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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
STELLA GUIMARÃES FERRARETTO
Corporeidade em Psicanálise:
Tatuagem e Fenômeno Psicossomático, o corpo marcado
e o laço social.
Tese de Doutorado apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutora
em Psicologia Social, sob orientação do
Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho e co-
orientação do Prof. Sidi Askofaré.
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
PONTIFÍCIA UNIVERSDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
O PAULO
2010
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Banca Examinadora
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Para Tatiana, Ana Maria e Eduardo.
Para meus avós Hilda e Mário.
Que me marcam.
4
Agradecimentos
Agradeço o meu orientador Professor Doutor Raul Albino
Pacheco Filho que, além de suas importantes e rigorosas colocações
teóricas, me incentivou e me encorajou desde o início. Incentivo e
coragem que carreguei comigo no período em que permaneci na
França pesquisando. Quero agradecer meu co-orientador Professor e
psicanalista Sidi Askofaré, pelas contribuições e pela acolhida em seu
País.
Agradeço aos professores Christian Dunker e Sandra Dias,
membros da minha banca de qualificação pelo zelo com que leram
minha pesquisa inicial, o que permitiu a construção e organização
deste trabalho.
À minha mãe Ana Maria por sua força admirável, pela paciência,
confiança e doação incondicional. E à minha filha Tatiana, minha
maior incentivadora.
Ao Jayme, sempre.
Aos meus amigos psicanalistas e interlocutores Heloísa Ramirez,
Lola Andrade, Daniele Sanches, Stélio de Carvalho Neto, Tatiana
Assadi e Conrado Ramos.
Aos meus amigos não psicanalistas que estiveram sempre ao
meu lado, Márcia, Rosemeire e Klayton.
À minha amiga Lena, pelo apoio e pela deliciosa companhia na
minha estadia francesa.
Ao Oswaldo Guimarães, pela gentileza.
5
E, finalmente, agradeço ao Cnpq pela concessão da bolsa de
estudos no Brasil e à Capes pela bolsa sanduíche concedida para meu
estágio em Toulouse, sem as quais esse trabalho não seria possível.
6
Resumo
As marcas corporais, especificamente a tatuagem e o fenômeno
psicossomático, lesão na pele, são as questões que abordamos neste
trabalho, fazendo uso da teoria psicanalítica que trata a corporeidade
como Lacan postulou no decorrer de seu ensino, passando pelos três
registros: Real, Simbólico e Imaginário.
Partimos da tese inicial lacaniana sobre a inserção do sujeito no
simbólico quando da sua constituição, da afirmação “o símbolo é a
morte da coisa”, da idéia do corpo como “deserto de gozo”, isto é, o
gozo interditado ao ser falante, até a proposição do final de seu ensino,
de que para gozar é preciso ter um corpo. E a produção de um corpo
em diferentes conexões e registros, mais o ingresso no discurso como
forma de ordenação de gozo, relacionam-se com a entrada do sujeito
no laço social.
Chegando ao real da lalíngua, constatamos que esse real permeia
toda a questão do corpo e suas marcas, voluntárias”, como a
tatuagem, e “involuntárias” como o fenômeno psicossomático, que se
assemelham por deixar uma marca no corpo, mas cujos processos
subjacentes à inscrição delas são absolutamente distintos, assim como
a ordenação psíquica, trazendo à luz conceitos psicanalíticos operando
diferentemente nos sujeitos.
Revendo a história, considerando os aspectos sócio-culturais,
perpassando por teorias que fazem interlocução com a psicanálise,
como as ciências sociais e a antropologia, através de recortes de
7
entrevistas, no caso da tatuagem, também da apresentação do caso
clínico de uma paciente com psoríase mostramos, no decorrer do
trabalho, forte oposição entre as duas marcas no corpo, mas que
apresentam algo em comum: ambas fazem laço social. Ainda que em
processos distintos.
Palavras-chave: fenômeno psicossomático, tatuagem, corpo, laço
social, marcas corporais, gozo.
8
Abstract
Marks on the body, especially tattoos and psychosomatic
phenomenon, skin lesions, are the objects we deal with on this work,
making use of the psychoanalytical theory, which treats corporeité as
Lacan has postulated on this teachings, and we do so passing through
the three registers: Real, Symbolic and Imaginary.
We start from the initial lacanian thesis about the insertion of the
subject on the symbolic at the moment of its conception, from the
statement “the symbol is the death of the thing, from the idea of the
body as “desert of jouissance”, that is, the jouissance denied to the
being who speaks, until the final proposition of this teachings, namely
that in order to experience jouissance one must have a body. And the
production of a body in different connections and registers, plus the
entrance into the discourse as from of jouissance ordering, are both
also related to the entrance of the subject into the social link.
Arriving at the real of lalangue, we observe that this real pervades
all the question of the body and its marks, voluntary” like tattoo, and
“involuntary” like the psychosomatic phenomenon, which are similar
because they leave marks on the body, but with processes underlying
their inscription being absolutely distinct, as is the psychic ordering,
casting light on psychoanalytic concepts acting differently on the
subjects.
Reviewing history, taking into account the socio-cultural aspects,
moving through theories wich intercommunicate with Psychoanalysis,
9
like the Social Sciences and Anthropology, using excepts from
interviws, in the case of tattoos, and also by presenting two clinicals
cases of a patient with psoriasis, we show, in our work, the existence
of a strong opposition between the two types of marks on the body,
but wich nonetheless present traits in common: both produce social
links, although in distinct processes.
Key-words: psychosomatic phenomenon, tattoo, body, social link,
marks on the body, jouissance.
10
Sumário
Introdução 11
Capítulo I- A Tatuagem
Parte 1 - Tatuagem: inscrição de um traço 32
Parte 2 – Tatuagem: história, sociedade e cultura 48
Capítulo II- A Psicossomática
Parte 1- Psicossomática: um termo da medicina 76
Parte 2- Considerações sobre a psoríase 84
Parte 3- Casos Clínicos
A) Do trauma à cena 87
B) Um caso de histeria ou fenômeno psicossomático 92
Parte 4- Psicossomática e Psicanálise 101
Capítulo III- O corpo na Psicanálise 120
Capítulo IV- Letra e traço 149
Considerações finais 157
Referências bibliográficas 168
11
Introdução
Desde o início da psicanálise, Freud toma o corpo como um lugar
de inscrições com sentido, como algo da ordem simbólica. Passa,
então, a tratar os sintomas histéricos não mais como simulação, mas
como a expressão simbólica de um conflito. O sintoma assume caráter
totalmente diverso do postulado pela medicina do século XIX, uma
vez que compreendido como expressão do recalcado. Anteriormente,
os tratamentos catárticos e hipnóticos das histéricas sugerem uma
relação entre corpo e psiquismo. Com o abandono desses métodos,
Freud reformula sua teoria e cria o método da associação livre,
colocando os sintomas histéricos, definitivamente, como relacionados
com o psíquico.
Nos Estudos sobre histeria (1893–1895), Freud e Breuer ocupam-
se do caso de Anna O. e verificam que a decifração dos sintomas da
paciente advém de uma estreita relação entre aquilo que é da ordem do
inconsciente e do corpo. Posteriormente, ao abandonar a teoria da
sedução e com a publicação da Interpretação dos sonhos (1900),
Freud afirma que as histéricas não sofriam de reminiscências, mas sim
de fantasias. A partir de então, ele observa nos sintomas histéricos
idéias reprimidas e de natureza sexual, que não combinam com a
consciência moral. Conclui que a excitação é somatizada total ou
parcialmente através do mecanismo de conversão.
Freud, inicialmente um médico especializado em neurologia, e que
tem como um de seus mestres o fisiologista Brüke, para quem o
12
funcionamento do organismo é determinado pelas forças físico-
químicas, funda uma nova clínica, na medida em que separa o órgão
de sua função essencialmente biológica, desvinculando a histeria do
campo da doença orgânica. Contrariando as teorias neurológicas Freud
vai, pouco a pouco, situando os sintomas como “doenças da alma”. Ao
conferir uma etiologia sexual à histeria e sustentar a primazia da
sexualidade no exercício da psicanálise, ele um passo para
desvincular as neuroses dos discursos da medicina. Essa passagem é
marcada, também, pela superação de seu texto de 1895, Projeto para
uma psicologia científica, no qual tenta estabelecer uma psicologia
com base nos neurônios e quantidades, associando o aparelho psíquico
com processos fisiológicos e neurológicos. No artigo Algumas
considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras
histéricas e orgânicas (1893 [1888 1893]), Freud distingue a
paralisia motora orgânica da paralisia histérica. As paralisias orgânicas
seriam explicadas pela anatomia (a estruturação do sistema nervoso e
a distribuição de seus vasos) e as paralisias histéricas, ao contrário,
deveriam ser totalmente desvinculadas da anatomia do sistema
nervoso. Ele estabelece, portanto, que a histeria situa-se no campo da
representação, no qual os sintomas provêm de uma imagem do corpo e
não da sua estrutura anatômica. O corpo ganha superfícies dotadas de
significação.
Em 1894 Freud estabelece duas grandes categorias nosográficas: as
neuroses atuais (neurastenia, neurose de angústia e hipocondria), nas
quais o sintoma somático não tem significação, visto que se originam
13
de perturbações na descarga atual de excitação e, por isso, refratárias à
cura psicanalítica; as psiconeuroses de defesa (histeria, obsessão,
fobias e psicoses), de etiologia infantil e que se caracterizam por uma
separação entre o afeto e a representação, essas sim passíveis de
trabalho psicanalítico.
Em 1905, com a formulação da sexualidade infantil e da noção de
corpo erógeno que se constitui a partir do corpo representado
originário (reconhecendo nele atividades que buscam prazer), a
psicanálise tem novo desdobramento. Nos Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade (1905), Freud articula o corpo biológico e o corpo
representado e postula o conceito de pulsão (Trieb), conceito limite
entre o psíquico e o somático, que circunscreve a problemática do
corpo. A função da sexualidade torna-se fundamental não apenas na
etiologia das neuroses, mas também na investigação da passagem do
registro corporal para o psíquico. Nesse mesmo texto, é abordada a
noção de apoio, que coloca o sexual inicialmente ancorado nas
funções vitais do corpo, ou seja, as primeiras satisfações sexuais são
experimentadas apoiando-se nas funções corporais necessárias à
conservação da vida.
Na teoria das pulsões Freud aponta, primeiramente, a oposição
entre as pulsões do ego (as pulsões de autoconservação) e as pulsões
sexuais. Mas, em Para além do princípio do prazer (1920) faz uma
remodelação teórica fundamental, introduzindo o dualismo entre
pulsão de vida e pulsão de morte, que passam a representar os
princípios fundamentais que regulam a atividade do organismo.
14
Na primeira tópica, Freud destaca que o ego é sede da consciência e
afirma que ele é antes e acima de tudo um ego corporal. Já na segunda
tópica uma mudança no estatuto do ego, na qual é concebido como
uma instância psíquica, ao lado das instâncias do superego e do id.
A introdução da noção de narcisismo, entre outras contribuições,
elucida o mecanismo pelo qual a criança toma a si mesma como
objeto de amor (narcisismo primário) para, posteriormente, voltar-se
para objetos externos. Assim, para a psicanálise, o corpo constitui um
lugar fundamental, é um lugar onde ocorrem sensações tanto externas
quanto internas. Trata-se de um corpo narcísico, investido de libido a
partir de uma relação intersubjetiva original, que fundamenta a
constituição do psiquismo. E, desde Freud, a palavra, através do
método psicanalítico, opera modificações no corpo pela ação do
simbólico.
Jaques Lacan, segundo Roudinesco e Plon, foi o único a dar à obra
freudiana uma estrutura filosófica, tirando-a do biologicismo, sem
com isso cair no espiritualismo. Em seu retorno a Freud, introduz a
teoria da constituição do sujeito, na qual propõe que um lugar do
sujeito onde o eu propriamente não está. Baseado na idéia de que o eu
se constitui a partir do outro, do outro da linguagem, marca a
alienação como própria do sujeito.
O sujeito é um sujeito dividido, tem uma determinação material,
efeito da excentração social e da linguagem. São as relações que
fundam o sujeito e a proposição: “o inconsciente é estruturado como
uma linguagem”, tem conseqüências fundamentais para o seu ensino.
15
A linguagem, então, é responsável pela artificialidade das relações
humanas, que não são, conseqüentemente, naturais.
Lacan afirma que o sujeito é determinado e que existe nele uma
estrutura. Apesar disso, resta-lhe capacidade de decisão e de escolha.
O sujeito busca, na linguagem (na estrutura significante), a sua
estrutura.
O corpo, na teoria lacaniana, está concebido nos termos de sua
teoria dos três registros: Imaginário (o corpo como imagem),
Simbólico (o corpo marcado pelo significante) e Real (o corpo como
lugar de gozo).
O reconhecimento do outro constitui, confere propriedade. É o
reconhecimento que faz emergir um traço de sujeito, onde o eu se
inscreve. Reconhecimento que vem dos gestos, da palavra, do olhar,
do não-dito.
Na sociedade contemporânea, o corpo parece não ser mais
fonte de “pecados” e, talvez por isso, ou por muito mais, torna-se
fonte, ou até mesmo brecha, para excessos. Vive-se cotidianamente a
preocupação com o corpo, com a sua saúde. As novas descobertas
científicas de cura de doenças, de cirurgias plásticas, incluídos
todos os modismos, soam como imperativos do bem viver. A imagem
corporal torna-se uma representação fundamental de nossos dias e,
através dela, pode-se ganhar reconhecimento estético, de saúde e bem
estar, de fama, de status social e financeiro. E a mídia, como parte
fundamental da cultura, reforça essa idéia. A imagem do corpo
16
compra, vende qualquer coisa, inclusive ele mesmo. Mostrá-lo nu é
marcar sua presença, da mesma forma que marcá-lo com tatuagens.
Dissemina-se a idéia de que se pode fazer o que se quiser com o
corpo: a sociedade oferece meios, impõe padrões. O culto à imagem
corporal toma forma de ideologia e apesar da polêmica ao redor da
questão, não se pode negar que a imagem, cada vez mais, vem
ocupando o lugar de um discurso ideológico.
O corpo está em evidência e não escapa ao mal-estar na cultura.
Pode ser, ao contrário, um dos males da cultura. Isso nos mostra a
prática clínica: pelo viés do corpo muitas patologias se apresentam.
Em O mal-estar na civilização (1930 [1929]), Freud aponta três
fontes de mal estar: a força da natureza, a deficiência dos dispositivos
que regulam as ões entre os homens (família, Estado e sociedade) e
a decrepitude do próprio corpo próprio corpo. Para se proteger de duas
dessas três fontes de sofrimento, o ser humano constrói a cultura que,
paradoxalmente, sustenta a responsabilidade da sua miséria. Apoiado
na cultura e em suas tantas ofertas para aplacar a dor, o desprazer, o
envelhecimento, a finitude, o homem continua se deparando com a
falta, apesar de tentar escapar das incertezas que o dominam. E as
imagens evocadas pela clínica psicanalítica, funcionando como
espelho da cultura, refletem, de forma diversificada, a imagem do mal-
estar na atualidade” (Fernandes, 2003:16). Segundo Freud, em nome
da cultura, a sociedade impõe um certo grau de renúncia pulsional,
recalcamento das pulsões e repressão, derivando desses processos
psíquicos a frustração e, conseqüentemente, a convivência com a
17
neurose. Todo modelo social tem por fim selecionar os bons e maus
comportamentos, objetivando construir ideais. O sujeito dialoga com a
cultura e precisa dela na sua constituição, que é ela que condição
de possibilidade de surgimento do sujeito: se não houver cultura não
interlocutor, não inconsciente, não sujeito, uma vez que o
sujeito é constituído pelo Outro. Não há saída!
Em Psicologia de grupo e análise do ego (1921), Freud enuncia:
“Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do
indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um
oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia
individual, nesse sentido ampliado mas inteiramente
justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também
psicologia social”
1
.
A presença do outro estabelece uma relação de vínculo libidinal
originário. Essa idéia margem ao entendimento da afirmação
freudiana de que as relações dos sujeitos com outros sujeitos ou com
os objetos de amor constituem-se como fenômenos sociais. Nessa
lógica, Freud não poderia diferenciar atos sociais e narcisistas. Essa é
uma característica do fenômeno de massa, que atua pelo inconsciente,
expressando um narcisismo generalizado. A influência do outro se
com o inconsciente, o que resulta na homogeneização dos
componentes do grupo, visto que “a superestrutura mental, cujo
1
Freud, S. Psicologia de grupo e análise do ego (1921), p. 91.
18
desenvolvimento nos indivíduos apresenta tais dessemelhanças, é
removida, e as funções inconscientes, que são semelhantes em todos,
ficam expostas à vista”
2
. De qualquer forma, cada manifestação será
representante do sujeito tanto no coletivo como no singular: a
singularidade vai dizer respeito a um traço que pode capturar o olhar
do outro. E o que torna coletivo é o lugar que esse olhar pode conferir
como identidade”
3
.
Tais proposições lembram Maria Helena Fernandes afirmando que
“as formações psicopatológicas falam da cultura, ou melhor, retiram
dela o material de base que lhes dará forma, que lhes dará imagem!... o
imaginário da época, com suas referências estéticas, opera na
construção dos novos sintomas”
4
.
Fernandes continua dizendo que, ao contrário de épocas anteriores,
em que havia maior preocupação com a interioridade, nota-se, hoje,
uma exaltação da exterioridade, na qual as patologias da ação e do
corpo tornaram-se predominantes: “as problemáticas internas m
migrando progressivamente para o corpo... o culto ao corpo e à
imagem encontra no terror do envelhecimento e da morte o negativo
que lhe justifica, a condição de possibilidade de sua existência”
5
. O
corpo rouba a cena, as insatisfações são nele inscritas. Ele suporta,
mostra a dor e o sofrimento.
“Segundo a definição dada pela Organização Mundial da Saúde,
logo após a Segunda Guerra Mundial, ser saudável significa, de agora
2
Idem, p. 97.
3
Costa, A. Tatuagem e marcas corporais, 2003, p. 19.
4
Fernandes, M.H. 2003, p. 16.
5
Idem, p. 17.
19
em diante, não apenas estar livre das doenças, mas também usufruir de
um bem-estar permanente”
6
. Parece que essa condição da atualidade
situa o sujeito destinado a obter prazer. É pela via do corporal que
essa idéia ganha contornos extremos. Sofrer não é mais natural.
Pensando a década de 1960, na qual os movimentos de liberação
sexual e do próprio desejo, eram temas de ordem, percebe-se uma
modificação de comportamento e das relações com os ideais passados.
Outrora, as pessoas arrependiam-se dos “pecados”, fontes de
sofrimento e constrangimento social. Agora, lamentam-se pelos
prazeres não vivenciados. O prazer ganhou legitimidade e “o bem-
estar torna-se uma regra, toda satisfação obtida se quer para além do
lícito e do ilícito, para além da moral e de toda oposição, participando
de todas as esferas da vida”
7
. E, dentro desse cenário, o corpo precisa
movimentar-se, ganhar espaço, visibilidade.
excessos na busca de prazer pela intolerância ao sofrimento.
O indivíduo tenta “completar-se ou “aliviar-se” nas drogas, sejam
elas lícitas ou ilícitas, nos esportes, na experiência religiosa, no ideal
de corpo, o que torna “comum a busca de uma overdose de vertigem
corporal e psíquica, um suplemento de adrenalina e de percepção”.
8
Uma das formas de expressão simbólica, recentemente
intensificada, é relembrada quando se trata de refletir sobre as relações
entre o corpo e a cultura contemporânea: a tatuagem. E essas
manifestações não são apenas formas de marcar identidade, formas de
6
Sant’Anna, D.B. Políticas do corpo, 1997, p. 255.
7
Idem, p. 256.
8
Idem, p. 260.
20
diferenciação entre um grupo e outro, ou formas de se atingir o bem-
estar. Cada sujeito, cada corpo, tem que se haver “com algo mais
profundo ainda do que a imagem do corpo: pretende-se modificar o
corpo real, e não só a sua imagem”.
9
José Gil, filósofo e professor da Universidade de Lisboa,
articula corpo e sociedade e fala sobre “as virtualidades do corpo e
seus limites”. Segundo o filósofo, os tatuados transformam o corpo e,
portanto, transportam “um outro corpo e uma outra consciência dele, e
mesmo um outro inconsciente, que o acompanha mais ou menos
subliminarmente”.
10
O que marca no sujeito a decisão de desenhar o
corpo com tatuagens, são “intensidades novas circulando na superfície
do novo corpo, com uma nova liberdade e uma nova força. Tudo se
assemelha a um rito terapêutico”
11
, dando ao corpo uma nova
singularidade. A dor insere-se nesses atos e ela passa a ser uma forma
de desorganizar, de desestruturar, levando o sujeito para além do
prazer, “para que as intensidades desencadeadas não se esgotem ali, na
descarga do prazer”.
12
Gil conclui que, nesses casos, a dor serve para
des-subjetivar e posteriormente levar a uma modificação intensiva,
um devir
13
.
José Gil sublinha que a tatuagem, ato que implica dor, está
presente na maioria dos rituais terapêuticos primitivos. Ana Costa
trabalha em seu livro essa questão e, através do trabalho de Denis
Bruna, relata que tais usos estão presentes em todas as culturas, em
9
Gil, J. No pain, no gain, 1997, p. 268.
10
Idem, p. 269.
11
Idem.
12
Idem, p. 270.
13
Idem.
21
todos os tempos, como por exemplo, na África, onde “o corpo nu
precisa ser marcado para existir. Os anéis, pinturas, escarificações ou
mutilações, cobrem o corpo do indivíduo, dando uma identidade de
pertença. Sem esses elementos, a nudez o deixaria vulnerável. Nessas
sociedades, essas marcas não têm somente função ornamental. Trazem
também reconhecimento social e religioso, muitas vezes fazendo
função de amuletos de proteção”.
14
Pensando no texto O Mito individual do neurótico, faço aqui
traço um paralelo entre as tatuagens e os casos de análise,
apresentados neste trabalho. Eles relacionam-se com a questão do
mito, pois que um indivíduo constrói seu mito a partir de elementos
fornecidos pela sua história pessoal que correlaciona-se com o mito
social.
A questão do corpo está ligada às diferenciações
epistemológicas fundamentais entre a medicina e a psicanálise. Freud,
através da clínica, formaliza a metodologia da psicanálise e é na
situação analítica e não a métodos estranhos a ela, que se a sua
especificidade.
Comumente, queixas como insônia, estresse, distúrbio sexual,
angústias, vêm acompanhadas de algo sistemático no corpo. O
médico, muitas vezes, não justifica as queixas e nem consegue por fim
a elas, o que os motiva a recorrer a um psicanalista. O psicanalista, por
sua vez, precisa escutar essas queixas insistentes sem deixar de ouvir o
corpo de seu paciente. Um corpo da psicanálise. Muitas doenças tidas
14
Costa, A. op. Cit. 2003, p. 11.
22
como psicossomáticas, tais como o câncer, hipertensão, úlceras
gástricas, bronquite, doenças dermatológicas, afetam o sujeito de
maneira silenciosa.
Para Lacan, o médico opera um discurso no qual o doente é
colocado como homem + doença. Desta forma, o homem é visto como
doente. O corpo, como concebido pela medicina, o corpo biológico ou
fisiológico, não conta da articulação corpo/mente, pela própria
divisão. E qual é o corpo da psicanálise?
A não oposição mente/corpo entra numa versão introduzida por
Lacan: a idéia de um corpo preenchido com uma corporeidade
imaginária, uma corporeidade simbólica e uma corporeidade real: esta
última, um lugar impossível para o corpo, um lugar fora do discurso,
que não aparece, mas está. Christian Dunker, em seu texto
Corporeidade em psicanálise: corpo, carne e organismo (s/d), propõe:
“o discurso continua a funcionar, mas o eu não se articula a esse
saber”. Que aspecto da corporeidade resiste a se inscrever como
sujeito ou a alienar-se como objeto no caso dos fenômenos
psicossomáticos? Essas questões serão abordadas e ressaltamos a
relevância desses apontamentos na noção de corpo para a psicanálise.
Tratar dos diferentes modos de manifestação do corpo que
aparecem na clínica psicanalítica e no social, força a traçar a etiologia
diferencial e os aspectos próprios do que seriam fenômeno
psicossomático e sintoma.
A história do paciente é decisiva e está ligada ao sistema de
memória que, segundo Freud evoca uma via de continuidade, um
23
trilhamento (Bahnung). Lacan, em 1959, apreende ser esse ponto
essencial para o entendimento da cadeia significante:
“(...) é preciso sempre supor uma organização anterior, pelo
menos parcial,de linguagem, para que a memória e a
historicização possam funcionar. Os fenômenos de memória
pelos quais Freud se interessa são fenômenos de linguagem. (...).
O significante é, pois dado primitivamente, mas ele não é nada
enquanto o sujeito não o faz entrar na sua história (...). O desejo
sexual é com efeito, o que serve ao homem para se
historicizar.
15
Portanto, a história do sujeito está sempre vinculada ao
significante e à sexualidade, mas a história não é o passado, reforça
Lacan. Trata-se de uma reconstituição das lacunas que estão presentes
e são sentidas sob a marca do recalque e de seus conteúdos
fantasmáticos, pois o que se apreende na historicização é a cadeia
significante.
Posto isso e voltando um pouco a Freud, convém lembrar que os
conteúdos mnemônicos que abarcam as afetações da sexualidade no
campo do sujeito revelam que supostos fatos traumáticos do passado
são apenas construções fantasmáticas da sexualidade do sujeito.
está a relevância do trilhamento a que Freud referiu e, a propósito de
Lacan, a conexão entre os significantes. A história se dá na abertura da
15
Lacan. J (1956), p. 260.
24
articulação significante, no deslizamento da cadeia. Contudo, esse
breve esclarecimento conduz à questão inicial de Freud sobre as
neuroses: as psiconeuroses e as atuais.
As neuroses atuais, como Freud as descrevia no início de sua
teoria, remetem a fatos contemporâneos da sexualidade, os sintomas
dela provindos são resultado direto de uma excitação sexual que não
foi psiquicamente descarregada ou não passou pela elaboração
simbólica. São conseqüências originadas da excitação que produzem
sintomas corporais concretos, como problemas cardíacos, a cefaléia, o
câncer ou as dermatoses. Por isso a insistência na historicidade no
caso das psiconeuroses, pois trata-se de um modelo de linguagem
ligado ao princípio de prazer, ou seja, ao escoamento da libido: “a
neurose atual se localiza num ponto onde a libido não foi escoada”
(Quintella. R). muito o que tratar sobre isso, mas é interessante
pensar que o conceito de neurose atual foi muito utilizado na reflexão
das patologias psicossomáticas.
Os fenômenos psicossomáticos, “transbordamentos do corpo”,
interessam especialmente para o presente trabalho, e sobre eles quero
refletir, abordando vários autores, com o objetivo de conceitualizá-los
metapsicologicamente de modo rigorosamente psicanalítico. Além
disso, pretendo verificar as articulações possíveis entre tais
fenômenos e práticas culturais contemporâneas relacionadas ao corpo,
como a tatuagem. Pretendo ainda, investigar estas manifestações,
escolhas do sujeito, e os fenômenos psicossomáticos, mais
especificamente, a psoríase e as oposições entre ambos.
25
O corpo tem valor simbólico quando “a realidade biológica é
colocada em um sistema significante.
16
É um lugar de simbolizações.
Lacan aponta que o corpo é marcado de traços, sejam eles visíveis ou
não, compreensíveis ou não, e buscam o endereço de uma leitura.
“Nesse sentido, marca-se a ligação entre olhar e endereçamento de um
pedido de decifração. São duas determinações importantes: a busca de
um lugar no amor do outro, pela procura de uma decifração de traços
corporais. É nesse sentido que essa busca de ‘leitura/decifração’
determina um destino.”
17
Mas não é apenas a imagem que está em
jogo na tatuagem, mas o corpo real, marcado na carne”, conceito
lacaniano que desenvolveremos.
O tema do corpo circunscreve um ponto central da psicanálise, é
nele e através dele que se dá o discurso como laço social. É no
Seminário O avesso da psicanálise que Lacan elabora uma concepção
sobre o corpo relacionado ao laço social e na teoria dos quatro
discursos o corpo aparece totalmente articulado com o social.
Askofaré
18
comenta que nada do que avança da linguagem e de seus
efeitos se conserva sem o corpo, sem o suporte do corpo como lugar
da voz, da memória, dos efeitos de significados e dos efeitos de gozo,
como o prazer, desprazer, satisfação, sofrimento e dor. Para Lacan, o
corpo do ser falante será, sobretudo, um efeito, mais exatamente, o
corpo será produto de um processo de simbolização, de investimento
libidinal do organismo, do gozo e da lalingua, tese que ele desenvolve
16
Dunker, C.I. Corpo, carne e organismo, s/d.
17
Idem.
18
Askofar´. S. Corps et dscours. s/d.
26
mais adiante no seu ensino e que evoca o real. Farei, então, um
percurso com o intuito de chegar ao real do corpo, fundamental para a
articulação dos pontos chaves deste trabalho: a tatuagem e o fenômeno
psicossomático e a implicação dessas manifestações no laço social.
Para todo parlêtre, o verdadeiro corpo é o corpo do significante,
do simbólico, ou seja, da linguagem. A linguagem é o corpo que dá
corpo, que possibilita o gozo e o desejo. Assim, para a psicanálise, o
corpo é a superfície de inscrição que porta um traço unário e que o
eleva a uma função significante que transcende seu ser vivente. A
inscrição dessa marca sobre o corpo, dá ao o sujeito a possibilidade de
fazer laço social. Trata-se de fazer a mudança necessária da passagem
do saber inconsciente como laço dos significantes ao discurso, para
fazer laço entre os corpos. Mas não . Posteriomente, Lacan aponta
que o significante está no nível do gozo, afirmação que inverte sua
tese anterior de que o corpo é um “deserto de gozo”, do significante
como a morte da coisa: “o significante é, ele próprio objeto de gozo”.
É preciso ter um corpo para gozar, o que traz a questão da “substância
gozante”.
A questão do corpo no discurso é, antes de mais nada, a questão
da presença corporal, da pulsão e do gozo. Askofaré considera que a
dominação do discurso da ciência e do discurso do capitalismo são o
fundamento das conseqüências dos fenômenos contemporâneos:
recusa, rejeição, recalcamento da palavra, da narração, da
historicização da verdade, ou seja, a foraclusão da verdade como
causa; recusa, rejeição, recalcamento das “coisas do amor”; recusa,
27
rejeição, recalcamento do corpo como produtor numa economia
tendenciosamente automatizada, robotizada e mercantilista.
Dessa forma, os modos de retorno desses corpos são violentos e
estão presentes na clínica insistentemente. Ele cita quatro vias em que
o corpo torna-se suscetível: promoção narcísica e fetichização do
corpo através de diferentes usos e práticas, do esporte à moda; redução
do corpo a uma função de puro suporte de sintoma cortado do Outro,
ao preço de uma derivação metonímica de um gozo sem freio, como
por exemplo a anorexia e a bulimia; o corpo passa a servir de suporte
de ideologias que o fazem servir de objeto de violência e sacrifício;
manifestação no real sob a forma de objetos corporais dissociados,
separados, ou mesmo virtuais. O autor conclui que o discurso da
ciência e o discurso do capitalismo vão, mais e mais, em razão dessa
dinâmica própria e da virtualização do mundo, num sentido de
redução extrema da presença do “elástico pulsional”. O que se impõe
é o gozo a qualquer preço.
Os quatro discursos elaborados por Lacan estabelecem os modos
possíveis do sujeito sustentar aquilo que há de paradoxal, um resto que
não pode ser dito, um dizer que fica fora, sem perder a própria
subjetividade que é dividida, sem se escangalhar na demanda feroz do
Outro: “os quatro discursos descrevem as modalidades sintomáticas
que o humano tem à sua disposição para suprir a impossibilidade e
não obstante satisfazer-se em torno das âncoras pulsionais, ou seja,
não anular sua subjetividade e seu desejo”.
19
19
Fingermann, D. Os destinos do mal: perversão e capitalismo. In: Por causa do pior. 2005, p. 77
28
Temos o discurso do mestre, da histérica, do universitário e do
analista. Lacan, posteriormente, elabora o discurso do capitalista, um
quinto discurso que é uma distorção do discurso do mestre. A partir
deste, afirma que tudo é possível e permitido, pois mostra como a
economia do sistema conjuga-se com a economia do gozo, o que
produz o pior”, ou seja, o colapso da humanidade e a perversão do
sujeito. Aqui entra o conceito lacaniano de objeto a mais-de-gozar.
Pela implicação do corpo na estrutura dos discursos, organizador do
laço social, o sujeito fica, conseqüentemente, submetido e
intrinsecamente ligado a essa estrutura, o sujeito perde uma parte de
si, isso tem um preço, levando a mudanças na sua constituição: “Perde
os instintos, deixa de fazer relação dual com os objetos e passa a ter
suas realidades mediadas pela condição de semblante. Aquilo que é
perdido entra na conta do Outro para fundar o campo do objeto, que
Lacan designa como objeto a”.
20
E quais as formas de laço social dos
sujeitos da nossa pesquisa?
Nos sujeitos acometidos por formações psicossomáticas “há
supressão dos afetos e uma relativa indiferença à indução de sentido
ou de saber sobre o sintoma” (Dunker, s/d). Essas afecções não
representam o sujeito, que um congelamento na cadeia
significante, diferente do que ocorre no sintoma, onde o significante
representa o sujeito para outro significante. Se é assim, por que os
sujeitos acometidos por fenômenos psicossomáticos, como as doenças
dermatológicas, fazem-se olhar pelas marcas na pele, limite do corpo,
20
Nicolau, R. A psicossomática e a escritado real, 2008, p. 978
29
de modo análogo aos adeptos de práticas como a tatuagem? Como
decifrar esse enigma? O que é que representa esses sujeitos: estão eles
na ordem simbólica?
uma frase de Lacan que suscita inquietação e impele à
pesquisa: “uma identificação é a transformação que se produz no
sujeito quando ele assume uma imagem” (Lacan, 2000:57). Nessa
época de exploração do corpo, a mídia trata insistentemente do
assunto, que desperta grande interesse na vida cotidiana. Como
articular essa questão com a clínica psicossomática?
Não é apenas pela via da doença dos órgãos, no caso doença
dermatológica, a psoríase, cujo órgão lesado é a pele, órgão exterior,
que algo ‘silencioso’ se manifesta por meio do corpo, o mesmo ocorre
por meio de inscrições que marcam a pele, observadas com freqüência
cada vez maior nas práticas culturais, na busca de uma identificação.
De que se trata, em ambos os casos?
A questão proposta neste trabalho é investigar teoricamente o
surgimento do fenômeno psicossomático e a escolha de tatuar-se em
suas conexões e diferenças estruturais, articulando os termos da
construção do corpo na psicanálise, dos discursos como formas de
ordenação de gozo e do laço social. Conseqüentemente, abordando
questão do sintoma e seus modos de amarração nos registros real,
simbólico e imaginário. Como recurso expositivo, apresento dois
casos clínicos de pacientes acometidos por fenômeno psicossomático
e uma entrevista com uma pessoa tatuada, além de vinhetas de outros
casos e entrevistas que permeiam o trabalho. Esses casos e entrevistas
30
têm conotação de interrogação para o levantamento de postulados
teóricos.
Por meio de entrevistas com pessoas tatuadas, mostro, no primeiro
capítulo parte I, a problemática dessa marca no corpo segundo
referências da teoria psicanalítica, abordando a questão do desejo e
gozo, signo e significante e outros conceitos que mapeiam aspectos
desta marca corporal. Na parte II, deste capítulo abordo a cultura e a
inscrição no sujeito, ressaltando a história da tatuagem e o modo
como em diferentes sociedades ela foi interpretada e utilizada até a
contemporaneidade.
O fenômeno psicossomático é o assunto do segundo capítulo. A
primeira parte, fala sobre a história da visão médica a respeito da
psicossomática, enquanto que na segunda parte, exponho a definição
médica da psoríase, um panorama histórico dessa doença
dermatológica que deixa marcas no corpo. Em seguida, na terceira
parte apresento dois casos sobre fenômeno psicossomático.
Finalmente, na quarta parte, faço uma contextualização do tema,
discutindo Lacan e outros psicanalistas, abordando conceitos caros à
psicanálise, traçando um paralelo entre sintoma e fenômeno.
No terceiro capítulo, tomo como eixo o corpo na psicanálise,
mostrando a produção de um corpo e o avanço sobre o tema no ensino
de Lacan.
No quarto capítulo, articulo a Letra e o traço, com o objetivo de
elucidar a questão da decifração e da escrita, na tatuagem e no
fenômeno psicossomático.
31
Em Considerações finais, o quinto capítulo, aponto oposições entre
tatuagem e fenômeno psicossomático, essas duas manifestações de
marcas no corpo trabalhadas nos capítulos anteriores: o avesso entre
elas no que concerne a angústia, o laço social, como forma de
ordenação de gozo e o discurso capitalista.
32
Capítulo I –Tatuagem
Parte 1 – Tatuagem: A inscrição de um traço
A tatuagem é algo que permanece na história da humanidade.
Em diferentes culturas e sociedades, o ato de tatuar sofre
interferências e mudanças quanto a seu sentido e a sua motivação. É o
que pretendo mostrar abordando também o sujeito que a porta,
verificando as articulações entre seus motivos e a psicanálise.
Cibele, uma mulher de 40 anos, diz que se sente deprimida
muito tempo, não tem vontade de fazer “nada”. Antes de falar da
tatuagem que fez recentemente, conta sobre sua vida familiar. É a filha
mais velha, tem uma ir com quem se identifica. Seu pai é um
homem bom, diz ela, mas em casa é extremamente bravo e, desde
pequena sofre humilhações por parte dele, conta que suas atitudes e
falas são, na maioria das vezes, de desprezo e deboche. “Ele valoriza
todo mundo, menos eu, até minha irmã ele sempre tratou melhor,
essa frase é carregada de emoção.
A mãe é bastante ligada nas filhas, mas é totalmente submissa ao
pai e não as defende. Cibele diz que muitas vezes precisa cuidar da
mãe, “é o inverso” para que o pai pare de implicar. As três mulheres
ficam submetidas a essa figura masculina que, por um lado é um bom
homem, mas por outro não consegue tratá-las com afeição. Cibele diz
que fica entre o amor e a raiva intensa que sente do pai e não consegue
reagir às agressões dele, sente-se fraca e impotente.
33
Sua irmã é muito bem sucedida profissionalmente, mas está
sempre sozinha, não tem amigos nem namorados, “às vezes acho que
minha irmã é sapatão”. Cibele é diferente, tem amigos, procura sair e
namorou alguns rapazes, que sempre, segundo ela, a desprezaram.
Casou-se e saiu de casa há cinco anos, estava grávida. Dedica-se
muito à filha, mas não consegue ter um relacionamento agradável com
o marido, eles quase não se falam.
“Eu sou valorosa” e “eu sou capaz, são frases recém tatuadas
no de Cibele, mulher que se diz “infeliz e obesa”. Ela fala: “olha o
meu tamanho, tenho vontade de ficar muito feia, raspar o cabelo e
tatuar todo meu corpo.”
As frases que Cibele se fez tatuar dizem algo de seu desejo, mas
essa tentativa simbólica de dar sentido a uma imagem que embaraça,
não responde: “eu leio isso todos os dias, mas não consigo acreditar.
Essa tentativa de inscrever o simbólico, essa tentativa da linguagem,
não conta, pois algo se perde, não é disso que se trata. um lugar
para o corpo impossível, mas real:
“Esta forma de corporeidade deve necessariamente ser deduzida
das duas anteriores (simbólico e imaginário). Temos aqui as duas
condições desta dedução: por um lado ela deve conter a dialética
entre unidade e multiplicidade, própria da corporeidade
imaginária e por outro ela deve conter o paradoxo de um saber
34
que faz Um... mas não todo..., aquilo que do corpo é irredutível
tanto à imagem quanto ao discurso, ou seja, a carne”
21
.
Um ideal marcado na carne, no real, não se articula ao simbólico
nem ao imaginário, pois está fora do discurso e da imagem, “é
justamente do órgão que a gente se serve como pode”
22
. É da própria
constituição do sujeito essa discordância, esse desconhecimento do eu
no corpo: por mais que se encarne, algo se aliena. “Eu sou valorosa,
eu sou capaz”, “eu sou aí” nesse ato, nesse saber, nessa carne
encarnada que insiste em deixar algo de fora: As imagens
representam simbolicamente o desejo do outro na medida em que são
incorporadas, lidas ou transcritas como significantes. O segredo da
imagem é, portanto, o significante que a representa, o nome que a
unifica, mas também a divide e desloca”
23
.
Cibele reconhece seu corpo no excesso de carne, mas a tatuagem
revela algo do desejo. Paola Mieli aponta que a manipulação
irreversível transforma o corpo percebido pelo sujeito como aquilo
que insiste em embaraçar e que a intervenção voluntária sobre o real
do corpo se impõe, com freqüência, como uma ‘necessidade’, talvez
para conseguir estabilidade a uma imagem que oscila (ou vacila).
Lacan, no Seminário da Angústia diz que “O embaraço é, em termos
muito exatos, o sujeito S revestido da barra... Quando vocês não
sabem o que fazer de si mesmos, procuram alguma coisa em que se
21
Dunker. C. op cit, s/d
22
Lacan. J. Seminário, livro 17. O avesso da psicanálise. p. 45
23
Dunker. C. op. Cit. s/d
35
escorar. É justamente da experiência da barra que se trata.”
24
A
tatuagem pode ser a experiência da barra, uma maneira simbólica de
inscrever e mostrar ao outro algo da própria subjetividade e do próprio
desejo, que resta enigmático, pois que Lacan, no Seminário Mais,
ainda, volta a falar da barra e afirma: “A barra é precisamente o ponto
onde, em qualquer uso da língua, se a oportunidade de ue se
produza o escrito”.
25
A esse escrito voltarei no capítulo Letra e Traço.
Os significantes capaz e valorosa dizem algo de seu desejo, uma
tentativa de significação, mas não a representam, porque o “segredo”
de Cibele é o infeliz e obesa, é que ela se aliena. Cibele tem a
necessidade de inscrever na carne com uma libra de carne que se
paga sua entrada no campo do simlico), mas essa tentativa forçada,
a tatuagem, diz do sujeito no real, pois introduz, encarna significantes
soltos, deslocados, pois “a carne é o que falta ao corpo para se
totalizar e que por definição deve ser não especularizável, ou seja, não
cabe na imagem”
26
.
Em seu texto Radiofonia, Lacan mostra a oposição entre signo e
significante. O significante representa o sujeito para outro significante,
tese que Lacan sustenta até o final de seu ensino, enquanto o signo
representa o gozante, o sujeito que tem um corpo gozante, um ser de
gozo e diz que o sujeito que é representado pelo significante é o
mesmo que o corpo gozante representado por um signo. O signo
representa alguma coisa para alguém: “da incidência repetitiva na
24
Lacan,J. Seminário, livro 10. A angústia (1962-1963), p.19
25
Lacan, J. Seminário, livro 20. Mais, ainda (1972-1973), 1985, p. 48.
26
Idem.
36
formação sintomática, é na medida em que o que se repete está lá; não
apenas para preencher a função natural do signo, que é de representar
uma coisa que seria aqui atualizada, mas para presentificar como tal o
significante que essa ação se tornou. Digo que é enquanto o que está
recalcado é um significante que o ciclo do real se apresenta em seu
lugar”.
27
, No tatuamento o sujeito faz-se representar por um signo,
goza disso, muitas vezes num gozo de repetição, que faz aparecer algo
do desejo. É como diz Lacan no Seminário Mais, ainda: “Um sujeito,
como tal, não tem grande coisa a fazer com o gozo, mas por outro
lado, seu signo é suscetível de provocar o desejo”.
28
No mesmo Seminário a definição de signo é posta por Lacan e ela
serve para entender um pouco mais a questão da tatuagem e conduz
ao caso de Luciana que tatuou em seu braço esquerdo um coração
vermelho com uma espada verde atravessando-o, um signo recheado
de significantes que podem encontrar, inclusive uma re-significação
num trabalho de análise. Ela pistas durante a conversa que tivemos:
“essa é a única tatuagem que tenho que é de verdade, as outras são
enfeitinhos, essa é tradicional”. Lembrando que esse desenho
significa entre os presos na tradição da arte de tatuar, amor bandido”,
é preciso associá-lo a vários momentos da fala de Luciana. Ela conta
da experiência com o ex-marido, um bandido” que a espancava, do
quanto essas cenas de humilhação e desespero voltam à sua cabeça
constantemente, afirmando que o tema da nossa conversa, a tatuagem,
a remetia para o trauma anteriormente vivido: “a droga, a bebida...
27
Lacan, J. Seminário 9, A identificação(1961-1962), 2003, p. 77.
28
Lacan, J. Seminário, Livro 20. Mais, ainda (1972/1973), 1985, p. 69
37
acho que daria uma excelente traficante,uma bandida, minha família
sempre me criticou, mas eu escolhi estudar, trabalhar, mas hoje eu
posso pelo menos me tatuar e vir trabalhar de all star, não me
importo mais com o que dizem, eu me fiz assim e as tatuagens me
ajudaram nesse sentido”. E essa fala sugere que com a tatuagem
Luciana, finalmente, pôde encerrar na carne o gozo masoquista
daqueles espancamentos. É uma tentativa de dar sentido, mas não
como, até porque a tatuagem é gozo e o real está lá.
Pois está o real. Por mais que ela tente justificar a tatuagem de
outro modo “é o meu lado sombra, sempre tive um lado bandido”, em
seu discurso retornava o significante bandido, tornado signo: O signo
não é, portanto, signo de alguma coisa, mas de um efeito que é aquilo
que se supõe, enquanto tal, de um funcionamento do significante”.
Significante, que em sua materialidade, suporta o real.
O corpo real é o organismo que inclui a própria libido, que Lacan
chama de órgão. O organismo tem “um corpo completado o corpo
mais o órgão não corpóreo, que é a própria libido” (Miller). No
Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan
afirma que esse órgão, a libido, é incorpóreo por se articular ao real de
um modo que nos escapa. E uma das maneiras de encarnar no corpo a
libido, esse órgão irreal, é a tatuagem: o entalhe tem muito bem a
função de ser para o Outro, de situar o sujeito, marcando seu lugar
no campo das relações do grupo, entre cada um e todos os outros”
29
.
29
Lacan. J. Seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. p. 195.
38
O desejo, enigmático, está sempre em referência ao
reconhecimento do outro, é sempre desejo do desejo do Outro,
fórmula lacaniana que aponta para o reencontro de uma satisfação
primeira na qual a criança foi plenamente satisfeita. Esse suspense de
um possível encontro atualizado desse desejo transformado na
primeira experiência de gozo, insiste nas repetições que o sujeito faz
na vida. A dimensão do desejo aparece como intrinsecamente ligada
a uma falta que não pode ser preenchida por nenhum objeto real. O
objeto pulsional pode ser, portanto, um objeto metonímico do
objeto do desejo”
30
A fala de Valter, tatuador/tatuado, “quem se tatua uma vez não
para mais, na grande maioria das vezes, depois da primeira vem a
vontade de fazer a segunda e assim vai indo”, sugere que no ato
de tatuar uma repetição daquilo que, de alguma forma, faz sentido
para o sujeito. Por isso, vai sendo inscrita no corpo uma sucessão de
signos. Como já mencionado, o signo é um efeito de um
funcionamento do significante. Esse efeito é o sujeito
31
.
A causação do sujeito pode ocorrer por duas vias: pelo
significante ou pelo objeto a, representado pelos tropeços da
linguagem. Quando ocorre pelo significante, considerado causa
material do sujeito, acontece o que se denomina de determinação
simbólica, ou seja, o significante está endereçado ao automaton, à
repetição. Numa outra possibilidade, quando a causação subjetiva é
30
Dor. J. Introdução à leitura de Lacan: O inconsciente estruturado como uma linguagem. 1989, p.
142.
31
Lacan, J. Seminário, Livro 20. Mais, ainda 1972/1973), 1985, p. 68
39
decorrente de tropeços, ou seja, daquilo que não cessa de não se
escrever, de uma determinação real, o endereçamento é
inevitavelmente à tique, ao encontro. Ou seja, ora o sujeito pode ser
causado pela repetição significante, ora pelo encontro com o objeto a.
Posto que a tatuagem está inscrita numa ordem simbólica de
materialidade significante, o sujeito é causado pela marca simbólica
que o representa. O significante representa o sujeito para outro
significante. Então, o tatuar-se revela, a partir da escolha do desenho,
um sentido para aquele ato, uma busca de tentar dar sentido àquilo que
seria do real, por sua vez, um signo do gozo que “provoca” o desejo.
Cada desenho que Valter tatuou na sua pele (ele possui 80% do
corpo tatuado) corresponde a uma época de sua vida, o que fica claro
em seu relato: “quando resolvi sair do emprego eu tatuei uma flor de
lótus enorme no meu braço”. A flor de tus significa elevação,
expansão espiritual. Segundo ele, nesse momento estava
completamente deprimido e precisando mudar a sua vida, querendo
desligar-se dos bens materiais. Ao colocar essa simbologia na pele,
marca o desejo de mudança. Mas isso que chamo de desejo aqui, tem
uma conotação outra. Esse desejo não determinou seu ato, mas sim a
necessidade que se apresentará novamente numa situação instintual
de fazer signo, de furar a pele para tentar dizer algo da enunciação.
Pois que a tatuagem diz do simbólico, está ali para ser lida, mas na
ordem do enunciado. O que pode se apresentar como um gozo
encarnado no real atravessado pela linguagem e pela fantasia.
40
O sujeito que tem o impulso de tatuar-se o faz. A sua
organização psíquica altera-se, pois engana-se, porque é próprio do
sintoma sustentar o que foi recalcado. Em muitos casos, o incessante
“querer” inscrever no corpo signos advém de excitação oriunda de
uma necessidade interna, que responde com uma ação contínua. Essa
sucessão de tatuagens no corpo representa um movimento de repetição
que Lacan chama, em certa medida, de fala vazia”, “isto é, a fala
onde a antecipação da intencionalidade de seu autor, o seu caráter
fático ou meramente reprodutivo, impõe-se completamente ao dizer. É
a fala que parece não ser feita para ser escutada, mas meramente
ouvida.”
32
Nas entrevistas com tatuados percebe-se uma “falação” sem fim,
podem ficar horas contando sobre tal e tal desenho, sobre a
maravilhosa sensação de ter o corpo tatuado, histórias de vida,
momentos em que decidiram marcar o corpo. Mas não há um dito. Em
algumas entrevistas, mesmo não havendo o objetivo de análise, pude
escutar, com alguma pontuação minha, algo que remeteu ao dizer.
Nisso há um gozo e o “gozo mostra-se assim como uma satisfação
extraída da satisfação do outro. Mais especificamente, uma satisfação
mediada e interditada pela linguagem”.
33
A questão do UM é fundamental para pensar a questão da
tatuagem: Em Freud, o UM é correlativo ao pai morto da horda,
representante da castração. Negou-a e foi morto no próprio sistema
que fundou. Pai simbólico que transmite a dimensão fálica, cujo um
32
Dunker. C. O cálculo neurótico do gozo. 2002, p. 32.
33
Idem. p. 33
41
dos efeitos será retirar o menino da
sideração/perplexidade/petrificação provocada pela constatação de
UM vazio, de UM buraco no Outro materno, uma vez que faz
obstáculo à dupla incestuosa mãe-filho e dota o sujeito de UM
significante passível de fazer borda ao não-saber, dotando-o, portanto,
de uma letra de gozo (o Nome-do-Pai) capaz de nomear o buraco do
simbólico, tornando-o manipulável”.
34
Esse UM não leva, portanto, à
unificação do sujeito. É o significante Nome-do-Pai, impronunciável
e incognoscível, que é lançado para fora da cadeia. É o que Lacan
chamou de sua ex-sistência. Com isso, o desejo Outro vai permanecer
sempre um enigma, uma mensagem cifrada, e é então que a verdade,
não-toda, sai num dito. Há, conseqüentemente, um buraco
supostamente inabalável, o Outro: aquilo que ao Outro falta e ao
Outro faz falta, dando ao objeto o estatuto de objeto causa do desejo,
de esteio da fantasia, e também de resto, resíduo da perda na relação
do gozo com o saber, e de certo modo o único índice/indício de Das
Ding.”
35
O UM que traz a marca, a cifra do vazio, da ordem do real, e
também da lei simbólica. O UM: posto antes do termo e com o uso
de artigo indeterminado. Ele já supõe que o significante pode ser
coletivizado, que se pode fazer uma coleção, falar dele como de algo
que se totaliza”.
36
Lacan, nesse mesmo texto, aponta para o
fundamental que é perguntar sobre o significante UM e não sobre um
significante. O significado sobre o significante rateia”, pois os
34
Freire. M. A escritura psicótica. 2001, p. 152.
35
Idem
36
Lacan. J. Seminário Livro 20.Mais, ainda (1972- 973). P.29.
42
efeitos de significado m a conotação de não terem nada a ver com o
que os causa, porque o que causa tem a ver com o real, com a série”
significante que faz retorno ao UM. uma relação entre o traço
unário (primeiro dos significantes) que se marca como uma tatuagem
e opera numa contagem, impondo uma diferença que acaba por
singularizar o lugar do sujeito.
Valter tem o corpo quase todo tatuado, uma coleção! Ele fala
insistentemente sobre seus desenhos: “cada um tem uma história, eu
sei de cada um, o que cada um significa. Agora estou tatuando uns
tribais, mas não sei muito bem o que eles significam”. Ultimamente,
ele está apenas “decorando” a pele. Seria o acabamento de uma obra
que irá totalizar-se?
O significante coletiviza, o que é uma das funções da tatuagem.
Como diz Lacan no Seminário Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, a tatuagem tem também uma função erótica, pois encarna
o órgão, seja no corte, no perfurar, na cicatriz, falando de
masoquismo. O masoquista cultiva a dor e fazer tatuagem causa dor,
portanto, a dor infligida não é para obter prazer, mas para ir além dele,
para que as intensidades desencadeadas não se esgotem ali, na
descarga do prazer. É para que o corpo goze.
A tatuagem é uma forma de fazer borda. Denomina-se borda,
como diz Ana Costa
37
, toda a relação que situa as fronteiras corporais.
O homem, sempre inserido na cultura, insiste em fazer bordas, em
marcar fronteira em seu corpo com o Outro. Esse Outro que está
37
Costa. A. Tatuagem e marcas corporais. 2003.
43
recheado de cultura e que erotiza seu corpo. Segundo a mesma autora,
as bordas são o que possibilitam a relação com o ambiente, com o
outro e com a realidade. Nelas é que se fixam o olhar. O olhar que é
um empuxo pulsional que vem com a necessidade de se construir uma
imagem corporal a partir da demanda do Outro. O sujeito, para a
psicanálise, é aquele que se constitui da alienação fundamental com o
Outro, estabelecida a partir da matriz de nossas relações primárias.
Assim, as bordas corporais são, por princípio, “bordas sociais”, tendo
em vista que são efeitos de nossa relação com a linguagem, lugar
desse Outro primordial, que é, desde o início, produtora de laço social.
Dito isso, a questão de que a tatuagem possui uma dupla
condição: a de fazer orifício”, buraco, e a de somar elementos
estranhos ao organismo como compondo o próprio corpo,
erotizando-o. A tatuagem corpo a algo inapreensível. Essas duas
condições vão resultar num suporte, reconstituindo a imagem
corporal. Com isso, a constituição do olhar ou de um traço, do Outro
como exterioridade, apóia-se também na inclusão de uma
exterioridade, algo estrangeiro, no funcionamento do corpo. O que é
exterior aparece como signo do Outro e está posto no discurso social.
A função de erotizar da tatuagem relaciona-se com a questão do
traço unário, aquele que funda um posicionamento do sujeito no
mundo, dando-lhe erotismo ao seu funcionamento corporal, o nome da
marca unificante, “o um contábil que advém quando o sujeito se
desvia do espelho para buscar o testemunho da mãe (o olhar do Outro)
e recebe uma palavra (um significante) que confirma sua posição: “Tu
44
és isto”
38
. Dessa forma, a tatuagem põe em cena e pode representar um
valor totêmico, sustentando a singularidade e a coletividade: a
singularidade porque captura o olhar do outro e a coletividade por esse
olhar conferir identidade. Essas marcas na pele são elementos que
fazem o sujeito circular no social. A tatuagem tem a ver com a pulsão
escópica, é do olhar do outro que o sujeito, com as suas tatuagens, se
faz reconhecer. Luciana diz: “Eu faço minhas tatuagens para mim,
não importa o que os outros pensam ou se vêem, mas é uma delícia
quando alguém e diz que minha tatuagem é bonita, ou afalam
mal, mas olham”. Sandra Dias comenta que “no campo escópico, a
pulsão de ver marca uma cisão entre a imagem que se oferece para ser
vista e o objeto – o olhar como o resto, o que se perde no ver. O que se
oferece como imagem é a imagem especular i(a) o olhar como
objeto perdido, separado do corpo é, outra coisa a ver, ele está fora do
campo da representação”.
39
A pulsão tem relação com a necessidade de atualização, pois
coloca em ato a impressão primária das marcas corporais. Valter conta
que quando alguém decide fazer tatuagem, isso é algo “incontrolável,
absolutamente instintivo e animalesco, vem dos nossos primórdios”.
Esse tatuador/tatuado escuta dos seus clientes algo dessa ordem e
também considera essa uma das explicações para a sua vontade de
tatuar-se. As marcas registram um símbolo, um sem sentido, um traço,
uma letra que o nome próprio carrega. É o retorno da primeira
38
Dias. S. Paixões do ser: uma captura monstruosa.1995, p. 60
39
Idem, p. 73.
45
impressão simbólica. Mas é no capítulo Letra e traço que essa questão
será melhor trabalhada.
Mas os tatuados insistem em dar um sentido àquilo que é
impresso no corpo. Aparecem, então, novamente o signo e o
significante. uma desvitalização do corpo pelo significante e tal
fenômeno é evocado como signo. Pensando na tatuagem, a marca da
escrita inscreve significantes que se mostram como signos, pois o
signo não é, na teoria lacaniana, aquilo que representa alguma coisa
para alguém? Valter conta com orgulho sobre suas tantas tatuagens. E
em seu discurso existem significantes, como por exemplo, “droga”:
“Minha vida era uma droga; acho essa coisa de consumo uma droga;
me curei por causa da droga”. Valter faz uma correlação desse
significante “droga” com a tatuagem, pois diz: “a tatuagem e a droga
mudaram a minha vida, a tatuagem foi, por muito tempo
marginalizada;eu nunca fui uma pessoa comum, sempre fui diferente
do meu irmão, por exemplo, que é todo certinho, usa camisa e gravata
e trabalha em um emprego burocrático e tem seu salariozinho no fim
do mês; eu fui preso, uma droga, sei como são as coisas...” Nessa
fala, a tatuagem foi a escolha que Valter fez para localizar no seu
corpo uma imagem que o identificaria: É verdade que o corpo se
presta para receber a marca significante, a ser um lugar de inscrição a
partir do qual vai poder ser levado em conta por si mesmo”.
40
Insisto
aqui na formulação lacaniana de que o significante é a causa do gozo:
“Sem o significante, como abordar aquela parte do corpo? Como, sem
40
Soler. C. Los ensamblajes Del cuerpo. 2002, p. 119.
46
o significante, centrar esse algo que do gozo, é a causa material? Por
mais desmanchado, por mais confuso que isto seja, é uma parte que,
do corpo, é significada nesse depósito”.
41
Na tatuagem o gozo filtrado pela castração, tem o Falo como
fundamento do significante, o gozo fálico. Esse gozo, ligado à palavra,
efeito da castração, revela-se no falante: “O gozo fálico inscreve-se na
articulação do real, do que resta da Coisa, uma vez que se deslocou o
desejo, e o simbólico, que pode compor-se por meio da colocação em
palavras do gozo ordenado pelo significante. Entre um Outro e o
outro, o sujeito deve se inscrever”.
42
E como pensar na tatuagem como sintoma que faz signo e porta
significantes? Sidi Askofaré, em La révolution du symptôme, alerta
que Lacan faz diversas elaborações para esse conceito: o sintoma
como significante, um “andaime” de significantes, metáforas; o
sintoma como gozo; o sintoma como signo, um misto de significante e
gozo; o sintoma como letra, o sintoma como função de existência do
inconsciente; o sintoma como quarta consistência do borromeano.
Pois bem, o sintoma possui um sentido e o sentido cria “problemas”
para o sujeito, que ele sabe alguma coisa sobre isso, é um sem
sentido, como ocorre no tatuamento, que não passa pelo real que
causa.
43
Lacan traz em Subversão do sujeito e dialética do desejo, um
episódio exposto no capítulo anterior num contexto histórico.
41
Lacan, J. Seminário 20. Mais, ainda (1972/1973), 1985, p.36.
42
Braunstein. N. Gozo. 2007, p. 106.
43
Askofaré. S. La révolution du symptôme.
47
Trata-se dos homens que portavam em seu couro cabeludo uma
tatuagem inscrita enquanto dormiam e por isso ignorada, para levar
mensagens que, após decifradas o mensageiro era morto. Aqui, ele faz
uma menção ao instinto e à pulsão em Freud. A pulsão tem um saber,
mas que não leva consigo o conhecimento. Ao contrário, o instinto é
puro conhecimento sem saber. No caso da cabeça tatuada, é
efetivamente um saber, porque está no discurso e serve à decifração.
Esse elo da pulsão com a tatuagem mostra que o corpo porta traços,
sejam eles invisíveis ou incompreensíveis, mas endereçam à uma
leitura. Portanto, marcar o corpo esboça a ligação entre o olhar e uma
alusão à decifração. Faceta importante na tatuagem: a busca de um
lugar no amor do outro através da leitura e da decifração.
O ato de tatuar-se vem de uma indeterminação e alcança uma
posição de enunciação singular. A indeterminação entra em causa na
ausência, na qual o sujeito está entregue ao outro e faz do corpo
próprio o veículo dessa entrega. São complementares. A relação do
tatuador e tatuado representa uma não determinação de fronteiras: “No
suporte do tatuador o sujeito se ausenta de seu corpo e pode gozar no
que está acontecendo como se fosse um terceiro. Essa é a condição,
descoberta por Freud, do erotismo, da posição que ocorre no
masoquismo primário”.
44
Em uma visita ao estúdio de Valter,
encontrei um de seus clientes. Imaginei que os dois eram amigos de
longa data, vendo a total intimidade entre eles. Descobri depois, que
44
Costa, A. tatuagem e marcas corporais. 2003, p. 21
48
eles haviam se encontrado apenas quatro vezes, nos trabalhos da
tatuagem de Felipe: “Ele é meu brother, o que ele fez foi incrível”.
Parte 2 – Tatuagem: história, sociedade e cultura
Rio de Janeiro, ano de 1908. João do Rio publica o livro A alma
encantadora das ruas, série de crônicas sobre a cidade. Entre os
títulos, “A Tatuagem”, onde chama a atenção para as transformações
dos significados, nos diferentes lugares e desde tempos longínquos. Se
para alguns homens significou distintivo honorífico, para outros,
ferrete de ignomia. Para os bretões, meio de assustar adversários,
marca de uma classe para os selvagens das ilhas Marquesas,
vestimenta moralizadora para os íncolas da Oceania, enfeite na Nova
Zelândia.
Mas João do Rio não se atém à pesquisa histórica. Observa as
personagens das ruas, para ele lugar de tolerância e liberdade, e acaba
por compreender a tatuagem como a inviolabilidade do corpo:
“quase todos os rufiões têm na mão direita entre o polegar e o
indicador, cinco sinais que significam as chagas. Não há nenhum
que não acredite derrubar o adversário dando-lhe uma bofetada
com a mão assim marcada. O marinheiro Joaquim tem um
Senhor crucificado no peito e uma cruz negra nas costas.
49
Mandou fazer esses símbolos por esperteza. Quando sofre
castigos, os guardiões sentem-se apavorados e sem coragem de
sová-lo.” e história das paixões “Madruga teve três dessas
senhoras a Jandira, a Josefa, e a Maria. A primeira a figurar
debaixo de um coração foi Jandira. Um belo dia a Jandira
desapareceu, dando lugar à Josefa. Um mês depois a letra J
sumira-se e um M dominava o meio do coração.”. Mas, intrigado
com o fenômeno, afirma sobre uma personagem: ...e Eduardo
com a âncora e com o dragão no braço esquerdo é por si um
problema de psicologia e de atavismo.” (p.17)
Em sua opinião, havia na cidade três tipos de tatuagem com
conotações totalmente diferentes na sua significação moral: a dos
negros, a dos turcos
45
e a das meretrizes, rufiões e humildes. Os
negros permaneciam com o fetiche, guardando o corpo do mau
olhado, usando figuras complicadas. Entre os turcos, os maronitas
pintavam iniciais e corações, os cismáticos ícones primitivos de Santo
de Igreja Ortodoxa, sendo também muito comum entre eles, cinco
franjas azuis tatuadas nas mãos representando o manto usado na
religião israelita, a Taleth.
O terceiro grupo, mais numeroso, de vendedores, ambulantes,
operários, criminosos, rufiões, meretrizes, somado aos outros dois,
provocou o aparecimento de profissionais do ramo, com chefes,
subchefes e praticantes, como uma empresa improvisada. Os preços,
45
Turco é termo genérico para os muçulmanos, maronitas, cismáticos, judeus, ortodoxos. p. 18
50
vários, e várias as maneiras de tatuar: por picadas, incisão, por
queimadura subepidérmicas. As incisivas trazidas pelos negros como
tradição africana. As por picadas são feitas com três agulhas
amarradas e embebidas em graxa, tinta, anil ou fuligem,
acompanhando desenho prévio. O marcador trabalha como as
senhoras bordam”. Também tatuavam-se os próprios tatuadores,
marcando o corpo com o nome dos seus amores e ao fim do romance,
retirando as marcas com “leite de mulher e sal de azedas”, dando
lugar a outro nome, ao novo amor.
Observações esclarecedoras e pertinentes as de João do Rio.
Dizem respeito, porém, a um determinado local e a uma determinada
época. Faz-se, então, imperativo ir além, pois como ele mesmo nos
alerta, são grandes as transformações, tantos são os motivos das
marcas no corpo: Do acontecimento individual e histórico distingue-
se assim a estrutura intemporal do inconsciente que se reduz a uma
função, a função simbólica. A estrutura permanece e é através dela
que a função simbólica se cumpre”
46
. um mito inicial individual
que está em permanente ligação com o mito social. O funcionamento
entre essas duas dimensões se dá numa relação de causa e efeito.
Os motivos marcados pela literatura de João do Rio, permitem
entrar na questão do tatuamento no sentido em que essa ação pôde ser
praticada em tempos diferentes e conceber os signos e identificações.
E para uma análise mais precisa dessa prática, paralelamente ao olhar
46
Lacan, J. O mito individual do neurótico, 1987, p.15.
51
psicanalítico, torna-se indispensável abrir um panorama
histórico,cultural e social.
Importante é pensar, de início, a questão do signo: uma tatuagem
porta um signo. Em seu livro, As palavras e as coisas, Foucault fala
sobre a distinção dos signos, o que faz instituí-los como signos
(semiologia), e também do conhecimento que permite falar dos signos
e descobrir seu sentido (hermenêutica).
O autor diz que a linguagem dos signos traz consigo a natureza
das coisas e o seu encadeamento comunica de forma diferente, mas
carrega uma semelhança, que é possível numa rede de signos: “É
que está a natureza e é isso que é mister aplicar-se a conhecer. Tudo
seria imediato e evidente se a hermenêutica da semelhança e a
semiologia das assinalações coincidissem sem a menor oscilação”.
47
As oscilações não são sem conseqüências, pois a semelhança nunca é
estável em si mesma: “só é fixada se remete a uma outra similitude
que, por sua vez, requer outras... É, pois um saber que poderá, que
deverá proceder por acúmulo infinito de confirmações requerendo-se
umas às outras”.
48
Esse trecho remete à cadeia significante que Lacan
apresenta, um saber que se sabe por um acúmulo deles.
A questão do social e do individual, portanto, podem ser levadas
na mesma medida, pois que os signos carregam um sentido, conhecido
ou não. Mas o sujeito, diferentemente do indivíduo, porta as marcas
do social, incorporam-se os traços, os significantes nele inscritos,
marcando que o real, o impossível de dizer, comporta uma
47
Foucault, M. As Palavras e as coisas”, 2002, p. 41.
48
Idem
52
particularidade. Tanto é que Foucault diz que a linguagem tem por
função nomear, suscitar uma representação, ligando as coisas por uma
marca, mas também atribui signos que a cultura apreende.
De épocas muito antigas até os dias atuais, o homem usa o corpo
como linguagem, escrevendo na sua pele através de símbolos,
momentos marcantes da sua vida. O corpo é enfeitado buscando a
beleza, muitas vezes a pertença em um grupo ou uma posição
transgressora. Mas a tatuagem também põe a marca da crueldade nos
homens, trazendo uma mensagem de submissão imposta pelo grupo
opressor. Historicamente, se em algumas sociedades é utilizada como
um rito de passagem, de iniciação ou com características doutrinárias,
em outras traduz o signo da exclusão colocando no limbo social os
escravos, os criminosos, os prisioneiros, inclusive os de campo de
concentração, como é o caso dos judeus na segunda guerra: um
castigo pela vida afora...
Os desenhos das tatuagens têm um significado, muitas vezes
definido pela tradição ou pelo contexto cultural e apresentam, mais
que o significado delas, o significante e o gozo que convoca o sujeito
à marcação do corpo. Para tanto, faremos um breve percurso sobre a
questão do totemismo, para introduzir elaborações a respeito da
tatuagem e do ato de tatuar-se.
No Seminário da Identificação, Lacan acrescenta à descoberta
de Lévi-Strauss o caráter radical da constituição significante”, pois
que a adoração de um totem o está somente no pensamento
53
selvagem, na questão ritualística do ensejo cultural. O efeito da função
do totem apresenta um caráter significante para o sujeito.
Ao mesmo tempo, Lévi-Strauss estabelece em seu livro O
pensamento selvagem
49
que as crenças e os costumes heterogêneos no
totemismo não podem basear-se em uma relação entre um ou vários
grupos sociais e um ou vários domínios naturais, e introduz esquemas
classificatórios que nos permite apreender o natural e o social sob a
forma de uma totalidade organizada”. Mesmo não entrando nos
pormenores desses esquemas classificatórios, é importante colocar que
qualquer classificação apresenta um caráter comum, ou seja, deve-se
analisar o sistema global de referência que opera através de um par
de contrastes, de um lado, entre geral e especial, de outro, entre
natureza
50
e cultura”
51
de determinada sociedade.
Lévi-Strauss utiliza a tese de Van Gennep na qual esclarece que
cada sociedade ordenada a seu modo, classifica seus membros
humanos, os objetos e os seres da natureza, ressaltando que não as
sociedades totêmicas m um sistema de classificação, pois que “é
igualmente, um dos elementos primordiais de seu sistema de
organização social geral e reage, nessa qualidade, sobre as instituições
49
Lévi-Strauss, C. O pensamento selvagem (1908), 1989, p. 155.
50
Lévi-Strauss afirma que a natureza não tem existência própria, pois seu sentido é dado a partir das
técnicas e do gênero de vida da população que a exploram numa determinada direção. A natureza não
é contraditória em si, , depende dos termos da atividade humana particular de cada cultura, assim
sendo, as propriedades do meio adquirem significações específicas relativas a forma histórica e
técnica de que se reveste uma atividade. Assim, são promovidas ao nível humano que lhes confere
inteligibilidade, “as relações do homem com o meio natural desempenham o papel de objetos de
pensamento; o homem não as percebe passivamente, ele as tritura depois de tê-las reduzido a
conceitos, para deles inferir um sistema que nunca é predeterminado: supondo-se que a situação seja a
mesma, ela sempre se presta a várias sistematizações possíveis”. Idem, p. 111.
51
Idem, p. 155/156.
54
mágico-religiosas e laicas tais como o sistema de orientação, o
dualismo chinês e persa...”
52
Em Totem e tabu, Freud estabelece a inter-relação entre o
funcionamento do psiquismo humano com a organização social em
que o sujeito está inserido. Nesse texto o autor trabalha duas questões
que se cruzam: as relações aos totens e aos tabus nas sociedades
primitivas. O que interessa aqui é pensar sobre a crença no contágio e
o tabu do contato na neurose obsessiva, que cria uma série de rituais
restritivos, de privação.
Essas proibições tentam ser superadas pela realização de determinados
atos, que se tornam, por sua vez, obsessivos. Esses atos trazem, em si
mesmos, dois tempos, porque são tanto de expiação como de defesa.
Então, se ao tatuar-se, o sujeito busca uma nova experiência igual, é
porque há necessidade de colocar um basta nas proibições, nos tabus.
Marca inscrita no corpo, a tatuagem, feita através de métodos de
furar a pele para inserir pigmentos e formar imagens, é definida por
Breton como “ uma maneira de tomar o corpo no lugar da palavra para
dizer ao mundo sua recusa ou afirmar sua diferença”.
53
E João do Rio
diz que Esses riscos na pele dos homens e das mulheres dizem de
suas aspirações, das horas de ócio, e a fantasia da sua arte e a crença
na eternidade dos sentimentos são a exteriorização da alma de quem
os traz”.
Expressão no corpo e maneira de mudar a relação com ele, essas
inscrições não têm origem na civilização ocidental, não são novidades
52
Gennep, V. Apud Lévi-Strauss, C. In O Pensamento selvagem (1908), 1989, p.184.
53
Le Breton, D. Signes d’identité. 2002, p. 34.
55
do universo contemporâneo e nem sempre estiveram a serviço da
estética, havendo, além da beleza, outras implicações, embora seja
registrada, no decorrer dos tempos, uma constância nesse sentido. É o
caso dos índios brasileiros para os quais, segundo Claude Levy-
Strauss, as tatuagens ou qualquer tipo de adorno tinham o simbolismo
da beleza.
O culto à beleza acontece nos primórdios da civilização. E
antropólogos, paleontólogos, cientistas que se propuseram a desvendar
os costumes de épocas remotas, concluíram que o corpo possibilita,
desde então, a expressão e a oportunidade de vivenciar o belo. O culto
à beleza, no entanto, sempre mais explorado pelas mulheres, enquanto
os homens portavam a tatuagem para se sentirem fortes e poderosos.
Em Políticas do corpo, Sant’Anna conta no capítulo “Só é feia
quem quer” sobre a busca da beleza pelas mulheres desde o ano de
1900, quando a vaidade excessiva era para artistas e libertinas: “o
importante é ressaltar a mulher bela, que desde então ousa reinar
sozinha em fotografias coloridas ocupando páginas inteiras de
revistas, sem tristeza e, sobretudo, sem passado.”. Para as outras não
havia a permissão da cultura.
Cada vez mais, no entanto, não apenas as mulheres, sejam elas donas
de casa, profissionais, de baixa ou alta renda, mas também os homens,
procuram soluções para a beleza do corpo, de acesso cada vez mais
facilitado pelas muitíssimas formas tecnológicas, como as cirurgias
plásticas, as ginásticas, a musculação, a body art, o piercing e... a
tatuagem. Recursos muitas vezes artificiais aos quais escapa uma
56
subjetivação. Recursos vindos da oferta do capitalismo, opções atuais
que a cultura oferece e estimula, sempre em comunicação com as
culturas ancestrais e que inscrevem no corpo o imaginário particular.
Para Sant’Anna é “inútil retroceder a um suposto grau zero das
civilizações para encontrar um corpo impermeável às marcas da
cultura.”
Leusa Araujo em seu livro, Tatuagem piercing e outras
mensagens do corpo, concebe uma idéia interessante, a de que o
homem, diante da beleza dos animais, admirou-se com a sua própria
pele lisa “sem desenhos, a cara sem bico, a cabeça sem enfeites. Pior:
nenhum sinal no corpo que dissesse aos outros animais quem, afinal,
ele era”.
54
Desse olhar para o próprio corpo surgiu o desejo da
diferença. Daí proviria os experimentos de mistura de de
madrepérola na pele, de urucum com gordura para conseguir tinta
vermelha e, usando um pincel de lascas de madeira adornarem seu
corpo. A técnica foi aperfeiçoada para que a tinta não saísse mais, e
então, com uma espinha de peixe pontuda, inseriam a tinta por baixo
da pele.
em civilizações antigas, paleontólogos sustentam a presença
de inscrições gravadas no corpo. Victoria Lautman em seu livro The
new tattoo, registra que em 1991 um caçador descobriu, nos Alpes
italianos, um cadáver de cinco mil e trezentos anos, “homem do gelo”,
com 50 inscrições tatuadas nas costas e nas partes traseiras do joelho.
Múmias egípcias do sexo feminino foram descobertas com linhas e
54
Araujo, L. Tatuagem piercing e outras mensagens do corpo. 2005, p. 11.
57
pontos tatuados no corpo e um círculo salientando o abdome. É o caso
da múmia egípcia Amunet, encontrada em Tebas, que viveu 4 mil
anos atrás e sacerdotisa de Hathor, a deusa do amor.
Ainda no livro de Lautman, estão relacionadas descobertas de
1948 sobre uma escavação em Pazyryk, na Sibéria, onde um corpo
bem preservado foi encontrado com motivos figurativos tatuados em
forma de peixes, ovelhas e carneiros.
William Caruchet, pesquisador de tatuagens, autor do livro Le
tatouage ou le corps sans honte, aborda os procedimentos e
significações marcantes quanto à estética e importância da tatuagem
em algumas culturas. Na Nova Zelândia, diz o autor, a tatuagem é
muito profunda e precisa, a beleza que as envolvem tornam-nas
obrigatórias para as mulheres , havendo, inclusive, a impossibilidade
de se conquistar um homem e ser-lhe atraente fisicamente, sem ter o
corpo tatuado. Mas o inverso também acontece, um homem somente
torna-se atraente para a mulher depois de ter passado pelas mãos de
um tatuador.
No livro Le vêtement incarné, France Borel retrata sua pesquisa
sobre tatuagens em diferentes culturas e diz dos significados dessa
prática. Na Polinésia, a tatuagem é um símbolo de classe social. No
Taiti, um traço de embelezamento. Para os Maoris, na Nova Zelândia,
a tatuagem está imbuída de força sagrada e aqueles que as têm no
corpo possuem status diferenciado na sociedade. No ocidente, Borel
conta que, no século XIX, a prática da tatuagem torna-se muito
apreciada entre a nobreza, principalmente. A inscrição no corpo seduz
58
e, é também por isso, que se dissemina no mundo ocidental, inclusive
entre a nobreza, como é o caso dos filhos da rainha Vitória que em
1822, fazendo uma viagem pelo mundo, passam pelo Japão e tatuam-
se levando, depois, outros nobres a esse país para tatuarem-se também,
apesar do desagrado da rainha.
Os japoneses, especialistas em tatuagem, regulamentam a prática
no século XIX. Além da tatuagem comum, existe no Japão a
chamada “kakoushibori”, ou seja, a tatuagem escondida: mais
freqüente entre as mulheres, é feita com pó de arroz ou óxido de zinco
e aparece somente em algumas ocasiões.
Na população carcerária, a tatuagem é uma prática freqüente,
podendo ser um digo obrigatório, representando lideranças ou
hierarquias, ou voluntário. Os presos fazem do corpo seu único espaço
de liberdade o que, no entanto, não é exclusividade deles: o corpo
torna-se o único espaço próprio do sujeito. A pesquisa do psiquiatra
Moraes Mello, nos anos 1920, na extinta Casa de Detenção
Carandiru, em São Paulo, constata mais de três mil diferentes marcas
tatuadas entre os detentos. Nessa situação carcerária, ela cumpre
alguns papéis: encobrir cicatrizes de facadas, acidentes e furos de bala,
servindo, tamm, para marcar o “tipo” de crime daquele detento:
ladrão, estuprador, traficante e assim por diante. Para os homossexuais
passivos a imagem de um coração e o escrito “amor de mãe” é tatuado
na mão.
Tais inscrições vêm de longa data nas prisões e permanecem
populares entre os soldados, os detentos, as prostitutas e marinheiros,
59
indivíduos considerados à margem da sociedade, que possuem um
estigma de identidade. O signo imprimido na pele os coloca num
estatuto assumido e, dessa forma, têm o corpo como lugar da palavra,
que diz ao mundo sua diferença. Como se a tatuagem fosse uma
repetição, uma confirmação de uma vontade reativa de permanecer
fora da sociedade: “proclamação pelo corpo dos princípios que
orientam a existência”
55
. A pele sustenta e porta a palavra. Breton, em
Signes d’identité, afirma que a tatuagem não marca somente a pele do
marginal como uma arte ou uma proclamação de existência, ela faz
com que a atenção se volte para ele, tornando-o rapidamente
identificável. É o que ele chama de “as marcas da infâmia”.
E Lacan, no Seminário A Identificação, nos apresenta essa frase:
“há a identificação ideal e depois há a identificação do desejo ao
desejo”, e voltando à Freud lembra do que ele aponta sobre a
identificação coletiva, algo como uma espécie de convergência da
experiência pelo traço unário que “reflete-se na unicidade do modelo
tomado como aquele que funciona na constituição dessa ordem de
realidade coletiva que é a massa”
56
.
Tatuar escravos e prisioneiros é prática corrente em muitos
regimes autoritários. Desde a época clássica, na Grécia os escravos são
tatuados com o nome do seu Senhor. Escravos fugidos e recapturados
têm na testa a mensagem tatuada: “pare-me, sou um fugitivo”. Em
Roma, os gladiadores levam a marca de seus crimes no corpo. Hervé
Tenenhaus, em seu livro Le tatouage à l’adolescence registra também
55
Idem, p. 35
56
Lacan, J. Seminário A Identificação (1961-1962), 2003, p. 406.
60
que chefes do estado grego raspavam a cabeça dos escravos, tatuando-
as com mensagens secretas, para quando o cabelo crescesse fossem
mensageiros em missões arriscadas.
Durante a escravidão negra no ocidente, 1690/1890, muitos
escravos são marcados a ferro quente com as iniciais do proprietário,
como modo de identificação em caso de fuga e com outros tipos de
marcas em casos de delitos. O corpo do escravo perde a sua
autonomia. Muitos países como a Alemanha, Suécia, Holanda,
Espanha, Estados Unidos e Brasil adotam tal rotina. Na França o
código Noir de Colbert (1685), determinando que o escravo fugitivo
deverá ser marcado com uma flor de Lis e ter a orelha cortada.
Havendo reincidência, outra flor de Lis será inscrita em seu corpo. No
caso de compra de escravo, a marca do proprietário é tatuada nele,
tornando-o portador do autoritarismo do seu dono.
Rabary, autor do livro Tatouage et détatouage, conta que, além
dos escravos, as prostitutas também são punidas, marcadas com ferro
em brasa com a inscrição de uma flor de Lis, durante o reinado de Luis
XIV. Esse o segredo de Milady descoberto por D’Artagnan, único a
saber de seu infortúnio porque, ao tentar retê-la, vê em seu corpo a flor
de Lis.
No reinado de Luis XV na França, o enfraquecimento dos
soldados perante os militares é punido com uma inscrição em ferro
quente nas costas. Abolida em 1791, essa prática, retomada por
Napoleão em 1910, adquire novas regras: as letras TP são infligidas
61
aos condenados a trabalhos forçados, a letra F imputada a um falsário.
Em 1852 um decreto proíbe essa prática na França.
Em 1829 a Inglaterra abole o ato de marcar os desertores com a
letra D com ferro vermelho na testa ou nas mãos fato, até então,
comum. Assim como os ladrões e as prostitutas, os adúlteros são
punidos com a letra correspondente aos seus “delitos”. Mas, como diz
Breton, a tentação de marcar fisicamente para submeter o indivíduo ao
olhar do outro, retorna: na Alemanha nazista marca-se os corpos dos
presos em campos de concentração. Breton registra, mais
recentemente, a proposta de políticos de extrema direita querendo
marcar, ou ainda, estigmatizar com um signo de identificação, a testa
daqueles portadores do vírus HIV, com o intuito de provocar a
desconfiança e designá-los como “perigosos” para seus parceiros.
Interessante colocar aqui a dialética do senhor e do escravo
elaborada por Lacan, na qual trabalha, através do discurso do mestre,
essa relação dominado-dominante que persiste nas culturas e seus
sistemas, como abordado acima. O escravo, seja ele escravo mesmo,
ou prostituta ou soldado, faz reconhecer e sustentar o mestre, aquele
que sustenta a dominação. É a relação fundamental S1 S2, o S1
torna-se significante-mestre apenas na cadeia de significante, pois fora
dela, ele nada é. Se não escravo, não mestre, e essa dialética se
sustenta pelo reconhecimento ideal e identificatório ao líder. Então o
escravo sabe de seu lugar e de sua relação com o mestre, é ele que
detém o saber. Mas, esem jogo também o gozo, um resto de gozo
perdido, que é transformado pela ação do significante. Em O avesso
62
da psicanálise, Lacan aponta para a verdadeira estrutura do discurso
do senhor: O escravo sabe muitas coisas, mas o que sabe muito mais
ainda é o que o senhor quer, mesmo que este não o saiba, o que é o
caso mais comum, pois sem isto ele não seria um senhor”.
57
Para as religiões judaica e cristã, a tatuagem, na antiguidade,
torna-se um signo de estigmatização. Ao matar Abel, Caim ouve do
Senhor:
“Agora, pois, serás maldito sobre a terra, que abriu sua boca e
recebeu o sangue de teu irmão da tua mão. Quando tu a
tiveres cultivado, ela não te dará os seus frutos. Tu andarás
vagabundo e fugitivo sobre a terra. E Caim disse ao Senhor: O
meu crime é muito grande, para alcançar o teu perdão. Tu me
lanças hoje fora da terra; e eu serei obrigado a me esconder
diante da tua face; e andarei vagabundo e fugitivo na terra. O
primeiro, pois, que me encontrar matar-me-á. Respondeu-lhe
o Senhor: Não será assim, mas todo o que matar a Caim, será
por isso castigado sete vezes em dobro. E s o Senhor um
sinal em Caim, para que ninguém, que o encontrasse, o
matar.”
58
O Senhor inscreve um sinal no corpo do primeiro “pecador” e o
marca com a insígnia da eterna culpabilidade, mas por outro lado, o
protege contra qualquer vingança. Nesse simbolismo bíblico a
tatuagem carrega a interdição religiosa, pois se o Senhor imprime uma
57
Lacan, J. Seminário, Livro 17. O avesso da psicanálise(1969-1970), 1992, p. 30.
58
Gênesis, 4, p. 4.
63
marca tatuada no pecador, o homem não poderá, ele mesmo, tatuar-se.
É o que lemos no livro sagrado dos cristãos, Pentateuco e judeus,
Torah
59
: Não fareis golpes na vossa carne, pranteando mortos; nem
fareis figuras algumas, nem marcas sobre o sobre o vosso corpo”.
60
Submetidas à escritura sagrada, as religiões Judaica e Cristã
proibiram a prática de inscrição de marcas na pele. Mas em alguns
períodos da história a tatuagem funciona como uma alternativa segura
de identificação e documento de para os cristãos. Gilles Rabary
mostra que essa prática foi utilizada durante as vigílias na Terra Santa
contra ataques mulçumanos, do oitavo ao décimo culo DC. Aos que
partem nessa missão, uma cruz é tatuada na parte interna do braço,
garantindo, assim, um sepultamento cristão aos que morrem em
território mulçumano. Mesmo com a reprovação da Igreja Católica,
essa prática retorna na Idade Média, durante o período das
peregrinações à Jerusalém. Peregrinos têm o hábito de tatuar sua fé na
forma de uma imagem religiosa. Essas tatuagens, ainda hoje, são
souvenirs daqueles que vão à Jerusalém e Belém. A imagem da
Virgem Maria e a cabeça de Cristo são testemunhos de fé, diz Ribary.
O Islamismo, a terceira religião monoteísta, também proíbe esta
prática. Lê-se no Alcoorão, o seu livro sagrado: “a tatuagem é uma
marca satânica, causa maldição, as abluções rituais não têm nenhum
59
O Livro sagrado dos judeus é a Torah. O Pentateuco, formado pelo Gênesis, Êxodo, Levítico,
Números, Deuteronômio, é o Antigo Testamento da Bíblia Cristã. nesis é o primeiro livro que trata
da origem do mundo; Êxodo, palavra de origem grega que significa saída, trata da saída dos judeus do
Egito. Levítico, o terceiro livro, fala da escolha de Deus pelo povo de Levi e contém a legislação
mosaica (pureza legal, santidade dos sacerdotes, votos e dízimos); meros, o quarto livro, fala do
senso do povo judeu, um ano após a saída do Egito; Deuteronômio, o quinto livro, significa segunda
lei, porque repete e explica a lei do Monte Sinai.
60
Segundo Tenenhaus, essa proibição bíblica referia-se, possivelmente, a uma prevenção de ordem
sanitária por causa da transmissão da lepra, pois ela está nas normas da lei para a purificação dos
corpos contra a lepra. (s/d, p. 26)
64
efeito sobre a pele tatuada”. (apud Rabary, s/d, p. 33) O corpo deve
ser imaculado para entrar na casa do Senhor e receber a benção de
Alá.
Ainda em Signes d’identité, Breton relata a interdição das
religiões monoteístas, que alimentam por muito tempo a imagem
negativa da tatuagem: a integridade e a recusa de qualquer inscrição
no corpo é tida como submissão total aos desígnios de Deus e de
fidelidade à criação divina. No Levítico
61
está escrito: “Não farás
incisão no corpo por um morto e não farás tatuagem”
62
. O
Deuteronômio repete o mesmo alerta sobre as inscrições no corpo. No
Apocalipse está escrito que a marca é de origem divina, ela não vem
dos homens, mas sim daqueles predestinados à Besta. A marca
envolve o ser do homem e não somente a sua carne, o batismo já é um
signo suficiente para atestar a fé, não havendo necessidade de repetir
um outro signo na pele.
Sempre houve, no entanto, aqueles que inversamente, por uma
razão ou outra, querem afirmar a sua marginalidade e a sua
indiferença aos julgamentos das religiões e dos outros. É a tal da
recusa ao totem comentada em parágrafos anteriores.
Para Breton, “as tatuagens religiosas de inspiração católica são
formas de identificação ao sofrimento de Cristo”.
63
Talvez por isso
tatuar-se, para a Igreja Católica torna-se, eventualmente lícito, desde
que não haja nenhuma conotação pagã. É o caso dos primeiros cristãos
61
Levítico é o terceiro livro do Pentateuco.
62
In: Le Breton, David. Signes d’identité, 2002, p. 24. Tradução minha.
63
Idem, p. 35.
65
que escreviam sobre a pele signos de reconhecimento como a cruz, e
dos guerreiros da antiguidade que frequentemente portam uma marca
de filiação.
Ana Costa nos mostra um panorama muito interessante sobre
essa questão: religião e corpo. Ela diz:
“essas relações constituem o cerne da própria representação e
suporte do corpo em cada época e laço social. O sagrado, por ser
desde sempre cerne de uma ambigüidade, é o lugar desde onde
se representa uma clivagem nas diferentes culturas. A clivagem
em causa é o ponto de junção/separação entre sublime e
degradado... A recusa que cada um precisa fazer disso que o
próprio corpo porta do recusado social traz-nos diferentes efeitos
e expressões.”
64
Os islâmicos também sustentam uma posição ambígua: por
tradição, sociedades anteriores ao Islã recorrem à tatuagem e a religião
acaba impotente para suprimir tal costume entre alguns povos, como
os beduínos. O Alcoorão não interdita, mas deixa claro: a alteração da
criação de Deus é uma falta imperdoável. O respeito ao corpo e sua
integridade é uma exigência sagrada.
A palavra tatuagem é relativamente recente. É James Cook, em
1769 que a introduz no ocidente: no Tahiti, homens e mulheres pintam
o corpo, injetando pigmento preto sobre a pele. O explorador inglês
64
Costa, A. Tatuagem e marcas corporais. 2003, p. 31.
66
registra seu espanto ao observar os nativos ostentando desenhos na
pele ao invés de roupas. Em seu diário de bordo escreve “os índios
injetam tinta preta na pele, deixando traços permanentes. Todos
exibem suas tattoos com muito orgulho”.
Na ocasião, usam para as inscrições, um tipo de pequeno ancinho
de cabo de madeira, um pente de osso humano com a borda dentada e
batem sobre o ancinho com um pedaço de pau. O procedimento é
chamado de tattou ou totahou, e muitos dizem que a palavra surge do
ruído perceptível da agulha na pele: tac, tac, ecoados dos golpes no
ancinho. Passa para o inglês como tattaw, dando origem à palavra em
português. Também, segundo Toni Marques em O Brasil tatuado e
outros mundos, ta, a raiz da palavra, significa golpear, bater.
É ainda Cook quem revela ao mundo a tatuagem moko, em
suas primeiras expedições às ilhas da Nova Zelândia, onde o tráfico
de cabeças tatuadas dos Maoris e seus desenhos impressionantes é
intenso: são espirais tão profundas na pele que mais parecem entalhes
em madeira. Cobrem todo o rosto dos guerreiros e nobres num ritual
que dura anos. Os europeus tomam gosto por colecionar essas cabeças
e tal exotismo passa a ser um mercado tão rentável, a ponto de fazer
com que os chefes Maoris ordenem tatuar seus escravos antes de
decapitá-los, para comercialização. Para Hervé Tenenhaus essa talvez
tenha sido a razão pelo desaparecimento das tatuagens Maoris.
Esse mesmo autor na obra Le tatouage à l’adolescence, conta
sobre o reaparecimento desse gosto de colecionar pele humana tatuada
nos anos da barbárie nazista: uns mandam fazer abajures e outros
67
colecionam as peles tatuadas dos mortos dos campos de concentração.
Em sua tese de doutorado, Célia Antonacci Ramos pesquisa as nazi-
tatuagens e afirma que “as recordações ou injúrias sofridas ou
infringidas são e serão sempre traumáticas”, mas existem versões nas
quais os inflingidores, os criminosos nazistas, procuram sistematizar
uma história para atenuar a culpa e ou a pena. Todos os procedimentos
são passiveis de serem adulterados, minimizados, construídos... Na
inversão dos fatos mais uma vez castigam, ferem e ofendem os judeus
sem registros efetivos. Mas o que dizer da tatuagem?
A questão é de suma relevância para o presente trabalho, que se
propõe a pensar as marcas e a cultura, pois afinal essa mensagem não
verbal escrita na carne é da ordem do impossível de apagar ou
esquecer, porque impossível construir uma falsa verdade em cima
daquilo que está marcado no corpo. Em depoimento para Ramos, uma
entrevistada marcada com a insígnia do poder nazista, tatuada com um
número na pele, diz: “Muitas vezes os jovens me perguntam por que
não a retiro, e isso me espanta: por que deveria? Não somos muitos no
mundo a trazer esse testemunho”. A marca do mero traz a verdade
para as novas gerações: “É qualquer coisa de real”, diz Fernand
Rapport, citado por Ramos. É qualquer coisa de real, sim, porque traz
à tona uma realidade cruel que não cessa de ser representada pela
marca. Mas o ponto crucial, é que traz o real lacaniano que, em
capítulos seguintes surgirá com maior pertinência. Outro entrevistado
fala que a marca, o número, acabou sendo incorporado à sua
68
assinatura, como um nome de família. Prova inquestionável de que
estamos diante de um testamento ocular dos anos de barbárie”.
65
A tatuagem comunga com a idéia de que o corpo porta marcas de
toda uma vida. Ao tatuar-se, o sujeito está inscrevendo, de fato, algo
vivido presente na memória, no seu registro da cultura. Então, ao
modificar o corpo, o sujeito expõe algo de si, o de si passado pela
cultura, pois é no corpo que escrevemos ou são escritas mensagens
identificatórias da mesma cultura.
“O repertório de traços que suportam o olhar de nosso corpo é
bastante variado e se modifica conforme a cultura. É
fundamental dizer que esse olhar, para ser efetivo, não pode ser
somente exterior. Ele precisa compor uma espécie de coluna
vertebral que mantém todo o equilíbrio do corpo, sustentando
seu lugar e deslocamentos. Nesse sentido, ele necessita
ultrapassar a derme e, de alguma maneira, confundir-se com suas
fronteiras”
66
, é o que observa Ana Costa.
No filme Livro de cabeceira vemos a riqueza do universal e do
singular da cultura marcada como forma de identidade num corpo
cheio de desejo, mas desejo que não dispensa as marcas de pertença
daquela sociedade chinesa. Um corpo como uma tela branca”. O
filme conta a história de uma moça chinesa muito bonita. Ainda
pequena, seu pai escreve palavras nas suas costas, um ritual
65
Ramos, M.A. 2000, p.103.
66
Costa, A. Tatuagem e marcas corporais, 2005, p.9.
69
costumeiro da família. Crescida, emerge para a personagem uma cena
sexual presenciada do seu pai com outro homem, vivenciada quando
criança. Dessa cena ela passa a uma fantasia que a levou a ter atração
por homens que pudessem escrever em seu corpo palavras, frases,
histórias, em letras lindas, com tinta apagada com a água. Após
alguns relacionamentos frustrados, apaixona-se loucamente e seu
amante por ela. Os dois vivem uma paixão intensa: ele escreve no
corpo dela, ela no dele. De um rito cultural e familiar, a escrita no
corpo torna-se indispensável para a personagem que, ligada à cena
traumática desencadeia uma série de repetições. Tem nos atos da
escrita no corpo, um gozo. Seu corpo é uma página em branco. O
interessante é que, grávida e com a morte desse amante que tanto
desejava, barra seu desejo para o amor de outros homens e tatua-se de
uma escrita definitiva em seu corpo, na carne, com a chegada de sua
filha. A tatuagem se apresenta-se como uma maneira de imprimir no
corpo a angústia que sentia desde a cena do pai, mas só pode fazer isso
após o nascimento da filha, em quem escreveu, também, as primeiras
palavras. Aquelas repetidas de geração à geração. Do cultural ao
particular, as marcas definitivas conferem-lhe sentido, um valor.
“A tatuagem pode colocar em cena – ser um representante- daquilo
que tem valor totêmico. Esse valor vai fazer com que o corpo e
sua representação sejam coletivizáveis e singulares. A
singularidade vai dizer respeito a um traço que pode capturar o
70
olhar do outro. E o que torna coletivo é o lugar que esse olhar
pode conferir como identidade.”
67
Assim, movimentos jovens têm como manifestação de seus
ideais, a marcação do corpo. Nos anos 60, os hippies, que idealizaram
a harmonia e a paz com a natureza, usam pintura ornamental no rosto
com desenhos de flores, símbolos de paz e amor, mostrando ao mundo
suas lutas, ideais, convicções e revoltas.
Outro movimento, o punk, abrange uma desconstrução de
valores associados aos comportamentos, às roupas, à aparência
corporal, à representação de si na sociedade. Breton registra que o
movimento punk é desde o princípio uma dissidência corporal que
explode na Inglaterra desde os anos 70. Fácil reconhecer um punk
pelas ruas, por toda indumentária que o envolve e que faz a mostração
ao olhar do outro. As marcas no corpo são evidentes: tatuagens,
queimaduras de cigarro, branding, piercings, escarificações. A pele é
ornada de inscrições que rejeitam o que é imposto, com
manifestações de raiva e recusa da sociedade. Os punks apropriam-se
ludicamente dos símbolos da cultura sado- masoquista pelo seu valor
provocativo, violência voltada para eles mesmos, pois responde a sua
própria vontade. Mas os ideais do movimento punk tem sido
banalizados, justamente pela incerteza ideológica que ronda o
capitalismo atual.
67
Idem, p. 19.
71
Utilizada por grupos específicos, a tatuagem ganha adeptos de
todas as idades e estilos, torna-se popular durante o século XX e hoje
há uma grande disseminação dessa prática, transformando os corpos.
Anéis, pinturas, mutilações, assim como as roupas e a tatuagem,
cobrem o corpo e dão ao indivíduo uma sensação de pertença, de
protesto, de mostrar a diferença. A nudez inicial sendo inadmissível e
insuficiente. O corpo, escultura viva, precisa ser marcado.
Se as tatuagens de sociedades tradicionais repetem as formas
ancestrais inscritas numa filiação, as marcas contemporâneas, ao
contrário, são em princípio, uma visão de individualização e estética;
elas são às vezes formas simbólicas de se dirigir ao mundo, mas na
verdade uma forma estritamente pessoal aos motivos de pertença de si
mesmo. A marca cutânea traduz a necessidade de completar por uma
iniciativa própria um corpo insuficiente nele mesmo a encarnar um
sentimento de existência propícia.
Se o tatuamento em sociedades tradicionais representam
repetições de formas ancestrais inscritas numa filiação (adoração a um
totem, por exemplo, a um pai), as marcas contemporâneas, ao
contrário, são em princípio, uma forma de individualização e de
estética. Expressam o simbolismo de proclamar ao mundo uma forma
cada vez mais pessoal, ao mesmo tempo causa semelhanças
identificatórias. O signo na pele é uma maneira aplacar a turbulência
de uma passagem de um estatuto ao outro, uma tentativa de dar uma
outra significação simbólica para um acontecimento e ritualizá-lo.
Diferente de sociedades tradicionais abordadas, na
72
contemporaneidade o esforço do corpo próprio, separado dos
outros e do mundo, lugar de liberdade numa sociedade onde nada é
formalmente reprimido.
Essa apresentação precipita a questão de que o ato de tatuar faz
laço, imprime um algo que se endereça ao outro. Marcas de revolta,
beleza, poder, submissão são transportadas como uma linguagem que
pretende velada, pois que não é expressa na fala, mas no corpo.
Denise Bernuzzi de Sant’Anna em sua apresentação do livro
Políticas do corpo, coletânea de textos com artigos de antropólogos,
historiadores, e que convoca saberes diversos, afirma que o
conhecimento do corpo é diversificado, uma vez que ligado às bases
culturais e sociais que o constituem e o transformam: da medicina à
religião, passando pela antropologia e pela filosofia. Usado em várias
acepções, objeto histórico e multifacetado, o corpo é suporte
biológico para as armadilhas psicológicas e culturais, memória
mutante das leis e dos códigos sociais. “Cada sociedade tem seu
corpo, assim como ela tem sua língua”
68
. Submetido ao sistema, “o
corpo não cessa de ser (re)fabricado ao longo do tempo”. Seria
“empobrecedor analisá-lo tomando-o como algo pronto e
constituído para em seguida privilegiar suas representações ou o
imaginário da época onde ele está submerso”, sendo essencial, antes
de mais nada, situar as problematizações que possibilitaram as práticas
de representações corporais, e porque o intuito desse capítulo é
68
Certeau, M. Apud Bernuzzi. S. Idem, p. 12.
73
apresentar as marcas corporais, mais especificamente a tatuagem,
num contexto dinâmico, histórico, cultural e social.
A idéia que Lacan traz sobre o corpo coisificado, um corpo
mortificado, é o corpo ordenado pelo significante, um corpo separado
da sua vida. Este corpo do qual fala Lacan, está constantemente num
processo de desvitalização. Colette Soler aponta que primordialmente
isso ocorre desde o aparecimento da ciência, a partir do século XVII,
quando Descartes introduz o tema do corpo máquina, diferente dos
corpos dos escravos antigos que fabricam um objeto para o mestre.
Soler traz os corpos como que trabalhando em cadeia, corpos
maquinizados e a idéia de um novo Frankestein. Daí as cirurgias
estéticas (que reforçam o culto à beleza, o que não é novidade), o
transplante de órgãos, as manipulações genéticas, a reprodução
assistida, os esportes radicais, a tatuagem excessiva e não totêmica,
enfim. Essa desvitalização do corpo “que comanda de maneira
mecânica, calculada a operação primária da linguagem em sua
extração de vida”
69
, foi expressa por Lacan como o “corpo deserto de
gozo”. É idéia de que o corpo não cessa de ser re-fabricado.
À tatuagem já foram atribuídos diversos valores em diferentes
culturas, mas na ocidental, ela foi por muito tempo restrita, proibida,
tendo uma conotação marginal. Partindo da tensão entre o particular e
o universal, que permeia todo esse trabalho, situamos, com Freud, o
corpo como a condição do recalque. Corpo que se mostra pelas
formações inconscientes. E na tatuagem o corpo mostra. Mas mostra o
69
Soler, C. Los ensamblajes del cuerpo, 2002, p. 21.
74
que? O que do inconsciente vem na carne em forma de uma inscrição
permanente?
Mostra recusa de tabus impostos pela cultura, a recusa que cada
indivíduo faz, utilizando-se de mbolos que o próprio corpo do
recusado social porta, mas isso não basta. Também corporifica
uma identidade. O que tamm não basta. Há, na tatuagem, o
significante e o gozo. Não podemos perder isso de vista.
O texto O mito individual do neurótico, diz da influência
estruturalista de Lévi-Stauss na obra lacaniana. O método estrutural
aplica-se ao estudo da regra de parentesco, que concebe a prevalência
do significante sobre o significado para Lacan. Essa prevalência
estende-se à pesquisa dos mitos e torna-se objeto privilegiado de
Strauss, presente em A estrutura dos mitos (1955). Ele coloca nesse
texto o problema das relações entre as variantes de um mesmo mito:
cada variante pode ser assimilada a um grupo de permutações de
elementos diferentemente dispostos nas variantes vizinhas, de tal
modo que o mito progride, desenvolve-se, engendra novas variantes
até o esgotamento da totalidade das combinatórias”
70
. Interessante
essa abordagem, pois conduz ao entendimento do tatuamento nas
diversas formas apresentadas aqui. A presença do estruturalismo lévi-
straussiano na obra de Lacan, manifesta-se na passagem do mito
coletivo ao mito individual. Os elementos da combinatória tem por
característica a repetição e são nessas repetições que revela-se a
estrutura do mito e sua invariância.
70
Stauss-Lévi, C. In O mito individual do neurótico1987, p. 28 (resposta de Lévi-Strauss a Jaques
Lacan In Intervention).
75
Lacan, depois de Freud, mais do que reconhecer tal estrutura,
relaciona-a com o mito de Édipo, a ponto de concluir que a
intersecção entre mito social e o mito individual é um mito familiar. E
isso é claro nas entrevistas com os tatuados.
No mesmo texto, existe uma analogia com as idéias de Marx,
colocando que o indivíduo isolado é o resultado da criação humana e,
portanto, não é próprio da natureza humana, é uma criação histórica: o
homem não é somente um animal social, mas ainda um animal que
não se pode individualizar a não ser na sociedade.
71
Tanto a colocação de Marx, como a de Lévi-Strauss, mostram o
quanto as referências colocadas na abordagem da tatuagem levam a
essas constatações, tão caras no ensino de Lacan.
71
Idem, p. 22.
76
Capítulo II - A Psicossomática
Parte 1- Um termo da medicina
Para falar do termo psicossomática na medicina, é preciso antes
traçar um breve panorama delineado ao longo dos estudos filosóficos
e da pesquisa científica. A relação entre corpo e espírito foi bastante
debatida e a psicossomática ocupa um lugar a partir dessas reflexões.
Advinda das correntes que concluem pela unidade corpo-alma, a
psicossomática compreende a existência humana, a saúde e a doença
através de uma posição integrada, preocupando-se com as
manifestações dessa unidade no homem.
Situamos duas correntes que sustentam essa relação: o monismo
e o dualismo. O monismo situa o homem num único princípio vital.
Uma vertente, idealista, acredita que esse princípio seja constituído
pela alma. A outra, materialista, propõe que o corpo é a realidade
desse princípio e considera que o psiquismo seja um epifenômeno do
corpo. O empirismo, o associacionismo, o positivismo, o materialismo
e o neopositivismo, também sustentam o princípio monista, cada
movimento com suas particularidades. Temos em diversas épocas seus
expoentes, passando por Platão, Hegel, Hobbes, Hume, J.S. Mill, entre
outros.
Em 500/428 A.C., Anaxágoras separa soma e psiquê, dando
início ao dualismo, que concebe corpo e alma como dois princípios
77
vitais diferentes no homem. Nessa posição encontram-se Aristóteles,
Tomás de Aquino e os neo-escolásticos, defendendo uma concepção
hilomórfica, na qual corpo e alma formam uma única substância
completa. Descartes, por sua vez, sustentou que corpo e alma são
substâncias diferentes e separadas, embora tenham uma influência
recíproca, embasando o interacionismo. Temos ainda Leibnitz
representando a corrente paralelista, que concebe corpo e alma como
substâncias distintas e que funcionam de maneira independente, mas
harmoniosa. O paralelismo psicofísico, cujo maior expoente é Wundt,
afirma que o homem é um organismo que se manifesta sob dois
aspectos: corporal e mental.
Para K. Jaspers existe o caráter único e indissociável na relação
corpo-alma e, portanto cada homem vivencia o em si. Concebe “o
corpo como sede da alma, assim como a determinação pela alma da
experiência desse corpo, perdem o sentido as tentativas de
localização anatômica das funções psíquicas”
72
.
Na Idade Média, a crença no contágio mental e a transmissão
de doenças através da sugestão. Os sacerdotes ocupam uma função
essencial na cura das pessoas, realizando rituais num contexto
religioso. Era de suma importância que o doente possuísse crença no
curandeirismo ou até mesmo no médico. Volich acrescenta: “esses
fenômenos manifestam-se mediante a transferência, descrita por
Freud, tendo também sido descritos por Claude Lévi-Strauss, ao
analisar o xamanismo, por meio da noção de eficácia simbólica”.
73
72
Jaspers.K. (1985) Psicopatologia geral, v. I, p. 269.
73
Idem. p.55, 56.
78
A partir do final do século XIX, surgem elementos que
propiciam a investigação das dimensões subjetivas encontradas nas
manifestações orgânicas, o que possibilitou a inclusão destas no
entendimento do tratamento das doenças. Com isso, a palavra abre
espaço na relação terapêutica. E é com Freud que essa perspectiva
concretiza-se. A Psicanálise torna-se referência no desenvolvimento
das teorias psicossomáticas no século XX, despertando uma leitura
diferente das correntes anteriores e atuais, colocando em evidência a
relação do sintoma orgânico com a dinâmica psíquica, com o infantil.
Outro ponto fundamental é a tomada da distinção entre as
psiconeuroses e as neuroses atuais, nas quais considerou-se a
dimensão econômica do funcionamento psicossomático e a questão do
trauma. E essa abordagem psicanalítica é responsável pela
psicossomática atual.
Em torno de Freud, muitos psicanalistas se reuniam na
“Sociedade psicológica das quartas-feiras”. Desde 1902 esse grupo é o
embrião da Associação Vienense de Psicanálise que se oficializa em
1908. Essas reuniões são freqüentadas por Otto Rank, Theodor Reik,
W. Stekel, M. Graff, Hitshman, A. Adler. Outros que acabam se
reunindo em Berlim por iniciativa de K. Abraham: Max Eitingon,
Hans Sachs, Ernest Simmel, Melanie Klein e Franz Alexander.
Também participam Félix Deutch, Wilhelm Reich e Georg Groddeck
que trazem preciosas contribuições para a teoria psicossomática.
Freud aponta a importância da psicanálise como método
terapêutico, o que permite ao médico entender as relações entre o
79
psíquico e o somático, ressaltando a relevância dos estudos de G.
Groddeck e Félix Deutch quanto à utilização do tratamento
psicanalítico no caso de doenças orgânicas.
Sandor Ferenczi, paciente e interlocutor de Freud, que já em
1909 critica as teorias organicistas, propõe a distinção entre os
distúrbios funcionais das neuroses atuais e as psiconeuroses. Ele
prioriza a teoria freudiana sobre a sexualidade e o narcisismo. Sob
essa ótica, passa a analisar os sintomas orgânicos, introduzindo o
conceito de Patoneurose e analisa manifestações neuróticas seguidas
de doença orgânica. Observa, portanto, que o sintoma orgânico é
capaz de concentrar sobre si uma maior quantidade de libido,
adquirindo um valor erógeno. Esse investimento narcísico da doença
influencia no processo de cura.
74
Ferenczi cria o termo neurose de
órgão, mais tarde retomado por Franz Alexander. Segundo Ferenczi, a
neurose de órgão possui uma estrutura próxima da neurastenia,
distinguindo-se das neuroses clássicas, tais como a histeria.
O médico Georg Groddeck, membro da Associação Psicanalítica
de Berlim a partir de 1920, constata que doenças orgânicas podem ser
compreendidas e tratadas pela psicanálise. Para ele o há separação
entre doenças orgânicas ou psíquicas, que corpo e alma adoecem
simultaneamente. Segundo ele, psicossomática remete a uma essência
do ser humano e não a um estado.
Em 1923, ano em que Freud publica O ego e o id, Groddeck
lança O livro dIsso, obra que dá ao autor a paternidade da
74
Ferenczi. S. Des pathonévroses. In: Psychanalyse II Oeuvres Complètes, 1913-1919.
80
psicossomática moderna, definindo suas posições em relação à
psicanálise. Ele aborda o aspecto criativo do Isso, pois que arraigado
ao funcionamento orgânico
75
: “O Isso vive o homem; é a força que o
faz agir, pensar, crescer, sentir-se bem ou doente, numa palavra, o que
vive”.
76
Nesse livro, uma discussão intensa referenciada pela
psicanálise, como a relação do humano com o infantil, a relevância
das funções primeiras da mãe, a sexualidade, os sentimentos de amor e
ódio materno, a função psíquica das doenças, as dinâmicas
inconscientes, o corpo. Segundo Volich: “Ele analisa ainda a relação
do homem com a Natureza, a função do simbolismo corporal e da
sexualidade, do sonho, do Complexo de Édipo, a função e o
tratamento do câncer, a religião como uma criação do Isso, a relação
do adoecer com o recalcamento, a relação do Isso com a morte, com a
doença mental, bem como a perversão, o voyeurismo e exibicionismo
e suas relações com a histeria, a dimensão de fantasia “real” do Isso, o
narcisismo e a homossexualidade de todos os seres humanos”
77
. O
mesmo autor debate o conflito enraizado do pensamento casuísta que
divide as causas internas e externas, pois acredita que a plena
compreensão das doenças advém da resistência do homem a observar
a si mesmo. Conclui, então, que as doenças são criação do Isso.
Mas, segundo Volich em seu livro, Freud envia uma carta para
Groddeck em 1925, na qual relaciona diferenças entre o Isso de
75
Groddeck. G. O livro dIsso
76
Idem. p. 229
77
Op. cit. 2000, p. 84.
81
Groddeck e o seu: “Em seu Isso, eu naturalmente não reconheço meu
Isso civilizado, burguês, despojado da mística. Entretanto, como vo
sabe, o meu deriva do seu”
78
. É Freud mostrando, mais uma vez sua
inclinação em pensar o homem inserido num contexto cultural.
Os maiores expoentes da psicossomática são influenciados pela
psicanálise. Willem Reich também é instigado pelos debates da
Associação Psicanalítica de Berlim. Reich critica a forte tendência do
meio psicanalítico de psicologizar o fisiológico”, por achar que se
aplicava indiscriminadamente interpretações psicológicas aos
processos somáticos, ou situando as enfermidades como resultantes de
desejos inconcientes. Segundo ele os desequilíbrios das funções
corporais são resultado de uma perturbação geral do funcionamento
vegetativo, sendo as relações entre as esferas somática e psíquica
resultantes de um paralelismo psicofísico: O psíquico e o somático são
dois processos paralelos que exercem efeito recíproco um sobre o
outro”
79
.
Reich considera a perturbação genital como fonte de energia da
neurose pelo lado somático, pois se impossibilidade de descarga de
libido, haverá patologia. Essa dificuldade está ligada aos conflitos
sexuais infantis e com isso, conclui que uma relação entre a
excitação sexual e a angústia, dois pólos do sistema nervoso
vegetativo. Ele diz que o sintoma é uma tentativa de descarga parcial e
de ligação da libido estática. A resistência à análise acontece não
somente como uma resistência à associação livre do paciente, mas
78
Op. cit. 2000, p. 87.
79
Reich. W. (1940). A função do orgasmo. P. 70.
82
também pelo corpo e estrutura muscular. Ele elabora o conceito de
caráter, que é uma alteração crônica do Eu, que determina a maneira
de reação do indivíduo. Também diferencia caráter de sintoma, pois
este é sentido pela pessoa como alheio a si, enquanto o caráter é
incorporado àquilo que cada um considera como sendo de sua própria
natureza: a função do caráter é proteger o Eu de perigos internos e
externos e por isso denominado de couraça. A couraça do caráter é a
dinâmica que retém a energia libidinal do indivíduo.
80
Então, a
couraça influencia diretamente a mobilidade psíquica e as relações
com o mundo exterior, operando por meio do princípio do prazer-
desprazer.
O soma influencia a psique e a psique influencia o soma. A
psique, afirma, é determinada pela qualidade e o soma pela
quantidade: “A qualidade de uma atitude psíquica depende da
quantidade de excitação somática da qual provém”
81
Ao romper com os órgãos oficiais de psicanálise, no entanto,
Reich cai no ostracismo e suas contribuições teóricas não são
amplamente reconhecidas no meio dos pesquisadores da
psicossomática.
É Félix Deutch, um dos médicos fundadores da Escola de
Psicossomática de Chicago, que resgata, em 1926 o termo
psicossomática e questiona o emprego indiscriminado da noção
psicanalítica de conversão na medicina. Ao mesmo tempo critica seu
organicismo, apontando o excesso de preocupação com os sintomas e
80
Reich. W. (1933) Análisis del carácter. P. 159.
81
Reich. W. (1940). Op. Cit., p. 129
83
a negligência com a dimensão humana das enfermidades. Ele
incentiva a discussão sobre a relação médico-paciente e desenvolve o
método da anamnese associativa, introduzindo na anamnese clássica
um interrogatório específico que dá a oportunidade ao médico de
ponderar sobre os aspectos psicodinâmicos do paciente.
82
A
abordagem de Deutch aproxima-se visão da psicanálise.
Em 1929, Franz Alexander leva para os Estados Unidos o que há
sobre a psicossomática em Berlim, no intuito de ampliar a prática
psicanalítica para o campo da medicina. discute as dificuldades no
campo da psicossomática e pontua que “toda doença é
psicossomática, pois os fatores emocionais influenciam todos os
processos fisiológicos pelas vias nervosas e humorais”
83
. Alexander,
um dos expoentes do estudo dessa vertente da medicina, declara em
seu livro Medicina psicossomática: princípios e aplicações, que a
psiquiatria pôde executar a sua função após ter descoberto o estudo
da personalidade como seu eixo principal, e esta foi a conquista de
Sigmund Freud. A psicanálise consiste no estudo detalhado e preciso
do desenvolvimento e das funções da personalidade.”
84
82
Deutch. F. (1939). L’interrogatoire psychosomatique.
83
Alexander. F. (1953). Problèmes méthodologiques em médicine psychosomatique.
84
Alexander. F. Medicina Psicossomática: princípios e aplicações. 1989, p.31
84
Parte 2 – Considerações sobre a Psoríase
Conhecida desde tempos remotos, a psoríase é um tipo de
dermatose de evolução crônica, recorrente, pois ocorre em ciclos ou
surtos e por longos períodos na vida do portador. É caracterizada por
erupções eritêmato-escamosas e pelo acúmulo das escamas. De acordo
com o tipo e a extensão da lesão, a psoríase pode ser classificada
como vulgar, artropática, eritrodérmica, flexural ou inversa. Atinge de
1 a 2% da população, podendo ser encontrada em ambos os sexos e,
prioritariamente, em adultos acima de 30 anos, o que não exclui sua
ocorrência em crianças, adolescentes e idosos, sendo mais comum seu
aparecimento no couro cabeludo, cotovelos, joelhos, braços e pernas.
Quanto à etiologia, são apontados como fatores que podem
desencadear ou agravar a psoríase: a predisposição genética, traumas
na pele, fatores ambientais, uso de alguns medicamentos e fatores
psicológicos.
Tudo indica que na etiologia da psoríase uma inter-relação
dos processos psíquicos, orgânicos e ambientais: o “trauma físico é
importante fator desencadeante e, certamente, infecções por bactéria
ou vírus que desequilibram todo sistema imunológico. Trauma
psicológico e estresse podem estar relacionados com o início e
exacerbação do quadro”
85
.
Pesquisadores suecos constataram a regressão da psoríase com o
medicamento ciclosporina , o que levou à pesquisa da relação entre
85
Sabbag, C. A Pele emocional: controlando a psoríase. 2006, p. 52.
85
psoríase e mecanismos imunológicos. Constatou-se que quando a
supressão das células de defesa (linfócitos T), melhora clínica da
psoríase, que passa a ser considerada como doença imuno-mediada.
Mas mensageiros neurogênicos, entre eles a substância P do
sistema nervoso central, aparecem aumentados na lesão da psoríase.
Ora, conflitos intrapsíquicos e eventos estressantes crônicos liberam a
substância P, o que faz pressentir mudanças no diagnóstico e novas
perspectivas terapêuticas. E a medicina, tendendo a uma visão
holística, vem incorporando à terapia medicamentosa, outras técnicas:
relaxamento da mente e corpo, meditação, grupos de apoio.
Consideradas lesões auto-infringidas na pele, atualmente sabe-se
que tais doenças estão relacionadas com distúrbios psíquicos, tanto
em termos de causa como de efeito. O psiquismo pode, portanto,
interferir no desencadeamento, manutenção, agravamento ou melhora
das dermatoses, uma vez que uma estreita relação entre pele e
psiquismo o que, conseqüentemente, chama a atenção para a dimensão
psicológica da psoríase.
A grande maioria das pessoas que tem psoríase associa o início da
doença a uma fase estressante de sua vida ou diz que a doença piora
numa fase dessa.
A psoríase é um sintoma que ocorre na pele, sendo que a pele é
justamente o que está na passagem, na transição, entre o eu e o
mundo. É, portanto, uma zona de contato entre o eu e o outro, um
orgão limítrofe entre o interior e o exterior, uma ponte de ligação que,
86
principalmente no início da vida, é o vínculo mais forte com o meio
exterior e, segundo Anzieu
86
ao mesmo tempo em que tem uma
dimensão de origem orgânica, tem também uma dimensão imaginária,
“como sistema de proteção de nossa individualidade, assim como
primeiro instrumento e lugar de troca com o outro”.
um ramo da dermatologia que investe nesta dimensão da pele,
ou seja, que lugar ao papel das emoções, fantasias e sentimentos
inconscientes como fatores que influenciam nas enfermidades
cutâneas, seja na origem, manutenção ou piora do quadro.
Azulay (Ibid) pontua que as relações entre pele e psiquismo já
chamavam a atenção de antigos dermatologistas, a saber, Damon
(1868) que publica um livro intitulado Neuroses cutâneas; Bloch
(1891) criador do termo neurodermatite; Kaposi (1895) que escreve
também sobre relação entre pele e neurose e Falcones (1788), que
assinala os efeitos das paixões sobre a pele (apud, Azulay, 198).
Ainda segundo Azulay a pele é o que de mais profundo” (p.
294). Assim, vemos a importância de se pensar os conflitos que estão
subjacentes aos sintomas cutâneos, verificando as possíveis
correlações entre tais sintomas e os aspectos psíquicos envolvidos na
construção da enfermidade.
86
Anzieu. D. O eu –pele. 1989, p. 17.
87
Parte 3- Casos clínicos
Com o objetivo de ilustrar a teoria psicossomática discutida a
seguir exponho dois casos clínicos a ela relacionados e por mim
atendidos no Instituto da Pele (UNIFESP).
A) Do trauma à cena: a questão da filiação e do trauma como
origem de um fenômeno psicossomático.
A paciente narra uma cena: meu pai estava batendo na minha
mãe e ia bater no meu irmão, fui tentar apartar e ele me empurrou, fui
até a cozinha peguei uma faca e dei duas facadas nele, ele foi para o
hospital e eu para a delegacia, eu queria matar. Desde então meu
corpo ficou tomado pela psoríase”.
Carina reclama dessa falta de investimento materno. uma
hipótese de que a mãe não conseguiu apresentar a filha ao pai,
impedindo-a de se haver com a Lei transmitida pelo Nome-do-Pai.
aqui uma tensão entre as duas maneiras como Lacan entende a
filiação. Num primeiro sentido a filiação decorre da nomeação do pai
por parte da mãe, segundo um desejo que não é anônimo. Na segunda
acepção, a filiação decorre da interpretação, feita pela criança, acerca
da mulher que o pai desejou na mãe. Aparentemente as duas acepções
convergem, no entanto, o caso presente levanta a possibilidade de
que, apesar da recusa ostensiva em aceitar a nominação conferida pela
88
mãe, o ciúme do pai, que acredita ter sido traído pela mulher,
desconfiando que Carina é fruto dessa traição, e sua perseverança em
denunciar essa suposta infidelidade, surgem como signo possível de
seu desejo por Carina.
A filha protegia a mãe contra o pai e, ao mesmo tempo em que o
pai não podia reconhecê-la como filha, a reconhecia como mulher.
Segundo o relato da paciente, o pai a bolinava quando estavam
sozinhos “ele vinha me cobrir toda noite, para cobrir não precisa
tocar e ele me tocava, perguntou uma vez se tinha nascido pêlos na
parte de baixo. uma inversão que toca na questão do desejo e do
gozo e instaura o trauma. A filha era mulher. Mulher que na presença
de outros era alvo de xingamentos, vagabunda, piranha, lixo,
diferente”, mas, segundo Carina, quando eles estavam sozinhos “ele
era todo carinhoso”.
Quero destacar o significante diferente que aparece como um
xingamento. Diferente, é como Carina se localiza na família e isso
persiste: ela diz que sempre foi a mais inteligente e, portanto, seu pai a
chama de diferente, que quer ser melhor que ele, diz que tem cabelo
ruim, diferente dos irmãos e dele, mas Carina procura uma explicação:
“isso pode ser genético...”. O significante diferente nega, de fato, sua
filiação, mas a genética pode salvá-la, “posso ser sim filha do meu
pai, minha aera negra, sei que tinha negros na família”. Esse fato
justificaria o “cabelo ruim”, a herança genética, a pertença na família e
mais, a filiação. Ela é taxativa: “eu quero ser filha do meu pai”.
89
Carina es em busca de um pai, mas um pai outro, ela fala:
“meu pai não cumpriu a função de pai”. A questão da filiação para
essa paciente não se resolveu, essa busca continua e repete-se nos
homens com os quais se relaciona que são alcoólatras e bateram nela,
como o pai sempre o fizera: busca um traço do pai nesses homens. Em
uma sessão conta que o marido um dia lhe bateu muito, mas o
interessante é que ela afirma serenamente: “eu acho que eu queria
aquilo, eu provoquei”.
O diferente, qualificado como xingamento, toca numa das suas
primeiras falas, ainda na primeira sessão: “quem com porcos se
mistura, farelo come”. Intriga esse dito popular, como ela mesma o
definiu. Ela, sendo diferente, faz um esforço para não se misturar”
numa família de “fracassados, alcoólatras e vagabundos”. É assim que
Carina se refere ao irmão, marido e filhos. Ela não sabe o que fazer
para ajudá-los, “eu falo, mas ninguém me escuta, dizem que sou a
dona da verdade, Deus, sargentão”. O tempo todo insiste o diferente,
ela é a única que tem psoríase, que trabalha, que acabou os estudos e
sustenta todo mundo. Ser diferente é o que faz Carina misturar-se
nessa família. Isso se confirma com a segunda parte do dito popular
“farelo come”, farelo que re-aparece na sua fala quando se reporta a
psoríase: “quando fiquei com psoríase, parecia a mulher cobra, eu
esfarelava toda”.
A passagem ao ato e a posterior formação psicossomática
mostram uma espécie de reconfiguração do Nome. Se o significante
diferente parece representar o sujeito para a rede de significantes que
90
representam a família, os outros, e mesmo os traços de sua herança, é
nesta diferença mesma que se articula a questão de sua filiação.
Assim, se a passagem ao ato sugere uma foraclusão provisória do
Nome do Pai, a formação da psoríase restabelece esta ligação pela via
do significante, agora cristalizado, da diferença. Isso se vê
corroborado pela referência aos farelos.
O ato, as facadas desferidas contra o pai, de certa forma, não dão
conta de afastar para longe o gozo insuportável de que se tomada
todas as vezes que re-atualiza a cena da cobertura do pai sobre ela.
Quando diz: meu pai não cumpriu a função de pai”, parece que, de
certa forma, toca na questão de que não há furo, nãointerdição para
a lei do incesto, não barreira contra o gozo, tudo ou quase tudo é
permitido quando se trata do outro, mas ao mesmo tempo esta
declaração assume um valor denegatório hipoteticamente: é por não
ter cumprido sua função de pai que posso fazer apelo para que ele o
faça. À Carina não resta alternativa, diante da falha da morte do pai ,
a não ser repetir a mesma operação psíquica, engendrando na lesão de
órgão uma nova tentativa de corte, impondo a barreira que a
distanciará do gozo inominável e abominável do amor ao pai. Ou seja,
o desejo levou ao mais longe a barreira contra o gozo, e isso nos
remete à sua fala: “depois que fiquei cheia de psoríase, meu pai nunca
mais me tocou, lógico, parecia a mulher cobra”.
De repente há uma cena, uma cena de violência contra a mãe e o
irmão, apenas mais uma, mas foi é a partir dessa cena que reatualiza o
91
trauma anterior. Facadas e psoríase, psoríase que comporta o
significante diferente que é como ela se posiciona nessa família.
O conflito ser ou não ser tocada pelo pai, aparece como estatuto
de um trauma: dúvida sobre a sua filiação. Posso falar que Carina
experimentava uma dimensão traumática do gozo em cada toque do
pai. Ela, com a lesão, torna-se a mulher cobra” que o pai não pode
mais tocar. Encerra desse modo, a ausência da Lei que permeava sua
relação com ele.
O pai bate em todos da família, nos filhos e na mulher, menos
em Carina. Ela fica de fora. Para ser da família tinha que apanhar e, o
ato das facadas reavivou o ódio por essa exclusão ao gozo paterno. O
ato foi escrito no corpo. No corpo e na delegacia. A marca no corpo:
psoríase. E na delegacia, BO. Algo que atravessou a dimensão do
desejo, e de um gozo pulsional via olhar: Carina não era tocada pelo
pai diante do olhar do outro, apenas quando estavam a s. Carina
traz, portanto, a partir do corpo em farelos da psoríase, a memória da
cena que todos viram. Depois disso pode abrir mão do toque do Outro,
pois algo do gozo, da experiência perdida está no corpo. Mas realiza
uma outra dimensão com a psoríase, a da castração. E coloca, no
corpo, os dois lados que estão em jogo: o gozo e a Lei.
O caso direciona à um posicionamento de que o fenômeno
psicossomático e a passagem ao ato aparecem como uma condensação
de gozo, como um ato desesperado de um não-sujeito que adoece no
corpo evitando seu apagamento absoluto. Da passagem ao ato para a
passagem ao corpo: duas ações que marcam a ausência de sujeito e o
92
apagamento do sujeito do inconsciente. Não se trata de um fazer
consciente, mas de um não saber o que fazer, pois no seu discurso,
mediante um significante traumático, há o seu apagamento. Daí apaga-
se também a fantasia e o delírio, possíveis tratamentos simbólicos do
real.
B) Um Caso de histeria ou de fenômeno psicossomático?
Angélica apresenta anorexia
87
, sintoma histérico, diferente do
fenômeno psicossomático que, de acordo com a psicanálise, não
representa o sujeito, que um congelamento na cadeia significante,
enquanto que os sintomas de conversão histérica o formações do
inconsciente com estrutura de linguagem e supõem substituição na
cadeia significante. Será, então, a psoríase dessa paciente um
fenômeno psicossomático ou um sintoma histérico? A questão aqui
apresentada diz respeito ao estatuto diagnóstico de sintomas, em tese,
remissíveis a distintas hipóteses etiológicas, mas co-presentes no
mesmo sujeito.
Angélica “escolhe” a afecção na pele, algo que aparece fora, que
lhe causa vergonha, que a remete à sujeira, significante comum na sua
fala e, posteriormente, a anorexia, diante da falta de possibilidades e
recusa da sua feminilidade. Tanto a psoríase como
87
Não vou ater-me sobre a questão da anorexia, mas apenas uma ressalva: “No ensinamento clássico
de lacan a anorexia parece estar situada ao lado estrutural da histeria. O traço histérico da anorexia se
exprime na centralidade que assume, no artifício anoréxico, a dimensão da recusa. Arecusa do prazer
se faz, de fato, o escudo do desejo”. Recalcati. M. Partner-Coisa: sobre nirvana anoréxico, s/d.
93
a anorexia são reconhecidas pelo olhar do outro, articulam a mesma
demanda escópica em registros pulsionais diferentes.
Angélica tem psoríase desde os vinte anos, hoje está com quarenta.
Ela associa o acometimento da lesão ao fato de ter sido promovida no
trabalho naquela ocasião: eu era peão, aí passei a ser encarregada da
sessão, passei a mandar nas minhas colegas, foi muito difícil”. Além
disso, na mesma época aceitou ser cortejada pelo atual marido que
desde os quatorze anos tentava aproximar-se dela e fala: eu o
gostava dele, me incomodava, ficava chupando peito (nesse momento
comete um ato falho, diz peito ao invés de cana), tinha nojo. Era
molecão, dizia que um dia ia se casar comigo, ele ficava com todas as
mulheres da firma, menos comigo. Depois de um tempão, começamos
a namorar, eu já tinha psoríase, mas ele não se importava, ele tinha
mudado e um ano depois nós casamos, eu não suportava ele antes,
minha mãe gostava dele”.
Ela chega para a sessão brava e diz que a filha tinha ficado muito
irritada pela espera. Pergunto por que a filha, de 12 anos, vem junto.
Faz, então, associações importantes : Eu também quero ir pra casa
logo pra limpar. Sexta-feira tenho que limpar a casa, senão fica sujo,
não me sinto bem, tenho medo de voltar sozinha de ônibus, parece que
vai faltar o ar... quando penso que estou no nono andar, tento me
distrair, não entro no elevador sozinha de jeito nenhum, tenho tontura,
passo mal, tenho mal-estar, transpiro, sensação de desmaio. Não
tenho vontade de comer, tem seis meses mais ou menos, vem
piorando, sinto enjôo e vomito”. Angélica conta que à noite come algo
94
e vai dormir para não vomitar: se durmo não vomito, vomito mais
depois do almoço e janta, sinto nervoso, tenho que vomitar, sinto
vergonha, não sei se é vergonha... quando a psoríase tá atacada tenho
vergonha, parece que as pessoas ficam olhando, pensando que você é
relaxada, que não cuida disso, minha vizinha me disse isso: pensam
que sou uma porca”. Esse quadro de anorexia e bulimia
88
teve início
quando sua mãe voltou para o interior depois de ter passado um ano na
casa dela porque estava doente. Vem às sessões cada vez mais magra e
faz questão de colocar isso no seu discurso: Olha, eu sequei! Nesse
período, no entanto, sua psoríase não se manifestou.
Ela fala sobre uma úlcera que secou não sabe como, e sobre uma
cirurgia de vesícula: Tirei as pedras, cadê... chorava, ficava
angustiada, sentia uma tristeza... A barriga pulava, tremia, sentia
enjôo, mal estar. Entrava no ônibus e doía a barriga, sentia medo.
Após três meses ainda doía tudo, achava que tinha doença, sentia
dores, vômito, cansaço e a barriga continuava pulando, tremendo.
Acho que tenho um bicho, uma cobra dentro de mim. fui no médico
e ele me disse que tinha tirado um órgão, ficou um buraco, saí e a
barriga nunca mais pulou”. E essa fala contém significantes que
aparecem em outra fala exatamente um mês depois, mês que esteve em
férias na casa da mãe no interior. Nesse dia conta que está deprimida e
que não menstrua há três meses, que come empurrada, que sente
cansaço, que parece que está flutuando e fala da mãe: para ela tudo
88
A anorexia-bulimia histérica é o nada, há um posicionamento contra o prazer, como acontece na
abstinência anorexica ou talvez, para reencontrar o prazer no vômito bulimico. É o nada na sua
valência de objeto separador. Idem.
95
era pecado, não podia. Não pode encostar em homem, eu achava feio,
vulgar, baixo”.
Pergunto a ela se era assediada por homens e ela fala que sim
agente gosta, né?, mas sentia nojo quando eles faziam barulho...”
Então conta um episódio: “Certa vez, estava num ônibus apertado com
minha sobrinha e ela reclamou que tinha um moço atrás dela
incomodando, troquei de lugar com ela, quando desci do ônibus
minha jaqueta estava toda molhada, não sabia o que era aquilo,
quando cheguei em casa contei pra minha mãe, ela ferveu a roupa,
passou álcool, me enfiou no banho. Senti nojo, tenho nojo disso até
hoje, não gosto do cheiro de cândida forte. Não é nojo, é agonia...”.
Quando nasceu, a mãe tinha 44 anos: não era para eu ter nascido,
me chamavam de Bugrinha, Bugra, minha a era índia, era quase
preta”. O tio dizia para ela: “não deixa os dois dormirem juntos que
vai sair sujeira”. Quando era pequena ouvia o “barulho” dos pais e a
mãe falando: “sai pra lá” [empurrar]. Angélica tinha vontade de
dormir com a mãe, sentia o cheiro dela, mesmo grávida , quando ia
visitá-la dormia com ela, tinha vergonha de dormir com o meu
marido”.
Da sua infância, tem recordações ruins. Conta que não tinha o que
comer, que seus pais faziam um sacrifício para alimentar os filhos,
sobremesa nunca comia, doce não peça porque não tem”, dizia-lhe a
mãe. Uma vez ficou doente, com febre, por causa de um doce com
chantilly que viu na padaria: eu não falava”. Hoje poderia comer
doce todos os dias, mas não tenho vontade, não tenho vontade de
96
comer nada, requeijão, então, sinto até uma moleza, me dá enjôo,
ponho o dedo na ‘guela’ e melhoro, não sinto mais nada”.
Lembra-se que os pais brigavam demais, que cuidava do pai
alcoólatra desde os sete anos, e que pedia para ele bater nela em vez
de bater na irmã. Chorando toda vez que lembra do pai, diz que ele era
implicante com a mãe e com a irmã, mas não com ela. Fala da
adoração pela mãe e que chorava escondido porque, certa vez, quando
era pequena, ouviu de uma vidente que “sabia das coisas” que a mãe
morreria antes do pai.
Angélica conta que nos primeiros anos de casada não conseguia ir
ao açougue e comprar menos de um quilo de carne, tudo que
comprava era em grande quantidade: tinha vergonha de comprar
pouco e era só eu e o meu marido, fazia um monte de comida e depois
jogava fora”. Angélica tem muitos medos, um deles mais
significativo: o de estar sozinha. Para tomar banho pede a companhia
da filha, que dorme com os pais até hoje.
Em função da anorexia, peço que a dermatologista do Instituto
reavalie a paciente, que é encaminhada para um clínico geral.
Angélica havia mencionado que fora a uma consulta e que o
médico nem olhara para ela e, por isto, duvidei que aceitasse tal
orientação. Surpreendi-me quando soube que ela não havia ido ao
médico, como o achara muito atencioso: conversara bastante e
receitara uma vitamina.
97
Três semanas depois Angélica vem para a sessão e fala: Olha
como eu engordei, engordei oito quilos, olha o tamanho do meu
peito, mas olha a psoríase como está”. lesões pelo corpo todo,
principalmente no rosto. Nesta mesma sessão diz que a presença de
uma sobrinha em sua casa trouxe lembranças do passado. O marido
foi muito “implicante” nesse período, da mesma forma que o pai
implicava: “se ele pegasse implicância com uma pessoa era uma
casquinha e meu marido é igual”.
Esse caso clínico convoca a reflexões. E duas observações são
fundamentais: a paciente insere a psoríase na cadeia significante e seu
discurso não é eminentemente descritivo como em geral o de outros
pacientes com psoríase. A referência constante a afetos dissociados,
tais como a vergonha, o nojo e o medo, é um outro traço contrastante.
Inversamente, seu sintoma anoréxico é atípico, pois ela reconhece
seu estado de magreza e diz: Olha, eu sequei!”, diferente do que
acontece em outros casos de anorexia, nos quais as pacientes não se
percebem magras. Engenhosa, Angélica falseia o próprio sintoma.
Nossa hipótese é que sua psoríase, fenômeno psicossomático,
aparece na fala e na cadeia significante, através do trabalho analítico,
dando um sentido outro para ela, uma re-significação da doença.
Ao advento da psoríase não se reporta a um acontecimento
traumático, mas a uma mudança de posição, uma convocação a um
lugar fálico suplementado pela incidência da sedução. Na
transferência, a paciente convida à escuta, o corpo é dado a olhar, ela
põe em questão o desejo do Outro e contrasta vivamente com a
98
passividade recorrente, em pacientes com psoríase. Seu corpo está
entre o limpo e o sujo e a psoríase inscreveu-se como sintoma
histérico, faz parte do corpo sujo. Um corpo que está entre o barulho e
o silêncio, entre o muito e o pouco, entre a vergonha e o medo.
Pela responsabilidade de cuidar do pai, Angélica tem deslocado seu
lugar de filha. Submetendo-se à imposição da mãe, ela, de certa
forma, identifica-se com a submissão do pai passivo, mas que quando
alcoolizado vira [tira?] uma “casquinha”. E “soltar casquinha” é uma
prática associada à psoríase. Esta identificação se completa pelo seu
lugar entre os pais, como uma espécie de complemento fálico
materno. Vale dizer que para a histérica ela é o falo, então essa
posição de “ser” o que o Outro não tem, incomoda.
Passar de peão para en-carregada a coloca de fato num lugar fálico,
mudando a relação dominado-dominante. Ela não sente alegria pela
promoção. É a insatisfação permanente da histérica, mas isso lhe
permitiu escolher, além da sua estrutura histérica e dos sintomas, a
feminilidade e a maternidade, posições que sustenta à partir de seus
sintomas.
Se o nome atravessa o sujeito, temos nessa paciente algo
interessante. Angélica vem de angelical, de anjo, anjo é sem sexo, é
puro, bom. Em contrapartida, seu apelido é Bugra, apelido que surgiu
por identificarem-na à avó índia, quase preta. Seu nome não nomeia,
o nome próprio, nesse caso, confunde-se com o apelido Bugra. Desde
o nome há o dualismo presente na história da paciente. E nessa
polaridade, fixa um gozo. Lacan refere-se ao fenômeno
99
psicossomático como um “cartucho revelando o nome próprio”, um
nome que é feito não com o Nome-do-Pai, mas sim com o gozo, que
seria nessa problemática da psicossomática, o verdadeiro nome
próprio: “o nome próprio que estaria em oposição ao Nome-do- pai
seria um nome composto com um ciframento particular de gozo”
89
Escutando a paciente percebo a dualidade em que coloca seu corpo.
Ele está sempre entre o limpo e o sujo. A psoríase faz parte desse
corpo sujo que é esvaziado, seco e ao mesmo tempo organiza sua
filiação. Mas este corpo esvaziado, que fica nítido no seu sintoma
anoréxico é habitado por significantes, não por nomes ou rubricas.
Outra dualidade está entre o barulho que escutava dos pais à noite e
o silêncio que precisa fazer no seu quarto, para que a filha não ouça
os barulhos do sexo. um desejo silencioso que não pode aparecer
porque poderá haver gozo. Um gozo que a histérica não admite, pois
colocaria “em perigo toda a integridade do seu ser. O surgimento do
excesso de sexualidade chamado desejo, com a eventualidade de sua
realização, chamada gozo, é tão intenso que exige, para ser
temperado, a criação inconsciente de fabulações, cenas e fantasias
protetoras” (Nasio, 1991: p.38).
A cena do ônibus está inscrita numa conotação sexual inconsciente
em torno de significantes e, desse modo, mobiliza a excitação sexual
recalcada. Ela goza de um prazer desconhecido, infantil e deslocado
(o vômito, por exemplo). O caso supõe o funcionamento da estrutura
histérica, no qual há “a neutralização do afeto sexual sobre o modo de
89
Laurent, E. Os nomes do sujeito. In Psicossomática e Psicanálise, 1987, p. 29.
100
recalcamento e deslocamento” (Dor, 1991:42). Fica evidente também,
o processo de inversão dos afetos sexuais, pois Angélica tende a
recusar uma situação efetivamente sexual, erotizando situações sem
essa conotação. Os significantes ligados ao esperma” e à “comida”,
como o chantilly, o requeijão e os que remetem ao corpo dialetizado
entre o sujo e o limpo, caracteriza o efeito do significante na estrutura
psíquica da paciente. E se é a organização dos efeitos significantes
que trabalha a estrutura, seus sintomas, substituições significantes,
remetem ao significante primeiro, o significante latente do desejo e as
escolhas estarão submetidas a essa mesma organização. Para Angélica
a escolha, tamm dialetizada, parece que está entre o ser mulher e
mãe,. A escolha da vida está aí, no desejo de insatisfação, como nos
diz Lacan. O alimento que chega, sana sua necessidade, mas não sua
demanda de amor. Posteriormente compra mais do que a sua
necessidade para, em seguida, recusar o alimento: “joga com sua
recusa como com um desejo (anorexia mental). Extremos onde se
compreende, como em nenhuma outra parte, que o ódio o troco do
amor, mas onde é a ignorância que não é perdoada” Lacan, 1998:
p.634).
Este caso parece demonstrar que, apesar da lesão efetiva, esta
passa a funcionar integrada ao sintoma e à identificação histérica. A
dignóstica psicanalítica, portanto, deveria evoluir para além da
associação direta entre a lesão e seu diagnóstico como fenômeno
psicossomático. O diagnóstico psicanalítico é, também, nesta
circunstância, um diagnóstico sob transferência.
101
Parte 4- Psicossomática e Psicanálise
Os estudos vindos de vários autores, inclusive da medicina
psicossomática contribuíram consistentemente na ampliação do
entendimento desse fenômeno. Mas, em psicanálise e a partir de
Lacan, a questão do tratamento pela via da palavra se torna muito mais
palatável, que o discurso médico interrompe o paciente pela via da
doença e, muitas vezes recorrem a um psicanalista por não saberem o
que fazer. Na pesquisa realizada no Instituto da Pele (UNIFESP),
durante a qual atendi muitos casos de pacientes com dermatoses
graves, a maioria casos de psoríase, pude perceber o quanto não
enfocar diretamente as lesões é benéfico e leva ao seu
desaparecimento, pelo menos temporário, mesmo que o início da
análise seja pela via da doença.
A discussão sobre esse tema é vasto na psicanálise e às vezes
acontecem embates teóricos: “quando as mágoas não saem pelas
lágrimas, fazem os órgãos chorarem”, as palavras de Henry Maudsley,
que me vem ao acaso à cabeça, colocam bem o fenômeno
psicossomático, cuja discussão é vasta na psicanálise.
Jaques Lacan é enfático em sua proposição: os fenômenos
psicossomáticos estão no nível do real. Nesses casos, o investimento
libidinal se faz no próprio órgão. Seguindo a formalização lacaniana,
Patrick Valas comenta sobre a lesão corporal apresentada pelo sujeito
nesses fenômenos:
102
“não se pode negar que ela adquire um sentido, em que se
manifesta um gozo confuso no discurso cujo ordenamento ela
perturba com uma insistência que permite afirmar não ser
simplesmente por uma obnubilação passageira ligada a seu
efeito de trauma. Esse traço permite mesmo distingui-la de uma
lesão puramente orgânica, que não exerce este efeito durável e
insistente sobre o discurso do sujeito” (Valas: 1990:79).
Na Conferência em Genebra sobre o sintoma proferida em 1975,
Lacan afirma que as lesões psicossomáticas são traços escritos no
corpo da ordem do hieróglifo, pois não podem ser lidos na cadeia
significante como os sintomas, concebendo-as como “para-não-ler”:
“O corpo se deixa levar a escrever qualquer coisa da ordem do
número”. É, então, um “ciframento que não passa pela
significantização da letra, pela subjetivação do desejo, mas está do
lado do número, como contagem absoluta do gozo...” (Valas,
1990:84). Na formação psicossomática há um gozo específico e não há
invocação do Outro, portanto, não é uma estrutura, o representa o
sujeito, não é “um grito”, pois a lesão psicossomática é a marcação de
um corpo, como “uma tatuagem, que carne a esse órgão irreal da
lamela que é a libido” (Valas, 1990:85). As lesões são traços escritos
no corpo, que não são da ordem do signo, mas da assinatura, não
tendo, desta forma, valor significante. O que se escreve, Lacan chama
de “hieróglifo”, “traço unário”, “selo”, “corpo como cartucho que
revela o nome próprio”. Portanto, estamos na dimensão do enigma.
103
É o corpo próprio que se lesiona e não o corpo fantasmático. A
presença de uma lesão nos convoca a falar de fenômeno
psicossomático e distingui-las do sintoma.
A oposição entre sintoma e fenômeno psicossomático é clara na
teoria psicanalítica. No Seminário 11, Lacan explica essa oposição
dizendo que o sintoma possui a estrutura de metáfora, implicando a
substituição significante. Para ele, a lesão psicossomática está
localizada fora das neuroses (mas também não é considerada psicose),
pois está além da subjetividade. As lesões são produzidas sobre um
corpo sem sentido, mas isso não quer dizer que não há sofrimento, um
gozo. Lacan lança a frase em 1975 “Um doente psicossomático é
muito complicaddo...”.
Nos fenômenos, diferentemente dos sintomas, não como
localizar a incidência de processos psíquicos de metáfora, metonímia
ou deslocamento e condensação.
Vale destacar que Freud, em 1905 e em 1910, propõe o termo
“complacência somática” para definir a parte tomada do corpo na
origem do sintoma histérico, o que estaria na base das conversões
histéricas. Isso é importante, pois não é difícil confundir a questão da
complacência somática com os fenômenos psicossomáticos. No caso
das conversões, o corpo marcado pelo significante que remete a outro,
serve como suporte ao sintoma, “fazendo saber de um sujeito que se
constituiu no campo do Outro”
90
. No sintoma, os significantes, aqueles
90
Nicolau, R. A psicossomática e a escrita do real, 2008.
104
que passam pela decifração, “são significantes que tomaram o corpo,
que são gozados pela via de sua encarnação”.
91
No fenômeno uma falta de simbolização que explode pela via
do corpo. No Seminário Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise de 1964-1965, Lacan refere-se ao fenômeno
psicossomático sofrendo a indução significante, mas com uma objeção
importante, o desejo do Outro não aparece ao sujeito como falta,
apontando uma falha no simbólico: “a psicossomática é algo que não
é significante, mas que, mesmo assim, é concebível na medida em
que a indução significante, no nível do sujeito, se passou de maneira
que não põe em jogo a afânise do sujeito”
92
A holófrase, correlativa ao fenômeno, se reduz ao par
significante, ao UM. O fenômeno faz no corpo deserto de gozo”, a
incorporação do UM como marcador do gozo. No Seminário Os
escritos técnicos de Freud, Lacan já pontua considerações sobre a
holófrase, dizendo que são frases, expressões que não podem se
decompor, vale dizer que toda holófrase presentifica-se em situações
limites, nas quais o sujeito está suspenso em uma relação especular
com o outro.
Na lingüística, a holofrase presupõe um enunciado que condensa
uma sentença que leva consigo um sentido ou uma intenção. No
Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan
explica a condensação pelo par significante que forma uma massa. A
91
Soler. C. Corpo falante, 2007, p. 3.
92
Lacan, J. Seminário 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1965) , 1988, p.
215, 216.
105
representação do sujeito por um significante a outro, não acontece,
pois é no espaço entre S1 e S2 que possibilita o surgimento do sujeito
e do objeto a. Na presença da holófrase a suspensão da função
significante como tal, causando a ausência da dimensão metafórica,
prejudicando o registro simbólico. Dessa forma não
questionamento ao desejo do Outro, portanto, apresenta-se como o
barrado, não desejante. Essa impossibilidade de capturar o desejo do
Outro acarreta numa impossibilidade de surgir como sujeito desejante.
O fenômeno psicossomático, FPS, definido a partir da holófrase,
está incluído na série de casos em que o significante se apresenta
como UM. Estamos falando de FPS, psicose e debilidade, mas o
sujeito não ocupa o mesmo lugar. No fenômeno não foraclusão do
significante fálico do discurso, como ocorre na psicose. Aqui é preciso
marcar que o fenômeno psicossomático pode se presentificar em
outras estruturas, nas quais outros mecanismos estejam operando,
como o recalcamento e a denegação.
Soler pergunta sobre a oposição entre fenômeno psicossomático e
sintoma depois que, em 1975, no Seminário RSI, Lacan reelabora sua
concepção de sintoma para fazer do mesmo uma função que
transforma o significante em uma letra de gozo.
Se o sintoma é o UM de gozo fora do inconsciente, se é uma
letra que se fixa, temos que a estrutura do sintoma parece ser igual a
do FPS, pois ambos estão do lado do UM de gozo. Mas, a questão
esbarra no deciframento, o sintoma se a ler, enquanto que o
fenômeno, apesar de ser da ordem do escrito, não é decifrável. Na
106
Conferência em Genebra sobre o sintoma, Lacan afirma: tudo se
passa como se algo estivesse escrito no corpo, alguma coisa que se
oferece como enigma”
93
.
O FPS é uma manifestação do real, o que difere do sintoma que
está inscrito-escrito no simbólico e revela o sujeito do inconsciente.
Lacan apresenta uma palavra que marca a questão do fenômeno como
tal. Trata-se de uma mostração não passível de ser decifrada pelo
significante, ponto de angústia. O FPS acarreta lesões com as quais o
sujeito não se implica e não atribui sentido, ocorrendo um
contornamento do simbólico e, portanto algo do real faz incidência no
corpo.
Mas o que leva à incidência dos fenômenos psicossomáticos? O
trauma, conforme apontam alguns psicanalistas, como Miller e Valas.
Eles estabeleceram um modo de relação entre o surgimento do FPS e
o trauma de modo semelhante a neurose, contudo, sem a
intermediação do simbólico. Miller diz: “no que concerne ao
psicossomático precisamente, tentamos dar valor ao efeito traumático
de algum acontecimento que não foi traduzido quanto ao simbólico,
mas que em curto-circuito, marca o corpo”
94
. E Valas afirma que
“tudo se passaria de certo modo como se o sujeito sentisse a
imposição sobre si das significações confusas do discurso do Outro
que, à força de se repetir, causaria trauma”
95
93
Lacan, J. Conferência em Genebre sobre o sintoma. 1975, p. 14.
94
Miller, J.A. Extimidad Del goce (1999). In Gorali, V. 1999, p. 23.
95
Valas, P. Horizontes da psicossomática, 1990, p. 83.
107
O trauma é um conceito caro à psicanálise. Está presente em toda
a obra de Freud que descobre a temporalidade do trauma, ou seja, é no
a posteriori que ocorre a validação de uma impressão que não foi
significada no instante da percepção, mas fixou-se, fazendo retorno
em outros momentos. Em Esboço de Psicanálise de 1938, ele conclui
sobre a universalidade do trauma e as repressões que eles originam.
Lacan, em seu retorno à Freud, corrobora sua tese de universalidade
do trauma, embora faça diferenciações. Na teoria lacaniana o trauma é
a própria entrada do sujeito na linguagem e esse acontecimento
ocasionará a ordenação de gozo, a regulamentação do gozo
remanescente e a impossibilidade de acesso à Coisa. Com essa tese,
Lacan conclui que todo ser falante é traumatizado: fato de estrutura.
O inassimilável produz efeitos e afetos, gerando angústia e
desorientando o sujeito, tirando-o da cena simbólica muitas vezes.
Para o sujeito, resta construir um saber possível que vazão ao afeto
recalcado e, a fantasia (localizada entre o real e o simbólico), situada
por Lacan como a janela para o real”, é uma possibilidade para o
sujeito “pôr fim à vivência do ‘não-ser’, de ‘não-ter’ desejo, trazida
pelo trauma”
96
. Mas, a doença pode ser também uma saída, o real
encerrado no corpo, na carne, sem mediação da fantasia. Uma saída
psicossomática. É o que mostra o caso de Carina e Angélica.
Uma hipótese é que perante o trauma, há uma ruptura e uma
invasão do real que se contém, numa certa medida, pelo fenômeno
psicossomático: “a lesão seria assim, sua parte mais externa, sua
96
Fonseca, M.C. Do trauma ao fenômeno psicossomático (FPS) – Lidar com o sem-sentido? In
Revista Agora, 2007, p. 234
108
‘crosta inorgânica’ que, ao mesmo tempo que aponta para o real por
meio da condensação de gozo, impede que ele invada o psiquismo”
97
.
Concordando com Maria Carolina Bellico Fonseca, o fenômeno
psicossomático é um dos tratamentos dados ao real do trauma.
Uma questão primordial: Qual é o gozo que se encontra no
psicossomático? Seguindo a Conferência, Lacan articula o
inconsciente como lugar de saber, como S2 que , juntamente com S1
permite dar sentido, mas o FPS está profundamente enraizado no
imaginário.
O que temos aqui são três elementos em que Lacan destaca o FPS:
é da ordem do escrito; um gozo específico, diferente do gozo do
sintoma; e está localizado no imaginário.
Partimos do imaginário do corpo, o UM da consistência do corpo
como está posto no Estádio do espelho. O corpo é a imagem. “O
estádio do espelho é, portanto, o momento gico onde se precipita
uma imagem (Freud compara o eu a um cristal, daí a idéia de
precipitação e de linhas de fratura) com a qual o sujeito se identificará
(se transformará à imagem e semelhança) precipitação que ocorre
dentro de uma matriz simbólica. O eu como precipitado se constitui
pela imagem do outro, que funciona como espelho, fornecendo ao
sujeito uma representação do seu corpo distinta das sensações internas
de sua motricidade
98
.
E sobre os gozos que se inscrevem no imaginário? São dois: o
que Lacan elabora na intersecção do imaginário e do simbólico, o qual
97
Idem, p. 242.
98
Dias. S. Paixões do ser: uma captura monstruosa. 1995, p. 41
109
escreve jouis-sens (gozo do sentido) e o gozo do Outro, que se
encontra na intersecção do imaginário do corpo com o Real. Esse
último está fora do simbólico, mas não fora do corpo, enquanto que o
gozo fálico está fora do corpo, mas no simbólico. É por essa via que
podemos dizer algo do gozo psicossomático, e Soler comenta: Daí
podemos construir uma analogia com o sintoma, por pouco que
referimos ao FPS a este gozo do Outro, é o único que se inscreve no
imaginário, fora aquele que se agarra ao sentido.”
99
. O Gozo do Outro
localiza-se na intersecção do imaginário e do real, sem mediação
simbólica. Mas é preciso não confundi-lo com o gozo do ser, outro
gozo que Lacan trabalha no nó borromeano: o gozo do ser está fora do
simbólico, ele é inefável, perdido pela castração, mítico, ligado à
Coisa, anterior à significação fálica e localizado em algumas formas
de psicose. Diferente do Gozo do Outro que, podemos dizer, refere-se
ao gozo do psicossomático: um gozo corporal, que não foi perdido
pela castração, mas que emergia além dela, efeito da passagem pela
linguagem, mas fora dela, inefável e inexplicável, que é o gozo
feminino”. Gozo do Outro sexo, do sexo que é Outro em relação ao
Falo, explica Dunker: “A proporção sexual não existe, ou seja o gozo
Outro não pode ser calculado a partir do gozo fálico e é por isso que
ele é aproximado do gozo místico, do gozo que não se constrange ao
semblante da linguagem”
100
. Esse gozo do Outro está no registro do
fantasma, mas ele tem efeitos na subjetividade. O que podemos dizer
do gozo, desse gozo específico dos fenômenos psicossomáticos? O
99
Idem. p.56
100
Dunker. C. O cálculo neurótico do gozo. 2002, p. 62.
110
desejo do Outro invoca o ser introduzindo-o na linguagem e fazendo
surgir o sujeito do desejo, o gozo do ser, aquele anterior à Coisa, à
intervenção do significante, puro real, submetido à Lei. Articulado
agora ao simbólico e ao imaginário, o sujeito efeito da metáfora
paterna goza com o Falo, o fundamento do significante, gozo da
palavra, gozo fálico, efeito da castração e que se opõe aos dois gozos
fora da linguagem, fora do sentido: gozo do ser e gozo do Outro. Mas
no FPS há uma falha na constituição do sujeito e na castração, um
problema no gozo, Dunker é preciso ao dizer: a neurose estrutura-se,
do ponto de vista do gozo, pelo pareamento entre a castração no
sujeito e o gozo no Outro. Se o neurótico recua diante do sacrifício
representado pela sua castração é porque esta equivale,
fantasmaticamente ao gozo do Outro.”
101
De que gozo trata-se nos fenômenos psicossomáticos? Não
podemos dizer que trata-se do gozo do ser, aquele gozo mítico,
anterior à lei significante, ligado à coisa, gozo do corpo.
Do mesmo modo que o sintoma fixa o gozo fálico em uma letra
que ex-siste ao inconsciente, pode-se supor que o FPS fixa com um
traço tomado do gozo do Outro, o gozo outro que é fálico e constitui o
corpo Outro. O Outro é o corpo no FPS, talvez essa afirmação ajude a
esclarecer essa questão, o gozo está alojado no Outro. “Um Outro está
em questão no fenômeno psicossomático, porém, longe de ser o lugar
do Outro que pode ser ocupado por um outro sujeito, este Outro é o
corpo próprio... parece-me, portanto, que o corpo como Outro é de
101
Idem, p. 84
111
fato uma noção que permitiria esclarecer nossa orientação
psicossomática”.
102
Lacan afirma na Conferência de Genebra sobre o sintoma (1975)
“(...) se evoquei uma metáfora como a do congelado é porque há
efetivamente essa fixação(...) é porque o corpo se deixa levar a
escrever algo da ordem do número”
103
. O que é da ordem do número
não faz série, mas atua como pura freqüência, um sinal unívoco da
cifra, contagem do gozo, que leva a uma possível escrita do real. Essa
fixação de gozo está fora do simbólico e, no trabalho de análise, deve
haver um esforço na direção de um sentido, mas não se trata de um
sentido imaginário, nem simbólico enquanto significação, mas um
sentido que não se desloca, mas que aponta para um gozo específico,
sustentado por um significante indutor, aquele em que o sujeito se
aprisiona e que está sustentado, por sua vez, pela letra.
“Eu sou branquinha como meu pai, minha mãe é preta, mas
baixinha como eu, minha avó é branca, na minha família os
bonitos são os de pele escura... me chamavam de branquela...
tive doença do leite quando pequena... tenho medo do escuro...
as marcas brancas (no seu corpo) me incomodam, mas as
escuras, do sol, nem ligo”.
102
Miller. J.A. Algumas reflexões sobre o fenômeno psicossomático. In: Psicossomática e
Psicanálise.1987, p. 94.
103
Lacan, J. Conferência em Genebra sobre o sintoma, 1975, p. 139.
112
Esse discurso, de uma paciente com vitiligo que atendi no instituto
da pele, não pára, é incessante, narrativo, não faz uma retroação
significante. Eles, os significantes, estão aí, mas não fazem sentido.
um dito, ela fala, mas não um dizer. O “nem ligo” vit ligo, pode
ser um conector, algo de uma nomeação que produz a holófrase.
A respeito da psicossomática, Lacan coloca que nesses casos não
afânise do sujeito. A metáfora paterna falhou, então não
significante que represente o sujeito para outro significante, uma vez
que S1 está colado, amalgamado a S2.
“O sujeito cessa de ser representado, e em que, de certo modo,
falta a descontinuidade. São casos onde não estamos em
presença de uma articulação significante, porém onde está em
função a presença ou a ausência de um significante unário, de
um significante privilegiado. Um S1, portanto, mas de certo
modo absoluto” (1987: 89)
Lacan, no Seminário 11, ao comentar o fenômeno
psicossomático, refere-se às experiências de Pavlov e diz que o animal
não põe em causa o desejo do experimentador e assim, a entender
que o sujeito psicossomático não põe em questão o desejo do Outro,
mas sim opera um contornamento do Outro.
Podemos pensar sobre a função paterna no que se refere aos
fenômenos psicossomáticos, que as leis significantes das formações
113
inconscientes não se aplicam aqui. Situamos, então, o que Nasio
chama de foraclusão parcial do Nome-do-Pai.
O conceito de foraclusão em Freud é um mecanismo de defesa do
ego que rejeita a representação insuportável torna-se totalmente
dissociada do afeto. A representação repelida transforma-se em
percepção alucinatória, nas psicoses, e retorna ao ego. É como se
alguma coisa do eu incomodasse, por isso a arranca de si sem
distinção, rejeita-a e a reencontra transformada no exterior: o que é
rejeitado no simbólico reaparece no real”
104
.
Esse conceito de foraclusão é contestado por Nasio em relação ao
fenômeno psicossomático. Para ele a foraclusão é um mecanismo
local, determinado por fatos locais”. Ele acha que devemos o
somente questionar a idéia de rejeição como também deixar de situar a
incidência da foraclusão em um plano global pensando justamente
naquilo que Freud colocou. Diz que nada levaria a pensar que a
foraclusão comportaria o desmoronamento do ego. Ao contrário, ele
acredita que a defesa é demasiadamente enérgica e o ego sofre uma
perda, mas este continua, em seu conjunto, numa espécie de unidade
consistente. O ataque é apenas local e a perda apenas uma perda
parcial, ou seja, a separação da realidade pode ser parcial.
A teoria lacaniana do par significante é torna possível dissipar o
que ele chama de falsas noções em relação a foraclusão: a de rejeição
e a de globalidade.
104
Lacan, J. O Seminário, Livro 3. As Psicoses (1955-1956),1985.
114
No que se refere à lesão de órgão, a foraclusão do Nome-do-Pai,
local, como Nasio a chama (poderia ser como Lacan, não afânise,
houve uma falha pontual num dos Nomes-do-Pai) trata-se de que não
significante excêntrico à cadeia e nem ponto singular opaco em
torno do qual se ordenaria a nova realidade. Isso quer dizer “parcial”:
refere-se ao sintoma e não à estrutura. Esse significante que não é
excêntrico, é amalgamado, solidificado à cadeia. Dessa forma, não
consistência do sistema significante, não filiação segundo os
encadeamentos significantes. A filiação circula no nível das lesões
orgânicas, assim a filiação do Nome-do-Pai torna-se filiação de objeto
(que substitui a filiação do Nome-do-Pai). E aquilo que seria retorno
em relação ao recalcamento, teria uma consistência heterogênea na
foraclusão, cujo retorno seria a própria lesão, remetendo a ela mesma.
Essa tese de Nasio não se esgota aí, o autor avança e nos fornece
outras teorizações interessantes que serão abordadas nesse trabalho,
mas Lacan e outros psicanalistas, como Castanet, dizem que nesses
casos “a função do Nome-do-Pai é, em parte, fracassada, mas não
foraclusão, por isso pode-se concluir que a psicanálise pode romper
essa falta de afânise e fazer de novo funcionar o simbólico”. Na minha
opinião, Nasio faz um esforço para tentar uma solução para a questão
da foraclusão nos fenômenos, mas fico ainda, com a tese de Lacan,
Castanet e outros.
No momento gico da constituição do dujeito, no qual a criança
renuncia a posição de ser objeto de amor da mãe, vai em busca de
outro objeto, possível pela mediação da função paterna simbólica
115
(metáfora paterna). A metáfora paterna se constitui, por sua vez,
através do reconhecimento da mãe, implicando numa mãe faltosa e
desejosa. A criança também. Momento de substituição da metáfora. O
S1, desejo da mãe, é substituído por S2, Nome-do-Pai. A castração
separa esses dois significantes o que faz com que criança se insira na
rede simbólica, direcionando-se a objetos substitutos do falo.
funda-se o recalque originário, recalque do significante fálico. Neste
processo,cai o objeto a e o sujeito busca na fantasia a causa do seu
desejo. Na holófrase, a solidificação de S1 e S2, portanto o objeto
a não cai, não havendo possibilidade de inauguração do desejo. Não
há emergência do sujeito.
Lacan no Seminário livro 11, afirma que o que fundamenta o
fenômeno psicossomático é a incidência de um significante sobre o
corpo em virtude de um fracasso da função do Nome-do-Pai, um
holofraseamento, permitindo que se estruture alguma coisa que é da
ordem da letra. S1 cola em S2, sem o intervalo que possibilita a
divisão do sujeito a letra estaria a ser considerada em sua função de
inscrição de um gozo específico e, antes de tudo, de um ‘não a ler’, de
um não a decifrar(Castanet, 2003), pois em Lacan, a escrita, a letra
estão no real e o significante no simbólico.
Lacan fala de auto-erotismo sem relação de objeto e é que os
fenômenos psicossomáticos se situam, no nível dos fenômenos auto-
eróticos, no qual o prazer está em causa, diferente daquilo que ocorre
nos sintomas, onde há desprazer.
116
Portanto, o holofraseamento de que se trata aqui não tem a
mesma configuração daquele da psicose, em que o sujeito não pode
responder ao retorno no real de um significante foracluído, mas sim de
uma situação limite, onde o sujeito está suspenso, numa relação
especular com o Outro: o Outro é o corpo. O que se passa é uma
espécie de congelamento do significante ao corpo, provocando um
bloqueio tal que um significante não pode se ligar a outro, não
permitindo que a indução significante coloque em jogo a afânise do
sujeito. Nessa medida, o fenômeno psicossomático funciona como
esse traço, como um “significante, não de uma presença, mas de uma
ausência apagada”
105
, uma marca que passa, necessariamente, pelo
ponto de apagamento, marcando a diferença: “o corpo se deixa
escrever alguma coisa que é da ordem do número”
106
, uma vez que o
que falha é justamente a função do pai, ou seja, a função de zero, por
onde se introduz a via pela qual o sujeito passa a se contar,
inaugurando sua unicidade significante.
A escrita, fala Lacan no Seminário 20, Mais ainda, não é para
ser lida, a letra é feita no prolongamento da palavra e, portanto, no
discurso analítico é preciso verificar o que as letras introduzem na
função significante. No entanto, fenômenos psicossomáticos a letra
seria da ordem do nome próprio, uma marca impressa. Então, como
fazer o sujeito falar de uma escrita ilegível, solidificada, que essa
letra não se traduz, liga-se a um traço que não foi metaforizado pelo
Nome-do-Pai? É como argumenta Castanet: “a letra é a materialidade
105
Laca, J. O Seminário, Livro 9, A Identificação (1961-1962), 2003.
106
Lacan, J. A Confer~encia de genebra sobre o sintoma, 1975.
117
do significante, ela permanece inscrita como um tipo de a que não é
exteriorizável do Outro à maneira da neurose” (Castanet, 2003).
linguagem no corpo, uma escrita. incorporação, não da
estrutura, mas de um significante impresso, fixado no corpo, não na
fantasia. Lacan, na Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975),
faz uma consideração sobre o doente psicossomático que dá brechas a
alguns desdobramentos na clinica psicanalítica. Alguma coisa ocorre
com estes sujeitos que endereçam ao escrito, mas em muitos casos os
analistas não podem lê-lo. Tudo se passa como se algo estivesse
escrito no corpo, alguma coisa que se oferece como enigma...”
Ainda no Seminário 20 há a afirmação categórica de que o
significante se situa ao nível da substância gozante, ou seja, o
significante é a causa do gozo. Pergunto: o que podemos tirar disso ao
pensar os fenômenos psicossomáticos?
No discurso desses pacientes existe a presença de significantes,
que não fazem sentido, porque não representam o sujeito para outro
significante, mas estão fixados num gozo na carne. E pergunta Lacan:
“sem o significante, como mesmo abordar aquela parte do corpo?
Como, sem o significante, centrar esse algo que do gozo, é a causa
material?.”
107
Mas o que esem jogo aqui não é o significante, mas o
próprio gozo. Podemos dizer que nesses casos o gozo não cessa de se
inscrever?
Sem vida, a lesão, a marca de um vitiligo ou psoríase está
circunscrita na carne e o sujeito faz desse gozo na carne sua própria
107
Lacan. J, O Seminário, Livro 20. Mais, ainda (1972-1973), 1985, p. 36.
118
divisão, mas não um signo, justamente porque as lesões não são
signos: a lesão psicossomática , portanto, explica-se por uma posição
do sujeito ao Outro que não se decifra. Nos fenômenos
psicossomáticos, não é mais tanto o desejo que é interrogado, e sim o
gozo” (Castanet,2003).
O sentido de um signo depende do sentido de todos os outros
signos. O sentido do signo é sempre tributário de um ato de
simbolização, é a construção do próprio signo pela associação de um
significante a um significado.
Comparado ao sintoma neurótico, que desloca-se na cadeia
significante, que permite brechas para o aparecimento do a, o
fenômeno pode ou não estar lá, aparece e desaparece, como um
mecanismo pulsional. Portanto, Lacan coloca a numeração binária do
neurótico como 1 2 3 4 e do fenômeno psicosomático como 1 0 1 0.
Na Conferência em Genebra sobre o sintoma, Lacan aponta que é
pelo viés do mero que se dará um deciframento para o gozo do
psicossomático, ou seja, naquilo que na linguagem se veicula de real.
Já vimos que os sintomas se assemelham à letra e por isso estão
submetidos à leitura, enquanto que nos fenômenos psicossomáticos
não ocorre um deslizamento, mas uma construção em que o número é
isolado, não apontando para nenhum outro significante ou
significação.
O que podemos dizer do gozo, desse gozo específico dos
fenômenos psicossomáticos? O desejo do Outro invoca o ser
introduzindo-o na linguagem e fazendo surgir o sujeito do desejo, o
119
gozo do ser, aquele anterior à Coisa, à intervenção do significante,
puro real, que foi submetido à Lei. Articulado agora ao simbólico e ao
imaginário, o sujeito efeito da metáfora paterna goza com o Falo, o
fundamento do significante, gozo da palavra, gozo fálico, efeito da
castração e que se opõe aos dois gozos fora da linguagem, fora do
sentido: gozo do ser e gozo do Outro. De que gozo trata-se nos
fenômenos psicossomáticos? Trata-se do gozo do ser, aquele gozo
mítico, anterior à lei significante, ligado à coisa, gozo do corpo?
O fenômeno psicossomático encerra-se num corpo (superfície de
inscrições significantes) tomado pelo imaginário, mas um significante
único se molda à sua modalidade de gozo, situada no real, no real da
carne. A questão é definir o gozo do psicossomático ou, como disse
Miller: para s o problema é mostrar em que a resposta
psicossomática mereceria converter-se em questão sobre o desejo”
(Miller).
120
Capítulo III- O corpo na psicanálise
Freud publica, em 1893, Algumas considerações para o estudo
comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas, análise
acerca de suas descobertas sobre o sintoma, onde apresenta uma nova
concepção do sintoma histérico: a paralisia histérica também é
paralisia em representação, mas com um tipo especial de
representação cujas características permanecem como um assunto a
ser desvendado.”
108
assim, Freud estabelece uma nova noção de
corpo. As paralisias histéricas ganham outro estatuto, sendo
consideradas como uma nova forma de manifestação do sintoma, na
qual o corpo tem uma concepção imaginária, um corpo que se
encontra representado numa dimensão de excesso, conservando algo
que não faz parte do sintoma neurológico e que Freud logo chamará
de retorno do recalcado.
um excesso impossível de traduzir em imagens verbais,
interrompendo, desse modo, a representação de uma determinada parte
do corpo de tal modo, que se produz a paralisia de um pedaço dele,
cuja representação está reprimida e que está fora das associações.
Mais tarde, Lacan dirá isso de outra maneira, ou seja, que o corpo é
efeito do discurso e segue as leis do significante e suas relações com o
gozo. O corpo está presente na lógica da cadeia associativa de
representação, mas sempre um excedente de afeto impossível de
108
Freud. S. Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras, orgânicas e
histéricas. Obras Completas. V. I, p. 183
121
nomear. Excedente que se manifesta num campo delimitado por zonas
erógenas, nas quais esse tanto de afeto cola na carne pelos traços do
gozo do outro. É um corpo que está fora da biologia, submetido à lei
do significante, é um corpo particular que porta a marca da pulsão e
que comanda o seu funcionamento.
Em 1916, Freud situa a pulsão entre o psíquico e o somático,
como representante psíquico dos estímulos que se originam no corpo,
e alcança a mente. Seria um impulso da exigência feita à mente para
ligar-se ao corpo.
Mais que isso, Lacan atribui ao corpo um triplo estatuto:
corporiedade imaginária, simbólica e real. O corpo é o lugar onde o
eu enuncia radicalmente sua alienação: eu sou isso”.
109
Na corporiedade imaginária, pode-se dizer que há uma apreensão
do corpo sempre vacilante, ou seja, há uma discordância constitutiva
entre o eu e a forma na qual ele se reconhece. O reconhecimento
dependerá sempre do olhar do outro e será sempre mediado pela
imagem e pela linguagem. No texto O estádio do espelho como
formador da função do eu, Lacan vai dizer:
“o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno
precipita-se da insuficiência para a antecipação e que fabrica
para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as
fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do
corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de
109
Dunker. C. Corpo, carne e organismo. s/d
122
ortopédica e para a armadura enfim assumida de uma
identidade alienante”.
110
A corporeidade simbólica implica, reúne, inúmeras artimanhas
para identificações e significações do corpo, sejam elas estéticas,
religiosas, artísticas ou biológicas. Desse modo, o organismo é algo do
corpo num sistema simbólico específico, pois ele contém um saber,
está no discurso, no discurso médico, por exemplo. Esse corpo
simbólico, como afirma Lacan em O avesso da psicanálise, tem a
estrutura de um saber. E saber não é representação, mas ão, é o
S2, esse significante que se articula a outros significantes e representa
o sujeito. É que está a repetição que visa o gozo: “Esse saber mostra
aqui sua raiz porquanto na repetição, e sob a forma do traço unário,
para começar, ele vem a ser o meio de gozo do gozo precisamente
na medida em que ultrapassa os limites impostos, sob o termo prazer,
às tensões usuais da vida”
111
. Se existe gozo no corpo e o saber é
meio de gozo pela incidência desses significantes (S2), chega-se a
uma dimensão do corpo simbólico.
Mas, há um aspecto da corporeidade que não se inscreve como
sujeito e também não se aliena como objeto. Esse é o real do corpo, o
que em Lacan, faz oposição ao corpo.
Para pontuar o que está formulado adiante, a frase de Lacan: “uma
identificação é a transformação que se produz no sujeito quando ele
assume uma imagem”, é fundamental. Aspecto a destacar aqui é o
110
Lacan. J. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. 1998 ,p. 100
111
Lacan, J. Seminário, livro 17. O avesso da psicanálise. P. 46.
123
termo transformação, que pressupõe que as identificações são
estabelecidas dependendo do estado do eu “uma modificação, um
trânsito que se opera no sujeito e não um estado fixo e essencial a que
ele se reduz ao se reconhecer nos objetos”
112
. Outro aspecto, segundo
Dunker, é o ato de assumir, pois “nem todas as imagens são assumidas
pelo sujeito, e não é diante de todas as imagens que o sujeito se
transforma”. E é justamente do traço unário que se trata, da função do
traço unário, a origem do saber, a forma mais simples da marca, que
é falando propriamente, a origem do significante”.
113
Um sujeito reconhece seu corpo através do olhar do outro, que
faz a função de espelho, espelho carregado de ideologias, pois o outro
não reflete a imagem do corpo próprio, mas o que ele deseja: este
espelho ideológico me devolve tanto aquilo que eu sou, quanto aquilo
que eu não sou, quanto aquilo que eu deveria ser
114
. Ocorre, então,
uma insatisfação constitutiva. A imagem do corpo é sempre uma
imagem na qual o sujeito se aliena em uma forma-objeto, mas o
sujeito não é estático, seu corpo pulsional busca possibilidades de
modificar esse corpo imaginário através de vários meios. A
compreensão de sua corporiedade é sempre vacilante. Lacan diz no
Seminário 11: “o de que se trata na pulsão é de se fazer ver. A
atividade da pulsão se concentra nesse se fazer.
115
112
Dunker. C. Corporiedade em psicanálise: corpo, carne e organismo. s/d. p. 13
113
Lacan. J. Seminário livro 17. O avesso da psicanálise. p. 44
114
Dunker. C. op cit. p. 16
115
Lacan. J. Seminário livro11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. p. 182.
124
Para entrar na questão do corpo em psicanálise, é necessária uma
articulação importante, que posiciona sobre o eu e o sujeito do
inconsciente, pontos cruciais para se entender a constituição do sujeito
em Lacan e levar à diferenciação, tantas vezes confusa, entre sujeito e
indivíduo. Para tanto preciso discorrer sobre os mecanismos de
alienação e separação, para chegar ao conceito de indivíduo. E a partir
daí entrar com a contextualização do corpo, eixo fundamental do
trabalho.
No processo de alienação, se de cara com a questão da
distinção entre eu e sujeito, contribuição lacaniana que inova aquilo
que Freud formulou em seu ensino, pois Lacan coloca o eu como uma
construção imaginária e o sujeito do inconsciente como o sujeito do
desejo. Para ele, eu e sujeito não são a mesma coisa. Freud
(1923/1972), diz que o eu é das Ich, uma instância intrapsíquica
imersa no sistema percepção-consciência, servidor de outras instâncias
(o isso e o supereu) não havendo nenhuma idéia de um sujeito. Na
topologia lacaniana o ser e o sujeito são disjuntos, noção no grafo
do desejo em Subversão do sujeito e dialética do desejo (1960)
116
, e
em Posição do Inconsciente (1960 - 1964
117
), onde ele articula suas
proposições em torno do cogito cartesiano “Penso, logo existo”,
indagando o sujeito da ciência e, ao mesmo tempo, dialetizando com a
tese filosófica de que o sujeito passou a existir com Descartes.
Partindo das semelhanças e diferenças entre Freud e Descartes, Lacan
chega à fórmula negativa do cogito: "ou não penso, ou não sou".
116
Lacan. J. In Escritos(1960), 1998 p. 831.
117
Lacan, J. In Escritos (1960-1964), 1998 p. 845.
125
Essa fórmula negativa é justificada na medida em que, a partir da
noção de inconsciente, suas formações lapso, esquecimento, ato
falho, sonho não implicam num sujeito que possa lidar com suas
representações e dar continuidade ao seu ser. Ocorre uma escolha
forçada. O que isso quer dizer? Lacan elaborou a idéia do vel alienante
como sendo a escolha forçada entre o ser e o sentido, que no cogito
cartesiano, à luz da psicanálise, o leva a analogia da escolha forçada
entre o "não penso" e o "não sou".
Em O estádio do espelho como formador da função do eu”
(1949)
118
, Lacan rejeita a tradição filosófica oriunda do cogito, ao
conceber a função do eu na psicanálise promovendo o Je como um
eixo do trabalho freudiano. Sua elaboração desemboca na
particularidade dos pronomes Je e moi na língua francesa: entre o eu e
o sujeito do inconsciente, não coincidentes. A função do Je,
determina a estruturação de um eu como posição simbólica do sujeito
concomitantemente ao surgimento de um eu, a de moi , como uma
construção imaginária.
Em A Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud,
fala da função do sujeito apresentando a frase em latim cogito ergo
sum ubi cogito, ibi sum"
119
, que se traduz: "Lá onde eu penso: 'eu
penso logo eu sou', eu sou". Aqui Lacan introduz a noção de espaço
na ordem do pensamento, inferência decisiva: claro que isso me
limita a estar em meu ser na medida em que penso que sou
118
Lacan, J. In Escritos (1949). 1998.
119
Lacan, J. In Escritos, p. 520.
126
(estou) em meu pensamento; em que medida eu realmente o penso,
isso só diz respeito a mim e, se eu o digo, não interessa a ninguém"
120
.
Nesse momento de seu ensino, Lacan retoma a metonímia e a
metáfora, pois são nessas figuras que aparece a separação, no sentido
daquela espacialização, na frase em latim: "penso onde não sou, logo
sou onde não penso"
121
. O inconsciente freudiano, situado no jogo da
metáfora e da metonímia, implica a inversão, pela qual onde
pensamento (inconsciente), eu (Je) não estou, e onde está o eu (Je),
isso não pensa mais: "O que cumpre dizer é eu não sou onde sou
joguete de meu pensamento; penso naquilo que sou onde não penso
pensar"
122
.
Conclui-se, dessa forma, a disjunção entre ser e pensamento. Do
mesmo modo, ao rever o cogito, Lacan transforma-o, resultando num
eu (Je) bastante distinto daquele de Descartes e, reinterpreta esse
cogito, transformando-o e produzindo como resultado um eu (Je), esse
que se toma por uma coisa que pensa.
A elaboração cartesiana coloca o cogito (o "penso, logo sou")
com seu sujeito assegurado de ser, pelo único fato de que ele pensa, o
sujeito dessa certeza segue com o ego e o pensamento.
Mas o sujeito lacaniano existe onde se cruzam letras, o
significante e uma posição descentrada do eu em relação ao processo
da fala. Esses dois eixos levam ao registro de funcionamento no qual o
significante representa o sujeito para outro significante.
120
Idem.
121
Idem, p. 521.
122
Ibdem.
127
Lacan mostra em O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise (1978), a dificuldade de abrir mão da noção do eu, sem o
qual não se consegue pensar. Ele segue dizendo que, da mesma forma
que Copérnico introduz a noção de que a Terra não era o centro do
universo, e sim, o Sol, Freud, retira a noção de eu do centro, ou seja, a
descoberta freudiana mostra que o inconsciente "escapa totalmente a
este círculo de certezas no qual o homem se reconhece como um eu"
(Lacan, 1978/1992, p. 15).
Segundo Lacan, Freud partiu da idéia de que aquilo que é da
ordem do eu é também da ordem da consciência. No decorrer de sua
obra, Freud conclui que não pode situar a consciência e, pode-se dizer
com Lacan, que o eu = Je é distinto do eu = moi. O sujeito não se
confunde com o indivíduo. "O sujeito está descentrado em relação ao
indivíduo" (Lacan, 1978/1992, p. 16) . O sujeito do inconsciente é o
sujeito por excelência, e se difere do eu, função imaginária, que pode
ser consciente.
Na concepção lacaniana o sujeito fala. uma oposição entre o
sujeito do inconsciente e a organização do eu: este nos diz muita coisa
pela via da denegação, mas isto não explica qual é a relação entre os
dois sistemas. Eles não são apenas um o inverso do outro, de forma
que a análise do eu seja a análise do inconsciente ao avesso, o que se
deve ao fato da insistência, da repetição. Disso surge a questão de
saber qual é a natureza do princípio que regula o que está em causa, ou
seja, o sujeito. Se para Descartes o ser é inerente ao sujeito, Lacan vai
escolher este ponto como um primeiro passo no estudo da
128
Identificação, em 1961, no Seminário 9, em que ele retoma, desde a
primeira sessão, os problemas postos pelo cogito, e novamente
condena a formulação de Descartes, dizendo que nada suporta a idéia
tradicional filosófica de um sujeito, a não ser a existência do
significante e de seus efeitos.
A importância deste percurso está no limite da experiência
cartesiana: o sujeito é evanescente, a necessidade de uma garantia,
de um traço de estrutura, do traço unário. O significante e o traço
alcançam sujeito, constituído como segundo em relação ao
significante. O traço unário é como a tatuagem, o primeiro dos
significantes.
No Seminário 11 Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise (1073), Lacan, discorrendo sobre a questão da
transferência, fala do sujeito como aquele que é representado por um
significante para um outro significante, e do Outro como sendo o
tesouro dos significantes. Apresenta então, as duas operações que
regulam as relações do sujeito e do Outro, a alienação e a separação.
Na alienação, o sujeito se aliena no Outro, como foi dito acima. Na
separação, esse sujeito afanísico, não se manteria simplesmente na
acumulação progressiva do saber, pois não se trata de um sujeito que
conhece e acumula representações da realidade, como se dirá do eu,
moi. Com o vel da alienação, o sujeito tem apenas uma saída a via
do desejo.
O processo de separação refere-se à intersecção entre o sujeito e
o Outro, o ser e o sentido. Daí advém duas faltas: a falta que o sujeito
129
encontra no Outro (perda do ser), própria da estrutura significante,
pois é nos intervalos do discurso do Outro que desliza o desejo, e a
falta inerente do sujeito, a falta anterior, de seu próprio
desaparecimento (a afânise, que ocorre na submissão ao sentido dado
pelo Outro). Esta falta é, em parte, recuperada como objeto para o
Outro.
Esse desaparecimento sustenta a fantasia de sua morte, o que
corresponde ao primeiro objeto que o sujeito coloca na dialética. Na
separação, o sujeito irrompe na cadeia significante, e o objeto a se
destaca. Essa operação de separação vai permitir que o sujeito
encontre um espaço entre os significantes onde irá constituir seu
desejo, desejo não conhecido. Isso faz com que o sujeito retorne à
origem, sua falta anterior. Evoca-se, então, a conclusão de que
alienação e separação não são processos estáticos. O sujeito oscila
permanentemente entre alienação e separação, o que pode ser
verificado na clínica, numa alternância constantemente renovada.
A criança, é alienada no desejo da mãe, submetida a um
significante que a condena a não ser, pois o sujeito do inconsciente é
barrado quando escolhe o sentido dado pelo Outro (mãe). Tempo
diferente dessa lógica vai acontecer com a separação. No tempo da
afânise, momento de fechamento do inconsciente, o sujeito é chamado
ao Outro, conduzindo-o para a identificação constitutiva. Aqui
podemos citar a pulsão invocante, a voz e o olhar que chama o sujeito.
O desejo da mãe convoca o sujeito. a separação constitui o tempo
da abertura do inconsciente, onde se dá o corte nos significantes, é o
130
sujeito no campo do Outro, seu desejo é o desejo do Outro. A
invocação de um olhar desejante e de uma voz que possa nomear o
desejo, inscreve um traço que desencadeia o processo de identificação.
O sujeito sai da alienação, ou seja, separa-se e instaura-se a falta,
que constitui o seu desejo. E para que haja a falta, o sujeito vai ser
operado por dois significantes, pois com a separação cai um objeto, o
objeto a. A separação é a busca da parte perdida do ser. O objeto a é
aquilo que singulariza o sujeito, pois denota a especificidade de seu
desejo. É a maneira esperada, segundo a teoria, para ocorrer a
separação. Entretanto, em muitos casos, a separação causa um
impasse. Impasse teórico que traz questões fundamentais para a
clínica. É o caso dos fenômenos psicossomáticos, nos quais não a
operação de afânise no processo de separação.
Lacan evoca o signo como efeito de desvitalização do corpo pelo
significante. Chama isto de corpo deserto de gozo”, o que ressalta
desde o texto O estádio do espelho como formador da função do eu,
quando fala do corpo como um saco, uma bolsa com orifícios, o corpo
que se e se toca, portanto, não tem interior, não gozo, ou seja, o
corpo interno funciona segundo o princípio do prazer, sua excitação se
mantém no nível mais baixo. E o corpo desertificado pela operação de
gozo equivale à redução de sua excitação e possibilita a condição de
domá-lo, produzir um corpo civilizado que “obedece as ordens do
discurso(...) é um corpo deserto que pode obedecer aos imperativos
e aos objetivos do discurso”.
123
123
Soler,C. Los ensamblajes Del cuerpo, 2002, p. 23.
131
A questão do corpo na psicanálise se impõe, precisamente pelo
sintoma, algo da ordem da linguagem, uma vez que é decifrável, um
acontecimento do corpo, do corpo que goza. Até falamos do
inconsciente-linguagem, mas o conceito gozo vai fazendo com que
Lacan mergulhe em outras vias para tratar o corpo, que não aquele
posto no Estádio de espelho. A introdução do conceito de parlêtre
coloca a palavra como algo que tem sentido, um saber, mas não
somente um saber “linguageiro”, mas um saber que está presente no
campo do real e do gozo: O significante esno nível do gozo. Esta
proposição inverte a primeira tese, mais conhecida, que afirmava o
efeito mortificante do simbólico, seu poder de subtração do gozo real.
É a famosa tese do significante como morte da coisa, que Lacan bem
recorda com o Freud do fim da Interpretação dos sonhos...”
124
. Para
depois seguir a questão do corpo como “substãncia gozante” cabe,
primeiro discorrer sobre essa tese.
Lacan trabalha sobre a imagem do corpo e diz do amor que o
sujeito tem por ele. No fim de 1979, na sua conferência sobre Joyce,
afirma: “o homem tem um corpo e um”. O homem tem um corpo e
esse ter é colocado justamente para reforçar que ele não é um corpo,
mas o tem. O sujeito não é um corpo e é po r isso que, muitas vezes,
tem dificuldade para reconhecer-se nele.
Mas o que é ter um corpo? Para Lacan ter um corpo consiste em
fazer algo com ele. Nessa lógica, os que modificam o corpo fazem
124
Soler, C. O corpo falante, 2007.
132
algo, sabem que o m, e esse fazer com o corpo está relacionado com
o erotismo e com aquilo que se realiza numa dimensão pulsional.
No texto O Estádio do espelho, Lacan postula que a excitação
corporal da criança frente ao espelho é somente uma função da
imagem, porque a sua função essencial é apenas de imagem da
identidade, não se tratando de identificação. O sujeito se identifica
com a imagem, acredita poder reconhecer o que é, na imagem. A
identidade é constituída pela imagem e também pela pulsão, que por
sua conotação subjetiva convoca o erotismo.
Em Função e campo da palavra e da linguagem, Lacan diz que o
que Freud chama de forma errada instinto de morte, está ligado aos
problemas da palavra e da linguagem. Nesse texto, pensa a pulsão de
morte freudiana, distingue o efeito negativizante do significante e o
símbolo assassino da coisa e fala da liberdade do homem que se
inscreve em três pontas, que constituem a renúncia. Daí as escolhas
possíveis que o sujeito pode fazer.
Primeiro, a renúncia impõe o desejo do Outro, põe à tona sua
servidão, o que está subentendido na metáfora do mestre e do escravo,
na qual ocorre a ameaça de morte imposta ao outro, para roubar os
frutos do trabalho. Depois, o sujeito consente em sacrificar sua vida,
seu desejo. E por último, o sujeito diz não: o núcleo do sujeito consiste
em dizer não à prisão do simbólico, à prisão dos significantes da
cadeia do discurso, isto é, à prisão do Outro. O sujeito afirma-se na
negatividade, utiliza a possibilidade da morte. É a mediação da morte:
serve-se da possibilidade da morte para afirmar-se, “nesse jogo de
133
anel da intersubjetividade onde o desejo se faz reconhecer um
momento para perder-se em um querer, que é o querer do outro e
afirmar-se em uma maldição sem palavras”
125
.
Na ambigüidade da pulsão, Lacan faz ressoar a morte, ou seja,
com o uso da morte, o sujeito tenta afirmar-se e não desaparecer, mas
afirma-se desaparecendo, sacrifica sua vida biológica ou uma parte de
sua vida para obter a única e verdadeira vida, inscrita na linguagem, na
memória dos homens, única verdadeira e que supera o indivíduo
animal, posicionando-o como humano. É o jogo possível do sujeito
entre as duas vidas, a biológica e a sublimada no discurso, anúncio do
processo de separação: um sujeito que se afirma com seu
desaparecimento.
Fica, então, complicado pensar a pulsão de morte produzida pela
vontade da destruição. É exatamente o contrário, a mediação da morte
não quer dizer apontar a morte, quer dizer que se usa a morte de
maneira condicional para obter um efeito de vida humana verdadeira.
que reforçar o ser para a morte na identidade. Mas também é
preciso realçar o papel da pulsão na identidade, identidade alienada ao
outro, quer dizer, alienada à cadeia do Outro. Isso tem a ver com o
objeto a e o uso do objeto a, que sustenta todo o eixo das realizações,
isto é , o que se pode realizar no social, no trabalho e no amor.
Dizer que um papel da pulsão na identidade é dizer também,
implicitamente, que a pulsão faz laço, que tem um papel socializante,
porque quando se fala de identidade não temos nunca uma identidade
125
Soler. C. Los ensamblajes del cuerpo
134
solitária. O gozo em si mesmo, qualquer que seja, é sempre solitário,
um goza com seu corpo, um só. O gozo não se compartilha, mas a
identidade supõe sempre um outro que aceita, que sanciona o nome.
Se o sujeito assina com seu desaparecimento (apagamento/afânise) ou
sua atividade pulsional, se não alguém para reconhecer tal
assinatura, não existe uma assinatura. A identidade nunca é autista, a
identidade assina para o outro e o outro deve reconhecer. No caso dos
fenômenos psicossomáticos, temos a marca da lesão na pele que é da
ordem da assinatura, mas o Outro, ele mesmo, não reconhece aquele
“carimbo”, não se dá a ler. Falta o nome.
É por isso que a função do pai que nomeia é tão reforçada. Mas
não é o pai que nomeia, o outro nomeia, o social nomeia, e está
incluído nisso o caso do sintoma: A pulsão aponta a identidade do
ser, supõe que sustenta o laço social, então não basta desenvolver o
aspecto associal da pulsão. Quando Lacan diz que a pulsão vai buscar
algo em outro, não é o grande Outro A, é o outro corpo”.
126
Lacan insiste, no Seminário 11 que a pulsão não é auto erótica,
que se distingue do auto erotismo da zona erógena, pois nela está o
objeto a, que pela via do órgão incorpóreo (libido) se vai buscar do
lado do outro. Coloca ainda que todo gozo obtido do corpo próprio
não é um gozo pulsional: a definição estrita da pulsão é o circuito em
direção ao objeto que se volta em direção ao sujeito.
A distinção entre pulsão e auto erotismo, porém, fica um pouco
esquecida. Surge o interesse quando se investiga sobre os novos
126
Idem
135
sintomas, as novas formas de gozo, como a bulimia, como as drogas,
como as tatuagens e as lesões no corpo. Como esse trabalho trata dos
fenômenos psicossomáticos e da tatuagem, é relevante a observação
de que nos fenômenos auto erotismo e gozo no corpo, e nas
tatuagens, também pulsão narcísica, que insiste em fazer no corpo
um símbolo de seu significante.
Para Freud a pulsão não é auto erótica, ou seja, ele adverte que
não se deve confundir o auto erotismo do esquizofrênico, ou dos
fenômenos psicossomáticos, com a pulsão. E distingue auto erotismo,
gozar do corpo sem passar por um objeto, gozar do corpo mesmo, e a
pulsão, que supõe objeto impossível de engolir (devorar).
A expressão mais de gozo tem a ver com a função de
identidade, de socialização da pulsão. Lacan chamou mais de gozo não
ao objeto pulsional, o olhar, a voz, o peito, o excremento, mas
também aos produtos do mercado
127
. Ora, que ligações se pode
estabelecer entre o olhar e o objeto de mercado, que nos casos do
objeto de mercado uma satisfação que não é pulsional? Existe um
ponto em comum, pois ambos, objeto pulsional e objeto de mercado,
conseguem suprimir a insatisfação, mas não m o poder de tapar o
menos do sujeito. São o pequeno mais, mas o menos se restitui. No
Seminário de um discurso que não fosse um semblante, Lacan toca
nisso ao dizer que “Se algo chamado inconsciente pode ser semidito
como estrutura linguageira, é para que finalmente se nos apareça o
127
Lacan, J. O avesso da psicanálise
136
relevo do efeito de discurso que até então nos parecia impossível, ou
seja, o mais-de-gozar”
128
.
Os dois também supõem o Outro, um Outro que não é o mesmo,
mas que está presente: no mercado outro especial sem figura,
anônimo, sem localização. Em todas as partes o empuxo ao
consumo, fabricando as imagens. Existe o Outro superego e é
interessante perguntar como se transmite o rastro superegoico do
mercado, posto que o mercado oferta, não obriga a nada, a ninguém
a comprar, mas evidentemente utiliza o imaginário, fabricando
imagens e exemplos de imagens. Silenciosamente, um empuxo que
se transmite. Relevante esse ponto, se observarmos a proliferação do
ato de tatuar. Hoje é muito mais comum alguém estar com o corpo
desenhado do que há algum tempo atrás.
Na entrevista com o tatuador Valter, ele conta que atualmente
aumentou muito o mero de pessoas querendo se tatuar e por simples
questão de modismo. Em função disso, adota certos critérios para
iniciar um trabalho, sendo às vezes preciso umas duas ou três
entrevistas para que concorde em fazer a tatuagem. O perfil mudou
muito. Antes os clientes apareciam com propostas coerentes e
definidas, o local do corpo onde queriam fazer a tatuagem, o desenho
e o por quê. “Hoje esbanalizado, a moçada não tem noção do que é
ter um desenho no corpo para a vida toda, é uma necessidade
imediata”.
128
Lacan, J. De um discurso que não fosse semblante (1971), 2009, p. 21.
137
Tanto no caso dos objetos pulsionais como no dos objetos de
mercado, a insatisfação se mantém. Lacan convoca o agalma, vai
buscar em Platão a propósito da relação entre Alcebíades e Sócrates,
no Seminário A transferência diz: “o agalma é um mais de gozo em
liberdade e de consumação”. Isso quer dizer que o agalma de Sócrates
depende do encontro, não da produção, é algo que aparece. O encanto
de Sócrates para Alcebíades é um encontro, casualidade, contingência.
Então, o mais de gozo destaca a contingência do encontro com o mais
de gozo do consumo, mais corte porque o agalma de Sócrates se
consuma no mesmo encontro.
O mais de gozo do mercado necessita de trabalho. Para obter um
objeto é preciso trabalhar muito, não só para construí-lo, mas para
pagá-lo. Lacan indica que o mais de gozo que pertence ao registro
da Tiquê. É o caso do olhar. Mas um mais de gozo que se produz
com muito trabalho. Os objetos do mercado não estão no registro do
ser, mas do ter, podem ser acumulados o que leva a idéia de que o seu
ser cresce. Mas ocorre o inverso. O objeto pulsional se distingue,
apesar de ser um mais de gozo por ter o alcance no ser, fala da
identidade da pulsão, ao passo que os objetos de mercado não têm a
função de separação do Outro. Os objetos do mercado reduplicam a
alienação significante com uma alienação objetal.
Pode-se muito bem posicionar as diferenças do objeto do olhar,
que adjetiva o sujeito como aquele que é, com o do mercado, em que o
sujeito está qualificado como aquele que tem. Aquele que tem
tatuagem, por exemplo, que demanda a pulsão escópica do outro. O
138
corpo do outro, o sujeito não tem. tentativas, mas não podemos
dizer que se consegue. Mesmo o escravo, não podemos dizer que o
mestre o tem.
No Seminário O avesso da Psicanálise é articulada a dialética do
mestre e do escravo para dar conta do Discurso do Mestre, no qual
estabelece que aquele que detém o saber é o escravo, o mestre fica
apenas na posição de dominação: pode-se domar o corpo do escravo, o
corpo do campo de concentração, por exemplo. São corpos
encarcerados de maneira metafórica, que não se pode ter. no caso
das toxicomanias, da lesão de órgão ou da tatuagem é, sem vida,
ter um corpo como seu. Por isso, o homem tem um corpo, um corpo
único, pois não para fazer seu, outro corpo. No fim das contas, o
discurso atribui um corpo ao sujeito, antes mesmo da identificação.
Quanto mais transformado, mais se pode dizer que se tem um corpo e
não que se é um corpo. Isso incide na conclusão da disjunção entre
sujeito e corpo e na junção de sujeito e laço social.
O inconsciente não existe sem incidência sobre o corpo.
Prerrogativa dada desde Freud no ensino da psicanálise, desde a
descoberta dos sintomas histéricos, do caráter traumático da
sexualidade, do Édipo freudiano e do que Freud denomina Mais além
do princípio do prazer, que mais tarde Lacan chama de um gozo
nocivo.
Em Mais além do princípio do prazer, Freud fala da repetição, a
repetição do sofrimento, do trauma, do masoquismo e, portanto, pensa
a pulsão de morte como uma solução teórica para dar conta dessas
139
questões. Mas, Lacan toma outra posição quando aponta duas
dimensões da pulsão de morte estabelecida por Freud: por um lado, o
significante que se repete e mantém o sujeito na linguagem e por
outro, o gozo na pulsão de morte, um gozo nocivo em relação ao
prazer, presente na organização do sujeito na vida
129
. Para Freud, o
paciente em análise precisa repetir o material reprimido como uma
experiência atual ao invés de recordá-lo como algo do passado. E em
Lacan temos essa repetição do gozo, um gozo nocivo que leva o
sujeito a um ideal do eu, que paralisa e que, sem dúvida, mostra-se no
corpo de várias formas. É o caso de Arnaldo, paciente com psoríase
grave, que se recusa ao tratamento médico e freqüenta as sessões de
análise para conseguir atestado de incapacidade para o trabalho. Deste
modo permanece ganhando o salário do governo. Ele diz: “está
vencendo minha licença e eu preciso de outro laudo, o posso
trabalhar”. E, realmente, nessas ocasiões, sua psoríase piora muito.
Para situar o corpo na psicanálise temos de pensar o que Lacan
quis dizer com corporificação do corpo. Em Radiofonia, texto de
1970, ele emprega esse termo para dizer que não se nasce com um
corpo, fabrica-se. O corpo é fabricado pela linguagem. Antes, é
preciso uma pausa para distinguir corpo e organismo no ensino de
Lacan e mesmo no de Freud, que nos primórdios da construção da
psicanálise percebeu que um se difere do outro.
O organismo está ligado ao instinto de necessidade e possui
mecanismos que envolvem o biológico. Portanto, o corpo “não é mais
129
Soler. C. 1002,p. 126
140
o organismo animal, é um organismo transformado, não somente
domado senão também transformado.”
130
O sujeito não escapa de, em
algum momento, recorrer ao corpo para que ele lhe diga algo, o
signifique. Mas essa voz, que se pretende vinda do corpo, é da
linguagem, pois o corpo, segundo Lacan, está habitado pela palavra e
por sua vez habita a linguagem. E Lacan afirma que o corpo está
totalmente corporificado pela palavra, que o corpo é resultante da
incorporação coisificante da linguagem.
Pela descontinuidade do significante, a linguagem transforma o
corpo, fazendo-o padecer de sintomas e das pulsões, que operam um
corte sobre ele. Esse corte tem a ver com a necessidade, demanda e
desejo. O organismo necessita de alguma coisa, que estando no
simbólico, na linguagem, demanda algo do Outro que jamais
conseguirá suprir. Essa demanda transforma-se em desejo, pois é o
corte do simbólico, ou seja, a apreensão do simbólico sobre o corpo,
que num movimento pulsional faz circula o objeto do desejo. Nos
contentamos com um pedaço desse objeto.
Nesse momento cabe a afirmação de Lacan: O símbolo é o
assassino da coisa”
131
, provocando o aparecimento do sujeito,
transformação da necessidade. É nesse movimento, quando algo do
vivente (o ser do organismo) se perde, que as pulsões podem circular.
Estaria o ato de tatuar na ordem da necessidade?
Concomitantemente, o real está presente no sujeito. Um sujeito
no simbólico e um sujeito no real suscitam coisas diferentes, pois um
130
Soler. C. 2002,p. 14
131
Lacan. J. Seminário 4, aula22
141
sujeito no simbólico é uma dimensão que existe, mas não é um
vivente; o sujeito no simbólico existe antes do nascimento do vivente
e pode sobreviver depois da morte, sobretudo porque no simbólico, o
sujeito é aquilo que se fala dele no discurso. Existe antes de nascer e
depois, quando se conserva na memória, na cadeia significante.
Falamos da morte da coisa quando o sujeito insere-se na
linguagem, esse corpo ainda coisificado é um corpo mortificado, um
corpo inserido na ordem do significante, portanto separado da vida
material. Este corpo desvitalizado da linguagem está à mercê da
maquinização, da ciência, das novas formas de conceber um corpo. Os
operários do século XIX, por exemplo, que trabalham na linha de
produção, diz Soler
132
, não são mais os corpos de escravos antigos que
fabricam um objeto para o seu mestre. O corpo máquina está cada vez
mais evidente na nossa cultura, incluindo aí, as cirurgias plásticas, os
transplantes, as manipulações genéticas, a reprodução assistida, enfim,
uma infinidade de recursos científicos que sugerem um novo tipo de
Frankstein. Também, olhando fora da ciência, o que nos interessa
muito nesse trabalho são os corpos modificados, perfurados com
piercings ou queimados (branding), corpos submetidos à implantes
subcutâneos que deformam o corpo, suspensões nas quais o corpo
daquele que se propõe a isso, se deforma, se dilacera em dor. Mas
como anunciado e mais especificamente, nos interessa os corpos
tatuados, coloridos, desenhados, tomados por tintas permanentes.
132
Soler. C. op cit.
142
A partir do século XIX, um século de múltiplas inovações, de
influência contundente da medicina, pela qual descobertas de todo o
tipo são feitas em benefício de um corpo sadio e mais duradouro, por
exemplo, a descoberta da anestesia, da sexualidade como algo natural,
a valorização dos esportes, da invenção de outras máquinas que
vieram se proliferando e se desenvolvendo desde a Revolução
Industrial, surgem modos de representação social e individual do
corpo.
“O corpo tornou-se um jogo de armar?" Pergunta Breton
133
. Para
Lacan, o corpo é fabricado, pelos significantes e o corpo que funciona
é um corpo despedaçado: “esse despedaçamento, que se considera
como um desgraçado despedaçamento da imagem, é correlativo da
construção funcional do corpo significante”
134
. A linguagem vai
fornecendo significantes e construindo o corpo. É então que Lacan, na
contramão de Freud, que diz a anatomia é o destino”
135
,
diferenciando os sexos, afirma: o destino é o discurso, o que está em
jogo é como o sujeito vai se inscrever na função fálica. Essa idéia faz
toda a diferença para a elaboração do presente trabalho, pois o que
determina o que fazer com o corpo independe do sexo, o ponto
crucial é o efeito significante e o efeito no gozo. O saber inconsciente
afeta o corpo, o saber afeta o corpo do ser por fragmentar seu gozo.
Atento a isso, Lacan lança a expressão deserto de gozo
136
. O
enunciado de Soler, “O corpo se perde em seu interior”, permite
133
Le Breton. D. A síndrome de Frankenstein. In Políticas do corpo. Bernuzzi. S. D orgs.
134
Soler. C.
135
Freud, S. A dissolução do complexo deÉdipo (1924). Obras Completas, p. 177
136
Expressão elaborada por Lacan no texto a Psicanálise em sua conexão com a realidade, 1957.
143
abstrair algo da expressão deserto de gozo, um corpo que aparece
como uma superfície em si mesma, “este corpo não tem interior e
outro corpo que é o corpo da sensação e sem sensação não há gozo”.
Este corpo, no humano, está reduzido à sua superfície, um corpo
essencialmente exteroceptivo; há, evidentemente, sensações internas,
por isso a expressão silêncio dos órgãos é a não percepção dos órgãos
internos.
O silêncio dos órgãos está no nível do princípio do prazer, pois
mantém a excitação interna do corpo num plano mais baixo, corpo
deserto de gozo: “... o silêncio dos órgãos parece designar um
momento anterior. No silêncio dos órgãos, o corpo é colocado em
silêncio, não faz nenhum barulho, não ‘fala’, não é escutado,
testemunhando, assim, uma espécie de surdez em relação aos sinais
que se mostram”
137
. Essa descrição é correlativa nos fenômenos
psicossomáticos, nos quais explode algo no corpo, que o sujeito não
quer saber. Podemos citar o caso de Encarnação, paciente psoriática:
faz parte do meu eu, não morre, adormece, eu estou aqui, digo para
ela (psoríase) você veio de oferecida, não te convidei, é hóspede
indesejável, sempre que tenho um problema ela se manifesta, quando
estou em sofrimento, eu a respeito, ela está do meu lado, uma brecha
e ela se encaixa, olha eu estou aqui”. A psoríase está lá, mas o sujeito
não consegue dar um sentido a essa manifestação.
O corpo interno funciona segundo o princípio do prazer, isso
quer dizer que a sua excitação se mantém no nível mais baixo e o que
137
Fernandes. M. H. A hipocondria so sonho e o silêncio dos órgãos: o corpo na clínica psicanalítica.
In:Hipocondria. M. Aisenstein, A. Fine e G. Pragier orgs. 2002, p. 183.
144
pode levar de novo o gozo ao corpo interno são as enfermidades
orgânicas, o sintoma histérico, o masoquismo, a dor. A dor que se e
na pele leva, também, o gozo ao corpo deserto. E a tatuagem se
encaixa muito bem nesse gozo.
A marca da tatuagem assinala um ganho pulsional onde se
inscreve um pertencimento: “... as marcas se marcam sobre o corpo
para inscrever aí, me parece, sempre uma dupla conotação. De uma
parte, a pertença, a pertença a um conjunto e, de outra, uma qualidade
erótica.”
138
É verdade que o corpo deserto, desertificado pela operação de
gozo, desertificação equivalente à redução de sua excitação,
condiciona a possibilidade de domar o corpo. Este domar o corpo, este
produzir um corpo civilizado que obedece às ordens do discurso,
supõe primariamente o esvaziamento do corpo, quer dizer, a redução
da excitação corporal. E um corpo deserto pode obedecer aos
imperativos e aos objetivos do discurso. É, então, que as ofertas do
capitalismo assolam o corpo do sujeito na contemporaneidade, dando
origem a novas formas de sintoma, como a tatuagem, que cada vez
mais, multiplica-se nos corpos.
Evidente que existe gozo na linguagem, embora não seja a única
maneira de se gozar de um significante, é o que está presente nos
sintomas, onde os significantes tomam o corpo, encarnam-se nele.
Soler elucida tal dinâmica quando diz que “o sintoma é uma forma de
138
Soler. C. Los Ensamblajes Del cuerpo. 2002, p. 119
145
gozar de um inconsciente de alguma forma passado pelo real, e o
inconsciente é o significante que afeta não o sujeito, mas seu gozo”.
139
Então essa história da tomada do corpo pelo simbólico carrega a
fala e o significante mas, Lacan conclui que uma fala (palavra plena)
diz por si mesma, ela não faz laço, apenas é concernente ao seu gozo.
Isso é um significante passado ao gozo, ou passado ao signo, à letra.
Não é todo gozo que se ordena no campo pulsional. Há um gozo na
organização desse campo e talvez isso seja o que o motivou a utilizar
sempre a palavra gozo e a falar da substância gozante. A pulsão está
numa ordem estabelecida na substância gozante, mas não é toda ela. A
pulsão está nas elaborações nas quais Lacan convoca o gozo, que
na forma de mais de gozo, do objeto a, objeto que é vazio e que se
pode encher (ocupar espaço) de gozo.
A introdução do termo “substância gozante” no ensino de
lacaniano opõe-se ao que ele foi pontuando sobre o corpo,
principalmente quando falou em corpo deserto de gozo”: Evocando
a substância gozante Lacan nos fala do que podemos chamar o Real,
mas não qualquer definição do real, porque existem diversas
definições do real. O Real é algo totalmente fora do simbólico, algo
que não deve nada ao simbólico, à vida.”
140
Com esta noção de
substância gozante Lacan um salto, pois não se trata mais de uma
articulação do gozo com o significante (elementos de articulação dos
quatro discursos), mas de um real, cujo problema é saber se a
139
Soler, C. O corpo falante, 2007, p. 3
140
Evocando la sustância gozante Lacan nos habla de lo que podemos llamar lo Real , pero no
cualquier definición de lo Real, porque existem diversas definiciones de lo Real. Es lo real algo
totalmente fuera de lo simbólico, algo que no debe nada a lo simbólico, la vida”. Soler, C. Los
ensamblajes del cuerpo, 2002, p. 69.
146
linguagem que determina o sujeito se situa na substância gozante. Para
tanto utilizou o a topologia dos nós.
É preciso situar que no Seminário Mais, ainda, elea fala que o
ser é um corpo”, não referindo-se mais da falta do ser, mas do ser de
corpo: O ser do sujeito não tem presença possível para situar-se, e ter
um corpo compensa a ausência essencial do sujeito, posto que um
corpo se define por sua presença espacial, mas condenadas do tempo e
espaço; o que faz a presença do falasser não é o sujeito, é o corpo.
Poderíamos, talvez, dizer que o falantecorpo seria equivalente ao
falasser
141
.
No mesmo Seminário afirma que o indivíduo afetado pelo
inconsciente é o mesmo que faz o sujeito do significante. Dessa
afirmação pode-se retirar duas coisas: o inconsciente afeta o indivíduo,
ou seja, o corpo, não o sujeito e ainda, o corpo afetado é o mesmo que
faz o sujeito de um significante. Reforçando o principio do
significante, que se define pela diferença a outro significante, e a
introdução da diferença como tal, é o que permite extrair da lalíngua
o que toca o significante. Colete Soler conclui, a partir de Lacan, que
o indivíduo que fala é o suporte do sujeito, o significante converte-se
em signo: essa “hipótese diz que o significante, inicialmente situado
como o representante do sujeito, ou seja, do indivíduo corpóreo (que é
a condição viva do gozo), o significante torna-se, então, signo, não da
141
El ser del sujeto no tiene presencia posible para ubicar, y tener um cuerpo compensa la ausência
esencial del sujeto, puesto que um cuerpo se define por su presencia espacial em las coordenadas del
tiempo u el espacio; lo que hace la presencia del hablanteser no es el sujeto, es el cuerpo. Podríamos,
quizá, decir el hablantecuerpo sería equivalente al hablanteser”.
Idem
147
falta a ser do sujeito, mas de seu ser de gozo”
142
. Este é o ponto em
que podemos lembrar de toda a questão tratada sobre a tatuagem,
inclusive quando colocada a fala da entrevistada Luciana, que tatuou o
coração com uma espada atravessada (“amor bandido”). O significante
está no nível do gozo, proposição que inverte a tese anterior que dizia
do efeito mortificante do simbólico (o significante com morte da
coisa), da subtração do gozo real.
O deciframento dos sintomas na clínica se dá, então, a partir do
corpo como substância gozante, uma vez que definido o inconsciente
como saber ao nível do corpo. Afinal, os significantes vêm da lalíngua
. Na lalíngua o significante é a diferença entre os uns, não havendo
enganche com o sentido.
Inversa ao simbólico, a lalíngua não é um corpo, mas sim uma
variedade de diferenças que não tomou corpo. Diz Soler “ela não é um
conjunto, não é uma estrutura, nem de linguagem, nem de discurso,
pois não há ordem na lalíngua
143
.
Lacan escreveu a palavra lalíngua em uma palavra, um
neologismo, porque tem uma homofonia com lalação que vem de
“lallare” (latim), que significa cantar (lá, ) para as crianças
dormirem, o que designa o balbuciar da criança que ainda não
aprendeu a falar, mas que emite sons: “A lalação é o som separado
do sentido” O UM, na lalíngua provém do sonoro, mas não se reduz a
um fonema, ele pode alcançar a unidade da frase ou do discurso. A
142
Soler, C. O corpo falante, 2007, p. 3.
143
Idem, p. 4.
148
lalíngua evoca aquilo que se escuta na língua falada, anterior à
linguagem.
Os efeitos da lalíngua, diz Soler, ultrapassam tudo o que se
poderia apreender em relação a ela. Tais efeitos são os afetos, pois a
lalíngua afeta em primeiro lugar o gozo, sendo ela da ordem do real e
não do simbólico.
149
Capítulo IV - Letra e Traço
O interesse de Lacan pela letra é antigo e acorda com Freud
quando pensa o inconsciente como sistema de inscrições. No início do
seu ensino, ele pensa a letra a partir da lingüística, como suporte
material do significante ou como significante puro. no final, a letra
tem outra concepção, localizando-a no limite entre saber e gozo, quer
dizer, o que faz borda no furo do saber. E pergunta em Lituraterra: “A
borda do furo no saber, não é isso que ela [a letra] desenha? E como
poderia a psicanálise negar que ele existe, esse furo, posto que para
preenchê-lo ela recorre a invocar nele o gozo?
144
Todas as
interpretações da letra levam ao gozo: “Entre o gozo e o saber, a letra
constituiria o litoral”.
145
No Seminário sobre a Carta roubada de 1956
146
, Lacan utiliza o
conto de Edgar Allan Poe para destacar os registros que incidem sobre
a letra. A letra letter/carta porta uma mensagem que revela e desloca.
Incide sobre os personagens a repetição da cadeia significante e o
deslocamento é determinado pelo significante puro que é a carta
roubada. A letra litter/lixo vai designar outro registro, diferente da
letra como significante, que tem por função a transmissão de uma
mensagem. A litter aponta a materialidade da letra:
144
Idem. Lituraterra (1971) In: Outros Escritos, 2003, p.18.
145
Lacan, J. Seminário, livro 18. De um discurs que não fosso o semblante (1971), 2009, p. 110.
146
Lacan,J. In Escritos. A Carta roubada (1956). 1998.
150
“E, com efeito, voltando a nossos policiais, como poderiam eles
apoderar-se da carta, eles que a apanharam no lugar onde estava
escondida? Naquilo que reviravam entre os dedos, que outra coisa
seguravam eles senão o que não correspondia à descrição que tinham
dela? A letter, a litter, uma carta, uma letra, um lixo.”
147
Outra natureza da carta/letra é estabelecida, situando aquilo que
ultrapassa sua aparente função de transportar e transmitir uma
mensagem, pois Dupin, o detetive que investiga o destino da carta, a
encontra apenas porque ele percebe a sua dupla natureza: carta/letra. A
carta não representa apenas uma mensagem, mas tem uma
materialidade, portanto é manuseável, pode ser rasgada, esquecida,
guardada, adulterada. Não se trata da mesma coisa: buscar uma
carta/letra como uma mensagem, levando em conta a letra como
elemento de um sistema significante difere de buscá-la considerando a
sua materialidade, a sua relação com o objeto.
A letra como litoral distingue campos heterogêneos e revela
descontinuidade: ela liga, une, pois como diz Milner "O significante
deriva apenas da instância S; mas a letra vincula RSI que são
mutuamente heterogêneos"
148
. A letra-litoral não tapa o lugar vazio do
objeto e, nesse sentido, diferencia-se do significante na sua função de
semblante.
A Letra não significa nada e não outro que possa significá-la.
A Letra é a essência do significante, que através dela distingue-se do
signo. Esta afirmação coloca a questão: a Letra é redutível ao traço, e
147
Idem, p. 28.
148
Milner, J.C. A obra clara, 1996, p. 105.
151
o signo? Pode-se dizer que é uma palavra inserida num código, e os
códigos são os de Saussure e de Peirce. No código saussuriano, signo
é o que está entre a relação do significado e significante. Para Peirce,
signo é o que significa alguma coisa para alguém. O ponto importante
é que em Pierce aparece o outro, aquele que a significação
demonstrando que o signo é arbitrário.
Outra questão: A Letra é o traço unário? Se for anterior ao o
significante, ela é o traço unário; se posterior, ela não é o traço unário.
Lacan aponta, no Seminário De um discurso que não seria do
semblante (1971) que nada permite confundir a letra com o
significante”. Mas há duas possibilidades em princípio: a primeira é a
Letra como suporte material do significante que seria anterior a ele e,
portanto o que o causa. A outra possibilidade está em Lituraterre,
texto em que propõe a letra como conseqüência do
significante,“nuvens que precipitam letras”. Aqui, a letra seria
posterior ao significante.
Para esclarecer tal duplicidade, Lacan aponta o gozo, que se
revela na possibilidade e impossibilidade de traçar de uma vez esse
traço primeiro de identificação plena, introduzindo a rasura e a
caligrafia presentes nestas proposições. Supõe-se que elas remetem a
uma perda, a um apagamento, pois aquela pegada do passo na areia,
exemplo de Levi-Strauss, que Lacan toma para explicar, que a marca
do rastro do objeto, não é o objeto mesmo. Numa outro enfoque ele
concebe o apagamento colocando o traço em relação a outros traços,
apagando a relação entre a marca e o objeto referente. Isso implica na
152
leitura que nome aos signos que traçam o real: o traço unário não
faz apelo ao objeto perdido, é uma marca distinta sem significação,
não representa. Segundo Lacan
149
, a leitura ao mesmo tempo precede e
funda o escrito e faz do traço-marca um traço significante: É que
Lacan faz intervir as nuvens como função de semblante do
significante:
"O que se revela por minha visão do escoamento, no que nele a
rasura predomina, é que, ao se produzir por entre as nuvens, ela
se conjuga com sua fonte, pois que é justamente nas nuvens que
Aristófanes me conclama a descobrir o que acontece com o
significante: ou seja, o semblante por excelência, se é de sua
ruptura que chove, efeito em que isso se precipita, o que era
matéria em suspensão."
150
O significante revela, então, uma função: a de ser semblante, pois
ao se dissolver aponta para o imundo do gozo, as marcas, os sulcos no
real. Dessa forma, a linguagem as marcas no real e as nomeia,
enumerando-as e conectando-as a outros significantes, fazendo surgir
a cadeia significante, mas não nos fenômenos psicossomáticos. Assim,
o que precede a escrita, a marca, o rastro, o signo, é lido com a
linguagem e transformado em escrita. A letra serve então de suporte
ao significante, e o discurso enlaça-a na rede do semblante. O discurso
possibilita que o sujeito esteja "apoiado em um céu constelado e não
149
Lacan, J. O Seminário, Livro 9, A Identificação (1961-1962),2003.
150
Lacan, J. Seminário, Livro 18. De um discurso que não fosse semblante (1971), 2009.
153
apenas no traço unário"
151
. É o que se verifica nas tatuagens: são lidas,
pois os significantes ali presentes permitem que se transportem para a
linguagem. Apontam para o real, há como decifrar. É o que venho
trabalhando desde o início deste trabalho com a descrição de trechos
de entrevistas com os tatuados e toda a dimensão histórica em que a
tatuagem se presta a leitura e dá pistas do real.
O sintoma neurótico está no simbólico e a psicossomática no real,
o que causa diferentes experiências de gozo, onde o sujeito es
excluído. Dessa forma, é da ordem da escrita, via pela qual o sujeito
deve ser interrogado: é pela escrita que manifestações clínicas
resistem à interpretação. A escrita no corpo distingue-se da dimensão
significante, pois a escrita está no real e o significante no simbólico. A
clínica, então, deve ser pensada não como um trabalho do
significante ou da letra, mas como um trabalho que faz recortar,
destacar, aquilo que Lacan chamou de “pedaços de real”.
Se a letra utilizada na sua função de rasura promove uma
subtração do corpo, a marca inscrita no corpo põe em causa uma
espécie de encenação do corpo. Podemos supor, então, que se a rasura
tivesse o efeito desejado, a inscrição de um traço simbólico a partir de
onde o sujeito pudesse se representar e se singularizar, sustentando as
bordas corporais na descontinuidade simbólica, na cadeia do saber
inconsciente, a encenação do corpo, colocada em causa no ato das
marcações, seria desnecessária. E o desenho da tauagem faz semblante
no corpo, a sua marca põe em cena o corpo.
151
Idem, p. 24.
154
A letra utilizada em sua função de rasura subtrai o corpo e o
sujeito, uma vez que o sujeito é designado por Lacan como uma falta a
ser e, a falta a ser que, em elaboração posterior é o ser de corpo”,
como abordado no capítulo anterior. Aqui estamos na esfera dos
fenômenos psicossomáticos, uma prevalência dos órgãos, do
organismo e não do corpo. Isso fica claro co caso de Carina. Ela retira
seu corpo de cena para explodir no real da carne sua angústia. Um
comentário de Conceição, outra paciente do Instituto da Pele
portadora de psoríase diz dessa retirada do corpo da cena: “essa coisa
(psoríase) vem sem ser convidada, é uma intrusa na minha casa, ela
não faz parte de mim”. Ou seja, o faz signo, o corpo invadido de
real subtrai o corpo simbólico.
A rasura está na origem, mas a origem, graças à criação,
permanece exilada nesse interior excluído que nos é tão próximo e ao
mesmo tempo tão distante. Podemos dizer que a tatuagem, as lesões,
põem em jogo a rasura, que é tomada como semblante. No caso das
tatuagens, não permite a instauração do saber inconsciente sustentado
na descontinuidade simbólica, pois o real insiste. Nas lesões permite
que sua insígnia funcione como assinatura, traço apagado: um signo
que anulado, funciona como assinatura.
Ler com o escrito. É disso que se trata. Trago para a discussão
Jean Alouch, que em seu livro A Clínica do escrito contribui com as
diferenciações existentes entre uma leitura e/ou deciframento das
tatuagens e das lesões. Para ele, ler com o escrito é fazer relações do
escrito com o escrito, o que se denomina transliteração:
155
“A transliteração é uma operação tanto mais convocada pela
leitura, quanto o que é dado a ler difere mais, na sua escrita, do
tipo de escrita com que a leitura irá se constituir Esta leitura
literal, sabemos só-depois se ela foi isso mesmo. Ora escrever o
escrito é cifrá-lo, e esta forma de ler com o escrito merece, pois,
ser designada como um deciframento
152
.”
Mas, seguindo o autor, a transliteração não basta, pois em cada
caso, está presente no jogo da leitura uma operação simbólica que está
articulada a outras duas operações: a tradução, do registro do
imaginário e a transcrição, do registro do real.
A tradução remete ao imaginário, ela não é teorizável, como diz
Alouch, pois trata-se de escrever relacionando o escrito com um
sentido e no sentido tenta-se dar uma visão particular, subjetiva.
A transcrição consiste em regular o escrito baseando-se em algo
que está fora do campo da linguagem, isto é, o som. Isso remete à
lalíngua. A tradução é a escrita regulada pelo sentido, que como
referência, leva ao desconhecimento da dimensão imaginária: “Não é
com o sentido que se detém a fuga do sentido”
153
. Como vimos no
capítulo sobre tatuagem, parte I. Então a questão que Lacan faz e
Alouch retoma em seu texto pode ser aplicada a alguém que se tatua:
“um ser que pode ler sua marca, isso basta para que ele possa se
reinscrever noutra parte além dali onde a gravou, o que deve ser essa
leitura para que ela produza, sem outra intervenção, uma reinscrição
152
Alouch, J. A Clínica do escrito. 2007, p. 16.
153
Lacan, J. Apud Alouch. J. A clínica do escrito. 2007, p. 18
156
noutra parte do ser falante?”
154
. Valter, meu entrevistado que possui
80% do corpo tatuado, pode re-significar sua posição subjetiva quando
marca com desenhos que fazem um sentido para ele. Apesar do real
insistir ali, nas marcas, um giro na forma de enlaçamento social.
Mas a transliteração e a tradução entram também no processo de
deciframento, porque a questão de que se trata é da relação do
significante com a letra.
Não se pode abordar o fenômeno psicossomático nas três
dimensões, pois, como vimos, esses casos não estão ao lado de um
deciframento. A não ser que a letra assuma o significante até passar
para uma sucessão metonímica. A Letra incide no significante
absoluto, ela assina, marca, não revela, uma vez que a letra sem outra
que a conecte, corresponde ao número, ou seja, não diz nada, conta o
UM.
Alouch comenta que toda formação do inconsciente é um
hieróglifo: “no sentido inicial em que resiste à compreensão imediata,
não é transparente e deixa ler mediante um trabalho de
deciframento”
155
, e as três dimensões comportam, cada qual a seu
modo, uma decifração, possível no caso das tatuagens e somente
possível nos fenômenos após o significante ligar-se a outro, já que não
são formações inconscientes. O hieróglifo, como um código, é a marca
do fenômeno.
154
Alouch, J. Idem, p. 13.
155
Idem, p. 19.
157
Considerações finais
A determinação linguageira do corpo conduzindo para a distinção
entre corpo e organismo, o corpo relacionado ao gozo e à pulsão como
eixo que faz um dizer, o sintoma como acontecimento do corpo, o
corpo como “tela branca”, “deserto de gozo” e a oposição a esse
termo, propondo que para gozar é preciso ter um corpo, caracterizam a
questão do corpo na psicanálise em tempos diferentes no ensino de
Lacan, discutida no decorrer deste trabalho. Todas essas colocações
articulam o real, o simbólico e o imaginário e, vale dizer, não se
reduzem ao sujeito do significante, revelando sobretudo, a estrutura do
parlêtre e da lalíngua.
Contudo, assim como diz Askofaré, nenhuma dessas elaborações
dizem algo realmente decisivo sobre o corpo, quando considerada a
questão da cultura e da sociedade na contemporaneidade ou o corpo
historicizado. Por isso, a teoria dos quatro discursos, do mestre, da
histérica, do universitário e do analista, torna-se imprescindível. Trata-
se de pensar a passagem do saber inconsciente como lugar entre os
significantes ao discurso, lugar do corpo.
Lacan elabora os discursos como quatro laços atados pela ação
da linguagem, que fazem torções entre o sujeito falante. Essa
construção marca lugares no social, pois que sujeito e social estão
intrincados numa mesma narrativa. O discurso é próprio do laço
social, mas isso coloca em jogo a impossibilidade da totalidade do
158
sujeito, da uma satisfação plena, enganadora, uma vez que busca-se
objetos mais-de-gozar, na tentativa de dar conta de uma verdade
impossível. É o discurso capitalista, proposto posteriormente por
Lacan, uma montagem em curto-circuito, que sustenta a
contemporaneidade. Trata-se da ordem social vigente. Quinet aponta a
escritura desse discurso como uma tentativa de dar sustentação à
foraclusão da castração e, em vista disso, o discurso capitalista não faz
laço, pois que o humano acaba por fazer laço não com o outro, mas
com os objetos, que Lacan denominou de gadgets. Objetos produzidos
pela ciência e pela tecnologia a serviço do imaginário, na tentativa de
preencher a falta inerente do sujeito, o que, na realidade, revela um
“des-serviço” ao sujeito desejante.
O discurso capitalista é uma mutação do discurso do mestre, no
qual está assegurado os lugares do senhor e do escravo. Nele está
posto que a montagem serve ao capital, estando o outro excluído do
laço social. Pontuo aqui o discurso do capitalista para abordar a
tatuagem numa vertente, a de repetição de gozo, marca da tatuagem
como um objeto que não deixa furo (ou melhor, faz furo no corpo),
pois que a intenção é preencher o corpo com um sentido e adequar-se
ao modismo, mas que vai além de simplesmente ser igual , de buscar a
identificação com o grupo: é busca da diferença na amarração no laço
social.
Quinet diz que a inclusão no laço social é tributária ao conceito
de sujeito, na medida em que não sujeito sem o Outro, “o que se
159
passa com o sujeito depende do que se desenrole com o Outro”
156
.
Assim, o sujeito do discurso está vinculado ao outro do laço social,
fato que contraria a gica do discurso capitalista. O ato de tatuar-se,
não totêmico, é então, uma tentativa simbólica de inclusão no laço
social, que implica de forma contundente o imaginário e o real. E
mais, o real do corpo. Mesmo assim, o sujeito que se tatua está
inserido nos quatro discursos sustentados pelo Nome-do-Pai. E Quinet
esclarece com considerações importantes:
“Os laços sociais são formações discursivas que permitem a
metabolização e até mesmo a colonização do gozo que vai até a
coletivização. Os discursos como laços sociais são formas de
tratamento do real do gozo pelo simbólico. É um tratamento
civilizatório que delineia e regula as relações dos homens entre
si que são feitas de libido e tecidas pela linguagem(...)”.
157
No Capítulo Psicossomática e Psicanálise temos que Lacan
aproxima os fenômenos psicossomáticos da psicose. O psicótico é
avesso ao laço social, então está livre dos discursos estabelecidos,
“isso significa que há uma impossibilidade real relativa ao seu gozo,
real a ponto de fazê-lo entrar na circulação dos laços sociais”. Apesar
de não haver foraclusão do Nome-do-Pai nos casos de fenômeno
psicossomático, uma falha na metáfora paterna e subjetiva,
problema na constituição do sujeito, que o impede de fazer laço
156
Quinet, A. Psicose e laço sócial, 2006, p. 49.
157
Idem, p. 52.
160
enquanto sujeito desejante, pois não há o Outro. Acontece sempre um
apagamento, uma presença e ausência das lesões que retiram o sujeito
da cena. Mas ele faz laço através dessa presença e ausência que estão
no campo do real. A lesão na pele faz mostrar o sujeito, ligando-o a
pulsão escópica do outro.
A holófrase que resume o funcionamento significante do sujeito
que apresenta fenômenos psicossomáticos, suprime o intervalo entre
S1 e S2 e então, segundo Soler,
158
cada um de seus uns veicula os
signos-gozados, uma vez que a fala primeira, embora distinta de
uma mensagem articulada com o outro do laço social.
O objeto a permanece aprisionado a esse emassamento dos
significantes e não cai, diferente do que ocorre nos sujeitos que se
tatuam. Partindo do pressuposto da neurose, eles apresentam uma
constituição favorável ao desejo e à sua condição de sujeito. Mas algo
da necessidade do gozo da repetição, algo do real insiste nesses
signos. Uma hipótese é de que seria, cada tatuagem, uma tentativa de
fazer aparecer à vista de todos, o ser de corpo e, também o objeto a.
O objeto a tem como uma de suas características ser imaginário.
Em seu ensino, Lacan diz que se o imaginário não ocorrer, o real
notifica-se no inconsciente: uma vez ocorrido esse processo, o objeto
a pode se constituir-se e se tornar algo à disposição do sujeito
159
.
Ocorre que se o objeto a não for sustentado pelo simbólico, não
pode ser lido, pois constitui-se pela intersecção do real, simbólico e
imaginário. Daí a questão do sintoma, que é a falta de um simbólico
158
Soler, C. O corpo falante, 2007, p. 11.
159
Lacan. J. Seminário A lógica do fantasma.
161
para amarrar o real e o imaginário, ou melhor, a falta de um simbólico
“eficiente” que diga o impossível do real. Então, o sintoma fica sendo
constituinte do sujeito num compromisso. Um compromisso que cobra
o seu preço, a angústia: a angústia é a manifestação clínica frente à
vertente imaginária do objeto a
160
.
A presença da angústia indica a aproximação com a castração
porque, é na castração simbólica, que o objeto caracteriza-se como
imaginário. Na emergência de tatuar-se, o sujeito inscreve a angústia
no corpo, num processo simbólico, mas com um objeto imaginário
carregado de real.
A angústia tem ligação com o Outro, Outro desconhecido e que vê.
É um afeto de perigo real que consiste em se reduzir ao objeto “a
angústia é o sentimento de se reduzir ao seu corpo, num enigmático
desejo do encontro com o desejo do Outro
161
. Não é algo efetuado,
realizado, está vindo. Lacan utiliza o termo sinal para falar da angústia
e esse é um termo que alude a cuidado, perigo, que ela é o
sentimento da iminência do real, um alerta, algo como se colocar em
defesa, conforme já posto em Freud. Segundo Colette Soler, “é um
aparador de surpresas, é um aparador de traumatismos, o traumatismo
é o encontro em situação de surpresa”. As lesões na pele encerram a
angústia na carne e o sujeito livra-se dela, como mostram os casos
clínicos apresentados. O corpo nem sempre fala pela via simbólica do
sintoma. Muitas vezes cala e, no lugar onde falta angústia, um órgão
lesiona-se, emergindo o fenômeno psicossomático.
160
Safouan. M. Angústia-Sintoma-Inibição.1989, p. 32
161
Soler. C. Trauma e Fantasia. 2004
162
Mas, diz Lacan: “Isso não quer dizer que o real esgote a idéia do
que é visado pela angústia. O que a angústia visa no real, aquilo em
relação ao qual ela se apresenta como sinal, foi o que tentei mostrar-
lhes com o quadro, digamos da divisão significante do sujeito. Ele lhes
apresenta o x de um sujeito primitivo que vai em direção ao seu
advento como sujeito, conforme a imagem de uma divisão do sujeito S
em relação ao A do Outro, que é por intermédio do Outro que o
sujeito deve se realizar”
162
A angústia é a única subjetivação possível de um real, que um
significante não pode captar. Então, na tatuagem, ela pode ser
capturada, mas nos fenômenos é mais complicado, pois é na falta dela
que o órgão adoece. Mas que real é esse? É o do objeto a, sem o qual a
angústia não existe. Ela não é sem objeto. Ela é um afeto de exceção e
se refere a um objeto de exceção. Não é à toa que Lacan vai se servir
da angústia para elaborar o conceito de objeto a. Esse objeto está fora
do conhecimento e a angústia não tem sentido, mas não é o
desconhecido. O desconhecido é o objeto a, objeto de exceção, que
“não pode ser exibido, esfora do campo do conhecimento, pertence
ao campo da objetalidade. A angústia o marca, mas não o mostra, não
lhe dá um nome, um significante”
163
.
Do mesmo modo que a angústia, o objeto a tem ligação com o
Outro, não é engendrado sem o Outro. Surge entre o Outro real não
barrado e o sujeito, o do gozo, também não barrado, “que de alguma
forma é o indivíduo confrontado ao campo da linguagem, esse sujeito
162
Lacan.J. SeminárioLivro X – A angústia (1962-1963). 2005, p. 191
163
Soler. C. op cit
163
da sensibilidade corporal que pode sentir dor e prazer”. Lacan fala do
objeto a como um dos efeitos da linguagem sobre o indivíduo e seu
corpo.
É a transformação que faz passar do S (sujeito do gozo pleno)
para o sujeito barrado, dividido pelo significante. Na entrada da
linguagem sobre o S, o que se produz é o sujeito barrado, porque passa
a ser representado pelo significante. Mas nisso há um resto: o objeto a.
Posto que se escreve o resto como efeito do Outro, tem-se o sujeito
barrado, está a inscrição do A (grande Outro) no outro. Esse resto
não existe sem o Outro, ele é originado pelo efeito do significante,
mas não é um significante. Assim, temos que o objeto a não pertence
ao Outro, não é um elemento do Outro, mas é incluído pelo Outro.
Lacan, no Seminário da Angústia coloca que “ há um sentido na
divisão (do sujeito), um resto, um resíduo. Esse resto, esse Outro
derradeiro, esse irracional, essa prova e garantia única, afinal, da
alteridade do Outro, é o a”.
164
Se nos fenômenos uma suspensão
do sujeito e não indexação ao Outro do significante, o objeto a está
preso na amarração dos significantes holofraseados.
Mas ao lado desse resto, da falta que a linguagem nos impõe,
uma perda: Essa estrutura lógica não diz a função do objeto a, pois
ele tem uma estrutura lógica que é a libido. Elemento que anima a
estrutura e ao sujeito do significante (mortificado) um ar de vida.
Ao lado da negativização do significante, ao lado dessa falta para ser
164
Laca. J. Seminário livro 10. A angústia (1962-1963). p. 36.
164
da linguagem um efeito que é a perda, uma perda geradora do
desejo”.
165
A perda é algo que opera ao nível do gozo, real. um corte
sobre a função do organismo, o corpo afetado em suas funções,
afetado sobre uma forma de gozo que representa um pedaço de corpo,
separado, caído do organismo. E nos fenômenos, o que se evidencia
insistentemente é o organismo.
Para entender o corpo é preciso, também, abordar demanda e
necessidade. A demanda está ligada ao corpo, isola um pedaço de
corpo no organismo, pois transforma a necessidade para fazer dela o
desejo. É condição que a necessidade se acrescente à demanda para a
entrada do sujeito no real, a entrada do sujeito no real lida de forma
retrospectiva, passava pelo corpo”
166
. Nesse momento Soler esbarra na
questão da falta e do desejo e continua dizendo que no lugar da falta é
preciso reconhecer a existência de uma primeira falta, uma falta
irredutível que é simbolizada pelo falo, portanto, esse lugar da falta
não está vazio nem inerte, ao contrário, ele é “assombrado, habitado,
no fundo é habitado por esse objeto perdido, cortado do corpo, corte
de subtração... com essa forma o objeto a é o que não se tem mais para
se designar a subtração real do corpo. Esse corte, realmente de
subtração condiciona ao mesmo tempo o fantasma e a fantasia”
167
.
O gozo não tem acesso ao Outro se não for por intermédio do
objeto a, esse resto, e o que vai resultar dessa operação é o sujeito
165
Soler. C. op cit. 2004
166
Idem.
167
Idem.
165
barrado, o sujeito implicado na fantasia. O que interessa aqui é
pontuar que a angústia se situa entre o desejo e o gozo. E o que isso
quer dizer? Primordialmente que, somente após superada a angústia, é
que o desejo pode se constituir, como nos diz Lacan.
168
A tatuagem
condição do sujeito superar a angústia, pois passa pela dor e depois
pela fixação de um gozo, deixando-a para trás.
O objeto a sustenta o sujeito desejante, pois simboliza aquilo que
está perdido no significante. Esse é o sujeito desejante, não mais o
sujeito do gozo pleno, tentativa psicossomática. Parte daí o
movimento do “querer fazer esse gozo entrar no lugar do Outro, como
lugar do significante, que o sujeito se precipita, antecipa-se como
desejante”.
169
É o lugar da angústia, entre o desejo e o gozo, nessa
antecipação.
E a angústia permeia na economia de gozo, notório na
contemporaneidade, onde observa-se atos de repetições dolorosas,
compulsões e impulsos incontroláveis, sentimento de insatisfação,
fenômenos corporais ou mentais subjetivamente opacos
170
. Essas
manifestações diversas se ordenam a partir do ternário freudiano:
inibição, sintoma e angústia. O corpo como superfície de inscrição,
mas também corpo gozante, produtivo, recebe uma marca, traço
unário, que é elevado a uma função de significante que transcende seu
ser vivente. As inscrições dessas marcas sobre o corpo, atingem seu
estatuto de suporte da relação do sujeito com ele mesmo, com sua
168
Lacan. J. Seminário, livro 10. A angústia (1962-1963). p. 193
169
Idem. p 193
170
Askofaré, S. Du corps... au discours. In Ppratiques et usages du corps dans notre modernité, 2009,
p. 61.
166
imagem, com seu nome, com seu gozo e, também, do sujeito ao outro:
“É essa implicação necessária, não contingente do corpo como
‘suporte da relaçãoque faz, entre ouras coisas, o preço das categorias
de gozo e discurso (ou laço social), e por conseqüência o sintoma”
171
e, digo, o fenômeno psicossomático, embora distintamente. Na
tatuagem prevalece o gozo fálico que corresponde a ter objetos e
ordena o laço social.
É evidente que a ciência influencia a relação entre corpo e
discurso, entre corpo e cultura. Não se pode negar a importância das
interferências da indústria cultural, bem como as significações sobre a
natureza do corpo, fala Nelson da Silva Junior. No SeminárioA
Identificação, Lacan aborda Lévi-Strauss em O pensamento selvagem
para mostrar o caráter radical da constituição significante em tudo o
que é da cultura: “(...) o pensamento selvagem é menos instrumento
do que, de certa forma, o próprio efeito, a função do totem parece
inteiramente reduzida a essas oposições significantes”,
172
o que lembra
o exposto no capítulo A Tatuagem, parte II, sobre a questão do
individual e do universal. Mas é preciso pontuar a ordenação da
linguagem e a veiculação de gozo no laço social, fatos esses sempre
históricos, depositados na lalíngua. Na linguagem estão incluídas as
produções mais comuns de um discurso, assim como as invenções
mais sublimadas e mais originais que o corpo pode mostrar. E a
lalíngua está sempre por trás da língua, da linguagem, do significante.
Veicula a morte do signo “o gozo depositado sendo o gozo passado ao
171
Idem, p.63
172
Lacan, J. Seminário, livro 9, A Identificação (1961-1962), 2003, p. 407.
167
UM do signo, ou da letra, o gozo mortífero, portanto, que ‘se
apresenta como a madeira morta’”.
173
Constantemente novos signos
são admitidos na lalíngua, signos excorporados”, diz Soler, pois
advindos de experiências vitais, passam ao verbo e produzem novas
palavras, locuções, equívocos. Trata-se de uso de gozo. Assim, outros
signos são eliminados por se tornarem impróprios à atual condição do
gozo. A lalíngua multiplica de maneira inconsistente e inapreensível e
também pode precipitar-se na letra, a única com capacidade de fixar
uma identidade. Os elementos da lalíngua são tomados pelo corpo. Os
afetos soltos não encontram representação, como diz Freud, mas com
o avanço do ensino de Lacan, cito Ramos
174
que afirma que o afeto é
um acontecimento do encontro da lalíngua com a substância gozante.
“Acontecimento que se amarra à letra que, por este modo, escreve a
série de gozo”
175
. A tatuagem e o fenômeno psicossomático são causa
de afetos, apresentam signos, e letra (passada à mero), fazem laço
social, mas um na vertente do simbólico e o outro na vertente do real
que não se lê. A letra acaba tomando o lugar do desejo.
173
Soler, C. O corpo falante,2007, p. 5.
174
Ramos, C. O incorpóreo e a referência: a letra como escrita do gozo. s/d.
175
Idem, p. 4.
168
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