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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS
UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
NÍVEL DOUTORADO
ANA ELISETE MOTTER
REPRESENTAÇÕES DA IDENTIDADE DO TOCANTINS NA LITERATURA E NA
IMPRENSA (1989-2002)
SÃO LEOPOLDO
2010
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ANA ELISETE MOTTER
REPRESENTAÇÕES DA IDENTIDADE DO TOCANTINS NA LITERATURA E NA
IMPRENSA (1989-2002)
Tese apresentada como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutor em
História, pelo de Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos.
Área de concentração: História.
Orientadora: Profª Drª Heloísa Jochims Reichel
SÃO LEOPOLDO
2010
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Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184
M922r Motter, Ana Elisete
Representações da identidade do Tocantins na literatura e na
imprensa (1989-2002) / por Ana Elisete Motter. -- 2010.
157 f. ; 30 cm.
Tese (doutorado) -- Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
Programa de Pós-Graduação em História, São Leopoldo, RS,
2010.
“Orientação: Profª. Drª. Heloisa Jochims Reichel, Ciências
Humanas”.
1. História - Tocantins. 2. Construção - Identidade. 3.
Discurso literário - Identidade. I. Título.
CDU 981.17
AGRADECIMENTOS
Muitos, de uma forma ou de outra, me auxiliaram nessa jornada e lembrar
todos não é tarefa fácil, por isso, desde já, peço desculpas caso esqueça de alguém.
Sem dúvida, a pessoa a quem mais devo agradecer por ter desenvolvido esse
trabalho, é minha orientadora Prof. Dra. Heloísa Jochims Reichel, que sempre leu
meus escritos, fez bias sugestões e me auxiliou a refletir sobre o tema estudado.
Professora, muito obrigada, a sua orientação foi um porto seguro!
Agradeço, também, ao corpo docente do Programa de s Graduação em
História, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, pela acolhida e
possibilidade de aprendizado. Em especial, gostaria de agradecer à Prof. Dra. Eliane
Cristina Deckmann Fleck e à Professora Dra. Eloísa Helena C. da Luz Ramos, que,
participando como membros, da banca do exame de Qualificação, através de
sugestões e reflexões, em muito contribuíram para os resultados desse trabalho.
Devo agradecer à instituição para qual trabalho, a Universidade Federal do
Tocantins UFT, que possibilitou um afastamento, de um ano e meio, das minhas
atividades para doutoramento e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – CAPES, pela bolsa a mim concedida.
Agradeço ao Colegiado, do Curso de História, do Campus de Araguaína-
UFT, do qual faço parte. Muita compreensão eu tive dos meus colegas que, nesses
dois últimos anos, me “pouparamde muitas tarefas e trabalhos no Curso para que
eu pudesse concluir essa tese. Obrigada ao Coordenador, Prof. Dr. Vasni de
Almeida, obrigada a todos vocês, meus colegas!
Agradeço aos meus alunos, principalmente aqueles que têm vontade de
aprender, pesquisar e produzir conhecimento histórico. Desses tive e tenho muitos,
dois deles por terem pesquisado, sob minha orientação, questões referentes ao
tema desse trabalho devem ter deferência: Jarbas da Silva Mendonça e Lucialine
Duarte da Silva, bolsistas PIBIC, de 2001 e 2005. Muito obrigada a vocês dois,
nossas reflexões estão presentes, nesse resultado da pesquisa que agora
apresento.
Tenho que agradecer, também, aos meus amigos queridos, importantes e
imprescindíveis para tudo, também para que eu concluísse esse trabalho. Obrigada
Daniel, Elida, Gislaine, Jean, Lia, Maria Clara, Mariseti e Martha.
Por fim, agradeço aos meus pais, que mesmo distantes geograficamente,
estão sempre comigo.
RESUMO
O Tocantins, antiga região norte do estado de Goiás, teve sua instituição político-
administrativa como estado da federação brasileira, em 1989. Esse trabalho estuda
facetas do processo de construção da identidade, desse novo Estado, nos primeiros
quatorze anos da sua existência. E, para tanto, analisa a forma como discursos da
imprensa e da literatura representam o novo Estado e os sujeitos tocantinenses, no
período em foco. Isso, por considerarmos que essas representações relativas ao
Tocantins, veiculadas nos referidos discursos, têm potencial para construir um
sentimento identitário tocantinense e, também, para perpassar esse mesmo
sentimento. A delimitação temporal de nossa pesquisa deve-se ao fato de que, na
mesma, José Wilson Siqueira Campos, autor do projeto que criou o Estado do
Tocantins e político considerado, nos discursos emitidos na época, como criador do
Estado, foi chefe do executivo tocantinense por três mandatos. Assim, concebemos
esse período - que corresponde à instituição e parte da consolidação do Estado-
privilegiado para o estudo do processo identitário tocantinense, pois é um momento
simbólico, fundador do Tocantins.
Palavras-Chave: Tocantins. Identidade. Discurso.
ABSTRACT
Formerly known as the northern region of the state of Goiás, Tocantins was instituted
as a state of the Brazilian Federation in 1989. This study focuses on the various
aspects of identity-building in this new state during the first fourteen years of its
existence. To that end, it analyses how the discourse of the press and literature
represent not only the new state but also Tocantins subjects and individuals over that
period, since such representations, disseminated through the afore-mentioned
discourses, have the potential not only to build a sentiment of local identity, but also
permeate this very sentiment. The time frame of our research arose from the fact that
José Wilson Siqueira Campos, the author of the bill of law that created the state of
Tocantins and a politician regarded as being the creator of the state, was its governor
for three terms. Therefore that period -- spanning the creation as well as part of the
consolidation of the state of Tocantins is considered favourable to the study of the
local identity-building process, because it is a symbolic, founding moment for the
state.
Keywords: Tocantins. Identity. Discourse.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................7
2 TOCANTINS: CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS..................................................20
2.1 Aspectos econômicos e sociais do antigo Norte goiano..............................20
2.2 O processo de autonomia ................................................................................28
2.3 Tocantins: a construção de um passado........................................................37
2.4 Aspectos da conjuntura histórica (1989-2002)...............................................41
2.5 Siqueira Campos e suas posturas (1989-2002) ..............................................48
3 O
TOCANTINS EM UM DISCURSO LITERÁRIO.................................................53
3.1 Categorias identitárias tocantinenses.............................................................55
3.1.1 O sertão............................................................................................................55
3.1.2 Crendices e crenças.........................................................................................64
3.1.3 Subserviência, apadrinhamento, assistencialismo...........................................70
3.1.4 A mulher em papel subalterno..........................................................................74
3.1.5 Preconceito étnico............................................................................................80
3.2 Memória..............................................................................................................81
4 O TOCANTINS EM UM DISCURSO DA IMPRENSA............................................99
4.1 O jornal e seus posicionamentos políticos...................................................100
4.2 Categorias identitárias tocantinenses...........................................................105
4.2.1 Memória da autonomia...................................................................................106
4.2.2 A modernidade...............................................................................................116
4.2.3 Um líder e um povo........................................................................................132
4.2.4 Estado ecológico............................................................................................141
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................144
REFERÊNCIAS.......................................................................................................151
7
1 INTRODUÇÃO
O Tocantins, antiga região Norte do estado de Goiás, teve sua instituição
político-administrativa como estado da federação brasileira em 1989. Este trabalho
possui o objetivo de estudar facetas do processo de construção da identidade desse
novo Estado, nos primeiros quatorze anos da sua existência. Para isso, analisa a
forma como discursos
1
da imprensa e da literatura representam o novo estado e os
sujeitos tocantinenses no período em foco. Como será explicitado a seguir, no nosso
entendimento essas representações relativas ao Tocantins, veiculadas nos referidos
discursos, têm potencial para construir um sentimento identitário tocantinense e,
também, para perpassar esse mesmo sentimento.
Considerando-se o objetivo geral, faz-se necessário precisar os aportes
teóricos e metodológicos que embasam nosso trabalho no que diz respeito à
construção dos processos identitários, encontrados principalmente nas obras de
Bourdieu (1989), Stuart Hall (2000 a e 2000b) e Cuche (2002).
Bourdieu (1989) percebe a formação de um processo identitário no interior da
representação
2
, a qual é vista como um mecanismo que constrói o real.
se pode compreender essa forma particular de luta das classificações
que é a luta pela definição da identidade [...] com a condição de se passar
para além da oposição que a ciência deve primeiro operar, para romper com
as pré-noções da sociologia espontânea, entre a representação e a
realidade, e com a condição de se incluir no real a representação do real ou,
mais exatamente, a luta das representações, no sentido de imagens
mentais e também de manifestações sociais destinadas a manipular as
imagens mentais (BOURDIEU,1989, p. 113).
1 Nesse momento inicial da Introdução, cabe esclarecer que entendemos discurso não como uma
realidade semântica, mas como uma lógica que atua no interior da sociedade e que busca
construir significados, interpelar e construir sujeitos. Ver mais em: PINTO, Céli Regina. Com a
Palavra o Sr. Presidente JoSarney ou como entender os meandros da linguagem do poder. São
Paulo: Hucitec, 1989. Mais adiante, nessa Introdução, nos deteremos sobre o uso dado ao conceito
na tese.
2 Na nossa concepção, representação é uma dimensão que compõe o real, é uma formadora de
entendimento do social e, através da mesma, é possível compreender como, dentro de uma
sociedade, se constitui diferentes leituras do mundo e como essa representa e incorpora
socialmente os diferentes grupos, legitimando a ordem social existente ou transformando-a. São as
representações que cada sociedade, ou grupo social, cria para identificar a si e ao mundo material,
que dão unidade a uma coletividade, formando, assim, as ligações simbólicas, dos grupos
identitários. Os discursos, as imagens, os símbolos, os estereótipos o algumas das formas como
se expressam as representações que, por sua vez, não estão desvinculadas de práticas sociais e
do contexto em vivem os sujeitos históricos. Ver sobre o tema: CHARTIER, Roger. A história
cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
8
Esse autor acredita que o ato de criação das divisões do mundo social e de
fazer e desfazer grupos se dão através das lutas de classificações: “Lutas pelo
monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de
impor a definição legítima das divisões do mundo social.”(BOURDIEU, 1989, p. 113).
Para Bourdieu (1989), as divisões, as fronteiras entre os grupos são criadas por
quem tem alguma autoridade.
é um ato religioso realizado pela personagem investida da mais alta
autoridade, o rex, encarregado de regere sacra, de fixar as regras que
trazem a existência aquilo por elas prescrito, de falar com autoridade, de
pré-dizer no sentido de chamar ao ser, por um dizer executório, o que se
diz, de fazer sobrevir o porvir enunciado. (BOURDIEU, 1989, p. 114)
Portanto, conforme o autor, é a autoridade que nomeia, categoriza e classifica
os grupos de certa maneira e não de outra. Essa autoridade, por meio do poder que
lhe é conferido, emite um discurso permeado de representações que constroem a
identidade do grupo. Contudo, para que essas categorizações sejam autorizadas e
reconhecidas pelo grupo, elas precisam se pautar em certa objetividade.
Mas o efeito de conhecimento que o fato da objetivação no discurso exerce
não depende apenas do reconhecimento consentido àquele que o detém;
ele depende também do grau em que o discurso, que enuncia ao grupo a
sua identidade, esta fundamentado na objetividade do grupo a que se dirige,
isto é, no reconhecimento e na crença que lhe concedem os membros deste
grupo assim como nas propriedades econômicas ou culturais que eles têm
em comum, [...]. O poder sobre o grupo que se trata de trazer à existência
enquanto grupo é, a um tempo, um poder de fazer o grupo impondo-lhe
princípios de visão e de divisão comuns, portanto, uma visão única da sua
identidade e uma idêntica da sua unidade (BOURDIEU, 1989, p. 117)
Mais recentemente, Stuart Hall (2000a) alertou para o fato de o conceito
identidade ter sofrido uma severa crítica pelas mais variadas disciplinas, em
função da propagada ideia de uma identidade integral, originária e unificada.
Conforme esse autor, a teoria da pós-modernidade invoca a existência de um eu
inevitavelmente performativo. Para Hall (2000a), a identidade é um conceito que
opera sob rasura. O autor define os conceitos sob rasura da seguinte forma:
9
O sinal de rasura (x) indica que eles não servem mais não o mais ‘bons
para pensar’- em sua forma original, não reconstruída. Mas uma vez que
eles não foram dialeticamente superados e que não existem outros
conceitos, inteiramente diferentes, que possam substituí-los, não existe
nada a fazer senão continuar a se pensar com eles embora agora em suas
formas destotalizadas e desconstruídas, não se trabalhando mais no
paradigma no qual eles foram originalmente gerados (HALL, 2000a, p. 104).
Segundo esse autor, questões que, para serem pensadas, necessitam do
conceito de identidade. Por isso, apesar de esse conceito ser problemático,
estudiosos e cientistas sociais m que lançar mão do mesmo para refletir sobre a
realidade. Porém, o referido autor alerta que esse conceito é por ele concebido
através do viés discursivo, relacional e posicional. As identidades, para Hall (2000a),
não são nunca unificadas, sendo, na modernidade tardia, cada vez mais
fragmentadas e fraturadas, nunca singulares, mas multiplamente construídas ao
longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas.
Conforme o autor: “As identidades são, pois, pontos de apego temporário às
posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós.” (HALL, 2000a,
p. 112).
Cuche (2002), ao abordar os princípios teóricos que sustentam as pesquisas
sobre os processos de construção de identidades, afirma que existem três
posicionamentos entre os pesquisadores: o objetivista, o subjetivista e o relacional.
O posicionamento objetivista que, desde a década de 70, está praticamente
superado - é aquele em que os pesquisadores fazem uma lista dos atributos
culturais que devem servir de base à identidade, procurando determinar as
invariantes culturais que permitem definir a essência do grupo, ou seja, sua
identidade essencial. O posicionamento subjetivista é aquele que parte do princípio
de que uma vinculação identitária nada mais é do que uma identificação imaginária,
e o que importa, nesse estudo, são as representações que os indivíduos fazem da
realidade social e de suas divisões.
3
Por fim, há a concepção relacional e situacional
3
Esse autor alerta que, apesar do posicionamento subjetivista ter o mérito de ter rompido com a idéia
de identidade essencial, o mesmo pode: [...] [levar] a redução da identidade a uma questão de
escolha individual arbitrária, em que cada um seria livre para escolher suas identificações. Em
última instância, segundo este ponto de vista, tal identidade particular poderia ser analisada com
uma elaboração puramente fantasiosa, nascida da imaginação de alguns ideólogos que manipulam
as massas crédulas, buscando objetivos nem sempre confessáveis. A abordagem subjetivista tem
o mérito de considerar o caráter variável de identidade, apesar de ter a tendência a enfatizar
excessivamente o aspecto efêmero da identidade. Não é raro, no entanto, que as identidades
sejam relativamente estáveis” (CUCHE, 2002, p. 181).
10
referente à identidade; nessa concepção, são levadas em consideração questões
que dizem respeito aos motivos pelos quais, em determinado contexto e momento,
uma identidade é afirmada ou, ao contrário, reprimida. O mesmo autor lembra o
seguinte:
Se a identidade é uma construção social e não um dado, se ela é do âmbito
da representação, isto não significa que ela seja uma ilusão que dependeria
da subjetividade dos agentes sociais. A construção da identidade se faz no
interior de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por
isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas.Além disso, a
construção da identidade não é uma ilusão, pois é dotada de eficácia social,
produzindo efeitos sociais reais. (CUCHE, 2002, p.182)
Conforme referido, as reflexões desses três autores - Bourdieu (1989),
Hall (2000a) e (2000b) e Cuche (2002) - sobre os processos identitários
referendam a nossa concepção sobre a construção de uma identidade. Afinal,
como sugerem os três autores acima citados, partimos do pressuposto de que as
identidades são construídas no âmbito das representações, e, essas, como afirma
Bourdieu (1989), nada têm de ilusórias, porque a representação do real contribui
para a construção do real. Ainda conforme Bourdieu (1989), a realidade _ ou o
chamado real - nada mais é do que “uma luta permanente [de enunciados] para
definir a realidade” (BOURDIEU, 1989, p. 118). Além disso, assim como Hall
(2000a), nos baseamos na ideia de que apesar de o conceito de identidade ser
problemático por evocar totalizações e essencialismos, o mesmo é imprescindível
para a reflexão sobre determinadas questões. Porém, assim como esse autor,
rompemos com o paradigma essencialista ligado a esse conceito, pois
entendemos as identidades como processos em eterna construção, sempre
abertos e relativos a situações delimitadas. É importante destacarmos, ainda, que,
como Cuche (2002), acreditamos que os processos identitários são relacionais e
posicionais, pois as representações selecionadas para demarcar uma fronteira
identitária partem de um contexto histórico delimitado e preciso.
A delimitação temporal – os anos de 1989-2002 corresponde ao período em
que José Wilson Siqueira Campos, autor do projeto que criou o estado do Tocantins
e político considerado, nos discursos emitidos na época, uma espécie de mito
11
fundador do estado, foi chefe do Executivo tocantinense por três mandatos
4
. Esse
longo período de governo, na nossa concepção, acabou por potencializar a
veiculação de um arsenal de representações positivas referentes ao Tocantins e ao
governo do político mencionado, moldando um sentimento identitário tocantinense.
Consideramos, também, que esse período é privilegiado no sentido analítico, por ser
um momento simbólico, que corresponde à fundação do Tocantins e à parte de sua
consolidação.
Sabemos que os processos identitários estão em um eterno processo de
construção, e detectar de que forma discursos da imprensa e da literatura
caracterizam o Tocantins e os seus sujeitos no momento de sua instituição e
consolidação é, a nosso ver, estudar o tema num momento fundamental e histórico,
carregado de significados que, acreditamos, potencializam a veiculação de imagens
do Tocantins e dos tocantinenses que tendem a ser marcantes no imaginário
5
de
esferas da população em foco.
Poucos estudos fazem menção à construção da identidade tocantinense. Um
deles é a dissertação de mestrado de Ribeiro (2001), na qual o autor analisa vários
discursos produzidos no momento da instituição e da autonomia do estado,
principalmente os emitidos na década de 1980, a fim de detectar como a instituição
do Tocantins foi legitimada. Dentre os discursos analisados pelo autor estão os da
historiografia tocantinense e goiana, os da Comissão de Estudos dos Problemas do
Norte Goiano- CONORTE, criada no início da cada de 1980, e os da Assembleia
Nacional Constituinte, instituição que concretizou a autonomia do Tocantins.
Apesar de o tema identidade perpassar todo o trabalho do citado autor, o
mesmo é abordado de forma específica no último capítulo. Por meio de fontes
4
José Wilson Siqueira Campos foi governador do Estado por três mandatos: de 1989 a 1990, de
1994 a 1998 e de 1999 a 2002. Antes disso, destacou-se no processo de autonomia da antiga
região norte de Goiás. Em 1983, foi autor de um projeto, apresentado na Câmara dos Deputados,
que previa a separação de Goiás e a criação do Estado do Tocantins. Esse projeto foi aprovado
pelo Congresso Nacional, em 1985, mas vetado pelo Presidente da República. Quatro meses após,
foi reapresentado pelo Senador goiano, Benedito Ferreira e, apesar de aprovado por parte da
Câmara e do Senado foi, mais uma vez, vetado pelo Presidente da República. O veto do então
Presidente, José Sarney, provocou protestos e, dentre esses, o que mais se destacou, foi a greve
de fome, realizada por Siqueira Campos e Totó Cavalcante. Em 1987, Siqueira Campos,
participando da Assembléia Nacional Constituinte, propôs a separação do antigo norte de Goiás e
a criação do Estado do Tocantins, o que foi aprovado para a nova constituição pela Casa. Ver
sobre o assunto: CAVALCANTE, Maria do Espírito Santo Rosa. O Movimento Separatista do Norte
de Goiás (1821-1988). Goiânia: Dissertação de Mestrado da UFG, 1990.
5
“[Imaginação ou imaginário] trata-se da orientação da atividade imaginativa em direção ao social, isto
é, a produção de representações da ‘ordem social’ dos atores sociais e das suas relações
recíprocas [...], bem como das instituições sociais, em particular as que dizem respeito ao exercício
do poder, às imagens do chefe, etc .” (BACZKO, 1985, p.309)
12
como materiais didáticos confeccionados para alunos do ensino fundamental e
compêndios produzidos pelo Patrimônio Histórico do Estado e pela Secretaria de
Cultura, o autor chega à conclusão de que a identidade tocantinense é construída
nos moldes das identidades nacionais. É uma identidade pautada na construção
de mitos fundadores, hino, bandeira e outros mbolos também utilizados pelos
Estados-nação nas suas construções identitárias.
Outro estudo que aborda aspectos relacionados ao processo identitário
tocantinense é o de Firmino (2003). Esse autor, nos primeiros capítulos do seu
trabalho, analisa fontes de vários matizes, como a historiografia, pronunciamentos
de políticos, imprensa e publicações oficiais do estado a fim de abordar o
processo de autonomia, bem como os primeiros anos da instituição do estado do
Tocantins. Nesses capítulos, o citado autor direciona a análise da documentação
ao desvendamento de lógicas inerentes ao processo de instituição e consolidação
do estado, as quais foram, muitas vezes, segundo sua visão, silenciadas pelo
que ele chama de discurso oficial tocantinense. Segundo ele, que parte de uma
concepção marxista da história, a construção de uma identidade tocantinense
pelo discurso oficial é uma tática que compõe a inversão da realidade, promovida
pelo aparato ideológico hegemônico da sociedade em questão. nos dois
últimos capítulos o autor investiga o ensino de História, nas séries iniciais, na
cidade de Araguaína–TO e indica os mecanismos que são utilizados pelos
materiais didáticos e pelas práticas dos educadores para forjar e construir uma
identidade tocantinense junto aos educandos.
Detectamos, no trabalho de Firmino (2003), uma busca incessante pela
verdade. uma tentativa constante de revelar o que os discursos referentes à
autonomia do Tocantins, bem como aqueles que remetem aos governos de
Siqueira Campos, encobriam para ludibriar seus receptores. Portanto, o autor,
apesar de conceber as identidades como processos que se dão no âmbito das
representações, não essas mesmas representações como fazendo parte da
realidade, mas sim como reflexos, muitas vezes invertidos, dessa realidade.
Convém destacar, entretanto, que o tema da construção da identidade
tocantinense não é o objeto central das suas investigações, que remontam,
prioritariamente, para as práticas do processo de ensino-aprendizagem na
disciplina de História, no ensino fundamental.
13
A análise dos discursos veiculados pela literatura e pela imprensa, no
período em foco, instituições que, na nossa concepção, têm um papel
fundamental na construção de sentimentos identitários, ainda não foi feita. E, a
partir do embasamento teórico-metodológico utilizado, a presente investigação se
assenta no estudo de facetas de um processo identitário
6
, as quais indicam a
lógica social e política que norteou, nos referidos discursos das instituições aqui
enfocadas, a veiculação de certas representações do Tocantins em detrimento de
outras, o que equivale a conhecer os interesses e as visões de mundo de
diferentes grupos e como eles tentaram impor sua visão e seus interesses aos
demais grupos.
Em relação à literatura, analisamos a obra do escritor José Liberato Costa
Póvoa. A escolha da obra literária desse autor
7
deu-se em função de o mesmo ser
do Tocantins, retratar a sociedade tocantinense em seus livros e ter publicado a
maioria de seus escritos na cronologia em que se efetivou a autonomia e a
consolidação do novo estado;
8
portanto, em um momento em que houve, por parte
dos vários discursos que permeavam a sociedade em questão, a afirmação de uma
identidade tocantinense.
Na nossa concepção, a importância da literatura para o estudo dos
processos identitários se assenta no fato de que a mesma pode revelar indícios,
traços desse processo e, também, contribuir para a consubstanciação do mesmo.
Ela revela indícios, na medida em que todo discurso deixa tranparecer um
imaginário, e esse, traz consigo a forma como uma comunidade se
autopercepciona, pois, como afirma Baczko (1985):
6
A nosso ver, o estudo dos processos identitários elucida, em seus meandros, questões relativas às
relações sociais, ao imaginário, aos conflitos e às resistências culturais e sociais de grupos
humanos. Ver mais em: BRANDÃO, Carlos Rodrigues, Identidade e etnia. Construção da pessoa e
resistência cultural. São Paulo: Brasiliense, 1986; NAVARRO, Raul Bejar y CAPPELO, Hector
Manuel (Org.). Bases teóricas y metodológicas em el estúdio de la identidad y el caráter
nacionales. México. UNAM, 1990; OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura
social. São Paulo: Livraria Pioneira, 1976 e THOMPSON E. P. Costumes em comum. Estudos
sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia da Letras, 2008.
7
José Liberato Costa voa é tocantinense de Dianópolis, nascido em 12/04/1944. É Bacharel em
Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), exerceu e exerce várias funções no
Poder Judiciário do Estado do Tocantins, atualmente é Desembargador do Tribunal de Justiça do
Estado. Além de dedicar-se a carreira jurídica, dedicou-se também a carreira literária tendo
publicado vários livros de crônicas, contos e romances que retratam a sociedade tocantinense.
8
Dentre. as obras do autor destacamos: De Goela a Pé-de-Janta - os Causos que o Duro Conta
(crônicas) (1989); Contos Tocantinenses (contos) (1994); Mandinga (romance) (1998); Conversa de
Compadres (crônicas) (2001); Um Causo Puxa Outro (crônicas) (2001).
14
É assim que, através dos seus imaginários sociais, uma coletividade
designa a sua identidade; elabora uma certa representação de si;
estabelece a distribuição dos papéis e das posições sociais; exprime e
impõe crenças comuns; constrói uma espécie de código de ‘bom
comportamento’, designadamente através da instalação de modelos
formadores tais como o do ‘chefe’, ‘o bom súdito’, ‘o guerreiro corajoso’, etc.
(BACZKO, 1985, p. 309).
Ela colabora para a construção de uma identidade, pela própria peculiaridade
da escrita literária, que, apesar de não ter compromisso com o factível, tem que ser
ancorada em uma perspectiva do real. Ela é, segundo Fernandes (1999), uma
mímesis que, além de imitar a realidade, recria e institui novas facetas desta.
Os literatos, quando transformam os dados obtidos em seu contato com o
mundo real para o universo estético da criação artística, não estão apenas
'imitando' a realidade objetiva, estão (re)criando-a, no contexto do traduzir
as relações de semelhanças a partir das possibilidades miméticas
(FERNANDES, 1999, p. 24).
Sendo assim, o literato, ao imitar a realidade, cria um dado novo dessa
mesma realidade. E essa criação, por ser repleta de representações, além de
revelar um sentimento identitário, contribui para a consubstanciação de novas
categorizações que compõem esse mesmo sentimento.
No que se refere ao emissor do discurso por nós analisado, é importante,
ainda, salientarmos que o concebemos como um porta-voz da comunidade em
análise, o qual é entendido nos termos propostos por Bourdieu (1996), para quem o
literato, é um agente apto a falar pelo grupo, por deter capital simbólico que lhe
confere um mandato,do qual ele é, por assim dizer, um procurador.
Em relação à imprensa, nossa investigação se assenta no Jornal do
Tocantins, periódico integrante da Organização Jaime Câmera, afiliada das
Organizações Globo em Goiás e no Tocantins. A opção por esse periódico deve-se
à sua abrangência e ao seu poder de atuação no estado, pois se trata do jornal com
maior circulação no Tocantins.
No que diz respeito à importância da imprensa para a construção e o estudo
de um processo identitário, ressaltamos que entendemos essa instituição, que visa a
formar opinião e ter uma ampla abrangência na sociedade, como um espaço social
que interfere e contribui para a forma como grupos se percebem. Além disso, o
15
discurso jornalístico também revela um imaginário social, e esse, como afirmado
em relação à literatura, uma identidade.
Deve-se considerar, também, que a imprensa escrita, como ressalta Enne
(1999), desde meados do século XX, possui conotação de objetividade e verdade.
Essa mesma autora afirma o seguinte em relação à mídia impressa contemporânea:
A objetividade, conjugada aos ideais da imparcialidade e da neutralidade
valorativa, passou a ser exigência para a prática de um jornalismo
‘verdadeiro’ e profissional. A própria concepção de fato e notícia são vitais
nesse sentido. O fato seria o que empiricamente e não valorativamente
seria apreendido da realidade. O jornalismo, sem dúvida, passou a ser
encarado como uma apropriação exata do real, exatamente por seu
compromisso com a ‘verdade’. A idéia de que estaríamos lidando com uma
versão, um discurso construído sobre um real a ser apropriado, foi
praticamente ignorada (ENNE, 1999, p. 112).
A autora afirma que cabe ao jornalista, também, a tarefa de seleção do que
deve ou não ser noticiado e que o jornalismo é um formador de opinião, um
cristalizador de versões acerca do real.
A ideia de “verdade objetiva”, presente no discurso jornalístico, atribui ao
mesmo um caráter de credibilidade junto aos seus receptores, e isso, no nosso
entendimento, confere a esse discurso um papel importantíssimo na configuração e
na construção de uma identidade. Afinal, ao nomear, categorizar, dizer, construir e
interpelar sujeitos sociais, cotidianamente, esse discurso possui a capacidade de
persuadir seus receptores, que, por considerarem-no verdadeiro e real, tendem a
assumir uma posição de sujeitos desse mesmo discurso.
Ainda sobre os embasamentos teóricos por nós adotados, devemos fazer
algumas considerações sobre questões relativas ao conceito de discurso que norteia
nosso trabalho. Não nos propusemos a fazer uma análise do discurso da imprensa
escrita e da literatura, no sentido lingüístico do termo. Contudo, alguns conceitos
dessa teoria são por nós utilizados como ferramentas para análise de nossas fontes.
Dentre eles, destacamos a própria definição de “discurso” e de “formação
discursiva.” Partindo do estudo de obras de autores da área
9
, entendemos discurso
não como uma realidade semântica, mas, conforme explicita Pinto (1989), como
9
MAINGUENAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes Editores,
1989; ORLANDI, Eni Pucinelli. Discurso e Leitura. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996 a;
ORLANDI, Eni Pucinelli. Interpretação. Petrópolis: Vozes, 1996 b e PINTO,1989. op.cit.
16
uma lógica que circula no interior de uma sociedade e tenta interpelar e construir
sujeitos. Seguindo Orlandi (1996a), concebemos discurso não como um conjunto de
textos, mas como a regularidade de uma prática, o espaço de regularidades
enunciativas. Além disso, conforme essa mesma autora, acreditamos que o discurso
não possui a função de constituir “a ‘representação’ fiel de uma realidade, mas
assegurar a permanência de uma certa representação” (ORLANDI, 1996 a, p. 55).
Apesar de o conceito de discurso ter surgido no âmbito da lingüística, o
mesmo é entendido, pelos autores acima citados, com um viés essencialmente
histórico e social. Ele vem a ser a junção do social com a linguagem, pois um
discurso, para ser autorizado e reconhecido, precisa fazer sentido, e esse sentido é
construído social e historicamente.
Baseando-nos nessa concepção de discurso, nossa investigação se assenta
nas regularidades em que certas representações, categorizações relativas ao
Tocantins e ao sujeito tocantinense o veiculadas nos enunciados dos discursos
em pauta. Além disso, focalizamos, em nossa análise, a forma como essas
representações são autorizadas e legitimadas, ou seja:
Os sentidos não nascem [...] são criados. São construídos em confrontos de
relações que o sócio-historicamente fundadas e permeadas pelas
relações de poder com seus jogos imaginários. Tudo isso tendo como pano
de fundo e ponto de chegada, quase que inevitavelmente, as instituições.
Os sentidos, em suma, são produzidos (ORLANDI, 1996 a, p. 103).
Em relação ao conceito de “formação discursiva” baseamo-nos em
Maingueneau (1989) e Orlandi (1996 a). Esses autores, remetendo-se a Foucault,
definem a formação Discursiva como sendo o que pode e deve ser dito: “a formação
discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada (isto é, a partir
de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada) determina o que
pode e deve ser dito” (ORLANDI, 1996a, p. 58). Segundo os mesmos autores, é a
formação discursiva que promove o sentido de um discurso, assim como a
constituição de um sujeito.
Partindo dessa definição, entendemos que o sentido dos discursos aqui
estudados está ancoradoo numa cronologia delineada pela autonomia político-
17
administrativa e pela instituição de um estado. Ou seja, o que pode e deve ser dito
sobre o Tocantins em um momento crucial para sua instituição e sua consolidação?
Além disso, conforme a definição de formação discursiva, citada acima,
impõe-se estas questões: quem pode dizer o que e para quem? Quem tem
autoridade para categorizar, nomear, dizer? De que espaço social são veiculados os
enunciados em questão, e, ainda, que sujeitos pretende-se interpelar e construir
com as regularidades enunciativas veiculadas nos discursos em pauta?
Maingueneau (1989), remetendo-se a Bourdieu, afirma que um discurso é
autorizado e eficaz quando emitido por uma autoridade:
No quadro do gênero de discurso encontra-se, pois, uma questão geral, a
da autoridade relacionada a uma enunciação, a qual desempenha um papel
crucial na sociologia de Pierre Bourdieu, [...]. O discurso só é ‘autorizado’ e,
consequentemente, eficaz se for reconhecido como tal (MAINGUENEAU,
1989, p. 37).
Assim, para nós, os emissores do discurso identitário tocantinense -
jornalistas, intelectuais, políticos e literatos - são as autoridades que podem
legitimar, junto a seus receptores, o discurso em questão. Esses receptores, que
são, em potencial, os tocantinenses que vivenciaram a autonomia político-
administrativa no final da década de 1980 e a consolidação do estado nas duas
últimas décadas, são os indivíduos que os enunciados dos discursos em pauta
procuram interpelar
10
e transformar em sujeitos tocantinenses.
11
Na nossa análise,
será importante indicar em que situação (política, social, de gênero e étnica) esses
indivíduos devem estar para serem sujeitos do discurso investigado.
Tanto no discurso da imprensa, quanto no discurso literário buscamos
identificar e analisar as representações relativas ao Tocantins que mais são
veiculadas nos enunciados em análise. Acreditamos que a incidência quantitativa
10
“De forma simples, interpelação pode ser definida como o ato de identificação do indivíduo
(sempre sujeito) no discurso do ‘outro’. Quando se identifica torna-se sujeito” (PINTO, 1989, p.
27).
11
É importante destacarmos, que não é objeto de nosso trabalho, a investigação da forma como
os receptores do discurso em questão, reelaboram os enunciados em pauta. Sabido é, que as
reelaborações de todo discurso são múltiplas e que todo e qualquer enunciado é polissêmico.
Contudo, como destaca Hall (2003), uma articulação no processo de produção de
mensagens, onde a produção determina o consumo e o consumo a produção. Além disso,
entendemos que todo emissor para ter seu enunciado autorizado e reconhecido precisa
interpelar, convencer uma comunidade discursiva, que impõe coerções ao que é dito.
18
(repetição) ou a regularidade com que essas representações que nomeiam o
Tocantins e o ser tocantinense são difundidas têm um papel significativo no estudo
da construção de um processo identitário, pois, como refere Albuquerque (1999),
através da repetição de enunciados relativos a sujeitos sociais, toda uma
estereotipação que acaba se materializando ao ser subjetivada por quem é
estereotipado.
Em relação à pesquisa empírica, analisamos cinco obras literárias de José
Liberato Costa Póvoa, a saber: De Goela a Pé-de-Janta - Os Causos que o Duro
Conta (crônicas) (1989); Contos Tocantinenses (contos) (1994); Mandinga
(romance) (1998); Conversa de Compadre (crônicas) (2001); Um Causo Puxa Outro
(crônicas) (2001). Quanto à pesquisa do Jornal do Tocantins, no que concerne aos
anos de 1989 a1998, tivemos acesso aos exemplares dos dias relativos às
datas comemorativas do estado, encontrados na SECOM Secretaria Especial de
Comunicação Social do Estado do Tocantins. Isso se deve ao fato de as
Organizações Jaime Câmera, que editam esse periódico, não manterem um acervo
documental do jornal. em relação aos anos de 1998 até 2002 tivemos acesso a
praticamente todos os números do jornal, pois, a Fundação Espaço Cultural,
instituição de cunho cultural e estatal localizada em Palmas, além de outros jornais,
mantém um acervo do Jornal do Tocantins, desde o começo desse período.
Nosso trabalho é composto de cinco tópicos, a presente introdução, três
capítulos e as considerações finais. No primeiro capítulo, através de obras que
abordam o processo de autonomia do Tocantins, assim como de outras que
analisam o passado tocantinense, contextualizamos o processo histórico do mais
novo estado da federação. E, por atrelarmos nosso estudo ao período em que José
Wilsom Siqueira Campos foi governador do Tocantins, indicamos, nesse mesmo
capítulo, questões referentes ao contexto histórico da época em que esse político
exerceu seus cargos. Pois, assim, podemos melhor situar, historicamente, os
discursos analisados no trabalho e, também, questões referentes à trajetória e às
posturas do referido governante, enquanto dirigente do Tocantins, tema também
contemplado, no capítulo. Importante salientar, que nesse capítulo, não nos detemos
em registrar a “verdade” histórica sobre o Tocantins, nem em criticar a produção
historiográfica tocantinense, mas em indicar as versões sobre esse passado que se
sedimentaram nessa produção.
19
No segundo capítulo, analisamos a obra de Jo Liberato Costa voa e
indicamos as regularidades relativas ao Tocantins e aos sujeitos tocantinenses
emitidas nos enunciados desse discurso literário. Além disso, nesse mesmo
capítulo, abordamos a memória
12
instituída por esse discurso, a qual, no nosso
entendimento, ao dotar a região e o povo tocantinense de um passado, também vem
a ser um dispositivo que evidencia e procura construir traços identitários para um
Tocantins.
No terceiro capítulo, analisamos o discurso do Jornal do Tocantins e, do
mesmo modo que no discurso literário de Costa Póvoa, indicamos as regularidades
referentes ao Tocantins e ao tocantinense, veiculadas por esse periódico, no período
em foco.
Por fim, nas considerações finais do trabalho, além de um apanhado das
categorias identitárias, veiculadas no discurso literário de José Liberato Costa Póvoa
e no discurso do Jornal do Tocantins, fazemos uma breve comparação desses
discursos e indicamos os motivos pelos quais as categorizações referentes ao
Tocantins e aos sujeitos tocantinenses foram veiculadas tanto no Jornal do
Tocantins como na obra de Costa Póvoa.
12
Nossa concepção sobre memória, bem como as suas implicações para a construção de um
processo identitário, estão explicitadas quando a abordamos, no transcorrer do trabalho.
20
2 TOCANTINS: CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS
Este capítulo contextualiza aspectos do processo histórico tocantinense e
possui o fito de dar substrato e melhor entendimento ao nosso objeto de
investigação: a representação do Tocantins e do tocantinense, em um discurso da
literatura e da imprensa, entre os anos de 1989 e 2002. Para tanto, lançamos mão
de estudos sobre o processo histórico do Tocantins e, também, de obras que
contextualizam o período em que houve a instituição e consolidação do novo estado.
No primeiro tópico, abordamos aspectos sociais e econômicos do antigo
Norte de Goiás, desde o período colonial até o momento em que ocorreu o processo
de autonomia política do Tocantins. No segundo, analisamos o processo de
autonomia, desencadeado na década de 1980. No terceiro segmento, indicamos o
sentido que o passado histórico da antiga região Norte de Goiás, assume na
produção historiográfica tocantinense recente.
E, por atrelarmos nosso estudo ao período em que José Wilsom Siqueira
Campos foi governador do Tocantins, indicamos, no quarto tópico desse capítulo,
questões referentes ao contexto histórico da época em que esse político exerceu
seus cargos. Assim, podemos melhor situar, historicamente, os discursos analisados
no trabalho e, também, questões abordadas no quinto e último item do capítulo: a
trajetória e as posturas do referido governante enquanto dirigente do Tocantins.
2.1 Aspectos econômicos e sociais do antigo Norte goiano
A historiografia é unânime em afirmar que as primeiras incursões sobre o
território onde hoje se localiza o estado do Tocantins, foram efetivadas ainda nos
séculos XVI e XVII, através de expedições de bandeirantes paulistas. Essas
expedições adentravam na região próxima ao Rio Tocantins, através do Planalto
Central, e tinham como objetivo prear índios. Além dos bandeirantes, houve, na
região, incursões de jesuítas que, vindos da capitania do Pará, chegavam a essas
21
terras através da navegação pelo Rio Tocantins para impedir que a escravização
dos indígenas fosse efetivada pelos paulistas.
13
Contudo, foi no século XVIII, com a extração de minérios, que a antiga região
Norte de Goiás teve uma efetiva ocupação econômica do seu território. Conforme
Parente (1999), a descoberta de minas de ouro na região, nas primeiras décadas do
século XVIII, teve força de atrair um grande contingente populacional para as terras
próximas à margem direita do Rio Tocantins, instituindo os primeiros núcleos
urbanos da região. Esses núcleos, conforme a mesma autora, espalhavam-se por
uma região vastíssima, que as minas de Goiás, diferentemente das de Minas
Gerais e do Mato Grosso, localizavam-se muito dispersas umas das outras,
ocasionando uma descentralização quase total dos centros administrativos. Ainda
segundo Parente (1999), somado à situação de descentralização administrativa,
outro fator que contribuiu para fragilizar esses núcleos urbanos foi o fato de as
minas de ouro serem de aluvião e, por isso, se esgotarem facilmente.
A citada autora subdivide o ciclo da mineração nas minas do antigo Norte
goiano em quatro fases diferenciadas. A primeira, que corresponde ao período de
1722 a 1730, foi um momento em que houve uma espécie de “febre” do ouro, e a
região recebeu muitas levas de migrantes. A segunda fase, delimitada entre os anos
de 1730 e 1738, foi, conforme a mesma autora, uma época em que ocorreu uma
grande quantidade de extração do ouro, mas os constantes ataques indígenas
impediram uma melhor estruturação dos arraiais. a terceira fase, datada pela
autora entre os anos de 1740 e 1749, foi um período em que ocorreu a vinda de um
grande contingente populacional para a região. Finalmente, a quarta fase,
compreendida entre os anos de 1750 e o final do século XVIII, caracterizou-se pela
extinção do ouro e pela decadência daquela sociedade que se organizara em torno
da mineração.
Ainda segundo Parente (1999), a partir das últimas décadas do século XVIII,
os efêmeros conglomerados urbanos, que eram habitados por populações de todos
os lugares da colônia e, também, da metrópole, começaram a se esvaziar. Com isso,
a densidade demográfica da região caiu vertiginosamente, pois, com a exaustão das
jazidas de ouro, a população envolvida com a atividade extrativista, a qual tinha em
comum apenas o espírito aventureiro e a vontade de enriquecer rapidamente,
13
A título de exemplo ver: CAVALCANTE, 1990, op. cit.
22
tendeu a emigrar para outras regiões da colônia com o objetivo de conquistar
melhores condições de vida.
Conforme Palacim (1990), além de enfrentar uma vertiginosa diminuição da sua
densidade demográfica, a rego Norte goiana entrou no século XIX enfrentando uma
forte crise ecomica. Com a crise da minerão, as únicas atividades econômicas
desenvolvidas na região foram a agricultura e a pecuária, sendo que essas, em função
de não haver meios de escoar a prodão para os centros importadores, eram
desenvolvidas precariamente, tornando-se atividades de subsistência.
Sendo assim, essa sociedade, segundo o referido autor, caracterizava-se por ser
pouco integrada aos mercados regional e nacional e por ser pouco estratificada
socialmente: “na realidade, por comparação com outras situações contemponeas, o
que existia naquele norte remoto não era riqueza e pobreza, mas diversos graus de
pobreza” (PALACIM, 1990, p. 30). O autor faz essa afirmão partindo do fato de que o
que distinguia socialmente essa população, eminentemente rural, era a propriedade da
terra, e esta, por existir em abundância e se localizar em um espaço economicamente
peririco, não tinha um valor significativo. Sem vida, a tradição dos grandes
proprietários de terras lhes conferia uma espécie de status social, mas a forma de vida
dos grandes e pequenos proprietários, assim como de agregados e outros segmentos
sociais, praticamente não se distinguia. Comentando essa característica que perdurou
na sociedade Norte goiana do século XIX até parte considerável do culo XX, Palacim
(1990) se expressa da seguinte forma: “nesse ritmo o lento da vida rural de outros
tempos, nossos cririos de diferenciação social o encontram lugar. Nem a instrão,
nem o vestido, a moradia, o conforto, ou a própria alimentação diferem sensivelmente
entre ricos e pobres, coronéis e camaradas” (PALACIM, 1990, p. 34). Sendo assim,
pela citação do autor, pode-se vislumbrar no antigo Norte de Goiás, do século XIX até
parte significativa do culo XX, não o delineamento de uma sociedade pouco
estratificada socialmente, mas também a configurão de uma sociedade tradicional
14
,
que vivenciava um ritmo lento de exisncia.
Um dos motivos apontados com maior frequência pela historiografia
tocantinense para justificar essa situação de falta de dinamismo social e econômico
14
Nosso entendimento, em relação à sociedade tradicional, está calcado em Thompson (2008), que
vislumbra, nessa sociedade: a autoridade das expectativas baseadas nos costumes, a vivência de
uma situação em que as gerações se colocam em posição de aprendizes umas das outras e a
existência de uma lógica da produção e do trabalho regulada pelas tarefas e necessidades
imediatas.
23
na região naquela época, é a inexistência de meios que possibilitassem o escoamento
da produção ou a comunicação entre a região Norte de Goiás com outras regiões do
Brasil. Um fato que ilustra essa situação de isolamento eram as dificuldades
encontradas pelos viajantes que estavam no Norte para chegarem até Vila Boa,
capital do estado, no início do século XX. Nesse sentido, Palacim (1990) relata as
peripécias realizadas pelo padre João Lima, de Boa Vista, quando, em 1909, foi eleito
deputado estadual e teve que se dirigir até Goiás Velho: “[...] devendo viajar para a
capital, [o padre] decidiu que o caminho mais curto era o mais longo: de bote pelo
Tocantins até Belém, depois embarcando até o Rio e, do Rio pela estrada de ferro até
Uberlândia e daí a lombo de burro até Goiás” (PALACIM, 1990, p. 15).
Ainda abordando as dificuldades de comunicação do Norte de Goiás com outras
regiões, o autor supracitado analisa crônicas literárias que retratam os costumes da
populão do antigo Norte goiano, no início do século XX, comparando-as com relatos
do cotidiano da população dessa mesma região, feitos por viajantes no início do século
XIX. Assim, ele constata que nesses escritos produzidos com um culo de diferença
referência a um mesmo comportamento feminino, a uma mesma forma de
sociabilidade, de namoro, além de outros fatores reveladores da vida cotidiana.
Segundo o autor, a perpetuação desses comportamentos é explicada pela situação
vivenciada pela região, que, sem trocar experiências com outros espaços e, por
conseguinte, com diferentes conceões de mundo, voltava-se para si mesma, e isso
inviabilizava a transformão dos valores e das normas de convivência social da sua
populão.
Oliveira (1996) afirma que um dos poucos contatos do antigo Norte goiano com
outra região, no transcorrer doculo XIX e boa parte do século XX, se estabelecia por
meio de incipientes rotas de comércio, feitas através da navegação
15
, do Rio Tocantins
até Belém. Os botes dirigiam-se para Belém carregados de couro e voltavam para o
15
Oliveira (1996), tendo como objeto de estudos a navegação, no rio Tocantins, no século XIX e parte
do XX, afirma que essa era feita em péssimas condições naturais e técnicas. O rio com inúmeras
cachoeiras, corredeiras e, em certos lugares, com falta de profundidade, principalmente no período
de seca, impunha aos tripulantes dos barcos uma navegação comparável em perigo às
navegações em alto mar. Às dificuldades oferecidas pelo próprio rio somava-se a precariedade dos
equipamentos náuticos, pois, essa navegação fora praticada a remo até o ano de 1922, quando
viriam para o norte goiano as primeiras lanchas a vapor. Ainda de acordo com a autora, esses
botes eram movidos por até 12 pares de remeiros e carregavam até 150 tripulantes na
embarcação, sendo que podiam transportar de 15 a 40 toneladas de mercadorias.As viagens de
ida e volta demoravam de 5 a 6 meses. A ida a Belém demorava apenas 1 mês, pois seguia a
descida do rio, porém, a volta, chegava a demorar até 5 meses. Muitos tripulantes acabavam sendo
acometidos por doenças como malária e diarréia, esta última causada, principalmente, pela falta de
higiene nos botes e, também, porque a água que havia para beber era a do rio.
24
Norte goiano com sal, ferramentas, tecidos e artigos de armarinho para serem
vendidos nos poucos centros comerciais da região. Contudo, esses precários
intercâmbios pouco melhoravam a situação do antigo Norte que, até a primeira
metade do século XX, não vivenciou transformações significativas nos aspectos
econômicos e sociais.
Segundo Cavalcante (1990), o governo federal, após 1930, empreendeu
vários esforços para inserir as regiões interioranas do Brasil na economia nacional.
A partir de então, o Sul de Goiás teve uma integração mais efetiva no cenário
econômico do país, porém a situação do Norte, naquele momento, manteve-se
inalterada. Segundo a mesma autora, medidas concretas para incentivar o Norte a
sair da situação de isolamento seriam tomadas quando as necessidades da
expansão do capitalismo assim o determinassem, processo esse que começou a
adquirir relevância na década de 60, com o evento emblemático da construção da
Rodovia Belém-Brasília.
Conforme Cavalcante (1990), além da construção da Belém-Brasília, na
década de 1960, a antiga região Norte de Goiás recebeu, na década de 1970 e em
parte da de 1980, sólidos investimentos através de programas especiais do governo
federal para o seu desenvolvimento econômico. Esses programas, que eram
direcionados, principalmente, para a Amazônia, mas contemplavam sessenta
municípios do antigo Norte goiano, tinham o objetivo de promover a modernização
16
da região, tornando-a exportadora de produtos ligados à agropecuária.
Segundo a mesma autora, dentre esses programas incluíam-a a partir de
1969, o SUDAM; nos anos 70, o Polamazônia e o Polocentro; e, nos anos 80, o
Projeto Carajás. O SUDAM agia, prioritariamente, em termos de incentivos fiscais e
investimentos em infraestrutura para desenvolver a agropecuária. O Polamazônia
desenvolveu uma política de incentivos fiscais com o objetivo de formar o apenas
polos agropecuários, mas, também, polos agrominerais. O Polocento deu ênfase à
mecanização e à pesquisa na região, e o Projeto Carajás, que se distinguia dos
demais pelo montante de investimentos - U$ 3.87 bilhões de dólares -, tinha como
objetivo a construção de ferrovia, porto marítimo e núcleos urbanos.
Ainda conforme Cavalcante (1990), nas décadas de 1970 e 1980 também
atuaram na região órgãos representativos dos governos federal e estadual voltados,
16
Para nós, moderno ou modernização são conceitos ligados às transformões vivenciadas por uma
sociedade com a implantação do sistema capitalista.
25
fundamentalmente, para a legalização das terras ocupadas. Nesse processo, a
citada autora destaca, em nível federal, a GETAT, Grupo Executivo de Terras
Araguaia-Tocantins, que promoveu a regularização fundiária, especialmente no
extremo Norte goiano, e, em nível estadual, o IDAGO, Instituto de Desenvolvimento
Agrário, que, desde a década de 1960, atuou no estado, não apenas no sentido de
promover a regularização das terras ocupadas, como também de instalar projetos
de colonização no imenso espaço vazio ao Norte e Nordeste da região.
Para a autora supracitada, a partir dos anos 1970, a região tornou-se alvo de
investimentos governamentais, quer através de financiamento, quer através de
linhas de crédito ao produtor.
Registra-se que, em 1970, 14,20% dos investimentos do governo federal
se dirigiram para o norte goiano. Em 1975 esses investimentos cresceram
para 20,5%, e ao chegar 1980, alcançaram 26,44. Um crescimento que
pára na segunda metade dos anos 80, quando, então, uma redução dos
financiamentos e da abertura das linhas de crédito ao produtor, como
reflexo da crise por que passa o país, haja vista, o aumento dos preços de
petróleo e derivados, a elevação dos juros da vida externa, as pressões
do FMI e o desenvolvimento do Programa Proálcool. Assim, pressionado
pela conjuntura econômica, o governo federal começou a efetuar cortes na
política de financiamento e crédito rural, e incentivo à agropecuária
(CAVALCANTE, 1990, p. 22).
Cavalcante (1990) ressalta, ainda, que a partir dos anos 1970 o antigo Norte
goiano, apesar de ter passado por um processo de modernização, desencadeado
pelos subsídios do governo federal, não atendeu aos anseios desse governo, que
queria para a região uma economia pautada na produção agrícola de exportação.
Segundo a autora, apesar de na época a produção de exportáveis, como soja e
arroz, ter aumentado, a atividade mais privilegiada com os subsídios fiscais e de
crédito, advindos dos programas federais para o desenvolvimento do Norte, foi,
majoritariamente, a pecuária.
Para a mesma autora, esse processo de modernização, ocorrido no antigo
Norte de Goiás, resultou em uma heterogeneidade regional, no que diz respeito à
estrutura fundiária e às modalidades de produção e exploração da terra. Afinal,
conforme o estudo mencionado, ocorreu uma maior concentração de terras e capital
no espaço territorial entre o Araguaia e a Rodovia Belém-Brasília, em detrimento do
Nordeste, da região.
26
Essa concentração que ai se manifesta é o resultado da política de
incentivos fiscais e de investimentos em infra-estrutura viária no espaço que
compreende o Rio Araguaia e a Belém Brasília, enquanto que a faixa de
terras que compreende o Tocantins até o limite com o Maranhão e a Bahia
indiretamente sentirão o impacto desse processo de modernização
(CAVALCANTE, 1990. p. 24)
Aquino (1996), quando analisa um dos ícones da modernização do antigo
Norte goiano, a construção da Rodovia Belém-Brasília, corrobora a autora
referida, no que diz respeito à afirmação de que houve uma abrangência desigual,
na região, dos resultados decorrentes dos projetos de modernização do antigo
Norte. Para o autor, a rodovia logrou, em pouco tempo, modernizar e integrar ao
capitalismo as microrregiões próximas ao seu trajeto, enquanto que aquelas mais
próximas à margem direita do Tocantins, onde se localizavam as cidades mais
antigas da região, foram excluídas de todo esse processo de transformação
promovido pela modernização e continuaram com uma vida social e econômica
mais tradicional.
Segundo o mesmo autor, essa modernização concretizada nas regiões
próximas à Belém-Brasília se manifestou através de um aumento considerável da
densidade demográfica e do surgimento de uma economia de mercado mais
estruturada, o que resultou no surgimento de novos centros urbanos, os quais, aos
poucos, assumiram a liderança econômica de todo o antigo Norte. Novos métodos e
técnicas da agricultura e da pecuária inseridos próximos ao trecho da rodovia
aumentaram sensivelmente a produtividade, transformando a mentalidade da
população, que se voltou, nesse momento, para o comércio de exportação, em
detrimento do consumo e do abastecimento internos.
Sendo assim, a política modernizadora implantada no antigo Norte goiano,
acabou por engendrar a formação de latifúndios pecuaristas, ligados ao grande
capital, na região entre o Araguaia e a Rodovia Belém-Braília enquanto a região da
margem direita do Tocantins não foi incorporada às formas modernas do
capitalismo. Essa última região, segundo Cavalcante (1990), embora também
permanecesse como uma estrutura agrária pautada no latifúndio, economicamente
manteve características tradicionais, tanto no que se refere à produção propriamente
dita quanto no que diz respeito às relações de trabalho.
É preciso destacar, também, que toda essa modernização ocorrida em parte
do antigo Norte de Goiás teve uma repercussão significativa no concernente à
27
urbanização
17
. Aquino (1996) demonstra que toda a área próxima à Belém-Brasília
vivenciou uma urbanização que acabou sobrepujando aquela das regiões
localizadas às margens do Rio Tocantins, que, até então, eram as únicas
urbanizadas
18
do antigo Norte. As levas de migrações, principalmente da Bahia, do
Piauí, do Maranhão, de Minas Gerais e, também, do Rio Grande do Sul, que, a partir
da década de 1970, adentraram no então Norte de Goiás fazem parte desse mesmo
processo de modernização e urbanização.
Diante do exposto, podemos afirmar que, tendo um significativo aumento da
sua densidade populacional
19
, algumas áreas da antiga região Norte de Goiás
passaram por muitas transformações decorrentes do processo de modernização,
desencadeado a partir dos anos 1960. Contudo, como vimos, essa modernização
não atingiu o Norte de Goiás de forma homogênea. Regiões próximas à Belém
Brasília, que foram contempladas com mais recursos, desenvolveram uma economia
pautada no latifúndio pecuarista, que empregava técnicas aprimoradas de criação
com mão-de-obra assalariada. as regiões afastadas dessa rodovia e mais
próximas das margens do Rio Tocantins tenderam a perpetuar práticas econômicas
tradicionais.
Essa situação econômica heterogênea no antigo Norte goiano, tendeu a
engendrar uma situação social também diferenciada. Afinal, nas regiões
contempladas com a modernização e uma maior urbanização
20
viu-se surgir uma
pulverização social significativa, sendo que as esferas sociais privilegiadas dessa
17
Dentre os centros urbanos surgidos com o advento da construção da Belém-Brasília Aquino (1996),
destaca: Araguaína, Colinas de Goiás, Guaraí, Miranorte, Paraíso do Norte, Gurupi e Alvorada.
18
Segundo os estudos supra citados, as cidades da margem direita do rio Tocantins surgiram em
função da mineração, no século XVIII e se mantiveram, enquanto únicos centros urbanizados do
antigo norte, até a construção da Belém-Brasília. Dentre essas cidades as que mais se destacam
são: Dianópolis, Arraias, Peixe, Paranã, Natividade e Porto Nacional.
19
Segundo Cavalcante (1990), em 1970 o norte contava com 128.360 hab. e, em 1980 com 294.041
hab.
20
Conforme Aquino (2002), estudos de geógrafos sobre a região apontam uma guinada do urbano
sobre o rural, na passagem dos anos 1970 para os 1980. Segundo esses estudos, naquele
período, a região teve sua população rural reduzida, de 75,3% (1970) para 60,3% (1980), enquanto
a população urbana, no mesmo período, apresentou um vigoroso crescimento, cerca de 126%.
Contudo, esse processo se efetivou de forma desigual, nas cidades próximas da rodovia, 84,54%
da população era urbana e 15,6% rural. na região próxima das cidades antigas, localizadas à
margem direita do Tocantins, a situação era inversa, 37,63% da população era urbana e 62,37%
rural. Além desses dados, os mesmos estudos destacam que, as cidades próximas da Belém-
Brasília (Araguaína, Gurupi, Paraíso do Tocantins, Colinas e Guaraí) totalizavam, na época,
230.828 pessoas e sobrepujavam, em quase quatro vezes, o outro grupo de cidades (Dianópolis,
Arraias, Peixe, Paranã e Natividade), que perfazia um total de habitantes de 61.023 pessoas.
28
região
21
eram formadas, principalmente, por latifundiários pecuaristas que
empregavam técnicas modernas de criação. nas regiões que não foram
contempladas por esse mesmo processo, assistiu-se continuidade de uma
sociedade estratificada nos moldes mais tradicionais, pouco urbanizada e com
segmentos sociais privilegiados que, apesar de estarem numa situação econômica
aquém daqueles oriundos do processo de modernização, em função da própria
importância histórica
22
, dessa sociedade para o antigo Norte, continuaram tendo
espaço de atuação no cenário político e cultural do então futuro Tocantins.
23
2.2 O processo de autonomia
O estado do Tocantins, criado em 1988 com o desmembramento do estado
de Goiás, compreende uma área de 286.938 Km2, correspondente a 44,70 % do
antigo território goiano. Na época da autonomia, a população do Tocantins, que era
de aproximadamente 1.100.000 habitantes, distribuía-se por 60 municípios do
território do novo estado.
24
Segundo Cavalcante (1990), para que o processo de autonomia política do
Tocantins fosse desencadeado na década de 1980, pesou a redemocratização
21
A historiografia tocantinense e goiana pouco se refere aos segmentos sociais, que ascenderam
economicamente, no norte de Goiás com o projeto de modernização, Arbués (2002), quando
analisa a situação da cidade agrícola de Gurupi, localizada no sul, do antigo norte de Goiás, nas
décadas de 1970 e 1980, afirma: “[a modernização] atraiu uma nova frente migratória para região
oriunda, na sua maior parte, do sul do país. Os incentivos fiscais e as facilidades de financiamento
advindos da política implantada estimularam a ocupação econômica. Estes sulistas vão concentrar-
se basicamente na microrregião do médio Tocantins-Araguaia, onde as culturas de subsistência, de
produção camponesa, vão ser substituídas por uma agricultura comercial, voltada para a
exportação [...]” (ARBUÉS, 2002, p. 404). Assim, podemos inferir, através da afirmação da autora,
que a elite, nessa cidade, era proveniente do processo migratório, sofrido na época. Contudo, não
podemos, por falta de informações decorrentes de pesquisas sobre o assunto, afirmar que essa foi
a situação geral de todo norte goiano, mais atrelado à pecuária do que à agricultura.
22
A cidade histórica de Porto Nacional, às margens do rio Tocantins, é emblemática no sentido de
demonstrar a influência política e cultural de seus segmentos sociais privilegiados. Considerada a
capital cultural do Estado, essa cidade oitocentista, desde a década de 1950, até a instituição do
novo Estado, na década de 1980, foi palco de muitas manifestações pró-criação do Tocantins, que
envolveram políticos de famílias importantes da região, que mantiveram e mantém destaque no
cenário político e cultural do antigo norte de Goiás, hoje Tocantins. Sobre as manifestações pró-
autonomia do norte goiano ver: CAVALCANTE,1990, op.cit.
23
Essa afirmação é feita em função de muitos intelectuais, políticos e juristas tocantinenses serem
oriundos de segmentos sociais privilegiados daquela sociedade. Sendo que, José Liberato Costa
Póvoa, jurista e autor do discurso literário analisado, nesse trabalho, é descendente de importante
família de uma das cidades desse norte goiano antigo, Dianópolis.
24
Ver: BEZERRA, Adão Bomfim, Tocantins, um Estado para a Nova República. Goiânia: O Popular,
1986.
29
vivenciada pelo país, naquele momento. Afinal, conforme essa estudiosa da
autonomia do estado do Tocantins, esse processo, por possibilitar a organização e a
reivindicação de grupos sociais, referendou intelectuais e políticos nortenses
radicados em Brasília e Goiânia a fundarem, em 1981, a Comissão de Estudos do
Norte Goiano CONORTE. Essa comissão tinha por principais objetivos
“conscientizar a população norte-goiana sobre suas necessidades e potencial
político-econômico, além de congregar os ideais humanos nortenses através de
pesquisas, estudos e debates sobre a região” (CAVALCANTE, 1990, p. 215-216).
Ainda conforme Cavalcante (1990), em abril de 1982, a Conorte promoveu um
congresso a fim de discutir e apresentar propostas que viabilizassem a exploração
do potencial econômico da região Norte goiana. Naquele congresso, foram
abordadas questões referentes:
à necessidade de divisão do Estado, para melhor administrá-lo e integrá-
lo ao processo de desenvolvimento nacional.
-às potencialidades agropecuárias de Goiás, com destaque para a região
norte.
atuação do governo federal, através da SUDECO, na execução de
Programas Especiais, como o Polocentro e o Polamazônia e, ainda, a
atuação do PRODIAT (Projeto de Desenvolvimento Integrado da Bacia
Araguaia-Tocantins), além da importância do Projeto Carajás para a região
norte goiana.
- ao problema fundiário e atuação da IDAGO (Instituto de Desenvolvimento
Agrário de Goiás) e do INCRA (Instituto de Colonização e Reforma Agrária).
- aos meios de comunicação no norte de Goiás e o mercado de trabalho,
com atenção para as alianças de classes em escala regional, nacional e
internacional, cujos interesses operam na área (CAVALCANTE, 1990, p.
216).
Ribeiro (2001), ao estudar os discursos referentes à autonomia da antiga
região Norte goiana, na década de 1980, afirma que a CONORTE participou
intensamente da campanha pró-autonomia, ocorrida em toda a década de 1980, e
também, do processo de instituição do Estado, ocorrido no desenrolar da
Assembléia Nacional Constituinte. Através de congressos, seminários e publicações,
a CONORTE passou a ser a instituição articuladora do movimento separatista. Nas
palavras do autor: “A atuação da CONORTE nos bastidores da política goiana, seus
seminários, suas publicações e suas campanhas pelo desenvolvimento do Norte e
divisão do estado de Goiás, instaurou uma nova maneira de ver a região Norte; seus
problemas e seus habitantes” (RIBEIRO, 2001, p. 56).
30
Conforme o mesmo autor, a maioria dos membros da CONORTE tinha um
posicionamento conservador, e a elaboração das metas e participação nas decisões
da instituição eram restritas a um grupo limitado de pessoas que defendiam seus
interesses. Para Ribeiro (2001), a CONORTE era composta por indivíduos oriundos
de famílias de prestígio no Norte de Goiás, e, citando estudos que se dedicam a
investigar a instituição de forma mais aprofundada
25
, afirma que a CONORTE tinha
um caráter conservador, por querer desenvolver o Norte goiano sem mudanças na
estrutura social, permanecendo intacto o sistema de política agrária, caracterizado
pelo latifúndio familiar, com seus mandantes políticos enraizados em cada uma das
cidades do Norte goiano.
Ainda conforme o mesmo autor, nas eleições de 1982, foi significativo o papel
da CONORTE no sentido de conclamar a população do então Norte goiano, para
votar somente em políticos da região. Tendo seus apelos atendidos, a CONORTE
contribuiu para a eleição de “dois deputados federais: José Wilson de Siqueira
Campos (PDC) e José dos Santos Freire (PMDB); e três deputados estaduais: Totó
Cavalcante (PMDB), Hagaús Araújo (PMDB) e Brito Miranda (PMDB)” (RIBEIRO,
2001, p. 63).
Segundo o autor citado, nas eleições de 1986, foram reeleitos os
parlamentares de 1982 e elegeram-se quatro novos deputados estaduais: Edmundo
Galdino (PMDB), João Rocha (PFL), João Cruz (PMDB) e Célio Costa (PMDB).
É nessa atmosfera de ampliação da representatividade política do antigo
Norte de Goiás que, em 1983, o então deputado federal, José Wilson Siqueira
Campos, pôs em votação, na Câmara federal, o projeto de criação do estado do
Tocantins. Esse projeto, que foi aprovado em março de 1985 pelo Congresso
Nacional, acabou por ser vetado pelo presidente da República. Quatro meses após,
foi reapresentado pelo senador goiano Benedito Ferreira. Então, foi aprovado por
parte da Câmara e do Senado Federal e, mais uma vez, vetado pelo presidente
26
,
sob a justificativa de inviabilidade econômica. Conforme os estudos citados, as
reações diante dos vetos presidenciais não tardaram, ainda mais depois que dois
parlamentares goianos, Siqueira Campos e Totó Cavalcante, fizeram greve de fome
25
O autor faz menção a dois trabalhos sobre o tema: LIRA, Elizeu Ribeiro. A gênese de Palmas
Tocantins. Presidente Prudente- SP: Dissertação de Mestrado, UNESP, 1994. e OLIVEIRA, Rosy.
Oliveira. O Movimento Separatista do Tocantins e a Conorte (1981-1988). Campinas-SP:
Dissertação de Mestrado, UNICAMP, 1998.
26
Ver sobre: CAVALCANTE, 1990, op. cit.
31
em protesto contra o governo federal, chamando a atenção de toda a imprensa
nacional para o assunto. Em 1986, mais uma vez, o projeto foi apresentado ao
Congresso pelo senador Amaral Peixoto, que solicitava a autorização do presidente
da República para formação de uma Comissão Especial de Redivisão Territorial do
País, com a finalidade de levantar dados sócio-econômicos sobre as regiões que
reivindicavam autonomia político-administrativa, em especial sobre o estado do
Tocantins.
27
Nesse contexto, a CONORTE, como meio de pressionar o governo federal a
aprovar a separação do Norte de Goiás, além de promover seminários e simpósios
em prol da causa separatista, fez uma pesquisa de opinião, na região Norte e
Nordeste daquele estado, sobre a possível divisão do mesmo. Foram inseridas,
nessa pesquisa, as cidades mais populosas do Norte de Goiás, da época:
Araguaína, Porto Nacional, Gurupi, eixo da Rodovia Belém-Brasília e Dianópolis.
Conforme Cavalcante (1990): “Cerca de 75% da população entrevistada, ‘homens e
mulheres pertencentes a vários níveis sócio econômicos e de diferentes faixas
etárias’, foram favoráveis à criação do Estado do Tocantins; apenas 12,9% se
colocaram contra” (CAVALCANTE, 1990, p. 224).
Conforme o estudo supracitado, em junho de 1989, a Comissão de Redivisão
Territorial, sob coordenação do Ministério do Interior, concluiu os estudos das
propostas de criação de novos estados e territórios. Em relação ao Tocantins, o
parecer da dita comissão se posicionava contrário à separação do Norte goiano,
pois, conforme os estudos levantados, a região não tinha uma arrecadação fiscal
que viabilizasse a criação do Estado. Além disso, para a referida comissão, o novo
Estado seria um ônus muito pesado à União. Conforme o resultado dos estudos
dessa Comissão, no Norte de Goiás poderia ser instituído um Território e não um
Estado.
28
Com isso, intensificaram-se as manifestações pela criação do estado do
Tocantins, principalmente da CONORTE, apesar de algumas lideranças do
movimento pró-emancipação do Tocantins apoiarem a criação de um território como
estratégia para depois consolidar o estado. De qualquer forma, para as lideranças
do movimento emancipacionista ficava claro que a instituição do estado do
Tocantins só poderia se dar com a Constituinte de 1987.
27
CAVALCANTE, Maria do Espírito Santo Rosa., 1990, op. cit., p. 223
28
Os territórios brasileiros, na época, ficavam submetidos à jurisdição política da União.
32
Segundo Cavalcante (1990), naquele momento, para os simpatizantes do
movimento emancipacionista, a separação do antigo Norte de Goiás significaria
benefícios do ponto de vista político-administrativo, econômico, cultural e ecológico.
Em relação à situação político-administrativa, a separação do Norte significaria para
a região uma ação governamental mais efetiva, tendo em vista que o governo
estaria geograficamente mais próximo. Além disso, a autonomia acabaria com uma
situação desigual de distribuição das verbas públicas, pois: “‘o Sul, com uma
população três vezes maior, recebe dez vezes mais investimentos públicos e conta
com um contingente de funcionários públicos onze vezes maior’” (CAVALCANTE,
1990, p. 233).
Para a autora, os grupos empresariais, ligados à agropecuária, viam a criação
do novo Estado como uma necessidade econômica, dado que os investimentos do
governo federal em obras de infraestrutura criariam na região o suporte para que o
capital privado fosse ali aplicado. Havia, portanto, por parte desses grupos, a
expectativa de que com a criação do estado viria para o então Norte de Goiás a
modernização. E, citando documentos da CONORTE, a autora reproduz as ideias
dessa comissão, afirmando que, em relação ao aspecto social, a criação do novo
Estado impediria o êxodo de habitantes do norte para as grandes cidades do Sul:
Goiânia e Brasília.
Contudo, nem todos os discursos veiculados na época, eram favoráveis à
criação do novo estado
29
. Porém, conforme Ribeiro (2001), os posicionamentos
contrários à efetivação da autonomia do Tocantins foram, de certa forma,
minimizados pela mídia.
As vozes contrárias à divisão do estado de Goiás foram silenciadas e
desqualificadas na produção do discurso tocantinense, o que constituiu um
esforço na manipulação do imaginário social do Estado. Os
pronunciamentos que divergiam do consenso, praticamente não aparecem
na história do Tocantins (RIBEIRO, 2001, p. 70).
29
Ver CAVALCANTE, Maria do Espírito Santo Rosa, 1990, op. cit., p. 235 e ss.
33
Ainda conforme Ribeiro (2001), uma das vozes que se levantou contra a
separação do Norte de Goiás foi a do escritor Bernardo Élis
30
, que, nas páginas da
revista Presença, de Goiânia, criticava a postura do jornal O Popular
31
, que cedia
espaço ao ideário separatista da CONORTE.
Que os mesmos espaços ocupados em seus jornais pelos que defendem a
destruição da unidade goiana, também sejam abertos aos que defendem a
sua integridade, coisa que não tem acontecido (Presença, ano I, n.6, 1986,
p.09, apud RIBEIRO, 2001, p. 71).
Conforme o mesmo autor, a revista Presença foi um dos pouquíssimos
veículos de comunicação que cedeu espaço às ideias contrárias à divisão de Goiás.
Afinal, para essa revista: “o ideal tocantinense era o desejo de grupos econômicos
que simplesmente se consideravam (sic) donos do Norte goiano” (RIBEIRO, 2001, p.
78).
Em relação ao posicionamento dos políticos goianos sobre a divisão do
estado, Cavalcante (1990) e Ribeiro (2001) afirmam que a revista Presença
advogava a ideia de que a maioria dos políticos goianos havia cedido ao lobby do
grupo emancipacionista. E, por isso, era favorável ao desmembramento de Goiás,
sendo que os que eram contrários à criação do Tocantins, por temerem retaliações
desse grupo, se omitiam em relação ao assunto, sendo raras as manifestações
públicas contrárias à separação por parte de deputados estaduais ou federais de
Goiás.
32
De qualquer forma, o processo de emancipação política, da antiga região
Norte de Goiás, se intensificou com a instalação da Assembleia Nacional
Constituinte, em 1987. Ribeiro (2001) afirma que a inclusão da divisão de Goiás na
Assembleia Nacional Constituinte consagrou a criação do estado, pois essa
Assembleia simbolizava a reorganização da nação e a superação dos atrasos e
30
Falecido em 1997, Bernardo Elis foi o primeiro escritor goiano a entrar na Academia Brasileira de
Letras, foi autor de várias obras como Apenas um Violão, O Tronco e Ermos e Gerais.
Informações disponíveis no site: www.academia.org.br, acesso em 14/12/209.
31
O Jornal O Popular”, periódico publicado pela Organização Jaime Câmera, afiliada das
Organizações Globo em Goiás e, hoje, Tocantins, reproduzia o ideário da CONORTE. Sendo o
veículo de comunicação de maior circulação em Goiás, o mesmo tinha como responsável pela sua
publicação João Rocha Ribeiro, um membro da CONORTE. Ver em: RIBEIRO, op.cit. p. 70
32
Ver CAVALCANTE, Maria do Espírito Santo Rosa, 1990, op. cit., p. 235 e ss e RIBEIRO,2001, op.
cit., p. 79 e ss.
34
retrocessos de todo o Brasil. Para ele: “O Tocantins foi situado nos discursos dos
parlamentares como o caminho desse novo Brasil” (RIBEIRO, 2001, p. 88). E, para
corroborar essa afirmação, o autor cita trechos de pronunciamentos de
parlamentares na Constituinte: “e se temos nas mãos tudo para mudar os rumos de
nosso País, como constituintes, esta foi uma das mais acertadas decisões – a
criação do Estado do Tocantins” (Deputado Sotero Cunha, PDC-RJ; Diário da
Assembleia Nacional Constituinte, junho,1988, p.11018 apud RIBEIRO, 2001, p. 89)
Ainda conforme Ribeiro (2001), a CONORTE e lideranças políticas
emancipacionistas souberam manipular o poder simbólico da Constituinte para
fortalecer, no imaginário social tocantinense e de toda a nação, a ideia de um
Tocantins. Afinal, a Constituinte significava, naquele momento, a legitimação da
redemocratização do Brasil.
A Assembléia Nacional Constituinte foi um dos mais importantes instrumentos
na produção do estado do Tocantins, não apenas por ter criado o Estado,
mas pelo seu caráter legitimador dos interesses nacionais. Período de uma
riqueza imensa, consagrado no imaginário político como um dos episódios de
transição para Democracia plena (RIBEIRO, 2001, p. 89).
Ribeiro (2001) informa, em seu trabalho, que, estudando todos os números do
Jornal da Constituinte, não encontrou nenhuma crítica direta ao desmembramento
do estado de Goiás, e atribui esse feito aos esforços propagandísticos da
CONORTE e de alguns políticos goianos. Da mesma forma, Cavalcante (1990)
demonstra que a CONORTE e o Legislativo goiano promoveram vários debates,
com ênfase na questão da viabilidade econômica do novo estado e nas vantagens
mútuas que a divisão traria para o Norte e o Centro-Sul de Goiás, na época da
instalação da Constituinte
33
. As viabilidades econômicas do novo Estado,
ressaltadas pela CONORTE e pela Assembleia Legislativa de Goiás, diziam respeito
às condições produtivas do Tocantins:
O novo Estado nascia com uma base econômica assentada principalmente
na agropecuária, no extrativismo mínero-vegetal e com terras abundantes e
férteis, pois no Vale do Araguaia situam-se 5 milhões de hectares aptos à
irrigação, com produção agrícola prevista, em torno de 3 milhões de
33
Ver CAVALCANTE, Maria do Espírito Santo Rosa, 1990, op. cit., p. 239.
35
toneladas de grãos, o que lhe reserva a primeira posição de produtor de
grãos do país, superando muitos Estados (CAVALCANTE, 1990, p. 240).
Conforme a mesma autora, que se baseia em estatísticas, do ano de 1985
publicadas pela CONORTE no Jornal O Popular, a produção agrícola, no Norte de
Goiás da época era significativa. A região produzia 40% do arroz, da banana e da
mandioca de todo estado, e, no que tange ao extrativismo vegetal, havia destaque
para o babaçu, cuja exploração perfazia 99,8% do total do estado. A pecuária,
segundo matéria publicada em 1987 pelo porta-voz da CONORTE, o Jornal O
Popular, era o carro-chefe da economia nortense: “um rebanho de seis milhões de
cabeças naquela região, produzindo um milhão de bois gordos por ano, o que lhe
garantia a posição de 10º criador de bovinos no país” (CAVALCANTE, 1990, p. 242).
Além disso, segundo a mesma autora, as propagandas pró-criação do estado
do Tocantins lançavam mão das possibilidades de arrecadação de recursos federais
com a instituição do novo estado e dos benefícios que o Centro-Sul de Goiás teria
com o desmembramento do Norte. Dentre esses benefícios, era destacada a
diminuição do êxodo dos nortistas para as grandes cidades, como Brasília, Goiânia
e Anápolis, que o habitante do Norte com a modernização trazida pela autonomia
para a região, teria chances de permanecer no seu torrão natal, não provocando o
aumento da pobreza nos referidos centros urbanos. Outro argumento utilizado para
defender a autonomia do Norte em relação ao Sul, nos debates da Assembleia
Legislativa goiana ou nas propagandas da CONORTE era que com o
desmembramento do estado, a renda per ta de Goiás aumentaria, e os dois futuros
estados teriam melhor assistência dos representantes eleitos, pela superação das
enormes distâncias geográficas.
Com esses argumentos, os debates favoráveis à criação do novo estado,
promovidos pela CONORTE e pelo Legislativo goiano, incrementaram o arsenal
discursivo pró-criação do Tocantins, direcionado para a Assembléia Nacional
Constituinte. Conforme Ribeiro (2001), o único político que foi contrário à criação de
novos estados
34
, na Constituinte, foi José Richa (PMDB-PR). Mesmo assim, esse
parlamentar posicionava-se favorável ao desmembramento de Goiás, que, nesse
34
Conforme Ribeiro (2001), na Assembléia Nacional Constituinte, além de tramitar o Projeto de
criação do Estado do Tocantins, estavam em votação o da criação do Estado de Tapajós (PA),
Maranhão do Sul (MA), Santa Cruz (BA) e Triangulo (MG).
36
caso, havia moções de apoio da Assembleia Legislativa e do governador de Goiás,
Henrique Santillo. Aliás, a julgar pela entrevista concedida por Siqueira Campos ao
Jornal da Constituinte, detecta-se que o apoio daquela Assembleia à instituição do
novo estado foi maciço.
Ao governador de Goiás Henrique Santillo, à Assembléia legislativa, através
de todos os seus integrantes, especialmente seu presidente, aos
companheiros de bancada goiana e todos os constituintes, especialmente
Bernardo Cabral, o presidente Ulisses Guimarães, o presidente Humberto
Lucena, o senador Nelson Carneiro, os líderes de todos os partidos,
especialmente Mário Covas, Adolfo Oliveira, José Lourenço, Amaral Neto,
Luiz Inácio Lula da Silva, Gastone Righi, Brandão Monteiro e outros [...] A
todos, a gratidão do povo tocantinense (Jornal da Constituinte, n.28,
dezembro de 1989, p.09, apud RIBEIRO, 2001, p 100-1).
Assim, com grande apoio dos parlamentares de todas as matizes partidárias,
o artigo que criava o estado do Tocantins foi aprovado em finais de 1987, com a
emenda que determinava as eleições diretas para governador para um mandato
tampão de dois anos, a exemplo dos mandatos de deputado estadual, federal e um
dos três senadores.
35
O estado do Tocantins estava criado e legitimado pela
Assembleia Nacional Constituinte, em 05 de outubro de 1988, sendo instalado,
oficialmente, em março de 1989.
É importante salientarmos que Firmino (2003), assim como Ribeiro (2001),
demonstram, em seus trabalhos, que os discursos pró-criação do estado do
Tocantins se esforçaram por imprimir a ideia de que a luta pela instituição do novo
estado foi popular, quando, na realidade, essa luta e a instituição do estado foram
efetivadas para responder aos interesses de segmentos sociais privilegiados,
compostos, principalmente, por latifundiários pecuaristas ligados a União
Democrática Ruralista – UDR. Ribeiro (2001) assim se refere a essa situação:
Os interesses da União Democrática Ruralista UDR não estavam
vinculados somente a questão agrária. Ela teve um papel de destaque na
votação para a criação do estado do Tocantins, tendo em vista que a
pecuária constituía a principal atividade da região.
A UDR tinha como objetivo apresentar o estado do Tocantins como seu
modelo de administração pública e a sua criação [...] representaria o poder
35
Ver: Jornal da Constituinte, n. 41, 1988, p.02, apud RIBEIRO, 2001, op. cit., p.101.
37
da UDR na Constituinte e na região Norte de Goiás (RIBEIRO, 2001, p.
102).
Firmino (2003) endossa esse posicionamento quando comenta a ideia da
alardeada participão popular na instituição do novo estado, veiculada nos discursos
das lideraas do processo de autonomia do Tocantins: “ ‘a viria popular’ aqui referida
o passa de uma quimera, sendo os acontecimentos, ocorridos a partir de 1987/1988,
o ponto culminante do marco inicial de construção de um estado edificado para as
oligarquias agrárias da rego e seus aliados” (FIRMINO, 2003, p. 101).
Esse mesmo autor, baseando-se em artigo publicado na Folha de São Paulo,
em novembro de 1988, afirma que as duas chapas com viabilidade eleitoral, que
concorreram à primeira eleição estadual no Tocantins, revelavam uma situação
política e econômica ligada à União Democrática Ruralista (UDR), de Ronaldo
Caiado, ou seja, a UDR estava representada nos dois lados que disputavam o pleito.
Portanto, conforme os estudos citados, a criação do Tocantins, tida pelos
discursos dos políticos da época da autonomia como um processo que resultou da
luta de todos, na realidade teve como lideranças políticas membros de segmentos
sociais privilegiados da sociedade, que, veiculando a ideia de que o novo estado
estaria se edificando em bases democráticas, acabaram beneficiando a si mesmos.
2.3 Tocantins: a construção de um passado
É significativo o sentido que o passado histórico da região onde hoje se localiza o
estado do Tocantins assume no momento em que se promove a autonomia e a
consolidação do novo estado. Firmino (2003), assim como Ribeiro (2001), demonstram
de que forma o discurso historiográfico tocantinense, principalmente aquele ligado às
questões poticas da rego, sedimentou uma ideia de passado para a antiga rego
Norte de Goiás com o fim de legitimar a autonomia e a existência do Tocantins e de
construir uma identidade para o estado
36
.
36
Como Fentress e Wickham (1992), acreditamos que a experiência passada recordada e as imagens
partilhadas do passado histórico são tipos de recordações que têm particular importância para a
constituição de grupos no presente.
38
Conforme esses autores, esse processo de construção de sentido para um
passado se deu através da eleição de acontecimentos políticos, ocorridos na região,
onde hoje se localiza o estado do Tocantins, que remontam ao início do século XIX e
que são dispostos, no discurso historiográfico, como se tivessem uma continuidade
no tempo de mais de cento e oitenta anos. A historiografia política tocantinense,
portanto, encadeia acontecimentos esparsos ocorridos durante quase dois séculos e
lhes logicidade, com o intuito de demonstrar, historicamente, que o Tocantins,
enquanto entidade política e regional, existia desde o período colonial.
Essa versão da história do Tocantins foi veiculada por várias instituições, tais
como a Fundação Universidade do Tocantins (UNITINS), com as dissertações de
mestrado de seu corpo docente, a historiografia goiana,
37
a CONORTE
38
, as
publicações oficiais do estado
39
e a imprensa, na época da consolidação do
Tocantins.
40
Dentre os acontecimentos elencados pela historiografia política do Tocantins
para dotar o novo estado de um passado histórico, destaca-se a crião da Comarca do
Norte, em 18 de março de 1809
41
. A criação dessa comarca, segundo a historiografia
tocantinense, teve por finalidade melhorar a administração potica da capitania.
42
Contudo, conforme Ribeiro (2001), a criação dessa comarca ocorreu em função de
interesses econômicos, sendo os principais objetivos do governo local arrecadar os
dividendos da Real Fazenda e evitar sonegão de impostos e contrabando de ouro.
43
De qualquer forma, foi a partir do evento dessa divisão entre a Comarca do
Norte e a do Sul, que a historiografia tocantinense sentido ao seu relato sobre a
História do Tocantins. O outro acontecimento eleito para demarcar o processo
histórico tocantinense é o movimento de autonomia da Comarca do Norte, de 1821.
Esse movimento, liderado pelo ouvidor Theotônio Segurado, eclodiu em 14 de
37
Dentre os trabalhos produzidos dentro do rigor acadêmico, que reproduzem a versão de uma
continuidade histórica para o Tocantins, desde o início do século XIX, citamos: CAVALCANTE, op. cit e
PALACIN, Luis. Coronelismo no extremo Norte de Goiás: O Padre João e as três revoluções de Boa
Vista. São Paulo; Loyola, Goiânia: Cegraí, 1990; PARENTE, Temis Gomes. Fundamentos históricos do
Estado do Tocantins. Goiânia: UFG, 1999, entre outros.
38
Ver: RIBEIRO, 2003, op. cit.
39
Ver: FIRMINO, 2003, op. cit.
41
Desde 1998, por lei estadual de n. 960, o dia 18 de março é feriado e considerado o dia da autonomia no
Tocantins.
42
Ver CAVALCANTE, 1990, op. cit.
43
Desde a terceira década do século XVIII, parte da região do antigo norte de Goiás foi colonizada e
ocupada em função do ouro encontrado em jazidas localizadas onde, hoje, situa-se o sudeste do
Tocantins. Ver sobre o tema: PARENTE, Temis Gomes. Fundamentos históricos do Estado do
Tocantins. Goiânia: UFG, 1999.
39
setembro de 1821 e perdurou até 1823, mas o dito ouvidor ficou na sua liderança
somente até janeiro de 1822. Pois, sendo lusitano, Segurado foi chamado a Portugal
para compor as Cortes de Lisboa, instituídas com a Revolução do Porto, de 1820.
Quando Segurado deixou a capitania, várias querelas aconteceram entre as
autoridades que compunham o movimento, e o mesmo teve seu fim meses após a
Independência do Brasil. De qualquer forma, Theotônio Segurado é visto, na
historiografia política tocantinense, produzida a partir de 1980, como o grande
idealizador do Tocantins, a primeira liderança que ousou libertar o Norte dos grilhões
que o oprimiam. Contudo, conforme Firmino (2003) e Ribeiro (2001), Segurado
instituiu o movimento de autonomia do norte de Goiás porque era contrário à
independência política do Brasil em relação a Portugal:
[...] a Comarca do Norte representava uma peça de alto valor estratégico às
vésperas da independência do Brasil.
Isso porque o Sul, a partir da Bahia, era defensor intransigente da
independência do Brasil sob a regência de D. Pedro, e o Norte era favorável
à união do Brasil a Portugal. A comarca do Norte de Goiás representava o
espaço que possibilitava a ligação entre a Bahia e o Pará, sendo ela,
portanto, o segundo mais importante obstáculo contra D. Pedro; ela era a
via de comunicação da corte com o Pará e o acesso mais seguro, no caso
da via marítima, costeando o Nordeste viesse a ser interditada. [ O Plano de
Segurado ] era o de unir a Bahia ao Pará, fortalecendo a aliança regional
contrária à independência do Brasil (FIRMINO, 2003, p. 47).
Ainda conforme Firmino (2003): “a causa pela qual lutou Segurado não foi a
do ‘Povo tocantinense’, mas pessoal, dele (Segurado), que era a de combater a
emancipação política do Brasil” (FIRMINO, 2003, p. 47). Contudo, Segurado é
retratado, na historiografia política tocantinense, como um dos pais fundadores do
Tocantins, seu primeiro idealizador e mentor. Além disso, o nome de Segurado está
presente em todas as esferas do imaginário tocantinense, ele é nome de praças e
ruas, além de ser reverenciado em monumentos, e uma das principais avenidas de
Palmas, a capital planejada do Tocantins, tem seu nome.
É a partir desses acontecimentos - a instalação da Comarca do Norte, em
1809, e o movimento de autonomia de 1822 - que o passado histórico tido como
tocantinense é narrado e descrito, não pela historiografia, mas também, pela
imprensa e por outras instituições ligadas ao poder estabelecido. É importante
destacar que, como refere Ribeiro (2003), o discurso historiográfico tocantinense,
40
num exercício de compactação histórica, elege Siqueira Campos como o herdeiro, o
continuador direto de Segurado na sua luta pela emancipação do Tocantins.
Ainda no que se refere a esse esforço de compactação histórica, o discurso
historiográfico tocantinense, após iniciar a história do estado com fatos do início do
século XIX, encadeia, de forma linear e como continuidade a esses mesmos fatos,
alguns movimentos pró-emancipação do Tocantins promovidos por lideranças
políticas e intelectuais da cidade de Porto Nacional, na década de 1950. Há um hiato
de mais de cem anos entre os acontecimentos do início do século XIX e os da
década de 1950 que não é considerado por esse discurso, e isso, segundo Ribeiro
(2001), tende a dar a esse passado uma ideia de continuidade, de normalidade que
levava à autonomia do Tocantins.
Ribeiro (2001), assim se refere a esses movimentos da década de 1950:
A segunda metade do século XX é outro momento bastante explorado e que
passa a ter importância no discurso tocantinense. Nessa época a
mobilização manifestou-se de forma mais organizada e freqüente, sendo
que em 13 de maio de 1956, foi deflagrado o movimento autonomista do
Norte goiano, em Porto Nacional, com manifestações constantes até 1961
(RIBEIRO, 2001, p. 50).
Esses movimentos, que iniciaram na década de 1950, perdurando a1960,
envolveram nomes como o do Major Lysias Rodrigues e os de jornalistas e
intelectuais como Deocleciano Florêncio e Oswaldo Ayres da Silva e resultaram na
confecção de imagens sobre o Tocantins (bandeira, hino, etc), que foram utilizadas
na campanha emancipacionista efetivada pela CONORTE na década de 1980.
44
Como foi afirmado, esses movimentos são muito enfatizados na produção de uma
história política tocantinense, que tende a colocá-los como movimentos de
participação popular que incidiam em todo o Norte goiano, quando, na verdade,
eram organizados e liderados por um pequeno grupo e conseguiam adeptos no
âmbito local da cidade de Porto Nacional.
Por fim, podemos afirmar que a produção historiográfica relativa às cadas
de 1970 e 1980 encara esse período como um ápice, momento em que a luta pela
emancipação se intensificou e o destino do antigo norte de Goiás se concretizou
com a autonomia oficial da região.
44
Ver RIBEIRO,2001, op. cit.
41
É mister destacar, também, que essa historiografia, quando aborda qualquer
período da história do Tocantins constrói a imagem de que o norte precisava efetivar
a sua autonomia política para, assim, libertar-se da opressão e da exploração do sul.
O sul é construído, nesse discurso, como o espoliador que, desde o período colonial,
concentrando todos os recursos financeiros arrecadados em Goiás, impedia o pleno
desenvolvimento da antiga região norte.
2.4 Aspectos da conjuntura histórica (1989-2002)
A época em que Siqueira Campos foi governador do Estado do Tocantins é
caracterizada pela historiografia
45
como um período em que o capitalismo estava
vivenciando a plena expansão de sua reestruturação, erigida após a crise
desencadeada na década de 1970.
46
Hobsbawm (1998) afirma que, nas décadas de
crise - 1973-1993-, o capitalismo caracterizou-se por ter operações incontroláveis
pelos Estados nacionais, que perdiam o seu poder econômico. E, nessa
circunstância, como tentativa de superar os déficits econômicos, houve, por parte de
economistas e governantes das potências capitalistas, uma verdadeira cruzada
contra o Estado do Bem-Estar Social, implantado no mundo ocidental após a II
Guerra e a tentativa de efetivar o livre mercado no contexto econômico mundial.
Na década de 80, dois expoentes máximos da política internacional, como o
presidente norte-americano Ronald Reagan e a primeira-miinistra inglesa Margareth
Tatcher, propagandeavam e instituíam, através de suas decisões políticas, essas
práticas que objetivam instaurar o livre mercado, a minimização do Estado e o
desmantelamento do Estado do Bem Estar Social.
45
Sobre esse contexto ver: CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
v. 1. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. São Paulo, Cia das
Letras, 1998, e VIZENTINI, Paulo Fagundes. Dez anos que abalaram o século XX. Porto Alegre:
Leitura XXI, 2002.
46
Conforme Vizentini (2002), entre os fatores que desencadearam a crise do Capitalismo, na década
de 1970, destacou-se o desgaste da hegemonia norte-americana, manifestada desde a década de
1960. Para o autor, os países da Europa ocidental e o Japão, naquele momento, alcançavam e
ultrapassavam os Estados Unidos em vários campos da economia, enquanto esses País
apresentava crescentes dificuldades em desempenhar o papel de polícia do mundo capitalista.
Somada a essa situação, os EUA, por motivo de se envolverem e serem derrotados, na Guerra do
Vietnã, viram-se ainda mais fragilizados economicamente. Nesse ínterim, a crise do Petróleo, em
1973, veio selar a crise que se alastrou por todo mundo capitalista e, também, pelo mundo
socialista, que por passar a se articular com a economia do ocidente, naquele momento,viu-se
também inserido nesse processo.
42
Conforme Hobsbawm (1998), as pticas que diziam respeito à minimização
do Estado desencadearam, dentre outros consequências, as privatizações, que
eram vistas como um mecanismo que diminuía as perdas econômicas impostas
pela crise ao aparelho estatal. No que diz respeito á implantação de um livre
mercado econômico global e ao desmantelamento do Estado do Bem-Estar
Social para a sociedade, o autor aponta, dentre outros resultados, o aumento
vertiginoso nas taxas de desemprego em todo mundo capitalista. Segundo o
mesmo autor, nos países pobres a população caminhou, gradativamente, para
uma economia informal ou paralela, que vinha a ser uma combinação de
pequenos empregos, serviços, expedientes de compra, venda e roubo. Nos
países ricos, surgiu uma subclasse cada vez mais separada e segregada dos
segmentos mais privilegiados. Em termos mundiais, para o autor supracitado, o
principal efeito das décadas de crise foi a ampliação do fosso entre países pobres
e ricos. E, ainda conforme o autor, quando a economia de livre corcio global
estabeleceu o seu domínio sobre o mundo, ela acabou por: [solapar] uma
grande instituição, até 1945 praticamente universal. O Estado-não territorial,
pois um Estado assim não poderia controlar mais que uma parte cada vez menor
de seus assuntos(HOBSBAWM, 1998, p. 413).
Nesse período ocorreu, também, todo um processo de desenvolvimento
tecnológico: a chamada revolução informacional. Castells (2001) afirma que essa
revolução, pautada no desenvolvimento da microeletrônica, da computação, da
telecomunicação e da engenharia genética, espalhou-se entre meados da década
de 1970 e 1990 com muita rapidez e de forma seletiva, tanto social como
funcionalmente. “Ilhas” do mundo capitalista foram inseridas nesse processo
informacional e de economia de livre mercado global, enquanto boa parte do mundo
viu-se alijada desse processo.
Para Castells (2001), a economia que se estruturou desde meados da década
de 1970, no mundo capitalista é informacional e global. É informacional porque a
produtividade e a competitividade de unidades ou agentes nessa economia
dependem de sua capacidade de gerar, processar e aplicar a informação baseada
em conhecimentos. É global porque as principais atividades produtivas, o consumo e
a circulação, assim como seus componentes (capital, trabalho, matéria-prima,
administração, informação, tecnologia e mercado), estão organizados em escala
global.
43
As décadas de 1990 e 2000, portanto, foram um momento em que o
capitalismo, através de inovações tanto no aspecto tecnológico quanto na
organização econômica, conseguia se reestruturar e se afirmar enquanto único
sistema viável no mundo, que o socialismo estatal, no final da década de 1980 e
no início da década de 1990, vivenciava sua derradeira crise.
na América Latina, segundo Vizentini (2002), esse contexto econômico e
político descrito acima acaba por imprimir maior empobrecimento e vulnerabilidade
do continente em relação às decisões externas. Para o autor, é a partir dos anos
1980, quando eclodiu a crise da dívida externa, decorrente do aumento da taxa de
juros nos Estados Unidos, que esse processo foi deflagrado. Pois, na tentativa de
pagar os juros da dívida, os países latino-americanos entraram em recessão. Essa
situação desgastou os governos militares, abrindo espaço para os processos de
redemocratização dos países latino-americanos. Esses processos, segundo o
referido autor, redundaram na vitória política da centro-direita, que com apoio
financeiro de Washington, chegou ao poder em praticamente toda a América Latina
e implantou as reformas neoliberais pretendidas por instituições financeiras
internacionais no continente.
Ainda conforme o mesmo autor o continente foi submetido, com exceção de
Cuba, ao mesmo padrão. Privatizações de empresas estatais (geralmente
compradas por companhias estrangeiras), abandono de importantes funções
econômicas e sociais pelo Estado, abertura das economias nacionais e prioridade
ao equilíbrio fiscal e ao combate à inflação passaram a ser regra. Em relação ao
campo político ideológico, o mesmo autor afirma, que a tônica seguida pela América
Latina foi o neoliberalismo.
Vizentini (2002) ressalta, ainda, que o resultado dos programas de ajuste
neoliberais foi o retrocesso. Empresas estatais foram vendidas a preços simbólicos,
os direitos sociais foram suprimidos, o sindicalismo foi enfraquecido e houve um
declínio dos indicadores na educação e na saúde. E, para o autor, toda essa
situação desencadeou um processo de fragmentação social inédito na história latino-
americana.
Em termos econômicos, cabe ressaltar, também, que esse foi o momento
em que se formaram as entidades econômicas supranacionais, dentre elas a
União Europeia e o Mercosul. Este, segundo Vizentini (2002), por tentar integrar
44
economias dependentes, acabou sendo uma resposta infrutífera e periférica à
globalização.
O Brasil, na década de 1980, passando pela mesma situação econômica e
política dos demais países latino-americanos, vivenciou a passagem da ditadura
militar para a redemocratização do país. Em 1985, o primeiro presidente civil a
assumir o executivo nacional depois da ditadura militar, foi José Sarney
47
. Conforme
Silveira (2009), o governo Sarney cumpriu relevante papel em termos de abertura
política; contudo, na esfera econômica, esse presidente, por titubear entre práticas
liberais e desenvolvimentistas, teve uma atuação desastrada e incoerente.
É importante salientar que no mandato desse político, foi instalada a
Assembleia Nacional Constituinte. Essa Assembleia, constituída por parlamentares
eleitos no pleito de 1986, elaborou a nova Constituição do país a qual foi formulada
sob os auspícios da democracia. O trabalho dos parlamentares em 1987-88 resultou
na promulgação de uma Carta que tinha dificuldades de eficácia por estar muito
distante da realidade nacional.
48
No entanto, esse texto constitucional, que vigora
até os dias atuais no país, foi tido, na época, como extremamente democrático e
inovador.
Em 1989, através de eleições diretas, Fernando Collor de Melo foi eleito
presidente do Brasil, sendo que seu mandato perduraria somente adezembro de
1992. Pois, sob acusações de corrupção, esse político acabou renunciando ao
mandato, na tentativa de evitar um impeachment, que acabou acontecendo em 29
de dezembro de 1992. De acordo com Silveira (2009), o governo de Fernando Collor
foi, no seu conjunto, estruturado e executado a partir de premissas neoliberais. Suas
ações tinham como foco a liberalização da economia e a minimização e o
desmantelamento do Estado do Bem-Estar Social.
Com a renúncia e o impeachment de Collor, assumiu a presidência do país
Itamar Franco. Conforme Silveira (2009), esse governo tamm primou por práticas
neoliberais. No mandato desse governante, muitas empresas foram privatizadas. Além
disso, de acordo com o citado autor, no período Itamar houve um aprofundamento da
desregulamentação da economia e abertura comercial. É importante destacar que no
47
Tancredo Neves, através de eleições indiretas, foi eleito, em 1984, Presidente da República.
Contudo, em função de doença e óbito desse político, quem assumiu o cargo foi o seu vice José
Sarney. Ver sobre o tema: SAES, Décio. República do Capital. Capitalismo e processo político no
Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001.
48
Como abordado, nesse capítulo, a Constiuição de 1988, por ter instituído o Tocantins, tem uma
fundamental importância para o novo Estado.
45
final do governo Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, como ministro da
Economia, lançou o Plano Real o qual, por meio da indexão da moeda nacional com
o valor do dólar, visava a conter a inflação no ps.
Com a estabilidade econômica alcançada com o Plano Real, Fernando Henrique
Cardoso foi eleito para o seu primeiro mandato em 1994, sendo reeleito em 1998.
Silveira (2009) caracteriza os mandatos de Fernando Henrique como essencialmente
neoliberais. Nesses anos, segundo o autor: “Elementos como diminuição dos
dispêndios com funcionalismo público, venda de empresas estatais, ajuste fiscal,
reforma previdenciária, redução das áreas de atuação direta do Estado (como
educação superior) [foram ões efetivadas pelo governo]” (SILVEIRA, 2009, p. 150).
Ainda conforme o autor supracitado, nesse período as diretrizes impostas
pelo Fundo Monetário Internacional à economia brasileira foram seguidas à risca.
Aquele foi o momento das privatizações de empresas públicas de todas as áreas e
tamanhos. Além disso, nos governos de FHC houve o fim do monopólio estatal em
áreas como telecomunicações, energia e petróleo o que impulsionou a abertura da
economia.
Segundo o mesmo autor, durante os governos de FHC, o baixo vel de
investimentos levou o país à estagnão econômica e a um grande desemprego. As
reformas da legislão trabalhista geraram a terceirização dos servos e a piora da
condição dos trabalhadores, que enfrentaram o desemprego estrutural. A falta de
investimentos públicos gerou o apagão de 2001, o caos das rodovias e o sucateamento
de hospitais e universidades. Ainda conforme o autor mencionado, o Brasil, nas
cadas de 1980, 1990 e início de 2000, vivenciou, politicamente, um processo de
redemocratizão e, economicamente, passou por um processo de desregulamentação
econômica e desmantelamento do Estado do Bem-Estar Social.
Torna-se importante salientar, tamm, que nessas três últimas décadas,
governantes e sociedades civis do mundo inteiro manifestaram preocupações em
relação ao meio ambiente e ao esgotamento dos recursos naturais do planeta.
Questões como a emissão de gás carnico na atmosfera, o esgotamento dos recursos
dricos e o aquecimento global passaram a ser discutidas em congressos promovidos
pela ONU e por outras instituições internacionais. Acaloradas discussões entre os
participantes de organizões ecogicas e representões governamentais sobre
como a humanidade poderia chegar a um equibrio entre o desenvolvimento econômico
e a preservação ambiental tornaram-se comuns, em congressos, seminários e outros
46
eventos destinados a reflees sobre o meio ambiente. Contudo, segundo Hobsbawm
(2001), a solução para esses problemas o foi encontrada, pois o o almejado e
discutido desenvolvimento sustentável compromete o crescimento e a lógica econômica
do capitalismo.
No Brasil do período em análise ocorreram alguns episódios ligados ao meio
ambiente que chamaram a atenção da opinião pública mundial. Dentre esses
episódios, destacou-se o assassinato do seringueiro Chico Mendes, em Xapuri, no
Acre, no ano de 1988. Líder de uma organização de trabalhadores que procuravam
evitar a derrubada da floresta, Chico Mendes, após sua morte trágica, passou a ser
considerado por aqueles se preocupavam com questões ambientais no mundo,
como uma espécie de ícone da defesa da Floresta Amazônica.
49
Outro evento ocorrido no Brasil, no peodo em foco e que chamou a atenção
mundial em relação às questões ecológicas foi a Eco 92. Promovida pela ONU, essa
conferência contou com a presença de uma centena de deres de diversos países e
outros 30.000 participantes, que se reuniram na cidade do Rio de Janeiro, em 1992,
para, dentre outras queses, criarem umdigo de conduta mundial que promovesse a
defesa do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. Apesar de essa
conferência, por ter sido realizada no Brasil, ter despertado o interesse nacional para os
assuntos ligados ao meio ambiente, dez anos depois, quando ocorreu outro evento da
mesma envergadura em Johanesburgo, na África do Sul, a maioria dos preceitos
acordados no Rio em 1992,o haviam sido colocados em prática, no mundo.
50
O contexto mundial e nacional abordado, desencadeou, na mais nova unidade
federativa do Brasil, todo um processo de adequações ao modelo neoliberal
dominante.
51
Várias privatizações
52
foram efetivadas, e a máquina estatal foi
estruturada, dentro dos parâmetros da modernidade
53
. Esta se manifestou
concretamente com a realização de grandes obras, dentre as quais se destacaram a
49
Essas informações encontram-se disponíveis no site: www.revistaforum.com.br/site
final/Ediçaonotialgra.asp?id-artigo=5723, acesso em 25/11/2009.
50
Essas informações encontram-se no site: http//vejaabril.com.br. em dia/eco.92, acesso em
25/11/2009.
51
É praticamente inexistente a produção historiográfica sobre o contexto econômico e social
tocantinense, das décadas de 1990 e 2000. A sucinta abordagem discorrida, aqui, resulta de
nossas pesquisas no Jornal do Tocantins e de cotejos de informações oriundas de trabalhos que
investigam outros períodos da história do antigo norte goiano e que, de passagem, fazem breves
alusões a essas décadas mais recentes.
52
Sobre essas privatizações, ver o próximo item desse capítulo e, também, o capítulo, desse
trabalho, que analisa o discurso do Jornal do Tocantins.
53
Ver sobre essa questão, o capítulo que analisa o discurso do Jornal do Tocantins.
47
construção da capital, Palmas, e de estradas, hospitais, usinas hidrelétricas, etc.
54
A economia tocantinense orientou-se, naquele momento, pelo desenvolvimento
e crescimento da agropecria, que, utilizando técnicas cada vez mais aprimoradas de
plantão e criação, fortaleceu ainda mais os grandes proprietários ligados às
modernas formas de produção.
55
Ainda em relação a esse processo de modernização vivenciado pelo Tocantins,
podemos salientar uma maior urbanizão da sociedade, que, com a conclusão da
construção de Palmas, em 1991, se intensificou significativamente
56
, e o aumento da
densidade demogfica
57
, incrementada, principalmente, pela chegada de muitos
migrantes ao estado.
58
Contudo, todas essas transformações tenderam a acentuar a situação de
heterogeneidade regional, inaugurada a partir de 1960 com o processo de
modernizão no norte de Gos
59
. Afinal, as transformações ligadas à modernização,
instauradas após o período de autonomia, incidiram muito mais naquelas cidades e
regiões que foram inseridas, a partir da cada de 1960, no mercado do que naquelas
cidades e regiões mais afastadas desse eixo e que não foram contempladas, a partir
daquela cada, por essa inserção.
60
Sendo assim, no momento de sua instituão e
54
Ver o próximo item desse capítulo e, também, o capítulo que analisa o discurso do Jornal do Tocantins.
55
Firmino (2003), apesar de não adentrar em análises da economia e da sociedade, do Tocantins, nas
décadas de 1990 e 2000, deixa perpassar que essa era a situação econômica e social do estado, nesse
momento.
56
Matéria do Jornal do Tocantins, assim se refere à urbanização, da capital, Palmas, no ano de 2000:
“Com uma população estimada em 122 mil de habitantes (IBGE/99), Palmas esrecebendo cerca de
400 pessoas a cada mês. Segundo projeção do IBGE, a Capital está crescendo em torno de 24% ao
ano, gerando uma estimativa para este ano de 151,179 habitantes. O cálculo é feito pelo IBGE de
acordo com números do censo populacional de 1996, sendo que para os órgãos dos governos estadual
e municipal os números reais são bem mais significativos. [...]” (J.T. 13/02/2000, p. 6).
57
Aquino (2002), nos conta de que: em 1980 a população do ainda antigo norte de Goiás era de
738.668 e que, em 1991, essa população era de 920.116.
58
Com base em dados do IBGE, matéria do Jornal do Tocantins, publicada em 1999, afirma sobre as
migrações, em Palmas: “61% da população palmense ainda é do próprio Estado. E os estados que mais
cederam habitantes para Palmas foram Maranhão (14%), Goiás (9%), Piauí (4%), Pará (3%), Ceará
(2,5%), Minas Gerais (2%), sendo que outras unidades da federação e países estrangeiros somaram
4,5%. Do ponto de vista regional, o Nordeste contribuiu com 22%, o Centro-Oeste com 9,5% e o
Sudeste com 3%. Mesmo tendo um grande mero de sulistas em Palmas, a pesquisa confirmou 1%
de contribuição do Sul” (J.T., 03/02/1999, p. 1, 2º Cad.).
59
Ver páginas 26-9, desse capítulo.
60
Essa situação pode ser ilustrada pelo aumento do número de habitantes em cidades que foram inseridas
nesse eixo de mercado como Araguaína e Gurupi e no decréscimo desse mesmo número, em cidades
como Arraias e Natividade, que não foram inseridas em tal eixo.
CIDADES NÚMERO DE HABITANTES EM
1991
NÚMERO DE HABITANTES EM
2000
ARAGUAÍNA 103.396 HAB 113.143 HAB
GURUPI 56.741 HAB 65.034 HAB
ARRAIAS 12.899 HAB 10.984 HAB
NATIVIDADE 10..339 HAB 8.867 HAB
Esse números estão disponibilizados no site: www.ibge.gov.br
48
consolidação, o Tocantins deu continuidade a uma situação inaugurada ainda no
peodo que antecedeu a autonomia: a existência e a convivência de tendências
regionais distintas, uma econômica e socialmente mais atrelada à modernidade e,
outra, mais voltada para o tradicional.
2.5 Siqueira Campos e suas posturas (1989-2002)
Sendo governador por três mandatos (1º de janeiro de 1989 a 15 de março de
1991; de janeiro de 1995 a 3 de abril de 1998
61
; de janeiro de 1999 a de
janeiro de 2002) Siqueira Campos, além de carregar consigo a aura de criador do
estado e de herdeiro da causa separatista, durante o período de tempo em que foi
governador, acumulou um poder considerável para administrar o novo estado. Além
desse período de tempo, que perfez dez dos primeiros quatorze anos de existência
do Tocantins, outros fatores potencializaram as condições de poder do referido
político. Dentre estes, destaca-se a própria Constituição de 1988, que, ao criar o
estado, definia que nos dez primeiros anos de existência da mais nova unidade da
federação cabia ao chefe do Executivo a prerrogativa de nomear três membros do
Tribunal de Contas, além dos sete primeiros membros do Tribunal de Justiça.
62
Toda essa conjuntura favorável ao que podemos chamar de excesso de
poder concedeu a Siqueira Campos as ferramentas necessárias para governar o
Tocantins de acordo com os seus próprios interesses e também dos segmentos
sociais privilegiados, geralmente ligados à agropecuária.
Considerado uma espécie de mito fundador do estado do Tocantins, esse
político, segundo a historiografia tocantinense
63
, chegou ao antigo Norte de Goiás,
mais precisamente, na cidade de Colinas de Goiás, em 1963. Cearense da cidade
do Crato, dois anos depois de sua chegada em Colinas elegeu-se vereador e
abraçou a causa separatista do Norte de Goiás. Ainda conforme a historiografia
tocantinense, Siqueira, por pretender a separação do antigo Norte, foi preso em
61
Nessa data, Siqueira Campos passou o cargo para o vice-governador, Raimundo Nonato Pires dos
Santos para concorrer ao seu último mandato.
62
Conforme MAIA, Maria Zoreide Britto. Poder Político Tocantinense e universidade pública. In:
FIRMINO, Eugênio Pacelli de Morais Firmino (org). Tocantins do passado (re)construído e do
presente em construção história, escola universidade e conhecimento. Goiânia: Universidade
Católica de Goiás, 2009.
63
Ver FIRMINO, 2003, op.cit.
49
1969 pelas forças da ditadura, sendo solto em 1970 e eleito deputado federal em
1971. Após tomar posse na Câmara Federal, o então deputado, ainda na década de
1970 ao propor por cinco vezes o projeto de criação do estado do Tocantins,
demonstrava ter como bandeira de luta a autonomia política da região Norte de
Goiás.
Como frisado na década de 1980, Siqueira continuou apresentando na
Câmara, o projeto que instituía o estado do Tocantins, projeto que obteve a
aprovação do Congresso, mas foi vetado pelo presidente da República, José
Sarney. Ao fazer greve de fome em protesto contra os vetos presidenciais, o referido
político ganhou visibilidade na imprensa e impressionou a opinião blica, o que
certamente contribuiu para que a criação do Tocantins fosse aprovada na
Constituinte.
Siqueira Campos elegeu-se em 1988, para exercer um mandato de
governador por dois anos. Nessa eleição, representando a “União do Tocantins”,
coligação política de bases conservadoras, disputou o cargo máximo do Executivo
do Estado com José Freire, que representava o PMDB. Siqueira Campos conseguiu
uma votação de 163.819 votos (45,7%), ao passo que JoFreire obteve 84.926
votos (23,7%), de um total de 358.675 eleitores.
64
Com o lema “20 anos em 2”, Siqueira iniciou o seu primeiro mandato
demonstrando a intenção de fazer uma analogia de seu governo com o de Juscelino
Kubitschek, que adotou o slogan desenvolvimentista “50 anos em 5”. Outra atitude
política de Siqueira que estava na esteira da de Juscelino com a construção de
Brasília foi o planejamento e a construção da capital do Estado, Palmas. O
envolvimento pessoal de Siqueira Campos com a construção dessa capital deu-se
desde o momento da escolha do local que sediaria a cidade, em fevereiro de 1989.
65
A construção de Palmas realmente materializava o objetivo de desenvolvimento e
modernidade inserido nas propostas da campanha separatista. Ribeiro (2001) assim
se refere ao momento da criação de Palmas:
No período dos dois primeiros anos, após a criação do Tocantins, os
enunciados selecionados direcionavam e davam sustento ao projeto de
governo do Estado que teve a construção de Palmas – a capital do Estado –
como elemento privilegiado da materialização discursiva. Foi inaugurado
64
Ver FIRMINO, 2003, op. cit..
65
Ver: Jornal do Tocantins, 05 de outubro de 1999.
50
naquele momento uma outra fase do discurso tocantinense que utilizava do
discurso desenvolvimentista para dar sustento as falas que ressurgiram
(RIBEIRO, 2001, p. 133).
Esse desenvolvimento e essa modernidade não foram alardeados apenas
com a construção da capital do estado: outras obras, como a Usina Hidrelétrica do
Lajeado, construída com capital privado e inaugurada em 2001, por exemplo, deram
sustentação ao discurso da modernidade instaurado por Siqueira Campos. É
Interessante observar em relação a essa usina que sua construção, próxima à
cidade de Palmas, além de proporcionar a geração de considerável quantidade de
energia no estado, possibilitou a criação de praias artificiais, na capital. Essas
praias, construídas através do represamento das águas do Rio Tocantins,
necessário à construção da Usina, compõem a orla do lago da cidade de Palmas,
muito cantado e decantado como grande atração local.
Os governos de Siqueira Campos primaram por práticas assistencialistas;
dentre elas, destacaram-se aquelas ligadas ao Programa Pioneiros Mirins. Esse
programa de bolsa-escola, implantado no estado, em 1998, tinha uma administração
articulada entre a Secretaria de Educação e a Polícia Militar.
66
O programa
67
, que
era contemplado com horário integral, abrigou 34 mil crianças e adolescentes no ano
2000, e, segundo Firmino (2003), tinha, na época, um forte propósito de formar
currais eleitorais. De qualquer forma, o Pioneiros Mirins foi alardeado, principalmente
na imprensa, como um grande programa social do governo Siqueira Campos. Era a
expressão da preocupação que o Tocantins nutria por suas crianças e adolescentes
e um mecanismo de proporcionar-lhes educação e saúde.
Conforme Firmino (2003), no campo da educação, o governo de Siqueira
Campos adotou como filosofia a ideia do Mutirão pela Cidadania. Essa ideia,
pautada no Programa de Gestão Compartilhada, previa a participação dos
Executivos estadual e municipal, além da comunidade local, nos assuntos ligados à
educação. Ainda segundo o mesmo autor, a cada ano o governo estadual emitia
estatísticas extremamente favoráveis ao sistema educacional do estado, dando a
impressão de que, no Tocantins, a educação tinha atingido um patamar excelente.
66
Ver sobre o tema: LIMA, Fátima Maria de. Programa Pioneiros Mirins no Município de Araguaína
TO – Discursos e Práticas (1989-2000). Goiânia: UFG, Dissertação de Mestrado, 2003.
67
Esse programa, implantado em 1998, continua em funcionamento até os dias atuais.
51
Firmino (2003), afirma que o setor da saúde também ocupava o centro do
discurso do governo siqueirista, que o colocava como resultado dos trabalhos do
estado. Conforme o autor citado, que admite que é “impossível desconhecer que,
desde a sua criação, o Tocantins não tenha realizado progressos no
desenvolvimento de sua infraestrutura e de setores sociais como a educação, a
saúde etc.” (FIRMINO, 2003, p. 133), entre os projetos executados no sistema de
saúde pública destacam-se o modelo de hospitais comunitários e os desenvolvidos
na área da medicina preventiva.
No último governo de Siqueira - de janeiro de 1999 a 1º de janeiro de 2003
- o slogan veiculado na mídia para definir o Tocantins: -“Tocantins o estado da livre
iniciativa e da justiça social” - revelava a intenção do governo de perpassar a ideia
de que governava para todos. Defendendo uma natural vocação econômica
tocantinense para a pecuária e a agricultura, o discurso do estado justificava e
legitimava as ões políticas em prol do latifúndio pecuarista e defendia a ideia de
que assim estava promovendo o bem estar de todos, através de práticas que
estimulavam a livre iniciativa e promoviam a continuidade da estrutura fundiária e
social da região, retratadas, pelo discurso do estado, como potencializadoras de
justiça social.
O estímulo à livre iniciativa é apenas uma das características neoliberais
assumidas pelo estado do Tocantins, na época dos governos de Siqueira Campos;
outra é o processo de privatização empreendido pelo então governador do estado,
que, quando privatizou a Companhia de Energia do Estado do Tocantins, a
CELTINS, em 1997, declarou ao Jornal do Tocantins que pretendia privatizar tudo o
que pudesse para o enxugamento da máquina estatal.
68
Nessa “ciranda” das privatizações no estado, nem a Universidade do
Tocantins - UNITINS escapou ilesa. Foi um processo que começara em 1996 e
terminou em 2000. Contudo, em função da resistência dos alunos da instituição, que
promoveram manifestações e paralisações, conseguindo chamar a atenção da
opinião pública, foi acordado com senadores e deputados estaduais e federais o
comprometimento com a instalação de uma universidade federal no Tocantins, o que
foi concretizado em 2002-2003. Firmino (2003) lembra que o mérito pela criação da
Universidade Federal do Tocantins foi disputado pelo movimento estudantil da
68
Ver o capítulo sobre o discurso do Jornal do Tocantins, nesse trabalho.
52
UNITINS, assim como pelas oligarquias políticas do estado que, principalmente nos
períodos de eleições, procuram capitalizar votos através da recorrência a uma
memória positiva de seus feitos.
Siqueira Campos governou o Tocantins durante dez dos primeiros quatorze
anos de existência do estado. Seu governo foi interrompido no período do
peemedebista Moisés Avelino (15 de março de 1991 a 1 de janeiro de1995), que foi
acusado pelos siqueiristas de corrupto e inábil para gerenciar o estado. E, apesar de
Siqueira ter sofrido muitas críticas da oposição no transcorrer de todo o seu período
de governo
69
, a julgar pelos índices de popularidade, gerados através de pesquisa
por ele encomendada em 2001, ele tinha a aprovação dos eleitores. No resultado da
referida pesquisa, publicado em um encarte, distribuído por todo o estado, o governo
do Tocantins tinha 83% de aprovação pela população tocantinense e 78% dos
tocantinenses achavam que a região havia melhorado com a criação do estado.
70
Outro fator que contribui para demonstrar que Siqueira Campos tinha apoio da
população do estado, no final de seu último mandato foi o fato de o seu candidato
oficial nas eleições de 2002, Marcelo Miranda, ter sido eleito governador do
Tocantins pela UT – União do Tocantins.
69
Conforme Firmino (2003), um dos principais opositores de Siqueira Campos, o peemedebista Freire
Júnior o acusava de ter feito do Estado a sua propriedade particular, além de ter praticado várias
irregularidades tais como a venda de terras a baixos preços para amigos, manipulação de
concurso público, superfaturamento de obras de infra-estrutura, etc. Maia (2009), em artigo
recentemente publicado, chama atenção para o fato de que, apesar da mídia local enaltecer os
feitos de Siqueira, a mídia nacional fez muitas críticas e denúncias ao governo desse político.
Revistas como Veja, Isto É e Época, demonstraram, várias vezes, as irregularidades cometidas por
Siqueira Campos que vendia terras a baixos preços a amigos e conhecidos, empregava familiares
e parentes em funções estratégicas, dentro de órgãos públicos, assim como favorecia empreiteiras
que trabalhavam nas muitas obras, erigidas no Estado, naquele momento. Essa mesma autora,
ilustra a tendência autoritária do político em questão com o fato do mesmo ter mandado incinerar
toda a edição de um livro que o criticava “O Didator do Cerrado”, escrito pelo jornalista Rinaldo
Campos, que fora preso, a mando do governador, por cinco dias.
70
Fonte: Encarte Tocantins: união, trabalho e progresso, p.8, 2001, apud FIRMINO, 2003, op. cit, p.
134.
53
3 O
TOCANTINS EM UM DISCURSO LITERÁRIO
Este capítulo analisa o discurso literário de Jo Liberato Costa voa
71
como
meio de detectar facetas da construção da identidade tocantinense. Como
referido, essa análise parte da
concepção de que a literatura pode revelar indícios da
construção de um processo identitário e, também, contribuir para a
consubstanciação do mesmo. Ela revela indícios, na medida em que todo discurso
deixa perpassar um imaginário, e, conforme Baczko (1984, p. 309), através dos seus
imaginários, uma coletividade designa a sua identidade e elabora uma certa
representação de si. Contribui na construção de um processo identitário por instituir
memória
,
além de construir e situar sujeitos sociais em suas tramas e enredos.
Como destacado na introdução do trabalho, concebemos o emissor desse
discurso como uma espécie de porta-voz de um grupo social. Porta-voz entendido
nos termos propostos por Bourdieu (1996), ou seja, para nós, o literato é um agente
apto a falar pelo grupo, por deter capital simbólico que lhe confere um mandato do
qual ele é, por assim dizer, um procurador. Além disso, torna-se importante destacar
que, na nossa concepção, o emissor-literato, por imprimir em suas obras reflexões
sobre as práticas sociais de uma determinada sociedade e por estar em um contexto
histórico que o situa dentro de um grupo social, transmite, nessas reflexões e
reelaborações, a visão desse mesmo grupo. Sem dúvida, Costa Póvoa, por ser um
escritor e ocupar posições de destaque no Judiciário do Tocantins, pertence às
esferas sociais privilegiadas da sociedade tocantinense. E, para nós, essa situação
social do emissor tende a potencializar a visão de sociedade, de estratos, dessas
mesmas esferas nas representações sobre o Tocantins e o sujeito tocantinense,
veiculadas em seus escritos.
71
José Liberato Costa Póvoa é tocantinense de Dianópolis, nascido em 12/04/1944. É Bacharel em
Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), atuou como jornalista na imprensa
mineira, goiana e tocantinense e foi fundador e primeiro presidente da Academia Tocantinense de
Letras, cargo que ocupou por dois mandatos. Como escritor publicou vários contos, crônicas e um
romance. Além da carreira jornalística e literária exerceu e exerce várias funções, no Poder
Judiciário, do Estado do Tocantins, atualmente, é Desembargador do Tribunal de Justiça do
Estado. Ver: PÓVOA, José Liberato Costa. Conversa de compadres. Goiânia: Editora Kelps, 2001.
54
De qualquer forma, a escolha da obra literária
72
de José Liberato Costa Póvoa
deu-se em função de esse autor ser um dos escritores mais conceituados e
populares do estado. Além disso, essa opção efetivou-se pelo fato de Costa Póvoa
ser tocantinense, representar a sociedade tocantinense em seus livros e ter
publicado a maioria de seus escritos na cronologia em que aconteceu a autonomia e
a consolidação do estado do Tocantins;
73
logo, em um momento em que, como
referido, houve, por parte de vários discursos que permeavam a sociedade em
questão, a luta pela afirmação de uma identidade tocantinense.
Em relação ao receptor do discurso em pauta, é importante salientarmos que,
teoricamente, o concebemos como um coenunciador, como um sujeito que, fazendo
parte das mesmas práticas sociais do emissor, acaba por impor coerções aos
enunciados veiculados,
74
as quais são aceitas como um tipo de regra, pois todo
emissor procura ter seu discurso autorizado e reconhecido e, para isso, respeita
uma espécie de ritual social da linguagem implícito, partilhado pelo interlocutores.
Pois: “indivíduos pertencentes a um mesmo corpo de práticas sociais são capazes
de entrar em acordo a propósito das representações de linguagem destas práticas”.
(MANGUENEAU, 1989, p. 30). Os receptores do discurso de Costa Póvoa, em
72
Pode-se afirmar que a produção literária de Costa Póvoa, compõe a literatura regionalista do
Tocantins., literatura essa, entendida como aquela que aborda o local, destacando as suas
particularidades. Conforme o próprio autor, a influência dos mestres da literatura regional goiana e
tocantinense foi crucial para a produção de sua obra: “Assim na condição de enxerido, vou
entrando no terreno que consagrou Bariani Ortêncio e Carmo Bernardes, ali em Goiás, e Moura
Lima, Eli Brasiliense e Juarez Moreira Filho, aqui no Tocantins – a cultura popular [...] o costume
do cachimbo é que entorta a boca, e de tanto ler nossos patrícios vou acabando é por assimilar-
lhes o jeito [...]” (PÓVOA, 2001 a, p. 129-30). Contudo, é importante salientar que o regionalismo
da literatura de Póvoa não distingue a mesma daquela produzida pelos demais escritores
tocantinenses, pois, como demonstra Deboni (2007), ao analisar as produções e estatutos das
Academias de Letras do Tocantins, a maior parte, da produção literária, desenvolvida nesse
Estado, é de cunho regionalista. A mesma autora ressalta que esse regionalismo, inerente às
obras dos escritores, membros das Academias de Letras do Tocantins, é pautado nas
peculiaridades da natureza local e, também, nas singularidades da vida dos sujeitos
tocantinenses. Ainda conforme essa autora, o regionalismo da literatura tocantinense está muito
próximo daquele empregado pelo romantismo brasileiro do século XIX que, no afã de dar uma
identidade para a jovem nação brasileira, retratava somente o local, o pitoresco, nunca chegando
ao universalismo, atingido pela literatura regionalista na atualidade. E, para a autora, esse
anacronismo da literatura regionalista tocantinense deve-se ao fato da mesma estar muito presa à
idéia de dar uma especificidade e, por conseguinte, uma identidade para si e para o Estado.
73
Dentre. as obras do autor destacamos: De Goela a Pé-de-Janta - os Causos que o Duro Conta
(crônicas) (1989); Contos Tocantinenses (contos ) (1994); Mandinga (romance) (1998); Conversa
de Compadres (crônicas) (2001) ; Um Causo Puxa Outro (crônicas) (2001).
74
Não estamos afirmando que há uma reelaboração homogênea dos discursos por parte dos
receptores, mas que por parte das comunidades discursivas uma espécie de contrato que
norteia a veiculação de enunciados. Contrato esse, que é capaz de levar os indivíduos – emissores
e receptores – a um acordo sobre as representações da realidade, feitas através da linguagem. Ver
sobre o tema: MAINGUENAU,1989, op. cit.
55
potencial, são tocantinenses, leitores de seus escritos. São membros de uma
comunidade discursiva que, no momento da veiculação de suas crônicas, seus
romances e seus contos, eram construídos como sujeitos dessa nova identidade
político-administrativa.
O capítulo está dividido em dois tópicos. O primeiro indica e analisa as
representações, relativas à sociedade tocantinense e aos seus sujeitos, que tiveram
uma maior regularidade nos enunciados do discurso em pauta. Maior regularidade
essa, entendida como mecanismo que, por meio da repetição, evidencia e constrói
categorias identitárias para um Tocantins. O segundo tópico analisa a memória
75
instituída pelo discurso literário de Costa Póvoa, a qual, ao dotar o Tocantins e o
povo tocantinense de um passado, também vem a ser um dispositivo que evidencia
e procura construir traços identitários para o Tocantins.
3.1 Categorias identitárias tocantinenses
Na obra de José Liberato Costa Póvoa, as categorias identitárias relativas ao
Tocantins que têm uma maior incidência e regularidade e que, na nossa concepção,
podem revelar e construir um sentimento identitário tocantinense são: o sertão, locus
eleito pelos escritos do autor como o “verdadeiro” Tocantins; as crenças e as
crendices do povo tocantinense; a subserviência, o apadrinhamento e o
assistencialismo que marcam as relações sociais desse Tocantins; a situação da
mulher, que ocupa um papel subalterno nessa sociedade; e o preconceito étnico que
permeia as relações dos personagens-sujeitos, construídos pelo autor.
3.1.1 O sertão
Para José Liberato Costavoa, o verdadeiro Tocantins é o sertão
76
,
local que garante uma vida tranquila e brejeira para o seu habitante, o sertanejo
75
A memória, que também será abordada na análise do discurso do Jornal do Tocantins, por ter, na obra
literia, um caráter mais dico e menos repetitivo do que a veiculada na Imprensa, se analisada,
aqui, com referenciais tricos diferenciados daqueles empregados, no terceiro capítulo desse trabalho.
76
Amado (1995), ressalta o fato de que a literatura regionalista brasileira muito recorreu e recorre à
categoria sertão para pensar a nação: A literatura brasileira povoou os variados sertões que construiu
56
tocantinense. É nesse espaço rural que o autor
77
vai demarcar as peculiaridades do
Tocantins de várias maneiras. Dentre essas, podemos citar o fato e o mesmo
sublinhar, insistentemente, o linguajar típico da região em seus escritos. O
tocantinense é retratado, na obra de Póvoa, como alguém que utiliza palavras
entendidas por ele e é cheio de “a pois bom”, “é apois num é?”, “ancê tiro a palavra
da minha boca” (PÓVOA, 2001, p. 55). Para Póvoa, o sertanejo é aquele que parece
um estrangeiro, tal a peculiaridade de seu línguajar
78
. Em seu livro “Um Causo Puxa
o Outro” (2001), assim se refere o autor, sobre a forma com que um peão de
fazenda se expressava:
Passávamos quase noite inteira escutando Camilo tocar viola e contar seus
causos num linguajar rico e cheio de expressões insubstituíveis, mudando o
nome das pessoas porque sua língua não dava para soletrar os nomes
certos:
-Apois, patrão, estúrdia nós fumo ajuntá um gado de Elco
-Quem é Elco, Camilo? – o nome soava-nos desconhecido.
Ele se ria como se fazendo chacota da gente ou imaginando que
estivéssemos fazendo chacota era dele, e respondia:
-Uai, num me diz qui ancê num cunhece Elco? Elco home, marido de
Dorinha e genro de Dito!
Não dava para entender mesmo, pois, o genro de tio Dito chamava-se
Wellington (PÓVOA, 2001, p. 61).
As peculiaridades do falar sertanejo podem, ainda, ser encontradas em
trechos do romance “Mandinga”, quando há o relato de um diálogo entre duas
personagens da dita obra:
É o minino?
- Nhá não. É Nezim mesmo.
- Mas onte de tarde, cond’eu saí, ele tava bem bom......
- Essa noite deu um trem nele e num se sabe o qui foi. todo opado, cum
coisa qui foi algum veneno. Chego im riba da égua ruça de Cassimiro, que
acho el’hoje, quando campiava. Ele tava adispois do currale, perto do véi
Narcísico ( PÓVOA, 1998, p. 84).
com personagens colossais, poderosos símbolos, narrativas míticas, marcando com eles forte, funda e
definitivamente, o imaginário brasileiro” (AMADO,1995, p. 3).
77
Sempre que empregarmos o termo autor, estamos por entendê-lo com o mesmo significado do
termo emissor, que para nós é aquele que é responsável pela veiculação de enunciados que se
coadunam em uma lógica, em um discurso.
78
Ver PÓVOA, José Liberato. Conversa de compadres. Goiânia: Kelps, 2001.
57
E, para exemplificar ainda mais a forma com que o emissor, em seus escritos,
sublinha o linguajar típico e pitoresco da região, citamos um trecho do conto “Cheia”,
publicado em 1994.
Os arreeiros logo cuidaram de destorcer as agulhas de arrochar a carga,
deitar fora os ligares, desapeando as bruacas e desarrochando as
cangalhas; outros, improvisando cavadores com paus arrancados nas
margens do córrego, cavoucaram a areia grossa e chorona e fizeram uma
cacimba para aquela passageira serventia (PÓVOA, 1994, p. 13).
Póvoa, em sua obra, sublinhando as peculiaridades do linguajar da área rural
do Tocantins, contribui para a construção de um traço diacrítico do povo em questão
e revela uma distinção regional, que, na nossa concepção, o literato, além de
imitar uma realidade para tornar sua obra verossímil, acaba, também, por construir
um dado novo dessa mesma realidade. Além disso, devemos destacar o fato de
que a construção ou a indicação de um traço diacrítico de um povo, por meio da
exaltação das diferenciações linguísticas, tem um papel considerável na construção
de um processo identitário , pois, como afirma Bourdieu (1989):
As lutas a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito
de propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar
de origem e dos sinais duradoiros que lhes o correlativos, como o
sotaque [linguajar], são um caso particular das lutas das classificações,
lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer
reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e,
por este meio, de fazer e de desfazer grupos” (BOURDIEU, 1989, p. 113).
Outra distinção, eleita pelo discurso em pauta, para caracterizar o Tocantins
diz respeito à culinária local. Em Mandinga, voa refere-se aos costumes
alimentares dos tocantinenses que vivem na área rural, relatando os afazeres
domésticos de uma personagem, velha Fostina: “A o-de-pilão subia e descia
compassadamente. A velha Fostina tirava fubá de milho novo, para comer amanhã o
cuzcuz breado com gordura de coco xodó”. (PÓVOA, 1998, p. 59), ainda referindo-
se aos afazeres da dita personagem: “[...] foi dentro buscar a gamela de mocotó,
para consertar e botar no fogo e depois comer com maxixe e carne seca” (PÓVOA,
1998, p. 61). Em outra passagem do mesmo romance, o emissor descreve a mesa
58
do café da manhã de outro personagem: "A paçoca de carne seca socada no pilão e
passada na gordura, o rubacão de feijão-de-corda, a caneca de café tinto de tolda
de rapadura passeavam na mesa do velho Crisóstomo" (PÓVOA,1998, p. 143).
Em uma crônica do livro “Conversa de Compadres”, publicado em 2001, o
autor descreve os utensílios domésticos de uma cozinha sertaneja da seguinte
forma:
Como dizia meu amigo Carmo Bernardes, não se pode conceber uma casa
de interior sem o pilão de pilar paçoca e socar café, o tacho de cobre bem
areado pra refinar açúcar-da-terra e fazer doce de buriti; o forno de cupim
numa meia-água fora para assar o bolo-de-arroz, a puba e o biscoito-de-
galho, e mesmo a panela de ferro cascuda para se torrar café com tolda
(PÓVOA, 2001, p. 111).
E, veiculando um forte saudosismo, o emissor compara as comidas
industrializadas com as consumidas no sertão.
O povo da cidade grande, às vezes até com raízes no interior, teima em
negar suas origens, fazendo-se de desconhecedor. Um verniz de civilização
foi o bastante para que ele tenha aderido aos pratos modernos, às
maioneses, desprezando o tutu com torresmo, o arroz com lingüiça, o palmo
e meio de carne de sol assada na brasa e o frango caipira com quiabo
gosmento [...] (PÓVOA, 2001, p. 111).
Em relação à voracidade da fome do sertanejo, o autor afirma:
O apetite do nosso sertanejo é simplesmente assombroso, pois nem
sempre o que comer. No tempo da manga, a meninada vive de cara
amarela, breada de manga; no tempo de pequi, basta se ter o sal e a
farinha, pois pirão, além de gostoso, é forte e cheio de sustança, que a
gordura o pequi
tem. Na hora do de comer, quando têm, os meninos
comem ao redor de uma gamela, traçando linhas de domínio ('Daqui prali
é
meu; dali pracolá, é seu'), dividindo o bolo em porções mais ou menos
iguais, [...]. Enquanto na cidade grande, os pais adulam os filhos para
comer, o sertanejo, de quando em vez, precisa
é
tomar à força o prato do
seu (PÓVOA, 1989, p. 30).
59
O discurso do autor está repleto de situações nas quais há uma dicotomia
entre o sertão, o “verdadeiro” Tocantins, e a cidade, e, em relação à gastronomia do
sertão, o mesmo afirma, ainda:
Nossas coisas do mato são bem mais gostosas. gosto a gente esbarrar
num brejo, onde impera um buritizal, e ficar horas esquecido roendo
buritis [...].
Um beiju (de massa ou tapioca) tem seu lugar, ainda mais besuntado de
gordura de coco. Não essa que vendem aí, desodorizada, mas aquela de
coco torrado e socado no pilão, que deixa no encastôo da língua o sabor do
mato.
Uma lasquinha de carne seca, bem seca, picada de comprido bem fina,
afogada numa panela d'água bem temperada e engrossada com farinha de
mandioca é o suficiente para uma deliciosa cabeça-de-bode, que está
desaparecendo. E quando a carne anda vasqueira e a gordura falha, o
sertanejo não se aperta: um picado de abóbora ou qualquer outro legume,
temperado com sal e pimenta, transforma-se no delicioso quibebe, que
sustenta o pobre na época da safra da roça e na escassez de carne
(PÓVOA, 1989, p. 90).
Essa dicotomia entre cidade e sertão, constante na obra de Póvoa, além de
imprimir um saudosismo deliberado em relação ao que estava sendo perdido com as
“modernizações”, delineia as representações do Tocantins e do tocantinense nos
escritos em questão. Afinal, como já frisado, para o autor, o verdadeiro Tocantins é o
sertão, espaço que é construído, em sua obra, dentro dos parâmetros da tradição.
Tradição essa, que é por nós vislumbrada, nos termos propostos por Thompson
(2008), para quem uma sociedade tradicional é aquela que, além de ser calcada na
autoridade das expectativas baseadas nos costumes, vive uma situação onde as
gerações se colocam em posição de aprendizes umas das outras e onde a lógica da
produção e do trabalho é regulada pelas tarefas e necessidades imediatas.
No discurso de Póvoa, esse sertão, que propicia uma vida calma, brejeira e
que imprime simplicidade às pessoas, é palco de situações pitorescas e bucólicas.
Várias são as passagens dos escritos do autor que revelam a paciência e a
ingenuidade do sertanejo, além de evidenciarem episódios inusitados ocorridos
nesse espaço social. Como exemplo desses episódios, podemos citar a trama
veiculada em uma crônica no livro “Conversa de Compadres”, publicado em 2001,
quando um dos personagens vai à casa de outro para matá-lo. chegando, de
manhã bem cedo, anuncia ao dono da casa, a quem queria matar, que tinha ido
para realizar tal feito. Não obstante, lhe oferecem café e, após uma longa prosa, o
60
pretenso assassino desiste de matar sua vítima e ainda a convida para uma visita
em sua casa. O matador assim chega à casa de sua futura vítima:
_Vamo encostano, cumpad' Antõe!
_ Inhor, não, a demora é curta, meu cumpadre. vim aqui a mode mata
ancê, que tenho de volta pra broca minha rocinha! Por isso truxe inté um
cumpanhêro mode abriviá! (PÓVOA, 2001, p. 8).
A nosso ver, o emissor, ao relatar a situação acima, em tom anedótico e
engraçado, imprime em seu discurso, a visão de que esse acontecimento está fora
dos padrões da civilidade e da racionalidade.
A simplicidade e a falta de informação são uma constante no
comportamento
dos personagens do autor. Em uma crônica que rememora a chegada de freiras
espanholas para trabalhar em um ginásio da cidade de Dianópolis
79
, na
década
de
1950, o autor relata um episódio ocorrido com um matuto que foi fazer uma entrega
no colégio.
Lembro-me de um dia, quando chegou um matuto para vender uma carga
de lenha no ginásio (onde as freiras moravam) e enquanto a madre
Consolata foi dentro apanhar o dinheiro para pagar o homem, ficou a
madre Glória na saleta com ele. Ficaram calados, porque ela não sabia
conversar em português, e quando o matuto falava alguma coisa ela se
limitava a arregalar os olhos sem entender, ainda mais que o palavreado
dele era cheio de 'mode que', 'esturdia', 'condafé', pondoró' e outras
peculiaridades. Vendo-se sem resposta e reparando que a madre Glória se
esforçava para entendê-Io, o homem achou que devia pelo menos
demonstrar que ele estava bem impressionado. E, querendo ser agradável,
aproximou-se da religiosa e falou todo enfático, como se estivesse
‘abafando’: - Eta diabinha danada de bonita! (PÓVOA,1988, p. 22).
Em outra crônica, o autor narra a história do major Valentin, personalidade
pitoresca da antiga Vila de São Jodo Duro, que, ingenuamente, financiava um
“curso de repetência” para seu filho em Belo Horizonte.
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A cidade de Dianópolis, antiga vila de São José do Duro, terra natal do autor, é sempre o local
retratado em seus escritos. Dianópolis localiza-se no sudeste do Tocantins, fronteira com a Bahia.
Contudo, no nosso entendimento, essa cidade pode representar os pequenos núcleos urbanos, de boa
parte do antigo norte goiano e, hoje, do Tocantins. Pois, na nossa concepção, a vida rural do sertão,
da antiga São José do Duro - hoje Dianópolis- com todas as suas agruras e encantos, podia e pode
ser compartilhada por boa parte das pequenas cidades, de toda região que, mais afastada do processo
de modernização inaugurado, na década de 1960 e intensificado no período pós autonomia do Estado,
tinha e tem uma vida mais tradicional.
61
Era o símbolo da ingenuidade: durante anos, seu filho, Aduplínio, alisou
banco aqui em Belo Horizonte, sem nunca passar do primeiro ano científico,
mas engambelou o velho dizendo que precisava de mais dinheiro porque
estava fazendo um curso muito pesado, o 'curso de repetência'. E o major
Valentim propalava aos quatro ventos a especialidade do curso que o filho
fazia (PÓVOA, 1998, p. 77).
Na mesma crônica, o autor relata um outro episódio que caracteriza a
simplicidade desse personagem:
[...] comprou uma alpercata arreada, mas foi descalço para a cidade,
deixando para calçá-Ia ao entrar na rua. 'pra nào
giblar
nos gorgulhos'.
Quase chegando, levou uma topada que lhe arrancou a cabeça do dedo.
Sua reação foi a de comentar - com Aleluia, que viera ajudá-lo a levantar-
se:
- Ainda bem que eu tava de no chão. Se tivesse calçado, era bem
riscoso desferrar minha precata nova! (PÓVOA, 1998, p. 78).
O
autor, em várias passagens de sua obra, faz menção à falta de informação
do sertanejo, que sabe o que acontece ali no sertão: "O dólar sobe, o cruzado
novo fraqueja, sai presidente da República, entra presidente da República; morre o
Papa elegem outro, e o sertanejo nem toma conhecimento nem dá notícia" (PÓVOA,
1998, p. 167). Essa falta de informação e esse distanciamento do sertanejo em
relação aos acontecimentos ocorridos fora do âmbito do sertão nos faz lembrar
Thompson (2008), que, ao estudar as práticas tradicionais vinculadas às massas
populares na sociedade inglesa do século XVIII, faz referência ao distanciamento
existente entre a gentry e as comunidades campesinas e artesãs, daquela
sociedade.
As juntas militares se envolvem em golpes e contragolpes, os pretendentes
ao trono trocam de lugar, os senhores da guerra realizam marchas e
contramarchas, mas na base da sociedade os camponeses ou os
trabalhadores nas plantations permanecem passivos, submetendo-se às
vezes a uma troca de senhores, contidos pela força das instituições
paternais locais, obrigados a se sujeitar pela ausência de horizontes sociais
alternativos (THOMPSON, 2008, p. 40).
Quando o sertanejo vai para a cidade grande, muitas são as gafes que
comete. Em uma crônica intitulada "'Ratas' o são novidades", o relato de um
62
grupo de Natividade, cidade vizinha de Dianópolis, ao sul do Tocantins, que, em
viagem para Goiânia, coloca dinheiro no lixo pensando estar contribuindo com a
limpeza da cidade.
Mas história mesmo foi a "rata' que deu uma turma aqui da vizinha
Natividade, quando, logo depois da Revolução, esteve passeando em
Goiânia. Além de ser fato mais ou menos recente, integrava gente dita
experiente, vivida, que fizera viagens por aí. Logo após a posse de um
diligente prefeito, este decidiu fazer uma campanha de limpeza na cidade,
mandando espalhar em cada esquina uma cesta de lixo muito vistosa, com
os dizeres: 'COLABORE COM A PREFEITURA', 'AJUDE A LIMPEZA
PÚBLICA'.
Pois a turma de Natividade voltou quase sem dinheiro, de tanto 'colaborar'
com a Prefeitura, botando dinheiro nas tais cestas, na mais eloqüente
demonstração de seu espírito público (PÓVOA, 1998, p. 176).
Percebemos que o sertanejo tocantinense é construído, nesse discurso, como
um sujeito acrítico, desinformado, simples, ingênuo, sem iniciativa e sem espírito
empreendedor.
Com a falta do que fazer, o sertanejo vive é zanzando de um lado para
outro, inteiramente desprovido de iniciativa. Em vez de plantar uma roça
que lhe assegure o de comer durante um ou dois anos, alguns se limitam a
brocar e plantar um quintalejo com umas touceirinhas de arroz, umas covas
de milho, escassas toras de manaíba para garantir a mandioca e uma ou
duas moitas de cana para terem o doce de temperar o café e a garapa dos
meninos (PÓVOA,1998, p. 187).
Nesses enunciados, está implícita uma visão depreciativa da sociedade rural
tocantinense representada e construída por Póvoa. Essa depreciação revela uma
ambiguiidade nesse discurso, pois, como vimos, o emissor, em várias crônicas e
contos, enaltece o sertão, a vida brejeira e calma do sertanejo, mas, como no
fragmento citado acima, o mesmo não consegue relativizar a concepção de tempo e
de produção de uma sociedade que é representada e construída por ele como
tradicional. A nosso ver, essa depreciação das relações produtivas ocorridas no
sertão provém da situação social do autor, o qual, que por ser oriundo das esferas
sociais privilegiadas da sociedade em pauta, veicula a visão de mundo desses
segmentos, que, ilustrados, não conseguem fugir da percepção de que a
modernização e todos os seus atributos formam o parâmetro de organização
63
econômica, social e cultural a ser seguido. A visão de que o sertanejo não possui um
espírito empreendedor é também expressada na narrativa feita sobre o personagem
major Tonhá, comerciante da Vila do Duro. Com ares aristocráticos e de inteligência,
Tonhá não encerrava uma boa conversa para vender alguma mercadoria da sua
loja.
-‘Seo’ Tonhá, tem agulha?
- Tem não! Respondia sem desgrudar os olhos do jornal.
-Mas minha mãe disse que comprou hoje aqui....
Ele voltava para o pequeno freguês, olhava-o demoradamente medindo-o
da cabeça aos pés, e respondia meio reticente:
-Ter, tem.......
E voltando-se para o jornal, pisava no pescoço da conversa:
-...mas não tem quem despache! (PÓVOA, 2001a, p. 78)
Esse personagem/sujeito construído pelo emissor delineia a possibilidade da
existência de um tipo social no sertão que não vive conforme a lógica de mercado,
do lucro, e que age conforme o seu prazer e a sua satisfação. Portanto, o sertanejo
construído na obra em questão vive um mundo exclusivo, seu, e tem uma vida
tranqüila, pacata, em que a iniciativa não se faz presente. Ainda em relação à falta
de iniciativa, que, conforme o autor, chega às raias da indolência, os seguintes
enunciados: “[...] a indolência do sertanejo não lhe abre os olhos para a necessidade
de construir pelo menos um cercado para livrar as galinhas de um eventual ataque
noturno de bicho do mato (PÓVOA, 2001a, p. 134). Vemos nesses enunciados que,
mais uma vez, o emissor não consegue relativizar a concepção de trabalho e de
tempo desse sujeito social, que, inserido por ele em uma sociedade tradicional, sem
os valores e os princípios da produção capitalista, concebe o trabalho como uma
atividade ligada à necessidade imediata e não o vislumbra como um processo
distinto de outras atividades de seu cotidiano.
Outro atributo do sertanejo impresso pelo discurso do emissor é a sua
hospitalidade. Em uma crônica há o relato do fato de os naturais da terra terem as
portas de suas casas sempre abertas, enquanto os “chegantes” vivem com suas
portas fechadas, demarcando uma fronteira entre o sertanejo e o forasteiro que
chegava ao sertão. “No interior o costume de se deixar a porta da rua aberta fez com
que o povo do Rio de Conceição, (cidadezinha a seis léguas de São José do Duro)
achasse um tanto estranho que a casa do chegante José Antônio permanecesse
64
com a porta fechada (PÓVOA, 2001b, p. 15). Viver com as portas de casa abertas,
sem grandes preocupações, de forma calma e brejeira: essa é a vida nesse sertão,
a qual o discurso analisado enaltece, mas também - por meio do anedótico e de uma
visão depreciativa, sobretudo em relação a falta de espírito empreendedor do
sertanejo- deprecia.
3.1.2 Crendices e crenças
Muitos são os enredos dos escritos de Póvoa que constroem e representam
um sertanejo afeito a crendices e crenças. São tramas pautadas em lógicas que
legitimam aparições de mortos, feitiços e outras práticas sobrenaturais como
fazendo parte do cotidiano daquele sertão. Em seu romance “Mandinga”, o autor
descreve o medo de um personagem, Zezinzão, em percorrer um trajeto à noite em
busca de uma benzedeira para um velho vaqueiro à beira da morte:
O medo aumentava, quando lhe vinha à mente a figura de Jesualdo de
Tintim, que diziam estar aparecendo nas encruzilhadas, com o bucho de
fora; o velho Narcísio, que, vez em vez, estava safanando as rédeas do
animal de algum viajante solitário; pensava nos causos de visagem que
pulavam na garupa dos cavaleiros. Zezinzão dava ganas de chorar. [...]
Para culminar o medo, sem querer lembrou-se de que estava numa noite de
sexta-feira. O lobisomem. O canjuri. O pé-de-garrafa. A mula-sem-cabeça.
Tremia que nem vara verde. Com os olhos fechados, Zezinzão tinha medo
de abri-los. Imaginava-se no meio de uma multidão de fantasmas
marchando [...] (PÓVOA, 1998, p. 100).
Em seu livro de crônicas, “De Guela a de Janta - Os Causos que o
Duro Conta”, publicado em 1989, a narração de uma história em que a praga de
uma mãe atinge um filho, Romanzinho. Esse personagem, ainda menino, ao
provocar uma discórdia entre seus pais, que resultando na morte de sua mãe, foi
amaldiçoado por esta antes de morrer: "a partir de então, passou a vagar pelo
mundo, com o espírito do capeta encarnado, caçando jeito de atentar o povo."
(PÓVOA, 1989, p. 23). Na mesma crônica, o autor descreve a história de um menino
que desaparecera no sertão por dez dias na época de cheia; quando dado por
morto, o mesmo é encontrado e alega ter sido cuidado, todos esses dias, por sua
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madrinha: "Todas as noites, a madrinha dele colocava-o em cima de um pau para
não ser comido por bicho do mato" (PÓVOA,1989, p. 24).
O autor registra em seus escritos que a crença da existência de olho e
mão ruim no sertão tocantinense. Em relação a olho ruim, Póvoa afirma:
certas pessoas que não podem sequer conversar num recinto onde haja
alguém doente, que dirá olhar a pessoa: se existe ferimento novo, advém
logo uma hemorragia; se o ferimento estiver em fase de cicatrização, a
inflamação é certa, e casos em que, seco e sarado, assim mesmo não
está escapo de inflamar-se. Se houver um doce ou sabão sendo preparado,
e uma dessas pessoas vê, pode jogar fora: o doce fica ralo, não chegando a
ficar de corte, e o sabão não liga a ponto de ficar em barra. O trem derrenga
e raleia a ponto de virar água (PÓVOA, 1989, p. 25).
Para abordar a crença da existência da mão ruim, o autor descreve uma
situação contada pelo seu pai:
Contava meu pai que no quintal de meu avô existia um de croá (um fruto
no feitio de melão, de cor roxa e sabor enjoativo, que o dicionário chama de
caraguatá), e um negrinho, cria da casa foi incumbido de ir apanhar uma
daquelas frutonas. O negrinho se escusou, dizendo ter mão ruim, mas era
ordem. Refugando, o negrinho foi, mas prevenindo que não ia dar certo
aquela tiração de croá, que mandasse outro arrancar, que ele não queria
levar culpa. Empurrado pela autoridade de mando, foi. E trouxe o croá. De
tarde, o da fruta estava murcho; no dia seguinte, as folhas estavam
apontando pro chão e o viço perdera-se como se medonha solama
houvesse sugado a seiva e o verde (PÓVOA, 1989, p. 26).
Como já afirmamos, na lógica discursiva de Póvoa, o sertão é cheio de
crendices, lugar onde os mortos se comunicam com os vivos e as assombrações
são perfeitamente normais. Nesse local, onde o sobrenatural parece ser plenamente
aceitável, os mortos aparecem em sonho para os vivos, apontando os lugares onde
tesouros escondidos: "se pode tirar dinheiro dado por defunto uma vez. Caso
se fracasse, adeus! A alma aparece em sonho a outra pessoa e mostra o local".
(PÓVOA,1998, p. 39) Ainda em relação à riqueza deixada por defuntos, o autor
afirma:
Diz o povo que defunto que deixa dinheiro enterrado não encontra sossego
no outro mundo enquanto não vem de oferecer a algum vivente o que
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deixou oculto, às vezes em locais funestos - taperas abandonadas, cruzes-
das-almas, portas de cemitérios, às vezes dentro da própria casa.
Adianta a tradição que no momento do desenterro sobrevêm gemidos, me-
acodes, 'ai, meu Deus do céu!' e outras aleivosias, que seriam artifícios do
Capeta para desencorajar o ganhador, uma vez que a alma doadora dele se
libertaria no momento em que o ouro deixasse a terra (PÓVOA,1989, p. 43).
Defuntos que aparecem em sonho para dizer o local em que estão enterradas
fortunas, simpatias que curam e levam a encontrar assassinos fazem parte das
crendices do sertão tocantinense delineado pelo discurso do autor. "Ouvi dizer que
quando uma pessoa é assassinada, é colocar na boca do morto uma moeda, que
o criminoso fica sem achar jeito de fugir, acabando por entregar-se." (PÓVOA, 1989,
p. 59). Em “Mandinga”, o filho de um dos personagens centrais do romance, um rico
e poderoso fazendeiro da região, é submetido a um tratamento nada convencional
para curar-se do vício do alcoolismo, o chamado "cura-chilado":
Quando a bebida tomava conta de uma pessoa, levavam-na dormindo e
colocavam-na no cemitério, em cima de um túmulo, bem fundo, rente ao
muro do campo santo. Quando o sujeito acordava e - olhando para um lado
e para o outro- não via vivalma, a não ser caburés e corujões piando feio
sentados nas cruzes, assombrava-se e não queria mais, nem por alto, ouvir
falar em pinga (PÓVOA, 1998, p. 114-15).
Para o discurso do emissor, o sertão tocantinense é o locus onde a crença no
irracional é comum e a explicação da realidade se dá, muitas vezes, através do
mítico. Em outra passagem do romance “Mandinga” (1998), a narração da caça
de uma onça que, durante muito tempo, provocava medo nas fazendas em meio ao
sertão. Essa onça era considerada a encarnação do pai de um importante
fazendeiro da região, e contava-se que a mesma foi morta porque um vaqueiro
mandara fazer uma bala benta: "[...] e assim conseguira quebrar a mandinga do
espírito do pai de Antoninho Leitão encarnado na besta-fera" (PÓVOA, 1998, p. 86).
Em uma crônica do livro “Conversa de Compadres”, o emissor descreve um
local que, em função das várias assombrações nele acontecidas, tornou-se muito
temido por todos os habitantes da Vila do Duro:
É verdade que a cruz-das-almas que marca as saídas de todo lugar e onde
se enterram os anjos pagãos, são locais tidos como visagentos, mas a
67
Tapera da Oração era mais que a cruz-das-almas, os cemitérios das
chapadas e os locais de ouro enterrado, pois não se pode contar nos dedos
o número de gente que teve arrepiantes visagens, ouviram gritos lacinantes
e gemidos, ais, me-acodes, ai-meu-Deus-do-céu, naquela tapera (PÓVOA,
2001, p. 10).
Conforme os enunciados em análise, poderes sobrenaturais povoam o
imaginário do crédulo sertanejo tocantinense, sendo que muitas lendas e mitos são
utilizados para explicar o mundo do sujeito construído no discurso em questão.
Mitos e lendas fazem parte da vida do sertanejo [...].
Aqui nas minhas bandas do Tocantins, o se sabe o que é saci-perêre,
mas já se fala em mula-sem-cabeça que dizem foi amante de um padre.
Muito se fala, nos locais ribeirinhos, no negro-d' água e na mãe-d'água, e
em todos os pontos do sertão, teme-se o pé-de-garrafa, que a imaginação
sertaneja pinta de diversas formas, mas sempre com o de solado
redondo que faz um rastro semelhante ao fundo de uma garrafa, daí seu
nome (u.).
Um mito, mais temido que o próprio lobisomen e que a mula-sem-cabeça, é
peculiar da minha região e cujo nome nem mesmo consta nos dicionários e
tratados de folclore. É o canjuri, que o povo concebe como um caixão cheio
de ossos que fica rolando nas encruzilhadas e fazendo o barulho arrepiante
de tíbias e caveiras na madeira seca, ecoando longe e assombrando os
cavaleiros (PÓVOA, 1998, p. 117).
Na gica das crendices e superstições, o sertanejo construído por Póvoa
encontra a cura de seus males através das práticas de curandeiros e benzedeiras,
personagens extremamente respeitados nos enredos e nas tramas em análise:
No município de Conceição do Tocantins, é legendária a figura de
paraguaio, um misto de curandeiro e rezador, cuja fama deixou raízes:
curava doenças, livrava fazendas de cobra, fazia cachaceiro arrenegar a
bebida. Morto paraguaio em época que não cheguei a alcançar,
permaneceram o velho Severiano, nas terras de Azevedo e Maria
Segurada, na Cabeceira Verde. Severiano é o que se pode chamar de
'rezador', realizando prodígios - segundo o povo - a poder das rezas fortes,
indo gente de longe para os mais diferentes casos. Maria Segurada, por seu
turno, era a 'curandeira', que não mexia com rezas e feitiços, mas curou
males brabos de gente desenganada pelos médicos (PÓVOA,1998, p. 183).
Mais uma situação envolvendo a esfera sobrenatural é narrada em uma
crônica, em que um jovem muito confiável vai visitar a mãe de um amigo falecido.
68
Dali a pouco, Tia Palmira viu Berto perder a cor, apoiar o rosto nas mãos
escoradas nos joelhos pelos cotovelos, e transpirar muito, a ponto de em
poucos minutos empapar a camisa. Ela o chamou várias vezes trazendo-lhe
algo para beber, a fim de tirá-lo daquele estado de agonia, parecendo uma
vertigem. Muito depois, Berto se recompôs e, diante da perplexidade de Tia
Palmira, conseguiu falar:
- Era seu fio. Ele apareceu nesse lugá e falô cumigo. Ele me pidiu mode
manda reuma missa pra ele. Mas ele quê a missa é cum as rezas veia!
(PÓVOA, 2001, p. 25).
Percebemos, nos enunciados acima, que o emissor, além de construir um
sertanejo que o âmbito do sobrenatural como algo corriqueiro e normal, ao fazer
menção a uma “missa cum as rezas veia”, imprime no mesmo um sentimento
religioso provindo de práticas populares não institucionalizadas. Para o sertanejo
representado e construído por voa, a religiosidade é algo inerente ao seu dia-a-
dia, é ela que, através de festas de santos, folguedos e outras comemorações,
organiza o calendário da sociedade em questão. Em seus escritos, o emissor assim
narra os rituais de Páscoa acontecidos na antiga São José do Duro:
No tempo da Quaresma, era costume fazer-se penitência: jejum, rezas e
peregrinação no meio da noite fazendo lamentações nas proximidades dos
cemitérios e sepulturas perdidas nas chapadas que circundam São José do
Duro.
Na igreja, os santos eram cobertos com espesso tecido roxo em sinal de
luto, que era aberto no Sábado de Aleluia, quando a meninada se reunia em
grupos e perambulava de porta em porta pedindo arroz, feijão, carne,
gordura e farinha cantando:
‘Aleluia, Aleluia
Carne no prato,
Farinha na cuia,
Fogo no Judas!’ (PÓVOA, 2001, p. 19).
O autor continua a mesma crônica descrevendo as rezas da Quaresma da
seguinte forma:
Lá longe no meio da chapada, ouvia-se um puxando a reza:
‘Lá vai outro padre-nosso,
Irmão das Almas,
Pra Fulano de Tal...’
Outro, do lado de lá, secundava, completando:
‘...que morreu de mal-nos-peitos,
Irmão das almas!
A matraca tinia seco no oco da noite, representando a dor do mundo na
Quaresma (PÓVOA, 2001, p. 20).
69
Em outra crônica, há a narração das visitas de um padre a São José do Duro,
o qual, conforme os enunciados em análise, era querido por todos os habitantes da
cidade e considerado um santo.
Todo mundo que o conhecia considerava-o santo. O mais empedernido
pecador e o mais cético jamais deixaram de levar do padre Luso Matos uma
impressão de santidade. [...].
Nas festas religiosas, quando ainda não tínhamos vigário, e na época das
desobrigas e de primeira comunhão, muitas vezes quem vinha era o padre
Luso, que a cidade recebia euforicamente: a igreja enchia-se, as procissões
ganhavam mais fiéis, a via-sacra tinha maciça participação. [...].
Hóspede precioso, padre Luso era disputado por todas as famílias, que
tinham a sensação de hospedar um anjo (PÓVOA, 2001, p. 51-3).
Nos enunciados acima vemos o quanto o emissor sublinha a religiosidade do
povo tocantinense, evidenciada na crença da santidade de um padre e no amor que
toda a comunidade nutria pelo mesmo. E, como já afirmado, conforme o discurso em
questão, muitas vezes essa fé é vivenciada nas festas religiosas de cunho popular.
Em uma crônica intitulada “O Giro da Folia”, o emissor faz os seguintes relatos:
Por ocasião de determinadas festas religiosas a dos Santos Reis, do
Divino Espírito Santo, do Senhor do Rosário, por exemplo - o festeiro,
escolhido no ano anterior, promove a folia, reunindo um bando de foliões
que percorrem o sertão angariando esmolas para o santo da festa. É a
ironia de pedir esmolas a quem dela esprecisando. Mas o fervor religioso
e a força da fé desconhecem dificuldades. [...]
O mais pobre dos sertanejos sacrifica o último bacorinho, a derradeira
galinha poedeira e consome todo mantimento restante no paiol para tratar
bem a comitiva que lhe trouxe o privilégio de abrigar por uma noite a
bandeira da misericórdia (PÓVOA, 1989, p. 55).
O emissor continua:
De manhã, repete-se o ‘beijamento’ da chegada, o alferes percorre todos os
cômodos da casa, para depois cantar o agradecimento e sair com a folia
ruflando a caixa estrada afora, até que os ouvidos piedosos percam o som
dos mensageiros da bem-aventurança, que prosseguem o ‘giro’, deixando
atrás uma família como que bafejada pelo espírito sagrado, por ter
agasalhado o santo, representado por aquela bandeira enfeitada de fitas
coloridas e rendilhada de notas de cruzeiro que mãos trêmulas de emoção ali
pregaram com alfinetes e até com espinho de tucum (PÓVOA, 1989, p. 55).
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Através dos relatos citados acima, vemos que o emissor, ao delinear e
enaltecer as práticas religiosas da cultura popular regional, está, mais uma vez, por
imprimir e, também, por indicar um traço identitário ao povo tocantinense: povo
pobre que, com uma incontestável, homenageia os santos e lhes credita
esperanças.
3.1.3 Subserviência, apadrinhamento, assistencialismo
Nos enredos dos escritos de Póvoa, as relações estabelecidas entre os seus
personagens/sujeitos, caracterizam os menos aquinhoados como subservientes e
humildes, o que, sem dúvida, imprime mais um traço identitário a essa sociedade
representada e construída pelo discurso em pauta.
“Quem me de vez em quando e toma conhecimento de causos e
passagens ocorridos no sertão tocantinense, já formou uma concepção do sertanejo:
crédulo, subserviente, humilde” (PÓVOA, 2001, p. 132).
As características dos sujeitos sociais construídos pelo discurso veiculado por
Póvoa podem ser vislumbradas quando analisamos as relações estabelecidas entre
as personagens dos seus escritos. Afinal, essas relações, além de caracterizarem a
personalidade desses sujeitos, veiculam as práticas sociais que permeiam essa
sociedade representada e construída na lógica discursiva do autor. O sujeito de
Póvoa, apesar de viver as agruras de uma vida simples e rude, mantém a
docilidade, a qual, quando esse sujeito é oriundo de segmentos sociais menos
privilegiados, acaba por lhe imprimir a marca da subserviência em relação aos mais
abastados e poderosos. A narrativa da morte de um vaqueiro sexagenário que
trabalhou a vida inteira para uma família de abastados fazendeiros nos acesso
tanto às características da personalidade desse sertanejo construído pelo emissor
como ao papel atribuído ao mesmo nas relações sociais estabelecidas nesse
Tocantins:
Apesar do achavascamento, o Capitão afinal decidira olhar o velho
vaqueiro, o homem de confiança que, durante todos aqueles mais de vinte
anos, não medira forças para cuidar do que era do patrão, como se fora
seu. Era fazer pena o estado do velho Canela. Estirado numa cama de
71
varas forrada com um couro de gado, embrulhado numa coberta de algodão
virgem, com um gemido doloroso na garganta, voz entrecortada pelo
bafume no peito, e umas pontadas na passarinha. Mesmo assim, os lábios
do negro velho se abriam num sorriso ao lobrigar o vulto do patrão
adentrando o quartinho escassamente alumiado pela chama esmorecida de
fifó dependurado no esteio. Negro velho foi sempre fiel. Negro Velho
merece viver mais. [...] A estrada de Negro Velho está caminhando para a
encruzilhada. O dia de Negro Velho está descambando para boca da noite,
mas a noite de Negro Velho vai ser cheia de estrelas ao redor de uma luona
bonita como a que Negro Velho sempre ficava admirando no terreiro
(PÓVOA, 1998, p. 97).
Ainda sobre a morte do mesmo personagem: "Negro Velho parecia ter
morrido alegre, levando o alforje calculado de bondade, de sorrisos, de
subserviência, que sempre marcaram sua vida motivada apenas pelo apego ao
patrão" (PÓVOA, 1998, p. 108).
A subserviência do sertanejo de Póvoa pode, ainda, ser exemplificada com a
descrição da personalidade do personagem Joaquim Cursino: “Prestativo, serviçal,
disposto a fazer tudo para agradar, Cursino vivia arqueado por um escadeiramento
causado pelo peso. Dava a vida e um pedaço da alma para agradar meu pai, seu
padrinho, e em cujas terras morava” (PÓVOA, 2001b, p. 3).
Essa subserviência, quando há abuso de autoridade por parte dos poderosos,
leva os indivíduos a situações vexatórias. No romance “Mandinga”, assim é recebido
um vaqueiro que chega à casa de um fazendeiro:
-Boa tarde, ‘Seo’ Antunim!
Com cara de poucos amigos, Antoninho Leitão:
assim que se chega na casa de homem de bem? É assim que se salva
uma pessoa honrada?
Boa velho ficou sem entender, e aventura:
Nhor não; se num é assim, cumo haverá de sê?
-A primeira coisa que cê deveria ter feito – ta escutando?-
Era, de cima do animal, ter falado: ‘Ô de casa!’; então eu respondia: ’O de
fora! Apeia e chega pra dentro!’ agora cê volta, monta, vai até aquela
rodeira de carro e faz isso!
Boa morde o beiço, olha a cara do homem, volta, monta, caminha uns dez
passos, faz que tá chegando:
-Ô, de casa! (PÓVOA, 1998, p. 71).
Os abusos de autoridade nem sempre se restringem ao âmbito do engraçado,
como na citação anterior, em “Mandinga”, há relatos de truculência cometida por um
capataz que prende um homem, ladrão de porcos.
72
No chão um homem amarrado fortemente com as mãos pra trás deixava ver
o relho fino entrando-lhe nos pulsos, que as mãos estavam inchadas e
vermelhas. Apresentava-se humilde, com roupa de algodão grosso quase
esmolambado, rosto suplicante pregado no tauá da ladeirinha, deitado de
bruços, cercado de curiosos, que se limitavam a comentar sussurrantes,
sem, no entanto, ousarem enfrentar o vozeirão e a zanga de Magro. O
prisioneiro nem podia esboçar o mínimo gesto de defesa ou reação, que o
firme e pesado de Magro estava plantado em suas costas (PÓVOA,
1998, p. 145).
No discurso literário de Costa Póvoa, a evidência de que os segmentos
sociais privilegiados, da região, vivem acima da lei, agindo conforme os seus
interesses, sem limitações. Em uma passagem do romance “Mandinga”, o emissor
assim se refere a Júlio, personagem filho de um grande fazendeiro da região do
Duro que rouba a esposa de um vaqueiro e depois a abandona: “[...] no sertão, filho
de rico faz o que quer: bebe, afronta, assoberba e faz até besta dos outros"
(PÓVOA, 1998, p. 78). Seguindo essa mesma lógica, o autor afirma que no sertão
as leis são feitas pelos mais fortes, ou seja, pelos privilegiados: "no sertão, onde a lei
do mais forte prevalece, a lei de talião costuma ser aplicada" (PÓVOA, 1998, p. 67).
A sociedade tocantinense de Póvoa, além de conviver com o mandonismo
dos poderosos, é também permeada de relações de apadrinhamento e
assistencialismo. Em vários enredos, a narração de práticas em que os
personagens mais abastados do lugar, especialmente em função de terem inúmeros
agregados, “auxiliam” aqueles oriundos de segmentos menos aquinhoados.
[...] cuidaram da sobrevivência de Chico: mãos caridosas juntaram
documentos e certidões para aposentá-lo. E aposentou-se. E dava todo o
seu dinheiro – dinheirinho de pouca serventia para outro qualquer, mas para
ele muito para uma pessoa controlar e assim evitar que ele saísse
distribuindo para os mais desgraçados da sorte (PÓVOA, 2001a, p. 110).
Um outro exemplo de apadrinhamento e assistencialismo caracterizando as
práticas sociais da sociedade representada e construída por Póvoa é o da
personagem Evarista, espécie de dama de companhia da mãe do autor.
Mãe nunca teve natureza de ralhar com os mais de sessenta netos, que
vivem botando a casa ao avesso, e dona Evarista, que ela arranjou na
Bahia, se incumbia de dar o basta à traquinagem da meninada. Tão certo se
73
deram, que mãe arranjou sua documentação e aposentou-lhe pelo Funrural.
Era a companheira de missa, de conversa e uma zelosa caseira. [...] Há
poucos anos more-lhe dona Evarista, após mais de duas décadas de
companheiragem (PÓVOA, 2001b, p. 69).
No discurso veiculado pelo autor, notamos que, além das relações de
apadrinhamento serem constantes, as famílias mais pobres permanecem por
gerações na condição de agregadas dos mais privilegiados financeiramente.
Manoel Corrente, mas era simplesmente Velho, atravessando a casa
dos mais de setentanos, morando com minha mãe, como gente da família,
continuando a tradição de ver passar sob o teto de casa quatro gerações
dos Corrente: a velha Maria Corrente (filha de Chica, sobrinha de Né) e
Nádia (filha de Chica, sobrinha de Né). As duas primeiras morreram, as
duas últimas foram-se embora (voltando muito tempo depois). Ficou
(PÓVOA, 2001b, p. 33).
Também sobre a família Corrente, o autor comenta, em outra crônica:
Nesse negócio de criar filhos dos outros, em casa existe até a
particularidade de ter passado sob o seu teto nada menos que quatro
gerações: a velha Maria Corrente, mãe da velha Chica, mãe de Maria
Corrente Neta, mãe de dia. A velha Maria Corrente foi cria de meu avô, e
depois de Chica meu pai é quem pegou a incumbência de acabar de criar
as três gerações. A bisneta da velha Maria Corrente, Nádia Maria, morou
com minha irmã Regininha, ‘emprestada’ por minha mãe para a ajudança da
criação dos netos (PÓVOA, 2001b, p. 67-8).
Está evidenciado, nas citações acima, que a sociedade tocantinense foi
reelaborada pelo emissor com um viés extremamente tradicional, o qual
respalda os
mais privilegiados a manterem, em suas famílias, gerações de agregados, podendo,
inclusive, “emprestá-los” entre si. Resguardadas as diferenças, é o que Thompson
(2008), analisando a sociedade tradicional inglesa do século XVIII, entende como
relações sociais que favorecem o controle por parte dos mais aquinhoados, que
essas relações parecem, ao mesmo tempo, econômicas e sociais, relações entre
pessoas, e não pagamentos por serviços e coisas. São, ainda conforme esse autor,
relações de poder mascaradas pelos ritos do paternalismo e da deferência.
74
É importante salientar, também, que esse discurso evidencia uma lógica que
percebe essa situação de dependência e de exploração como algo dentro dos
padrões da normalidade. Sem dúvida, essa lógica esestreitamente ligada com à
situação social do emissor, que, oriundo de uma família tradicional que mantinha e
mantém essas práticas, as considera normais e até benéficas para ambas as partes:
senhores e agregados.
3.1.4 A mulher em papel subalterno
O papel atribuído à mulher nos enredos e nas tramas em pauta é o de
submissão. Geralmente assumindo uma posição de dependência em relação ao
poder masculino, a mulher aceita vivenciar situações nada corriqueiras. Em uma
crônica publicada em 1989, o emissor narra a história de um comerciante que
coabitava com a esposa e a amante e, não obstante essa situação, eram as duas
que trabalhavam para ele no comércio, além de serem submetidas a situações de
exploração e vexame.
Um dia, morreu um cavalo perto da casa dele. Como o pesado do serviço
era incumbência das mulheres, ele ordenou:
Arrastem o cavalo o joguem no rio!
As pobres escravizadas entreolharam-se com olhos
indagativos, uma teve coragem de inquirir:
Jogar, como? A gente não vai dar conta de arrastar um cavalo Zé Antônio!
Ele deu o jeito: foi lá dentro, pegou um machado e entregou a elas.
E o povoado de Rio da Conceição inteiro assistiu à inusitada cena das duas
mulheres esquartejando o cavalo e jogando no rio enquanto ele ficou
deitado no balcão da loja contando caso de onça sem cachorro (PÓVOA,
1989, p. 82).
No final dessa crônica, as duas mulheres abandonam o truculento
companheiro; porém, o fato de elas terem aceitado coabitar na mesma casa e
passar todo tipo de exploração é significativo para caracterizar o papel feminino
nessa sociedade. Em outras passagens dos escritos do autor, também é
perpassada a ideia de que a truculência masculina é algo comum nas relações entre
homens e mulheres desse Tocantins: "Explodindo de raiva, o pai foi para casa e
castigou a inocente mulher de tal forma que lhe provocou a morte" (PÓVOA, 2001a,
75
p. 13); "Ao voltar, Santo aquis matar a mulher, que fugiu para casa do pai, com
quem passou a viver, o sei se até hoje, pois mulher
é uma
nação de gente que
costuma voltar com a mesma constância" (PÓVOA, 2001a, p. 92).
Em uma outra crônica, o autor narra a história de um casal em que a esposa,
infértil, aceita criar os filhos de seu marido com a amante.
[teve] com Ondina, costureira de boa procedência moradora a cem metros,
na mesma praça, um filho, que veio acender no íntimo do coletor a chama
da felicidade. [...].
De pequeno, o menino passou a morar nas duas casas, pois Minervina,
apesar de uma inicial e natural repulsa em conviver com aquele
bastardinho, acabou aceitando-o e tendo-lhe muita afeição, talvez para
compensar sua esterilidade. Até casar-se, Charles/Renivan gozou de todos
privilégios na casa de Minervina, a quem chamava de Mãe Ina. [...].
Quando o primogênito estava grandinho, e vendo que não houvera reações
no lar, Osório arranjou o segundo, Ubirici, que lhe herdou a cor da pele. [...].
Por derradeiro, nasceu Zeila, hoje moçona, que veio trazer o toque feminino
à família. Os três foram criados com a mãe e com Minervina, que lhes deu
educação, carinho, afeição, como se eles tivessem brotado de seu estéril
leito (PÓVOA, 1989, p. 135-6).
Vemos, na citação acima, que nessa sociedade delineada pelo autor os
homens fazem praticamente o que querem, enquanto que à mulher é reservado um
espaço de aceitação e compreensão. Em outra crônica, em tom anedótico, o autor
narra a história de um fazendeiro que, nos casamentos de suas filhas, fazia grandes
festas, enquanto que, no casamento de seu único filho não fez nenhuma
comemoração, pois, nas palavras do próprio personagem: “- No caso das meninas,
eu fiz festa porque estava dando a carga pros burros; desta vez, não tenho motivo
pra festa:eu que estou fornecendo o burro pra carga!” (PÓVOA, 1989, p. 140).
Em seu livro de crônicas, "De Goela a Pé de Janta:" Os Causos que o
Duro Conta (1989), o emissor narra a história de Rosinha, uma migrante dele
conhecida que chega na Vila do Duro com filhos pequenos e viúva. Mulher forte e
batalhadora, Rosinha integra-se à sociedade local, casa-se com um natural da terra
e, mesmo separando-se, consegue criar seus filhos com dignidade. Porém, no final
da crônica, o emissor relata o fato de que, surpreendentemente, ele descobrira,
através de um filho de Rosinha, adulto, que ela era um homem: "Mas Ramiro me
advertiu que embora todo mundo conheça Rosinha, é melhor mesmo é chamar pelo
seu nome de batismo: Rosalino José Rosa" (PÓVOA, 1989, p. 94). Ou seja, na
76
lógica discursiva em pauta, uma mulher forte e independente na verdade poderia
ser um homem.
Nessa mesma lógica, outra personagem, Dona Goiana, fazendeira muito
dinâmica da Vila do Duro, evidencia a idéia de que uma mulher forte e trabalhadora
não pode conciliar suas atividades com uma vida feminina.
Dona Goiana, que por notícia de Posse, era daquelas mulheres destemidas,
que enfrentam qualquer pega-pra-capar: [...] Pouca gente conheci que
tivesse a disposição de Dona Goiana: sozinha, administrava a peonagem da
fazenda, labutava em tudo quanto era serviço, chamando o vaqueiro às
falas quando era necessário, vendendo gado, fazendo cercas, comprando
bezerros, na rua, sustentando o comércio com armazém de secos e
molhados (PÓVOA, 2001a, p. 152-3).
E o autor continua:
Casada com o legendário Cel. Abílio Wolney, pouco durou a união, que se
desfez sem ressentimentos, e viviam os dois pacífica convivência, cada um
na sua casa, e acho que sua natureza de cigana era uma pedra no caminho
de dona-de-casa, que talvez ela o tivesse paciência de ficar ali dentro de
casa confinada num pequeno universo onde a administração se resumia no
lavar roupas, varrer casa e fazer o de comer (PÓVOA, 2001a, p. 153-4).
Percebemos nos enunciados das citações acima que mulheres fortes e
destemidas ou não são mulheres propriamente ditas, como é o caso de Rosinha, ou,
por não vivenciarem uma situação de donas de casa, não podem manter, por
exemplo, um casamento. Submissas ao poder masculino, raramente as
personagens femininas de Póvoa contrariam a vontade dos pais ou maridos, e
quando isso ocorre, as mesmas, muito ingênuas, são ludibriadas e enganadas,
vivenciando uma situação trágica. Esse é o caso de Marta, que, para casar-se com
um forasteiro contra a vontade de seu pai, finge estar grávida. Em função da falsa
gestação, contrai núpcias com o consentimento dos pais e vive uma tragédia. O
marido, após o casamento, demonstra ser mau caráter, e quando o pai da moça
descobre que ela não estava grávida, assassina o genro.
77
Transtornado, o velho Borges pegou uma garrafa que havia em cima da
mesa, quebrou-lhe o fundo com uma pancada firme na quina do portal e
avançou pra cima do genro, que nem teve tempo de se levantar da
espreguiçadeira: levou vários e pidos golpes pela cabeça e pescoço e
ficou ali mesmo todo ensangüentado, apenas folguejando, morrendo em
poucos minutos com a jugular aberta, enquanto o velho, transtornado, batia
a porta e saía (PÓVOA, 1994, p. 89).
Outra situação trágica decorrente de um comportamento feminino que foge à
obediência é a que acontece com Petronília. Essa personagem, casada e com dois
filhos pequenos, apaixona-se pelo filho de um rico fazendeiro e foge com ele.
Abandonada pelo amante, tenta voltar para casa, mas é rejeitada pelo marido e não
pode reaproximar-se dos filhos.
Júlio enfiara conversa besta no ouvido de Petronília, mulher de Rãe,
convencendo a bestona a fugir na sua garupa. Ela, muito da bobó, aceitou.
Sumiu dum dia pro outro, confiada em promessa de casamento. Poucos
meses depois, abandonou-a sem explicação alguma. ‘O quê?! Seu marido é
outro! Num te obriguei a me acompanhar. Ce menino.......Cê sabe o que
faz........Então eu ia casa com quem tem filho com outro? Gosto de quenga,
não!’ Quando ela viu o resultado, quis voltar, mas Rãe não aceitou. Que
fosse caçar Júlio, pois ele- e não era de levar desaforo. A pobrezinha
pediu pelos filhos, não e não! Ele era pai e saberia cuidar deles, criando-os
com a avó. Petronília fazia pena. [...] A pobrezinha da Petronília sorveteu no
mundo, com o coração despedaçado de saudade dos filhos, um dos quais
pichititinho ainda, a menininha-mulher. Nunca mais deu notícia (PÓVOA,
1998, p. 78).
Nas obras analisadas, só uma personagem feminina não aceita uma decisão
paterna e ainda consegue ser feliz: é Madá, do romance “Mandinga”. Madá, filha de
um rico fazendeiro, fora prometida, desde criança, ao filho de outro fazendeiro da
região. Contudo, apaixonando-se por um empregado da fazenda de seu pai,
Constâncio, foge com ele no dia do seu casamento.
A moça fez foi fugir na hora do pega-pra-capar. Desapareceu no mundo,
virou alcanfor. Ninguém lhe sabe, até hoje, o paradeiro. O rapaz de olhar
manso, o torrador de farinha de Ondino Circuncisão, também tinha sumido.
O cavalo baio do velho, a princípio, deram-no como mais um que a pintada
tinha carregado. [...]. Depois, associando-se os fatos, chegou-se à fria
realidade: Constâncio fugira com Madá (PÓVOA,1998, p. 70).
78
Porém, apesar de fugir de casa no dia do seu casamento, deixando seu pai
profundamente amargurado, Madá mantém-se casta até conseguir casar-se.
Constâncio, alma boa e honesta, respeitou a amada como a mais pura das
virgens, embora seu instinto lhe cutucasse pedindo para consumar o que
teimava em atenazar-lhe o espírito. [...] Tantos dias e léguas andaram, que
foram encontrar um padre, por acaso, debaixo de um pequizeiro, meio-dia
em ponto, a muitas guas da morada mais próxima. (PÓVOA, 1998, p.
173).
Tentando convencer o padre a efetivar o casamento ali mesmo, Constâncio
afirma que: “Madá não merecia viver com ele acasalado como bicho do mato e que
nada tinha feito a ela porque não achava direito” (PÓVOA, 1998, p. 174). O
casamento ocorreu embaixo de um pequizeiro, e os dois foram felizes para sempre,
sendo que, no final do romance, Madá reaproxima-se de seu pai, que a aceita,
assim como o seu marido. Como afirmado, esse é o único caso em que uma
personagem feminina do autor desobedece a vontade paterna e consegue ser feliz.
Contudo, percebemos que Madá manteve um comportamento dentro dos
parâmetros religiosos e tradicionais, casando-se virgem e recebendo a benção
matrimonial de um padre; isso, na lógica de um discurso tradicional em relação à
mulher, legitima um destino feliz.
Nesse discurso tradicional em relação à mulher, não espaço para
mulheres que vivam de forma desregrada ou que desrespeitem a vontade
masculina. Em apenas uma passagem da obra do autor há referência à existência
de prostitutas, é em um conto que se desenrola em meio a um garimpo.
Da casa, a festa ia, invariavelmente, terminar na zona de meretrício, onde
as mundanas riam a bom rir, explorando até os últimos trocados aqueles
que derretiam cada minuto e cada níquel nos braços mercenários das
escassas decaídas, todas fazendo-se de difíceis naquele lugar abundante
de homem e escasso de mulher (PÓVOA, 1994, p. 31).
No discurso de Póvoa, predomina a mulher cordata, frágil e ingênua; contudo,
apesar dessa visão, certas personagens femininas, da obra do autor, são muito
respeitadas por todos. Esse é o caso daquelas que ocupam posições de
benzedeiras e parteiras e, por dominarem técnicas de cura e rezas, detêm um
79
poder, que todos respeitam. No romance "Mandinga" (1998), em muitas passagens
referências à Dona Pulu, parteira e benzedeira que a todos curava com suas
rezas e receitas.
Era a velha Pulu, rezadeira de reza forte contra resguardo quebrado, arca
caída, izipa, erisipela, merma, murrema na boca do coalho, além de curar
cavalos e bois. A reza era tão forte, que bastava benzer o rastro do animal
de bicheira ou ofendido de cobra com uma folha verde, que os bichos e as
varejeiras caíam todos, e a rês sarava. Mezinha, não havia ninguém melhor
para dar [...] (PÓVOA, 1998, p. 43).
Em relação às funções de parteira de D. Pulu, assim se refere o emissor:
Cheia de badulaques pelo pescoço, cabeça amarrada com um pedaço de
algodãozinho ralo e sujo, a velha Pulu estava acocorada junto ao ceveiro de
galinhas dando-lhes a ração de milho. Galinhas pra mulher de Catulino
comer pirão durante o resguardo. A velha Pulu, além de curandeira e de ter
força com reza forte, era a parteira de Boa Tarde. Era a dor pinicar, o povo
chamar a velha Pulu para aparar o bacuri (PÓVOA, 1998, p. 77).
Outro exemplo que aponta para uma valorização dessas mulheres no
discurso em análise é a referência a uma personagem extremamente valente que,
segundo o autor, viveu no sertão do Duro: a velha Maria Bonfim, destemida
caçadora de onças: “[...] a velha Maria Bonfim tinha uma fama que os homens, com
raríssimas exceções, o tinham: era uma caçadora de onças" (PÓVOA, 2001, p.
21). É interessante observar nesse enunciado que fica implícita a ideia de que o fato
de uma mulher ter mais status que os homens é uma exceção. A técnica utilizada
por Maria Bonfim para matar as onças era o cacetete. Conforme o emissor, a
mesma, através de pauladas, havia matado mais de setenta onças.
Considerando-se o fato de a onça ser um animal muito temido no sertão e de
provocar a morte do gado, ter na comunidade uma mulher caçadora de onças é
significativo no sentido de atribuir uma importância à mulher; porém, essa é uma
situação de exceção, e a lógica discursiva de voa predominantemente imprime à
mulher um papel de submissão nesse Tocantins tradicional representado e
construído por ele.
80
3.1.5 Preconceito étnico
O emissor deixa perpassar todo um preconceito étnico que permeia as
práticas sociais da sociedade representada e construída por ele em sua obra:
"Nezinho, que não gozava de conceito muito alto, mercê de ser preto e não ter
serviço certo, passou a ser a palmatória do mundo" (PÓVOA, 1998, p. 44); "Morto
Joaquim Paraguaio, meio-índio-meio-gente, restou o velho Severino [
...]"
(PÓVOA,
2001, p. 90). Relatando a chegada de uma congregação de religiosas na Vila do
Duro, o emissor afirma que as mesmas, em função de serem de origem européia,
demoraram para acreditar que negros eram gente: "Na rua em frente do ginásio
morava Olímpio, marido de Glória, ambos de cor negra. Vindas de um lugar onde
preto é fruta rara (senão inexistente), as freiras custaram a acreditar que era gente"
(PÓVOA, 2001, p. 108).
Ao caracterizar muitos de seus personagens pela etnia, pela cor, o emissor
torna o fator étnico uma espécie de estigma impresso nos mesmos: “Lembro-me
perfeitamente do major Valentim. Acho que não é privilégio nenhum guardar na
memória por muitos anos sua imagem: Forte, preto retinto, que de branco tinha
os dentes e o caroço do olho, voz espremida, morando na fazenda” (PÓVOA, 1989,
p. 77); “Não demorou muito, apareceu-me na casa onde me hospedara um senhor
muito simpático, preto retinto, chapéu de couro ensebado, voz grave e pausada,
palavras medidas, [...]” (PÓVOA, 1989, p. 91); “O estafeta era o velho Gumercindo,
com aquela carinha de macaco desmamado, preto que nem sabão de decoada, que
fazia suas viagens montado num jegue” (PÓVOA, 1998, p. 120). Em relação a
Antonhão, um dos personagens emblemáticos da antiga São José do Duro, o
emissor afirma: “mas Antonhão, que era mais grande do que inteligente, não tivera
tino para imaginar que uma pessoa de alma branca que nem ele nada podia dever à
sociedade” (PÓVOA, 1994, p. 73).
Em uma crônica, assim se refere o autor sobre um grupo de ciganos, que se
instalou, temporariamente, em sua terra natal:
Via de regra, os ciganos são vadios, cachaceiros, caçadores de indaga,
vivendo de trambiques, trocando seus esqueléticos rocinantes por animais
de catadura melhor, ou vendendo tachos de cobre falsificado. Enquanto as
mulheres, desfilando saias rodadas e cheias de babados até os tornozelos,
81
escandalosamente coloridas, saem de casa em casa vendendo tachos ‘de
cobre’ e iludindo o povo com os mistérios da cartomancia e da quiromancia,
a ler a ‘buena dicha’ (PÓVOA, 1989, p. 143).
Diante dos exemplos citados, podemos afirmar que o preconceito étnico,
visível na lógica dos enunciados do autor, delimita posições sociais aos seus
sujeitos/personagens. Os negros, assim como membros de outros grupos étnicos,
como os ciganos, o retratados, na maioria dos enredos e das tramas de Póvoa,
em situações que lhes demarcam características pejorativas, falta de inteligência ou,
ainda, subserviência. Sendo assim, muitas vezes o autor hierarquiza a sociedade
por ele construída por meio de critérios étnicos, em que os sujeitos que ocupam as
posições sociais mais consideradas dessa sociedade vêm a ser os indivíduos
pertencentes à etnia branca. Isso se torna flagrante não pelo fato de os
personagens brancos ocuparem lugares sociais mais importantes na sociedade em
questão, mas também pelo fato de o emissor o fazer menção aos mesmos serem
brancos quando das suas apresentações em seus enredos e suas tramas,
diferentemente dos membros de outras etnias, que têm essas características
destacadas de forma “engraçada” ou negativa.
Sem dúvida, essa visão social transmitida no discurso em pauta, permeada
de preconceito étnico, é oriunda do espaço social ocupado pelo emissor, da visão de
todo um grupo do qual ele, aqui, é um porta-voz ou, como diria Bourdieu (1996), um
procurador.
3.2 Memória
O emissor, ao representar e construir a sociedade tocantinense, lança mão,
constantemente, da memória
80
de tempos idos. São rememorações de
acontecimentos históricos ocorridos na região, antes do seu nascimento e que, ao
que tudo indica, são retratados através de reminiscências de sua terra natal,
lembranças do que ele ouviu contar. É importante salientar que essa memória
80
A memória é aqui analisada através de fundamentos teóricos considerados importantes para a
abordagem de um disurso literário. no próximo capítulo, quando analisamos o discurso da
Imprensa, em função das peculiaridades desse objeto de estudos, nos baseamos em aportes
teóricos diferenciados dos utilizados no presente capítulo.
82
fragmentária, calcada na experiência individual e da comunidade, não é aqui
abordada para a tradução integral do passado. Não estamos procurando rigor
empírico nessas memórias, pois é mais a função comemorativa do que a verdade do
que é comemorado que nos interessa.
81
Além disso, como Fentress e Wickham
(1992), acreditamos que as lembranças são efetivadas pelas perspectivas e
demandas atuais e que a memória é a reatualização permanente do passado a partir
das demandas do presente. E, de acordo com os mesmos autores, para a
construção da identidade local, é o ato de comemoração que é funcionalmente
relevante, e não a verdade factível do que é comemorado.
Na obra de Póvoa, essa memória de acontecimentos históricos ocorridos na
região antes do seu nascimento é pano de fundo para ilustrar alguns enredos que
envolvem personagens reais com a ficção. E, como mostra Pesavento (2005), a
literatura, quando traz marcas de historicidade, através da narrativa de um “como
poderia ter sido”, também incorporando no texto, o que se diz e o que se ouve
contar, acaba por fazer o leitor reconhecer-se no narrado, perceber no texto coisas
que são suas, ligadas, portanto, a aspectos de sua identidade. Ainda conforme a
mesma autora, a literatura, que sempre parte da verossimilhança, sem preocupar-se
com o rigor da verdade, e que tem um teor lúdico, pode, assim, construir uma
narrativa que é recebida como história pelos seus leitores. Afinal, estes, mesmo
sabendo que a trama do enredo não aconteceu, fixam essa narrativa na memória
como representação emblemática de um passado, o qual, remorado pela escrita
literária, além de se adequar a um presente, constrói um elo de ligação com este,
respondendo à necessidade que a construção dos processos identitários tem de um
sentido de continuidade no tempo.
82
No nosso entendimento, esse pode ser o caso
da obra de Póvoa quando esse autor lança mão de acontecimentos ocorridos no
sertão nas décadas de 1910 e 1920.
Várias são as passagens dos escritos do emissor em que referência a um
episódio ocorrido no sertão no final da década de 1910, quando rivalidades entre
um coronel da região do Duro e a oligarquia Caiado - que na época detinha o poder
político do estado de Goiás - provocaram a morte, por enforcamento, de nove
81
Ver sobre a importância do ato de comemorar para a construção de um grupo social: FENTRESS,
James; WICKHAM, Chris. Memória social novas perspectivas sobre o passado. Lisboa: Editorial
Teorema, 1992. p. 116 e ss.
82
Nosso entendimento sobre a intrínseca relação entre memória e identidade, está explicitado,de
forma mais detida, no terceiro capítulo desse trabalho.
83
membros, da elite da região da Vila de São Jodo Duro. Esse episódio, que é
constantemente rememorado nas crônicas de Póvoa e que já foi tema de obra
literária de outros autores, assim como de um filme
83
, é assim descrito na crônica “A
Capelinha dos Nove”:
Todos conhecem pelo nome de ‘Os Nove’ a parte da cidade que leva à
saída para a Bahia: ‘Fulano mora nos Nove’, ‘Fui a uma festa nos Nove’, e
assim por diante. O nome, aparentemente sem propósito, está ligado ao
fato histórico de 1919 que, por seu turno, está inserido na história política do
Tocantins (PÓVOA, 1989, p. 159).
Nesse trecho da crônica, fica explícita a recorrência da memória em função
de uma demanda do presente. Afinal, esse episódio, ocorrido em 1919, quando a
região ainda pertencia ao estado de Goiás, é trazido para o presente para compor a
história política do Tocantins, estado criado no final do século XX. Percebemos aqui
a memória, o passado sendo utilizado para sanar o que Ricoeur (2003), indica como
uma das fragilidades da identidade: a de manter-se a mesma ao longo do tempo.
Nesse caso, é um passado de lutas e conflitos com o Sul de Goiás, aqui
representado pela oligarquia Caiado, que é eleito para ilustrar a história do novo
estado. A memorização desse episódio é utilizada para dar continuidade histórica ao
Tocantins, para criar um elo entre passado e presente, tão necessário à construção
de um processo identitário. E o autor continua:
No início do século, a exemplo de outros Estados brasileiros, imperavam os
coronéis, que mandavam e desmandavam dentro de seus domínios. Na Vila
de São José do Duro (hoje, Dianópolis), a liderança político-econômica era
exercida pela família Wolney, que tinha como patriarca o intocável e
lendário coronel Joaquim Aires Cavalcante Wolney. Seu filho, Abílio
Wolney, falecido em sessenta e pouco, exímio político e de cultura
assombrosa, despontou como uma das maiores capacidades do Estado,
elegendo-se deputado e sendo cogitado para a presidência, provocando
uma cisão entre os Wolney e a cúpula governista, liderada pelos Caiado.
Como represália, Totó Caiado, então presidente, nomeou gente de sua
confiança para os cargos públicos da Vila do Duro, dentre os quais o de juiz
municipal (Manoel de Almeida) e de coletor estadual (Sebastião de Brito
Guimarães), sobrinho do coronel (mas seu inimigo político), a fim de dar um
basta à hegemonia dos Wolney (PÓVOA, 1989, p. 159).
83
Os livros O tronco de Bernardo Élis e Quinta Feira Sangrenta de Oswaldo Póvoa e o Filme O
Tronco.
84
A narrativa prossege afirmando que querelas dos Wolney com esses
funcionários nomeados pelo governo Caiado fizeram com que estes viajassem para
Goiás Velho e denunciassem o coronel Wolney para o então presidente do estado,
que mandou o juiz Celso Calmon Nogueira da Gama, acompanhado de setenta
praças, para São José do Duro, a fim de arrasar os Wolney.
Chegando à Vila, o juiz procurou aproximar-se dos Wolney, que haviam
deixado o povoado e se refugiado na fazenda Buracão, a duas léguas dali,
com enorme contingente de jagunços armados até os dentes. O juiz, velha
raposa, fingindo demonstrar paz, foi desarmado e convenceu o velho
coronel [...] a dispensar a cabroeira, em troca de sua impronúncia. [...].
Malmente soube da fazenda inteiramente desguarnecida, o juiz mandou
invadi-la com a força policial, e os soldados assassinaram e saquearam o
lendário coronel, levando sua família presa para a Vila do Duro, no dia de
Natal de 1918.
Abílio Wolney, que conseguira furar o cerco, ficou revoltado (e estava
coberto de razão) e viajou para a Bahia, onde recrutou mais de duzentos
jagunços para tomarem a Vila e aniquilarem a força policial (àquela altura, o
juiz já tinha ido embora, com a missão cumprida, deixando, apenas a
soldadesca) (PÓVOA,1989, p. 160).
E a narrativa prossegue:
Quando soube da atividade de Abílio, o comandante da força, Antônio Seixo
de Brito, mandou recolher ao velho tronco de castigar escravos várias
pessoas ligadas à família Wolney, como reféns, para obrigar Abílio a
recuar: Wolneyzinho (irmão), meu avô Benedito e seu filho menor, Joca
(amigos), o compadre João Rodrigues e seus filhos Nilo e Salvador, João
Batista Leal (cunhado), Messias Camelo (sobrinho afim de meu avô) e
Nasário (camarada de João Rodrigues).
Quando a jagunçama atacou, em 16 de janeiro de 1919, os reféns foram
friamente assassinados, e os nove foram enterrados em cova rasa nas
cercanias da Vila, onde existe a capelinha, conhecida como a Capelinha
dos Nove, dando nome àquele lugar (PÓVOA, 1989, p. 160).
A lembrança dessa saga, no discurso de Póvoa, tem um sentido significativo
para vislumbrarmos a forma com que esse discurso revela indícios de traços
identitários tocantinenses e instiga a construção dos mesmos. Ele revela indícios, na
medida em que o autor, em vários trechos da sua narrativa, faz menção a locais da
Vila do Duro que sediaram as disputas, a pessoas que lutaram, demonstrando que
lançou mão do que ouviu contar, do que se disse sobre o episódio, da memória da
comunidade sobre o ocorrido. Isso indica, então, que a memória dessa luta heroica,
85
de antepassados está inserida na engrenagem identitária da comunidade que se
sente herdeira desse passado. E esse discurso incentiva a construção de traços
identitários, porque retrata a coragem de um grupo de antepassados dos habitantes
da São José do Duro e invoca a martirização dos mesmos, ou seja, o discurso
heroiciza esse grupo, fornecendo um passado relevante para a comunidade, o que,
no nosso entendimento, instiga um sentimento identitário positivo no sujeito
tocantinense.
O autor, quando da sua estada em Minas Gerais escrevendo crônicas para
um jornal, ao descrever a cidade de Dianópolis para seus colegas jornalistas e
leitores de Minas Gerais, faz menção a essa sangrenta luta da seguinte forma:
A cidade teve seus dias de glória, quando havia gente daqui mesmo,
mas com a chegança de gente de fora, es ficando cosmopolita até
demais. Tem uma história muito triste, que Bernardo Élis retratou no seu
romance O Tronco’, onde a polícia de Totó Caiado matou, a sangue frio,
vários parentes meus, entre eles meu avô e um tio menor. E sobre o
assunto, meu irmão Osvaldo Rodrigues Póvoa escreveu ‘Quinta-Feira
Sangrenta’, que, sem bancar o cabotino, recomendo como excelente e
quem quiser conhecer nossa história deve ler (PÓVOA,1989, p. 46).
Outro acontecimento histórico ocorrido na região e que é trazido pela
memória para o discurso literário de Póvoa é a passagem da Coluna Prestes pelo
sertão na década de 1920. O autor, mesclando ficção com acontecimentos factíveis,
que Prestes e seus seguidores realmente percorreram o sertão onde hoje é o
Tocantins, descreve o encontro de um menino, filho de um vaqueiro da região, com
participantes da Coluna. Lançando mão da verossimilhança e, como diria Pesavento
(2005), do “como poderia ter sido”, o autor adentra nesse episódio histórico,
contando o ocorrido com Boa, que, na época com doze anos, voltava para casa com
umas compras feitas a mando de seu pai e encontrou membros da Coluna em meio
ao sertão.
Boa escanchou no cavalo e ganhou a estrada de volta, de tardica, sol
entrando. Chegando à vereda que encontrava o vaquejador do Mirador ao
subir a ladeirinha de uma aguada, uma caravana de mais ou menos
cinqüenta cavaleiros assomou o larguinho, saindo da pendida da Pedra
Preta. Escorou o cavalo. ‘Ah, deve o veio Tiodorico indo visitá o genro
Ondino Circuncisão...’ mas um pequeno grupo se destacou do povão e
86
trotou na direção de Boa, falando umas porqueiras que Boa custou a
entender:
-Êi, guri, cadê um cavalo sabaruno, cavalo gordo que tem aqui, tchê?
O molecote, tomado de susto com tanta gente, e ante o aspecto ameaçador
daqueles homens bruscos, suplica:
-Deix’eu romper pra casa. ‘Seo’ moço! Sei de nada, o! (PÓVOA, 1998,
p. 156).
E o autor continua:
[...] -É, tchê! Mostra onde está o cavalo sabaruno! Troteia! Trotei! Vamos,
tchê!
-Quem foi que disse oceis que aqui tem cavalo sabaruno?
-Vaquirim sem vergonha! Vá mostrar o cavalo! Anda!
Boa, tremendo que nem vara verde, andou uns passos e divisou um magote
de éguas pastando adiante num pé de morro, tendo à frente o cavalo alazão
por nome Messias, junto com a égua mais velhaca das redondezas. ‘Agora,
eu jogo eles pra riba deste que ta com a égua veaca! Sei que num
pr’eles tomá a besta...’ mesmo apertado. Boa estava com treita (PÓVOA,
1998, p. 157).
Em meio à descrição do episódio vivenciado por Boa, o emissor relata as
façanhas cometidas pela Coluna, nas redondezas da região.
Na verdade, na sua passagem pelo sertão, aqueles homens iam se
apoderando dos animais, gado, dinheiro, ouro, tudo o que aparecesse à sua
frente. No Timbozinho, haviam matado várias reses, para tirar o lombo e
a rabada. Ondino e a família saíram, alta madrugada, com as roupas de
dormir, e se refugiaram numas furnas de onça, mijando de medo. No
Cabeçudo, pegaram o velho Zuza Morredeira, acamado com dor no
coração, encostaram-no na beira da casa e fizeram fogo de festim, matando
o pobre de susto. E, como o infeliz morava sozinho, um dos desconhecidos,
justo Antoninho leitão, tomou posse da terra, do gado e das coisinhas. Em
Boa Tarde, o povinho deu nas pernas, e o truculento grupo levou até o ouro
da igreja. Em Cacimbinha, sabendo da existência do garimpo, tomaram as
poucas coisas do povo, enraivados por não existir ouro no garimpo. [...] em
todo o sertão só se falava que eles estavam dizimando as criações e
judiando povo (PÓVOA, 1998, p. 157).
Pelo trecho citado acima, vemos que a Coluna Prestes é retratada, pela
memória do emissor, com uma carga extremamente negativa. É uma memória que
vislumbra esse legendário grupo como bandoleiro, ladrão e amedrontador da
população local. O autor continua a narrativa do ocorrido com Boa e os participantes
do grupo de Prestes da seguinte forma:
87
E Boa, vendo aquele povaréu medonho, todo uniformizado de amarelo e
com uma fala nojenta, sentia uma vontade de chorar danada, ainda mais
com o dia acaba-não acaba. E, após mirarem longamente o magote de
éguas e o cavalo Messias, um deles, de cara ruim, esbravejou:
- Ê, neguinho, quer dizer que o cavalo sabaruno é este?
- É, é esse mesmo, ‘Seo’ home.
E chegaram as montarias nas esporas, levantando poeira, na tentativa de
tomar o cavalo Messias, acompanhado da égua castanha, que arrebitaram
o talo, chega fumaçaram na vereda, voltando a aguada e voando pro
mundo. Daí a pouco, voltaram, espumando de raiva, e um deles, parecendo
ser o chefe, aproximou-se de Boa:
- Ê, tchê você falou que o cavalo era manso e não disse que a égua era
velhaca, hem?
-Eu num fale que’ ele era manso, não
- Tu ta mentindo! –respondeu uma jagunça de cabelos longos
- Mentindo, não! – Boa teve um fanisco de coragem (PÓVOA, 1998, p. 158).
E o menino apanhou de forma truculenta:
Chlép, e o chefe desceu-lhe uma peiada nas costas, com tanta raiva, que
levantou um vergão desde os rins até a apá. Com peia-pé-e-mão, marcando
com um calombo o espinhaço do negrinho. O moleque,num medo
desgraçado, só fez baixar a cabeça, sem esboçar reação alguma,
recebendo mais duas, enquanto a turba rosnava ao seu redor, provocando-
o de todas as formas: enfiavam a boca do revólver debaixo do seu
costelado; afastavam-se alguns passos [...]
Os rebeldes, daí a pouco, pegaram os animais na espora e dispararam até
uns cinqüenta metros, e dois deles viraram-se pra trás, apontando as
armas:
-Morre! Morre! e deram um bando de tiros pra cima (PÓVOA, 1998, p. 158-9).
É uma memória que representa a Coluna de forma negativa, tudo dentro das
possibilidades factíveis de algo que realmente poderia ter acontecido. O emissor
lança mão de detalhes na descrição das atitudes e da truculência dos membros da
Coluna Prestes, o que nos faz crer que tenha recorrido ao que foi dito, ao que ouviu
contar, a uma memória sobre um acontecimento que se sedimentou na comunidade
envolvida, gerando uma situação que colocou os naturais da terra lado a lado com
desconhecidos, forasteiros que falavam uma língua nojenta, diferente; um grupo de
estrangeiros que, no passado, praticou muita violência no sertão, a qual não se
esquece. Logo, o discurso em pauta, promovendo o não esquecimento da
passagem da Coluna Prestes pelo sertão, acaba por contemplar o espaço do atual
estado do Tocantins com mais um episódio que lhe confere um passado histórico de
88
conflitos e resistências, o qual vem a ser um dispositivo a interpelar os sujeitos
tocantinenses para um sentimento identitário positivo.
Outro acontecimento que é muito rememorado no discurso do emissor é a
febre de varíola que assolou o sertão no início do século XX.
Numa certa época, entre 1925 e 1930, apareceu nas cercanias do Duro
uma epidemia de bexiga, que levou quase à extinção seu já minguado
povo.Dizem os coevos, que ainda vivem na região, que a epidemia
começou quando meu tio Antunim, indo a passeio ao são Sebastião
(fazenda a três léguas do Duro), trouxe Maria, minha prima, com febre e
começando a empapuçar-se após ter entrado em contato com uns
chegantes da Bahia com varíola em adiantado estado.
De Maria, a doença pegou no irmão, Abenilio, e afundou no mundo,
causando mortes e mais mortes. Famílias inteiras desapareceram, pois os
sãos iam tomando conta dos doentes; depois adoeciam e finalmente todos
estavam acamados, resultando na morte, mais de fome e sede do que do
mal terrível e contagioso (PÓVOA, 1989, p. 133).
E, depois de descrever ainda mais as agruras da doença, o autor comenta:
O povo da rua não chegou a sofrer baixa alguma, mas vivia amedrontado
pois de todos os arredores vinham notícias de mortes diárias, e pouco
demoraria alguém trazer o vírus a qualquer momento.
Meu pai, que morava na fazenda, ficava viúvo e com os filhos Nélio e
Osvaldo ainda pequenos: a bexiga arrastara à cova a primeira mulher,
Mariquinha.
Num lugarzinho de população escassa como o Duro da época, morrer
quase setenta viventes era um alarme, assumindo proporções de absurdo.
Dizem que os urubus e os cachorros rasgavam cadáveres insepultos: os
parentes que podiam enterrá-los não conseguiam levantar-se e os amigos
ainda sãos não se arriscavam a fazê-lo de medo. foram enterrados os
primeiros, assim mesmo por não ter consciência do perigo da doença
(PÓVOA, 1989, p. 133-4).
Em outra crônica, o autor aborda essa epidemia mais uma vez.
Quando se fala em bexiga em minha cidade, os velhos chegam a benzer-se
e a esconjurar a epidemia que, em 1926, quase dizimou a população de lá,
que sendo de mais ou menos duzentas pessoas, ficou reduzida a 136, pois
a epidemia ceifou 64 delas. [...]
Perdendo a esposa e tendo tido a doença, meu pai passou a andar de
casa em casa para cuidar dos doentes, e fez de sua morada da fazenda S.
Antônio uma espécie de hospital, onde após perder seu auxiliar (Gracindo
Inácio de Jesus) de bexiga, passou a ser o enfermeiro, o cozinheiro, o
coveiro.
89
Na fazenda Prazeres, morava um agregado de meu avô, o Higino, com
nove filhos. Todos morreram. Quando um adoecia, o outro ia cuidando até
cair de cama, e acabou foi todos morrendo. Os últimos que ainda viviam,
não suportando o mau cheiro dos corpos em decomposição, conseguiram
arrastar os cadáveres para o terreiro, onde foram disputados por cães e
urubus, num macabro banquete, que era uma tortura para os ainda
sobreviventes, pois sabiam que seu fim iria ser aquele (PÓVOA, 1989, p.
155-6).
Nas citações acima, mais uma vez vemos que o autor, fazendo referência à
situação de familiares, recorre ao que ouviu contar, ao que se diz sobre o
acontecimento, à memória que se formou sobre a doença. É uma memória triste
que, trazida para o presente através da função comemorativa da literatura, imprime,
na comunidade em questão, um passado de sofrimento e de superação de
dificuldades.
Outra rememoração feita pelo autor que traz para o presente o passado do
espaço onde hoje é o Tocantins é aquela em que a narração da extração de
ouro, das lidas do garimpo e de toda a riqueza que foi extraída da região. A
sociedade da mineração, no antigo Norte goiano, que teve seu tempo áureo no
século XVIII, é assim rememorada pelo autor:
Em meados do século XVIII, Goiás transformou-se num eldorado sugando
de São Paulo muitas levas de gente, sonhando por encontrar ouro farto,
como a pepita de 43 libras descoberta nos arredores de Água Quente.
Milhares de escravos foram recrutados, e as fugas constantes, motivadas
pelos maus tratos e pela dureza do trabalho nas minas, deram emprego aos
capitães-do-mato, e conta-se que apenas um deles levou como troféu mais
de três mil orelhas de negros fugidos (PÓVOA, 1989, p. 11).
Póvoa se remete ao século XIX para relacionar as origens da sua cidade natal
com a mineração.
[...] em 1830, havia chegado ao Arraial do Duro o mineiro de Paracatu, João
Nepomuceno de Souza, trazendo dois sócios para explorar a Mina dos
Tapuias, cujas ruínas ficam hoje dentro de Dianópolis. Com a exploração da
mina as correntes migratórias aumentaram, sem, contudo alcançar a ênfase
das jazidas de Arraias, Conceição do Norte, Cavalcante e Natividade,
municípios vizinhos onde se lavrava ouro de aluvião, enquanto que no Duro
extraía-se ouro de pedra.
Nas proximidades da Mina dos Tapuias foi fundada a Vila do Duro, mais
tarde São José do Duro (PÓVOA, 1989, p. 11).
90
Em outra crônica, o emissor narra a história misteriosa da Mina das Tapuias.
Aqui em Dianópolis, formada perto de uma rica mina de ouro, a Mina dos
Tapuias (hoje, no centro da cidade, ao lado da Rodoviária), aconteceu um
fato [...] no fim do século passado. Contam os mais velhos que escravos
dos donos da mina cavaram profundo buraco, até que toparam com um veio
de ouro tão fabuloso, que tinha de ser cortado a machado. Ao começarem a
exploração do veio (que, diz a tradição, atravessa a cidade por mais de
quilômetro e meio), decidiram paralisar o trabalho para uma estrondosa
comemoração na Vila de São José do Duro.
Enquanto a festa Animava o povoado, adveio uma chuva, que dava a
impressão de que estava voltando a época de Noé. E pela manhã,
encontraram o descomunal buraco soterrado e cheio d’água até o beiço. De
nada adiantaram os esforços para a retirada do entulho e dreno da água,
usando surrões de couro e ferramentas rústicas (PÓVOA, 1989, p. 146).
E, após descrever algumas tentativas de explorar a referida mina, acontecidas
na década de 1960, o autor conclui a sua crônica: “O certo é que ela [a mina]
continua ali perto da Rodoviária, desafiando quem quiser investir em busca da
fortuna” (PÓVOA, 1989, p. 146). Mais uma vez, vemos que o emissor recorre ao que
ouviu contar, à memória da comunidade sobre acontecimentos significativos
ocorridos no passado. Essa memória, que reatualiza a época do ouro, além de dotar
o Tocantins de um passado histórico positivado e envolto na possibilidade de
riqueza e fortuna, oriunda de uma sociedade mineradora, traz para o presente essa
mesma possibilidade. A região, nessa lógica discursiva, teve e ainda pode ter
muitas riquezas minerais.
Outro elemento do passado, trazido para o presente pelo discurso do autor é
aquele que diz respeito às condições de isolamento vivenciadas pela região do
antigo Norte goiano. Conforme a historiografia goiana e tocantinense
84
, a região
onde hoje se localiza o estado do Tocantins experimentou um sofrimento secular por
falta de estradas que a ligasse com o Centro-Sul do País, situação amenizada
com a construção da Rodovia Belém-Brasília, na década de 1960. Escoamento de
produção, deslocamento dos habitantes, locomoção para a então capital Goiânia:
tudo era extremamente difícil para o Norte, pois o havia estradas. O emissor
rememora essa situação quando, por exemplo, narra a história de um dentista de
sua cidade que cobrava um preço mais caro quando usava anestesia para extrair
dentes.
84
Ver sobre: CAVALCANTE, Op. Cit.
91
Era justificável: os tubinhos de anestesia vinham de muito longe e nem sei
como chegavam, pois o correio era em lombo de burro; avião, só se
conhecia quando coincidia uma rota passar por cima do lugar, e caminhão
ia uma vez na vida e outra na morte, pois as estradas de carro-de-boi
deixavam passar carro com muito sacrifício para abastecer o incipiente
comércio e voltar carregado de couro de boi, pena de ema, pele de veado e
caititu e saco de arroz (PÓVOA, 2001a, p. 120-1).
Em outra crônica, o autor acesso à situação de isolamento do antigo Norte
goiano, narrando a história da chegada do primeiro caminhão à sua terra natal.
As estradas, hoje, cortam o Brasil em todas as direções. Milhares e milhares
de quilômetros levam e trazem o progresso, que não causa mais nenhuma
surpresa. No mais longínquo dos lugarejos caminhões, automóveis e ônibus
trafegam ante a indiferença de olhos que, anos atrás, ficavam estarrecidos.
No norte goiano tornou-se legendária a figura de Manuel Antônio, o homem
que pela primeira vez entrou com um caminhão em São José do Duro.
Manuel Antônio os mais velhos é que contam saiu de Barreiras, na
Bahia, a quase quatrocentos quilômetros do Duro, num velho e
chacoalhante caminhão daqueles Ford, lá pelos anos quarenta, com a
carroceria cheia de latas de gasolina e enfrentou uma região inóspita cheia
de rios, alagadiços e gerais esturricados, fazendo estrada e construindo
toscas estivas até que, depois de longa e penosíssima travessia, foi bater
em São José do Duro (PÓVOA, 1989, p. 15).
No romance “Mandinga”, ainda remetendo-se a um passado de isolamento da
região, o autor descreve a reação dos habitantes de um lugarejo quando se
depararam, pela primeira vez, com um caminhão:
E, espantados, foram chegando os assombrados, um por um, por detrás
dos pés de sucupira e de munguba, até pertinho. Os mais corajudos
contemplavam o Ford velho, olhando por cima dos ombros do Major, que ali
se postara com as mãos na cintura. [...].
Daí a pouco, a sombra das mungubeiras estava pequena para conter
tanta gente. As galhas de árvores mais próximas estavam pendendo de
peso, com a molecada disputando um lugar de melhor visibilidade, porque
não couberam todos na pequena carroceria do veículo, cujos feixes de
molas vergaram de peso (PÓVOA, 1998, p. 170).
Percebemos, nas citações acima, assim como em todas as que rememoram
acontecimentos ocorridos na região que hoje está inserida no estado do Tocantins, a
glamourização de um passado pautado em lutas e na superação de sofrimentos e
dificuldades. Se são as demandas do presente que constroem o passado, essa
92
rememoração acaba por responder às necessidades de um estado que, recém
implantado, precisa de uma história, um passado positivado para melhor legitimar-
se, pois, como lembra Fentress e Wickham (1992), a experiência passada recordada
e as imagens partilhadas do passado histórico são tipos de recordações que têm
particular importância para a constituição de grupos no presente.
Contudo, o discurso memorialista de Póvoa não se restringe apenas à
narração de acontecimentos históricos, ocorridos na região, mas contempla,
também, as suas reminiscências de infância e adolescência. O autor,
freqüentemente, rememora em seus escritos, personagens da antiga Vila de São
José do Duro, a educação que recebera do seu pai, os tempos de escola, dentre
outros aspectos do cotidiano da sua cidadezinha. Em relação aos tipos pitorescos
que existiam em sua cidade o autor comenta:
Em Dianópolis, existiam vários, sendo impossível, senão injusto, deixar de
mencionar qualquer um. [...]
O tipo cachaceiro de São José do Duro era Antonhão Pé-de-Janta (para
não mencionar Domingos Cachaça, cujo nome dispensa comentários).
Antonhão, não obstante sua compadragem com os influentes do lugar,
acabou perdendo a vergonha, e se ainda não contei, vou contar as treitas
de que se utilizava para sustentar o vício: desde beber e carregar o copo
para trocar por cachaça até simular a morte de um neto para poder vender a
mortalha.
Tirante Antonhão, uma dúzia, pelo menos, de tipos povoam a minha
meninice e minha adolescência: Justina, cria da casa de Zé Anísio Leal, que
virava bicho quando a chamavam de “porca”, mas em compensação,
delirava quando a chamavam de ‘corujinha’ (PÓVOA, 2000a, p. 78-9).
O autor continua a apresentar seus personagens:
Chico Farinha-Seca, com sua inocência, recebendo sua aposentadoriazinha
do Funrural e deixando-a nas mãos de alguém que conhece dinheiro, para
pedir ‘uns cinco mil cruzeiro mode comprá uma taquim de fumo’ Chico era o
abnegado guia do cego Lucas, ali do Barreiro, e o conduzia todos os
domingos à missa, com uma paciência que só ele tinha, como se gente sua
fosse. [...].
Fico horas e horas relacionando cada um daqueles personagens, que, por
isso, davam para se escrever páginas e páginas: os cegos Zé Traíra, João
Marimbondo e Chico Luis, o louco Adivinhão, Ne Velho (que morou décadas
em casa), Cheiro (que não perdia jamais uma festa no meio da mocidade
e só saia quando a festa acabava), Valfrido o cego todo conversador e
cheio de um palavreado que demonstra uma inteligência invulgar) e muitos
outros (PÓVOA, 2000a, p. 79-80).
93
Além da lembrança desses personagens pitorescos e inusitados, em várias
passagens de seus escritos, o emissor rememora a educação rígida que seu pai
despendera a ele e seus irmãos.
Todo mundo foi menino, e todo menino é cheio de inventiva, ora para ser
notado, ora para se livrar de momentâneo embaraço.
Meu irmão Nélio, certa vez (e contei este causo), livrou-se de um
incômodo castigo (comer, a muque, seis pratos fundos de arroz-de-leite)
apelando para um cachorro magrelo que lhe espiava os coagidos
movimentos da colher no prato. Por ter reclamado do tiquinho de arroz doce
que lhe fora dado, foi intimado por meu pai a comer um aribê da mesma
iguaria até enjoar, ‘pra aprender a não ser sameado’ (PÓVOA, 2000 a, p. 73).
Educação rígida, que também é rememorada no que diz respeito aos
métodos de ensino-aprendizagem, utilizados pela escola em que estudou o autor.
Assim, Coquelin e Diana Leal, em cujo sangue corria a nobreza vinda do
tempo dos escravos, fundaram o Colégio João dAbreu, responsável pela
maior parte de alfabetização do povo e o alicerce para o Ginásio das freiras;
dona Marluce, que, embora tenha ensinado pouco tempo, não deixou
saudades pelos castigos que infligia aos conformados discípulos, que
enfiavam à força nos ouvidos moucos o beae as casas da tabuada; e
João Correia, considerado o terror dos alunos pelos métodos um tanto
bruscos que lembravam a Idade Média, mas que se tornou o símbolo do
eficiente mestre. [...].
Na escola de tia Diana não faltava a palmatória na hora das sabatinas e dos
argumentos: tinha até nome: Santa Luzia. Tínhamos por tia Diana a afeição
de filho para mãe e um respeito de enteado para madrasta. A palmatória
não era senão um corriqueiro auxiliar da pedagogia de então e, enquanto
fosse vista com arrepios dependurada num torno na parede, não tinha
feições de coisa de todo anacrônica (PÓVOA, 1989, p. 69).
Ainda sobre as práticas adotadas pelos mestres para alfabetizar os
educandos da referida escola, o emissor comenta:
João Correia gostava de usar a reguada na cabeça, e não raro ter-se de
comprar régua nova, além do castigo de ajoelhar o discípulo por algum
tempo ou pô-lo de plantão junto à parede. Muitas vezes, pais recebiam
recado para ir buscar os filhos, pois o mestre, tomando umas e outras, ia
dormir, esquecendo-se da classe inteira, que ficava de molho (PÓVOA,
1989, p. 69).
94
E, referindo-se ao tempo em que cursou o antigo Ginásio, o emissor faz as
seguintes recordações:
Até os anos sessenta, o latim começava na antiga primeira série ginasial,
com os rudimentos da língua; passava para a segunda, com a História de
Roma, de Eutrópio, pela terceira, com as famosas fábulas de Fedro,
encerrando-se na quarta, com o ‘De Bello Galico’, de Júliio César. Quando
se chegava ao colegial, que hoje apelidam de Segundo Grau, se tinha
sólida base do português, de tanto dissecar o acusativo, o dativo e o
ablativo, o genitivo, o normativo e o vocativo, facilitando a incursão nos
meandrosos terrenos da Gramática Histórica, paralelamente ao estudo de
Virgílio, com sua ‘Eneida’, as ‘Georgicas’ e ‘Bucólicas’.
Sempre que me vem na mente o latim, que estudei bem uns sete anos,
lembro-me do padre Magalhães, profundo conhecedor do ‘sermo urbanus’,
[...].
Duro, inimicíssimo da ‘cola’ [...] apesar de inflexível, enfiou nos nossos
moucos ouvidos rudimentos do hebraico, do grego e outras gatimônias
lingüísticas, [...] (PÓVOA, 1989, p. 171).
O emissor continua a rememorar os conhecimentos e os métodos de ensino
de seu mestre.
Professor de português, francês e latim, extrapolava suas cadeiras,
levando-nos a um passeio imaginário em todos os campos de
conhecimento. [...].
A muque, se preciso, o velho mestre obrigava-nos a aprender, desde o hic-
haec-hoc até raízes de verbos, que para nós soavam como excrescência
lingüística, sem falar numa universalidade de conhecimento da literatura
mundial, pois no ginásio conhecemos Kant, Erasmo, Dante, Petrarca,
Shelley, Claudel, Valéry e todos os expoentes da literatura mundial. Aqui
nesse interiorzão, que era ainda mais inóspito, tivemos contato com as
obras de Torquato Tasso, Ludovico, Ariosto, Boccacio, Maquiavel, [...].
Como professor polivalente ou como diretor do ginásio, era respeitado, e ai
daquele que ousasse negar o corpo quando ele determinava (PÓVOA,
1989, p. 172).
Nessas rememorações do autor, mais uma vez, percebemos um saudosismo
deliberado em relação ao que estava sendo perdido com as “modernizações” da
educação e dos costumes, nessa sociedade por ele reelaborada. Em relação ao
namoro vivenciado por ele e seus colegas, no tempo da escola, o emissor faz a
descrição:
95
Dentro do ginásio, levávamos uma vida extremamente vigiada, pois as
freiras não admitiam qualquer olhar para o lado do sexo oposto. Na hora do
recreio, as meninas ficavam no pátio interno, e nós homens numa área
coberta bem distante dali. O regime inquisitório das beatas extrapolava os
limites do estabelecimento: quando a madre Arânzazu, uma espécie de
Torquemada de hábito e véu, tomava conhecimento de que havia um
namoro entre alunos do ginásio, mandava recado para a gente ir lá. E vinha
aquele sermãozinho comprido e ameaçador, falando em Céu e Inferno e
outras coisas, com o intuito de nos fazer desistir do xamego. O poder de
persuasão da freira era tanto, que raramente um namoro permanecia depois
que ela chamava às falas. Se os pais concordassem com o namoro ou não,
era indiferente, pois o poder das freiras era incontestável e se constituía
num pólo decisório, que lembrava a Igreja no tempo da Idade Média, com
seu poder divino, intrometendo-se na vida dos feudos e países (PÓVOA,
1989, p. 154).
E, em relação ao carnaval, da outrora São José do Duro, o emissor tece as
rememorações:
Carnaval gostoso era o do interior (digo ‘era’, porque o vírus da evolução já
chegou lá, contagiando tudo). Nos dias momescos, o mais importante era o
entrudo, que os jovens de hoje desconhecem, por ter caído em desuso, à
exceção de algumas cidades do sudeste tocantinense. Nos três dias de
Carnaval, os homens molhavam as mulheres, e estas, aos homens. Nós,
meninos, nos muníamos de latas de folha de flandres e seringas feitas de
taboca e saíamos catando as meninas, ante o protesto daquelas que iam
bem vestidas e faceiras pela rua. Quanto maior fosse o protesto, mais
alegre era a brincadeira. [...].
O tom mais grave dos dias de entrudo (os dias dias do Momo não eram
conhecidos por Carnaval, mas por Entrudo), ficava por conta dos ‘caretas’,
figura que ninguém mais conhece, a não ser pela sua menção em alguma
canção, como a de Caymi (‘Boi, boi, boi/ Boi da cara preta/pegue esta
criança/Que tem medo de careta’).
Para se transformar em ‘careta’, um homem vestia-se de mulher, de
mendigo, ou colocava uma carocha, botava na cara uma horrenda máscara
para se tornar irreconhecível e saía na rua com um chicote, dando lapadas
nas pernas da gente sob uma algazarra geral” (PÓVOA, 2000 b, p. 143).
Nas lembranças do emissor, também figuram os bailes da sua terra natal.
Na época não havia luz elétrica, telefone e outras coisas; a única novidade
eram os rádios de caixote, com bateria imensas e pesadonas; dança,
quando se comemorava algum aniversário, porque, não havendo luz nem
radiola, os bailes eram animados ao vivo, pelo regional de de Bento, que
tocava clarineta e trombone, um dos meus irmãos (César, Casimiro ou
Tonho) no violão ou no cavaquinho, e um pretinho franzino e humilde, por
nome Quebra, que tinha o polegar torto e calejado de tanto raspar
pandeiro. Outras vezes, era Adontino, ou um senhor de Dué, que apareceu
por aqui tocando harmônica, animando bailes que arrastavam a rapaziada,
96
que tinha em cada baile uma novidade, dançando pelo simples prazer de
dançar, ocasião em que se encontravam mais à vontade, que era desse
modo que saíam do enclausuramento em que viviam.
Quando era baile programado para algum aniversário ou festa tradicional da
cidade, não havia contratempo; mas quando era coisa inventada por algum
grupo de rapazes costumava causar certo constrangimento à rapaziada,
porque, precisando pagar os tocadores, os que enfrentavam o bate-chinelo
cobravam ‘cotas’ dos dançarinos, uma espécie de ingresso ou contribuição,
cuja cobrança era feita no momento em que se estava dançando. Acho que
era por medida de segurança, pois sempre havia algum velhaco, mas não
podia fazer feio diante de sua dama em plena festa (PÓVOA, 1989, p. 85-86).
E, além de rememorações de festas e comportamentos dos naturais da terra,
o autor traz para o presente, através de seus escritos, reminiscências que se
remetem à época em que a sua São José do Duro recebia, como ilustres forasteiros,
religiosos, juizes e médicos. A chegada do primeiro padre, em sua cidade, é assim
narrada:
Um dia do ano de 52, deram na gente um banho mais caprichado, vestiram-
no o uniforme da escola e colocaram-nos em fila ao longo da rua principal:
íamos receber o primeiro padre, que inauguraria a paróquia. Era o padre
Magalhães, que tanta influência teve na formação da juventude de minha
cidade, mais na condição de educador do que na de padre mesmo, pois
viera de Belo Horizonte, onde recebera excepcional formação no seminário.
E com o mesmo entusiasmo com que recebeu os ensinamentos de grego,
hebraico, latim e teologia, tentou abrir nossas cabeças xucras para jogar lá
dentro coisas que não entendíamos e que soavam com do outro mundo
(PÓVOA, 2000b, p. 106-107).
A chegada das primeiras freiras, segundo o autor, foi um acontecimento que
causou grande curiosidade a todos do local.
Inauguraram o Ginásio João d’Abreu, e chegaram as primeiras freiras da
congregação das Escravas Concepcionistas do Divino Coração, algumas
das quais ‘importadas’ diretamente da Espanha, trazendo arraigado o
sentimento religioso e puritano do regime de Franco, que era endeusado
pelas freiras. Chegaram as madres Aránzazu, Belém, Glória, Anunciata e
única brasileira, a madre Consolata, que servia de intérprete. [...].
A chegada das freiras foi durante muito tempo motivo de curiosidade, quer
pelo hábito preto e pesado que as faziam parecer pinguins, quer pelos
costumes europeus, quer pelo falar castelhano, uma ‘conversa misturada e
ligeira’, como o povo dizia. Vinha gente pra escutar as freiras
conversando (PÓVOA, 2000a, p. 107).
97
Segundo as lembranças do autor, a antiga o José do Duro ficou
extremamente orgulhosa com a chegada do seu primeiro Juiz de Paz. Afinal, não
era toda a cidadezinha do interior que tinha como habitante um cidadão tão ilustre.
Quando chegou aqui o primeiro Juiz de Direito, foi uma festa. Nós, do grupo
escolar, perfilamo-nos ao longo da rua principal para recepcioná-lo, pois era
uma preciosa aquisição para a cidade, que assumia foros de importância,
passando para trás outras da vizinhança. Chegava o Dr. Joaquim
Magalhães Filho, goiano mesmo, que escolhera esta cidadezinha para
tomar como sua. Viera de Posse, onde exercera a magistratura e aqui
permaneceu até aposentar-se, fincando o umbigo e criando os filhos
(PÓVOA, 1989, p. 49).
O emissor, relembrando a chegada dos primeiros médicos na sua antiga
cidade, assim se expressa:
Vesperando 1960, chegou aqui ao Duro o primeiro médico Dr. Manoel
Dias Pinheiro: novo, bonachão, gastador de bater papo com o povo, fala
mansa pelo nariz, pessoa que levava a vidinha tranqüila aqui no interior,
desfrutando as amenidades de uma cidadezinha calma que tivera
médico andejo e que pela primeira vez ganhara um definitivo, que para
se mudara de armas e bagagens.
Dono de uma competência incomum, doutor Manoel andara operando gente
quase a canivete e costurando com linha zero comprada aqui na Loja
Póvoa. Lembro-me bem de sua primeira operação: uma hérnia antiga de
Hermínio de Germana, um carreiro e trabalhador braçal da rua, rompera-se
e, na falta de recurso para locomovê-lo até Porto Nacional, ou mesmo
Goiânia (pois Brasília ainda estava por inaugurar), doutor Manoel operou
Hermínio no Hospital São Vicente de Paulo, à luz de bibianos que
voluntários mantinham ao redor da ‘mesa de operação’ improvisada (uma
banca), procurando segurar o mal-estar do sangue que marejava daquela
carne branquela. [...]. o demorou muito, Hermínio caminhava. Bem
verdade que andava à feição de um leitão recém-capado, mas o passar
dos dias fê-lo passar a caminhar espigado, como antes da pioneira cirurgia
(PÓVOA, 1989, p. 47).
E a crônica continua:
Quando o povo, admirado, comentava a eficiência do jovem médico, que
transformara em rotina o corte de bisturi e a precisão do diagnóstico sem
qualquer exame complementar, doutor Manoel até fazia charola:
- Vocês precisam ver o Alceu. Ele é quem vai mostrar a vocês o que é
operar e dar remédio! [...].
98
E pouco tempo depois chegou doutor Alceu, irmão do doutor Manoel,
precedido de enorme fama. Sua chegada foi recebida pela hospitaleira
gente daqui, cuja euforia era entremeada de desconfiança.
-Home quá! Doutor Manoel diz isto é por conta de ser irmão dele! Ta vendo
que gente vai crer que tem doutor mais preparado!?
Confirmando a propaganda, doutor Alceu o fez menos: a exemplo do
irmão, mostrou uma espécie de medicina que revolucionou a região, [...]
(PÓVOA, 1989, p. 47-8).
Em fim, o autor rememora com saudosismo, coisas que diziam respeito ao
cotidiano, da antiga São José do Duro. São memórias que apesar de parecerem
pessoais, têm, também, um caráter social. Afinal, conforme Fentress e Wickham
(1992), a distinção entre essas duas modalidades de memória é relativa porque, nas
recordações, essas duas esferas estão sempre misturadas. Além disso, como
referem os citados autores, acreditamos que a memória, por ser estruturada pela
linguagem, pelo ensino e observação, pelas idéias socialmente assumidas e por
experiências partilhadas com os outros, sempre carregue consigo uma faceta
coletiva e, portanto, um viés que diz respeito à identidade de um grupo.
99
4 O TOCANTINS EM UM DISCURSO DA IMPRENSA
Este capítulo aborda o discurso do Jornal do Tocantins, no período de 1989
até 2002 e tem como objetivo indicar as categorizações utilizadas pelo referido
discurso para nomear o Tocantins e seus sujeitos. Como referido, acreditamos
que a imprensa, em função de ter um discurso que é veiculado repetitivamente e de
ter um caráter de objetividade e verdade, contribui para moldar sentimentos
identitários. Além disso, na nossa concepção, esse mesmo discurso, por revelar um
imaginário, indica, também, traços da forma com que esferas da sociedade em
questão se autopercepcionaram.
85
A opção dessa análise para detectar facetas do processo de construção da
identidade tocantinense deve-se ao fato da abrangência e do poder de atuação, do
periódico em pauta, pois o mesmo é um dos jornais com maior circulação no
Tocantins. O periódico em análise compõe o aparato midiático também formado
por emissoras de rádio e televisão - das Organizações Jaime Câmara, afiliadas das
Organizações Globo em Goiás e no Tocantins e teve a sua primeira edição ainda na
década de 1970.
Os enunciados inseridos nos textos do jornal e selecionados para análise
86
são aqueles que evidenciam as regularidades discursivas referentes ao Tocantins e
aos seus sujeitos, isto é, são aqueles que veicularam as imagens e representações
que mais se repetiram no discurso em foco para classificar o novo estado e a sua
população.
O capítulo está estruturado em dois itens. O primeiro, de caráter introdutório e
mais sucinto, aborda a história do periódico e seus posicionamentos políticos e
pretende situar social e politicamente o discurso estudado. Discurso esse que,
investigado no segundo item, no que se refere às regularidades enunciativas sobre o
85
Sobre a relação entre discurso, imaginário e identidade, ver: BACZKO, op. cit.
86
Para pesquisadores da mídia, a diferenciação dos neros, dos textos jornalísticos, tem
fundamental importância para o estudo de múltiplos temas ligados à área. Segundo Beltrão (1980),
os textos jornalísticos são tradicionalmente classificados como pertencentes ao gênero Opinativo
(Editorial, Artigo, Crônica, Opinião do Leitor), Informativo (Notícia, Reportagem) e Interpretativo
(Reportagem em Profundidade). Em nossa pesquisa, como as categorias identitárias relativas ao
Tocantins e seus sujeitos são veiculadas por todos os gêneros jornalísticos acima elencados,
consideramos os mesmos com igual potencialidade para a investigação proposta. De qualquer
forma, a título de informação, indicaremos, no corpo do texto ou em nota de rodapé, o gênero
jornalístico, dos escritos em que estão inseridos os enunciados por nós trabalhados.
100
Tocantins e os seus sujeitos, torna-se um dos focos específicos e principais de
análise do capítulo e do trabalho.
4.1 O jornal e seus posicionamentos políticos
Empenhado no processo de criação do estado, o Jornal do Tocantins se
colocou como um instrumento que, juntamente com outras entidades, viabilizou a
instituição do Tocantins e garantiu a sua consolidação. Em relação ao histórico
desse jornal, bem como ao seu papel na criação do estado, um artigo
87
publicado
em 06/09/1998 fez a seguinte descrição
88
:
Fundado no dia 18 de maio de 1979 pelo então diretor-presidente da
Organização Jaime Câmara, empresário e jornalista Jaime Câmara, e
inicialmente centralizado em Araguaína, o Jornal do Tocantins foi um
veículo de fundamental importância na luta separatista que culminou com a
criação do Estado do Tocantins, que continua sendo sua principal bandeira.
O Jornal é o de maior circulação do Estado e espresente também em
algumas das principais capitais brasileiras como Brasília, Goiânia e São
Paulo (J.T. 06/09/1998, p. 06).
Na publicação de comemoração de vinte e um anos do jornal, mais uma vez
houve a descrição da história do periódico e a veiculação da ideia de que o mesmo,
sendo um herdeiro da imprensa libertária nortista
89
, contribuiu para a instituição do
Tocantins.
87
Conforme Melo (1985), Artigo é uma modalidade de escrita jornalística, onde um emissor (jornalista
ou não) desenvolve uma idéia e apresenta sua opinião.
88
Indicaremos, sempre que possível, em nota de rodapé, o autor dos artigos, reportagens ou outros
escritos analisados por nós. Além disso, quando houver a possibilidade, faremos alusão à
profissão e a função ocupada por esses emissores na sociedade tocantinense. De qualquer forma,
como afirmamos, concebemos esses emissores como autoridades, que nos termos propostos
por Bourdieu (1996): “[são porta-vozes autorizados, que conseguem] agir com palavras em relação
a outros agentes [...], na medida em que sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo
grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ele é, por assim dizer, o procurador” (BOURDIEU,
1996, p. 89)
89
O norte de Goiás, desde o século XIX, foi contemplado com uma imprensa combativa, sediada na
cidade de Porto Nacional, que reivindicava melhorias para o setentrião goiano. Ver sobre o tema:
PALACIM, Luís. Coronelismo no extremo Norte de Goiás: O Padre João e as três revoluções de
Boa Vista. São Paulo: Loyola, Goiânia: Cegraí, 1990.
101
O jornal surgiu como um veículo encampador da luta libertária que visava a
criação do Estado do Tocantins e como continuador de uma saga de órgãos
de imprensa iniciada em maio de 1855 com o Tocantins editado pelo
coronel Felipe Antônio Cardoso Santa Cruz, filho do brigadeiro Felipe
Antônio Cardoso, uma das figuras de destaque da gênesis do movimento
libertário ao lado do ouvidor Joaquim Theotônio Segurado (J.T. 18/05/2000,
p. 2, 2º Cad).
90
Nos enunciados acima, vemos a situação da recorrência à memória para dar
legitimidade ao Tocantins e à própria imprensa tocantinense. É um passado que,
demarcado como tocantinense pelo discurso do periódico, legitimou a criação do
estado naquele presente e atrelou o jornal à secular luta libertária de emancipação
do Norte de Goiás.
Em entrevista ainda na edição de comemoração de vinte e um anos do
periódico, o presidente das Organizações Jaime Câmara declarou em relação ao
jornal: “Vejo-o como um jornal totalmente consolidado dentro do Estado que ajudou
a criar” (J.T. 18/05/2000, p. 2, 2º Cad.). Esses enunciados, sem dúvida, ao atrelarem
o jornal a um passado originário, conferem autoridade e representatividade à
instituição e ao seu discurso. Jornal que participou da luta separatista, o periódico
em pauta, através das palavras de seu editor-chefe, José Sebastião Pinheiro,
assumia uma posição de referência na imprensa da região Norte do País:
O editor-chefe [...] entende que ao chegar aos 21 anos de idade, o Jornal do
Tocantins experimenta um momento muito feliz em sua trajetória. Primeiro,
pela resposta altamente positiva dos seus leitores, que o colocam na
liderança, como veículo de maior credibilidade e circulação no Tocantins. E
depois, pelos avanços editoriais, gráficos e tecnológicos. ‘O JTo já se tornou
referência na Região Norte do país e isso é uma responsabilidade a mais
para todos nós que o fazemos (J.T. 18/05/2000, p. 2, 2º Cad).
O discurso do Jornal do Tocantins, sempre posicionando o periódico como um
participante do processo de autonomia e consolidação do Tocantins, deixava clara a
situação do jornal, no concernente às suas posturas políticas, bem como em relação
aos interesses que eram defendidos em suas páginas. O periódico assumiu, no
transcorrer dos primeiros quatorze anos do estado, uma postura governista, que
endossava o posicionamento das autoridades políticas. Caracterizador dessa
90
Artigo escrito por Rosalvo Leomeu, correspondente de Goiânia.
102
situação é o depoimento que o então governador Siqueira Campos concedeu à
edição comemorativa de vinte e um anos desse jornal.
Sem dúvida é o grande jornal do povo tocantinense. É o grande jornal da
luta libertária pela criação do Estado e está sendo cada vez mais um grande
jornal da construção do Tocantins dos nossos sonhos, nas mesmas
dimensões que nós sempre idealizamos através de toda essa trajetória de
luta. O Jornal do Tocantins está de parabéns pela sua equipe. Parabéns a
vocês (J.T. 18/05/2000, p. 2, 2º Cad.).
Siqueira Campos, que, como vimos, sempre se colocou na posição de criador
do estado, ao considerar o periódico como um coparticipante da luta separatista,
revelava a sincronia política que o jornal mantinha com ele e, por conseguinte, com
o poder estabelecido. Essa sincronia, durante os primeiros quatorze anos de estado,
se viu rompida quando houve o “interregno” de Siqueira Campos, momento em
que o peemedebista Moisés Avelino assumiu e deixou o executivo do estado (1990 -
1994). Foi nos momentos das trocas de governo do referido “interregno” que o
Jornal do Tocantins emitiu um discurso que, apesar de não duvidar do futuro
glorioso do estado, deixava transparecer preocupações em relação à administração
pública que estava sendo efetivada na mais nova unidade federativa do Brasil. O
editorial
91
publicado na edição de 24 à 30/10 de 1989, ainda durante o primeiro
mandato de Siqueira Campos, assim deu acesso a esse discurso:
A (sic) dois meses do seu primeiro aniversário, o Tocantins passa por
momentos que geram apreensão naqueles que têm o estado como fruto de
uma luta e de um sonho, conduzidos com o esforço, dedicação e o
sofrimento de várias gerações. É muito triste detectar no vocabulário do
Tocantins, um estado com vocação de modernidade e modelo ao resto da
Nação, palavras como corrupção, ingerência, suborno, protestos e outras
não menos desabonadoras. [...]
As promessas e esperanças de modernidade, de máquina enxuta e de
administração racional parecem cair por terra ou naufragar em águas
turvas. Representantes populares delegados pelas urnas se esquecem,
como que por milagre de amnésia, de compromissos de palanque, de
reivindicações elaboradas durante cansativas e intermináveis reuniões pré-
eleitorais e se põem a discutir banalidades ou a legislar em causa própria. É
preciso que a comunidade tocantinense como um todo acorde para essas
questões para que não transformemos um sonho no mais sofrido pesadelo.
O compromisso é de todos (J.T. 24 a 30/10/1989, p. 2).
91
“Editorial é o gênero jornalístico que expressa a opinião oficial da empresa diante dos fatos de
maior repercussão no momento” (MELO, 1985, p. 79).
103
Como podemos perceber, os enunciados acima citados lamentavam a
administração política do estado e temiam pela realização do sonho de autonomia.
Outros enunciados, apesar de enaltecerem a coragem e a luta do povo tocantinense
e indicarem a possibilidade de o Tocantins se tornar um estado modelo, criticavam a
administração pública do estado e foram veiculados na edição de 19 a 25/03/1991,
época do governo de Moisés Avelino.
Apanhar a linha da histórica luta do povo tocantinense, amarrá-la às
demandas impostas pela contemporaneidade e estruturar um projeto de
desenvolvimento socialmente justo e eticamente justificável, é o que se
deseja para o Tocantins. O que se quer, na realidade, é tornar este sonho
um caminho irreversível para o nosso Estado. [...]
O novo governo que acaba de assumir precisa urgentemente dizer a que
veio, pois é absolutamente insustentável chegar e assumir apenas porque o
outro está saindo. [...]. Nossa impressão, no entanto, é que o Tocantins
pode dar o salto de qualidade que seu povo precisa. Basta não esquecer de
garantir a realização humana. Esta é a que conta, ao final de tudo. (J.T. 19
a 25/03/1991, p. 2)
92
Em editorial intitulado “Questão de cultura e consciência”, publicado na edição
de 14 a 16 /09/1993, encontramos o mesmo discurso nos seguintes enunciados:
Criado com o aval de uma luta secular e sob a égide da modernidade, o
Tocantins está, infelizmente, longe desse sonho desenhado por aqueles
que o idealizaram e por aqueles que o elegeram como novo eldorado e
como futuro de seus presentes. O discurso de que estaríamos criando uma
nova unidade federativa sem os vícios, sem os erros e sem os absurdos
que se verificam nas existentes, parece que o passa mesmo de figura
de linguagem tal a distância entre teoria e prática. [...]
Estamos completando no próximo dia 5 de outubro cinco anos de criação do
Estado do Tocantins e, mesmo a despeito dos avanços, das conquistas e
do visível progresso da região que até então amargava o total abandono,
somos obrigados a reconhecer que o nosso crescimento não se dentro
do espírito de modernidade imaginada.
Da prática política ao estilo administrativo de nossos homens públicos,
quase tudo com poucas exceções- repete comportamentos obsoletos e
questionáveis de tristes lembranças. [...]
A modernidade que sonhamos e necessitamos está acima de todas
essas práticas ‘coronelistas’ [...]. O Tocantins ainda pode, com apenas cinco
anos de idade, mudar essa mentalidade de atraso para outra mais arejada,
mais próxima da modernidade [...] (J.T., 14-16/09/1993, p. 1).
92
Artigo escrito por Joãomar Carvalho de Brito.
104
Conforme o discurso do periódico em questão, o Tocantins, nos primeiros
anos após a sua instituição, só não se tornou um eldorado e um estado moderno por
causa de seus governantes, que, além de não darem à máquina estatal uma boa
organização, lançavam mão de práticas retrógradas e corruptas. Contudo, esse
discurso acena para a possibilidade de que o Tocantins, com práticas políticas mais
justas e condizentes com a “heroica” luta da instituição do estado, pudesse assumir
a sua “verdadeira” vocação rumo à modernidade e à riqueza.
Passados esses primeiros anos de instalão do estado, houve a permanência
de um partido político no poder, o PFL
93
; a partir desse momento, o discurso do
Jornal do Tocantins tornou-se elogioso sobre a administrão e a organizão da
quina estatal. As críticas e as dúvidas em relação aos rumos percorridos pelo estado
para atingir um patamar econômico, social e potico desejado cessaram de figurar nos
enunciados em pauta, que passaram a representar o Tocantins, seus governantes e os
sujeitos tocantinenses com atributos extremamente positivos. O editorial da edição de 4
a 5/10/1996 exemplifica a situão a que nos referimos.
O Tocantins chega ao oitavo ano de sua criação com economia fortalecida,
muito embora não tenha recebido até o momento os recursos
constitucionais previstos na Carta Magna de 1988 e que já alcançam a cifra
de R$ 800 milhões, mesmo expediente utilizado na divisão do Estado de
Mato Grosso.
Pode-se inferir, neste período, que o desenvolvimento verificado no Estado
decorre basicamente do esforço de sua população, empresários e Governo
Estadual, dadas as especificidades de sua criação, num momento político-
econômico que inviabilizou maiores transferências financeiras da União.
A pequena participação do Governo Federal possibilitou, por seu turno, que
o Tocantins, após oito anos de sua criação, se mostrasse um Estado
praticamente sem dívidas, independente da União para pagar o seu
funcionalismo, ao contrário de Estados do mesmo porte como Rondônia,
Roraima, Amapá ou mesmo Acre, onde a grande maioria dos servidores
são pagos pelo Governo Federal.
[A arrecadação do próprio Estado] [...] possibilitou o estabelecimento de
prioridades administrativas, não de todo executadas, é verdade, mas que
conseguiram dotar grande parte da população de infra-estrutura básica,
melhorando a qualidade de vida das pessoas, antes relegadas a planos
inferiores no antigo Norte de Goiás. [...]
Diante do perfil de desenvolvimento já delineado de 1988 a 1996, não
constitui exagero esperar que o Tocantins nos próximos anos venha a se
transformar em celeiro produtivo do País, consideradas a sua vocação, o
trabalho de seu povo e a economia emergente que se vislumbra (J.T., 4 a
5/10/1996.).
93
Como referido, José Wilson Siqueira Campos foi governador do Estado por três mandatos De
1989 a 1990, de 1994 a 1998 e de 1999 a 2002.
105
Nesse editorial comemorativo ao oitavo aniversário do Tocantins, foi
significativa a comparação entre a estrutura financeira e administrativa com a de
outros estados, que foram criados na constituição de 1988
94
e com o estado do Mato
Grosso, dividido em 1977. O Tocantins foi representado como um modelo de
administração para todo país. Ele se distinguia em função de uma administração
eficiente, pois, sem o auxílio da União e independente, além de não ter débitos de
nenhuma espécie, conseguiu investir em infraestrutura para a sua população, a qual,
juntamente com o seu governante, foi caracterizada como responsável pelos
sucessos obtidos pelo estado.
Diante do exposto, podemos afirmar que o posicionamento político do
periódico em foco, na época de análise foi, majoritariamente, de defesa e apoio ao
poder estabelecido e aos interesses que esse representava, ou seja, o Jornal do
Tocantins endossou as atitudes de um governo que, como referido no primeiro
capítulo deste trabalho, administrava a máquina pública pautado em seus próprios
interesses e também nos de segmentos sociais ligados à agropecuária.
4.2 Categorias identitárias tocantinenses
Esse tópico analisa as categorias identitárias, referentes ao Tocantins e aos seus
sujeitos, que foram veiculadas com maior regularidade no Jornal do Tocantins na época
da instituão e consolidação desse novo estado. Maior regularidade essa, entendida
como mecanismo que, por meio da repetição, evidencia e constrói categorias
identitárias para um Tocantins.
94
A constituição de 1988, além de criar o Estado do Tocantins, transformara os então territórios
nacionais em Estados da Federação.
106
4.2.1 Memória da autonomia
Uma das categorizações veiculadas pelo discurso estudado para marcar
alteridade
95
ao estado do Tocantins foi a que se remeteu ao movimento da
autonomia. O Tocantins é distinguido e enaltecido nos enunciados do periódico por
ter sido instituído através de uma separação territorial. Em datas comemorativas,
quando comentado, de forma entusiasta, o desenvolvimento econômico do estado,
sempre houve uma rememoração do movimento de autonomia. Esse foi, sem
dúvida, o momento fundador do estado; contudo, uma memória que perpassa todo o
século XIX e chega até o final do século XX foi acionada para legitimar esse
acontecimento, ocorrido em 1988. Faz-se importante, aqui, explicitarmos o nosso
entendimento sobre as relações entre um processo de construção de identidade e a
memória.
Como Ricouer (2003), entendemos que a relação entre um processo de
construção de identidade e a memória é que esta é empregada nessa construção,
através de uma busca. É o que esse autor chama de memória exercida, que é
aquela onde um esforço de memória, o qual está dentro da esfera das
possibilidades, das intencionalidades segundo um fim. Conforme esse autor, os
processos identitários lançam mão da memória para consubstanciarem-se, por
causa das fragilidades da identidade, que se assentam em um caráter presunçoso
de querer dar a receita do que perdura e pode ser proclamado. Para Ricouer (2003),
a primeira causa da fragilidade da identidade é a sua difícil relação com o tempo,
pois, segundo ele, não é possível, tanto em nível individual como coletivo, manter-se
a mesma ao longo do tempo. E, segundo o mesmo autor, é essa fragilidade que
justifica, precisamente, a frequente recorrência à memória nos processos de
construção de uma identidade. A memória passa a ser o suporte de continuidade
temporal de um indivíduo ou grupo, é o passado que se une a um presente e projeta
um futuro. E, quando a memória é acionada para dar tal continuidade temporal a um
indivíduo ou grupo, ela mostra, muitas vezes, a sua vulnerabilidade intrínseca: a
ausência da coisa recordada e sua presença, segundo um modo de representação.
95
Sobre a importância da alteridade e da diferenciação para a construção de um processo identitário
ver: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira,1976.
107
O autor também indica outras fragilidades da identidade: o fato de essa ser
contrastiva e ter que evocar o “outro” necessariamente como uma ameaça e,
também, a situação de que não existe comunidade histórica que não tenha se
originado na guerra ou no conflito. Para o autor, esses fatores necessários para a
construção de uma identidade fazem com que a mesma tenha que se legitimar em
um amálgama de “feridas” reais e simbólicas nos arquivos da memória. E esta, por
se pautar na representação de algo ausente, quando é instrumentalizada a serviço
da identidade pode ser manipulada.
es en la problemática de la identidad donde hay que buscar la causa de la
fragilidad de la memoria así manipulada. Esta fragilidad se añade a la
propiamente cognitiva que proviene de la proximidad entre imaginación y
memória, y encuentra em ésta su acicate y su coadyuvante (RICOEUR,
2003, p. 111).
Sendo assim, para Ricoeur (2003), o problema da relação entre a memória e
a identidade é o fato de a memória ser mobilizada a serviço da busca, do
requerimento, da reivindicação da identidade, pois há, nesses processos, a
possibilidade de manipulação da memória e do esquecimento por quem tem o
poder. Manipulação essa que é evidenciada pela demasiada memória, memória em
excesso, abusos de memória ou de esquecimento.
96
O autor afirma que é possível
identificar os resorts, lugares em que se apoiam as diversas empresas de
manipulação da memória, nas suas palavras: “En el plano más profundo, el de las
mediaciones simbólicas de la accion, la memória es incorporada a la constituición de
la identidad a través de la función narrativa” (RICOUER, 2003, p. 116).
É no relato, segundo a lógica do autor, que se circunscrevem os papéis dos
sujeitos sociais, a ação dos mesmos e a própria ação. O relato, em função do seu
caráter seletivo, tem meios astutos de promover tanto o esquecimento como a
rememoração. A narração promeve:
relatos de fundación, relatos de gloria y de humillación alimentan el discurso
de la adulación y del miedo. De este modo, se hace posible vincular los
96
Esses abusos de memória e de esquecimento a que se refere Ricouer (2003), são comparados,
por ele, como uma situação patológica de memória coletiva.
108
abusos expresos de la memória a los efectos de distorsión propios del plano
del fenômeno de la ideologia (RICOEUR, 2003, p.116-7).
O autor continua, afirmando que nesse plano a memória imposta está
equipada por uma história autorizada, a história oficial, que é veiculada, ensinada e
celebrada publicamente; aqui, memória, história e identidade se imbricam, pois, essa
memória exercida, legitimada por uma história oficial, procura construir uma
identidade.
97
As reflexões de Ricouer (2003) sobre as relações entre memória exercida e
identidade nos permitem melhor analisar o discurso relativo à autonomia política do
Tocantins, emitido pelo periódico em pauta no período por nós analisado. Podemos
afirmar que há, nesse discurso, o que esse autor denomina de excesso de memória,
pois a luta pela emancipação, muitas vezes representada nesses enunciados como
remontando ao início do século XIX, assim como o “abandono” e a “exclusão”
infligidos pelo “outro” antes da instituição do Tocantins, foi veementemente lembrada
e relembrada nos enunciados desse discurso.
Como afirmado, o movimento de autonomia da cada de 1980, a “guerra
fundadora do Tocantins”, foi insistentemente lembrado nos enunciados em análise e,
não raro, como mencionado, foi representado como o ápice, o apogeu de um
processo que teve início em 1821, quando o ouvidor da comarca de São João das
Duas Barras, Joaquim Theotônio Segurado
98
, declarou a autonomia do Norte de
Goiás em relação ao Sul. Na edição comemorativa ao dia da autonomia, em 1998,
um artigo começou a descrever a saga da luta separatista com os seguintes
enunciados: “Há 10 anos era promulgada a Constituição brasileira que criou o
estado do Tocantins. Foram necessários 167 anos de luta para que os tocantinenses
de hoje pudessem comemorar esta data” (J.T. 05/10/1998)
99
. Esses enunciados, ao
darem um sentido de continuidade histórica entre os movimentos de 1821 e o da
década de 1980, retrataram o Tocantins como se sua existência remontasse à
97
O autor conclui o capítulo sobre a memória exercida, propondo uma memória justa, no sentido
ético-político, pois, segundo as suas reflexões, não se pode fazer abstração das condições
históricas em que é requerido o dever de memória, contudo, segundo ele, há excessos de memória
em alguns lugares e excessos de esquecimento em outros, o que lhe causa perplexidade.
98
Em relação a Theotônio Segurado, ver primeiro capítulo desse trabalho.
99
Artigo escrito por Rosalvo Leomeu.
109
segunda década do século XIX.
100
O mesmo artigo, citando trechos da proclamação
pela autonomia do Norte, feita por Theotônio Segurado em 1821, continuou a dar
esse sentido histórico ao citado movimento, ou seja, o mesmo foi representado,
nesses enunciados, como o deflagrador do início do processo de autonomia do
Tocantins e, também, como um marco que principia, simbolicamente, o próprio
estado.
Habitantes da Comarca da Palma! É tempo de sacudir o jugo de um
governo despótico; todas as províncias do Brasil nos têm dado este
exemplo. Palmenses sejamos livres e tenhamos segurança pessoal;
unamo-nos e principiemos a gozar as vantagens que nos promete a
Constituição! Estes trechos da célebre proclamação do ouvidor Joaquim
Teotônio Segurado, em 15 de setembro de 1821, marcaram oficialmente a
luta libertária tocantinense que chegou ao seu ápice com a criação do
Estado do Tocantins através da promulgação da atual Constituição, em 05
de outubro de 1988 (J.T. 05/10/1998, p. 2, Edição Especial).
101
O autor continuou o artigo relatando todo o processo do movimento de 1821 e
depois traçou uma linearidade histórica entre ele e as manifestações pró-autonomia,
ocorridas no transcorrer dos séculos XIX e XX
102
, até chegar ao ano de 1988, com a
promulgação da Constituição e a criação do Tocantins. As manifestações pela
autonomia do Norte goiano, ocorridas no século XIX são rememoradas nesses
enunciados da seguinte forma:
Em 22 de julho de 1873 o parlamentar João Cardoso de Menezes e Souza
apresentou na Câmara dos Deputados, no Rio de Janeiro, uma proposta de
divisão de Goiás e anexação ao Pará da parte Norte da província goiana.
Em alternativa a isso, o Visconde de Taunay, deputado por Goiás, propôs a
criação da província de Boa Vista do Tocantins. Em 1879, o mesmo
Visconde de Taunay apresentou um projeto propondo a criação da
Província do Tocantins. Em 1880, Fausto Souza lançou uma carta de
redivisão territorial em que previa o surgimento do Tocantins abrangendo
vilas e povoados ao Norte do Paralelo XIII goiano (J.T. 05/10/1998, p. 2,
Edição Especial).
100
Ribeiro (2001), demonstra que essa continuidade histórica, entre o movimento de 1822 e o de
1988, é feita, também, pela historiografia tocantinense, produzida depois da autonomia.
101
Artigo escrito por Rosalvo Leomeu.
102
Como referido, no primeiro capítulo desse trabalho, a produção histórica que aborda o
movimento da autonomia tocantinense, também ressalta manifestações de autoridades,
principalmente da cidade de Porto Nacional que, no transcorrer do século XX, se manifestaram a
favor da separação de Goiás. A título de exemplo ver: CAVALCANTE, 1990. op. cit.
110
Como podemos perceber, há, nesses enunciados, um encadeamento que
inter-relaciona os fatos, dando um sentido evolutivo às manifestações pró-autonomia
ocorridas no transcorrer do século XIX. Em relação às manifestações que
propunham a autonomia do Norte de Goiás, ocorridas no século XX, o artigo
salientou:
Em 1920, José Pires do Rio, ministro de Viação e Obras, fez mais uma
defesa da criação do Estado tocantinense, o mesmo acontecendo com o
professor e geógrafo Teixeira de Freitas, durante o período de 1937 a 1942,
em um estudo de redivisão territorial. O brigadeiro Lysias Rodrigues, que
estabeleceu os aeroportos da rota aérea tocantinense, chegou a escrever
cartas para Getúlio Vargas defendendo a criação do Estado juntamente com
o brigadeiro Eduardo Gomes. Lysias, ao inaugurar um aeroporto em Porto
Nacional, em 1945, fez uma veemente defesa da criação do Tocantins J.T.,
05/10/1998, p.02, Edição Especial).
O autor continuou:
Em 13 de maio de 1956, o Dr. Feliciano Braga, juiz da comarca de Porto
Nacional e o professor Fabrício César Freire divulgam um ‘Manifesto à
Nação’ defendendo a criação do Tocantins. Assinado por vários nortenses,
o manifesto teve repercussão e na Assembléia Legislativa goiana, a
deputada Almerinda Arantes apresentou um projeto propondo a criação do
Estado. Em 1960, o padre Ruy Rodrigues da Silva fundou em Goiânica a
Cenog (Casa do Estudante do Norte Goiano) para incentivar a juventude a
apoiar o movimento libertário. E em 1981, foi criada a Conorte (Comissão
de Estudos do Norte Goiano), com a meta de lutar pelo desenvolvimento da
região e criar o novo Estado (J.T., 05/10/1998, p.02, Edição Especial)
Na sequência, o artigo relatou a trajetória de Siqueira Campos, representado,
nesse discurso, como um seguidor, um herdeiro direto de Segurado e das outras
lideranças que se manifestaram a favor da divisão do estado de Goiás. E o autor
concluiu: “E é esta mais jovem unidade da Federação que hoje completa dez anos
de existência, trazendo na bagagem a experiência de muitas lutas que são
sementes para a construção do grande futuro sonhado pelos heróis de sua odisséia
libertária” (J.T. 05/10/1998, p.02, Edição Especial).
Percebemos, nos enunciados do artigo citado, uma recorrência à memória
para fundamentar a ideia de uma “guerra fundadora” para o Tocantins. Houve a
construção de um relato, que selecionou o que devia ser lembrado e esquecido,
111
circunscrevendo a ação dos sujeitos e a própria ação e encadeando fatos para dar
um sentido lógico a essa “guerra” que criou o Tocantins. É a memória exercida
dando sentido ao passado, ao presente e vislumbrando um futuro, memória que deu
continuidade no tempo ao Tocantins e sanou o que Ricoeur (2003) indica como
fragilidade da identidade, que vem a ser a dificuldade de se manter o mesmo ao
longo do tempo.
Em outro artigo publicado em data comemorativa ao dia da autonomia,
encontramos o mesmo discurso, ou seja, o emissor, lançando mão de um relato que
remonta ao culo XIX e vai ao final do culo XX, selecionou o que devia ser
lembrado ou esquecido para garantir continuidade e logicidade à “guerra fundadora
do Tocantins”.
A luta separatista dos tocantinenses tem contornos de romance de ação e
aventura, que bem poderiam formar o enredo de um filme. Este ‘roteiro’
começa com o sonho de seus primeiros líderes, e permanece vivo na
memória daqueles que nasceram ou adotaram a região como sua.
Personalidades políticas como o governador Siqueira Campos estariam
entre os personagens principais desta história, com suas atuações no
Congresso Nacional, abrindo caminho para vitória alcançada com a
participação popular -, que se tornou realidade no dia 05 de outubro de
1988, com a promulgação da Constituição (J.T. 05/10/1999, p.5, Edição
Especial).
O emissor continuou o artigo fazendo menção aos acontecimentos do
movimento de 1821 e concluiu: “[o final do movimento de 1821] representa um dos
momentos mais duros e pungentes dessa longa odisséia, que foi a luta libertária
tocantinense, que atingiu seu objetivo final, em 05 de outubro de 1988, com a
criação do estado do Tocantins através da Assembléia Nacional Constituinte” (J.T.
05/10/1999, p.05, Edição Especial). Comentando, ainda, a derrocada do movimento
de 1821, o emissor declarou: “O sonho emancipatório tocantinense foi
temporariamente frustrado, mas não esmagado”; depois, relatou as manifestações
de autoridades que defendiam a divisão de Goiás nos séculos XIX e XX, dando
ênfase aos feitos de Siqueira Campos, no transcorrer da década de 1980, para criar
o Tocantins.
Novamente, percebemos a tentativa desses enunciados de, através da
memória, dar uma continuidade de 167 anos ao movimento separatista. Para esse
discurso, quase duzentos anos não mudaram em nada os objetivos, as
112
necessidades, a situação da população e os interesses das elites políticas da região;
tudo continuou igual, houve uma continuidade histórica. É o relato que, como indica
Ricoeur (2003), ao selecionar o que deve ser lembrado ou esquecido, pode
enquadrar a memória, a memória que tem um fim, memória que viabiliza a
continuidade no tempo de um grupo, o qual, tendo um passado em comum, justifica
seu presente enquanto tal e projeta um futuro.
Na edão comemorativa aos doze anos de instauração do estado, lemos o
relato da trajetória de lideranças políticas da cidade de Porto Nacional que
manifestaram-se a favor da separação do eno estado de Goiás em meados do século
XX.
O dia 5 de outubro de 1988 não nasceu tão cedo. Ele foi construído, neste
século, por lideranças que conseguiram incutir na população o sentimento
de mudança. O processo histórico registra, dentre tantas pessoas
importantes, o farmacêutico/bioquímico Osvaldo Aires, que criou o jornal A
Norma, veículo propagador da luta libertária. A campanha lançada pelo
jornal tomou forma organizada em 1943 e eclodiu dez anos mais tarde. A
entrada do juiz goiano Feliciano Braga, que aceitou liderar a campanha
iniciada por Osvaldo Aires, Fabrício César Freire e João Matos, deu saltos
de qualidade, com a entrada em cena de parlamentares na Câmara de
Deputados. Zilda Prado Aires, viúva de Osvaldo Aires (que morreu em julho
de 1983) conta, com uma ponta de mágoa, que a história ainda não dá valor
merecido ao farmacêutico, que chegou a ser prefeito em Porto Nacional,
nomeado pelo governador goiano Pedro Ludovico. E ilustra: um bilhete de
Braga a Osvaldo Aires teria dado contornos definitivos à história, que
muitos pensavam ter sido do juiz a idéia da campanha pela divisão (J.T.,
05/10/2000, p.01, Edição Especial.
103
Enaltecendo lideranças de Porto Nacional - cidade considerada a capital
cultural do Tocantins - que organizaram manifestações pela autonomia do Norte
goiano em meados do século XX, o discurso do Jornal do Tocantins, através da
recorrência à memória, novamente deu continuidade, no tempo, ao movimento pró-
autonomia. E, como referido, a própria ideia desse processo de autonomia e do
Tocantins se imbricavam, ou seja, se o movimento pró-autonomia começou na
segunda década do século XIX e teve continuidade até 1988, com a Promulgação
da Constituição, é porque o Tocantins existiu desde 1821. A autonomia foi
representada, por esse discurso, como uma luta, uma saga que chegara ao fim com
103
Artigo escrito por Luiz Armando Costa, Editor de Política.
113
um desfecho favorável, algo que necessariamente teria que acontecer para
demarcar fronteiras existentes desde a segunda década do século XIX.
Além disso, percebemos que o discurso do Jornal do Tocantins para justificar
essa “guerra fundadora” do estado, lança mão de uma lógica baseada em uma
memória da espoliação, do abandono e do isolamento a que estava relegado o
antigo Norte de Goiás. Essa memória do isolamento, ao justificar a luta do Norte
para libertar-se dos grilhões do Sul, acabou por circunscrever a figura do “outro” no
antigo sul goiano. Aqui percebemos o que Ricouer (2003) também indica como
fragilidades de um processo identitário: o fato de esse ser contrastivo e ter que
recorrer à memória para evocar o “outro”, que é visto necessariamente como uma
ameaça, e a situação de que toda comunidade histórica se origina numa guerra,
num conflito. Esses fatores necessários para a construção de uma identidade fazem
com que a mesma tenha que se ancorar em uma memória ferida.
Nos enunciados do Jornal do Tocantins, inúmeros são os relatos da situação
de isolamento, pobreza e esquecimento da antiga região Norte de Goiás, espoliada
pelo sul. É uma memória que justifica o presente de um estado autônomo e o
prepara para um futuro promissor.
Os governos de Goiás, que sucessivamente se alternavam no poder, ao
serem eleitos com a ajuda dos votos daqui, logo após o pleito esqueciam o
Norte e o Nordeste, pois os tinham como um peso morto, um verdadeiro
apêndice para o Estado.
O dinheiro aqui arrecadado, que diziam ser irrisório, era levado para Goiânia
e alhures aplicado. Para voltavam-se as costas e o povo desassistido era
quem sofria. [...]
Em 1988, com a nova Constituição veio o estado do Tocantins. Este era
fruto do trabalho e da coragem de grandes nomes, que abraçaram a causa
de libertar o Norte do jugo das elites dominadoras, por vislumbrarem, neste
pedaço da Amazônia Legal, uma região próspera e viável, a qual poderia,
tranquilamente, tomar sozinha o rumo do progresso e da prosperidade de
sua gente, antes humilhada e massacrada pela ganância dos irmãos do sul
(J.T. 29-30/11/1996, p. 2).
104
Em outro artigo, lemos os seguintes enunciados:
houve quem acreditasse que o Tocantins era um garimpo. Estes ficaram
à margem da estrada. Antes, porém, aqueles que utilizaram de todos os
104
Artigo escrito por Clenan Renaut de Melo Pereira, publicado na Coluna “Tendências e Idéias”.
114
instrumentos disponíveis para inviabilizarem a criação do Estado. Difícil não
deixar de lembrar as ações e omissões do ex-governdador (atual senador),
Iris Rezende, contrário a instituição de direito do estado do Tocantins, e
tantos outros goianos, que, preocupados com o seu quinhão, imaginavam
relegar ao seu quintal a rica e inexplorada marginalizada na mesma cruel
proporção Região Norte. As ações contrárias partiram até mesmo das
igrejinhas culturais goianas, cada um a seu modo, e valendo-se da
possibilidade universal do direito (J.T. 04- 05/10/1996, p. 2).
105
Nas citações acima, está explicita a recorrência a uma memória do atraso e
do isolamento que circunscreve a figura do “outro”, o Sul goiano. Representado
como o causador das mazelas do antigo Norte, o sul vem a ser o responsável
também, pela “guerra” da autonomia, a qual, conforme os enunciados em análise,
instaurou um presente totalmente promissor para a região.
A história provou que valeu a pena criar o Estado. Antes éramos uma
porção esquecida de Goiás, isolada no centro do Brasil, sem a mínima infra-
estrutura. Aqui faltava tudo: escolas, hospitais, saneamento, segurança mas
nunca faltou esperança. Hoje, com menos de 10 anos, o Tocantins cresce
em ritmo acelerado e se consolida como uma das unidades mais
promissoras da federação (J.T. 05/10/1998, p. 12, Edição Especial).
106
A ideia de que o Norte era esquecido pelo Sul, região que detinha o aparato
financeiro e administrativo do antigo Goiás, foi insistentemente emitida nos
enunciados em questão. A veiculação dessa ideia tendeu a construir, no imaginário
dos receptores desse discurso, uma espécie de ressentimento em relação ao Sul, e,
como nos lembra Ansart (2004), nada como o ressentimento para forjar um
sentimento identitário entre um grupo. Esse autor, refletindo sobre o conceito de
ressentimento, afirma que a construção de identidades, tanto pessoais como de
grupos, está densamente alimentada, cultivada e acalentada por cargas afetivas
muitas vezes negativas: “[...] o ódio recalcado e depois manifesto cria uma
solidariedade afetiva que, extrapolando as rivalidades internas, permite a
reconstituição de uma coesão, de uma forte identificação de cada um com seu
grupo” (ANSART, 2004, p. 22).
Assim, podemos afirmar que a rememoração constante de um passado de
exclusão do antigo Norte goiano, feita pelo Jornal do Tocantins, ancorou a
105
Artigo escrito por Luis Armando Costa.
106
Artigo escrito por Raimundo Pires, na época, governador interino do Estado do Tocantins.
115
interpelação de um sentimento identitário entre os receptores desse discurso. Esse
passado de exclusão, insistentemente rememorado, produzia um sentido naquele
presente, qual seja: passado de isolamento e pobreza que legitimou a autonomia e a
consolidação do estado e que preparava a região para um futuro extremamente
promissor.
Anos atrás quando o Tocantins se constituía no Norte-Goiano, olhávamos
este pedaço do Brasil como parte isolada e esquecida pelos governos
Federal e Estadual da época. Lembro-me como se fosse hoje, a grande
existência de poeira, lama, falta d’água, de energia, falta de estradas, de
escolas, de estrutura e saúde, aos pequenos produtores e aos micros e
pequenos empresários. Vivíamos a mercê do descaso, do sofrimento, do
abandono, do esquecimento. [...]
Após a criação do novo estado, deu-se início a construção de um sonho, a
busca pela transformação de um estado recém-criado e fraco, em um
Tocantins forte, emergente, e potente. [...]
Por tudo que se tem feito nesse Estado, pelo que vem sendo concretizado por
este Governo, só nos deixa certos de que o estado caminha a passos ligeiros
rumo ao desenvolvimento e a modernidade (J.T., 10/06/1998, p. 4).
107
Diante do exposto, podemos afirmar que houve, por parte do discurso
veiculado pelo Jornal do Tocantins no período investigado, a recorrência a uma
memória exercida que, repetitivamente, rememorou os mesmo feitos e fez a mesma
seleção do que devia ser lembrado e esquecido. a lembrança constante do
período em que o antigo Norte estava inserido no estado de Goiás, em uma situação
que, segundo o discurso em questão, lhe imputava exploração e usurpação. Isso é
o que podemos chamar de memória instrumentalizada, que visa a construção de
uma identidade e, para isso, lança mão da construção de um relato que circunscreve
a figura do “outro” e também da guerra fundadora de uma comunidade. Memória que
passa a ser um elemento constitutivo da identidade, pois é ela que estabelece um
elo temporal por meio de uma visão de passado que legitima o presente e uma
perspectiva de futuro. Esse elo entre passado, presente e futuro é indispensável a
todo e qualquer processo de construção identitário, que, como afirma Ricouer
(2003), dentre as fragilidades da identidade, a que mais se destaca é a sua relação
com o tempo, ou seja, a difícil situação de permanecer a mesma, tanto em nível
individual como coletivo, ao longo do tempo.
107
Artigo escrito por Manoel Neto Lopes Rodrigues, Presidente da Ação da Juventude Liberal de
Brejinho do Nazaré – TO.
116
Assim sendo, Estado com um passado de exclusão, mas que vivenciou lutas
durante quase duzentos anos para efetivar a sua autonomia: estas são duas
classificações, circunscritas no âmbito da memória, que o discurso do Jornal do
Tocantins invocou, no período em análise, para demarcar alteridade a mais nova
unidade da federação.
4.2.2 A modernidade
Uma das categorizações mais recorrentes, em relação ao Tocantins, emitidas
no periódico em pauta, foi a modernidade.
108
Conforme o Jornal do Tocantins, o
mais novo Estado da federação nasceu moderno, com uma máquina
administrativa enxuta que não necessitava de auxílio da União. Inserido nas novas
tendências econômicas mundiais, o Tocantins passava por um processo de
privatizações que era alardeado pelo jornal como sinônimo de preparo para o
mesmo adentrar fortalecido na economia nacional e mundial.
Na edição comemorativa aos nove anos de existência do estado, o jornal
publicou uma entrevista do então governador Siqueira Campos em que esse político
fez uma apologia às privatizações, demonstrando toda a sua postura neoliberal em
relação à organização do estado.
Governo não é para tratar de negócios, governo é para tratar de educação,
saúde, segurança e infra-estrutura para as atividades econômicas. As
atividades econômicas devem ser exploradas pelas empresas e o governo
deve estar vigilante. O imposto que a empresa paga (sic) a participação do
governo e da sociedade nos negócios. Tem de privatizar, (..). Nós não
podemos deixar de privatizar. Temos de privatizar e eu apoio o Governo
Federal [...].
[...] Eu privatizo tudo o que puder [...] (J.T. 5-7/10/1997, p. 3).
108
Tradicionalmente, a Modernidade é um conceito ligado às transformações, vivenciadas por uma
sociedade com a implantação do sistema capitalista. Como veremos, o discurso do Jornal, na
época em questão, também concebia a modernidade como um processo ligado às
transformações ocorridas com a plena implantação desse sistema. E, de uma forma mais
específica, o discurso estudado atrelava a modernidade a um Estado que tinha uma organização
política e administrativa minimizada, alinhada aos princípios neoliberais. Além disso, para o
discurso analisado, a modernidade era efetivada por meio da modernização, isto é, através da
implantação de obras (tanto públicas quanto privadas) que viabilizassem o crescimento
econômico do Tocantins.
117
Na edição de 19/02/2000, o periódico publicou um artigo cuja manchete -
“Siqueira faz mobilização geral por privatizações” - dava a tônica de um dos
assuntos mais abordados pelo jornal naquele momento. No discurso do periódico, as
privatizações eram tidas como necessárias para que o Tocantins tivesse condições
de crescer economicamente e se destacar como um estado promissor no âmbito
nacional.
Para garantir investimentos que ultrapassam US$ 8 bilhões e que colocarão
o Tocantins em uma situação privilegiada até mediante de (sic) outros
estados mais desenvolvidos, o governador Siqueira Campos quer a
mobilização dos setores produtivos, das lideranças políticas e da
comunidade para sensibilizar as autoridades federais no sentido de aprovar
a privatização de cinco usinas hidrelétricas e da Ferrovia Norte-Sul (J.T.,
19/02/2000, p. 05).
A campanha promovida pelo então governador e veiculada com ênfase pelo
jornal, pretendia mobilizar a sociedade civil e entidades das mais variadas esferas
para, através de e-mails, telefonemas e correspondências, manifestarem seu apoio
às privatizações e, assim, sensibilizarem a União no sentido de aprovar o projeto de
privatização de cinco hidrelétricas e da Ferrovia Norte-Sul.
Na edição do dia 20/02/2000, um artigo veiculava a ideia de que a exploração
das abundantes riquezas naturais do Tocantins só poderia ser efetivada com a
injeção de capital da iniciativa privada em setores tradicionalmente pertencentes ao
âmbito estatal.
São US$ 8 bilhões que podem ser injetados na economia tocantinense com
a construção, pela iniciativa privada, de cinco usinas hidrelétricas e da
Ferrovia, que vai transportar o desenvolvimento de Norte a Sul do País.
O Tocantins e o Brasil têm potencial para gerar riquezas e transformarem-se
num verdadeiro celeiro do mundo. Basta aproveitar seus recursos
imensuráveis que estão à espera de capital e trabalho (J.T. 20/02/2000,
Caderno, p. 02).
Na gica discursiva do periódico, o Tocantins necessitava do capital da
iniciativa privada para explorar suas riquezas naturais e se transformar em um
estado moderno e rico. Ainda no mesmo mês, várias matérias que se referiam ao
processo de privatização, proposto pelo então governador Siqueira Campos, foram
118
publicadas no jornal. No dia 22/02/2000, sob a manchete: “Sociedade adere à ação
por privatização”, foram publicados vários depoimentos de autoridades políticas e
personalidades de destaque do estado, que haviam aderido aos apelos de Siqueira
para uma manifestação junto à União em prol das privatizações em pauta. Dentre
esses depoimentos, podemos destacar o de Ângelo Agnolin, na época presidente da
Fecomércio.
É altamente válida essa campanha. Vem ao encontro da filosofia
tocantinense de dar à iniciativa privada essas obras que são de grande
importância para o Estado. A Fecomércio está envolvida nisso.
recomendamos aos nossos membros e associados que entrem no processo
e enviem correspondências (J.T., 22/02/2000, p. 03).
Nesse depoimento, foi significativa a afirmação de que a privatização das
grandes obras era uma prática que fazia parte da filosofia tocantinense. Afinal,
nessa lógica ficava perpassada a ideia de que essa situação era decorrente de uma
“tendência natural” do Tocantins, e não de um processo resultante de decisões
políticas. Outro depoimento, publicado na mesma matéria, que enalteceu a
campanha do governador Siqueira Campos pelas privatizações foi o do presidente
da Assembléia Legislativa do estado, deputado Marcelo Miranda.
109
A Assembléia como um todo quer parabenizar a iniciativa do Governador
que é um homem de visão e tem brigado por isso algum tempo. Agora
vamos brigar juntos por isso. É uma atitude certa e estamos de acordo.
Pode ter certeza que vamos apoiar (J.T., 22/02/2000, p. 03).
O periódico em pauta, ao veicular esse depoimento emitido pela autoridade
máxima do Legislativo tocantinense, estava, sem dúvida, por fortalecer a ideia de
que as privatizações pretendidas eram legítimas e contribuiriam para o crescimento
do estado. Outro depoimento favorável às privatizações que, por ser emitido por
uma autoridade política expressiva do estado, dava uma maior sustentação ao
109
Nas eleições de 2002, Marcelo Miranda, sob o aval político do então Governador Siqueira
Campos, foi eleito Governador do Tocantins. No transcorrer do mandato (2003-2006), Marcelo
Miranda rompeu, politicamente, com Siqueira e, concorrendo com este último nas eleições para o
governo do Estado em 2006, venceu o pleito e exerce, desde 2007, o cargo de Governador do
Tocantins.
119
discurso pró-privatizações, veiculado pelo jornal, foi o de Ronaldo Dimas
110
, na
época presidente da FIETO – Federação das Indústrias do Estado do Tocantins.
Vamos entrar na campanha. A iniciativa é oportuna. Não o Tocantins
mas o Brasil precisa dessas obras. A construção de novas fontes geradoras
de energia é extremamente importante. A ferrovia está em andamento
mas de forma muito lenta. A capacidade do Poder Público es
extremamente reduzida e geralmente é muito morosa (J.T., 22/02/2000, p.
03).
Com a veiculação de ideias que enalteciam as privatizações e as colocavam
como condição de crescimento econômico do estado, o jornal concluiu a série de
artigos e notícias sobre o processo em pauta com a informação de que as
privatizações pretendidas haviam sido autorizadas pela União.
O governador Siqueira Campos (PFL) foi informado ontem, à tarde, pelo
ministro das Minas e Energia, Rodolpho Tourinho Neto, de que foi
aprovada pelo Conselho Nacional de Desestatização (CND), a privatização
das usinas de São Salvador, Peixe, Estreito, Serra Quebrada e Santa Isabel
no Tocantins. “Nós temos assegurada a privatização”, disse o
Governador satisfeito com o anúncio do ministro e destacando que o
próximo passo será a busca de investidores para a construção de
hidrelétricas onde estiverem (J.T., 23/02/2000, p. 02).
Com o desfecho favorável dessa campanha por privatizações, o periódico
encerrou, momentaneamente, a apologia em relação a esse processo. Contudo, a
ideia de que o Tocantins necessitava de capital da iniciativa privada para ter uma
economia de mercado forte, onde o estado não interviria, perpassou o discurso
analisado durante todo o período investigado.
Para o discurso do jornal, o Tocantins era um estado enxuto e com uma
máquina político-administrativa totalmente moldada nos parâmetros da
modernidade.
110
Ronaldo Dimas, após ser Presidente da FIETO, foi eleito, em 2002, Senador pelo Estado do
Tocantins. Em 2008, concorreu nas eleições municipais, da cidade de Araguaína - pólo econômico
mais desenvolvido do Tocantins- para o cargo de Prefeito, tendo sido vencido pelo candidato
Valuar Barros.
120
O Tocantins que gerou na esteira de sua criação e constituição um dos mais
notáveis exemplos de organização política, além de refletir um amplo
horizonte por onde percorrem as lutas emancipacionistas centradas em
valores que inquestionavelmente acabaram referendando o desejo dos
antigos ‘nortenses’, vive hoje uma realidade punjante que não desmerece a
justa esperança de milhares de tocantinenses, alimentada nos primeiros
momentos pela natural euforia que, sete anos, com a promulgação da
Constituição de 1988, bafejou o novo Estado.
Se a esperança não morreu e o entusiasmo ainda é contagiante, tudo isso
tem relação direta com a realidade atual, que coloca o Tocantins no
pedestal do Estado mais enxuto da Federação que não se subordina aos
planos de contenção ditados pelo governo federal porque possui, [...] um
perfil econômico-financeiro-administrativo que o encaixa nos mais altos
parâmetros da modernidade (J.T. 28 a 30/01/1996, p. 2).
111
A regularidade com que o enaltecimento dessa modernidade do Tocantins foi
veiculada, no periódico em questão, nos permite afirmar que a mesma respondia a
uma lógica situacional. Afinal, na época em que o Tocantins foi criado e consolidado,
a tônica dos discursos e das práticas econômicas capitalistas, tanto em nível
nacional quanto internacional, estava toda voltada para o ideário neoliberal
112
. Por
isso, para o jornal, ser um estado moderno significava ser um estado minimizado,
não interventor e que tinha o papel de administrar as questões públicas mais
prementes, como a saúde, a educação e a infraestrutura. Nesse ínterim, para o
discurso do periódico, o Tocantins, instituindo essas práticas, nascia moderno, e,
essa era uma das suas peculiaridades diante do todo nacional.
Nesse discurso que enaltecia o Tocantins e o colocava como uma espécie de
exemplo para a nação, havia sempre a veiculação de uma lógica onde essa
modernidade conseguida pelo estado legitimava a autonomia ocorrida em 1988. Em
editorial publicado em outubro de 1997, lemos:
O Tocantins entra no décimo ano de sua criação com a pujância de um
Estado forte, implantado em sua plenitude, vendo descortinarem-se
condições e instrumentos empreendedores de uma economia em
desenvolvimento, combinada com justiça social. [...]
As receitas do antigo norte de Goiás, por exemplo, que antes
representavam apenas 3% do que arrecadava todo território goiano, hoje
alcançam a casa dos 37%, com o Tocantins autônomo. É justo reconhecer
111
Artigo escrito por Henrique Duarte, articulista do Jornal O Popular, de Goiânia.
112
Com a crise do capitalismo, iniciada na década de 1970, o mundo ocidental, gradativamente,
vivenciou o desmantelamento do Estado do bem estar social e a implantação das chamadas
práticas neoliberais, que, dentre outros aspectos, minimizaram o Estado, flexibilizaram as relações
de trabalho e enalteceram o individualismo. Sobre esse contexto ver: CASTELLS, Manuel. A
sociedade em rede. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001. v. 1 e HOBSBAWM, Eric. Era dos
extremos: o breve século XX, 1914-1991. 2. ed. São Paulo, Cia das Letras, 1998.
121
que o Estado avança celeremente para se tornar uma das regiões mais
produtivas do País. [...] [Os avanços com obras, pavimentação de estradas]
cimentam um futuro de desenvolvimento que a região certamente demoraria
a enfrentar, caso persistisse o abandono a que estava relegada antes da
divisão do Estado de Goiás, autorizada pela Constituição Federal de 1988,
depois de luta libertária de anos.
Consolidado, o Tocantins está a provar, a cada dia, com a força de seu
povo e os seus projetos que se viabilizam, que estavam certos os que, por
tanto tempo, lutaram pela sua criação, levados pelo sonho de ver um
Estado livre, independente, construído com o trabalho de sua gente, como
ocorre nove anos após a sua instalação ( J. T. 5-7/10/1997, p. 1).
A lógica existente nesses enunciados era que tinha valido a pena a separação
de Goiás, pois a modernidade estava alcançada. Em 1998, lemos, no periódico em
análise, dentre uma rie de depoimentos elogiosos sobre o Tocantins: “É
gratificante verificar que o estado do Tocantins chega aos 10 anos consolidado, com
invejáveis índices de desenvolvimento, modelo da administração moderna [...]” (J.T.
05/08/1998, p. 3)
113
ou ainda: “Mais do que sua criação, há que se festejar o êxito do
Tocantins, a unidade federada que mais cresce no País, a um índice de 7,8% ao
ano” (J.T. 05/08/1998, p. 3)
114
E, para legitimar ainda mais a autonomia do estado do
Tocantins, o discurso em pauta sublinhava insistentemente o desenvolvimento
econômico do estado, moldado nos parâmetros da modernidade: “[...] nós
conseguimos fazer nesses dez anos no Estado o que não se conseguiu fazer em
toda a sua história de mais de cem anos” (J.T. 05/08/1998,p. 4)
115
.
Conforme o discurso do jornal, essa modernidade alcançada pelo estado,
além de ser pautada em uma organização político-administrativa enxuta, era
também expressada em grandes empreendimentos, como a construção de
Palmas,
116
capital do estado, a Usina de Lajeado
117
e a construção e pavimentação
de estradas. Um artigo publicado na edição de 05/08/1998, assim se referia às
obras que estavam sendo realizadas no Tocantins:
113
Depoimento de Domiciano de Faria, na época, diretor de Jornalismo da Organização Jaime
Câmara.
114
Depoimento de João Rocha, naquele momento, era Senador do Tocantins pelo PFL.
115
Artigo de Moisés Avelino, segundo governador do Tocantins (1990-1993)
116
Palmas, a capital do Tocantins, foi planejada e construída, na época do primeiro governo de
Siqueira Campos 1989-1990.
117
Usina Hidrelétrica, batizada de Luis Eduardo Magalhães, construída no rio Tocantins, próxima da
cidade de Palmas. A construção dessa Usina é que viabilizou a existência de um lago, com praias
artificiais, na cidade de Palmas.
122
Vamos entrar agora numa nova década que vai completar a consolidação
do estado com grandes projetos, inclusive com alguns já em execução
como a Usina de Lajeado, a Linha Norte/Sul, a Hidrovia Araguaia-Tocantins,
a Ferrovia Norte/Sul e o Pertins. O progresso que experimentamos e o
futuro promissor estão nos provando que valeu a pena sonhar e lutar pela
nossa independência (J.T 05/10/1998, p. 12, Edição Especial).
118
Das obras realizadas na época, uma das mais elogiadas pelo periódico foi a
Usina Hidrelétrica de Lajeado. Conforme o discurso do periódico, essa usina iria
tornar o Tocantins autosuficiente em produção de energia e ainda faria com que o
estado exportasse energia para outras regiões do país. É importante lembrar que,
na época da construção dessa usina, o Brasil passava por sérios problemas no setor
energético, com os famosos “apagões” que assolavam o país. Nesse ínterim, o
discurso do jornal, através de apologias à construção da Usina Hidrelétrica de
Lajeado, delineou uma alteridade extremamente positiva para o Tocantins da época:
estado rico em potencialidades energéticas, enquanto o país passava por uma crise
no setor de energia.
Outra questão altamente positiva que existe no Estado é a expansão do
setor energético, deficiente em quase todo o País e que aqui será em breve,
motivo que não provocará mais preocupações. Com as pequenas usinas
existentes e com a construção da Usina Hidrelétrica Luis Eduardo
Magalhães, situada no município de Lajeado, o Tocantins passará em
alguns anos, do papel de importador para exportador de energia elétrica.
Como para concretizar a implantação de indústrias é necessário a
disponibilização em larga escala de energia elétrica, o Tocantins está se
transformando no lugar ideal para o crescimento de empresas diversas,
com portes distintos ( J.T., 23/09/1998, p. 04).
A mesma lógica é transmitida nos enunciados publicados na coluna de
economia, do dia 13/02/2000.
O Tocantins se tornará em breve, o apenas auto-suficiente na produção
de energia, mas um exportador de grande porte, ficando numa posição de
destaque e extremamente favorável em relação aos outros estados, uma
vez que a maioria não produz nem 2% do que consome. Hoje se importa
60% da energia consumida no Estado. Os outros 40%são produzidos por
pequenas usinas. Com a entrada em 2001 das primeiras turbinas da UHE, o
118
Artigo escrito por Raimundo Pires, naquele momento, governador interino do Tocantins. Raimundo
Pires assumiu o cargo de governador interino para que Siqueira Campos, então governador do
Tocantins, pudesse se candidatar, novamente, ao executivo do Estado, nas eleições de 1998.
123
Tocantins não precisará mais comprar energia. Quando estiver com as
cinco turbinas em funcionamento, a Hidrelétrica produzirá 850 Megawats,
podendo exportar energia para o restante do Brasil (J.T., 13/02/2000, p. 08).
Ainda para exemplificar como o discurso relativo à Usina de Lajeado,
veiculado pelo jornal, construía uma singularidade extremamente positiva para o
Tocantins, citamos os enunciados de uma propaganda do governo do estado,
publicada na edição de 31/12/ 1997 a 03/01/1998, a qual teve como título “A Energia
e o Trabalho do Tocantins Gerando Desenvolvimento para o Brasil”.
Enquanto todo o país fala em racionamento de energia elétrica, o Tocantins
surge na contramão da crise com a USINA HIDRELÉTRICA DO LAJEADO,
obra que irá gerar não apenas a energia que o Brasil precisa, mas também
os empregos e o desenvolvimento que o centro-norte do país tanto
necessita (J.T., 31/12 a 03/01/1998, p. 17).
Outra obra sempre lembrada e relembrada pelo discurso do jornal para
referenciar a decantada modernidade tocantinense foi a construção da capital do
Estado, Palmas. Palmas, denominada pelos enunciados do periódico, de “capital de
todos os brasileiros”,
119
era retratada, pelos mesmos, como sinônimo da
institucionalização do estado.
Neste local, às 10 horas do dia 20 de maio de 1989, o governador Siqueira
Campos deu início à construção da Capital definitiva do Estado do
Tocantins’. Uma placa com estes dizeres fincada no meio do cerrado
lançou a pedra fundamental e deu início à construção de Palmas no dia 20
de maio de 1989” (J.T., 05/101998, p.2, Caderno Especial).
120
Na edição de 19/02/2000, comemorava-se a data da escolha do local onde
Palmas foi erigida.
exatamente 11 anos, no dia 19 de fevereiro de 1989, o atual governador
Siqueira Campos realizou o sobrevôo sobre um grande cerrado ao da
119
Esta denominação à capital tocantinense era por motivo dessa cidade, na época, ter recebido
migrantes de toda parte do Brasil. A título de exemplo, ver: Jornal do Tocantins, edição de
03/02/1999.
120
Artigo escrito por Rosalvo Leomeu.
124
Serra do Lajeado, onde seria construída a futura Capital do Estado, Palmas.
Naquela época muitos pensavam que a construção de uma Capital para o
recém criado Estado do Tocantins era um sonho de um visionário. Mas o
tempo mostrou que o local era bom para construir uma Capital, que
pretende ser a melhor cidade do século XXI (J.T. 19/02/2000).
Tida como símbolo do Tocantins, Palmas teve a sua história sempre
rememorada nas páginas do periódico. Em um artigo intitulado “Símbolo que
identifica um Estado consolidado”, lemos:
Um dos pontos fundamentais para a afirmação do Estado foi certamente a
Capital. Ao completar o Estado seus doze anos, Palmas é lembrada como
símbolo do Tocantins. Sua construção começou em 20 de maio de 89, na
fazenda Sussuarana, com o lançamento da pedra fundamental e a
celebração da primeira missa pelo bispo de Porto Nacional, Dom Celso
Pereira de Almeida (J.T. 05/10/2000).
Palmas, que foi planejada e construída, tornou-se, no discurso em análise, um
local que, por ser contemplado com muitas belezas naturais e arquitetônicas, podia
atrair muitos visitantes e distinguir-se em nível nacional.
A Capital que mais cresce no País (28,7%) recebeu da Embratur o título
de Capital Turística e, assim que começar as obras do Projeto Orla,
certamente vamos ver com prazer, despertar o interesse de muitos em
conhecer esta terra. Palmas que foi contada em verso e prosa é sempre
surpresa para os que aqui chegam.
Elogiada pelo seu arrojado projeto arquitetônico e erguida sob o olhar terno
das serras do Carmo e Lajeado e, tendo às margens (sic) esquerda o Rio
Tocantins, é, com toda razão, o motivo de inspiração para os artistas da
região. [...] (J. T., 03/05/2000, p. 2).
121
E o artigo continuou, veiculando uma lógica que construía um sujeito
palmense orgulhoso de sua cidade.
Palmas, que há 10 anos viu chegar caminhões repletos de tralhas dos seus
primeiros moradores, brevemente verá também muitos turistas chegarem e
se deslumbrarem com suas belezas naturais e artificiais que só orgulham os
que para cá vieram e resolveram ficar (J. T., 03/05/2000, p. 2).
121
Artigo escrito por Thelma Maranhão, jornalista e presidente da Associação Brasileira de
Jornalistas de Turismo.
125
No enaltecimento dos potenciais turísticos de Palmas, feito pelo discurso do
jornal, o chamado Projeto Orla, que resultaria em um lago de praias artificiais para a
cidade, sempre foi enfatizado. Em relação ao citado projeto, um artigo publicado no
dia 13/01/2000, afirma:
Com a construção da barragem na Usina Hidrelétrica Luís Eduardo
Magalhães, haverá a formação de um lago com extensão de 630
quilômetros quadrados que deverá modificar a economia tanto da Capital
quanto de cidades próximas que serão também beneficiadas com as águas
do lago formado pelo rio Tocantins.
Com a acumulação das águas, um novo panorama visual também ficará
distinto na região central do Estado e, com isso, possivelmente estará
propiciando o turismo executivo e o lazer comum para os moradores de
Palmas e de cidades vizinhas. [...]
No projeto original que deverá ser entregue à Capital, o lago terá uma praia
constante, locais de lazer, marinas, avenida com calçadão, área comercial e
toda uma infra-estrutura apropriada para ser explorada por aqueles que
estiverem dispostos a investir na área turística. [...] (J. T. 13/01/2000, p. 04).
122
No dia 14/09/2000, o governo do Tocantins, em propaganda paga, convidava
a todos para a assinatura do convênio de autorização de implantação do Projeto
Orla da seguinte forma:
CONVITE
Nesta quinta-feira, 14 de setembro, às 10h, no auditório do Palácio
Araguaia, o Governo do Tocantins assina o convênio de autorização de
implantação do Projeto Orla e apresentação do projeto da monumental
Ponte que liga Palmas a Paraíso. Esta é mais uma grande etapa da
consolidação do Tocantins, de sua Capital, Palmas, e das cidades vizinhas.
O investimento marca a parceria do Governo do Estado com as Prefeituras
da Região Metropolitana de Palmas e a Iniciativa Privada, e vai gerar
milhares de empregos e renda para toda a população.
O Projeto Orla oferece uma infra-estrutura de apoio ao desenvolvimento do
turismo nas áreas de praias, ilhas e entorno do Lago de Palmas e da
Região Central do Estado a patamares jamais vistos, estendendo seus
benefícios aos programas sociais, à saúde, educação, assistência social e
segurança pública do Tocantins.
Governo do Tocantins em dia com o Povo! (J.T. 14/09/2000, p. 01).
Para o discurso do jornal, diante da implantação do Projeto Orla, a capital,
além de desenvolver todo o seu potencial turístico, teria também a possibilidade de
122
Artigo escrito por Jorge Gouveia, repórter do Jornal do Tocantins.
126
resolver problemas básicos das mais diversas esferas. Era o progresso da capital e
do Tocantins que se materializava ainda mais com a construção de obras. Palmas,
entrementes, representava um marco, uma distinção do mais novo estado da
Federação. Assim, o discurso analisado enaltecia as especificidades dessa cidade,
com o propósito de distingui-la e identificá-la positivamente. Em artigo publicado na
edição de 28 a 30/01/10996, as especificidades de Palmas eram firmadas em
relação a Goiânia, antiga capital de todo o estado de Goiás.
A Capital, Palmas que mantém altos índices de crescimento se comparada
a Goiânia, andou muito mais depressa na formação da sua infra-estrutura.
No começo da década de 70, portanto quarenta anos após o seu advento, a
capital Goiânia não contava com rede de esgoto sanitário a não ser na zona
central, cerca de 18% da população. A capital tocantinense com sete anos
de vida, tem redes coletoras até nas suas cidades satélites, emissários e
tratamento completo. Este é um dado promissor porque uma mostra da
qualidade de vida em Palmas, podendo-se a partir daí medir o alto grau de
desenvolvimento urbano e humano (J.T., 28 a 30/01/1996, p. 2).
123
Sabe-se que toda e qualquer identidade é construída por contraste, pela
oposição, pela diferença, nunca se firmando-se isoladamente
124
, e, na citação
acima, vemos uma clara diferenciação de Palmas em relação à Goiânia, a antiga
capital de todo o estado de Goiás. Na lógica desses enunciados, o Tocantins, antiga
região norte do estado de Goiás com a separação ganhava uma capital mais
propícia ao desenvolvimento, o que o distinguia do antigo sul goiano. Palmas vem a
ser, para esses enunciados, um símbolo diacrítico do Tocantins em relação a Goiás,
estado que sempre foi caracterizado pelos discursos autonomistas como o “outro”,
espoliador e usurpador das riquezas do antigo Norte goiano.
Ainda sobre o discurso relativo a Palmas veiculado pelo jornal, podemos
afirmar que essa cidade, em virtude de ter sido planejada e construída na época do
primeiro mandato, do governador Siqueira Campos, tinha, nos enunciados em
questão, uma ligação direta com esse governante. Siqueira Campos, em entrevista
ao Jornal do Tocantins publicada em data comemorativa à autonomia do estado,
afirmava ser o idealizador dessa capital, bem como o responsável pela escolha do
local onde essa cidade seria construída.
123
Artigo escrito por Henrique Duarte, articulista do jornal O Popular, de Goiânia.
124
Sobre o caráter contrastivo da identidade ver: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura
social. Livraria Pioneira, São Paulo,1976.
127
O momento que eu vi o platô, ou seja, o morrinho, sobre o qual nós
construímos Palmas, eu ia tendo emoções repetidas na medida em
que eu andava pelas planícies entrecortadas de platôs. Eu ia encontrando
esses platôs e ia sonhando com a cidade que nós teríamos aqui, mas ainda
sem a segurança para decidir, e isso eu encontrei quando encontrei o
platô sobre o qual está o Palácio (J. T. 05/10/1999, p. 8).
Conforme os enunciados da entrevista em questão, o governador,
emocionado com o lugar onde seria construída a capital e sem ninguém para ouvi-lo,
resolveu fazer um discurso para as vacas.
Me lembro que eram umas duas centenas de vacas, todas elas de orelhas
em pé, me olhando fixamente, eu subi no cupim e me dirigia a elas tendo
segurança de que elas só não bateram palmas e não urraram porque não
podiam mesmo, pois a surpresa delas com as minhas palavras certamente
foi muito grande e, eu vi, elas ficaram emocionadas. [...]
Eu via gado eu via gente, eu via movimento, eu via multidões, via
trabalhadores acionando os seus instrumentos de trabalhos, eu via a febre
excitante que o progresso determina. Então eu fiquei realmente emocionado
(J.T., 05/10/1999, p. 8).
Nos enunciados dessa entrevista, o então governador, quando da escolha do
lugar em que a Capital seria erigida, colocava-se na posição de agraciado por Deus.
Parece que alguma coisa me conduzia, alguma mão. Eu espero que tenha
sido a mão de Deus porque certamente ele tem nos protegido muito e
espero que eu tenha, sob o ponto de vista de Deus e de todos que aqui
habitam, escolhido com acerto esse local (J.T., 05/10/1999, p. 8).
Para o discurso analisado, Palmas, símbolo da modernidade tocantinense, foi
construída sob a égide da vontade de um líder que, sob as bênçãos de Deus, levava
o Tocantins para o rumo do desenvolvimento e da riqueza.
Um estado com um aparato político-administrativo enxuto, que se desenvolvia
economicamente de forma pida e que promovia a construção de grandes obras foi
a lógica perpassada sobre o Tocantins, no discurso analisado na época posterior à
autonomia. Além da construção da Usina de Lajeado e de Palmas, outras obras,
como a construção de estradas, mereciam destaque nos enunciados veiculados pelo
jornal relativos aos avanços da economia tocantinense, veiculados pelo Jornal.
128
O maior avanço do Tocantins nestes 12 anos de sua criação foi na área de
infra-estrutura. O Estado passou de 1847,6 km de estradas pavimentadas
para quase 4 mil km de rodovias asfaltadas.”Hoje praticamente o existe
mais municípios isolados”, afirma o secretário estadual de Planejamento,
Lívio Reis de Carvalho, lembrando que, ao passo que foram pavimentadas
as grandes rodovias, foram feitas as estradas vicinais, o que garante o
escoamento de toda produção agrícola e pecuária do Tocantins. [...] (J.T.
05/10/2000, p.7b, 2º caderno).
Conforme o discurso do periódico analisado, com a emancipação, a
modernidade se expandiu por todas as esferas da sociedade tocantinense.
O povo tocantinense, nato ou por opção, tem muito o que comemorar
nesses 11 anos de criação do Estado. Apesar das necessidades ainda
visíveis em áreas essenciais como Saúde, Educação e Infra-Estrutura,
muito foi feito desde que o Norte goiano passou a ter vida própria e
autonomia para apontar seus problemas e buscar soluções. [...] (J.T.,
05/10/1999, p. 5).
125
Com essa mesma lógica, a matéria intitulada “Colheita da perseverança”, da
edição comemorativa aos 12 anos do Estado, enalteceu a modernidade
tocantinense alcançada com a autonomia do estado.
Nos últimos 12 anos, quase cinco mil quilômetros de estradas foram
pavimentadas (sic) e áreas como saneamento, saúde, transporte receberam
investimentos. Os avanços são grandes e também ainda muito o que
ser feito em prol de sua população, formada por gente de todos lugares do
País, atraída pelo progresso e desenvolvimento implementado na antiga
região Norte de Goiás, e responsável por um crescimento populacional de
3,5% ao ano (J.T. 05/10/2000, p. 01, 2º Caderno).
Para o discurso estudado, a modernidade vivenciada pelo Tocantins, por si
só, imprimia uma distinção para o estado no todo nacional. Contudo, conforme
esse mesmo discurso, essa modernidade trazia consigo mais um fator que
demarcaria singularidade ao Tocantins: ser um “estado-solução”. Afinal, conforme a
lógica em análise, a efetivação da implementação de uma infra-estrutura, no estado
potencializava economicamente a situação de o Tocantins ter uma localização
geográfica fronteiriça com o Centro-Oeste e o Nordeste do Brasil. Assim, conforme o
125
Artigo escrito por Wania Nóbrega.
129
discurso analisado, o Tocantins, por estar localizado em uma região limítrofe com
vários estados
126
, poderia melhor interligar as economias dos mesmos, tornando-se,
então, o “estado da integração nacional” e, também, o “estado-solução” para o
Brasil. Na edição de 05/10/1998, a transcrição de uma entrevista veiculava os
seguintes enunciados relativos a essa situação.
Eu acho que o Tocantins nesses 10 anos viveu como se tivessem passados
100 anos. O Tocantins se consolidou e está partindo, inclusive, para ser um
dos maiores estados da Federação. Depois da construção da Usina de
Lajeado e mais algumas hidrelétricas, a abertura, ligação e pavimentação
de estradas e rodovias, com a consolidação da hidrovia Araguaia-Tocantins
e do linhão Norte-Sul o Tocantins se transformará, com certeza, em um
grande celeiro, porque nossa posição privilegiada, no centro do País, faz
com que possamos transportar mercadorias para todos os lados (J.T.,
05/10/1998, p. 12).
127
No editorial de 07/10/1998, a possibilidade de o Tocantins transformar-se em
uma fronteira agrícola extremamente promissora para o Brasil foi aventada da
seguinte forma:
O Tocantins, que faz parte do cerrado brasileiro, ajuda compor os 90
milhões de hectares agricultáveis localizados nesta região e que estão
sendo considerados [...] como a nova fronteira de desenvolvimento agrícola
do Brasil.
Essa nova fronteira é possuidora de um grande potencial de geração de
emprego e renda e produção de grãos, além de possuir uma localização
geográfica privilegiada que facilita o escoamento desta produção (J.T.
07/10/1998, p. 04).
A lógica veiculada acima, construiu a imagem de um estado que propiciava a
implementação de uma infra-estrutura moderna e que era capaz de engendrar
riquezas e desenvolvimento para a região e para o país. Pois, com tantas
possibilidades de crescimento econômico, o Tocantins se distinguia do todo
nacional, que vivenciava uma crise. Em um artigo escrito pelo editor chefe do jornal,
José Sebastião Pinheiro, em 26/05/2000, leem-se as seguintes afirmações relativas
126
O território tocantinense localiza-se no sudeste, da região norte e tem como limites: o Maranhão a
nordeste, o Piauí a leste, a Bahia a sudeste, Goiás ao sul, Mato Grosso a sudeste e Pará a
noroeste.
127
Entrevista concedida por José Bonifácio, na época, presidente da ATM.
130
à situação econômica, do novo estado: “O Estado de 278.420,7 km2 (3,3% do
território nacional e 20,3% do Eixo Araguaia-Tocantins) e 1,1 milhão de habitantes é
hoje uma das mais promissoras regiões brasileiras. [...] (J.T. 26/05/2000, p. 04).
Nessa mesma lógica, outro enunciado demarcava especificidade à economia
tocantinense, em relação à nacional: “O Tocantins é hoje frente de grandes
oportunidades, transformando-se em uma feliz exceção em um mercado saturado e
com sérios entraves. [...](J.T. 26/05/2000, p .04). Ainda em relação à importância
da economia tocantinense para o Brasil, o emissor afirmava: “O Tocantins tem muito
a oferecer na construção de um Brasil novo. [...]” (J.T. 26/05/2000, p. 04).
Em tom enaltecedor e profético, um artigo relatando uma visita do então
presidente Fernando Henrique Cardoso às obras da Usina de Lajeado mais uma vez
retratou o Tocantins como um estado diferenciado, modelo para nação.
[Siqueira Campos transfere a palavra ao Presidente da República] para, no
Tocantins, exatamente às suas margens, onde se erige a hidrelétrica Luis
Eduardo Magalhães, dar seu veredicto peremptório sobre o grau de
importância do estado do Tocantins em sua gestão e a especialíssima
execução do governo Siqueira Campos entre as demais do País: ‘o
Tocantins é o estado símbolo do meu governo e Siqueira Campos um
exemplo de administrador.
Com essa declaração o presidente distinguiu o Tocantins, reconheceu e
exaltou a administração e a capacidade de administrar de nosso
governador. [...]
Deixou, às margens do Tocantins, reboando no espaço, a sua mais íntima
manifestação de fé e de interesse no destino desse estado que se levanta
no interior do Brasil. Talvez se sentisse, no crescente fértil brasilienses, tal
um Nabucodonosor, antevendo uma Babilônia brasileira surgindo entre o
Tocantins e o Araguaia, a exemplo do que se deu entre os rios Tigre e
Eufrates no antigo Oriente Próximo (J.T. 19/07/2000, p. 5).
128
Outro símbolo da modernidade tocantinense alardeado pelo discurso do
jornal, no período em foco foi a sanção da Universidade Federal do Tocantins pelo
então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, em 2000. Até então, o
Tocantins, que era o único estado da federação sem uma universidade pública
federal, segundo os enunciados do periódico, recebeu as boas novas da seguinte
forma:
128
Artigo de Getúlio Matos Quinaud, professor.
131
O Presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) sanciona na próxima
segunda-feira, dia 23, às 16horas em Brasília, no gabinete de trabalho do
Presidente, no Palácio do Planalto, o projeto de Lei que autoriza o Poder
Executivo a implantar a Fundação Universidade Federal do Tocantins. A
solenidade deverá entrar para a história do Estado como o dia da
materialização de uma luta que começou junto com a criação do Tocantins.
Estudantes, professores, lideranças políticas, parlamentares e o próprio
governador do Estado Siqueira Campos (PFL), conseguiram após diversas
tentativas, sensibilizar o Governo Federal da necessidade que o Tocantins
tinha de ter uma instituição de ensino superior pública e gratuita federal.
Afinal de contas o Tocantins, até então, é o único estado da federação que
não tem uma Universidade Federal (J.T., 20/10/2000,p.04).
E o discurso do periódico, atrelando mais essa conquista da modernidade
tocantinense ao seu governante, afirmava:
Ao assinar o projeto de Lei que autoriza o Executivo implantar a
Universidade Federal do Tocantins, amanhã, às 16 horas, no gabinete no
Palácio do Planalto em Brasília, o presidente da República Fernando
Henrique Cardoso (PSDB) estará realizando o marco de coração de uma
luta que durou 15 anos, quando o então deputado federal Siqueira Campos
apresentava no Congresso Nacional matéria pedindo a criação da
Universidade do Norte de Goiás. [...]
A criação da UFT foi um compromisso firmado com a população pelo
Governo do Estado, através do senador Eduardo Siqueira Campos durante
negociação com os alunos da UNITINS, em abril deste ano, que estavam
em greve. O movimento de greve foi deflagrado diante da possibilidade de
privatização da UNITINS e durou cerca de 60 dias. Eduardo garantiu a
gratuidade do ensino, a criação da UFT e a posterior encampação da
UNITINS pela Federal. [...] (J.T. 22/10/2000, p. 05).
Nesses enunciados, fica evidenciada a situação de atrelar todas as
transformações ocorridas no estado ao então governante Siqueira Campos. A
universidade federal seria instalada com o propósito de encampar a UNITINS,
universidade estadual que, naquele momento, estava em vias de ser privatizada.
Contudo, o discurso do periódico em nada comentava essa privatização feita pelo
governo do estado, preferindo enaltecer Siqueira Campos pela instalação de uma
instituição federal de nível superior no Tocantins.
Diante do exposto, podemos afirmar que, por meio do viés de uma
modernidade assentada na organização política e administrativa de um estado
enxuto, neoliberal e consolidada através de obras que viabilizavam o crescimento da
economia e da educação tocantinense, o discurso em pauta construiu uma fronteira
identitária extremamente positiva para o Tocantins. E, conforme a gica discursiva
132
em questão, esse processo de modernidade vivenciado pelo estado, estava atrelado
ao poder político instituído. Afinal, Siqueira Campos, considerado, pelo discurso em
pauta, idealizador e mentor do novo estado, era também o concretizador de todo
esse processo, o qual legitimava a “secular” luta pela autonomia. Para os
enunciados em análise, o presente vivenciado pelo estado naquele momento, por
trazer consigo a modernidade, tornava-se o tempo em que se efetivou o apogeu de
um processo de lutas, um período em que se consubstanciavam as transformações
da realidade de uma região que, antes da autonomia, era retratada, por esses
mesmos enunciados, como sinônimo de atraso e espoliação pelo Sul de Goiás.
Além disso, acreditamos, também, que a escolha do traço identitário da
modernidade, feita pelo discurso do jornal para nomear o Tocantins, respondia a
uma demanda da situação vivenciada pelo estado: a instituição e consolidação
dessa nova unidade federativa. Afinal, um discurso sobre um estado recém-criado,
com necessidade de legitimar-se tanto perante a si como perante a comunidade
nacional e com uma população que, ao final da década de 1980, era goiana,
procurava marcar, delinear diferenças, que, conforme a lógica discursiva em
questão, categorizavam positivamente a mais nova unidade federativa do país.
4.2.3 Um líder e um povo
No discurso em pauta, Siqueira Campos foi insistentemente lembrado como o
responsável pela existência do mais novo estado da federação. Um artigo publicado
em outubro de 1997 traça toda a trajetória do político em prol da criação do estado,
na década de 1980. É a memória do movimento separatista que se mescla e se
inter-relaciona com a construção do carisma de um líder político. Em relação à greve
de fome
129
do então deputado José Wilson Siqueira Campos, o emissor, em tom
dramático e de admiração ao político, afirmava:
[...] José levantou sua voz e bradou para o Brasil ouvir: ‘Queremos que
Goiás seja dividido ao meio e que o Norte de Goiás seja transformado no
Estado do Tocantins’.Os congressistas e o Presidente da República se
129
Greve feita por Siqueira Campos, em 1985, para protestar contra o veto do projeto que criaria o
Tocantins, pelo então presidente da República, José Sarney.
133
fizeram surdos. Foi somente quando José fizera greve de fome é que o seu
brado foi ouvido. E então souberam que aquele José tinha nome e
sobrenome: José Wilson Siqueira Campos; e representava o ideal secular
de um povo que não suportava mais o desprestígio, a discriminação e o
desprezo dos seus conterrâneos do centro e do sul do Estado (J.T. 8 a
9/10/1997, p. 4).
130
Ao enfatizar o primeiro nome de Siqueira Campos, Jo - um dos nomes
masculinos mais populares no Brasil - esses enunciados procuravam imprimir uma
origem humilde e popular nesse político. Siqueira era um José, assim como tantos
outros brasileiros e tocantinenses. Contudo, era um José corajoso, que
“representava o ideal secular de um povo”. O emissor continuou o artigo relatando o
processo de autonomia do Tocantins, no final da cada de 1980, e os cargos e
condutas assumidos pelo então governador nos primeiros anos de instauração do
Estado.
Siqueira Campos seria o governador do Tocantins, para um mandato de
dois anos, alicerçado pelo apoio do povo que o acompanhou em toda a sua
trajetória política. O grande desafio que o então governador colocaria sobre
os ombros dos tocantinenses o gentílico que o povo do novo Estado havia
recebido – era construir obras de 20 anos em dois. Regaçando as mangas e
convocando o povo para o trabalho, o governador Siqueira Campos
transformaria o Tocantins num gigantesco canteiro de obras, jamais visto no
País (J. T. 8 a 9/10/1997, p. 4).
Em um artigo, na coluna
131
“Tendências e Idéias”, que comemorava os
avanços do Tocantins, encontramos os seguintes enunciados, relativos a Siqueira
Campos:
Todavia, acima de tudo, foi ele quem lutou com unhas e dentes no
Congresso Nacional para a sua criação [Tocantins], empunhando
juntamente com outros companheiros, a bandeira de uma batalha aguerrida.
Foi eleito por duas vezes Governador do Tocantins pela vontade soberana
130
Artigo escrito por Amarildo Martins da Silva, Pastor Evangélico, Vereador e Presidente da Câmara
de Vereadores de Palmas.
131
Conforme Melo (2005, p.104): “Coluna é a seção especializada de jornal ou revista, publicada com
regularidade, geralmente assinada, e redigida em estilo mais livre e pessoal do que o noticiário
comum”. A Coluna “Tendências e Idéias”, do Jornal do Tocantins é publicada diariamente, aborda
os mais diversos assuntos e é escrita por vários autores, jornalistas ou não. É um espaço onde, a
convite da redação do Jornal, autores dos mais variados segmentos profissionais publicam seus
textos.
134
do povo. É ele quem cuida com amor e dedicação do patrimônio do Estado
ajudando a construir um novo porvir (J. T. 28 a 30/11/1996, p. 2 ).
132
Os elogios e enaltecimentos a Siqueira Campos foram regularmente emitidos
no periódico em análise. Esse político foi retratado, no discurso em pauta, como um
grande herói, o responsável pela criação do estado e pela transformação da região
em uma espécie de oásis:
133
“[...] a própria criação do estado exigiu lutas e
sacrifícios durante mais de 30 anos e saiu graças à persistência e ao trabalho
parlamentar do hoje governador Siqueira Campos” (J.T. 08 a 09 /01/1997, p. 2); “[...]
após a criação do novo estado, deu-se início a construção de um sonho, a busca
pela transformação de um estado recém-criado e fraco, em um Tocantins forte,
emergente e potente. Esse desafio foi aceito por Siqueira Campos, que lutou pela
implantação de vários projetos [...]” (J.T.10/06/1998, p. 4).
Um artigo que comentava as eleições de 1998, nas quais o político Siqueira
Campos foi eleito, afirmava que esse resultado no Tocantins não podia surpreender,
pois:
não somos um pedaço de chão desconhecido do resto do Brasil, pois o
Tocantins desponta em vários setores como um Estado promissor (e dou
provas disso, em minhas viagens Brasil afora); digo sempre que o nosso
Estado não é do futuro, mas do presente, e se isto ocorre é porque o
Governador eleito, que batalhou por sua criação desde mais de duas
décadas atrás, soube construir uma obra com muito amor e empenho, o
bastasse o carisma que carrega consigo (J.T., 13/12/1998, p. 4).
134
Nas duas primeiras décadas após a autonomia do Tocantins, o jornal,
veiculando um discurso em que Siqueira Campos era dito e retratado como
idealizador e concretizador do Tocantins, contribuiu para a construção de um mito
fundador para o Eestado.
Dessa forma, não podemos falar do Tocantins sem falar em seu criador
José Wilson Siqueira Campos. Ele idealizou, foi à sua luta e tudo foi
132
Artigo escrito por Clenan Renaut de Melo Pereira.
133
Maia (2009), em artigo recém publicado, afirma que, enquanto a imprensa local, sem restrição,
emitia elogios a Siqueira Campos, a imprensa nacional criticava e denunciava as irregularidades
financeiras, administrativas e políticas, cometidas pelo então governador do Tocantins.
134
Artigo escrito por José Liberato Costa Póvoa, Desembargador do Estado e literato.
135
concretizado. O governador Siqueira Campos, com sua longa visão, nos
trouxe uma grande lição de coragem e persistência: a de que todos os
nossos sonhos poderão ser realizados, basta lutarmos sem medo e receio
da nossa vitória (J. T, 05 a 07/ 10/1997, p. 4).
135
O discurso do periódico, ao atrelar a existência do Tocantins à vontade e a
atitudes de um líder político, colaborou para a construção de um mito, um herói. Um
pai fundador para um estado que nascia: essa era a situação que possibilitou e
legitimou as imagens heróicas de Siqueira Campos, veiculadas no discurso do
periódico analisado. Personificando a vitória no processo de autonomia, a imagem
desse político foi construída, no discurso analisado, como infalível, corajosa e como
sendo a de um bom administrador. O Tocantins, nessa lógica discursiva, passa a ter
mais uma especificidade que o diferencia do todo, pois é resultado da luta de um
líder. E esse carisma de um líder legitimava, ainda mais, a própria existência do
Tocantins, pois, nessa lógica, o estado, fruto da vontade de um político, estava
dando certo, já que esse político era, também, um excelente administrador.
A imagem de Siqueira Campos, construída pelos enunciados em análise, é a
de um redentor que havia, definitivamente, posto um fim a espoliação do Sul sobre o
Norte de Goiás. E, segundo a gica do periódico, naquele momento, Siqueira
Campos, por ser um ótimo governante, podia acenar para o estado com a
possibilidade de um futuro promissor, baseado no progresso e na modernidade.
O discurso em pauta construía a imagem de um estado ideal com um
governante forte, que, além de instituir o Tocantins, o tornava desenvolvido e
moderno. Esse discurso construía a lógica de que para o tocantinense,
independentemente de qualquer situação social, de gênero, étnica ou etária, a vida
estava melhor. Ele podia se orgulhar tanto do seu estado como de seu governante,
pois o desenvolvimento, na época, provava que tinham valido a pena os esforços de
um homem.
O Jornal do Tocantins, além de fazer apologia a um líder, o vislumbrando-o
como o próprio criador do estado, também enaltecia o povo tocantinense, que era
retratado, nos enunciados do periódico, como forte, lutador e também responsável
pela criação do estado: “Para nós, tocantinenses, nada veio gratuitamente, nada nos
foi dado que o fosse fruto do nosso esforço e de nossa determinação” (J.T. 5 a
135
Artigo escrito por Odir Rocha.
136
6/01/1996, p.2); “Somos movidos pela e esperança, temperados sob o sol
escaldante do cerrado e ungidos pelas águas do Tocantins e Araguaia” (J.T. 5 a
6/01/1996, p. 2).
Os cidadãos tocantinenses são representados como autores de seus
destinos, indivíduos que são instigados a construir o estado, independentemente do
status social ocupado.
O estado do Tocantins, foi esta multidão de anônimos, foram aqueles de
que guardamos ou de quem esquecemos, os nomes. Foram eles, fui eu e
fomos nós, que o engendramos. Ele somos nós.
Terra de cidadãos ou de servos, de homens livres ou dependentes, de
esperanças ou de injustiças, de exclusão ou de fraternidade, de progresso,
de bem estar, de altivez ou de mediocridade. Ele será o que quisermos ou
fizermos (J.T. 8 a 11/10/1993, p. 2).
136
O receptor é insistentemente chamado a vislumbrar o povo tocantinense
como forte, lutador e responsável pela autonomia política do Tocantins: [...] se ele
[o povo] foi capaz de mudar o mapa geopolítico do País, certamente está apto a
ajudar na construção e na consolidação desse estado da melhor maneira possível”
(J.T.05/10/1998, p.2, Edição Especial). Ainda nessa lógica lemos:
A história do mais novo Estado brasileiro é a história de um povo
acostumado a vencer desafios. Primeiro foi vencida a luta de mais de 150
anos por sua criação, conquistada em 1988, com a nova Constituição
Brasileira. Depois, veio o desafio de viabilizar o novo Estado, dotando-o da
infra-estrutura necessária ao seu desenvolvimento (J. T. 31/12 a
03/01/1998, p. 17).
A exaltação do povo tocantinense feita pelo Jornal do Tocantins é legitimada
pela formação discursiva em que essa lógica foi veiculada. Era o que poderia ser
dito sobre o povo tocantinense no momento em que o estado era instituído e se
consolidava, pois, assim, os receptores eram construídos como tocantinenses
orgulhosos de si e de seu estado. Além disso, essa lógica discursiva, por atribuir a
instituição do estado ao povo, responsabilizava a todos pela construção do
Tocantins. Todos, em comunhão, deveriam ver-se comprometidos com os destinos
136
Artigo escrito por Ruy Rodrigues da Silva, na época, secretário estadual da Educação, Cultura e
Desporto.
137
do novo estado, independentemente de quaisquer condições. No segundo caderno
da edição de 06/07/2000, o jornalista José Carlos Leitão, comentando o livro que
estava lançando, nos acesso a visão de que houve a união de todos segmentos
da sociedade tocantinense para viabilizar o novo estado.
O jornalista empresário da área de comunicação social em Brasília, José
Carlos Leitão, lança hoje um livro que discorre sobre vários movimentos que
aconteceram no antigo Norte goiano, fundamentais para a criação do
Tocantins. Segundo o autor, a obra ‘Tocantins, eu Também Criei’, pode
parecer pretensiosa no título, mas não se refere a um homem só. O ‘eu’ do
título se refere a todos que ajudaram na luta libertária. ‘A história do
Tocantins é uma das histórias mais bonitas do Brasil, que contou e ainda
conta com a participação de todos, comunidade, empresários e políticos,
afirma o autor, que é natural de Novo Acordo. [...] (J.T., 06/07/2000, p. 02,
2º cad.).
A ideia de que reinava uma harmonia entre os vários segmentos da
sociedade tocantinense, foi veiculada, repetidamente, nos enunciados publicados
pelo jornal. Nessa lógica, a edição de comemoração aos doze anos da autonomia do
estado publicou as seguintes declarações de Siqueira Campos:
‘Povo bonito, alegre, que confia no futuro’. Ao anunciar mensagem dos 12
anos do Tocantins ao povo tocantinense, o governador do Estado, Siqueira
Campos lembrou que o momento histórico que acaba de experimentar a
comunidade tocantinense sem dúvida o tem precedentes na sua história
política. Pensando nisso, o chefe do Executivo Estadual proferiu
agradecimentos a todos tocantinenses, sem exceção, pela parceria
realizada nos grandes projetos políticos, econômicos e sociais que vêm
sendo desenvolvidos de forma conjunta entre Governo, comunidade e
empresários.
No seu pronunciamento o Governador ressaltou o Tocantins, como sendo o
único Estado onde é preservado a união num objetivo comum de
trabalhadores, patrões, empresários, funcionários, municípios e instituições.
[...] todos somos responsáveis por um futuro de grandeza, pelo qual todos
lutamos. [...] (J.T., 05/10/2000, p. 01, 2º cad.).
Diante do exposto, podemos afirmar que o povo tocantinense, além de ter
sido retratado, no discurso em questão, como forte, lutador e também responsável
pela instituição do estado, foi categorizado como um todo harmônico. Afinal, na
lógica discursiva em questão, todos os segmentos sociais que compunham a
população tocantinense foram representados como se tivessem o mesmo objetivo:
138
promover o crescimento e a estruturação do estado. Sem dúvida, essa
homogeneização de toda sociedade em análise, feita pelo discurso estudado,
respondia aos interesses dos grupos sociais ligados ao poder político constituído,
que era representado no jornal. Esse poder político, como vimos no primeiro capítulo
desse trabalho, governava em proveito de si e das oligarquias latifundiárias e
pecuaristas do estado e, naquele momento de instituição e consolidação da nova
unidade federativa, precisava interpelar os segmentos menos privilegiados da
sociedade para a ideia de que todos estavam juntos, tanto no processo da luta pela
consolidação do Tocantins como na “colheita” dos benefícios decorrentes desse
mesmo processo.
Outra categorização relativa ao povo tocantinense veiculada no discurso
analisado é a que a este um caráter multicultural e miscigenado. Em um
momento em que muitas levas de migrantes de todo o Brasil se dirigiam para o
Tocantins, o discurso que apregoava o valor das trocas culturais e étnicas
encontrava legitimidade. “A descoberta do Estado por migrantes de todas as regiões
do País, que com suas famílias e investimentos aumentam a capacidade produtiva
do Tocantins, revisita as migrações internas do século passado, a busca de ouro, do
cristal, dos batelões até Belém [...]” (J.T. 04 a 05/10/1996, p. 2).
Em relação à chegada de muitos migrantes, esses enunciados afirmavam:
Criado o estado, a região não se tornou nenhum eldorado, mas o simples
fato ajudou a despertar ainda mais a atenção de gente dos mais
diferentes pontos do País. Prova disso são as milhares de pessoas que
correram para Miracema
137
logo nos primeiros dias após a instalação da
mais nova unidade federativa (J.T. 21/11/1989, p. 2, 2º cad.).
O discurso analisado via como algo positivo para o estado as trocas culturais
provocadas pelas migrações; contudo, há, nesses enunciados, uma certa
preocupação com a cultura “original” do Tocantins, que poderia ser perdida. Em
relação a essa situação, lemos, na coluna “Tendências e Idéias” da edição de 9 a 15
de abril de 1991:
137
Miracema foi a cidade escolhida por Siqueira Campos para sediar a capital provisória do Estado,
até que Palmas fosse edificada.
139
A região em que está inserido o Estado do Tocantins, de povoamento tardio
se comparada com outras regiões do País, está culturalmente dividida em
dois eixos. O dos povos transplantados - nordestinos, mineiros , paulistas,
gaúchos, etc. – e o eixo original, ou seja, o povo nativo da região e
adjacências. O Tocantins tem, pois, uma memória, uma regionalidade,
porém tênue em função da mistura dos dois eixos culturais (J.T. 9 a
15/04/1991, p. 2).
138
Nessa mesma lógica que transmitia preocupação em relação às perdas da
cultura original tocantinense, lemos:
Seguir em frente, sem perder o passado. A frase parece óbvia, mas na
prática exige um esforço contínuo no Tocantins. Afinal estamos em um
Estado muito jovem, que ainda busca sua identidade cultural, através da
miscigenação dos costumes locais com as influências exteriores, trazidas
com as milhares de pessoas que trocaram suas regiões de origem pelo
Tocantins. No entanto, um dos seus maiores desafios é não permitir que a
característica naturalmente vanguardista dos ‘novos’ tocantinenses englobe
a necessidade de preservar o passado.
Passado, para alguns, pode ser sinônimo de períodos difíceis, quando o
então Norte goiano sofria com o atraso em favor do desenvolvimento da
região Sul. Mas preservar este passado significa manter um rico elo de
ligação cultural com o futuro. É a preservação da cultura popular
geralmente transmitida oralmente-, dos ritos religiosos e também do
patrimônio físico. Apesar de parecer um paradoxo, é mantendo vivo o
passado que será possível construir uma nova cultura para o Estado do
Tocantins (J.T., 05/10/2000, p. 11, 2 cad.).
139
Na citação acima, percebemos que uma associação direta entre a cultura
original tocantinense e o passado do estado. Passado, que nesses enunciados,
remetido à alardeada situação de exclusão, do antigo norte goiano, não poderia ser
esquecido. Afinal, só assim a “verdadeira” cultura tocantinense sobreviveria em meio
ao contato com diversas influências exógenas, estrangeiras. Em outra matéria,
intitulada “Identidade formada através de várias culturas e sotaques”, a
transcrição de depoimentos de personalidades tocantinenses que comentam a
situação da diversidade cultural no Tocantins. Enquanto alguns depoimentos foram
favoráveis a esse amálgama cultural, outros revelaram preocupação com a perda de
valores culturais tocantinenses. Dentre os enunciados, que temiam pela
continuidade da cultura tocantinense, em meio às influências de muitas outras, estão
os que dizem: “[...] ele diz ter certeza de que a tradição tocantinense ‘sofre’ com a
138
Artigo escrito por Antônio Martins da Rocha Júnior, arquiteto.
139
Artigo escrito por Selêucia Fontes, editora do 2º caderno, do Jornal do Tocantins.
140
influência de grupos vindos de outras regiões. Mesmo assim, a cultura e os valores
têm resistido’” (J.T. 05/10/1999, p.8 Edição Especial)
140
. Dentre os enunciados,
dessa mesma matéria, que viram com positividade esse amálgama cultural
destacamos:
Para ela,é uma influência positiva conviver com pessoas de todo o País,
que trazem suas tradições. ‘Isso vai fazendo com que harmoniosamente
surgindo nossa identidade cultural [...]. Tudo isso soma as culturas, e com
certeza, o tempo vai formar uma identidade para o Tocantins’ (J.T.
05/10/1999, p. 8 Edição Especial).
141
Sem vida, houve uma ambigüidade no discurso veiculado pelo periódico
sobre o caráter multicultural do povo tocantinense. No nosso entendimento, isso
nada mais foi do que uma luta das representações que tentavam nomear esse povo,
a qual evidenciava um conflito entre preservação e mudança vivenciado pela
sociedade da época. Contudo, apesar de ter havido essa ambigüidade no discurso
sobre a situação multicultural do Tocantins, o enaltecimento das trocas culturais,
vistas como positivas para o Tocantins, foi o que prevaleceu enquanto regularidade
nesse discurso. A predominância da veiculação dessa regularidade que enaltecia as
trocas culturais, no nosso entendimento, deveu-se ao momento vivenciado pelo
estado na época em que esses enunciados foram emitidos. Afinal, nas primeiras
décadas após a sua autonomia, o Tocantins assistiu à chegada de muitos migrantes
ao estado, o que impôs a esse discurso coerções ao que era dito sobre esses novos
habitantes, os quais, receptores desse discurso, deveriam ser convencidos com a
ideia de que faziam parte da história do novo estado e de que seus traços culturais
eram bem aceitos no Tocantins.
“Hoje, depois de consumado o sonho libertário, muitas histórias de brancos,
índios, negros e pessoas vindas de todos os cantos do País se misturam à própria
história do caçula do Brasil” (J.T. 05/10/1999, p. 05).
142
Demarcando mais essa peculiaridade ao Tocantins estado constituído por
um povo provindo de várias culturas - o discurso estudado construiu mais essa
fronteira identitária para o novo estado.
140
Depoimento de Bernardino Lima Luz, Presidente da ASMETO.
141
Depoimento de Lucélia de Aquino Ramos, Secretária de Cultura de Palmas.
142
Depoimento de Wania Nóbrega.
141
4.2.4 Estado ecológico
O Tocantins, que foi, dentre outras classificações, nomeado de estado
moderno, neoliberal, propício ao desenvolvimento, com uma origem ligada a um
líder político e possuidor de um povo lutador e multicultural, é também categorizado
pelos enunciados do Jornal do Tocantins como estado ecológico, turístico e cheio de
belezas naturais.
[...] descobrir a vocação do Tocantins, na sua função ou atribuição nacional,
como vida do Brasil, é questão prioritária, sob pena de se frustrar sua
tocantinicidade. para se imaginar por que nos reunimos no Tocantins?
Quem somos, de onde viemos e para que? Isto é, a que, na vida nacional,
somos chamados? [...]
[...] mas não seria desabonadora a preocupação de se criar no Brasil e no
mundo, aqui no Tocantins, nesse amanhecer de milênio,um oásis de vida,
numa arca de Noé. E isto é, antes de tudo, uma vocação de criação e de
preservação da vida, ainda existente aqui, em suas diversas manifestações
no cerrado, no Pantanal, na floresta amazônica, no Jalapão... [...] ( J.T. 24 a
26/11/1996, p. 4).
143
Nessa lógica discursiva, o Tocantins, que era vislumbrado como um local que
tinha por especificidade e alteridade, em relação aos contextos nacional e mundial,
as suas riquezas naturais, devia ter por vocação a função de cuidar dessas
riquezas, que se tornavam um traço da sua identidade. Em outro artigo,
encontramos os seguintes enunciados relativos às belezas naturais do Tocantins:
O tempo passa e o Tocantins, cada vez mais, vai se firmando no contexto
nacional, como sinônimo de progresso e desenvolvimento.Um estado que
tem a maior ilha fluvial do mundo, a ilha do Bananal, onde apresenta uma
diversidade de fauna e flora e se sobrepõe como um dos pontos turísticos
mais belos do País [...]
Um Estado rico em seu potencial, que possui dezenas de praias nos rios
Tocantins e Araguaia, belas cachoeiras, lagos naturais, serras e cavernas
espalhados por vários municípios para serem explorados pelos turistas (J.T.
05 a 07/10/1997, p. 04).
144
143
Artigo escrito por Joaquim José de Oliveira , advogado.
144
Artigo escrito por Odir Rocha, na época, prefeito de Palmas.
142
Nos enunciados acima, vemos que as belezas naturais eram enaltecidas
como forma de salientar as possibilidades econômicas do Tocantins. Dentre essas
possibilidades, o discurso em análise salientava o turismo ecológico. Na Coluna
“Tendências e Idéias”, do dia 03/05/2000, o jornal publicou os seguintes enunciados:
O Tocantins é propício tanto para o turismo ecológico como para o turismo
de aventura e o empresarial. Mas, como o primeiro é a modalidade que
mais se destaca atualmente, o estado sai na dianteira de vários outros que
muito foram criados e edificados. Pois, aqui, podemos encontrar os mais
variados tipos de ecossistemas brasileiros, além de rica fauna, flora
diversificada e densa vegetação (J.T. 03/05/2000, p. 01).
145
Mais uma vez encontramos, nesses enunciados, a comparação do Tocantins
com outros estados do país. O Tocantins, nessa lógica, distinguia-se positivamente
do todo nacional por ter uma diversidade de flora e fauna. O artigo continuou: “As
belezas naturais estão à vista de todos. Rios caudalosos, lagos, fontes termais,
praias de água doce com areias finas e claras, cachoeiras e dunas fazem o
Tocantins ser considerado um santuário ecológico” (J. T. 03/05/2000, p. 01).
Nesses enunciados, o Tocantins, pelo fato de possuir uma natureza
exuberante, era capaz de produzir riquezas e suprir as necessidades de todos os
que trabalhavam e se esforçavam.
[...] com terra fértil, água abundante, flora e fauna diversificada, pródiga em
recursos minerais e energéticos e dotada de regimes de sol e de regulares
(sic) e envolvidos por um ar puro e sadio, viabiliza trabalho, riqueza e bem-
estar para todos que, com boa-vontade, boa fé, e inteligentemente,
nortearam seus esforços na busca da satisfação de suas necessidades e da
garantia do bem-comum (J.T. 19/07/2000, p. 2).
146
Considerado um santuário ecológico, um oásis da natureza, o Tocantins foi
vislumbrado, nesse discurso, com características extremamente positivas. E, sem
dúvida, essa lógica discursiva, pautada no viés ecológico, tinha capacidade de
persuasão, que foi emitida em um momento em que questões relativas à
preservação e ao culto da natureza estavam na pauta das preocupações e dos
145
Artigo escrito por Thelma Maranhão, Jornalista e Presidente da Associação Brasileira de
Jornalistas de Turismo.
146
Artigo Escrito por Getúlio Matos Quinaud - Professor
143
interesses em nível internacional.
147
Assim, a tendência era que o receptor desses
enunciados se sentisse orgulhoso da sua terra ou do lugar que havia escolhido para
morar. A caracterização como estado ecológico, com muitas belezas naturais e
potencialidades turísticas, foi mais uma fronteira identitária construída pelo periódico
em análise para demarcar as diferenças do Tocantins.
147
Como visto, no primeiro capítulo, na época da instituição e consolidação do Tocantins, o discurso
ecológico, que apregoava a preservação da natureza, estava, tanto na esfera nacional, quanto
internacional, na ordem do dia. E, acontecimentos como o assassinato do seringueiro Chico
Mendes, no Acre, em 22/12/1988, acirravam, ainda mais, as discussões e preocupações relativas
à preservação da região amazônica, na qual o Tocantins está legalmente inserido. Ainda em
relação aos eventos, relativos à preservação ambiental, ocorridos nesse período, é importante
lembrar a ocorrência da Conferência da Nações Unidas para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento, a ECO- 92, no Rio de Janeiro, em 1992.
144
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estado do Tocantins, criado a partir da Constituição de 1988 e instituído em
1989, vivenciou, nos seus primeiros quatorze anos de existência, parte da sua
consolidação enquanto nova unidade da federação. O processo de estruturação
desse novo estado ocorreu em um momento em que o mundo se adequava às
práticas do capitalismo neoliberal e implementava, ainda mais, o processo de
globalização dos mercados. No Brasil, politicamente, esse período se caracterizou
pela chamada redemocratização, processo que ocorreu concomitantemente à
implantação das práticas econômicas neoliberais, impostas pelas instituições
economicamente hegemônicas do mundo.
Esse contexto mundial e nacional desencadeou, na mais nova unidade
federativa do Brasil, todo um processo de adequações ao modelo econômico
dominante. Essas adequações foram efetivadas com várias privatizações e com a
realização de obras que objetivavam modernizar o novo estado. Nesse momento, as
atividades econômicas de maior destaque no estado, a agricultura e a pecuária,
através da utilização de técnicas cada vez mais aprimoradas, ganharam novos
impulsos.
Esse foi o momento, também, em que o Tocantins passou por um processo
de urbanização significativo, principalmente em função da construção de Palmas, a
capital planejada do estado, e também da intensificação desse processo nas regiões
localizadas próximas à Rodovia Belém-Brasília. Essas Regiões, desde a década de
1960, ainda no então Norte goiano, experimentavam uma urbanização e uma
integração econômica ao mercado nacional. Como vimos, essa situação tendeu a
acentuar uma heterogeneidade regional. Afinal, as transformações ligadas à
modernização, instauradas após o período de autonomia, incidiram muito mais
naquelas cidades e regiões que foram inseridas, a partir da década de 1960, no
mercado do que naquelas regiões e cidades mais afastadas desse eixo e que não
foram contempladas, a partir daquela década, por essa inserção.
Assim, no
momento da sua instituição e consolidação, o Tocantins deu continuidade e
acentuou uma situação inaugurada ainda no período que antecedeu a autonomia: a
existência e a convivência de tendências regionais distintas, uma econômica e
socialmente mais atrelada à modernidade e, outra, mais voltada para o tradicional.
145
Este trabalho, através da investigação de um discurso da literatura e de um
discurso da imprensa, indicou como esse novo estado e seus sujeitos sociais foram
representados em ambas instituições nesse momento determinado. Instituições
essas que, como explicitado no transcorrer do trabalho, têm um importante papel no
estudo dos processos identitários, que constroem e veiculam traços diacríticos
para um grupo, assim como deixam perpassar um imaginário e, esse, a forma como
uma sociedade se autopercepciona.
Como vimos, as identidades, que são construídas no âmbito da representação,
estão em um eterno processo de construção e transformação. Elas são posicionais e
relacionais e respondem a um determinado contexto histórico que objetividade às
mesmas. As identidades resultam de disputas de representações, são sempre
inacabadas e respondem aos interesses de grupos sociais que procuram, através de
práticas e também do ato verbal, renovar essas representações, dando novos
sentidos às mesmas.
O discurso literário de José Liberato Costa Póvoa nos acesso a uma
lógica que vislumbra o Tocantins como o sertão, local que propicia uma vida brejeira
e tranquila ao sujeito tocantinense, o sertanejo. Este é caracterizado como um
sujeito afeito a crendices e a superstições, mas também muito religioso. A sociedade
tocantinense construída por Póvoa é uma sociedade tradicional, permeada de
práticas assistencialistas em que os mais aquinhoados “ajudam” os menos
privilegiados, que são representados como subservientes e humildes.
É uma vida rural e pacata, a qual muitas vezes o autor, em tom saudosista,
enaltece e elogia; é um lugar em que a produção não obedece a uma lógica de
mercado e no qual a indolência se manifesta. O Tocantins, na obra literária de Costa
Póvoa, é um lugar masculino, onde os homens, além de deterem posições
privilegiadas em relação às mulheres, submetem as mesmas a situações esdrúxulas
e vexatórias; é, também, uma sociedade permeada de preconceito étnico.
Além dessas categorizações relativas ao Tocantins e aos tocantinenses, o
discurso literário de Costa voa traz para o presente a memória de tempos idos,
em que a região, onde hoje se localiza o estado do Tocantins ainda era o antigo
Norte de Goiás. Essas memórias contemplam feitos como a tragédia do “episódio
dos nove”, a travessia e os contatos da Coluna Prestes com os naturais da terra na
região, a superação de uma epidemia de varíola, dentre outros. São eventos que,
trazidos para o presente através da memorização na escrita literária, dotam o
146
Tocantins de um passado histórico heróico, o que contribui para a construção de um
sentimento identitário tocantinense positivado. Além dessas memorizações de feitos
significativos para o Tocantins, o discurso literário de Póvoa traz para o presente
reminiscências da sua terra natal, lembranças do cotidiano da antiga São José do
Duro. Memórias que apesar de parecerem pessoais, têm, também, um caráter
social. Afinal, a memória, por ser estruturada na experiência partilhada, sempre
carrega uma faceta coletiva. E, quando trazida para o presente por meio da escrita
literária, torna-se um suporte que continuidade ao grupo no tempo. Continuidade
essa que, como vimos, é de extrema importância para todo e qualquer sentimento
identitário.
Sendo assim, o discurso literário de José Liberato Costa voa enaltece o
Tocantins tradicional da sua terra natal, a cidade de Dianópolis. É um Tocantins
rural, onde a lógica da produção e do trabalho é regulada pelas tarefas e
necessidades imediatas. São representações, relativas ao Tocantins e aos seus
sujeitos, que respondem aos interesses de grupos sociais que querem a
continuidade de práticas ligadas ao latifúndio, com seus mandos, desmandos,
agregados e protegidos. Práticas que sedimentam a submissão feminina ao jugo
masculino e que também perpetuam o preconceito étnico.
Contudo, apesar de o emissor veicular, em seu discurso literário, o
enaltecimento desse Tocantins tradicional, vimos em seus escritos que o mesmo
não consegue, de todo, abandonar o seu lugar de fala de “ilustrado”. Tudo leva a
crer que o emissor, por ser oriundo de esferas sociais privilegiadas da sociedade
tocantinense e ser um jurista conceituado, deixa perpassar um preconceito em
relação a algumas práticas dessa sociedade tradicional. É o caso, por exemplo, de
quando o mesmo critica e desprestigia a concepção de trabalho e de tempo do
sertanejo, chamando-o de indolente, sem considerar que nessa sociedade
tradicional construída e enaltecida por ele uma concepção de trabalho regida
pelas necessidades, e não pelo mercado. Assim, o emissor, apesar de representar o
Tocantins como tradicional e, portanto, responder aos interesses de uma
comunidade discursiva que comunga dessas práticas, deixa transparecer, no seu
discurso, concepções ligadas à lógica da modernidade.
Temos que considerar, também, que as categorizações que enaltecem essa
sociedade rural, simples e pacata responderam a uma lógica situacional. Esse era o
discurso que agentes ligados à tradição poderiam veicular em um momento em que
147
o estado vivenciava, principalmente em determinadas regiões, um intenso processo
de modernização, o qual poderia solapar esse mundo tradicional. Aliás, uma das
marcas de todo o discurso de Costa Póvoa é o saudosismo. Saudosismo que, a
nosso ver, deixa transparecer uma espécie de temor do que estava ou poderia ser
perdido. Assim, assistimos à construção de um discurso que respondia aos
interesses de uma comunidade discursiva que pretendia perpetuar aquele Tocantins
ligado a uma vida rural tradicional e que, de certa forma, temia pela continuidade
desse mesmo Tocantins.
É importante frisar, ainda, que o sujeito tocantinense construído no discurso
literário de Costa Póvoa, além de ter uma vida totalmente peculiar no que se refere
ao seu linguajar, à sua culinária, às suas crenças e aos seus costumes, vive uma
situação de submissão ou de mando. Situação de submissão quando esse sujeito é
oriundo de segmentos menos aquinhoados e, por isso, é um agregado ou tutelado
dos mais abastados ou, ainda, quando mulher e, por causa da condição feminina, é
dependente da autoridade do pai ou marido. Situação de mando quando esse sujeito
é homem, branco, possuidor de bens e, por conta dessas condições, mantém todos
do seu círculo social – esposas, filhas, agregados e apadrinhados - sob a sua
autoridade. É um sujeito que, tanto em uma situação, quanto em outra, aceita e
naturaliza essas práticas.
o discurso do Jornal do Tocantins enalteceu, na época de análise, dentre
outras questões, o processo de autonomia do antigo Norte de Goiás. O Tocantins,
de acordo com essa lógica, era um estado peculiar, por ter vivenciado um longo
período de lutas. Para tanto, esse discurso lançou mão de uma memória da
autonomia, a qual remonta ao início do século XIX e perdura ao final do culo
XX. Houve, nesse discurso, um excesso de memória que, através da repetição, foi
acionado para legitimar a instituição e consubstanciação do estado.
É importante destacar que a memória que foi acionada pelo discurso do jornal
em muito difere daquela veiculada pelo discurso literário de Costa Póvoa. Afinal, a
memória do referido discurso literário é mais lúdica e sedimentada no que o autor
viveu ou ouviu contar em sua comunidade, enquanto que a memória perpassada
pelo Jornal do Tocantins é repetitiva e tem um propósito. Essa memória, de forma
explícita, procura dotar o Tocantins de um passado que lhe uma continuidade no
tempo de cento e sessenta e sete anos; isso é o que podemos chamar de memória
exercida, memória com um fim.
148
Contudo, a representação do Tocantins mais veiculada no discurso do
periódico foi a de que o estado tornou-se moderno com a autonomia. A modernidade
do Tocantins, tão frisada nos enunciados do periódico e relativa à construção da
capital planejada, Palmas, e de grandes obras, como hidrelétricas e estradas, foi
extremamente enaltecida para categorizar o novo estado. Além dessa modernidade,
o discurso do jornal também evidenciava outra peculiaridade do mais novo estado
da federação: ele era fruto da luta de Siqueira Campos. Autor do projeto que criou o
estado e chefe do Executivo por três mandatos, esse político foi considerado, no
discurso em pauta, como uma espécie de “pai” do Tocantins, como líder que libertou
o povo nortense dos grilhões da opressão, além de ter sido o grande mentor de todo
o processo de modernização do estado.
E, apesar de o discurso do Jornal do Tocantins ter atrelado a existência do
estado à figura de um líder, o mesmo também enalteceu a participação do povo
tocantinense nesse processo, o qual foi considerado um povo lutador que não mediu
esforços para que a concretização da autonomia político-administrativa, do antigo
Norte de Goiás se processasse. Além dessas categorizações relativas ao Tocantins
veiculadas pelo periódico, havia uma que dizia respeito às belezas naturais do
estado e à possibilidade de essas riquezas serem exploradas através do turismo
ecológico. O Tocantins, conforme a lógica veiculada, se distinguia de outros estados
da federação por possuir uma natureza bela, exuberante e praticamente intocada.
Portanto, o Tocantins, no discurso do jornal em pauta, foi enaltecido, seja por
sua modernidade, seja pela coragem de seu líder e de seu povo, seja por suas
belezas naturais. É um Tocantins representado como moderno, afinado com as
tendências neoliberais da contemporaneidade e apto para solucionar os problemas
do Brasil. Como vimos, o Jornal do Tocantins, que sempre esteve em consonância
com o poder constituído e, por conseguinte, com os segmentos sociais ligados às
atividades econômicas hegemônicas do estado, nos permite inferir que essas
representações veiculadas no discurso em pauta respondiam aos interesses desses
grupos. Estes, ligados aos setores mais dinâmicos da agropecuária no estado,
aplaudiam o processo de autonomia, que este viabilizou uma maior arrecadação
de recursos, e ansiavam, cada vez mais por uma maior modernização do Tocantins
como meio de dinamizar seus negócios.
Ademais, consideramos que tais classificações extremamente elogiosas
veiculadas pelo jornal, responderam a uma lógica situacional. Foi a autonomia e a
149
consolidação do estado, ocorridas naquele momento, que orientaram as escolhas
das representações relativas ao Tocantins veiculadas pelo periódico analisado.
Afinal, um estado recém-criado precisava legitimar-se e construir sujeitos orgulhosos
de sua terra, e para isso, era necessária a afirmação, insistente e positiva, dessa
nova identidade político-administrativa. Além disso, o jornal sempre aliado ao poder
instituído, esforçava-se por legitimar, aprovar e enaltecer as atitudes de um governo
que perdurou por dez dos primeiros quatorze anos de existência do estado.
Ora, um discurso que categorizou o Tocantins como um estado moderno que
experimentava um desenvolvimento acelerado e que tinha, dentre outros atributos,
um povo lutador e que mudou o mapa geopolítico do Brasil esforçava-se por
construir e interpelar um sujeito tocantinense orgulhoso e satisfeito com o local em
que vivia. Sujeito esse, que foi construído, na lógica discursiva analisada, como um
indivíduo que, por viver em um estado onde a harmonia social vigorava, era
possuidor de muitas oportunidades. Além disso, percebemos que esse sujeito
tocantinense foi retratado, no discurso em foco, de uma forma homogeneizada, onde
diferenças de ordem social, étnica, religiosa ou de gênero não interferiam na
condição do mesmo usufruir da condição de ser tocantinense.
Faz-se importante destacar que, conforme o que foi desenvolvido,
consideramos que tanto o discurso literário de José Liberato Costa Póvoa quanto o
discurso do Jornal do Tocantins são autorizados e legitimados por serem veiculados
por instituições privilegiadas da sociedade em questão e também por serem emitidos
por jornalistas, políticos, intelectuais e literatos, ou seja, por autoridades que detêm
capital simbólico para nomear, categorizar e falar em nome de grupos.
São discursos autorizados que divergem entre si, sobretudo no que tange às
questões ligadas à tradição e à modernidade. O discurso literário, categorizando o
Tocantins como tradicional, estava ligado a uma comunidade discursiva que
comungava dessa lógica. Comunidade que enaltecia a simplicidade de uma vida
rural que, entre outros aspectos, era marcada pelo assistencialismo, pelo
apadrinhamento e pela submissão feminina.
o discurso do Jornal do Tocantins, veiculando e enaltecendo a ideia de
modernidade para o estado, além de estar sintonizado com o poder instituído,
estava atrelado a uma comunidade de emissores e receptores mais ligados a uma
cultura urbana e um mercado mais competitivo.
150
Nesse sentido, observamos que os discursos aqui analisados, apesar da
divergência entre si, não se excluem no que tange à importância de veicular
representações identitárias tocantinenses. Afinal, se as identidades são
constantemente construídas e resultantes de lutas entre representações, o que
percebemos aqui é um estágio no qual existe uma luta das representações para
nomear e adjetivar o Tocantins e seus sujeitos sociais. Essa é uma luta que revela,
entre muitos outros aspectos, um conflito identitário entre o que preservar e o que
mudar nessa mais nova unidade federativa do Brasil.
151
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