Download PDF
ads:
LEANDRO RIENTE DA SILVA TARTAGLIA
Geograf(it)ando: a territorialidade dos grafiteiros na
cidade do Rio de Janeiro
Dissertação apresentada ao Curso de
Pós-Graduação em Geografia da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do Grau
de Mestre.
ORIENTADOR: PROF. DR. ROGÉRIO HAESBAERT
NITERÓI
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
T193 Tartaglia, Leandro Riente da Silva
Geograf(it)ando: a territorialidade dos grafiteiros na cidade do
Rio de Janeiro / Leandro Riente da Silva Tartaglia Niterói : [s.n.],
2010.
180 f.
Dissertação (Mestrado em Geografia) Universidade Federal
Fluminense, 2010.
1.Territorialidade. 2.Grafito. 3.Espaço urbano. 4.Paisagem.
I.Título.
CDD 304.23098153
ads:
LEANDRO RIENTE DA SILVA TARTAGLIA
Geograf(it)ando: a territorialidade dos grafiteiros na
cidade do Rio de Janeiro
Dissertação apresentada ao Curso de
Pós-Graduação em Geografia da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do Grau
de Mestre.
BANCA EXAMIDADORA
Prof. Dr. Rogério Haesbaert da Costa Orientador
UFF- GEOGRAFIA
Prof. Dr. Ivaldo Gonçalves Lima
UFF- GEOGRAFIA
Prof. Dr. Álvaro Henrique de Souza Ferreira
PUC - GEOGRAFIA
Niterói
2010
Agradecimentos
Acredito ser quase impossível rememorar, e principalmente descrever
nas linhas que se seguem, todos os agradecimentos que seriam necessários
para no nimo retribuir toda a colaboração que recebi ao longo do período
que estive envolvido na realização deste trabalho. Todavia tentarei tornar meu
reconhecimento mais explícito com aqueles que estiveram mais próximos e
foram decisivos na materialização da pesquisa.
Em primeiro lugar devo salientar que os resultados obtidos nesse
trabalho não derivam apenas da pesquisa iniciada a partir do ingresso no
mestrado da Universidade Federal Fluminense no ano de 2008, e sim, de uma
busca pessoal iniciada pelo menos três anos antes. Essa busca pessoal me
conduziu aos graffitis de uma forma quase espontânea, seja pela minha
vivência na cidade, seja pela curiosidade ou mesmo pelo universo que se
descortinou para mim desde então. Simultaneamente, me vi diante de uma
possível investigação científica, prontamente estimulada pelo professor Rogério
Haesbaert no âmbito acadêmico. Recordo-me de ter lido, ainda no tempo da
graduação, o texto Kool Killer” de Baudrillard sugerido e emprestado pelo
professor, como uma das primeiras referências ao tema. Em pouco tempo
Rogério tornou-se meu orientador e amigo. Sempre solicito e atento, apesar de
suas múltiplas atividades, a orientação do professor Rogério Haesbaert tornou-
se fundamental para a conclusão da minha graduação e posteriormente da
presente pesquisa.
Outros professores também tiveram uma parcela bastante significativa
para a realização deste trabalho no que diz respeito ao estímulo intelectual. O
professor Ivaldo Lima contribuiu ativamente desde o meu ingresso no mestrado
até o presente momento por meio de conversas, empréstimos de livros,
sugestões bibliográficas, materiais para a consulta, e principalmente por meio
de críticas e avaliações do texto produzido. O professor Ruy Moreira também
merece destaque no estímulo concedido por meio de conversas, sugestões
bibliográficas e na avaliação do meu trabalho de conclusão da graduação.
Agradeço a ambos principalmente pela amizade desenvolvida para am da
relação de professor e aluno.
Além do estímulo intelectual é necessário ressaltar a importância do
apoio financeiro concedido por meio de uma bolsa de estudos no peodo da
pesquisa (2008 2010) pela instituição de fomento (CAPES) que permitiu um
empenho maior e uma dedicação exclusiva na realização do trabalho. Também
agradeço a todos os funcionários das secretarias e coordenações (graduação e
pós-graduação) do departamento de geografia da UFF, pelo empenho e boa
vontade na tentativa de solucionar todas as questões burocráticas que
surgiram neste período.
De fato algumas pessoas participam mais ativamente de momentos de
nossas vidas, tornando-se fundamentais para a realização de algumas tarefas.
No entanto, muito mais do que isso é pelos laços de amizade e
companheirismo que as relações humanas tornam-se mais próximas e
vigorosas. Ao amigo Denílson, gostaria de enaltecer os momentos de debates,
reuniões e conversas que foram imprescindíveis na minha participação e
empenho mais efetivo como pesquisador e aprendiz. A humildade e a grandeza
intelectual deste amigo contribuíram enormemente para a realização deste
trabalho.
Aos amigos Débora, Luis e Rodrigo dedico algumas destas linhas, em
função de nossa cooperação e auxílio mútuo para o ingresso no mestrado e o
posterior convívio durante os períodos cursados conjuntamente, sempre
debatendo, questionando e vivenciando nossas descobertas e angústias
cotidianas. À Débora devo agradecer pela ajuda nos trabalho de campo e
entrevistas feitas em São Gonçalo, além das conversas existenciais. À Luis
pelos questionamentos sempre instigantes debatidos nas caronas matinais
para a UFF. À Rodrigo pelo afeto e sensibilidade de suas observações.
Também agradeço a todos os demais colegas que ingressaram conosco na
turma de mestrado de 2008, pelo imenso potencial intelectual e afetivo. E aos
demais amigos da graduação (antigos e novos) que também estiveram
presentes nesse período como ponto de equilíbrio, tornando mais divertidos e
não menos criativos os momentos passados na UFF.
Assim como os amigos da universidade, outras pessoas também fizeram
parte dessa trajetória de forma tão intensa e significativa quanto aqueles
citados até aqui. Tornaram-se amigos também, talvez um pouco mais
distantes, mas não menos importantes. Refiro-me a todos aqueles que conheci
e me relacionei no decorrer da pesquisa, com os quais aprendi uma infinidade
de outros conhecimentos relacionados não apenas ao graffiti mas aos
diferentes aspectos da vida cotidiana. Dedico aqui especial agradecimento aos
grafiteiros ACME, Anarkia, Smoky e Airá o Crespo, pela contribuição direta à
esta pesquisa.
Por fim, e talvez por razões mais afetivas, dedico integralmente este
trabalho à minha família e a minha namorada Flávia. Para isso agradeço à
Lucas, meu irmão, por sempre me questionar e indagar qual é a relevância
pragmática do meu trabalho como geógrafo. Ao meu pai, Cesar, pelo apoio
incondicional às minhas escolhas profissionais e a todo suporte logístico dado
desde sempre. À minha avó, Mafalda, por todo carinho, atenção e cuidado
dedicados a mim apesar de suas limitações físicas. À Hugo pelas conversas e
reflexões espiritualizadas que possibilitaram a relativização das demandas
materiais e de extremo pragmatismo exigido em nossa sociedade
contemporânea.
Agradeço especialmente à minha mãe, Sheila, por todo empenho em
pensar ou mesmo questionar minhas idéias a respeito da arte, da geografia e
da filosofia. Tornou-se uma importante leitora crítica do meu texto sempre que
possível me alertando sobre a sensibilidade exigida par além da objetividade
científica e acadêmica. O papel da arte, e da artista foi fundamental na própria
elaboração da pesquisa. E também à Flávia, minha namorada e companheira,
responsável pelo estímulo intelectual e profissional desde o ingresso no
mestrado até a conclusão do trabalho. Nesses últimos dois anos esteve ao
meu lado na pesquisa e trabalhos de campo, revisando, debatendo e criticando
minhas formulações a partir das suas concepções de geógrafa. Além disso, me
acompanhou em todas as pinturas que fiz nas ruas desde então. Obrigado pelo
amor.
Lista de Figuras
Paginas
Mapa 1 Região Metropolitana do Rio de Janeiro 15
Figura 1 Diferenciação entre graffitis e pichações 1 22
Figura 2 Diferenciação entre graffitis e pichações 2 23
Figura 3 Reprodução de “A marcha da humanidade” de David Siqueiros 26
Figura 4 Reproduções das latas de sopa Campbell`s de Andy Warhol 30
Figura 5 Graffitis feitos a partir de stencils 30
Figura 6 Grafiteiros em ação para o festival de Hip-Hop Hutúz 33
Figura 7 Primeiros registros de graffiti identificados 1 63
Figura 8 Primeiros registros de graffiti “apagados” pela Comlurb 63
Figura 9 Primeiros registros de graffiti identificados 2 64
Figura 10 Primeiros registros de graffiti identificados 3 64
Figura 11 Sigla da crew D.V Destruidores do Visual 67
Figura 12 Polifonia urbana e disputa pela visibilidade 70
Figura 13 “Não apague graffitis 71
Figura 14 Funcionário da Comlurb e a sobreposição dos graffitis 72
Figura 15 Quadro de Jackson Pollock 73
Figura 16 Mimetismo e paisagem 76
Figura 17 Graffiti de ECO no Rio Comprido 77
Figura 18 O símbolo da Nação Crew 97
Figura 19 Graffiti assinado pela Santa Crew 98
Figura 20 Auto-afirmação 102
Figura 21 Distintas territorialidades na Ladeira dos Tabajaras 103
Figura 22 Mutirão de graffiti “Artitude II” - Ladeira dos Tabajaras 104
Figura 23 Vila Operária 1 Duque de Caxias - Meeting of Favela 2008 106
Figura 24 Vila Operária 2 Duque de Caxias - Meeting of Favela 2008 106
Figura 25 Bombardeio de ECO 1 126
Figura 26 Bombardeio de ECO 2 127
Figura 27 Bombardeio de ACME 128
Figura 28 Pilastras “bombardeadas” 1 130
Figura 29 Pilastras “bombardeadas” 2 130
Figura 30 Dutos de ar do Metrô bombardeados 131
Figura 31 Portões de lojas “bombardeados” 131
Figura 32 Praça pública “bombardeada 132
Figura 33 Pista de skate “bombardeada 132
Figura 34 Intervenções feitas em residências 1 - Meeting of Favela 2008 137
Figura 35 Intervenções feitas em residências 2 - Meeting of Favela 2008 137
Figura 36 Moradores voluntários da Vila Operária 141
Figura 37 Caixas de som e os Djs - Meeting of Favela 2008 143
Figura 38 Propaganda do evento Meeting of Styles 2006 144
Figura 39 Grafiteiros reunidos - Meeting of Favela 2008 145
Figura 40 “Punição” ao grafiteiro 149
Figura 41 Inscrição rasura o graffiti 149
Figura 42 Deterioração do graffiti 150
Figura 43 Graffitis comerciais 151
Figura 44 Exposição “Vertigem” no CCBB 153
Figura 45 Oficinas de graffiti do CIC 1 Fundição Progresso 161
Figura 46 Oficinas de graffiti do CIC 2 Fundição Progresso 162
Figura 47 Latas de tinta spray 164
Figura 48 Oficina e exposição de graffitis - SESC Tijuca 165
Lista de Quadros
Paginas
Quadro 1 Entrevista Anarkia 2008 24
Quadro 2 Entrevista Eco 2009 56
Quadro 3 Entrevista Eco 2009 58
Quadro 4 Entrevista Anarkia 2008 88
Quadro 5 Entrevista Anarkia 2008 89
Quadro 6 Entrevista Airá O Crespo 2008 91
Quadro 7 Entrevista Anarkia 2008 94
Quadro 8 Entrevista Acme 2008 99
Quadro 9 Entrevista Airá O Crespo 2008 100
Quadro 10 Entrevista Airá - O Crespo 2008 120
Quadro 11 Entrevista ACME 2008. 128
Quadro 12 Entrevista SMOKY 2008 133
Quadro 13 Entrevista Airá O Crespo 2008 133
Quadro 14 Entrevista Anarkia 2008 135
Quadro 15 Entrevista Airá O Crespo 2008 139
Quadro 16 Entrevista Anarkia 2008 142
Quadro 17 Entrevista Smoky 2008 142
Quadro 18 Entrevista Gut 2008 156
Quadro 19 Entrevista Airá O Crespo 2008 157
Quadro 20 Entrevista Celo 2008 158
Quadro 21 Entrevista Anarkia 2008 159
Quadro 22 Entrevista Smoky 2008 160
Resumo
Uma quantidade considerável de grafismos tem adquirido maior visibilidade em
grandes cidades como o Rio de Janeiro, especialmente na última década. Em
relação a estes grafismos urbanos enfatizamos os graffitis, diferenciando-os
dos demais, buscando desvendar uma problemática que decorre da ação de
seus autores no espaço urbano carioca: por que uma atividade ilícita e
criminalizada, como o graffiti, tem sido difundida na cidade do Rio de Janeiro,
paralela a uma “aceitação” e diminuição de sua coibição? Este questionamento
suscita uma diferenciação entre o que é legítimo e o que é legal na cidade.
Nesse sentido, é possível destacar a participação direta do autor na prática do
graffiti, desenvolvendo simultaneamente a pesquisa científica sobre a mesma
temática. Como atributo metodológico a observação participante foi escolhida
como recurso de apreensão de dados em campo a partir da interação e das
vivências que marcaram o período de desenvolvimento da pesquisa. Além do
método etnográfico, este trabalho se fundamenta em entrevistas, depoimentos
e experiências pessoais que ilustram e permitem a análise em questão. O
aporte teórico deriva diretamente da problemática apontada, e sugere outras
possibilidades de interpretação e discussão do espaço urbano. No âmbito da
geografia o trabalho prioriza a ação de novos sujeitos, especialmente na cidade
do Rio de Janeiro, desvendando seu comportamento, suas formas de
intervenção e organização, além dos aspectos simbólicos que caracterizam
outra forma de apropriação do espaço urbano. Os resultados obtidos são fruto
desse processo de investigação cambiante ora como pesquisador, ora como
grafiteiro.
Palavras-chave: Graffiti, apropriação simbólica, espaço urbano, paisagem,
territorialidade.
Resumem
Una cantidad considerable de grafismos tiene adquirido visibilidad mayor en
grandes ciudades como Río de Janeiro, especialmente en la última década. En
lo que se refiere a los grafismos urbanos acentuamos los graffitis, distinguiéndo
de los demás, buscando desenmascarar una problemática que transcurre de la
acción de sus autores en el espacio urbano carioca: ¿Por qué una actividad
ilícita y criminalizada, como el graffiti, se ha difundido en la ciudad de Río de
Janeiro, paralelo a una “aceptación” y a la reducción de su prohibición? Esto
que pregunta excita una diferenciación entre que es legítimo y que es legal en
la ciudad. En esta dirección, es posible separar la participación directa del autor
en la práctica del graffiti, desarrollando simultáneamente la misma investigación
científica sobre la temática. Mientras que la cualidad metodológica, el
comentario del participante fue elegida como recurso de la aprehensión de
datos en el campo mediante la interacción y de las experiencias que habían
marcado el período de la investigación. Más allá del método etnográfico, este
trabajo se fundamenta en entrevistas personales, de los deponimientos y de las
experiencias que ilustran y se basan en el análisis de la cuestión. La
fundamentación teórica es una derivación de la problemática, y sugiere otras
posibilidades de interpretación y de discusión del espacio urbano. En el alcance
de la geografía el trabajo privilegia la acción de los nuevos ciudadanos,
especialmente en la ciudad de Río de Janeiro, desenmascarando su
comportamiento, sus formas de intervención y organización, más allá de los
aspectos simbólicos que caracterizan otra forma de apropiación del espacio
urbano. Los resultados obtenidos derivan de este proceso de la investigación
cambiante, sin embargo como investigador, al menos como grafiteiro.
Palabra-llave: Graffiti, apropiación simbólica, espacio urbano, paisaje,
territorialidade.
Sumário
Introdução 12
1. O que é o graffiti? 20
1.1. Em busca de uma origem: de onde vem o g raffiti? 34
1.2. O g raffiti no Brasil 46
1.2.1. O g raffiti marginal 47
1.2.2. A crise de utopias: A pichação e o hip-hop no Brasil 49
1.2.3. Graff iti e pichação no Rio de Janeiro 53
2. Um fenômeno urbano 59
2.1. Experiência e paisagem 62
2.2. A relação cidade grafiteiro 77
2.3. O grafiteiro e a formação de uma identidade territorial 89
2.4. A abrangência do fenômeno 104
3. A territorialidade dos grafiteiros no Rio de Janeiro 113
3.1. Territorialidade e apropriação do espaço urbano 113
3.2. A territorialidade dos grafiteiros: Formas de ação e apropriação 123
3.2.1. Bombardeios: O graffiti selvagem 124
3.2.2. Mutirões: O graffiti comunitário 135
3.2.3. Exposições: O graffiti domesticado 145
3.2.4. Oficinas: O graffiti pedagógico 155
4. Considerações finais 166
5. Bibliografia 171
6. Anexos 179
12
Introdução
Os espaços urbanos, e mais especificamente as grandes metrópoles,
têm hoje um papel fundamental em um mundo que caminha para uma
globalização comandada por interesses econômicos e políticos capitalistas,
difundidos, principalmente, pelos meios de comunicação de massa. As
metrópoles apresentam-se como grandes espaços cuja marca é a velocidade e
a simultaneidade das informações e dos fluxos, a impessoalidade dos espaços
públicos, o individualismo e a contradição que norteiam o consumo. No caso
brasileiro, estas características imprimem uma série de desigualdades sociais,
que se manifestam na forma da ineficiência dos serviços e poticas blicas,
na precariedade das habitações, na violência do Estado e da população, e na
segregação sócio-espacial, entre muitos outros. Isto implica uma configuração
espacial particular das cidades brasileiras, cujo Rio de Janeiro talvez seja um
dos melhores exemplos da contradição que constitui a maneira como seus
habitantes se relacionam com a própria cidade e entre si.
O graffiti é um fenômeno concomitante a esta globalização que vem se
processando nos últimos 30 anos. Oriundo da migração e da fusão cultural de
povos africanos e latino-americanos marcadas pela intolerância, o preconceito
e a segregação social em território estadunidense, este fenômeno obteve uma
grande difuo nos países do Ocidente e, também do Oriente, nas últimas
décadas, especialmente sob a forma da cultura hip-hop. A sociedade urbana
(LEFEBVRE, 1999) é a sua gênese, e a metrópole o lócus de sua produção e
difusão. O desenvolvimento tecnológico e a popularização dos meios de
comunicação tiveram um papel significativo na propagação das manifestações
políticas e culturais da contracultura a partir dos anos 60/70 (na qual o graffiti e
o hip-hop têm suas origens). Nas décadas posteriores tiveram suas premissas
originais desfeitas ou cooptadas por interesses econômicos hegemônicos,
diluindo seu poder de transformação social.
O tema desta pesquisa é a relação existente entre os espaços urbanos,
neste caso a cidade do Rio de Janeiro, e a constituição de uma territorialidade
específica de grupos denominados grafiteiros. Mais especificamente trabalho
com a noção de intervenção/apropriação do espaço urbano por esses sujeitos
13
(indivíduos ou grupos) a partir de suas marcas ou grafias impressas na
paisagem, as quais são chamadas de graffitis.
A relevância deste estudo está em compreender como esses sujeitos
interferem na cidade, constituindo uma territorialidade específica, que se
mostra cada vez mais expressiva no contexto urbano da atualidade.
Paralelamente discute-se a sua proibição legal, tendo em vista o
enquadramento dessa prática na lei de crimes ambientais (Lei federal
9.605/98 Art. 65 [ver anexo I]).
Visando à abordagem desta problemática indaga-se: por que o graffiti
ganha maior legitimidade na sociedade se é uma prática proibida por lei?
Procurei desenvolver este questionamento ao longo de todo o trabalho,
inserido em diferentes perspectivas pelos três capítulos que compõem a
dissertação. Desta forma, busco, como um dos principais objetivos, responder
a questão, numa investigação que procura desvendar o papel do grafiteiro
como responsável por um determinado tipo de ação na cidade. Ou seja, este
trabalho procura priorizar sua análise na ação e no comportamento do
grafiteiro, tendo em vista o simbolismo contido em suas grafias, o que será
tratado de forma complementar.
No capítulo I, a investigação começa a partir do questionamento: O que
é o graffiti? Procuro desenvolver a seção em torno desta conceituação, o que
remete ao graffiti a condição de elemento de expressão cultural e política de
distintos grupos sociais e etnias nos espaços urbanos. Inicialmente procura-se
estabelecer uma relação dessas marcas simbólicas com os pressupostos e
movimentos artísticos em um contexto mais geral. Posteriormente analiso a
emergência do graffiti como manifestação política e cultural de grupos étnicos
subalternizados, articulados junto à cultura hip-hop. Por fim, destaco a
territorialização e a emergência desse fenômeno nas cidades brasileiras, e
mais precisamente no Rio de Janeiro o que impõe uma distinção prática e
teórica quanto à conceituação da forma de intervenção e apropriação da cidade
por grafiteiros e pichadores.
No capítulo II, procura-se desvendar quem são os grafiteiros, e mais
precisamente, como se formam esses sujeitos. De forma complementar, o texto
busca destacar a influência do espaço urbano na formação dessas pessoas.
Acredito que hoje o grafiteiro adquire uma identidade um tanto ambígua na
14
sociedade, que se manifesta territorialmente na forma de uma apropriação
simbólica da cidade. É desta forma que ele imprime marcas simbólicas na
paisagem, e principalmente assim constitui uma identidade individual e plural, e
não menos contraditória. A abrangência desse fenômeno espalha-se como
rizomas por todo o tecido urbano, extrapolando, quase sempre, as delimitações
territoriais institucionais (municípios), constituindo outra territorialidade urbana.
O capítulo III tem o objetivo de identificar a territorialidade dos grafiteiros
que grafam o espaço urbano carioca. Assim, procura-se compreender como a
cidade é utilizada para se fazer o graffiti, tendo em vista onde e como são feitas
essas intervenções. Muito mais do que um suporte, a cidade pode ser vista
também como seu espaço da vida cotidiana. Por isso o grafiteiro estabelece
uma relação mais subjetiva em determinados pontos da cidade do que em
outros, o que acaba demarcando a sua forma de ação. Sendo assim, são
destacadas quatro formas de ação que caracterizam, porém não esgotam, a
territorialidade dos grafiteiros. São elas: os bombardeios, os mutirões, as
exposições e as oficinas. Cabe ainda destacar como estas ações são
realizadas, ou dependem em certa medida de parcerias (instituições,
associações e ONGs), auto-organizações e financiamentos privados e estatais
para de fato serem implementadas.
A cidade do Rio de Janeiro será o recorte espacial na qual a
investigação terá maior foco. Porém, esta delimitação territorial municipal terá
pouca importância na medida em que a ação dos grafiteiros se faz
independentemente deste recorte, o que implica uma análise escalar do
espaço urbano metropolitano do Rio de Janeiro. Logo abaixo, um mapa da
região metropolitana do Rio de Janeiro com destaque para uma imagem de
satélite de uma parte da própria cidade. A imagem de satélite georreferenciada
permite observar destacadamente um eixo que percorre boa parte da Zona
Norte até o Centro da cidade com muitos pontos seguidos e numerados, que
representam os graffitis feitos nessa área até janeiro de 2007
1
.
1
Pesquisa desenvolvida pela grafiteira Anarkia junto à ONG “Comcausa”. Disponível
detalhadamente em: http://www.panmelacastro.com/anarkia1/anarkia/viva%20a%20anarkia.htm
Acessado em 24/11/09.
15
Mapa 1. Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Fonte: Observatório das metrópoles UFRJ 2006 e
< http://www.panmelacastro.com/anarkia1/anarkia/viva%20a%20anarkia.htm> Acessado em
24/11/2009.
16
A metodologia empregada neste trabalho está baseada inicialmente em
uma observação participante, cujo objetivo é desenvolver um estudo
etnográfico das diferentes formas de como se comportam os grafiteiros na
cidade do Rio de Janeiro. Optei por desenvolver este método de análise tendo
em vista uma dupla atribuição, como pesquisador e grafiteiro. Para Becker:
O observador participante coleta dados através de sua
participação na vida cotidiana do grupo ou organização que
estuda. Ele observa as pessoas que esestudando para ver
as situações com que se deparam normalmente e como se
comportam diante delas. Entabula conversação com alguns ou
com todos os participantes desta situação e descobre as
interpretações que eles têm sobre os acontecimentos que
observou. (BECKER, 1993: 47)
Para o desenvolvimento das observações participantes este duplo papel
apresentou até certo ponto uma vantagem, paralelamente a um criterioso
processo de análise e seleção de informações obtidas em campo. Becker
(1993) aponta que a forma como o pesquisador estabelece sua relação com o
grupo estudado determina a posição deste perante o mesmo, tendo maior ou
menor acesso a informações mais precisas.
Neste sentido, Geertz (1988), em seu texto intitulado ―Estar lá, escrever
aqui‖, ressalta a necessidade de o pesquisador buscar durante sua observação
participante um estranhamento de situações e comportamentos que
aparentemente o demonstram grande relevância como objeto de estudo.
Porém, a sutileza dessa percepção em um método de ―descrição densa‖ pode
definir uma riqueza maior de detalhes quando se desenvolve o estudo
etnográfico. Da Matta (1978: 28) nos aponta a necessidade de ―transformar o
exótico no familiar e o familiar no exótico‖.
As observações participantes foram feitas em diferentes eventos e
localizações pela cidade e fora dela. Destaco primeiramente as observações
feitas individualmente, como prática de se fazer o graffiti pela cidade. Sendo
assim, os levantamentos, a percepção e os registros fotográficos em campo
foram feitos concomitantemente ao processo de intervenção urbana,
procurando obter a partir daí a noção de como o grafiteiro se comporta e
interage com a cidade durante sua ação. Procurei realizar as atividades de
forma ilegal, para justamente medir até que ponto isto é possível atualmente.
17
Ainda neste sentido, procurei salientar no texto quais foram as primeiras
experiências e principalmente os fatores que me influenciaram a ponto de
aderir à prática do graffiti paralelamente à pesquisa. Sendo assim, trabalhei
com o que Vasconcellos (2006) aponta como pressuposto da
intersubjetividade, que a autora descreve como:
Os trabalhos de Foerster vieram mostrar que não há como
pensar o observador não fazendo parte do sistema que ele
observa, ou seja, que o observador é sempre parte do sistema
com que ele trabalha. Assim, ele introduziu a expressão
sistema observante (FOERSTER, 1974) ou sistema de
observação, para se referir a esse fato de que, a partir do
momento em que o observador começa a observar um
sistema, cria-se instantaneamente um sistema que integrará a
ambos e em que o observador se observará observando, ou
seja, em que sua relação com o sistema que ele observa será
também objeto de observação. (...) Reconhece-se então ser
impossível afastar ou colocar entre parênteses a subjetividade
do cientista. Torna-se estéril por exemplo, e para citar um
pequeno aspecto das implicações dessa postura recomendar
ao cientista o uso de uma linguagem impessoal.
(VASCOCELLOS, 2006: 143)
Conforme aponta a citação, é possível fazer uma produção textual que
aborde em determinados momentos uma narrativa em primeira pessoa,
demonstrando assim a inserção pessoal e a relevância desta como objeto de
análise científica. Optei por este método especialmente para a construção do
segundo capítulo deste trabalho.
Outros trabalhos de campo foram realizados com o objetivo de se fazer
uma observação participante com grupos de grafiteiros nas oficinas de graffiti,
em exposições e nos mutirões de graffiti.
No primeiro caso foi feito um processo sistemático de participação nas
oficinas de graffiti, em especial as realizadas no Centro Interativo de Circo
(CIC), localizado nas instalações da Fundição Progresso, Lapa. As visitas
ocorriam semanalmente durante as aulas de graffiti, às quartas-feiras no
período noturno, das 19h às 22h. Esses levantamentos foram feitos
principalmente no período compreendido entre os anos de 2006 a 2008,
durante os meses em que ocorreram as oficinas (abril novembro). Am da
participação nas aulas práticas, elas foram importantes pontos de encontro e
conhecimento. Paralelamente foram observadas esporadicamente outras
18
oficinas na Casa de Cultura Laura Alvin e no SESC Tijuca. A partir das oficinas
foi possível ter uma noção mais ampla do perfil social dos grafiteiros, ao
mesmo tempo em que foi possível identificar formas de comportamento, gostos
musicais, maneiras de vestir, locais de moradia etc.
Nas exposições a observação foi feita com o intuito de notar o
comportamento, a frequência e a maneira como o público interagiu diretamente
com o graffiti no interior de centros culturais como o CCBB (Centro Cultural
Banco do Brasil), que seus autores não estavam fisicamente presentes.
Traçando um paralelo, destaca-se a grande diferença que se faz entre o graffiti
feito nas ruas e aqueles produzidos nas galerias de arte e centros culturais,
principalmente no que diz respeito à proteção e à divulgação do graffiti como
obra de arte.
Nos mutirões a experiência participante ocorreu de forma direta com
pinturas feitas durante o evento ―Meeting of favela‖, em Duque de Caxias e
indireta, através de entrevistas e produção de fotos, no evento Artitude 2‖, na
Ladeira dos Tabajaras, Rio de Janeiro. Com isso foi possível ter uma dimensão
relativa da organização do evento e observar a abrangência desses mutirões
que ocorrem normalmente em espaços populares, envolvendo uma grande
quantidade de grafiteiros de diferentes localidades.
De forma complementar à observação participante foram feitas
entrevistas pessoais com grafiteiros, durante os eventos citados, ou depois de
encerrados os mutirões. As entrevistas têm um papel relevante na pesquisa.
Através dos dados empíricos pretende-se identificar os pontos da cidade onde
ocorrem preferencialmente as atuações dos grafiteiros, o que poderá fornecer
pistas das diferentes formas de apropriação desse espaço urbano. O método
investigativo aqui adotado privilegia uma questão qualitativa de análise dos
dados, na qual a busca pelos sujeitos e a sua apropriação do espaço podem
determinar as localizações e os questionamentos até mesmo subjetivos a
respeito dessa relação. Por isso foi definido um grupo mais seleto de
grafiteiros, com uma experiência maior de atuação na cidade para que assim
obtivesse respostas que dessem uma noção comparativa entre momentos
distintos.
19
Na construção do texto foram utilizados fragmentos dessas entrevistas,
as quais estão destacadas por meio de quadros enumerados ao longo da
dissertação e normalmente complementando os aspectos pticos e teóricos,
ou com eles dialogando.
A utilização de fotografias é relevante na tentativa de elucidar de forma
mais veemente as análises feitas no corpo do texto ou mesmo para ilustrar
momentos e fatos que foram possíveis de serem registrados a partir dos
trabalhos de campo. A utilização da imagem também se faz muito significativa
quando tratamos de um fenômeno como o graffiti, cuja carga simbólica reside
justamente na observação e interpretação dessas grafias e sua relação com a
paisagem. Porém, cabe ressaltar que meu objetivo neste trabalho o é fazer
um estudo semiológico desses registros, o que indubitavelmente aponta para
outras possibilidades de análise que poderão ser desdobradas em outros
trabalhos.
Esta investigação trabalha diretamente com uma escala que abrange
todo o território da cidade do Rio de Janeiro, que irá eventualmente chegar à
escala do bairro, da comunidade e da rua. Simultaneamente, o grafiteiro está
submetido a uma legislação de abrangência nacional, que abarca todas as
cidades do país. Por outro lado, em uma escala global os movimentos sociais e
culturais da atualidade recorrem à comunicação digital, que atinge as mais
distintas partes do mundo a uma velocidade quase instantânea, criando
diferentes articulações. Por isso, em um contexto onde a cultura se encontra
mundializada (ORTIZ: 2003), a abrangência escalar é vital para uma
compreensão ampla de todo o fenômeno que se quer apreender. No primeiro
capítulo o texto faz esse percurso escalar da contextualização internacional à
nacional, e depois até a cidade do Rio de Janeiro. No segundo capítulo a
abrangência escalar extravasa a cidade e percorre o tecido urbano
metropolitano. No último capítulo é focado diretamente o espaço interno da
cidade do Rio de Janeiro, o que permite um olhar mais preciso, em alguns
momentos, quando se fala da ação direta dos grafiteiros em ruas e pontos
específicos.
20
1. O que é o gr affiti?
A palavra grafite vem do italiano graffiti que é plural de
graffito. Graffito significa, em latim e italiano, ―escritas feitas
com carvão‖. Os antigos romanos tinham o costume de
escrever com carvão nas paredes de suas construções
manifestações de protesto, palavras proféticas, ordens comuns
e outras formas de divulgação de leis e acontecimentos
públicos, como se fossem mensagens em cartazes
2
.
Tendo em vista esta definição, este trabalho empregará sempre o termo
graffiti, mesmo que outros autores acabem citando o termo grafite quando se
referem ao mesmo fenômeno. A preferência da palavra graffiti também se faz a
partir da utilização deste termo pelos próprios grafiteiros, com o qual este
trabalho busca desenvolver um elo conceitual.
O termo grafismos urbanos, proposto por Pennachin (2003), será aqui
utilizado como uma definição mais ampla para o que é conhecido por graffiti. A
partir de uma análise semiótica, a autora desenvolve o tema citando diferentes
tipos de grafismos urbanos que estão presentes nas metrópoles
contemporâneas e sua relação com a dinâmica social. Das escrituras de
banheiros coletivos aos anúncios políticos e propagandas comerciais,
Pennachin destaca as pichações e os graffitis em sua análise:
Escolhi utilizar o termo ―grafismos urbanos‖ para designar
ambas as práticas devido ao fato de que a linha divisória entre
uma e outra é pragmaticamente impossível de ser delineada
com precisão, tal é o grau de hibridismo que domina o objeto.
A expressão ―grafismos urbanos‖ refere-se, portanto, aos
signos que apresentam traços de grafitagem e/ou de picho. O
graffiti e a pichação são formas de linguagem marcadas pela
heterogeneidade e pela sobreposição e interpenetração de
elementos, o que em certa medida é um reflexo do modo
mesmo como ocorrem, isto é, em meio às mais variadas
interseções sociais e sempre potencialmente abertos a novas
interferências. (PENNACHIN, 2003: 05)
Mais especificamente, Andreoli propõe uma definição da palavra
grafismo, que complementa a explanação anterior:
O uso do termo grafismo, num plano etimológico mais
simplificado, se diferencia de ―gfico‖, que significa todas as
2
Retirado do endereço eletrônico da CUFA (Central Única de Favelas) www.cufa.com.br,
acessado em 14/09/03.
21
imagens sobre suportes planos; ―grafismos‖ é um tipo
específico de elemento gráfico: uma forma de ―escrita―, ou seja,
uma imagem produzida pelo movimento do corpo humano,
muito frequentemente as mãos, munido de instrumento que
possibilita produzir marcas tinta, grafite, cera, giz, etc.
Grafismo refere-se à atividade motora que se diferencia de
todas as outras pela intenção de registro, ou seja, de um
registro gráfico. (ANDREOLI, 2006: 74)
Entre as mais diversas concepções do que se entende pelo termo
graffiti, buscamos aqui chegar a uma delimitação mais precisa deste. No Brasil,
o graffiti é repetidamente confundido com a pichação. Este equívoco é
respaldado pela própria legislação brasileira quando enquadra seus praticantes
em uma mesma categoria, considerando-os assim criminosos. Segundo a Lei
9.605/98 (ver anexo I), o graffiti e a pichação o caracterizados como crimes
ambientais, devido à degradação que causam aos bens públicos e privados,
especialmente aqueles localizados em áreas urbanas. Não como negar que
a origem de ambas as práticas está intimamente ligada. A forma como o graffiti
intervém na paisagem urbana deriva da própria forma como a pichação passou
a ser feita a partir dos anos 60 no Brasil, isto é, advém de uma maneira de se
contrapor as ordens estabelecidas a partir da inscrição parietal de
pseudônimos, códigos, palavras de ordem e até mesmo através de expressões
artísticas. De acordo com Souza (2007), o graffiti e a pichação podem ser
compreendidos dentro da concepção artística de intervenções urbanas, ―se
considerarmos intervenção como o ato consciente de alguém que atua sobre
um determinado objeto ou espaço, conferindo-lhe um novo significado‖
(SOUZA, 2007: 14).
Ao longo das últimas décadas, a pichação, que foi iniciada no Brasil
como forma de contestar o regime militar de 64, vem sofrendo modificações em
sua composição estética e ideológica. No Brasil, o graffiti é uma derivação da
pichação, que teve seus primeiros registros na cidade de São Paulo nos anos
80. Desde então, o graffiti passou a se constituir um fenômeno particular e
desvinculado da pichação. Considerado uma vertente da cultura hip-hop, o
graffiti passou a representar uma nova forma de manifestação social nas
cidades brasileiras, especialmente a partir da década de 1990 (SOUZA e
RODRIGUES, 2004).
22
Esteticamente o graffiti distingue-se da pichação pela composição das
letras e dos personagens. Enquanto a pichação busca apenas a assinatura
simples de pseudônimos e siglas referentes aos grupos que as imprimem, o
graffiti ornamenta as letras de um pseudônimo através de cores e efeitos
matizados da tinta spray. Acrescenta ainda outros elementos nas pinturas
através do conjunto de diferentes grafiteiros e técnicas, constituindo muitas
vezes grandes painéis temáticos. Ao intervir na paisagem urbana, o graffiti
normalmente obedece a uma lógica de reprodução horizontal nos muros ao
longo das vias de circulação, enquanto a pichação segue também o sentido
vertical, através da ―escalada‖ das edificações. Isto se deve a uma diferea na
composição de ambos, para a qual o graffiti necessita de um tempo mais longo
que a pichação. O graffiti é feito com uma variedade bem maior de materiais
que demandam um tempo e uma destreza maior para se obter efeitos estéticos
mais detalhados e ricos que a pichação. Já a pichação é normalmente uma
ação rápida e de pouca preocupação estética, cujo objetivo é a reprodão
contínua de assinaturas em uma ou mais superfícies (muros e edificações).
Fig.1 - Os graffitis seguem o sentido do pedestre ao longo rua. As pichações
aparecem no alto do prédio Tijuca - RJ. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
23
Fig.2 - Pichações “escalando” a fachada de um edifício – Tijuca - RJ.
(Foto: Leandro Tartaglia 2008)
A partir de um estudo etnográfico sobre a pichação carioca, Souza
define que:
A pichação é uma prática que interfere no espaço, muitas
vezes degradando ambientes públicos urbanos. A pichação
subverte valores, é espontânea, efêmera e gratuita. A prática
tem como base letras e formas diferentes que podem ter
significados variados. Ao longo dos anos, a atividade de pichar
muros apresentou-se como forma de comunicação e expressão
em variados locais, em diferentes contextos e com variados
propósitos. (SOUZA, 2007:19)
No depoimento concedido pela grafiteira Anarkia (Quadro 1), destacam-
se alguns elementos presentes nesta diferenciação entre o graffiti e a pichação.
Segue abaixo um trecho da entrevista realizada na Casa de Cultura Laura
Alvin, na qual a grafiteira ministra para crianças e jovens aulas de graffiti e
artes plásticas.
24
Quadro 1. Entrevista Anarkia - 2008.
Fonte: Anarkia, grafiteira do Rio de Janeiro.
Entrevista pessoal realizada em outubro de 2008.
De acordo com as mais recentes caracterizações desenvolvidas a partir
de estudos deste fenômeno no Brasil (GITAHY, 1999; KNAUSS, 2001;
PENNACHIN, 2003; SOUZA, 2007; TARTAGLIA, 2007), atribui-se ao graffiti a
qualidade de arte. Através dessa qualificação do graffiti como arte,
desenvolvida a partir de pesquisas acadêmicas, pode-se distingui-lo dos
demais grafismos urbanos contemporâneos.
Empregando um método comparativo a partir dos pressupostos e das
similitudes do graffiti com outras manifestações e correntes das artes plásticas,
busca-se elucidar características que demonstrem elementos em comum.
Assim, será feito a seguir um breve relato de quais são as principais influências
artísticas e sua relevância para o entendimento do graffiti como arte na
atualidade.
A primeira influência artística mais significativa sobre o graffiti foi o
muralismo mexicano. Este movimento artístico tem sua gênese na revolução
mexicana do início do século XX. A revolução iniciou-se com o levante popular
liderado por Emiliano Zapata e Pancho Villa, que obtiveram grande apelo junto
Autor: Você começou na pichação?
Anarkia: Sim.
Autor: E ainda picha?
Anarkia: Não, nem amarrada! Porque eu acho que passei da fase de pichação.
Quando eu quero fazer algo ilegal uso algo mais estratégico, porque a pichação é
muito força. Muito mais força do que... Tudo bem que você tem que ter visão,
capacidade e coragem.
Eu, como mulher, é muito ruim de fazer. Prefiro usar outras estratégias dentro do
graffiti. Eu não vou fazer uma pichação num muro horrível, para queimar o meu
filme, tendo o meu nome no graffiti. Prefiro não fazer a ficar me queimando por
aí.
Autor: O grafiteiro tem um tratamento diferenciado do pichador pela
sociedade?
Anarkia: Tem, porque o graffiti hoje toma o patamar de arte. Mas originalmente o
graffiti é uma pichação. È uma pichação que foi ganhando forma, sendo enfeitado,
crescendo e virou um graffiti. Era ilegal e era feito em lugares ilegalmente. Tanto
que os grafiteiros de amor querem ter seu graffiti onde não pode. Daí nós não
podemos julgar o que aconteceu. Virou arte, vai para galeria, vira moda, não
podemos condenar os outros. Vira produto...
25
ao povo mexicano, promovendo uma intensa luta contra a opressão, o
monopólio de terras, de poderes políticos e da fartura econômica das elites
mexicanas que perdurava desde os tempos coloniais. A inspiração dos
muralistas advinha dos valores que caracterizaram o processo político da
revolução, valorizando em suas obras a cultura popular mexicana (ARGAN,
1999).
O muralismo mexicano ganhou expressão internacional a partir da
fundação da escola muralista no ano de 1922, cujos principais expoentes foram
Diego Rivera, David Siqueiros e José Orozco.
Esse muralismo ganha uma unidade fundamental ao renegar a
pintura de cavalete, de consumo individual, e propor-se como
uma arte monumental e heróica, uma arte para todos, uma arte
pública. Arte pública, disseram Siqueiros, Rivera e Orozco, é
igual a arte mural. Assim começou, em torno de 1922, o
movimento que se tornou raiz e tronco de toda a pintura
mexicana e das ramificações desta na escultura, na música e
no cinema. Mas pode ser compreendido, juntamente com a
personalidade de seus criadores, como o produto de uma
revolução nacional. Esta é que estimulou a procura das origens
de um esplendor antigo (maias e astecas), de uma plenitude
presente (a nação que se erguia unida) e de uma liberdade
futura (os povos livres criarão a grande arte e a grande
ciência). (Gênios da pintura, 1967: 1106).
Sua principal característica era a concepção de grandes painéis pintados
em espaços públicos como museus, igrejas, prédios do governo, universidades
e escolas. A atribuição de arte pública ao muralismo mexicano advém da
idealização de seus autores de que uma obra de arte não deveria ser confinada
ou segregada para poucos. Justamente sua difusão através da ampla e
irrestrita visibilidade seria de fato um ato revolucionário, tendo em vista as
concepções artísticas mais conservadoras daquele período. O mural como arte
pública rompia com as possessões e os valores atribuídos à arte em geral
confinada em galerias e ateliês, além de possibilitar sua apreciação por todos
aqueles que circulassem em seu entorno. Daí a importância de sua localização
em pontos de grande fluxo nas cidades mexicanas bem como da grande
dimensão, ou seja, do tamanho de suas pinturas.
Além de romper com os padrões artísticos desse momento, resgatava os
valores políticos estimulantes das sublevações que ocorriam naquele
momento, como a revolução mexicana e a revolução russa. A politização da
26
pintura mural tinha o objetivo explícito de conscientizar e fomentar a luta
popular, tendo em vista o engajamento político de artistas como Rivera e
Siqueiros.
Redefinir significava abandonar o cubismo, o impressionismo e
sobretudo qualquer veleidade de arte abstrata. Significava
mergulhar no figurativismo. E mais ainda: produzir obras que
não terminassem como propriedade de uma pessoa, de algum
abastado colecionador. Produzir obras que pudessem ser
vistas por todos, a qualquer momento, não em museus ou em
instituições às quais o povo nunca teve acesso, mas em
edifícios públicos, escolas e repartições oficiais, com isso
aproximando também o Estado e a Nação. (Gênios da
pintura, 1967: 4/5)
Fig. 3 “A marcha da humanidade” representando a migração decorrente da
miséria. Politização temática na obra de Siqueiros Cuernavaca México
(1966). (Fonte: Gênios da pintura nº 46)
27
Devido a suas grandes dimensões, essas pinturas eram concebidas
pelos mestres da escola muralista e a execução era feita por uma equipe sob
sua coordenação. Inicialmente essas pinturas foram feitas em antigos prédios
coloniais, e com o passar do tempo ganharam contornos mais elaborados e
inventivos, sendo projetadas como uma fusão com a arquitetura de prédios
mais modernos, no México e em outros países. O apoio do governo mexicano,
nos primeiros anos desde o surgimento da arte muralista, estimulou a produção
através de patrocínios logísticos e financeiros (Gênios da pintura, 1967).
As pinturas muralistas adquiriram grande importância na cultura
mexicana. Desta forma, o desenvolvimento de pinturas murais e placazos
(ARCE, 1999) em cidades dos EUA, décadas posteriores à sua gênese,
demonstra a influência dessa cultura levada pelos imigrantes mexicanos e o
seu valor para o surgimento dos graffitis. Os graffitis contemporâneos
absorveram o caráter de arte pública e a politização temática de suas obras a
partir da pintura muralista mexicana.
A pop art foi outra significativa influência artística contemporânea sobre
os graffitis, originada posteriormente ao muralismo mexicano. Decorrente do
processo de midiatização e massificação da sociedade de consumo,
especialmente nos EUA, a pop art é um reflexo desse momento, cujas bases
foram inicialmente lançadas na cidade de Nova York. Artistas como Andy
Warhol e Roy Lichtenstein
3
tornaram-se expoentes dessa corrente artística nos
anos 60 (ARGAN, 1999).
Para compreender os preceitos e críticas da pop art, deve-se retroagir
no tempo para ver que a arte na Europa e no Ocidente em geral, em sua
evolução histórica até o início do século XX, havia adquirido uma condição
hermética, na qual a subjetividade dava lugar ao pragmatismo industrial. Muitos
artistas distanciavam-se da realidade cotidiana alegando uma incompreensão
para com suas obras e seus comportamentos. É fato que a introspecção e o
mergulho na subjetividade haviam sido fundamentais para o desenvolvimento
da arte em qualquer tempo. Mas, em decorrência disso, somado aos valores
3
Ficaram famosos por seus quadros e obras em geral, que utilizavam a linguagem das histórias em
quadrinhos e a reprodutibilidade de imagens fortemente veiculadas pela mídia, como as serigrafias dos
retratos de Marilyn Monroe ou das latas de sopa Campbell´s de Warhol.
28
pragmáticos e técnicos impostos na modernidade
4
, a arte passou a apresentar
uma redução dialógica com a realidade cotidiana da sociedade como um todo,
distanciando-se da vida das pessoas.
A pop art assumiu a influência dos ready mades de Marcel Duchamp,
nos quais um objeto qualquer do cotidiano podia transformar-se em uma obra
de arte, mudando-se, por exemplo, a sua posição e função. Esse deslocamento
da concepção de obra de arte tinha o intuito de desmistificar a arte e o trabalho
artístico, considerando que a arte estava ao alcance de todos. Em outras
palavras, dentro dessa concepção, a arte estava inserida na vida de todos.
Duchamp, ao contrário, nunca foi um utópico. Nada poderia
estar mais afastado de seu modo de pensar do que a crença
na criatividade universal. Seu tipo particular de arte, o ready
made, não surgiu nem da crença, nem da esperança de que
todos podem ou deveriam poder ser artistas. Em vez disso,
reconheceu e bem razoavelmente o ―fato‖ de que todos
tinham se tornado artistas. Diante de um ready made, não
existe mais qualquer diferença entre fazer e apreciar a arte.
Uma vez apagada essa diferença, o artista abriu mão de
qualquer privilégio técnico em relação ao leigo. A profissão de
artista foi esvaziada de todo o seu métier, e, se o acesso a ela
não é limitado por alguma barreira seja institucional, social ou
financeira -, deduz-se que qualquer um pode ser artista se
assim o desejar. (De Duve, 1998: 128)
A pop art desenvolve então esta idéia de faça você mesmo
5
como uma
crítica à falta de autonomia e de capacidade decisória dos indivíduos na
sociedade derivada de sua própria alienação, o que criava uma dependência
de modelos a serem seguidos. Apesar da discordância em relação à citação
anterior, de que não existem barreiras institucionais, sociais e financeiras para
se fazer arte, como o próprio graffiti assim atesta, aponta-se a relevância desse
discurso na arte que passou a ser feita desde então. Dessa forma, são
identificadas características comuns de artistas que fizeram parte da pop art:
Distante do existencialismo e da abstração que marcara o
expressionismo abstrato desenvolvido anos antes nos EUA, a
pop art estava muito mais ligada a funcionalidade e ao
4
A técnica citada no texto diferencia-se do sentido grego de techné da arte e habilidade na
produção de algo inesperado. Marilena Chauí (2001) lembra que “a palavra arte vem do latim ars e
corresponde ao termo grego techné, técnica, significando: o que é ordenado ou toda espécie de atividade
humana submetida à regra. Em sentido lato, significa habilidade, destreza, agilidade. Em sentido estrito,
instrumento, ofício, ciência” (CHAUÍ, 2001).
5
Originando inclusive uma série de pinturas de Andy Warhol de 1962.
29
pragmatismo, apesar de não renunciar as críticas a toda a
sociedade de consumo. Dessa forma: diferentemente de outros
movimentos de vanguarda, não formaram um grupo ou
escreveram manifestos; alguns deles sequer se conheciam, e
logo descobriram, ao ver seus trabalhos, que estavam fazendo
algo com uma linguagem comum. Essa coincidência revelava
que em Nova York estava surgindo algo realmente importante.
Todos vinham do mundo da publicidade, da ilustração e do
desenho, e suas imagens procediam principalmente dos
quadrinhos, da imprensa, do cinema, publicidade e televisão;
para eles, não era importante de onde provinham suas
imagens, senão o que podiam fazer e dizer com elas. (Gênios
da arte, 2007: 14)
A reprodutibilidade foi um importante elemento da pop art que assumia
uma crítica à saturação da veiculação de imagens e massificação de
informações, das quais a televisão tornava-se a principal fonte. A reprodução
de imagens em série sobre telas e extravasando-as, por exemplo, com a
utilização do próprio suporte das paredes de galerias de arte era uma forma
de individualizar a imagem a partir da sua alta reprodutibilidade
6
. Apesar da
crítica que artistas como Warhol faziam à excessiva exposição de
determinadas imagens na mídia, gerando sua banalização, sua produção
baseava-se no princípio da exclusividade a partir da exaustiva repetição de
uma mesma imagem.
Do mesmo modo como a arte de outras épocas, que está
relacionada com o pensamento de seu tempo, e a
transformação ideológica que estava se produzindo com a
televisão e a publicidade era muito importante para que se
desse as costas a ela. O significativo era que as imagens
mereciam ser escolhidas no bombardeio informativo dos meios
de comunicação, que estavam criando, num ritmo muito
acelerado, outro panorama sócio-cultural. (Ibidem)
6
Ver “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”. W. Benjamim (1955)
30
Fig. 4 Reproduções das latas de sopa Campbell`s de Andy Warhol - 1962
(acrílico sobre tela). Arte e publicidade de mãos dadas. (Fonte: Gênios da arte nº 9)
Em pouco tempo a pop art passa a se impor entre críticos de arte,
devido a seu apelo e profusão na sociedade. Esse apelo da veiculação de
imagens acabou influenciando de maneira significativa a cultura do graffiti e da
pichação nova-iorquina desde os anos 60. A repetição das tags ou dos próprios
graffitis como formas de afirmação coletiva de existência foi uma derivação
desse processo iniciado pela pop art, no qual a reprodutibilidade, atitude de
faça você mesmo, e a inspiração dos ready mades de Duchamp tiveram um
papel fundamental. O fato de a pop art ter Nova York como epicentro é mais
um fator que ajuda a explicar por que o surgimento dos graffitis está ligado a
essa cidade.
Fig. 5 A reprodutibilidade dos graffitis feitos a partir de stencil ou moldes
vazados. Influência da pop art. (Foto: Leandro Tartaglia 2006)
31
O graffiti propriamente dito assume o status de arte somente a partir dos
anos 80. As primeiras exposições de grafiteiros, cujos trabalhos foram de fato
reconhecidos como manifestações artísticas, ocorreram inicialmente nos EUA,
e mais tarde na Europa (Gitahy, 1999). estão artistas como Jean-Michel
Basquiat e Keith Hering:
No percurso da institucionalização do graffiti como criação
artística, dois personagens teriam um papel importante,
percorrendo caminhos inversos. Keith Harring (1958-1990),
nascido em Pittsburgh, chegou a Nova York no fim da década
de 1970, onde cursou por dois anos a School of Visual Arts.
Inspirado na obra do francês Jean Duduffet e nas reflexões de
Umberto Eco, Harring iniciou seu percurso de grafiteiro nas
paredes do metrô de Nova York e levou a linguagem do graffiti
e dos quadrinhos para as telas, realizando trabalhos de caráter
performático, muito próximo de uma cultura da espontaneidade
que marcou a relação das artes com a improvisação na
América pós-guerra. [...] O caso de Jean-Michel Basquiat
(1960-1986) representa exatamente o percurso inverso, de
alguém que saiu das ruas e ganhou a consagração de galerias
e museus de arte contemporânea. Filho de uma porto-riquenha
e um haitiano, nascido no Brooklyn, em Nova York, Basquiat
deixou de ser SAMO grafiteiro ao transformar sua obra pelo
diálogo com a produção artística contemporânea,
especialmente a partir de sua relação com Andy Warhol
(KNAUSS, 2001:329).
Tendo em vista os referenciais artísticos que influenciaram o surgimento
e o desenvolvimento do graffiti internacionalmente, busca-se estabelecer uma
relação deste com o graffiti que passou a ser desenvolvido no Brasil como
manifestação artística, especialmente nas metrópoles do país. A desvinculação
de uma imagem de depredão e consequentemente marginalizada do graffiti,
e que passa a ser entendido como obra de arte, é algo muito recente em
metrópoles e cidades brasileiras. Cabe ressaltar que legalmente a prática do
graffiti, caso não esteja autorizada, é caracterizada como crime em todo o
território nacional, segundo a Lei federal 9.605 de crimes ambientais. Mas o
que de fato passou a transformar esta imagem de depredação, que por muito
tempo foi considerada sem maiores distinções da pichação ou de algum tipo de
vandalismo, para a concepção de arte em algumas cidades brasileiras?
32
Para responder esta questão devemos nos remeter aos anos 80, em
São Paulo, onde se inicia um movimento artístico em defesa de uma afirmação
da liberdade de expressão, com teor de ativismo político em favor da
redemocratização do país, que passa a influenciar diversos artistas e
movimentos artísticos dessa natureza, nessa e em outras cidades. Desse
momento surgem artistas como Alex Vallauri, Carlos Matuck e o grupo Tupi-
não-dá. Do apelo político, esses artistas passaram gradualmente a se
estabelecer no mercado de arte das galerias e vitrines de lojas, tornando sua
arte um produto vendável. A partir de então aumentaram sua penetração no
universo da arte, promovendo eventos e exposições em importantes galerias,
como a Thomas Cohn e a Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, e o Museu da
Imagem e do Som de São Paulo, onde ocorreu a I Mostra Paulista de Grafite
em 1992 (GITAHY, 1999; KNAUSS, 2001).
Não devemos desprezar o ativismo político e cultural desenvolvido por
membros do movimento hip-hop, que a partir dos anos 90 ganham grande
destaque, especialmente em sua atuação em trabalhos sociais nas periferias
de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Se por um lado os artistas
paulistanos tiveram uma penetração nas galerias de arte, por outro lado essas
ações de movimentos sociais tiveram um papel relevante na popularização do
graffiti nas comunidades e favelas das periferias destas e de outras cidades.
Knauss (2001) aponta a relevância da mídia nessa nova qualificação do
graffiti, mais recentemente entendido como arte. A distinção entre pichação e
graffiti passou a ser noticiada de forma enfática, atribuindo à primeira a
degradação e o vandalismo, e à segunda, a criatividade e a valorização
estética do espaço urbano. Através dessa constante distinção cada vez mais
noticiada nos veículos de comunicação, o graffiti passa a ser visto como uma
ação positiva para as cidades. O grafiteiro passa a ser visto como artista, e o
pichador permanece como marginal. O fato é que existem diferenças estéticas
entre ambas as práticas, o que não impede que uma mesma pessoa possa
fazer graffitis e pichações.
33
O graffiti passa a ser empregado em campanhas publicitárias e feito
como propaganda, tornando sua imagem mais ―domesticada‖ diante da opinião
pública pela própria mídia. Alega-se, inclusive, que fazer graffiti evita a
pichação. Até institucionalmente, o graffiti é tolerado, dependendo de onde seja
feito e por quem, o que fica evidente nas edições do festival de hip-hop Hutúz,
que ocorrem anualmente dentro do Cine Odeon no Rio de Janeiro
(TARTAGLIA, 2007).
Fig. 6 Grafiteiros em ação para o Festival de hip-hop Hutúz 2008
Cine Odeon BR Centro do Rio de Janeiro. (Foto: Leandro Tartaglia)
O graffiti hoje pode ser entendido como uma arte pública, cuja lógica de
reprodutibilidade de imagens irá caracterizar um indivíduo ou grupo segundo
sua própria forma de fazer e conceber esteticamente suas grafias e
intervenções, estando preferencialmente dispersa em grande quantidade pelo
espaço urbano. O conteúdo político dessas grafias está implícito no fato de
tornar pública uma manifestação artística e no uso simbólico da paisagem
urbana, requalificando-a esteticamente como galerias de arte a ―céu aberto‖.
Também pode ter um viés explícito, caso as próprias pinturas ilustrem questões
raciais, de gênero, ambientais, sociais, entre outras.
34
1.1. Em busca de uma origem: de onde vem o gr affiti?
A proposta deste item é discorrer sobre o surgimento do graffiti a partir
daquela que é considerada sua matriz espacial, ou seja, a cidade de Nova York
durante os anos 70. Desta forma, este breve histórico contextualiza o
aparecimento e a difusão do graffiti nas décadas posteriores, bem como sua
relação com a cultura hip-hop, dentro de um mundo em acelerado processo de
globalização ou, mais especificamente, o que Ortiz (2003) caracteriza como um
processo de mundialização.
Por que Nova York? Esta seria uma pergunta inicial para se questionar a
origem dos graffitis urbanos
7
? Para que possamos entender este processo é
preciso ter a compreensão de que Nova York era, e ainda, é um dos mais
dinâmicos centros urbanos do mundo, decorrente da própria importância
econômica e política dos Estados Unidos. Alcançado o título de maior potência
do mundo capitalista no século XX, esse país e suas principais metrópoles,
entre elas Nova York, tornaram-se um inquestionável destino de imigrantes
oriundos de países subdesenvolvidos, que viam nessas grandes cidades uma
fonte de empregos e de geração de renda potencialmente muito distinta das
realidades locais em seus países. Cabe aqui ressaltar o grande fluxo migratório
de latino-americanos, além de asiáticos, africanos e outros, para as cidades
dos EUA durante os anos 50 e 60, devido à prosperidade econômica vivida em
pleno apogeu do american way of life.
Além disso, cidades como Nova York foram, e ainda são, importantes pólos
difusores de valores culturais e comportamentais contidos nas mais diversas
informações, que circulam principalmente em propagandas comerciais e
notícias jornalísticas ao redor do mundo. Isto se deve a sua magnitude
metropolitana, cuja difusão decorrente da evolução dos meios de comunicação,
cada vez mais marcados pela tecnologia, aumentou a profusão de informações
e passou a atingir diferentes partes do planeta com intensidade e frequência
crescentes. Dessa forma, Nova York torna-se uma metrópole em constante
7
Falamos em graffitis urbanos contemporâneos, de acordo com Knauss (2001), pois acreditamos
que esta prática está presente desde as sociedades primitivas, como fica evidente nas próprias pinturas
rupestres. A periodização desta prática faz-se necessária como forma de delimitar sua relevância no
contexto atual.
35
comunicação com o resto do mundo, através das mídias impressas e
televisivas, do cinema, do rádio e mais recentemente a internet, podendo ser
assim caracterizada como uma metrópole global que está no centro dessa rede
técnica e informacional, cuja influência se faz presente nos hábitos (de
consumo, principalmente) e comportamentos, conforme nos aponta Milton
Santos (1996).
No final dos anos 60 a contracultura, um movimento de proporções
internacionais, atinge não apenas os EUA, mas todo o Ocidente com seus
valores e hábitos culturais. Originada de um contexto marcado pela Guerra
Fria, a contracultura questionava, entre outras questões, os preceitos desse
estilo de vida americano, mas que poderia muito bem ser europeu ou de uma
elite de um país subdesenvolvido. O que estava em questão eram
reivindicações políticas de grupos que até então não eram contemplados, mas
principalmente subalternizados, por esse estilo de vida. Essas parcelas da
população reivindicavam liberdade de expressão, mais direitos às mulheres,
negros, jovens e homossexuais. Da contracultura também surgiram as bases
para o movimento ecológico, entre outros. O embate político e ideológico desse
tempo evidenciou-se, entre outros eventos de semelhante magnitude, a partir
das revoltas estudantis de maio de 1968 na França.
Esse movimento é muito significativo para a compreensão da difusão
dos graffitis. Os estudantes, jovens em sua maioria, movidos por utopias
revolucionárias, imprimiam uma série de ações, desde passeatas e atos
públicos nas ruas de metrópoles como Paris, da mesma forma que praticavam
ações diretas na cidade, como pichar palavras de ordem ou apenas manifestos
mais subjetivos nos muros de prédios públicos, universidades e até de
propriedades privadas (GITAHY, 1999). Obviamente, os revoltosos foram
reprimidos por essas ações diante da ação policial do Estado, que por vezes
agiu de forma extremamente violenta.
Os eventos ocorridos em maio de 68 na França mostraram ao resto do
mundo, desde então, como era possível realizar um novo uso político do
espaço, nesse caso em especial o das cidades. As áreas de grande circulação
de pessoas eram preferencialmente usadas como mídias pelos manifestantes,
pois teriam uma visibilidade mais ampla de suas mensagens. Tornar público
mensagens de protesto ia contra a ordem social estabelecida na sociedade
36
francesa de utilização da paisagem nas cidades
8
. As cidades tiveram sua
ordem transgredida quando suas paisagens serviram de ferramenta de protesto
para grupos descontentes e revoltosos, como os estudantes franceses.
Decorrente dessa transgressão da ordem, imediatamente observou-se uma
repressão policial contra esses grupos, inibindo sua utilização política do
espaço urbano. A conscientização de um uso político do espaço por segmentos
rebeldes da sociedade havia se tornado um problema para aqueles que tinham
interesse em manter a ordem social dentro de um status quo. Dessa forma,
Jean Baudrillard nos aponta:
Sem dúvida, unicamente os graffitis e os cartazes de maio de
68 na França se desenvolveram de uma outra forma, atacando
o próprio suporte, conduzindo os muros a uma mobilidade
selvagem, a uma instantaneidade da inscrição que equivalia a
aboli-los. (BRAUDRILLARD, 1976: 3)
Nesse cenário cultural, marcado pelos fundamentos ideológicos da
contracultura, a cidade de Nova York não estava distante de um contexto social
e urbano marcado pelas insatisfações coletivas. Não é surpresa alguma saber
que uma grande parcela de imigrantes oriundos de outros continentes fosse
influenciada pela mobilização e pelo apelo político desse tempo. Uma das mais
politizadas reivindicações estava na conquista da ampliação dos direitos civis
dos afrodescendentes nos EUA como um todo. Tais quais os imigrantes latinos
e asiáticos, os afrodescendentes (negros em sua maioria) americanos eram
cidadãos com direitos limitados, apesar de serem imigrantes quase tão antigos
quanto os europeus na América. Isso lhes impunha uma consequente limitação
espacial e de circulação. Nas cidades eram proibidos de frequentar espaços
públicos ou transportes coletivos de forma simultânea com os descendentes de
europeus, sendo estes majoritariamente brancos em sua característica
fenotípica.
Líderes carismáticos como Martin Luther King e Malcom X foram
grandes idealizadores e fomentadores dessa luta, que, durante os anos 60,
atingiu maiores proporções como ações diretas e confrontos armados,
duramente reprimidos pelo Estado policial. É certo que essas mobilizações,
bem como tantas desse período, iam contra os interesses das elites que
8
Assim como no restante da Europa, nos EUA, na América Latina era igualmente proibido.
37
detinham o poder institucional e econômico. Movimentos organizados como os
Panteras Negras
9
, devido ao risco que esse grupo representava para a elite e a
ordem social estabelecida, foram postos na clandestinidade e duramente
reprimidos. É fato que as conquistas sociais adquiridas desde então foram
significativas, mesmo que até os dias de hoje tenham sido lentas ou ainda
insuficientes.
Uma das maiores virtudes de todo esse contexto de lutas políticas e
raciais foi sem dúvida a consciência e valorização de uma identidade, com
características culturais e históricas até então subalternizadas diante da
discriminação racial, étnica e econômica (OLIVEIRA, 2006).
As conquistas adquiridas a partir dos confrontos sociais dos anos 60,
fomentadas principalmente por movimentos sociais a favor da ampliação dos
direitos civis dos negros nos EUA, reverteram-se no início dos anos 70 para
uma forma de revalorização da cultura, mas esse processo não deve ser
entendido de forma tão simples. Longe de existir uma unidade ideológica e
principalmente articulada politicamente em torno da questão racial nos
chamados guetos nova-iorquinos, havia, ao contrário, muita rivalidade entre
grupos étnicos e gangues
10
nos bairros ou localidades das cidades.
Através de uma política econômica recessiva e de corte dos gastos
públicos, o Estado inicia a aniquilação do Welfare State
11
nos EUA,
concomitantemente a um processo de desindustrialização que passa a se
observar nas metrópoles dos principais países mais industrializados. Esse
fenômeno atinge de forma brutal muitas famílias e trabalhadores dos centros
industriais, como Nova York, que perdem seus empregos, agravando uma crise
9
Huey P. Newton e Bobby Seale, respectivamente 24 e 30 anos de idade, fundaram o Partido dos
Panteras Negras para Auto-Defesa (BPP) em 15 de outubro de 1966, em Oakland, Califórnia, porque
queriam uma organização que contribuísse concretamente para o soerguimento social, econômico e
político dos negros. Segundo afirmavam, o então recente movimento dos direitos civis havia fracassado
no tratamento das necessidades das massas negras. O BPP representou a organização política afro-
americana mais importante e radical do movimento do poder negro do final da década de 60 e início dos
anos 70, com seções instituídas em vários estados e uma representação internacional na Argélia, liderada
por Eldridge e Kathleen Cleaver. (Pinkney, 1976, 1991) No seu ápice, os Panteras Negras eram a linha de
frente de uma luta multiaxial e transnacional por transformações sociais fundamentais nos Estados Unidos
e no exterior (JOHNSON, 2002).
10
Sobre estudos e definições de gangues ver Abramovay et al. (1999: 92)
11
Estado de Bem-Estar Social, política de apoio e fomento às condições tidas como básicas dentro
de um desenvolvimento capitalista de um Estado para com a sua população.
38
financeira e social que seria observada durante praticamente toda a década de
1970. Segundo Tricia Rose:
As condições da sociedade pós-industrial tiveram um impacto
profundo sobre as comunidades negras e hispânicas. A
redução dos fundos federais e da oferta de habitação a preços
acessíveis deslocou a mão-de-obra da produção industrial para
serviços corporativos e de informação (...). Isso significou que a
população imigrante e os habitantes mais pobres das cidades
pagaram um preço altíssimo pela desindustrialização e pela
reestruturação da economia. (ROSE, 1997: 199)
A autora se refere especialmente aos imigrantes latinoamericanos e aos
afrodescendentes, que eram sem dúvida a principal mão-de-obra utilizada nas
fábricas. Juntamente com os cortes das empresas em seu quadro de
funcionários, o governo iniciava um extenso projeto de cortes com os gastos
públicos, especialmente em saúde e investimentos sociais. Todo esse
processo, sem dúvida, elevou os níveis de violência nas cidades. Tornava-se
necessário uma medida de coerção para evitar novos ativismos sociais, como
aqueles presentes na cada anterior. A ação policial se intensificou nos
chamados guetos de Nova York, ou seja, nos locais onde residiam grandes
parcelas de latinos e afrodescendentes então desempregados. Bairros como o
Bronx passaram a ser estigmatizados como violentos e perigosos, pois lá
estavam os principais suspeitos das ações contra a ordem pública do Estado:
negros, imigrantes e desempregados, entre outros (WACQUANT, 2001).
Fica evidente a intensificação de uma política de controle social e
territorial nessas partes da cidade, estereotipando seus habitantes como
criminosos em potencial. Não por acaso o principal contingente de afro-
descendentes e de imigrantes latinos estava nesses guetos. Devido a essa
característica da distribuição da população urbana nos EUA, passa a existir
uma associação direta de negros e imigrantes aos guetos e a tudo que era
considerado negativo pelos valores hegemônicos da sociedade. Por isso, quem
habitava os guetos logo era identificado como marginal ou suspeito de uma
possível atitude transgressora da ordem. O gueto era tido como um lugar
insalubre e de alta periculosidade. Dessa forma tudo o que se passava nesses
limites da cidade carregava consigo um estigma negativo diante do racismo e
da intolerância que pautavam os valores hegemônicos da sociedade
americana. Toda a construção dessa imagem dos afrodescendentes e dos
39
latinos (entre outros imigrantes) fora fortemente respaldada pela temática do
―underclass‖, discutida por Loic Wacquant (2001) como uma forma de afirmar
uma hegemonia racial branca nos EUA. Segundo uma análise de Oliveira
sobre esta temática, podemos observar que:
A visão do underclass buscava afirmar uma sociedade de
hegemonia racial branca que estava sendo questionada, não
só com o aumento das reivindicações dos negros (a construção
do movimento de direitos civis, por exemplo) e de organizações
negras estruturadas em todo o país, como os Panteras Negras
e o movimento Black Power, mas também com o crescente
número de migrantes pobres do Caribe, da América Central e
do Sul, os chamados latinos (mexicanos, porto-riquenhos,
jamaicanos, haitianos, um pequeno número de brasileiros) que
iam para os EUA, eram segregados, marginalizados e
subalternizados nos guetos das grandes cidades americanas.
(OLIVEIRA, 2006: 47)
Mas o que corroborava de forma significativa a construção dessa
imagem estereotipada do gueto e de seus habitantes era que as distintas
pessoas que traziam consigo os hábitos culturais decorrentes de sua origem
estavam longe de conviver em harmonia. Os valores e hábitos oriundos das
mais diversas partes do planeta, que ali haviam sido obrigados a conviver,
demonstravam muitas vezes uma indisposição para o diálogo e práticas
conciliatórias. Isto fica mais claro quando Oliveira aponta que:
A multiplicidade de culturas trazida pelas organizações negras
em diáspora nos guetos e dos migrantes latinos, em sua
maioria pobres, pouco se traduzia em encontro. Pelo contrio,
ganhava dimensão territorial de embate, expresso na guerra de
gangues. A temática do underclass se alimentava dos conflitos
de gangues para justificar suas propostas ideológicas.
(OLIVEIRA, 2006: 47)
As diferenças étnicas e culturais presentes nos guetos de Nova York
foram muitas vezes o estopim de combates, especialmente entre jovens, nos
quais a violência e a demonstração de força determinavam os espaços, ou
melhor, os territórios controlados. O que se destaca como elemento de
demarcação desses territórios serão as imagens e grafias pintadas nas
paredes, caracterizando as paisagens de ruas e vielas sob o domínio territorial
de determinadas gangues (ARCE, 1999). Não iremos aqui adentrar uma
conceituação mais precisa de gangues e galeras, como em Abramovay et
40
al.(1999), privilegiando uma análise a partir da demarcação territorial produzida
por esses grupos, evidenciadas plasticamente pelos graffitis.
Em seu estudo sobre algumas dessas demarcações territoriais em
cidades fronteiriças entre México e EUA, Arce (1999) atesta que esse processo
surge como uma forma de valorizar e proteger a identidade local, onde os
bairros ou parte deles teriam territorialidades bem definidas a partir de grupos
residentes. Esses grupos são identificados pelo autor e denominados de
cholos. Dessa forma, Arce aponta que:
O cholo também deu um amplo desenvolvimento ao uso do
grafite como importante recurso de identidade. O Placazo ou
grafite do cholo refere-se principalmente ao nome do jovem ou
ao de seu bairro, por isso se converte em uma espécie de
marco que define os limites do poder grupal.
(...) Todavia, o placazo também se converte em epitáfio de
bairro em sua dimensão de detonador de diversos conflitos
gestados quando algum cholo risca o placazo de outro.
(...) O placazo alude a uma realidade dos jovens nas zonas
populares, definida pela busca de demarcação dos limites de
identificação/ diferenciação. (ARCE, 1999: 124)
Tal qual a realidade apontada por Arce nas cidades fronteiriças, o autor
aponta que em Nova York, no mesmo período, a demarcação territorial se dava
de maneira semelhante. Porém, a questão da multiplicidade de culturas
imigrantes que habitavam localidades próximas nos guetos acirrava os
embates territoriais, aumentando muitas vezes a rivalidade e a violência entre
membros de uma mesma etnia.
O surgimento da cultura hip-hop, no início dos anos 70, demonstra entre
outras questões a necessidade de reduzir esses embates inter-étnicos que
eram ao mesmo tempo um fator alienante e que enfraquecia a própria luta por
direitos civis mais igualitários. Oliveira nos apresenta este contexto quando
afirma:
O hip-hop emergirá exatamente neste contexto de conflitos de
gangues nos guetos americanos e de constituição de formas
de luta dos negros em diáspora. Culturas distintas e
fragmentadas (imigrantes porto-riquenhos, jamaicanos,
mexicanos, haitianos, negros americanos com uma forte
discussão sobre sua origem afro, brasileiros capoeiristas
12
)
buscando romper com os conflitos de gangues, com as
representações espaciais construídas pela temática do
12
Informação passada pelo antropólogo Júlio César de Tavares.
41
underclass e criar práticas sociais de encontro e da celebração
pela cultura, irão forjar os primeiros elementos do hip-hop.
(OLIVEIRA, 2006: 47)
O DJ e produtor musical Afrika Bambaata, um dos criadores e principais
articuladores do hip-hop, irá definir o graffiti como a expressão plástica
característica dessa cultura, bem como o break (a dança) e o rap (a poesia e a
rima) que também serão elementos constituintes, além dos ritmos executados
pelos disc jokeys (DJ’s) no âmbito da música (ARCE, 1999; RODRIGUES,
2003; OLIVEIRA, 2006). Segundo o próprio Bambaata, a união desses
elementos possibilitaria a consciência de auto-organização e cooperação entre
os jovens dos guetos, sendo assim denominada de Zulu Nation
13
. Dessa forma,
foram deslocados os conflitos territoriais de gangues que faziam graffitis,
praticavam a dança, o basquetebol, entre outras práticas identificadas como
culturas de rua, para as disputas no plano artístico, simbolicamente
manifestadas nas ruas. Daí a importância dos espaços públicos para esses
grupos. A valorização da cultura local e do talento artístico desenvolvido pelos
jovens dançarinos de break (b-boys), grafiteiros e poetas/rimadores (rappers)
seria uma forma de reduzir a violência que estava presente no dia-a-dia dessas
pessoas. Simbolicamente resolviam-se as diferenças através de batalhas
artísticas de dança, de rima e de graffiti. Como aponta Arce:
Essa nova dimensão das batalhas urbanas teve uma
importante participação na atenuação dos níveis de violência
entre esses setores jovens, à medida que as rivalidades são
canalizadas para o terreno simbólico, o que é um dos aspectos
pouco avaliados e submetidos à reflexão. Desse modo o
fenômeno do grafite diluiu, em alguns casos, a força das
identidades cotidianas fortemente ancoradas na defesa dos
limites do bairro, como sucedeu com o cholismo, pois eles
vivem na cidade de uma maneira mais ampla. (ARCE, 1999:
130)
O graffiti, que antes representava as distintas legendas que demarcavam
as repartições territoriais dos grupos, passou a ser empregado como uma
linguagem que representava a união e a cooperação, definindo não apenas um
grupo ou outro, mas a diversidade existente nos guetos
14
. Em Nova York, a
13
No Brasil esses grupos de Hip-Hop auto-organizados serão chamados de Posses (Araújo, 2006).
14
Esta mudança de comportamento não ocorreu de forma homogênea. O Hip-Hop difunde-se
relativamente rápido pelos guetos, mas as disputas e diferenças continuaram a existir, já que aderir a essa
42
cultura do graffiti (pré-existente na forma de tags) casa-se com o hip-hop, e o
primeiro passa a caracterizar uma estética visual do segundo.
Bambaata caracterizou o graffiti como sendo uma marca visual do hip-
hop devido à imagem existente dessas grafias que estavam ligadas à
subversão, como fora na França em 1968, e a uma estética presente nas ruas
de Nova York.
No início dos anos 70, a paisagem da cidade de Nova York, além de ser
marcada pela densa urbanização, começava a ser grafada por inscrições que
poderiam ser observadas em muros, viadutos, postes e pelas ruas em geral.
Essa manifestação pictórica, diferentemente das inscrições políticas feitas na
França poucos anos antes, apresentava outro caráter simbólico. Estava ligada
a uma prática de assinar pseudônimos (nomes ou apelidos seguidos pelo
número de sua rua) espalhados por diversas partes da cidade. Essas
assinaturas ficariam conhecidas pela denominação de tags. Diferente da
prática de demarcação territorial que assinalava as disputas étnico/raciais
dentro dos guetos, essa prática tinha como proposta a difusão das assinaturas
(tags) por toda a cidade (DE DIEGO, 2000). É importante notar que os
grafiteiros poderiam ou não ser moradores dos bairros identificados como
guetos. O que torna mais relevante esta análise é que esse graffiti era uma
forma de afirmar a existência, muitas vezes de uma maneira individual, dentro
de uma cidade marcada pela impessoalidade, o dinamismo, o cosmopolitismo
e o consumo. Cabe ressaltar que, diferentemente dos movimentos organizados
e ideologicamente mobilizadores desse tempo, essa onda inicial de graffitis que
ganha maior destaque em Nova York não tinha maiores contornos
reivindicatórios ou revolucionários.
Paulo Knauss aponta em seu estudo sobre os graffitis urbanos
contemporâneos que:
Com o recurso da lata de jato de tinta portátil, o movimento do
grafite contemporâneo lançou suas bases mais duradouras a
partir de Nova Iorque, EUA. A mais famosa referência na
imprensa data do verão de 1971. A inscrição marcante foi a de
TAKI 138. Tratava-se de criação de um jovem de origem grega,
chamado Demetrius, e que tinha, então, 17 anos,
desempregado, e que usava o codinome seguido de um
número que correspondia ao número de sua casa. A inscrição
nova forma de pensar implicava mudanças de conceitos e hábitos ligados à tolerância étnica, cultural,
religiosa, entre outras, que até hoje ainda não foram devidamente apaziguadas nos EUA.
43
grafitesca chamou a atenção pela recorrência em todas as
partes da cidade. (KNAUSS, 2001: 335)
De acordo com as palavras contidas no ensaio Kool Killer, de
Baudrillard, algumas características do graffiti nova-iorquino ficam mais
detalhadas, complementando a citação anterior:
A revolta radical, nestas condições, está inicialmente em dizer:
―Eu existo, eu sou tal, eu habito esta ou aquela rua, eu vivo
aqui e agora‖. Mas isso ainda seria apenas a revolta da
identidade: combater o anonimato reivindicando um nome e
uma realidade próprios. Os graffitis vão mais longe: ao
anonimato eles não opõem nomes, mas sim pseudônimos.
Eles não buscam sair da combinatória para tentar reconquistar
uma identidade de todo modo impossível, mas para voltar a
indeterminação contra o sistema transformar a
indeterminação em exterminação. (BAUDRILLARD, 1976: 2)
O jovem Taki 138 fora considerado então um marginal, cuja motivação
para fazer os graffitis, segundo a imprensa e a polícia, era o vandalismo. Uma
onda de graffitis proliferou pela paisagem urbana de Nova York desde fins dos
anos 60 (GITAHY, 1999; DE DIEGO, 2000; KNAUSS, 2001). Assim como Taki
138, uma rede de grafiteiros passou a ser identificada e perseguida pela
polícia. Foi estabelecida uma tentativa de coibir tal prática pelo governo da
cidade, que investiria quantias consideráveis nessa empreitada para reduzir os
graffitis nos anos subsequentes. Em vão! O número de prisões e
especialmente de punições não foi suficiente para reduzir a ação dos
grafiteiros, que em poucos anos descobriram um novo espaço para difundir
suas assinaturas os metrôs.
No princípio, o movimento concentrou-se nos suportes fixos
muros e fachadas. A inovação veio no ano de 1973 com o
primeiro vagão de metrô grafitado. A parte exterior dos trens
passou, então, a ser o foco mais valorizado pelas ações dos
grafiteiros mais hábeis da época (...). Além disso, a imagem
deixava de ser fixa, podendo ser admirada em movimento e na
continuidade do comboio (...) (KNAUS, 2001: 336)
O graffiti passa a ser identificado, especialmente pelas informações
divulgadas na mídia, como uma ação marginal. Atribuíam-se essas ações
diretamente aos imigrantes e afrodescendentes dos guetos. Esta visão está
presente no próprio texto de Baudrillard (1976), ao afirmar de forma
determinante que os graffitis seriam uma obra de jovens negros e porto-
44
riquenhos. Em uma reportagem intitulada ―A arte da pichação‖
15
, publicada no
Segundo Caderno do jornal O Globo, destaca-se o seguinte trecho:
No entanto, quando o grafite surgiu no metrô e nas ruas de
Nova York, era transgressão real. Documentos na exposição
revelam como o movimento enfrentou resistências da
sociedade. E como, a exemplo dos pichadores paulistas de
hoje, a polícia os perseguiu. Num documento destinado à
corporação, escrito nos anos 1970, a polícia de Nova York
descreve o perfil do que eles chamavam de common offender
(malfeitor comum): ―sexo: masculino; raça: negro, porto-
riquenho, outro (nesta ordem); idade: variável,
predominantemente de 13 a 16 anos; roupa: usam longos
casacos quando faz frio; ocupação: estudantes, de baixo nível
social e econômico; modus operandi: agem normalmente em
pequenos grupos, de ts a seis adolescentes; horário: das 16h
às 2h. Em 1974, a polícia de Nova York registrou seu maior
número de grafiteiros detidos: 1.552. (Segundo Caderno, O
Globo, 26 de agosto de 2009: 01)
Apesar do relatório claramente preconceituoso e racista da policia
novaiorquina, não dúvida de que os jovens imigrantes eram responsáveis
pela elaboração de parte dessas grafias. Porém, devemos ressaltar que tal
prática poderia ser desenvolvida por diversos setores da sociedade, que o
fenômeno não era exclusivamente de origem imigrante, mas estava ligado a
uma necessidade de auto-afirmação de uma grande quantidade de jovens
daquele espaço urbano, independentemente da sua origem étnica ou social.
De acordo com o texto de Arce (1999: 128), “o grafite é uma meio de obter
fama e reconhecimento, motivos fundamentais que levam à sua elaboração”.
A partir de então, o graffiti passou a ser identificado pelos setores
hegemônicos da sociedade como uma questão de desordem urbana que
emergia exclusivamente dessas porções da cidade tidas como insalubres e
degradadas, justificando muitas vezes a ação violenta e repressiva da polícia.
Knauss ainda relata:
Importa é que a partir da primavera de 1972 a imprensa de
Nova York começou a denunciar o caráter predatório da ação
grafiteira, convertendo-se em uma questão política da cidade.
(...) O prefeito anunciou um plano de 24 milhões de dólares de
prevenção do grafite. Evidentemente, a essa altura, o grafite
tinha se tornado uma ameaça pública à sociedade urbana.
(KNAUS, 2001: 336)
15
Os dados divulgados na reportagem estão presentes na recente exposição (agosto de 2009)
realizada na Fundação Cartier, em Paris, intitulada “Né dans la rue – Graffiti”.
45
Desta forma a relação do graffiti com o hip-hop, originada no contexto da
Nova York dos anos 70, intensificou-se. Afinal, apesar de terem origens
distintas, foram movimentos contemporâneos, discriminados como
pertencentes a um determinado grupo étnico/racial cuja atribuição esteve
ligada ao vandalismo, à degradação e à revolta popular. O graffiti tornou-se
uma ferramenta política de intervenção urbana, apesar de seu uso não estar
vinculado exclusivamente a questões dessa natureza. Isto ficará mais evidente
na distinção que é feita, especialmente no Brasil, entre pichação e graffiti, que
será discutida mais adiante.
Apesar dos empenhos governamentais, do preconceito e da proibição
legal, o graffiti, desde então, se mantém vivo e presente na paisagem urbana
de Nova York. Algumas características foram sendo modificadas, como os
adornos e as imagens mais complexas, em lugar de assinaturas simples,
multiplicando a diversidade de estilos (DE DIEGO, 2000).
O graffiti não está exclusivamente ligado ao hip-hop, nos EUA ou em
qualquer outra cidade do mundo ou seja, sua prática pode ser realizada
independentemente da vinculação que se tenha com a cultura hip-hop. Porém,
é inegável o valor de politização que o hip-hop atribuiu ao graffiti, responsável
inclusive pela redução do número de conflitos territoriais entre gangues/galeras
(ABRAMOVAY et al., 1999; ARCE, 1999; OLIVEIRA, 2006). A partir desse
breve histórico observa-se que o graffiti, originado de uma cultura de auto-
afirmação e praticado por grupos muitas vezes desprovidos de alguma
ideologia ou motivação política, ou mesmo derivado da rivalidade existente
entre jovens imigrantes, passou a funcionar também como uma ferramenta de
conscientização e de uso político do espaço por grupos subalternizados nos
EUA. Pouco tempo após o surgimento da cultura dos graffitis e tags em Nova
York, grafismos de natureza semelhante passaram a ser feitos nas paisagens
urbanas de cidades como Londres, Paris, Barcelona, Buenos Aires, México,
São Paulo e Rio de Janeiro, entre muitas outras.
46
1.2. O graffiti no Brasil
Esta seção tem como objetivo fazer uma breve contextualização da
realidade política e social brasileira dos anos 60 até nossos dias, em busca de
uma análise da emergência do graffiti, com destaque para a cidade do Rio de
Janeiro. Traçados alguns paralelos do caso brasileiro com o que se deu nos
EUA em períodos aproximados, vê-se a necessidade de destacar a relação do
graffiti com a pichação e de ambos com a realidade urbana em questão. A
relevância desta análise está em apontar as condições de onde e como o
graffiti se desenvolveu no Rio de Janeiro, para se chegar até as condições
atuais de como esta prática se manifesta pela cidade. Em uma caracterização
mais ampla a respeito dos graffitis em algumas metrópoles no Brasil, na qual
enfatiza o Rio de Janeiro, Souza aponta que:
O Graffiti brasileiro contemporâneo é um híbrido entre uma
estética tradicional da arte de rua, que remonta os pioneiros da
década de 1980 e que está relacionado à movimentos das
artes plásticas situados no século XXexemplo do muralismo
do mexicano Diego Rivera e da arte pop de Andy Warhol), e o
hip-hop graffiti, de matriz novaiorquina. A década de 1990
marca o período de expansão da estética hip-hop ao redor do
mundo. Os temas pintados, assim como nas letras dos raps,
remetem à desigualdade social e à questão racial.
Rapidamente o estilo aportou no Brasil, encontrando nas
grandes cidades material de sobra para composição temática e
para o desenvolvimento de formas próprias na representação
plástica, motivadas principalmente pela questão dos materiais
empreendidos. Os altos preços das tintas spray impulsionaram
a utilização de tinta látex e rolinhos pelos artistas no
preenchimento dos contornos desenhados em tinta spray,
proporcionados pela mobilidade das latas. Surge desta forma
uma modalidade singular de graffiti, conhecida na rede
internacional de artistas de rua como brazilian graffiti. (SOUZA,
2007: 70)
Dividimos esta seção em três partes a fim de tornar mais clara, e não
menos profunda, nossa explicação.
47
1.2.1. O graffiti marginal
No Brasil dos anos 60, assim como em outros países da América Latina,
vivia-se sob um governo ditatorial comandado por militares apoiados pelas
elites econômicas. O rico momento cultural, derivado de ideologias conflitantes
com os interesses políticos e econômicos dos segmentos sociais que estavam
no comando da ditadura no Brasil, criou um grande embate na sociedade,
evidenciado pelas amplas reivindicações e mobilizações poticas desse tempo
(GOHN, 1997).
No Rio de Janeiro, como em outras importantes cidades brasileiras,
falava-se em guerrilha urbana, cujo embate se dava de forma mais clara entre
jovens estudantes, organizados em movimentos e partidos políticos
clandestinos, e os órgãos de repressão do Estado. O ano de 1968 tornou-se
um marco, devido ao acirramento da coerção ditatorial promovido pelo governo
militar, ampliando ainda mais os níveis do conflito. A mídia jornalística e
televisiva, quando não estava apoiando o governo, em busca de seus próprios
interesses, era duramente reprimida em caso de desobediência em relação à
censura da veiculação das notícias que relatavam a verdadeira situação social
pela qual o país transitava. Pelas ruas de cidades como o Rio de Janeiro, esse
momento conturbado encoberto pela censura e a repressão era pouco
difundido, exceto por algumas inscrições em muros, fachadas de prédios e
outras construções, que evidenciavam algumas reivindicações dos grupos
manifestantes. Essas inscrições, que se mantinham na paisagem por um prazo
de tempo muito curto, tinham um caráter político e contestatório, inspirados nas
mobilizações estudantis do recente maio de 1968, na França. De acordo com
Knauss:
(...) o recurso das frases de efeito colocou a produção inicial de
grafite urbano no Brasil próximo da tradição parisiense de maio
de 68. Em Nova York, as frases-idéia também existiram,
aparecendo especialmente nos vagões de trem, mas nunca
dissociadas da marca logotípica que era o objeto reprodutível
da ação. No Brasil, no entanto, a frase tinha a mesma função
da assinatura do grafiteiro novaiorquino, sendo repetida
infinitamente. (KNAUSS, 2001: 340)
As inscrições de caráter político no Rio de Janeiro começam a ser
identificadas e qualificadas segundo a utilização do próprio material. A
48
pichação ficou conhecida como a prática de se fazer inscrições repetidamente
sobre diferentes suportes urbanos dispostos em espaços públicos e privados,
fossem muros, fachadas e outros, com o objetivo de se atingir uma ampla
visibilidade de frases e/ou assinaturas na paisagem. Dessa forma aponta-se:
Nesse momento, verificava o conceito de pichação para
identificar o grafite urbano. Trata-se de uma referência à
técnica de pintar com piche e anterior à lata de tinta em jato,
spraycan. A utilização da tinta a jato conduz, no entanto, a
soluções muito diferenciadas do piche, que não permite obter
tons matizados e se restringe ao preto de manchas largas
devido aos grandes pincéis empregados e à espessura densa
do piche. (ibidem)
Essas inscrições funcionaram durante a ditadura como um importante
instrumento de denúncia e ferramenta política. Ao longo dos anos 70, a
paisagem urbana do Rio de Janeiro passou a ser disputada por inscrições que
não tinham diretamente um atributo político em sua manifestação. O que se
verifica a partir dessa década é que, além da difusão de pichações políticas,
começaram a surgir outras pichações que apresentavam frases poéticas ou
inspiradas na indústria cultural, além das assinaturas que identificavam
apelidos ou pseudônimos. (GITAHY, 1999) Essas pichações estavam
desvinculadas das lutas políticas, mas seguiam a lógica de repetição na
paisagem da cidade. Apesar da desvinculação com as ações políticas, foram
igualmente taxadas como vandalismo e subversão, cuja coibição se legitimava
tendo como justificativa uma dita depredação estética do patrimônio público e
privado. O advento da tinta spray no Brasil tornou mais eficiente e rápida as
inscrições em muros, fachadas de edifícios e monumentos, aumentando a
reprodutibilidade e fixação das pichações. Knauss ainda aponta que:
O conceito de pichação, então, serviu como um rótulo genérico
que percorria expressões variadas como as inscrições políticas
ou poéticas, incluindo as do tipo logotípica à moda nova-
iorquina. (...) O que mais chamou a atenção durante a década
de 1970, especialmente na sua segunda metade, foram as
inscrições de sentido político que se utilizaram largamente da
lata de jato de tinta ao longo da luta pela redemocratização no
Brasil e em defesa do fim do regime militar. (op. cit.: 341)
49
1.2.2. A crise de utopias: A pichação e o hip-hop no Brasil
Ao longo da década de 1980, o Brasil passa por importantes
transformações políticas, econômicas e culturais.
No plano político, o processo de redemocratização iniciado no final da
década anterior ganha maior intensidade, que permite paulatinamente uma
abertura para atuações e mobilizações políticas. Partidos e organizações
perseguidos pela ditadura militar passaram a retomar suas ações no plano
institucional juntamente com a reconquista da liberdade de expressão. De que
haviam sido privados artistas, intelectuais e as mídias nos anos anteriores.
Porém, o que de fato passou a ser notado foi uma crescente alienação política
em amplos segmentos da sociedade, paralelamente a novas formas de
organização dos movimentos sociais reivindicatórios. (GOHN, 1997)
No cenário internacional a forte influência revolucionária e socialista que
varria o mundo, e que inspirou muitas organizações e partidos contra a ditadura
no Brasil, passou a ser diluída devido à crise política e econômica pela qual
aquela grande potência transitava. Este fato culminou em poucos anos com a
decadência e posterior dissolução da União Soviética, o que provocou uma
crise nas utopias das esquerdas que vinculavam o socialismo, mesmo o
questionável modelo soviético, como uma ideologia que ainda teria condições
de criar profundas transformações sociais.
Nessa década, o Brasil mergulha em uma grave crise econômica,
decorrente, entre outros fatores, dos excessivos gastos em obras e
investimentos feitos pelos governos militares mediante empréstimos
internacionais. Esses gastos multiplicaram a dívida externa do país, que, assim
como outros países capitalistas, passava por um momento de recessão
econômica, com desemprego, inflação, desvalorização monetária e
endividamento público.
A crise de valores e utopias que se apresentava na sociedade, a
despolitização da educação e alienação pela cultura de massa, mas
especialmente o agravamento das condições de habitação nas cidades
passam a gerar um novo tipo de insatisfação popular (GOHN, op. cit.). A crise
dos serviços públicos em hospitais e escolas e o aumento da miséria no campo
50
e nas cidades brasileiras estavam ligados à crise econômica, mas
especialmente ao desinteresse dos governos anteriores na resolução de
questões como reforma agrária, políticas de habitação e serviços públicos de
qualidade nas grandes cidades. Países como EUA e Reino Unido
implementavam políticas neoliberais, que reduziam os gastos públicos e
aumentavam o poder e a rentabilidade de bancos e empresas em seus
territórios e no resto do mundo. Em pouco tempo o Brasil, entre vários outros
países latinoamericanos, passou a adotar tal ideário, tendo como alegação a
suposta falência da administração e o comprometimento dos cofres públicos. A
privatização de empresas e serviços públicos passou a ser apontada como a
solução para a solução desses problemas.
Em metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo o que se observava
era a degradação da qualidade da vida urbana, principalmente a partir da
alegação da crise e dos cortes nos gastos públicos pelo governo. A população
urbana havia se multiplicado nas últimas décadas, devido ao êxodo rural e ao
próprio crescimento vegetativo das cidades. Mas foram as habitações em áreas
de difícil acesso e com pouca ou nenhuma infraestrutura básica que
proliferaram de forma significativa nas duas cidades, entre outras metrópoles. A
degradação das condições de vida em favelas e periferias dos grandes centros
urbanos esteve intimamente ligada ao desemprego e ao empobrecimento
profundo dessa população. As possibilidades de lazer e diversão eram
inexistentes (ABRAMOVAY et. al., 1999), assim como a desqualificação do
ensino nas escolas públicas tornou-se uma questão latente. Tudo isso passou
a fomentar o aumento dos níveis de violência, que se espalhava pelas duas
cidades. A providência tomada imediatamente pela administração pública foi
aumentar a ação policial sobre as favelas e periferias, consideradas as
principais áreas de risco. Os conflitos pareciam ter uma única procedência.
Nota-se aqui uma semelhança com o discurso do underclass sobre os guetos
americanos nos anos 70 (WACQUANT, 2001).
A ação da polícia, na grande maioria dos casos, se deu de forma
impositiva e desrespeitosa, caracterizada pela força e coerção. Por vezes a
polícia agiu de forma extrema, imbuída de preconceitos racistas e banalizando
a própria vida, o que caracterizou episódios marcantes como as chacinas da
Candelária e de Vigário Geral, no início dos anos 90, no Rio de Janeiro.
51
Nesse mesmo momento o tráfico de drogas ganha uma expressão
significativa em toda a sociedade brasileira. O país passa a fazer parte de uma
rota internacional do tráfico ilegal de entorpecentes. A produção, concentrada
por grandes cartéis do crime organizado, estava concentrada em países como
a Colômbia. Uma rede cada vez mais complexa atravessava a fronteira desse
país com o Brasil, onde a droga tomava o rumo das grandes metrópoles. No
Rio de Janeiro estabeleceu-se uma territorialização de comandos e facções de
traficantes justamente nas comunidades periféricas e nas favelas, que se
tornaram os principais pontos de consumo e venda de drogas a varejo
(SOUZA, 2008)
16
. A mão-de-obra passa a ser cada vez mais de jovens
desempregados e sem maiores expectativas de um futuro promissor, que
passaram a ver no tráfico uma possibilidade de lucros rápidos e aquisição de
status dentro de sua própria realidade social.
Numa análise sobre a conjuntura social brasileira dos anos 90, Gohn
afirma que:
O número de pessoas sem-teto, morando permanentemente
nas ruas, cresce assustadoramente. O número de crianças que
passam o dia nas ruas e praças passará a compor o cenário
das cidades de qualquer tamanho no país. A violência cresce
de forma generalizada, principalmente contra crianças (Adorno,
1993); os assaltos, furtos e sequestros passam a ser uma
rotina na vida de qualquer cidadão. (GOHN, 1997: 298)
É nesse momento que passam a se desenvolver no Brasil os primeiros
traços de mobilização e ativismo dotados de valores da cultura hip-hop. A
identificação das periferias e das favelas com os guetos americanos e toda a
questão da underclass ganham força. O hip-hop destaca-se inicialmente com
maior vitalidade nas periferias da cidade de São Paulo, difundindo-se
posteriormente por outras cidades brasileiras (RODRIGUES, 2003). Observa-
se a partir daí uma autovalorização da periferia como lugar de produção da
cultura e de uma identidade singular, numa tentativa de reduzir a discriminação
e o preconceito aos quais os habitantes dessas áreas estavam sujeitados. As
práticas conciliatórias presentes nos elementos do hip-hop (break, dj, rap e o
graffiti) e suas formas de organização (posses e rádios comunitárias) serviram
16
Souza (2008) aponta a formação de enclaves territoriais ilegais paralelamente a uma auto-
segregação das elites e classes médias, que demonstram um processo de fragmentação da cidade.
52
como formas de engajamento potico, geração de trabalho e renda e
valorização simbólica da cultura negra e nordestina, que estava territorializada
nas periferias urbanas (OLIVEIRA, 2006).
Dessa forma, Rodrigues aponta que:
A globalização do hip hop foi um processo que ocorreu de
forma rizomática e molecular (Deleuze e Guattari (1994) e
Guattari e Negri (1982)). De forma rizomática porque os
elementos do hip hop foram se globalizando de forma
descentralizada, ou seja, eles não partiam de um determinado
centro para chegar a outro lugar, não havia um centro de
comando; a globalização ocorreu de forma não hierárquica, ou
seja, nenhum dos elementos tinha uma posição superior aos
demais, não havia uma ordem de importância dada a priori. O
rizoma deve ser entendido como um processo onde as
multiplicidades (no caso o rap, o break, o graffiti, o dj, a luta
contra o racismo, contra a violência policial etc.) se conectam
umas às outras sem responder a um centro de comando ou a
ordens hierárquicas. De forma molecular porque a sua
constituição enquanto movimento social se faz de forma
imanente às singularidades dos grupos e dos indivíduos, não
uma figura transcendente que organiza o socius de forma
centralizada (como o Estado, os partidos ou o capital).
(RODRIGUES, 2003:32/33)
O hip-hop ganha destaque no cenário político brasileiro a partir dos anos
90 como um movimento de caráter urbano ligado a reivindicações e
mobilizações em torno de questões como racismo, violência, valorização da
cultura e da identidade, educação, lazer, entre outros. Assim:
Nesse processo, observa-se o desenvolvimento de outra
concepção na sociedade brasileira, a de cidadania, tratada
agora não apenas como categoria individual, mas também
coletiva. (...) O conflito social deixa de ser simplesmente
reprimido ou ignorado e passa a ser reconhecido, posto e
reposto continuamente em pauta nas agendas de negociações.
(...) Resgatam-se regras de civilidade e de reciprocidade ao se
reconhecer como detentores de direitos legítimos os novos
interlocutores: grupos de favelados, de mulheres discriminadas,
de crianças maltratadas, de ecologistas militantes, de sem-terra
e/ou sem-teto, entre outros. (GOHN, 1997: 302)
Os graffitis em São Paulo, que haviam passado por um processo de
valorização estética graças a artistas como Alex Vallauri e o grupo Tupi-não-,
distinguindo-se das pichações na década de 80 (GITAHY, 1999), agora
estavam novamente atrelados a uma causa política e funcionando como uma
53
forma de uso político do espaço por posses e grupos ligados ao hip-hop. De
forma semelhante ao que ocorrera em Nova Iorque alguns anos antes, o graffiti
passou a ser feito inicialmente nas periferias paulistanas, espalhando-se por
toda a cidade posteriormente. Esse graffiti estava diretamente ligado à estética
do hip-hop, que caracterizava não apenas as pinturas, mas um modo de se
vestir, de falar, de se comportar, frequentar determinadas festas ou locais, ouvir
um tipo de música, entre outras (ROCHA et al., 2001). As pichações
continuaram a se desenvolver em São Paulo, paralelamente aos graffitis de
hip-hop e desvinculadas de maiores projetos políticos, sendo interpretada na
maior parte das vezes como um ato de puro vandalismo. Atribui-se à pichação
a alienação e a falta de utopias políticas derivadas dos anos 80, o que perdura
até os nossos dias. Entre outros grafismos urbanos, o graffiti e a pichação
foram as mais expressivas formas de manifestação dessa natureza que
disputam até hoje a paisagem da cidade de São Paulo.
1.2.3. Graffiti e pichação no Rio de Janeiro
No Rio de Janeiro as pichações haviam se dissociado das
organizações políticas desde o processo de redemocratização no Brasil que
perdurou até os anos 80. A partir dessa década, a pichação passou a ser
identificada exclusivamente como um ato de vandalismo, cujo objetivo era a
agressão ao patrimônio público e à propriedade privada (KNAUSS, op. cit.).
Segundo Gitahy, mesmo a pichação estando desvinculada da luta política, sua
manifestação ainda detinha um valor político:
Não é por acaso que a pichação surge e se intensifica nos
grandes centros urbanos, mesmo nos países menos
desenvolvidos. A pichação aparece como uma das formas mais
suaves de dar vazão ao descontentamento e à falta de
expectativas. (...) É uma guerra feita com tinta, todos se
conhecem e se identificam pelo tipo de código pichado. Um
grande abaixo-assinado para a posteridade, no qual cada um
que participa deixa sua marca. (GITAHY, 1999: 24)
Desde então as pichações passaram a corresponder de forma
majoritária às assinaturas de indivíduos, também chamadas de tags. A crise de
valores culturais e ideológicos presente na última década do século XX tornou
54
a pichação uma prática comum a milhares de jovens de diferentes segmentos
sociais, cuja necessidade narcisista, o gosto pela aventura, a transgressão das
leis e o comportamento de uma geração de jovens cuja alienação política era
latente, fizeram multiplicar por todas as partes da cidade do Rio de Janeiro um
incontável número de tags. A sua relevância estava na reprodução exaustiva
dessas assinaturas. O valor de uma assinatura se dava em razão do local de
sua execução, de acordo com a atuação dos grupos. Pode-se falar em
gangues/galeras de pichadores que estavam ligadas a torcidas organizadas de
clubes de futebol ou moradores de um bairro ou comunidade (ARCE, 1999).
Apesar das rivalidades e de eventuais conflitos entre as gangues/galeras, não
havia um controle efetivo do território de cada um desses grupos. O objetivo
maior era a difusão máxima de assinaturas por toda parte, seguindo o modelo
novaiorquino de tags. Determinados monumentos ou prédios tornaram-se
visados pelos pichadores, em busca de visibilidade e aventura. Quanto maior a
vigília ou a exposição pública desses pontos, maior o apreço do pichador
17
.
Ainda no Rio de Janeiro, diferentemente das pichações promovidas
pelas gangues/galeras em grande parte da cidade, em geral naquilo que
genericamente se chama de ―asfalto‖, nas favelas a lógica da territorialização
prevalecia. A fragmentação do poder de controle do narcotráfico sobre as
favelas cariocas, pontos de venda a varejo, diversificou-se em facções. Assim,
estabeleceu-se uma forma de demarcação territorial mais explícita, distinta dos
pichadores do ―asfalto‖, na qual uma facção que exerce o controle sobre uma
comunidade picha suas iniciais nas imediações e acessos da favela. A sigla CV
(Comando Vermelho) ficou bastante popular a partir dos anos 80. Desde então
outras facções de narcotraficantes como Terceiro Comando (TCP), ou Amigo
dos Amigos (ADA) e, mais recentemente as próprias milícias paramilitares
(simbolizadas pelo morcego do herói Batman), passaram a adotar o mesmo
procedimento como forma de identificar sua territorialidade na paisagem das
áreas que controlam.
Em meados dos anos 90, em pleno processo de mundialização (ORTIZ,
2003), o hip-hop passa a ganhar mais vigor entre a juventude carioca,
17
Knauss (2001) aponta, entre outras, a ação dos pichadores Binho e Neto de São Paulo, que
vieram ao Rio de Janeiro para pichar suas assinaturas no Cristo Redentor no ano de 1991, gerando uma
grande polêmica noticiada pela mídia.
55
especialmente pela difusão de videoclipes em canais de televisão, veiculação
de músicas nas rádios, além de filmes e eventos destacando a cultura e a
estética do movimento, como atesta Rodrigues (2003). Embora a mídia tenha
privilegiado mais artistas internacionais ligados ao glamour do hip-hop, seu
papel de difusão dessa cultura é inegável. Apesar de receber forte influência do
movimento funk que se desenvolvia com grande intensidade em favelas e
subúrbios do Rio de Janeiro, o hip-hop aparece também como uma forma de
valorização estética, cultural e de identificação das periferias da cidade. A
grande diferença estava na politização do discurso.
O funk, muito mais ligado à festa e ao lazer, explorava temáticas que
iam da busca pela diversão, a dança, o prazer até a sexualidade e a violência
mais explícita
18
. o hip-hop priorizava uma abordagem mais crítica da
realidade nas músicas, o que gerava, entre seus adeptos, um comportamento
distinto dos funkeiros.
O engajamento político em causas sociais, que estavam ligadas à
violência policial e ao tráfico de drogas nas favelas, a difícil realidade da
pobreza, o racismo e até uma crítica à banalização da sexualidade nas letras e
no comportamento dos funkeiros fizeram do hip-hop uma cultura mais
politizada nas favelas e periferias do Rio de Janeiro.
São Gonçalo, município pertencente à região metropolitana do Rio de
Janeiro, é considerado, ainda nos anos 90, um local precursor do movimento
dos graffitis, que depois se espalhariam pela cidade do Rio de Janeiro. Como
decorrência da própria prática da pichação e influenciados pela emergência do
hip-hop, antigos pichadores como Ema, Eco e Akuma são considerados
pioneiros dessa prática, todos residentes da cidade de o Gonçalo. Alguns
registros desse momento ainda podem ser observados nas proximidades do
bairro de Alcântara. Em pouco tempo esses artistas passaram a fazer suas
grafias em alguns pontos do Rio de Janeiro, cujo ímpeto assemelhava-se ao
dos pichadores a difusão espacial e a disputa da paisagem. Cabe ressaltar
que, apesar da influência da cultura hip-hop, esses grafiteiros não estavam
exclusivamente ligados a esse movimento, e que o graffiti na cidade do Rio de
Janeiro ainda estava muito mais presente no ―asfalto‖ do que nas favelas. De
18
Estas duas temáticas tornaram-se mais presentes nas letras das músicas do funk nos anos 2000.
56
acordo com um fragmento da entrevista concedida por Eco à revista Graffiti‖,
ficam mais claros os elementos que compunham esse momento:
Quadro 2. Entrevista Eco - 2009.
Fonte: Eco, Grafiteiro do Rio de Janeiro.
Entrevista publicada na revista Graffiti n° 45
Na Zona Portuária do Rio de Janeiro foram feitos os primeiros graffitis da
cidade. A mesma área fora escolhida, anos antes, pelo profeta Gentileza.
Novamente, a escolha por esses locais estava ligada à sua ampla visibilidade
devido ao fluxo diário de pessoas e automóveis, e ao abandono da infra-
estrutura urbana que provocava a sua própria desvalorização imobiliária. O
graffiti, nesse momento, era considerado vandalismo tal qual a pichação. Por
Revista Graffiti: E como você chegou ao graffiti? Conte um pouco de sua
trajetória no início.
Eco: Na adolescência, por volta de 1993, comecei a ser influenciado pela
pichação. Meu primo era pichador em Niterói, seu codinome era Naso, que por
sua vez também era primo de um grande pichador das antigas de Niterói, o
Cruel, da Jovem (torcida organizada do Flamengo). Foi ele quem me ensinou a
caligrafia da pichação... A tinta sempre esteve presente nas veias da família. Eu,
jovem de classe média baixa, morador do bairro de Laranjal em São Gonçalo, e
sem muitas opções favoráveis a seguir, escolhi entre várias que me foram
oferecidas a pichação. Meu desenho no graffiti sempre foi mesclado, e até hoje
em São Gonçalo existem marquises com minhas pichações e desenhos
acoplados. Comecei a grafitar por influencia da pichação. Fiz nome e pichei em
áreas como São Gonçalo, Niterói, Centro e Baixada do Rio de Janeiro, São
Paulo e Minas Gerais. (...)
Em 1996 eu estudava em um colégio da rede pública de São Gonçalo no horário
noturno, e estava todo pichado, por dentro e por fora. Então, recebi a visita do
grafiteiro Ema, que foi ao colégio para me conhecer após visualizar meus
graffitis pela cidade, como ele mesmo disse. Sempre curti fazer graffitis ilegais...
O Ema fazia pichações e graffiti ilegal e comercial. Eu o conhecia de
algumas matérias em jornais locais. Como sempre curti a parte ilegal, não ligava
muito para os trampos comerciais no início. Eu havia formado muitas
ideologias, e após esse dia eu e o Ema grafitamos juntos durante muito tempo.
Após alguns anos, conheci grandes amigos grafiteiros como o Akuma, os
Scrawl, hoje Scrau, Reis e Ales. Até essa época eram os únicos que estavam
começando a pintar nas ruas do Rio de Janeiro. Depois de algum tempo
apareceram os grafiteiros de São Paulo no Rio de Janeiro: Binho, Speto... Todos
realizando alguns trabalhos na cidade.
Por volta de 1997, conheci os graffitis do Binho, pois aconteciam festas de Hip-
Hop no morro Santa Marta e ele pintava durante o evento.
57
isso, sua prática era coibida pela polícia. Nas favelas o graffiti também não era
bem visto
19
. Dessa forma, fazer graffiti em outras partes da cidade no final dos
anos 90 era muito mais difícil e sujeito a punição do que é hoje em dia,
justificando-se assim a concentração dos grafiteiros na Zona Portuária. A
desvalorização paisagística e imobiliária dessa área fazia com que o graffiti,
apesar de ser considerado uma ação de vandalismo, fosse tolerado. O graffiti
era visto como uma degradação desse espaço, mas a dinâmica (funcional)
portuária e de circulação não era agredida pela ação dos grafiteiros. Apesar da
proibição, a Zona Portuária, a exemplo do que aconteceu na Lapa, pode ser
considerada um marco inicial de apropriação simbólica do espaço (LEFBVRE,
1986) por grafiteiros na cidade do Rio de Janeiro.
Ainda nesse mesmo período, também no Centro da cidade do Rio de
Janeiro, o bairro da Lapa passava por uma revitalização cultural, tornando-se
um importante pólo de encontro, eventos e festas. Um desses eventos, a festa
―Zoeira‖, reunia jovens de diversas partes da cidade semanalmente num
grande galpão na Rua do Riachuelo, próximo aos Arcos, cuja maior influência
era a cultura hip-hop. No pouco tempo que durou, passou a reunir diferentes
pessoas que estavam na militância do hip-hop e de movimentos ligados à
cultura negra, grafiteiros como Eco, Ema, Acme e Akuma, entre outras pessoas
que passaram a frequentar as festas pelo seu caráter alternativo e peculiar.
Grafiteiros de um importante grupo originado na própria cidade, a Nação Crew,
acreditam que a festa foi uma grande motivadora para que surgisse uma cena
cultural mais ampla do graffiti como movimento cultural e artístico,
distanciando-se da pichação e da idéia de vandalismo. O que de fato passou a
acontecer desde então foi a proliferação dos graffitis na própria cidade do Rio
de Janeiro, tendo agora a Lapa como centro difusor e de referência. Em mais
um fragmento de sua entrevista à revista Graffiti‖, Eco revela mais detalhes
(ver quadro 3).
19
Relato informal feito pessoalmente por Acme na oficina de graffiti do CIC Fundição
Progresso.
58
Quadro 3. Entrevista Eco - 2009.
Fonte: Eco, Grafiteiro do Rio de Janeiro.
Entrevista publicada na revista Graffiti n° 45
A citada Nação Crew, grupo pioneiro formado por pichadores e
artistas de rua que desenvolveram a técnica do graffiti inspirados na estética do
hip-hop, tinha como área de atuação basicamente o Centro da cidade e a Zona
Norte do Rio de Janeiro. Outro grupo contemporâneo da Nação Crew foi a
Fleshbeck Crew, cuja atuação esteve ligada à Zona Sul e ao mesmo Centro da
cidade. Diferentemente da lógica territorial das facções do tráfico nas favelas,
ou de grupos de pichadores de outras cidades no Brasil (MASSON, 2005),
esses grupos de grafiteiros não disputavam territorialmente a cidade entre si ou
com grupos de pichadores. Apesar da aparente delimitação de suas ações na
cidade, em entrevistas recentes alguns grafiteiros do Rio de Janeiro afirmaram
que não maiores rivalidades e conflitos entre as crews (TARTAGLIA, 2007).
O que existe é uma lógica de ampla difusão dos graffitis na paisagem que
extrapola a própria delimitação territorial da cidade, adentrando inclusive em
outros municípios. A territorialidade (HAESBAERT, 2007) desses grafiteiros
dificilmente será compreendida a partir de territórios bem definidos com
fronteiras e demarcações precisas, o que não minimiza uma disputa pela
visibilidade na paisagem urbana da cidade do Rio de Janeiro e em sua área
metropolitana.
59
2. Um fenômeno urbano
Por volta do ano de 2002, cursando então o segundo ano da
universidade e desempregado, eu tinha uma rotina diária (matinal ou noturna)
de me deslocar do Rio de Janeiro para a cidade de Niterói. Sempre fui morador
da cidade do Rio de Janeiro, e havia pelo menos dois anos ia para Niterói
assistir às aulas no curso de Geografia da Universidade Federal Fluminense.
Eu morava na Tijuca, e meu deslocamento consistia em ir desse bairro
para o Centro da cidade do Rio de Janeiro, de onde seguia de barca para o
município vizinho de Niterói. Separado pela bela paisagem da Baía de
Guanabara, Niterói localiza-se de frente para a cidade do Rio de Janeiro. No
meu caso existiam dois itinerários possíveis para chegar ao outro município. A
primeira parte do percurso era feita da Tijuca, na Zona Norte, ao Centro,
utilizando o metrô ou linhas de ônibus. Normalmente a opção pelas linhas de
ônibus era prioritária por dois motivos: o custo era menor e havia a
possibilidade de se ver a paisagem (já que o metrô atravessa uma linha
subterrânea sem atrativos paisagísticos, mesmo com a vantagem da
velocidade e ausência de congestionamentos, o que diminui o tempo de
percurso). A partir daí era feita uma conexão com a barca, cuja estação de
embarque fica no Centro (Praça Quinze). Havia uma segunda opção que
consistia em ir de ônibus até a Rodoviária Novo Rio, localizada em outro ponto
do Centro do Rio de Janeiro. Dali, fazia outra conexão com uma linha de
ônibus intermunicipal pela Ponte Rio-Niterói, atravessando a Baía de
Guanabara.
A rotina diária e monótona dos transportes coletivos era
momentaneamente quebrada por alguns flash‖, que saltavam aos olhos na
paisagem, quando observado de dentro dos ônibus, mesmo em alta
velocidade. Eram pinturas encravadas na paisagem urbana que se destacavam
pelo seu colorido, forma e tamanho. Provavelmente esse terá sido o meu
primeiro contato direto com os graffitis. Indiretamente, o graffiti me era familiar
pela sua representatividade junto à cultura hip-hop que desde a década
anterior havia sido popularizada no Brasil (RODRIGUES, 2003; OLIVEIRA,
60
2006). Era o mesmo tipo de manifestação que aparecia em filmes americanos,
sempre associados a personagens subversivos e a localidades marginalizadas
das cidades nos EUA.
Um aspecto que me chamava atenção era a semelhança, como forma
de intervenção (SOUZA, 2007), do graffiti com a pichação. Muito evidente,
porém, era a distinção estética de ambos os grafismos (PENNACHIN, 2003;
ANDREOLI, 2006). Minha curiosidade era saber como eram feitas pinturas de
grande dimensão e acabamentos detalhados, se tal como a pichação era um
tipo de intervenção evidentemente proibida na cidade.
Sobre a pichação, o meu conhecimento a respeito de sua relação com o
vandalismo e a perseguição pelo qual seus autores eram tratados vinha
desde os tempos da adolescência na escola. Conforme apontado no capítulo I,
a pichação, distinta do graffiti, é um tipo de intervenção urbana presente no Rio
de Janeiro pelo menos desde os anos 70 (KNAUSS, 2001).
Desde então observando os graffitis, especialmente ao longo do trajeto
por onde eu passava de ônibus, cada vez tinha mais certeza de que aquelas
pinturas, os graffitis, e principalmente seus autores, tinham um objetivo distinto
do que até então eu conhecia sobre a pichação. Certamente não era possível
atribuir a tais intervenções a idéia de vandalismo, tendo em vista seu cuidado
estético e artístico. Porém sua origem estava necessariamente atrelada a uma
prática ilegal nos espaços urbanos, o que me causava um inquietante
sentimento de dúvida. Em que momento era feito o graffiti? Tendo em vista que
por menor que fosse a patrulha policial, o Centro de uma metrópole como o Rio
de Janeiro sempre apresentaria algum tipo de policiamento ou vigília. A
reputação negativa adquirida pela pichação no senso comum da sociedade
tornava ainda mais difícil a possibilidade de intervenção, tendo em vista que
qualquer cidadão, sentindo-se agredido por tal prática, poderia invariavelmente
fazer uma denúncia anônima a algum órgão de segurança pública. Além do
mais, muitos graffitis haviam sido feitos em pontos de extrema visibilidade para
pedestres, motoristas e passageiros, e não apenas em pontos soturnos e de
pouca acessibilidade como se poderia pensar inicialmente. Imaginava que
durante a noite seria o mais indicado, mesmo pensando que essas produções
não levariam menos de 20 minutos para ficarem prontas. Nesse caso seria um
61
período suficiente para ser visto ou denunciado. Algum tempo depois,
comprovei que, ao fazer um graffiti com um detalhamento mínimo
20
, não levo
menos de uma hora pintando, parando e observando nas ruas.
Em decorrência deste questionamento formulei outros que, de forma
instigante, estavam presentes na realidade cotidiana das pessoas que, como
eu, circulavam e viviam na cidade. Quem eram os responsáveis por essas
intervenções? Quem quer que fossem, se os autores estavam, como eu
imaginava, sujeitos a tantas limitações, por que de fato continuavam a proliferar
mais e mais graffitis pela cidade do Rio de Janeiro? Com que intuito?
Alguns apontamentos sobre esta questão já foram desenvolvidos no
primeiro capítulo desta pesquisa, bem como em estudos preliminares
desenvolvidos em trabalhos anteriores (TARTAGLIA, 2007). A partir desses
elementos busco fazer uma análise mais profunda do que acredito ser um dos
aspectos fundadores e originários desse tipo de sujeito social. O grafiteiro será
então esse sujeito que é responsável pela intervenção no espaço urbano, mas
que em minha concepção é diretamente influenciado por essa mesma
realidade. Em outras palavras, o que está em questão é a formação de uma
identidade artística originada na contemporaneidade, a partir da realidade
urbana, e na amplitude escalar adquirida pelo processo de globalização, cujos
aspectos geográficos da cidade como a paisagem têm forte influência sobre os
métodos de criação e a capacidade de ação dos grafiteiros. Assim, seo
desenvolvidos a seguir, na forma de subcapítulos, quatro frentes de análise
que contemplam o espaço urbano carioca na sua interface com os grafiteiros: a
compreensão da paisagem urbana, os aspectos que compõem a cidade e que
estão diretamente relacionados à constituição do sujeito, a formação de uma
identidade coletiva baseada na intervenção e a abrangência desse fenômeno.
20
Este é de cunho subjetivo e pessoal para cada grafiteiro, pois corresponde ao que cada um
considera uma soma de diferentes condições mínimas para obter um resultado satisfatório. No meu caso
em uma parede de dois metros de altura por 1,60 de largura, utilizando um material mínimo como seis
latas de jet com cores diferentes, além de tinta látex como base, levo em média duas horas para finalizar
um graffiti. Já observei grafiteiros que levaram uma tarde inteira pintando um muro de dimensão
semelhante. O tempo empregado não é um sinal de maior capacidade e virtude. O mais importante é o
resultado estético final.
62
2.1. Experiência e paisagem
O retorno para o Rio de Janeiro após as 22 horas normalmente era feito
por uma linha de ônibus que deixava o terminal rodoviário intermunicipal no
Centro de Niterói em direção ao Centro da metrópole. A viagem era até breve
durante a noite, porém monótona. A descida do ônibus após atravessar a
Ponte apresentava uma surpreendente quantidade de graffitis contrastando
com a paisagem monocromática e obscura da região portuária. Próximo a
esses estavam os mesmos graffitis feitos (e restaurados nos anos 90 pela
prefeitura do Rio de Janeiro) anos antes pelo profeta Gentileza. Seguiam o
mesmo fluxo em direção à Rodoviária Novo Rio, adentrando mais adiante na
Zona Portuária (docas e armazéns) do Rio de Janeiro. O ônibus fazia esse
mesmo itinerário. Era nesse momento que a viagem tornava-se mais
empolgante, e sendo assim era possível degustar a observação desses graffitis
como flashs, devido à velocidade do ônibus nesse percurso.
Durante o dia era nas imediações da Praça da Bandeira que, de forma
semelhante, como espectador e passageiro, eu observava mais um punhado
de novos graffitis que iam surgindo progressivamente na paisagem urbana,
como se estivessem ―caminhando‖ em direção a uma das principais vias de
fluxo intenso da cidade, a Avenida Presidente Vargas. Eu procurava os graffitis
na paisagem em busca de respostas aos meus questionamentos ainda
incipientes. (Ver figuras 6,7,8 e 9)
O que parece evidente a partir da própria experiência pessoal descrita
anteriormente é que a paisagem é uma categoria vital para uma identificação
do graffiti no espaço urbano. Observar a paisagem é o primeiro recurso, e
certamente o primeiro contato, na busca pelos grafismos em questão, seja na
perspectiva da Geografia ou de qualquer outra ciência que tenha o graffiti como
objeto de estudo. Sendo a paisagem um conceito de importância significativa
para a Geografia, cuja formulação implica diferentes perspectivas
epistemológicas, é preciso identificar qual é a concepção de paisagem a qual
estamos nos referindo.
63
Fig. 7 Primeiros registros de graffiti identificados nas “viagens” de ônibus –
Imediações da Praça da Bandeira Produções realizadas por volta de 2002
(Foto: Leandro Tartaglia - 2006).
Fig. 8 Primeiros registros de graffiti “apagados” pela Comlurb - Imediações
da Praça da Bandeira - 2008.
(Foto: Leandro Tartaglia - 2008)
64
Fig. 9 Primeiros registros de graffiti identificados nas “viagens” de ônibus -
Imediações da Rodoviária Novo Rio Data da produção não identificada.
(Foto: Leandro Tartaglia - 2008)
]
Fig. 10 - Primeiros registros de graffiti identificados nas “viagens” de ônibus –
Imediações da Praça da Bandeira Produção realizada por volta de 2002.
(Foto: Leandro Tartaglia - 2006)
65
Cauquelin (2007) demonstra como a ideia de paisagem compreendida
na atualidade tem origem na Europa renascentista, cujos artistas começaram a
pintar as fisionomias de porções da Terra em telas e quadros, retratando assim
diferentes aspectos da natureza. Entretanto, outros estudos demonstram
também fundamentos da paisagem em sociedades orientais (BERQUE, 1995).
Na Geografia, a paisagem surge como o conceito que define o elo entre a
sociedade e a natureza especialmente em uma visão do romantismo alemão
do século XIX, através de Humboldt. Em uma leitura clássica da paisagem, o
geógrafo Carl Sauer (2004) identifica a morfologia da paisagem constituída a
partir da ação da cultura sobre o meio ambiente. É possível ainda identificar
outra concepção de paisagem em Milton Santos (1996), certamente mais
preocupado com a evolução do sistema de objetos e ações no espaço
geográfico, ao afirmar que:
Tudo o que nós vemos, o que nossa visão alcança é a
paisagem. Esta pode ser definida como o domínio do visível,
aquilo que a visão abarca. É formada não apenas de volumes,
mas também de cores, movimentos, odores, sons etc...
(SANTOS, 2008: 67/68)
Em outra leitura da paisagem, Augustin Berque ressalta a importância de
revelar não as formas e os aspectos materiais da paisagem, mas também o
sentido simbólico que adquirem e principalmente como são compreendidos e
interpretados pela sociedade que a produziu, denotando um constante
movimento de transformação do significado dessas paisagens. A paisagem não
tem um aspecto imutável, muito pelo contrário. Ela está em contínua
transformação, sendo modificada nas suas formas, mas, principalmente, re-
significada em diferentes momentos. Para Berque:
Do ponto de vista da geografia cultural, que procura, ao
contrário, definir essa relação (paisagem/sujeito) não é
suficiente (embora seja necessário) explicar o que produziu a
paisagem enquanto objeto. É preciso compreender a paisagem
de dois modos: por um lado ela é vista por um olhar,
apreendida por uma consciência, valorizada por uma
experiência, julgada (e eventualmente reproduzida) por uma
estética e uma moral, gerada por uma política etc; e, por outro
lado, ela é matriz, ou seja, determina em contrapartida esse
olhar, essa consciência, essa experiência, essa estética e essa
moral, essa política etc. (...) Em resumo: 1) a paisagem é
plurimodal (passiva-ativa-potencial etc.), como é plurimodal o
66
sujeito para o qual a paisagem existe; e 2) a paisagem e o
sujeito são co-integrados em um conjunto unitário, que se
autoproduz e se auto-reproduz (e, portanto, se transforma,
porque sempre interferência com o exterior) pelo jogo,
jamais de soma zero, desses diversos modos. O jogo seria de
soma zero se a paisagem não tivesse nenhum sentido (isto é,
nem significado, nem tendência evolutiva), o que nunca é o
caso. (BERQUE, 2004: 86 Grifos nossos)
O sentido de paisagem desenvolvido pelo autor, que é simultaneamente
uma marca e uma matriz na sua relação mutável com o sujeito, propicia uma
interpretação da paisagem que contribui mais para esta pesquisa na medida
em que o graffiti passa a desenvolver este mesmo jogo de relações no espaço
urbano. O graffiti representa a ação de intervir artisticamente por grupos ou
indivíduos no espaço urbano, cujas marcas estão repletas de significados
decorrentes de sua experiência urbana capaz de exercer influência sobre o
cotidiano de muitos outros transeuntes da cidade, ou ao menos disposta a tal.
Sobre esta concepção de paisagem podemos acrescentar também a
perspectiva de Nogué, quando afirma que:
En efecto, el paisaje puede interpretarse como un
producto social, como el resultado de una transformación
colectiva de la naturaleza y como la proyección cultural de una
sociedad en un espacio determinado. (…) los paisajes están
llenos de lugares que encarnan la experiencia y las
aspiraciones de los seres humanos. Estos lugares se
transforman en centros de significados y símbolos que
expresan pensamientos, ideas y emociones (…) El paisaje, por
tanto, no sólo nos muestra cómo es el mundo, sino que es
también una construcción, una composición de este mundo,
una forma de verlo. (NOGUÉ, 2007: 11/ 12)
Para o autor citado, a paisagem é uma construção social, ou seja, é,
portanto, uma representação do mundo vivido, na qual estão presentes,
invariavelmente, as contradições e os conflitos que emanam desse processo,
denotando o que pode ou não ser visto. A ampla visibilidade de um elemento
da paisagem representa aspectos e comportamentos sociais que são toleráveis
ou mesmo impostos em uma sociedade. Por outro lado, ocultar elementos de
uma paisagem representa certamente omissão de valores, seja por consenso
ou por imposição. Ainda assim, alguns desses elementos podem ter a
67
capacidade de romper (mesmo que ilegalmente) esta lógica determinista, o que
se aproxima da discussão em torno do graffiti.
Fig. 11 O grafiteiro assina a sigla da crew D.V Destruidores do Visual. O
nome da crew representa este rompimento simbólico com os valores de
padronização da paisagem Maracanã. (Foto: Leandro Tartaglia 2009)
O graffiti não é uma paisagem urbana. Ele está inserido nela, porém o
é um simples elemento constituinte de sua morfologia (SAUER, 2004). O graffiti
caracteriza-se pela sua capacidade de ser visto, isto é, pela visibilidade
material e simbólica que tenta adquirir na paisagem urbana em meio a tantos
outros elementos edificados e luminosos. A visibilidade denota uma série de
elementos simbólicos como a experiência, a representação, e como recurso de
comunicação que constituem as marcas (grafias) de sujeitos na paisagem da
cidade, que alguns autores atribuem à ideia de tatuagens na epiderme urbana
(BAUDRILLARD, 1976; SILVA, 2001).
Visibilidade
A visibilidade é um recurso fundamental na relação do graffiti com a
paisagem urbana. Esta relação torna-se relevante somente se pensarmos que
essas marcas se constituem a partir de sujeitos que vivenciam e experimentam
cotidianamente a cidade e o espaço urbano de um modo geral. Esses sujeitos
passam a fazer uso dessa paisagem, imprimindo suas marcas como forma de
68
representação de suas aptidões, coragem e individualidade, em uma espécie
de comunicação informal e espontânea com o restante das pessoas que veem
suas grafias, mas principalmente para aqueles que compartilham dessa
identidade (e territorialidade).
Conforme a discussão elaborada no primeiro capítulo deste trabalho, é
notório que o graffiti traz embutido em suas marcas pela paisagem urbana falas
incongruentes, que muitas vezes estão às margens dos principais veículos de
comunicação ou mesmo são sentenciadas ao silêncio por vontade de setores
hegemônicos pouco interessados no seu conteúdo ideológico. O graffiti não é
uma ferramenta de comunicação exclusiva de setores populares da sociedade,
porém adquire tal vocação com maior expressividade devido, justamente, às
formas de elitização que restringem o acesso de ampla parcela da população
aos meios de comunicação de massa. Dessa forma a ampla visibilidade em
uma paisagem metropolitana pode significar um importante, e talvez mais
democrático, recurso de comunicação para diferentes setores sociais. O graffiti
aliado à cultura hip-hop provou a eficiência desse recurso na sua difusão
ideológica de denúncia.
Em grandes metrópoles como o Rio de Janeiro, a visibilidade, ou melhor,
a possibilidade de obter essa ampla visibilidade desperta o interesse de
diferentes setores da sociedade. Por isso a paisagem surge como um recurso
de comunicação vital para fins publicitários, políticos, artísticos, e até mesmo
para o vandalismo, entre outros, todos em busca de uma parcela de visibilidade
que a paisagem possa influenciar. Armando Silva (2001) discute a
diferenciação desses elementos que compõem a paisagem urbana afirmando
que:
As imagens da publicidade, porém, não são as da arte.
Enquanto a publicidade chama a atenção para alguma coisa, a
arte o faz para alguém. (...) a publicidade, não. Ela mostra,
quando mostra (já que também pode indicar ou simplesmente
falar), como se o que nos faltasse fosse o que ela nos oferece.
Por isso a publicidade ―mente‖, quer fazer-nos crer que
podemos ser felizes se conseguirmos o prometido. Seu
problema não são os homens em primeiro plano, mas as
coisas, mesmo que essas coisas sejam para os homens. Todo
o seu imaginário está disposto para o consumo, mesmo que às
vezes falhe, e ao tornar-se auto-referência da sua figuração
mais do que o produto, ela atua de maneira similar á arte. Mas,
69
por princípio, sua imagem é utilitária. Ela usa todos os recursos
para fisgar o outro e torná-lo consumidor. (SILVA, 2001: 8)
A paisagem urbana é repleta de sinais (informações de trânsito,
propagandas, grafismos, edificações etc.), o que faz autores como Armando
Silva discutir o significado, muitas vezes antagônico, de alguns desses
elementos:
Desse modo, o que se opõe diametralmente ao grafite é a
publicidade: enquanto o primeiro busca um efeito social de
forte carga ideológica ou, de algum modo, transgressora de
uma ordem estabelecida, a publicidade busca o consumo do
anunciado e assim sua intenção comunicativa é antes de tudo
funcional para um sistema social, político ou econômico. (op.
cit.: 6)
Decorrente desse antagonismo de sujeitos que imprimem suas marcas
na paisagem, e que, simultaneamente passam a exercer influências diversas
sobre a cidade como elementos de uma paisagem matriz (BERQUE, 2004), é
possível observar a sobreposição de inscrições na paisagem urbana do Rio de
Janeiro, gerando ruídos e diálogos conflituosos, em uma espécie de polifonia
urbana.
Um primeiro exemplo dessa polifonia urbana pode ser identificado a
partir da paisagem que marca a dinâmica de circulação nos espaços urbanos
de uma metrópole como o Rio de Janeiro, que tem como uma de suas
características o intenso fluxo de transportes e transeuntes em suas principais
artérias de circulação, especialmente em horários diurnos e dias úteis da
semana. Diante desse fluxo a paisagem urbana que por ali se apresenta torna-
se um importante recurso de comunicação, decorrente de sua ampla
visibilidade para empresas, instituições, o comércio e os serviços em geral,
além dos segmentos sociais populares anteriormente citados. A polifonia passa
a existir na medida em que o uso dessa paisagem por diferentes sujeitos esteja
pautado por interesses distintos, ou mesmo antagônicos, imprimindo uma
espécie de disputa pela visibilidade (e seu poder de influência) conforme
aponta Silva (2001).
Dos cartazes fixados às paredes aos grandes outdoors, bem como as
propagandas pintadas a mão, a publicidade utiliza essas vias de circulação
70
como meio de divulgação, ou seja, utiliza-se a visibilidade da paisagem como
recurso de comunicação de uma forma antagônica ao graffiti (SILVA, 2001).
Com isto cria-se uma disputa visual dessas distintas formas de apropriação do
espaço urbano impressas diretamente na paisagem.
Na figura 11 está presente uma clara disputa pela visibilidade na
paisagem, onde o grafiteiro interfere na propaganda feita a mão, que outrora se
sobrepusera à pintura desse mesmo grafiteiro. As figuras 11 e 12 apresentam
diálogos conflituosos (―Respeite o graffite‖ e ―Não apague graffitis‖) que
reivindicam uma espécie de exclusividade dos grafiteiros por ter inscrito sua
marca originalmente naquela paisagem, na busca de preservar a sua própria
inscrição, isto é, sua visualidade.
Fig. 12 Polifonia urbana e disputa pela visibilidade O grafiteiro
Cani pede o respeito ao seu graffiti e se sobrepõe à publicidade, que outrora
havia sobreposto sua marca Bairro de Deodoro.
(Fonte:http://www.orkut.com.br/Main#Album?uid=10930998813295668375&aid=1211904161
&p=4) acessado em 10/11/2009.
71
Fig. 13 No alto do graffiti à esquerda há um aviso: “Não apague
graffitis”. E sobre o graffiti, uma frase religiosa o sobrepõe Avenida Brasil.
(Foto: Leandro Tartaglia 2008)
A partir da observação da figura 12, para não citar diversos outros
exemplos, é possível notar que o graffiti se constitui principalmente por sua
configuração artística. Decorrente de uma série de movimentos artísticos e de
suas características estéticas (ver capítulo I) a sua presença se distingue
claramente da publicidade ou mesmo de outros grafismos urbanos, seja na sua
composição visual, ou em seu conteúdo ideológico.
É nesse sentido que o graffiti, especialmente na sua vertente mais
selvagem (ver capítulo III), rompe com a lógica da publicidade e do consumo,
intervindo como uma manifestação de interesses alheios a esdes valores
hegemônicos, especialmente porque as intervenções estão mais pautadas pela
subjetividade artística no uso da paisagem. A subjetividade e a
imprevisibilidade fazem parte de um conjunto de características que podem
manter algo do caráter original do graffiti, a subversão. Esta discussão será
desenvolvida mais profundamente no terceiro capítulo deste trabalho sob o
aspecto da territorialidade dos grafiteiros.
Outro exemplo desta polifonia na cidade do Rio de Janeiro foi verificado
recentemente, durante o ano de 2008, em uma ação da prefeitura que, através
da Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), implementou a pintura
de muros e pilares dos viadutos no Centro da cidade (ao longo da Avenida
Francisco Bicalho até o início da Avenida Presidente Vargas). Dessa maneira,
72
uma grande quantidade de graffitis foi coberta por tinta cinza, demonstrando
claramente a incongruência ideológica dessas ações. Por este viés, o graffiti é
tratado como um ruído ou um elemento responsável pela poluição visual da
paisagem, cabendo assim ao órgão responsável pela limpeza pública da
cidade cobrir essas grafias com uma tinta capaz de neutralizar seu poder de
comunicação visual (Ver figura 6, 7 e 13).
Fig. 14 Funcionário da Comlurb e a sobreposição dos graffitis. Ao fundo,
nota-se a presença expressiva de um outdoor publicitário Av. Francisco
Bicalho - Centro. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
Paisagem e experiência urbana
O historiador da arte Giulio C. Argan (2005) compara a circulação de
habitantes de uma cidade a um quadro de Jackson Pollock (ver figura 14), com
seus emaranhados de linhas e pontos coloridos, demonstrando como esses
deslocamentos, assim como a própria experiência urbana, ocorrem muitas
vezes por fatores que vão além da funcionalidade do espaço urbano. Na leitura
do autor, a escolha individual de um caminho a ser percorrido na cidade em
detrimento de outros envolve questões mais subjetivas e espontâneas. Assim:
É evidente que, se nove décimos da nossa existência
transcorrem na cidade, a cidade é a fonte de nove décimos das
imagens sedimentadas em diversos níveis da nossa memória.
Essas imagens podem ser visuais ou auditivas e, como todas
73
as imagens, podem ser mnemônicas, perceptivas, eidéticas.
Cada um de nós, em seus itinerários urbanos diários, deixa
trabalhar a memória e a imaginação: anota as mínimas
mudanças, a nova pintura de uma fachada, o novo letreiro de
uma loja (...) (ARGAN, 2005: 232)
Fig. 15 Quadro de Jackson Pollock de 1950. As linhas e manchas em preto
assemelham-se, segundo Argan, a sobreposição de caminhos feitos nas
cidades. (Fonte: Mestres da Pintura Pollock 1978)
Vivenciar a cidade é uma experiência que pode ser realizada de
diferentes modos. Argan deixa transparecer em seu texto uma noção mais
subjetiva que norteia o deslocamento dos habitantes, inclusive o dele mesmo,
dentro de uma cidade. Circular pela cidade, observando-a e percebendo suas
transformações, corrobora o que Lynch (1997) desenvolve em ―A imagem da
cidade‖. Ambos os autores discutem a cidade, em contextos geográficos
distintos
21
, a partir da percepção e da vivência de seus próprios habitantes.
A proposta deste item apresenta semelhanças com a dos autores
citados. Em ambos, a paisagem surge como o elemento que possibilita a
21
Argan realiza seu estudo a partir de cidades italianas, em especial Roma. Lynch desenvolve sua
pesquisa em grandes cidades dos Estados Unidos, como Boston e Los Angeles, entre outras.
74
percepção dos habitantes em relação ao espaço urbano em que vivem,
especialmente por meio da visibilidade. Nesse caso a paisagem estimula
visualmente, proporcionando múltiplas experiências para cada indivíduo
cotidianamente ao se deslocar pelo espaço urbano. No entanto, o que destaco
é a percepção da paisagem e a experiência urbana apreendida
especificamente por grafiteiros na cidade do Rio de Janeiro. Qual é a
diferença, então, da experiência urbana dos grafiteiros em relação às demais
pessoas que circulam pela cidade?
Certamente podemos dizer que a principal diferença consiste na
percepção da paisagem. Um dos procedimentos mais comuns e certamente
mais importantes da prática do graffiti é perceber a paisagem. Notar as
possibilidades que a paisagem urbana oferece é um exercício pelo qual
grafiteiros dedicam sua percepção e sensibilidade ao circularem pela cidade
22
.
Essa percepção exige uma atenção especial às possibilidades que a paisagem
urbana oferece ao grafiteiro, especialmente no que diz respeito à visibilidade e
à permanência de seu graffiti (além de segurança). Em outras palavras, é
possível afirmar que os grafiteiros observam, em momentos e situações
diversas, a paisagem urbana em busca de pontos que propiciem a visibilidade
permanente (ou quase) de suas marcas.
Mas como foi possível chegar a esta conclusão? Inicialmente circulando
pela cidade de forma experimental, conforme descrito no início desta seção. Os
trajetos percorridos em linhas de ônibus propiciavam uma observação
―ingênua‖ dos graffitis na paisagem. Ingênua porque os trajetos ainda não
tinham um caráter de investigação científica concebidos como forma de
trabalho de campo. Nem mesmo se prestavam a um olhar de quem pretendia
naquele momento fazer um graffiti efetivamente. Era um olhar perplexo e
curioso. Mesmo assim, esses percursos espontâneos, e posteriormente
programados, tornaram-se uma forma de análise dentro da pesquisa
participante, visando assim a proporcionar uma percepção da paisagem
semelhante à dos demais grafiteiros da cidade. A paisagem permite a
22
Circular pela cidade não implica estar necessariamente procurando um local para fazer graffiti.
Para os grafiteiros isto ocorre mais espontaneamente. Eles circulam como qualquer pessoa pela cidade. O
que se destaca é a sua percepção espontânea do circuito que percorrem, notando as possibilidades que
cada paisagem oferece, ou mesmo notando também como outros grafiteiros utilizam o recurso da
visibilidade na paisagem.
75
experiência de ver a cidade conforme os grafiteiros o fazem. É essa a
experiência urbana à qual nos referimos.
Ver e, principalmente, perceber a paisagem na perspectiva dos
grafiteiros não é estabelecer um inventário minucioso sobre os elementos que
a compõem. Para o grafiteiro, este procedimento busca identificar os grafismos
existentes, e os pontos que permitem novas intervenções (vazios de
intervenções e com ampla visibilidade). Esta é a leitura que o grafiteiro faz da
paisagem urbana, e que passou a nortear o procedimento de análise desta
pesquisa participante, especialmente nos momentos em que me vi recorrendo
a este procedimento durante os trabalhos de campo ou para fazer os meus
graffitis. Para que o grafiteiro tenha essa leitura da paisagem é preciso um
trabalho duplo, observando-a também na perspectiva de um habitante alheio a
tudo isso, ou seja, o transeunte em geral (LYNCH, 1997; ARGAN, 2005).
Todavia, buscar outros grafismos na paisagem é identificar formas de
representação no espaço urbano. Neste caso, a paisagem é o principal meio
que permite a representação dos grafiteiros através de imagens e símbolos, o
que os tornam conhecidos pelo adjetivo de artistas de rua (urbanos)
23
.
De acordo com Foerst (2004), a representação se distingue da mera
apresentação, e está ligada a uma forma de retratar, refletir ou reproduzir a
realidade percebida. Essa foi por algum tempo a principal forma de atribuir
notoriedade a este tipo de manifestação
24
desenvolvida por artistas de rua.
Como veremos mais adiante no capitulo III, essa busca por notoriedade
e reconhecimento, seja ele artístico ou não, vai além da manifestação pictórica
espontânea na paisagem. Os grafiteiros passam a desenvolver formas de
comportamento característico no espaço urbano, o que denota uma
23
Arte de rua ou arte urbana são termos equivalentes, utilizados para se referir de uma forma
genérica a manifestações artísticas diversas realizadas publicamente nas cidades. Em alguns casos essas
manifestações são proibidas, sendo realizadas de forma clandestina. Os graffitis são considerados arte de
rua, que incluem também performances teatrais, musicais e de outros tipos de artes plásticas. Ver:
MacNaughton, A. “London street art” (2006) e Ganz, N. “O mundo do grafite. A arte urbana dos cinco
continentes” (2008).
24
Hoje, a mídia e a publicidade utilizam o graffiti atribuindo-lhe uma visão positiva e
legitimando-o como manifestação artística, que atinge grandes proporções, talvez maiores que a sua
inscrição na paisagem urbana pelos próprios grafiteiros nas ruas. Ver: jornal “O Globo” Rio Show: Tá
na rua” (17/11/2006); jornal “O Globo” Boa Viagem: “Cores da metrópole” (30/04/2009).
76
progressiva apropriação (material e simbólica) de espaços nas cidades,
constituindo uma territorialidade (HAESBAERT, 2007) específica.
Na representação de sua territorialidade, cada grafiteiro pode criar a sua
própria paisagem, inserindo-a na paisagem urbana. De certa forma, esses
―portais‖ estimulam a experiência de ser e estar na cidade, construindo na
epiderme urbana uma representação de mundo (ver figuras 15 e 16). Em
resumo, podemos afirmar que a paisagem permite, em seu aspecto visual, a
representação da territorialidade dos grafiteiros (bem como de outros sujeitos)
pela construção material e simbólica de imagens.
Fig. 16 Mimetismo e paisagem Os grafiteiros San e Hgib utilizam a
paisagem “árida” da Vila Operária para construir a sua própria paisagem
desértica. Duque de Caxias - RJ. (Foto: Leandro Tartaglia 2009)
77
Fig. 17 O grafiteiro Eco re-elabora a partir da sua própria representação a
paisagem densamente urbanizada do Rio Comprido. (Foto: Leandro Tartaglia 2009)
2.2. A relação cidade grafiteiro
A visualização dos graffitis presentes na paisagem (SILVA, 2001;
BERQUE, 2004; NOGUÉ, 2007) de pontos da cidade do Rio de Janeiro, como
a Praça da Bandeira, a região da Leopoldina ou a Avenida Presidente Vargas
passou a estimular meus questionamentos a respeito da relevância desses
pontos para a produção de graffitis. Por que os graffitis apareciam aí com maior
intensidade? O que tornava possível a apropriação de determinadas áreas e
não de outras?
Recentemente, o geógrafo Marcelo L. de Souza apontou em seu livro
―Fobópole‖ (2008) a questão da militarização e das práticas de segregação e
territorialização que vêm sendo empregadas em diferentes cidades brasileiras,
especialmente o Rio de Janeiro, referentes ao sentimento e à política de
(in)segurança que se desenvolve nestes espaços urbanos. Assim, o autor
aponta o processo de auto-segregação das elites (e também dos setores
médios e populares), constituindo uma morfologia de particularização dos
espaços urbanos outrora públicos. Acredito ser relevante esta discussão para
78
apontar este como um primeiro fator, mas não o único, de fundamental
importância para se compreender os questionamentos feitos anteriormente.
O autor destaca: “A auto-segregação é uma solução escapista.
Representa uma fuga e não um enfrentamento, muito menos um
enfrentamento construtivo. Como tal, não passa de uma pseudo-solução”.
(SOUZA, 2008: 73)
Alguns aspectos constituem a materialização desse processo de auto-
segregação na paisagem da metrópole carioca. Como símbolo máximo desse
processo surgem os condomínios exclusivos, e que proliferam enquanto
ideologia, como um ―antídoto‖ para a insegurança através do fechamento de
logradouros públicos por meio de cancelas e guaritas, e com o emprego de
vigilantes (ou através do uso de monitoramentos por câmeras de vídeo e
sistemas de segurança) nos mais diversos bairros que compõem a cidade.
Para o autor, no âmbito da socialização, cada vez mais essas medidas
reforçam o isolamento e o descompromisso com o restante da cidade. Com um
comportamento individualista, seus habitantes desenvolvem um sentimento
indissociável de medo e preconceito, minimizando as possibilidades de debates
e da participação coletiva na mediação dos conflitos e na proposição de
soluções. Para Souza, estas medidas ferem o direito de ir e vir, o direito à
intimidade e o direito de reunião, constituintes de uma democracia
representativa. Assim:
Pode-se dizer que se está diante de um paradoxo de ―auto-
enclausuramento‖ à medida que os ―condomínios exclusivos‖
se multiplicam e a auto-segregação se complexifica: esse tipo
de estratégia espacial de busca de segurança, ao ir produzindo
uma cidade de espaços blicos muitas vezes ―privatizados‖
indevida e ilegalmente, onde a mobilidade espacial do cidadão
vai sendo dificultada e onde na própria paisagem cada vez
mais se inscreve os símbolos do medo e das posturas
defensivas, em vez de colaborar para melhorar a qualidade de
vida, contribui para, no longo prazo, miná-la. (SOUZA, 2008:
77/78)
Em uma linha de raciocínio relativamente próxima, Borja desenvolve em
―La ciudad conquistada‖ uma série de questionamentos que hoje atingem as
mais diversas cidades do mundo. Ele (2003) apresenta em sua discussão a
interrelação entre os conceitos de cidade, espaço público e cidadania, como
79
balizadores para se (re)pensar as formas de apropriação dos espaços urbanos,
e como estas podem ser questionadas e reconfiguradas. O autor apresenta os
seguintes aspectos:
Este libro se articula en torno a tres conceptos: ciudad, espacio
público y ciudadanía. Tres conceptos que pueden parecer casi
redundantes, puesto que la ciudad es ante todo un espacio
público, un lugar abierto y significante en el que confluyen todo
tipo de flujos. Y la ciudadanía es históricamente, el estatuto de
la persona que habita la ciudad, una creación humana para que
en ella vivan seres libres e iguales.
(…) Los valores vinculados a la ciudad, de libertad y de
cohesión social, de protección y desarrollo de los derechos
individuales y de expresión y construcción de identidades
colectivas, de democracia participativa y de igualdad básica
entre sus habitantes, dependen de que el estatuto de
ciudadanía sea una realidad material y no sólo un
reconocimiento formal. Y también de que la ciudad funcione
realmente como espacio público, en un sentido físico
(centralidades, movilidad y accesibilidad socializadas, zonas
social y funcionalmente diversificadas, lugares con atributos o
significantes) y en un sentido político y cultural (expresión y
representación colectivas, identidad, cohesión social e
integración ciudadana). (BORJA, 2003: 21/22)
Cidades como o Rio de Janeiro de hoje apresentam características
opostas aos apontamentos citados por Borja quanto à cidadania e ao espaço
público, constituindo uma morfologia social e urbanística que Souza irá
reconhecer como decorrente de um processo de fragmentação do tecido
sóciopolítico-espacial. Um aspecto relevante desse processo, além da auto-
segregação, será a anemia dos espaços públicos (SOUZA, 2008).
Borja (2003) entende o espaço público como o lugar da representação e
da expressão coletiva da sociedade, erroneamente confundido com áreas
dotadas de equipamentos de infraestrutura urbanística (praças, áreas de lazer,
shopping centers). O espaço público, de acordo com Souza, é o local onde
ocorre a cena blica, isto é, onde um campo de interação entre os seus
indivíduos negociando suas demandas e seus conflitos, onde veem e são
vistos, com um grau maior ou menor de liberdade. Ao mesmo tempo esta cena
pública necessita de uma base material que permita a sua existência. Sendo
assim:
80
Volte-se a questão da ―anemia‖ do espaço público. Seria
legítimo usar essa palavra? É claro que a metáfora foi
escolhida por sua força enunciativa. O que realmente importa é
assinalar o que está por trás disso: o encolhimento de margens
de manobra, a deterioração da sociabilidade e da civilidade e
as restrições ao exercício de cidadania em suma, ameaças e
limitações à autonomia, tanto individual quanto coletivos. E
tudo isso, é evidente, não devido à interveniência de fatores
políticos-formais, mas sim em decorrência das transformações
sociopolíticas ou, mais precisamente sociopolíticas-espaciais
(...) Espaços públicos vão sendo, por causa do medo, ou
―abandonados‖ (a freqüência que são visitados diminui
drasticamente) ou, então, ―cercados‖ e ―monitorados‖, o que
tampouco favorece uma vida pública livre, densa e espontânea.
(SOUZA, 2008: 84)
Borja elenca uma série de direitos urbanos os quais considera
indispensáveis para a renovação de uma cultura política nas cidades. Destaca-
se então o:
Derecho al espacio público y a La monumentalidad. La ciudad
es hoy un conjunto de espacios de geometría variable y de
territorios fragmentados (física y administrativamente), difusos y
privatizados. El espacio público es una de las condiciones
básicas para la justicia urbana, un factor de redistribución
social, un ordenador del urbanismo vocacionalmente igualitario
e integrador. Todas las zonas de la ciudad deben estar
articuladas por un sistema de espacios públicos y dotadas de
elementos de monumentalidad que les den visibilidad e
identidad. Ser visto y reconocido por los otros es una condición
de ciudadanía. (BORJA, 2003: 317/318)
Em um primeiro momento, a discussão formulada até aqui parece
nortear meus questionamentos, ou seja, no âmbito da experiência urbana
cotidiana, a auto-segregação e anemia dos espaços públicos impõem-se diante
do cidadão individualmente e coletivamente em diferentes escalas em virtude
dos distintos papéis sociais.
Aos meus olhos, o graffiti parecia se manifestar como uma contestação
a estas características impostas pela cidade, e de fato o era. Não ficava claro
se era um movimento articulado e com objetivos definidos de contestação e
transformação da realidade, tal qual um movimento social, ou se fazia parte de
uma ―epidemia‖ que se espalhava espontaneamente pela cidade, sem maiores
81
projetos políticos (assim como a pichação), onde possivelmente jovens se
aventuravam em busca de notoriedade e auto-afirmação.
Foi justamente nessa busca aos grafiteiros que eu percebi que estas
qualidades caminhavam juntas e, de forma quase indissociável, porém muitas
vezes contraditória, constituíam a sua relação com a cidade.
Certamente não devemos generalizar, mas é possível identificar o
engajamento de uma parte dos grafiteiros em projetos cujo objetivo é a
transformação do contexto sócio-espacial em escalas microterritoriais, como o
mutirão de graffitis da Vila Operária, intitulado ―Meeting of Favela‖, promovido
por grafiteiros da própria comunidade denominados Posse 471 (ver capítulo III).
Existem também projetos de educação e capacitação para jovens de espaços
populares, que passam pelo auxílio e a atuação profissional de grafiteiros como
educadores de arte, mediados por ONGs como a CUFA e o Afroreggae. A
articulação desses projetos aos grafiteiros é feita a partir de sua relação com o
hip-hop, no qual o graffiti é um dos seus elementos constituintes. Nas palavras
de Rodrigues:
(...) podemos pensar o hip-hop como um ativismo político-
cultural urbano forte, com um grande potencial crítico,
pedagógico e mobilizador, que pode ser a base de importantes
conquistas de cidadania. Além disso, devemos salientar que a
vertente mais crítica do hip-hop deve ser considerado um
autêntico movimento social, por colocar como horizonte
processos de transformações efetivas na sociedade.
(RODRIGUES, 2009: 103)
Mesmo que muitos grafiteiros estejam distantes de um projeto mais
abrangente alicerçado por propostas ideológicas articuladas com alguma forma
de mobilização social mais engajada, como o movimento hip-hop, ou de
políticas institucionais para a cidade como um todo, tal qual propõe Borja, de
um modo geral os grafiteiros m promovido, no mínimo, um sentido de
reflexão sobre a cidade a partir de suas intervenções no espaço urbano. Em
um peodo marcado por tamanha apatia potica como o que vivemos em
nossa sociedade atualmente, o graffiti aparece como uma rara manifestação de
cunho político deste momento.
82
mencionado no capítulo I, destacamos novamente a Zona Portuária e
a Praça da Bandeira, além do bairro da Lapa, no Centro da cidade do Rio de
Janeiro, como marcos iniciais de apropriação pelos grafiteiros devido à sua
condição de propiciar justamente esta cena pública que substancia a noção de
espaço público. Os graffitis foram feitos nessas localidades não pela sua
vocação nata de proporcionar um espaço público intenso e pungente de vida
cultural. Ao contrário, os espaços públicos foram apropriados justamente por
terem sido relegados, pelo poder público e pelos interesses privados, a zonas
deterioradas e de baixo valor imobiliário, destinadas a moradias de baixa
renda, atividades portuárias, depósitos, terminais e garagens de transportes e
de comércio de baixo status social. Situação ainda semelhante às condições
dessas localidades, mas que demonstram sinais de gentrificação
25
, em
especial o bairro da Lapa com sua vida cultural e de entretenimentos
noturna intensa, e da Zona Portuária com os projetos de revitalização
urbanística. No entanto, a auto-segregação ―empurrou‖ cada vez mais o graffiti
para os anêmicos espaços públicos dessas localidades, compreendidas pelo
poder institucional (até os anos 90) como deterioradas e sujeitas a todo tipo de
marginalidade, vandalismo e depredação.
Graffiti, espaço e tempo
A circulação diária como passageiro de ônibus pela Avenida Brasil ou
por localidades do Centro da cidade do Rio de Janeiro me proporcionava, e
ainda o faz, uma subsequente formulação dos meus questionamentos no que
diz respeito à fluidez do/no espaço urbano atrelada à experiência individual e
participante, imerso em um tempo efêmero e veloz, ditado pela realidade
urbana (espaço-tempo do consumo?). Soma-se a estes fatores a questão da
acessibilidade à cidade em sua plenitude, apontado como uma condição cada
vez mais difícil em nossos dias em virtude de um processo de fragmentação
sociopolítico-espacial (SOUZA, 2008), já discutida anteriormente.
De acordo com Milton Santos:
25
Ver SMITH, Neil. Gentrificação, a fronteira e a reestruturação do espaço urbano, 2007.
83
Uma das características do mundo atual é a exigência de
fluidez para a circulação de idéias, mensagens, produtos ou
dinheiro, interessando aos atores hegemônicos. A fluidez
contemporânea é baseada nas redes técnicas, que são um dos
suportes da competitividade. Daí a busca voraz de ainda mais
fluidez, levando à procura de novas técnicas ainda mais
eficazes. A fluidez é, ao mesmo tempo, uma causa, uma
condição e um resultado.
Criam-se objetos e lugares destinados a favorecer a fluidez:
oleodutos, gasodutos, canais, autopistas, aeroportos,
teleportos. Constroem-se edifícios telemáticos, bairros
inteligentes, tecnopólos. Esses objetos transmitem valor às
atividades que deles se utilizam. Nesse caso, podemos dizer
que eles "circulam". É como se, também, fossem fluxos.
(SANTOS, 1996: 185)
Para Santos, a constituição da fluidez como causa, condição e resultado
(efeito) insere-se como um pré-requisito na constituição de um meio técnico-
científico-informacional, cujos objetos e normas, apoiados em um conjunto de
valores (intencionalidades), são concebidos a fim de aperfeiçoar a circulação
no espaço em menos tempo. O fluxo de informações e capitais é a culminância
deste circuito, e a metrópole sua materialização por excelência.
Em relação à noção de espaço-tempo característica desse período
técnico-científico-informacional citado por Santos, Haesbaert aponta que:
Nas sociedades modernas e, mais notadamente, nas
sociedades globalizadas da modernidade tardia ou
radicalizada, ocorre o fenômeno do ―desencaixe‖, definido por
Giddens como ―o deslocamento‖ [liftin out] das relações sociais
de contextos locais de interação e sua reestruturação através
de extensões indefinidas de espaço-tempo‖ (1991:29)
Devemos, contudo, considerar esta disjunção espaço-tempo de
forma relativa, na medida em que, por serem indissociáveis,
espaço e tempo, ou melhor, o espaço-tempo, estão na verdade
sofrendo uma mutação, aparentemente representada, no
momento atual, por esta espécie de ―desencaixe‖.
(HAESBAERT, 2004: 157)
O autor aponta a tecnologia e a informatização como elementos
responsáveis por esse possível desencaixe espaço-temporal, ampliando o
contato entre escalas, do local ao global. Sendo assim, ele prossegue
afirmando que:
Isto tudo significa, no entanto, que não se trata propriamente
de um esvaziamento‖ nem de uma separação, como o termo
―desencaixe‖ supõe, mas sim de uma espécie de
84
―alongamento‖, nos termos do próprio Giddens, de inter-
relações mais extensas porque descontínuas, podendo
associar espaços muito distantes numa mesma temporalidade.
Trata-se, enfim, de espaço-tempos mais múltiplos,
combinações mais imprevisíveis e espacialmente mais
fragmentadas. (ibid.: 159/160)
Carlos também aponta como o espaço-tempo se faz presente na
contemporaneidade:
Por sua vez, o tempo se transforma, comprimindo-se. O tempo
do percurso é outro, compactou-se de modo impressionante,
mas as distâncias continuam, necessariamente, a serem
percorridas por mercadorias, fluxos de capitais, informações,
etc. não importa se em uma hora ou em frações de minutos;
se nas estradas de circulação terrestres convencionais auto-
estradas que cortam visivelmente o espaço marcado
profundamente a paisagem , ou se nas superhighways, os
cabos de fibra ótica, satélites, etc... O que presenciamos, hoje,
é a tendência à eliminação do tempo. Na realidade, não se
trata de sua abolição total o que seria ingênuo afirmar
mas de sua substancial diminuição, como conseqüência do
espantoso desenvolvimento da ciência e da tecnologia
aplicados ao processo produtivo. (CARLOS, 2007a: 13)
E complementa atestando sua influência sobre o espaço urbano:
Como fundamentação desse processo de transformação,
presenciamos a aceleração do tempo no mundo moderno, com
mudanças muito rápidas que se revelam na morfologia da
cidade, ao mesmo tempo em que na vida cotidiana,
modificando-a. Como resultado surgem novos padrões e
formas de adaptação decorrentes da imposição de um novo
modo de apropriação do espaço da cidade. Assim nos
deparamos com formas cada vez mais mutantes em um tempo
cada vez mais efêmero, produto de uma nova racionalidade
imposta por profundas mudanças no processo de acumulação.
Assim, uma nova relação espaço-tempo domina o mundo,
onde a efemeridade do tempo no espaço revela a produção de
um ―espaço amnésico‖. Essa relação entre ―tempo efêmero‖ e
―espaço amnésico‖ é fundamental para definir a pós-
modernidade. (CARLOS, 2007b: 13)
A circulação pela cidade do Rio de Janeiro (limitada territorialmente pela
própria fragmentação), bem como por outros diversos espaços urbanos da
atualidade, permite observar uma paisagem impregnada por uma
temporalidade que homogeneiza, globalizada em função de sua lógica
produtivista e mecânica. O tempo cada vez mais efêmero é percebido nas
relações cotidianas da metrópole, na sua fluidez, e por isso mais veloz se
85
torna. O tempo parece escapar da vida das pessoas à medida que estas
correm, em uma demanda de fluxo mais rápida, para realizar suas tarefas e
cumprir suas obrigações nos devidos prazos. Os prazos são ditados pelo
pagamento das dívidas, o cumprimento dos horários no trabalho, o
funcionamento do comércio e dos serviços, ou mesmo pela programação dos
canais de televisão e da cultura de massa em suma, pautados no tempo
preciso dos fusos-horários.
À medida que a cidade é transformada superficialmente, cada vez mais
no espaço da propaganda, do marketing e do consumo em escala global, mais
efêmero o tempo parece se apresentar para seus habitantes.
A mercantilização do espaço urbano, transformado cada vez mais no
espaço da reprodução do capital (CARLOS, 2007), torna a percepção desse
espaço por seus habitantes superficial. Isto porque o tempo comprimido às
exigências de fluidez e velocidade da produção, do trabalho e consumo
imprime uma rotina de vida que beira à superficialidade na cidade. A cidade
passa a ser reverenciada por sua eficiência funcional no deslocamento de seus
habitantes casa/trabalho ou casa/lazer, desconsiderando as relações
intermediárias entre esses deslocamentos. A rua perde seu sentido de espaço
público, e passa a ser encarada como o espaço da circulação do automóvel ou
mesmo como o lugar do perigo e do temor (BERMAN, 1987; DA MATTA, 1997;
LEFEBVRE, 1999). A eficiência da circulação e da fluidez é medida pela
eficácia dos transportes, ou seja, o emprego mínimo de tempo em um
percurso. Decorrente desse pragmatismo, as soluções e os projetos
urbanísticos parecem obedecer a certa homogeneidade que atropela toda e
qualquer forma de subjetividade, como se todas as cidades devessem ser
iguais e estivessem baseadas em um mesmo modo de vida.
O tempo e o espaço da vida cotidiana vão sendo invadidos por
exigências que passam a organizar os momentos da vida
submetendo-os à repetição. Nesta direção, o uso do espaço,
que comporta um emprego de tempo, vai se explicitando pela
homogeneidade apoiada na medida abstrata (do tempo) que
passa a comandar a vida social. (CARLOS, 2007b: 52)
Ainda nesta linha de raciocínio:
86
Atualmente experimentamos nas grandes cidades globalizadas
uma etapa avançada do capital e seus processos maquínicos
(tecnologias avançadas) e financeiros (fluxos monetários do
mercado). Nesse sentido a maioria dos centros urbanos
oferece uma divisão de produção-consumo do espaço urbano
pelo qual estamos sempre de passagem. Esse movimento
perene de trânsito provoca uma espécie de estimulação
nervosa constante, fenômeno identificado por Georg Simmel
em seu texto clássico ―A Metrópole e a Vida Mental (1908). O
processo de individualização dessa percepção dos apelos da
cidade forja um ―outro órgão psíquico‖ sob a forma de uma
indiferença - a atitude blasé. Portanto, quanto mais
racionalizada e administrada a vida urbana se torna mais
avançamos na direção de uma indiferença anômica com os
apelos urbanos. (ESTRELLA e GONZALVES, 2006: 6)
Conforme apontou Simmel, a atitude blasé é traço de um número cada
vez maior de indivíduos inabaláveis aos apelos da cidade, ideologicamente
comandados pelo consumo e a apatia política. Esta indiferença potencializa o
sentido de uma individualidade perversa no espaço urbano, balizada pela
competição e o consumo, em que o senso comum passou a atribuir a ideia de
que o mais forte sobrevive. Esta noção difundida amplamente pelos veículos de
comunicação de massa estabelece uma ideologia que legitima a violência, o
individualismo e a segregação social.
Provavelmente Kool Killer, de Jean Baudrillard (1976), tenha sido o
pioneiro ensaio científico a partir de um olhar perplexo e curioso a respeito dos
graffitis de Nova York, escrito ainda nos anos 70, em plena ebulição desse
fenômeno. Chama atenção no texto de Baudrillard a cidade fragmentada de
Nova York dos anos 70, em guetos e áreas nobres, e de como essa
fragmentação tornou-se tão relevante na origem de movimentos sociais (luta
pelos direitos civis, os Panteras Negras, o hip-hop) que ganharam repercussão
mundial, obtendo inclusive uma série de conquistas na sociedade e frente ao
governo dos Estados Unidos. O autor aponta uma grande invasão da cidade
por uma territorialidade insurgente, oriunda dos guetos segregados e
constituídos em sua maioria por imigrantes latinos e negros, afirmando que:
E eles (os grafiteiros) não se circunscrevem ao gueto, eles
exportam o gueto para todas as artérias da cidade, eles
invadem a cidade branca e revelam que ela é o verdadeiro
gueto do mundo ocidental. (BAUDRILLARD, 1976: 3 grifos
nosso)
87
Baudrillard aponta que a ―invasão‖ dessa territorialidade ocorreu a partir
da subversão da utilização dos muros da cidade decorrente de sua visibilidade
(na paisagem), normalmente usados pela publicidade. Conduzido pelo efêmero
urbano, o graffiti parecia se rebelar contra a própria idéia de cidade como
suporte publicitário, voltando a atribuir-lhe vida e rompendo a atitude blasé de
Simmel, a partir de seus próprios habitantes. Em pouco tempo tornou-se um
problema para o restante da cidade, e um atentado à propriedade privada,
ganhando maior visibilidade quando pintados nas composições do metrô, que
circulavam por toda a cidade e que funcionavam como mídias veis dos
grafiteiros para além dos guetos. Prossegue afirmando que:
Com eles é o gueto linguístico que irrompe a cidade, como se
fosse uma revolta de signos. Na sinalização da cidade, os
graffitis até agora tinham constituído um bas-fond o baixo
mundo sexual e pornográfico a inscrição abjeta, recalcada,
dos mictórios e terrenos baldios. Os muros tinham unicamente
sido conquistados de uma forma ofensiva pelos slogans
políticos e propagandísticos, signos plenos para os quais o
muro é ainda um suporte e a linguagem um meio tradicional.
Eles não visam o muro enquanto tal, nem a funcionalidade dos
signos tal.
Sem dúvida, unicamente os graffitis e os cartazes de Maio de
68 na França se desenvolveram de outra forma atacando o
próprio suporte, conduzindo os muros a uma mobilidade
selvagem, e a uma instantaneidade da inscrição que equivalia
a aboli-los. (Ibid.)
Como foi apontado no primeiro capítulo deste trabalho, é bem provável
que a qualidade subversiva e incontrolável do graffiti, como destaca
Braudrillard, tenha durado um tempo muito curto (e ainda exista de forma
esporádica), sendo cooptado, na forma de arte, cada vez mais pelo próprio
sistema capitalista e transformado em mercadoria. A partir dessa modificação
de caráter atribuído à sua condição de artista desde os anos 80, nos Estados
Unidos, na Europa e mesmo no Brasil a partir da década seguinte, o grafiteiro
adquire um papel mais ambivalente na sociedade decorrente de sua ação na
cidade. O depoimento a seguir mostra justamente um dos aspectos dessa
ambivalência do grafiteiro na realidade carioca, que está, de acordo com a
grafiteira Anarkia, cada vez mais inserido em uma lógica capitalista e menos
88
disposto a corromper os valores considerados padrões, apesar de o graffiti
continuar sendo considerado uma atividade ilegal.
Quadro 4. Entrevista Anarkia 2008
Fonte: Anarkia, grafiteira do Rio de Janeiro.
Entrevista pessoal realizada em outubro de 2008.
A arte, nas suas mais diversas formas de manifestação, talvez consiga
adquirir uma capacidade mais autêntica e espontânea, por isso mesmo
revolucionária, justamente por não ter limites dentro de sua subjetividade.
Porém, a transformação dessa virtude, que a leva à condição de mercadoria,
fez com que muitos movimentos artísticos perdessem substancialmente sua
capacidade de transformação da realidade ao longo do século XX. O graffiti
agora ―domesticado‖, visto como uma manifestação artística, propicia uma
nova relação da cidade com o grafiteiro. Uma relação de maior adequação da
Autor -Você acha que o graffiti defende alguma causa ou objetivo maior?
Anarkia: Eu acho que incomodar não incomoda, porque até o policial que prende a
gente gosta. Agora eu acho que o interesse é particular de cada um. Eu acho que isso
deveria mudar porque ele tem uma ação direta nas ruas que é superior a qualquer
outro tipo de arte. Mesmo que você não goste do graffiti, acabará olhando para ele
pelas ruas. A partir do momento em que você está expressando alguma coisa na rua,
acaba influenciando a forma como as pessoas pensam. Se influencia as pessoas,
pode mudar a forma como aquela pessoa pensa. Pode mudar a cultura de massa.
Pois tem muito problema no Brasil que vem da forma como as pessoas pensam.
Como o racismo... São coisas simples que não mudam porque as pessoas têm aquela
cabeça bitolada. O graffiti é uma ferramenta. A arte, mais do que a política, tem o
poder de transformar socialmente, porque transforma culturalmente. A arte pode
mudar a forma como as pessoas agem. Todas as pessoas que trabalham com arte,
graffiti, deveriam ter essa consciência. Que não têm! O graffiti tem esse lado muito
comercial e capitalista como existindo agora, mas ele veio como anticapitalista.
Era a fala de uma minoria excluída, aí o próprio sistema cooptou aqueles que tinham
uma fama maior e adaptou segundo seus moldes. A partir do momento em que eles
estão adaptados foi retirada a voz daquela minoria, que continua abafada. Eles
incomodavam quando estavam grafitando os trens em Nova York, chamando a
atenção para aquela problemática dos jovens. Tinham os grafiteiros que falavam
pelos jovens, e depois que foram para as galerias eles deixaram de ser representados,
pois nem todos faziam o graffiti.
Aqui também tem aqueles que não querem saber se tem o poder de
transformação ou não... eles querem se inserir no sistema e ganhar o dinheiro deles.
89
cidade ao grafiteiro e deste à cidade, que segundo as palavras da grafiteira
Anarkia ―não incomoda‖, referindo-se à sua capacidade cada vez menor de
subversão da ordem instituída.
2.3. O grafiteiro e a formação de uma identidade territorial
O ano de 2005 é tido como emblemático, entre os grafiteiros, como uma
mudança radical na forma de produzir e fazer graffitis, em especial no Rio de
Janeiro. Recorremos ao depoimento da grafiteira Anarkia para ilustrar o fato.
Quadro 5. Entrevista Anarkia 2008.
Fonte: Anarkia, grafiteira do Rio de Janeiro.
Entrevista pessoal realizada em outubro de 2008.
Anarkia aponta como a chegada das tintas Montana ao mercado será
um fator de diferenciação no nível de produção estética em relação aos graffitis
no Rio de Janeiro. Uma nova geração de grafiteiros passa a constituir, por volta
de 2005, esta identidade com a chegada e o relativo acesso às tintas e a
materiais importados de maior qualidade em relação ao nacional utilizado até
então, citados pela grafiteira. Conforme apontado anteriormente, o graffiti
carioca existe desde meados da década de 90, porém ganha maior
notoriedade com o incremento estético das produções e a maior possibilidade
Autor - Você comentou (antes da entrevista) sobre a “geração Montana”.
Gostaria que você explicasse um pouco mais.
Anarkia: A gente fala que geração Montana é o pessoal que começou a grafitar
depois que tinha a tinta Montana no mercado. O que foi uma revolução no nível
técnico. E até mesmo das coisas que as pessoas faziam. Mas eu acho que, junto com
essa revolução da Montana, veio a revolução da internet, câmera digital.
Antigamente os grafiteiros não tinham esses acessórios e o graffiti era outro. A
geração Montana tem como característica a mudança tanto da técnica quanto de
material (tecnologia). Você tirar sempre foto e colocar na internet, Fotolog...
A - Quando tem início essa geração?
Anarkia: Isso daí é de 2005 para cá (2008)... A Montana veio para o Rio no
primeiro semestre de 2005, ali por volta de maio, junho. Mas teve uma galera que
demorou a se adaptar...
90
de divulgação via meios de comunicação digitais. A sua popularização passou
a criar uma espécie de demanda pelo graffiti, caracterizada, entre outras, pela
constituição de mais oficinas em diferentes localidades da cidade (ver capítulo
III).
Foi justamente nesse período que eu comecei a praticar o graffiti, e
posso ser ―classificado‖ como oriundo dessa ―geração Montana‖ de grafiteiros
identificada por Anarkia. Meu interesse vinha de algum tempo, porém alguns
fatores ainda limitavam a minha aproximação efetiva com o universo do graffiti.
Primeiro eu imaginava que fazer graffiti era uma experiência muito arriscada e
que a qualquer instante seria autuado pela polícia, o que remetia a uma
possível autorização a ser concedida. Deveria pedir autorização ou
simplesmente pintar e esperar o que poderia acontecer? O que falar caso a
polícia chegasse?
O segundo fator limitante era a falta de conhecimento mais preciso da
técnica do graffiti. Apesar de ter alguma noção de desenho, o graffiti
pressupunha o uso de materiais distintos como latas de tinta spray, para serem
usadas sobre superfícies grandes. Como de fato eram feitos desenhos de
precisão considerável com material tão volátil e de difícil manuseio?
Há algum tempo já sabia da existência de oficinas de graffiti na Fundição
Progresso, localizada no bairro da Lapa, Centro do Rio. A Fundição Progresso
é um amplo espaço cultural responsável por uma diversidade de atividades
culturais, desde shows de música, passando por apresentações teatrais até
oficinas de dança, capoeira, circo e graffiti. O grafiteiro Airá O Crespo aponta,
em seu depoimento, uma cronologia das oficinas que ocorreram nesse espaço
cultural, mais especificamente em um galpão dentro da Fundição, onde
funcionava o Centro Interativo de Circo (CIC), uma ONG responsável por
projetos sócio-culturais.
91
Quadro 6. Entrevista Airá O Crespo 2008.
Fonte: Airá O Crespo, grafiteiro do Rio de Janeiro.
Entrevista pessoal realizada em novembro de 2008.
Comecei a frequentar o espaço, cujas aulas eram semanais e,
principalmente, gratuitas. Durante o curso eram ministradas aulas sobre técnica
de desenho, e eventualmente havia pinturas em tapumes de madeira e
paredes do próprio espaço cultural por convidados (Crews e grafiteiros
individuais) para um grupo de 15 a 20 alunos em média, em sua grande
maioria homens, com poucas mulheres entre eles. O grupo tinha uma faixa
etária aproximada de 15 a 25 anos, ou seja, jovens em sua maioria. A
composição racial era feita por negros, apresentando uma leve superioridade
numérica, em relação a brancos e pardos. De uma forma geral a composição
das turmas, observadas no ano de 2006 e posteriormente em 2007, era
bastante heterogênea neste quesito. Tanto as origens quanto a localização das
residências desses alunos eram muito variadas, espalhadas por diferentes
bairros das zonas Norte, Sul e Oeste do Rio de Janeiro, e até mesmo de
municípios da Baixada Fluminense. Esse aspecto demonstra uma composição
variada quanto às classes sociais as quais pertenciam os alunos, que iam
desde moradores de favelas, certamente com uma renda mais baixa, passando
por membros de uma classe média, como eu, até mesmo alguns poucos
estrangeiros europeus, com um poder aquisitivo certamente mais elevado.
As oficinas não apresentavam uma frequência rígida e coesa em suas
turmas. Abertas ao público, eram constantemente visitadas por outros
grafiteiros convidados dos professores, pichadores, pesquisadores
(antropólogos, estudantes de artes, geógrafos), repórteres, ativistas ligadas à
cultura hip-hop, ao movimento negro, ou mesmo pessoas interessadas em
aprender a arte do graffiti. Dessa mistura, que variava de um aluno para o
Autor - Com relação às oficinas que tiveram na Fundição Progresso... Como foi
esse processo?
Airá - Foram acertos com indivíduos. A primeira oficina que teve aqui no CIC foi de
Carlinho e Natydread em 2001. Em 2002 teve a OficiNação, com a Nação Crew, que
era na rádio Fundisom. Em 2003 ficou parado. 2004 começou com o Ema no espaço
do CIC. 2005 com o Acme. 2006 foi o Ment. 2007 com o Preás. 2008 com o Rimas e
tintas.
92
outro, quanto à experiência e ao contato com a própria técnica e o material,
diferentes formas de comportamento podiam ser observadas, demonstrando a
diversidade de características existentes entre os grafiteiros e a sua
sociabilidade. Talvez mais do que uma escola para ―formar‖ grafiteiros, a
oficina funcionava como importante ponto de encontro, diálogos, reuniões,
divulgação de eventos e conhecimento, devido a sua própria centralidade no
contexto da cidade.
No decorrer das aulas, a cada semana, conhecia mais pessoas ligadas
ao universo do graffiti. Eu ia me familiarizando com a forma de falar, de se
vestir, os gostos musicais, os interesses políticos, as influências artísticas e
tudo o mais que assaltava a minha percepção naqueles encontros. Notando
uma grande diversidade de gostos e interesses, passei a me questionar até
que ponto aquilo tudo era familiar. Notei que, apesar de algumas afinidades
mais espontâneas que tive com alguns dos ―alunos‖ e com os grafiteiros
―professores‖, o que interesse e gosto comum que nos unificavam era o graffiti
propriamente dito. Alguns eram atuantes, outros ainda estavam em busca de
seus primeiros traços, mas todos compartilhavam durante os momentos das
aulas os conhecimentos e as experiências relacionadas ao graffiti transmitidas
através desse contato pessoal.
Definir então o grafiteiro como uma identidade talvez seja uma tarefa um
tanto complexa. Seria possível definir quais aspectos são mais relevantes para
constituir o perfil social de um grafiteiro? Pode-se notar que, na experiência
descrita anteriormente, havia uma grande diversidade aparente dentro de uma
turma de futuros grafiteiros, bem como de todos os indivíduos que possamos
chamar de grafiteiros propriamente ditos. Essas características foram
notabilizadas, principalmente, durante os trabalhos de campo, e as oficinas
foram um ótimo ―laboratório‖ para a observação participante. Podemos com
isso observar, inclusive, mais um fator de diferenciação dentro do próprio
grupo, que é a distinção por geração ou tempo de atuação. Existiria então
algum elemento comum aos grafiteiros em geral, denotando-lhes alguma
particularidade ou fator distintivo, ao ponto de lhes atribuir uma identidade?
Utilizando Haesbaert, podemos a princípio assim apontar a identidade:
93
A identidade, em primeiro lugar, pode tanto estar referida a
pessoas como a objetos, coisas. Em segundo lugar, ela implica
uma relação de semelhança ou de igualdade. Este talvez seja
seu maior paradoxo: encontrar a igualdade num ―objeto‖ ou
―pessoa‖, ou seja, defini-la a partir de características que a
revelem na sua totalidade, na sua ―inteireza‖, encontrar um
significado, um sentido geral e comum. Esta busca do igual, do
idêntico, pode ser trocada pela busca do ―verdadeiro‖, do
―autêntico‖, como se a verdade fosse uma e indivisível. Se a
identidade de um indivíduo é dificilmente encontrada e, mais
dificilmente ainda, revelada, uma identidade mais ampla,
envolvendo um grupo de indivíduos ou mesmo uma ―cultura‖ ou
―civilização‖, pode ser uma temeridade. (HAESBAERT, 1999:
173)
O autor toca em um ponto de suma importância nesta etapa da
pesquisa, quanto à impossibilidade de se estabelecer uma identidade,
autêntica, verdadeira ou exclusiva de indivíduos ou grupos específicos.
Concordamos com esta dificuldade, e acrescentamos a ela as seguintes
palavras de Hall:
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade
unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto
não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias e não-resolvidas. Correspondentemente, as
identidades, que compunham as paisagens sociais ―lá fora e
que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as
―necessidades objetivas da cultura, estão entrando em
colapso, como resultado de mudanças estruturais e
institucionais. O próprio processo de identificação, através do
qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se
mais provisório, variável e problemático.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceitualizado
como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente.
A identidade torna-se uma ―celebração móvel‖: formada e
transformada continuamente em relação à formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais
que nos rodeiam. (HALL, 2006: 13)
O que parece estar em questão é justamente essa fragmentação
identitária do indivíduo contemporâneo, cujos efeitos da globalização fazem-se
sentir, por exemplo, na cultura.
Assim como é muito impreciso definir uma classe social específica, bem
como etnia, gênero e faixa etária, mesmo que alguns desses atributos tenham
maior representatividade de alguns setores sociais, para classificarmos como
94
um perfil social do grafiteiro, o mesmo ocorre em relação à cultura. Não
efetivamente um segmento cultural ao qual possa ser relacionado ao grafiteiro.
Mesmo concordando com RODRIGUES (2003, 2009) e OLIVEIRA (2004,
2006), em que o graffiti se estabelece como um dos elementos constituintes da
cultura hip-hop, não unanimidade em afirmar que os grafiteiros pertençam
ou mesmo atuem como ativistas ligados exclusivamente ao movimento hip-hop.
No depoimento contido no quadro 7 (a seguir), da grafiteira Anarkia, é possível
notar estes aspectos contraditórios, tal qual discute Hall (2006).
Quadro 7 Entrevista Anarkia 2008.
Fonte: Anarkia, grafiteira do Rio de Janeiro.
Entrevista pessoal realizada em outubro de 2008.
Na fala da grafiteira uma tendência ideológica aproximando-a dos
valores do hip-hop, ou melhor, na qual ela mostra identificar-se com os valores
defendidos pelo hip-hop, o que o quer dizer que ela atue diretamente como
Autor - Qual é a relação do graffiti com o hip-hop?
Anarkia: Hoje você pensa o graffiti sem hip-hop. Ele ganhou uma autonomia.
Tanto que o hip-hop esteve muito na moda, e hoje em dia essa moda existe,
mas não é tão forte quanto a do graffiti. O graffiti transcendeu o hip-hop e
ganhou autonomia. O graffiti é hip-hop, ele fez parte dessa evolução que eu
falei, dele ser uma coisa ilegal, foi se adaptando e de repente virou até
ferramenta para a sociedade. Do mesmo jeito que ele evolui da questão da
legalidade, ele evolui na questão do hip-hop. Ele vai a partir do hip-hop, foi
integrado a essa cultura, dentro da idéia de hip-hop, e depois ganhou os rumos
que ele quis dar para ele mesmo. Tem gente que é do hip-hop e tem gente que
não é, mas todos podem fazer o graffiti.
Autor - Eu digo isso por mim, eu faço graffiti, mas não pertenço ao
movimento do hip-hop ou mesmo tenho preferência por ouvir rap... Eu
conheço muitas pessoas que são assim também.
Anarkia: Eu não gosto de rap, porque o meu ouvido não aguenta. O cara fica
falando e eu não entendo nada. Mas eu me considero do hip-hop por causa da
ideologia.
(...)
Eu acho que eu sou do movimento (hip-hop) pois estou movendo alguma coisa.
Acho que o meu movimento é mais de arte mesmo, apesar de isso ser cultura
também. Eu utilizo o graffiti, que é um elemento do hip-hop, mas não para
movimentá-lo diretamente.
95
ativista desse movimento social, tal qual ela mesma afirma no final de sua fala.
Sendo assim Haesbaert afirma que:
Identificar, no âmbito humano-social, é sempre identificar-se,
um processo reflexivo, portanto, e identificar-se é sempre um
processo de identificar-se com, ou seja, é sempre um processo
relacional, dialógico, inserido numa relação social.
(HAESBAERT, 1999: 174)
Dentro desta noção, especialmente a partir de sua vinculação com o
hip-hop, o graffiti passou a ser identificado com os espaços populares, em
especial com as favelas no Rio de Janeiro. Essa identificação deriva em parte
de uma caracterização negativa atribuída às favelas como lugar da miséria, da
sujeira e da marginalidade (SILVA, 2002). A formulação desse discurso, por
algum tempo, desqualificou o graffiti, e o próprio hip-hop, como uma cultura
marginal originada nos espaços populares, justamente por apresentar tais
características. Por outro lado, conforme apontam Oliveira (2006) e Rodrigues
(2009), o hip-hop se territorializou em favelas e periferias urbanas brasileiras,
especialmente das grandes metrópoles, em função de uma identificação com
os guetos das cidades americanas, nos quais se deu a sua origem, e que
constituíam aproximações sócio-econômicas (ver capítulo I).
A identificação do graffiti à favela, ou melhor, do grafiteiro ao favelado,
não corresponde hoje (e talvez nunca tenha sido) a um dado preciso. A partir
dos trabalhos de campo e das observações participantes desenvolvidas nas
oficinas (CIC e Casa de Cultura Laura Alvin), foi possível notar uma variedade
no perfil social que passou também a compor uma identificação com o graffiti,
como, por exemplo, de indivíduos de classe média e até mesmo de alto status
social. Vê-se então que outras classes sociais passam a identificar-se com o
graffiti e o hip-hop, antes cultura marginal das favelas e espaços populares,
justamente quando estes diminuem o seu teor revolucionário, sendo
literalmente incorporados ao sistema, tornando-se mercadoria. (Ver quadro 4 e
7)
A questão da diferenciação entre classes sociais, e especialmente a
diferenciação de renda que as separa, permeia e torna a própria identidade do
grafiteiro contraditória, pois cria disparidades quanto à aquisição de material e
96
formula distintas reivindicações. No âmbito desta pesquisa seria incoerente e
leviano afirmar que existe um único objetivo coletivo que perpasse todos os
grafiteiros. No entanto, é possível notar que o grafiteiro, mesmo diminuindo sua
ação subversiva na cidade, atua cada vez mais em projetos engajados em
causas sociais, movidos por distintas reivindicações
26
.
À medida que o graffiti diminuiu seu teor subversivo, ampliou sua
legitimidade na sociedade como um todo. Dessa forma, é cada vez mais difícil
identificar uma unidade na composição identitária dos grafiteiros, seja na
questão da diferenciação de classes sociais e nível de renda, seja na
composição de gênero ou raça.
O tempo de atuação é outro fator interessante a ser notado como um
elemento de destaque e distinção entre os grafiteiros. Conforme apontado no
quadro 5, é descrito pela grafiteira um momento de diferenciação entre uma
geração e outra de grafiteiros, tendo em vista que este movimento ocorre
mais de uma década na cidade. Este aspecto é notabilizado pelo novo acesso
mais amplo a materiais e recursos tecnológicos que ampliam as possibilidades
de fazer o graffiti. O grupo que surge a partir desse momento é intitulado pela
grafiteira de ―Geração Montana‖. Os grafiteiros da geração anterior são
também chamados de ―Velha Escola‖ do graffiti carioca, que teve seu epicentro
no município de São Gonçalo, a partir de grafiteiros locais ainda nos anos 90.
Cabe ressaltar que esta diferenciação estabelece uma forma de
comportamento entre os grafiteiros, e entre eles os da ―Velha Escola‖
desfrutam de maior prestígio entre os mais novos, justamente pelo tempo de
atuação, o que é considerado um atributo diferencial.
Outro aspecto que Haesbaert aponta para definir uma identidade social
é o reconhecimento de um grupo frente a sua alteridade. A partir da distinção
entre práticas e comportamentos podemos diferenciar grafiteiros de pichadores
em um contexto urbano da metrópole carioca. Entre estes dois grandes grupos
26
Ver por exemplo “Grafiteiras pela Lei Maria da Penha”, projeto social que articulou em torno da
questão da violência contra a mulher um grupo de grafiteiras reunidas pela ONG Com Causa. No projeto
foi desenvolvido um grande painel pintado por grafiteiras experientes e iniciantes no município de Nova
Iguaçu, Baixada Fluminense, com o intuito justamente de capacitar as mais novas como promotoras e
divulgadoras populares da referida lei em escolas e outras instituições a partir da ferramenta do graffiti.
Ver: <www.comcausa.org.br/noticias/grafiteiras_promotoras.htm> acessado em 08/11/2009. Lei Maria da
Penha (Lei nº 11.340/06).
97
compostos por indivíduos de distintos perfis raciais, de gênero, idade e classe
social e local de residência é possível identificar formas de organização e
atuação interna. Cada um é composto por pequenos grupos que variam, em
geral, de 3 a 20 integrantes. A identificação desses grupos é feita nas próprias
intervenções, com a assinatura de sua sigla ou símbolo funcionando como
afirmação de sua existência e representatividade na paisagem. Mais
especificamente no caso dos grafiteiros, estes pequenos grupos organizados
são também chamados de crews. A seguir o citadas algumas crews com
atuação mais antiga ou de maior destaque na cidade do Rio de Janeiro: Nação
Crew, FleshBeck Crew, Posse 471, Destruidores do Visual, Comando Selva,
Plantio Crew, El Nino Crew, Santa Crew, Tu viu, Coletivo Natural, TPM
Crew, entre muitas outras.
Fig. 18 O símbolo da Nação Crew “falado” pela personagem.
Imediações da Leopoldina. (Foto: Leandro Tartaglia - 2008)
98
Fig. 19 Graffiti assinado pela Santa Crew (em branco no alto) feito no ano
de 2005 Proximidades da Rua da Carioca Centro.
(Foto: Leandro Tartaglia 2006)
99
A seguir destacamos dois depoimentos de grafiteiros cuja atuação é feita
coletivamente, em conjunto com uma ou mais crews.
Quadro 8 Entrevista Acme 2008.
Fonte: Acme, grafiteiro do Rio de Janeiro.
Entrevista pessoal realizada em junho de 2008.
De acordo com Acme, sua atuação pode ou não ser feita com as crews.
Não uma exclusividade, principalmente quando o graffiti está relacionado
aos trabalhos comerciais. O elo entre os membros de uma crew é mais
simbólico, pautado por amizade e companheirismo, de acordo com Acme. Da
mesma forma o grafiteiro aponta a sua dupla atuação como grafiteiro e
Autor - Você está envolvido com alguma crew ou prefere pintar sozinho?
Acme: Eu tenho um pensamento sobre a crew que as pessoas podem achar que é de
repente errado. Mas é que eu sou um cara sincero. Eu visualizo que a crew é uma
ponte com várias pilastras de sustentação. Na qual vagabundo ao mesmo tempo
trabalha unido e pode trabalhar sozinho também. Para mim a crew é realmente uma
família, mas o que predomina é a amizade acima de qualquer espécie. Se eu arrumei
um trabalho, num quer dizer que eu tenha que colocar a minha crew nele e tenha que
dividir o meu dinheiro com eles. A minha parada de comercial é uma coisa. Crew é
família, portanto não tem que ficar ligado em valores. Valores do coração e não de
espécie, dinheiro. Porque neguinho tem um pensamento de crew aí, com uma visão do
graffiti capitalista, que não me engana. Eu sou sincero com isso. Eu tenho meus
amigos de verdade. Que eu considero realmente são todos fiéis, eu faço parte da
“Rimas e Tintas”, que é realmente a minha parada comercial que eu tenho declarada
com o Airá e com Machintau. Mas também faço parte da Kings Destroyers”, que é
do Coper2, maluco que é novaiorquino do Brooklyn, sinistro das antigas, que eu tive a
honra de ser convidado para entrar nessa crew dele. Veio um gringo aqui para o Brasil
fazer uma triagem, porque ele está a fim de estender a parada pelo mundo,
selecionando uma galera para fazer parte dessa crew. Me convidou, convidou o Gloye,
o Ozon. Para mim é uma honra ser convidado para participar de uma crew de um cara
que eu admirei quando estava começando a grafitar. O cara é realmente old school do
bagulho (graffiti), tem maior respeito com o graffiti. Para mim isso é que vale, é o
respeito acima de qualquer parada. De fama... Porque se as pessoas consideram ele, é
porque ele é uma pessoa boa. Uma outra também é “Destruidores do visual” (DV),
que é uma crew na qual tem pichador, uma galera muito grande mas que não se
encontra direto, mas representamos a sigla. Que é um bagulho que vem na minha
pichação desde 1994, e venho carregando essa parada para o graffiti até porque eu não
vejo diferença nessa história. Para mim o grafiteiro é tão marginal quanto o pichador,
porque ao mesmo tempo em que você faz um trabalho comercial, o graffiti é bonito e
tal, mas você não pode grafitar onde se quer. Vai sempre ser regulado, vonão está
livre não. E é isso, eu acho isso normal, eu acho que a sociedade tem direito de
escolher o que ela vai querer.
100
pichador, afirmando não conceber diferença entre as práticas, apesar de fazer
distinção entre os grupos. Também se declara participante de três crews
distintas, ―Rimas e Tintas‖, ―King Destroyers‖ e ―Destruidores de Visual‖, todas
compostas por diferentes membros.
Quadro 9 Entrevista Airá O Crespo 2008.
Fonte: Airá O Crespo, grafiteiro do Rio de Janeiro.
Entrevista pessoal realizada em novembro de 2008.
Airá relata sua experiência com uma das mais significativas crews de
grafiteiros cariocas, a Nação. Surgida a partir da união de distintos grafiteiros
da Zona Norte da cidade, a Nação Crew é considerada uma das precursoras
do graffiti no Rio de Janeiro, juntamente com a FleshBeck Crew. Conforme o
Autor - Você faz parte da Nação Crew?
Airá: A Nação se reuniu espontaneamente por volta do ano 2000. Tem o Chico que
idealizou o símbolo (Ver figura 17) e deu o nome. O Braga que dava aula no
AfroReggae. O Preás levou o Chico para assistir a essas aulas e formou-se essa base.
Eu e o Ment fazíamos graffiti com o Braga. O Gás, o Stile e o Chiquinho faziam
graffiti com o Preás. Tudo mundo foi se integrando até montar o time. Seguimos uns
três anos firme. Em 2004 começaram a surgir uns trabalhos e o foco começou a se
dividir entre o trabalho e a pintura na rua. A galera foi ficando mais velha, tendo que
tomar responsabilidade, tendo filho. Então a coisa começou a mudar. Em 2005
surgiram diferenças. Conflitos de interesse. 2007 deu uma dispersada na galera.
Continua sendo uma referência grande e forte, mas tem uma galera que está mais
junta e outra mais separada. No início foi mais romântico, mais untado. Depois
quando começou a surgir responsabilidade, interesses e conflitos, dispersou.
Continua sendo uma crew. Tem um pessoal que ainda sai para pintar, outros se
afastaram, outros não colam muito. Vários casos.
A - O que representou essa crew nesse momento mais romântico?
Airá: Quando você está junto de pessoas que fazem a mesma coisa que você, ainda
mais no início, isso lhe motiva. É uma maneira de você manter o desejo aceso e ao
mesmo tempo um desafio, com competições sadias. Quando você olha que um cara
está produzindo, você quer alcançá-lo. Um incentivo para se desenvolver. Teve uma
importância crucial porque nós fazíamos em qualquer lugar e a galera gostava. Isso
gerou uma repercussão.
A - A Nação foi como uma família para você?
Airá: Teve uma afinidade boa. Poderia ter siso melhor se nós soubéssemos levar de
outra forma. Muitas crews aqui no Rio quando começa esse lance de misturar
trabalho com amizade, desanda por que não está preparada. Uma galera carente que
nunca teve nada. Daí quando começa a ter alguma coisa e não tem uma estrutura
psicológica para poder coordenar junto o que isso demanda. começam as
vaidades...
101
grafiteiro aponta, houve um momento mais romântico, em seus primeiros anos,
pautado certamente por maior solidariedade entre seus membros. A partir de
certo momento, teriam ocorrido divergências entre os integrantes, fazendo o
grupo perder sua coesão. Mesmo ainda existindo, a Nação Crew não tem a
mesma atuação como no passado recente.
No entanto, o que de fato estabelece uma unidade entre os grafiteiros é
o fato de que, para se tornar um deles, o pressuposto é fazer o graffiti, ou seja,
imprimir suas marcas na paisagem, preferencialmente pelas ruas de sua
própria cidade. Em outras palavras, o grafiteiro se constitui a partir de sua
ação, ou mais especificamente, de sua intervenção artística no espaço urbano.
Sem a impressão de suas grafias na paisagem urbana não há como atribuir-lhe
tal qualificação.
O grafiteiro, ao imprimir suas marcas na cidade, tenta manter viva a
memória de sua própria ação (e também coletiva), ou mais especificamente, de
apropriação do que considera o seu território, ou seja, o espaço urbano como
um todo. O grafiteiro da ―Velha Escola‖ somente desfruta de maior prestígio
diante dos demais se mantiver a longevidade de suas marcas, atualizando-as.
O grafiteiro precisa superar a própria efemeridade do tempo-espaço urbano
para estabelecer sua apropriação constantemente na(s) cidade(s), e seu
reconhecimento perante os demais grafiteiros é obtido quanto mais ininterrupta
e prolongada for a sua ação. Por isso concordamos com Baudrillard quando ele
afirma que:
O que estes nomes reivindicam não é uma identidade, uma
personalidade, mas sim a exclusividade radical do clã, do
bando, da gang, da faixa de idade, do grupo ou da etnia, que
como sabemos, passa pela devolução do nome e pela
fidelidade absoluta a este nome, a esta apelação totêmica,
mesmo se ela provém diretamente dos comics underground.
(BAUDRILLARD, 1976: 03)
Para Baudrillard (op. cit): “A revolta, nestas condições, está inicialmente
em dizer: Eu existo, eu sou tal, eu habito esta ou aquela rua, eu vivo aqui e
agora‟”. O autor não destaca a diferença entre os grupos de grafiteiros e
pichadores conforme discutido anteriormente ou em outras publicações
(TARTAGLIA, 2007). Mas, apesar das distintas formas de apropriação do
102
espaço urbano, os pichadores, e nesse caso, principalmente os grafiteiros,
veem a cidade como seu território (HAESBAERT, 2004), mesmo reconhecendo
os limites que esta possa apresentar. Aqui vemos o território conforme
Haesbaert, para o qual é definido por um espaço delimitado por relações de
poder, de um sentido mais simbólico até seu lado mais material e funcional.
Neste ponto a cidade, e para além dela, englobando o espaço urbano na
perspectiva de uma sociedade urbana (LEFEBVRE, 2006), apresenta aspectos
materiais e funcionais (ruas, edificações, muros, praças, pilastras, trens,
metrôs) sujeitos à apropriação simbólica (decorrente da relação cidade-
grafiteiro e da constituição de sua identidade). Evidentemente isto não
caracteriza um controle sobre esse território, mas simboliza a insurgência de
pessoas que adotam uma forma de comportamento menos conformista,
dispostas a atuar em sua própria cidade, constituindo assim uma identidade.
Os graffitis, como marcas simbólicas da apropriação do espaço urbano pelos
grafiteiros (marcas de sua territorialidade), precisam necessariamente de
visibilidade. Esta é sua principal característica e daí advém a relevância da
paisagem (BERQUE, 2004; NOGUÉ, 2007; SILVA, 2001) nesta análise.
Fig. 20 Auto-afirmação - Seguidamente o grafiteiro repete o seu
personagem, valorizando a sua conquista exclamando: Eu! Avenida
Radial Oeste Maracanã. (Foto: Leandro Tartaglia 2009)
Conforme a discussão elaborada até este ponto, na qual se percebe
uma multifacetada identidade do grafiteiro, deve-se destacar que, em razão
103
desse aspecto, a intervenção no espaço urbano carioca é difusa, aleatória e,
na maioria dos casos, pouco definida entre bairros e limites territoriais
institucionais (municípios, estados, países). De acordo com os fatos apontados
anteriormente, de um modo geral o espaço urbano carioca pode ser visto como
o território do grafiteiro, porém a favela continua sendo uma referência
identitária, tanto para o graffiti, quanto para o hip-hop. Novamente recorremos a
Souza (2008) para apontar a fragmentação sócio-espacial existente na
metrópole carioca, e afirmar a existência de enclaves territoriais ilegais
especialmente em espaços populares. Cabe salientar que, apesar de
assemelhar-se ao processo de demarcação e o controle territorial feita por
gangues de grafiteiros em Nova York através de símbolos, os grupos de
narcotraficantes e milícias em seus respectivos territórios (SACK, 1986;
SOUZA, 1996) nada têm a ver com a atuação dos grafiteiros na cidade do Rio
de Janeiro. Recentemente, o trabalho e as intervenções cada vez mais
frequentes de grafiteiros em favelas tornaram suas vielas um pouco mais
coloridas, demonstrando que, apesar de não partilhar dos objetivos das
facções criminosas, essas territorialidades coabitam simbolicamente os
mesmos espaços populares.
Fig. 21 Graffiti retratando um suposto bandido que diz: “É muito esculacho
nessa vida” – Territorialidades convivendo no mesmo espaço Ladeira dos
Tabajras Copacabana 2008. (fonte: Leandro Tartaglia)
104
Fig. 22 Grafiteiros pintando casa durante o mutirão de graffiti “Artitude II”
ocorrido na Ladeira dos Tabajaras 2008 Relação simbólica graffitifavela.
(Foto: Leandro Tartaglia)
2.4. A abrangência do fenômeno
O final do ano aproximava-se rapidamente no passar do calendário, pois
estávamos no s de novembro de 2008. Comecei a pintar em 2006, quando,
entre outros fatores, me envolvi mais profundamente com o graffiti em
decorrência da própria pesquisa que passei a fazer. Havia alguns meses que
eu recebia mensagens anunciando o que seria, talvez, o maior evento de
graffiti do Rio de Janeiro (não apenas da cidade). Além disso, ouvia outros
grafiteiros comentando sua expectativa ou seus projetos quanto ao ―Meeting of
Favela‖, o mutirão de graffiti que estava em sua terceira edição, e acontecia
anualmente na cidade de Duque de Caxias, região metropolitana do Rio de
Janeiro. Organizado e divulgado pela crew Posse 471, oriundo da própria
localidade, o mutirão ganha proporções nacionais e, até mesmo, internacionais
durante a sua realização, que tem a duração de um dia inteiro.
A mobilização é grande, pois envolve, além dos grafiteiros, os próprios
moradores da comunidade, que cedem suas próprias casas para serem
105
pintadas pelos grafiteiros, em um evento que também dispõe de música (Dj´s e
aparelhagem de som) e alimentação (desjejum e almoço) gratuita (ver capítulo
III). Nos blogs, fotologs e oficinas, o que mais se ouvia comentar, entre os
grafiteiros, nos meses de outubro e novembro era o acontecimento do grande
―Meeting of Favela‖.
A localização mais precisa era a favela da Vila Operária próxima ao
Centro de Duque de Caxias, e as coordenadas para se chegar ao evento
pareciam pouco precisas. Domingo matinal, dirigi-me para o terminal rodoviário
da Central do Brasil. De é possível embarcar em diversas linhas de ônibus
intermunicipais, que se dirigem principalmente para os municípios da Baixada
Fluminense.
A chegada ao local onde se realizaria o ―Meeting‖ foi tranquila. As
pessoas, em sua grande maioria moradores da área, realizavam suas
atividades de fim de semana normalmente. Naquele dia, porém, uma leva cada
vez maior de visitantes, que poucas vezes, ou nenhuma (o meu caso), tinham
ido a ali, começava a circular pela comunidade com uma aparência
descontraída (roupas despojadas, mochilas, bonés e tênis), porém ainda pouco
à vontade. Subi as vielas da favela a partir do ponto de refencia descrito no
convite digital, chegando até o ponto de encontro, praticamente no alto do
morro, onde era possível se ter uma bela vista panorâmica da cidade até o Rio
de Janeiro. Dentro e ao redor das instalações de uma escola pública, estavam
muitos jovens que pareciam ser participantes do evento, somados ao
movimento intenso dos moradores da comunidade. Uma breve reunião foi feita
com os participantes que estavam presentes, para tirar possíveis dúvidas e
estabelecer diretrizes.
Comecei a circular por algumas vielas no entorno da escola. Era
possível observar uma série dessas vielas ―tomadas‖ por grafiteiros e
grafiteiras pintando as fachadas das casas. Andei mais um pouco e achei um
local que me parecia adequado para fazer minha pintura. Concedida a devida
autorização do morador para pintar sua casa, me dei conta da dimensão do
evento em que eu estava inserido, à medida que eu via cada vez mais
grafiteiros, oriundos de diferentes localidades e cidades, chegando e
procurando um lugar para pintar.
106
Fig. 23 Do alto da Vila Operária avista-se a paisagem panorâmica e o
Rio de Janeiro bem ao fundo. Casa escolhida para fazer o meu graffiti (canto
esquerdo da foto) e seus moradores (no centro) Duque de Caxias 2008.
(Foto: Leandro Tartaglia)
Fig. 24 Vielas repletas de grafiteiros misturados aos moradores durante o
Meeting of Favela Vila Operária Duque de Caxias 2008.
(Foto: Leandro Tartaglia)
107
A região metropolitana do Rio de Janeiro foi instituída no ano de 1974,
pela Lei Complementar federal 20/74, com o intuito de se estabelecer um
planejamento urbano e solucionar problemas sociais e de infraestrutura
derivados do crescimento populacional na capital e nos municípios em seu
entorno. Essas problemáticas tornaram-se mais evidentes, na cidade e nos
seus arredores, na medida em que o espaço urbano passava por um processo
de expansão, decorrente da descentralização das atividades industriais e da
periferização da população de baixo status social, em busca de habitação em
terrenos loteados e vendidos por baixo custo no mercado imobiliário (ABREU,
1987). Criada durante o governo militar, a região metropolitana foi modificada
em sua lista de municípios originalmente concebida, e engloba hoje as
seguintes cidades: Rio de Janeiro, Belford Roxo, Duque de Caxias,
Guapimirim, Itaboraí, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Niterói, Nova Iguaçu,
Paracambi, Queimados, São Gonçalo, São João de Meriti, Seropédica e
Tanguá (ver mapa 1).
A cidade do Rio de Janeiro exerce uma forte polarização econômica e
cultural sobre os demais municípios e, de resto, sobre o restante do Estado
do Rio de Janeiro (DAVIDOVICH, 2001). A partir dos eixos viários e ferroviários o
fluxo de circulação de pessoas entre essas cidades apresenta uma grande
intensidade diária. Tendo em vista que a cidade do Rio de Janeiro detém uma
concentração das atividades de trabalho, estudo e lazer, os demais municípios
tornam-se muitas vezes cidades-dormitórios para o grande contingente de
população que por ali circula diariamente.
Dessa forma, pode-se dizer que:
No Brasil, uma particularidade decorre, certamente, de uma
metropolização do espaço ímpar na América do Sul, que
envolve duas regiões metropolitanas próximas, São Paulo e
Rio de Janeiro, cada qual com mais de 10 milhões de
habitantes. A análise empírica tem revelado que a presença de
aglomerações urbanas de tal porte determina um efeito de
"contaminação" de um entorno que se define a uma certa
distância da região metropolitana por efeito da acessibilidade;
entorno esse estruturado pela desconcentração de indústrias e
de atividades diversas, atendendo a complementaridades
técnicas entre o pólo principal e os outros centros e, também, à
elevação de custos de reprodução na metrópole, em função do
congestionamento, do preço do solo urbano ou da violência,
entre outros problemas. (...) Parece válido, mais uma vez,
assinalar que a metropolização do espaço compreende, não
108
a região metropolitana, mas um em torno contíguo definido
pela acessibilidade e pela circulação. (DAVIDOVICH, 2001: 68)
Em um estudo realizado sobre a Cidade do México, que aponta uma
série de semelhanças com o processo de urbanização observado a partir da
cidade do Rio de Janeiro, Aguilar demonstra que:
En términos territoriales, la mega-ciudad presenta en la
actualidad una expansión más policéntrica a través de centros
y subcentros urbanos, siguiendo un patrón de red que tiende a
ampliarse a lo largo de las principales carreteras y/o vías
férreas que en forma radial salen del centro de la gran ciudad.
En los intersticios de este patrón surge una mezcla de usos del
suelo en una región expandida, donde la agricultura tradicional
se puede encontrar al lado de nuevos proyectos de vivienda
urbana, parques industriales, desarrollos corporativos, sitios de
recreación y toda clase de desarrollos suburbanos. De esta
forma, una nueva arquitectura y configuración espacial del
desarrollo metropolitano emerge. (AGUILAR, 2002)
Já tendo sido capital da República e até a década de 1950 deter o status
de maior cidade do Brasil, a partir dos anos 1970 o Rio de Janeiro apresentou
um processo de reestruturação da produção, alterando significativamente a sua
morfologia urbana e social, característico da própria globalização pela qual o
sistema capitalista passou a imprimir sua lógica ao redor do mundo (SANTOS,
1996). O que foi demonstrado até então é como o processo de urbanização, ou
mais especificamente de metropolização
27
a partir da cidade do Rio de Janeiro,
ultrapassa os limites territoriais dos municípios, incorporando-os, através de
uma conurbação entre cidades, a um sistema de rede urbana cuja circulação
de pessoas, capitais e informações influencia diretamente o comportamento e o
cotidiano nos mais distintos aspectos sociais.
Limonad defende que:
É nossa hipótese geral, portanto, que o urbano tende a
extravasar os limites da aglomeração física (cidade) e da
concentração e ganhar uma abrangência territorial com a
aglomeração disposta em múltiplos núcleos com uma grande
diversidade. As práticas e relações urbanas ultrapassam os
limites físicos da aglomeração (...) (LIMONAD, 1996: 27)
27
Nas ultimas três décadas o processo de urbanização acentuou-se de forma considerável no
Brasil, implicando uma drástica mudança no modo de vida dos habitantes das cidades. Milton Santos
(2008 [1993]) aponta o processo de metropolização pelo qual cidades como o Rio de Janeiro obtiveram
um incremento populacional incrível nas ultimas décadas, constituindo verdadeiras cidades milionárias.
109
Para além de uma análise pautada exclusivamente na economia política
da urbanização no Rio de Janeiro, compreender como esse processo influencia
igualmente a vida cultural de seus habitantes faz-se necessário. A propagação
da cultura dos graffitis por uma área mais ampla do que a própria delimitação
territorial da cidade pode ser avaliada dentro dessa perspectiva. Assim
Lefebvre aponta que:
O tecido urbano pode ser descrito utilizando o conceito de
ecossistema, unidade coerente constituída ao redor de uma ou
de várias cidades, antigas ou recentes. Semelhante descrição
corre o risco de deixar escapar o essencial. Com efeito, o
interesse do ―tecido urbano‖ não se limita à sua morfologia. Ele
é o suporte de um ―modo de viver‖ mais ou menos intenso ou
degradado: a sociedade urbana. Na base econômica do ―tecido
urbano‖ aparecem fenômenos de uma outra ordem, num outro
nível, o da vida social e ―cultural‖. Trazidas pelo tecido urbano,
a sociedade e a vida urbana penetram nos campos.
Semelhante modo de viver comporta sistemas de objetos e
sistema de valores. Os mais conhecidos dentre os elementos
do sistema urbano de objetos são a água, a eletricidade, o s
(butano nos campos) que não deixam de se fazer acompanhar
do carro, pela televisão, pelos utensílios de plástico, pelo
mobiliário ―moderno‖, o que comporta novas exigências no que
diz respeito aos ―serviços‖. Entre os elementos do sistema de
valores, indicamos os lazeres ao modo urbano (danças,
canções), os costumes, a rápida adoção das modas que vêm
da cidade. E também as preocupações com a segurança, as
exigências de uma previsão referente ao futuro, em suma, uma
racionalidade divulgada pela cidade. Geralmente a juventude,
grupo etário, contribui ativamente para essa rápida assimilação
das coisas e representações oriundas da cidade. (LEFEBVRE,
2006: 11/12)
A sociedade urbana tal qual descreve o autor caracteriza-se por essa
absorção de valores que se manifesta em um território no qual se observa uma
homogeneização de hábitos, difundidos hoje em grande parte pelos veículos de
comunicação. O papel da metrópole torna-se fundamental como centro de
irradiação dos hábitos e valores que estão invariavelmente conectados às
diversas outras metrópoles pelo mundo. Assim, o Rio de Janeiro pode ser
compreendido por sua influência sobre uma grande área em que muitas vezes
excede a sua própria região metropolitana, graças a qual participa de uma
intensa troca cultural e econômica com diversas outras metrópoles no Brasil e
no mundo.
110
A internet propicia uma conexão direta de pequenas localidades na
periferia do Rio de Janeiro ou de outros municípios com qualquer grande
cidade do mundo, permitindo uma troca mais ampla de informações, técnicas,
e aquisição de materiais (neste caso, mais relacionados especificamente para
quem faz graffiti). Esse fator é importante para compreender hoje o aumento do
número de grafiteiros na cidade, também conhecidos como a Geração
Montana‖. Devemos destacar que, apesar da influência internacional, o graffiti
brasileiro apresenta uma diversidade de estilos derivada da realidade na qual
muitos artistas foram obrigados a improvisar materiais e técnicas para
encontrar soluções mais criativas para suas pinturas. A ppria temática dos
graffitis deriva das condições sociais e da realidade urbana em que se vive, a
partir da qual se encontra a origem de personagens e pseudônimos.
Segundo Carlos, deve-se atentar:
(...) para a construção de um pensamento sobre a metrópole
atualmente. O primeiro deles se refere à constituição de um
mundo que se define nos limites da realização de uma
sociedade urbana; o que nos coloca diante da necessidade de
redefinição do urbano colocando no centro do debate a
diferenciação cidade/urbano. Tal caminho implica em pensar o
urbano enquanto reprodução da vida em todas as suas
dimensões enquanto articulação indissociável dos planos
local/mundial - o que incluiria, necessariamente, as
possibilidades de transformação da realidade (a dimensão
virtual). a cidade permitiria pensar o plano do lugar
revelando o vivido e a vida cotidiana através dos espaços-
tempo da realização da vida. (CARLOS, 2007: 12)
Para uma definição mais objetiva a respeito do recorte espacial que se
pretende fazer nesta pesquisa, são adotados os cuidados teóricos destacados
anteriormente. O foco desta análise está na cidade do Rio de Janeiro, como
epicentro cultural, e apesar de sua centralidade, pode-se notar que uma
grande difusão por todo o tecido urbano que constitui a região metropolitana.
Conforme constatado no evento Meeting of Favela, as cidades que compõem
esse tecido urbano abrigam em seus territórios eventos e intervenções em uma
proporção semelhante à da metrópole. Nesse movimento, o espaço urbano não
apresenta fronteiras institucionais entre as cidades, e nele amplia-se, até certo
ponto, o raio de ação dos grafiteiros e por consequência sua territorialidade.
O graffiti é um fenômeno que tem esse caráter globalizado e que está
inserido em uma sociedade urbana (LEFEBVRE, 2006). Porém, Carlos (2007)
111
ressalta que é na cidade que poderá ser observada a dimensão do vivido.
Concordamos com a autora para afirmamos que é na cidade que se materializa
a produção do graffiti. O graffiti hoje evidencia a dimensão apontada por
Carlos, ao tornar público em determinados pontos da cidade do Rio de Janeiro,
por exemplo, uma manifestação que muitas vezes advém das deterioradas
condições de vida que se tem em uma rua, uma praça, um bairro ou em uma
favela. Por mais que haja uma homogeneização imposta e amplamente
propagada como um modo padrão e homogêneo da vida urbana, o graffiti
potencializa certas especificidades que caracterizam as distintas realidades
que convivem simultaneamente, o que Milton Santos (1996) chama de espaço
banal. É desta forma que as primeiras manifestações deste tipo ganham maior
vigor na cidade de São Gonçalo, localizada na região metropolitana do Rio de
Janeiro, antes mesmo de se destacar na metrópole carioca.
De acordo com Souza (2007), o graffiti pode ser considerado um reflexo
e até mesmo uma reação ao modo de se viver nas cidades brasileiras, e que
por vezes demonstra um sentido de insatisfação de toda uma coletividade de
pessoas. Obviamente não se pode generalizar tais conclusões, pois talvez o
graffiti represente para uma grande parcela da população apenas ―sujeira‖ e
―vandalismo‖, conforme descrito na lei. Mas é inegável a presença cada vez
maior de tal manifestação no espaço urbano carioca (ver mapa 1), e que se
afirma a partir de uma identificação e reconhecimento crescente de parte da
população, conforme apontam Souza e Rodrigues (2004). De acordo com
esses autores, o graffiti associado ao hip-hop está ligado a uma forma de
ativismo e mobilização popular impulsionados por condições degradantes da
realidade urbana, especialmente em favelas e periferias do Rio de Janeiro.
Dessa forma, questiona-se a violência e a ação do Estado, a discriminação
racial, a alienação pelas drogas e a degradação do meio ambiente entre muitas
outras questões pertinentes à conquista de melhores condições de vida
presentes com maior ou menor intensidade no tecido urbano do Rio de Janeiro.
Concluindo esta análise a partir da cidade do Rio de Janeiro,
enfatizamos a relação deste espaço urbano, no qual se realiza na atualidade
uma intensa produção de graffitis, com a formação de uma rede social de
grafiteiros que circulam por diferentes localidades entre o Centro, as periferias,
112
bairros nobres e favelas, literalmente grafando essas diferentes paisagens
através de ―bombardeios‖, festas, oficinas e mutirões que caracterizam sua
territorialidade.
113
3. A territorialidade dos grafiteiros no Rio de Janeiro
Este capítulo tem como objetivo fazer uma leitura geográfica da ação
dos grafiteiros enfatizando a cidade do Rio de Janeiro. Pretende-se identificar
alguns desses sujeitos a fim de analisar suas ações e comportamentos que
estejam diretamente ligados à prática do graffiti no espaço urbano. A partir dos
trabalhos de campo realizados em eventos, exposições e oficinas de graffiti foi
possível estabelecer uma observação participante, cujas informações obtidas
serão analisadas à luz de uma base conceitual que leve em conta a
organização em grupos ou individualmente, e sua relação com o espaço
urbano e a cidade. Por isso classificamos os grafiteiros como sujeitos que
firmam suas identidades territoriais na cidade, na apropriação desse espaço
urbano, obtida mediante intervenções artísticas, simbólicas e políticas. Essas
práticas podem ser compreendidas no estudo geográfico a partir do conceito de
territorialidade pelo qual será discutido a seguir.
3.1. Territorialidade e apropriação do espaço urbano
O conceito de territorialidade é hoje identificado em estudos geográficos
e de outras ciências sociais a partir de diferentes concepções epistemológicas
e ontológicas. De acordo com Haesbaert (2007), o conceito de territorialidade
deve estar sempre associado à concepção de território correspondente, que
podem ser compreendidos e trabalhados a partir de sua indistinção até a
completa separação.
Inicialmente o graffiti surge como uma maneira de delimitar os territórios
de gangues/galeras compostas majoritariamente por latinoamericanos e afro-
descendentes nos guetos da cidade de Nova York. Dessa forma Baudrillard
afirma:
Os graffitis provêm da categoria do território. Eles territorializam
o espaço urbano decodificado esta rua, aquele muro, tal
quarteirão assume vida através deles, tornando-se território
coletivo. (Baudrillard, 1976: 3)
As grafias identificadas pelas iniciais das gangues eram marcadas nos
muros, identificando seus domínios simbólicos de acordo com os bairros em
114
que residiam ou em que tinham uma atuação marginalizada em Nova York. O
que de fato marcava essa apropriação (LEFEBVRE, 1986) da cidade eram as
disputas pelo controle sobre determinados territórios cujas gangues
identificavam como seus domínios. Entre as gangues, a conquista de uma rua
ou quarteirão simbolizava um determinado arranjo territorial, marcado
especialmente pela relação entre seus membros e os grupos rivais, no qual os
graffitis simbolizavam o controle de determinados grupos sobre seus
respectivos territórios. É importante destacar que esses territórios foram
constituídos de forma ilegal, isto é, à revelia das leis e do próprio Estado norte-
americano, o que demonstra um caráter marginal das gangues.
Concordamos então com SOUZA quando afirma que: ―O território é
fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações
de poder” (1995: 78). Acrescentamos apenas que, no caso desses territórios
das gangues, tal qual demonstrado por Arce (1999), as ligações afetivas e de
identidade de um grupo social em determinadas partes da cidade foram
relevantes para estabelecer a demarcação territorial.
A delimitação territorial de gangues em cidades como Nova York, nos
Estados Unidos, ou mesmo em cidades brasileiras como Goiânia (MASSON,
2005), é feita através de seus grafismos, que demonstram a necessidade de
um controle mais rígido sobre seu pprio território. Nesse caso fica mais clara
a proposta de Sack ao afirmar que:
(...) a territorialidade será definida como a tentativa de um
indivíduo ou grupo de afetar, influenciar ou controlar pessoas,
fenômenos e relações, através da delimitação e da afirmação
do controle sobre uma área geográfica. Esta área será
chamada: o território. (SACK, 1986: 6)
A necessidade de um controle mais rígido sobre o território, que
caracteriza esse tipo de territorialidade, deu-se em razão dos conflitos e das
disputas de poder entre as gangues. Essas disputas pelo poder estavam
ligadas a interesses políticos e econômicos desses grupos, caracterizados pela
marginalidade e clandestinidade de seus membros. Longe do poder
institucional, que entra em cena somente para exercer coerção e controle
social, as gangues resolviam suas divergências, estabeleciam seus acordos e
estipulavam suas próprias regras, legitimando esse poder marginalizado pelos
guetos nos EUA. Com estratégias e conteúdos semelhantes, notamos
115
territorialidades de gangues de narcotraficantes estabelecidas em periferias e
favelas das metrópoles brasileiras.
De acordo com Raffestin (1993), a territorialidade como parte vivida do
território é definida a partir das relações de poder que cada grupo ou sociedade
constitui em um ou mais territórios. Assim o autor aponta que:
De acordo com a nossa perspectiva, a territorialidade adquire
um valor bem particular, pois reflete a multidimensionalidade do
―vivido‖ territorial pelos membros de uma coletividade, pelas
sociedades em geral. Os homens vivem‖, ao mesmo tempo, o
processo territorial e o produto territorial por intermédio de um
sistema de relações existenciais e/ou produtivistas. Quer se
trate de relações existenciais ou produtivistas, todas são
relações de poder, visto que interação entre os atores que
procuram modificar tanto as relações com o a natureza como
as relações sociais. (RAFFESTIN, 1993 (1980): 158)
Ainda seguindo o mesmo raciocínio, Raffestin exemplifica um tipo de
territorialidade:
A territorialidade de um siciliano, por exemplo, é bem
constituída pelo conjunto daquilo que ele vive cotidianamente:
relações com o trabalho, com o não-trabalho, com a família, a
mulher, a autoridade política etc. Entretanto, não é possível
compreender essa territorialidade se não se considerar aquilo
que a construiu, os lugares em que ela se desenvolve e os
ritmos que ela implica. (RAFFESTIN, 1993 (1980): 162)
Conforme o autor aponta, a territorialidade pode ser entendida como o
que constitui a vivência de uma coletividade em um determinado território. Essa
vivência está baseada em um jogo de relações simbólicas e materiais que, no
caso, o autor identifica como existenciais e produtivistas, respectivamente, nas
quais estão inevitavelmente presentes as relações de poder. O que Raffestin
coloca como prioridade para se compreender uma determinada territorialidade
deve-se aos fatores que levaram à sua constituição, à sua relação com a
localização do seu território e à maneira como se manifesta através das ações
que seus membros imprimem nas relações sociais e com o meio em que
vivem. Cabe ainda ressaltar que Raffestin, assim como Foucault (1979), atesta
que as relações de poder presentes nas demais formas de relações sociais em
hipótese alguma são inocentes. Isto demonstra a relevância de se pensar uma
territorialidade a partir das relações de poder, de tal forma que estas
116
influenciam na maneira como se constitui o comportamento em um
determinado território.
Mesmo sendo originário de uma prática territorialista nos guetos, o
graffiti, desde os anos 70 nos EUA, e posteriormente no Brasil, passou a ter
uma lógica distinta de delimitação territorial de gangues, que as circunscreviam
em áreas precisas das cidades. Ao contrário, a partir de uma lógica de difusão
e reprodutibilidade, os graffitis passaram a ser espalhados cada vez mais por
diferentes pontos da cidade. Os muros e até mesmo os metrôs foram os
suportes utilizados (BAUDRILLARD, 1976; DE DIEGO, 2000; KNAUSS, 2001).
Essa ação tinha um aspecto diferente da territorialidade das gangues, não
visava à manutenção ou ao controle sobre um território restrito, correspondente
aos bairros ou comunidades. Essa territorialidade tinha como objetivo
reproduzir exaustivamente a marca de um grafiteiro ou mesmo de uma gangue
por todo o espaço urbano
28
, imprimindo uma ação que pode ser interpretada
como uma apropriação simbólica da cidade por esses grupos.
Notoriamente, a partir do momento em que se espalharam pelas
cidades, essas inscrições em muros e outros suportes urbanos passaram a
representar um problema para as autoridades públicas. O graffiti simboliza uma
ação de afirmação de uma territorialidade de grupos e/ou indivíduos, que ao
desafiarem as normas do poder institucional acabaram sendo caracterizados
como criminosos. Enquanto as gangues restringiam-se apenas aos seus
territórios nos guetos urbanos, o graffiti recebia pouca atenção. À medida que
ganhou maior relevância política articulado pelo movimento hip-hop, passou a
representar uma transgressão da ordem.
Costa et. al. (1996) descreve de forma resumida como se comportam os
grafiteiros na cidade de Barcelona, em sua análise sobre diferentes ―tribos
urbanas‖:
(...) El joven b-boy, con una estética modernista exhibida
discretamente, es, en el fondo, un ―escritor‖ profesional del
paisaje urbano, y concibe su peculiar diversión como una
misión compulsiva capaz de utilizar cualquier tipo de superficie,
sobre todo si está prohibida, como una pantalla en la que
28
Essa reprodução exaustiva de uma marca ou registro assemelha-se à forma como artistas ligados
à pop art difundiam e reproduziam seus trabalhos. Repetiam uma imagem comum da sociedade de
consumo como produtos industrializados, logomarcas e fotografias diversas vezes ao ponto de
particularizá-los.
117
proyectar sus repetidos mensajes de autoafirmación: ―Estoy
aquí, existo…‖
Más allá de la violencia estética de ―afear‖ el entorno urbano, el
fenómeno está muy difundido en los barrios populares de
nuestras grandes ciudades y devela de hecho un panorama
caracterizado por una seria forma de ―autismo‖ de estos
jóvenes poetas urbanos, dispuestos a desafiar abiertamente las
instituciones. No tanto para poder apropiarse simbólicamente
de un espacio, como se cree comúnmente, sino, más bien, con
un doble objetivo: lúdico y existencial. (COSTA et. al., 1996:
142)
Em um estudo semelhante, Feixa (2006) tamm descreve algumas
características do comportamento de grafiteiros em grandes urbes pelo mundo:
La emergencia de la juventud, desde el período de pos-guerra,
se ha traducido en una redefinición de la ciudad en el espacio y
en el tiempo. La memoria colectiva de cada generación de
jóvenes evoca determinados lugares físicos (una esquina, un
local de ocio, una zona de la ciudad). Asimismo, la acción de
los jóvenes sirve para redescubrir territorios urbanos olvidados
o marginales, para dotar de nuevos significados a
determinadas zonas de la ciudad, para humanizar plazas y
calles (quizá con usos no previstos). A través de la fiesta, de
las rutas de ocio, pero también del graffiti y la manifestación,
diversas generaciones de jóvenes han recuperado espacios
públicos que se habían convertido en invisibles, cuestionando
los discursos dominantes sobre la ciudad. (FEIXA, 2006 (1998):
117)
Em ambas as citações fica evidente uma forma de comportamento
urbano característico de grupos juvenis que se manifestam através das
pinturas e grafismos marcando a paisagem urbana. Essa forma de
manifestação exprime uma necessidade de se opor aos padrões sociais
estabelecidos, como um comportamento transgressor observado
majoritariamente entre os jovens. Uma forma de questionamento existencial
está contida nos graffitis, isto é, uma necessidade de auto-afirmação perante a
sociedade, conforme aponta o estudo de Costa et. al. (1996). Mas esse
questionamento é, desde os seus primórdios, uma ação marginalizada,
oficializada pelos parâmetros da lei, o que exige um comportamento
clandestino de quem a pratica. Um conflito entre as relações sociais fica
evidente, o que no fundo demonstra um choque de forças presente nas
relações de poder nas cidades. Além disso, esse comportamento fica mais ou
menos evidente em determinados pontos de uma cidade, o que estabelece
uma relação direta do grafiteiro com o espaço urbano, isto é, a própria
118
localização das ações de um indivíduo ou grupo. Cabe então ressaltar outro
estudo sobre tais ―tribos urbanas‖ na Espanha, no qual Delgado e Lozano
(2004) apontam que:
El graffiti no se practica en toda la geografía española. Es una
cultura muy urbana y propia de las ciudades donde el acceso a
las pinturas y a las obras de otros es más fácil. En los pueblos
pequeños no existe la filosofía grafitera. Ni siquiera las grandes
ciudades lo tratan igual. (DELGADO e LOZANO, 2004: 86).
Aqui podemos recorrer a uma definição de Cohen, apud Feixa:
Através de la función de territorialidad la subcultura se enraíza
en la realidad colectiva de los muchachos, que de esta manera
se convierten ya no en apoyos pasivos, sino en agentes
activos. La territorialidad es simplemente el proceso a través
del cual las fronteras ambientales son usadas para significar
fronteras de grupo y pasan a ser investidas por un valor
subcultural. (…) La territorialidad, por tanto, no es sólo una
manera mediante la cual los muchachos viven la subcultura
como un comportamiento colectivo, sino la manera en que la
subcultura se enraíza en la situación de la comunidad.
(COHEN, 1972: 26-27 apud FEIXA, 2006 (1998): 117)
O que está em questão é identificar o comportamento social do grafiteiro
dentro de uma perspectiva geográfica, atribuindo-lhe uma definição mais
precisa. A territorialidade será este elo conceitual no qual se atribui
geograficidade ao estudo dos grafiteiros, tomando como referência seu
comportamento em grupo e individual, além de sua relação com o espaço
urbano, a cidade e a sociedade de maneira mais ampla.
O geógrafo francês Joel Bonemaison (2002) desenvolveu em seu estudo
sobre o arquipélago de Vanuatu a possibilidade de interpretação sobre a
territorialidade em sociedades tradicionais:
Apesar de tudo, a territorialidade de um grupo ou de um
indivíduo não pode se reduzir ao estudo de seu sistema
territorial. A territorialidade é a expressão de um
comportamento vivido: ela engloba, ao mesmo tempo, a
relação com o território e, a partir dela, a relação com o espaço
―estrangeiro‖. (...) (BONEMAISON, 2002: 107)
Apesar da grande diferença geográfica e cultural do estudo desenvolvido
por Bonemaison, a interpretação da territorialidade analisada junto aos povos
tradicionais pelo autor será aqui reportada a um contexto geográfico distinto a
cidade do Rio de Janeiro.
119
Entendemos que a territorialidade dos grafiteiros não pode ser
inteiramente compreendida apenas pelo seu sistema territorial, ou seja, em
nossa análise, compreender a ação do grafiteiro e de seu grupo somente
dentro dos limites municipais da cidade do Rio de Janeiro ou pelos fatos que
ocorrem apenas em um bairro ou localidade dessa mesma cidade, é uma
análise muito limitada. O que de fato passa a ser identificado é que a
territorialidade do grafiteiro não deve ser concebida de forma restrita, limitada a
um território do estado ou institucional. Mais do que isso, ela incorpora-se ao
próprio espaço urbano, em praticamente toda a sua abrangência, como seu
território. A territorialidade se torna, conforme aponta Bonemaison, a
expressão de um comportamento vivido no caso dos grafiteiros, um
comportamento vivido no espaço urbano.
Haesbaert afirma que:
Na verdade, como fica mais nítido no seu grande trabalho
empírico sobre a ilha de Tanna, no arquipélago de Vanuatu
(Bonemaison, 1997) trata-se mais de uma territorialidade ou
mesmo, em suas palavras, de uma ―ideologia do território‖ do
que do território em sentido estrito. Cabe aqui, então,
distinguirmos território e territorialidade espacialmente para
reconhecermos que esta, independente ou não da efetivação
de um território, tem papel cada vez mais relevante.
(HAESBAERT, 2007: 24)
Assim, a definição mais adequada para o que chamamos de
territorialidade dos grafiteiros será caracterizada pela seguinte afirmação de
Haesbaert:
A territorialidade, no nosso ponto de vista, não é apenas ―algo
abstrato‖, num sentido que muitas vezes se reduz ao caráter
de abstração analítica, epistemológica. Ela é também uma
dimensão imaterial, no sentido ontológico de que, enquanto
―imagem‖ ou mbolo de um território, existe e pode inserir-se
eficazmente como estratégia político e cultural, mesmo que o
território ao qual se refira não esteja concretamente
manifestado como o conhecido exemplo da ―Terra
prometida‖ dos judeus, territorialidade que os acompanhou e
impulsionou através dos tempos, ainda que não houvesse,
concretamente, uma construção territorial correspondente.
(ibid.: 25)
A definição que Haesbaert (2007) propõe a respeito da territorialidade
será aqui utilizada balizando o que iremos definir como a territorialidade dos
grafiteiros na cidade do Rio de Janeiro. Esta deverá ser compreendida a partir
120
da imprecisão de limites territoriais para os grupos e/ou indivíduos que fazem o
graffiti no Rio de Janeiro, distinguindo-se da proposta de Sack (1986), que
delimita mais precisamente a territorialidade de um grupo, a partir do controle
de acesso ao seu próprio território. O grafiteiro desenvolve uma relação
simbólica com o espaço urbano, mais especificamente com a cidade, mas não
prescinde de suas estruturas físicas (muros, pilastras, edificações...) para
grafitar certos pontos de acordo com interesses diversos, sejam eles
existenciais, poticos ou ligados ao trabalho. Nesta ação de afirmação social
que imprime na cidade, o grafiteiro simboliza a sua existência e representa de
alguma forma uma rie de pensamentos e idéias compartilhados
coletivamente, mesmo que seja apenas com seu grupo. Isto fica mais evidente
no depoimento contido no quadro 10, a seguir.
Quadro 10. Entrevista Airá - O Crespo 2008.
Fonte: Airá O Crespo, grafiteiro do Rio de Janeiro.
Entrevista pessoal realizada em novembro de 2008.
A partir da concepção de que o graffiti é a expressão plástica da
territorialidade do grafiteiro manifestada na cidade, ganha destaque a idéia de
intervenção urbana como uma forma de caracterizar esta territorialidade que se
afirma através da ação de grafar a paisagem urbana (BERQUE, 2004, NOGUÉ,
2007; SILVA, 2001). De acordo com Andreoli:
Produto comum às cidades (não somente neste nosso mundo,
como também em muitas épocas diferentes) os grafismos
urbanos são a intervenção direta, quase sempre uma atividade
manual, sobre superfícies dentro de espaços de circulação
coletiva, decorando-as com escritas e outros registros de
gestos. (ANDREOLI, 2006: 71)
Airá: Mas o grafiteiro para mim é a publicidade do povo. Eu falo por milhares de
pessoas que pensam da mesma forma que eu. Outro amigo fala por outros milhares
de pessoas que pensam como ele. Nós representamos linhas de pensamento. Então
tem grafiteiro crente, roqueiro, do hip-hop, bandido, marginal, mauricinho,
playboy... Quando o cara vai botar a mensagem dele na rua, ele representa uma
linhagem, uma galera que está como ele. Isso daí nada mais é do que o povo na rua.
Converge toda uma linha de pensamento para aquela ação. A ação faz uma marca.
Aquela marca vai sendo assimilada por muitas outras pessoas, cada um com sua
leitura, que fazem diferentes interpretações. É uma mensagem espontânea que quer
ocupar, multiplicando-se e sendo vista.
121
Segundo a proposição do autor, o graffiti, que está inserido na definição
de grafismos urbanos, se faz por meio da intervenção direta. Esse processo
pode ser também entendido dentro da perspectiva do que Lefebvre chama de
apropriação do espaço. Como uma espécie de direito à cidade, esta
apropriação pode ser entendida da seguinte forma:
O direito à cidade se manifesta como forma superior de
direitos: direito à liberdade, à individualização na sociedade,
ao habitat e ao habitar. O direito à obra atividade
participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito á
propriedade) estão implicados no direito à cidade.
(LEFEBVRE, 2006: 135)
Haesbaert discute o que seria o conceito de apropriação e dominação
para Lefebvre:
Lefebvre distingue apropriação de dominação (―possessão‖,
―propriedade‖), o primeiro sendo um processo muito mais
simbólico, carregado das marcas do ―vivido‖, do valor de uso,
o segundo mais concreto, funcional e vinculado ao valor de
troca. (HAESBAERT, 2007: 21)
O conceito de apropriação simbólica de Lefebvre (2006) será aqui
utilizado como atributo teórico do que chamamos de intervenção no espaço
urbano, sendo esta uma característica marcante da territorialidade dos
grafiteiros.
A rua
Para se compreender a territorialidade do grafiteiro e o sentido de
intervenção como uma apropriação simbólica, a rua destaca-se pelo seu
significado particular como espaço público que dispõe de estruturas edificadas
e urbanizadas utilizadas como suporte para as intervenções. Além disso, a rua
como categoria de análise, discutida a partir de distintos pontos de vista nas
ciências sociais como em BERMAN (1987), DA MATTA (1997), LEFEBVRE
(2006) e CARLOS (2007), demonstra uma grande relevância quanto ao estudo
da sociabilidade, das formas de comportamento de indivíduos e grupos, bem
como de sua relação simbólica com o espaço urbano.
Marcados nos dias de hoje pela impessoalidade e o fluxo, a rua e os
espaços públicos em geral são percebidos pela indiferença e o distanciamento
da vivência cotidiana fechada ―intramuros‖ (CARLOS, 2007; SOUZA, 2008).
122
Este espaço é marcado cada vez mais em nossos dias pelo individualismo,
quando não pelo medo, de forma que Lefebvre aponta a necessidade de se
conceber a rua a partir de suas virtudes:
Não se trata simplesmente de um lugar de passagem e
circulação. (...) É o lugar (topia) do encontro, sem a qual não
existem outros encontros possíveis nos lugares determinados
(cafés, teatros, salas diversas). Na rua, teatro espontâneo,
torno-me espetáculo e espectador, às vezes ator. Nela efetua-
se o movimento, a mistura, sem os quais não vida urbana,
mas separação, segregação estipulada e imobilizada.
(LEFEBVRE, 1999: 27)
Da mesma forma Carlos apresenta outra perspectiva de como se pode
entender a rua neste contexto urbano, com destaque para as metrópoles
brasileiras:
Para nós um mundo que se revela nas ruas da metrópole.
Nas ruas o presente nos assedia, traz a marca dos itinerários
às vezes dispersos, difusos ou mesmo concentrados definidos
pela vida cotidiana.
Podemos afirmar que a vida aí é inesgotavelmente rica e plena
de energia é o nível do vivido. Na rua encontra-se não a
vida, mas os fragmentos de vida, é o lugar onde o homem
comum aparece ora como vítima, ora como figura intransigente
e subversiva. No movimento da rua encontra-se o movimento
do mundo moderno. (...) Finalmente na rua se tornam claras as
formas de apropriação do lugar e da cidade, e é aí que afloram
as diferenças e as contradições que permeiam a vida cotidiana,
bem como as tendências de homogeneização e normatização
impostas pelas estratégias do poder que subordina o social.
(CARLOS, 2007: 51)
É nesse sentido que iremos tratar a relevância da rua para se
compreender a territorialidade dos grafiteiros na cidade do Rio de Janeiro. A
rua ganha destaque pela sua qualidade enquanto espaço público e pelo fluxo
metropolitano, que atribuem um importante valor simbólico às intervenções que
são feitas nesses locais. Ressaltamos então o sentido de apropriação simbólica
desse espaço pelo grafiteiro, como uma forma de uso, ora marginalizado e ora
apreciado, na qual está presente a noção de atividade participante
(LEFEBVRE, 2006). Lefebvre, ao citar determinadas formas de apropriação da
rua aponta:
Na rua, e por esse espaço, um grupo (a própria cidade) se
manifesta, aparece, apropria-se dos lugares, realiza um tempo-
espaço apropriado. Uma tal apropriação mostra que o uso e o
123
valor de uso podem dominar a troca e o valor de troca. Quanto
ao acontecimento revolucionário, ele geralmente ocorre na rua.
Isso não mostra também que sua desordem engendra uma
outra ordem? O espaço urbano da rua não é o lugar da
palavra, o lugar da troca pelas palavras e signos, assim como
pelas coisas? Não é o lugar privilegiado no qual se inscreve a
palavra? Onde ela pôde tornar-se ―selvagem‖ e inscrever-se
nos muros, escapando das prescrições e instituições?
(LEFEBVRE, 1999: 27/28)
Existem normas instituídas como códigos de ética entre os grafiteiros e
também pichadores, na qual essas distintas territorialidades acabam
convivendo no espaço urbano. As regras tentam estabelecer pequenos
acordos visando a minimizar os conflitos entre as diferentes territorialidades
que coabitam o mesmo espaço urbano.
Assim como a criação de normas e valores éticos, o graffiti aponta para
uma nova forma de se conceber o espaço urbano, pautado pela atividade
participante. Nas ruas o graffiti ganha a sua forma mais espontânea e
selvagem, imprimindo uma dimensão política na ação dos grafiteiros.
3.2. A territorialidade dos grafiteiros: Formas de ação e
apropriação
De acordo com a proposta conceitual sugerida anteriormente a respeito
da territorialidade dos grafiteiros e da apropriação do espaço urbano, este item
será composto por uma descrição mais precisa de como se manifesta este
comportamento na cidade do Rio de Janeiro, fundamentado a partir da
pesquisa empírica e da observação participante.
Inicialmente, identificam-se quatro maneiras de ação que hoje estão
presentes de forma direta entre os grafiteiros cariocas, e que são definidas a
partir da relação que se estabelece entre o grafiteiro e a cidade. Classificadas
como bombardeios, mutirões, exposições e oficinas de graffiti, estas
representam algumas formas de apropriação do espaço urbano pelo grafiteiro,
demarcando sua territorialidade. Cabe ressaltar que essas são características
elementares identificadas metodologicamente como forma de criar uma
unidade para demonstrar como se manifesta e organiza a territorialidade dos
124
grafiteiros na cidade do Rio de Janeiro em nossa análise. É inegável que existe
uma série de outros atributos possíveis que também podem caracterizar o
grafiteiro, mas iremos enfocar essas características pela possibilidade de se
estabelecer uma relação geográfica do grafiteiro com a cidade.
3.2.1. Bombardeios: O graffiti selvagem
As ações diretas são comumente denominadas pelos grafiteiros de
bombardeios. A expressão bombardear ou bomb originou-se na cidade de
Nova York durante os anos 70, no período de maior controle e repressão dos
governos ao graffiti (KNAUSS, 2001). Os grafiteiros eram severamente
perseguidos e reprimidos pela polícia especializada, além do fato de o graffiti
ser considerado socialmente um ato de depredação e vandalismo do espo
urbano. Cunhou-se a palavra bombardeio por se caracterizar literalmente como
um ataque rápido e imprevisível a determinados pontos da cidade.
No Brasil, o bombardeio popularizou-se, semelhante à prática da
pichação nas cidades, que se multiplicou no espaço urbano atingindo espaços
públicos, monumentos, construções de grande valor histórico, áreas de grande
circulação de pedestres e de automóveis, bem como em propriedades privadas
identificadas por residências, sedes de empresas, bancos, estabelecimentos
comerciais, entre outros.
É a proibição que caracteriza o bombardeio de uma superfície. Sendo
assim, grande parte dos graffitis que estão expostos na paisagem urbana, em
áreas públicas e/ou privadas, é bombardeio. Isto se justifica pelo fato de não
terem sido autorizados seja pelo poder público ou pelos proprietários
particulares. No entanto, com a proliferação dos graffitis pela cidade, podemos
dizer que a sua proibição é cada vez menor, o que torna a própria ação de
bombardeio mais relativa. Pois se não proibição, é possível ainda se falar
em bombardeio?
O procedimento
Normalmente o bombardeio é realizado em horários noturnos, mais
especialmente em horários em que haja pouca (ou nenhuma) circulação de
pessoas pelo local que irá sofrer a intervenção. Quanto maior for a
125
―invisibilidade‖ do grafiteiro que estiver fazendo um bombardeio, aumentam a
suas chances de não ser flagrado, interrompido ou detido
29
. Bombardear
qualquer parte da cidade é uma ação criminosa e por isso sua realização deve
ser bastante ágil e pouco explícita, ao passo que os resultados estéticos das
intervenções buscam obter uma ampla visibilidade na paisagem urbana.
Outro elemento importante é o anonimato do grafiteiro camuflado por
trás das letras e dos personagens característicos dos bombardeios. Apesar das
assinaturas (tags) que identificam o autor do graffiti, sua verdadeira identidade
está ao alcance de um pequeno grupo que de fato o conhece. Assinaturas
como Acme ou Eco são anônimas para a maioria das pessoas que as veem
nas ruas criando uma indefinição da verdadeira identidade deste autor. Quem
de fato está por trás dessas assinaturas? Será apenas uma pessoa ou um
grupo de pessoas que responde por este codinome? São jovens, adultos,
homens ou mulheres?
Na maioria dos casos a tag demonstra uma exclusividade de um
grafiteiro, ou seja, sua assinatura é repetida por ele mesmo diversas vezes em
diferentes lugares com o objetivo de mostrar sua pecia e capacidade de
afirmação visual na paisagem. Quanto mais assinaturas houver espalhadas
pela cidade, mais ―reconhecimento‖ o grafiteiro poderá obter. Esta notoriedade
pode ser obtida de uma maneira positiva entre o seu grupo e admiradores em
geral, ou mesmo negativa perante aqueles que consideram a ação um tipo de
vandalismo. Esta é uma questão que envolve a subjetividade de quem e
interpreta o graffiti, uma temática que não iremos aprofundar nesta pesquisa.
A ambiguidade dos codinomes é um fator utilizado propositalmente para
despistar possíveis antagonistas ou mesmo criar uma atmosfera de indefinição
de quem seja o verdadeiro responsável pelos bombardeios, o que muito se
assemelha ao comportamento dos pichadores na própria cidade do Rio de
Janeiro (SOUZA, 2007). Dessa forma, pode-se afirmar que o reconhecimento
ou mesmo a notoriedade que o grafiteiro busca é a do seu registro (o graffiti) e
não da sua verdadeira identidade. Para o grafiteiro, o mais importante não é
29
De acordo com o código penal, o infrator da lei ambiental 9.605/98 (o grafiteiro) deverá ser
punido através do pagamento de cestas básicas, prestação de serviços comunitários, multa e/ou até mesmo
de três meses a um ano de detenção (ver anexo 1).
126
que saibam quem ele é de fato, mas que reconheçam e identifiquem a sua
marca.
Abaixo são demonstradas algumas imagens de diferentes formas de
bombardeio, do mais simples ao mais elaborado, feitos pelo grafiteiro Eco em
diferentes pontos da cidade. Eco utiliza tanto letras, indicando seu pseudônimo,
quanto personagens caracterizando também a sua marca.
Fig. 25 Eco bombardeia “sozinho”, como ele mesmo menciona
(graffiti à esquerda), empregando letras mais simples em diferentes pilastras -
Praça da Bandeira. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
127
Fig. 26 Bombardeio de “Eco” e “Fame”: ilegal e elaborado – Tijuca.
(Foto: Leandro Tartaglia 2009)
Para que seja caracterizado o bombardeio de um muro ou outra
superfície qualquer na cidade, seja ele público ou privado, é preciso que o
graffiti seja proibido
30
. De uma forma bem semelhante à do pichador, o
grafiteiro arrisca-se a pintar sobre tal superfície proibida em virtude da
aventura, desobediência e ilegalidade contidas nesta ação. Mais uma vez o
bombardeio assemelha-se à pichação, caracterizando, inclusive, uma estética
mais simples dos trabalhos. Normalmente são feitas assinaturas ou tags dos
autores ou crews em dimensões ampliadas e visivelmente notórias. Alguns
painéis mais elaborados também podem ser frutos de bombardeios, sendo
menos comuns que as letras e os personagens, devido à necessidade de
tempo que estes exigem para serem feitos. Por isso os painéis são
normalmente desenvolvidos em locais previamente autorizados, e não são
considerados bombardeios.
O bombardeio pode assumir um caráter de protesto se o grafiteiro tem
como objetivo fazer uma intervenção em uma instituição pública contra o
governo, tal qual eram feitos os grafismos no Brasil durante o período da
30
Tendo em vista que algumas superfícies passaram a ser autorizadas mais recentemente, nestas, o
graffiti perde seu sentido original de subversão e não é considerado bombardeio, e sim painel de graffiti.
128
ditadura militar. Também pode ser um graffiti feito com o intuito de se agredir
diretamente uma empresa ou instituição privada proprietária de um imóvel.
Estes tipos de bombardeio feitos por grafiteiros são pouco comuns na cidade
do Rio de Janeiro. Mesmo assim, nota-se uma intencionalidade presente na
entrevista concedida por Acme (ver quadro 11). Abaixo um bombardeio
―simples‖ de Acme.
Fig. 27 Bombardeio de Acme e Cove Tijuca.
(Foto: Leandro Tartaglia 2008)
Quadro 11. Entrevista Acme 2008.
Fonte: Acme, grafiteiro do Rio de Janeiro.
Entrevista pessoal realizada em Junho de 2008.
129
A localização
Normalmente os grafiteiros que fazem os bombardeios se baseiam em
critérios mais aleatórios de dispersão pelo espaço urbano, tal qual a pichação,
muito mais motivados pela espontaneidade e o espírito de aventura presente
ao infringir a lei. O principal objetivo dos bombardeios é a dispersão máxima de
graffitis pela cidade ou para além do seu limite territorial, adentrando até
mesmo outros municípios e estados. O bombardeio é tradicionalmente o
elemento mais subversivo da territorialidade dos grafiteiros, especialmente pelo
seu caráter mais agressivo. Os bombardeios são feitos em uma quantidade
máxima de locais, ampliando as possibilidades de visualização de seus
graffitis.
A paisagem urbana (BERQUE, 2004; NOGUÉ, 2007. SILVA, 2001)
torna-se um recurso para a manifestação desse aspecto da territorialidade dos
grafiteiros na cidade do Rio de Janeiro. Portanto, a visibilidade obtida na
paisagem é um elemento vital para se compreender a disposição das pinturas
por diferentes pontos da cidade. A paisagem na qual observamos os
bombardeios é normalmente aquela que compreende os espaços públicos da
cidade. Isto porque uma maior possibilidade de apropriação do grafiteiro no
espaço público em relação ao privado, sem que este seja repreendido ou
interrompido enquanto está fazendo o seu graffiti. Os espaços públicos o os
principais pontos onde os bombardeios costumam ser feitos, e
consequentemente por onde este aspecto da territorialidade tende a ser
percebido, decorrente do menor controle do poder público. O bombardeio em
áreas privadas torna-se mais arriscado devido a um maior grau de segurança e
zelo que estes locais têm, dispondo muitas vezes de vigilantes particulares
armados.
A partir da análise de campo, na qual está embutida a noção de
visibilidade na paisagem e apropriação do espaço urbano (público e privado),
destacamos os seguintes eixos e pontos de localização dos graffitis na cidade:
A) vias de trânsito rápido; B) ruas de intensa circulação de pedestres; C)
praças e áreas de lazer.
130
A) Vias de trânsito rápido: São Importantes avenidas de grande e
média extensão, onde um intenso fluxo de automóveis e transportes de
passageiros ao longo do dia. Não há necessariamente uma circulação de
pedestres equivalente à de automóveis por estas vias.
Fig. 28 Pilastras “bombardeadas” com letras e tags Avenida Alfred Agache
Praça XV. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
Fig. 29 Pilastras “bombardeadas” com personagens – Descida do
Elevado Paulo de Frontin Rio Comprido. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
131
B) Ruas de intensa circulação de pedestres: São importantes vias de
circulação por onde transitam regularmente durante o dia muitos pedestres,
que podem ou não ter um intenso fluxo paralelo de automóveis.
Fig. 30 Dutos de ar do Metrô bombardeados por personagens e letras
Largo da Carioca Centro. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
Fig. 31 Bombardeio de Eco na porta de um espaço comercial
Praça Saens Peña Tijuca. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
132
C) Praças e áreas de lazer: São logradouros públicos dotados ou não
de infra-estrutura capaz de atender às necessidades de lazer e entretenimento
da população. Em sua maioria, encontram-se disponíveis ao acesso público,
podendo ter seu acesso restringido em determinados horários. Recebem um
variável número de frequentadores e transeuntes ao longo do dia.
Fig. 32 Pequena praça pública próxima à estação de metrô São
Francisco Xavier Tijuca. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
Fig. 33 O graffiti e o hip-hop constituem territorialidades próximas à
dos skatistas Pista de Skate Estácio. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
133
O controle urbano
A patrulha policial é o principal inibidor dos bombardeios no espaço
urbano, que cabe à polícia o controle da lei e da ordem pública. Em um
procedimento padrão, o grafiteiro autuado em flagrante pela polícia deve ser
encaminhado à delegacia, na qual será fichado por crime ambiental. No
entanto, a ação policial coíbe muitas vezes de forma ilegal o grafiteiro. Não é
raro um policial recorrer a recursos como extorsão, ameaças, além de
agressões físicas e verbais. Os depoimentos a seguir ilustram um pouco dessa
relação tensa entre o grafiteiro e a polícia.
Quadro 12. Entrevista Smoky 2008.
Fonte: Smoky, grafiteiro de São Gonçalo.
Entrevista pessoal realizada em outubro de 2008.
Quadro 13. entrevista Airá O Crespo 2008.
Fonte: Airá O Crespo, grafiteiro do Rio de Janeiro.
Entrevista pessoal realizada em novembro de 2008.
Autor - Você acha que existem pontos na cidade que permitem uma maior
possibilidade de se fazer o graffiti sem qualquer incidente com a polícia?
Existem lugares mais vigiados?
Airá O Crespo - Acho que isso acaba refletindo como um todo. Se você vai na
Zona Sul, pequenos delitos que são cometidos passam mais batidos do que se
estivessem na Zona Oeste ou na Baixada. Na Zona Sul está perto do foco de
visibilidade. Provavelmente em áreas de alto poder aquisitivo os caras (polícia) vão
ter uma postura e uma abordagem mais sutil. Mais amistosa do que num local onde
eles sabem que é um local de pessoas de origem mais humilde. Não só para o
graffiti, mas usando drogas ou outros tipos de transgressão é mais sutil a abordagem.
Pode ser alguém importante, ou pode ter alguém observando. Quando acontece uma
coisa dessas na Zona Oeste ou na Baixada é “terra de ninguém”. A lei é ali na hora.
Pode acontecer de liberar, mas se o cara quiser fazer o julgamento final ali mesmo,
vai ficar por isso mesmo.
134
Conforme aponta Airá O Crespo no fragmento de sua entrevista (Quadro
13), existe uma diferenciação de tratamento por área da polícia para com a
sociedade em geral, e em particular com aqueles que comentem delitos. Como
fora apontado anteriormente, o graffiti é um delito que pode ocorrer em
qualquer parte da cidade, tal qual um bombardeio inesperado.
Porém, fica bastante evidente que o tratamento que a polícia emprega
em diferentes partes da cidade está relacionado ao nível social de seus
moradores e dos frequentadores presentes em cada localidade. Airá comenta
que pequenos delitos, como o graffiti, acabam não sendo rigorosamente
punidos nos bairros das classes média e alta, localizados, por exemplo, na
Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Logicamente, existe um limite até onde
esse graffiti pode ser feito, ou seja, ele é permitido contanto que não haja
queixa contra o grafiteiro. Não uma regra clara. A aceitação ou rejeição do
graffiti vai depender do grau de identificação que a vizinhança manifestar.
Mesmo que seja autuado pelo delito, na Zona Sul ou no Centro da cidade o
grafiteiro terá um tratamento mais brando e provavelmente dentro da
legalidade, decorrente do alto grau de ―visibilidade‖ pública a que essas áreas
estão sujeitas ou pela possibilidade de o grafiteiro ter algum parentesco de
status social elevado. Dessa forma, o grafiteiro sofrendo algum tipo de
tratamento arbitrário, poderia gerar queixas e punições aos policiais envolvidos
na ação.
nas zonas periféricas da cidade, identificadas pela Zona Oeste e
grande parte da Zona Norte, ou mesmo em direção a outros municípios da
região metropolitana do Rio de Janeiro, o tratamento policial em relação ao
grafiteiro (e à sociedade) seria bastante diferenciado, segundo Airá.
Aparentemente isto decorre da própria diferenciação de status social que estas
áreas apresentam em relação aos bairros mais nobres da cidade. Com isso, a
polícia seria capaz de fazer outras formas de justiça com aqueles que
descumprem a lei, de maneira arbitrária e sem ética, que por vezes descamba
para um nítido abuso de poder e da violência. Além da segregação social
decorrente do poder aquisitivo, outro elemento que permite este tipo de ação
da pocia na periferia da cidade é a atribuição de uma ―terra de ninguém‖. Com
isso, ali a aplicação da lei não se dá de forma universal, mas segundo valores e
135
interesses específicos, discriminando cada indivíduo de acordo com questões
raciais, sociais e de renda.
O grafiteiro consegue hoje criar argumentações baseadas na emergente
aceitação do graffiti, apesar de estar efetivamente praticando uma ação
transgressora da lei como o bombardeio, que permite a sua liberdade de ação,
mesmo que momentânea, diante da polícia
31
. O depoimento a seguir ilustra
uma dessas possibilidades.
Quadro 14. Entrevista Anarkia 2008.
Fonte: Anarkia, grafiteira do Rio de Janeiro.
Entrevista pessoal realizada em outubro de 2008.
3.2.2. Mutirões: O graffiti comunitário
“Lá fora o graffiti tem o mesmo valor da pichação aqui. A tag existe, mas
é uma brincadeira, não é igual no Rio que o pessoal é pichador “profissional”
de pichação. o graffiti é colorido, mas equivale à pichação daqui. O pessoal
tem horror ao graffiti. Geralmente nos países mais pobres, como na América
Latina, a aceitação é maior. Eu acredito que por causa de tantos problemas
que existem. Ao fazer graffiti as pessoas acabam valorizando. Aqui se eu me
sinto no direito de pintar a parede de outra pessoa eu pinto achando que eu
31
Esta liberdade, muitas vezes, só é possível mediante o pagamento de propinas aos policiais.
Autor - Você já foi repreendida pela polícia?
Anarkia: Várias vezes, mas assinar o artigo não. Se você tem uma boa conversa
pode conseguir convencer o policial de que se está fazendo um bem e não
vandalismo.
Autor - Em alguma situação em especial?
Anarkia: Com o pessoal da Nação na Praça da Bandeira passou logo um general da
policia e parou. Ele era um cara inteligente e disse que nós não poderíamos fazer
aquilo porque sem autorização é pichação. Vai todo mundo para a delegacia. E
mandou um subordinado nos levar. Mas conseguimos desenrolar com ele, pois o
Chico da Nação alegou fazer vários projetos sociais com o AfroReggae... Além
disso, ele tinha dito que o que nós estávamos fazendo era bonito. Também numa
fábrica abandonada na Penha, eu estava pintando e um policial chegou afirmando
que ali era patrimônio dele. Depois de muita conversa, eu lhe dei um dinheiro que
ele nunca conseguiria comprar tinta para cobrir minha pintura. Daí ele me deixou
terminar o graffiti e foi embora.
136
vou estar fazendo um bem para ela que de repente não tem condições de
melhorar sua casa. todo mundo tem dinheiro para pintar suas paredes e
deixar tudo bonito, nesse caso se você pintar, vai ser numa de vandalismo
mesmo. Coisa da individualidade do primeiro mundo.”
Fonte: Anarkia, grafiteira do Rio de Janeiro.
Entrevista pessoal realizada em outubro de 2008.
Existe uma diferença bem clara quanto à intencionalidade das ações dos
grafiteiros quando se trata de dois espaços claramente fragmentados dentro da
cidade do Rio de Janeiro: o ―asfalto‖, identificado pelos bairros, e as favelas
32
,
ou seja, a cidade formal e informal (SILVA, 2006 (2002)). Notoriamente a
territorialidade do grafiteiro no ―asfalto‖ se caracteriza pelo bombardeio como
um ataque à cidade. É interessante notar como esta concepção de atacar a
cidade es presente nos grafiteiros em diferentes espaços urbanos pelo
mundo (BAUDRILLARD, 1976; ARCE, 1999; DE DIEGO, 2000; KNAUSS,
2001; DELGADO e LOZANO, 2004; FEIXA, 2006; ANDREOLI, 2006;
TARTAGLIA, 2007).
Porém, a idéia de ataque à cidade tem sido relativizada, o que de fato
tem constituído novas formas de intervenção dos grafiteiros em seus
respectivos espaços urbanos. Assim como os bombardeios, os mutirões
também constituem a territorialidade dos grafiteiros cariocas, onde as
semelhanças terminam. A concepção dos mutirões está ligada à revitalização
paisagística de espaços populares, quase sempre considerados degradados,
abandonados ou pouco valorizados. Diferentemente do bombardeio, que tem a
característica de marcar a paisagem dos bairros e localidades da cidade formal
como ―cicatrizes‖ em suas formas urbanísticas, as pinturas realizadas através
dos mutirões produzem outras concepções estéticas especialmente sobre as
favelas. Nessas ações os grafiteiros produzem sua arte buscando uma
interação direta com a população local, na qual é desenvolvida a proposta de
utilizar o graffiti como elemento de revitalização da paisagem e da cultura.
32
Para SOUZA (2003: 173), as favelas podem ser definidas, entre várias outras características, a
partir da concepção de seu “status jurídico ilegal, na qualidade de ocupação de terras públicas ou privadas
pertencentes a terceiros”, que ajudou a fomentar a origem do termo cidade informal.
137
Uma nova concepção estética
O valor estético do graffiti na favela gerou uma nova maneira de seus
moradores apreciarem essa arte, e principalmente de valorizar a ação dos
grafiteiros como agentes de transformação desse espaço. Essa transformação
na verdade deriva de uma ação construída coletivamente, em sua maioria
decorrente da mobilização e organização interna de seus habitantes, onde os
grafiteiros atuam diretamente como interventores por toda a área ocupada pela
comunidade.
Fig. 34 Intervenções feitas em residências durante o mutirão “Meeting of
Favela” 2008 – Vila Operária Duque de Caxias. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
Fig. 35 Intervenções feitas em residências - Meeting of Favela 2008 Vila
Operária Duque de Caxias. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
Após anos de atuação militante do movimento hip-hop, desde a sua
chegada ao Brasil na década de 80, percebe-se uma notória mudança de
consciência política das populações que vivem nas favelas, especialmente das
138
áreas periféricas da metrópole carioca. Juntamente com outras formas de
mobilização popular, associações de moradores e outros movimentos sociais, o
movimento hip-hop no Brasil foi um importante articulador de ações sociais,
que valorizavam os espaços populares, sua cultura e práticas. As conquistas
oriundas das mobilizações e lutas travadas pelo movimento hip-hop estão
longe de se caracterizar como ões simples e de efeito imediato. Conforme
aponta Oliveira (2006), as formas de articulação e organização nas periferias
do Rio de Janeiro começam a partir dos bailes de música negra, no final dos
anos 70, adentrando a década seguinte, como forma de entretenimento cuja
ênfase estava na valorização da cultura negra. Posteriormente apoiado pelo
auxílio e administração de recursos por Organizações Não-Governamentais, o
movimento hip-hop adquire um caráter mais mediador e articulador na luta
contra questões relacionadas à discriminação, ao preconceito racial e à
violência contra moradores de comunidades populares, principalmente
daquelas localizadas nas periferias metropolitanas. Oliveira demonstra que
dessa forma passou a se constituir uma cultura política dos sujeitos das
periferias sociais.
Os mutirões de graffiti podem ser vistos como uma das culminâncias da
constituição dessa cultura política de sujeitos das periferias sociais e de sua
respectiva territorialidade, após anos de displicência e desprezo das poticas
públicas nas favelas e periferias decorrentes da falta de interesse dos
governos. A mobilização popular passou a ser inevitável para se atingir
conquistas sociais e outras melhorias, como a infra-estrutura ou mesmo as
ações sociais de apoio a essas comunidades. A idéia do mutirão parte
justamente desse trabalho coletivo de construção e apoio mútuo, como se viu
muitas vezes na construção de casas de famílias e outras práticas sociais de
interesses comuns, realizadas espontaneamente por amigos, outros moradores
e familiares (SILVA, op. cit.).
A organização interna dos mutirões
A organização dos mutirões parte de um núcleo de articulação e
mobilização interna de membros dessas comunidades. Isto se deve a alguns
fatores como o interesse de uma revitalização estética da paisagem local a
partir da arte, a produção e circulação de valores culturais com a participação
139
direta e indireta de todos os membros da comunidade, a maior capacidade de
acesso ao território e o diálogo entre distintos segmentos pertencentes às
comunidades, tais como associação de moradores, grupos criminosos de
narcotraficantes, artistas locais, entre outros. Cabe ressaltar que muitas vezes
a execução dos mutirões de graffiti parte de uma pequena parcela de
moradores desvinculados de interesses poticos institucionais, das
associações de moradores ou do tráfico de drogas. A mobilização desses
organizadores está ligada a movimentos sociais distintos, inclusive do próprio
movimento hip-hop, articulados de forma autônoma.
Após essa primeira etapa de elaboração do projeto, surge a necessidade
de liberação do espaço. Dessa forma, é estipulado um dia único para execução
do evento. Durante todo o dia até a chegada da noite a comunidade será
frequentada por ―pessoas estranhas‖, como grafiteiros de diversas localidades,
fotógrafos, repórteres, pesquisadores, convidados e visitantes diversos. Torna-
se inevitável uma permissão e autorização dos grupos de narcotraficantes que
detêm o controle territorial da comunidade, que não costumam apresentar
maiores resistências que esses eventos não têm o objetivo nem a
capacidade de interferir nas ações do tráfico de drogas, ao mesmo tempo em
que não compactuam do mesmo interesse
33
.
Quadro 15. Entrevista Airá O Crespo 2008.
Fonte: Airá O Crespo, grafiteiro do Rio de Janeiro.
Entrevista pessoal realizada em novembro de 2008.
33
As observações de campo foram feitas em favelas dominadas territorialmente por facções de
narcotraficantes, portanto o sabemos exatamente como ocorre a organização dos mutirões em
comunidades sob o domínio territorial das milícias.
140
Os organizadores podem ou não ser grafiteiros, da mesma forma em
relação ao movimento hip-hop, mas é quase inevitável que estes façam parte
das comunidades envolvidas no evento, especialmente por suas posições em
relação às questões anteriormente relacionadas. (Ver Quadro 15 acima)
Os moradores das comunidades que sofrem esse tipo de intervenção
têm uma atuação muito importante, desde a autorização da pintura de suas
casas até a participação direta e voluntária no desenvolvimento do evento.
Sem a autorização e o consentimento mais amplo dos moradores de que
o graffiti é um elemento positivo para a favela, os mutirões dificilmente
conseguiriam ser articulados. Atribui-se essa conscientização ao trabalho de
movimentos sociais como o hip-hop nessas comunidades. Além disso, muitos
moradores auxiliam os organizadores do evento, participando de maneira não
menos importante como guias dos grafiteiros pelas vielas, em serviços na
cozinha responsáveis por lanches e almoço dos participantes, ou mesmo na
arrumação, limpeza e transporte de materiais e equipamentos. É interessante
notar o caráter comunitário dos mutirões.
141
Fig. 36 Moradores voluntários da Vila Operária: Guia da favela com camisa
laranja (acima) e merendeiras (abaixo) Meeting of Favela 2008 Vila
Operária Duque de Caxias. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
Os grafiteiros têm uma participação bastante ativa e ao mesmo tempo
politizada nos mutirões. Alguns atuam diretamente na organização do evento,
principalmente se forem residentes dos locais, mobilizando uma grande parcela
da comunidade previamente e durante a data de execução do mutirão. Mas a
maioria dos grafiteiros que participam é de ―convidados ilustres‖ do evento, que
adquire contornos de uma grande festa. A produção dos graffitis é feita em
comum acordo entre moradores e grafiteiros, onde os primeiros podem ou não
autorizar a intervenção dos segundos nas fachadas de suas residências.
Normalmente a ―autorização‖ é concedida com muita satisfação pelos
moradores, que classificam as pinturas como benfeitorias em seu patrimônio e
na comunidade como um todo. A mobilização dos moradores costuma ser
bastante significativa, com o intuito de transformar a paisagem que
compreende o espaço público e privado das favelas em áreas mais agradáveis
e esteticamente mais admiráveis, conforme foi observado em mutirões
142
ocorridos na Vila Kennedy (2006), São João de Meriti (2007), Ladeira dos
Tabajaras (2008) e Vila Operária em Duque de Caxias (2008).
Quadro 16. Entrevista Anarkia 2008.
Fonte: Anarkia, grafiteira do Rio de Janeiro.
Entrevista pessoal realizada em outubro de 2008.
Quadro 17. Entrevista Smoky 2008.
Fonte: SMOKY, grafiteiro de São Gonçalo.
Entrevista pessoal realizada em Outubro de 2008.
A apropriação simbólica das favelas
Mesmo que o grafiteiro não seja residente na comunidade, considera-se
o mutirão uma forma de se estabelecer o encontro e o diálogo do artista com o
local de ―origem‖ da sua arte, em outras palavras, seu espaço de referência
identitária (HAESBAERT, 1999). Este raciocínio tem fundamento na medida em
que o graffiti é considerado uma arte de manifesto oriunda das classes
143
populares
34
, que no Rio de Janeiro tem maior representatividade nas favelas.
Normalmente a identificação dos moradores e a receptividade são elementos
que fazem os grafiteiros se sentirem mais acolhidos e respeitados ao
realizarem suas pinturas nas favelas. Os mutirões também estão muito ligados
a música e festividade, e neles pode ser observado um grande aparato de som
e de Djs responsáveis pelo repertório musical (ver figura 36).
Fig. 37 Caixas de som (esquerda) e os Djs (direita) Meeting of Favela
2008 Vila Operária Duque de Caxias. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
Os mutirões foram fortemente influenciados no Rio de Janeiro pelo
evento Meeting of Styles, ocorrido em novembro de 2006 na Cruzada de São
Sebastião, na Zona Sul da cidade. O Meeting of Styles é um evento
internacional de cultura hip-hop, com grande ênfase nas pinturas de graffiti e
que tiveram início na Europa no ano de 2002. A Polônia foi o primeiro país a
receber esse evento, que se localizou especialmente na cidade industrial de
Lodz. As edições passaram a acontecer anualmente em diferentes cidades do
mundo com breves intervalos entre os meses. O evento itinerante busca ser
organizado e realizado em locais onde haja uma influência urbana muito
evidente, além de ter algum atrativo exótico. Simultaneamente é levado em
consideração que haja uma cena expressiva do hip-hop, e mais ainda do
graffiti. No Rio de Janeiro, o local escolhido foi a Cruzada de São Sebastião, no
34
Assim como toda a cultura hip-hop, o funk, o forró, a capoeira e outros ritmos musicais e
elementos culturais que têm sua origem nas classes populares.
144
bairro do Leblon, por ter esse caráter exótico de comunidade e estar localizada
em um ponto bastante dinâmico da cidade. Outros locais haviam sido
previamente sondados, mas foram vetados pelo fator periculosidade e
acessibilidade. O evento foi realizado gratuitamente e aberto a todos os
interessados, mas os grafiteiros foram previamente convidados, pois havia uma
limitação física do espaço a ser pintado.
Fig. 38 Propaganda do
evento Meeting of
Styles 2006
Fonte: Revista Graffiti 37
(março de 2007)
O mais importante é notar que esse evento internacional serviu de
inspiração para uma série de outros eventos que viriam a emergir a partir de
então em outras comunidades do Rio de Janeiro. Autores como Soares (2007)
tentam demonstrar que os mutirões de graffiti surgiram como iniciativa das
mobilizações populares nas favelas da cidade do Recife. Mas o fato é que a
influência do Meeting of Styles estimulou muitos outros grafiteiros no Rio de
Janeiro, que participaram do evento ou simplesmente a ele estiveram
presentes. Também mostrou a possibilidade de como organizar eventos de
médio e grande porte dentro das comunidades, servindo de exemplo para
movimentos sociais e associação de moradores de favelas. Os organizadores
do Meeting of Styles não tinham esta intenção inicialmente, mas é inegável
145
que a partir de sua intervenção na cidade os mutirões de graffiti, muitas vezes
associados a festas de hip-hop, passaram a ocorrer de forma mais sistemática
em diversas comunidades, caracterizando um dos aspectos da territorialidade
dos grafiteiros cariocas. O evento Meeting of Favela, realizado anualmente
desde o ano de 2006 na comunidade da Vila Operária, em Duque de Caxias,
com a presença maciça de grafiteiros do Rio de Janeiro, Caxias, São Gonçalo,
bem como de outras partes do Brasil, atesta a concretização dessa nova
concepção de intervenção urbana.
Fig. 39 Grafiteiros reunidos na escola pública Vinícius de Morais (núcleo de
encontro do Meeting of Favela 2008) no início do evento. A escola
funcionou como centro logístico de apoio e para servir as refeições aos
participantes Vila Operária Duque de Caxias. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
3.2.3. Exposições: O graffiti domesticado
As exposições de graffitis, cada vez mais presentes em galerias de arte
e centros culturais no Rio de Janeiro, apontam para uma dimensão relevante
da territorialidade do grafiteiro na cidade. Considerado uma arte pública e
efêmera, o graffiti passa por uma sensível transformação destes conceitos
quando seus autores começam a participar de eventos dessa natureza.
146
O graffiti alcançou na atualidade um nível de reconhecimento
notabilizado pelo número de intervenções que passaram a ilustrar cada vez
mais galerias de arte e centros culturais, sendo utilizados também na
cenografia e na publicidade.
A conquista das galerias de arte e centros culturais brasileiros pelo
graffiti era algo impensável até os anos 70. A partir dos anos 80 o graffiti
passou a se impor de forma mais veemente no cenário cultural do Brasil com
artistas paulistanos como Alex Valauri e o grupo Tupi não , além de Michel
Basquiat e Keith Harring na Europa e nos Estados Unidos.
O encerramento das produções de graffitis em espaços fechados e
vigiados, e a crescente comercialização das obras denotam uma mudança do
caráter subversivo do graffiti, e consequentemente da ação dos seus autores.
O confinamento e a efemeridade da arte pública
Inicialmente destaca-se esse confinamento dos graffitis em galerias de
arte e centros culturais. Normalmente esses espaços são gratuitos e
destinados à visitação em horários específicos. As exposições, porém,
normalmente apresentam um peodo de duração em que as obras ficarão
intocadas e destinadas à visitação. Ao final do período das exposições os
quadros podem ser vendidos ou leiloados. Por fim, também a questão da
vigilância, que marca o controle sobre os visitantes e as obras.
Cabe aqui analisar esta relação de controle do espaço de visitação que
marca sensivelmente a forma como o graffiti será feito e cuidado nas galerias
de arte. Nas galerias, os graffitis podem ser feitos em telas ou mesmo em suas
paredes. Ao receber o status de obra de arte, o graffiti deverá permanecer
intocado. Os visitantes ficam sob a vigília de câmeras de vídeo ou seguranças
durante o período de exposição para evitar danos às pinturas
35
(ou mesmo
furtos em caso de graffitis feitos sobre telas). Este cuidado será de
responsabilidade dos organizadores das galerias e centros culturais e não dos
grafiteiros. O graffiti passa a ser tratado como uma pa de valor a ser
devidamente preservada.
35
Ver ataque de pichadores a galeria de arte em São Paulo. In: Revista Veja , nº 553, 22 de
dezembro de 2008.
147
Distinguindo-se totalmente desta condição, o graffiti nas ruas da cidade
não recebe qualquer cuidado ou proteção, seja do grafiteiro ou de qualquer
outro agente. Dessa maneira o graffiti fica a mercê de qualquer eventualidade
da dinâmica da cidade, tornando-o efetivamente uma arte pública e efêmera
sujeita a desaparecer repentinamente, conforme apontado em um ensaio de
Gonçalves e Strella (2006) sobre a arte pública e as cidades.
Uma das principais questões que envolvem a territorialidade dos
grafiteiros está em sua capacidade de romper a indiferença presente nos
espaços urbanos das metrópoles, isto é, minar a atitude blasé apontada por
Simmel. Porém, tal capacidade está sujeita à própria relação que o graffiti tem
com a dinâmica da cidade, mais especificamente com as ruas e a paisagem
urbana. De acordo com essa necessidade de fluidez mais constante dos
capitais, e por conseguinte das pessoas, se estabelece uma efemeridade de
elementos que compõem a paisagem urbana, a exemplo da publicidade
(SILVA, 2001).
Para o grafiteiro, essa efemeridade do espaço urbano marca a sua
forma de intervenção nas ruas, conforme apontamos anteriormente com os
bombardeios e os mutirões. Os graffitis podem ou não ser apagados, cobertos
por propagandas ou entrar em estado de deterioração, demonstrando que sua
durabilidade é indefinida na paisagem urbana. Na paisagem a efemeridade se
mostra em um constante processo de grafitar as ruas, na qual se renova o
número de graffitis, mesmo quando alguns poucos desaparecem.
Decorrente da efemeridade anteriormente citada uma infinidade de
possibilidades pelas quais o graffiti consegue ou não manter sua longevidade
no espaço urbano. No entanto, é comum que o graffiti acabe sendo apagado
ou danificado na própria dinâmica que a cidade imprime. Por isso apontamos, a
seguir, aqueles que identificamos como os principais responsáveis por essas
alterações nos graffitis.
A) Os órgãos do governo: Dentro desta qualificação estão
compreendidos todos os agentes pertencentes ao governo nas esferas
municipal, estadual ou federal que agem diretamente em uma política de
higienização da cidade, marcada principalmente pela sua atuação de apagar os
graffitis na paisagem urbana. (ver capítulo II)
148
B) A publicidade: Aqui estão presentes todos os agentes que utilizam o
recurso da paisagem (SILVA, 2001; BERQUE, 2004) como forma de articular
suas propagandas dentro da lógica capitalista, seja em um circuito formal ou
informal da economia. Esses agentes competem pela visibilidade na cidade
,provocando ruídos na paisagem urbana. (ver capítulo II)
C) Os “agentes” da rua: Estão aqui incluídos os pichadores, outros
grafiteiros, camelôs, mendigos e todos aqueles que podem ou não imprimir
uma ação direta (pichadores e outros grafiteiros) ou indireta (demais agentes)
que ―degrade‖ os graffitis existentes.
A disputa entre territorialidades de grafiteiros e pichadores acaba
gerando, por vezes, algum tipo de conflito quando suas grafias são riscadas ou
cobertas por outras
36
. Entre os grafiteiros há uma norma, uma espécie de
acordo tácito, em que se devem preservar os graffitis existentes, ou seja, o
grafiteiro não deve sobrepor essas pinturas, e precisa buscar um local ainda
não grafitado ou mesmo pichado. O grafiteiro que pintar nas ruas de forma que
cubra outros graffitis ou pichações feitas anteriormente é tido como um
―agressor‖ dessa norma, e estará sujeito a algum tipo de revés ou punição
daquele que se sentir ―agredido‖. Romper este código significa denegrir a
própria imagem como grafiteiro perante os demais. Quando assim o faz, o
responsável fica sendo reconhecido como toy (ver anexo II).
36
Ver o recente ataque, feito por pichadores, aos graffitis de Os Gêmeos nas ruas de São Paulo. In:
Folha de São Paulo, 20 de março de 2010.
149
Fig. 40 “Punição” ao grafiteiro que cobriu uma pichação – Rua Hadock Lobo
Tijuca. (Foto: Leandro Tartaglia 2006)
Fig. 41 Inscrição rasura o graffiti afirmando que este não respeitara,
provavelmente, a pichação anteriormente inscrita Gragoatá Niterói.
(Foto: Leandro Tartaglia 2008)
150
Fig. 42 Um mesmo graffiti antes (à esquerda) e depois (à direita) de sua
deterioração pela fumaça de uma fogueira, feita provavelmente por
moradores de rua, e uma pichação. Cidade Nova Centro.
(Foto: Leandro Tartaglia 2008/2009)
O graffiti feito e depositado em uma galeria de arte transforma a sua
relação com a cidade, fazendo desaparecer sua condição efêmera, e
principalmente, sua relação com a paisagem. As barreiras institucionais, por
mais libertária que seja a instituição, acabam podando a capacidade de
apropriação simbólica que o graffiti adquire quando é feito diretamente nas
ruas. Questionamos até que ponto o graffiti é, hoje em dia, uma arte feita nas
ruas e para as ruas
37
. E, até que ponto ainda mantém o sentido de uma arte
pública?
O papel ambivalente do grafiteiro
A cultura hip-hop, no passado, se inspirou na estética do graffiti,
constituindo uma territorialidade onde a arte deveria estar nas ruas para uma
apreciação devidamente democrática, sem imposições de horários e de
apreciadores, mas principalmente que esta apreciação não dependesse de
algum tipo de taxação.
A conquista paulatina das galerias de arte e centros culturais por um
grupo seleto de grafiteiros, alguns inclusive ligados ao hip-hop, passou a
37
Também conhecida como street art.
151
expandir significativamente o mercado de consumo voltado para o graffiti.
Enaltecido cada vez mais pela mídia televisiva e impressa, o graffiti caminha na
atualidade para uma desvinculação da sua imagem de atividade ilegal e
subversiva, adquirindo o status de arte. É nesse ponto que os grafiteiros
passam cada vez mais a trabalhar e gerar renda como artistas que empregam
dentro de apartamentos de classe média e alta, ou mesmo em portões de
oficinas, estacionamentos e outros estabelecimentos comerciais (Ver fig. 42) as
técnicas que desenvolveram nas ruas. O graffiti deixa a sua função de uso
no/do espaço, e passa a ser feito mediante seu valor de troca, tal qual uma
mercadoria, de acordo como Lefebvre (2006) nos orienta. Cabe aqui uma
reflexão quanto ao nível de cooptação a que estão sujeitos os grafiteiros,
muitas vezes pertencentes a movimentos sociais como o hip-hop e que outrora
tinham uma ação radicalmente contra este tipo de participação. Eles passam a
lidar com uma nova posição em termos de como atuar como grafiteiro e artista.
Por este ponto de vista, uma inversão da representatividade dos graffitis,
que agora o grafiteiro comercializa sua arte e encerra o seu trabalho para a
observação de um público mais limitado, gerando renda a partir da sua própria
produção.
Fig. 43 Graffitis comerciais Mercado popular da Uruguaiana
Centro. (Foto: Leandro Tartaglia 2008)
152
Uma reportagem intitulada ―Grafite até entre quatro paredes‖, publicada
no jornal O Globo de 24 de abril de 2008, no suplemento de bairro Tijuca,
inicia com as seguintes informações:
Não faz dois anos o arquiteto Geraldo Lamego encomendou do
grafiteiro Smael uma tela para compor um ambiente projetado
para a mostra Artefacto. Pagou cerca de R$ 2 mil ao artista.
Ricardo Kimaid viu o trabalho, ficou impressionado, e
arrematou por R$ 3 mi. Pendurou na sala de casa, e de o
quadro não sai por uma oferta que seja inferior a R$ 9 mil. Uma
valorização de 200% em menos de 24 meses, que não deixa
dúvidas: o graffiti está em alta. (Caderno Tijuca, O Globo, 24
de abril de 2008: 10)
Na mesma reportagem consta ainda que:
Depois de ocupar a Caixa Cultural com uma mostra coletiva
ano passado, o grafite deu um salto e passou a ser encarado
como obra de arte. No Cassino Atlântico, em Copacabana, por
exemplo, são duas as galerias a comercializar as telas
cobertas pelos sprays. A Haus, de arte contemporânea, foi uma
das primeiras do Rio de Janeiro. Por ali, as telas de Acme e
Smael foram parar na mão de colecionadores. Mas é a
Movimento, inaugurada seis meses, a que melhor
exemplifica o fenômeno da street art. (Ibid.)
De uma forma mais restrita, alguns grafiteiros se profissionalizam para
continuar a trabalhar como artistas nesse mercado bastante incerto e ainda
emergente em metrópoles como o Rio de Janeiro. A divulgação por meio digital
é uma ferramenta de grande auxílio, pois são postadas fotografias e imagens
(em blogs, fotologs e sites) que funcionam como currículos dos grafiteiros. Em
algumas intervenções alguns grafiteiros assinam seu endereço eletrônico, que
passa a funcionar como contato profissional. As oportunidades estabelecidas
por esse mercado de arte são extremamente seletivas e apresentam condições
limitadas de trabalho, mas são significativas em termos de remuneração
individual.
As exposições representam um passo para a diminuição da
marginalidade dos graffitis. Em exposições realizadas em renomados espaços
culturais da cidade do Rio de Janeiro, como o Centro Cultural Banco do Brasil
(exposição ―Vertigem‖ 2009), o Centro Cultural da Caixa Econômica
(exposição ―Fabulosas Desordens‖ 2007) ou o Espo Constituição
(Exposição ―Expo Eco‖ 2006), para citar apenas algumas, entre o número
153
considerável de visitantes notou-se relevante presença de idosos e crianças. A
importância do contato desses grupos etários e de tantos outros segmentos
sociais com o graffiti nessas exposições está em permitir uma reformulação
dos conceitos pré-existentes. Grafiteiros como Os Gêmeos, dupla paulistana
que recentemente apresentou a exposição ―Vertigem‖ no Centro Cultural Banco
do Brasil, são um exemplo de como a arte originada e desenvolvida nas ruas
de São Paulo transformou-se em um significativo acervo apreciado por um
público bastante diversificado na galeria carioca (Ver fig. 43)
38
. Além dos
trabalhos realizados no Brasil, eles expuseram em Cuba, Estados Unidos,
China, Japão e em diversos países na Europa. A trajetória dos meos conta,
inclusive, com exposições nas famosas galerias Tate Modern, em Londres, e
Deitch Gallery, de Nova York, além do trabalho de pintura da fachada do
castelo de Kelburn, na Escócia.
Fig. 44 Exposição “Vertigem” da dupla de grafiteiros paulistanos Os
Gêmeos. Presença de um público bastante variado Centro Cultural Banco
do Brasil 2009. (Foto: Leandro Tartaglia)
38
Reportagem da “Folha de S. Paulo” de 28 de fevereiro de 2010 mostra como o graffiti retirado
diretamente das ruas da cidade de São Paulo vira artigo vendável. Um portão de oficina retirado de sua
função original torna-se um “quadro” grafitado, comercializado pelo valor de R$ 3.000. Os grafiteiros Os
Gêmeos reclamam que seus trabalhos nas ruas apresentam aspectos de depredação, com uma parte dos
muros pintados arrancada como objeto de arte comercializável.
154
Além das mostras dos trabalhos, muitos eventos passaram a investir
também na interatividade do artista com o público, criando fóruns de discussão
voltados para a temática e até mesmo programação de intervenções.
Complementam a programação os ciclos de palestras, debates e workshops
ministrados gratuitamente durante os eventos. Essas exposições contam com a
organização dos próprios grafiteiros, que recebem a colaboração dos centros
culturais. Este é o caso da recente exposição ―Movimento Periférico‖, realizada
no Sesc Tijuca (2009), ou a exposição ―Rabisco sem risco‖, realizada no Sesc
de Madureira (2008). No ano de 2008 foi realizada uma grande exposição
dessa natureza na cidade de Belo Horizonte, denominada Bienal
Internacional de Graffiti (BIG-BH), que contou com a participação de grafiteiros
do Rio de Janeiro, bem como de diversas outras cidades do Brasil e do mundo.
Essa mesma exposição recebeu o patrocínio de grandes empresas, como a
Petrobras e a Fiat, e do próprio governo de Minas Gerais.
Por fim cabe destacar o papel do grafiteiro neste processo que atinge
dois extremos. Por um lado, os grafiteiros que têm uma atuação mais
profissional, comercializando e vendendo sua arte, de forma alguma ficam
restritos a esse viés. Em sua maioria tiveram seu desenvolvimento artístico nas
ruas com outros grafiteiros, e apesar da notoriedade reconhecem a rua como o
verdadeiro espaço da prática do graffiti, o que remete ao sentido de arte
pública.
As exposições em galerias de arte representam uma verdadeira
contradição na territorialidade dos grafiteiros. Apesar de conseguir superar as
adversidades impostas pelo pré-conceito, as repreensões policiais e as
dificuldades financeiras de adquirir recursos para aquisição de materiais,
passando a viver como grafiteiros/artistas profissionais, diminuem
paulatinamente o teor de subversão e contestação contido inicialmente nesta
manifestação. A própria aceitação das instituições e de galerias a este tipo de
arte indica uma nova relação dos grafiteiros com a sociedade, que aponta para
uma valorização destes em detrimento dos pichadores, ainda considerados
―verdadeiros vândalos‖. Essa legitimação do graffiti nas exposições torna o
grafiteiro menos vulnerável nas ruas e expande suas possibilidades
profissionais e de intervenção num raio de ação cada vez mais amplo, porém
com um sentido de contestação da ordem e subversão praticamente
155
inexistente, cada vez mais imerso e dependente de uma lógica de mercado e
consumo.
3.2.4. Oficinas: O graffiti pedagógico
“Não estamos aqui para dizer o que é certo ou errado, mas não somos
hipócritas. Nós conscientizamos as pessoas do papel delas na sociedade. s
ensinamos a cnica de pintar com tinta spray e o estilo de desenho graffiti de
hip-hop. Se a galera vai usar isso em tela, em roupas ou em muros, é com
eles”.
Fonte: Airá O Crespo, grafiteiro e instrutor de oficinas
de graffiti do CIC e AfroReggae.
Entrevista pessoal realizada em novembro de 2008.
As oficinas complementam, juntamente com as demais características
apontadas anteriormente, os aspectos que compõem a territorialidade dos
grafiteiros cariocas. Esta vertente é significativa, pois é nesse espaço, a oficina,
que o grafiteiro transmite o seu conhecimento. As oficinas funcionam
principalmente como ―escolas‖ para grafiteiros iniciantes, o que passa a
notabilizar uma frequência considerável de jovens (em sua maioria
adolescentes, e até crianças) interessados em desenvolver as técnicas e o
conhecimento sobre os graffitis.
A oficina é o espaço que permite o contato mais direto com o grafiteiro,
onde são ministradas aulas teóricas e práticas visando a desenvolver técnicas
artísticas de desenho e graffiti. O grafiteiro é mais do que um instrutor nas
oficinas, pois além de orientar os participantes sobre o processo cnico,
também influencia as atitudes de seus alunos através do seu próprio
comportamento, modo de falar e principalmente pela sua atuação como
grafiteiro.
156
Quadro 18. Entrevista Gut 2008.
Fonte: Gut, grafiteiro responsável por uma oficina de graffiti na
Fundação Cultural Casa Amarela em São Gonçalo
Entrevista publicada em O Fluminense, 28 de Julho de 2008.
A “fama” e o respeito
A reputação do grafiteiro, ou seja, a sua fama‖, pode ser um dos fatores
a influenciar o público que procura uma oficina de graffiti. Se o grafiteiro tem
uma atuação expressiva com bombardeios pelas ruas e participações em
mutirões, este certamente terá uma notoriedade considerável perante outros
grafiteiros e público interessado. Pom, cabe ressaltar que, apesar de o
grafiteiro obter a notoriedade, a sua reputação pode ser ainda assim negativa
perante os demais grafiteiros se ele não tiver um procedimento considerado
padrão. Este procedimento padrão é regido pela norma de não sobrepor ou
rasurar as pinturas pré-existentes, ou seja, se uma superfície da cidade foi
―conquistada‖, nenhum outro grafiteiro tem o direito de sobrepujá-la. É desta
maneira que se passa a obter notoriedade e respeito, que representam os dois
principais elementos que compõem a reputação de um grafiteiro perante os
demais. Isto fica mais evidente no depoimento do quadro 19. Em todo caso,
existem casos frequentes de grafiteiros que não respeitam esta norma, e
acabam ―perdendo o seu próprio respeito‖ diante de outros grafiteiros, sendo
assim chamados de toys
39
.
39
Toy, entre os grafiteiros, é a denominação que se atribui aos iniciantes e com pouca experiência,
que tem um comportamento considerado inadequado diante dos demais, normalmente mais experientes.
Gut: A juventude se identifica com o graffiti. Eu participo de oficinas há cinco anos
e vejo pessoas se aperfeiçoando e saindo daqui como grafiteiros, designers e
ilustradores.
157
Quadro 19. Entrevista Airá O Crespo 2008.
Fonte: Airá O Crespo, grafiteiro e instrutor de oficinas de
graffiti. Entrevista pessoal realizada em novembro de 2008.
O tempo de atuação de um grafiteiro pode ser uma referência quando se
leva em consideração sua ―fama‖ diante de outros grafiteiros. Aqueles que têm
uma atuação nas ruas prolongada, com mais de dez anos, hoje são
considerados da velha escola, ao passo que as gerações subsequentes
acabam sendo chamadas de nova escola. Esta hierarquia estabelecida por
tempo de atuação define um grau de respeito que a velha escola exerce sobre
os mais novos. Sendo assim, normalmente quem pertence à velha escola é
respeitado pelo fato de não cometer mais arbitrariedades em relação às
normas dos grafiteiros. Cabe então aos membros dessa nova escola tomar
como referência a conduta dos membros da velha escola, para que assim
possam desenvolver a melhor maneira de proceder em sua relação com os
demais grafiteiros. Mesmo assim, pode haver desentendimentos entre essas
hierarquias ou no interior de cada uma.
Além dessa reputação adquirida nas ruas perante os demais, o grafiteiro
é também conduzido a conquistar outra notoriedade, em um sentido mais
profissional, tal qual um currículo. Essa outra reputação, mais formal, aparece
como uma relação distinta da fama obtida nas ruas e mutirões, que não
envolve diretamente a relação de um grafiteiro com os demais. Essa fama será
alcançada de acordo com a sua própria produção, e mais ainda no caso
daqueles que conseguem se inserir como artistas em galerias de arte e
exposições. Esta condição passa a ganhar mais importância entre os grafiteiros
quando, na cada passada, o graffiti atingiu o status de arte no Brasil,
Autor - Como se conquista o respeito no meio dos grafiteiros?
Airá O Crespo: Esse é o famoso “proceder”, como a galera fala. O respeito vai de
acordo com a postura da pessoa. Se ela está na rua, se ela sabe respeitar seus pares,
transita em todos os lugares sem arrumar conflito, sem cobrir os outros. Na
humildade, apesar do próprio talento. Sem arrogância, moderando o próprio ego.
Como em qualquer meio social. Mas tem a questão da ousadia, pois o graffiti é uma
coisa clandestina. Então um cara ousado adquire respeito conforme suas ações perante
seu meio. Tipo o cara tem coragem, ele “representa”. Um cara muito técnico, ou muito
original também são características para se conquistar o respeito.
158
passando a movimentar um rentável mercado. Segundo Celo, grafiteiro
pertencente à Fundação Casa Amarela, fica mais explícita esta noção de
reconhecimento profissional obtido pelos grafiteiros, conforme se pode
observar em seu depoimento a seguir.
Quadro 20. Entrevista Celo 2008.
Fonte: Celo, grafiteiro pertencente à Casa Amarela.
Entrevista publicada em O Fluminense, 28 de Julho de 2008.
Pode-se dizer que o grafiteiro tem uma dupla reputação, ou seja, uma
adquirida a partir da subversão da lei e da ordem oficial, e outra que diz
respeito a uma adesão a normas e procedimentos comportamentais perante
um grupo mais seleto. No primeiro caso, a sua territorialidade é mais esquiva,
quase selvagem, e clandestina pelas ruas da cidade, paralelamente a uma
relativa acessibilidade em favelas e comunidades de baixa renda durante a
realização de mutirões.
Por outro lado, este mesmo grafiteiro é impelido a buscar formas de
inserção no mercado profissional das artes, submetendo suas intervenções aos
limites e regras do mercado de arte
40
, das galerias de arte e dos centros
culturais. Nesse caso, a sua territorialidade é simultaneamente domesticada e
previsível, localizada dentro de instituições, galerias de arte, em espaços
comerciais. As oficinas marcam a territorialidade dos grafiteiros em espaços
fechados e devidamente autorizados, mas com o intuito de transmitir o
conhecimento, mesmo que em alguns casos este serviço seja feito mediante
pagamento.
40
Quanto a este termo, estamos nos referindo aos compradores de quadros grafitados e aqueles
que contratam grafiteiros para pintar sua própria residência, a título de decoração, ou estabelecimentos
comerciais, como forma de propaganda. Ver: Jornal “O GLOBO”, Caderno Tijuca, 24 de abril de 2008.
Celo: As pessoas reconhecem o nosso trabalho. Eu tenho feito vários painéis em
casas e comércios. Eles pedem para eu desenhar e mostro primeiro no papel para
depois montarmos a obra. Somos decoradores e, além do público jovem, os adultos
estão aderindo ao nosso trabalho.
159
A relação com a mídia
Outro fator que influencia a procura de oficinas por um público ávido pelo
graffiti é a veiculação constante, e principalmente de forma positiva, pela mídia
em geral, construindo outra imagem do grafiteiro na sociedade. Decorrente
dessa imagem construída pela mídia, o grafiteiro deixa de ser tido como
subversivo. Seu tratamento perante os diferentes grupos sociais é modificado.
Essa nova imagem do grafiteiro desvincula-o da criminalização decorrente de
sua ação no espaço urbano, que passa a ser atribuída exclusivamente aos
pichadores. Com isso cria-se uma divergência ideológica entre os próprios
grafiteiros. Alguns consideram a imagem negativa, pois se perde o sentido
original do graffiti de subversão da ordem instituída, que o graffiti passa a
fazer parte dessa própria ordem. Isto fica evidente no depoimento de Anarkia
(Quadro 21).
Quadro 21. Entrevista Anarkia 2008.
Fonte: Anarkia, grafiteira e instrutora de oficinas de graffiti.
Entrevista pessoal realizada em outubro de 2008.
De forma contraditória, esse mesmo grafiteiro utiliza suas técnicas e
intervenções dentro de uma lógica de consumo, que se adapta perfeitamente
aos valores que os governos, a mídia, as empresas, as escolas, a família e
outras instituições consideram perfeitamente legítimos. Esta ampla legitimação
do graffiti, aliada a uma demanda de se gerar renda, cria informalmente uma
nova forma de prestação de serviços. Os grafiteiros irão se encaixar nesse
emergente mercado de arte atuando em diferentes modalidades, desde o
ensino das técnicas do graffiti em oficinas atreladas a projetos sociais e ONGs,
Autor - Você acha positivo a imagem do grafiteiro ser bem vista pela mídia?
Anarkia: É ruim, pois o graffiti de verdade está morrendo. Mas é bom para quem
gosta de viver com arte e não consegue se inserir nesse mercado que exclui tanto as
pessoas. a possibilidade da pessoa estar produzindo. Estar conseguindo trabalho
na rua, e dá a possibilidade da pessoa viver disso.
Autor - Você consegue viver do graffiti?
Anarkia: Não vivo do graffiti em si, mas vivo de arte. Eu vivia de arte, mas hoje
eu atuo muito mais por causa do graffiti.
160
passando pela moda, decoração e propaganda, até as exposições em galerias
de arte renomadas.
É importante destacar que o grafiteiro não será obrigatoriamente medido
ou reconhecido pela sua qualificação profissional e acadêmica, mas
especialmente pela sua capacidade técnica e criativa para elaborar os projetos
gráficos, que pode até ser derivada de um aprimoramento do estudo e do
conhecimento pautados na educação formal (escolas, universidades e cursos
profissionalizantes).
Quadro 22. Entrevista Smoky 2008.
Fonte: Smoky, grafiteiro de São Gonçalo e instrutor de oficinas.
Entrevista pessoal realizada em outubro de 2008.
A dinâmica das oficinas
Por fim foi observado que as oficinas podem variar em sua localização
na cidade e principalmente quanto ao público que atende. Por isso insistimos
que pode haver um fator limitante de acesso pelo publico às oficinas, que é a
questão financeira.
Autor - O que você acha da imagem positiva que a mídia faz do graffiti?
Smoky: Eu acho bom o fato de qualquer grafiteiro dar sinal de que o graffiti está
evoluindo, saindo da pichação, saindo da parede. Chegando às telas, decorações,
palácios. É muito bom. O graffiti, onde quer que esteja, é um protesto. Todo
grafiteiro tem seu protesto e o manifesta através da pintura. A questão é a
intervenção. Eu acho necessário o grafiteiro vender sua obra. Não vejo problema
nisso. É preciso sobreviver.
Autor - Você consegue viver do graffiti?
Smoky: Hoje em dia é difícil. Tenho conseguido. Faz um ano que eu vivo com a
renda que o graffiti me dá.
Autor - Você está envolvido em algum projeto social?
Smoky: Trabalho no Sesc de São Gonçalo. Temos um projeto com escolas em que
nós damos aulas e oficinas de hip-hop. em Belford Roxo eu também dou aula de
graffiti pelo CIC (Centro Interativo de Circo).
Autor - O que o grafiteiro representa hoje? Ele incomoda alguém?
Smoky: Eu acho que os grafiteiros não estão muito engajados. São todos artistas.
Estão para expor seu trabalho. Não são pessoas das ruas protestando. O grafiteiro é
mais artista. Eu acho que o grafiteiro não incomoda a sociedade hoje. Ele está
fazendo parte da parada. Está dentro do sistema.
161
Em campo foram observadas duas oficinas, uma localizada no Centro do
Rio de Janeiro, no bairro da Lapa, e outra localizada no bairro de Ipanema, na
Zona Sul da cidade.
Fig. 45 Oficinas de graffiti do CIC Fundição Progresso 2007.
(Fonte: CIC 2007)
No bairro da Lapa, a Fundição Progresso abriga as aulas da oficina que
são ministradas semanalmente no Centro Interativo de Circo (CIC)
41
, ONG que
atua em projetos sociais com o patrocínio da Petrobras. Essa oficina é
considerada hoje (até 2009) a principal referência deste gênero na cidade,
além de ser um significativo ponto de encontro de grafiteiros. Isto se deve
especialmente ao caráter democrático, demonstrado pelo livre acesso de
professores, alunos e o público interessado, que fica mais explícito por não
cobrar taxas sobre a frequência dos encontros. Isto é, a oficina é gratuita e por
isso tem um público bastante variado de frequentadores em relação ao nível de
renda, à faixa etária e ao gênero
42
. As turmas são relativamente grandes com
uma média de 20 alunos. A localização centralizada da oficina permite esta
41
Ver: www.centrointerativodecirco.org.br/index.htm, acessado em 10/11/2009.
42
A maioria dos alunos é formada por adolescentes entre 12 e 18 anos, com predomínio do sexo
masculino, e pertence a diferentes segmentos sociais referentes aos níveis de renda. Os alunos residem em
partes distintas da cidade, muitas vezes distantes da Fundição Progresso.
162
frequência diversificada, além do fato de ser gratuita. Os professores são
normalmente grafiteiros da ―velha escola‖, e por isso têm sua fama e seu
prestígio consolidados perante os alunos (sejam eles iniciantes ou que
tenham alguma noção). Funcionam como espaços de encontro para grafiteiros
de diferentes partes da cidade e tempo de atuação (―nova‖ ou ―velha escola‖),
assim como agrega também uma pequena parte de pichadores. Com essa
composição mais universalizada, as aulas ocorrem no período noturno e são
realizadas de forma teórica e prática nas dependências da Fundição
Progresso.
Fig. 46 Confecção de graffitis ao vivo e conjunta entre “alunos” e
“professores” – Oficinas do CIC Fundição Progresso 2007.
(Fonte: CIC 2007)
No bairro de Ipanema, a oficina ocorre na Casa de Cultura Laura Alvin, e
tem como semelhança a metodologia das aulas na parte técnica, teórica e
prática. São ministradas pela grafiteira Anarkia, também considerada da ―velha
escola‖ de grafiteiros cariocas. Mas as semelhanças passam a desaparecer
quando surgem as mensalidades cobradas aos alunos. Por isso se estabelece
um público bem mais seleto de frequentadores, que expressivamente são
compostos por crianças e adolescentes (homens em sua maioria), com idades
163
entre 10 e 15 anos, residentes em localidades bem próximas ao centro cultural.
As turmas são reduzidas, com no máximo dez alunos. Com isso cria-se uma
clivagem de segmentos sociais que podem ter acesso ou não às aulas.
Há ainda na cidade outras oficinas de graffiti, como as da Cufa
43
(Central
Única de Favelas) e do grupo cultural AfroReggae
44
, com sedes localizadas na
Cidade de Deus, Complexo do Alemão e Vigário Geral, que atendem uma
demanda considerável de jovens pertencentes a essas comunidades e seus
arredores. É justamente com esse público jovem de baixa renda que as
oficinas priorizam suas atividades, voltadas para a conscientização e
capacitação do jovem morador da favela. Essas oficinas funcionam
gratuitamente, e no caso da Cufa ainda municia seus alunos com o material
necessário, que sem esse auxílio dificilmente os jovens poderiam adquirir as
latas de tinta spray, devido ao seu alto custo.
A aquisição e o uso de materiais
A aquisição do material para a composição dos graffitis é um fator
decisivo e muitas vezes limitante. Tanto nas oficinas quanto nas ações
individuais e coletivas o material é normalmente adquirido pelo próprio
grafiteiro. Mesmo quando o graffiti é feito comercialmente, o material acaba
sendo incluído no orçamento final do produto. Normalmente são utilizados
materiais variados, como tinta spray (esmalte), pincel, rolo de tinta, tinta
acrílica, entre outros. A principal referência é a tinta spray, que é normalmente
mais cara, com o agravante de que as tintas não podem ser diluídas e as latas
não têm como ser reutilizadas. As marcas nacionais são encontradas em lojas
de tinta e materiais de construção em geral, apresentando em média um valor
em torno de R$ 8 (o equivalente a US$ 4,7, em valores de 2010) por cada lata.
Nos últimos anos passou a se constituir um mercado de latas de tinta
spray e materiais específicos importados de países europeus. Com a oferta de
tintas e materiais em lojas especializadas em produtos voltados para o graffiti
(por volta do ano de 2005), houve um incremento técnico nas produções dos
grafiteiros na cidade do Rio de Janeiro. O reconhecimento quanto à
43
Ver: www.cufa.org.br/in.php?id=projetos, acessado em 10/11/2009.
44
Ver: www.afroreggae.org.br/sec_projetos.php?id=40&sec=projeto, acessado em 10/11/2009.
164
superioridade qualitativa das marcas de tintas importadas em relação às
nacionais para a prática do graffiti é unânime entre os grafiteiros. Porém, o
valor do material importado ou mesmo nacional em grande quantidade é
bastante oneroso, tornando-se outro fator limitante para a prática do graffiti.
Cada lata de tinta importada custa em torno de R$ 15 (ou US$ 8,8 em valores
de 2010), dependendo da marca, da cor da tinta e da qualidade do material.
Fig. 47 Latas de tinta spray da marca Montana (rótulo preto) e Pro
Line (rótulo cinza). Os bicos de diferentes cores têm distintas espessuras para
a composição do traço Rio Comprido 2009. (Foto: Leandro Tartaglia)
No Rio de Janeiro, o material é exclusivamente adquirido em uma rede
de lojas chamada Junkz, com sede no bairro de Copacabana e filiais em
Madureira e no comércio popular da Uruguaiana (Centro)
45
. Nessas mesmas
lojas são vendidos materiais de uso nos graffitis, como bicos de diferentes
espessuras para as latas de tinta, canetas coloridas, máscaras para pintura e
uma grande diversidade de latas de tinta, além de roupas, calçados, livros
temáticos, revistas e materiais esportivos, todos relacionados à estética da
cultura hip-hop e à arte de rua (street art).
45
A loja Junkz também tem filial no município de Macaé, no Estado do Rio de Janeiro, e em
Salvador, no estado da Bahia. Ver: www.junkz.com.br, acessado em 10/11/2009.
165
Fig. 48 Oficina e exposição de graffitis produzidos no projeto
“Movimento Periférico” ocorrido nos espaços culturais do SESC Tijuca
2009. (Foto: Leandro Tartaglia)
Conforme foi observado no trabalho de campo, as oficinas são um
importante espaço, ou mais especificamente, um espaço apropriado no qual
ocorre uma confluência de pessoas e informações, tornando-se uma
referência. As oficinas são mais do que espaços apropriados simbolicamente
pelos graffitis. São espaços apropriados materialmente como decorrência da
própria ocupação física e da dinâmica comportamental dos grafiteiros.
Os grafiteiros procuram hoje essas oficinas, certamente aquelas cujo
acesso é permitido e não é pago, não apenas para aprender ou refinar a sua
técnica, mas especialmente para travar diálogos, estabelecer projetos, propiciar
encontros em suma, vivenciar um espaço de convivência muitas vezes difícil
de estabelecer na cidade.
166
4. Considerações Finais
A experiência pessoal como atributo de análise científica implica uma
postura criteriosa do pesquisador em termos teóricos e metodológicos no
desenvolvimento de sua investigação. Na relação com o objeto pesquisado, a
postura investigativa não se faz de maneira imparcial, denotando um
comprometimento político e ideológico, ou, pelo menos, uma afinidade de
caráter mais subjetivo do pesquisador com o seu tema.
O processo de pesquisar a atuação dos grafiteiros na cidade do Rio de
Janeiro se deu de forma concomitante a minha própria imersão na prática do
graffiti. À medida que adentrei com mais intensidade nas redes sociais,
conhecendo pessoas, aprendendo as técnicas, praticando o graffiti e
participando de eventos, a pesquisa tornou-se mais rica. A realização desta
pesquisa foi possível mediante este posicionamento, que não ocorreu
apenas pelo interesse científico, mas também pela identificação pessoal. Em
termos metodológicos, o texto que procuramos desenvolver apresenta um
posicionamento a partir da visão e das práticas que os grafiteiros constroem na
cidade em decorrência da própria relação que desenvolvem com ela.
A observação participante, principal instrumento metodológico deste
trabalho, foi escolhida como uma forma de apreender a riqueza de detalhes
apresentada nas ações dos grafiteiros, inclusive a minha, pelo espaço urbano.
Conforme Geertz (1978), a descrição densa balizou a maneira como o estudo
etnográfico deveria ser conduzido, isto é, o estranhamento, por parte do
pesquisador, das práticas desses sujeitos como forma de identificar suas
particularidades. Assim, a pesquisa, que está dividida em três capítulos, tem
pelo menos dois capítulos que se baseiam nos dados apreendidos em campo
na forma de uma observação participante. No segundo capítulo foram inseridos
e analisados relatos pessoais de diferentes momentos e situações que
vivenciei ao longo desse processo, que também respaldam os aspectos
descritos no terceiro capítulo, cujos depoimentos pessoais não estão
presentes.
167
Ao longo de todo o trabalho foram também utilizados depoimentos de
diferentes grafiteiros, obtidos por entrevistas que complementam esta pesquisa
etnográfica. As entrevistas foram feitas com o máximo de informalidade
possível, forma pela qual acredito ser possível tornar o diálogo mais
espontâneo, apresentando detalhes e contradições. Cabe aqui ressaltar que os
grafiteiros citados ao longo do trabalho deram gentilmente suas opiniões por
compartilharem de idéias semelhantes às que apresentamos, além do próprio
sentimento de companheirismo desenvolvido durante o período em que
estivemos juntos. Em momento algum omiti o meu papel de pesquisador,
porém a todo instante me preocupei em desenvolver laços de companheirismo
e fraternais com as pessoas envolvidas, não as encarando como simples
objetos de pesquisa. O resultado final deste trabalho encontra-se também
pelas ruas da cidade na forma de graffitis, corroborando o posicionamento de
falar a partir de um ponto vista (PORTO-GONÇALVES, 2001). A escolha pelo
título deste trabalho deriva dessa concepção do fazer e compreender outras
geografias.
No aspecto teórico a pesquisa apresentou uma dificuldade de
estabelecer uma precisão conceitual no âmbito da geografia em relação ao
tratamento dado ao objeto pesquisado. Ao longo do trabalho elencamos os
seguintes conceitos: paisagem, espaço público, fragmentação sócio-política do
espaço urbano, identidade territorial, territorialidade e território. Acreditamos ser
uma virtude a complexidade que envolve a questão e a possibilidade de
opções que a discussão fornece. No entanto, a utilização dos conceitos tenta
responder, de forma ainda parcial, os problemas que se impuseram no decorrer
da pesquisa.
A problemática central do trabalho está no jogo legitimação/proibição da
ação dos grafiteiros na cidade do Rio de Janeiro. Portanto, é preciso fazer um
inventário de questões subsequentes para darmos conta de uma realidade no
mínimo complexa. Acredito ser uma questão política o que envolve a
problemática central, por isso o território surge como uma categoria importante
de análise. Porém, não um território efetivo e muito menos uma proposta
para essa constituição por parte dos grafiteiros que apresentam, isto sim, uma
territorialidade urbana.
168
A apreensão dessa territorialidade se faz muitas vezes pelo aspecto
visual, ou melhor, pela visibilidade e visualidade dos graffitis. Daí a
necessidade de se compreender essa paisagem urbana não apenas na sua
morfologia material, mas também em um sentido simbólico (BERQUE, 2004). O
graffiti como registro visual participa do cotidiano da cidade denotando um
processo de ativação e desativação de territorialidades de forma muitas vezes
efêmera, estabelecendo-se como um recurso de comunicação do espaço
urbano.
Nossa análise permite afirmar que o graffiti tem seus pressupostos
ligados diretamente a movimentos e concepções artísticas do século XX, como
o muralismo mexicano, a pop art e os ready mades de Marcel Duchamp.
Distingue-se da pichação especialmente por estes pressupostos, e qualifica-se
como arte pública e movimento artístico politizado. Relacionado à cultura hip-
hop, atribui-se uma politização e um engajamento de seus autores, e é muito
inspirado por movimentos políticos como Maio de 1968 e a luta por direitos
civis nos EUA. Sua territorialização posterior no Brasil se deu inicialmente a
partir de espaços populares das grandes metrópoles como São Paulo e Rio de
Janeiro, e é também articulado em torno de questões políticas e sociais como a
desigualdade social e de renda, a precariedade das habitações, a violência e o
racismo. O graffiti no Rio de Janeiro foi difundido, a partir do fim da década de
90, ligado ao movimento hip-hop, através de festas, projetos e redes sociais.
Entretanto, constatamos que atualmente a atuação dos grafiteiros não está
exclusivamente articulada pelo movimento hip-hop.
Destes elementos emerge a constituição de uma identidade plural de
distintos sujeitos que vivenciam esta realidade, identificam-se e organizam-se
em função de questões de interesse comuns. De forma ainda limitada foi
possível identificar a multiplicidade que constitui hoje o perfil social dos
grafiteiros no Rio de Janeiro, que apesar de ter predominância de jovens entre
15 e 25 anos, do sexo masculino, adquire legitimidade em diferentes
segmentos sociais, obtendo também a adesão do sexo feminino. Por fim é
ressaltada a abrangência territorial de ação desses sujeitos, que apesar da
delimitação estabelecida por esta pesquisa, circunscrita ao tecido urbano
metropolitano do Rio de Janeiro, extravasa estes limites territoriais das cidades.
169
Esta territorialidade tem particularidades que envolvem a relação de
seus sujeitos com o espaço urbano, na qual notamos a semelhança com a
apropriação simbólica e o uso desse espaço urbano, apontados por Lefebvre
(1986). Neste sentido, formam-se identidades (territoriais) de sujeitos a partir
de suas ações no espaço urbano. Entretanto, é preciso qualificar que espaço
urbano é esse, ou mais especificamente, qual é a relação direta do grafiteiro
com cidade por ele vivenciada. Os apontamentos feitos ao longo do trabalho
indicam elementos que constituem hoje o espaço urbano carioca, e quais as
influências que este exerce na constituição do grafiteiro enquanto uma
identidade territorial. Por isso destaca-se a fragmentação do tecido
sociopolítico espacial, com elementos que perpassam a auto-segregação,
enclaves territoriais ilegais e anemia do espaço público. Soma-se a estes a
velocidade dos fluxos de capitais e informações atrelados a uma morfologia
urbana baseada no individualismo e no consumo.
Nossa análise pretende incidir prioritariamente sobre a questão da
legitimidade do graffiti apesar de sua proibição legal, e se desenvolve a partir
das formas de apropriação do espaço urbano, e mais especificamente da
cidade do Rio de Janeiro. É possível definir efetivamente a constituição de uma
territorialidade específica dos grafiteiros, o que a todo instante mostra-se
profundamente marcada pela ambivalência de suas ações.
Esta ambiguidade atinge os grafiteiros nos mais distintos papeis que
assumem perante a sociedade ou perante seu próprio grupo. A ilegalidade de
suas ações torna, muitas vezes, contraditória a sua atuação política (em
projetos sociais) e ―profissional‖. Essa contradição torna-se ainda maior em
decorrência da imagem ―positiva‖ atribuída a estes pelos veículos de
comunicação de massa. É possível questionarmos até que ponto o grafiteiro
ainda hoje carrega consigo um fator de subversão da ordem ao imprimir a
marca de sua territorialidade, na qual se dilui a noção de vandalismo, ainda
presente nos pichadores. Isto é possível notar a partir dos bombardeios cada
vez menos repreendidos pela ação policial, em virtude de uma subjetiva
valorização estética da cidade atribuída a essas e outras intervenções dos
grafiteiros.
170
A valorização dos graffitis no mercado artístico e publicitário apresenta
outras contradições, como a diminuição do caráter de arte pública do graffiti, na
medida em que são encerrados em galerias ou comercializados como objetos
de arte, perdendo sua efemeridade e relação direta com o público. Ao mesmo
tempo, os grafiteiros valorizados profissionalmente passam a gerar renda a
partir da sua produção, inserindo-se no mercado de artes e produção gráfica.
Com isso as oficinas de graffiti passam a receber um público mais amplo em
busca de capacitação, ao mesmo tempo em que funcionam como espaços de
encontro lúdico e reunião de antigos e novos grafiteiros.
Participar, construir e principalmente compreender outras geografias é
um desafio para a investigação geográfica de nosso tempo. A partir de
elementos simbólicos e materiais vivenciados e sistematizados pela
experiência participante, busco aqui valorizar as ricas experiências de criar
outras concepções de ser e viver na cidade.
171
5. Bibliografia
ABRAMOVAY, Mirian. et. al. Gangues, Galeras, Chegados e Rappers. Rio de
Janeiro: Garamond, 1999.
ABREU, Maurício de A. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
IPP, 2008 (1987).
AGUILAR, Adrián Guillermo. Las mega-ciudades y las periferias expandidas.
Ampliando el concepto en Ciudad de México. In: EURE
(Santiago) v.28 n.85 Santiago dic., 2002.
ANDREOLI, Giovani S. Notas sobre a nebulosa, marcas na areia (os grafismos
urbanos porto-alegrenses). In: REGO, Nelson et. al. (org.) Saberes e
práticas na construção de sujeitos e espaços sociais. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2006.
ARCE, José M. Valenzuela. Vida de barro duro: cultura popular juvenil e grafite.
Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1999.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
_______. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
BAUDRILLARD, J. Kool Killer. A Insurreição pelos Signos. L´échange
symbolique et la mort. Éditions Gallimard, 1976.
BECKER, Howard S. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Ed.
Hucitec, 1993.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica.
1955.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da
modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
BERQUE, Augustin. Les raisons Du paysage: de La Chine antique aux
environnements de synthèse. Paris: Hazan, 1995.
_______. Paisagem-marca, Paisagem matriz: Elementos da problemática para
uma geografia cultural. In: CORRÊA, R. L., ROSENDAHL, Z. (org.).
Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: Eduerj, 2004.
172
BONNEMAISON, Joel. Viagem em torno do território In: CORRÊA, R. L.,
ROSENDAHL, Z. (org.). Geografia Cultural: Um século (3). Rio de Janeiro:
Eduerj, 2002.
BORJA, Jordi. La ciudad conquistada. Madrid: Alianza Editorial, 2003.
CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2007.
CARLOS, Ana Fani. O lugar no/do mundo. São Paulo: Labur Edições, 2007a.
_______. O Espaço Urbano: Novos Escritos sobre a Cidade. São Paulo: Labur
Edições, 2007b.
CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins editora,
2007.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2007.
CHAUÍ, Marilena. Convite a Filosofia. São Paulo: Ática, 2002.
COSTA, Pere-Oriol et. al. Tribus Urbanas. El ansia de identidad juvenil: entre el
culto a la imagen y la autoafirmación a través de la violencia. Barcelona:
ediciones Paidós Ibérica, 1996.
DA MATTA, Roberto. O ofício do etnólogo, ou como ter ―Anthropological Blues‖.
In: Nunes, Edson (org.) Aventuras Sociológicas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1978.
_______. A casa e a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
DA SILVA, Thiago Rocha Ferreira. Paisagens urbanas e discurso político:
Manifestações no Brasil às vésperas do golpe militar de 1964. In: Revista
Cidades (Grupo de estudos urbanos GEU), Presidente Prudente: Vol. 5,
N° 7, Janeiro/Junho 2008.
DAVIDOVICH, Fany. Metrópole e território: metropolização do espaço no Rio
de Janeiro. In: Cadernos Metrópole n. 6 (IPPUR/UFRJ), Rio de Janeiro,
semestre 2001.
DE DIEGO, Jesus. Graffiti. La Palabra y La Imagen: Un estúdio de la expresión
en las culturas urbanas en el fin del siglo XX. Barcelona: Los Libros de la
Frontera, 2000.
DE DUVE, Thierry. Kant depois de Duchamp. In: Revista de mestrado de
história da arte EBA - UFRJ, Rio de Janeiro, 2º semestre 1998.
173
DELGADO, Lola e LOZANO, Daniel. Tribus Urbanas. Guia para moverse com
soltura entre frikis, solidários, cool, hiphoperos, tuneros, cutrefamosos...
Madrid: Esfera de los Libros, 2004.
ESTRELLA, C. e GONZALVES, F.N. Comunicação, cidades e invasões
artísticas. UNIrevista: Vol. 1, N° 3, julho 2006.
FEIXA, Carles. De Jóvenes, Bandas y Tribus. Barcelona: Editorial Ariel, 2006
(1998).
FOERSTE,Gerda Margit Schutz. Leitura de imagem. Um desafio à educação
contemporânea. Vitória: EDUFES, 2004.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
GANZ, Nicholas. O mundo do grafite. Arte urbana dos cinco continentes. São
Paulo: Martins Fontes, 2008.
GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: Por uma teoria interpretativa da
cultura. Ed. Zahar; 1978
_______. Estar lá, Escrever aqui. In: Diálogo, 1988.
GITAHY, Celso. O que é Graffiti? São Paulo: Editora Brasiliense, 1999.
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais. Paradigmas clássicos
e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 1997.
HAESBAERT, Rogério. Des-territorialização e identidade. A rede ―gaúcha‖ no
nordeste. Niterói: Eduff, 1997.
_______. Identidades territoriais. In: CORRÊA, Roberto Lobato, ROSENDAHL,
Zeny (org.). Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: Eduerj,
1999.
_______. O Mito da Desterritotialização. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2004.
_______. Território e Multiterritorialidade: um debate. In: Revista Geographia,
Rio de Janeiro: Ano IX, nº 17, Junho 2007.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DPeA,
2006.
HARVEY, David. Condição Pós-moderna. São Paulo: Ed. Loyola, 2009.
HERSCHMAN, Michael. Abalando os anos 90: funk e Hip Hop: Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997.
174
JOHNSON, Ollie A. Explicando a extinção do partido dos Panteras Negras: o
papel dos fatores internos. In: Caderno CRH, Salvador, n. 35, p. 93-125,
jan./jun 2002.
KNAUSS, Paulo. Grafite Urbano Contemporâneo. In: TORRES, S. (org.)
Raízes e Rumos: Perspectivas interdisciplinares em estudos americanos.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2001.
LEFEBVRE, Henri. La producion de l`space. Paris: Anthopos, 1986.
_______. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
_______. O direito a cidade. São Paulo: Centauro, 2006.
LIMONAD, Ester. Os lugares da urbanização: o caso do interior fluminense.
Tese de doutorado FAUUSP. São Paulo: 1996.
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
MACNAUGHTON, Alex. London street art. Londres: Prestel, 2006.
MASSON, José Renato. Pichadores de rua, territorialidades urbanas em
conflito: territórios (in)visíveis de Goiânia. Dissertação de Mestrado em
Geografia do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia do
Instituto de Estudos Sócio-Ambientais da Universidade Federal de Goiás.
Goiânia, 2005.
MUNHOZ, D. R. M. Graffiti: Uma Etnografia dos atores da escrita urbana de
Curitiba. Curitiba: Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal do Paraná,
2003.
NOGUÉ, Juan. La construcción social del paisaje. Madrid: Biblioteca Nueva,
2007.
OLIVEIRA, Denilson A. Por uma significação do movimento Hip Hop; Niterói:
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Geografia) Universidade
Federal Fluminense, 2004.
_______. Territorialidades no mundo globalizado: outras leituras de cidade a
partir da cultura Hip Hop na metrópole carioca. Niterói: Dissertação de
Mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduão em Geografia da
Universidade Federal Fluminense, 2006.
ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 2003.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Geo-grafías. Movimientos Sociales,
Nuevas Territorialidades y sustentabilidad. México: Siglo Veintiuno, 2001.
175
PENNACHIN, Débora. L.; Signos Subversivos: Das significações de graffiti e
pichação. Metrópoles contemporâneas como miríades sígnicas; Trabalho
apresentado no Núcleo de Semiótica da Comunicação, XXVI Congresso
Anual em Ciência da Comunicação, Belo Horizonte/MG, 02 a 06 de
setembro de 2003.
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Editora Ática,
1993 (1980).
ROCHA, Janaína et al. Hip Hop: A periferia grita. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo. 2001.
RODRIGUES, Glauco B. Uma Geografia do hip hop. Niterói: Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em Geografia) Universidade Federal
Fluminense, 2003.
_______. Quando a política encontra a cultura: a cidade vista (e apropriada)
pelo movimento Hip-Hop. In: Revista Cidades, Presidente Prudente: v. 6,
nº 9, 2009.
ROSE, Tricia. Um Estilo que Ninguém Segura: Política, Estilo e a Cidade Pós-
industrial no Hip Hop In: HERSCHMANN, Micael (org.). Abalando os anos
90: Funk e Hip Hop. Globalização, violência e estilo cultural. Editora
Rocco: Rio de Janeiro, 1997.
SACK, Robert D. Human Territoriality: Its Theory and History, Cambridge:
Cambridge Press, 1986.
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. 6. ed. São Paulo: Edusp,
2008.
________. A natureza do Espaço - tempo e técnica razão e emoção. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002 [1996].
________. A urbanização brasileira. São Paulo: Edusp, 2008 (1993).
SAUER, Carl. A morfologia da paisagem. In: CORRÊA, R. L., ROSENDAHL, Z.
(org.). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: Eduerj, 2004.
SILVA, Armando. Imaginários urbanos. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001.
SILVA, Jailson de Souza. Um espaço em busca de seu lugar: as favelas para
além dos estereótipos. In: SANTOS, M. et al. Território, territórios. Rio de
Janeiro: DPeA editora, 2006 (2002).
SIMMEL, G. A Metrópole e a Vida Mental. In: VELHO, O. G. O Fenômeno
Urbano. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
176
SMITH, Neil. Gentrificação, a fronteira e a reestruturação do espaço urbano. In:
Revista Geousp - Espaço e tempo, São Paulo: Nº 21, 2007.
SOARES, Thiago Nunes. Escritas subversivas: dimensões históricas, sociais e
simbólicas dos grafites e pichações nos espaços públicos. Colóquio de
História da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Recife, 3 a 5 de
outubro de 2007.
SOUZA, David da C. Aguiar. Pichação carioca: etnografia e uma proposta de
entendimento. Rio de Janeiro: Dissertação de mestrado UFRJ / PPGSA
/ Programa de pós-graduação em Sociologia e Antropologia, 2007.
SOUZA, Marcelo J. Lopes. O Território: Sobre espaço e poder, autonomia e
desenvolvimento. In: CASTRO, Iná Elias; CORREA, Roberto Lobato;
GOMES, Paulo César da Costa (org.). Geografia: Conceitos e temas. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
_______. ABC do desenvolvimento urbano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2003.
_______. Fobópole O medo generalizado e a militarização da questão urbana.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
SOUZA, Marcelo J. Lopes e RODRIGUES, Glauco B., Planejamento urbano e
ativismos sociais. São Paulo: Unesp, 2004.
TARTAGLIA, Leandro R. S. Geograf(it)ando: Uma leitura geográfica dos
graffitis na cidade do Rio de Janeiro. Niterói: Trabalho de Conclusão de
Curso (Graduação em Geografia) Universidade Federal Fluminense, 2007.
VASCONSELLOS, Maria J. Esteves. Pensamento sistêmico: O novo
paradigma da ciência. Campinas, SP: Papirus, 2006.
VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Companhia das letras, 1994.
WACQUANT, Loic. Os condenados da cidade: estudos sobre marginalidade
avançada. Rio de Janeiro: FASE, 2001.
177
Revistas:
Época nº 553. ―A pichadora e o cárcere‖ São Paulo: Ed. Globo, 22/12/2008.
Gênios da arte. Warhol. Barueri, SP: Girassol, 2007.
Gênios da Pintura. Diego Rivera. nº 20 São Paulo: Abril Cultural, 1967.
Gênios da Pintura. Siqueiros. nº 46 São Paulo: Abril Cultural, 1967.
Graffiti. Arte e cultura de rua n° 45 São Paulo: Ed. Escala, 2009.
Graffiti. Arte e cultura de rua nº 37 São Paulo: Ed. Escala, 2007.
Mestres da Pintura. Pollock. São Paulo: Abril cultural, 1978.
Revista O Globo. Nº 273 Rio de Janeiro, 18/10/2009.
Jornais e Periódicos:
―Folha de S. Paulo‖. ―Grafite retirado da rua vira souvenir de colecionador em
SP‖. São Paulo, 28/02/2010.
Folha de S. Paulo‖. ―Pichadores atacam mural de Os Gêmeos em São Paulo‖.
São Paulo, 20/03/2010.
O Globo‖. ―Cores da Metrópole‖, Boa Viagem. Rio de Janeiro, 30/04/2009.
O Globo‖. ―Vertigem Visual‖, Segundo Caderno. Rio de Janeiro, 23/03/2009.
O Globo‖. ―Meninos do Cambuci‖, Segundo Caderno. Rio de Janeiro,
14/05/2008.
O Globo‖. ―Grafite até entre quatro paredes‖, Caderno Tijuca 1.393. Rio de
Janeiro, 24/04/2008.
O Globo‖. ―Ta na rua‖, Rio Show. Rio de Janeiro,17/11/2006.
O Fluminense‖. ―A arte da grafitagem‖. Niterói, 27/07/2008.
Sites:
<http://www.panmelacastro.com/anarkia1/anarkia/viva%20a%20anarkia.htm>
Acessado em 24/11/2009.
<www.junkz.com.br>Acessado em 24/11/2009.
<www.centrointerativodecirco.org.br/index.htm> Acessado em 24/11/2009.
<www.cufa.org.br/in.php?id=projetos> Acessado em 24/11/2009.
178
<www.afroreggae.org.br/sec_projetos.php?id=40&sec=projeto> Acessado em
24/11/2009.
<HTTP://geografites.blogspot.com> Acessado em 23/03/2010.
179
6. Anexos
Anexo I:
Fragmento da Lei Federal 9.605/98 (Lei de crimes ambientais)
As penas restritivas de direito são:
I - prestação de serviços à comunidade;
II - interdição temporária de direitos;
III - suspensão parcial ou total de atividades;
IV - prestação pecuniária;
V - recolhimento domiciliar.
Art. 9º A prestação de serviços à comunidade consiste na atribuição ao condenado de tarefas
gratuitas junto a parques e jardins públicos e unidades de conservação, e, no caso de dano da
coisa particular, pública ou tombada, na restauração desta, se possível.
Art. 10. As penas de interdição temporária de direito são a proibição de o condenado contratar
com o Poder Público, de receber incentivos fiscais ou quaisquer outros benefícios, bem como
de participar de licitações, pelo prazo de cinco anos, no caso de crimes dolosos, e de três
anos, no de crimes culposos.
Art. 11. A suspensão de atividades será aplicada quando estas não estiverem obedecendo às
prescrições legais.
Art. 12. A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima ou à entidade
pública ou privada com fim social, de importância, fixada pelo juiz, não inferior a um salário
mínimo nem superior a trezentos e sessenta salários mínimos. O valor pago será deduzido do
montante de eventual reparação civil a que for condenado o infrator.
Art. 13. O recolhimento domiciliar baseia-se na autodisciplina e senso de responsabilidade do
condenado, que deverá, sem vigilância, trabalhar, freqüentar curso ou exercer atividade
autorizada, permanecendo recolhido nos dias e horários de folga em residência ou em
qualquer local destinado a sua moradia habitual, conforme estabelecido na sentença
condenatória.
Seção IV
Dos Crimes contra o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural
Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar:
I - bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial;
II - arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido
por lei, ato administrativo ou decisão judicial:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena é de seis meses a um ano de detenção, sem
prejuízo da multa.
Art. 63. Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei,
ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico,
artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem
autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
Art. 65. Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
Parágrafo único. Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu
valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de seis meses a um ano de detenção, e
multa.
180
Anexo II: Glossário
Bomb (bombardeios) Ações diretas realizadas sem autorização previa (Ver
cap. III)
Crew Grupo restrito de grafiteiros.
Spray ou Jet Tinta esmalte contida em latas com válvulas utilizadas por
grafiteiros.
Stencil Moldes vazados, responsáveis pela reprodão quase inesgotável de
uma mesma imagem.
Tag Assinatura de grafiteiros ou pichadores.
Toy Grafiteiro inexperiente ou que mostra uma conduta vacilante.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo