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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
CRISTINA KRUSSEWSKI
DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR:
APONTAMENTOS GERAIS SOBRE AS INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS
E ALGUNS ASPECTOS DE SUA RELAÇÃO COM O DIREITO PENAL
CURITIBA
2010
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CRISTINA KRUSSEWSKI
DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR:
APONTAMENTOS GERAIS SOBRE AS INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS
E ALGUNS ASPECTOS DE SUA RELAÇÃO COM O DIREITO PENAL
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Direito,
como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre, Área de Concentração em
Direito do Estado, da Universidade Federal
do Paraná.
Orientadora:
Prof.
a
Dr.
a
Angela Cassia Costaldello
Co-orientador:
Prof. Dr. Fabio André Guaragni
CURITIBA
2010
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TERMO DE APROVAÇÃO
CRISTINA KRUSSEWSKI
DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR:
APONTAMENTOS GERAIS SOBRE AS INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS
E ALGUNS ASPECTOS DE SUA RELAÇÃO COM O DIREITO PENAL
Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito, área de concentração de
em Direito do Estado, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Paraná, pela seguinte banca examinadora:
Orientadora: Prof.
a
Dr.
a
Angela Cassia Costaldello
Universidade Federal do Paraná
Co-orientador: Prof. Dr. Fabio André Guaragni
UNICURITIBA – Faculdades Curitiba
Prof. Dr. Luiz Alberto Blanchet
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Curitiba, 07 de junho de 2010.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais e ao meu marido, pelo amor, carinho, apoio e
principalmente pela compreensão e incentivo durante todo o
tempo em que me dediquei ao programa de mestrado.
À professora Angela Cassia Costaldello que, sempre muito
gentil e perspicaz, tornou essa jornada extremamente rica e
proveitosa.
Ao professor Fábio André Guaragni, que desde os primeiros
anos da Faculdade de Direito desperta com seus ensinamentos
a paixão pelo Direito e pelo ideal de justiça.
RESUMO
O Direito Administrativo Sancionador é uma matéria nova na Ciência Jurídica e
apenas nos últimos anos é que despertou o interesse da doutrina brasileira. A partir
das características da sociedade pós-industrial e da chamada criminalidade
econômica, que têm conduzido tanto a sociedade quanto o direito a uma tendência
sancionadora que pode ser observada, praticamente, no mundo todo, foi proposto
um estudo das infrações administrativas que aborda na perspectiva da dogmática as
contribuições do enfoque zetético. Mediante uma postura crítica e considerando a
historicidade do direito brasileiro, pretendeu-se desvendar, com o auxílio da zetética,
a estrutura de poder encoberta pelas concepções jurídicas aparentemente neutras e,
dessa forma, nos momentos de abertura interpretativa da dogmática, procurou-se
estabelecer limites ao poder sancionador estatal. A dissertação teve por objeto uma
aproximação entre as infrações administrativas e penais e passa pela crise
experimentada pelo Direito Penal neste momento de transição paradigmática em
que o Direito Administrativo Sancionador aparece como uma das saídas para a
manutenção de um Direito Penal de tradição garantista e, ao mesmo tempo, como
instrumento apto a conferir uma maior sensação de segurança aos indivíduos. No
trabalho foram apresentadas a Teoria Unitária do Poder Sancionador Estatal e as
construções dogmáticas do Direito Penal de Polícia, Direito Administrativo Penal,
Infrações de Ordem, chegando-se ao Direito Administrativo Sancionador. Sobre este
novo ramo, ainda, foi abordada a sua relação com o Direito Penal, a Constituição
Federal de 1988 e algumas noções sobre seus princípios informadores.
Palavras-chave: Icito administrativo. Ilícito penal. Direito Administrativo Sancionador.
ABSTRACT
The Administrative Sanction Law is a new field of study in Law Science and only
recently has drawn the attention of the Brazilian Doctrine. Initiating from the
characteristics of the post industrial society and the so called economic criminality,
which have been veering the society and the law to a sanctioning approach, a study
of the administrative infractions is proposed. The proposed study encompasses the
dogmatic perspective the contribution from the zetetic point of view. By means of a
critic position, considering the history of the Brazilian law, the goal is to unveil, aided
by the zetetic approach, the structure of power hidden by conceptions of law
apparently neutral. This path, benefiting from moments of wider interpretation in the
dogmatic, aims to establish limits to the government’s sanctioning power. This
dissertation has as objective to narrow the gap between the administrative and penal
infractions and discuss the actual crisis in the Criminal Law by a paradigmatic
transition period when the Administrative Sanction Law arises as one of viable crisis
ending paths in the maintenance of a classic Criminal Law, while at the same time
serves as the instrument which will provide a higher state of assurance to the
individuals. In this work were presented the Unitarian Theory of the Government
Sanctioning Power and the dogmatic constructions of the Enforceable Penal Law,
Administrative Penal Law, Order Infractions, all the way to the Administrative Sanction
Law. Within this new framework its relation to the Penal Law, the Brazilian Federal
Constitution of 1988 and some basic notions of its originating principles are discussed.
Keyword
:
Administrative ilicit. Criminal ilicit. Administrative Sanction Law.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 8
1 ILÍCITO E SAÃO NA CIÊNCIA DO DIREITO: NOÇÕES
INTRODUTÓRIAS ......................................................................................... 12
1.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS .................................................. 12
1.2 OS ÂNGULOS DE ESTUDO DO DIREITO (THEODOR VIEHWEG) ........ 23
1.2.1 Zetética jurídica ....................................................................................... 23
1.2.2 Dogmática jurídica ................................................................................... 24
1.2.3 A teoria e a postura crítica ....................................................................... 26
1.3 O ORDENAMENTO JURÍDICO, NORMAS, ILÍCITOS E SANÇÕES......... 33
1.3.1 Ordenamento, normas e relações jurídicas ............................................. 33
1.3.2 Normas, regras e princípios ..................................................................... 39
1.3.3 Normas de conduta e de estrutura, regras primárias e secundárias:
o Ilícito ..................................................................................................... 42
1.3.4 As sanções jurídicas positivas e negativas no ordenamento ................... 48
1.3.5 Coação e sanção ..................................................................................... 51
2 O ESTADO E O CONTROLE SOCIAL INSTITUCIONALIZADO .................. 53
2.1 A DINÂMICA ENTRE ESTADO, PODER E FORÇA ................................. 53
2.2 DO ESTADO DE POLÍCIA AO ESTADO DE DIREITO ............................. 56
2.2.1 Breve visão dos primórdios do Direito Administrativo e do Poder
de Polícia ................................................................................................. 57
2.2.2 Direito Penal, Ius Puniendi e os grandes peodos de desenvolvimento
da solução institucional ............................................................................ 71
2.3 CONFLITOS E CONTROLE SOCIAL ........................................................ 75
2.3.1 Controle social difuso e institucionalizado ............................................... 75
2.3.2 O controle social institucionalizado do sistema penal e as teorias
quanto ao propósito da punição .............................................................. 78
2.3.3 As críticas da criminologia ao sistema punitivo ...................................... 80
2.4 A "CRISE" DO DIREITO PENAL, A PROPOSTA DE UM "DIREITO DE
INTERVENÇÃO" E A CRIMINALIDADE ECONÔMICA ............................. 84
2.4.1 A "crise" do Direito Penal e as vias de superação ................................... 84
2.4.2 Criminalidade econômica ........................................................................ 96
3 ILÍCITOS ADMINISTRATIVOS: A VERTENTE SANCIONATÓRIA DO
DIREITO ADMINISTRATIVO OU O OBJETO DE UM NOVO RAMO DA
CIÊNCIA DO DIREITO? ................................................................................ 99
3.1 INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS E PENAIS: UMA APROXIMAÇÃO ...... 99
3.1.1 Relação jurídica administrativa e a imputação de sanções ..................... 99
3.1.2 As manifestações do poder punitivo estatal ............................................ 101
3.1.3 Infração administrativa e penal: há uma diferença substancial? ............. 117
3.1.4 As consequências da teoria unitária do ius puniendi ............................... 134
CONCLUSÃO ...................................................................................................... 146
REFERÊNCIAS .................................................................................................... 157
8
INTRODUÇÃO
O objetivo dessa dissertação é de apresentar algumas das constrões
dogmáticas sobre o Direito Administrativo Sancionador, bem como as relações entre
infrações administrativas e penais, utilizando-se da zetética para fazer algumas das
críticas às teorias aqui apresentadas, bem como para informar algumas das escolhas
dogmáticas a partir das opções filosóficas e sociológicas trabalhadas.
Destaque-se, de antemão, que as críticas e considerões aqui apresentadas
são as que melhor representam o atual posicionamento da mestranda quanto ao
tema, mas o tratamento aqui conferido ao assunto não tem a pretensão de ser
exaustivo, conclusivo, nem imuvel, pois como disse Popper, aqueles que o estão
dispostos a expor suas idéias à aventura da refutação, não fazem parte do jogo da
ciência.
Ainda, diante do grande volume de material encontrado no direito espanhol
1
sobre o tema, optou-se por deixar de abordar de forma exaustiva os textos legais
positivados brasileiros, bem como a jurisprudência pátria e estrangeira, que são
trazidos, ao longo do trabalho, como exemplos.
Essa escolha ocorreu por duas razões.
A primeira leva em consideração que as teorias dogmáticas que foram
construídas sobre o tema das infrações administrativas – principalmente no que
1
O espanhol Alejandro Nieto é contrário à larga utilização de referenciais teóricos estrangeiros em
construções dogmáticas de direito administrativo sancionador, bem como de meros resumos de
obras clássicas, remetendo seu leitor aos originais. Entretanto, diferentemente da situação
espanhola, na produção dogmática brasileira não a mesma abundância de materiais em sede
de direito administrativo sancionador. Também não é possível apenas sugerir a leitura dos
originais de James Goldschmidt e de Heinz Mattes complementada pelas obras dos espanhóis
Suay e Lozano sobre Direito Penal Administrativo (MATTES, Heinz. Untersuchungen zur Lehre
Von den Ordnungswidrigkeiten: Gesschichte und Rechtsvergleichung "Investigações sobre a teoria
das infrações de ordem. História e Direito comparado". Editorial Duncker & Humblot: Berlim, 1977;
GOLDSCHMIDT, James. Das Verwaltungsstrafrecht. Eine Untersuchund der Grenzgebiete
zwischen Strafrecht und Verwaltungsrecht auf rechtsgeschichtlicher und rechtvergleichender
Grundlage. Berlim, 1902), sem apresentar uma síntese das idéias sobre o tema porque tais obras
ainda não foram traduzidas para o português, portanto, são acessíveis à maioria dos brasileiros
pelo intermédio de autores que se dedicaram ao estudo dos originais alemães ou de versões
traduzidas para outros idiomas. Das obras acima referidas, apenas o primeiro volume da obra de
Mattes foi traduzida para o espanhol: MATTES, Heinz; MATTES, Herta. Problemas de Derecho
Penal Administrativo: Historia y Derecho Comparado. Tradução e notas de José María
Rodríguez Devesa. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1979. Nela é contada a história
dogmática e normativa do Direito Administrativo Sancionador.
9
concerne às poucas obras brasileiras observaram a metodologia pertinente a esse
tipo de abordagem e, portanto, obedeceram a regra de vinculação às normas, bem
como ao compromisso de resolução dos conflitos e, destarte, já analisaram os textos
legais pertinentes e a jurisprudência sobre o assunto, o que não implica, entretanto,
na impossibilidade de críticas.
A segunda reside na consciência de que juristas incidem no equívoco, diante
do método dogmático, de confrontar suas teorias com a ordem jurídica positivada, e,
ante algumas inconsistências que eventualmente sejam encontradas, acabam por
adaptar suas concepções teóricas à realidade de forma acrítica. A construção de
uma teoria dogmático-jurídica deve guardar pertinência com elementos da realidade,
bem como deve reformar e criar novos institutos para adequar a Ciência Jurídica ao
momento histórico e que realize essa tarefa de forma crítica e não meramente
encobridora de um sistema de dominação.
Outro ponto que de se esclarecer é a não delimitação da temática a um
tipo específico de infração administrativa, o que se deu por três fundamentos.
O primeiro diz respeito ao intuito de manter a fidelidade em relação a um dos
motivos que ensejaram o presente estudo: as dificuldades práticas que os operadores
do direito encontram quando se deparam com as infrações administrativas, uma vez
que estas carecem de sistematização. Os ilícitos dessa natureza o tratados de
maneira pulverizada e desorganizada em nosso ordenamento jurídico e não um
diploma que estabeleça diretrizes gerais a serem observadas.
Assim, outro objetivo que se pretende alcançar com o trabalho é o de trazer
alguns elementos dogmáticos que auxiliem os operadores do direito a trabalharem
com as infrações administrativas, o que, destaque-se, não tem a pretensão de ser
uma teoria da infração administrativa, mas uma contribuição ao seu estudo.
O segundo fundamento está baseado na crítica trazida por Alejandro Nieto
aos autores espanhóis que, embora tenham pretendido estudar o tema do Direito
Administrativo Sancionador delimitando-o a um tipo específico de infração, acabaram na
contingência de ter de construir uma Teoria Geral de Direito Administrativo
Sancionador e que essa teoria geral, dada a delimitação do tema a um tipo
específico de infração, o pode culminar em uma teoria "caolha", decorrente de uma
visão unilateral e tendenciosa do tema:
10
Mas é claro que, em qualquer caso, deve-se iniciar pela "Parte Geral" – cujo
conteúdo acaba de ser enunciado [as Teorias Poder Sancionador ou
Prerrogativa Sancionadora; da Infração; da Sanção, assim como um Direito
Processual próprio] –, pois sem ela é muito difícil desenvolver de maneira
congruente os diferentes capítulos da Parte Especial do Direito Administrativo
Sancionador. E me refiro à experiência. Nos ramos do Direito escassamente
desenvolvidos como é o caso do Direito Administrativo Sancionador, ao
menos até pouco tempo – os autores limitam-se a glosar os preceitos
sancionadores de qualquer ramo do Ordenamento positivo (montes
2
, águas,
urbanismo). Contudo, quando querem retornar ao geral para sair da
exegese literal encontram a enorme dificuldade de não contar com um ponto
de referência de dogmática geral (por exemplo, sobre a culpabilidade ou a
reserva de lei), com a consequência de que acabam sendo foados a elaborar
por si mesmos os conceitos essenciais da Parte Geral e incluí-los em sua
exposição setorial. Tudo isso com um custo quanto à claridade sistemática e
o risco de elaborar uma Parte Geral tendenciosa ante a unilateralidade da
regulação do setor que lhe serviu de base para o estudo.
3
Portanto, fazendo-se um paralelo guardadas as devidas proporções com
as observações de Hart acerca das respostas trazidas por advogados e juízes no
exercício de suas atividades cotidianas sobre a natureza essencial do direito
4
, o estudo
2
Vocábulo "Monte" pode fazer referência a algo que é menor que uma montanha e/ou à terra que
não é utilizada pela agricultura e que é coberta por árvores, arbustos ou matas. É regulado na
Espanha pela Lei n.
o
43/2003 que conceitua monte como um terreno, o utilizado para a
agricultura, em que são encontradas árvores, arbustos ou espécies herbáceas que sejam espontâneas
ou resultado de semeadura ou plantação e que possam desempenhar funções ambientais, protetoras,
produtoras, culturais, paisagísticas ou recreativas.
3
Tradução livre de: "Pero claro es, en cualquier caso, que por donde había que empezar era por la
"Parte General" cuyo contenido acaba de ser enunciado –, pues sin ella resulta muy difícil
desarrollar congruentemente los diferentes capítulos de la Parte Especial del Derecho
Administrativo Sancionador. Y a la experiencia me remito. En las ramas del Derecho escasamente
desarrolladas como es el caso del Derecho Administrativo Sancionador, al menos hasta hace
poco los autores se limitan a glosar los preceptos sancionadores de cualquier rama del Ordenamiento
positivo (montes, aguas, urbanismo). Ahora bien, cuando quieren remontar el vuelo y salir de la
exégesis literal se encuentran con la enorme dificultad de no contar con un punto de referencia
dogmática general (por ejemplo, sobre la culpabilidad o la reserva de ley), con la consecuencia de
que se ven forzados a elaborarse por mismos los conceptos esenciales de la Parte General e
incluirlos en su exposición sectorial. Todo ello a costa de la claridad sistemática y a riesgo de
elaborar una Parte General sesgada por la unilateralidad de la regulación del sector que le sirve de
base." (NIETO, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. 4.ed. 2.
a
reimp. Madrid: Tecnos,
2008. p.24).
4
"Yet these seemingly paradoxical utterances were not made by visionaries or philosophers
professionally concerned to doubt the plainest deliverances of common sense. They are the outcome of
prolonged reflection on law made by man who were primarily lawyers, concerned professionally
either to teach or practice law, and in some cases to administer it as judges. Moreover, what they
sad about law actually did in their time and place increase our understanding of it. For, understood
in their context, such statements are both illuminating and puzzling: they are more like great
exaggerations of some truths about law unduly neglected, than cool definitions. They throw a light
which makes us see much in law that lay hidden; but the light is so bright that it blinds us to the
remainder so leaves us still without a clear view of the hole." (HART, Herbert Lionel Adolphus. The
concept of law. 1.ed. reeimp. Oxford: Oxford University Press, 1970. p.02).
11
das infrações administrativas, a partir de um tipo específico de ilícito administrativo é,
ao mesmo tempo, iluminador e enigmático. Iluminador porque coloca em evidência
exagerada uma determinada área do Direito Administrativo Sancionador e
enigmático porque acaba cegando os operadores quanto ao resto, não
possibilitando uma clara visão do todo.
O terceiro motivo é tamm uma lão de Nieto: a necessidade de constrão
de uma Parte Geral do Direito Administrativo Sancionador como instrumento de
segurança, pois mesmo que seja possível questionar a construção de uma teoria
geral aplicável a todas as manifestações setoriais, essa possibilidade é consignada
como pressuposto desse trabalho, pois:
[...] aqueles países que contam com uma Parte Geral, as relações jurídicas
de repressão são incomparavelmente mais seguras, mais eficazes e mais
satisfatórias para os interessados que nos países onde esse sistema não foi
implantado. E tanto melhor se essa Parte Geral conta com um texto
normativo de qualidade, como é o caso da Alemanha e da Itália. Ainda que
seja apenas por esse motivo, deve-se insistir na elaboração da Parte Geral
do Direito Administrativo Sancionador.
5
Por fim, como não uma lei específica que regulamente o assunto no
Brasil e estabelecidos os objetivos e o tipo de abordagem do trabalho, mostra-se
pertinente o estudo das noções de ordenamento jurídico, norma, ilícito e sanção da
Teoria do Direito e que são o objeto do primeiro capítulo.
5
Tradução livre de: "[...] la corrección de 'um' Derecho Administrativo Sancionador frente a la alternativa
de un racimo de infracciones y sanciones administrativas materiales, tan heterogéneas que no puedan
reconducirse a un mínimo común denominador; como también frente a la alternativa de una
pluralidad de Derechos Administrativos Sancionadores fraccionados en Comunidades Autónomas." e
"Cualquiera de estas dos opciones es plausible y si yo me he inclinado por la primera ha sido, entre
otras razones que ahora sería ocioso explicar, por una tan sencilla como pragmática: en aquellos
países que cuentan con una Parte General, las relaciones jurídicas de represión son incomparablemente
más seguras, s eficaces y s satisfactorias para los interesados que en los países donde tal
sistema no se ha implantado. Y tanto mejor si esta Parte General cuenta con un texto normativo de
calidad, como es el caso de Alemania e Italia. Aunque sólo fuera por esta, debiera insistirse en la
elaboración de la Parte General del Derecho Administrativo Sancionador." (NIETO, 2008, p.25).
12
1 ILÍCITO E SAÃO NA CIÊNCIA DO DIREITO: NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
1.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Antes de adentrarmos ao objeto propriamente dito deste estudo, são necessárias
algumas breves considerações sobre as características do comportamento social no
momento histórico em que vivemos e que têm conduzido tanto a sociedade quanto o
direito a uma tendência sancionadora que pode ser observada, praticamente, no
mundo todo.
Prestarão auxílio para o desenvolvimento dessa tarefa a obra "Introdução ao
Estudo do Direito" de Tercio Sampaio Ferraz Junior, bem como a lição de Hannah
Arendt sobre "A condição humana", pois este ensaio, consoante observa o autor acima
referido, embora não seja uma obra jurídica, traz elementos que contribuem de
sobremaneira para a compreensão da importância cultural do direito (como fenômeno
decisório, um instrumento de poder e que tem a Ciência Judica como tecnologia) em
nossa sociedade.
6
Inicialmente, deve-se destacar que Hannah Arendt pretendeu designar a
partir da expressão vita activa três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e
ão. De acordo com a autora, a diferença entre elas reside na relação que cada uma
dessas atividades guarda com as condições essencialmente humanas do nascimento/
natalidade e da morte/mortalidade, sendo o labor a atividade que visa assegurar a
sobrevivência do indivíduo e de toda a espécie; o trabalho aquela que tem por intuito
6
"Por outro lado, sem perder suas múltiplas dimensões históricas, procuramos focalizar o direito
como ele se manifesta hoje, no mundo burocratizado das sociedades ocidentais. A percepção
dessa circunstância histórica o direito nem sempre está numa mesma circunstância nos fez
escolher uma forma de abordagem capaz de mostrar uma peculiaridade da nossa época e de
fazer-lhe a devida crítica: o direito como um fenômeno decisório, um instrumento de poder e a
ciência jurídica como uma tecnologia. [...] talvez seja importante, desde já, esclarecer como o
direito adquiriu culturalmente, em nossa civilização, esta característica. Para isso valemo-nos de
algumas considerações de Hannah Arendt cuja obra 'A Condição Humana', embora não tenha por
tema o direito, permite-nos fecundas incursões sobre a questão." (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio.
Introdução ao estudo do direito:cnica, decisão, dominação. 2.ed.o Paulo: Atlas, 1994. p.22).
13
proporcionar a maior duração possível à vida e, por fim, a ação, que ao fundar e
preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança, para a história.
7
Outro elemento relevante é o fato de que a vida do indivíduo na antiguidade
clássica poderia ser dividida em familiar e bios-politikos, as quais corresponderiam
ao que hoje conhecemos por esfera privada e pública, porém, com um significado
muito distinto daquele que atualmente lhes atribuímos.
8
A esfera privada tinha o sentido de "ser privado de". Era o espaço para a
prática dos atos essenciais à sobrevivência humana, portanto, um lugar de "não
liberdade", uma vez que todos estavam sujeitos à coação da necessidade. A vida
privada ocorria no âmbito da casa (oikia ou domus), no lugar do animal laborans e
do "processo ininterrupto de bens de consumo"
9
, em que se realizava o labor.
Também era um espaço de desigualdade nas relações, baseadas no comando e na
obediência "donde a idéia do pater famílias, do pai, senhor de sua mulher, seus
filhos, seus escravos".
10
o indivíduo que alcançava o privilégio de ser considerado "homem livre",
isto é, que tinha assegurada sua sobrevivência e não estava mais sujeito à coação
da necessidade, era chamado cidadão ou cive e encontrava seus pares na esfera
pública da polis ou civitas, onde o politikon zoon, o animal político, praticava a
ação, ou seja, a atividade humana dignificadora caracterizada por sua ilimitação
e imprevisibilidade.
11
Diante da instabilidade dos negócios humanos e da política, a construção de
um espaço público por meio de leis mostra-se necessário para o desenvolvimento da
atividade política.
Hannah Arendt registra que na acepção grega as leis assumem o contorno
de sustentáculo, de alicerce necessário à construção e manutenção do espaço
público, criando e preservando instituições e, consequentemente, acabam por
fomentar a própria atividade política, diferentemente da concepção romana em que a
7
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p.17-18.
8
FERRAZ JUNIOR, 1994, p.23.
9
Id.
10
Id.
11
Id.
14
atividade legislativa não era pré-política, mas a representação de um sistema de
alianças entre patrícios e plebeus.
Portanto, ambas as noções, como registra Celso Lafer
12
, foram relevantes para
formar a idéia de fundação como o alicerce do agir conjunto, do poder das autoridades.
A ars ou téchne do direito – a atividade legislativa – assume um papel
relevante na crião e manutenção do espo público, consistindo no desenvolvimento
de um sistema legal positivo fundado na justiça, no jus.
13
,
14
12
"Precisamente porque o espaço público é frágil e suscetível de desaparecer no vórtice de
imprevisibilidade dos fatos e dos acontecimentos é que ele precisa ser preservado por meio de
instituições. Por isso, como observa Margaret Canovan, comentando um trecho de The Human
Condition, trata-se de um espaço que precisa ser alicerçado na lei. Neste sentido, Hannah Arendt
vê a lei, na sua concepção grega, como uma atividade do homo faber, ou seja, como um
artesanato dedicado à construção constitucional do espaço público, estabelecendo, deste modo, o
vínculo entre a permanência no tempo da vita activa e o empenho durável dos objetos criados pelo
homo faber.
A ação política da vita activa requer, diz Hannah Arendt, a concordância potencial dos outros. Esta
surge em virtude da estrutura dialógica da política, alicerçada na verdade factual, tendo este diálogo
entre iguais, como objeto, dúbia conflitiva, superáveis pela persuasão que permite o agir conjunto.
É por isso que Hannah Arendt chama a atenção para a acepção romana de lei que, ao contrário
da grega, não era coeva à fundação da polis. Para os romanos, de acordo com Hannah Arendt, a
atividade legislativa não era pré-política. O sentido original de Lex, aponta ela, era o de uma conexão
íntima, ou seja, uma relação que conecta duas coisas ou dois parceiros que circunstâncias
externas juntaram. O próprio povo romano – populus romanusdevia a sua existência não a uma
unidade orgânica, a uma etnia tribal, mas sim a uma aliança perpétua entre patrícios e plebeus.
O império romano, por sua vez, não se esgotava na noção de imperium num sistema de alianças
em que o instrumento das leges foram utilizados para a celebração de tratados, que ampliaram
para outras províncias e outras comunidades os socii, que formavam a Societas Romana.
Este esclarecimento das duas dimensões da atividade legislativa a da construção constitucional,
pelo homo faber, do espaço público e da obtenção política do acordo para o agir conjunto
permitiu a Hannah Arendt discutir a fundação, com a qual se inicia o agir conjunto, como o
fundamento que confere autoridade ao poder. Autoridade, lembra Hannah Arendt, deriva do verbo
augere (aumentar), e o que a ação política faz no espaço público da palavra e da ação é
acrescentar, através de feitos e acontecimentos, importância à fundação da comunidade política e
vida às suas instituições." (LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p.33-34).
13
FERRAZ JUNIOR, 1994, p.24.
14
"A ão se caracterizava em primeiro lugar pela sua ilimitação. Como se tratava de atividade
espontânea, como toda ão era concebida como criação de um fluxo de relações políticas, não
havia como prever a ão. Agir, dizia-se, é iniciar continuamente relações. Por isso, além da
ilimitação, á [sic] ação era imprevisível, não podendo suas conseqüências ser determinadas
logicamente de antemão. Isto explicava a inerente instabilidade dos negócios humanos, das
coisas da política de modo geral, cuja única estabilidade possível era aquela que decorria da
própria ação, de uma espécie de virtude, como por exemplo o equilíbrio e a moderação própria da
prudência. Daí a necessidade da ars ou téchne. Para que essa estabilidade pudesse ser
alcançada, porém, eram necessárias certas condições: as fronteiras territoriais para a cidade, as
leis para o comportamento, a cerca para a propriedade, que eram consideradas limites à ação,
embora a sua estabilidade não decorresse desses limites. Em outras palavras, a polis não era
propriamente um limite físico e normativo, mas um conjunto fugaz de ações. Mas para que a polis,
enquanto teia de relações surgisse, era não só necessária a delimitação física da cidade que era o
15
Porém, a partir da modernidade, a ação mudou seu significado e passou a
ser compreendida como uma atividade finalista, como meio para o alcance de um
fim, o que aproximou o conceito de ação da conceão clássica de trabalho, havendo a
"[...] correspondente redução progressiva do jus à lex, do direito à norma"
15
. Assim, o
direito passou a ser concebido como um comando apto a atingir determinados fins e
sua legitimidade passou a depender desses fins a que ele se propõe, refletindo,
dessa forma, sua inserção na filosofia do homo faber
16
, ou seja, na racionalidade
instrumental, de acordo com a qual as coisas perdem seu significado intnseco, próprio.
17
Desta feita, o direito passou a ser considerado e estudado como um sistema
"neutro" que atua na realidade para atingir determinados objetivos teis e desejáveis",
como um produto dotado de valor de troca:
[...] na sociedade dominada pela idéia da troca, o direito passa a ser considerado
como um bem que se produz. É a identificação do jus com a lex. O bem
produzido por meio da edição de normas constitui então um objeto de uso,
algo que se tem, que se protege, que se adquire, que pode ser cedido,
enfim, que tem valor de troca. Ora, como um mercado de trocas os homens
não entram em contato diretamente uns com os outros, mas com os produtos
produzidos, o espaço da comunicação do homo faber é um espaço alienante
porque de certa maneira exclui o próprio homem.
trabalho do arquiteto, mas também a legislação, que era o trabalho do legislador, considerado uma
espécie de construtor da estrutura da cidade. [...] O trabalho tem em si, portanto, a nota da vioncia,
pois é uma atividade que transforma a natureza, ao dominá-la: da árvore que se corta, se faz a
mesa. Assim, na Antiguidade pode-se dizer: a legislação enquanto trabalho do legislador não se
confundia com o direito enquanto resultado da ação. Em outras palavras, havia uma diferença
entre lex e jus na proporção da diferença entre trabalho e ação. Deste modo, o que condicionava o
jus era algo imanente à ação: a virtude do justo, a justiça." (FERRAZ JUNIOR, 1994, p.24).
15
Id.
16
"O homo faber de certo modo degrada o mundo, porque transforma o significado de todas as
coisas numa relação meio/fim, portanto numa relação pragmática. Com isto, torna-se impossível
para ele descobrir que as coisas possam ser valiosas por elas mesmas e não simplesmente
enquanto instrumentos, enquanto meios. A tragédia desta posição está em que a única
possibilidade de se resolver o problema do significado das coisas é encontrar uma noção que em
si é paradoxal, ou seja, a idéia de um fim em que não é mais meio para um outro fim, é um
paradoxo, porque todo fim nesta concepção deveria ser meio para um fim subseqüente. A idéia de
um fim em si mesmo foi formulada de uma forma muito digna por Kant, que tentou resolver o
dilema dessa tragédia. Kant nos colocou diante da idéia de que o homem nesta concepção
utilitária é afinal aquele que é um fim em si mesmo. Daí a sua famosa concepção de que o homem
nunca deve ser objeto de um outro homem. [...] No mundo do homo faber a esfera pública, que na
Antiguidade era a esfera do homem político, passa a ser a esfera do mercador." (Ibid., p.25).
17
Ibid., p.24-26.
16
[...] O direito considerado objeto de uso é o direito encarado como conjunto
abstrato de normas, conjunto abstrato de correspondentes direitos subjetivos,
enfim o direito, objeto de uso, é um sistema de normas e direitos subjetivos
constituídos independentemente das situações reais ou pelo menos considerados
independentemente destas situações reais, mero instrumento de atuação do
homem. Está a base de uma concepção que no direito e no saber
jurídico um sistema neutro que atua sobre a realidade de forma a obter fins
úteis e desejáveis.
18
Adverte Ferraz Junior, ainda, que no estágio da sociedade do animal
laborans as pessoas transformam-se em operários indiferentes ao mundo,
preocupados apenas com sua sobrevivência, o que, em uma etapa mais extrema,
leva à automação dos indivíduos, e tudo é visto como descartável, inclusive o
direito.
19
O direito instrumentalizado a que se refere Tércio Sampaio Ferraz Junior é
fruto da "razão técnica instrumental", "[...] uma racionalidade que pondera, calcula e
ajusta os melhores meios a fins dados exteriormente ao agente".
20
,
21
18
FERRAZ JUNIOR, 1994, p.25-26.
19
"Em suma, com o advento da sociedade do animal laborans, ocorre uma radical reestruturação do
direito, pois sua congruência interna deixa de assentar-se sobre a natureza, sobre o costume,
sobre a razão, sobre a moral e passa reconhecidamente a basear-se na uniformidade da própria
vida social, da vida social moderna, com sua imensa capacidade para a indiferença. Indiferença quanto
ao que valia e passa a valer, isto é, aceita-se tranquilamente qualquer mudança. Indiferença
quanto à incompatibilidade de conteúdos, isto é, aceita-se tranquilamente a inconsistência e se
convive com ela. Indiferença quanto às divergências de opinião, isto é, aceita-se uma falsa idéia
de tolerância, como a maior parte de todas as virtudes. Este é afinal o mundo jurídico do homem
que labora, para o qual o direito é apenas e tão-somente um bem de consumo. [...] As sociedades
estão em transformação e a complexidade do mundo está exigindo novas formas de manifestação
do fenômeno jurídico. É possível que, não tão distantemente no futuro, esta forma compacta do
direito instrumentalizado, uniformizado e generalizado sob a forma estatal de organização venha a
implodir, recuperando-se, em manifestações espontâneas e localizadas, um direito de muitas
faces, peculiar aos grupos e às pessoas que os compõem. Por isso, a consciência da nossa
circunstância não deve ser entendida como um momento final, mas como um ponto de partida.
Afinal, a ciência não nos libera porque nos torna mais sábios, mas é porque nos tornamos mais
sábios que a ciência nos liberta. Adquirir a sabedoria não é ato nem resultado da ciência e do
conhecimento, mas é experiência e reflexão, exercício do pensar. E é para isso, por fim, que
convidamos o leitor: pensar o direito, refletir sobre as suas formas hodiernas de atuação,
encontrar-lhe um sentido, para então vivê-lo com prudência, esta marca virtuosa do jurista, que os
romanos nos legaram, e que não desapareceu de todo na face da Terra." (Ibid., p.28-29).
20
NOBRE, Marcos. A teoria crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p.51.
21
István Mészáros, filósofo marxista, é um dos marcos teóricos para quem estuda e procura combater
essa lógica destrutiva do capitalismo moderno, registra em "O desafio e o fardo do tempo
histórico" suas reflexões acerca do capitalismo positivado "[...] contra o coro dos que proclamam
que 'não há alternativa' para o sistema, Mészáros reafirma que, na verdade, não há remédio capaz
de amenizar a gravidade extrema de suas contradições permanentes criadas e insolventes. [...]
Para o filósofo, as evidências ameaçadoras contra a humanidade emanadas dessa lógica
17
Mas em que pesem as críticas e as tentativas de superar o capitalismo, o
fato é que ele, ainda hoje, é o sistema econômico dominante, assim como o direito
instrumentalizado, uniformizado e generalizado, que tende a ser substituído por
manifestações mais espontâneas
22
, de acordo com Tercio Sampaio Ferraz Junior, e
isso tudo deve ser considerado pelos juristas como ponto de partida para pensar o
direito.
23
Ainda, pode-se trazer para contribuir com essa reflexão a afirmação de
Boaventura de Souza Santos de que estamos em um momento de "transição
paradigmática". De acordo com sociólogo português, os paradigmas socioculturais
nascem, crescem, desenvolvem-se e morrem, pom, trazem dentro de si o paradigma
que de lhes suceder, sendo que desde o limiar do terceiro milênio estamos a
assistir ao culminar desse processo com o colapso da emancipação (ou libertação)
na regulação, o que caracteriza, de acordo com o autor, a crise final do paradigma
sociocultural da modernidade.
24
Esse contexto de transição paradigmática gera certa insegurança no corpo
social. Com o intuito de registrar esse "sentimento social" foram desenvolvidos
societária mantida sob o controle do capital, poderão ser verdadeiramente extirpadas numa
ordem social controlada pelos produtores livremente associados.
Baseado, então, na atualidade clássica da concepção marxiana da história, Mészáros vem se
confirmando como um dos mais importantes teóricos da revolão e dos mais argutos ideólogos dos
seus verdadeiros sujeitos históricos. Isso porque vem contribuindo decisivamente para a ativação do
potencial emancipatório da classe trabalhadora reconfigurada pelas necessidades contingentes do
sistema de reprodução do capital – que, das misérias atualmente impostas sobre ela, vêm encontrando
novas e criativas formas de reorganização e de reabertura da história." (ANTUNES, Ricardo. István
Mészáros e sua ardorosa defesa da humanidade. Revista Cult, Edição comemorativa 10 anos,
ano 10, n.119, p.10, 2007).
22
Vide, nesse sentido, a filosofia da libertação em Henrique Dussel: "[...] implantação geopolítica da
própria filosofia, à medida que se encontra situada no 'centro' ou na 'periferia'. De fato, uma
filosofia 'da libertação' (genitivo objetivo: seu tema) parece que deveria antes de tudo partir de uma
libertação da 'própria' 'filosofia' (genitivo subjetivo: o sujeito que a exerce e o próprio discurso
exercido)." (DUSSEL, Enrique. Ética da libertação. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p.67; bem
como ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Tradução de Sylvia Moretzsohn.
Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia: Revan, 2005).
23
FERRAZ JUNIOR, 1994, p.29.
24
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2002.
p.15 e 16.
18
estudos sociológicos dentre os quais a Teoria da "Sociedade de Risco"
25
de Ulrich
Beck e a "Modernidade Líquida"
26
de Zigmundt Bauman.
27
Constata-se atualmente que os antigos instrumentos que mantinham a
coletividade de seus membros, como a história conjunta, o costume e as escolas,
ficam cada vez mais defasados na medida em que os anos passam, sendo uma
característica no atual estágio de modernidade líquida o fornecimento de "arreios
com zíper, e o argumento para sua venda é a facilidade com que podem ser usados
pela manhã e despidos à noite (ou vice versa)"
28
, aparecendo o comunitarismo
29
como "[...] uma reação esperável à acelerada 'liquefação' da vida moderna".
30
25
"A 'sociedade do risco' ou 'da insegurança' conduz, pois, inexoravelmente, ao 'Estado vigilante' ou
'Estado prevenção'. E os processos de privatização e de liberalização da economia, em que nos
encontramos imersos, acentuam essa tendência. Nesse contexto policial-preventivo, a barreira de
intervenção do Estado nas esferas jurídicas dos cidadãos se adianta de modo substancial."
(SILVA SÁCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal. São Paulo: RT, 2002. p.127).
26
"'Fluidez' é a qualidade de líquidos e gazes. O que os distingue dos sólidos, como a Enciclopédia
britânica, com a autoridade que tem, nos informa, é que eles 'não podem suportar uma força
tangencial ou deformante quando imóveis' e assim 'sofrem uma constante mudança de forma
quando submetidos a tal tensão."; "Os fluídos se movem facilmente. Eles 'fluem', 'escorrem', 'esvaem-se',
'respingam', 'transbordam', 'vazam', 'inundam', 'borrifam', 'pingam'; são 'filtrados', 'destilados';
diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem
outros e invadem ou inundam seu caminho." E "Essas são razões para considerar a 'fluidez' ou
'liquidez' como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova
de muitas maneiras, na história da modernidade." (BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida.
Tradução de Plínio Dantzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p.07, 08 e 09, respectivamente).
27
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000. p.02.
28
BAUMAN, 2001, p.194.
29
A falta de segurança une as três principais fontes de ansiedade em relação ao presente: (1) o
desemprego; (2) as perspectivas incertas da velhice e (3) os infurtúnios da vida urbana, sendo a
oferta de um porto seguro o principal apelo do comunitarismo. Esse tema foi objeto de estudo de
Bauman pela primeira vez no último capítulo da obra "Modernidade quida", datada de 2000 e foi
aprofundado no livro "Comunidade: a busca por segurança no mundo atual", sendo que a ideia
básica dessa obra de 2003 é a de que a ordem global precisa de muita desordem local para se
estabelecer, o que explicaria a crescente sensação de insegurança que recebe na obra "Em busca
da política" a identificação de Unsicherheit, termo alemão que reflete uma fusão de experiências e
que expressa incerteza, insegurança e falta de garantia. Assim, partindo do modelo global, Bauman
demonstra que em sua oposição está a comunidade, a qual seria uma utopia de um "novo paraíso
perdido", com "subúrbios verdejantes, condomínios cercados, carros blindados, câmeras de vídeo
e ausência de estranhos", porém, o preço de viver no paraíso perdido da comunidade é a
ausência de liberdade, o que além, de sufocar quem nela está, culmina no redirecionamento dos
investimentos em saúde, educação e previdência social em armas e presídios, pois quanto maior
a ênfase dada à segurança, maior é a sensação de risco. [BAUMAN, 2001, p. 194]
30
Ibid., p.195.
19
Thomas Mathiesen, utilizando-se da expressão cunhada por Steven Box e
Chris Hale, registra que os poderes Legislativo e Judiciário, como verdadeiros
"barômetros de ansiedade" (anxiety barometers) da sociedade, interpretam esse
sentimento de insegurança como uma crescente necessidade de disciplina.
31
Considerando-se que nossos tempos eso repletos de sinais de inquietação –
protestos políticos, conflitos com imigrantes, estagnação e até dissolução de serviços
de assistência social e de suporte que, aliados aos sinais emitidos pela mídia de
aumento da violência e do uso de drogas – em que pesem os dados estatísticos não
comprovarem, de acordo com Mathiesen, essas escaladas possuem um efeito
amplificado. Isso culmina naquilo que o autor chamou de crise de legitimidade
32
, pois
juntos, os problemas reais e os majorados pela mídia, produzem uma maior ou menor
quebra na confiança das pessoas na tentativa estatal de solucionar problemas.
33
Também afirma Mathiesen que por trás da crise de legitimidade há, em geral,
uma crise econômica, a qual temos observado nos últimos anos e mais recentemente
com a crise mundial de 2008-2009, cujos efeitos ainda persistem em 2010 no
cenário global.
A estagnão econômica em países que apresentam um persistente e grande
desemprego é visto como uma questão de confiança na solão estatal para o problema
34
,
refletindo-se a crise de legitimidade no processo de tomada de decisão do poder
público. É nesse contexto que surge a interpretação da insegurança social como
uma nova e maior necessidade de disciplina, em geral, em relação a certos grupos e
segmentos sociais, o que quer dizer, "Em outras palavras, [que] quando a confiança
em órgãos e autoridades públicas começa a falhar, essa falha aparece, do ponto de
vista dos legisladores e tribunais, em um aumento na necessidade de disciplina."
35
31
MATHIESEN, Thomas. Prision on Trial. London: Sage Publications, 1990. p.13.
32
Ibid., p.14.
33
Id.
34
Id.
35
Id.
20
Na obra "Globalização: as conseqüências humanas", o sociólogo polonês
Zigmundt Bauman considera que a atual tendência punitiva é um fenômeno
praticamente universal e que pode ser atribuído ao "amplo quadro de transformações
conhecidas pelo nome de globalizão"
36.
Compreende, na mesma linha de entendimento
de Mathiesen, que se trata de uma tentativa de compensação das incertezas
37
decorrentes da insegurança existencial no plano da lei e da ordem, o que, como será
visto mais adiante, culmina na formulão de teses de expano e de funcionalização
extrema da tutela penal que serão abordadas no segundo capítulo do presente
trabalho –, bem como no crescimento do âmbito sancionador do Direito
Administrativo.
38
36
BAUMAN, Zygmunt. Globalização e as conseqüências humanas. Tradução de Marcus Penchel.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p.10-11.
37
Bauman, nesse capítulo, observa que as leis trabalhistas protecionistas estabelecem entre
empregador e empregado uma relação social que visa à redistribuição da riqueza, bem como
conferir algum poder de resistência aos trabalhadores ante a dominação exercida pelos
empregadores. Essa relação é camuflada sob a alegação de que se trata de um empecilho ao
desenvolvimento que conflita com um "princípio universal de sanidade econômica". Esse discurso
é aceito, inclusive, pelos trabalhadores que, muito embora constatem as cada vez mais escassas
oportunidades de trabalho, aceitam essa condição, sem oferecer qualquer resistência; alguns
apoiam tal circunstância e, o que é mais grave ainda, outros sequer esboçam alguma reação,
mostram-se indiferentes. Isso tudo, gera mais insegurança ainda, como acentua o autor: "A
assimetria das condições manifesta-se nos graus respectivos de previsibilidade. O lado cuja gama
de opções comportamentais é mais amplo introduz o elemento de incerteza na situação vivida
pelo outro lado, o qual, enfrentando uma liberdade de opção muito menor ou nenhum (sic) opção
em absoluto, não pode revidar. A dimensão global das opções dos investidores, quando
comparadas aos limites estritamente locais de opção do 'fornecedor de mão-de-obra', garante
essa assimetria, que por sua vez é subjacente à dominação dos primeiros sobre o segundo."
(Ibid., p.113). Diante disso, o sociólogo traz à tona a prisão como fábrica de exclusão e isolamento
da mão de obra excedente corroborando em alguma medida, ainda que não expressamente, o
pensamento de Dario Mellossi e Massimo Pavarini em "Cárcere e fábrica: as origens do sistema
penitenciário (séculos XVI-XIX)" e que "Nas atuais circunstâncias, o confinamento [prisão] é antes
uma alternativa ao emprego, uma maneira de utilizar ou neutralizar uma parcela considerável da
população que não é necessária à produção e para a qual não há trabalho 'ao qual se reintegrar.
[...] A estratégia recomendada é fazer os trabalhadores esquecerem, o aprenderem, o que
quer que pretendia ensinar-lhes a ética do trabalho nos dias dourados da indústria moderna. [...]
Os trabalhadores devem desaprender a dedicação ao trabalho duramente adquirida e o apego
emocional duramente conquistado ao local de trabalho, assim como o envolvimento pessoal no
conforto desse ambiente." (Ibid., p.119-120).
38
Sobre o aumento da punição, ensinou Carl Ludwig Von Bar que "Ali onde chovem leis penais
continuamente, onde por qualquer motivo surge entre o público um clamor geral de que as coisas
se resolvam com novas leis penais ou agravando as existentes, não se vivem os melhores
tempos para a liberdade pois toda lei penal é uma sensível intromissão na liberdade, cujas
conseqüências serão perceptíveis também para os que a exigiram da forma mais ruidosa -, ali se
pode pensar na frase de Tácito: péssima respublica, plurimae leges." (VON BAR. Geschichte des
deutschen Strafrechts um der Strafrechtstheorien. Berlim, 1988. Reimpr. Aalen, 1992. p.334 apud
SILVA SÁCHEZ, 2002 , p.19).
21
Nesse contexto de transição paradigmática, crise de legitimidade aliada ou
o a crises econômicas e ao quadro de transformações trazidas pela globalização,
observa-se o flagrante recrudescimento do papel sancionador do Estado.
Em tom de crítica, Jesús-María Silva Sánchez observa que, embora seja
dotada de razão, é ingênua a atribuição desse aumento do papel sancionador estatal
como "produto de uma espécie de perversidade do aparato estatal" que encontra no
Direito Penal a solução mais cil à inquietação social por meio de sua função simbólica,
enquanto, na realidade, o problema deveria ser resolvido no âmbito da proteção
efetiva dos bens jurídicos tutelados. Isso porque, para ele, uma demanda social
unívoca
39
por mais proteção e que não pode deixar de ser considerada. Porém,
adverte que há que se refletir sobre a interpretação dessa demanda por maior protão
como necessidade de punição.
40
39
Ressalta o autor que esse movimento de expansão do Direito Penal difere dos movimentos de "lei
e ordem" (law and order) da cada de 1970, pois além de referir-se às características do fim do
culo XX e início do culo XXI, a atual tendência, é uma unanimidade, como observa: "Em
particular, e para evitar desde logo interpretações equivocadas, conm ressaltar, sobre esse
aspecto, que a profundidade e a extensão das bases sociais da atual tendência expansiva do Direito
Penal não têm nada a ver com as que na década de 70 – e posteriores – respaldavam o
movimento, inicialmente norte-americano, de law and order. Por isso seria errôneo pretender analisar
sob esse prisma a expansão do Direito Penal característica de nosso particular fin de siècle, cujas
'causas' se pretende esboçar neste texto. Efetivamente, as propostas do movimento de lei e
ordem se dirigiam basicamente a reclamar uma reação legal, judicial e policial mais contundente
contra os fenômenos de delinqüência de massas, da criminalidade das ruas (patrimonial e
violenta). Assim as coisas, uns setores sociais para simplificar os acomodados, apoiavam tais
propostas; outros os excluídos, mas também os intelectuais e os movimentos dos direitos
humanos se opunham a elas. Nesse particular o debate em torno do referido movimento constitui
seguramente o último exemplo da concepção convencional do Direito Penal como instrumento de
restrição de direitos individuais, particularmente sofrido pelas classes 'emergentes', e a cuja
intensificação estas, assim como os movimentos de direitos civis e políticos, se opõem
frontalmente. É fundamental sublinhar que a representação social do Direito Penal que dimana da
discussão sobre o movimento de lei e ordem não era em absoluto unívoca, senão, pelo contrário,
basicamente dividida." E "A representação social do Direito Penal que comporta a atual tendência
expansiva mostra, pelo contrário, e como se verá, uma rara unanimidade. A divisão social
característica dos debates clássicos sobre o Direito Penal foi substituída por um consenso geral,
ou quase geral, sobre as 'virtudes' do Direito Penal como instrumento de proteção dos cidadãos.
Desde logo, nem as premissas ideológicas nem os requerimentos do movimento de 'lei e ordem'
desapareceram: ao contrário, se integram (comodamente) nesse novo consenso social sobre o
papel do Direito Penal. As páginas que seguem se dedicam a formulação de algumas hipóteses sobre
o porquê da cristalização desse consenso." (SILVA SÁCHEZ, 2002, p.24-25).
40
"Não é infreqüente que a expansão do Direito Penal se apresente como produto de uma espécie
de perversidade do aparato estatal, que buscaria no permanente recurso à legislação penal uma
(aparente) solão cil aos problemas sociais, deslocando ao plano simbólico (isto é, ao da declaração
de princípios, que tranqüiliza a opinião blica) o que deveria resolver-se no nível da instrumentalidade
(da proteção efetiva). Sem negar que à tal explicação possa atribuir-se alguma razão, creio que
seria ingênuo situar as causas mais profundas, que fundam suas raízes no modelo social que vem
se configurando no decorrer, pelo menos, das duas últimas décadas, na conseqüente mudança da
22
Diante disso, cabe ao jurista conscientizar-se das atuais características do
direito, hoje visto como um sistema "neutro" e apto a atender a determinados fins,
portanto, inserido na racionalidade instrumental da filosofia do homo faber, para que,
diante do clamor social por protão e segurança e das ideologias que subjazem esse
sistema jurídico "neutro", possa desnudar algumas facetas da realidade mediante
uma postura crítica e que vise ao resgate dos valores que devem informar a ordem
jurídica, sob pena de desenvolver uma teoria jurídica meramente legitimadora.
Assim, a partir do pressuposto de que o direito é um fenômeno decisório
utilizado como instrumento de poder, o qual lança mão da Ciência Jurídica como
uma tecnologia
41
a seu serviço
42
, o estudioso do direito deve, ao pretender construir
ou aplicar uma teoria jurídica de forma consciente, crítica e funcional, levar em
considerão a relevância de estudos interdisciplinares, não entre um ramo
específico da Ciência Jurídica e as disciplinas ditas propedêuticas, mas entre os
vários ramos do direito – pois a separação entre ramos é meramente didática –, bem
como deve procurar a dialética, na medida do possível, dos enfoques teórico-jurídicos
da zetética e da dogmática, residindo, neste ponto, a importância do próximo item de
estudo.
expectativa que amplas camadas sociais têm em relação ao papel que cabe ao Direito Penal." E
"Realçar esse último aspecto me parece essencial. Com efeito, dificilmente poderá interpretar a
situação de modo concreto e, em conseqüência, fixar as bases da melhor solução possível dos
problemas que suscita, se se desconhece a existência no nosso âmbito cultura de uma verdadeira
demanda social por mais proteção. A partir daí, questão distinta é que desde a sociedade se canalize
tal pretensão em termos mais ou menos irracionais como demanda de punição. Neste ponto,
provavelmente o seja demais aludir à possível responsabilidade que os formadores de opinião
possam ter em tal canalização, dado o seu papel de mediadores." (SILVA SÁCHEZ, 2002, p.23).
41
Tecnologia tem o seguinte sentido aqui: "[...] a ciência dogmática cumpre as funções típicas de
uma tecnologia. Sendo um pensamento conceitual, vinculado ao direito posto, a dogmática pode
instrumentalizar-se a serviço daão sobre a sociedade. Nesse sentido, ela, ao mesmo tempo, funciona
como um agente pedagógico junto a estudantes, advogados, juízes etc. que institucionaliza a
tradição judica, e como um agente social que cria uma 'realidade' consensual a respeito do direito, na
medida em que seus corpos doutrinários delimitam um campo de solução de problemas considerados
relevantes e cortam outros, dos quais ela desvia a atenção. [...] Nestes termos, um pensamento
tecnológico é, sobretudo, um pensamento fechado à problematização de seus pressupostos
suas premissas e conceitos básicos têm de ser tomados de modo não-problemático a fim de
cumprir sua função: criar condições para a ação. No caso da ciência dogmática, criar condições
para a decidibilidade de conflitos juridicamente definidos." (FERRAZ JUNIOR, 1994, p.87).
42
Ibid., p.22.
23
1.2 OS ÂNGULOS DE ESTUDO DO DIREITO (THEODOR VIEHWEG
43
)
Theodor Viehweg
44
, professor da Universidade de Mainz, concebeu a dicotomia
entre a dogmática e a zetética e que pode ser explicada a partir da constante tensão
entre as especulações do perguntar e as respostas do ensinar, pois:
45
Zetética vem de zetein que significa perquirir, dogmática vem de dokein que
significa ensinar, doutrinar. Embora entre ambas não haja uma linha divisória
radical (toda investigação acentua mais um enfoque que o outro, mas sempre
tem os dois), a sua diferença é importante.
46
Assim, diante da importância desses enfoques, eles serão analisados no item
seguinte, eis que são pressupostos necessários ao esclarecimento da investigação
que se pretende construir.
1.2.1 Zetética jurídica
A zetética tem seu foco nas perguntas, portanto, tem função especulativa e
pode ser representada pela pergunta "o que é?"
47
. Não possui o compromisso de
encontrar respostas, que podem ficar em aberto até que seu enfrentamento seja
43
VIEHWEG, Theodor. Ideologie und Rechtdogmatik. In: Ideologie und recht. Frankfurt: Vittorio
Klostermann, 1969 apud FERRAZ JUNIOR, 1994.
44
VIEHWEG, Theodor. Ideologie und Rechtdogmatik. In: Ideologie und recht. Frankfurt: Vittorio
Klostermann, 1969.
45
FERRAZ JUNIOR, op. cit., p.i.
46
Ibid., p.41.
47
Id.
24
possível, nem de manter suas premissas imutáveis, pois estas podem ser adequadas,
redefinidas e até mesmo abandonadas ao longo da investigação.
48
Destarte, a zetética não possui compromisso com a resolução de conflitos, o
que a libera para a especulação, residindo, justamente neste ponto, a riqueza desse
enfoque
49
. Entretanto, são necessários limites a essa reflexão caso contrário, não
seria possível terminar um estudo com esta abordagem
Como, porém, em toda a investigação zetética alguns pressupostos admitidos
como verdadeiros passam a orientar os quadros da pesquisa, é possível
distinguir limites zetéticos. Assim, uma investigação pode ser realizada a
nível empírico, isto é, nos limites da experiência, ou de modo a ultrapassar
estes limites, ao vel formal da lógica, ou da teoria do conhecimento ou da
metafísica, por exemplo. Além disso, a investigação pode ter um sentido
puramente especulativo ou pode produzir resultados que venham a ser
tomados como base para uma eventual aplicação técnica à realidade.
50
Muito embora as disciplinas zetéticas sejam importantes para o estudo do
fenômeno jurídico e contribuam com importantes elementos de reflexão e de crítica,
a Ciência Jurídica stricto sensu, nos últimos cento e cinquenta anos, tem sido
considerada uma ciência dogmática e neste mote reside a relevância de alguns
esclarecimentos acerca dessa abordagem no ponto subsequente.
51
1.2.2 Dogmática jurídica
A dogmática é o ponto central da Ciência Jurídica em sentido estrito e possui
uma função eminentemente diretiva que pode ser representada pela pergunta "como
deve-ser algo?":
52
48
"A zetética é mais aberta porque suas premissas são dispensáveis, isto é, podem ser substituídas
se os resultados não o bons, as questões que ela propõe podem até ficar sem resposta até que
as condições de conhecimento sejam favoráveis. [...] se as premissas não servem, elas podem ser
trocadas." (FERRAZ JUNIOR, 1994, p.41).
49
Ibid., p.42.
50
Ibid., p.44.
51
Ibid., p.47.
52
Ibid., p.41.
25
A dogmática é mais fechada, pois está presa a conceitos fixados, obrigando-se
a interpretações capazes de conformar os problemas às premissas e não,
como sucede na zetética, as premissas aos problemas. [...] se as premissas
não se adaptam aos problemas, estes são vistos como 'pseudo-problemas'
e, assim, descartados. Seu compromisso com a orientação da ação a impede
de deixar soluções em suspenso.
53
O princípio da inegabilidade dos pontos de partida
54
ou da proibição da
negação
55
rege a dogmática e ao ser transposto para as investigações que têm por
objeto o direito significa que este deve ser estudado e compreendido de tal forma
que seu resultado seja compatível e aplicável à ordem jurídica vigente.
Não significa, como bem pontua Ferraz Junior, que a zetética não seja
aplicável ao direito e que a função da dogmática consista nesse referido princípio ou
que esteja limitada a "repetir dogmas pura e simplesmente"
56
. Paradoxalmente é na
interpretação de sua vinculação aos dogmas que reside a liberdade desse enfoque
teórico, pois é ao se conferir um sentido aos dogmas que se abre um espaço
controlado de incertezas – "[...] de modo a tornar decidíveis os eventuais conflitos"
57
que permite a construção doutrinária, a qual deve ser compatível com a "vinculação
a normas" e a "pressão para decidir conflitos".
Além dessa complexa tarefa, o jurista também se depara com o distanciamento
da realidade decorrente da "dupla abstração" a que o estudo dogmático do direito
está ligado:
53
FERRAZ JUNIOR, 1994, p.41.
54
Aqui Tercio Sampaio Ferraz Junior faz uma referência à obra de LUHMANN, Niklas. Rechtssystem
und Rechtdogmatik. Berlim: Kohlhammer, 1974. uma versão em espanhol dessa obra chamada
"Sistema jurídico y dogmática jurídica". Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983.
55
Um exemplo é o princípio da legalidade: "Um exemplo de uma premissa desse gênero, no direito
contemporâneo, é o princípio da legalidade, inscrito na Constituição, e que obriga o jurista a
pensar os problemas comportamentais a partir da lei, conforme à lei, para além da lei mas nunca
contra a lei." (FERRAZ JUNIOR, op. cit., p.48).
56
Ibid., p.49.
57
Id. Ainda, como exemplo: "Por exemplo, a Constituição prescreve; ninguém é obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. O jurista conhece esta norma como o
princípio da legalidade. Prende-se a ele. Mas que significa lei? Como é que ele vai esclarecer
isto, cria-se para o jurista um certo âmbito de disponibilidade significativa: lei pode ser tomado em
um sentido restrito, alargado, ilimitado etc." (p.50)
26
[...] toda comunidade elabora suas normas. Mas normas só não bastam.
Sua ambigüidade e vagueza (afinal elas se expressam por palavras) exigem
também regras de interpretação. É preciso saber dizer não só qual é a
norma, mas também o que ela significa. Ora, as normas (ou dogmas da
ação) são, elas próprias, um produto abstrato e as regras sociais de
interpretação (dogmas que dizem como devem ser entendidas as normas)
são também um produto abstrato. Temos, pois, um produto abstrato, as
regras, que têm por objeto outro produto abstrato, as normas. Daí a dupla
abstração (no sentido de isolar normas e regras dos seus condicionamentos
zetéticos). Pois bem, o objeto do conhecimento jurídico-dogmático é esta
dupla abstração, que o jurista elabora num grau de abstração ainda maior
(regras sobre as regras de interpretação das normas).
58
Trata-se de uma abstrusa conciliação entre a realidade, a ordem jurídica
vigente com o cuidado de não construir uma teoria meramente legitimadora–, o
grau de abertura a ser conferido quando da interpretação dos dogmas sem se
olvidar das contribuições das disciplinas jurídicas de enfoque zetético para que se
construa uma teoria do direito, residindo neste mote as contribuições críticas.
1.2.3 A teoria e a postura crítica
Como destaca Marcos Nobre, muitos sentidos de crítica, até mesmo em
se tratando da própria Teoria Crítica.
A crítica, em seu sentido fundamental, refere-se ao fato de que não se pode
vislumbrar as coisas como elas são sem observar suas potencialidades, ou seja,
sem analisá-las sob o ponto de vista de como as coisas deveriam ser.
59
Assim, a crítica possui dois sentidos principais, o ponto de vista crítico a partir
do qual se observa a realidade a partir daquilo que poderá ser realizado e o caminho
a ser seguido, isto é, a identificação dos obstáculos que deverão ser transpostos
para que as potencialidades existentes na realidade possam ser implementadas.
60
58
FERRAZ JUNIOR, 1994, p.49.
59
"[...] 'crítica' significa, antes de mais nada, dizer o que é em vista do que ainda não é mas pode
ser." (NOBRE, 2004, p.09-10).
60
"[...] ponto de vista crítico [...] que o que existe da perspectiva do novo que ainda não nasceu,
mas que se encontra em germe no próprio existente"
e outro de que ela é "[...] capaz de apontar e
analisar obstáculos a serem superados para que as potencialidades melhores presentes no existente
possam se realizar". (Ibid., p.10).
27
Feitas essas considerações, é importante ressaltar que a expressão Teoria
Crítica podereferir-se a, pelo menos, três coisas: (1) um campo teórico; (2) um
grupo de intelectuais filiados a esse campo teórico e que, inicialmente, estavam
vinculados ao Instituto de Pesquisa Social
61
e (3) à chamada "Escola de Frankfurt"
62
.
A primeira das concepções de Teoria Crítica encampadas pelos estudiosos
do direito surgiu no momento em que Horkheimer construiu o materialismo interdis-
ciplinar em seus escritos da década de 1930: "[...] pesquisadores de diferentes
especialidades trabalhando em regime interdisciplinar e tendo como referência
comum a tradição marxista"
63
.
Essa percepção diz respeito, em verdade, ao conceito amplo de Teoria
Crítica e que é, ao mesmo tempo, seu critério de demarcação fundamental: todo
cientista que desenvolve pesquisas a partir da obra de Marx faz Teoria Crítica, uma
vez que a análise do capitalismo de Marx é a matriz desse campo teórico.
61
O Instituto de Pesquisa Social foi fundado em 1923 e resultou de um projeto de um grupo de
jovens intelectuais de classe média formado pelo economista Friederich Pollock (1894-1970), por
Max Horkheimer (1895-1973) e pelo o cientista político argentino Felix Weill (1898-1975).
O objetivo original dessa instituição era fomentar investigações científicas a partir da obra de Karl
Marx (1818-1883), portanto, ela teve como referenciais teóricos, desde o início, o marxismo e seu
método, qual seja, o modelo da "crítica da economia política". Insta salientar a importância da linha
de pesquisa visada pelo Instituto, formado em sua maioria por intelectuais judeus, numa época em
que ocorria a ascendência do nacional socialismo na Alemanha e a marginalização do marxismo
na Universidade de Frankfurt e, porque não dizer, em praticamente toda a Europa. Os idealizadores do
projeto eram, à época, bastante jovens e para que esse Instituto fosse levado a efeito, teriam de
contar com a aprovação desse projeto pelo Ministério da Educação alemão e com o apoio da
Universidade de Frankfurt para que o diretor do Instituto obtivesse uma cadeira de docente na
instituição. Assim, a fim de cumprir esses requisitos, após o empreendimento ser viabilizado
financeiramente por uma doação da abastada família de Felix, cujo pai, Hermann Weill, era um
cerealista estabelecido na Argentina no final do século XX, o que garantiu ao Instituto um bom
período de independência, cogitou-se o nome do sociólogo Kurt Albert Gerlach (1886-1922) para
ser o primeiro a ocupar a cadeira de Diretor do Instituto. Porém, o referido sociólogo faleceu no
ano de fundação do Instituto e, assim sendo, o primeiro Diretor do Instituto de Pesquisa Social foi
o historiador Carl Grünberg (1861-1940) que, devido a um acidente vascular cerebral, foi substituído
em suas funções por Max Horkheimer por volta de 1928, porém, não oficialmente. A assunção do
cargo de Diretor do Instituto por Max Horkheimer ocorreu em 1930, quando, então, foi inaugurada
uma nova fase do Instituto de Pesquisa Social, segundo Marcos Nobre, marcada pelo desenvolvimento
do "materialismo interdisciplinar": novo programa de investigação e funcionamento do Instituto,
baseado no ensaio "Teoria Tradicional e Teoria Crítica", de Horkheimer, e no manifesto de
Marcuse "Filosofia e Teoria Crítica" em que foram lançadas as bases para um trabalho coletivo
interdisciplinar, sendo que para dar publicidade a essas pesquisas, Horkheimer fundou a "Revista
de Pesquisa Social" (Zeitschrift für Sozialforschung).
62
NOBRE, 2004, p.21-22.
63
Ibid., p.15.
28
A partir disso, pode-se constatar, segundo Marcos Nobre, que a Teoria Crítica
diz respeito ao campo teórico do marxismo, ou seja, a um campo de investigação
anterior à própria conceituação de Teoria Crítica proposta por Horkheimer em seu
artigo "Teoria Crítica e Teoria Tradicional".
E, como para todo conceito amplo um conceito restrito, em relação à
Teoria Crítica não poderia ser diferente.
A concepção estrita de Teoria Crítica diz respeito a uma teoria construída
com base em dois princípios fundamentais, quais sejam, o de (1) comportamento
crítico e o de (2) orientação para a emancipação.
Segundo Luís Sérgio Repa, Horkheimer estabelece sua compreensão de
Teoria Crítica a partir de uma oposição entre ela e a Teoria Tradicional.
64
A Teoria Tradicional é analisada a partir das ciências da natureza e nela o
cientista é mero observador, pois, desde Descartes, formulou-se a idéia de que a
ciência é uma cadeia dedutiva dotada de princípios gerais.
65
O que o artigo de Horkheimer mostra é que as ciências humanas também
buscaram sua afirmação utilizando-se do modelo científico das ciências naturais por
meio de um método de investigação e de descrição dos fenômenos sociais que foi
construído para implementar uma separação estanque entre "o que é" e "o que deve
ser", pois na teoria social tradicional:
O cientista social pode estudar a efetividade dos valores sociais, mas não
pode compartilhá-los enquanto pesquisador. Em correspondência com isso,
os fenômenos sociais devem ser visto[sic] como fatos, como coisas que
também podem ser decompostas em seus elementos mais importantes e
recompostas segundo uma determinada perspectiva.
66
64
REPA, Luís Sérgio. Max Horkheimer: o formulador da teoria crítica e do programa de materialismo
interdisciplinar do Instituto de Pesquisa Social. Revista Mente, Cérebro e Filosofia - Adorno,
Horkheimer, Fromm, Benjamin: o homem no caos do capitalismo moderno, v.7, p.10, 2008.
65
"[...] a teoria é vista sempre como uma hitese a ser testada por experiências artificiais, implementadas
em laboratórios. Se há uma contradição entre a hipótese e os dados da experiência, então a teoria
deve ser corrigida ou as variáveis consideradas na experiência devem ser revistas. Nessa atividade, o
papel do cientista consiste meramente em observar." (Ibid., p.11).
66
Id.
29
A partir da constatação de que, apesar das diferentes correntes doutrinárias, os
cientistas buscam essa separão entre objeto e pesquisador, tanto nas ciências naturais
quanto nas ciências humanas, começa a crítica de Horkheimer à Teoria Tradicional.
A busca dessa pretensa neutralidade científica é, para Horkheimer, reificada
e ideológica: "Reificada porque parece ter características de uma coisa natural,
ideológica porque oculta para si sua própria realidade e também a realidade total."
67
Ainda, nesse mesmo sentido, escreveu o jurista francês Georges Ripert que
nas ciências humanas não há a possibilidade de o cientista manter-se imparcial, pois
é inerente ao sentimento humano, modificar as relações sociais.
68
Assim sendo, Luis Sérgio Repa, espelhando a crítica de Horkheimer à Teoria
Tradicional escreve que a teoria tradicional, desatenta para sua real função social
acabava apenas por legitimar os processos de produção e reprodução da dinâmica
social mediante uma pretensa neutralidade.
69
Note-se que a perspectiva tradicional de teoria, ao pretender simplesmente
explicar o funcionamento da sociedade, acaba adaptando o pensamento à realidade
existente em nome dessa pretensa neutralidade, resignando-se à forma histórica atual
de dominação. Ocorre que a Teoria Tradicional ao fixar a separação entre teoria
e prática:
[...] expulsa de seu campo de reflexão as condicionantes históricas de seu
pprio método. Se todo conhecimento produzido é, entretanto, historicamente
determinado (mutável no tempo, portanto), o é possível ignorar essas
condicionantes senão ao preço de permanecer na superfície dos fenômenos,
sem ser capaz, portanto, de conhecer por inteiro suas reais conexões na
realidade social.
70
67
REPA, 2008, p.13.
68
"Nas ciências sociais ninguém pode conservar a fria imparcialidade do sábio. As relações entre
homens não são relações necessárias derivadas da natureza das coisas; são criadas pelos homens
e podem ser modificadas por ele. A humanidade sonha sempre em modificá-las." (RIPERT, Georges.
Aspectos jurídicos do capitalismo moderno. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1947. p.12).
69
"Dessa maneira, a teoria tradicional é cega para sua função social real, a aplicação técnica do saber
sob as condições sociais existentes. Sua autonomia e critérios de objetividade são aparentes e, ao
mesmo tempo, correspondem à sua subordinação e aos interesses externos na sua aplicação nos
processos de produção e reprodução da sociedade. Enquanto o cientista não levar em conta o
papel social que cumpre sua atividade no conjunto da sociedade, ele permanecerá cego para as
condições que determinam sua própria atividade científica." (REPA, op. cit., p.12).
70
NOBRE, 2004, p.38.
30
Destarte, em síntese, o método da teoria tradicional expurga o contexto histórico
da análise científica transformando-a em uma teoria atemporal. Para combater essa
"a-historicidade", Horkheimer apresenta como primeiro princípio da teoria crítica o
comportamento crítico, o qual "[...] pretende conhecer sem abdicar da reflexão sobre
o caráter histórico do conhecimento produzido"
71
e demonstrar duas coisas: que a
produção científica tradicional é parcial ao ignorar sua função na sociedade e que
ela fica limitada à aparência criada pela lógica ilusória do capital que, ao mesmo
tempo que promete liberdade e igualdade, torna impossível a realização dessas
promessas, como havia advertido Marx. Cabe à Teoria Crítica eliminar a
parcialidade da Teoria Tradicional, dando a esta a consciência de sua limitação a fim
de superar sua função de legitimação da dominação.
A Teoria Crítica comporta-se criticamente não apenas em relação ao
conhecimento produzido sob condições capitalistas, mas também quanto à própria
realidade das condições sociais capitalistas, e é nesse momento, que aparece o segundo
princípio crítico de Horkheimer, qual seja, o de orientação para a emancipação
relativamente à dominação vigente, cuja busca, consiste em:
[...] interpretar todas as rígidas distinções em que se baseia a Teoria
Tradicional (como "conhecer", "agir", "ciência", "valor" e tantas outras) como
incios da incapacidade da concepção tradicional de compreender a realidade
social em seu todo. O método tradicional, ao tomar essas cisões como
dadas e não como produtos históricos de uma formação social, não é capaz
de explicar satisfatoriamente porque elas seriam, afinal, necessárias. A
Teoria Crítica, ao contrário, mostra que tais divisões rígidas são
características de uma sociedade dividida, ainda não emancipada.
72
Observe-se que a Teoria Crítica o pode ser confundida com a mera utopia,
pois esta, como projeto social irrealizável "[...] reforça a realidade existente por não
identificar nela as possibilidades reais da realizão almejada da justiça e da liberdade".
73
71
NOBRE, 2004, p.39.
72
Ibid., p.41.
73
REPA, 2008, p.13.
31
De acordo com a primeira geração da Teoria Crítica, também conhecida
como Escola de Frankfurt
74
, as teorias das ciências humanas o podem ser
compreendidas como cadeias dedutivas dotadas de princípios gerais, em que o
cientista é um mero observador
75
, e supor que uma separação estanque entre
"o que é" e "o que deve ser", bem como entre o objeto de estudo e o cientista sob a
alegação de que isso reflete uma pretensa neutralidade científica.
Isso porque uma teoria pode, na busca dessa suposta imparcialidade,
tornar-se "cega para sua função social real", no caso de o cientista restringir suas
explicações à mera descrição do funcionamento da sociedade num dado contexto e
realidade, sem atentar para seu fundo histórico, o que pode culminar na
subordinação dessa teoria, ainda que de forma involuntária, a interesses externos
aos processos de produção e reprodução da sociedade.
Assim, para os teóricos críticos, o cientista deve assumir seu papel social,
sob pena de resignar-se à forma histórica de dominação de seu tempo. A partir disso
é feita uma crítica à chamada Teoria Tradicional quando esta fixa a separação entre
teoria e prática.
76
Na obra "Dialética do Esclarecimento", Horkheimer e Adorno constatam que
houve uma mudança estrutural no funcionamento do capitalismo que, após as fases
"liberal" ou "concorrencial" e a "monopolista", assumiu o contorno do que os autores
chamaram de capitalismo administrado ou mundo administrado. O velho mecanismo
da autorregulação do mercado é substituído por uma forma de dominação mais
imperceptível em que o sistema econômico é controlado politicamente e burocra-
ticamente
77
, seguindo a racionalidade peculiar da burocracia. A essa racionalidade
74
De acordo com Marcos Nobre, o se pode confundir a etiqueta "Escola de Frankfurt" com a
acepção tradicional de "escola", pois esta significa "uma doutrina defendida por diversos pensadores"
e, no caso da Teoria Crítica, não se pode pretender homogeneizar e uniformizar essa que é uma
das tradições de pensamento mais ricas e complexas da história da filosofia e da teoria social,
porém, que se destacar que existem aqueles que defendem essa unidade teórica, como é o
caso de Paul-Laurent Assoun na obra "A Escola de Frankfurt", fundamentando este posicionamento
sob a alegação de que todas essas teorias utilizam os princípios de Teoria Crítica de Horkheimer.
75
REPA, 2008, p.11.
76
NOBRE, 2004, p.38.
77
Expressão utilizada aqui no sentido weberiano.
32
buroctica os autores chamaram de razão instrumental: "uma racionalidade que
pondera, calcula e ajusta os melhores meios a fins dados exteriormente ao agente"
78
.
Diante dessa razão instrumental, foi feita uma ampla investigão sobre a rao
humana, daí a relação da Teoria Crítica com a psicanálise, a partir da qual se procurou
compreender por que a racionalidade humana não alcançou a emancipação, mas
bloqueou essa possibilidade e transformou os indivíduos em engrenagens de um
mecanismo que não compreendem, porém, a ele se adaptam e se submetem sem
oferecer qualquer resistência.
Horkheimer e Adorno, na referida obra, chegam à conclusão de que a razão
instrumental reflete não apenas a forma de pensamento dominante, mas uma única
forma de racionalidade posvel no capitalismo administrado, o que os leva, no próprio
exercício crítico, à seguinte aporia
79
: "[...] se a razão instrumental é a forma única de
racionalidade no capitalismo administrado, bloqueando qualquer possibilidade real
de emancipação, em nome de que é possível criticar a racionalidade instrumental?"
Por fim, assumem conscientemente essa aporia e ressaltam que no capitalismo
administrado a possibilidade da crítica é precária, porém, não é impossível.
Portanto, deve-se atentar para o caráter histórico do conhecimento que, ao ser
transposto para o âmbito do direito, pode levar à interpretação de que as intermiveis
crises do direito são, em verdade, reflexo de uma Ciência Jurídica "viva", dinâmica,
mutável e que está em constante transformação e reformulação, assim como a
sociedade por ele regulada.
Nesses termos, a investigação das raízes históricas da ordem judica em um
dado momento histórico e em certo território, bem como das concepções jurídicas
que se apresentam como 'neutras' no direito instrumental, é necessária para que se
desvende, com o auxílio da zetética, a estrutura do poder que está encoberta.
78
NOBRE, 2004, p.51.
79
DICIONÁRIO AURÉLIO Século XXI, versão 3.0: Aporia: 1. Filos. Dificuldade de ordem racional,
que parece decorrer exclusivamente de um raciocínio ou do conteúdo dele. [Cf. antinomia (3) e
paradoxo (4).] 2. Hist. Filos. Conflito entre opiniões, contrárias e igualmente concludentes, em
resposta a uma mesma questão.
3. E. Ling. Figura pela qual o orador finge hesitar, ter vidas, na escolha de uma expressão, de
um rumo para o discurso.
* Aporias de Zenão. Filos.
1. Aporias de Zenão de Eléia (v. eleatismo) em que pela primeira vez na História se emprega o
raciocínio por absurdo (q. v.).
33
Isso porque que se procurar uma conciliação entre zetética e dogmática,
pois, ao mesmo tempo em que esta é necessária, à operacionalização do sistema
legal, aquela é necessária à crítica.
1.3 O ORDENAMENTO JURÍDICO, NORMAS, ILÍCITOS E SANÇÕES
1.3.1 Ordenamento, normas e relações jurídicas
uma relação de interdependência entre direito e sociedade uma vez que
"O Direito não tem existência em si próprio. Ele existe na sociedade."
80
, assim como
a sociedade cria e necessita do Direito como pilar da justiça e da segurança.
81
Cumpre salientar que, segundo Tercio Sampaio Ferraz Junior, a palavra
direito guardou tanto o sentido de jus, pertinente à Justiça, ligada à virtude moral,
quanto de derectum, concernente ao equilíbrio da balança, pois esse mesmo termo é
utilizado para designar o ordenamento vigente, como também para nos referirmos ao
"direito de alguém" ou simplesmente para nos referimos ao seu significado moral.
82
Herbert Lionel Adolphus Hart publicou a obra "O conceito de Direito" (The
concept of Law) em que traçou como objetivo melhor compreender direito, coerção e
moralidade como fenômenos sociais distintos, porém relacionados entre si.
83
Logo no primeiro capítulo dessa obra, ressaltou que "Poucas perguntas
concernentes à sociedade humana têm sido formuladas com tanta persistência e
respondidas por vários pensadores emo diversas, estranhas e até mesmo paradoxais
formas como a questão 'O que é direito?'."
84
80
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 24.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p.31.
81
Ibid., p.21.
82
FERRAZ JUNIOR, 1994, p.33-34.
83
HART, 1970, p.vii.
84
HART, 1970, p.01.
34
Assim, para respondê-la, Hart constatou a necessidade de conjugar três
preocupões principais, quais sejam, (1) a existência do direito implica a
obrigatoriedade, em alguma medida, de certos comportamentos sociais; (2) a
relação entre direito e moral e (3) o direito como um sistema de normas.
A primeira foi considerada por ele a característica mais proeminente e geral
que se atribui ao direito
85
. Entretanto, uma análise mais atenta dessa característica,
mesmo que restrita ao âmbito penal, leva, para Hart, a distorções e confusões entre
as concepções de obrigações legais e ordens decorrentes de ameaças.
86
Para solucionar essa distorção é necessário recorrer ao que chamou de um
dos pontos cardeais para responder à pergunta "o que é o direito": a relação entre
direito e moral.
Tanto na moral quanto no direito, a pena de morte e a arbitrariedade no uso
da violência são os exemplos mais óbvios de coincidência entre proibições morais e
legais. Porém, é na idéia de justiça, para Hart, que se forma a unidade entre Direito
e Moral, pois a lei é melhor compreendida quando vista como um braço, um ramo,
de moralidade e justiça, concebendo-se, assim, que moral faz parte do conceito de
direito (o que o caracteriza como um teórico do direito não exclusivista), cabendo
ressaltar que:
87
Essa [doutrina que aproxima Direito e Moral] é a doutrina caractestica o
apenas das teorias escolásticas do direito natural, mas de algumas teorias
legais contemporâneas que fazem a crítica do 'positivismo' legal herdado de
Austin. No entanto, também as atuais teorias que fazem essa aproximação
entre direito e moral parecem, no fim, confundir um tipo de conduta obrigatória
com outra, deixando espo insuficiente para diferenciar regras legais de regras
morais e para as divergências existentes entre essas obrigações. Isso é tão
importante quanto a similaridade e a convergência entre elas que podem
também vir a ser encontradas. Assim, a assertiva de que 'uma lei injusta
não é lei' tem o mesmo tom de exagero e de paradoxo, senão falsidade, que
a afirmação de que 'leis não são direito' ou de que 'direito constitucional não
é direito'. Isso é característico da oscilação entre extremos que faz avaar a
história das teorias legais, em que aqueles que enxergaram na proximidade
85
Ibid., p.06. "The most prominent general feature of law at all times and places is that its existence
means that certain kinds of human conduct are no longer optional, but in some sense obligatory."
86
"But attractive as this reduction of the complex phenomena of law to this simple element may
seem, it has been found, when examined closely, to be a distortion and a source of confusion even
in the case of a penal statute where an analysis in these simple terms seems most plausible. How
then do law and legal obligation differ from, and how are they related to, orders backed by threats?
This at all times has been one cardinal issue latent in the question 'What is law?'" (Ibid., p.07).
87
Id.
35
entre direito e moral nada mais que uma interferência decorrente do fato de
direito e moral compartilharem um vocabulário comum de direitos e deveres,
devem ter protestado contra isso em termos igualmente exagerados e
paradoxais.
88
A terceira preocupação, mais genérica, é a de conceber o direito como um
sistema de regras. Porém, ainda que a questão, aparentemente, seja resolvida com
certa facilidade, ela enseja novas reflexões: "o que são regras?"; "O que significa
dizer que as regras existem?"; "As cortes realmente impõem ou apenas simulam a
aplicação das regras?"
89
Ainda, há muitos tipos de regras, como, por exemplo, de etiqueta, de linguagem,
de jogos, de clubes, e que além de se originarem de formas bem diferentes, podem ter
diversas relações quanto à conduta a que se referem. Especificamente no caso do
Direito, observa Hart, que algumas regras são elaboradas pelo legislador e outras sequer
passam por um processo deliberativo; algumas demandam que as pessoas adotem
determinados comportamentos, outras, prescrevem procedimentos e formalidades.
90
De acordo com Hart, as normas que prescrevem comportamentos podem
prever condutas proibidas, podendo-se a elas cominar uma penalidade, e outras que
estabelecem requisitos a serem cumpridos para que se possa gozar de um benefício.
91
88
Tradução livre de: "This is the doctrine characteristic not only of scholastic theories of natural law
but of some contemporary legal theory which is critical of the legal 'positivism' inherited from
Austin. Yet here again theories that make this close assimilation of law to morality seem, in the
end, often to confuse one kind of obligatory conduct with another, and to leave insufficient room for
differences in kind between legal and moral rules and for divergences in their requirements. These
are at least as important as the similarity and convergence which we may also find. So the
assertion that 'an unjust law is not a law' has the same ring of exaggeration and paradox, if not
falsity, as 'statutes are not law' or 'constitutional law is not law'. It is characteristic of the oscillation
between extremes, which make up the history of legal theory, that those who have seen in the
close assimilation of law and morals nothing more than an inference from the fact that law and
morals share a common vocabulary of rights and duties, should have protested against it in terms
equally exaggerated and paradoxical." (HART, 1970, p.07).
89
Ibid., p.08.
90
Ibid., p.08-09.
91
Em Hart, como é possível observar, são trabalhadas as noções tanto de sanções negativas quanto
positivas.
36
Isso porque, segundo ele, dizer que uma regra existe significa afirmar que
um grupo de pessoas, ou a maioria delas, comporta-se de determinada maneira e de
acordo com a regra se presentes todas as circunstâncias. Mas daí advém a questão
da diferença entre uma regra social e um comportamento convergente e que pode
ser explicada, segundo Hart, linguisticamente.
O comportamento convergente pode existir sem que haja uma regra que
demande essa conduta. no caso das regras jurídicas é essencial o comando
normativo de um "dever":
No caso das regras jurídicas é muito comum que o elemento de diferença
crucial (o elemento do obrigar ou dever) consiste no fato de que desvios em
relação a certos tipos de comportamento irão provavelmente enfrentar uma
reação hostil, e que no caso das regras jurídicas consistirá em uma punição
imposta pelas autoridades. No caso daquilo que podemos chamar de meros
hábitos coletivos, como ir semanalmente ao cinema, desvios não encontram
uma punição, nem sequer uma reprovação; mas onde houver regras que
exijam certas condutas, mesmo regras não jurídicas como requerer que os
homens não utilizem chapéus e bonés em suas cabeças na igreja, algo
semelhante a uma punição poderá acompanhar um desvio. No caso das
regras jurídicas essa conseqüência é prevista, definida e organizada oficialmente,
enquanto que no caso não jurídico, em que uma reação semelhante a uma
punição é provável, ela não é organizada, nem definida.
92
Destaca o autor que é claro que a previsão de uma punição ao desrespeito
da regra jurídica é um importante aspecto do direito, mas muitas objeções a essa
característica, uma em especial, que caracteriza uma escola escandinava de teoria
do direito e que merece ser observada. Trata-se do ceticismo em que a reprovação
não se refere ao caráter obrigatório intrínseco da norma, mas ao sentimento de
compulsão que os indivíduos experimentam e que os levam a se comportar de
acordo com a norma e de agir contra aqueles que violam as regras. Entretanto,
esses sentimentos não o reconhecidos pelos indivíduos, mas são interpretados
92
Tradução livre de: "In the case of legal rules it is very often held that the crucial difference (the
element of 'must' or 'ought') consists in the fact that deviations from certain types of behaviour will
probably meet with hostile reaction, and in the case of legal rules be punished by officials. In the
case of what may be called mere group habits, like that of going weekly to the cinema, deviations
are not met with punishment or even reproof; but wherever there are rules requiring certain conduct,
even non legal rules like that requiring men to bare their heads in church, something of this sort is
likely to result from deviation. In the case of legal rules this predictable consequence is definite and
officially organized, whereas in the non-legal case, though a similar hostile reaction to deviation is
probable, this is not organized or definite in character." (HART, 1970, p.10).
37
como algo exterior, algo relativo à lógica do universo e nesse mundo de ficção, do
"dever ser", constrói-se um "governo de regras e não de homens".
93
Consequentemente, na visão de Hart, o aspecto preventivo
94
não possui
relevância quando da aplicação do direito o que é muito diferente do relevo que se
atribui ao aspecto preventivo no Direito Penal e no Direito Administrativo Sancionador
hodiernamente, principalmente a partir das já mencionadas caractesticas da sociedade
pós-industrial no item 1.1.
Assim, destaca o autor que a corrente de ceticismo majoritária na Inglaterra
e nos Estados Unidos questiona um sistema legal inteiramente ou principalmente
constitdo por regras, pois não apenas as regras são incertas, mas a interpretação que
lhes é conferida pelos julgadores pode ser não só autoritária, como final, isto é, sem
possibilidade de mudança. Questiona se a concepção de direito como essencialmente
93
"É assim se olharmos atentamente a atividade do juiz ou da autoridade quando punem as violações às
regras jurídicas (ou a atividade daquelas pessoas que reprovam ou criticam as violações às regras
não legais), veremos que o aspecto preventivo das regras está envolvido nessa atividade de uma
forma um tanto quanto inexplicável. O juiz, ao punir, utiliza a regra como seu guia e a violação da
regra como sua razão e justificativa para a punição do ofensor. Ele não visualiza a regra como uma
declaração de que ele e os outros provavelmente punirão desvios, muito embora um espectador
possa enxergar a regra justamente dessa forma. O aspecto preventivo da regra (pensado de
maneira real) é irrelevante, enquanto seu status de guia e justificativa é essencial. O mesmo é
verdade em relação às reprovações informais administradas à violação de regras não jurídicas.
Essas também não o meras reações previsíveis às violações, mas algo em que a regra se pautada
e se justifica. Desta forma dizemos que reprovamos ou punimos um homem porque ele quebrou a
regra: e não apenas porque era previsível [aspecto preventivo] que nós o reprovaríamos ou
puniríamos." Tradução livre de: "It is that if we look closely at the activity of the judge or official who
punishes deviations from legal rules (or those private persons who reprove or criticize deviations
from non-legal rules), we see that rules are involved in this activity in a way which this predictive
account leaves quite unexplained. For the judge, in punishing, takes the rule as his guide and the
breach of the rule as his reason and justification for punishing the offender. He does not look upon
the rule as a statement that he and the others are likely to punish deviations, thought a spectator
might look upon the rule in just this way. The predictive aspect of the rule (thought real enough) is
irrelevant to his purposes, whereas its status as a guide and justification is essential. The same is
true of informal reproofs administered for the breach of non-legal rules. These too are not merely
predictable reactions to deviations, but something which existence of the rule guides and is held to
justify. So we say that we reprove or punish a man because he has broken the rule: and not merely
that it was probable that we would reprove or punish him." (HART, 1970, p.11).
94
Muito embora o aspecto preventivo perfaça o objeto do segundo capítulo do trabalho, é importante
trazer aqui, a título de ilustração, a crítica feita por Alejandro Nieto (NIETO, 2008, p.31 e 34.) ao
enorme conjunto normativo em que estão previstos os ilícitos administrativos que inviabiliza ao
destinatário dessas normas conhecê-las todas, o que, evidentemente, prejudica o aspecto preventivo e
fomenta um sentimento social em que se deseja burlar a punição estatal que é vista, nesses
casos, como uma verdadeira loteria, em que alguns "azarados" são sorteados e acabam sendo
punidos. Isso porque se as regras não são previsíveis, não são passíveis de abstenção voluntária,
e, portanto, todos estão sujeitos a terem cometido algum ilícito, mesmo sem conhecimento de que
se tratava de uma conduta proibida. Destarte, nesse contexto não se opera o aspecto preventivo
da norma. Para que isso ocorra, Nieto sugere a retração desse conjunto normativo de maneira tal
que seja compatível com o aparato repressivo estatal.
38
uma questão de regras não é um grande exagero, senão um erro e afirma que,
paradoxalmente, os diplomas legais são uma fonte de direito e o uma parte, uma
parcela desse direito.
95
Porém, ao mesmo tempo, é nessa incerteza e abertura das regras que se
constrói a dogmática, como exposto anteriormente com apoio na obra de Tércio
Sampaio Ferraz Junior.
Aliás, trazer uma concepção, uma noção, uma definição
96
e um conceito de
direito, ainda que apenas verbal, é uma tarefa extremamente complexa e que tem
função dupla: uma que é a de delimitar e precisar seu significado, outra é a de
demonstrar quais o os elementos que podem ser designados por essa mesma
palavra, consoante o próprio Hart pontua:
Simultaneamente confere um código ou fórmula que traduz a palavra em
outros termos melhor compreendidos e localiza o tipo de coisa em relação à
qual a palavra é utilizada para se referir, indicando a característica que é
compartilhada, que é comum a uma maior família de coisas, bem como a
que a diferencia de outras coisas ainda que da mesma falia. Na busca e ao
se chegar a essas definições estamos 'não apenas olhando para palavras...
mas também para as realidades em relação às quais utilizamos as palavras
para nos referir. Estamos usando um conhecimento aguçado das palavras
para precisar nossa percepção do fenômeno.'
97
95
Tradução livre de: "Scepticism about the character of legal rules has not, however, always taken
the extreme form of condemning the very notion of a binding rule as confused or fictitious. Instead,
the most prevalent form of scepticism in England an the United States invites us to reconsider the
view that a legal system wholly, or even primarily, consists of rules." E "To cap the tale sceptics
remind us that not only are the rules uncertain, but the court's interpretation of them may be not
only authoritative but final. In view of all this, is not the conception of law as essentially a matter of
rules a gross exaggeration if not a mistake? Such thoughts lead to the paradoxical denial which we
have already cited: 'Statutes are sources of law, not part of the law itself.'" (HART, 1970, p.11-12 e
13, respectivamente).
96
"Definição, como sugere a palavra, é primeiramente uma questão de delimitar ou distinguir entre
uma coisa e outra, o que é marcado, na linguagem, pela utilização de palavras distintas para
designá-las. A necessidade dessa delimitação é experimentada por aqueles que estão à vontade
com o uso comum da palavra, porém, não podem afirmar ou explicar as distinções que, eles
sentem, que divide um tipo de coisa de outra." Tradução livre de "Definition, as the word suggests,
is primarily a matter of drawing lines or distinguishing between one kind of thing from another,
which language marks off bya a separate word. The need for such a drawing of lines is often felt by
those who are perfectly at home with the day-to-day use of the word in question, but cannot state
or explain the distinctions which, they sense, divides one kind of thing from another." (Ibid., p.13).
97
Tradução livre de: "It simultaneously provides a code or formula translating the word into other
well-understood terms and locates for us the kind of thing to which the word is used to refer, by
indicating the features which it shares in common with a wider family of things and those which
mark it off from others of that same family. In searching for and finding such definitions we 'are
looking not merely at wordsbut also at the realities we use words to talk about. We are using a
sharpened awareness of words to sharpen our perception of the phenomena.'" (Ibid., p.14).
39
Feitas essas considerações sobre a problemática da definição, pode-se
trazer a lume que a palavra direito pode designar, também, ordenamento jurídico, o
qual pode ser concebido como um complexo de normas jurídicas que estão
relacionadas entre si, entretanto, Norberto Bobbio afirma que "[...] o Direito não é
norma, mas um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que uma norma
jurídica o se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais
forma um sistema normativo."
98
,
99
Ao tratar de normas, é imperativo que se estabela a diferença entre normas,
regras e princípios. Dessa forma, considera-se para os fins deste trabalho a concepção
de Alexy em que a norma é o nero e os princípios e as regras, espécies de normas,
sendo necessário o estudo dessa classificação para aclarar a utilizão desses termos.
1.3.2 Normas, regras e princípios
Para ilustrar melhor a questão da divisão entre normas, regras e princípios,
observe-se o entendimento de José Afonso da Silva acerca do tema:
quem conceba regras e princípios como espécies de norma, de modo
que a distinção entre regras e princípios constitui uma distinção entre duas
espécies de normas.
100
A compreensão dessa doutrina exige conceituação
precisa de normas e regras, inclusive para estabelecer a distinção entre
ambas, o que os expositores da doutrina não têm feito, deixando assim
obscuro seu ensinamento.
101
98
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite
dos Santos. 6.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995. p.21.
99
O autor menciona que esse foi o grande mérito da Teoria do Direito como instituição e que tem
como principais representantes o italiano Santi Romano (1875-1947) e Maurice Hauriou (1856-
1929), na França. Destaca Bobbio que o italiano foi o pioneiro dessa concepção com a obra
"L'Ordinamento Giuridico" – O Ordenamento Jurídico – cuja primeira edição data de 1917.
100
Contudo, Canotilho numa obra escrita em parceria com Vital Moreira, com edição do mesmo ano, a
doutrina é diversa. Nela se afirma que a norma se distingue do princípio porque contem uma regra,
instrução, ou imposição imediatamente vinculante para certo tipo de questões. Vale dizer, então, que a
distinção e feita entre princípios e normas, e estas diferem daqueles porque contêm uma regra.
101
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23.ed. São Paulo: Malheiros,
2004. p.92.
40
Tendo em vista que o objetivo do presente trabalho não se coaduna com a
apresentação dessa discussão doutrinária, a concepção que apresenta a norma
como gênero e os princípios e regras como suas espécies será a acolhida, sendo
importante, ainda, trazer a distinção entre princípios e regras.
Sobre o assunto, Humberto Bergmann Ávila infere que a definão de princípios
jurídicos e sua distinção ante as regras dependerá do critério distintivo empregado,
do fundamento teórico utilizado e da finalidade para qual são realizadas.
Assim sendo, afirma que os princípios são instrumentos analíticos abstratos,
ou seja, têm sua definição formulada linguisticamente o que culmina na dificuldade de
se estabelecer apenas uma definição do que seria um princípio, como bem acentua
Jo Afonso da Silva em sua obra. Portanto, neste mote, deve-se acatar o ensinamento
de Riccardo Guastini, segundo o qual não se deve buscar uma definição unitária, mas
sim, num primeiro momento, deve-se aceitar que alguns autores utilizam, algumas vezes,
a palavra com significados distintos e, em segundo lugar, compreender que o termo
princípio pode ser empregado em relação a vários fenômenos e não necessariamente
a um só.
102
Ávila faz uma importante observação de que as definições de Josef Esser,
Ernst Forsthoff, Hans Wolff, Otto Bachof, Otto Stober e Karl Larenz procuram distinguir
princípios de regras com base em dois critérios: (1) grau de abstração e generalidade
da prescrição normativa e (2) o fundamento de validade. Com relação ao primeiro,
verifica-se que os princípios são dirigidos a um número indeterminado de pessoas e
circunstâncias, enquanto as regras seriam menos gerais e conteriam mais elementos
concretos quanto à conduta, permitindo a estruturação de uma hipótese e de uma
consequência; e quanto ao segundo, a distinção se porque os princípios
decorrem da noção de Estado de Direito, ao passo que as regras são dedutíveis dos
textos normativos.
103
Para Boulanger a diferença entre princípio e regra é tanto de importância,
quanto de natureza. A generalidade da regra jurídica não é a mesma do princípio,
pois aquela é geral e estabelecida para um indeterminado número de atos e fatos,
102
ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de
proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.215, p.154, jan./mar. 1999.
103
Ibid., p.155-156.
41
editada para abranger uma situação jurídica determinada. Já o princípio, ao contrário,
é geral porque comporta uma série indefinida de aplicações.
104
Na Teoria Normativa-Material Robert Alexy instituiu a distinção entre regras
e princípios. Conjuga regras e princípios como duas modalidades pertencentes ao
conceito de norma, porquanto ambos se formulam com a ajuda de expressões
dnticas
105
fundamentais como mandamento, permissão e proibição. Ambos constituem
fundamentos para juízos concretos de dever, embora de espécies muito diferentes.
Alexy desenvolveu ts teorias acerca da distião entre regras e princípios, entendendo
como a mais correta aquela que estabelece um critério gradualista-quantitativo para
diferenciá-los, afirmando que entre essas duas espécies de normas não impera
apenas a distinção de grau, mas também a de qualidade. O ponto determinante do
referido critério, entendidos os princípios como "mandamentos de otimização"
(Optimierungsgebot), é o reconhecimento de que são normas.
106
As normas jurídicas regulam relações jurídicas, as quais se mostram como
outro elemento central de reflexão.
Uma relação não é naturalmente jurídica, mas pode vir a ser considerada
juridicamente relevante no momento em que ela passa a ser regulada e prevista em
uma regra legal:
[...] não se pode determinar se uma relação é jurídica com base nos interesses
em jogo; pode-se determiná-la apenas com base no fato de ser ou não
regulada por uma norma jurídica. O problema da caracterização do direito
não reside sobre o plano da relação; se encontra somente sobre o plano
das normas que regulam a relação. Em outras palavras: dado um vínculo de
interdependência entre relação jurídica e norma jurídica, nós não diríamos
que uma norma é jurídica porque regula uma relação jurídica, mas sim que
uma relação é jurídica porque é regulada por uma norma jurídica.
104
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13.ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p.267.
105
Segundo o Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI, versão 3.0 de novembro de 1999, o
verbete refere-se à "deontologia", do grego "déontos", 'o que é obrigatório, necessário', + -logia.]
1. O estudo dos princípios, fundamentos e sistemas de moral.
2. Tratado dos deveres.
106
BONAVIDES, op. cit., p.278.
42
Não existe, na natureza, ou melhor, no campo das relações humanas, uma
relação que seja por si mesma, isto é, ratione materiae, jurídica: há relações
econômicas, sociais, morais, culturais, religiosas, relações de amizade,
indiferença, inimizade, relações de coordenação, de subordinação, de
integração. Mas nenhuma dessas relações é naturalmente jurídica. Relação
jurídica é aquela que, qualquer que seja o seu conteúdo, é tomada em
consideração por uma norma jurídica, é subsumida por um ordenamento
jurídico, é qualificada por uma ou mais normas pertencentes a um
ordenamento jurídico.
107
Portanto, compreendido o direito como um conjunto de normas, as quais
estão relacionadas entre si e que, ao se referirem a certas relações, estas passam a
ser consideradas juridicamente relevantes e, assim, passam a ser chamadas de
relações jurídicas, mostra-se necessário para o estudo das infrações administrativas
tratar, mais especificamente, da questão normativa naquilo que diz respeito às normas
de condutas.
1.3.3 Normas de conduta e de estrutura, regras primárias e secundárias: o Ilícito
Para facilitar a compreensão da estrutura e das características dos elementos
nucleares do ordenamento jurídico, as normas jurídicas, principalmente naquilo que
diz respeito às infrações administrativas, serão apresentadas as normas de estrutura
e de conduta e, em seguida, as normas primárias e secundárias.
No direito, as normas de estrutura dizem respeito à criação, alteração e à
dinâmica das próprias normas jurídicas. As normas de conduta, criadas de acordo
com as formalidades estabelecidas pelas normas de estrutura, têm por objeto a
regulamentão das condutas humanas, dizendo o que "deve ser". Portanto, observa
Rafael Munhoz de Mello que "[...] a norma de conduta pode tornar um determinado
comportamento (i) proibido, (ii) permitido ou (iii) obrigatório", entretanto, essa
escolha é efetuada pela pessoa competente para estabelecer as normas de
107
BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Bauru: Edipro, 2001. p.43-44.
43
conduta, de acordo com as disposições constantes das normas de estrutura, em
geral, o Poder Legislativo.
108
De acordo com o critério sintático, concernente à relevância das normas,
estas podem ser dividas entre primárias e secundárias:
Quanto aos cririos sintáticos, podemos classificar as normas pela relevância,
pela subordinação, pela estrutura. Quanto à relevância falamos em normas
primárias e secundárias. Primitivamente esta última distinção servia para
avaliar a importância das normas: as pririas eram como que superiores, pelo
seu valor, às secundárias. Assim se dizia que eram primárias as normas que
estabeleciam um preceito para a ação, sendo secundárias as que previam a
sanção. Kelsen, do seu ponto de vista norma jurídica é a prescrição de
uma sanção a um comportamento inverte o critério e chama, em suas
primeiras obras, a norma sobre a sanção de primária e a norma que contém
o mandamento de secundária. Atualmente a avaliação da importância cedeu
lugar à mera relação inclusiva: se uma norma tem por objeto outra norma,
ela é secundária; se tem por objeto a própria ação, é primária. Assim, normas
secundárias são normas sobre normas.
109
Hart também utiliza a divisão entre normas primárias e secundárias, porém,
com uma acepção um pouco diferente.
As primárias, para Hart, também preveem deveres. As secundárias
subdividem-se entre normas de câmbio, de adjudicação e de reconhecimento, e
conferem poderes ao mesmo tempo em que solucionam o problema de um conjunto
normativo estático, ineficiente e incerto, que seria o resultado de um ordenamento
formado apenas por normas primárias.
110
,
111
108
MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador:
as sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. o Paulo: Malheiros, 2008. p.35.
109
FERRAZ JUNIOR, 1994, p.125.
110
Id.
111
verdade que a idéia de regra não é, de forma alguma, simples: como foi visto no Capítulo III a
necessidade de que, se formos fazer justiça à complexidade do sistema jurídico, diferenciar dois
diferentes tipos de regras que estão entre si relacionadas. Nas regras que podem ser consideradas do
tipo básico ou primário, requer-se que as pessoas executem ou abstenham-se de certas ações,
independente do fato de essas pessoas quererem ou não agir dessa forma. Regras do outro tipo
são, em um sentido, parasitárias ou secundárias em relação ao primeiro tipo de regra; [...] Regras
do primeiro tipo impõem deveres, regras do segundo tipo conferem poderes, públicos ou privados.
Regras do primeiro tipo referem-se a ações que envolvem movimentos físicos ou mudanças;
regras do segundo tipo fornecem [...] a criação ou variação de deveres ou obrigações." Tradução
livre de "It is true that the idea of a rule is by no means a simple one: we have already seen in
Chapter III the need, if we are to do justice to the complexity of a legal system, to discriminate
between two different thought related types. Under rules of the one type, which may well be
44
Essa terminologia (normas primárias e secundárias) é criticada por alguns
autores porque contém certa carga valorativa.
112
,
113
A partir disso, pode-se dizer que as regras punitivas materiais, sejam as de
Direito Penal ou as de Direito Administrativo Sancionador, são regras de conduta
complexas, isto é, formadas ao menos usualmente por um preceito primário, o
qual estabelece uma obrigação ou uma abstenção em que se reflete o conteúdo da
norma que tutela determinado interesse que é, então, elevado à categoria de bem
jurídico
114
e, por um preceito secundário, em que se estabelece a punição que será
infligida àquele que violar o preceito primário.
considered the basic or primary type, human beings are required to do or abstain from certain
actions, whether they wish to or not. Rules of the other type are in a sense parasitic upon or
secondary to the first; [...]. Rules of the first type impose duties; rules of the second type confer
powers, public or private. Rules of the first type concern actions involving physical movement or
changes; rules of the second type provide [...] to the creation or variation of duties or obligations."
(HART, 1970, p.78-79).
112
"Há quem prefira falar e normas de competência (as que estabelecem poderes e procedimentos)
e normas de conduta (as que estabelecem obrigações), como é o caso de Alf Ross (1970:32).
Outros preferem falar em normas de organização e normas de conduta (cf. Miguel Reale,
1974:105). De qualquer forma, a distinção não é rigorosa e mereceu de Bobbio (1977) um ensaio
ao qual remetemos o leitor."
(FERRAZ JUNIOR, 1994, p.125).
113
Aqui, utilizo o mesmo recurso de Tercio Sampaio Ferraz Junior e faço referência à obra de
Norberto Bobbio: Dalla struttura Allá funzione. Milão: Edizione di Comunitá, 1977.
114
O bem jurídico é inserido aqui porque se trata de uma construção teórica ainda necessária, como
aponta Juarez Cirino dos Santos: "Na verdade, o bem jurídico é critério de criminalização porque
constitui objeto de proteção penal – afinal, existe um núcleo duro de bens jurídicos individuais como
a vida, o corpo, a liberdade e a sexualidade humanas, que configuram a base de um Direito Penal
mínimo e dependem de proteção penal, ainda uma resposta legítima para certos problemas
sociais. Assim, evitar a criminalização da vontade do poder, ou das expectativas normativas,
parece insuficiente para rejeitar o bem jurídico como objeto de proteção penal; além disso,
admitir a proteção de bens jurídicos pela criminalização não exclui a necessidade de relevância
do bem jurídico para constituir objeto de proteção penal sempre subsidiária e fragmentária –,
nem implica incluir todos os bens jurídicos como objeto de proteção penal. Mas ainda, se a fonte
exclusiva de bens jurídicos selecionados para proteção é a Constituição da República o
fundamento político do moderno Estado Democrático de Direito -, então a criminalização da
vontade do poder ou de meras expectativas normativas parece remota; ao contrário, a rejeição do
bem jurídico como objeto de proteção fragmentária e subsidiária da criminalização poderia criar
um vazio legal preenchível pela vontade do poder, ou pelas expectativas normativas como objetos
de criminalização sem falar na incômoda proximidade com a teoria sistêmica de JAKOBS, que
despreza o bem jurídico tanto como objeto de proteção, quanto como critério de criminalização" E
"Na atualidade, juristas criminólogos críticos propõem reservar o conceito de bem jurídico para os
direitos e garantias individuais do ser humano, excluindo a criminalização (a) da vontade do
poder, (b) de papéis sistêmicos, (c) do risco abstrato, (d) ou dos interesses difusos característicos
de complexos funcionais como a economia,a ecologia, o sistema tributário etc. Essa posição
reafirma os princípios do Direito Penal do fato, como lesão do bem jurídico, e da culpabilidade,
como limitação do poder de punir, excluindo a estabilização das expectativas normativas das
concepções autoritárias do funcionalismo de JAKOBS, por exemplo. Desse ponto de vista, consideradas
todas as limitações e críticas, o conceito de bem jurídico, como critério de criminalização e como
objeto de proteção, parece constituir garantia política irrenunciável do Direito Penal do estado
45
Para facilitar a visualização dessa técnica legislativa, segue a transcrição do
exemplo que consta na obra de Zaffaroni e Pierangelli quanto à tutela da vida, em
que se esclarece que tanto a norma quanto o bem jurídico passam a ser
reconhecidos a partir da lei, porém, dela não fazem parte:
[...] o legislador encontra-se diante do ente 'vida humana' e tem interesse
em tutelá-la, porque a valora (a considera positiva, boa, necessária, digna
de respeito etc.). Este interesse jurídico em tutelar o ente 'vida humana'
deve ser traduzido em uma norma; quando se pergunta 'como tutelá-lo?', a
única resposta é: "proibido matar". Esta é a norma proibitiva 'não matarás'.
Esta norma deve ser expressa em leis e, com isto, a vida humana se
revelará como um bem jurídico. Assim, a vida humana é um bem jurídico à
luz das disposições constitucionais, civis (art.948 do CC/2002) etc. Sem
embargo, pode ser que não se contente com esta manifestação da norma e
requeira também uma tutela penal, ao menos para certas formas de lesão
ao bem. É aí, então, quando o legislador elabora o tipo penal que o bem
jurídico vida humana passa a ser um bem jurídico-penalmente tutelado
(art. 121 do CP).
Dessarte, o legislador vai do ente à norma e desta ao tipo. Nós, ao
interpretarmos a lei penal a fim de determinar o seu alcance, devemos seguir
o caminho inverso: da lei (tipo legal: 'Matar alguém ... pena') à norma ('não
matarás') e através da norma conhecemos o ente que afinal será bem
jurídico (a vida humana).
O tipo pertence à lei, mas nem a norma e nem o bem jurídico pertencem à
lei, mas são conhecidos através do tipo legal e limitam o seu alcance. Assim
como uma área geográfica pode estar limitada por um rio a ela pertença, a
norma e o bem jurídico delimitam o proibido pela lei e são conhecidos através
dela, mas a ela não pertencem.
115
Assim, é importante anotar que a divisão entre normas primárias e secundárias
é relevante na medida em que é justamente no preceito primário que encontramos o
cerne daquilo que se conhece por ilícito; noção esta que é central para o desenvol-
vimento deste trabalho.
O ilícito é uma categoria jurídica e um conceito lógico-jurídico, e tem por
elementos: "[...] ato ou omissão humanos, a infringência à norma legal
116
do ramo
Democtico de Direito, nas formações sociais estruturadas sobre a relação capital/trabalho assalariado,
em que se articulam as classes sociais fundamentais do neoliberalismo contemponeo." (SANTOS,
Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3.ed. rev. ampl. Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2008b.
p.15-16 e 17-18, respectivamente).
115
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro:
parte geral. 8.ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. v.1. p.393.
116
Ver, sobre a infração da norma como um recurso estilístico: BITTENCOURT, Terezinha Maria da
Fonseca Passos. A infração da norma: um recurso estilístico. Niteroi, RJ: [s.n.], 1991.
46
considerado, o dano e a responsabilidade; em suma, alguém causando desequibrio na
ordem natural-legal da sociedade e, pelo seu restabelecimento, devendo responder."
117
É uma categoria jurídica
118
, como bem anotado por Edmir Netto de Araújo
119
e constatado também por Daniel Ferreira
120
– porque se trata de uma "[...] expressão
adotada para designar as formas puras de conceituação jurídica, a partir das quais é
possível adicionar os elementos peculiares e específicos, para situá-las em qualquer
dos ramos em que o Direito se divide, e integrá-las nas disciplinas correspondentes."
121
Ademais, é um conceito lógico-jurídico porque se mostra comum aos diversos
ordenamentos jurídicos do mundo e, portanto, universal e que independe do tempo e
do espaço, como ensinou Geraldo Ataliba.
122
,
123
O ilícito, portanto, é gênero, do qual fazem parte suas várias espécies, como
o penal, o administrativo, o civil, o tributário etc.
124
O icito administrativo é, portanto, uma espécie do gênero ilícito. Isso explica,
em alguma medida, a dificuldade em diferenciar, por exemplo, o ilícito penal do
administrativo
125
, bem como as construções teóricas que se baseiam na possibilidade
de aproveitamento de estudos desenvolvidos em outros ramos jurídicos sobre suas
respectivas espécies de ilícitos para compreender e auxiliar no desenvolvimento de
117
ARAÚJO, Edmir Netto de. O ilícito administrativo e seu processo. São Paulo: RT, 1994. p.23.
118
Sobre as categorias jurídicas, conferir o artigo: CRETELLA JUNIOR, José. As categorias jurídicas
e o direito blico. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ano 62,
n.2, p.214, 1967.
119
Algumas obras, por seus tulos, parecem abordar as infrações administrativas de uma forma ampla,
porém, a partir dos conceitos que trabalham, acabam por restringir as infrações administrativas a
infrações disciplinares, como é o caso de Edmir Netto de Araújo (op. cit.).
120
FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infrão administrativa a partir da constituição federal de
1988. Belo Horizonte: Forum, 2009. p.77.
121
ARAÚJO, op. cit., p.22.
122
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p.59.
123
MELLO, R. M., 2008, p.43.
124
ARAÚJO, op. cit., p.24.
125
Isso gerou na doutrina várias discussões sobre os critérios de diferenciação dos ilícitos penais e
administrativos e que são objeto de análise no capítulo 3, inclusive, trabalhos que se dedicaram
exclusivamente a esta tarefa como a obra base para a análise dessa questão neste trabalho que
é a de Fernando Navarro Cardoso (Infracción administrativa y delito: límites a la intervención
del derecho penal. Madrid: Editorial Colex, 2001).
47
uma teoria da infração administrativa, em especial do Direito Penal. Exemplo de tal
afirmação é o entendimento de Daniel Ferreira que em sua obra fez um paralelo com
a Teoria do Delito e o conceito estratificado de crime.
126
Para concluir a idéia sobre o ilícito, cumpre trazer à colação o conceito de
infração desenvolvido por Luciano da Silva Amaro:
[...] infração é um comportamento qualquer, por ação ou omissão, contrário
a uma norma jurídica. É uma conduta omissiva ou comissiva que infringe
um comando legal.
Essa infração supõe uma reação do Direito, porque o Direito não se queda
inerte diante da agressão sofrida. O Direito reage, e o faz através de remédios
legais, que por sua vez apresentam um espectro bastante grande. A reação
do Direito vai desde a reposição, ou reparação, da situação de quem sofreu
a lesão, até uma sanção, um castigo, que se aplica ao infrator.
127
Destaque-se que no Direito Administrativo Sancionador
128
uma constante
tensão entre os doutrinadores sobre a relação entre o Direito Penal e o direito admi-
nistrativo. aqueles que defendem a transposição das construções garantistas
penais, alguns que institutos penais devem ser adaptados – matizados e aplicados
ao Direito Administrativo Sancionador. Outros, por seu turno, consideram impossível
adaptar os institutos penais, devendo-se elaborar uma construção própria, com base
no direito público, de origem eminentemente administrativa.
Essa aproximação também se justifica sob o argumento
129
de que as sanções
administrativa, penal e civil, são consideradas ontologicamente idênticas, o havendo
126
"Este livro visa a oferecer um modelo de Teoria Geral da Infrão Administrativa a partir da Constituição
Federal de 1988: um plexo teórico de petrechos aptos a demonstrar a presença ou ausência do
ilícito administrativo in concreto." E "Neste contexto, o ensaio não se fez inédito, mas novidadeiro
em relação à pretensão deliberadamente adotada de se firmar nos sólidos argumentos e
experimentos da doutrina penal [...]" (FERREIRA, 2009, p.19).
127
AMARO, Luciano da Silva. Infrações tributárias. Revista de Direito Tributário, São Paulo, n.67,
p.25, 1997.
128
O Direito Administrativo Sancionador dedica-se ao estudo dos ilícitos administrativos e é a
vertente sancionadora da administração pública.
129
Um deles é Rogério Greco: "Temos ilícitos de natureza penal, civil, administrativa, etc. Será que existe
uma diferença entre eles? Ou, numa divisão somente entre ilícitos penais e não penais, podemos
vislumbrar alguma diferença? Na verdade, não diferença alguma. Ocorre que o ilícito penal,
justamente pelo fato de o Direito Penal proteger os bens mais importantes e necessários à vida em
sociedade, é mais grave. Também aqui o critério de distinção é político. O que hoje é um ilícito
civil, amanhã poderá vir a ser um ilícito penal. O legislador, sempre observando os princípios que
norteiam o Direito Penal, fará a seleção dos bens que a este interessam mais de perto, deixando
48
diferença substancial entre os ilícitos penais, administrativos, civis, tributários etc.,
urgindo, assim, o tratamento das sanções judicas.
130
1.3.4 As sanções jurídicas positivas e negativas no ordenamento
As sanções são a consequência jurídica atribuída pelo ordenamento jurídico
a uma conduta legalmente regulada, podendo ser a sanção, inclusive, um critério
para a definição do caráter jurídico de uma norma, conforme ensina Bobbio:
O critério é de clara enunciação: se uma norma prescreve o que deve ser e
se o que deve ser não corresponde ao que é necessariamente, quando a
ação real não corresponde à prevista, a norma é violada. Essa violação, que
pode ser uma inobservância ou uma inexecução, exige uma resposta.
Assim, a sanção é definida como um expediente através do qual se busca,
num sistema normativo, salvaguardar a lei da erosão das ações contrárias.
Ou, mais brevemente, a sanção é a resposta à violação da norma, sendo
que a sanção 'jurídica' é a resposta externa e institucionalizada.
131
Porém, registre-se neste ponto a observação de Daniel Ferreira, apoiado na
doutrina de Lourival Vilanova, de que nem sempre uma necessária sanção como
consequência de um ilícito:
Segue, aqui, uma advertência: Vilanova enfrentou e resolveu um problema, o
da falsa e sempre necessária sanção como resposta ao cometimento do
ilícito. Como muito bem observado, nem sempre a conseqüência lógico-
jurídica do genérico descumprimento da norma é a sanção. Pense-se, por
exemplo, numa cláusula contratual descumprida. O prejudicado poderá
deixar de buscar junto ao Estado-Juiz uma intervenção voltada à imposição da
a proteção dos demais a cargo dos outros ramos do Direito." e acrescenta "A diferença entre icito
penal e o civil, obviamente observada a gravidade de um e de outro, encontra-se também na sua
conseqüência. Ao ilícito penal o legislador reservou uma pena, que pode até chegar ao extremo de
privar o agente de sua liberdade, tendo destinado ao ilícito civil, contudo, como sua conseqüência,
a obrigação de reparar o dano, ou outras sanções de natureza civil." (GRECO, Rogério. Curso de
direito penal: parte geral. 11.ed. rev. amp. atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. v.1. p.141).
130
No mesmo sentido Rafael Munhoz de Mello e Luciano da Silva Amaro: "Não diferea ontológica
entre sanção civil, sanção penal e sanção administrativa. Seja na esfera do direito civil, seja na
esfera do direito penal, seja, ainda, na esfera do direito administrativo, sanção jurídica é sempre a
conseqüência negativa atribuída à prática de um ilícito." (MELLO, R. M., 2008, p.255).
131
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. O pensamento jurídico de Norberto Bobbio. In: BOBBIO,
Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos
Santos. 6.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995. p.09.
49
sanção pactuada e poderá fa-lo postulando a judicial coerção no sentido do
cogente cumprimento da inadimplida obrigação (quem sabe relativamente a
uma obrigação de fazer: entregar a coisa).
132
Pode-se afirmar, diante disso, que as sanções jurídicas, de acordo com
Norberto Bobbio: [...] são postas pelo ordenamento jurídico 'para obter' um dado
comportamento humano que o legislador considera desejável."
133
, pois:
[...] a reflexão sobre a sanção nos mostra que, se de um lado é possível
manter, com certeza, a teoria jurídica dentro das fronteiras do normativo e
das relações de validade, uma vez que as normas não valem por causa da
sanção, de outro lado, a noção de sanção nos obriga a explicar o fenômeno
da força e, em conseqüência, a enfrentar a questão da dimensão fática dentro
da teoria jurídica.
134
Mas nem sempre foi conferido esse enfoque à sanção positiva, isto é,
aquelas consequências jurídicas que o possuem o sentido de punição, mas que
são recompensas.
Em Jhering
135
e Kelsen conferia-se maior relevo às saões negativas atribuídas
ao infrator da lei , o que se explica, de acordo com Bobbio, pela predominância da
forma repressiva do Estado no século
XIX
época do Estado de Polícia, e isso o
significa, em absoluto, que as sanções positivas não fossem conhecidas.
136
O Estado atual o mais exerce apenas uma função de proteção e represo,
pois seu papel foi ampliado de forma que hoje se configura como "produtor de servos
de consumo social, regulamentador da economia e produtor de mercadorias"
137
,
desenvolvendo, para dar sustentáculo a todas essas atribuições, um complexo sistema
132
FERREIRA, 2009, p.33, nota de rodapé 23.
133
BOBBIO, Norberto. Dalla struttura alla funzione. Milão, 1977. p.71 apud FERRAZ JUNIOR, 1995. p.11.
134
FERRAZ JUNIOR, 1995, p.10-11.
135
A sanção negativa em Jhering reproduzia a "[...] distinção hegeliana entre sociedade civil e Estado e
a cisão entre interesses econômicos e a de interesses políticos, entre a condição de burguês e a de
cidadão, típica da sociedade industrial do século passado. Em princípio, nessa concepção, o Estado
assumia a função de custodiador da ordem pública e o Direito se resumia, particularmente, em
normas negativas (de proibição), com prevalência obvia das sanções negativas." (Ibid., p.11-12).
136
Ibid., p.11.
137
Ibid., p.12.
50
tanto de sua organização estrutural como de incentivos. E, nesse contexto, uma teoria
jurídica da sanção restrita às sanções negativas mostra-se extremamente limitada.
138
Bobbio, brilhante no desenvolvimento anatico da queso das saões judicas,
justamente com o foco nessas novas funções estatais, chama a ateão para as técnicas
tanto de encorajamento quanto de desencorajamento de condutas
139
, seja por meio
de medidas diretas, que visam conformar as condutas sociais com os comandos
normativos, seja por meio das indiretas, que dificultam os comportamentos indesejados.
O diferente relevo conferido pelo jurista italiano às sanções altera a abordagem
do tema na Ciência do Direito, pois esta não mais poderá limitar-se ao estudo e à
análise da saão negativa e dos conceitos de obrigação e delito, devendo-se também
enxergá-la como uma 'promessa'.
140
Assim, adota-se, para fins deste estudo, o conceito de sanções jurídicas de
Norberto Bobbio, pois, em que pese a crítica de Tercio Sampaio Ferraz Junior
141
,
trata-se da melhor noção diante das transformações da sociedade moderna, visto
que o reforço da ótica promocional do Direito a partir das sanções positivas que
vêm crescendo e modificando a forma de controle social, como mencionou em sua
138
"Ora, nesse contexto, uma teoria jurídica da sanção, limitada ao papel das sanções negativas e, pois,
ignorando o papel assistencial, regulador e empresarial do Estado, estaria destinada a fechar-se
num limbo, entendendo mais, porque entendendo limitadamente, a relação entre o Direito, o
Estado e a sociedade." (FERRAZ JUNIOR, 1995, p.12).
139
Para saber mais sobre os reflexos desse tipo de abordagem no comportamento humano,
recomenda-se a leitura das obras behavioristas ou comportamentalistas, em especial, de autoria
do alemão Burrhus F. Skinner.
140
FERRAZ JUNIOR, op. cit., p.13-14.
141
Assim, por exemplo, Bobbio observa que, no uso de sanções positivas, como se trata de comportamentos
'permitidos', o agente é 'livre' para fazer, isto é, é livre para valer-se de sua própria liberdade. A meu
ver, isso cria a impressão de que, no uso das sanções positivas, o agente sancionador restringe
sua própria força, uma vez que o ameaça, mas encoraja; 'embora', ao que parece, aqui se
colocasse [sic] a importante questão de se saber se, no caso das técnicas de encorajamento, 'a
autonomia da vontade não estaria sendo sutilmente escamoteada', implicando o reconhecimento
de que o Estado com função promocional desenvolve formas de poder ainda mais amplas que o
Estado protetor. Isto é, ao prometer, via subsídios, incentivos e isenções, ele substitui, como disse, o
mercado e a sociedade no modo de 'controlar' (no sentido amplo da palavra) o comportamento."
(Ibid., p.14).
51
obra Gisele Mascarelli Salgado
142
contrastam com as sanções negativas e o papel
coercitivo do Direito, muito marcantes na nossa sociedade, principalmente desde o
período do Estado de Polícia.
Portanto, tendo em vista que a noção de sanção exige, principalmente por
conta das sanções negativas, uma explicação sobre a coação, há que se estabelecer
a relação e os limites entre coação e sanção.
1.3.5 Coação e sanção
De acordo com Sebastião Cruz, o direito está ligado a vários símbolos e dentre
eles, um dos mais emblemáticos é a balaa com dois pratos, assim como a espada.
143
A deusa grega Diké, filha de Zeus e Themis, com os olhos bem abertos o
que representava a sapiência e a prudência como um equilíbrio entre a abstração e
a realidade –, segurava a balança na mão esquerda e munia-se de uma espada em
sua mão direita, pois, assim, mostra-se atenta aos fatos e à realidade, declarava o
justo quando os pratos estavam em equilíbrio, utilizando-se, por meio da espada, da
força necessária para executar o direito (iudicare).
144
142
"Há uma constante tentativa de superação das teorias do Direito, para adaptá-las as modificações
da sociedade moderna. Uma dessas modificações foi o que levou Bobbio a pensar em um outro
modo de pensar o Direito, através das sanções positivas e da função promocional do Direito. Esse
conceito de sanção positiva o era largamente utilizado, apesar de existir em jusfilósofos antes
de Bobbio. O Direito que era visto como primordialmente coercitivo ganha também um papel de
promover comportamentos.
Esse crescimento das sanções positivas decorre, segundo Bobbio, de uma nova posição do Estado,
que aprova leis que incentivam alguns tipos de conduta. Muda-se a forma de controle social, que
ocorre antes da realização da conduta. A hierarquia das fontes do Direito, estruturada a partir de
um escalonamento, passa a ter menos relevância e isso dá força a fontes que eram antes
consideradas menores, como os contratos. O poder econômico ganha relevância e começa a ser
utilizado nas normas, incentivando comportamentos. O sujeito da norma passa a atuar diretamente e
inverte-se a relação dever/Direito nas normas com sanção positiva. A validade da norma que era
o critério utilizado pelo positivismo jurídico, perde cada vez mais força para o critério da eficácia,
que não é um critério facilmente verificável pela lógica, mas que contempla uma maior complexidade."
(SALGADO, Gisele Mascarelli. Sanção na teoria do direito de Norberto Bobbio. 2008. Tese
(Doutorado em Filosofia) - PUC-SP, São Paulo, 2008. p.262).
143
Sobre o conceito de direito e toda sua simbologia, conferir: CRUZ, Sebastião. Jus derectum
(directum). Coimbra: Coimbra Editora, 1971.
144
FERRAZ JUNIOR, 1994, p.32-33.
52
a deusa romana Iustitia é representada com uma venda nos olhos e
atitude firme, segurando com as duas mãos a balança (com dois partos e o fiel no
meio) e sem o auxílio da espada. O foco no direito romano estava em dizer o direito
(juis-dicere), pois a atividade de execução, do iudicare, era menos importante, sendo
realizada por um particular, geralmente, sem formação jurídica.
145
Lourival Vilanova registra que o Estado-juiz possui um direito subjetivo, um
poder de coação, que retira dos cidadãos seu poder autotutela, culminando em uma
vedação geral à ingerência na vida privada dos indivíduos e que não sendo legítima
qualquer forma de violência à esfera privada dos indivíduos, salvo quando houver a
prática de uma infração e houver resistência.
146
Rafael Munhoz de Mello, nesse sentido, afirma que:
Deve-se destacar que a efetiva utilização da força, através da coação
exercida pelos entes estatais, é um instrumento de execução da sanção,
que pode ser utilizado ou não, conforme a necessidade. Para que os meios
coercitivos sejam colocados em prática é indispensável que a pessoa à qual
se impõe a sanção resista à sua aplicação, como é óbvio. Sanção e coação,
portanto, não são sinônimos. O uso da coação é potencial: não sendo a
sanção cumprida de modo espontâneo, utiliza-se a coação como meio de
executá-la. Tanto não são sinônimos que a coação estatal pode ser utilizada
em hipóteses diversas da aplicação da sanção [...].
147
Portanto, é essa força ligada à execução é o que chamamos de coação, a
qual é um instrumento de que dispõe o poder público para fazer valer as decisões
dos entes estatais, sendo indispensável, para a sua utilização, que a pessoa
sancionada resista à imposição dessa sanção.
145
FERRAZ JUNIOR, 1994, p.32-33.
146
VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4.ed. São Paulo: RT, 2000. p.195.
147
MELLO, R. M., 2008, p.40-41.
53
2 O ESTADO E O CONTROLE SOCIAL INSTITUCIONALIZADO
2.1 A DINÂMICA ENTRE ESTADO, PODER E FORÇA
De acordo com Marcello Caetano, a palavra "Estado" pode significar: (1) coleti-
vidade que possui originariamente o poder político em um determinado território;
(2) coletividade que detenha o poder político soberano em um dado território;
(3) sistema de órgãos de uma coletividade que exerce o poder político no território
por ela assenhoreado e (4) pessoa coletiva, que tem por órgão o governo para fins
de relações jurídicas de direito interno.
148
Juarez Cirino dos Santos afirma que a criminologia radical
149
trabalha com o
conceito de Estado como "organização política do poder das classes econômicas",
sendo ele uma das bases do trabalho científico dessa criminologia, sendo visto como
controlador das relações sociais "nos limites do modo de produção dominante na
formação social".
150
Como ressalta Celso Ribeiro Bastos, Estado, força, ordem jurídica, direito e
poder
151
estão intimamente relacionados e esses vínculos tornam-se ainda mais
evidentes quando se observa a diferença entre força física e poder:
148
CAETANO, Marcello. Manual de ciência política e direito constitucional. 4.ed. Lisboa: Coimbra
Editora, 1963. p.115.
149
"A Criminologia Radical tem por objeto geral as relações sociais de produção (estrutura de
classes) e de reprodução político-jurídica (superestruturas de controle) da formação social, que
produzem e reproduzem seu objeto específico de conhecimento específico: o crime e o controle
social." (SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3.ed. Curitiba: ICPC: Lumen Juris,
2008a. p.125).
150
Ibid., p.127.
151
Adota-se aqui a noção de poder de Marcello Caetano: "5. O Poder. - Chama-se 'poder' a
possibilidade de eficazmente impor aos outros o respeito da própria conduta ou de traçar a conduta
alheia. Desde que a um grupo social é reconhecida autoridade para estabelecer normas reguladoras
da conduta dos seus membros, que sejam obrigatórias sob pena de o desobediente ser compelido
a acatá-las ou a sofrer determinado castigo, esse grupo possui poder sobre os seus membros.
O 'poder social' é exercido por toda a coletividade, ou apenas por algum ou alguns dos membros
aos quais seja reconhecida qualidade para actuar em nome de todos. O exercício do poder
consiste, portanto, em definir normas de conduta dos indivíduos nas suas relações entre si ou
com a colectividade e em fazer observar essas normas aplicando determinadas sanções previstas
para os desobedientes." (CAETANO, op. cit., p.4).
54
Toda vez que um homem ou um grupo de homens, uma classe ou mesmo
a totalidade do povo assumem o controle do Estado é sinal de que eles
se encontram em condições de sufocar qualquer movimento rebelde às
suas ordens.
[...] quem quer que assuma o poder do Estado automaticamente o converte
em direito. As ordens expendidas deixam de ser cumpridas tão somente
porque vêm acompanhadas da sanção coercitiva e passam a ganhar eficácia,
na verdade, porque vêm seguidas da noção de que existe um dever de
obediência. A esse fenômeno dá-se o nome de institucionalização da força.
É por ele que se entende o funcionamento do Estado em que de um
incomensurável número de atos imperativos só alguns necessitam, para sua
efetivação, do real exercício da força. É óbvio que se o Estado tivesse de
garantir com o seu aparato policial militar todas as circunstâncias em que
sua autoridade pudesse ser posta em causa [não seriam] suficientes todos os
efetivos armados de que dispõe (?). Na verdade, este recurso à violência
152
é feito em raríssimas ocasiões se levarmos em conta a atuação ampla e
abrangente do Estado moderno.
O de que desfruta o Estado, portanto, não é do mero monopólio da força sica,
mas sim da faculdade de expedir comandos genéricos voltados a muitos
destinatários, ordens estas denominadas leis. É por este recurso, portanto,
pela utilização do direito, enfim, que o Estado se viabiliza. Noutro dizer, ainda,
o Estado é manifestação de um poder institucionalizado.
153
Max Weber reforça essa idéia ao tratar da dominação legal
154
puramente
burocrática ou burocrático-monocrática que é por ele considerada, formal e
experimentalmente, a espécie de dominação mais racional e que constitui "a célula
germinativa do moderno Estado ocidental". Afirmou esse autor que no sistema
burocrático
155
, seja este adotado antes ou depois de uma revolução, para conhecer
152
Sobre direito e violência, conferir Walter Benjamin (Crítica da violência. Disponível em:
<http://www.nplyriana.adv.br/artigos1/critica_violencia.pdf>. Acesso em: 17 out. 2009) e a
dissertação de Bruno Meneses Lorenzetto (O silêncio das sereias: tempo, direito e violência na
modernidade. 2010. Dissertação (Mestrado) - Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, 2010).
153
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do estado e ciência política. 6.ed. São Paulo: Celso
Bastos, 2004. p.99-100.
154
Segue, para melhor esclarecer, uma síntese das principais ideias sob as quais se assenta a
dominação legal com quadro administrativo burocrático: (1) Todo direito pode ser estatuído racionalmente
com o intuito de ser respeitado pelos membros de um grupo bem como por aqueles que realizem,
no âmbito deste grupo, ações sociais tidas como relevantes; (2) Que todo direito é um conjunto de
regras abstratas instituídas com determinadas intenções e aplicadas pela magistratura aos casos
concretos, sendo que a administração é o cuidado racional de interesses do grupo, dentro dos
limites das normas e de acordo com os princípios estabelecidos, aceitos ou não reprovados pelos
membros do grupo; (3) O "superior" enquanto ordena, obedece a uma ordem impessoal pela qual
orienta suas decisões e quem "obedece" só o faz porque é "membro" de um grupo.
155
Ver sobre modelos de gestão do estado e burocracia weberiana: SCHIER, Adriana da Costa
Ricardo. Administração pública: apontamentos sobre os modelos de gestão e tendências atuais.
In: GUIMARÃES, Edgar (Coord.). Cenários do direito administrativo: estudos em homenagem
ao Professor Romeu Felipe Bacellar Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p.21 -56.
55
quem está exercendo a dominação, basta descobrir quem domina o aparelho buroctico
e, destarte, também detém o poder político.
156
Para Marcello Caetano, poder potico pode ser definido como: "[...] a faculdade
exercida por um povo de, por autoridade própria
157
(não recebida de outro poder)
instituir órgãos que exerçam o senhorio de um território e nele criem e imponham
normas jurídicas, dispondo dos necessários meios de coacção."
158
Destaque-se que poder político o se confunde com poder disciplinar, nem
com soberania, como anota o constitucionalista português:
[...] o poder político distingue-se dos simples poderes disciplinares porque estes
são particularistas e cessam logo que o indivíduo se separe ou seja expluso
do grupo social restrito a que respeitam; enquanto que o poder político é um
poder de imposição e de domínio a que os indivíduos não podem subtrair-se
por ser necessário e irresistível, ao menos dentro do território do Estado a
que respeita.
[...] A soberania significa, portanto, um poder político supremo e independente,
entendendo-se por poder supremo aquele que não eslimitado por nenhum
outro na ordem interna e por poder independente aquele que a sociedade
internacional não tem de acatar regras que o sejam voluntariamente aceites
e está em pé de igualdade com os poderes supremos dos outros povos.
159
Assim, fica claro que é sob o manto estatal que se desenvolvem institutos
ligados ao controle social formal e à dinâmica do poder, em especial, o poder de
polícia e o chamado ius (ou jus) puniendi.
Isso demanda uma análise das raízes históricas de tais institutos para que
possam ser melhor compreendidos e, por que não, repreendidos naquilo que diz
respeito às suas respectivas atuações na sociedade pós-industrial por meio do
Direito Administrativo Sancionador e do Direito Penal, devendo-se, para isso,
investigá-los a partir do momento histórico do Estado de Polícia.
156
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Regis
Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. 3.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994. p.146.
157
Adverte o autor que a autoridade constituinte aqui referida é originária, própria, enquanto a
autoridade administrativa conferida pelo Estado a seus órgãos e entes por meio da Constituição
ou das leis é delegada.
158
CAETANO, 1963, p.108.
159
Id.
56
2.2 DO ESTADO DE POLÍCIA AO ESTADO DE DIREITO
Como demarcado no primeiro capítulo, deve-se atentar para o caráter
histórico do conhecimento, inclusive no âmbito do direito.
A partir disso, pode-se afirmar que as intermináveis crises do Direito, um
femeno suscitado pelos doutrinadores muitos anos é, na verdade, um reflexo da
simples constatação de que a Ciência Jurídica é "viva", dinâmica, mutável, ou seja, é
algo que está em constante transformação e reformulação, assim como a sociedade.
Deve-se voltar os olhos para a importância da História e, no nosso âmbito de
estudo, para a Hisria do Direito, porém, tomando o cuidado, consoante adverte António
Manuel Hespanha
160
, de o estudar apenas a abordagem histórica do direito e dos
formalismos históricos, pois isso levaria a uma história vista apenas de cima, ou seja,
sob o prisma exclusivo das instituições, o que leva a "uma história sem rostos".
A História do Direito deve ser contada e interpretada por meio de suas fontes
primárias e a partir do casuísmo, pois, assim, podem ser extraídas as características
dominantes em certo peodo, porém, sem se olvidar da diversidade e dos detalhes que
se perdem no caminho para a generalização e extração do comportamento dominante
em determinado contexto.
Porém, como isso não poderá, por ora, ser objeto deste item, pois sequer
na doutrina brasileira, como muito bem pontuado por Daniel Ferreira em sua recente
obra intitulada "Teoria Geral da Infração Administrativa a partir da Constituição Federal
de 1988", uma abordagem dos formalismos hisricos das infrações administrativas.
161
Portanto, pretende-se, nos itens subsequentes, trar algumas das características
históricas das infrações administrativas, bem como constatar a relação e conexão
dessa espécie de ilícito com institutos e figuras presentes na época do "Antigo
Regime", lembrando, ainda, que a Ciência do Direito, diferentemente das demais
160
HESPANHA, António Manuel. Governo, elites e competência social: sugestões para um
entendimento renovado da história das elites. In: BICALHO, Maria Fernanda (Org.). Modos de
governar: idéias e práticas políticas no Império Português (séculos XVI a XIX). São Paulo:
Alameda, 2005. p.39-44.
161
FERREIRA, 2009, p.24.
57
ciências, não apresenta uma história separada do seu objeto, eis que a Ciência
Jurídica, ao mesmo tempo analisa e conforma o fenômeno por ela estudado.
162
2.2.1 Breve visão dos primórdios do Direito Administrativo e do Poder de Polícia
Nesse tópico se brevemente analisada a relação entre as concepções
históricas de Estado e o Poder de Pocia no período compreendido entre o Feudalismo
e o Iluminismo, levando em consideração a genealogia do Direito Administrativo,
bem como os significados da palavra polícia e da locução poder de polícia.
Os Estados cujo exame importa ao estudo do Poder de Polícia, seguindo a
classificação de Celso Ribeiro Bastos
163
proposta em relação ao momento histórico
em que ocorreram, são: Estamental, de Polícia e de Direito.
No icio doculo
XVI
o Estado Estamental
164
aparece como uma organização
política de transão caracterizada pela dualidade política rei-estamentos. Na tentativa
de centralização do poder, o rei detém o poder central e a legitimidade, porém,
participação marcante e necessária dos estamentos (parlamentos e Cortes) na
organização social, sendo que essa duplicidade no exercício do poder manifesta,
segundo Jorge Miranda, o enlace entre Estado e sociedade.
165
162
FERRAZ JUNIOR, 1994, p.39.
163
BASTOS, 2004, p.157.
164
Max Weber nota que a dominação estamental é aquela em que determinados poderes de mando
e as respectivas oportunidades econômicas foram apropriados pelo quadro administrativo, seja
por uma parte desse quadro ou por um indivíduo e que, aí, a apropriação tem caráter vitalício, de
hereditariedade ou de propriedade livre. Destarte, de acordo com o autor, a dominação estamental
significa: a) sempre: limitação da livre seleção do quadro administrativo pelo senhor, em virtude
da apropriação dos cargos ou poderes de mando, por parte de uma associação, por parte de uma
camada social estamentalmente qualificada ou b) freqüentemente: a apropriação dos cargos e,
portanto, eventualmente, oportunidades aquisitivas proporcionadas pela detenção destes; dos
meios materiais de administração e dos poderes de mando por parte de cada membro individual
do quadro. O servidor estamental pode ser sustentado alimentando-se na mesa do senhor, por
emolumentos, por terras funcionais, oportunidades apropriadas de rendas, taxas ou impostos e
por feudos. (WEBER, 1994.)
165
BASTOS, op. cit., p.158.
58
Entre o século
XVII
e meados do século
XIX
tem-se o Estado do Polícia
166
,
encontra seu ápice na segunda metade do século
XVIII
com o despotismo esclarecido
167
e que a partir dos critérios de (1) fundamento do poder do monarca e (2) concepção
de soberania, pode ser dividido em duas fases, a seguir expostas.
Na primeira etapa, o monarca foi considerado o supremo defensor do avanço
da civilização e um representante de Deus na Terra, portanto, dotado de um poder
divino e, como tal, responvel apenas perante Deus, eis que governava exclusivamente
por Sua graça, sendo uma das obras características desse período, de acordo com
Paulo BOonavides, o Leviatã de Thomas Hobbes
168
.
169
Na segunda fase, resultado da constante teno
170
entre o clero e os monarcas,
procurou-se secularizar
171
o absolutismo mediante a adoção de um fundamento
166
Quanto à nomenclatura, Jorge Miranda adverte que o Estado Absoluto parte da idéia de que
uma máxima concentração de poder nas mãos do monarca sozinho ou com seus ministros e
em que a vontade do rei é lei, mas desde que expressa em conformidade com as regras jurídicas,
as quais são exíguas, vagas e, em regra, não escritas, sendo preferível falar-se em Estado de
Polícia para ficar evidente que a vontade do rei encontra uma pequena limitação ao exercício de
seu poder (MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 7.ed. rev. e atual. Coimbra:
Coimbra Editora, 2003. p.79).
167
BASTOS, 2004, p.158-160
168
Conferir sobre Thomas Hobbes: CONDREN, Conal. Thomas Hobbes: Twayne's English authors series,
TEAS 559. New York: Twayne Publishers, 2000; JESSOP, T. E. Thomas Hobbes: Bibliographical
series of supplements to British Book News on writers and their work, n. 130. [London]: Published
for the British Council by Longmans, Green, 1960; DIETZ, Mary G. Thomas Hobbes and
Political Theory. Lawrence, Kan: University Press of Kansas, 1990; MARTINICH, Aloysius.
Thomas Hobbes: British history in perspective. New York: St. Martin's Press, 1997; BOBBIO,
Norberto. Thomas Hobbes and the Natural Law Tradition. Chicago: University of Chicago
Press, 1993; MARTINICH, Aloysius. The Two Gods of Leviathan: Thomas Hobbes on Religion
and Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1992; GAUTHIER, David P. The Logic of
Leviathan: The Moral and Political Theory of Thomas Hobbes. Oxford: Clarendon P., 1969;
KRAYNAK, Robert P. History and Modernity in the Thought of Thomas Hobbes. Ithaca, N.Y.:
Cornell University Press, 1990. Em português: BITTAR, Eduardo C. B.; SOARES, Fabiana de
Menezes. Temas de filosofia do direito: velhas questões, novos cenários. Barueri: Manole,
2004. Para ir um pouco além: MARTEL, James R. Subverting the Leviathan: Reading Thomas
Hobbes As a Radical Democrat. New York: Columbia University Press, 2007.
169
BASTOS, 2004, p.158-160 e BONAVIDES, Paulo. Teoria do estado. 5.ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2004. p.31-35.
170
Sobre tal tensão, esclarece Paulo Bonavides: "Já na segunda fase a teoria do Absolutismo se
desata dos laços teológicos e metafísicos que eram, não raro, um freio ao monarca, por dever
este respeito e fidelidade às hierarquias eclesiásticas, com as quais o soberano de direito divino
havia selado aliança, nem sempre isenta de disputas e rivalidades de supremacia em determinadas
matérias em que, por circunstâncias históricas, o poder temporal colidia eventualmente com o
poder da Igreja, cuja ascendência no reino espiritual era, por sem vida, incontestável." (Ibid., p.32).
171
BASTOS, 2004, p.158-160 e BONAVIDES, 2004, p.31-35.
59
racional para o exercício do poder pelo governante, isto é, o Estado passou a ser
notado como uma organização voltada para a realização do interesse blico, cabendo
ao monarca, o primeiro funcionário desta estrutura, a faculdade e a liberdade de
escolher os meios necessários para o alcance dessa finalidade, residindo, neste
mote, a idéia central do poder de polícia, como acentua Celso Ribeiro Bastos
172
:
A idéia de polícia é responsável por fazer residir no príncipe o sujeito legitimado
a promover o desenvolvimento material, o avanço intelectual e artístico. Era
a própria civilização que, por suas mãos, caminharia mais celeremente.
A única criação dessa época que coíbe muito parcialmente o poder do
príncipe é o instituto do fisco. Por esta entidade jurídica deixava-se de lado o
Estado e o príncipe como responsáveis pelo patrimônio que era trasladado
para a titularidade do aludido fisco. Por este estratagema muitas relações
até então travadas com a Administração passaram a ser regidas pelo direito
civil e a serem julgadas por Tribunais independentes. Portanto, ao menos no que
diz respeito às relações patrimoniais, chegou-se a um equilíbrio praticamente
perfeito, não extensível ao resto da atuação estatal, que continuava a atuar
ilimitada e irresponsavelmente.
173
Uma das teorias que sustentáculo a esse fundamento racional de
secularização é a filosofia do absolutismo iluminista de Christian Freiherr von Wolff.
O autor, também conhecido por Wolfius, desenvolve suas ideias a partir da teoria de
Gottfried Wilhelm Von Leibnitz
174
para criar um Estado promotor da felicidade e do
172
BASTOS, 2004, p.158-160 e BONAVIDES, 2004, p.31-35.
173
BASTOS, op. cit., p.160.
174
De acordo com José Maria Arruda, Wolff deturpa de tal modo as ideias de Leibnitz que alguns
argutos estudiosos, como Kant e Hegel, sequer diferenciam o pensamento de um e de outro autor,
consoante anota: "Uma segunda razão para a interpretação confusa e errônea do pensamento de
Leibniz ao longo do culo XVIII reside no fato de que sua filosofia foi associada indissoluvelmente
com a filosofia de C. Wolff, com quem Leibniz se correspondeu de 1704 até 1716, ano de sua
morte. Através da filosofia de Wolff, o pensamento de Leibniz encontra uma intensa divulgação no
meio filosófico, por outro lado, suas idéias aparecem de modo tão distorcido que quase não se
torna mais possível reconhecê-las. Podemos com todo rigor falar em uma wollfianização das
teses de Leibniz, que teve um efeito ambíguo: ao mesmo tempo em que ajudou a preservar o
nome de Leibniz no cenário filosófico, essa wollfianização impediu o acesso à própria obra de
Leibniz." E um pouco adiante: "A alcunha de Metaphysica Leibnitio-Wolffiana, que denuncia essa
mistura e desfiguração, surgiu provavelmente no ano de 1725 e se impôs tanto entre os adverrios
quanto entre os entusiastas da filosofia de C. Wolff, tendo se consolidado ao longo dos anos o
fortemente na cena filosófica alemã, que mesmo um estudioso arguto como Kant, em sua crítica à
filosofia alemã, não fazia nenhuma distinção entre o pensamento de Leibniz e o sistema de Wolff.
Na mesma direção, Hegel chegou a afirmar que a filosofia de Wolff constituía uma sistematização
da filosofia de Leibniz, e por isso era correta a alcunha de filosofia leibniz-wolffiana. Para Hegel,
não existe nenhuma diferença de conteúdo, mas somente de forma entre as filosofias de Leibniz
e Wolff. Ele afirma em suas lições da história da filosofia: 'A filosofia de Wolff é, em seu conteúdo
geral, apenas filosofia de Leibniz em sua forma sistemática'. Esta interpretação do trabalho de
60
bem-estar social, valendo-se, nas palavras de Paulo Bonavides, da "[...] 'salus publica'
como pretexto para reforço dos laços de autoridade e consolidação do poder",
colocando-se o Estado acima do direito e cerceando as liberdades civis, pois, de acordo
com esse teórico, o próprio Estado está em melhores condições de compreender as
necessidades individuais dos governados e assume uma posição protecionista de
direitos e interesses individuais, exprimindo a vontade dos indivíduos em nome deles.
175
Na obra intitulada enciclopédia de ciências sociais, Koppel S. Pinson descreve
Wolff como fisofo mais emblemático do iluminismo aleo. Observa que ele construiu
um sistema filosófico, social e político lógico, de precisão matemática, marcado por
um otimismo e eudemonismo
176
utilitarista
177
baseado em uma crença nos princípios
da razão, da lei e da religião naturais e que, diferente de Hobbes, concebeu um
estado de completa liberdade individual regulada por princípios de direito natural, a
partir de um contrato racional, cujo propósito é assegurar aos cidadãos o maior bem-
estar e segurança.
178
Enquanto a Glückseligkeit felicidade do povo era a preocupação central de
Wolff, o cameralista
179
Johann Heinrich Gottlob von Justi
180
sectário do pensamento
Wolff, como aquele que conseguiu dar uma ordem sistemática e coerente às idéias fundamentais
de Leibniz, encontrou um assentimento geral por todo o século XVIII. O que é estranho é que os
estudiosos não se deram o mínimo trabalho de confirmar essa coincidência de conteúdos entre as
duas filosofias checando os próprios escritos de Leibniz publicados até então. Não se lia Leibniz,
mas sim Wolff." (ARRUDA, José Maria. Leibniz e o idealismo alemão. Cadernos UFS - Filosofia,
v.10, p.21, 2008).
175
BONAVIDES, 2004, p.130.
176
"Eudemonismo: Teoria moral fundada na idéia da felicidade concebida como bem supremo."
(Dicionário online: http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=eudemonismo).
177
"Utilitarismo: Sistema de moral que coloca no interesse particular ou geral a regra das nossas
acções." (Dicionário online: http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=utilitarismo).
178
PINSO, Koppel S. New York: McMillan, 1935, v.15, p.435 apud BACKHAUS, Jürgen G. The
Beginnings of Political Economy. Nova Iorque: Springer, 2009.
179
"A Ciência Cameral – Kameralwissenschaft ou Cameral-Wissenschaft preocupa-se com os
meios necessários para o aumento dos recursos, ou seja, visa conferir uma melhoria geral na
receita estatal, para que possam ser utilizados na manutenção dos bens públicos de tal forma que
todos os anos estejam presentes recursos excedentes.", o que é tradução livre de: "The 'Cameral-
Wissenschaft' concerns itself with the means of raising revenues for the "Lands-Fürst, their
general improvement and utilization in the maintenance of the commonweal [gemeinen Wesens]
so that every year a surplus remains." (DITHMAR, Justus Christoph. Einleitung in die
Oeconomische Policey Und Cameralwissenschaften. Frankfurt, 1745, p.225 apud TRIBE, Keith.
Cameralism and the Science of Government. The Journal of Modern History, Chicago, v.56, n.2,
p.263-284, jun. 1984).
61
de Wolff – acrescenta o cririo da utilidade de uma medida, sendo ambos os conceitos,
de acordo com Jürgen G. Backhaus, importantes para a ciência do Estado.
181
A partir dos princípios de Wolff, Justi desvenda uma ciência econômica em
que o Estado é o protagonista, porém, o é o único ator. Trata-se do início daquilo que
hoje conhecemos por ciência da administraçãoblica chamada de Policeywissenschaft
(ciência do policiamento) e que era fundada em três pilares: (1) o Mercado e a
intervenção/atuação Estatal na economia; (2) o próprio Estado e (3) a tecnologia
disponível tanto para o Estado quando para o Mercado.
182
Note-se que no Antigo Regime encontram-se os rudimentos de importantes
áreas do conhecimento ligadas à atividade estatal, como o Direito Administrativo e a
ciência da administração pública.
183
Ainda, é importante destacar que no Estado de Polícia, diferente do Estado
de Direito, o cidadão é considerado mero súdito, servo, vassalo
184
, portanto, objeto
do poder estatal e não um sujeito de direitos perante o príncipe.
185
Com o advento da Revolão Francesa, a assuão do poder pela burguesia e
a instituição do Estado de Direito, inaugurou-se uma nova fase em resposta à
interferência estatal na esfera privada dos agora cidadãos. O poder do monarca
180
Justi nasceu em 1702 na Prússia e estudou Direito e Ciências Camerais, porém teve que deixar
os estudos para servir ao exército prussiano. Embora capturado pelos austríacos durante a
Guerra de Sucessão Austríaca, conseguiu escapar para Leipzig, onde estudou mineralogia. Em
1750 foi apontado pela rainha e imperadora Maria Theresa para lecionar Ciências Camerais e
Retórica na recém-criada Academia Teresina de Cavaleiros, em Vienna. Em 1762 Frederico II da
Prússia nomeou-o para o mais alto cargo de supervisão de minas e supervisão geral das
atividades fisco-minerais, sendo acusado em 1768 de desfalque e antes de provar sua inocência
– o culpado pelo crime foi seu assistente, responsável pela escrituração – faleceu em 1771.
181
BACKHAUS, Jürgen G. From Wolff to Justi. In: _____. The Beginnings of Political Economy.
Nova Iorque: Springer, 2009. p.1-18.
182
Introduction. In: _____. The Beginnings of Political Economy. Nova Iorque: Springer, 2009.
183
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 19.ed. São Paulo: Atlas, 2006. p.23 e
GORDILLO, Augustín. Pasado, presente y futuro del Derecho Administrativo. In: _____. Tratado
de Derecho Administrativo. Tomo 1. p.01. Disponível em: <http://www.gordillo.com/Pdf/1-8/1-
8II.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2009.
184
DI PIETRO, op. cit., p.23.
185
GORDILLO, op. cit., p.01.
62
passou a ser submetido à lei, descobrindo-se um novo ramo do Direito, ainda não
ou pouco – legislado até então: o Direito Administrativo.
186
Pouco legislado porque, como observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro, não
significa que até o surgimento do Direito Administrativo como disciplina autônoma
não existissem normas administrativas, eis que, onde há Estado, existem órgãos que
exercem funções administrativas e, destarte, normas administrativas. Ocorre que
estas estavam atreladas ao jus civile, o chamado Direto Comum que regulava as
relações de direito privado,
187
sendo no mesmo sentido o ensinamento de Celso
Antônio Bandeira de Mello:
[...] as normas do Direito até então existentes disciplinavam as relações
entre particulares, inadaptadas, pois, para reger vínculos de outra índole, ou
seja: os intercorrentes entre o Poder Público e os administrados, agora
submissos todos a uma ordem jurídica. Tais vínculos, consoante se
entendia, demandavam uma disciplina específica, animada por outros
princípios, que teriam que se introduzir em normas que viriam a ser
qualificadas como 'exorbitantes' porque exorbitavam dos quadros do
Direito até então conhecido, o 'Direito Comum'.
188
Como fruto do Estado de Direito e da Revolução Francesa, estruturado
sobre o princípio da legalidade e da separação dos poderes, a relação do Direito
Administrativo com o direito privado nos países europeus é mais próxima ou distante,
consoante a necessidade de ruptura com o sistema anterior:
189
Não se afigura verdadeira a tese de que o Direito Administrativo existia
nos sistemas europeus formados com base nos princípios revolucionários
do século XVIII. O que é verdadeiro é o fato de que nem todos os países
tiveram a mesma história nem estruturaram pela mesma forma o seu poder;
em conseqüência o Direito Administrativo teve origem diversa e desenvolvimento
menor em alguns sistemas, como o anglo-americano. Mesmo dentro dos
'direitos' filiados ao referido sistema europeu existem diferenças que valem
a pena assinalar, uma vez que, quanto menos desenvolvido o Direito
Administrativo, maior é a aplicação do direito privado nas relações de que
participa o Estado.
190
186
DI PIETRO, 2006, p.126 e MELLO, Celso Bandeira de. Curso de direito administrativo. 23.ed.
São Paulo: Malheiros, 2007. p.39.
187
DI PIETRO, op. cit., p.23.
188
MELLO, C. B., op. cit., p.39.
189
DI PIETRO, op. cit., p.24.
190
Ibid., p.25.
63
Assim sendo, na Fraa, como havia uma grande necessidade de ruptura com o
Antigo Regime, foi criado o Conselho de Estado
191
que passou a desempenhar, a partir
de sua crião em 1799, um papel primordial na constrão dos prinpios e conceões
que forjaram o Direito Administrativo. Até hoje, tem fundamental papel no Direito
Administrativo francês
192
, sendo considerado "[...] o óro responsável pela formulão
das bases teóricas do Direito Administrativo, as quais se espraiaram pelos países
continentais europeus e, por via destes, aos por eles culturalmente influenciados."
193
Também foi na França que a puissance publique surgiu como critério
aglutinador a partir do qual se reconhecia uma situação regida pelo Direito
Administrativo, separando a competência do Conselho de Estado e da Justiça
comum.
Nessa esteira, Celso Antônio Bandeira de Mello, ao comentar as bases
ideológicas do Direito Administrativo concebendo-o como "um conjunto de deveres da
Administrão em face dos administrados"
194
, esclarece a noção de puissance
publique:
[...] os que se ocuparam do Direito Administrativo na França, país onde nasceu
esse ramo do Direito, buscavam encontrar um 'critério', ou seja, uma idéia
sica, central, a partir da qual fosse possível reconhecer quando se deveria
considerar presente uma situação a ser regida pelo Direito Administrativo,
isto é, situação que despertasse a aplicação dos princípios e regras pertinentes
a este nascente ramo do Direito, e, pois, que em situações conflituosas fosse
da alçada do Conselho de Estado, e não da Justiça comum. Pois, bem, a
idéia base inicialmente considerada como fator de desencadeamento do Direito
Administrativo e pólo aglutinador de seus vários institutos foi a idéia de
puissance publique, isto é, da existência de poderes de autoridade detidos
pelo Estado e exercitáveis em relação aos administrados. Compreende-se,
então, à vista das razões enunciadas, que houvesse irrompido a impressão de
que o Direito Administrativo seria um direito armado ao propósito de investir
191
A concepção de tripartição dos poderes francesa, aliada à prevenção dos revolucionários iluministas
quanto ao Poder Judiciário – considerado conservador e invasor de competências administrativas,
fazendo, muitas vezes, o papel de administrador culminou na interpretação de que o controle
dos atos do Poder Executivo pelo Poder Judiciário configuraria uma grave ofensa a esse
princípio. Assim sendo, para solucionar esse problema, instituiu-se à época e mantém-se, até
hoje o Conselho de Estado francês. Trata-se de um órgão do Poder Executivo competente para
decidir sobre os conflitos existentes nas relações travadas entre Administração e administrados e
que se constitui em uma verdadeira jurisdição administrativa. Em que pese sua natureza
jurisdicional, o Conselho de Estado não possui vinculação com o Poder Judiciário.
192
MELLO, C. B., 2007, p.39.
193
Ibid., p.42.
194
Id.
64
o Estado, os detentores do Poder, na posse de um instrumental jurídico
suficientemente poderoso para subjugar os administrados.
195
Léon Duguit desenvolveu tempos depois outro critério, rechaçando a abordagem
de que é o "poder" o "núcleo aglutinante" deste ramo judico, bem como a perspectiva
autoriria, para delimitar o âmbito do Direito Administrativo: o conceito de serviço público,
como sendo "[...] toda atividade cujo cumprimento é assegurado, regulado e controlado
pelos governantes, por ser indispensável à realização da interdependência social, e de
tal natureza que não pode ser assumida seo pela interveão da força governante".
196
Entretanto, em que pese a contribuição do jurista frans, ainda permanecem
na doutrina jurídica as explicações sobre os institutos de Direito Administrativo a
partir da ótica do poder, dentre os quais um dos mais emblemáticos e de maior
relevância para o estudo aqui proposto é o poder de polícia.
O vocábulo polícia advém do grego politeia e era originalmente utilizado
para "[...] designar todas as atividades da cidade-estado
197
(polis), sem qualquer relação
com o sentido atual da expressão”
198
,
199
, sendo que sua significação foi alterada ao
longo da história: "A noção e a palavra 'polícia' submetem-se a uma evolução rica em
mudanças. A palavra grega πολιτεία [politéia] significa Constituição da cidade,
Constituição do Estado, e, após uma sucessão de significados, administração do
Estado, governo."
200
No século
XIV
aparece na língua francesa "la police" – a polícia que designava
em sentido lato os fins e a atividade estatal e em um sentido estrito referia-se à boa
ordem, ao feito de um estado bem ajustado.
201
195
Ibid., p.44.
196
DUGUIT, Leon. Traité de Droit Constitutionnel. 2.ed. Fontemoing, 1923. v.. p.55 apud MELLO,
Celso Bandeira de. Curso de direito administrativo. 27.ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p.45.
197
O termo cidade-estado remete à organização política da Grécia na Antiguidade século XVII a.C.
até o século V d.C.
198
O sentido atual da expressão pode ser encontrado no capítulox do presente trabalho.
199
DI PIETRO, 2006, p.126.
200
FLEINER, Fritz. Les principes généraux du Droit Administratif allemand. Tradução de Ch.
Eisenmann. Paris: Librarie Delagrave, 1933. p.235.
201
Id.
65
Fritz Fleiner destaca que no fim do século XV a Alemanha empresta a noção
francesa de polícia e a ela acrescenta, sob a designação de jus politiae, o sistema
de direitos soberanos dos príncipes:
Quando, no século XVI, a teoria do jus reformandi fornece a justificação
para a intervenção dos príncipes nos assuntos eclesiásticos, o jus politiae
confere a fórmula legal com a qual se afere o círculo de extensão das
atividades estatais que foram fundadas sob domínio secular. Se o Estado
medieval limitou-se à manutenção da paz jurídica, o jus politiae forneceu ao
Estado dos séculos XVI e XVII o direito de zelar, com o auxílio da coação
202
estatal, pelo "bem-estar comum". O jus politiae fornece aos príncipes o
poder de editar todas as medidas que irão realizar a felicidade terrena dos
indivíduos. Ele conferiu ao Estado a possibilidade de fazer valer seu poder
sobre todas as atividades individuais dos habitantes, e tornou-se fundador
do poder absoluto do Estado de impor a sua autoridade. O "Estado de
polícia" lugar ao Estado absolutista. "Polícia" e administração do Estado
tornaram-se conceitos idênticos.
203
O jus politiae, portanto, compreendia um grande grupo de normas editadas
pelo pncipe, que dispunha de amplos poderes de ingerência, inclusive na vida privada,
religiosa e espiritual dos indivíduos com o pretexto de alcançar o bem-estar coletivo
202
Aqui, coação substituiu a palavra contrainte, a qual tem a seguinte definição em francês: "Contrainte:
Dans le vocabulaire quotidien, la 'contrainte' est une violence physique ou morale exercée sur une
personne. Dans le droit judiciaire actuel, le mot désigne un type de titre exécutoire, pris soit, par
l'Administration fiscale pour le recouvrement de certains impôts soit, par les les organismes
sociaux (Caisses primaires d'assurance maladie, URSSAF, Caisses de retraite des professions
libérales) pour le recouvrement des cotisations, des pénalités et des majorations pour retard dues
par les assurés et par les entreprises dont les cotisations sont impayées. Lorsque les sommes
sont dues à un organisme de sécurité sociale, l'affilié ou le cotisant dispose d'une action dite
'opposition à contrainte' qui est de la compétence exclusive du Tribunal des affaires de sécurité
sociale. L'opposition en arrête l'exécution, mais cette exécution est reprise si le Tribunal rejette le
recours. à recouvrer les prestations indues par voie de contrainte. Bibliographie Lamy, Protection
sociale, Recouvrement forcé-Action civile en rcouvrement- La contrainte n.
o
1322 et s. éd. Lamy."
(http://www.dictionnaire-juridique.com/definition/contrainte.php).
203
Tradução livre de: "Lorsque, au seizième siècle, la théoric du jus reformandi fournit la justificacion
de l'intervention des princes dans les affaires eclésiastiques, le jus politiae donna la formule
juridique à l'aide de laquelle l'extension du cercle des tàches étatiques dans le domaine séculier
fut fondée. Si l'État diéval s'était limité au maintien de la à l'État des seiziéme et dix-septième
sipaix juridique, le jus politiae fournit la justificacion do l'intervention des princes dans les affaires
eclésiastiques, le jus politiae donna la formule juridique à l 'aide de laquelle l'extension du cercle
des tàches ét atiques dans le domaine séculier fut fondée. Si l'État médiéval s'était limité au
maintien de la paix juridique, le jus politiae fournit à l'État des seizième et dix-septième siècles le
droit de veiller également, à l'aide de la contrainte étatique, au 'bien-être commun'. Le jus politiae
fournit aux princes le pouvoir d'édicter toutes les mesures qui devaient réaliser le bonheur
terrestre des sujets. Il conféra ainsi à l 'Etat la possibilité de faire valoir son pouvoir sur toutes les
activitéas individuelles des habitants, et devint ainsi le fundateur de la puissance absolute de
l'Etat. L' 'Etat de police' fit place à l'Etat absolutiste. 'Police' et gouvernment de l'Etat devinrent des
notions identiques." (FLEINER, 1933, p.234-235).
66
e a segurança, e que estavam fora do alcance do Poder Judiciário. Entretanto, de
acordo com Di Pietro, logo ocorre a cisão entre as idéias de polícia e justiça culminando
em algumas restrições a esse poder, o qual passa a ser atrelado à idéia de coação:
[...] a primeira [polícia] compreendia normas baixadas pelo príncipe,
relativas à Administração, e eram aplicadas sem possibilidade de apelo dos
indivíduos aos Tribunais; a segunda [justiça] compreendia normas que
ficavam fora da ação do príncipe e que eram aplicadas pelos juízes. Esse
direito de polícia do príncipe foi sofrendo restrições em seu conteúdo,
deixando de alcançar, paulatinamente, primeiro as atividades eclesiásticas,
depois as militares e financeiras, chegando a um momento em que se
reduzia a normas relativas à atividade interna da Administração.
Posteriormente, ainda, passou-se a ligar a polícia à idéia de coação; nesse
momento, começou-se a distinguir a atividade de polícia das demais
atividades administrativas, hoje chamadas de serviço público e fomento.
204
Assim, trazidas algumas balizas sobre as origens do Direito Administrativo e
do "poder de pocia" ao qual será conferido um tratamento dogmático mais extenso
no próximo capítulo –, mostra-se relevante trazer também algumas características
do Direito durante o antigo regime no Brasil.
Nessa época, no "ultramar", ocorria o conflito de competência suscitado em
1647 entre o Conselho Ultramarino, o qual teve como defensor mais representativo
João Delgado Figueira, e outros órgãos da administração da Coroa, principalmente
em relação ao Desembargo do Paço, patrocinado por Tomé Pinheiro da Veiga, como
anota Pedro Cardim no início de seu texto chamado "Administração e Governo: uma
reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime".
205
Esse autor destaca que chama a atenção, em um primeiro momento, o fato
de que esse conflito de competência refere-se a órgãos da administração da Coroa
que se autorrepresentam como Tribunais o que, hoje, para nós, é inconcebível, uma
vez que discutem suas atuações em áreas que conhecemos atualmente como
"governo" e "administração", searas que considera-se, na estrutura que se conhece,
incompatíveis com esse tipo de órgão e é aqui que se pode constatar uma
204
DI PIETRO, 2006, p.126.
205
CARDIM, Pedro. Administração e Governo: uma reflexão sobre o vocabulário do antigo regime. In:
BICALHO, Maria Fernanda (Org.). Modos de governar: idéias e práticas políticas no império
português (séculos XVI a XIX). São Paulo: Alameda, 2005. p.45-51.
67
característica desse período: o há, propriamente, uma separação estanque entre
as funções estatais que hoje conhecemos.
206
Ainda, governo e administração nessa época o vocábulos que possuem
acepção diferente da hodierna:
Antes de mais, é importante olhar para esta querela jurisdicional como um
evento ocorrido num tempo em que a 'administração' e o 'governo' eram
realidades muito diferentes daquilo que é hoje designado por essas mesmas
palavras. Essa diferença é desde logo notória na semântica da época. O termo
'administração', por exemplo, era sempre usado com um complemento e
raramente surge isolado. Assim, falava-se em administrar a casa, administrar
um sacramento, administrar uma cidade, administrar a justiça, um dote, o
reino ou um patrimônio. Quanto à palavra 'governo', é sabido que actualmente
designa a actividade executiva levada a cabo por um determinado sector do
Estado, actividade essa eminentemente técnica e de 'gestão'. 'Governo
denota também a presença de uma acção de comando, de uma intervanção
activa e obedecendo a uma dimensão projectual, acção essa confiada a um
conjunto bem individualizado de órgãos estatais.
207
Nesse período o corpo social constita-se de uma soma de grupos corporativos
que, entre si, eram muito diferentes e que funcionavam sem qualquer relação com a
Coroa, a qual, por sua vez, também era um "agregado de órgãos e de interesses pouco
articulados entre si".
208
A Coroa, como adverte o autor, era uma universitates universitorium e não se
caracterizava como um órgão homogêneo e centralizado, até porque era constituída
também por várias entidades que se originavam de suas próprias auto-organizações,
ou seja, não eram criadas por um ato específico do rei, mas originavam-se em si
mesmas, o que também explica, segundo Cardim, a existência de inúmeros conflitos
de competência entre esses órgãos.
O poder jurisdicional, para o historiador citado, é uma potestas unitária por
meio da qual se exerciam as funções judiciais, normativas ou administrativa.
209
206
CARDIM, 2005, p.51.
207
Ibid., p.51-52.
208
Ibid., p.53-54.
209
Ibid., p.54.
68
Nesse aspecto, cumpre trazer algumas considerações sobre a iurisdictio:
[...] como assinala Daniela Frigo, a palavra iurisdictio remetia para o exercício
da autoridade vinculado, nas suas manifestações, aos conteúdos da justiça e
às formas do juízo. A jurisdição era, fundamentalmente, o poder exercido no
espaço 'público', qualitativo que, na época, remetia para o terreno exterior ao
âmbito doméstico, pois dentro da família não imperava a lógica jurisdicional.
Contudo, para além de ser um poder 'público', iurisdictio caracterizava-se,
também, por ser o poder considerado 'legítimo', ou seja, era uma forma de
coacção diferente das relações de poder 'de facto', nascidas do simples
arbítrio da vontade de um 'poderoso'. Estas últimas eram as relações que se
realizavam à margem do ius, do direito, eram as relações que não estavam
de acordo com o que se considerava recto, direito e justo. Negava-se,
assim, a condição jurisdicional a todo e qualquer acto do poder exercido por
alguém que não estivesse investido de todos os efeitos de tal poder, e
negava-se também a legitimidade aos actos do titular de jurisdição que se
situassem fora das fronteiras do juridicamente admissível.
210
Dentre os vários agentes administrativos, um era o almotacel ou almotacé
que, pelo dicionário, é definido da seguinte maneira:
Al.mo.ta.cé. (Antigo) oficial municipal encarregado da fiscalização das
medidas e dos pesos e da taxação dos preços dos alimentos e de distribuir
ou regular a distribuição, dos mesmos em tempos de maior escassez. 1882.
ASSIS, Machado de. O alienista. In: _____. Papéis avulsos. São Paulo:
Editora Martin Claret, 2007. p.42.
211
No entanto, isso não é tão simples, pois, de acordo com o historiador Norton
Frehse Nicolazzi Junior, no artigo chamado "Sobre os almotacés, introdução"
212
e
que, ao que tudo indica, é a introdução de sua dissertação de mestrado:
O cargo de almotacé, ou al muhtasib, em árabe, foi trazido para a Península
Ibérica durante o peodo islâmico. Responsáveis pela administração das cidades
portuguesas no período da Reconquista, mantiveram as mesmas atribuições
que detinham durante a ocupação muçulmana, quando eram responsáveis
pela Hisba.
A Hisba mulçumana tinha como função cuidar de vários aspectos do
ordenamento urbano, que podem, grosso modo, ser agrupados em três ramos
da administração da cidade: o construtivo, o mercado e o sanitário.
210
CARDIM, 2005, p.55.
211
Disponível na internet: <http://pt.wiktionary.org/wiki/almotac%C3%A9. Acesso em: 01 ago. 2009.
212
http://pessoal.educacional.com.br/up/20021/1111376/t1325.asp
69
As Ordenações Filipinas, no Livro I, título
LXVIII
"Dos Almotacés", a título de
ilustração no que concerne às infrações administrativas, trouxe algumas previsões de
comportamentos socialmente reprováveis e para os quais estava prevista a cominão
de uma sanção, em geral, pecuniária:
5. E para saberem se os Carniceiros pesam bem a carne, ponha-se a balança
e pesos do Concelho, em que se pese, e vejam se he bem pesada e os
pesos fiéis, e o pesador aahi sempre residente, sob pena de pagar
para o Conselho quarenta réis por cada dia, que hi não estiver.
6. E o Carniceiro, ou pessoa, que gado matar, tanto que decepar a rez, a
mate e esfole logo, e alimpe dos debulhos, de modo que não se stê
tempo algum decepada, sem ser de todo limpa. E a pessoa, que o assi
não fizer, perderá a dita rez, ou rezes, e pagará por cada huma dous mil
réis, a metade do dito dinheiro e rezes para os Captivos, e a outra para
quem o accusar.
7. Outrosi a rez, que houverem de matar para vender, não a corram sem
necessidade no curral, nem fora delle, por que tal correr se apostema a
carne, e o fazem para pesar mais, sob as ditas penas, as quaes serão
demandadas dentro em quatro mezes sómente, depois que nellas
incorrerem.
8. E quando o tiverem Carniceiros, deiras, Regateiras, e as que vendem
meudos, Mostardeiras e Almoereves, que hajão de servir ao Concelho,
requeirão aos Vereadores, que lhos dêm: e assi Jurados, quando os não
houver, ou na terra houver dano por falta de guarda.
9. E constrangeo aos Carniceiros e Pádeiras, depois que se obrigarem ao
Concelho, que sirvam até hum anno, e que se não sáiam da obrigação,
até que o anno seja cumprido para o que os poderão obrigar pelas
pessoas e fazendas.
10. E como entrarem, dêm peso ás Pádeiras e aos que fazem, ou vendem
candeas, e depois saibam se vendem pelo peso, que lhes foi dado. (sic)
e se acharem menos, pola primeira vez paguem para o Concelho cem
réis: e póla segunda duzentos, e póla terceira quinhentos. E além destas
penas perderão para os presos todo o pão e candeas, que lhes for
achado menos peso do que lhes foi dado. E esta pena haverá o
Carniceiro, se pesar mal a carne, e a Regateira, que não guardar a taxa,
que lhe Fo posta, e os que mal pesarem, ou medirem. E se o carniceiro
pesar per falso peso, ou a Medideira ou Medido medirem per falsa
medida, sejam presos, e faça-se delles direito e justiça. E além disso os
sobreditos hajam as penas, que são conteúdas no Título 18: Do
Almotacé Mór.
11. Outrosi os Capateiros, Alfaiates, Ferreiros, Ferradores e todos os outros
Officiaes, a que for posta taxa sobre suas obras, se não guardarem as
posturas, paguem para o Concelho pola primeira vez cem réis; e pola
segunda duzentos; e pola terceira quinhentos. E se mais forem achados
em culpa, seja-lhes defeso, que não usem mais desse mester; e se mais
usarem, sejam presos, e proceda-se contra elles, como parecer justiça.
213
213
ORDENAÇÕES FILIPINAS. Disponível em: <http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ l1p162.htm>.
Acesso em: 08 set. 2009.
70
Assim sendo, como pontua Magnus Roberto de Mello Pereira
214
, ao se examinar
os livros de registros dos Termos e Audiências dos Almotas dispoveis na Câmara
Municipal de Curitiba, é posvel constatar que a atuão dos almotacés concentrava-se,
principalmente, no controle do mercado, que parece ser um reflexo da organização
administrativa da época e que mescla aquilo que hoje conhecemos por fiscal de
Defesa do Consumidor, de Pesos e Medidas, Tributário, de Vigilância Sanitária ao
mesmo tempo em que também era o responsável pela concessão de licenças para o
exercício de determinadas atividades econômicas.
As sanções que poderiam ser imputadas aos infratores dos preceitos
camarários eram, segundo Magnus Pereira: multas, discursos moralizantes e até
mesmo a prisão, o que se confirma pela transcrição retirada pelo citado historiador
dos arquivos públicos da Câmara Municipal de Curitiba:
Aos Vinte e dois dias do mês de Julho de mil e Setecentos e quarenta e três
nesta Vila de Nossa Senhora da luz dos Pinhais de Curitiba saiu de correição o
Almotacel o Capitão Miguel Rodrigues Ribas pelas Ruas publicas desta Vila
correndo todas as casas de vendas [...] e ofícios de Sapateiros e Alfaiates e
condenou a Antunes Rodrigues dos Santos em um tostão por não ter tacha
de seu oficio de Alfaiate e condenou também a Manoel Pereira Vidal em dez
tostões a saber em cinco tostões de não ter registado dois escritos de
aferição e em cinco tostões de não ter Almotaçado um pouco de toucinho e
condenou também a Manoel Rodrigues Porto em seis tostões a saber em
cinco tostões por não ter Almotaçado sal e em um testam por não ter taxa
das obras de seu ofício de sapateiro e em cuja advertência tinha posto aos
ditos oficiais por um edital que mandou passar o qual se publicou pelas
Ruas desta Vila e assim mais condenou a Antônio Gomes e Setuvel em
cinco tostões por não ter registado os escritos de aferições e assim mais
condenou a Francisco da Cunha em seis tostões a saber em cinco tostões
por não ter registado um escrito de aferição e em um tostão por não mostrar
tacha do seu oficio de sapateiro e assim mais condenou a Frutuoso da
Costa Braga em seis tostões a saber em cinco tostões por não ter registado
dois escritos de aferições dos seis meses passados e em um tostão por não
ter procurado da Câmara a tacha das obras de seu oficio de sapateiro e
assim mais condenou a Francisco. Furtado em cinco tostões por não ter
ainda a revista da petição de licença pelos os oficiais da Câmara dos seis
meses últimos do ano e assim mais condenou a José Nunes [...] em cinco
tostões por não ter almotaçado sal e bem assim achando-se o dito na casa
do Concelho adonde esse dito Almotacel o mandou vir e aos mais
sobreditos condenados para os exortar com seus ofícios e vendas publicas
nesta Vila para viverem com elas e seus ofícios como Deus manda e a
obrigação da Justiça para assim observarem falando o dito José Nunes na
presença desse dito Almotacel o mandou meter na enxovia [...].
215
214
PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Almuthasib: considerações sobre o direito de almotaçaria
nas cidades de Portugal e suas colônias. p.2. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbh/
v21n42/a06v2142.pdf>. Acesso em: 02 set. 2009.
215
Ibid., p.2-3.
71
Portanto, a almotaçaria remonta a um período em que o poder político é
plural e representado como "articulação (hierarquizada) deltiplosrculos autônomos
de poder (corpora, communitates), como as famílias, as cidades, as corporações, os
senhorios, os reinos, o Império" e que poderiam ser equiparados aos órgãos de um
ser vivo, pois embora desiguais entre si o essenciais ao funcionamento de um
todo e sem pretensões de igualdade.
216
Os almotacés parecem ser, portanto, o rudimento dos fiscais administrativos
e, em alguma medida, da polícia administrativa também, e sua atuação no antigo
regime deve receber a atenção de historiadores e juristas porque se mostram como
personagens importantes na história do Direito Administrativo brasileiro, porém, são
desconhecidos pela maior parte dos administrativistas ao menos não constam em
seus manuais, comprovando, assim, a lacuna que existe na abordagem histórica das
infrações administrativas.
Dito isso, mostra-se oportuna, para dar seguimento ao trabalho, a análise da
Direito Penal e do Ius Puniendi no período do antigo regime até o advento do Estado
de Direito, objeto do próximo item.
2.2.2 Direito Penal, Ius Puniendi e os grandes períodos de desenvolvimento da
solução institucional
Na história das instituições, há dois grandes períodos em que o sistema penal
alcançou um grande desenvolvimento, bem como a prisão
217
passou a desempenhar
um papel central na política criminal.
Para abordar esses dois períodos será utilizada como referência principal a
obra de Tomas Mathiesen "Prison on Trial" em que ele questiona se estamos a
adentrar em uma nova etapa do sistema punitivo.
218
216
PEREIRA,2009, p.14.
217
Sobre a aplicação de penas: BUSATO, P. C. Por que, afinal, aplicam-se penas?. In: SCHMIDT,
Andrei Zencker Schmidt (Org.). Novos rumos do direito penal contemporâneo. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006. (Livro em Homenagem ao prof. Dr. Cezar Roberto Bitencourt). p.511-524.
218
MATHIESEN, 1990, p.10.
72
O primeiro grande período em que houve um aumento da solão institucional
para problemas sociais ocorreu no fim do século
XVI
e durante o século
XVII
219
(que
coincide com o período histórico do Estado de Polícia).
Com a quebra da ordem social feudalista baseada na distribuição de terras
pelo senhor aos seus vassalos, a Europa encontrou-se, nesse momento histórico,
superpovoada por "desempregados pedintes e desocupados andarilhos"
220
que se tornou
um problema para o comércio e o modo de produção mercantilista e, o seu controle,
questão política. A solão para esse problema foi a institucionalizão desse grupo, ao
lado dos criminosos comuns, formando, assim, o primeiro estágio de desenvolvimento
das instituições sancionatórias para a resolução de novos problemas sociais.
221
A institucionalização justificou-se a partir do expressivo mero de desocupados
e pedintes nas cidades e nos centros europeus, pois os antigos métodos de punição
sozinhos não surtiriam efeito. Assim, esse grupo foi identificado e preso, e uma vez
institucionalizados (hospitais na França; zuchthäusern na Alemanha; tuichthuisen na
Holanda; correctional houses na Inglaterra e tukthus na Noruega) os indivíduos foram
colocados para trabalhar em uma atividade que fosse a mais lucrativa possível, o
219
Sobre esse primeiro período, Mathiesen recomenda a leitura das seguintes obras: (1) RUSCHE,
Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punishment and social structure. New York: Columbia University
Press, 1939 tem uma versão dessa obra em português que foi editada pela Revan na Coleção
Pensamento Criminológico (RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social.
2.ed. Tradução de Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004); (2) COLE, Charles Woosley.
Colbert and a century of french mercantilism. New York: Columbia University Press, 1939;
(3) SELLIN, Thorsten. Pioneering in penology: the Amsterdam Houses of Correction in the
sixteenth and seventeenth centuries. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1944;
(4) FOUCAULT, Michel. Madness and civilization. London: Tavistock, 1967; (5) WILSON,
Charles. The other face of mercantilism. In: COLEMAN, D. C. (Ed.). Revisions in mercantilism.
London: Methuen, 1969. p.18-139. (6) OLAUSSEN, Leif Petter. Avspeiler fengselsstraffen
arbeidsmarkedssituasjonen? (Does the use of imprisionment mirror the labour market situation?).
Sociologi I dag, n.4, p.32-9, 1976; (7) MATHIESEN, Thomas. Rett og samfunn (law and
society). 2.ed. rev. Oslo: Pax, 1977.
220
No original "unemployed beggars and vagrants", expressão que foi traduzida como "desempregados
pedintes e desocupados andarilhos" porque a definição de "beggars" em inglês aproxima-se da
ideia de pedinte, mendigo e "vagrant" tem por definição ser a) aquele que não tem residência fixa
e vagueia ociosamente de um lugar para outro sem meios legais ou visíveis de suporte; b) aquele
cuja conduta constitua "crime de vadiagem".
221
MATHIESEN, 1990, p.11. O autor, ainda, esclarece que se instaurou um grande debate acerca
das causas do aumento das instituições punitivas em mil e seiscentos após a edição de "Punição
e estrutura social" de Rusche e Kirchheimer em que enfatizaram as mudanças ocorridas no
mercado de trabalho como causa desse aumento, porém, como esses debates não eram o foco
de sua obra, assim como não o é do presente trabalho, será utilizada a mesma saída proposta
pelo autor: fazer referência às obras que se dedicaram ao estudo desse período, e que foram
mencionadas na nota n.
o
219, para maiores esclarecimentos.
73
que se coadunava inteiramente com a autossuficiência dessas instituições, o que
era uma característica da filosofia mercantilista da economia da época.
222
A segunda etapa ocorreu em mil e oitocentos, quando a maioria dos países
europeus estava entrando no modelo de produção verdadeiramente capitalista, o da
linha de produção, e que originou uma classe trabalhadora indigente, formalmente
livre e improvisada.
223
O crime, eno, estava enraizado na pobreza material e os métodos de punão
física não poderiam ser utilizados, pois "Parecia sem sentido utilizar espetaculares e
arbitrárias mutilões quando as pessoas estavam para ser adaptadas a pretensiosas e
detalhadas disciplinas de trabalho agora necessárias na indústria."
224
Assim, as novas e verdadeiras prisões disciplinares tão bem descritas por
Foucault com base na obra Panopticon de Jeremy Benthan
225
, datada de 1791
222
MATHIESEN, 1990, p.11-12.
223
Id.
224
Ibid., p.12. Tradução livre de: 'It seemed senseless to use spectacular and arbitrary mutilations
when people were to be adapted to the pedantic an detailed types of disciplined work now
necessary in production."
225
"Jeremy Bentham publica o Panopticon em 1791. Foucault considera esse projeto como o modelo
de prisão. Sob o Antigo Regime, a lei se baseava na soberania divina ou real. J. Benthan (1748-
1832) renovou a teoria jurídica fundamentando a lei no princípio de utilidade (ou de nocividade):
assim como, num mercado livre, o dinheiro mede o prazer, do mesmo modo a lei regulamenta as
trocas entre os indivíduos. Os que não respeitam a lei vão para a prisão."; "Na periferia do
Panopticon, uma construção em forma de anel, comportando células com duas janelas: de uma
torre central, um vigilante observa os prisioneiros sem ser visto. Eles estão separados uns dos
outros por paredes entre as células; estão sempre visíveis. O preso é 'objeto de uma informação,
jamais sujeito de uma comunicação' [FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução de Raquel
Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1977. p.202]. O essencial não é que ele seja realmente observado,
mas que possa sê-lo, por qualquer um e por qualquer motivo. A nova arquitetura da prisão
reiventa ou reproduz o modelo da menageire [*Menageire: local em que eram expostos animais
raros ou exóticos] que Le Vaux construíra em Versalhes, com a pequena diferença de que o salão
do rei se transformou na torre do vigia e que 'o animal é substituído pelo homem' [FOUCAULT,
Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1977. p.168]"; "Há esse
modelo e a prisão que existe historicamente... No Rasphuis de Amster(1596), a duração da
detenção é determinada em função do comportamento, o trabalho é obrigatório e o emprego do
tempo rigorosamente definido. Em Grand, o trabalho penal é organizado em torno de imperativos
econômicos; o 'reformatório' de Hanway (1775) acrescenta o isolamento na Filadélfia (Walnut
Street, 1790), os quacres acrescentam a não publicidade das penas, uma exortação religiosa e
um trabalho junto à alma do detento. A prisão é um aparelho de saber, cujo campo de referência
não é tanto o crime cometido quanto a alma do preso. Como o asilo de Pinel, a prisão de
Bentham encarcera para normalizar." (BILLOUET, Pierre. Foucault. Tradução de Beatriz Sidou.
São Paulo: Estação Liberdade, 2003. p.130-131).
74
surgiram como método para disciplinar os indivíduos mais pobres da nova classe
trabalhadora e trazê-los para a linha de trabalho.
226
Conclui Thomas Mathiesen que é possível constatar três pontos em comum
entre esses dois períodos e que também podem ser visualizados em nosso tempo e,
portanto, sugerem que estamos em uma terceira etapa no uso da solução institucional
penal, quais sejam: (1) o aumento da população carcerária em longo prazo
227
;
(2) aumento do significado da solução institucional como componente da política
criminal e (3) aumento na necessidade de disciplinar segmentos ou grupos da populão.
A busca pela solução institucional fez surgir na doutrina aquilo que se
convencionou chamar de ius puniendi, ou jus puniendi, que passou a ser invocado
como fundamento para a utilização do Direito Penal para a resolução de conflitos.
Consiste em um poder-dever de punição que emana para o Estado, seu titular
exclusivo, da norma penal incriminadora e que consiste no direito e dever de exigir
dos cidadãos que obedeçam a essas normas, sendo limitado pela prescrição, pela
decadência e pela perempção e que se abordado com mais vagar no próximo capítulo.
226
MATHIESEN, 1990, p.12-13.
227
Esse aumento da população carcerária pode sofrer uma queda diante de novas condições
históricas e foi característico nos dois primeiros estágios. Quanto à nomenclatura "etapa"
esclarece Mathiesen: "O conceito de etapa aqui utilizado o implica que o encarceramento
chegará a um novo e mais alto patamar que nas etapas anteriores, muito embora isso tenha sido
sugerido como uma possibilidade para alguns países (sobre os Estados Unidos, ver a obra de
Austin e Krisberg, 1985 [AUSTIN, James; KRISBERG, Barry. Incarceration in the United States:
the extent and the future of the problem. Annals of American Political and Social Science, n.478,
p.15-30, 1985]. O conceito de etapa sugere que um aumento dramático e de longo termo
apareça." Tradução livre de: "The concept of stage used here does not imply that incarceration
reaches a new and higher plateau than earlier stages, although this has been suggested as a
possibility for some countries (for the United States, see Austin and Krisberg, 1985 [AUSTIN,
James; KRISBERG, Barry. Incarceration in the United States: the extent and the future of the
problem. Annals of American Political and Social Science, n.478, p.15-30, 1985]). The concept of
'stage' only implies that a dramatic and long-term increase takes place."
75
2.3 CONFLITOS E CONTROLE SOCIAL
2.3.1 Controle social difuso e institucionalizado
Com apoio na doutrina de Fernando Navarro Cardoso, o estudo aqui consignado
tem por premissa que o controle social é necessário, pois todo processo de socializão
demanda que existam normas de conduta e saões negativas apliveis na hipótese
de violação dessas normas, acrescendo-se, ainda, a nosso ver, as sanções positivas
que fomentam a prática de determinadas condutas, e tudo isso pressupõe a existência
de um sistema jurídico que viabilize a prevenção e a resolução pacífica de conflitos.
228
Em situações de conflito, a solução institucional é apenas uma das possíveis,
como é possível demonstrar a partir do exemplo de cinco estudantes que moram
juntos e um deles golpeia e quebra a televisão e cada um deles responde a esse
fato de uma maneira diferente e que representam as soluções punitiva, reparatória,
terapêutica e conciliatória:
Um, furioso, declarará que não quer mais viver com o primeiro [que quebrou
o televisor]; outro reclamará que pague o dano ou compre outro televisor
novo; outro afirmará que seguramente não esem seu perfeito juízo; e o
último observará que, para que tenha lugar um fato desta natureza, algo
deve andar mal na comunidade, o que exige um exame comum de
consciência (HULSMAN).
229
O controle social reflete a estrutura do poder em uma sociedade e, ao estudar-se
o controle social, descobre-se qual é essa estrutura. Diante da exteno e complexidade
desse fenômeno, é de acordo com a utilização de meios mais ou menos difusos de
controle social que se descobre se uma sociedade é mais ou menos autoritária, não
apenas em vista do controle social institucionalizado.
230
228
CARDOSO, 2001, p.26-27.
229
ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p.57.
230
Ibid., p.59.
76
Portanto, soluções formais e informais que podem ser diferenciadas a
partir de certos critérios, em cujo âmbito pode-se optar por uma resposta punitiva,
reparatória, terapêutica e conciliatória.
Os meios de massa, família, modas etc. realizam o controle social difuso e o
institucional pela igreja, polícia, pelos tribunais, pelos hospitais psiquiátricos, orfanatos,
asilos, pelas instituições de ensino etc.
Ainda, o controle social institucionalizado pode ser não punitivo (o direito
privado é um exemplo); punitivo com discurso não punitivo (práticas psiquiátricas,
institucionalização de velhos etc) e punitivo com discurso punitivo (sistema penal).
231
Dentre os sistemas formais, destaca-se, de acordo com Navarro Cardoso, o que
chamou de sistema jurídico-sancionador que tem como características fundamentais –
e à margem de discussões mais ou menos terminológicas ser institucional, formal
e dinâmico
232
. Um sistema é institucional porque se caracteriza como um órgão de
controle que tem como atividade principal, quando não única, o exercício monopolizado
desse controle; é formal porque um conjunto de normas escritas que regulam o
exercício da atividade de controle e, por último, é dinâmico porque há uma integração
entre os distintos sistemas de controle social, de sorte que cada um deles constitui
uma "peça da engrenagem".
233
,
234
Para os espanhóis, esse sistema jurídico-sancionador possui como manifestações
o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal que, como expressões de um
mesmo sistema,
235
compartilham, em essência, os mesmos objetos de tutela.
236
,
237
231
ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p.65.
232
CARDOSO, 2001, p.27
233
Id., nota 46.
234
Sobre o sistema jurídico-sancionador, devem ser consultados para maiores esclarecimentos:
BUSTOS RAMÍRES, J.; HORMAZÁBAL MALARÉ, H. Lecciones de Derecho Penal. Madrid:
Trotta, 1997. v.1. p.18-19; MIR PUIG, S. Derecho Penal: parte general. 4.ed. Barcelona: Bosch,
1996. p.5.
235
Essa ideia será retomada e desenvolvida com mais vagar no pximo capítulo quando forem apresentadas
as diferenças entre infrações administrativas e penais e as teorias unitárias do ius puniendi.
236
A concepção de que o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador compartilham o mesmo
objeto de tutela é apresentada aqui exemplificativamente e não constituiu, neste momento, um
posicionamento da autora sobre o tema que será abordado no próximo capítulo, ao analisar-se a
queso do bem jurídico e sua eventual relação com os direitos fundamentais e os valores constitucionais.
237
CARDOSO, op. cit., p.27
77
Esse posicionamento explica-se, em parte, porque o artigo 25.1 da Constituição
Espanhola de 1978 atualmente em vigor prevê que ninguém poderá ser
condenado ou sancionado por ação ou omissão que, no momento em que forem
cometidas, não constituam um delito, uma falta ou uma infração administrativa, de
acordo com a legislação em vigor.
238
O sistema de controle social institucional típico é o sistema penal. Mas antes
de adentrar na questão dos seus discursos, deve-se destacar que ele possui duas
acepções, sendo uma mais ampla e outra mais restrita, podendo ser definido, de
acordo com Zaffaroni e Pierangeli, da seguinte maneira:
Chamamos 'sistema penal' ao controle social punitivo institucionalizado, que
na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma
suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma
atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a
atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação.
Esta é a idéia geral de 'sistema penal' em um sentido limitado, englobando a
atividade do legislador, do público, da polícia, dos juízes, promotores e
funcionários e da execução penal.
Em um sentido mais amplo, entendido o sistema penal tal como temos
afirmado como 'controle social punitivo institucionalizado', nele se incluem
ações controladoras e repressoras que aparentemente nada têm a ver com
o sistema penal.
239
Ainda, como formalmente punitivo, importa registrar aqui os propósitos da
punição infligida pelo Direito Penal, de acordo com a Teoria Penal Cssica e que, em
alguma medida, poderão ser aplicáveis em sede de Direito Administrativo Sancionador,
se considerarmos a possibilidade de, eventualmente, existir um sistema jurídico-
sancionador que abarque tanto o Direito Penal quanto o Direito Administrativo
Sancionador, como já se reconhece no direito espanhol.
238
Tradução livre de: "25.1.Nadie puede ser condenado o sancionado por acciones u omisiones que
en el momento de producirse no constituyan delito, falta o infracción administrativa, según la
legislación vigente en aquel momento."
239
ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p.66.
78
2.3.2 O controle social institucionalizado do sistema penal e as teorias quanto ao
propósito da punição
Para impor sanções negativas como conseqüências jurídicas atribuíveis aos
sujeitos que cometem condutas vedadas pelo ordenamento jurídico, a Teoria Penal
Clássica desenvolveu construções quanto ao propósito da punição e que podem ser
divididas em dois grandes grupos: as teorias de defesa social e as de retribuição.
De acordo com as Teorias Penais de Defesa Social, a punição não possui
um valor em si mesma, mas apenas se utilizada como defesa social, ou seja, como
meio de protão da sociedade contra o crime, sendo essa a rao de serem chamadas
de teorias penais relativas. Podem ser divididas em dois subgrupos de teorias: as de
prevenção geral e as de prevenção especial ou individual.
240
As teorias retributivas consideram que a punição tem um valor intrínseco e,
por isso, são chamadas de teorias penais absolutas. dois tipos de teoria de
retribuição: aquelas que consideram que a punição deve ser estabelecida entre o mal
causado e a punição em questão, em que reina a Lei de Talião, e aquelas baseadas
na culpa moral e a punão deve ser reflexo de um princípio moral mais compreensivo,
imperando o princípio da culpabilidade.
241
As teses de prevenção geral e especial recebem muitas críticas, inclusive de
Eugenio Raúl Zaffaroni e de JoHenrique Pierangeli, e, apesar delas, podemos
identificar que tanto a prevenção geral como a prevenção especial podem se apresentar
de forma positiva ou negativa.
Em linhas gerais, a prevenção penal geral é fundada em mecanismos
inconscientes da multidão anônima como explicam os supracitados autores:
[...] o homem respeitador do direito sente que reprimiu tendências que o
outro não reprimiu, que se privou do que outro não se privou, e experimenta
inconscientemente como inútil o sacrifício de uma privação a que o outro
não se submeteu. Inconscientemente, quem se reprimiu clama por vingança,
e daí que o passo da prevenção geral à vingança nunca seja de todo claro e
que a prevenção geral sempre encerre um conteúdo vingativo.
242
240
MATHIESEN, 1990, p.17.
241
Ibid., p.17-18.
242
ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p.104.
79
Na prevenção geral negativa, também chamada de prevenção geral de
intimidação, as penas servem para assustar as pessoas, com a ameaça das penas em
abstrato para que não cometam crimes, tendo como representantes desta ideologia
Beccaria e Feuerbach.
a prevenção geral positiva, que pode ser chamada de prevenção geral de
integração, prega que as penas cominadas em abstrato devem reforçar o sentimento
de crença na vigência e validade do Direito de acordo com o pensamento de Durkheim,
Jakobs e Figueiredo Dias.
A prevenção especial é a que se opera com a pessoa que desrespeitou a
norma de natureza penal. "É a alternativa que resta frente à rejeição da finalidade de
prevenção geral" sendo a prevenção penal um sinônimo de prevenção especial e
não uma classe qualquer desta.
243
Zaffaroni e Pierangeli apontam quanto à prevenção especial que:
a) Em princípio, a prevenção especial penal não pode consistir em qualquer
constrangimento sico, como a chamada "pena de morte", as mutilações,
os controles eletrônicos ou químicos, o encarceramento como mero
constrangimento etc. [...]
b) Tampouco pode consistir em nenhuma reeducão" nem em um "tratamento"
que pretenda visualizar o homem como um ser carente em sentido "moral"
ou "médico" (sentidos que costumam confundir-se, porque o "tratamento"
psiquiátrico costuma ter um conteúdo moralizante, ainda que encoberto
pela terminologia técnica). O criminalizado é uma pessoa com plena
capacidade jurídica, à qual não se pode olhar "de cima", e sim em um
plano de igualdade frente à dignidade da pessoa, que não pode ser
afetada por conceito algum. O direito penal de um Estado respeitoso dos
Direitos Humanos de modo algum pode considerar o criminalizado como
um ser em condições de inferioridade, o que seria sempre causa de uma
ingerência desmedida em sua pessoa.
c) Dado que cada delito tem um significado social diferente e que a
criminalização é produto de um processo seletivo, a prevenção especial
penal não pode ser rígida, mas deve traduzir-se em uma pluralidade de
objetivos concretos, que devem adequar-se a cada situação.
Socialmente, cada criminalização é uma forma de manifestar um conflito
e cada conflito tem particularidades próprias. A prevenção especial deve
ser um meio prático de resolver tais conflitos, pois toda rigidez apodíctia
tende a cair na ficção e a mascarar o conflito.
d) A plasticidade da prevenção especial penal deve permitir uma pluralidade de
solões que possibilite selecionar o sentido mais adequado às características
do conflito manifestado na criminalização.
244
243
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro:
parte geral. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p.108.
244
Id.
80
Na prevenção especial também se pode falar em positiva e negativa, sendo
que esta consiste na eliminação do criminoso por meio da pena de morte ou por
meio de uma restrição na sua liberdade para coibir a possibilidade de que ele volte a
cometer crimes, sendo que a pena de morte, embora condenada pelos autores
acima referidos, é mantida em vários países do mundo como os Estados Unidos, a
China, a Tailândia, Singapura, dentre outros. Já naquela, também chamada de
prevenção especial de reintegração, a condenação em pena de prisão ou outra e
muito em especial a execução da pena devem ter como objetivo fundamental a
reintegração do delinquente na sociedade.
2.3.3 As críticas da criminologia ao sistema punitivo
Juarez Cirino dos Santos observa que o Direito é uma "relação social objetiva"
que possui uma função ideológica aparente, de acordo com a qual sua atribuição é a
de traçar os contornos da igualdade e da liberdade, e funções reais ocultas de "[...]
instituição e reprodução das relações sociais de produção: a desigualdade das
relações de classe (exploração) e a coação das relações econômicas (dominação) é
o conteúdo instituído e reproduzido pela forma livre e igual do Direito."
245
Isso posto, a criminologia radical trabalha com a identificação dos objetivos
reais e ocultos do sistema punitivo, diferenciando-os dos objetivos ideológicos aparentes
e que levam às hipóteses de seu trabalho teórico sobre o crime e o controle social,
quais sejam:
A inserção metodogica da política de controle do crime nas relações estruturais
da formação social permite erigir as seguintes hipóteses radicais de trabalho
teórico: a) todo sistema de produção adota o sistema de punição que
corresponde às suas relações produtivas, ou inversamente, todo o sistema
punitivo se enraíza no sistema de produção da estrutura econômica da
245
SANTOS, J. C., 2008a, p.129.
81
sociedade; b) o mercado de trabalho é a principal categoria explicativa do
sistema punitivo, mostrando que em situação de força de trabalho insuficiente
os sistemas econômico e punitivo a preservam; ao contrário, em situação de
força de trabalho excedente os sistemas econômico e punitivo a destroem.
246
Para a criminologia radical, o sistema punitivo formado pela polícia, pela
justiça e pela prisão é considerado o mais importante aparelho de controle social e
"reproduz as condições de produção da fábrica, baseadas na separação trabalhador/
meios de prodão", enquanto as outras formas de controle social buscam a formação
de uma massa de trabalhadores que seja adequada aos processos de produção.
247
Juarez Cirino dos Santos consigna que as transformões que hoje observamos
no sistema de controle socialo fruto das contradições entre esse sistema e a estrutura
de classes, pois a prisão, ao praticamente abandonar a ideologia do tratamento,
mostra-se como um instrumento de terror que se amplia para os setores produtivos
da sociedade.
248
Portanto, foi desenvolvida pela criminologia radical uma política criminal
alternativa que propõe, dentre outras coisas
249
, a penalizão da criminalidade econômica
e política
250
e a despenalização da criminalidade patrimonial
251
.
246
SANTOS, J. C., 2008a, p.128.
247
Ibid., p.130-131.
248
Ibid., p.131.
249
"A política criminal alternativa da Criminologia Radical, como meio de reduzir as desigualdades de
classes no processo de criminalização e de limitar as conseqüências de marginalização social do
processo de execução penal, distingue a criminalidade das classes dominantes, entendida como
articulação funcional da estrutura econômica com as superestruturas judico-políticas da sociedade,
de um lado, e a criminalidade das classes dominadas, definida como resposta individual inadequada
de sujeitos em posição social desvantajosa, de outro lado, propondo o seguinte:
a) No processo de criminalização, (1) a penalização da criminalidade econômica e política das
classes dominantes, com a ampliação do sistema punitivo e (2) a despenalizão da criminalidade
pica das classes e categorias sociais subalternas, com contração do sistema punitivo e substituição
de sanções estigmatizantes por não-estigmatizantes;
b) No processo de execução penal, mediatizada pela mais ampla extensão das medidas alternativas
da pena e pela abertura do cárcere para a sociedade, a abolição da prisão: se o crime é resposta
pessoal de sujeitos em condições sociais adversas, a correção do criminoso e a prevenção do
crime depende do desenvolvimento da consciência de classe e da reintegração do condenado
nas lutas econômicas e políticas de classe.
São tarefas complementares da política criminal alternativa da Criminologia Radical (a) conjugar
os movimentos de presos com as lutas dos trabalhadores, (b) inverter a direção ideológica dos
processo de formação da opinião pública pela intensificação da produção científica radical e
difusão de informações sobre a ideologia do controle social; (c) coordenar as lutas contra o uso
capitalista do Estado e a organização capitalista do trabalho e (d) desenvolver o contrapoder
proletário." (Ibid., p.131-132).
82
A teoria criminológica da rotulação
252
, interacionista ou da reação social,
também conhecida por sua designação americana de "labelling approach"
253
, parte
do pressuposto de que todos no corpo social têm impulsos e realizam condutas que
violam os parâmetros normativos e elabora uma "concepção do mundo" dualista:
250
Sobre a criminalização das classes dominantes: (1) BIGAUT, Christian. La Responsabilinale
des Hommes Politiques. 1.ed. 1996. (Colão: SYSTEMES); (2) CASTILHO, Ela Wiecko de. O
controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional: Lei n.
o
7.492, de 16 de junho
de 1986. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
251
Silva Sáches escreveu que, muito embora não seja um tema novo, de tempos em tempos esse
tema volta a ser discutido na doutrina. Trata-se da despenalização das faltas (que traduzo como
correspondente às contravenções, pois possuem a mesma estrutura de um delito, porém, em
vista de sua menor gravidade, são "rotuladas" pelo legislador como faltas e, como consequência,
são atribuídas penas de menor gravidade como a de multa e as restritivas de direitos), assim
como as imprudências leves como uma das formas de desafogar a jurisdição penal. O autor
preocupa-se, principalmente no que concerne aos delitos de imprudência que a sua despenalização
deles culmine na diminuição do aspecto preventivo, ainda que entre em cena o Direito Administrativo
Sancionador combinado com um Direito Civil de danos, além de que, na perspectiva processual a
carga probatória seja menos rigorosa que no Direito Penal, da perspectiva da vítima, que além de
não mais contar com o aparato estatal para defendê-la inclusive no que diz respeito à produção
probatória –, estará sozinha contra a outra parte, que no caso, provavelmente, será uma
companhia de seguros. Assim, questiona se a combinação do Direito Administrativo com o Direito
civil de danos poderá ser um equivalente funcional do Direito Penal nessas situações, registrando,
por fim, que a despenalizacão das imprudências leves precisa de um debate mais profundo do
que apenas servir de efeito de esvaziar a administração da justiça penal. (SILVA SÁNCHEZ,
Jesús-María. ¿Despenalización de las imprudencias leves? Disponível na internet:
<http://www.raco.cat/index.php/InDret/article/view/141385/192896>).
252
A concepção de crime como produto de normas (criação do crime) e de poder (aplicação das
normas) define a lei e o processo de criminalização como 'causas' do crime, rompendo o esquema
teórico do positivismo e dirigindo o foco para a relação entre estigmatização criminal e formação
de carreiras criminosas: a criminalização inicial produz estigmatização que, por sua vez, produz
criminalizações posteriores (reincidências). O rótulo criminal, principal elemento de identificação
do criminoso, produz as seguintes conseqüências: assimilação das características do tulo pelo
rotulado, expectativa social de comportamento do rotulado conforme as características do rótulo,
perpetuação do comportamento criminoso mediante formação de carreiras criminosas e criação
de subculturas criminais através de aproximação recíproca dos indivíduos estigmatizados
(ANIYAR [DE CASTRO, Lola. Criminologia de la reacción social. Maracaibo: Universidad del
Zulia]1977, p.111-114). De certa forma, a estigmatizão penal é a única diferença entre comportamentos
objetivamente idênticos, porque a condenação criminal depende, além das distorções sociais de
classe, de circunstâncias de sorte/azar relacionadas a estertipos criminais, que cumprem fuões
sociais definidas: o criminoso estereotipado é o 'bode expiatório' da sociedade, objeto de agressão
das classes e categorias sociais inferiorizadas, que substitui e desloca a sua revolta contra a
opressão e exploração das classes dominantes (Chapman, [Dennis. Sociology and the stereotype
of the criminal. Londres: Tavistock Publications] 1968, p.1997)." (SANTOS, J. C., 2008a, p.20).
253
"Labelling" corresponde, em português, ao verbo "etiquetar" e que possui dois significados, de
acordo com a consulta do dicionário online Priberam desse vacábulo: "1.pôr etiqueta ou rótulo
em" e "2-Atribuir uma designação ou uma característica definidora a, geralmente de maneira
redutora". Disponível na internet: «http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=etiquetar». o
"approach" é algo como um ato de aproximação; corresponde aos passos preliminares em busca
de um objetivo em particular (tradução nossa, baseada na consulta do vocábulo "approach" no
dicionário online disponível na internet: <http://www.merriam-webster.com/dictionary/approach%
5B2%5D>).
83
as pessoas definidas como desviantes e as que definem o que é o comportamento
que diverge do padrão estabelecido e que, por sua vez, estabelecem o que é esse
padrão
254
, "selecionando a clientela do sistema penal a pretexto de suas
condutas"
255
, e é construída a partir de dois conceitos principais:
1) a existência do crime depende da natureza do ato (violação da norma) e
da reação social contra o ato (rotulação): o crime 'não é uma qualidade
do ato, mas um ato qualificado como criminoso por agências de controle
social'(Becker, [Howard. Outsiders studies in the sociology of deviance.
New York: Free Press] 1963, p.8.);
2) não é o crime que produz o controle social, mas (freqüentemente) o
controle social que produz o crime: a) comportamento desviante é
comportamento rotulado como desviante; b) um homem pode se tornar
desviante porque uma infração inicial foi rotulada como desviante; c) os
índices de crime (e desvio) são afetados pela atuação do controle social
(Lemert, [Edwin. Human deviance, social problems and social control.
New York: Free Press] 1964). A teoria da rotulação distingue entre
desvio primário, um processo de natureza 'poligenética' excluído do
esquema explicativo das teoria, e o desvio secundário, uma resposta
seqüencial à criminalização pelo desvio primário, que marca o
comprometimento do criminalizado em uma 'carreira desviante', como
impacto pessoal de reação oficial na verdade, o ponto de incidência
das análises da teoria.
256
Assim sendo, os delitos penais – e por que não dizer, os ilícitos administrativos –
não existem sociologicamente se não utilizarmos, para lhes conferir certa "unidade',
a característica de que se tratam de conflitos solucionados institucionalmente:
[...] 'o delito' não existe sociologicamente se prescindirmos da solão institucional
comum. Na realidade social existem condutas, ações, comportamentos que
significam conflitos que se resolvem de um modo comum institucionalizado, mas
que isoladamente considerados possuem significados completamente diferentes.
Não é isso o que observamos, mas, também em relação às mesmas
condutas que geram conflitos com soluções institucionais idênticas, vemos
que as instituições operam de forma diferente [...] [e] na imensa maioria dos
casos a solução comum institucional não se justifica [...].
257
254
SANTOS, J. C., 2008a, p.18.
255
Frase muito utilizada por Juarez Cirino dos Santos no curso de Especialização em Direito Penal e
Criminologia promovido pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal e Universidade Federal
do Paraná durante o ano de 2007.
256
SANTOS, J. C., op. cit., p.19-20.
257
ZAFFARONI; PIERANGELI, 2009, p.55.
84
Portanto, pode-se dizer que os delitos e as infrações administrativas têm
como característica a temporalidade, ou seja, determinadas condutas são consideradas
socialmente indesejáveis em um dado período histórico, um determinado território e
em relão a pessoas que possuem uma certa formação cultural, pois aquilo que hoje
se considera inadmissível, poderá, "amanhã", ser considerado perfeitamente legal.
Assim, o aumento da necessidade de proteção na sociedade pós-industrial
culmina na alteração das técnicas legislativas e gera problemas estruturais no Direito
Penal de tradição garantista
258
e que serão abordados no item subsequente.
2.4 A "CRISE" DO DIREITO PENAL, A PROPOSTA DE UM "DIREITO DE
INTERVENÇÃO" E A CRIMINALIDADE ECONÔMICA
2.4.1 A "crise" do Direito Penal e as vias de superação
De acordo com Winfried Hassemer, observa-se hoje no Direito Penal um
fenômeno batizado por Horkheimer e Adorno como a "dialética da ilustração"
259
que
pode ser concebida como a "dialética da modernidade". Tal fenômeno expressa
um Direito Penal moderno que se desenvolveu até um ponto em que se tornou
contraproducente, anacrônico.
260
258
Sobre garantismo e funcionalismo ver BUSATO, P. C. Modernas teorias do delito: Funcionalismo,
significado e garantismo. In: BITENCOURT, Cezar Roberto (Org.). Direito penal no terceiro
milênio: estudos em homenagem ao Prof. Francisco Muñoz Conde. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007. v.1. p.605-638.
259
Para saber mais sobre a dialética da ilustração, mais conhecida por dialética do esclarecimento,
ver as obras: (1) ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de
Janeiro: Zahar, 2006 e (2) NOBRE, 2004, p.48-52.
260
HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal. Revista de Estudos
Criminais, ano 2, n.8, p.54, 2003.
85
O Direito Penal clássico tem tradição na filosofia potica do Iluminismo, pois
fora desenvolvido a partir do Direito Natural e no seio das Teorias Contratualistas
261
baseadas na obra de Rousseau. Esse direito possui um centro ideal, ao qual
pertencem as tradições democráticas da determinação e da subsidiariedade do
Direito Penal. No clássico, o crime de dano é a forma normal de comportamento
delitivo, enquanto o moderno âmbito desta ciência afasta-se do referido centro ideal
numa velocidade crescente, levando o Direito Penal a problemas específicos, como,
por exemplo, algumas implicações no princípio da legalidade que serão abordadas
neste item.
262
Três importantes consequências e limites estabelecidos para o Direito Penal
apareceram nesta tradição iluminista, quais sejam:
1) Somente pode valer como ato punível a lesão às liberdades asseguradas
pelo contrato social. O bem jurídico conserva um lugar sistemático como
critério negativo de criminalização legítima: sem uma lesão palpável a
um bem jurídico, não há ato punível.
2) Os limites da renúncia à liberdade contratual devem ser compostos de
modo absoluto. As revisões posteriores destes limites à intervenção
social ou executiva nos pactos sociais devem ser renunciadas sob todas
as circunstâncias. Inclusive os limites da renúncia recíproca à liberdade
não podem depender da força da interpretação de um terceiro, nem do
Judiciário e nem do Executivo. Com isso alimenta-se a tradição do
positivismo legalista, declaram-se, contemporaneamente, proibições às
interpretações e aos comentários; e a exigência de determinação do
Direito Penal adquire seu sentido pleno.
3) O Estado é uma instituição derivada dos direitos dos cidadãos e deve
fundamentar-se e limitar o seu poder pelos direitos dos cidadãos. O
contrato social não comporta nenhum poder originário e usurpador. Por
isso, o poder do Estado, particularmente no Direito Penal - onde se
mostra de modo particularmente nítido deve se vincular e se conceber,
em princípio, pelos direitos do indivíduo: eles o postergam, A partir d
declaram-se. Por exemplo, princípios jurídico-penais como o in dúbio pro
reo, o direito ao recurso, à defesa, ao silêncio, princípios como o da
subsidiariedade ou da proporcionalidade.
Pela concepção clássica, o Direito Penal é, na verdade, um meio violento,
mas é ao mesmo tempo um instrumento da liberdade civil. É, por isso,
irrenunciável para o convívio dos homens, e deve, sem dúvida, ser colocado na
corrente, pois não pode se tornar independente. Não é nenhum passaporte,
mas apenas o último meio (ultima ratio) de solução dos problemas sociais.
263
261
Segundo as Teorias Contratualistas baseadas no pensamento de Jean-Jacques Rousseau de
que o Estado é criado pelos homens por meio de um contrato social para que ele seja um
instrumento de garantia dos direitos inatos (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: ou
princípios do direito político. Tradução de Pietro Nassetti. Coleção a obra-prima de cada autor.
São Paulo: Martin Claret, 2000).
262
HASSEMER, 2003, p.55.
263
Ibid., p.57.
86
o Direito Penal atual tem atuação e pensamento jurídico-penal dirigidos a
concepções metafísicas, uma metodologia empírica e orientação pelas consequências.
Favorece ideias teórico-preventivas e retributivas, bem como tenta vincular o legislador
penal tornando suas decisões controláveis por princípios como, por exemplo, o da
proteção do bem jurídico e o da legalidade.
264
Tendo em vista isso tudo, constata-se um paradigma com raízes no
pensamento filosófico ocidental moderno, a partir do século
XVII
. Tais raízes podem
ser vislumbradas no racionalismo cartesiano e no individualismo liberal, sendo que,
por outro vértice, no âmbito jurídico-penal, deve ser reivindicada a filiação deste
paradigma a muitas das teses pertencentes ao Movimento do Iluminismo Penal, em
particular, às da função exclusivamente protetiva do Direito Penal.
As três principais teses que consubstanciam essencialmente o paradigma
penal da transição do século, segundo o português Jorge de Figueiredo Dias, são a
atribuição de um papel de destaque à política criminal ao definir aquilo que deve ou
não ser objeto de proteção; que a proteção penal dedica-se à tutela exclusiva de
bens jurídico-penais fundamentais à vida comunitárias e que a pena deve ser
imputada dentro do limite máximo permitido pela culpa.
265
264
HASSEMER, 2003, p.55.
265
"1.
a
tese ("A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e
a reintegração do agente na sociedade") Na inter-relação das três disciplinas que formam a
"ciência conjunta do direito penal" correspondente a um entendimento renovado da gesamte
Dtrafrechtswissenschaft de que um século falou v. Liszt o primeiro e indisputável lugar deve
ser concedido à política criminal. Por duas razões principais: porque é à política criminal que
pertence hoje definir o se e o como da punibilidade, isto é, nesta acepção, os seus limites; e
porque (de algum modo, conseqüentemente) os conceitos básicos da doutrina do facto punível,
muito para além de serem "penetrados" ou "influenciados" por considerações político-criminais,
devem pura e simplesmente ser determinados e cunhados a partir de proposições político-
criminais e da função que por estas lhes é assinalada no sistema. [...] 2.
a
tese ("Em caso algum a
pena pode ultrapassar a medida da culpa") – Função do direito penal é, exclusivamente, a
protecção subsidiária de bens jurídicos. Devendo sublinhar-se que não se trata da tutela de
quaisquer bens jurídicos, mas de bens jurídico-penais, entendendo por tais os bens jurídicos
fundamentais à vida comunitária e ao livre desenvolvimento da pessoa e que, por isso mesmo,
hão-de encontrar refracção no texto e na intencionalidade da Constituição, em matéria de direitos
individuais, seja de direitos sociais, seja de organização política e económica. [...] 3.
a
tese
("A medida de segurança pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do ilícito e à
periculosidade do agente") A aplicação de pena e medidas de segurança é comandada
exclusivamente por finalidades de prevenção, nomeadamente da prevenção geral positiva ou de
integração e da prevenção especial positiva ou de socialização; a culpa segundo a função que lhe
é político-criminalmente determinada, constitui somente condição necessária de aplicação de
pena e limite inultrapassável da sua medida. Dentro do limite máximo permitido pela culpa, a pena
deve ser determinada no interior de uma "moldura de prevenção geral positiva", cujo limite
superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é
87
Esse novo paradigma leva aos seguintes questionamentos:
Estará ele (novo paradigma) destinado a acompanhar-nos no novo século e
no novo milênio? Ou haverá no horizonte sinais da necessidade de uma
nova revolutio nas concepções básicas, nomeadamente no que toca ao
modo de produção da legislação penal, à função deste ramo de direito no
sistema social e às finalidades a assinalar à aplicação dos seus instrumentos
naturais, as penas e as medidas de segurança? E conseqüentemente, sinais
de uma "nova" política criminal e de uma "nova dogmática jurídico-penal?
266
Essas mudanças são um reflexo daquilo que o sociólogo Ulrich Beck
267
chama de "sociedade de risco" e que leva o Direito Penal a problemas novos e que
considera como incontornáveis
268
. Aponta o sociólogo uma mudança radical naquela
sociedade industrial, protegida por um Direito Penal liberal e antropocêntrico, em que
os riscos para a existência, individual ou comunitária, advinham apenas de fatos
naturais contra os quais nada se podia fazer ou de ações humanas próximas e
definidas que podiam ser contidas pela tutela penal dos bens jurídicos clássicos
como a vida, o corpo, a saúde, o patrimônio, a propriedade, por outra sociedade
excessivamente tecnológica, massificada e global, na qual a ação humana é muitas
vezes anônima, podendo causar riscos globais, com capacidade de ocorrerem num
tempo e lugar amplamente distanciados
269
da ação que lhes deu causa, podendo ter
como consequência, inclusive, a extinção da vida.
270
constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura
de prevenção geral positiva a medida da pena será encontrada em função de exigências de
prevenção especial, máxime, de socialização." (DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da
doutrina penal. Portugal: Coimbra Editora, 2001. p.155-157).
266
Ibid., p.157.
267
BECK, 1986 apud Ibid., p.158.
268
Id.
269
Conferir, a este respeito, o artigo de: GAUER, Ruth M. Chittó. Conhecimento e aceleração: mito,
verdade e tempo. Separata de: Revista de História das Idéias, v.23. Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, 2002. p.85-96.
270
DIAS, op. cit., p.158.
88
Posto isso, questiona Figueiredo Dias:
Como pode continuar a manter-se a idéia que todavia, uma vez mais,
parece implantada mesmo no cerne do princípio da culpa de que o delito
doloso de acção constitui a forma "normal" e paradigmática de
aparecimento do crime, quando a contenção dos grandes riscos exige, pelo
contrário, uma criminalização expansiva dos delitos de negligência e de
omissão? Como poderão finalmente para não alargar em demasia o rol
das dificuldades manterem-se os princípios que presidem à definição da
autoria singular, quando, como ficou para trás assinalado, existirá as mais
das vezes uma radical distância temporal e espacial entre a acção e o
resultado (trate-se de resultado de dano ou de resultado de perigo) em que
se consubstanciam e se exprimem os grandes riscos?
271
E assim sendo, em relação ao paradigma penal atual, Figueiredo Dias aponta
algumas vias de superação do paradigma penal atual e suas respectivas críticas.
a) A restrição da função penal à tutela de direitos individuais
A primeira via de superação do paradigma penal atual é a da restrição da
função penal à tutela de direitos individuais
272
. Esta é a postura dos Teóricos Críticos
do Direito Penal, que defendem a necessidade de o Direito Penal atuar apenas em
seu âmbito clássico de tutela de direitos individuais juntamente com seus critérios
experimentados de aplicação. Isto porque o Direito Penal não pode ser um
instrumento de tutela perante os riscos da sociedade atual, sob pena de nada
ganhar em uma proteção pessoal e social efetiva e se perder a defesa dos direitos,
das liberdades e das garantias o inerentes ao Iluminismo Penal. Recusam,
portanto, a construção do "Direito Penal de Risco", sendo que as condutas de risco
devem ser tuteladas por outros ramos jurídicos. A alternativa de outro ramo jurídico
sugerida para tutelar tais riscos inerentes à sociedade pós-industrial seria a criação
de um novo ramo jurídico chamado "direito de intervenção".
273
,
274
271
DIAS, 2001, p.160/161.
272
Os direitos individuais referidos dizem respeito àqueles constitucionalmente assegurados, pois o
trabalho tem como pressuposto teórico o movimento de constitucionalização do Direito Penal.
273
DIAS, 2001, p.164/165.
274
Em nota de rodapé afirma o autor que a posição estampada neste parágrafo é uma síntese das
ideias defendidas por muitos autores, dentre eles W. Hassemer e F. Herzog.
89
Esse "direito de intervenção", na verdade, seria um novo ramo da Ciência
Jurídica situado entre o Direito Civil e o Direito Púbico
275
, visto que a tutela jurídico-
penal não pode funcionar na primeira linha de combate a condutas ilícitas devendo,
por seu caráter de fragmentariedade, surgir subordinada a uma exigência de que
abarque apenas as ofensas inadmissíveis e, por isso, esteja sujeita a uma estrita
assessoriedade, o que também o pode ser confundido com a atribuição de sanções
administrativas, ainda que intensificadas, a condutas que se mostrem socialmente
inadmissíveis, o que poderia desvirtuar completamente o prinpio da subsidiariedade
penal, conforme explica Jorge de Figueiredo Dias
276
:
[...] até um ponto em que uma tal solução significara nada menos que por o
princípio jurídico-penal da subsidiariedade ou de ultima ratio "de pernas pro
ar", ao subtrair à tutela penal precisamente as condutas socialmente tão
gravosas que põem simultaneamente em causa a vida planetária, a
dignidade das pessoas e a solidariedade com as outras pessoas as que
existem e as que hão de vir.
277
Afirma Winfried Hassemer que a Teoria Crítica do Direito Penal tem como
base três exposições literárias: a tese de doutorado de Felix Herzog e dois estudos
de Hassemer: um sobre prevenção, publicado na revista Jus Ensino Jurídico em
1987, e outro sobre a natureza simbólica do Direito Penal, que fora publicado na
Nova Revista de Direito Penal, em 1989.
Stratenwerth aponta duas considerações sobre a via de superação
apresentada pelos Teóricos Críticos do Direito Penal: o não reconhecimento da
necessidade de superação da razão técnico-instrumental na pós-modernidade e o
que ele denomina de "índole moral":
[...] não valerá a pena, nem sequer será socialmente aceitável, o cultivo de
um direito penal que, seja em nome de que princípios for, se desinteresse
275
SILVA SÁNCHEZ, 2002, p.140.
276
DIAS, op. cit., p.166/167.
277
Id.
90
da sorte das gerações futuras e nada tenha para lhe oferecer perante o
risco existencial que sobre elas pesa.
278
Além das considerações feitas acima, que se observar que o próprio
princípio da subsidiariedade e fragmentariedade da intervenção penal estabelece um
papel fundamental a meios não penais e mesmo não jurídicos no controle dos riscos
que pesam sobre a humanidade. Porém não se pode admitir uma postura que
esqueça que para isso o necessárias normas de comportamento aplicáveis aos
casos mais graves para que se opere uma prevenção minimamente eficaz por meio
da punição criminal das suas violações, afinal, é este o papel do Direito Penal.
No entanto, há que se atentar para o fato de que muito embora em determinados
casos outros ramos do direito são ineficazes para coibir determinadas condutas, mas
outros em que uma sanção administrativa é mais eficaz que o próprio Direito
Penal, pois este é a ultima ratio, a contenção do sistema jurídico quando mais nada
é capaz de coibir condutas eleitas como nocivas ao convívio social.
Portanto, é notável a ideia de Hassemer do Interventionsrecht, do direito de
intervenção, algo como um Direito Administrativo Sancionatório ou Sancionador,
acerca do qual ainda não se tem uma clareza quanto à atuação, extensão e
instrumentos, pois "... estes instrumentos os de 'Interventionsrecht' estão ainda
em gestação e têm de ser desenvolvidos, inclusive teoricamente."
279
278
DIAS, 2001, p.166/167.
279
Ibid., p.166.
91
b) Funcionalização extrema da tutela penal
Outra proposição é a funcionalização extrema da tutela penal (o Direito
Penal do Risco) que apresenta uma diversidade de propostas e ensaios para a
solução da questão penal, porém, todas convergindo no sentido de que é necesria a
alteração do modo de produção da legislação penal devendo-se retirar uma parcela
da reserva de competência dos órgãos parlamentares atribuindo-a aos executivos
por meio das normas penais em branco; a tutela penal operando antes de uma
eventual lesão de interesse socialmente significativo, "[...] até o ponto em que se
perde, ao menos para a generalidade dos destinatários das normas, toda a ligação
entre a conduta individual e o bem jurídico que em definitivo se intenta
proteger"
280
,
281
; extensão do âmbito da tutela penal em assumida contradição à
política criminal de intervenção mínima ou moderada como consequência das alterações
propostas na dogmática jurídico-penal que visam enfraquecer a atuação de prinpios
clássicos do Direito Penal.
Para Jorge de Figueiredo Dias, não se pode adotar este Direito Penal de
funcionalização extrema. Nem em partes e muito menos no todo. Isso porque se
deve ter em vista que a referida concepção apresenta uma cegueira diante da
necessidade de superação da razão cnica instrumental, da mesma forma que a
Escola de Frankfurt, pois a doutrina do Direito Penal apega-se a ela e, se possível,
prega sua intensificação, sob a forma de uma razão calculadora ou "actuarial" até
o ponto de aí se falar numa actuarial justice
282
, segundo Pedro Caieiro.
280
DIAS, 2001, p.167.
281
"[...] sem prejuízo de crença (justificada) nos benefícios que um pensamento funcional traz a
doutrina jurídico-penal, não deve ver-se nele o alfa e o omega da concepção penal, antes importa
reafirmar que e na preservação da dignidade da pessoa da pessoa do delinqüente e dos outros
– "que radica o axioma onto-antropológico de todo o sistema penal". (Ibid., p.168).
282
"[...] o propósito da 'actuarial justice' não seria mais o de atuar sobre a vida de pessoas
individuais, propondo-se definir a sua responsabilidade, fazendo os culpados 'pagar pelos seus
crimes' ou transformando-os, mas o de regular certos grupos (de pessoas 'perigosas') como parte
de uma estratégia de gestão dos riscos." (Ibid., p.169).
92
Nesse sentido, Figueiredo Dias anota que se deve recusar a qualquer
concepção penal de extensão da criminalização:
Por isso se tem de recusar uma "evolução" do paradigma penal que passe
por pôr em causa a defesa consistente e efectiva dos direitos humanos, o
pluralismo ideológico e axiológico, a secularização. Por isso, numa palavra,
deve-se manter a recusa de qualquer concepção penal baseada na extensão
da criminalização, onde o direito penal se transforme num instrumento diário
de governo da sociedade e em promotor ou propulsor de fins de pura
política estadual. Seria o agora tão apregoado Estado-Intevenção ou Estado-
Prevenção que aqui reapareceria estranhamente (ou talvez o!), o
mesmo Estado que a dita Escola de Frankfurt também advoga, desde que
ele seja radicalmente afastado do campo do direito penal e exclusivamente
imputado ao âmbito do direito administrativo.
283
Isso tudo conduziria a uma radical substituição do paradigma penal cuja
base de legitimação agora é procurada na máxima eficiência do sistema de redução
de danos globais referentes aos crimes pela redistribuição dos riscos tanto no plano
da prevenção como da repressão
284
, o que é condenável, pois a eficiência não pode
ser base de legitimação democrática e não é possível visualizar como um sistema de
justiça atuarial possa eximir-se a cair numa nova e ainda mais condenável justiça de
classes, substituindo os antigos explorados por novos excluídos.
285
c) Expansão do Direito Penal
Entre as duas posições extremas acima expostas, outras tentativas de
solucionar o problema por uma via intermediária que corre sob o desígnio geral de
expansão do Direito Penal e que possui, basicamente, três concepções teóricas,
sendo elas: o Direito Penal de Duas Velocidades, o Direito de Mera Ordenação
Social e o Direito Penal Secundário.
283
DIAS, 2001, p.169.
284
Id.
285
FRANCO apud Id.
93
i) Direito Penal de Duas Velocidades
Tem como representante Jesús-María Sánchez, cujas ideias possuem a
simpatia de Alberto Silva Franco, e que faz propõe uma política criminal e uma
dogmática jurídico-penal duais ou dualistas consubstanciadas num Direito Penal de
Duas Velocidades. Neste, há um núcleo de Direito Penal em que valeriam, sem
quaisquer modificações, os princípios de Direito Penal clássico, isto é, um "núcleo
duro" dirigido à proteção de bens jurídicos individuais, com individualização da
responsabilidade, da culpa e autoria, sendo que a pena privativa de liberdade seria
aplicável exclusivamente a esses casos. Na periferia ou no "âmbito lateral" deste
núcleo central está outro tipo de Direito Penal, especificamente direcionado aos
grandes e novos riscos da sociedade atual, em que os princípios clássicos de Direito
Penal liberal devem estar amortecidos ou mesmo transformados, dando lugar a
outros significados aos princípios já existentes ou à criação de novos princípios.
286
A doutrina do Direito Penal de Duas Velocidades consiste nos dizeres do
próprio Jesús-María Silva
Sánchez:
Uma primeira velocidade, representada pelo Direito Penal "da prisão", na
qual haver-se-iam de manter rigidamente os princípios político-criminais
clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais; e uma
segunda velocidade, para os casos em que, por o tratar-se (sic) de
prisão, senão de penas de privação de direitos ou pecuniárias, aqueles
princípios e regras poderiam experimentar uma flexibilização proporcional a
menor intensidade da sanção.
287
Portanto, Silva Sáchez ao propor duas velocidades de Direito Penal, prevê,
em certa medida, um Direito Penal garantista, pertencente "ao núcleo duro", para as
penas privativas de liberdade, as quais, com a intervenção da criminologia radical e
da política criminal, deverão ser adstritas à criminalidade violenta no que concerne à
violação de direitos individuais constitucionalmente tutelados
288
, como a vida, a
286
DIAS, 2001, p.171/172.
287
SILVA SÁNCHEZ, 2002, p.148.
288
Aqui foi inserida a referência a direitos individuais constitucionalmente tutelados, muito embora
não seja a terminologia utilizada por Winfried Hassemer, um dos expoentes da via de superação do
paradigma penal atual pela restrição da tutela penal a direitos individuais e pelo desenvolvimento
de um direito de intervenção, devido ao movimento crescente na doutrina, na qual se desta Juarez
Cirino dos Santos, de constitucionalização do Direito Penal e que, para a autora, é essencial,
principalmente no que concerne à definição dos direitos individuais como bens jurídico-penais.
94
integridade física etc. e que se assemelha, neste mote, à proposta de restrição
da tutela penal a direitos individuais, ao mesmo tempo em que o "âmbito lateral"
deste núcleo duro garantista assemelha-se ao direito de intervenção proposto por
Hassemer, diferenciando-se dele ao ter como tarefa a imposição de uma sanção de
natureza criminal.
ii) Direito de Mera Ordenação Social
O Direito de Mera Ordenação Social pertence ao sistema jurídico português
e é uma forma integrada de descriminalização e que se coaduna com o princípio da
subsidiariedade do Direito Penal. Trata-se de um programa político-criminal que
criou a figura dos "ilícitos contra-ordenacionais", assim definidos por conta da pequena
importância das infrações por ele abarcadas, reconduzindo-as a um puro Direito
Penal de bagatelas, e atribuindo, inclusive, competência para a apreciação dessas
infrações a tribunais mais céleres e simplificados.
289
Esses ilícitos são uma resposta sancionatória específica do Estado a
determinadas áreas de intervenção que não poderiam mais ser deixadas sem um
controle efetivo por conta de sua importância social, como, por exemplo, a tutela do
meio ambiente, aspectos diversos da economia nacional, intervenção preventiva no
direito dos consumidores, mas que não justificavam uma resposta de tutela penal de
acordo com as valorações então dominantes.
290
Porém apartir dos anos noventa houve um alargamento das áreas de
intervenção do Direito de Mera Ordenação Social a setores para os quais ele não
era destinado, em particular os circuitos econômicos e tecnológicos de grande
complexidade. E o problema disso é que esta tendência não fora acompanhada por
qualquer evolução nos delitos contraordenacionais como, por exemplo, "[...]
princípios de ‘flexibilização controlada’ assentes na proteção antecipada de
interesses coletivos mais ou menos indeterminados, sem espaço, nem tempo, nem
289
CORREIA, Eduardo. Direito penal e direito de mera ordenação social. In: INSTITUTO DE DIREITO
PENAL ECONÓMICO E EUROPEU DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE
COIMBRA. Direito penal económico e europeu: textos doutrinários. Coimbra: Coimbra Editora,
1998a. v.1. p.5.
290
CORREIA, 1998a, p.5 e 212.
95
autores, nem vítimas, definidos ou definíveis e por conseguinte, numa palavra, de
‘menor intensidade garantística’.
"
291
iii) Direito Penal Secundário
O Direito Penal Secundário tem como autor principal o português Jorge de
Figueiredo Dias. Ao contrário do que pensam muitos, o Direito de Mera Ordenação
Social e o Direito Penal Secundário são coisas distintas como infere o citado autor:
[...] o direito de ordenação constitui uma espécie de limite negativo de todo
o direito penal, neste, incluído o direito penal administrativo; por outro lado,
a de que, se o direito penal secundário é, na sua essência e no seu âmbito,
direito penal administrativo, ele não é direito de mera ordenação, e, sim,
verdadeiro direito penal.
292
No direito das contra-ordenões, diferentemente, estão em causa advertências
sociais, sanções ordenativas ou coimas que, ainda quando possam igualmente
dizer-se "administrativas", não constituem penas mas nedidas[sic] sancionatórias
de caráter não penal. [...] Fica assim revelada a sem-razão da doutrina
dominante, que no direito penal administrativo o antecessor do direito
das contra-ordenações.
293
De acordo com Dias, é no âmbito da ilicitude material das condutas, é na
indiferença ética das condutas consideradas como ilícitas. Nos delitos de ordenão
social é a conduta em si mesma, e não o ilícito, que é axiologicamente
294
neutra. A
conduta contraordenacional uma vez divorciada da proibição legal é uma conduta
axiologicamente neutra. Ele chama estas diferenças de "critério material de distião"
elegendo-o como o mais importante para fundamentar a distinção, porém o que não
significa repudiar a necessidade de critérios adicionais em zonas limítrofes onde a
distinção entre os ilícitos penais e contraordenacionais perdem seus contornos.
291
DIAS, 2001, p.171/172.
292
DIAS, Jorge de Figueiredo. Para uma dogmática do direito penal secundário. In: INSTITUTO DE
DIREITO PENAL ECONÓMICO E EUROPEU. Direito penal económico e europeu: problemas
gerais. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. v.1. p.48.
293
Id.
294
Segundo o Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI, versão 3.0 de novembro de 1999, o
verbete Axiológico é um adjetivo filosófico que é: 1. Concernente a, ou que constitui uma
axiologia; 2. Concernente a, ou que constitui um valor.
96
É possível descortinar, na aparente multiplicidade e diversidade do direito
penal extravagante e, hoc sensu, secundário conexões fundantes de
sentido que permitem reconduzi-lo, sobretudo no que toca ao direito penal
económico e social, a um âmbito específico do direito penal. Este âmbito
revela-se uma espécie de entreposto se bem que pertencente ainda ao
direito penal – entre o direito penal clássico codificado e o direito das contra-
ordenações e corresponde ao modo-de-ser actual do tradicionalmente
chamado direito penal administrativo.
Daqui se pode concluir que, ao lado do novo Código Penal e da lei-quadro
vigente do direito das contra-ordenações (Decreto–Lei n.
o
433/82), o
ordenamento jurídico-penal português do futuro deve ver-se dotado de uma
lei-quadro sobre o direito penal económico e social. Desta lei deverá
esperar-se que clarifique a aplicação do direito penal secundário, vigente e
futuro, e que ponha limites implícitos à futura actividade legislativa penal
extravagante, vinculando-a aos princípios validos na matéria, evitando a
inflação incriminatória e facilitando a reflexão sobre a constitucionalidade
das leis penais avulsas.
295
A partir do exposto é possível identificar nos meios de comunicação e em
diplomas legislativos brasileiros, como a lei de crimes ambientais, os crimes
tributários e previdenciários, por exemplo, que uma tendência à adoção como via
de superação do paradigma penal atual a funcionalização extrema do Direito Penal
com a consequente flexibilização de princípios clássicos de Direito Penal
transformando-os em novos princípios ou atribuindo-lhes novos conteúdos, que
tenham menor intensidade garantística, o que culmina no "afrouxamento" da atuação
de princípios fundamentais tão caros ao Direito Penal.
2.4.2 Criminalidade econômica
Para o norte-americano Edwin Sutherland, a criminalidade econômica é
"caracterizada por ser praticada por pessoas de respeitabilidade e elevado estatuto
social, no decurso de sua profissão."
296
O problema do referido conceito é que está
atrelado à concepção de criminalidade econômica, ou seja, ao conceito tipológico de
agente. Além disso, existem várias condutas que ferem regras da ordem econômica
e que são praticadas por "homens de colarinho branco", mas que, entretanto, não
295
DIAS, 1998, p.72-73.
296
SUTHERLAND, Edwin H. White collar crime. New York: The Dryden, 1961. p.47 e seguintes, e
219 e seguintes.
97
constituem crimes. Em contrapartida existem muitas ações violadoras da ordem
econômica que são praticadas por homens de inferior classe social
297
.
As concepções de criminalidade ecomica de Clinard e Quinney são no sentido
de que se trata de uma delinquência ligada à profissão: o chamado occupation crime.
Utilizam somente uma parte da concepção de Sutheland, mas, ainda assim, tais
compreensões mostram-se estreitas, tendo em vista que crimes a sistematizar,
dentre os econômicos, que não estão ligados a uma ocupação profissional, como,
por exemplo, a emissão de cheques sem fundo.
298
Hans Joachim Schneider elaborou uma teoria quanto à criminalidade econômica
no sentido da existência de uma teia criminosa, tecida por um fio criminoso com o
objetivo de desencadear uma lucratividade astronômica num projeto racional de
dominação econômica criminosa internacional, fundado em três grupos de atuação
independente, na tripartição organizacional, mas que possuem muitas ramificações e
conexões ativas entre si. Um dos grupos é o central ou nuclear que tem como
principal atribuição aprovisionamento, o transporte e a distribuição dos bens ilegais,
normalmente por meio da coação e corrupção. Um segundo grupo tem como função
a proteção institucional de toda a rede chamando para ela a política, a economia, a
justiça, criando bolsas e espaços para sua atuação política. E, por fim, um terceiro
grupo com a finalidade de estabelecer meios para lavar o dinheiro conseguido de
forma ilegal, operando ligações com instituições bancárias, cassinos e outras
sociedades legalmente constituídas.
299
Para lidar com a criminalidade econômica
300
, segundo Jode Faria Costa,
devemos delimitá-la e percebê-la mediante critérios que observem a racionalidade
297
Sobre o conceito de classe elevada, média e inferior, cf. RIMANN e ZIRPIS-TERSTEGEN, 1973 apud
SILVA, Luciano Nascimento. O moderno direito penal econômico: a ciência criminal entre o
econômico e o social. Disponível em. <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 24 maio 2004.
298
CORREIA, 1998a, p.309.
299
SCHNEIDER, 1998 apud COSTA, José de Faria. O fenômeno da globalização e o direito penal
econômico. In: PODVAL, Roberto (Org.); vários autores. Temas de direito penal econômico.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p.17.
300
Sobre o Direito Penal Enonômico, ver: (1) CARVALHO, Márcia Dometila de. Da fundamentação
constitucional do direito penal econômico e da relevância do crime econômico e ambiental.
Tese (Doutorado em Direito Penal) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo -
FADUSP, São Paulo, 1990; (2) CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal econômico. Revista
de Direito Penal e Criminologia, Rio de Janeiro, n.33, p.197-201, jan./jun. 1982.
98
de custos e benefícios econômicos. O comportamento tipico dessa criminalidade,
segundo o autor, envolve o lucro a qualquer preço, a presença de ações violentas e
inesperadas, ainda que este seja o preço pela continuidade dos "negócios", sendo
um comportamento marcado pela ausência de qualquer tipo de "código de honra" ou
"código de conduta". As organizações criminosas são assumidas como empresas de
alto risco cuja atividade fundamental é a prática organizada de atividades criminosas
que possibilitem lucros fabulosos, onde a relação entre o capital investido e o lucro
obtido é quase infinitamente favorável no sentido do lucro. Isto porque no investimento
de um capital relativamente pequeno há forte expectativa de lucro fabulosamente alto.
301
Diante dos reflexos que a penalização da criminalidade ecomica pode trazer
ao Direito Penal de tradição garantista e tendo em vista que o Direito Administrativo
Sancionador pode auxiliar na tarefa de conferir uma maior segurança à sociedade,
seja por meio de sanções negativas seja por sanções positivas, o estudo dos ilícitos
administrativos e sua relação com os ilícitos penais torna-se relevante.
301
COSTA, 2000, p.18/19.
99
3 ILÍCITOS ADMINISTRATIVOS: A VERTENTE SANCIONATÓRIA DO DIREITO
ADMINISTRATIVO OU O OBJETO DE UM NOVO RAMO DA CIÊNCIA DO
DIREITO?
3.1 INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS E PENAIS: UMA APROXIMAÇÃO
3.1.1 Relação jurídica administrativa e a imputação de sanções
Como afirma Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o enfrentamento do conceito
de Direito Administrativo é feito por meio de variados enfoques, os quais podem ser
aglutinados em dois grandes grupos: o grupo limitatório (de conceitos limitativos) e o
ampliativo (de conceitos ampliativos).
302
No primeiro está, segundo o referido autor, a Escola Francesa, a Escola Italiana
e a Escola dos Serviços Públicos. no segundo, temos três subgrupos: (1) os
teleológicos, entre os quais se inserem a Escola do Interesse Público, a Escola do
Bem Público e a Escola dos Interesses públicos
303
; (2) os fenomenológicos, nos
quais podemos acomodar a Escola Funcional e a Escola Subjetiva e, por fim, (3) os
integrativos, em que se enquadram as Escolas Contemporâneas.
304
Neste momento do presente trabalho, poderiam ser apresentados os
conceitos de Direito Administrativo na história da disciplina, porém, tendo em vista
que este não é o foco principal, optou-se por trazer a lume os conceitos dessa
disciplina consagrados na doutrina pátria.
Dito isso, deve-se destacar que, para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o Direito
Administrativo tem por objeto "[...] os óros, agentes e pessoas judicas administrativas
302
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte
geral e parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p.43.
303
Sobre o conceito de interesse público: BORGES, Alice Gonzales. Interesse público: um conceito a
determinar. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n.205, jul./set. 1996.
304
MOREIRA NETO, op. cit., p.42.
100
que integram a Administração Pública, a atividade judica o contenciosa que exerce
e os bens de que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública."
305
De acordo com José F. F. Tavares, trata-se do cabedal de normas que
regem o setor ou domínio social da Administração Pública
306
: sua organização,
funcionamento, atividades, sujeitos e relações jurídicas que envolvem os órgãos ou
entidades do Poder Público.
307
Hely Lopes Meirelles concebeu esse ramo do direito como o "[...] conjunto
harmônico de princípios jurídicos que regem os órgãos, os agentes e as atividades
públicas tendentes a realizar concreta, direta e imediatamente os fins desejados
pelo Estado."
308
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, "[...] o direito administrativo é o ramo
do direito público que disciplina a função administrativa e os órgãos que a exercem."
309
Conforme Diogo Freitas do Amaral, deve ser definido como "[...] o ramo do
direito blico constitdo pelo sistema de normas jurídicas que regulam a organização
e o funcionamento da Administração Pública, bem como as relações por ela
estabelecidas com outros sujeitos de direito no exercício da actividade administrativa
de gestão pública."
310
Dessas concepções é possível extrair que para se ter a noção de Direito
Administrativo a necessidade de mesclar os seguintes elementos: (1) as pessoas
jurídicas ou entes que pertencem ao Poder Público; (2) a(s) função(ões) ou
305
DI PIETRO, 2006. p.66.
306
Administração Pública é uma expressão que pode ser compreendida de duas formas que se
complementam: o sentido orgânico ou subjetivo, segundo o qual a Administração Pública
consiste no agrupamento de pessoas jurídicas de direito público, seus respectivos órgãos e
serviços e que desenvolvem uma função ou atividade administrativa, e também o âmbito material
ou objetivo em que se reconhece a Administração Pública pelo exercício da atividade
administrativa. Nesse sentido, conferir: TAVARES, José F. F. Administração blica e direito
administrativo. 3.ed. Coimbra: Almeidina, 2000. p.32 e 33.
307
Ibid., p.32.
308
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 34.ed. o Paulo: Malheiros, 2008. p.40.
309
MELLO, C. A. B., 2007, p.37.
310
AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de direito administrativo. 2.ed. Coimbra: Almeidina, 2001.
v.1. p.130.
101
atividade(s) que são exercidas por esses sujeitos e (3) as relações jurídicas em que
estejam presentes esses sujeitos.
No que concerne a esse terceiro elemento, o das relações jurídicas travadas
entre ou perante a Administração Pública, a que mais interessa para este estudo é a
que decorre do poder/prerrogativa que autoriza o Estado a imputar sanções.
Trata-se, portanto, de uma área de penumbra no sistema jurídico em que
uma inter-relação entre Direito Administrativo, Direito Econômico, Direito Ambiental,
Direito Tributário, Direito Financeiro e Direito Penal, todos ramos do chamado Direito
Público, em que ocorre a imputação de sanções pelo Poder Público, o que leva à
indagação acerca da existência ou não de um único Poder Punitivo Estatal.
3.1.2 As manifestações do poder punitivo estatal
Partindo-se das concepções de sanções jurídicas positivas e negativas,
pode-se dizer que o monopólio do poder de punir do Estado, ao vedar a autotutela e
a vingança privada, cria para o ente estatal o dever de proteger o cidadão. Essa
proteção deve ocorrer de duas formas. Primeiro, deve-se estabelecer quais normas
devem regular a convivência social e, uma vez escolhidas, devem ser transformadas
em regras jurídicas positivas. Nessas regras devem estar previstas as condutas
proibidas e fomentadas pelo direito, bem como as formalidades que devem ser
observadas para a atribuição das consequências jurídicas pertinentes, seja na
hipótese de violação, seja na observância da conduta fomentada pelo ordenamento.
311
,
312
311
Englobando-se, aqui, a noção de sanção positiva. Sobre o tema é interessante registrar o
chamado "soft law".
312
"O monopólio do poder de punir do Estado, com a proibição da vingança privada nas sociedades
modernas, implica desdobramentos necessários. Primeiro, o monopólio do poder de punir cria
para o Estado o dever de proteger os cidadãos contra fatos criminosos, mediante normas legais
materiais e processuais de definição de crimes e de punição dos autores. Segundo, o monopólio
do poder punitivo do Estado reduz a insegurança social, mas aumenta o risco de condenar
acusados inocentes ou adversários políticos do poder. Terceiro, a proteção de inocentes contra
abusos do poder punitivo pressupõe a criação de garantias constitucionais e legais, sintetizadas
no conceito de processo legal devido do moderno Estado Democrático de Direito também
expressas no princípio nulla poena sine culpa." (SANTOS, 2008b, p.671).
102
É ao Direito Administrativo (principalmente pelas manifestações do poder de
polícia, disciplinar e hierárquico) e ao Direito Penal que a grande maioria dessas
manifestações do ordenamento jurídico é dirigida, o que leva a uma concepção
teórica que reconhece a unidade do ius puniendi, o qual engloba tanto as normas
penais quanto as administrativas (principalmente as de caráter repressivo).
Alejandro Nieto, assim como Fábio Medina Osório, anota que a concepção
de um poder punitivo estatal único, advindo das normas de direito público, é uma
idéia marcante na doutrina.
A partir disso, pretende-se identificar a existência ou não de alguns pontos
de congruência e, eventualmente, de distanciamento entre o ius puniendi característico
da seara penal e a prerrogativa sancionadora da Administração Pública, para que se
possa afirmar ou não tal unidade, bem como demonstrar suas consequências e
apresentar as críticas que se mostrem pertinentes.
313314
a) Ius puniendi
O ius puniendi é abordado nas primeiras lições das doutrinas penal e processual
penal que apresentam noções dessa prerrogativa mais adaptadas às ciências
jurídicas criminais.
Na obra de José Júlio Lozano nior o ius puniendi, compreendido como poder
de punir estatal, é dividido em duas fases. Na primeira, que pode ser chamada de
etapa do ius puniendi em abstrato, opera-se a prevenção geral e o Estado soberano
estabelece quais condutas serão reguladas pelo direito e, dentre elas, quais serão
eleitas pelo Direito Penal e tratadas a partir da técnica legislativa do tatbestand
315
.
Na segunda, o ius puniendi manifesta-se concretamente, ocaso da preveão especial,
313
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 2.ed. São Paulo: RT, 2005. p.120.
314
NIETO, 2008, p.26.
315
"A doutrina do Tatbestand representa na dogmática penal 'a versão técnica do apotegma político
nullum crimen sine lege', como quer M. Jiménez Huerta, ou 'o precipitado técnico do princípio da
legalidade', para lembrarmos da expressão de G. Bettiol. Vale dizer que o tatbestand traduz, em
termos técnicos jurídicos, a exigência de certeza na configuração das figuras delituosas, limitando
o arbítrio dos governantes e, principalmente, daqueles que julgam." (LUISI, Luis. O tipo penal e a
teoria finalista da ação. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1987. p.13).
103
em que o Estado manifesta seu poder soberano punindo o infrator da lei anteriormente
prevista no ordenamento jurídico.
316
Quando o Estado se depara com uma infrão à norma penal, o ius puniendi,
até então abstrato, passa a ser concreto, estabelecendo-se a relão judico-punitiva
entre o Estado e o infrator, também chamada de punibilidade.
317
,
318
Após o estabelecimento dessa relação in concreto, devem ser observadas
as formalidades processuais para que se verifique a ocorrência ou não do delito.
Constatados todos os níveis do conceito estratificado do delito, ou seja, a ocorrência
de uma conduta humana, típica, antijurídica e culpável, impõe-se mediante decisão
judicial transitada em julgado a saão penal correspondente. Essa decisão transforma
o ius puniendi concreto em ius executionis, isto é, no poder-dever de se fazer cumprir
tal decisão
319
.
É importante observar que José Frederico Marques ensina que o ius puniendi
é um direito de coação indireta, o que o diferencia, substancialmente, portanto, do
Poder de Polícia.
320
O ius puniendi pode ser aplicado ao infrator da norma penal
se precedido do devido procedimento jurisdicional (nulla poena sine judicio),
portanto, mediante a intervenção do Poder Judiciário, não podendo ser imposta
diretamente pelo Estado-Administração.
321
,
322
316
LOZANO JUNIOR, José Júlio. Prescrição penal. São Paulo: Saraiva, 2002. p.2.
317
Sobre punibilidade e pretensão punitiva, deve-se esclarecer que: "Cometido o delito e nascendo a
punibilidade, surge o tema da pretensão punitiva. Pretensão, segundo Carnelutti, é a exigência de
subordinação de um interesse alheio ao interesse próprio. Pretensão punitiva é a exigência de
que o poder-dever de punir do Estado subordine o direito de liberdade do cidadão. Se a pretensão
punitiva do Estado é a exigência de punição, e se a punibilidade, que é a possibilidade jurídica de
imposição da sanção penal, surge do direito concreto de punir, confundem-se os conceitos de
punibilidade e de pretensão punitiva." (JESUS, Damásio de. Prescrição penal. 18.ed. São Paulo:
Saraiva, 2009. p.3-4).
318
Ibid., p.1-3.
319
Sobre a execução das sanções administrativas: BORES, Alfonso Ybarra. La ejecución de las
sanciones administrativas en el ámbito de la Unión Europea. Sevilla: Junta de Andalucía.
Consejeria de la Presidencia, 2006.
320
A partir dessa concepção, pode-se afirmar que, ainda que indiretamente, José Frederico Marques
não concebe a unidade do ius puniendi.
321
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller,
1997. v.1. p.26.
104
Mas esse ius puniendi, como um poder-dever estatal de punir, sofre a
limitação, além do princípio da legalidade, inafastável em um Estado Democrático de
Direito, de dois institutos que conferem certo contorno a esse "direito de punir" e que
são a prescrição
323
e a decadência
324
.
Feitas essas considerações sobre o poder punitivo pelo viés penal, serão
trazidas na sequência algumas considerações sobre as manifestações repressivas
no âmbito do Direito Administrativo, quais sejam, os "poderes" da Administração
Pública, adiante abordados.
322
Ainda, neste ponto, cabe registrar que para que sejam imputadas sanções administrativas deve
ser observado um prévio procedimento administrativo.
323
Especificamente sobre os fundamentos e a natureza jurídica da prescrição penal, registre-se as
considerações de Fábio André Guaragni: "O estabelecimento dos fundamentos da prescrição é
tema cuja discussão se perpetua, no âmbito da doutrina penal mais de dois séculos, sem
contudo haver-se chegado a um consenso." "Em suma, a prescrição é ontologicamente idêntica
no direito penal e no direito civil, representando o apagar dos efeitos do direito pelo transcurso do
tempo, possuindo a mesma ratio essendi em qualquer ramo do ordenamento jurídico. O motivo
que faz com que se apaguem os efeitos jurídicos do direito (direito reparatório e jus puniendi)
associa-se ao desgaste dos fundamentos do próprio direito pelo decurso do tempo. Portanto, não
é que a prescrição seja um instituto diverso segundo atue em âmbito civil ou penal, e sim, que as
relações jurídicas sobre as quais incide têm características diversas." e "Ora, a natureza jurídica
de um instituto qualquer se define a partir dos campos onde produz efeitos, sendo que a
irradiação destes não se concreta, necessariamente, aos fundamentos em que está alicerçado.
Neste diapasão, a prescrição penal possui natureza mista, pois obsta tanto o exercício da ação ou
da execução da pena, como veda o exercício do direito de punir (impor a pena no caso concreto) e o
direito de executar (jus executionis), fazendo-o simultaneamente e irradiando seus efeitos em seara
penal e processual penal." (GUARAGNI, Fábio André. Prescrição penal e impunidade: crítica ao
sistema prescricional brasileiro. Curitiba: Juruá, 2000. p.25, 33 e 50-51, respectivamente).
324
"Decadência Perecimento, perda ou extinção, de um direito material em razão do decurso do
tempo, por não o ter seu titular exercido durante o prazo que a lei estipula. Também se diz
caducidade. A petição inicial será indeferida se o juiz verificar a decadência ou a prescrição. [...]
Não se confunde com a prescrição extintiva, na qual ocorre a perda de uma pretensão, de
exercitar uma ão; na decadência, o que se perde é o próprio direito material. Além disso, a
prescrição precisa ser alegada pelo interessado para que se produzam efeitos judiciais; a
decadência pode ser declarada de ofício pelo juiz. A decadência relaciona-se com direitos cujo
exercício eslimitado no tempo, isto é, ou o exercidos no prazo da lei ou desaparecem. O
prazo, desde que iniciado, não pode ser suspenso ou interrompido, segue até o final; o da
prescrição admite suspensão ou interrupção. Outra diferença básica é que a decadência é
oponível contra todos ('erga omnes'), e a prescrição não o é com relação aos menores de 16 anos
ou portadores de doenças mentais." (GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário técnico
jurídico. 6.ed. rev. atual. São Paulo: Rideel, 2004. p.231).
105
b) O Poder de Sancionador da Administração Pública e as relações de
sujeição geral e especial
325
,
326
O "poder" de sancionar (potestad sancionadora) da Administração Pública
está, em geral, atrelado na doutrina administrativa aos chamados "poderes" de polícia,
hierárquico e disciplinar.
Na dogmática do Direito Administrativo, eles eso ao lado dos poderes
normativo ou regulamentar
327
, discricionário e vinculado
328
, porém os dois últimos
não podem ser considerados poderes autônomos.
Como adverte Di Pietro o poder vinculado não diz respeito a uma prerrogativa
estatal, mas sim, a uma restrição aos ditames da lei, uma ausência de liberdade,
cabendo à autoridade administrativa a emissão "automática" do ato administrativo
uma vez que se constate a situação descrita no texto legal. Já no poder discricionário
uma ideia de prerrogativa que também não pode ser confundida com
arbitrariedade em que o legislador confere um espaço de liberdade para a
autoridade administrativa avaliar certos aspectos do caso concreto.
329
325
As relões especiais de sujeão são consideradas por Miriam Wimmer "uma categoria anacrônica,
desnecessária e perigosa" e que carece que construções doutrinárias que justifiquem a sua utilização.
(WIMMER, Miriam. As relações de sujeição especial na administração pública. Revista de Direito
Público, n.18, p.51, out./nov./dez. 2007). Mas observe-se que se utiliza aqui a expressão para
caracterizar um específico elo entre o sujeito e a Administração Pública que caracteriza uma
relação diferenciada entre esses sujeitos, mas sem significar uma maior restrição aos direitos
fundamentais dos envolvidos.
326
Sobre as relações de sujeição especial, conferir: (1) Ibid., p.31-54; (2) HERRARTE, Iñaki
Lasagabaster. Las relaciones de sujecion especial. Madrid: Civitas, 1994; (3) BENITEZ, Marian
Lopez. Naturaleza y presupuestos constitucionales de las relaciones especiales de
sujeción. Madrid: Civitas, 1994; (4) MACHO, Ricardo García. Las relaciones de especial
sujeción en la constitución española. Madrid: Editorial Tecnos, 1992.
327
Sobre o tema, destaque-se: (1) ALCÁZAR, M. Baena del. Instrucciones y circulares como fuente del
derecho administrativo. Revista de Administración Pública, n.48, p.107-126, 1965. Disponível em:
<http://www.cepc.es/rap/Publicaciones/Revistas/1/1965_048_107.PDF>.; ARÉVALO, Francisco
Clavero. La doctrina de los principios generales del derecho y las lagunas del ordenamiento
administrativo. Revista de Administración Pública, n.07, p.51-104, 1952. Disponível em:
<http://www.cepc.es/rap/Publicaciones/Revistas/1/1952_007_051.PDF>.
328
DI PIETRO, 2006. p.101.
329
"O chamado 'poder vinculado', na realidade, não encerra 'prerrogativa' do Poder Público, mas, ao
contrário, idéia de restrição, pois, quando se diz que determinada atribuição da Administração
é vinculada, quer-se significar que es sujeita à lei em praticamente todos os aspectos.
O legislador, nessa hipótese, preestabelece todos os requisitos do ato, de tal forma que, estando
eles presentes, não cabe à autoridade administrativa senão editá-lo, sem apreciação de aspectos
concernentes à oportunidade, conveniência, interesse público, eqüidade. Esses aspectos foram
106
Antes de adentrar ao exame dos poderes, cumpre registrar, como o fez
Di Pietro, que muito embora o vocábulo "poder" transpareça a ideia de que se trata
de uma faculdade, esse termo é empregado, em verdade, no sentido de poder-
dever, isto é, de uma prerrogativa irrenunciável da Administração Pública e que deve
ser exercida dentro dos limites legais.
330
No mesmo sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello critica as concepções
teórico-administrativas que arrolam poderes da Administração Pública, e esclarece
que esse tipo de organização metodológica exalta uma concepção autoritária do
Direito Administrativo. Este acaba sendo representado como um ramo do direito
aglutinador de "poderes desfrutáveis pelo Estado em sua feição administrativa" em
lugar de ser concebido como fruto do Estado de Direito, como "[...] um conjunto de
limitações aos poderes do Estado ou muito mais acertadamente como um conjunto
de deveres da Administração em face dos administrados."
331
Porém, tendo em vista que "poder" é um termo consagrado na dogmática
administrativa, para facilitar a abordagem do tema, ele continuará sendo utilizado,
porém, no sentido de poder-dever, prerrogativa competência.
Am das ressalvas quanto ao uso da palavra poder para arrolar as prerrogativas
da administração publica, acima referidas, especificamente quanto à expressão
poder de polícia mais algumas considerações que devem ser registradas com o
fito de evitar qualquer sorte de mal entendido.
O uso da expressão "Poder de Polícia" no âmbito do Direito Administrativo
evoca, em alguma medida, como anota Bandeira de Mello, a pretérita época do
Estado de Polícia apresentado no primeiro capítulo do trabalho. Este momento
histórico remete às prerrogativas do príncipe, e que podem, equivocadamente, ser
atribuídas ao Poder Executivo, culminando em uma racionalidade que considera que
uma "[...] 'natural' titularidade de poderes em prol da Administração e como se
previamente valorados pelo legislador." E "A discricionariedade, sim, tem inserida em seu bojo a
idéia de prerrogativa, uma vez que a lei, ao atribuir determinada competência, deixa alguns
aspectos do ato para serem apreciados pela Administração diante do caso concreto; ela implica
liberdade a ser exercida nos limites fixados na lei. No entanto, não se pode dizer que exista como
poder autônomo; o que ocorre é que as várias competências exercidas pela Administração com
base nos poderes regulamentar, disciplinar, de polícia, serão vinculadas ou discricionárias,
dependendo da liberdade, deixada, ou não, pelo legislador à Administração Pública." (DI PIETRO,
2006, p.101).
330
Id.
331
MELLO, C. A. B., 2007, p.42.
107
dela emanasse intrinsecamente, fruto de um abstrato 'poder de polícia'."
332
. Outro
equívoco decorrente dessa mentalidade do Estado de Polícia é considerar que o
Poder Executivo pode agir sem supedâneo legal.
333
Celso Antônio Bandeira de Mello, ao lado de Marçal Justen Filho
334
,
considera mais adequado o tratamento do "Poder de Polícia" sob o título de
limitações administrativas à liberdade e à propriedade
335
, porém tendo em vista o
uso "consagrado" dessa expressão, continua a utilizá-la em seu curso, assim como
ela também será utilizada na abordagem aqui pretendida, porém, tomando os
cuidados necessários quanto à carga histórica dessa expressão.
O Poder de Polícia
336
é "atividade estatal de condicionar a liberdade e a
propriedade ajustando-as aos interesses coletivos"
337
; "o conjunto de intervenção da
Administração que tende a impor à livre ação dos particulares a disciplina exigida
pela vida em sociedade"
338
e que possui um significado lato, que abrange os atos do
poder Executivo e Legislativo mais amplos, como os regulamentos, e um mais
restrito, que corresponde à polícia administrativa e que concerne às situações mais
concretas como as autorizações, licenças e injunções, por exemplo.
A distinção entre polícia administrativa e judicial é realizada, de acordo com
Marçal Justen Filho, a partir do cririo da função exercida, sendo a polícia administrativa
preventiva e a judiciária repressiva. A justificativa para a adoção desse critério reside
332
MELLO, C. A. B., 2007, p.791.
333
Id.
334
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo.o Paulo: Saraiva, 2005. p.385.
335
Observa Celso Antônio que esta é uma nomenclatura utilizada notadamente pelos países europeus,
exceto pela França.
336
Também sobre poder de polícia: (1) ALTAMIRA, Pedro Guillermo. Policía y poder de policía:
derecho penal administrativo, derecho penal disciplinario, poder de policía comunal. Buenos Aires:
Abeledo-Perrot, 1963.
337
MELLO, C. A. B., 2010, p.822.
338
RIVERO, Jean. Droit administratif. 3.ed., 1965. p.368 apud Ibid., p.823.
108
na afirmação de que um critério material não mais pode ser utilizado após a
multiplicação das atividades da polícia administrativa.
339
Essa concepção merece uma crítica porque há, em verdade, uma predominância
da função preventiva nas atividades de polícia administrativa e repressiva na de
polícia judiciária, sem que isso signifique ausência de controle preventivo por parte
da polícia judiciária (como os crimes de perigo abstrato, por exemplo) e repressivo
por parte da polícia administrativa (a aplicação de multa administrativa pela não
observância de formalidades necessárias para a instalação de uma fábrica, verbi gratia).
Portanto, considera-se adequado o conceito registrado por Bandeira de Mello:
A atividade conhecida entre s como 'Pocia Administrativa' hoje estudada,
preferencialmente sob a designação de 'Limitações Administrativas à
liberdade e à propriedade' corresponde à ação administrativa de efetuar
os condicionamentos legalmente previstos ao exercício da liberdade e da
propriedade das pessoas, a fim de compatibilizá-lo com o bem estar social.
Compreende-se, então, no bojo de tal atividade, a prática de atos preventivos
(como autorizações, licenças), fiscalizadores (como inspeções, vistorias,
exames) e repressivos (multas, embargos, interdição de atividade, apreenes).
340
O fundamento para o exercício do poder de polícia, para Celso Antônio
Bandeira de Mello, reside no dever de a Administração Pública implementar as leis
de cunho administrativo de "supremacia geral", ou seja, aquelas normas oponíveis a
todos os administrados.
341
339
"Alguns propugnam que a atividade de polícia administrativa é preventiva, enquanto a polícia
judiciária teria atuação repressiva. A distinção não é satisfatória. O âmago da diferenciação reside
em que a polícia judiciária desempenha atuação conexa e acessória em relação à função
jurisdicional. Por essa razão é que se costumava afirmar que a atuação da polícia administrativa
seria mais diretamente vinculada à prevenção de ilícitos, especialmente de natureza penal.
A multiplicação de atividades de polícia administrativa conduziu à impossibilidade de fundar a
distinção em face da polícia judiciária num critério material, relacionado com a natureza das
atividades. Como resultado, o critério adotado se relaciona à vinculação da atividade ao
desempenho da função." (JUSTEN FILHO, 2005, p.390).
340
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Serviço público e poder de polícia: concessão e delegação.
Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, n.7, p.06, jul./ago./set. 2006. Disponível em:
<http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 13 set. 2006.
341
"O poder expressável através da atividade de polícia administrativa é o que resulta de sua
qualidade de executora das leis administrativas. É a contraface de seu dever de dar execução e
estas leis. Para cumpri-lo não pode se passar de exercer autoridade – nos termos destas mesmas
leis indistintamente sobre todos os cidadãos que estejam sujeitos ao império destas leis. Daí a
'supremacia geral' que lhe cabe." (MELLO, C. A. B., 2010, p.823).
109
Fernando Navarro Cardoso considera, a partir de uma visão unitária do
sistema jurídico que será objeto de análise na sequência e do artigo 10.1 da
Constituição Espanhola
342
, que a proteção dos direitos fundamentais é o fundamento
e a finalidade do exercício do poder sancionador da administração, pois neles reside
o fundamento da ordem política e da paz social, sendo os direitos fundamentais o
substrato dos bens jurídicos tutelados.
343
Pom, o o todas as regras administrativas que se aplicam à coletividade,
ou seja, que constituem regras de supremacia geral, na nomenclatura utilizada por
Fritz Fleiner.
344
grupos específicos, como o de funcionários públicos, pessoas físicas e
jurídicas que firmam contratos com o Poder público, estudantes de escolas públicas
e presos, por exemplo, que em decorrência desses vínculos peculiares que possuem
com a Administração pública estão sujeitos ao poder sancionador da Administração
Pública em uma condição diferenciada que, na doutrina alemã, italiana, tal qual a
espanhola, é chamada de relação de especial sujeição, sujeição especial, poder
especial ou relação especial.
342
"Artículo 10. 1. La dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el libre
desarrollo de la personalidad, el respeto a la ley y a los derechos de los demás son fundamento
del orden político y de la paz social.
2. Las normas relativas a los derechos fundamentales y a las libertades que la Constitución
reconoce se interpretarán de conformidad con la Declaración Universal de Derechos Humanos y
los tratados y acuerdos internacionales sobre las mismas materias ratificados por España."
343
"[...] a tutela dos direitos fundamentais é a razão ultima que justifica a existência de um sistema
sancionador. Só porque é necessário protegê-los é que existe tal sistema sancionador. Daqui
segue-se que, na realidade, o sistema sancionador engloba outros âmbitos jurídicos distintos do
administrativo e do penal, envolvendo outros ramos e instrumentos necessários para ter êxito na
adequada tutela dos mesmos. Essa idéia cobra no presente trabalho, em particular, na Ciência
Penal em geral, uma especial transcendência por ocasião do processo de expansão do Direito
Penal. A análise e valoração do dito processo requer uma compreensão do «sistema penal» em
sua globalidade. Nesse sentido, recupera hoje plena vigência a idéia de Von Liszt de 'gesamte
Strafrechtwissenschaft', de Ciência global del Derecho Penal." (CARDOSO, 2001, p.24).
344
Fritz Fleiner refere-se às regras de supremacia geral e supremacia especial com as expressões
puissance général e puissance particulier: "Mais Il y a de numbreuses obligations publiques qui ne
provienneat pas de ce rapport de puissance general, mais d'un rapport de puissance particulier.
Le citoyen qui devient fonctionnaire par exemple ou celui qui entre dans un établissement public
(école, armée, prison) ou qui tombe sous le coup d'une surveillance fiscale particuliére entrent
dans un rapport de puissance particulier. Pouvoir hiérarchique (Dienstgewall), pouvoir institutionnel
(Anstaltgewalt), pouvoir de surveillance (Uberwachungsgewalt), sont les principaux exemples de
rapports de puissance particulier." (FLEINER, 1933, p.107).
110
Essas relações podem ser notadas por meio da identificação de algumas
características, que podem se apresentar com uma maior ou menor intensidade, como
demonstra Alfredo Gallego Anabitarte: (1) uma acentuada situação de dependência,
da qual emanam obrigações; (2) um estado de liberdade limitada; (3) uma relação de
cunho pessoal; (4) a impossibilidade de estabelecer de antemão a extensão e o contdo
das prestações, assim como a intensidade das intervenções coativas; (5) a sujeição
do indivíduo às ordens que emanam da lei; (6) que essa situação seja justificada em
razão de um determinado fim administrativo; (7) alusão a um elemento de voluntariedade
nessa situação de submissão e (8) admitir, expressa ou tacitamente, que a justificativa
dessa relação reside na necessidade de eficiência e produtividade administrativa.
345
Portanto, as relões especiais, por suas particularidades, estão fora do campo
da supremacia geral, onde reside o Direito Administrativo Sancionador. Daí porque
não serão abordados neste trabalho os matizes próprios derivados das relações
especiais de sujeição, como aqueles pertinentes ao poder disciplinar
346
,
347
,
348
e ao
hierárquico.
349
,
350
345
ANABITARTE, Alfredo Gallego. Las relaciones especiales de sujección y el principio de la
legalidad de la Administración. Revista de Administración Pública, n.34, p.25, 1961.
346
Sobre poder disciplinar, ilícitos administrativos e penais, conferir as obras: (1) TARAJANO, Francisco
Eugenio Úbeda. Sanciones disciplinarias de derecho blico: las relaciones entre ilícitos administrativos
y penales en el marco constitucional. Boletín de información del Ministerio de Justicia,
Espanha, año 61, n.2033, p.985-1030, 2007. Disponível em: <http://www.mjusticia.es/cs/Satellite?
blobcol=urldescarga&blobheader=application%2Fpdf&blobkey=id&blobtable=Boletin&blobwhere=
1161677921179&ssbinary=true>. Acesso em: 24 fev. 2010; (2) ARAÚJO, 1994. Conferir também:
(1) BARROS FILHO, Mário Leite de. Direito administrativo disciplinar da polícia. 2.ed. rev.
atual. ampl. São Paulo: Edipro, 2007; (2) BONILHA, Ciro de Araújo Martins; BARROS FILHO,
Mario Leite de. Direito administrativo disciplinar. São Paulo: Edipro, 2006. (Coleção Concurso
Delegado de Polícia de São Paulo); (3) LUZ, Egberto Maia. Direito administrativo disciplinar:
teoria e prática. 3.ed. São Paulo: RT, 1994.
347
Sobre a diferença entre o ilícito disciplinar e o penal, conferir a opinião de Cerezo Mir: "Entre o
ilícito disciplinar e o penal só há diferença de grau. O legislador estende a amea da pena às formas
mais graves de ilícito disciplinar. A sanção disciplinar e a pena não se distinguem essencialmente.
[...] A sanção disciplinar de ser também justa, adequada à gravidade da infração e necessária.
A sanção disciplinar, no entanto, dentro do limite fixado pela justiça, leva em conta não só os fins
de prevenção geral e a prevenção especial, mas também as exigências de prestígio e de bom
funcionamento da Administração. As sanções penais e às(sic) disciplinares são, por isso,
independentes." e "A menor gravidade do ilícito disciplinar frente ao ilícito penal explica porque no
Direito Disciplinar as condutas não estejam reguladas, com freqüência em uma Lei [em sentido
estrito], mas em disposições de caráter regulamentar, com uma simples habilitação legal. Sua
definição não costuma ser exaustiva, nem vem vinculada expressamente a cada uma delas uma
sanção determinada. As sanções disciplinares não são aplicadas, pelo mesmo motivo, pela
jurisdição ordinária, mas pelas autoridades administrativas em resoluções, em geral, revogáveis."
(CEREZO MIR, José. Sanções penais e administrativas no direito espanhol. Revista Brasileira
de Ciências Criminais, São Paulo, ano 1, n.2, p.33-34, abr./jun. 1993).
111
Ainda, as ações de polícia administrativa estão ligadas, de acordo com
Marçal Justen Filho, à realização dos direitos fundamentais, conferindo contorno aos
direitos individuais de forma a otimizar o convívio coletivo, ressaltando que deve ser
retirada a subordinação dessa competência a conceitos imprecisos como "ordem
pública", "bem comum", "interesse público"
351
que em lugar de satisfazer os direitos
fundamentais, buscam atender aos interesses dos governantes.
352
Um precedente francês relevante na temática do poder de polícia como
instrumento de protão dos direitos fundamentais é o "caso do arremesso de anões"
de 1995
353
e, a partir, dele, Marçal Justen Filho faz a aproximação do poder de polícia
348
O poder disciplinar também decorre da relação de hierarquia, porém, esses institutos não se
confundem. No disciplinar não que se falar, como no poder hierárquico, da distribuição e
priorização das atividades, mas apenas no cumprimento das atribuições próprias do servidor ou
do particular em colaboração com o poder público no exercício de suas funções.
349
"Hierarquia pode ser definida como o vínculo de autoridade que une órgãos e agentes, através de
escalões sucessivos, numa relação de autoridade, de superior a inferior, de hierarca a subalterno.
Os poderes do hierarca conferem-lhe uma contínua e permanente autoridade sobre toda a
atividade administrativa dos subordinados." e "Tais poderes consistem no (a) poder de comando,
que o autoriza a expedir determinações gerais (instruções) ou específicas a um dado subalterno
(ordens), sobre o modo de efetuar os serviços; (b) poder de fiscalização, graças ao qual
inspeciona as atividades dos órgãos e agentes que lhe estão subordinados; (c) poder de revisão,
que lhe permite, dentro dos limites legais, alterar ou suprimir as decisões dos inferiores, mediante
revogação, quando inconveniente ou inoportuno o ato praticado, ou mediante anulação, quando
se ressentir de vício jurídico; (d) poder de punir, isto é, de aplicar as sanções estabelecidas
em lei aos subalternos faltosos; (e) poder de dirimir controvérsias de competência, solvendo os
conflitos positivos (quando mais de um órgão se reputa competente) ou negativos (quando
nenhum deles se reconhece competente), e (f) poder de delegar competências ou de avocar,
exercitáveis nos termos da lei." (MELLO, C. A. B., 2010, p.150-151, original sem destaques).
350
CARDOSO, 2001, p.18.
351
Essas expressões remetem à visão clássica do poder de polícia como instrumento da segurança e
da ordem pública, conceito este que passou a adquirir novos significados a partir da incorporação
de novos valores, como o da dignidade da pessoa, como destacou Gilles Lebreton.
352
"A atividade de poder de polícia se orienta a produzir a realização de direitos fundamentais dos
demais integrantes da coletividade. Traduz a concepção de que a convivência social acarreta a
necessidade de limitação dos direitos individuais, de modo a evitar que a máxima liberdade de
cada um produza a redução da liberdade alheia." e necessário afastar a subordinação dessa
competência a cláusulas abstratas, destituídas de conteúdo preciso, tal como 'ordem pública',
'Bem Comum', 'interesse público', que propiciam a utilização do aparato estatal para fins que
satisfazem antes o interesse do governante do que os direitos fundamentais." (JUSTEN FILHO,
2005, p.386).
353
"Uma discoteca promovia uma espécie de 'competição, consistente em 'arremeso de anões à
distância'. Não havia risco à integridade física dos interessados, os quais se prestavam a
participar da atividade mediante remuneração. A municipalidade proibiu a atividade, invocando o
poder de polícia. O Conselho de Estado reconheceu que o poder de polícia é orientado, também,
à proteção da dignidade humana." (Ibid., p.388-389).
112
do instituto do serviço público, o qual também está relacionado com esse valor e,
portanto, ambos os institutos possuem finalidades qualitativamente semelhantes.
354
O poder de polícia, tal qual a própria Administração Pública, subordina-se
ao princípio da legalidade, e por que não dizer, à juridicidade. Isso porque não se
trata de submissão apenas à legalidade formal, mas à sistemática de princípios e
normas constitucionais.
Sob a ótica da norma de conduta, o poder de pocia é classicamente atrelado a
um non facere, uma abstenção, eminentemente de caráter preventivo.
355
Ainda, como ressalta Fritz Fleiner, no exercício do poder de polícia devem ser
utilizadas apenas as medidas necessárias para a manutenção da segurança pública,
atendendo-se à proporcionalidade entre as circunstâncias e a medida aplicada,
salientando que o emprego das medidas mais enérgicas deve ser considerado como
ultima ratio.
356
Alejandro Nieto, expressando um entendimento um pouco diferente, considera
que o objetivo do princípio repressivo fundamental é alcançar o cumprimento das
normas estabelecidas no ordenamento jurídico de forma que não seja necessária a
imputação de sanções. Isso tem como consequência outro preceito fundamental
menos conhecido, mas segundo o qual a sanção negativa é a última medida a ser
adotada pelo Estado e que é utilizada apenas quando todos os outros meios de
coibir as condutas indesejadas se mostrem insuficientes ou falhos. Nesse sentido, o
recurso ao Direito Penal deve ser a última tentativa de coibir as ações indesejadas, e
dentre essas outras alternativas, a sanção administrativa negativa deve ser utilizada
como "penultima" ratio.
357
354
JUSTEN FILHO, 2005, p.386.
355
Id.
356
"Il rentre dans la fonction de la police de prendre les 'mesures nécessaires' pour le maintien de la
sécurité publique. La restriction à la liberté individuelle ne doit pas employer des canons pour lirer
sur des moineaux. Si par exemple un aubergiste vend de l'alcool contrairement aux clauses de
l'autorisation d'exploiter un débit qui lui a été donnée, la police n'a pas le droit de fermer purement
et simplement le débit ; elle dispose d'abord de moyens plus doux (peine d'execution, peine de
police). Le moyen le plus énergique doit toujurs rester l'ultima ratio. L'intervention de la police doit
être adequate aux circonstaunces, elle doit êrtre proportionée." (FLEINER, 1933, p.246).
357
"El principio represivo fundamental (o sea, el de que objetivo real de la potestad sancionadora es
no tener que sancionar) se traduce inevitablemente en otro no menos conocido: la sanción es la
'ultima ratio' del Estado, quien sólo debe acudir a ella cuando no se puedan utilizar otros medios
más convincentes para lograr que los particulares cumplan las órdenes y las prohibiciones." e "Yo
113
Esse poder sancionador da Administração blica, tal qual o ius puniendi
criminal, também é alcançado pela prescrição
358
e pela decadência, como anota Luis
Alfredo de Diego Díes. A vontade do órgão administrativo em abdicar ou renunciar,
ainda que implicitamente, ao exercício de seu poder/dever de sancionar
359
, não pode
ser considerada como embasamento da prescrão, eis que sua pedra angular, para esse
autor, é, em sede administrativa, a seguraa judica e a interdição da arbitrariedade.
360
A prescrão possui duas perspectivas no Direito Administrativo Sancionador: a
do potencial sancionado e a da Administração Pública. Para o cidadão, ela é uma
garantia de segurança, pois "o administrado tem direito a ter certeza até que momento é
passível de persecão o ilícito que cometeu, sendo um interregno entre o cometimento
do ilícito e a aplicação da sanção"
361
.
no ignoro, desde luego, que lo que únicamente suele admitirse es que la pena sea la ultima ratio,
mas no la infracción y sanción administrativas. Es decir, que se supone que el legislador lo ha
de acudir al Código Penal cuando resultan inútiles las demás medidas (incluida la legislación
administrativa sancionadora) adoptadas o imaginadas para evitar determinadas conductas de los
ciudadanos. Lo cual es cierto y correcto; pero dentro de esas 'demás medidas' o medidas no
penales hay que dejar las sanciones administrativas para el último lugar." (NIETO, 2008, p.35).
358
Sobre prescrição: BARROSO, Luís Roberto. A prescrição administrativa no direito brasileiro antes
e depois da Lei n.
o
9.873/99. Ciência Jurídica, v.18, n.118, p.20-45, jul./ago., 2004.
359
DÍES, Luis Alfredo de Diego. Prescripcn y caducidad en el Derecho Administrativo Sancionador.
Barcelona: Bosch, 2006. p.26.
360
Ibid., p.25 e 26. Tradução livre: "A prescrição supõe a atribuição ao mero transcurso de um
período de tempo, previamente determinado, o radical efeito de extinguir a possibilidade de que
os poderes públicos declarem ou imputem responsabilidade ao infrator. Surge, a prescrição, como
uma limitação ao exercício tardio do direito sancionador, em beneficio da segurança jurídica [...].
Sua fundamentação reside mais em razões de segurança jurídica que considerações de justiça
material; sua justificação ultima é por um fim a uma situação de incerteza, contrária aos princípios
da segurança jurídica e interdição de arbitrariedade (art. 9.3 da Constituição Espanhola).". No
original: "La prescripción supone atribuir al mero transcurso de un período de tiempo, previamente
determinado, el radical efecto de extinguir la posibilidad de que por parte de los poderes públicos
se declare o se reprima la responsabilidad del infractor. Surge, la prescripción, como una
limitación al ejercicio tardío del derecho sancionador, en beneficio de la seguridad jurídica [...]. Su
fundamentación radica más en razones de seguridad jurídica que en consideraciones de estricta
justicia material; su justificación última es poner fin a una situación de incertidumbre, contraria a
los principios de seguridad jurídica e interdicción de la arbitrariedad (art. 9.3 de la CE)."
361
Ibid., p.27-28. "Para el primero [ciudadano], la prescripción supone una garantía de seguridad
jurídica: el administrado tiene derecho a conocer con certeza hasta qué momento es perseguible
el ilícito que cometió y se traduce en una contigüidad o inmediación temporal entre la comisión de
la infracción y la imposición de la sanción."
114
Já para a Administração Pública é um "virar a página" para que haja um foco
nas novas infrações cometidas, muito embora o foco do poder público seja, muitas
vezes, parar o andamento dos processos ficando restrita aos antigos expedientes,
atravancando o andamento dos novos processos administrativos.
362
c) A relação entre ius puniendi e poder sancionador administrativo
Há uma corrente doutrinária que defende a unidade do poder punitivo estatal,
do qual emanam tanto o poder punitivo penal quanto o poder sancionador administrativo.
Trata-se da Teoria Unitária do Poder Punitivo Estatal ou do ius puniendi.
Defendem essa concepção teórica Eduardo García de Enterría e Tomás-
Ramón Fernandez
363
, Fernando Navarro Cardoso
364
, Rafael Munhoz de Mello
365
;
entretanto, esses autores não deixam de apresentar críticas sobre esse dogma,
especialmente porque o direito é uma ciência humana, portanto, não exata.
362
DÍES, 2006, p.28. "Para la Administración, la prescripción es una exigencia derivada del principio
de eficacia administrativa; así la prescripción responde a la necesidad de 'pasar página', pues la
Administración no puede estar pendiente de lo que sucedió años atrás (máxime cuando, como es
sabido, las infracciones administrativas no despiertan, por lo general, la alarma social propia de un
delito); además, los plazos de prescripción desmesurados sólo consiguen que la Administración
tenga que estar casi más pendiente de interrumpir tales prazos que de ejercer su potestad
sancionadora, de manera que el esfuerzo en mantener vivos los casos más antiguos estorba y
entorpece la rápida persecución de las infracciones recientes."
363
ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNANDEZ, Tos-Ramón. Curso de derecho administrativo.
5.ed. Madrid: Civitas, 1995. v.2. p.163
364
"El sistema jurídico-sancionador, como sistema de control social formal de reación, tiene como
características fundamentales: estar dirigido a las condutas desviadas más graves y, por tanto,
hacer uso de los mecanismos más graves. Su fundamento principal se halla en el artículo 25 de la
Constituición, que consagra, en su apartado primero, dos formas diferentes de manifestarse el
mencionado sistema: bien pueden calificarse ciertas conductas como infracciones administrativas
(Derecho Administrativo sancionador), o bien pueden apreciarse como delitos y faltas (Derecho
Penal)." (CARDOSO, 2001, p.23).
365
Rafael Munhoz de Mello traz como pressuposto de sua dissertação de mestrado a concepção
unitária do poder punitivo estatal: "O poder punitivo estatal, portanto, pode se manifestar através
das sanções penais e das sanções administrativas, as primeiras impostas no exercício de função
jurisdicional, as segundas no exercício de função administrativa. É dizer, tanto a sanção penal
como a administrativa são manifestações de um mesmo poder estatal como a administrativa são
manifestações de um mesmo poder estatal, o ius puniendi. Daí se falar em unidade do poder
punitivo estatal, poder que abrange tanto as sanções penais (direito penal) como as sanções
administrativas (direito administrativo sancionador)." (MELLO, R. M., 2008, p.45).
115
No que concerne às críticas, importante é o posicionamento doutrinário de
Alejandro Nieto que anota que, muito embora a unidade do ius puniendi consista em
uma premissa dogmática na doutrina e na jurisprudência espanholas
366
e que tem
por consequência o estabelecimento de um sistema punitivo aparentemente completo e
harmônico
367
, alguns pontos de escuridão nesse "radiante panorama" que devem
ser observados.
Muito embora Medina Osório
368
considere como conseqncia mais relevante
dessa concepção a aplicão dos princípios de Direito Penal ao Direito Administrativo
Sancionador, reforçando-se as garantias individuais, Nieto aponta uma incongruência
nesse dogma.
Para Alejandro Nieto, não é o Direito Penal a matriz do Direito Administrativo
Sancionador, mas sim o Direito Público estatal, o que explica a aproximação desse
ramo jurídico com o direito criminal, porém sem a completa transposição dos
princípios garantistas.
369
366
"Aceptada genéricamente la existencia de la potestad sancionadora de la Administración, doctrina
y jurisprudencia se han puesto de acuerdo en la tesis que hoy es absolutamente dominante, a
saber: la potestad penal de los Tribunales, de un ius puniendi superior del Estado, que además es
único, de tal manera que aquéllas no son sino simples manifestaciones concretas de éste. El
enorme éxito de tal postura elevada ya a la categoría de dogma incuestionable se debe en
parte por razones ideológicas, ya que así se atempera el rechazo que suelen producir las
actuaciones sancionadoras de la Administración de corte autoritario y, en parte, a razones
técnicas, en cuanto que gracias a este entronque con el Derecho público estatal se proporciona al
Derecho Administrativo Sancionador un suporte conceptual y operativo del que antes carecía."
(NIETO, 2008, p.26).
367
"La consecuencia de este modo de pensar ha sido el estabelecimiento de un sistema represivo
singularmente completo y armonioso, superador de viejas contradicciones y capaz de resolver por
sí mismo las dificultades teóricas y prácticas que todavía existen o que pueden ir surgiendo." (Id.).
368
"A mais importante e fundamental conseqüência da suposta unidade do ius puniendi do Estado é
a aplicação de princípios comuns ao Direito Penal e ao Direito Administrativo Sancionador,
reforçando-se, nesse passo, as garantias individuais. O objetivo é fazer, de imediato, uma incursão
teórica e histórica na formulação doutrinária posteriormente incorporada à jurisprudência das
Cortes Constitucionais européias – em torno aos paradigmas da unidade do Direito Público
Punitivo." (OSÓRIO, 2001, p.120).
369
"Porque una vez integrada la potestad sancionadora de la Administración en el ius puniendi del
Estado, lo lógico sea que aquélla se nutriera de la sustancia de la potestad matriz, y, sin embargo, no
sucede así, sino que la potestad administrativa a quien realmente se quiere subordinar es a la
actividad de los Tribunales penales y de donde se quiere nutrir al Derecho Administrativo
Sancionador es del Derecho y no Del Derecho público estatal." (NIETO, op. cit., p.26).
116
As chamadas "matizações" que os princípios penais sofrem no Direito
Administrativo sancionador são uma deliberada flexibilização da formulação penal
inicial, servindo os princípios de Direito Penal clássico de inspiração e parâmetro
máximo em termos de garantias individuais.
370
,
371
Observe-se, ainda, que os icitos que, o raro, estão na área fronteiriça entre
Direito Penal e Direito Administrativo, como bem observa Cardoso, referem-se a setores
estratégicos do ponto de vista socioeconômico, quer pela atividade socioeconômica
por si, quer pelos instrumentos necessários para o desenvolvimento dessa atividade,
residindo justamente na importância deles o crescente intervenção sancionadora. Na
medida em que um interesse é digno de tutela ou não, o problema da ordenação do
Direito Administrativo traz a lume e a um primeiro plano o debate acerca dos bens
jurídicos: quais interesses o dignos de tutela jurídico-sancionadora, em geral, e
jurídico-penal em particular, lembrando que essa proteção deve se dar mediante o
critério positivo de criminalização e negativo de limite à criminalização.
372
Lorenzo Morillas Cueva
373
considera a atividade sancionadora da Administrão
como mera auxiliar da atividade penal e que deve ser restrita a certas infrações de
trânsito, delitos de pouca gravidade e às faltas.
370
"En definitiva, nos encontramos, por tanto, con unos principios blandos o rebajados que se
distancian deliberadamente de la dureza característica de su formulación inicial." e que "[...] tomar
a préstamo las técnicas garantistas del Derecho Penal, pero a conciencia de que no son siempre
adecuadas al Derecho Administrativo Sancionador." (NIETO, 2008, p.47 e 27, respectivamente).
371
No caso do Direito Administrativo Sancionador, assim como no chamado Direito Penal Econômico, há
uma dificuldade na elucidação dos tipos dos ilícitos por conta da farta utilização de elementos
normativos, bem como em razão da utilização de normas em branco, tipos penais abertos,
cláusulas gerais, que, em conjunto, dificultam uma precisa identificação das vedações a que se
refere aquele tipo de ilícito pelo destinatário dessa norma. Corroborando este entendimento de
que a existência de leis indeterminadas, que descrevem vagamente a conduta ilícita, impedem a
determinação da real abrangência do preceito normativo, Francisco de Assis Toledo leciona no
que os tipos não podem deixar margem a dúvidas, precipuamente em matéria penal, mas que,
dada a semelhança entre ilícitos penais e administrativos, também a estes se aplica, pois os
ilícitos, independentemente de sua natureza, devem desempenhar uma função pedagógica
motivando o comportamento humano, sendo inteligível por todos e não apenas pelos juristas.
(TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva,
1994. p.29.)
372
CARDOSO, 2001, p.13-14.
373
MORILLAS CUEVA, Lorenzo. Apuntes sobre las relaciones entre el Derecho Penal y las demás
ramas del ordenamiento jurídico. Revista de la Faculdad de Derecho de la Universidad de
Granada, n.11, p.85-122, 1986.
117
Já Cardoso considera complementares a atividade sancionadora da Administrão
e a atividade penal e afirma que "com todas as adaptações necessárias, onde não
deve chegar o Direito Penal, deve fazê-lo o Direito Administrativo sancionador"
374
;
portanto, afirma que tanto ilícito penal quanto o administrativo protegem basicamente
a mesma coisa, sendo necessário, entretanto, verificar se concretamente tutelam
o mesmo.
Para isso, é necessário abordar as teorias sobre a dissensão entre ilícitos
penais e administrativos desenvolvidas pela doutrina, tais como o Direito Penal de
Pocia, o Direito Penal Administrativo, as infrações de ordem e o Direito Administrativo
Sancionador, pois as teorias do Direito de Mera Ordenação Social, Direito Penal
Secundário e Direito de Intervenção já foram abordadas no capítulo dois do trabalho.
3.1.3 Infração administrativa e penal: há uma diferença substancial?
Alejandro Nieto opta por não abordar o Direito Administrativo Sancionador
sob a ótica do direito comparado, utilizando-se de referências estrangeiras apenas
nos pontos em que as considerou absolutamente necessárias e úteis
375
, o que
também pode ser explicado pela grande produção doutrinária espanhola sobre o
tema. Porém, tendo em vista que a situação da doutrina brasileira é bem diferente da
espanhola, o direito comparado mostra-se um importante instrumento para o
presente estudo, motivo pelo qual serão apresentadas na sequência, de forma bem
374
CARDOSO, 2001, p.14.
375
"Lo que el lector, en cambio, echará en falta será la bibliografía extranjera y, como su ausencia es
deliberada, precisa de explicación. He renunciado, en efecto, a utilizar sistemáticamente el
llamado Derecho comparado por varias razones. En primero término, por ser de ordinario
bastante conocido entre nosotros a partir, sobre todo, de la traducción del primer volumen de la
obra de MATTES, complementada luego cronológicamente por los estudios de SUAY y LOZANO.
En segundo lugar, para reducir en lo posible la extensión de una obra que ya ha resultado, sin
mayores citas, excesivamente voluminosa. Y, tercer lugar, porque he creído que ningún valor se
añadiría con un acopio de erudición superflua. El resultado han sido unas referencias bibliográficas
extranjeras prácticamente testimoniales y unas alusiones doctrinales tan breves como
esporádicas, reducidas a los casos en que me han parecido verdaderamente útiles. El Derecho
comunitario europeo se maneja, en cambio y por razones obvias, con cierta extensión a lo largo
de toda la obra." (NIETO, 2008, p.21-22).
118
sintética, as teorias do Direito Penal de Polícia, Direito Penal Administrativo até
chegar-se ao Direito Administrativo Sancionador.
a) Do Direito Penal de Polícia ao Direito Administrativo Sancionador
376
e os
critérios de diferenciação
A partir da obra de Mattes são identificáveis três grandes períodos de
desenvolvimento do que hoje chamamos de Direito Administrativo Sancionador.
O primeiro é o do Estado de Polícia, inerente ao Estado Absolutista
377
, o segundo, já
no momento histórico do Estado Liberal com o Direito Penal Administrativo de
Goldschmidt, até as contravenções de ordem, que ainda vigoram no Direito Alemão
e que serão sucintamente abordados a seguir.
No início do século
XX
houve o crescimento do papel do Estado na vida
social o que, ao lado da vinculação do exercício do ius puniendi ao princípio da
legalidade, culminou, como visto no Capítulo 2, no aumento da atuação do Direito
Penal e, consequentemente, no trabalho dos tribunais, tornando relevante a distinção
entre ilícito penal e administrativo, uma vez que as penalidades administrativas
poderiam – e podem – ser aplicadas diretamente pela Administração Pública.
378
Nesse contexto desenvolveu-se a doutrina do Direito Penal de Polícia, que é
a primeira tentativa de diferenciar materialmente um ilícito penal de um
administrativo.
376
Sobre Direito Administrativo Sancionador: (1) CANO CAMPOS, Tomás. Derecho administrativo
sancionador: Es reseña de: Derecho administrativo sancionador Alejandro Nieto García. Tecnos,
1994. Revista Española de Derecho Constitucional, ano 15, n.43, p.339-348, 1995. Disponível
em: <http://www.cepc.es/rap/Publicaciones/Revistas/6/REDC_043_328.pdf.>. Acesso em: 03 jul. 2007;
(2) CARRETERO PÉREZ, Adolfo; SÁNCHEZ, Adolfo Carretero; SÁNCHEZ, Santiago Carretero;
MANZANO, Pablo García. Derecho administrativo sancionador. Madrid: Edersa, 1995; (3) CASTRO
LORÍA, Juan Carlos. Derecho administrativo sancionador y garantías constitucionales. San
José: Editorial Jurídica FPDP, 2006; (4) CORDOBA, Juan Pablo Leyva Y. Derecho sancionador
administrativo. México: Univeridad Nacional Autonoma de Mexico, 1963.
377
MATTES; MATTES, 1979, p.76.
378
"Com o advento do liberalismo social no final do século passado e o crescimento constante da
atividade administrativa do Estado, o problema da distinção entre o ilícito administrativo e o penal
adquiriu uma importância cada vez maior. O Estado não podia renunciar aos meios coativos para
impor a realização de sua atividade administrativa. Com isso, surgia, todavia, o perigo de uma
hipertrofia do Direito Penal. Esta extensão desmesurada do Direito Penal era censurável de um
ponto de vista material, ao dar lugar à inclusão em seu âmbito de condutas o puníveis e de um
ponto de vista prático, pois conduzia a um excesso de trabalho dos tribunais." (CEREZO MIR,
1993, p.27
119
Inicialmente concebido por Feuerbach que, influenciado pelo jusnaturalismo
racionalista da época, procurou diferenciar o "icito auntico, 'natural', de um simples
ilícito de polícia"
379
, e assim, estabelecer a diferença entre o Direito Penal Judicial ou
criminal e o Direito Penal de Polícia.
Max Ernest Mayer superou a conceão jusnaturalista de Feuerbach e propôs
que a diferença entre os delitos de polícia e os crimes reside na contrariedade às
normas de cultura, que são, para ele, pré-estatais.
Ambos os critérios foram superados por Goldshmidt na Teoria do Direito
Penal Administrativo
380
, resultado da obra "Direito Penal Administrativo" (no original:
Das Verwaltungsstrafrecht
381
), lançada em 1902, em que esse autor dedicou-se à
diferenciação material entre o ilícito penal e administrativo a partir da posição dos
indivíduos na sociedade, ou seja, como ser humano e detentor de direito individuais
esfera privada e como administrado e membro da comunidade, sujeito a um
dever de colaboração com a Administração Pública em favor da coletividade.
382
Na teoria de Goldschmidt os ilícitos administrativos diferenciam-se dos
penais a partir de sua característica de "antiadministratividade", isto é, pela falta de
apoio às funções da Administração.
383
379
CEREZO MIR, José. Sanções penais e administrativas no direito espanhol. Revista Brasileira de
Ciências Criminais. São Paulo: RT, Ano 1, n. 2, abril-junho-1993. p.34.
380
Sobre o Direito Penal Administrativo conferir: (1) ALEXANDER, Foerster M. Gerhard; FLÓREZ,
Andrés García. La sanción administrativa y el derecho penal administrativo. Santafé de
Bogotá: Pontificia Universidad Javeriana, 1991; (2) ARENAS, Eduardo Silva. Derecho penal
administrativo. Bogotá: Edit. Omnia, 1955; (3) CARSOLIO ZAYAS, Gabriel. Derecho penal
administrativo. Ciudad Universitaria, 1959; (4) AFTALIÓN, Enrique R. Derecho penal
administrativo. Buenos Aires: Ediciones Arayú, 1955.
381
Obra original: GOLDSCHMIDT, James. Das Verwaltungsstrafrecht. Berlim: Carl Heymanns
Verlag, 1902.
382
"O damnum emergens consistiria em uma 'insurreição de um portador de vontade contra a vontade
geral' (die Auflehnung eines Willensträger gegen den allgemeinen Willen). Uma realidade em que
teamos, por um lado, um dano à 'esfera de poder' (Machtpre) de um outro portador de vontade,
expressa juridicamente em um efetivo dano ao bem jurídico tutelado, e, por outro, a lesão à
vontade geral representada pela própria norma. Ou ainda, de forma simples, duas precisas
dimensões, uma formal e outra material, ofendidas simultaneamente através da violação conjunta
tanto do preceito normativo, quanto do seu objeto de proteção. E somente aqui, na presença de
um damnum emergens, é que poderíamos falar em um ilícito de dignidade penal." (AVILA, Fabio
Roberto d'. Direito penal e direito sancionador: sobre a identidade do direito penal em tempos de
indiferença. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v.14, n.60, p.14, maio/jun. 2006).
383
MATTES; MATTES, 1979, p.191.
120
Para Goldschmidt, Wolf, Lang, Bockelmann e Michels, os delitos penais
eram "naturais", "de Direito Natural", enfim, "metapositivos", já os administrativos são
"artificiais", "criados só pela vontade do Estado", o que é considerado por Cerezo Mir
inadmissível com fundamento em Welzel, pois a historicidade tão inseparável da
essência do Direito como da essência homem", motivo pelo qual não se pode falar
em "delitos naturais".
384
Lange, por sua vez, rebateu a crítica de Welzel afirmando que essa distinção
não se funda no jusnaturalismo, mas que em um dado momento histórico possuem
um valor ético-social, um significado social. O ilícito administrativo é então, para esse
autor, "irrelevante para a ética social ou culturalmente indiferente".
385
Essa concepção não é corroborada por Schmidt, Michels e Mezger-Blei
porque esses teóricos consideram que o ilícito administrativo é puramente formal,
isto é, não está relacionado com a defesa de um bem jurídico, mas somente à
proteção de um interesse da Administração.
386
O próprio Cerezo Mir consigna que a partir do núcleo central do Direito Penal
até as infrações administrativas uma linha de ilícito material que não chega a
desaparecer, ressaltando que normas sem qualquer fundamento material devem ser
excluídas do Direito:
No Direito Penal espanhol, inclusive as ações constitutivas de contravenções
contra a ordem pública, os interesses gerais e o regime urbanístico m sempre
uma relevância ético-social ou cultural maior ou menor. [...] Em alguns
casos, o ilícito material pode ser, inclusive, mais grave que em certos delitos.
[...] No seio da regulação jurídica pode haver normas puramente arbitrias ou
criadas exclusivamente pela vontade do Estado. Este é o caso, por exemplo,
dentro da regulamentação do tráfego, da norma que dispõe que os veículos
devem circular pela direita. Nestes casos somente a existência de uma
ordenação es materialmente fundada, mas é indiferente o sentido da mesma.
384
CEREZO MIR, 1993, p.28.
385
Id.,
386
"[...] não estaria constituído pela lesão ou perigo concreto a um bem jurídico, mas somente pela
lesão de um interesse da Administração. O perigo aos bens jurídicos, é, em suma, a ratio legis da
punição destas condutas. Esta distinção qualitativa entre o ilícito administrativo e o criminal teria
logo sua repercussão na diversa função e estrutura da sanção administrativa e da pena criminal.
A sanção administrativa não teria outro fim que chamar o desobediente e lembrar-lhe seus
deveres." (Id.).
121
Com efeito, os veículos poderiam circular perfeitamente pela esquerda
(como na Inglaterra). Estas normas são sempre, todavia, parte integrante de
uma disposição jurídica mais ampla e fundamentada materialmente. O Direito
de trânsito, por exemplo, tende, sem dúvida, a proteger a vida humana, a
integridade corporal e a propriedade. Um tratamento jurídico arbitrário, sem
fundamento material algum, seria puramente despótica (sic) e deveria ser
estirpada (sic) do nosso Direito.
387
Também critica essa concepção teórica na medida em que não fundamento
para a retirada do conceito de bem jurídico do chamado Direito Penal Administrativo,
pois não há um critério para estabelecer uma diferença entre os interesses da
Administrão Pública e os restantes bens jurídicos, pois o delito penal e o de pocia –
ou administrativo m semelhante contdo e idêntica estrutura lógica, encontrando
alguma diferença quanto à gravidade da pena e da sanção, ou seja, uma diferença
quantitativa. Assim, após afastar o critério filosófico-jurídico de Wolf
388
, conclui que
"Até o momento não foi possível encontrar um critério que permita [sozinho] destacar
a diferença qualitativa entre o ilícito penal e o administrativo."
389
Na Alemanha, após a doutrina do Direito Penal de Polícia e a lei de
contravenções de 1968, aparecerem na doutrina as chamadas contravenções de
ordem
390
ou Direito Penal de Ordem, que pode ser concebido a partir do critério de
ataque à ordem moral. O delito penal é dotado dessa violação; as infrações de
ordem possuem uma reprovabilidade moral insignificante, devendo ser excluídas do
387
CEREZO MIR, 1993, p.28-29.
388
"O critério filosófico-jurídico sugerido por Wolf para a distinção entre o ilícito penal e o administrativo
não é tampouco convencedor. Conforme esse autor, seria possível estabelecer uma diferenciação
mediante a referência aos valores pelos quais devem se orientar a Administração e o Direito, quer
dizer, no primeiro caso o bem estar e no segundo a justiça. É possível admitir, no entanto, que a
Administração o deve se orientar pelo valor de justiça? Toda a atividade do Estado, observa,
com razão, H. Mayer, inclusive, quando gira em torno de interesses temporais da Administração,
vai dirigida ao fim unitário de criar uma ordem justa e útil. O Estado, como legislador, disse
Mattes, não pode preservar quaisquer fins, mas-somente [sic] os assinalados pelo bem comum e
estes encerram um valor geral de justiça." (Ibid., p.29).
389
Id.
390
Sobre infrações de ordem, conferir: (1) ARAGOS BELTRÁN, Emilio. Infracciones y sanciones en
el orden social: derecho sustantivo, procedimiento, procesos jurisdiccionales. 6.ed. Barcelona:
Il·lustre Consell de Collegis Oficials de Graduats Socials de Catalunya, 2003.
122
âmbito penal por se tratar de uma «mera infração de ordem», pertencente a um
especial Direito Penal de Ordem.
391
Esse Direito Penal de Ordem não se aplica ao Direito Espanhol porque o
desenvolvimento da matéria nesse país foi diferente. Muito embora os espanhóis
tenham passado pela fase do Direito Penal de Polícia e do Direito Penal Administrativo,
a partir deste houve praticamente um salto para o Direito Administrativo Sancionador
392
,
de características próprias e cujo grande objetivo é explicar a existência da prerrogativa
sancionadora da Administração, que embora seja diferente, é muito próxima do
poder-dever estatal de aplicar sanções por meio do Direito Penal, e que deve dotar
essa prerrogativa de meios técnico-jurídicos para que se respeitem as garantias
individuais dos cidadãos.
393
Ressalta Cerezo Mir que na Espanha não ocorreu uma hipertrofia do Direito
Penal, tal como na Alemanha, França e Itália, mas sim, o desenvolvimento de
"um desmesurado poder sancionatório da Administração" e que demandou uma
"desadministrativização" da atividade sancionadora do poder público ou a sujeição a
princípios fundamentais de Direito Penal.
394
Isso explica o motivo pelo qual na Espanha é possível identificar dois ciclos
teóricos em relação à potestad sancionadora.
391
"El delito sería, según esto, um ataque al orden moral; se quería ver em él no ya la lesión de
bienes jurídicos, sino un acto ético-moralmente reprochable, en el que se manifesta la voluntad
(anticomunitaria, mala) criminal (derecho penal de voluntad), la lesión de un deber." e "Tales
acciones com 'inmoralidad em insignificante', que no afectan de modo inmediato a la
comunidad jurídica, deberían ser excluidas, como 'meras infracciones del orden', del derecho
penal criminal y recogerse en un particular derecho penal de orden." (MATTES; MATTES, 1979,
p.214 e 215).
392
"Porque si puede afirmarse que la primera etapa histórica (del Derecho Penal de Policía) ha sido
sensiblemente igual en ambos países [Espanha e Alemana] y si en España también ha habido
una fase de Derecho Penal Administrativo (siquiera breve y simplesmente doctrinal), entre
nosotros se ha llegado, casi por salto, a un Derecho Administrativo Sancionador de caracteres
originales y en nada tributario del Derecho extranjero." (NIETO, 2008, p.177).
393
"El gran objetivo, sustancialmente logrado, de este Nuevo Derecho consiste en explicar la existencia
de una potestad sancionadora de la Administración, distinta de la penal aunque muy próxima a
ella, y además en dotar a su ejercicio de medios técnico-jurídicos suficientes, potenciando, al
efecto, las garantías del particular." (Id.).
394
CEREZO MIR, 1993, p.27.
123
De acordo com Vicenç Aguado I Cudolà, a potestad sancionadora tem
experimentado um notável desenvolvimento na Administração Pública espanhola a
partir do primeiro terço do século
XX
e desde então foi tratada pela doutrina e
jurisprudência espanholas quase exclusivamente sob a ótica "de la exorbitancia y del
poder", o que resultou em uma construção doutrinária focada na elaboração de um
sistema eminentemente garantista e que começou a ser implementado a partir da
renovação dogmático-científica trazida para o Direito Administrativo espanhol
395
pela
geração da Revista de Administração Pública e da qual Eduardo Garcia de Enterría
é um dos expoentes.
396
Houve esforço dos autores e da jurisprudência por uma "juridicionalização"
do procedimento administrativo, visando as garantias individuais, e com a entrada em
vigor da Constituição Espanhola de 1978 essas garantias passaram a ser albergadas
na interpretação constitucional.
397
Mas, passada essa fase garantista, que era uma consequência gica no
contexto de arbitrariedades até então vivido, anota Vicenç Aguado I Cudolà uma
tendência jurisprudencial de flexibilização por parte do Tribunal Constitucional
Espanhol. Este tem aplicado os princípios e as garantias penais às situações que
envolvem o Direito Administrativo Sancionador de forma mais restritiva e até mesmo
excluindo certas garantias processuais com fundamento na sua incompatibilidade com a
natureza do procedimento administrativo.
398
395
Sobre a história doutrinária do Direito Administrativo na Espanha, consultar: PAREJO ALFONSO,
L; JIMÉNEZ BLANCO, A; ORTEGA ALVAREZ, L. Manual de Derecho Administrativo. 2.ed.
Barcelona, 1992. p.17-39.
PAREJO ALFONSO, L. Crisis y renovación en el Derecho Publico. Col. Cuadernos y Debates,
Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, n.30, p.29-39, 1991.
396
AGUADO I CUDOLÀ, Vicenç. La presuncion de certeza em el derecho administrativo
sancionador. Madrid: Editorial Civitas, 1994. p.19-20.
397
Ibid., p.20.
398
"Ahora bien, uma vez pasada esta fase eminentemente garatista, como consecuencia lógica de
lógica de la reacción a la situación jurídica existente en el régimen anterior, se puede observar
una tendencia jurisprudencial del TC de caráter más restrictivo por cuanto reconduce la plena
aplicación de las garantías del artículo 24.2 a su ámbito natural el proceso -, mientras que
excluye la vigencia de algunas de ellas en el procedimiento administrativo sancionador en base a
su incompatibilidad respecto a la natureza de éste." (Ibid., p.21).
124
Feitos esses esclarecimentos, a expressão Direito Penal Administrativo foi
substitda, muitos anos de acordo com Alejandro Nieto, por Direito Administrativo
Sancionador. Não se trata, porém, de uma questão meramente de nomenclatura,
mas sim de deliberada ruptura com o passado, abandonando o campo da Polícia e
do Direito Penal para assentar a disciplina no Direito Administrativo; é um "símbolo"
e uma "confissão doutrinária"
399
, significando um Direito Administrativo enraizado no
Direito Público e não uma derivação do Direito Penal.
400
Ainda, a partir do regime jurídico aplicável a um determinado tipo de sanção
podem-se distinguir os ilícitos administrativos e penais.
Os italianos é que se debruçaram sobre a diferenciação a partir das teses do
"interesse administrativo" ou "interesse blico espefico" de Benvenuti, Pagliaro y
Travi; do "ordenamento particular da Administração" de Ottaviano e A. M. Sandulli e
da sanção administrativa como "direito subjetivo da Administração", enquanto a
penal é um "dever", de Zanobini.
401
Registre-se, por fim, que o Direito Administrativo Sancionador também está
relacionado com as teses do Direito Penal Secundário e Direito de Mera Ordenação
Social
402
, bem como do Direito de Intervenção, consoante apontado no segundo
capítulo, ao qual remetemos para maiores esclarecimentos, passando-se, agora,
aos critérios quantitativo e formal que buscam diferenciar os ilícitos administrativos
dos penais.
399
"La utilización de esta denominación implica, pues, una ruptura deliberada con concepciones del
pasado: se abandonan los campos de la Policía y del Derecho Penal para asentarse en el
Derecho Administrativo. La expresión adquiere así el valor de un emblema y de una confesión
doctrinal." (NIETO, 2008, p.172).
400
"Em definitiva, contra viento y marea hay que afirmar que el Derecho Administrativo Sancionador
es, como su proprio nombre indica, Derecho Administrativo engarzado directamente en el
Derecho público estatal y no un Derecho Penal vergonzante; de la misma manera que la potestad
administrativa sancionadora es una potestad aneja a toda potestad atribuida a la Administración
para la gestión de los intereses públicos. No es un azar, desde luego, que hasta el nombre del
viejo Derecho Penal Administrativo haya sido sustituido desde hace muchos años por el más
proprio de Derecho Administrativo Sancionar." (Ibid., p.27).
401
No mesmo sentido: CARDOSO, 2001, p.75).
402
AVILA, 2006, p.9-35.
125
O critério quantitativo procura diferenciar o ilícito penal do administrativo a
partir da gravidade da sanção aplicada e o formal leva em consideração o regime
jurídico aplicável. Ambos partem do pressuposto de queo há uma diferença qualitativa
entre ambos.
Isso decorre de uma interpretação conferida ao artigo 25 da Constituição
Espanhola pelo Tribunal Supremo de que se as relações de Direito Administrativo
são menos severas que aquelas que são próprias do Direito Penal, as condutas
objeto do primeiro deveriam ser menos graves que as objeto do segundo, cabendo
ao legislador trazer uma dissimilaridade quantitativa por meio da escolha de uma
penalidade administrativa ou penal para a proteção de um bem jurídico, o que
culmina, também em uma diferença valorativa.
403
Ocorre que, como anota Cerezo Mir, o critério quantitativo, embora considere
apto para diferenciar ambos os icitos, o tem sido eficiente na prática para distinguir
as saões pecuniárias porque multas administrativas já superaram em muitos casos
as penas pecuniárias criminais.
404
Um exemplo disso no direito brasileiro é a multa prevista na Lei n.
o
9.605/1998
(artigo 18, combinado com artigo 75) que pode chegar a R$ 50.000.000,00
(cinquenta milhões de reais), enquanto o limite máximo da multa penal (artigo 49
combinado com artigo 60, ambos do Código Penal) é de R$ 4.212.000,00 (quatro
milhões, duzentos e doze mil reais).
A ausência de limites claros para a fixação de multas pela Administração
Pública traz a preocupação de que haja um caráter confiscatório nessas medidas,
principalmente naquelas de cunho tributário, como para García de Entera e Fernández
Rodríguez
405
, para quem o artigo 33 da Constituição Espanhola, combinado com o
artigo 17 da Declaração dos Direitos Humanos, reconhece e protege a propriedade
privada, portanto, prbe o confisco (o exclda, entretanto, a penalidade de perdimento
de bens).
406
403
CARDOSO, 2001, p.14.
404
CEREZO MIR, 1993, p.29.
405
GARCÍA DE ENTERRÍA, E.; FERNÁNDEZ, T. R. Curso de Derecho Administrativo. 6.ed.
Madrid: Civitas, 1999. T. II. p.192.
406
CARDOSO, 2001, p.20-21.
126
De acordo com Cardoso, a realidade legislativa espanhola mostra que existem
sanções administrativas mais severas e, portanto, mais temidas que as sanções
penais como, por exemplo, no Direito Aeroespacial, na Seguridade Social e no
Direito Urbanístico.
407
Desse modo, Cerezo Mir reforça a utilidade do critério quantitativo e chama
a atenção para a necessidade de o legislador manter a coerência do sistema jurídico
ao respeitar essas diferenças entre ilícitos penais e administrativos antes de levar
em consideração critérios político-criminais de rapidez e eficácia da sanção.
408
No mesmo sentido é o entendimento de Fernando Navarro Cardoso ao
mencionar, naquilo que concerne à multa, que "[...] uma sanção não penal, qualquer
que seja a sua natureza, deve ter como limite máximo a sanção penal, quando
ambas confluirem em um mesmo setor econômico."
409
O critério quantitativo tem utilidade na medida em que para alguns autores,
como Benthan e Nelson Hungria, que consideram todas as leis podem ser dispostas
em um mesmo plano por conta de sua identidade substancial e que carecem,
portanto, de uma diferença ontológica. O que varia, para Hugria, é a maior ou menor
medida de gravidade ou imoralidade existente em cada tipo de ilícito, assegurando,
assim, que o "ilícito administrativo é um minus em relação ao ilícito penal" e insistir
em uma diferenciação qualitativa é persistir, nos dizeres de Kukula, em uma 'estéril
especulação'.
410
407
CARDOSO, 2001, p.21.
408
urgente um reexame por parte do legislador dos limites entre o Direito Penal e o Direito Administrativo.
Entre o ilícito penal e o administrativo, penal e sanção administrativa, cabe estabelecer, unicamente,
diferenças quantitativas e a demarcação de ser traçada pelo legislador. Na redistribuição da
matéria, deve ser levado em conta, primordialmente, a gravidade das infrações, do ponto de vista
material (desvalor ético-social e cultural) e, somente em um segundo momento, considerações de
política criminal (a rapidez e a eficácia da sanção)."
(CEREZO MIR, 1993, p.31).
409
Tradução livre de: "[...] uma sanción no penal, de la natureza que sea, debe tener limite como
límite máximo la sanción penal, cuando ambas confluyan em um mismo sector económico."
(CARDOSO, 2001, p.21).
410
HUNGRIA, Nelson. Ilícito administrativo e ilícito penal. Revista de Direito Administrativo, Rio de
Janeiro, Edição Histórica, v.1, p.15, jan. 1945.
127
Por fim, há que se falar do critério formal, pertinente ao regime judico estabe-
lecido para cada tipo de ilícito, para diferenciar um ilícito administrativo de um penal.
Os autores brasileiros que trataram do tema do Direito Administrativo
sancionador sob o enfoque da supremacia geral que não fizeram uma abordagem
setorial ou pertinente a uma relação especial de sujeição são unânimes em adotar
o critério formal.
Fábio Medina Osório escreve: "[...] quais os verdadeiros critérios dogmáticos
que separam as sanções administrativas das penais? Já disse que se trata do formal
sancionamento que indica, no fundo, a natureza penal ou extrapenal de um dado
tipo proibitivo [...]"
411
Daniel Ferreira assinala que "A diferenciação entre os ilícitos penal e administrativo
está no específico regime jurídico a que se subordina a sanção correspondente."
412
Rafael Munhoz de Mello considera que a utilização de um critério metajurídico,
alheio ao direito positivo, não se presta para uma análise jurídica de diferenciação
entre um crime e uma infração administrativa. Para esse autor, "[...] ao jurista não
importa a natureza das coisas, mas sim a forma como elas são disciplinadas pelo
direito positivo."
413
Apresentados os critérios de diferenciação dos ilícitos administrativos, inclusive
a partir das sanções impostas, mostra-se necessário retornar às características da
categoria jurídica sanção, porém, especificamente quanto ao enfoque da espécie
sujeita ao regime jurídico administrativo.
411
OSÓRIO, 2005, p.169.
412
FERREIRA, Daniel. Sanções administrativa. São Paulo: Malheiros, 2001.p.189.
413
MELLO, R. M., 2008, p.57.
128
b) As sanções administrativas
414
e o aspecto da prevenção geral
415
A cominação de penas à prática de determinadas condutas consideradas
ilícitas pelo ordenamento jurídico é uma forma de coação estatal direta
416
.
O ramo do direito que habitualmente comina penas a determinadas condutas
que são consideradas reprováveis pelo direito é o Direito Penal, o qual tem por
características precípuas a subsidiariedade e fragmentariedade na proteção de
bens jurídicos.
417
Porém, como visto ao longo desta dissertação, na sociedade pós-industrial
houve um aumento na utilização do Direito Administrativo em sua vertente sancionadora.
O Direito Administrativo Sancionador passou a ser visto, ao mesmo tempo, como uma
resposta alternativa à funcionalização extrema da tutela penal, diante da demanda
por segurança advinda da sociedade que é interpretada como necessidade de
414
“Para aprofundar o tema da sanção administrativa, conferir: (1) ALEXANDER, Foerster M.
Gerhard; FLÓREZ, Andrés García. La sanción administrativa y el derecho penal administrativo.
Santafé de Bogotá: Pontificia Universidad Javeriana, 1991; (2) BACIGALUPO, Enrique. Sanciones
administrativas: (derecho español y comunitario). Madrid: Colex 1991. (Series: Biblioteca jurídica
de bolsillo, 5.); (3) BAQUER, Lorenzo Martín-Retortillo. Las sanciones administrativas em relación
con la defensa de los consumidores, con especial referencia a la publicidad de las mismas.
Revista de administración pública, n.126, p.133-188, 1991. Disponível em: <http://www.cepc.es/
rap/Publicaciones/Revistas/1/1991_126_133.PDF>. Acesso em: 08 fev. 2010; (4) BAQUER,
Lorenzo Martín-Retortillo. Multas administrativas. Revista de administración blica, n.79, p.9-65,
1976. Disponível em: <http://www.cepc.es/rap/Publicaciones/Revistas/1/1976_079_009.PDF>.
Acesso em: 08 fev. 2010; (5) BERMÚDEZ SOTO, Jorge Andrés. Elementos para definir las
sanciones administrativas. Revista Chilena De Derecho, 1998.”
415
No direito comunitário: COMISIÓN EUROPEA. The system of administrative and penal sanctions
in the Member States of the European Communities. Luxembourg Office for Official Publications of
the European Communities 1994-1995.
416
Especificamente sobre coação administrativa direta, conferir a obra de AGIRREAZKUENAGA,
Iñaki. La coacción administrativa directa. Madrid: Civitas, 1990.
417
"[...] a proteção de bens judicos realizada pelo Direito Penal é de natureza subsidria e fragmentária
e, por isso, se diz que o Direito Penal protege bens jurídicos apenas em ultima ratio: por um lado,
proteção subsidiária porque supõe a atuação principal de meios de proteção mais efetivos do
instrumental sócio-político e jurídico do Estado; por outro lado, proteção fragmentária porque não
protege todos os bens judicos definidos pela Constituição da República e protege apenas parcialmente
os bens jurídicos selecionados para proteção penal.
A proteção de ultima ratio de bens jurídicos pelo Direito Penal é limitada pelo princípio da
proporcionalidade, que proíbe o emprego de sanções penais desnecessárias ou inadequadas em
duas direções opostas: a) primeiro, lesões de bens jurídicos com mínimo desvalor de resultado
não podem ser punidas com penas criminais, mas constituir contraversões ou permanecer na
área da responsabilidade civil, como pequenos furtos em lojas, indústrias ou empresas em geral;
b) segundo, lesões de bens jurídicos com máximo desvalor de resultado não podem ser punidas
com penas criminais desproporcionais ou absurdas como ocorre com os chamados crimes
hediondos, esse grotesco produto da imaginação punitiva do legislador brasileiro." (SANTOS, J. C.,
2008b, p.6).
129
maior punição e como instrumento de preservação do princípio da subsidiariedade
e da intervenção mínima do Direito Penal, preservando na medida do possível a
concepção clássica garantista e iluminista deste ramo do direito.
Nesse contexto o instituto da sanção administrativa passa a ter maior relevância
no estudo do direito, motivo pelo qual serão apresentadas, a seguir, algumas noções
sobre o assunto.
A cominação de uma sanção é consequência da atribuição de uma infração
a alguém, o que leva Celso Antônio Bandeira de Mello a afirmar que "[...] infração e
sanção administrativa são temas indissoluvelmente ligados."
418
Também no que concerne à sanção, instaura-se a discussão acerca de uma
diferença substancial entre as administrativas e as penais, afirmando Celso Antônio
Bandeira de Mello
419
e Heraldo Garcia Vitta que não qualquer distião substancial,
sendo possível identificar apenas um único elemento que define o tratamento jurídico
a ser dado à infração, se administrativo ou penal, e que acaba por apartá-las: a
autoridade competente para impor a sanção, o que leva ao conceito de infração
administrativa como "[...] o descumprimento voluntário de uma norma administrativa
para o qual se pre saão cuja imposição é decida por uma autoridade no exercício de
função administrativa – ainda que não necessariamente aplicada nesta esfera."
420
Diante disso, apresenta Celso Antônio Bandeira de Mello um conceito de
infração administrativa em que um dos elementos identificadores é exatamente o fato
de sua imposição ser decidida por uma autoridade no exercício da fuão administrativa.
421
Na Espanha a doutrina majoritária segue a concepção de García de Enterría
e considera sanção administrativa "qualquer mal infligido pela Administração a um
administrado como conseqüência de uma conduta ilegal"
422
.
423
418
MELLO, C. A. B., 2007, p.816.
419
Ibid., p.817.
420
Id.
421
Infração administrativa é: "[...] o descumprimento voluntário de uma norma administrativa para o
qual se prevê uma sanção cuja imposição é decidida por uma autoridade no exercício de
função administrativa – ainda que não aplicada nesta esfera." (Id.).
422
ENTERRÍA, Eduardo García de. El problema jurídico de las sanciones administrativas. Revista
de Derecho Administrativo, n.10, p.399, 1976.
423
CARDOSO, 2001, p.18.
130
Uma concepção ainda mais ampla de sanção administrativa é propugnada
por uma corrente doutrinária italiana que tem como partidários Ardizzone
424
e
Bobbio
425
que engloba qualquer meio do qual se utilize a Administração no exercício
de suas funções para garantir a realização de seus fins.
426
Fábio Medina Osório acrescenta à definição de sanção administrativa (de
caráter eminentemente negativo) a retributividade dessa consequência judica atribuível
a uma violação da norma de conduta desencorajada pelo ordenamento jurídico e
destinada a toda a coletividade ou às pessoas sujeitas a uma relação de especial
sujeição perante o Estado.
427
O referido autor, ao ressaltar a finalidade repressiva como elemento teleológico
da sanção negativa administrativa, pontua que isso o significa que sanção administrativa
e disciplinar sejam sinônimos, pois, em verdade, a sanção disciplinar é uma espécie
de sanção administrativa.
428
A idéia de a sanção administrativa possuir um caráter retributivo é majoritária
na Itália, desde a Lei n.
o
689/1981
429
, na Alemanha, cujo sistema é de inspiração
italiana
430
e na Espanha.
431
424
ARDIZZONE, U. Sanzione amministrative. Nuovo Digesto Italiano. Torino, 1939. T. XI. p.1085 e segs.
425
BOBBIO, Norberto. Sanzzione. Novissimo Digesto Italiano. Torino, 1969. v.16. p.530 e segs.
426
CARDOSO, 2001, p.18.
427
"Consiste a sanção administrativa, portanto, em um mal ou castigo, porque tem efeitos aflitivos,
com alcance geral e potencialmente pro futuro, imposto pela Administração blica, materialmente
considerada, pelo Judiciário ou por corporações de direito blico, a um administrado, jurisdicionado,
agente público, pessoa física ou jurídica sujeitos ou não a especiais relações de sujeição com o
Estado, como conseqüência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade
repressora ou disciplinar, no âmbito de aplicação formal e material do Direito Administrativo.
A finalidade repressora, ou punitiva,inclui a disciplinar, mas não custa deixar clara essa inclusão,
para não haver dúvidas." (OSÓRIO, 2005, p.104).
428
"Descabe conceituar sanção administrativa como uma medida com cater ou finalidade puramente
repressiva. Melhor, nesse passo, anda a doutrina francesa, que salienta que a sanção administrativa
não ostenta natureza necessariamente disciplinar, o que não significa, por óbvio, que não possa
ser disciplinar. Em realidade, tal definição abarca as medidas disciplinares, mas não as torna
imprescinveis à saão administrativa. As sanções disciplinares se integram nas sanções administrativas;
são, por certo, sanções administrativas cujos objetivos e características possuem algumas especificidades,
mas nem de longe esgotam o conceito de sanção administrativa." (Ibid., p.101-102).
429
TRAVI, A. Sanzioni amministrative e pubblica amministrazione. Padova: CEDAM, 1983. p.58
430
CARDOSO, op. cit., p.18.
431
Nesse sentido Id. e PALMA DEL TESO, Ángeles de. El principio de culpabilidad em el derecho
administrativo sancionador. Madrid: Tecnos, 1996. p.42-44.
131
Munhoz de Mello registra que as sanções administrativas são medidas
aflitivas que podem ter tanto caráter retributivo quanto ressarcitório, destacando que,
embora sejam espécies de um mesmo nero, sujeitam-se a regimes judicos distintos,
aplicando-se os prinpios de Direito Administrativo Sancionador apenas às hiteses de
sanções retributivas. Reforça que a sanção administrativa retributiva, ainda que se
esgote na imposão de um castigo ao infrator e não tenha a pretensão de reestabelecer
o status quo ante, tem uma finalidade preventiva.
432
Sendo assim, ponto relevante de análise em sede de sanções administrativas é
a chamada prevenção geral
433
, que é largamente utilizada pelo Poder Legislativo como
justificativa para a imposão de sanções negativas no Direito Administrativo Sancionador.
A esse respeito, cabe trazer a lição introdutória da obra de Alejandro Nieto
que, embora se refira à experiência espanhola, mostra-se perfeitamente aplicável ao
caso brasileiro.
Nieto afirma que essa pretendida tarefa da prevenção geral, em verdade, não
se opera, pois o número de infrões previstas em leis em sentido estrito, regulamentos,
regimentos, instruções, torna impossível a tarefa de o cidadão conhecer todas elas
materialmente. Trata-se, inclusive, de uma tarefa árdua para os próprios juristas, pois:
O repertório de ilícitos comunitários, estatais, autônomos, municipais e
coorporativos ocupa bibliotecas inteiras. Não cidadão ou jurista, por mais
estudioso e experiente que seja, capaz de conhecer as infrações que podem vir
a cometer a cada dia. Nessas condições, o requisito da reserva legal e da
publicidade das normas sancionadoras são uma burla, pois sequer fisicamente
há tempo de -las e ainda que sejam lidas, sejam compreendidas pelo potencial
infrator de cultura média.
434
432
MELLO, R. M., 2008, p.75-81.
433
Sobre a prevenção da infração administrativa: BONILHA, Ciro de Araújo Martins. Da prevenção
da infração administrativa. São Paulo: Edipro, 2008. p.269 (se refere à infração disciplinar).
434
"El repertorio de ilícitos comunitarios, estatales, autonómicos, municipales y corporativos ocupa
bibliotecas enteras. No ya un ciudadano cualquiera, ni el jurista más estudioso ni el profesional
más experimentado son capaces de conocer las infracciones que cada día pueden cometer. En
estas condiciones, el requisito de la reserva legal y el de la publicidad de las normas sancionadoras
son una burla, dado que ni físicamente hay tiempo de leerlas ni, leídas, son inteligibles para el
potencial infractor de cultura media." (NIETO, 2008, p.29).
132
Segundo Nieto, as sanções administrativas negativas são um instrumento de
legitimação da violência estatal que pode ser utilizado pela Administração Pública de
maneira arbitrária, como algo muito próximo de uma loteria em que os cidadãos
contam com a sorte, pois "se a Administração quiser, encontrará infrões e infratores
sem dificuldade alguma".
435
E, diante da "inevitabilidade das infrações e a
arbitrariedade na persecução", resta ao administrado apenas aguardar e esperar
pela sorte de não ser surpreendido pela vontade estatal de sancioná-lo.
436
Nesse panorama ressalta esse autor que não espaço para a defesa em
face das infrações administrativas, o que as torna um instrumento mais arbitrário
ainda. Em sua opinião, algumas doutrinas também vistas na prática jurídica do
Direito Administrativo brasileiro como a da impossibilidade de invocar a igualdade
em situações jurídicas ilegais ou de escusar-se na irregularidade dos demais,
chamada por ele de "doctrina de la no invocabilidad de la igualdad":
O cidadão médio não pode defender-se: em parte porque sabe que é infrator e
em parte porque os gastos com a defesa, ordinariamente, são mais elevados
que a multa. Por isso os únicos que apresentam defesas são os perseguidos,
os desesperados e os pleiteadores de vocação. A partir de seu sacrifício – e às
expensas da paciência dos Tribunais tem prosperado, passo a passo, o
Direito Administrativo Sancionador, mas sem melhorar a prática administrativa,
visto que a Administração último e mais indignante dos sarcasmos desse
sistema – deixa escapar certamente os beneficiários da decisão, porém, não
deixa de sancionar aqueles que se encontram nas mesmas circunstâncias e
que deixaram de recorrer. Ou seja, que a Administração deixou-se contagiar
pelo espírito social lúdico de que antes aludiu-se e ao sancionar também
está jogando no sentido de que o infrator o recorra aos Tribunais. O que
acontece é que esta loteria estatística sempre ganha, ainda que se percam
todos os recursos, já que estes percentualmente são muito escassos.
437
435
"Ahora bien, para las Administraciones blicas ofrece el Derecho Administrativo Sancionador una
cobertura ideal para el abuso y la arbitrariedad, para las represalias políticas y personales y para
la extorsión más descarnada. Tal como ya he adelantado, la potestad sancionadora cuando
quiere y puede ejercerse no es otra cosa que la legitimación de la violencia del Poder." e "El
ciudadano tal como se ha explicado antes sabe perfectamente que está en falta y su castigo
depende exclusivamente del azar y del capricho de la Administración. El español juega cada día a la
lotería – negativa – [...], cuyos premios y sanciones hay que buscar (o esquivar) con entusiasmo y
aceptar con resignación." e ainda, "Porque es sabido que, si la Administración quiere, encuentra
infracciones e infractores sin dificultad alguna." (NIETO, 2008, p.31, 32 e 29, respectivamente).
436
Ibid., p.29.
437
"El ciudadano medio no puede defenderse: en parte porque se sabe infractor y en parte porque
los gastos de la defensa son de ordinario más elevados que la multa. Por ello únicamente se
defienden los acosados, los desesperados y los pleitistas vocacionales. Con su sacrificio y a
133
Adverncia, multa, interdição de local ou estabelecimento, inabilitão temporária
para certa atividade, extinção de relação jurídica estabelecida com o Poder Público e
a apreensão ou destruição de bens são modalidades de sanções administrativas.
438
Discute-se, inclusive, se as consequências acessórias do delito pertenceriam ao
regime jurídico administrativo por serem "próximas às sanções administrativas"
439
.
A possibilidade de aplicação de uma pena privativa de liberdade em lugar
de uma sanção penal pecuniária é um elemento de diferenciação entre um ilícito
administrativo e um penal. Trata-se do "arresto substitutório", isto é, da uma
responsabilidade pessoal subsidiária em que se estabelece um dia de privação de
liberdade para cada duas quotas diárias não satisfeitas da pena pecuniária (artigo
53.1 do Código Penal espanhol) e que é duramente criticado por constituir uma
espécie de prisão por dívida com o Estado, pois configura tratamento discriminatório
quanto à condição socioeconômica do apenado, incompatível com uma concepção
de Direito Penal Democrático. Este entendimento, entretanto, não é corroborado
costa de la paciencia de los Tribunales ha ido prosperando paso a paso el Derecho
Administrativo Sancionador, pero en nada mejora la práctica administrativa, puesto que la
Administración último y más sangrante de los sarcasmos del sistema deja escapar
ciertamente a los beneficiarios de una sentencia, pero no por ella deja de sancionar a los que se
encuentran en las mismas circunstancias y no han recurrido. O sea, que la Administración se ha
dejado contagiar por el espíritu social lúdico a que antes he aludido y al sancionar también está
jugando a que el infractor no acuda a los Tribunales. Lo que sucede es que este Lotero
estadísticamente siempre gana aunque pierda todos los recursos, ya que éstos porcentualmente
son muy escasos." (NIETO, 2008, p.31).
438
"Sanção administrativa é a providência gravosa prevista em caso de incursão de alguém em uma
infração administrativa cuja imposição é da alçada da própria Administração. Isto não significa,
entretanto, que a aplicação da sanção, isto é, sua concreta efetivação, possa sempre se efetuar
por obra da própria Administração. Com efeito, em muitos casos, se não for espontaneamente
atendida, será necessário recorrer à via judicial para efetivá-la, como ocorre, por exemplo, com a
multa, a qual, se não for paga, só poderá ser judicialmente cobrada.
Sendo muito variadas as relações de Direito Administrativo, são também muito variadas as
modalidades de sanção. Assim, existem: a) advertência; b) sanções pecuniárias isto é, multas;
c) interdição de local ou estabelecimento como o fechamento de uma fábrica por poluir as
águas; d) inabilitação temporária para certa atividade como a suspensão do direito de licitar, ou
da carteira de habilitação do motorista; e) extinção de relação entretida com o Poder Público
como as cassações de licença de funcionamento ou a decretação de caducidade de uma
concessão de serviço público; f) apreensão ou destruição de bens como, respectivamente, de
equipamentos de pesca ou de caça utilizados fora das normas e de edificação construída em
desobediência à legislação editalícia. Hoje não mais se admite a figura da prisão administrativa,
sanção considerada pelo STF como inconvivente com o art. 5.
o
, LV e LVI, da Constituição
Federal." (MELLO, 2007, p.818).
439
LOZANO CUTANDA, B. La extinción de las sanciones administrativas y tributarias. Madrid:
Marcial Pons, 1990.
134
pelo Tribunal Constitucional Espanhol, consoante a sentença 19, de 16 de fevereiro
de 1988.
440
Cumpre destacar que não se observa na doutrina qualquer menção à
possibilidade de a Administração Pública impor uma pena privativa de liberdade.
Trata-se de um verdadeiro limite negativo ao Direito Administrativo Sancionador;
porém, não se deve esquecer que a Administração pode fechar uma empresa, o que
equivale a uma 'pena de morte' de uma pessoa jurídica, sem mencionar as graves
repercussões que esse ato geraria para os direitos dos trabalhadores.
441
Sobre a suspensão do exercício de direitos fundamentais e de liberdades
blicas, Cardoso afirma que podem ocorrer no âmbito penal. Entretanto, do ponto
de vista prático, isso pode ocorrer no âmbito das sanções administrativas na Espanha.
Um exemplo disso era a lei que regulamentava a contratação com a Administrão
blica espanhola e que vedava os indivíduos indiciados ou processados de contratar
com o poder público, em clara ofensa ao princípio da presunção de inoncia. Mesmo
havendo a posterior alteração deste diploma, permanece em aberto o debate sobre
a possibilidade de uma sanção administrativa suspender liberdades públicas.
442
3.1.4 As consequências da teoria unitária do ius puniendi
a) Princípios de Direito Administrativo sancionador
A Teoria Unitária do Ius Puniendi, dependendo do enfoque que lhe é conferido,
pode ter duas consequências principais: resultar na transposição de princípios e
garantias penais para o Direito Administrativo Sancionador, ao se reconhecer que a
origem desse novo ramo reside no Direito Penal ou na inspiração da dogmática
administrativa sancionadora, derivada do Direito Público, no Direito Penal.
440
CARDOSO, 2001, p.20.
441
Ibid., p.22.
442
Ibid., p.19.
135
Após estudar o desenvolvimento da potestad sancionadora na Espanha
constatar-se, principalmente a partir das lições de Alejandro Nieto, que passada uma
primeira fase eminentemente garantista observa-se na doutrina e jurisprudência
espanholas uma flexibilização das garantias penais apliveis aos ilícitos administrativos.
São as chamadas "matizações" que têm por finalidade adaptar os princípios de
Direito Penal ao regime jurídico sancionador administrativo e que, em alguns casos,
como o referido autor anota em sua obra, forma um novo princípio que tem muito
pouco em comum com a formulação original no âmbito penal.
A proximidade entre ilícitos penais e administrativos é que leva doutrinadores
como Cerezo Mir a afirmar que devem ser aplicados às infrações administrativas
alguns princípios fundamentais de Direito Penal, como o princípio da legalidade
(e tipicidade, retroatividade da lei mais favorável), o ne bis in idem entre penas e
sanções administrativas, culpabilidade e institutos como a prescrição e o efeito
suspensivo em recurso contra a imposição de uma sanção administrativa.
443
Os princípios são elementos nucleares de um sistema jurídico
444
, porém, nos
ramos jurídicos, em geral, como acentua Nieto, tem ocorrido um exagero no seu emprego,
deturpando a sua natureza ao empregar como princípios meros critérios acidentais:
[...] quando tudo são princípios, ou, o que é o mesmo, quando se denomina
principio qualquer critério, embora concernente a um aspecto meramente
acidental, nada mais é princípio, o que se traduz em uma certa confusão
quanto à idéia ou às poucas idéias originárias da instituição da qual se trata.
445
Neste ponto reside a importância de se ter delimitado no primeiro capítulo do
trabalho a diferea entre princípios e regras, a qual será retomada, aqui, especificamente
quanto ao Direito Administrativo Sancionador nas palavras de Alejandro Nieto:
443
CEREZO MIR, 1993, p.32-33.
444
Conferir, sobre principios: (1) ARÉVALO, 1952, p.51-104 e (2) COMA, Martín Bassols. Los
principios del Estado de derecho y su aplicación a la Administración en la Constitución. Revista
de Administración Pública, n.87, p.133-159, 1978. Disponível em:
<http://www.cepc.es/rap/Publicaciones/Revistas/1/1978_087_133.PDF>. Acesso em: 03 jul. 2007.
445
Tradução livre de: "[...] cuando todo son principios o, lo que es igual, cuando se denomina
principio a cualquier criterio, aunque se refiera a un aspecto meramente accidental, resulta que ya
nada es principio, lo que se traduce en una completa confusión acerca de la idea o de las pocas
ideas originarias de la institución de que se trate." (NIETO, 2008, p.44).
136
Uma norma é completa (ou perfeita) se contém todos os elementos
necessários para sua efetividade, pois não se trata apenas de ser inteligível,
mas que, ainda, deve ser potencialmente operacional. Ordinariamente, não
obstante, estes elementos somente aparecerem em normas diferentes e por
isso pode-se dividi-las entre:
- normas primárias, que contém uma prescrição, isto é, a imposição de uma
conduta, cujo destinatário é precisamente quem deve adotar essa conduta;
- as normas secundárias estabelecem as conseências do o cumprimento
da conduta imposta e estão dirigidas aos órgãos estatais (em último caso
aos juízes) encarregados de impor essas conseqüências;
446
- as normas terciárias, por fim, estabelecem as regras pertinentes ao
procedimento e compencia para assegurar a execução das mencionadas
conseqüências.
447
Ainda, de acordo com Nieto, é no Direito Administrativo Sancionador que a
temática dos princípios atinge seu momento culminante em que, efetivamente, tudo
são princípios, pois são eles que conferem a coesão sistemática necessária às diferentes
normas sancionadoras de natureza administrativa.
448
Esse fato é refletido também na prodão científica sobre o Direito Administrativo
Sancionador falando-se, aqui, da produção espanhola, pois a brasileira ainda é
muito tímida sobre o tema em relação às situações de supremacia geral em que
predomina o tratamento das questões doutrinárias concernentes aos princípios.
446
Lembrar de que também é aqui que se opera a prevenção geral, portanto, as normas secunrias,
de acordo com os teóricos penais da defesa social, abordados no segundo capítulo, também são
direcionadas aos possíveis infratores e não apenas aos agentes públicos que aplicam as conseqüências
do descumprimento da norma.
447
Tradução livre de: "Una norma es completa (o perfecta) si contiene todos los elementos necesarios
para su efectividad, puesto que no se trata sólo de que sea inteligible sino que, además, ha de ser
potencialmente operativa. De ordinario, no obstante, estos elementos suelen aparecer en normas
distintas y por ello se distingue tradicionalmente entre:
- las normas primarias, que son las que contienen una prescripción, es decir, la imposición de una
conducta, y cuyo destinatario es precisamente quien ha de adoptar tal conducta;
- las normas secundarias establecen las consecuencias del incumplimiento de la conducta
impuesta y están dirigidas a los órganos estatales (en último extremo a los Jueces) encargados
de imponer tales consecuencias;
- las normas terciarias, en fin, establecen las reglas de procedimiento y competencia para
asegurar la ejecución de las consecuencias dichas." (NIETO, 2008, p.44).
448
Nesse sentido é a lição de Muñóz Quiroga: "[...] no Direito Administrativo Sancionador, em que se
aplicam normas elaboradas em tempos distintos e obedecem a mentalidades diferentes, que junto
a interesses gerais têm defendido interesses setoriais, o único meio de conferir coesão ao
ordenamento é aplicar princípios permanentes, cuja vigência é reforçada quando abarcados pelos
preceitos constitucionais." Tradução livre de: "[...] en el Derecho Administrativo Sancionador, donde
se aplican normas elaboradas en tiempos distintos y que obedecen a mentalidades diferentes, en
las que junto a intereses generales se han defendido intereses sectoriales, el único medio de dar
cohesión al ordenamiento es la aplicación de principios permanentes, cuya vigencia se refuerza al
ser incardigados en los preceptos constitucionales." (MUÑOZ QUIROGA, A. El principio non bis in
idem. Revista Española de Derecho Administrativo, n.45, p.132, 1985).
137
Alejandro Nieto destaca que a transformação de critérios acidentais em
princípios decorre do equívoco de chamar de princípios normas ou regras de caráter
geral que não estão previstas em um texto positivo. Um exemplo no direito espanhol,
a vedação ao estabelecimento de mais de uma sanção administrativa em relação a
um mesmo direito que não foi formulada como princípio, mas como regra geral em
várias leis setoriais.
449
Levando-se em consideração o enfoque ctico do Direito, aliando-o à pertinente
preocupação de Nieto acima referida e as exigências da dogmática, a identificação
dos princípios de Direito Administrativo Sancionador a partir da Constituição Federal
mostra-se como uma solução apta a conferir ao Direito Administrativo Sancionador
não apenas um aspecto temporal, como também um limite material de conteúdo
dinâmico – refiro-me às mutações constitucionais – que possibilitam uma abertura na
dogmática que, com o auxílio da zetética, pode construir princípios sancionadores
críticos e não meramente legitimadores.
No direito brasileiro há, nesse sentido, a obra de Rafael Munhoz de Mello
450
,
cujo objeto foi especificamente a temática dos princípios de Direito Administrativo
Sancionador à luz da Constituição Federal de 1988.
Nessa obra Munhoz de Mello arrola os princípios da legalidade (incorporando
também os postulados da tipicidade e irretroatividade da lei mais gravosa),
culpabilidade
451
, non bis in idem
452
, devido processo legal
453
(e presunção de
449
Tradução livre de: "Es muy posible que esto se deba al extendido error de denominar principios a
las normas o reglas de carácter general que no están consignadas en un texto positivo. En el
Derecho Administrativo Sancionador sucede que, por ejemplo, la prohibición de la duplicidad de
sanciones por un mismo hecho no había sido formulada con carácter general como principio sino
que se encontraba especificada en varias leyes sectoriales." (NIETO, 2008, p.44).
450
Nesse sentido, especificamente no direito brasileiro, há que se conferir a obra de MELLO, R. M., 2008.
451
"No direito administrativo sancionador deve ser observado o princípio da culpabilidade, que veda
a imposição de sanção administrativa retributiva a sujeito que agiu sem dolo ou culpa stricto
sensu. [...] O princípio da culpabilidade tem como corolário o princípio da pessoalidade da sanção
administrativa [...] [retributiva que] deve ser imposta tão-somente a quem, com dolo ou culpa
stricto sensu, realiza a infração administrativa, sendo vedada a punição por fato de outrem.
A incidência do princípio da culpabilidade no âmbito do Direito Administrativo Sancionador torna
relevante o erro, que em certas circunstâncias pode afastar a culpa do agente que pratica a
conduta típica, tornando incabível a imposição da sanção." (Ibid., p.261 e 262).
452
Rafael Munhoz de Mello anota que "O princípio do non bis in idem veda a acumulação de
sanções administrativas pela ocorrência de uma mesma conduta [...] [porém] não impede a
cumulação de sanção administrativa com sanção penal. Prevalece no Brasil o entendimento de
que são independentes as instâncias administrativa e penal, de modo de que a conclusão do
138
inocência)
454
, mas consoante anota Alejandro Nieto é o princípio da legalidade
455
um
dos mais relevantes em sede de Direito Administrativo Sancionador.
456
No caso do Direito Administrativo Sancionador, assim como no chamado
Direito Penal Econômico, uma dificuldade na elucidação dos tipos dos ilícitos por
conta da farta utilização de elementos normativos, bem como em razão da utilização
de normas em branco, tipos penais abertos, cláusulas gerais, que, em conjunto,
dificultam uma precisa identificação das vedações a que se refere aquele tipo de
ilícito pelo destinatário dessa norma.
processo administrativo pode ser diversa da conclusão do processo penal. A independência,
todavia, não é absoluta, devendo a Administração Pública observar a decisão judicial que absolva
o réu pelo reconhecimento da (i) inexistência do fato ou (ii) da negativa da autoria." (MELLO, R.
M., 2008, p.262). Ainda sobre esse princípio na doutrina espanhola conferir CANO CAMPOS,
Tomás. Non bis in idem, prevalencia de la vía penal y teoría de los concursos en el Derecho
administrativo sancionador. Revista de Administración Pública, n.156, p.191-250, 2001.
Disponível em: <http://www.cepc.es/rap/Publicaciones/Revistas/1/2001_156_191.PDF>. Acesso
em: 03 jul. 2007.
453
"O princípio do devido processo legal exige que a Administração Pública instaure um processo
antes de praticar ato que atinja a esfera jurídica dos particulares, tal qual ocorre com a sanção
administrativa. Mas o princípio não é atendido apenas com a instauração de um processo prévio,
impondo também a observância de garantias processuais necessárias a impedir a atuação
arbitrária do poder estatal. Não se trata de qualquer processo, portanto, mas, sim, do devido
processo. No curso do processo administrativo sancionador devem ser observadas as seguintes
garantias processuais: (i) ampla defesa e contraditório; (ii) igualdade; (iii) publicidade; (iv)
motivação; (v) autoridade administrativa natural; (vi) revisibilidade das decisões administrativas.
Sem a observância de tais garantias há um simulacro de processo administrativo." (MELLO, R. M., op.
cit., p.262 e 263).
454
Sobre a presunção de inocência ver: (1) BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. O direito fundamental
à presunção de inocência no processo administrativo disciplinar. A&C Revista de Direito
Administrativo e Constitucional, v.37, p.11-55, jul./set. 2009; (2) CARMONA RUANO, Miguel.
Prueba de la infracción administrativa y derecho fundamental a la presunción de inocencia.
Jueces para la democracia, n.9, p.22-30, 1990. Disponível em: <http://osu.worldcat.org/wcpa/
oclc/279486574?page=frame&url=http%3A%2F%2Fdialnet.unirioja.es%2Fservlet%2Foaiart%3Fc
odigo%3D2531910%26checksum%3Dfab152d73ba2fe6c0c371826c9de2263&title=&linktype=digit
alObject&detail=>. Acesso em: 26 jan. 2010.
455
Sobre esse princípio: (1) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O princípio da legalidade e
algumas de suas conseqüências para o direito administrativo sancionador. Revista Latino-
Americana de Estudos Constitucionais, Fortaleza, v1, p.61-75, 2003; (2) CASINO RUBIO,
Miguel. El principio de la legalidad en el Derecho Administrativo sancionador: a vueltas con
la Ley de Orden público. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10016/1417>. Acesso em: 26 jan.
2010; (3) CAVALCANTI, Themístocles Brandão. O princípio da legalidade e o desvio de poder.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 85, p.1-7, jul./set. 1966.
456
NIETO, 2008, p.27.
139
Corroborando este entendimento de que a existência de leis indeterminadas,
que descrevem vagamente a conduta ilícita, impedem a determinação da real
abrangência do preceito normativo, Francisco de Assis Toledo
457
leciona que os tipos
não podem deixar margem a dúvidas, precipuamente em matéria penal, mas que,
dada a semelhança entre ilícitos penais e administrativos, também a estes se aplica,
pois os ilícitos, independentemente de sua natureza, devem desempenhar uma
função pedagógica motivando o comportamento humano, sendo inteligível por todos
e não apenas pelos juristas.
A norma que prescreve o ilícito deve precisar a esfera do ilícito, conferindo
exatidão à delimitação do tipo, coibindo, dessa maneira, uma aplicação elástica do
dispositivo para além dos limites legais, estando sua eficácia condicionada à técnica
legislativa adotada para sua criação.
458
As técnicas aplicadas na tipificação dos ilícitos administrativos, ao contrário
do que em regra ocorre nos ilícitos penais, preferem empregar normas em branco,
tipos de perigo (concreto ou abstrato), elementos normativos, cláusulas gerais, bem
como comandos de supressão de qualificadoras do elemento subjetivo do tipo
459
, o
que configura uma necessária flexibilização do princípio da legalidade nos ilícitos
administrativos quando cotejado com sua concepção garantista iluminista, clássica
no âmbito penal.
Observe-se que as normas em branco são compatíveis com o ordenamento
jurídico-administrativo moderno como com o pós-industrial. Tais normas, como
mencionado, consistem num mero comando, pois a sua complementação é dada ou
por uma norma de mesma natureza ou de natureza diversa, tendo por objetivo
abarcar, com uma maior rapidez, condutas que se mostrem lesivas à Administração
blica e ao interesseblico, de acordo com as alterações que ocorrem na sociedade.
457
TOLEDO, 1994, p.29.
458
FRANCO, Alberto Silva et al. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 7.ed. São
Paulo: RT, 2001. p.6.
459
SALOMÃO, Heloísa Estellita. Tipicidade no direito penal econômico. Revista dos Tribunais, São
Paulo, v.725, p.407-423, mar. 1996.
140
Mas tendo em vista a delimitação do tema, por questões didáticas, será
apresentada apenas a distinção atribuída a Tiedmann na doutrina alemã e a Garcia
Aran na doutrina espanhola e que se refere à distinção entre leis penais em branco e
elementos normativos do tipo que também pode se aplicada aos ilícitos administrativos
com a mesma técnica legislativa. De acordo com essa concepção, a lei em branco é
a remissão a outra norma, de outra fonte normativa, em que se determina de forma
precisa o elemento típico e onde está contida a infração. Os elementos normativos
também podem fazer remissões expressas a outras normas, mas neles uma
mera remissão interpretativa a outra norma para fixar o conteúdo do elemento típico,
o qual já está contido na própria lei em branco.
460
Essa técnica legislativa favorece a abordagem dos ilícitos administrativos na
medida em que o seu elemento normativo pode ser modificado por meio de um
processo de elaboração muito mais simples e célere, pois o trâmite exigido para a
elaborão de uma instrão normativa ou portaria é incomparavelmente mais simples
que o processo legislativo ordinário, mesmo com a aplicação analógica da vacatio
legis, podendo-se, com isso, acompanhar as constantes mutações que ocorrem na
sociedade de risco pós-industrial.
Nessa esteira, também se deve mencionar as cláusulas gerais. Estas são
diferentes das normas em branco, pois tornam indefinida e imprecisa a delimitação
típica do comportamento humano ou dão ao tipo as chamadas "margens alargadas",
transformando o juiz em legislador e conferindo um espaço para que a arbitrariedade
judicial possa campear à solta sem qualquer limitação.
461
O intuito da adão de cláusulas gerais na tipificão das condutas pertencentes
ao âmbito do Direito Administrativo é evitar lacunas e ao mesmo tempo deixar de
limitar a orientação da política nesta matéria, sendo possível constatar, desde logo,
que se trata de uma técnica legislativa muito mais aberta que as normas penais em
branco.
462
460
Tradução livre de PEREZ, Carlos Martinez-Buján. Derecho penal econômico: parte general.
Valencia: Tirant lo blanch, 1998. p.125 e 126.
461
FRANCO et al., 2001, p.7.
462
Conferir, sobre o assunto: COSTA, José de Faria; ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre a concepção e
os princípios do direito penal econômico: notas a propósito do colóquio preparado dela AIDP
141
Nas cláusulas gerais há a renúncia ao estabelecimento de regras de valorão
das condutas, sendo atribuição do juiz a escolha de um método para a aplicação
da norma. Ele deve, então, aplicar a norma com base em suas próprias convicções
subjetivas.
463
Elas consistiriam, pois, na utilização de uma técnica legislativa excessi-
vamente ampla, que mescla conceitos que, penalmente, deveriam receber tratamentos
diversos, obrigando o juiz a realizar a tarefa de diferenciá-los, o que, em verdade,
seria competência do Poder Legislativo.
São conceitos sem limitões exatas, mas de natureza normativa cuja valorão
deve ser feita por meio de critérios extrajurídicos. Para Madrid Coesa, essa liberdade
para a decisão subjetiva do juiz é uma "lagoa intra legem", o que equivale a decidir
que não há norma aplicável ao caso.
464
A adoção das referidas cláusulas supramencionadas supõe uma vulneração
ao que Pilar Gómez Pavón chama de "mandato de determinación" que equivaleria ao
princípio da taxatividade corolário do princípio da legalidade, eis que as cláusulas
gerais podem vir a gerar tratamentos diversos para casos e pessoas supostamente
iguais, quebrando, a seu ver, o princípio da igualdade, da segurança jurídica, e
consequentemente, da legalidade, pois se perde a certeza na aplicação da lei.
Entretanto, considera-se mais acertado no contexto social em que vivemos o
posicionamento de Rafael Munhoz de Mello, que considera perfeitamente conciliável com
o Direito Administrativo Sancionador a utilização de conceitos jurídicos indeterminados,
desde que respeitada a tipicidade; a técnica de tipificação indireta e das normas
em branco.
465
(Friburg, setembro de 1982) In: Roberto Podval (Org.). Temas de direito penal econômico. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p.99-120.
463
PAVÓN, Pilar Gómez. Cuestiones actuales Del derecho penal económico. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, ano 12, n.48, p.158, maio/jun. 2004.
464
Ibid., p.159.
465
"O princípio da tipicidade não veda a utilização de conceitos jurídicos indeterminados, mas, por
outro lado, seu uso não afasta a exigência de tipicidade. Permanece sendo necessário, quando
utilizando conceito indeterminado, que o comportamento proibido seja descrito com clareza e
objetividade, de modo a que os particulares possam evitar a aplicação da sanção administrativa.
É admitida no direito administrativo sancionador a tipificação indireta. Na tipificação indireta o
dispositivo legal que prea infração administrativa faz referência a outro dispositivo, no qual foi
estipulada uma obrigação ou proibição, cuja inobservância caracteriza ilícito administrativo. Desde que
seja possível identificar a conduta proibida, a tipificação indireta não viola o princípio da tipicidade.
A tipificação global ou residual, através da qual se pretende tipificar como conduta sujeita à
aplicação de sanção administrativa todo e qualquer descumprimento de norma jurídica, sem
142
Assim, trazidas algumas características dos princípios em sede de Direito
Administrativo Sancionador em muito inspirados nos princípios Penais, cabe traçar,
para finalizar esta análise, algumas considerações sobre a possibilidade de se
adaptar a teoria do crime para o Direito Administrativo Sancionador.
b) Aplicabilidade do conceito estratificado de delito e da Teoria do Crime ao
Direito Administrativo Sancionador
O tema dos ilícitos administrativos é tratado no ordenamento jurídico brasileiro
de forma desordenada. o é posvel visualizar claramente a linha mestra sob a qual
eso delineados os pressupostos para a responsabilizão administrativa concernente.
Portanto, para que se tenha uma maior segurança quando da imposição das
sanções administrativas, devem ser identificados critérios racionais que funcionem,
seja na doutrina, seja na jurisprudência, como pressupostos para a atribuição de uma
infração administrativa a alguém e aplicação da consequência jurídica pertinente.
A sistematizão desses cririos em um esboço do conceito analítico contribui
como um critério de racionalidade apto a assegurar um mínimo de segurança
jurídica necessária aos destinatários das normas administrativas sancionatórias em
um Estado Democrático de Direito.
Uma pesquisa dessa natureza envolve o levantamento de dados de decisões
judiciais, bem como de atos administrativos emitidos em que são imputadas sanções
administrativas, como os Tribunais de Contas e as agências reguladoras, por exemplo;
porém, a doutrina brasileira ainda carece de uma investigação própria sobre
esses critérios.
qualquer especificação, vai de encontro ao princípio da tipicidade. Na tipificação global utiliza-se
uma cláusula onicompreensiva,que abrange todos os comportamentos que violem dispositivo
normativo – qualquer dispositivo.
Não óbice no direito administrativo sancionador à edição das chamadas normas em branco
[...]." (MELLO, R. M., 2008, p.260).
143
Outra forma de procurar sistematizar a aplicação das sanções administrativas
pode se dar pelo aproveitamento da Teoria do Crime e do conceito analítico de delito
desenvolvidos pelo Direito Penal, diante da semelhança entre os ilícitos estudados pela
ciência criminal e os de natureza administrativa, na dogtica do Direito Administrativo
Sancionador, como propôs Daniel Ferreira, justificando tal abordagem, dentre outros
motivos, na inutilidade de "reinventar a roda".
466
Ferreira define analiticamente a infração administrativa como conduta, típica,
antijurídica e administrativamente reprovável, e na ausência de qualquer um desses
elementos não se estará diante de um ilícito administrativo.
467
A retirada do termo "humana" do primeiro item do conceito analítico na
Teoria do Crime o primeiro elemento é a conduta humana
468
- deve-se à intenção de
abarcar como potencial infrator não as pessoas físicas, como também as jurídicas.
O autor também opta pela utilização da palavra comportamento em lugar de conduta,
por considerá-la mais adequada ao fim proposto, bem como adota o posicionamento
finalista, considerando o comportamento, tal qual Welzel, como um fazer final, um
comportamento destinado a um fim, não podendo ser considerado um ato ilícito um
comportamento originário de um estado de inconsciência ou coação física irresistível.
469
O primeiro grau de desvalor do comportamento administrativamente reprovável
é a tipicidade que significa antinormatividade, "contradição entre a conduta típica e a
pretensão contida na regra de direito"
470
. O autor divide esse elemento em duas partes.
A primeira é o tipo objetivo, que é obrigatório e corresponde ao preceito primário da
norma de conduta; tem por núcleo o verbo nele descrito e pode, dependendo do tipo
de infração, exigir uma modificação no mundo exterior (um resultado naturalístico).
466
"Não é preciso reinventar a roda. Para que se propicie a adequada e precisa constatação do ilícito
administrativo, basta empregar, adaptando, a ferramenta do Direito Penal, que vem se
aperfeiçoando séculos. Desta feita, adotar e aplicar um modelo de 'Teoria Geral da Infração
Administrativa' é facilitar o trabalho de todos os operadores do direito envolvidos com a
investigação e a repressão do eventual descumprimento da lei, ou de ato normativo nela fundado,
no âmbito do interesse da administração pública." (FERREIRA, 2009, p.19 e 360).
467
Ibid., p.364.
468
Sobre as teorias da conduta, ver GUARAGNI, Fabio Andre. As teorias da conduta em direito
penal: um estudo da conduta humana do pré-causalimo ao funcionalismo pós finalista. 2.ed. rev.
e atual. São Paulo: RT, 2009. (Coleção Direito e Ciências afins, v.2).
469
FERREIRA, op. cit., p.233-243 e p.365.
470
FERREIRA, Daniel. Teoria Geral da Infração Administrativa. p.366.
144
A segunda é o tipo subjetivo que é facultativo, pois, em geral, se exige apenas a
voluntariedade
471
do comportamento, e que pode aparecer por força do dispositivo
legal que exigir dolo ou culpa na realização do comportamento tipificado.
472
A antijuridicidade vai além da antinormatividade e significa a contrariedade
do comportamento em relação ao ordenamento jurídico na sua totalidade, podendo
ser afastada se constatada alguma causa de justificação, como a legítima defesa, o
estado de necessidade, o estrito cumprimento de dever legal e o exercício regular de
um direito, assim sendo, "A antijuridicidade é um 'plus' sobre a antinormatividade,
porque a conduta típica e antijurídica tem, ainda, de se mostrar desconforme o
Direito para que se possa cogitar de sua censurabilidade.
473
O último elemento é a reprovabilidade do comportamento e deve ser verificada
no caso concreto. Podem afastá-la a obediência hierárquica, a coação moral
irresistível e o erro de proibição invencível, isto é, um problema na compreensão do
tipo objetivo descrito na norma proibitiva que não poderia ser superado por aquele
que praticou o comportamento vedado. Serve, ainda, de parâmetro do quantum da
sanção, quando essa margem é deixada ao arbítrio da autoridade sancionadora.
474
Anote-se que uma Teoria Geral da Infração administrativa é um instrumento
de operacionalizão do Direito Administrativo Sancionador que permite a identificão
e o afastamento de uma infração administrativa, facilitando e tornando mais clara e
menos arbitrária a imputação de sanções administrativas no caso concreto.
Uma concepção dessa natureza permite a riqueza no enfoque dogmático,
abrindo espaços para a edificação de conceitos e interpretações. Isso tudo deverá
ser trabalhado com muita atenção pelos juristas que deverão conscientizar-se da
captação do aparelho estatal pelas classes sociais dominantes e de sua utilização
para manutenção do status quo e em seu favor.
A racionalidade instrumental que permeia todo o sistema punitivo deve ser
utilizada para tornar menos atrativa a conduta desencorajada pelo ordenamento
471
Considera que o termo voluntariedade deve ser empregado de forma restrita: "[...] como um
'querer algo' e 'ativo'." (FERREIRA, 2009, p.366).
472
Ibid., p.243-284 e 366.
473
Ibid., p.367.
474
Ibid., p.286-293 e p.367-368.
145
jurídico, como, por exemplo, o cálculo das multas deve ser efetuado de tal forma que
a conduta proibida deixe de ser atrativa ao destinatário da norma em vista da
punição econômica que lhe é atribuída na penalidade cominada em abstrato.
Também deve ser refutada a aparência "neutra" que se procura conferir ao
sistema legal, bem como que se estabelecer limites à atuação da prerrogativa
sancionadora. Esse limite deve ser a Constituição Federal que, além de conferir a
temporalidade ao direito, atribuindo a historicidade ao conceito estratificado de infração
administrativa, constitui também uma fronteira material aos bens jurídicos, aos valores
constitucionalmente protegidos que, ao mesmo tempo, são objeto da tutela estatal e
constituem o fundamento para a existência da prerrogativa sancionadora em um
Estado Democrático de Direito.
146
CONCLUSÃO
1. A partir da lição de Hannah Arendt identifica-se que o ser humano,
quando não tem asseguradas condições mínimas de sobrevivência, deixa
em segundo plano a política. A manutenção da própria existência passa
a ser a prioridade e, por conta disso, a participação política não é
completamente livre.
2. O espaço público é, por si, frágil, e deve ser mantido e instituído por
meio das leis e instituições, que têm o papel de mediar um sistema de
alianças entre classes dominantes e dominadas.
3. Também é por meio da lei que se estabelecem limites ao exercício do
poder e que as classes dominantes, as quais se apropriam do aparato
estatal, comandam o exercício do controle social institucionalizado.
4. Na lógica instrumental do capital (a “razão cnica instrumental”), o direito
apresenta-se como um sistema neutro, destinado ao alcance de determinados
fins e que ajusta os melhores meios para o alcance das finalidades que lhe
são atribuídas externamente. Porém, o direito não é um sistema neutro e
é neste ponto que reside o problema da adoção de critérios jurídicos
exclusivamente formais e de construções dogmáticas legitimadoras da
ordem jurídica positivada.
5. Para que haja a participação das classes dominadas no debate político, o
Estado deve ter dentre suas atividades essenciais a promoção e proteção
dos direitos fundamentais, para que se afaste dos indivíduos a coação
da necessidade e propicie-se um espaço de liberdade para o exercício
da atividade política.
6. Muito embora Horkheimer e Adorno tenham afirmado que o capitalismo
administrado levou a um sistema fechado que bloqueia estruturalmente
qualquer possibilidade de ação genuinamente transformadora e que
autores, como o filósofo marxista István Mészáros, procurem combater
esse fechamento, o fato é que essa lógica autodestrutiva está presente
na sociedade atual. O capitalismo é o sistema dominante, portanto,
que se lidar com os problemas que dele surgem até que se estabeleça
um novo paradigma sociocultural.
147
7. Nas palavras de Boaventura de Souza Santos, estamos em um momento
de transição paradigmática e que gera inseguranças na sociedade.
Trata-se da crise final do paradigma ciocultural moderno em que a
emancipação colapsa na regulação.
8. Por conta desse momento de transição paradigmática um sentimento
coletivo de insegurança, característico da sociedade de risco e da
modernidade líquida. Constata-se um clamor social por mais segurança,
que é interpretado pelos “barômetros da ansiedade” social como uma
crescente necessidade de disciplina. Assim sendo, o Estado utiliza a
função simbólica do Direito Penal em lugar de resolver o problema na
efetiva proteção dos bens jurídicos, em especial, os que têm por
substrato os direitos fundamentais.
9. Essa crescente necessidade de segurança, refletida no aumento de
disciplina, reverbera na doutrina jurídica por meio de construções
teóricas que, de um lado, buscam a expansão e a funcionalização
extrema da tutela penal e, de outro, propõem a utilização do âmbito
sancionador do Direito Administrativo (que se convencionou chamar de
Direito Administrativo Sancionador).
10. Nesse contexto, os estudos com enfoque zetético, assim como os
estudos interdisciplinares, contribuem de sobremaneira para uma
abordagem crítica das teorias dogmáticas.
11. A postura crítica é fundamental, cabendo ao jurista atentar para a
historicidade do direito e para a necessidade de desvendar a estrutura
do poder que subjaz o ordenamento jurídico, principalmente no que
concerne ao controle social.
12. A Dogmática Jurídica deve conciliar a realidade, a ordem jurídica vigente –
com o cuidado de não construir uma teoria meramente legitimadora –, o
grau de abertura a ser conferido quando da interpretação dos dogmas,
assim como as contribuições de outras disciplinas jurídicas não das
disciplinas dogmáticas, mas também daquelas com enfoque zetético –,
para que se construa uma teoria crítica do direito.
13. O direito é uma ciência viva”, dinâmica, mutável e que esem constante
transformação e reformulação, assim como a sociedade que ele regula.
148
14. Partindo-se da Teoria do Direito destaca-se, para o estudo das infrações
administrativas, a noção de ilícito como categoria jurídica e conceito
lógico-jurídico.
15. No ilícito predomina a iia de contrariedade à norma de conduta que regula
o comportamento social desejado, sendo a sanção negativa a
conseqncia jurídica imputada pela violação desta norma. Mas
certas condutas que o encorajadas e fomentadas pelo ordenamento
jurídico que, quando realizadas, têm como consequência jurídica um
benefício, conhecido por sanção positiva ou premial. Esse enfoque das
sanções positivas e negativas, a partir de Hart e de Norberto Bobbio, foi o
escolhido porque melhor se coaduna com as transformações da
sociedade moderna. Ele facilita uma ótica promocional do Direito e muda
a visão legal em relação às sanções jurídicas que não mais são vistas
apenas como obrigações, mas também como promessas.
16. De acordo com o ceticismo o um caráter obrigatório intrínseco da
norma, mas um sentimento de compulsão que os indivíduos
experimentam e que os leva a agir de acordo com a norma e a voltar-se
contra aqueles que a violam. Este sentimento é interpretado por meio de
um sistema de regras, em cuja incerteza e abertura que se constrói a
dogtica e surge o espaço para a crítica do ordenamento jurídico
positivado.
17. O ilícito administrativo está relacionado com as normas de conduta que
estabelecem se um determinado comportamento é proibido, permitido,
fomentado ou obrigatório. Essas normas podem ser complexas, isto é,
formadas por um preceito primário, em que se define a conduta,
geralmente, proibida, e, por um preceito secundário, em que se comina
a penalidade em abstrato. Mas, essas normas de conduta também
podem prever no preceito primário um comportamento que é fomentado
pelo Estado e que tem por recompensa um benefício previsto no
preceito secundário, o qual passa a ser uma obrigação para o poder
público, uma vez comprovada a ocorrência da hipótese legal.
18. Coação e sanção não se confundem, pois o uso da força por parte do
poder público, isto é, da coação, só ocorre quando houver resistência do
sujeito à imposão de uma sanção ou ao cumprimento de uma obrigação.
149
19. Desde o Estado de Pocia podem ser observados dois grandes períodos de
ampliação do poder punitivo estatal e em que houve um aumento na utilização
da solução institucional para os conflitos sociais. A partir das
características destes dois períodos, Mathiesen chama a atenção para
sinais de que estaríamos adentrando, com a sociedade pós-industrial,
em um terceiro e novo período.
20. Com apoio nos ensinamentos de António Manuel Hespanha, destacou-
se a importância da História do Direito e do casuísmo, pois a diversidade
e alguns importantes detalhes perdem-se no caminho para a
generalização e expressão de um comportamento dominante em certo
contexto histórico.
21. No Brasil, durante o Antigo Regime, havia o direito de almotaçaria por
meio do qual se imputavam de sanções de cunho administrativo pelos
almotacés, uma espécie rudimentar de fiscal. Esse direito mostra-se
como um campo de investigação valoroso para o Direito Administrativo
brasileiro, mas que ainda não foi propriamente averiguado.
22. A partir da alise da origem do Direito Administrativo e da história institucional
do ius puniendi na sua vertente penal, verifica-se uma semelhança entre
o poder punitivo do Estado enquanto administrador público e enquanto
detentor do poder-dever de punir aqueles que violam as normas penais.
23. O primeiro período na história das instituições em que a prisão desempenhou
um papel fundamental no controle social ocorreu no fim do século
XVI
e
durante o
XVIII
– momento que coincide com o Estado de Polícia. Com a
quebra da ordem social feudal, a Europa estava superpovoada de
desocupados, pedintes e andarilhos, o que era um problema para o
comércio. Diante de um número expressivo de pessoas pertencentes a
este grupo, a institucionalização foi a sda encontrada para fazer com que
esses indivíduos fossem inseridos no modo de produção mercantilista.
Uma vez institucionalizados, eram colocados para trabalhar em uma
atividade que fosse a mais lucrativa possível, o que se coadunava com a
filosofia mercantilista da época e com a autossuficiência dessas
instituições.
24. A segunda etapa em que prisão tornou-se o elemento central da política
criminal ocorreu por volta de mil e oitocentos, quando a maioria dos países
150
europeus estava entrando no modelo de produção verdadeiramente
capitalista, o da linha de produção. Isso originou uma classe trabalhadora
indigente, formalmente livre e improvisada. O crime estava enraizado na
pobreza material. Diante disso, os métodos de punição física, como as
mutilações, não poderiam mais ser empregadas, pois isso retiraria a
aptidão da classe trabalhadora de seguir as pretensiosas e detalhadas
disciplinas de trabalho, agora necessárias na indústria. Foi assim que
apareceram as prisões disciplinares (Foucault e Benthan) como forma
de disciplinar os indivíduos mais pobres da nova classe trabalhadora e
trazê-los para a linha de trabalho.
25. A partir da análise dos dois períodos em que a prisão passou a desempenhar
um papel central na política criminal, Thomas Mathiesen registra que é
possível constatar três pontos em comum entre esses dois períodos e que
podem ser visualizados em nosso tempo, quais sejam: (1) o aumento da
populão carcerária em longo prazo; (2) aumento do significado da solução
institucional como componente da política criminal e (3) aumento na
necessidade de disciplinar segmentos ou grupos da população. A conjugão
dessas características levam à previsão de que estamos adentrando em
uma nova etapa do sistema punitivo.
26. Diante da possibilidade de estarmos em uma nova etapa do sistema
punitivo, investigou-se a relação entre os conflitos e o controle social.
Com apoio na doutrina de Fernando Navarro Cardoso foi possível
afirmar que o controle social institucionalizado é necessário. Todo processo
de socializão demanda que existam normas de conduta e saões
negativas aplicáveis na hitese de violão dessas normas, acrescendo-
se, ainda, a nosso ver, as sanções positivas que fomentam a prática de
determinadas condutas e, tudo isso, pressupõe a existência de um
sistema jurídico que viabilize a prevenção e a resolução pacífica de
conflitos.
27. O controle social também reflete a estrutura do poder em uma sociedade
e, ao estudar-se o controle social, descobre-se qual é essa estrutura.
28. construções na Teoria Penal Clássica que intentam explicar o propósito
da punição e que podem ser divididas em teorias de defesa social e de
retribuição.
151
29. As teorias retributivas consideram que a punição tem um valor intrínseco
e, por isso, são chamadas de teorias penais absolutas.
30. As teorias de defesa social têm por subgrupos as teorias de prevenção
geral e as de prevenção especial ou individual.
31. A prevenção geral negativa ou de intimidão considera que a cominão
de penas em abstrato tem uma fuão de intimidação. Já para a prevenção
geral positiva as penas cominadas reforçam o sentimento de crença na
vigência e validade do Direito.
32. A prevenção especial negativa consiste na eliminação do criminoso por
meio da pena de morte ou por meio da restrição de sua liberdade,
visando coibir a possibilidade de que ele volte a cometer crimes. Na
prevenção especial positiva, também chamada de preveão especial de
reintegrão, a condenação em pena de prisão ou outra e a execução da
pena devem ter como objetivo fundamental a reintegração do delinquente
na sociedade.
33. Dentre as teorias criminológicas, destacam-se a criminologia radical e o
labelling aproach. Ambas denunciam a seleção de uma clientela do
sistema penal a pretexto de suas condutas, havendo, de um lado,
aqueles que o definidos como desviantes e, de outro, os que
estabelecem qual é o comportamento padrão.
34. No contexto de transição paradigmática, de uma modernidade quida, o
direito tem que se adaptar às mudanças sociais e nessa tentativa um
choque entre as concepções clássicas e aquelas que procuram adaptar o
direito ao contexto atual. Assim, o modelo do Direito Penal de tradição
iluminista, como um sistema de garantias do cidadão frente ao Estado e
que tem no crime de dano a forma habitual de comportamento delitivo,
conflita com a orientação pelas conseqüências, o crime de perigo como
forma usual delitiva e o favorecimento de ideias teórico-preventivas e
retributivas, marcantes no Direito Penal atual.
35. Como formas de conciliar as mudanças desse contexto social ao Direito
Penal são apontadas pela doutrina as seguintes vias de superação do
paradigma penal atual: a restrição da função penal à tutela de direitos
individuais, a funcionalização extrema da tutela penal, a expansão do
152
Direito Penal (Direito Penal de Duas Velocidades, o Direito de Mera
Ordenação Social e o Direito Penal Secundário).
36. Os Teóricos Críticos do Direito Penal que propugnam que o Direito Penal
deve permanecer restrito ao seu âmbito clássico, de tutela de direitos
individuais, apresentam como alternativa para a tutela dos riscos
inerentes à sociedade pós-industrial um novo ramo jurídico chamado de
“direito de intervenção e que se pode chamar de Direito Administrativo
Sancionatório ou Sancionador.
37. No Direito Penal de Duas Velocidades há um núcleo de Direito Penal em
que valeriam, sem quaisquer modificações, os princípios de Direito
Penal clássico, isto é, um “núcleo duro” dirigido à proteção de bens
jurídicos individuais, com individualização da responsabilidade, da culpa e
autoria, sendo que a pena privativa de liberdade seria aplicável
exclusivamente a esses casos. Na periferia ou no “âmbito lateral” deste
núcleo central está outro tipo de direito sancionador.
38. Conclui-se a partir desta dissertação que o Direito Administrativo
Sancionador deve ser direcionado aos grandes e novos riscos da
sociedade atual, em que os princípios clássicos de Direito Penal liberal
devem estar amortecidos ou mesmo transformados, dando lugar a
outros significados aos princípios existentes ou à criação de novos
princípios.
39. O Direito de Mera Ordenação Social pertence ao sistema jurídico português
e é uma forma integrada de descriminalização que se coaduna com o
princípio da subsidiariedade do Direito Penal. Trata-se de um programa
político-criminal que criou a figura dos “ilícitos contra-ordenacionais”,
assim definidos por conta da pequena importância das infrações por ele
abarcadas, reconduzindo-as a um puro Direito Penal de bagatelas. Pom,
houve um alargamento das áreas de intervenção do Direito de Mera
Ordenação Social a setores para os quais ele não era destinado, em
particular os circuitos econômicos e tecnológicos de grande complexidade.
E o problema disso é que esta tendência não fora acompanhada por
qualquer evolução de índole garantista.
40. A criminalidade econômica faz parte de uma teia criminosa que visa o
lucro por meio da prática de atividades ilegais. Deve ser combatida com
153
a utilização de critérios que observem a racionalidade entre os custos e
os benefícios econômicos advindos dessas atividades. Diante disso, as
sanções pecuniárias e restritivas de direitos aparecem também como
medidas eficazes de coibir esses comportamentos da criminalidade
econômica, tornando relevante o estudo das infrações administrativas e
da sua relação com os ilícitos penais.
41. A semelhança existente entre as infrações penais e administrativas, assim
como uma similaridade que se observa entre o ius puniendi ilustrado na
dogmática penal e a combinação dos poderes-deveres da Administração
Pública, leva a uma construção trica de unidade do poder punitivo estatal.
42. Conclui-se que a Teoria da Unidade do ius puniendi deve ser adotada no
sentido proposto por Alejandro Nieto, qual seja, o de que se trata de um
poder punitivo que tem por matriz o Direito público estatal, o que
significa que o Direito Administrativo Sancionador não advém do Direito
Penal, mas guarda com este ramo jurídico uma grande proximidade.
Isso denota que os princípios penais não o diretamente aplicáveis ao
Direito Administrativo Sancionador, mas lhe servem de inspiração, o que
explica as chamadas “matizações” que os princípios penais sofrem no
Direito Administrativo Sancionador e que consistem em uma deliberada
flexibilização da formulação penal inicial.
43. Essa primeira reação de atrelar o Direito administrativo Sancionador a
uma tradição garantista foi essencial para o icio da sistematização do
Direito Administrativo Sancionador. Sem ela, não seria possível
descobrir as nuances que os princípios assumem quando da imputação
de sanções administrativas e que acabaram por inaugurar um novo
ramo jurídico.
44. A partir da obra de Heinz e Herta Mattes destacam-se as doutrinas
alemãs do Direito Penal de Polícia, do Direito Penal Administrativo e das
infrações de ordem.
45. No início do culo
XIX
desenvolveu-se na doutrina a primeira tentativa
de diferenciar materialmente os ilícitos penais e administrativos com
Feuerbach. Influenciado pelo jusnaturalismo, diferenciou o ilícito natural
(penal) do ilícito de polícia (administrativo). Com Mayer, superou-se a
154
concepção jusnaturalista pelo critério de contrariedade às normas de
cultura (apenas os ilícitos penais contrariavam estas normas).
46. O Direito Penal de Polícia deu lugar à Teoria do Direito Penal
Administrativo de James Goldshmidt, que se dedicou à diferenciação
material entre ilícito penal e administrativo. O critério utilizado foi a
posição dos indivíduos na sociedade, ou seja, enquanto ser humano e
detentor de direitos individuais esfera privada e enquanto
administrado e membro da comunidade, sujeito a um dever de
colaboração com a Administração Pública em favor da coletividade. Os
delitos penais eram naturais, metapositivos e os administrativos
artificiais, “criados só pela vontade do Estado”.
47. Na sequência aparece a doutrina alemã do Direito Penal de Ordem. Este
considera as infrações penais violadoras da ordem moral, enquanto as
infrações de ordem possuem uma reprovabilidade moral insignificante, o
que as exclui do âmbito penal.
48. O Direito Penal de Ordem não se aplica ao direito espanhol porque o
desenvolvimento da matéria nesse país foi diferente. Muito embora os
espanhóis tenham passado pela fase do Direito Penal de Polícia e do
Direito Penal Administrativo, a partir deste houve praticamente um salto
para o Direito Administrativo Sancionador. Isso porque, na Espanha, não
ocorreu uma hipertrofia do Direito Penal, tal como na Alemanha, França e
Ilia, mas sim, o desenvolvimento deum desmesurado poder sancionatório
da Administração” e que demandou uma “desadministrativização” da
atividade sancionadora do poder público ou a sujeição a princípios
fundamentais de Direito Penal. A expressão Direito Penal Administrativo
foi substitda, muitos anos, de acordo com Alejandro Nieto, por Direito
Administrativo Sancionador.
49. o cririos que possam, sozinhos, estabelecer a diferença
substancial, e até mesmo quantitativa, entre infrações administrativas e
penais, como visto nesta dissertação. O critério mais seguro é apenas o
formal, a partir do regime jurídico aplicável. Entretanto, isso não significa
que os critérios qualitativos e quantitativos devam ser descartados, pois
podem e devem ser utilizados pelo legislador como parâmetros de
sistematização do ordenamento positivo, visando a coerência do sistema
155
jurídico sancionador. Além disso, também devem ser conjugados os
critérios de rapidez e eficácia da sanção em sede de política criminal.
50. Dentre os critérios que buscam diferenciar infrações penais de administrativas
está a proteção de um bem jurídico ou de um interesse da
Administração Pública. Este critério foi criticado por Cerezo Mir pela
impossibilidade de estabelecer um cririo apto a distinguir os interesses do
Poderblico, resguardados pelo Direito Administrativo Sancionador, dos
outros bens jurídicos, tutelados pelo Direito Penal.
Porém, isso não
significa que a concepção de bem jurídico seja desnecessária ao
tratamento das infrações administrativas. Muito pelo contrário.
51. Constatou-se a importância de o jurista e o legislador trabalharem
conjuntamente, principalmente no que diz respeito à produção científica
jurídica voltada à atividade legislativa.
52. Na sociedade pós-industrial houve um aumento do emprego do Direito
Administrativo em sua vertente sancionadora. O Direito Administrativo
Sancionador passou a ser visto, ao mesmo tempo, como uma resposta
alternativa à funcionalização extrema da tutela penal, diante da demanda
por seguraa advinda da sociedade. Esta necessidade é interpretada como
necessidade de maior punição, e como instrumento de preservação do
princípio da subsidiariedade e da intervenção nima do Direito Penal,
resguardando, na medida do possível, a concepção clássica garantista e
iluminista deste ramo do direito.
53. No Estado Democrático de Direito não há a possibilidade de a Administração
Pública impor uma pena privativa de liberdade. Trata-se de um verdadeiro
limite negativo ao Direito Administrativo Sancionador.
54. A suspensão do exercício de direitos fundamentais e de liberdades públicas
não deve ocorrer em sede de Direito Administrativo Sancionador.
55. No Direito Administrativo Sancionador a temática dos princípios atinge
seu momento culminante em que, efetivamente, tudo são princípios, pois
são eles que conferem a coesão sistemática necessária às diferentes
normas sancionadoras de natureza administrativa.
56. Levando-se em considerão o enfoque crítico do Direito e as exigências
da dogmática, a identificação dos princípios de Direito Administrativo
Sancionador a partir da Constituição Federal mostra-se como uma solução
156
apta a conferir ao Direito Administrativo Sancionador não apenas um
aspecto temporal, como também um limite material que é dinâmico
refiro-me, aqui, às mutações constitucionais e que possibilitam uma
abertura na dogmática que, com o auxílio da zetica, pode construir
princípios sancionadores críticos e não meramente legitimadores.
57. Corrobora-se o posicionamento de Rafael Munhoz de Mello, que considera
perfeitamente conciliável com o Direito Administrativo Sancionador a
utilização de conceitos jurídicos indeterminados, desde que respeitada a
tipicidade; a técnica de tipificação indireta e as normas em branco.
58. As atividades sancionadora da administração e a penal são
complementares.
59. Quanto à eficiência, a utilização de sanções positivas, de incentivos,
desonera o aparelho estatal na medida em que incentiva o controle das
condutas pelos próprios interessados que buscam o benefício oferecido.
Não há necessidade de fiscalização. É espontâneo. Fica dentro dos
limites de atuação do Estado.
60. Por fim, que ser refutada a aparência “neutra” que se procura conferir
ao sistema legal, bem como que se estabelecer limites à atuação da
prerrogativa sancionadora. Este limite deve ser a Constituição Federal
que, além de conferir a temporalidade ao direito, atribuindo a historicidade
ao conceito estratificado de infração administrativa, constitui também uma
fronteira material aos bens jurídicos, aos valores constitucionalmente
protegidos, especialmente os direitos fundamentais, que, ao mesmo tempo,
são objeto da tutela estatal e constituem o fundamento para a existência
da prerrogativa sancionadora em um Estado Democrático de Direito.
157
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