados de armazéns. Estes, em geral, compram grandes quantidades de
material reciclável dos coletores e deposeiros de menor expressão, do ponto de vista
econômico, para realizar a triagem, a prensagem e o enfardamento desses materiais.
Possuem, para tanto, o maquinário adequado (como máquinas de prensa) bem como
dispõem da mão-de-obra empregada no trabalho realizado no interior dos armazéns.
Boa parte dos materiais tem como destino o abastecimento das indústrias locais e as
situadas fora do estado do Ceará como as indústrias de São Paulo (onde temos como
caso emblemático a venda de latas de alumínio aqui recolhidas).
No ambiente urbano, sua principal fonte de abastecimento constitui a
apropriação/exploração do trabalho dos catadores de resíduos sólidos que retiram das
ruas o material comprado por esses comerciantes. Para garantir sua lucratividade
desenvolvem uma economia de escala, ou seja, o lucro extraído do circuito econômico
da reciclagem está diretamente ligado à capacidade desses estabelecimentos em agregar
142
grandes quantidades de material para depois comercializar, garantindo, inclusive, a
estocagem dessas mercadorias em tempos de baixa dos preços.
Os deposeiros/sucateiros fazem a negociação dos materiais armazenados
diretamente com a indústria da reciclagem, diferentemente de como fazem os
trabalhadores catadores que encontram os resíduos nas ruas da cidade. Os entraves que
impedem o comércio desses últimos com a indústria recicladora de forma direta e sem
intermediários são muitos: primeiro, não interesse da indústria para que essa
negociação seja feita diretamente; os catadores têm necessidade premente do dinheiro,
por isso tem que comercializar diariamente; como não infra-estrutura para
armazenamento dos materiais recolhidos diariamente, também não conseguem acumular
grandes quantidades de mercadoria (dezenas de toneladas), afinal, conseguem coletar,
no máximo, algumas dezenas de quilos em cada jornada de trabalho.
A quantidade que acumulam individualmente justificaria economicamente o
investimento no transporte dos resíduos recicláveis de alguns depósitos/sucatas até as
indústrias recicladoras, na medida em que o volume de material comerciado, por vez, é
de escala satisfatória. Além disso, o conhecimento acerca de que tipos de materiais são
demandados pelo mercado da reciclagem é bastante importante, pois orienta a compra e
a venda dos deposeiros/sucateiros e a contabilidade dos custos/benefícios em se
trabalhar com materiais de certa qualidade.
As indústrias, por sua vez, mesmo conseguindo a matéria-prima para produção
de suas mercadorias a preços mais baixos - na medida em que as obtêm por meio de um
intrincado e complexo circuito produtivo que congrega várias formas de trabalho
informal e precário -, não colocam no mercado os produtos derivados dos recicláveis a
preços menores. Para Rodrigues (1998):
Nos dias atuais, para setores do circuito produtivo que realizam o
reaproveitamento (reciclagem) dos resíduos, a compra da mercadoria
lixo tem implicado menores custos de produção, embora os produtos
resultantes não tenham diminuído de preço no mercado de consumo, o
que implica a possibilidade de auferir maiores lucros (Rodrigues,
1998, p.140).
A garantia do lucro, portanto, está na utilização desse verdadeiro exército de
trabalhadores no resgate e na recuperação dos resíduos sem nenhum custo ou vínculo
contratuais. A indústria obtém o fruto do trabalho dos catadores sem necessariamente
143
tê-los como trabalhadores, ou, sequer, vínculo empregatício com eles, sendo que a
relação mais aproximada é feita, como foi possível argumentar, pelos depósitos/sucatas.
O trabalho da catação dos resíduos recicláveis aparece como um elemento a
mais no processo de coleta do lixo urbano da cidade, entretanto, um serviço que não traz
consigo reconhecimento social e ganha ares de invisibilidade no cotidiano urbano,
ligando-se, de certa forma, ao serviço de limpeza urbana nas ruas viabilizada pelo poder
público. Uma relação clandestina e marginal, na medida em que os catadores e os
compradores dos resíduos recicláveis atuam, na maioria dos casos, à revelia do poder
público. A manifestação e as condições do trabalho no lixo não se explicam em sua
escala de existência material imediata e aparente. Na verdade, o fenômeno é a porta de
entrada para o entendimento de questões mais amplas e complexas ligadas a
produção/reprodução da sociedade do capital.
Isso significa que é resultado de uma lógica que leva um grande número de
homens e mulheres ao inglório terreno da exclusão social via precarização de suas
relações de trabalho e negação das possibilidades de reproduzir-se dignamente enquanto
ser social, o que resulta na ampliação crescente do contingente de excluídos e
miseráveis na sociedade.
144
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A [im]produtividade da atividade da catação como pilar de sustentação do
circuito econômico da reciclagem
A despeito de não poucas vozes que se erguem, nos dias de hoje, alardeando aos
quatro cantos que vivemos um momento de transformação nas formas de engendrarmos
as sociabilidades contemporâneas, tudo isso em função do advento de relações que se
estruturam e determinam obedecendo a padrões lastreados pelo consumismo, foi
possível verificar que subjaz a esse fenômeno uma lógica de produção do descartável
que visa a atender um tipo de consumo cada vez mais exigente e efêmero, porém
orientado por uma natureza destrutiva, de obsolescência que encontra seu paroxismo no
aprofundamento da taxa de utilização decrescente das mercadorias, que provoca, por
sua vez, a diminuição de sua vida útil e o consequente descarte prematuro dos frutos do
trabalho produtivo. É nesse sentido que analisar esses elementos torna-se fundamental
para se entender o problema relacionado à geração de resíduos sólidos em geral - o
desemprego e as formas precárias de ocupação laboral - e compreender também as
determinações e contradições que envolvem o circuito econômico da reciclagem dos
materiais e o trabalho na catação.
Chega-se então a um possível paradoxo: na medida em que a argumentação
desenvolvida apresenta um sistema produtor de mercadorias em que sua lógica
reprodutiva pressupõe abreviar a vida útil, ou seja, obsoletizar as mercadorias a fim de
expandir o processo de reprodução do capital e, consequentemente, maximizar os
lucros, que processo estimularia então a recuperação dos materiais presentes em
diversos tipos de resíduos e os altos investimentos verificados no circuito econômico da
reciclagem?
Primeiro, foi constatado a complexa rede que constitui a cadeia produtiva da
reciclagem que se tece numa intrincada rede de compra e venda e circulação de resíduos
recicláveis, mediante utilização/exploração de modo bastante diversificado da força de
trabalho empregada no setor, a depender do grau de diversificação das técnicas, dos
processos industriais e das formas desenvolvidas de aproveitamento e coleta dos
materiais envolvidos no circuito produtivo. Vale ressaltar, ainda, que a organização do
trabalho se baseia em relações formais e informais, de acordo com os agentes
145
envolvidos. No caso dos catadores que trabalham nas ruas, estes se encontram no
terreno da informalidade. A exclusão, o desemprego, a marginalização e o subemprego
são elementos que encontram materialização quando se busca entender o papel do
catador na reciclagem, categoria de trabalhadores que influi diretamente na composição,
formação e distribuição da força de trabalho em toda a cadeia produtiva da reciclagem e
que podem ser englobados na dimensão de um fenômeno maior: a informalidade.
Trabalhadores à deriva, tendo sua força de trabalho transformada em supérflua,
desprotegidos da legislação, pois não mais possuem vínculos empregatícios formais ou
qualquer forma de proteção social, sofrendo total degeneração e precarização de sua
força de trabalho
55
. Encontramos então “(...) Neste cenário de desprezo pelos direitos de
cidadania (...) de degradação do poder aquisitivo e da qualidade de vida, de
marginalização de largos segmentos da população, de desmantelamento das
organizações dos trabalhadores e de crescentes veis de desemprego, (...) o fenômeno
da informalidade” (Malaguti, 2000, pp. 62, 63).
Assim, quando se fala em reciclagem, também se está falando de um complexo
circuito comercial que possui diferentes níveis de exigência cnica, bem como pode se
valer da utilização em larga medida de mão-de-obra precarizada, na medida em que a
maioria dos trabalhadores da catação que atuam nas ruas e depósitos não possui
qualquer vínculo empregatício, seja com os depósitos, armazéns ou indústrias,
proporcionando aos grandes investidores do setor vultosa lucratividade. Assim, a
lucratividade acaba por se manifestar como o grande estímulo dos maiores investidores
do setor (armazenadores e industriais) que exploram essa atividade econômica em seus
vários níveis, e enxergam nela a possibilidade de ampliar seu capital investido.
Portanto, ao passo que a renda auferida pelos catadores após a venda do material
recolhido é irrisória, servindo apenas para reproduzir a sua força de trabalho, situação
que subjuga esses indivíduos ao limiar da sobrevivência, por outro lado, essa condição
de super-exploração do trabalho do catador aparece como condição fundamental para a
55
Giovanni Alves em artigo intitulado Desemprego Estrutural e Trabalho Precário na Era da
Globalizaçãochama atenção para o surgimento do que denomina de subproletariado tardio, categoria
que engloba aqueles que estão inseridos no setor de serviços, informal, os subempregados e todos aqueles
que de alguma forma são “precariamente” empregados, como uma das conseqüências da metamorfose e
redução da classe operária tradicional que se insere no contexto da mundialização do capital, “a
subproletarização tardia é a nova precariedade do trabalho assalariado sob a mundialização do capital.
Ela surge não apenas em setores tradicionais (e desprotegidos) da indústria (e dos serviços), mas,
principalmente, em setores modernos da produção capitalista (...). Deste modo, o que denominamos
subproletarização tardia é constituída pelos trabalhadores assalariados em tempo parcial, temporários
ou subcontratados, seja na indústria ou nos serviços interiores (ou exteriores) à produção do capital”.
146
manutenção dos elevados ganhos e valorização do capital. A precariedade do trabalho
da catação revela-se, desse modo, como uma situação imanente à própria lógica
reprodutiva do circuito econômico da reciclagem, uma vez que se respeitada a
legislação trabalhista e os contratos formais de trabalho dos catadores, a reciclagem dos
resíduos se tornaria menos rentável e economicamente inviável para os demais agentes
da cadeia. Essa é uma das dimensões que asseguram os ganhos do capital investido no
setor. A outra diz respeito à possibilidade de através da reciclagem ser possível
recuperar o trabalho já materializado nos objetos coletados.
Tratando do primeiro aspecto levantado, os catadores constituem o pilar
fundamental sobre o qual se estrutura toda a cadeia produtiva da reciclagem, uma vez
que são os responsáveis por cerca de 90% de todo o trabalho realizado na cadeia
produtiva, desde a coleta dos resíduos nas ruas até os processos de triagem e
enfardamento dos materiais nos depósitos, segundo estimativa do MNCR. Entretanto,
são notórias as péssimas condições em que se desenvolvem as atividades desses
trabalhadores nas metrópoles brasileiras, fato que contrasta com a importância para toda
a economia do setor bem como seu papel ativo desempenhado ao recuperar os materiais
recicláveis que estavam fadados ao “esquecimento”, misturados a outros rejeitos sem
poder econômico. Assim, de acordo com Gonçalves (2006):
a exploração de seu trabalho em condições insalubres, precárias e com
a utilização de instrumentos rudimentares, garante que a mercadoria
recolhida por eles, e que retorna ao circuito mercantil, possa ser
comprada a um preço que permita o seu processamento e posterior
comercialização, mantendo uma atraente margem de lucro, que variará
de acordo com as especificidades de cada um deles, em momentos
específicos (Gonçalves, 2006, p. 115).
Não por outro motivo, se os catadores realizassem seu trabalho devidamente
cobertos pelos direitos sociais e trabalhistas assegurados aos trabalhadores pertencentes
ao setor formal da economia, mantendo vínculo empregatício com as indústrias que se
beneficiam dos resíduos recicláveis, ou mesmo com os depósitos atravessadores, se
realizassem suas atribuições de separação, classificação, triagem e enfardamento dos
materiais em locais portadores de condições técnicas e de salubridade adequados, tudo
isso representaria aumento de custos em decorrência de investimentos a serem
realizados pelos agentes investidores do setor, representando, consequentemente, uma
147
considerável redução dos lucros, o que poderia inviabilizar, em último caso, a
reciclagem de certos materiais. Diante dessa realidade, pode-se imaginar o quanto
custaria para os compradores/atravessadores garantir as botas, as luvas, as máscaras
e os veículos adequados para coletar e transportar os resíduos recicláveis, na
substituição dos pesados carrinhos de duas rodas que são empurrados pelas ruas, e o
que isso representaria na sua lucratividade(Gonçalves, 2006, p. 116). Assim, quando
se cobram investimentos no setor, as reivindicações em sua maioria são atendidas pelo
setor público a partir da implementação de políticas públicas, seja no incentivo à
formação de cooperativas com sua instrumentalização, treinamento e capacitação de
mão-de-obra, ou mesmo políticas que visam garantir a doação de materiais recicláveis a
cooperativas de catadores como forma de assegurar a demanda desses materiais
56
. O
aprofundamento das condições precárias em que desempenham suas atividades
representa a certeza do aumento da lucratividade dos setores industriais ligados à
reciclagem.
A segunda dimensão a ser destacada corresponde ao fato de no processo de
recuperação dos resíduos, através da reciclagem, não somente os aspectos físicos e
químicos que compõem determinados objetos são revitalizados, mas também o valor
conferido pelo trabalho materializado nesses objetos desde seu processo produtivo
anterior. Nesse sentido, a recuperação do valor de uso dos dejetos os permite uma
ampliação de suas possibilidades de utilização no mundo povoado pelas mercadorias,
com objetivo último de recuperar seu valor de troca. Segundo Marx (1998):
O trabalho objetivado no valor da mercadoria é representado não
sob o aspecto negativo em que se põem de lado todas as formas
concretas e propriedades úteis dos trabalhos reais; ressalta-se, agora,
sua própria natureza positiva. Ele é, agora, a redução de todos os
trabalhos reais a sua condição comum de trabalho humano, de
dispêndio de força humana de trabalho (Marx, 1998, p. 89).
Assim, a forma geral do valor provoca a transmutação de todos os produtos do
trabalho em massa de trabalho humano sem diferenciações, mostrando por meio de sua
própria estrutura, que é “a expressão social do mundo das mercadorias” (Idem, p. 89).
Conclui Marx, portanto, que “o caráter específico desse mundo é constituído pelo
56
Como forma de exemplificar o último ponto relacionado, cabe ressaltar que em 15 de dezembro de
2009, por meio da aprovação de emenda aditiva N. 14 ao projeto de lei complementar N. 0036/2009, a
Câmara Municipal de Fortaleza faz valer o seguinte texto da referida lei: “Será concedido desconto de 5%
(cinco por cento) no valor do IPTU nos casos de imóveis que instituam separação de resíduos sólidos e
que destinem sua coleta para associações e/ou cooperativas de catadores de lixo”.
148
caráter geral humano do trabalho” (Idem). Na medida em que, somente com a troca,
adquirem os produtos do trabalho, como valores, uma realidade socialmente homogênea
que os permite integrar o panteão das mercadorias sob o sistema capitalista, a despeito
de sua heterogeneidade de objetos úteis, adverte- nos Marx que “esta cisão do produto
do trabalho em coisa útil e em valor só atua, na prática, depois de ter a troca atingido tal
expansão e importância que se produzam as coisas úteis para serem permutadas,
considerando-se o valor das coisas por ocasião de serem produzidas” (Marx, 1998, p.
95). É partindo dessa dimensão, que Bihr (1999) afirma:
Em primeiro lugar, o capitalismo só se interessa por um valor de uso a
medida que ele é suscetível de preencher uma função de suporte de
uma relação de troca. Portanto, somente a medida que nele se acha
valor materializado, que ele é produto de um trabalho humano (Bihr,
1999, p. 126).
Não obstante opere a taxa de utilização decrescente da mercadoria sobre todas as
mercadorias, embora em grau de intensidade distinto, conservando, dessa forma,
potencialidade de reaproveitamento de rios resíduos, muitos desses não serão
recuperados, mesmo constituindo a materialização de trabalho humano e compostos por
materiais possíveis de serem recuperados. Para que tal empreendimento ocorra será
necessário o cumprimento de alguns pressupostos: devem integrar o rol de resíduos que
dispõem de tecnologia para viabilizar a recuperação, devem ser produzidos em larga
escala e possuir geração contínua, mercado de consumo assegurado, trabalho precário
empregado em sua produção, baixos custos de produção e lucratividade no
empreendimento.
É, pois, nessa específica situação que aqueles resíduos recolhidos pelos
catadores nas ruas não podem ser considerados apenas como lixo, algo absolutamente
desprezível. Na realidade, tratam-se de objetos em que “o trabalho está incorporado (...).
Concretizou-se, e a matéria está trabalhada. O que se manifestava em movimento, do
lado do trabalhador, se revela agora qualidade fixa, na forma de ser, do lado do produto.
Ele teceu, e o produto é um tecido” (Marx, 1998, p. 215). Assim, os rejeitos do
consumo da sociedade apropriados pelos catadores nas ruas da cidade são “produtos que
têm trabalho humano incorporado e que possuem determinado valor de uso para
indústria da reciclagem, o que possibilita a sua comercialização” (Gonçalves, 2006, p.
116). Mesmo no momento da apropriação desses objetos/resíduos pelos catadores para
fins comerciais, esses possuem valor enquanto mercadoria, embora irrisório e
149
desprezado pela maior parte da população. Na medida em que esses materiais
constituirão matéria-prima para as indústrias passam a despertar o interesse em sua
dimensão mercadológica, tendo em vista que “toda matéria-prima é objeto de trabalho,
mas nem todo objeto de trabalho é matéria-prima. O objeto de trabalho é matéria-
prima depois de ter experimentado modificação efetuada pelo trabalho” (Marx, 1998, p.
212). Portanto:
aquele objeto que era ou compunha determinada mercadoria, e em um
outro contexto social e econômico foi considerado lixo, a partir da
apropriação feita pelo catador que irá trocá-lo por dinheiro,
recolocando-o novamente em um circuito econômico, passará por um
processo de valorização e assumirá novamente variadas possibilidades
de uso, ampliando o seu papel no mundo das mercadorias (Gonçalves,
2006, p. 117)
Desse modo, o que foi mercadoria, fruto do trabalho humano e considerado lixo
tem as dimensões de seu valor de uso ampliadas pela intervenção do trabalho vivo na
medida em que conservam trabalho humano materializado, que alarga suas
possibilidades nas relações travadas no mercado, pois “os produtos do trabalho anterior,
que, além de resultado, constituem condição de existência do processo de trabalho, só se
mantêm e se realizam como valores-de-uso através de sua participação nesse processo,
de seu contato com o trabalho vivo” (Marx, 1998, p. 217). Os resíduos recicláveis, ao
serem levados para as indústrias, passarão por um processo de transformação que,
através de processos de trabalho com diferentes graus de complexidade, permitirão
mudanças na qualidade física e/ou química dos resíduos de modo a aumentar suas
potencialidades, aplicações e usos, promovendo um redimensionamento de seu valor-
de-troca.
Em face desse complexo processo de recuperação do valor-de-uso desses
resíduos, que traz novamente à tona objetos esquecidos e descartados que, em não raros
casos, significavam um prejuízo ao meio ambiente, verifica-se certa indução do
pensamento em ver nesse processo um passo para uma mudança substancial da forma
como os homens se relacionam entre si e com o meio ambiente, sobretudo em face da
famigerada crise ambiental que atravessamos. o obstante, porém, a importância dos
processos de reciclagem e reaproveitamento de resíduos que certamente cumprem
significativo papel na busca por intervenções menos danosas no mundo, no sentido de
diminuir as agressões ao meio ambiente natural, cabe tentar compreender qual a gica
150
que subjaz todo e qualquer processo produtivo de mercadorias em nossa sociedade,
tendo em vista que mesmo nos processos industriais da cadeia produtiva da reciclagem
o lixo reciclado é utilizado como matéria-prima para nova produção de mercadorias.
Nesse sentido, lembro as palavras de Marx:
Na produção de mercadorias, nosso capitalista não é movido por puro
amor aos valores-de-uso. Produz valores-de-uso apenas por serem e
enquanto forem substrato material, detentores de valor-de-troca. Tem
dois objetivos. Primeiro, quer produzir um valor-de-uso que tenha um
valor-de-troca, um artigo destinado à venda, uma mercadoria. E
segundo, quer produzir uma mercadoria de valor mais elevado que o
valor conjunto das mercadorias necessárias para produzi-la, isto é, a
soma dos valores dos meios de produção e força de trabalho, pelas
quais antecipou seu bom dinheiro no mercado. Além de valor-de-uso,
quer produzir mercadoria; além de valor-de-uso, valor, e não só valor,
mas também valor excedente (Marx, 1998, p. 220).
A lucratividade é, portanto, o grande estímulo dos maiores investidores do setor,
que exploram essa atividade econômica em seus vários veis, e não propriamente a
tomada de consciência desses atores sociais no que diz respeito à problemática
ambiental em torno do lixo e o que fazer com ele. Ao capital empregado no processo
industrial de reciclagem, deve corresponder a produção de mais-valia, ou seja, a
exploração do trabalho não pago do trabalhador. Pois são os catadores os maiores
responsáveis por movimentar esse “circuito que envolve a triagem e transporte dessas
mercadorias dentro das mais diferentes cidades, lugares de geração e concentração dessa
matéria-prima, os resíduos sólidos recicláveis, que vão para dentro das indústrias de
reciclagem e retornam das mais diferentes formas para um novo consumo(Gonçalves,
2006, p. 120).
O material recolhido pelos catadores segue seu rumo, passando pelos depósitos,
galpões especializados para triagem, pesagem, para então, pelas mãos de atravessadores
(deposeiros, coletores, armazenadores), chegar às pré-indústrias de beneficiamento que
irão preparar a matéria-prima para a indústria final, onde o “milagre” da transformação
é realizado. Novas mercadorias são produzidas para ser reinseridas no mercado após
uma longa jornada que envolveu o descarte dos restos de um consumo anterior da
sociedade aprofundado em função da atuação da taxa de utilização decrescente das
mercadorias, que opera uma brutal diminuição da vida útil dos produtos do trabalho, a
exploração do trabalho extremamente precário dos catadores, bem como a apropriação
pelo capitalista do trabalho materializado no resíduo desde sua produção anterior, a
151
circulação desses materiais num circuito extremamente complexo que envolve vários
outros agentes econômicos que lucram com a comercialização dos resíduos para, ao
final, servir de matéria-prima para a indústria final, proporcionando a esta enormes
economias e vultosos lucros, além de apontar para um setor produtivo em rápida
expansão no Brasil.
Num contexto de crise, desemprego estrutural de longa duração e reconcentração
de capital, essas atividades laborais extremamente degradantes alastram-se e ganham
maior visibilidade em função do agravamento da “questão social”, pois, embora
representem atividades indispensáveis para a sobrevivência daqueles que as
desempenham, por outro lado, cumprem papel significativo no processo de produção de
sobretrabalho, valorização e acumulação do capital, mergulhando esses trabalhadores
numa situação crescente de degradação, espoliação e miséria. Não por outro motivo,
considero que grande parcela das pessoas que integram a cadeia produtiva da
reciclagem dormita nos limites da precarização do trabalho, da informalidade e da
exploração, possuindo pouca margem e possibilidades de reação ou ascensão social.
Assim, as questões relativas à geração de resíduos e descarte de lixo, bem como
a extrema miséria na qual se encontra grande parte dos trabalhadores, não podem ser,
simplesmente, resolvidas a partir de perspectivas que se detenham tão somente na
dimensão aparente do fenômeno. Torna-se imperioso atuar na transformação dos
processos que os geram, que conferem a eles uma forma aparentemente livre de
contradições. Falar do trabalho no lixo e do próprio lixo, sem abordar, contudo, a lógica
do sistema produtor de mercadorias, não nos permitirá pensar em ações transformadoras
capazes de conferir novo sentido à produção e ao consumo, que não a própria
reprodução do capital.
Aprofundar a compreensão desses fenômenos a fim de entender o trabalho
precário na catação implica, por outro lado, em discutir as mediações e conflitos
existentes entre capital e trabalho, levá-los às últimas consequências para, desse modo,
empreender ações não paliativas, que tendam a revelar os conflitos ao invés de não
aprofundá-los ou tratá-los levianamente, inscrevendo-os na dimensão da luta de classes,
e viabilizando possibilidades alternativas à lógica destrutiva do capital que ameaça,
nestes tempos, toda a humanidade. Embora distante da contraposição romântica
Baudelaireana frente ao fato de podermos estar diante de processos destruidores do
152
mundo, capitaneados pelo aviltamento dos corações, faço minhas últimas palavras as do
poeta quando este diz:
Je crois que j’ai dérivé dans ce que les gens du métier appellent un
hors-d’œu-vre. Cependant, je laisserai ces pages, parce que je veux
dater ma colère.
tristesse
57
57
Traduzo livremente: “Creio que derivei no que as pessoas do ramo chamam de hors-d’œuvre (entrada,
ou aperitivo). Entretanto, deixarei estas páginas porque quero datar minha ira. Tristeza”. (Fragmento
XV da série Fusées, que abre os Journaux intimes do poeta).
153
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ANEXOS
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ANEXO I – Mercado de Trabalho: Conjuntura e Análise -
IPEA
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