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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
MESTRADO
PEDRO SAVI NETO
A JUSTIÇA E O DIREITO BUROCRATIZADO A PARTIR DE UMA
LEITURA DA DIALÉTICA DE ADORNO
Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza
Orientador
Porto Alegre
2010
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2
PEDRO SAVI NETO
A JUSTIÇA E O DIREITO BUROCRATIZADO A PARTIR DE
UMA LEITURA DA DIALÉTICA DE ADORNO
Dissertação apresentada no Programa de Pós- Graduação
em Filosofia da Faculdade de Filosofia da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, como
requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em
Filosofia.
Aprovado em ____ de _____________ de _____.
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. André Brayner de Farias – UCS
_________________________________
Prof. Dr. Draiton Gonzaga de Souza – PUCRS
_________________________________
Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza - PUCRS
_________________________________
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3
Para Ricardo Timm de Souza,
para Maria Luiza Savi e
para o Yang.
4
Agradecimentos
Ao Sr. Paulo Roberto Soares Mota, a Sra. Andréa da Silva Simioni, ao Prof.
Dr. André Brayner de Farias e ao Prof. Dr. Draiton Gonzaga de Souza – PUCRS.
5
RESUMO
Uma razão que, de tão completa, não tem mais espaço para o exercício da
racionalidade. Uma questão tão viva e pulsante obrigada a se enquadrar nos formulismos
e esquemas previstos por dita racionalidade. O choque entre a necessidade de justiça, que
ocorre apenas na emergência do instante, e a resposta estatal burocratizada, encarnada no
direito, que se arrasta por procedimentos, os quais, pela impropriedade da tarefa atribuída,
nunca se mostram suficientementepidos para realizar o impossível: transformar
quantidade em qualidade, transformar direito em justiça. Como chave interpretativa dessa
questão filosófica fundamental, a dialética de Theodor W. Adorno, movida pelo respeito à
diferença para que não se repitam eventos como Auschwitz, com a ilustração
expressionista de Franz Kafka, jurista que encontrou na literatura uma forma de
extravasar toda a angústia experimentada por quem não foi anestesiado pela razão que se
conserva à base de pequenas doses de violência.
Palavras-chave: justiça; direito; burocracia; dialética; razão instrumental.
6
ABSTRACT
A reason that, for being so consummate, has no more room for the exercise of
rational thought. A matter so alive and energized obliged to fit in the formulism and
foreseen schemes of such racionality. The shock between the need of justice, that happens
only in the urge of the instant, and the answer of the bureaucratic state, embodies in the
law, that moves slowly through procedures, which, for the inadequacy of the given task,
never seems fast enough to accomplish the impossible: to make quantity become quality,
to turn law into justice. As key to interpret this fundamental philosophical matter,
Theodor W. Adorno’s dialectic, moved by the respect to the difference, so that no events
like Auschwitz happen again, with the expressionist ilustration of Franz Kafka, jurist that
found in literature a way to spill all the anguish experienced for someone who hasn’t
been numbed by the reason that is kept by small doses of violence.
Key words: justice; law; burocracy;dialectic, instrumental reason.
7
SUMÁRIO
PREFÁCIO……………..........................…...............................................................….8
CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................................….10
1. CONTEXTUALIZAÇÃO………………………………………………………….14
1.1 O pensamento de Theodor W. Adorno…………………………………...14
1.2 Theodor W. Adorno e Franz Kafka………………………………………17
2. O MITO DA REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA PELO DIREITO ...........................…20
2.1 O paradigma da ciência moderna…………………………………………20
2.2 O desencantamento do mundo, o nascimento do Direito Burocratizado e a
sua relação com a Justiça………………………………………………….….28
2.3 O processo burocrático de fabricação da justiça………………………….33
2.4 Por um tratamento justo para com o direito...........................................….45
3 A DIALÉTICA COMO VIABILIZAÇÃO DO INSTANTE DA EMERGÊNCIA DA
JUSTIÇA …………………………………………………………………………..…51
3.1 O instante da emergência da justiça………………………………………51
3.2 A dialética negativa……………………………………………………….57
4 REFLEXÕES FINAIS .......................................................................................…...65
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................………69
8
PREFÁCIO
Muitas perguntas foram feitas até chegarmos, não às respostas, mas às questões
que se nos afiguram como sendo aquelas fundamentais para servirem de rumo
acadêmico e profissional. Mais do que isso, para chegarmos às demandas capazes de
atribuir sentido à nossa própria existência. Este trabalho é uma reflexão sobre esses
questionamentos.
Quando escolhemos o curso de ciências jurídicas e sociais havia uma
expectativa ingênua, incipiente e insipiente de que ele poderia servir como um
instrumento de transformação da realidade e de realização da justiça.
Logo no início do curso de direito, enquanto a maioria da turma estava
ocupada demais fazendo planos para a prática profissional de um conhecimento que
sequer possuía, uma das primeiras lições visava a “ensinar” os conceitos de direito e
de justiça. É óbvio que isso não era importante. Afinal de contas, em qual concurso
isso seria perguntado? Qual o advogado que, dominando a técnica processual do
direito, precisaria refletir sobre direito e justiça? Logo, para que serviam as cadeiras
propedêuticas? A especulação mais forte entre os estudantes era no sentido de que se
tratava de uma forma de a faculdade prolongar o curso e, assim, lucrar mais…
E – é possível generalizar -, desde esse ponto de vista, primeiro e fundamental,
a maior parte dos estudantes de direito perde a chance de vislumbrar qualquer vínculo
entre as cadeiras práticas e as cadeiras propedêuticas; entre direito e justiça.
Assim como na faculdade, na vivência da prática jurídica percebíamos cada
vez mais o absoluto descolamento entre direito e justiça. O direito se nos apresentava
como completamente inapto e inadequado para verdadeiramente “realizar a justiça”, e,
além disso, parecia-nos despido de qualquer interesse com tal intento: a prática do
9
direito se revelava despida de sentido, pelo menos despida do sentido que, no nosso
entendimento, deveria fundamentá-la.
Talvez a longa teoria da justiça de Rawls tenha ao menos uma conclusão
correta: a de que um procedimento injusto conduz, necessariamente, a um resultado
injusto. E quanto mais trabalhávamos com o procedimento jurisdicional, tanto mais
acreditávamos no que entendemos ser a única agulha do enorme e complexo palheiro
racionalmente instrumentalizado por Rawls: um procedimento injusto conduz,
necessariamente, a um resultado injusto. Este trabalho questiona, também, isso: existe
um procedimento que pode ser chamado de “justo”? E mesmo que, por hipótese,
exista um “procedimento justo”, é possível afirmar que o seu resultado será “justo”?
Desiludidos com o direito, fomos movidos a repetir os mesmos
questionamentos no âmbito da filosofia, e percebemos que encontrar alguma relação
entre justiça e direito, passaria, antes e necessariamente, por uma pesada reflexão
sobre os conceitos de realidade, de direito e de justiça.
É a partir desse ponto que é construído o presente trabalho.
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
“A reflexão filosófica se assegura do que não é conceitual no
conceito. De outro modo, segundo a sentença kantiana, este seria
vazio, por fim conceito de nada, ele mesmo, portanto, nada. A
filosofia que reconhece esse fato, que extingue a autarquia do
conceito, arranca a venda de seus olhos” (ADORNO, 2009, p. 19).
A vida é instada a acontecer apenas na emergência do instante presente. O que
efetivamente existe, verbo existir no presente do indicativo, é o instante. É apenas no
instante presente que a vida pode encontrar seu sentido e a justiça a possibilidade da
sua realização. Assim como a falta de ar insta à respiração, toda a vida reclama seu
acontecimento no exato instante presente, no estabelecimento da relação com o real.
Contudo, pela capacidade racional de abstração da qual é dotado o ser humano
foi-nos possível poupar a repetição de experiências presentes por produtos de uma
racionalidade pensada. Dessa relação racionalizada entre o homem e a realidade
nasceu o conceito. O conceito, a rmula, a regra, a teoria: diferentes formas de
procedimentos de representação da realidade. A cadeira não é esta palavra que
acabamos de escrever, mas ela, enquanto entidade material, é representada e entendida
quando nos utilizamos da referida palavra. De tão simples, parece óbvio. E é
exatamente por detrás das consensuais obviedades que, sufocadamente, reside toda a
possibilidade de construção de alguma justiça. “Para o conceito, o que se torna urgente
é o que ele não alcança, o que é eliminado pelo seu mecanismo de abstração, o que
deixa de ser um mero exemplar de conceito” (ADORNO, 2009, p. 15). Pelo
mecanismo de abstração conceitual, a razão retira do real apenas aquilo que lhe é
possível cristalizar pelas palavras. O elemento vivo do real que se trata da relação
singular que nasce e morre a cada novo instante permanece enclausurado
perpetuamente em cada momento da realidade, não capturável por qualquer
representação. No âmbito do presente trabalho, é o mesmo que ocorre com o direito:
âmbito no qual o que se torna urgente é exatamente o que ele não alcança, o que é
11
eliminado pelo seu mecanismo de abstração: a possibilidade de justiça, igualmente não
capturável por qualquer racionalidade meramente representacional.
Falamos em sufocamento do instante presente como a interjeição da
possibilidade do estabelecimento de relações dialéticas originais, na medida em que o
modo de vida que se tornou padrão na contemporaneidade é marcado pela relação
racionalizada, no sentido de crescentemente abstraída do concreto, e cada vez mais
distanciada da realidade. Pelo frenesi do modo de vida contemporâneo, que se limita
aos estritos termos de uma sociedade esquematizada, na qual as pessoas têm
tempo para aquilo que lhes é alheio e, via de regra, não-humano, as relações não são
estabelecidas diretamente com o real, mas com o produto de uma razão pensada,
sem espaço para o exercício de uma verdadeira relação dialética de aprendizado e
respeito pelo real.
A ciência moderna, paradigma de instauração e manutenção desse modo de
sobrevivência, ultrapassou a fronteira do teologismo cristão para tentar definir a
verdade das coisas, andando na contramão da irrepetibilidade do instante presente.
Baseada em uma razão instrumentalizada, a ciência crença magna tomou o lugar
das crenças tradicionais, defendendo a possibilidade do estabelecimento de verdades
absolutas. Pelo método científico, a ciência moderna idealizou um futuro possível de
planejamento e previsão e, com essa carga, contaminou as mais diversas áreas do
conhecimento.
Ancorado na mesma crença racional do método científico moderno, de caráter
preponderantemente técnico e cada vez mais especializado, o direito é lançado como
sendo um procedimento racional e burocrático de produção de justiça. Assim como a
racionalidade burguesa se mostrou capaz de estabelecer regras para a produção de
bens materiais em larga escala, ao preço da alienação dos produtores de tais bens do
resultado de seu trabalho, o direito é apresentado como um mecanismo de produção de
justiça em escala, retirando de cada indivíduo a sua autêntica, e como se defenderá
legítima e verdadeira, responsabilidade, ou seja, sua parcela de participação na
viabilização do momento justo. Tal crença é facilitada pela referida tecnicização do
direito; assim como ao operário, no processo produtivo, bastava cumprir com a sua
tarefa, descolada da fundamentação, do motivo e do resultado, os profissionais do
12
direito, cada vez mais tecnicamente especializados, funcionam como meros
repetidores da lógica do sistema.
Conforme se desenvolvido no decorrer do presente trabalho, o direito
burocratizado, tal como conhecemos hoje, foi concebido no mesmo período, nos
mesmos moldes, sob o manto mitologizado da mesma racionalidade, vendendo a ideia
de que o processo seria capaz de conduzir a um resultado que se aceitou fosse
chamado de justo. Nesse contexto, será que os chamados operadores do direito não
sofrem da mesma alienação dos funcionários de uma linha de produção em série,
cumprindo procedimentos e alienados do “produto” final? Será que o processo
concebido racionalmente oportuniza aos seus operadores a verdadeira possibilidade da
produção de alguma justiça? Nessa medida, qual será o verdadeiro papel do processo?
E do direito? O que, de fato, significa a palavra justiça, tão vulgarizada? Essa é, então,
a questão central que nos ocupa: qual a relação entre direito e justiça na
contemporaneidade, e como a reflexão filosófica pode contribuir para elucidá-la?
Pois, movidos pela mesma lógica da produção de bens de consumo, os
chamadosoperadores do direito” realizam o seu “papel processual. Todo o
procedimento judicial foi pensado. Todos os atos processuais foram pré-vistos.
Pelo princípio da legalidade, tão caro e efetivamente importante ao direito e ao estado
democrático de direito, não poderia ser diferente. A pré-visão é uma segurança às
partes no processo judicial. A burocracia, enquanto procedimento especializado, é
apresentada como necessária. Contudo, e esse é o ponto, a falta de capacidade, quiçá
até mesmo de oportunidade, da realização de uma verdadeira e efetiva crítica, de uma
apropriada reflexão sobre o que é justiça e, talvez, principalmente, sobre o que não é
justiça, permite que o processo e que a burocracia sirvam muito mais como um
mecanismo de (re)produção de injustiça do que de produção da mais pálida
representação de justiça.
Nesse contexto, no qual as relações mais concretas são esterilizadas e tratadas
como se fossem um mero produto de uma racionalidade pensada, o judiciário e o
processo burocrático, como inquestionáveis produtos prontos de uma razão
instrumentalizada, efetivamente podem produzir algum resultado diverso daquele que
foi concebido junto com eles? Qual o espaço que efetivamente existe no interior de um
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procedimento pensado para a realização de alguma justiça? Ainda além, e essa
talvez seja a questão sintética fundamental, o procedimento concebido racionalmente,
capaz de fabricar tantos bens de consumo, pode, também, “fabricar a justiça”?
A partir desses questionamentos, percebemos que as reflexões centrais do
presente trabalho tratam, mais do que simplesmente sobre direito, processo e
burocracia, sobre o sentido que foi atribuído para tais estruturas racionais. No dizer de
Adorno sobre a ciência, mas que se aplica perfeitamente ao presente caso, “…o que se
torna problemático é não apenas a atividade, mas o sentido da ciência” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 11).
O presente trabalho, portanto, é uma reflexão filosófica sobre direito,
burocracia, processo, e sobre o seu sentido e, por óbvio, sobre a questão da justiça. É
uma reflexão sobre a violência da burocracia processual e o sufocamento do instante
presente, pensado como único momento possível para a construção de alguma justiça.
Para tanto, utilizaremos a obra de Theodor Adorno como principal embasamento
teórico-filosófico, a obra de Zygmunt Bauman como recurso argumentativo desde as
ciências sociais e a literatura de Franz Kafka, em especial as obras O processo e Na
colônia penal, como ilustração literária expressionista do argumento que se defende.
O caminho que utilizaremos partirá de uma rápida contextualização dos
pensadores que servem de base ao presente estudo, passando por uma reflexão sobre
os campos de tensão que marcam a relação entre direito burocratizado e justiça para,
por fim, chegar à ideia da emergência do instante da justiça em termos tão
filosoficamente quanto nos é possível desde a lógica de nossa abordagem e os limites
intrínsecos da presente dissertação.
Mais do que isso, o trabalho que se segue não é propriamente uma dissertação
sobre a filosofia de Adorno; é, antes, uma reflexão sobre a relação entre direito e
justiça, a qual tem como fundamento filosófico a obra de Adorno.
14
1 CONTEXTUALIZAÇÃO
1.1 O Pensamento de Adorno
Toda a genialidade de Adorno se anuncia quando percebemos a que ponto a
sua filosofia logra êxito em criticar a razão utilizando-se da própria razão. A leitura de
sua obra permite perceber que o centro de seu questionamento é exatamente o conceito
de razão e a relação sujeito-objeto. O ponto de partida para esta tarefa aparentemente
contraditória, de criticar a razão desde a própria razão, é a passagem do homem do
medo mítico para o esclarecimento mediante a racionalidade. Enquanto a maioria dos
pensadores exaltou (e alguns ainda hoje exaltam) a razão iluminista burguesa como a
possibilidade da libertação do homem pelo conhecimento, Adorno percebeu que a
libertação realizada pela razão limitava-se a apenas a alguns poucos homens que se
valiam dessa razão enquanto pensamento reificado para dominação dos demais. O
exercício racional estrito era, via de regra, realizado apenas por alguns poucos que se
valiam dessa condição para instrumentalizar a razão libertadora ele dirá:
emancipadora – transformando-a em mecanismo de dominação.
A conclusão adorniana decorre de sua crítica da trajetória do espírito universal
na fenomenologia de Hegel que tem de afirmar sua consciência em si contraposta às
demais consciências. A partir da racionalidade esclarecida o homem passa a acreditar
que a chave para o entendimento da totalidade esnele mesmo e em sua capacidade
de racionalização, eliminando o desconhecido que é fonte de medo e angústia. Toda
diferença é reduzida ao poder racional do sujeito. O objeto se subsume de algum modo
no sujeito, determinando o trajeto da desmitologização. A subjetivação da razão faz o
homem acreditar na sua posição de senhor absoluto do mundo e surge a “ideologia da
razão” por detrás do esclarecimento do mundo.
15
O homem acredita estar se libertando de sua relação mimética com a natureza,
desencantando as coisas pela razão. A passagem do mito para a razão é também a
passagem da relação mimética para a relação de dominação da natureza pela separação
entre sujeito pensante e objeto dominado (a natureza). A mesma necessidade humana
pela autoconservação, que levou o homem a imitar a natureza, passa, com o advento
da razão, a voltar-se contra o outro. O esclarecimento, ao pretensamente libertar o
homem em definitivo do jugo da natureza, não encontra limites.
O materialismo não dogmático de Adorno surge desse ponto da dominação do
objeto pelo sujeito, afigurando-se como uma das mais fortes linhas de ligação entre a
Dialética do esclarecimento e a Dialética negativa: a entrega ao objeto. Contudo, esse
ponto merece maior atenção e nos interessa na reflexão que se pretende.
A “prioridade do objeto” advém da crítica desde o ponto de vista interno dos
sistemas filosóficos idealistas, da relação entre o conceito e a coisa. Para Adorno,
inspirado nos materialismos não-dogmáticos de Lukács, Benjamin e Horkheimer, o
pensamento deve sempre estar ancorado à realidade. Sua crítica aos idealistas era
centrada na ideia de que os pressupostos apresentados por eles mantinham nexo com a
reificação por sua estrutura conceitual, que, ao invés de permitir o conhecimento do
objeto pelo sujeito, afastaria o sujeito do simples conhecimento do objeto,
transformando-o em poder sobre o mesmo (no melhor estilo de Bacon), o que
explicaria a sociedade alienada e administrada e a racionalidade calculista. O
conhecimento idealista seria baseado na homogeneização, na busca pela identidade
das coisas, o que promoveria, em verdade, afastamento entre sujeito e objeto. Assim,
pela crítica ao idealismo, a filosofia adorniana pretende promover a liberação do não-
idêntico contido na razão, mesmo que este não seja passível de conceituação completa.
Por detrás dessa ideia, percebemos que o primado do objeto em Adorno tem como
grande finalidade abalar a crença idealista de domínio completo do objeto, querendo
ressaltar a necessidade do estabelecimento de uma relação verdadeiramente dialética
entre sujeito e objeto. Algo como romper com o conceito, valendo-se do próprio
conceito; semelhante à crítica da razão realizada pela razão. A crítica que Adorno
lança sobre o conceito é justamente para que este revele seu caráter não-idêntico.
Ideia que se expressa de modo maduro na Dialética do esclarecimento e prossegue,
16
dentre outras obras, na Dialética negativa, afirmando que a positividade dialética é
mera reificação do pensamento. Em última análise, trata-se de uma crítica visando a
evitar a identidade sujeito/objeto da solução hegeliana em sua espiritualização pela via
da dialética negativa.
Importante frisar que esta prioridade do objeto não tem qualquer elemento de
irracionalidade nem representa mero objetivismo, mas significa que o sujeito também
é objeto, pois não pode ser conhecido senão mediante a consciência, e o que se
conhece mediante a consciência precisa ser algo. Tal assertiva visa a eliminar a
dominação que se faz possível pelo subjetivismo, pois se o objeto é considerado sem
consciência ele é dispensável na relação de conhecimento; e, se uma das partes se
torna dispensável, resta, apenas, a identidade. No pensamento adorniano, o objeto é
aquilo que é conceituado pelo sujeito; mas é, além disso, existente em si,
independentemente do sujeito. O que não quer dizer que os objetos sejam sujeitos, mas
quer representar que o subjetivo está presente também nos objetos, como elemento
indispensável para a abstração.
Este elemento de heterogeneidade percebido pela racionalização pós-idealista
de Adorno é exatamente o ponto que vai-lhe servir como chave de reflexão para a
questão a partir da qual toda sua filosofia se move: “Só uma expressão para a
verdade: o pensamento que nega a injustiça” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.
204). Logo, diferentemente do que ocorreria nas ciências em geral, que mediante a
redução dos fenômenos a princípios pretende esgotar seu objeto de conhecimento, a
filosofia deve buscar admirar-se do heterogêneo, sem violentá-lo à identidade.
Enquanto a racionalidade instrumental busca a planificação da qualidade em
quantidade para fins de classificação e dominação, a filosofia adorniana segue na
contramão da cncia e dos sistemas filosóficos positivistas ao buscar a refleo a
partir do elemento qualitativo do objeto e de uma contemplação não-violenta, ideia
que bem representa a entrega ao objeto que marca a filosofia de Adorno:
A contemplação não-violenta, de onde vem toda a felicidade da verdade, está
vinculada à condição de que o contemplador não incorpore o objeto:
proximidade à distância (ADORNO, 1993, Aforismo 54, p. 77).
17
Adorno vai ainda mais longe ao diagnosticar que a transformação total da
qualidade em quantidade foi exatamente o que permitiu o assassinato completamente
planificado de milhões de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial. O elemento
qualitativo de cada ser humano, único e irrepetível, é destroçado pela racionalidade
instrumental que o transforma em apenas um exemplar homólogo do diferente. Da
mesma maneira que o homem buscava mimetizar-se à natureza para eliminar o
elemento desconhecido que lhe trazia medo, a razão instrumental ou iguala ou aniquila
a diferença. No desdobramento da razão que pretendia compreender a natureza,
encontramos o mesmo comportamento irracional que criava e mantinha o mito. A
racionalidade total converte-se em irracionalidade.
Contra a razão que se converte em irracionalidade, a filosofia deve ser pensada
e exercida: para evitar momentos como Auschwitz, evento utilizado por Adorno como
sendo o grande exemplo de que o genocídio pode ser desdobramento último das
teorias filosóficas que se constituem a partir da identidade, conforme será
argumentado ao longo do presente texto.
Mutatis mutandis, este é, então, novamente expresso, o temor que move o
presente trabalho: perceber que o direito é cada vez mais fundamentado na dominação
do objeto por conceitos legais e notar que os atores do processo restringem-se repetir
ritos, sem perceber a perniciosidade de sua prática. O que se pretende é chocar o
direito lato senso com alguns elementos centrais da dialética negativa adorniana.
Olhando o direito desde a chave interpretativa dialética, pretendemos realizar
nossa tarefa filosófica de confrontar o direito com a sua realidade. Como afirma
Ricardo Timm de Souza: “A tarefa do filósofo: deixar as coisas se chocarem com sua
própria realidade” (SOUZA, 1998, p. 42).
1.2 Theodor W. Adorno e Franz Kafka
18
O diálogo que se pretende estabelecer entre os pensadores centrais e o tema do
presente trabalho pode parecer, ao menos à primeira vista, um pouco inusitado. Nessa
medida, realizaremos uma breve exposição conjunta apenas sobre os traços que nos
interessam da vida e da obra de cada um deles, de forma a começar a desenredar as
razões que serviram de motivação para tal articulação e adentrar a temática que nos
interessa dissertar.
Franz Kafka (1883-1924) nasceu em Praga, Boêmia, pertencente à época ao
Império Austro-húngaro (atualmente República Tcheca). Filho mais velho de
Hermann Kafka, comerciante, e de Julie, numa família de classe média judia.
Doutorou-se em Jurisprudência em 1906, tendo trabalhado como advogado,
inicialmente na iniciativa privada e depois em uma empresa semi-estatal de seguros
contra acidentes do trabalho. Faleceu antes de completar 41 anos de idade, sendo que a
maior parte de sua obra de contos, novelas, romances, cartas e diários, foi publicada
após a sua morte. Kafka não teorizou a violência da razão instrumentalizada que
transforma o direito em uma máquina repetidora e desumanizada; ele a viveu
duramente na carne e a expressou literariamente.
Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno (1903-1969) nasceu no berço de uma
família burguesa em Frankfurt, filho de Oscar Alexander Wiesengrund, um próspero
comerciante alemão de vinhos, de origem judaica e convertido ao protestantismo, e de
Maria Barbara Calvelli-Adorno, uma cantora lírica católica de origem corsa, francesa
e alemã, a qual juntamente com sua filha e meia-irmã de Adorno, Agathe, pianista
famosa, foram responsáveis pelo seu despertar para a musicalidade.
A relação mais explícita que entre os dois pensadores é representada pelo
fato de que Adorno leu Kafka e lhe dedicou um ensaio denominado Anotações sobre
Kafka (em PRISMAS, 1998). Contudo, muitas e muito íntimas ligações podem ser
vislumbradas entre as obras dos dois. Arriscamo-nos a dizer que, ao menos em alguns
momentos, Kafka parece pretender ilustrar a filosofia de Adorno, como quem um
exemplo claro e perfeito que representa toda uma pesada teoria.
A mente de Adorno foi esculpida pelas artes, especificamente pela sica;
mas foi pela filosofia que a expressão de sua genialidade foi conhecida. A mente de
Kafka foi duramente talhada pelo conhecimento técnico e pela pesada carga
19
burocrática de sua atividade profissional; contudo foi por sua arte literária que ele foi
apresentado ao mundo como um dos maiores escritores de ficção do século XX.
A filosofia de Adorno é marcada pela crítica ao esclarecimento e de sua
principal ferramenta, a razão. Para Adorno, como já aduzimos, a razão que
desencantou o mundo e livrou o homem do mito caiu novamente no mito ao deixar de
realizar a sua própria autocrítica. A razão fechada em conceitos repetidos à exaustão e
aplicada irrestritamente para as mais diversas finalidades é reificada, transformando-se
em mero instrumento a serviço da dominação da natureza pelo homem e do homem
pelo próprio homem. Enquanto isso, Kafka apresenta para o leitor personagens
despidos de qualquer exercício crítico racional, exatamente por serem excessivamente
racionais e acreditarem na retidão dessa sua obsessão pela racionalidade que fornece
todas as explicões. A realidade é como é; e assim deve ser aceita. Utilizaremos
como principais recursos ilustrativos as obras O processo, que narra a história de Josef
K., procurador de uma instituição bancária que inesperadamente se processado sem
conhecer qualquer das circunstâncias da acusação e do órgão processante altamente
burocratizado, e Na colônia penal, que versa sobre uma máquina concebida para julgar
processos, aplicar e executar sentenças das quais os réus sequer tem assegurado um
efetivo direito de defesa.
Da leitura do músico que por sua mente artística foi capaz de perceber a
sutileza de que a filosofia, para merecer a denominação de atividade racional, deve
ininterruptamente autocriticar-se para não se transformar em ideologia e do escritor
que por sua mente maltratada pela repetição da razão reificada mostrou, talvez até
mesmo sem perceber, as patologias extremas de um mundo despido de uma atividade
racional crítica é que pretendemos questionar sobre as reais possibilidade e intenções
de um direito burocratizado e sobre qual a intimidade de sua relação com a justiça.
20
2. O MITO DA REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA PELO PROCESSO
BUROCRÁTICO
O uniforme brilha mais do que quem o usa” (SOUZA, 1998, p. 25).
Tendo como referencial filosófico a obra Dialética do esclarecimento
(ADORNO & HORKHEIMER, 1985), dissertaremos de forma algo detida, neste
capítulo, sobre o desencantamento do mundo pelo esclarecimento, as implicações
deste para a racionalização de um processo jurídico-burocrático que é anunciado como
interessado e capaz da produção da justiça. Para tal, lançaremos brevemente mão,
igualmente, de algumas iias de autores contemporâneos provindos da área da
Antropologia Social e da Sociologia, além de algumas idéias clássicas de Jacques
Derrida relativamente à relação entre Justiça e direito.
2.1 O paradigma da ciência moderna
O mistério, a indeterminação, é o que de mais vivo no encontro. Todo e
cada instante de pulsação vital autêntica é misterioso, novo e irrepetível. A relação
sadia com essa indeterminação dos instantes de vida poderia servir como elemento
libertador do humano, contudo serviu como fonte de medos e angústias. Desde os mais
remotos relatos históricos que chegam até nós, o homem, temendo a natureza que se
mostrava imprevisível, buscou, pela sua capacidade de pensamento, mecanismos
anestésicos de explicação dos dados que não conseguia compreender para suportar a
impossibilidade de determinação humana absoluta do meio. Assim, de acordo com o
interesse argumentativo do presente trabalho, os mitos gregos são a ilustração do
afirmado. A existência de deuses explicava tudo aquilo que o humano mortal não
21
conseguia compreender. Com a mesma pretensão, dentre outras, a ciência moderna
pretendeu terminar com o desconfortável indeterminado, de acordo com o observado
por Adorno:
A subsunção do factual, seja sob a pré-história lendária, mítica, seja sob o
formalismo matemático, o relacionamento simbólico do presente ao evento
mítico no rito ou à categoria abstrata na ciência, faz com que o novo apareça
como algo predeterminado, que é assim na verdade o antigo. Quem fica
privado da esperança não é a existência, mas o saber que no símbolo
figurativo ou matemático se apropria da existência enquanto esquema e a
perpetua como tal (ADORNO, 1985, p. 35).
Assim, na contramão da irrepetibilidade do instante presente, a ciência
moderna objetivou a determinação do novo mediante o estabelecimento da verdade
científica, tomando o lugar das crenças. O projeto científico de dominação das
indeterminações do meio, com fundamento na razão instrumentalizada, sustentou a
possibilidade do estabelecimento de verdades absolutas. Pelo método científico, a
ciência idealizou um futuro possível de planejamento e previsão e, com essa carga,
contaminou as mais diversas áreas do conhecimento.
1
E esse projeto é problemático
sob dois aspectos: pelas limitações internas, condições de possibilidade do próprio
todo científico em chegar a uma única conclusão sobre a realidade, e pelas
limitações externas, dependência da ciência de aspectos políticos e econômicos que
determinam o rumo da pesquisa científica.
Essas duas ordens de limitações que atingem a ciência obrigam-nos a refletir
sobre a pretensão de unicidade da ciência e sobre o caráter e as implicações de suas
certezas, como Adorno adverte:
O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O
preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação
daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as
1
POPPER, Karl R., O universo aberto: argumentos a favor do indeterminismo, Lisboa: Dom Quixote, 1988, pp. 52-
53: A doutrina do determinismo ‘cienfico’ é a doutrina de que o estado de qualquer sistema sico fechado em
qualquer instante futuro dado pode ser previsto, mesmo a partir de dentro do sistema, com qualquer grau especificado
de precisão, através da dedução da previsão a partir de teorias, em conjunção com condições iniciais cujo grau de
precisão requerido pode sempre ser calculado (de acordo com o princípio da determinabilidade) se a tarefa de previsão
for dada.”
22
coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na
medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas
na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si torna para-ele. Nessa
metamorfose, a essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como
substrato da dominação (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 21)
A razão científica instrumentalizada visava a, por meio das verdades
científicas, estipular aquilo que era certo ou errado; o que era verdadeiro ou falso,
criando uma dominação do detentor do conhecimento sobre aquele que não o detinha.
Zygmunt Bauman afirma que “A noção de verdade pertence à retórica do poder”
(BAUMAN, 1998, p. 143). Essa noção da verdade vai ao encontro das pretensões do
estado contemporâneo e das estruturas burocratizadas do direito, inspirados na mesma
ciência, visando ao controle por meio de regras estipuladas a determinados fins que
devem ser seguidas.
Nesse contexto, o autor vai afirmar que:
A teoria da verdade, segundo essa avaliação, trata de estabelecer
superioridade sistemática e, portanto, constante e segura de determinadas
espécies de crenças, sob o pretexto de que a elas se chegou graças a um
determinado procedimento confiável, ou que é assegurado pela espécie de
pessoas em que se pode confiar que o sigam (BAUMAN, 1998, p. 143).
O conhecimento determinístico pretendido pela razão instrumental é aquele do
controle do tempo e da natureza; de saber que o experimento poderá sempre ser
repetido, violentando a singularidade de cada nova relação.
2
Nesse sentido, podemos afirmar que é pretensão da razão instrumental
controlar as indeterminações. Esse paradoxo de controle e (re)produção de risco vai
causar a necessidade de maior proteção e segurança.
Nos dizeres de Rafaele De Giorgi:
2
“Com efeito as leis matemáticas simples às quais, segundo se julga, os comportamentos elementares estão
submetidos e que constituiriam por conseqüência a verdade última do Universo são quase sempre concebidas
sobre o modelo geral das leis dinâmicas. Ora, como veremos, essas leis descrevem o mundo em termos de trajetórias
deterministas e reversíveis. Por isso, o o somente a liberdade ou a possibilidade de inovação que se encontram
negadas, mas também a idéia de que certos processos, como a combustão duma vela ou o envelhecimento dum
animal, sejam intrinsecamente irreversíveis” PRIGOGINE, Ilya e STENEGERS, Isabelle, A nova aliança
metamorfose da ciência, Trad. Miguel Faria e Maria Joaquina Machado Trincheira, 3ª Ed., Brasília: UnB, 1997, p. 7.
23
...na medida em que cresce a certeza de que as indeterminações que entram
novamente na esfera desta segunda normalidade, podem ser imputadas às
decisões, à procura de outras decisões. E visto que, não se sabe bem quais as
decisões que podem ser capazes de evitar situões que não se sabe se
ocorrerão, consolamo-nos com o recurso à moral, ou mesmo, que não
temos mais, como dizia Marx, as armas da crítica, consolamo-nos com a
crítica das armas (DE GIORGI, 1998, pp. 191-192).
Nenhuma história ou conhecimento poderá se dar senão de forma narrativa,
pois esta busca ordenar os acontecimentos. Todavia, esse relato da modernidade se
dava de forma única, enquanto, hoje, dá-se de forma subjetiva e em pequenos relatos,
ou “mitemas”.
Ilya Prigogine, ao fixar-se nos processos de auto-organização, revê o processo
de organização e de construção do determinismo do futuro pelo passado. O autor
revela que a questão da desordem não inibe o conhecimento, mas estimula os
processos organizativos e a própria renovação constante do universo:
Assim, aquela reescrita poderia ser pensada como a possibilidade de
descrever o caótico e de trabalhar com ele e sobre ele. No fundo, trata-se de
reinventar uma reordenação intelectual que permita reescrever a
complexidade e não eliminá-la em favor de uma verdade absolutizada (Apud
GAUER, 2002, pp. 95-96).
Em poucas palavras, o projeto da ciência moderna mostra, sem querer, à
ciência, que esta o pode mais partir de uma posição cnica de definição de uma
verdade única, mas sim de um posicionamento crítico diante das verdades que se
apresentam. Verdades que não se anulam ou aniquilam, mas que convivem e se
desdobram em outras verdades.
Ou como afirmou Zygmunt Bauman:
Pode-se dizer que os filósofos hoje lutam paradoxalmente, se pensa a
respeito não tanto acerca da única e verdadeira (única porque verdadeira)
teoria da verdade, mas acerca da verdadeira, e por conseguinte única, teoria
das verdades (no plural); e porque a pluralidade das verdades deixou de ser
considerada um irritante temporário, logo destinado a ser deixado para trás, e
porque a possibilidade de que diferentes opiniões podem ser não apenas
simultaneamente julgadas verdadeiras, mas ser de fato simultaneamente
verdadeiras... (BAUMAN, 1998, p. 147).
24
A argumentação acima fixa as dificuldades internas da própria ciência em
definir uma verdade, conforme foi o seu projeto original. Contudo, além das
dificuldades internas de tal modelo científico, temos as dificuldades externas e os
desdobramentos de tal racionalidade.
Exatamente sobre esse esclarecimento produzido pelo paradigma de uma
ciência moderna condicionada e limitada que temos o grande paradoxo apontado por
Adorno e Horkheimer (1985) e ainda vislumbrado na contemporaneidade: o
esclarecimento que criaria as condições para a construção de uma sociedade mais justa
e livre, em verdade, produziu exatamente o seu contrário, uma sociedade destrutiva e
injusta. A explicação para essa contradição passa pela acusação do esclarecimento ao
elemento subjetivo do mito que igualmente contamina a ciência. Com efeito, ignorar a
forte presença do elemento subjetivo na ciência é demasiada ingenuidade. É em
função dessa complexa relação entre mito e esclarecimento que se afigura necessário o
estabelecimento da crítica aos produtos pensados da racionalidade esclarecida, sob
pena de esta se tornar, também, mito. Mais grave do que isso, temos a presença do
elemento econômico que seleciona, dentre as atividades científicas em início de
pesquisa, aquela que realmente lhe interessa; as demais, independentemente de sua
relevância social, sem aporte financeiro, não passam de mera intenção não realizada.
E, por fim, o grande ponto de insuficiência da resposta esclarecida, por mais precisa
que aparentemente possa ser: as questões fundamentais, aquelas que realmente
importam, não podem ser respondidas pela ciência ou pela técnica. Chalmers
evidencia essa situação com um bom caso:
Por exemplo, embora a ciência contemporânea seja muito capaz de produzir
respostas precisas para as questões que dizem respeito à meia-vida de
diversos componentes do lixo radioativo ou ao quanto o vidro de
borossilicato se desintegra quando exposto a determinados graus de
umidade, as precisas consequências a longo prazo do provável resultado das
diversas técnicas de dispor o lixo nuclear não podem ser determinadas
cientificamente porque nosso conhecimento científico não é gerado para
tratar da complexidade de situações na vida real, como a que se obtém
quando o lixo nuclear é encerrado em vidro de borossilicato e enterrado em
buracos profundos ou lançado em órbita planetária! Embora seja importante
admitir que o conhecimento científico é um poderoso auxílio para nossas
intervenções tecnológicas, mecânicas e ambientais no mundo e para nossa
compreensão de seus possíveis efeitos, reconhecer as limitações da ciência
25
em relação a isso é um corretivo necessário para as mistificações e exageros
que normalmente acompanham as reivindicações dos tecnocratas (veja, por
exemplo, Lowe, 1987). (CHALMERS, 1994, p. 162).
Essa resumida reflexão sobre os aspectos que entendemos relevantes ao
objetivo do presente trabalho tem como finalidade introduzir as ideias de que a
ciência, enquanto mero consolo técnico para as fragilidades do humano com relação às
indeterminões do meio, pretendendo dominar a natureza misteriosa, mantém as
mesmas e nefastas consequências que pretendia eliminar do mito, mediante a
substituição deste pelo esclarecimento. Adorno e Horkheimer (citados por PERIUS,
2006, p. 64) vão afirmar que:
Do medo o homem presume estar livre quando não há mais nada de
desconhecido. É isso que determina o trajeto da desmitologização e do
esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim como o mito
identifica o inanimado ao animado. O esclarecimento é a radicalização da
angústia mítica (...) Nada mais pode ficar de fora, porque a simples idéia do
fora é a verdadeira fonte da angústia.
Referido modelo científico contaminou fortemente o processo educacional,
passando a ser reproduzido para todos os indivíduos que frequentam uma instituição
de educação, caracterizando um claro movimento de retroalimentação da razão
vigente. Assim, por demandas criadas pela mesma racionalidade que fundamentava o
método educacional, o processo fundante da relação dialética singular de
conhecimento, que deu origem ao conceito, à regra, não poderia mais ser repetido para
todo o indivíduo, para todo o estudante. A educação não tinha mais como base a
relação de conhecimento direta com o objeto a ser conhecido, ou, em outras palavras,
via de regra, não se estabelecia a relação direta entre sujeito e objeto; a educação
passou a ser conduzida com base no conhecimento de estruturas representativas do
objeto a ser conhecido. Tal fato é amplamente incentivado por todas as instâncias da
sociedade, pela própria família, pois a expectativa depositada em qualquer estudante é
de que ele seja preparado para o mercado, pouco importando qual o ofício a ser
exercido ou a descoberta de uma verdadeira e autêntica vocação profissional:
interessa, apenas, que o mercado mais técnico demanda por profissionais mais
técnicos. E a contemporaneidade acelerada não tem tempo para ensinar mais do que a
26
técnica, a qual, além de necessária ao mercado, é mais rápida para ser decorada. Em
função disso, o processo de escolarização e de formação profissional afiguram-se
como sendo cada vez mais técnicos e menos humanos. Confundem-se
formação/educação e treinamento. Corre-se o risco constante da transformação da
Educação em mercadoria. A gravidade de tal constatação de que a técnica está
substituindo o humano na relação reside no forte elemento alienante dessa pretensa
racionalidade legitimada pela repetição despida da necessária e renovadora crítica. O
humano (por natureza, heterogêneo) que se aliena na técnica (constante tentativa de
redução, de homogeneização) não afasta a possibilidade da ocorrência de eventos de
sofrimento e genocídio, representados, na obra de Adorno, por Auschwitz:
Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece
atualmente, gera pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem a sua
racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos
influenciáveis, com as correspondentes conseqüências no plano geral. Por
outro lado, na relação atual com a cnica existe algo de exagerado,
irracional, patogênico. Isto se vincula ao "véu tecnológico". Os homens
inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim
em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço
dos homens. Os meios e a técnica é um conceito de meios dirigidos à
autoconservação da espécie humana são fetichizados, porque os fins
uma vida humana digna encontram-se encobertos e desconectados da
consciência das pessoas. (http://adorno.planetaclix.pt/tadorno10.htm):
Esse processo de conhecimento passou a ser imposto, de fora para dentro,
como a absorção de estruturas prontas, desencorajando o indivíduo ao estabelecimento
de uma relação construtiva de conhecimento direto, ou seja, não mediado pelas
estruturas prévias e preconceitos. A formação intelectual do indivíduo passou a ser
muito mais pela memorização de fórmulas, apresentadas como verdades estáveis, do
que pela singularidade dialética na construção do sentido dos objetos, que deveria
marcar uma relação cognitiva. O ensino, que há muito vem se perpetuando na maioria
das instituições a ele dedicadas nas mais diversas áreas, é baseado em um método
simples e fechado, pois a relação de aprendizagem é reduzida à mera transferência de
conhecimento técnico. Nesse tipo de relação, o professor é colocado diante dos
estudantes como um ser superior (detentor do conhecimento), distanciados pelo
currículo e pela intelectualidade do “mestre”. A posição diferenciada do professor
27
constrói barreiras intransponíveis no lugar das pontes necessárias para o
estabelecimento de uma autêntica relação, sufocando a singularidade do encontro
humano e a possibilidade da autêntica construção de sentido, pela confusão de
“autoridade intelectual” com “autoritarismo procedimental”. O ensino controlador, de
uma única verdade e de mera transmissão de conhecimento, perfaz-se por um método
ditatorial e que torna o conhecimento estático, podendo ser, facilmente, comparado à
visão do Panóptico
3
, de Jeremy Bentham (1974). Aqui, a principal crítica destina-se à
concepção de aulas meramente expositivas, como se o professor fosse o único detentor
de uma verdade formalizada. Os estudantes treinados com base nessa racionalidade
são formados com base no conhecimento oferecido pelo professor. Ou seja, não
realizam o paralelo ctico entre o conhecimento e as suas próprias experncias
sociais. A ausência de interação do ensino com a complexidade social forma pessoas
fechadas, alienadas, a uma realidade que a eles pertence, ocasionando o controle e
fechamento a outros viéses sociais.
Nesse sentido, a autêntica singularidade das relações, único tempo no qual a
pluralidade e a dialética têm a oportunidade de acontecer, é possível quando são
suspensos os produtos de uma racionalidade pensada e impregnada no espírito do
homem contemporâneo.
2.2 O desencantamento do mundo, o nascimento do Direito Burocratizado e a sua
relação com a Justiça
Inicialmente, nunca é demais lembrar que a Dialética do Esclarecimento
nasceu durante a Segunda Guerra Mundial, período no qual seus dois autores, judeus
3
Uma das mais importantes contribuição de Bentham foi a concepção do “Panóptico”, um artigo inserido no 3º
Volume dos Tratados da Legislação, do qual retirou-se as idéias fundamentais do autor sobre o tema. Um edifício
circular, ou polígono com seus quartos à roda de muitos andares, que tenha no centro um quarto para o inspetor poder
ver todos os presos, ainda que eles não o vejam, e de onde os possa fazer executar as suas ordens sem deixar o seu
posto, controlando-os e vigiando-os de seus pecados e desejos. Vide MILL, John Stuart, Os Pensadores J. Bentham
– Vida e obra, São Paulo: Abril Cultural, 1974.
28
de origem alemã, Max Horkheimer e Theodor Adorno, estavam refugiados nos
Estados Unidos. A guerra evidencia exatamente a questão fundamental da obra ora
enfocada: como é possível que a humanidade livrada do mito, ao invés de “entrar em
um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de
barbárie?” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 11), ao confrontar a razão que
cegamente produz armas capazes de exterminar a vida com a razão que salva vidas.
Do ponto de vista de suas fontes, a Diáletica do esclarecimento tem conceitos
de Marx como categorias centrais, mas é possível também identificarmos
explicitamente refencia à psicanálise de Freud; à filosofia de Kant, Hegel e
Nietzsche, entre outros; e, ainda, mesmo que de forma não declarada, percebemos uma
forte relação do processo de desencantamento do mundo descrito na referida obra com
aquele examinado por Weber (Ciência como vocação, 1917).
Interessa-nos, para o presente caso, a relação entre a filosofia social de Max
Weber (1864-1920) e a obra de Adorno e Horkheimer, pois a obra weberiana descreve
detalhadamente o caminho entre o desencantamento do mundo e a concepção de um
direito burocratizado, motivo pela qual recorreremos, neste capítulo, a elementos da
obra weberiana no tocante ao modelo burocrático e as suas causas e consequências.
Conforme referido, a ideia de desencantamento do mundo está fortemente
presente na obra de Weber (Ciência como vocação, 1917, p. 13):
A intelectualização e a racionalização geral não significam, pois, um maior
conhecimento geral das condições da vida, mas algo de muito diverso: o saber
ou a crença em que, se alguém simplesmente quisesse, poderia, em qualquer
momento, experimentar que, em princípio, não há poderes ocultos e
imprevisíveis, que nela interfiram; que, pelo contrário, todas as coisas podem
em princípio - ser dominadas mediante o cálculo. Quer isto dizer: o
desencantamento do mundo.
Ideia desenvolvida por Adorno e Horkheimer no início do primeiro capítulo
da Dialética do esclarecimento, denominado “O conceito de esclarecimento”, e
representada pela seguinte frase: O programa do esclarecimento era o
desencantamento do mundo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 17). Desencantar
o mundo quer representar a eliminação dos mitos e a substituição da imaginação e da
pelo saber racional. E, seguindo na mesma linha traçada por Weber, Adorno e
29
Horkheimer vão afirmar que “O que não se submete ao critério da calculabilidade e da
utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985,
p. 19). A palavra esclarecimento é utilizada como sinônimo de iluminismo e significa,
para Adorno, o movimento da razão que pretende racionalizar o mundo, possibilitando
a sua dominação pelo homem.
No projeto do desencantamento do mundo, a racionalização passou a ser
entendida como o processo que consistia em uma sistematização, intelectualização,
especializão, tecnificação e objetivação crescentes em todos os âmbitos da vida.
Racionalizar significaria produzir um processo calculável e previsível. A submissão da
realidade à calculabilidade e previsibilidade prometidas pela racionalidade despertou o
interesse dos estados, pois a burocracia poderia ampliar as suas esferas de atuação e de
interveão sobre as mais diferentes necessidades vitais, e do poder econômico
dominante no então crescente capitalismo burguês moderno, visto que passou a haver
a necessidade de racionalização dos recursos humanos e de sua utilização. Zygmunt
Bauman vai afirmar sobre a aplicação universal da razão que:
A sociedade “principalmente coordenada”, talvez racionalmente projetada e
controlada, devia ser essa boa sociedade que a modernidade se pôs a construir
(...). A “principal coordenação” racionalmente projetada se ajusta igualmente
bem a uma escola e a um hospital, assim como se ajusta a uma prisão e a um
asilo de pobres; e descobrimos que tal universalidade de aplicação faz com
que mesmo a escola e o hospital pareçam uma prisão ou um asilo de pobres
(BAUMAN, 1998, p. 102).
Apoiada na revolução industrial, a ideia de que a máquina seria superior a
todos os métodos não mecânicos de fabricação de bens serviu de base para o
argumento de que a burocracia, igualmente, seria a melhor forma de organização, pois
ganharia em precisão, rapidez, univocidade, oficialidade, continuidade, discrição,
uniformidade, subordinação, economia de custos materiais e humanos.
Alegadamente na busca dos mesmos supostos benefícios propiciados pela
burocracia, o direito também foi-se tornando cada vez mais burocratizado. O que se
afigurava plenamente razoável, pois um direito exercido em conformidade com regras
genéricas e abstratas, que excluiriam a ação arbitrária do detentor do poder, tornando o
exercício deste objetivo, impessoal, previsível e calculável, é racionalmente
30
compreensível e defensável.
Mais do que uma tendência da época, racionalizar o direito foi uma
necessidade dos estados, pois não racionalização sem juridificação. O direito
nascente afigurava-se como necessário para dar previsibilidade às condutas de uma
sociedade desencantada. Para tanto, o direito concebido da racionalização moderna
burguesa, e ainda vigente em boa parte do mundo, pode ser caracterizado por
competências delimitadas mediante regras, por uma hierarquia funcional precisa, o
que implica uma supervisão dos órgãos superiores sobre os inferiores, bem como a
possibilidade de recurso dos dominados a uma autoridade superior, por uma separação
entre a atividade burocrática (pública e profissional) do funcionário e a sua vida
privada, por uma seleção dos funcionários mediante a verificação dos conhecimentos
necessários ao bom desempenho do cargo, o qual tem suas características estatuídas
racionalmente e fica subordinado a uma finalidade objetiva e impessoal, havendo a
possibilidade do funcionário seguir uma carreira, na qual a ascensão está determinada
segundo regras e sendo garantidas a estabilidade no cargo e a respectiva aposentadoria
condizente com a função. Tudo perfeitamente concebido e calculado para, em tese, ser
capaz de atingir os resultados alegadamente buscados pelo estado burguês.
No processo de racionalização, a ação é entendida como racional na medida em
que a calculabilidade dos meios aumenta a previsibilidade de consecução dos fins. E é
exatamente nesse ponto que se enreda de maneira grave a relação que se pretende
discutir entre direito e justiça, pois na origem de qualquer estado capitalista
burocratizado os interesses econômicos representam o fator mais poderoso na
formação do direito, porque a criação e manutenção deste sempre depende da adesão
de grupos sociais, e estes, em geral, constituem-se em torno de um interesse
econômico. Ou seja, a constituição (e a manutenção também) do estado e do direito
es radicalmente ligada aos interesses econômicos dominantes. Nessa medida, o
capitalismo moderno burguês obrigou o direito a racionalizar-se, pois a economia
racional necessitava de um instrumento que lhe proporcionasse previsibilidade, e este
não poderia ser outro senão um direito racional e previsível. É evidente que na
elaboração de uma legislação, que verse sobre direito material ou direito processual, é
possível a atribuição de uma carga de previsibilidade dos seus resultados. Assim
31
sendo, o processo burocratizado, tanto legislativo quanto judicial, pôde, desde sua
origem, ser orientado para alguma finalidade: no caso, para o fortalecimento e
manutenção do poder que o instituíra. Situação que ainda hoje, na maior parte dos
países, não se alterou significativamente, independentemente de se tratar de um estado
democrático, pois o alcance da participação do cidadão na direção do estado é prevista
e limitada desde o nascimento da norma. A participação é permitida até um ponto em
que a sensação de democracia, mas não mecanismos suficientes para que essa
participação seja efetivamente decisiva.
Ora, considerando-se que a empresa capitalista moderna, cuja participação
afigurava-se como preponderante no nascimento do direito, baseava-se, internamente,
sobretudo no cálculo, ela necessitava de um aparato jurídico cujo funcionamento
pudesse ser calculado racionalmente de acordo com normas gerais, da mesma forma
que se pode calcular o rendimento previsto de uma máquina. As empresas modernas
conseguiram se estabelecer “onde o juiz como num Estado burocrático com suas
leis racionais, é mais ou menos um autômato regido por artigos, ao qual se enfiam
goela abaixo as atas dos processos juntamente com os custos e honorários, e ele
devolve a sentença junto com um arrazoado mais ou menos convincente, isto é, sua
atividade é de toda forma, de um modo geral, previsível” (Weber, Parlamentarismo, p.
44).
O direito passa a ser visto como algo desprovido de toda e qualquer santidade,
na medida em que se assume como um aparato racional e técnico que pode ser
orientado à busca de qualquer fim. E as inerentes especialização e tecnicização
burocticas contaminam o direito de forma a cada vez mais torná-lo afastado e
incompreensível para a maior parte dos leigos. Essa é uma das características da
racionalização: a esterilização de qualquer ferramenta que se encontre fora da razão.
Como apenas um entre tantos exemplos, temos a racionalização dos procedimentos de
atendimento médico hospitalar que visam a eliminar o estabelecimento de qualquer
relação emotiva entre médico e paciente. A racionalização acaba por eliminar o
humano do encontro, produzindo, segundo Horkheimer, um processo de
desumanização (HORKHEIMER, 1976, pp. 5-6).
32
Esse afastamento cada vez maior entre direito, justiça e a massa de pessoas,
representa, desde a perspectiva que aqui nos interessa, a grande denúncia realizada por
Adorno e Horkheimer na Dialética do esclarecimento no sentido de que o
esclarecimento se torna, novamente, mito. Com efeito, o esclarecimento produziu seus
próprios mitos: a ciência, o capitalismo, o positivismo, o direito burocratizado etc. De
acordo com Adorno e Horkheimer (1985, p. 24), “o preço que os homens pagam pelo
aumento de seu poder é a alienão daquilo sobre o que exercem o poder”. O
esclarecimento, enquanto repetição, apresenta-se cada vez mais semelhante à
mitologia, transformando o pensamento em tautologia.
A ciência positivista que desencanta o mundo impõe o método para
racionalizar e ordenar o mundo fatual, classificado, unificado pela lógica formal e
decifrado pela matemática, recusando tudo o que não se enquadra nos critérios de
cálculo e utilidade, como forma de dominação da natureza. Contudo, é exatamente aí,
segundo os autores, que ocorre a mitologização do pensamento que se queria
esclarecido, conforme Adorno e Horhkeimer afirmam:
O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O
preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo
sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas
como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em
que manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que
pode fazê-las. É assim que seu em-si torna para-ele. Nessa metamorfose, a
essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato da
dominação (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 21)
O mito grego poderia ser representado pela crença da realização da justiça pela
deusa Diké. O esclarecimento, que veio para desencantar a mitologia e que prometeu a
realização da justiça pela operação burocrática, apenas substituiu a deusa em sua tarefa
mitológica de realizar a justiça. O exercício racional foi abandonado com base na
crença de um direito burocratizado fabricante de justiça.
A repetição do pensamento pensado é tratada como sendo a reificação do
pensamento. Nas palavras de Adorno e Horkheimer (1985, p.37), “o pensar reifica-se
num processo automático e autônomo, emulando a máquina que ele próprio produz
para que ele próprio possa finalmente substituí-lo.” O pensar reifica-se; o que deveria
ser dinâmico e criativo, passa a ser fixo, automático e passivo, exterminando a
33
autonomia e a autoconsciência do pensar. Na sociedade esclarecida, o pensar passa a
significar classificar, calcular, reduzindo-se a um mero formalismo automático e
passivo.
Com base no exposto, quer-nos parecer que o sentido atribuído ao direito em
sua origem é mantido e conservado pelas suas próprias regras e procedimentos. Tarefa
facilitada pela tecnificação do direito e pela reificação do pensamento que terminam
por praticamente inviabilizar o exercício crítico da sociedade com relação ao sistema
jurídico vigente.
Da imbricação referida entre direito, estado e economia, surge a primeira
questão: a justiça é realmente um valor almejado pelo direito burocratizado?
2.3 O processo burocrático de fabricação da justiça
Aceitaremos, por hipótese, para avançarmos em nossa argumentação que a
justa é um valor buscado pelo direito burocratizado, questionando, eno, sobre
possibilidade do direito efetivamente produzir justiça.
Tomaremos por burocracia o procedimento racionalmente concebido para
atingir um determinado objetivo por uma instituição ou corporação. Conforme
afirmado, a racionalização seria o processo consistente em uma sistematização,
intelectualização, especialização, tecnificação e objetivação. Racionalizar significaria
a possibilidade de produzir um processo calculável e previsível.
Desde a sua constituição, o estado moderno foi pensado e instrumentalizado
mediante regras e procedimentos, tal qual o projeto racional de desencantamento foi
organizado pela ciência. O projeto científico viabilizou a racionalização de diversos
procedimentos visando a atingir, igualmente, os mais diversos objetivos.
Fortemente presente nas mais diversas áreas, inclusive nas ciências sociais, a
inspiração matemática chegou ao direito para “auxiliar” na elaboração dos conceitos
de justiça cumulativa e distributiva, conforme argumentado por Adorno e Horkheimer:
As mesmas equações dominam a justiça burguesa e a troca mercantil. “Não é
a regra: ‘se adicionares o desigual ao igual obterás algo de desigual’(Si
34
inaequalia addas, omnia erunt inaequalia) um princípio tanto da justiça
quanto da matemática? E não existe uma verdadeira coincidência entre a
justiça cumulativa e distributiva por um lado e as proporções geométricas e
aritméticas por outro lado?” Bacon A sociedade burguesa está dominada
pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo comparável, reduzindo-o a
grandezas abstratas. Para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a
meros e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão: o positivismo moderno
remete-o para a literatura. ‘Unidade’ continua a ser a divisa, de Parmênides a
Russell. O que se continua exigir insistentemente é a destruição dos deuses
e das qualidades (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20).
A principal fragilidade de tal aplicação indiscriminada da formulística
matemática, bem como da ciência moderna em sentido lato, guarda relação com o fato
de que a referida disciplina se mostra perfeitamente apta (quando entendida em sua
feão formulística, obviamente) para responder apenas aos problemas igualmente
criados por ela. E não se trata de uma crítica à matemática enquanto ciência, mas à
forma de sua utilização. Arrancar da realidade uma representação é uma tarefa
admirável da razão, contudo o objeto arrancado perde seu estatuto ontológico,
passando a ser uma simples representação; e exatamente nessa medida pode ser
utilizada. Ora, entre números, tal lógica funciona perfeitamente, pois os elementos
possuem a mesma natureza. Contudo, as representações, quando são utilizadas para
subverter a natureza do real, funcionam como abstrações de pequenas quantidades de
uma realidade qualitativa. Por mais adequadas que sejam as palavras (enquanto
quantidade de uma realidade) utilizadas para representar a justiça, jamais elas
substituirão o valor (subvertendo a qualidade do real), ou seja, a singularidade não
intercambiável de cada particular. Recorremos, novamente, a Adorno para defender
este argumento:
Entregar-se ao objeto equivale a fazer justiça a seus momentos qualitativos.
A objetificação científica, em acordo com a tendência à quantificação
intrínseca a toda ciência desde Descartes, tende a excluir as qualidades,
transformando-as em determinações mensuráveis. Em uma medida
crescente, a própria racionalidade é equiparada more mathematico (segundo
o uso matemático) à faculdade de quantificação. Por mais exatamente que
isso tenha em conta o primado de uma ciência da natureza triunfante,ele não
reside de maneira alguma no conceito da ratio em si. A racionalidade é
efetivamente cega, porquanto se fecha contra os momentos qualitativos
enquanto algo que precisa ser por sua vez pensado racionalmente. A ratio
35
não é mera síntese, ascensão a partir dos fenômenos dispersos em direção ao
seu conceito genérico. Ela exige, do mesmo modo, a capacidade de
diferencião. Sem essa capacidade, a fuão sintética do pensamento, a
unificação abstrativa, não seria possível: reunir o igual significa
necessariamente distingui-lo do desigual. Esse é, porém, qualitativo; um
pensamento que não o pensa está ele mesmo amputado e em desacordo
consigo (ADORNO, 2009, p. 44).
Estendendo o argumento acima para a questão fundamental do presente
trabalho, temos que a justiça é uma qualidade, um valor, que foi imposta como sendo
passível de realização e, sobretudo, da responsabilidade do estado. Na elaboração de
qualquer modelo de estado, é criado um aparato racional, um procedimento ou
diversos procedimentos, que, supostamente, se prestam à consecução da justiça. E, a
partir daí, a confusão e a falta de clareza conceitual, que nunca interessam à filosofia,
se instauram, sendo amplificadas por denominações e expressões como: justiça
eleitoral, o fato das pessoas possuírem causas na justiça, tribunal de justiça
(praticamente um templo) etc. E tal confusão atinge a filosofia e os pensadores do
direito que se ocupam com complexas teorias da justiça, as quais, em sua maioria,
tratam da justiça efetivamente como um resultado possível de um processo
burocratizado. Essa falta de clareza leva à crença de que o direito é o limite e a única
instância da justiça, conforme observado por Adorno e Horkheimer: “…tanto a justiça
mítica como a esclarecida consideram a culpa e a expiação, a ventura e a desventura
como os dois lados de uma única equação. A justiça se absorve no direito”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 26). Crença que é difundida e facilitada pelo
fato de que o homem contemporâneo, domesticado desde a sua infância por um
processo educacional apaziguador, permanece à espera do estado, assim como ficava à
espera do professor. A esperança é encontrar no proferimento jurisdicional artificial a
segurança para uma situação real de injustiça.
Nesse sentido, talvez uma das principais e mais graves injustas realizadas
com a justiça seja o fato de que ela é um valor pretensamente buscado pelo estado, e
este tenta viabilizar a consecução de seus objetivos mediante procedimentos
racionalizados. Com efeito, não existe um procedimento burocrático conduzido pelo
estado (não com um aparato institucionalizado, ao menos) de “realização da bondade”,
por exemplo.
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A burocracia processual, enquanto procedimento racionalizado, razão
pensada, seduz o humano para uma tentativa de reconstrução de momentos passados
por um caminho. O procedimento burocrático é apresentado como fórmula capaz da
reconstrução da justiça ausente na relação humana injusta. A ausência da justiça na
relação humana, que culminou com o homicídio, com a fome, com o roubo, é
apresentada como recuperável pelo processo burocrático. Como exemplo do afirmado,
assistimos diariamente nos noticiários pedidos de vingança incorretamente chamados
de súplicas por justiça.
A crença na possibilidade da realização da justiça pelo estado decorre da
sensação de injustiça – percepção de não-ética – que marca as relações na
contemporaneidade. A realidade se apresenta como sendo injusta. E, nessa medida, o
estado provedor de saúde, ensino, segurança etc. também é a instituição que
providenciará a justiça.
Contudo, a justa, da mesma forma que a vida, demanda uma resposta
imediata e encontra sua possibilidade de ocorrência no tempo presente. Em
contrapartida, a pesada estrutura necessária ao estado moderno, por motivos óbvios
sobre os quais não se faz qualquer juízo, mas apenas mera constatação, não permite
que a emergência do instante presente seja prontamente atendida. A emergência da
necessidade de justiça para o instante presente é gentilmente (muitas vezes, mesmo
sem gentileza) convidada a entrar na fila e aguardar o término do procedimento
burocrático racionalmente instrumentalizado para atendê-la.
Se, por um lado, a burocracia representa o necessário estabelecimento de
regras objetivas para a consecução de um determinado objetivo num estado de direito,
por outro lado a burocracia representa o afastamento da solão das demandas no
único momento de passível solução. E, na maioria das vezes, esse afastamento afigura-
se como deliberado fator de dificultação da verdadeira justiça (e da própria vida) na
medida em que transfere a responsabilidade dos indiduos envolvidos na relação
presente para uma resposta posterior de responsabilidade do estado. A
responsabilidade de tratamento justo (ético) que deveria fundamentar a relação entre
os indivíduos é substituída pela racionalidade representada pela técnica do direito em
estabelecer um procedimento supostamente capaz de produzir o mesmo resultado da
37
relação singular em um momento posterior, qual seja, a justa. Nesse contexto, a
justa se subsume ao direito e o procedimento se justifica pelo procedimento. O
espírito domesticado dos indivíduos e a limitação à técnica dos atores do direito faz
com que o procedimento assuma, mesmo sem que os envolvidos percebam, o papel de
ator principal, fato que Adorno observou da seguinte maneira: “O que importa não é
aquela satisfação que, para os homens, se chama ‘verdade’, mas a ‘operation’, o
procedimento eficaz” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 18).
A expectativa dos leigos injustados é instigada ainda mais em função da
crescente complexidade das demandas sociais contemporâneas que são diretamente
refletidas em um aparato jurídico cada vez mais complexo, técnico, por consequência,
afastado e de difícil compreensão pelos cidadãos comuns que necessitam recorrer ao
direito.
O procedimento que promete transformar processo (quantidade) em justiça
(qualidade), ao mesmo tempo em que antecipa a relação presente pelos procedimentos
burocratizados, substitui o acontecimento da relação singular do instante presente pela
verdade/justiça dita pelo estado (jurisdictio).
Esse procedimento burocratizado é caracterizado pela inerente especialização
das tarefas, acompanhada pela substituição da qualidade humana pela posição ocupada
na relação burocrática, sufocando a ocorrência do instante e impedindo o
estabelecimento da relação dialética qualificadamente humana e singular. A
complexidade do humano é violentada à opacidade da razão instrumentalizada. O
heterogêneo é igualado, homogeneizado e a relão humana se resume a atingir o
objetivo da operação burocrática. Em Bauman:
Uma vez distanciados, graças à complexa diferenciação funcional dentro da
burocracia, dos resultados últimos da operação para a qual contribuem, suas
(dos burocratas) preocupações morais podem concentrar-se inteiramente na
boa execução da tarefa à sua frente. A moralidade resume-se ao comando
para ser um bom, eficiente e diligente especialista e trabalhador (BAUMAN,
1998, p. 126).
Conforme anteriormente argumentado, a atribuição de sentido às estruturas-
produto da razão pensada ocorre no seu momento original. A partir daí as relações
humanas passam a ser forçosamente enquadradas nas estruturas pensadas, ficando
38
restritas aos limites da operação burocrática, como se toda a riqueza qualitativa do
humano fosse capturável pelas formulações racionais. O espaço que o procedimento
burocratizado permite aos seus atores coadjuvantes é limitado pela razão técnica.
Essa submissão do humano à opacidade da razão fechada, que pode ser
representada no presente trabalho pelo judiciário, eleito pela sociedade como sendo o
grande palco da justiça constrdo pela racionalidade instrumental, abarrotado por
processos numerados, quantidade sem qualidade, produz muito mais violência do que
qualquer pálida representão da justiça, conforme será argumentado adiante. A
singularidade do encontro é sufocada e substituída pelo procedimento burocrático ao
mesmo tempo em que a qualidade do humano é quantificada pelas técnicas legislativa
e processual. A injustiça, singular por natureza, é homogeneizada pelo número
(processo); o calor do sempre inusitado encontro humano, esfriado pela falta de
oxigenação decorrente da absoluta previsibilidade do processo. Nas palavras de
Bauman:
A desumanização começa no ponto em que, gras ao distanciamento, os
objetos visados pela operação burocrática podem e são reduzidos a um
conjunto de medidas quantitativas…Reduzidos, como todos os outros
objetos de gerenciamento burocrático, a meros números desprovidos de
qualidade, os objetos humanos perdem sua identidade (BAUMAN, 1998, p.
127).
Uma vez que a injustiça passa pela grande máquina de produção da chamada
justiça estatal, o heterogêneo é transformado pelo procedimento racionalizado em
homogêneo. A prova de que a justiça estatal afirma promover tal transformação fica
evidenciada, por exemplo, quando os danos físicos ou morais são indenizados pelo
dinheiro e a sociedade despida de senso crítico aceita e repete, fortalecendo o mito,
que a justiça foi feita. Ou seja, a dor, o sofrimento, a perda etc. das mais diversas
origens e com as mais diversas causas são igualados pela máquina estatal de
fabricação da justiça na medida em que se aceita que possam ser reparados por uma
única substância mágica, que é sempre igual, variando apenas em sua quantificação.
Entretanto, a evidência cabal de que o judiciário não produz justiça (também
de que o existe justiça restaurativa), reside no fato de que a verdadeira justiça seria,
por exemplo, a restauração da vida perdida. A verdadeira justiça seria a recomposição
39
da exata situação antes do fato danoso, contudo, isso não é possível pela absoluta
irrecuperabilidade do instante. As feridas saram, mas as cicatrizes permanecem, dando
o indicativo de que a injustiça não foi simplesmente apagada e de que a justiça não foi
produzida pelo processo burocrático.
Com base nos argumentos expostos, parece-nos razoável afirmar que o
resultado do processo judicial não pode ser chamado de justiça. A falta de clareza
conceitual quanto à palavra justiça, parece-nos decorrente da manutenção de sua
vinculação à ideia de justiça reparativa, presente em Aristóteles, por exemplo na
Ética a Nicômaco. Contudo, o conceito de justiça reparativa, que em verdade não
passa de mera expiação, de indenização do dano, é demasiadamente estreito para a
riqueza e importância do significado de tal palavra para a sociedade contemporânea.
Ou seja, o conceito, o anseio e a expectativa da sociedade pela maior abrangência de
significado da palavra justiça é infinitamente maior do que a real possibilidade
concebida, mas não assumida, pela própria razão técnico-burocrática. Isso se deve ao
fato de que, firmemente defendida pela bandeira da produção da justiça, a operação
burocrática estabelece e justifica seus procedimentos desumanizados pelos quais se
movimenta pretensamente em direção à realização da justiça. Diante da realidade
social injusta, a expectativa e os anseios da sociedade por justiça são habilmente
conduzidos para a resposta estatal, apresentada como sendo a única possível. Os
burocratas de plantão, esterilizados pela técnica e devotos do processo, respondem ao
clamor social com mais direito, em um movimento de retroalimentação tão sedutor
quanto perigoso:
Quando o fascismo substituiu no processo penal os procedimentos legais
complicados por um procedimento mais rápido, os contemporâneos estavam
economicamente preparados para isso; eles haviam aprendido a ver as
coisas, sem maior reflexão, através dos modelos conceituais e termos
técnicos que constituem a estrita ração imposta pela desintegração da
linguagem (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 166).
O que escapa tanto ao indivíduo desesperado e injustiçado quanto ao burocrata
que julga o processo efetivamente o instrumento de fabricação de justiça, ambos
despidos de senso crítico, ou, pelo menos, incapazes de analisar a fundo a situação que
se apresenta, é apenas a informação fundamental de que o processo começa após a
40
ocorrência do fato. Nessa medida, além de ser impossível à burocracia restaurar uma
situação passada de injustiça, a velocidade do direito-processo não tem qualquer
relação com o fato que lhe serviu de impulso. Portanto, quanto mais rápido e
simplificado o processo, mais pequenas porções de injustiça são praticadas em seu
curso. É imperativo frisar que se trata de substâncias e de tempos diferentes e, desta
forma, o processo não pode ser movimentado com base no momento passado e
irrecuperável que lhe deu causa, mas sim com base nos momentos presentes pelos
quais se move. Reiteramos: não é racionalmente justificável que a velocidade do
processo seja determinada pela gravidade do crime, pois, por mais rápido que seja,
jamais alcançará o instante passado que lhe serviu de estopim.
E é exatamente nessa intercambialidade das substâncias, pela impossibilidade
de transformar o tempo perdido em dinheiro, o sangue derramado em reclusão, que a
burocracia revela sua violência. O pedido social por justiça é respondido com mais
direito; e quanto maior o direito maior a possibilidade de controle social e injustiça.
Nesse sentido, Bauman escreve sobre a utilização da violência dissipada na atividade
burocrática:
O uso da violência é mais eficiente e menos dispendioso quando os meios
são submetidos a critérios instrumentais e racionais e, assim, dissociados da
avaliação moral dos fins… todas as burocracias são boas nesse tipo de
operação dissociativa. Pode-se mesmo dizer que dele provêm a essência da
estrutura e do processo burocráticos e, com ela, o segredo desse tremendo
crescimento potencial mobilizador e coordenador e da racionalidade e
eficiência de ação, alcançados pela civilização moderna graças ao
desenvolvimento da administração burocrática. A dissociação é, de modo
geral, resultado de dois processos paralelos, ambos centrais ao modelo
burocrático de ação. O primeiro é a meticulosa divisão funcional do trabalho
(enquanto adicional à – e em suas consequências distinta da – linear
graduação do poder e subordinação); e o segundo é a substituição da
responsabilidade moral pela técnica (BAUMAN, 1998. 122).
Fundamentado na recuperão de um momento passado, o procedimento
racional-buroctico sufoca a ocorrência da singularidade dialética dos instantes
presentes, impedindo-os de acontecer e produzindo pequenas porções de injustiça.
Entre o indivíduo e a justiça é interposto o procedimento burocrático, com todos os
seus ritos, uniformes, instâncias etc.: “A tentativa procedimentalizada de produção
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racionalizada da Justiça nega a verdadeira justiça e, nessa medida, gera injustiça, gera
violência, pela negação do particular, pela avidez burocrática de enquadrar o particular
no sistema totalizante” (ADORNO, 2009, p. 27).
E exatamente por essa interposição, por essa mediação, que surge a violência
decorrente da substituição da relação humana pela relação burocrática. Adorno ilustra
o tema ao se referir à obra de Kafka: “Detenção é assalto; tribunal de justiça, um ato
de violência” (ADORNO, 1998, p. 256). Pois
Figuras subalternas como os sargentos, colaboradores e porteiros exercem
uma violência desenfreada. São todos desclassificados que, na queda, foram
amparados pela coletividade organizada e tiveram permissão para
sobreviver… (ADORNO, 1998, p. 256)
A fraqueza do indivíduo que admira o produto da racionalidade é
recompensada pela sensação de inclusão no sistema e por todo o aparato que vem a
reboque com a alienação da sua responsabilidade de pensar: as queses morais
inerentemente mais complexas são substituídas por decisões técnicas que o “manual”
contempla. O fraco, despido de juízo crítico, encontra no aparato estatal organizado
espaço e conforto para os seus medos e limitações. Espaço que o torna forte, mas não
tão forte a ponto de libertá-lo, mesmo porque a sua indigência intelectual e
pusilanimidade não são suficientes para um desejo de libertação; forte o suficiente,
apenas, para que sirva de agente reprodutor de mais violência em nome da bandeira
que defende.
A violência aplicada de forma pulverizada pelos agentes da operação
burocrática é resquício da violência fundadora do próprio direito, conforme afirma
Derrida: “Acabamos de ver que, afinal, em sua origem como em seu fim, em sua
fundação e em sua conservação, o direito é inseparável da violência, imediata ou
mediata, presente ou representada” (DERRIDA, 2007, p. 112). Da mesma forma que
quando buscamos entender com maior clareza o significado de uma palavra
recorremos à sua etmologia, quando procuramos entender o significado do direito e,
por consequência, sua pretensa intenção de realizar justiça, devemos buscar na origem
de sua instauração o seu verdadeiro intento: “A venda sobre os olhos da Justiça não
significa apenas que não se deve interferir no direito, mas que ele não nasceu da
42
liberdade” (ADORNO; HORHEIMER, 1985, p. 27). Uma reflexão comprometida
sobre a origem do aparato processual burocratizado revela, sem maiores dificuldades,
que o direito não nasceu de um anseio por justiça, mas foi produzido por uma
necessidade de controle:
…uma ambigüidade demoníaca’ nessa instauração mítica do direito que é,
em seu princípio fundamental, uma potência (Macht), uma força, uma
posição de autoridade e portanto, como sugere o próprio Sorel, que
Benjamin parece aqui aprovar, um privigio dos reis, dos grandes e dos
poderosos: na origem, todo direito é um privilégio, uma prerrogativa. Nesse
momento originário e mítico, ainda não justiça distributiva, não castigo
ou pena mas somente ‘expiação’ (Sühne), mais do que
“retribuição”(DERRIDA, 2007, pp. 121-122).
Como falar em uma justiça construída e mantida por essa operação
burocrática? Uma rica ilustração para o encaminhamento racional de tal questão pode
ser encontrada em diversas obras de Kafka. Por exemplo, em O processo (KAFKA,
1976), a idiota esperança de K no processo e a sua covardia não são mais reais do que
tendemos a acreditar pelo acento expressionista do escritor?
Por isso, preferiu a segurança da solução que o curso natural das coisas tinha
de trazer e voltou ao seu quarto, sem que fosse pronunciada nenhuma outra
palavra da sua parte ou da parte dos guardas ( KAFKA, 1998, p. 14).
Tal face da literatura de Kafka é analisada por Adorno:
Como o caçula nos contos de fada, a pessoa deve tornar-se discreta e
pequena, uma vítima indefesa que não insiste no seu direito, segundo os
costumes do mundo que reproduz ininterruptamente a injustiça (ADORNO,
1998, p. 268).
Os argumentos de Bauman e Adorno são coloridos de vida de forma genial por
Kafka no seguinte trecho de O processo (KAFKA, 1976):
Nós somos apenas funcionários subalternos, que pouco ou nada percebem de
documentos de identificação e que, neste caso, não têm outra missão a não
ser a de vigiá-lo dez horas por dia. É para isso que nos pagam. No entanto,
ainda somos capazes de compreender que as altas autoridades, ao serviço das
quais estamos, antes de darem uma ordem de prisão, tiram minuciosas
informações acerca da pessoa a ser detida e dos motivos da detenção...
Assim, não possibilidades de engano. As nossas autoridades, até onde eu
43
conheço, e os meus conhecimentos não vão além das categorias mais baixas,
não são daquelas que andam atrás das culpas das pessoas, mas, como diz a
Lei, são forçadas pelos delitos a enviarem-nos a nós, os guardas. É assim a
Lei. Como poderá haver enganos?
(KAFKA, 1998, p. 14).
A fragilidade dos guardas é evidenciada por sua insegurança representada
genialmente por Kafka (1976) nas idas e vindas de sua argumentação (mesmo que
subalternos, são capazes de entender que a ordem de prisão foi precedida de uma
análise minuciosa das autoridades superiores; e essas autoridades, de novo, no limite
de sua compreensão, são movidas pela lei). É o retrato fiel da burocracia conduzida
para um desiderato escamoteado: a divisão das tarefas e das informações o permite
ao executor da ordem a possibilidade de reflexão; basta-lhe a execução técnica do que
foi determinado. Mesmo diante da violência da missão que exercem, eles pouco
sabem; ou melhor, sabem apenas o necessário para realizar o seu ofício. A passagem
acima é um retrato, também, da vida na contemporaneidade. Não apenas na burocracia
que movimenta o direito, mas na burocracia que marca todas as grandes organizações,
onde a informação é de tal maneira dividida que parece não existir de fato após
promovida a soma de todas as suas pequenas partes espalhadas em cada um dos seus
técnicos-especialistas, existindo tão-somente na cabeça de quem concebeu o
procedimento juntamente com o seu verdadeiro objetivo. Algo como uma atendente de
qualquer uma dessas companhias de telefonia que possui a exata quantidade de
informões suficientes para irritar o cliente e depois repassar a ligação para outro
técnico com a mesma vocação. E é por detrás dessas pequenas doses de violência, que
atingem obviamente também os atendentes e que a maioria das pessoas sequer tem a
sensibilidade de senti-las como violências, que se esconde um astuto mecanismo de
manutenção da situação vigente.
Assim como os procedimentos burocratizados escondem o objetivo existente
por detrás das condutas alienadas, mas tecnicamente especializadas, o conceito da
justiça produzida pelo direito pertence ao estado e não é compartilhado, sequer
entendido pelos indivíduos que compõem a sociedade. E o perigo de tal alienação foi
alertado por Adorno (http://adorno.planetaclix.pt/tadorno10.htm): “Seria preciso tratar
criticamente um conceito tão respeitável como o da razão de Estado, para citar apenas
44
um modelo: na medida em que colocamos o direito do Estado acima do de seus
integrantes, o terror já passa a estar potencialmente presente”.
* * *
Com tudo isso, defendemos três argumentos: (a) que a justiça pode apenas ser
construída na imediata emergência do instante presente, na singularidade da relação
não antecipada pelo preconceito da razão instrumental ou pelas fórmulas e regras
burocráticas; (b) que nenhum procedimento racional pode (re)construir a justiça
ausente na relação; e (c) que, além disso, a burocracia processual, na pretensa tentativa
de (re)construir justiça, acaba por promover mais violência, além daquela que
culminou com a instauração do processo.
Reforçamos que não é a proposta do presente trabalho simplesmente
desmerecer todos os constructos racionais procedimentais, nem mesmo a burocracia.
Pretendemos expor racionalmente o nosso sentimento de que o direito e a sua inerente
burocracia estão sobrecarregados de responsabilidades para as quais são inaptos e que
tal impropriedade permite que sejam utilizados como procedimento para atingimento
de finalidades diversas daquelas declaradas. Também, que a palavra justiça merece um
tratamento justo; uma verdadeira purificação, ou como diria Agamben (2007), uma
profanação, livrando-se dos parasitas e aproveitadores que fazem dela uma bandeira
mitológica para conservação de uma sociedade injusta mediante o uso da violência
institucionalizada aplicada por um direito inadequadamente utilizado, conforme
argumentaremos a seguir.
2.3 Por um tratamento justo para com o direito
O sonho secreto do capitalismo é transformar a injustiça em algo
absolutamente inquestionável (SOUZA, 1998, p. 24).
45
A reflexão sobre a burocracia processual faz pensar, no mínimo, sobre a
possibilidade de se falar em justiça no âmbito do processo judicial. Tomamos como
premissa que a única verdadeira possibilidade de ocorrência da justiça se no
momento imediato da relação (no saciamento da fome, no evitamento da morte, por
exemplo). Qualquer produto de um projeto burocrático de tentativa de (re)construção
de um instante irrecuperável não merece ser chamado de justiça.
Assim como a razão instrumental que lhe serve de fundamento, o conceito de
justiça produzido pelo direito, e em nome do qual se movimenta a burocracia estatal,
tem algo de mitológico. Com os argumentos construídos anteriormente, pretendemos
desmitologizar o conceito de direito e de justiça e revelar a verdadeira face e as
limitações do processo burocrático. A mesma ressalva que se faz com relação ao uso
do modelo de racionalidade científico-matemática que fundamenta a sociedade
contemporânea, podemos fazer com relação ao direito: assim com a matemática é uma
ferramenta adequada para resolver problemas matemáticos, o direito se afigura como
uma ferramenta adequada para a resolução de questões jurídicas. Assim como os
deuses mitológicos possuíam habilidades sobre-humanas de criar substâncias
concretas, o direito contemporâneo, produto da razão instrumental, roubou a espada
empunhada pela deusa Diké (e a sua atribuição) para, assim, fazer justiça. Como forte
evidência da correção do argumento de Adorno sobre o caráter mitológico da razão,
temos que o direito mitologizado é apresentado como capaz de solucionar questões
que literalmente fogem de sua jurisdição, criando justiça. Sob a proteção de tal poder
mitológico, que convém apenas àqueles que pretendem conservar a realidade social
injusta, o verdadeiro direito é violentado por um número cada vez maior de leis que se
anunciam capazes de resolver, por exemplo, questões sociais e econômicas, fabricando
justiça.
A sobrecarga decorrente dessa crença mitológica acaba por subverter o
procedimento jurídico-burocrático para, falsamente, tentar contemplar situações que
estão fora do seu âmbito. Quando os familiares e amigos de mais uma vítima da
violência, de qualquer espécie, vão às ruas com faixas, pedindo justiça, será que seu
pedido é realmente por justa e o direito tem alguma relão com a verdadeira
solução de tal situação? O resultado do procedimento burocrático (do direito, em
46
última análise) é capaz de responder ao clamor social por justiça? Se a relação humana
subjacente não foi justa, o produto de um procedimento instrumentalmente
racionalizado de (re)construção de um instante passado pode ser entendido como
realização do valor “justiça”?
Para complicar ainda mais a situação, a culpa apresentada como evidente,
exposta após o julgamento midiaticamente realizado pelos jornalistas juristas,
semelhante à culpa presente em O processo, clama pelo movimento da pesada
burocracia processual, o que apenas colabora ainda mais com a confusão sobre os
conceitos de direito e justiça. A injustiça presente na relação humana subjacente é
utilizada como elemento justificador da aceleração e da suposta simplificação do
processo burocrático que visa à construção, à realizão, de alguma coisa que se
convencionou chamar de justiça. Nessa medida, o processo nunca se mostra tão rápido
quanto o necesrio para que a justiça seja feita”. E tal sentimento é facilmente
compreensível quando, mediante a desmitologização do direito como deus criador da
justiça, compreendemos que o processo jamais será tão rápido a ponto de “fazer a
justiça”, pois tal fato decorre de uma impossibilidade ontológica: de um processo
racionalizado (quantidade) produzir um valor (qualidade).
Quando se acredita que o processo é o instrumento pelo qual a justiça
realmente será construída, realizada, a relativização de garantias individuais tem lugar,
os ritos processuais são encurtados, a construção de escolas perde a prioridade diante
da necessidade mais urgente da construção de presídios e a sociedade que clama por
justiça recebe mais controle estatal. O sistema se alimenta dele mesmo. Quanto mais o
direito falha em sua impossível missão de produzir justiça, tanto mais a sociedade
clama por um direito ainda maior. Novamente: como se uma questão qualitativa
pudesse ser resolvida quantitativamente.
Por isso a grande dificuldade das pessoas entenderem a “lentidão do processo”,
pois elas esperam que a decisão judicial “faça justiça”, como se houvesse um processo
racional de manufatura da justiça. Contudo, o processo cada vez mais quer-nos
parecer um caminhão de bombeiros que somente sai às ruas depois de iniciado o fogo,
parado no trânsito da hora do rush até o seu motor ferver, em ruelas semelhantes aos
47
estreitos caminhos burocráticos, enquanto seu destino inevitavelmente é consumido
pelo fogo.
Ora, a justiça, por mais inapresentável que permaneça, não espera. Ela é
aquilo que o deve esperar. Para ser direto, simples e breve, digamos isto:
uma decisão justa é sempre requerida imediatamente, de pronto, o mais
rápido possível. Ela não pode se permitir a informação infinita e buscar o
saber sem limite das condições, das regras ou dos imperativos hipotéticos
que poderiam justificá-la (DERRIDA, 2007, p. 51).
A crença da construção da justiça pelo processo burocrático se constitui,
segundo nosso entendimento, em mais um caso de inversão promovida pela razão
instrumental: a rao é pensada como sendo a condão de possibilidade para a
realização da justiça, quando, em verdade, percebe-se, numa investigação filosófica
dos constituintes efetivamente humanos da humanidade, que a justiça é a condição de
possibilidade para a realização da razão. Nesse sentido, a justiça jamais será um mero
produto da razão instrumentalizada; contudo, qualquer razão será bem-sucedida desde
que a justiça figure dentre seus pressupostos.
O ser humano contemporâneo, atribulado pelo frenetismo, está inserto em um
contexto social borbulhante, no qual tudo se movimenta, mas nada realmente
acontece. E esta velocidade acelerada da vida choca-se diretamente com a lentidão dos
processos burocráticos, concebidos por uma racionalidade pretensiosa no sentido do
estabelecimento de procedimentos, anunciados teoricamente como capazes de
recuperar fatos passados e produzir resultados sociais futuros, mantidos pela ausência
de possibilidade e capacidade crítica da maioria, mas que, em verdade, mostram-se
procedimentos esquizofrênicos e inaptos para realizar seus objetivos.
O choque entre a emergência do instante irrecuperável e a lentidão do processo
racionalmente concebido é inevitável e com graves consequências às verdadeiras e
limitadas possibilidades do direito. Mais do que isso: com graves consequências à
preservação e à digna manutenção da vida. Representantes casuais da massa alienada,
empurrados pela sensação de injustiça, exigem indenização por todo e qualquer ato
que os tire momentaneamente de sua vida profissional, clamando por maior celeridade
nos processos judiciais e relativização das garantias individuais, para prender mais
rapidamente suspeitos, visando a uma pretensa realização da justiça, como se o tempo
48
perdido fosse indenizável com dinheiro e como se a justiça fosse passível de
realização no processo pela racionalidade instrumentalizada. Honra, imagem,
tranquilidade, e, inclusive, vida, são valores tratados como mercadorias mensuráveis e
indenizáveis. Assim como em Kafka existe a idiota esperança no sistema, na
contemporaneidade, há a idiota esperança na possibilidade de recuperação de instantes
perdidos pelo processo, pela indenização.
Desse modo, no contexto complexo da contemporaneidade, cada vez mais os
processos burocráticos se mostram como instrumentos inaptos para a construção ou
realização da justiça e pela compreensão das verdadeiras causas das limitações da
legislação e do processo passa um tratamento justo com o direito, pois enquanto os
olhos ficam voltados para a capacidade mitológica do direito, as condutas mais graves,
as realmente graves, entendemos, não são alcançáveis pelo processo, pelo direito. Com
toda a flexibilidade e relativização “conquistadas”, os crimes ambientais, por
exemplo, são elucidados, mas os verdadeiros culpados, de uma forma ou de outra, se
protegem na pesada burocracia. Pior do que isso: por mais rápido que seja o processo
e por mais pesada que seja a pena, os danos causados na emergência do instante não
são passíveis de recuperação. O dinheiro, abstração humana, que é resignadamente
pago pelas empresas poluidoras como indenização por um dano irreversível ao
ambiente revela, mais do que em qualquer outro momento, sua verdadeira face: mero
papel. Qual o tipo de sociedade aceita uma justiça que determina que a destruição de
sua casa seja indenizada com papel e o entende que o mesmo poder de abstração
que criou o vil metal não vai recriar a natureza destruída?
Tudo isso não nos quer parecer mera casualidade. Por um lado, a origem do
direito está fortemente arraigada à conservação de uma condição dominante. O direito
foi criado pela violência, enquanto força, e se mantém pela violência espalhada
homeopaticamente nas diversas estruturas burocratizadas existentes. Por outro lado, as
pessoas são empurradas pela sensação de falta de tempo na contemporaneidade. O dia
que começa com o despertador, tem hora marcada para todas as atividades. Os
encontros acontecem com hora marcada e com o conteúdo previamente definido.
Nesse contexto, a ocorrência de um instante original tem sua possibilidade sufocada, e
substituída pela ditadura do regio e dos compromissos externos. Ninguém tem
49
tempo para se preocupar com nada além do provimento das necessidades reais
materiais de sustento próprio e da sua família e da realização das necessidades criadas
no mercado de consumo. Um direito viciado em suas origem e conservação
acompanhado da esterilização das relações pela necessidade de provimento das mais
básicas necessidades de sobrevivência é a fórmula perfeita para a manutenção da
dominação da maioria pelos grandes poderios econômicos.
E a farsa é tão perfeitamente concebida que a maioria dominada não cansa de
clamar por mais direito. Quanto mais injustiça há, mais direito pede a maioria
dominada. E quanto mais direito se produz, mais eficaz se torna a dominação, menos
espaço resta para a vida não regulada pelo estado, única oportunidade de ocorrência da
verdadeira justiça a ética fundamental das relações verdadeiras entre humanos e
entre esses e o mundo em que vivem – que evita o inútil acionamento do direito.
Assim, nessa lógica, produz-se não uma burocracia para a sociedade, mas
também, uma sociedade para essa burocracia; não só se produz uma
tecnocracia para o povo, mas também se constrói um povo para essa
tecnocracia; não se produz um objeto para o sujeito, mas também,
segundo a frase de Marx à qual hoje se podem dar prolongamentos novos e
múltiplos, “se produz um sujeito para o objeto”. (MORIN, 1998, p. 164).
O mito de uma justiça produzida pelo direito perdurará enquanto os indivíduos
que formam essa caricatura de sociedade permanecerem separados uns dos outros e
alienados de si mesmos pela fulminante e inapelável necessidade impositiva da
dependência e submissão de sua sobrevivência ao dinheiro, elemento abstrato
relativizador do caráter ético que deveria imperar nas relações humanas. E nessa luta
pela sobrevivência, a técnica se apresenta como o caminho a ser percorrido em busca
do dinheiro que garanti a sobrevivência. Aos indivíduos homogeneizados pela
necessidade do dinheiro conquistável pela técnica, resta apenas a conveniência de uma
justiça tão artificial, opaca e sem graça quanto o conceito de pôr do sol quando
comparado à experiência real, impossível de ser suficientemente representada, de um
entardecer.
Despido o direito de seu caráter mitológico e apresentadas as limitações de
suas verdadeiras possibilidades, o encaminhamento para a questão da justiça, objeto
do próximo capítulo, passa muito mais pela valorização do instante presente como
50
sendo o momento do estabelecimento da verdadeira dialética com o encontro real,
legítimo tribunal de justiça.
51
3 O INSTANTE DA EMERGÊNCIA DA JUSTIÇA E A DIALÉTICA
NEGATIVA
Fazer o negativo é o nosso dever: o positivo já nos foi dado
(ADORNO, 2009, p. 269).
3.1 O instante da emergência da justiça
“É sempre tarde demais para as horas do grande regio blico; ele sabe
que o tempo que passa não é recuperável, e cria a diminuta defasagem entre
a hora que mostra e a que talvez gostasse de indicar. É neste interstício que
se poderia incubar um tempo pleno, que não servisse às demiurgias
humanas. Neste tempo infinitamente pequeno, é possível que a realidade
pudesse coincidir consigo mesma, apesar dos homens. Mas o relógio não
pára” (SOUZA, 1998, p. 63).
A vivência não-mediada do real é interjeitada. As relações não são
estabelecidas: “As pessoas não se encontram realmente, e o mundo contemporâneo
não as quer encontradas” (SOUZA, 1998, p. 35). As decisões são esvaziadas e o
encontro não acontece, pois todas as relações são mediadas: o sentido que deveria
nascer do encontro, vem embutido em cada palavra, em cada cargo, em cada papel
desempenhado. No dizer de Adorno e Horkheimer:
A decisão que o indivíduo deve tomar em cada situação não precisa mais
resultar de uma dolorosa dialética interna da consciência moral, da
autoconservação e das pulsões. Para as pessoas na esfera profissional, as
decisões são tomadas pela hierarquia que vai das associações até a
administração nacional; na esfera privada, pelo esquema da cultura de massa,
que desapropria seus consumidores forçados de seus últimos impulsos
internos. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 167).
O projeto esclarecedor antecipa o momento presente, retirando do sujeito
domesticado desde a sua formação a possibilidade do estabelecimento de uma relação
dialética com a realidade existente apenas no momento presente. O instante presente
não acontece verdadeiramente; ele é afirmado. O momento que, por excelência, é
52
irrepetível e deveria ser marcado pela abertura – possibilidade de atribuição de sentido
para a construção da justiça com o próprio momento real, é esvaziado pela sua
previsibilidade e o seu sujeito transformado em mero coadjuvante. Pouco resta de
verdadeiramente humano no encontro que se torna a subsunção da realidade à
racionalidade pensada, restando uma clara sensação de sufocamento do instante
real.
A ilustração de tal argumento pode ser encontrada na angustiante leitura da
obra de Kafka, na qual todo e cada instante é sufocantemente completo de modo a não
acontecer verdadeiramente. As relações que deveriam acontecer no instante presente
ou são antecipadas (na obra O Processo, pela certeza da culpa) ou são deixadas para o
final de um procedimento burocrático labiríntico que, por vezes até termina, mas
nunca chega ao seu verdadeiro desenlace. O instante da relação não é vivido, a relação
nunca se estabelece. A vida que deveria se realizar a cada nova respiração, a cada nova
relação, a cada novo instante, bate de frente com uma razão já pensada e
violentamente afirmada, ficando suspensa no ar. Como diz Adorno:
Os gestos perpetuados são em Kafka instantes congelados…Tudo o que se
equilibra no auge do instante, como um cavalo empinado sobre as patas
traseiras, é fotografado como se a cena devesse ser preservada para sempre.
(ADORNO, 1998, p. 248).
Graças à engenhosa tecnicidade da razão instrumentalizada que serviu de base
para a estruturação da sociedade contemporânea, o real quer parecer mais abstrato do
que a abstração que tenta palidamente representá-lo, embora esteja cada vez mais
distante de qualquer realidade que o sustente. Como exemplo do abstrato
aparentemente mais real do que a própria realidade concreta, temos as graves
consequências recentemente sentidas em decorrência da crise financeira internacional
causada pelo aspecto cada vez mais especulativo e menos real do chamado dinheiro
fiat
4
, caracterizado por Searle: O dinheiro fiat só é dinheiro em virtude do fato de que
algum agente poderoso, algum fiat, declarou que era dinheiro (SEARLE, 1998). Uma
abstração tão simples capaz de gerar tanta miséria real. Consequências violentamente
4
Sobre o tema: http://www.zeitgeistmovie.com/add_portug.htm.
53
sentidas no instante presente da realidade humana, como a privação das necessidades
mais básicas do ser humano (a falta de comida e de moradia), foram explicadas
tecnicamente pelo dinheiro que, mesmo nunca tendo sido mais do que uma
conveniente abstração, é cada vez menos real. E a prova absoluta da submissão ao
sistema capitalista foi novamente trazida à tona quando a solução para a crise foi o
fomento a um aumento do consumo. A lógica contemporânea da criação de dinheiro a
partir do endividamento foi o caminho que gerou mais especulação para reequilibrar o
fictício mercado globalizado.
Na ilustração da obra O Processo (KAFKA, 1976), qualquer possibilidade de
estabelecimento de uma relação dialética com o real é completamente substituída pela
imposição violenta da burocracia processual. um choque violento entre a certeza
pelo sistema na culpa que ou sequer existe, mas que ninguém, de fato, conhece, em
função da pesada burocracia, e sua inerente especializão de tarefas. A pesada
burocracia contrasta com a esperança idiota
5
de K na declaração de sua inocência, e,
sobretudo, no sistema, confiança que o acompanha durante quase toda a obra: “As
poucas palavras que eu trocar com alguma pessoa do meu nível tornarão tudo
incomparavelmente mais claro do que as conversas mais longas com estes homens”
(KAFKA, 1976, p. 13). As conversas que K mantém com os guardas não são capazes
de clarear os fatos, pois, em verdade, sequer podem ser chamadas de conversas. Os
argumentos de K nunca são diretamente respondidos; eles são, um a um, apenas
barrados por afirmações, produtos de uma racionalidade que afirma e que não es
aberta para o estabelecimento da relação, da conversa, do real diálogo.
A racionalidade insistentemente repetida perde seu estatuto racional dialético
tranformando-se em mera crença. Assim como em Kafka, especialmente em O
processo e na Colônia penal, os funcionários da burocracia parecem encantados pela
beleza e perfeição do projeto que defendem, mesmo sem saber muito bem a razão de
tal admiração, a massa controlada na contemporaneidade crê nos produtos da
racionalidade, que, despidos da devida dialética, se apresentam muito mais como
mitos, consagrados pela repetição, do que como resultados do encontro com a
5
Cf. SCHÜLER, Donaldo, in http://www.schulers.com/donaldo/herac.htm, copyright 1996, o idiota, em sentido
etimológico, é quem não sai de si.
54
realidade concreta. Embora tal fato não seja declarado, a crença no mito dos produtos
da razão pensada deriva de uma relação de conveniência. Desde muito cedo, a
postura crítica é reprimida. Quem se comporta como a massa é recompensado pela
inclusão no sistema e pela facilitação do pensamento. Como diz Adorno, o doloroso
processo dialético é poupado. Em nosso sentir, a obra de Kafka representa tão bem a
contemporaneidade, porque o autor não permite ao leitor qualquer abertura para o
estabelecimento de uma relação com a obra. As coisas o como são. Na absoluta
completude da unidade atribuída antes do estabelecimento da relação do leitor com o
texto, tal qual a contemporaneidade nos quer parecer. Márcio Seligmann-Silva bem
observa tal traço:
Na obra kafkiana, a razão anestesiada por si mesma onipresente impede a
prática da “crítica” no seu sentido tradicional. No mundo dos personagens de
Kafka como para o herói das epopéias com sua astúcia não existe crítica,
mas apenas a racionalização das perdas e ganhos. Como Benjamin observou
com uma pitada de ironia, “de todos os seres de Kafka, são os animais os que
mais refletem”. O leitor é conclamado a julgar a sociedade tal como ela é
refletida e revelada em seus textos. O escândalo da ausência de crítica pode,
eventualmente, gerar no leitor uma reflexão sobre a sua própria situação.
Como escreveu Adorno, “em Kafka, o fato de a forma ser o lugar do
conteúdo social deve ser concretizado na linguagem” (SELIGMANN-SILVA,
2009, p. 123).
Reforçamos, conquanto tal ressalva seja argumentada ao longo de todo o
trabalho, que não se está simplesmente condenando a razão; pelo contrário, está-se
enaltecendo o uso de uma razão autêntica, ou seja, crítica, pois tal atividade se
encontra exatamente no espaço que existe entre a singularidade de cada novo instante
e a carga de preconceitos que cada um carrega consigo. O que aqui está sendo
questionado é o sufocamento da dialética a ser exercida na singularidade do instante
presente pela comodidade da utilização de uma pálida racionalidade, a qual somente
poderia ser colorida em cada nova relação. Essa interjeição no estabelecimento das
relações é diretamente instrumentalizada por um modelo educacional, pensado e
fundamentado nessa mesma ciência, que se mostra muito mais mecânico e morto do
que verdadeiramente vivo.
55
O pensamento desviante será punido com a diminuição da nota. Nesse sistema,
o professor utiliza-se de sua hierarquia para neutralizar e classificar o conhecimento.
6
Essa neutralização do indivíduo é ilustrada por Adorno e Horkheimer, no texto Sobre
a gênese da burrice, no qual os autores comparam o início da vida intelectual à antena
do caracol, delicado recurso utilizado pelo molusco para conhecer o mundo, que se
retrai diante de qualquer obstáculo, aumentando o tempo para a próxima tentativa a
cada novo contato frustrado.
Esse primeiro olhar tateante é sempre fácil de dobrar, ele tem por trás de si a
boa vontade, a frágil esperança, mas nenhuma energia constante. Tendo sido
definitivamente afugentado da direção que queria tomar, o animal torna-se
tímido e burro (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 210).
Nesse sentido, a relação é permeada por medo e esvaziada, sequer podendo ser
qualificada como verdadeiramente humana, quanto mais como uma relação justa. A
zona de contato das pessoas entre elas e com o meio é sempre restrita e mediada pelos
produtos de uma racionalidade pensada, sem uma abertura verdadeira, sem con-
versa, no sentido etmológico da palavra, indivíduos que não se permitem darem voltas
juntos. O grande mercado no qual foi transformada a sociedade contemporânea não
deixa espaços para o verdadeiro encontro entre as pessoas. Todos são concorrentes
brigando por uma melhor oportunidade de sobrevivência. Tal fato é extremamente
pernicioso, na medida em que não uma verdadeira sociedade. Há, sim, indivíduos
amontoados, objetivando o conceito de massa, que movimentam-se de acordo com as
suas conveniência e oportunidade. Tal modelo social aumenta a fragilidade do
indivíduo e facilita a sua manipulação, conforme já foi apontado por Adorno:
O que contradiz, o impulso grupal da chamada lonely crowd, da massa
solitária, na verdade constitui uma reação, um enturmar-se de pessoas frias
que não suportam a própria frieza mas nada podem fazer para alterá-la. Hoje
em dia qualquer pessoa, sem exceção, se sente mal-amada, porque cada um é
deficiente na capacidade de amar. A incapacidade para a identificação foi
sem dúvida a condição psicológica mais importante para tornar possível algo
6
Nesse sentido, cabe citar a obra de Michel Foucault na terceira parte (OS Corpos Dóceis), capítulo I, no ponto o
Exame, in Vigiar e punir: nascimento da prisão, Trad. Lígia M. Pondé Vassallo, Petrópolis: Vozes, 1987, p. 164: “O
exame combina as técnicas de hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma
vigilância que permite qualificar”.
56
como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e
inofensivas. (http://adorno.planetaclix.pt/tadorno10.htm)
O indivíduo contemporâneo sofre com a solidão. Não a solidão de quem não se
relaciona, pois há algo como uma relação; mas a solidão de quem não se relaciona
verdadeiramente, ou seja, para quem a relação não é o principal de uma “vida de
relação”. E a (de)formação da personalidade desse indivíduo solitário é talhada desde
a sua mais básica escolarização, por um modelo de ensino que privilegia a avaliação
da capacidade técnica do estudante e o premia com a nota. Desde muito cedo, a
capacidade de entendimento dos conceitos que formam a racionalidade vencedora que
conquistou o espaço nos livros à custa de muita dominação é tratada como um
requisito para a entrada no necessário e valorizado mercado profissional. O modelo de
ensino vigente, coerente com o mercado que alimenta, gera mais o-de-obra para a
manutenção da mesma situação. Nesse sistema, a originalidade e a singularidade são
sufocadas e o indivíduo é enquadrado na forma de pensar do mercado e para o
mercado.
O mais maligno de todo esse enorme sistema, que, de tão grande e complexo,
sequer pode ser vislumbrado pela maioria justificadamente preocupada demais com a
situão imediatamente à sua frente, é a prodão de pessoas como efetivamente
produtos da mesma racionalidade que o sustenta. Esse “produto humano” é criado e
controlado de acordo com a necessidade do mercado e eficientemente esterilizado pela
necessidade do dinheiro como uma única ferramenta capaz de garantir sua
sobrevivência.
Partindo da compreensão das seguintes premissas simples, mas perversas, de
que: (a) a sobrevivência humana, que somente se (re)afirma no instante presente,
depende do dinheiro; (b) tal recurso somente pode ser obtido no mercado concebido e
estruturado pela racionalidade pensada e extremamente técnica; (c) que começa a
ser ensinada desde os bancos escolares; avançaremos para a questão específica da
justiça e do sentido que tal palavra adquiriu nesse contexto.
Antes, contudo, gostaríamos de sublinhar a referida vinculação existente entre
sobrevivência e dinheiro. Concordando com a ideia fundamental de que a vida, e todas
as estruturas artificiais criadas a partir de seres vivos, se move no sentido de sua
57
conservação, parece-nos razoável aceitar que, nesse contexto social, a vida se
movimenta em busca de dinheiro, pelo menos, como regra.
Assim, a partir dessa reflexão sobre o direito burocratizado, pretendemos
construir o nosso argumento de como, e quanto, o direito é contaminado pela lógica da
possibilidade da razão fabricar tudo e de como esse mecanismo racional sufoca a
capacidade de estabelecimento de relações dialéticas, em última análise, interjeitando
o acontecimento do instante presente do contato realmente humano.
3.2 A dialética negativa
Vivenciamos o mito da realização da justiça pelo direito. A oportunidade de
economia na necessidade de pensar é apropriada desesperadamente pelo indivíduo
contemporâneo; pré-ocupado demais em garantir o seu sustento e todo o dinheiro
possível para adquirir o maior número possível de bugigangas tecnológicas inúteis, ele
não tem tempo para se preocupar com a justiça, a qual é comodamente terceirizada ao
estado, juntamente com a sua responsabilidade de exercício crítico. A troca é simples:
o indivíduo paga todos os seus tributos, ao menos aqueles que não consegue sonegar,
para ter a garantia de que o aparato estatal será movimentado caso sofra alguma
injustiça. De fato, ele não acredita verdadeiramente na capacidade de o estado
produzir justiça, mas prefere a crença no mito e a frágil, mas confortável, sensação de
segurança proveniente de seu credo à responsabilidade que demandaria um
comportamento justotico. Enquanto seu dinheiro é suficiente para deslocar-se
sempre o mais longe possível da violência real decorrente da ausência de justiça no
instante presente, a crença lhe serve convenientemente. Contudo, ao primeiro choque
de realidade provocado pela injustiça viabilizada pelo próprio direito, o indivíduo
exige do estado a sua vingança, devidamente paga pelos seus tributos, sob o manto
mitológico de uma justiça que não passa disso: mero mito.
O que torna esse sistema suportável é o enfraquecimento do humano ocorrido
desde a infância e que perdura durante toda a vida mediante a aplicação de pequenas
58
doses de violência pela própria massa controlada. Os fracos, aqueles que se inserem
no sistema e confiam em seus mitos, se fortalecem na violência institucionalizada
pulverizada nas mais diversas instâncias do mundo burocratizado. Quem ousa resistir
ao mito e criticar a opacidade de uma razão autolegitimadora e desvinculada de uma
real necessidade de justiça sofre com a pesada, mas dispersa, violência reservada para
aqueles que não têm um lugar no perfeito mercado de consumo que se tornou a
sociedade contemporânea. Essa veneração dos fracos aos produtos míticos da
racionalidade que os sustenta pode ser bem ilustrada nas obras de Kafka, por exemplo,
no caso dos guardas e na sua crença no procedimento burocrático em O processo; e
dos soldados e sua admiração irrestrita à máquina em Na colônia penal. A suposta
perfeição do produto da racionalidade, por menos evidente que seja, encontra na
fraqueza de seus agentes o terreno fértil para sua consagração. O mito racional acolhe
os fracos que, em troca, emprestam sua devoção e suas armas contra todos aqueles
que ousam duvidar de sua grandiosidade. A única alternativa que nos resta é acreditar
no enfraquecimento do humano que se mostra esterilizado diante de tanta injustiça
presente do dia-a-dia. Se não fosse pelo enfraquecimento do humano em sua própria
autoconsciência reflexiva do que verdadeiramente o constitui, como poderíamos
entender o fato de que a massa controlada aceita o império do capital mantido em
detrimento do estado de miserabilidade que o homem e a natureza atravessam? Na
sociedade administrada, quem realiza a atividade crítica é tachado dos mais diversos
adjetivos desabonatórios pela voz do falsete de opinião pública, a qual é controlada
pela mídia patrocinada pelos mesmos interesses que defende. O sistema é tão perfeito
quanto a máquina que não comete erros na Colônia penal, mesmo com tantas manchas
de sangue e marcas das injustiças produzidas durante séculos de violência
desenfreada.
A sociedade foi planejada. Nascemos e vivemos em uma realidade tão pronta e
bem pensada quanto as obras de Kafka, nas quais não espaço para o
estabelecimento de uma relação dialética com o leitor. Simplesmente escolher uma
profissão, seja ela qual for, pois em verdade todas elas são cada vez mais iguais em
termos de tecnicidade e ausência de margem para real capacidade de decisão, e entrar
no mercado (de trabalho) para garantir o sustento próprio é aceitar a realidade que nos
59
foi dada como se ela fosse boa o suficiente ou ter a ingenuidade de acreditar na
possibilidade de mudança desde o interior do sistema. Por outro lado, acreditar que
existe uma fórmula mágica capaz de modificar a sociedade injusta é incorrer no
mesmo erro e substituir um mito pelo outro. Resta, apenas, a resistência intelectual aos
produtos da racionalidade instrumentalizada pelo exercício da dialética desprovida de
algum télos mitológico intrínseco sua plena realização que pode servir de
mecanismo de transformação da realidade.
E, nesse ponto, faz-se necessário fixar que a dialética negativa é tautologia,
conforme Adorno afirma claramente na Dialética negativa. Com efeito, a origem
etmológica da palavra dialética conduz a uma ideia de diálogo, debate, discussão
7
.
Cogitar a possibilidade de uma dialética positiva seria negar o fato de que o
estabelecimento da dialética o prescinde do elemento dual. Diante das estruturas
racionais apresentadas como mito, o trabalho dialético necessariamente deve ser
negativo: uma resistência da verdadeira razão ancorada na realidade contra a
opacidade da racionalidade já pensada.
Pensar é, em si, antes de todo e qualquer conteúdo particular, negar, é
resistir ao que lhe é imposto; o pensamento herdou esse traço da relação do
trabalho com seu material, com seu arquétipo. Se hoje mais do que nunca a
ideologia incita o pensamento à positividade, ela registra astutamente o fato
de que justamente essa positividade é contrária ao pensamento e de que se
carece do encorajamento amistoso da autoridade social para habituá-lo à
positividade (ADORNO, 2009, p. 25).
Com efeito, a racionalidade do homem é uma qualidade que só se sustenta pelo
constante exercício crítico, tão inacabado quanto a própria humanidade do ser
humano, sempre a (se) construir. Rao pensada é repetão automática e não
racionalidade crítica. Repetição é a maneira pela qual todos os mitos têm se
conservado na consciência coletiva. Interessante perceber que tanto o mito quanto o
pensamento reificado legitimam-se e conservam-se pela repetição. Isso quer dizer que
ambos foram, em algum momento, objeto da criação do pensamento de uma mente
racional. E neste ponto se encontra, acreditamos, a acusação de Adorno contra o
7
O termo dialética, de origem grega, é composto de dia (troca através de) e lekticós (apto à palavra) e tem a mesma
raiz de diálogo: troca de palavras.
60
pensamento reificado, que se afigura como a importância central da negatividade da
razão: a razão é um exercício único e não passível de uma afirmação descolada da
materialidade do objeto com o qual se relaciona. O mecanismo humano de defesa
tanto contra o mito quanto contra a razão instrumentalizada, ambos sustentados pela
mera repetição, é a dialética negativa.
Enquanto a Dialética do esclarecimento pode ser considerada como uma
manifestação da teoria crítica sobre a crescente racionalização do mundo, a Dialética
negativa é uma resposta pessoal de Adorno, de certa forma implicitamente presente
em alguns momentos da obra escrita em conjunto com Horkheimer, calcada em seu
materialismo não dogmático e no respeito ao objeto que marca seu pensamento
filosófico. E, pelo entendimento da dialética negativa de Adorno, é possível
compreender o argumento filosófico que perpassa todo o seu pensamento
anunciadamente fragmentado. A dialética de Adorno se opõe à tradição filosófica na
medida em que não se trata de um sistema dialético. Os sistemas filosóficos
tradicionais pretendiam compreender a totalidade do real pela elaboração de um
sistema que abarcasse a integralidade do real, privilegiando a posição do sujeito em
detrimento do objeto. O materialismo não dogmático de Adorno, que marca sua
dialética, jamais considera o objeto como totalmente aprendido pelo sujeito; na
filosofia de Adorno o que escapa ao sujeito é que lhe caracteriza de modo singular.
Conforme referido, todo o nosso contexto foi pensado. O estado no qual
vivemos, os sistemas e as estruturas dos procedimentos legislativos e judiciais que
supostamente deveriam existir para assegurar à sociedade essa mitogica justiça
decorrente do processo burocrático. Tudo isso nos foi dado desde antes do nosso
próprio nascimento. A democracia decorrente desse estado e o tímido direito ao voto
são mitos um pouco mais elaborados, mas que de nada servem na resistência por uma
sociedade justa. Algo semelhante à conclusão do interessante exemplo de Chalmers
8
sobre os motivos pelos quais a ciência rumava por linhas de pesquisa, na maior parte
das vezes, pouco interessantes para a sociedade:
8
CHALMERS, A. A fabricação da ciência. São Paulo: UNESP, 1994.
61
Num sábado, pouco antes do Natal, meu pai foi enviado em uma expedição
de compras natalinas, e eu, com uns cinco anos de idade, deveria
acompanhá-lo. Na hora, meu pai não gostou muito da idéia e das
responsabilidades dessas compras, e por isso o clima estava tenso. Um de
seus deveres era comprar um presente para mim, e ele orquestrou esta
compra da seguinte maneira: levou-me até um determinado balcão de
brinquedos na Woolworth, onde estava exposta uma meia dúzia de artigos,
todos com preço de dois xelins, e me convidou a escolher. Com certa
consternação, vi-me diante daquelas opções sem graça até que, pressionado
para tomar uma decisão, acabei escolhendo um trenzinho de brinquedo meio
bobo. Voltamos para casa, cumprida a miso de meu pai e radicalmente
revisadas as minhas estimativas sobre os méritos daquela festiva ocasião.
Uma das diversas perguntas levantadas por minha mãe a respeito da sensatez
das diversas compras concentrava-se na satisfação que eu teria com meu
presente. “Foi ele que escolheu”, respondeu prontamente meu pai. Minhas
faculdades racionais não estavam suficientemente desenvolvidas para que eu
pudesse articular a maneira como havia sido logrado, mas é claro que sabia
que realmente isso acontecera. Talvez naquele momento tenha entrado em
jogo algum impulso edipiano que me empurrou na direção de uma carreira
na filosofia. De qualquer maneira, eu gostaria de apresentar a moral que
tirei da história: quando as pessoas têm de fazer escolhas, todos os
determinantes mais importantes já ocorreram.(sem grifo no original-cap. 8)
Do mesmo modo ocorre com a nossa vida em sociedade. A falsa sensação de
democracia e da possibilidade de escolha pelo direito ao voto, por exemplo, não
passam de uma ilusão de capacidade de decisão, pois quando somos convidados a
decidir todas as decisões realmente importantes foram tomadas. E a consciência
disso é o primeiro passo para o exercício da verdadeira razão, de uma razão que não
esquece das suas circunstâncias, objetivo de Adorno nas palavras de Ricardo Timm de
Souza:
Este é o móvel fundamental do pensamento de Adorno: o pensamento que
não esquece seus próprios condicionamentos, sua história, seus limites, suas
origens e motivação originais, quase obsessivamente fixado em seus
próprios condicionantes, e que não suporta nenhum tipo de sublimação
conciliatória em um todo racional, em algum tipo de Totalidade (SOUZA,
2004, p. 96).
Toda a ação social se move dentro dessa possibilidade restrita de liberdade.
Essa pálida representação da liberdade é suficiente para os fracos que se inserem no
sistema em busca de sua ínfima e ilusório parcela, sem se aperceberem do fato de que
são como ratos de laboratório em uma daquelas esteiras construídas para testar os
62
efeitos dos medicamentos humanos: correndo, sem sair do lugar, em busca de uma
migalha, enquanto os verdadeiros propósitos de seu esforço sequer passam pela sua
limitada consciência. E, mesmo que lhes fosse alcançável o objetivo a que servem, a
migalha continuaria sendo mais conveniente do que a decisão de resistir.
O direito é o mecanismo mais caro de manutenção dessa dominação, pois é ele
que diretamente estabelece as regras e as interpreta. E a eficiência da dominação
exercida pelo direito se revela quando pensamos que quanto mais direito e mais
dominação temos, mais a sociedade alienada clama por direito, repetiremos mais uma
vez: como se mais direito fosse capaz de gerar mais justiça. Como se toda a injustiça
material e social pudessem ser apagadas por um processo racional abstrato. Crença
criada, fomentada e mantida por um gigantesco aparato de mercado de esvaziamento
das mais diversas responsabilidades antes exercitadas pelo indivíduo. Com efeito,
acreditamos que exista um nefasto efeito nas ditas comodidades da vida
contemporânea. Por detrás da comida pronta, do computador que concentra e facilita
tantas tarefas antes realizadas diretamente pelo indivíduo, do veículo cada vez dotado
de um maior número de funcionalidades, o ser humano deixa de se relacionar com a
realidade e com os outros, em algo que se assemelha a uma vida de laboratório. Por
mais que os defensores desse modo de vida exaltem seus supostos benecios, não
conseguimos vislumbrar a humanidade por detrás de tão pesada racionalidade pronta;
autêntico mito. Temos dificuldades de acreditar nas possibilidades de relacionamento
saudável desta nova geração tecnológica com a natureza. Os indivíduos cada vez mais
se fecham nos produtos de sua própria racionalidade, ignorando a riqueza da natureza
à sua volta. Disso resulta um indivíduo passivo, mero espectador e expectador da
realidade, que não participa ativamente da sua própria vida. Nesse terreno de
passividade, não diatica: há positividade, o que refoa a necessidade de
fazermos o negativo.
Para um indivíduo passivo, que tem preguiça de, por exemplo,
verdadeiramente preparar uma refeição, o agir ético-justo se afigura como uma
responsabilidade extremamente pesada. A preguiça mental, muitas vezes decorrente
do esgotamento do trabalho extenuante, não é compatível com o necessário exercício
dialético. A terceirização da responsabilidade, por essência, pessoal e intransferível de
63
um comportamento ético-justo ao estado decorre da redução do tempo para o exercício
da humanidade do humano à sua necessidade de sobrevivência, condicionada à sua
inclusão no mercado para a obtenção do dinheiro capaz de garantir o seu sustento.
Nesse contexto, impera a conveniência da pálida justiça produzida pelo estado.
Contudo, é pela tomada da verdadeira consciência e do exercício responsável
do momento presente que o ser humano pode encontrar a sua realização e a verdadeira
justiça, o seu instante. Pensando na questão dessa maneira, o exercício da dialética (da
crítica) no estabelecimento das relações propiciaria a possibilidade de se fazer justiça
com o instante presente. No dizer de Agamben, cumpre-nos profanar. No contexto do
presente trabalho, profanar mantém seu significado histórico-etimológico, sendo
perfeitamente entendido como o ato de vociferar contra os deuses: no exercício
dialético da razão ancorada na realidade concreta em busca da verdadeira justiça
devemos profanar o deus mitológico do direito. Mais do que isso, na
contemporaneidade, podemos interpretar profanar como movimento de resistência
contra as crenças e os mitos, contra a burocracia técnica do estado. A profanação de
Agamben se afigura como um momento de dialética, de crítica, contra o mito da
justiça fabricada pelo direito, visando à superação da crença no aspecto mítico do
direito. Segundo Agamben:
Um dia a humanidade brincará com o direito, como as crianças brincam com
os objetos fora de uso, não para devolvê-los a seu uso canônico e, sim, para
libertá-los definitivamente dele. O que se encontra depois do direito não é
um valor de uso mais próprio e original e que precederia o direito, mas um
novo uso, que nasce depois dele. Também o uso, que se contaminou com
o direito, deve ser libertado de seu próprio valor. Essa libertação é a tarefa
do estudo, ou do jogo. E esse jogo estudioso é a passagem que permite ter
acesso àquela justiça que um fragmento póstumo de Benjamin define como
um estado do mundo em que este aparece como um bem absolutamente não
pasvel de ser apropriado ou submetido à ordem jurídica (AGAMBEN,
2004, p. 98).
E exatamente pelo fato de que nem o mundo nem a justiça são passíveis de
submissão ao direito, ou à ordem jurídica, que a responsabilidade é de cada indivíduo
em realizar a crítica. Quanto mais emancipados, valendo-se de expressão de Adorno,
forem os indivíduos, menos estado, menos direito e menos violência, serão
necessários; pensamento ilustrado pelo pensamento de Henry Thoreau:
64
Eu aceito com entusiasmo o lema que afirma: “O melhor governo é aquele
que menos governa”; e gostaria de vê-lo posto em prática de forma
sistemática. Uma vez posto em prática, ele acabaria resultando em algo que
também acredito: ‘O melhor governo é aquele que não governa’; e quando
os homens estiverem preparados, será exatamente este o tipo de governo que
irão ter (THOREAU, 1991, p. 5).
Entendemos pela possibilidade de articular o pensamento do autor da célebre
obra Desobediência civil, quando se refere a homens preparados, com o que Adorno se
referia à emancipação, conforme defenderemos na parte final do presente trabalho.
Nesse intento, com essas ferramentas e partindo de uma noção de justiça como sendo
possível apenas no instante presente, antes da necessidade da instauração do processo
burocrático, a sala de aula se apresenta muito mais como sendo o palco da justiça do
que os tribunais e fóruns.
65
REFLEXÕES FINAIS
O encaminhamento do presente trabalho não poderia deixar de passar pela
retomada da questão lançada ainda nas considerações iniciais: em que pese a
inquestionável realidade social injusta, como ignorar as conquistas atribuídas ao
modelo de racionalidade vigente?
É evidente, e esperamos que isso tenha ficado claro ao longo de nossa
argumentação, que não se trata de ignorar todos os produtos da racionalidade vigente.
Contudo, não conseguimos compartilhar com a passividade da maioria dos incluídos
no mercado de consumo no qual foi transformada a nossa sociedade em exaltar os
benefícios de uma medicina que atende apenas uma minoria, enquanto a dura
realidade da imensa massa é de não ter acesso aos cuidados médicos mais
fundamentais. A racionalidade que merece ser objeto de orgulho não é aquela capaz de
projetar e executar sofisticados recursos tecnológicos, mas que, ao mesmo tempo,
seleciona e mantém a exploração de grande parte da sociedade; a racionalidade que
mereceria ser homenageada, entendemos, é aquela que, pode até não ser tão vistosa,
mas é capaz de garantir a todos os indivíduos as condições materiais necessárias para
o exercício da verdadeira dialética, única possibilidade de evitamento de um direito
que, como afirmamos diversas vezes, fabrica apenas um mito de justiça.
É necessário muito cuidado com uma razão instrumental que revela seu caráter
seletivo de inclusão social, especialmente quando tratamos de questões relativas à vida
de qualquer ser vivo, conforme Adorno e Horkheimer haviam alertado, falando sobre
uma suposta teoria do criminoso:
A maioria deles estava doente quando cometeram o crime que os jogou na
prisão: por causa de sua constituição e das circunstâncias. Outros agiram
como teria agido qualquer pessoa sadia na mesma constelação de estímulos e
motivos, não tiveram sorte... É provável que a substância viva, que é a
mesma em cada um, o conseguisse fugir a uma preso da constituição
sica e do destino individual com a mesma força da pressão que levou o
criminoso a esses atos extremos, de tal sorte que qualquer um de nós teria
agido do mesmo modo que o assassino, não houvesse um feliz
66
encadeamento de circunstâncias nos concedido a graça do discernimento
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 187).
Por outro lado, a razão instrumental habilmente procurou desmerecer a obra de
Adorno por se tratar de uma crítica despida de uma proposta de solução. Efetivamente,
a proposta de não ter uma proposta, ao menos não uma proposta afirmativa, é, muitas
vezes, mal interpretada pela mente talhada pela razão instrumental. Os indivíduos
acostumados com uma realidade limitada, porquanto sempre previamente interpretada,
sentem-se desconfortáveis com o verdadeiro exercício da dolorosa dialética interna
da consciência moral” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 167).
De acordo com o que afirmamos ao longo deste texto, acreditamos na filosofia
como uma crítica à realidade, no caso específico do presente trabalho, uma crítica à
possibilidade da (re)construção da justiça, ausente na relação humana subjacente, pelo
processo burocrático, ou, simplesmente, uma crítica à possibilidade de denominar de
justiça o opaco resultado de um procedimento burocrático que produz mais violência
do que justiça. Nesse sentido, a “proposta” de encaminhamento para tal insuficiência
do direito, entendemos, deve ser tratada por cada um, mediante uma postura crítica
contra os conceitos pensados pela racionalidade instrumentalizada e apresentados
como capazes de conduzir ao que os mesmos conceitos convencionaram chamar de
justiça. E nessa atividade a filosofia mostra sua face mais valiosa, conforme Adorno e
Horkheimer: “A filosofia não é síntese, ciência básica ou ciência-cúpula, mas o
esforço de resistir à sugestão, a decisão resoluta pela liberdade intelectual e real”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 200).
Acreditamos que a reflexão sobre a justiça e sobre a sua possibilidade de
realização somente pode partir do mais próximo possível que se puder chegar da
realidade que dura apenas o instante presente. Assim, por decorrência lógica,
entendemos pela impossibilidade da elaboração de uma “teoria da justiça”, expressão
que nos parece tão violenta quanto um processo burocrático de fabricação da justiça.
Por isso a nossa insistência nas expressões exercício da razão e exercício da
dialética. Em tempos de culto ao corpo, a maioria não se lembra de exercitar a razão e
se apropria da razão pronta da mesma forma que os preguiçosos lançam mão dos
anabolizantes, obtendo uma resposta rápida, vistosa e extremamente danosa à saúde do
67
corpo, tal qual a razão pensada provoca para a saúde da capacidade racional da
mente, atrofiando o cérebro não utilizado.
O homem é um animal, racional, mas um animal. Todos os animais reafirmam
a sua existência, a sua própria vida diariamente, a cada novo instante. O homem,
primeiro pelo mito, depois pela razão instrumental, criou uma estabilidade artificial,
antinatural. Por mais conveniente que seja depositar as expectativas da realização da
justiça em um procedimento (direito) tal crença cobra um preço muito alto. Assim
como todos os animais renovam a sua vida exercitando sua habilidade mais vital
continuamente, o homem deve exercitar a razão incessantemente. O exercício
contínuo da verdadeira razão é o que de mais vivo no homem. A responsabilidade
do ser humano deve ser renovada a cada instante, sob pena de tornar-se uma máquina,
semelhante aos personagens de Kafka, mormente àquela que executa as sentenças em
A colônia penal (KAFKA, 1998).
Necessário, igualmente, nesse contexto, reafirmar a importância do direito.
Conforme constante da subseção denominada Por um tratamento justo com o
direito”, entendemos que o direito é um mecanismo social inevitável neste estágio da
sociedade, contudo que está sendo propositadamente utilizado para tratar de situações
contra as quais não se presta, manipulação que acaba fazendo com que produza
pequenas porções de violência, no lugar da suposta justiça fabricada pelo processo.
A justiça não é o direito; sequer pode ser produzida por ele. O direito está para
a justiça assim como o corpo está para a vida. Por mais perfeito que qualquer uma das
duas estruturas seja, sem a outra, não tem sentido. Assim, nem mesmo a mais perfeita
racionalização do primeiro produzirá o segundo. São substâncias diferentes que,
conquanto só tenham sentido reunidos, não são intercambiáveis.
Assim, o verdadeiro lugar do direito é em uma sociedade na qual todos os
indivíduos tenham autêntica possibilidade de entendimento, decisão e, se for o caso,
resistência crítica, o que Adorno chama de indivíduos emancipados. Transição para a
qual o papel da filosofia é fundamental.
“Fazer o negativo” não é simplesmente não ter proposta, como acusam alguns.
Fazer o negativo, entendemos, é acreditar que a complexidade da realidade não pode
ser resolvida e afunilada em uma proposta de um sistema totalizante que se pretenda
68
capaz de prever todas as alternativas presentes no verdadeiro palco da realização da
justiça, o instante presente que deve ser protagonizado, sempre, por um ser dotado de
verdadeira capacidade dialética.
69
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