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Desde jovem, Freyre entrou em contato com o mundo das artes. Lápis de cor,
tinta e aquarela foram seus primeiros meios de se expressar, preenchendo cadernos
e cadernos, quando ainda não conseguia nem ler nem escrever. Seu interesse pelo
desenho fez com que seus pais o levassem para tomar aulas com Telles Júnior, que
não recebeu bem o talento do jovem aspirante a artista, devido à sua
espontaneidade e expressividade consideradas exageradas pelo mestre de
formação acadêmica
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. Na velhice, Freyre rememora a qualidade surreal de suas
visões e a importância dos fluxos de imagens e de cores em sua imaginação infantil,
que influenciaram fortemente suas concepções em torno das artes plásticas:
Um sono de menino, o meu, às vezes perturbado por insônias nem
sempre incômodas. Nessas insônias, de olhos muito abertos, mais
de uma vez, vi, no escuro do quarto, as cores se misturarem de
maneiras, as mais surpreendentes. Cores e formas. Uns como
estímulos a pinturas um tanto anárquicas, com que por vezes me
animei a borrar meus papéis e minhas pequenas telas sem ninguém
entender borrões tão cheios de amarelos, vermelhos, azuis, roxos,
verdes, misturados. Nem eu os entendia: anárquicos, porém
vibrantes, simplesmente me davam alegria aos olhos, por passá-los,
de dentro deles, a papéis ou a telas de sua intimidade.
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Na juventude, durante o período em que viveu no exterior, ao passar por
Paris, Gilberto Freyre conviveu com Vicente do Rego Monteiro, com quem se
acamaradou e que o colocou em contato com o grupo de modernistas brasileiros,
especialmente Tarsila do Amaral e Victor Brecheret. Adulto, não deixou o desenho e
a pintura de lado. A condição visual foi umas das suas formas mais características
de se relacionar com o mundo. Como nos mostra Moacir dos Anjos:
A essencialidade da imagem para o processo analítico de Gilberto
Freyre fez com que, ao lado da reflexão ensaística e crítica sobre
artes plásticas, também buscasse, ele próprio, e mesmo após ter-se
definido e tornado escritor, dar formas e cores às suas ideias de
Brasil. Deixando transbordar, para o espaço e o tempo em que se
desenrolavam suas atividades cotidianas, a pluralidade com que
cercava seus assuntos, Gilberto Freyre retoma o gosto de menino e
torna-se pintor. Sem ambicionar ombrear-se com os artistas que
mais admira e sobre os quais escreve, a pintura é, para Freyre, além
de deleite, meio para multiplicar os pontos de vista com que
naturalmente enxerga a realidade. Parafraseando a comparação feita
por Antonio Candido entre o Gilberto sociólogo e o Gilberto escritor, é
possível dizer que, nele, quando saímos à busca do crítico
deslizamos para o pintor, e, quando procuramos o pintor, damos com
o crítico. Na visão freyreana, não há hierarquias possíveis entre o
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LARRETA, Enrique Rodrigues. Gilberto Freyre, uma biografia cultural. Rio de Janeiro: Ed.
Civilização Brasileira, 2007.
103
Ibidem, p. 25.