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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
CLODOALDO MESSIAS DOS SANTOS
DA LITERATURA E DA SOCIEDADE NA OBRA
OS CORUMBAS, DE AMANDO FONTES
NATAL
2010
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CLODOALDO MESSIAS DOS SANTOS
DA LITERATURA E DA SOCIEDADE NA OBRA
OS CORUMBAS, DE AMANDO FONTES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais do Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como exigência final para obtenção do
título de Mestre em Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno
Araújo Dantas
Natal
2010
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S237d Santos, Clodoaldo Messias dos.
Da literatura e da sociedade na obra os corumbas, de
Amando Fontes. / Clodoaldo Messias dos Santos; orientação
[de] Alexsandro Galeno Araújo Dantas. Natal, 2010.
82 f. : il.
Inclui bibliografias
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
1. Crítica literária. 2. Literatura brasileira. 3. Os Corumbas
estudo e crítica. I. Dantas, Alexsandro Galeno Araújo (orient.).
II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). III.
tulo.
CDU: 821.134.3(81).09
3
CLODOALDO MESSIAS DOS SANTOS
DA LITERATURA E DA SOCIEDADE NA OBRA
OS CORUMBAS, DE AMANDO FONTES
Dissertação apresentada como
exigência parcial para a conclusão do
curso de Mestrado em Ciências
Sociais à comissão julgadora da
Universidade Federal Rio Grande do
Norte.
Aprovado em ___/ ___/ _____
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas (UFRN) Orientador
_________________________________________________________
Profª. Drª. Ana Laudelina Ferreira Gomes (UFRN) Titular
_________________________________________________________
Prof. Dr. Hermano Machado (UECE) Titular
_________________________________________________________
Prof. Dr. Orivaldo Pimentel Lopes Júnior (UFRN) Suplente
AGRADECIMENTOS
A DEUS pela vida, pela oportunidade e pelo privilégio que nos foram dados em compartilhar
tamanha experiência e por nos levar nos braços, sempre que tínhamos que superar
obstáculos que surgiam pelos caminhos que nos aventurávamos a trilhar.
Aos amigos que sempre acreditaram no nosso potencial, e que muitas vezes nos deram força
para seguir adiante: Jussi; Cláudia; Elda Rosa; a família Oliveira (Susi, D. Neves, Celso,
Celsinho, Patrícia e Keven); a equipe pedagógica e a professora Arlinda, Diretora do
Colégio Estadual Alencar Cardoso, do qual faço parte da equipe; Hélio; Hugo;
especialmente ao amigo José Mendonça Neto, sempre presente nos momentos difíceis; e às
minhas amigas, Paula e Solange, que mesmo distante geograficamente, sempre enviaram
mensagens de incentivo. A vocês, o meu muito obrigado!
Ao Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas, por ter aberto um leque de possibilidades no
mundo acadêmico que com muita paciência e empenho nos orientou nas atividades e
discussões.
Aos meus amigos da Universidade Tiradentes, especialmente os do NEAD.
A Gladson, Roberto, Rildo, Luiz Eduardo, Maria Amália Façanha, Ricardo Nascimento e
Maria Cristina, pelas conversas intelectuais que permitiram novas descobertas na jornada
acadêmica.
Aos coordenadores, professores e funcionários da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN) que sempre nos receberam da melhor forma possível, e por todos os
conhecimentos transmitidos, especialmente aos professores Ana Laudelina Ferreira Gomes e
Hermano Machado Ferreira Lima.
Aos colegas de classe pela espontaneidade e alegria na troca de informações e materiais
numa rara demonstração de amizade e solidariedade.
Aos nossos familiares que em todo momento torceram pelo nosso sucesso.
Dedico este trabalho aos meus pais, Elienar Melo e
Cornélio Messias, instrumentos para que eu
chegasse a esse mundo, que me fizeram trilhar o
caminho da honestidade e sabedoria, meus
agradecimentos por terem me ensinado, ainda em
idade pueril, como alcançaria a estrada do bem.
Do Brasil
(Vander Lee)
Falar do Brasil sem
ouvir o sertão
É como estar cego em pleno clarão
Olhar o Brasil e não ver o sertão
É como negar o queijo com a faca na mão
Esse gigante em movimento
Movido a tijolo e cimento
Precisa de arroz com feijão
Que tenha comida na mesa
Que agradeça sempre a grandeza
De cada pedaço de pão
Agradeça a Clemente
Que leva a semente
Em seu embornal
Zezé e o penoso balé
De pisar no cacau
Maria que amanhece o dia
Lá no milharal
Joana que ama na cama do canavial
João que carrega
A esperança em seu caminhão
Pra capital
Lembrar do Brasil sem pensar no sertão
É como negar o alicerce de uma construção
Amar o Brasil sem louvar o sertão
É dar o tiro no escuro
Errar no futuro
Da nossa nação.
Agradeça a Tião
Que conduz a boiada do pasto ao brotão
Quitéria que colhe miséria
Quando não chove no chão
Pereira que grita na feira
O valor do pregão
Zé coco, viola, rabeca, folia e canção
Amar o Brasil é fazer
Do sertão a capital
RESUMO
Estudo da obra Os Corumbas, de Amando Fontes, publicada em 1933, que trata do início
da industrialização na cidade industrial, assim como os impactos sofridos pelos mais
humildes. Percebemos uma série de significações e simbologias nas personagens, nas
passagens e acontecimentos, nos objetos e espaços que permeiam o discurso literário de
Amando Fontes, objetivando o melhor entendimento das relações entre a literatura e a
sociologia, passagens do texto e a intenção do seu autor, assim como, problematizar as
significações imaginárias da obra. A narrativa utilizada por Fontes em sua obra, mostra-
nos claramente a utilização do fazer literário para a compreensão de aspectos sociológicos
no momento inicial da industrialização, como também a adaptabilidade das pessoas a essa
nova realidade.
Palavras-chave: Literatura. Sociedade. Simbologia. Industrialização.
ABSTRACT
This is a study of the book Os Corumbas, by Amando Fontes, published in 1933, that
deals with the beginning of industrialization in the industrial city, as well as the impacts
suffered by the poorest. We realized that there is a series of meanings and symbolic
elements in the composition of characters, passages and happenings, objects and spaces
that permeate the literary speech of Amando Fontes. Our objective, through this analysis,
was to reach a better understanding of the relationship between Literature and Sociology,
some passages of the text and the author’s intention, as well as to problematize the
imaginative meanings of the story. The narrative used by Fontes clearly shows us the
utilization of the literary production for the understanding of sociological aspects in the
initial moments of industrialization as well as people’s adaptation to this new reality.
Keywords: Literature. Society. Symbology. Industrialization.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Fachada da fábrica de tecidos Sergipe Industrial (1ª do Estado) ........................... 12
Figura 2 Capa da 25ª edição do romance Os Corumbas ...................................................... 16
Figura 3 Capa da 21ª edição do romance Os Corumbas ...................................................... 37
Figura 4 Capa da 6ª edição do romance Os Corumbas ........................................................ 54
Figura 5 O Bairro Santo Antônio em diferentes ângulos ..................................................... 74
Figura 6 Chalet da fábrica Sergipe Industrial ....................................................................... 74
Figura 7 Vista da Colina do Bairro Santo Antônio .............................................................. 76
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 11
2 OS CORUMBAS E SUA RELEVÂNCIA NO CENÁRIO SOCIAL BRASILEIRO ..... 16
2.1 Os limites movediços entre as ciências sociais e a literatura ........................................ 16
2.2 Reflexões e intenções sociológicas em Os Corumbas ...................................................... 24
3 UMA SOCIOLOGIA DA LITERATURA EM OS CORUMBAS ................................... 37
3.1 Intenções e aparições sociais na fala de Amando Fontes .............................................. 37
3.2 Os Corumbas e suas passagens ......................................................................................... 45
4 A SIMBOLOGIA DAS PESSOAS E DAS COISAS EM OS CORUMBAS ................... 54
4.1 As pessoas .......................................................................................................................... 57
4.2 As coisas ............................................................................................................................. 63
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 74
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 78
11
1 INTRODUÇÃO
Muito embora destacado como um “romance autenticamente proletário”, apesar de
alguns não considerarem desta forma, por não enfatizar ou sugerir a revolta do proletário, o
livro Os Corumbas, de Amando Fontes (1899-1967), representou a situação social do povo
brasileiro do início do século XX, através da análise da vida dos sergipanos que viviam em
Aracaju (capital industrial do Estado), caracterizando o povo pobre e marginalizado pela
sociedade burguesa e industrializada. A obra não tem, propriamente, a intenção de denunciar,
mas de alertar a sociedade para um povo que precisava de atenção e que tentava se adaptar a
uma nova realidade dupla: a vida na cidade e a chegada da industrialização. Em suas
passagens, a transformação social foi representada em cores tão fortes que o tempo não foi
capaz de desbotá-las, o que fez com que esta obra continuasse entre as mais lidas daquela
época, atraindo comentários até os dias de hoje. Parece-nos razoável compreender as
propriedades permanentes da obra, como retrato atemporal de uma situação local e,
justamente por isso, universal.
Quando pensamos em um romance proletário, logo nos vêm passagens que traduzem
de forma clara e agressiva a revolta do proletariado, calcados nessa ideia é que se pautou uma
série de discussões sobre Os Corumbas ser ou não um romance proletário, tendo em vista sua
narrativa. Porém, dentre toda discussão que versa em torno do romance, percebemos que a
obra em estudo tem apenas um fundo proletário, pois não apresenta de forma tão clara a
revolta do proletariado; sua linguagem também seria outro ponto a ressaltar, pois as
personagens de Amando trazem em seu discurso algo de aburguesamento, por exemplo,
algumas das ideias de sinhá Josefa: o professorado da filha caçula, o casamento das demais,
percebe-se que não possuem um discurso de luta, de conscientização. O romance trata do
sofrimento e humilhação pelos quais passa a família que tão bem representa a situação do
retirante e do imigrante. Apenas em alguns poucos momentos, a obra retrata o sentimento de
indignação, pois eles apenas lamentam tal situação e se desvirtuam em decorrência do poder
do capital.
A cidade de Aracaju, capital do Estado de Sergipe, é uma daquelas cidades que
causam suspiros de saudade nos mais velhos; forte indício de que alguma coisa não está
mais no lugar de sempre, indício de que algo se transformou. Explicitar as relações da
literatura com a sociedade e compreender como ocorrem as transformações sociais, a partir de
textos literários é o que moverá parte deste trabalho, pois nos deteremos no referido estudo da
12
obra Os Corumbas, de Amando Fontes, que mostra ser uma retratação da sociedade da época
e seus dois polos que nos parecem bem distintos: a sociedade burguesa e elitizada e o povo
pobre que não consegue adaptar-se à nova realidade na cidade industrial.
Figura 1 Fachada da fábrica de tecidos Sergipe Industrial (1ª do Estado)
Fonte: Acervo: Memorial de Sergipe.
No romance encontramos a trajetória de uma família do interior sergipano. O pai
Geraldo e a mãe Josefa são os protagonistas centrais, com os seus cinco filhos: Pedro,
Rosenda, Albertina, Bela e Caçulinha. O deslocamento da família para a cidade acontece em
virtude da seca, que os obrigou a refugiarem-se na capital, em busca de melhores condições
de vida e um futuro melhor.
Foi Josefa quem aventou a idéia de se mudarem para o Aracaju.
E enumerava suas razões:
“Na capital, havia emprego decente para as duas meninas mais velhas. Era
nas fábricas de tecidos. Estavam assim de moças, todas ganhando bom
dinheiro [...]. Pedro não custaria em conseguir um bom lugar, como ferreiro
ou maquinista [...]. Uma outra vida, enfim. Vestia-se melhor, andava-se no
meio de gente [...]. Depois, tinha assim uma certeza, uma espécie de
pressentimento, de que as filhas logo casariam. Isso, as mais velhas. As
duas mais novas iriam para escola [...]. (FONTES, 2003, p. 27-28).
Isto foi o que sonhou Sinhá Josefa...
No decorrer da história, o autor descreve várias situações de dificuldades pelas quais
a família Corumba vive, seja no trabalho, na fábrica têxtil ou nas condições da cidade. Nesse
contexto, a fábrica é vista como um lugar “desgraçado”, pois a proliferação de doenças,
13
insalubridade, salários insuficientes para viver na cidade, pouca ou nenhuma assistência
médica e os vários acidentes, tornavam aquele espaço uma espécie de punição que despertava
nas pessoas de consciência mais aberta, a revolta contra o sistema em que estavam inseridos.
Aliado a tudo isso, ainda podemos citar a prisão do filho, que militando por melhores
condições de trabalho nas fábricas têxteis foi deportado para o Rio de Janeiro, bem como, a
prostituição das filhas e a morte de uma delas.
Na obra, Fontes descreve de forma bastante objetiva, a triste realidade da família,
assolada pela miséria e pela exploração moral, acompanhando o modelo realista praticado na
obra Germinal de Émile Zola (2000), que trata do início dos movimentos grevistas e de uma
postura mais agressiva por parte dos carvoeiros na França do século XIX contra a exploração
de seus patrões. Da mesma forma, Os Corumbas trata de alguns desses pontos sob uma visão
diferenciada, porém o alvo das análises é o mesmo: sociedade de uma mesma época, com
problemas semelhantes e transformações similares. Momento este, em que alguns países
passavam por um processo de industrialização, ou até mesmo iniciavam tal processo ao lado
da pioneira Inglaterra, entre os quais a França que era o palco dos acontecimentos narrados no
romance, assim como em Os Corumbas, Aracaju seria o ambiente, mesmo que fictício da
narrativa.
A realidade das personagens não é estanque, ou seja, histórias como a de Albertina,
iludida e desgraçada por um aproveitador, são comuns ainda hoje, de modo que nos sentimos
instigados a compreender a que ponto as transformações sociais impelem as pessoas a
cometerem certas atitudes ou, ao contrário, em que medida as pessoas convergem à
negligência, pois nas personagens da narrativa de Fontes, iremos perceber que a desgraça de
toda família é de cunho econômico e não psicológico, pois as personagens se desvirtuam pela
pressão feita em benefício da sobrevivência. Na narrativa também estava em jogo os direitos
dos trabalhadores, os quais viviam em condições precárias e subumanas subjugados às
vontades burguesas direcionadas pelo poder do capital.
Amando Fontes mostra de forma bastante clara sua concordância com o que diz
Arendt (2001) sobre a condição humana: estar isolado é estar privado da capacidade de agir.
Assim estavam os Corumbas, pessoas estranhas e sós na cidade, enfrentando discriminações e
diversos tipos de violência impostos pela industrialização aos operários e aos imigrantes, que
Fontes explicita tão bem. É nesse contexto que entendemos que a literatura pode dialogar com
a política, com os direitos sociais, entre outros.
14
Em parte, a obra em questão pode ser entendida como um instrumento cujo objetivo
é alertar e indignar o leitor, através das imagens que mostram de forma clara e precisa as
condições a que a classe trabalhadora é submetida no sistema capitalista, o enquadramento
dos emigrantes vindos do sertão em busca de uma vida melhor, assim como, a análise da
instauração da sociedade aracajuana, seus costumes e os debates, sejam eles políticos ou
sociais, da primeira metade do século XX, que ecoam através das personagens que povoam a
narração de Amando Fontes. Podemos dizer que a obra aborda, entre outros, dois temas de
suma importância para o nosso trabalho: a industrialização e seus efeitos imediatos na vida de
pessoas pobres, e as condições de vida das classes operárias.
Nesta pesquisa ecos das interpretações de autores das ciências humanas, entre
estes: Lucien Goldman (1976, 1989), Nicolau Sevcenko (1999, 2003), Octávio Ianni (1999) e
Cornélius Castoriadis (1995). A obra Lima Barreto: um pensador social na Primeira
República (2002) foi muito importante na construção do nosso objeto, haja vista sua
particularidade relacionada a nossa pesquisa (trata-se de uma adaptação da tese de doutorado
de Maria Cristina Teixeira Machado, Universidade Nacional de Brasília, 1994-1997). A esses
autores e teóricos citados, somaremos alguns outros que nos ajudarão a elucidar não o
diálogo da literatura com a sociedade, mas também compreender os enunciados sociológicos
abordados na obra, através de suas passagens, a saber: Antônio Cândido (1980, 1989), Renato
Almeida (1934), Adriana Facina (2004), Otávio de Faria (1933), José Antônio Segatto (1999),
Simone Vierne (1994) e Émile Zola. A obra Os Corumbas, de Amando Fontes (2003), nos
conduzirá neste caminho e nos levará a alcançar os objetivos propostos.
Os procedimentos metodológicos estão baseados num estudo de abordagem
qualitativa, do tipo exploratória, com perspectiva crítico/analítica. Conforme Minayo (1994),
a pesquisa qualitativa é capaz de captar os aspectos subjetivos do comportamento individual e
social, de forma não estruturada, que muitas vezes podem redirecionar os rumos do estudo a
partir das informações adquiridas ao longo deste.
A pesquisa qualitativa se preocupa com um nível de realidade que não pode ser
quantificado. Para Minayo (1994, p. 67), esse tipo de pesquisa trabalha com o “[...] universo
de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um
espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos a variáveis” e este será um ponto muito importante para nossa análise no que
tange aos personagens e suas atitudes. Além disso, faremos uso de estudo bibliográfico e
documental. Não podemos esquecer a obra Os Corumbas, pois analisaremos literariamente as
15
atitudes das suas personagens, suas características e seus discursos, elaborando um roteiro, o
qual muito nos ajudará na concepção da pesquisa.
O trabalho tem como objetivo geral analisar as passagens e os discursos das
personagens que dizem respeito à configuração da sociedade brasileira no início do século
XX, a partir dos eventos narrados na obra Os Corumbas, de Amando Fontes (2003),
estabelecendo relações entre literatura e sociologia. Quanto aos objetivos específicos, são
eles: compreender como se e qual a relação entre a literatura e a sociedade; analisar a
proximidade entre as passagens da obra e o pensar do autor; entender a simbologia nos
componentes da obra, pessoas, fatos, objetos, entre outros.
No próximo capítulo abordamos a importância da obra em questão para o cenário
social brasileiro, analisando o terreno movediço no qual se alojam as discussões que versam
sobre a relação de amor e ódio, ficção e realidade, semelhanças ou diferenças entre a ciência e
a literatura, como também a obra em si, seu autor e de que forma ambos dialogam com as
ciências sociais. Em síntese, faremos uma contextualização do nosso estudo. No terceiro
capítulo trataremos de algumas passagens específicas da obra Os Corumbas, que evidenciam
as reflexões e as anotações sociais. Por fim, no quarto capítulo faremos uma análise das
pessoas e coisas, observando o que estas simbolizam dentro do contexto da obra em análise.
Todo esse percurso será feito através dos preceitos das ciências sociais e da literatura, que é a
própria obra em estudo.
16
2 OS CORUMBAS E SUA RELEVÂNCIA NO CENÁRIO SOCIAL
BRASILEIRO
Figura 2 Capa da 25ª edição do romance Os Corumbas
Fonte: Google Imagens
1
2.1 Os limites movediços entre as ciências sociais e a literatura
A literatura existe no intercâmbio do contexto social, em que as experiências
vividas tanto pelo autor, como pelo seu leitor irão ser de grande valia para o entendimento de
tal obra, pois essa é uma forma de manifestação artística que explicita diversos aspectos
sociais da realidade, e tem como objetivo trazer à tona temáticas da sociedade de um modo
geral. E para que essa literatura exerça a função social, precisa haver essa relação entre as
partes envolvidas (leitor e autor) nesse processo. Nesse contexto, todas as peças que
permeiam a literatura, sem as quais, ela não pode existir, assumirá um papel social, a saber:
conflitos, enredos, heróis, personagens terão um valor para o autor e leitor. A partir desse
ponto podemos perceber que a literatura pode, sim, dialogar com outras ciências, porém
percebemos que essa convivência pode ser bastante perigosa, principalmente quando se quer
precisar como deve ser essa relação, ou até mesmo tentar discutir sobre a autenticidade de
ambas ou os limites que rodeiam as duas. Vierne (1994, p. 79) fala sobre essa relação da
literatura com a sociedade, como “[...] ligações de tempestades, e às vezes perigosas, até ao
divórcio, mas onde os parceiros não cessam de lançar-se olhares de desejos...”. Vale ressaltar
que uma série de trabalhos e até mesmo teorias têm sido difundidos nesse âmbito do
conhecimento acadêmico.
1
Disponível em: <http://www.google.com.br/images?hl=pt-
BR&source=imghp&q=os+corumbas+de+amnado+fontes+capas&gbv=2&aq=f&aqi=&aql=&oq=&gs_rfai=>.
17
Para iniciarmos nosso estudo, é importante ressaltarmos em que sentido utilizamos
aqui o vocábulo literatura, tendo em vista ser um termo com diversas significações, porém
apenas uma nos interessa para o melhor entendimento das discussões que faremos a partir
desse momento. O conceito de literatura que iremos utilizar aqui é aquele citado por Facina
(2004, p. 7), que diz:
[...] campo das letras que conquistou certa autonomia e especialização no
mundo contemporâneo, destacando-se do que se costumava chamar de
“belas artes” e que incluía, além da poesia e do romance, a filosofia, a
história, o ensaio político ou religioso.
Dessa forma, a significação que iremos utilizar é bastante geral, e diz respeito ao
conjunto de escritos, geralmente ficcionais, que passaram por um processo de autonomia a
partir de 1848. Quando a derrota do movimento revolucionário tomou conta da Europa,
passou-se a questionar as relações entre a literatura e política, estimulando o surgimento do
escritor. Ainda segundo Facina (2004), três perspectivas são de importância para o estudo da
obra literária, no âmbito da sociologia: a estética, a materialista e a mediadora.
A concepção estética ou idealista terá como base as fontes estéticas ou psicológicas
que emanam do autor e sua obra, havendo uma supervalorização das experiências e do
instinto criativo do autor para a análise da obra literária, observando apenas em segundo plano
as questões sociais que permeiam a obra. Nesse caso prioriza-se mais a ação criativa do autor,
deixando de lado a contextualização da obra, posicionamentos políticos, a questão histórica,
entre outros. Essa lacuna social deixada no estudo do texto literário por tal concepção nos
remete à dualidade entre estética e conjuntura social. O que vai gerar certo enfraquecimento
nessa perspectiva é quando percebemos que a linguagem (estética) e significação (valores
sociais) estão sempre envolvidos na produção do texto. Constatamos então que a significação
está ligada à valoração social, posto isso, percebemos que o ato criativo não é algo que surge
do nada ou de uma autonomia dos sujeitos, mas sim, de um contexto que abrange rios
setores da sociedade.
A perspectiva supracitada deixa claro que a cultura e a estética são autônomas, logo
as obras literárias são expressões individualizadas do autor e quase nenhuma condicionante as
influenciou, é claro que a individualidade dos sujeitos vai interferir, porém esta não será ponto
primordial para a criação da obra, como sustenta tal concepção, que é traída quando fazemos
um estudo mais apurado da vida do autor, em qual época ele viveu, qual sua história política,
18
classe social, entre outros. Esse apanhado de fatores sociais é o que fará sentido para as
escolhas e ações dos sujeitos.
Posto isto, vimos que não pode haver nenhuma contradição entre a possibilidade da
relação da escrita do indivíduo puramente e a ligação com o que de fato acontece na
sociedade, deixando claro que a estética como foco da análise não seria eficaz para a
apreciação sociológica de qualquer que seja a obra literária. Goldmann (1989, p. 13) afirma
que:
Os postos mais altos da criação literária podem não ser estudados, em tal
perspectiva sociológica, tão bem como as obras médias, como se revelam
mesmo particularmente acessíveis a uma tal investigação. Por outro lado, as
estruturas categoriais sobre as quais incide este gênero de sociologia literária
constituem precisamente o que confere à obra a sua unidade, o seu caráter
especificamente estético e, no caso que nos interessa, a sua qualidade
propriamente literária.
A perspectiva materialista foi a mais usada no que diz respeito à relação entre a obra
e seu meio social, desde a segunda metade do século XIX (CÂNDIDO, 1980). De até aqui,
a sociologia, ligada à literatura, vem fazendo esforços para que a cada dia se estreitem mais o
conteúdo da obra com o conteúdo da consciência do povo e de sua época. Vários estudiosos
vão enxergar o texto literário como um espelho, no qual se pode visualizar a realidade social,
analisando o que é transferido do âmbito social para as ações, falas das personagens e outros
fatores que constroem os textos literários.
Porém, utilizar para análise dos textos literários uma ou outra tendência não nos faria
chegar a uma análise mais ou menos próxima do que a obra realmente quis transmitir,
devemos sim, fazer a associação das possibilidades acima expostas.
Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas
visões dissociadas; e que a podemos entender fundindo texto e contexto
numa interpretação dialeticamente íntegra. [...] Os estudiosos habituados a
pensar, neste tópico, segundo posições estabelecidas no culo XIX, quando
ela estava na fase das grandes generalizações sistemáticas, que levavam a
conceber um condicionamento global da obra, da personalidade literária ou
dos conjuntos de obras pelos sistemas sociais, principalmente do ângulo
literário. Todavia, a marcha da pesquisa e da teoria levou a um senso mais
agudo das relações entre o traço e o contexto, permitindo desviar a atenção
para o aspecto estrutural e funcional de cada unidade considerada.
(CÂNDIDO, 1980, p. 4, 8).
19
Foram exatamente estas duas tendências que fizeram com que houvesse dualidades
dentro da história literária, limitando os estudos sociológicos em direção à natureza do texto
literário (romance/ poesia).
Pelos motivos citados anteriormente, apela-se para a terceira tendência que é a
mediadora. Ela vai mostrar a análise se utilizando das duas anteriores em dosagens
equilibradas: questionando a teoria do reflexo social, pois se percebe que apenas com esta não
será possível uma análise satisfatória, tendo em vista que não será apenas a esfera social
responsável por esta análise, mas também o imaginário do autor irá influenciar nesse
contexto. Então, percebemos que para uma análise efetiva é necessária a visão de que a obra
possui dois polos: as relações sociais e o processo criativo que a envolve. Assim, teremos
como objetivo maior dessa análise, a apropriação da relação de sentido da ação humana. É o
fato social que, ao ser compreendido, mostra-nos outros fatos que são relevantes.
Assim, fica claro que não podemos nos prender a esta ou aquela perspectiva, tendo
em vista que a obra literária sofre influência de todos os aspectos aqui abordados intenções
dos sujeitos envolvidos nesse processo (autor e leitor), agentes culturais, aspectos sociais,
entre outros , pois todas as questões que permeiam a produção de textos literários deverão
ser criteriosamente analisadas por aqueles que desejam observá-lo no âmbito social, assim
como a recepção desse texto.
Com relação à análise feita das três perspectivas para se entender uma obra literária e
seus fatores sociais, poderíamos dar como exemplo a multiplicidade de análise da obra
Germinal, de Émile Zola (2000), que muito nos lembra o estilo da narrativa em estudo. Trata-
se de uma obra que se aproxima bastante da realidade, através de uma narrativa densa, e de
certa forma cruel, retratando as condições de miséria e penúria enfrentadas pelos
trabalhadores de uma mina de carvão na França do século XIX.
Germinal chama a atenção para a brutalidade e precariedade das condições do
operário francês do século XIX. Esse operário, agredido de todas as formas, exposto a todo
tipo de perigo nas minas, explorado pelos seus chefes e escondidos na escuridão das minas,
transforma-se com a chegada de um novo parceiro, Etienne, com pensamentos socialistas e
com uma mente mais aberta. Este se junta a um outro colega que, apesar do seu perfil
anarquista, fazem uma parceria para influenciar os demais companheiros. Com jornadas de
trabalho pesadíssimas, chegando a cumprir 14, 15, 16 horas com salários muito baixos, e
assistindo à caminhada da família para o mesmo tipo de trabalho, ou até mesmo à prostituição
das mulheres, a dupla passa então a pensar em criar condições de sobrevivência para os
20
trabalhadores. Surge então, a ideia de iniciar uma greve; tendo em vista que uma greve
poderia se prolongar bastante, criam um fundo, com o qual todos os operários deveriam
contribuir. A esses trabalhadores restará somente a luta contra seus opressores: “Surgiam
homens; um exército negro, vingador, que germinava lentamente nos alqueive, nascendo para
as colheitas do século, e cuja germinação não tardaria a fazer rebentar a terra.” (ZOLA, 2000,
p. 238).
Assim foi a obra de Zola (2000), uma semente plantada no proletariado francês, com
intuito de libertar e esclarecer. Primeiro romance a tratar do tema na França e a ser
considerado de cunho socialista. Uma narrativa que pela primeira vez coloca o povo simples
como personagem principal de sua história. Émile Zola, para escrever o livro, conviveu
alguns meses com essas pessoas, andou pelas vilas dos operários, se submeteu aos perigos das
minas e se fez tão carvoeiro quanto eles, apesar de não sê-lo.
Fazendo uma breve comparação entre Germinal e Os Corumbas, podemos observar
algumas semelhanças entre elas: a época e a sociedade em que se enquadram as duas obras
são semelhantes (final do século XIX e início do XX), a sociedade mais ou menos
industrializada, a força do capital sobre essa sociedade que se transformava, e fazia com que
seu proletariado sofresse as mais profundas agressões. Apesar de obras ficcionais, ambas
tratam de um contexto, condições de trabalho e moradia reais.
A situação dos trabalhadores na França e em Os Corumbas apresenta algumas
semelhanças, entre estas, podemos citar: a forma de vida dos operários, a industrialização e a
urbanização acelerada consequência dessa industrialização em que se formavam locais
sem saneamento, planejamento. Os bairros operários possuem o mesmo retrato em ambas as
obras.
As duas obras têm como temáticas principais: a industrialização, a força que o capital
exerce sobre a sociedade, as péssimas condições de trabalho dos operários, movimento
operário, a exploração humana pelo próprio homem, entre outros, que transitam pelas obras,
ora sutilmente, ora com maior ênfase. As personagens estão expostas a várias situações de
miséria e um estado de sobrevivência por um fio, pelas péssimas condições de trabalho, de
moradia e saúde proporcionadas pelos baixos salários e longas jornadas de trabalho, pelos
quais os trabalhadores passavam. Porém, devemos atentar que as obras aqui comparadas,
apesar de várias semelhanças, têm discursos diferentes: na primeira um discurso
marcadamente marxista, que através de seus operários mostra de forma mais explícita a luta
de classes; em Os Corumbas, percebemos essa luta de classes de forma mais amena, com
21
operários menos conscientizados, tendo em vista que na França o movimento se instaurara
naquele momento, e no Brasil, percebíamos os primeiros ecos. Destarte, fica claro que com
intensidades, intenções e discursos diferentes em vários segmentos, Germinal e Os Corumbas
irão dialogar.
Voltando à questão da relação complexa entre o processo histórico-social e as
manifestações artísticas literárias, percebemos que esta relação está muito longe de cessar,
tendo em vista que a mesma vem de longe sendo cultivada. Na Renascença, o filósofo, o
poeta e o físico estavam em patamares diferentes, mas todos tinham a missão de explicar o
mundo. O poeta trazia suas obras como meio de decifrar a sociedade; desde muito, alguns
homens se preocupavam com o saber enciclopédico, saber absoluto de uma época. A partir
desse momento, percebemos que os poetas se apropriam da ciência e esta se entrega à poesia.
Mas a história dessa relação não acaba por aí. Após esse romance no século XV,
Vierne (1994, p. 80) nos mostra a trajetória desta relação, chegando aos nossos dias:
[...] a partir do século XVII, começa a instaurar-se um divórcio. As teorias
dos cientistas principiam a revestir-se de uma expressão própria, em grande
parte porque o espírito da Contra-Reforma inaugurou, em matéria de ciência,
uma doutrina de visão teológica: somente os escritores marginais retomam, e
com muitas precauções, as teorias científicas que cheiram a enxofre [...]. O
século XVIII, com os seus “filósofos”, é seguramente um século mais livre;
ele utiliza inclusive a ciência como uma arma para esclarecer os espíritos...
A enciclopédia não tem pelo menos não tem antes de tudo um escopo
artístico: ela deseja ensinar, para que triunfem as luzes. O divórcio se
instalará, de fato, no século XIX. A razão é porque a ciência passa a ser
muito complexa; ela não mais se preocupa em explicar o mundo... Ela se
dedica aos problemas por setores mais e mais de ponta, para usarmos uma
expressão mais moderna, onde só os especialistas têm condições de se
aventurar [...].
Então, fica claro que seria complicado frente a uma série de “ismos” (cientificismo,
positivismo, entre outros) colocar as conclusões a que se chegou através do estudo científico,
numa linguagem inteligível às pessoas comuns. O escritor falará de algo, de forma clara,
porém a ciência terá certo cunho de mistério que enche os olhos do homem. Esse enigma que
passa a ser a ciência, irá afastar, em parte, o escritor da possibilidade científica.
Daí, sobretudo na segunda metade do século XIX, o extraordinário prestígio
das obras de vulgarização (por exemplo, Figuier, Simonin, Zurcher e
Margollé, Flammarion...). Trata-se de colocar o discurso científico ao
alcance do profano. O estilo e os seus efeitos constituem uma das maneiras
de transpor esse discurso técnico numa linguagem ao capto do leitor profano,
“homem comum”. (VIERNE, 1994, p. 81).
22
Por outro lado, percebemos que a literatura também se encarregará de priorizar seus
temas pela transcendência e devaneios literários sobrepondo-os às informações provenientes
dos assuntos das ciências. Veremos, então que as duas forças não se rendem, e apesar de
serem duas formas de fazer o homem sublimar a ciência fazendo-o sonhar que pode realizar
grandes proezas e descobrir os mistérios da vida, e a literatura fazendo-o transportar para uma
dimensão ficcional, porém dada como possível para aqueles que se entregam ao prazer desse
devaneio , as quais vivem em conflitos pelos terrenos das descobertas, uma querendo
sobrepor-se à verdade da outra.
A ciência e a literatura são duas linguagens diferentes que dizem, algumas vezes, a
mesma coisa, utilizando diversas formas de conhecimento e imaginação. Vemos que as duas
partes irão trazer em seu bojo várias semelhanças que as aproximam bastante, com relação às
construções de seus tipos. De acordo com Ianni (1999, p. 12), “[...] elas estão rodeadas de
tipos e tipologias elaboradas literária ou sociologicamente.” Sobre esta concepção, o próprio
Ianni (1999, p. 12) explicita o seguinte:
São notáveis os tipos ideais que povoam a literatura: Hamlet, Don Quixote,
Robinson Crusoé, Don Ruan, Fausto, Pai Goriot, Madame Bovary, Martin
Fierro, O Senhor Presidente, Pedro Paramo, Macunaíma e outros. Assim
como são notáveis os tipos ideais povoando a sociologia: o burguês, o
operário, o camponês, o tirano, o príncipe, o demagogo, o carismático, o
revolucionário, o intelectual e outros.
E sempre que algo novo se instaura num determinado momento, podemos perceber
que as escritas também se modificam, sejam elas sociológicas ou literárias. E estas quando
feitas com paixão, intuição e imaginação, chegam ao ápice da notabilidade, pois apesar de a
escrita sociológica estar mais ligada à realidade que à literatura aquela por retratar uma
realidade e esta realidade ser complexa, veloz, infinita , a reflexão será feita sobre
interpretações, seleções que irão gerar uma espécie de tradução dessa realidade, que aparecerá
apenas figurativa e significativamente. “São articulações, nexos e tensões, que se depreendem
ou constroem logicamente.” (IANNI, 1999, p. 13).
A imaginação sempre estará presente nos processos que envolvem a transformação
da pesquisa em algo sociabilizável, seja através da narração ou do conceito. Quando formos
interpretar esses dados pesquisados a criatividade e imaginação estarão sempre por perto.
Com efeito, para o homem, enquanto homem, nada tem valor a menos que
ele possa fazê-lo com paixão... Por mais intensa que seja essa paixão, por
mais sincera e mais profunda, ela não bastará, absolutamente, pra assegurar
que se alcance êxito. Em verdade, essa paixão não passa de requisito da
23
“inspiração”, que é o único fator decisivo... Essa inspiração não pode ser
forçada. Ela nada tem em comum com o cálculo frio... O trabalho e a paixão
fazem com que surja a intuição, especialmente quando ambos atuam ao
mesmo tempo. Apesar disso, a intuição não se manifesta quando nós o
queremos, mas quando ela o quer. (WEBER, 1985 apud IANNI, 1999, p.
14).
A paixão e intuição são elementos através dos quais se chega à fabulação, e esta por
sua vez nos leva ao conhecimento e à fantasia.
Outra semelhança que muito interessa ao nosso estudo é que tanto os textos de
sociologia como os de literatura trabalham com pontos que são pertinentes à sociedade, sendo
que cada um a sua maneira, linguagem, perspectiva, mas não deixam de citá-los, pontos esses
que dão sustentabilidade ao texto, seja ele ficcional ou científico. Entre estes pontos, Ianni
(1999) destaca alguns que sempre estão sendo utilizados pelas partes, a saber: nação e
narração, religião e capitalismo, racionalização e alienação, desencantamento e danação.
Porém, é no tópico “narração e visão do mundo” que o autor deixará mais evidente as
questões que perpassam esses dois campos, são eles: texto e contexto, sociologia e ficção,
literatura e conhecimento, sociologia, literatura e narração, narração e fabulação, tipos e
tipologias, categorias e metáforas, estilos de pensamento e visões de mundo termos que
estão sempre presentes tanto na sociologia quanto na literatura. Então, podemos perceber que
ambos vão narrar algo, ambos são formas de mostrar o mundo, desencantá-lo e reencantá-lo,
neles vai sempre haver algo de desabafo, heroísmo, fantasioso sem nunca esquecerem-se da
realidade. “Nesse sentido é que algumas obras de literatura, assim como de sociologia, podem
ser e têm sido tomadas como sínteses de visões do mundo prevalecentes na época.” (IANNI,
1999, p. 41). Partindo desse ponto, é evidente que o estudo dos textos literários podem nos
ajudar a compreender os eventos das sociedades modernas.
Calvino (2009) aborda assuntos que giram em torno da relação que envolve
linguagem, literatura, sociedade, ciência, política, entre outros. Ao confrontar literatura e
ciência, o autor evidencia a utilização da linguagem por ambas, pois na primeira existe uma
consciência de que a linguagem não é inocente, neutra, a sua utilização tem propósitos fortes,
ao contrário da concepção da linguagem para a ciência, em que se considera a linguagem
como um instrumento neutro, utilizado “[...] para dizer outra coisa, para significar uma
realidade a ela estranha.” (CALVINO, 2009, p. 220). O autor também considera que o
discurso literário normatiza valores, nos quais cada signo ou palavra passa a ter o seu valor
desde o momento em que foi selecionado e colocado no texto, havendo uma autonomia por
parte da linguagem.
24
Calvino (2009) fala também da literatura com fins políticos, que é a literatura que
visibilidade àqueles que não estão visíveis e que os efeitos desta irão depender da relação
entre a mensagem e seu público. “A literatura é necessária à política em primeiro lugar
quando ela voz àquilo que não tem voz, quando dá um nome àquilo que ainda não tem um
nome, e especialmente àquilo que a linguagem política exclui ou tenta excluir.” (p. 345).
Assim, diante de todo o exposto, percebemos que realmente essa turbulenta relação
entre ciência e literatura está longe de ter um fim, mesmo sendo tão clara a perspectiva de que
a literatura se utiliza da ciência e esta por sua vez utiliza o imaginário como um dos caminhos
que levam ao conhecimento. Então por que dissociá-las? Por que cientistas e literatos não se
unem em busca do conhecimento? A literatura é mais doce e sonhadora, sem esquecer de seu
compromisso com a realidade, e a ciência é mais rija e misteriosa. Vierne (1994, p. 93) conta
que Hubert Reeves (astrofísico canadense), quando passava por Grenoble, dizia a um jornal
local: “Eu penso que é importante chegar a uma harmonia entre ciência e literatura. Os
literatos tendem demasiadamente a pensar que a ciência é enfadonha, e os cientistas que a
literatura não é coisa séria...” Apesar de Reeves não ser uma autoridade do campo da
sociologia da literatura, percebe-se uma coerência em sua fala. Como citado anteriormente,
tanto literatos como cientistas devem ter a consciência de que estão tratando de fatos
semelhantes, se utilizando apenas de maneiras diferenciadas, não devendo haver essa
disparidade entre as duas categorias. Vierne (1994, p. 93) resume toda essa relação em
algumas palavras muito interessantes:
Outras vezes, é a partir da ciência que se expande o imaginário, onde a ciência
serve de caução para neutralizar as censuras do racional. Outras vezes ainda,
trata-se do fenômeno mais recente, são os próprios cientistas que partem em
busca de um sentido para as suas descobertas. E na procura desse sentido, ocorre-
lhes de passar brilhantemente para a literatura. Dessa forma, a ligação
tempestuosa entre a ciência e a literatura está a ponto de tornar-se uma história de
amor [...].
2.2 Reflexões e intenções sociológicas em Os Corumbas
Publicada em 1933, a obra Os Corumbas atingiu grande sucesso por ser um dos
primeiros e mais lidos romances nos anos de 1930. João Ribeiro, primeiro crítico a
manifestar-se sobre a obra, também foi o primeiro a lançar a polêmica de que ela seria uma
obra de cunho comunista. Porém, a nosso ver, o romance foi apenas revolucionário, pois a
revolta do proletariado é sugerida sutilmente, o que de fato iremos perceber marcadamente é
25
que o texto traz o sofrimento de uma família proletária. Amando Fontes também inova, pois
não analisa apenas a seca, mas a migração para a cidade em pleno ritmo de industrialização e
a vida daquele povo sofrido e humilhado. Entendemos o romance dessa época, como a
produção ficcional brasileira de cunho realista produzida a partir de 1928. Por causa da
temática rural, usou-se o mesmo conceito para indicar os relatos da época, mas não é isso,
o romance de trinta ou neo-realista tem carcterísticas em comum: o retrato da realidade,
indivíduos que representam classes sociais, a verossimilhança e a construção de um mundo
ficcional que deve dar a ideia de totalidade. As temáticas mais frequentes eram as questões
sociais e ideológicas.
A partir da leitura de Os Corumbas, podemos visualizar certas particularidades dos
processos sociais, posicionamentos políticos do início do século XX, no Brasil, e
particulamente no Estado de Sergipe.
Na obra, Amando Fontes procurou retratar de forma explícita as mazelas sofridas
pelo camponês que, ao sair de sua terra natal, se depara com uma realidade, que assusta até
mesmo aos urbanos de classe média baixa. Fontes optou por representar a estética desse povo
sofrido e marginalizado que se torna vítima da indutrialização e da modernidade.
Na sua obra seguinte, Rua do Siriri (1937), o autor fala do baixo meretrício da cidade
industrial, e o enredo se constrói com mulheres que após alguma decepção, perda da honra e
principalmente pela questão da sobrevivência passam a se prostituírem. Entre estas, chega a
filha de Geraldo Corumba que após ser abandonada pelo Dr. Fontoura, cai na prostituição e
chega à Rua do Siriri, esta ainda jovem e bonita poderia sobreviver da venda do seu corpo,
abrigando-se por ali. Ao narrar a forma pela qual as mulheres confluem para a Rua do Siriri,
fica claro que tal fato quase sempre acontece da mesma forma: de casa para as fábricas e
destas últimas ou no caminho que levam até elas, são levadas a acreditar pelos socialmente
superiores, ou até mesmo superiores no trabalho (mestres de setores, médicos, entre outros)
que eles poderão fazê-las mulheres de respeito, e tudo não passa de um grande engano, pois
em seguida elas são abandonadas e jogadas na Rua Siriri. Ambiente sujo e destinado àquelas
que não “prestavam” mais, as que tinham de viver afastadas das moças que mantinham sua
honra para que não as contaminassem. O significado do nome da rua deixava claro o que
Fontes desejava mostrar desordem, confusão, briga, era isso que aquele lugar simbolizava e
as mulheres “perdidas” deveriam morar lá. Algumas observações foram feitas, quanto à
linguagem e comportamento das personagens, que mesmo Fontes, não adotando a linguagem
e o comportamento próprios das prostitutas e do proletário, conseguiu através de sua
26
descrição minuciosa, explicitar aquela gente, seus sentimentos, costumes, entre outros.
Vejamos o que disse Mário de Andrade (s/d, p. 49- 51):
Palavra de honra, que é mesmo assustador isso de você ter vencido a
tentativa que provavelmente se propôs, de fazer uma obra com tal assunto,
onde não aparecesse nenhuma palavra-feia, nem nenhuma cena escabrosa. E
no entanto se conservou dentro de uma realidade tão simplesmente
verdadeira, tão humana... Mas isso ainda faz parte da literatura do livro. A
outra, a mais importante, a concepção da vida, o trágico quotidiano, a
procissão dos seres, a infelicidade miúda, tudo isso está no livro
magistralmente impresso. [...] Desculpe estas confissões lastimáveis, mas é
que seu livro me causou uma impressão bem superior à literatura.
Esta opção utilizada por Fontes em suas duas obras fez com que ele fosse vinculado a
uma literatura dos romancistas do nordeste, e envolvido em toda problemática tão discutida
entre os nossos intelectuais do início do século XX, que preocuparam-se com uma escrita
mais comprometida com os povos das regiões de certa forma marginalizada, com uma
linguagem mais regional. Preocuparam-se, sobretudo, com questões sociais importantes que
afligiam os menos favorecidos, entre estas: escravidão, a vida dos retirantes e dos imigrantes,
a desigualdade social, questões ligadas a problemas sociopolíticos. Nesta mesma época, são
publicados alguns livros de cunho sociológico importantes, como: Casa-Grande e Senzala, de
Gilberto Freyre (1933) e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda (1936).
Alguns nomes importantes desfilavam nessa mesma época ou um pouco antes,
fazendo uma literatura preocupada com a formação de uma consciência nacional, assim como
o fortalecimento de uma escrita de propósitos firmes, participando do Movimento de 30, que
ganhou vida entre os mais humildes, e essa seria a principal diferença entre este movimento e
o Modernismo. Vários nomes e livros se tornaram populares, surgindo então no país, um
público leitor além da burguesia. Dentre aqueles que se tornaram conhecidos, citamos alguns:
José Américo de Almeida com A Bagaceira, ainda em 1928; Rachel de Queirós com O
Quinze; José Lins do Rego com Menino de Engenho; Amando Fontes com Os Corumbas;
Érico Veríssimo com Clarissa; José Geraldo Vieira com A Mulher que Fugia de Sodoma;
Lúcio Cardoso com Maleita; Marques Rebelo com Oscarina.
Talvez, pela razão de que nas obras marcadamente nordestinas percebermos uma
grande preocupação com os problemas sociais urbanos e rurais do homem brasileiro, ainda
com a participação de alguns jovens do sul, que escreviam sobre o sul falava-se, sobretudo,
em romance do Nordeste.
27
Em 1933, ano em que se publicou Os Corumbas, surgiu o nome de Graciliano
Ramos, romancista alagoano, sertanejo de intenções sérias: um dos escritores que mais
concorreram para o avanço brasileiro do Movimento de 30. Junto a outros, Graciliano Ramos
construiu a sua época e consolidou uma literatura preocupada em fortalecer uma consciência
nacional. Naquela época, Maceió era um importante centro cultural; vários nomes circulavam
por lá, nomes que tão brilhantemente contribuíram nos anos de 1930 para o fortalecimento da
consciência nacional, entre eles: a cearense Rachel de Queirós, o paraibano José Lins do
Rego, Santa Rosa também da Paraíba, o alagoano Jorge de Lima, entre outros.
Após a publicação de Caeté e São Bernardo, logo a crítica e o público perceberam a
importância do novo escritor, e Graciliano Ramos foi considerado um clássico do romance e
do conto brasileiros. Escreveu mais dois romances, além desses primeiros: Angústia e Vidas
Secas, no qual retomou a temática da seca que muitos haviam utilizado, do árido sertão dos
retirantes. Como é um livro de densidade rara, a obra ficou muito conhecida e cremos ser uma
das obras mais traduzidas no mundo. Graciliano Ramos foi muito bom ao escrever romances e
contos, algo extremamente difícil na literatura brasileira, pois ou o escritor é um grande
contista ou um grande romancista, mas ele foi os dois. No romance Vidas Secas, se isolarmos
o conjunto de narrativas, poderemos considerá-las como contos muito bem elaborados. Entre
os escritores desta época Graciliano Ramos foi um dos que mais se destacou por sua forma de
narrar com uma escrita correta e clara.
Quanto a esse ponto, da escrita correta e justa de Graciliano, chama-nos a atenção o
comentário que ele fez sobre o romance de Amando Fontes, Rua do Siriri, devido à
linguagem e comportamentos de senhora que Amando utilizou para as prostitutas, pois estas
nunca brigavam, nem bebiam (comportamentos típicos das verdadeiras prostitutas). Tal fato
não quer dizer que o autor se abstivesse a retratá-las, na verdade ele preferiu fazê-lo de forma
bem sutil com uma linguagem mais amena amenidade que não encontrou lugar ao narrar a
triste trajetória dos Corumbas, mesmo esta obra tendo recebido também algumas críticas no
que tange à linguagem empregada.
Em 1933, Amando Fontes estreava Os Corumbas; seu estilo muito se aproximaria do
de Graciliano, tendo em vista ser Fontes um grande romancista que escrevia bem, lia bem e
tinha um forte interesse pela problemática urbana do Nordeste o que comprovamos através
de suas duas grandes obras. Apesar de seu pequeno conjunto de obras, foi um grande escritor
de temáticas sociais fortes, não esquecendo das suas qualidades literárias que em nenhum
momento se ausentou da sua escrita.
28
O primeiro a manifestar-se sobre o novo romancista que estreou em 1933 foi o
crítico João Ribeiro também sergipano, porém não conhecia Amando pessoalmente , na
coluna que mantinha no Jornal do Brasil, chamada Registro Literário. Suas palavras tão
afáveis e fortes abrem a 25ª edição da obra, como homenagem ao grande autor:
Ultimamente, registramo-lo com grande agrado, têm aparecido alguns
romances das terras do Norte, dignos de excepcional acolhimento. Os
Corumbas merece, sem favor algum, essa rara distinção. É um romance
admirável, sem retórico pedantismo, sem ênfase, sem literatura (como soem
dizer os papalvos do estilo arrevesado e de puro artifício) e que é a literatura
melhor. É um romance forte, de aguda observação, de realismo sem agruras
inúteis, de entrecho admiravelmente urdido na vida real da gente pobre,
vítima inexperta de todos os exploradores da miséria honesta dos que
trabalham sem nenhuma garantia do bem-estar e ainda menos da felicidade.
É um romance do proletário infeliz e desesperançado, vivendo entre ilusões
e desenganos mortais [...]. (RIBEIRO, 1933, s/pág.).
Amando Fontes, sobre o qual iremos falar de forma mais aprofundada, no próximo
capítulo, trabalha sua narrativa de forma brilhante, bem descrita, bem entrechada, com os
personagens que vivem e o ambiente que convive com o leitor, além de uma dialogação
perfeita, segundo as palavras de Mário de Andrade (2003), irá debruçar-se sobre a realidade
do povo sergipano que muito se assemelha ao que boa parte do país vinha enfrentando diante
de todos os aspectos da mudança que rondava a sociedade.
Amando tira seus personagens de uma situação rural desesperadora (seca nordestina)
e os leva ao contexto urbano em busca de melhores condições de vida, cujas mazelas se
revelam no comportamento predador daqueles que pressentem estar na presença de um
sistema de valores desiguais. Questões como o trabalho operário e a prostituição, onde o autor
faz uma brilhante comparação, leva a uma das grandes críticas ao sistema operário,
reinvidicado pelo movimento sindical, no qual o filho do Sr. Geraldo Corumba se envolve.
Para Amando, ser um operário mal remunerado e submetido ao poder capitalista não seria de
todo diferente da submissão imposta à mulher prostituída, análise muito bem feita e descrita
em sua obra seguinte, Rua do Siriri. No livro Os Corumbas, Amando Fontes conta a
passagem da família Corumba pela cidade industrial e todos os seus infortúnios durante os 6
anos que vivem na cidade de Aracaju. O casal chega a Aracaju com seus cinco filhos, quatro
mulheres e um homem, porém apesar do curto espaço de tempo, perde toda sua riqueza (que
segundo eles eram os filhos).
As quatro filhas, duas delas dotadas de beleza, vão sucumbindo uma a uma. A de
saúde frágil, Bela, doente e sem condições de cuidar-se diante daquela miséria, depois de
29
muito sofrimento morre por falta de tratamento; Rosenda, a primeira das filhas, é também
primeira a prostituir-se; Albertina, depois de seduzida e usada é lançada à prostituição;
Caçulinha, a mais nova e a esperança de ter e dar uma vida melhor aos pais, é estudante da
escola normal, mas devido às condições de vida apertada, foi lançada na fábrica também,
onde, sem forças para lutar contra a miséria, acaba na vida infeliz da prostituição.
O único filho homem, influenciado pelas ideias socialistas, ou anarquistas, como
sutilmente é abordado no livro, é deportado para o Sul.
Diante de tanta miséria e amargor, os dois velhos, agora mais sós que antes, resolvem
voltar à terra natal, lugar de onde jamais deveriam ter saído em busca de melhor sorte.
E assim, de pensamento em pensamento, foram repassando as últimas
ocorrências de suas vidas.
seis anos tinham vindo, tão cheios de esperanças... A cidade, com o
ganho das fábricas, o casamento para as meninas, o professorado de
Caçulinha, fora tudo ilusão, que por água abaixo descera.
Melhorar?... Não o conseguiram nunca. Perderam, mesmo, o único bem que
possuíam: os filhos desgarrados por esse mundo, a outra morta, afastados
todos do seu convívio... ( FONTES, 2003, p. 236-237).
Na narrativa, Amando consegue passar toda ordem de violência vivida pelos
operários, sejam eles urbanos ou sertanejos, assim como pela família Corumba. E um dos
pilares de toda essa violência era a fábrica, local de total insalubridade e todos os males que
acometiam parte daquela sociedade. A cidade não seria a protagonista, mas o cenário onde se
passam todos os dissabores do sertanejo que, ao deixar sua terra natal, se depara com a capital
sergipana em um acelerado ritmo de industrialização, onde tudo que move a vida é o capital.
Muitos intelectuais, desde o século XIX, descrevem em suas obras os impactos sofridos por
estes que deixam seu habitat natural e se lançam na cidade em busca de melhores condições
de vida. É esse o desgosto que a família Corumba encontra na cidade.
[...] o homem, em especial um trabalhador fabril e urbano em geral,
arrancados dos vilarejos e impelidos a levar uma vida agressiva nas cidades.
Perda do habitat tradicional, onde conjugava-se o trabalho artesanal com o
labor dos campos; onde toda a família encontrava condições de trabalho e
onde ávida não aprecia cindida em tempo do padrão e lugar do trabalho
contra-postos a tempo do descanso e lugar de morar. (BRESCIANI, 1985, p.
38).
30
A obra em estudo despertou naquela época uma série de debates distintos entre os
intelectuais: João Ribeiro
2
, Otávio de Faria
3
, Antônio de Alcântara (1933) fala que o
romance é bem construído tecnicamente, não exageros, tem ão, personagens com vida
interior e exterior que se apresentam por si mesmos, tematiza o proletariado e não a pequena
burguesia –, Mário de Andrade, e Álvaro Lins (1963, p. 246) que diz: “[...] o romance obteve
sucesso ao mesmo tempo na crítica e nas livrarias, bastante elogiado pelos intelectuais e muito
lido pelo público.” Fontes inova na abordagem que faz no seu romance de 30, ele alia a
problemática do brasileiro do campo expulso pela seca e emigrando para a cidade, ao
trabalhador que enfrenta a inevitável industrialização por qual Sergipe passa no início do
século XX.
Entre os vários posicionamentos da crítica brasileira, como os citados anteriormente,
a respeito da obra de Amando Fontes, Os Corumbas, enfatizaremos dois deles: João Ribeiro,
que conforme citado acima foi o primeiro a tecer comentário sobre a obra; ele via o texto
como um dos primeiros documentos comunistas e dizia que a obra era fruto de uma tentativa
frustrada de um romance proletário. “[...] um dos raros documentos do comunismo incipiente
e fatal. É um retrato bem parecido da sociedade que se dissolve com a erosão funesta da
civilização... romance proletário infeliz e desesperado.” (RIBEIRO, 1933, s/pág.).
Esse comentário gerou uma série de posicionamentos contra, entre eles, os de Otávio
de Faria que, ao contrário de Ribeiro, via o livro de Fontes como uma verdadeira obra
literária, sem ideologia política, portanto imparcial. Otávio Faria comenta três obras da época,
a saber: Os Corumbas, Serafim Ponte Grande e Cacau, porém para ele, entre estas Os
Corumbas se destaca. Vejamos o seu comentário:
Na verdade, a burguesia não teve sorte com nenhum dos três. Mas enquanto
o Sr. Amando Fontes, numa grande felicidade à sua função de romancista,
apresenta apenas o que viu, o que lhe parece ser a vida proletária de Aracaju,
sem nada forçar em benefício do seu credo pessoal, os outros dois,
esquecidos do papel que devem desempenhar, põem os seus romances a
serviço de uma corrente social, para denunciar com o Sr. Jorge Amado, para
destruir e borrar de preto com o Sr. Oswald de Andrade. (FARIA, 1933, p. 7-
8).
Para alguns outros intelectuais havia simplesmente uma preocupação com os novos
moldes da sociedade brasileira nessas obras dos anos 1930, porém isso não quer dizer que
2
Citado anteriormente, foi o primeiro a tecer comentários sobre a obra do autor e colocou na imprensa, gerando
as primeiras controvérsias de ordem política.
3
Gerou opinião contra, devido não concordar com as colocações feitas por João Ribeiro que via o romance como
um documento do comunismo incipiente e fatal, como afirma na passagem abaixo.
31
todos a tinham da mesma forma. O grau, a linguagem, as intenções individuais e outros
elementos peculiares ao texto eram usados de maneiras diferentes que faziam diferir a forma
como se explicitava esta preocupação. Estes autores dos anos 30 foram responsáveis pela
divulgação da miséria e violência que acontecia no âmbito nacional, com o intuito violento de
denunciar ou dar voz aos oprimidos, ou ainda, simplesmente, para contar a história. Todos
eles intencionavam desnudar a sociedade brasileira em meio à mudança de comportamentos e
condutas. Sobre a obra em estudo, dentre estas citadas, Renato Almeida (1934, p. 28)
comenta:
A desgraça dos Corumbas não tem traço psicológico é apenas um fato
econômico. A caçulinha, no dia que não pôde mais continuar os estudos,
porque era preciso ganhar algum dinheiro pra sustentar a casa, nesse dia
começou a sua escravidão, cuja alforria, como a das irmãs, era a desonha. E
máquina jurídica, quando a pobre velha pensou em pedir reparação, amparou
o crime do poderoso e esmagou a que, por ser pobre, não podia pensar em
justiça e dignidade. Tinha que conformar-se em ser resíduo social.
Além das reflexões que colocamos anteriormente, dentre as várias percebidas na
obra, pensaremos um pouco mais em duas possibilidades que Os Corumbas nos oferecem
enquanto obra que explicita questões sociais. São temas vistos e revisitados constantemente
pelas ciências sociais, entre estes podemos citar: o desenvolvimento e o progresso, e a questão
da identidade. Lançaremos algumas dessas reflexões de modo geral para que possamos
perceber a amplitude da obra, porém serão nos próximos capítulos que trataremos
especificamente de algumas dessas reflexões, de forma mais aprofundada.
Percebemos que toda narrativa se desenrola a partir das transformações sociais
advindas do progresso que acontece no início do século XX, as quais são entendidas como a
forma pela qual a sociedade e a cultura se moldam a fatores como: o crescimento econômico,
a guerra, ou convulsões políticas e sociais.
Dessa forma, percebemos que Fontes traz em sua obra as transformações sofridas no
Brasil e especificamente em Aracaju, por conta do progresso que chegava por aqui, gerando
uma sociedade mais ou menos urbanizada/industrializada.
Os personagens procuram se afastar da situação que viviam anteriormente, através da
ida à cidade industrial, moderna e progressista, em busca de melhores condições de vida;
porém, logo os problemas começam a aparecer, quando eles percebem que estão inseridos
num sistema desigual. Questões ligadas ao progresso, como o trabalho operário e a
prostituição adquirem senão identidades gêmeas, similaridades dentro de um contexto
32
sociopolítico de matizes contrastantes. Não podemos esquecer a transição de uma economia
agrícola para uma fase industrial de transformações drásticas ocorridas junto ao sistema de
vida das pessoas, pois havia, como ainda há, a exigência de inserção no mundo moderno. Tal
entrada, além de romper com estruturas sociais já enraizadas, apresentava um estilo de
sociedade que, se por um lado oferecia os elementos do progresso, por outro impunha à
sociedade encargos sociais pesados.
O novo sistema avançou e levou as pessoas a terem que se adaptar de maneira
drástica. Muitos mudaram de profissões que praticavam anos, os costumes também
passaram a ser outros, a educação tomou novos rumos e novos valores foram impostos à
sociedade, quer ela estivesse ou não pronta para adequar-se a esse novo sistema.
Na modernidade, o homem passa a caminhar só, ou seja, ele não está mais sustentado
e consolado pelas ideias metafísicas, em que se explica a sua trajetória sofrida por outras
vidas que o indivíduo possa vir a ter, ou a vida eterna, por exemplo. Na modernidade o que
vale é a individualidade, a vida se encerra na própria individualidade lógica. Nela o indivíduo
é setorizado, sua racionabilidade é a dos meios, que se a partir da minuciosa categorização
do meio de sobrevivência, sendo tal indivíduo realizador de minúsculas partes que
complementa o todo, separando-o dos resultados da sua ação, o homem passa ser
individualidade, agente desse sistema de produção e consumo. A modernidade nos expõe a
uma série de mudanças drásticas, desintegração, força, luta, ambiguidades, rapidez, que como
muito explicam Marx e Engels (1976, p. 70):
É o permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas as
condições sociais, a incerteza e o movimento eternos... Todas as relações
fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas representações e concepções,
são dissolvidas, todas as relações recém-formadas envelhecem antes de
poderem ossificar-se. Tudo que é sólido se desmancha no ar...
Este progresso trouxe para os centros urbanos um fluxo migratório significativo,
motivado pela oferta de melhores condições de vida. Tais aspectos são abordados de forma
brilhante na obra Os Corumbas, na qual encontramos todos os elementos naturais à
transformação social desencadeada pela industrialização gerada pelo progresso imaterial,
aludindo ao comportamento dos mandatários nordestinos em relação ao drama dos retirantes.
Diante do exposto fica claro que o progresso atua de forma decisiva na vida da
sociedade, dos indivíduos. Ele atua na divisão social do trabalho, consequentemente nas
classes sociais, intervindo diretamente na vida, nas decisões, nos acontecimentos sociais.
33
Percebemos que essa intervenção nem sempre é benéfica, como não o foi para os que
trabalhavam nas fábricas, cuja vida de subsistência fora trocada pela venda da mão de obra
por um preço ignóbil, aliás, não a mão de obra, mas muitos investiram suas próprias vidas,
ao trabalharem nas fábricas sem a mínima dignidade, tampouco proteção. Aquele que seria o
lugar onde dariam realidade a seus sonhos faria prosperar suas vidas, passa ser um verdadeiro
matadouro, como tão bem coloca Marx (1980, p. 484):
[...] o trabalho nas bricas exaure os nervos ao extremo, suprime o jogo
variado dos músculos e confisca toda a atividade livre do trabalhador, física
e espiritualmente. A maquinaria torna meio de tortura ao trabalhador, ao
invés de ela libertá-lo, ela o aprisiona.
Os integrantes da família Corumba estavam só e eram tidos como estranhos na
cidade, sendo expostos a uma situação completamente nova com atores sociais diferentes que
conviviam na zona urbana e mais ou menos industrializada. Quando da transição de uma
economia agrícola para uma fase industrial, as transformações ocorridas na vida das pessoas
foram assombrosas, pois o indivíduo tinha que inserir-se de forma adequada no sistema. Essa
inserção rompia com estruturas conhecidas e enraizadas e apresentava uma forma de viver
e conviver com os elementos da modernidade, assim como, impunha a esta sociedade um
peso social muito difícil de ser carregado pelo proletariado.
No que diz respeito a esse ponto, podemos perceber a relação entre as três
concepções abordadas por Hall (2007): identidade do sujeito do Iluminismo, do sujeito
sociológico e do sujeito pós-moderno. A primeira concepção se baseia na centralidade da
pessoa humana, em que o indivíduo é unificado, dotado das capacidades de razão, de
consciência e de ação que, apesar de se desenvolverem, permanecia o mesmo no indivíduo;
racionalidade é vista como o centro da identidade de uma pessoa, cada indivíduo teria seus
meios para alcançar seus objetivos, seus interesses individuais. A noção de sujeito sociológico
trabalha a complexidade do mundo moderno e acredita que o indivíduo, ou melhor, seu
interior não é autônomo, consiste na relação com “outras pessoas importantes para ele”, que
mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos esta se tornou a concepção
sociológica clássica da questão, a identidade é formada na “interação” entre o eu e a
sociedade. Nessa concepção podemos perceber que a relação do homem com o meio e o seu
desenvolvimento neste mesmo meio é em si um fenômeno repleto de singularidades. O
indivíduo se molda e realiza transformações a partir da sua relação com o ambiente. Esta
observação adquire ainda maior significação na medida em que refletimos sobre o fato de que
34
este ambiente é ao mesmo tempo um ambiente natural e humano. Este indivíduo possui uma
essência interior que será influenciada, alterada constantemente pelo meio exterior no qual
vive. Tal concepção surgiu no final do século XIX com o desenvolvimento das ciências
sociais, sobretudo a sociologia, nas obras de autores como Émile Durkheim.
E para a terceira concepção, as identidades que compõem a parte externa, estão
entrando em colapso devido às mudanças institucionais e instrucionais. Esse processo produz
o sujeito pós-moderno conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou
permanente. Para Hall (2007) a transformação da concepção moderno-sociológica para a pós-
moderna, decorreu do desenvolvimento das ciências sociais e biológicas, nos séculos XIX e
XX que anteriormente abordava a superficialidade do indivíduo. De acordo com Hall (2007,
p. 26):
Muitos movimentos importantes no pensamento e culturas ocidentais
contribuíram para a emergência dessa nova concepção: a Reforma e o
Protestantismo, que libertaram a consciência individual das instituições
religiosas da Igreja e a expuseram diretamente aos olhos de Deus; o
Humanismo Renascentista que colocou o Homem no centro do universo; as
revoluções científicas, que conferiram ao Homem as faculdades e as
capacidades para inquirir, investigar e decifrar os mistérios da Natureza; e o
Iluminismo, centrado na imagem do Homem racional, científico, libertado
do dogma e da intolerância, e de diante do qual se estendia a totalidade da
história humana, para ser compreendida e dominada.
Esse fluxo migratório significativo trazido para os centros urbanos, cuja motivação
era justamente a oferta de melhores condições de vida, devido à chegada da industrialização
(modernidade) é abordado na obra de Amando Fontes de forma bem oportuna. A velocidade
que se mostrava cada vez mais neste momento social e histórico nos faz lembrar as palavras
de Marx e Engels (1976), fazendo alusão ao caráter da modernidade e seu impacto sobre a
identidade cultural.
É visível que nesta reflexão feita anteriormente, a obra em estudo muito tem a dizer
sobre os eventos que aconteciam não na capital industrial, mas também no Brasil, dessa
época. Podemos perceber que talvez Amando, de alguma forma, tenta dizer algo ao povo.
Será que por este motivo, podemos considerar Os Corumbas uma narrativa engajada? Será
que toda arte é engajada? Ao final deste trabalho, certamente, teremos a resposta para esta
pergunta. No entanto, é pertinente refletirmos um pouco sobre o termo “engajamento”. Sua
semântica e seus pensadores.
35
Dedicados à compreensão da arte engajada, alguns estudos foram pouco a pouco
tentando esclarecer esta ideia de engajar-se através da obra literária. Entre outros, os
estudos de Benoit Denis (2002), crítico francês; para ele, a concepção de engajamento no
texto literário surgiu de verdade no culo XX. Antes, porém, tínhamos apenas uma literatura
de combate, mas não engajada.
Tratando-se de literatos e de literatura, percebe-se imediatamente que o que
está em causa no engajamento é fundamentalmente as relações entre o
literário e o social, quer dizer, a função que a sociedade atribui à Literatura e
o papel que esta última admite representar. No sentido escrito, o escritor
engajado é aquele que assumiu, explicitamente, uma série de compromissos
com relação à coletividade, que ligou-se de alguma forma a ela por uma
promessa e que joga nessa partida a sua credibilidade e sua reputação.
(DENIS, 2002, p. 31).
Partindo desse pressuposto, avaliamos o engajamento com uma bipolaridade que tem
um lado literário e um social; poderíamos ainda acrescentar o lado político. Todos estes três,
por sua vez, se relacionam e fazem com que a obra tenha uma significação, a qual conferirá ao
texto esse compromisso com a realidade, com a coletividade, que, como vimos, o estético
está ligado ao literário. A sociedade precisa entender que aquele texto tem algo a mostrar,
algo a dizer, da mesma forma que o literário coloca-se à disposição das reflexões importantes
àquela época ou contexto. Denis (2002) explica, ainda, que o desgaste sofrido pelos conceitos
de política e literatura engajada muito colaboraram para o alargamento da visão de
engajamento, e esta visão torna o texto literário circunstancial, sendo assim, um texto
transitório e contextualizado.
Outro nome muito importante no que se refere à literatura engajada é o de Jean-Paul
Sartre, filósofo, escritor e crítico francês, que acreditava que os intelectuais deveriam
desempenhar papel ativo na sociedade, contribuindo para o seu bem-estar. Sartre abraçou
causas dos partidos de esquerda, usando sua obra como veículo. Ele nos mostra que uma
literatura útil é aquela que se volta sem pudores para o imediato, o que esclarece a ideia que
Denis (2002) abordou em sua obra sobre o caráter circunstancial e transitório da literatura
engajada.
Jean-Paul Sartre (2006) apresenta questionamentos que nos fazem refletir sobre o
papel do texto literário: que é escrever? Por que escrever? Para quem se escreve? A partir
destas reflexões, o autor nos esclarece sobre o que significa o que foi escrito, o imaginário, a
linguagem através da qual se escreve, e o próprio processo da escrita engajada. Nesse sentido,
36
o autor explicita que o grupo de leitores para quem se escreve, muito vai influenciar na
produção do autor.
Não escrevem a respeito da ideologia: adotam-na implicitamente; trata-se,
para eles, do que chamamos pouco de contexto ou conjunto de
pressuposições comuns ao autor e aos leitores, necessárias para tornar
inteligível a estes o que escreve aquele. (SARTRE, 2006. p. 71).
É bastante clara nesta colocação a parceria que autor e leitores estabelecem
inconscientemente, estes para elaboração e entendimento da leitura deverão estar atentos ao
contexto e conjunto de acontecimentos, costumes, saberes, pertencentes a um e a outro.
Em suma, o romance de Amando Fontes representa as condições sociais do povo
brasileiro dos primeiros anos do século XX, mais especificamente, na realidade da vida
aracajuana do início do século passado, através de uma narrativa densa e permeada por
elementos que nos leva a pensar e conhecer como se deu a formação da sociedade
industrializada no Brasil, Sergipe e Aracaju. Em sua obra, é possível encontrarmos os
elementos naturais à transformação social e à análise da estrutura social do povo sergipano, do
burguês ao proletariado.
Nos próximos capítulos faremos algumas observações sobre o autor, suas
personagens, algumas passagens da obra, assim como, os objetos que compõem os ambientes
da narrativa, como também os próprios espaços, no qual se desenrolam as ações do romance e
seus símbolos.
37
3 UMA SOCIOLOGIA DA LITERATURA EM OS CORUMBAS
Figura 3 Capa da 21ª edição do romance Os Corumbas
Fonte: Google Imagens
4
3.1 Intenções e aparições sociais na fala de Amando Fontes
Amando Fontes, nascido em 15 de maio de 1899 na cidade de Santos-SP, com
apenas 5 meses de idade veio para Aracaju, cidade de origem de sua família, fato que se deu
devido à morte de seu pai, o farmacêutico Turíbio da Silveira Fontes. Filho de dona Rosa do
Nascimento Fontes, foi criado mais ligado à família paterna, a qual custeou parte dos seus
estudos. Ele dividia o seu tempo entre a fazenda de propriedade da família e a capital, onde
deu início aos seus estudos na escola particular de dona Zizi Cabral. Sua maturidade
intelectual o fez ser admitido no Ateneu Sergipense com apenas 10 anos de idade, neste que
era um dos melhores e maiores colégios do Estado de Sergipe (fundado em 1870 e por onde
passou uma série de pessoas que muito contribuíram para o crescimento do Estado), porém
não obteve êxito nos estudos nesta época, e resolveu estudar inglês e português, abandonando
o ginásio.
Logo começou a trabalhar no Diário da Manhã, de Aracaju, como revisor; pouco
tempo depois, seguiu para Belo Horizonte, onde pretendia servir a uma função pública para
custear seus estudos. Com poucos conhecidos e um suposto isolamento, Fontes intensificou
sua relação com as letras, muito tempo iniciada com leituras muito importantes para a sua
4
Disponível em: <http://www.google.com.br/images?hl=pt-
BR&source=imghp&q=os+corumbas+de+amnado+fontes+capas&gbv=2&aq=f&aqi=&aql=&oq=&gs_rfai=>.
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formação literária, entre elas: Alencar, Camilo, Eça, Zola, Comte, Schopenhauer, Spencer, os
clássicos portugueses, os poetas nacionais, Machado de Assis, entre outros.
Em 1917, retorna a Aracaju, por problemas de saúde, ficando na Fazenda Aguiar (a
mesma que fez parte da sua infância) por mais de um ano.
Seguiu para a o Rio de Janeiro, com o intuito de estudar medicina. Nesse tempo,
passou a frequentar com maior intensidade o meio literário, ao lado de Jackson Figueiredo,
seu amigo de infância. Mais uma vez, retorna a Sergipe, tendo que abandonar o curso por
motivo de doença. Nesta época, trabalhou com um de seus tios explorando a Fazenda Aguiar
e algumas salinas da região, foi o tempo em que Fontes mais se dedicou à leitura, influenciado
pelo poeta Garcia Rosa, figura muito conhecida e popular entre a juventude intelectual
sergipana. Foi Rosa quem ratificou a magnitude de escritores clássicos da literatura universal.
Nesse período, além de escrever algumas poesias e publicá-las na imprensa local, Fontes teve
a ideia de escrever Os Corumbas, redigindo apenas os dois primeiros capítulos.
Quando classificado em 1922 para agente fiscal do imposto de consumo, na cidade
de Salvador, voltou a Aracaju apenas para casar-se com a senhora Corália Leal Teixeira, no
dia 31 de julho de 1923. Em 1924, entrou na Faculdade de Direito da Bahia, formando-se em
1928. Durante seus estudos em Salvador participou do grupo de Carlos Chiachio, Artur Sales,
Rafael Barbosa, Herman Lima, e outros. Após o bacharelado, transferiu-se para Curitiba,
voltando-se para as atividades industriais. Fontes regressou ao Rio de Janeiro, após a
Revolução de 1930, dedicando-se à advocacia, e retomando a escrita do romance,
descontinuada 12 anos, que veio a ser a primeira obra a conquistar o Prêmio Felipe
d’Oliveira que estreava a sua primeira versão em 1933. O livro Os Corumbas causou uma
série de discussões no meio literário e muito sucesso na crítica, sendo até hoje um livro muito
importante para a literatura de 1930.
Nomeado professor de português do Distrito Federal, pouco tempo depois é
convocado para política do Estado de Sergipe, sendo designado deputado federal pela União
Democrática Nacional (UND) de 1934 a 1937 e nas candidaturas seguintes pelo Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB) e Partido Republicano (PR), na mesma época em que escrevia
Rua do Siriri, publicado no final deste último ano de mandato. Fontes volta ao cargo de
agente fiscal, exercendo-o no interior do Rio de Janeiro.
Em 1946, volta à função de deputado federal pelo Estado de Sergipe, sendo um dos
responsáveis pela Constituição da República. Nome de muito destaque devido a seus projetos,
39
emendas, pareceres, discursos, reelegeu-se em 1950, quando participou da Comissão de
Economia. Não mais concorreu ao cargo em 1854, voltando a exercer sua função efetiva de
agente fiscal. Faleceu em 1967, no mês de dezembro, deixando inacabado O deputado Santos
Lima, romance que retratava os últimos anos da República Velha até 1933.
Para estudarmos uma obra, seu teor político, social, filosófico e literário é necessário
conhecermos o seu autor, suas aspirações, concepções, entre outros aspectos. Partindo desse
pressuposto, entendemos que conhecendo a vida de Amando Fontes e a época em que foi
escrito Os Corumbas, chegaremos a algumas conclusões sobre a obra e os acontecimentos
nela relatados e a sociedade sergipana do início do século XX.
Com uma vida de tantas leituras e uma atuação política intensa, Fontes consegue
retratar muito bem a vida dos sergipanos que vivem em Aracaju, capital industrial do Estado,
assim como as dificuldades, anseios, melancolias do seu povo. Como citado anteriormente,
ele consegue retratar de forma viva os sentimentos que povoam o proletariado da cidade
industrial e, como dito pela crítica, Amando falava com tal propriedade que mostrava ser um
profundo conhecedor da alma sergipana.
A ideia da criação do romance se deu quando Fontes avistou um casal de velhos que
partia da estação de Aracaju para o interior do Estado, como ele contou: “[...] um casal de
velhos, silencioso e só, num vagão de estrada de ferro que deixava a estação de Aracaju, foi o
pequeno átomo, o núcleo gerador do romance.” (FONTES, 1934, s/pág.). Porém, a
interrupção da escrita da obra se por ele achar que lhe faltavam dois aspectos primordiais:
conhecimento da vida do aracajuano e inexperiência no trabalho literário, experiência que
veio aflorar 12 anos depois, assim como a assimilação dos registros necessários para a escrita
da obra.
É interessante esclarecermos que o vocábulo corumba, muito tem a ver com as
personagens e todo o enredo da narrativa, pois na obra significa sertanejo que vem para
capital em busca de melhores condições de vida. Diversos significados são atribuídos a este
vocábulo e todos eles dentro de um mesmo campo semântico. De acordo com Renato
Mendonça, a palavra vem do bantu, significando mulher velha (MENDONÇA, 1973). Para
Bueno (1964), corumba significa sertanejo, mal trajado, desajeitado, feio, em algumas regiões
do Brasil significa sítio afastado, isolado, sertão. No Michaelis (1998) podemos encontrar o
seguinte significado: sertanejo que sai para fugir da seca, pau-de-arara, retirante e para Caldas
Aulete (1948), significa matuto, homem da roça, tabaréu, entre outros.
40
A partir do próprio título do romance, já podemos perceber que o escritor não
escreveu a obra aleatoriamente, suas pretensões vão além do puro fazer literário, mas
denuncia forte tendência a um tema extremamente frequente na escrita desta época, a temática
regionalista, sobretudo, a nordestina. Amando Fontes, como citado anteriormente, participou
das rodas intelectuais mais agitadas do país, tanto literárias ao lado de alguns nomes
importantes , como políticas, com uma participação efetiva nas decisões, fato este que foi de
grande valia para escrita da obra, pois através dessa vivência ele pôde observar de perto o
povo, o qual representava junto ao país. Este também retratou na obra alguns discursos
políticos que afloravam na época. Entendemos que a perfeição da descrição dos eventos, dos
diálogos, dos sentimentos presentes na obra foram viáveis devido a essa vivência. Fica
evidente que a literatura feita por Amando esteve voltada para os acontecimentos sociais, foi a
representação de uma época, quando a literatura passa a trilhar novos horizontes, em que o
escritor passa a ter uma postura diferenciada.
Mas é muito importante percebermos que, ao contrário do que Júlio Ribeiro (1933)
afirmou, a obra não parece ter resquícios de comunismo, tendo em vista que na biografia do
escritor não vemos nenhum vínculo deste com aquele. Ele apenas intenciona descrever a vida
do povo aracajuano, nos vários segmentos sociais, sobretudo a classe operária, a precariedade
de suas vidas e a difícil migração do campo para cidade e todas as suas contradições. Amando
Fontes tem o objetivo de denunciar, indignando o leitor com as várias passagens do texto, que
de tão bem escritas nos parecem extremamente reais, mas não tendenciosas. Ainda na entrega
do prêmio Felipe d’Oliveira, Fontes (1934, s/pág.) afirma que:
Tive de ceder à verdade, porém; tive que renunciar ao desejo de seguir o
caminho de alguns mestres, para ser fiel na interpretação da alma, dos
sentimentos de nosso povo, simples, primitivo, expressando ainda as suas
maiores dores e tragédias por um gesto inacabado, por duas ou três palavras
de resignação ou desconsolo [...]. Não deverei esconder-vos que fui
solicitado muitas vezes, ante o sofrimento que dia a dia se acumulava sobre a
cabeça dos Corumbas, a tomar o partido dos proletários, dos pobres,
colocando-me sistematicamente contra os ricos. Fazê-lo, porém, seria cair na
sustentação de uma tese, seria falsear acontecimentos e caracteres, seria
deixar de ser “romance”. Entre centenas de tantos outros argumentos,
ocorriam-me, sobretudo, aquelas palavras de Tchekov: “Quando eu falo em
ladrões, nunca falo que esse ato é um crime. Isso é da alçada do júri. A mim
apenas compete mostrar como agem tais indivíduos”.
Diante da fala de Amando Fontes, fica claro o caráter de sua obra, na qual o que
interessava era a pura transcrição dos fatos e caracteres da sociedade sergipana. Conforme
abordado anteriormente, apesar de João Ribeiro (1933) considerar Os Corumbas um romance
41
proletário, a passagem acima também esclarece que não é, pois o próprio Fontes diz que não
tomou o partido do proletariado, tampouco narrou a revolta dos mesmos, limitou-se apenas a
descrever os fatos de um modo geral, prova disso, a nosso ver, seria a objetividade da obra,
tendo em vista que a narrativa não é piegas, tampouco sentimental, pelo contrário, em alguns
momentos a escrita se torna cruel e dura, comovendo o leitor pela simples descrição dos fatos.
Sobre a proletarização da obra, Jorge Amado autor de Cacau, obra que foi publicada
na mesma época que Os Corumbas e sobre a qual também giravam assuntos acerca da
proletarização, escreveu uma resenha no Boletim de Ariel
5
sobre seu posicionamento acerca
do assunto:
No entanto, quero notar uma coisa, Os Corumbas não é um romance
proletário. Se faço essa anotação é porque várias pessoas têm me afirmado
que Amando Fontes realizou literatura proletária com seu livro. Primeiro,
acho que as fronteiras que separam o romance proletário do romance
burguês não estão ainda perfeitamente delimitadas. Mas se advinham
algumas. A literatura proletária é de luta e de revolta. E de movimento de
massa. Sem herói nem heróis de primeiro plano. Sem enredo e sem senso de
imoralidade. Fixando vidas miseráveis sem piedade, mas com revolta. É
mais crônica e panfleto (ver Judeus sem dinheiro, Passageiros de terceira, O
cimento) do que romance no sentido burguês. Ora, acontece que Os
Corumbas é o romance de uma família e não o romance de uma fábrica.
Com heróis, com enredo, com as reticências maliciosas da literatura
burguesa. A vida das fábricas de Aracaju, o movimento dos operários, suas
ações, tudo é detalhe no livro, tudo circunda família Corumba. Essa, sim, é
fixada, marcados traços, expostos ao leitor vivinhos, trabalhados por alguém
que é de fato romancista. Demais, o que o romance inspira é uma imensa
piedade por esses destinos, pelos operários de per si, dando ao leitor vontade
de auxiliá-los. Mas se o leitor tivesse de ajudá-los começaria pela família
Corumba que lhe desperta piedade maior. É piedade do intelectual burguês
pela miséria do proletariado. Não é a revolta do operário pelo causador de
sua miséria. A literatura proletária se propõe incentivar a revolução dos
oprimidos. O romance proletário deve inspirar o sentimento de revolta e de
luta. Fazer do leitor um inimigo da outra classe. Comover não basta. É
preciso revoltar. (AMADO, 1933, p. 292).
Na citação acima, é possível visualizarmos quatro pontos essenciais para que uma
obra seja de cunho proletário, segundo Amado (1933): ausência de julgamentos morais
6
, o
retrato da vida miserável, a revolta e os movimentos de massa e luta. Com essas orientações
fica claro que a obra retrata o proletariado sem, contudo, ser um romance proletário, pois a
sugestão de revolta que alguns mencionam aparecer na obra é bastante sutil para ser
5
Mensário crítico-bibliográfico que tratava dos assuntos relacionados às Letras, Artes e Ciências, no qual muitos
literatos da época escreviam seus textos.
6
É perceptível na obra Os Corumbas uma preocupação com a não utilização de um vocabulário chulo nos
diálogos, a exemplo, como citado anteriormente neste trabalho, quando Graciliano comenta que Amando na obra
Rua do Siriri, utiliza um vocabulário para as prostitutas, semelhante ao das senhoras.
42
considerada “revolta”; podemos ver ainda com Dias da Costas (1933, p. 11), que a ausência
de palavrões nas falas das personagens indica uma não proletarização do romance,
prejudicando a veracidade da obra: “[...] o romance não se proletariza nem mesmo nos
diálogos de proletários, onde não surge nunca um palavrão.” Porém, notadamente, fica visível
a preocupação de Amando Fontes com uma escrita literária “limpa”, pois em suas obras ele
preferiu optar por um ritmo leve e uniforme. A família é vista como o centro da narrativa e
isto se dá pelo fato dos Corumbas representarem os imigrantes que saem do campo para serem
explorados na cidade. Assim, Amando Fontes usa os membros da família para explicitar e
descrever as péssimas condições em que viviam as várias famílias imigrantes durante o
processo de industrialização nas cidades. De acordo com Dias da Costas (1933), na obra
temos a seguinte situação: de um lado a classe dos exploradores, representados pelas fábricas
Têxtil e Sergipana que tinham como finalidade sugar a classe operária a qual, do outro lado,
sustentava a burguesia.
Ainda sobre a proletarização da obra, Matilde Garcia Rosa (1933) afirma que a obra
apesar de apresentar uma família operária, a faz com tendências burguesas, com objetivos
claramente burgueses, em que o ideal seria a filha formar-se em professora, casarem-se,
aburguesando assim, a descendência. Como prova disso, eis a fala de Sá Josefa:
Vestia-se melhor, andava-se no meio de gente [...]. Depois, tinha assim uma
certeza, uma espécie de pressentimento, de que as filhas logo casariam.
Isso, as mais velhas. As duas mais novas iriam para a escola. Nem
precisavam até de trabalhar. Caçulinha, que era tão viva e inteligente, bem
poderia chegar a professora [...]. (FONTES, 2003, p. 28).
Assim, percebemos claramente que os ideais eram tipicamente burgueses. Como
afirma Matilde (1933), essa é uma tese mais que burguesa. Como citado anteriormente,
também a falta de revolta na obra evidencia essa não proletarização, onde os personagens não
se revoltam contra a burguesia, apenas lamentam, choram e se permitem ser humilhados.
Havia uma aceitação da não realização dos seus planos e dos infortúnios, como podemos
perceber na passagem abaixo, quando Caçulinha, a esperança da família, aceita a proposta de
viver dependente do Dr. Gustavo para não ser mais um peso aos pais, pois na fábrica se
trabalhava no escritório as moças de vida honesta:
A vida é isso, mãe: quando a gente começa a ir pra baixo, não sabe onde vai
parar... Eu, até, não tenho razão pra maior queixa... Achei um homem de
posição pra me valer, ao passo que outras... Olhe: o melhor é a gente botar a
vergonha e o coração pra um lado, e aceitar a sorte, venha com a cara que
vier. [...] Não fique triste, mãe. Não fique. Da minha parte, eu já estou
43
conformada. Não era essa minha sina? Pois bem: estou cumprindo...
(FONTES, 2003, p. 226-227).
Posto isto, confirmamos que o livro Os Corumbas, de fato não é uma obra proletária,
ela simplesmente aborda de forma encantadora e brilhante a vida proletária e os problemas
que cercam esta categoria social, ou seja, a nosso ver é uma obra de fundo proletário, mas não
um romance proletário. Alguns críticos e estudiosos insistem em ver a obra como um romance
proletário, porém este posicionamento, neste momento, não será abordado em nosso trabalho,
tendo em vista que o mais importante é perceber que Os Corumbas, juntamente com outras
obras daquela mesma época, geraram a discussão acerca da literatura proletária no Brasil, na
década de 1930. Mesmo Amando Fontes não sendo operário, escreveu sobre os operários. Sob
a sua visão burguesa, o autor retrata o modo de ser dos operários de Aracaju, assim como suas
vidas. Esse retrato existente na obra mostra a realidade do operário no Brasil que iniciava um
processo de conscientização das condições precárias nas quais viviam, assim como a gritante
desigualdade social entre duas classes opostas: a burguesa e a proletária.
Desse modo, após entendermos melhor como se deu a aceitação da obra pela crítica,
abordando pontos importantes sobre a obra, é pertinente percebermos que independente de
como o romance é visto pela crítica, Fontes mostra seu conhecimento de Sergipe, da vida e
costumes da cidade e do campo; é através desta obra e de suas passagens que o autor irá, aos
poucos, mostrar sua visão, nos dando uma noção do que foi a sociedade sergipana do início
do século XX.
Como dissemos anteriormente, conhecendo a vida do autor e o contexto no qual ele
está inserido, fica mais fácil entendermos a obra em análise.
Amando Fontes é filho de família burguesa, porém sua vivência política honesta,
dizemos honesta, pois em nenhum momento encontramos relato de uma postura o
aconselhável, como deputado, muito pelo contrário, os registros falam que a sua atuação
política sempre foi brilhante e participativa, o que muito contribuiu para traçar o perfil, pensar
os diálogos e descrever as personagens que permeiam a história dos Corumbas. Entre os tipos
que aparecem nas páginas de Os Corumbas, alguns deles nos chamam a atenção, além, é
claro, da própria família, através da qual se desenrola toda a narrativa do romance. Entre eles
podemos citar: o advogado caridoso, o chefe grosseiro e machista, o proletário corrompido e o
de bom caráter, a mocinha sonhadora, o policial desonesto, o político, entre outros. Também
poderemos perceber a simbologia existente nessas personagens e passagens do texto, a saber:
injustiça social, trabalho infantil, marginalização, aceitação de infortúnios, prostituição, apito
44
da fábrica, as ruas da cidade, as festas, a fábrica, e outros do romance poderemos ter uma
visão, mesmo que geral do Estado de Sergipe no contexto da industrialização, assim como os
demais estados brasileiros, pois se aqui aconteceu desta forma, no resto do país não foi muito
diferente.
Devido a todos os acontecimentos que o país vivia, não a crítica, mas o leitor
atento estabelece uma relação dos Corumbas com as manifestações operárias, o momento
político e a industrialização que acontecia em todo o Brasil, como citado anteriormente.
Diante disso, podemos perceber que Amando Fontes produziu uma obra de cunho social,
tendo em vista que, segundo Antônio Cândido (1989), na década de 1930 o povo brasileiro
teve a consciência do subdesenvolvimento do nosso país. Nesse período, surge um conjunto
de obras preocupadas com as questões sociais e econômicas, as quais são chamadas de
“romance social”; esse tipo de romance acreditava que o indivíduo é produto da
hereditariedade e seu comportamento é fruto do meio em que vive e sobre o qual age. Porém,
esse Neo-naturalismo, tinha como foco não mais as questões de hereditariedade, mas política,
social e econômica. Nesse momento, os movimentos populares chamam a atenção dos
escritores, passando a ser uma das suas ferramentas de trabalho, abordando temas como: os
movimentos de massa, proletariado urbano e rural, o sertanejo migrante, entre outros.
Nessa mesma época, iremos ter dois lados no que diz respeito à escrita de 1930, a
saber, a que predominava o sociologismo e a que predominava a imaginação. Tivemos então
uma bifurcação: aqueles que penderam para o primeiro e os que penderam para o segundo,
porém foi o sociologismo que obteve um número maior de seguidores, os que exploraram o
registro fiel da realidade, deixando um pouco de lado a imaginação. Porém, Amando Fontes
conseguiu mesclar realidade e imaginação, cada um a sua medida, assim como frisou Alves
Filho (1938, p. 72): “[...] o romance brasileiro daquele momento deveria estar em pleno
equilíbrio entre essas duas balizas.” Essa aderência dos escritores neo-naturalistas foi uma
tendência peculiar ao momento, pois “[...] o romance brasileiro estava muito voltado para a
realidade objetiva, obedecendo a uma gica de sentido de uma ordem nova, que se integrava
muito mais ao campo da observação.” (ALVES FILHO, 1938, p. 72). É através desse
“romance social” que as classes marginalizadas e seus atores passam a fazer parte da
literatura, como também, seus dramas, angústias, miséria e exploração, ou seja, nossos
romancistas voltam-se a apresentar e descrever a vida dos proletariados.
Os anos de 1917, 1930, 1932 e suas manifestações explicitaram sobremaneira as
transformações pelas quais o Brasil estava passando, entre estas, o surgimento e
45
fortalecimento da classe operária, historicamente importante para as lutas de classes e
produção da literatura de 1930.
Esses romances deixaram de enfocar personagens individuais e passaram a enfatizar
a coletividade e suas inquietações. No ano de 1933, os romances Cacau, de Jorge Amado,
Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, Os Corumbas, de Amando Fontes, e Parque
Industrial, de Patrícia Galvão, a Pagu, foram publicados ao mesmo tempo, dando origem à
discussão sobre a literatura proletária que por ser ainda muito imatura causou controvérsia,
tendo em vista as várias divergências entre os críticos, os quais tinham como base os
diferentes posicionamentos e critérios de avaliação literária.
Em Os Corumbas uma descrição da vida de retirantes que chegam à cidade, em
pleno ritmo de industrialização, em busca de melhores condições de vida e acabam se
tornando operários maltratados e humilhados pelo sistema capitalista, em que a influência
social ou natural do meio acaba por determinar aos poucos o destino das personagens.
É inquestionável o valor da obra de Amando Fontes, quanto à abordagem da
coletividade e seus infortúnios, é claro que juntamente à obra Cacau, de Jorge Amado, devido
à forma como trataram temáticas importantes para tal momento, entre as mais importantes e
recorrentes: a vida da classe operária, o atraso no campo, assim como os contrastes gerados
pela modernidade voraz nas cidades. Dessa forma, temos dois lados que se embatem: o do
homem moderno que tem seus códigos morais, modo de vida e visão de mundo alterados; e o
da classe operária, vivendo nos arredores das fábricas e das cidades, submetida à violência de
várias ordens.
3.2 Os Corumbas e suas passagens
A obra de Amando Fontes, independente das diversas críticas, algumas positivas
outras negativas, não perde o seu valor romanesco, muito pelo contrário, cada colocação feita
nos faz enxergar, de maneira mais próxima, a riqueza e o brilhantismo que se espalham pelas
páginas desse romance, sobretudo através de seus diálogos, da construção de suas
personagens e seu lirismo muito bem retratado em algumas cenas que mais a frente iremos
abordar.
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Sendo esta uma obra naturalista, é muito importante atentarmos para o que disse Zola
(1995, p. 12, 99) sobre o pilar do romance naturalista, o retrato da realidade e o senso do real
do seu autor:
Um de nossos romancistas naturalista quer escrever um romance acerca do
mundo dos teatros. Ele parte dessa ideia geral sem ter ainda um fato nem
uma personagem. Seu primeiro cuidado será reunir em notas tudo o que
puder saber a respeito desse mundo que pretende retratar. Conheceu tal
autor, assistiu a tal cena. [...] Eis documentos, os melhores, aqueles que
amadurecem nele. Em seguida, sairá a campo, ouvirá os homens mais bem
informados sobre a matéria, colecionará as expressões, as histórias, as
descrições. Não é tudo: irá, depois, aos documentos escritos, lendo tudo o
que lhe pode ser útil. Enfim, visitará os locais, viverá alguns dias num teatro
para conhecer seus mínimos recantos, passará suas noites num camarim de
atriz, impregnar-se o máximo possível do ar ambiente. E, uma vez
completados os documentos, seu romance, como já o disse, se estabelecerá
por si mesmo. [...] O romancista terá apenas que distribuir logicamente os
fatos. [...]De tudo o que tiver apreendido resultará a ponta do drama, a
história que ele necessita para montar o arcabouço de seus capítulos. [...] O
interesse já não se encontra na estranheza dessa história; ao contrário, quanto
mais banal e geral ela for, mais típica se tornará. Fazer mover personagens
reais num meio, dar ao leitor um fragmento da vida humana, se encontra
todo o romance naturalista. [...] Visto que a imaginação já não é a qualidade
mestra do romancista, o que, então, a substitui? É preciso sempre uma
qualidade mestra. Hoje, a qualidade mestra do romancista é o senso do real.
E é a isso que eu gostaria de chegar. O senso do real é sentir a natureza e
representá-la tal como ela é.
Com essa brilhante explanação de Zola (1995), perecebemos o cárater documentário
do romance naturalista. O autor recolhe toda documentação, analisa e começa a sua tarefa:
escrever. Ele usa a sua criatividade e vai alinhavando, construindo assim, o seu texto, tal qual
todo e qualquer escritor. Ele não se envolve na ação, apenas descreve com precisão e maestria
o que foi averiguado na sua vasta documentação sobre o tema tratado, não opina, deixa que
seu leitor veja o que quer ver e pense o que quer pensar, pois ao não deixar-se envolver, o
romancista não perde seu senso do real, que segundo Zola (1995) é a qualidade mestra do
romancista naturalista. Para ele, o real é sentir a natureza e representá-la como é. Para
Adonias Filho (1969), da mesma forma que para Zola (1995), o escritor naturalista interpreta
e representa a realidade, sem contudo, influenciá-la. Os documentos apenas são levados pelo
romance, enquanto este é mais abrangente, tendo em vista que através dele retrata-se a
oralidade, os contos populares, os acontecimentos, costumes, entre outros, referindo-se a uma
classe, categoria ou um povo.
Ainda segundo Zola (1995), os personagens naturalistas são como marionetes nas
mãos do romancista, analisados à luz do meio em que estão inseridos, pouco importando sua
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personalidade, tendo em vista que a construção desse personagem não se completa em si
mesmo ou através de seus pensamentos, mas sua casa, cidade, roupa, trabalho. São partes sem
as quais o personagem não existiria. Dessa forma, não perceberemos um único elemento de
seu cérebro ou sentimento, sem atentarmos para o meio, pois na literatura naturalista todo
acontecimento para ser real existirá em função do meio.
Todas as atitudes das personagens da obra em estudo são executadas de acordo com
as necessidades do meio em que estão inseridas; elas se esquecem de seus costumes, anseios,
angústias e tornam-se fantoches nas mãos do ambiente onde vivem e convivem com os
demais. Sobre esta afirmação, Barros (1936, p. 127, 132) fala que a situação dos Corumbas
foi imposta pelo determinismo social, tendo em vista que as personagens de Fontes vão agir
de acordo com o meio, segundo ele:
A psicologia delas é humana e simples, sem as complicações de personagens
esféricas dos laboratórios literários. [...] O drama, que cresce em torno delas,
no entrelaçamento da teia dos destinos é que lhes dá a intensidade psíquica e
lhes recorta, de maneira indelével, a fisionomia moral.
As personagens sucumbem por conta da miséria que emana da organização
sociopolítica desproporcional e injusta, onde quem mais trabalha nada tem e aqueles, cujo
trabalho se resume a mandar, são os que nada sofrem e de tudo usufruem. A miséria do meio,
que corrompe e desgraça as personagens, não deixa margem ou espaço para análises
psicológicas.
É importante percebermos o tom naturalista que em alguns trechos da narração
intensifica-se, quando a tonalidade dos fatos torna-se crua e indiferente, mesmo diante do
acontecimento mais desesperador. Esta objetividade, muito comum nos romances naturalistas,
é fruto dessa não interferência do autor ao fato narrado, que como citado anteriormente,
mostra o interesse que Fontes teve de apenas descrever os fatos sem influenciá-los. Como
exemplo, podemos atentar para a narração imparcial e fria de um dia de trabalho na fábrica,
quando acontece uma das cenas mais fortes do romance: a do adolescente que é arremessado
por uma das máquinas contra a parede e morre na mesma hora. O autor introduz o epsódio no
meio de uma conversa corriqueira entre Albertina e a filha de Pirambu: “Súbito, uma agitação
estranha no fundo. Um grito fino, seguido de um clamor. Todas as máquinas pararam, de
repente. Albertina largou o serviço e correu para onde se formara um ajuntamento [...].”
(FONTES, 2003, p. 139). A seguir, veremos a forma como o fato foi descrito por Amando e a
48
forma como as personagens reagem, atentando para a forma rápida e resumida que acontece a
narração do fato:
A larga correia de uma transmissão, que fazia funcionar todo um grupo de
teares, alcançara um rapazelho de quinze anos pelo braço , atraíra-o para a
roda, suspendera-o no ar, e arremessara-o violentamente sobre a parede que
a pequena distância se encontrava. Quando o corpo veio dar no chão, estava
já sem vida, o crânio extensamente fraturado. (FONTES, 2003, p. 140).
A descrição se torna mais técnica e detalhada com a chegada do diretor que por
segundos emociona-se, conforme as palavras do narrador, mas logo volta para o estado
racional e retoma seu posto friamente:
Vendo o braço do menor jogado para um lado, o seu craniozinho achatado,
de onde escorria o sangue e uma pasta esbranquicenta, o rosto do diretor
contraiu-se todo, num esgar de repulsa e de emoção. Mas foi um rápido
minuto. Logo retornou suas funções de chefe. E passou a deliberar, enérgico
e firme. (FONTES, 2003, p. 140).
Observamos com a transcrição do epsódio a forma naturalista de narrar, causando
impacto, sem nem piedade, naqueles que leem a obra. Logo a descrição enfoca o
sofrimento da genitora do adolescente ao saber o que acontecera. O diretor a consola,
oferecendo dinheiro e tratando de forma extremamente natural o fato ocorrido. “Vamos,
Ricarda! O que é isso? Conforme-se! Deixe estar, que a fábrica faz o enterro e lhe paga uma
indenização [...]. Tenha coragem! Anime-se! A vida é assim mesmo [...].” (FONTES, 2003, p.
141). É possível percebermos o conformismo, não só do diretor, mas de todos. Não se percebe
nenhum tipo de revolta, apenas se aceita o ocorrido e a certeza que qualquer um deles poderia
ou poderá sofrer o mesmo. A magnitude de Amando como romancista se também pela
forma com que desenvolveu sua narrativa que era seca e voltada para observação direta das
coisas.
A grandiosidade de Os Corumbas, encontrou espaço na crítica de Gilberto Amado,
primo de Jorge Amado, escritor, jornalista e político. Sergipano e muito admirado pelo
domínio da palavra, pelo conhecimento de diversas áreas, entre outras habilidades, ele na
obra em destaque a apresentação de um drama universal, que de regional, teria apenas o
espaço onde se passa a narrativa. A descrição das personagens foi tão aprofundada que o
romance conseguiu ser universal. Mesmo enfatizando uma situação local, a obra, segundo ele,
tem um quê de documento político humano, tratando a coletividade dos mais simples.
49
Amâncio Cesar (1958, p. 113, 121) crítico português, concorda com o sergipano Gilberto
Amado, no que diz respeito à humanidade descrita na obra:
Tocados pelo que de humano havia em seus romances os mais novos não
os leram como compreenderam e sentiram. [...] Pode mesmo dizer-se que
muito de Neo-realismo português se encontra mais a partir de Amando
Fontes do que de qualquer outro escritor.
O diálogo e o lirismo do romance são os pontos mais elogiados pela crítica. Para
Álvaro Lins (1960, p. 249), o diálogo é “[...] sempre magnífico, atinge por vezes a perfeição
na capacidade de captar a linguagem de criaturas simples e primárias, quando comunicam,
umas às outras,os seus sentimentos, impulsos temperamentais ou meras impressões em
conversas ao acaso”, são exatamente essas conversas que fazem o leitor envolver-se e
descobrir o que de mais profundo perpassa a alma das criaturas que dão vida aos
acontecimentos do romance.
Em concordância com o que disse Álvaro Lins (1960), Antônio Salles (1933, p. 9)
comenta a vivacidade dos personagens que através de seus diálogos mostram suas
perpectivas, medos, sentimentos, entre outros:
Cada personagem exprime através de diálogos o que poderia esperar de sua
espécie humana, com as palavras mais adequadas e a forma mais
convincente. Os diálogos são de uma autenticidade perfeita, os tipos são
visivelmente pintados, desde os políticos disfarçados até os homens rudes
que trabalham nas fábricas e as infelizes que nelas perdem sua saúde e às
vezes a pureza do corpo.
Como afirmamos anteriormente, a construção de alguns personagens e o lirismo
existente na obra, também constituem mote de destaque no romance. Muitos críticos
abordaram a felicidade de Amando Fontes quanto à construção da personagem Caçulinha,
pois ela representa algo a mais dentro da família Corumba, era a esperança de um futuro
brilhante, era o símbolo da alegria e da felicidade, mesmo diante das condições vividas:
É uma figura completamente realizada, viva, normal. A sua alma é simples,
sem complicações, sem outras angústias que aquelas por assim dizer
normais, do meio pobre e miserável em que se desenvolveu a sua vida. O seu
sonho de felicidade é o sonho ingênuo e puro. Daí ser muito mais amarga a
sua decepção, muito mais pungente a sua desgraça. (NOGUEIRA, 1933, p. 7).
Caçulinha é a personagem mais bem modelada dessa família, delicada em
gestos e pensamentos, põe uma nota de beleza e lirismo em tudo que diz e
faz. Ela consegue invadir o coração do leitor com tal força e simpatia, e é
com grande piedade que o leitor a jovem ir desistindo de tudo e tomar o
mesmo caminho das outras irmãs. (COSTAS, 1933, p. 11).
50
De fato, Caçulinha é a alegria das páginas tristes e cinzentas de Os Corumbas, ela
consegue dar uma ar mais leve à obra. Realmente ela não é mais uma das filha dos Corumbas,
ela é muito mais que isso. Caçulinha representa a possibilidade de mudança, o amparo dos
pais, tanto que a família não economiza esforços para mantê-la sem trabalhar, tendo em vista
um futuro brilhante num emprego digno. Ela representa a esperança, por isso a sua derrota é
maior que a das outras, causando mais indignação ao leitor. Até Caçulinha não consegue
escapar ao destino trágico reservado àqueles que viviam e conviviam na miséria do impiedoso
“mundo urbano”.
De referência a Caçulinha, no entretanto, era bem diferente o que se dava.
Seu curso primário estava prestes a findar; e como tivera sempre boas notas,
tinha assegurado seu ingresso na Escola Normal no próximo ano. [...]
Larga de tanta livrarada, Caçulinha! Assim você envelhece antes do
tempo...
Porém ela respondia: Que nada, mãe! Estudar não mata, nem aleija...
Depois, eu preciso mesmo andar ligeiro, para tirar logo essa cadeira e dar
descanso a vosmecês.
De tratamento meigo e afável, os que conheciam a estimavam. Mas
Caçulinha era, no fundo, reservada. E posto sedesse bem com a todo mundo,
tinha, na realidade, uma só amiga [...]. (FONTES, 2003, p. 86- 87).
Porém, todos esses atributos e diferenciais não bastaram para livrá-la do
triste fim a que todos estavam fadados a ter, no ambiente miserável,
determinado pela pobreza: “– Não, mãe, esta situação não pode mais
continuar. Assim, a gente acaba pedindo esmola na rua. Bela tem um mês
que não trabalha... Tudo está faltando aqui em casa.” (FONTES, 2003, p.
124). Caçulinha deixa os estudos, constrangida por ver a situação em que se
encontravam, Bela doente, o pai acamado. Ela não tinha mais como
prosseguir seus estudos, e teria que “internar-se” na fábrica, como comentou
o Dr. Barros
7
:
Há casos que, pela sua repetição quase diária, parecem-nos comuns e
naturais. Vistos de perto, no entanto, bem pesadas suas razões determinantes,
assumem proporções de uma grande dor. O que se passa com essa gente, que
acaba de sair aqui de casa, é bem o exemplo vivo do que digo. Imaginem só
vocês que aquela menina vai deixar a Escola Normal, já em meio do curso,
para ajudar o pão da família, internando-se numa fábrica... (FONTES, 2003,
p. 130).
Com um foco narrativo específico, através de um narrador onisciente neutro, aquele
que narra em pessoa, Fontes caracteriza as personagens, descreve e explica a construção
7
Advogado que ajudava os operários e quantas outras pessoas precisassem. Tinha o costume de aos domingos
juntar-se com os amigos para almoçar, fumar finos charutos e conversar sobre todo tipo de assunto, inclusive
política.
51
deles, emociona o leitor ao mostrar as passagens em que as pessoas são degeneradas pelas
situações, fazendo com que o leitor sinta compaixão pelos infelizes. É este narrador que com
singeleza e lirismo narra os sonhos de Caçulinha. Interessante também é perceber que
Amando Fontes narra utilizando o futuro do pretérito, deixando evidente que Caçulinha não
realizaria suas aspirações:
“Ah! se pudesse conluir o curso, que ia fazendo tão bem!... Era setembro.
Dali a dois meses faria seu segundo ano. Um pequeno esforço a mais e
estaria diplomada. Decerto, conseguiria ser logo nomeada para um vilarejo
qualquer do interior. Um lugar pequeno e calmo: duas ruas somente e a
praça, enorme e deserta, com a igreja plantada ao centro... A gente seria
simples e boa. Tratá-la-ia com deferência e afeto. Cumularia de presentes a
nova professorinha... Seu ordenado não seria muito grande. De cento e vinte
a cento e cinquenta mil-réis em cada mês. Mas seria o bastante. Bela, pela
marcha em que ia sua moléstia, a esse tempo já estaria morta. Albertina
casada com certeza. Então, apenas levaria consigo os velhos pais. E seriam
felizes; na quietude daquele ermo...”
Pensara assim, muitas vezes; mas, ao fim de levantar tantos castelos, olhava
em torno de si e bem compreendia a impossibilidade da realização daquele
anelo, que fora sempre o sonho doirado da família.
“Já que não pode ser, acabou-se.” Fez-se forte. Secou as lágrimas nos olhos.
E recebeu, conformada, os novos rumos que a vida lhe apontava. (FONTES,
2003, p. 127).
Desapontada, mas conformada com a negação da realização de seus sonhos e com
sua força interior restabelecida, Caçulinha reúne esforços para começar a vida na fábrica.
Porém, mais dramática e terrível foi a passagem em que ela confessa à mãe ter perdido a
virgindade. Pelos preceitos familiares da época, se manter virgem era questão de honra para
as “moças de bem” que almejavam um casamento e a formação de um lar. Em caso contrário,
a moça não serviria mais, não poderia educar seus filhos, tampouco ter um lar. Caçulinha
sentia agora o peso da sua desgraça, e tendo em vista que o casamento com Zeca não
aconteceria, para ela restava apenas a prostituição:
Que é isso? Por que não foi à missa? Está pior?
Caçulinha deixou-se cair numa cadeira. E, levando as mãos ao rosto, a voz
alucinada, gritou:
Mãe! Mãe! Não presto mais! Zeca...
Mas o choro sufocou-a, cortou-lhe a frase iniciada. (FONTES, 2003, p. 217).
Esta cena foi considerada por Manuel Bandeira e Hamilton Nogueira uma das mais
dramáticas e intensas, no que diz respeito aos diálogos da obra. Nesse momento, o mundo dos
52
Corumbas desaba e Caçulinha tem o mesmo fim das irmãs, mais uma Corumba infeliz e
“perdida”.
Outra cena de grande destaque e muito comentada pela crítica foi a da morte de Bela,
que pelo seu tom de lirismo foi lançada ao público dias antes da publicação oficial da obra
para chamar a atenção do leitor para o romance que estava para chegar. Todo sofrimento da
menina é retratado de forma delicada, comovente, detalhada. Esta, uma das mais novas das
filhas dos Corumbas, contraiu tuberculose no espaço insalubre de uma das fábricas da cidade
industrial. Desde então a doença não parou de maltratar o corpo de Bela. A narração desses
momentos é extremamente lírica e desperta a compaixão do leitor, comovendo-o a ponto de
sentir a dor da enferma. Sem condições de tratar a doença e dependendo da ajuda alheia, que
nem sempre chegava, Bela vai aos poucos caminhando para a morte. É no momento da morte
da jovem que percebemos a maestria de Fontes em despertar no leitor os mais diversos
sentimentos, com calma, singeleza e verdade, apenas com a narração e dialogação:
Num domingo, afinal, enquanto os outros jantavam, ela expirou, não deu um
gemido, não teve um arquejo mais forte. E parecia dormir um sono calmo, a
expressão doce, os olhos e os lábios entreabertos.
Assomando à porta do quarto Josefa espantou-se de vê-la tão quieta.
Correu junto dela. Apalpou-a, estava fria. Então, a velha chamou pelo
marido:
Geraldo, vem cá... Depressa! Vem ver uma coisa... E, quando ele se
aproximou:
Espie. Parece que morreu... (FONTES, 2003, p. 149).
Morre Bela. De uma forma simples Fontes narra tudo isso, sem muito se delongar,
fato que aumenta a emoção da cena, mas sobretudo mostra a fatalidade como algo rotineiro,
comum naquele ambiente. A dor não encontra lugar no epsódio, pois para a família e para
Bela, a morte era o descanso, era a única opção possível, tendo em vista a forma como é
iniciada a narrativa com o advérbio “afinal”, e continuada com palavras que dão sensação de
descanso, paz, tranquilidade, inclusive quando o narrador faz alusão à aparência de Bela. A
morte num domingo, dia de descanso, também corrobora para esta mesma ideia, o descanso
não só da enferma, mas da família.
Se a crítica, por um lado, elogiou a obra de Amando, por outro também chamou a
atenção para alguns aspectos negativos, entre os quais podemos citar: a narração linear, em
que o drama sempre vai desaguar na mesma fatalidade; o abuso do uso do descritivismo e
sociologismo pelo apego à documentação; a ausência de conflitos interiores das personagens;
53
e a não preocupação com a variação da linguagem utilizada. Porém, estes motivos não fazem
com que a obra deixe de apresentar uma dramaticidade profunda e descrições muito bem
elaboradas, seja de espaços, pessoas ou situações. Cremos que a crítica ficou sobremodo
apegada à questão da obra ser ou não ser proletária, deixando um pouco de lado aspectos
relevantes para o seu entendimento.
Os Corumbas gerou uma série de debates no cenário literário da época. Críticos,
romancistas e ensaístas elevaram a obra ao status de romance bem escrito, com forte lirismo,
equilibrado, com fotografias louváveis que muito bem retrataram a cidade industrial, seus
bairros, sua gente, sem contudo esquecermos o que mais chamou a atenção dos estudiosos da
obra: o poder da dialogação, o que proporcionou visibilidade real dos desejos, sentimentos da
gente humilde retratada por Amando Fontes.
54
4 A SIMBOLOGIA DAS PESSOAS E DAS COISAS EM OS CORUMBAS
Figura 4 Capa da 6ª edição do romance Os Corumbas
Fonte: Google Imagens
8
Um ícone é um objeto simbólico de um imaginário mas é investido de
uma outra significação imaginária quando os fiéis raspam a pintura e a
tomam como medicamento. Uma bandeira é um símbolo com função
social, sinal de reconhecimento e de reunião, que se torna rapidamente
aquilo pelo qual podemos e devemos matar-nos e o que provoca arrepios
ao longo da coluna vertebral dos patriotas que assistem ao desfile
militar. (CASTORIADIS, 1995, p. 158- 159).
A obra em estudo é cercada de símbolos que nos remetem à sociedade instituída na
época em que se passa a narrativa de Fontes. Ao fazermos uma leitura atenta da obra, somos
levados a enxergar uma série de figuras que nos propõem, de forma às vezes clara, outras não,
a representação de pessoas, comportamentos, atos, coisas, sons, passagens que se tornam
símbolos daquilo que realmente circunda ou que foi a dura pena escrita por Fontes, narrando a
cálida “saga”
9
da família Corumba.
Na narrativa encontramos personagens, objetos, ruas, praças, bairros, situações, entre
outros que evocarão uma imagem, que para Castoriadis (1982, p. 155), nada mais é que “[...]
o imaginário efetivo que se utiliza do simbólico, não apenas para dar a entender alguma coisa,
mas também para sair do imaginado para algo a mais.” Mas essa relação entre o imaginário e
8
Disponível em: < http://www.google.com.br/images?hl=pt-
BR&source=imghp&q=os+corumbas+de+amnado+fontes+capas&gbv=2&aq=f&aqi=&aql=&oq=&gs_rfai=>.
9
Utilizo a palavra entre aspas, pois ela só se aplica na intencionalidade desse contexto que faz menção ao
caráter, gênero e contexto da obra. Fora desse contexto, a palavra remete-se a um gênero literário em prosa, de
caráter épico, originalmente escrito na época medieval por povos nórdicos, especialmente islandeses.
55
o simbólico, apesar de muito profunda, não nos parece demasiadamente clara. Vejamos o que
diz Castoriadis (1982, p. 154), a respeito disso:
As profundas e obscuras relações entre o simbólico e o imaginário aparecem
imediatamente se refletirmos sobre o seguinte fato: o imaginário deve
utilizar o simbólico, não somente para “exprimir-se”, o que é obvio, mas
para “existir”, para passar do virtual a qualquer coisa a mais. O delírio mais
elaborado bem como a fantasia mais secreta e mais vaga são feitos de
“imagens” estão como representando outra coisa; possuem, portanto, uma
função simbólica. Mas também, inversamente, o simbolismo pressupõe a
capacidade imaginária. Pois pressupõe a capacidade de ver em uma coisa o
que ela não é, de vê-la diferente do que é. Entretanto, na medida em que o
imaginário se reduz finalmente à faculdade originária de pôr ou de dar-se,
sob a forma de representação, uma coisa e uma relação que não são (que não
são dadas na percepção ou nunca o foram), falaremos de um imaginário
último ou radical, como raiz comum do imaginário efetivo e do simbólico. É
finalmente a capacidade elementar e irredutível de evocar uma imagem.
A obra Os Corumbas, está dividida em três partes, e enfatiza dois ambientes: o
campo e a cidade que se contradizem entre si. Ora um com aspectos positivos, ora outro com
aspectos negativos; ora a realidade, ora o sonho. Os primeiros quatro capítulos desenvolvem-
se no campo, o corpo do romance estende-se à cidade e a última parte, destaca a volta da
família para o campo, só que agora, voltam apenas os dois velhos, tristes e mais pobres ainda,
pois sua única riqueza, não mais a tinham: seus filhos. Assim, a descrição dos ambientes
ganha uma força maior, tendo em vista que é próprio do Neo-naturalismo essa predileção pelo
meio, que este irá determinar a sina das personagens, porém é importante frisarmos que
tempo da narrativa, foco, personagens, entre outros elementos se misturam, se ajudam entre si
para a escrita perfeita. A nosso ver, é o que acontece com a obra escrita por Fontes.
Ele enfatiza o meio, sem, contudo, esquecer-se dos demais elementos que comporão
o todo simbólico e significativo da narrativa.
Quando falamos em representações dentro de obras literárias que fazem menção a
elementos da modernidade, os impactos gerados por ela, entre outros, lembramos do acervo
de composições poéticas de Noel de Medeiros Rosa que se preocupou em todo tempo utilizar
ícones que simbolizavam aspectos e imagens do Brasil de sua época, seja retratando a
modernidade da cidade ou retratando o campo, o sertão. Noel cantou a contradição entre o
moderno e o tradicional, retratou em algumas de suas canções o processo de urbanização da
sociedade brasileira, criticou a burguesia, individualizou em sua poesia o coletivo, e
observando a multidão a decifrou, utilizando seus ícones.
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A canção Três Apitos, composta em 1933, nos chama a atenção por trabalhar alguns
ícones que irão compor a narrativa de Fontes: o apito, a fábrica e o automóvel. Todos estes
simbolizam a modernidade, porém em proporções diferentes, iremos ver mais adiante que em
Fontes esses símbolos representam muito mais que isso. Por exemplo, o apito da fábrica para
as operárias, entre elas, as filhas dos Corumbas, era o anúncio de que mais um dia estava
chegando, porém mais um dia de desgraça e descontentamento, exceto em alguns poucos
casos. para Noel, o apito anunciava simplesmente que o turno de trabalho de uma das suas
namoradas, operária, estava encerrando e ele poderia vê-la. O automóvel e a fábrica, para este
último, eram sinônimos da modernidade com seus paradoxos, e apesar de para Fontes também
o ser, ele ia mais além: o automóvel, ou melhor, o Chevrolet do Dr. Fontoura, por exemplo,
era símbolo de status social e as “pobres operárias” sentiam-se muito atraídas por este bem
que representava um diferencial na escala social, ou seja, não seria qualquer homem que
poderia ter um automóvel, então os que o tinha eram cidadãos que poderiam proporcionar a
essas operárias uma ascendência social, uma vida melhor, longe das fábricas. Mas não era isso
o que lhes acontecia, muito pior, o simples ato de namorar um deles, era acabar na
prostituição, assim como aconteceu com Albertina Corumba; a fábrica, era a esperança de
emprego e, consequentemente, uma vida melhor. Mas não, era simplesmente um lugar
insalubre, sem as mínimas condições de trabalho, ou seja, “um matadouro”, como explica
Marx (1980).
Dentre as obras literárias que temos, seja em prosa ou em verso, musicadas ou não,
entre nomes como o de: Chico Buarque, Caetano Veloso, Noel Rosa, Amando Fontes, Jorge
Amado, Rachel de Queirós, Graciliano Ramos, Émile Zola, José Lins do Rego erios
outros, o a modernidade, mas vários outros temas recorrentes na sociologia se
manifestam dentro da literatura, ficando difícil fazer com que todos esses textos dialoguem,
pois cada um em sua própria linguagem, em seu contexto e com suas preferências se
apropriam, uns mais outros menos, das ciências sociais. Assim fez Amando Fontes através de
sua obra, usou seus escritos como veículo de alerta e crítica a um sistema social desigual e às
transformações ocorridas no contexto de sua narrativa, como também trabalhou os símbolos
que permearam o romance, em que o meio surge como o grande elemento da narrativa que
compõe as pessoas, seus sentimentos, atitudes. Todos os lugares que são descritos na narrativa
fazem parte de uma organização que produz significados que interferem nas atitudes das
personagens. O espaço tem um lugar todo especial nas obras realistas-naturalistas, fazendo
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seus personagens crescerem, relacionando-os ao contexto em que estão inseridos,
independente desse contexto ser cultural, econômico ou social.
Dentro desta perspectiva, veremos a simbologia na obra Os Corumbas em dois
componentes, a saber: as pessoas e as coisas.
4.1 As pessoas
Como explica Ianni (1999), os tipos ideais que povoam a literatura também povoam
a sociologia. Assim veremos dentro do nosso contexto literário, os personagens e
comportamentos que permeiam a obra em estudo, denominado-os aqui como pessoas.
As irmãs Corumbas, que tiveram a mesma educação, porém com comportamentos
diferentes tiveram o mesmo fim; apenas Bela que de saúde frágil, teve um fim diferenciado: a
morte. As outras, cedo ou tarde, caíram no mundo da prostituição, uma a uma, não porque
quisessem, mas porque assim o destino as obrigava.
Rosenda e Albertina, as mais velhas, temperamentos muito diferentes, viam o
casamento não como um ato de amor, mas também como ascensão social, sobretudo
Rosenda que vivia a lastimar tão cruel sina de estar sempre no meio de tanta miséria, não era
dotada de beleza, gorda, mal-humorada e áspera, tivera pouquíssimos namorados, mas o cabo
Inácio conseguiu conquistá-la e logo teve que partir para Comarca de Simão Dias; foi quando
ele convenceu Rosenda de fugir, e assim que chegassem à cidade casariam, mas não
aconteceu desta maneira, o cabo a abandona. Rosenda é a primeira a cair na prostituição, pois
para os princípios da época essa era uma situação irreversível: Rosenda jamais poderia ter
uma vida decente. A tristeza dos velhos pais não encontrou espaço, mas as poucas palavras
deixavam clara a consternação pela filha:
Foi assim... João Branco não quis me contar as coisas direitinho. Parece
que teve pena de mim... Mas eu entendi tudo muito bem. Quando o diabo
largou a pobrezinha, ela ficou mesmo sem jeito nesta vida... Teve de ir morar
com outras mulheres... E passou a receber todo o mundo... (FONTES, 2003,
p. 118).
Algum tempo se passa e Bela, de saúde muito frágil, quase nem mais trabalha e ao
conseguir algumas consultas com o Dr. Fontoura, este lhe passa remédios e uma alimentação
melhor que muito acarretará na vida financeira da família que a cada dia fica pior, obrigando a
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mais nova, Caçulinha, trabalhar também na fábrica, mas no escritório, onde trabalhavam as
moças com um grau melhor de estudo e decentes. Porém, nessas idas e vindas Albertina e o
Dr. do Chevrolet, apaixonam-se e passam a namorar o que levanta mais um falatório, e os pais
pressentem que mais uma desgraça está para acontecer.
O único filho homem, Pedro, deportado para o sudeste, por causa de suas ideias
revolucionárias, que sutilmente aparecem no romance, a morte de Bela, a prostituição de
Rosenda, a família agora era menor, pouco a pouco os Corumbas perdiam sua riqueza e de
forma muito mais triste, conforme narrado na obra, Albertina, bonita, correta, trabalhadora e
obediente, deixa tudo em troca da companhia do Dr. Fontoura, e o luxo que ele poderia
proporcioná-la para depois cair na mesma desgraça, que ele jamais casaria com Albertina e
isso fica claro, pois em nenhum momento fala-se em casamento:
Se Rosenda fugira, fizera-o com um homem de condição igual à sua. Isso se
dava a cada instante. Podia acontecer a todo o mundo.
De relação a Albertina, no entretanto, fora bem diferente o que se dera. Ela
havia deixado a casa de seus pais para sair em companhia de um ricaço.
Certo, entre eles nunca teria sido levantada a hipótese de algum dia se
casarem. O interesse, portanto, apenas o desejo de se vestir melhor, trabalhar
menos, tinham-na arremessado aos braços dele... (FONTES, 2003, p. 173-
175).
Porém, muito mais nos chama a atenção a desgraça de Caçulinha. Esta que estava
quase a formar-se professora, sonho de toda família, após a doença da irmã, ausência do
irmão e a piora da situação financeira foi obrigada a abandonar os estudos e ajudar a família.
Conhece o Sargento Zeca, na casa de Clarinha, bom rapaz, respeitador, de família importante
e dali em diante sua vida mudou completamente. Não demorou muito os dois noivaram,
deixando os velhos bastante satisfeitos e felizes, agora parecia que o futuro sorriria para a
família. Do noivado em diante não mais se desgrudaram. Zeca com muito amor e muitas
promessas tira a virgindade de Caçulinha, dando não mais um futuro feliz, mas tornou a noiva
“imprestável”, de acordo com o que rezavam os preceitos da época. Desvirginada, Caçulinha
não poderá mais ter um lar, ser mãe de família, ela começa uma nova vida, bem desigual ao
que Josefa e ela tinham sonhado e objetivado, e é num contexto marcante no final da
narrativa que o narrador descreve essa nova vida de Caçulinha:
NO DOMINGO SEGUINTE, às dez horas, Caçulinha que saíra do banho e
se penteava em frente ao grande espelho de seu guarda-roupa, surpreendeu-
se, ouvindo baterem à porta. “Àquela hora! Quem seria?” Novas pancadas
soaram, sem demora.
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Maria! gritou ela para a criada, que arrumava por dentro. ver
quem está batendo. Depressa!
Sá Josefa entrou. Era a primeira vez que ali pisava. No meio da sala estacou,
olhando todos os cantos. Seu peito arfava, da longa caminhada sob o sol. Ia
tirando o xale azul-marinho, que lhe envolvia a cabeça, quando percebeu
Caçulinha, que vinha saindo de seu quarto. Ficaram um momento paradas,
olhos nos olhos, indecisas. Mas logo a rapariga se resolveu e numa carreira
impetuosa lançou-se aos braços da mãe.
Beijava-lhe a face e apertava-a contra o peito. (FONTES, 2003, p. 231).
Nessa passagem, fica claro que ela tinha uma vida de luxo e que um forte
antagonismo podia ser percebido em dois aspectos: se antes Caçulinha tinha um caráter
impoluto, com seus sonhos de casar-se virgem, ter um lar, agora é sustentada por um amante
tanto no aspecto moral como no econômico; antes mal tinha um casebre com mobília
improvisada, agora uma casa completa e até um criado. Mas apesar de tudo está só, conforme
suas palavras: “– A senhora não calcula como gostei de sua visita... É tão ruim a gente viver
assim sozinha...” (FONTES, 2003, p. 232). Este antagonismo assombra a velha vendo a
“riqueza” que a filha vive, porém a tristeza não acaba, tampouco diminuiu, pois a dignidade e
a moral, estes não tinha dinheiro que pagasse. Ela esperava que o noivo estivesse por toda
vida por perto, de moço bom que era e que se mostrou inicialmente, também é vitimado pelo
meio e sofre uma série de conflitos e remorsos causados pelo defloramento da moça:
“Fora uma loucura verdadeira, de que a ele, somente, cabia toda a culpa!
Facilitara demais, confiando na força de seu bom-senso...” (FONTES, 2003,
p. 205).
Aí, sargento Zeca novamente estacou, para exclamar, em tom sarcástico:
Sim, senhor! Muito bonito! Casar com uma pequena deflorada!
Aquela ideia contrariava-o, causava-lhe sempre o maior constrangimento.
Tinha a impressão de que não somente ele, porém todo o mundo sabia do
ocorrido. E compreendeu, ainda naquela ocasião, que seria uma vergonha a
acompanhá-lo pela vida, uma humilhação eterna diante de si mesmo, ligar
seu nome e seu destino a uma mulher... (FONTES, 2003, p. 206).
Mesmo diante de tantos conflitos e remorsos, ele não consegue vencer e resolve o
que vai fazer simplesmente por lembrar-se das palavras de seu avô, Mulher e cão de caça,
pela raça” (FONTES, 2003, p. 207), já que o comportamento do cão ou mulher estava
vinculado às suas origens.
“Pela raça!...” Lembrou-se de Albertina e da Rosenda. Quase se convenceu
de que o avô tinha razão. De Caçulinha, que sempre lhe parecera boa e pura,
nada se podia ainda afirmar. Era jovem demais. “Quem sabe o que viria a se
tornar, depois de feita mulher? Esse, o grande problema a resolver... Sim.
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Porque não havia tortura maior para a vida de um homem do que uma esposa
leviana ou desonesta. Para ele, com o gênio violento e impulsivo que era o
seu, seria, por certo, as grades de prisão. (FONTES, 2003, p. 207).
Percebemos que a vida difícil dos Corumbas e a pressão do meio lhes arrastam para o
mesmo fim, a família vive no limite de sobrevivência. Assim como os demais operários, a
família Corumba representa a miserabilidade do operariado, e as mulheres têm o triste fim de
quase sempre, a prostituição. Ferro (1997) aponta a desgraça e o ambiente como os
rudimentos que determinam a degeneração das personagens, mas para Josefa, Geraldo
Corumba e Caçulinha a desgraça seria a própria prostituição, como podemos perceber no
trecho a seguir:
... E, levando as mãos ao rosto, a voz alucinada, gritou: Mãe! Mãe! Não
presto mais! Zeca...
Mas o choro sufocou-a, cortou-lhe a frase iniciada.
Josefa havia estacado em meio à sala, uns grandes olhos abertos para
filha...
O que foi, Caçulinha?! O que foi que aconteceu?![...]
Que desgraça! Que desgraça, minha mãe![...]
Geraldo! Ela também...
Soltou um grito agudíssimo, em seguida, rodou sobre os calcanhares, e caiu
pesadamente no chão, a espumar e a contorcer-se. (FONTES, 2003, p. 217).
Outra personagem que desperta a compaixão do leitor é a Clarinha, garota que
começa a trabalhar na fábrica, desde os 13 anos. De saúde frágil, por conta das condições de
trabalho, vende sua força de trabalho. Vejamos como ela é descrita logo no início da
narrativa:
Dentro daquela ondulante massa humana movia-se uma rapariga muito
branca, de treze anos apenas. Era um frangalhozinho de gente, delgada como
um vime; a carne, de tão sem sangue, transparente; os lábios arroxeados de
frio. Chamava-se Clarinha e servia, como ajudante, na seção dos teares da
Sergipana, vencendo o ordenado de quatrocentos réis por dia. (FONTES,
2003, p. 43).
Pela descrição, podemos perceber a fragilidade da garota em meio a tão pesado
trabalho e que na narrativa, quando da madrugada na caminhada para fábrica, num dia
chuvoso a menina cai e toda coberta de lama recebe o apoio e carinho das demais
trabalhadoras, que mesmo doente pela insalubridade da fábrica não volta para casa, pois a
mãe a trata como preguiçosa e ela, com medo do que pode acontecer, continua sua caminhada
para o destino único do proletariado: a fábrica. Essa situação mostra a atrocidade do sistema
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capitalista, onde nem as crianças são excluídas da venda de sua força de trabalho, situação
muito comum no início da industrialização no Brasil, tendo em vista que a criança ajudava na
renda da família, pois naquela época não existiam leis que protegiam as crianças. Estas, não
tinham nem a liberdade de brincar, livres de doenças. Na sua narrativa, Fontes também
denuncia as condições em que as crianças brincam na umidade da terra, assim como a
formação do caráter infantil que, em meio à miséria em que vivem desde cedo aprendem as
leis da sobrevivência que as levam não a brincar de verdade, mas em meio à “brincadeira”,
tentar achar algumas moedas para sua sobrevivência e de suas famílias. Na passagem a seguir,
temos a perfeita amostra de como era o cotidiano dessas crianças:
Na Rua de São José um bando de meninos, descalços, seminus, brincava na
terra úmida. Alguns, caminhando a passos lentos, os olhos pregados no chão,
procuravam descobrir moedas perdidas, que a chuva por acaso tivesse feito
aparecer, levando a areia que as cobria. (FONTES, 2003, p. 133).
Mais adiante prendeu a atenção das duas amigas uma mulher de rosto
escaveirado, cabelo em desalinho e sem casaco, que de uma janela gritava
furiosamente para a rua:
Sai de dentro d’água, coisa ruim, peseta! Depois está batendo o queixo de
sezões!
Não demorou que um garotinho de seis anos amarelo, os olhos vesgos
sumidos nas órbitas cavadas, pernas e braços finíssimos, ventre e cabeça
enormes se destacasse do grupo, que com ele rebolava na lama, e corresse
choramingando para casa. (FONTES, 2003, p. 134).
E é nesse espaço que os operários seguem sobre sol e chuva para as fábricas que
constitui o único meio de sobrevivência para muitos que vendem seu trabalho por um preço
ignóbil, sendo maltratados, sem nada poder fazer, pois existia uma grande reserva de mão de
obra, gerando uma acomodação, incentivada pelo medo de serem despedidos.
A menina Clara é mais um símbolo de degeneração que pela vida que levava desde a
adolescência, nos salões da fábrica, tem sua fisionomia danificada pelo trabalho insalubre,
aparentando ser mulher de idade, sendo ainda uma jovem:
No vasto salão, onde trezentos e setenta teares se alinhavam, Albertina
trabalhava ao lado de Clarinha, a filha de Sá Maria Pirambu, que fora
despedida da Sergipana por “preguiça e vadiagem”. Ela tinha, agora,
dezessete anos completos. Crescera um pouco, fizera-se mulher, embora
magricela e clarótica. A não ser a própria mocidade, nenhum outro atrativo
possuía. Mocidade, aliás, também precária; pois em torno da boca descorada
dois fundos vincos já indicavam o envelhecimento precoce de seu ser.
(FONTES, 2003, p. 139).
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Posto isto, percebe-se que assim como as filhas de Geraldo Corumba, a filha de
Maria Pirambu e muitas outras operárias estavam sensíveis a tal degeneração que corroía
àqueles que lutavam para sobreviver num sistema totalmente desigual e desumano.
Dentre os tipos ideais, mencionados anteriormente, ainda podemos perceber algumas
categorias que Amando mostra com suas personagens. Mesmo de forma rápida, ele explicita
um panorama das cabeças pensantes e seus discursos na cidade industrial, os quais não
diferiam muito das demais regiões brasileiras. Aos domingos, o Dr. Barros que era conhecido
pela sua boa vontade em tomar o partido dos humildes, reunia para o almoço seus amigos
mais próximos e é nessa cena que o escritor d’Os Corumbas, vai tecendo uma amostra da
sociedade burguesa sergipana, e por que não dizer, brasileira.
Nesse dia, Dr. Barros recebeu Salgado Brito (professor da Escola Normal), Manuel
Saraiva (jornalista e poeta), Carlos Pereira (deputado federal) e o vigário de Santo Antônio,
padre Torres. É possível perceber que essas personagens, representam as autoridades daquela
época. Porém, os discursos que foram desencadeados após a saída das irmãs Albertina e
Caçulinha, que foram em busca de uma indicação para que a mais nova, que deixou os
estudos e o sonho de ser professora, fosse colocada no escritório de uma das fábricas
descrevem o pensar e o agir da burguesia sergipana:
É triste! É uma coisa dolorosa!... Por mais que me digam que a vida é isso
mesmo e por todo o sempre existirão os nababos e os mendigos, nunca me
hei de conformar... Não sei... Mas essas humildes misérias que nos cercam,
tão pequeninas, às vezes, que nem as pressentimos, têm o dom de comover-
me fundamente. Falem-me em grandes tragédias populações inteiras
devastadas pela fome, exércitos que a guerra trucidou e isso me choca
muito menos do que um simples fato como esse. (FONTES, 2003, p. 130).
Dr. Barros fala de forma pesarosa que, apesar de todo seu esforço, essa situação não
mudaria, foi quando o professor Salgado Brito deu a sua opinião sobre o ocorrido:
E você não deixa de ter uma forte dose de razão. A mim, também, isso
confrange. No caso corrente, sobretudo. Conheço bastante essa menina. É
uma das minhas melhores alunas. A segunda ou terceira da classe... Faz
pena, realmente... (FONTES, 2003, p. 130).
O deputado federal continuou com um discurso, que pelo o que parece, se resume, de
forma fria e egoísta, a “eu fiz minha parte, mas...”:
Tudo, falta de uma legislação sábia e adequada. Muito menor, em verdade,
seria o sofrimento dos humildes, se tivéssemos leis de salários mínimos, de
seguros operários, e outras plenamente razoáveis. Eu, por mim, tenho feito
nesse sentido o que é possível. Ainda este ano apresentei longo projeto,
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estipulando algumas garantias indispensáveis ao trabalho. Foi recebido,
mereceu os mais rasgados elogios dos colegas... E encalhou para sempre
numa gaveta ou numa pasta... (FONTES, 2003, p. 130-131).
Mais uma vez, o dono da casa, com um tom que dá às suas palavras, o sentido de que
se é possível fazer, quando se quer e se tem vontade, interpela o deputado: Mas o Almeida,
o líder, que é um homem bem intencionado (já trabalhamos juntos numa casa), por que não
leva avante essas ideias generosas?” (FONTES, 2003, p. 131); o deputado prontamente
responde, como quem joga a culpa para o outro, num tom um pouco irônico:
Ah! Se todo
homem norteasse a vida pública pelos mesmos rígidos princípios de seu agir particular, este
Brasil seria um país bem diferente...” (FONTES, 2003, p. 131). O jornalista Manuel Saraiva,
homem da mente mais aberta, pelo menos aparentemente, emite também sua opinião que
muito difere da dos companheiros:
Não raro vocês que emprestam ideias carbonárias e anarquistas... Mas,
diante do que acabo de ver e do que diz aí o deputado, acho ainda sou brando
em excesso! Uns, exploram por interesse e inconsciência; outros, calam, por
falta de sinceridade e de coragem!... De quem esperar o remédio, então?
Cada vez mais me convenço: ou o pobre faz justiça por suas próprias mãos,
ou há de viver escravo eternamente. (FONTES, 2003, p. 131).
O vigário apenas presta atenção aos discursos e, por fim, abençoa a todos, fazendo-os
enveredar por outras conversas.
Não poderíamos aqui, deixar de citar o casal Corumba, como símbolo de esperança
num primeiro momento, depois desespero, de ver um a um dos seus filhos se perderem, mas,
sobretudo a meu ver, foi símbolo de resistência e força, que mesmo diante de tamanha
desgraça e miséria permaneceram vivos e unidos. Eles simbolizam a fortaleza do sertanejo,
que, como disse Euclides da Cunha, no jornal O Estado de São Paulo, “O sertanejo é, antes
de tudo, um forte.”
4.2 As coisas
De acordo com Castoriadis (1995), as coisas sociais não são coisas, mas coisas
sociais que só as são quando “materializadas”, ou seja, se figuram e presentificam com
significações sociais. “As coisas” por si nada dizem sobre a sociedade em vigência, mas
quando confrontadas às significações que essas coisas figuram, ou melhor, mantêm relação,
passam a significar algo, socialmente falando. Dessa forma, as coisas no cenário apresentado
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por Amando Fontes, na obra em estudo, figuram algumas significações muito pertinentes ao
entendimento da sociedade daquela época. O sertanejo foi levado a encantar-se pela vida
urbana, devido a alguns símbolos que davam indícios que a vida nesse espaço era melhor e
mais promissora. A representação de certas coisas que configuravam a modernidade: o trem, a
fábrica, o automóvel, entre outros.
O trem é considerado um dos maiores símbolos da modernidade e do progresso no
início do século XX, quando várias ferrovias foram construídas em todo país para fluir a
produção, cada região com seu produto específico (café, algodão, tecido). Porém, n’Os
Corumbas o trem não mais transportará cargas valiosas para o capitalismo, mas pessoas
humildes que levam consigo, inicialmente, o sonho de uma vida melhor e mais humana que
num momento posterior se transforma na verdadeira desgraça, aqui a desgraça da família
Corumba que saiu do campo organizada e cheia de força, agora apenas os dois velhos tristes e
angustiados, voltam para o sertão, num trem sujo e de segunda classe:
Chegaram à estação muito antes da hora da partida. Compradas as passagens
e despachado o baú, logo se acomodaram no sujo vagão de segunda classe,
tão parecido com aquele que os trouxera da Ribeira.
Pouco a pouco, o carro se foi enchendo de gente do interior, empoeirada e
mal vestida. Eram feireiros, na sua maioria pequenos lavradores, que haviam
trazido seus produtos para vender na Capital e agora retornavam a seus lares.
Lá também se achavam crianças e mulheres. (FONTES, 2003, p. 235).
É desta forma que o casal observa a vida da cidade. Eles vão visualizando através da
janela toda a movimentação que 6 anos iludiu seus olhos e suas almas. Viam as operárias
alegres, falantes e lembravam-se das filhas. Naquele momento, sentiam-se fora de toda aquela
movimentação que durante anos fizera parte de seus sonhos, sonhos esmagados e destruídos
pela força do capitalismo, sentem uma tristeza na alma, pois voltam, mais sós, sem os filhos:
Geraldo Corumba e sua mulher seguiam-nas, com olhos compridos e tristes.
Vendo-as, lembravam-se de suas raparigas, que antigamente, àquela hora,
iam chegando em casa, loucas de fome.
E assim, de pensamento em pensamento, foram repassando as últimas
ocorrências de suas vidas.
seis anos tinham vindo, tão cheios de esperanças... A cidade, com o
ganho das fábricas, o casamento para as meninas, o professorado de
Caçulinha, fora tudo ilusão, que por água abaixo descera.
Melhorar?... Não o conseguiram nunca. Perderam, mesmo, o único bem que
possuíam: os filhos, desgarrados por esse mundo, a outra morta, afastados
todos do seu convívio... (FONTES, 2003, p. 236-237).
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Pensam e veem que conseguiram duas coisas nesse espaço de tempo: miséria e
separação esta se deu por conta da desestruturação da família. Para eles, a modernidade e o
tal progresso trouxeram desgraças. Voltar para o início? Não mais podiam, mas voltariam
para Ribeira, quem sabe. Lá continuariam a ser explorados pela força do capital.
A fábrica, outro símbolo e um dos mais importantes, que também representa
modernidade, progresso e a esperança de emprego, na realidade não passa de matadouro,
como citado anteriormente nas palavras de Marx (1980). Mas as fábricas em sua simbologia
vão além. Sexualidade, machismo, exploração são temas que nos remetem imediatamente ao
ambiente fabril. Apesar das poucas cenas passadas no interior das fábricas, poderemos
concluir através delas a importância do meio para a obra de Fontes.
O fato de Albertina ser assediada pelo contramestre Misael, e de imediato ser
despedida, nos remete a dois temas: 1) sexualidade era comum chefes de setores das
fábricas, através do abuso de poder violentar meninas e mulheres operárias das fábricas; 2)
machismo além do chefe ser um homem, o que realmente valia era a palavra deste que, no
caso de Albertina, apesar de estar com a razão é despedida e humilhada, pois o que foi
considerado foram as palavras do contramestre, e não da operária que em meio ao assédio
deveria calar-se e aceitar tal situação. Os dois temas fazem-nos, numa sequência, lembrar que
outros tipos de exploração: moral, física, serão muito bem abordadas por Fontes no decorrer
da narrativa.
A poeira, a poluição sonora, a fumaça, as caldeiras com suas altas temperaturas, a
rapidez das máquinas e de todas as tarefas, imprimem o ritmo de trabalho dos operários, assim
como, o risco de acidentes de trabalho e definhamento da saúde destes:
Manhã.
Homens entroncados, sujos de pó, chegavam junto às caldeiras da Têxtil,
empurrando vagonetes de lenha. Lavados de suor, os foguistas não
descansavam, jogando grandes toros em meio às labaredas. Todas as
máquinas da fábrica se moviam, num barulho ensurdecedor. (FONTES,
2003, p. 138).
Súbito, uma agitação estranha no fundo. Um grito fino, seguido de um
clamor. Todas as máquinas pararam, de repente. (FONTES, 2003, p.139).
A larga correia de uma transmissão, que fazia funcionar todo um grupo de
teares, alcançara um rapazelho de quinze anos pelo braço, atraíra-o para a
roda, suspendera-o no ar, e arremessara-o violentamente sobre a parede que
a pequena distância se encontrava. Quando o corpo veio dar no chão, estava
já sem vida, o crânio extensamente fraturado. (FONTES, 2003, p. 140).
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Essa descrição objetiva evidenciar de forma clara e direta a situação do operariado
brasileiro, no início da industrialização: a ferocidade do maquinário, assim como do sistema
capitalista, no qual nada é respeitado, nem mesmo a infância, frágil e miserável, em que a
criança também gerava renda para família. O ser humano é reduzido à máquina, e suas
necessidades são supridas apenas para a sobrevivência. Mas não é isso. Mesmo a fábrica
sendo um símbolo de sobrevivência na cidade para os operários, estes tinham um sentimento
de aversão, como podemos perceber nas passagens abaixo:
Vida do inferno! Nem se pode dormir um bocadinho descansada. Se não é
mãe, sempre tem uma qualquer pra andar futucando a gente... (FONTES,
2003, p. 37).
Você ainda ri, vendo uma coisa dessas! Pois eu tenho é ódio. Trabalhar
que nem formiga e viver assim esmolambada... (FONTES, 2003, p. 37).
... Também, eu não me importo! Não volto mais pra trabalhar naquele
inferno. Não volto, não volto, pronto! (FONTES, 2003, p. 48).
Fontes mostra claramente o sentimento de raiva e revolta que as personagens, não
as duas irmãs, mas o operariado como um todo, sentem em relação ao sistema e o tipo de vida
e trabalho que precisam enfrentar. Rosenda, nos dois primeiros trechos citados, mostra a sua
indignação contra o modo de vida que agora leva frente as novas demandas da cidade. No
último trecho supracitado, Albertina, depois de assediada pelo contramestre, insurge não
contra ele, mas contra todo o espaço que envolve o trabalho na fábrica. Nessa e em outras
cenas fica bastante evidente a visão de lugar desgraçado e infernal que os trabalhadores têm
da cidade, e que apesar de lutarem contra as maleficências, nunca obtêm êxito. Cremos que
esta visão dantesca que o imigrante tem passa a gerar dois sentimentos díspares:
arrependimento da vinda para cidade e a idealização do campo esta última responsável pelo
esquecimento dos maus bocados vividos também no meio rural.
Através da situação fabril, Fontes mostrou também que a cidade é palco da imprensa
que divulgava ideias políticas, assim como denunciava. Em Os Corumbas, ao falar do Jornal
da Sociedade de Aracaju, ele mostra a luta liderada por José Afonso (secretário da Sociedade
Proletária de Aracaju) para que os operários que prestavam serviço à noite, fossem mais bem-
remunerados, porém não tiveram êxito.
Mas, aqui e ali, foram-se ouvindo alguns protestos. Tímidos, a princípio.
Violentos e exaltados, logo empós.
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Ao grupo de José Afonso coube dar o rebate e sustentar a luta contra as
fábricas, Ou “o serviço noturno seria pago com a bonificação de um terço
sobre os salários do dia, ou ninguém se sujeitaria à nova exploração”, foi o
ultimato lançado pela Sociedade Proletária do Aracaju, que passou a
funcionar em sessão permanente, cheia de curiosos e prosélitos. (FONTES,
2003, p. 94).
Nessa passagem podemos perceber que o pequeno movimento que se formara seguia
a mesma direção do que estava acontecendo no restante do país. Nesse cenário também
podemos perceber a esperteza dos políticos, quando o governador do Estado apoia a greve,
mas os trai, causando a prisão dos seus líderes, José Afonso e Pedro Corumba, que
acreditaram no apoio do governo. Tal apoio não passava de uma manobra com fins eleitorais,
pois o presidente chama o delegado e muda completamente de posição, tendo em vista que a
forma como tudo estava acontecendo, não seria salutar para a política do governo do Estado
de Sergipe. Vejamos as palavras do governador:
Dr. Celestino, vou ter uma conversa séria com o senhor. Atente bem. Essa
questão entre os operários e as fábricas enveredou por um terreno bastante
perigoso. Seu plano, posto em execução com ordem minha, mas sem que eu
conhecesse os seus detalhes, fracassou inteiramente, não deu certo...
O que vejo o perturbações a toda hora, sem que as fábricas cedam uma
linha. Ora, isso não pode continuar por essa forma mais um dia. Alguns
jornais do Rio já fizeram comentários contra nós... (FONTES, 2003, p. 102).
Esta greve também simboliza o crescimento e organização da classe operária que
propagavam as suas ideias através da Revolução de 1917 na Rússia. Porém aqui, a classe se
fragmenta após a prisão dos dois personagens e a associação acaba. O trabalhador volta às
suas atividades, normalmente, não obtendo nenhuma melhora. Pedro escreve a seus pais
falando do que está prestes a acontecer e de sua crença a favor do movimento grevista que
aconteceria em São Paulo, centro industrial por excelência. Esta pequena citação de Fontes
fez com que alguns críticos considerassem a obra como de cunho comunista.
Os objetos que são descritos na obra nos dão pistas e denunciam a forma precária
como vivia o proletariado, pois como dissemos anteriormente, toda narrativa que se
desenvolve através da família, vem explicitar a situação de uma coletividade, que mesmo
diante de algumas desigualdades (origem, gênero, faixa etária, entre outros), unificam-se na
coletividade através da divisão social e, principalmente, pela miserabilidade sofrida.
Pela riqueza de detalhes, podemos ter uma visão do que foi a vida do proletariado,
pois Flory (1983, p. 90), ao destacar a pertinência das coisas para o romance, diz “[...] que
alguns objetos, na sua concepção, que rodeiam as personagens estão de tal maneira associados
68
a certas experiências leves ou amargas, que podem instaurar um ambiente positivo ou
negativo, capaz de influenciar no destino delas”, assim muitos dos objetos descritos,
caracterizam elementos e situações dos seres que respiram na narrativa de Fontes.
De forma clara e bem objetiva, mais uma vez a narrativa nos surpreende com sua
descrição. A segunda parte do romance inicia com um retrato bem esculpido da casa dos
Corumbas, que representa a moradia precária do operariado:
Àquela hora, ainda reinava o mais completo silêncio em casa de Geraldo.
Josefa (era assim que tratava todo o bairro), posto estivesse acordada,
deixara-se ficar sobre as tábuas duras da cama, toda encolhida de frio,
debaixo da sua desbotada coberta de retalhos.
O sudoeste soprou mais forte, açoitando a chuva por entre as frestas do
telhado. Então, a mulher abriu os olhos, distendeu os braços e as pernas, e
murmurou, num bocejo:
Santo Deus! Ainda chove! Como não devem estar essas ruas?...
Permaneceu ainda uns momentos estirada sobre a enxerga. De repente,
lembrando-se das mil ocupações que a esperavam, levantou-se às carreiras,
falando consigo mesma:
Virgem Maria! É de hoje que o relógio deu quatro horas... deixe-me fazer
o café...
Apanhou do chão a caixa de fósforos e acendeu o pavio de algodão do
alcoviteiro. Uma luz mortiça espalhou-se pelo quarto, mobiliado apenas pela
cama de pinho sem verniz, uma cadeira de peroba mal lavrada, e, a um
canto, o baú de folha-de-flandres, pintado de verde, com umas florzinhas
amarelas.
Tão logo se achou vestida, apanhou do chão o candeeiro e foi até a sala da
frente para acordar o filho, que dormia numa esteira de tábua, estendida
sobre o chão...
Já estou acordado, mãe. Pode ir preparando minha lata.
[...] atravessou o corredor apertado, a sala de jantar (onde, numa cama de
ferro estreitíssima, dormiam as duas filhas menores), e entrou no apertado
cubículo a que chamavam a “cozinha”.
Três grandes pedras brutas serviam-lhe de fogão. Pôs alguns cavacos entre
elas. Feito o fogo, colocou em cima a velha chaleira que usavam desde o
engenho, e onde iria ferver a água para o café.
Estava deitando feijão com a farinha e um pedaço de linguiça na vasilha que
Pedro ia levar, quando este se aproximou, o chapéu já na cabeça.
Que é isso? perguntou-lhe a mãe, meio surpresa. Não toma nada antes
de ir?
A constipação me tirou a vontade de comer respondeu ele secamente.
Pode ser que eu compre um pão aí pelo caminho...
Pôs a lata sob o braço e foi saindo.
[...]
69
Nalgumas tábuas, estendida sobre quatro caixões de querosene, dormia
Albertina, a segunda filha do casal, morena clara, olhos negros e vivos, um
grande corpo bem-feito e transbordante de saúde.
A um canto, numa redezinha trançada”, de fios brancos e vermelhos,
Rosenda ressonava, a dormir profundamente. Era a mais velha de todas.
(FONTES, 2003, p. 33-36).
Diante deste retrato, percebemos a precariedade em que a família vivia. Independente
da forma da descrição, ao ler a obra, muitas vezes fomos convidados a entrar na moradia
precária da família. Os diversos substantivos e alguns adjetivos utilizados na composição do
ambiente deixam clara a precariedade do lugar: tábuas duras da cama, coberta desbotada, as
frestas do telhado, a localidade da casa quando Josefa questiona como estariam as ruas
diante de tanta chuva, o alcoviteiro, e outros. Quando se refere à mobília do quarto, todos os
objetos eram frágeis e velhos, tinham um aspecto maltratado, esteira de tábua. A lata, em que
Pedro levava o seu almoço. O corredor apertado, assim como o cubículo que era a cozinha,
pedras que serviam como fogão, velha chaleira (da época do engenho), as tábuas sempre
improvisadas, serviam de cama, redezinha, entre outras na narrativa.
Toda a descrição da mobília e do ambiente deixa evidente as más condições em que
eles viviam, a improvisação e pobreza dos objetos, que eram deslocados de suas funções
convencionais para servirem como elementos de suma importância para o bem-estar da
família: caixões de querosene eram camas; quarto e cozinha misturados; as pedras como
fogão; o cobertor de retalhos. Eles evidenciam o aproveitamento e reaproveitamento das
coisas para a sobrevivência das personagens. Enquanto lar é lugar de proteção, serenidade,
segurança, este descrito no romance está longe de ser um, pois a estrutura da casa mostra-se
frágil. Até dentro de casa respinga água da chuva, e o próprio ambiente é obscuro e tristonho.
Analisando tal situação, vemos que as piores casas e lugares onde estas se localizam, são
reservados aos operários, com pouco ou nenhum saneamento.
Outros símbolos que também podemos encontrar dentro da obra, que denunciam as
condições do povo pobre são os bairros, ruas, aterros e praças. Nesses espaços é que se
desenrolam as situações que irão compor um todo significativo na narrativa. Fontes faz alusão
a dois bairros, com mais ênfase: o bairro Santo Antônio e o Industrial; neles é que trafegam os
operários vindos de vários lugares. Nesses bairros acontecem diversas ações: os namoros, os
assédios, as brigas, abusos, e outros casos. Vejamos a passagem abaixo:
Na rua, o povo ia passando...
70
Madrugada. Tudo escuro ainda. Bandos e bandos de raparigas, falando alto,
desciam a Estrada Nova. Dos recantos e vielas que ali desembocavam, de
momento a momento, surgiam vultos apressados. Todo o bairro de Santo
Antônio parecia levantado, a correr para trabalhar.
Os outros arrabaldes também davam grandes levas. Do Anipum, do Aribé,
do Saco, de mais longe, vinham operários.
A parte sul da cidade, para os lados do Carro Quebrado e Fundição, fornecia
numerosos contingentes.
Ainda embrulhada nas sombras da noite, Aracaju ia despertando, ao ruído
dos grupos que passavam, palradores.
Eram mulheres, na sua maioria. Velhas, moças, crianças. Donzelas, casada,
prostitutas. Caminhavam de mistura, em algazarra, batendo os tamancos com
força na areia acamada dos caminhos, nas pedras irregulares das ruas.
(FONTES, 2003, p. 39).
Nessa passagem podemos visualizar a diversidade dentro da classe trabalhadora, das
várias regiões, todos a convergir para o bairro Industrial, onde ficavam instaladas as fábricas;
estes vinham, em sua maioria, do Santo Antônio (bairro operário). O grande crescimento da
indústria gerou muitos empregos, fazendo com que as pessoas deixassem o campo e a seca em
busca de melhores condições de vida, daí o fato da diversidade, mas diversidade que
convergiam para um mesmo segmento da escala social. Assim, apesar de todos serem tão
diferentes, tornavam-se iguais.
Como o bairro Industrial fica em região de aterro pois devido a esse crescimento
foi necessário aterrar mangues e brejos , o acesso era difícil, mas era nesse caminho que
aconteciam os encontros amorosos, e também os proibidos. Da mesma forma, as praças
simbolizam também um ambiente social, pois nelas acontecem as festas e os momentos de
descontração da população.
A rua pode ser considerado um ambiente social, pois trata-se de uma espaço em que
as pessoas convivem. Ora movimentadas, ora desertas, as ruas são palco de vários
acontecimentos importantes da narrativa. Através das ruas o destino das personagens se
concretiza; através delas, os operários chegam ao trabalho e estabelecem relações sociais. A
Rua da Estrada Nova é muito importante, pois por ela as personagens chegam ao seu idílio (a
fábrica), é nessa rua que muitas vezes as mulheres são assediadas e se “perdem”, passando a
não “prestarem” mais. No trecho a seguir, a descrição da rua revela as condições precárias, a
falta de saneamento, entre outros aspectos relevantes:
Na Rua da Estrada Nova, meio em declive, formara-se um pequeno riacho,
por onde as águas desciam mansamente, levando a areia e as sujeiras que
encontravam. (FONTES, 2003, p. 33).
71
Deixando para trás os apicuns amarelentos, caminhavam todos agora pelo
apertado aterro, feito de lama e cinza, que liga Santo Antônio ao bairro
Industrial.
Não cessara de cair a chuva fria. Úmido e retalhante, o sudoeste soprava.
(FONTES, 2003, p.43).
A Estrada Nova e o aterro, mencionados no trecho acima, mostram que Aracaju
crescia e modernizava-se rapidamente, pois devido a esse contingente de pessoas eram
necessários novos caminhos e novos lugares para que a população residisse e transitasse.
Percebemos que em boa parte da narrativa o tempo está nublado, chuvoso, e isso cria uma
imagem triste, envolvendo o leitor na história contada. O ambiente fabril, o desenrolar das
ações, confirmam mais uma vez a atmosfera infernal da fábrica e do trabalho dentro dela:
RIGOROSO, AQUELE INVERNO. Mesmo se o chovia, o céu se
conservava sob nuvens, sol opaco. Um vento Sul, úmido e frio, não cessava
de soprar. As ruas viviam cheias de água, casas fechadas, apenas um ou
outro transeunte.
Os dias, sem quaisquer atrativos, sempre iguais, se escoavam lentamente. E
mais triste ainda decorriam as noites quando se ouvia ecoar por toda a parte
a orquestração monótona dos sapos, dos grilos, das corujas...
muito tempo não despontava um dia assim, de sol refulgente e céu azul.
Em bandos álacres, as operárias caminhavam para as fábricas. Iam todas, em
seus vestidos de chita multicores, sem o mais leve agasalho sobre os ombros.
Mas, do meio-dia para tarde, uma mudança brusca sobreveio. Nuvens
negras, primeiro; depois, uma forte ventania, e pesados aguaceiros
começaram a desabar.
Quando as fábricas largaram, ao lusco-fusco, chovia fortemente. E todos
tiveram de se atirar ao temporal, encharcando-se, mal tinham dado uns
poucos passos. (FONTES, 2003, p. 111-112).
Em quase todas as passagens que citam a caminhada para a fábrica, os dias são
tenebrosos, mesmo quando parece ser um dia de sol, a simples narração nos remete ao tédio e
à tristeza, ou seja, em nenhum momento a fábrica é vista como algo que traga felicidade,
muito pelo contrário, a narração explicita a ambientação fatal que levará pouco a pouco suas
personagens ao seu fatídico destino.
As praças, por outro lado, passam a ser sinônimo de alegria, assim como, em alguns
momentos os aterros, que desempenham importantes papéis sociais, pois através deles os
operários chegam à fábrica e durante a noite, acontecem os encontros proibidos. É no aterro
que Albertina e Dr. Fontoura, se encontram todos os dias para “conversarem”. O aterro pode
72
ser considerado um lugar propício para esses encontros, pois por ficar afastado, dificultava a
aparição de outras pessoas.
Igrejas e praças fazem parte do lado mais lúdico e leve da narrativa, e nelas
acontecem as festas, as tradições, as rezas, é o lugar em que os operários têm
seus poucos momentos de descontração. Folclóricas ou cristãs essas festas
tinham seus limites, pois a força operária não deveria ser gasta com
brincadeiras e isso fica demasiadamente claro na voz de Josefa: Isso
não, minhas senhoras!...Quem levanta de madrugada não pode perder a noite
com brinquedos...”(FONTES, 2003, p. 78).
Bom Jesus dos Navegantes, Natal, Festa de Reis, Missa do Galo, são algumas das
festas cristãs que podemos apreciar na narração. Mas temos também as Festas Juninas que
traduzem as crenças e as tradições do povo. Ricos ou pobres, todos comemoram com cantos,
rezas e outras tradições as Festas Juninas. Nessa hora uma certa aproximação da cidade
com o campo, assim como, uma fuga das personagens dos espaços opressores e
determinantes. Mesmo que momentaneamente, há uma aproximação com o passado deixado
para trás por tantas famílias. Porém, essa lembrança não é suficiente para esconder a tristeza e
a irritação de Josefa, que por várias vezes percebe que algo havia mudado, pois não tinha
mais controle sobre os filhos:
Eu sempre fui a que sou hoje. Vocês, sim, é que mudaram... Quando a
gente morava na Ribeira, não havia passeios toda noite, nem amiguinhas,
nem namoros. Mas, lá, vocês eram tementes. Aqui, é que engrossam o
pescoço. Fazem o que bem dá na veneta, andam acima e abaixo pelo mundo,
como bois altos soltos no pasto, e depois, pai e mãe que se calem... Ah!
Quanto eu me arrependo de ter deixado o meu engenho!...Foi aqui que vocês
deram pra reclamar o trabalho, se lastimando a cada passo e a cada hora.
Mas eu sei porque é isso. É porque o tempo é pouco pra tratar de
vestidinhos, de sapatos, e mais isso e mais aquilo! Agora, querem viver que
nem umas bonecas, de laçarote no cabelo e a cara lambuzada de pintura!
(FONTES, 2003, p. 63).
Josefa começa a perceber a troca de valores, pois os modelos da cidade e do
campo se opõem; ela que a família começa a se distanciar de valores, costumes, até do
respeito aos pais. Então vem o arrependimento da cruel decisão de ter deixado o engenho, não
pelo engenho, mas porque lá se tinha tudo sob controle, e não existia ameaça alguma.
Toda a descrição feita, quer das pessoas, quer das coisas, mostra a forma acelerada
da urbanização na cidade Industrial, exatamente provocada por esta industrialização que
desemboca na modernidade, gerando uma necessidade de adaptação por parte dos agentes.
Fontes mostra essa modernização num tom negativo e de alerta, em que valores, sentimentos
e vontades se perdem.
73
A GRANDE CHAMINÉ da Têxtil vomitava no espaço rolos de fumo negro.
Um silvo curto e agudo anunciou a hora do almoço. E logo como um
bando de reses famintas que tivessem rebentando as cercas do curral de
todos os cantos surgiram centenas de operários a correr. (FONTES, 2003, p.
150).
Os homens perdem seu status de gente e tornam-se bichos, a natureza humana e a
natureza vida-paisagem começam a ser destruídas pela modernidade degeneradora e
devoradora da essência da vida. Agora, as fábricas ocupam lugar primordial, exercendo uma
força propulsora que decide a forma e a cadência do trabalho operário, que ao cumpri-las os
homens transformam-se em escravos, bichos do sistema.
74
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Figura 5 O Bairro Santo Antônio em diferentes
ângulos
Fonte: Acervo Rosa Farias
Figura 6 Chalet da fábrica Sergipe Industrial
Fonte: Acervo Rosa Farias
Ao concluirmos o estudo do romance Os Corumbas, de Amando Fontes, verificamos
a afirmação de alguns pontos pertinentes que abordamos no decorrer deste trabalho, os quais
vieram clarear nosso entendimento das relações entre a literatura e a sociedade, passando
também a compreender melhor as significações dos componentes da obra.
Apesar de ter sido destacado como um “romance autenticamente proletário” e de
cunho comunista, por João Ribeiro (1933) e alguns outros críticos, ficou claro que a narrativa
expõe as mazelas do camponês sertanejo submetido às agruras da cidade grande, pois como
visto, em nenhum momento, é sugerida a revolta desse proletariado, muito pelo contrário, eles
apenas lamentavam a situação na qual estavam inseridos. Fontes se limitou a narrar a vida do
proletariado, suas agruras, seus sentimentos e amarguras, fazendo com que a partir da leitura
da obra fosse possível compreendermos o sistema sociopolítico que se instalou na passagem
do século XIX para o século XX, quando da transição de uma economia agrícola para uma
fase industrial, em que as transformações ocorridas junto ao sistema de vida das pessoas
foram drásticas, pois havia a necessidade destas se inserirem no “mundo moderno” e para
haver esta inserção era necessário romper com estruturas sociais enraizadas, causando um
impacto muito forte na vida dos mais humildes. Então, percebemos que Fontes escreveu uma
literatura sobre o proletário, guiado pelo naturalismo, utilizando-se de documentos e de sua
vivência, uma obra que se voltou para os problemas sociais e econômicos, enfocando a
75
coletividade e seus problemas. Quanto à obra ter também um cunho comunista, não existem
meios pelos quais possamos fazer tal afirmativa, assim como fez João Ribeiro (1933), pois a
biografia de Fontes não aponta um só traço do envolvimento com esta vertente.
Ficou evidente que a importância da obra aqui analisada para o cenário social
brasileiro reside na possibilidade que ela nos oferece em vislumbrarmos os eventos ocorridos
naquela época, quando das transformações sociais ocasionadas pela chegada da
industrialização, assim como, as pessoas que estavam inseridas naquele contexto sobreviviam
e conviviam com o novo sistema, pois o escritor passa a ser representante de uma época e a
sua escrita será embasada pelos preceitos daquele momento, espelhando a sua fala nos
códigos morais daquela sociedade. Vejamos o que diz Calvino (2009, p. 368-369) sobre a
realidade na literatura:
Os vários veis de realidade existem também na literatura, mais que isso: a
literatura é regida por essa distinção de diversos níveis de realidade e ela
seria impensável sem a consciência dessa distinção. A obra literária poderia
ser definida como a operação da linguagem escrita hoje que mais implica
níveis de realidade. Desse ponto de vista, uma reflexão acerca da obra
literária pode não ser inútil para os cientistas e para os filósofos da ciência.
Numa obra literária, vários níveis de realidade podem apresentar-se ainda
que permaneçam distintos e separados, ou podem fundir-se, soldar-se,
misturar-se, encontrando uma harmonia entre suas contradições ou formando
uma mistura explosiva.
A realidade paralela existente na literatura será fruto da relação entre sentimentos,
imaginação de quem escreve a realidade, ou seja, percepções que se misturam, criando essa
outra realidade, como tão bem colocou Calvino (2009). É muito importante lembrarmos que o
romance de 1930, como foi chamado o Romance de Amando Fontes, juntamente com outros
desta mesma época, espalhou temáticas ligadas às transformações ocorridas no início do
século XX, as quais promoveram mudanças severas na vida das pessoas.
Ao analisarmos o terreno movediço em que se alojam as discussões que giram em
torno da relação entre a ciência e a literatura, vimos que estas terão um longo caminho a
trilhar para que esses dois discursos tenham uma convivência harmônica.
Destacamos que Os Corumbas alojou suas bases na vida de Amando Fontes, tendo
em vista ser elemento primordial para produção de uma obra literária de cunho social, prova
disso é que na primeira tentativa de escrever esse romance, o autor parou devido a falta de
conhecimento da vida em Sergipe e manejo com a arte de escrever, porém mais tarde com
toda sua vivência no cenário político sergipano ele pôde dar continuidade de forma brilhante,
76
ao seu projeto literário, que tão bem abordou a modernidade, especialmente os operários e as
condições de vida que os cercavam, servindo como uma obra que nos a noção, nos dias de
hoje, do momento histórico e o progresso pelos quais passava, não Sergipe, mas todo o
país no início do século XX, assim como as vantagens e desvantagens desse novo momento.
Os acontecimentos dessa época foram tão bem abordados por Fontes, ao ponto de
quando lemos a obra termos a sensação de estarmos envolvidos nos aterros, no bairro
operário, no Aracaju que se industrializava. A construção dos diálogos, a narrativa segura e
direta, em alguns momentos impiedosa, a descrição precisa, a apresentação equilibrada das
fotografias e paisagens de Aracaju assim como podemos ver no trecho abaixo, quando
Caçulinha e seu namorado, apreciam a paisagem, sutilmente bucólica, do alto do Santo
Antônio nos leva a esse espaço surpreendente do realismo utilizado em sua obra:
Primeiro, o subúrbio, com as suas casas, ora de palha, ora de telha,
espalhadas, quase a esmo, por entre os arbustos ralos da caatinga. Mais
adiante, o Cemitério Santa Isabel, muito branca, fazendo lembrar uma
pequena vila, com as ruas silenciosas e estreitas, de seus túmulos. Vinha,
depois, a cidade, que era todo um amontoado de tetos vermelhos, afogados
entre o verde dos coqueiros e das árvores que vicejavam nos quintais. Mais
longe, depois do casario, o Atlântico, azul e imenso, lançando espumas
brancas na areia branca da praia. E lá, quase imperceptível na distância, o
vulto esguio da Atalaia Velha, com o seu farol rotativo já aceso.
Para leste, a barra apertada entre dunas alvadias; o bojo, acaçapado e feio, da
Atalaia Nova; o coqueiral, verde e sem fim, da Barra dos Coqueiros.
Entre a cidade e a ilha fronteiriça, o rio, largo, de águas calmas. Saveiros de
panos gigantescos, canoas ágeis passavam, sob os reflexos do sol, que
transmontava. (FONTES, 2003, p. 178-179).
Figura 7 Vista da Colina do Bairro Santo Antônio
Fonte: Acervo Rosa Farias
77
Foi quando Sargento Zeca exclamou:
Lindo!... Ninguém pode negar que Santo Antônio é o ponto mais bonito de
todo o Aracaju. (FONTES, 2003, p. 179).
Essas e várias outras passagens nos fazem viver e conviver ao lado da família
Corumba, misturando realidade e imaginação. A descrição exata e objetiva também fez com
que percebêssemos os símbolos que nos remetem àquele contexto evidenciado na narrativa.
Essas figuras nos fazem enxergar, numa leitura mais atenta, a representação de pessoas,
comportamentos, atos, coisas, sons, passagens que se tornam símbolos do que perpassa a
narrativa de Amando Fontes.
Os Corumbas constitui-se uma obra que se preocupou em narrar a vida de retirantes
que vêm para cidade em busca de melhores condições de vida, e passam a ser explorados pelo
sistema capitalista que pouco a pouco define os seus destinos. Trata-se de uma narrativa que
mergulha fundo na sociedade/ alma sergipana, mais especificamente, na realidade cultural
aracajuana do início do século passado, quando a cidade se industrializava.
Diante de todas as discussões no decorrer desse trabalho, fica muito claro que a
literatura pode e deve gerar debates políticos e sociais e não apenas isso, ela deve estar apta a
trabalhar com a realidade, mesmo mesclando esta realidade com o imaginário do leitor, e
brincando com seu próprio imaginário. Assim, a nosso ver, se construiu a narrativa de
Amando Fontes na obra Os Corumbas, com tamanho brilhantismo advindo do discurso
literário e bastante realismo advindo de documentos e de sua vivência. Sua obra conseguiu
mostrar que é possível se fazer uma literatura voltada para os problemas da sociedade de uma
época, sem perder seu brilho, assim como, fazer da literatura um veículo de estudo, não
apenas da estética literária, mas também como documento histórico, político e social.
78
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