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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
ANAÍDES MARIA DA SILVA
O Eu de Augusto dos Anjos (1912): algumas relações entre
literatura e ciência
MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA
SÃO PAULO
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
ANAÍDES MARIA DA SILVA
O Eu de Augusto dos Anjos (1912): algumas relações entre
literatura e ciência
MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em História da
Ciência, sob a orientação da Profa.
Dra. Lílian Al-Chueyr Pereira Martins.
SÃO PAULO
2010
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BANCA EXAMINADORA
__________________________________
__________________________________
__________________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos.
Ass.: __________________________________________________________
Local e data: ____________________________________________________
Versos íntimos
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras,sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo.Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija
1
1
Augusto dos Anjos, Pau d’Arco, 1901. In: Eu e outras poesias, p 29.
DEDICATÓRIA
A todos os professores solitários e guerreiros que trabalham de sol a sol
em busca de sabedoria e conhecimento.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus e a toda e qualquer iluminação espiritual/intuitiva que
me guiou nesse percurso.
Agradeço à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo pela bolsa
de estudos concedida, sem a qual não seria possível a realização deste
trabalho.
Aos meus queridos pais, Cassiano e Geralda, pelo incentivo e por me
ensinarem o sentido de uma família.
Ao meu namorado Reinaldo por sua paciência, carinho e compreensão.
As minhas amigas, Marinalva, Lourdes, Marina, Doroteia, Luciamari e
todos os meus alunos do Colégio Humboldt e da Escola Pública Professor
Paulo Octávio de Azevedo que me enriqueceram, muito me alegraram nessa
jornada.
Aos meus colegas de curso, em especial Sabrina e Solange que me
ensinaram a levar as coisas com mais leveza.
A Luciana e a Geralda (minha mais nova amiga) que me ensinaram o
que realmente significa a solidariedade e seguir sempre em frente
Aos professores do curso História da Ciência da PUC pela paciência em
especial, a Verônica da secretaria, a minha orientadora Lilian Al-Chueyr Pereira
Martins que abraçou comigo esse trabalho e foi até o fim tendo toda a
paciência do mundo.
As professoras Vera Cecilia Machline e Márcia Helena Mendes Ferraz
por participarem da minha qualificação, em especial a professora Márcia que
acolheu-me num momento de muito sufoco.
RESUMO
O objetivo desta dissertação é discutir como o poeta brasileiro Augusto
dos Anjos (1884-1914) utiliza a terminologia científica em seus poemas.
Esta dissertação está composta por três capítulos. O Capítulo 1 lida com
o contexto de Augusto dos Anjos. O Capítulo 2 apresenta uma análise de dez
poemas escritos por Augusto dos Anjos focalizando principalmente a
terminologia científica voltada para a biologia. O Capítulo 3 apresenta algumas
considerações finais sobre o assunto.
A presente análise mostrou que é possível encontrar terminologia
científica relacionada à Química, Física e Biologia nos poemas de Augusto dos
Anjos. Além disso, que sua poesia reflete a ciência de seu tempo bem como
sua experiência de vida.
Palavras-chave: augusto dos Anjos; poesia; literatura e ciência
ABSTRACT
This dissertation aims to discuss how the Brazilian poet Augusto dos
Anjos (1884-1914) employs the scientific terminology in his poems.
This dissertation is compounded by three chapters. Chapter 1 deals with
Augusto dos Anjos’s context. Chapter 2 presents an analysis of ten poems
written by Augusto dos Anjos mainly focusing on the biological terminology.
Chapter 3 presents some final remarks on the subject.
The present analysis showed that it was possible to find scientific
terminology related to Chemistry, Physics, Biology in Augusto dos Anjos’
poetry, Besides that, it reflects the science of his time as well as his own
experience of life.
Key-words: Augusto dos Anjos; poetry; science and literature.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................... 1
CAPÍTULO 1
AUGUSTO DOS ANJOS E SEU CONTEXTO................................................... 3
1.1
HISTÓRIA,
CIÊNCIA
E
LITERATURA
NO
FINAL
DO
SÉCULO
XIX
E
INÍCIO
DO
SÉCULO
XX..................................................................................... 3
1.1.1 O RIO DE JANEIRO, URBANIZAÇÃO E REVOLTAS.................... 12
1.1.2 A REVOLTA DA CHIBATA E A GUERRA DO CONTESTADO...... 18
1.1.3 A LITERATURA DE FINS DO SÉCULO XIX E SEUS
DESDOBRAMENTOS ..................................................................... 22
1.1.4 AS RELAÇÕES ENTRE A LITERATURA E A CIÊNCIA ................ 33
1.1.5 A POESIA CIENTIFICISTA NO BRASIL......................................... 37
1.2
AUGUSTO
DOS
ANJOS
E
SUAS
CONTRIBUIÇÔES............................... 41
CAPÍTULO 2
CIÊNCIA E LITERATURA EM DEZ POESIAS DE AUGUSTO DOS ANJOS . 46
CAPÍTULO 3
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. 70
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................ 72
1
INTRODUÇÃO
De acordo com Alexander Gode-von Aesch, “frequentemente ciência e
literatura tratam uma a outra com extrema hostilidade mas, apesar disso, elas
são compatíveis e muitas vezes necessitam uma da outra”
2
. Concordamos
com ele.
Esta dissertação discute sobre as relações entre ciência e literatura na
obra poética de Augusto dos Anjos (1884 1914). Sua vida foi breve e ele
deixou suas contribuições no início do século XX.
Nossa opção pelo tema se deveu à riqueza da terminologia científica
que aparece nos poemas de Augusto dos Anjos, o que possibilita o
estabelecimento da interface literatura-ciência. Selecionamos para nossa
análise dez poesias onde o autor utiliza uma terminologia mais voltada para a
biologia.
Paraibano, Augusto dos Anjos viveu a decadência dos engenhos de
cana-de-açúcar, cursou direito na Escola de Recife e tentou dar um rumo
diferente para vida indo morar na capital da época, Rio de Janeiro. Foi
incompreendido por utilizar terminologias científicas nas suas mais de 50
poesias
3
.
Chamado por muitos de Doutor Tristeza, Augusto dos Anjos buscou
popularizar uma forma poética pouco explorada no Brasil na virada do século
XIX e início do século XX: a poesia cientificista. Seguindo a linha de José
Izidoro Martins, um dos representantes da poesia cientificista brasileira.
2
Aexander Gode-von Aesch, Natural Science in Germany Romantism, p.14
3
R. Magalhães Jr, Poesia e vida de Augusto dos Anjos, p. 254.
2
Augusto dos Anjos explorou um vocabulário voltado para a química,
física, matemática, geologia e principalmente a biologia.
Consideraremos neste estudo o período compreendido entre meados do
século XIX (1884), ano do nascimento do poeta, até meados do século XX
(1914), ano da sua morte. Procuraremos situar a contribuição de Augusto dos
Anjos dentro do contexto histórico, científico e literário brasileiro.
Encontramos poucos trabalhos tratando da interface literatura e ciência
sobre a poesia de Augusto dos Anjos. Nesse sentido, acreditamos que esta
dissertação, que segue a linha de pesquisa história, ciência e cultura possa
trazer alguma contribuição para a área.
Esta dissertação está dividida em uma Introdução e dois capítulos. O
primeiro capítulo (“Augusto dos Anjos e seu contexto”) apresenta um panorama
geral em termos científicos, históricos e literários da época em que Augusto
dos Anjos deixou suas contribuições. Além disso, aborda as contribuições
literárias do poeta. O segundo capítulo (“Análise dos poemas de Augusto dos
Anjos”) analisa dez poesias do autor destacando a terminologia científica,
principalmente referente à biologia. O terceiro capítulo (“Considerações finais”)
tece alguns comentários sobre o que foi discutido nos capítulos anteriores.
3
CAPÍTULO 1
AUGUSTO DOS ANJOS E SEU CONTEXTO
Este capítulo num primeiro momento descreverá o panorama histórico,
científico e literário do final do século XIX e início do século XX, desde o
nascimento de Augusto dos Anjos até sua morte. Apresentará também
informações sobre sua vida literária e contribuições.
1.1 HISTÓRIA, CIÊNCIA E LITERATURA NO FINAL DO SÉCULO
XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX
O final do século XIX caracterizou-se pela crença no progresso e a
valorização da ciência. De acordo com Robert Nisbet: “O método científico era
considerado o meio mais correto e seguro de chegar à verdade”
4
.
A ciência
aliou-se à tecnologia e à vida de uma parte da humanidade que vivia no
continente europeu e suas colônias viveram o fenômeno da industrialização.
Neste período ocorreram as contribuições de diversos cientistas. O físico
alemão Wilhelm Roentgen (1845-1923), por exemplo, descobriu o raio-X. Em
1900 o neurologista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) publicou A
interpretação dos sonhos, que contém os conceitos básicos da psicanálise.
No mesmo ano, o patologista austríaco naturalizado americano, Karl
Landsteiner (1868-1943) detectou as diferenças existentes entre os grupos
4
Robert Nisbet. História da idéia de progresso, p.30.
4
sanguíneos designados como A, B, AB e O bem como a presença do fator RH.
Os irmãos Auguste Lumière (1862 1954) e Louis Lumière (1864 1948)
construíram em 1895 o primeiro cinematógrafo.
Em 1882 Koch descobriu o bacilo da tuberculose. E em 1885 Daimler
Gottieb Wilhelm (1884 1900) e Johann Karl Benz Gauss (1844-1929)
produziram o primeiro carro movido a gasolina. Em 1898 o casal Pierre e Marie
Curie identificam o elemento químico rádio. O brasileiro Alberto Santos
Dumont, em 1901, contornou a torre Eiffel com um dirigível. Em 1905 Albert
Einstein anunciou a teoria da relatividade e Auguste Lumière concebeu a
fotografia colorida, em 1887.
A tecnologia entrava nas casas e na vida dos burgueses do final do
século XIX e início do culo XX e com ela a idéia de ordem e progresso.
Marco Braga, Andréia Guerra e José Cláudio Reis comentam a respeito:
O ideal de progresso cultivado pelos intelectuais no século
anterior ganhou as ruas. O homem havia se libertado das
limitações impostas pela natureza e pelas visões religiosas de
outrora. A razão tornava-o senhor do seu próprio destino. Parecia
não haver limites para a ciência e a tecnologia
5
Quando o poeta Augusto dos Anjos nasceu (1884) havia 25 anos que
Charles Darwin (1809-1882) propusera sua teoria evolutiva que produziu
profundas modificações na visão que se tinha a respeito dos seres vivos. O
ser humano passou a ser considerado como o resultado de um longo processo
5
Marco Braga. Breve história da ciência moderna, p.21.
5
evolutivo e de adaptação de modo análogo aos seres vivos. Seres humanos e
primatas descendiam de um ancestral em comum
6
.
A “biologia”, inicialmente apenas um termo cunhado simultaneamente
pelos naturalistas Jean Baptiste Antoine de Monet, Chevalier de Lamarck e
Gottfried Treviranus em 1800, como o estudo dos seres vivos, passou a se
desenvolver como ciência durante todo o século XIX
7
. Foi também durante o
século XIX que Lamarck apresentou em diferentes obras publicadas de 1800
até 1820, sua teoria de evolução orgânica cujo impacto foi baixo na época, ao
contrário da teoria de Darwin.
8
Ocorria, na Inglaterra, a segunda fase da Revolução Industrial, chamada
também de Revolução científica - tecnológica (1850) ou “Revolução do aço e
da eletricidade” que perdurou até 1914. A anterior era denominada “Revolução
do carvão e do ferro”, e ocorreu de 1780 a 1850.
9
Segundo Marco Braga,
Andréia Guerra e José Cláudio Reis a Revolução científica industrial foi:
Naquele momento, ciência e técnica havia se fundido, surgindo
aquilo que conhecemos hoje de tecnologia, que emprega os
métodos e as teorias da ciência na resolução de problemas
técnicos. Essa aproximação foi fundamental para o processo de
industrialização, que começou na Inglaterra, mas se espalhou por
outras regiões do continente europeu
10
6
Ver a respeito em Charles Darwin, Origem das espécies. ,
7
William Coleman. Biology in the nineteneth century. Poblems of form, fuction and
transformation, p.12.
8
Lilian A. C. P. Martins. A teoria da progressão dos animais de Lamarck, p.21.
9
Ver a respeito das revoluções industriais em Waldimir Pirró e Longo, Ciência e Tecnologia:
Evolução, Inter-Relação e Perspectivas (Rio de Janeiro: UFF, 1989).
10
Marco Braga. Breve história da Ciência Moderna, p.45.
6
O crescimento do comércio e a multiplicação das máquinas ajudaram a
disseminar um clima de otimismo que associava as mudanças nos modos de
produção à possibilidade de importantes reformas sociais e prometia tempos
de prosperidade econômica e desenvolvimento técnico e científico.
Através dela, novos potenciais de energia como a eletricidade e a
derivação de petróleo, a metalurgia, o desenvolvimento na área de
microbiologia, bacteriologia e da bioquímica, a produção e conservação de
alimentos nasceram com o intuito de facilitar e melhorar a vida do homem
11
.
Nas grandes metrópoles modernas como Paris, havia telefones,
aeroplano, automóvel, a eletricidade doméstica, elevadores, comidas enlatadas
sabão em pó, anestesia e muitos outros produtos que transformavam o modo
de vida das pessoas.
12
O ritmo era perturbador e as inovações invadiam as
casas da burguesia ascendente. Eça de Queirós (1845-1900) comentou a
respeito da situação da cidade de Paris:
Ruas, cortadas, por baixo e por cima, de fios de telégrafo, de fios
de telefones, de canos de gases, de canos de fezes, e da fila
atroante dos ônibus, tramas, carroças, velocípedes,
calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milhões duma vaga
humanidade, fervilhando a ofega
13
11
Neste período teremos inovações como a lâmpada elétrica em 1879, a turbina hidráulica em
1880, o transformador em 1885 e o motor a gasolina em 1886. Invenções do Radar 1887, o
foguete em 1903 e a televisão em 1907. A época favorecia para uma ambiviência às
inovações.
12
Nicolau Sevcenko, História da vida privada, 130.
13
Eça de Queirós. A cidade e as serras, p.19.
7
O processo das inovações tecnológicas não demorou a ter reflexos em
outros países, inclusive no Brasil. Segundo Vitor Andrade de Melo, as
inovações provocaram:
Reestruturação da forma de viver, tanto porque facilitam o
cotidiano dos indivíduos (ainda que inicialmente tenham sido
mesmo membros das elites que podiam ter acesso a essas novas
benesses modernas) quanto porque explicitam símbolos que
expressam a construção de um novo ideário.
14
Nessa mesma época surgia a Escola de Recife
15
que era mantenedora
da Faculdade de Direito na qual Augusto dos Anjos estudou (entre 1903 a
1907) e teve os seus primeiros contatos com a poesia cientificista.
16
A Escola de Recife era um dos polos culturais brasileiros mais
importantes que se organizou em torno da crença na superioridade da ciência
no nordeste brasileiro. Contribuiu também com temas da sociologia, da
antropologia, da crítica literária, política e filosofia. Era composta por uma série
de intelectuais de campos diferentes do conhecimento
17
. o tinha nenhum
ideário próprio definido. Tinha como plano de ensino pedagógico as
concepções de Auguste Comte (1798-1857), Charles Robert Darwin (1809-
1882), Ernst Haeckel (1834-1919), Hilbert Spencer (1820-1903) e outros.
14
Ver a respeito da modernidade do Brasil em Dr. Victor Andrade de Melo, O automóvel e a
modernidade no Brasil (1891-1908) (Rio de Janeiro, UFRJ 2008).
15
A Escola de Recife, fundada1870 e atuando até meados de 1930, representou um
movimento sociológico e cultural cujos representantes ocuparam as dependências da
Faculdade de Direito de Recife, atualmente Universidade Federal de Pernambuco.
16
Discorreremos mais adiante no tópico literatura e ciência, neste capítulo.
17
Vários nomes podem se identificados como exponenciais da Escola de Recife: Tobias
Barreto (1839-1889), a maior figura do movimento, o poeta condoreiro Castro Alves (1847-
1871),Silvio Romero(1891-1914), Clóvis Beviláqua 1859-1889) e muitos outros.
8
O filósofo brasileiro Antônio Paim descreve a concepção filosófica da
Faculdade de Recife da seguinte maneira:
Inspirava-se no movimento neokantiano naquilo que tem de mais
geral, ou seja, o empenho em superar tanto o materialismo como
o positivismo, propiciando uma volta à metafísica. (...) pela
incorporação de algumas outras ideais suficientemente debatidas
no processo de formação da escola como o monismo, o
evolucionismo, o historicismo.
18
De acordo com Antônio Paim, uma boa parte dos representantes da
Escola de Recife seguia as idéias evolutivas de Ernst Haeckel
19
, considerado
um seguidor de Darwin. Nessa época, Silvio Romero e outros escritores como
Graça Aranha (1868-1913) e Euclides da Cunha (1866-1909) respiravam a
atmosfera científica da época.
20
O poeta ensaísta José Paulo Paes acrescenta:
“Tal cientificismo não ficou restrito ao campo do direito e da filosofia, mas
transbordou para o da literatura, dando origem a uma corrente, a poesia
científica”
21
.
De modo análogo à Escola de Recife, o Partido Republicano Brasileiro
era composto por jovens intelectuais, políticos, artistas.
18
Antônio Paim. A filosofia da escola de Recife, p.20
19
Ibid, p.11.
20
Tais escritores foram influenciados pelo determinismo filosófico, pelo evolucionismo social e
pelo positivismo comtiano.
21
José Paulo Paes, Augusto dos Anjos, p.12.
9
Inspirava-se nas correntes científicas da época. O Partido Republicano
Brasileiro propunha a abolição da Monarquia
22
.
Em 15 de novembro de 1888 do ponto de vista ideológico positivista,
culminava a Proclamação da República. Uma das primeiras medidas adotadas
foi à abertura da economia aos capitais estrangeiros. Outra medida era a
promoção de uma industrialização instantânea e a modernização do Brasil de
toda maneira. Boris Fausto comenta:
A República deveria ter a ordem e também progresso.
Progresso significava como vimos à modernização da
sociedade através da ampliação dos conhecimentos
técnicos, do crescimento da indústria, da expansão das
comunicações.
23
Esse desenfreamento arruinou de vez os engenhos nordestinos,
enriqueceu e proporcionou a ascensão de uma nova camada de arrivistas que
juntamente com os cafeicultores do Sudeste constituiu uma das principais
bases de sustentação da elite científica e tecnocrática inspirada pelo
positivismo.
24
22
Boris Fausto, História do Brasil, p. 137.
23
Boris Fausto. História do Brasil, p. 246.
24
Boris Fausto, História do Brasil, p. 137.
10
Essa modernização científica aconteceu juntamente com a Abolição da
Escravatura (1888) e um número enorme de ex-escravos juntamente com a
imigração desestabilizou a sociedade brasileira. Se por um lado consolidou
práticas do trabalho assalariado, um mercado interno mais “dinâmico”, por
outro, o número de miseráveis e marginalizados subiu à espera de um milagre
econômico que os salvassem. Temos como exemplo, A Guerra de Canudos
que aconteceu de 1893 a 1897. Revolta essa sufocada pela Nova República.
Nicolau Sevcenko e Fernando A. Novais, argumentam que:
Foi esse estado de preenchimento de suas aspirações
mais altas que lhes deu confiança e o impulso para resistir
às formas tradicionais de exploração a que as populações
pobres eram submetidas nos sertões brasileiros, tanto pelo
poder público quanto pelo arbítrio de agentes privados. Foi
esse o seu crime e por isso foram condenados.
25
A sociedade nordestina passava por uma grave crise. Trabalho escravo,
monocultura do açúcar, grandes latifúndios tendo como objetivo maior a
exportação e aquisição de lucros elevados que faziam parte do cenário da
região.
26
25
Fernando A. Novais e Nicolau Sevcenko. História da vida privada, p.20.
26
Augusto dos Anjos viveu o período da Primeira República (1889-1930), um período na qual
a região do Nordeste, (região do berço do seu nascimento) tinha o cangaço como uma forma
de banditismo social (localizado historicamente entre 1870 a 1940). O engenho de Pau d’ Arco
onde nasceu e morou até a adolescência faliu levando a sua família a vendê-lo em 1910.
11
Mesmo com a proclamação da República, com a abolição da
escravatura e com a construção da The Conde d’Eu Railway Company
(Companhia de Engenhos Centrais Anglo-holandeses), e a penetração do
capitalismo, a região nordestina enfrentava por um lado o progresso e pelo
outro, a ruína, a miséria, a decadência. O sertão se identificava com o atraso e
a metrópole, o Rio de Janeiro com o “progresso”. Aos pobres e refugiados da
seca restavam à migração submeter-se aos assaltos. A violência tendia a se
espalhar pelas camadas mais baixas. Mesmo os estados mais ricos da região
Nordestina como Pernambuco e Alagoas, considerados grandes oligarquias
dependiam dos apoios dos coronéis para garantir as grandes eleições.
27
Boris
Fausto comenta a respeito:
Como decorrência, o Nordeste brasileiro durante este período, de
seu isolamento geográfico durante esse período, do seu atraso
tecnológico e da sua incapacidade de unir-se para defender
interesses comuns. Outros fatores, entre os quais figura o elevado
índice de analfabetismo na região, contribuíram para a
inevitabilidade da distância cada vez maior entre o Norte e o
Sul.
28
27
Paraíba, estado no qual nasceu Augusto era considerado um dos estados mais pobres.
Assim como as outras capitais nordestinas dependia ainda mais do apadrinhamento e do
coronelismo.
28
Boris Fausto. O Brasil Republicano, p. 124.
12
1.1.1 O RIO DE JANEIRO, URBANIZAÇÃO E REVOLTAS
Na virada do século XIX para o século XX, muitos sonhavam em morar na
capital do Brasil
29
. Afinal de contas, foi no Rio de Janeiro que ocorreu a
primeira apresentação cinematográfica em 8 de julho de 1896. O telefone
passou a funcionar em julho de 1889. O bonde circulava pelas ruas desde
1895. Em relação a essa época, Júlia Barrio de Andrade comenta que:
Estava ocorrendo a modernização do Rio de Janeiro. O mesmo
estava se passando em Santos, onde o governador do Estado de
São Paulo, Jorge Tibiriçá havia, em 1905, contratado Saturnino
Brito que iria promover o saneamento da cidade. Esta estava
sendo palco de inúmeras doenças.
30
A cidade do Rio era considerada uma metrópole-modelo, o cartão de
visitas do país, a sede do governo.
31
A metrópole marchava com o mundo da
telegrafia sem fio, a aviação, e intercalava os grandes avanços tecnológicos
com migrantes, estrangeiros, mestiços, marinheiros, ricos, pobres, enfim, com
uma infinidade de pessoas em busca de novas oportunidades. Waldir Stefano e
29
Um deles, o poeta Augusto dos Anjos, demitiu-se do Liceu Paraibano onde lecionava e dia 6
de setembro de 1910, embarcou com sua mulher Ester Fialho chegando ao Rio de Janeiro dia
13 do mesmo mês. Na bagagem, além de roupas e livros trazia a esperança de ser um grande
poeta.
30
Ver a respeito do saneamento de Santos em Júlia Andrade Barrio, As ideias e o projeto de
Saturnino Brito (São Paulo: PUC, 2001).
31
O Rio de Janeiro era a capital do Brasil, sede do governo, centro cultural, foco do
desenvolvimento, incorporadora de novos hábitos e costumes.
13
Thomas E. Skimore acrescentam outro dado importante sobre o que aconteceu
no Brasil:
Entre 1880 e 1920 foi o ponto alto do interesse pela questão do
“branqueamento” do povo brasileiro. Essa idéia partia do
pressuposto de que a raça branca era superior às outras.
32
Além
disso, nas quatro primeiras décadas do século XX ocorreu o
movimento eugenista no Brasil
33
Entretanto, com todo o glamour francês e a capital ditando moda para
outras regiões do Brasil, infelizmente, uma parte da realidade social carioca era
bem diferente.
No início do século XX, a população do Rio de Janeiro contava com um
milhão de habitantes.
34
Essas pessoas moravam em casarões que se haviam
transformado em cortiços.
35
Essas habitações eram feitas a partir da ocupação
de hotéis, colégios, asilos, prédios públicos. Podemos ilustrar essas formas de
moradias com um trecho do romance O cortiço do escritor Aluísio de Azevedo
32
Thomas E. Skidmore, Preto no branco...pp.G3 e 81, Stefano, O.D, p.10
33
Ver a respeito em Waldir Stefano, Octávio Domingues e a eugenia no Brasil (São Paulo:
PUC, 2005)
34
Destes, uma grande parte era composta por pobres, ex-escravos, migrantes e imigrantes
que vinham em busca de emprego, principalmente perto dos portos.
35
Os cortiços eram propriedades que ficavam no centro da cidade e em cada cubículo
moravam famílias em precariedade total de vida.Traziam lucros para os seus proprietários e
problemas para a sociedade.
14
Fotografia de um cortiço (1906), por Augusto Malta
FONTE:ACERVO DA SECR
ETARIA DE CULTURA DO
RIO DE JANEIRO
escrito em 1881 e uma fotografia do fotógrafo Augusto Malta (1884-1954)
36
de
um cortiço no centro do Rio de Janeiro, datada de 1906:
As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar a cada
instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam dentro e
vinham amarrando as calças ou saias, as crianças não se davam ao
trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos.
37
Como se pode perceber através desta citação, as condições de higiene
e saneamento básico eram precárias nesses locais.
36
Augusto Malta foi um fotógrafo que se destacou devido às reformas urbanísticas do prefeito
Francisco Pereira Passos (1902-1906). Ajudou a construir a imagem do Rio de Janeiro, o Rio
da Belle Époque, a imagem de vitrine do Brasil. E também fotografou as mazelas cariocas.
37
Aluísio de Azevedo. O cortiço, p. 38, capítulo III.
15
Para o governo e a sociedade burguesa da época, esse aglomerado de
pessoas com suas crenças e as suas culturas simbolizava uma ameaça à
saúde pública. Doenças como febre amarela, tuberculose, lepra, malária,
difteria, varíola, tifo, multiplicavam-se na capital que era considerada a vitrine
do país e a terceira em importância no continente americano.
38
O Presidente da
República na época, Rodrigues Alves (1848-1919) tinha três planos de base
principal para sanar os problemas: modernização do porto, sanear a cidade e
reformá-la. Nomeou o engenheiro Lauro Müller (1863-1916) para a reforma do
porto, o médico sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917) para o saneamento e o
engenheiro urbanista Pereira Passos (1836-1913), para a reforma urbana.
Os três colocaram como alvo principal dos focos de doenças os cortiços
na região central. Resumindo, a idéia era fazer uma “regeneração” da cidade.
Para a população pobre soou como um “bota - abaixo”, um ato de
ditadura. Com a “reforma” sanitária e a “limpeza” dos casarões, muitos
juntaram o pouco de entulho que sobrava da demolição e foram para aos
morros, disseminando mais ainda as favelas. Os que sobraram, foram morar
em “zungas”, hotéis em forma de cortiços baratos em que dormiam enfileirados
e amontoados.
A administração da saúde da época sabia que daquela maneira não iria
melhorar muita coisa. Desencadeou uma campanha maciça para a erradicação
da varíola. Nicolau Sevcenko escreveu a respeito:
38
Com tais doenças que assolavam a população local e a estrangeira na época a capital
carioca foi apelidada de “túmulo do estrangeiro” devido às inúmeras mortes ocorridas.
16
Avenida Central, em foto de Marc Ferrez, (1910).
FONTE: ACERVO DA SECRETARIA DE CULTURA DO RIO DE JANEIRO
Tinham autorização para mandar evacuar a casa, cortiço, frege,
zunga ou barraco, condenando-os eventualmente à demolição
compulsória, e seus moradores não tinham direito à indenização.
Foi a gota d’água para a população pobre, despejada e
humilhada.
39
Eclodiu, assim, em 1904 a Revolta da Vacina. Enquanto a revolta ocorria,
a energia elétrica instalada atingia cerca de cem megawatts por segundo.
Havia mais de 17 000 quilômetros de estrada de ferro que destinavam a
transportar matérias-primas, levar produtos de exportação aos portos.
40
A
imagem abaixo do fotógrafo Marc Ferrez (1842-1923) descreve a Avenida
Central na capital do Rio de Janeiro em 1910:
39
Nicolau Sevcenko. O prelúdio republicano, p. 23.
40
Na mesma época, no mundo, o bioquímico britânico Frederic Hopkins (1861-1947) descobriu
as vitaminas e o físico inglês Ernest Rutherford (1871-1937) descobriu o próton. O primeiro
Ford modelo T foi construído por Henry Ford (1863-1947). O modelo T foi o primeiro carro
acessível movido por motor de combustão interna.
17
O homem do final do século XIX para o início do XX trabalhava em série.
Ficou limitado, repetitivo e obsessivo. Atuando sempre num mesmo gesto, sem
iniciativa, sem reflexão, num processo de produção, fosse para fazer um
automóvel ou para desencaroçar algodão. O economista francês Jean
Fourastie (1907-1990) fez o seguinte relato a respeito da situação:
A máquina 1900 exigia que um operário a servisse, ela era
automática para uma parte de seu trabalho, e exigia o serviço do
homem ou para a sua alimentação ou para outra fase do seu
trabalho; o operário especializado devia agir como uma máquina
complementar da outra quina incompleta, repetir
incessantemente o mesmo gesto na cadência do metal.
41
No filme Tempos Modernos, Charles Chaplin (1889-1977) representa um
operário alucinado, condicionado por sua tarefa “mecânica”. Ele sai com a sua
chave inglesa apertando pelas ruas os casacos dos transeuntes como se
fossem botões que deveria atarraxar em seu trabalho. Ou seja, o homem
mecanizado. Numa sociedade mais “moderna” surgiam novos conflitos: os
industriais reivindicavam facilidades para as suas fábricas. A classe média
urbana interessada no progresso urbano e social. A classe operária na luta
contra a brutal exploração industrial.
41
Jean Fourastie. As maravilhas da Ciência, p. 90.
18
1.1.2 A REVOLTA DA CHIBATA E A GUERRA DO CONTESTADO
No Rio de Janeiro, a capital federal da época circulava, em especial na
Rua do Ouvidor, a elite endinheirada. E com ela, a moda, as questões políticas
e filosóficas e mais revoltas. Uma delas foi a Revolta da Chibata.
Esta reivindicava o fim dos castigos corporais aos que seguiam ao
recrutamento militar. Muitos soldados eram de origem humilde e o
recrutamento era feito de maneira particularmente violenta.
O estopim da revolta foi o castigo a que o Marinheiro Marcelino
Rodrigues Alves iria sofrer: 250 chibatadas. Seus companheiros obrigados a
assistir, como de costume, não contiveram e, na noite de 22 de novembro de
1910 se rebelaram. Outros navios estacionados na baia de Guanabara também
aderiram. O líder da revolta, João Cândido (1880-1969), o Almirante Negro
ameaçou bombardear a cidade e os navios dos que não se revoltassem
42
.
O senador Rui Barbosa (1849-1923) propôs um projeto que atendia aos
marinheiros e lhes concedia anistia. Puro engano: tudo ficou no papel. Os
novos comandantes nomeados ordenaram a prisão de João Cândido e seus
companheiros e muitos deles morreram na ilha das Cobras.
O tempo republicano tinha quinze anos quando o poeta chegou à
capital. Banhado com o discurso da ordem e do progresso fazia-se a custa dos
mais miseráveis a modernidade e a tecnologia. O governo brasileiro queria
igualar o Brasil à tecnologia global. Silenciavam as revoltas com formas de
opressão das mais diversas ordens.
42
Nicolau Sveccenko, História da vida privada, 139.
19
A população, a maioria, era destituída de uma educação formal e alheia
as decisões. Durante o período em que Augusto dos Anjos viveu no Rio de
Janeiro (meados de setembro de 1910 até meados de julho de 1914),
encontraremos a Guerra do Contestado (1912-1916) na fronteira entre o
Paraná e Santa Catarina.
Foi um movimento trágico, abafado pelo presidente da época Marechal
Hermes da Fonseca (que governou do período de 1910 a 1914). A elite vigente
na época se empenhava em reduzir a realidade da sociedade brasileira.
A consciência crítica republicana demorava a compreender os
fenômenos do desenvolvimento e das desigualdades sociais. Iludiam-se com o
urbanismo científico e a crença dos progressos herdados das culturas dos
modelos europeus e norte americano.
Nicolau Sevcenko comenta:
Os episódios de Canudos e da Revolta da Vacina revelam
o quanto essa situação era precária para as camadas
subordinadas da população. A autoridade pública permitia-
se invadir e não raro destruir, seja o casebre sertanejo, seja
o cortiço, o barraco ou o mocambo nas cidades
43
43
Nicolau Sevcenko. História da vida privada, p. 30.
20
Os primeiros barracos no Morro do Pinto, Augusto Malta (1912)
FONTE: ACERVO DA SECRETARIA DE CULTURA DO RIO DE JANEIRO
As revoltas da época firam exemplos da brutalidade da mentalidade
burguesa da época que desejava restaurar a sociedade a qualquer custo.
Entretanto, os barracos de madeira aumentavam e junto com eles, as doenças
e a violência.
A tecnologia o chegava para os marginalizados. E quando chegava
era precária e deficiente. Para esses, sobravam um Rio de Janeiro sujo,
corrupto e sem chances de prosperidades. A eletricidade muito ovacionada no
início do século não chegava para a sociedade carente. Os bondes lotavam
e não eram suficientes. A população marginalizada não tinha recursos e estava
despreparada para entender os recursos tecnológicos.
A imagem abaixo dá uma idéia de como foram os primeiros barracos no
Rio de Janeiro. Foi fotografada por Augusto Malta no Morro do Pinto. Os
marginalizados não dispunham nem de asfalto, nem de saneamento básico.
Casas confeccionadas com restos de madeiras, telhas, desprovidos das
condições necessárias para a sobrevivência.
21
Por outro lado, desenvolvimento das técnicas publicitárias crescia e
incitava a população para que consumisse produtos industrializados. O
interessante é que as propagandas mais difundidas eram a respeito dos
medicamentos. Por todos os lados bondes encontravam propagandas do
xarope Bromil ou do licor Xavier para verminoses. Os laboratórios químicos
prosperavam. A cura não vinha mais dos benzimentos, orações e nem das
ervas medicinais.
44
Mas havia também dados positivos. Um salto de qualidade em relação
ao controle e a cura das doenças na virada do século no Brasil. As construções
do Instituto Butantã em São Paulo e do Instituto Oswaldo Cruz no Rio de
Janeiro merecem destaque.
Os primeiros anos do período republicano mostraram que a
descentralização administrativa estimulou pelos governos estaduais a atuação
dos primeiros institutos bacteriológicos. O de São Paulo em 1892 e o do Rio de
Janeiro em 1900.
Eles atuaram e conseguiram, com sucesso, introduzir as concepções
microbiológicas na classe médica. Trabalhou afinco com a vacinação
antivariólica, uso das medidas higiênicas, quarentenas, controle de doenças e
etc.
O sucesso foi graças aos pesquisadores, o apoio de várias autoridades
do estado, uma parte da elite, enfim, pessoas que estavam preocupadas com o
controle das doenças. A atuação dos jornais também foi positiva. Eles
difundiam e defendiam os avanços na época. Boris Fausto escreveu:
44
Ela vinha dos xaropes, das pílulas, dos emplastos... No meio também havia as trapaças de
cura. Em contribuição ao conhecimento da estupidez humana do Dr. Antonio Tosti,
encontraremos “Pós de água”, “Cinta elétrica”, “Estrelas americanas que eliminam manchas”,
”Sabonetes para pessoas peludas” e uma infinidade de bizarrices todas com promessas
“científicas de cura”
22
As cidades entraram a crescer mais depressa do que a
população em geral. Os índices de mortalidade nas áreas
urbanas caíram sensivelmente, mercê da melhoria dos
serviços de saúde pública, financiados, sobretudo com os
ganhos da exportação
45
1.1.3 A LITERATURA DE FINS DO SÉCULO XIX E SEUS
DESDOBRAMENTOS
O final do século XIX assistia o entrecruzamento de várias correntes
científicas, filosóficas e também de algumas tendências artísticas e literárias.
Na Literatura encontraremos o Realismo, o Naturalismo e o
Parnasianismo de um lado, que abraçaram o cientificismo e o materialismo
como principais ideias contrapondo com o movimento literário simbolista que
colocava em dúvida a capacidade absoluta da Ciência de explicar todos os
fenômenos relacionados ao Homem. Por volta de 1904 até 1922 surgiu
também o Pré-Modernismo que transitou para uma literatura mais social,
apontando para mais problemas concretos do Brasil.
Na época havia um grupo de intelectuais que buscavam uma linguagem
mais simples, mais objetiva, menos romântica, mais real. Surgia assim, o Rea-
45
Boris Fausto. História do Brasil, p. 30.
23
lismo/Naturalismo em 1870 e autores como Machado de Assis (1839-1908) e
Aluísio de Azevedo (1857-1913) procuravam seguir e renovar ideias do escritor
e pintor francês Gustave Flaubert (1821-1880) que preconizava o Realismo na
França.
A arte para os realistas tinha como função principal retratar a sociedade
como ela é. Produzir uma “arte viva”, que “retratasse os costumes, aspectos
reais, claros e objetivos da época”. Romances como Madame de Bovary (1857)
analisavam impiedosamente a ideologia burguesa, e Emile Zola (1840-1902)
com Germinal, descreviam os trabalhadores de uma mina de carvão na França
com características do Naturalismo, explorando assim, mais realismo e crueza.
É interessante ressaltar que a designação de Realismo ao movimento
não é tão adequada, porque podemos encontrar realismo no Simbolismo, no
Romantismo ou em qualquer outro movimento literário. Contudo, O Realismo
que povoou a metade trabalhará uma maior aproximação com a realidade
ao descrever minuciosamente o homem e os seus conflitos interiores,
exteriores, as relações sociais, as crises nas instituições em decorrência dos
avanços tecnológicos da época. Podemos citar como exemplo, o último
capítulo do romance do escritor brasileiro Machado de Assis, Das negativas,
CLX, onde encontraremos a verdade nua e crua da realidade. O personagem
principal declara o porquê de nunca ter filhos: sem rodeios, sem fantasias, sem
romances:
E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério,
achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa
24
deste capítulo de negativas: Não tive filhos, não transmiti a
nenhuma criatura o legado da nossa miséria
46
o Naturalismo era uma extensão do Realismo e registrava o
cotidiano, mais brutal e animalizado. A perspectiva que muitos tinham na época
era que a literatura fosse mais científica, que fosse um meio de conhecimento
da realidade. Que a obra fosse um “espelho” da realidade. Utilizavam do
Romance de tese para escrever suas narrativas.
O exemplo abaixo retirado do romance O cortiço de Aluísio de Azevedo
nos dá uma idéia clara a respeito da animalização do homem. Através das
onomatopéias e os adjetivos colocando o ser humano como animais irracionais
e produto do meio. Como se todos (homens e animais fosse uma coisa só:
todos iguais) brutalizados pelo meio onde vivem:
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma
aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. (...) dos braços e
do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o
alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não
molhar o pêlo
47
46
Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 140.
47
Aluísio de Azevedo. O cortiço, p. 38, capítulo II.
25
no caso do Parnasianismo, encontraremos diferenças. O estilo era
descompromissado com os problemas do mundo. Buscava a estética poética, a
“arte pela arte”.
Os versos parnasianos eram voltados para o belo, o estético, o
harmônico. O que predominava era a estrutura métrica e sonora, a técnica de
“versejar” e não a inspiração.
O Parnasianismo nasceu na França em 1878 e quem o liderou foi o
poeta francês Théophile Gautier (1811-1872). Reagia contra os exageros
emocionais do movimento romântico. Buscava a objetividade e impassibilidade
nas poesias, emoções contidas, amor sensual. No Brasil, foi o movimento
literário que conquistou a elite carioca da época. Liderado pelo Olavo Bilac
(1865-1918) (considerado), o príncipe dos poetas, autor do Hino da Bandeira
juntamente com o poeta Raimundo Correa (1859-1911) e Alberto Oliveira
(1857-1937) formando-se assim, a tríade parnasiana.
Esse movimento durou até o segundo decênio do século XX, sufocando
o Simbolismo brasileiro. Odiado pelos escritores do Modernismo Primeira Fase,
classificado como elitista por não aceitar nenhum poeta que “fugisse” das
convenções parnasianas, foi um movimento extremamente poético e patriótico.
O crítico literário Alfredo Bosi descreve o Parnasianismo como:
O Parnasianismo é o estilo das camadas dirigentes, da burocracia
culta e semiculta, das profissões liberais habituadas a conceber a
26
poesia como “linguagem ornada”, segundo os padrões
consagrados que garantam o bom gosto da imitação
48
É interessante destacar que uma estética literária não começa por acaso
e não acaba de repente. E que todas as pessoas vão pensar igual. Um
movimento literário é intertextual e interdiscursivo. Ele retoma conceitos
antigos, mistura-os aos novos. Nos momentos históricos há uma ideologia
predominante, mas não global.
O Simbolismo não acreditava que a arte fosse inteiramente objetiva, não
acreditava na possibilidade da realidade nua e crua nas obras literárias e
pictóricas. Duvidava das explicações “positivas” da ciência e não acreditava
que a tecnologia conduzisse o homem somente para o caminho do progresso e
da fartura emocional e material. É classificado como um movimento
antimaterialista e antirracionalista. Sua linguagem sugere a realidade e não
retrata objetivamente como faziam os escritores realistas. Movimento literário
com muitas metáforas, recursos sonoros, recursos cromáticos, sinestesias,
intuição.
Nasceu na França e teve como representante o poeta francês Charles
Baudelaire (1821-1867). Ele defendia que o homem deveria refugiar-se num
universo mágico, imaginário rejeitando a lógica da “sociedade burguesa”. Esse
movimento surgiu no último quarto do século XIX
49
.
48
Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira, p. 20.
49
Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira, p. 20.
27
No Brasil, encontraremos as primeiras manifestações simbolistas desde
o final da década de 80 do século XIX. Como marco introdutório terá a
publicação, em 1893, das obras Missal (prosa) e Broquéis (poesia) de Cruz e
Souza. O Simbolismo brasileiro desenvolveu-se paralelamente ao
Parnasianismo, então o panorama histórico é quase o mesmo. Mas
desenvolveu-se fora do eixo do Rio de Janeiro. Graças ao poeta catarinense
Cruz e Sousa (1861-1898) que adotou e o expandiu pelo Brasil.
Assim como o Parnasianismo, o Simbolismo projetou-se no século XX
influenciando o Pré-Modernismo e alguns escritores modernistas brasileiros
que eram também chamados de neossimbolistas, no caso, a poetisa Cecília
Meireles.
O “ar” decadente do final do culo XIX evidenciou o Simbolismo no
Brasil coincidindo com as frustrações, as angústias, decepções causadas pela
consolidação da República brasileira.
A poesia As estrelas em seus halos do poeta português e simbolista
Eugênio de Castro (1869-1944) nos dá uma ideia de como são as poesias do
movimento simbolista:
Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas,cítaras,sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em Suaves,
28
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...
50
O jogo de sonoridade entre as palavras graves e suaves, acentos e
lamentos, termos como sonolentos convidando ao leitor ao sono profundo, nas
profundezas do inconsciente, as sinestesias (os cinco sentidos: paladar, olfato,
tato, audição) e as anáforas (repetições de vogais e de consoantes),
convidando a leitor a uma dança com as palavras.
Foi no Simbolismo também que surgiu a arte visual denominada
Impressionismo. A partir dele, nasceu uma nova representação do espaço
visual. Ocorreu na pintura e na ciência no final do século XIX. Através dos
pontos de semelhanças entre objetos diferentes buscavam auxílio para
compreender a realidade. Pintores impressionistas como Paul Cézanne (1839-
1906), Édouard Monet (1832-1883), Claude Manet (1840-1926), estudavam a
ciência da cor, a visão atomista (fortalecida ao longo do século com o
desenvolvimento de modelos atômicos e da tabela periódica), a razão entre a
carga e massa de um elétron. Fornecia a descontinuidade microscópica,
através de uma realidade construída de pequenos toques de cor que compõe a
totalidade da representação.
A arte impressionista “deformava” o espaço e relacionava-o com o
tempo e a matéria, promovendo novas aberturas para outra percepção, não
50
Eugênio de Castro. Poesias completas, p. 100.
29
sendo mais regida pela geometria euclidiana ou pela separação clássica entre
tempo e espaço. Anunciou uma nova concepção de espaço material que a
física do século XX iria transpor para a linguagem matemática. Marco Braga,
Andréia Guerra e Jo Cláudio Reis consideram que as geometrias não-
euclidianas e a pintura do século XIX criaram um novo espaço para artistas e
cientistas e que no século XX foi construída uma nova realidade espacial, livre
dos cânones da perspectiva renascentista.
51
Juntamente com outras tendências que surgiram no início do século XX,
nós tivemos o Pré-Modernismo no Brasil. Não podemos classificá-lo como um
momento literário e sim como uma fase de transição. Iniciou-se com uma
literatura mais progressista, voltada para o presente.
Essa transição ocorreu de 1902 até 1922 com a semana da Arte
Moderna. Seu marco inicial teve duas obras de destaque: o romance Can do
escritor Graça Aranha e Os Sertões do escritor Euclides da Cunha (ambos
romances escritos em 1902).
Seu contexto histórico e social compreende aos primeiros anos da
República Velha (entre mais ou menos 1895-1920), no qual São Paulo tornou-
se uma espécie de sede da burguesia cafeeira (composta por fazendeiros que
enriqueceram e preferencialmente, construíram suas mansões na recém-
inaugurada Avenida Paulista.
52
51
Marco Braga. História da ciência moderna, p. 88.
52
O Brasil era governado pelos políticos da aliança “café-com-leite” e o Rio de Janeiro era
cenário de um surto de modernização com o crescimento de um proletariado emergente que
ocupava as periferias desde a abolição em 1888.
30
O Pré-Modernismo foi sincrético
53
, as estéticas literárias não eram
estagnadas e muitas vezes se fundiam. Para os escritores pré-modernistas o
importante eram os assuntos do dia-a-dia dos brasileiros. Juntamente com eles
surgiram também as primeiras influências artísticas (já citadas neste trabalho)
europeias que influenciaram e impulsionaram o Modernismo brasileiro literário.
Em suma: O Pré-Modernismo registrava momentos de transição do
velho para o novo, com concepções artísticas e literárias diferentes que se
opunham, se mesclavam, ora de fundiam.
Os autores que se destacaram na prosa nessa fase foram: Euclides da
Cunha (1866-1909), Graça Aranha (1868-1913), Lima Barreto (1881-1922) e na
poesia Augusto dos Anjos (1884-1914).
Os escritores pré-modernistas escreveram a respeito dos problemas
concretos do país, sem idealizações, livre das “formas” literárias europeias
importadas. Surgiu nas duas primeiras décadas do século XX. Voltada para as
preocupações socioculturais.
54
O trecho abaixo, extraído do conto A riqueza
dos Bruzundanga, do escritor carioca Lima Barreto ilustra quais eram as
características dos autores pré-modernos, ou seja, a denúncia, a crítica social,
uma linguagem mais popular:
53
É importante destacar que o Pré-Modernismo é uma mistura dos modelos dos romances
realistas e naturalistas com a linguagem cinematográfica, moderna. Tinha um interesse maior
pela realidade brasileira buscando uma linguagem mais simples e coloquial
54
Na mesma época, o Parnasianismo persistiu, pois os poetas pertencentes a esse movimento
literário escreviam bem ao gosto do público das camadas dominantes, sem análise, sem
críticas e nem denúncias. Ou seja, a arte pela arte.
31
Os proprietários dos latifúndios vivem nas cidades, gastando à
larga, levando a vida de nababos e com fumaças de
aristocracias. Quando o café não lhes o bastante para as suas
imponências e as da família, começam a chamar que o país vai à
garra, que é preciso salvar as lavouras, que o café é à base da
vida econômica do país
55
.
Graça Aranha, Monteiro Lobato, Euclides da Cunha e Lima Barreto,
produziram uma literatura de caráter nacionalista, mas com “olhares”
diferentes.
Lima Barreto, carioca, ressaltou a realidade triste dos subúrbios
cariocas, da politicagem tirana e corrupta, da burocracia governamental, das
dificuldades do negro ascender socialmente.
Colocou-se contra a literatura acadêmica, foi apelidado de o crítico
marginal. Destacava a gente pobre com seus dramas humildes e a dificuldades
dos mesmos para ascender socialmente. O trecho abaixo, extraído do
romance, Recordações de Escrivão Isaías Caminha, publicado em 1909
demonstra a preocupação que o escritor tinha com os mais humildes:
Num cômodo (em alguns) moravam às vezes famílias inteiras e
eu tive ali ocasião de observar de que maneira forte a miséria
prende solidariamente os homens... (...) admirava-me que essa
gente pudesse viver, lutando contra a fome, contra a moléstia e
55
Lima Barreto. A riqueza da Bruzudanga, p. 46-8.
32
contra a civilização; que tivesse energia para viver cercada de
tantos males, de tantas privações e dificuldades.
56
Euclides da Cunha afastou-se do ufanismo social e re-escreveu o
interior do Brasil o sertão e o sertanejo do país. Através de uma voz
inconformada com o Massacre de Canudos e a realidade da situação do
homem sertanejo.
Em Os Sertões, publicado em 1902 além de ser o marco inicial do Pré-
Modernismo foi também a denúncia da violência militar e a defesa de Canudos.
O trecho abaixo ilustra claramente essa indignação e defesa do povo oprimido:
Decididamente era indispensável que a campanha Canudos
tivesse um objetivo superior à função estúpida e bem pouco
gloriosa de destruir um povoado dos sertões. Havia um inimigo
mais sério a combater, em guerra mais demorada, em guerra
mais demorada e digna. Toda aquela campanha seria um crime
inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os caminhos abertos à
artilharia para uma propaganda tenaz
57
o paulista Monteiro Lobato fazia uma literatura “caricatural”,
denunciadora, de advertência a respeito da miséria do caipira do interior pau-
56
Lima Barreto. Recordações do escrivão Isaías Caminha, p. 140.
57
Euclides da Cunha, Os Sertões, p. 405.
33
lista. Ao mesmo tempo, criticava o atraso agrário que o Brasil se encontrava
criou a personagem Jeca Tatu. Também criticava certos hábitos brasileiros
como a pia dos modelos estrangeiros, a submissão das massas eleitorais, o
nacionalismo cego. Idealizava um Brasil moderno, estimulado pelo progresso e
pela ciência.
58
Graça Aranha foi mais tarde uma das pessoas “encabeçadas”, na
Semana de Arte Moderna de 1922. Seu romance Canaã
59
foi fruto da
experiência vivida em no Espírito Santo. Lá ele observou os contrastes
culturais entre os imigrantes alemães e a população local, colhendo material
para escrever sua obra e lançá-la em 1902.
A postura do autor no romance é humanista. Defende a miscigenação
racial entre os seres humanos na construção de uma Canaã. Essa discussão
étnica tomou proporções assustadoras. Um exemplo disso é a Segunda Guerra
Mundial (de 1930 a 1940), com a Alemanha nazista.
1.1.4 AS RELAÇÕES ENTRE A LITERATURA E A CIÊNCIA
Permanecemos sentados. Não trataremos
de igualar em uma equação, símbolos obviamente distintos.
Porém uma mão busca outra mão, amistosa,
58
O outro lado deste escritor seria a literatura infantil, transmitida às crianças valores morais,
tradições, nossa língua. Uma crítica infeliz feita à exposição da Anita Malfati para o jornal O
Estado de São Paulo, intitulado de Paranoia ou mistificação serviu de protesto para
desencadear a A Semana de Arte Moderna em fevereiro de 1922 em São Paulo.Fundou
também a primeira editora nacional, Monteiro Lobato & Cia.
59
Foi um dos primeiros escritores naquela época a tratar na ficção da supremacia das raças.
Em Canaã encontramos Milkau e Lentz, dois imigrantes com ideais e ideias diferentes. Milkau
defende a integração harmoniosa entre as raças e Lentz, ao contrário, defende a raça ariana
sobre o mestiço, classificando-o como fraco.
34
De modo que uma e outra possam entender.
Como a mesma e única paixão ardia
Dentro de cada nobre campeão do conhecimento
Seu Bentley e seu Scaliger,
Meu Heisenberg e meu Scchrödinger.
60
Miguel de Asúa
61
fez um interessante paralelo entre literatura e ciência.
Para ele a literatura está mais próxima da experiência humana privada, e a
ciência à pública.
A linguagem da literatura, segundo ele, é subjetiva, enquanto que da
ciência busca a objetividade. Citando Huxley, De Asúa afirma que a linguagem
purificada da ciência é instrumental, um recurso para tornar compreensível as
experiências públicas, no entanto a linguagem purificada da arte literária é um
fim em si mesma, algo que busca a beleza e o significado intrínseco, um objeto
de magia que busca o encantamento.
De Asúa explica que na Grécia antiga não havia ainda essa separação
entre ciência e arte, uma vez que um tratado de artes da guerra ou da medicina
era escrito em forma de versos. Foram os próprios filósofos que começaram a
notar a diferença entre o que era científico e o que era literário.
60
Michel Roberts, Selected Poems and Prose, apud, Miguel Asua, Ciência y literatura: un
relato histórico, p. 10..
61
Miguel de Asúa, Ciência y literatura: un relato histórico. p. 12.
35
Aristóteles, em sua Poética, escreveu:
Não se chama de poeta alguém que expôs em verso um assunto
de medicina ou de física! Entretanto nada de comum existe entre
Homero e Empédocles, salvo a presença do verso. Mais acertado
é chamar poeta ao primeiro e, ao segundo, fisiólogo. De igual
modo, se acontece que um autor, empregando todos os metros,
produz uma obra de imitação, como fez Querémon no Centauro,
rapsódia em que entram todos os metros, convém que se lhe
atribua o nome de poeta. É assim que se devem estabelecer as
definições nestas matérias.
62
A palavra literatura foi (e ainda é) usada em termos gerais, como por
exemplo, para falar de publicações de uma determinada área. Assim, é comum
dizer “a literatura científica”, “literatura do Direito”, etc. No entanto, quando nos
referimos à Literatura, estamos falando de produções artísticas, de obras
produzidas intencionalmente com um trabalho estético sobre a palavra.
Nelly Novaes Coelho afirma que:
Literatura é Arte, é um ato criador que por meio da palavra cria
um universo autônomo, onde os seres, as coisas, os fatos, o
tempo e o espaço, assemelham-se aos que podemos reconhecer
62
Aristóteles, Arte poética. In: Os pensadores, p. 18.
36
no mundo real que nos cerca, mas que ali transformados em
linguagem – assumem uma dimensão diferente: pertencem ao
universo da ficção.
63
A autora explica a diferença entre a linguagem literária e a científica
colocando que a literária busca expressar estilisticamente a beleza, a emoção
ou a verdade essencial de uma realidade ou experiência, enquanto que a
científica é referencial, procurando transmitir informações idéias ou um
conteúdo de caráter científico, histórico, filosófico, político, didático, etc
64
.
Porém, há momento em que literatura e ciência se entrelaçam para
expressar alguma idéia. Várias obras de ficção anteciparam avanços
científicos. Júlio Verne, com suas obras de ficção científica antecipou algumas
questões do mundo científico
65
.
A literatura denominada de ficção científica floresceu no século XIX,
talvez porque nesse século a ciência tenha tido um avanço descomunal. Foi
nesse século que surgiram a energia elétrica, o telefone, o telégrafo e havia
promessas de outras descobertas científicas que acenavam no horizonte, o
que veio a confirmar-se no século XX.
Dessa forma, não é de se estranhar que a Literatura, como um campo
de questionamento e expressão das angústias humanas, reflita o momento
histórico e surjam várias obras em que os avanços científicos e os
questionamentos a eles apareçam. Além de Júlio Verne, vários outros
escritores tratam de questões científicas em suas obras: Augusto dos Anjos,
63
Nelly Novaes Coelho. Literatura e Linguagem (a obra literária e a expressão lingüística),
p.36.
64
Idem, ibidem. p. 15
65
Pedro da Cunha Pinto Neto, Júlio Verne: o propagandista das ciências. Revista Ciência e
Ensino (12, 2004). .
37
Mary shelley, com Frankstein e Bram Stoker, com Drácula foram autores que
também trouxeram a ciência para dentro de suas obras literárias. Mary Shlley
faz um questionamento sobre a ética e os limites da ciência; Bram Stoker
levanta a questão sobre ciência e superstição
66
.
1.1.5 A POESIA CIENTIFICISTA NO BRASIL
No Brasil, a poesia cientificista desenvolveu-se com a Escola de Recife.
Entretanto, a poesia já se encontrava presente na Literatura Brasileira desde os
seus primórdios. Em Prosopoeia (1601) de Bento Teixeira e considerada como
o marco introdutório dos movimentos literários no Brasil. Podemos encontrar
relações com a astronomia e geologia em algumas passagens.
67
Mas foi com José Izidoro Martins Júnior (1860-1904) que a poesia
cientificista se intensificou no Brasil
68
. Ele escreveu uma tese intitulada A
Poesia Científica – esboço de um livro futuro (1883). Ele assim se expressou:
A Arte de hoje, creio, se quiser ser digna do seu tempo, digna do
século que deu ao mundo a última das seis ciências fundamentais
da classificação positiva, deve ir procurar as suas fontes de
inspiração na Ciência; (...) homem civilizado, corresponde
presentemente, no domínio do sentimento, esta escola de poesia a
66
L. Rocque,. e L. A Teixeira, “Frankenstein, de Mary Shelley e Drácula, de Bram Stoker:
gênero e ciência na literatura”, História, Ciências, Saúde — Manguinhos 8 (1, 2001) 10-34.
67
Fonte: WWW.joaquimcardoso.com/paginas/joaquim/depoimentos/poesia.htm acessado em
17/3/2010.
68
Tobias e Sílvio Romero os precursores da chamada poesia filosófico-científica, na Escola de
Recife.
38
científica. Entendo que modernamente ela, a poesia, deve ser
científica
69
Fruto da idéia progressista na época, a poesia cientificista brasileira veio
preencher as lacunas de um grupo interessado em transmitir seu lirismo
através da terminologia científica e tecnológica vigente da época.
Infelizmente Martins Júnior não conseguiu concretizar seu projeto
literário. Entretanto, poetas que o sucederam como Cruz e Sousa e Augusto
dos Anjos seguiram a mesma trilha. Posteriormente as relações entre poesia e
ciência tiveram adeptos no Modernismo, mas com novas roupagens, novas
linguagens. Benedito Monteiro (1899-1970) e Joaquim Cardozo (1897-1978). O
trecho poético abaixo trata da vida em construção geométrica, os espaços, os
movimentos:
De uma escultura escondida, no escuro do interno;
Somente visível, “de fora”, por dois pontos:
Dois pontos furos: simples pontos
simples furos
E nada mais.
70
69
Fonte: WWW.joaquimcardoso.com/paginas/joaquim/depoimentos/poesia.htm acessado em
17/3/2010.
70
Fonte: WWW.joaquimcardoso.com/paginas/joaquim/depoimentos/poesia.htm acessado em
17/3/2010.
39
Em João Cabral e Melo Neto (1920-1999) encontramos as marcas da
tecnologia, da construção civil:
O engenheiro
À Antônio B, Baltar
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro
O engenheiro pensa sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água,
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número;
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre...
Hoje temos referência o poeta e músico Arnaldo Antunes
O Pulso
O pulso ainda pulsa
O pulso ainda pulsa...
Peste bubônica
Câncer, pneumonia
Raiva, rubéola
Tuberculose e anemia
Rancor, cisticircose
Caxumba, difteria
40
Encefalite, faringite
Gripe e leucemia...
E o pulso ainda pulsa
E o pulso ainda pulsa
Hepatite, escarlatina
Estupidez, paralisia
Toxoplasmose, sarampo
Esquizofrenia
Úlcera, trombose
Coqueluche, hipocondria
Sífilis, ciúmes
Asma, cleptomania...
E o corpo ainda é pouco
E o corpo ainda é pouco
Assim...
Reumatismo, raquitismo
Cistite, disritmia
Hérnia, pediculose
(...)
Assim...
71
também desde a virada do século XXI outra forma poética ligada à
tecnologia digital, a nanopoesia. O artista Júlio Plaza(1938-2003) foi um dos
71
http://letras.terra.com.br/arnaldo-antunes/1114673/ acessado em 20/04/2010.
41
pioneiros a unir palavras com meios eletrônicos e digitais. No Brasil, o poeta e
compositor Juli Manzi realizou em 2006 o primeiro nanopoema brasileiro. Suas
medidas 35X440 nanômetros (mn). Unindo assim, poema em mídias não
usuais diferenciadas.
72
1.2
AUGUSTO
DOS
ANJOS
E
SUAS
CONTRIBUIÇÔES
Augusto dos Anjos (1884-1914) ultrapassou a função a poética e foi
buscar águas em outros mares. Mares da filosofia, mares da arte através das
palavras, mares da ciência. Entrelaçou a arte com pensamentos científicos e
filosóficos do final do século XIX e o início do século XX. Deste feliz casamento
nasceu a sua poesia. As metáforas científicas encontradas nos seus textos
poéticos provocam uma ruptura semântica transformando-o num poeta
singular, diferente, provocador.
Como vimos na seção anterior deste capítulo, viveu na época de união
entre a ciência e a tecnologia. Dos avanços tecnológicos, das mudanças
profundas da economia mundial, do triunfo do capitalismo como meio de
produção. Da realidade das máquinas, dos transportes e das novas teorias
sociais. A ciência e a industrialização seriam presenças marcantes no cotidiano
das pessoas.
Augusto sentiu na pele a falência, o coronelismo, a decadência do
nordeste, região na qual nasceu e viveu até os vinte seis anos de idade. Numa
72
http://www.cronopios.com.br/site/internet.asp?id=3980 acessado em 10/04/2010
42
das inúmeras cartas escritas à sua irmã encontramos a seguinte declaração a
respeito da cidade de Recife onde viveu o período de 1903 a 1907 estudando
na Faculdade de Direito na Escola de Recife: À minha saúde de uns 15 dias
mais ou menos não tem sido muito boa, por me haverem aparecido umas
cólicas intestinais, que atribuo às péssimas condições de potabilidade da água,
aqui no Recife...
73
No final do século XIX assistiu ao entrecruzamento de várias correntes
científicas e filosóficas e também de algumas tendências artísticas literárias.
Visões de um mundo marcado por mudanças profundas em diferentes setores:
cultural, social, político, econômico. Revoltas e crises econômicas, a Belle
époque, conviviam lado a lado com as importantes invenções como o avião, o
automóvel e o cinema.
Os textos poéticos de Augusto dos Anjos são reflexões desse momento,
desse espírito irreverente, dessa ruptura em relação ao passado. Ele trabalhou
e transformou a dor do ser humano na palavra e a utilizava como novo
instrumento o diálogo entre a lírica e a ciência.
Chega-se a essa conclusão porque o mesmo viveu a experiência das
substâncias químicas, das macromoléculas, da excitação dos elétrons, das
proteínas, os hormônios, as enzimas, dos vermes, da força centrípeta, dos
corpos em decomposição, dos cérebros radiantes.
Augusto dos Anjos fazia com as palavras, transformações químicas,
bioquímicas, físicas, matemáticas. Para Jorge Luiz Antônio, “A primeira vista,
parece-nos que o poeta consultava não um dicionário de rimas, como os
73
Alexei Bueno, Augusto dos Anjos, obra completa, p. 234.
43
parnasianos faziam, mas um manual de Biologia e de Patologia para compor
versos”
74
.
Influência mais forte do poeta foi a recorrência à ciência para definir
melhor as suas preocupações com a origem da angústia moral que, a seu ver,
atormenta a humanidade. Sua linguagem misturava palavras inusitadas, muitas
ligadas à terminologia científica, causavam uma poesia de estranhamento,
pois, usava termos na época considerados antipoéticos como o verme, escarro,
feto, germe.
Os temas também inquietantes, a prostituta, as substâncias químicas
que compõem o corpo humano, a decrepitude dos cadáveres, os vermes, os
sêmens e etc. Encontra-se a supremacia da Ciência e ao homem, as
substâncias, as energias do universo que o geraram, que o mesmo não é
feito de carne, sangue, moléculas e tudo se arrasta para a podridão.
Augusto dos Anjos era independente perante o panorama da literatura
brasileira na época. Estava entre Cruz e Sousa e os modernistas. Escreveu um
livro, EU. Livro de linguagem chocante, de vocábulos científicos, filosóficos,
pessimistas e diferentes de todos em nossa literatura. Estava entre a retórica
“científica” dos anos 70 e a inflexão simbolista dos princípios do século
75
Sua forma poética fugia dos cânones literários do Parnasianismo e do
Simbolismo
76
. Construiu uma forma particular e peculiar de escrever poesia.
Reproduzia o que vivia e o que estava ao seu redor tendo como base o
propalado científico e o que acontecia nos últimos anos do século XIX, culo
74
Jorge Luiz Antônio. Ciência, arte e metáfora na poesia de Augusto dos Anjos, p.18.
75
Ferreira Gullar, Augusto dos Anjos toda a poesia, p.12.
76
R. Magalhães Jr, Poesia e vida de Augusto dos Anjos, p. 33.
44
do ufanismo científico, da euforia do conhecimento e da ilusão do progresso
ilimitado, criador de uma relativa onipotência do homem sobre a matéria.
Aderiu aos postulados de Darwin, do Monismo de Spencer, de Ernest
Haeckel e produziu pensamentos científicos líricos através de um vocabulário
musical, fonético, autêntico. O eu lírico encontrado nas suas poesias era uma
espécie de porta-voz dos micro-organismos de todos os seres e não apenas do
ser humano.
O monismo evolucionista de Ernest Haekel, nas palavras de Augusto
dos Anjos se transformava na base para a exploração do caráter evolutivo do
universo e ao mesmo tempo, paradoxalmente numa forte negação da vida,
demonstrando o forte pensamento finissecular que “pairava” no ar para muitos
na época.
Augusto dos Anjos particularmente utilizava o vocabulário científico para
demonstrar a miséria humana,
77
a realidade da época, o sublime e o banal, o
consciente, a reprodução humana e muitos outros assuntos e via-se que a
literatura demasiada de Haeckel e Spencer deixara-lhe um sulco profundo na
inteligência. No mundo ele via sempre combinações cósmicas, as alianças
elementares, as convulsões sísmicas, as revoluções telúricas e siderais, o
amálgama de todas as forças latentes do Universo, submentidas à fatalidade
das leis físicas e biológicas e tendendo para a harmonia e a unidade da Vida.
78
A ciência para o poeta não explicava os problemas cósmicos e ao
mesmo tempo revelava mundos sobre mundos. Utilizava-a para expor as
substâncias das substâncias.
77
Ferreira Gullar, Augusto dos Anjos toda a poesia, p.12.
78
José Paulo Paes, Augusto dos Anjos, .20
45
Era um poeta do futuro, trabalhou os sentidos dos homens modernos.
aceitou e adotou a ciência da era em que viveu e adaptou-a, ajustou-a ao que
estava vivendo e com que vivia ao seu redor.
EU foi publicado quase 20 anos depois do florescer da poesia científica
liderada por José Izidoro Martins Júnior.
46
CAPÍTULO 2
CIÊNCIA E LITERATURA EM DEZ POESIAS DE
AUGUSTO DOS ANJOS
A literatura antecipa sempre a
vida. Não a copia, amolda-a aos
seus desígnios
79
.
Neste capítulo analisaremos de que forma a terminologia científica
aparece nos textos de Augusto dos Anjos. Como dissemos na Introdução desta
dissertação, selecionamos dez poesias onde a terminologia científica está mais
voltada para a área biológica. Estes poemas fazem parte da obra EU ,
publicada em 1912 pelo autor.
79
Oscar Wilde, Livro dos aforismos, p. 35.
47
A Ideia
De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cal de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?
Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!
Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...
Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!
Esse poema, escrito em forma de soneto
80
, tem uma forma de ir
narrando o processo de nascimento de uma idéia, como mostra o título. O eu-
80
Um soneto é uma obra curta criada para transmitir uma mensagem em seus catorze versos,
divididos em dois quartetos (grupos de quatro versos) e dois tercetos (três versos), ou três
quartetos e um dístico (dois versos).
48
lírico
81
vai discorrendo sobre o fato, usando palavras raras, como criptas,
estalactites, força centrípeta, entre outras. Como vemos, ele mistura palavras
da biologia, da física e da geologia, como é comum em seus poemas e compõe
uma obra única.
Dentre a terminologia científica empregada aparecem quatro palavras/
expressões relacionadas direta ou indiretamente à biologia (língua paralítica,
encéfalo, laringe, psicogenética); duas voltadas para a física (força centrípeta e
luz); uma relacionada à astronomia (nebulosas) e uma à geologia. Interessante
que o autor utiliza uma terminologia que diz respeito à distinção entre seres
vivos e o mundo inorgânico (matéria bruta).
Parece-nos que maior riqueza desse poema é o processo de
construção, que começa em forma de pergunta e depois responde,
desenvolvendo uma espécie de tese sobre o surgimento de uma idéia e a
mostra como uma coisa maravilhosa. O movimento é forma quase uma
imagem: é quase como se víssemos as ondas cerebrais movendo-se dentro da
cabeça até chegar à concretização, à palavra, como o eu-lírico coloca no final
do poema.
Porém, a palavra, para o eu-lírico, não consegue acompanhar a idéia
que muito maior que a palavras, expressão dessa idéia. Isso fica claro nos dois
últimos versos da penúltima estrofe: Chega em seguida às cordas da laringe, /
Tísica, tênue, mínima, raquítica... E a tese se fortalece na última estrofe,
quando o eu-lírico afirma que a idéia Quebra a força centrípeta que a amarra,/
81
Convenciona-se chamar de eu-lírico à voz que fala no poema, assim como existe o narrador
nas narrativas.
49
Mas, de repente, e quase morta, esbarra /No molambo da língua paralítica!
Nesses versos, ele expressa a dificuldade de as palavras acompanharem a
idéia e mostra toda a sua frustração, já que a língua para ele, está paralítica.
Embora o autor utilize uma terminologia científica, seu texto é diferente
do texto científico devido à sua subjetividade. O texto científico tem o objetivo
de explicar de forma clara, enquanto que o poema busca um tratamento
estético para, não apenas explicar, mas agradar ao leitor. Nesse sentido, o
poema fala da dificuldade da expressão, algo que a ciência, nesse texto, não
está preocupada em desenvolver por não ser a questão sobre a qual está
debruçada.
SONETO
Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 meses incompletos. 2
fevereiro 1911.
Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronial,
50
Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinergia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A minha morfogênese ancestral?!
Porção de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!
Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!
Esse poema carrega uma melancolia profunda pela morte de uma
criança, colocada na introdução como nascido morto com 7 meses
incompletos. No entanto, esse feto de sangue parece nascer também de sua
ideia, aparece nos versos. Filho da grande força fecundante/De minha brônzea
trama neuronial, que trama neuronial remete à mente e cérebro e força
fecundante remete à fecundação, mas também à criação, talvez a criação
poética.
Novamente, a linguagem poética flerta com a científica, buscando no
vocabulário biológico termos próprios para desenvolver o poema. A palavra
morfogênese advém da biologia, significando o processo de criação dos seres
vivos, portanto está ligada à criação em geral. A palavra feto está voltada para
51
a embriologia e se refere à fase embrionária que segue à fase de embrião, o
que remete a algo em formação, podendo estar relacionado também ao
processo de criação, nesse caso, natimorto.
Fechando o poema, a criança natimorta não terá infância, é aquela que
não será nunca, porque não existiu, foi destruída antes de nascer. Assim, o eu-
lírico faz uma alusão ao seu processo de criação, às dificuldades em se
escrever um poema, em criar. O feto está panteisticamente dissolvido, ou seja,
pelos deuses. Esse vocábulo, um neologismo, vem de panteísmo, remetendo
às religiões panteístas, ou seja, ligada a mais de um deus. Nesse caso, o feto
foi dissolvido por vários deuses, remetendo a uma força maior, algo
incontrolável que o transforma num não ser, como mostra o termo
noumenalidade, outro neologismo criado por Augusto dos Anjos, originado de
nous, palavra grega que significa razão ou inteligência. Dessa forma, o feto
dissolvido pode significar a inteligência que se dissolve no nada do não ser.
VERSOS A UM COVEIRO
Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!
52
Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!
Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais:
Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números,
A tua conta não acaba mais!
O poema de Augusto dos Anjos, Versos a um coveiro, possui vários
termos do campo semântico da matemática e se refere ao filósofo pré-socrático
Pitágoras que considerava que o princípio de todas as coisas existentes eram
os números. Utiliza bastante a terminologia da matemática: algarismos;
aritmética; progressão dos meros inteiros e da lógica, silogismos. Mas, além
disso, tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros, termos que fazem parte da
biologia.
Esse poema parece, à primeira vista, uma ode
82
a um coveiro
comparando-o a Pitágoras.
82
Ode significa uma canto de exaltação, de louvor a algo ou a uma pessoa.
53
Para o eu-lírico, essa aritmética é hedionda, o que significa que a
considera repulsiva horrível, repugnante ou que lhe provoca intensa indignação
moral. No contexto do poema, os dois sentidos estão interligados, já que
podemos notar a intensa indignação do eu-lírico pela indiferença do coveiro ao
exercer o seu oficio.
O emprego de termos cnicos parece demonstrar alguma racionalidade
à morte, tratada como realidade objetiva, quantificável, sem mistificação. Essa
perspectiva parece dialogar com o sentimentalismo e subjetivismo da tradição
romântica, que idealiza a morte como evento transcendental, porém, para esse
eu-lírico, a morte é física, quantificada e reduzida a carnes podres, uma
imagem bem realista à transformação do corpo depois da morte.
Para o eu-lirico, esse coveiro é ascético, ou seja, místico, contemplativo,
o que nos parece uma ironia, uma vez que ele está reduzindo o ato de enterrar
os mortos a algo frio, mecânico, digno de enumerar os pobres cadáveres
tábidos, ou seja, podres, extenuados.
Fechando o poema, o corpo defunto se fragmenta em nomes de partes
do corpo, tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros, mostrando a fragmentação
e decomposição que ocorre depois da morte, levando o corpo a reduzir-se a
apenas partes e, nesse caso, ossos. Notamos que o poema vai se
decompondo também, à medida que mostra a decomposição humana, unindo
forma e conteúdo. E, o que parecei uma ode, mostra que é uma cantiga de
maldizer, pois a imagem do coveiro é a da própria morte, o que o eu-lírico está
execrando: o fato de que todos morremos e que nosso fim é a cova.
54
BUDISMO MODERNO
Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!
Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;
Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo.
Nesse poema o eu-lírico se dirige a um interlocutor a quem denomina
Dr., abreviatura de doutor, que para nós, falantes de português, significa
médico. Nesse sentido, o eu-lírico parece estar à beira da morte, já que coloca
55
Que importa a mim que a bicharia roa/Todo o meu coração, depois da morte?!.
No entanto, isso soa contraditório, uma vez que médico é aquele que traz a
cura. A voz lírica manda cortar a minha singularíssima pessoa, o superlativo
aqui revela como ele se vê: como alguém muito diferente do comum, que
não apenas se considera singular, mas singularíssimo.
As palavras usadas o relacionadas à Biologia, algumas emprestadas
da botânica já que criptógama, diatomáceas são relacionadas a algas. Outras a
como célula e óvulo infecundo referentes à citologia. No entanto, a voz lírica
lamenta que um urubu pousou na sua sorte,mostrando que não estava numa
fase boa. Essa frase contradiz o título, uma vez que o Budismo, religião
oriental que vem dos ensinamentos de Buda
83
e prega a serenidade, a paz e
aceitação. De acordo com o Budismo as pessoas sofrem porque não
aprenderam a aceitar a dor como parte natural da vida. Aceitando isso, a
serenidade vem depois que as pessoas aprendem a dominar o desejo.
A negação do corpo, que aparece na primeira estrofe com Que importa a
mim que a bicharia roa/Todo o meu coração, depois da morte?!, tem ligação
com os preceitos do budismo, no entanto, o eu-lírico quer deixar sua marca no
mundo a partir da poesia, como demonstra a última estrofe. Parece que está
a idéia de budismo moderno: o desprendimento físico, mas que não
acompanha o desprendimento da memória que ser pretende deixar na vida.
83
O Budismo foi fundado na Índia, no séc. VI a.C., pelo Buda Shakyamuni. O Buda
Shakyamuni nasceu ao norte da Índia (atualmente Nepal) como um rico príncipe chamado
Sidarta. Religião do poeta.
56
O DEUS-VERME
Fator universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme - é o seu nome obscuro de batismo.
Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.
Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrôpicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...
Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!
Esse poema retoma o principal tema do poeta, a morte. O eu-lírico cria
uma ode ao verme, chamando-o de deus. Na primeira estrofe ele apresenta o
verme como algo que se transforma e que é filho de uma matéria finita, pobre
ou rica. Colocando que se nome obscuro de batismo é verme, o eu- lírico o
57
alça à categoria de pessoa, já que somente as pessoas são batizadas e
possuem nome.
Na segunda estrofe o eu-lírico mostra a função do verme descrito: a
ocupação funérea, ou seja, relacionada à morte. O vocabulário é peculiar, pois
o poeta utiliza-se de termos não comuns para conseguir um efeito estético. O
verme, aqui animado, vive em contubérnio com a bactéria, que se precisa
dos dois para a decomposição de um corpo.
De acordo com o eu-lírico, o verme também está livre das roupas do
antropomorfismo, o que demonstra que ele não foi feito à semelhança de Deus,
não possuindo atos divinos.
Nas duas últimas estrofes, o verme, apenas descrito, mostra a função, a
de roer, comer e fazer inchar os cadáveres, seja de humanos, seja outros
materiais orgânicos e a carne podre é o seu banquete. O que se nota é uma
exaltação ao verme roedor de nossas entranhas depois da morte, que ele
acaba tendo mais vida que nós, finitos que somos. A melancolia e indignação
com o fato de sermos apenas carne, a negação do espírito parece nesse
poema de forma nua e crua.
O autor utiliza também uma terminologia voltada para a evolução que se
traduz nas palavras transformismo, que muitas vezes é aplicada á teoria de
Lamarck, principalmente por autores franceses, embora o próprio Lamarck não
se referisse à sua teoria utilizando esta terminologia e “teleológica”: a transfor-
58
mação das espécies com uma finalidade. Utiliza também um termo relacionado
à botânica, “drupas” que se refere a um tipo de fruto. Além desses, faz uso de
seus termos favoritos como, por exemplo, verme e sceras que refletiam as
dificuldades relacionadas à sua própria história de vida permeada pela perda
de filhos e à fragilidade de sua saúde.
VERSOS A UM CÃO
Que força pôde adstrita e embriões informes,
Tua garganta estúpida arrancar
Do segredo da célula ovular
Para latir nas solidões enormes?!
Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
Suficientíssima é, para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar
Dos teus antepassados vermiformes.
Cão! - Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais...
E irás assim, pelos séculos, adiante,
Latindo a esquisitíssima prosódia
Da angústia hereditária dos teus pais!
59
O poema versos a um o parece, à primeira vista, dirigir-se para o
animal referido no título. Mas uma leitura mais profunda mostra que fala de
uma pessoa, possivelmente o próprio poeta. A pergunta feita de forma perplexa
surge na primeira estrofe: por que nascestes?
O vocabulário utilizado mostra o modo como o eu-lírico esse suposto
cão. Ele surge de uma força adstrita, ou seja, submetida, presa. A sua
inconsciência é obnóxia, que significa desprezível; sua alma é avoenga, que
vem dos avós, ancestral; os antepassados são vermiformes. Como se vê, a
visão que se tem do descrito é a pior possível.
A idéia que o cão é próprio poeta aparece nas penúltimas e última
estrofe, que ele afirma que Cão! - Alma de inferior rapsodo errante! E a
palavra rapsodo alude à poeta, aquele que canta uma esquisitíssima prosódia,
nesse caso herdada da angústia de seus pais. O seu papel de rapsodo é a de
acalmar a alma sofredora, angustiada. Surge aqui uma referência à função da
poesia, a de ser expressão de uma pressão interna.
Neste poema o autor se refere a vários termos que fazem parte da
embriologia como, por exemplo, embriões, célula ovular e volta a se referir aos
vermes relacionados à putrefação, à morte e à miséria da condição humana.
60
PSICOLOGIA DE UM VENCIDO
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão
e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Um dos poemas mais divulgados de Augusto dos Anjos, psicologia de
um vencido trabalha com o tema da finitude do corpo: o homem, ser orgânico
que surge do carbono, volta à terra, como na máxima católica afirma que so-
61
mos pó e ao voltaremos. O autor utiliza uma terminologia relacionada à
química ao se referir à decomposição do corpo (carbono, amoníaco) e á
biologia, vermes.
No entanto, o eu-lírico afirma que é monstro de escuridão e rutilância,
deixando clara a contradição que somos, que rutilante é o que possui brilho
próprio. Lamenta o eu-lírico que desde a infância é perseguido pela influência
má dos signos do zodíaco, revelando a crença na astrologia, ou uma visão que
o destino humano já vem traçado ao nascimento .
A palavra profundissimamente vem reforçara idéia de hipocondríaco,
que é quem se imagina muito doente. O ambiente em que vive causa-lhe
angústia, a ponto de sentir-se doente, como um cardíaco. Essa náusea vem de
sua angústia existencial, como mostra Porto
84
:
O poema se estrutura, pois, numa forma cíclica: o homem provém do
mundo inorgânico e a ele retorna. É o próprio ciclo da vida e da morte retratado
no soneto. O que acontece de permeio? Dor, sofrimento, e a presença
constante e ameaçadora da morte inevitável. Augusto dos Anjos se classifica
como um ‘monstro’ no segundo verso; mas um monstro de escuridão e
rutilância. Neste paradoxo de claroescuro caracteriza-se o ser humano, que
guarda dentro de si o bem e o mal, o anjo e o demônio simultaneamente.
O verme que corrói aparece nas últimas estrofes como mais um
elemento do poema, como nos outros em que apareceu, parece ser uma espé-
84
PORTO, Paulo Alves. Ciência e poesia em Augusto dos Anjos. In: Revista Química Nova na
escola, n 11, Maio 2000. disponível em: http://qnesc.sbq.org.br/online/qnesc11/v11a07.pdf-
acessado em 21/04/2010
62
cie de ser superior que sobrevive aos humanos e lhes come a carne em
decomposição. Parece que esse verme é o símbolo da inevitabilidade da
morte, que causa angústia ao eu-lírico e a todos os humanos.
O MORCEGO
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
63
Morcego é um animal mamífero que voa. Durante um bom tempo o
morcego teve um significado negativo por sua relação com a noite (escuridão)
e com o sangue, que muitos deles são hematófagos, além de terem uma
aparência estranha. Ainda hoje no imaginário, na literatura e no cinema, o
morcego aparece ligado aos vampiros. Dessa forma, esse poema de Augusto
dos Anjos evoca esse ser imaginário que causa repulsa quando aparece com o
som de suas asas flanando. César Ades
85
define bem essa questão:
O que é ser um morcego? O morcego é um objeto instigante de reflexão
por diferir tanto de nós, animais visuais, na maneira de orientar-se no espaço:
através do eco, quando no escuro. O uso de um sistema sensorial tão exótico e
especializado coloca a questão da discrepância entre as consciências, a nossa,
humana e a do morcego e a da possibilidade de transposição. O que é ser um
morcego (What is it like to be a bat?) também é o título de um artigo clássico
em que Nagel (1974) estuda a possibilidade de referir-se aos conteúdos de
consciência em termos das ciências objetivas, como a física. É uma
convergência propícia que o morcego seja objeto de reflexão tanto para o
etólogo quanto para o físico e o filósofo.
E também para o poeta, como mostra Augusto dos Anjos, que, como se
dialogasse com Ades, coloca o morcego como a consciência humana. No
entanto, é uma consciência que incomoda, pois ele tenta trancá-la e ela lhe
85
, César Ades, .” O morcego, outros bichos e a questão da consciência animal”. In: Revista de
Psicologia, USP, Vol. )8, n 02, 1997,. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65641997000200007- acessado
em 21/04/2010
64
morde a garganta. Ele tenta matá-la com um pau, tenta tocá-la, mas ela é feia
e causa repugnância. Vê-se que o eu-lírico tenta fugir, matar, trancar essa
consciência, mas ela vem atormentá-lo à noite.
A angústia que causa a consciência é semelhante à náusea provocada
pelo morcego e não se pode fugir dela, afirma o eu-lírico. Como estão em letras
maiúsculas, essas palavras referem-se à consciência humana em geral,
mostrando o quanto nos atormentam, a ponto até de causar insônia. A estrofe
que fecha o poema deixa isso claro: tal qual um morcego horripilante, ela entra
à noite em nosso quarto.
VERSOS ÍNTIMOS
Vês? Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
65
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Versos Íntimos talvez seja o poema mais conhecido de Augusto dos
Anjos, citado em livros didáticos e em antologias em geral. Dirigido a uma
segunda pessoa, o poema é construído em cima de proposições e imperativos.
Na primeira estrofe o eu-lírico se dirige a um interlocutor imaginário,
dizendo - lhe que a Ingratidão, assim com maiúscula, - o que mostra a sua
animação a companheira dele. Na segunda estrofe a palavra Homem
também está em maiúscula, mostrando que se refere à humanidade e não a
um ser apenas.
As terceira e quarta estrofes fecham o argumento do poema. Aqui o eu-
lírico utiliza o verbo no imperativo para propor a sua tese: o ser humano não é
confiável, portanto todos devem atacar antes de serem atacados.
Neste poema ele se refere a um mamífero: a pantera que escura.
66
MATER ORIGINALIS
Forma vermicular desconhecida
Que estacionaste, mísera e mofina,
Como quase impalpável gelatina,
Nos estados prodrômicos da vida;
O hierofante que leu a minha sina
Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.
Nenhuma ignota união ou nenhum nexo
À contingência orgânica do sexo
A tua estacionaria alma prendeu...
Ah! De ti foi que, autônoma e sem normas,
Oh! Mãe original das outras formas,
A minha forma lúgubre nasceu!
Nesse poema o poeta coloca a origem, o surgimento da vida. Para ela, a
vida surge de uma forma vermicular desconhecida, deixando entrever que
considera a pequenez da vida, para ele mísera e mofina. O vocabulário revela
a preciosidade com que escolhe cada palavra para dar esse acabamento
estético e sonoro ao poema.
67
A palavra prodrômicos significa anúncio, mas também sintoma de
doença, o que nesse contexto, tem sentido suplo, que a vida é mofina, ou
seja, pequena, rasteira. O termo Hierofante significa adivinho, mas também é o
nome de uma carta do tarô, que simboliza cerimônia, ritual.
A referência a Spencer tem ligação com o fato que esse cientista criou a
tese segundo a qual a evolução se processa: (a) do mais simples para o mais
complexo; (b) do mais homogêneo para o mais heterogêneo; (c) do mais
desorganizado para o mais organizado. Ele também tratou da evolução da
sociedade, sublinhando a importância dos processos de interdependência das
partes, bem como a da existência de unidades (células) nos organismos e nas
sociedades (ou seja, nos indivíduos). Spencer insistirá no fato de que, tal como
nos organismos, também nas sociedades se observam fenômenos de
assimilação, circulação, regulação, etc.
86
Dessa forma, fica claro no poema a visão do eu-lírico que a sua origem é
de uma forma primária, ou seja, um verme. A origem da vida e sua evolução
aparecem no poema, mas sem entusiasmo, com melancolia e amargura, já que
o poeta se coloca como uma forma lúgubre, com o significado de nebre,
sinistro, triste, lamentoso.
86
Fonte: http://educacao.uol.com.br/biografias/herbert-spencer.jhtm - acessado em 21/04/2010
68
O LAMENTO DAS COISAS
Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos
O choro da Energia abandonada!
E a dor da Força desaproveitada
- O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!
É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza.
Da luz que não chegou a ser lampejo...
E é em suma, o subconsciente aí formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!
Esse poema mostra a tristeza, a inércia, pois o eu-lírico está parado
escutando o relógio, como sugere os dois primeiros versos da primeira estrofe.
Nota-se, no poema, as palavras relacionadas ao universo da Física: Orbe,
Energia, Força, dínamo, estática, o que revela a genialidade do poeta. Orbe
69
significa mundo, esfera, círculo, remetendo a algo que está em movimento.
Energia significa a força, potência, vigor. Do ponto de vista da Física, energia é
o que possui um corpo em função de seu movimento.
Dessa forma, na primeira estrofe, o eu-lírico parece ouvir a energia em
movimento saindo do fundo da terra. Mas não é uma energia positiva, que
ele ouve o choro da Energia abandonada. A Força que surge também é
desaproveitada, remetendo a uma inutilidade das coisas, pois o dínamo que
poderia mover está estático no Nada. Do ponto de vista filosófico, O Nada é a
negação do Ser, o conceito do vazio sem objeto
87
.
As duas últimas estrofes que fecham o poema revelam a razão do
lamento: a forma é imprecisa, a luz não brilha, a transcendência não se realiza.
Tudo fica no subconsciente e apenas é um Desejo. A palavra Desejo, com
maiúscula, tem o sentido de uma força que move o ser humano, apetite que
impele o ser humano para a ação
88
. Mas, par ao eu-lírico, o desejo é algo
rudimentar, primário.
As palavras transcendência, cantochão remetem a um universo
religioso, o que sugere também uma ligação com budismo, uma vez que esse
prega que o ser humano poderá ser feliz ou superar a dor quando superar o
desejo. Nesse sentido, a força que move a natureza, o desejo humano, deverá
levar ao Nada, uma ausência total de sofrimento.
87
Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. p. 695-697
88
Idem, p. 241.
70
CAPÍTULO 3
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo mostrou que existe uma compatibilidade entre ciência e
literatura. Mas, além disso, a dificuldade de se trabalhar com interfaces,
apesar da grande riqueza que esse tipo de estudo pode oferecer.
Não poderíamos ter encontrado um objeto de estudo mais propício do
que a poesia cientificista de Augusto dos Anjos. Pode-se dizer que ele tinha
conhecimento do que se fazia em ciência em sua época, principalmente no que
se refere à biologia cuja terminologia é amplamente utilizada em seus poemas,
Provavelmente, boa parte deste conhecimento foi proveniente das discussões
mantidas com os intelectuais da Escola de Recife.
A poesia de Augusto dos Anjos está impregnada de termos biológicos
como vermes, embrião feto, encéfalo, ossos, células. Ele também se refere a
evolucionistas como Darwin, Spencer e Haeckel, cujas idéias eram discutidas
na Escola de Recife.
O pessimismo e a morbidez que povoam suas poesias refletem sua
própria experiência de vida. De família abastada, mas que perdeu tudo o que
tinha, presenciou doenças de seus familiares, abortos de sua esposa e seus
próprios problemas de saúde, agravados pela falta de recursos financeiros que
71
o levaram a viver com péssimas condições de alimentação, saúde e moradia.
Reflete também a ciência e o momento histórico em que ele viveu.
Este estudo permitiu perceber as diferenças existentes entre a poesia
cientificista e o texto científico propriamente dito. Trata-se de contribuições de
natureza e objetivos diferentes. Este, entretanto seria um tema interessante
para outra pesquisa.
72
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