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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
DANIELA DOS SANTOS SOUZA
DEVOÇÃO E IDENTIDADE: O culto de Nossa Senhora dos Remédios na
Irmandade do Rosário de São João del-Rei – séculos XVIII e XIX
São João del-Rei
Agosto de 2010
Programa de Pós-Graduação em
História
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2
DANIELA DOS SANTOS SOUZA
DEVOÇÃO E IDENTIDADE: O culto de Nossa Senhora dos Remédios na
Irmandade do Rosário de São João del-Rei – séculos XVIII e XIX
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal
de São João del-Rei como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em História. Área de
concentração: Poder e Cultura
Linha de pesquisa: Poder e relações sociais
Orientador: Prof. Dr. Marcos Ferreira de Andrade
São João del-Rei
Agosto de 2010
Programa de Pós-Graduação em
História
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Souza, Daniela dos Santos
S729d Devoção e identidade: o culto de Nossa Senhora dos Remédios
na Irmandade do Rosário de São João del-Rei –
séculos XVIII e
XIX [manuscrito] / Daniela dos Santos Souza .– 2010.
180f.
Orientador: Marcos Ferreira de Andrade.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de São João
del Rei, Departamento de Ciências Sociais.
Referências: f. 181-187.
1. Irmandades – Teses. 2. Religião – História – Teses.
I . Remédios, Nossa Senhora dos – Teses. II. Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário, São João del-Rei (MG) – Teses.
III. Universidade Federal de São João del Rei. Departamento de
Ciências Sociais. IV. Título.
CDU: 981.51SJ62“18/19”
4
DANIELA DOS SANTOS SOUZA
DEVOÇÃO E IDENTIDADE: O culto de Nossa Senhora dos Remédios na Irmandade do
Rosário de São João del-Rei – séculos XVIII e XIX
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de São João del-Rei como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em História. Área de concentração: Poder e
Cultura. Linha de pesquisa: Poder e relações sociais
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Ferreira de Andrade - Orientador
Universidade Federal de São João del-Rei
(UFSJ)
___________________________________________________
Prof. Dr. Anderson José Machado de Oliveira
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO)
___________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Silvia Maria Jardim Brügger
Universidade Federal de São João del-Rei
(UFSJ)
___________________________________________________
Prof. Dr. Danilo José Zioni Ferretti - Suplente
Universidade Federal de São João del-Rei
(UFSJ)
5
Aos meus pais, Geraldo e Lourdes,
por tudo que significam na minha
existência.
6
AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas e instituições contribuíram decisivamente para que este trabalho
pudesse tornar-se realidade. Embora esteja correndo o risco de alguma omissão e
esquecimento, gostaria de registrar publicamente alguns sinceros e especiais agradecimentos.
Primeiramente, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – CAPES – pela concessão da Bolsa de Mestrado que me permitiu realizar a
pesquisa.
Nos diversos arquivos por onde pesquisei, várias pessoas me receberam e me
auxiliaram com muita atenção e cordialidade. No Arquivo da Igreja do Rosário de São João
del-Rei, agradeço a Nelson Antunes, que me permitiu fotografar rios registros da
Irmandade do Rosário, recebendo-me sempre com simpatia e disponibilidade. Ao Rodrigo,
pelo auxílio na produção fotográfica da imagem de Nossa Senhora dos Remédios.
No Arquivo da Matriz do Pilar de São João del-Rei, sou grata ao Monsenhor Paiva,
que me consentiu pesquisar a documentação das irmandades de São João del-Rei, e ao
Giovanni, pelas diversas vezes que me recebeu e não poupou esforços no sentido de facilitar
meu acesso aos documentos.
Aos funcionários do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN –
de São João del-Rei, sobretudo ao Jairo, Diretor da instituição, que me possibilitou fotografar
todos os documentos de que precisei para a pesquisa; a Marizélia, estagiária na época de
minha visita, que esteve sempre atenta às minhas solicitações.
No Arquivo Eclesiástico de Mariana, ao Monsenhor Flávio agradeço o especial
tratamento que me dispensou e a sua permissão para a consulta no Museu do Livro
(Biblioteca dos Bispos Marianenses). Neste último, sou grata à dedicação e à presteza da
funcionária Glorinha, que em muito facilitou meu trabalho.
Na Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, em Belo Horizonte, a Aparecida, pela
atenção e boa vontade.
Ao Departamento de História da Universidade Federal de São João del-Rei UFSJ,
não pelo que pude aprender com os Professores, mas também pelo apoio que recebi de
nosso Coordenador do Mestrado, Professor Doutor João Paulo, e nossa Secretária, Luciana,
que foi competente e incansável no atendimento das minhas solicitações e dúvidas. Ao Ailton,
pela continuidade desse apoio.
7
Aos membros da Banca de Qualificação, formada pelos Professores Doutores
Anderson José Machado de Oliveira e Sílvia Maria Jardim Brügger, pelas diversas sugestões,
que, na medida do possível, foram incorporadas a este trabalho. Aos dois devo a generosidade
na cessão do banco de dados de suas pesquisas.
Sou extremamente grata ao meu orientador, Professor Doutor Marcos Ferreira de
Andrade, que, desde a iniciação científica, me acompanha. Ele representou confiança, crítica,
incentivo e paciência. Se a dissertação apresenta alguma qualidade, afirmo que foi por causa
da sua insistência e seriedade. Foi muito generoso em vários momentos, sobretudo quando me
emprestou seus livros, o equipamento fotográfico e os CDs do Projeto Resgate. Como se não
bastasse, fui agraciada com sua amizade, privilégio de sua presença constante.
São João del-Rei não foi apenas o cenário desta pesquisa. Tornou-se também meu
local de residência por dois anos. Nesse período, pude contar com a convivência agradável de
alguns colegas de mestrado, entre eles Renata, Ricely, Lusirene, Marlon, Marcelo Crisafulli e
Ciro. Denílson também faz parte desse grupo e gostaria de registrar sua bondosa amizade.
Duas pessoas preciosas durante esse tempo em São João foram Dona Glória e o
Senhor Juquinha, vizinhos formidáveis e extremamente afáveis. Acolheram-me como filha,
dando-me imenso carinho e atenção. Tornamo-nos eternamente amigos. Agradeço-lhes por
tudo!
Alguns amigos foram importantes, pois estivemos juntos no decorrer do tempo da
pesquisa, quando pude contar com o seu apoio e o seu incentivo, assim como tem sido ao
longo de minha vida. São eles: Silvana Teles, André Fadul, Gal e Léo. Agradeço a alegria de
nossas saídas, que muito contribuíram para o meu equilíbrio emocional, permitindo-me
chegar ao final deste trabalho. Da mesma forma, sou grata à querida amiga Kátia Malloy pelas
vibrações de ternura e estímulo, fundamentais para o meu fortalecimento. Ao amigo
Alexandre, por nosso convívio no Centro Universitário de Belo Horizonte UNI-BH e pelo
constante apreço e incentivo. A Kátia, em Portugal, que, em meio à correria do dia a dia,
encontrou tempo para me enviar a dissertação que encontrei na Biblioteca Nacional
Portuguesa. Obrigada!
Por fim, à minha família, que significa um capítulo especial em tudo isso. E a meus
pais, Geraldo e Lourdes, em quem encontrei inspiração e amor para enfrentar todos os
desafios. Não tenho palavras que expressem minha eterna gratidão. Agradeço também aos
meus irmãos, Luiz Fernando e Pollyana, e sobrinhos, Ana Clara, Felippe e Luana, pela torcida
constante. Ao primo Aguinaldo, por sempre me cercar de apoio e carinho, sobretudo nas
horas mais difíceis. Aos tios queridos, Joana, Maria Rosa, Carlos, Sônia, Tânia e Zezé (in
8
memoriam) pelos estímulos para seguir adiante. A este último, presto minha homenagem em
particular. Um especial agradecimento ao inesquecível tio Artelino Borges (in memoriam).
9
RESUMO
Esta pesquisa analisa a devoção à Nossa Senhora dos Remédios, estruturada na
Irmandade do Rosário em São João del-Rei, Minas Gerais, desde o culo XVIII, e a sua
popularidade na primeira metade do XIX. O estudo traz à tona a discussão sobre as estratégias
de formação de identidades coletivas de grupos diversos, que interagiam num mesmo espaço
de sociabilidade. Nessa reflexão, a devoção é compreendida enquanto um processo de
construção de coesão grupal, que tem como catalisadores dois aspectos simbólicos atrelados à
imagem da santa: o da liberdade e o da saúde. Dentre os aspectos analisados, destacam-se o
contexto em que a irmandade estava inserida e suas transformações ao longo do tempo; o
perfil dos membros participantes, a organização dos grupos no interior da confraria, bem
como suas estratégias de preservação hierárquicas; as devoções estruturadas na instituição e
seus aspectos simbólicos. A pesquisa utiliza os métodos de análise quantitativos e
qualitativos, assim como o cruzamento onomástico, todos propostos pela micro-história.
10
ABSTRACT
This research analyses the worship of Nossa Senhora dos Remédios (Our Lady of
Medicines) based around the Irmandade do Rosário (Rosary Brotherhood) in the town of São
João del-Rei, state of Minas Gerais, since the 18
th
century and its popular appeal in the first
half of the 19
th
century. This study brings to light the discussion on strategies to establish
collective identities for several groups that interacted in the same conviviality space. Here,
worship is understood as a process of building up a group bond that had as its catalysts two
symbolic aspects connected to the image of the saint: that of freedom and that of health.
Among the analyzed aspects the following stand out: the context where the brotherhood
moved about and the way it changed through time; the profile of members, the organization of
groups within the brotherhood, and also their strategies to keep their positions in the
hierarchy; and the worship rituals based around the institution and their symbolic aspects. The
research employs both quantitative and qualitative analysis methods, as well as cross analysis
of names, all propositions of microhistory.
11
SUMÁRIO
Introdução 15
Capítulo 1 – A vida associativa e religiosa em São João del-Rei 23
1.1 – Irmandades leigas e os critérios de filiação 23
1.2 – São João del-Rei – vida associativa e religiosa 29
1.3 – Irmandades negras e devoção 43
Capítulo 2 – Sociabilidades e identidades na Confraria do Rosário sanjoanense 60
2.1 – Os confrades – homens e mulheres, escravos e livres 60
2.2 – Origem dos confrades e a organização dos grupos 77
2.3 – Rivalidades entre grupos: africanos X crioulos, africanos X africanos 92
2.3.1 – Devoções: identidades em negociação 97
Capítulo 3 – Nossa Senhora dos Remédios na Irmandade dos Pretos 120
3.1 – Santa padroeira da Ordem dos Trinitários 122
3.2 – Símbolo de liberdade e de saúde – atributos e milagres 130
3.3 – Não há epidemia, nem mal tão contagioso e maligno que a Senhora não
desterre 152
Conclusão 175
Fontes Manuscritas 178
Fontes Impressas 180
Referências Bibliográficas 181
12
TABELAS
TABELA 1 – Composição dos irmãos na Irmandade do Rosário de São João del-Rei,
segundo o sexo e a condição social – séculos XVIII e XIX 61
TABELA 2 – Composição dos irmãos na Irmandade do Rosário de São João del-Rei,
segundo o sexo e a origem – séculos XVIII e XIX 62
TABELA 3 – Composição dos irmãos na Irmandade do Rosário de São João del-Rei,
segundo o sexo e a origem – século XIX 64
TABELA 4 - Origem dos irmãos na Irmandade do Rosário de São João del-Rei, nos
séculos XVIII e XIX 84
TABELA 5 – Principais origens dos membros da Irmandade do Rosário de São João
del-Rei, segundo sexo, condição e origem – séculos XVIII e XIX 90
TABELA 6 – Condição dos ocupantes de cargos na Irmandade do Rosário de São
João del-Rei, nos séculos XVIII e XIX 102
TABELA 7 – Juizados de santos ocupados na Irmandade do Rosário de São João
del-Rei , nos séculos XVIII e XIX 110
TABELA 8 – Juizados de santos ocupados na Irmandade do Rosário de São João
del-Rei, segundo condição e sexo, nos séculos XVIII e XIX 112
TABELA 9 – Origens dos juízes por devoção na Irmandade do Rosário de São João
del-Rei, nos séculos XVIII e XIX 115
TABELA 10 – Devotos ocupantes dos juizados na Irmandade do Rosário de São
João del-Rei, de 1803 a 1844, segundo as profissões 149
QUADROS
QUADRO 1 – Datas de fundação das principais irmandades organizadas em São
João del-Rei no século XVIII 38
QUADRO 2 – Santos associados aos problemas de saúde e proteção contra
feitiçarias no Rio de Janeiro (1808-1850) 143
QUADRO 3 – Os santos associados aos problemas de saúde em Minas Gerais no
século XIX 145
QUADRO 4 – Devoções nas irmandades de São João del-Rei, séculos XVIII e
XIX 146
13
QUADRO 5 – Principais causas de morte no Rio de Janeiro – século XIX 154
QUADRO 6 – Doenças dos escravos nos relatos dos viajantes em Minas Gerais,
século XIX 156
GRÁFICOS
GRÁFICO 1 – Registros de óbitos no Termo de São João del-Rei – 1782 a 1800 164
GRÁFICO 2 – Registros de óbitos no Termo de São João del-Rei – 1801 a 1822 164
GRÁFICO 3 – Irmãos que declararam a devoção ao registrar sua entrada na
Irmandade do Rosário de São João del-Rei – 1761 a 1850 166
IMAGENS
IMAGEM 1 (A) – Nossa Senhora dos Remédios, Igreja do Rosário de São João
del-Rei, séculos XVIII e XIX 169
IMAGEM 1 (B ) – Nossa Senhora dos Remédios, Igreja do Rosário de São João
del-Rei, séculos XVIII e XIX (destaque atributos) 170
IMAGEM 2 – Nossa Senhora dos Remédios na Igreja de Paraty, século XVII 171
IMAGEM 3 – Nossa Senhora dos Remédios na Igreja de Paraty, século XIX 172
IMAGEM 4 – Nossa Senhora dos Remédios do Santuário de Lamego – Portugal 173
IMAGEM 5 – Nossa Senhora dos Remédios, Padroeira da Ordem Trinitária com a
cruz azul celeste e vermelha ao peito 174
14
ABREVIATURAS
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino
AINSR-SJDR – Arquivo da Irmandade Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei
APNSP-SJDR – Arquivo da Paróquia Nossa Senhora do Pilar de São João del-Rei
BMBCA- SJDR- Biblioteca Municipal Batista Caetano de Almeida de São João del-Rei
BPELB-BH – Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa em Belo Horizonte
IPHAN-SJDR - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de São João del-Rei
MLM - Museu do Livro de Mariana (Biblioteca dos Bispos Marianense)
15
INTRODUÇÃO
Deparamo-nos com os documentos da Irmandade do Rosário de São João del-Rei, pela
primeira vez, ainda na graduação, no Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH),
quando fomos bolsista, durante todo o ano de 2007, no projeto de pesquisa “Sociabilidades e
Identidades: negros, afro-descendentes e mestiços no termo da vila de São João del-Rei
séculos XVIII e XIX”.
1
Tratava-se de um dos livros que registrava a entrada de irmãos,
contendo inúmeros assentos. Cada um contava um pouco da vida daquele novo membro
nome, data do seu ingresso na instituição, condição, origem, nome do proprietário (caso fosse
escravo), estado conjugal, cargo que ocuparia na irmandade (se fosse o caso) e sua declaração
ao santo de devoção. A grande quantidade de devotos de Nossa Senhora dos Remédios e de
mulheres associadas à irmandade nos chamou a atenção e algumas questões nos vieram à
mente, na época: Por que tantas mulheres na irmandade? Teria sido sempre assim? Por que
Nossa Senhora dos Remédios era tão popular entre os confrades naquele período? Quais
significados teriam essa devoção para atrair tantos devotos?
Essas foram as primeiras indagações que nos instigaram a desenvolver esta pesquisa.
Para respondê-las, precisávamos entender a irmandade por dentro e por fora. Seria importante
compreendermos a dinâmica de seu funcionamento, a composição dos irmãos e as funções
cotidianas da instituição. Também era necessário percebermos o contexto em que a associação
estava inserida São João del-Rei assim como o período escolhido, 1801-1850. As fontes
nos possibilitariam reconstituir essa história.
O objetivo central de nossa pesquisa consiste, portanto, em estudar a devoção a Nossa
Senhora dos Remédios, abrigada na Irmandade do Rosário de São João del-Rei, e a
popularidade que a santa ganhara entre os devotos na primeira metade do século XIX.
Aos moldes de Portugal, a Colônia e, depois, o Império foram palco para a expansão
de inúmeras devoções, que expressavam expectativas particulares dos diversos grupos
socioculturais. Desde os primeiros povoamentos, os santos se faziam presentes, nomeando e
protegendo os diversos lugares que iam aparecendo. À medida que a sociedade se
estratificava, novas invocações surgiam, assim como novos templos. Os santos chegavam às
mais longínquas localidades por meio dos seus devotos, que erguiam santuários, criavam
irmandades, assim como dos eremitas e de outros veneradores. Quanto às irmandades, os
1
O referido projeto foi coordenado pelos Professores Maria Tereza Pereira Cardoso, Sílvia Maria Jardim
Brügger, Marcos Ferreira de Andrade e Anderson José Machado de Oliveira, com financiamento da FAPEMIG.
16
membros devotos edificavam igrejas e, nelas, estabeleciam as devoções com as quais mais se
identificavam.
Havia um leque de ofertas devocionais, difundidas por agentes evangelizadores, que
estavam a serviço da Igreja aqui no Brasil, orientando e canalizando a das massas urbanas.
Grande aliado da Igreja Colonial, o santo servia como exemplo de virtude e de atitudes de
subordinação à Igreja, tanto para homens brancos quanto para os chamados “de cor”. Aqui no
Brasil, vários foram os santos eleitos para proteger a população negra. Entre eles, destacaram-
se Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santo Antônio de Catalagerona, Santo Elesbão e
Santa Efigênia, geralmente preferidos pelos pretos; Nossa Senhora das Mercês, dos
Remédios, da Boa Morte, do Amparo e São Gonçalo Garcia, preferencialmente escolhidos
pelos crioulos, pelos pardos e pelos libertos.
Nossa Senhora do Rosário foi escolhida como padroeira dos negros que se
estabeleceram no início do antigo Arraial de Nossa Senhora do Pilar, ainda na primeira
década do setecentos. Depois de construída a primeira capela, por volta de 1720, novas
devoções foram estruturadas na igreja São Benedito, Santo Antônio de Catalagerona e
Nossa Senhora dos Remédios dois santos negros e uma branca. O que teria motivado a
estruturação de novos cultos? Qual a identificação dos diversos grupos, no interior da
irmandade, com esses oragos? Teriam as devoções funcionado como fronteiras identitárias
dos grupos presentes? Nossa Senhora dos Remédios estaria atrelada a algum grupo
específico? Que tipo de assimilações os devotos fizeram com essa devoção?
As respostas para as nossas indagações perpassam por uma discussão inserida nos
debates sobre as sociabilidades negras no período escravista. Pretendemos contribuir para o
avanço na compreensão do papel ativo do negro na formação da sociedade brasileira,
procurando analisar a atuação de africanos e seus descendentes no contexto da irmandade e
suas estratégias para a construção de múltiplas identidades sociais.
As irmandades, enquanto organismos associativos, refletiram as diversas
estratificações existentes no corpo social brasileiro e nos mostram de modo claro a formação
da própria sociedade. Estudos pioneiros sobre as irmandades negras reconheceram a
importância dessas instituições na formação de identidades sociais, mas viram-nas como
organismos adesistas do sistema em que o negro não desenvolveu uma autonomia política.
2
Estudos recentes contrapõem o primeiro posicionamento, ao demonstrarem que as irmandades
2
BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder. São Paulo: Ática, 1986; e SCARANO, Julita. Devoção e
Escravidão: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São
Paulo: Nacional (Coleção Brasiliana), 1976.
17
negras eram espaços de construção de identidades, pois possibilitavam aos seus membros a
afirmação de uma insígnia sociocultural fundamental para que o grupo existisse dentro da
sociedade escravista.
3
Ao abrigar diversos grupos étnicos, os espaços confrariais eram locais
de sociabilidades onde as identidades se construíam e se reconstruíam, num complexo jogo de
negociações e conflitos em que os próprios confrades estavam envolvidos.
4
Sociabilidade e identidade são dois conceitos-chave para a realização de nossa
investigação. Sociabilidade é palavra antiga, que se refere aos indivíduos e aos grupos em
comunidade, incluindo os mais diversos laços relacionais, sinônimo de socialização, de
agrupamento, de civilização, etc.
5
Porém, só nas últimas décadas os estudos em torno das
sociabilidades se têm ampliado e conquistado o campo da pesquisa histórica, do entendimento
das várias associações constituídas e suas transformações, num quadro geográfico e
cronológico delimitado.
6
Marco Morel cita Maurice Agulhon como pioneiro dessa perspectiva
e nos chama atenção para os tipos de sociabilidade, que podem ser formais e informais. As
primeiras são as que se estabelecem institucionalmente de alguma maneira e as segundas se
desenrolam em espaços abertos, em relações de familiaridade, isto é, proximidade das mais
diversas.
7
A irmandade pode ser considerada um espaço de sociabilidade nos dois padrões
apontados por Morel. A formal, quando o irmão se associa à confraria, e a informal, quando
os membros agem entre si e/ou com os grupos ali constituídos.
Ainda sobre esse conceito, Agulhon salienta que, na vida associativa,
[...] a sociabilidade pode ser específica, pois existem no seio de toda
associação as regras de comportamento e das satisfações da vida comunal
que estão independentes da finalidade própria e de objetivo ostensivo de
cada categoria de associação. Dessa forma, a sociabilidade será desenvolvida
de acordo com as condições sociais e políticas, jurídicas e culturais
existentes em cada contexto, tornando-se assim uma categoria histórica.
8
3
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da Cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de
Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; OLIVEIRA, Anderson de. Devoção Negra:
santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet/FAPERJ, 2008; BORGES, Célia Maia.
Escravos e libertos nas irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais séculos XVIII e
XIX. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005.
4
REIS, João José. Identidade e Diversidade étnicas nas Irmandades negras no tempo da escravidão. In: Revista
Tempo, Departamento de História da UFF, Niterói/RJ, vol. 2, número 3, 1996, pp. 7-33.
5
MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade
imperial (1820-1840). São Paulo: Editora Hucitec, 2005, p. 220.
6
Idem, ibidem.
7
Idem, ibidem, p. 221.
8
[...] comporte aussi d’autre part une sociabilité spécifique, car il existe au sein de toute association des règles
de comportement, et des satisfactions de vie commune, qui sont indépendantes de la finalité propre et du but
ostensible de chaque catégorie d’association. [...] Cela dit, le phénomène associatif est loin d’être tributaire de la
sociabilité présumée du milieu ambiant, il l’est, bien plus encore, des conditions sociales e politiques, juridiques
e culturelles, et c’est pourquoi la vie associative n’a pas attendu, pour trouver ses historiens, que la sociabilité
18
Nesse sentido, a análise das maneiras de sociabilidade, engendradas na irmandade aqui
em questão, seguirá a proposta do autor supracitado.
Sobre o conceito de identidade, partiremos da perspectiva de Fredrik Barth, para quem
sua definição está atrelada à autoatribuição dos indivíduos ou grupos e, ainda, à atribuição dos
outros àquele indivíduo ou ao grupo, isto é, os próprios atores escolhem alguns sinais que os
identificam no ambiente interétnico, que, por sua vez, serão implicados na manutenção da
fronteira étnica
9
. Para Barth, “na medida em que os atores usam identidades étnicas (língua,
costumes, religião, região, etc.) para categorizar a si mesmos e a outros, com objetivos de
interação, eles formam grupos étnicos no sentido organizacional”.
10
Ainda afirma que o
encontro de unidades étnicas no seu sentido original não é mais possível. A preocupação
agora é com a identificação da diversidade do grupo em sua organização.
11
Manuela Carneiro
da Cunha compartilha da mesma perspectiva de Barth e afirma que “a identidade é construída
de forma situacional e contrastiva, ou seja, que ela constitui resposta política a uma
conjuntura, resposta articulada com as outras identidades em jogo, com as quais forma um
sistema”.
12
Nesse processo de construção identitária, vamos aqui focalizar o papel da devoção
enquanto símbolo de coesão de grupo. Seguiremos a perspectiva de Anderson de Oliveira,
quando afirma que a devoção também cumpria o papel de garantir a diferenciação do grupo
frente aos demais segmentos da sociedade, singularizando-o e garantindo-lhe um espaço de
representação,
13
ou seja, os grupos escolhiam a devoção da padroeira com a qual se
identificavam para inaugurar a irmandade e, internamente, os diversos grupos reunidos no
mesmo espaço lançavam mão do culto, utilizando-o como fronteira grupal, demarcando,
assim, sua representatividade frente aos demais membros. O autor também deixa claro que a
questão da identidade dentro das irmandades podia variar no tempo e no espaço.
14
soit devenue une catégorie historique.” AGULHON, Maurice. Pénitents et Francs-Maçons de l’ancienne
Provence: essai sur la sociabilité méridionale. Nouv. ed. Paris: Fayard, 1984, p. 8 (Tradução nossa).
9
Sobre fronteira étnica, Barth diz que “[...] os grupos étnicos se mantêm como unidades significativas, se
acarretam diferenças marcantes no comportamento, ou seja, diferenças culturais persistentes [...] Se um grupo
mantém sua identidade quando seus membros interagem com outros, disso decorre a existência de critérios para
determinação do pertencimento, assim como as maneiras de assinalar este pertencimento ou exclusão”. BARTH,
Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Tomke Lask (org.). Rio de Janeiro: Contra Capa,
2000, pp. 33-35.
10
Idem, ibidem.
11
Idem, ibidem.
12
CUNHA, Manuela Carneiro. Negros, estrangeiros: os escravos, libertos e a sua volta à África. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 206.
13
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit.
14
Idem, ibidem.
19
Foi o que constatamos em São João del-Rei. Vamos observar, no decorrer deste
trabalho, que, da mesma forma como ocorreu a organização confrarial na vila, os cultos
estruturados na Irmandade do Rosário obedeceram à especificidade de sua demanda, levando-
se em conta a composição dos membros e suas necessidades particulares, os conflitos grupais,
suas buscas de preservação hierárquica e de poder. Iremos demonstrar que, embora a devoção
na irmandade negra corrobore, em parte, a mensagem doutrinária pretendida pela Igreja, que
visa promover a veneração dos santos entre determinado grupo de fiéis, ela abre, na prática,
um leque de possibilidades de apropriações da figura do santo, as quais não estavam,
necessariamente, previstas no projeto da Igreja Católica. Nesse sentido, não o grupo em
torno da devoção pode variar, de acordo com o espaço e as conjunturas temporais, como
também os seus respectivos interesses. Isso demonstra o próprio limite do projeto da Igreja e
deixa claro o papel ativo do negro naquele contexto.
Na época da estruturação do culto de Nossa Senhora dos Remédios, na Irmandade do
Rosário de São João del-Rei, em meados do século XVIII, a identificação dos devotos com a
santa se orientou mais pelos critérios de distinção social, presentes naquela sociedade. Por
isso, o aspecto simbólico da liberdade, atrelado à figura da santa, pode ter sido mais
assimilado pelos fiéis. No final do mesmo período e início do seguinte, além do papel de
distinção de grupo que a devoção demarcava, novas conjunturas direcionaram os critérios de
assimilação. Dessa vez, o simbolismo da saúde ganhou mais notoriedade.
A periodização principal deste estudo é a primeira metade do século XIX, tendo como
marco final o ano de 1850, que foi pensado por ter significado o fim do tráfico atlântico de
escravos para o Brasil. Nossa intenção é demonstrar que, mesmo com as mudanças estruturais
provocadas por eventos como a chegada da Corte, a Independência do Brasil, o período
Regencial, práticas e costumes coloniais ainda permaneceram na irmandade durante boa parte
do período de que estamos tratando. A princípio, pretendíamos investigar o impacto que a
expressiva entrada de africanos nos portos brasileiros, nesse espaço de tempo, poderia ter
causado na confraria, isto é, como poderia ter alterado a organização dos grupos e as relações
ali constituídas. Porém, para percebermos as variações e as mudanças que ocorreram na
irmandade, foi necessário flexibilizar o período escolhido e recuar um pouco no tempo, para o
início do século XVIII, quando a irmandade foi inaugurada e, mais tarde, o culto a Nossa
Senhora dos Remédios foi estruturado.
Gostaríamos ainda de chamar a atenção para os termos irmandade e confraria,
utilizados nesta pesquisa. Segundo Caio Boschi, são chamadas irmandades as associações
que, além de exercerem obras de piedade e caridade, implicam organicidade de cunho
20
hierárquico, envolvimento e participação ativa dos membros. E as irmandades, que também
tenham sido criadas para o incremento do culto público, recebem o nome de confrarias.
15
Diante disso, como as entidades mineiras, sobretudo as de São João del-Rei, foram instituídas
com todas essas características ao mesmo tempo, vamos aqui considerar irmandade e
confraria como termos sinônimos.
A investigação das fontes foi realizada considerando os métodos quantitativos,
comuns aos estudos de cunho demográfico, econômico e social;
16
e os qualitativos, típicos das
abordagens da micro-história, ou seja, baseadas na redução da escala de observação em que o
material documental passa por um estudo intensivo e minucioso, para se poderem observar
questões mais amplas.
17
Dentro desta última perspectiva, também utilizamos o método do
cruzamento onomástico,
18
que consiste em, literalmente, perseguir o nome em meio a um
amontoado de fontes, no nosso caso, aqui, os registros de batismo, casamento, óbitos, livros
de entrada de irmãos e de receitas e despesas da irmandade, inventários post mortem e
testamentos.
O corpo documental básico foi composto pelos registros da Irmandade do Rosário de
São João del-Rei, especialmente os livros de entrada de irmãos, números 17, 20 e 23, e os de
receitas e despesas, um sem mero, e o outro, de mero 28.
19
Os três livros de admissão
dos irmãos pesquisados contêm registros de 1747 a 1859. Para montar o banco de dados,
foram coletados 3.307 assentos, dos quais utilizamos 2.689, incluídos no período investigado
aqui, de 1747 a 1850. O outro banco de dados foi elaborado a partir das informações coletadas
nos livros de receitas e despesas. Foram 2.744 registros entre 1803 e 1844. As informações
colhidas nos possibilitaram reconstituir o perfil dos irmãos, segundo o sexo, a condição, a
origem, a profissão e o estado conjugal. Também nos foi possível definir a ocupação dos
cargos nas irmandades e verificar a articulação dos grupos na administração da confraria,
assim como perceber a preferência devocional dos confrades.
A partir dos nomes de alguns confrades, outros documentos foram coletados e
analisados. Fizemos uma busca nominal em documentos, como inventários, testamentos e
15
BOSCHI, Caio. Op. cit., pp. 14 e 15.
16
A quantificação também é utilizada pela micro-história. REVEL, Jacques (org.). Jogos de Escala: a
experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1998.
17
LEVI, Giovanni. Sobre a Micro-História. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: novas perspectivas.
São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, pp. 133-162; e REVEL, Jacques. Op. cit.
18
GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991; e LEVI, Giovanni. A herança
imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
19
Estes foram os livros de possível leitura, uma vez que os outros, referentes ao período aqui estudado, não
tinham condições nem de manuseio e muito menos de leitura, pois estavam em péssimo estado de conservação,
muito danificados por insetos e com muitas folhas compactadas.
21
registros paroquiais
20
de batismo, casamento e óbito. Eram mulheres forras, proprietários de
alguns escravos da irmandade, reis da confraria e devotos de Nossa Senhora dos Remédios. A
intenção era verificar o perfil socioeconômico desses devotos e reconstituir relações com
parentes, presentes na confraria, e com outros membros na instituição, como, por exemplo, os
seus escravos. Nos registros paroquiais, pesquisamos a filiação desses irmãos, desses
cônjuges e as suas ligações com a irmandade. Nossa maior dificuldade nesse cruzamento
onomástico foi a questão dos homônimos. Para constatarmos que se tratava da pessoa que
procurávamos, tínhamos que ter em mãos informações específicas, como a filiação do
confrade, o nome do cônjuge (quando casado), o proprietário (se fosse escravo), entre outros
detalhes. Caso contrário, a confirmação não poderia ser feita.
Para a análise do funcionamento da Irmandade do Rosário sanjoanense, foram de
extrema importância os seus livros de compromissos de 1787 e 1841. Essas fontes nos
permitiram averiguar ainda as mudanças e as permanências na confraria de um século para o
outro, pois regras foram alteradas, algumas, retiradas, e outras, incluídas. Para reconstituirmos
a vida associativa em São João del-Rei, os compromissos das outras irmandades negras da
localidade, inauguradas até 1750, foram consultados.
As Atas da Câmara nos elucidaram sobre a problemática de doenças na região e as
providências tomadas pelas autoridades para restabelecer a saúde entre a população. Foram
dois livros, LAD 92 e LAD 93, contendo representações e provisões. Fizemos a leitura de
todos esses documentos, relativos ao período entre 1801 e 1814, em busca de informações
sobre a epidemia de 1808. Encontramos apenas os relativos à ampliação dos recursos para o
hospital já instalado na vila e a autorização para a construção do lazareto. A partir dessas
fontes, foi-nos possível perceber a situação da saúde na vila, naquele período.
Encontrar vestígios da origem da devoção dos Remédios foi um pouco mais difícil,
uma vez que a maioria dos documentos sobre o assunto estava mais voltada para o conjunto
de estudos teológicos acerca da Virgem Maria, a mariologia. Quando se faz menção aos
vários títulos de Nossa Senhora, a Virgem dos Remédios tem análise superficial, quando
informação. Foi através da história da Ordem Hospitalar da Santíssima Trindade, da qual a
santa é padroeira, que conseguimos reconstituir a origem da devoção e seus aspectos
simbólicos.
20
Registros pesquisados no banco de dados elaborado pelas Professoras Sílvia Maria Jardim Brügger, Maria
Tereza Pereira Cardoso e Maria Leônia Chaves. Agradeço à Professora Sílvia Brügger que me facultou o acesso
a este banco de dados.
22
O trabalho está estruturado em três capítulos. No primeiro, preocupamo-nos em
apresentar como se deu a vida associativa em São João del-Rei, isto é, como foram sendo
organizadas as irmandades mais tradicionais da vila até 1750, tanto as dos negros quanto as
dos brancos, seguindo os critérios de distinção social, presentes naquela sociedade, que
levavam em conta a cor, a condição, a origem e o status dos indivíduos participantes. Nessa
exposição, consideramos os relatos de viajantes e memorialistas sobre a formação e a
expansão da Vila de São João del-Rei e sua religiosidade. Contemplamos ainda os trabalhos
recentes sobre o seu desenvolvimento socioeconômico e cultural, que se tornou importante
núcleo urbano, populacional, econômico e político na primeira metade do século XIX. A
chegada da Corte nesse período trouxe muitas mudanças para a vila sanjoanense, porém não
foram suficientes para modificar alguns preceitos que vigoravam na Colônia, como teremos
oportunidade de mostrar.
No segundo capítulo, analisamos a composição dos membros da confraria do Rosário
segundo o sexo, a condição, a origem, o estado conjugal, a profissão, os cargos na irmandade
e as devoções declaradas pelos irmãos. Procuramos, com essas informações, desvendar a
articulação dos grupos no interior da confraria e sua busca pela preservação identitária,
hierárquica e de poder, sendo-nos possível reconstituir algumas redes de sociabilidade. Em
meio às articulações engendradas, constatamos como as devoções no interior da confraria
foram utilizadas para demarcar fronteiras de grupos. Discutimos ainda a significativa presença
feminina no seu interior, reflexo da tendência demográfica da região e das atividades
econômicas desenvolvidas por elas.
O tema central deste trabalho é aprofundado no terceiro e último capítulo. A partir da
reconstituição da origem do culto a Nossa Senhora dos Remédios, foi possível detectar quais
as assimilações que os devotos fizeram, ao escolherem a santa, e o que justificou tamanha
popularidade a partir da última década do século XVIII e início do seguinte. Procuramos
analisar os atributos presentes na imagem da santa que enfatizaram a sua capacidade de
atender às demandas, variando ao longo do tempo. Desse modo, a devoção foi estudada a
partir dos seus aspectos simbólicos, que não permitiram construir identidades coletivas,
mas também possibilitaram aos negros reconstruir parte de suas memórias sobre a África.
23
CAPÍTULO 1
A VIDA ASSOCIATIVA E RELIGIOSA EM SÃO JOÃO DEL-REI
Antes de iniciarmos o estudo sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e a
análise, propriamente dita, do tema central desta pesquisa, é importante apresentarmos alguns
aspectos históricos da vida associativa e religiosa na destacada Vila da Comarca do Rio das
Mortes, São João del-Rei. Começaremos por descrever, de forma breve, como foi o fenômeno
confrarial em Minas Gerais e seus critérios de filiação, que serão convenientes para
compreendermos suas influências no processo da vila sanjoanense. Muitos fatores foram
determinantes na organização das irmandades, entre eles, a cor, a origem social, a atividade
profissional e até mesmo a naturalidade. Dessa forma, tais instituições expressaram
nitidamente os contornos da sociedade local, seus conflitos, suas articulações e suas
solidariedades.
21
Em São João del-Rei, as irmandades foram sendo organizadas juntamente
com o desenvolvimento daquele território. Por isso, neste capítulo, contemplaremos os
aspectos econômicos, populacionais, políticos e culturais, sobretudo os que dizem respeito à
religiosidade, relativos à vila, abordados pela historiografia mineira e apresentados nos relatos
dos viajantes e dos memorialistas. Isso nos permitirá entender a estratificação daquela
sociedade e a busca pela representatividade dos diversos grupos sociais, tendo como espaço
favorável as irmandades.
Veremos, ainda, neste estudo, como se constituiu a escolha das devoções para o
erguimento das irmandades negras na vila sanjoanense, seguindo as ofertas devocionais
difundidas na colônia pelo clero secular e pelos missionários das ordens religiosas. Alguns
cultos eram direcionados a determinados segmentos da população negra, como os pretos e os
pardos.
1.1- Irmandades leigas e os critérios de filiação
As irmandades religiosas surgiram e se desenvolveram na América Portuguesa ao
longo do processo de colonização, tendo como modelo as organizações fraternais portuguesas
disseminadas na Idade dia.
22
Integraram-se com facilidade ao cotidiano político, social e
religioso dos colonos, pois assumiram várias responsabilidades religiosas e assistenciais. Caio
21
BOSCHI, Caio. Op. cit.
22
Idem, ibidem; e BORGES, Célia. Op. cit.
24
César Boschi
23
aponta que as irmandades foram uma “força auxiliar, complementar e
substituta da Igreja”, sendo responsáveis, entre outras coisas, pela difusão do culto aos santos,
pela evangelização dos fiéis e pela construção dos templos. Destaca ainda que, entre os
objetivos daquelas instituições, estava uma série de ações voltadas para o bem-estar dos
irmãos, servindo como corporações de ajuda mútua que permitiam o acesso a benefícios
sociais, principalmente para os que o poderiam tê-los de outra forma, como foi o caso de
muitos escravos e ex-escravos.
24
Para que não adquirissem excessiva liberdade, o Estado e a
Igreja procuraram subordinar essas associações, estabelecendo que deveriam ter seus
Compromissos
25
examinados e aprovados tanto pela autoridade civil, quanto pela
eclesiástica.
26
Em Minas Gerais, diversos grupos de leigos organizaram associações religiosas como
essas. Escolhiam um orago de sua preferência e, em torno dele, fundavam a irmandade.
Houve um elevado número delas na região. Julita Scarano afirma que a proliferação das
irmandades leigas no território mineiro foi facilitada pelas limitações impostas pela Coroa
Portuguesa à constituição do clero local. No início do século XVIII, ficou proibida a entrada
de ordens religiosas na região, a fim de controlar o contrabando e garantir unicamente à
Metrópole todos os benefícios advindos da extração do ouro e dos diamantes na região. Era
do conhecimento da Coroa que, entre as levas de aventureiros que vieram para Minas Gerais,
pelo menos no início, se contavam muitos religiosos que tinham grandes facilidades em
desviar o ouro e as pedras preciosas para fora da Capitania e até mesmo para o estrangeiro.
Além disso, muitos deles se recusavam a pagar os impostos régios e ainda motivavam a
população a fazer o mesmo.
27
A Metrópole via esses eclesiásticos como elementos
desestabilizadores do sistema. Todavia, apesar da vigilância e das medidas restritivas,
principalmente dirigidas às ordens primeiras (Jesuítas, Carmelitas, Beneditinos e
Franciscanos), a Coroa não afastou totalmente da região aurífera o trabalho missionário.
Orientou os bispos do Rio de Janeiro e os da Bahia para que enviassem esses eclesiásticos a
fim de ministrar os sacramentos e celebrar os cultos do calendário litúrgico, desde que
recebessem licença de permanência para se estabelecerem na Capitania, pois “[...] a legislação
era bastante clara em explicitar que fossem mantidos na Capitania apenas os sacerdotes com
23
BOSCHI, Caio. Op. cit., pp. 3-4.
24
Idem, ibidem, pp. 178-179.
25
Estatutos que regem a irmandade, isto é, regras que ordenam a dinâmica interna da confraria; sua estrutura
administrativa, as festas, os ofícios religiosos a serem realizados, os deveres e os benefícios dos irmãos, etc.
26
SCARANO, Julita. Op. cit., pp. 22-24; e BOSCHI, Caio. Op. cit., pp. 118-127.
27
SCARANO, Julita. Op. cit., p. 17; BOSCHI, Caio. Como os filhos de Israel no deserto? (ou: a expulsão de
eclesiásticos em Minas Gerais na primeira metade do século XVIII). Revista Varia História, n. 21,
Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1999, pp. 119-141.
25
funções e vínculos nitidamente definidos”.
28
Ainda assim, muitos eclesiásticos procuraram,
por conta própria, precaver-se contra o rigor das medidas proibitivas da Corte, requerendo
junto ao rei autorização para permanecerem em Minas Gerais.
Caio Boschi descreve o pedido do Padre Florêncio Álvares Pereira que, em 1738,
solicitou à Sua Majestade autorização para retornar a Minas Gerais. O padre saíra da
Capitania por determinação episcopal, deixando por todos os seus bens, fazendas e ainda a
arrecadação de algumas dívidas pertencentes aos seus familiares. Em seu pedido, declarou
que era fiel cumpridor das leis, tendo bom procedimento e, sobretudo, sendo contribuinte
regular no pagamento de impostos, inclusive no da capitação e no quinto.
29
Além das
concessões da Coroa, as próprias autoridades locais acabavam, em determinadas
circunstâncias, abonando a conduta de eclesiásticos e contribuindo para a inaplicabilidade da
lei.
30
Em suma, o afastamento das ordens religiosas da região do ouro levou a população
mineira a se organizar e fundar as irmandades, que acabaram sendo as principais promotoras
dos cultos religiosos. No entanto, o clero secular não deixou de marcar presença, pois, junto
com as confrarias, ministraram os cultos católicos e difundiram as devoções.
Em Minas Gerais, desenvolveu-se uma religiosidade com expressiva produção ritual,
que teve os leigos como os seus artífices e mantenedores, responsáveis diretos por
promoverem as devoções. Através do culto intimista dos santos, homens e mulheres da região
mineradora buscaram respostas para as suas inseguranças e instabilidades, sobretudo quando
aqui chegaram. A união dos devotos, em grande parte, tinha como elemento catalisador a
identificação das agruras pessoais ou o compartilhamento dos anseios de grupos sociais.
Integrar-se à irmandade era de fundamental importância para os habitantes daquela região.
Além de poderem exercitar os ritos católicos nesses espaços, como o batismo, o casamento e
a extrema-unção, estavam-lhes assegurados o sepultamento digno e a celebração das missas
em favor de suas almas. Mas não era isso. O irmão, ao se filiar a uma ou mais irmandades,
estaria integrado socialmente e, assim, mais favorável à obtenção de benefícios diretos ou
indiretos. Para os negros, o significado era ainda maior. As irmandades funcionavam como
espaços de sociabilidade, instrumento de relativa autonomia em que lhes era possível a ação
coletiva e a (re)construção de identidades.
31
Embora aderissem ao catolicismo, os negros não
deixaram de manifestar suas matrizes culturais, seja na forma de assimilações simbólicas dos
28
BOSCHI, Caio. Op. cit., pp. 80-85.
29
Idem. Op. cit. (1999), p. 140.
30
Idem, ibidem.
31
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit.
26
santos, ou na coroação de reis e rainhas, ou mesmo nas folias, organizadas para participarem
das festas em homenagem àqueles aos quais devotavam culto especial.
32
Mas, retomando a descrição das irmandades em geral, a cada grupo social
correspondeu uma confraria, refletindo seus membros o peso e a inserção que tinham na
sociedade local. Célia Borges
33
destaca que, entre os fatores para a organização das
irmandades, estavam a cor, a origem social e a naturalidade, que davam bem a medida da
grandeza das irmandades e sua representatividade, pois, “nenhuma outra instituição terá talvez
expressado tão nitidamente os contornos da sociedade local, seus conflitos, articulações e
solidariedade”.
Fritz Teixeira Sales afirma que as irmandades religiosas em Minas, principalmente no
interior, durante o século XVIII, apresentavam as seguintes categorias socioeconômicas: os
brancos, as classes dirigentes e os reinóis se agruparam nas Irmandades do Santíssimo
Sacramento, de Nossa Senhora da Conceição, São Miguel e Almas, do Bom Jesus dos Passos
e Almas Santas; os comerciantes ricos, os donos de lavras e os funcionários da Coroa, nas
Ordens Terceiras de São Francisco de Assis e Nossa Senhora do Carmo; os negros escravos,
principalmente africanos, nas Irmandades do Rosário, de São Benedito e Santa Efigênia; os
escravos crioulos, forros e mulatos, na Irmandade de Nossa Senhora das Mercês, e os pardos,
na de São Gonçalo Garcia.
34
O panorama da organização das irmandades mineiras,
apresentado pelo autor, não pode ser visto de forma absoluta, mas sim como uma tendência. A
composição dessas confrarias, em Minas, se apresentou de maneira muito mais complexa.
para se ter uma ideia, nas do Rosário, por exemplo, deparamo-nos com inúmeros forros,
mulatos e pardos.
35
Também era muito comum a presença dos brancos nas irmandades
negras. Muitos participaram por sincera devoção ou, mais concretamente, para salvar a alma.
Os negros os aceitavam por diversas razões, entre elas para receberem doações avantajadas,
importantes para o sustento da instituição, ou para cuidar dos livros administrativos.
36
Geralmente, os brancos ocupavam os cargos de escrivão e tesoureiro, uma vez que, para
exercer as atividades referentes a tais funções, os irmãos deveriam saber ler, escrever e
32
Idem, ibidem; e SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de
Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
33
BORGES, Célia. Op. cit., p. 59.
34
SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas no ciclo do ouro. Belo Horizonte: UFMG/Centro de
Estudos Mineiros, 1963 (Coleção Estudos 1).
35
Ver a participação de Chica da Silva (negra forra) e seus descendentes (mulatos) nas irmandades negras do
Tejuco, distrito diamantino, em FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador de diamantes: o
outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
36
BORGES, Célia. Op. cit., pp. 79-83.
27
contar.
37
Naquela época, a maioria dos negros era analfabeta. No entanto, Marcos Aguiar
38
nos chama a atenção para a aceitação de cargos por brancos nas irmandades de negros, ao
afirmar que tal ingresso podia perpassar pela afirmação social e política. Sabe-se que a
filiação, nas irmandades, entre outras coisas, representava reconhecimento social e
possibilidade de contatos e alianças para aqueles atingidos por algum impedimento, como os
defeitos de cor, origem e ofícios.
39
E, para os que carregassem a “mácula” de ser cristão-novo
ou mulato, ou ainda que fizesse parte de determinados setores produtivos discriminados, a
participação nas irmandades de negros, especialmente na ocupação de cargos, constituía uma
possibilidade a mais na tentativa de contornar os preconceitos.
40
Dessa forma, o importante é estar atento ao fato de as irmandades constituírem um
mostruário da estruturação da sociedade local, em que indivíduos de grupos sociais distintos
se faziam representar nas diversas associações religiosas. Não se pode esquecer que as
confrarias, instituídas no período colonial, assumiram a perspectiva de instituições típicas do
Antigo Regime, pois se amoldaram às hierarquias vigentes, concedendo grande importância
às distinções sociais e de cor.
41
As sociedades de Antigo Regime estavam organizadas em
princípios hierárquicos. Para defini-los, existiam categorias de classificação que demarcavam
a função e o lugar social de cada um. Essas posições eram definidas pelo “estatuto de limpeza
de sangue” ou condição “vil” (ofícios mecânicos).
42
No Brasil Colônia, o estado de limpeza
era determinado pelos critérios de ascendência, em que a cor (branco, negro ou preto) era um
dos elementos diacríticos. Tais critérios naturalizavam as desigualdades e as hierarquias
sociais. Serviam, antes de tudo, para garantir os privilégios e o status social aos “homens
bons”, na maioria, brancos e cristãos-velhos, no mundo dos homens livres.
37
Segundo os Compromissos, ao cargo de escrivão ou secretário compete “fazer escrupulosamente toda a
escrituração da irmandade nos seus livros e fora deles, empregando os maiores cuidados e desvelos para que ela
se faça com maior perícia possível [...]”, e do tesoureiro depende “toda a conservação dos bens dela, em razão de
que de ter em seu poder todo o rendimento e a fábrica da irmandade, fazendo as despesas de tudo o que for
necessário [...]”. APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São
João del-Rei, 1841, e Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês de São João del-Rei,
1806. É importante salientar que esses cargos também foram ocupados por negros, com mais frequência a partir
da segunda metade do século XVIII. Ver SOARES, Mariza. Op. cit.
38
AGUIAR, Marcos Magalhães de. Vila Rica dos Confrades: a sociabilidade confrarial entre os negros e os
mulatos no século XVIII. Dissertação de Mestrado apresentada à USP, São Paulo, 1993, p. 88.
39
Ver FURTADO, Júnia. Op. cit., pp. 168-182.
40
AGUIAR, Marcos. Op. cit., p. 88.
41
SOARES, Mariza. Op. cit., p. 165.
42
Ver MATTOS, Hebe Maria. A escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em
perspectiva atlântica; e HESPANHA, Antônio Manuel de. A constituição do império português: revisão de
alguns enviesamentos. In: FRAGOSO, João Luiz Ribeiro; GOUVÊIA, Maria de Fátima; BICALHO, Maria
Fernanda. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001, pp. 141-188.
28
Hebe Mattos
43
explica que o estatuto da “pureza de sangue”, vigente em Portugal e
adotado na América Portuguesa, limitava o acesso aos cargos públicos e eclesiásticos e a
títulos honoríficos aos chamados cristãos-velhos famílias que seriam católicas pelo
menos quatro gerações. Isso porque, segundo as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e
Filipinas, estavam excluídos os descendentes de mouros, judeus, ciganos e indígenas e, ainda,
os negros e os mulatos. Em 1776, Pombal revogou as restrições aos descendentes de mouros,
judeus e indígenas, porém não aos negros e mulatos. No que diz respeito aos homens “de
cor”, as restrições seriam rompidas no Brasil pela Constituição de 1824, que, segundo a
autora referida acima, foi o primeiro documento a definir os direitos à cidadania brasileira,
desde que esse cidadão fosse nascido “ingênuo”, ou seja, não escravo.
44
Isso significa que aos
libertos, isto é, aos escravos nascidos no Brasil que fossem alforriados não seria permitido o
pleno gozo dos direitos civis e políticos, concedidos aos cidadãos brasileiros. Nesse contexto,
a igualdade de direitos entre os cidadãos livres “de cor” viria a ser conquistada a partir da
omissão da própria cor, que permanecia como marca de discriminação herdada do Império
Português.
45
As cores demarcavam o lugar social dos indivíduos. Durante todo o período colonial e
até o bem avançado século XIX, os termos “negro” e “preto” foram usados quase
exclusivamente para designar escravos e forros. Pardo” foi inicialmente utilizado para
designar um escravo de cor mais clara, indicando, principalmente, sua ascendência europeia.
Porém, “de simples designação de cor, ampliou sua significação quando teve de dar conta de
uma crescente população para a qual não eram mais cabíveis as classificações de ‘preto’ (ex-
escravo de origem africana) ou ‘crioulo’ (ex-escravo nascido no Brasil), na medida em que
estas tendiam a congelar socialmente o status de escravo ou de liberto”.
46
Tal população
pretendia ascender socialmente. O termo “pardo” passou, então, a ser utilizado para libertos e
seus descendentes, sinalizando mobilidade e inserção social. Tinha significação muito mais
abrangente do que a noção de “mulato”, este, sim, termo que desde o século XVII estava no
rol dos “impuros de sangue”, por demarcar efetivamente a ascendência africana.
47
O estigma
43
MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2000, pp. 14-21 (Coleção Descobrindo o Brasil).
44
Idem, ibidem. Ver também, sobre a Constituição de 1824, GRINBERG, Keila. O Fiador dos Brasileiros:
cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antônio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
45
Idem, ibidem.
46
MATTOS, Hebe. Op. cit. (2001), pp. 154-155.
47
Para saber mais detalhes sobre o estigma da impureza para os mulatos, ver VIANA, Larissa. O Idioma da
Mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2007, cap. 1.
29
em relação ao “mulato” advinha do seu caráter híbrido, por isso era um signo socialmente
mais pejorativo que “pardo”.
Dessa forma, as irmandades foram sendo organizadas, sempre seguindo os critérios de
cor e condição social vigentes. No caso da população de cor, inicialmente as Irmandades do
Rosário reuniram num mesmo espaço os pretos e os pardos que se subdividiram,
posteriormente, entre si, acompanhando tais critérios. À medida que a sociedade se tornava
mais híbrida e o número de alforrias se expandia, novos critérios de distinção foram buscados,
com a finalidade de dar conta desse contingente cada vez mais emergente, ávido de ocupar
melhores posições sociais naquela sociedade.
48
Nas irmandades negras, para demarcar tais
distinções, as devoções também foram utilizadas. Assim, vimos surgir, além da do Rosário,
outras, como as de São Benedito, Santa Efigênia, São Elesbão, das Mercês e de São Gonçalo
Garcia. O que vamos observar é que, mesmo com as fronteiras entre brancos e pardos, livres e
libertos sendo paulatinamente desnaturalizadas e politizadas, no contexto das transformações
políticas e culturais das últimas décadas do período colonial e, especialmente, na primeira
metade do século XIX – com a Constituição de 1824 – lugares e/ou hierarquias sociais
continuavam sendo definidos por categorias e elementos classificatórios, vigentes nas
sociedades com traços de Antigo Regime. Isso fazia parte da lógica de identificação dos
irmãos dentro das confrarias e fora delas, como veremos nos próximos tópicos. Portanto,
trabalharemos com as irmandades mais antigas de São João del-Rei, fundadas até a década de
1750.
1.2 – São João del-Rei – vida associativa e religiosa
Em São João del-Rei, Minas Gerais, as irmandades começaram a ser organizadas
pouco tempo depois do surgimento desse núcleo. Na época dos desbravamentos dos grandes
sertões, chegou às paragens do Rio das Mortes, por volta de 1674, a bandeira de Fernão Dias,
que teria iniciado a ocupação desse rio, mas não conseguira dar continuidade à empreitada.
Foi no final do século XVII que Tomé Portes del-Rei, procedente de Taubaté, decidiu
permanecer na região com seus familiares, agregados e escravos, e fundar, efetivamente, o
48
Sobre esse assunto, ver os trabalhos de FARIA, Sheila de Castro. Sinhás Pretas, Damas Mercadoras: as pretas
minas nas cidades do Rio de Janeiro e São João del-Rei (1700-1850). Tese para concurso de Professor Titular em
História do Brasil. Niterói, UFF, 2004; GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: trabalho, família, aliança e
mobilidade social Porto Feliz, São Paulo (c.1798-c.1850). Rio de Janeiro: Mauad/FAPERJ, 2008; e SOARES,
Márcio de Sousa. A Remissão do Cativeiro: alforrias e liberdades nos Campos dos Goytacazes (1750-1830).
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História da UFF, Niterói, 2006.
30
primeiro núcleo de povoamento da região.
49
Seu objetivo inicial era produzir mantimentos
para vender aos passantes em direção às áreas mineradoras. A ocupação se deu à margem
esquerda do rio e foi nesse local que, em 1702, se descobriu ouro. O povoado recebeu o nome
de Arraial de Santo Antônio, posteriormente Vila de São José del-Rei (atual Tiradentes).
Tomé Portes del-Rei morreu assassinado ainda em 1702,
50
antes da descoberta do ouro
no outro lado do rio, o que se deu por volta de 1704 e 1705. Nessa época, formou-se, à
margem direita do Rio das Mortes, o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar. Como foi
mencionado, a região era conhecida por servir de caminho aos passantes para as áreas
mineradoras, mas, com a descoberta do ouro em abundância nesse local, muitas pessoas se
deslocaram para , com o intuito de se enriquecerem rapidamente; uns se aventuraram na
mineração e outros, na produção de alimentos para serem vendidos aos moradores e aos
transeuntes.
51
O incremento econômico no arraial novo garantiu-lhe um rápido crescimento.
Por isso, em 1713, foi elevado à Vila de São João del-Rei,
52
tornando-se, então, a cabeça da
Comarca do Rio das Mortes.
53
Os primeiros anos da vila sanjoanense foram marcados pela insegurança e pela
instabilidade. As adversas condições de vida com que os moradores se deparavam,
favoreceram o surgimento e a permanência de uma religiosidade em que as devoções eram
buscadas também para prestarem apoio e socorro à população. no primeiro ano do Arraial
Novo, ergueu-se uma pequena Capela, “de taipa de ruão com cobertura de palha”, dedicada a
Nossa Senhora do Pilar.
54
Célia Borges
55
afirma que os devotos da colônia “acreditavam no
poder dos santos por eles terem passado pela terra e serem os mediadores entre o profano e o
sagrado. À semelhança da Europa, havia uma hierarquia celeste: acima de todos Deus, o
49
Ver detalhes sobre a origem de São João del-Rei em VIEGAS, Augusto. Notícia de São João del-Rei. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1942; GUIMARÃES, Fábio Nelson. Fundação Histórica de São João del-Rei. São
João del-Rei: Centro Artístico e Cultural, 1961; GUIMARÃES, Geraldo. São João del-Rei, Século XVIII:
História Sumária. São João del-Rei: Edição do autor, 1996. Ver Também BRÜGGER, Silvia Maria Jardim.
Minas Patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei – séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007.
Sobre os desbravamentos em Minas Gerais, ver BOXER, Charles Ralph. A Idade de Ouro do Brasil: dores de
crescimento de uma sociedade colonial. São Paulo: Brasiliana, 1969.
50
VIEGAS, Augusto. Op. cit., p. 12.
51
BRUGGER, Silvia. Op. cit., pp. 26-27.
52
O nome da vila foi uma homenagem do governador de Minas e de São Paulo, Braz Baltazar da Silveira a D.
João V, então rei de Portugal. VIEGAS, Augusto. Op. cit., p. 16; VELLASCO, Ivan de Andrade. As Seduções da
Ordem: violência, criminalidade e administração da justiça: Minas Gerais século 19. São Paulo: Edusc, 2004;
p. 44.
53
GUIMARÃES, Geraldo. Op. cit., p.45. A Comarca do Rio das Mortes tinha como limites, ao norte, as
Comarcas de Vila Rica e Sabará e, ao sul, as Capitanias de São Paulo e Rio de Janeiro. As capitanias eram
divididas em comarcas. Estas, por sua vez, em termos, que possuíam uma sede, onde se localizavam as Câmaras
Municipais. A vila principal recebia o nome de “cabeça da Comarca”. BRÜGGER, Silvia. Op. cit., p. 26, nota 8.
54
GUIMARÃES, Geraldo. Op. cit., pp.52-53.
55
BORGES, Célia. Op. cit., p. 159.
31
criador, abaixo anjos e santos”. Nesse modelo, o papel dos santos para os fiéis funcionou
como mediador, pois eram seus protetores e intermediários, capazes de resolver seus
problemas. Frente aos perigos da vida cotidiana e da necessidade de conseguir uma segurança
metafísica, os grupos procuraram apoio dentro de um conjunto de práticas. Assim, ainda nas
primeiras capelas, os indivíduos podiam participar das rezas, das missas e das procissões e
ouvir os sermões com muita dedicação. A promessa era recurso muito utilizado nos
momentos de aflição. Estabelecia-se uma relação de reciprocidade entre o santo e o devoto,
em que o primeiro cumpria parte do contrato, se o segundo fizesse o mesmo. Nesse sentido,
agradar aos santos ou mesmo fazer algum sacrifício para obter êxito nos pedidos feitos a eles
era muito comum. Para isso, ornamentavam os santos com joias e roupas, construíam seus
altares até poderem erguer com esmero suas igrejas rezavam ao redor da imagem e
acendiam velas em seu louvor.
56
Essas práticas fizeram parte do universo religioso em São
João del-Rei. Obter proteção divina era a principal finalidade e foi por isso que, junto com a
formação do Arraial, se ergueu a primeira capela, dedicada a Nossa Senhora do Pilar, que
serviu de casa de oração para os primeiros moradores do povoado.
O fato de não haver, ainda, naquele período, maior classificação da sociedade explica
a origem das primeiras irmandades polarizadas apenas entre brancos e negros. Em 1708, foi
instituída a de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos. Em 1711,
organizou-se a do Santíssimo Sacramento, que agrupou os homens brancos mais abastados do
arraial. Os brancos mais simples e humildes, sem status para se filiarem à Irmandade do
Santíssimo, fundaram a de São Miguel e Almas em 1716, utilizando o espaço da Matriz do
Pilar.
57
Caio Boschi aponta que, enquanto não se estratificou a sociedade mineira,
praticamente inexistiram irmandades sob a invocação de devoções como as de São Gonçalo
Garcia, protetor dos homens pardos, de Santa Cecília, protetora dos músicos, e a do Senhor
dos Passos, voltada para os militares. O mesmo sucedeu com o surgimento das Ordens
Terceiras,
58
instituídas basicamente por comerciantes, funcionários graduados e intelectuais,
que somente se organizaram em meados do século XVIII.
59
56
Ver, sobre a religiosidade na colônia, SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e
religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
57
GUIMARÃES, Geraldo. Op. cit., p. 77.
58
As Ordens Terceiras se caracterizavam por serem associações das camadas mais elevadas. Passados os
primeiros tempos do século XVIII, em que os brancos se associavam preferivelmente à Irmandade do Santíssimo
Sacramento, os mais abastados – comerciantes, mineradores ricos, burocratas e intelectuais – procuraram
diferenciar-se ainda mais, instituindo as Ordens Terceiras, isto é, estas surgiram somente no momento em que a
sociedade local se consolidou. Nas regiões em que a estratificação social não chegou a atingir um grau tão
elevado, inexistiram tais entidades. Ver SALLES, Fritz Teixeira de. Op. cit., p. 126.
59
BOSCHI, Caio. Op. cit. (1986), pp. 24-25.
32
As irmandades em São João del-Rei floresceram juntamente com o crescimento da
vila que, em 1838, apesar dos desmembramentos,
60
adquiriu a categoria de Cidade. Desde o
início do setecentos, as atividades agropastoris e o comércio se desenvolveram ao lado da
atividade mineradora na região. O clima ameno e a geografia contribuíram para esse
desenvolvimento. O terreno plano e abundante em água propiciou as melhores pastagens para
o gado e terra boa para o cultivo de cereais e raízes tuberosas.
61
Tudo que se produzia
abastecia a vila e os vários arraiais ao redor. Formou-se, naquele lugar, um desenvolvido
centro de comércio. A diversificação dessas atividades parece ter sido a marca daquela região
e isso fez diferença, quando o território mineiro vivenciou uma reestruturação econômica em
meados do século XVIII. Carla Almeida afirma que o intervalo entre as décadas de 1780 e
1810 teria sido marcado por uma “acomodação evolutiva”
62
da economia, a partir do declínio
da mineração e do aumento das atividades agropastoris, que se consolidaram na primeira
metade do século XIX como uma economia mercantil ligada ao abastecimento interno.
63
A precoce especialização agropastoril da região transformou São João del-Rei, no
século XIX, em “celeiro estratégico fornecedor de produtos ao mercado litorâneo”.
64
O
mineralogista inglês John Mawe esteve naquela vila em 1809 e descreveu a variedade de
mercadorias, produzidas na região, que abasteciam o mercado interno e externo.
São João del-Rei, capital do distrito do mesmo nome, é uma cidade
importante com cinco mil habitantes no mínimo. [...] O terreno em torno é
muito fértil e produz excelentes frutos, tanto exóticos como indígenas, assim
como milho e feijão, um pouco de trigo, etc. É a parte mais cultivada da
Comarca, da qual é o celeiro; fabricam sofrível quantidade de queijo e
toucinho muito mal preparado. Estes dois artigos são enviados ao Rio de
Janeiro. Daí mandam muitas aves, um pouco de cachaça, açúcar e café. Os
60
No final do
século XVIII e início do XIX, a Comarca sofreu desmembramentos, pois, em muitas vilas,
freguesias e distritos, o crescimento econômico e demográfico foi tão intenso que os “homens bons” daquelas
áreas reivindicaram a emancipação de seus arraiais, para não ficarem mais submetidos ao controle da Vila de
São João del-Rei. Ver GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A princesa do Oeste e o mito da decadência de
Minas Gerais. São Paulo: Annablume, 2003. Marcos Andrade também discorreu sobre esses desmembramentos,
quando explicou a formação e a expansão da Vila de Campanha, sul de Minas, integrante da grande Comarca do
Rio das Mortes. ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites Regionais e a Formação do Estado Imperial Brasileiro:
Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008, pp. 28-32. Sobre a
trajetória da ocupação e da formação da Vila de São João del-Rei, ver BARBOSA, Waldemar de Almeida.
Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1995.
61
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 36.
62
Esse termo foi cunhado por Douglas Libby para contrapor-se à ideia de estagnação econômica de Minas
Gerais, no século XIX. LIBBY, Douglas Cole. Transformação e Trabalho em uma Economia Escravista: Minas
Gerais, século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988.
63
ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Minas Gerais de 1750 a 1850: bases da economia e tentativa de
periodização. LPH – Revista de História. Departamento de História da UFOP, nº 5, 1995. Sobre o abastecimento
interno, ver LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do
Brasil, 1808-1842. São Paulo: mbolo, 1979; ALMEIDA, Carla. Op. cit.; GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit.;
BRUGGER, Silvia. Op. cit. Para o sul de Minas, ver
ANDRADE, Marcos.
Op. cit.
64
VELLASCO, Ivan. Op. cit., p. 40.
33
víveres são mais baratos do que em Vila Rica. A carne de porco e de vaca
custam um penny e uma libra; as aves e as hortaliças, na mesma proporção.
[...] Cultiva-se um pouco de algodão; que se fia à mão e como qual se fabrica
panos grosseiros para os negros. Algumas vezes fazem dele panos mais finos
para a mesa.
65
A posição privilegiada da Comarca do Rio das Mortes fez com que, durante o
oitocentos, a região fosse um corredor pelo qual escoavam mercadorias vindas de outras
áreas, a oeste e ao norte, em direção às áreas centrais. A vila sanjoanense transformou-se no
maior centro comercial daquele território. O principal mercado importador dos produtos
mineiros foi o Rio de Janeiro, principalmente depois da chegada da Família Real àquela
cidade, em 1808. Para se dirigiam tropas, levando gado em pé, cavalos e mulas, carregadas
de produtos alimentícios, tecidos e couros, além do ouro que ainda continuava sendo extraído.
Retornavam trazendo outros produtos que seriam distribuídos na região e em outras
comarcas.
66
Afonso de Alencastro Graça Filho
67
afirma que a economia sanjoanense atingiu
seu auge na década de 1830.
Diante de tal dinamismo econômico, a migração e o crescimento populacional foram
significativos. Para se ter uma ideia, na Comarca do Rio das Mortes, entre 1767 e 1821, a
população passou de 49.485 para mais de 200.000 habitantes. Somente para a Vila de São
João del-Rei, as estimativas populacionais giravam, entre 1818 e 1835, em torno de seis a sete
mil habitantes.
68
A vinda da Família Real para o Rio de Janeiro, no início do oitocentos, dinamizou o
processo de “interiorização da Metrópole”
69
no centro-sul da colônia. As rotas de comércio
em prol do abastecimento, do interior em direção ao centro carioca, e vice-versa, promoveram
um verdadeiro vai e vem de pessoas. Eram comerciantes, agricultores, pecuaristas, burocratas,
tropeiros, viajantes estrangeiros, artesãos, escravos africanos de distintas procedências e seus
descendentes crioulos, forros ou cativos.
São João del-Rei constituía-se no maior núcleo urbano da comarca e, aos poucos, foi
tomando aspecto progressista. A urbanização era visível. Expressava-se na construção de
ruas, praças, calçamentos, prédios administrativos, inúmeros sobrados e chafarizes; na
fundação de jornais e escolas e na proliferação de estabelecimentos comerciais. Em 1824, o
65
MAWE, John. Viagens ao Interior do Brasil - 1809-1810. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Edusp, 1978.
66
Alcir Lenharo foi um dos autores pioneiros a apontar a vinculação mercantil da Comarca do Rio das Mortes
com a Província do Rio Janeiro. LENHARO, Alcir. Op. cit. Ver também GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit.; e
ANDRADE, Marcos.
Op. cit., cap. 1.
67
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 150.
68
BRUGGER, Silvia. Op. cit., p. 38.
69
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da Metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005.
34
desenhista alemão João Maurício Rugendas
70
narrou as impressões da cidade: “todas as ruas
são calçadas, as lojas bem providas de mercadorias europeias, de fazendas e artigos de luxo.
Não faltam operários de todos os ofícios e os painéis que se veem em algumas igrejas ricas e
belas revelam, mesmo, a existência de artistas indígenas”.
Maria Augusta do Amaral aponta as transformações da vila nos âmbitos social,
político e cultural. Eram mudanças que tinham muitas influências dos costumes
metropolitanos. A elite sanjoanense tratou de ser porta-voz de um “discurso civilizador”, que
incluía a melhoria do espaço urbano, a sofisticação dos hábitos na sociedade, a implantação
de normas higiênicas, a melhoria na educação, as alterações no vestuário e, ainda, a promoção
de eventos culturais, como a dança e a música.
71
É preciso salientar que a primeira metade do
século XIX foi marcada por maior estreitamento de vínculos da elite local junto aos rculos
políticos que intensificavam as atividades na Corte, especialmente as que trabalhavam as
ideias de independência. Ivan Vellasco
72
aponta que a ida do Príncipe Regente, Dom Pedro, a
São João del-Rei, em 3 de abril de 1822, abriu oportunidade para as elites políticas locais
demonstrarem seu apoio ao processo de independência, em curso, e seu engajamento nele.
Começaria, a partir de então, uma definição de suas participações na arena política do
Império, num alinhamento com as forças liberais. Foi justamente nesse período que a
imprensa local esteve em plena atividade. Do final da década de 1820 a meados dos anos
1840, vários jornais circularam, num total de 12.
73
Além de difundirem as posições políticas
dos grupos que os sustentavam, os periódicos esclareciam o público geral, “trazendo capítulos
da história nacional, lições de civismo, trechos de obras dos iluministas franceses, além de
crítica teatral, assinada via de regra pelos leitores, dicas de moda, higiene e notícias sobre o
que anda pela Corte e sua vida social [...]”.
74
A elite local, em seu constante contato com o Rio de Janeiro, e a imprensa foram
veículos eficazes para internalizar, na população interiorana, as transformações
“civilizatórias”. No que diz respeito aos jornais, não estavam acessíveis apenas ao público
70
RUGENDAS, João Maurício. Viagem pitoresca através do Brasil. 7. ed. São Paulo: Martins/Brasília: INL,
1976, pp. 30-31.
71
AMARAL, Maria Augusta do. A Marcha da Civilização: as vilas oitocentistas de São João del-Rei e São José
do Rio das Mortes. Dissertação de mestrado – FAFICH /UFMG, 1998, pp. 75-83.
72
VELLASCO, Ivan. Op. cit. Ver, sobre a política liberal-moderada em Minas Gerais, SILVA, Wlamir. Liberais
e o povo: a construção da hegemonia liberal-moderada na Província de Minas Gerais (1830-1834). São Paulo:
HUCITEC, 2009.
73
O Astro de Minas (1827-1839) foi o primeiro. Além dele, circularam o Amigo da Verdade (1829-1831), A
Constituição do Triunfo (1830), O Constitucional Mineiro (1832-1833), o Mentor das Brasileiras (1829-1832),
O Papagaio (1832), A Legalidade em Triunfo (1833), Oposição Constitucional (1835), O Monarquista (1838),
O Americano (1840), O Despertador Mineiro (1842) e A Ordem (1842-1844). AMARAL, Maria Augusta. Op.
cit., pp. 176-191.
74
VELLASCO, Ivan. Op. cit., p. 55.
35
alfabetizado. É bastante provável que o seu conteúdo chegasse ao conhecimento de grupos
analfabetos, pois as notícias eram lidas “em voz alta para os demais nos pontos de reuniões
públicas, nas vendas e nas praças”.
75
Tais transformações atingiram também o âmbito religioso na vila e, cremos,
reforçaram as estratificações e as hierarquias sociais, pois o requinte nas festas religiosas e na
ornamentação das igrejas passou a ser uma preocupação maior das irmandades, especialmente
das mais ricas. Estamos falando da música e das reformas nas igrejas, que foram intensas
nesse período.
Desde a segunda metade do setecentos, as irmandades sanjoanenses possibilitavam aos
músicos oportunidades de trabalho,
76
porém foi no século XIX que a produção musical sacra
da região viveu seu período de maior atividade, ganhando mais projeção na vila devido às
influências reais vindas do Rio de Janeiro. Uma das primeiras iniciativas do Príncipe Regente
D. João, ao se radicar em nosso país, foi a criação da Capela Real, agregada à Catedral. Era
que exercitava sua religiosidade e, muitas vezes, suas funções sociais, pois havia muitas
festas, comemorações familiares e políticas com funções religiosas. Para todas essas ocasiões,
fazia questão da melhor música sacra, pela qual tinha verdadeira predileção. “É conhecida a
paixão de D. João pelas missas cantadas, solenes, com numerosos instrumentistas”.
77
Foi esse
interesse pela música que o levou a contratar José Maurício Nunes Garcia
78
para ser o
primeiro mestre da Capela Real, e a não poupar dinheiro com músicos para as cerimônias,
muitos deles vindos da Europa. Segundo Kiefer,
79
o esplendor da vida musical na Capela
Real, sob a influência das obras oriundas da Europa, contribuiu para o desenvolvimento e o
aprimoramento musical sacro no Rio de Janeiro e em outras localidades do Brasil, onde havia
vida musical em desenvolvimento. São João del-Rei era uma dessas localidades que recebeu a
influência do incremento musical da cidade carioca.
75
Idem, ibidem.
76
A Orquestra Lira Sanjoanense foi fundada em 1776 e prestava serviços musicais às Irmandades negras do
Rosário, das Mercês, de São Gonçalo e da Boa Morte. a Orquestra Ribeiro Bastos foi contratada pela Ordem
Terceira de São Francisco e prestava serviços às Irmandades dos brancos: Santíssimo, Passos, São Miguel e
Almas e Carmo. Essa orquestra tem seu registro mais antigo no ano de 1755; GAIO SOBRINHO, Antônio.
Sanjoanidades: um passeio histórico e turístico por São João del-Rei. São João del-Rei: A Voz do Lenheiro,
1996. Ver também VELLASCO, Ivan. Op. cit., p. 60.
77
KIEFER, Bruno. História da música brasileira: dos primórdios ao início do século XX. Porto Alegre:
Movimento, 1976, p. 50.
78
O Pe. José Maurício Nunes Garcia nasceu no Rio de Janeiro, em 1767, filho de Apolinário Nunes Garcia e de
Victória Maria da Cruz, ambos mulatos. Tornou-se um dos maiores compositores brasileiros de música sacra,
que viveu a transição entre o Brasil Colônia e o Brasil Império. Ver mais detalhes sobre sua trajetória em
KIEFER, Bruno. Op. cit., pp. 53-60.
79
Idem, ibidem, pp. 44-57. Ver também REZENDE, Maria da Conceição. A música na história de Minas
Colonial. Belo Horizonte: Itatiaia/Brasília: INL, 1989, pp. 617-619 e 675-682.
36
“Festa sem padre, música e foguete não é festa.”
80
Esse dito sanjoanense surgiu no
oitocentos e ilustra bem a expectativa da população pelas festas religiosas na vila. Quanto
maior o seu requinte, maior o espetáculo e, sem dúvida alguma, a música tinha seu papel
fundamental. Maria da Conceição Rezende descreve a intensa atividade dos melhores músicos
da região, contratados pelas instituições religiosas mais ricas de São João del-Rei, a Ordem de
São Francisco de Assis e a Ordem do Carmo.
81
Esses músicos preparavam os coros e as
orquestras para as apresentações nas funções religiosas e nas comemorações festivas das
associações. Além de executarem obras de compositores renomados, aqui do Brasil e também
da Europa, apresentavam peças inéditas, encomendadas para ocasiões específicas, como
missas fúnebres de pessoas importantes da localidade, festas da Semana Santa, de Corpus
Christi, de Nossa Senhora, etc.
82
O requinte musical das funções religiosas no Rio de Janeiro
estava disseminado em São João del-Rei.
Para termos ideia dessa influência, alguns acontecimentos comemorados na Corte
também foram festejados em São João del-Rei com toda a pompa que o evento exigia. Foi o
que aconteceu no dia 28 de janeiro de 1816, quando a Câmara Municipal sanjoanense mandou
celebrar, na Matriz do Pilar, missa cantada com o Senhor exposto e o Te Deum Laudamus,
por ter “Sua Alteza Real elevado o Estado do Brasil a Reino Unido ao de Portugal”.
Determinou a mara que, naquela noite e nas dos dias 26 e 27, todos os moradores da vila
iluminassem suas casas.
83
Nas noites dos dias 1, 2 e 3 de janeiro de 1826, todas as casas da
vila também ficaram iluminadas, em sinal de regozijo pelo nascimento do Príncipe Imperial,
em 2 de dezembro de 1825. A Câmara ainda mandou, nessa ocasião, celebrar na Igreja Matriz
missa cantada e solene Te Deum.
84
O refinamento também chegou às igrejas da vila, que vivenciaram verdadeiro período
de reformas. construídas no início do oitocentos, passavam por novas remodelações para
que parecessem mais atraentes e representassem maior riqueza e importância dos seus
membros. John Luccock, negociante inglês, esteve na Vila de São João del-Rei em 1818 e
descreveu a aparência de algumas igrejas, assim como as obras que nelas aconteciam.
80
Idem, ibidem, p. 685.
81
Idem, ibidem, pp. 675-692. Entre os principais músicos e compositores atuantes na primeira metade do XIX
estão: Lourenço José Fernandes Braziel, Joaquim Bonifácio Braziel (filho do primeiro), Francisco de Paula
Miranda, Francisco Martiniano de Paula Miranda (filho do anterior), José Marcos de Castilho e Francisco José
das Chagas. Ver suas obras nas páginas 617-619.
82
Idem, ibidem. Ver também notícias de alguns gastos, pelas irmandades, com esses serviços, em CINTRA,
Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. Vols. I e II, 2. ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1982. Todas essas notícias se referem ao século XIX, especialmente à sua primeira metade. Na segunda metade
do século XVIII e do XIX, o autor não noticia nada sobre esse assunto.
83
Idem, ibidem, p. 49.
84
Idem, ibidem, p. 16.
37
A igreja que a todas as demais sobrepuja em aparência exterior, se bem que
não em categoria, é a de São Francisco, que se acha numa praça de tamanho
regular na melhor parte da cidade, mas que, porém, tal como grande parte
doutros edifícios sagrados, está ainda por acabar; não impede que nela
tivéssemos ouvido missa, entre andaimes e guindastes [...] Quando
terminada, essa igreja de produzir excelente impressão; é toda feita de
granito e terá uma frontaria flanqueada de duas torres e uma representação
em escultura dos padecimentos de São Francisco. A outra, que já foi descrita
[Nossa Senhora do Pilar], é atualmente munida de uma torre, que se acha
destacada dela; acham-se porém em curso, projetos de reconstrução da
fachada, com dois campanários que, de acordo com o desenho apresentado,
serão altos e bem proporcionados. Um terceiro desses edifícios, que ainda
não foi consagrado, ocupa também posição proeminente, feito de arenito que
contém certo teor de ferro mas ainda não se acha pronto para ser aberto ao
público e as obras parecem seguir com tardança. Numa quarta, na qual,
devido a um atraso meu, não cheguei a entrar, dizem existir ornamentos
esplêndidos e um interior todo recamado de ouro. Nalguns dos campanários
acham-se suspensos sinos de peso considerável, circunstância essa que
grandemente me admirou, pois que cada um deles deve ter sido trazido do
litoral através das montanhas, suspenso entre dois burros feito uma liteira.
Em prol da religião, contudo, os brasileiros primitivos venceram
grandíssimas dificuldades, melhorando o mais que podiam suas igrejas e
delas fazendo quase que os únicos exemplares de bom gosto arquitetônico.
85
A narrativa do negociante nos deixa a impressão de que havia, materializada também
nas igrejas, a estratificação dos grupos sociais daquela sociedade e uma suposta competição
entre eles, pois o requinte nas construções e no interior dos templos acabava por refletir o
potencial socioeconômico dos grupos congregados e de suas intenções de representatividade.
Todavia, é importante perceber que, embora o período da primeira metade do século
XIX tenha sido marcado por muitas transformações econômicas, políticas e culturais na
sociedade sanjoanense, elas não foram suficientes para modificar alguns preceitos que
vigoravam na Colônia. As hierarquias e os lugares sociais continuaram sendo definidos por
elementos classificatórios, vigentes nas sociedades com traços de Antigo Regime. Como
demonstramos, o refinamento que tomou conta das irmandades reforçou ainda mais a
estratificação e a hierarquização sociais.
Retomando os primeiros anos do Arraial Novo do Pilar, existiram apenas duas
irmandades, a do Rosário e a do Santíssimo Sacramento. Mas, com o desenvolvimento da
vila, outras foram sendo inauguradas, de acordo com a organização dos diversos grupos
sociais e na medida em que esses buscavam maior representatividade naquela localidade.
Consultamos a bibliografia dos memorialistas que escreveram a história da cidade, para
colhermos informações sobre as datas de fundação das irmandades em São João del-Rei. A
85
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e as partes meridionais do Brasil. São Paulo: Edusp, 1975, p.
303.
38
dúvida surgiu apenas sobre a data da Confraria da Boa Morte, pois não houve consenso entre
os autores, nem mesmo pudemos confirmá-la tomando por base a data do Compromisso.
86
Fizemos, então, um levantamento dessas datas e, quanto à irmandade em que houve uma
divergência e não encontramos documentos para confirmar o exato ano de sua fundação,
iremos encaixá-la por década.
87
QUADRO 1
Datas de fundação das principais irmandades organizadas em São João del-Rei no
século XVIII
Irmandades de São João del-Rei
Fundação
Irmandade Nossa Senhora do Rosário 1708
Irmandade do Santíssimo Sacramento 1711
Irmandade de São Miguel e Almas 1716
Irmandade Nossa Senhora da Boa Morte década de 1730
Irmandade Nosso Senhor dos Passos 1733
Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo 1746
Ordem Terceira de São Francisco de Assis 1749
Irmandade de Nossa Senhora das Mercês 1750
Irmandade de São Gonçalo Garcia 1759
Fontes: BOSCHI, Caio. Op. cit. (1986), pp. 223-224; VIEGAS, Augusto. Op. cit.; GUIMARÃES, Fábio. Op.
cit.; GUIMARÃES, Geraldo. Op. cit.; SOBRINHO, Antônio. Op. cit. (1996); e GAIO SOBRINHO, Antônio.
São João del-Rei: trezentos anos de histórias. São João del-Rei: Edição do autor, 2006, p. 153.
Na década de 1730, foram criadas as Irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte
88
e a
de Nosso Senhor dos Passos
89
. Nos anos de 1740, começaram a funcionar as Ordens Terceiras
86
Não se pode tomar a data dos Compromissos como baliza para a criação das irmandades, pois a maioria deles
foi redigido e aprovado muito tempo depois da fundação das instituições.
87
Consultamos o Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa e verificamos que, dos documentos de Minas Gerais,
constam alguns requerimentos e representações de irmandades de São João del-Rei, porém em nenhum deles
existe informações sobre as datas de suas fundação. AHU Minas Gerais, Caixa 74, doc. 85 (Irmandade de
Nossa Senhora das Mercês); Caixa 125, doc. 20 e doc. 48 (Irmandade de São Gonçalo Garcia); Caixa 136, doc.
10 e Caixa 142, doc. 47 (Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte) e Caixa 183, doc. 47 (Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário). As datas desses documentos são posteriores às de fundação que encontramos.
88
Encontramos duas obras com datas diferentes sobre a fundação da Irmandade da Boa Morte na década de
1730: 1732 e 1735. GAIO SOBRINHO, Antônio. Op. cit. (2006), p. 153; e Idem. Op. cit. (1996), p. 69,
respectivamente. O texto introdutório do Compromisso da Irmandade da Boa Morte de 1786 diz que o primeiro
deles estava em vigor “há mais de cinqüenta anos em que foi ereta a irmandade”. Pelo texto, pode-se deduzir que
essa irmandade foi instituída no início da década de 1730. APNSP-SJDR – Livro de Compromisso da Irmandade
de Nossa Senhora da Boa Morte de São João del-Rei, 1786.
39
de Nossa Senhora do Carmo
90
e de São Francisco de Assis
91
. Em 1750, a Irmandade de Nossa
Senhora das Mercês foi inaugurada, mas autores que afirmam que a confraria funcionava
antes de 1750, pois, nesse ano, existia a capela.
92
Em 1759, foi inaugurada a Irmandade de
São Gonçalo Garcia, que antes ocupava o altar lateral da Matriz do Pilar, sob outro título,
como veremos mais adiante.
93
Vejamos, então, como vigoravam os critérios de distinção para a admissão dos irmãos
nas confrarias sanjoanenses. Eles aparecem nos textos compromissais das irmandades. A
título de exemplo, selecionamos três deles os das Irmandades do Senhor dos Passos, da Boa
Morte e de São Gonçalo Garcia. O Compromisso da Irmandade do Senhor dos Passos informa
que ela foi organizada em um dos altares da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar. O
documento parece ter sido redigido em 1733 e comprova como o estatuto de “pureza de
sangue” estava presente naquela sociedade. O texto diz o seguinte em seu Capítulo 16:
Os irmãos que se receberem hão de ser sem nenhum escrúpulo limpos de
geração, ou sejam nobres ou oficiais, e dos que não forem nobres, não sejam
menos à sua esfera, que oficiais, e assim não terão uns e outros raça de
judeu, mouro, mulato, ou de novo convertidos de alguma infecta nação;
sejam também livre de infâmia ou por sentença ou pela opinião comum; e o
mesmo se entenderá das mulheres. Os que quiserem entrar nesta irmandade
farão petição à Mesa, na dita petição hão de nomear os nomes de seus pais e
avós e da mesma sorte dos de suas mulheres com as terras aonde nasceram
[...].
94
Também estabelecida na Matriz do Pilar, a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte
teve seu primeiro Compromisso aprovado na década de 1730, porém não foi encontrado.
Tivemos acesso ao regimento de 1786, versão com algumas modificações e que diz, em seu
Capítulo 9, que, para irmãos daquela irmandade “se aceitarão todas aquelas pessoas que forem
brancos, pardos legítimos e libertos”.
95
Na Irmandade de São Gonçalo Garcia, eram aceitos
como irmãos “homens e mulheres brancos, pardos e morenos livres”.
96
89
A certidão que confirma a data de ereção dessa irmandade (1733) encontra-se em seu livro de Compromisso.
APNSP-SJDR – Livro de Compromisso da Irmandade do Senhor dos Passos de São João del-Rei, único
encontrado.
90
Anteriormente, era Irmandade de Nossa Senhora do Carmo, que funcionava desde 1727 na Matriz do Pilar.
GUIMARÃES, Geraldo. Op. cit., p. 78. O Papa Benedito XIV concedeu regalia de Ordem Terceira à então
Confraria do Carmo de São João del-Rei em 9 de setembro de 1746. CINTRA, Sebastião. Op. cit., p. 376.
91
Idem, ibidem, p. 439. A ereção da Ordem de São Francisco de Assis em São João del-Rei foi em 8 de março de
1749.
92
VIEGAS, Augusto. Op. cit., p. 201; e GUIMARÃES, Geraldo. Op. cit., p. 78.
93
VIEGAS, Augusto. Op. cit., p. 207; e GAIO SOBRINHO, Antônio. Op. cit. (1996), pp. 67-69.
94
APNSP-SJDR – Livro de Compromisso da Irmandade Senhor dos Passos de São João del-Rei, 1733.
95
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João del-Rei,
1786.
96
APNSP-SJDR – Livro de Compromisso da Irmandade de São Gonçalo Garcia de São João del-Rei, 1851.
40
Como salientamos, essas composições representaram uma tendência, pois é sabido
que homens e mulheres, principalmente os mais abastados, se associavam a uma ou mais
irmandades, de acordo com o que queriam fazer-se representar naquela sociedade. A
participação de Chica da Silva ex-escrava e esposa do Contratador e, mais tarde,
Desembargador João Fernandes de Oliveira, e seus filhos, nas principais irmandades do
Arraial do Tejuco, Distrito Diamantino é um exemplo dessa circulação pelas irmandades. A
união com o contratador deu a Chica da Silva status privilegiado naquela comunidade. Ao
participarem de várias confrarias, ela e os filhos objetivavam demonstrar que eram aceitos nos
diversos grupos daquela sociedade. Júnia Ferreira Furtado descreve que a ex-escrava e
também seus descendentes chegaram a ocupar cargos de direção nas confrarias. Filiaram-se,
inclusive, a irmandades que deveriam congregar somente brancos e isso não foi um fato
isolado, tampouco constituiu um privilégio. Várias forras transitaram pelas irmandades no
Tejuco, sem encontrar resistência da sociedade. A autora aponta que
Chica seguiu à risca os modelos cristãos de devoção e transmitiu aos filhos
ensinamentos sobre os atos essenciais dessa fé, indispensáveis para a
elevação da alma ao paraíso após a morte. Mas seus motivos não eram
estritamente religiosos: tornar pública sua aceitação sem restrições do
catolicismo foi o modo pelo qual ela e seus descendentes alcançaram bom
trânsito social no seio da elite branca e católica do arraial.
97
Assim como nas irmandades do Tejuco, em São João del-Rei encontramos exemplos
parecidos. O inventário da crioula forra Margarida Maria de Jesus, de 1802, diz que ela foi
membro das Irmandades do Rosário, das Mercês e ainda da de Nossa Senhora do Pilar.
98
O
mesmo ocorreu com a preta forra Joaquina Ferreira de Paiva, natural da Costa da África, que
redigiu seu testamento em 1837, declarando que deixava para a Irmandade do Santíssimo a
“quantia de 10 mil réis para suas despesas” e que, quando viesse a falecer, era seu desejo que
o caixão fosse levado por “4 irmãos da Irmandade do Rosário até o cemitério da Igreja Matriz
da vila de São João del-Rei, onde se daria a sepultura”.
99
O exemplo dessas mulheres deixa
claro que as exceções eram admitidas de acordo com as alianças sociais ou as posições dos
postulantes que apresentassem algum “impedimento”.
O universo religioso vivido pelas irmandades de São João del-Rei chegou ao século
XIX profundamente marcado pela experiência devocional. A veneração das imagens de
santos nos altares das igrejas, durante as festas, nas coletas de esmolas, nas procissões ou nos
97
FURTADO, Júnia. Op. cit., p. 182.
98
IPHAN-SJDR – Inventário de Margarida Maria de Jesus, crioula forra – caixa 118.
99
IPHAN-SJDR – Testamento de Joaquina Ferreira de Paiva, preta forra – caixa 99.
41
cortejos ao cemitério constituiu a tradução da sensibilidade religiosa daquela população,
descrita por John Luccock como a “mais séria e atenta tanto às rezas como ao sermão, do que
todas quantas até hoje vi, em qualquer país católico ou localidade da religião romana”
100
. E,
para manifestar tamanha religiosidade, o que não faltou foi oportunidade para os fiéis. A
programação religiosa na vila era intensa. Além dos principais eventos do calendário
litúrgico, como a Quaresma, a Semana Santa, a celebração de Corpus Christi e o Natal, as
festas em homenagem aos santos padroeiros das irmandades movimentavam a vida cotidiana
dos devotos o ano inteiro. Todas elas tinham direito a “missas cantadas, sermões, procissões,
matinas no dia, véspera e novenas de costume”.
101
Para termos ideia, na Irmandade do Rosário a festa da santa padroeira acontecia “na
segunda oitava de natal” e as demais, dos santos anexos, “dentro dos dias santos do natal até o
dia de reis”.
102
Na das Mercês, os festejos para a santa patrona eram a cada “dia primeiro de
janeiro”, os de Nossa Senhora do Parto e dos demais santos anexos seriam a cada “primeiro
domingo que se seguir depois da festa da Senhora das Mercês ou no dia que a mesa
determinar mais modo”.
103
Em “Algum dia santo de junho”, estava prevista a festa de São
Gonçalo Garcia e, “no dia cinco de fevereiro”, o festejo em memória do martírio do mesmo
santo”.
104
As duas festas para Nossa Senhora da Boa Morte eram celebradas no dia “14 de
agosto” e “no dia próprio da Assumpção”. “Cai a três de maio” a festa principal da Invenção
da Cruz na Irmandade do Senhor dos Passos, e a “quatorze de setembro” havia solenidade
pelo dia da Exaltação da Cruz. A grande Procissão dos Passos acontecia sempre “na quarta
dominga da Quaresma”.
105
Para além da sensibilidade religiosa dos irmãos, essas ocasiões refletiam ainda a
subdivisão social e o prestígio das irmandades naquela sociedade, sobretudo nas procissões
em que houvesse a concorrência de todas elas, como na oficial procissão de Corpus Christi.
Segundo Célia Borges,
106
o lugar de cada irmandade fazia-se seguindo determinadas regras
que estavam estabelecidas na Tabela da Solenne Procissão do Corpo de Deos de Lisboa e
forma com que ham de ir as cruzes das confrarias, de 1724.
100
LUCCOCK, John. Op. cit., p. 303.
101
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei,
1841 cap. 10. Todos os Compromissos das irmandades sanjoanenses mencionados neste trabalho trazem, no
capítulo referente às festas em homenagem aos santos padroeiros e anexos, essas funções nas cerimônias.
102
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei,
1841.
103
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês de São João del-Rei,
1806.
104
APNSP-SJDR – Livro de Compromisso da Irmandade de São Gonçalo Garcia de São João del-Rei, 1851.
105
APNSP-SJDR – Livro de Compromisso da Irmandade Senhor dos Passos de São João del-Rei, 1733.
106
BORGES, Célia. Op. cit., p. 163.
42
Antônio Gaio Sobrinho comenta que o direito de precedência é observado de trás para
frente, isto é, desfila por último a irmandade que tiver maior precedência. Vai junto com o
sacerdote que, sob o pálio, preside a procissão, levando a hóstia sagrada ou o relicário com o
Santo Lenho.
107
Segundo o autor, o direito de precedência era definido tendo em vista os
seguintes critérios: primeiro, a dignidade canônica, em que as ordens terceiras têm prioridade
absoluta; depois, a cor da pele, pela qual as irmandades de brancos antecedem as de negros; e,
por último, a antiguidade, segundo a qual as que primeiro se fundaram precedem as mais
recentes. Observados esses critérios, as entidades, em São João del-Rei, tinham a seguinte
ordem nas procissões a que todas acorrem – a de menor para a de maior dignidade:
Irmandade de São Gonçalo Garcia (1759) Irmandade de Nossa Senhora
das Mercês (1750) Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte (1732)
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1708) – Irmandade de Nosso
Senhor dos Passos (1733) Irmandade de São Miguel e Almas (1716)
Irmandade do Santíssimo Sacramento (1711) Ordem Terceira de São
Francisco de Assis (1749) e Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo
(1746).
108
Havia, então, uma hierarquização inerente à ordem escravista e às condições
socioeconômicas da população, em que o destaque era conformado não aos lugares das
irmandades nas procissões, mas igualmente à fabricação de seus altares, à edificação de seus
templos, à realização das festas em homenagem aos(às) santos(as) padroeiros(as), etc.
Anderson de Oliveira considera que as ações e os comportamentos dos fiéis, ao longo
do século XVIII e em pelo menos boa parte do XIX, estavam condicionados à inserção
sociocultural do devoto, uma vez que ele a materializava, por exemplo, na filiação a uma
irmandade ou na escolha da figura de um santo branco, negro ou pardo. Para o autor, a
“devoção colocar-se-ia também como um dos elementos possíveis da construção de
representações sociais, que cada grupo, ao se estruturar para o culto, nele imprime a sua
marca e o faz veículo de suas questões particulares”.
109
Neste tópico, procuramos apresentar como foram constituídas as irmandades em São
João del-Rei, em meio ao desenvolvimento da cidade, desde a sua criação. Viu-se que, à
medida que a vila se desenvolvia, os grupos sociais se segregavam e, assim, buscavam fazer-
se representar naquele contexto diverso. Como apontamos, as irmandades foram instituições
que expressaram bem os contornos daquela sociedade. No tópico seguinte, vamo-nos deter na
análise das irmandades negras em São João del-Rei. Apesar de o nosso objeto de estudo ser a
107
GAIO SOBRINHO, Antônio. Op. cit. (2006), p. 153.
108
Idem, ibidem, pp. 153-154.
109
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit., pp. 251-252.
43
Irmandade do Rosário, acreditamos que é de suma importância contextualizá-la junto às dos
negros, para entendermos a dinâmica da vida associativa daquela população “de cor” na
primeira metade do século XIX.
1.3 - Irmandades negras e devoção
No processo de colonização da América Portuguesa, Igreja e Estado caminharam
junto, pois a primeira era utilizada pelo segundo como instrumento da conquista. Como
afirma Caio Boschi, “o trabalho dos homens da Igreja na Colônia foi essencialmente o de
desempenhar uma função política no quadro geral da colonização” em que os atos religiosos
deveriam consolidar e garantir a posse portuguesa em terras brasileiras.
110
As irmandades,
como promotoras e sedes de devoções, funcionaram como eficientes instrumentos de
sustentação da hegemonia do Estado e da Igreja. Anderson de Oliveira afirma que essa
hegemonia “traduzia a afirmação dos interesses políticos e econômicos dos grupos
privilegiados no processo de colonização”.
111
A manutenção do sistema escravista era o maior
interesse desses grupos, uma vez que gerava riquezas e garantia as hierarquias sociais.
Segundo o autor, a manutenção da escravidão se expressava também na estruturação dos
cultos católicos, principalmente na instituição daqueles destinados à população de cor. A
catequização foi arma infalível no processo de controle social da população negra na
sociedade escravocrata, pois “era fundamental para o bom funcionamento do sistema de
cristandade e representava também o reforço das hierarquias sociais na sociedade
escravista”.
112
A difusão da vida dos santos forneceria exemplos que deveriam ser seguidos
pelos fiéis. Muitos elementos da vida do santo levavam o devoto a identificar-se com aquela
figura e assim compreender sua situação naquele contexto, ao mesmo tempo que buscaria
soluções para os momentos mais difíceis claro, de acordo com os ditames da igreja cristã.
Nesse sentido, a hagiografia
113
era grande aliada, pois a narração tinha um sentido “composto
de intencionalidade e de uma finalidade produzidas à [sic] partir de uma práxis social”.
114
Os
sermões, hinos, gestos, iconografias e cenas de milagres contavam as histórias de vida dos
santos, compostas levando-se em consideração os públicos-alvo, portanto, fundamentais na
ação evangelizadora estabelecida no interior de universos culturais distintos. Dessa forma, as
110
BOSCHI, Caio. Op. cit. (1986), p. 61.
111
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit., p. 323.
112
Idem, ibidem, p. 89.
113
Idem, ibidem. Conjunto de textos nos quais se narram a vida e os milagres dos santos.
114
Idem, ibidem, p. 91. O autor faz estudo detalhado sobre hagiografia e catequese. Ver capítulo 2.
44
imagens e as narrativas dos santos estavam em perfeita sintonia, pois deveriam conter
elementos que fossem assimilados pelos devotos, isto é, que lhes fossem comuns ou parecidos
com suas histórias de vida ou, ainda, de acordo com suas expectativas. Entre esses elementos
estavam a cor da pele, a origem dos santos, seus infortúnios, sua conversão ao catolicismo,
virtudes e heroísmos cristãos, a realeza de algumas devoções, semelhanças com tradições
africanas, etc. As imagens, por exemplo, tiveram um papel fundamental na propagação das
informações sobre a vida dos santos, principalmente num contexto como o do Brasil Colonial,
em que se objetivava conquistar novas almas para a cristandade ocidental, na qual grande
número de seus membros era iletrado. Desse modo, o recurso visual foi importante veículo
para a alfabetização religiosa.
115
Isso o quer dizer que as formas de recepção do culto pelos fiéis fossem meras
repetições. Africanos e seus descendentes souberam apropriar-se do culto católico e recriaram
suas culturas e hierarquias com base na experiência do cativeiro e nas recordações de suas
tradições africanas. É, nesse sentido, que vamos compreender aqui o surgimento das
irmandades negras em São João del-Rei e a associação dos confrades com suas respectivas
devoções.
Quatro irmandades congregavam a população “de cor” em São João del-Rei: a de
Nossa Senhora do Rosário; a de Nossa Senhora das Mercês; a de Nossa Senhora da Boa
Morte e a de São Gonçalo Garcia.
Como padroeira dos pretos, Nossa Senhora do Rosário é a invocação mais antiga de
que se tem notícia na América Portuguesa. Descende de Portugal tal invocação. Juliana
Beatriz Almeida de Souza afirma que a devoção se originou de uma aparição da Virgem
Maria para São Domingos (Domingos de Gusmão). Este, no início do século XIII, tentava
combater, no sul da França, as críticas da população à Igreja Católica e reconverter a região.
Foi então que, certo dia, diante das dificuldades que o missionário enfrentava, a Virgem
Santíssima lhe apareceu e lhe ensinou um método de oração “dizendo que homens e mulheres
invocariam sua ajuda com as contas que lhe entregava”.
116
O Rosário seria o meio de obter
graças e proteção da Santa Mãe de Deus.
Seu culto bem como a recitação do terço foram intensamente divulgados pelos
dominicanos, tornando-se tão populares em Portugal que, em quase todas as cidades daquele
115
Idem, ibidem, p. 232.
116
SOUZA, Juliana Beatriz Almeida de. Viagens do Rosário entre a velha cristandade e o além-mar. Estudos
Afro-Asiáticos. Ano 23, número 2, 2001, p. 4.
45
território, se criaram igrejas e irmandades com o nome dela.
117
Desde o século XV foi tida
também como protetora dos homens “de cor”. Segundo Julita Scarano, a Igreja Católica
empreendeu grande esforço para integrar o africano recém-chegado no Reino. Atraiu-o para
as irmandades e, nesse sentido, parece que os dominicanos foram mais eficazes. Integraram
muitos negros nas associações de seus conventos. Começaram nas Confrarias do Rosário dos
brancos, mas, depois, à medida que o número de negros foi aumentando, passaram a se reunir
em outros espaços, fundando, assim, suas próprias irmandades.
118
Quando Portugal estabeleceu relações comerciais com a África, no século XVI, levou
para aquele continente os preceitos do catolicismo em forma de projetos de conversão dos
povos pagãos em que as devoções tiveram um papel fundamental.
119
Além dos dominicanos,
os jesuítas e outras ordens, como a dos carmelitas, franciscanos e capuchinhos peregrinaram
em terras africanas, difundindo os cultos católicos, sendo o mais famoso deles o de Nossa
Senhora do Rosário.
120
Dentre as regiões a que os missionários levaram o conhecimento
cristão, Congo e Angola foram territórios onde o cristianismo teve grande divulgação, pois,
nesses lugares, havia um Estado que dava suporte à Igreja.
121
John Thornton afirma que se estabeleceu na África um “catolicismo africano”, na
medida em que houve uma fusão de ideias religiosas semelhantes entre o cristianismo e as
crenças africanas. A em seres que promovessem intercâmbio entre o mundo terreno e um
mundo metafísico era compatível com as duas religiões. Nesse sentido, teria sido possível aos
africanos uma apropriação dos santos católicos, identificando-os com as divindades locais ou
com espíritos ancestrais protetores,
122
ou seja, a base do conhecimento religioso em ambas as
tradições tinha muito em comum, o que facilitou a fusão. O mesmo aconteceu no Brasil.
Quando os negros aqui chegaram e foram submetidos à religião católica, logo assimilaram a
simbologia dos cultos. Thornton, ao explicar a conversão dos africanos no Novo Mundo,
afirma que ela começou na África, especialmente entre os africanos da região Central. Mesmo
que não se tivessem convertido por lá, provavelmente possuíam um prévio conhecimento da
doutrina cristã antes do embarque, resultado do empenho missionário e do proselitismo de
mercadores e colonos cristãos na região.
123
Isso pode esclarecer a melhor aceitação do
117
SCARANO, Julita. Op. cit., pp. 38-48.
118
Idem, ibidem, pp. 40-43.
119
SOUZA, Marina. Op. cit., cap. 2.
120
BORGES, Célia. Op. cit., pp. 49-52.
121
SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o limbambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de janeiro:
Nova Fronteira, 2002, pp. 359-450. Ver também: SOUZA, Juliana. Op. cit., pp. 7-11.
122
THORNTON, John Kelly. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico 1400 a 1800. Trad.
Marisa Rocha Mota. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
123
Idem, ibidem, p. 335.
46
cristianismo pelos africanos das regiões do sudeste brasileiro, uma vez que a maioria desses
negros veio dos territórios da África Central (ver Capítulo 2).
A devoção a Nossa Senhora do Rosário chegou ao Brasil e logo foi identificada como
a protetora dos negros. Juliana Souza descreve algumas interpretações para o início desse
culto entre os negros na América Portuguesa. Uma delas atribui esse começo ao contato
prévio com a devoção à Senhora do Rosário na África, principalmente no Congo e em
Angola.
124
A outra diz que a imagem da santa teria sido resgatada em Argel pelos negros.
Depois do resgate, os pretos a escolheram como padroeira.
125
E uma última explicação estaria
ligada a um relato em que é descrito o surgimento da imagem nas águas:
[...] para louvar a Mãe de Deus, os brancos trouxeram banda de música e
cantaram suas loas, chamando a Virgem mas a imagem não se movia.
Vieram, então, os negros do Congo, batendo seus instrumentos em ritmo
acelerado, e a Senhora moveu-se apenas lentamente, permanecendo nas
águas. Foi somente a batida lenta dos tambores do Moçambique que tirou a
imagem das águas. Aí, os brancos levaram a imagem para a capela, onde o
padre a benzeu. Mas a imagem desapareceu do altar e voltou às águas até
que os negros a retiraram, desta vez definitivamente, para torná-la sua
padroeira.
126
Como afirma a autora, não se sabe ao certo se Nossa Senhora do Rosário, como
patrona dos negros, foi uma opção da Igreja ou uma escolha dos negros. O importante, para
ela, é pensar as estratégias de promoção do culto na América Portuguesa, com o que
igualmente concordamos.
O processo de apropriação dos santos católicos pelos negros, especialmente por Nossa
Senhora do Rosário, foi entendido pela Igreja, que logo providenciou a promoção de novas
devoções. Setores da igreja colonial procuraram ampliar o “mercado hagiográfico”
127
com a
finalidade de atender à demanda dos segmentos negros, à medida que buscavam diferenciação
e maior representatividade, não só dentro de suas irmandades como também fora delas.
Consta que, na América Portuguesa, a primeira irmandade de negros com o nome de
Nossa Senhora do Rosário existia no final do século XVI.
128
Foram os padres jesuítas,
juntamente com os franciscanos, os divulgadores da devoção mariana nesse território.
129
O
Padre Antônio Vieira foi pioneiro dessa inflexão ideológica, na medida em que ampliava a
124
SOUZA, Juliana. Op. cit. p. 6.
125
Idem, ibidem, p. 12.
126
Idem, ibidem.
127
Expressão utilizada por Anderson de Oliveira. Op. cit., p. 27.
128
BORGES, Célia. Op. cit., p. 51.
129
Idem, ibidem.
47
escravidão africana e aumentava a preocupação da elite senhorial.
130
O jesuíta difundia,
através de sermões, a devoção a Nossa Senhora do Rosário, argumentando que “o cativeiro
dos africanos se transformaria em liberdade eterna pela morte e salvação” e que os filhos de
Nossa Senhora do Rosário alcançariam fortuna “alta e gloriosa na outra vida”, compensando a
“condição baixa e penosa” que haviam vivido na vida terrena.
131
O culto ganhou popularidade entre a gente “de cor” no Brasil Colonial. Assim foi que,
em 1708, os homens pretos do antigo Arraial Novo do Pilar escolheram Nossa Senhora do
Rosário como padroeira da irmandade, que foi aprovada no mesmo ano pelo Bispo do Rio de
Janeiro.
132
Os cultos eram praticados, nos primeiros tempos, na capelinha primitiva de Nossa
Senhora do Pilar. Somente em 1719 a entidade recebeu autorização para o erguimento da
própria igreja, que começou a ser construída em 1720.
133
Encontramos dois Compromissos referentes à Irmandade do Rosário: o de 1787 e o de
1841. O texto redigido no setecentos foi o primeiro a ser aprovado pelo Tribunal da Mesa de
Consciência e Ordens. Parece ter existido um estatuto anterior ao de 1787, porém tal
documento foi questionado, por volta dos anos de 1780, pelo Padre Antônio Caetano de
Almeida Vilas-Boas, vigário responsável pela Matriz de Nossa Senhora do Pilar, num conflito
com a irmandade dos negros. Segundo Célia Borges, o vigário Vilas-Boas, em carta a El-
Rei
134
, questionou a validade desse documento. Acusou os irmãos do Rosário de estarem
respaldados num Compromisso rubricado e assinado pelo ouvidor, que não foi visto nem
aprovado pelo Tribunal da Mesa de Consciência e Ordens.
135
Acreditamos que o documento
de 1787 foi providenciado em função do questionamento do vigário da Matriz do Pilar.
O Compromisso é um documento muito importante para uma irmandade. Por isso,
cabe aqui tecermos algumas rápidas considerações a respeito dele. Como mencionamos
anteriormente, os das irmandades são os estatutos que as regem. Neles, declaram-se a
invocação à padroeira da instituição; as finalidades que promoveram a reunião dos seus
devotos; a estrutura administrativa, definindo os cargos e suas respectivas funções; as regras
para a realização das festas, dos ofícios religiosos e das eleições; os deveres e os benefícios
dos irmãos, dentre outros aspectos. Nem sempre o Compromisso corresponde à ação
fundadora da associação, mas sim ao propósito de tornar formal e oficial a realidade
130
Vieira escreveu uma série de trinta sermões sobre o Rosário, publicados originalmente em dois volumes, um
em 1686 e outro em 1688, sob o título Maria Rosa Mística. Alguns deles relacionou à devoção do Rosário, ao
cativeiro dos negros pela escravidão. Ver mais detalhes em SOUZA, Juliana. Op. cit., pp. 11-16.
131
VIEIRA, Padre Antônio. Sermões. Vol. 9. São Paulo: Editora das Américas, 1957, pp. 273-275.
132
GUIMARÃES, Fábio. Op. cit., pp. 83-84.
133
Idem, ibidem.
134
Sobre as querelas em Minas, ver BOSCHI, Caio. Op. cit. (1986), pp. 71-79.
135
Ver mais detalhes sobre o conflito em BORGES, Célia. Op. cit., pp. 71-77.
48
associativa existente. A irmandade garantia sua oficialidade quando o Compromisso
fosse autorizado e aprovado pelas autoridades civis, seculares ou eclesiásticas. Caso contrário,
ela estaria sujeita ao fechamento.
136
A redação dos textos ficava sob a responsabilidade de
pessoas letradas. Geralmente os padres capelães eram os escolhidos para essa tarefa. Seguiam
uma estrutura redacional padronizada, sempre de acordo com o beneplácito das autoridades
eclesiásticas. Porém, nem por isso deixavam de expressar a vontade dos confrades,
principalmente no que diz respeito aos negros.
À primeira vista, tais documentos parecem iguais. No entanto, ao serem examinados
com cuidado, revelam informações preciosas. Podem exibir os traços do contexto sócio-
histórico em que foram gerados, as razões de alteração de cláusulas, da inserção de novas
devoções, bem como apresentar novas regras para orientar comportamentos ou resolver
conflitos. Como afirma João José Reis, “a análise dos Compromissos revela interessantes
estratégias de alianças, ao lado de elaboradas regras de exclusão”.
137
Marisa Soares
complementa, ao afirmar que o estatuto é um instrumento de poder indispensável, “é o lugar
onde se constrói a regra e o lugar de onde se institui a autoridade daqueles que a fazem
cumprir”.
138
O Compromisso reflete muito do cotidiano da confraria e é, por isso, que a
maioria deles sofreu modificações, sempre acompanhando as transformações da instituição.
Considerando essas premissas, vamos analisar os Compromissos das irmandades
negras sanjoanenses, iniciando pelo da Confraria do Rosário, que é o nosso objeto de estudo.
Nele estava estabelecido que “hajam de aceitar-se para irmãos dela todas aquelas pessoas que
por sua devoção quiserem servir a Nossa Senhora tanto eclesiásticos, como seculares, homens
e mulheres brancos, pardos, pretos, assim escravos como libertos [...]”
139
. Sendo a Virgem do
Rosário a protetora de todos os homens “de cor” “pretos”, “mulatos”, “pardos”, “crioulos”,
escravos, forros ou libertos não havia nenhuma distinção sobre essa questão no
Compromisso. Mas se a padroeira era uma santa branca, não faltou nos altares internos da
igreja o culto de santos negros. São Benedito foi um deles. Santo negro, filho de pais escravos
africanos, foi tão venerado pelos irmãos cativos que, nos documentos da confraria, seu nome
vinha ao lado da santa padroeira. Assim constava nos livros de entrada de irmãos: “entrou
136
Em 8 de março de 1765, uma Provisão Régia notifica que os Compromissos, ainda que analisados e
aprovados por autoridades diocesanas, seriam obrigados a passar pela confirmação do Tribunal da Mesa e da
Consciência e Ordens, organismo responsável pelas questões respeitantes à matéria religiosa, para ser
considerado válido. Ver BOSCHI, Caio. Op. cit. (1986), pp. 116-118.
137
REIS, João José. Op. cit. (1996), p. 6.
138
SOARES, Mariza. Op. cit., p. 180
139
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei -
1787
49
para esta Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito”.
140
Célia Borges afirma
que, no Brasil, São Benedito foi, entre os santos negros, o mais cultuado pelos escravos. Em
sua hagiografia, consta que nasceu em 1526, na cidade de Palermo. Quando pretendeu aderir
ao presbiterado, foi proibido. Tornou-se, então, irmão leigo franciscano e atuou como
cozinheiro do convento.
141
Morreu em 1592. Foi beatificado pela Santa em 1763 e
canonizado em 1807. Seu culto, no Brasil Colonial, teve início nas primeiras décadas do
século XVIII, quando lhe atribuíram a cura do filho de uma escrava no Convento de Santo
Antônio, no Rio de Janeiro. A notícia se espalhou e sua devoção ganhou popularidade entre
os negros, especialmente entre os cativos que o adotaram como santo padroeiro.
142
Além de São Benedito, Santo Antônio de Catalagerona teve preferência entre os
irmãos pretos da irmandade sanjoanense. Também conhecido como Categeró, nasceu na
Sicília, Itália, em 1490. Foi cativo e obteve alforria por causa dos inúmeros milagres que
praticou. Morreu em 1550 e foi beatificado em 1589.
143
Antônio Gaio Sobrinho afirma que a
imagem de Santo Antônio de Catalagerona, acolhida na Irmandade do Rosário de São João
del-Rei, é, na verdade, a imagem de Santo Antônio de Noto, como a que existe no Rosário
dos Pretos em Tiradentes, inclusive documentada.
144
Buscamos informações sobre Santo Antônio de Noto nos livros que relatam sua
história de vida, em que confirmamos que ele muito é confundido “com outro do mesmo
nome, que viveu pelo mesmo tempo e foi o beato Antônio de Catalagerona, religioso professo
no mosteiro de São Francisco, da cidade deste nome, varão também de muita santidade”.
145
Os padres que traduziram a história de Antônio de Noto, Daza e Carrilho, trocaram o
nome do santo, “apelidando-o” de Catalagerona. No entanto, o Padre Diogo do Rosário
salienta que o “apelido” não lhe era pertinente, porque não se tratava da mesma pessoa, visto
que Santo Antônio de Noto nunca viveu em Catalagerona “nem consta que lá fosse algum
dia”.
146
O santo de Noto era “natural da Guiné, da Coroa e Senhorio de Portugal, filho de pais
140
AINSR-SJDR - Termos de entrada de irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-
Rei: livros 17, 20 e 23.
141
Por isso é considerado patrono dos cozinheiros. Ver GAIO SOBRINHO, Antônio. Santos negros
estrangeiros. São João del-Rei: s.n., 1997, pp. 37-38.
142
BORGES, Célia. Op. cit., p. 155.
143
Idem, ibidem, pp. 155-156.
144
GAIO SOBRINHO, Antônio. Op. cit. (1997), pp. 35-36.
145
MLM - Museu do Livro de Mariana (Biblioteca dos Bispos Marianense) ROSÁRIO, Diogo do. Flos
Sanctorum ou História das Vidas de Christo e sua Santíssima Mãe e dos Santos e suas Festas. Edição
aumentada, vol. 3 Estante 21, prateleira 2, registro 2396. Lisboa: Tipografia Universal de Thomas Quintino
Antunes, 1869, pp. 217-218.
146
Idem, ibidem, p. 218.
50
pretos e mouros”.
147
Foi levado cativo para Abola, lugar situado nas vizinhanças de Noto, no
mesmo reino da Sicília. Segundo a tradição, João Landávula comprou o negro para trabalhar
em suas terras e, depois de muitos anos, quando casou suas duas filhas, deu-o como parte do
dote a uma delas. O novo casal levou o cativo para a cidade de Noto. Nesse território, mesmo
cativo, nunca deixou de ajudar os pobres e os enfermos. Ganhou a alforria tempos depois, mas
em sinal de agradecimento aos senhores, serviu-lhes por mais quatro anos. Depois desse
tempo, permaneceu na região e ingressou na Ordem Terceira do glorioso patriarca São
Francisco, da mesma cidade de Noto. Além de exercer suas atividades de ermitão, auxiliou a
muitos pobres e enfermos até o dia da sua morte. Seu enterro data de 1549.
148
Ao que parece,
a troca de nome do santo de Noto por Catalagerona, feita pelos padres tradutores de suas
histórias, chegou à Irmandade do Rosário de São João del-Rei, mas não à igreja do Rosário de
Tiradentes, que adotou para sua imagem o verdadeiro nome Santo Antônio de Noto, como
apontou Antônio Gaio Sobrinho.
Além dos santos negros, outro culto ganhou espaço na Confraria do Rosário
sanjoanense e grande popularidade entre os irmãos negros naqueles primeiros tempos; o de
Nossa Senhora dos Remédios, santa branca que aparece ao lado dos santos negros no
Compromisso de 1787, em que estavam regulamentadas as festividades e as eleições em sua
homenagem.
No que respeita as duas festividades e eleições de Nossa Senhora dos
Remédios e Santo Antônio de Catalagerona que o zelo e devoção de alguns
irmãos as fizeram edificar e estabalecer nesta igreja, queremos se pratique o
mesmo que fica determinado no capítulo XIII, respectivo as eleições e
festividades de São Benedito, estando todas sempre sujeitas a esta irmandade
de Nossa Senhora [...].
149
Com o avançar do século XVIII, o número de cativos nascidos no Brasil aumentou e
uma consequente clivagem entre africanos e crioulos se configurou de forma mais efetiva
150
(ver Capítulo 2). Não dúvida de que esse pode ter sido o principal motivo que levou os
crioulos a se organizarem em torno do culto a Nossa Senhora das Mercês. A origem do culto
remete à Espanha medieval. No século XIII, Nossa Senhora apareceu para três homens,
pedindo-lhes que criassem uma ordem religiosa com o objetivo de resgatar os cristãos cativos
dos infiéis. Nossa Senhora das Mercês fora “designada padroeira dos que ficavam cativos dos
147
Idem, ibidem. O texto não diz a data de seu nascimento.
148
Idem, ibidem, pp. 199-218.
149
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei
1787, cap. 16.
150
AGUIAR, Marcos. Op. cit., pp. 300-301.
51
mouros na África, para onde eram levados marinheiros cristãos e mercadores que caíam em
poder dos piratas do Mediterrâneo”.
151
O culto tornou-se popular na Espanha e logo chegou a
Lisboa. Os religiosos da Ordem de Nossa Senhora das Mercês realizaram milhares de resgates
de cativos na África. Dessa forma, o simbolismo da liberdade estaria associado à devoção.
Nas palavras de Lima Júnior, essa esperança de liberdade que a devoção representava deu às
Irmandades das Mercês uma “feição de utilidade, de assistência e proteção”, diferente das
Irmandades do Rosário em que “se empregavam mais ao culto consolador de sua
padroeira”.
152
A análise do autor nos parece pertinente e, talvez, possa explicar em parte a
questão. Todavia, acreditamos que, numa perspectiva mais ampla, a escolha de Nossa
Senhora das Mercês como padroeira dos crioulos pode ter significado um mecanismo de
distinção frente aos africanos. O culto foi trazido para o Brasil pelos frades da Congregação
da Santíssima Trindade e Redenção dos Cativos e foi na capitania mineira que mais floresceu.
Foram erguidas Irmandades das Mercês nas vilas Ricas de Ouro Preto, Real do Sabará; de São
João del-Rei e São José do Rio das Mortes.
153
Nenhum registro que confirme, exatamente, o ano de fundação da Irmandade de Nossa
Senhora das Mercês em São João del-Rei foi encontrado.
154
Como mencionamos
anteriormente, as bibliografias de historiadores e memorialistas que escreveram a história de
São João del-Rei adotaram 1750 como o ano de fundação da irmandade, porém a associação
pode ter sido organizada antes dessa data, pois sua igreja já se achava construída nesse ano. A
confraria parece ter instituído seu primeiro Compromisso em 1806. O texto introdutório deixa
transparecer o desejo de formalizar a instituição, a fim de que ela tivesse “estatutos pelos
quais se governe, e não suceda haverem [sic] dúvidas e controvérsias sobre o governo e o
bom regime da irmandade”. Nessa associação, era possível “aceitar-se para irmãos dela todas
aquelas pessoas que por sua devoção quiserem servir a Nossa Senhora tanto eclesiásticos,
como seculares, homens, mulheres, brancos, pardos, pretos assim escravos, como libertos
[...]”.
155
O texto
156
não faz nenhuma distinção quanto à entrada dos irmãos, mas o simples fato
151
LIMA JÚNIOR, Augusto de. História de Nossa Senhora em Minas Gerais: origens das principais invocações.
Belo Horizonte: Autêntica: Editora PUC/Minas, 2008, p. 117. Ver também VIANA, Larissa. Op. cit., pp. 195-
196.
152
Idem, ibidem, pp. 117-118.
153
Idem, ibidem, p. 117.
154
O documento mais antigo da irmandade que encontramos no Arquivo Histórico Ultramarino é um
requerimento dos oficiais e irmãos seus, pedindo licença para poderem celebrar missas na capela. O documento
foi escrito em 1755. AHU, Minas Gerais – caixa 74, doc. 85.
155
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês de São João del-Rei
1806.
156
Quase todos os capítulos desse Compromisso da Irmandade das Mercês são iguais aos do Compromisso da
Irmandade do Rosário de 1787. O quesito aceitação dos irmãos na confraria é um deles.
52
de os organizadores declararem que fundaram a “Irmandade de Nossa Senhora das Mercês
dos Pretos Crioulos” confirma a demarcação de uma diferenciação entre a população “de
cor”. O documento também menciona a estruturação de outros cultos no interior da igreja.
Um deles é o de Nossa Senhora do Parto, que mereceu um capítulo especial (o de número 14)
no Compromisso em que ficou determinado que a “irmandade será obrigada a fazer uma festa
todos os anos” em homenagem à santa. Havia festividades e eleições de juízes e juízas
também previstas para “Nossa Senhora das Dores” e para o “glorioso mártir São Manoel”.
Nota-se que entre essas devoções, nenhuma possui a cor negra; todas são brancas, o que deixa
claro que, até mesmo na estruturação dos cultos a irmandade buscou um distanciamento
daqueles que lembravam os homens pretos.
À medida que o termo crioulo não se aplicava mais aos chamados forros e libertos
(crioulo forro ou crioulo liberto), as devoções identificadas com os homens pardos foram
sendo estabelecidas na vila sanjoanense. Em 1735 nela foi instituída a “Irmandade de Nossa
Senhora da Boa Morte dos homens pardos”, que congregava muitos artesãos e músicos.
157
Abrigada na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar, a associação chegou a pensar na
construção de igreja própria, pois, para isso, havia inclusive adquirido um terreno, mas parece
que, por falta de recursos, a edificação nunca foi realizada, ficando até hoje instalada no lugar
onde foi fundada.
158
Diferentemente dos Compromissos das Irmandades do Rosário e das
Mercês, a da Boa Morte, além de declarar em seu título que se tratava de uma associação de
homens pardos, seu estatuto confirmava tal diferenciação. No Compromisso de 1786, único
encontrado e o segundo da instituição
159
, consta que “para irmãos desta irmandade se
aceitarão todas aquelas pessoas que forem brancos, pardos legítimos e libertos, assim homens
como mulheres”.
160
Os termos parecem deixar claro o grau desejável de mestiçagem na
confraria. Apesar de se tratar de uma associação negra, os candidatos a irmãos deveriam
possuir uma condição social mais elevada naquele contexto.
Nossa Senhora da Boa Morte aparece como protetora dos pardos num tempo em que
não havia um santo específico para esse segmento. A Irmandade da Boa Morte de São João
del-Rei parece ter sido inspirada na da Boa Morte e Assunção dos Homens Pardos do Rio de
Janeiro, organizada no ano de 1663. Essa associação esteve instalada, desde sua criação, no
Convento do Carmo, porém, em 1734, transferiu-se para o Hospício dos Pardos, igreja
157
GAIO SOBRINHO, Antônio. Op. cit. (1996), pp. 69-70.
158
Idem, ibidem.
159
Pode-se confirmar tal afirmativa no texto introdutório do Compromisso.
160
APNSP-SJDR – Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João del-Rei –
1786.
53
comprada pelos irmãos pardos de Nossa Senhora da Conceição. A partir de então, as duas
irmandades passaram a dividir o mesmo espaço, mantendo-se independentes. O Hospício dos
Pardos tornou-se referência para a congregação desse segmento negro no Rio de Janeiro.
161
Como salientamos, a Irmandade da Boa Morte de São João del-Rei estava estabelecida no
altar da Matriz do Pilar, que antes abrigava a de Nossa Senhora do Carmo que saíra do Pilar
para se acomodar em igreja própria (1734) onde, algum tempo depois, se transformaria na
Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (1746).
162
No que diz respeito ao culto específico para os homens pardos, Larissa Viana afirma
que só em meados do século XVIII houve a efetiva promoção no Brasil. Antes disso,
verificou-se uma ausência de culto especificamente dirigido aos devotos pardos que
buscaram, então, diferenciar-se dos irmãos do Rosário, apropriando-se dos vários títulos
devocionais marianos, disponíveis no contexto em que viviam, para erguerem suas
irmandades. Uma das primeiras apropriações dos devotos pardos aconteceu na Bahia, ainda
no século XVII. Uma imagem da Virgem de Guadalupe tinha sido colocada pelos espanhóis
na Capela da Sé de Salvador, em 1628. Como a devoção não estava ligada a nenhuma
irmandade, os pardos então a escolheram como padroeira para fundar a associação.
163
Ainda
nesse mesmo período, Nossa Senhora do Terço também aparece como devoção preferida
pelos pardos na Bahia, em Recife, no Rio de Janeiro e em Campos. a hipótese de esse
título devocional ter sido uma criação dos pardos, uma vez que a imagem da Senhora do
Terço “guardava semelhanças formais com aquele padrão tradicionalmente associado à
Virgem do Rosário”; nos braços, o Menino Jesus e, na mão direita, o terço.
164
Outro culto também abraçado pelos pardos, no século XVII, foi o de Nossa Senhora
do Amparo, que, pelo menos no Rio de Janeiro e na Bahia, foi bem popular nas irmandades
desses locais. Segundo Larissa Viana, o Frei Agostinho de Santa Maria foi quem apresentou a
Virgem do Amparo como especial protetora dos pardos.
165
O religioso, em seus sermões,
relatou a história da santa que “a todos, [...] assim aos brancos como aos pretos, mostra afetos
de piedosa mãe, mas os seus pardos favorece como especiais filhos”.
166
Para a autora, as
palavras do frei foram inspiradas no Sermão de Antônio Vieira dedicado ao Rosário, que,
originalmente se referiu à Virgem do Rosário, santa que abraçava com seu amor os brancos,
161
VIANA, Larissa. Op. cit., pp. 144-146
162
GUIMARÃES, Geraldo. Op. cit., pp. 57 e 78.
163
VIANA, Larissa. Op. cit., p. 111.
164
Idem, ibidem, p. 112.
165
Idem, ibidem, p.113.
166
SANTA MARIA, Agostinho de. Santuário mariano: história das imagens milagrosas de Nossa Senhora.
Lisboa: Oficina de Antônio Pedroso Galram, 1722, t. 9, título VI.
54
os pretos e os pardos. Frei Agostinho de Santa Maria fez uma comparação idêntica à de
Vieira, porém ressaltando o título de Nossa Senhora do Amparo e sua preferência dirigida aos
pardos.
167
No século XVIII foi a vez de o culto a Nossa Senhora da Conceição ganhar
popularidade também entre os pardos, que entre os brancos ela tinha muitos devotos. Esses
últimos aderiam ao culto porque associavam à santa o ideal de “pureza de sangue”. A devoção
foi amplamente difundida nas áreas coloniais como patrona de irmandades de pardos,
principalmente nas áreas do Centro-Sul, nas quais o Rio de Janeiro e Minas Gerais eram os
centros mais dinâmicos no século XVIII e onde o processo de mestiçagem se encontrava em
ritmo acelerado. Segundo Larissa Viana, o culto ganhou espaço num momento em que a
legislação geral portuguesa impunha, de forma mais rígida na América Portuguesa, o discurso
da “impureza” ligada ao “sangue mulato”.
168
Tal discurso previa restringir as pretensões por
cargos e honrarias por parte daqueles indivíduos que fossem identificados como descendentes
de africanos em algum grau. Considerando-se que o termo pardo remete, entre outras
possibilidades, à mestiçagem, a autora articula que o culto à santa Imaculada Conceição,
“rainha de toda pureza”, pode ter sido tomado como possibilidade simbólica de subverter o
discurso da “impureza”, defendendo seus devotos desse estigma.
169
Como salienta Viana, se
no século XVII os pardos pontuaram mais a questão da diferenciação na busca de títulos
devocionais que marcassem a construção de suas irmandades, no século seguinte a escolha da
devoção esteve mais ligada às hierarquias coloniais e aos discursos sobre “pureza” e
“impureza”. É a partir disso que setores da igreja buscaram articular, de maneira mais
sistemática, a promoção de uma devoção especificamente ligada aos pardos. Escolheram a de
São Gonçalo Garcia.
O culto a esse santo, considerado o primeiro santo pardo venerado nas Américas, foi
promovido em Minas Gerais pela Ordem dos franciscanos, na segunda metade do século
XVIII.
170
Foi nesse período que os pardos mais anunciaram a urgência da promoção de um
santo legitimamente pardo. A imagem do beato Gonçalo Garcia, que nasceu na Índia, no
século XVI, filho de mulher “etíope natural de Baçaim” e de um português, foi trazida pela
primeira vez à América Portuguesa em 1745, mais especificamente para o Recife. Foi nessa
167
VIANA, Larissa. Op. cit., p. 114.
168
Idem, ibidem, pp. 121-123.
169
Idem, ibidem.
170
Idem, ibidem, p. 124.
55
cidade que o franciscano Frei Jaboatão defendeu a legitimidade parda de Gonçalo Garcia, que
morreu como mártir, no Japão, em 1597.
171
Larissa Viana afirma que o discurso de Frei Jaboatão, destacando o martírio de São
Gonçalo Garcia, colocava os pardos em um grau ainda mais perfeito e virtuoso”, pois na
hierarquia da Igreja os santos mártires representavam um grau superior. A autora ainda
destaca que, segundo o discurso do frei, os pardos esperavam de Gonçalo Garcia uma
intercessão junto a Deus, para que ficassem “limpos e purificados da maldade que seus
adversários colocavam nos acidentes de sua cor”.
172
Esse era um dos principais objetivos
desse segmento, que buscava cada vez mais a inserção social naquela sociedade.
Parece que toda essa apropriação de títulos, antes de se definir efetivamente a devoção
dos pardos, pode explicar a origem de Nossa Senhora do Amparo vinculada ao título da
Irmandade de São Gonçalo Garcia em São João del-Rei. O Compromisso de 1851, ao que
parece o segundo da irmandade
173
, tem a seguinte titulação: “Estatutos dos gloriosos santos
Francisco de Assis e Gonçalo Garcia sob proteção de Nossa Senhora do Amparo da freguesia
de Nossa Senhora do Pilar da cidade de São João del-Rei”, onde podiam ser “irmãos da
confraria homens e mulheres brancos, pardos e morenos livres”.
174
Segundo Antônio Gaio
Sobrinho, a irmandade dos pardos foi fundada em São João del-Rei no ano de 1759 e, de
acordo com um documento de 1765, tinha o nome de “Venerável Arquiconfraria do Cordão
do Seráfico Patriarca São Francisco de Assis”.
175
Porém, a data de fundação pode ter sido
anterior. Em 1759, haviam sido concedidas à irmandade “terras para seu patrimônio”.
176
O
autor afirma que a Irmandade de São Gonçalo Garcia surgiu como uma alternativa da Ordem
Terceira de São Francisco de Assis para atender aos negros, especialmente aos pardos, como
padroeiro, pois estes não tinham o sangue puro, portanto, estavam impedidos de ingressar na
Ordem Terceira franciscana.
177
Os mesmos “privilégios e indulgências” foram estendidos aos
irmãos pardos, entretanto, a Ordem Terceira de São Francisco não lhes permitiu ter Nossa
Senhora da Imaculada Conceição como padroeira.
178
Certamente, os irmãos da Ordem
171
Segundo a narrativa hagiográfica, o beato pediu aos franciscanos um hábito leigo e juntou-se a eles na
evangelização dos pagãos pelas terras do Oriente. Quando fazia pregações do cristianismo nas terras japonesas,
foi encarcerado. Depois de sentenciado à morte, o beato foi crucificado. Ver mais detalhes em Idem, ibidem, pp.
124-128.
172
Idem, ibidem, pp. 127-128.
173
Idem, ibidem, p. 128 nota 88. O primeiro parece ter sido o de 1783 e pode ser encontrado na Biblioteca
Nacional de Lisboa (BNL), códice 11.703.
174
APNSP-SJDR – Livro de Compromisso da Irmandade de São Gonçalo Garcia de São João del-Rei – 1851.
175
GAIO SOBRINHO, Antônio. Op. cit. (1996), p. 68.
176
VIEGAS, Augusto. Op. cit., p. 207.
177
GAIO SOBRINHO, Antônio. Op. cit. (1996), p. 68.
178
Idem, ibidem.
56
Franciscana queriam preservar a representação da devoção que estava ligada à “pureza de
sangue”, na visão deles, reservada à elite branca. Tal impedimento pode ter levado os irmãos
pardos a adotarem a Virgem do Amparo também como padroeira da irmandade, inspirados
por outras associações da colônia, conforme apresentamos. O Capítulo 23 de seu
Compromisso confirma o intento: “A 8 de setembro se festejará a S.S. Virgem do Amparo
como padroeira da confraria”.
179
O que se pode apreender da vida associativa em São João del-Rei é que ela foi
moldada a partir de tensões próprias de uma sociedade escravista, extremamente
hierarquizada e miscigenada. É preciso lembrar que a impressão de coesão, contida nas
designações das irmandades tidas de brancos, pardos, pretos e crioulos, não pode ser tomada
como dado natural, uma vez que esses termos faziam parte de uma linguagem hierarquizante,
portanto, bastante relativa. Tais designações eram utilizadas para determinar os indivíduos
socialmente, de modo especial, quando se queria demarcar os contrastes em dados momentos.
Tanto é que, no surgimento de São João del-Rei, o contraste em questão poderia estar mais
voltado para as diferenças entre brancos e negros, mas, aos poucos, na medida do
desenvolvimento da vila, foi expressando um ideal de ordenação social do Antigo Regime
ibérico e colonial.
Mas isso não é tudo. Se as devoções escolhidas para o erguimento das irmandades
negras em São João del-Rei seguiram um padrão de identificação mais geral para demarcar as
diferenciações, o mesmo vai acontecer no interior das confrarias com a estruturação dos
outros cultos, que de forma mais específica, identificando os grupos internamente. É o que
pode ter ocorrido nas Irmandades do Rosário e das Mercês, em que os seus Compromissos
divulgaram a estruturação de devoções anexas.
O Compromisso de 1787 da Irmandade do Rosário, ao dizer sobre as festas e as
eleições das devoções anexas, parece sugerir essa busca pela diferenciação dos grupos no seu
interior. O texto diz que os cultos de Nossa Senhora dos Remédios e de Santo Antônio de
Catalagerona foram edificados e estabelecidos naquela igreja por “zelo e devoção de alguns
irmãos”.
180
O mesmo aconteceu na Irmandade das Mercês. Nossa Senhora das Dores e São
Manoel foram devoções também edificadas pelo “zelo e devoção de alguns irmãos”.
181
179
APNSP-SJDR – Livro de Compromisso da Irmandade de São Gonçalo Garcia de São João del-Rei – 1851.
180
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei,
1787.
181
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês de São João del-Rei,
1806.
57
Mas, o que levaria esses grupos a buscarem uma distinção dentro da confraria?
Acreditamos que os motivos podiam ser os conflitos e as disputas pelo poder entre os
grupamentos étnicos
182
. É o que têm revelado os estudos historiográficos mais recentes.
Mariza Soares fez estudo importante sobre a Congregação Mahi, existente na Irmandade de
Santo Elesbão e Santa Efigênia, no Rio de Janeiro, em que duas devoções, a das Almas e a de
Nossa Senhora dos Remédios foram utilizadas na resolução de um conflito entre os homens e
as mulheres da agremiação.
183
Outro estudo importante é o de Anderson de Oliveira. Afirma que em Minas Gerais as
clivagens no interior das confrarias, principalmente nas do Rosário, não se deram apenas entre
africanos e crioulos, mas também entre a própria população africana. Demonstra que “havia
disputas internas entre estes grupos pelo controle das irmandades e pela definição de
hierarquias entre eles”.
184
Segundo o autor, a ocupação dos cargos nas confrarias é grande
reveladora de disputas entre os grupos no interior das associações que utilizavam as devoções
para demarcar suas fronteiras identitárias e, consequentemente sua representatividade.
185
A
distribuição dos cargos faz-se com base numa hierarquia em que o juiz tem maior destaque.
Abaixo dele estão o procurador, o tesoureiro e o escrivão, seguidos dos demais irmãos de
mesa, que não possuem cargo. Dessa forma, é possível especular o poder e o prestígio que o
ocupante do posto máximo teria dentro da associação.
As eleições para a definição dos novos ocupantes dos cargos nas confrarias
aconteciam uma vez ao ano, no consistório de cada irmandade. Cada uma tinha o seu dia
predeterminado para a votação. Em São João del-Rei, as eleições na Irmandade do Rosário
aconteciam “na tarde do dia do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo”; na Confraria das
Mercês, era no “dia último de dezembro”; “na manhã do dia 14” de agosto era a votação na
Irmandade da Boa Morte; e no “1º domingo de junho” era a vez de os irmãos de São Gonçalo
Garcia escolherem os novos mesários. Vejamos, a título de exemplo, o Capítulo 3 do
Compromisso da Irmandade do Rosário, que regulamentava as eleições de forma bem
detalhada. Os estatutos das outras irmandades negras em São João del-Rei seguiam a mesma
linha.
182
Sobre o que estamos compreendendo por grupos étnicos, ver introdução deste trabalho.
183
SOARES, Mariza. Op. cit.
184
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit., p. 291.
185
Idem, ibidem, p. 293.
58
Este ato da eleição, como um dos mais importantes da irmandade, deve se
esforçar para que nele assistam todos os mesários sob a presidência do
reverendo capelão e depois de assim reunidos em o consistório no dia de
natal de cada um ano, apresentarão uma lista, que de acordo deve ter
feita com os outros quatro mesários, propondo nela quinze irmãos que
estejam em circunstâncias de poderem ocupar os cinco principais cargos da
irmandade e isto em ordem tríplice; e logo em escrutínio secreto,
principiando-se pelo Rei, se correrá sobre cada um indivíduo a votação, no
que obtiver a maioria passará a ocupar o respectivo cargo( ...) concluída
assim esta eleição, os cinco principais mesários elegerão todos os mais
constantes do capítulo antecedente [...]
186
(grifos meus).
O texto acima deixa claro que a eleição não assumia a feição de participação por
sufrágio universal. Os componentes da mesa diretora eram indicados pelos chamados “grupos
de pressão”,
187
que se organizavam dentro das irmandades. Isso significa que as indicações
dependiam também da construção de alianças com outros grupos, o que deixa evidente a
possibilidade de situações de conflito. As dúvidas que ocorriam no ato da eleição na
Irmandade de São Gonçalo Garcia, “para haver paz e ordem”, eram resolvidas “pela maioria
da mesa” e de todo sucedido era mencionado na ata.
188
Mas, a disputa de alguns grupos pelo
controle da irmandade podia ser tão grande que precisaria estabelecer regras mais claras sobre
a maneira de votar. É o que descreve o Capítulo 3 do Compromisso da Irmandade de Nossa
Senhora da Boa Morte, quando chega a fixar normas de comportamento para os irmãos
votantes no dia da eleição, a fim de evitar possíveis corrupções e consequentes desordens.
Recomenda que os votos deviam ser dados em “segredo do dito juramento” em que ninguém
percebesse o voto que cada um daria. Não deveriam comunicar ou declarar em quem
pretendiam votar, para que se evitassem “os subornos de parcialidades”. Segundo o
Compromisso, isso tinha acontecido muitas vezes naquela irmandade “introduzindo-se nas
eleições irmãos incapazes de ocuparem cargos de Mesa, nascendo destes, desordens [...]
inimizades e outras gravíssimas conseqüências”.
189
É claro que, se as divergências chegassem a reações extremas como as brigas, o
Compromisso, como um instrumento de autoridade da irmandade, procurava coibi-las e punir
o mau comportamento dos irmãos. É o que encontramos igualmente nos textos dos
Compromissos das Irmandades do Rosário e das Mercês. Quando o irmão “fizer alguma briga
186
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei,
1841.
187
Essa expressão foi utilizada por Anderson de Oliveira (OLIVEIRA, Anderson. Op. cit., p. 291) para
identificar os grupos dominantes e/ou mais organizados, que tinham condições de controlar o maior número de
cargos na irmandade e que consideramos apropriado para a discussão que também estamos empreendendo.
188
APNSP-SJDR – Livro de Compromisso da Irmandade de São Gonçalo Garcia de São João del-Rei, 1851.
189
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João del-Rei,
1786.
59
ou desatender a outro com palavras e ações injuriosas”, em “algum ato” em que a irmandade
estivesse incorporada ou ainda em “alguma função pública” que houvesse dentro da igreja, “o
juiz e mais oficiais” o repreenderia, mandando que logo se reconciliassem, pedindo “perdão
ao ofendido”. E caso o irmão ofensor desobedecesse, a mesa o expulsaria da irmandade e
ainda mandaria lavrar disso termo, assinado pela mesa”.
190
A intenção de constar nos livros
de atas era para que esses confrades desordeiros não fossem mais admitidos e para que
servisse de consulta a outras irmandades, caso o mesmo irmão pretendesse filiar-se a alguma
delas. No Compromisso da Irmandade da Boa Morte, o tom era ainda mais rígido ao reforçar
que essas medidas seriam para que esses irmãos “assim fiquem castigados, como
perturbadores do sossego da irmandade e rebeldes usurpadores das regalias da mesma”.
191
Não sabemos como se davam essas disputas e esses conflitos. Apenas temos a certeza
de que elas existiram e fizeram parte do cotidiano das irmandades negras em São João del-Rei
e que, antes de chegarem ao extremo, os irmãos buscaram hierarquizar espaços e definir
poderes para que fosse possível a convivência entre eles. É nesse sentido que as devoções
podiam também funcionar como mecanismo de distinção grupal, isto é, serviram para
delimitar fronteiras e expressar identidades. Como podemos verificar isso no interior de uma
irmandade?
Nosso trabalho tem como objeto a de Nossa Senhora do Rosário em São João del-Rei.
A partir da documentação específica, procuraremos reconstituir a história dos grupos
presentes naquela associação. Interessa-nos saber: Quem eram os confrades do Rosário?
Como se deu a composição dos membros na confraria? Como os grupos participantes se
articularam para preservar suas identidades? Em que medida os símbolos devocionais foram
utilizados para estabelecer fronteiras? Que assimilações os confrades fizeram com as
devoções? Teriam elas sentidos específicos naquela localidade?
É o pretendemos discutir com mais detalhes nos capítulos seguintes.
190
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei,
1787, e Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês de São João del-Rei, 1806.
191
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João del-Rei,
1786.
60
CAPÍTULO 2
SOCIABILIDADES E IDENTIDADES NA CONFRARIA DO ROSÁRIO
SANJOANENSE
Termo de Maria, escrava de D. Severina
Aos vinte e um dias do mês de fevereiro de 1848, entrou por ir desta
irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, Maria de D.
Severina sendo juíza de promessa de Nossa Senhora dos Remédios, de que
pagou 5 mil réis e se obrigou em tudo guardar as leis de nosso
Compromisso, e para constar mandei lavrar o presente termo eu José Pinto
de Souza, secretário da irmandade que eu escrevi e assino José Pinto de
Souza.
192
Termo de Cipriana crioula, escrava de Antônio de Souza França
Aos seis dias do mês de março de 1848, entrou por irmã desta irmandade de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito desta cidade, Cipriana crioula,
escrava do França, de baixo da mesada da Provedora, sua senhora, e se
obrigou às leis do nosso Compromisso, e para constar lavrei o presente
termo eu José Pinto de Souza, secretário da irmandade, que este escrevi e
assino José Pinto de Souza. Antônio de Souza França.
193
Foi a partir de termos como esses que buscamos informações para traçar o perfil dos
irmãos da Irmandade do Rosário em São João del-Rei, na primeira metade do século XIX.
Esse capítulo tratará, de início, da composição dos associados, considerando o gênero, a
condição social e a origem dos confrades. Procuraremos demonstrar, em seguida, como os
irmãos se articularam na confraria para constituir grupos e preservar suas identidades e
hierarquias. Nesse sentido, estaremos atenta às redes de sociabilidades e também aos
mecanismos de distinção grupal. Veremos, ainda, como os símbolos devocionais serviram
para delimitar fronteiras e expressar identidades coletivas.
2.1 – Os confrades – homens e mulheres, escravos e livres
Apesar de o recorte cronológico desta pesquisa ter como foco principal a primeira
metade do século XIX, iremos analisar, neste capítulo, alguns dados do XVIII com a
finalidade de se perceberem as variações e as mudanças que ocorreram na confraria de um
século para outro. Partiremos da segunda metade do setecentos, mais especificamente de
192
AINSR-SJDR – Termo de entrada de irmãos da Irmandade do Rosário de São João del-Rei - livro 23, página
7.
193
AINSR-SJDR Termo de entrada de irmãos da Irmandade do Rosário de São João del-Rei - livro 23, página
10.
61
1747, pois, nos livros de entrada de irmãos encontrados e de possível leitura, essa data
aparece como a mais antiga.
194
A partir desses documentos, investigaremos a variação de
entrantes por gênero, condição e origem e as mudanças nos Compromissos e na popularização
de determinados santos na instituição. Essas constatações são importantes, pois contribuem
para confirmar ou não dados apontados pela historiografia e, mesmo, para compreender
escolhas feitas e decisões tomadas pelos membros da irmandade.
Consultados os livros de entrada de irmãos, coletamos dados para a composição do
grupo, segundo o sexo, a condição social e a origem, na segunda metade do século XVIII e na
primeira do XIX.
TABELA 1
Composição dos irmãos na Irmandade do Rosário de São João del-Rei,
segundo o sexo e a condição social – séculos XVIII e XIX
1747-1800 1801-1850
CONDIÇÃO
Homens Mulheres TOTAL Homens Mulheres TOTAL
ESCRAVO
425
61,7%
264
38,3%
689
100%
274
48%
297
52%
571
100%
FORRO
66
37,3%
111
62,7%
177
100%
14
43,8%
18
56,2%
32
100%
COARTADO
2
50%
2
50%
4
100%
- - -
NÃO
MENCIONA
167
45,6%
199
54,4%
366
100%
337
39,6%
513
60,4%
850
100%
TOTAL
GERAL
660
53,4%
576
46,6%
1236
100%
625
43%
828
57%
1453
100%
Fonte: AINSR-SJDR – Livros 17, 20 e 23 – Termo dos irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São
João del-Rei (1747-1859).
Observamos que, no primeiro período, os homens se associavam mais à irmandade do
que as mulheres: 53,4% para membros do sexo masculino e 46,6% para membros do sexo
feminino. No momento seguinte, aconteceu o contrário, as mulheres aparecem em maior
número, 57%, enquanto os homens, 43%. Na segunda metade do século XVIII, constatamos a
maior presença de escravos. Dos 1.236 membros que se associaram à Confraria, 689 eram
escravos, 177 forros, 4 coartados e 366 não mencionaram a condição. Observa-se que, entre
194
AINSR-SJDR – Livros de entrada de irmãos da Irmandade do Rosário de São João del-Rei, números 17, 20 e
23. As informações estão sendo cotejadas, a partir do banco de dados do projeto de pesquisa “Sociabilidades e
Identidades: negros, afro-descendentes e mestiços no termo da Vila de São João del-Rei – séculos XVIII e XIX”,
do qual fui bolsista durante todo o ano de 2007, conforme mencionado na introdução deste trabalho.
62
os escravos, o percentual de homens é maior, 61,7%. Ainda notamos que, entre os forros, o
percentual maior é o das mulheres, 62,7%, contra, apenas 37,3% de homens.
195
Entre 1801 e
1850, verificamos algumas variações: os membros que não mencionam a condição aparecem
em maior número. Dos 1.453 membros, associados nesse período, 850 não fizeram referência
à condição, 571 eram escravos e apenas 32 se diziam forros. Observamos que, entre os
escravos, um ligeiro equilíbrio entre homens e mulheres, mas, entre os membros que não
mencionaram a condição, as mulheres predominaram, 60,4%, enquanto o percentual de
homens ficou em 39,6%. As forras continuaram com o percentual maior nesse momento,
56,2%, e os forros somaram apenas 43,8%. Na Tabela 2, analisamos os dados, considerando o
sexo e a origem.
TABELA 2
Composição dos irmãos na Irmandade do Rosário de São João del-Rei,
segundo o sexo e a origem – séculos XVIII e XIX
1747-1800 1801-1850
ORIGEM
Homens Mulheres TOTAL Homens Mulheres TOTAL
AFRICANO
234
64,6%
128
35,4%
362
100%
136
57,1%
102
42,9%
238
100%
CRIOULO
73
43,7%
94
56,3%
167
100%
29
46%
34
54%
63
100%
NÃO
MENCIONA
353
49,9%
354
50,1%
707
100%
460
39,9%
692
60,1%
1152
100%
TOTAL
GERAL
660
53,4%
576
46,6%
1236
100%
625
43%
828
57%
1453
100%
Fonte: AINSR-SJDR – Livros 17, 20 e 23 – Termo dos irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São
João del-Rei (1747-1859).
Entre os que mencionaram a origem, tanto entre 1747 e 1800 quanto entre 1801 e
1850, os africanos estavam em maior número em relação aos crioulos. Na segunda metade do
XVIII e na primeira do XIX, os africanos do sexo masculino estavam mais presentes, 64,6% e
57,1%, respectivamente, enquanto o percentual de mulheres foi só de 35,4% e 42,9%,
respectivamente. Entre os crioulos, foi o contrário, para os dois períodos, as mulheres se
associavam mais à confraria. Sheila de Castro Faria afirma que a participação dessas forras
195
Estudos apontam que as mulheres tinham mais facilidade em conseguir a manumissão. Ver FARIA, Sheila de
Castro. Op. cit.; SOARES, Márcio. Op. cit.; e GUEDES, Roberto. Op. cit. Além de apontar a facilidade das
mulheres para a conquista da alforria, esses dois últimos estudos abordam a importância da manumissão em
áreas rurais.
63
nas irmandades era muito grande.
196
Vale aqui salientar que, apesar de os africanos serem
maioria entre os grupos que mencionaram a origem, havia uma quantidade bem significativa
de crioulos na instituição.
197
Não podemos esquecer que existia, em 1750, a irmandade dos
crioulos na vila, sob a proteção de Nossa Senhora das Mercês, porém os dados demonstram
que isso não impediu que os negros nascidos na colônia continuassem a se associar à
irmandade dos pretos. Muitos desses irmãos participavam das duas irmandades
concomitantemente (ver Capítulo 1).
Os dados da Tabela 2 demonstram que, nos dois períodos, o mero de entrantes que
não mencionou a origem é muito grande, mais de 50% dos membros em cada momento. Entre
1747 e 1800, os homens (49,9%) e as mulheres (50,1%) aparecem relativamente equilibrados,
mas, entre 1801 e 1850, não. As mulheres que não mencionaram a origem predominaram,
60,1%, contra 39,9% de homens. Comparamos o percentual de africanos presentes na
confraria, na segunda metade do século XVIII e na primeira do XIX. Dos 1.236 membros que
se associaram no primeiro momento, 29,3% eram africanos, 13,5% crioulos e 57,2% não
mencionaram a origem. No segundo momento, dos 1.453 irmãos admitidos, 16,4% eram
africanos, 4,3% crioulos e 79,3% não declararam a origem.
A Tabela 3, abaixo, nos mais detalhes sobre a primeira metade do século XIX, em
que a diminuição de africanos e crioulos é mais acentuada. Dividimos o período por décadas.
196
FARIA, Sheila de Castro. Op. cit.; Célia Borges constata a “crioulização” nas irmandades do Rosário em
Minas Gerais, a partir do final do Setecentos, inclusive no Rosário de São João del-Rei. Op. cit., pp.124-127.
197
Hebe Mattos chamou a atenção para o aumento da população crioula, a partir da segunda metade do XVIII,
denominando o fenômeno de “crioulização”. MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: os significados da
liberdade no Sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
64
TABELA 3
Composição dos irmãos na Irmandade do Rosário de São João del-Rei,
Segundo o sexo e a origem – século XIX
ORIGEM
1801-1810
1811-1820*
1821-1830
1831-1840
1841-1850
AFRICANO
94
23,5%
4
12,1%
89
22,7%
26
9,2%
25
7,3%
CRIOULO
37
9,3%
3
9,1%
11
2,8%
5
1,8%
7
2%
NÃO
MENCIONA
269
67,2%
26
78,8%
292
74,5%
252
89%
313
90,7%
TOTAL
GERAL
400
100%
33
100%
392
100%
283
100%
345
100%
Fonte: AINSR-SJDR – Livros 17, 20 e 23 – Termo dos irmãos da Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário de São João del-Rei (1747-1859) - *Poucos registros foram encontrados quanto a
esse período.
Nota-se que, a cada década, o número de irmãos que não mencionaram sua origem
aumentou. Ao mesmo tempo, verifica-se a diminuição do percentual de africanos e crioulos
na instituição. Observa-se que esse decréscimo é mais acentuado a partir da década de 1820,
especialmente entre os crioulos.
Em resumo, os resultados nas tabelas anteriores demonstram o seguinte: entre 1747-
1800, os membros da irmandade foram predominantemente masculinos e escravos e, entre
1801-1850, isso mudou. A superioridade feminina é regra e a maior parte dessas mulheres era
“livre”.
198
Por que tantas mulheres na irmandade? Algo as teria atraído mais naquele
momento? Os dados evidenciam ainda a diminuição da presença africana e crioula na
irmandade entre 1801 e 1850. O que justificaria essa redução? Não seria a primeira metade do
século XIX o período em que se tem uma entrada efetiva de escravos e africanos nas Minas
Gerais e, particularmente, na Comarca do Rio das Mortes? E os crioulos? Como explicar esse
decréscimo na primeira metade do oitocentos, especialmente a partir da década de 1820, se a
historiografia aponta um aumento paulatino dessa população, a partir a segunda metade do
setecentos? Acreditamos que essas perguntas podem ser respondidas, se fizermos uma análise
detalhada do contexto em que a irmandade estava inserida, procurando perceber, além do
198
Aqui chamamos de ”livre”, porque mais de 80% dos assentos dessas irmãs aparecem registrados com nome e
sobrenome. Estamos considerando, nesse grupo, também as libertas.
65
perfil socioeconômico e cultural de São João del-Rei na primeira metade do XIX, as
transformações daquele momento.
Os dados apresentados, que comparam o final do século XVIII com o início do XIX,
estão de acordo com o que a historiografia tem apontado para a composição social das
irmandades em Minas Gerais, nos mesmos períodos. Julita Scarano, em análise das listas de
membros na Irmandade do Rosário no Distrito Diamantino, afirmou que, “ao contrário das
épocas anteriores, quando o escravo do sexo masculino era o elemento mais encontradiço, um
número crescente de mulheres e também de forros e brancos caracterizará a irmandade nos
últimos anos do setecentos e do século seguinte”.
199
Outro estudo importante é o de Marcos Aguiar, que analisou a composição dos
entrantes segundo o sexo e a condição nas irmandades do Rosário, de Ouro Preto e do Alto da
Cruz, constatando a progressiva participação dos forros e dos livres, principalmente das
mulheres, nas duas confrarias, a partir da segunda metade do século XVIII. Tomaremos os
dados da Irmandade do Rosário de Ouro Preto para demonstrar essa mudança. Nela, entre
1724 e 1752, os escravos, os forros e os livres representavam, respectivamente, 75%, 6,4% e
17,4%. Entre 1752 e 1781, os percentuais desses mesmos membros foram, respectivamente,
47,1%, 13,4% e 38,7%. E, no último período analisado, 1782 a 1810, os números mudaram
para 50,1%, 15,9% e 33,6%. Observa-se que o percentual de escravos diminuiu ao longo do
século XVIII e o de forros e livres aumentou. Analisando a composição por sexo, na mesma
confraria, o autor constatou que, ao longo do século XVIII e na primeira década do XIX,
ocorreu um aumento na participação das mulheres. Entre 1724 e 1752, os homens
representavam 63,5% e as mulheres, 36%. Entre 1752 e 1781, os entrantes foram dos mesmos
sexos, respectivamente, 52,5% e 47,4%. No período de 1782 a 1810, a adesão dos homens
caiu para 45,5% e a de mulheres aumentou para 54,4%.
200
Embora esses dados corroborem a
tendência demográfica da região e suas eventuais mudanças, o autor alerta que as irmandades
poderiam apresentar variações na composição dos entrantes, que refletem tais inclinações ou
não. Marcos Aguiar lembra que a escolha da irmandade também pode ser determinada pela
localização das capelas, pela identidade social das freguesias e também por fatores políticos
internos e externos.
201
Embora os estudos historiográficos comprovem que Minas Gerais foi, no início do
século XIX, a maior Província escravista do Império, em números absolutos, não o era em
199
SCARANO, Julita. Op. cit., p. 100.
200
AGUIAR, Marcos. Op. cit., pp. 40-53.
201
Idem, ibidem.
66
termos proporcionais. Carla Almeida constatou que, “enquanto a população cativa, na
capitania mineira, cresceu, entre 1767 e 1821, 43,65%, a livre aumentou em 305,17%”.
202
Assim como Almeida, Silvia Brügger constata que o aumento dos habitantes na Comarca do
Rio das Mortes e, consequentemente, no termo de São João del-Rei, no século XIX, foi
proporcionalmente muito maior entre os livres
203
do que entre os escravos. Verificou que, em
1821, a Comarca do Rio das Mortes, do total de 209.664 habitantes, 138.517 eram livres e
71.147, escravos. No mesmo ano, o termo de São João del-Rei tinha 31.029 habitantes, sendo
20.152 livres e 10.877, escravos.
204
Mais interessante ainda é a constatação da caracterização da população sanjoanense.
Brügger afirma que havia maior concentração de mulheres na Vila de São João del-Rei em
1838, ou seja, para um total de 4.033 pessoas livres, 1.776 eram homens e 2.257, mulheres,
portanto, o predomínio masculino se inverteu: havia apenas 79 homens para cada 100
mulheres.
205
Dessa forma, acreditamos que a maior participação das mulheres livres na
Confraria do Rosário de São João del-Rei, na primeira metade do XIX, seja o reflexo da
tendência populacional, apontada pela historiografia, mas isso não é tudo. Cabe, aqui,
aprofundarmos a investigação para percebermos algumas particularidades.
Vários estudos têm destacado o aumento de cativos agraciados pela alforria a partir da
metade do século XVIII, principalmente mulheres, como apontamos em páginas anteriores.
Os libertos, em grande parte, buscavam nos centros urbanos a oportunidade de sobrevivência,
onde a oferta de trabalho livre era maior. Nas vilas de perfil mais urbanizado, como é o caso
de São João del-Rei, muitas mulheres foram em busca de atividades laboriosas que lhes
propiciassem melhores condições de sobrevivência. Tradicionalmente, estavam reservadas
aos homens a atividade de mineração, ofícios como carpinteiro, sapateiro, pedreiro, alfaiate,
etc. Sendo assim, as mulheres procuraram exercer outras funções. Sheila de Castro Faria
afirmou que as principais atividades femininas, no meio urbano, eram: costureira, rendeira,
doceira, padeira, fiandeira, louceira, lavadeira, parteira e prostituta.
206
Mas era no comércio,
202
Apud: BRÜGGER, Silvia. Op. cit, p.40.
203
Entre os livres, a autora afirma que se achavam incluídos também os libertos.
204
Idem, ibidem, p.41. Anderson de Oliveira e Sílvia Brügger pesquisaram registros paroquiais de óbito de São
João del-Rei e constataram a mesma tendência. Entre 1801 e 1822, o percentual de livres no conjunto da
população era maior. Dos 6.189 assentos, 56,8%, em média, era de livres, 6,1% de forros e 37,1% de escravos.
OLIVEIRA, Anderson de e BRÜGGUER, Silvia Maria Jardim. Os benguelas de São João del-Rei: tráfico
atlântico, religiosidade e identidades étnicas (séculos XVIII e XIX). Revista Tempo, Departamento de História da
UFF, Niterói/RJ, v. 13, nº 26, 2009, p. 181.
205
BRÜGGER, Silvia. Op. cit, p.41.
206
FARIA, Sheila de Castro. Pobreza ou Poder? Mulheres chefes de domicílio no Brasil (séculos XVIII e XIX).
Niterói, 1998 (texto mimeo.).
67
tanto fixo como ambulante, que havia expressiva atuação delas, principalmente sob a
administração das forras e das escravas.
Luciano Figueiredo demonstrou, em estudo sobre o cotidiano e o trabalho da mulher
mineira no século XVIII, que a administração das vendas
207
foi uma das ocupações que mais
incorporavam o contingente feminino pobre daquela sociedade, chegando mesmo, no final do
século, a ser dominado por elas.
208
Entretanto, era no comércio ambulante e a retalho que as
mulheres foram praticamente exclusivas. As “negras de tabuleiro” circulavam em inúmeros
povoados e arraiais para vender seus quitutes.
Negras ou mulatas, forras ou escravas, vendiam variados gêneros
comestíveis, tais como pastéis, bolos, doces, mel, leite, pão, banana, fumo e
bebidas. Tratava-se de uma multidão de mulheres que circulava no interior
das povoações e arraiais com seus quitutes, aproximando seus apetitosos
tabuleiros, com muita freqüência, dos locais de extração de ouro e
diamantes.
209
Além de o ambiente urbano ser grande atrativo para as mulheres em busca de trabalho,
os estudos apontam que foi nesse meio que muitas delas conseguiram acumular riquezas e se
transformarem em representantes de significativas fortunas naquelas sociedades.
Eduardo França Paiva, ao pesquisar sobre os escravos e os libertos da Comarca do Rio
das Velhas, em Minas Gerais, no século XVIII, constatou que, entre os grupos de maiores
posses, estavam, em primeiro lugar, o dos homens livres, com destaque para os portugueses e,
em segundo lugar, o das mulheres forras. Em seguida, aparecem as mulheres livres. O autor
baseou seus dados nas listas de contribuintes do Real Donativo de Vila Rica, entre 1727 e
1733, que pagavam tributos sobre as vendas e os escravos que possuíam.
210
A pesquisa de Sheila de Castro Faria sobre as forras na cidade do Rio de Janeiro e na
Vila de o João del-Rei, entre 1700-1850, também é bem esclarecedora desse assunto,
principalmente no que diz respeito a São João del-Rei. Analisou duas cidades de perfil urbano
e descreveu a capacidade das forras, entre africanas e crioulas, em acumular pecúlio,
207
As vendas comercializavam gêneros conhecidos como “secos” (tecidos, artigos de armarinho, instrumento de
trabalho, etc.) e “molhados” (bebidas e comestíveis em geral). Era um misto de bar e armazém, onde, para lá,
eram atraídos diversos segmentos da população pobre circulante na sociedade mineira. Além de comprar, muitas
dessas pessoas consumiam, mesmo, a “aguardente da terra”. Por conta da bebedeira, eram muito comuns
brigas e até mesmo mortes nesses estabelecimentos. Mas nem sempre esse ambiente lembrava violência: a
alegria e o prazer faziam parte do dia a dia daquele comércio. Muitos batuques e folguedos eram realizados e,
além disso, várias prostitutas faziam das vendas locais de trabalho. Ver FIGUEIREDO, Luciano. O Avesso da
Memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora/Brasília, DF: Edunb, 1993.
208
Idem, Ibidem, p. 56.
209
Idem, Ibidem, p. 42.
210
PAIVA, Eduardo França. Escravos e Libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência
através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995, p. 156.
68
principalmente executando atividades como o pequeno comércio. Muitas delas tinham
escravas que saíam às ruas carregando tabuleiros cheios de produtos, resultado da indústria de
suas senhoras. Os maiores investimentos dessas libertas eram escravos (principalmente do
sexo feminino), imóveis, joias e roupas. Era uma tendência alforriarem (as libertas) os filhos
de suas escravas gratuitamente e, a essas últimas, por condição.
211
Possuir escravo numa
sociedade como aquela, mesmo que fosse um, era significativo de posse e distinção social.
Sheila de Castro Faria constatou que, na cidade carioca, entre 1707 e 1812, dos homens forros
que fizeram testamento, 79% tinham escravos. Entre mulheres forras, 81% eram proprietárias
de cativos. Em São João del-Rei, das testadoras forras analisadas, 65% tinham escravas e,
entre os testadores forros, apenas 29% os possuíam. É preciso lembrar que nem todas as ex-
escravas experimentaram melhor nível de vida. Porém, é importante perceber a
representatividade e o desempenho delas naquela sociedade.
Silvia Brügger aprofundou a investigação sobre a presença das mulheres na Vila de
São João del-Rei. Ao estudar os comportamentos conjugais da população livre e forra, nos
séculos XVIII e XIX, constatou que, no meio urbano, era mais comum encontrar domicílios
de chefia feminina. A maioria dos fogos chefiados por mulheres na vila eram de solteiras
(58,6%), enquanto, nos demais distritos, as chefes de domicílios eram, na maior parte, viúvas
(54,7%) e apenas 36,5%, solteiras.
212
Os percentuais demonstram que “era na área urbana que
as mulheres solteiras encontravam meio mais propício para garantir sua sobrevivência ou que,
ali, talvez o casamento fosse menos necessário para seus projetos de vida”.
213
A autora também fez um levantamento, a partir das listas nominativas, sobre a
ocupação das mulheres brancas e não brancas, chefes de fogos nos distritos de São João del-
Rei e na vila, em 1832. Nos distritos, entre as mulheres que mencionaram a ocupação, as
brancas se dedicaram mais às atividades ligadas à produção têxtil e também à agricultura. A
ocupação na atividade comercial não foi verificada para mulheres brancas solteiras e casadas,
apenas para as viúvas. As não brancas também trabalharam mais em atividades têxteis e
agrícolas. Porém, verifica-se que, entre as solteiras, a ocupação em outras atividades foi mais
frequente, inclusive no comércio.
214
na sede da vila, o índice de omissão de informação das
ocupações foi muito elevado. Mas, quando era mencionada, referia-se, quase sempre, à de que
a mulher “vivia de sua agência”. Conforme constata a autora, na historiografia há uma
211
FARIA, Sheila. Op. cit. (2004), cap. 6.
212
BRÜGGER, Silvia. Op. cit., pp.76-89.
213
Idem, ibidem, p.82. Sheila de Castro Faria apontou a preferência de mulheres solteiras pelo domicílio em
áreas urbanas, em livro de sua autoria. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 135.
214
BRÜGGER, Silvia. Op. cit., pp. 92-93.
69
explicação para essa designação nos mapeamentos populacionais: segundo Douglas Libby,
essa denominação é atribuída a proprietários que viviam de rendas. No entanto, Brügger
duvida que fosse esse mesmo o sentido utilizado. Tal designação aparecia com enorme
frequência entre as mulheres não brancas, chefes de fogos, que mencionaram a ocupação, ou
seja, 85%.
215
Ao que parece, a autora acredita que tais mulheres se ocupavam, na verdade, do
comércio ambulante, administrando-o ou executando-o, e das atividades que o tabuleiro
encobria, como, por exemplo, a prostituição.
216
Provavelmente, a real ocupação nos
mapeamentos não era mencionada devido ao estigma negativo que o ofício representava.
217
Os dados que apontamos nas tabelas, confeccionadas a partir dos livros de assentos da
irmandade, condizem com o que a historiografia tem apontado sobre o perfil populacional
sanjoanense, principalmente no que diz respeito às mulheres. Como vimos, na irmandade o
perfil de entrantes na primeira metade do XIX foi majoritariamente feminino e não escravo. É
preciso ressaltar que mais de 80% dessas mulheres estavam registradas com nome e
sobrenome e mais de 90% não mencionaram que eram casadas. Ao que tudo indica, eram
mulheres solteiras e livres. Considerando o que a historiografia aponta para o perfil de
mulheres negras, residentes em São João del-Rei, pode-se sugerir que também não eram
despossuídas.
A historiografia tem considerado a facilidade de as mulheres se filiarem às irmandades
negras. Luciano Figueiredo afirma que as mulheres negras tinham mais aceitação em suas
irmandades do que as brancas nas de brancos. O autor explica que o ingresso das mulheres
brancas era mais aceito quando casadas com um irmão participante, que arcava com as
despesas para a associação. Em alguns Compromissos, isso estaria enunciado. É o caso da
Irmandade do Santíssimo Sacramento de Vila Rica, que estipulava que toda mulher casada,
com irmão membro daquela irmandade, que quisesse gozar dos sufrágios e benefícios dela,
sendo isenta de “infecta nação”, se poderia mandar sentar por irmã.
218
As mulheres que
tinham rendimento próprio e contribuíssem autonomamente com a taxa estipulada para o
ingresso na confraria, não eram bem-vistas naquele recinto. Nesse aspecto, as irmandades de
brancos estavam “consoantes com o sentido patriarcal de contenção dos anseios
215
Idem, ibidem, p. 93 – nota 94.
216
Luciano Figueiredo descreveu o grande número de negras de ganho, envolvidas em prostituição, seja nas
vendas ou no comércio ambulante. FIGUEIREDO, Luciano. Op. cit.
217
No Brasil, o comércio ambulante era identificado como trabalho de “negra”. Apesar de muitas mulheres
acumularem riquezas exercendo tais atividades, o estigma da cor e da imoralidade impedia o prestígio social.
FARIA, Sheila. Op. cit. (2004).
218
FIGUEIREDO, Luciano. Op. cit., p. 159.
70
femininos”.
219
Porém, acreditamos que a questão apresentada por Figueiredo, em relação à
participação das mulheres nas irmandades de brancos, merece ser analisada com mais
minúcia. Ao que parece, “o sentido patriarcal de contenção dos anseios femininos” reflete
mais um discurso da época do que a própria realidade, embora alguns estatutos reforçassem
tal preleção. Anderson de Oliveira aponta, em artigo sobre a Festa da Glória no século XIX,
promovida pela Irmandade de Nossa Senhora da Glória do Rio de Janeiro, confraria de
brancos, que a participação das irmãs era de fundamental importância nos preparativos da
requintada cerimônia, o que deixa claro a ativa atuação delas na instituição.
220
Na verdade,
uma falta de trabalhos sobre as irmandades brancas para relativizar esse assunto. Como nosso
objetivo/tempo não permite aprofundar essa questão, fica aqui nossa sugestão de pesquisa.
Quanto às mulheres negras e mulatas, sua participação ativa nas irmandades vem
sendo apontada com mais frequência pela historiografia. Os próprios Compromissos dessas
irmandades apresentam um texto diferenciado, em que garantiam a inclusão de mulheres em
cargos administrativos, como podemos verificar no Compromisso da Irmandade do Rosário
de São João del-Rei, em seu Capítulo 2, que diz: “A mesa desta irmandade se comporá dos
mesários seguintes: Rei e Rainha, um provedor, um secretário, um tesoureiro, um procurador,
doze irmãos de mesa, um zelador e dois andadores; uma provedora, doze irmãs de mesa e
duas zeladoras.”
221
Luciano Figueiredo atribui ao baixo nível de vida, a que as mulheres negras e mulatas
estavam submetidas, o motivo pelo qual ingressavam nas corporações religiosas. O autor
afirma que a busca pela assistência social e também por um convívio maior com seus pares,
eram os mais importantes motivos para a adesão das mulheres às confrarias.
222
Concordamos
com a afirmação do autor em relação ao segundo motivo, porém, não quanto ao primeiro. A
execução das funções assistenciais estabelecidas nos Compromissos parece que não foi uma
prioridade nas confrarias. Marcos Magalhães Aguiar relativizou essa questão, ao tomar por
base os livros de receitas e despesas, tanto os de irmandades ricas quanto os das pobres. Os
livros demonstram que tais serviços eram bastante “irregulares e seletivos”. “As contribuições
assistenciais, nestas irmandades, eram quase sempre determinadas pela mesa, às vezes
respondendo a solicitações de oficiais, e parecem ter sido bastante irregulares.”
223
O autor
afirma ainda que, na verdade, outra atividade parecia estimular o desempenho dos
219
FIGUEIREDO, Luciano. Op.cit., pp. 158-167.
220
OLIVEIRA, Anderson de. A Festa da Glória: festas, irmandades e resistência cultural no Rio de Janeiro
Imperial. Revista História Social. Número 7, Unicamp – Campinas/SP, 2000, pp. 41-42.
221
APNSP-SJDR – Livro de Compromisso da Irmandade Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei, 1841.
222
FIGUEIREDO, Luciano. Op. cit., p. 161.
223
AGUIAR, Marcos. Op. cit., pp. 196-197.
71
administradores a realização das festas dos santos patronos. Para isso, empenhavam-se ao
máximo.
224
Pensamos, também, que uma mulher desprovida de recursos teria menos chances de
ingressar na irmandade, uma vez que lhe faltariam condições de arcar com as despesas
compromissais que envolviam sua participação (taxa de entrada e anuais). No que diz respeito
aos escravos, alguns senhores pagavam as taxas para que eles nelas ingressassem, mas essa
parece não ter sido uma prática muito recorrente. Segundo Marcos Aguiar, esse
comportamento dos senhores foi mais frequente no início do século XVIII. No seu final, raros
eram os senhores que assumiam o ingresso de seus escravos nessas instituições.
225
Em se
tratando do espaço urbano, era bem possível que os próprios escravos arcassem com essas
despesas, não dependendo da liberalidade senhorial no que tangia aos recursos financeiros.
Na Irmandade do Rosário de São João del-Rei, por exemplo, dos 678 escravos que se
associaram à confraria, entre 1747 e 1800, apenas 51 deles (43 homens e 8 mulheres), ou seja,
7,5%, tiveram a taxa de entrada paga pelos seus proprietários. Entre 1801 e 1850, foram 570
associados. Desses, 37 (25 homens e 12 mulheres), isto é, 6,5%, foram agraciados com o
pagamento da entrada por seus senhores. Muitos desses proprietários, tanto no primeiro
período quanto no segundo, eram padres e ocupantes de cargos na instituição, como juízes,
juízas, reis e rainhas.
226
Os números indicam que as mulheres utilizaram menos esse tipo de
“apadrinhamento”. Constatamos que, nessa confraria, a maioria dos entrantes pagavam sua
própria associação. Além disso, ao analisar esses registros, notamos que foi muito comum,
nos dois períodos, o pagamento das taxas de entrada “por mercê” de algum membro ocupante
de cargos na confraria, isto é, associados que, ao pagarem as avantajadas esmolas para a
ocupação dos cargos, apadrinhavam seus parentes ou conhecidos com o ingresso dos mesmos.
Juliana, escrava do Capitão Domingos de Araújo Siqueira, tinha origem rebola e
entrou na instituição em 1803. Teve sua entrada apadrinhada pelo rei da irmandade daquele
ano, Francisco José de Souza. Em 1804, Pedro, escravo de Dona Rita Maria, teve sua entrada
paga “por mercê” do Juiz José Antônio de Pinho. Isabel, escrava crioula do Alferes José
Joaquim de Miranda, ingressou em 1810, e sua entrada foi “por mercê da Juíza de Ramalhete
de Santa Catarina” daquele ano. Inácia Maria da Silva, crioula, ingressou também em 1810, e
224
Idem, ibidem, pp. 195-225.
225
Idem, ibidem, pp. 54-68.
226
AINSR-SJDR – Livros de entrada de irmãos da irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei,
números 20 e 23.
72
sua entrada foi “por mercê da rainha” daquele ano, Ana Maria Gonçalves.
227
Em 1820, foi a
vez de Joaquina Marcelina da Costa ingressar na irmandade, “por mer do rei Antônio
Mouriço Gouvêia”. Maria Teixeira entrou em 1824, “por mercê da Juíza de São Vicente,
Dona Cipriana de Jesus Batista”. em 1828, Ana Maria de Jesus associou-se à irmandade e
sua entrada foi paga sob o juizado de seu irmão. Vários outros irmãos entraram na instituição
sob a mercê da mesa administrativa.
228
Esses registros revelam uma verdadeira rede de
sociabilidade, que estava ligada aos membros elitizados da irmandade, todos eles detentores
de posses. Para se ter uma ideia, dos 2.689 assentos de irmãos, registrados entre 1747 e 1850,
o percentual desses benefícios chega a 19,5%. Ao que tudo indica, se os entrantes não
tivessem como pagar a taxa, no mínimo precisariam de “proteção” dos associados. Ao
mensurarmos os registros de entrada, percebemos que muitos dos associados que recebiam
mercês eram parentes dos ocupantes de cargos na confraria, escravos desses mesmos parentes
e escravos de pessoas importantes da cidade, como dos capitães, doutores, alferes e padres.
229
Relações de poder e hierarquias sociais, definidas pela cor e pela condição na
comunidade, fizeram parte do cotidiano da irmandade. Eram práticas muito comuns em
sociedades com traços de Antigo Regime. Roberto Guedes
230
afirma que a inserção em redes
de sociabilidade e as relações de parentesco eram também fundamentais para a alocação
social. Para o autor, a ascensão social era restrita no sentido de acesso à elite econômica.
Nesta sociedade estamental-escravista, a mobilidade social, pelo menos
enquanto durou o tráfico atlântico de cativos, era corriqueira e, [...] também
funcional, à medida que gerava consenso social e reproduzia a ordem
escravista. Os egressos do cativeiro contribuíam para isso
mediante suas
estratégias de ascensão social, as quais congregavam trabalho, estabilidade
familiar, solidariedade intragrupal e aliança com potentados locais
231
(grifos meus).
Retomando a discussão sobre a pobreza e a marginalidade nas Minas Setecentistas,
Sheila de Castro Faria critica as interpretações de Luciano Figueiredo, assim como as de
Laura de Mello e Souza,
232
que atribuem à sociedade mineira um elevado índice de pobreza
227
AINSR-SJDR Registros de irmãos no livro de entrada da irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São
João del-Rei, número 17.
228
AINSR-SJDR Registros de irmãos no livro de entrada da irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São
João del-Rei, número 20.
229
Infelizmente, em função de outras prioridades para o desenvolvimento deste trabalho, não pudemos investigar
essas redes de forma mais aprofundada, uma vez que isso teria que ser feito através de uma pesquisa nominativa
em diversos outros documentos. Pretendemos averiguar isso numa próxima oportunidade.
230
GUEDES, Roberto. Op. cit., p. 22.
231
Idem, ibidem, p. 240.
232
SOUZA, Laura de Mello e. Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro:
Graal, 1990.
73
no período aurífero. Como pobres, os autores consideravam também as pessoas que se
dedicavam ao comércio a retalhos, atividade majoritariamente exercida por mulheres negras.
Ora, como classificá-las de pobres, se muitas delas conseguiam através do comércio acumular
pecúlio e até mesmo pagar pela sua alforria? As forras, muitas vezes proprietárias de cativos,
poderiam ser consideradas pobres? O comércio ambulante era tão lucrativo que estava
submetido a impostos. Segundo Figueiredo, foi importante fonte de recursos para o Estado
metropolitano.
233
Sheila de Castro Faria afirma que atribuir às mulheres comerciantes o estigma de
pobreza, no sentido econômico do termo, é um tanto ou quanto equivocado. Para a autora,
pobreza estaria relacionada ao sentido de “mal colocadas na sociedade”. As mulheres negras
seriam consideradas pobres por “estarem triplamente estigmatizadas pela sociedade que as
cercava: a cor da pele, relacionada à escravidão; o defeito mecânico, condição vil; e
prostituição, repúdio religioso”.
234
Mariza Soares, quando discorreu sobre a presença e a maior representatividade das
mulheres na Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, no Rio de Janeiro, em 1748,
afirmou que passaram a ser admitidas como juízas, em grande parte, pela sua capacidade de
disporem de esmolas elevadas para doar,
235
ou seja, mais um indício de que não era o baixo
nível de vida que atraía as mulheres para a irmandade.
Dessa forma, acreditamos que os motivos que atraíam as mulheres à irmandade o
mais além do referente à assistência social. Cremos que um dos principais motivos para o
ingresso na irmandade era a busca de maior afirmação naquela sociedade. Ser confrade
significava também fazer parte das elites da localidade. Nas irmandades dos brancos, os
irmãos eram o reflexo da elite local. O mesmo acontecia nas confrarias negras. Havia uma
elite para tal segmento, que procurava demonstrar sua importância naquele contexto.
236
Célia Borges verificou que, nos encontros religiosos, havia verdadeiras disputas dos
irmãos pelos melhores lugares, não dentro da igreja, mas também nos cortejos. A autora
transcreveu um trecho do Compromisso do Rosário do Rio das Pedras, para demonstrar como
eram comuns essas rivalidades no interior da igreja.
233
FIGUEIREDO, Luciano. Op. cit.
234
FARIA, Sheila. Op. cit. (2004), p. 156.
235
SOARES, Mariza. Op. cit., p. 181.
236
As irmandades amoldaram-se às hierarquias vigentes, traduzindo distinções sociais e de cor. Idem, ibidem, p.
165.
74
É tão notória a desordem com que os nossos irmãos pretos assistem as suas
festas nas disputas de lugares que cada um quer ocupar, que nos pareceu
justo obviar estes distúrbios na casa de Deus de maneira e forma seguinte: os
juízes e procuradores se assentarão todos na parte do Evangelho ao correr do
arco cruzeiro para baixo, em um banco que para isso haverá.
237
Por ocasião das grandes festas religiosas,
238
que envolviam todas as irmandades da
vila, como a Quaresma, a Semana Santa, o Natal e as festas dos santos padroeiros, estavam
as oportunidades de os irmãos se posicionarem socialmente, não frente aos demais
membros da confraria, como também frente àquela sociedade como um todo.
239
Diante de tudo isso, entendemos que a significativa presença feminina na irmandade
do Rosário, na primeira metade do XIX, apontada pelos registros, pode ter sido não um
reflexo da tendência populacional da região, mas também da capacidade dessas mulheres de
viabilizarem financeiramente sua entrada e suas despesas na confraria e, ainda, da incessante
busca por um lugar melhor naquela sociedade. O movimento de integração no mundo livre
era constantemente buscado pelos homens “de cor”, especialmente quando esses
vislumbravam possibilidades. O sumiço da identificação pela cor/condição era o primeiro
passo para o exercício pleno da liberdade,
240
ainda mais quando seus direitos poderiam ser
assegurados constitucionalmente. Isso pode explicar a falta de informações nos registros dos
membros na confraria.
Muitos irmãos, ao se associarem, o mencionaram a sua condição, nem a cor, muito
menos a sua origem. Como vimos, os dados das Tabelas 2 e 3 evidenciaram esse silêncio,
num percentual ainda maior para a primeira metade do século XIX, em comparação com o
período anterior. Alguns estudiosos explicaram essa diferença.
O estudo de Marcos Magalhães de Aguiar nos chama a atenção para a falta de algumas
informações nos registros. O autor observou que, no período de 1724 a 1810, na Irmandade
do Rosário de Vila Rica, havia uma crescente participação de livres, se comparada à de forros.
Afirma que, provavelmente, muitos desses livres eram forros, pois acredita que havia um
desleixo dos escrivães quando não registravam, nos livros próprios, a condição social dos
membros.
241
Consideramos essa possibilidade, porém cremos que a falta da informação pode
passar por uma omissão proposital ou convencional.
237
Chancelaria Antiga da Ordem de Cristo, livro 296, fls.66-70. Apud BORGES, Célia. Op. cit., p. 161.
238
Ver, sobre as festas do Rosário, BORGES, Célia. Op. cit., cap. 5.
239
Sobre o direito de precedência, ver Capítulo 1 deste trabalho.
240
FARIA, Sheila. Op. cit. (1998-A), p. 135.
241
AGUIAR, Marcos. Op. cit., pp. 38-40.
75
Sheila de Castro Faria levantou essa problemática ao estudar a cor e a condição social
no período escravista e chamou a atenção para as denominações registradas nos livros
paroquiais. Os padres, além de oficiar os ritos, como o batismo e o casamento, também
faziam os registros. Segundo a autora, a interpretação de quem fazia o registro transcendia as
informações dadas pelos envolvidos (se é que eram consultados), pois, muitas vezes, os
padres é que indicavam ou não as marcas sociais, dependendo de como as pessoas falavam
sobre si próprias, e o que a comunidade local considerava sobre elas.
242
Dessa forma, em certos casos, havia o desaparecimento da informação sobre cor,
condição, origem; em outros, a informação reaparecia. A argumentação de Sheila de Castro
Faria nos parece coerente, pois, nos registros de entrada dos irmãos, era o escrivão ou
secretário (integrante da mesa diretora da irmandade) o responsável pela redação. Assim
como os registros de batismos e casamentos, descritos pela autora, os livros de entrada
também poderiam registrar referências definidoras dos lugares sociais ocupados pelos
membros naquele espaço e, certamente, aprovado pelo setor dominante da confraria.
Silvia Brügger faz outras considerações sobre o assunto. Afirma que, na primeira
metade do culo XIX, houve um gradativo processo de abandono da designação de “liberto”
ou “forro” nos registros. Segundo a autora, a explicação para isso pode ser atribuída à
aproximação cotidiana entre portugueses, forros e cativos, que fez minimizar as diferenças de
condições jurídicas, sendo desnecessário identificar alguém como “pardo”, “branco”,
“liberto”, “livre”, etc. “A única diferenciação jurídica que continuava fundamental era entre
cativos ou não, porque implicava num direito de propriedade”.
243
Dessa maneira, apenas os
menos conhecidos na região ou os recém-chegados continuavam a ser identificados nos
documentos como ex-escravos.
Porém, outra questão pode aprofundar melhor as considerações que Silvia Brügger
nos aponta e explicar o acentuado decréscimo de crioulos na irmandade, a partir da década de
1820 (Tabela 3). Nossa hipótese é que toda essa ausência de informações, na primeira metade
do XIX, tem relação com o que foi estabelecido na Carta de 1824. Essa Constituição,
finalmente, revogou o traço colonial da “mancha de sangue” e reconheceu os direitos civis de
todos os brasileiros livres, desde que não tivessem sido escravos. O reconhecimento colocava
os cidadãos brasileiros em três categorias, diferenciando-os, apenas, do ponto de vista dos
direitos políticos, de acordo com suas posses: “o cidadão passivo (sem renda suficiente para
ter direito a voto), o cidadão ativo votante (com renda suficiente para escolher, através do
242
FARIA, Sheila. Op. cit. (2004).
243
BRÜGGER, Silvia. Op. cit., p. 297.
76
voto, o colégio de eleitores) e o cidadão ativo e elegível”.
244
A esse último, além da exigência
de renda, impunha-se-lhe que tivesse nascido “ingênuo”, isto é, não escravo. Hebe Mattos
explica que, de acordo com a Carta de 1824, os descendentes dos escravos libertos poderiam,
se renda tivessem, exercer plenamente todos os direitos políticos, enquanto os escravos
crioulos (nascidos no Brasil) que fossem alforriados não entrariam em pleno gozo dos direitos
reconhecidos aos cidadãos.
245
Essa “discriminação”, como chamou a autora, causou enorme
polêmica entre a população livre “de cor”.
As agitações políticas caracteristicamente liberais do final do setecentos
apresentavam reivindicações de igualdade entre pardos e brancos. Com a Constituição de
1824, as exigências de cunho popular pela ampliação igualitária se intensificaram mais ainda
entre a população livre negra, especialmente entre os crioulos alforriados. Vários debates
políticos tratavam do assunto, como o do deputado Antônio Pereira Rebouças,
246
proferido na
Bahia, em 25 de agosto de 1832. Hebe Mattos descreve que
No discurso de Rebouças, portanto, uma vez liberto, o ex-escravo nascido no
Brasil automaticamente tornava-se cidadão brasileiro, com todas as suas
prerrogativas civis e políticas. E assim afirmava porque considerava que
apenas o direito de propriedade legitimava a escravidão. Deixando de ser
propriedade, o escravo (através da alforria) tornava-se também plenamente
cidadão.
247
Os pasquins exaltados dos primeiros anos da Regência afirmavam que no Brasil “não
mais que escravos ou cidadãos”, e, portanto, todo cidadão poderia ser admitido aos cargos
públicos civis e militares, sem outra diferença que não fosse a de seus talentos e virtudes.
248
A
equidade desses cidadãos “de cor” implicava no apagamento das diferenças entre os homens
livres, isto é, o silenciamento sobre a própria cor, que servia como marca de discriminação,
herança do Império Português. Dessa forma, não era mais tolerada a categoria “cor” nos
registros. Se o indivíduo alforriado fosse conhecido naquela localidade, usava-se o
silenciamento também de designações como liberto ou forro. Hebe Mattos
249
enfatiza que,
naquele momento, a igualdade de direitos entre a população livre estava informada pela
distinção concreta e cotidiana entre cidadãos livres e escravos.
244
MATTOS, Hebe. Op. cit. (2000), pp. 20-21.
245
Idem, ibidem, p.21.
246
Nasceu na Bahia, em 1798. Filho de uma liberta e de um alfaiate português, o autodidata no estudo das leis
tornou-se advogado e foi, várias vezes, deputado pela Província da Bahia, Conselheiro do Imperador e
Advogado do Conselho de Estado. Lutou contra a “discriminação racial” no Brasil oitocentista, mas não
exatamente pela abolição da escravatura. Ver mais detalhes em GRINBERG, Keila. Op. cit.
247
MATTOS, Hebe. Op. cit. (2000), p. 43.
248
Idem, ibidem, p.20. Periódicos a partir de 1831: O Homem de Cor, O Brasileiro Pardo, O Mulato, O Cabrito.
249
Idem, ibidem, p. 30.
77
Sendo assim, as polêmicas do período podem justificar a ausência de informações nos
registros paroquiais quanto à cor e às designações como “forro” ou “liberto” e “crioulo”,
levando-se em conta que a única diferenciação jurídica fundamental, em voga naquele
momento, legitimada pela Carta de 1824, era ser cativo ou não. Vejamos, a seguir, como foi o
panorama dos grupos no interior da irmandade, segundo a origem.
2.2 – Origem dos Confrades e a organização dos grupos
A historiografia sobre a escravidão tem mostrado como africanos e crioulos tinham
inserção diferenciada nas relações senhor/escravo. Sabe-se que os crioulos levavam certa
“vantagem” em relação aos africanos. A facilidade de comunicação e a adaptação a uma
cultura ocidental dominante foram alguns dos fatores que lhes deram maiores chances do que
aos recém-chegados de se diferenciarem do resto da escravaria. Muitas vezes, essa
diferenciação influenciou o estilo das negociações e das resistências.
A revolta dos Malês, por exemplo, que ocorreu em 1835, em Salvador, Bahia, teve a
participação maciça de africanos, tanto de escravos como de libertos, ou seja, houve uma
solidariedade entre eles no momento da rebelião.
250
João José Reis constatou a ausência de
crioulos no levante e atribuiu isso à clivagem entre os africanos e os nascidos no Brasil.
Segundo o autor, os crioulos tinham uma relação mais privilegiada com seus senhores e até
mesmo se diferenciavam dos africanos em termos de estrutura de trabalho. Os africanos,
percebendo as privações a que eram submetidos, uniram-se no levante.
Entretanto, isso não significa impedimento para crioulos e africanos estarem juntos em
ocasiões que lhes conviessem. É o que nos aponta Marcos Ferreira de Andrade, quando
realizou estudo sobre a revolta de Carrancas. A insurreição ocorreu em 1833, nas fazendas da
família Junqueira, situadas na Freguesia de Carrancas, termo de São João del-Rei, e uniu
vários escravos, da zona rural, crioulos e africanos de procedências distintas, em torno de um
objetivo comum, a liberdade.
251
Como afirma João José Reis, pode-se “sugerir que essas alianças se faziam ao sabor
das condições locais, da história específica da comunidade africana e seus conflitos em cada
região, em cada cidade, vila ou vizinhança”.
252
Apesar de a sociedade escravista apresentar
250
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. Ed. Revista e
ampliada, São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Sobre a diferenciação entre crioulos e africanos, ver também
MATTOS, Hebe. Op. cit. (1998).
251
Ver mais detalhes em ANDRADE, Marcos. Op. cit., pp. 298-314.
252
REIS, João José. Op. cit. (1996), p. 8.
78
regras e limites para a organização dos grupos dentro dela, os indivíduos teriam que aprender
a se movimentar no interior desse sistema, de forma a criar alternativas de convivência ou
resistência, de acordo com as condições que lhes fossem oferecidas e com os casos
particulares. Haveria, então, a formação de comunidades escravas no Brasil?
Sheila de Castro Faria
253
discutiu essa questão, ao constatar uma divergência entre os
historiadores. Alguns estudiosos acreditam que as formas de adaptação ou de resistência ao
cativeiro podiam criar comunidades com identidades e solidariedades próprias. Outros
afirmam que as rivalidades entre os escravos prevaleciam, tanto que provocavam a dissensão,
impedindo a formação de alianças que fortalecessem o grupo no embate com os senhores. Na
historiografia, pelo menos quatro aspectos são utilizados pelos pesquisadores para discutir a
presença ou o de formação de identidades e comunidades. São eles as revoltas,
254
que
poderiam separar ou unir africanos e crioulos, os casamentos,
255
em que se verifica a
superação ou não das diferenças étnicas, as relações de compadrio,
256
em que os registros de
batismo revelam a formação de alianças entre distintos, libertos e livres, escravos e livres,
etc., e as irmandades,
257
aparentemente organizadas, mas que atestam a incorporação ou não
de determinadas pessoas.
Dentre as discussões que envolvem esses aspectos, seja unindo ou separando grupos, a
autora tende a acreditar que a escravidão no Brasil formou, sim, comunidades escravas, com
limites que devem ser considerados como, por exemplo, os contextos social, regional, político
e demográfico.
[...] sem dúvida, no plural, incluindo escravos de pequenas unidades
produtivas. Poucas regiões poderiam ter condições de criar uma singular
comunidade escrava. A maioria, entretanto, principalmente pela grande
variedade de origem e de heranças culturais de seus membros, criou
comunidades separadas, nem sempre oponentes ou inimigas, mas que
estabeleciam, por meio da vida no cativeiro, solidariedades, espírito de
grupo, identidade e proteção mútua.
Chego a considerar que, de uma forma ou de outra, fosse pela criação de
parentelas, dentro das unidades produtivas e entre elas, fosse pela irmandade,
os escravos estabeleceram relações que visavam compartilhar, amparar e
suportar as duras condições de cativeiro que se viram obrigados a viver.
Dependendo da região e do período histórico, foi possível criar sentimentos
253
FARIA, Sheila de Castro. Identidade e comunidade escrava: um ensaio. Revista Tempo. Vol. 11, n
o
22.
Departamento de História da UFF, Niterói/RJ, 2007, pp 122-146.
254
REIS, João José. Op. cit. (2003); Cf. a revolta de Carrancas em ANDRADE, Marcos. Op. cit., cap. 5; e a
sublevação de Vassouras, de 1838, estudada por GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas:
mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
255
FLORENTINO, Manolo Garcia & GÓES, Jo Roberto. A Paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico
atlântico – Rio de Janeiro, c.1790- c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
256
BRUGGER, Silvia. Op. cit.
257
SOARES, Mariza. Op. cit.; e OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008).
79
mais amplos de interesse comum que levassem a revoltas, reunindo
conjunturalmente pessoas de comunidades diferentes. Mas eram
comunidades.
258
Sobre as divergências dos historiadores, Sheila de Castro Faria conclui que, na
verdade, o que prevalecia, nos tempos de paz e na vida cotidiana e comunitária dos escravos,
em qualquer lugar, eram as hierarquias, segregando grupos, dependendo das circunstâncias do
momento e do tempo de vida de cada indivíduo naqueles contextos.
Carlos Engemann afirma que a base da comunidade estava assentada na formação de
parentesco, condição primeira, mas não a única nessa jornada.
[...] a vida comunal se construía, isto é, produzia-se e reproduzia-se, à
medida que certos saberes e fazeres eram compartilhados, aceitos e
respeitados pelo conjunto de seus coabitantes. Isso demandava o transcurso
do tempo, que ia sedimentando vínculos, consolidando práticas e estipulando
rivalidades e dissensões. Neste devir histórico que é próprio de cada
organismo comunitário, tanto as solidariedades quanto as desigualdades
fazem parte do “fazer-se” inerente a ele. Sem as diferenças e, portanto, sem
as hierarquias não se constrói nem um clã.
259
Ao refletirmos sobre essas discussões e analisarmos a composição dos membros e a
dinâmica organizacional da irmandade do Rosário sanjoanense, na primeira metade do século
XIX, como veremos a seguir, podemos supor que nessa instituição estivessem presentes
vestígios de uma comunidade. Além de agregar elementos de várias delas, isto é, escravos de
diversos senhores, permitindo alianças interescravarias, havia uma enorme articulação por
parte dos irmãos em ingressar seus parentes na confraria.
260
Se essa era uma condição
primeira, muitas outras coisas levavam aquele contexto a um perfil comunitário. Havia uma
dinâmica em que essa vida comunal se construía e reconstruía através da longa convivência
de muitos membros, do compartilhamento de práticas, como as eleições, as festas, as
cerimônias, o compartilhamento da fé, das devoções, aceitas e respeitadas por todo o
conjunto, o propósito de manutenção da vida e da sua qualidade, a relação com a morte e seu
significado, a infinidade de situações que criavam as rivalidades e as dissensões no interior da
confraria, e mais: dessa comunidade relacionada com um mundo externo ao seu, como outras
irmandades negras da localidade.
258
FARIA, Sheila. Op. cit. (2007), pp. 145-146.
259
ENGEMANN, Carlos. De laços e de nós. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 105.
260
Constatamos, nos assentos de entrada de indivíduos, que anos eram irmãos na organização e constituíam
uma aliança parental, inclusive adotando a prática do “apadrinhamento” desses novos irmãos (veremos sobre
isso no último tópico desse capítulo). Muitas vezes verificamos também nesses documentos a entrada de
escravos, cujos proprietários eram parentes entre si.
80
Nesse sentido, é que, para nós, a irmandade, embora reunisse pessoas e até grupos
diferentes, era uma comunidade, pois se tratava de um contexto que criava sentimentos mais
amplos e de interesse comum. As pessoas produziam relações que visavam compartilhar,
amparar e suportar situações como, por exemplo, as duras condições de cativeiro em que eram
obrigadas a viver, no caso dos escravos, ou a morte de entes queridos, ou a preservação da
saúde, da harmonia e da boa fortuna em suas vidas. Dessa forma, como teria sido a
organização dos grupos na irmandade do Rosário de São João del-Rei, no século XVIII e
início do XIX? Como foi construída a identidade desses membros? Como se encaminhavam
os conflitos e as rivalidades no interior da instituição?
Entre os africanos, era comum homens e mulheres serem denominados angola,
benguela, mina, moçambique, cabinda, etc. Porém, que significado eram atribuídos a essas
designações? Para responder a essa pergunta, precisamos entender como as denominações do
tráfico poderiam funcionar como expressão de uma identidade étnica.
261
Na maioria das fontes, sejam documentos administrativos, religiosos ou provenientes
da observação de viajantes ou estudiosos, os escravos traficados para o Brasil foram
identificados segundo a procedência. Vários estudiosos apontaram que a identificação de
nação ou etnia referia-se aos principais portos de embarque, onde os escravos eram
comercializados, os pontos finais de uma longa jornada, percorrida pelos indivíduos que eram
aprisionados no extenso território africano.
262
Mariza de Carvalho Soares realizou estudo importante para traçar a história da
constituição de denominações de procedência dos escravos da “Guiné”. Ela verifica que,
desde o culo XV, expedições europeias atingiram a costa ocidental do continente africano
com o propósito de comprar escravos. A rede comercial, que se intensificou nos séculos
seguintes, empurrou para o litoral membros de alguns grandes domínios interioranos, como
do antigo reino de Benim, os de Ardra, Ajudá, Oyó, Achanti e Daomé, com o objetivo de
dominar o mercado com os europeus. Os reinos exerciam um poder mais centralizado e
organizado, facilitando o incremento do comércio de escravos.
263
As viagens dos
261
Como mencionamos na introdução deste trabalho, seguiremos a perspectiva de Fredrik Barth para o conceito
de identidade, e as reflexões de Manuela Carneiro da Cunha sobre o assunto.
262
Ver estudos sobre esse assunto: FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico
atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro – séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
1995; REIS, João José. Op. cit. (1996); SLENES, Robert. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na
formação da família escrava Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; KARASCH,
Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000;
SOARES, Mariza. Op. cit.; Idem. A “nação” que se tem e a “terra” de onde se vem: categorias de inserção social
de africanos no Império português, século XVIII. Revista de Estudos Afro-Asiáticos. Ano 26, nº 2, 2004.
263
Idem, Op. cit. (2000), cap. 1.
81
comerciantes se estenderam ao longo do litoral, e os navegadores atingiram o reino do Congo
e, depois, chegaram a Angola.
Com a chegada ao Congo e a verificação de que a costa africana é bem mais
extensa do que poderiam supor os estudiosos e navegadores da primeira
metade do século, a Guiné chega a abranger duas grandes unidades
territoriais: a atual costa ocidental, onde se destacam a Costa da Mina e as
ilhas do arquipélago de Cabo Verde, e a atual costa centro-ocidental, que
inclui o Congo, Angola e Benguela.
264
Dessas regiões, Congo, Angola e Benguela, procedeu a maioria dos africanos que
desembarcaram no Rio de Janeiro, no início do século XIX. Mary Karasch, ao discorrer sobre
os africanos oriundos do Congo Norte (Cabinda), explicou que os traficantes cariocas traziam
escravos de toda essa costa congolesa, área que abrangia inúmeros mercados,
265
como
Malemba, Loango e Mayumba, e os embarcavam como carga única. Quando chegava ao
Brasil, essa gente era identificada como cabinda, importante porto de tráfico escravo do
Congo Norte, porque tinha sido exportada através dele. Isso significa que não se
identificavam os escravos, efetivamente, pelos nomes daqueles mercados menores, muito
menos pelos de suas tribos de origem.
266
O mesmo aconteceu nas regiões de Angola e
Benguela.
Os estudos demonstram que, desses locais, saíram alguns dos nomes de origem ou
de nação, atribuídos aos escravos que seriam comercializados e enviados para as Américas.
Havia inúmeras tribos espalhadas pela África, que refletiam uma multiplicidade de nomes
designativos de povos diferentes e línguas desconhecidas. Com o objetivo de facilitar a
identificação, essa variedade foi traduzida para nomes de ilhas, vilas, mercados e reinos
conhecidos. Todas essas afirmações evidenciam bem como é complexa a questão da
procedência.
Mariza Soares afirma que a procedência é um componente importante na identificação
do escravo, mas, por outro lado, frisa que uma vez o indivíduo estabelecido na cidade, essa
“marca de saída” adquire caráter novo.
Os indivíduos procedentes de determinada localidade passam a constituir
não apenas grupos, no sentido demográfico, mas grupos sociais compostos
por integrantes que se reconhecem enquanto tais e interagem em várias
esferas da vida urbana, criando formas de sociabilidade que com base
264
Idem, Ibidem, p. 48.
265
Nesses mercados menores, havia povos de diversas tribos africanas.
266
KARASCH, Mary . Op. cit., pp. 50-51.
82
numa procedência comum lhes possibilitam compartilhar diversas
modalidades de organização, entre elas as irmandades.
267
Nesse sentido é que a autora propõe a noção de “grupo de procedência”. Para ela, essa
noção privilegia a reorganização dos escravos na região em que chegam, sem eliminar a
importância da organização social e cultural do grupo, no ponto inicial do deslocamento.
268
Para termos ideia, nessa interpretação, um grupo de origem denominado “mina”, na Bahia,
pode diferir do que é considerado “mina”, no Rio de Janeiro. Na primeira região, “os minas”
se diferenciam internamente em jeje e nagô, por exemplo, e na região carioca o grupo é
identificado apenas pela designação mina. Isso acontece em consequência dos diversos
arranjos e rearranjos entre os grupos no interior de cada contexto, levando-se em conta cada
situação específica. Trata-se de configurações étnicas (no sentido de grupos originais) em
constante processo de redefinição.
269
Nesse aspecto, a procedência é também utilizada como
elemento para demarcar a identidade.
Maria Tereza Pereira Cardoso se aproxima da perspectiva de Fredrik Barth para o
conceito de identidade, e ainda se fundamenta nas análises de Manuela Carneiro da Cunha
para explicar essa questão. Cardoso alega que, para compreender as relações que se
estabeleceram no novo contexto, o cativeiro, a cultura desses indivíduos, seja material ou
simbólica, funcionava como de contraste. Isso significa dizer que, no processo de construção
das novas relações, a escolha dos traços diacríticos que esses indivíduos realizavam não era
aleatória, mas estava condicionada à forma como um grupo se posicionava diante do outro.
Segundo ela,
É na fricção interétnica que a escolha dos sinais diacríticos se realiza, revela
seu caráter instrumental e toma diferentes configurações. [...] A identidade
de um determinado grupo social não se apresenta de forma condensada em
traços pré-determinados. Ao contrário, esses traços são variáveis e se
configuram de acordo com os grupos que se relacionam.
270
A partir dessas perspectivas, iremos compreender as nações do tráfico enquanto
grupos étnicos organizacionais, isto é, procedências que funcionam como forma de
identificação atribuída, que o próprio grupo internaliza, passando, assim, a se organizar
segundo seu formato. Como descrevemos anteriormente, as revoltas de Carrancas e dos Malês
também são exemplos de grupos que se formaram como resposta política a conjunturas
267
SOARES, Mariza. Op. cit. (2000), p. 113.
268
Idem, ibidem, p. 116.
269
Idem, ibidem.
270
CARDOSO, Maria Tereza. Op. cit., p.73.
83
específicas. Da mesma forma, podemos perceber a utilização desses nomes de procedência na
configuração de novas identidades, através das relações de compadrio, da formação da família
escrava e dos grupos nas irmandades.
271
Na Irmandade do Rosário de São João del-Rei, fizemos o levantamento da
procedência dos irmãos, conforme as informações dos livros de entrada. Mais uma vez
utilizamos os dados referentes à segunda metade do século XVIII, para percebermos as
variações em relação à primeira metade do XIX. O resultado foi o seguinte:
271
Ver, sobre as relações de compadrio, BRUGGER, Sílvia. Op. cit..; e, sobre a formação da família escrava,
FLORENTINO, Manolo & GÓES, José. Op. cit.
84
TABELA 4
Origem dos irmãos na Irmandade do Rosário de São João del-Rei, nos
séculos XVIII e XIX
1747-1800
1801-1850
ORIGEM*
% %
África Ocidental
Mina 64 12,1 26 8,6
Cobu 3 0,6 - -
Cabo Verde 2 0,4 - -
Nagô 13 2,5 5 1,7
Dagomé 1 0,2 - -
SUBTOTAL 83 15,8 31 10,3
África Centro-Ocidental
Angola 96 18,1 38 12,7
Benguela 97 18,3 48 15,9
Congo 20 3,8 36 12
Rebolo 17 3,2 17 5,6
Cabundá 7 1,3 7 2,3
Ganguela 6 1,1 22 7,3
Mocumbe 3 0,6 5 1,7
Monjolo 5 0,9 5 1,7
Cassange 7 1,3 1 0,3
Camundongo 3 0,6 1 0,3
Songo 6 1,1 6 2
Mofumbe - - 4 1,3
Banguela - - 1 0,3
Cambunda 6 1,1 1 0,3
Muhembe 1 0,2 - -
SUBTOTAL 274 51,6 192 63,7
África Oriental
Mozambique
1 0,2 9 3
Nascidos –Colônia/Império
Crioulo
167 31,6 63 21
Não Identificadas
Bambamboira 1 0,2 - -
Guicama - - 1 0,3
Bambambila 1 0,2 - -
Carabari 1 0,2 - -
Da costa - - 3 1
De Nação/Africano - - 2 0,7
Ilegível 1 0,2 - -
SUBTOTAL 4 0,8 6 2
TOTAIS
529
100
301
100
Fonte: AINSR-SJDR – Livros 17, 20 e 23 – Termo dos irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário de São João del-Rei (1747-1859).
*As origens descritas nessa tabela foram baseadas no levantamento sobre as origens dos africanos,
desembarcados no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX feita por Mary Karasch.
272
272
Ver tabela detalhada no Apêndice A - KARASCH, Mary. Op. cit., pp. 481-494.
85
Entre os associados que mencionaram a origem nos livros de assentos, o grupo com
maior número de membros é, sem dúvida, o dos crioulos, se comparado a cada procedência
em particular. Verifica-se isso no primeiro período e no segundo, tendência que se manteve.
Tal fato é explicado pelo aumento de crioulos, a partir da segunda metade do século XVIII,
que se refletiu nas irmandades, como havíamos dito. Mas, comparando os dois grandes
grupos africanos e crioulos, é notória a superioridade dos primeiros. Entre os africanos, os
grupos de maior predominância foram os da África Centro-Ocidental. Entre eles, três
procedências se destacaram: os benguela, os angola e os congo. Também percebemos outro
grupo bastante significativo na instituição, dessa vez procedente da África Ocidental, o mina.
Entre os africanos, essas foram as quatro procedências mais expressivas. De 1747 a 1800,
verificamos os benguela (18,3%) como grupo predominante, depois os angola (18,1%) e, em
terceiro, os mina (12,1%). A maioria benguela entre os africanos, nesse período, está
diretamente relacionada ao ritmo do tráfico atlântico.
Manolo Florentino constatou que, especialmente na segunda metade do XVIII, houve
maior embarque de escravos no porto de Benguela. O porto de Luanda era a principal área de
embarque de cativos, porém, dificuldades no comércio de escravos em Angola,
273
fizeram os
negociantes brasileiros buscarem novas alternativas para abastecer as embarcações. O porto
de Benguela surge como a melhor opção. Embora o tráfico por Luanda tenha continuado,
Benguela, na segunda metade do setecentos, tornou-se o principal porto para o
abastecimento.
274
A superioridade dos grupos benguela e angola refletem o comércio nesses
dois portos. Os mina, apesar de numericamente inferiores em Minas Gerais, nesse período,
têm percentual expressivo na irmandade. A entrada desses africanos na região mineira era
mais antiga, por isso é bem provável que estivessem entre os fundadores da confraria,
organizada em 1708.
275
Isso pode explicar a expressividade do grupo na instituição. Os
números para a primeira metade do século XIX demonstram uma variação: em primeiro lugar,
ficaram novamente os benguela (15,9%), depois os angola (12,7%) e, em terceiro, os congo
(12,%). Os mina aparecem em quarto lugar (8,6%). O que chamou a atenção, na primeira
metade do século XIX, foi o avanço da participação dos congos na irmandade, superando o
grupo mina.
273
Dentre as dificuldades que os negociantes encontraram ao chegar em Luanda, estava a constante interferência
dos governadores de Angola no comércio de cativos, atrapalhando a concessão de licenças para o abastecimento
dos navios, a concorrência e as disputas entre negociantes angolanos, brasileiros e de outras potências
estrangeiras no porto. Isso tornava as relações muito tensas na região.
274
FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 99.
275
Anderson de Oliveira e Silvia Brügguer já apontaram essa hipótese. Op. cit. (2009), p. 193.
86
Os dados levantados confirmam que as origens dos africanos na confraria foram,
grosso modo, proporcionais às procedências africanas trazidas para Minas Gerais, como
descreve a historiografia sobre o assunto, ou seja, corrobora o predomínio dos africanos
procedentes da África Centro-Ocidental, especialmente a partir da segunda metade do século
XVIII, mas destaca também que os mina, ainda que em meros cada vez menos
significativos, continuavam bastante presentes dentro da confraria.
Estudiosos afirmam que, nas primeiras décadas do setecentos, a maioria das
importações de escravos para o território mineiro procedia da região da África Ocidental, os
chamados “negros mina”. Segundo Waldemar de Almeida Barbosa, no período aurífero havia
uma preferência pela importação dos “negros mina”, por serem estes experientes no trabalho
nas lavras de ouro. “Tornaram-se elementos indispensáveis no começo da exploração do ouro
nas Minas Gerais, onde introduziam seus rudimentares métodos de minerar”.
276
Mariza Soares também constatou a predominância desses cativos nas primeiras
décadas do século XVIII e afirmou que foram desembarcados na Bahia e, posteriormente,
encaminhados às terras mineiras.
Ao iniciar o século XVIII existem duas rotas de escravos em direção às
lavras de ouro: a primeira sai da cidade de Salvador e, passando pela Vila da
Cachoeira, segue por terra pelo Caminho do Sertão até as Minas; a outra sai
de Salvador por mar, passa pelo Rio de Janeiro onde se junta à rota que vem
da Mina para o Rio de Janeiro, segue por mar até Parati e daí sobe por terra a
Serra da Mantiqueira até chegar às Minas. De acordo com o livro de
passaportes e guias da cidade de Salvador entre os anos de 1718 e 1729 saem
dessa cidade 21.238 escravos sendo que 19.500 deles com destino a
Minas.
277
Estudos recentes revelam que a entrada, em larga escala, dos mina ocorreu até meados
do século XVIII. Desde então, com a mudança na rota do tráfico, Minas Gerais passou a
receber um mero grande de escravos oriundos da África Centro-Ocidental, principalmente
de portos de embarque ou regiões genéricas como, por exemplo, Angola, Benguela e Congo.
Sheila de Castro Faria comenta que um dos motivos que favoreceram a mudança de rota foi
que, no final do século XVII, os holandeses e os ingleses passaram a dominar, na Costa da
Mina, o tráfico de escravos para a América. Os holandeses, por exemplo, impuseram certas
condições para o comércio de escravos: estes poderiam ser comercializados apenas em quatro
portos situados ao longo da costa do Daomé (Grande Popo, Uidá, Jaquim e Apá) e vinculados
276
BARBOSA, Waldemar de Almeida. Negros e quilombos em Minas. Belo Horizonte, s.ed., 1972, p. 8.
277
SOARES, Mariza. Histórias Cruzadas: os mahi setecentistas no Brasil e no Daomé. In: FLORENTINO,
Manolo (org.). Tráfico, Cativeiro e Liberdade Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005, pp. 159-160.
87
ao Castelo de São Jorge, sob o domínio holandês. Ainda exigiam que somente tabaco poderia
ser trocado por escravo nestes portos, deixando para eles uma taxa de 10%. Tal exigência
permitiu aos comerciantes da Bahia certa exclusividade, pois era a principal área de tabaco
do Brasil. Portanto, dificultava muito ou até excluía do comércio negreiro os negociantes de
Portugal e os de outras áreas do Brasil, como o sudeste, por exemplo, que se voltou, então,
para o comércio de escravos na costa Centro-Ocidental, incluindo o Congo e Angola.
278
Mary Karasch constatou que a maioria dos escravos que desembarcaram no porto
carioca era importada do centro-oeste africano (66%), principalmente do Congo Norte
(Cabinda), Angola e Benguela. A segunda principal área de origem foi a África Oriental, de
18% a 27% dos escravos no Rio e, por fim, os cativos originários da África Ocidental não
ultrapassavam os 7%.
279
Minas Gerais acabou sendo o reflexo desses dados, pois grande
parcela desse contingente escravo, desembarcado no porto do Rio de Janeiro, tinha como
destino as fazendas mineiras e os núcleos urbanos. Manolo Florentino ratifica as constatações
de Karasch, quando afirma que, no período entre 1795-1811, a participação da África
Ocidental como fornecedora de escravos para o porto do Rio de Janeiro foi mínima. Esse
percentual decresceu progressivamente até quase desaparecer, a partir de 1816.
280
As informações contidas nos registros locais, em Minas Gerais, confirmam os dados
encontrados pelos estudiosos do tráfico na Corte, no século XIX. Iraci Del Nero fez um
levantamento dos grupos de escravos africanos presentes na região de Vila Rica, durante o
século XVIII e início do XIX, e constatou que os grupos da África Ocidental foram
predominantes no início do setecentos, porém, ao longo desse tempo, o número de africanos
procedentes da região Centro-Ocidental foi crescente até que, na última década, ultrapassou
os primeiros.
281
Para o ano de 1804, o autor fez um levantamento do percentual de escravos
africanos, segundo três faixas etárias para a mesma região. Na zona urbana, em que se
enquadram os núcleos Vila Rica, Mariana e Passagem, a faixa etária mais nova, 0 a 19 anos e
20 a 59 anos, tinha predominância de escravos da África Centro-Ocidental. Na faixa etária
mais velha, a partir dos 60 anos, a predominância foi dos africanos da África Ocidental.
282
O
278
FARIA, Sheila. Op. cit. (2004), p. 34. Outra razão foi que a África Ocidental era considerada insuficiente
demograficamente para abastecer o Rio de Janeiro, que, a partir do XVIII, a demanda aumentou
consideravelmente por e nas regiões para onde o Rio encaminhava os escravos. Ver FLORENTINO, Manolo.
Op. cit., pp. 87-88. Sobre a importação de escravos, para o Brasil, procedentes da África Centro-Ocidental no
início do século XIX, ver estudo de KARASCH, Mary. Op. cit.
279
Idem, Ibidem, cap. 1.
280
FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 79.
281
LUNA, Francisco Vidal e COSTA, Iraci Del Nero da. Minas Colonial: economia e sociedade. São Paulo:
Livraria Pioneira Editora/Fipe, 1982, pp. 48-50.
282
Conferir tabelas em COSTA, Iraci Del Nero. Minas Gerais: estruturas populacionais típicas. São Paulo:
EDEC, 1982, pp. 13-19. O autor considera como banto os africanos oriundos da África Centro-Ocidental mais os
88
mesmo foi constatado para a zona rural mineradora, que caracterizou três núcleos na mesma
pesquisa, Gama, Abre Campo e Capela do Barreto.
283
Os dados comprovam o paulatino
processo de substituição de africanos ocidentais pelos do Centro-Ocidental, ao longo do
período de diminuição da atividade mineradora.
Célia Borges analisou os livros de admissão de irmãos nas Confrarias do Rosário em
Minas Gerais e constatou que entre os africanos de Vila Rica, por exemplo, até o final do
século XVIII, predominaram os ocidentais que, após essa data, foram superados pelos centro-
ocidentais.
284
Na Irmandade do Rosário, em Mariana, ocorreu o mesmo. Entre 1750 e 1760,
88,4% dos irmãos entrantes eram da África Ocidental e apenas 11,6%, da África Centro-
Ocidental. No período seguinte, 1761 a 1770, 41% eram africanos ocidentais e 59%, centro-
ocidentais. Entre 1771 a 1780, a autora não encontrou registros de africanos e, no último
período analisado, 1781 a 1808, foram admitidos 33% de africanos do ocidente e 67%, do
centro-ocidente.
285
Os dados encontrados nas confrarias refletem o perfil da população
africana presente na cidade, como Iraci Del Nero havia apontado anteriormente.
No sul de Minas, especificamente nas freguesias de Aiuruoca, Baependi e Campanha,
Marcos Ferreira de Andrade pesquisou, nos livros de batismo, a origem dos cativos e também
confirmou o que a historiografia mineira e a do tráfico têm enfatizado. A grande maioria dos
que vieram para Minas Gerais, entre 1781 e 1830, era procedente da África Centro-Ocidental;
o percentual encontrado em todas essas freguesias foi mais de 90%, com superioridade para
os angola, os banguela e os benguela. Em segundo lugar, aparecem os “mina”, qualificação
genérica para os cativos oriundos da África Ocidental.
286
Em São João del-Rei, os resultados não foram diferentes. Maria Tereza Pereira
Cardoso fez um levantamento das informações sobre a origem dos cativos nos registros de
batismo da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, entre os anos de 1814 e 1852, e verificou que a
presença mais significativa era de angolas, congos e benguelas, além dos crioulos,
predominantes no período.
287
Nossos dados corroboram a análise da autora.
de Moçambique África Oriental e sudaneses os africanos procedentes da África Ocidental. Essas
classificações, sudaneses e banto, foram baseadas nos estudos de RAMOS, Artur. As culturas Negras no Novo
Mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933; e RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. 4. ed. São
Paulo: Editora Nacional, 1976.
283
COSTA, Iraci. Op. cit., pp. 39-43.
284
A autora também utilizou as classificações sudaneses e bantos, baseada nos estudos de Artur Ramos e Nina
Rodrigues. Ver BORGES, Célia. Op. cit., pp. 119-127.
285
Idem, Ibidem.
286
ANDRADE, Marcos. Op. cit., pp. 283-286.
287
CARDOSO, Maria Tereza. Op. cit., cap. 1.
89
Sobre as cinco maiores procedências que apuramos na Irmandade do Rosário
sanjoanense, verificados na Tabela 4, que mencionaram a origem dos africanos e crioulos,
fizemos um levantamento, considerando o sexo dos entrantes, para notar a diferença entre
homens e mulheres nos grupos e suas variações de um século para o outro.
90
TABELA 5
Principais origens dos membros da irmandade do Rosário de São João del-Rei,
segundo sexo, condição e origem – séculos XVIII e XIX
1747 - 1800
ESCRAVO FORRO
NÃO MENCIONA CONDIÇÃO
ORIGEM
H % M % T % H % M % T % H % M % T %
Angola (África C. Ocid.)
51 28 25 20,7
76 25,1 1 3,2 5 8,2 6 6,5 4 22,2
4 17,4
8 19,5
Benguela (África C.Ocid.)
60 33 28 23,1
88 29 2 6,5 1 1,6 3 3,3 3 16,6
3 13 6 14,6
Congo (África C. Ocid.)
13 7,1 2 1,7 15 5 - - 2 3,3 2 2,2 1 5,6 - - 1 2,5
Mina (África Ocidental)
18 9,9 21 17,4
39 12,8 4 12,9
11 18 15 16,3 1 5,6 9 39,2
10 24,4
Crioulo (Nasc. Col./Imp.)
40 22 45 37,2
85 28,1 24 77,4
42 68,9
66 71,7 9 50 7 30,4
16 39
TOTAL GERAL
182 100 121 100 303 100 31 100 61 100 92 100 18 100 23 100 41 100
1801 – 1850
ESCRAVO
FORRO
NÃO MENCIONA CONDIÇÃO
H % M % T % H % M % T % H % M % T %
Angola (África C. Ocid.)
20 23,8
15 20,3
35 22,2 - - 1 7,1 1 4 1 9,1 1 5,9 2 7,2
Benguela (África C.Ocid.)
20 23,8
22 29,7
42 26,6 - - - - - - 2 18,2
4 23,5
6 21,4
Congo (África C. Ocid.)
24 28,5
9 12,2
33 20,8 - - - - - - 2 18,2
1 5,9 3 10,7
Mina (África Ocidental)
7 8,4 10 13,5
17 10,8 - - 1 7,1 1 4 1 9,1 7 41,2
8 28,6
Crioulo (Nasc. Col./Imp.)
13 15,5
18 24,3
31 19,6 11 100 12 85,7
23 92 5 45,4
4 23,5
9 32,1
TOTAL GERAL
84 100 74 100 158 100 11 100 14 100 25 100 11 100 17 100 28 100
Fonte: AINSR-SJDR – Livros 17, 20 e 23 – Termo dos irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei (1747-1859)
H: Homens; M: Mulheres e T: Total.
África C.-Ocid.: África Centro-Ocidental; Nasc. Col./Imp.: Nascidos na Colônia/Império.
91
Na segunda metade do setecentos, entre os escravos, os grupos predominantes eram os
benguela, depois os crioulos, seguidos dos angola, dos mina e, por último, dos congos.
Comparando os escravos na categoria gênero, uma preponderância masculina nos grupos
da África Centro-Ocidental. entre os minas e os crioulos cativos, as mulheres são
ligeiramente mais numerosas. Entre os forros, a superioridade é dos crioulos, depois dos
minas, seguidos dos angolas, dos benguelas e dos congos, respectivamente. Quanto ao gênero,
as forras crioulas e as mina são as mais expressivas entre os grupos. Dentre os que não
mencionaram a condição nesse período, os crioulos e os mina também são os mais
numerosos.
No século seguinte, entre os escravos, os grupos da África Centro-Ocidental têm
maioria. No ranking, estão em primeiro lugar os benguela, em segundo, os angola, em
terceiro, os congo, depois, os crioulos e, por último, os mina. Os dados são o reflexo do que a
historiografia aponta para a importação de escravos no período, conforme mencionado.
Novamente, entre os cativos, os grupos crioulos e mina têm as mulheres em maior número.
Nos outros grupos, os homens são maioria, exceto no caso dos benguela, entre os quais as
mulheres ultrapassam timidamente os homens. O panorama dos forros, nesse momento, é o
seguinte: dos 25 libertos, 92% são crioulos, quase a totalidade, e um equilíbrio entre
homens e mulheres. Os outros 8% pertencem aos angola e aos mina, sendo todos do sexo
feminino. Entre os que não mencionaram a condição, o resultado foi igual ao período anterior:
crioulos e minas são predominantes. Isso reforça nossa hipótese de que, entre esses indivíduos
havia muitos libertos.
Os dados dão amostra da expressividade das mulheres crioulas e mina na irmandade,
conforme a historiografia tem apontado. Sheila de Castro Faria constatou que, entre as forras,
além das crioulas, havia também um significativo número de africanas oriundas da Costa da
Mina. Em São João del-Rei, entre as mulheres nascidas na África que fizeram testamento,
58% foram de procedência mina.
288
Número bem significativo, se lembrarmos que a
população mina na vila era bem pequena em relação aos escravos provenientes da África
Centro-Ocidental, no século XIX. Isso evidencia que essas mulheres tiveram mais condições
do que as outras de se enriquecerem. Detentoras de posses, não é de se estranhar a ampla
participação delas nas irmandades. A autora afirma que, entre as testadoras de origem mina,
“92% declararam pertencer a pelo menos uma irmandade”.
289
Nossa Senhora do Rosário
288
FARIA, Sheila. Op. cit. (2004), p. 191.
289
Idem, ibidem, p. 206.
92
estava entre as irmandades mais indicadas, e algumas referiram terem ocupado cargos na
Mesa ou sido rainhas.
Como destacamos, os mina, mesmo em número inferior na Irmandade do Rosário de
São João del-Rei, sempre marcaram presença. De maioria feminina, tudo indica que era um
grupo de peso. Estariam à frente de cargos administrativos na confraria? E dos juizados por
devoção? De que forma buscaram manter a representatividade? E os outros grupos? Como se
articularam para preservar a identidade? Os crioulos, por exemplo, teriam buscado uma
diferenciação com relação aos africanos no interior da irmandade?
2.3 – Rivalidades entre grupos: africanos X crioulos, africanos X africanos
Sobre a composição dos grupos nas irmandades, alguns trabalhos historiográficos
recentes constataram que associações de negros foram organizadas para agregar irmãos de
determinadas etnias, que eram excluídos das agremiações existentes.
290
Verificamos que
isso foi mais comum em regiões litorâneas.
Através dos critérios de admissão dos irmãos, estipulados no livro de Compromisso,
notou-se que, na base da composição da confraria, alguns grupos étnicos imperavam. Nos
livros de Compromissos de determinadas irmandades de negros, do Rio de Janeiro e da Bahia,
redigidos no século XVIII, foram encontradas regras seletivas de alianças interétnicas. Esse
parece ter sido o caso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, da cidade do Rio de
Janeiro, que congregou predominantemente os africanos da Costa da Mina, uma vez que esses
eram excluídos das esferas de poder das irmandades do Rosário, que, de modo geral,
admitiam em seus cargos apenas os angola e os crioulos.
291
O Capítulo 10 de seu
Compromisso dizia que
Antes que o Juiz e mais oficiais da mesa desta Santa irmandade queiram
admitir e fazer assentar a qualquer pessoa que o queira ser sendo preto ou
preta, primeiro examinarão com exata diligência a terra e nação donde
vieram e achando serem naturais e que são oriundos da Costa da Mina, Cabo
Verde, Ilha de São Tomé e Moçambique, logo se fará assento nela [...] e de
nenhuma sorte se admitirão pretas de Angola, nem crioulas, nem cabras ou
mestiços, e o juiz e mais oficiais e os irmãos da mesa que ao contrário
fizerem acabando o ano de sua ocupação não tornarão a servir coisa alguma
na dita irmandade de que se fará termo pelo juiz, oficiais e mais irmãos de
290
Ver para o Rio de Janeiro KARASCH, Mary. Op. cit., pp 83-85 e SOARES, Mariza. Op. cit. (2000).
291
Ver SOARES, Mariza. Op. cit. (2000), pp.188-189 e para a Bahia REIS, João José. A Morte é uma Festa:
ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, pp 55-57.
93
mesa que logo lhe suceder restituindo outro sem os ditos irmãos que
admitam os ditos pretos e pretas angolas crioulos ou cabras tanto homem
como mulheres a cada um o que deram de sua entrada para que fique de
nenhum efeito seus assentos de que se fará declaração à margem dos livros
deles.
292
Mariza Soares, ao comentar esse estatuto, afirma que as etnias da Costa da Mina,
descritas no Compromisso, compunham o quadro fundador da irmandade e, por isso, apenas
membros desses grupos de procedência poderiam ocupar cargos na mesa diretora. Interessante
notar que o texto desse Compromisso deixa claro como as designações do tráfico foram
incorporadas pelos grupos e utilizadas como critérios de distinção.
Na Bahia, João José Reis constatou como os irmãos da etnia jeje, da Irmandade do
Senhor Bom Jesus dos Martírios, da Vila de Cachoeira, expressaram sem rodeios, no
Compromisso de 1765, o desagrado por se associarem crioulos na confraria: “[...] com
declaração de que não se admitirão nesta irmandade os homens pretos nacionais da terra, a
que vulgarmente chamam crioulos, senão dando cada um de entrada dez mil réis”.
293
Segundo
o autor, a taxa de entrada paga pelos africanos era 15 vezes menor.
Diferentemente das confrarias de pretos nas regiões litorâneas, que em seus
Compromissos apontam os grupos étnicos na base de sua constituição, as Irmandades do
Rosário em Minas Gerais abriram um leque maior de aceitação. Nessas, eram aceitos irmãos
tanto escravos quanto livres, nascidos no Brasil, ou estrangeiros de várias etnias. No
Compromisso de 1727 da Irmandade de São Benedito, de Mariana, “todo homem ou mulher
preto” que quisesse assentar-se por irmão(ã) seria aceito(a). O Compromisso de 1733 da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz, em Vila Rica, assegurava que
“entrará nesta irmandade toda qualidade de pessoas, sendo católicas, e eles darão seus votos
conformando-se com os irmãos pretos”.
294
Na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, de
São João del-Rei, o Compromisso de 1787 afirma que aceita como irmãos “todas aquelas
pessoas que por sua devoção quiserem servir a Nossa Senhora, tanto eclesiásticos, como
seculares, homens e mulheres, brancos, pardos, pretos, assim escravos como libertos”.
295
Mas, qual o motivo dessa diferenciação em relação à região litorânea?
292
Compromisso da Venerável Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, 1740, fls. 16-17. Apud
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008), p. 284.
293
Compromisso da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, 1765. Apud REIS, João José. Op. cit.
(1996), p. 8.
294
Compromisso da Irmandade de São Benedito da Cidade de Mariana, 1727 capítulo 1; e Compromisso da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz, Vila Rica, 1733, capítulo 22. Apud
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008), pp. 302-304.
295
APNSP-SJDR Capítulo VII do Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-
Rei de 1787.
94
Alguns estudos apontam que a intensa fiscalização da Coroa Portuguesa sobre a região
mineradora influenciou a organização da religião em Minas Gerais, uma vez que impediu a
entrada das ordens religiosas na Capitania.
296
Tal proibição estimulou a organização de
associações leigas, que passariam, então, a promover os cultos religiosos. Porém isso não
significou uma liberdade dos grupos organizados para inaugurar suas irmandades. O
excessivo fiscalismo da Coroa acabou sendo obstáculo, pois as instituições deveriam ser
submetidas à aprovação do Estado e da Igreja, instâncias de poder que controlavam de perto
as atividades das confrarias. Seus sacerdotes deveriam receber licença de permanência para
celebrar os cultos do calendário litúrgico, seguir um estatuto aprovado e autorizado pelas
autoridades competentes e toda a administração da confraria passaria por uma prestação de
contas.
297
Julita Scarano apresenta mais um motivo, atrelado à fiscalização, ao afirmar que havia
uma política deliberada da administração portuguesa em misturar as diversas etnias, para
assim enfraquecer os grupos que se poderiam formar ao redor de tradições comuns. As
inimizades entre grupos africanos podiam, dessa forma, favorecer a denúncia de revoltas e a
fiscalização senhorial. A autora salienta que, apesar dos conflitos, os grupos buscaram meios,
especialmente na igualdade de condição, para uma melhor convivência.
298
Tais medidas
contribuíram para que os negros, fossem africanos de qualquer etnia ou crioulos, se
organizassem numa mesma irmandade.
Anderson de Oliveira acredita que essas análises são pertinentes, porém não da conta
completamente da questão da especificidade mineira. O autor pontua que a melhor explicação
pode ser buscada na própria formação daquela sociedade. Atribui essa especificidade, num
primeiro momento, a uma providência tomada em relação aos recursos das irmandades
negras.
O início do povoamento em Minas Gerais foi marcado por sérias dificuldades,
especialmente pela falta de alimentos, o que, por sua vez, acarretou entre a população sérias
crises de fome. Em meio a elas, a população negra e pobre era a que mais sofria. A fome foi
superada, tempos depois, com a consolidação dos núcleos populacionais e o incremento das
atividades econômicas, principalmente com o desenvolvimento das agropastoris, voltadas
296
BOSCHI, Caio. Op. cit. (1986); e HOORNAERT. Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro 1500-1800.
3. ed. Petrópolis: Vozes, 1991, pp. 88-91. Como explicamos no Capítulo 1 deste trabalho, a proibição da
entrada das ordens religiosas em Minas Gerais não foi totalmente cumprida. Havia brechas e muitos missionários
dessas ordens atuaram na região. Conseguiam, junto ao Rei, licenças de permanência para se estabelecerem na
Capitania. BOSCHI, Caio. Op. cit. (1999).
297
BOSCHI, Caio. Op. cit. (1986).
298
SCARANO, Julita. Op. cit.
95
para o abastecimento interno. No entanto, a ocorrência dessas crises ficaram retidas no
imaginário coletivo, e o temor em revivê-las era constante entre as pessoas. Nesse sentido,
Anderson de Oliveira acredita que, como as irmandades tinham funções assistenciais e
devocionais bem definidas, os negros teriam escolhido não “dispersar recursos materiais
numa profusão de igrejas e irmandades. [...] O que parece ter ocorrido com as irmandades
negras foi a opção por uma união de recursos.”
299
Mesmo existindo diferenças entre os
grupos, eles conseguiram estabelecer um grau de convivência no interior da mesma igreja, e
isso foi possível porque os grupos buscaram demarcar suas identidades, isto é, hierarquizar
espaços e definir poderes que permitissem o convívio. Dessa forma, os símbolos devocionais
podem ter funcionado como fronteiras grupais.
Marcos Aguiar constatou que, em Minas Gerais, as irmandades de negros não
refletiam clivagens étnicas no interior de populações africanas, no que diz respeito à
organização das devoções. A clivagem central ficou entre membros africanos e crioulos.
Esses últimos se reuniram, depois, predominantemente nas confrarias de Nossa Senhora das
Mercês e acontecia sua aproximação com os pardos.
300
Para se ter uma ideia dos conflitos
entre africanos e crioulos, o autor cita algumas Irmandades das Mercês que foram
repreendidas pelos magistrados da Coroa por proibirem o ingresso de determinadas etnias de
procedência africana. Foi o caso das Irmandades das Mercês do Tejuco, em Diamantina, e a
dos Perdões, em Vila Rica. Os crioulos alegaram sofrer perseguição dos africanos nas
Irmandades do Rosário, entre outros motivos, por discriminação.
301
Porém, nem todas
restringiam a admissão dos irmãos, como as Mercês de São João del-Rei, em Sumidoro, e a
das Mercês de Cima de Vila Rica, que especificaram, em seus Compromissos, “a abertura a
todas as etnias e condições sociais e não estabeleciam quaisquer condições para o
preenchimento dos cargos”.
302
Apesar de Marcos Aguiar constatar que a organização das devoções em Minas
(Rosário e Mercês) refletiu a clivagem entre africanos e crioulos, estudos recentes vão mais
além. Revelam que havia, sim, no interior das Confrarias do Rosário mineiras, clivagens
étnicas entre os africanos e uma forte disputa pela manutenção da hierarquia de determinados
grupos. Essa questão das clivagens étnicas não estava explicitada nos Compromissos, mas foi
299
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008), p. 305.
300
AGUIAR, Marcos. Op. cit., p. 300.
301
AGUIAR, Marcos Magalhães de. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana no Brasil colonial.
Tese de Doutorado, apresentado ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Sociais da USP. São Paulo, 1999, pp. 260-264.
302
Idem, ibidem.
96
percebida através da análise e do cruzamento com outros documentos, como, por exemplo, os
livros de assentos dos irmãos, os livros de atas de eleições e as certidões de missas.
O estudo de Anderson de Oliveira é bem revelador desse aspecto. Embora o autor
tenha apontado uma solidariedade na formação das irmandades negras, no início do
povoamento em Minas, essa união não extinguiu as rivalidades étnicas existentes entre os
grupos. As estratégias de hierarquização dos espaços e a definição dos poderes foram
fundamentais para que se tornasse possível a convivência entre eles. Partindo desse
pressuposto, o autor analisou os livros de assentos existentes na Irmandade do Rosário, em
Mariana, entre 1727 e 1810, na qual foram organizadas três associações: uma referente à santa
padroeira, Nossa Senhora do Rosário; outra ao culto de Santa Efigênia; e outra a São
Benedito. Os dados encontrados permitiram traçar alguns perfis, considerando as filiações dos
negros às três irmandades. Percebeu-se que, na igreja do Rosário de Mariana, os crioulos
tinham preferência pelo culto à Santa Efigênia e os africanos, pelos outros oragos.
303
Oliveira
demonstrou que, aparentemente, a divisão entre crioulos e africanos era a mais evidente, no
entanto, ao aprofundar as análises, percebeu que essa aparência “escondia disputas internas
entre os grupos pelo controle das irmandades e pela definição de hierarquias entre eles”. Foi
através da ocupação dos cargos nas irmandades que se observou uma manutenção na
hierarquização dos grupos. Segundo suas análises, os candidatos à composição da mesa
diretora eram indicados por “grupos de pressão”,
304
que se organizavam no interior das
irmandades. Ao adotar essa estratégia, os grupos dominantes e/ou mais organizados tinham
mais possibilidades de controlar o maior número de cargos.
Em Mariana, nas irmandades preferidas pelos africanos, ele verificou que, na de São
Benedito, entre os membros que ocuparam cargos, os mina foram em número maior e, depois,
os courana – grupos da África Ocidental; os crioulos apareceram em terceiro lugar. Na
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, a ocupação dos cargos ficou, majoritariamente, com
os mina e, depois, com os courana, que conseguiram ficar ao lado dos mina na administração
da confraria, apesar de os angola (da África Centro-Ocidental) representarem o segundo maior
grupo na confraria. Os primeiros eram os mina.
305
Em Vila Rica, o autor chega à mesma constatação, apesar de ter utilizado uma
metodologia diferente. Na vila existiam duas Irmandades do Rosário, contudo, não havia
dentro delas outras associações. Procurou-se, então, perceber as articulações dos grupos no
303
Ver os resultados completos em OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008), pp. 288-291.
304
Idem, ibidem. Grupos que estrategicamente construíam alianças com outros, para que os nomes indicados
fossem eleitos.
305
Idem, ibidem. Conferir os dados no quadro 9, p. 292.
97
interior da confraria, através da diferenciação dos devotos de cada santo. Tomemos como
exemplo o Rosário do Pilar que, ao se compararem os juizados dos santos que os devotos
ocuparam, constatou-se que os crioulos mantiveram preferência maciça pelo culto à Santa
Efigênia e, para as outras devoções, também estiveram em número maior. Todavia, ao
analisar a ocupação dos cargos pelos africanos, houve uma concentração maior dos mina
como juízes de Nossa Senhora, a principal invocação, padroeira da entidade.
306
Tais
constatações tornam bem prováveis as hipóteses de uma aliança entre os grupos étnicos, tanto
em Mariana quanto em Vila Rica, ou mesmo, a manutenção de um grupo no poder, como foi
o caso do Rosário do Pilar em Vila Rica. Ficou evidenciado, portanto, que as diferenciações
não estavam somente colocadas entre africanos e crioulos.
Os resultados da pesquisa de Anderson de Oliveira servem de inspiração para o nosso
trabalho. Partiremos da mesma perspectiva do autor para descobrirmos como os grupos
buscaram preservar suas hierarquias e identidades na Irmandade do Rosário de São João del-
Rei. Nesse sentido, vamos avaliar como as devoções foram utilizadas como mecanismo de
distinção de grupos.
2.3.1 – Devoções: identidades em negociação
Vimos, no Capítulo 1, que a organização formal das irmandades se dava a partir de um
estatuto conhecido como Compromisso, que tem por objetivo estabelecer a dinâmica de
funcionamento da instituição. Entre as regulamentações estava a definição dos cargos e das
funções dos membros.
Na Irmandade do Rosário de São João del-Rei, o Compromisso de 1787 traz que o
cargo do juiz tinha grande responsabilidade na instituição, pois, além de cuidar da
administração e da governança da irmandade, ainda lhe competia “advertir e emendar as faltas
de todos os irmãos e fazer que cada um satisfaça a sua obrigação”, “achar-se em todas as
festividades que se fizerem a Nossa Senhora, procissões e mesas” e, ainda, “nomear os
pregadores, a juíza e mais oficiais de mesa”. Ao escrivão pertencia “o cuidado dos livros” e o
tratamento “da boa ordem deles, fazendo os assentos de receita e despesa da irmandade”. Ao
cargo de tesoureiro da irmandade cabia “toda a conservação dos bens dela, em razão de que
há de ter em seu poder todo o rendimento e fábrica da irmandade, fazendo as despesas de tudo
o que for necessário”. A obrigação do procurador era “procurar e zelar o [sic] aumento dos
306
Idem, ibidem. Conferir os dados nos quadros 10 a 14, pp. 294-296.
98
bens e conservação” da irmandade, e a todas as coisas que a ela pertencerem”.
307
Deveria
também propor à mesa o que fosse útil à instituição e controlar e cobrar as mesadas e as
contribuições anuais dos irmãos, de acordo com o que estava estipulado no estatuto, em que
há menção aos cargos de juíza, oficiais de mesa e irmãos de mesa, porém não existem
especificações sobre suas funções, além da obrigação de realização da festa de Nossa Senhora
do Rosário.
308
O Compromisso de 1841 é mais detalhado na determinação dos cargos e das funções
dos ocupantes. A mesa estava assim composta: rei e rainha, um provedor (novo nome para o
antigo juiz), um secretário (novo nome para o antigo escrivão), um tesoureiro, um procurador,
doze irmãos de mesa, um zelador, dois andadores, uma provedora, doze irmãs de mesa e duas
zeladoras.
309
Nota-se que, nesse Compromisso, há a inclusão dos cargos de zeladores e
andadores, e ainda se faz menção à presença do rei e da rainha na irmandade. O aumento de
cargos, certamente visa atender ao crescimento da irmandade e ao aumento das demandas de
seus membros. Seguindo as tradições imperiais, o rei era indivíduo a quem todos obedeciam e
enviavam tributos. Porém, mais do que isso, a figura do monarca expressava o gerenciamento
dos conflitos. No caso das irmandades, essa última característica era mais condizente com a
atuação dos reis, descrita nos documentos.
310
A ele competia
[...] presidir todas as mesas, a exceção da do dia 25 de dezembro, e chamar à
ordem com brandura e em tom de advertência a todos os mais mesários e
irmãos não-mesários, indicando-lhes quais os seus deveres e os meios de se
arrecadar e por em boa guarda tudo quanto pertencente a irmandade.
311
O provedor substituía o rei em suas faltas e tinha as mesmas funções descritas no
Compromisso anterior. As do secretário, do tesoureiro e do procurador também são descritas
da mesma forma, como no estatuto antigo. os irmãos de mesa tiveram as suas descritas em
1841, e deveriam “assistir às mesas quando para isso forem avisados pelo procurador ou
andador” e ajudar no “peditório de esmolas em todos os domingos do ano”. Dos zeladores, a
tarefa seria “vigiar sobre o asseio e limpeza do templo e de todas as suas alfaias, paramentos e
trastes, propondo em mesa todo o que fosse preciso para a conservação de sua decência”. E,
307
Os cargos e as funções dos ocupantes estão descritos nos Capítulos 3, 4, 5 e 6. APNSP-SJDR Livro de
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei, 1787.
308
Idem, cap. 12.
309
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei,
1841, cap. 2.
310
Ver SOUZA, Marina. Op. cit.; SOARES, Mariza. Op. cit. (2000); e OLIVEIRA, Anderson de. Op.cit. (2008).
311
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei,
1841, cap. 6.
99
por último, aos andadores competia “coadjuvar ao procurador em suas obrigações e
deveres”.
312
Postos como os do rei e da rainha, cargos administrativos e de devoção nas
irmandades podem dizer bastante sobre os grupos que controlavam a instituição. Para a
ocupação dos cargos, organizava-se, anualmente, a eleição dos novos membros que iriam
ocupar a mesa administrativa. Os candidatos deveriam ser “os mais zelosos e beneméritos.” A
eleição partia de uma lista de pretendentes indicados para os cargos. Os nomes eram
sugeridos por membros que, na confraria, exerciam certa representatividade. Os grupos de
pressão poderiam, estrategicamente, construir alianças com outros grupos para que os nomes
indicados, se eleitos, garantissem a autonomia e/ou hierarquia de grupos dominantes dentro da
confraria (ver Capítulo 1). Chamam nossa atenção o rei e a rainha mencionados no
Compromisso de 1841. Apesar de somente aparecerem formalmente nessa data, na prática, a
realeza existia, pelo menos desde o início do século. Em 1803, encontramos ocupantes
desses postos no livro de receita e despesa do período. Como os mesmos livros, de datas
anteriores, estão ilegíveis, não sabemos se os cargos foram criados no final do século XVIII.
O que queremos salientar é que a criação de um império dentro da irmandade pode ter
acontecido para atender à necessidade de melhor distribuir as disputas no interior da
instituição. Dessa forma, podiam criar um equilíbrio entre os grupos em que se pudessem
sentir prestigiados e representados ou, ainda, preservar a hierarquia de um determinado grupo
de peso na irmandade.
313
para termos ideia, nos livros de receitas e despesas, encontramos, entre 1803 e
1844, a menção a 31 reis, sendo que 11 eram pessoas de prestígio social naquela localidade,
com títulos como de tenente, capitão e alferes. Infelizmente, as informações sobre os reis e as
rainhas, nos livros de despesas, o apenas nominativas. Fizemos um levantamento desses
nomes nos livros de entrada de irmãos para obtermos mais dados, como origem e
cor/condição desses membros. A maioria deles não foi encontrada e, entre os que
conseguimos localizar, esbarramos na questão dos homônimos. Os dados não foram
suficientes para termos a certeza de que se tratava da mesma pessoa. Recorremos aos
documentos de batismo, aos inventários e aos testamentos, mas os homônimos e a ausência de
informações mais específicas nos impediram de avançar. No entanto, obtivemos com sucesso
312
APNSP-SJDR – Ibidem.
313
Ver, sobre a criação de impérios nas irmandades, SOARES, Mariza. Op. cit. (2000); e SOUZA, Marina. Op.
cit.
100
o cruzamento de dados de três daqueles reis: o tenente, depois, Capitão Manoel Pereira
Bastos, Domingos Fernandes Sampaio e José da Silva Miranda.
314
Manoel Pereira Bastos foi rei na irmandade, entre 1803 e 1844, sete vezes 1811,
1819, 1823, 1828, 1829, 1835 e 1843. Em 1837, ocupou cargo na mesa administrativa (não
sabemos qual).
315
Buscamos mais informações no seu termo de entrada, porém não as
encontramos. No registro de casamento, descobrimos que era pardo forro, filho natural de
Sebastiana Ferreira, também parda forra. Era casado com Clara da Costa, parda forra.
316
O
tenente pediu, em testamento, que, na ocasião do seu funeral, seu corpo fosse envolto no
hábito do Carmo e sepultado no cemitério da Matriz, acompanhado pelas Irmandades de
Nossa Senhora da Boa Morte, de São Miguel e Almas, Nossa Senhora das Mercês e Nossa
Senhora do Rosário. Dentre os bens que possuía, imóveis, joias, dívidas ativas, móveis e
trastes, havia também escravos. Deixou liberto Joaquim crioulo e esmola de dez mil réis para
sua ex-escrava, Sabrina crioula.
317
Domingos Fernandes Sampaio era crioulo, filho natural da preta mina Inácia Maria.
318
Associou-se à Irmandade do Rosário em 1789, quando ainda era escravo.
319
Ocupou o cargo
de juiz de São Benedito, em 1808, e foi rei na instituição, durante três anos: 1822, 1835 e
1847.
320
Seus filhos também eram membros na confraria e uma, Domingas Fernandes
Sampaio, ocupou o cargo de irmã de mesa em 1819. Sampaio casou-se com a parda forra Rita
Peixoto, em 1818.
321
Ingressou na irmandade em 1823, tendo sido o marido quem pagou sua
entrada.
322
No inventário de bens do casal, estavam arrolados oito moradas de casas, “uma
pequena parte de terras na aplicação do morro”, “alguma criação de gado” e “alguns
trastes”.
323
314
Os dados específicos para a confirmação desses irmãos em outros documentos foram coletados nos próprios
assentos de entrada e se tratava do nome do cônjuge, do nome da mãe ou dos filhos daquele irmão.
315
AINSR-SJDR – Livro de receitas e despesas da irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei,
1803-1830; e APNSP-SJDR Livro de receitas e despesas de irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São
João del-Rei, 1831-1844.
316
APNSP-SJDR – Registro de casamento na Matriz do Pilar de São João del-Rei, século XIX.
317
IPHAN-SJDR – Testamento e Inventário de Manoel Pereira Bastos, 1849. caixas 12 e 674 respectivamente.
318
APNSP-SJDR – Registro de batismo na Matriz do Pilar de São João del-Rei.
319
AINSR-SJDR Livro de entrada de irmãos, número 17, da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São
João del-Rei.
320
AINSR-SJDR – Livro de receitas e despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei,
1803-1830, e Livro de entrada de irmãos, número 20, da mesma irmandade. APNSPSJDR Livro de receitas e
despesas de Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei, 1831-1844.
321
APNSP-SJDR – Registro de casamentos na Matriz do Pilar de São João del-Rei, século XIX.
322
AINSR-SJDR Livro de entrada de irmãos, número 20, da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São
João del-Rei.
323
IPHAN-SJDR – Inventário de Domingos Fernandes Sampaio, 1857, caixa 17.
101
Também foi eleito rei da irmandade José da Silva Miranda, em 1807.
324
De origem
crioula,associou-se à instituição em 1797, “por mercê” da juíza de Nossa Senhora do Rosário
daquele ano Ana da Silva Miranda. José Miranda era casado com a preta forra, de
procedência benguela, Maria da Silva Miranda, que se agregou à irmandade no mesmo ano
que o marido, pagando para ocupar o juizado de Nossa Senhora do Rosário.
325
Ana da Silva
Miranda, “madrinha” de José Miranda na irmandade, era de origem crioula, casada com João
Batista da Silva. Filiou-se à irmandade também em 1797, no mesmo ano em que sua filha,
Marcelina Maria da Silva Miranda, ingressou na instituição, sendo rainha em 1804. Não
encontramos inventários ou testamentos com o nome das pessoas referentes à rede de José da
Silva Miranda, e, nos registros de batismo e casamento, esbarramos nos homônimos. As
informações que detínhamos não foram suficientes para identificar os irmãos que
procurávamos. Contudo, ao que parece, todos os entrantes em 1797, citados acima, são
parentes envolvidos na instituição, ocupando cargos, inclusive os de bastante prestígio, como
os da realeza. Mesmo com a dificuldade da pesquisa onomástica, os três exemplos
encontrados foram suficientes para nos deixar claro que, entre as estratégias de preservação de
hierarquias e poder, articuladas na irmandade, a aliança parental e a coligação com potentados
locais eram efetivamente utilizadas. Verifica-se, ainda, que a realeza recai sobre uma pessoa
que se destaca no grupo, sobretudo naquela possuidora de recursos, pois esses são necessários
para o bom cumprimento das funções devocionais.
Dos livros de entrada de irmãos, também constam registros de membros que foram
reis e rainhas e ocuparam cargos administrativos. Embora fossem poucos, desses assentos
constam informações mais específicas, como a origem e a condição do irmão. Fizemos um
levantamento, entre 1747 e 1850, desses termos, com o intuito de verificar uma possível
formação de alianças em torno dos grupos de procedência. Novamente os dados foram
separados em dois períodos, segunda metade do século XVIII e primeira do XIX, para
apurarmos possíveis mudanças de uma época para outra. Primeiro verificamos a condição dos
entrantes, depois a origem, e tivemos o seguinte panorama:
324
AINSR-SJDR – Livro de receitas e despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei,
1803-1830.
325
AINSR-SJDR Livro de entrada de irmãos, número 17, da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São
João del-Rei.
102
TABELA 6
Condição dos ocupantes de cargos na Irmandade do Rosário de São João del-Rei,
nos séculos XVIII e XIX
1747-1800
Rei/
Rainha
326
Juiz/
Juíza
Escrivão e
Tesoureiro
Irmãos
Mesa
Procurador
Andador e
Zelador
Total
CONDIÇÃO
N % N % N % N % N % N % N %
Escravo
-
-
8
53
-
-
3
27
-
-
1
100
12
35
Forro
-
-
2
13
-
-
2
18
-
-
-
-
4
12
Não Menciona
2
100
5
34
2
100
6
55
3
100
-
-
18
53
TOTAIS
2
100
15
100
2
100
11
100
3
100
1
100
34
100
1801-1850
Escravo
-
-
7
58
-
-
7
39
-
-
1*
20
15
38
Forro
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
Não Menciona
4
100
5
42
-
-
11
61
-
-
4
80
24
62
TOTAIS
4
100
12
100
-
-
18
100
-
-
5
100
39
100
Fonte: AINSR-SJDR Livros 17, 20 e 23 Termo dos irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-
Rei (1747-1859)
*Somente este irmão era zelador.
Segundo os dados apurados, observamos que, nos dois períodos, maior número de
membros que não mencionaram sua condição, 53%, no setecentos, e 62 %, no oitocentos.
Porém, percebe-se que, em ambos os momentos, os escravos tinham significativa presença na
ocupação dos cargos, sobretudo nos de juízes e irmãos de mesa. No setecentos, os forros
aparecem, mas, no oitocentos, há uma ausência deles. Certamente estariam mais “encobertos”
entre os membros que não mencionaram a condição. Também é importante salientarmos aqui
a atuação das mulheres, especialmente nos cargos de juízas e irmãs de mesa. No século
XVIII, entre os 15 juízes registrados, 86,6% eram do sexo feminino e, entre os 11 irmãos de
mesa, 55% eram mulheres. No século XIX, elas ainda estavam em maior número entre os
juízes. Dos 12 mencionados, 58,3% eram mulheres. Nos cargos de irmãos de mesa, houve
uma mudança em comparação ao período anterior, entre os 18 membros, 66,7% eram homens
e 33,3%, mulheres. Os dados comprovam a expressividade feminina nos cargos da
irmandade, especialmente nos tão importantes, como o de juíza. Isso evidencia que as
326
Apenas um rei no século XIX e 5 rainhas, 2 no século XVIII e 3 no século XIX.
103
mulheres estavam bem incorporadas à hierarquia da instituição e que essa inclusão estava
associada às suas avantajadas esmolas. E qual seria a origem desses ocupantes de cargos?
Verificamos que a maioria desses membros não mencionou a origem, 76%, na
segunda metade do século XVIII, e, no período seguinte, 80% dos irmãos. Os cargos de
escrivão, tesoureiro e procurador, geralmente, eram preenchidos por pessoas que sabiam ler,
escrever e contar, pois isso era fundamental para exercer essas funções. Esses cargos eram
preenchidos por brancos ou negros forros que tinham conhecimento das letras, o que justifica,
em parte, o silenciamento sobre a origem. Nos outros postos em que os negros o maioria,
como juízes e irmãos de mesa, embora fosse grande o mero de membros que não
mencionaram a origem, pouquíssimos registraram essa informação. De 1747 a 1800, dos 15
juízes, apenas 5 mencionaram a procedência, 3 mina, 1 benguela e 1 crioulo. Entre os irmãos
de mesa, apenas 2 registraram a origem, 1 mina e 1 angola. O único andador que tinha
registro de procedência era crioulo. No período seguinte, de 1801 a 1850, os dados também
são mínimos: 5 dos 12 juízes mencionaram a origem, 2 mina, 2 angola e 1 rebolo. Entre os 18
irmãos de mesa, 3 disseram a procedência: 1 angola, 1 congo e 1 moçambique.
327
Infelizmente, os dados dessa análise
328
o são suficientes para apontarmos uma
tendência em relação a determinados grupos que estiveram à frente da administração da
irmandade. Porém, não podemos deixar de observar que, nas informações encontradas, o
grupo mina aparece ocupando mais vezes os cargos administrativos, especialmente os de
juízes, de bastante prestígio na instituição. Não sabemos, ao certo, se esse grupo preservava
sua identidade através da ocupação desses cargos, mas o importante é percebermos que os
grupos se articularam na instituição em busca desse fim, mesmo que para isso outros
mecanismos precisassem ser utilizados. Foi o que nos demonstraram Anderson de Oliveira e
Silvia Brügguer. Os pesquisadores localizaram, na documentação da irmandade em questão,
um livro de certidões de missas de irmãos da “Nobre Nação Benguela”,
329
evidenciando que o
grupo encontrou outra forma de recriar sua identidade e preservar sua autonomia.
330
327
Os registros para os dois períodos foram coletados em AINSR-SJDR Livros de entrada de irmãos 17, 20, e
23 da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei (1747-1859).
328
Fizemos uma pesquisa nominativa, em outros documentos (registros de casamento e óbito, testamentos e
inventários), dos irmãos que não mencionaram a procedência com o objetivo de encontrarmos essa informação.
Nada conseguimos.
329
OLIVEIRA, Anderson de; e BRUGGUER, Silvia. Op. cit., pp. 177-204.
330
Os benguela parecem ter organizado um grupo coeso em torno de uma identidade comum. Um estudo recente
demonstrou que, a partir das últimas décadas do século XVIII, eles se tornaram o grupo de procedência que
proporcionalmente mais realizou casamentos endogâmicos em São João del-Rei. Ver SILVA, Denílson de
Cássio. Casamento de escravos (São João del-Rei, século XVIII e primeira metade do XIX). Trabalho
apresentado no Simpósio Escravidão e Mestiçagem – Histórias Comparadas, realizado na UFMG, nos dias 06
e 07 de março de 2006. O mesmo foi verificado para a vizinha Freguesia de São José del-Rei. Ver os trabalhos
104
A certidão em que eram registradas
as missas da “Nobre Nação Benguela” foi aberta
em 2 de novembro de 1803, na Vila de São João del-Rei. Os autores perceberam que tal
congregação pode ter sido criada, pelo menos, desde a última década dos setecentos, pois, no
documento, foi encontrado um recibo de 1793, “passado pelo Padre Luís Pereira Gonzaga,
dando conta de duas missas rezadas pelas almas de Ana e Mariana Lopes, mandadas dizer por
João Ladino”.
331
Afirmam ainda que a congregação funcionou em boa parte do século XIX
uma das missas anotadas no livro data de 1871. No documento ainda consta a compra de uma
casa, chamada pelo grupo de “Palácio Real de toda a Nação de Benguela”. Segundo os
pesquisadores, esse imóvel foi comprado com o fruto da arrecadação de esmolas doadas por
forros e cativos daquela nação.
332
Anderson de Oliveira e Silvia Brügguer verificaram que a congregação era bem
organizada, pois, ao longo do documento, foi mencionada a existência de alguns cargos, como
os de rei, tesoureiro, procurador, duque e marquês da Nobre Nação”. Além disso, outras
certidões também foram encontradas no livro, permitindo que se percebesse que outros
grupos estavam organizados na confraria, além dos benguela. Os pesquisadores citam um
recibo assinado pelo Rei de Congo, João Martins Coelho. Essa informação é importante para
a nossa pesquisa, porque, assim com Oliveira e Brügger, também encontramos nos livros de
assentos ora pesquisados, o registro da escrava do Dr. José da Silveira e Souza, Brizida, que,
em 1773, foi Rainha do Congo. No mesmo livro de entrada estava registrado, em 1786, o
ingresso na confraria de José, escravo benguela, que teve sua entrada concedida “por mercê”
do Rei Congo, Pedro de Sobral. Anos depois, em 1793, associou-se Tereza de Sobral e Souza,
preta forra, casada. Em seu registro não aparece o nome do cônjuge, mas consta que era
membro na irmandade “o Rei Congo”.
333
Embora não tenha sido registrado o nome do
marido de Tereza de Sobral e Souza, desconfiamos que, pelo sobrenome, o cônjuge era o Rei
Congo Pedro de Sobral, registrado no assento de José, em 1786.
Esses registros reforçam a evidência de que havia outros grupos organizados dentro da
confraria, além dos benguela, que buscavam outros meios para manter sua importância na
associação. É bem provável que o grupo congo tenha sido um desses, afinal, ele apresentou,
ao longo da primeira metade do XIX, expressividade na instituição, como demonstramos
de GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Famílias escravas em São José do Rio das Mortes, 1743-1850.
Trabalho apresentado no mesmo Simpósio acima citado; e o recente trabalho de PINTO, Fábio Carlos Vieira.
Família escrava em São José del-Rei: aspectos demográficos e identitários (1830-1850). Dissertação de
Mestrado apresentada ao Departamento de História da UFSJ. São João del-Rei, 2010.
331
OLIVEIRA, Anderson de; e BRUGGUER, Silvia. Op. cit.
332
Idem, ibidem.
333
AINSR-SJDR – Assentos registrados no livro de entrada de irmãos da Irmandade do Rosário de São João del-
Rei, nº 17.
105
anteriormente. Isso ainda confirma que, na irmandade, as clivagens não estavam apenas entre
africanos e crioulos, mas também entre os próprios africanos, que buscaram, na afirmação da
diversidade, um caminho para a convivência.
Outra maneira de perceber a organização dos grupos é através da identificação dos
juizados de santos, que cada devoto ocupava. Como mencionado, no processo de
construção de novas relações, desenvolvido no espaço de integração de indivíduos ou grupos,
a escolha dos traços diacríticos que os agentes realizam não é aleatória. Está condicionada à
forma como um indivíduo ou um grupo se posiciona diante do outro. Na esfera religiosa,
alguns mecanismos são utilizados para balizar as identidades. Manuela Carneiro da Cunha, ao
estudar sobre a comunidade de descendentes de brasileiros iorubano em Lagos, na atual
Nigéria, discorreu sobre a relação entre religião e identidade étnica. Utilizando o conceito de
etnicidade,
[...] para poder diferenciar grupos é preciso dispor de símbolos inteligíveis a
todos os grupos que compõem o sistema de interação. É óbvio que cada
grupo pode usar alguns destes símbolos para manter sua identidade.
Assim, um novo grupo, ao entrar no sistema, deve escolher símbolos ao
mesmo tempo inteligíveis e disponíveis, isto é, não-utilizados pelos outros
grupos.
334
Alguns desses símbolos escolhidos na esfera religiosa são as devoções. Anderson de
Oliveira, baseado nas ponderações de Manuela Carneiro da Cunha, afirma que o culto aos
santos é um dos principais mecanismos de distinção de grupo, em meio aos demais, e que
funciona como a expressão de identidades. O autor deixa claro que o culto não encerra em si
todo o processo de identificação étnica, mas pensa que é possível vê-lo como um dos
elementos a compor essa identidade.
335
Pode-se afirmar que os juizados de devoção indicam uma escolha devocional clara dos
irmãos, portanto, o reflexo de como se identificavam na confraria. Marcos Magalhães Aguiar
afirma que a generalização desses cargos ocorreu a partir da segunda metade do século XVIII,
e que estava ligada a uma variação no comportamento dos irmãos nas confrarias. O autor
destaca que, em Minas Gerais, foi recorrente, entre as irmandades, a reclamação de membros
que não contribuíam com as anuidades previstas no Compromisso. Constatou que “qualquer
livro de pagamento de anuais e entradas das irmandades de negros e mulatos de Ouro Preto
mostra o total descaso dos irmãos em manter suas contas em dia, sendo raros aqueles pagantes
334
CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história e etnicidade. São Paulo:
Brasiliense/EDUSP, 1986, pp. 94-95.
335
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008), pp. 281-282.
106
até o momento final de suas vidas”.
336
Reitera que não era mesmo uma prática da
administração a cobrança dessas obrigações, devido à melhor situação financeira das
irmandades na primeira metade do século XVIII. Acontece que essa folga financeira diminuiu
progressivamente, a partir da segunda metade dos setecentos. As regiões auríferas
vivenciavam, naquele período, uma reestruturação das suas atividades econômicas, em que a
mineração deixava, paulatinamente, de ser a principal, para dar lugar às atividades
agropastoris. Isso causou uma baixa financeira naquelas sociedades de um modo geral,
refletindo-se, consequentemente, nos cofres das irmandades. Era preciso, então, cobrar dos
irmãos inadimplentes suas obrigações compromissais. Porém, a conjuntura econômica não
permitia uma cobrança rígida dessas obrigações, pois isso causaria uma evasão dos irmãos.
337
Parece que a solução encontrada, naquele contexto, foi difusão do culto dos santos anexos nas
igrejas e a instauração de outros novos. Além da devoção principal na igreja, estavam
anexados a ela outros oragos, que cumpriam um importante papel no seu interior, pois
promoviam o aumento de fiéis, ou seja, maior trânsito de devotos que acabava por traduzir
um aumento de rendimento das instituições. Além do crescimento no número de esmolas, as
irmandades procuraram compensar a receita com a eleição de grande quantidade de juízes por
devoção. Ocorreu, assim, certa generalização dos cargos de juízes e juízas por devoção. Esse
aumento foi percebido na segunda metade do XVIII, mas foi, no início do XIX, que se
consolidou a prática.
338
Acreditamos que a estruturação de novos cultos na Irmandade do Rosário de São João
del-Rei pode ter sido também pensada para atrair novos fiéis e, consequentemente, aumentar
os rendimentos da confraria, mas não que isso fosse uma questão de sobrevivência, como
constatou Marcos Aguiar para as irmandades de Vila Rica. A Vila de São João del-Rei
encontrava-se em progressivo dinamismo econômico e populacional desde o final do século
XVIII, notadamente na primeira metade do século XIX. Tornou-se referência econômica na
Comarca do Rio das Mortes, especialmente no que diz respeito ao abastecimento interno.
339
A
consequência foi o rápido crescimento da vila que se transformou, no ano de 1838, em cidade.
O grande dinamismo econômico deu àquela população oportunidades de acumular maiores
riquezas. Portanto, não houve um declínio econômico que pudesse ser refletido na irmandade.
336
AGUIAR, Marcos. Op. cit. (1993), p. 181. Também constatamos algumas semelhanças para a Irmandade do
Rosário de São João del-Rei, especialmente através das quantias deixadas em testamentos de irmãos associados
da confraria. Nesses documentos, os irmãos deixavam aos testamenteiros a incumbência de acertar seus vários
anuais pendentes.
337
Idem, ibidem, pp. 175-194.
338
Idem, ibidem. Ver também esse assunto em OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008), pp. 257-266.
339
Ver mais detalhes no Capítulo 1 deste trabalho.
107
Outros motivos podem ter levado a confraria a ampliar a arrecadação dos recursos, entre eles,
as melhorias na igreja, a compra de imóveis ou terrenos e mais refinamento nas festas.
Sebastião de Oliveira Cintra relata alguns gastos da confraria na primeira metade do XIX. Em
17 de fevereiro de 1829, a confraria pagou ao maestro José Marcos de Castilho 64$800 réis
pelos seus serviços musicais. No dia 18 de janeiro de 1830, o casal Antônio e Felizarda
vendeu à Irmandade do Rosário um terreno para a construção do cemitério da referida
confraria. A confecção de um sino para a igreja foi paga no dia 19 de maio de 1841, e, no dia
26 de janeiro de 1845, a irmandade pagou o feitio de um resplendor de prata para a imagem
de Santo Antônio.
340
Ao que tudo indica, a ampliação dos cargos estava ligada à estratégia de aumentar a
renda da confraria para dar conta dos gastos extras, atraindo para a igreja outras pessoas, que
não estavam necessariamente ligadas àquela instituição confrarial. Afinal, como vimos no
Capítulo 1, na primeira metade do século XIX as irmandades tinham maior preocupação com
o requinte das igrejas, das festas, dos eventos comemorativos da Corte, que também eram
festejados em São João del-Rei, etc. Vale lembrar que a vila alcançou, naquele período, seu
auge econômico, político e cultural, e que a Irmandade do Rosário sanjoanense ocupava o
patamar de maior importância entre as confrarias negras.
Segundo Célia Borges, na semana em que durava a festa da irmandade, era muito
comum os irmãos e outras pessoas estranhas à organização fraternal candidatarem-se ao cargo
de juiz (ou juíza) de promessa ou de ramalhete dos santos de devoção. Doavam grandes
somas em dinheiro ou mesmo em joias, sem terem, no entanto, qualquer cargo de
responsabilidade na mesa. A doação era apenas para a participação na festa. A autora afirma
que essa prática fazia da festa “o catalisador de um grande volume de recursos”.
341
As
mulheres, na maioria livres, associaram-se com mais freqüência à irmandade, muitas delas
com elevado potencial financeiro. A popularização dos juizados por devoção pode ter sido a
solução encontrada para trazer para o interior da igreja as maiores expressões de sua
religiosidade as esmolas.
342
No entanto, acreditamos que outra questão, que vai além desse
âmbito mais geral, deve elucidar melhor a estruturação das devoções na irmandade,
especialmente no período da segunda metade do século XVIII. É a possível resolução de
conflitos no interior da confraria. Alguns estudos recentes têm apontado essa possibilidade.
340
CINTRA, Sebastião. Op. cit.
341
BORGES, Célia. Op. cit., pp. 93-94.
342
Idem, ibidem, pp. 157-158. Os devotos, muitas vezes, recorrem aos santos em momentos de aflição. Segundo
a visão de mundo dos fiéis, a promessa é recurso infalível para a obtenção de graças. Para obter êxito, oferta-se
ao santo algum tipo de sacrifício ou mesmo esmolas de grande valor.
108
Mariza Soares,
ao estudar o grupo dos maki na Irmandade de Santo Elesbão e Santa
Efigênia, no Rio de Janeiro, constata que duas devoções foram estruturadas na agremiação – à
das Almas e à de Nossa Senhora dos Remédios para resolver conflitos gerados por uma
disputa de sucessão na congregação dos “pretos minas do reino de maki”.
343
Assim como
Mariza Soares, Anderson de Oliveira identifica a escolha dos devotos por determinados
santos para delimitar fronteiras entre grupos africanos e crioulos no interior das irmandades
do Rosário, de Vila Rica e Mariana.
344
A partir dessas perspectivas, foi-nos possível perceber que a estruturação de novas
devoções no Rosário de São João del-Rei também podia estar ligada à resolução de conflitos
entre grupos que pretendiam demarcar fronteiras identitárias. Havia, no interior da Irmandade
do Rosário de São João del-Rei, várias devoções em seus altares principais e laterais. No
Estatuto de 1787, o culto a São Benedito, a Nossa Senhora dos Remédios e a Santo Antônio
de Catalegerona aparece estruturado. São Benedito tem capítulo exclusivo no livro de
Compromissos. Do Capítulo 13 consta como, quando e por quem deveria ser organizada a
festa em sua homenagem. “Esta irmandade será obrigada a fazer uma festa todos os anos a
São Benedito na terceira oitava do Natal [...]”.
345
O Capítulo 16 do mesmo Estatuto descreve
a organização da festa em homenagem a outros dois santos, “que o zelo e devoção de alguns
irmãos as fizeram edificar e estabelecer nesta igreja, queremos se pratique o mesmo que fica
determinado no capítulo XIII”. O texto reitera a sujeição dessas devoções à Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário em seu governo e em suas disposições.
346
No Estatuto de 1841 da mesma irmandade, o Capítulo 10 delineia como devem ser as
funções em homenagem às devoções.
[...] a miraculosa imagem de Nossa Senhora dos Remédios sempre
prodigiosa para com todos aqueles fiéis que com invocam o seu
santíssimo Nome, atraindo esta invocação em seu tempo muito fervor e
devoção, por estes motivos, pois a irmandade sempre que possa lhe fará tão
bem anualmente em tempo que melhor convier uma função que em tudo e
por tudo seja imitação daquela que fizer a sua padroeira.
[...] Quanto porém a São Benedito, São Domingos, Santa Catharina, Santo
Antônio de Catalegerona e outros santos ali colocados, a irmandade os irá
festejar na melhor forma que puder dentro dos dias santos do Natal, até o dia
de Reis, inclusive, visto serem estes dias os mais próprios para as pessoas
343
SOARES, Mariza. Op. cit. (2000), cap. 6.
344
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008).
345
APNSP-SJDR – Livro de Compromisso da Irmandade do Rosário de São João del-Rei de 1787.
346
APNSP-SJDR, Ibidem.
109
escravas, de que há grande número nesta irmandade, poderem assistir a tais
funções [...].
347
Nota-se que, nesse Compromisso, o culto a outros santos surge estruturado São
Domingos e Santa Catarina, evidência do aumento na institucionalização de novos cultos.
Mas parece que, entre os santos anexos à devoção principal, Nossa Senhora dos Remédios,
dessa vez mereceu maior destaque, diferente do primeiro estatuto, que dava realce a São
Benedito. No texto de 1841, verifica-se que São Benedito não estava mais em evidência como
no Compromisso anterior, quando tinha capítulo exclusivo para orientar a organização de sua
festa. Então, o destaque devocional estaria atrelado ao perfil de devotos na confraria e
mudaria, conforme ocorresse a alteração dos mesmos? Como constatamos, os cativos
estiveram mais presentes na segunda metade do XVIII, portanto os santos negros tinham certa
preferência desses devotos. na primeira metade do XIX, a maioria dos membros era de
entrantes que não mencionavam a condição social, possivelmente livres/libertos, como
apontamos. Nossa Senhora dos Remédios se teria tornado um culto mais adequado aos novos
entrantes ou preferido pelos mesmos? Por quê? Ao que tudo indica, o culto a Nossa Senhora
dos Remédios ganhou tanta popularidade entre os devotos, que a irmandade empreendeu
todos os esforços para evidenciá-lo. Para investigar melhor essa questão e outras, optamos por
fazer um levantamento comparativo dos juizados entre os dois períodos, segunda metade do
século XVIII e primeira do XIX.
347
APNSP-SJDR - Livro de Compromisso da Irmandade do Rosário de São João del-Rei de 1841.
110
TABELA 7
Juizados de santos ocupados na Irmandade do Rosário de
São João del-Rei, nos séculos XVIII e XIX
1747-1800
JUIZADOS
%
Nossa Senhora dos Remédios
72 56,3
Nossa Senhora do Rosário 19 14,8
São Benedito 17 13,3
Santo Antônio Catalegerona 11 8,6
São Domingos 4 3,1
Santa Catarina 5 3,9
São Vicente Ferrer - -
TOTAIS 128 100
1801-1850
Nossa Senhora dos Remédios
264 63,5
Nossa Senhora do Rosário 38 9,1
São Benedito 44 10,6
Santo Antônio Catalegerona 15 3,6
São Domingos 27 6,5
Santa Catarina 17 4,1
São Vicente Ferrer 11 2,6
TOTAIS 416 100
Fonte: AINSR-SJDR – Livros 17, 20 e 23 – Termo dos Irmãos da Irman-
dade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei (1747-1859).
O que de início salta aos olhos é a grande projeção do culto de Nossa Senhora dos
Remédios e é importante ressaltar que esse grande impulso se deu, efetivamente, a partir da
década de 1790. Qual o motivo de tanta popularidade? Comparando-se os dois períodos,
vamos observar que, entre as devoções mais antigas
348
na confraria, o percentual decresce de
um período para o outro, exceto o de Nossa Senhora dos Remédios, que apresenta um
aumento. O decréscimo no percentual dessas devoções, talvez possa ser explicado pela
popularização dos novos oragos, o que provocou maior distribuição dos devotos, haja vista
que, entre as devoções mais novas, observamos um aumento no século XIX em relação ao
primeiro momento. Os percentuais também revelam que mais da metade dos juizados, em
cada período, foram dedicados à devoção de Nossa Senhora dos Remédios, 56,3% no
primeiro momento, e 63,5%, no segundo. Os números são maiores do que o percentual dos
juizados dedicados à santa padroeira da confraria, que aparece em segundo lugar no século
XVIII, e em terceiro, no século seguinte. Entre os santos negros, São Benedito era o favorito
348
Ao que tudo indica, comparando os Compromissos de 1787 e 1841, os cultos anexos, Nossa Senhora dos
Remédios, São Benedito e Santo Antônio de Catalegerona são mais antigos. Os cultos a São Domingos, Santa
Catarina e São Vicente Ferrer parecem ter sido estruturados depois. Não encontramos documentos que
precisassem a data da estruturação desses cultos, porém os registros que mencionam a devoção aos três últimos
santos são contemporâneos aos quatro primeiros. Isso evidencia a popularização dos cargos de juiz por devoção
no início do século XIX.
111
dos devotos. Entre 1747 e 1800, estava em terceiro lugar entre os juizados mais ocupados e,
de 1801 a 1850, ficou em segundo. São Domingos, Santa Catarina e São Vicente Ferrer
aparecem com menos fiéis, certamente por serem cultos mais recentes na instituição.
Observamos ainda que, entre os juizados de Nossa Senhora dos Remédios, estavam
pessoas com classificações significativas de diferenciação e prestígio social naquela
localidade – 18 Donas, 1 Senhorinha, 2 Capitães e 1 Cadete. No Juizado de Nossa Senhora do
Rosário encontramos 2 Donas e, nos outros juizados, não constatamos nenhuma dessas
classificações junto aos nomes dos ocupantes. Vejamos, a seguir, o que as fontes indicam
acerca da ocupação dos juizados, segundo o sexo e a condição. Para essa verificação,
preferimos analisar os livros de entrada de irmãos, pois os assentos trazem dados um pouco
mais completos do que os dos livros de receitas e despesas, que se detêm apenas nos nomes,
nos sobrenomes e, eventualmente, na condição do irmão.
112
TABELA 8
Juizados de santos ocupados na Irmandade do Rosário de São João del-Rei, segundo condição e sexo, nos séculos XVIII e XIX
1747-1800
ESCRAVO
FORRO
NÃO MENCIONA CONDIÇÃO
JUIZADOS
H % M % T % H % M % T % H % M % T %
N. Sra. dos Remédios
3 75 28 56 31 57,4 2 66,7
8 50 10 52,6 10 66,6
21 52,5
31 56,4
N. Sra. do Rosário
- - 6 12 6 11,1 - - 2 12,5
2 10,5 1 6,7 10 25 11 20
São Benedito
1 25 4 8 5 9,3 1 33,3
4 25 5 26,4 1 6,7 6 15 7 12,7
Antônio Catalagerona
- - 8 16 8 14,8 - - - - - - 2 13,3
1 2,5 3 5,5
São Domingos
- - 2 4 2 3,7 - - - - - - 1 6,7 1 2,5 2 3,6
Santa Catarina
- - 2 4 2 3,7 - - 2 12,5
2 10,5 - - 1 2,5 1 1,8
TOTAL GERAL
4 100 50 100 54 100 3 100 16 100 19 100 15 100 40 100 55 100
1801-1850
ESCRAVO
FORRO
NÃO MENCIONA CONDIÇÃO
H % M % T % H % M % T % H % M % T %
N. Sra. dos Remédios
13 35,2
77 70,6
90 61,6 3 60 7 87,5
10 76,9 25 49 139 67,5
164 63,8
N. Sra. do Rosário
1 2,7 9 8,4 10 6,8 - - - - - - - - 28 13,6
28 10,9
São Benedito
6 16,2
10 9,2 16 11 - - - - - - 10 19,6
18 8,7 28 10,9
Antônio Catalagerona
9 24,3
1 1 10 6,8 2 40 - - 2 15,4 3 5,9 - - 3 1,2
São Domingos
4 10,8
7 6,4 11 7,5 - - - - - - 4 7,8 12 5,8 16 6,2
Santa Catarina
- - 2 1,8 2 1,5 - - 1 12,5
1 7,7 8 15,7
6 2,9 14 5,4
São Vicente Ferrer
4 10,8
3 2,8 7 4,8 - - - - - - 1 2 3 1,5 4 1,6
TOTAL GERAL
37 100 109 100 146 100 5 100 8 100 13 100 51 100 206 100 257 100
Fonte:
Livro de entrada de irmãos, números 17, 20 e 23 – Termos dos irmãos da Irmandade do Rosário de São João del-Rei (1747-1859)
H: Homem; M: Mulher e T: Total.
113
Os dados da Tabela 8 apontam que, entre 1747 e 1800, de maneira geral, os juizados
tiveram uma participação equilibrada dos escravos e dos membros que não mencionaram a
condição. Os forros vêm em terceiro lugar e é evidente a grande participação das mulheres
nos juizados. E isso não aconteceu somente entre os forros. Em quase todos os juizados,
também entre escravos e os que não mencionaram a condição, a participação feminina foi
bastante significativa. Ao analisarmos as quatro devoções mais antigas da instituição,
observamos que Nossa Senhora dos Remédios tinha a maciça preferência entre escravos,
forros e membros que não registraram a condição. Em segundo lugar, escravos e forros
escolhiam mais os santos negros. Nossa Senhora do Rosário era a segunda opção dos
membros que não mencionaram a condição e a terceira dos escravos e forros.
No período seguinte, de 1801 a 1850, os membros que não disseram a condição foram
superiores nos juizados, exceto no do santo negro de Catalagerona, que teve a preferência dos
escravos. Em todos os juizados as mulheres foram majoritárias, exceção para o de santo
Antônio de Catalagerona, que foi o preferido dos irmãos do sexo masculino. Como no
momento anterior, Nossa Senhora dos Remédios era a santa favorita tanto de escravos quanto
de forros e dos irmãos que não fizeram referência à condição. São Benedito aparece em
segundo lugar como escolhido, e a santa padroeira da irmandade, entre os membros que não
mencionaram a condição, empata com São Benedito. Entre os escravos, Nossa Senhora do
Rosário fica em terceiro, assim como o santo negro de Catalagerona.
No oitocentos, os forros aparecem em menor quantidade, mas isso não significa que
não estivessem presentes. É preciso lembrar que poderiam estar “ocultos” entre os devotos
que não tiveram a condição aludida. Nota-se que não foi verificado nenhum membro nos
juizados de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito entre 1801 e 1850, como
observamos no período anterior. Onde estariam esses irmãos? Ao que parece, essa ausência
reforça a hipótese da distinção, isto é, um indício de que os irmãos buscaram mais demarcar
uma diferenciação na instituição, quando, por exemplo, silenciavam sobre sua condição ou
escolhiam outro orago que lhes propiciasse maior representatividade entre os demais
membros. Isso pode explicar os dados da tabela, que apontam para um aumento no percentual
de irmãos no juizado de Nossa Senhora dos Remédios, entre 1801 e 1850, se comparado ao
momento anterior: entre os forros, de 52,6% para 76,9%, e entre os que não mencionaram a
condição, de 56,4% para 63,8%. Entre os escravos, embora a quantidade fosse menor em
relação aos que não registraram a condição, não deixaram de ser expressivos no oitocentos.
Entre esses, também houve um pequeno aumento de percentual no juizado dos Remédios, ao
compararmos os dois momentos: de 57,4% no setecentos, para 61,6% no momento seguinte.
114
Interessante notar que, nos juizados das santas virgens, o número de mulheres é
sempre muito alto. A preferência delas por essas devoções pode estar relacionada à questão da
figura feminina, associada ao culto mariano. Maria Beatriz de Mello e Souza afirma que o
culto mariano foi bastante difundido no mundo colonial, em que Maria representa a proteção
materna que consola os habitantes da Colônia em suas dificuldades.
349
Porém, quando se trata
de mulheres africanas, outras questões devem ser consideradas para melhor elucidar tal
afinidade. Estamos falando do processo de construção da memória africana. Anderson de
Oliveira afirma que esse processo é baseado “nas recordações do papel das mulheres em
diversas sociedades da África negra”. Em muitas tribos, as mulheres exerciam grande
influência na transmissão da cultura de seu povo aos filhos, saberes de culinária e certas
atividades artesanais. Além disso, em tribos como os esan, muitas mulheres chefiavam
domicílios, empenhando-se na construção de sua independência e na de seus filhos. Em
outras, como as tribos iorubá, as mulheres exerciam o controle do mercado e atuavam como
conselheiras dos maridos, especialmente quando eram líderes, influenciando diretamente no
poder.
350
A constatação da superioridade feminina na ocupação dos juizados corrobora o que
a historiografia tem demonstrado sobre a capacidade de elas disporem de esmolas elevadas
para doar, e reforça a ideia de que a irmandade significava também, para elas, a oportunidade
de afirmação e distinção social. Não podemos deixar de salientar que os homens, embora em
números inferiores nos outros juizados, estavam mais ligados a devoções masculinas.
Isso confirma o fato de que as devoções funcionam como mecanismo de distinção de
grupos, quando, por exemplo, os membros se identificam com os santos pela cor da pele e/ou
pelo gênero. Mas outros elementos podem interferir na escolha dos devotos como, por
exemplo, os anseios dos devotos pela proteção e pelas recriações culturais feitas ao assimilar
a figura do santo. Antes de aprofundarmos essa questão, vamos observar o que nos mostram
os termos acerca da procedência desses juízes por devoção, registrados nos livros de entrada.
349
SOUZA, Maria Beatriz de Mello e. O culto mariano no Brasil colonial: caracterização e tipologia das
invocações (1500-1822). Actas de Congresso Internacional de História Missionação portuguesa e encontro de
culturas. Braga: Universidade Católica Portuguesa. Apud OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008).
350
Idem, ibidem. (2008), pp. 317-321.
115
TABELA 9
Origens dos juízes por devoção na Irmandade do Rosário de São João del-Rei,
nos séculos XVIII e XIX
NOSSA SENHORA DOS REMÉDIOS
1747-1800 1801-1850
ORIGENS
% %
África Ocidental
Mina 1 3,5 3 10
Nagô 1 3,5 - -
África Centro-Ocidental
Angola 9 31 3 10
Benguela - - 2 6,7
Congo 2 6,8 5 16,7
Rebolo - - 1 3,3
Cabundá - - 1 3,3
Ganguela - - 1 3,3
Monjolo - - 1 3,3
Nascidos - Colônia/Império
Crioulo 16 55,2 13 43,4
TOTAIS 29 100 30 100
NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO
África Ocidental
Mina - - 2 33,3
África Centro-Ocidental
Benguela 1 20 - -
Congo - - 2 33,3
África Oriental
Mozambique 1 20 1 16,7
Nascidos - Colônia/Império
Crioulo 3 60 1 16,7
TOTAIS 5 100 6 100
SÃO BENEDITO
África Ocidental
Mina 3 42,9 1 33,3
Da Costa - - 1 33,3
África Centro-Ocidental
Angola 1 14,3 1 33,3
Rebolo 1 14,3 - -
Nascidos - Colônia/Império
Crioulo 2 28,5 - -
TOTAIS 7 100 3 100
SANTO ANTÔNIO DE CATALEGERONA
África Ocidental
Mina 2 40 1 14,3
Nagô 1 20 - -
África Centro-Ocidental
Angola 1 20 1 14,3
Congo - - 1 14,3
Monjolo - - 1 14,3
Mofumbe - - 1 14,3
Nascidos - Colônia/Império
Crioulo 1 20 2 28,5
TOTAIS 5 100 7 100
116
SÃO DOMINGOS
1747-1800 1801-1850
ORIGENS
% %
África Ocidental
Da costa - - 1 50
África Centro-Ocidental
Benguela 1 100 - -
Camundongo - - 1 50
TOTAIS 1 100 2 100
SANTA CATARINA
Nascidos - Colônia/Império
Crioulo 2 100 1 100
TOTAIS 2 100 1 100
SÃO VICENTE FERRER
África Ocidental
Mina - - 2 66,7
África Centro-Ocidental
Rebolo - - 1 33,3
TOTAIS - - 3 100
Fonte: AINSR-SJDR – Livros 17, 20 e 23 – Termo dos irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de
São João del-Rei (1747-1859).
Dos 128 juizados de santos, entre 1747 e 1800, 49 deles, 38,3%, tiveram membros que
mencionaram a origem. Os crioulos foram majoritários entre as devoções brancas e do sexo
feminino, especialmente no juizado de Nossa Senhora dos Remédios. Apesar de estarem
representados nas outras devoções, inclusive nas negras, proporcionalmente, acabaram
optando por Nossa Senhora dos Remédios. Verifica-se, ainda, para essa devoção uma adesão
significativa do grupo de africanos oriundos da África Centro-Ocidental, especialmente dos
angola.
No século seguinte, dos 416 juizados de santos apurados, 52 deles, 12,5%, tiveram
membros que mencionaram a origem, número bem menor, se compararmos com o primeiro
período. Esse decréscimo, certamente, é o reflexo da conjuntura daquele momento, que
discutia a equidade dos cidadãos de cor”, implicando, assim, no apagamento das diferenças
entre os homens livres, isto é, no ocultamento de informações sobre cor/condição e origem
nos documentos, como apontamos. Apesar da insuficiência dos dados, nota-se que, para
esse momento, algumas tendências persistiram. Os crioulos estão representados na maioria
das devoções, mas continuaram optand pelos juizados de Nossa Senhora dos Remédios, como
ocorreu no período anterior. Ainda atrelados a essa devoção estão os oriundos da África
Centro-Ocidental, bastante participativos nos juizados. Interessante notar que, nesse período,
o grupo mina foi um pouco mais representativo no juizado dos Remédios do que no período
anterior. Entre os santos negros, São Benedito continuou favorito para os grupos da África
117
Ocidental, que também estavam entre os membros que mais ocuparam o juizado de São
Vicente Ferrer.
Em síntese, entre os grupos africanos, confirma-se a predominância dos oriundos da
África Centro-Ocidental, porém, mais uma vez, constatamos o grupo mina, da África
Ocidental, marcando sua participação nos cargos, no caso aqui juizados. Ao analisarmos os
principais grupos africanos na irmandade, constatamos que os benguela não estiveram muito
presentes em juizados por devoção, diferente dos angola e dos congo que participaram mais,
esses últimos, de forma mais efetiva, no culo XIX. Não podemos deixar de salientar que a
devoção a Nossa Senhora dos Remédios, proporcionalmente, parecia bem atrativa para os
negros da África Centro-Ocidental. Que tipo de assimilações fizeram em relação à santa?
Teria ligação com suas tradições de origem?
Comparando-se, ainda, os juizados, constatamos que os grupos africanos se
diversificavam entre as devoções brancas e negras, mas, entre os crioulos, os meros
indicam que preferiam o culto às santas brancas, especialmente o de Nossa Senhora dos
Remédios. Anderson de Oliveira, ao utilizar o mesmo método para compreender a origem dos
ocupantes dos juizados por devoção nas irmandades de Vila Rica e Mariana, constatou o
contrário, isto é, a concentração de crioulos entre os devotos de Santa Efigênia, uma santa
negra. O autor demonstrou que, em Minas Gerais, Santa Efigênia foi escolhida pelos crioulos
para demarcar uma diferenciação com grupos africanos. Isso reforçaria
[...]
a hipótese da historicidade das devoções e o fato de que as
recomposições étnicas em situações diversas também se valem de diferentes
símbolos devocionais, explicitando-se tal fato na evidência de que, no Rio de
Janeiro, Santa Efigênia estava identificada aos pretos minas.
351
Sugere-se que o mesmo tenha acontecido na Irmandade do Rosário de São João del-
Rei, pois, ao escolherem as devoções brancas, os crioulos podem ter utilizado o elemento cor
da pele para demarcar sua diferenciação na instituição, explicitando, assim, a clivagem com
os africanos.
Nesse sentido, queremos compreender o culto a Nossa Senhora dos Remédios,
devoção que abarcou, tanto no final do século XVIII, quanto na primeira metade do XIX, o
maior número de juizados. A maioria desses cargos foi preenchido por mulheres. Qual seria a
relação do grupo feminino com a devoção. Que assimilações teriam sido feitas pelos devotos?
Funcionaria essa devoção como mecanismo de distinção econômico-social naquele contexto?
351
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008), pp. 292-293.
118
Diferente de Nossa Senhora do Rosário, que tradicionalmente era protetora dos homens
pretos, Nossa Senhora dos Remédios teria sido escolhida para atender aos anseios daqueles
que queriam fugir do estigma do cativeiro, ou se diferenciar dos africanos?
Devemos lembrar que, numa sociedade com traços de Antigo Regime, o religioso, o
social e o econômico o estavam completamente separados, e que a constituição e a
reiteração de hierarquias no interior das irmandades foram um fenômeno bastante regular, em
que, a nosso ver, as devoções foram utilizadas como um recurso de interpretação para
demarcar e reafirmar tais hierarquias. Quando se leva em consideração a conjuntura
econômica e social da primeira metade do século XIX na cidade de São João del-Rei,
referência na Comarca do Rio das Mortes, as mudanças apontadas na irmandade parecem
corroborar aquela conjuntura, pelo menos no que diz respeito ao novo perfil de entrantes e às
finalidades da confraria. Porém, não se deve perder de vista a longevidade de práticas e
costumes arraigados, pelo menos no plano dos valores, nas instituições que se pautaram nos
mesmos princípios que regem as sociedades de Antigo Regime.
352
Vale salientar, ainda, que
as irmandades traduziam as distinções sociais e de cor. Isso significa que, no interior da
confraria, as devoções podem ter sido escolhidas ou utilizadas para balizar essas
diferenciações.
As reflexões de Anderson de Oliveira, em relação à estruturação da devoção nas
irmandades, são bastante relevantes para se pensar a coesão grupal nesse sentido. Ele explica
que “a devoção abre, na prática, um leque de possibilidades de apropriações da figura do
santo, as quais não estavam, necessariamente, previstas num projeto de catequese”.
353
Isso
significa que vários fatores influenciaram o fenômeno devocional e esse deve ser
compreendido em meio às conjunturas temporais e socioculturais de uma sociedade. O autor
considera, ainda, que a fé no poder do santo levava os fiéis a assumirem determinados
comportamentos, praticarem determinadas ações e entenderem o mundo conforme os
princípios em que acreditavam. Nesse sentido, pensamos que a imagem de Nossa Senhora dos
Remédios pode ter sido utilizada como elemento de diferenciação social, e que, ao longo do
tempo, as apropriações da figura da santa, pelos devotos, podem ter sido transformadas. O que
pretendemos, no Capítulo 3, é apresentar indícios que expliquem a identificação dos devotos
com a santa. Primeiro, procuraremos compreender a estruturação do culto a Nossa Senhora
dos Remédios na Igreja do Rosário de São João del-Rei. Em seguida, investigaremos a
devoção no seu aspecto simbólico, enquanto fator de construção de identidades coletivas,
352
Ver: MATTOS, Hebe. Op. cit. (2001).
353
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008), p. 251.
119
para, então, entender que assimilações o culto sofreu por parte dos devotos, considerando a
temporalidade nos séculos XVIII e XIX.
120
CAPÍTULO 3
NOSSA SENHORA DOS REMÉDIOS NA IRMANDADE DOS PRETOS
Em 1841, a escrava do Capitão José Dias de Oliveira, Maria do Carmo, pagou mesada
para ser juíza de Nossa Senhora dos Remédios, na Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário.
354
Dezoito anos depois, em 1859, Leonor entrou para a mesma irmandade em São
João del-Rei, também escrava do capitão, debaixo da joia de cinco mil réis, paga pelo
proprietário, para que fosse juíza de promessa da santa dos Remédios. O termo foi assinado
pelo capitão.
355
José Dias de Oliveira era português, filho legítimo de Manoel de Oliveira Araújo e de
Antônia Maria da Paixão, nascido e batizado na Freguesia de São José e São Lázaro, da
cidade de Braga, em Portugal. Foi casado com Dona Matilde Jesuína da Conceição, que
também era irmã na Confraria do Rosário e devota da santa dos Remédios. Dona Matilde
entrou na confraria em 1826, declarando-se branca e pagando mesada para ser juíza de
promessa da santa.
356
Repetiu a ocupação do cargo em 1827, 1829 e 1832.
357
Desse matrimônio, o único em sua vida, o capitão não teve nenhum filho legítimo e
não consta que tivesse filhos naturais.
358
Nos últimos anos de vida, estava muito doente, a
ponto de não poder, de próprio punho, redigir seu testamento, pediu a terceiros que o
fizessem. Foi homem de muitas posses. Em seu inventário
359
, constam joias de ouro e prata,
títulos de dívida ativa, muitos móveis e imóveis. no largo do Rosário, era proprietário de
dois sobrados e quatro moradas de casas térreas, uma delas em frente à rua da Prainha, e outra
em São Caetano. Era dono de um terreno de campo para pasto com mais de dez alqueires e de
uma plantação de cana. Tinha nove escravos e, quando da realização do seu testamento, em
1877, beneficiou quatro deles, deixando-os livres, com moradia e esmolas para cada um.
Além dos quatro escravos, favoreceu, ainda, a escrava Leonor, porém, sob condição. Declarou
354
APNSP-SJDR Livro de Receitas e Despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-
Rei (1831-1844).
355
AINSR-SJDR – Livro de entrada de irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei:
número 23 (1848-1859). Procuramos o inventário de José Dias de Oliveira, com o intuito de obtermos mais
informações sobre as ditas escravas, porém descobrimos que o nobre senhor também era irmão na Irmandade e
devoto de Nossa Senhora dos Remédios.
356
AINSR-SJDR – Livro de entrada de irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei:
número 20 (1815-1847).
357
AINSR-SJDR Livro 18: Receitas e Despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei (1803-
1830) e APNSP-SJDR Livro de Receitas e Despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei
(1831-1844).
358
IPHAN-SJDR – Testamento do Capitão José Dias de Oliveira – 1877 – caixa 96.
359
IPHAN-SJDR – Inventário do Capitão José Dias de Oliveira – 1878 – caixa 180.
121
que, depois que falecesse, ela serviria à sua prima e comadre, Dona Joaquina de Jesus, viúva
do seu compadre João Gonçalves Gomes, pelo tempo de sete anos, findos os quais ficaria
livre, como se tal nascesse. Deixou-lhe ainda esmola de seiscentos mil réis, com os quais os
testamenteiros do capitão deveriam comprar uma morada de casas, para que a escrava nela
residisse quando estivesse livre.
O capitão era homem muito católico. Irmão na Venerável Ordem Terceira de São
Francisco, onde foi sepultado, prestou vários serviços à instituição. Também se associou a
outras irmandades, como as de Nossa Senhora do Carmo, Nosso Senhor Bom Jesus dos
Passos, São Miguel e Almas, São Gonçalo Garcia, Nossa Senhora das Mercês e Nossa
Senhora do Rosário. Não encontramos documentos que apontassem exatamente a data de sua
entrada na irmandade dos pretos, que foi remida de cargos e anuais, apenas a cópia de um
recibo dado à confraria, comprovando o pagamento restante da quantia que devia ao se
associar. Foram vinte e quatro mil e seiscentos réis dos cem mil réis totais.
360
Deixou esmola
para todas as irmandades de São João del-Rei e, quando se referiu ao legado para o Rosário,
além da esmola de cem mil réis, acrescentou que deixava igual quantia, “exclusivamente
aplicada para ajuda da cera do altar de Nossa Senhora dos Remédios”.
361
É difícil saber quem
introduziu na família do capitão a devoção dos Remédios, se os senhores ou os escravos. O
fato é que o simbolismo da invocação, que remediava enfermos, era assimilado tanto pelos
negros quanto pelos brancos.
Assim como José Dias de Oliveira, muitos outros irmãos de perfil parecido declararam
devoção a Nossa Senhora dos Remédios, no início do século XIX. Eram pessoas de posse e
com representatividade naquela localidade, entre eles, coronéis, capitães, alferes, tenentes,
doutores e muitas mulheres com o título de “Donas” (veremos quadro comparativo mais à
frente). O que mais nos chamou atenção foi não encontrarmos, para as outras devoções, um
número tão significativo de devotos com o mesmo perfil do capitão. Que poderes se
atribuíram à santa, para que ela adquirisse estatuto maior no imaginário religioso daqueles
confrades? Que elementos tinha a imagética que atraía devotos tão nobres?
Como apresentamos nos capítulos anteriores, Nossa Senhora dos Remédios era
devoção anexa no interior da Igreja do Rosário, mas isso não diminuía a importância do culto
na vila. Pelo contrário, como demonstramos, esse culto contribuiu e muito para o aumento do
número de fiéis que acorriam à igreja e, consequentemente, para a ampliação do prestígio e do
360
IPHAN-SJDR – Inventário do Capitão José Dias de Oliveira – 1878 – caixa 180.
361
IPHAN-SJDR – Testamento do Capitão José Dias de Oliveira – 1877 – caixa 96.
122
reconhecimento da irmandade naquela localidade, principalmente porque a instituição
arregimentava membros muito ilustres.
O elevado número de devotos se traduziu no aumento dos rendimentos da irmandade,
que a quantidade de esmolas para a devoção dos Remédios era, no mínimo, quatro vezes
maior do que as dos irmãos para os outros santos anexos e até mesmo para a santa
principal.
362
A popularidade que o culto ganhou, nas primeiras décadas do XIX, motivou a
mudança no Compromisso de 1841, que deu maior destaque ao culto dos Remédios entre as
devoções anexas, como demonstramos no Capítulo 2.
Não temos notícia da época exata em que o culto foi estruturado na irmandade, mas é
certo que foi anterior a 1763. Entre os livros de registro da irmandade, que encontramos, e
cuja leitura foi possível, a data mais antiga de declaração da devoção foi 1762, feita pela
entrante Ana Maria Gonçalves Munhões, que deu mesada para ser juíza de Nossa Senhora dos
Remédios naquele ano.
363
Outro indício nos pistas de que o culto pode ter surgido na
irmandade após 1750. Nas efemérides de São João del-Rei, Sebastião de Oliveira Cintra
descreve que, em 15 de fevereiro de 1751, se iniciaram as obras de reconstrução da Igreja do
Rosário. Por causa da reforma, as imagens de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito
foram transladadas para a igreja de Nossa Senhora do Carmo, onde permaneceram até
1772.
364
Conforme a notícia, parece que as duas imagens existiam na irmandade, naquela
época. Dessa forma, é possível que o culto dos Remédios tenha sido estruturado na confraria
entre 1751 e 1762. Isso comprova que a devoção estava estabelecida na igreja, pelo menos
vinte e cinco anos antes da redação do Compromisso de 1787. Mas, qual é a origem dessa
invocação? Como foi difundida no Brasil? Como chegou à vila sanjoanense? Qual a sua
especificidade naquela localidade? Por que tal devoção ganhou tanta popularidade nos
primeiros anos do século XIX? Para responder a essas questões vamos voltar a Portugal, para
rastrearmos as origens do culto.
3.1- Santa padroeira da Ordem dos Trinitários
A invocação dos Remédios foi muito popular em Portugal, principalmente nas cidades
de Santarém e Lamego. Nilza Botelho Megale nos informa que a devoção foi difundida, na
362
AINSR-SJDR e APNSP-SJDR – Livros de receitas e despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de
São João del-Rei, 1803-1830 e 1831-1844, respectivamente.
363
AINSR-SJDR Livro número 17 de entrada de irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São
João del-Rei.
364
CINTRA, Sebastião de Oliveira. Op. cit., p. 77.
123
velha Lusitânia, por religiosos franceses da Ordem Hospitalar da Santíssima Trindade e
Redenção dos Cativos, que estiveram em Lisboa nas primeiras décadas do século XIII.
365
Antes de descrevermos a Ordem dos Trinitários, teceremos algumas breves considerações
sobre o surgimento das ordens mendicantes.
Tiveram início na Europa ocidental, a partir do final do século XII, e eram formadas
por frades ou freiras que viviam nos conventos. Entre os mais notáveis, na época, estavam os
franciscanos, os dominicanos, os agostinianos, os carmelitas, os trinitários e os mercedários.
Suas ações ou apostolados consistiam em orações, pregações, evangelização de fiéis, auxílio
aos pobres e outras obras de caridade. O modelo de vida era mendicante, isto é, o peditório de
esmolas. Tinham o apoio dos papas e respondiam às novas necessidades espirituais, criadas
pelo desenvolvimento comercial e urbano da época. Segundo Anderson de Oliveira, a
hierarquia da Igreja via necessidade de resolver as novas questões com urgência, e estimulou
as ordens mendicantes a atuarem nessa tarefa. Deveriam dar conta da evangelização dos fiéis
e buscar soluções éticas para questões relacionadas à economia, como a monetarização, a
procura do ganho, a justificativa para as atividades comerciais e a legitimidade das operações
financeiras.
366
Desenvolveram uma verdadeira pastoral de cristianização de massas urbanas,
instalando-se nas cidades e disputando, palmo a palmo, os espaços umas com as outras.
Segundo Le Goff, as disputas traduziam uma busca dessas instituições por maior proximidade
e representatividade junto ao poder. Nesse sentido, estiveram ligadas aos grupos dominantes
das cidades e, consequentemente, sua inserção nesses espaços reforçava o domínio daqueles
grupos sobre os demais segmentos subordinados da cidade.
367
Para o sucesso na
evangelização dos fiéis, empenharam-se em promover inúmeras devoções, principalmente
aquelas que as amadrinhavam.
Nossa Senhora dos Remédios foi escolhida como Padroeira da Ordem Hospitalar da
Santíssima Trindade e Redenção dos Cativos, também conhecida como Ordem dos
Trinitários. Teve como principal fundador São João da Mata.
368
Para compreendermos o
surgimento de Nossa Senhora dos Remédios, foi necessário reconstituir a história da fundação
da ordem, através da hagiografia de São João da Mata. Nossa finalidade era, por meio desse
texto, encontrar vestígios que nos pudessem esclarecer a origem da santa.
365
MEGALE, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no Brasil: história iconografia folclore. 4. ed.
Petrópolis: Vozes, 1998, p. 421.
366
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008), pp. 41- 51.
367
LE GOFF, Jacques. A Bolsa e a Vida: economia e religião na Idade Média. 2. ed. São Paulo: Brasiliense,
1989, p. 237.
368
MLM – ROSÁRIO, Diogo do. Flos Sanctorum ou História das Vidas de Christo e sua Santíssima Mãe e dos
Santos e suas Festas. Edição aumentada, v. 2. Lisboa: Tipografia Universal de Thomas Quintino Antunes, 1869,
p. 129 – Estante 21, prateleira 2, registro 2395, pp. 129-159.
124
A narrativa do fundador da Ordem foi produzida por Diogo do Rosário, um
dominicano português que se inspirou na Legenda Áurea
369
para compor seu trabalho. Nessa
obra, o primeiro subtítulo fala em exaltar os varões portugueses tocados pela santidade. Isso
significa que a narrativa de Diogo, a respeito de São João da Mata, pode ter sido caracterizada
pela exaltação do santo, o que nos permite entender que o texto pode ter perpassado por
escolhas e apropriações variadas, seguindo determinadas tradições. Desse modo, estaremos
atentas ao sentido que o autor investiu na narrativa sobre a fundação da Ordem, pois pode ter
incutido uma intencionalidade, diretamente relacionada a grupos sociais e aos seus interesses
no contexto da sociedade, e à época em que viviam.
370
Apesar disso, foi possível percebermos
os indícios necessários para reconstituirmos a história da devoção sob o título de Nossa
Senhora dos Remédios.
Segundo a tradição, São João da Mata teria sido o escolhido para organizar uma nova
ordem religiosa que tivesse por intuito remir cativos. Antes mesmo de nascer, a missão do
santo teria sido anunciada à sua mãe, Marta, que morava em Portugal, e era muito devota de
Nossa Senhora. Preocupada com a hora do parto, Marta pediu à santa proteção, para ela e para
o fruto que trazia em seu ventre. Foi, então, que, num momento de oração, lhe apareceu a
Virgem Santíssima, dizendo-lhe: “Não temas, Marta, porque parirás um filho que será santo e
redentor de cativos cristãos e pai de muitos filhos que se empregarão no mesmo ministério,
com grande lustre da Igreja e aproveitamento das almas.”
371
São João da Mata teria nascido
em Portugal, mais provavelmente em Lisboa, filho de Eufêmio da Mata, cidadão de Lisboa, e
de Marta, filha de um francês contratador da mesma cidade. Seguira toda uma vida de
estudos, sacrifícios, orações e caridade. Nas horas de folga dos estudos e das orações, ia aos
hospitais visitar os doentes e servir-lhes, pois lhes fazia curativos e prestava outros serviços
de enfermeiro. Parecia ser a tarefa de que mais gostava. Formou-se doutor em teologia e
ordenou-se sacerdote em Paris. Por muito tempo, andaria pregando a palavra de Deus, depois,
recolhera-se à vida solitária, em que praticaria jejuns, penitências e orações, com a finalidade
de encontrar realmente seu caminho e se preparar para a obra tão grandiosa, que Deus lhe
tinha destinado. Foi nesse tempo que teria encontrado São Félix de Valois, ermitão que,
mais de vinte anos, assistia no deserto, na região da Bélgica, em vida solitária. Tornar-se-iam
companheiros e viveriam, um ao lado do outro, experiências de virtudes e humildade, por três
anos. Certo dia, quando conversavam perto de uma fonte, foram agraciados por uma visão.
369
JACOPO, de Varazze, Ca. 1229-1298. Legenda Áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras,
2003.
370
Ver mais sobre o assunto em OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008), pp. 90-91.
371
MLM – ROSÁRIO, Diogo do. Op. cit., p. 129.
125
Um veado branco aproximou-se deles para beber na fonte, porém um sinal na cabeça do
animal lhes chamou a atenção. Era uma cruz de duas cores, vermelha e azul celeste. São Félix
ficou admirado, mas não entendeu nada. O outro companheiro ficou mais pensativo, pois
entendia que o Senhor lhe queria sinalizar que chegara a hora de cumprir sua missão. São
João da Mata contaria a São Félix que, quando celebrou a primeira missa, logo depois de sua
ordenação, um Anjo vestido de branco lhe apareceu. Trazia no peito uma cruz de duas cores,
“carmezim e azul celeste” e também “os braços trocados em forma de cruz, com as mãos
postas sobre dois cativos, um cristão, à mão direita, e outro mouro, à mão esquerda, em forma
de trocar um pelo outro”.
372
Na época, Deus o avisaria de sua missão.
São João da Mata teria desejado que São Félix o acompanhasse em seu encargo e,
assim, os dois foram a Roma, pedir licença para fundarem a nova ordem religiosa. O pedido
foi aceito e, mesmo, mandaram fazer dois hábitos de cor branca, com as cruzes nas duas
cores anunciadas na visão. Em 1197, foi-lhes disposta a primeira regra, pelo Abade de São
Vítor, em Paris, e, um ano depois, em Roma, o Santo Pontífice Inocêncio III aprovou e
confirmou o Estatuto. O título da nova instituição deveria ser Ordem Hospitalar da Santíssima
Trindade e seu intuito, remir os cristãos cativos.
Segundo a narrativa, fundaram o primeiro convento em Paris, chamando-o de Cervo
Frio. Passados quatro meses da inauguração do primeiro convento, São João da Mata teria
colocado em prática o fim de seu instituto, e, ajuntando esmolas, dispôs-se a efetuar a
primeira redenção de cristãos cativos no reino de Marrocos. Feito o primeiro resgate, livrou
do cativeiro dos mouros cento e oitenta e seis cristãos presos. No segundo resgate, conseguiu
libertar cento e vinte, pagando o custo acertado com os mouros, porém, eles o prenderam e o
açoitaram, dizendo que os havia enganado com o pagamento. O santo teria suportado o
castigo, porém temia que os mouros tornassem a prender os cativos libertados. Depois dos
açoites, pôs-se de joelhos e, segurando uma imagem de Nossa Senhora que havia levado,
rogou à santa que o socorresse naquela necessidade. A Mãe de Deus apareceu e lhe entregou
uma grande quantidade de ouro, para que pudesse saciar a cobiça daqueles bárbaros. Assim,
soltaram o santo, que pôde retornar a Roma com os cativos livres. Muitos desses resgatados
se achavam adoentados e feridos, outros teriam perdido bens e parentes e não tinham para
onde ir. Diante desses problemas, a Ordem resolveu ampliar sua missão, cuidando desses
enfermos e/ou abrigando-os quando necessário. A ideia seria estruturar pequenos hospitais,
mais especificamente hospícios, anexos às residências dos frades, que, depois, se estenderiam
372
Idem, ibidem, p. 136.
126
para os conventos no interior das cidades ou fora delas, quando a doença do ex-cativo tivesse
maior gravidade. Nos portos europeus, estruturariam abrigos para acolher os desamparados.
O número de companheiros com o ideal de seguir o ministério de São João da Mata
crescera. Muitos eram doutores parisienses que abraçaram a causa, sendo insignes exemplos
de santidade e sabedoria, tornando-se filhos dedicados no ofício de resgatar cativos. Novos
conventos foram inaugurados no mundo europeu: Roma, Espanha e Portugal.
Na Espanha, mais uma vez, Nossa Senhora teria aparecido em socorro do santo, para
que ele o deixasse de cumprir a missão a que se destinara. Conta-se que, na cidade de
Valença, achavam-se muitos cristãos em poder dos mouros, correndo o grande perigo de
largarem a fé. Naquela ocasião, São João da Mata não tinha recursos para resgatá-los.
Celebrou missa em louvor à Virgem Santíssima, pedindo-lhe que o socorresse naquela
necessidade. Terminada a missa, achou, junto ao altar, toda a quantidade de ouro de que
precisava para efetuar o resgate e, assim, o fez. Com o aval dos reis espanhóis, fundou mais
conventos naquele país, o da Ponte de La Reyna, o de Burgos, o de Toledo, o de Segóvia e o
de Lerida, e outros, nos quais teve ampla ajuda de seus seguidores, que o fizeram
contínuas redenções, como também levaram sua obra adiante.
A narrativa descreve que São João da Mata pretendia sair da Espanha e ir a Portugal,
sua pátria, para instalar casas de sua Ordem. No entanto, não foi possível, pois precisou
voltar à França, para cumprir várias tarefas do serviço de Deus, por ordem do Sumo Pontífice.
Resolveu, então, enviar a Portugal oito religiosos da Ordem, para que, em Santarém, se
apresentassem a El-rei D. Afonso II. Agradado pelos intuitos da nova instituição, o rei lhes
deu sítio e os ajudou a fundar ali o primeiro convento trinitário, depois o de Lisboa, e mais
outros pelo reino.
São João da Mata fundou vários outros mosteiros na França, e teria sido inquisidor.
Ocupou-se de pregar, visitar e cuidar de enfermos e encarcerados, consolar os aflitos e
remediar os necessitados com obras de caridade espirituais e corporais. Morreu em 17 de
dezembro de 1213 e foi velado por quatro dias, devido ao grande concurso de pessoas que o
foram venerar. Durante esse tempo, seu corpo ficou como se estivesse vivo, e cinco pessoas
enfermas teriam recebido suas graças milagrosas. Quatro cegos voltaram a enxergar quando
encostaram os olhos nas mãos do santo, e uma mulher aleijada ficou curada. Segundo a
tradição, depois que o santo foi enterrado, num suntuoso sepulcro elevado da terra, manou,
127
por muitos anos, “um óleo de maravilhosa fragrância que era medicina de muitas
enfermidades”.
373
Como vimos, a hagiografia do principal fundador da Ordem Trinitária traz alguns
indícios que nos possibilitam o entendimento da escolha de Nossa Senhora dos Remédios
como padroeira da instituição e o sentido da sua simbologia (ver imagem 5, em anexo).
Segundo Nilza Megale, um dos fundadores da Ordem fez voto à santa dos Remédios.
374
Não
temos dúvidas de que o fundador, a que a autora se refere, é São João da Mata. Segundo sua
hagiografia, Nossa Senhora dos Remédios o acompanhou em vários momentos de sua vida.
Além de ter anunciado sua missão, a santa o socorreu em muitas situações. O tulo dos
Remédios não foi escolhido por acaso, certamente estava relacionado à sua tarefa de auxílio
aos enfermos e necessitados, também desenvolvida na Ordem. Afinal, tratava-se de uma
ordem hospitalar.
Entre os seus conventos, muitos tiveram o nome de Nossa Senhora. Em Portugal,
podemos citar alguns deles, como o Mosteiro das Religiosas Trinas de Nossa Senhora da
Soledade do Mocambo, o Convento de Nossa Senhora do Livramento de Alcântara e o
Mosteiro das Religiosas Trinas de Nossa Senhora dos Remédios de Campolide. Este último
foi construído por Manoel Gomes de Elva, ilustre cavaleiro da Corte de Lisboa, que cedeu
terras naquele sítio para se erguer o convento. Teve autorização concedida para sua edificação
e iniciou as atividades em 1634. O “Santíssimo Padre Urbano VIII” expediu a Bula de
autorização e mandou que tivesse o dito Convento o título de Nossa Senhora dos
Remédios.
375
Para se dirigiam, comumente, muitas pessoas doentes, para tratarem da saúde
“com a pureza dos ares, recreio do campo, vista do mar e divertimento das águas livres,
recuperassem a desejada e apetecida saúde”.
376
Antes do século XVII, o culto a Nossa Senhora dos Remédios era bem popular em
Portugal, principalmente em Santarém e Lamego, como mencionamos. Devemos lembrar
que Santarém foi a primeira cidade portuguesa onde se instalou o convento da Ordem
Trinitária. Em Lamego, o culto tinha tanta popularidade que D. Manoel de Noronha mandou
edificar uma capela em honra da santa por volta do ano de 1565.
377
A invocação foi muito
373
Idem, ibidem, p. 156.
374
MEGALE, Nilza. Op. cit., p. 422.
375
MLM – SÃO JOSÉ, Frei Jerônimo de. História Cronológica da Santíssima Trindade. Vol. 2. Lisboa: Oficina
Simão Thadeo Ferreira, 1794, p. 345 – Estante 67, prateleira 1, registro 7085.
376
Idem, ibidem, p. 344.
377
Atualmente, encontra-se no local o famoso Santuário de Nossa Senhora dos Remédios.
128
divulgada após o período tridentino,
378
mediante diversas interpretações. São João Damasceno
referiu-se à santa da seguinte forma
“é a saúde perfeita das almas, porque esta Senhora não se
compadece dos nossos males e misérias temporais, mas muito mais das enfermidades da alma,
procurando-nos sempre saúde delas. Tudo isto experimentam os devotos da milagrosa Senhora”.
379
Disse, ainda, que o significado da palavra Remédios está nas cinco letras da palavra
MARIA: M Maria, A Advocata, R Remedia, I Imperat, A Aegris, que significa:
nossa advogada alcança o remédio para os enfermos.
380
O Frei Agostinho de Santa Maria
referia-se a Nossa Senhora dos Remédios, dizendo que a santa “dá remédio a todos os
trabalhos e sofrimentos dos filhos de Adão”, e “não epidemia, nem mal tão contagioso e
maligno que a Senhora não desterre”.
381
Nesses termos, chega ao Brasil o culto à Virgem dos Remédios. Trazido pelos frades
da Santíssima Trindade, foi bastante divulgado a ponto de erguerem capelas em honra da
santa em várias regiões do Nordeste e de Minas Gerais. No entanto, Nilza Botelho Megale
nos informa que os Santuários mais famosos no Brasil dedicados a essa invocação foram os
de São Paulo, Fernando de Noronha e Parati. As histórias sobre o surgimento desses templos
estão ligadas à iniciativa de alguns devotos, que quiseram demonstrar gratidão por terem
recebido da santa determinada graça. Nota-se que a graça ou a busca por ela estava vinculada
à liberdade, isto é, à ideia de redenção, seja do corpo ou da alma. É o que podemos observar
no surgimento das igrejas dos Remédios de São Paulo e Fernando de Noronha. Segundo a
autora, a igreja de São Paulo surgiu em meados do século XVIII, a partir de um escândalo que
ocorreu nesse período. O então rei de Portugal, D. João V, recebeu, na época, a notícia de que
iria ser presenteado com uma amostra de ouro muito especial, enviada pelo governo da
Província de São Paulo. O metal tinha sido retirado das minas de Cuiabá, que se achavam
prósperas e inesgotáveis. As folhetas, de peso e tamanhos surpreendentes, foram escolhidas
por Rodrigo César de Menezes, representante do governo, que enviou o presente
378
Período em que foi realizado o Concílio de Trento, de 1545 a 1563, convocado pelo Papa Paulo III com
intuito de assegurar a unidade da fé, disciplinar e especificar mais claramente as doutrinas católicas. Defendeu
com maior vigor o culto aos santos do ataque dos reformadores protestantes. Entre as ações práticas desse
período, estava o controle papal sobre o processo de canonização dos santos e o controle disciplinar da relação
dos fiéis com os santos, com intuito de abolir práticas abusivas, como, por exemplo, o tratamento que alguns
fiéis tinham para com os santos que, segundo a Igreja, poderiam misturar indistintamente as instâncias do
sagrado e do profano. Segundo Anderson de Oliveira, as medidas adotadas no Concílio sobre a questão dos
santos não apenas refletiam a defesa do ataque protestante, como também reconhecia a sua importância no
pastoreio das almas e no controle da Igreja sobre seus fiéis. OLIVEIRA, Anderson. Op. cit. (2008), p. 97-98.
379
SANTA MARIA, Frei Agostinho de. Santuário Mariano. Tomo III, Lisboa: Oficina de Antônio Peroso,
Gabrão, 1707-1723, p. 227. Apud PINTO, Lucinda de Jesus Barros. O Santuário de Nossa Senhora dos
Remédios: contributo para o estudo da sua construção 1750-1905. Dissertação de Mestrado. Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. Porto, 1997, cap. 2.
380
Idem, ibidem.
381
SANTA MARIA, Frei Agostinho de. Op. cit., tomo II, p. 225 e tomo III, p. 406.
129
primeiramente à Casa da Moeda de São Paulo, para que seguisse junto com as várias arrobas
de ouro, devidamente barradas e carimbadas com os cunhos reais. Porém, ao chegar em
Lisboa, às mãos do rei, os saquinhos de ouro não continham o nobre metal, mas sim grãos de
chumbo. O rei, pálido e fortemente decepcionado, exigiu providências imediatas. As devassas
apontaram como autor do roubo Sebastião do Rego, Provedor dos Quintos Reais, que morava
na Vila de Piratininga. Apesar de se dizer inocente, Sebastião foi preso a ferros e levado para
o cárcere do Limoeiro, em Lisboa. O Provedor ficou desesperado com sua condenação e fez
voto a Nossa Senhora dos Remédios. Prometeu-lhe edificar uma igreja, à sua própria custa, no
dia em que conseguisse liberdade da sórdida prisão. Depois de alguns anos, Sebastião do
Rego apareceu em São Paulo, livre do cárcere, e logo tratou de cumprir a promessa. Edificou
a igreja em honra à santa dos Remédios, que serviu de refúgio para muitos escravos
perseguidos e, nos últimos anos do século XIX, de reduto preferido dos abolicionistas.
382
Em Fernando de Noronha, a igreja de Nossa Senhora dos Remédios foi construída em
1737, logo depois da expulsão dos franceses, que ali permaneceram durante um ano. Era o
primeiro e o único templo da região, localizado na Vila dos Remédios, sob proteção do forte
com o mesmo nome.
383
A ilha tinha a fama de lugar onde se abrigavam os sentenciados, pois
para eram enviados os criminosos condenados e os presos políticos. Não é de se estranhar
que o culto à Virgem dos Remédios tenha sido escolhido para intermediar junto a Deus as
necessidades daqueles indivíduos, pois Ela era capaz de lhes dar os méritos infinitos de
redenção.
Contudo, no Brasil, a primeira capela dedicada a Nossa Senhora dos Remédios, de que
se tem notícia foi construída em Parati, no ano de 1646. O terreno foi doado por Maria
Jácome de Melo, sob a condição de que Nossa Senhora dos Remédios fosse patrona da
capela, pois a Ela era muito devota.
384
Parati foi um dos portos mais importantes do litoral sul,
pois, além de ser o ponto inicial do caminho velho para as Minas Gerais, provia de
mantimentos e artigos originários do reino todas as vilas do Vale do Paraíba.
385
É bem
provável que, por esse caminho, a devoção tenha chegado a Minas Gerais, portanto, a São
João del-Rei. Como vimos, a devoção carregava duas insígnias: a da liberdade e a da saúde.
382
MEGALE, Nilza. Op. cit., pp. 422-424.
383
Idem, Iibidem, p. 424.
384
Idem, ibidem, p. 422.
385
Idem, ibidem.
130
3.2- Símbolo de liberdade e de saúde – atributos e milagres
Como discutimos no capítulo anterior, houve, por parte das irmandades, a partir de
meados do século XVIII, uma maior promoção de devoções anexas, existentes no interior
de suas igrejas, e de outras novas. Os motivos para tal incremento iam desde o aumento de
fiéis e, consequentemente, dos rendimentos da instituição, até a resolução de conflitos entre
grupos distintos dentro das confrarias. Não sabemos o que, exatamente, impulsionou a
estruturação da devoção a Nossa Senhora dos Remédios na Confraria do Rosário, porém
nossa hipótese é que a simbologia de liberdade, atribuída a outros santos, pode ter chamado
mais atenção dos irmãos naquele momento. Havia dois santos negros na instituição, São
Benedito e Santo Antônio de Catalagerona, que eram bastante assimilados pela população
escrava por se identificarem com a história de vida daqueles santos, que tinham a mesma cor
da pele e foram igualmente escravos. Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos homens
pretos, carregava em seu culto um intuito consolador. Nesse sentido, a feição de utilidade de
outros santos ganhou espaço no contexto, à medida que uma nova população começou a
despontar na vila.
Os “crioulos”, os “pardos” e os “libertos” procuraram diferenciar-se naquela
sociedade. Aos poucos, as devoções negras foram perdendo a preferência desses irmãos, que
se buscaram agrupar em torno de outras devoções, que tivessem significados condizentes com
as suas condições e as suas pretensões. Era o caso, por exemplo, dos crioulos que escolheram
Nossa Senhora das Mercês como padroeira de sua irmandade.
Tal invocação é padroeira da Ordem Real e Militar de Nossa Senhora das Mercês para
a Redenção dos Cativos. Segundo a narrativa que descreve a história da santa, nos princípios
do século XIII, muitos cristãos estavam prisioneiros dos mouros na Espanha. Desesperados
para saírem das escuras masmorras, recorreram à Santíssima Mãe para que lhes valesse.
Como atendimento aos clamores dos cativos, a Mãe de Deus apareceu a Pedro Nolasco,
homem bastante rico, que muito se dedicava a empregar seus bens no resgate de cativos. A
Virgem declarou ao homem que era vontade do seu amado Filho que ele divulgasse pelo
mundo o seu trabalho, instituindo uma nova ordem religiosa que tivesse, além dos fins gerais
a todas as ordens, o intuito de remir cativos. A mesma visão tiveram mais dois outros homens,
Thiago I, Rei de Aragão na época, e São Raimundo Penaforte, sacerdote de notáveis virtudes
na região. Os três homens se uniram e fundaram, em 1218, no reino de Aragão, a primeira
ordem que, além dos votos comuns a todas essas instituições, tinha um a mais, de especial
feição de caridade: se não tivessem o dinheiro necessário para libertar os cativos, que
131
necessitassem do imediato resgate, deveriam os filhos da dita ordem se dar como
reféns aos
mouros, pela liberdade dos seus irmãos cristãos.
386
Trata-se, aqui também, de um texto
hagiográfico. Depois de fazermos as devidas e cuidadosas considerações sobre a narrativa,
apreendemos que o aspecto simbólico de liberdade também estava vinculado à devoção das
Mercês.
Em São João del-Rei, como salientamos, a Irmandade das Mercês pode ter sido
inaugurada um pouco antes de 1750, pois, nessa data, a igreja se encontrava construída.
Quanto à devoção a Nossa Senhora dos Remédios, não sabemos a exata época de sua
estruturação na Irmandade do Rosário. Os indícios que encontramos somente nos dão certeza
de que foi entre 1751 e 1762. Se o culto a Nossa Senhora das Mercês foi estruturado
primeiro, a hipótese é que os pretos podem ter tomado a iniciativa de estruturarem um culto
com os mesmos significados simbólicos do das Mercês, para atenderem a um novo
contingente negro que não buscava diferenciação naquela sociedade, sobretudo na
instituição, como uma devoção que atendesse mais aos seus anseios de liberdade. Devemos
lembrar de todo o simbolismo que a devoção a Nossa Senhora dos Remédios representava
naquele contexto, pois era padroeira da Ordem que salvava cativos, ou seja, significava a
esperança dos escravos para as suas necessidades de liberdade e, também, a proteção para
aqueles que conseguissem a manumissão. O fato é que, ao analisarmos os estudos de Nilza
Botelho Megale,
387
a respeito da difusão da devoção a Nossa Senhora dos Remédios no Brasil
Colonial, que vinculava a santa à representação de liberdade, faz-nos deduzir que esse
simbolismo foi bastante atrativo para a estruturação do culto na igreja do Rosário em São
João del-Rei. Em comparação com a da santa padroeira escolhida para a irmandade dos
crioulos na mesma localidade e, mais ou menos na mesma época, essa dedução se torna mais
consistente, isto é, acreditamos que os africanos libertos e os crioulos da irmandade do
Rosário sentiram necessidade de se diferenciarem diante dos cativos, ao mesmo tempo que
esses últimos buscaram a devoção com esperança do seu intermédio em favor da sua
liberdade. No entanto, essa questão nos parece muito mais complexa, se questionarmos qual
seria o sentido dessa liberdade. Teria sido o mesmo nos séculos XVIII e XIX? E as
diferenciações pretendidas seriam somente em relação aos cativos?
O fato de ser crioulo nas Mercês poderia não ser o mesmo que ser crioulo no Rosário.
Como constatamos na documentação das irmandades, alguns crioulos, no Rosário, eram filhos
de africanos, também associados à instituição, e outros nascidos na terra, associados às
386
MLM – ROSÁRIO, Diogo do. Op. cit., v.9, pp. 248-249, Estante 21, prateleira 2, registro 2402.
387
MEGALE, Nilza. Op. cit.
132
Mercês, eram, ao mesmo tempo, membros no Rosário (ver capítulos anteriores). Teria um
peso maior estar na irmandade dos pretos, instituição de maior prestígio entre as demais
negras daquela sociedade, do que nas Mercês? Crioulos no Rosário seriam filhos de africanos
com maior status na instituição? Estariam na instituição dos pretos, porque faziam parte de
alguma rede clientelista? Não temos, ainda, respostas para essas indagações e, aqui, não
dispomos de tempo/fontes para aprofundá-las, todavia essas questões podem exercer
importância e serão consideradas em futuras interpretações.
Quanto à questão da estruturação do culto, se foi uma resolução de conflitos, vale
lembrar, aqui, que os mesmos, dentro das confrarias negras, não se davam apenas entre
africanos e crioulos, mas, igualmente, entre os africanos de diversas procedências, e que isso
era comum também em Minas Gerais (ver capítulo
2). Na Irmandade do Rosário, em o
João del-Rei, a devoção dos Remédios pode ter sido estruturada para delimitar fronteiras entre
grupos no interior da confraria. Assim aconteceu no Rio de Janeiro, nos anos finais do século
XVIII, quando Nossa Senhora dos Remédios foi escolhida como padroeira da agremiação dos
maki, instalada na Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Nesse caso, a devoção
serviu como símbolo de fronteira entre grupos.
Segundo Mariza Soares, a congregação dos “pretos minas do reino de maki” se
envolveu numa disputa de sucessão que levou à criação de duas outras agremiações instaladas
na mesma igreja: a das Almas e a confraria de Nossa Senhora dos Remédios.
388
Em 1783,
morreu o rei da congregação, o Capitão Inácio Gonçalves do Monte, um “verdadeiro
makino”. Antes de sua morte, chamou Francisco Alves de Souza, o “imediato” do rei,
também africano do reino de maki, para lhe entregar a regência da congregação. A morte do
rei desencadeou grande conflito na associação, pois a viúva do capitão, que era a rainha, não
aceitou Francisco Alves de Souza como sucessor do marido. Recusou-se a entregar o cofre e
os pertences da congregação ao novo sucessor.
389
Teve alguns aliados (“parciais”), inclusive
de outros grupos étnicos presentes na confraria. Depois de muitas discussões e com o apoio
do secretário da congregação, o Alferes Gonçalo Cordeiro, Francisco Souza foi eleito regente,
mas a pendenga com a viúva continuou por, pelo menos, quatro anos. Nesse tempo, Francisco
Alves de Souza criou as duas agremiações. Para a autora, a associação sob a proteção das
Almas foi criada pelo grupo maki para resolver os problemas da sucessão. Mas, como as
388
Os diversos grupos étnicos se organizavam em agremiações dentro das irmandades, através dos reinados das
folias. Nas ocasiões das procissões e dos funerais, a irmandade se apresenta em “alas” que, provavelmente, estão
distribuídas entre os reinados. Ver mais detalhes em SOARES, Mariza. Op. cit. (2000), pp. 200-202.
389
Idem, ibidem, pp. 204-205. O Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia previa que cada
rei deveria dispor de um cofre, onde seria guardada sua esmola e outras que arrecadasse para custear as despesas
do seu reinado.
133
pendências com a viúva continuaram, uma nova agremiação teve que ser criada para resolver
de vez a questão. Depois da posse de Francisco Souza, a viúva conseguiu parecer favorável
junto ao Tribunal da Relação, que lhe dava o direito de posse do cofre da congregação.
Ganhou ainda o apoio do vice-rei, conseguindo que o regente Souza fosse chamado a se
apresentar perante as autoridades para prestar esclarecimentos sobre os conflitos na
instituição. Acusou o adversário de ser “cabeça de motim”. Diante do caos criado, o secretário
Cordeiro interferiu para defender o novo regente. Argumentou que a sentença do Tribunal da
Relação não tinha validade, pois a congregação da devoção às almas nunca teve Estatuto, isto
é, não tinha aprovação eclesiástica. Portanto, não poderia ser penalizada. A partir disso,
Mariza Soares sugere a hipótese de que a Confraria de Nossa Senhora dos Remédios foi
criada como um “novo esforço empreendido por um importante segmento da congregação
para retomar a autonomia da instituição minada pelas ações da viúva e seus parciais”.
390
A
autora, através da análise dos Estatutos, comenta sobre o simbolismo da invocação que,
segundo ela, condiz com o objetivo do regente Souza para a nova agremiação sepultar os
mortos e cuidar dos pobres:
O objetivo maior dessa confraria é, como já foi adiantado, a caridade, e não a
devoção. A própria escolha de Nossa Senhora dos Remédios como orago
mostra essa intenção. Como é resumido na petição encaminhada à rainha
Dona Maria I, a confraria visa atender aos pretos-minas da cidade ‘com
botica, enfermeiro, comida e até mortalha’, além de, como todas as demais
agremiações, sufragar a alma dos irmãos falecidos. [...] Enquanto na devoção
das almas, a caridade está voltada para o interior do grupo, nesta nova
agremiação ela é estendida a todos os pretos-minas. Enquanto a primeira
cuida apenas de sufragar as almas, esta cuida dos corpos doentes, dando
inclusive abrigo aos necessitados na casa dos irmãos.
391
O motivo de relatarmos o conflito na Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia do
Rio de Janeiro é para melhor compreendermos a questão da devoção como símbolo de
fronteira entre os grupos e também destacar o aspecto simbólico da saúde e do cuidado com
os necessitados, presente na devoção de Nossa Senhora dos Remédios.
Embora a devoção de Nossa Senhora dos Remédios pudesse ter sido estruturada para
demarcar fronteiras grupais no interior da confraria, acreditamos que o seu aspecto simbólico
da saúde pode ter tido peso significativo na hora da escolha. Tal simbologia pode justificar a
assimilação dos irmãos para estruturar o culto em São João del-Rei e mais ainda para explicar
sua popularidade nos anos finais do século XVIII e, especialmente, na primeira metade do
390
Idem, ibidem, p. 227.
391
Idem, ibidem, p. 225.
134
XIX. Não queremos dizer com isso que a assimilação com a imagem de Nossa Senhora dos
Remédios pelos confrades negros de São João del-Rei foi a partir da mesma cosmologia dos
confrades do Rio de Janeiro. queremos destacar que o símbolo da saúde foi atrativo para
os dois grupos e que cada um o assimilou à luz de sua própria cosmologia. Todavia, a boa
saúde também estava entre as preocupações dos brancos presentes na irmandade e fora dela.
São João del-Rei, como teremos oportunidade de ver mais adiante, vivenciava, especialmente,
na primeira metade do século XIX, vários problemas nesse âmbito, em que havia inúmeros
doentes na vila, casos de epidemia e precariedade nos serviços de atendimento médico. Diante
disso, a devoção dos Remédios ganhou evidência mais ampla, atraindo para o interior da
confraria novos membros, entre estes muitos brancos. Tinham esperança de que a santa
pudesse interceder por seus devotos em suas necessidades de saúde. Vejamos como essa
simbologia pode ter sido assimilada por cada grupo.
No que diz respeito aos grupos africanos e seus descendentes, uma das explicações
para a identificação com a Virgem pode estar relacionada às recriações culturais que esses
negros fizeram, com base nas recordações de alguns valores de “Áfricas” distantes.
A saúde tem uma acepção importante na cosmologia africana, principalmente entre os
povos da África Central. A partir de meados do século XVIII houve um crescimento de
africanos oriundos do centro-oeste de seu país na irmandade, especialmente de Angola,
Benguela e Congo. Nessa região, as tradições religiosas eram caracteristicamente curativas.
Os estudos de Craemer, Vansina e Fox descrevem sobre a cosmologia dos povos da
África Central. Apesar das diferenças culturais entre as várias tribos, havia pontos comuns
entre essas culturas que poderiam ser compreensíveis a todos e compartilhados. Os valores
positivos como a saúde, a fecundidade, a harmonia, o poder, a fortuna eram considerados por
eles experiências boas, que faziam parte da ordem natural das vivências e das ações humanas.
Porém, no universo, existiam forças maléficas que interferiam nessa ordem natural e
causavam danos negativos aos seres, como a doença, a esterilidade, a pobreza, a escravidão e
a morte. Essa dinâmica de experiências positivas e negativas foi chamada, pelos autores, de
complexo ventura/desventura ou fortuna/infortúnio. Para o prevalecimento da ventura ou da
fortuna, os africanos acreditavam num ser supremo, num criador do universo que reinava
distante, mas beneficamente sobre a natureza e os homens. Para o intercâmbio entre os
homens e o ser supremo, na esfera entre os vivos e os mortos, estavam as sombras dos
135
ancestrais e numerosos tipos de espíritos (divindades), cujas intenções e atividades eram boas
e protetoras.
392
A cosmologia africana tem pontos comuns com o catolicismo. Embora os sistemas
religiosos fossem diferentes, questões de aproximação, como a crença de seres que
promovem a interação do mundo terreno com o metafísico; para os africanos, o intercâmbio é
feito pelas divindades locais e espíritos ancestrais e, para os católicos, os santos ficam com
essa função.
393
Talvez seja hipótese bastante plausível para explicar a facilidade com que os
indivíduos procedentes da África Central assimilaram a simbologia dos cultos católicos.
Contudo, isso não significa uma transposição direta de “reminiscências” africanas para o
mundo colonial, pois as assimilações estavam diretamente relacionadas com a nova realidade,
isto é, aconteciam de forma reinterpretada. Os valores de suas culturas eram trazidos, mas se
transformavam, ao fazerem parte de suas novas vivências no contexto escravista.
394
Também
não significa dizer que esses valores culturais chegavam aqui de forma pura. No continente
africano, vários daqueles indivíduos tiveram contato com o catolicismo. Mesmo que não
tivessem sido convertidos, muitos possuíam um prévio conhecimento do cristianismo antes do
embarque.
395
Mary Karasch afirma que era “tradicional” entre os centro-africanos formar novos
grupos religiosos e aceitar novos rituais, símbolos, crenças e mitos. Não tinham um
conservadorismo religioso como os iorubá da África Ocidental. Para os centro-africanos, a
imagem de um santo católico era um mbolo novo e venerá-lo ou adotá-lo como proteção
não significava abandonar sua religião de origem.
396
Os novos africanos que aqui chegavam
não acreditavam que o bem predominasse numa região em que eram feitos cativos. Percebiam
o espaço como lugar perigoso e maligno, pois eram vítimas de doenças, pobreza, insegurança,
baixa posição social e constantemente viam seus filhos e amigos morrerem. Diante desse
quadro negativo, esforçavam-se para maximizar os valores positivos, isto é, a prevalência do
bem em suas vidas através de uma série de costumes
397
que passaram a ser ligados às imagens
dos santos católicos, considerados por eles como “amuletos coletivos”. Na tradição africana,
tal amuleto é feito sob inspiração por um indivíduo para beneficiar uma comunidade e,
392
CRAEMER, Willy de, VANSINA, Jan e FOX, Renée C. Religious movements in Central Africa: a
theoretical study. Comparative Studies in Society and History, número 18, (out. 1976): pp. 458-475. Apud:
KARASCH, Mary. Op. cit., p. 355.
393
THORNTON, John. Op. cit., cap. 9.
394
REIS, João José. Op. cit. (2003), p. 189.
395
THORNTON, John. Op. cit., p. 335.
396
KARASCH, Mary. Op. cit., p. 355.
397
Nesses costumes estavam incluídos as cerimônias de oração, agrados e sacrifícios, música, dança e procissões
em honra às divindades.
136
quando é aceito por ela, é colocado num santuário, onde os indivíduos desse grupo devem
realizar cerimônias de orações, oferendas e sacrifícios ligados diretamente às divindades. O
talismã tinha a função de proteger a comunidade contra as enfermidades e a morte.
398
Desse modo, é possível afirmar que os africanos presentes na Irmandade do Rosário de
São João del-Rei assimilavam as imagens católicas e seus respectivos símbolos à luz de sua
própria cosmologia, não necessariamente católica. Ainda nos estudos sobre os oriundos da
África Central, Karasch detectou que a Virgem Maria estava entre as mais veneradas da
cidade do Rio de Janeiro. No início do século XIX, havia diversos santuários erguidos em
honra da Mãe de Deus sob os mais diversos títulos. Em torno deles se reunia um elevado
número de negros, cada um à procura de proteção para as suas aflições. Segundo a autora, a
Virgem era conhecida por, pelo menos, quarenta nomes e cada um deles vinculava aspectos
simbólicos diferentes como, por exemplo, Nossa Senhora do Parto, que representava a
fecundidade e a proteção às parturientes e seus recém-nascidos; Nossa Senhora da Saúde,
simbolizando a cura de doenças ou a prevenção delas; Nossa Senhora do Bonsucesso,
traduzindo a fortuna, a ascensão social - entre outras. Vamos notar que são representações
compatíveis com os valores da África Central, apontadas por Craemer, Vansina e Fox.
Diante da missão das ordens, que, entre outras coisas, deveriam difundir os cultos
católicos, a estruturação destes nas igrejas contava com um aspecto fundamental para o seu
desenvolvimento, a veneração das imagens, que materializa o culto e expõe ao fiel parte da
história de sua difusão. Anderson de Oliveira explica que toda imagem ao ser colocada no
altar tem uma razão, um motivo justificado. Na verdade, tem todo um sentido pedagógico,
pois é instrumento visual na propagação de informações sobre o culto, seus objetivos e
significados.
399
Foi na Idade Média que as imagens ganharam força e difusão no ocidente cristão. A
conversão promovida pela Igreja tomou grandes proporções a partir do século XIII e, assim,
tornou-se mais difícil o deslocamento de tantas pessoas até as sepulturas dos santos ou aos
lugares onde estavam suas relíquias. A solução que a Igreja encontrou para esse problema foi
criar a noção de que o milagre poderia ser feito à distância e que a imagem, devidamente
aprovada e benzida pelos bispos, serviria apenas para o auxílio da memória, tendo os fiéis
398
Idem, ibidem, pp. 357-362.
399
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008), p. 231.
137
apenas que venerá-la.
400
Diante de tal solução, o poder dos santos ganhou um grau de
universalidade, podendo atingir qualquer distância.
No Brasil setecentista e oitocentista, as imagens foram importantes recursos na difusão
do culto, na medida em que os missionários estavam diante de uma população na maioria
iletrada. Tais esculturas, de estilo barroco, serviram como uma espécie de texto hagiográfico,
contando ao fiel a história da origem do santo, seus significados e milagres. Foram
importantes instrumentos não só para difundir os preceitos do Evangelho de Cristo, mas
também serviram como aliados no controle da população, na medida em que o fiel era
conduzido a seguir padrões de conduta moral e espiritual cristã.
401
O reconhecimento da importância das imagens na difusão dos cultos dos santos não
quer dizer que vamos realizar, neste trabalho, um estudo iconográfico aprofundado sobre a
imagem do culto de Nossa Senhora dos Remédios, instalada na Igreja do Rosário em São João
del-Rei, no período do século XIX. Em primeiro lugar, porque a imagem, se comparada com
outras de mesma invocação, abrigadas em capelas espalhadas pelo Brasil e outros países,
como Lamego, apresenta diferenças de suporte (ex: madeira) e atributos. Isso nos coloca de
imediato um problema metodológico, uma vez que os suportes são escolhidos seguindo uma
funcionalidade da imagem, do espaço onde ela foi exposta e as técnicas utilizadas para
produzir cada um. Em segundo lugar, porque, em seus aspectos tridimensionais, cada imagem
foi esculpida de acordo com as especificidades do lugar onde iria ser exposta, ou seja, de
acordo com o espaço disponível nos altares dos templos e com os atributos que se queria
realçar na imagem para o diálogo com os fiéis.
402
Essas questões mereceriam um estudo
pormenorizado, tendo a imagem como objeto de análise, o que não é o nosso propósito aqui.
Dessa forma, tentaremos perceber na imagem da Virgem dos Remédios, abrigada na igreja
pela Irmandade do Rosário em São João del-Rei, apenas os atributos utilizados para
estabelecer diálogo com os fiéis e enfatizar sua representação.
Antes de analisarmos essa imagem, vamos entender como é a iconografia de Nossa
Senhora: varia de acordo com as fases de sua vida. A Imaculada Conceição ou Nossa Senhora
da Conceição se refere à Virgem ainda jovem, com as mãos junto ao peito, os anjos, a
serpente e a meia lua a seus pés. Conforme a época e o lugar, passa a ser chamada, por
exemplo, de Aparecida ou de Fátima ou da Lapa ou de Lourdes, etc. Nossa Senhora da
Expectação ou Nossa Senhora do Ó ou Nossa Senhora da Espera refere-se à Virgem
400
Idem, ibidem, p. 232. Embora a hierarquia eclesiástica fizesse essa advertência com relação à imagem, muitos
devotos passaram a crer que a própria divindade estava presente na representação.
401
Idem, ibidem, pp. 230-234.
402
Idem, ibidem, p. 231. Anderson de Oliveira nos chama a atenção para esses detalhes.
138
aguardando a vinda do Salvador. Nossa Senhora segurando o Menino Jesus abrange a maioria
das invocações: ela pode estar sentada (as mais antigas) ou de (as mais novas) e, em seu
braço esquerdo, segura o Menino Jesus. Conforme os atributos que a Virgem e o Menino
trazem nas mãos varia o nome da invocação: Nossa Senhora do Rosário, das Mercês, do
Carmo, da Ajuda, do Amparo, da Cabeça, dos Navegantes, dos Remédios, etc. As imagens
ligadas à Paixão de Cristo são as de Nossa Senhora das Dores, da Saudade, das Angústias, das
Lágrimas e da Piedade. Geralmente, as Virgens Dolorosas são representadas com as mãos
sobre o peito e o coração dilacerado por setas. Na piedade, a Virgem sustenta o corpo de
Cristo sobre o colo. Quanto à iconografia referente à glorificação de Maria, após sua morte e
coroação no céu, temos Nossa Senhora da Glória, da Boa Morte, da Assunção, dos Anjos e
das Graças, intermediária entre Deus e os homens.
403
de se notar que os atributos contam
um pouco da história da devoção e esses são apresentados na imagem de acordo com o
diálogo que se pretende estabelecer com os fiéis.
Segundo Nilza Botelho Megale, a iconografia tradicional de Nossa Senhora dos
Remédios
[...] se apresenta de pé, com o Menino Jesus nu, sentado em seu braço
esquerdo, e a mão direita estendida como para socorrer os seus devotos. Está
vestida de uma túnica, um manto que lhe envolve o corpo e um véu curto
cobrindo parcialmente os seus cabelos. Na igreja da Conceição da Praia
(Salvador) ela usa sobre a túnica um longo escapulário que vai até os s
com uma cruz de Cristo vermelha na altura da cintura. Sob seus pés
aparecem cabeças de anjos (como em quase todas as imagens desta
invocação) e tem na mão direita uma fita azul. Nem ela nem Jesus são
coroados e, às vezes, tanto ela quanto o Menino seguram bentinhos nas
mãos.
404
O texto da autora nos demonstra que existem diferenças nas representações. Beatriz
Ramos de Vasconcelos encontrou, em Minas Gerais, apenas duas imagens de Nossa Senhora
dos Remédios esculpidas em madeira, datável dos séculos XVIII e XIX.
405
Embora a autora
não tenha citado as localidades, sabemos que uma delas se encontra em território sanjoanense,
onde, na igreja do Rosário, se apresenta de pé, em posição frontal, cabeça e olhar direcionados
para a frente. Tem o braço direito flexionado em ângulo reto e a mão segurando uma âmbula
de prata (vaso de santos óleos, uma espécie de ânfora), com a inscrição “recipe” que nos a
ideia de recipiente para manipulação ou armazenamento dos remédios. O braço esquerdo
403
Ver mais detalhes sobre a iconografia da Santa Virgem em: MEGALE, Nilza. Op. cit., pp. 19 e 20; e IEPHA,
Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais. Iconografia da Virgem Maria. Belo
Horizonte: IEPHA, 1982.
404
MEGALE, Nilza. Op. cit., p. 425.
405
COELHO, Beatriz R. de Vasconcelos (org.). Devoção e Arte: imaginária religiosa em Minas Gerais. São
Paulo: EDUSP, 2005, p. 90.
139
também flexionado em ângulo reto e mão aberta para cima, segurando o Menino Jesus que
está vestido com túnica branca e tem na cabeça um resplendor. A Virgem usa ainda uma
túnica amarela/adamascada sob um manto azul e véu branco, que cobre a cabeça e vai até os
pés. Também usa coroa fechada na cabeça
406
(ver imagens 1, A e B, em anexo). Mais ou
menos a mesma representação tem a imagem abrigada na igreja dos Remédios de Parati, que
sai nas procissões atualmente. A imagem é do século XIX. As principais diferenças são que,
na mão direita, a Virgem segura um cálice ao invés de uma âmbula, e, debaixo dos seus pés,
cabeças de anjos. O Menino Jesus está em posição frontal e usa uma coroa (ver imagem 3,
em anexo). Entretanto, esta não foi a única representação abrigada na igreja. uma primeira
que data do século XVII (ver imagem 2, em anexo). Nota-se que a Virgem usa uma túnica
branca sob o manto azul e vermelho. As cores das vestimentas se referem às da Ordem da
Santíssima Trindade. Nossa Senhora dos Remédios se apresenta de pé, com o Menino Jesus
nu, sentado em seu braço esquerdo. Não usa nenhum véu cobrindo os cabelos e nem coroa.
Sob seus pés aparecem cabeças de anjos.
A imagem da Virgem dos Remédios em Lamego, Portugal, se apresenta de pé, vestida
com túnica avermelhada sob um manto azul que envolve o corpo. Na mão esquerda, segura o
Menino Jesus e a mão direita está colocada sobre o peito. Ela não segura nenhum recipiente e
ambos usam coroa (ver imagem 4, em anexo).
Como afirmamos, não vamos fazer um estudo aprofundado das imagens, pois elas
não são nosso objeto de estudo aqui. Apenas procuramos chamar a atenção para o diálogo que
se pretendeu estabelecer com os fiéis, ao realçar, na imagem, os atributos que contam a
história da devoção e seus respectivos significados. Interessante notar que as imagens dos
Remédios de São João del-Rei e Parati (do século XIX) são semelhantes, ao apresentarem o
atributo da âmbula e do cálice, recipientes utilizados para manipulação e armazenamento do
remédio que cura as doenças. Tais atributos, segundo a descrição iconográfica de Nilza
Megale para a imagem da cidade de Salvador e a comparação com a imagem de Lamego,
Portugal, e a primeira imagem de Paraty, não são realçados. Isso significa que, para São João
del-Rei e Paraty, os atributos foram destacados para facilitar a aproximação dos fiéis com a
santa no quesito saúde, valor bastante importante em suas tradições. Vale lembrar que nessas
duas regiões (Paraty e São João del-Rei) havia um grande número de escravos
406
Descrição da imagem: AINSR-SJDR Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados de Minas Gerais,
sob coordenação do IPHAN/13º regional (antigo IBPC) em 1994 – registro: MG/ 93.095.023.
140
majoritariamente procedentes de nações da África Central.
407
Diferente de Salvador, onde a
maioria era oriunda da África Ocidental e de Lamego/Portugal, onde o alvo da devoção
parece terem sido os brancos. O que queremos dizer é que, para os negros de São João del-Rei
e Paraty, o atributo dos remédios tinha bastante significação, por isso o realce nas invocações.
É bom ressaltar que, para o fiel estabelecer uma relação ou aliança com o santo, era preciso
que o devoto tivesse conhecimento do seu poder através de seus atributos, que podiam dizer
muito de seus milagres.
Tais milagres atribuídos aos santos eram difundidos também através dos sermões
proferidos pelos missionários e essa era uma das formas para atrair mais devotos em torno da
devoção.
408
Para que esses milagres não fossem esquecidos, as novenas e orações, repetidas
frequentemente pelos fiéis, facilitavam a memorização. O texto das orações reforça a
intermediação do santo junto a Deus e o poder que emanava deste.
409
Encontramos uma oração a Nossa Senhora dos Remédios que ressalta o poder da
Virgem no auxílio aos enfermos e seus inúmeros milagres. A oração tem aprovação
eclesiástica e é uma lembrança pelo centenário (1946) da Paróquia de Nossa Senhora dos
Remédios, padroeira do município de Tibagi, localizado no norte do Estado do Paraná. Foi
redigida em agradecimento e homenagem a Nossa Senhora dos Remédios por todos os
benefícios que dispensou aos seus fiéis em todos aqueles anos. A implantação de seu culto
naquela localidade parece ter ocorrido por volta de 1836, pois nesta data a primeira capela em
tributo à santa estava construída.
410
Embora seja uma oração escrita no século XX, o que
nos interessa destacar é que a santa dos Remédios parece ter reconhecimento dos devotos
daquela região, como poderosa no auxílio aos doentes e alívio de seus sofrimentos, e
providencialmente capaz de interceder por todos para a proteção nos tempos de epidemias,
desde a estruturação de seu culto, primeira metade do século XIX. Tais poderes estão de
407
Os escravos dessa região desembarcavam no porto do Rio de Janeiro e muitos eram encaminhados também
para Minas Gerais e São Paulo. Ver FLORENTINO, Manolo. Op. cit. (1995). Ver também os números para São
João del-Rei e sul de Minas no capítulo 2 deste trabalho.
408
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008).
409
Idem, ibidem, pp. 206-214.
410
A Capela foi construída com a dedicação de uma devota daquela localidade, Ana Beja, que percorreu a região
com uma pequena imagem de Nossa Senhora dos Remédios, relíquia da família desde sua chegada em Tibagi,
para angariar fundos para a construção do prédio. Disponível em
http://www.tibagi.pr.gov.br/site/modules/news/article.php?storyid=1347 acessado em 31/05/2010. Tibagi
pertencia a uma região (nessa época, fazia parte da Província de São Paulo) que, desde o início do século XIX,
era constantemente assolada por doenças, algumas delas epidêmicas. Ver CARVALHO, Márcia Siqueira de. O
Eldorado Tardio: ouro verde e mortes. Trabalho apresentado no IX Colóquio Internacional de Geocrítica,
realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul entre os dias 28 de maio e 1º de junho de 2007.
141
acordo com o que era ressaltado nos sermões do Frei Agostinho de Santa Maria, ao se referir
à santa no início do século XVIII.
411
Ó Virgem Santíssima, Senhora dos Remédios, venho aqui tributar-vos as
minhas homenagens de amor e reconhecimento pelos benefícios que haveis
dispensado a mim, aos meus parentes e amigos, nas horas tristes da dor e da
aflição. Com razão a Igreja vos invoca como a Saúde dos enfermos e a
Consoladora dos aflitos, pois não quem recorrendo à Vossa proteção,
não tenha recebido às mais evidentes provas do vosso poder e da vossa
bondade. Nesta terra, tantas vezes provada pelo flagelo das epidemias, o
vosso nome foi lembrado providencialmente, erguendo-se ao céu como arco-
íris da bonança e suspendendo o braço da justiça Divina. Desde então, não
têm cessado as manifestações da vossa bondade, e benefícios de toda sorte,
como provam tantos sinais de reconhecimento que são depositados junto do
vosso altar. Ó Senhora dos Remédios, nesta igreja e diante da vossa formosa
imagem, eu me sinto feliz em juntar minha voz humilde à dos vossos fiéis
devotos, para manifestar os meus sentimentos de gratidão, de filial carinho e
confiança na vossa proteção. Aceitai-os Senhora: rogai sempre por mim,
pela minha família e pela minha querida terra. Assisti-nos em nossas
enfermidades temporais, amenizai nossos sofrimentos neste vale de lágrimas
e, quando não seja possível obter a continuação da nossa vida, dai-nos uma
boa morte, para que possamos, todos juntos na mansão celestial, bendizer
vosso nome e gozar de Deus eternamente! Assim seja.
412
Percebe-se, então, que o simbolismo da saúde e da cura, presentes na devoção de
Nossa Senhora dos Remédios, era amplamente difundido, especialmente no sudeste. Vejamos
como essa simbologia pode ter sido atrativa para os africanos presentes na irmandade do
Rosário sanjoanense, especialmente os procedentes da África Centro-Ocidental.
Mary Karasch afirma que a tradição religiosa dominante entre os escravos do Rio de
Janeiro, na primeira metade do século XIX, vinha da vasta região do Centro-Oeste africano,
onde boa parte das religiões era curativa.
413
Se o contingente africano absorvido pela região
do sudeste brasileiro é em grande parte proveniente da África Central, pode-se concluir que a
religiosidade dos escravos era bastante marcada por essas tradições. Nas culturas religiosas da
África Central, especialmente de Angola, o objetivo principal era a prevenção do infortúnio e
a maximização da boa sorte.
414
Um líder carismático inspirava a organização de rituais,
símbolos, crenças e mitos para que o grupo ou os indivíduos fossem protegidos do mal,
prevalecendo o bem na ordem natural de suas vidas.
411
Ver tópico 1 neste capítulo.
412
Disponível em http://www.tibagi.pr.gov.br/site/modules/news/article.php?storyid=1347, acessado em
31/05/2010.
413
KARASCH, Mary. Op. cit., p. 354.
414
Idem, ibidem.
142
Nessa visão, todas as experiências e os objetivos que os seres humanos
consideram desejáveis e bons fazem parte da ordem natural das coisas. Da
maior importância entre esses valores positivos são saúde, fecundidade,
segurança psíquica, harmonia, poder, status e riqueza. Sob circunstâncias
ideais, o bem prevalece, absoluta e exclusivamente. O Ser Supremo, O
Criador, que dota todos de vida, reina distante, mas beneficamente sobre o
universo e o homem. E a esfera entre os vivos e os mortos está cheia de
sombras dos ancestrais e numerosos tipos de espíritos, cujas intenções e
atividades são boas.
415
Para os africanos da África Central, o mal era causado por pensamentos e sentimentos
malignos de outras pessoas que realizavam bruxarias e feitiçaria, podendo, com isso, causar-
lhes danos como a doença, a esterilidade, o fracasso, o empobrecimento, a desavença, a
escravidão e até a morte.
416
Ao viverem escravizados aqui no Brasil, esses africanos tinham
de contrapor-se ao infortúnio no qual viviam, buscando meios e/ou ajuda espiritual para que a
“boa vida” prevalecesse em suas existências. Segundo a tradição desses negros, na “boa vida”
encontravam-se três grupos de valores: o primeiro girava em torno da “constelação da
fecundidade”, onde estavam incluídos a procriação, o sucesso nas caçadas e colheitas, a
riqueza e a prosperidade. O segundo tinha como foco a segurança e a proteção, tendo como
maiores objetivos a invulnerabilidade e a imunidade. E o último valor importante estava
ligado ao desejo de aumentar a riqueza e melhorar a posição social.
417
Nesse sentido é que negros procedentes, na maioria, da África Central, e seus
descendentes, assimilaram as imagens católicas num esforço de maximizar a boa fortuna para
suas vidas. A boa saúde era indício de que prevalecia a fortuna desejada. Para eles, os
tratamentos com curandeiros e/ou boticários, por exemplo, não tinham validade se não
tivessem a ajuda dos santos especializados na cura da moléstia.
418
Algumas dessas devoções
ficaram populares no sudeste brasileiro por intercederem pelos devotos na cura de doenças, no
afastamento de demônios e inimigos invisíveis. Mary Karasch faz um resumo dos santos mais
populares entre os escravos do Rio de Janeiro entre 1808 e 1850.
415
CRAEMER, Willy de. Op. cit., p. 461. Apud Idem, ibidem, p. 355.
416
KARASCH, Mary. Op. cit., p. 356.
417
Idem, ibidem.
418
Idem, ibidem, p. 353. Karasch menciona uma ilustração de Debret em que o negro antes de ser tratado pelo
curandeiro entra numa igreja para rezar ao santo especializado na cura de sua doença. Depois, é tratado pelo
feiticeiro nas escadarias da mesma igreja.
143
QUADRO 2
Santos associados aos problemas de saúde e proteção contra feitiçarias no Rio de
Janeiro (1808-1850)
Nome do Santo Especialidade
Santíssimo Sacramento Procissões às casas dos doentes e
moribundos, festa de Corpus Christi
São Miguel O Arcanjo – imagem em boticas
São Miguel dos Santos Erradica, sem cáusticos, cancros e
tumores.
Nossa Senhora do Carmo Imagem usada no bentinho para afastar
inimigos invisíveis.
Nossa Senhora do Parto Protetora das parturientes
São Sebastião Doutor da peste
São Lázaro Padroeiro do Leprosário de São Lázaro
São Roque Doutor da peste
São Brás Cura gargantas inflamadas e infecções
dos brônquios.
São Francisco de Paula
Remove cataratas, tumores do cérebro,
água da cabeça, ilumina o
entendimento das pessoas, espanta
demônios e acalma tempestades no mar.
Santo Antônio de Pádua Faz a morte, o pecado e os demônios
fugirem, cura doenças.
Santo Antônio do Egito Cura de erisipelas e doenças dos
animais
Santa Luzia Protege contra a cegueira e as doenças
dos olhos.
Santa Rita Tem poder para curar doenças
incuráveis.
Santa Apolônia Especialidade na cura de dores
insuportáveis, principalmente dores de
dente
São Benedito
Contra envenenamento e feitiçarias
Fonte: KARASCH, Mary. Op. cit., pp. 358-360.
Karasch aponta que, no Rio de Janeiro, São Brás era bastante procurado para a cura
dos brônquios, dos pulmões e da garganta, males predominantes na época. São Roque era
famoso como “doutor da peste”, normalmente representado com um cão ao seu lado, um
cajado na mão e uma ferida aberta na perna. Tendo em vista que os problemas de pele eram
muito comuns entre os escravos, é justificável o grande número de africanos entre os seus
devotos. Em boa parte da África Centro-Ocidental acreditava-se que os cães tinham olhos
para enxergar as forças invisíveis. A autora afirma que o cachorro pode ter sido percebido
pelos africanos como grande vigilante de forças malignas invisíveis, causadas por bruxarias.
Ele podia, portanto, lutar contra elas. Na crença dos bacongo, uma ferida no braço ou na perna
significava a manifestação física de que um bruxo tomou a essência daquele indivíduo.
Portanto, Karasch sugere que São Roque foi atraído pelos escravos pela sua capacidade de
144
lutar contra bruxos e, assim, curar doenças de pele. A lepra estava entre as mais temidas. No
século XIX, São Lázaro estava associado a essa doença e ao hospital construído para o
tratamento dos escravos leprosos. Para a cura dos olhos,
o ícone era Santa Luzia. Na primeira
metade do XIX, não era muito comum a popularidade de santas entre os escravos além da
Virgem Maria. Mas algumas tiveram importância, como Santa Efigênia e Santa Luzia. Esta
última, tinha como símbolo dois olhos colocados em um prato ou pires. A ela foi associada
grande capacidade de proteger os escravos da moléstia dos olhos e da cegueira. quanto a
São Benedito, a autora afirma que os escravos acreditavam que tinha poderes para proteger
seus devotos contra envenenamento e feitiçaria.
419
Na região de São Paulo, São Benedito tinha grande popularidade entre os negros e não
era apenas porque possuía a cor negra, mas também porque era considerado muito “potente”
para lutar contra bruxarias e feitiçarias, isto é, doenças e morte. Regina Célia Xavier fez
estudo detalhado de mestre Tito, africano, procedente da África Central que foi trazido ainda
pequeno para a Vila de São Carlos, atual Campinas. Em 1829, tinha 11 anos. Quando adulto,
tornou-se curandeiro na localidade e fervoroso devoto do santo negro, cuja veneração era
muito popular na região, onde eram comuns as festas em sua homenagem. Em 1821, na
Freguesia de Itu, próxima a São Carlos, um sermão foi pregado pelo Frei Inácio de Santa
Justina na cerimônia comemorativa a São Benedito. Entre os elementos da sua vida, o frei
destacou a sua capacidade de comunicação com o Divino e a realização de milagres. Dizia
que, se o santo “faz o sinal da cruz... oh! oh! Deus!... os cegos cobram vistas, os mudos falam,
os entrevados andam, os enfermos saram, os mortos ressuscitam e os demônios fogem”.
420
O
sermão utilizava elementos que poderiam ser tidos como familiares pelos africanos e seus
descendentes. Isso pode ter atraído os negros à devoção. Na segunda metade do XIX, mestre
Tito fez promessa ao santo para que o livrasse do contágio de uma moléstia que assolava a
cidade. Prometeu que, se recebesse a graça, se dedicaria o “resto de sua existência” à
obtenção de recursos para construir igreja em honra ao santo. O curandeiro não adoeceu e
cumpriu sua promessa.
421
Betânia Gonçalves Figueiredo afirma que, no século XIX, em Minas Gerais, eram
muito comuns as práticas devocionais nos processos de cura. A população acreditava que os
tratamentos e os remédios indicados e prescritos tinham eficácia com a ajuda da fé. Além
419
Idem, ibidem, pp. 371-374. Ver com detalhes a identificação dos escravos africanos do Rio com os santos
especializados na cura de doenças.
420
Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. Caixa 1800/1839, 2º maço; 1820/1830, apud XAVIER,
Regina Célia Lima. Religiosidade e escravidão no século XIX: Mestre Tito. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2008, pp. 140-141.
421
Idem, ibidem.
145
disso, a mortalidade entre a população escrava era bastante alta e esse fato era impactante na
elaboração das mediações religiosas.
422
Os santos eram muito procurados para amparar
aqueles que estavam enfermos. Veja o quadro elaborado pela autora:
QUADRO 3
Os santos associados aos problemas de saúde em Minas Gerais no século XIX
Nome do Santo Especialidade
Nossa Senhora do Bom Despacho Protetora das noivas
Nossa Senhora da Conceição Conceber filhos sadios;
Nossa Senhora do Ó Gestantes da última semana
Nossa Senhora Para tudo
Nossa Senhora do Bom Parto Parturientes
Santa Ágata Males pulmonares
Santa Apolônia Dores de dente
Santa Luzia Olhos e afecções pulmonares
Santa Margarida Parturientes
Santa Odília Afecções Pulmonares
Santo Amaro Ulcerações e mutilações
São Bartolomeu Afecções nervosas e possessões
demoníacas
São Benedito Mordeduras de cobras
São Brás Engasgo e garganta
São Ciríaco Afecções nervosas e possessões
demoníacas
São Erasmo Cólicas abdominais
São Geraldo Tuberculose
São Judas Tadeu Clínico Geral
São Lázaro Lepra
São Libório Calculose urinária
São Lucas Médicos
São Miguel Câncer e tumores
São Roque Peste
São Sebastião Peste
São Tarcísio Meninos
São Tomé Verminose
Fonte: FIGUEIREDO, Betânia. Op. cit. (2008), pp. 100-101.
422
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. As doenças dos escravos: um campo de estudo para a história das
ciências da saúde. In: NASCIMENTO, Dilene Raimundo do; CARVALHO, Diana Maul de; MARQUES, Rita
de Cassia (orgs.). Uma História Brasileira das Doenças. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006, pp. 262-263. Ver
também, da mesma autora, A arte de Curar: cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX em
Minas Gerais. 2. ed. Brasília: CAPES
/Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008, pp. 98-102.
146
Como podemos notar, há semelhanças nos estudos de Karasch e Figueiredo. O resumo
do papel de alguns santos mais venerados durante o século XIX, feito pelas autoras, ajuda a
entender a atração que as imagens católicas exerciam sobre os escravos africanos no sudeste
do Brasil. Pode ser, ainda, um indício de que em São João del-Rei, o aspecto simbólico da
saúde, presente na devoção dos Remédios, foi considerado na época de sua estruturação na
irmandade. Fizemos um levantamento nos Compromissos de todas as irmandades erguidas no
século XVIII e primeira metade do XIX, em São João del-Rei, com o objetivo de perceber as
devoções existentes no interior das igrejas, e se alguma delas estava vinculada à simbologia
da cura de doenças nas mesmas proporções que Nossa Senhora dos Remédios. Colhemos os
nomes dos santos que constavam nos Compromissos em vigor no período aqui estudado.
QUADRO 4
Devoções nas irmandades de São João del-Rei, séculos XVIII e XIX
Compromisso da Irmandade Santos padroeiros e anexos
Santíssimo Sacramento - 1717
Santíssimo Sacramento
Bom Jesus dos Passos - 1733
Santíssima Cruz de Cristo Senhor
São Miguel de Almas - 1808
São Miguel (o Arcanjo)
Nossa Senhora da Boa Morte - 1786
Nossa Senhora da Boa Morte
Nossa Senhora do Rosário – 1787
Nossa Senhora do Rosário, São
Benedito, Santo Antônio de
Catalagerona e Nossa Senhora dos
Remédios
Nossa Senhora do Rosário - 1841
Nossa Senhora do Rosário, São
Benedito, Santo Antônio de
Catalagerona, Nossa Senhora dos
Remédios, São Domingos e Santa
Catarina
Nossa Senhora das Mercês - 1806 Nossa Senhora das Mercês, Nossa
Senhora do Parto, Nossa Senhora das
Dores, São Manoel.
São Gonçalo Garcia - 1851 São Gonçalo Garcia, São Francisco e
Nossa Senhora do Amparo
Fonte: APNSP-SJDR Livros de Compromisso das Irmandades: do Santíssimo Sacramento, 1717; do Senhor
dos Passos, 1733; de São Miguel e Almas, 1808; de Nossa Senhora da Boa Morte, 1786; de Nossa Senhora do
Rosário, 1787 e 1841; de Nossa Senhora das Mercês, 1806; e de São Gonçalo Garcia, 1851. Todos os livros se
referem às irmandades de São João del-Rei.
Comparando o quadro 4 com os quadros anteriores, de Karasch e Figueiredo, os santos
mais ligados à cura de doenças em São João del-Rei são: São Miguel, São Benedito e Nossa
Senhora do Parto. O memorialista Augusto Viegas, ao descrever os templos de São João del-
Rei, cita algumas devoções diferentes nos altares laterais das igrejas, mas não podemos
147
afirmar a exata data da estruturação dos cultos. Na Irmandade do Rosário, o autor menciona
Nossa Senhora de Lourdes; na de o Gonçalo Garcia, faz referência a São Tiago, São José,
Santo Antônio, Santa Joana D’arc e Santo Expedito.
423
Na igreja do Rosário, o Compromisso,
reformado em 1903, traz o nome de outras devoções, inclusive a que Viegas citou: São
Vicente Ferrer, São Libório, São Lourenço, São Tomás de Aquino e Nossa Senhora de
Lourdes
424
. Conseguimos confirmar, em outros documentos, que a estruturação de três desses
cultos se deu na primeira metade do século XIX. Foi o caso de São Vicente Ferrer, que
aparece nos livros de entrada de irmãos a partir desse período (ver Tabela 7, Capítulo 2). Os
devotos de São Libório e São Lourenço aparecem na década de 1840, conforme
comprovamos no livro de receitas e despesas da irmandade
425
. Os cultos de São Tomás de
Aquino e Nossa Senhora de Lourdes não sabemos quando foram instalados na confraria, mas,
certamente, foi a partir da segunda metade do oitocentos, pois não consta nenhum registro em
data anterior.
426
Quanto às devoções da Irmandade de São Gonçalo Garcia, citada por Viegas, não
estavam registradas no Compromisso aprovado em 1851. Outros documentos, anteriores a
essa data, precisariam ser consultados para verificar alguma declaração sobre essas devoções.
Mas, para este momento, não vimos necessidade, uma vez que nenhuma das devoções citadas
por Viegas, em 1953, tem associação específica com problemas de saúde, quando nos
baseamos nos estudos de Karasch e Figueiredo.
No século XVIII e no começo do XIX, foram construídas, também na vila, algumas
capelas e oratórios que abrigaram determinadas devoções, mas nenhuma delas estava
associada especificamente aos problemas de saúde, se compararmos com o estudo das autoras
supracitadas, entre os quais Oratório da Piedade e Bom despacho, edificado por volta de
1741, localizado defronte da cadeia para que os presos assistissem às missas dominicais e dos
dias santificados, por detrás das grades da prisão, e o Oratório das Almas, situado na Prainha
e existente em 1750; as Capelas de São Caetano, edificada em 1717; a de Santo Antônio
423
VIEGAS, Augusto. Op. cit., cap. 12.
424
APNSP-SJDR Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei,
1903, título III, capítulo I.
425
APNSP-SJDR Livro de receitas e despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-
Rei, (1831-1844).
426
O culto de Nossa Senhora de Lourdes teve origem na pequena cidade de Lourdes, sul da França, na segunda
metade do século XIX. Foi autorizado a partir de 11 de janeiro de 1862 pelo bispo de Tarbes. A representação da
Virgem de Lourdes está diretamente ligada à simbologia da cura dos doentes. Ver mais detalhes em MEGALE,
Nilza. Op. cit., pp. 267-270. Na igreja do Rosário de São João del-Rei, ao ser estruturado o culto de Nossa
Senhora de Lourdes, a nova representação da Virgem que curava doentes passou a dividir a preferência dos fiéis
com a Virgem dos Remédios. Qual a necessidade da estruturação de um novo culto tão próximo a Nossa Senhora
dos Remédios? Fica aqui a indagação inspiradora para uma próxima pesquisa.
148
no Tejuco, onde, em 1779, houve um casamento de escravos; a do Senhor do Bonfim,
construída por um devoto por volta de 1769; a do Senhor dos Montes, que em 1801 tinha um
provedor e um zelador na capela; a de Nossa Senhora da Conceição, também erguida por um
devoto, e que, em 1765, se tornou pública; a de Nossa Senhora das Graças, que, em 1740, foi
demolida; a do Bom Jesus do Matosinhos, com edificação concluída em 1774, e a de São João
de Deus, construída depois de 1783, anexa à Casa de Caridade (futura Santa Casa de
Misericórdia).
427
O panorama das devoções em São João del-Rei no setecentos e na primeira metade do
oitocentos nos bem a noção do sentido que o culto de Nossa Senhora dos Remédios pode
ter tido na região. Como vimos, não havia muitos santos associados aos problemas de saúde
além de São Miguel, que era padroeiro dos boticários,
428
de Nossa Senhora do Parto, protetora
das parturientes, e de São Benedito, considerado, principalmente, poderoso no combate aos
envenenamentos. Nossa Senhora dos Remédios era capaz de socorrer seus devotos, dando-
lhes os medicamentos necessários para as suas enfermidades. Foi escolhida pelos negros,
principalmente por aqueles que buscavam uma devoção mais distante do estigma da
escravidão, e pelos brancos, para que os atendessem nas suas necessidades de saúde.
429
Quando comparamos os santos relacionados à cura de enfermidades, estruturados na
Irmandade do Rosário e projetados na vila, São Benedito e Nossa Senhora dos Remédios, e os
relacionamos ao perfil populacional daquela sociedade não fica difícil deduzir que a santa
branca era a mais procurada para socorrer os doentes. De maioria livre, os habitantes
sanjoanenses, entre eles os libertos e os brancos, se identificaram mais com a santa dos
Remédios. Os registros encontrados nos livros de entrada de irmãos e também nos de receitas
e despesas apresentam um alto índice de devotos de Nossa Senhora dos Remédios que não
mencionaram a condição onde quase a totalidade deles tinha nome e sobrenome, o que
significa que podiam ser livres. Alguns desses devotos tiveram a profissão registrada, muitas
delas de bastante significação e prestígio social naquela sociedade. É inegável a preferência
desses devotos pelo juizado de Nossa Senhora dos Remédios. Veja-se a tabela abaixo:
427
Sobre as capelas e os oratórios, ver mais detalhes em GUIMARÃES, Geraldo. Op. cit., pp. 62-76.
428
Antes de ser inaugurado em São João del-Rei um hospital para os necessitados, a Irmandade de São Miguel e
Almas arcava com o pagamento de cirurgiões e boticários para atender à população pobre (trataremos sobre o
assunto mais adiante).
429
Os juizados de santos comprovam essa notoriedade como demonstramos no capítulo 2 – ver tabelas 7 e 8.
149
TABELA 10
Devotos ocupantes dos juizados na Irmandade do Rosário de São João del-Rei de 1803 a
1844, segundo as profissões
DEVOÇÕES
PROFISSÕES
A B C D E F
Total
Alferes
5
(83,3%)
- 1
(16,7%)
- - - 6
(100%)
Cadete
1
(100%)
- - - - - 1
(100%)
Capitão
9
(100%)
- - - - - 9
(100%)
Coronel
3
(100%)
- - - - - 3
(100%)
Dona
84
(90,2)
2
(2,2%)
1
(1,1%)
1
(1,1%)
3
(3,2%)
2
(2,2%)
93
(100%)
Guarda-mor
- - 1
(100%)
- - - 1
(100%)
Músico
1
(100%)
- - - - - 1
Padre
1
(100%)
- - - - - 1
(100%)
Tenente
3
(75%)
- - 1
(25%)
- - 4
(100%)
TOTAL
107
(89,9)
2
(1,7%)
3
(2,5%)
2
(1,7%)
3
(2,5%)
2
(1,7%)
119
(100%)
A: Nossa Senhora dos Remédios; B: Nossa Senhora do Rosário; C: São Benedito; D: Santo
Antônio de Catalagerona; E: Santa Catarina; F: São Vicente Ferrer.
Fontes:
AINSR-SJDR – Livro de Receitas e Despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João
del-Rei (1803-1830) e APNSP-SJDR – Livro de Receitas e Despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
de São João del-Rei (1831-1844).
Os dados apontam que quase 90% dos devotos que declararam a profissão nos
registros tinham preferência pelo juizado de Nossa Senhora dos Remédios, principalmente as
mulheres com designação de “Donas”,
430
que também aparecem nos outros juizados, porém
de forma muito tímida. Observa-se que as profissões de patente militar, de muito prestígio
naquela sociedade, ocupavam, em maior número, os juizados dos Remédios. Porém, não nos
podemos esquecer dos crioulos, fossem eles cativos ou não, demonstramos que muitos
preferiram a santa dos Remédios.
Como citamos no início deste capítulo, era pouco provável que o Capitão José Dias de
Oliveira e sua senhora declarassem devoção a um santo negro na Irmandade do Rosário.
Além deles, um forro, de origem crioula, preferiu fazer promessa à santa dos Remédios do
que a São Benedito. Falamos de Francisco de Sales Pereira que, em 1809, pagou mesada à
430
Mulheres referidas como “Donas”, nos séculos XVIII e XIX, era signo de diferenciação e prestígio social.
FARIA, Sheila de Castro. Op. cit. (2004), pp. 122-123.
150
irmandade para ser juiz de Nossa Senhora dos Remédios.
431
No ano seguinte, resolveu
associar-se à Irmandade do Rosário, prometendo tudo cumprir segundo as leis do
Compromisso. No termo de entrada, declarou sua devoção a Nossa Senhora dos Remédios,
dando mesada para ser juiz de promessa da santa naquele ano.
432
Em 1822, novamente o
irmão repetiu a promessa e ocupou o mesmo cargo.
433
Em 1832, foi irmão de mesa na
confraria e, em 1836, outra vez juiz da mesma santa.
434
Morreu em 1848, porém dois anos
antes mandou redigir seu testamento, pois, além de não saber escrever, era cego. Francisco de
Sales Pereira era filho legítimo de Maria Pereira, casada com Antônio Ribeiro de Matos.
Ficou viúvo de Angélica Maria Custódia, que também foi irmã do Rosário e devota de Nossa
Senhora dos Remédios. Não foi homem de muitas posses. Deixou uma casa para ser vendida
e a quantia dividida entre os herdeiros, alguns móveis, roupas, poucas joias e vidas. Entre
estas, deixa à testamenteira a incumbência de pagar “dois mil e quatrocentos réis que a dita
minha mulher ficou devendo à Nossa Senhora dos Remédios como juíza de promessa [...]”.
435
Dona Cipriana de Jesus Batista, filha legítima de Estevão José de Siqueira e Dona Ana
Feliciana de Jesus, se associou à Confraria do Rosário em 1815, declarando-se devota de
Nossa Senhora dos Remédios.
436
Quando adulta, sofreu de reumatismos a tal ponto que ficou
aleijada da mão direita. Viveu toda a sua vida no estado de solteira, teve filhos, e parece ter
sido bastante assídua na irmandade dos pretos, pois, de 1861 a 1862, conseguiu ocupar o
cargo de Rainha na irmandade. Morreu em 1877 e até o ano de sua morte pagou anuidades à
instituição. Em seu testamento, redigido em 1873, pediu para ser sepultada no cemitério da
Ordem Terceira de São Francisco, onde era irmã, apesar de declarar que também era membro
de outras ordens e irmandades. Não era mulher de muitos bens, todavia, deixou para os filhos
parte da casa onde morava, no Largo São Francisco, e ainda todos os móveis de seu
interior.
437
Associada da irmandade do Rosário de São João del-Rei também era Francisca Maria
das Neves. Quando assinou o termo, em 1821, declarou-se de cor branca e devota de Nossa
431
AINSR-SJDR Receitas e despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei: livro
número 28 (1803 a 1830).
432
AINSR-SJDR – Livro de entrada de irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei:
número 17 (1800-1810).
433
AINSR-SJDR Receitas e despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei: livro
número 28 (1803 a 1830).
434
APNSP-SJDR – Receitas e despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei (1831 a
1844).
435
IPHAN-SJDR – Inventário de Francisco de Sales Pereira – 1848 – caixa 382.
436
AINSR-SJDR – Livro de entrada de irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei:
número 20 (1815-1847).
437
IPHAN-SJDR – Inventário de Cipriana de Jesus Batista – 1880 – caixa 32.
151
Senhora dos Remédios. Naquele ano, ocupou o juizado da santa.
438
Nasceu em São João del-
Rei, filha natural de Francisca Maria da Graça. Viveu solteira até sua morte, em 1834. Era
mulher de posses, pois, em seu testamento, redigido em 1831, declarou que tinha imóveis,
ouro, prata e cinco escravos. Não teve filhos, portanto, sem herdeiros diretos. Fez questão de
deixar esmolas para a irmandade dos pretos, a do Santíssimo Sacramento, a da Santa Casa de
Misericórdia e quantia para os lázaros. Também deixou boa quantia para a Ordem Terceira de
São Francisco, em que era irmã professa, mas não quis ser sepultada no cemitério dessa
ordem. Preferiu o cemitério da Ordem Terceira do Carmo.
439
Foi sepultada no mesmo cemitério Dona Ana Joaquina Alves da Conceição. Pediu que
seu corpo fosse amortalhado no hábito de Nossa Senhora do Carmo, de cuja Ordem era irmã.
Sempre viveu no estado de solteira e o teve nenhum filho. Possuía bens, entre eles morada
de casas e 4 escravos, que deixou alforriados. Declarou no seu testamento que era ainda
membro da irmandade do Santíssimo Sacramento, mas o curioso é que não mencionou sua
associação à Irmandade do Rosário. Teria sido esquecimento ou omissão mesmo de sua
participação na confraria? Depois do seu falecimento, a administração da irmandade dos
pretos apresentou o livro, comprovando a entrada de Dona Ana na instituição e uma dívida
referente aos seus anuais.
440
A dita senhora entrou na irmandade em 1824 e pagou boa mesada
para ser juíza de promessa de Nossa Senhora dos Remédios.
441
Juliana Rodrigues da Costa era africana, da costa do continente. Entrou na Irmandade
do Rosário em 1803, como juíza de promessa de Nossa Senhora dos Remédios.
442
Nessa
época, ainda era escrava do Capitão José Rodrigues da Costa. Em seu testamento, afirmou
que foi penhorada por conta de uma dívida que seu proprietário tinha que saldar com o
Sargento-Mor José Joaquim Correia. A escrava estava entre os bens do proprietário,
aguardando o arremate quando seu pretendente a casamento, José Francisco Unhão, crioulo
forro, lhe deu dinheiro para que comprasse sua alforria. Ela conseguiu liberdade e se casou
com José Unhão. Juliana não teve filhos, mas conseguiu juntar algum pecúlio que deixou de
herança para o marido: uma casa, um cavalo e dois escravos.
443
438
AINSR-SJDR Livro de entrada de irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei:
número 20 (1815-1847).
439
IPHAN-SJDR – Testamento de Francisca Maria das Neves – 1834 – Caixa 92.
440
IPHAN-SJDR – Testamento de Ana Joaquina Alves da Conceição – 1844 – Caixa 28.
441
AINSR-SJDR – Livro de entrada de irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei:
número 20 (1815-1847).
442
AINSR-SJDR – Livro de entrada de irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei:
número 17 (1800-1810).
443
IPHAN-SJDR – Testamento de Juliana Rodrigues da Costa – 1827 – Caixa 33.
152
Também fez promessa a Nossa Senhora dos Remédios Dona Ana Maria Pereira. Em
1822, pagou boa quantia para ocupar o cargo de juíza de promessa da santa.
444
Dona Ana foi
casada com o coronel Francisco da Costa Monteiro e desse matrimônio não teve filhos. Entre
os bens declarados no testamento da falecida viúva estavam quatro cativos, sendo dois
crioulos e duas cabras. Uma dessas últimas ficaria liberta após o falecimento de sua dona.
Apesar de não ter herdeiros diretos, beneficiou universalmente Cesário Bernardino da Costa, a
quem considerou seu filho adotivo, “pois o amei em minha companhia em a qual se acha, e
dele tenho recebido todo o cuidado, amor e desvelo na minha longa enfermidade e velhice”.
445
A declaração feita por Dona Ana deixa claro que por muitos anos esteve enferma.
Certamente esse foi o motivo pelo qual fez promessa a Nossa Senhora dos Remédios. Assim
como ela, todos os irmãos que citamos acima buscaram proteção e alento da santa na luta
contra as suas enfermidades. Contudo, embora a simbologia de liberdade tenha exercido
bastante atração para os negros na irmandade, reafirmando o papel da devoção enquanto
importante marca diacrítica na construção de identidades coletivas, entendemos que essa
fronteira toma um âmbito ainda mais amplo quando o aspecto simbólico da saúde é
apreendido. Sua representação não só atraía a população negra como também a branca.
Quando se tratava de remediar enfermidades, Nossa Senhora dos Remédios, abrigada na
irmandade dos pretos, era referência na vila.
3.3- Não há epidemia, nem mal tão contagioso e maligno que a Senhora não desterre
Anderson de Oliveira chamou a atenção para a íntima relação entre os milagres dos
santos e a vida cotidiana dos fiéis. Segundo o autor, as demandas cotidianas atraíam mais os
fiéis para a apreensão dos cultos católicos do que propriamente a prática religiosa mais
espiritualizada. Essa estratégia era muito utilizada pelos missionários que difundiam os cultos
em Portugal e ocorreu o mesmo no Brasil Colonial.
446
Oliveira afirma que
A doença era associada ao pecado e ao castigo divino. A impotência do
homem diante da natureza e as precárias condições de existência e da própria
medicina reforçavam a idéia de que os males do corpo e da alma estavam
444
AINSR-SJDR – Livro de entrada de irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei:
número 20 (1815-1847).
445
IPHAN-SJDR – Testamento de Ana Maria Pereira – 1858 – Caixa 102.
446
OLIVEIRA, Anderson de. Op. cit. (2008), p. 158.
153
intimamente associados. A saúde ou a ausência da mesma não estava nas
mãos dos homens e sim nas mãos de Deus.
447
Nesse sentido é que, durante os sermões, a cura aparece como milagre atribuído aos
santos como forma de atrair uma série de devotos para o concurso de suas devoções. A cura
de doenças era vista como uma intervenção divina realizada pelos seus intermediários, os
santos. A escolha das devoções especializadas na cura, ou mesmo que trouxessem boa sorte
na forma de saúde, como vimos, não era aleatória.
São João del-Rei, região que abrigava significativo contingente escravo e servia de
trânsito para várias pessoas de diversos lugares da colônia e de outros países, era território
propício para o surgimento de muitos casos de doenças. Entre a população escrava, o número
de doenças e mortes era muito grande. Muitos senhores que perdiam seus escravos por morte
prematura, interpretavam-na como sendo a “vontade de Deus” ou resultado de algum mau
olhado, ou feitiçaria, ou ainda que a morte fora um descuido intencional do escravo, como
forma de se vingar por ter sido submetido àquela condição. Os africanos também tinham suas
explicações: diante da condição infeliz que passaram a ter e viver nos trópicos, muitos
punham a culpa da morte prematura dos companheiros de navio negreiro, e de muitos outros
escravos da cidade, na feitiçaria ou na bruxaria.
448
Apesar das explicações sobrenaturais dadas por senhores e escravos, o fato é que os
cativos morriam devido aos maus-tratos que sofriam. A alimentação, a falta de moradia
adequada, o não uso de roupas e calçados, o trabalho pesado em combinação com castigos
serviam para enfraquecê-los e expô-los a todo tipo de vírus, bacilos, bactérias e parasitas.
Saint-Hilaire, em suas viagens pelo Distrito Diamantino, nas primeiras décadas do
XIX, relatou a saúde precária dos escravos, constantemente ameaçada tanto pelo tipo de
trabalho que exerciam, quanto pela fraca qualidade dos alimentos que recebiam: “obrigados a
estar continuamente dentro da água durante o tempo da lavagem do minério e consumindo
alimentos pouco nutritivos, quase sempre frios e mal cozidos, tornam-se, pela debilidade do
tubo intestinal, morosos e apáticos”.
449
As senzalas, por exemplo, estavam entre os ambientes propícios para a proliferação de
doenças contagiosas. Na maioria das vezes, o ambiente era pouco ventilado, úmido, sem
higiene e pequeno para muitas pessoas.
450
É bom lembrar que muitos africanos vinham
447
Idem, ibidem.
448
KARASCH, Mary. Op. cit., p. 207.
449
SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem pelo Distrito dos diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/
São Paulo: Edusp, 1974, p. 16.
450
KARASCH, Mary. Op. cit., p. 184-187.
154
contaminados durante as viagens nos navios negreiros, trazendo para doenças específicas
da África. As más condições a que eram submetidos ampliavam as condições de
desenvolvimento das doenças que se espalhavam rapidamente entre a população escrava. O
ambiente urbano era ainda mais favorável, pois a densidade populacional era elevada e o
saneamento, mínimo.
451
Outro aspecto o tornava mais insalubre: ao contrário das fazendas do
interior, onde os cativos raramente tinham contato com gente de fora, o meio urbano era
caracteristicamente marcado pelo vai e vem de pessoas de várias espécies e lugares, que
podiam ser portadoras de doenças epidêmicas de outros países.
452
Betânia Gonçalves Figueiredo nos informa que, nos três primeiros séculos de
colonização no Brasil, as doenças mais frequentes eram as afecções e as infecciosas,
respiratórias, osteoartrites, doenças gastrointestinais, urinárias e ginecológicas,
dermatológicas e nervosas.
453
Ao que parece, a primeira metade do XIX não apresentou
muitas diferenças. Mary Karasch aponta as principais causas de morte entre os escravos do
Rio de Janeiro naquele período. Ao analisar os registros de sepultamentos dos cativos no
cemitério da Santa Casa de Misericórdia, entre 1833 e 1849, apurou que entre os maiores
índices de causa mortis estavam, em primeiro lugar, as doenças infectoparasíticas, depois as
do sistema digestivo, respiratório e nervoso, respectivamente.
Veja-se o quadro abaixo.
QUADRO 5
Principais causas de morte no Rio de Janeiro - século XIX
Causas Doenças
Infectoparasíticas
Tuberculose (todas as formas), desinteria, varíola, tétano,
oftalmia, elefantíase dos gregos, elefantíase dos árabes,
bouba, sífilis
Sistema digestivo
Diarreia, gastroenterite, hepatite e enterite
Sistema respiratório
Pneumonia, bronquite e resfriado
Sistema nervoso
Doenças na coluna, epilepsia, cólica nervosa, suicídio,
apoplexia, encefalite e meningite
Fonte: KARASCH, Mary. Op. cit., pp. 206-246.
Entre as moléstias infectoparasíticas, a tuberculose, de todas as formas, era a principal
causa de morte. Essa doença era endêmica na Europa e nos Estados Unidos. Por isso, muitos
451
Idem, ibidem, pp. 189-194.
452
Idem, ibidem, cap. 6.
453
FIGUEIREDO, Betânia . Op. cit. (2008), p. 79.
155
imigrantes que vieram para a Colônia eram portadores dela. O estresse e a fadiga aguda
aumentavam o risco de o indivíduo contrair a doença. Em segundo lugar, aparece a desinteria.
Suas vítimas sofriam com febres contínuas e fortes desarranjos intestinais, quando expostas
em local sujo e amontoado de escravos. A ingestão de água e alimentos contaminados por
dejetos humanos também causava a doença. O terceiro lugar de causa mortis era originário
da varíola, também chamada de bexiga. Os infectados chegavam da África e a transmitiam
para a população em geral. Ao longo da primeira metade do XIX, foram registradas várias
epidemias da doença. O tétano aparece em quarto lugar. Os negros tinham predisposição à
doença, porque andavam descalços e eram feridos por objetos que perfuravam a pele ou
mordidos por animais. Havia, porém, muitas outras doenças vindas da África que não
necessariamente causavam a morte, mas eram contagiosas, como a oftalmia (moléstia dos
olhos que levava à cegueira), a sarna (diversos tipos de irritação da pele), a elefantíase-dos-
gregos e a elefantíase-dos-árabes (moléstias diferentes, mas ambas consideradas como lepra
ou hanseníase), a bouba ou boba e a sífilis.
454
No segundo grupo mais letal de moléstias do sistema digestivo, constatado pela autora,
a diarreia, a gastroenterite, a hepatite e a enterite eram as doenças mais graves dessa categoria.
A falta de saneamento facilitava o seu desenvolvimento, pois promovia a atuação de vermes e
parasitas nos cativos.
455
No sistema respiratório, as enfermidades mais comuns eram a pneumonia (maior
índice), os resfriados e a bronquite. O organismo debilitado e malnutrido do escravo
transformava uma simples gripe, ou resfriado ou até mesmo uma bronquite, numa doença
grave e fatal como a pneumonia e a tuberculose. Os cativos ficavam mais suscetíveis às
“afecções pulmônicas” nos meses de maior umidade e frio.
456
As doenças do sistema nervoso tinham evoluções mais marcantes nos negros. Eram
doenças de coluna, bem como do cérebro e suas membranas. Sofriam também de epilepsia,
cólica nervosa, mania aguda, suicídio, apoplexia (doença em que ocorria um movimento
retrógrado do pulso) e dores de cabeça, muitas delas graves, diagnosticadas como encefalite e
meningite. O desenvolvimento dessas doenças, em inúmeros casos, estava ligado ao trabalho
excessivo e contínuo dos escravos. Demasia de peso, exposição intensa ao sol, ao calor, à
poeira e ao estresse facilitavam o seu aparecimento. Além disso, várias bactérias podiam
454
Ver mais detalhes em KARASCH, Mary. Op. cit., pp. 209-237.
455
Idem, ibidem, pp. 238-242.
456
Idem, ibidem, pp. 242-244.
156
causar inflamação das membranas que envolvem o cérebro e a medula. Os problemas
psicológicos estavam vinculados à má condição de vida e à nostalgia.
457
Para Minas Gerais, Ilka Boaventura Leite fez um levantamento das principais doenças
que incomodavam a população negra a partir dos relatos dos viajantes, que estiveram nas
regiões mineiras na primeira metade do século XIX. Ao compilar as informações, a autora
teve o seguinte quadro:
QUADRO 6
Doenças dos escravos nos relatos dos viajantes em Minas Gerais – século XIX
Tipo de Doenças Viajantes
Acidente de trabalho Saint-Hilaire
Arcus senilis Spix e Martius
Cólica Spix e Martius
Coluna Mawe
Debilidade do tubo intestinal Saint-Hilaire
Doenças de pele Mawe
Doença Catarral Spix e Martius
Desnutrição Pohl e Wells
Desinteria Freireyss
Elefantíase, mal de São Lázaro Mawe, Spix e Martius
Envelhecimento precoce Eschwege
Escorbuto Freireyss
Fadiga, apatia Saint-Hilaire
Inflamação de garganta Spix e Martius
Nostalgia Freireyss
Papeira, pescoço inchado Mawe e Burmeister
Resfriado Gardner
Reumatismo Eschwege, Spix e Martius
Sarcocele Gardner
Varíola Freireyss
Verme da Guiné Luccock
Fonte:
LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da Viagem: escravos e Libertos
em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG,1996, p. 170.
Podemos observar no Quadro 6 que as doenças recorrentes na população negra de Minas
Gerais relatadas pelos viajantes também estavam relacionadas com a condição de trabalho
457
Idem, ibidem, pp. 244-246.
157
e/ou de alimentação. Como consequência do trabalho escravo na mineração, da postura,
das mudanças bruscas de temperatura, da imersão do corpo durante longas horas nos rios,
para as atividades de garimpo, etc., aparecem os acidentes de trabalho, os problemas de
coluna, o envelhecimento precoce, a fadiga, as doenças de pele, o reumatismo. E os
problemas relacionados com o mau hábito alimentar ou com a falta de disponibilidade dos
alimentos ou mesmo com a falta de higiene causam a cólica, a debilidade do tubo intestinal, a
desnutrição, o escorbuto, as doenças de pele, a papeira (bócio), a desinteria.
Deste modo, constatamos que a população negra, seja escrava ou liberta, tinha
dificuldades em preservar a saúde em condições o limitadas. Quando percebiam a
enfermidade ou queriam prevenir-se dela, buscavam o amparo mais acessível: as práticas
curativas juntamente com as religiosas. E valia tudo: ervas medicinais de vários tipos,
aplicações de sanguessugas e ventosas pelo corpo, rituais, rezas, promessas aos santos, etc.
Não havia muita disponibilidade de médicos na época, muito menos de hospitais.
No século XVIII e ainda na primeira metade do XIX, havia uma carência enorme de
médicos. O mais comum eram as pessoas conhecedoras de práticas de cura. Muitos desses
eram cirurgiões
458
, boticários, barbeiros, dentistas, parteiras, curandeiros, raizeiros e
benzedores. Aqueles dotados do saber médico respaldado pelo arcabouço científico estudaram
na Europa e, quando retornaram ao Brasil, trabalharam nas grandes cidades e ainda cobraram
pelas consultas e serviços de saúde. As primeiras faculdades brasileiras de medicina foram
inauguradas no período Imperial, mais precisamente na década de 1830. Até os primeiros
médicos se formarem no país e oferecerem seus serviços, a população, principalmente pobre,
recorria em peso aos recursos disponíveis, isto é, aos especialistas populares na arte de curar e
à religiosidade.
459
O saber dos profissionais da outra medicina”
460
era baseado no
conhecimento empírico sobre a doença, o remédio, o doente e o corpo. Eram pessoas que
herdavam essas práticas dos mais velhos, que, por sua vez, receberam dos seus progenitores e
assim era repassado de geração em geração. Aprendiam através da observação, da
experiência, das leituras de manuais de saúde e de conversas com pessoas entendidas do
assunto. Os curandeiros, os benzedeiros e os raizeiros geralmente eram negros africanos que
458
Esses práticos faziam as pequenas cirurgias utilizando instrumentos como canivetes ou navalhas. Diferente do
que atualmente se sabe sobre os cirurgiões, no século XIX muitos desses profissionais não tinham formação
acadêmica. Parteiras, curandeiros e barbeiros, por exemplo, eram chamados de cirurgiões, pois realizavam as
intervenções cirúrgicas. FIGUEIREDO, Betânia. Op. cit. (2008), pp. 121-126; e KARASCH, Mary. Op. cit., pp.
279-280.
459
Idem, ibidem; Idem, ibidem.
460
Expressão utilizada por um médico memorialista de Montes Claros para definir todos os que exerciam o
ofício de curar sem ter passado por um conhecimento acadêmico. PAULA, Hermes de. Em Montes Claros... a
medicina dos médicos e a outra. Montes Claros, s/ed., 1982.
158
traziam seus conhecimentos das tradições locais; aprendiam com seus ancestrais.
461
Além
disso, existia, por parte da população, a falta de hábito de recorrer aos médicos e aos remédios
nos momento de doença, mal-estar ou determinados acidentes.
462
quando a enfermidade se
agravava é que era providenciado o recurso curativo mais especializado. E isso não acontecia
somente entre os pobres. Era muito comum os mais abastados recorrerem aos curandeiros,
principalmente àqueles que tinham fama na cidade.
Regina Célia Xavier cita o caso de Camilo Bueno, rico fazendeiro residente na região
da Vila de São Carlos (atual Campinas), Província de São Paulo, que caiu terrivelmente
doente por volta de 1870. O Sr. Bueno mandou chamar à sua residência um dos mais famosos
curandeiros da região, Tito de Camargo, africano procedente da África Central e devoto de
São Benedito. Era perito e hábil na arte de aplicar as sanguessugas e as ventosas, o que fez
por diversas vezes no paciente, numa tentativa de curá-lo. No entanto, isso não foi suficiente
para impedir que a doença do tal senhor se agravasse. Antes que o pior acontecesse, o
paciente recorreu aos médicos diplomados, mas era tarde. Faleceu em 1871, na Casa de
Saúde Bom Jesus.
463
A autora salienta que, ainda naquele tempo, os dicos diplomados
tinham dificuldade de atuação junto aos pacientes, mesmo no que tocava à elite. A maioria
dos doentes reservavam aos curandeiros um espaço de ação mais significativo e
procuravam a medicina acadêmica em último caso.
464
Com toda a experiência e saber desses práticos, a cura de algumas doenças era um
desafio, pois muitas delas, como a varíola, a febre amarela, a tuberculose e a sífilis, podiam
deixar sequelas se não fossem tratadas a tempo ou adequadamente. Portanto, os doentes
precisavam de cuidado especializado e de hospitais. E começava outro problema, pois não
havia estabelecimento desse tipo para a população pobre, especialmente nas regiões
interioranas.
465
Os poucos existentes estavam nas áreas urbanizadas. Em Minas Gerais, o
primeiro hospital, Santa Casa de Misericórdia, foi inaugurado em 1735 em Vila Rica, atual
Ouro Preto.
466
Em São João del-Rei, a primeira casa de saúde para atender à população pobre
461
FIGUEIREDO, Betânia. Op. cit. (2008).
462
Idem, ibidem, p. 50.
463
XAVIER, Regina Célia. Op. cit., p. 166.
464
Idem, ibidem.
465
O hospital no Brasil do século XIX era sinônimo de depósito de doentes e era procurado pela população mais
pobre da sociedade. Os mais abastados eram tratados pelos médicos particulares, pois podiam pagar.
OLIVEIRA. Anderson de. Caridade e assistência pública: Estado e irmandades no Rio de Janeiro Imperial.
Revista Internacional de Estudos Políticos, ano 1, número 3. Rio de Janeiro: NUSEG/UERJ, 1999, pp. 555-556.
466
MIRANDA, Mônica Liz. De “albergue de doentes” a hospital moderno: estudo do processo de estruturação
da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte (1899-1916). Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte:
FAFICH/UFMG, 1996, pp. 43-44.
159
data de 1783 e continha apenas 30 leitos.
467
Nas outras cidades menores, ainda no final do
oitocentos, os serviços de saúde eram muito precários. É o que salienta Beatriz Figueiredo em
seus estudos para Minas Gerais. Afirma que havia uma demanda crescente pelos serviços da
área da saúde no século XIX, mas a ausência de médicos em muitas localidades era uma
realidade. Se não havia profissionais especializados, muito menos hospitais.
Em 1903, na cidade de Poços de Caldas, eram conhecidos quatro
médicos, de acordo com um memorialista. Na cidade de Conceição do Mato
Dentro, com a carência de médicos, tornou-se necessário o concurso de três
farmacêuticos, que a partir de então passaram a fazer as vezes dos médicos.
Já em Guanhães, em torno de 1838, ‘não se contava com profissionais
especializados no ramo da ciência de curar e aliviar’. Em Diamantina, em
torno da década de 80 do século XIX, [...] ‘doutor aqui não há’.
468
Antes da inauguração de um hospital em São João del-Rei, por volta de 1783, a
assistência aos doentes pobres e presos da cadeia ficava por conta dos cirurgiões e dos
boticários contratados pelo Senado da Câmara e também pela Irmandade de São Miguel e
Almas, que “fazia as vezes de misericórdia”.
469
Os profissionais eram contratados pelo prazo
de um ano e poderiam, depois desse período, ser recontratados ou não. Atendiam aos doentes
em domicílio ou na própria residência do médico. Sebastião de Oliveira Cintra noticia que
desde 1718 a Câmara realizava essas contratações e mostra o que acontecia com os doentes da
vila com a falta de médicos. Em 15 de outubro de 1718, o Senado enviou carta ao Ouvidor
Geral da Comarca, alegando que na vila sanjoanense morriam muitos escravos “por não haver
quem lhes conheça os achaques para os curar e ainda mesmo os brancos se vêem precisados a
retirar-se para o Rio de Janeiro para curar-se”.
470
Dessa forma a assistência aos doentes de São João del-Rei foi sendo ministrada, até
que em 1783, um devoto ermitão, da Ordem de São Francisco de Assis, teve a iniciativa de
realizar uma campanha para angariar recursos para a fundação de um hospital na vila, uma
Casa de Caridade. Manuel de Jesus Fortes percorreu vários lugares a pedir esmolas. Obtidos
os recursos necessários, tratou logo de comprar uma propriedade, onde construiu cômodos
para abrigar 30 leitos, separados para homens e mulheres. Para iniciar as atividades, o
fundador pediu autorização ao Senado da Câmara, em que explicou o motivo da construção
do hospital: “[...] muitas pessoas pobres da mesma vila e Comarca tinham falecido à
467
ALVARENGA, Luís de Melo. História da Santa Casa da Misericórdia de São João del-Rei (1783-1983).
Belo Horizonte: Gráfica Formato, 2009.
468
FIGUEIREDO, Betânia. Op. cit. (2008), p. 57.
469
ALVARENGA, Luís. Op. cit., pp. 32-33.
470
CINTRA, Sebastião. Op. cit., p. 450.
160
necessidade por não haver uma casa de caridade onde se pudessem recolher para serem
assistidos de médico, cirurgião e botica, e ao mesmo tempo de alimento necessário e de
enfermeiros para os tratarem [...]”.
471
Entretanto, parece que o pequeno hospital e a assistência oferecida pela Irmandade de
São Miguel e Almas não estavam sendo suficientes para a crescente demanda de enfermos.
Documentos da Câmara, tramitados com Lisboa entre 1804 e 1806, demonstraram essa
realidade. Por volta de 1804, o procurador da Câmara da Vila de São João del-Rei e seu termo
redigiu uma representação a Sua Alteza Real, solicitando autorização para que ela mesma
pudesse recolher contribuições dos habitantes daquela localidade para formar “subsídio
piedoso” em prol da subsistência e ampliação do hospital. Havia na vila,
[...] inumeráveis indivíduos necessitados, pobres indigentes, que muitas
vezes perigavam em desamparo e miséria por não haver um hospital público
em que fossem recolhidos e tratados com os socorros necessários em suas
enfermidades; sucedeu então que algumas pessoas particulares conduzidas
pela caridade e religião edificaram por meio de esmolas um pequeno
edifício, com sua capela, debaixo do nome de Casa de Caridade, em o qual
comodamente se amparam e recolhem pequeno número de pobres
desvalidos, não sendo suficiente contudo para acomodar e recolher a todos
aqueles necessitados que concorrem a procurar ajuda e remédio em seus
males, tanto pela falta de maior comodidade de camas e roupas necessárias
para o seu alojamento, como também, para necessária sustentação diária, a
qual porque tudo o mais depende da incerteza das esmolas que
voluntariamente querem dar alguns devotos, não havendo então piedoso
negócio, um ponto regular e fixo de estabelecimento enquanto se não
assentar e propuser debaixo de uma determinada contribuição de rendimento
que devem os povos daquele Termo concorrer com este subsídio piedoso,
imposto sobre gêneres, criações, vendagens ou (ilegível) que forem mais
próprios, adequados e sem prejuízo, vexame dos povos, permitindo Vossa
Alteza Real ao corpo daquela mara da Vila de São João autoridade e
poder para impor e regular aquele piedoso subsídio pelo modo e meio que
mais justo e acertado for, atento ao justado fim que se propõem.
472
Em 13 de julho de 1805, outra representação foi redigida pela Câmara sanjoanense ao
Governador da Capitania, para ser endereçada à Corte, rogando soluções para a autorização da
edificação de um hospital para acolher os lázaros e os doentes de outras moléstias contagiosas
que residiam na vila. O documento reflete o temor da população quanto ao aumento e à
proliferação dessas doenças naquela localidade.
471
ALVARENGA, Luís. Op. cit., p. 41.
472
BMBCA-SJDR Arquivo da Câmara Municipal de São João del-Rei: LAD 93 - Livro de leis, alvarás e
decretos 93, pp. 31-32 frente e verso.
161
Ilustríssimo e excelentíssimo Senhor. Foram tão repetidos e multiplicados os
clamores e queixas dos povos deste Termo respeito a liberdade e licença
com que vivem as pessoas lazarentas que sem cautela, nem temor de
infeccionar os mais, caminham impunemente pelas ruas, habitação, comem e
bebem sem reserva nas casas dos particulares, entram de mistura nos
templos, onde por (ilegível) passam a lavar as chagas em água benta,
passando de mais a mais os dois sexos a terem entre si criminosos tratos, que
bem depressa passam a aumentar o número dos desgraçados, de sorte que
não há rua, casa, família, que se não lamente dessas vítimas sacrificadas pela
imprudência,[...] nos obrigou a recorrer a Sua Alteza Real, suplicando o
estabelecimento e ereção de um hospital em que se pudesse acolher tantos
infelizes, assim em utilidade própria como em benefício e reparo da saúde
pública. Porém Senhor, a decisão desta graça anos impetrada, não chega.
O mal caminha arrebatadamente a atacar e atacando a todos em geral; todos
tremem e o povo cordato, que cada dia levanta novos clamores, reiterando as
suas queixas a esta Câmara, ajuntam estas com as de Manuel de Jesus Fortes,
que nesta vila tem estabelecido um hospital público para os pobres enfermos
de outras moléstias, suplica e lembra a indispensável necessidade que do
estabelecimento de semelhante hospital à face dos documentos e atestações
que apresentou e de que nós temos a honra de pôr na respeitável presença de
Vossa excelência. Aquele povo e este caritativo homem, trementes e
assustados à vista dos progressos, estragos, que tem feito este contágio
funesto nada poupam em si para suspender os efeitos deste mal comum. Eles
voluntariamente se comprometem a concorrer com esmolas e donativos
segundo as suas profissões para a ereção e fabricamento de uma casa e
hospital cômodos para tantos miseráveis [...].
473
As representações confirmam o que a historiografia tem salientado para os séculos
XVIII e XIX, em relação à precariedade nos serviços de saúde nas regiões interioranas de
Minas Gerais. Tais serviços não acompanhavam o mesmo ritmo do crescimento populacional,
eram insuficientes. Os documentos deixam claro, ainda, que na Vila de São João del-Rei, no
começo do oitocentos, o número de doentes, especialmente aqueles com moléstias
contagiosas era grande. Esse quadro crescente na localidade causava enorme temor entre a
população, que suplicava rápidas providências às autoridades. A licença para a construção do
lazareto foi concedida, assim como a autorização à Câmara para o recolhimento de
contribuições da população em prol da ampliação do hospital.
474
Não sabemos se, com essas
medidas, todos os problemas foram solucionados, mas parece ter servido para aliviar a
população aflita.
Poucos anos mais tarde, novos problemas de saúde voltaram a preocupar a população
e as autoridades, pois se elevou significativamente o número de mortos na vila. Em 1808,
grassou nela uma epidemia. Sebastião de Oliveira Cintra registrou as providências da Câmara
473
BMBCA-SJDR Arquivo da Câmara Municipal de São João del-Rei: LAD 92 - Livro de leis, alvarás e
decretos 92, pp. 375-376 frente e verso.
474
BMBCA-SJDR Arquivo da Câmara Municipal de São João del-Rei: LAD 93 - Livro de leis, alvarás e
decretos 93, pp. 28 (verso), 29-31 (frente e verso).
162
para combater a “mortífera doença”. No dia 2 de setembro de 1808, a instituição convocou
professores de cirurgia e medicina para indicar meios para o combate a tal epidemia. Por
edital, a Câmara deu publicidade às seguintes medidas, assinadas pelos ditos professores:
“[...] fogueiras todas as noites, nas quais seriam queimadas ervas aromáticas (rosmaninho,
manjericão do campo, pinheiros, coqueiros da serra e sassafrás); queimar pólvora em casa;
lançar vinagre em ferro em brasa; tomar ponches e vinagradas quentes; usar vegetais
adubados com bastante vinagre”.
475
O autor das efemérides não revelou qual era a epidemia e
não encontramos sobre ela documentação comprobatória. No entanto, temos duas hipóteses:
pode ter sido a epidemia de varíola (conhecida como bexiga) ou de malária. A varíola atacou
de forma epidêmica durante a primeira metade do século XIX, principalmente nas regiões
onde havia um grande número de escravos. Os negros vindos da África eram portadores da
doença e passaram, em 1804, a receber vacina para controlar a transmissão da moléstia.
476
Quando não vinham vacinados da sua região de procedência, eram obrigados a recebê-la aqui
no Brasil. Porém, os primeiros tempos da campanha não foram muito eficazes. Mary Karasch
salienta que muitos negros deixaram de ser vacinados e isso acarretou maior proliferação da
doença não no Rio de Janeiro como nas regiões para onde esses escravos eram destinados.
“Em 1848, embora mais de 60 mil africanos tenham sido importados para o Rio e suas
proximidades, havia apenas 2.373 vacinações de escravos documentadas. Além disso, menos
de 1.600 cativos foram vacinados a cada ano fiscal, de julho de 1849 a junho de 1852”.
477
A
varíola é uma doença infectocontagiosa, exclusiva do ser humano. É transmitida de pessoa
para pessoa por meio de convívio e, geralmente, pelas vias respiratórias (gotículas de saliva e
aerossóis).
478
Embora a varíola tenha sido epidêmica na primeira metade do XIX, acreditamos que o
surto mais provável a que se referiu o autor das efemérides, para o ano de 1808, era a de
malária
479
. Diante das medidas de combate divulgadas pela Câmara para aquele ano, cremos
que se tratava de doença transmitida por mosquitos. Mary Karasch afirma que a malária, em
suas diversas formas, desencadeou grandes epidemias na primeira metade do século XIX.
480
A transmissão da doença passava de pessoa para outra através da picada de mosquitos que
475
CINTRA, Sebastião. Op. cit., pp. 365 e 427.
476
Sobre a varíola no oitocentos, ver CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte
Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
477
KARASCH, Mary. Op. cit., p. 216.
478
CHALHOUB, Sidney. Op. cit., p. 126.
479
A palavra malária é de 1829. Antes dessa data, usava-se o termo “febres remitentes, intermitentes e
perniciosas”. KARASCH, Mary. Op. cit., pp. 217-218.
480
Idem, ibidem, p. 218. Era pouco provável que tal epidemia fosse de febre amarela, pois essa doença se tornou
epidêmica no Brasil a partir de 1850, pp. 222-223; e CHALLOUB, Sidney. Op. cit., cap. 2.
163
costumam ficar no interior das habitações, embora pudesse ocorrer também ao ar livre.
Segundo a autora, a malária causava febres cotidianas que podiam levar à morte. O indivíduo
portador da doença podia ter danos no cérebro, no fígado, no baço e no estômago. Eram
comuns as pequenas hemorragias no cérebro, manifestações intestinais e outros sintomas,
como náuseas, vômitos, diarreia, bronquite, delírios e icterícia.
481
Karasch chama a atenção
para a dificuldade de se detectar, nos documentos do século XIX, a malária como causa
mortis dos indivíduos. Tendo em vista que a moléstia deixava a pessoa vulnerável à infecção,
os médicos, ao assinarem o óbito do paciente, registravam a causa mortis como sendo de
outras doenças, como febre, doença do pulmão, do estômago ou do fígado, disenteria.
482
Em São João del-Rei, infelizmente, não encontramos registros de entrada e saída de
pacientes na antiga Casa de Caridade. Os primeiros registros existentes do hospital datam de
1817, quando o estabelecimento se tornou Santa Casa de Misericórdia. Há um estudo feito por
Natália Cristina Silveira, nos primeiros livros de entrada de doentes, que privilegia a primeira
metade do oitocentos – 1817 a 1838. A maioria dos pacientes estava na faixa etária dos 10 aos
45 anos (44%), depois os considerados velhos (mais de 45 anos) 28%, e por último as
crianças. Durante o período, apenas 20% dos pacientes faleceram. A pesquisadora não
enumera a causa mortis dos pacientes, mas faz um levantamento das doenças mais comuns
tratadas no hospital naquela época.
483
Como mencionamos anteriormente, os documentos do
século XIX não traziam com exatidão a tipologia científica das doenças. Muitas enfermidades
eram registradas pelos sintomas que causavam. Por essa razão, os dados apresentados por
Natália Silveira dão a denominação genérica de “estado de enfermidade” à doença mais
comum no hospital. Porém, nessa denominação estão sintomas como febre, tumor, úlcera,
ferida, fístula e edema. No ranking das dez doenças mais frequentes apontadas pela autora,
em segundo lugar aparece a doença venérea, depois, a do pulmão, a bouba, a do estômago, a
do fígado, a disenteria, a hidropsia, a lepra e a loucura, respectivamente. Nota-se que as
complicações causadas pela malária aparecem entre as doenças mais comuns verificadas na
Santa Casa de São João del-Rei naquele período: o sintoma da febre, as doenças do pulmão,
do estômago e do fígado.
484
Quanto à questão dos óbitos, para o Termo de São João del-Rei fizemos um
levantamento dos registros de 1782 a 1822. Os gráficos abaixo demonstram o crescente
481
Idem, ibidem, p. 219.
482
Idem, ibidem, p. 220.
483
SILVEIRA, Natália Cristina. Santa Casa de Misericórdia de São João del-Rei e o assistencialismo na
Comarca do Rio das Mortes (1783-1846). Monografia de s-Graduação Lato Sensu em História de Minas
séculos XVIII e XIX. Departamento de História da UFSJ, 2004.
484
Idem, ibidem, pp. 49-53.
164
número de mortes nos anos finais do século XVIII e primeiros do XIX, o que justifica a
preocupação da população naquele período. Nota-se o grande aumento a partir da última
década do setecentos que continua na primeira do século seguinte, até o ano de 1809, quando,
então, constata-se uma diminuição. Em razão da ausência de informação nos registros de
óbito em relação à causa mortis dos indivíduos, optamos por apresentar os dados em forma de
gráficos, para melhor visualização comparativa.
GRÁFICO 1Registros de óbitos no termo de São João del-Rei – 1782 a 1800
GRÁFICO 2 – Registros de óbitos no termo de São João del-Rei – 1801 a 1822
Fonte dos gráficos: APNSP-SJDR – Assentos de óbitos da Matriz do Pilar de São João del-Rei.
485
Inocente – até 12 anos.
Não foram encontrados registros para os anos de 1815, 1816 e 1817.
485
Banco de dados elaborado no projeto de pesquisa “Sociabilidades e Identidades : negros, afrodescendentes e
mestiços no termo da Vila de São João del-Rei – séculos XVIII e XIX”, citado na introdução deste trabalho.
0
50
100
150
200
250
300
350
400
1782 1784 1786 1788 1790 1792 1794 1796 1798 1800
Inocente
Adulto
0
50
100
150
200
250
300
350
400
1801 1803 1805 1807 1809 1811 1813 1818 1820 1822
Inocente
Adulto
165
De 1782 a 1800 foram registrados 6.644 óbitos, sendo 2.175 (32,7%) de crianças e
4.469 (67,3%) de adultos. Em nenhum registro das crianças consta a causa mortis. nos dos
adultos, apenas em 383 (8,6%) consta essa causa, sendo que apenas 20 (5,2%) tiveram morte
originada por doença” ou “moléstia”, sem especificações.
486
entre 1801 e 1822, 6.130
óbitos foram registrados. Destes, 2.058 (33,5%) eram de crianças e 4.072 (66,4%) de adultos.
Apenas em 55 (2,7%) dos registros das crianças consta a causa da morte, sendo que por
doença foram 54
487
, isto é, 98,2%. Entre os adultos, somente 329 (8,1%) registros declaram a
causa, sendo que 54
488
(16,4%) destes têm uma doença ou uma moléstia como causa do
falecimento.
489
O número de registros de óbito que declaram a causa não é suficiente para
analisarmos a situação das doenças naquela localidade e seu impacto entre a população. A
ausência de informação ao registrar o motivo do falecimento no caso de doenças parece ter
sido pela própria dificuldade em diagnosticá-la. Como vimos, muitas pessoas morriam sem
mesmo ter atendimento médico adequado ou oportunidade de internamento num hospital,
especialmente no final do século XVIII. Somente a partir do século XIX isso foi possível,
quando as providências em relação à saúde pública no termo sanjoanense foram mais
ampliadas e efetivas (criação do lazareto, por volta de 1810; fundação da Santa Casa de
Misericórdia, em 1817; e a contratação de mais médicos). Os dados dos gráficos confirmam o
que mais aterrorizava a população naquele período, a morte. Os documentos tramitados com
Lisboa demonstram que a falta de controle sobre as doenças naquele tempo podia ser a
principal causa de tantos óbitos.
O que pretendemos demonstrar com tudo isso é que a vida cotidiana daquela
população, considerando a década final do XVIII e o início do XIX, marcada pela
preocupação com a saúde e/ou com a ausência dela, foi contexto propício para a difusão de
uma devoção como a de Nossa Senhora dos Remédios que, se era popular entre os negros,
ganhou notoriedade também entre dos brancos. Ao analisarmos os livros de entrada de
membros da Irmandade do Rosário de São João del-Rei podemos estabelecer uma
comparação entre as décadas desse período e confirmar a popularidade da devoção. Vejamos
isso através do gráfico abaixo.
486
Nos registros desse período, referentes às doenças da causa mortis, não nenhuma descrição específica da
enfermidade ou sintomas. As outras causas de morte se referem a falecimento repentino, acidentes e
assassinatos.
487
Variadas doenças, sendo as mais recorrentes sarampo, refluxo e lombrigas.
488
Maior número de pessoas com diagnóstico de febre – 26 (48%). Os outros 52% estavam distribuídos nos mais
variadas tipos de doenças ou sintomas como hidropisia, dor de cabeça, cólica, sarampo, bexiga, sarnas, lepra,
inflamação e refluxo.
489
Também para a primeira metade do XIX, entre os demais registros que declararam a causa da morte estão:
morte repentina, acidentes e assassinatos.
166
GRÁFICO 3 - Irmãos que declararam a devoção ao registrar sua entrada na Irmandade
do Rosário em São João del-Rei – 1761 a 1850
Fonte: AIRSJDR Livros 17, 20 e 23 Termo de entrada dos irmãos na Irmandade do Rosário de São João del-Rei
(1747-1859).
O número de devotos, a partir de 1791, que declararam a devoção à Virgem dos
Remédios chega a patamares bem expressivos em relação às outras. Na década seguinte, a
diferença é ainda maior. Entre 1811 e 1820, quase não encontramos registros de entrada de
irmãos, por isso os números são tão inexpressivos. Mas, entre 1821 e 1830, vemos ainda a
grande popularidade da santa dos Remédios na irmandade, que, nos anos de 1831 a 1850, fica
mais regular com as outras devoções.
Diante de todas as constatações, chamamos a atenção para a questão do dinamismo e
da complexidade da religiosidade nas sociedades brasileiras. Os símbolos devocionais podem
ter significados diferentes para os grupos que o identificam, dependendo da região, da
temporalidade e dos interesses em jogo. Em São João del-Rei, Nossa Senhora dos Remédios,
provavelmente, foi escolhida pelo simbolismo da liberdade na estruturação do seu culto, em
meados do século XVIII, pois, naquele momento, a identificação dos fiéis com a santa se
orientou mais pelos critérios de diferenciação social. Atendia a um crescente número de
crioulos e de libertos na irmandade. Porém, o aspecto figurado de liberdade não ficou restrito
àquele momento nem àqueles grupos. Em relação ao simbolismo da saúde, presente na
devoção, parece ter ele acionado outras possibilidades para a conquista de distinção e de
liberdade. Como vimos, a saúde foi um elemento de bastante preocupação na região, uma vez
que havia uma constante situação de doenças entre os habitantes, especialmente entre os
pobres, agravada no final do culo XVIII e início do XIX, com o aumento de moléstias
contagiosas e a epidemia de 1808. Portanto, esse motivo reuniu, num mesmo grupo,
0
20
40
60
80
100
1761/ 70 1781/ 90 1801/ 10 1821/ 30 1841/50
Remédios
Rosário
S. Benedito
S. Antônio
S.Domingos
S. Catarina
S.Vicente
167
indivíduos diversos, como os negros, brancos, escravos e livres. Entre os negros pode ter
significado uma possibilidade de recriações culturais, com base nas recordações de alguns
valores da África. Porém, para esses, os significados podiam ser ainda maiores. Negros e
brancos em torno de um mesmo orago pode ter expressado uma relação simbólica de
parentesco, especialmente se esse branco fosse um indivíduo de bastante prestígio naquela
sociedade.
Como descrevemos no início deste capítulo, devotos como o Capitão José Dias de
Oliveira e sua esposa, Dona Matilde Jesuína da Conceição, brancos e abastados, tornaram-se
muito comuns no culto a Nossa Senhora dos Remédios. Quando membros da instituição,
esses senhores costumavam patrocinar a filiação de seus escravos à irmandade junto à mesma
devoção. Por que faziam isso?
A nosso ver, tal atitude poderia remeter-nos à questão de alianças em torno de alguns
símbolos no caso, a santa que expressariam relações simbólicas de parentesco entre
potentado e pretos. Tais patrocínios poderiam perpassar pela formação de redes
clientelares.
490
Tendo Nossa Senhora dos Remédios como devoção comum junto com seu
senhor, escravos poderiam distinguir-se, ao mesmo tempo dentro da irmandade e fora dela.
Isso os tornaria diferentes dos demais cativos, pois lhes garantiria maior status ou hierarquia
na irmandade e ainda poderia representar algum tipo de proteção ou concessão. Cabe lembrar
que esses senhores simbolizavam o só a categoria de fortunas, mas também a de círculo de
poder na vila ou na capitania. Alguns deles, com o título de alferes, capitão ou tenente, tinham
legitimidade, dada pela monarquia, portanto, podiam exercer influência maior em
determinados assuntos de interesse dos negros. Como apontamos ao longo deste trabalho, era
frequente no interior da irmandade a formação de redes de sociabilidades, muitas delas foram
clientelares. As relações simbólicas de parentesco, firmadas entre potentados e pretos ao redor
da santa dos Remédios, poderiam constituir mais uma estratégia dos negros para garantir a
diferenciação. Isso explicaria também o significativo número de cativos junto à devoção.
Desse modo, a distinção não seria somente entre forros e crioulos em relação aos
pretos, mas sim em torno daqueles que pactuavam a partir da devoção em específico (Nossa
Senhora dos Remédios) e o que ela significava em termos dos arranjos que propiciava.
490
Ver FRAGOSO, João Luiz Ribeiro. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do
Rio de Janeiro (1600-1750). In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antônio
Carlos Jucá de. Conquistadores e Negociantes: história de elites no antigo regime nos trópicos, América lusa,
séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 33-120.
168
ANEXOS
169
IMAGEM 1 (A) – N. Sra. dos Remédios, Igreja do Rosário de São João del-Rei – sécs.
XVIII e XIX
Fonte: acervo da autora – foto tirada em 06/05/2010
170
IMAGEM 1 (B) – N. Sra. dos Remédios, Igreja do Rosário de São João del-Rei – sécs.
XVIII e XIX (destaque atributos)
Fonte: acervo da autora – foto tirada em 06/05/2010.
171
IMAGEM 2 – Nossa Senhora dos Remédios na Igreja de Parati – século XVII
Fonte: BPELB–BH - SANTA MARIA, Frei Agostinho de. Santuário Mariano e história das
imagens Milagrosas de Nossa Senhora. Tomo décimo e último. Rio de Janeiro: INEPAC, 2007.
172
IMAGEM 3 – Nossa Senhora dos Remédios na Igreja de Parati – século XIX
Fonte: www.igrejaparati.com.br – acesso em 30/05/2010
173
IMAGEM 4 – Nossa Senhora dos Remédios do Santuário de Lamego – Portugal
Fonte: www.igrejaparati.com.br – acesso em 30/05/2010
174
IMAGEM 5 – Nossa Senhora dos Remédios, padroeira da Ordem Trinitária com a cruz
azul celeste e vermelha ao peito
Fonte: www.estudantestrinitarios.blogspot.com – acesso em 30/05/2010
175
CONCLUSÃO
A dinâmica da vida cotidiana no
Antigo Regime Ibérico orientava-se por uma
perspectiva de mundo permeada por noções religiosas do catolicismo. Um indivíduo, por
exemplo, estaria integrado ao corpo social daquela sociedade se fosse católico, e teria
acesso a cargos públicos, eclesiásticos e a títulos honoríficos, se fosse, pelo menos, um
cristão-velho.
Nessa sociedade, imperava uma noção ligada à ideia de diferença e de pretensa
desigualdade natural entre os homens. As distinções sociais eram baseadas em critérios de
“pureza” e “impureza” de sangue, que desencadearam formas de estratificação social,
fundamentadas em estigmas relacionados à ascendência dos indivíduos. Tal noção foi
transplantada para o universo colonial, porém de forma modificada, pois seguiu as condições
específicas de um sistema escravocrata, no qual as noções de distinção deixaram de ser
pautadas apenas pelos critérios relacionados aos estigmas sobre a ascendência judaica,
mourisca e indígena, e passaram a incluir a noção do “sangue mulato impuro”, isto é, do sinal
infamante do indivíduo descendente do escravo africano.
491
O novo critério discriminatório da “impureza do sangue mulato” era um mecanismo
destinado a conter as pretensões de distinção social de pessoas livres “de cor”, nascidas na
América Portuguesa, que ganhavam peso, à medida que o número de alforrias aumentava
nesse contexto.
Seguindo os critérios hierárquicos do período, inauguraram-se as irmandades em São
João del-Rei, divididas entre as chamadas de pretos, brancos e pardos. Mergulhar na
documentação das irmandades daquela localidade permitiu-nos ver como os critérios de
distinção foram utilizados, revelando-nos que os agrupamentos das instituições nem sempre
seguiram uma forma absoluta de estratificação, como as de pretos, brancos e pardos, mas
apresentaram configuração mais complexa, em que, por exemplo, inúmeros pardos, forros e
até brancos podiam estar juntos na irmandade dos pretos.
Percebemos que situações diversas podiam influir na capacidade de organização dos
grupos e de mobilização em defesa de seus interesses. Os mesmos critérios da dinâmica
organizacional associativa eram sentidos no interior das confrarias. Na Irmandade do Rosário
sanjoanense, os diversos grupos distintos, reunidos na instituição, vivenciaram processos de
491
MATTOS, Hebe. Op. cit.(2000).
176
negociação e legitimação, com a finalidade de preservar hierarquias, poder, representatividade
e identidades. Várias estratégias fizeram parte desse processo, entre elas, as eleições e as
festas anuais, a instituição de reinados, a organização de congregações, as redes clientelares e
a escolha da devoção. Essa última se colocaria como um dos elementos possíveis da
construção de representações sociais, por se apresentar como um dos principais mecanismos
de distinção do grupo em meio aos demais. A pesquisa demonstrou que Nossa Senhora dos
Remédios pode ter sido escolhida pelos devotos que buscaram um sentido mais prático em
relação à sua condição (escrava ou liberta) e às suas pretensões (liberdade, proteção),
diferente daqueles que pactuavam o culto dos demais santos, até então estruturados na
associação Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santo Antônio de Catalagerona
mais ligados ao estigma do cativeiro.
O sentido prático pode ter sido acionado, tanto pelo aspecto simbólico da redenção de
cativos e da liberdade, quanto pelo simbólico da saúde, conferidos à invocação. A insígnia de
liberdade pode ter sido grande atrativo de africanos libertos e crioulos dentro da irmandade,
sobretudo na época de estruturação do culto, quando esse grupo emergente buscava
diferenciação em relação aos cativos. Contudo, a questão da distinção se apresenta de forma
muito mais complexa, quando, ao caminhar no tempo, o negro descobre novos meios de
garantir maior legitimidade social. A liberdade continuaria em voga, mesmo quando o
simbolismo da saúde acionava a identificação daqueles membros.
A busca pela sanidade física transformou o grupo mais diversificado em torno da
devoção. Esse conjunto de relações sociais, formado pelos encontros entre escravos, forros e
livres, possibilitou arranjos parentais rituais ou fictícios, que podiam encerrar determinada
cadeia hierárquica. O parentesco entre potentados e pretos, formado a partir da aliança em
torno de Nossa Senhora dos Remédios, garantia a esses últimos a diferenciação que
desejavam, não dentro da irmandade como também fora dela. Nesse sentido, a distinção
social estaria demarcada em torno daqueles que pactuavam a partir da devoção, em específico
no caso de Nossa Senhora dos Remédios, e o que ela podia denotar em termo dos arranjos que
proporcionava.
O culto dos santos significou, portanto, uma linguagem para expressar ideais de
distinção, compartilhados por homens e mulheres, que buscavam mecanismos de integração
em um meio social permeado de diferenças e desigualdades. Por mais que as formas de
recepção do culto se tenham adequado aos preceitos da Igreja, africanos e seus descendentes
souberam, com criatividade, apropriar-se do culto católico e reconstruí-lo, com base na
experiência do cativeiro e nas recordações memoriais das diversas culturas africanas, que aqui
177
chegaram. As várias possibilidades de apropriação da figura do santo pelos fiéis dão ao
fenômeno devocional um caráter efetivamente histórico, devendo ser compreendido em meio
às injunções do tempo, do contexto e das segmentações socioculturais de uma sociedade.
178
FONTES MANUSCRITAS
1 Arquivo da Irmandade Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei AINSR-
SJDR
1.1 Livros de entrada de irmãos na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João
del-Rei (1747-1859) – livros 17, 20 e 23.
1.2 Livros de Receitas e Despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João
del-Rei (1803-1830) – livro18.
2 – Arquivo da Paróquia Nossa Senhora do Pilar de São João del-Rei – APNSP – SJDR
2.1 Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João del-
Rei, 1786.
2.2 - Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês de São João del-Rei,
1806.
2.3 Livros de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-
Rei, 1787, 1841 e 1903.
2.4 - Livro de Compromisso da Irmandade de São Gonçalo Garcia de São João del-Rei, 1851.
2.5 - Livro de Compromisso da Irmandade do Senhor dos Passos de São João del-Rei, 1733.
2.6 Livro de Receitas e Despesas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João
del-Rei (1831-1844) – sem número.
2.7 – Registros de batismo na Matriz do Pilar de São João del-Rei.
2.8 – Registros de casamento na Matriz do Pilar de São João del-Rei.
2.9 – Registros de óbito na Matriz do Pilar de São João del-Rei.
3 Biblioteca Municipal Batista Caetano de Almeida em São João del-Rei BMBCA -
SJDR
3.1 Livro de Leis, Alvarás e Decretos da Câmara Municipal de São João del-Rei LAD 92
(1801-1805).
3.2 Livro de Leis, Alvarás e Decretos da Câmara Municipal de São João del-Rei LAD 93
(1805-1814).
179
4 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de São João del-Rei IPHAN
– SJDR
4.1 – Inventários post mortem de São João del-Rei.
4.2 – Testamentos de São João del-Rei.
5 – Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU – Documentação manuscrita
avulsa da Capitania de Minas Gerais
5.1 Requerimento dos oficiais e irmãos da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês a pedir
licença para poderem dizer missa nas capelas da mesma invocação nas Minas Gerais, nas
Vilas de São João del-Rei, São José do Rio das Mortes e em outras. Em anexo, 1 carta, 1
provisão e 1 representação, 3/1979. AHU – Conselho Ultramarino – Brasil/MG – Cx. 74, doc.
85.
5. 2 Representação da corporação da Irmandade de São Gonçalo Garcia, erguida pelos
pardos da Vila de São João del-Rei, solicitando a D. Maria I a mercê de conceder à referida
irmandade o poder de libertar os seus irmãos e irmãs, que fossem escravos, pagando uma
indenização a seus donos, 22/08/1786. AHU – Conselho Ultramarino Brasil/MG Cx. 125,
doc. 20.
5. 3 Requerimento dos irmãos da Irmandade de São Gonçalo Garcia da Vila de São João
del-Rei, solicitando a D. Maria I a mercê de ordenar que se lhes remetessem o seu
Compromisso, que se achava no Conselho Ultramarino, a fim de requererem a sua aprovação
régia. Em anexo, 1 requerimento e 1 representação, 27/09/1786. AHU Conselho
Ultramarino – Brasil/MG – Cx. 125, doc. 48.
5.4 Requerimento do juiz e dos irmãos da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte dos
Homens Pardos da Vila de São João del-Rei, solicitando a confirmação do Compromisso da
Irmandade, 21/02/1791. AHU – Conselho Ultramarino – Brasil/MG – Cx. 136, doc. 10.
5.5 Requerimento dos irmãos da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, sita na Igreja
Matriz da Vila de São João del-Rei, do Rio das Mortes, Bispado da cidade de Mariana,
solicitando licença para construir a sua igreja dentro do território da mesma vila. Em anexo, 3
requerimentos e 1 certidão, 17/11/1796. AHU Conselho Ultramarino Brasil/MG Cx.
142, doc. 47.
5. 6 Representação da mesa e de toda a corporação da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos da Vila de São João del-Rei, Comarca do Rio das Mortes,
queixando-se do Reverendo Joaquim Mariano da Costa, 5/04/1807. AHU Conselho
Ultramarino – Brasil/MG – Cx. 183, doc. 47.
180
FONTES IMPRESSAS
1 Arquivo da Irmandade Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei AINSR-
SJDR
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________. Vol. 3, registro 2396.
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