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UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR
MESTRADO EM FAMÍLIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
MARLENE BRITO DE JESUS PEREIRA
GÊNERO COMO VARIANTE DO MICROPODER FAMILIAR
SALVADOR
2010
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1
UCSAL. Sistema de Bibliotecas
P436 Pereira, Marlene Brito de Jesus.
Gênero como variante do micropoder familiar/ Marlene Brito de Jesus
Pereira. – Salvador, 2010.
114 f.
Dissertação (mestrado) - Universidade Católica do Salvador.
Superintendência de Pesquisa e Pós-Graduação. Mestrado em
Família na Sociedade Contemporânea.
Orientação: Prof. Dr. José Euclimar Xavier de Menezes.
Linha de Pesquisa: Família e Subjetividade.
1. Família 2. Gênero 3. Poder 4. Desigualdades 5. Psicologia -
Relação
familiar I. Título.
CDU 316.356.2
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MARLENE BRITO DE JESUS PEREIRA
GÊNERO COMO VARIANTE DO MICROPODER FAMILIAR
Dissertação apresentada à Universidade Católica do
Salvador como requisito parcial para obtenção do
título de Mestra em Família na Sociedade
Contemporânea.
Orientador: José Euclimar Xavier de Menezes
Salvador
2010
3
BANCA EXAMINADORA
Dissertação apresentada a Universidade Católica do Salvador como requisito parcial para
obtenção do título de Mestra em Família na Sociedade Contemporânea, à seguinte Banca
Examinadora:
MARY GARCIA CASTRO
Mestra em Sociologia da Cultura – Universidade Federal da Bahia - BR
Mestra em Planejamento Urbano e Regional – Universidade Federal do Rio de Janeiro - BR
Doutora em Sociologia – University of Florida - EUA
MARIA GABRIELA HITA
Mestra em Ciências Sociais – Faculdade Latino Americana de Ciência Sociales - MÉXICO
Doutora em Ciências Sociais – Universidade Estadual de Campinas – São Paulo - BR
Pós doutorado em Sociologia – Manchester University – Grã- Bretanha - REINO UNIDO
JOSE EUCLIMAR XAVIER DE MENEZES
Mestre em Filosofia da Psicanálise – Universidade de Campinas – São Paulo - BR
Doutor em Filosofia – Universidade Estadual de Campinas – São Paulo - BR
Pós doutorado em Filosofia – Universitate Lateranense de Roma - ITÁLIA
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DEDICATÓRIA: Dedico este trabalho às famílias, mas, sobretudo, aos
homens e mulheres que nutrem o sentimento de ficar juntos, e constroem
suas histórias, com amor e respeito por si próprios.
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AGRADECIMENTOS
Não contradição em supor que todo objeto de pesquisa pressupõe o interesse por um tema
a ser investigado e que tal interesse, não raro, se constrói a partir das histórias e experiências
vividas pelas (os) pesquisadoras (es).
Das experiências vividas lembro-me que na minha infância era comum nas reuniões em
família ou festas comemorativas mulheres e homens se separarem para realizar tarefas: as
mulheres costumavam ir para a cozinha e os homens ficavam nos arredores da casa, caso
fosse necessário sair para comprar algo que estava faltando para os preparativos da festa. Mas,
o mais comum era ver os homens no pátio da casa jogando dominó ou “batendo bola”. Não
havia nada de errado em tais práticas, nem havia queixa das mulheres por parte dos homens.
Mas havia uma grande repreensão se alguma mulher tivesse interesse em participar do jogo de
dominó, ou “bater bola”. A coisa ficava pior se fosse junto com os homens.
Muito embora no dia a dia e na rotina de vida, as mulheres e homens da minha família
tivessem tarefas bem especificas acerca do que seria “tarefas de homem” e “tarefas de
mulher”, aos meus 12 anos (final da década de 70), era nas reuniões festivas, devido a um
grande contingente de pessoas juntas, de diferentes gerações, que tal realidade ficava mais
evidente e costumava me intrigar: não entendia porque os homens não podiam ficar na
cozinha e as mulheres “bater bola” ou ambos fazerem as duas coisas, caso desejassem. As
condutas marcadas por determinações com base no gênero masculino e gênero feminino,
sobre o que deveria ser ‘tarefa de mulher’ e ‘tarefa de homem’ não tinha lógica no meu
pensamento. Assim como também não havia nenhuma explicação que justificasse o fato da
mulher prestar obediência ou ser submissa ao homem. Na minha adolescência acreditava que
havia algo de errado em tais condutas.
Mas as situações vividas também mostraram que as relações entre homens e mulheres podem
ser vividas sem grandes conflitos quando não o maniqueísmo que faz aparecer dois lados
em contraposição permanente. diferenças fundamentais em ser macho e fêmea, em ser
feminino e masculino, e tais diferenças dão sentido as relações que estes estabelecessem. Mas
se tais diferenças são interpretadas de modo que favorece desigualdades, em que um sexo ou
gênero se sobrepõe ao outro, deve-se questionar a interpretação ou o uso que se faz delas.
Entende-se, portanto, que as desigualdades engendradas por classificações ideológicas que
determinam as condutas de ser mulher, ou de ser homem constrangendo os sujeitos, estão
extremamente relacionadas aos conflitos de gênero.
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Desde da infância até o período em que me tornei psicóloga, houve mudanças significativas
nas relações entre homens e mulheres e novos modelos familiares foram constituídos,
rompendo com os padrões em que o homem centra sobre si a autoridade familiar. Mas ainda
se faz pertinente questionar relações familiares que determinam as suas condutas através do
maniqueísmo que determina a divisão sexual do trabalho e instaura nas relações interpessoais
estereótipos de gênero.
Através de experiências relatadas por homens e mulheres acerca das suas relações
interpessoais e familiares, no cotidiano das práticas de trabalho clínico em psicologia, pude
conhecer relatos de vida que evidenciaram disputas de poder, autoritarismo, submissão e
violência. Em destaque, relatos em que mulheres sofreram de violência familiar perpassando
gerações. Tais mulheres relataram sofrer violência psicológica e física dos seus maridos,
namorados ou parceiros. Por outro lado, homens relataram o constrangimento, vergonha e
intolerância de não poder prover a família, de perder a autoridade e não ser mais respeitado
como o “chefe da casa”. Com a escuta sensível pertinente ao exercício da psicologia clínica
parecia possível estabelecer uma estreita relação entre os relatos de vida que demonstravam
sofrimento, com conflitos de gênero engendrados por desigualdades de poder.
Faço essas declarações não para justificar o tema em estudo, mas para evidenciar como as
questões de poder estão fortemente atreladas as relações interpessoais e familiares e como tais
questões participam das questões individuais dos sujeitos humanos. Também não se trata de
propor a eliminação do gênero masculino e do gênero feminino como ponto de resolução de
conflitos relacionados à dissimetria de poder e de desigualdades, mas sim de expor como
estes são utilizados para determinar condutas fazendo-as parecer imutáveis. Como ainda faz
parecer naturais relações fundamentadas em desigualdades.
No resgate da genealogia dos discursos de intolerância e vergonha por parte dos homens;
medo, insegurança e opressão por parte das mulheres. As desigualdades de poder
fundamentadas em ideologias que classificam as condutas em femininas e masculinas e
caracterizam as violências de gênero parecem responder por tais fenômenos.
Ressaltar as conseqüências de modelos familiares que se pautam por condutas de exploração,
dominação que têm sido submetidas às mulheres e a intolerância e vergonha que demonstram
os homens, revela a necessidade de desconstrução de modelos familiares pautados na divisão
sexual do trabalho que atribuí aos sujeitos humanos tarefas que os aprisionam em estereótipos
de gênero.
As experiências vividas me guiaram na percepção de formas relacionais familiares que
promovem sofrimento. Em respeito aos relatos sobre suas vidas, agradeço as mulheres e
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homens que na busca incessante para dar significado as suas condutas e cessar o sofrimento,
reclamam pelo reconhecimento de ser respeitadas e respeitados em suas diferenças, sem o
viés que os classifica e determina suas condutas em padrões hierarquizados.
Acredito que não realização pessoal que se faça possível sem o apoio, a motivação, o
interesse e o respeito do Outro.
E por acreditar nisso quero agradecer ao meu grande amigo de todas as horas, meu marido
Messias por acreditar junto comigo e sempre me apoiar nos caminhos escolhidos. O amigo de
sempre nos momentos difíceis e nas alegrias e conquistas.
A minha filha Bia (em seus 05 anos) pela compreensão nas minhas ausências e motivação em
suas palavras “mamãe como está a sua dissertação, precisando de ajuda?...”
Agradeço aos meus pais biológicos Dejanira e Nelson e do coração Maria José e Augusto (em
memória), por me ensinar a amar a mim mesma e aos outros. Estes por me ensinar a acreditar
que não há verdade absoluta.
Aos meus irmãos e irmãs que sempre me recebem com alegria.
Ao mestre e orientador José Euclimar Xavier de Menezes, agradeço pelo acolhimento,
disponibilidade, interesse, e constante ação motivadora nas idas e vindas do meu percurso. As
pontuações firmes, os elogios nas superações e o reconhecimento das conquistas me fizeram
superar os difíceis momentos de dúvidas e seguir em frente.
A Fundação de Amparo e Pesquisa do Estado da Bahia FAPESB, pelo apoio e incentivo a
pesquisa.
A profa. Dra. Mary Garcia Castro pelo reconhecimento do trabalho ainda na fase de
qualificação e pelas recomendações e sugestões.
A profa. Dra. Maria Gabriela Hita pelo apoio e cuidado nas sugestões e orientações sobre o
trabalho.
As minhas colegas e amigas de caminhada no mestrado Lúcia, Haydée, Fabiana e Suzane, que
nas trocas de ideais trouxeram grandes momentos de alegria.
Aos meus amigos e amigas pela atenção em sempre ouvir os meus questionamentos.
Ao Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea em especial aos
professores:
Elaine Rabinovich, Anamélia Franco, Lúcia Moreira, João Carlos Petrini, Lívia Fialho, Ana
Carvalho e Vanessa Cavalcanti. Agradeço aos funcionários do programa de pós-graduação da
UCSAL, pela atenção de sempre.
A Deus!
Muito Obrigada!
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UM É O OUTRO
O amor ideal, cuja a primeira virtude
é nos proteger contra a solidão,
é geralmente percebido como um diálogo permanente
que tem por fonte o respeito e a ternura pelo Outro,
e se exprime por uma atenção particular para com este [...]
Amo a ti tanto quanto a mim mesmo,
com a condição de que tu me ames,
tanto quanto a ti mesmo.
(ELISABETH BADINTER, 1986, p.203)
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RESUMO
PEREIRA, Marlene Brito de Jesus. Gênero como Variante do Micropoder Familiar, 2010,
114 f. Dissertação (Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea)- Universidade
Católica do Salvador. Salvador, BA.
A família, em sua origem, é tida como matriz fundamental nas relações sociais, na medida em
que se constitui como lócus de transmissão de sentimentos e afetos, como também de
proibições e permissões fundamentadas nas relações de poder. Este estudo teve por finalidade
compreender como tais relações se estabelecem, bem como evidenciar as implicações dos
microexercícios de poder dentro da família. Alicerçada numa abordagem interdisciplinar,
buscou-se construir uma teia argumentativa a partir de reflexões encetadas por saberes e
teorias das ciências humanas e sociais, como a antropologia, a história, a ciência política, a
psicanálise, a psicologia e a filosofia. Os dados utilizados provêm primordialmente da história
da família e da sociedade ocidental-européia. O método utilizado foi à revisão de literatura
sobre família, poder, patriarcado, gênero, feminismo e psicologia. As bases de dados a que se
recorreu advêm de documentos bibliográficos especializados, artigos científicos, teses e
dissertações sobre o tema. Através do trabalho ensaístico pretendeu-se evidenciar que a
família como lócus de controle é fonte de desigualdades e conflitos. O fio condutor do
trabalho foi o conceito de gênero, poder e suas relações com as desigualdades familiares.
Questiona-se a perspectiva da Psicologia, em particular a teoria psicanalítica, frente às
desigualdades de gênero nas relações familiares. Pode-se supor que a família seja um lócus de
controle dos sujeitos que a compõem, dando maior evidência à dissimetria de gênero nas
relações entabuladas, resultando dessa microfísica de poder, tensões e conflitos que
desestruturam a relação familiar. Infere-se, portanto, que através de relações mais equânimes
homens e mulheres possam atenuar desigualdades e conflitos nas relações que estabelecem
tornando a família um genuíno lócus de cuidado.
Palavras chave: Família; Gênero; Poder; Desigualdades; Psicologia.
10
ABSTRACT
PEREIRA, Marlene Brito de Jesus. Gender as a Variation of the Family Micropower, 2010,
114 f. Dissertation (Master’s at Family in the Contemporary Society) - Universidade Católica
do Salvador. Salvador, BA.
The family, in its origin, is had as first basic in the social relations, in the measure where if
constitutes as place of transmission of feelings and affection, as well as of prohibitions and
permissions based on the relations of being able. This study it had for purpose to understand
as such relations if they establish, as well as evidencing the implications of the microexercises
of being able inside of the family. Anchored in a boarding to interdisciplinary, one searched
to construct argumentative a from reflection found for knowing and theories of sciences
social human beings and, as the anthropology, the history, the science politics, the
psychoanalysis, the psychology and the philosophy. The used data primordially come from
the history of the family and the society occidental European. The used method was the
revision of literature on family, power, patriarchate, gender, feminism and psychology. The
databases the one that if it appealed happen of specialized bibliographical documents,
scientific, thesis articles and dissertation on the subject. Through the assay work the family
intends itself that as place of control is source of inequalities and conflicts. The link of the
work is the concept of gender, power and its relations with the family inequalities. It of
Psychology, in particular is questioned perspective the psychoanalysis theory, front to the
inequalities of sort in the family relations. As hypothesis, it is considered that the family is
one place of control of the citizens compose that it, giving bigger evidence to the difference of
gender in the ground relations, resulting of this microphysics of being able, tensions and
conflicts that unbalanced the familiar relation. It is inferred, therefore, that through relations
more equality men and women can attenuate the inequalities in the relations that establish
becoming the family genuine place of care.
Key words: Family; Gender; Power; Inequalities; Psychology.
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SUMÁRIO
RESUMO
INTRODUÇÃO…………………………...……………………………………............…....12
CAPÍTULO I – FAMÍLIA E PODER ..................................................................................17
1.1 Origens da família...............................................................................................................17
1.2 Desigualdades de poder reguladas por contratos ..............................................................26
1.3 Famílias modernas e o viés da desigualdade ....................................................................31
1.4 Poder e forma de atuação familiar burguesa.....................................................................36
1.5 Histeria: “a salvação das mulheres”....................................................................................44
1.6. Relações familiares e os dispositivos de controle..............................................................49
1.7 Modelo familiar patriarcal: características, forma de atuação e vigência...........................53
CAPÍTULO II - RELAÇÕES DE PODER REDESENHADAS.....................................61
2.1 Feminismos: entraves e destraves .....................................................................................61
2.2 Gênero e conflitos............................................................................................................. 73
2.3 Relações de poder na contemporaneidade........................................................................78
CAPÍTULO III - PSICOLOGIA, GÊNERO E FAMÍLIA............................................. 80
3.1 Perspectivas da Psicologia frente às desigualdades de gênero nas relações
familiares..................................................................................................................................80
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................101
REFERÊNCIAS....................................................................................................................106
12
INTRODUÇÃO
A compreensão da família reclama dos (as) pesquisadores (as) um esforço mais apurado
acerca da complexidade da pessoa humana, das suas necessidades sicas essenciais à
sobrevivência, das suas demandas volitivas, dos desejos, da afetividade e de todos esses
elementos permeados pelas instâncias do poder. Família, poder e o entrelace destes sobre a
sexualidade dos sujeitos constituem a base das relações humanas (THERBORN, 2006). Tais
relações são construídas através do manejo do simbólico, dos significados atribuídos pelos
sujeitos humanos aos fenômenos que os cercam (FREUD, 1913). Nesse sentido, toda relação
humana se fundamenta nas construções simbólicas que os sujeitos estabelecem entre si,
edificando valores, normas e prescrições que estrutura e funda a noção de sociedade (LÉVI-
STRAUSS, 1982). Nessa perspectiva, a família, em sua origem, é tida como matriz
fundamental nas relações sociais, na medida em que se constitui como lócus de transmissão
de sentimentos e afetos, como também de proibições e permissões fundamentadas nas
relações de poder.
Poder é aqui entendido como um fenômeno que produz “coisas”: discursos, saber, ação
(FOUCAULT, 1984). Sua eficácia consiste na plasticidade com que atua, bem como em
permitir à crença no ideal de liberdade dos sujeitos, mesmo quando estão albergados sob as
instâncias de controles. Assim, cada sociedade carrega consigo formas não universais de
interpretação dos fenômenos naturais e sociais criando, portanto, diferentes culturas e formas
de relações entre os sujeitos.
Na sociedade ocidental, as histórias contadas sobre as origens da sociedade e da família
indicam a existência de hierarquias de condutas nas relações entre homens e mulheres. Tais
histórias parecem basilares na fundamentação dos debates em torno dos conflitos de gênero.
Tais conflitos são propostos em análise a partir da dissimetria que se fundamenta na
concepção de um agente do domínio sexual como signo ou elemento de troca. Esta
interpretação das origens da família, da tensão entre os gêneros, das relações elementares, faz
com que os discursos reguladores propositores da noção de homem e de mulher como sujeitos
do gênero sejam representados pelos mesmos sujeitos que sofrem a sujeição.
Assim, as concepções que pretendem contar a história das origens são apresentadas como se
tais fossem reguladas por contratos (PATEMAN, 1993). Que se supõe serem os pilares para a
consolidação de normas, de controles e da liberdade. A noção de contratos se fundamenta na
13
premissa de que os sujeitos fazem acordos, e as relações que estabelecessem são mediadas por
este. Dessa maneira, o “contrato original” como símbolo de edificação da sociedade
estabelece dois contratos: o contrato sexual que regula as condutas do homem e da mulher nas
relações familiares, e o contrato social que engendra o permitido e o proibido, e é evocado
pela vertente dos ideais de liberdade, engendrando a noção de indivíduo (PATEMAN, 1993).
A família moderna indica ter incorporado os ideais contidos nas propostas dos contratos, e
transforma-se fundamentalmente ao estabelecer fronteiras entre o público e o privado, bem
como ao modificar completamente as relações internas entre pais e filhos (ARIÉS, 2006). No
entanto, tal mudança foi utilizada por um viés que acentuou as desigualdades de poder nas
relações entre homens e mulheres, principalmente ao engendrar limites às condutas e ações
destas (POSTER, 1979). Dividida entre a proposta de “tornar-se indivíduo” e ocupada em
suprir as demandas da família, a mulher em seu novo estatuto de mãe, parece reconhecer as
limitações das narrativas que lhe conferem uma condição de fragilidade. Contudo, titubeia
diante do questionamento a estes discursos que insistem em delinear para ela um lugar de
objetalidade. A histeria parece revelar essa ambivalência (KEHL, 2008).
Especialistas (Badinter, 1985; Foucault, 1984; Pateman, 1993; Poster, 1979) ressaltam que é
na família burguesa que as determinações da moderna sociedade civil revelam a família como
um lócus de controle. De suas vozes, o crivo foucaultiano se destaca ao ressaltar que na
família moderna, os acordos que estabelecem as proibições e prescrições passam a funcionar
em concomitância com um novo dispositivo: o controle da sexualidade. Em sua compreensão,
a família se fundamenta em dispositivos ou redes que reúnem um conjunto de distintos
elementos. Tais dispositivos tornam-se os regentes das ações dos sujeitos e são utilizados para
estabelecer fronteiras entre o permitido e o proibido, entre o saber e o fazer (FOUCAULT,
1984).
Através dos dispositivos de controle foi possível legitimar a história das origens ou da
civilização, no que concernem as prescrições normativas que caracterizam a família ou na
medida em que esta pôde ser ordenada sob a autoridade do patriarca. Sob esse foco, o
modelo familiar patriarcal, é apresentado como um modelo baseado no parentesco masculino
e no poder do pai. Sua característica fundamental consiste no poder exercido exclusivamente
pelos homens (PATEMAN, 1993).
Em contraponto a esta análise angulada tendenciosamente, o feminismo surge como um
movimento que pretende revelar e anular a dissimetria de poder entre os sexos. Com essa
finalidade, propõe a equidade e a igualdade de direitos para as mulheres em equivalência aos
direitos dos homens. O movimento feminista pretendeu tornar evidente que os ideais
14
estabelecidos na moderna sociedade civil, que preconizava a igualdade de direitos para todos
os indivíduos, não consideravam as mulheres como sujeito seja de desejos, seja de direitos.
Esse importante movimento destaca que o gênero é usado para colocar em relevo as
diferenças biológicas entre homem e mulher, como se tal diferença fosse natural e imutável
(SCOTT, 1988). E ainda, pudesse ser tomada como paradigma para revestir a dinâmica social,
determinando lugares a serem ocupados; situações a serem vivenciadas, condições às quais os
sujeitos estariam submetidos. Nesse sentido, a investigação que suporta o presente texto, cria
como hipótese a idéia de que a categoria gênero pode ser incorporada aos discursos
científicos, como categoria política, sobretudo quando se pretende repensar as relações
assimétricas entre homem e mulher, particularmente no que tange ao paradoxo liberdade e
sujeição.
Na segunda metade do século XX, num período caracterizado pelos especialistas como
segunda modernidade, houve mudanças significativas na sociedade ocidental, como a criação
de leis que possibilitaram a equidade de poder nas relações entre homens e mulheres
(SINGLY, 2007). Porém, tais mudanças não foram suficientes para promover a igualdade de
direitos e acabar com os conflitos de gênero (BOZON, 2003). A existência de relações que
sustentam as desigualdades de poder, ainda se faz objeto de problematizações e
questionamentos. Essas tensões impõem a necessidade de reconstituir a história das origens,
bem como evidenciar os efeitos causados pelas relações desiguais de poder entre os sexos.
Nesta perspectiva, torna-se imperativo questionar: a relação desigual de poder na família
promove conflitos e tensões? Esta instituição, historicamente favoreceu ao fortalecimento dos
sujeitos enquanto seres que a constituem, ou, em contrário, foi lócus promotor de uma
assimetria que conjurou um dos sujeitos da família em objeto?
A literatura aqui arrolada desenha um estado de coisas em que as regras que governam as
condutas de homens e mulheres parecem estruturadas a partir de uma matriz que estabelece a
um só tempo a separação entre o público e o privado; a hierarquia entre masculino e feminino;
e um complexo padrão emocional nas relações interpessoais, possibilitando a existência de
conflitos e violências. Nesse sentido, faz-se necessário compreender de que maneira são
construídas as relações familiares objetos de conflitos, e como são consideradas as
circunstâncias históricas e sociais em que as relações familiares se inscrevem. O que diz a
Psicologia a esse respeito? As relações desiguais de poder que culminam nas desigualdades
de gênero promovem conflitos e tensões na família? Quais as perspectivas da psicológia, e
aqui em recorte, da psicanálise, frente às desigualdades de genero nas relações familiares?
15
Tais questões de pesquisa convocam um repertório conceitual interdisciplinar em razão de sua
complexidade, bem como da natureza polemizadora de toda a problemática que envolve
gênero, afeto e poder.
Se as condutas de homens e mulheres são entendidas como pertencentes exclusivamente às
personalidades destes, isto é, como organizações hermeticamente realizadas em âmbito
psicológico, ignorando-se, portanto, que são construções sociais determinadas por um
contexto histórico, político, social e por uma visão de mundo sustentada pela hierarquização
das diferenças entre os sexos, tanto a cultura como os indivíduos estão falsamente atrelados a
uma hierarquia natural. Esse naturalismo, nessa investigação é deliberadamente questionado.
Referencial Teórico e Universo Estudado
Muito embora possamos considerar que os pressupostos das relações dissimétricas entre os
sexos não se encerrem nas relações familiares (CASTRO, 2000; PATEMAN, 1993;
SAFFIOTI, 2004; SCOTT, 1988), e sejam elementos que constituem os discursos que sobre
eles se dedicam também fora do âmbito doméstico e familiar, a desigualdade de poder na
família apresenta uma complexidade que afeta as relações fora dela, e não se encerra em um
tipo especifico de família, a exemplo da família nuclear. Contudo, tais pressupostos parecem
estar assentados em visões de mundo pertencentes a diferentes configurações familiares
(VAITSMAN, 1994)
1
. Diante de tal complexidade, faz-se necessário a utilização de
constructos interdisciplinares, de saberes e teorias das ciências humanas e sociais como a
antropologia, história, ciência política, psicanálise, psicologia e filosofia. Os dados utilizados
provêm primordialmente da história da família e da sociedade ocidental-européia
sistematizados por um estado da arte aqui trabalhado.
Nesse sentido, a presente pesquisa objetiva compreender como são constituídas as relações
desiguais de poder dentro da família e as conseqüências de tais relações no âmbito da
intimidade dessa instituição, bem como investigar as origens da família na narrativa
especializada com o propósito de iluminar se os discursos que enunciam categorias familiares
não estão comprometidos ideologicamente. Analisa-se, também, o conceito de poder e formas
de atuação na relação familiar; a origem do modelo familiar patriarcal, suas características,
forma de atuação e vigência. Convoca-se para o debate as concepções teóricas do movimento
1
A autora ressalta que os estereótipos sexistas que determinam ações e condutas de homens e mulheres fazem
parte de diferentes configurações familiares sejam nuclear, recompostas, extensa, monoparental e/ou
omoparental.
16
feminista, particularmente o uso que os especialistas (BUTLER, 2008; CASTRO, 2000;
GROSZ, 1994; HARAWAY, 2004; KEHL, 2008; MACHADO, 2001; RAGO, 2001;
SAFFIOTI, 2004; SCOTT, 1988; VARIKAS, 1994), que conferem sustentação a este
movimento fazem do conceito de gênero e suas relações com as desigualdades familiares.
Sopesa, por fim, a compreensão da perspectiva da Psicologia, com recorte específico da teoria
psicanalítica, frente às desigualdades de gênero nas relações familiares, objetivando
compreender os seus limites e as suas possibilidades quando “explica” o processo de
subjetivação em relações desiguais de poder. Pretende-se ressaltar que a família, como lócus
de controle e com características relacionais que impetram a dissimetria de gênero, é fonte de
tensões e conflitos. Infere-se, portanto, que através de relações mais equânimes, homens e
mulheres possam atenuar os conflitos pertencentes a relações familiares marcadas pelas
desigualdades. A psicologia como ciência e a teoria psicanalítica impõem-se uma exigência
de incorporar a categoria gênero aos princípios que utilizam para a compressão dos sujeitos
humanos, promovendo uma abertura imprescindível em sua rede semântica para compreender
as relações intersubjetivas e o processo de subjetivação dos sujeitos humanos, estabelecendo
uma certa porosidade do seu tendencioso hermetismo, como indica Foucault em sua crítica
dirigida a este campo de saber (2002).
Do ponto de vista da sistematicidade, esse percurso é feito a partir do Capítulo I com o
objetivo de compreender a origem da família, destacando teorias fundamentais, nas quais os
constructos que engendram a noção de família e sociedade, a noção de modelo familiar
moderno e dos modelos familiares contemporâneos ganham destaque. Esse debate mobiliza
idéias como dispositivos de controles e prescrições normativas, noção de contratos, bem como
o conceito de patriarcado. Estas idéias e conceitos, discutidos a partir de uma perspectiva
interdisciplinar, envolvem diversos aspectos, dentre eles ganha relevo diferentes explicações
para a organização da relação familiar; a forma pela qual são estabelecidas as relações de
poder, que se projetam sobre as características das famílias contemporâneas. No Capítulo II,
objetiva-se ressaltar as relações de poder resenhadas nas famílias, com considerações
metodológicas relativas às abordagens feministas, sobretudo no que tange as relações que
envolvem conflitos de gênero. No Capítulo III, questiona-se a voz representativa da
psicologia, em recorte, à psicanálise, acerca de suas perspectivas frente às desigualdades de
gênero nas relações familiares.
17
CAPÍTULO I - FAMÍLIA E PODER
1.1 Origens da Família
De acordo com Lévi-Strauss (1980), a espécie humana só pôde se perpetuar mediante a
afirmação do social, das alianças estabelecidas com base na troca
2
, da negação da família
como ordem natural, ou seja, através das alianças estabelecidas entre os grupos humanos não
ligados entre si pela consangüinidade. Destaca-se, portanto, a afirmação decisiva de vi-
Strauss:
se permite a vida das famílias restritas que durem senão por um período limitado de tempo, curto ou
longo segundo o caso, mas sob a estrita condição de que seus membros sejam incessantemente
deslocados, emprestados, apropriados, dados ou devolvidos, de modo a que novas famílias restritas
possam ser permanentemente criadas ou destruídas. Assim, as relações entre o grupo social como um
todo e as famílias restritas que parecem constituí-lo não são estáticas [...] É antes um processo dinâmico
de tensão e oposição com um ponto de equilíbrio muito difícil de encontrar [...] Mas, as palavras das
escrituras ‘Deixarás o teu pai e a tua mãe' proporcionam a regra de ferro para o funcionamento de
qualquer sociedade (LÉVI-STRAUSS, 1980, pp.378-379).
Para o autor, a família restrita contradiz a sociedade e a aliança, que requer previamente a
existência de duas famílias, dispostas ao contato com outros grupos, mediante a negação do
incesto
3
, sob cujo pilar se estruturam as bases para a existência da sociedade, bem como se
2
O autor salienta que o sistema de troca estabelece a aliança entre os grupos. A aliança ocorre pelo matrimônio,
que acontece quando uma mulher e dois homens: um que oferece a mulher de sua unidade familiar e outro
que recebe instalando-se, portanto, a relação exogâmica. Porém, a exogamia é um tema controverso no que
concerne ao papel das mulheres nos sistemas de trocas. Lévi-Strauss (1982), alega a existência empiricamente
observável, embora não universal, da supremacia masculina. Para ele, o fato fundamental reside em homens
trocarem mulheres. Na remissão que Bourdieu (2003), realiza a Lévi-Strauss (1982), tanto homens quanto
mulheres circulavam entre os grupos. Não seriam apenas as mulheres os instrumentos de troca ou de aliança
entre os povos, mas também os homens, nas chamadas comunidades fraternais. Gayle Rubin (1986), ressalta que
à teoria da aliança de Lévi-Strauss (1982), coloca a mulher no lugar de objeto de troca sem valor equivalente ao
homem.
3
Tanto Freud (1913), quanto Lévi-Strauss (1982), corroboram o tabu do incesto como regra universal. Mead
(1999), refuta a proposição apresentada por ambos, a partir do estudo de povos como os do Egito, da Pérsia, do
Sião, da Birmânia e do Havaí. Acorde a autora, nesses grupos o incesto seria permitido e mesmo incentivado
devido a interesses econômicos e políticos. Cultivavam a tradição de casamentos entre irmãos e irmãs, e mesmo
entre pais e filhos, a fim de manter intacta a linhagem das casas reais. Porém, a explicação lévi-straussiana para a
relevância do tabu do incesto consiste no fato de o tabu, não ter como fundamento um impedimento biológico
Ou seja, não nada que ameace a reprodução da espécie humana. No entanto, tendo em vista a prática natural
feita dentro da família, prática que impõe aos adultos educar os filhos, o incesto viria desorganizar as distinções
de idade e a manutenção de uma ordem estável entre gerações; sob esse ângulo o incesto desorganizaria os
sentimentos e traria uma violenta troca de papéis, num contexto em que a família é o principal agente
educacional e de mediação social.
18
estrutura o sistema exogâmico. Dessa maneira, a família não pode ser pensada sem a noção de
troca e reciprocidade
4
.
A aliança foi a base de constituição da família pré-moderna, através do sistema de
matrimônio, de fixação dos nomes e dos bens (LÉVI-STRAUSS, 1982). O matrimônio
baseado numa relação de troca entre os grupos rompe com a noção de família como unidade
autônoma e individualizada e consolida o tabu do incesto, possibilitando maior abertura entre
os membros, negando a exclusividade das relações entre si, permitindo que outras famílias
possam ser constituídas. A partir de então, o matrimonio entre homem e mulher deve
obedecer à ordem de proibição e prescrição. uma lei que interdita o grupo manter-se
fechado em si mesmo: a família constitui-se como tal, na medida em que os interesses
materiais e sexuais do grupo devem ser satisfeitos na relação com outros homens e mulheres
fora da unidade familiar. “As trocas são guerras pacificamente resolvidas [...] E a troca de
noivas é apenas o termo de um processo ininterrupto de dons recíprocos, que realiza a
passagem da hostilidade à aliança, da angústia a confiança, do medo à amizade” (LÉVI-
STRAUSS, 1982, p.107). Nessa perspectiva, o acordo da aliança tem o propósito de fazer
com que grupos estabeleçam laços com outros, proteja a propriedade e inicie o sistema de
parentesco com uma abertura social que possibilita a interação entre diferentes gerações: a
família torna-se a relação entre pai, mãe, filhos (as), irmãos (as), tios (as), sobrinhos (as) e não
mais exclusivamente entre pai, mãe e filhos.
De acordo com Lévi-Strauss (1982), as alianças formadas entre os grupos pelos casamentos
pretendiam fortalecer as redes de parentesco, bem como assegurar a paz entre diferentes
grupos, garantindo a reprodução e a multiplicação da força de trabalho necessária à
sobrevivência. Por via da antropologia estrutural, a análise lévi-straussiana pretende revelar
que através das relações com base na troca ou da estrutura inconsciente da troca pode-se
conhecer a significação dos sentimentos humanos (ESPINA BARRIO, 2008). Revela-se,
portanto, o interesse em demonstrar que as ações humanas estão sustentadas pelas leis da
linguagem e do simbólico
5
, cujo simbolismo regula as trocas. “As regras do parentesco e do
4
De acordo com Espina Barrio (2008), Lévi-Strauss (1982), fundamenta a noção de parentesco influenciado pelo
principio de reciprocidade contido na obra de Marcel Mauss (1974), O ensaio sobre a dádiva, cuja interpretação
aponta para o significado da dádiva como forma de reafirmar a reciprocidade como um sistema de troca que
organiza as relações e o mundo social. O objetivo lévi-straussiano é evidenciar que as trocas têm um caráter
amistoso, relacionada a fatores psicológicos, como a vivência de sentimentos. Porém, esse fenômeno só é
analisado pela atuação dos grupos que fazem as trocas.
5
“O simbólico é uma forma de elaborar mais primitiva que a linguagem, que está na base não dos mitos, mas
de outras muitas realidades culturais humanas. Não há tradução constante para o simbólico ou, o que é o mesmo.
O símbolo transmite-nos o sentido na transmissão opaca do enigma e não por via de tradução” (ESPINA
BARRIO, 2008, p.116).
19
casamento não se tornaram necessárias pelo estado da sociedade. É o próprio estado da
sociedade, remodelando as relações biológicas e os sentimentos naturais, impondo-lhes tomar
posição em estruturas que as implicam” (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 530). Isso significa que
as ações humanas não são regidas por determinações biológicas ou naturais, de caráter
imutável. É o simbolismo que rege e regula as relações e estabelecem as regras, que
diferenciam os sexos e as gerações.
Para a psicologia é fecunda a remissão ao aporte antropológico que observa e descreve a
diversidade das atividades do comportamento humano, seus desempenhos nos rituais e sua
presença no imaginário mítico como reveladores de desejo. Porém, muito embora enuncie que
o humano constitui-se pelo simbólico, a interpelação lévi-straussiana suscita controvérsias no
que tange as relações de poder. As observações etnográficas de vi-Strauss (1982), sobre as
regras de troca permitem conceber um dos sexos como propriedade permutável, como um
elemento relacional que diferencia e vincula a família a uma identidade pertencente apenas
aos homens:
O que significa isso senão que as próprias mulheres são tratadas como signos, que são impropriamente
usados quando não empregados com o fim reservado aos signos, que é o de serem comunicados? A
emergência do pensamento simbólico deve ter requerido que mulheres, como palavras, deveriam ser
trocadas. De fato, esse foi o único meio para superar a contradição em que a mulher era vista sob dois
aspectos incompatíveis: de um lado como objeto de desejo pessoal, excitando instintos sexuais e
proprietários. De outro como sujeito do desejo e vista como tal, isto é, como meio para vincular outros
pela aliança "(LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 296).
A interpretação lévi-straussiana evoca que as trocas de mulheres devem ser analisadas como
trocas de linguagem em comunicações: a troca de mulheres é o meio pelo qual os grupos se
comunicam. E as mulheres não podem servir a outros propósitos senão comunicar. uma
suposição implícita em tal interpretação: que o pensamento simbólico concebeu as mulheres
como um veículo de comunicação com a mesma função das palavras. Essa função é
apresentada como superior ao lugar em que a mulher é vista como objeto sexual do homem de
um determinado grupo, e também objeto sexual de homens de grupos diferentes. Como signo
comunicável, a mulher torna-se o instrumento que permite selar a aliança entre os homens.
Nesse sentido, a troca é o meio pelo qual os homens estabelecem acordos entre si. Em
decorrência, na aliança, a mulher não é qualificada como tendo uma identidade, nem como
sujeito de desejo, mas apenas como um instrumento que diferencia e promove as relações
entre os homens grupos diferentes. A organização social é criada pelo acordo entre os
homens. Dito de outra forma, as mulheres, como signo de troca, não participam do pacto
20
social que funda a noção de sociedade. Como elementos cambiáveis, as mulheres não fazem
parte do acordo que estabelece a aliança. Elas são o objeto do acordo.
Essa concepção, que pretende contar a história das origens, engendra a noção de uma lei
imperativa, como se tal fosse uma inevitabilidade histórica; como se os sexos, macho e fêmea
pudessem conceber relações dissimétricas ou hierarquicamente determinadas. Essa
construção de troca entre os homens pressupõe uma não reciprocidade entre os sexos, e,
portanto, em termos contemporâneos, pressupõe a construção de gêneros hierarquizados ou
conflitos de gênero. A dissimetria entre os sexos é sustentada por determinações que
estabelecem que uma agente do domínio sexual a mulher possa ser excluída do poder de
ação na expressão do simbólico. Neste sentido, pode-se supor que o determinismo biológico
que diferencia e cristaliza a masculinidade e a feminilidade como elementos naturais inerentes
aos sexos macho e fêmea ou às condutas relacionais do homem e da mulher nas relações
sociais e familiares deve ser posto em questão.
Sarti (2005), salienta que, embora a teoria da aliança de Lévi-Strauss (1982), forneça
elementos significativos para uma compreensão possível das origens da família rompendo
com o fundamento biológico que toma a família como célula mãe da sociedade,
contradições que precisam ser observadas: a idéia de troca e reciprocidade; a noção do
compulsório parentesco heterossexual; e a concepção da mulher como exclusivo objeto de
troca atrelada a falta de análise do significado do objeto dessa troca.
Escrutinando essa análise antropológica, faz-se mister interrogar o que levou o pensamento
simbólico a constituir aliança. Desconfiança, angústia, medo, temor da ameaça do outro? De
acordo com Espina Barrio (2008), o incesto é vivido inconscientemente pelos sujeitos
humanos como uma agressão sexual a eles próprios.
Nesse sentido, a aliança parece indicar que a família restrita era objeto de ameaça de si
mesma. Possivelmente, foi necessário aliar-se ao estranho, muito menos por necessidade
econômica ou de satisfação de necessidades materiais, que pela força imperativa da
ambivalência dos sentimentos. Possivelmente tornou-se necessário diferenciar-se, abrir-se
para outras unidades, sob pena das famílias se tornarem objeto de ameaça dos próprios
valores que cultivavam.
Em Totem e Tabu, Freud (1913), supõe que o nascimento da cultura e da organização
familiar, ocorreu após o sentimento de culpa dos filhos, responsáveis pelo ato de assassinato
do próprio pai (chefe da horda primitiva). Um pai tirânico que tomava para si todas as
mulheres suscitou o ódio dos filhos, que ao serem excluídos do usufruto das fêmeas, se
reuniram para realizar a morte do pai. Porém, após o parricídio, os filhos se sentiram
21
culpados, e como autopunição estabeleceram a proibição ao acesso as mulheres do mesmo
grupo familiar. A partir de então, as mulheres da mesma família, cobiçadas pelos filhos,
tornaram-se signos do proibido, tornaram-se um tabu, ou seja, algo que deve ser evitado sob
pena de sanções e punições severas. O tabu revela-se, portanto, como o símbolo originário de
um sentimento de ambivalência frente ao objeto desejado. Os filhos devem buscar mulheres
fora do grupo familiar: estabelece-se, o tabu do incesto. Através deste, a família torna-se
exogâmica e instituem relações com outras famílias permitindo a construção das relações
sociais. Há, portanto, o entendimento que o tabu do incesto é a lei que permite o nascimento
da organização social.
A teoria freudiana do tabu do incesto supõe a ambivalência dos sentimentos dos pais e dos
filhos e o nascimento da cultura
6
. “Foi permitido a Freud, finalmente, apresentar uma espécie
de teoria de contrato social” (RIEF, 1979, p. 205). Uma teoria que através da utilização do
mito pretendesse revelar como o humano utiliza os símbolos para estabelecer relações. Em
sua suposição, Freud (1913) também indica a hierarquia relacional entre homem e mulher e o
caráter assimétrico do pacto que os uniu.
No entanto, para Lévi-Strauss (1982), essa teoria freudiana explica com êxito não o inicio da
civilização, mas seu presente. “Tendo partido à procura da origem de uma proibição, Freud
consegue explicar não por que o incesto é conscientemente condenado, mas como acontece
que seja inconscientemente desejado” (LÉVI-STRAUSS, 1982, p.531). A crítica lévi-
straussiana a Totem e Tabu, parte do suposto que Freud (1913), utiliza as observações de fatos
da sociedade da sua época, para dar sentido aos mitos, e ressalta os mitos para dar fundamento
a tais fatos. Dito de outra forma, Freud (1913) interpreta os mitos, dando-os sentido através de
fatos reais. Para Lévi-Strauss (1982), a cena primitiva que representa a morte do pai pelos
filhos é um mito, e a importância deste reside na interpretação da sua experiência, ou na
maneira como o ser humano os cria. Isso significa que o assassinato do pai e a culpa dos
filhos da horda primitiva, não correspondem a uma história real, mas permite conhecer, em
6
Pateman (1993), ressalta que Freud (1930), escreveu suas narrativas sobre o pacto original como se estivesse
escrevendo histórias da gênese da “civilização”. Para a autora, civilização não é sinônimo de sociedade humana:
“o termo “civilização” passou a ser amplamente utilizado por volta do século XVIII, sendo precedido pelo termo
“civilidade” e expressava um estágio final ou definitivo da evolução histórica da sociedade européia. A idéia de
civilização celebrava o sentido de modernidade a ela associado [...] Em poucas palavras, civilização refere-se a
uma forma histórica e culturalmente específica de vida social, e o conceito está rigorosamente relacionado à
emergência da idéia de sociedade civil a sociedade criada através do contrato original” (PATEMAN, 1993,
p.46). Infere-se que “civilização” deve ser entendida como fenômeno pertencente a uma realidade histórica e
específica de um modo de vida não universal. Nesse sentido, civilização é uma nova ordem estabelecida pela
efervescência dos clamores do século XVIII instaurando uma nova organização social que estabelece trocas
entre indivíduos e Estado, em nome da segurança individual e social e, como tal, protetora da nova ordem
familiar.
22
forma simbólica, algo que é pertencente ao humano, ou seja, a ambivalência dos sentimentos
de amor e ódio nas relações de convivência entre os sujeitos, principalmente na família.
Costa (1986), observa que em Totem e Tabu, Freud (1913), propõe uma teoria da gênese da
cultura baseado numa crença evolucionista com elementos inconsistentes. O fato de os filhos
terem sentido culpa pelo assassinato do pai requer o conhecimento de uma norma que
condene o ato. Do mesmo modo, renunciar as mulheres em nome da preservação da ordem
natural implica em aceitar que o interesse do todo social se sobrepõe aos interesses dos
indivíduos em particular. Sem consciência da obrigação moral em relação ao pai não haveria a
culpa, não haveria por que privar-se da satisfação instintiva. O que se pode compreender é que
a horda primitiva freudiana continha os mesmos elementos pertencentes a uma sociedade
organizada, com um sistema de prescrições e normas que regulam os comportamentos
individuais e coletivos. “Nesta hipótese, o que está implícito, é que um chefe detém um poder
equivalente ao do déspota, nas sociedades com estado, e ao do pai, na família nuclear
conhecida por Freud” (COSTA, 1986, p. 41). O que está implícito é que o poder exercido pelo
homem na moderna sociedade civil é o poder que mantém sobre o seu domínio, a família,
promovendo os conflitos de gênero.
As suposições freudianas acerca da organização da família e do nascimento da cultura e a
teoria da aliança lévi-straussiana para origem da família e da sociedade propõem a existência
de uma linguagem universal que exprime os sentimentos humanos, principalmente através dos
símbolos, expressos nos mitos, reveladores das instâncias formadoras do psiquismo. O mérito
consiste em destacar que a cultura pode ser considerada como algo pertencente à
humanidade porque o ser humano simboliza. Isso significa que a pessoa humana, seja homem
ou mulher, não comporta ser equivalente ao signo, ou seja, não pode ser o elemento
significante e significado que caracteriza o símbolo. A ambos, portanto, cabe o manejo do
símbolo. Porém, tais teorias excluem do manejo do simbólico uma agente do domínio sexual,
e fazem isso ao descrever as relações humanas sustentadas na crença de uma subordinação
universal da mulher ao homem.
Nos relatos etnográficos lévi-straussianos e nas conjecturas freudianas a respeito da família e
da origem da civilização, a mulher é tida como elemento cambiável para a realização de
acordos e estabelecimento de relações sociais. Com isso não ressaltam que o valor do
simbólico reside na capacidade humana de realização do desejo, comum ao homem e a
mulher, ignorando, portanto, o reforço que realizam sobre a assimetria de poder nas relações
entre os sexos. Pode-se supor que tanto Freud (1930), como Lévi-Strauss (1982),
representariam o pensamento ideológico contido nos ideais estabelecidos na constituição da
23
moderna sociedade civil: o homem como ser autônomo, portanto, indivíduo que estabelece
troca; o Estado
7
como Lei, mediador do permitido, do proibido e guardião da segurança; e a
mulher, “protegida” e “vigiada” pelo indivíduo e pelo Estado. Diante disso, toda narrativa
sobre as origens da família e da sociedade feita pela vertente das relações de poder, sustenta-
se em determinações sociais que classificam o homem e a mulher como seres inscritos
exclusivamente numa realidade sexuada, e como tal, instrumentos de princípios que
concebem os mesmos por via de uma divisão socialmente construída e hierarquizada,
engendrando e fortalecendo um dos principais conflitos da família contemporânea, as relações
desiguais de poder que culminam nas desigualdades de gênero.
Subsumindo os valores contidos na família conjugal moderna
8
, as famílias contemporâneas
constroem-se progressivamente como um lócus privado em que homens e mulheres
demonstram interesse em ficar juntos, permeados pelos ideais do amor romântico através de
relações mais restritas e da efetiva demarcação entre o espaço público e o espaço privado
(SINGLY, 2007).
No entanto, nas famílias contemporâneas, legalmente, suprime-se a referência à noção de
chefe familiar: a supremacia da autoridade paterna desaparece, e a criança passa a ser
orientada pelo pai e pela mãe como sujeitos legitimamente responsáveis; a incorporação
maciça da mulher na força de trabalho remunerado altera as relações de poder entre os sexos
(SINGLY, 2007). Tais mudanças afetaram a legitimidade da autoridade masculina como
provedor familiar. As famílias contemporâneas podem ser definidas pelo fortalecimento dos
direitos dos sujeitos menos garantidos em equivalência às famílias modernas. Ou seja,
legitimamente: mulheres e crianças passam a atuar como sujeitos na formação de laços
7
Figueiredo (1992), destaca que o “liberalismo na sua versão original, formulada em suas linhas básicas por
John Locke (1632-1704), sustentava a tese dos direitos naturais do indivíduo a serem defendidos e consagrados
por um Estado nascido de um contrato livremente firmado entre indivíduos autônomos para garantir seus
interesses. Ao Estado não cabe uma função primordialmente coercitiva, mas não se separa dele, tampouco, a
garantia dos direitos naturais do indivíduo: ele intervém e administra através do controle das privações, das
punições e das recompensas liberadas para os comportamentos individuais, instaurando uma nova modalidade de
poder” (FIGUEIREDO, 1992, pp.132/134).
A ascensão do "Estado moderno", como um poder público que constituem a suprema autoridade política dentro
de um território definido, está associado ao gradual desenvolvimento institucional que começa no final do século
XV, culminando com a ascensão do absolutismo e do capitalismo (PATEMAN,1993).
8
Compreende-se por famílias conjugais modernas as famílias hierárquicas que se desenvolveram juntamente
com os processos de modernização e industrialização: o grupo de parentesco formado a partir da união fundada
na livre escolha e no amor, via de regra constituído pelo núcleo do casal (embora possa incorporar outros
agregados), mas, sobretudo, caracterizado pela divisão sexual do trabalho nas esferas pública e privada atribuída
segundo o gênero (VAITSMAN, 1994).
24
eletivos, ou contratuais, e, em contrapartida, um relaxamento dos padrões de rigidez que
regiam as relações familiares.
Nesse sentido, Vaitsman (1994), ressalta que “o que caracteriza a família e o casamento na
contemporaneidade é justamente a inexistência de um modelo dominante, seja no que diz
respeito às práticas, seja enquanto um discurso normatizador das práticas” (VAITSMAN,
1994, p.19). No entanto, assiste-se a um movimento de crise e transformação das típicas
famílias modernas: as diferenças entre os valores igualitários e as práticas hierárquicas
presentes nas estruturas das famílias conjugais modernas afloraram, resultando em situações
mais evidentes de conflitos e tensões. Assim, embora mudanças possam atestar que as
desigualdades de poder nas relações entre os sexos, ou entre homem e mulher, não tenham
mais fundamento legal, são incessantemente construídas nos elementos que constituem a
noção de feminilidade e de masculinidade pelo determinismo biológico razão e emoção, e dão
relevo aos conflitos de gênero. Conforme Bourdieu:
A força da ordem masculina pode ser aferida pelo fato de que ela não precisa de justificação: a visão
androcêntrica se impõe como neutra e não tem necessidade de se enunciar, visando sua legitimação. A
ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica, tendendo a ratificar a dominação
masculina na qual se funda: é a divisão social do trabalho, distribuição muito restrita das atividades
atribuídas a cada um dos sexos, de seu lugar, seu momento, seus instrumentos (BOURDIEU, 2003, p.
15).
A força da autoridade masculina está fundamentada nas histórias contadas e re-contadas sobre
as origens da família. Nas famílias contemporâneas, as diferenças entre o masculino e o
feminino parecem serem construídas, mantidas, afirmadas e re-confirmadas pela ideologia
que evoca bases naturais e/ou biológicas, negligenciando as construções simbólicas que
estabelecem as diferenças entre os sexos e classificam macho e fêmea. Assim, na
contemporaneidade, muito embora nas sociedades ocidentais o patriarcado, como modelo
estrutural familiar e regimentar das relações sociais não tenha mais fundamento legal, o poder
social e autoridade familiar ainda se faz presente como atributo masculino. Pessoas do sexo
masculino ou feminino podem exercer condutas, através das quais o poder pode ser
exercitado, mas tais condutas permanecem como masculinas (STREY, 2009). Em razão de
historicamente serem apresentadas como simbolicamente masculinas, a dissimetria de poder
que desfavorece as mulheres recebe sistematicamente, motivação ideológica.
Na busca de um melhor entendimento acerca das transformações da família, faz-se necessário
compreender o que aproxima os modos de vida das famílias modernas aos princípios de
divisão e hierarquização dos sexos evidenciados nas teorias freudianas e lévi-straussianas, e
25
que se fazem presentes nas famílias contemporâneas. Propõe-se compreender, em que medida
as estruturas familiares modernas favoreceram a intensificação das relações desiguais de
poder na relação entre os sexos, e de que maneira características dissimétricas dessas
estruturas ainda se fazem presentes na contemporaneidade e podem ser politicamente
questionadas.
26
1.2 Desigualdades de Poder Reguladas por Contratos
Tanto quanto o contrato social simboliza o
avanço da sociedade, no sentido de uma organização
política histórica, não o faz como a vitória de muitos,
mas como sua primeira falha modelo. Agora através de
novas restrições às conquistas sexuais, ninguém poderia
ou deveria atingir novamente o poder supremo do pai,
mesmo que isso fosse o que todos procurassem. O desejo
de cada irmão de comandar ficou insatisfeito, exceto em
algum grau, na família individual (RIEF, 1979, p. 230)
Como compreender as relações de poder nas relações familiares tomando-se como base a
história política do período moderno? Como e quais os atores constituíram os acordos
políticos que selaram a chegada da moderna sociedade civil? Homens e mulheres?
Pateman (1993), destaca que a história do contrato social ou contratualismo indica uma classe
abrangente de teorias que tentam explicar os caminhos que levam as pessoas a formar Estados
e/ou manterem a ordem social. Essa noção de contrato consiste no pressuposto que as pessoas
abrem mão de certos direitos para um governo ou outra autoridade, a fim de obter as
vantagens da ordem social. Nesse sentido, o contrato social seria um acordo entre os membros
da sociedade pelo qual reconhecem a autoridade, igualmente sobre todos, de um conjunto de
regras, de um regime político ou de um governante. Revela o surgimento de uma nova forma
de sociedade e de direito político sustentada pela força de um contrato original. Na leitura
aqui cometida, esse contrato ganha contornos através da história hipotética contada por Freud
(1913), e da antropologia estrutural proposta por Lévi-Strauss (1982). Nas suposições
freudianas contidas em Totem e Tabu, os filhos subverteram a ordem imposta pelo governo
paterno para assegurar suas liberdades e para garantir para si o direito de posse das mulheres.
Apresenta as fêmeas da horda primitiva como seres passivos submetidas a uma condição de
dominação e submissão dissociada de qualquer manifestação de contrariedade ou desejo:
“Tudo que encontramos é um pai violento e ciumento que guarda todas as fêmeas para si
próprio e expulsa os filhos à medida que crescem” (FREUD, 1913, p. 145). Das fêmeas não
27
são reveladas quaisquer manifestações de concordância ou revolta, a exemplo da conduta dos
machos. As fêmeas não são mencionadas como indesejadas ou passíveis de expulsão da
horda, são mencionadas como pertencentes exclusivamente ao pai, parecem comparecer
pacificamente cumprindo as imposições e desejos deste. Nas suposições freudianas também
não há indícios sobre supostas ações ou reações agressivas por parte das fêmeas. São, portanto
ausentes? Destituídas de desejos? As lutas e os acordos se dão apenas entre os homens, a
mulher aparece obediente a um macho forte que se impõe pela força física. As fêmeas são,
portanto, relegadas à condição de objetos do desejo masculino, e como tal não fazem parte do
ato de subversão que elimina o pai tirânico. As suposições freudianas ressaltam que o tabu do
incesto assegura o direito de todos os homens às mulheres e funda a noção de sociedade
excluindo a participação destas.
Em As Estruturas Elementares do Parentesco, Lévi-Strauss (1982), ressalta que a mulher
como propriedade permutável é a via que permite a aliança entre os homens:
A relação global de troca que constitui o casamento não se estabelece entre um homem e uma mulher
como se cada um recebesse alguma coisa. Estabelece-se entre dois grupos de homens, e a mulher aí
figura como um dos objetos da troca, e não como um dos membros do grupo entre os quais a troca se
realiza [...] o casamento não é estabelecido entre homens e mulheres, mas entre homens por meio de
mulheres (LÉVI-STRAUSS, 1982, p.155).
A troca é então, o meio pelo qual os homens estabelecem acordos entre si. Dito de outra
forma, as mulheres, como signo de troca, não participam do acordo que cria o contrato
original. Nessa perspectiva, a história que revela a noção de contrato é um exemplo da
capacidade dos homens de criar uma ordem em equivalência ao poder da natureza. Nesse
sentido, pode-se compreender que o contrato original, como símbolo de edificação da
sociedade estabelece dois contratos: o contrato sexual que regula as relações entre o homem e
a mulher, determinado os padrões de conduta ou forma como cada um deve conduzir-se em
sociedade, mas essencialmente engendrando fronteiras para as ações da mulher. “A história
do contrato sexual também trata da gênese do direito político e explica por que o exercício
desse direito é legitimado” (PATEMAN, 1993, p.16). Dessa maneira, o contrato sexual se
estabelece através de condições que indica o benefício no manejo do poder de apenas um
agente do domínio sexual. E também o contrato social que engendra o permitido e o
proibido, sob a vertente dos ideais de liberdade, e se fundamenta na premissa de que os
indivíduos são os regentes de suas ações, fazem acordos, e as relações que estabelecessem na
sociedade com outros indivíduos são mediadas por este.
28
No entanto, Pateman (1993), ressalta que o contrato social pode existir tendo como
base fundamental o contrato sexual:
Através do espelho do contrato original, os cidadãos podem se enxergar como membros de uma
sociedade constituída por relações livres. A ficção política reflete nossos próprios seres políticos para
nós mesmos mas quem somos nós? Somente os homens que criam a vida política podem fazer
parte do pacto original, embora a ficção política fale também às mulheres por meio da linguagem do
“indivíduo”. Uma mensagem curiosa é enviada as mulheres, que representam tudo que o indivíduo não
é, mas a mensagem deve ser continuamente transmitida porque o significado do indivíduo e do contrato
social depende das mulheres e do contrato sexual (PATEMAN, 1993, p. 325).
O significado de indivíduo depende da outra parte do contrato original. Em outras palavras, o
indivíduo e o domínio político aparecem como universais somente em contraposição à esfera
privada ou ao contrato sexual que comumente é interpretado como o fundamento natural da
vida civil. Para que haja o indivíduo, sujeito livre deve haver a pessoa humana “assujeitada”,
aquela que está atrelada as obrigações na esfera privada ou na família. O contrato original
torna-se, portanto, um contrato sexual-social: consiste na idéia de liberdade, em que todas as
pessoas são iguais entre si, autônomas e livres para reger as suas condutas; e é sexual quando
pretende tornar natural a hierarquização das relações entre homem e mulher, resultando em
atribuições valorativas diferenciadas acerca de garantias e de direitos para o homem e para a
mulher, comumente em detrimento desta. “A história da sociedade regulada por contratos
revela a história moderna da origem da política masculina” (PATEMAN, 1993, p. 187).
Historicamente, pode-se compreender que o contrato original representa os pressupostos que
legitimam a hierarquização e assimetria das relações entre os sexos. Porém, o contrato
original é justificado como um processo fundamental para a construção e solidificação da
“civilização” e da sociedade civil moderna vinculada aos ideais de liberdade.
Pode-se admitir no que se refere ao contrato original, que tanto para teoria freudiana quanto
para a teoria lévi-straussiana, as mulheres são excluídas do processo de elaboração de tal
contrato, mas são chamadas a este por possuírem um “domínio natural”: são objeto de prazer
dos homens e gestam seus filhos. Dessa maneira, as mulheres são consideradas como
elementos fundamentais do contrato, muito embora sua autonomia o seja plenamente
exercida. Assim, o contrato original passa a ser entendido como o instrumento estruturante da
sociedade em que todos os indivíduos adultos são livres e, portanto, usufruem os mesmos
direitos e garantias civis amparadas pelo Estado: “A autoridade legal do Estado, a legislação
civil e a própria legitimidade do governo civil moderno são explicadas como apreensões de
nossa sociedade de referencias desse contrato” (PATEMAN, 1993, p.15). Compreende-se,
portanto, que a história real ou hipotética da origem da família contida na idéia do contrato
29
original, é contada na parte em que reza o contrato social. Ao adicionarmos uma variante
para a narrativa dessa história, a saber, a gênese da dissimetria sexual nas relações entre
homens e mulheres, principalmente na família, qual seria o resultado? Pode-se supor que o
elemento relevante que resulta dessa adição ficou oculto sob a proposta de cuidado, em nome
de uma reciprocidade entre os sexos que desde o inicio indica ter sido realizada apenas entre
os homens. Em nome da liberdade de um agente do domínio sexual ocultou-se a historia da
reciprocidade ignorada, ocultou-se o contrato sexual que fortalece os conflitos de gênero.
Pateman ressalta:
Uma interpretação do contrato original é a de que os homens no estado natural trocaram as inseguranças
dessa liberdade pela liberdade civil e equitativa salvaguardada pelo Estado. A liberdade é universal na
sociedade civil; todos os adultos desfrutam da mesma condição civil e podem exercer sua liberdade
como se esta estivesse reproduzindo o contrato original quando participam, por exemplo, do contrato de
trabalho e do contrato de casamento (PATEMAN, 1993, p.20).
Assim, o ideal de liberdade contido no contrato original torna legitima as relações desiguais
pertinentes às condutas dos homens e mulheres.
O contrato social estabelece que todos os
indivíduos são livres, e o contrato sexual determina que a mulher é o elemento essencial da
casa, o homem a autoridade moral familiar e os filhos seus sucessores. O contrato social
transmite o ideal de uma sociedade em que os indivíduos livres se submetem voluntariamente
e podem fazer acordos, seguros de que serão regulamentados pela legislação civil e que, se
necessário, o Estado mediará para que os acordos sejam cumpridos. Mas, como compreender
a existência de liberdade para todos os indivíduos” nas relações sustentadas em direitos
políticos dos homens sobre as mulheres, bem como do acesso dos homens ao corpo das
mulheres?
Dessa forma, as idéias hipotéticas do contrato original e os acordos que funda a sociedade
civil moderna parecem revelar que o objeto de todos os contratos é a propriedade que os
indivíduos querem para si mesmos. Os indivíduos querem o ideal de autonomia, de serem
legisladores das suas ações, querem o domínio sob as incertezas (PATEMAN, 1993). Mas tais
ideais não se estenderam para contrapor o contrato sexual de subordinação que sustenta a
dissimetria de poder nas relações entre os sexos. Nessa medida, a sociedade civil moderna é
regida pelos direitos dos homens “A sociedade civil moderna não está estruturada no
parentesco e no poder dos pais. No mundo moderno, as mulheres estão subordinadas aos
homens enquanto homens, ou enquanto fraternidade” (PATEMAN 1993, p.18). Isso significa
que as mulheres podem exercer uma liberdade vigiada? Mas, os direitos políticos contidos
no contrato social propõem a autonomia da pessoa humana. Portanto, direitos que não
comportam qualquer moeda de troca ou forma de hierarquização entre os sexos. Entendida
30
desse modo, a sociedade civil moderna, que funda o contrato, apresenta duas características
relevantes e contraditórias: por um lado prega a liberdade da pessoa humana e por outro,
revela uma maior rigidez nas relações entre os sexos, fortalecendo a hierarquia através das
concepções que pregam a obediência das mulheres aos maridos, das filhas aos pais, portanto,
mantendo os entraves do contrato sexual.
Entende-se que as famílias modernas trazem em seu bojo a idéia de liberdade que é louvada
por trazer a possibilidade de atenuar as incertezas e pelo alivio emocional que promete
(POSTER, 1979). Porém, surge como reveladora de uma maior rigidez frente às
desigualdades de poder entre homem e mulher e da efetiva demarcação do espaço social e
familiar através de uma visão de mundo que acentua as diferenças de conduta acerca das
ações de homens e mulheres no espaço público e o privado.
31
1.3 Famílias Modernas e o Viés da Desigualdade.
Em História Social da Criança e da Família, Ariés (2006), evidencia que as famílias
modernas rompem com hábitos e costumes característicos das famílias medievais
9
. Nos
modos de vida medievais o objeto de valor era o sistema de aliança fundamentado na
primazia das trocas entre as famílias com a finalidade de geração e proteção do patrimônio.
Porém, a importância maior centrava-se no nome e na honra; nas relações entre os grupos em
torno do prestígio social e da linhagem
10
, em que a casa estava muito aberta para fora ou era
quase inexistente: “A rua medieval, não se opunha à intimidade da vida privada; era um
prolongamento dessa vida privada, o cenário familiar do trabalho e das relações sociais”
(ARIÉS, 2006, p. 133). Os modos de vida e costumes tinham como cenário de expressão o
espaço público, comum a todos as pessoas, seja para comemorações coletivas, seja para
realizar tarefas comuns pertinentes as necessidades básicas de sobrevivência. Não havia
distinção entre a casa e a rua.
Parecia não haver um sentimento de privacidade ou idéia de intimidade, peculiar aos modos
de vida contemporâneos: nos modos de vida aristocráticos, as crianças eram acompanhadas
pelos criados ou amas de leite, e formavam seus primeiros vínculos distantes dos seus pais ou
na companhia de pessoas sem qualquer relação familiar. A importância das relações centrava-
se na tradição e na submissão à hierarquia; devia-se, acima de tudo, estar em consonância com
as normas coletivas comuns. No padrão camponês, a autoridade era centrada na aldeia. A
necessidade da criança era tão importante quanto à de qualquer adulto e aquela gozava da
configuração emocional de toda a aldeia (ARIÉS, 2006). Faz-se importante ressaltar que não
havia um sentimento de infância ou uma consciência da particularidade infantil dentro da
família. As relações eram valorizadas pelas questões de ordem pública. Os valores do antigo
regime estavam pautados pelo aprendizado às normas sociais e a tradição ligada ao status
social.
Porém, uma mudança se estabelece e tais relações são modificadas, isso acontece quando a
criança deixa de ser considerada como um pequeno adulto. E um novo sentimento de
9
“Nas famílias medievais havia distinções de classe a exemplo da família aristocrática e camponesa: Esta
mantinha laços comunitários de dependência com a aldeia, a qual regulava a vida cotidiana através dos costumes
e da tradição. Os rituais, como casamentos e enterros, envolviam a aldeia inteira. As crianças dependiam,
principalmente, da comunidade e não dos pais, aprendendo a obedecer às normas sociais” (ARIÉS, 2006, p.146).
10
Ariés (2006), ressalta que o sentimento da linhagem era o único sentimento de caráter familiar conhecido na
Idade Média. Estende-se aos laços de sangue, sem levar em conta os valores nascidos da coabitação e da
intimidade.
32
intimidade doméstica favorece o sentimento de família (ARIÉS, 2006). Uma nova percepção
de infância se institui, e se concebe a criança sujeito de intensa vulnerabilidade. Separam-se
aí, os modos de vida do adulto e da criança; nasce a concepção da necessidade de cuidados
especiais e específicos para com a “idade infantil”. A disseminação da escola
11
e ampliação da
freqüência escolar ou das formas de educação foram fatores essenciais na promoção dessa
nova relação com a criança e a família. “A família transformou-se profundamente na medida
em que modificou suas relações internas com a criança” (ARIÉS, 2006, p. 154). O
entendimento consiste em que a ocupação fundamental da família concerne na manutenção
daquele que necessita de cuidados, cuja conseqüência foi considerar tal entendimento como o
motivo pelo qual a família deveria existir. O reconhecimento da criança como ser vulnerável
fez com que à família adquirisse uma posição de extrema relevância frente às disposições
sociais. Esse movimento fez com que as crianças, ao nascerem, o saíssem da casa dos pais,
e especialmente a mãe se tornasse a principal cuidadora dos filhos. É nesse período que se
constitui uma nova estrutura familiar fundamentada pela separação entre o público e o
privado
12
.
Essa separação progressiva do espaço público e do espaço privado ocorre ao mesmo tempo
em que se observa o crescimento da relevância do valor afetivo na regulação das relações
intrafamiliares:
A família moderna separa-se do mundo e opõe a sociedade o grupo solitário dos pais e filhos. Toda a
energia do grupo é consumida na promoção das crianças, cada uma em particular, e sem nenhuma
ambição coletiva: as crianças, mais do que a família. Essa evolução da família medieval para a família
do século XVII e para a família moderna durante muito tempo se limitou aos nobres, burgueses, aos
11
Ariés (2006), destaca que a escola cria uma idéia particular de infância que demanda uma tomada de
consciência da inocência e da delicadeza da infância e, no dever do adulto de preservar a infância e fortalecer a
criança.
12
De acordo com Figueiredo (1992), “os movimentos de reforma contra-reforma e a efervescência política e
cultural dos fins do renascimento geraram um estado de instabilidade social caracterizada pela eclosão de uma
série de guerras da consciência” (FIGUEIREDO, 1992, p.108). Com a dissociação das antigas crenças, partidos
e facções, seitas e igrejas se organizavam e se combatiam na defesa de suas convicções e ideologias. Essa
situação levou a um sentimento de insegurança dando espaço para que os monarcas adquirissem, pouco a pouco,
o monopólio da força fazendo com que os súditos adotassem atitudes de obediência contraditórias: os súditos
estavam submetidos a dois regimes ao mesmo tempo. Culpavam-se diante do rei quando sucumbiam as suas
razões internas e culpavam-se perante a si mesmos quando obedeciam as razões do Estado. Tal realidade fez
surgir a crescente cisão entre as esferas da privacidade particular e da publicidade. “Nos campos da privacidade
o dos negócios particulares, os das relações e das atividades domésticas e familiares e em especial o das
convicções éticas e religiosas há uma garantia de liberdade sob o regime de tolerância moderna e vigiada. No
campo público, o das ações políticas, imperam, a ordem absolutista e a obediência ao soberano. Thomas Hobbes
(1588-1679), é o grande teórico desta separação entre o interno e o externo, entre os domínios da consciência e
das opiniões e o domínio da ação. Assim, o homem de Hobbes se desdobra em dois, vem dividido numa metade
privada e numa metade pública: as ações e as obras são incondicionalmente subordinadas às leis do Estado, as
opiniões, ao contrário, são livres em segredo ”(FIGUEIREDO, 1992, p. 109).
33
artesãos e aos lavradores ricos. A partir do século XVIII, e até nossos dias, o sentimento da família
modificou-se muito pouco (ARIÉS, 2006, p. 189).
A família passa a ser vista como o único lugar onde a criança pode ser adequadamente
cuidada. Com menor ou maior tempo, tal concepção tornou-se a norma em todas as estruturas
familiares das sociedades ocidentais. Saindo de uma realidade moral e social para uma mais
sentimental, o novo sentimento de família pressupõe que esta é o lugar onde são possíveis as
condições satisfatórias de afeto e sobrevivência.
O que está implícito é que a história da família pode revelar questões sobre a vida intima e
que mudanças na ordem familiar geram mudanças emocionais ou de ordem psíquica para
todos os membros. O que se faz pertinente ressaltar não é o valor moral dos padrões
medievais em contraponto com valores afetivos da família moderna, mas como essas
mudanças foram fundamentais para uma nova estrutura familiar, e como tais mudanças
seguiram um viés de intensa complexidade emocional nas relações entre pais e filhos, bem
como acentuou as desigualdades de poder nas condutas relacionais entre homem e mulher
dentro da família (POSTER, 1979).
O que se pretende ressaltar é uma nova estrutura familiar que indica apresentar uma maior
intensificação da dissimetria de poder e da hierarquia entre os sexos: o afastamento da família
moderna das redes de parentesco e das redes comunitárias resultou na dependência da criança
à figura da mãe que se tornou a responsável direta pela sobrevivência e educação dos filhos
com a missão de atender as necessidades de cuidado material e afetivo, sem o suporte das
redes comunitárias, gerando uma maior dependência da mulher ao marido, inclusive para seu
sustento e uma autoridade centrada no homem como provedor econômico, e desvinculado dos
cuidados afetivos da própria família. Poster destaca:
As relações na família burguesa eram regidas por rigorosas divisões dos papéis sexuais. O marido era a
autoridade dominante sobre a família e provia ao sustento dela pelo trabalho na fábrica ou no mercado.
A esposa considerada menos racional e menos capaz, preocupava-se exclusivamente com os filhos e o
lar (POSTER, 1979, p.189).
O homem de família provedor e a mulher dona de casa parecem ter sido aceitos como a via,
ou melhor, realidade benéfica para a família. Tal fato não foi observado como possível fonte
de conflitos e tensões ou como gênese de uma rígida hierarquia e assimetria de poder nas
relações entre o homem e a mulher nas famílias modernas, haja vista, esse modelo
consolidou-se de maneira plena e adequada, para o cuidado familiar: “um novo grau de
34
intimidade e profundidade emocional caracterizou as relações entre os pais e filhos dessa
classe. Uma nova forma de amor maternal foi considerada natural” (POSTER, 1979, p.188).
Se concebermos que uma rígida hierarquia entre marido e mulher baseava-se numa noção de
reciprocidade entre os sexos, em que o valor da mulher como mãe e a obediência desta ao
marido visava atender ao beneficio da família, a observância e análise dos conflitos
possivelmente gerados por tal relação familiar parecem ter sido totalmente ignorados.
Na ordem de tais mudanças, em meados do século XVIII nasce então a família moderna
burguesa caracterizada pelo fechamento em si mesma. Sennett (1988), ressalta que essa nova
família surge não para responder as mudanças geradas por fatores econômicos ou
materiais, mas por uma necessidade psicológica tanto do homem como da mulher em resposta
a dificuldade dos mesmos em lidar com aspectos de suas personalidades, que eram difíceis de
controlar diante dos parentes e da convivência estreita com as redes comunitárias:
A família nuclear simplifica o problema da ordem ao reduzir o numero de atores e com isso o número
de papéis que cada pessoa precisa representar. Cada adulto precisa ter dois papéis: esposo e esposa;
pai e mãe [...] Em outras palavras, a forma nuclear permite às aparências humanas se resolverem
ordenadamente, numa questão de relacionamentos humanos simplificados. Quanto menos complexos
mais estáveis; quanto menos a pessoa tiver que lutar, mais sua personalidade terá de se desenvolver
(SENNETT, 1988, p.226).
No lugar de marido e pai, e de esposa e mãe, não constrangimentos pelas falhas cometidas
ou repreensões que pudessem sofrer se estivessem no lugar de filho e filha. Como senhores de
sua própria casa, o homem e a mulher poderão expor suas inseguranças. Porém, se tais
mudanças foram frutos de escolhas pessoais na evitação de constrangimentos ou da imposição
de novas estruturas sociais ou econômicas, tal fato não se deu sem um elevado preço: voltada
para dentro e distanciada dos parentes, a família moderna burguesa tem a missão de prover-se
sozinha, propiciar o próprio sustento, ordenar a casa, cuidar dos filhos e lidar com as
incertezas geradas pela ambivalência dos seus afetos.
Pressupondo-se que as famílias modernas tenham nascido no seio da burguesia européia em
meados do século XVIII, pode-se tomar como referencia de análise a família burguesa, muito
embora outras estruturas familiares tenham existido. Em Teoria Crítica da Família, Poster
(1979), destaca quatro modelos de estruturas familiares: a família aristocrática e a família
camponesa dos séculos XVI e XVII; a família burguesa do século XIX e a família da classe
trabalhadora do inicio do período industrial
13
.
13
De acordo com o autor a família aristocrática européia constituía-se por um agrupamento extenso de pessoas:
reunião de parentes, dependentes e clientes; as relações pautavam-se em excessiva hierarquia, e os papéis eram
fixados por rígidas tradições. O pai/patriarca da família exercia autoridade absoluta; o cuidado com os filhos não
35
Tais famílias apresentavam características distintas acerca das suas relações interpessoais e
dos cuidados com os filhos. Depreende-se, portanto, que não havia na sociedade moderna a
predominância de uma única estrutura familiar.
A ênfase dada à família burguesa justifica-se pelo exercício de compreensão no fato desta ter
apresentado um padrão emocional distinto e um senso de privacidade pouco visto, indicando a
construção de um padrão familiar complexo que promove a dependência dos filhos aos
modelos parentais, concomitante com um rígido controle sobre a expressão da sexualidade,
bem como sobre as condutas dos próprios pais, em especial da mulher, indicando uma
significativa acentuação das desigualdades de gênero. Tais desigualdades estão estreitamente
relacionadas com as formas relacionais de utilização do poder. Como o poder servir como
instrumento de hierarquização das diferenças? Nas relações familiares quando as diferenças
entre macho e fêmea são classificadas em estereótipos que penalizam os sujeitos, via de regra,
tem como reais situações de conflitos, tornando a família um espaço de confrontos e disputas.
eram considerados como relevantes para uma dama aristocrática, que se empenhavam em organizar a vida social.
Via de regra, os filhos e filhas eram amamentadas por amas de leite e formavam seus primeiros vínculos com
pessoas não pertencentes à família.
a família camponesa era constituída por pequenos grupos, muito embora podia-se conviver três gerações na
mesma moradia. A privacidade também não era conhecida. A autoridade social estava centrada na aldeia; a
amamentação era realizada pela mãe, mas com pouco envolvimento emocional. As sansões públicas na família
camponesa tinham a função de apagar os vestígios de autonomia da criança que pretendesse desafiar a
autoridade dos adultos. As implicações psíquicas das sanções e das aprovações externas de ações, que
acarretavam em punição, gerava na criança um sentimento de vergonha e não de culpa, pela transgressão das
normas da comunidade. “[...] a criança desenvolvia um agudo senso de normas sociais, externas” (POSTER,
1979, p.200). Desta forma, o se identificavam com os pais como na família nuclear burguesa. No modelo
aristocrático e camponês, a noção de privacidade e o controle da expressão sexual não tinha significativa
relevância acerca da fiscalização por parte dos pais.
A família proletária introjetou as características relacionais da família burguesa, muito embora todos os membros
desempenhassem atividade laborativa: as mulheres realizavam tal atividade em casa e fora dela, contribuindo no
sustento familiar. Os filhos eram criados sem a constante atenção e fiscalização pela mãe. Porém, com o
processo de industrialização crescente, tal estrutura familiar termina por absorver todas as características
pertinentes a família burguesa.
36
1.4 Poder e Forma de Atuação Familiar Burguesa
Assim, de acordo com Therborn (2006), a família é um espaço cercado nos campos de batalha
abertos pelo sexo e pelo poder. Como tal, as relações de poder na família estão envolvidas em
proibições e prescrições entrelaçadas por sentimentos e afetos. O mesmo poder que impõe
fronteiras prescreve normas de amparo e acolhimento. Mas de que poder se fala?
Para Foucault (1984), o
poder pode ser compreendido como um feixe de relações, que se
articula através de uma espécie de estrutura mais ou menos coordenada, ou seja, não é
possível determiná-lo em um lugar especifico. O poder compreendido como um feixe de
relações sugere diversas possibilidades, permite compreendê-lo como algo que sempre se
renova ou está em constante transformação. Sua força consiste na plasticidade com que atua, e
nos lugares que se faz presente, hora delimitando fronteiras, hora supondo a idéia de liberdade
e possibilidade de escolhas dos sujeitos por ele atravessados. Dessa forma, o poder torna-se
algo que, necessariamente, não precisa ser nomeado, mas está a todo tempo pondo à prova
quem deve ordená-lo.
Pela lente foucaultiana deve-se compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de
correlações de força. Dito de outra forma, não se deve compreender o poder como uma
instância superior que está acima dos sujeitos que afeta. “O poder não é uma instituição e nem
uma estrutura, não é certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma
situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (FOUCAULT, 1984, p.89).
Nesse sentido, o poder se constrói através do embate de vontades, da luta constante na
aceitação e negação do que é imposto. Mas também, não é algo que apenas limite ou imponha
regras, é uma via de potencialização, permissões e realizações, por isso, não pode ser tomado
essencialmente como negativo, como um fenômeno de dominação maciço, como algo que
apenas reprima. O poder pode ser visto como algo que produz coisas: discursos, saber, ação.
Dessa maneira, a eficácia do poder está centrada na sua aparência tolerável, visto pelos
sujeitos como não inteiramente proibitivo ou coercitivo: permite aos sujeitos a crença de uma
livre atuação, como se fosse um ato volitivo, como se não houvesse qualquer controle sobre
suas ações. A eficácia do poder consiste em permitir a liberdade mesmo que diminuída; na
crença de que as normas não são arbitrariamente impostas, ou que não se limitam
simplesmente a barrar os desejos e vontades (FOUCAULT, 1984).
Se concebermos o poder como uma instância não necessariamente repressiva, poder-se-ia
supor que seu exercício no micro espaço familiar instituiu o papel de mãe, cuidadora dos
37
filhos e da família, bem como o de pai, autoridade subsidiária e provedora da família? Em
outras palavras, o homem e a mulher, o pai e a mãe se tornam, como agentes do micropoder
no interior da família, reforçadores recíprocos das suas condutas? É possível pensar as
condutas da mulher como mãe e do homem como provedor no interior da família, como o
lado produtivo do poder? Como compreender a aderência de homens e mulheres ao modelo
familiar burguês, com uma rígida divisão de trabalho na sociedade moderna?
No lugar de esposa e mãe, a mulher burguesa deve se dedicar completamente aos filhos e aos
cuidados da casa. Cito Badinter:
Desde o século XVIII, vemos desenhar-se uma nova imagem da mãe, cujos traços não cessarão de se
acentuar durante os dois séculos seguintes. A era das provas de amor começou. O bebê e a criança
transformam-se nos objetos privilegiados da atenção materna. A mulher aceita sacrificar-se para que seu
filho viva, e viva melhor, junto dela. A mãe "moderna" pertence à média burguesia, mais apegada às
virtudes austeras do que aos sucessos pessoais, mais à vontade no Ser e no Ter do que no Parecer. Mais
provinciana do que parisiense, sua casa é um universo fechado em que ela reina soberana. Assim, não
foi certamente por acaso que as primeiras mulheres a escutar os discursos masculinos sobre a
maternidade foram burguesas. Nem pobre, nem particularmente rica ou brilhante, a mulher das classes
médias viu nessa nova função a oportunidade uma promoção e de uma emancipação que a aristocrata
não buscava (BADINTER, 1985, p.175).
A mulher burguesa pareceu adaptar-se plenamente as demandas exigidas pelo ideal de família
que é centrada no cuidado da criança e na posição da mulher devotada ao lar e aos filhos.
Mais apegada às virtudes austeras rendeu-se à idéia de virtuosidade ao assumir o seu lugar de
senhora da casa. Possivelmente destituída de projetos pessoais, não tinha aspirações para si
mesma e parece enxergar nessa nova posição uma via de valorização no seio familiar. A mãe
burguesa aplica-se aos cuidados da casa com a mesma autoridade e o mesmo orgulho com
que a mulher aristocrática dedica-se para a manutenção da sua classe ou posição.
No entanto, faz-se mister destacar que, via de regra
14
, as mulheres, sempre cuidaram das
crianças, das colheitas, do preparo do alimento e participavam de qualquer atividade no
espaço publico ou privado, que não havia o reconhecimento desse cuidado como poder
(BADINTER, 1985). É na família burguesa que elas são convocadas a exercerem tal lugar
como soberanas. A maternidade torna-se um papel gratificante, pois está agora impregnado de
ideal. A mulher burguesa parece tomada pela idéia de poder: o poder da mãe que se torna
senhora da casa autorizada a cuidar dos filhos e a fazer disso uma via para firmar-se tão
poderosa quanto o marido. Badinter volta a ressaltar:
14
Na família aristocrática era pratica comum os filhos serem amamentados por amas de leite e cuidado fora do
âmbito familiar (BADINTER, 1985).
38
Mas, embora a condição da mulher não se tenha modificado notavelmente no século XVIII, nem mesmo
com a Revolução Francesa, a da esposa-mãe progrediu. No final do século, o comportamento do marido
para com a mulher parece modificar-se na teoria e na prática, não nas classes abastadas, como
também entre os burgueses mais modestos. duas razões principais para essa modificação. Por um
lado, a nova moda do casamento por amor, que transforma a esposa em companheira querida. Por outro,
os homens responsáveis querem que as mulheres desempenhem um papel mais importante na família, e
notadamente junto dos filhos [...] o poder dito paterno é, na realidade, partilhado com a mãe. Torna-se,
portanto cada vez mais difícil considerar a autoridade do marido sobre a esposa como o poder absoluto
do soberano sobre o súdito, e tratar a própria mulher como outrora se tratava o filho (BADINTER,
1985, p.176).
A esposa considerada incapaz e não racional que dependia da condição do marido, era agora
mãe. Ao assumir tal lugar, a mulher adquire um status, deixa de ser a esposa totalmente
dependente das ordenações do marido compartilhando com este no poder de decisão sobre a
educação dos filhos, passando a exercer funções que são consideradas como de seu completo
domínio: pelo domínio natural de gestar o filho, a mulher deveria dedicar-se exclusivamente a
estes. Por outro lado, ao ocupar o lugar de mãe, e adquirir uma posição de respeito e
autoridade, a mulher viu-se subjugada a imposições e limites, principalmente aqueles
projetados sobre os seus sentimentos e desejos: “A mãe é agora usualmente comparada a uma
santa. Em nome dessa santidade a mulher deve estar desvinculada dos prazeres sexuais”
(BADINTER, 1985, p.210). O corpo da mulher é considerado como o símbolo para o novo
estatuto social que lhe é apresentado, comparando-se com oposições tradicionais entre o
interior e o exterior, a sensibilidade e a razão, a passividade e a atividade. uma nova
divisão fundamentada nas diferenças entre os sexos: a mulher, como mãe, era à única ou a
mais apta a cuidar dos filhos e da casa e, portanto deveria manter-se vinculada apenas ao seio
familiar. Voltada para o cuidado dos filhos e da casa, a mulher separa-se do mundo e da vida
pública. E o pai, chefe da família, torna-se uma figura moral que inspira respeito a toda
sociedade.
Essa divisão e a modificação nas relações com as crianças vão contribuir para o aparecimento
de um novo sentimento: o ideal do amor romântico (BADINTER, 1986). A idealização da
figura da mãe foi parte fundamental da moderna construção da maternidade. A imagem da
esposa-mãe acentuou o modelo de dois sexos, das atividades e dos sentimentos: o feminino
como mais sensível e frágil, e o masculino como racional e forte. As mulheres eram
concebidas pelos homens como sendo diferentes e incompreensíveis. O elemento novo é a
associação da maternidade com a feminilidade como sendo qualidades da personalidade das
mulheres. O casamento burguês vincula o casal para sempre e introduz a idéia de uma
narrativa individual, que faz com que o casal sinta que tudo está sob seu completo domínio.
39
Dito de outra forma, o homem e a mulher podiam escolher seus parceiros, serem
independentes para decidir com quem iriam casar e ter seus filhos. O complexo de ideais
vinculadas ao amor romântico forjou um ideal de amor e liberdade, como se ambos fossem
estados normativamente desejáveis. No entanto, nas ligações de amor romântico, os
elementos do amor sublime tendem a predominar sobre o ardor sexual e, felizes para sempre
passa a significar viver juntos, não mais com a paixão intensa dos primeiros encontros, mas
com austera respeitabilidade que faziam pertinentes as características da família
(BADINTER, 1986). Portanto, não liberdade para o casal, as relações conjugais na família
moderna burguesa, são regidas por uma divisão sexualizante regida por rigorosas divisões de
condutas do homem e da mulher. Neste sentido, o confinamento da sexualidade feminina ao
casamento fazia-se essencial como um símbolo de mulher respeitável. Ao mesmo tempo
suscitava nos homens um sentimento de manter-se distante do reinado da intimidade,
mantendo as atribuições do casamento como um desejo exclusivo de mulheres.
Costa (1998), evidencia que o amor romântico pode existir em sociedades onde os
indivíduos, desde o nascimento, têm seus vínculos emocionais cortados da rede cultural mais
ampla que a privacidade, ou seja, das redes comunitárias que mantinham relações coletivas:
O amor romântico é um artefato cultural uma emoção histórica, culturalmente codificada e sujeita a
transformações impostas pela variação das circunstâncias. É uma forma de interação emocional e de
construção de identidades pessoais inteiramente modernas. O amor-paixão romântico é uma invenção
histórica que pode ser renovada em sua própria estrutura. O amor romântico foi concebido na esteira da
idéia de sujeito como espelho de sentimentos (COSTA, 1998, p. 120).
Nos moldes da sociedade moderna, o amor romântico é uma emoção histórica que parece
surgir para responder aos ditames da nova estrutura familiar em que a personalidade deve ser
constantemente avaliada. Com essa nova forma de amor e autoridade, a família burguesa
gerou uma nova estrutura emocional. Tal fenômeno corrobora para explicar como uma
estrutura psíquica pode ser implantada na tentativa de capacitar os indivíduos a agirem de
acordo com a sua própria autoridade, ou seja, como o poder se exerce como uma força que
não que se constitui como essencialmente coercitiva.
Assim, a ascensão da autoridade privada da família pode ser comumente interpretada como
uma contribuição para a emancipação do indivíduo das restrições sociais. No entanto, a
família moderna burguesa revela-se o receptáculo de uma complexa lógica afetiva que carrega
consigo o controle da sexualidade dos sujeitos, imprimindo uma maior rigidez nas relações
entre os sexos, fortalecendo as relações de gênero hierarquizadas. Cito Poster:
40
Como nenhuma outra classe, a burguesia realizou um esforço sistemático para protelar a satisfação
sexual. Isso redundou em incapacidades para homens e mulheres. Quando internalizada essa imagem
das mulheres acarretou profundos conflitos emocionais. A respeitabilidade burguesa levou a uma
separação muito singular entre o casamento e o amor, de um lado, e a sexualidade, do outro (POSTER,
1979, pp.186/187)
.
A satisfação sexual está condicionada as condutas exercidas na família: para as mulheres o
sexo deve estar totalmente vinculado a reprodução, ao “poder das mães” com as vinculadas
limitações formadoras de sentimentos ambivalentes, especialmente na medida em que as
mulheres não contam com as redes comunitárias frente às relações com seus maridos, gerando
conflitos frente aos clamores de mãe, dona de casa e sua existência como pessoa. Para os
homens, o sexo estava dissociado dos sentimentos de amor; enaltece-se a autonomia e
autoridade dominante sobre a família, com a obrigação de o falhar como o agente do
domínio sexual, que igualmente deve prover o sustento da casa e comandar as diretrizes da
família, sob pena da perda da virilidade.
Poster (1979), indica que a família burguesa tornou-se um ideal de conduta que deveria servir
como matriz, em que a ordem e a autoridade eram concomitantes ao verdadeiro amor marital
e as transações entre os membros da família não suportavam inspeções externas. A família
passa a ser percebida como um refúgio contra as ameaças da sociedade e também um
parâmetro, em que a privacidade e a idéia de estabilidade pareciam estar unidas na ordem
familiar.
No entanto, a família burguesa deve ser entendida não apenas como um progressivo e
moralmente benéfico lócus de domesticidade, mas também na medida em que constitui um
padrão emocional particular que serviu para promover interesses da nova classe dominante e
registrar um modo sem paralelo que culminam em conflitos de geração e sexo. “Na família
burguesa nasceram novas formas de opressão de crianças e mulheres que dependiam de
mecanismos críticos de autoridade e amor, de intensas emoções ambivalentes” (POSTER,
1979, p.186). O padrão emocional da família burguesa é definido pela autoridade restringida
aos pais e profundo amor parental pelos filhos. Porém, as diferenças sexuais entre homem e
mulher passam a ser concebidas como profundas diferenças de personalidade: a feminilidade
é definida como a capacidade para expressar emoções, para ser dócil não racional e passiva; e
as diferenças entre as gerações tornam-se padrões internalizados de submissão; a
masculinidade é definida como a capacidade para sublimar, ser racional e ativo e, portanto
dominador, livre e autônomo.
41
Pode-se supor que o poder concedido ao homem como ser autônomo e livre, é o mesmo poder
que acarreta limites suscitando incapacidades e tensões como corolário direto para a “adesão”
feminina a esse estado de coisas. A ausência de uma linguagem afetiva, a necessidade de
mascarar as demandas dos sentimentos e emoções, e nele poder consumar uma experiência de
cumplicidade, são para os homens efeito do tratamento que dão aos seus afetos e com isso
permanecer na própria armadilha vinculada às prescrições que impõem o dever de engendrar
sua virilidade (NOLASCO, 1995).
Nesse sentido, torna-se imperativo questionar: as relações desiguais de poder entre os sexos
são fontes de tensões e conflitos nas relações familiares? Esta instituição, historicamente,
favoreceu ao fortalecimento dos sujeitos enquanto seres que a constituem, ou, em contrário,
foi lócus promotor de uma assimetria que conjurou um dos sujeitos da família em objeto?
Em Sexo e Poder: a família no mundo (1900-2000), Goran Therborn (2006), ressalta que por
volta de 1900 os homens haviam estabelecido acordos entre si e cobravam das mulheres uma
posição de reciprocidade que política, econômica e socialmente não lhe foi possível. Havia a
exigência da fidelidade sob pena de punições severas, havia a imposição de regras de conduta,
de privação, da liberdade, de movimento. Havia a imposição de padrões de comportamento,
em que a mulher deveria submeter-se em nome de uma reciprocidade para fazer jus ao que
pregava-se ter sido acordado no contrato original. Therborn ressalta:
Muitas sociedades cobraram tributos das mulheres. Como filhas tinham pouco ou nenhuma direito a
herança. Como seres sexuados, eram sujeitas a mutilação genital em muitas partes da África. Nas
principais regiões da China, seus pés eram quebrados e enfaixados em tributo ao senso masculino de
beleza feminina. O espancamento da esposa permanecia legítimo na maior parte do mundo. As viúvas
estavam socialmente mortas na Índia, e até mesmo impedidas de se casarem na China (THERBORN,
2006, p. 110).
Todos os tributos estão vinculados ao cerceamento dos prazeres sexuais femininos ou aos
ideais do imaginário masculino sobre as virtudes ou beleza feminina. Tais tributos são
cobrados em nome de que divida? Reciprocidade? Como a nova sociedade civil foi percebida
nas relações dentro da família, em consonância com os desejos e valores de cada um?
Pelos homens possivelmente, como o alcance do ideal de liberdade almejada, e a crença na
apropriação do seu próprio destino. Para a maioria das mulheres como uma via de expressão
de uma certa autonomia no espaço privado. E para outras, como uma realidade que
contrastava com a noção de serem senhoras de si mesmas e com a possibilidade de auferir o
poder sobre suas condutas expressamente pertencente à autoridade dos homens. A nova
ordem civil proclamava a liberdade, mas demonstrava manter sob controle a família, e a
42
mulher, como essencial objeto desta. Assim, a posição das mulheres na família e na cultura,
estabelecida a partir das exigências da nova racionalidade burguesa, entrou em conflito com a
produção de um imaginário libertário que convocava os indivíduos a constituírem
perspectivas individuais de liberdade, de aventura, de conquistas, e ao mesmo tempo
convocava as mulheres a viver de acordo com os ideais de mãe e dona de casa.
Nesse sentido, para Kehl (2008), a mulher viveu a ambivalência da contradição: desejo de
torna-se indivíduo livre, ao mesmo tempo em que é capturada em uma posição na trama
simbólica que mistura poder e afeto e a completa dependência em que o homem poderia
desejar dela. As demandas dirigidas ao homem no lugar de protetor e provedor familiar, as
tentativas de manobrar o desejo do qual se fez objeto e o fracasso subjetivo dessa empreitada,
fizeram surgir à mulher histérica.
Por tal entendimento, Beauvoir (1980), evidencia uma dualidade conflitiva entre o que a
mulher quer para si mesma e as demandas que o homem lhe dirige. Com a pretensão ética de
afirmar-se como sujeito, mas propensa a pegar o desvio e não enfrentar os caminhos para se
alcançar a liberdade, porque tal liberdade também traria a angústia e a tensão de uma
existência autenticamente assumida, principalmente quando a idéia de liberdade entra em
choque com valores que perpassam pelas emoções e afetos, a mulher parece titubear na busca
de tornar-se senhora de si mesma:
[...] é que sendo como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo
em que os homens lhe impõem a condição de Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la a imanência,
porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e
soberana. O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito que se
põe sempre como o essencial, e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial
(BEAUVOIR, 1980, p.23).
Tida como sujeito essencial na casa e no lugar de mãe, a mulher oscila entre a busca da
liberdade e as demandas impostas pelo ideal de família.
Reconhece que para ela não lugar como sujeito na nova ordem civil, mas demonstra ser
atraída pelo chamado de ser a soberana no ideal de mãe. Dividida entre a luta pela liberdade e
ocupada em suprir as demandas da família, a mulher parece tomada pela idéia de liberdade
contida no contrato social que pressupõe a liberdade para todos os indivíduos.
De acordo com Badinter (1986), foi necessário mais de um século e meio para que as
mulheres do Ocidente tivessem reconhecidos os direitos civis; a educação; acesso a esfera
privada e a liberdade de escolher pela maternidade. As mulheres americanas começaram por
reivindicar o direito ao voto. Após meio século sem nenhuma mudança, voltaram a
43
questionar, sobre direitos e garantias como indivíduos, na primeira metade do século XIX, em
concomitância com o movimento de abolição escravocrata. A partir de então, os protestos
continuaram, e no final do século XIX as associações sufragistas era uma realidade. “De
modo geral, os grandes combates que pontuaram a história da emancipação feminina não
foram feitos da mesma maneira na França, país latino, e nas grandes nações anglo-saxônicas”
(BADINTER, 1986, p.135). As manifestações femininas não eram bem vistas, a manifestação
das mulheres comumente soavam como ameaça aos padrões morais da sociedade e da família.
Diante disto, ao representar o domínio sexual que é excluído do contrato, e ao mesmo tempo
está envolvida por este, a mulher reconhece a exclusão, mas parece titubear diante dela. A
histeria pode revelar essa ambivalência?
44
1.5 Histeria: a “salvação das mulheres”
A histeria é a salvação das mulheres justamente
porque é a expressão (possível) da experiência das
mulheres, em um período em que os ideais tradicionais
de feminilidade (ideais produzidos a partir das
necessidades da nova ordem familiar burguesa) entraram
em profundo desacordo com as recentes aspirações de
algumas dessas mulheres enquanto sujeitos
(KEHL, 2008, p. 182).
Em Estudos sobre a histeria, Freud (1893), percebe que a fala afeta o corpo das mulheres. O
que a histérica mostra é algo de si, em seu corpo, pela via do sintoma. A histeria
15
é a maneira
que o sujeito encontra para apresentar, através dos sintomas, que há algo em sua vida psíquica
que não pode ser contido ou que não consegue conter. É o sintoma que faz o diálogo, e o que
sobressai deste discurso, é a idéia da presença de um conflito inconsciente proveniente do
desejo de ordem sexual.
O corpo da histérica, evidenciado pelo fenômeno da conversão
16
, tende a expressar o
psíquico, obedecendo à lei do desejo inconsciente, lei esta coerente com a história do sujeito.
Cito Freud:
Nossas pesquisas revelam para muitos, se não para a maioria dos sintomas histéricos, causas
desencadeadoras que podem ser descritas como traumas psíquicos. Qualquer experiência que possa
evocar afetos aflitivos – tais como os de angústia, vergonha ou dor física pode atuar como um trauma
dessa natureza; e o fato de isso acontecer de verdade depende, naturalmente, da suscetibilidade da
pessoa afetada (FREUD, 1893, p.40).
Os sintomas histéricos são compreendidos como conseqüência de traumas psíquicos. A
histeria se apresentaria como sintomas determinados por traços de memória que ficaram
15
A histeria é tida como uma classe de neuroses que apresenta quadros clínicos muito variados. “As duas formas
sintomáticas mais bem identificadas são a histeria de conversão, em que o conflito psíquico vem simbolizar-se
nos sintomas corporais mais diversos a exemplo: crise emocional, anestesias, paralisias. A noção de uma doença
histérica remonta a Hipócrates. Sua delimitação acompanhou a metamorfose da história da medicina. No final do
século XIX, particularmente sob a influência de Charcot, o problema colocado pela histeria ao pensamento
médico anato-clínico estava na ordem do dia. A solução procurada era na ausência de qualquer lesão orgânica ou
uma doença como as outras. O caminho seguido por Breur e Freud levou a ultrapassar essa posição. Freud ligou-
se a toda uma corrente que considera a histeria uma doença por representação. O esclarecimento da etiologia
psíquica da histeria é paralelo às descobertas principais da psicanálise” (Laplanche e Pontalis, 2001,
pp.211/212).
16
A histeria de conversão é caracterizada como a histeria em geral (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001).
45
fixados, graças a idéias conflitantes do ponto de vista psíquico (obrigações morais e apetites
sexuais), gerando experiências traumáticas. Isso significa que os sintomas são substituídos por
meio da conversão, associados a experiências traumáticas, que causam desprazer e são
armazenadas de forma inconsciente: as mulheres desejam, as barreiras sócio/morais limitam, e
estas não sabem conscientemente como lidar com tais elementos.
Em Estudos sobre a Histeria Casos clínicos, Freud (1893), descreve os casos clínicos em
que fundamentou seus estudos sobre a histeria e sobre as origens da psicanálise. No Caso
Emmy, Freud percebe que o tratamento hipnótico, embora melhorasse sua condição, não
curava a paciente. Ao abandonar o método hipnótico, Freud descobre uma nova forma de
análise e se depara com um novo ponto a ser considerado: as idéias incompatíveis. Estas
apresentam uma estreita correlação com os afetos. Embora possa existir em todas as suas
formas, são configuradas em algo que o indivíduo deseja, embora as condições externas a ele
não o permitam realizar. Tais idéias vão colaborar com a noção de traumas psíquicos
17
ou
tensão psíquica. Tais construções anulam a relação da hereditariedade na eclosão da histeria.
No Caso Kahtarina, a sexualidade aparece ligada diretamente a tensão psíquica. Freud
conclui: “Eu havia constatado com bastante freqüência que, nas moças, a angústia em
conseqüência do horror de que as mentes virginais são tomadas ao se defrontarem pela
primeira vez com o mundo da sexualidade” (FREUD, 1893, p. 153). O fator que embasa a
inabilidade com o caráter sexual é a conduta moral que as pacientes de Freud apresentam: o
pudor em torno da sexualidade é um dos fatores que inviabilizam a sexualidade com o ego
18
.
As histéricas expressam a ambivalência frente sua condição de mulher. Estas, pertencentes a
uma classe social que possibilitou o acesso ao conhecimento, rejeitando a sua condição de não
sujeito e desapropriada do seu próprio corpo, reagem às imposições sociais ao querer expor o
seu desejo, mas ao mesmo tempo culpa-se por isso. A histérica é a mulher que deseja, mas
receia exercer tal desejo ou não sabe como lidar com ele.
Ao descrever o Caso Elizabeth, Freud ressalta que os sintomas histéricos apresentados pela
paciente têm como gênese a forma como a mesma lida com os valores da família e com as
manifestações dos seus desejos: culpa por desejar e, portanto, julga-se impura. O conflito
de Elizabeth está entre o fato de ter desejos, e o sentimento de castração de não poder sentir
17
“Traumas psíquicos, decorrentes de acontecimentos da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela
incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos
patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica” (Laplanche & Pontalis, 2001, p.213).
18
A teoria psicanalítica procura explicar a nese de Ego considerando-o como um aparelho adaptativo,
diferenciado a partir do id ou desejo instintivo em contato com a realidade exterior, definindo-o como o produto
de identificações que levam à formação no interior do sujeito de um objeto de amor investido pelo id
(KAHHALE, 2006).
46
tal desejo, de proibir-se, ou seja, um conflito entre as instâncias psíquicas, da vontade e da
moral. Cito Freud:
A saúde da mãe era freqüentemente perturbada por uma afecção dos olhos, bem como por estados
nervosos. Foi assim que ela se viu atraída por um contato muito intimo com o pai, um homem alegre e
experiente conhecedor da vida que costumava dizer que a filha ocupava o lugar de um filho e de um
amigo com quem ele podia trocar idéias. Embora a mente da moça encontrasse estimulo intelectual
nessa relação com o pai, ele não deixava de observar que a constituição mental dela estava, por causa
disso, afastando-se do ideal que as pessoas gostam de ver concretizado numa moça [...] Ela se sentia, de
fato, muito desconcertante por ser mulher (FREUD, 1893, p. 165).
As descrições sobre o comportamento de Elizabeth indicam que esta pertence a uma típica
família burguesa. A aproximação com o pai faz com que a moça adquira modos de pensar que
não são pertinentes ao sexo feminino. Elizabeth sente-se culpada por desejar, sente-se como
estranha por ser mulher. Os sintomas histéricos revelam-se frente aos conflitos engendrados
pela realização de uma fantasia inconsciente que está a serviço da realização de um desejo:
“Ela recalcou uma idéia erótica fora da consciência e transformou a carga de seu afeto em
sensações físicas de dor [...] Foi o círculo de representações de natureza erótica que entrou em
conflito com todas as suas representações morais [...]” (FREUD, 1893, p.187).
O recalque age sobre os desejos, que são barrados, julgados impuros ou indignos para as
mulheres, refere-se à forma como as mulheres lidam com a sexualidade e devem ser
compreendidos como atuantes em uma forma integrada no interior dos valores estabelecidos
na sociedade moderna.
O catálogo de queixas da medicina familiar do século XIX consistia em aflições físicas
originadas de ansiedade, prolongada tensão nervosa ou temor paranóico “a doença verde era
um nome usado para designar a prisão de ventre crônica das mulheres [...] a doença branca
acometia as mulheres que temiam sair de casa, pelo medo de serem expiadas” (SENNETT,
1988, p. 227). O autor ressalta que as análises das queixas eram atribuídas às questões
fisiológicas, mas todos os relatórios de diagnósticos partiam de um ponto comum: medo de
expressar ações espontâneas de se expressar erroneamente, medo das necessidades corporais
de sentimentos no círculo familiar. O catálogo de queixas encontrado nos relatos médicos do
século XIX atestam para os moldes de controle do comportamento feminino na expressão das
ações e sentimentos, principalmente frente à sexualidade. “Quando uma sociedade propõe a
seus membros que a regularidade e a pureza de sentimentos são o preço que pagam para ter
um eu próprio, a histeria se torna a rebelião lógica se não a única” (SENNETT, 1988, p. 228).
A educação ensinada às mulheres evocava uma conduta dissociada de qualquer interesse
47
sexual. A sexualidade da mulher era tida como ameaçadora para o homem
19
; deveria ser
controlada e reprimida a fim de representar o lugar que deveria ocupar na família. Muito
embora as causas histéricas não se encerrem em uma questão de dificuldades do sujeito em
lidar com fatores ambientais, as queixas das mulheres burguesas eram inerentes aos modos de
vida que estavam predestinadas. Sennett evidencia que:
Ao descrever as causas para os sintomas apresentados por uma de suas pacientes, Breuer e Freud
observam que a vida familiar monótona e a ausência de ocupação intelectual deixavam à paciente
enfadonha e tediosa. Breuer observa que sintomas como o riso compulsivo são apresentados como
reações a depressões no lar, que evitavam que a pessoa fosse consistentemente agradável; essa reação
era “uma queixa tão comum entre mulheres respeitáveis” que parecia comportamento normal.
(SENNETT, 1988, p. 228)
.
Não se ignorava a ausência de perspectivas sublimatórias ou a falta de demanda social como
possíveis fatores que suscitavam os sintomas. No entanto, tais sintomas eram considerados
como inerentes à conduta feminina, como se fosse uma forma de expressão da personalidade
da mulher.
Em finais do século XVIII e em todo o período do século XIX, as moças consideradas de
família, ou que recebiam uma “educação adequada”, pertencentes às grandes cidades
européias, eram solicitadas a apresentar comportamentos bastante contraditórios. As primeiras
pacientes de Freud, via de regra, foram moças educadas da família burguesa, preparadas para
uma vida intelectual ou criativa que o tinha lugar no mundo em que viviam (KEHL, 2008).
Se por um lado ainda vinham sendo educadas para o papel de esposa e mãe, por outro, o
chamado mundo masculino, o mundo da política, das ciências, dos negócios, não era mais
uma referência tão distante e estendia-se aos redutos isolados das donas de casa e das moças
solteiras as quais, no entanto continuavam dependentes judicialmente dos pais e maridos.
Diante de tal realidade, a histeria revela-se como uma “salvação para as mulheres” (KEHL,
2008). A histeria é compreendida como uma via de expressão inconsciente das mulheres
frente a um período da vida moderna em que os valores inscritos no “ideal de feminilidade”, a
exemplo da mulher não sucumbir aos ímpetos da luxuria; está impossibilitada de expressar
seus desejos e ser considerada com um ser passivo, frágil, e inábil para os cuidados consigo
mesma, entra em choque com as aspirações de tornar-se independente, de poder exercer
atividades que estavam fora da esfera familiar ou privada. “A recusa das histéricas em aceitar
a feminilidade como modelo de subjetivação e de sua sexuação, deve ter criado uma crise
para o próprio Freud” (KEHL, 2008, p.183). Ancoradas nos valores da sua época, as teorias
19
Segundo Moraes (1996), em Emilio ou Da Educação (1995) Rousseau, descreve a perfeita educação para uma
mulher tornar-se esposa e como a sexualidade da mulher era ameaçadora sendo necessário intenso controle para
torná-la esposa e mãe.
48
freudianas indicam só conceber a mulher como signo. Baseadas na observação clínica, as
teorias freudianas sobre feminilidade e sexualidade feminina estão fundamentadas na
completa dependência da mulher ao homem. O que Freud evidencia é a posição da mulher
sustentada pelo discurso da moderna sociedade civil. Nesse período, a sexualidade da mulher
era tida como ameaçadora para o homem; deveria ser controlada e reprimida desde cedo pela
educação para que a mulher pudesse, por um lado, estimular a virilidade masculina e, por
outro, desempenhar a contento os papéis de esposa e mãe. Os ideais que evocaram princípios
como autonomia, igualdade e liberdade indicam estar submetidos sob a ordem de controles e
prescrições.
49
1.6 Relações Familiares e os Dispositivos de Controle
O crivo foucaultiano ressalta que na família moderna, o sistema de aliança dividiu o poder
com uma nova estratégia outrora desconhecida: o controle da sexualidade. A família passa a
ser o instrumento de troca entre a sexualidade e a aliança:
Essa fixação do dispositivo de aliança e do dispositivo de sexualidade na forma da família permite
compreender certo número de fatos: que a família se tenha tornado, a partir do século XVIII, lugar
obrigatório de afetos, de sentimentos, de amor; que a sexualidade tenha como ponto privilegiado de
eclosão, a família; que, por esta razão, ela nasça “incestuosa” (FOUCAULT, 1984, p.103).
Compreende-se, portanto, que a família fundamenta-se em dispositivos ou redes que reúnem
um conjunto de distintos elementos como leis, instituições, teorias, posições cientificas, atos
civis e discursos, ou seja, tudo o que pode ser expresso pela via da fala e pela ausência desta.
Tais dispositivos tornam-se os regentes das ações dos sujeitos e são utilizados para
estabelecer fronteiras entre o permitido e o proibido; entre o saber e o fazer. Nasce, portanto,
com um fim especifico: responder as inseguranças geradas por mudanças sejam econômicas
ou psicológicas, cujo objetivo é regular as relações.
Pela lente foucaultiana o dispositivo de aliança é um sistema de matrimônio, de fixação e
desenvolvimento dos parentescos, e transmissão de nomes e do patrimônio. Faz-se necessário
para estabelecer o status social de famílias que detém propriedades e riquezas como também
aos propósitos econômicos e as estruturas políticas. A importância da aliança decorre do
vínculo entre grupos com o mesmo valor social, que se consolida através do casamento ao
estabelecer relações de parentesco e através de prescrições normativas que define o que pode
e não pode ser feito. Isso podia ser observado nos casamentos arranjados pelos pais para
costurar acordos políticos. O objetivo é manter a trama das relações e manter a lei que as rege.
O importante é o vínculo entre os parceiros; se articula com base na economia, com base no
papel que os sujeitos podem desempenhar na transmissão ou na circulação das riquezas. O
dispositivo está ordenado para a homeostase do corpo social, ou seja, para o equilíbrio entre a
busca das necessidades e a satisfação destas. Tal homeostase é conseguida através da
reprodução, no fato das alianças gerarem novas famílias, que carregam consigo os valores das
antigas, fortalecendo os vínculos entre si. Os acordos da aliança objetiva a circulação de
riquezas, de bens, mas também de apaziguamento nas relações sociais: através das alianças
torna-se possível a eliminação de conflitos sociais como disputas e guerras entre as famílias,
estabelecendo ligações pacíficas entre si. O importante é reproduzir, desmembrar as famílias
50
para a o engendramento de outras. Dessa maneira pode-se supor a compreensão da família
muito menos como uma realidade afetiva que moral.
o dispositivo de sexualidade estabelece o domínio sobre as formas de controle. O que
importa não é o reproduzir, mas como o reproduzir deve ser feito. Tal dispositivo pretende
controlar a forma como homens e mulheres lidam com o prazer: “O dispositivo da
sexualidade tem, como razão de ser, não o reproduzir, mas o proliferar, inovar, inventar,
penetrar nos corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações de modo
mais global” (FOUCAULT, 1984, p.101). Por tal perspectiva, o objeto de análise e o controle
são os modos como os poderes disciplinadores modernos funcionam no microcosmo da vida
privada. Com isso, o dispositivo da sexualidade pretende impetrar controle nas formas de
expressão dos prazeres. A técnica visa à edificação de fronteiras. Dito de outra forma, através
da ligação de diferentes elementos, também atua na delimitação do permitido e do proibido,
mas faz isto sustentado no cientificismo da sociedade moderna, através da implementação das
técnicas de saber
20
, que pressupõe o estabelecimento de verdades, em contraposição aos
saberes não legitimados. Cito Foucault:
O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a
uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas que igualmente o condicionam. É isto, o
dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles
(FOUCAULT, 1983, p.132).
Permeado pelas relações de poder, o dispositivo aciona os sujeitos para determinar o proibido
e condicionam os próprios sujeitos como agentes. Através do controle da sexualidade, a
sociedade moderna, especialmente a família burguesa, assumiu formas de contenção da
sexualidade na expressão dos sentimentos: “[...] foi na família burguesa ou aristocrática que
se problematizou inicialmente a sexualidade das crianças ou dos adolescentes; e nela foi
medicalizada a sexualidade feminina” (FOUCAULT, 1984, p. 114). O autor indica o
surgimento de quatro grandes dispositivos de saber e poder sobre o sexo, dentre os quais
ganha destaque em seu discurso a histerização das mulheres e a pedagogização do sexo da
criança. As mulheres, como mães, deviam estar acima da luxuria e dos prazeres sexuais.
Foucault ressalta:
Histerização do corpo da mulher: tríplice processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado –
qualificado e desqualificado como corpo integralmente saturado de sexualidade; pelo qual esse corpo
foi integrado, sob o efeito de uma patologia que lhe seria intrínseca, ao campo das praticas médicas;
pelo qual enfim, foi posto em comunicação orgânica com o corpo social (cuja fecundidade regulada
20
A exemplo das ciências como a medicina, psiquiatria e pedagogia (FOUCAULT, 1983).
51
deve assegurar), com o espaço familiar (do qual deve ser elemento substancial e funcional e com a vida
das crianças (que produz e deve garantir, através de uma responsabilidade biológico-moral que dura
todo o período da educação): a Mãe, com sua educação em negativo que é a “mulher nervosa” constitui
a forma mais visível desta histerização (FOUCAULT, 1984, p.99).
Longe da vida pública e ocupada com as demandas da família, elemento essencial da casa, a
mulher é tida como tendo uma sexualidade excessiva, percepção que dota o sexo de um poder
excessivo e, portanto, patológico, mas que deve servir ao corpo social, cujo controle, via
fecundidade, deve ser regulado. O dispositivo evoca que a sexualidade feminina deveria
seguir exclusivamente ao propósito nobre: gerar vida. Por tal concepção, a mãe, deve abster-
se dos desejos sexuais, sua preocupação deve ser apenas com os cuidados com a família. Esta
torna-se o lócus de fixação do controle da expressão da sexualidade da mulher.
Interpretada pela via do controle a sexualidade infantil passa a ser vista como algo que deveria
ser evitada, coibida e punida. Orientados pelo saber cientifico, os pais surgem como os
principais guardiões da moralidade das crianças
21
. Porém, os pais que barram a criança
também são barrados na forma de satisfação dos seus prazeres. A família burguesa acaba por
garantir a produção de uma sexualidade não homogênea aos privilégios da aliança. Dito de
outra forma, a família garante a produção de uma sexualidade como objeto de saber. A
sexualidade passa a ser utilizada para a determinação do comportamento normal e patológico.
Dessa maneira, Foucault (1984), entende a sexualidade como um dispositivo histórico, um
novo saber engendrado pelo poder: o saber do produto da estimulação dos corpos; da
estimulação dos prazeres, dos novos discursos e o conhecimento sobre todos estes, formando
uma nova tecnologia de controle:
As sociedades ocidentais modernas inventaram e instalaram, sobretudo a partir do século XVIII, um
novo dispositivo que se superpõe ao primeiro e que, sem o pôr de lado, contribui para reduzir sua
importância. É o dispositivo de sexualidade: como o de aliança, este se articula aos parceiros sexuais;
mas de um modo inteiramente diferente. Poder-se-ia opô-los termo a termo. O dispositivo de aliança se
estrutura em torno de um sistema de regras que define o permitido e o proibido, o prescrito e o ilícito; o
dispositivo de sexualidade funciona de acordo com as técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de
poder (FOUCAULT, 1984 p.101).
A sociedade moderna instaura um dispositivo que não possui um sistema específico de regras.
Pelo controle da estimulação dos corpos e dos prazeres, o proibido e o permitido são
permeados por uma plasticidade, podendo atuar sobre o corpo das mulheres na reificação do
seu lugar de e e no desvalor do próprio corpo da mulher como objeto de prazer dos
homens; pode instalar a crença do amor distanciado do sexo e pode reprimir a sexualidade
21
A criança é vista como um ser sexuado e deve ser controlada (FOUCAULT, 1984).
52
infantil como ordenação de um cuidado parental. O modo como a matriz familiar foi
valorizada durante o século XVIII possibilitou que, em suas relações fundamentais, marido,
mulher, pais e filhos fossem objetos dos principais elementos de atuação do controle da
sexualidade: o corpo feminino e a precocidade infantil (FOUCAULT, 1984). A família
nuclear e o lar burguês são tributários da criação de um ideal feminino, de mãe e de mulher
que parecem sobreviver aos tempos contemporâneos, cuja principal função foi promover o
enlace entre a mulher e o espaço privado, bem como a adequação feminina como detentora de
personalidade passiva para sustentar a virilidade masculina. A adequação das mulheres a essas
funções foi fruto de uma enorme produção discursiva, que faz parte da história de constituição
do sujeito moderno e possivelmente do sujeito contemporâneo.
Kehl (2008), ressalta que o olhar foucaultiano revelador da sexualidade como controle
permitiu uma nova compreensão sobre a historicidade do homem e da mulher, “vistos como
objetos de um ponto de convergência entre poderes, formações discursivas, dispositivos de
produção, de controle e de agenciamento libidinal” (KEHL, 2008, p.33).
O sujeito aparece
como resultado de uma operação de assujeitamento aos dispositivos. Nesse sentido, a
genealogia foucaultiana firmou a ruptura decisiva com os pontos de vista que pregavam a
universalidade da noção de como constituir-se sujeito. De acordo com tais princípios, não
sujeito universal. a soberania de um sujeito constituído, originado das práticas
disciplinares e dos discursos científicos da modernidade (KEHL, 2008).
Compreende-se, portanto, que os sujeitos humanos e as relações que estabelecessem devem
ser considerados pelo atravessamento dos fenômenos sócios, econômicos, históricos, políticos
e subjetivos inerentes a própria constituição do humano e, portanto desvencilhados de
qualquer determinação estrutural universalizante. Em outras palavras, os sujeitos humanos
constituem-se através de um conjunto de diferentes elementos marcados pelas relações com o
outro e sustentados em visões de mundo que estabelecem a ordenação de hábitos e costumes.
Não por acaso os dispositivos de controle estão associados à nova estrutura política da
sociedade moderna. Para manter a história das origens parece ter sido necessário a moderna
sociedade civil estabelecer estruturas que cimentassem os alicerces de desigualdades: o
domínio sexual feminino deveria estar sob a tutela do masculino. Através de dispositivos de
controle foi possível legitimar a história das origens ou da civilização, no que concernem as
prescrições normativas que caracterizam a família, na medida em que esta só pôde ser
ordenada sob a autoridade do patriarca.
53
1.7 Modelo Familiar Patriarcal: características, forma de atuação e
vigência.
O Patriarcado não consiste apenas em uma forma de família baseada no parentesco masculino
e no poder do pai. Consiste na premissa de que toda estrutura social nasce de um poder que o
governo exerce sobre os membros da coletividade da mesma forma que o pai o exerce sobre
as pessoas de sua família (PATEMAN, 1993). Compreende-se, portanto, que o patriarcado é
a expressão de poder de um chefe sobre os subordinados, refere-se a uma forma de poder
político, econômico e social com matriz familiar, embora o exercício do poder se faça
presente dentro ou fora da família; sua característica fundamental consiste no poder exercido
exclusivamente pelos homens:
Durante séculos, a família sob o comando da autoridade paterna, forneceu o modelo ou metáfora para as
relações de poder e autoridade de todos os tipos. A argumentação patriarcal tradicional atribui todas as
relações de poder ao regime paterno, porém a história da civilização é contada pelo surgimento do
patriarcado como um triunfo social e cultural
. O reconhecimento da paternidade foi interpretado como
um exercício de razão, um avanço necessário que forneceu as bases para a emergência da civilização
todas elas realizações dos homens (PATEMAN, 1993, pp.49/50).
Pressupondo-se uma interpretação patriarcal do patriarcado, este pode ser entendido como um
sistema de ordenações e prescrições que forneceu as bases para o processo civilizatório. O
patriarcado é, então, uma forma de organização social na qual as relações são regidas por dois
princípios básicos: os homens fazem acordos entre si e subordinam hierarquicamente as
mulheres; e os jovens e filhos estão hierarquicamente subordinados aos homens mais velhos.
O direito político é, portanto paternal. Tanto as famílias como a sociedade são governadas por
este, e tal governo, não prescinde de um consentimento, prescinde de uma relação de troca: a
garantia do sustento econômico, do amparo político e social diante da proteção dada pela
autoridade suprema, em troca da obediência: os filhos devem obedecer aos seus pais, às
mulheres, a seus maridos, e os subordinados ao seu superior, encarnado na figura do pai
protetor, sendo o paterno, em seu sentido literal, apenas uma das dimensões do patriarcado. A
ordenação masculina ditada pelas normas patriarcais atribui um maior valor às atividades
exercidas pela imagem paterna, como protetora e reguladora das relações, sejam estas entre os
subordinados, não subordinados, entre os filhos e principalmente as mulheres, legitimando o
controle da sexualidade, dos corpos e da autonomia destas. Portanto, o governo patriarcal se
exerce sem fronteiras: está presente ordenando as relações sociais como força de Estado e está
presente na ordenação das relações pertinentes a família.
54
Destaca-se a observação feita por Pateman:
Na Inglaterra do século XVII, a obediência dos súditos ao Estado era ensinada a partir do púlpito
utilizando-se como analogia o poder paterno. No catecismo, o Quinto Mandamento era interpretado de
modo a significar, em uma única declaração poderosa, que o Pai Civil é aquele que Deus instituiu como
Magistrado supremo (PATEMAN, 1993, p. 44).
O patriarca governa através da força de instituições como o Estado e a igreja, ambas
sustentadas pela obediência. À imagem de Deus, o pai é visto como a encarnação terrestre de
um poder espiritual que transcende a carne. Família e sociedade estão no mesmo plano, são
consideradas como o paradigma de um vigor imanente ou do próprio Estado. Dessa maneira,
o patriarcado regula as relações de mercado ou econômicas como também as regras sociais e
culturais sustentado nas relações afetivas e nas crenças constituídas através do simbolismo
relacionado à proteção de todos por um “pai civil” com poderes supremos.
De acordo com Roudinesco (2003), a origem dessa imagem paterna pode ser encontrada nas
características da família judaico-cristã:
Heróico ou guerreiro, o pai dos tempos arcaicos, é a encarnação familiar de Deus, verdadeiro rei
taumaturgo, senhor das famílias. Herdeiro do monoteísmo reina sobre o corpo das famílias e decide
sobre os castigos infligidos aos filhos (ROUDINESCO, 2003, p.21).
O pai arcaico é o pai que é investido de autoridade suprema. O pai dos tempos arcaicos é o
mesmo pai com poderes absolutos da suposta horda primitiva contida na historia freudiana em
Totem e tabu (1913)
22
. O pai da sociedade do inicio da era moderna que exerce o poder
como um tirano e incita a ambivalência de sentimentos entre os filhos. A origem dessa
imagem paterna é a mesma contida na história hipotética do contrato original: os homens
estabelecem acordos entre si e inclui as mulheres como objeto destes.
Para consolidar seu poder, o corpo do pai, embora tenha como destino à morte, prolonga-se
através da transmissão do nome aos seus descendentes e torna-se, portanto imortal: “O pai se
torna na Idade Média um corpo imortal: carne e espírito, o germe e o logos, a natureza e o
cogito” (ROUDINESCO, 2003, p.27). O pai se torna a figura de autoridade suprema, está
acima dos limites da carne. Como guardião da família pode reíficar uma mulher ou
amaldiçoá-la até a morte, pode proteger um filho, destituí-lo ou condená-lo, sua lei se faz
22
Na remissão que Rief (1979), faz a Totem e Tabu, ressalta que “Freud tomou um cuidado especial ao
enfatizar o caráter repressivo da sociedade primitiva, pois nele, ele encontrou um modelo para o caráter
repressivo de todas as sociedades [...] O pacto social aparece como uma resposta contra-revolucionária a derrota
do governo patriarcal” (RIEF, 1979, pp.229/ 230). O entendimento consiste em reconhecer que o governo do pai
autoritário foi substituído por um governo que promove a liberdade.
55
presente mesmo com a ausência do corpo, através da esposa e dos filhos que carregam o seu
nome.
Porém, chega o tempo em que a opressão centrada no poder patriarcal exercida pelo pai que
detém a autoridade suprema, volta-se para a direção oposta, e os filhos reclamam para si o
ideal de um logos que a lei paterna deveria lhes transmitir. Roudinesco destaca:
Se o pai era claramente, a imagem de Deus, o depositário de uma palavra que jamais reduzia a alma a
um corpo carnal, certamente era preciso admitir que o filho fosse por sua vez, capaz de perpetuar,
enquanto filho o ideal desse logos que o verbo paterno lhe transmitira
(ROUDINESCO, 2003, p.29).
Concebendo o pai como uma imagem divina, que exercia o poder acima dos limites naturais
ou da carne, os descendentes deste reclamam para si os mesmo direitos. Os filhos querem a
imanência concedida ao pai, os filhos querem o mesmo direito exercido sobre as mulheres. O
que está em jogo é que o mesmo domínio exercido pelo pai deveria ser distribuído entre os
filhos. E ao negá-lo, o pai se faz parecer um mero mortal amesquinhado. E os filhos
promovem a destituição política e social do pai. Esta foi à via que permitiu a fundação da
sociedade civil que prima pelo indivíduo e destitui a autoridade absoluta do patriarca: o pai
que tudo pode e tudo vê, torna-se uma ameaça e é confrontado pelo ideal de um pai fraterno,
respeitado e não temido. O poder patriarcal sobre os filhos deve ser destituído. A figura do
patriarca como autoridade suprema, deve esvair-se e morrer, deixando lugar para o pai
domesticado.
Destarte, o pai aniquilado da suposta horda primitiva contida nas suposições freudianas sobre
a origem da sociedade, o que está em jogo é a contestação do patriarcado como forma de
poder político e social, e em seu lugar a proposta do contrato moral e social que permite aos
filhos partilhar os mesmos direitos que pertenciam ao pai. Esse novo contrato moral e
social faz nascer à noção de “indivíduo” elemento fundamental do contrato social que
pretende estabelecer a autonomia e liberdade para todos, tornando-os indivíduos e livres. Ser
indivíduo significa a renúncia à tutela do pai, significa a derrocada política do pai com
poderes incontestáveis e absolutos. Separa-se, portanto, o poder patriarcal político do poder
patriarcal familiar, o patriarcado como forma social é substituído pela moderna sociedade
civil sustentada por relações fundamentadas em contratos. Os filhos o mais obrigados a
obediência cega ao pai, ganham a autonomia de adultos. Ambos ficam, portanto, em posição
política de igualdade para exercer seus direitos como indivíduos livres. E a figura do pai, é
reinvestida em seu poder, com a missão de tornar-se “um pai justo, submetido à lei e respeito
dos novos direitos adquiridos em virtude da declaração dos Direitos do Homem e do
56
Cidadão” (ROUDINESCO, 2003, p.39). Nascem, portanto, as relações sustentadas pelo
contrato social. Este é o signo da morte dos poderes políticos da autoridade suprema centrada
na figura do pai. A abolição do primado do poder patriarcal indica um acordo entre os
homens.
Pateman (1993), observa que uma das maiores confusões acerca dos debates e explicações
sobre o patriarcado deve-se ao fato das histórias hipotéticas sobre o desenvolvimento da
família patriarcal ou da sociedade civil ser contadas como histórias das origens da sociedade
humana ou da civilização. Essas histórias são contadas nas narrativas freudianas sobre a
origem da sociedade e nas interpelações lévi-straussianas sobre a origem da família e da
sociedade. Factíveis ou não, todas as histórias parecem convergir para os mesmos propósitos:
consolidar os direitos dos homens sobre as mulheres seja através das alianças constituídas
com base na troca de mulheres, seja através das alianças estabelecidas com base em acordos
entre os homens. Ambas indicam manter a assimetria sexual nas relações entre homens e
mulheres. O que se pode observar é que tais histórias não destacam as relações de
desigualdades entre os sexos. Pelo contrário, convocam o entendimento e a aceitação de que
as relações entre homens e mulheres são mantidas com base em direitos e deveres equânimes,
através de um acordo de reciprocidade e cooperação que funda a família, ficando, portanto,
omissa a dissimetria nas formas das relações sexuais e conjugais entre homens e mulheres e,
portanto, omitindo-se a história do contrato sexual que estabelece as relações hierárquicas ou
desiguais entre estes.
Assim, na contemporaneidade, o que se pode observar é o modelo patriarcal comumente
aceito como um termo que está vinculado às relações sociais dos tempos arcaicos: “O modelo
patriarcal foi quase que totalmente ignorado no século XX. A interpretação tradicional da
história do pensamento político moderno é a de que a teoria e o direito patriarcais estão
mortos e enterrados 300 anos” (PATEMAN, 1993, p.38). Com o surgimento da moderna
sociedade civil, os debates sobre patriarcado tornaram-se irrelevantes e são marcados por
interpretações patriarcais; dentre as mais importantes e freqüentes estão dois argumentos
inter-relacionados: patriarcado como uma relíquia do antigo mundo do status; como ordem
natural de sujeição. Em outras palavras, um resquício do antigo mundo do poder ou do direito
paterno que precedeu o mundo da moderna sociedade civil regida pelo contrato social. Isso
significa que o modelo patriarcal que regia ou rege
23
a autoridade dos homens sobre as
23
De acordo com o autor, o mundo não era igualmente patriarcal. “O poder dos pais, irmãos, maridos e filhos,
embora virtualmente predominado em toda parte, de fato diferia entre as classes e culturas” (THERBORN, 2006,
p.34).
57
mulheres, precisa deixar de ser apresentado como história da origem da sociedade humana ou
da civilização, e precisa ser reconhecido como um modelo que ofusca e fortalece a
permanência das relações de poder desiguais nas relações entre os sexos. O discurso
ideológico e político que anuncia o declínio do patriarcado, baseia-se na idéia de que não
mais o direito do patriarca sobre as mulheres. Porém, uma vez mantido o direito natural
conjugal dos homens sobre as mulheres, como se cada homem tivesse o direito natural de
poder sobre a esposa, ainda prevalece às relações assimétricas e desiguais que se fizeram
presentes nas relações patriarcais. O patriarcado pode ser nomeado ou até questionavelmente
substituído por outro termo como gênero, falocracia ou androcentrismo (PATEMAN, 1993).
No entanto, deve-se atentar para a força histórica da sua atuação em diversas culturas, atuando
como alicerce político e ideológico na sustentação da dissimetria sexual entre homens e
mulheres.
Entende-se, que na sociedade moderna o poder conjugal do contrato social é dos indivíduos
homens e não do patriarca, é parte do direito sexual do homem sobre a mulher. O contrato
social da sociedade civil que propõe a liberdade e a autonomia para todos os indivíduos indica
que não eliminou o contrato sexual, pelo contrário, aquele pode existir pela sustentação
deste. Com isso, nas relações entre os sexos, o fato de homens e mulheres fazerem parte de
um contrato de casamento, de estabelecerem uma relação conjugal antes de serem pais e
mães, é esquecido, ocultando, portanto, a questão social mais ampla, que é o caráter das
relações entre homens e mulheres e a abrangência do direito sexual do homem sobre a
mulher.
Therborn (2006), ressalta que por volta de 1900 a família européia tinha sido submetida a três
grandes mudanças: 1. a proletarização, que significa o crescimento da classe destituída de
propriedade e dependentes da venda do seu trabalho. Esta mudança afetou o patriarcado,
que o pai proletário não possui bens para transmitir aos seus filhos e está submetido ao poder
superior dos proprietários de terra ou de capital; 2. a urbanização também desafiou o
patriarcado pelo caráter heterogêneo de várias opções de sobrevivência; 3. e por fim, a
industrialização, após a separação em grande escala entre o lugar de trabalho e da casa,
enfraquecendo o controle paterno. Mas, o poder do pai familiar se reproduziu no controle da
economia do salário e das normas familiares. Therborn ressalta:
No século XIX, as mulheres casadas e solteiras européias eram totalmente subordinadas ao poder dos
maridos e dos pais respectivamente: a lei francesa, até 1965, manteve a determinação à qual recorria,
até pelo menos 1962, a mais alta corte de lei privada da terra de que a mulher casada teria de ter a
permissão de seu marido para trabalhar fora de casa [...]. Baseado no Código Civil Napoleônico a lei
58
prussiana de 1851 proibia a participação das mulheres nos comícios políticos e sua filiação a
associações políticas e pela contínua exclusão delas da educação superior (THERBORN, 2006, pp. 46/
49).
Pode-se compreender que ainda no século XX o vigor do contrato sexual se mantém pelo
controle das mulheres ou pela manutenção das desigualdades de poder entre os sexos. Ao
considerar os índices apresentados pelos especialistas, a omissão do contrato sexual nas
histórias reais ou hipotéticas da origem da civilização, parece ter significado uma via de
manutenção das relações de poder sexualmente hierarquizadas. E a família contemporânea,
centrada no indivíduo, parece indicar a manutenção de uma ordem familiar de desigualdades,
contidas ou expressas nas ordenações e prescrições que são características do modelo
patriarcal.
Nesse sentido, Castells (2002), ressalta que estruturalmente o patriarcalismo afeta as
sociedades contemporâneas ocidentais: “Caracteriza-se pela autoridade, imposta
institucionalmente do homem [...] através da organização da sociedade; da produção e do
consumo a política; a legislação e à cultura” (CASTELLS, 2002, p. 169). Assim, pode-se
admitir que na contemporaneidade, as características de tal instituição se afirmam nas relações
familiares através da divisão sexual do trabalho, das condutas da mulher e do homem frente às
atribuições domésticas e cuidado com os filhos que, de modo geral, continuam a ser
realizadas pelas mulheres. Castells destaca que:
A família patriarcal, base fundamental do patriarcalismo, vem sendo contestada por processos
inseparáveis de transformação do trabalho feminino e da conscientização da mulher. As forças
propulsoras desse processo são o crescimento de uma economia informal global, mudanças tecnológicas
no processo de reprodução da espécie e o impulso poderoso promovido pela luta da mulher e por um
movimento feminista multifacetado, três tendências observadas a partir da década de 60. A
incorporação maciça da mulher na força de trabalho remunerado aumentou o seu poder de barganha em
relação aos homens, abalando a legitimidade da dominação deste em sua condição de provedor da
família. Além disso, colocou um peso insustentável sobre os ombros das mulheres com suas quádruplas
jornadas diárias (trabalho remunerado, organização do lar, criação dos filhos e a jornada noturna em
beneficio do marido). Primeiro os anticoncepcionais, depois a fertilização in vitro e a manipulação
genética que se aprimora a cada dia são fatores que permitem a mulher e a sociedade controle cada vez
maior sobre a ocasião e freqüência das gestações (CASTELLS, 2002, p. 170).
Muito embora a família patriarcal nos moldes da sociedade moderna tenha apresentado
considerável declínio, percebendo-se na contemporaneidade a eliminação da figura masculina
como chefe familiar, bem como a quebra pelas mulheres, das fronteiras entre o público e o
privado (conquistando a autonomia com a participação no mercado de trabalho, e de direitos e
garantias como indivíduo), tais mudanças trouxeram conseqüências conflituosas: “[...] embora
a discriminação legal tenha de certo modo diminuído, a violência interpessoal e o abuso
psicológico tem se expandido, justamente em virtude da ira masculina, tanto individual
59
quanto coletiva, ante a perda do poder” (CASTELLS, 2002, p.173). Pode-se supor que a
liberdade social conferida às mulheres, parece não encontrar correspondente nos encontros
afetivos: o imaginário masculino desenhado pelas histórias sobre as origens da família, em
que a mulher é marcada como signo, encontra eco e parece ressoar, ainda hoje, no cotidiano
dos homens, como se para as mulheres, o direito, a autonomia e liberdade não significasse
direito de uso e de propriedade.
Assim, Negreiros e Féres-Carneiro (2004), evidenciam que nas sociedades ocidentais ainda se
pode observar famílias pautadas sob diferentes modelos: o ‘antigo’, em que homem e mulher
possuem identidades distintas sendo concebidos como seres diferentes em termos anatômicos,
psíquico e social, e a partir daí com responsabilidades distintas: o homem é considerado
provedor econômico e autoridade moral da família; a mulher mãe, cuidadora do lar e filhos,
muito embora possa contribuir para o sustento familiar. Em concomitância, o “modelo
novo", regido sob o signo da realização de projetos individuais (comumente observados em
classes com maior poder aquisitivo), em que as fronteiras de identidades entre homem e
mulher tornam-se mais flexíveis. Tal modelo evidencia uma menor rigidez na determinação
das condutas dos sujeitos, com atuação da mulher em atividades nomeadas como masculinas.
Porém, surge uma mulher ambivalente, dividida entre os cuidados da família e a realização
dos seus projetos pessoais.
No modelo novo o homem não é mais o exclusivo provedor nem protetor familiar. Mas, tanto
no ‘antigo’ como no ‘novo modelo’ observam-se desigualdades de gênero que podem gerar
tensões e conflitos.
O que está explicito é que ainda conflitos e diferenças relevantes nas relações sociais ente
os sexos, muito embora o século XXI tenha consolidado mudanças no que tange as relações
entre homens e mulheres, principalmente em relação aos direitos e garantias e da liberdade de
escolhas dos filhos. De todo modo, especialistas sinalizam que continuam persistindo
determinações discriminatórias nas condutas exercidas pela mulher e pelo homem na família e
fora dela, a exemplo das atividades domésticas e da desigualdade salarial e, em alguns casos,
nas situações de violência (SAFFIOTI, 2004). Na prática, a realização de projetos pessoais a
exemplo de carreira, participação valorativa no mercado de trabalho, ganhos financeiros
equivalentes ao gênero masculino ainda são fatores que revelam as desigualdades.
Os debates sobre a existência do patriarcado medieval ou moderno, como gênese das relações
desiguais de poder entre homens e mulheres destaca que desigualdade e não responde
por que ela existe. Pode-se supor que a relevância consiste em considerar que a base material
60
do patriarcado indica não ter sido destruída (SAFFIOTI, 2004). Se a sociedade
contemporânea apresenta desigualdades nas relações de poder entre homens e mulheres, as
discussões e debates devem estar atrelados aos pressupostos que constituem o contrato sexual
e o contrato social, bem como ligadas ao entrelace de tais contratos. No entanto, tais
pressupostos não são revelados pelos embates que priorizam as origens da civilização. A
principal questão que se faz urgente na contemporaneidade é por em relevo as implicações do
entrelace de tais contratos, principalmente na relação familiar, isso significa a desconstrução
sistemática dos pressupostos que regimentam as desigualdades entre os gêneros. Nesse
sentido, faz-se mister ressaltar o movimento de mulheres e em particular o feminismo, que
pôs em questão a maneira como as relações sociais entre os sexos foram e são constituídas,
indicando os pilares de desigualdades que as sustentavam, contribuindo para que novas
formas de poder possam ser redesenhadas.
61
CAPÍTULO II - RELAÇÕES DE PODER REDESENHADAS
2.1 Feminismos: entraves e destraves
Therborn (2006), sustenta que o último século assistiu ao enfraquecimento dos modelos
relacionais estabelecidos através do modelo patriarcal. Com a formação da moderna
sociedade civil e a proposta de liberdade e autonomia para todos os indivíduos, as mulheres
tiveram a possibilidade de contrapor suas realidades e de aspirar à vontade de afirmar a sua
individualidade; as condições de possibilidade do questionamento das relações de assimetria
sexual foram dadas:
Os desafios ideológicos ao patriarcado europeu vieram de duas formas. A primeira delas, o radicalismo
protestante, cuja primeira grande manifestação foi o tratado de John Stuart Mill sobre a sujeição das
mulheres, que se tornou instantaneamente, uma bíblia feminista, publicada no mesmo ano em todo o
Império britânico [...] O principal ponto de Mill era o de que a subordinação de gênero se tinha tornado
um dos principais obstáculos ao progresso humano. A igualdade de gênero não significaria apenas, um
indizível ganho na felicidade privada da metade libertadora da espécie, mas implicaria também em “um
aumento na reserva comum do poder de pensar e de agir e em uma melhoria nas condições gerais de
associação entre homens e mulheres (THERBORN, 2006, p.45).
Os desafios ideológicos regidos pela ão discursiva que combatia o patriarcado
fundamentam-se na proposta da eliminação da dissimetria de poder nas relações entre homem
e mulher. A crítica consiste na condição de assujeitamento das mulheres, privadas dos direitos
de direcionar as suas condutas em função da obediência aos valores de um modelo de família
que as mantém como propriedades dos maridos. Influenciadas pelo ideal de liberdade
prometida aos indivíduos, não era mais possível as mulheres aceitar a autoridade dos homens
em troca de uma proteção que se tornava malogro ou prisão. Na família, isto pode ser
entendido como alguma alteração de diferentes modos de relações entre homens e mulheres e
conseqüentemente entre os filhos. As relações regidas pela autoridade do homem sobre a
mulher é questionada e torna-se objeto de crítica frente às desigualdades de poder. O discurso
ideológico que sustentava a autoridade e supremacia masculina sobre a mulher, bem como o
modelo familiar regido pela autoridade do homem como proprietário da família, e ainda a
figura da mulher como restrita ao lugar de mãe e dona de casa são postos em questão. A esse
propósito, diz Beauvoir:
As mulheres de hoje estão destronando o mito da feminilidade; começam a afirmar concretamente sua
independência; mas não é sem dificuldade que conseguem viver integralmente sua condição de ser
62
humano. Educadas por mulheres, no seio de um mundo feminino, seu destino normal é o casamento que
ainda as subordina praticamente ao homem; o prestigio viril está longe de ter se apagado: assenta ainda
em sólidas bases econômicas e sociais. É, pois necessário estudar com cuidado o destino tradicional da
mulher. Como a mulher faz o aprendizado de sua condição, como a sente, em que universo se acha
encerrada, que evasões lhe são permitidas (BEAUVOIR, 1980, p.7).
Destronar o mito da feminilidade significa empreender-se em uma batalha sem precedentes:
significa pensar a sexualidade feminina desvinculada da reprodução e do destino de ter como
esposa e mãe sua condição de existência exclusiva. Afirmar a independência significa ter que
garantir por si mesma sua existência como pessoa, numa sociedade em que ser mulher é
sinônimo de reflexividade do espelho masculino. Tal empreitada não se dará sem grandes
tensões e sucessivas batalhas.
Um dos primeiros movimentos destacados foi “A Convenção de Sêneca Falls e a declaração
de 1848, que tornou-se um marco histórico feminista e reivindicou a reforma da lei da
propriedade marital no estado de Nova York” (THERBORN, 2006, p.156). Tal movimento
obteve a atenção dos defensores masculinos pertencentes às organizações e instituições que
defendiam as fronteiras de nero. A partir de movimentos como este as mulheres exerceram
o direito de votar e de reivindicar mudanças da lei da propriedade que os homens exerciam
sobre suas mulheres e sobre o patrimônio da família, engendrando as primeiras raízes do
feminismo. Este pode ser compreendido como o movimento social que deu maior enfoque as
relações desiguais de poder entre homens e mulheres, principalmente sobre as relações
familiares, possibilitando contar uma diferente história sobre as origens: “Sexismo” e
diferença sexual tornaram-se moralmente os principais acusadores, tão graves como
“racismo” e “discriminação racial” ”(BADINTER, 1986, p. 171). Nesse sentido, as críticas
feitas pelo feminismo como movimento de libertação das mulheres do Ocidente, no fim dos
anos 60, tomaram a forma de críticas fundamentais à família. O lugar da mulher como dona
de casa e mãe é visto como sub-valorizados.
Politizando o entendimento desse estado de coisas, o feminismo passa a desafiar a visão da
família como um domínio harmonioso e igualitário. “Nos anos 60 e 70 as perspectivas
feministas dominaram a maioria dos debates e das pesquisas sobre a família evidenciando a
violência nas relações entre homem e mulher na esfera doméstica” (MORAES, 1996, p.84).
Sob a luz de tais observações, o feminismo pôs em dúvida a visão da família como instituição
harmoniosa ou como unidade cooperativa, baseada em interesses comuns, e apoio mútuo,
questionando padrões e características da família centrada na superioridade e autoridade
masculina, destacando a dissimetria de poder nas relações familiares. A família deixa de ser
63
vista como lugar de harmonia e cuidado e passa a ser vista como o lugar onde as
desigualdades de poder entre homens e mulheres revelam sua maior expressão.
Assim, de acordo com Rago (2001), não dúvida que as mulheres do século XX tenham
conquistado uma importância fundamental em direitos políticos e civis e no espaço público
ocupando profissões outrora determinadas como masculinas: “As mulheres brilham [...]. Ao
mesmo tempo, parece que se ouve falar cada vez menos do feminismo, sobretudo no senso
comum, estão convencidos de seu desaparecimento” (RAGO, 2001, p.06). Em outras
palavras, a quem ou ao que se deve as conquistas das mulheres na contemporaneidade? Não
como ignorar a significativa relevância do feminismo como movimento social que
contribuiu para modificar as formas relacionais de convivência entre homens e mulheres ao
questionar a superioridade masculina acerca de direitos e garantias sociais e políticas.
O feminismo surge como um movimento que pretende revelar e anular a dissimetria entre os
sexos
24
. Com essa finalidade propõem a igualdade de direitos e a equidade frente aos direitos
dos homens. O feminismo nasce como movimento liberal de luta das mulheres pela igualdade
de direitos civis, políticos e educativos, direitos que eram exercidos apenas pelos homens
(MACHADO, 2000).
Em outras palavras, o movimento feminista pretendeu explicitar o que era pratica comum
no dia a dia da vida familiar: o fato das mulheres sempre trabalharem em prol da família, no
cuidado da casa e dos filhos, sem, porém, terem o direito político e civil de atuar e determinar
seus próprios destinos na vida pública e privada. O feminismo tornou evidente que os ideais
24
Cova (1998), ressalta que a invenção do termo feminismo é atribuída abusivamente, ao utopista Charles
Fourier (1772-1837), por volta de 1830. As feministas francesas vêem em Charles Fourier um percussor do
feminismo, bem como o Marquês de Condorcet (1743-1794) e Léon Richer (1824-1911) são personalidades
emblemáticas para as feministas. Este último é o fundador, em 1882, da Liga Francesa para os direitos das
mulheres, com a finalidade de obter a igualdade entre os dois sexos. O termo feminismo surgiu na França, entre
os anos 1870-1880 e propagou-se para outros países no virar do século. Antes dos movimentos feministas se
organizarem, existiram, desde sempre, atos feministas isolados em defesa das mulheres.
De acordo com Therborn (2006), o nascimento oficial do feminismo organizado, ocorreu em 1848 em uma
capela em Senecca Falls, nos Estados Unidos. Em 1857 é fundada a União das Mulheres Cristãs pela
Temperança, emergido do meio-oeste americano. Seu papel histórico principal foi a promoção de uma agenda
feminista que culminou em 1883 com o direito de voto às mulheres na Nova Zelândia e na nova Comunidade da
Austrália em 1901. As feministas americanas engajaram-se em uma prolongada luta em defesa dos direitos da
mulher à educação, trabalho e poder político, que culminou em 1920 com a conquista do direito de votar. Após
esta vitoria, o movimento exclusivamente feminista surge partir da década de 60.
Em 1966, Betty Friedan cria a Organização nacional da Mulher (NOW) com o objetivo de defesa dos direitos
das mulheres, passando a exemplificar o feminismo liberal típico, concentrando seus esforços na igualdade de
direito para as mulheres em todas as esferas da vida social econômica e institucional (CASTELLS, 2002).
64
estabelecidos na moderna sociedade civil e nos pressupostos do contrato social, que
preconizava a igualdade de direitos para todos os indivíduos, não os sustentavam validando-
os para ambos os gêneros, muito menos assumindo no concreto a exigência do usufruto da
liberdade e regência autônoma das condutas femininas. Com esse propósito “os primeiros
movimentos do feminismo referiram-se a emancipação das mulheres de um estatuto civil
dependente e subordinado
25
, e pela incorporação no estado moderno, industrializado, como
cidadãs nos mesmos termos que os homens” (MACHADO, 2000, p.64). As principais
reivindicações centraram-se essencialmente no direito ao voto, e pela afirmação do estatuto de
sujeito, ou seja, sujeito livre para agir, para determinar projetos próprios, para eliminar
fronteiras entre o público e o privado e para lutar pela equidade dos direitos em relação aos
homens
26
. Por tais perspectivas, a reprodução foi abordada como principal fator de
desigualdade e de opressão das mulheres. Os principais focos centraram-se em
questionamentos acerca da contracepção, do aborto e da violência sobre as mulheres. Em
1960, as especificidades do corpo feminino, como a gravidez, maternidade e a lactação foram
consideradas como barreiras que impediam o acesso das mulheres ao mercado de trabalho.
Nesse sentido, Grosz (1994), ressalta que os primeiros movimentos do feminismo
identificavam o corpo, como o local de poder, como o lócus de dominação e exploração.
Porém, muito embora conscientes da força ideológica que impõem limitações as ações das
mulheres, o corpo foi um ponto cego conceitual nos movimentos iniciais da teoria feminista.
Grosz ressalta:
O feminismo adotou acriticamente muitas das suposições filosóficas em relação ao papel do corpo na
vida social, política, cultural, psíquica e sexual e, pelo menos neste sentido, pode ser visto como
cúmplice da misoginia que caracteriza a razão ocidental. Feministas parecem compartilhar uma visão
comum do sujeito humano como um ser constituído por duas características opostas dicotomicamente:
mente e corpo, pensamento e extensão, razão e paixão, psicologia e biologia. Esta bifurcação do ser não
é simplesmente uma divisão neutra de um campo descritivo abrangente. O pensamento dicotômico
necessariamente hierarquiza e classifica os dois termos polarizados de modo que um deles se torna o
termo privilegiado e o outro sua contrapartida suprimida, subordinada, negativa (GROSZ, 1994, p.72).
25
Subordinação pode ser definida como uma relativa falta de poder. Considera-se subordinação de gênero
quando as mulheres não estão no controle das instituições que determinam as políticas que afetam as mulheres
tais como os direitos reprodutivos ou a paridade na falta de empregos (STREY, 2009).
26
Tais reivindicações foram parte do repertório do movimento feminista, denominado feminismo da igualdade
ou “primeira onda”. De acordo com Grosz (1994), o movimento desenvolveu-se no final do século XIX, anos 60
(nos Estados Unidos) e nos anos 70 (na Europa e difundindo-se pelo mundo inteiro nas décadas seguintes) com a
participação da filósofa francesa Simone de Beauvoir, posteriormente Betty Friedan entre outras feministas
liberais e humanistas.
65
Pode-se compreender que na interpretação do “feminismo da igualdade”, o corpo feminino foi
visto como uma barreira que dificultava a ascensão das mulheres no espaço público, como se
tal fosse o limitador para a efetiva participação das mulheres no mundo da razão masculina: o
corpo feminino era visto como uma barreira, que precisava ser superada para obter igualdade
entre os homens. A mulher na figura de mãe era tida como empecilho, um entrave para que a
mesma se tornasse ativa na esfera política e na vida pública; ao mesmo tempo a maternidade
era vista como uma via que permitia aos corpos e as experiências das mulheres uma
percepção especial, algo que os homens, via de regra, não podem realizar. Ou seja, uma
dicotomia que classifica os corpos tanto feminino, como masculino: o mesmo corpo que era
visto como entrave para o acesso aos direitos exercidos pelos homens era reconhecido como
um domínio especial que os homens não possuem. Porém, o corpo masculino, diferentemente
da mulher, não era concebido como algo que limitava a conduta do homem. Dito de outra
forma, o feminismo da primeira geração estava atrelado a uma visão de mundo excludente
que não concebia o natural sob diferentes formas de pensar ou simbolizar. Os pontos de vista
das primeiras reivindicações do feminismo indicavam estar sob influência de suposições que
denotavam a dicotomia entre natureza e cultura, entre emoção e razão. “Nesse sentido, tanto o
corpo feminino como masculino eram considerados como biologicamente determinados e
fundamentalmente alheios ao aprimoramento cultural e intelectual” (GROSZ, 1994, p.62).
Havia, portanto, uma separação entre uma mente sexualmente neutra e um corpo sexualmente
determinado e limitado.
No entanto, seria o domínio natural de gestar a vida o empecilho para valorização da mulher
no espaço público, ou as crenças ou forma de valorização desse domínio? O que estava
implícito não era a posição da mulher como mãe ou dona de casa, mas sim o valor que a
sociedade atribuía a tais posições como sendo atividades que são exercidas por mulheres e,
portanto, de menor qualificação. Se concebermos as necessidades da reprodução biológica
como determinantes da organização simbólica da divisão social do trabalho e, de toda a
ordem natural e social, a natureza torna-se um epifenômeno. Uma idéia de que a assimetria de
poder entre homens e mulheres e dominação/exploração destas ocorrerem em função de terem
um corpo inadequado, isto é, feminino, ou potencialmente maternal, pode ser justificada
através de um determinismo biológico contido nas historias das origens que pretende
naturalizar a assimetria de poder nas relações entre os sexos. Assim, não é o fato das mulheres
gestarem filhos que limitaria a autonomia sobre si ou sobre seus corpos, mas a concepção de
fragilidade ou vulnerabilidade que é atribuído ao corpo da mulher, que convocava a aceitação
de um paradigma de subordinação e limitação social. Nesse sentido, qualquer movimento em
66
direção a equidade das relações entre os sexos tornavam-se irreconciliáveis; tornavam-se “um
malogro”, ou seja, as mulheres, como seres que gestam, estariam sempre em desvantagem em
comparação aos homens.
Entre embates e destraves as propostas ideológicas concernentes aos primeiros movimentos
do feminismo foram postas em questão percebendo-se que tal entendimento continha como
ponto basilar os mesmos princípios de visão ideologizante que fundamentavam a dissimetria
de poder nas relações entre os sexos. As relações desiguais de poder entre homem e mulher
não podem ser entendidas como resultado das diferenças biológicas entre estes (SAFFIOTI,
2004).
A mulher, como mãe, tem que responder aos imperativos de um corpo que requer cuidado e
acolhimento ao gerar vida, mas essa realidade não pode ser utilizada como um viés que
incapacita a participação das mulheres nas determinações dos seus destinos manifesta de
modo especial, pela luta em prol da participação ativa na vida pública e privada. Como agente
de um domínio sexual que possui um corpo que gesta a vida, deve, conjuntamente com o
homem, participar das ordenações sociais e políticas que pavimentam o seu próprio destino e
o destino dos seus filhos. As diferenças biológicas entre homem e mulher devem ser vistas
como uma diversidade vital para o sentido do humano e não para a hierarquização entre os
sexos.
Baseada em tais pressupostos, a segunda geração
27
do feminismo propõe a equidade de
direitos considerando a relevância das diferenças anátomo-fisiológicas pertencentes a cada
sexo (GROSZ, 1994).
Grosz (1994), salienta que a segunda geração do feminismo (ou feminismo da segunda onda)
surge nas décadas de 60/70 especialmente nos Estados Unidos e na França e se prolonga mais
ou menos até meados dos anos 80. O movimento das mulheres das décadas de 1970 e 80
caracterizou-se como um movimento político. A partir do projeto político, surgiu um projeto
intelectual acadêmico de fato: a teoria feminista. Tal teoria em geral foi entendida como
forma de política, ou como "política por outros meios". Pretendia facilitar a mudança no
modo de vida cotidiana analisando e expondo o papel que as ideologias de gênero
27
Grosz (1994), salienta que a segunda geração do feminismo inclui a maioria das teóricas feministas
contemporâneas: Julia Kristeva, Michèlle Barrett, Nancy Chodorow entre outras feministas marxistas,
psicanalistas, e todas as teóricas envolvidas com a noção de construção social da subjetividade. As feministas
americanas enfatizavam a denúncia da opressão masculina e a busca da igualdade, enquanto as francesas
enfatizavam o valor da diferença sexual entre homens e mulheres, destacando a especificidade da experiência
feminina. As feministas francesas tiveram influência do pensamento pós-estruturalista que predominava na
França, especialmente pelo pensamento de Michel Foucault e de Jacques Derrida.
67
desempenham (e tem desempenhado) no esquema abstrato subjacente a nossos modos de
organização. Isso significava reexaminar as suposições básicas em todos os campos
tradicionais do trabalho acadêmico história, literatura, ciência política, antropologia,
sociologia, psicologia, etc. Compreende-se, portanto, que não é o corpo que instaura os
limites das ações dos sujeitos, mas a história social em que os corpos estão inscritos, ou seja,
através da subjetividade e da singularidade das experiências do homem e da mulher.
Nesse sentido, concebe-se que as subjetividades são construídas em um campo que é sempre
dialógico e intersubjetivo, conforme arrazoa Grosz:
Ao invés de ser codificada por uma oposição natureza/cultura, como para as feministas igualitárias, a
oposição mente/corpo é agora codificada pela distinção entre a biologia e a psicologia e pela oposição
entre os domínios da produção/reprodução (corpo) e da ideologia (mente). Esta codificação não está
diretamente relacionada com a oposição macho/fêmea já que tanto homens quanto mulheres participam
nos domínios materiais e ideológicos; mas no interior de cada um desses domínios, as posições de
homens e mulheres são distintas. No domínio material da produção, os homens funcionam no interior
do modo de produção enquanto que as mulheres, mesmo que funcionem na produção, são como
mulheres, largamente alocadas ao modo de reprodução
(GROSZ, 1994, p.73).
Abandona-se, portanto, a dicotomia natureza e cultura, compreendendo-se que é no interior do
domínio ideológico que as mulheres são concebidas como passivas e femininas, e os homens
como ativos e masculinos
28
. Questiona-se a posição valorativa dada ao homem como fonte
produtiva de riquezas em detrimento da mulher, que mesmo agente de fontes produtivas está
atrelada a idéia dos limites de um corpo reprodutivo. Nesse sentido, os princípios do
feminismo da segunda geração compartilham com os mesmos ideais que promulgam o corpo
como um entrave ou em consonância com a visão biológica determinada do corpo e a
manutenção do dualismo mente/corpo. A mente é vista como um objeto social, cultural e
histórico, um produto da ideologia; e o corpo permanece naturalista e pré-cultural. Diferem,
entretanto, quando atribuem que não são as diferenças anatômicas em si, mas a visão de
mundo que classifica as diferenças e agem como vetor para as desigualdades de poder entre
homens e mulheres. A distinção entre o corpo como objeto anátomo-fisiológico e o corpo
como um objeto de representação é uma suposição fundamental. Dito de outra forma, a
anatomia define o sujeito como macho ou fêmea, mas a definição do corpo da fêmea como
sendo do sexo feminino, e o corpo do macho como sendo do sexo masculino, é uma
representação de constructos sociais, ancoradas no naturalismo cientifico das ciências
positivistas.
Por tal perspectiva a oposição sexo/gênero, que também se fundamenta a partir
da dicotomia natureza/cultura, sendo o corpo biológico e a cultura uma construção social,
28
O corpo masculino não é visto como lugar de reprodução. Pelo fato de não gestarem o filho, os homens
desvinculam-se dos cuidados com a criança e parece não estar envolvidos na reprodução (MORAES, 1996).
68
ainda se mantém. “Supondo que a biologia ou o sexo são uma categoria fixa, as feministas
tenderam a centrar-se nas transformações no nível do gênero” (GROSZ, 1994, p.76). O
objetivo era neutralizar os valores atribuídos as diferenças anátomo-fisiológicas do corpo do
homem e da mulher, dando-lhes significados que promovam a alteração do funcionamento
psicológico de cada gênero suplantando a hierarquia valorativa que discrimina o gênero
masculino e o gênero feminino. Com isso, pretende-se engendrar relações mais equânimes
entre os dois sexos a partir de um devir psicológico acerca das relações de gênero. Em outras
palavras, não é a partir da mudança do corpo que as desigualdades serão suplantadas, mas da
re-significação das condutas que classificam formas de ser homem ou mulher. Relações mais
equânimes entre os sexos não significam ignorar ou alterar a realidade do corpo. Entende-se
que o corpo é uma via para uma alteração psicológica, mas não se encerra na simbolização
dos valores que são relacionados a este. O corpo do homem e da mulher é, e possivelmente
será sempre o mesmo: macho e fêmea. O manejo dos símbolos relacionados a estes é que
darão novos sentidos ao significado de ser do gênero masculino ou ser do gênero feminino.
Assim, são fundamentadas as ações da terceira geração do feminismo
29
, cuja proposta
concentra-se na análise das diferenças e da alteridade. Com isso, desloca-se o campo do
estudo sobre as mulheres e sobre os sexos para o estudo das relações de gênero. O desafio é
pensar, simultaneamente, a igualdade e a diferença (MACHADO, 1992).
Contrastando tanto com o feminismo da diferença quanto do feminismo da igualdade, nas
propostas engendradas pelo feminismo da terceira geração, o corpo é crucial para a
compreensão da existência psíquica e social da mulher, mas não é mais visto como um corpo
a priori, pronto e, não cultural. A importância da análise está no reconhecimento do corpo
vivido: “O corpo não é nem bruto, nem passivo, mas está entrelaçado a sistemas de
significado, significação e representação e é constitutivo deles” (GROSZ, 1994, p.77). O que
está implícito é a negação a dualidade corpo e mente. O corpo é visto como um instrumento
cultural, político, social e cultural. O corpo é, ao mesmo tempo, natural e cultural. O
feminismo da terceira geração reconhece as diferenças biológicas entre o corpo da mulher e
29
a terceira geração do movimento feminista foi direcionada por um grupo filosofas sociólogas, antropólogas
como Judith Butler Luce Irigaray, Jane Gallop, Monique Wittig entre outras. O movimento é fruto da intersecção
entre o movimento político de luta das mulheres e a academia de ciências. A autora destaca que as feministas da
terceira geração “tendem a suspeitar da distinção sexo/gênero e a se interessar menos pela questão da construção
cultural da subjetividade do que pelos materiais com os quais tal construção é feita. Problematizaram as teorias
essencialistas ou totalizantes das categorias fixas e estáveis do gênero presentes nas gerações anteriores. Nas
gerações anteriores, o nero era definido a partir do sexo enquanto categoria natural, binária e hierárquica,
como se existisse uma essência naturalmente masculina ou feminina nas pessoas (GROSZ, 1994).
Na terceira geração, as feministas refutaram tais proposições, desnaturalizando e desconstruindo a perspectiva de
gênero das gerações anteriores. O gênero passa a ser uma categoria relacional e política (SCOTT, 1988).
69
do homem, mas não atribui a este o encargo de todas as produções ideológicas que lhe são
ordenadas. Entende-se, portanto, que o há mais espaço para a valoração da dicotomia
sexo/gênero. Porém, não respostas ou caminhos direcionados para suplantar os efeitos
historicamente produzidos do sentido de sexo como aprioristicamente natural, e do sentido de
gênero como socialmente engendrado. Desse modo, o feminismo não evoca a noção do corpo
desvinculado das ordenações sociais, culturais, sociais ou discursivas, mas um corpo como
objeto social e discursivo, um corpo vinculado à ordem do desejo, do significado e do poder.
Possivelmente este é um dos caminhos mais eficazes para a compreensão dos valores
atribuídos ao corpo feminino e masculino e dos embates entre os princípios feministas e as
prescrições normativas que regem o modelo patriarcal. A relevância reside na forma como são
vinculados ao corpo, fenômenos naturais ou biologicamente determinados sustentados por
uma visão de mundo que atribui como signo, o corpo e as condutas das mulheres. Em
contraponto, o corpo pode ser visto como um símbolo fundamental, o lugar de contestação, de
embates, de lutas políticas, sexuais, econômicas e sociais.
Nessa perspectiva, o feminismo como movimento social apresenta uma plasticidade que
suscita discursos e práticas tanto nas questões que ressaltam as desigualdades de nero,
como de raça, classe, etnia e expressão da sexualidade. O emprego da expressão feminismo
esconde um mosaico de situações diferentes, muito afastadas de um conjunto homogêneo de
ideologias que parecem centraram-se em parâmetros de igualdade e diferença entre os sexos.
Machado (2000), salienta que toda a reflexão sobre o feminismo deve delinear os contornos
dessa noção. Se os estudos dos conflitos que envolvem as mulheres são relacionados com o
feminismo, isso não significa que a história das mulheres se reduz à história dos feminismos.
Porém, deve-se reconhecer que tais movimentos se encontram na origem das interrogações
sobre a história das mulheres.
Nesse sentido, faz-se relevante considerar a diferença entre mulher e subordinação e mulheres
subordinadas. A mulher em situação de desvantagem acerca das garantias e direitos como
sujeitos livres e regentes de suas condutas, revela a condição de desigualdade de poder entre
os sexos. Mas, mulheres têm diferentes realidades em relação à dissimetria de poder na
família e na sociedade. Mas as desvantagens indicam ser comuns quase todas, muito
embora as realidades sejam diferentes. A exploração/subordinação não se mesma forma,
nem são aceitas por todas as mulheres: para muitas, as desigualdades estão atreladas as
diferenças de classe e raça/etnia. Para outras, as reivindicações consistem na livre expressão
da sexualidade, como também em questões no âmbito do mercado de trabalho, no que se
refere ao trabalho mal remunerado (ou na ausência de equidade frente às atividades exercidas
70
comparativamente aos homens), muito embora se reconheça que o trabalho não é a via de
libertação e igualdade.
Assim, sob a bandeira do feminismo esconde-se uma variedade de feminismos que, no
entanto, convergem para contestar pressupostos de dominação, exploração e discriminação
acerca dos sujeitos humanos, dos seus modos de vida e da livre expressão das suas
singularidades.
Faz-se relevante destacar o movimento feminista de caráter socialista/marxista que visa
combater a exploração de classe e da posição da mulher como essencialmente reprodutora:
“Ressalta-se o projeto por negação de propriedades, expropriações e apropriações [...] tanto
do valor produzido pelas mulheres, socialmente reconhecido ou não, como de seu corpo, voz,
re- e a-presentações” (CASTRO, 2000, p.99). Considerando que a explicação das origens e
formas de opressão das mulheres não podem ser encontradas fora das leis de
desenvolvimentos sociais e das questões sobre o direito de propriedade. O direito ao trabalho
é considerado um fator de emancipação das mulheres, apesar do seu caráter discriminatório e
opressor no capitalismo. (CASTRO, 2000; SAFFIOTI, 2004; 1979) Assim, colocam a
necessidade de alteração da base material e da superestrutura da sociedade em termos
ideológicos e culturais, instituindo-se um novo regime político e social, considerando as
condições materiais e históricas em que foram constituídas. Mas, sobretudo ampliando os
debates sobre as relações/conceito de nero e classe social que não abarcam a complexidade
inerente a pressupostos ideológicos, ou seja, dos discursos e práticas pertinentes as relações
sociais e interpessoais.
Também faz-se relevante ressaltar a forma como as mulheres negras, convivem com as
desigualdades de gênero, e raça, indubitavelmente diferente do gênero. Os conflitos vividos
pela mulher negra, numa sociedade, tanto racista quanto sexista, não pode ser compreendido
como se tal fosse um acréscimo ou corolário a um conjunto de discriminações vividas pelas
mulheres. Implica em um outro tipo de opressão e discriminação. “O contato com as vidas das
mulheres negras
30
[...] levou os anos 80 à descoberta, surpreendente de início aos olhos das
feministas brancas de que a mulher negra nunca é simplesmente uma mulher” (PIERUCCI,
2000, p.135). Nesse período os meios acadêmicos foram alertados pelo feminismo negro, que
o paradigma feminista racial terminava por substituir, e reproduzir em outra ordem, os
30
De acordo com Pierucci (2000), na década de 80, a escritora americana feminista bell hooks, impetrou um grito
de protesto anti-racista proferido de dentro do feminismo etnocêntrico com o livro intitulado: “E eu, não sou uma
mulher? ”. O livro apresenta fases que parte de um modelo anti-racial, ao enfoque bi-racial até a perspectiva
multicultural. Tais fases são similares as gerações ou ondas pertinentes ao movimento feminista.
71
mesmos padrões enviesados da cultura ocidental moderna que convoca a supremacia e
autoridade masculina: substituir o homem universal, por uma mulher branca universal
(PIERUCCI, 2000). Na mulher negra, raça e gênero estão fortemente entrelaçados, são
experienciados no mesmo corpo e se constituem mutuamente, sem serem, contudo,
experiências idênticas. Dois processos diferentes, perfeitamente individuais em seus efeitos,
mas irredutíveis uma o outro, em constante tensão e continua transformação (PIERUCCI,
2000; PATEMAN & MILLS, 2009).
O feminismo lesbiano também vem contestar discriminações entrelaçadas no que se refere às
discriminações de gênero e da sexualidade, como forma de separação radical e consciente das
mulheres em relação aos homens, considerados como a fonte de opressão das instituições
indissociáveis dos pressupostos patriarcais e da heterossexualidade compulsória (BUTLER,
2008). Critica-se o binarismo que constitui a noção de homem e mulher através da
heterossexualidade compulsória ou de uma lei imperativa, que classificam o macho e a fêmea
como seres inscritos exclusivamente numa realidade sexuada, por via de uma divisão
socialmente construída que só pudessem conceber relações hierarquicamente determinadas.
Entende-se, portanto, que as três gerações do feminismo
31
, tanto em seus aspectos políticos
quanto teóricos epistemológicos, não podem ser entendidas através de uma perspectiva
histórica linear, nem homogeneamente centrada em contestações especificas. As diferentes
propostas observadas nas gerações do feminismo sempre coexistiram, e ainda coexistem, na
contemporaneidade, incorporando as discussões e contestações sobre diferentes paradigmas
acerca de situações de dominação, exploração e discriminação que envolve questões de
gênero raça/etnia, classe e sexualidade.
Porém, o tempo demonstrou que os impasses e as implicações dos feminismos, como
movimentos de contestações dos padrões morais opressivos nas relações familiares e nas
relações sociais mais amplas; na contestação de políticas sociais excludentes e discriminação
de gênero, raça e classe, acerca das mulheres e a criação de uma nova subjetivação feminina e
masculina desvinculadas de desigualdades, não se resolveriam tão facilmente com discursos e
práticas de vontade, por se tratarem de questões de ordem não apenas política, sócio cultural,
mas também psicológicas. que se considerar as diferentes realidades vivenciadas nas
relações entre os sexos, em muitos casos, afetadas, por problemáticas sociais e de
31
As gerações ou fases no feminismo, também conhecidas como ‘ondas do feminismo’ ocorreram em épocas
distintas, historicamente construídas conforme as necessidades políticas, o contexto material e social e as
possibilidades pré-discursivas em cada tempo (SCOTT, 1988). Não há, na atualidade, um feminismo, mas
vários feminismos que coexistem enquanto movimentos políticos e teórico-epistemológicos.
72
subsistência. No que concernem as relações na família, as realidades, não raro, estão
imbricadas por sentimentos e afetos que não se tornam claramente perceptíveis, às causas ou
soluções, frente a experiências emocionais negativas relacionadas às desigualdades de gênero
ou quaisquer desigualdades. O valor afeto
32
é a principal força que explica a permanência da
família na história da humanidade. E como tal, torna-se um instrumento privilegiado de
sustentação do poder (SAWAIA 2008). Assim, toda e quaisquer situações de conflitos
entrelaçadas por sentimentos e afetos são objetos de profunda complexidade, suplantando as
referências ideológicas que pretendem dar respostas para tais fenômenos. Os entraves nas
relações sociais e interpessoais entre os sexos frente à dissimetria de poder ainda se fazem
objeto de discussões epistemológicas, debates, criticas e questionamentos para que seja
possível, se não a eliminação, mas a atenuação dos conflitos de gênero.
32
Entende-se por afeto, um fator que promove, sem separação, a sobrevivência biológica e humana. Não há uma
cisão entre razão, emoção e ação. Sua eficiência depende da sensibilidade e da qualidade dos vínculos afetivos,
especialmente da “paixão pelo comum”, dos sentimentos que vinculam os sujeitos (SAWAIA, 2008).
73
2.2 Gênero e Conflitos
[...] Quase tudo que se queira dizer sobre sexo – de
qualquer forma que o sexo seja compreendido – já
contém em si uma reivindicação sobre o gênero. O sexo,
tanto no mundo do sexo único como no de dois sexos, é
situacional; é explicável apenas dentro do contexto de
luta sobre gênero e poder
(LAQUER, 2001, p. 23)
Quais são os principais elementos que, marcados pela história, formam o núcleo constitutivo
da dimensão particular dos conflitos e gênero: 1. O homem tido como dominador sexual
superior? 2. A mulher como dominada sexualmente, transformada em objeto frágil e signo de
troca? 3. Uma visão de mundo que constituiu o feminino e o masculino como gêneros
hierarquizados? 4. As relações entre as gerações e as intersubjetividades constituídas pelos
laços conjugais?
De pronto, estamos ainda na esteira dos questionamentos, muito embora o século XX tenha
marcado profundas discussões sobre as relações de gênero
33
.
À procura de uma forma unívoca de ação diante das lutas contra a discriminação de gênero, o
feminismo foi desafiado a resistir à estratégia epistemológica colonizadora que centrava no
patriarcado a gênese de diferentes configurações de dominação e exploração da mulher
(MACHADO, 2000). No entanto, do ponto de vista epistemológico, faz-se relevante ressaltar
a existência do patriarcado, haja vista a evidência de seus pressupostos e características
marcantes na estruturação da família moderna, especificamente na família burguesa ocidental.
O patriarcado, como modelo familiar centrado na figura do homem como autoridade superior
de uma forma de organização ou de dominação social, com estruturas fixas e
hierarquicamente determinadas, foi instituído na ordem social quase que universalmente, e
33
De acordo com Butler (2003), Gayle Rubin (1975), foi uma referência básica ao suscitar questões em seu texto
The Traffic in Woman In: REITER, Reyna. (ed.), Toward an anthropology of Women (New York, Monthly
Review Press, 1975, pp.157-210). Esse trabalho foi objeto de polêmicas e debates sobre o conceito de gênero ao
propor a idéia de uma sociedade sem gêneros. Para Butler (2003), o mais significante é tomar o gênero como um
princípio de diferença, pedra fundamental de debates contemporâneos para a metamorfose de subordinações, não
fazendo sentido sua abolição.
74
com tal eficiência que a família moderna também é atravessada por características desse traço
(SAFFIOTI, 2004).
Alinhando-se com a reflexão dessa autora, Castro & Lavinas (1992; 2009
34
), ressaltam a
importância de resgatar o conceito de patriarcado, sua propriedade de uso associado às
análises sobre o capitalismo, complementando o conceito de gênero e explicitando as tensões
e conflitos vinculados a este. Porém, deve-se atentar que tais conflitos concernentes as
relações entre homens e mulheres constatados a partir do início do século XX remetem a uma
não fixidez nem universalidade das relações, indicando que as relações são constructos sociais
e culturais engendradas de modos diferentes nas diversas formas relacionais de convivência e,
portanto, passíveis de mudanças
35
.
Assim, a categoria gênero surge com o propósito de explicitar as desigualdades políticas e os
elementos constitutivos das relações de poder entre homens e mulheres. De tal maneira que
gênero não é sinônimo de sexo, mas corresponde ao conjunto de representações edificado por
cada sociedade, através de sua história, imbuído em atribuir significados, símbolos e
características para o homem e para a mulher (HARAWAY, 2004). Comumente, o gênero é
utilizado para determinar as diferenças biológicas entre homem e mulher, como se tal
diferença fosse natural e imutável. No entanto, alinhamo-nos à outra perspectiva que pretende
conferir nero como categoria, no intuito de contestar as relações assimétricas entre homem
e mulher no que tange ao paradoxo liberdade e sujeição. Conforme Haraway:
A teoria e prática feminista em torno de gênero buscam explicar e transformar sistemas históricos de
diferença sexual nos quais “homens” e “mulheres” são socialmente construídos e posicionados em
relação de hierarquia e antagonismo (HARAWAY, 2004, p.24).
O conceito de gênero pretende desmontar as articulações teóricas que postulam as diferenças
entre homem e mulher pelas leis naturais ou pelo determinismo biológico implícitos no uso de
termos como sexo ou diferença sexual. Dito de outra forma, o que está em questão é a
dissimetria de poder entre homem e mulher, bem como as condutas existenciais de ser homem
ou mulher pela via da sujeição e subordinação, que promove o debate de constructos como
feminilidade e masculinidade e as nominações que os normatizam. Porém, deve-se
34
Texto revisitado sob o titulo: Revisitando Construção do Conceito de Gênero na Área de Trabalho no Brasil
(CASTRO, 2009).
35
Por outro lado, Castro (2003), ressalta que o conceito de gênero como categoria política pretende o debate para
as relações sociais e sugere que, se as relações sociais são várias e se autocondicionam, então tanto classe como
gênero, de per si, seriam referências insuficientes para darem conta do real e do imaginário contido nas
ideologias dominantes.
75
compreender o significado aprendido e internalizado do gênero nas relações sociais humanas,
e de que forma o gênero dá um sentido à organização e à percepção das coisas e do mundo.
Para Scott (1988), o gênero deve ser posto como categoria de análise com o propósito de
construção e elaboração de teorias que permitam a compreensão da complexidade deste.
Deve-se, portanto, buscar os fatos reais e documentais que o constituiu em cada contexto
histórico, buscando compreender de que forma foram formulados e reformulados. Assim, faz-
se necessário evidenciar seu caráter polissêmico, expor tanto a seletividade dos procedimentos
pelos quais eles adquiriram um sentido único quanto às lutas de interpretações concorrentes
que os produzem. Devem, ainda, serem expostas as estratégias de dominação que sustentam a
construção binária da diferença dos sexos: homem e mulher.
Por outro lado, Varikas (1994), ressalta que não é a falta de uma categoria histórica de gênero
que enriquece o debate, mas o potencial de epistemologias situadas no âmbito do pós-
estruturalismo, que corroboram para elaborar uma visão não determinista da história, visão
esta sincrônica comum a visão das mulheres como sujeitos da história, que possivelmente
eliminariam os conflitos de gênero. Destaca-se a importância das abordagens no âmbito da
história das idéias e das mentalidades, que concederam um lugar privilegiado para a análise
das representações, dos discursos normativos, do imaginário coletivo “as quais chamaram a
atenção para o caráter histórico e mutante dos conteúdos do masculino e do feminino,
reconstruindo as múltiplas maneiras pelas quais as mulheres puderam re-interpretar e re-
elaborar suas significações” (VARIKAS, 1994, p.70). Em plena concordância com tais
considerações, Saffioti (1999), ressalta que gênero não pode ser considerado apenas como
uma “categoria de análise”. Assim como classe e raça, gênero é uma “categoria histórica” e
não se encerra nos movimentos discursivos, mas nas práticas de lutas das mulheres
36
. O
perigo de considerar gênero como uma categoria de análise consiste no caráter relativo que
pode ser atribuído a este. Ou seja, consiste na ausência de uma estrutura definida ou de
princípios que fundamentem tal análise. Deve-se sair do plano do discurso.
Butler (2008), evidencia que as teóricas feministas afirmam gênero enquanto uma
interpretação cultural do sexo. Porém, destaca que o gênero ou o sexo são fixos ou livres, em
função de um discurso que visa determinar certos limites à análise ou a salvaguardar certos
dogmas do humanismo, como um pressuposto de qualquer análise do nero. O binarismo
masculino e feminino conduz o gênero ao sentido, primordialmente político, que ocorre num
36
Castro (2001), ressalta que a reflexão crítica de Saffioti (1999), sobre Scott (1988), é pertinente
especificamente na ação das mulheres em movimentos sociais, atentas aos conflitos de classe, tais como o
Movimento Mulheres Trabalhadoras Rurais - MMTR e, portanto, o espaço de luta não se restringe ao cenário de
discursos ou ao plano da linguagem.
76
campo discursivo e histórico de relações de poder. Gênero é, portanto um ato performático:
masculino e feminino. Tais significados são comumente dissociados das diferenças de classe,
raça e etnia ou das relações de força que fazem das pessoas objetos de propriedade. O gênero
masculino e feminino é o efeito das prescrições normativas inscritas nos modos de agir do
homem e da mulher, é o efeito produzido ou gerado, conforme infirma Butler:
A noção binária de masculino/feminino constitui não a estrutura exclusiva em que essa
especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo a especificidade do feminino é mais uma vez
totalmente descontextualizada, analítica e politicamente separada da constituição de classe, raça, etnia
e outros eixos de relações de poder, os quais tanto constituem a identidade como tornam equivoca a
noção singular de identidade feminina (BUTLER, 2008, p.21).
Essa definição resgata a noção de processo e de construção singular de cada sujeito, dentro de
um campo situado de possibilidades, de seu próprio nero, que é reafirmado ou renegociado
através de sucessivas performances ou práticas concretas através das quais os sujeitos se
constituem. Significa pensar a categoria gênero como um vetor político e questionador das
práticas sociais que regulam as ações entre os homens e mulheres.
Dessa maneira, as regulações de gênero não são apenas mais um exemplo das formas de
regulamentação de um poder mais extenso, mas constituem uma modalidade de regulação
específica que tem efeitos constitutivos sobre a subjetividade. As regras que governam a
identidade inteligível são parcialmente estruturadas a partir de uma matriz que estabelece a
um só tempo uma hierarquia entre masculino e feminino. Nestes termos, o gênero não é nem a
expressão de uma essência interna, nem mesmo um simples artefato de uma construção
social. “O gênero mostra ser performativo no interior do discurso herdado da metafísica da
substância isto é, constituinte da identidade que supostamente é” (BUTLER, 2008, p.48).
Nessa perspectiva, os sujeitos atravessados pelo gênero seriam, antes, resultados de repetições
constitutivas que se refletem nas próprias ações. Portanto, o gênero, é ele próprio, uma norma.
Porém, se os atributos de gênero são o produto da ação de homens e mulheres e não uma
entidade a priori, a postulação de um sexo feminino e masculino como incontestáveis revela-
se como uma ficção reguladora ou fruto das construções relacionais de poder. E para que tal
ficção se torne eficazmente possível, torna-se fundamental a indução e repetição reiterativa no
sentido de fazer-se internalizar nas ações dos sujeitos. Nessa perspectiva, pode-se supor que a
aproximação de um ideal de gênero masculino ou feminino nunca é de fato completa, e que os
corpos nunca obedecem totalmente ou exatamente às normas pelas quais sua materialização é
fabricada. Diante da força das prescrições normativas a resistência possibilita a subversão
como via de minar a ordem absoluta. Nesse sentido, é justamente pelo fato de a instabilidade
77
das normas-gênero estarem abertas à necessidade de repetição, que a lei reguladora pode ser
reaproveitada numa repetição diferente. Assim, o gênero é o mecanismo pelo qual as noções
de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas poderia ser um vetor pelo qual
estes termos poderiam ser desconstruídos e desnaturalizados e mais ainda, re-significados. Por
tal entendimento, o homem e a mulher, sujeitados ao gênero, mas subjetivados pelo gênero
masculino e feminino nem precede, nem segue o processo dessa criação de um gênero, mas
apenas emerge no âmbito e como a matriz das relações de gênero propriamente ditas. Essa
tensão paradoxal permite compreender que se o gênero é uma norma, ele também pode ser
fonte de resistência. Se o gênero é uma norma regulada pelas relações de poder, torna-se frágil
sua incorporação pelas subjetividades: pode haver uma possibilidade de deslocamento que é
inerente à repetição do binarismo masculino-feminino. Isto sugere perspectivas de
transformação ou a formulação de uma nova concepção de subjetivação que acompanhe a re-
elaboração das normas de gênero. O que isso significa? A possibilidade de pensar as
condições pelas quais se faz possível o rompimento da hierarquia sexual nas relações entre o
homem e a mulher, atenuando os conflitos e tensões, que haja vista, significativas mudanças,
ainda se fazem pertinentes às relações familiares na contemporaneidade.
78
2.3 Relações de Poder na Contemporaneidade
Diante das mudanças das relações de poder entre homens e mulheres ou do impacto das
relações de poder redesenhadas na contemporaneidade, quais repercussões se podem conferir
na família contemporânea, lócus em que se materializa e se visibiliza com maior nitidez as
tensões/distensões entre gêneros?
Para Bozon (2003), as mudanças não alteraram as determinações que regem as relações entre
homens e mulheres acerca da divisão sexual do trabalho na família, bem como nas questões
acerca da sexualidade entre os mesmos.
Se um laço novo se estabeleceu entre sexualidade e vida conjugal, podemos perguntar-nos se ele
corresponde a uma transformação radical das relações entre homens e mulheres como a muito utilizada
expressão “revolução sexual” daria a entender. Em um domínio vizinho, o da divisão do trabalho
doméstico, a adesão maciça e nova dos homens e das mulheres a uma norma de igualdade não obteve
uma verdadeira “tradução” nas práticas. O lado prático da “revolução sexual” deve ser questionado
(BOZON, 2003, p.134).
Isso significa que, em termos reais, na contemporaneidade não houve uma mudança
fundamental nos princípios que ordenam as relações entre homem e mulher, muito embora
mudanças significativas se tenham produzido no decorrer das três últimas décadas no Século
XX, a exemplo das práticas sexuais dissociadas da idéia de reprodução. Ou seja, a relação de
dependência que ligava a sexualidade ao casamento foi completamente invertida: da
instituição matrimonial que legitimava a atividade sexual, passou-se ao intercâmbio sexual
como motor interno das relações conjugais. A sexualidade, que no modelo de sociedade
moderna do Século XVIII e do Século XIX foi um dos atributos do papel social do indivíduo
casado, tornou-se uma experiência interpessoal indispensável à existência da união informal
nas relações entre os sexos (BOZON, 2003). Dessa maneira, a idéia de mudanças, que na
contemporaneidade, por vezes, é considerada como revolução sexual
37
, deve ser observada
como mais uma nova categoria: os sujeitos indicam acreditar que houve uma revolução
sexual, que diz respeito à liberalização de determinados códigos mais restritos das condutas,
sobretudo as das mulheres, associado a uma maior liberdade em tratar publicamente o tema da
sexualidade. No entanto, as desigualdades de gênero e a assimetria nas relações entre homens
e mulheres permanecem sendo organizadores poderosos do modo como se desenrolam a
atividade sexual e a capacidade de negociação entre parceiros, acerca do que ocorre em um
37
O termo revolução sexual é empregado para indicar uma equivalência nas relações entre homens e mulheres
acerca da liberdade sexual (HEILBORN, 2004).
79
intercurso sexual, possibilitando questionar no plano analítico a maneira pela qual realmente
ocorreram tais mudanças ou transformações significativas nos padrões morais acerca das
relações entre os sexos (BOZON, 2003).
Compreende-se que as experiências sexuais dos indivíduos, no mundo contemporâneo,
continuam a ser estruturadas por pares de oposição em tensão permanente, sustentadas pela
idéia de masculinidade e feminilidade como fatos naturais. Se isso faz sentido, a busca pela
continuidade na relação entre dois parceiros opõe-se à exigência da espontaneidade do desejo.
À busca pela reciprocidade, opõe-se ao prazer individual. À exigência de exclusividade, opõe-
se a atração por uma possível simultaneidade de laços sexuais. Compreende-se, portanto, que
essas oposições tendem a fixar-se numa divisão de trabalho estável entre os sexos, geralmente
justificada em termos de masculinidade, feminilidade ou de diferenças de natureza
psicológica entre homem e mulher. Enquanto os homens são vistos como sujeitos desejantes
independentes, as mulheres continuam a ser vistas como objetos a serem possuídos (STREY,
2009).
O fundamento do lugar masculino, principalmente na família, reside numa representação
social de gênero que identifica o homem como autoridade moral familiar, perante o mundo
externo, diz respeito a uma razão simbólica, que se re-atualiza nas diversas configurações
feitas pelos sujeitos acerca da família, seja esta nuclear, extensa ou reconstituída
(VAITSMAN, 1994). Pode-se admitir que as famílias contemporâneas apresentam diversas
configurações, não tendo, portanto, um modelo específico ou estrutura familiar determinada.
No entanto, as características que impediram as desigualdades nas relações entre os sexos,
como a divisão sexual de condutas, se faz presente de maneira efetiva nessas famílias. Isso
significa a força de uma engrenagem simbólica e sistemática que sustenta uma visão de
mundo pela lente da superioridade masculina como universalmente constituída (BOURDIEU,
2003). Nesse sentido, questiona-se quais as perspectivas da psicológia, e aqui em recorte, da
psicanálise, frente às desigualdades de genero nas relações familiares?
80
CAPÍTULO III – PSICOLOGIA, GÊNERO E FAMÍLIA
3.1 Perspectivas da Psicologia Frente às Desigualdades de Gênero nas
Relações Familiares.
Pretende-se problematizar os discursos sobre as relações de gênero na psicologia, identificando
as produções discursivas que legitimam as desigualdades de gênero nas relações familiares.
Com o escopo de estabelecer um diálogo entre o crivo foucaultiano sobre as relações de poder,
as produções do saber e as desigualdades de gênero (sem, no entanto, deixar de considerar as
diferenças e as tensões que lhes são constitutivas), pretende-se utilizar as ferramentas
conceituais desenvolvidas por Foucault (1984; 1999, 2002; 2008), na desconstrução dos
discursos hegemônicos acerca das relações de poder que se representam através dos
dispositivos de controle sobre o sexo, qual extorsão de verdade, que aparece historicamente em
lugares determinados, a saber: 1.a propósito do corpo da mulher e dos padrões morais das
relações em sociedade, utilizados no desenvolvimento de diversos campos de conhecimento
(psiquiatria, pedagogia, psicologia); 2. na instauração de um conjunto de regras e de normas,
em que se apóiam instituições sociais; 3. no modo pelo qual os indivíduos são levados a dar
sentido e valor a sua conduta, seus deveres, seus prazeres, sentimentos, sensações, sonhos,
evidenciando os efeitos normatizantes na produção da subjetividade humana. (FOUCAULT,
1984).
Para a psicologia, faz-se mister o aporte às ferramentas conceituais utilizadas nas análises
foucaultianas como vetor de problematização dos pressupostos da dissimetria de poder nas
relações entre os sexos com o propósito de ressaltar que tal dissimetria é construída, confirmada
e re-confirmada na produção do saber, que se impõe como forma de poder.
De acordo com Roso & Parker (2002), a análise foucaultiana questiona a constituição da
categoria sexualidade em seus códigos morais ao longo da história compreendendo a
sexualidade a partir das relações de poder que a conformam em cada período da história e em
cada contexto socioeconômico e cultural: o corpo é identificado como o local de poder, como o
lócus de controle (histerização do corpo da mulher); o poder é uma rede que se articula através
dos sujeitos e sob os mesmos. Tais análises podem incluir algumas das formas mais poderosas
no que refere as críticas sobre as desigualdades de gênero (ROSO & PARKER, 2002).
81
Com tal propósito, evoca-se uma análise crítica à ciência psicológica, com a finalidade de
ressaltar os aportes naturalistas e as práticas reguladoras que por esta foram utilizadas.
Nos índices textuais da crítica foucaultiana o nascimento da Psicologia foi influenciado pelos
movimentos intelectuais e científicos da época, de modo particular, adotando os mesmos
métodos das ciências naturais, seja para estudar a experiência da consciência seja para capturar
e compreender o comportamento humano.
Em A Psicologia de 1850 a 1950, Foucault (2002), evoca a reflexão sobre os princípios
basilares que pretendia-se edificar a ciência psicológica. A relevância em considerar tal
reflexão consiste no exercício crítico referente aos métodos e objeto, utilizados pela psicologia
para demonstrar sua legitimidade na captura do comportamento do sujeito. A análise
foucaultiana destaca que o método empregado pela psicologia, mostra-se como decalque dos
procedimentos organicistas fundamentados na ciência positivista; revela o esforço da psicologia
em acatar os princípios da ciência positivista e naturalista. Em outras palavras, para fazer-se
ciência, o estudo dos fenômenos humanos, também deveria ser passível de observação e sujeito
à elaboração de problemas e hipóteses, submetidos à análise experimental; portanto, medido e
quantificável: deveria a psicologia elaborar o problema, fundamentar hipóteses e, engendrar leis
que regeriam as ações humanas, bem como interpretar tais dados à luz de métodos estatísticos,
tanto quanto possível mensuráveis, na tentativa de explicar as ações do sujeito.
O que se observa nesse esforço é a utilização de uma metodologia regida pela objetividade em
explicar fenômenos subjetivos. Criva assim o autor os saberes psicológicos:
Toda a história da psicologia até o meado do século XX é a história paradoxal das contradições entre
esse projeto e esses postulados; ao perseguir o ideal de rigor e de exatidão das ciências da natureza, ela
foi levada a renunciar aos seus postulados; ela foi conduzida por uma preocupação de fidelidade
objetiva em reconhecer a realidade humana outra coisa que não um setor da objetividade natural, e em
utilizar para reconhecê-lo outros métodos diferentes daqueles de que as ciências da natureza poderiam
lhe dar o modelo [...] Mas o projeto de rigorosa exatidão que a levou, pouco a pouco, a abandonar seus
postulados tornou-se vazio e sem sentido quando esses mesmos postulados desapareceram: a idéia de
uma precisão objetiva quase matemática no domínio das ciências humanas não é mais convincente se o
próprio homem não é mais da ordem da natureza [...] a renovação radical da psicologia como ciência do
homem não é simplesmente um fato histórico do qual podemos situar o desenrolar durante os últimos
cem anos; ela é ainda uma tarefa incompleta a ser preenchida e, a esse título, permanece na ordem do
dia (FOUCAULT, 2002, p.134).
Compreende-se, portanto que a psicologia nasceu e sobreviveu comprometida com os
princípios da modernidade, com os postulados imperativos das ciências positivistas
sustentados pelos ideais contidos na sociedade civil moderna que invocava o indivíduo livre e
regente de suas condutas. Porém, tal método auto-imposto tornou-se sem sentido, que não
respondia aos propósitos empreendidos. A partir de então, a ciência psicológica passou a
82
contradizer-se: ou atender aos princípios de uma ciência positivista que confere uma
interpretação objetiva das ações do sujeito humano, ou ao contrário buscar uma ciência que
fosse capaz de compreender suas singularidades pelo viés subjetivo.
Tal caminho seria possível para permitir à ciência psicológica o conhecimento da pessoa
humana? Optando pela aposta máxima
na primeira possibilidade, é o que demonstra a
contabilidade centenária que Foucault faz das psicologias. A contradição se fortaleceu devido
à necessidade da própria psicologia perceber a importância de criar seus próprios métodos
para investigar o sujeito humano, enquanto tal, que não se define psicologicamente pela
objetividade e pela naturalidade, mas, que é dotado de uma complexidade que escapa às
predições biológicas e naturais. Isso significa reconhecer que o sujeito humano é constituído
pela sua história, pelos valores atribuídos aos símbolos, ou seja, pelos princípios fundamentais
que dão significado aos fenômenos que o cerca.
Em A psicologia de 1850 a 1950, a análise foucaultiana revela os resultados que a psicologia
auferiu com tal propósito. O interesse centra-se na análise da perspectiva histórica, ou seja, de
que modo a ciência psicológica se fez possível. Quais foram os entraves que sofreu a psicologia
por alinhar-se à tendência naturalista de produção de ciência?
Sob a lente foucaultiana a psicologia esteve presa aos próprios conflitos que a constitui. Esse
foi o caminho que levou a psicologia a fazer ciência até a metade do século XX. Cito
Foucault:
A Psicologia, em contrapartida nasce nesse ponto do qual a pratica do homem encontra sua própria
contradição: a psicologia do desenvolvimento nasceu como uma reflexão sobre as interrupções do
desenvolvimento; a psicologia da adaptação, como uma análise dos fenômenos de inadaptação; a da
memória, da consciência, do sentimento, surgiu primeiro como uma psicologia do esquecimento, do
inconsciente e das perturbações afetivas. Sem forçar uma exatidão pode-se dizer que a psicologia
contemporânea é, em sua origem, uma análise do anormal, do patológico, do conflituoso, uma reflexão
sobre as contradições do homem consigo mesmo. E se ela se transformou em uma psicologia do normal,
do adaptativo, do organizado, é de um segundo modo, como que por um esforço para dominar essas
contradições [...] O futuro da psicologia não estaria doravante, no levar a sério essas contradições, cuja
experiência justamente, fez nascer á psicologia? Por conseguinte não haveria desde então psicologia
possível se não pela análise das condições de existência do homem e pela tomada do que de mais
humano no homem, quer dizer, sua história (FOUCAULT, 2002, pp.135/151).
Entende-se, portanto, que a psicologia esteve presa, a uma necessidade de provar sua eficácia,
através da utilização de um método naturalista para explicar o funcionamento lógico do
psiquismo humano.
83
Tal análise remete às questões da dissimetria de gênero, que tem como fundamento, a noção
do masculino e feminino pela ancoragem do método naturalista. As críticas foucaultianas são
fundamentais no processo de compreensão dos modos operacionais em que o gênero
masculino e feminino o considerados como biologicamente determinados. As articulações
do gênero como categoria pretende desmontar as articulações teóricas que postulam as
diferenças entre homem e mulher pelas leis naturais ou pelo determinismo biológico implícito
no uso de termos como sexo ou diferença sexual. Dito de outra forma, o que está em questão é
a dissimetria de poder nas relações entre os sexos, bem como as condutas existenciais de ser
homem ou mulher pela via da liberdade e sujeição, que promove o debate de constructos
como feminilidade e masculinidade ou nas nomeações que as normatiza.
Em suas contradições, a psicologia não tem sido capaz de, ao falar do fenômeno psicológico,
enunciar com propriedade as condições econômicas, sociais, políticas, culturais e históricas
nas quais se inserem os sujeitos humanos. Mesmo a psicanálise, que mais se aproximou dessa
legítima e inerente tarefa psicológica, não escapou às seduções de um confortável
naturalismo. A psicologia parece contribuir significativamente para ocultar tais condições,
conforme reitera Bock:
Fala-se da mãe e do pai sem falar da família como instituição social marcada historicamente pela
apropriação dos sujeitos; fala-se da identidade das mulheres sem se falar das características machistas
de uma cultura patriarcal; fala-se do psicológico sem falar do cultural e do social (BOCK, 1999, p.28).
Isso significa que a dissimetria de poder nas relações entre homens e mulheres e a noção de
feminilidade e masculinidade são entendidas como atributos pertencentes à personalidade dos
sujeitos mulher e homem, excluindo-se as construções sociais determinadas por um contexto
histórico ou por uma visão de mundo sustentada pela dicotomia natureza versus cultura.
Tais
problemas crivam a psicologia desde a sua origem. Nessa perspectiva, a eficácia da Psicologia
Social começa a ser questionada, apontando-se para a crise do conhecimento psicossocial,
ineficiente em intervir, explicar e prever comportamentos sociais. uma crítica na forma de
concepção do social como se tal fosse apenas guiado pelos processos psicológicos
individuais, como se o social se constituísse a partir da somatória dos indivíduos, sustentados
na concepção da dicotomia natureza e cultura. Assim, todas as definições se referem às suas
condutas particulares, ou na concepção dicotômica indivíduo e sociedade; estuda-se muito a
influência do social no indivíduo, mas este individual não é trazido para o social, perdendo-se
o referencial do sujeito, sua particularidade.
84
De acordo com Sawaia (2006), a partir da segunda metade do século XX irrompeu um
movimento de denuncias à suposta neutralidade do conhecimento científico e conseqüente
revisão epistemológica, orientada por pressuposto ético-político, com base no materialismo
histórico-dialético. Esse referencial politizou o conhecimento situando-o como mediação das
relações de poder que historicizou os fenômenos humanos destituindo o mito da ciência que
promove o progresso e o da ciência imparcial. A Psicologia Social com bases materialistas-
históricas
38
surge na tentativa de restabelecer, através dos princípios do pensamento marxista,
a força dos conceitos e os compromissos filosóficos e políticos necessários a uma redefinição
da psicologia e da questão do processo de subjetivação.
A crítica apoiava-se em fundamentos
marxistas e neo-marxistas acerca dos conceitos como alienação, ideologia e dominação que
tornaram-se elementos essenciais para a compreensão da subjetivação humana
39
. Nesta
perspectiva, a Psicologia Social absorve os pressupostos que visam compreender o sujeito
humano através da interseção de sua historia, portanto o individual no entrelaçamento com o
social, forjada, pelas experiências vividas pelos sujeitos.
Strey (2009), ressalta que a psicologia sócio-histórico-crítica vem abordando os estudos das
relações entre homens e mulheres pela vertente da categoria nero. Tal compromisso requer
uma atitude interdisciplinar de produção do conhecimento e favorece a superação dos
pressupostos universalistas da psicologia. Tarefa, contudo, que ainda se apresenta como um
desafio, pois, ao se compreender o gênero como elemento fundamental no processo de
subjetivação, necessário se faz a construção teórica para abarcar suas pluralidades e não
somente sua incorporação aos estudos em psicologia (SIQUEIRA, 1997). Portanto, tais
desafios ainda e fazem presentes.
38
De acordo com Kahhale (2006), a contradição conceito fundamental para a concepção marxista, significa que
a matéria contém em si, sua própria negação. Ou seja, ela deve ser compreendida á maneira dialética, de forma
que uma superação do velho pelo novo, sendo que este conserva características do movimento anterior, e que
pode, em um movimento em espiral, atualizar-se, mas estando sempre modificadas. Isso significa considerar que
as ações do sujeito estão vinculadas as suas experiências passadas ( histórias) e presentes ( históricas, sociais,
políticas e culturais), que se atualizam e re-atualizam evidenciando a forma pela se o processo de
subjetivação.
Porém, muito embora o materialismo histórico dialético seja contrário a filosofia das práxis que fortalecem o
reducionismo natural, termina por constituir um dos erros que pretendia evitar: a redução da diversidade a um,
sucumbindo ao mito da teoria unitária que se traduziu, na pratica, na ndrome do “final feliz”, como se a
superação da propriedade privada dos meios de produção significasse liberdade para sempre. Sucumbiu também
a divisão maniqueísta entre os homens e a sociedade como se tal fossem categorias generalizantes que se
bastavam a si mesma (SAWAIA, 2006).
39
Falar do processo de subjetivação humana é falar da ordem objetiva e subjetiva em que vivem os sujeitos,
refere-se a uma construção no nível individual do mundo simbólico que constitui-se pelo social. O processo
de subjetivação é concebido como algo que se constitui na relação com o mundo material e social (FOUCAULT,
2002).
85
A metodologia recomenda ao pesquisador efetivar delimitações, por questão de precisão.
Seguindo esse vetor, limitemo-nos à demonstração dessa espécie de reducionismo dirigido à
psicologia acerca das desigualdades de gênero mediante o isolamento da critica a teoria
psicanalítica. Quais são as bases em que se fundamenta a psicanálise?
De que forma esse fundamento metodológico se apresenta? Pelo crivo foucaultiano, a
psicanálise também sucumbiu ao naturalismo. Foucault ressalta:
[...] Sem dúvida a psicanálise ainda permanece, no pensamento de Freud, ligada às suas origens
naturalistas e aos preconceitos metafísicos ou morais, que não deixam de marcá-la. Sem dúvida, na
teoria dos instintos o eco de um mito biológico do ser humano. Sem dúvida, na concepção da doença
como regressão a um estado anterior do desenvolvimento afetivo reencontramos um velho tema
spenceriano e os fantasmas evolucionistas de que Freud não nos poupa, mesmo em suas explicações
sociológicas mais duvidosas (FOUCAULT, 2002, p.135).
Aqui a teoria freudiana é colocada sob crítica, e são apontadas as marcas comprobatórias do
naturalismo científico que nela se faz presente. A crítica repousa sobre a teoria dos instintos e
aos valores morais da sociedade moderna, indicando-os como arraigados a uma concepção
biológica da pessoa humana. Ou seja, a construção da personalidade proposta pela psicanálise
se pautaria pela bem-sucedida passagem dos estágios de desenvolvimento
40
. Porém, que
respaldo pode sustentar a acidez foucaultiana?
Na constituição da teoria psicanalítica o caminho seguido por Freud (1895), foi à criação de
uma teoria que explicasse os processos psíquicos, para tal, elaborou um Projeto de uma
Psicologia Científica, com o propósito explícito de criar uma psicologia qual ciência natural.
Em suas palavras: “[...] apresentar processos psíquicos como estados quantitativamente
determinados de partes materiais capazes de serem especificadas e, com isso, torná-los livres
de contradição” (FREUD, 1895, p. 347). Com tal finalidade na primeira parte do Projeto...,
Freud (1895), elabora dois teoremas fundamentais: a Concepção Quantitativa e a Teoria dos
Neurônios, sustentados por princípios genuinamente mecanicistas ou emprestados da
termodinâmica. O Projeto... evidencia uma das trilhas seguidas pela teoria freudiana para
conceber o psiquismo e seu funcionamento: explicar o psiquismo humano através de uma
linguagem fisiologista, em que as necessidades humanas pudessem ser traduzidas pelos
estímulos neuronais, tendo como base princípios mecânicos revelados através de uma
linguagem fisicalista.
40
As fases oral, genital e fálica são compreendidas como fases do desenvolvimento do sujeito. Na teoria
freudiana tais fases são fundamentais no processo de formação da personalidade implicando em complicações de
ordem psíquica, caso não ocorra uma transição adequada de tais fases no processo de desenvolvimento.
86
Porém, como pensar o desejo como realidade psíquica e não mera força natural plantada na
estruturação genética dos sujeitos humanos? Questão que provoca a teoria psicanalítica,
explicitando o caráter insatisfatório de sua ancoragem naturalista. Embora suscite insatisfação
e questionamento, este naturalismo não foi abandonado pela trajetória freudiana. Numa
interpretação naturalista acerca da expressão da sexualidade dos sujeitos
41
, esta é explicada
pela gênese da hereditariedade e pelo primado genital. A sexualidade aparece como pronta
nascida com o sujeito e sobre a qual nada lhe compete, a o ser esperar à hora e o momento
certo para o seu acionamento. A conduta humana é regida por uma força que lhe é fornecida
pela natureza, a qual, a priori, se sobrepõe a qualquer possibilidade de constituição do sujeito.
No entanto, Foucault (1984), observa que embora marcada pela técnica naturalista, a
psicanálise revela sua ambivalência ao descrever a sexualidade através das instâncias das
relações familiares:
Mas, eis que a psicanálise, que parecia, em suas modalidades técnicas, colocar a confissão da
sexualidade fora da soberania familiar, reencontrava, no próprio seio dessa sexualidade, como principio
de sua formação a chave de sua inteligibilidade, a lei da aliança, os jogos mesclados dos esponsais e do
parentesco, o incesto (FOUCAULT, 1984, p. 106).
Isso significa que embora o naturalismo positivista se faça presente, a teoria psicanalítica
descreve as relações humanas a partir das relações de poder. Nas suposições freudianas
contidas em Totem e Tabu, Freud (1913), ressalta que os filhos “Odiavam o pai, que
representava um obstáculo tão formidável ao seu anseio de poder e aos desejos sexuais; mas
amavam-no e admiravam-no também” (FREUD, 1913, p.146).
As lutas e os acordos se dão entre os homens pelo poder de autonomia e controle sob as
mulheres, permeados pela ambivalência dos sentimentos de amor e ódio. Tais suposições
pretendem descrever as formas relacionais entre os sujeitos na família
42
. A teoria freudiana
41
No terceiro ensaio sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905), invoca a constituição de uma condição a
priori acerca da
sexualidade do homem e da mulher. Numa interpretação naturalista a análise freudiana destaca a
puberdade como manifestação da sexualidade, mediante uma condição organicista que já nasce pronta nos
sujeitos “Escolheu-se o que mais se destaca nos processos da puberdade como o que constitui sua essência: o
crescimento manifesto da genitália externa. Que exibira, durante o período de latência da infância, uma relativa
inibição. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento dos genitais internos avançou o bastante para que eles possam
descarregar produtos sexuais ou, conforme o caso recebê-los para promover a formação de um novo ser vivo.
Assim ficou pronto um aparelho altamente complexo, à espera do momento em que será utilizado(FREUD,
1905, p.197).
42
Em Totem e tabu, Freud (1913), também descreve: “Os desejos sexuais não une os homens, mas os dividem.
Embora os irmãos tivessem se reunido em grupo para derrotar o pai, todos eram rivais uns dos outros em relação
às mulheres. Cada um queria ser como o pai: ter todas as mulheres para si” (FREUD, 1913, p.146). Parte-se do
87
ressalta que o tabu do incesto instaura a lei da aliança, assegura o direito de todos os homens
às mulheres e funda a noção de sociedade. “Mas era na sociedade européia do século XIX que
o rapaz se irritava com o controle exercido por um pai distante e todo poderoso que reprimia a
sexualidade” (COSTA, 1986, p.43). Os conflitos de poder entre pai e filhos da horda primitiva
descritos por Freud (1913), são os observados na moderna sociedade civil regulada pela noção
de contratos. Nessa perspectiva, o poder, como expressão da autonomia e liberdade não vale
para todas, a mulheres sempre vão aparecer como signo comunicável, apenas os homens serão
sujeitos de desejo.
É fundamentado em tais pressupostos que Freud (1924), apresenta a idéia de masculinidade e
feminilidade pelo complexo de Édipo
43
. De acordo com a teoria freudiana, tal complexo está
no âmago de toda neurose humana como também é a principal experiência estruturante da
psique: “A relação com os pais, instigada pelos “anseios, os principais elementos da situação
edipiana são os sentimentos sexuais da criança incestuosa, é o complexo central das neuroses”
(FREUD, 1924, p.192). Os principais elementos da situação edipiana são os sentimentos
sexuais da criança pelo progenitor do sexo oposto, os profundos sentimentos de ambivalência
da criança para com a mãe ou o pai e os sentimentos de ansiedade do menino em relação às
ameaças contra o seu órgão genital. Freud descreve:
Quando o interesse da criança (do sexo masculino) se volta para seu órgão genital, atrai este por
manuseá-lo com freqüência, e então ele é obrigado a descobrir que os adultos não aprovam esse
comportamento. Mais ou menos diretamente mais ou menos brutalmente, pronunciam uma ameaça de
que essa parte dele que tão altamente valoriza, lhe será tirada. Geralmente é de mulheres que emana a
ameaça; com muita freqüência elas buscam reforçar sua autoridade por uma referencia ao pai ou ao
médico, os quais como dizem, levarão a cabo a punição. (FREUD, 1924, p. 194).
Disso decorre que a fase fálica da organização genital sucumbe a essa ameaça de castração.
Freud (1924), considera como um fato inevitável que todos os adultos reprimam essa
pressuposto que esta descrição caracteriza as concepções ideológicas de uma relação familiar fundamentadas em
pressupostos de desigualdades, tal qual na família patriarcal.
43
“O complexo de Édipo é um conjunto organizado de desejos amorosos hostis que a criança sente em relação
aos pais. Sob a sua forma dita positiva, o complexo apresenta-se como na história de Édipo-Rei: desejo de morte
do rival que é a personagem do mesmo sexo e desejo sexual pela personagem do sexo oposto. Sob sua forma
negativa, apresenta-se de modo inverso: amor pelo progenitor do mesmo sexo e ódio ciumento ao progenitor do
sexo oposto. Na realidade, essas duas formas encontra-se em graus diversos na chamada forma completa do
complexo de Édipo” (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001, p.77).
De acordo com Freud (1924), o apogeu do complexo de Édipo é vivido entre os três e os cinco anos, durante a
fase fálica; o seu declínio marca a entrada no período de latência. É revivido na puberdade e é superado com
maior ou menor êxito num tipo especial de escolha do objeto.
Para a teoria psicanalítica o complexo de Édipo desempenha papel fundamental na estrutura da personalidade e
na orientação do desejo humano. Para os especialistas ele é o principal eixo de referencia da psicopatologia; para
cada tipo patológico eles procuram determinar as formas particulares da sua posição e da sua solução.
88
atividade genital na criança. Porém, o que a teoria freudiana tem o mérito de descrever é a
ação do menino interpretada pelo pai e pela mãe, com base nos valores morais da sociedade
que orienta às suas condutas, e que são, via de regra, internalizados pela criança: “Ao proibir e
ameaçar com punição, os pais transformam a ação do menino numa importante violação da
boa conduta, a proibição pode ser entendida como parte da repressão profunda da sexualidade
na sociedade civil moderna” (POSTER, 1979, p.08). Infere-se dque a gênese atribuída à
importância do primado genital como o símbolo da sexualidade da criança tem como
fundamento os padrões morais referenciados pela família moderna. uma profunda relação
entre o que os pais coíbem ou permitem e o valor atribuído pela criança acerca dos atos dos
pais. Porque a ameaça é tão definitiva a criança aprende os valores morais impostos pelos
seus pais e pela sociedade. A ameaça de castração indica ser menos importante do que a
intensidade da intenção. O que se torna relevante é menos o triângulo sexual que caracteriza o
complexo de Édipo, do que o grau de envolvimento emocional entre pais e filhos. Um grau
que parece aplicar-se de maneira adequada ao isolado mundo da família burguesa nos séculos
XIX e XX e possivelmente à família de classe trabalhadora no capitalismo avançado de
meados do século XX (GAY, 2008). Nesses casos, as relações são engendradas numa teia
afetiva que os pais constituem as figuras emocionalmente significativas e prioritárias para a
criança durante os primeiros anos do seu desenvolvimento.
No entanto, Freud (1931), indica que o valor do órgão genital já existe para a criança, como se
tal fosse naturalmente um órgão com valor absoluto. Assim, torna-se também natural, que as
figuras parentais suprimam a ação da criança, e é também natural que o pai seja a autoridade
mor nessa repressão. Por essa via, o complexo de Édipo sucumbe ao complexo de castração, e
a constituição da masculinidade na teoria freudiana constitui-se através dos seguintes
processos, conforme Freud:
É apenas na criança do sexo masculino que encontramos a fatídica combinação de amor por um dos pais
e simultaneamente, ódio pelo outro, como rival [...] É a descoberta da possibilidade de castração, tal
como provadas pela visão dos órgãos genitais femininos, que impõe ao menino a transformação do seu
complexo de Édipo e conduz a criação de seu superego, iniciando assim todos os processos que se
destinam a fazer o individuo encontrar lugar na comunidade cultural (FREUD, 1931, p.237).
Aqui o sexo masculino é destacado como fundamental na trama entre as demandas de amor
do pai e da mãe; pela relevância do primado genital, as emoções e sentimentos da criança são
avaliados e invoca que, ao ver o sexo oposto, o menino, confirma o conteúdo das ameaças. É
pelo temor da castração que o menino internaliza a autoridade parental. Nesse sentido, a prova
do complexo de Édipo está vinculada a existência de uma autoridade interna, constituída
89
externamente pelas regras morais, mas que passa a operar por via da culpa, da internalização
dos valores morais transmitidos pelos pais. A teoria da castração indica ser a chave para a
compreensão de toda a psicologia adulta do homem. Sob a impressão do perigo de ser
castrado o menino abandona e reprime o complexo de Édipo, e via de regra, um severo
superego instala-se como seu herdeiro. “Pelo complexo de castração a sexualidade infantil
masculina vem à tona, e transforma-se em sexualidade adulta masculina normal e a sua libido
concentra-se na sua área genital, após o agente paterno ter sido internalizado e ter-se tornado
um superego” (FREUD, 1932, p. 192). A fase final para a construção da masculinidade
consiste em desvincular o superego das figuras parentais que primordialmente era o
representante psíquico. Isso significa pensar a masculinidade pela oposição a feminilidade. O
primado genital é substituído pelo primado do falo que representa o poder e tem como
elemento principal o masculino em contraposição a figura feminina.
Assim, a respeito da relação existente entre os complexos, para a teoria freudiana existe um
contraste fundamental entre os dois sexos: enquanto, nos meninos, o complexo de Édipo é
destruído pelo complexo de castração, nas meninas aquele se faz possível pela introdução
desta, ou seja, o complexo de Édipo é uma formação secundaria, as operações do complexo
de castração o precedem e preparam. Tal contradição é explicada através do entendimento que
o complexo de castração age no sentido oculto em seu conteúdo: inibe e limita a
masculinidade e incentiva a feminilidade. Cito Freud:
O que acontece na menina mostra-se de maneira quase diversa nos meninos: o complexo de castração
prepara para o complexo de Édipo, em vez de destruí-lo; a menina é forçada a abandonar a ligação com
a sua mãe através da influência de sua inveja do pênis, e entra na situação edipiana como se esta fora
um refúgio. As meninas permanecem no Édipo por um tempo indeterminado, e como conseqüência a
afirmação do superego deve sofrer prejuízos, não conseguem atingir a intensidade e a independência, as
quais lhe conferem sua importância cultural (FREUD 1932, p. 129).
Na explicação freudiana, são inteiramente diferentes os efeitos do complexo de castração na
menina, relativamente ao que ocorre no menino. Para o criador da psicanálise, a menina
reconhece o fato de sua castração, e através deste, a superioridade do menino e sua própria
inferioridade, mas não aceita de pronto, rebelando-se contra tal situação. Dessa atitude,
dividida, abrem-se três linhas de desenvolvimento. A primeira leva a uma mudança total á
sexualidade: a menina, assustada pela comparação com os meninos, cresce insatisfeita com o
seu clitóris, sua sexualidade em geral, bem como boa parte de sua masculinidade em outros
campos. Para teoria freudiana isso acontece quando a menina descobre que a mãe é castrada.
Com isso, a mãe na figura da mulher perde o valor, e a menina termina por abandonar seu
90
primeiro objeto amoroso. “Foi uma surpresa, no entanto, constatar, na análise que as meninas
responsabilizam sua mãe pela falta do pênis nelas e não perdoam por terem sido, desse modo,
colocadas em desvantagem” (FREUD, 1932, p. 124). Por tal perspectiva a construção da
feminilidade na mulher está atrelada ao valor atribuído a primazia do genital e a primazia do
falo.
Sem o representante simbólico do poder, a mãe é rebaixada, pela menina, e em seu lugar um
novo objeto de amor é colocado. Tal processo é ressaltado por Freud da seguinte forma:
Seu amor estava dirigido à mãe fálica; com a descoberta de que sua mãe é castrada, torna-se possível
abandoná-la como objeto, de modo que os motivos de hostilidade, que muito se vinha acumulando,
assumem o domínio da situação. Isso significa, portanto, que, como resultado da descoberta da falta do
pênis nas mulheres, estas são rebaixadas de valor pela menina, assim como depois o são pelos meninos,
e posteriormente, talvez pelos homens (FREUD, 1932, p. 126).
A menina é a primeira a abandonar a mãe como objeto de amor, e também a rebaixar o valor
da mulher, que esta não possui o representante simbólico do poder. No entanto, pode-se
supor que a análise freudiana descreve a forma como a mulher é tratada na sociedade moderna
e principalmente na família nuclear burguesa. A mãe que não é fálica é a mãe sem autonomia,
submetida à hierarquia de poder do homem como chefe familiar; é a mulher que é “vigiada” e
“protegida” pelo homem sob a ordem das relações fundamentadas no contrato sexual e no
contrato social. O que a menina indica perceber é a figura de autoridade centrada no poder
masculino, representado pela figura do marido e pai, que ofusca a autoridade da mãe. Quando
a menina percebe tal fato, desafia a auto-afirmatividade ou o poder que sustenta essa posição.
A interpretação freudiana sustenta que “até em idade inacreditavelmente tardia, a menina
aferra-se à esperança de conseguir um pênis em alguma ocasião. Essa esperança se torna o
objetivo de sua vida e a fantasia de ser um homem(FREUD, 1924, p. 237). A interpretação
freudiana também indica que se o desenvolvimento da menina seguir outro caminho, muito
indireto, ela atingirá a atitude feminina tida como normal: toma o pai como objeto,
encontrando assim o caminho para a feminilidade. Diante da impossibilidade do pai realizar
seu desejo a menina idealiza um filho que simboliza o desejo obtido do pai.
O filho torna-se o ideal a ser alcançado e o pai fica em segundo plano. Por tal via, na teoria
psicanalítica a feminilidade constrói-se quando o desejo de ter o falo
44
(poder) é corporificado
44
“Em psicanálise, o uso deste termo sublinha a função simbólica desempenhada pelo pênis na dialética intra
intersubjetiva, enquanto o termo nis é, sobretudo reservado para designar o órgão na sua realidade anatômica.
A organização fálica, progressivamente reconhecida por Freud como fase de evolução da libido dos dois sexos
ocupa lugar central na medida em que tem correlação com o complexo de castração no seu apogeu e domina a
posição e a dissolução do complexo de Édipo” (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001, p.167).
91
no desejo de ter um filho e o único caminho possível para tal realização, é a mulher tornar-se
mãe. Embora tal análise revele o olhar cuidadoso da trajetória freudiana ao perceber a
complexidade das relações familiares na constituição do complexo de Édipo, Freud termina
por se render as questões organicistas que distorce sua compreensão das relações entre os
sujeitos humanos (KEHL, 2008). Os conceitos de identificação e sexuação na psicanálise
estão de tal forma inscritos em uma lei estabelecida a priori numa concepção biologicamente
determinada que acaba por fixar e restringir as manifestações da sexualidade a duas posições
normativas: masculinidade e feminilidade: “A feminilidade nas mulheres revela sempre uma
incompletude, sendo ameaçada pelas fantasias quanto pelo traço de identificação, antitéticos e
insuficientemente recalcado, da masculinidade” (KEHL, 2008, p. 205). Compreende-se que a
constituição ou conquista da feminilidade para as mulheres, custa mais que a masculinidade
para os homens. Em ambos os casos, a substituição do conceito de primazia dos genitais pelo
de primazia do falo ocorre quando a passagem da sexualidade infantil para a adulta deixa de
ter uma determinação puramente orgânica, baseada na maturação dos órgãos genitais e passa
a ser marcada por uma mudança na interpretação da diferença sexual (KEHL, 2008).
Entende-
se, portanto, que as diferenças entre o feminino e o masculino são transformadas em
desigualdades hierárquicas através de discursos masculinos sobre a mulher, os quais incidem
sobre o corpo da mulher e acentuam as desigualdades de gênero.
Porém, a abordagem sobre gênero não se inscreve numa questão de mulheres; inscreve-se nas
relações de desigualdades de poder que coloca a mulher numa posição de desvantagens, que
podem existir numa posição relacional. “Os estudos de gênero estiveram tradicionalmente
associados a pesquisas sobre “a mulher” como se essa categoria pudesse ser compreendida
independentemente de sua relação com a de “homem”“ (HITA, 1999, p.371). Não se pode
tratar das questões desiguais entre os sexos, sem mencionar a maneira como a masculinidade
e a feminilidade são construídas e interpretadas
45
. Mais ainda, tratar das relações desiguais
O termo falo é raramente mencionado nos escritos freudianos, comumente é utilizada expressão como fase
fálica; primazia do falo; mãe fálica. Porém na literatura contemporânea psicanalítica, pode-se verificar a
distinção dos termos pênis e falo. O primeiro com o significado da anatomia genital masculina e o segundo
significando o seu valor simbólico (POSTER, 1979; RIEF, 1979).
45
A autora analisa a obra literária de PEDRO, Joana M. e GROSSI, Miriam P. Masculino, Feminino, Plural. Gênero na
interdisciplinaridade. Florianópolis-SC, Editora das Mulheres, 1998. E observa que a obra destaca e
remete a “uma
preocupação de incorporar o tratamento do campo em estudo como uma relação e não mais um lo, ora
feminino, ora masculino, tão característico de abordagens de outrora, colocando-o, portanto, em uma perspectiva
de ponta” (HITA, 1999, p.372).
92
entre homem e mulher é tratar de relações que afetam todas as estruturas sociais,
principalmente a família.
As desigualdades de gênero, não se representam por questões especificas do feminino, tratam-
se das relações entre os sujeitos humanos que constituem relações e famílias, portanto,
homens e mulheres, bem como em suas classificações simbólicas historicamente constituídas
(pai, mãe, filhos, irmãos tias, primos, avô e avó). As questões de gênero não dizem respeito
apenas às análises da exclusão de um domínio sexual acerca as instâncias do poder. São
questões que revelam os valores da sociedade e da família. Scott ressalta que:
“Gênero” como substituto de “mulheres” é igualmente utilizado para sugerir que a informação a
respeito das mulheres é necessariamente informação sobre os homens, que um implica no estudo do
outro. Este uso insiste na idéia de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é
criado dentro e por esse mundo. Esse uso rejeita a utilidade interpretativa da idéia das esferas separadas
e defende que estudar as mulheres de forma isolada perpetua o mito de que uma esfera, a experiência de
um sexo, tem muito pouco ou nada a ver com o outro sexo. Ademais, o gênero é igualmente utilizado
para designar as relações sociais entre os sexos. O seu uso rejeita explicitamente as explicações
biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum para várias formas de subordinação
no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior. O gênero se
torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais”: a criação inteiramente social das idéias
sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens
exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres (SCOTT, 1988, p. 32).
A noção de gênero implica que as desigualdades entre os sexos são fundamentalmente
relacionais. Implica tratar com categorias simbólicas homem e mulher acerca da maneira
como foram atribuídos os significados de ser macho e fêmea. Através da capacidade de criar e
manipular símbolos, os sujeitos estabelecem as condições para a interação social.
No entanto, o que a teoria freudiana indica ignorar é que tais relações são constituídas em
pilares e padrões morais determinadas por uma visão de mundo constituída na sociedade civil
moderna, através das relações fundamentadas em contratos (PATEMAN, 1993). Por outro
lado, pode-se compreender que não consiste a teoria freudiana a gênese na desqualificação ou
desvalor dos órgãos genitais da mulher ou das características femininas. A análise freudiana
descreve como os padrões sociais da sociedade civil moderna e da família burguesa,
determinaram as regras de convivência e os valores nas relações entre os sexos; descreve as
relações de homens e mulheres na família, e como tais relações afetam os próprios sujeitos e o
comportamento dos filhos.
Poster (1979), destaca que a teoria freudiana não elabora uma teoria autoconsciente sobre a
família. No entanto, Freud (1893; 1905; 1913; 1924; 1930), aborda a família sob diversos
Porém, por circunstâncias pertinentes aos constructos de pesquisa, esse ensaio se limitou a mencionar a maneira
como a masculinidade e feminilidade são construídas pelo viés psicanalítico. Contudo, compreende-se a
relevância acerca de um aprofundamento nos estudos sobre masculinidade e feminilidade.
93
aspectos e modos discursivos: nos estudos sobre a histeria, sobre as formas constitucionais de
organização social; em documentos técnicos sobre a psicanálise; nos estudos da
metapsicologia, história, sociedade e cultura. “A família é o elo das experiências com que a
psicanálise está em causa. Freud procura decompor o indivíduo no seu essencial (porém
inconsciente) às relações familiares” (POSTER, 1979, p.120).
A falta/falha freudiana consiste em ignorar a existência das desigualdades de gênero e atribuir
como naturais padrões morais que engendram tais desigualdades. Freud (1905; 1924; 1931;
1932), descreve as relações entre os pais e os filhos, entre homem e mulher, menino e menina,
considerando as circunstâncias que constituem tais relações e como tais relações são
influenciadas pelas determinações que medeiam às relações de poder, de apenas um dos
sexos, o masculino. As condutas da mulher e do homem estão atreladas aos pressupostos
pertencentes ao contrato sexual: o sexo deve estar totalmente vinculado à reprodução, ao
“poder das mães”, sendo está o elemento essencial da casa e da família, mas, sobretudo
tutelada pela autoridade do homem como chefe familiar. Assim, enaltece-se a autonomia e
autoridade masculina sobre a família, que igualmente deve prover o sustento da casa e
comandar as diretrizes da família, sob pena da perda da virilidade. Nesse sentido, o primado
genital e o complexo de Édipo, corroboram a forma de constituição da masculinidade e da
feminilidade pelos pressupostos da desigualdade e dos modos relacionais entre os sujeitos na
família, como se fossem fenômenos naturais.
Por outro lado, a teoria freudiana mostra-se ambivalente ao tratar de tais questões. Na
Conferência XXXIII - Feminilidade, último trabalho da teoria freudiana especificamente sobre
a sexuação nas mulheres Freud (1932), ressaltou a dificuldade em se definir masculinidade e
feminilidade, e, sobretudo em considerar que homens e mulheres sejam naturalmente
estruturados como masculinos e femininos. Essa reflexão ambivalente revela que as
concepções que constituem tais fatores, não podem ser compreendidas pelas características
biológicas de cada ser. Ser masculino ou feminino não é algo que nasça com o sujeito
homem ou mulher. Cito Freud:
Aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge ao
alcance da anatomia. Estaria quem sabe, nos domínios da psicologia? Estamos habituados a empregar
‘masculino’ e ‘feminino’ também como qualidades mentais, e da mesma forma temos transferido a
noção de bissexualidade para a vida mental. Assim, dizemos que uma pessoa, seja homem ou mulher, se
comporta de modo masculino numa situação e de modo feminino em outra (FREUD, 1932, p. 115).
Em um Freud ambivalente, a sexualidade é tida como algo não inato, mas resultante da
maneira singular com que cada sujeito lhe confere sentido. Aqui o primado genital cede lugar
94
para uma possível interpretação consubstanciada nos domínios da psique humana. A análise
freudiana destaca que a anatomia não determina a expressão da sexualidade. Porém incita a
questão: quem pode responder a psicologia? Supostamente nem ela, que ser masculino ou
feminino também não são qualidades mentais ou atributos pertencentes personalidade dos
sujeitos. O sexo feminino e o sexo masculino existem em função do significado social que
simbolicamente lhe são atribuídos. Ou seja, dependem das construções simbólicas que
medeiam às relações em sociedade.
Assim, o Freud ambivalente ainda ressalta que o cabe à psicanálise dizer o que seja a
mulher, mas sim investigar “como da disposição bissexual infantil, surge à mulher” (FREUD,
1932, p.118). Destarte a ambivalência freudiana sobre as mulheres capaz de sustentar, na
argumentação, paradoxos como os revelados sobre a masculinidade e feminilidade, que
contrariam todos os estereótipos sobre gênero. Ao mesmo tempo, volta a manter os
estereótipos quando descreve em Análise terminável e interminável Freud (1937), que o único
caminho para a “cura” feminina é aceitar que deve tornar-se mãe.
Toda a teoria psicanalítica
no que se refere às questões de gênero convergem numa ambivalência que sempre conserva a
mulher como objeto, sujeitada, destituída de desejo. Como resultado a psicanálise parece
ignorar que a relação entre homem e mulher e entre pais e os filhos geram uma resposta
emocional carregada e estruturada nas ideologias que acentuam a dissimetria entre os sexos.
Termina por apresentar uma interpretação enviesada sobre as relações de poder e conflitos de
gênero na relação familiar. Gênero é o que determina os modos relacionais de convivência
entre meninos e meninas, entre homens e mulheres e é culturalmente conceituado como algo
que remete e fundamenta-se pelas relações de poder ao estabelecer condutas diferenciadas
para o sexo. De acordo com Scott (1988), o masculino e o feminino adquirem significativa
importância para se pensar a igualdade versus a diferença. No entanto, essas oposições são
interdependentes e hierárquicas. A hierarquia é construída com a oposição de um termo
dominante a outro subordinado ou secundário. É desse modo que as diferenças são
tradicionalmente organizadas:
“[...] os homens sempre foram considerados como representantes do universal (dos indivíduos
socialmente indiferenciados, descorporificados e assexuados), enquanto as mulheres eram
consideradas exemplos do particular (corporificada, sexuada e socialmente diferenciada”
(SCOTT, 1988, p. 173).
Assim, as diferenças, dentre elas as diferenças sexuais, não são desprezadas, mas utilizadas
para organizar uma estrutura hierárquica. Dito de outro modo, não basta debater as diferenças
entre homens e mulheres (diferenças externas), é preciso também debater as múltiplas
diferenças entre os homens e entre as mulheres (diferenças internas). Se não se nasce
mulher,
95
mas é construída como tal, conforme Beauvoir (1980), logo, esta construção é histórica e
social e, sendo assim, existem múltiplas formas de construir o que é ser homem e o que é ser
mulher. O fundamental não consiste na análise das diferenças entre os sexos, mas inclusive
nas formas em que estas funcionam para reprimir as diferenças no interior de cada grupo de
gênero (SCOTT, 1988).
Se a análise do complexo de Édipo for mais profunda, pode-se admitir claramente que a
família nuclear moderna é a principal condição estrutural que fundamenta a análise
psicanalítica. A internalização dos valores parentais requer uma determinada intensidade no
relacionamento entre a criança, e os pais (POSTER, 1979). O segredo do Édipo parece está
constituído na complexa família burguesa, assentados nos seguintes elementos: no controle da
sexualidade; na combinação de controle e modelação; de uma conduta repressiva dos pais
para os filhos e ao mesmo tempo, aliados a um intenso grau de interesse, amor e cuidado. E
tais fatores se fazem presentes quando a família está distanciada de uma rede social mais
ampla. A ambivalência contida na fase edipiana pressupõe que a criança se relacione
emocionalmente com um limitado número de pessoas. As fantasias infantis ganham relevo
nos cuidados empreendidos pela mãe aos filhos: na higiene corporal que desperta sensações
prazerosas; no aprendizado rígido do controle dos esfíncteres; na regras morais de
comportamento; com a vedada expressão emocional de relações na esfera pública ou no
mundo dos negócios, criando maiores necessidades de satisfação emocional na família
(POSTER, 1979). Os sentimentos ambivalentes frente à agressão, devido à repressão e ao
mesmo tempo de intenso amor e cuidado, parecem perfeitamente justificados na situação
específica da família burguesa.
Portanto, “as pessoas que cercam a criança, o alvo tanto das atrações eróticas quanto de
sentimentos hostis. O complexo de Édipo, em sua forma direta e inversa, mostra esse conflito
em jogo de identificações, eleições e rivalidades” (ESPINA BARRIO, 2008, p.80). Dessa
maneira, pode-se admitir que o complexo de Édipo esteja presente nos modos relacionais que
caracterizam a família burguesa. As características relacionais que regem a conduta dos
sujeitos nesta família, parecem orientadas para gerar esse complexo emocional, ainda que o
Édipo não possa ser reconhecido, nem pretendido pelos pais. Mas, a teoria freudiana parece
deslocar as relações pertinentes à família burguesa, para os símbolos mitológicos, excluindo
as contingências sociais, políticas, históricas e culturais que afetam tal estrutura familiar.
O Édipo privatiza o mito, a emoção apropria-se da fantasia e do inconsciente, concentrando a
psique na relação parental. Cito Foucault:
96
[...] A tragédia de Édipo a que se pode ler em Sófocles deixarei de lado o problema do fundo mítico a
que ela se liga é representativa e, de certa maneira instauradora de um determinado tipo de relação
entre poder e saber, entre poder político e conhecimento, de que nossa civilização ainda não se libertou.
Parece-me que realmente um complexo de Édipo na nossa civilização. Mas ele não diz respeito ao
nosso inconsciente e ao nosso desejo, nem as relações entre desejo e inconsciente, mas de poder e saber
(FOUCAULT, 2008, p.31).
Sob a coloração das lentes foucaultianas, a teoria do sujeito e do desejo na psicanálise está
ainda atrelada à hipótese repressiva e a uma concepção política do poder. Nesse sentido a
teoria freudiana teria uma noção do sujeito distinta de uma história de subjetivações, na qual
subsistiria a concepção de um sujeito determinado por uma ordem simbólica universal a-
histórica, no que se referem aos mitos universais fundadores do sujeito e da cultura. Isso
significa que a interpretação freudiana das relações familiares parece ir à busca de uma
explicação por via dos mitos para reiterar estruturas sociais, como se tal fosse características
individuais dos sujeitos que estabelecem relações. A família é então percebida como um
refúgio contra as ameaças da sociedade e também um parâmetro, em que a privacidade e a
idéia de estabilidade pareciam estar unidas na ordem familiar. O complexo de Édipo
freudiano explica formações psíquicas que são especificas de uma limitada estrutura de
família, na medida em que a psicanálise não consegue conceituar o Édipo da perspectiva da
teoria social acabando por torná-lo um conceito não crítico de um lado e de outro e
ideológico. Sendo a família o lócus fundamental da sexualidade sob controle, os pais e os
filhos são os seus principais objetos ou alvo. A teoria freudiana indica ignorar o impacto dos
padrões sociais contidos na família, e as conseqüências que tais padrões trazem para a relação
entre homem e mulher e entre pais e filhos. Acaba por descrever sabiamente o comportamento
do menino e da menina frente às condutas adotadas pelos seus pais, e a expressão da
sexualidade infantil diante de tais condutas. Mas o naturalismo biológico positivista o impede
de ver que tais comportamentos têm como gênese padrões sociais da era burguesa e moralista
e da família conjugal moderna com sua gida divisão sexual das condutas entre os sexos.
Nesse sentido, cabe à psicanálise interrogar-se em que medida a teoria da subjetivação e
sexuação inconsciente determinada pela constelação representacional do falo e do complexo
de Édipo pode ser considerada como um princípio universal ou se configuraria em uma teoria
de uma forma de subjetivação produzida numa determinada cultura.
Nesse sentido, a psicanálise é convocada a romper com um esquema de cientificidade
instaurada pelo naturalismo. Seu objeto assim a impõe, que o homem e a mulher não são
elementos constituídos por fenômenos naturais, mas habitantes da cultura. A crítica
foucaultiana aos modelos e objetos de estudo da psicologia, possibilita a compreensão da
97
ciência constituída pelas relações de poder, destituindo o mito da ciência que promove o
progresso pela vertente da imparcialidade.
Entretanto, muito embora Foucault (1983; 1984), evidencie os efeitos normatizantes dos
modos de controle na produção da subjetividade humana através da análise das questões do
poder e do saber e dos métodos naturalistas empregados pela ciência psicológica, as
desigualdades de gênero nas relações entre os sexos, não são consideradas em suas análises. O
crivo foucaultiano não ressalta as relações regimentadas pelo viés de uma superioridade
masculina, que se faz atuante através da linguagem, dos discursos (“homem” como
significante universal), das concepções de razão e das práticas sociais de ação.
Porém, a linguagem, está sempre vinculada à marca do gênero (SCOTT, 1988). Embora
Foucault (1983; 1984; 1995; 2002), aponte os modos pelos quais os discursos científicos,
ignoram os discursos “marginalizados”, e argumente que tais discursos são locais de
resistência, o enfoque crítico foucaultiano sobre a “sociedade de controle” coloca à margem
de sua genealogia os discursos das mulheres e suas práticas de resistência (DIAMOND &
QUINBY, 1998).
A falha foucaultiana consiste em identificar a “análise do poder” como especificamente
masculina e intrinsecamente ligada à extensa ideologia patriarcal da cultura Grega
46
.
Lauretis (1987), ressalta a inobservância da análise foucaultiana acerca das questões de
gênero: “Negar gênero, em primeiro lugar, é negar as relações sociais de gênero que
constituem e validam a opressão sexual das mulheres; em segundo, negar gênero é manter
uma ideologia que serve aos interesses do sujeito masculino” (LAURETIS, 1987, p. 15).
Pode-se supor que embora a crítica foucaultiana destaque a sexualidade como o produto das
relações de poder-saber, as análises são sustentadas em princípios regidos pela hegemonia
heterossexual e masculina. uma ambigüidade acerca do caráter preciso das práticas
reguladoras que produzem a categoria do sexo. Foucault (1984), crítica a sociedade moderna
por seus padrões repressivos acerca da sexualidade e das condutas dos sujeitos, entendendo
que estas são sempre constituídas no interior dos modos de subjetivação e, portanto, das
relações do saber como poder. Porém, não ressalta que tais relações são sustentadas pelas
convenções culturais heterossexuais e masculinas. As relações de poder e as produções da
“verdade” e do “sujeito” estão absolutamente entrelaçadas com as questões de gênero:
46
Em a Historia da sexualidade O uso dos prazeres, Foucault (1984), analisa as relações entre homem e
mulher pelas diferenças de sexo, corroborando a superioridade masculina sobre a casa e a família “É porque,
numa constituição livre, os cidadãos comandam e são comandados alternadamente, enquanto que na casa é o
homem que deve guardar a superioridade permanentemente. Desigualdades de seres livres, mas desigualdades
definitiva baseada sobre uma diferença da natureza” (FOUCAULT, 1984, p.159).
98
“Foucault revela uma indiferença problemática em relação à diferença sexual” (BUTLER,
2008, p.11
). Nesse sentido, por que reagindo criticamente ao naturalismo da psicologia (e aqui
destacado da psicanálise), enfatizando a necessidade de enfrentamento de um método que
respeite os desafios em torno da história pessoal/coletiva, e reconhecendo a histerização do
corpo da mulher, o disciplinamento corporal, o crivo foucaultiano, ignora a categoria gênero?
A genealogia foucaultiana indica reconhecer o controle das mulheres, através do
reconhecimento do corpo desta, como lócus de projeção do poder e concebia processos de luta
como libertação. Entretanto, era contrário às políticas identitárias dos movimentos libertários,
propondo que “as relações que devemos manter conosco mesmos não devem ser relações de
identidade, mas sim relações de diferenciação, de criação e de inovação” (FOUCAULT, 1999,
p. 421). Tal concepção também é corroborada por Scott (1988) e Butler (2008), no que refere
às políticas identitárias que toma as mulheres” como tal. As autoras ressaltam que a unidade
da categoria “mulheres” fixa e restringe os próprios sujeitos que liberta e espera representar.
“O sujeito feminista se revela discursivamente constituído e, pelo próprio sistema político que
supostamente deveria facilitar sua emancipação” (BUTLER, 2008, p.18). um
entendimento que o gênero deve ser dissociado do sexo, principalmente como categoria
natural binária e hierárquica. Tal desconstrução coloca em debate a política de identidade e a
categoria das mulheres, estruturas basilares da fundamentação do feminismo, pretendendo
revelar a instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista. Isso significa uma
convergência com a análise foucaultiana acerca da noção de sujeito como não universal. A
crítica das relações entre os sexos permeadas por desigualdades de poder, também propõe a
desconstrução de princípios acerca de um sujeito autônomo e universal, porém suplanta os
constructos foucaultianos ao questionar a aceitação deste sujeito como autoridade centrada no
poder masculino.
Se as políticas identitárias revelam um aprisionamento aos mesmos pressupostos que visam
questionar, ou seja, representar-se através de discursos e práticas a partir da afirmação de um
sujeito “mulher universal”, então deve-se abandonar tais estratégias de contestação, sob o
risco de aferra-se aos entraves que colocariam em xeque sua legitimidade. Já que os debates
se pautariam numa dicotomia entre a importância e o valor em ser homem ou ser mulher.
Nesse sentido, entende-se que as políticas de contestação que visam desconstruir as
desigualdades de gênero não deveriam ter como sustentação políticas de identidade para que
se façam representar. Deve-se colocar sob relevo realidades discriminatórias num exercício
crítico das estruturas sociais contemporâneas que engendram, naturalizam e imobilizam
categorias de identidade ao contrapor tais realidades pela dicotomia natureza versus cultura.
99
No entanto, se, o olhar foucaultiano objetiva revelar que se faz necessário promover novos
processos de subjetivação, mediante a negação do ideal de indivíduo que tem sido proposto
desde da consolidação da modernidade, possibilitando uma outra maneira de significar a
constituição da pessoa humana, enquanto sujeitos conscientes da regência de suas próprias
condutas (FOUCAULT, 1984). A inclusão das questões da dissimetria de gênero à genealogia
foucaultiana tornar-se-ia de fundamental importância e extremamente fecunda. Supõe-se que
tal exercício demonstraria como o ideal de indivíduo está extremamente vinculado e
entrelaçado ao contrato sexual, que pretende naturalizar a superioridade masculina através de
pressupostos de oposições discriminatórias nas relações entre os sexos.
Quando Foucault (1983; 1984), ao invés de propor uma moralidade unitária, propõe uma ética
filosófica que consiste em transformações possíveis no modo como os sujeitos se
reconhecem, deve-se considerar que as relações com a autoridade, as relações entre homens e
mulheres e as formas relacionais na família, impõe que esta nova ética deva imprimir
transformações necessárias às relações entre os sexos reconhecendo suas diferenças, mas,
sobretudo respeitando-as.
Compreende-se que as famílias contemporâneas ainda carregam os entraves gerados pela
dissimetria de poder, que não raro, suscitam efeitos emocionais que debilitam as relações
sociais entre os sexos, possibilitando situações de tensões e conflitos. Isso significa que as
modificações das condições de existência das mulheres nas últimas décadas, em particular o
considerável desenvolvimento de uma contracepção escolhida e controlada; a elevação
significativa da instrução educacional e a progressiva generalização do trabalho assalariado
aumentaram fortemente sua autonomia social em relação aos homens, mas o estilo das
relações entre os sexos, tal como se exprime, por exemplo, no intercâmbio sexual, e o valor
atribuído ao trabalho realizado pela mulher, indica não ter sofrido uma mudança significativa
no que se refere às características fundamentais pertinentes ao contrato sexual.
Bozon (2003), evidencia que a interpretação da assimetria de gênero e das mudanças nas
relações sexuais não pode ser feita sem um exame prévio da maneira pela qual as
representações sociais dominantes vêm dando conta de fatos e mudanças na
contemporaneidade. Discursos, contraditórios, coexistem no que diz respeito às relações entre
homem e mulher, especificamente na família: a sexualidade contemporânea é denunciada
porque indica atender a tirania do prazer e do desejo: “Já não se respeita mais a família em si,
mas enquanto instrumento de realização pessoal das pessoas. Aquilo que antes era uma
100
instituição obrigatória metamorfoseou-se agora em instituição de gênero emotivo e elástico”
(LIPOVETSKY, 2005, p.139). Tal discurso parece basear-se nas relações entre os sexos para
ressaltar a perda contemporânea de valores essenciais para a formação da família,
possivelmente se fundamenta numa defesa da moral sexual e dos valores tradicionais em que
parece haver o predomínio dos mesmos pressupostos que promoveram o contrato sexual,
como se o sexo biológico determinasse a consciência em si mesmo ou o desenvolvimento
posterior em relação aos comportamentos dos sujeitos; dos interesses, estilo de vida, condutas
e características da personalidade.
De acordo com Strey (2009), do ponto de vista afetivo, emocional ou intelectual, tais fatores
seriam determinados pelo processo de socialização e outros aspectos da vida em sociedade
decorrentes da cultura, “que abrange homens e mulheres desde o nascimento e ao longo da
vida, em estreita conexão com as diferenças sexuais, mas de maneira semelhante a todos os
aspectos de diferenciação física, tais diferenças são experienciadas simbolicamente como
gênero” (STREY, 2009, p.180). A construção cultural do gênero é evidente quando se verifica
que ser homem ou ser mulher nem sempre supõe o mesmo em diferentes sociedades ou em
épocas diferentes. As desigualdades de nero precisam ser compreendidas como decorrentes
do modo relacional como são constituídas as relações entre homens e mulheres e as famílias.
Compreende-se, portanto, que a família como lócus de controle e vetor de reprodução de
práticas discriminatórias e excludentes, é fonte de desigualdade de poder entre os sexos, e as
desigualdades de poder na família geram conflitos e tensões.
Para que a família possa representar de forma positiva um lugar de construções afetivas, de
vínculos e recursos, para a aprendizagem dos sujeitos consigo mesmos e para os desafios das
relações interpessoais que constituem (Donatti, 2008; Ferry, 2008), deveriam ser
constantemente questionados os pressupostos que engendraram e reafirmam as relações
desiguais de gênero. Através de relações mais equânimes, homens e mulheres podem atenuar
as tensões e conflitos pertencentes ao constructo família, tornando-a um genuíno lócus de
cuidado. Compreender que as ações de homens e mulheres e de parentesco (pais e mães,
filhos e filhas, irmãos, irmãs, tio, tias, primos, avós, avos) estão vinculadas ao entrelace dos
contratos social e sexual (Pateman, 1993; 2008), e dos dispositivos sociais que regulam as
suas condutas e que também são por eles regulados (Foucault, 1983; 1984), consiste em
possibilitar re-significações das condutas humanas, bem como fazer com que os constructos
científicos incorporados na linguagem das ciências e aqui destacada da ciência psicológica,
e/ou da psicanálise possam melhor dimensionar as determinações dos conflitos familiares e
dos entraves pertinentes a qualquer gênero.
101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O gênero como variante do micropoder familiar interpela o entendimento da maneira como os
sujeitos humanos dão sentido aos fenômenos que os cercam. As concepções sobre as origens
da família que classificam formas de ser do macho e da fêmea, pela ancoragem de hierarquias
valorativas, revelam uma visão de mundo que constrangem os sujeitos inscritos na ordem do
simbólico. Resultam dessas classificações sujeitos marcados em estruturas promotoras de
desigualdades: tida como signo comunicável para os propósitos dos homens, as mulheres,
constituintes da realidade familiar, são tomadas como objeto. E a família, reconhecida como
condição fundamental na constituição do sujeito humano, é constituída sob os pilares de
desigualdades.
Tais desigualdades estão fundamentadas numa ficção política que medeia às relações na
sociedade e na família através da noção de contratos, como se todos os sujeitos realizassem
acordos em comum perante as regras de convivência. Mas a noção de contratos, de liberdade,
notadamente a que evoca a noção de indivíduo, só se torna possível pelo entrelace do contrato
social com o contrato sexual, que consolida a desigualdade entre os sexos. Dessa maneira, o
contrato social e o contrato sexual constituem-se em um só elemento, e podem existir pelo
entrelace das suas prescrições (PATEMAN, 1993). Nesse sentido, a família torna-se um lócus
de controle, “um espaço cercado nos campos de batalha abertos pelo sexo e pelo poder”
(THERBORN, 2006, p.11). A noção de indivíduo que carrega o sentido de liberdade só se faz
possível pela negação da liberdade da mulher, na medida em que a sua conduta está sob o
jugo da autoridade do homem.
A partir da modernidade, cria-se um conjunto de discursos sobre o sexo, codificados em
termos do caráter do desejo sexual, definido pelas noções de masculinidade e feminilidade.
Por tal perspectiva, a sociedade moderna indica ser tributária do entrelace entre o contrato
sexual e o contrato social, favorecendo a criação de um ideal de masculinidade e feminilidade
que indica sobreviver aos tempos contemporâneos. Esse experimento do poder possibilitou
uma concepção de família em que homens e mulheres vivenciam as figuras representativas de
mãe: cuidadora dos filhos e da família; e de pai: autoridade superior da família. A imagem da
esposa mãe acentuou o modelo entre os dois sexos, das atividades e dos sentimentos: o
feminino como mais sensível e frágil e o masculino como racional e forte (BADINTER,
1985).
102
Compreende-se que a aderência de homens e mulheres às características familiares sob a
ordem da dissimetria e desigualdades visou atender a uma visão de mundo sustentada por
prescrições e normatizações de controle, mas também às aspirações e necessidades
psicológicas de tais sujeitos (SENNETT, 1988). Nessa concepção, o surgimento de uma
acentuada hierarquia de poder nas relações entre o homem e a mulher na família moderna,
não foi observada como possível fonte de conflitos e tensões. O modelo familiar dissimétrico,
durante séculos foi aceito de maneira plena e adequada para sustentar o discurso da
necessidade do cuidado familiar. Criou-se uma nova forma de amor maternal que foi
considerada natural. As situações de opressão, exploração e violência na família foram
ignoradas (SAFFIOTI, 2004).
Porém atos e movimentos foram determinantes no processo de contestação de tais situações.
A visão do feminismo pela política de gênero, vinculada às questões de classe, e raça,
possibilitou uma maior compreensão dos modelos sociais de desigualdades exploração e
discriminação. O feminismo abordado sobre a perspectiva do corpo evidenciou que é no
interior do domínio ideológico que as mulheres são concebidas como passivas e femininas, e
os homens como ativos e masculinos. Interpelam-se significativos avanços que se concentram
na análise das diferenças e da alteridade. Com isso, questionam-se os estudos sobre mulheres
e sobre os sexos, centrando-se nas relações de gênero, ou seja, nos aspectos que se opõem aos
homens e as mulheres, e que justificam e hierarquizam essa oposição pelo viés do
naturalismo. Nesse sentido, o uso da categoria gênero possibilitou re-significações sobre as
diferenças entre masculino e feminino, rejeitando o determinismo biológico que classifica o
sentido de ser macho e ser fêmea.
No entanto, o feminismo como movimento de contestação sobre processos de exploração e
discriminação sob a condição das mulheres, ainda se faz objeto de contradições: as políticas
identitárias são fontes de embates e negações, revelando a necessidade de re-estruturação das
políticas que objetivam desconstruir as práticas e discursos de subordinação, exploração e
discriminação nas relações entre os sexos.
Entende-se que não se pode centralizar a discussão das desigualdades de gênero sob o
enfoque da mulher numa posição de vitimização. Mulheres e homens são co-autores das suas
histórias. E os conflitos de gênero nas relações entre os sexos devem ser reconhecidos muito
menos como de ordem da “identidade da mulher” ou da “identidade do homem”, mas,
sobretudo de ordem familiar. Questões de gênero são indissociáveis da noção de família, de
constituição familiar ou das formas relacionais de convivência familiar entre homem e
mulher, pais, filhos e filhas. Pode-se supor que de maneira assertiva, as políticas deveriam
103
muito menos centrar-se em posições identitárias, mas, sobretudo, em políticas que abordem às
relações entre os sujeitos, principalmente às relações familiares
A mulher numa posição de desigualdade, passível de sofrer discriminação, violência e
exploração, revela a estrutura desigual e conflituosa em que possivelmente estão sustentadas
as ordenações familiares a que pertence. As diferenças entre homens e mulheres não podem
ser utilizadas como vetor para a prescrição de condutas que constrangem e penalizem
qualquer gênero. Em concordância com Santos (2004) “as pessoas e os grupos sociais têm o
direito a serem iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a
igualdade os descaracteriza” (SANTOS, 2004.p.86).
Ressalta-se que mudanças que neutralizem estereótipos sexistas, ainda se fazem urgentes. Na
contemporaneidade o corpo da mulher ainda é considerado como o símbolo para o estatuto
social que lhe foi apresentado, comparando-se com oposições tradicionais entre o interior e o
exterior, a sensibilidade e a razão, a passividade e a atividade (GROSZ, 1994). O cuidado dos
filhos pela mulher ainda é o padrão dominante (BADINTER, 1985; 1986; NEGREIROS E
FÉRES-CARNEIRO, 2004; POSTER, 1979). O casamento ainda é pensado como um ideal
em que os casais são livres e fazem suas escolhas sob seu completo domínio. De maneira
que, as famílias contemporâneas ainda carregam os entraves intensificados na sociedade civil
moderna e na família burguesa no que tange a dissimetria de poder nas relações entre os
gêneros.
Os efeitos das relações desiguais produzem uma dinâmica de sujeições, em cobranças sociais
que penalizam emocionalmente homens e mulheres ao enquadrarem-se em estereótipos de
gênero ou para rompê-los. As relações desiguais de poder desagrega “a família” ao constituir
padrões hierárquicos de condutas e legitimar relações de dominação e exploração como
naturalmente pertencentes aos processos de convivência.
Entende-se que a família como lócus de controle suscita conflitos e tensões entre os sujeitos
que movidos pelos afetos e desejos perdem-se na trama das desigualdades possibilitando
situações de violência.
Na sociedade contemporânea os sujeitos sentem interesse por outros a partir de parâmetros de
masculinidade e feminilidade vinculados aos padrões de condutas estabelecidos pelo entrelace
entre o contrato social e contrato sexual que orienta os indivíduos acerca das suas condutas
sociais e sexuais pelo viés dos estereótipos de gênero. Nesse sentido, as relações entre homens
e mulheres são pautadas em uma hierarquização em que tais sujeitos agem de acordo com as
representações oriundas de tal dissimetria. As representações constituem-se em valores
interiorizados pela noção de masculinidade e feminilidade, sem uma consciência permanente
104
dessas representações. Porém, todas essas dimensões interiorizadas pelos indivíduos
desempenham um papel relevante na maneira que cada um vive ou exerce sua individualidade
bem como na sua biografia sexual, orientada pelos roteiros sexuais.
A teoria psicanalítica que tem como objeto de estudo o psiquismo humano, termina por negar
o poder simbólico que contém e legitima a rígida categorização de homens e mulheres em
estereotipias de gênero (STREY, 2009). Favorecendo dessa forma, a manutenção do padrão
masculino como referência de universalidade: o complexo de Édipo da teoria freudiana
reforça a visão de mundo que engendra tais desigualdades e pode ser interpretado como
resultante de relações dissimétricas de poder pertinente a estruturas familiares centradas na
dissimetria entre os sexos. A ambivalência emocional dos filhos frente às condutas dos pais,
em destaque a desqualificação da mulher por não ter o falo representante simbólico do
poder masculino revela as prescrições e proibições de uma ordenação familiar constituída em
pilares de desigualdades.
Numa perspectiva contrária a psicologia social-histórica, objetiva estabelecer elos conceituais
com as ciências sociais, pensando os sujeitos humanos como constituídos por sua história e
pelos fenômenos sociais, econômicos, políticos e culturais. Mas tal objetivo só se faz possível
através de um comprometimento interdisciplinar de produção do saber e do conhecimento,
incluindo as questões de gênero e favorecendo a superação dos pressupostos universalistas da
ciência psicológica.
Através desse estudo pode-se compreender que as relações familiares possuem realidades tão
complexas quanto às relacionadas aos gêneros em suas desigualdades. Faz-se necessário um
maior aprofundamento com enfoque relacional entre os sexos, abarcando os estudos sobre as
estruturas familiares dissimétricas e as condutas dos “homens”, bem como desenvolver
estudos que possibilitem um maior aprofundamento acerca do constructo ‘famílias’ com
enfoque acentuado sobre as diferentes configurações que se fazem presentes na
contemporaneidade, suplantando as discussões sobre gênero, mas, sobretudo, buscando uma
compreensão acerca das implicações do entrelace entre o contrato sexual e o contrato social
nas relações familiares.
Compreende-se que, ainda, se faz necessário uma abordagem crítica do conhecimento e
produção de ciência no sentido de melhor compreender as relações que os sujeitos humanos
constroem entre si, como aqueles desenhados como fenômenos sociais e familiares. As
relações entre os sujeitos, tal como os modelos familiares com características relacionais de
hierarquização entre os sexos devem ser elementos preceptores da re-elaboração de saberes. A
ciência psicológica, em destaque a teoria psicanalítica imprime-se o desafio de considerar os
105
saberes constituídos sob diversas relações de poder, desconstruindo os efeitos de verdade que
aprisionam os sujeitos em estereótipos relacionais marcados por desigualdades.
Os constructos teóricos que referem sobre o psiquismo humano devem considerar os
elementos históricos, sociais, políticos e culturais que o constitui. Os conflitos relacionais
entre homens e mulheres são advindos da complexidade dos comportamentos humanos
analisados sob as ordenações de ações e condutas coletivas e individuais conjuntamente,
vinculadas aos fatores psicológicos, históricos, políticos e sociais em que estão inseridos. Isso
significa que a ciência psicológica ao constituir as noções e teorizações, sobre a concepção
dos sujeitos humanos deve evidenciar a sua produção histórica e social.
106
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