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Programa de Pós Graduação em História
AS AVENTURAS DO GOSTO: O RESTAURANTE AL MANZUL DE
CUIABÁ COMO EXPRESSÃO DA CULINÁRIA ÁRABE (1991-2008)
MARIA CRISTINA RODRIGUES FERNANDES
Curitiba
Julho/2010
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1
MARIA CRISTINA RODRIGUES FERNANDES
AS AVENTURAS DO GOSTO: O RESTAURANTE AL MANZUL DE
CUIABÁ COMO EXPRESSÃO DA CULINÁRIA ÁRABE (1991-2008)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós
Graduação em História, Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal
do Paraná para obtenção do título de Mestre, sob
orientação do Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes
dos Santos.
Curitiba
Julho/2010
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TERMO DE APROVAÇÃO
MARIA CRISTINA RODRIGUES FERNANDES
AS AVENTURAS DO GOSTO: O Restaurante Al Manzul de Cuiabá como
expressão da culinária árabe (1991-2008)
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso
de Pós Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná, pela seguinte banca examinadora:
Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos
Departamento de História, UFPR.
Prof. Dr. Ismael Vanini
Departamento de História, Unipar
Prof. Dr. Mitzy T. Reichembach
Departamento de Ciências Humanas, UFPR
Curitiba, 05 de junho de 2010.
3
Paulo Angeli, meu esposo, e Isabela minha filha, por
tudo o que sou e por tudo que conquistei.
4
AGRADECIMENTOS
Realizar uma pesquisa não é tarefa fácil. Nesta caminhada encontramos
inúmeros desafios que ajudam nos a crescer e desenvolver intelectualmente. Neste
caminho conheci algumas pessoas que gostaria de agradecer a contribuição, que de
maneira direta ou indiretamente colaboraram comigo.
Quero agradecer as instituições Unipar e UFPR. A Unipar que lutou para que o
Minter pudesse acontecer e acreditou em cada um dos alunos que participaram do
processo. Instituição esta que devo grande parte de minha formação acadêmica. A
UFPR por acolherem a idéia do projeto do mestrado interinstitucional Minter,
acreditando na Unipar , me proporcionou uma gama de ensinamentos e aprendizado
incrível.
Agradeço em especial ao Prof. DR. Carlos Roberto Antunes dos Santos pela
excelente orientação. Demonstrando seriedade e competência. Que nos momentos mais
difíceis que encontrei, quando muitos deixaram de acreditar em mim e no meu trabalho
ele estava sempre presente e atuante incentivando-me.
A família Ayoub, em especial a senhora Clariman Ayoub que sempre muito
solícita me atendia com toda a ternura. Obrigada pelas nossas longas conversas que
foram muito úteis para a realização deste trabalho.
Agradeço as pessoas que me forneceram as entrevistas sobre o Restaurante.
Pessoas estas extremamente ocupadas, mas que mesmo assim, cooperaram para a
realização da pesquisa.
Agradeço aos meus amigos, que fiz na instituição, em especial Leandro Hecko,
pelas sugestões e leituras incansáveis que fizestes do meu trabalho. E Andersen Prado
pela ajuda que me destes para agilizar as fontes com o Guia Brasil Quatro Rodas.
Neste percurso tive graves problemas que foram superados, mas para que esta
superação fosse possível contei com a ajuda implacável do meu marido Paulo Angeli.
Muito obrigado por estar ao meu lado apoiando-me e ajudando me a levantar nos
5
momentos que mais difíceis que enfrentamos com nossa filha Isabela, durante a
realização deste trabalho. Obrigada , a todos vocês!
6
RESUMO
Este estudo pretende apresentar e discutir a história do Restaurante Al Manzul,
localizado na cidade de Cuiabá, capital mato-grossense. Cumpre destacar que o
Restaurante Al Manzul, objeto da pesquisa, é hoje conhecido em nível nacional e
internacional, constituindo uma rica expressão da milenar cozinha árabe, de forte
presença transnacional. Desta forma, sem perder suas qualidades específicas, o referido
restaurante vem se destacando no universo gastronômico, recebendo prêmios pela
qualidade de sua comida. Assim, pretende-se evidenciar como o sucesso do restaurante
Al Manzul de Cuiabá, além da boa alimentação oferecida, constituiu-se num verdadeiro
patrimônio local, uma vez que o Al Manzul criou espaços de encontros e de
acolhimentos, que por meio dos gostos e das preferências permitem a identificação e a
valorização da comida árabe.
Palavras-chaves: História da Alimentação, Comida Árabe, Patrimônio, Memória.
7
ABSTRACT
This study it intends to present and to argue the history of the Restaurant Al
Manzul, located in the Cuiabá City, capital mato-grossense. It fulfills to point out that
the Restaurant Al Manzul, object of the research, today is known in the national and
international level, constituting a rich expression of the millenarian Arab kitchen, of
strong transnational presence. In such a way, without losing its specific qualities, the
related restaurant comes standing out in the gastronomic universe, receiving prizes for
the quality from its food. Thus, it is intended to evidence as the success of the Cuiabá‟s
Al Manzul Restaurant, beyond the good feeding offered, constitutes in a true local
patrimony. At last, the Al Manzul created spaces of meeting and shelters, that through
the tastes and of the preferences allow to the identification and the valuation of the Arab
food.
Keywords: History of Feeding, Arab food, patrimony, memory.
8
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FOTO 1 - Mapa do Líbano e Síria ...................................................................
34
FOTO 2 Casa da Família Ayoub no Vale do Bekka, cidade Niha .........................
38
FOTO 3- Salah Ayoub ainda criança no Líbano ...............................................
38
FOTO 4- Salah Ayoub em Beirute, na companhia de uma amiga ....................
39
FOTO 5- Trabalhadores na propriedade da família Ayoub, em Niha...............
40
FOTO 6- Foto 6- Salah Ayoub, dirigindo o automóvel com a identificação
Cury, (marca da representação comercial que seu tinha Elias trabalhava)
acompanhado de outros mascates no interior do Mato-Grosso ........................
48
FOTO 7- Elias Ayoub, Salah Soleiman Ayoub e Michel Ayoub ....................
50
FOTO 8 Salah Ayoub, em seu ofício de mascate, viajando com seu jipe,
pelo interior do Mato-Grosso ...........................................................................
53
FOTO 9- Tio de Salah Ayoub no Líbano .........................................................
58
FOTO 10- Salah, em sua Loja Ayoub, na Rua 13 de Julho em Cuiabá ...........
61
FOTO 11- Casamento de Salah e Clariman, apenas no civil ...........................
61
FOTO 12- Clariman acompanhada de seus pais ..............................................
62
FOTO 13 - Salah e Clariman em viagem de lua-de-mel ..................................
63
FOTO 14- Primeira sede do Al Manzul ............................................................
66
FOTOS 15 e16- Salah e Clariman na segunda sede do Al Manzul .................
70
FOTO 17- Bailarina em apresentação no Al Manzul .......................................
81
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...............................................................................................
10
1 O ARTESÃO DA COZINHA ÁRABE: ONDE TUDO COMEÇOU .........
19
1.1 A VINDA PARA O BRASIL E OS DESAFIOS DA IMIGRAÇÃO ........
41
1.2 A TRADIÇÃO DO COMÉRCIO: DE MASCATE À LOJISTA ..............
51
2 O NASCIMENTO DO RESTAURANTE AL MANZUL ..............................
64
2.1 A CONFIRMAÇÃO DA QUALIDADE ...................................................
71
3 AL MANZUL: PATRIMÔNIO E MEMÓRIA DE CUIABÁ ........................
82
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................
98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................
101
APÊNDICES ..................................................................................................
104
10
INTRODUÇÃO
O meu interesse pela cultura árabe teve início ainda na graduação quando, num
determinado momento, na disciplina de História do Gênero, a professora solicitou um
trabalho sobre a História das Mulheres, permitindo que os temas pesquisados partissem
de escolhas dos alunos. Entusiasmada com o novo desafio, queria fazer algo diferente.
Por essa razão, não me interessei pelos recortes sugeridos pela professora. Pensando
sobre o trabalho, durante o percurso que fazia todos os dias da faculdade até em casa,
encontrei no caminho alguns muçulmanos, que vestiam túnicas brancas com detalhes
em renda. Achei tudo muito diferente e instigante ao mesmo tempo. Assim, indaguei-
me: porque não estudar as mulheres muçulmanas? Busquei, então, conhecer a pequena
comunidade árabe de Francisco Beltrão, cidade onde nasci e graduei-me, e descobri
que, quase na sua totalidade, estes árabes vinham de diversos países do imenso
continente africano. Nessa perspectiva, delimitei meu objeto de pesquisa na questão dos
direitos e deveres das mulheres garantidos pelo Alcorão, livro sagrado para os
muçulmanos.
O senhor Abdul Halim, que nesta época era fiscal do Governo da Arábia
Saudita, representante local dos árabes muçulmanos que vieram para Francisco Beltrão
a fim de trabalhar na empresa da Sadia, doou-me livros. Entre as obras que recebi estava
o próprio Alcorão em português, que como advoga a tradição árabe, não pode ser
vendido e sim doado. O senhor Halim permitiu-me participar das reuniões no mês do
Ramadã, de modo que o período de pesquisa foi durante o mês sagrado dos
muçulmanos.
Assim, consegui apresentar com sucesso o primeiro trabalho sobre cultura
árabe. Obtendo excelentes resultados na disciplina e por intermédio da participação no
complexo universo gastronômico e religioso que é o Ramadã, fui interessando-me cada
vez mais pelo tema.
Após minha formatura no curso de História, transferi minha residência para
Lucas do Rio Verde, no interior do estado de Mato Grosso. Iniciei minhas atividades
profissionais em uma cooperativa de professores Eduluc, que presta serviços ao
11
Colégio Dois Mil. Desenvolvi inúmeros projetos na área de história, dentre estes, a “A
Festa Árabe”. O respectivo projeto envolveu os primeiros anos do Ensino Médio, em
virtude do material franqueado pela rede Positivo, método adotado pela escola, abordar
na série em questão o Império Árabe. O projeto apresentava como principal requisito
uma pesquisa realizada pelos alunos, sob minha orientação, relativa à alimentação,
dança, economia, arquitetura, e a relação entre as mulheres e o Islã. E, para concluir o
projeto, foi proporcionado à comunidade escolar uma noite árabe. Nesta ocasião, todos
os alunos vestiram-se de árabes e o ambiente foi caracterizado com tendas e objetos que
representavam os valores dessa cultura. Houve apresentação dos trabalhos de pesquisa
e, entre uma exposição e outra, eram coreografadas danças típicas, teatro e poesia, de
forma que a atividade foi finalizada com um jantar árabe. Durante o desenvolvimento
destas pesquisas, principalmente ao que se diz respeito à história da alimentação árabe,
descobri que o melhor restaurante árabe do Brasil estava localizado na cidade de
Cuiabá. Movida pela curiosidade e com vários questionamentos, resolvi conhecer o
restaurante.
A partir desse ponto instaurou-se o problema que configura a base desta
dissertação de mestrado, a qual pretende apresentar e discutir a história do restaurante Al
Manzul, localizado na cidade de Cuiabá, capital mato-grossense. Elegendo-se esse
estabelecimento como objeto de pesquisa, buscou-se tematizá-lo no interior das novas
abordagens relativas à história e cultura da alimentação.
Sempre apresentei uma identificação de cunho pessoal com o universo da
cozinha e da mesa, o que resulta na inclinação pela história e cultura da alimentação.
Desta forma, entendemos que os temas da cozinha e da mesa regional revelam os
tempos da memória gustativa, através de uma variada e saborosa viagem pela milenar
cozinha árabe. E, nada mais expressivo para por em prática a expressiva culinária árabe
do que ter a oportunidade de estudar, pesquisar e compreender o restaurante Al Manzul.
Tal restaurante se tornou um espaço de acolhimento da cultura árabe e, também, de
encontros e sociabilidades para os apreciadores desta comida. Um ambiente carregado
de signos e símbolos que referem tal cultura, plena em sensibilidades e subjetividades
que podem ser ampliadas graças à memória gustativa. Sendo assim, considera-se que a
cultura árabe é um produto da agregação histórica e cultural da sabedoria oriental, dos
12
espaços de cultura clássica mediterrânea greco-romana, do refinamento cultural de
Bizâncio e da influência e contribuição da civilização cristã.
O que nos chamou a atenção sobre o restaurante foi o fato de ele ser
reconhecido em nível nacional e internacional, recebendo prêmios anualmente em
diversas avaliações gastronômicas. Outra questão importante é que desde 1994 tem
recebido do Guia Brasil Quatro Rodas o prêmio de Boa Cozinha Árabe. Em 2000
avançou na escala do conceito da revista para Muito Boa Cozinha, sendo considerado
por este guia, portanto, o melhor restaurante árabe do Brasil.
Valendo-se do auxílio de fontes impressas, como o Jornal de Cuiabá, o próprio
Guia Brasil Quatro Rodas e, também, de fontes orais, por meio de entrevistas com a
viúva, senhora Clariman Ayoub (lamentavelmente o senhor Salah Ayoub, faleceu
durante o desenvolvimento desta pesquisa), procurou-se entender o diferencial desta
cozinha árabe em relação aos demais restaurantes. Entendemos, assim, que se busca um
restaurante deste nível para algo além do ato de se alimentar. É importante analisar que
para o imigrante ou descendente, esta apreciação ocorra devido à comida e ao ambiente
carregado de signos e lembranças da terra natal, pois se compreende que o ser humano
se alimenta primeiramente com o olhar, observando, apreciando a mesa, sem tocá-la.
Concomitantemente, segue o olfato, que através do aroma que emana desta comida
típica, pode levar às mais remotas lembranças, acompanhadas pela memória gustativa.
Neste momento, afloram as histórias contadas pelos avôs, tios, pais e amigos. E a
nostalgia emerge como um rompante àquele momento único de vivência e convivência,
daquele que neste momento se coloca na posição de mediador das recordações. Diz-se
mediador porque, geralmente, num espaço de sociabilidade e convivência, como o
restaurante que escolhemos como objeto para nossa investigação, as pessoas vão
acompanhadas pelos seus estimados amigos, familiares, amores. Assim, como afirmava
Plutarco, nós não nos sentamos à mesa para comer, mas para comer juntos. Neste
contexto, apresenta-se o ambiente que promove, além da degustação, o bom convívio, a
boa conversa, o diálogo e a amizade, uma vez que: “Os homens comem como a
sociedade os ensinou”.
1
Ao redor de mesa, costuma-se transmitir os valores da
comunidade e compartilhar histórias dos antepassados.
1
FRANCO, A. De caçador a Gourmet: uma história da gastronomia. São Paulo: SENAC, 2001.p.26.
13
A memória gustativa é capaz de fazer o ser humano trazer ao presente
situações esquecidas, transcorridas em datas remotas, mas que pelo gosto, o paladar
de um alimento o leva a uma viagem de recordações e memórias subjetivas. Raul Lody
afirma que a comida:
(...) é tão importante e identificadora de uma sociedade, de um grupo, de um
país, como o idioma, a língua falada, funcionando como um dos mais
importantes canais de comunicação.
2
Reforçando esta visão, Ariovaldo Franco também contribui ao assegurar que “a
alimentação diz muito sobre a educação e a cultura das pessoas.”
3
Olhar para um prato
elaborado, ouvir os costumes alimentares, as predileções ou restrições de um
indivíduo, são suficientes para entregar a qual determinado grupo social ele pertence.
Para Ariovaldo Franco “os hábitos alimentares tem raízes profundas na
identidade social dos indivíduos. São, por isso, os hábitos mais persistentes no processo
de aculturação dos imigrantes.”
4
Sendo assim, a comida é um espelho da cultura das
sociedades, a partir dela se reflete todos os demais costumes, sociais, religiosos,
estéticos, entre outros.
Os gostos alimentares são construídos no meio social que vivemos,
principalmente no âmbito familiar, nas raízes da formação do indivíduo, visto que aqui
aprendizados que o ser humano leva para toda uma vida. E a lembrança da comida
materna está inserida neste contexto. Segundo Santos:
(...) a partir da premissa que a formação do gosto alimentar não se dá,
exclusivamente, pelo seu aspecto nutricional, biológico. Neste sentido, o que
se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como se
come e com quem se come.
5
2
LODY, R. Brasil bom de boca. São Paulo: SENAC, 2008. p. 31.
3
FRANCO, op.cit. p.10.
4
Ibid., p.25.
5
SANTOS, Carlos R. A. A alimentação e o seu lugar na História: os tempos da memória gustativa. In
História, Questões & Debates, Curitiba: UFPR, n. 42, 2005, p. 13.
14
Todavia, mesmo adquirindo hábitos alimentares influenciados por uma
determinada cultura ou grupo étnico, neste estudo, como veremos mais adiante,
conseguimos provar que alimentos advindos de um universo gastronômico distante do
Brasil, cultural e espacialmente, tal como os produtos da culinária árabe, podem vir a
ser introduzidos e apreciados por um público diversificado e heterogêneo. A comida,
portanto, pode também expressar versatilidade, adaptação aos novos costumes e
sofisticação.
A comida, para o imigrante, é uma das principais dificuldades encontradas,
frente aos desafios das terras distantes, onde se destacam situações problemáticas como
a busca de trabalho, adaptação, distância dos laços de parentescos, bem como as
dificuldades de acesso aos produtos necessários, para a realização dos pratos favoritos.
Desse modo, “(...) a exaltação de alguns pratos da culinária materna, ou do país de
origem, mesmo quando medíocres, pode durar a vida inteira e a sua degustação gera, às
vezes, associações mentais surpreendentes.”
6
Consequentemente, do momento do
preparo à degustação, muitos momentos inesquecíveis acalentando a saudade podem ser
gerados.
Tem-se a convicção que os estudos da história e cultura da alimentação
caminham de braços dados com outras disciplinas, configurando-se como um espaço
multi e interdisciplinar, que interage com a antropologia, sociologia, economia, turismo,
ciências da saúde e outras.
Para compreendermos melhor as novas abordagens historiográficas que
permitem o estudo de temas cotidianos da sociedade, como é o caso da alimentação, nos
identificamos com as concepções da Nova História, das pesquisas e estudos realizados
pelo grupo dos Annales. Por meio de Braudel, herdeiro de Febvre e Bloch, ao tratar dos
conceitos de cultura material, que a história da alimentação ganhou fisionomia
definitiva no campo da pesquisa histórica. Inspirado nos textos de Lucien Febvre sobre
a distribuição regional das gorduras e nos fundos de cozinha, Braudel, na condição de
maior representante da segunda geração dos Annales, trabalhou o conceito de cultura
6
Ibid., p. 25.
15
material, abrangendo os aspectos mais imediatos da sobrevivência humana: a comida, a
habitação e o vestuário.
7
A história oferece, nos domínios da alimentação, uma contribuição
fundamental das perspectivas sobre o futuro. Os estudos de longa duração entre o meio
e a sociedade, tendo o passado como espelho, contribuem de maneira substancial para
propor os elementos e as respostas aos problemas contemporâneos que envolvem a
alimentação. Indispensável a uma melhor compreensão do presente, a história mostra
em quais termos são propostas, ao longo do tempo e pelo mundo todo, as questões
relacionadas à subsistência, saúde, segurança, bem como os medos, proibições e gostos
alimentícios, e das sensibilidades alimentares.
A alimentação, além do seu poder nutricional, envolve a arte, uma vez que,
primeiramente, degustamos o cardápio com os olhos. O encanto e o prazer que nos
apresenta uma mesa bem posta podem despertar a fantasia, o misticismo, crenças
relacionadas aos costumes de um determinado povo. Nessa perspectiva, suas
miscigenações e tradições culturais também podem apresentar-se na sua cozinha.
A partir desta contextualização, o presente trabalho busca demonstrar que os
temas da cozinha e da mesa regional revelam os tempos da memória gustativa, através
de uma variada e saborosa viagem pela comida árabe produzida pelo restaurante Al
Manzul. Essa viagem pela memória do passado e presente da referida cozinha, ou
cozinhas árabes, passa pela constatação de que o estabelecimento supracitado tem-se
constituído como ponto de encontro ao espaço onde se localizam as memórias e
lembranças das pessoas, na trama da vida coletiva.
Apresentadas as nossas concepções de História, alimentação, cultura e
sociedade, surgiu o interesse de estudar a história do restaurante Al Manzul, de
propriedade de um imigrante libanês, Salah Ayoub, nascido no Vale do Bekka, no
Líbano. Ayoub saiu de seu país com aproximadamente vinte anos de idade. Veio para o
Brasil visitar um tio comerciante, com o qual ele trabalhou durante muitos anos. O
libanês criou, aparentemente, um mundo cheio de símbolos dentro do restaurante.
Vemos assim que “as culturas nacionais são compostas não apenas de instituições
culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um
7
SANTOS, op.cit., 2005, p.13.
16
discurso.”
8
Salah Ayoub criou o restaurante por necessidade financeira, mas acabou por
agradar aos comensais pelos prazeres da mesa e cozinha árabe. Nesse sentido, o
presente trabalho busca verificar como o sucesso do restaurante Al Manzul, de Cuiabá,
além da boa alimentação oferecida, constituiu-se num verdadeiro patrimônio local.
Enfim, o Al Manzul criou espaços de encontros e de acolhimentos, que através dos
gostos e das preferências permitem a identificação e a valorização da comida árabe.
Sendo assim, juntamente com a introdução, falamos um pouco sobre a
trajetória familiar, os costumes das famílias árabes ao redor da mesa, buscando conhecer
a transmissão de valores através da oralidade nos momentos das refeições. Optou-se por
uma biografia tangencial do senhor Salah Ayoub, pois o objetivo se concentra na
trajetória deste jovem libanês que chegou a cidade de Cuiabá, com apenas 20 anos de
idade, até a abertura e vivência do Al Manzul, que se configurou como nosso objeto de
estudo.
Nesse ponto, traçou-se um breve diálogo entre autores como Oswaldo Truzzi,
Hitti e Hajjar, descrevendo-se algumas etapas da imigração árabe ao Brasil e os
principais motivos que, segundo os autores, levaram esse povo a imigrar. Adentra-se,
nesse contexto, o personagem que elegemos para biografar: Salah Ayoub. Abordaremos
as origens do senhor Ayoub, utilizando a biografia como gênero histórico, destacando a
história de um homem dentro das conjunturas de curta e média duração, e a sua inserção
num universo da culinária árabe. Ao discorrer sobre esse assunto, buscaremos trabalhar
com os resultados das pesquisas que possam dar respostas às questões como as
condições que levaram o senhor Ayoub a abrir o restaurante, ou seja, a sua trajetória até
a fundação do Al Manzul. Segundo Santos:
A biografia hoje, enquanto objeto da História, busca revelar através de uma
vida privada ou pública de pessoas de influência, os limites das liberdades
destas pessoas face ao jogo complexo do processo histórico, face às tramas
da sociedade.
9
8
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p. 50.
9
SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. As ciências humanas e a multidisciplinaridade: o lugar da
História. Revista SBPH, n. 13, Curitiba. 1997. p. 81.
17
Salah Ayoub iniciou sua vida como vendedor ambulante, na condição de
mascate e, logo, se tornou um empresário do ramos de confecções. Depois de 30 anos
neste seguimento, decidiu-se pelo empreendimento gastronômico. Portanto, a abertura
do restaurante é realização posterior a esta fase inicial de adaptação e vivência. O que
desejamos entender nesse contexto? Trata-se de compreender que existe uma relação
muito estreita entre a cultura e a alimentação, a qual está além de uma manifestação da
cultura, mas sim um caminho através do qual se constroem e transmitem signos. Esta
relação e entendimentos aqui são explorados junto à cozinha árabe e o restaurante em
questão.
Guiando-se por esse fio condutor, dialogaremos sobre o cotidiano de vida de
Ayoub, seu empreendimento no ramo alimentício, os sabores da comida e como esta fez
parte de sua vida, dos valores familiares e sua cultura. Aprendizados e valores,
constituídos no seio familiar, e que se tornaram fundamentais para o sucesso do seu
restaurante. Ainda, neste capítulo, vamos abordar sua vida familiar construída em solo
brasileiro e, de forma tangencial, o seu matrimônio com uma brasileira e os filhos. Não
se pode deixar de considerar que os árabes, mesmo aqueles que migravam sozinhos e
estavam longe das tradições de família, sempre tiveram por costume casarem com
pessoas de sua nacionalidade. A esposa de Ayoub, desde muito jovem, era conhecida
pelos seus dotes culinários, sendo uma exímia cozinheira. Nessa perspectiva, a
influência e o talento da esposa podem ter significado muito na decisão de Ayoub em
abrir um restaurante.
No segundo capítulo, buscar-se-ão compreender um pouco as dificuldades
enfrentadas pela família, motivos que levaram o patriarca da família Ayoub a abrir o
novo empreendimento, ou seja, um restaurante de culinária árabe. Irá se trabalhar a
questão da qualidade da comida que, segundo os especialistas, torna o empreendimento
da família Ayoub tão referenciados. Destaca-se, assim, que a qualidade está ligada a
ingredientes que, atravessando o oceano, trazem significados, memórias, nostalgias e
aumentam o valor simbólico, identitário da comida do restaurante.
No terceiro e último capítulo, pretende-se demonstrar como a qualidade e fama
do Al Manzul, por meio de suas premiações, conseguiu colocar Cuia nos roteiros
gastronômicos. Constituindo uma identidade local, fazendo parte da memória de
18
Cuiabá. Neste contexto, criou uma identidade no estado e na capital mato-grossense,
que auxilia no desenvolvimento do turismo regional, tornando-o um ponto de atração,
em que são revelados e apresentados os mistérios da cozinha árabe. O Al Manzul
configura-se como um restaurante tradicional árabe, inserido num contexto brasileiro
que possibilita experiências gustativas sui generis.
Apoiando-me em fontes orais e impressas, novamente buscar-se-ão respostas,
no sentido de compreender a participação do Al Manzul no desenvolvimento do turismo
local, englobando elementos como a memória, patrimônio, história, tradição e turismo
regional, ligados à necessidade que as pessoas têm de buscar experiências gustativas
calcadas em algum significado subjetivo.
Alicerçado na tradição árabe, o restaurante tornou-se um ponto de referência na
cidade por se incorporar ao conjunto que compõe o mosaico de atrações que a cidade
oferece aos turistas. Entendemos, por fim, que a emersão do restaurante na condição de
atrativo regional, nacional e prestigiado internacionalmente, se deve ao fato de que este
proporciona a apreciação de memórias gustativas, para além da comida, resgatando
identidades diversas ligadas à culinária árabe, sensibilidades e experiências subjetivas,
configurando um capítulo da História e Cultura da Alimentação árabe, em território
brasileiro.
19
1
O Artesão da Cozinha Árabe: onde tudo começou
A alimentação tem um significado simbólico, carregado de signos identitários
que, por intermédio de sua análise, podem expressar a linguagem, os costumes de um
povo, de uma nação. Desde o descobrimento do fogo, que possibilitou aos homens
cozer seus alimentos
10
, estes vêm criando rituais simbólicos que os identificam e
diferenciam, ao mesmo tempo, dentre o mesmo grupo e outros. A noção de sujeito
sociológico, discutida por Hall
11
, transmite a percepção de que este indivíduo não é
autônomo, mas sim formado nas relações com outras pessoas importantes, que repassam
valores importantes, formando assim uma cultura.
Neste contexto, deve-se considerar que tais atos simbólicos ligados a
alimentação, são repassados e sociabilizados pelo grupo, assim como aprimorados,
fortalecendo os laços de união e, paulatinamente, formando paladares, costumes e
hábitos alimentares que fazem parte dos signos de identificação de uma sociedade. A
memória social, segundo Halbwachs
12
, atinge os seres humanos diferentemente, pois
alguns mais interessados, em um momento específico, e inseridos em determinada
realidade, firmam-se a estas lembranças, enquanto outros não dão significativa
importância. Um exemplo mais transparente sobre a questão da memória pode ser
encontrada nas experiências de vida do imigrante. Quem migra, conserva em sua
memória apenas o que há de mais belo dentro de seu país, de sua casa, na sua família, os
costumes, a herança imaterial dos antepassados, muitas vezes compartilhada em belas
conversas. Enquanto que para aquele que fica, todos esses elementos integram o seu
cotidiano, conservando também os mesmos costumes. Todavia, aquele que se foi, fixa-
se as lembranças do passado, fazendo das mesmas uma ponte, uma referência, ou seja,
fortalecendo os laços identitários, os quais afirmam que o seu “eu” pertence a um
determinado país, lugarejo, família e cultura. Os que cultivam e compartilham
determinadas lembranças, repassam-nas as novas gerações. Já os que não têm por hábito
cultivá-las, acabam por enfraquecer os laços construídos, a partir das tradições dos seus
10
FRANCO, op.cit. p.18.
11
HALL, op.cit. p.11.
12
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. p.36.
20
antepassados. Entre outros aspectos simbólicos, encontra-se as refeições, não
desconsiderando os demais costumes que seus antepassados edificaram dentro da
estrutura social de seu grupo.
Segundo Ariovaldo Franco, “é impossível precisar quando o alimento se
transformou em prazer da mesa.”
13
Mas em conformidade com Flandrin:
Desde o início do terceiro milênio na Suméria ou, no mais tardar, no segundo
milênio em outras regiões da Mesopotâmia e da Síria, inúmeros textos
comprovam a existência de banquetes com ritos precisos. Embora eles
descrevam principalmente os banquetes dos deuses ou dos príncipes,
referem-se também as festas das pessoas comuns. Comer e beber juntos já
servia para fortalecer a amizade entre os iguais, para reforçar relações.
14
A partir do exposto, percebe-se que a tradição culinária e os costumes de uma
família, atrelados ao laço de identificação através de um sistema de signos e símbolos
podem remetê-los as mais inimagináveis recordações através da comida, bem como de
seu grupo social e a qual nação, país este indivíduo está inserido. Esses aspectos
transportam o indivíduo ao seu grupo, a sua nação, por laços de memória social. Tal
fator possibilita uma discussão por intermédio da religião, da família, da comida, dos
costumes que um ser humano carrega por toda a sua vida. Isso pode transformar-se em
sua referência, de modo que o indivíduo venha perpassar estas lembranças aqueles que
não a conhecem. Assim, a presente pesquisa busca nos laços familiares de Salah Ayoub,
os significados que os levaram a perpetuar sua cultura mesmo tão distante de sua terra
natal.
Cada civilização transmite aos seus indivíduos padrões de convivência que
expressam as características pertencentes a uma sociedade. Pode-se destacar, aqui, entre
outros aspectos, a língua, as regras, os hábitos e costumes e a religião. Nesta última, a
alimentação geralmente sofre preferências e restrições, de modo que, no judaísmo,
hinduísmo e islamismo, elas são mais acentuadas. Isto fica explícito nos livros sagrados
13
FRANCO. Op.cit. p. 22.
14
FLANDRIN, J. L. Massimo Montanari, História da alimentação. 6. ed. São Paulo: Liberdade, 1998,
p. 33.
21
que compõe cada doutrina. Logo, por regras, compreendem-se as leis oficiais que
governam e conduzem a ordem necessária para a harmonia das relações em grupo. Mas
as leis não oficiais, identificadas com as tradições/hábitos, muitas vezes, mais fortes
e presentes no cotidiano do que as convencionais.
Sucintamente, por hábitos, entende-se desde as saudações diárias, como: bom
dia! (sabahu el khair!); boa tarde! (masau el khair!); A paz esteja convosco! (Asalamo
alikom
15
!). Fazem-se pertinentes, nas relações de gênero, a maneira de se vestir; as cores
preferidas, os gostos e as preferências alimentares. A este último hábito, podem-se
atribuir, também, os critérios que usam para selecionar novas receitas, para preparar um
quitute e, até mesmo, segundo os gostos, que os alimentos sejam temperados e
preparados. Tudo isto faz parte dos signos criados e repassados que constituem os
hábitos comunitários de grupos sociais consagrados pela tradição.
A gastronomia exige alento e, de certa forma, suas fronteiras são redefinidas,
considerando que “a cozinha é um espaço de desaparecimentos, de perdas e
destruições”,
16
mas também, espaço para a inovação, para a fusão de novos temperos e
especiarias combinadas ao toque especial e a criatividade daquele que cozinha. Esta arte
resiste ao tempo e é herdada pelas gerações, constituindo parte das tradições orais e/ou
escritas, através de cadernos de receitas. Para Savarin: “a gastronomia governa a vida
inteira do homem (...) e sua influência se exerce em todas as classes da sociedade.”
17
Desde a classe mais humilde até a mais abastada, todos sem exceção, transmitem aos
seus descendentes uma cultura culinária, seja esta de precariedade ou de abundância,
economia ou de fartura. Os valores pertencentes àquela família agregam-se ao processo
de elaboração da comida. Dessa forma, é transmitida ao grupo familiar a sua condição
social. É possível, assim, instaurar-se a união deste grupo, ou a desunião, uma vez que
não basta mesa farta, mas solitária, como também mesa vazia (sem alimentos) e solidão.
Afinal, busca-se demonstrar que, independente do alimento que está sob a mesa, a
companhia e a harmonia provocam alterações no gosto dos alimentos.
As tradições culturais estão presentes e propagadas dentro dos lares, se não na
totalidade, mas pelos menos na sua maioria, utilizando como veículo a oralidade.
15
Expressões em árabe.
16
SANTOS. C. R. A. A alimentação e seu lugar na história. Revista História: Questões & Debates.
Curitiba: UFPR.2005 p.14.
17
BRILLAT, Savarin. A fisiologia do gosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.58.
22
Ariovaldo Franco, autor da obra Caçador a Gourmet, considera que “a refeição em
família é um ritual propício à transmissão de valores.”
18
É ao redor da mesa, na sala de
jantar, nos momentos de desconcentração entre os convivas, que as crianças conhecem
os costumes da sua comunidade e irmandade:
Concorrem também as mentalidades, os ritos, o valor das mensagens que
se trocam quando se esta diante da mesa e da comida, os valores éticos e
religiosos, a transmissão inter e intrageração, a psicologia individual e
coletiva (...), o alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de
permanências e mudanças dos hábitos e práticas alimentares em ritmos
diferenciados têm referências na própria dinâmica social (2005, p. 15).
19
Portanto, atribui-se que “a função educadora da comida é tão insubstituível
quanto o poder modelador do ambiente familiar.”
20
Assim, compreende-se a
importância da instituição familiar na transmissão dos costumes. À vista disso, percebe-
se que estas predileções gustativas brotam a partir da formação recebida na privacidade
familiar fraterna. Tais predileções são depois lançadas na sociedade, pois a preferência
por uma determinada iguaria provém, em parte, aos poucos pela educação alimentar que
recebe o indivíduo, embora não seja determinante, pois ampliamos nossos gostos. Desta
forma, “o gosto é (...) moldado culturalmente e socialmente controlado.”
21
Entretanto, a
formação do gosto é um campo que mantém certa complexidade, pois “o bom e o ruim
são noções relativas, próprias a cada indivíduo e a cada cultura”.
22
Sendo assim, uma
variedade de gostos cultuados, ignorados e repulsivos entre os diferentes grupos. E até
mesmo dentro do próprio grupo social. Considerando a “cozinha como um microcosmo
da sociedade, com todo o significado simbólico na construção de regras e sistemas
alimentares”
23
, tem-se a possibilidade de analisar os hábitos gastronômicos e suas
cozinhas, bem como a maneira como o homem tornou os alimentos comestíveis e
apreciados dentro de sua cultura, sem ofender os princípios do seu grupo e da sua
religião. Assim, é possível conhecer e compreender o universo social de uma
18
FRANCO, op.cit. p.24.
19
SANTOS. Op.cit. p.15.
20
CASCUDO, L. C. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004. p. 350.
21
FRANCO. Op.cit.p 25.
22
FLANDRIN, J.L.; MONTANARI, M. op.cit. p.31.
23
SANTOS. Op.cit. p. 16.
23
comunidade a partir do singular, do indivíduo. Portanto, “os hábitos alimentares têm
raízes profundas na identidade social dos indivíduos.”
24
Santos, entende que:
Os hábitos e práticas alimentares de grupos sociais, práticas estas distantes ou
recentes que podem vir a constituírem-se em tradições culinárias, fazem,
muitas vezes, com que o indivíduo se considere inserido num contexto
sociocultural que lhe outorga uma identidade, reafirmada pela memória
gustativa.
25
Desde o nascimento, todos os seres humanos iniciam seu aprendizado
alimentar, sem ter precisamente a noção de que são moldados pelos padrões da
sociedade, da qual fazem parte e interagem. Num processo de sociabilização com
aqueles que lhe são próximos acabam identificando-se e fortalecendo os laços de
convivência com sua classe, através de diversos códigos como o idioma, sistemas de
linguagem, credo, e o hábito da culinária. Deste modo, é possível reconhecer uma
comunidade com o auxílio destes universos de particularidades.
Cada sociedade também deixa suas digitais em outros seguimentos que são
reforçados com a identificação através de determinados valores. Um deles é a
arquitetura utilizada na construção de suas cidades. Exemplo peculiar são as cidades
árabes, com suas suntuosas mesquitas e palácios. Mesmo nos países mais modernos,
como Dubai, há marcas inconfundíveis em sua arquitetura, referenciando suas tradições,
relacionando-as à riqueza e ostentação, símbolos desta cultura. Portanto, numa mesma
nação existem semelhanças, diferenças, convenções políticas, econômicas e sociais que
também contribuem para esta identificação. Sendo assim, “(...) as cidades (...) são
produto das suas civilizações”
26
, ou de povos que a dominaram. Os países árabes, por
exemplo, foram dominados entre os séculos XIII e XX, pelos turcos otomanos, o que no
seu auge compreendia a Turquia, o Oriente Médio, parte do norte da África e do
Sudoeste Europeu. Por sua vez, sua arquitetura remete em muitos aspectos ao
dominador.
24
FRANCO. Op.cit. p. 25.
25
SANTOS. Op.cit. p. 15.
26
BRAUDEL, F. As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo: Martins Fontes,
1995. p. 464.
24
Depois do século VII, após a morte de Maomé
27
, os árabes intensificaram suas
conquistas territoriais, expandindo suas fronteiras. Ao dominar muitas regiões, cidades e
povos, foram responsáveis por espalhar para além dos seus limites a sua cultura. Desta
forma, assimilando a cultura dos povos conquistados e introduzindo a sua, os árabes,
através das conquistas, angariaram fama, fortuna e júbilo.
Nas palavras de Ghillie Baçan:
los árabes beduinos de la península Arábiga se desplazaron hasta Siria y
Persia, conquistando território trás território, convirtiéndolos AL islam, hasta
que fueron estableciendo um vasto Imperio islâmico que se extendía a través
de Ásia y el norte de África hasta Sicilia y Espanã.
28
Dessa maneira, ao entrarem em contato com os ocidentais iniciaram uma fase
de introdução e expansão da sua cultura, numa tentativa de fazê-la prevalecer. No caso
especial das famílias mais abastadas, a variedade da mesa era imensa, pois a
suntuosidade estava presente nas mais simples elaborações. “Os pratos são resultado de
preparações complexas, sua apresentação é elaborada. A acumulação de produtos raros
e caros, (...) denota um desejo de ostentação”
29
, e uma demonstração também da
necessidade de transmitir aos outros riqueza e fartura, símbolos da grandiosidade de sua
civilização.
Entre os ocidentais, influenciados com a nova cultura trazida pelos adversários,
foi reproduzido e fundido muito da diversificada culinária árabe. Mesmo apreciando
esta nova cultura, os ocidentais jamais renegaram sua antiga tradição pelos costumes e
gastronomia. Destarte, ficou bastante claro que as „marcas‟ mais notáveis e dominantes
desta nova cultura, foram à arquitetura e a alimentação.
Levando-se em consideração as expansões territoriais realizadas pelos árabes,
torna-se difícil falar de uma única cozinha árabe. Neste contexto, cada cidade, região,
possui um prato especial, concebido e, consequentemente, preparado de forma diferente
27
Profeta que difundiu o Islã.
28
BAÇAN, G. Cocina de oriente medio. Ingredientes esenciales y más de 150 recetas auténticas.
Barcelona: Blume. 2008. p. 13.
29
Op. cit., p. 342.
25
que nos demais. Partindo de uma visão macro, “entende-se por „cozinha árabe‟ aquela
das regiões que adotaram a língua árabe, aquela cujos livros chegaram até nós.”
30
Uma
vez que o idioma é „carregado‟ de símbolos, aumenta a dificuldade de tradução, ficando,
portanto, fácil de acreditar que a maioria das traduções foram realizadas pelos próprios
árabes emigrados.
Sobre a arquitetura, deve-se remeter para as finalidades, pois aqueles que
estavam dispostos a difundir sua adicionando outros territórios buscavam difundir
construções características, para que ao primeiro e mais ligeiro olhar, seu criador fosse
percebido. Desta forma, construíram mesquitas, castelos, escolas e demais edificações
numa demonstração da riqueza arquitetônica. Assim, é perceptível que há, por todo o
Islã (...) um tipo islâmico de cidades”
31
, pois “os árabes não construíram apenas um
império, mas criaram também uma cultura.”
32
Sendo assim, utilizando-se de uma arte
pragmática, além de difundirem sua cultura conseguiram aumentar o número de adeptos
ao islamismo, ou pela subjugação ou pela conversão verdadeira. Rosenberg concorda
com as palavras de Baçan, ao escrever que:
O Islã imprimiu sua marca tanto na alimentação quanto em todos os outros
aspectos da vida. Os árabes enriquecidos pela conquista ao mesmo tempo em
que preservavam certos hábitos, adotaram um estilo de vida inspirado no dos
aristocratas vencidos. As populações submetidas aceitaram regras e costumes
novos, mas conservaram boa parte dos seus.
33
Jean-Louis Flandrin, em seu texto, A distinção pelo gosto, utiliza-se do
prefácio de Dons de Comus, de 1739, escrito por dois padres jesuítas, que
acompanhavam o desenvolvimento das cidades e da culinária. Em um dado momento
estes afirmaram que:
30
Op.cit., p.338.
31
BRAUDEL. p. 464.
32
HITTI. P. K. Os Árabes. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1948. p. 6.
33
ROSENBERGER, B. A cozinha árabe e sua contribuição à cozinha européia. In: FLANDRIN, Jean
Louis; MONTANARI, Massimo, História da alimentação. 6. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p.
338.
26
A cozinha, como todas as outras artes inventadas por necessidade ou por
prazer, aprimorou-se com o gênio dos povos e tornouse mais requintada à
medida que eles se poliram (...). Os progressos da cozinha (...) acompanharam
nas nações civilizadas os progressos de todas as outras artes.
34
Não duvidas de que a culinária árabe desenvolveu-se juntamente com as
suas outras riquezas culturais, mas esta evolução teve os seus desdobramentos, ou seja,
a fusão com outras receitas, outros produtos, e a incorporação ao menu de receitas dos
povos subjugados. A partir do depoimento de Mohamad Mazloum
35
, um imigrado
libanês , muçulmano ,que reside no Brasil desde 1975, podemos compreender melhor
estas incorporações culinárias:
segundo a hestoria a mais de 1400 anos quando os muslumanos entrarum no
irán siencantarum com a cumida lucal e truserum presipalmente para seus
países acultura de um duce muito conhesido hoje anivio mundial quju o nome
em arabe kataif tem o formato de panqeka e fiqo tão conhesida qe em cada
pais tem doce tipico local mais esa kataif eh mais popular doce caseiro anivio
do mundo arabe por qual ja feserão ate levros sobre a orijem e forma dese
delesioso doce quie arabe porem a origem dele persa.
Sem demora ampliou-se o gosto pela comida árabe. Gosto pela aceitabilidade
destes alimentos acompanhado de certa obediência devido ao acolhimento das regras
estipuladas pela religião islâmica, que se encontram no Alcorão, livro sagrado para os
árabes muçulmanos
36
. Aos seguidores do Islã, entre outras questões, restrições
proibitivas na alimentação, como a proibição de comer a carne de porco. Também fica
proibido comer carne de animais encontrados mortos (considerado carniça) e ingerir
34
FLANDRIN, Jean-Louis. A Distinção pelo gosto. In: ARIÉS, Philippe; DUBY, Georges. História da
vida privada: da Renascença ao século das Luzes. v. 3. São Paulo: Companhia das Letras. 2006. pp.299-
300.
35
MAZLOUM, M. Depoimento concedido a Maria Cristina Rodrigues Fernandes. 18 set. 2009.
36
Vale lembrar que: islâmico e muçulmano tem o mesmo significado, fazendo referência a árabes que
seguem o Islã, portanto, muçulmano é um membro da religião islâmica.
27
bebidas fermentadas. A carne de porco
37
é repulsiva não apenas aos árabes, mas
também aos judeus. Em ambas o seu consumo é considerado pecado. Entretanto,
estudos em Portugal, mais precisamente no Centro Arqueológico de Mértola, que tem
por objetivo estudar os povos árabes que entraram na Espanha e em Portugal a partir do
século V, reconstruindo e revelando sua estrutura alimentar. Os estudiosos envolvidos,
entre estes consideram o seguinte:
(...) antropólogos recolheram material das latrinas e fossas de Mértola e
descobriram que nas ocasiões especiais, as pessoas comiam até se fartar.
Eram carnes assadas e cozidas, de ovelha, cabra, coelho, cervo e aves,
ocasionalmente de boi, javali e porco, pois o capítulo do Alcorão que vetava
o consumo de suínos nunca chegou a ser cumprido ao pé da letra.
38
Os ensinamentos do Alcorão revelam ainda que, no momento do abatimento, o
animal deve ser direcionado à Meca
39
e morto pelas mãos de um homem fiel a Deus,
seja ele, muçulmano, judeu ou cristão. Mas segundo o livro sagrado, se deste alimento
proibido depender sua vida, o crédulo poderá comer e não será castigado.
Existe, também, para os muçulmanos o jejum do mês do Ramadã, momento de
abstinência, no qual o crente deve comer e beber quando o sol se põe até o amanhecer.
Durante o dia deve se resguardar em orações até o pôrdosol. Não é permitido nem
mesmo tomar água ou fumar. estão liberados do jejum, crianças, mulheres grávidas
ou que estão amamentando, parturientes, doentes ou aqueles que se encontram em
viagens. No caso destes últimos, o jejum deve ser feito posterior à viagem, coincidindo
com a quantidade de dias que estiver viajando.
37
A carniça, ou carne putrefata, e o sangue, como gêneros alimentícios, devem causar repulsa a qualquer
pessoa de gosto refinado. Assim deveria ser também com a carne de suíno, que este vive de dejetos.
Mesmo que os suínos fossem artificialmente alimentados com comida saudável, as abjeções
permaneceriam, porque são animais imundos sob outros aspectos; a carne de suíno possui mais gordura
do que o necessário para a fortificação dos músculos; é mais propensa a causar enfermidades do que outra
espécie de carne; apresenta, por exemplo, a triquinose, caracterizada por vermes da finura de um fio de
cabelo, nos tecidos musculares. Quanto aos alimentos dedicados aos ídolos ou falsos deuses, é
obviamente inadmissível que os monoteístas se dêem a eles. (2ª surata, versículo 173. Nota explicativa
71.)
38
LOPES, J. A. Dias. A rainha que virou pizza: crônicas em torno da história da comida no mundo. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 2007. pp.71-72.
39
Cidade sagrada para os muçulmanos.
28
Segundo os ensinamentos do Alcorão, não é cobrado nada diferente dos
antepassados ou de outras religiões, embora seja admitido que o Ramadã exija mais
sacrifício no jejum.
40
Não obstante tal jejum vem ao encontro com o aprimoramento
espiritual, buscando plantar e regar no interior do ser humano a caridade, bondade,
justiça, tendo por finalidade, fortalecer os pilares da fé individual e coletiva.
A população árabe pode ser ligeiramente dividida entre aqueles nascidos em
países árabes, mas que seguem outra religião (ortodoxa ou católica) e aqueles que
nasceram nestes países e seguem o islamismo. os árabes ortodoxos não seguem o
Alcorão e, explicitamente, não estão incluídos nestas restrições. Nos países árabes
várias divisões religiosas, até mesmo entre os muçulmanos, observando-se que depois
que emigraram elas praticamente desapareceram. Não havia uma hegemonia, como
parece ser transmitidos. Assim é entre os cristãos: maronitas, católicos, ortodoxos, etc.
O biografado Salah Ayoub cresceu, foi educado e educou sua família no rito ortodoxo.
Neste contexto, respeitam a autoridade do papa, mas não dedicam obediência a
autoridade que ele representa para os católicos, pois para os seus seguidores acreditam
que o único chefe da igreja é Jesus Cristo. Sua doutrina é semelhante à Igreja Católica.
A divisão entre ambas aconteceu com o cisma do oriente, em 1054.
Independente da manifestação religiosa, a mesa dos árabes sempre ficou
conhecida pela fartura. Mas nem sempre foi assim, como afirma Bernard Rosenberger
41
,
pois em tempos de miséria era permitido comer o que tivesse, como: gafanhotos e
lagartos, por exemplo. À vista disso percebe-se que a copiosa mesa árabe, que faz parte
da imaginação de muitos ocidentais não integrou a realidade de muitos árabes.
O universo das cozinhas árabes é riquíssimo, pois “em quase todo o Oriente
Médio uma preferência pela carne de carneiro e cordeiro, seguida por aves e peixes,
e pela carne de vaca em menor escala.”
42
A carne mais consumida é a de carneiro, que
pode ser assado, cozido, frito, considerada dentre as carnes vermelhas a de mais fácil
40
O jejum muçulmano não significa auto-tortura. Conquanto seja mais meticuloso que outros jejuns, ele
também propicia atenuação temporária para especiais circunstâncias. Se fosse simplesmente uma
abstenção temporária, isso seria mais salutar para muitas pessoas que costumeiramente comem e bebem
em excesso. Os instintos para a comida, a bebida e o sexo são mais intensos na natureza animal, e a
abstenção temporária dessas coisas resulta em que a atenção seja dirigida para algo mais elevado. E isto,
somente se processa através da oração, da contemplação e dos atos de caridade. (2ª surata, versículos 184-
185. Nota explicativa 77.)
41
ROSENBERGER. op.cit. p.340.
42
ALGRANTI, M. Pequeno dicionário da gula. 2. ed. Rio de Janeiro: Record. 2004. p. 154.
29
digestão, tornando a degustação mais leve e saborosa. A diferença entre carneiro e
cordeiro está na idade do animal. Quando abatido antes de um ano de idade é
considerado cordeiro, enquanto que o carneiro é o animal abatido depois de um ano de
vida. De acordo com a tradição e gosto, a idade ideal para se obter uma carne macia e
mais suculenta é entre os cinco e seis meses de vida.
A carne moída é muito utilizada nesta culinária. Tendo os árabes o costume de
comer com as mãos, utilizando um pedaço de pão para levar a comida à boca, os pratos
preparados com esta carne têm maior aceitação devido à facilidade que oferecem na
hora de comer. Com a carne moída também são preparados desde o :
kibe (mistura de carne moída e trigo em grãos, temperada com cebola e
hortelã, podendo ser frito, cru, assado, grelhado, ou na coalhada.), esfiha
(disco de massa feita com farinha de trigo, óleo, ovos e fermento, coberto
com carne moída temperada com cebola.)
43
.
No Egito, por exemplo, se consome o Mahchi (preparado com carne moída e
legumes). no Iraque o Kiba Hamid, prato que deve ser preparado com antecedência,
pois o arroz deve permanecer em conserva por seis horas antes da elaboração. Entre
seus ingredientes está a carne moída, manteiga, cebola, grão de bico, azeite, bicarbonato
de sódio e molho de tomate. No Líbano, consome-se a Kafta, feita a partir da carne
moída, batata e legumes. Outra opção com carne moída, ainda no Líbano é o Xishbarak,
preparado com coalhada, ovos, farinha, amido de milho, cebola, salsinha e arroz.
Retornando ao Egito, outro prato muito apreciado é Mulukhia, feito à base de frango
desfiado, folhas de mulukhia, especiarias, que deve ser servido com arroz. na ria,
apreciam o Xacrie, feito com a coalhada, arroz, carne em cubos e especiarias.
As carnes podem tanto serem de carneiros, camelos, frangos ou de bovino. Um
exemplo característico de um prato que utiliza carne de camelo vem da Mauritânia, país
africano, que faz fronteira com o Oceano Atlântico e o deserto do Saara Ocidental. O
camelo é comum nestas regiões devido sua força e capacidade de sobreviver no deserto,
43
ANDERSEN, M. C. Cozinha Árabe. São Paulo: Melhoramentos. 2005. p. 5.
30
portanto, mais utilizado para o transporte e para o trabalho do que para a gastronomia.
Além da carne, são aproveitados, também, o leite e a lã. Segundo Hitti, o camelo é um
animal muito apreciado nestas regiões, pois: “O homem do deserto toma seu leite em
vez de água (...); banqueteia-se com sua carne; cobre-se com sua pele e faz a tenda de
seu pêlo.”
44
O prato denominado Maru Wal hut, utiliza além da carne de camelo fava
sudanesa, arroz, feijão branco e legumes, como cenoura, pimenta vermelha e cebola.
Outro exemplo de um prato constituído de uma carne pouco apreciada pelos
povos árabes - a de boi - é o Kibda Eskandarani, no Egito. Ele é preparado à base de
fígado bovino, óleo, vinagre, cebola, pimentão verde, pimenta do reino, alho e limão.
na elaboração do Kibah Halabia, típico do Iraque, não carne. É composto de arroz,
batata, ovos e pimenta do reino.
O cuscuz é um dos inúmeros exemplos de aculturação, um prato de origem
africana, que se espalhou e se integrou em diversas culturas, mas principalmente na
cozinha árabe. O cuscuz é o símbolo do prato adaptado às regiões, onde se substitui
alguns ingredientes ou acrescenta-se, como muito bem observou o autor:
Kuz-Kuz ou alcuzcuz é prato nacional dos mouros na África Setentrional, do
Egito ao Marrocos. Inicialmente feito com arroz, farinha de trigo, milheto,
sorgo, passou a ser de milho americano o Zea mays, irradiou-se pelo mundo
ao correr do século XVI.
45
Sendo as bebidas alcoólicas proibidas aos muçulmanos, estes acabam por
consumir muito chá e café. O ca é também conhecido por Kahwa, “es la bebida
principal en el mundo árabe, particularmente em Arabia Saudí, Yemen, Jordania, Siria
y Líbano.
46
No que diz respeito ao chá, acreditam que esta bebida auxilie na digestão e
deve ser preparado tradicionalmente em um samovar, importado originariamente de
Rússia.”
47
Na verdade, é que ambos, chá e café, fazem parte da vida em sociedade de
muitos árabes.
44
HITTI, op. cit. p.14.
45
CASCUDO, L. C. História da Alimentação no Brasil. 3ª Ed. São Paulo: Global. 2004. pp.186-190.
46
BAÇAN. Op.cit.p.36.
47
Ibid. p. 39.
31
Outra iguaria como o iogurte, é alimento básico no Oriente, consumido com ou
sem mel, e que acompanha diversos pratos. Ghillie Baçan considera que:
En los manuales medievales el yogur se denomina “leche persa”, siendo
conocido como laban em los países árabes; laban zabadi, em Egipto st,
em Irán, y em Turquía Yogurt. La misma palabra era utilizada por los
ancestros de los turcos, quienes vagaban por Asia central y valoraban tanto
el yogur que lo ofrecían a los dioses, al sol y a la luna.
48
Baçan diz ainda que o iogurte, além de ser apreciado como bebida é utilizado
pelos os árabes para a elaboração de uma espécie de sopa fria, preparada com pepino e
menta. O queijo de iogurte é também outra iguaria produzida.
O azeite mais consumido nesta cozinha é o de oliva, mas também utilizam a
gordura de cordeiro e a manteiga. Entre as frutas mais apreciadas estão laranja, limão,
melão, figo, cereja, manga, romã e a uva.
Os árabes têm muita intimidade e apreço pelas especiarias. Consideram que a
comida precisa de tempero e de certo ritual para se tornar mais saborosa. Talvez, por
isto, cada prato, cada receita, tenha uma elaboração minuciosa antes de serem
apresentados ao comensal, porque comer “é um prazer de todos os tempos, de todas as
idades e de todas as condições”.
49
O ato de comer configura-se como um ato crucial
para a transmissão de afeto, carinho e amor entre os convivas, demonstrado na
elaboração e transformação do alimento à comida.
Somando-se a evolução da gastronomia e de acordo com aqueles que a
elaboram, este prazer tende a se acentuar, pois não se sente o gosto apenas no momento
da ingestão de um alimento. A comida envolve o sentido do olfato, do paladar e da
visão. Os sabores, as cores e os aromas seduzem os sentidos. a beleza de uma mesa
bem posta agrada e irradia uma sensação de bem estar, realçando o apetite. E, quando
nesta mesa, não se avista apenas um prato mais sim um banquete, que está ou esteve
(quando se trata de memória gustativa) a sua espera, os órgãos do sentido iniciam sua
48
Ibid. p. 41.
49
BRILLAT. op.cit. p. 50.
32
apreciação do copioso manjar antes mesmo de prová-lo. É valido analisar que estes
banquetes entre os árabes se apresentam apenas em dias de festas, em jantares especiais.
No cotidiano a mesa é mais simplificada.
Cumpre salientar que entre os árabes mais pobres, geralmente o consumo é
praticamente o mesmo que os ricos, mas no momento da elaboração não utilizam, por
exemplo, a carne, produto tão caro nestes países.
Foi nesta cultura gastronômica, repleta de tradições orais, que Salah Soleiman
Ayoub, futuro proprietário do Al Manzul, nasceu e cresceu. Filho de Soleiman Ayoub e
Fruzina Ayoub, nascido no dia 12/09/1934, foi criado no Líbano, mais especificamente
no Vale do Bekka, numa cidade chamada Niha, em uma região que, desde a antiguidade,
sob o domínio dos romanos, utilizava seus campos na produção de grãos. A “região da
Síria e do Líbano encontra-se na própria confluência de rotas entre o mundo ocidental e
oriental, tendo suas cidades sido dominadas por inúmeros exércitos imperiais por
tempos imemoriais.”
50
( Ver mapa página 34).Primeiramente, foram dominados pelos
romanos e, depois, pelos turcos, devido suas riquezas e, principalmente, pela produção
de cereais.
O Líbano fazia parte da Grande Síria, dominada até 1918 pelo Império
Otomano. Após a Primeira Guerra Mundial, esta região ficou sob o domínio da França.
O Líbano (capital Beirute) uma faixa de terra estreita e colada ao
Mediterrâneo, povoada a época em sua maioria por cristãos maronitas
ganhou autonomia em relação ao restante da Síria (capital Damasco),
povoada por uma maioria de muçulmanos. (...) Ambos os países atingiram a
plena independência somente em 1943 e 1945, respectivamente.
51
Estes países ainda hoje buscam se reerguer dos ataques recentes (em 2006, a
capital do Líbano ficou totalmente destruída) de Israel e das antigas dominações e
explorações. Construindo com sua independência um sentimento nacionalista, pois a
50
TRUZZI, O.M.S. Sírios e Libaneses. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005. p.2.
51
Op.cit. p.5.
33
palavra “árabe” e seu significado são muito abstratos. O termo árabe designa todos os
países árabes, não repassando uma ideia exata de localização do imigrante, mas quando
ouvimos os adjetivos pátrios como libanês, iraquiano, siriano, entre outros, a
compreensão geográfica é mais cristalina.
Os romanos deixaram suas marcas no Líbano, visíveis até os dias de hoje, nas
construções antigas como Baalbek ou Balbek, considerada uma cidade histórica,
localizada no Vale do Bekka. Era conhecida como Heliópolis, a cidade do sol. Há várias
ruínas nesta região que entregam seu antigo dominador através das construções, e
relembram logo a arquitetura romana.
A maior cidade do Líbano é sua capital Beirute, também conhecida como a
“Suíça do Oriente ou a Paris do Oriente”. Estas afirmações colhidas espontaneamente
de turistas ou libaneses migrados no Brasil permitem avaliar a beleza desta cidade.
Segundo a embaixada do Líbano no Brasil a estimativa é de que a capital Beirute
abrigue cerca de oitocentos mil (800.000) habitantes, sendo que o país tem cerca de 3,6
milhões de habitantes.
O Líbano, antigo território dos fenícios, tinha uma tradição no comércio e na
produção de gêneros alimentícios como o vinho, o óleo, os legumes e as frutas, sem se
esquecer do famoso cedro do Líbano, tão cobiçado pelos antigos imperadores para
utilização na construção de navios.
52
Uma vez que havia uma espécie de “lenda”
depositada nesta madeira, devido sua durabilidade.
Desde as épocas mais longínquas, o Líbano era coberto de florestas:
carvalhos, pinheiros e, sobretudo, de cedros; isso explica a cobiça dos
invasores que vinham buscar a madeira necessária para a construção de seus
templos e navios. Segundo a Bíblia, o cedro, sobretudo, era uma
manifestação viva de grandeza, beleza, força imortalidade e santidade. E hoje
é o símbolo do Líbano, presente em destaque sobre a bandeira libanesa. A
resina dos cedros era usada para mumificar os faraós egípcios mortos.
53
52
GIAMMELARO, A. S. Os fenícios e os cartagineses. In: FLANDRIN, Jean Louis; MONTANARI,
Massimo. História da alimentação. 6. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 338.
53
Retirado de http://www.libano.org.br/olibano_geografia.htm, consultado no dia 01/11/2009.
34
54
Foto 1 - Mapa do Líbano e Síria
Os árabes possuem uma dedicação especial à família. Respeitam as colocações
dos membros familiares mais velhos, mesmo que isto contradiza sua própria vontade e
interfira em seus desejos futuros. “As mais importantes instituições para o povo árabe
são: a comunidade, a família e a religião. A maioria dos interesses do indivíduo é
preenchida na sua relação com essas instituições.”
55
Talvez este vínculo esteja assim
interligado devido às formas de convivência destas famílias. A grande maioria pertencia
ao meio rural, onde os membros da família trabalhavam juntos pelo sustento e
benefícios destinados a todo o grupo. Habituados com a vida em comunidade preservam
sua reputação e seus conhecimentos. “Cada aldeia tem sua reputação, a qual é conhecida
nas cidades vizinhas, baseada na riqueza, técnicas de agricultura, moral, instrução ou na
força de seus jovens. Na aldeia, estão em casa. Longe dela, sentem-se em terra
estranha.”
56
Devido a estes aspectos, era de suma importância manter-se dentro dos
costumes, para receber a proteção do grupo.
54
Retirado de http://www.libanoshow.com/home/libano_arquivos/mapa.jpeg, consultado no dia
09/04/2010.
55
HAJJAR, C.F. Imigração árabe: 100 anos de reflexão. São Paulo: Ícone, 1985. p. 41.
56
Op. cit. p. 42.
35
Os integrantes da aldeia ou da família se concentram ao redor do patriarca. A
grande família é composta por três gerações, em que o chefe é o avô.
57
Dentro desta
conjuntura cresceu Salah Ayoub. Em meio a uma família numerosa, constituída por 12
irmãos, sobrinhos, tios, primos, acostumado à mesa farta e rodeada de parentes, foi o
filho caçula de um chefe político local, como afirma à senhora Clariman Ayoub, viúva
de Salah Ayoub:
(...) ele sempre falava que era uma família muito grande, que vivia assim:
reunida e a maioria das vezes, que ele fala que a reunião era sempre em torno
de mesa, em torno de comida, era assim, às vezes de ter uma mesa de 40, 50
pessoas. Inclusive na época da guerra, (Segunda Guerra Mundial) ele conta
que a família dele toda deu subsidio para as pessoas passarem a comer,
porque era uma das poucas famílias, que tinham a condição e mantimentos
estocados, assim para muita gente, então ele se tornou ali a acolhida de todas
as pessoas que estavam assim, com falta de alimentação ele deu suporte (pai
de Salah) para toda a família e todos foram assim, sustentados por aquela
casa durante o período da guerra, que ele sempre contava isto. Então, e o pai
dele foi prefeito, de lá. É uma cidadezinha, pequenininha, Niha, que chama,
no Vale do Bekka, e o pai dele foi prefeito desta cidadezinha. Então tudo o
que acontecia nesta cidadezinha, o pai dele era procurado, como prefeito e se
chegava uma pessoa, um visitante na cidade, a acolhida era na casa dele, por
que naquela época não tinha e acho, acredito que nem tem hoje ainda, nem
hotéis ainda, porque é um lugar muito pequeno. Então assim, eles sempre
tiveram aquela coisa de serem o centro da cidade e da acolhida.
58
A residência e propriedade rural de Salah Ayoub ,uma casa típica camponesa
(vide foto página 38 e 40) era considerada pela família uma casa de hóspedes, pois
estava sempre cheia de visitas e os sentimentos de solidariedade eram automaticamente
trabalhados pelo patriarca. Além da política, o tempo da família Ayoub era dedicado a
cultura de uvas e rosas e, em virtude desta atividade, a família residia numa chácara.
Com as flores se produzia água de rosas, muito utilizada na culinária árabe, como
aromatizante.
57
Op. cit. p. 42.
58
Entrevista concedida a Maria Cristina Rodrigues Fernandes, dia 9 de outubro de 2009. p. 1.
36
A família Ayoub, deixou sua marca nesta cidade, não somente pela
hospitalidade e atuação política, mas pela sua dedicação à produção de arak, espécie de
água ardente, feita à base da uva ou tâmara aromatizada com anis, também conhecida
como leite de camelo, por ser muito semelhante a um licor. Segundo sua viúva, os
Estados Unidos importavam quase todo o arak libanês produzido pela família Ayoub,
por considerarem ser o arak mais puro da região. Em relação ao alambique, apresentou-
se o seguinte depoimento:
Pertence à família já tem mais de cem anos, a fábrica de pinga (...). Fica nesta
mesma cidade e na mesma propriedade. Eles chegaram a exportar para os
Estados Unidos, por um bom tempo, o arak que foi, que eles fizeram um
levantamento dos araks do Líbano e o maior teor de pureza, que o arak é
feito da pinga, e da uva e o anis, e era justamente , o melhor arak que tinha
era do arak Ayoub, que era o nome. (...) inclusive não tinha venda de arak
Ayoub, nem no Líbano, porque ia tudo para os EUA. Até pouco tempo, agora
não sei, agora já nos dois, três anos últimos eu já não sei se continuam
exportando pro EUA, ou não.
59
Ayoub, membro de uma família ortodoxa, aprendeu no cotidiano de sua
infância e juventude (vide foto pagina 38) o valor do amor na família, importante
cultivo para manter os laços de parentesco tão caros a este grupo. Sendo o filho mais
novo desta imensa família, circulava livremente nos espaço sagrado das mulheres: a
cozinha. Desta forma, aprendeu algumas simplórias receitas da culinária libanesa,
devido a sua tenra idade na época. Aprendeu, também, a tradição de sua família pela
oralidade, ao redor da mesa, compartilhando com seus parentes não apenas o alimento, a
comida, mas também seus costumes, suas estórias, suas tradições. Ainda muito jovem
decidiu estudar agronomia, na capital Beirute. Tendo nascido numa família de
camponeses, seria fácil se estabelecer nesta atividade dentro da grande família e
trabalhar, seguindo os passos de seus irmãos, casar e constituir sua própria família.
Mas Salah tinha espírito aventureiro, inquieto, e sentia-se, de certa forma,
insatisfeito. Buscava uma realização pessoal que nem mesmo ele, naquele momento,
59
Op.cit. p2.
37
sabia o que podia significar. Não recebendo muita credibilidade por parte de seu pai,
quando lhe comunicou seu desejo de atravessar o oceano em busca de novos sonhos,
Salah Soleiman Ayoub traçou o seu destino: foi embora e nunca mais retornou ao
Líbano.
ele tava meio acho que se aventurando. Por que o pai dele... ele (Salah) era o
caçula e então o caçula sempre o pai achava que ele não era de nada que
ele não era homem para vir para o Brasil. Por que quando ele falou que vinha
pro Brasil o pai dele falou, que ele não era homem para vir para o Brasil. Que
o Brasil pra vir tinha que ser homem... risadas.
60
O pai de Salah Ayoub e sua mãe, logo depois do casamento,meados do culo
XX, vieram para o Brasil visitar um irmão em São Paulo, Michel Ayoub. Foram, então,
trabalhar em uma fazenda no interior deste estado, mas não se adaptaram devido aos
maus tratos recebidos por parte dos administradores da fazenda e resolveram voltar ao
Líbano. O Brasil estava se adaptando e se organizando neste período com as novas
formas de trabalho-livre e assalariado, pode-se atribuir tais dificuldades de
convivência relatados. Presume-se que, em virtude destas dificuldades que ele
encontrou aqui no Brasil, considerou coerente dizer ao filho que, para vir para o Brasil,
“precisava ser homem”, o que na sua acepção significava ter coragem. Mas diante das
dificuldades de comunicação entre pai e filho, sugestivamente analiso que o pai de
Salah Ayoub não foi ouvido pelo caçula. Os pais de Salah Ayoub permaneceram no país
por volta de mais ou menos um ano. Ainda em alto-mar, tiveram a triste notícia de que a
Primeira Guerra Mundial havia começado. Pode-se supor que se tivessem atrasado esta
viagem por mais alguns dias, ou meses, poderiam nunca mais ter retornado ou, pelo
menos, esperariam a guerra terminar, e construiriam família no Brasil.
Ainda assim, segue-se a tradição que é clara e penosa, pois todos os laços de
privilégio estão em volta do mais velho e, desta forma, este recebe mais atenção e
créditos do que os mais jovens. A hierarquia dentro deste histórico familiar certamente
60
Entrevista concedida a Maria Cristina Rodrigues Fernandes, por Clariman Ayoub, no dia 9/10/2009.
38
não agradava Salah Ayoub, que tinha determinação e disposição para trilhar seu destino
e escrever sua própria história nas Aventuras do Gosto.
Foto 2 Casa da Família Ayoub no Vale do Bekka, cidade - Niha. Esta casa pertence à família a mais de
um século. Acervo família Ayoub. Não se sabe o ano da foto.
39
Foto 3- Salah Ayoub ainda criança no Líbano. Não se sabe a data desta fotografia. Acervo família
Ayoub.
Foto 4- Salah Ayoub em Beirute na companhia de uma amiga. Acervo Família Ayoub.
40
Foto 5- Trabalhadores na propriedade da família Ayoub, em Niha- Vale do Bekka. Acervo família
Ayoub.
41
1.1
A vinda para o Brasil e os desafios da imigração
Oswaldo Truzzi, um renomado pesquisador sobre história da imigração sírio-
libanesa ao Brasil, considera que o trabalho de maior importância, referência pioneira e
obrigatória sobre o tema, foi escrito pelo brasilianista Clark Knowlton
61
. Este estudante
americano, com vasto interesse em conhecer a história da America Latina e,
principalmente, sobre a colônia sírio-libanesa no Brasil, chegou aqui depois de
conquistar uma bolsa de estudos de pós-graduação. Iniciou, então, suas pesquisas e
aperfeiçoamento da língua portuguesa. Utilizando-se de diversas fontes documentais
como documentos pessoais, catálogos e almanaques, entrevistas, jornais, anuários,
registros escolares, livros, entre outros, fez um excelente trabalho sobre a mobilidade
social e espacial de sírios e libaneses ao Brasil.
Outro trabalho que merece destaque sobre imigração árabe pertence ao já
citado Oswaldo Truzzi, que trabalha a imigração sírio-libanesa na cidade de São Paulo,
a ascensão econômica, política e social almejada e conquistada por muitos na colônia.
Esta obra esta acompanhada por alguns gráficos comparativos a outras etnias no
processo migratório. Dados que enriquecem o trabalho do pesquisador e contribuem
para novas análises sobre o tema.
Claude Fahd Hajjar, em seu livro Imigração Árabe: 100 anos de Reflexão,
trabalha a imigração árabe no Brasil, num contexto holístico, procura demonstrar os
motivos que levaram a emigração, os acontecimentos da terra de origem e as
dificuldades encontradas no Brasil.
Segundo Hajjar, a imigração sírio-libanesa pode ser dividida em duas etapas: a
primeira iniciou-se em 1860 a 1938 e a segunda em 1945, entendendo- se até os dias de
hoje. A autora divide tal imigração em „levas‟, sendo a primeira de 1860 a 1900; a
segunda de 1900 a 1914; a terceira de 1918 a 1938. A quarta, compreendendo o período
61
TRUZZI. O, M, S. Patrícios: sírios e libaneses em São Paulo. São Paulo: UNESP, 2009. p. 25.
42
de 1945 a 1955; a quinta de 1956 a 1970, e a sexta a partir de 1971.
62
Tais recortes serão
explicados mais adiante, mas vale considerar, ainda, que a grande maioria de imigrantes
que chegavam ao Brasil advinha da Síria, Líbano e Palestina.
O Líbano e a Síria pertenciam a uma única região, a Grande Síria, dominada
pelo Império Otomano. Os primeiros árabes, que vieram para o Brasil, chegaram aqui
com passaportes turcos, o que significava uma humilhação, pois os turcos estavam
dominando seu país décadas. Os imigrantes não possuíam um sentimento de
nacionalidade, de liberdade, já que não lhes foi permitido vivê-los dentro de seu país.
A maior parte dos aqui chegados decidiu - se pela emigração em razão da
precária situação econômica da terra de origem e da inferioridade
sociorreligiosa dos cristãos (que de fato constituíam a maioria dos
imigrantes) numa sociedade predominantemente islâmica, em uma região, na
época, integrante do vasto império otomano.
63
Esta primeira leva de imigrantes, que almejava fazer fortuna na América e
voltar à sua terra natal, chegou ao Brasil cheia de sonhos e esperança. O país ainda
utilizava a mão-de-obra escrava, em 1860. Apesar da efervescência política que aqui se
encontrava pela abolição da escravatura, a Lei Áurea foi proclamada em 1888. Tal
proclamação foi um forte motivo e incentivo para a entrada de muitos imigrantes com
pré-acordos entre governos, estabelecidos para substituir a mão-de-obra escrava nas
fazendas. Contudo, este não foi o caso dos árabes, que se orgulhavam em dizer que
fizeram uma viagem sem ajuda de custo do governo, que vieram sozinhos, buscar além
da paz, dinheiro o suficiente para retornar a sua terra de origem. Este era o desejo
pertinente à maioria dos imigrantes.
62
HAJJAR, op.cit. p. 86.
63
TRUZZI. op.cit. 2009.p. 26.
43
Até pelo menos o final da primeira década do século XX, o cálculo dos
emigrantes era de que alguns anos de América seriam suficientes para lhes
assegurar uma vida familiar próspera em suas aldeias.
64
O desejo absoluto era acumular algum dinheiro para retornar a sua aldeia, com
sentimento de dever cumprido, e voltar para a família e ao que ela representava a cada
um destes indivíduos.
Da inserção marcadamente urbana na nova terra, ao contrário de grupos
anteriores provenientes da Europa ocidental (e da imigração japonesa
posterior), os sírios e libaneses também em contraposição a outras etnias-
vieram por conta própria, o que por eles é referido orgulhosamente como
prova inequívoca de um espírito altivo. Mais tarde, tal circunstância seria
interpretada pelos porta-vozes da colônia como sinal de distinção em relação
à massa de imigrantes de outras nacionalidades, em geral aqui aportados de
forma subsidiada.
65
Estes imigrantes também enviavam dinheiro às famílias em suas terras de
origem, a fim de comprarem terras em seu nome, “para ampliar a propriedade rural da
família, símbolo de seu status”, de modo que possibilitasse a retirada de uma renda
suficiente para o sustento de todos”
66
. Apesar da primeira leva de imigrantes serem, em
sua maioria de origem rural, os árabes não se acostumaram a trabalhar neste setor aqui
no Brasil.
Nos primeiros tempos da imigração, alguns deles empregaram-se como
colonos, mas poucos meses depois vieram para as cidades mais próximas,
desmotivados pelo tratamento nas fazendas e pela falta de perspectivas
melhoria de vida.
67
64
TRUZZI. op.cit.p.39. 2009.
65
Ibid. p.26.
66
Ibid. p.37.
67
Ibid. p.51.
44
Devido aos maus tratos sofridos, os trabalhadores rurais se aventuraram no
ofício de mascate (tema a ser abordado no item 1.2). Desta forma, a bibliografia
consultada demonstra que o objetivo principal de muitos imigrantes árabes era „ganhar
dinheiro para voltar à terra natal‟. Segundo Truzzi, este pode ter sido o principal motivo
pelo qual a grande maioria emigrou ainda sem se casar, sendo mais da metade do sexo
masculino.
As cartas que os árabes enviavam aos seus conterrâneos, as quais narravam as
aventuras em terras tão distantes e mostravam que se encontravam, de certa forma,
estabelecidos aqui no Brasil, despertou a ambição e a cobiça por parte de muitos jovens
e, consequentemente, de muitas famílias. Portanto, neste período de 1900 a 1914, pode-
se detectar “os primeiros imigrantes incentivando a vinda de seus familiares.”
68
Pode-se
supor que os imigrantes acreditavam que trabalhar com membros de sua própria família,
religião ou aldeia, facilitasse o negócio. E, até mesmo, para ajudar aqueles que estavam
dispostos a conhecer novas terras e ganhar dinheiro praticando outros ofícios.
Segundo Hajjar, o ano de 1914 foi o ano mais tenso que os libaneses e sirianos
vivenciaram. Os turcos enforcaram centenas de árabes.
69
Sendo os turcos seguidores do
Islã, perseguiam os árabes cristãos e, durante a Primeira Guerra, esta perseguição se
acentuou. Este foi um dos motivos que intensificou, neste período, a emigração. Além
do mais, os árabes recusavam-se a servir ao exército Otomano, restando-lhes apenas a
imigração.
A terceira leva de imigração, assim chamada por Hajjar, tem um sentido
diferente. O sentimento de revolta pela terra natal, motivado pelos desmandos e
injustiças vivenciados, levou estes indivíduos a buscarem uma nova pátria, com todos
os seus valores, pois estavam dispostos não apenas a melhorar suas trajetórias
econômicas, mas também assimilar às suas culturas os valores do país em que estão
vivendo, buscando mesmo traduzir seus nomes.
70
Neste período, começam a investir
seus capitais dentro do Brasil. Assim, o objetivo primeiro, de retorno à terra de origem,
existente nas duas primeiras levas de imigrantes começa a diminuir, que as
68
HAJJAR, op.cit.p.97.
69
Ibid .p.99.
70
Ibid. p.107.
45
lembranças denotam um sentimento de revolta em relação às atrocidades sofridas no
país de origem.
(...) decepções e desesperança fez com que o período de 1929 trouxesse
mudanças radicais na postura do imigrante frente à pátria de origem e,
principalmente, frente à sua determinação de fincar pé neste país e buscar seu
lugar dentro da estrutura brasileira. (...) foi o momento em que ele conseguiu
parcialmente, romper as amarras de retorno à sua terra natal.
71
O sentimento de revolta dos árabes em relação à dominação francesa no século
XX, quando o Líbano e a Síria caem no protetorado francês, depois da derrota dos
turcos otomanos na primeira guerra mundial lhes deixou poucas alternativas. Entre as
opções, as saídas que se apresentavam eram ou se organizar contra o inimigo ou
emigrar. Motivados pelo medo de permanecer e pela esperança em encontrar a paz, bem
como pela oportunidade de uma vida mais tranquila do outro lado do oceano, sírios,
libaneses e palestinos emigram, fugindo da violência. Inicia-se, neste período, uma
entrada, mesmo que singela, de árabes muçulmanos. Nesse sentido, “um novo tipo de
imigrante chega ao Brasil (...) mais maduro, mais sofrido (...) um ser mais político.”
72
Recomeçar a vida em um país distante pode não ter sido nada fácil, ainda mais para
quem não falava a língua e tinha que ganhar seu sustento e de sua família praticando a
arte do comércio. Todavia, mesmo diante destas imediatas e severas situações
cotidianas, consideravam ser mais próspero vir para a América e buscar uma vida de
paz e esperança do que permanecer na incerteza.
A sexta leva imigratória está ligada a conflitos palestinos e israelitas, uma vez
que muitos palestinos se refugiam para o Líbano mediante o ataque de Israel. Entre
1975-1985, um grande número de libaneses vem ao Brasil em consequência da
Revolução Civil Libanesa. Professando diferentes credos e ideologias, o árabe vem em
busca de um pouco de paz, fugindo de bombas e dos sequestros, dos morteiros e das
carnificinas presenciadas e vividas pela sua gente.
73
Todos aqueles que migram estão
71
IBID .p. 108.
72
HAJJAR. op.cit. p. 118.
73
Ibid. p. 127.
46
em busca de algo, ou seja, satisfação pessoal, dinheiro, estudos, entre outros elementos,
mas os árabes, segundo a bibliografia, buscam além do dinheiro, a paz.
De uma maneira geral, os árabes tinham “a firme crença na força de
mecanismos compensatórios capazes de lhes garantir melhores posições sociais”
74
.
Primeiramente, almejavam uma maneira de ganhar dinheiro para poderem retornar a sua
terra. Logo, decepcionados com os acontecimentos que estavam vivenciando,
começaram a empregar estes capitais no Brasil, adquirindo residências, lojas, fábricas,
indústrias. Depois, vieram as famílias e a colônia árabe foi aumentando
significativamente. Em suas terras de origem as guerras se intensificaram, fazendo com
que o pavor aumentasse a volúpia por viver a vida e constituir família e riqueza longe da
sombra da morte. Por isso, permaneceram no Brasil.
Salah Ayoub, um libanês, futuro proprietário do Al Manzul, veio para o Brasil
na quarta leva imigratória, assim chamada por Hajjar. Decepcionado por não ter
conseguido atingir seus objetivos finais na universidade e desgostoso com o seu pai,
decidiu viver uma aventura. Ainda muito jovem deixou a casa paterna, sem imaginar, o
que o destino lhe reservava no Brasil. Dentro do navio, Ayoub conheceu um médico,
que o convidou para ir trabalhar na Argentina, para ajudá-lo na cultura do trigo. Não
seria um trabalho difícil para quem vivia no campo e havia quase concluído a graduação
em agronomia. Mas Ayoub tinha, antes de tudo, um compromisso: visitar seus tios,
irmãos de seu pai, depois sim, poderia ir à Argentina.
Chegou, primeiramente, em São Paulo, no ano de 1951, na casa de seu tio
Michel Ayoub, o qual dentro de poucos dias o levou à Cuiabá, capital do Mato Grosso,
para que o recém-chegado sobrinho visitasse seu outro tio, Elias Ayoub. Salah Ayoub,
ao visitar seu tio Elias Ayoub, encontra-o muito doente, pois estava com leucemia. Foi
recebido como um filho e convencido a ficar na cidade para que trabalhasse junto ao tio
e, também, ajudasse na criação dos filhos do mesmo, ainda muito pequenos. Como o
apego à família é muito intenso, pois um dos princípios da cultura árabe é que a
instituição familiar seja mantida e cultivada como foi comentado, o jovem Ayoub foi
„traído‟ pelos seus sentimentos e a emoção falou mais alto, pelo amor a sua origem e
74
ANDREAZZA, op.cit. p. 2.
47
aos seus. Nesse sentido, o sonho de ir para a Argentina ficou apenas nas lembranças do
jovem libanês.
Pode ser que seus pais tenham ficado muito satisfeitos e tranquilos ao saber
que seu filho caçula „revoltado‟, querendo provar aos pais suas qualidades, estava sob o
teto de um membro da família. Talvez o livro escrito por Emil Farhat, Dinheiro na
estrada: uma saga de imigrante, possa demonstrar o sofrimento, principalmente das
mães, que rezavam e imploravam pelo retorno dos filhos. Neste romance, ele narra à
história de uma mãe libanesa que escreve incessantemente aos filhos, que segundo ela o
Brasil os roubou, pedindo que voltem para casa. As cartas longas e sujas de grimas,
trazem trechos emocionantes do amor de uma mãe por seus filhos, a qual busca não
perdê-los de suas lembranças e memórias. Para ilustrar uma passagem do romance,
selecionamos o seguinte fragmento:
Deus do céu. Esse Brasil me tumultua. Quando a erisipela do ódio começa a
querer comichar minha parte burra e ressentida, e me provocar na mente um
tumor em torno do nome Brasil, logo vem o raciocínio calculista que força
minha fragilidade de mãe a desejar que tudo esteja bem nesse danado país. Se
nenhum de vocês ficou rico como sonhava, por que diabo não desatolam (ou
desatracam) suas esperanças, e voltam? Pode haver vergonha em retornar
sem glória ao ponto de partida, eu sei. Mas é melhor do que permanecer
estagnado, apodrecendo e também humilhado num destino que se tornou um
erro. (...) está ai a oito anos. E seus irmãos? Eu sei que não faliram, nem
enriqueceram. Ficaram no meio do caminho. Quantos deles estão apenas
“caçando e pescando”? É isso mesmo: país onde não inverno de verdade,
onde a dureza do frio, do gelo, não espicaça ninguém, as vontades se
afrouxam e o comodismo estende o tapete. E se encosta em qualquer canto.
75
Esta mãe, entre outras, não entendia os motivos que levavam seus filhos a
permanecerem no Brasil. Apenas sentia a dor da saudade rasgar-lhe a alma e pedia
insistentemente o retorno. Assim, não sendo exceção, estes sentimentos podem ter sido
vividos pela mãe de Salah Ayoub, dona Fruzina Ayoub. Mesmo porque, segundo
informações colhidas, o filho escrevia muito pouco a família. Nos primeiros anos
75
FARHAT, E. Dinheiro na estrada: uma saga de imigrantes. São Paulo: T. A. Queiroz, 1986. p. 92.
48
escrevia ao irmão mais velho. Mas como este era um homem que apreciava a sua
cultura e a gramática árabe, formado em Direito, ocupava um alto cargo no poder
judiciário, ele corrigia a gramática do irmão mais novo, nas cartas que respondia.
Portanto, como Salah Ayoub não era homem de meias palavras, se zangou e não
escreveu mais.
Em Cuiabá, o jovem Ayoub aprendeu os primeiros passos de sua nova vida
com seu tio, que o ensinou as primeiras palavras em português, que não tinha noção
alguma sobre este idioma, embora falasse fluentemente o árabe e o francês. Aprendeu,
também, como o seu tio, os ofícios de uma nova profissão, a de mascate. Seu tio, que
estava instalado mais tempo no Brasil, trabalhava neste ramo e, portanto, conhecia
todos os segredos desta profissão. nesta época ele era representante comercial dos
chapéus Cury. Cansado e doente, seus interesses econômicos faziam-no sentir a
necessidade de uma pessoa mais jovem para auxiliá-lo em suas obrigações diárias.
Deste modo, ensinou tudo à ao sobrinho e este, com vontade de vencer para mostrar que
era capaz, ajudou seu tio, e aprendeu a prosperar. Não abandonou seus sonhos e ideais.
Tinha como principal objetivo fazer fortuna para voltar ao Líbano e provar ao pai que,
mesmo sendo o mais novo, podia dar-lhe orgulho.
A convivência não foi difícil, pois trabalhava e viajava pelo interior do Mato-
Grosso com o carro cheio de mercadoria, auxiliando na representação comercial que seu
tio já havia conquistado.
49
Foto 6- Salah Ayoub, dirigindo o automóvel com a identificação Cury, (marca da representação comercial
que seu tio Elias trabalhava) acompanhado de outros mascates no interior do Mato-Grosso. Acervo
Família Ayoub.
Nas primeiras viagens seu tio aproveitava para lhe ensinar a língua e os ofícios,
que o fato de não falar o português impedia-o de vender seus produtos. Em casa não
sentia diferença, pois convivia com a sua tia libanesa, seu tio, irmão de seu pai, e
elementos como a comida, religião e os costumes, assemelhavam-se a todas as coisas
pertencentes as sua terra natal.
Entretanto, o tempo passou e seu tio acabou mudando-se para São Paulo. Os
filhos estavam maiores e ele necessitava de médicos especialistas para tratar sua
enfermidade. Este pode ter sido o momento que Ayoub realmente se sentiu sozinho,
pois não havia demais parentes para compartilhar as lembranças e as histórias ao redor
da mesa, como era de costume. E a comida? Praticar a culinária libanesa era uma forma
de diminuir a saudade que sentia, pois “além de alimentar fisicamente e propiciar o
pretexto para a celebração familiar, a comida, como construção simbólico-cultural,
também transmite expectativas, valores e significados.”
76
Portanto, a partir desse ponto,
Salah começou a expressar seus primeiros dotes culinários, buscando em suas
lembranças as receitas, para sentir e saborear o gosto imperioso da cozinha árabe. Havia
presenciado sua mãe na cozinha muitas vezes e buscava imitá-la. Assim, errando e
acertando, compensava a ausência das coisas que amava e conduzia sua vida solitária
com a boa alimentação.
É perceptível o processo doloroso de aculturação que sofreu o imigrante, o qual
na ânsia da saudade buscava fortalecer os laços com a terra natal, valendo-se da ngua,
religião, vestimenta ou da comida. Neste caso, considera-se o alimento o mais
significativo e difícil, pois o idioma da terra acolhedora aprende-se, traduz-se, gesticula;
o vestuário mandam-se confeccionar a seu gosto, caso não as encontre no comércio; os
princípios da religião se aprende ainda muito jovem, podendo orar na companhia de um
livro sagrado. Todavia, a comida apresenta complexidades e suas diferenças que
acentuam as disparidades gustativas de um povo a outro. Estas podem estar atreladas a
76
TRUZZI. op.cit., . 2009, p. 69.
50
religião, a economia, ao solo, entre outros inúmeros aspectos e fatores que os diferem e
distanciam.
Salah Ayoub conhecia bem esta saudade. Mas antes de seu tio Elias Ayoub
partir, ambos abriram um comércio em Cuiabá: a loja de confecções Ayoub.
Foto 7- Da esquerda para a direita: Elias Ayoub, Salah Soleiman Ayoub e Michel Ayoub, 1951, Cuiabá.
Acervo família Ayoub.
51
“Vinham os homens em massa, as grandes terras
da América, desbravadores do oceano,
desembocando nas selvas.” (Assis Féres)
77
1.2
A TRADIÇÃO DO COMÉRCIO: DE MASCATE A LOJISTA
Segundo Truzzi, “os imigrantes que vieram para o Brasil, em geral, pertenciam
a famílias de agricultores proprietárias de pequenos lotes de terra, trabalhados e
cultivados por toda a família ampliada.”
78
Não se adaptando a este ofício no país, os
árabes concorreram diretamente com os portugueses que aqui trabalhavam como
mascates: vendedores ambulantes que adentravam em fazendas, cidadezinhas e vilas,
buscando vender barato suas mercadorias, que poderiam ser desde sabonete até tecidos.
Vendia-se de tudo um pouco. Como o interesse destes mascates, no princípio era ganhar
algum dinheiro para retornar à terra natal, viviam com muito pouco, ao passo que
trabalhavam muito e economizavam o ximo. Mesmo aqueles que, depois, decidiram
fixar residência no Brasil, economizavam com o intuito de abrir um comércio,
estabelecendo-se como lojista, pois a intenção era seguir “a rápida ascensão econômica
propiciada pela cadeia estruturada em: “mascate pequeno comércio comércio por
atacado indústria.”
79
Com a experiência que adquiriram como mascate, aprenderam a
negociar, a comprar e revender seus produtos. Vivendo sob a égide da economia, foram
gradativamente acumulando capital a fim de realizar seus objetivos comerciais.
A dificuldade inerente à chegada destes imigrantes estava ligada à falta de
capital, pois em geral, chegaram aqui sem nenhum patrimônio, restando-lhes apenas a
mascateação.
80
A respectiva atividade exigia mais esforço físico do que dinheiro para
comprar as mercadorias, uma vez que os fornecedores eram os próprios patrícios,
conhecedores deste trabalho e que agora tinham suas próprias lojas, podendo ter
77
FÉRES, A. O mascate: poema de Assis Féres. São Paulo: Revista Laiazul. 1970. p. 11.
78
TRUZZI. op.cit., 2009, p. 51.
79
TRUZZI. op. cit. 2005, p.73.
80
Ibdem. p52.
52
vários vendedores ambulantes. O mascate tinha, também, a autonomia para trabalhar
com várias representações. Com seu “espírito empreendedor desbravou florestas com
coragem e persistência. Com humor, ele enfrentava a arrogância, grosserias e deboches
(...) e persistia na luta pelo seu ideal de fixar-se e progredir, trazendo o progresso à terra
que o acolhia.
81
Era esperado com ansiedade, principalmente por parte das mulheres,
pois levavam ao interior do Brasil as novidades na moda das grandes cidades.
Trabalhavam na base da confiança, vendiam tudo a prazo, depositando confiança no
cliente.
Era o mascate o homem esperado para a compra da jarra, da panela, do
vestido novo, do sapato, da galocha, enfim, das novidades da metrópole. Ele
era o distribuidor da produção manufaturada ou importada das grandes
capitais brasileiras pelo sertão e pelos povoados espalhados pelos 8.500.000
Km2 de terras brasileiras.
82
O mascate criou uma nova cultura no comércio brasileiro: a venda a prazo. Ao
levar à porta do cliente aquilo de que necessita, proporcionava comodidade na venda e
no pagamento, “pois a alma do negócio consistia em atrair o consumo popular.”
83
Os
primeiros trabalhavam carregando suas mercadorias em caixas ou nos ombros. Uns
ganharam dinheiro suficiente para comprar mulas. Os mais abastados, porém,
compravam carros, podendo assim, adentrar nas fazendas, ir de uma cidade para outra,
percorrer até mesmo todo o estado. Deste modo, foram considerados os “bandeirantes
do comércio”
84
, pois desbravaram os mais distantes vilarejos, cidadezinhas e fazendas,
para oferecer seus produtos. O acesso dificultado pelas más estradas, chuvas, sol, poeira
e o cansaço, não eram motivos para desistir, pois imaginavam que estava o freguês e,
portanto, lá também deveria estar o vendedor, o mascate.
Ayoub Salah iniciou-se no ramo de vendas, viajando de carro. Conheceu todo o
interior do estado do Mato Grosso que, na época ainda não havia sido dividido.
Percorreu, assim, toda a área que hoje corresponde ao estado do Mato Grosso do Sul e
81
HAJJAR. op.cit .p. 145-47.
82
Ibidem. p. 145.
83
TRUZZI. op.cit., 2005, p. 27.
84
TRUZZI. op.cit., 2009, p. 92.
53
Mato Grosso. Lotava o seu automóvel de mercadoria e saía em viagem. Ao aventurar-se
pelo sertão, entrava nas propriedades rurais, fazia amigos e contava suas histórias. Era
conhecido por ser um “hábil contador de casos e um bom papo”
85
. E, contando suas
estórias e causos como gostava de fazer, preservou este hábito.
Foto 8 Salah Ayoub, em seu ofício de mascate, viajando com seu jipe, pelo interior do Mato-Grosso.
Acervo família Ayoub.
Salah Ayoub logo abriu uma loja de confecções com seu tio Elias Ayoub, no
centro de Cuiabá. Vendiam de tudo: sapatos, tecidos, lenços, roupas em geral. “A Loja
Ayoub, referência em sua época, (...). Foi à primeira loja a possuir vitrine e a abrir no
horário de almoço, mesmo na época que Cuiabá era uma pacata cidade.”
86
Sempre
obediente ao tio, tratava-o com respeito e cordialidade. Ganhou muito dinheiro e
conseguiu mandar algum à família em Niha. O seu pai, homem empreendedor começou
a construir um prédio de quatro andares em Beirute, pois os negócios iam bem. Mas seu
tio Michel, o primeiro entre os Ayoub a vir para o Brasil, tinha o hábito de jogar cartas
e, numa destas jogatinas, perdeu todo o seu capital e foi embora para o Líbano pedir
apoio ao irmão (pai de Salah). Passado algum tempo contraiu novas dívidas de jogo e a
85
Jornal Diário de Cuiabá, sábado, 13 de dezembro de 2008, por Paulo Leite.
86
Jornal Diário de Cuiabá. Quarta feira, 17 de dezembro de 2008, por Mitri Salah Ayoub.
54
família foi obrigada a vender o prédio, ainda inacabado. Elias Ayoub também
contribuiu, na época, pois não queria ver seu irmão, sofrer represálias com a própria
vida e nem mesmo o nome da família sendo desprezado. Isto fez com que os negócios
da família começassem a definhar.
Contudo a vida, mesmo com tropeços e dificuldades, seguia o seu curso. E,
num destes dias, Ayoub conheceu uma brasileira, uma bela jovem que passava em
frente ao seu estabelecimento. Logo chamou sua atenção, fazendo-a parar. Ofereceu-lhe
emprego. A jovem mato-grossense se chamava Clariman de Lima, natural da cidade de
Aquidauana (atual Mato Grosso do Sul) e era recém chegada à Cuiabá. A mesma se
impressionou com o libanês e aceitou a proposta. Assim, trabalhando juntos, tiveram a
oportunidade de conviver e de se conhecer.
Clariman de Lima, uma exímia cozinheira, aprendera desde muito jovem as
artes da cozinha. Filha mais velha de um pastor evangélico, de posses modestas,
começou a trabalhar ainda muito jovem e não se permitia comer mal. Todo o final de
semana fazia um vale no local onde trabalhava e ia à feira, satisfazer seus desejos mais
íntimos: comprar os alimentos para preparar o almoço de domingo. Não se permitia
pouca coisa, pois queria um banquete todo o domingo, desejo este que nem mesmo ela
sabia explicar. Procurava se aperfeiçoar a cada dia, e assim buscava novas receitas,
técnicas e toques culinários próprios. Com um paladar aguçado e apurado, não tinha
dificuldades em detectar os temperos de uma comida ao prová-la. E, progressivamente,
foi aperfeiçoando a habilidade do paladar.
Clariman de Lima procurava agradar Salah Ayoub, demonstrando todo o seu
amor através da comida. Sempre fazia tortas, bolos e levava para Ayoub durante o
expediente. Este sempre lhe falava da saudade que sentia da terra natal, de sua família e
das comidas típicas. Ela procurava aprender para satisfazer o estômago, acariciar a alma
e as lembranças de seu já tão querido amor.
Trabalharam aproximadamente três anos juntos e namoraram às escondidas. O
tio de Salah Ayoub, seu sócio, era absolutamente contra o namoro. E o outro tio, Michel
Ayoub, enquanto esteve no Brasil fazia o possível para que ele se casasse com uma
libanesa em São Paulo. Falando em nome do sobrinho, firmou até mesmo compromisso
com uma família de patrícios. Aceitar essa proposta ou retornar ao Líbano para casar em
55
sua terra natal e, depois, voltar ao Brasil, como era costume entre os árabes, foram as
condições apresentadas ao sobrinho, que havia amealhado algum dinheiro. Salah
Ayoub não estava disposto a obedecer. Escondeu sua paixão por Clariman de Lima, mas
não a deixou. A família da moça não proibia o namoro, não apresentando nenhum
posicionamento contrário ao pretendente da filha. Contudo, estava receosa por ele
pertencer a uma cultura muito diferente e, principalmente, por causa dos vínculos
religiosos, uma vez que Salah Ayoub era cristão ortodoxo. A família de Clariman de
Lima previa que ela poderia sofrer, mas ela os enfrentou, não deixando aos seus
familiares opção, senão aceitar.
Na terceira leva imigratória começou a diminuir a ida de jovens à terra natal, a
fim de contraírem matrimônio. Era grande o número de jovens árabes vivendo aqui no
Brasil. Mesmo assim, os mais conservadores, ou seja, os mais ligados às tradições, não
permitiam que os mais jovens se casassem com mulheres de outras nacionalidades.
Acreditavam que a convivência seria difícil, mediante tantas diferenças culturais. E,
como foi dito, dentro das famílias havia uma hierarquia que deveria ser respeitada e
mantida objetivando assegurar não somente a disciplina, mas acima de tudo, o poder do
patriarca, fortalecendo os laços familiares e a tradição oral. Entretanto, tornava-se difícil
educar e seguir os costumes de uma terra tão distante, da qual restava apenas a saudade
dos parentes, que optaram por não emigrar. Por isso, ao enfrentarem as dificuldades da
profissão de mascate, ganhar algum dinheiro, abrir o negócio próprio, os jovens não
queriam mais aceitar as amarras desta hierarquia. Ademais, buscavam um autêntico
sentimento de amor e não apenas as conveniências de nacionalidade, ou casamentos
arranjados, como era de costume em sua terra por imposições dos mais velhos.
Assim, Salah Ayoub, não queria voltar ao Líbano, mas desejava „fazer‟
dinheiro no Brasil. Muito menos aceitava se casar com uma libanesa, pois havia fugido
das „amarras‟ do pai, a fim de lhe mostrar que era capaz de viver sua vida sozinho.
Portanto, um homem com este espírito determinado não permitiria que palpitassem em
sua vida afetiva. Todavia, o mesmo sentiu muitas dificuldades, pois pressionado pela
família, viajou a São Paulo, para oficializar o noivado com uma patrícia. Clariman de
Lima se desesperou. Todos os patrícios iam a loja cumprimentar o senhor Elias Ayoub
pelo noivado do sobrinho. Revoltada e enciumada, resolveu vingar-se. Sendo bela e
jovem, não lhe faltavam pretendentes. A mesma havia sido, pouco tempo, pedida em
56
noivado por um jovem rapaz, chamado Joaquim. Ele trabalhava num banco e queria
oficializar este compromisso no dia do aniversário de Clariman, em 21 de agosto.
Indignada com a postura de Salah Ayoub e de sua família, ela aceitou o pedido de
noivado. O pai, não poderia ter notícia melhor, pois sua primogênita estava noiva de um
membro da igreja, sendo este um bancário, que seguia os preceitos da religião e estava
disposto a se casar em breve. Assim, o compromisso foi firmado perante a família de
Clariman, com uma festa de aniversário. Neste dia, seu pai mostrou-se muito grato e
abençoou os noivos.
Quando o jovem Ayoub retornou de São Paulo, cabisbaixa, uma funcionária
que fazia o papel de correspondente entre Ayoub e Clariman, contou o que havia
acontecido em sua ausência. Desesperado, sentindo-se traído, esperou o movimento da
loja acalmar e chamou Clariman, insistindo que ela rompesse o noivado. A jovem, mais
do que depressa, lhe cobrou a questão de seu compromisso em São Paulo. Ayoub disse-
lhe que havia viajado para romper com a jovem. Todavia, não seria tão fácil assim se
desfazer de um compromisso firmado pelos seus tios, Michel e Elias Ayoub. Clariman
rompeu com seu noivo, Joaquim, mas Salah Ayoub não assumiu o namoro e, dentro de
dois meses, retornou a São Paulo.
A cena se repetiu, os patrícios tornaram a cumprimentar os tios e a sombra
negra da traição, do ciúme e do medo tomaram a jovem, que desesperada e crente de
que Ayoub a iludia, reatou o noivado com o jovem brasileiro. Mas este não estava
mentindo. A viagem empreendida a São Paulo objetivava, de fato, terminar
definitivamente o namoro. Quando retornou a Cuiabá encontrou sua amada nos braços
de outro. Era tarde demais, pois Clariman não acreditava mais em Ayoub e os laços de
confiança que os uniam foram rompidos.
Essa situação persistiu por quase um ano. Clariman de Lima mantinha-se noiva
de Joaquim, e Salah, desesperado, buscava reconquistar sua amada. Este a perseguia em
todos os lugares que a jovem frequentava. Com seu jipe, ele supervisionava quando ela
voltava do culto com o namorado, quando ia ao supermercado, passear na casa de
parentes, não lhe dando descanso. Sua insistência foi tamanha, juntamente com suas
promessas de casamento e amor eterno, que a jovem cedeu e rompeu definitivamente o
noivado com Joaquim. Sua mãe zangou-se muito e ficou quatro dias sem falar com ela.
57
Mas os posicionamentos contrários à união do casal foram inúteis, de forma que
prosseguiram namorando às escondidas até se casarem.
Deste modo, embora o tio de Ayoub fosse contra, namorou uma brasileira e se
casou com ela. Ademais, mesmo que Elias Ayoub residisse em São Paulo, o sobrinho
ainda receava casar-se. Por essa razão, seu casamento aconteceu depois da morte do
seu tio. Saíram em lua de mel, após a missa de um ano de falecimento do mesmo. A
cerimônia procedeu de forma simples e reservada apenas aos amigos mais íntimos do
casal. O respeito à memória e aos costumes era imenso, mas o amor prevaleceu.
Casaram-se no dia 31 de julho de 1965, e viajaram no dia 18 de agosto do mesmo ano.
Segundo Clariman Ayoub a lua-de-mel foi em São Paulo:
ele foi trabalhando, mascateando, recebendo dinheiro daqui e dali, (...)
porque ele viajava nestas bibocas toda, como ele falava, né. Ai chegamos em
Poxoréu, que era cidade de garimpo. Ainda chegamos na pensão (...), ai o
dono da pensão falou assim: não, você não pode entrar com essa mulher aqui.
ai ele falou (Salah): mas como? Não (o dono da pensão) aqui nos deixamos é
pessoa... entrar com qualquer uma aqui não. (Salah) Mas é minha mulher! Eu
casei! (dono da pensão): Eu sei que você é solteiro. Risadas de dona
Clariman. (Salah): não eu casei, ta aqui meus documentos. Isso ai depois
pegou e viu que ele tinha casado e deixou a gente ficar. Ai pegamos um frio,
um frio e não tinha cobertor na pensão. Virou o tempo na madrugada e foi
um terror . Tinha um lençolzinho fino pra gente se cobrir. Ele teve que se
levantar de madrugada , bater na casa de um cliente dele que vendia cobertor
pra poder viajar que tava viajando de carro. E nisso depois que nos dormimos
e acordamos e fomos pra outra cidade ai eu viajei embrulhada no cobertor
o tempo todo. Foi uma das piores geadas que deu em Mato Grosso naquela
época , foi quando nos casamos. Risadas.
87
Mesmo tendo loja, Salah Ayoub não abandonou seus clientes. Continuava
viajando e vendendo seus produtos, mantendo a clientela da loja e do interior do Estado,
sendo que estes haviam sido conquistados em seus primeiros anos residindo no Brasil.
No entanto, depois que se casou, viajou apenas para cobrar seus clientes e despedir-se
dos mesmos, uma vez que não pretendia mais viajar, agora que iniciava uma nova fase
de sua vida.
87
Entrevista concedida a Maria Cristina R. Fernandes, por Clariman de Lima Ayoub, no dia 9 de outubro
de 2009.
58
Dentre as inúmeras conversas entre o casal Ayoub, ele contava à esposa muitas
passagens de um tio seu no Líbano, do qual ele sentia muita saudade. Segundo ele, este
tio cavalgava de pé sobre um cavalo. ( vide foto página 58.) Ayoub admirava a
habilidade do mesmo, que chegou a ganhar uma espada de presente de um político
local. Estas histórias faziam parte de muitas conversas que Ayoub tinha com sua esposa
e seus filhos. Como é característico constituírem famílias numerosas entre os árabes, o
casal Ayoub teve cinco filhos: Mansur, Elias, Mitri, Jamil e Rúbia.
Foto 9- Tio de Salah Ayoub no Líbano. Acervo família Ayoub.
O primeiro filho, Mansur Salah Ayoub, teve sérios problemas de saúde, sendo
que em uma de suas crises convulsivas, foi conduzido em um avião fretado a São Paulo.
A criança foi desenganada pelos médicos e Salah Ayoub se desesperou. Alguém sugeriu
ao casal que fizessem uma promessa a Nossa Senhora Aparecida. Ayoub, mesmo
pertencendo à outra religião, assim como a esposa, renderam-se à esperança de salvar o
filho e aceitaram o conselho. Atribuindo a cura do menino a santa, foram visitar o
59
santuário de Nossa Senhora Aparecida, passando a acreditar nos milagres da mesma.
Salah Ayoub tornou-se devoto, que seu filho havia se curado. Os demais filhos, para
felicidade da família, nasceram todos saudáveis.
A primeira aquisição de Salah Ayoub, em Cuiabá, foi uma chácara, na região
do Coxipó. Comprou-a em “1969, uma área rural (na época) com 50 mil metros.”
88
O
mesmo fora criado em uma chácara e, por isso, é possível supor que seu desejo era criar
os filhos nos mesmos padrões da educação que recebera. Preservava o respeito e, dentro
de sua casa, ele era o único que podia falar mais alto. Contava suas histórias, mas não
conseguiu preservar a língua árabe entre seus filhos. Contudo, preservou os costumes e
a arte culinária.
Salah Ayoub foi um homem que procurou honrar seus compromissos.
Procurou transmitir estes valores aos filhos, conduziu-os em seus estudos, incentivando
e proporcionando subsídios necessários para que todos entrassem para a universidade.
Assim, sua trajetória de vida desencadeou-se feliz, ao lado da esposa, que foi
aprendendo os segredos da comida libanesa. Acostumados a terem a casa sempre repleta
de visitas, a esposa aprendia sobre a culinária com as esposas dos amigos de Salah
Ayoub, algumas libanesas outras sirianas. Percebendo que a comunidade árabe estava
crescendo, Salah Ayoub e seus patrícios sentiram a necessidade de um clube, onde
pudessem expressar e cultivar os valores e costumes do Líbano. Assim, nasceu o “Clube
Monte Líbano”, fundado em 1978 dentro de sua casa, onde faziam jantares para
angariar fundos no intuito de construir uma sede. Nestes jantares as esposas levavam
um prato típico e os homens se encarregavam de vender os ingressos para o jantar na
chácara de Salah. Essa atividade tornou-se um sucesso, pois os novos sabores,
agregados aos exóticos, chamava a atenção não somente dos filhos e descendentes, mas
também daqueles que pertenciam a outras culturas. Estes momentos podem ter sido,
além de ponto de encontro, um momento propício para a troca de receitas e
informações.
Clariman Ayoub aprendia rápido o segredo desta arte, que tinha
conhecimento em outras culinárias. Logo, cozinhava em casa para agradar o marido,
88
Retirado do site: http://www.odocumento.com.br, consultado em 02/01/2009. Escrito por João Carlos
Caldeira, em 30/07/2005, As Mil e uma noites em Cuiabá.
60
mostrando sua dedicação através dos pratos elaborados que preparava. Quanto mais
difícil, ela julgava melhor. Assim, ele perceberia mais nitidamente seu empenho.
Salah Ayoub foi, durante cinco anos, diretor social do clube, exercendo no
decorrer de quatro anos as atividades de presidente do conselho deliberativo e, durante
dois anos, no período de 1992 a 1994, o cargo de vice-diretor financeiro. Homem
respeitado dentro da capital, sempre com passos firmes, conduzia sua vida e sua família,
bem como, seus negócios.
Na década de noventa, devidos aos sérios problemas enfrentados pela
economia nacional e regional, como a inflação e questões ligadas à segurança da
família, a loja Ayoub não conseguiu manter o estoque e a qualidade do estabelecimento,
além de ter sofrido vários assaltos. Portanto, em 1991, em um contexto de crise, pois
precisava pensar numa saída para resolver seus problemas financeiros, resolveu
aventurar-se num novo empreendimento: um restaurante de culinária árabe. Assim,
acreditaram que através da comida poderiam divulgar o que havia de melhor na sua
cultura e, também, conseguiriam, com este empreendimento, manter sua família. Como
Clariman Ayoub dominava a arte culinária, não precisariam contratar uma cozinheira,
mas apenas ajudantes. Paralelamente, o libanês tentou conciliar seus dois comércios, de
modo que o restaurante se mostrou mais lucrativo que a loja de confecções. Então,
preferiu fechá-la, antes que contraísse dívidas. A loja encerrou suas atividades somente
em 1995.
Diante de uma nova situação, um ponto deve ser destacado: Salah Ayoub havia
sido criado numa cultura que apreciava as reuniões em grupos ao redor da mesa,
transmitindo as tradições pela oralidade. E, sendo a comida, em especial, “um dos
aspectos que mais positivamente marcou a presença árabe na cultura brasileira”
89
,
imaginou que neste campo um empreendimento lhe renderia lucros.
A esposa Clariman Ayoub o apoiou de imediato e, assim, inauguraram o
Restaurante Al Manzul.
89
HAJJAR. op.cit. p.73.
61
Foto 10- Salah, em sua Loja Ayoub, na Rua 13 de Julho em Cuiabá. Acervo Família Ayoub.
Foto 11- Casamento de Salah e Clariman, apenas no civil. Acervo família Ayoub.
62
Foto 12- Clariman acompanhada de seus pais, no dia de seu casamento civil. Acervo família Ayoub.
63
Foto 13- Salah e Clariman Ayoub em viagem de lua-de-mel, para São Paulo, em 1965. Acervo família
Ayoub.
64
2
O NASCIMENTO DO RESTAURANTE AL MANZUL
O Brasil, na década de 1990, passava por uma crise econômica que se agravava
a cada dia, pois a inflação era altíssima, o desemprego crescente e os salários haviam
sido congelados. Logo, esta crise foi sentida no comércio. Até mesmo os vendedores de
produtos alimentícios começaram a ter dificuldades. Tudo se agravou muito mais
quando o presidente Fernando Collor de Mello anunciou o confisco das cadernetas de
poupança. Acusado de corrupção, em dois anos de mandato, foi retirado do poder por
meio de um impeachment. Seu vice, Itamar Franco, assumiu a presidência e precisava,
de imediato, conter a inflação. O “Risco Brasil” ameaçava a economia nacional e inibia
os investimentos estrangeiros. Itamar Franco, juntamente com o apoio de seu Ministro
da Economia, criou o Plano Real. O plano, felizmente, prosperou. Contudo, muitos
comerciantes, não suportaram a crise econômica e faliram, pois os assaltos e as greves
só aumentavam.
Salah Ayoub foi um dentre inúmeros comerciantes que não conseguiu suportar.
Sofreu vários assaltos e estava ficando cada vez mais difícil refazer o estoque de sua
loja de confecções. “Foram nove ao longo de mais de três décadas de Loja Ayoub”.
90
Ayoub precisava urgentemente se reorganizar financeiramente, mas analisava
atentamente um novo segmento no comércio, não mais no setor de confecções, de
vendas de vestuário, pois agora pretendia seguir o ramo gastronômico.
Como cresceu e conviveu numa grande família em que as conversas, na sua
maioria, eram ao redor de uma mesa farta e, quando chegou ao Brasil, estes costumes
eram preservados na casa do seu tio Elias, pois este educava seus filhos dentro dos
mesmos modelos em que ele e seu sobrinho haviam sido educados. Eram sempre
valorizados o espaço familiar e as histórias da família, contadas e repassadas de geração
a geração, bem como as histórias de cada prato que era consumido, pois tinham por
hábito comentar sobre aquilo que estavam comendo: o tempero, a receita e/ou a
invenção, o preparo, a fim de estimular o contato e a amizade familiar através dos
90
Jornal Diário de Cuiabá, quarta-feira, 17 de dezembro de 2008. Por Mitri Salah Ayoub.
65
sabores da boa comida. Ainda recém casado, não deixava de convidar seus amigos para
ceiar com sua nova família. Gentilmente, oferecia muitos jantares em sua casa, aos
amigos libaneses. Os dois, marido e mulher, cozinhavam, preparando com dedicação e
carinho os pratos que seriam oferecidos.
Neste ambiente carregado de saudades, os imigrantes costumavam comentar
sobre as receitas mais típicas e ali criavam um elo entre o passado, o presente e a
comida. Portanto, a solução mais rápida e adequada àquela situação emergencial,
segundo o casal Salah, para superar a crise econômica, seria abrir um restaurante.
Possuíam muitos utensílios domésticos, pois estavam acostumados com a casa cheia,
devido aos jantares oferecidos pela família aos amigos. Tinham espaço adequado na
chácara em que viviam e uma cozinheira, que com anos de casamento amadureceu seus
conhecimentos na culinária, especialmente na culinária árabe. Para a família Ayoub era
naquele momento uma possibilidade para vencer um percalço financeiro. Como explica
Clariman Ayoub:
Era uma coisa também que a gente não ia dispor de muito dinheiro. A gente
tinha um costume de comprar louça, talheres tudo de monte de coisas. Ele
comprava de viajantes, então como ele tinha loja, ele comprava em nome da
loja, mas direto da fábrica. [...]. Então ele comprava assim diretamente e nós
tínhamos tudo que precisasse para um restaurante e então íamos apenas
comprar mais.... Copos, mesas, cadeiras e toalhas para mesa foi o que nós
fizemos e que a gente não precisava assim dispor de um dinheiro muito
grande, que toda semana você vai faz a compra da semana, no começo foi
assim. [...] o lugar era na nossa própria casa, tudo, então a despesa da luz, do
telefone da água era tudo junto da comida então e foi o que aconteceu.
91
Neste contexto, no dia 24 de maio de 1991, a família Ayoub inaugurou o seu
estabelecimento. Com dificuldades para compor os alimentos, devido à escassez de
produtos típicos, seria necessário que uma parcela destes ingredientes fosse importada
da terra de origem, entre outros que eram comprados na cidade de São Paulo. Mesmo
sendo expressivas as dificuldades em adquirir os componentes alimentares, os
proprietários não abriram „mão‟ de elaborar os pratos, respeitando as receitas
tradicionais. A intenção de Salah Ayoub, além de ganhar dinheiro, obviamente, sempre
91
Entrevista concedida por Clariman Ayoub a Maria Cristina Rodrigues Fernandes, no dia 9 de outubro
de 2009.
66
foi divulgar o que havia de melhor na cultura árabe. Por isto, a família optou em não
cozinhar determinados pratos com produtos nacionais, a fim de não perder a essência
original, conservando o autêntico sabor.
O restaurante teve boa aceitação entre os patrícios e demais visitantes que
faziam festas de casamento, aniversário, marcavam seus encontros com amigos,
levavam parentes que vinham de outros Estados e, até mesmo, de outros países lhes
visitar, a fim de mostrar que havia um local onde se poderia saborear a verdadeira
comida árabe. Na primeira sede, quase tudo era ao ar livre, com mesas e cadeiras
expostas em baixo de belas árvores . Os almoços e jantares eram servidos ao som da
música árabe, com a apreciação da natureza e de belas bailarinas. Um espetáculo ao ar
livre, que procurava demonstrar a cultura um tanto desconhecida árabe com toques
brasileiros.
Foto 14- Primeira sede do Al Manzul. Acervo família Ayoub.
Portanto, como Salah Ayoub apreciava os costumes da casa de seu pai,
caracterizado pelas visitas, a casa sempre cheia e, seu pai, na condição de patriarca e
chefe político local sempre foi um anfitrião, o qual transformou sua casa em uma casa
de hóspedes, Salah Ayoub, traduziu para o árabe e batizou seu estabelecimento como Al
67
Manzul, que significa Casa de Hóspedes”. Assim, inicia seu novo negócio, “com a
amabilidade de um príncipe oriental; mas com aquela aptidão dos mascates para o
negócio”
92
. Apresentando seu restaurante e sua farta mesa, atendia a todos os seus
clientes como hóspedes e amigos.
O povo árabe tem por tradição acolher com carisma e dedicação seus visitantes
e hóspedes. É comum entre as famílias, desde as mais humildes até as mais abastadas, a
preocupação em receber bem. Povo hospitaleiro que passou de geração em geração a
tradição oral da amizade, “da hospitalidade com aquele que viaja
93
, que passa pela sua
casa e pede abrigo. Oferecer ao visitante o que há de melhor era o lema de Salah em seu
restaurante. As pessoas comiam o que havia de mais sofisticado na culinária árabe e,
além disto, uma comida preparada por sua esposa com carinho, amor e dedicação.
O restaurante está localizado na chácara de propriedade da família. Salah
Ayoub residia em outra casa próxima, localizada no mesmo lote de terra. O casal seguiu
a trajetória de seu empreendimento gastronômico, optando por manter a tradição,
insistir na qualidade e aprimorar as receitas. E, em uma determinada ocasião, receberam
a visita de um crítico gastronômico que se identificou apenas no final da refeição.
Informou-lhes, portanto, que pertencia a equipe do Guia Brasil Quatro Rodas. Esse
episódio ocorreu em 1994 e, depois de alguns meses, foram informados que ganharam
da revista uma estrela. Esta condecoração representava uma vitória para a família. Era o
reconhecimento do trabalho realizado com seriedade e competência.
Infelizmente, no dia 24 de maio de 1995, uma enchente atingiu muitas famílias
cuiabanas, principalmente as que residiam na região próxima ao rio Coxipó,
desencadeando uma verdadeira tragédia. O rio transbordou, inundando muitas casas,
entre estas, a de Salah Ayoub que “perdeu tudo na enchente de 1995 e não pensou duas
vezes: recomeçou do zero.”
94
A família Ayoub perdeu tudo o que possuía: o seu
restaurante, os produtos, os eletrodomésticos, roupas.
92
Jornal Diário de Cuiabá, sábado, 13 dezembro de 2008. Por Paulo Leite.
93
ROSENBERGER, B. A cozinha árabe e sua contribuição à cozinha européia. In: FLANDRIN, Jean
Louis; MONTANARI, Massimo, História da Alimentação. 6. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998,
p. 340.
94
Jornal Circuito de Mato-Grosso, 12 de dezembro de 2008, por Flávia Salem.
68
O reconhecimento do Guia Brasil Quatro Rodas demonstrava aos proprietários
que estavam no seguimento comercial correto. Tinham referenciais, pois entendiam de
comida, da cultura árabe e criaram um espaço gastronômico direcionado não apenas a
comida, mas as histórias desta tradição culinária associada a uma civilização milenar. O
troféu do Guia Brasil Quatro Rodas, somado às dificuldades enfrentadas na loja de
confecções e ao sucesso do restaurante, levou a família a juntar forças e recomeçar. Na
primeira sede a água do rio demorou mais para baixar, pois se localizava numa região
inferior da chácara. A solução cabível seria reabrir o restaurante, na própria casa da
família, na área mais elevada da chácara. E foi exatamente isto que fizeram. Juntaram
latões e acenderam fogo para secar as paredes mais rapidamente, para poderem pintá-las
e começaram a comprar os utensílios mais simplórios, porque não havia muitos recursos
naquele instante. E, assim, entre muitas dificuldades, perseverança e necessidade, pois o
a família sobrevivia dos lucros do restaurante, o Al Manzul foi reaberto. Novamente
recebeu, pelo segundo ano consecutivo uma estrela, mantendo-se no roll de boa cozinha
árabe do Brasil.
Em 1995, Salah Ayoub resolveu fechar definitivamente a Loja Ayoub e
dedicar-se exclusivamente ao restaurante. Ele mesmo ia ao mercado ou a feira comprar
os legumes, as verduras e, os demais ingredientes, eram encontrados no supermercado
ou encomendados de uma empresa especializada em produtos árabes, que lhe trazia de
São Paulo ou diretamente da Síria, Jordânia e do Líbano. Cuidava de tudo, cada passo,
cada detalhe, para aumentar a qualidade da comida oferecida e, consequentemente, o
reconhecimento.
Clariman Ayoub, como foi dito, sempre apreciou a arte culinária e colocava
em prática toda a sua criatividade. Durante todos estes anos, no ramo gastronômico, ela
aprendeu, inventou e reinventou alguns pratos desta fabulosa cozinha. Com um paladar
refinado e apurado ela foi avaliando, selecionando e soube conduzir em sua cozinha
algumas alterações. Sempre muito cuidadosa com a higiene do local e com o manuseio
dos alimentos, passava horas e horas dentro da sua cozinha. Ali ela acertava, errava e
reinventava as receitas tradicionais da comida libanesa, egípcia, siriana, marroquina
entre outras. Um dos pratos inventados e mais famosos do restaurante é conhecido
como a pasta de berinjela, e deve ser servido com pão sírio. Para Clariman Ayoub, a
cozinha é um espaço sagrado, onde ela possui ajudantes de cozinha, mas não
69
cozinheiras, pois ela e o esposo sempre mantiveram “quase tudo em segredo”
95
.
Somente as receitas mais simples são transmitidas para as suas ajudantes. Estas cortam
os legumes, temperos, mas tudo com o olhar crítico e atento da proprietária.
O restaurante não abre todos os dias, apenas nas quinta e sextas-feiras para
jantares, aos sábados, domingos e feriados para almoços e jantares, e sob reservas
antecipadas. Esse critério torna possível manter o controle e guardar receitas em
segredo, pois a demanda não se compara a um restaurante de uma capital mais agitada,
com um maior fluxo de degustadores.
O Al Manzul iniciou sua história oferecendo poucos pratos, mas o esforço
somado à dedicação, a seleção rigorosa dos legumes, carnes, produtos importados,
bebidas e, conforme as visitas foram aumentando, os prêmios continuaram, portanto,
motivados pelo reconhecimento deste longo trabalho foram aprimorando a comida e
aumentando seu menu , até chegarem a trinta e cinco pratos.
95
Jornal Diário de Cuiabá, 12 de dezembro de 2008, por Dana Campos.
70
Fotos 15 e 16- Salah e Clariman na segunda sede do Al Manzul. Acervo família Ayoub.
71
2.1
A CONFIRMAÇÃO DA QUALIDADE
Num primeiro momento, as informações contidas nas publicações que avaliam
a qualidade de um estabelecimento gastronômico remetem a algumas indagações, entre
estas: Qual a importância para um restaurante ganhar uma, duas ou três estrelas? Não
basta para o cheff, ver a „casa cheia‟? Isto não seria prova maior da qualidade de sua
cozinha? Outra questão é: Como estes guias adentraram no mercado gastronômico e se
firmaram enquanto referências de qualidade?
Afirma-se, assim, que “o que é verdadeiramente estranho sobre o mundo que
habitamos hoje não é o fato de um restaurante conquistar duas estrelas e outro nenhuma,
mas que alguém pense, antes de tudo em atribuir tais cotações.
96
Igualmente, pode-se
questionar como estas „cotações‟ começaram a fazer parte do „mundo gastronômico‟ e,
consequentemente, da vida dos cheffs, a ponto de levá-los ao suicídio, caso viessem a
perder uma estrela neste ranking, como foi o caso do cheff Bernad Loiseau.
97
Seu
restaurante "La CÉte d'Or", na cidade de Saulieu na Borgonha, vinha apresentando
dificuldades financeiras e, por conseguinte, reduziu a qualidade da comida. Quando
soube que perderia suas tão invejáveis‟ pontuações, o desprestígio invadiu seu ego, o
que para ele soava como derrota e o mesmo não suportou.
Para melhor compreensão destes guias gastronômicos, julga-se necessário uma
rápida passagem pela rota da “invenção dos restaurantes”. A partir deste exposto,
teremos condições de responder algumas destas questões postas.
Quando se fala ou se escreve sobre restaurantes, é comum conceber esses
estabelecimentos gastronômicos como os conhecemos na atualidade. Mas os restaurant,
como eram denominados, eram lugares especializados em servir comida para pessoas
debilitadas, fracas do organismo. Serviam-se caldos, ou melhor, a comida era um
96
SPANG, Rebecca. A invenção do Restaurante. Paris e a Moderna Cultura Gastronômica. Rio de
Janeiro São Paulo: Record, 2003. p. 18.
97
No dia 24 de fevereiro de 2003, aos 52 anos, suicidou-se, por que baixaram sua nota no Guia Gault
Millau.
72
revigorante, uma substância restaurativa.
98
Em resumo foi:
Do caldo de carne do século XVIII ao estabelecimento comercial do
século XIX, da minixícara de sopa ao excesso rabelaisiano, da
sensibilidade à política: essas são transições que definiram o termo
“restaurante.
99
Sem querer aqui fazer uma exaustiva análise da “invenção do restaurante”,
apenas desejamos situar o leitor no ponto em que se originaram os primeiros guias
gastronômicos. Rebecca Spang, em sua obra aqui mencionada, a Invenção do
restaurante, destaca que o autor do restaurante, Mathurin Roze de Chantoiseau, viu
neste empreendimento a circulação de bens e o estímulo do desejo, como possíveis
canais para o benefício social e o desenvolvimento nacional.
100
Assim, inicia-se a
necessidade de informar aos visitantes de Paris, onde se localizavam os melhores
estabelecimentos. Seria, assim, possível aqueles que viajavam sozinhos, sem a
companhia adorável de seus cozinheiros e/ou sem amigos na cidade receptora, encontrar
uma alimentação saudável e restaurativa.
A França passava por situações políticas delicadas e, em meio a estas
dificuldades, surgiu o primeiro restaurant, inaugurado em 1766, às portas da Revolução
Francesa. De propriedade de Mathurin Roze de Chantoiseau, que não estava preocupado
em apenas servir refeições de qualidade, mas também estava atento a relacionar e
descrever:
em ordem alfabética nomes, sobrenomes títulos e endereços atuais de
todos os mais famosos e importantes atacadistas, comerciantes,
banqueiros, cortesãos, artistas e artesãos do país; servindo como uma lista
de todos aqueles que receberam privilégio real e gratidão por suas
distintas realizações, curas extraordinárias, negócios inovadores e outras
invenções úteis ao bem comum, e daqueles que ficaram famosos apenas
por seus grandes talentos.
101
98
SPANG. Op.cit.p.11
99
Op. cit. p.13
100
Op.cit. p. 27.
101
SPANG apud: Roze de Chantoiseau. 2003, p. 34.
73
Portanto, não havia somente neste catálogo referências gastronômicas, mas
novidades de todos os serviços possíveis de se encontrar em Paris, desde a mais simples
das profissões até a mais solicitada. Roze de Chantoiseau era um homem atento ao
mundo dos negócios mas, segundo Spang, não foi o empresário gastronômico, mais
bem sucedido de Paris.
Analisando a situação do viajante, percebeu-se rapidamente que, quem viaja,
mesmo a trabalho ou a passeio, significa que ocupa um lugar de „destaque‟ na
sociedade. No primeiro caso, trabalhadores que viajam a serviço de uma empresa,
pertencente a uma classe minoritária da mesma, ocupando os cargos mais cobiçados
onde uma atribuição de valor, de poder. os segundos, se viajam sozinhos ou
mesmo acompanhados de sua família, significa que estão em situação privilegiada
financeiramente, pois podem oferecer a si e seus parentes dias confortáveis e
agradáveis. Para não haver erro algum, ou seja, para saber o melhor lugar para comer e
dormir, nada era mais indicado, na época, que o guia gastronômico, ou o Almanach de
Roze que além de citar os restaurantes, deixou as pistas de como encontrá-los.
Spang, na sua belíssima pesquisa afirma que Roze de Chantoiseau não atribuiu
seu nome ao Almanach. Apenas trabalhou no mesmo para que os visitantes da “cidade
luz” tivessem acesso ao que havia de melhor, contribuindo muito com seus sucessores.
Depois deste, vieram muitos outros, como o Michelin e o Gaultmillau, considerados os
mais famosos na Europa.
Michelin é um dos mais respeitados guias do mundo gastronômico até a
atualidade. Criado em 1900, por dois irmãos
102
, fabricantes de pneus que queriam
induzir as pessoas a viajarem. Portanto, nestes exemplares continham mapas das
estradas e, subsequentemente, os melhores lugares para comer e se hospedar. não
houve publicações durante as duas Grandes Guerras Mundiais, porque continham mapas
que detalhavam precisamente as cidades envolvidas.
O Guia Michelin atribui o sistema de estrelas (uma, duas, três) para aqueles que
superam as expectativas, recomendando-se, preferencialmente, que seus degustadores
102
André e Eduardo Michelin.
74
especializados comportem-se como visitantes anônimos, para frequentar os
estabelecimentos e dar a “nota”. A revista não se concentra apenas na França ou na
Europa ela atinge cerca de vinte e um países.
Guia Gaultmillau, concorrente do Michelin, também criado no século XX, por
Henri Gault e Cristian Millau, tem um sistema de atribuições diferenciado do Michelin.
Este possui um sistema de notas de 1 a 20 e atribuem àqueles que atingem nota máxima
quatro chapeuzinhos de cozinheiro. No mesmo ritmo, os degustadores profissionais não
se apresentam nas visitas avaliativas e, como o Michelin, não aceitam pagamentos ou
cortesias.
É pertinente, aqui, nos questionar como nasceu a crítica gastronômica?
Comentamos sobre os catálogos de Roze, que redundaram nestes famosos guias
gastronômicos, mas quem começou com a crítica gastronômica? O seu criador era um
verdadeiro glutão, frequentador assíduo dos restaurantes franceses, e este início,
portanto, “atribui-se a Alexandre Balthasar Laurent Grimod de la Reynière”.
103
Com
seu famoso Almanach des gourmands, Grimond descreveu pratos requintados,
invenções elogiadas e ofereceu conselhos médicos e domésticos avulsos.
104
Grimond,
inventou a crítica do restaurante à medida que aplicava a regra sobre os doceiros,
açougueiros e restaurateurs, fazendo e derrubando reputações”
105
. Em um país onde a
sua culinária é famosa, os cheffs elevados e agraciados pelo assédio dos seus
admiradores, não foi difícil ganhar inimigos e estreitar relações de amizade. Pode-se,
portanto, sugerir que a convivência entre a crítica e o público alvo, não era das mais
saborosas.
A França é um país que tem investido na cultura dos restaurantes, que “se
tornou uma verdadeira instituição cultural e social”, fazendo parte das novidades da era
moderna. “Concentrando-se exclusivamente em comidas e refeições, a literatura
gastronômica deu ao restaurante uma nova projeção e o transformou (...) em um espaço
de celebração”
106
. Não demorou muito para indivíduos de outras nacionalidades
imitarem este mesmo sistema. É o caso do Guia Brasil Quatro Rodas, que segue o
103
SPANG. Op.cit. p. 185.
104
Op.cit.186.
105
Op.cit.187.
106
Op.cit.185.
75
mesmo modelo e regras” do Michelin
107
. Este manual esta no mercado brasileiro
quase cinco cadas e vem ampliando suas edições a cada ano. O mesmo apresenta
restaurantes, pousadas, mapas das estradas, principais rotas turísticas, propagandas de
toda a espécie, ou melhor, que digam respeito a viagens, como passagens de avião,
pneus, carros, óleo motor. Um forte veículo de comunicação, produzido e vendido ao
público. Segundo informações colhidas com Viviane Aguiar
108
, as avaliações são feitas
com uma ficha avaliativa, que é utilizada desde 1986, não divulgada pelo Guia Brasil
Quatro Rodas com o intuito de manter a rigidez e a seriedade. Nesta ficha são atribuídos
notas em cinco gradações: fraco, regular, bom, muito bom e excelente, para couvert,
entrada, prato principal e sobremesa. Segundo a repórter, a avaliação do prato principal
é a mais importante, o qual recebe notas em sete quesitos: apresentação, temperatura,
qualidade, cozimento, harmonia, tempero e sensação final. Depois de pagar a conta
apresentam-se ao proprietário e pedem para visitar a cozinha, pois outro fator
importante para a avaliação do Guia Brasil Quatro Rodas são as condições de
armazenamento dos alimentos e a limpeza da cozinha e do ambiente em si. Mas tirando
a questão higiene, a avaliação está estritamente baseada na comida servida para o
restaurante, e não no ambiente ou no serviço da casa. Após a avaliação do repórter
gastronômico, realiza-se uma reunião com o editor de gastronomia. Somente depois de
serem cruzadas todas as informações (nota, pesquisa na cozinha, histórico do
restaurante) chegam a uma conclusão: o restaurante pode atingir apenas a nota mínima
para entrar; ou pode ter avaliação acima da média e, assim, entrar para o roll dos
restaurantes estrelados. A gradação é a seguinte: uma estrela para casas com boa
cozinha; duas para aquelas que estão um nível acima e três para cozinhas excelentes,
próximas da perfeição. Por isto, mediante esta seriedade demonstrada pela pesquisa
realizada pela equipe da revista, estar entre os selecionados pela mesma, remete ao
leitor e aos cheffs, a confirmação da qualidade.
Juntamente com a ascensão dos restaurantes, cheffs, e a procura cada vez mais
intensa por estes serviços, os guias gastronômicos agregam um valor importante aos
empreendimentos, tornando-os tão visitados como cobiçados.
107
Sistema de estrelas, visitas etc.
108
Repórter do Guia Brasil Quatro Rodas.
76
Podemos, no entanto, perceber imediatamente que a invenção consciente
teve êxito principalmente segundo a proporção do sucesso alcançado pela
sua transmissão numa freqüência que o público pudesse sintonizar de
imediato. (HOBSBAWM, p. 271-272)
109
Passou a ser motivo de ostentação ter um estabelecimento, ou mesmo seu
nome, como referência nos respectivos guias gastronômicos, criando-se, assim, uma
tradição. Todos os anos, degustadores especializados saem à procura de novos nomes da
gastronomia e os citados passam por novas avaliações, de modo que os estrelados
fazem o máximo para manterem-se neste roll. Segundo Viviane Aguiar, todos os anos
os repórteres avaliadores comem nas casas estreladas e fazem novamente o processo de
avaliação para saber se a refeição se mantém premiada, se piorou ou melhorou e, neste
caso, aumentam ou diminuem a quantidade de estrelas. Em caso de dúvidas, realizam
outros testes com repórter diferente e importante, na mesma época do primeiro teste.
Desse modo, todas estas decisões são pautadas no histórico de avaliações das
respectivas casas.
O objetivo principal consiste na divulgação de empreendimentos dessa
natureza, mas também influenciar paladares e/ou mudar rotas de viagens, a fim de
estimular os leitores a pensar que têm, cada vez mais, direitos e acesso às novidades. A
cada edição os editores buscam aperfeiçoarem-se e trazer para seu Guia o que supera as
expectativas e aqueles que continuam superando.
Assim como os chefs querem “agarrar” estas conotações, as pessoas também
atribuem valor ao que os guias escrevem, buscando visitar, conhecer, pois acreditam
que os estrelados devam realmente ser os melhores, em relação aos que não possuem
nenhuma. Ou seja, o discurso foi aceito, houve um efeito de sentido positivo para os
editores e suas equipes.
Sobretudo a criação do artista cozinheiro deve ser respeitada, assim como o
trabalho dos críticos gastronômicos, pois o que seria de um restaurante sem as pitadas
de criatividade do cheff? E, como os brasileiros poderiam obter a informação de que o
109
HOBSBAWM, E. ; RANGER, T. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2008. p. 271-272.
77
melhor restaurante árabe do Brasil se encontra em Cuiabá? Contudo, percebe-se a
necessidade e a importância do trabalho de ambos.
O Al Manzul foi condecorado, ininterruptamente desde 1994, com uma estrela,
até 1999. Depois, no ano de 2000, recebe duas estrelas, numa escala de três, sendo o
único restaurante árabe do Brasil com esta atribuição.
Entre os prêmios do Guia Brasil Quatro Rodas, o respectivo restaurante ganhou
fama e chamou a atenção de críticos gastronômicos internacionais, de modo que, em
2005, foi eleito pelo Editorial Oficie e Trade Laders, em Madri na Espanha, com o
Troféu de Ouro de Turismo, Hotelaria e Gastronomia, em comemoração ao trigésimo
aniversário do evento. Outro prêmio recebido foi o Troféu Golden Five Continentes
Award for Qualite Excellence, em Paris, na França, em julho de 2005. No dia 28 de
novembro de 2005, numa cerimônia no Crownw Plaza Brussels City Palace, em
Bruxelas, na Bélgica, o restaurante recebeu o Troféu Golden Europe Award For Quality
Comercial Prestige. Outras premiações os proprietários deixaram de receber devido,
segundo informações, por falta de recursos para as viagens. Entre estas estão o
Trigésimo Segundo Troféu Internacional de Turismo, Hotelaria e Gastronomia em 31
de janeiro de 2007, Madri-Espanha; The Golden Europe Award For Quality na
Comercial Prestige, em 29 de janeiro de 2007, Berlim-Alemanha; Trigésimo
Internacional Arch of Europe Award, em 19 de fevereiro de 2007, Frankfurt-Alemanha;
Troféu décimo Platinium Techeonology Award For Quality e Best Trade Name, em 07
de julho de 2008, Roma-Itália; Troféu Internacional Global Dream The Magestic 5
Continents Award For Quality And Excellence, em 20 de dezembro de 2008, Genebra-
Suíça.
Mas o que torna o Al Manzul, especial? O que o diferencia dos demais
restaurantes árabes do país? O Al Manzul não encanta seus clientes pela estrutura física,
não luxo, mas uma decoração que remete diretamente aos países do Oriente
Médio.
78
O restaurante é cercado pelo Rio Coxipó, muitas árvores frutíferas, que
convidam o visitante a esticar as pernas em uma boa caminhada. O interior
do restaurante é formado por duas salas (...), e móveis rústicos.
110
·
Até bem pouco tempo a estrada que dava acesso ao restaurante era de terra,
tendo sido asfaltada apenas em 2008, a qual recebeu o nome de Rua Salah Ayoub, como
uma homenagem da prefeitura municipal ao libanês. E, mesmo assim, sempre foi
frequentado por personalidades ilustres, políticos e degustadores anônimos, mas não
menos importantes. Uma legião de comensais foi levada à Casa de Hóspedes de Salah,
mesmo sem uma estrada adequada, em que os mesmos buscavam a explicação, a
compreensão de tantas condecorações do Guia Brasil Quatro Rodas, e mesmo ao
sucesso garantido pela satisfação daqueles que recomendavam aos demais.
O Al Manzul contém suas particularidades na cozinha, pois através da arte da
gastronomia, transforma os alimentos em comidas. Os pratos são elaborados a partir de
receitas tradicionais que Salah Ayoub trouxe na bagagem das lembranças, quando saiu
do Líbano.
O que o Al Manzul propiciou a cidade de Cuiabá foi demonstrar a criação,
elaboração e degustação de uma comida totalmente diferente do paladar local.
Considerando “a comida um veículo para manifestar significados, emoções, visões de
mundo, identidades, bem como um modo de transformar”
111
, idéias, ações, até mesmo
aprimorar receitas tradicionais. Este patrimônio cultural criado nos espaços desta casa
de hóspedes, “teve o propósito de articular e expressar a identidade e a memória que
Salah preservava de sua cultura e de sua família libanesa, que encontrou ressonância
112
na sociedade cuiabana entre outros apreciadores. Portanto, este Patrimônio Gustativo
está diretamente ligado à tradição, à memória e à história, neste caso, de uma cultura
milenar.
No menu estão colocados trinta e cinco opções de pratos característicos,
110
Jornal Diário de Cuiabá, domingo, 19 de dezembro de 1998. Por Miriam Botelho.
111
AMON, D.; MENASCHE, R. Comida como narrativa social: sociedade e cultura. v. 11, jan/jun.
2008. p. 17.
112
GONÇALVES, J. R. S. Ressonância, materialidade e subjetividade: as culturas como
patrimônios. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p. 19. jan/jun. 2005.
79
encontrando-se entre estes saladas, pastas, pratos quentes e sobremesas. Estas opções
não estiveram sempre no cardápio. Os proprietários iniciaram o restaurante com poucas
opções, depois foram aprimorando e, com os prêmios, buscaram diversificar para
garantirem-se nestas premiações. Dos principais pratos da milenar cozinha árabe,
apresentados anteriormente, o restaurante Al Manzul tem como excelência os seguintes
pratos, que dentre os mais famosos se destacam: o carneiro assado com amêndoas, a
pasta de berinjela, quiabo ao suco de romã e o arroz marroquino. Segundo dona
Clariman Ayoub, ela e o marido controlavam tudo:
são 18, 19 anos comigo dentro da cozinha, tudo passa pela minha mão. Eu
tenho até pessoas que mexem a panela, isto aquilo, mas eu estou dentro o
tempo inteiro e tudo passa pela minha mão
113
.
Desde a compra dos alimentos até os pratos prontos para irem à mesa, Salah
Ayoub sempre cuidou da compra dos alimentos e sua esposa da cozinha. A qualidade,
portanto, era diretamente pelos proprietários.
Os pratos são elaborados em sua maioria, por produtos importados, ou
comprados em São Paulo, por uma distribuidora de produtos árabes. Faz pouco tempo
que cidade de Cuiabá começou a comercializar estes produtos. Entre estes estão o
tahine, que é utilizado na cozinha do restaurante:
(...) nós utilizamos o tahine importado, que existe o tahine nacional,
mas é um tahine que tem tons de amargo, e o tahine importado do Líbano
tem um leve tom de amargo, já o da Síria, totalmente sem tom de amargo.
Que o melhor gergelim do mundo é o gergelim da Síria, então o tahine,
que é feito, é uma pasta de gergelim, o da Síria é o melhor que existe.
Então nós utilizamos o gergelim da Síria e pra você ter uma idéia é 900
gramas aqui em Cuiabá do gergelim pote, de gergelim do Líbano não é
nem da Síria é 41 reais.
114
O charuto de folha de uva, cujo ingrediente vem do Líbano, é um dos pratos
113
AYOUB, C. Entrevista concedida a Maria Cristina R. Fernandes. Cuiabá, 21 de dezembro de 2009.
114
AYOUB, C. Entrevista concedida a Maria Cristina Rodrigues Fernandes. Cuiabá, 21 de dezembro de
2009.
80
aprimorados por Clariman Ayoub. A folha da uva nacional, segunda ela, tem sabor
inferior comparado a importada, pois entre outros, é de difícil degustação. Enquanto que
a que vem do Líbano é própria para fazer este prato, pois é retirada antes que a fruta
amadureça, o que mantém a suavidade da folha. Outra particularidade deste prato é a
carne, com a qual é forrada a panela. Uma carne totalmente sem nervos e gordura, com
fatias de tomate e, depois é colocado o charuto, sendo tudo cozido com caldo de carne e
limão. Este é um dos pratos incrementados por Clariman Ayoub, segundo o qual ela diz
não confiar nas ajudantes, pois:
(...) eu que preparo o caldo de carne e o limão, por que é assim, tem que ser
uma quantidade grande de limão, mas tem que ser uma coisa bem dosada, por
que senão um dia fraco de limão, um dia exageradamente azedo, então
eu não confio. Então eu deixo, coloco o caldo, o limão tudo e entrego só
para, porém cozinhar. Então é assim, é uma coisa, tudo eu to, tudo eu estou
115
O sucesso do restaurante está diretamente atribuído a qualidade dos produtos
com os quais a comida é preparada. Segundo Clariman Ayoub, em sua cozinha, tudo é
de melhor qualidade.
Neste ambiente carregado de signos árabes, com uma comida das „arábias‟,
também há manifestações culturais que permitem ao comensal uma viagem imaginária a
esta cultura - a dança do ventre, que envolve beleza, sensualidade e mistérios. Duas
bailarinas, que já trabalham a tempo neste estabelecimento, são responsáveis pelas
apresentações que acontecem nos almoços de domingo, ou em festas fechadas no
restaurante, a pedido do cliente.
115
Ibidem.
81
Foto 17- Bailarina em apresentação no Al Manzul. Acervo família Ayoub.
82
“Sendo a cozinha um microcosmo da sociedade e uma fonte
inesgotável de história, é importante que algumas das suas
produções sejam consideradas como patrimônio gustativo da
sociedade. Por tudo que venham a representar do ponto de
vista do original e de criativo, que permitem destacar
identidades locais e regionais podem ser considerados como
bens culturais, como patrimônio imaterial.”
116
(SANTOS, p.
11)
3
AL MANZUL: PATRIMÔNIO E MEMÓRIA DE CUIABÁ
Após realizar-se a análise concernente à construção e formação do restaurante
Al Manzul, em Cuiabá, a partir da história de vida do senhor Salah Ayoub, bem como
das tradições familiares inseridas na cultura árabe, cabe retomar alguns pontos que
julgam-se necessários neste momento. O senhor Ayoub, tal como objetivavam
imigrantes das mais diversas etnias, veio para o Brasil na ânsia de fazer fortuna.
Chegando ao Brasil, trazia consigo muitas lembranças, as quais integravam a sua
cultura, história e trajetória familiar. A saudade lhe fazia aflorar as mais remotas
lembranças de natureza individual ou coletiva, uma vez que era advindo de uma família
numerosa. Nessa perspectiva, as experiências, problemas, alegrias, tristezas,
inseguranças, entre outros sentimentos, eram compartilhados com toda a família.
Portanto, sendo membro de uma família constituída por um expressivo número de
componentes, indireta ou diretamente, participava destas diversas sensações. É possível
pressupor que, quando Ayoub veio para o Brasil, mesmo carregando mágoas, estas logo
foram esquecidas e somente ficaram a saudades e as mais lindas lembranças de sua terra
natal: o Líbano. Nesse contexto, Bosi ilustra o trabalho da memória:
116
SANTOS. Op.cit. p.11.
83
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,
repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A
memória não é sonho, é trabalho.
117
A partir desta ideia, podemos supor que Ayoub fez uma seleção em suas
lembranças, recordando somente às passagens mais agradáveis, como das brincadeiras
com os irmãos e primos, a escola, a primeira professora, os pais, as festas de fim de ano,
a universidade em Beirute. Todos estes pensamentos o consumiam numa mistura de
saudades ligadas à memória individual e social. Verifica-se, assim, que o ambiente em
que fora criado não apresentava uma demarcação rígida entre o público e o privado, de
modo que ambos os espaços se confundiam. Configurava-se como um costume do povo
árabe viver de forma próxima aos familiares. E, quando não residiam na mesma casa,
priorizavam a presença constante de todos os filhos, primos, avós, sobrinhos, além de
outros integrantes da família e amigos.
Ao chegar ao Brasil Ayoub instalou-se na casa de Elias Ayoub, irmão de seu
pai, mas em breve teve que assumir sua vida sozinho. Com a mudança do senhor Elias
Ayoub para São Paulo, Ayoub permaneceu como lojista. Entretanto, por razões de
ordem financeira, acabou por abrir um restaurante com especialidade em comida árabe,
priorizando a qualidade do produto que oferecia. Mesmo sendo o Al Manzul um
estabelecimento comercial que precisa cobrar para sobreviver, Ayoub tratava seus
clientes como hóspedes ou convidados, pois de acordo com os aspectos da cultura
árabe, os membros dessa etnia têm satisfação em exercer a atividade de bons anfitriões.
O pai de Ayoub, sempre ensinou aos filhos a arte anfitriã, uma vez que sua casa era
conhecida como uma casa de hóspedes. Por essa razão, o tratamento que Ayoub
dedicava aos clientes remontava as suas experiências vividas na infância e na
adolescência, na casa paterna.
Ao analisar a importância da comida na esfera cultural, Montanari afirma que
esta “(...) se define como uma realidade deliciosamente cultural, não apenas em relação
à própria substância nutricional.”
118
Casa cheia, comida farta e muita conversa
117
BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia de Letras. 1994. p.55.
118
MONTANARI, M. Comida como Cultura. São Paulo: SENAC. 2008.p.157.
84
instauravam-se como elementos importantes nas relações da família Ayoub, de modo
que esse aspecto passou a ser estendido para o âmbito de suas relações comerciais.
Considerando que “nossos sentimentos e nossos pensamentos mais pessoais têm sua
origem em meios e circunstancias sociais definidos [...]
119
, é possível observar que,
mesmo com as lembranças isoladas numa memória longínqua, devido ao afastamento
por muitos anos da casa de seus pais, Ayoub vivia num país distante com uma cultura
completamente diferente da sua. Embora recebesse cartas, telefonemas, ele buscava
auxílio na coletividade, uma vez que:
[...] muitas pessoas (que) juntando suas lembranças conseguem descrever
com muita exatidão fatos ou objetos que vimos ao mesmo tempo em que elas,
e conseguem até reconstituir toda a sequência de nossos atos e nossas
palavras em circunstancias definidas [...]
120
Ayoub apoiava-se nas memórias de seus patrícios, homens e mulheres que,
obviamente, também se apropriavam de sua memória subjetiva, como um doce refúgio
da saudade. Nesse sentido, assegurava-se a preservação da memória em reuniões na sua
casa, carregadas de lembranças, memórias subjetivas e coletivas, atreladas às tradições
culturais e comidas árabes, uma vez que estas reuniões terminavam com belos e
saborosos jantares, típicos da terra natal que lhes inspirava tanta saudade.
Dentro desta conjuntura pode-se dizer que o Al Manzul, também serviu para
Ayoub como um guardião de sua memória, pois as dificuldades do tempo começam a
pesar e tornou-se abstrato falar e recordar a respeito de algo que não era visto anos.
Assim ele „corria o risco‟ de não absorver integralmente a cultura do país que lhe
acolheu, preservando a cultura do povo árabe, para que seus filhos se tornassem
responsáveis pela preservação das “caixas de recordações” da memória de seu pai
imigrante e, consequentemente, do conhecimento ou aprendizado de seus antepassados
libaneses. Para que a memória individual e coletiva fosse preservada e Ayoub e seus
filhos mantivessem um elo identitário, fazia-se necessário que os filhos
compartilhassem das mesmas lembranças dos antepassados do pai. A representação
119
HALBWACHS, M. op. cit. p. 41
120
Ibdem.p.31.
85
material dessas apresentava-se por meio de cartas e fotos ligadas a histórias da família,
o que construía uma base comum de lembranças. Ayoub estava certo ao querer
transmitir sua herança cultural aos filhos, pois caso contrário a sua memória individual
não se tornaria uma memória social, da família e dos filhos que, supostamente, seriam
incumbidos de transmitir estas recordações aos seus filhos, neste caso netos de Ayoub.
Caso contrário, haveria um rompimento entre a memória do grupo social, não sendo
possível imprimir a culpa a ninguém pela falta de um ser social deixar de se identificar
com a memória do grupo. Portanto, “a transmissão de saberes às novas gerações e a
perspectiva de valorizá-los tendem a contribuir para a elevação de nossa auto-estima e
[...] retomada de tradições milenares.”
121
A partir do restaurante, Ayoub expôs ao público a sua memória, tornando-a um
patrimônio cultural. Neste contexto, o Al Manzul foi uma maneira de Ayoub manter sua
cultura e mostrar aos que não conheciam as suas qualidades. Contudo, o jovem libanês
mascate que conseguiu em sociedade no Brasil construir um comércio na cidade de
Cuiabá e, depois de muitos anos decidiu abrir um restaurante, não imaginava que sua
memória subjetiva, atrelada ao desejo de preservação da mesma e somada à vontade de
mostrar aos frequentadores as origens de sua cultura, conduziria o seu estabelecimento
ao rumo do sucesso. Assim, o senhor Ayoub acariciava sua alma com as lembranças
eivadas do Líbano, contando suas estórias e apreciava com satisfação a admiração e o
encantamento dos comensais pela cultura e apresentações da dança do ventre. Em relato
sobre Salah Ayoub, Márcia Barbosa, professora universitária e amiga de várias anos da
família Ayoub, considerada inclusive por Salah como membro da família, apresenta a
seguinte ilustração:
A música, a dança e não era dançar! Salah fazia com que a gente
admirasse a dança, mas que a gente se comportasse como se estivéssemos
o que significa que: (Salah Ayoub) hein! Ela quer dinheiro! Cadê o dinheiro?
[...] a gente pensava a gente vai dar dinheiro? E as pessoas jogavam. Nem
que fosse naquele momento, e dizia: era só para vocês verem como é lá! E ele
121
PELEGRINI, S.C.A. O que é patrimônio cultural imaterial. Brasiliense, 2008.p.8
86
pegava solenemente o dinheiro e devolvia. [...] Não era o comer pura e
simplesmente.
122
Nesse contexto, Ayoub sentia brotar e germinar em sua mente um verdadeiro
testamento de memórias, que foram cuidadosamente preservadas por ele e repassadas,
primeiramente, aos seus filhos e, depois, aos comensais, como uma herança. Por meio
de uma eventual participação nas lembranças deste proprietário, proporcionavam ao
comensal uma fidedigna viagem pelas As Aventuras do Gosto, oferecidas pelo
restaurante Al Manzul, que o elevaram a categoria de melhor restaurante árabe do país,
com reconhecimento internacional.
Convém destacar que no Al Manzul, como mostram as fotos apresentadas no
capítulo anterior, as paredes internas são todas pintadas com figuras que remetem a
cultura do mundo árabe, carregadas de significados. Do mesmo modo, os objetos que
enfeitam o interior do restaurante são manifestações e representações da cultura árabe.
Os “Troféus” expostos na parede de entrada representam o reconhecimento da
qualidade e diferenciação da comida oferecida, pois esta é avaliada pelos críticos
gastronômicos. No Al Manzul uma „imersão‟ na cultura árabe, mediada pelo
ambiente e pela comida, onde o degustador é levado a uma viagem pela milenar comida
árabe. Neste ínterim, o imigrante libanês criou um espaço carregado de signos e
símbolos que identificam a cultura árabe, criando um ambiente de acolhimento e
sociabilidade, que garantiu junto à qualidade da comida oferecida o sucesso do
restaurante. Abastecendo suas lembranças, Ayoub transmitiu aos „hóspedes‟ o que havia
de melhor para oferecer: um ambiente familiar, que agradou críticos gastronômicos do
mundo todo.
Ayoub propiciou outro olhar sobre a cultura árabe, pois o preconceito com a
mesma, no ocidente, sempre acarretou a esse grupo étnico o título desprezível de
terroristas, agressivos fanáticos e de forte tendência para a discórdia. Estes imigrantes
abominavam estes adjetivos‟ e lutavam para mostrar às pessoas um oriente diferente
deste distorcido pela mídia mundial. Tentando demonstrar que num país não há somente
características positivas, como não há somente negativas.
122
Entrevista concedida a Maria Cristina R. Fernandes, por Márcia Barbosa, no dia 21 de maio de 2010.
87
A cultura árabe começou a ser conhecida no Brasil nas primeiras levas de
imigrantes, no final do século XIX, tal como se mencionou nos capítulos anteriores.
Todavia, esta não era valorizada. A mesma começou a adquirir uma carga valorativa a
partir do momento em que alguns destes imigrantes árabes decidiram permanecer no
Brasil, constituir família e comércio, pois existia por parte destes uma preocupação em
transmitir aos seus descendentes a tradição dos seus países de origem: religião, cultura,
dança, idioma e alimentação. Neste ínterim, a alimentação passou a ser um referencial,
símbolo da cultura árabe que se apresenta nos momentos das refeições. Assim mesmo
este povo, conhecendo e provando a culinária do país que imigrou, neste caso o Brasil,
conservou a tradição alimentar aprendida em seus solos de origem, uma vez que, “em
todas as sociedades, o sistema alimentar se organiza como um código linguístico
portador de valores.”
123
Convém, aqui, destacar as palavras de Bosi concernentes à
memória:
Pela memória, o passado não vem à tona das águas presentes, misturando-
se com as percepções imediatas, como também empurra, “descola” estas
últimas, ocupando o espaço todo da consciência. “A memória aparece como
força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta
e invasora.
124
A memória faz parte da identidade que acaba por fortalecer e favorecer os
laços identitários dos grupos sociais através da alimentação. Outrossim, antes de
prosseguir as discussões, cabe-nos fazer uma pequena digressão sobre os conceitos de
patrimônio material e imaterial.
A palavra patrimônio, cujas raízes etimológicas são muito remotas, advém da
época da antiguidade clássica, período no qual se entendia por patrimônio tudo o que
pertencesse ao pai, ao chefe da família. Em certa proporção, era um patrimônio restrito
a aristocracia, pois se configurava como privilégio apenas dos cidadãos. Estes eram em
menor escala e, portanto, ter um patrimônio individual era privilégio de poucos. Na
medida em que as sociedades vão se desenvolvendo uma complexificação do termo
123
MONTANARI, Op.cit.p.158.
124
BOSI, E. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê, 2003. p. 36.
88
patrimônio. Na cristandade, por exemplo, o patrimônio estava ligado às instituições
religiosas, mas não deixava de ser um patrimônio reservado para a minoria. Com o
renascimento, surgem os colecionadores de obras de arte, atividade que também era
restrita. A partir da Revolução Francesa nasceu a ideia de patrimônio coletivo. A França
concedeu espaço para a preservação do patrimônio cultural a todos, independente de
estamentos, compreendendo que todos os indivíduos pertenciam a mesma nação. A
partir desta concepção, surgiu a preocupação em educar as pessoas para uma visão de
origens comuns de suas respectivas nações. Até o momento patrimônio era algo restrito
e aristocrático. Este conceito, todavia, em nada ajudou na preservação da memória e
nem mesmo na „criação‟ de uma postura nacionalista. Com este primeiro passo dado
pelos franceses, os demais países europeus começaram a se preocupar com a
preservação do seu patrimônio, uma vez que ele integrou parte da memória de uma
civilização que é herdada e repassada de geração em geração, a fim de garantir uma
unidade nacional. A partir da premissa de que o patrimônio cultural de uma nação é
capaz de distinguir as culturas de cada nação, desencadearam-se, então, as atitudes de
garantir e preservar a história deste patrimônio, que pode ser uma construção, um
objeto, uma cerâmica de povos primitivos, entre outros.
A idéia de patrimônio diverge de pessoa para pessoa, pois para determinados
indivíduos patrimônio são seus livros, a primeira roupa que vestiu, as fotos de família, o
sapatinho que seu filho calçou pela primeira vez. Outros consideram patrimônio o
testamento cheio de ações que o parente deixou, ou as terras e propriedades, que não
deixam de ter ligações identitárias com a família, mas que além destas não significam
apenas um patrimônio simbólico, mas também de valor atribuídos dentro da realidade
capitalista.
O mundo viu duas guerras mundiais que abalaram os alicerces culturais. Diante
da temeridade de perda ou morte do patrimônio dos países europeus e do mundo, em
1945 nasceu a UNESCO.
125
Esta organização tem por interesse preservar a história
cultural dos diferentes povos, respeitando as diversidades.
125
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, fundada em 16/11/1945. Com o
objetivo de contribuir para a paz e segurança no mundo mediante a educação, ciência cultura e
comunicações.
89
No Brasil, a preocupação com o Patrimônio Cultural, originou-se no governo
de Getúlio Vargas, em 1937, com o Decreto Lei n º25, de 30 de novembro. Mas nossas
referências a patrimônios remetem ao nosso dominador, isto é, os portugueses. Essa
concepção começou a mudar com projetos como os de Lucio Costa e Mario de
Andrade, a partir das discussões na semana de Arte Moderna. Esse evento configurou-se
como um momento de reflexão, no qual os intelectuais na época buscavam compor a
sociedade brasileira pela sua própria diversidade cultural, ou seja, não apenas baseada
na cultura lusitana, mas agora na brasileira, que nasceu exatamente devido a esta
diversidade étnica. Segundo Salvadori:
Um patrimônio [...], é capaz de estabelecer relações de continuidade,
ruptura, permanência ou mudança- entre as várias dimensões do tempo: o
tempo passado condensado na herança, o tempo presente, momento do seu
recebimento e o tempo futuro, processo no qual vai sofrendo nítidas
mutações de sentido. Assim, um patrimônio se constitui pela valoração,
material e/ou simbólica, dada a um bem ou a um conjunto de bens que se
deixa como herança.
126
Através do conceito da autora percebemos que patrimônio não se refere apenas
às construções, mas também a patrimônios de valores simbólicos, responsáveis por
manter a memória social coletiva. Todavia, se a intenção é manter e construir uma
cultura brasileira, respeitando a diversidade étnica da população, ela não esta sendo
preservada no todo, que as manifestações culturais, como cantos, festas padroeiras,
capoeira, artes indígenas, não fazendo parte de uma manifestação de cal e pedra, não
eram consideradas patrimônios culturais. Portanto, a partir da Constituição Federal de
1988, no Artigo 216 e também conforme DECRETO n. 3551 de 4 de agosto de 2000
(Governo Federal/IPHAN):
Artigo 1º - Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial
que constituem patrimônio cultural brasileiro.
§ 1º - Esse registro se fará em um dos seguintes livros:
126
SALVADORI, M. A. B. História, ensino e patrimônio. Araraquara. SP: Junqueira & Marin, 2008. p.
11.
90
I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e
modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades;
II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas
que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do
entretenimento e de outras práticas da vida social;
III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas
manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;
IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras,
santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem
práticas culturais coletivas.
Assim, “o conceito de patrimônio, partindo de uma definição simples, pode ser
entendido como um conjunto de bens, materiais ou não, direitos, ões, posse e tudo o
mais que pertença a uma pessoa e seja suscetível de apreciação econômica” (p.164),
127
ou não, quando se trata de patrimônio imaterial. Este pode ser definido:
como um conjunto de práticas, representações expressões, conhecimentos e
técnicas que as comunidades reconhecem como parte integrante da sua
cultura, tendo como uma de suas principais características o fato de ser
transmitido de geração em geração, desenvolvendo sentimento de identidade
e continuidade em grupos sociais” (COSTA & CASTRO, 2008, p.127)
128
.
É mister destacar que integra essa visão a atitude de conservar a história do
grupo social, bem como a identidade deste com o patrimônio em questão. O cuidado em
preservar deve estar implicado em algum sentimento de motivação, ligado a valores
especiais que fazem referência ao bem escolhido para perpassar como um elo do
passado/presente/futuro, mantendo a representatividade do patrimônio à coletividade.
Segundo Salvadori,
129
isto foi possível graças às incansáveis pesquisas
realizadas por historiadores, antropólogos entre outros profissionais, que enfatizaram a
127
CANANI, op.cit. p. 164.
128
COSTA, Marli Lopes da & CASTRO, Ricardo Vieiralves de. Patrimônio Imaterial Nacional:
preservando Memórias ou construindo histórias? Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Estudos de
Psicologia, 2008, 13(2), 125-131.
129
SALVADORI. Op. cit. p. 21.
91
necessidade de ampliação destes conceitos para a preservação da cultura como um todo
e não apenas em partes. Assim, após esta ampliação do termo foi possível abranger a
diversidade brasileira, existente em um país com expressões culturais heterogêneas,
devido ao processo colonizador e imigratório, de forma que este último fator é
fundamentado em diversas nacionalidades. Se a sociedade preservar somente o
primeiro, estará abortando parte da história cultural do país, pois houve uma fusão
cultural, consequentemente uma mudança considerável nos modos de vida, na
religiosidade, nas festas tradicionais de cada grupo, que trazem consigo suas crenças,
seus costumes e continuam a preservar e cultuá-los, bem na própria dinâmica da
alimentação.
O patrimônio imaterial não é passível de tombamento, mas nada impede que o
mesmo seja preservado. O IPAHN
130
registra estes bens culturais imateriais nos livros
de tombo, os quais se subdividem em quatro grupos: dos Saberes; das Celebrações; das
Formas de Expressão e livro dos Lugares. Os livro dos Saberes são inscritos a partir da
tradição de um grupo, na construção de um objeto, de uma comida, os quais são
transmitidos através das gerações às pessoas integrantes da comunidade. Nos livros das
Celebrações podem ser inscritas as festas típicas de uma comunidade, celebrações
religiosas em homenagem ao santo padroeiro da igreja (ambos patrimônios materiais),
bem como a festa em si, de forma que os sentimentos envolvidos nesta expressão
cultural são considerados bens imateriais. No livro das Formas de Expressão estão
contidos os patrimônios referentes à musicalidade, a arte indígena, os valores que dizem
respeitos às pinturas dos corpos, ao samba, tudo que envolva a representação artística
através da musicalidade e do teatro. O livro dos Lugares se refere às praças, feiras,
mercados, lugares que servem para a expressão e apreciação da cultura pelo coletivo. E,
sendo a comida uma expressão primeira na vida das comunidades, estando presente em
todas as manifestações culturais citadas, pode-se dizer que a comida também faz parte
do patrimônio cultural da sociedade.
Novamente, atingiu-se o ponto chave da memória cultural individual,
transformada em um patrimônio cultural, quando expressada ao coletivo. Dentre estas
expressões da cultura árabe, uma delas era para o senhor Ayoub mais especial e o
130
Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
92
mesmo tinha a intenção oferecer a oportunidade aos comensais de realizarem uma
viagem simbólica pela cultura árabe, por intermédio da comida, que representa parte do
patrimônio de sua civilização. E, neste encontro que ele se portava como um mediador,
contava os costumes deste povo que encontrou aqui no Brasil a hospitalidade e a
oportunidade de se estabelecerem em seus negócios que nem sempre encontraram em
sua terra natal.
Ao servir produtos produzidos no solo do seu país e de países vizinhos,
carregados de memória e identidades modelados pela tradição, costumes desta referida
cultura, Ayoub mantinha a cultura através da alimentação. Nesse ponto, instaura-se a
importância de restaurantes étnicos para a preservação da memória e da cultura, pois “as
cozinhas [...] nacionais e internacionais são produtos da miscigenação cultural, fazendo
com que [...] revelem vestígios das trocas culturais”
131
. A identidade expressa na comida
destes restaurantes étnicos ajudam a manter os conhecimentos das culturas, num
momento em há uma luta travada entre sobrevivência cultural local e a massificação das
mesmas, desencadeada com o processo da globalização. Sendo a comida umas das
primeiras manifestações culturais de um povo, estando ligada ao sentimento de fome, de
fartura, de festividade, ela expressa a sociabilidade dos diversos grupos sociais, estando
presente no cotidiano de todos os seres.
Por tudo isto, acredita-se que o restaurante Al Manzul tem caráter de
patrimônio da cidade de Cuiabá por se incorporar ao conjunto que compõe o mosaico de
atrações que a cidade oferece aos turistas. É também patrimônio da cultura árabe nessa
terra estrangeira que é o Brasil. O mesmo marca a memória coletiva dos povos ligados à
cultura alimentar árabe, sendo fruto de subjetivações, como histórias de vida, de
famílias, de indivíduos que se deslocaram de sua terra natal para tentar a vida em outro
continente, num país de cultura tão distinta, mas acolhedora como o Brasil.
Neste sentido, o restaurante Al Manzul esta inserido no contexto da História e
Cultura da Alimentação, como um construtor de identidade, configurador de patrimônio
material e imaterial, preservador da memória dessa cultura, abarcando todas as
peculiaridades e subjetividades, sentimentos, envoltos em uma tradição alimentar.
131
SANTOS, C. R. A. História da alimentação. Revista História Questões & Debates. UFPR.
N.42.2005.p.12.
93
A propaganda oferecida pelo Guia Brasil Quatro Rodas aos
estabelecimentos „premiados‟, e neste caso o Al Manzul, tem conduzido muitos
degustadores a visitar Cuiabá. Devido a esta propaganda é que o Al Manzul se tornou
conhecido no país. Sendo Cuiabá uma cidade cercada por maravilhas da natureza,
recebe muitos turistas de outros Estados e até mesmo internacionais, que também
visitaram o restaurante. Dentre estes, destacam-se muitos jornalistas, os quais
escreveram sobre o restaurante, tornando- o conhecido entre os apreciadores da boa
mesa.
Embora Cuiabá seja a capital de um Estado cuja economia encontra-se voltada
ao agronegócio, principalmente ao plantio de soja e milho, geograficamente distante dos
outros Estados, a capital mato-grossense se tornou conhecida para muitos turistas em
virtude do Al Manzul. Esta revista , Guia Brasil Quatro Rodas, segundo Viviane Aguiar,
possui em média vinte repórteres-avaliadores, que viajam a ano todo colhendo
informações nos diversos ramos que são avaliados pelo guia. Em 1994, na primeira
visita do repórter avaliador ao Al Manzul, ocorreu antes deste primeiro contato, uma
pré-pesquisa em sites de gastronomia, revistas, jornais e fontes especializadas na cidade
de Cuiabá, assim como conversas com moradores para descobrir novidades neste
seguimento. Dessa maneira, ficaram sabendo sobre o Al Manzul, que estava
localizado numa região de difícil acesso, pois a estrada que conduzia ao restaurante, na
época, não era nem mesmo asfaltada. Entretanto, o restaurante chamou a atenção do
repórter, que o visitou para conferir o menu. Depois desta primeira visita são realizados
todos os procedimentos de rotina (já explicitados no Capítulo 2), pois o Al Manzul, todo
ano recebe a visita de críticos gastronômicos diferentes, os quais apresentam o hábito de
se apresentar apenas no final da refeição, depois de pagar as despesas. Desde então,
nenhum outro restaurante árabe no país consegue superar as expectativas na qualidade
da comida, segundo o Guia Quatro Rodas.
O Guia Brasil, desde sua estréia, em 1986, mantém treze restaurantes
estrelados. Destes, onze são étnicos, sendo eles:
Adegão Português (português, Rio de Janeiro);
Antiquarius (português, Rio de Janeiro);
94
Dona Irene (russo, Teresópolis, RJ)
La Casserole (francês, São Paulo);
La Chaumière (francês, Brasília, DF);
Le Petit Clos (suíço, Gramado, RS);
Massimo (italiano, São Paulo, SP);
Mosteiro (português Rio de Janeiro, RJ)
Parrô de Valentim (português, Petrópolis, RJ)
Quadrifoglio (italiano, Rio de Janeiro, RJ);
Al Manzul (árabe, Cuiabá, MT).
O que alimenta estas diversas culturas é o fato de serem valorizadas, de alguma
forma, pelo trabalho que desenvolvem longe de seu país de origem. Muitos deixam de
herança aos seus filhos apenas o seu testamento de memórias e o saber fazer, ou seja, as
receitas milenares de suas famílias.
Através da comida, pode-se fazer uma narrativa social e obter informações
sobre um determinado grupo ou até mesmo de uma época. Considerando, assim, a
comida um patrimônio gustativo, devido às particularidades inseridas na elaboração de
cada receita, observando-se que a “a qualidade da comida, (...) tem forte valor
comunicativo e exprime automaticamente uma identidade social.”
132
O Al Manzul não
serve apenas comida, mas acrescenta como ingrediente essencial as suas receitas a
história da cultura árabe e deste grupo social.
Em entrevista com a senhora Márcia Barbosa, na cidade de Várzea Grande-
MT, frequentadora e amiga da família, no Al Manzul se come por etapas, e depois de
comer vem o café árabe, a conversa, a política”
133
, valores que podem ser agregados à
132
MONTANARI, op.cit.p.125-126.
133
Entrevista concedida a Maria Cristina por Márcia Barbosa, no dia 21de maio de 2010.
95
construção de um patrimônio cultural.
134
O Al Manzul configura-se como um
restaurante elitizado, o qual recebe turistas do mundo inteiro. Segundo informações
colhidas com a família, cerca de 70% dos frequentadores não são da capital mato-
grossense. Todas as pessoas que vieram visitar Cuiabá por causa do Al Manzul, ou o
conheceram nesta capital, por recomendação, ou mesmo pelos guias de viagens, levam
em suas lembranças o estrelado restaurante como referência de Cuiabá.
Segundo dona Márcia, que faz um relato baseado em conversas dentro do
restaurante com a família Ayoub, a mesma afirma que:
“Tem pessoas que não tem nem passagem aqui, mas que como eles vão a
Brasília e tem uma questão de horário folgado, eles param aqui para
almoçar, jantar e seguirem viagem. Então eles não conhecem Mato
Grosso, eles conhecem o restaurante.”
135
Neste ínterim, considera-se o Al Manzul patrimônio e memória das pessoas
que compõem a cidade. Sendo este estabelecimento importante para a coletividade,
no caso em questão o grupo étnico dos libaneses, e também para a memória
individual, subjetiva, dos degustadores. A cultura árabe, assim, representa uma
memória coletiva, também representa a memória subjetiva, pois faz parte das
lembranças da própria família proprietária do restaurante. Portanto, percebe-se que a
cozinha revela vestígios e identidades de uma sociedade e o referido restaurante
estrelado e reconhecido pela qualidade de sua comida, faz parte da identidade de
Cuiabá. Reconhecendo a comida como manifestação da cultura acompanhada de
todos os seus significados simbólicos e subjetivos na degustação, considera-se o Al
Manzul um patrimônio da cidade de Cuiabá, pois se criaram referenciais que
envolvem a colônia árabe local, assim como visitas e premiações no país inteiro e até
mesmo em âmbito internacional. Entende-se, por esta razão, que:
O patrimônio é capaz de estabelecer relações de continuidade, ruptura,
134
Nas análises dos modernos discursos do patrimônio cultural, a ênfase tem sido posta no seu caráter
“construído” ou “inventado”. Cada nação, grupo ou família , enfim cada instituição construiria no
presente o seu patrimônio , com o propósito de articular e expressar sua identidade e sua memória.
GONÇALVES, J.R. S. Ressonância , Materialidade e Subjetividade: As Culturas como Patrimônios.
Revista: Horizontes Antropológicos , Porto Alegre, ano 11, n.23.p.19., jan-jun2005.
135
Entrevista concedida a Maria Cristina no dia 21 de maio de 2010.
96
permanência ou mudança- entre as varias dimensões do tempo: o tempo
passado condensado na herança, o tempo presente, momento do seu
recebimento e o tempo futuro, processo no qual vai sofrendo nítidas
mutações de sentido. Assim, um patrimônio se constitui pela valoração,
material e/ou simbólica, dada a um bem ou a um conjunto de bens que se
deixa como herança.
136
Portanto, o patrimônio pode ser entendido por tudo o que uma comunidade,
sociedade ou o próprio indivíduo acumularam em valores simbólicos durante a sua
vida, não se restringindo apenas construções, ou mesmo bens materiais de valor
sentimental: fotos, medalhas, livros entre outros. Mas depois de alguns debates entre
historiadores, etnólogos, ampliou-se o conceito de patrimônio cultural, pois:
(...) passaram a ser alvo de preservação tanto dos bens de natureza
material como imaterial individuais ou em conjunto, que contenham
referência à identidade, à ação e memória dos diferentes grupos
formadores da comunidade [...].
137
Além disso, faz-se mister considerar que:
As culturas nacionais, ao produzir sentidos com os quais podemos nos
identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias
que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com
seu passado e imagens que são construídas.
138
Afirma-se, por conseguinte, que a memória do indivíduo depende do seu
relacionamento com a família, com a classe social, [...] enfim com os grupos de
convívio e os grupos de referência peculiares”
139
. Instauram-se nesse meio a resistência
às massificações culturais, além da batalha para não deixar a padronização do mundo
contemporâneo atingir-nos. E, neste contexto, as relações sociais expressas nas culturas
136
SALVADORI, op.cit. 2008.p.12.
137
NUNES, V.M.M. e LIMA, L.E.P. Patrimônio Cultural. Sergipe: CESAD, 2007.p.33.
138
HALL. Op.cit.p.51.
139
BOSI, E. Memória e Sociedade: Lembrança de Velhos. São Paulo: Companhia das letras,
1994.p.54.
97
são o alicerce, carregados de simbologias e identificações, que ajudam na preservação
da diversificação cultural.
98
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O restaurante Al Manzul representa um fragmento de memória que perpassa
pelo tempo, refletindo um legado familiar, de preservação cultural, instauradora de
memória, criador-preservadora de um patrimônio que diz respeito à cultura árabe
representada pela tradição da família, e pela incorporação do restaurante ao rol de
opções gustativas de Cuiabá. Esses aspectos significam, portanto, uma configuração
complexa de patrimônio que, com todas suas problemáticas é um conjunto de
significações históricas, para o Brasil e para a história dessa família, que por sua vez
reflete muitas outras histórias em torno de famílias, cultura e alimentação, muito
presente no Brasil devido às diversas origens étnicas imigrantes.
As técnicas da História Oral foi o registro mais utilizado nesta pesquisa, por ser
a fonte mais indicada para compreender a trajetória de vida do senhor Salah Ayoub, que
faleceu durante a elaboração deste trabalho. Ayoub não deixou diários, cartas, ou
qualquer outro documento escrito que narrasse sua trajetória do Líbano ao Brasil, aa
abertura do restaurante, que foi o nosso objeto de estudo. Por esta razão, para
desenvolver a biografia tangencial apresentada no Primeiro Capítulo, fui entrevistar a
senhora Clariman Ayoub, viúva de Salah Ayoub, que apresentou, com fotos e
entrevistas, um relato da vida do falecido marido. Muitos relatos puderam ser
confrontados com outras fontes, como por exemplo, os assaltos sofridos na loja, a
dificuldade encontrada pela família e a opção em abrir um novo empreendimento.
Os jornais utilizados e, principalmente o Guia Quatro Rodas, demonstram as
exigências estabelecidas pelos seus avaliadores para que a equipe decida, em conjunto,
os critérios para definir o melhor restaurante avaliado. A equipe de redação do Guia
Quatro Rodas demonstrou, em todos os momentos, competência e seriedade ao tratar do
assunto. A mesma não nos passou a ficha avaliativa, mas deu-nos informações que
foram de vital importância para a conclusão desta pesquisa, através de um questionário
enviado via e-mail, assim como os pré-requisitos exigidos pela revista para conceituar
um restaurante. Outro ponto a considerar, é que a maioria dos restaurantes estrelados,
são étnicos o que demonstra que carregam simbologias, tradições, receitas familiares,
lugares de memórias que são transmitidas na elaboração das receitas utilizadas nos
99
estabelecimentos. Contudo, pode-se dizer que estes estabelecimentos estão embutidos
de lembranças e identidades que são repassadas através da tradicionalidade.
Salah Ayoub tem uma história de vida semelhante a de muitos imigrantes. O
mesmo viveu muitas décadas na cidade de Cuiabá. Em 1951, quando chegou ao Brasil,
fixou residência nesta cidade, viajou todo o Estado e casou-se com uma mato-grossense.
Ayoub nunca expressou preconceito aos brasileiros, demonstrando ser sempre solicito e
grato a esta cidade que acreditou no seu empreendimento. Foi agraciado com o título de
cidadão-honorário pela Assembléia Legislativa, forma esta que o poder público
encontrou de valorizar seu empenho pelas suas atividades profissionais realizadas em
seu restaurante, as quais elevaram não apenas o Al Manzul, mas também a cidade de
Cuiabá, a ser conhecida e referenciada no Brasil e no mundo. Diante de todos os
prêmios recebidos pelo Al Manzul, este empreendimento gastronômico se tornou um
patrimônio local.
O presente trabalho moveu-se do singular em direção ao coletivo sobre a
representação do restaurante Al Manzul, buscando reconstituir um fragmento da cultura
árabe no Brasil. Cultura esta que integra uma memória coletiva, a memória da família
constituída no Brasil e a que ainda se encontra no Líbano (pais, tios, irmãos, sobrinhos,
entre outros componentes), pois faz parte das lembranças do próprio grupo. O Al
Manzul, a partir do momento que começou a receber premiações que o elevaram a
categoria de melhor restaurante árabe do país, passou a ser uma referência na capital
mato-grossense, transformando-se em patrimônio, identidade e memória da sociedade
local.
A comida, neste caso, ajuda na preservação da identidade desta cultura, pois as
receitas repassadas de geração em geração, representam a manutenção dos saberes do
grupo social que, por intermédio da memória gustativa são conservadas e zeladas como
um patrimônio cultural. Nesta viagem ao saber e sabor, tais predicados podem ser
considerados como a plataforma de embarque no processo de seleção dos produtos
necessários para a realização dos pratos. Posto tudo sobre a mesa, o ritual se inicia.
Nesta simbólica viagem, que inclui o tempo de preparo das receitas e a memória
familiar, emerge a identificação com o grupo social através das lembranças e da
memória gustativa. A finalização desta viagem acontece com a exposição dos pratos e
100
com o início da apreciação do banquete. A partir de então, o comensal adentra-se em
novos itinerários da cultura que se apresenta diante de si, percorrendo os caminhos do
aroma e do gosto. Esses elementos completam um quadro que passa a atingir e a
envolver um maior número de pessoas que dele participam, fazendo as lembranças
aflorarem. E, cada prato experimentado, numa volúpia desmedida e cega, faz com que
os sentidos do olhar, do paladar e do olfato sejam convocados para expressarem a
riqueza das iguarias. No Al Manzul através de cada “garfada” se explora avidamente o
banquete para além da imaginação, recheado de tradição e cultura árabe.
Do exposto, verifica-se que o Al Manzul nos proporciona um leque de
informações que abrange a cultura árabe através das opções gastronômicas que elabora.
Oferecendo pratos de diversos países árabes, ele apresenta a história cultural
apresentada aos comensais como um patrimônio gustativo da alimentação árabe no
Brasil. Fruto das imigrações árabes ao Brasil, tal culinária foi trazida e difundida entre
as mais diversas culturas que ocupam o território brasileiro, culturas nativas, migrantes
ou imigrantes. Enfim, nesta saborosa Aventura do Gosto, entendemos, que o
Restaurante Al Manzul além de se constituir como uma referência para a sociedade
mato-grossense guarda um patrimônio cultural imaterial que é representado por uma
tradição expressada na sua culinária.
101
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104
Apêndice:
Apêndice 1:
Roteiro para entrevista com Clariman Ayoub:
1) O que Salah Ayoub relatava sobre sua família no Líbano? Sua infância?
Adolescência? Irmãos? A mãe?
2) Qual era a principal lembrança dele em relação a sua família? Alguma relação
com a culinária?
3) Por que sair do Líbano? Por que o Brasil?
4) Em que ano ele chegou ao Brasil? E o que ele fez aqui?
5) Como conheceu Salah Ayoub?Qual era sua idade? O namoro? O casamento?
6) Que atividades desenvolviam para garantir o sustento da família?
7) Por que resolveram abrir um restaurante? Em que ano?
8) Quem cozinhava e cozinha?
9) Como aprendeu?
10) Como você analisa, avalia a comida árabe?
11) Qual a origem dos pratos do cardápio?
12) Seguem-se as receitas no cardápio?
13) E o guia quatro rodas?
14) Em relação ao cardápio, algo mudou depois das avaliações da revista?O que
mudou? Por quê?
15) O guia fez alguma exigência, para alcançarem a segunda estrela?
16) Por que mudaram-se da antiga sede? A enchente do rio Coxipó. A tragédia ao
recomeço. Como foi?
17) Quem são os clientes mais tradicionais? Origens profissionais?
18) Qual o maior atrativo para os clientes?
19) O restaurante é mais freqüentado por cuiabanos, mato-grossense ou por turistas?
20) Os árabes são os frequentadores mais assíduos?
105
21) Qual o “segredo”, para o sucesso do Al Manzul? Prêmios internacionais.
22) Por que manter reportagens e quadros nas paredes do restaurante? O que isto
significa?
23) O que você considera o Al Manzul importante para a cidade de Cuiabá?
106
Apêndice 2:
Segunda entrevista com Clariman Ayoub:
1. Salah ajudava financeiramente a família dele no Líbano? Alguma vez recebeu
ajuda de sua família?
2. Trocavam cartas? Tinham o costume de se telefonarem?
3. Sobre sua profissão de mascate no Brasil, o que ele mais contava?Já iniciou sua
atuação utilizando carro, mulas ou a pé, carregando caixas?
4. Por que nunca mais voltou ao Líbano?
5. Salah comentava algum tipo de perseguição ou mesmo aborrecimento que lhe
foram causados por motivos religiosos, no Líbano?
6. Qual Faculdade ele estudava?
7. Salah falava português quando chegou ao Brasil? Qual idioma falava além do
árabe?
107
Apêndice 3:
ROTEIRO PARA ENTREVISTA COM OS COMENSAIS
1. Como ficou sabendo sobre o restaurante Al Manzul?
2. O que motivou a primeira visita?
3. Costuma ir com freqüência ao restaurante? Caso sim, por quê?
4. O que o Al Manzul significa para você?
5. Além do ato de se alimentar/ confraternizar, o que o Al Manzul acrescenta a sua
estadia no restaurante.
6. Aprecia a cultura árabe? O que observa como manifestação desta cultura no
restaurante?
7. Já comeu em outro restaurante árabe no Brasil? Caso sim percebe alguma
diferença em relação ao Al Manzul?
8. Acha importante restaurantes como o Al Manzul ( étnicos) para a cidade? Por
quê?
108
ANEXO 4:
1. Questionário feito à repórter Viviane Aguiar , da revista Guia Brasil Quatro Rodas
2. Quais são os critérios de avaliação?
3. Há outros restaurantes que durante tantos anos que se mantêm nesta posição?
4. Quais são as exigências do guia para os restaurantes se manterem com as estrelas?
5. Como ficaram sabendo do Al Manzul naquela época para fazerem a avaliação?
109
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